Artigo Filme Escolas em Luta

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

XXIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste – Belo Horizonte - MG – 7 a 9/6/2018

“Escolas em Luta”: o Documentário Ideológico em Tempos de Pós-


Verdade1

Nathan Laurette Ferreira Costa2


Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES

Resumo

Este artigo tem como objetivo refletir sobre o poder persuasivo do documentário, um
gênero cinematográfico que tem uma forte ligação com a realidade e possibilita diversas
possibilidades de representação de eventos históricos. Chamo de documentário
ideológico um subgênero em que os filmes utilizam a as linguagens e as técnicas do
gênero documentário com claras intenções de persuadir o espectador sobre determinada
ideia. Para definir os limites desse subgênero e características que possibilitem a
identificação de um documentário como parte deste grupo, usarei como base referências
das áreas de análise narrativa de literatura (Suleiman, 2001) e teoria de documentário
(Nichols, 2005; Bruzzi, 2006). Após construída, esta metodologia será aplicada na análise
do documentário “Escolas em Luta” (Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques e Tiago
Tambelli, 77 min, 2017).

Palavras-chave: cinema; documentário; política; representação; realidade.

1. Introdução

Em tempos de crise, tensão política e extremismos, é natural que política e


ideologia sejam temas recorrentes em todos os meios possíveis. É natural, também, que
esses textos assumam uma posição mais persuasiva na forma como passam essa
mensagem, assumindo-se mais e evitando as sutilezas. Além da crise política, existe
também a crise de informação: vivemos na “bolha” das redes sociais, em tempos em que
os termos “notícias falsas” e “pós-verdade” pautam debates familiares, em mesas de bar,
na mídia e no ambiente acadêmico. Essa crise de informação se dá, entre muitos outros
motivos, pela ilusão da objetividade. Sabemos que, conscientemente ou não, todo texto
carrega ideologias, sejam elas pessoais, editoriais ou institucionais. Na contingência
dessas duas crises, a política e a de informação, o documentário entra em foco com
diversas possibilidades de representação e de ativismo.

Este artigo tem como objetivo refletir sobre o poder persuasivo do documentário,
um gênero cinematográfico que tem uma forte ligação com a realidade e possibilita

1 Trabalho apresentado na DT 4 – Comunicação Audiovisual do XXIII Congresso de Ciências da Comunicação na


Região Sudeste, realizado de 7 a 9 de junho de 2018.
2 Aluno especial no Mestrado Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES

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diversas possibilidades de representação de eventos históricos. Chamo de documentários


ideológicos um subgênero em que os filmes utilizam a as linguagens e as técnicas do
gênero documentário com claras intenções de persuadir o espectador sobre determinada
ideia. Para definir os limites desse subgênero e características que possibilitem a
identificação de um documentário como parte deste grupo, usarei como base referências
das áreas de análise narrativa de literatura (Suleiman, 2001) e teoria de documentário
(Nichols, 2005 e Bruzzi, 2006). Após construída, esta metodologia será aplicada na
análise do documentário “Escolas em Luta” (Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques e
Tiago Tambelli, 77 min, 2017), que retrata o movimento de ocupação das escolas dos
estudantes secundaristas em São Paulo, em 2015.

Este estudo é derivado da dissertação de mestrado que defendi em setembro de


2017, sob o título “Document and Documentary: Identifying Ideological Documentaries
Through Narrative Analysis”3 (“Documento e Documentário: Identificando
Documentários Ideológicos através de Análises Narrativas”, em tradução própria). Na
ocasião, utilizei uma versão mais complexa da metodologia que utilizarei aqui para
analisar os filmes “A Revolução Não Será Televisionada” (“The Revolution Will Not Be
Televised”, Donnacha O’Briain and Kim Bartley, Irlanda, 2003) e “Raio-X de Uma
Mentira” (“Radiografía de una mentira”, Wolfgang Schalk, Venezuela, 2004), dois
filmes que apresentar versões extremamente opostas do mesmo evento histórico (a
tentativa de golpe de Estado da Venezuela de 2002, em que o então presidente Hugo
Chávez foi detido irregularmente por militares por menos de 2 dias). Por este motivo, a
maioria dos textos que a serem citados neste artigo não estão disponíveis em português,
inclusive o de minha autoria, e serão submetidos a tradução própria.

