Alberto Especial
Alberto Especial
Alberto Especial
A[ l ]b erto
issn 2237-2938
Revista da SP Escola de Teatro
especial
dramaturgia
Inverno 2013
issn 2237-2938
A [l]b er to
Revista da SP Escola de Teatro
especial
dramaturgia
Inverno 2013
1
expediente
a p r e s e n ta ç ã o
ocupa lugar de destaque como um dos elementos mais impor-
tantes dessa arte plural. Não é de se estranhar, portanto, que na
Grécia Clássica os poetas trágicos fossem considerados verdadeiros
heróis e que nomes como Ésquilo, Sófocles e Eurípides tenham atravessado
mais de 2 mil anos de História.
A trajetória da escrita cênica em nosso País não é tão antiga quanto a
acima descrita, mas, ainda assim, temos nomes tão expressivos como di-
versos. E, cronistas de seus tempos, nossos dramaturgos fizeram – e ainda
fazem! – um retrato de nossa sociedade e continuam a tencionar os limites
do próprio teatro.
Assim, é com muita alegria que saudamos o nascimento desta oportuna
edição da revista A[L]BERTO, dedicada integralmente à discussão de novas
expressões dramatúrgicas.
Nas páginas que se seguem, como num dossiê, acompanharemos a pro-
dução de jovens – e promissores – autores, aprendizes da SP Escola de Tea-
tro – Centro de Formação das Artes do Palco. Esses cinco textos, compostos
dentro do âmbito pedagógico, funcionarão como uma janela para a contem-
poraneidade, explicitando especificidades da escrita teatral do nosso tempo.
Nós, da Secretaria de Estado da Cultura, aplaudimos a iniciativa e de-
sejamos que estas obras alcancem os palcos e que suas leituras sejam insti-
gantes e prazerosas.
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D
entre nossas crenças, figura a ideia de que a SP Escola de Teatro
a p r e s e n ta ç ã o
Ivam Cabral
Diretor Executivo da SP Escola de Teatro
4
A
s peças desta edição foram produzidas por aprendizes do curso
a p r e s e n ta ç ã o
de Dramaturgia da SP, sob orientação de diferentes formadores,
entre 2010 e 2012. Porém, pautadas pelos pressupostos do curso
desde sua criação. Note-se que são peças regidas pela invenção
formal, mas não o formalismo decorativista, que esteriliza qualquer pensa-
mento pujante. Sim aquele inspirado pelas palavras do dramaturgo francês
Jean-Pierre Sarrazac, pensador contemporâneo, ao dizer que o formalismo
“pode ser formidável”, desde que haja “um projeto por trás”.
Levando-se em conta que o teatro ocidental foi tornando-se cada vez
menos dramático, menos amparado pelas leis imutáveis do drama – enquan-
to dialética fechada sobre si mesma, desligado de tudo o que lhe é externo, segundo
Peter Szondi –, é preciso salientar que os trabalhos em questão dissolvem os
limites entre sujeito e objeto, quem narra e o que é narrado. Ao tornarem-se
menos ou mais inseparáveis, possibilitam o surgimento de novas composi-
ções, para além da estrutura tradicional da intriga.
Vale dizer também que os textos a seguir pretendem ser mais cênicos
do que literários: pedem sua completude na cena. Com estas questões nos
guiando, a comissão selecionadora, formada pelos artistas e formadores La-
vínia Pannunzio, Alessandro Toller, Jucca Rodrigues e eu, chegou aos textos
que agora, com muito orgulho, compartilhamos com vocês.
MARICI SALOMÃO
Coordenadora do Curso de Dramaturgia da SP
5
Dramaturgias híbridas
p r e fá c i o
T
alvez se possa olhar uma vertente da dramaturgia produzida nas
últimas décadas pelo filtro dos textos reunidos neste livro, cria-
dos sob o signo do transbordamento e da ruptura em relação ao
dramático. Graças à ousadia e ao empenho dos formadores desses
novos dramaturgos, pode-se considerá-los escritores de situações, narrativas
e poemas que deslocam as fronteiras do que se convencionou considerar
uma peça de teatro.
Em certo sentido, refletem a disseminação de uma dramaturgia híbrida
no teatro contemporâneo, feita da tensão entre os modos épico, lírico e dra-
mático. É o que nota Jean-Pierre Sarrazac quando salienta que textos essen-
ciais como os de Edward Bond, Thomas Bernhardt, Heiner Müller, Bernard-
-Marie Koltès, Jean-Luc Lagarce e Sarah Kane, por exemplo, esforçam-se
por conjugar as intenções dramática e lírica, em geral reveladas na relação
catastrófica com o outro e consigo mesmo, à expansão épica em direção ao
mundo e à sociedade.1 O teórico francês considera-os rapsódicos, por resul-
tarem do distanciamento dos modelos tradicionais e dos modos canônicos
de escritura dramática e se explicitarem enquanto formas abertas, proces-
suais, constituídas em corpo a corpo permanente com a entropia e o caos.2
Os textos desta coletânea funcionam como exemplos dessa prática. Mar-
cados pelo hibridismo, resultam de uma multiplicidade de vias de compo-
sição, manifestando-se em exercícios de incorporação de elementos nar-
1. Jean-Pierre Sarrazac faz essas observações no Lexique du drame moderne et contemporain, que
organizou com Catherine Naugrette, Hélène Kuntz, Mireille Loscot e David Lescot, editado
pela Circé em 2005 (p. 18). O Léxico foi publicado em português pela Cosac & Naify em 2012
e reúne mais de cinquenta palavras-chave que contribuem para a compreensão da drama-
turgia contemporânea. São de especial interesse para esta discussão os verbetes “catástrofe”,
“coro/coralidade”, “desvio”, “crise do diálogo”, “literalidade”, “material”, “monodrama”, “crise
da personagem”, “peça paisagem”, “poema dramático”, “pós-dramático”, “rapsódia” e “voz”.
2. No livro Poétique du drame moderne. De Henrik Ibsen à Bernard Marie-Koltès (Paris, Éditions
du Seuil, 2012) , Sarrazac observa que os criadores do teatro contemporâneo estão em corpo
a corpo permanente com a entropia e o caos.(p. 13) É interessante constatar que, a despeito
das críticas que faz ao conceito de pós-dramático de Hans-Thies Lehmann, o teórico francês
concorda com o ensaísta alemão ao menos nesse aspecto. Não se pode esquecer a afirmação
de Lehmann no início de sua obra polêmica, em que recorre à artista belga Marianne van
Kerkhoven para tecer relações entre as novas linguagens teatrais e a teoria do caos, com a
concepção da realidade enquanto conjunto de sistemas instáveis. O teatro responderia a essa
instabilidade por meio da simultaneidade de canais de enunciação, da pluralidade de signifi-
cados e da estabilização precária em estruturas parciais, em lugar da fixação em um modelo
geral. À semelhança do movimento das partículas elementares, a teatralidade explodida do
pós-dramático tomaria direções tão diversificadas que seu único traço comum seria o fato de
se distanciar da órbita do dramático. Hans-Thies Lehmann, Le théâtre postdramatique, Paris,
L’Arche, 2002, p.130.