O trabalho referido (Costa, 2017) apresenta uma proposta de interdisciplinaridade


entre literatura e cinema (mais especificamente o documentário) para chega a uma
definição do subgênero documentário ideológico e a um modelo de análise narrativa que
permita identificar marcas ideológicas e características persuasivas em um documentário.
A principal referência para este modelo é “Authoritarian Fictions: The Ideological Novel
as a Literature Genre”4 (Suleiman, 1993), um extenso e detalhado trabalho em que a

3 Trabalho defendido para obtenção do título de Master of Arts and Culture, specialization: Creative Industries, pela
Radboud University, Nimega – Holanda, orientado pelo Prof. Dr. Tom Sintobin.
4 “Ficções Autoritárias: O Romance Ideológico como um Gênero Literário”, em tradução própria.

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autora húngara Susan Suleiman delimita as regras para identificação de uma obra como
parte do gênero literário francês originalmente denominado “roman à thèse”5 – obras de
ficção claramente motivadas a guiar o leitor em direção a uma ideologia. As referências
da área de teoria do documentário que utilizarei são Bill Nichols, que em “Introdução ao
Documentário” (2005) apresenta importantes conceitos e reflexões sobre o gênero; e
Stella Bruzzi, que em “New Documentary: A Critical Introduction” apresenta reflexões
críticas sobre o documentário e sua relação com a realidade que completam os escritos de
Nichols.

Diversas obras audiovisuais brasileiras recentes refletem o momento de


extremismos em que Brasil se encontra, ao mesmo passo em que guiam o espectador à
um dos lados antagônicos: os filmes de ficção “Polícia Federal - A Lei é Para Todos”
(Marcelo Antunez, 2017) e “Real – O Plano por Trás da História” (Rodrigo Bittencourt,
2017), os documentários “Jardim das Aflições” (Josias Teófilo, 2017), “Operações de
Garantia da Lei e da Ordem” (Julia Murat, 2017) e “O Processo” (Maria Augusta Ramos,
2018), e a série televisiva “O Mecanismo” (José Padilha e Elena Soárez, 2018) são
exemplos notáveis.

Apesar de que a metodologia para análise narrativa proposta por Suleiman (2001)
também permite ser adaptada para a análise de obras de ficção, meu maior interesse
continua sendo a relação do documentário com a realidade, as possiblidades de
representação, de apropriação e ressignificação de documentos e registros de eventos
acontecidos no mundo real. Deste grupo, escolhi “Escolas em Luta” por diversos motivos:
porque o filme relata um evento que teve uma conclusão, mas cujas consequências ainda
reverberam nos acontecimentos políticos atuais; por suas opções estéticas e narrativas,
como deixar os manifestantes se filmarem (supostamente) sem intervenções dos
cineastas; pela representação da oposição entre mídia tradicional e mídia alternativa,
mostrando como são construídos os discursos, numa tentativa de manipular a população.

O debate sobre mídia tradicional versus mídia alternativa e da manipulação dos


fatos com o intuito de persuadir a população (ou, ainda, o eleitor) também se faz muito
atual devido à recente popularização dos termos “fake news” e “pós-verdade”, fenômenos
que foram decisivos nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016 e vem causando

5 “Romance de tese”, em tradução própria.

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expectativas em relação a possíveis influências nas eleições deste ano no Brasil. Todos
os filmes aqui citados continuam extremamente relevantes neste momento que antecede
as eleições presidenciais e estaduais de 2018, em que os crescentes extremismos ditam o
clima de tensão. Nesse contexto, “Escolas em Luta” se destaca por colocar um
personagem emblemático – o ex-governador do Estado de São Paulo e atual pré-candidato
à Presidência da República Geraldo Alckmin – como principal antagonista.

Como um documentário ideológico reconstrói eventos históricos para guiar o


espectador em direção a determinada ideologia? Por que “Escolas em Luta” pode ser
considerado um documentário ideológico? Com base nessas perguntas, este artigo
investigará a bibliografia proposta e o objeto de estudo, tornando possível chegar a uma
conclusão sólida.

2. Metodologia

O objeto de pesquisa desse estudo, o documentário “Escolas em Luta”, será


submetido a uma análise narrativa que simplifica o modelo apresentado por Costa (2017,
p.12), tendo como base os autores Bruzzi (2006), Nichols (2005) e Suleiman (1993).