6
rativos e traços poéticos a resquícios da forma dramática. E na referência
incisiva ou velada à realidade contemporânea, mediada pelo bombardeio
informacional que abala as subjetividades do presente, especialmente em
metrópoles como São Paulo.
A despeito da ampla variação formal dos textos, é interessante cons-
tatar a recorrência de determinadas constantes temáticas, especialmente
discerníveis quando se observa as manifestações variadas de violência que
tangenciam. De um modo ou de outro, esbarram na guerra de assassinatos,
assaltos, seqüestros, agressões, gentrificação e privatização desordenada do
espaço urbano. A partir de pontos de vista diversos, refletem a inseguran-
ça social generalizada e a descrença na eficácia dos poderes públicos para
o combate à espoliação e aos desmandos de toda ordem. O que confere a
alguns deles um tom desencantado, às vezes beirando o ceticismo, como se
o antídoto para a violência fosse o revide que, sintomaticamente, é o título
de uma das peças.
Constata-se, portanto, que o imaginário do medo e da violência parece
organizar a paisagem dominante das peças, em sua maioria centradas no
cenário urbano. O que é parcialmente explicável pelo crescimento das ta-
xas de criminalidade nas grandes cidades do país a partir de 1980, com o
fortalecimento do crime organizado, a ineficiência da polícia no exercício
da segurança pública e o aumento da população que perambula pelas me-
trópoles, expulsa das favelas e dos enclaves de classe média, que se consoli-
dam como cidadelas fortificadas dentro da cidade, protegidas por grades,
seguranças e guaritas.
A situação parece resultar numa espécie de generalização da violência,
expandida em amplo leque de agressões em várias esferas da vida pública
e privada, envolvendo o trânsito automobilístico, as relações familiares, as
torcidas nos estádios de futebol, os justiceiros e matadores profissionais que
se especializam no exercício privado da segurança e da vingança, a parcela
da polícia empenhada em ações de extermínio. Muitas vezes, os textos de
alguns dramaturgos aqui apresentados, como Afonso Ferreira (O Clube) e
F.A. Uchôa (Revide), aproximam-se dos “discursos do medo” e da prolifera-
ção das “falas do crime” a que Teresa Caldeira se refere em seu livro Cidade
dos Muros.3
Como desdobramento do mesmo tema, os autores parodiam as classifi-
cações rígidas, os estereótipos e as segregações recorrentes nos noticiários
P r e fá c i o 7
catastróficos da mídia, reflexo dos freqüentes relatos pessoais sobre homi-
cídios, assaltos, seqüestros e outras práticas violentas. A referência explíci-
ta ou velada às chacinas praticadas nas guerras de tráfico ou perpetradas
pelas próprias forças policiais escancara o perfil truculento do contexto
brasileiro recente.
Os textos de Leandro Doregon (Metaplágio), Maria Shu (Relógio de Areia)
e Tadeu Renato (Licantropia) aproximam-se desse contexto a partir de ân-
gulos diversos sem, no entanto, transformá-lo em foco central, como nos
casos anteriores.
A violência como mote recorrente tem contrapartida na ausência de for-
mato definido das peças, que se apresentam em forma de diálogos, usando
rubricas e divisão em atos, como acontece em O Clube e Revide, que mantém
uma aparente troca dialógica entre personagens. Mas podem estruturar-se
como monólogos justapostos, narrativas e descrições entremeadas a espé-
cies de poemas concretos, que criam situações ou se estruturam enquanto
meras exposições verbais, como é o caso de Relógios de Areia. Também po-
dem ser compostos na alternância entre coralidade, monólogos e diálogos
(Licantropia) ou como jorro de palavras sem definição clara de foco enun-
ciativo (Metaplágio).
A pluralidade de traçados comprova o caráter híbrido dessa produção,
revelando que os autores são avessos a modelos rígidos e preferem experi-
mentar muitas vias no interior dos processos de criação dramatúrgica. O que
resulta na diluição da especificidade do texto teatral e dá lugar a um exer-
cício de correspondências entre dramaturgia, roteiro, prosa e reportagem,
ou entre produção teatral, literária e visual. É o caso do texto de Maria Shu,
autora de poemas, crônicas, haicais, peças de teatro e roteiros, que produz
um exercício claro de contaminações entre as diversas práticas de escritura.4
8 P r e fá c i o
As criações dos outros autores também se constroem na via da colagem
de procedimentos e assuntos, com a inclusão de traços documentais, co-
mentários sobre política, fait divers e confissões íntimas, que resultam em
textos sintéticos como Metaplágio, ou mais extensos como Licantropia, mas
que se formalizam como escrituras sem território fixo. Nesse sentido, é difí-
cil discordar de Jean-Pierre Sarrazac, quando sustenta que a tão propalada
unidade entre forma e conteúdo, defendida por Peter Szondi com base em
Hegel, não é perceptível nas escrituras teatrais das últimas décadas.5
Sem dúvida os textos de Afonso Lima e F.A. Uchôa são aqueles que defi-
nem um diálogo mais próximo entre a forma dramatúrgica e a experiência
urbana, tomando como matéria questões urgentes como a criminalização
sistemática do espaço público. Em O Clube Lima preserva uma estrutura
dramática na aparência tradicional, com a divisão do texto em três atos, o
uso de rubricas que informam localizações espaciais (no início, a mansão de
uma fazenda) e traços de personagem (o proprietário de meia idade), fican-
do o inusitado da situação por conta do convívio fortuito com dois travestis
sem nome. Nesse aspecto, a peça alinha-se às criações literárias, teatrais e
cinematográficas em que o espaço é ampliado pelo recurso aos “encontros
inesperados” que Ismail Xavier nota em filmes recentes, em que represen-
tantes de mundos sociais distintos aproximam-se por meio de “experiências
pontuais, marcadas por certa singularidade”.6
No início, o dramaturgo mantém os diálogos entre as supostas persona-
gens com função aparente de acrescentar dados ao estatuto do protagonista,
que aproxima dos milionários brasileiros do agronegócio. Mas à medida que
o texto avança é visível que as figuras não têm substância nem perfil defini-
P r e fá c i o 9
dos. Alternam-se sem caracterização precisa, funcionando como porta-vozes
do autor. O endereço ao antagonista, característico do diálogo dramático
que movimenta a ação, é substituído pela interpelação indireta ao leitor ou
ao futuro espectador, na verdade o interlocutor privilegiado que se procura.
O jorro de confissões, comentários, relatos de fatos amplamente noticiados
pela imprensa e o tom raivoso da linguagem às vezes escatológica e sempre
impotente diante de situações insustentáveis, como os massacres recentes
no país e no mundo, reforça a impressão de tratar-se de um regime infra-
dramático. A impressão que se tem é que as figuras genéricas e os micro-
-conflitos são apenas esboçados e revelam uma espécie de subjetivação dos
acontecimentos, invariavelmente mediados pela voz autoral. 7
A inclinação reflexiva desse sujeito travestido em muitas vozes e em situ-
ações diversas apenas na aparência – além da casa de fazenda, uma escola
de periferia e a sede de uma organização anônima – não consegue escon-
der o jorro da voz autoral e o ímpeto filosófico do comentário, que leva o
questionamento a superar a ficcionalização. De certa forma, é como se a
reflexão se destacasse da situação para se manter em sobrevôo, mudando de
espaço e identidade conforme o contexto sugerido, mas mantendo regime
discursivo semelhante.