1. O modelo de Suleiman (1993) para estudo do gênero literário roman à thèse


pode ser adequadamente adaptado para a análise de documentários e sua
relação com a ideologia propagada por este, através das seguintes
contribuições: (a) as características que tornam possível identificar uma obra
como parte do gênero; (b) os modelos estruturais em que as narrativas
ideológicas se baseiam.

2. Para a descrição e identificação da proposta narrativa do filme, usarei o


conceito de “voz do documentário”, utilizado tanto por Nichols (2005) quanto
por Bruzzi (2005), que possibilita indicar tendências e direcionamentos de um
filme.

Através desta metodologia, acredito que será possível refletir sobre as


possibilidades de persuasão do documentário ideológico e as ferramentas usadas por este
tipo de obra para convencer seu público. Além disso, contribuir com o extenso e rico
debate sobre o documentário e a representação da realidade; e, devido ao objeto do estudo,
sobre a situação política do Brasil atual.

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3. Revisão Bibliográfica

Nesta breve revisão bibliográfica, destacarei alguns conceitos presentes nos textos
já citados que serão de grande importância na análise de “Escolas em Luta”: a relação
tridimensional entre o documento, o documentário e o evento; a representação da
realidade e o documentário ideológico.

O Documento, O Documentário e o Evento

“Um documento é um registro de um evento: pode ser uma foto, uma captura de
vídeo, uma trilha de áudio, documentos escritos ou ainda a filmagem bruta de um
documentário, ainda sem edição e finalização.” (Costa, 2017, p.14, em tradução
própria6)

Ou seja, um documento é um dos elementos de suporte do documentário, no qual


um filme se baseia para desenvolver sua narrativa. É uma representação de um evento
que real que, desapegado de contexto ou narrativa, se permitem ser interpretados e
apropriados em outras narrativas. Segundo Nichols, “Os documentários não são
documentos no sentido estrito do termo, eles se baseiam na característica documental de
alguns dos seus elementos”. (Nichols, 2005, p.68) Logo, o documentário é o responsável
por reunir esses documentos como elementos de uma narrativa, uma versão de um evento
histórico que o filme se propõe a representar. De acordo com Bruzzi, “O documento,
apesar de real, é incompleto” (Bruzzi, 2006, p.26), ou seja, apesar de possibilitar diversas
possibilidades de ressignificação, o documento continua sendo um registo válido e
autêntico da realidade. A justaposição de documentos, sendo estes produzidos
exclusivamente para o documentário ou não, é um elemento crucial para a credibilidade
e autenticidade do documentário. Os documentos funcionam como evidências de que a
versão do evento apresentada pelo documentário é autêntica.

A relação entre o documentário e o evento representado consiste em criar uma


narrativa que conta uma versão deste evento, interpretando e dando contexto à
documentos e utilizando outros elementos artísticos e dramáticos. “O documentário dá ao

6 “A document is a record of an event: it can be pictures, video footages, sound tracks, written documents, or even the
raw footage the filmmakers captured for the documentary before its edition and finalization.”

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cineasta um caminho para construir uma verdade, utilizando documentos como


evidência”. (Costa, 2017, p.15, em tradução própria7)

A Representação da Realidade

A representação é a forma como o documentário lida com a realidade, utilizando


documentos, estratégias narrativas e ferramenta fílmicas para contar uma versão. Segundo
Nichols, “O documentário re-apresenta o mundo histórico, fazendo um registro indexado dele;
ele reapresenta o mundo histórico, moldando seu registro em uma perspectiva ou de um ponto de
vista distinto.” (Nichols, 2005, p. 67)

No ato de recontar um evento histórico, o documentário também acaba


persuadindo o espectador de que sua versão é autêntica, real, válida. Nichols afirma,
ainda, que “costumamos avaliar a organização de um documentário pelo poder de
persuasão ou convencimento de suas representações e não pela plausibilidade ou pelo
fascínio de suas fabricações”. (Nichols, 2005, p. 58)