Essa espécie de “polílogo” proferido por uma única voz dividida entre
locutores múltiplos ressalta o ponto de vista do autor, uma espécie de prin-
cípio filosófico difuso responsável pelo pensamento da peça. Talvez o que
oriente o procedimento seja a intenção implícita de testemunho: trata-se de
relatar e comentar aspectos descosidos de uma realidade incômoda. Talvez
por isso cada uma das figuras esboçadas pareça atuar como uma espécie
de defensor de posições. Em última instância, são figuras genéricas que
se reduzem a vozes que não agem, mas discorrem, comentam e narram,
funcionando como meio de escrutínio da vida recente. O procedimento é
reforçado pela recorrência de motivos nos três atos, com o retorno cíclico
de certos refrões textuais, como o assassinato das trinta e nove mulheres,
referido inicialmente pelo Travesti 1, no primeiro ato, para reaparecer na
voz de Raquel no segundo.8
10 P r e fá c i o
A circulação do mesmo texto por várias vozes reforça a impressão de uma
subjetividade autoral exposta a partir de diversas instâncias enunciativas.
Além do mais, em toda a peça nota-se uma espécie de multiplicidade
no tratamento do tema, que se revela em situações de autenticidade frágil,
como a da escola de periferia que recebe a visita da atriz de seriados america-
nos. São exemplares do processo de transição de registro os desdobramentos
das falas dos alunos de periferia e da mãe da atriz, uma figura só voz que
dialoga com a filha pelo celular, listando uma sequência de lugares-comuns
da vida norte-americana. No contraste entre as falas até certo ponto plausí-
veis dos alunos e a situação absurda, que omite os nexos causais da violência,
percebe-se o interesse do dramaturgo pelo traçado naturalista, que nunca
se completa, e pelo confronto entre mundos antitéticos.
A relação com o real ganha contornos mais imediatos no texto de F.A.
Uchôa. Revide amplifica as muitas faces da intolerância e o amplo espectro
das diferenças sociais, comprovando a atração da dramaturgia recente pelos
territórios centrais da cidade, na criação de uma espécie de escritura-teste-
munho, marcada pela imbricação entre etnográfico e ficcional.9 A tematiza-
ção das recentes agressões homofóbicas que aconteceram na principal ave-
nida de São Paulo é figurada no texto por meio de relações familiares, que
envolvem pai e filho em um dos focos dramáticos, e dois irmãos em outro.
A perspectiva ambivalente da espreita e da necessidade de esconderijo
define, pouco a pouco, o enredo de perigo e ataque iminente, a violência
que o irmão da vítima testemunhou para em seguida agenciar e a quase dis-
solução do sujeito na paisagem urbana, que sugere a perda de limites entre
indivíduo e cidade, morador e lugar público. Nesse sentido, é sintomático
que, numa das falas dirigidas ao pai, o delinquente defenda o direito à agres-
chel Vinaver em La demande d’emploi, com uso recorrente de parataxe e justaposição (p. 332)
- princípios que Lehman inclui nos procedimentos do teatro pós-dramático – e o trabalho do
dramaturgo francês Jean-Luc Lagarce, “uma arte poética resolutamente moderna, quer dizer
menor, que não se baseia no diálogo, mas numa sucessão de monólogos que não se fundem uns
aos outros.” Julga que a obra de Lagarce J’étais dans ma maison et j’attendais que la pluie vienne
não é uma peça, mas uma sucessão de textos.(p.262- 263). Patrice Pavis também analisa o
texto de Lagarce no livro Le théâtre contemporain. Analyse des textes de Sarraute à Vinaver, editado
pela Nathan em 2002. Considera-o uma “dramaturgia dissolvente” e compara a progressão
da escritura às “vagas sucessivas de uma maré”, pelo caráter líquido, ondulante e musical das
variações da mesma situação de espera. Na peça, a lenta agonia que foi a do próprio drama-
turgo, morto aos trinta e seis anos, é sugerida por um ritual repetitivo de afirmações e contes-
tações proferidas por cinco vozes difíceis de diferenciar. Ver a respeito o capítulo 9 do livro
de Pavis, intitulado “Jean-Luc Lagarce. J’étais dans ma maison et j’attendais que la pluie vienne, ou
la lente pavane des femmes autour du lit d’um jeune homme endormi”, p. 182-197.
9. Segundo Flora Sussekind, o risco, sempre presente, é a reprodução de um repertório
previsível de informações, configurando algo próximo do “neodocumentalismo” na ficção
brasileira recente.
P r e fá c i o 11
são pela posse do espaço urbano – “eu já morei na Paulista, você deixou o
apartamento no meu nome” (p.42).
A descrição minuciosa da tortura final do agressor, com relato de mem-
bros trucidados e ossos expostos, cria um imaginário de restos humanos e
fragmentação corporal característico da arte contemporânea, aproximando-
-se do registro direto do crime violento nas zonas urbanas.10 Por outro lado,
a globalização do espaço da metrópole é referida na constante mediação
da “Âncora” de telejornal, que descreve os atentados e narra a progressão
da trama, e na referência às redes sociais e ao mundo virtual do “inferno
chamado internet” (p.48).
A questão das mídias retorna como foco central em Metaplágio, de Lean-
dro Doregon. A paródia de programas radiofônicos com propostas interati-
vas “ao vivo”, no caso para audições musicais, projeta um contexto de imer-
são que inclui menções a conhecido apresentador de telejornal.11 A situação
se constitui na repetição de chavões conhecidos desse tipo de programa e
compõe uma espécie de sobreposição de mascaramentos e mediações. A
ideia mesma da personagem vampirizada pelas ficções radiofônicas, televi-
sivas e cinematográficas, popularizada e reutilizada, cria uma sucessão de
figuras sobrepostas que se embaralham e se deslocam. O tradicional motivo
do disfarce e do embuste ligado ao ator reaparece como um pensamento
recorrente sobre a atriz que está “sempre copiando as reações corporais e
faciais alheias” (p. 63). A partir desse princípio, a sobreposição de máscaras
da figura que representa a representação de outros, plagiando o plágio (daí
a metalinguagem do título, de ressonância pirandelliana) é acentuada pelos
efeitos retóricos que substituem a definição de seu perfil. Comparada aos
heterônimos de Fernando Pessoa, a metamorfose é projetada em fluxos de
palavra sem indicação clara de locutor. A alternância de vozes é indicada
por itálicos e negritos, com direito à auto-ironia do questionamento: afinal,
“quem é que está falando?” (p. 64).
As falas iniciais do apresentador, de extração cotidiana, entremeadas
de palavrões, alternam-se a monólogos caudalosos, confessionais, que asso-
10. Flora Sussekind nota que “é via vitimização e figurações protéicas, aberrantes, que parece
possível engendrar retratos ficcionais, subjetividades literárias, representações disformes da
diferença, corpos culturais híbridos... ”, op. cit., p. 18.