No que se refere ao poder de manipulação e persuasão de um documentário,


Nichols e Bruzzi apresentam interpretações distintas: enquanto Nichols se mostra
preocupado com essa manipulação da realidade, no sentido de que os espectadores,
ingênuos, passem a considerar a versão apresentada por um documentário como verdade
absoluta; Bruzzi afirma que tanto o cineasta quanto o público tem um papel mais ativo,
em que o cineasta não tem a intenção de representar uma verdade absoluta e espectador
também tem esta expectativa (Costa, 2017, pg. 19), consciente do poder de manipulação
do documentário e das suas estratégias narrativas. Desta forma, o documentário é,
segundo Bruzzi, um ato performativo, utilizando o conceito de performatividade
apresentado por Judith Butler em “Problema de Gênero”8, pois cineasta e espectador
realizam uma espécie de performance inconsciente nos papéis de persuasor e persuadido.
(Costa, 2017, p. 19)

Assumir que o documentário, assim como qualquer texto, é incapaz de conter esta
suposta verdade absoluta e que a representação apresentada é um ponto de vista/versão
de um evento é essencial no exercício de se fazer e assistir um documentário. Um

7 “the documentary gives the filmmaker a way to construct a truth using these documents as evidence”.
8 Butler, J. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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elemento que possibilita identificar qual o ponto de vista apresentado é o que Nichols
(2005) e Bruzzi (2006) chamam de “voz” do documentário, que seria o discurso, a versão,
uma junção da subjetividade do cineasta com suas escolhas estéticas para representar seu
objeto. Segundo Nichols, “a voz do documentário transmite qual é o ponto de vista social
do cineasta e como se manifesta esse ponto de vista n ato de criar o filme”. (Nichols,
2005, p.76)

O Documentário Ideológico

Suleiman (1993) estabelece, em “Autoritarian Fictions”, as definições de um


gênero literário – o roman à thèse, e as características que fazem uma obra ser parte deste.
Assim como o documentário ideológico, o roman à thèse é um subgênero dentro de um
gênero maior: o documentário, no caso do documentário ideológico, e o romance realista,
no caso do roman à thèse. São textos que que tem por objetivo principal a promoção de
uma ideologia através de uma narrativa. Essas semelhanças tornam possível uma análise
narrativa destes documentários utilizando alguns dos mesmos métodos propostos por
Suleiman (1993) para a análise literária, apesar das extremas diferenças entre os meios -
literatura e cinema, ficção e não-ficção.

Antes de mais nada, se faz necessária uma definição clara de ideologia e objetiva.
Suleiman (1993) contribui com uma abordagem certeira que evita confusões. Segundo
Costa (2017), a autora:

“se refere a ideologia como ‘uma noção na qual podemos chamar um discurso de
ideológico quando este se refere a, ou se identifica com, um corpo de doutrina ou
sistema de ideias reconhecido’ (Suleiman, 1993, citado por Costa, 2017) ao invés de
‘uma noção ampla na qual podemos dizer que qualquer representação da realidade
humana é dependente, e que de alguma fora expressam um ideologia mais ou menos
definida’” (Suleiman, 1993, citado por Costa, 2017). (Costa, 2017, p.23)
A definição proposta por Suleiman se faz extremamente útil pois bloqueia a
afirmação que todo e qualquer texto reproduz uma ou mais ideologias. Com as limitações
propostas, a propaganda se mostra explicitamente para o expectador. Um texto ideológico
nesse sentido, sendo este um roman à thèse ou um documentário ideológico, não pode
possuir ambiguidades ou duplos sentidos, sob o risco de não deixar a mensagem clara o
suficiente a ponto de persuadir o expectador. O texto deve interpretar-se, tornando
impossível uma interpretação diferente, de forma que chega a infantilizar o público.
(Costa, 2017, p.21)

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Suleiman (1993) apresenta 3 critérios para categorizar uma obra como roman à thèse, que
seriam a “essência do gênero” (Suleiman, 1993, citada por Costa, 2017, p.24):

1. Sistema de valores não ambíguo e dualístico9;

2. Chamada para ação10;

3. Intertexto doutrinal (a doutrina precisa existir fora do texto)11. (Costa, 2017, p.24,
tradução própria)

Esses critérios eliminam qualquer obra que não se encaixem na noção de ideologia
proposta pela autora, e podem ser facilmente aplicados na análise de documentários.
Além desses critérios, Suleiman (1993) apresenta também duas estruturas narrativas
classificadas como modelos estruturais do roman à thèse:

1. A estrutura do aprendizado12

2. A estrutura do confronto13

A estrutura do aprendizado é uma narrativa baseada na transformação de um


personagem, um conto de rito de passagem, sobre autoconhecimento e autodescoberta. O
protagonista evolui de conforme vai vencendo desafios. Esta estrutura pode se usada
como exemplo positivo ou negativo, de acordo com a intenção do autor, este protagonista
pode se tornar herói ou antagonista. (Costa, 2017, p. 25)

A estrutura do confronto, por sua vez, se baseia no conflito entre lados opostos,
nos quais bem e mal estão explicitamente definidos e reconhecíveis. O foco, aqui, está no
confronto ao invés de no protagonista. O herói e o antagonista não evoluem, e lutam até
o fim por seus objetivos. É comum neste tipo de história que o herói represente um
coletivo, a massa. Nesta estrutura, vitória e derrota nunca são definitivas: são sempre
batalhas vencidas ou perdidas numa guerra sem fim. (Costa, 2017, p. 26)

É interessante como essas estruturas estão presentes em muitos documentários,


principalmente os que tem a intenção de persuadir o público, encaixando eventos
históricos em modelos clássicos para tornar explícitos os valores a serem propagados.

9 Unambiguous, dualistic system of values, em tradução propria.


10 Call for action, em tradução própria.
11 Doctrinal intertext (the doctrine needs to exist outside of the text), em tradução propria.
12 The structure of apprenticeship, em tradução propria.
13 The structure of confrontation, em tradução propria.

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4. Análise

A debate sobre a realidade no documentário acaba sempre entrando na questão da


performance, se a câmera e a presença da equipe influenciam nas situações registradas.
Os diretores de “Escolas em Luta” encontraram uma solução muito interessante para esse
problema: entregaram as câmeras para os estudantes que ocupavam as escolas, para que
pudessem se filmar, mostrar a rotina das ocupações, suas atividades e discussões (solução
parecida com a utilizada por Paulo Sacramento em “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, de
2003, documentário passado no extinto presídio do Carandiru em que os detentos
filmavam a si mesmos em situações de rotina). Entre os vários tipos de material utilizados
na montagem do documentário, a maioria não é produzida pelos cineastas: são, além das
filmagens feitas pelos estudantes, registros feitos por celular e compartilhados na internet
e a cobertura jornalística da grande mídia. Além desses, estão presentes entrevistas com
os alunos, provavelmente posteriores às ocupações, e algumas imagens do movimento
fora da escola e dos conflitos com os policiais captados pela equipe. Essa abordagem
funciona como um contraponto ao discurso jornalístico e do governo, que segue um
padrão: criminalizar e diminuir as manifestações, numa tentativa de justificar a violência
policial, e desmoralizar e ligar o movimento a partidos políticos.

Enquanto os jornais defender as propostas do governo, o movimento estudantil


ganha força, chegando a ocupar 241 escolas no estado de São Paulo e realizando grandes
atos nas ruas. A violência policial era frequente tanto nas ocupações quanto nas
manifestações. A reação dos estudantes se dava pelas câmeras de celulares, cercando
todos os policiais e registrando cada agressão por vários ângulos, em imagens muito
diferentes do que se via nos jornais. Em dados momentos do filme, vemos os estudantes
“ensaiando” esses momentos de confronto, atentando para estarem sempre com as
baterias carregadas, para ter sempre mais de uma pessoa filmando uma abordagem.

Em “Escolas em Luta”, não há sutilezas e problematização na relação entre


estudantes e governo, do qual a grande mídia é porta voz. Heróis e antagonistas estão
identificados desde o início, de forma explícita e que se reforça durante toda sua duração.
A estrutura do confronto, muito presente nos filmes de ficção, chega a soar um tanto
estranha num documentário, seu apelo acaba sendo mais emocional do que racional.

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Diante de uma visão mais sofisticada, que considera as possibilidades criativas do


documentário, e o mesmo como uma de várias representações possíveis de uma realidade,
é muitíssimo válido. Vale lembrar, também, que o mito da objetividade está presente no
discurso governamental/institucional ao qual o filme se opõe, e é o responsável pela
criminalização do movimento, pela desinformação e manipulação da opinião pública.