11. Lehmann nota que a tendência à paródia é um dos traços do teatro pós-dramático e a
considera uma das variantes da intertextualidade. As narrações, os poemas cênicos, a inter-
disciplinaridade, os ensaios teóricos transformados em dramaturgia, os monólogos, a emer-
gência dos coros como manifestação de coletivos parciais, o teatro do heterogêneo, que nasce
do encontro entre uma concepção teórica, um dado técnico, uma expressão corporal colhida
em sala de ensaio e uma imagem poética são outras ocorrências que o estudioso percebe na
dramaturgia pós-dramática.
12 P r e fá c i o
ciam catástrofes naturais a uma história de amor (a paixão é um “tsunami
devastador”) e reduzem a personagem a uma voz anônima que narra e se
envolve numa espécie de comentário de si mesma e do mundo. Na posição
distanciada de um voyeur, a voz autoral comenta fatos diversos que justa-
põe numa organização fragmentária, dando a impressão de mimetizar a
explosão do mundo midiático e sua paisagem de disjunções. É perceptível
que o dramaturgo atua como uma espécie de montador de fragmentos e
define as figuras dramatúrgicas como vozes intermitentes, de existência
precária, que se constituem por acúmulo de intervenções, às vezes sem
relação aparente.12
A dramaturgia narrativa de caráter monológico ganha relevância no
texto de Maria Shu, Relógios de areia. A tonalidade poética da epígrafe ini-
cial, emprestada de Tadeu Renato, ressoa na rubrica de abertura, em que
a autora revela intenções ao assumir o desafio à lei da gravidade. E às leis
do drama, pode-se acrescentar. Pois a rubrica não funciona enquanto tal
e os monólogos pontuados por haicais contundentes e belos (“nos porões
a lua é uma hipótese”) ganham contraponto de supostos diálogos, na ver-
dade outros monólogos poéticos, desta vez justapostos, definindo um traço
recorrente da dramaturgia contemporânea.13
Travestida em troca dialógica, a narrativa poética reúne, no início, Jonas
e a baleia. Aproveitando a ressonância bíblica dos nomes, a dramaturga
desencadeia um rico processo de associações entre o ato de engolir, antro-
pofágico, e o desmembramento corporal do estivador no acidente de tra-
balho (“decepado, o braço acenou-lhe à distância”), a devoração dos filhos
por figuras míticas como Cronos (que engole o tempo), a apropriação de
resíduos de personagens de Nelson Rodrigues, fundidos no “negro rei” que
mata filhos brancos e não se chama Ismael, mas Jonas, o “pai sagrado” de
Glória, sempre pronto a comer meninas “novinhas”. Participam da mesma
cadeia associativa as barrigas de aluguel do mais recente comércio do corpo
P r e fá c i o 13
feminino, a caça a baleias prenhes, a refeição do marinheiro que engole dis-
sabores. Os sentidos inesperados que as analogias produzem desembocam
no fechamento do ciclo com final beckettiano, que “termina no começo”.
Jonas da Silva é a mula do narcotráfico que deveria carregar cocaína no
estômago, mas engoliu cápsulas de sal.
É visível que o texto se constitui como uma espécie de problematização
do processo dramático, dando margem a que a autora experimente variados
exercícios de sobreposição de máscaras. Percebe-se que eles resultam no
afrouxamento das personagens, ou em “impersonagens” que não se corpori-
ficam e oscilam entre falas poéticas e denúncias de toda ordem.14 O recurso
funciona, ao mesmo tempo, como mecanismo de exposição do narrador/
protagonista, um duplo da autora, e de instabilização do processo ficcional
em curso. A rejeição da forma dramática contínua em benefício de quadros
autônomos é compensada pela interligação feita por essa voz autoral, que
parece interpelar diretamente o leitor, e o futuro espectador.
A heterogeneidade do texto é tramada em variações de distância e tom,
desestabilizações de perspectiva e enquadramento temporal, monólogos
sucessivos que se deixam invadir por pausas e diagramas. Nessas passagens,
a autora trabalha em regiões limítrofes entre o pictórico e o escrito, de pa-
rentesco distante com a poesia concreta. É inegável que apresenta tensões
características da prática dramatúrgica contemporânea, em que parece não
haver lugar para linguagens exclusivas nem fechamento definitivo, à se-
melhança do escoamento contínuo da areia na ampulheta. O trabalho de
Maria Shu é um bom exemplo de textualidade marcada simultaneamente
pela desconfiança de leis formais prévias e por uma lógica (ou “analógica”)
interna à própria obra.15
14 P r e fá c i o
O experimento de textualidades de todo tipo, o aproveitamento de resí-
duos de outras obras, a ausência de foco definido nos quadros e a repetição
de motivos enfatizam o caráter problemático da forma e da prática teatral
na situação histórica específica desses dramaturgos, que dialogam com o
contexto brasileiro e mundial. Talvez por isso as peças problematizem, de
modo explícito ou velado, as noções de espaço e tempo unitários. É o caso
de Licantropia, em que Tadeu Renato pratica uma espécie de transborda-
mento temporal e espacial, definido na tensão enunciativa entre memória
rural e vivência urbana. O esboço de fábula cujo protagonista é o menino
sem nome lembra vagamente poemas dramáticos de João Cabral de Melo
Neto, especialmente pela presença avassaladora da memória na criação de
uma atmosfera poética, amparada no inusitado da linguagem.
Para exercitar o memorialismo explícito, o autor aproxima-se tanto de
uma perspectiva descritiva - como nas passagens em que recupera “a fazen-
da velha fincada entre as casas”, o caminhão com bóias-frias, o fogo nos ca-
naviais - quanto do exercício em primeira pessoa, a tal ponto informe que
parece refletir a indistinção entre narrador e personagem/menino.
A arqueologia das palavras facilita a ressonância de tempos e espaços da
“fazenda arcaica”, relembrados nas “desoras”, no “remigrar” constante das
figuras e no “agraudar” e “tresvariar” do menino que corporifica um dos
sentidos da licantropia. A terminologia inusual, as constantes referências
ao “zarapelho, manfarro, atrolhado” que se pretende caçar, as colagens de
P r e fá c i o 15
palavras como lobisomentira, eumenina, setepele, luziluzindo ou girassola-
rados criam uma espécie de poesia do concreto. Responsável pela projeção
de uma atmosfera visual e tátil de sensações que colabora para a fusão entre
sujeito e mundo, como sintetiza o belo fragmento: “na escureza da meia-
-noite chovi/ até me espalhar na borda da estrada e virar rio/ e ser rio”
(p. 116). O mecanismo associativo sugere a metamorfose de seres e coisas,
remetendo à licantropia do título.
O texto faz contraponto à vertente predominantemente urbana das ou-
tras peças. Aproximando-se da alegoria, a figuração protéica do lobisomem
é um modo de compor ficcionalmente a diferença e engendrar um corpo
cultural híbrido, que vive em relação tensa com o processo histórico de ur-
banização e redefinição de identidades.
Nesse sentido, a licantropia alegoriza a busca infrutífera da identidade
perdida. Na persistência de referências arcaicas e na evocação memorialista
de um mundo em extinção expõe o imaginário urbano a partir de seu aves-
so e remete à cidade interior embutida na cidade atual: “nem parecia mais
a mesma/a cidade que nem era cidade eram/casas agraudando em volta
da fazenda/arcaica não mais/ era agora o horizonte na vertical/empinado
que nem que não sei/uma casa na cabeça de outra na cabeça de outra na
cabeça de outra/ninguém na rua sem fazenda sem poeira/lençol de asfalto
nas trilhas de terra.” (p. 118)
A tensão recorrente entre espaços limítrofes, íntimo e público, dado rural
e cosmopolitismo, raiz regional e urbanidade, terra agreste e imaginário
da metrópole, lobo e homem, produz uma espécie de desterritorialização
do sujeito da narrativa, marcado pela flutuação e pelo desgarramento. O
lobisomem é a figuração compósita de rural e urbano e a instabilização das
fronteiras entre normalidade e patologia. Sujeito em trânsito, sempre à de-
riva, é fruto do processo de metamorfoses da identidade íntegra.
É interessante notar que esse sujeito é movido por uma indagação recor-
rente sobre o sentido da travessia e a instabilidade do novo horizonte que
expõe na construção dramatúrgica. Híbrido de poesia, narrativa e diálogo,
Licantropia inclui manifestações de um coro que nunca se constitui como
alteridade, permanecendo como uma das vozes enunciativas do autor. Talvez
por isso o texto tenha semelhança com um monodrama poético, que apaga
as diferenças entre as personagens para se constituir nas vozes esparsas do
menino, do pai, da mãe, do coro.
Se o desejo de formalização é visível no modo poético de configuração
do texto, também é evidente uma espécie de hesitação das formas, como se
o dramaturgo desfigurasse as cenas que acaba de compor. A tensão entre
figuração e desfiguração que a alegoria do homem-lobo traduz, e que reme-
16 P r e fá c i o
te à violência do homem lobo do homem, de certa forma ativa as mutações
constantes do texto. As imagens-movimento traduzem a indagação recor-
rente sobre as margens e os limites do acontecimento teatral e da paisagem
real, do desejo de formalização e da desmaterialização inevitável da forma
dramática.16 Licantropia funciona como analogia do processo de metamor-
foses que mobiliza a criação da cena contemporânea.17
sílvia fernandes
16. Flora Sussekind observa prática semelhante na literatura brasileira contemporânea quan-
do se refere a um processo de composição tensionado internamente, por negatividade e re-
sistência à unificação formal.
17. Lehmann observa que no teatro pós-dramático o esquema da ação é substituído pela es-
trutura da metamorfose. Em lugar do encadeamento dramático, os textos operam com base
em jogos de surpresa, com diferentes seqüências e a aparição e desaparição de vozes e figuras,
que substituem as personagens enquanto seres individualizados. As componentes estruturais
e formais da língua enquanto campo de sonoridades e o desenvolvimento musical e rítmico
do texto, com sua temporalidade própria, criam uma esfera poética de conotações distante
das denotações claras da narrativa dramática. Em relação à produção de alguns dramatur-
gos, observa que seus textos não tem ação no sentido de desenvolvimento de uma fábula, mas
ativam sua dinâmica por meio da mutação das situações, estruturando-se a partir de quadros
provisórios, que viabilizam o encadeamento. Por outro lado, os diálogos dramáticos transfor-
mam-se em mero “combate oratório”, competições de palavra características, por exemplo,
da dramaturgia de Bernard-Marie Koltès.
P r e fá c i o 17
SUMário
O Clube, 21
Afonso Junior Ferreira de Lima
Revide, 53
F. A. Uchôa
Metaplágio, 73
LeandroDoregon
relógios de areia, 83
Maria Shu
Licantropia, 103
Tadeu Renato
O Clube
Afonso Lima
Ato 1
(A sala de estar de uma mansão em uma fazenda. As paredes estão repletas de obras de
arte, um busto de Darwin, uma escultura grega, máscaras de diversas etnias, os mais
diversos souvenirs na lareira. Pilhas de livros por todo lado. Uma coleção de facas na
parede. Algumas espingardas. Um Homem de meia idade, forte, de óculos e aparência
serena, recebe dois travestis).
Homem
Já recebeu dois ao mesmo tempo?
Travesti 2
Como você acumula coisas.
Travesti 1
Não, mas eu já fiz com um de trinta centímetros.
Homem
E você?
Travesti 2
Já.
21
Travesti 1
Você parece muito rico. Dizem que cresceu muito o número de milio-
nários no Brasil.
Homem (desinteressado)
Tenho essa fazenda.
Travesti 1
E você, já fez com homem?
Homem
Nunca. Mas vocês não são homens... né? Um drink?
Travesti 1
Dois blended malt, por favor.
Homem
Interessante. A bebida dos antigos revolucionários. Os tristes marxistas.
Felizmente mortos.
(Vai até o bar em outra sala).
Travesti 2
Não sei se devemos... Odeio sangue. Que merda!
Travesti 1
Nem brinque. Temos um plano. Nunca vão nos pegar. Você sabe. As
mulheres estão sumindo da região central. Alguma coisa terrível está
acontecendo.
Travesti 2
Mas e se não for ele? Faça-o confessar...
Travesti 1
É claro que é ele. A polícia já veio duas vezes aqui, mas volta sem uma
inspeção. Eles compram a polícia como compram todo o resto. Essa polícia
que intimida manifestantes na universidade.
Travesti 2
Os grevistas? Ou os estudantes? São moleques, maconheiros.
22 O Clube
Travesti 1
E daí? Agora a polícia persegue maconheiros? O reitor é fascista.
Travesti 2
A tropa de choque teve de invadir...
Travesti 1
29 mulheres. Seus corpos devem estar enterrados ao lado do celeiro. Nós
fugimos do inferno. O clube, lembra? O Clube da Vingança.
Homem (voltando)
Aqui. Scotch fresco.
Travesti 1
Então você tem uma empresa enorme...
Homem
Eu gosto de arrombar o rabo.
Travesti 1
Mas quão enorme pode ser?
Homem
Enorme. Eu entro sem dó e rasgo tudo, gosto – de ver gritar e gemer. Eu
quero tudo, sem obstáculos.
Travesti 2
Esse é o negócio. Sem obstáculos. Sem concorrência. Sem disputa. Tudo
inteiro.
Homem
Tudo, inteiro.
Travesti 2
Pense no mundo de hoje. Agora são só empresas enormes com enormes
campanhas de marketing.
Homem
Você já deixou meterem a mão em você?
O Clube 23
Travesti 1
A mão?
Travesti 2
Eu já. Só um namorado. É algo poético, um gesto de amor físico, entre-
ga total.
Homem
E se eu pagar?
Travesti 1
Isso. Use a sua persuasão. Já ouviu falar em fabricação do consentimento?
Homem
O quê?