Voltando ao tema da crise de informação, é interessante como esses discursos


opostos se baseiam em julgamentos morais, e o que segue é uma tentativa de convencer
o público e sustentar essa moral. Para o governo de São Paulo, enquanto as ocupações e
os manifestantes eram imorais, o fechamento de 94 escolas e sem consulta pública e a
violência policial contra esses alunos se encaixavam, de alguma forma, dentro da
moralidade. Para os alunos, o oposto: a imoralidade das ações do governo resultou na
ocupação, a imoralidade da violência policial só aumentava a resistência, e a moralidade
estava em lutar pelos seus direitos e suas escolas. e resistir. Muito mais interessante do
que a objetividade é esse confronto de discursos, que nos permite julgar as evidências e
os discursos apresentados.

5. Conclusão

O final da história é conhecido: após toda a pressão e a força do movimento das


ocupações, a opinião pública se voltou contra o governo, que optou por voltar atrás (talvez
por não haverem outras opções) e não fechar as escolas, garantindo ao filme um
fechamento, quase que um final feliz clássico.

Porém, conforme o modelo de Susan Suleiman (1993), um texto ideológico não


pode se encerrar sem uma chamada à ação. Apesar do filme todo passar a mensagem de
resistência dos oprimidos, de luta pelos direitos, um outro resultado das ocupações foi a
politização desses manifestantes, que desenvolveram uma visão própria de como deveria
ser a educação, estendendo-se também a outros fatores da sociedade. As imagens
registradas pelos alunos de dentro das ocupações apresentam um romantismo utópico e
adolescente, assim como a forma como eles enfrentavam os policiais. Conquistadas as
reivindicações dos movimentos, não fechadas as escolas, outras reivindicações foram
criadas. Apesar do fim das ocupações, a luta continua.

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“Escolas em Luta” se encaixa perfeitamente nos 3 critérios estabelecidos por


Suleiman para definir um texto ideológico, assim como possui todas as características do
modelo de estrutura do confronto. Dessa forma, o documentário deixa explícita sua
mensagem, que se aplica tanto aos eventos representados no filme, que se concluem na
sua duração, quanto a temas mais abrangentes a favor dos movimentos sociais e das
mídias alternativas, denunciando a violência policial institucional e colocando a mídia
como ferramenta de alienação dos governos.

6. Referências

Bruzzi, S. New Documentary: A Critycal Introduction – 2ª ed. Londres: Routledge, 2006.

Costa, N. L. F. Document and Documentary: Identifying Ideological Documentaries


Through Narrative Analysis. Nimega: Radboud University, 2017. Disponível em:
<http://theses.ubn.ru.nl/handle/123456789/4866>. Acesso em 25 de abril de 2017.

Nichols, B. Introdução ao Documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.

Suleiman, S. Authoritarian Fictions: The Ideological Novel as a Literary Genre. Princeton:


Princeton University Press, 1993.

Filmes Citados

Escolas em Luta. Documentário/Longa-metragem. Direção: Tiago Tambelli, Eduardo Consonni,


Rodrigo T. Marques. Distribuição: Taturana Filmes. 77 minutos. Brasil, 2017.

O Jardim das Aflições. Documentário/Longa-metragem. Direção: Josias Teófilo. Distribuição:


independente. 81 minutos. Brasil, 2017.

O Mecanismo. Ficção/Série televisiva. Criação: José Padilha e Helena Soárez. Distribuição:


Netflix. 8 episódios/40 minutos Brasil, 2018.

Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Documentário/Longa-metragem. Direção: Julia


Murat. Distribuição: não disponível. 83 minutos. Brasil, 2017.

O Prisioneiro da Grade de Ferro. Documentário/Longa-Metragem. Direção: Paulo Sacramento.


Distribuição: Imovision/Califórnia Filmes. 123 minutos. Brasil, 2003.

O Processo. Documentário/Longa-metragem. Direção: Maria Augusta Ramos. Distribuição:


Vitrine Filmes. 137 minutos. Brasil, 2018.

Polícia Federal - A Lei é Para Todos. Ficção/Longa-metragem. Direção: Marcelo Antunez.


Distribuição: Downtown Filmes.107 minutos. Brasil, 2017.

Real – O Plano por Trás da História. Ficção/Longa-metragem. Direção: Rodrigo Bittencourt.


Distribuição: Paris Filmes/Downtown Filmes. 105 minutos. Brasil, 2017.

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