Travesti 1
Fabricação do consentimento. Edward Bernays era sobrinho de Freud e
trabalhava para a Tobacco Company. Descobriu que as mulheres não fuma-
vam porque cigarro era um símbolo do poder dos homens. Contratou um
grupo de mulheres para se vestir como sufragistas modernas. Elas posaram
para os jornais defendendo o cigarro como “chama da liberdade”. Pegou. É
possível convencer qualquer pessoa de qualquer coisa.
Homem (distante)
Claro. Principalmente muitas pessoas de qualquer coisa. A democracia
acabou.
Travesti 1
Temos uma amiga, moradora de rua – bem, era nossa amiga – que su-
miu...
Homem
Sumiu?
Travesti 1
Talvez tenha morrido. Dizem que os funcionários da prefeitura jogam
água nas pessoas que dormem na rua fingindo estar limpando. Os serviços
médicos não os socorrem quando chamados. Alguns dias, cai muita chuva,
uma chuva pesada e constante. Muitos morreram de tuberculose. Ou então
24 O Clube
os comerciantes deixavam escorrer fios de água na calçada, para evitar gente
em frente às vitrines.
Homem (cansado)
Sem dúvida. Melhorias. Acabar com as drogas. Temos de compreender
o mecanismo e a motivação da mente coletiva. Governantes absolutos e
propaganda política.
Travesti 1
Um policial da região começou uma pesquisa e descobriu que 29 mulhe-
res haviam desaparecido. 29 mulheres. O delegado acabou por demiti-lo.
Homem
O presidente Roosevelt chegou a falar de um... governo invisível, é ver-
dade. (silêncio)
Travesti 1
Vou pegar outro vatted. (Sai)
Homem
Você me ajuda? Quero me livrar de sua amiga. Você gosta de sentir dor?
Eu posso... Vejo você como presidente de uma ONG. Para ajudar as trans.
Eu posso...
Travesti 2
E a sua mulher? Essa foto é dela, não?
Homem (chateado)
O que tem ela?
(Volta Travesti 1)
Travesti 2
Parece uma atriz, algo importante, parece uma atriz ou algo assim.
Homem
De fato. Somos. Ela não sabe quem eu sou e eu não sei quem ela é.
Travesti 1
Eu gosto de escrever histórias assustadoras de crimes.
O Clube 25
Homem (desinteressado)
As histórias de crimes sempre devem ser assustadoras.
Travesti 1
29 mulheres. Quem mataria 29 mulheres?
Homem
Todos temos um demônio, um bicho, esperando o momento de sair. Não
é o que dizem?
Travesti 2 (irônica)
Posso ir no toalete? Tenho uma faca na bolsa e quero afiá-la (ri).
Homem
Sim, dobrando à esquerda.
(Ficam apenas os dois).
Homem
Eu sei o que vocês querem.
Travesti 2
Como?
Homem
Querem se vingar. Não cheguei até aqui...
Travesti 2
Eu...
Homem
Quanto você quer? Pago – pago para matar apenas quem eu quero. Quan-
do ela me golpear, ou amarrar, ou ferir, você dá um tiro nela. Pegue uma
das facas. Ou das espingardas.
Travesti 2
Que horror! Você é maluco... Eu... Bem... Quanto? 500 mil Reais?
Homem
Fechado. O mesmo preço do presidente da Câmara.
(Entra Travesti 1)
26 O Clube
Travesti 1
Imagine se ela foi morta por um serial killer, ou algo do tipo. Essa amiga
morava nas ruas há muito tempo. Gostava de ler. Tinha uma mãe, mas ela
morreu. Viveu com sua irmã na casa de uma tia, como criada, mas ela tam-
bém morreu. Os albergues foram fechados. Ela sempre dizia que, na rua,
encher a cara é a única saída para não enlouquecer. Já viu pessoas colocarem
fogo em velhos. Tem a polícia. Imagine...
Homem
Gosto de conversar com vocês. Tudo fica mais... Mais emocionante.
Travesti 1
Imagine se pudesse fazer tudo. Tudo, qualquer coisa. Mostrar sua força,
penetrar no corpo, na mente de milhares de pessoas. Você bateria em sua
mulher? Você faria a era nuclear? Você deixaria um cachorro morrer de
fome trancado atrás de grades só para vê-lo definhar?
Travesti 2
Eu já bati em um homem com uma barra de ferro.
Homem
Eu já bati na minha mulher. Muito. Eu tentei enfiar uma faca nela, ela
lutou por sua vida. Ficou internada muito tempo. Mas passou. Agora somos
felizes. Muito felizes.
Homem
Um amigo conta que tinha um pônei. Sim, um pônei pequeno que era
muito tarado. Um dia propôs à sua mulher que ficasse de quatro para o
pônei colocar seu cacete de vinte e oito centímetros nela. Ela gostou, mas
depois foi embora. Então, ele começou a chamar viados, que fodia e de-
pois colocava sobre as costas deles cobertores. O bicho. E as costas deles
ficavam um pouco machucadas, mas eles sempre voltavam. Gemiam muito
e sempre voltavam.
O Clube 27
Homem
E vocês não tem medo? Não tem medo? Sei lá, sabe os gays atacados com
lâmpadas fluorescentes na Avenida Paulista? Ou aqueles que ficaram em
coma por causa dos chutes e socos na cabeça? Gostam de sentir dor?
Travesti 2 (refletindo)
Eu sinto como se... meu corpo não é meu.
Travesti 1
Mas isso é ser brasileiro. Ser humilhado pelo professor; ser humilhado
pelo funcionário do balcão; ser humilhado pelo policial; ser humilhado pelo
intelectual; ser humilhado pelo prefeito. Ser brasileiro é ficar numa fila de
cinquenta metros para entrar na estação de metrô mesmo com chuva; ser
brasileiro é estar num ônibus, estar no seu ônibus indo pro trabalho, ser
assaltado e receber catorze disparos da polícia.
Travesti 2
Merda.
Travesti 1
Ser brasileiro é ver o Senado pagar salários acima do estabelecido pela
lei; ser brasileiro é morrer na frente do hospital grávida de gêmeos. Viva o
brasileiro.
Travesti 2
Merda. Eu não quero nada disso! Eu odeio sangue! Eu não nasci para
ser... uma vingadora!
Travesti 1
Agora chega. É hora de você ficar com medo. (Tira uma arma da sacola).
Levante as mãos e fique quietinho.
Homem
Não seja ridículo.
Travesti 1
Às vezes quero simplemente escrever uma carta para...
Senhor prefeito: Os velhos morrem de fome nas calçadas. As escolas, em
ruínas. O império do cimento comanda – não participamos.
Por que o senhor deixou essa cidade abandonada?
28 O Clube
Por que os senhor deixou o seu trabalho e passou a fazer política, negó-
cios, em viagens e discussões com líderes de partido, futuros aliados, novos
nomes para as velhas coisas feias?
Por que somos bilionários, somos bilionários, somos os maiores compra-
dores de cinzeiros de prata e lustres de diamante e os lixões estão cheios
de jovens?
Por que as crianças estão sem creches?
Por que o tempo de espera na fila de um posto de saúde, que sempre foi
imenso, é maior agora?
Por que tanto lixo, por que as treze mil toneladas diárias de restos dessa
cidade – toneladas de restos, plástico e alimento – são misturados? E vão
para um lixão e não para jardins como adubo?
Por que das duzentas metas de melhoria e de renovação só quarenta
foram cumpridas?
A cidade movimenta 900 bilhões por ano e tem 2.600 favelas! 2.627 favelas!
Por que aqueles subprefeitos responsáveis por cuidar dos bairros são tro-
cados todo o mês? E esses subprefeitos estão sem dinheiro até mesmo para
serem bons zeladores? Por que são todos coronéis aposentados?
Travesti 2 (pensativa)
Somos blocos de concreto carregados de lá pra cá como massa; somos
conceitos em livros e números nas experiências de técnicos. Somos totalmen-
te, completamente, explicados até a medula. Isso nos adoece. Como fazer a
mim mesmo, como me fazer num mundo onde tsunamis – técnicas, teorias
e poder – te jogam de um lado para o outro? (continua “carta”)
Travesti 1 (volta)
Senhor prefeito: O senhor não tem vergonha de ter se tornado aquele que
vende ouro falso? E nossos “representantes”, carimbando leis do Luís Filipe?
Por que foram deixadas as regiões do centro abandonadas, com tanta
sujeira? E as pessoas abandonadas, viciadas, loucas, que nelas chegam for-
mando exércitos de mortos-vivos – sem nada, nenhum, nenhuma forma de
tratamento?
Por que o senhor está removendo milhares de pessoas – removendo mi-
lhares de velhos, crianças, trabalhadores – para fazer imensos, caros, túneis
inúteis? E um mega, um mega centro de exposições luxuosas?
Homem
Somos Moloch, pedra, petróleo e máquinas; nós tiramos o sangue das
pessoas para que não possam pensar e comemos o cérebro de seus filhos
O Clube 29
para que só tenham sonhos egoístas e durmam com medo, em silêncio, en-
quanto erguemos torres de Apocalipse e guerra.
Travesti 1 (retoma)
Por que as pessoas estão sendo expulsas do centro para liberar o chão
para as construtoras, para as construtoras erguerem edifícios elegantes?
Com a ajuda do seu amigo juiz? Edifícios para ricos, quando faltam 1 mi-
lhão de casas na cidade?
Viu na TV aquela mulher que, no teto de uma casa, na chuva, cercada
por um rio que transbordou, com seu cachorro nos braços, tenta pegar
uma corda para fugir? E acaba tendo de deixar seu cachorro ir embora na
correnteza para se salvar?
Por que não fez nada para evitar as novas enchentes – e, de novo, esse
ano, serão mais de dois mil desabrigados com as chuvas?
Tem a ver com esse homem? Foi esse homem e seu clube? Seu clube de
milionários?
Homem
Eu vou colocar seu coração na minha mesa – e sua traquéia, seus testícu-
los e seu intestino. E vou brincar sentindo a maciez deles nas mãos. Eu vou
apertar seu fígado na mão e lamber o sangue.
Travesti 1
Fala muito para um rei morto.
Homem
Não seja ridículo. Ou ridícula. Sei lá o que significa uma aberração como
você.
Seu desgraçado! Seu viado podre! Você acha que eu, eu, EU, vou cair
por causa de você?
Travesti 1
Não sou viado, sou uma mulher. E é por isso que eu odeio pessoas igno-
rantes como você. Foram vocês que deram o golpe. Coronelópolis. Sprozac.
Paulicérgica oligárquica. Amarre esse filho da puta. Para a cerimônia. O
ritual. Pegue a faca. Somos o Clube. Somos maioria. Estamos por cima e
vamos nos vingar.
30 O Clube
(Travesti 2 amarra o homem).
Travesti 1 (Enquanto fala, tira da bolsa uma vela, a qual acende, e um vidro com sal
e faz um círculo ao redor do homem.)
Em nome da ordem, vocês param as pessoas na rua e as revistam. Em nome
do progresso, colocam a baixo as casas de quarenta mil pessoas. Demolindo.
Em nome da ordem, vocês atiram nas pessoas. Em nome da ordem, você põe
generais para nos vigiar na prefeitura e manda que persigam gente pobre, gen-
te que tem de vender coisas na rua e fez casas em terrenos abandonados porque
não tem onde morar. Joga tudo na rua. Você vende nossos teatros, nosso verde,
nossas bibliotecas, e transforma tudo em cimento, e você fecha os albergues
onde os miseráveis dormiam. Em nome da ordem, perdemos nossa vida.
Homem
Não seja ridículo. (Travesti 1 começa a quebrar objetos e atira no busto
de Darwin).
Travesti 1
Os moradores não podem opinar: pagando bem, que mal tem? As assem-
bleias do povo são chamadas às pressas e temos metade de um tempo curto
para dizer o que pensamos. O progresso. Um carro negro tão comprido,
o carro do rei, preto, com seis portas, como um dragão de metal negro na
praça cheia de mendigos, passa em silêncio majestoso. Nossa nobreza. Gri-
tamos para salvar nossas casas, nossas raízes, mas a especulação, o mercado,
passam por cima. Os deputados têm um preço, você diz, os vereadores têm
um preço. Fabricar consentimento. Temos de acabar com todos os rebeldes
para manter a ordem, você diz. Todos dizem que é hora de eu crescer.
Travesti 1
Corte a língua dele.
Homem
Você acha que vai sair dessa? Fui eu que degolei aquelas mulheres, sim,
eu as degolei nas ruas escuras do centro abandonado, na vitoriana White-
chapel. Porque eram putas, porque eram minhas, porque eu posso. Porque o
sangue inferior está contaminando nossa gente. Tudo está mudando rápido
demais e são pessoas como vocês que estão promovendo o caos. Vagabundos,
prostitutas, bandidos. Vocês não são ninguém. São alimento. Animais. Eu
O Clube 31
preservo metade de um fígado humano no álcool e vou mandar pra polícia. A
outra metade eu como. Meu nome é Jack. Eu sou uma besta sanguinária. Eu
mato. Trabalho com seleção artificial. Seu viado de merda, sua bicha burra.
Travesti 1
Vai ficar ótimo.
Homem
O quê?
Travesti 1
O livro.
Travesti 1
Então ele acreditou? Eu não disse? E você? Viu como eles acreditam? Viu
como eles acreditam? Que todos nós somos corruptos?
Travesti 1
Sempre quis comer coisas vivas.
Fim do Ato I.
ATO 2
(Uma escola pública. Ambiente decadente, sombrio. Janela ao fundo, iluminada, com
cortinas brancas. Uma mesa para conferência, com algumas flores. O diretor aguarda
com um buquê de flores junto com o segurança próximo à porta. Os alunos, imóveis,
são a plateia. Tem um pônei vivo na sala).
Segurança
Será que ela já deu o rabo? Pra um caralho tipo vinte e oito centímetros?
Diretor
Isso é coisa que se diga de uma estrela?
32 O Clube
Segurança
Atriz de série americana não é estrela.
Diretor
Depois de tudo que ela passou. (Olhando o pônei). Caralho. Aula de ecologia
é uma coisa... Mas precisava ele cagar na sala?
Segurança
O que leva ela a dar palestra em escola da periferia? Por quê? Ah. Os so-
nhos. Os sonhos, claro! O inconsciente! Sabia que os gregos tinham quatro
tipos de sonho?
Diretor
É um doce de pessoa. Gentil. Bela. Depois de tudo que ela passou. Só
espero que ninguém faça nenhuma merda. Que tudo dê certo.
Segurança
Sonhos simples, pesadelos, sonhos de realizar desejos, parapsicológicos
e oráculos. Sandman, diretor, Sandman.
Diretor
Aposto que ela sonha sim com seguranças, policiais, um camelô fortão e
um soldado do tráfico que batem nela e gozam na sua cara. Mas isso não é
coisa que se diga de uma estrela. E lembre-se. Não pode falar. Falar naquilo.
(Ela entra).
Segurança
Eu fico três horas no ônibus todo dia dona. O transporte nessa cidade.
O Clube 33
Diretor
Cala a boca! Ah, olha, as flores, olha, eu.
R aquel
Quieto! Estou concentrada. Como é mesmo?
“Eu entendo vocês. Eu sei. Não é fácil ser pobre. (olhos úmidos) Eu deixei
de ir nas aulas várias vezes porque não tinha dinheiro para pagar o ônibus.
Nos dias frios, de geada, eu andava de pés nus e eles doíam, era terrível só
ter chinelas quando as meninas todas tinham sapatos. Lutem. Essa mundo
é dos vencedores”.
Diretor
Isso é verdade?
R aquel
O que você quer dizer? Com “verdade”?
Diretor
É.
R aquel
Trata-se de “empatia”. E formação da consciência.
Segurança
Fabricação da consciência?
Diretor
Ah. Eu tenho que lhe fazer um pedido um tanto... excêntrico.
R aquel
Como?
Diretor
É que temos alguns assuntos. Que são tabus para nós.
R aquel
Não se preocupe, não falo da minha vida privada.
Diretor
Eu quero dizer... CERTOS assuntos.
34 O Clube
Raquel
Seja mais claro.
Diretor
Assuntos. (Tenta gesticular “drogas”). Sabe. Negócios. Fritar o cérebro.
ALUNOS
Ela chegou! (Os alunos tentam cercar a atriz e são impedidos pelo se-
gurança).
Segurança
Vamos, vamos. Querem parecer aqueles paparazzi que cercam as casas,
os filhos, e fazem terror com as celebridades? Querem que ela chame a po-
lícia? La dolce vita?
Diretor
Por favor, sente-se. (Ela senta na mesa). Queridos alunos, senhoras e senho-
res, é com intensa emoção. A estrela de “Nove dias sem pecado”, a grande.
Aluno 3
É verdade que você vendeu sua mansão porque. (como se fosse..., mas é
ponto final)
Aluna
Vocês vão ficar babando na dessa mocreia? Sabem quem era o marido dela?
Diretor
Silêncio! Recebemos com prazer.
Raquel (irritada)
Ah, quem não me conhece? Sintetiza. (Muda o tom) Queridos, como vão?
É um prazer estar aqui. É... uma experiência única. Adoro. Vocês são fo-
fos, uns amores. (pausa) Eu sinto muito. Eu sinto muito, eu tenho de ser
sincera. Minha terapeuta diz. Eu tenho de olhar nos olhos de vocês e ser
sincera. Somos amigos, não? (pausa) O que eu realmente queria dizer. O
que eu queria. Gosto se aprende, né? Gosto se aprende, e tudo se aprende,
eu acho. Não é bem uma sub-raça. Vocês são feios. Falam errado. Se vestem
errado. São lentos. São deformados, têm um tipo de doença, falam sozinhos,
falam com estranhos, têm gordura localizada e velhice. Depois de 500 anos
O Clube 35
formou-se “tipo” duas formas de viver, duas tribos, com línguas diferentes.
Não tem mais jeito.
Aluno 1
Com licença, o que a senhora queria dizer com feios? Tipo Tarantino?
(Ouve-se um barulho de sirenes e gritos que vem de fora da escola. A voz de policiais
em um megafone. O diretor olha pela janela).
Voz
Atenção! Atenção!
R aquel
O que é isso?
Diretor
Meu Deus! A polícia cercou a escola! A polícia está cercando a escola!
R aquel
Como?
Diretor
A polícia cercou a escola!
R aquel
Não pode ser. Não pode ser. Não! Não! Não! Vai acontecer de novo! De
novo! Vão tentar me matar!
Diretor
Não pode ser. Não pode ser. Que merda!
Aluno 1
Puta que pariu! “Caiu”! Vão “estrelar”1! Caralho!
R aquel
Mas o que eles querem? O que eles.
1. T
iros.
36 O Clube
Diretor
É que um de nossos alunos é. Sabe? É.
Raquel
Ah, Jesus, é aquela coisa de “palavra secreta”? Fala, porra!
Diretor
Chefe. Do negócio. Sabe?
Raquel
O quê? O quê? Um desses moleques? Desses fedelhos que só sabem bater
punheta na internet?
Diretor
É. É chefe.
Raquel
Seus maníacos, seus inconsequentes, seus burros! Me trazem pra...
Segurança
Cala a boca, estrela. Não percebeu que a coisa fedeu?
POLÍCIA
A escola está cercada! Mano, saia com as mãos pra cima ou vamos explo-
dir. Ou vamos invadir.
Diretor
Invadir?
POLÍCIA
Estamos fortemente armados! É melhor você se render! Só queremos
você! É só você, Mano! Não estamos brincando. Saia agora!
O Clube 37
Aluna (pegando um canivete grande da mochila)
Por mim pode matar essa puta. Vocês nos ensinaram a guerra. Se eu
fosse um hacker, derrubava o avião da piranha. Por mim esse pônei podia
meter 48 centímetros nela.
Mãe
Minha filha!
R aquel
Mãe?
Mãe
Minha filha! O que foi acontecer?
R aquel
Mãe? O que a senhora? Como a senhora?
Mãe
Filha! Que horror! O que está acontecendo aí? O que está acontecendo aí?
R aquel
Mãe, nem eu sei o que está acontecendo aqui. Mãe... me deixa em paz.
Volta pro seu shopping. Pra sua novela. Vai tomar chá com as vizinhas, falar
mal dos migrantes.
Mãe
Diga para se entregarem! Diga para se entregarem e aceitarem a prisão.
Vão ficar ganhando comida, sem fazer nada, só mamando às nossas custas,
esses vagabundos! E se você sair morta em todos os jornais? Isso é porque
você não me ouve! Volta pra sua casa!
R aquel
Mãe, que é isso? Tá maluca? Pára. Não é brincadeira. Pára.
Mãe (séria)
Ah, filha, eu espero que você sobreviva! Eu te perdoo por tudo que você
me fez. Por tudo que fez ao seu irmão.
38 O Clube
Raquel
Mãe, cala a boca! Mãe, some, vaza, pelo amor de Deus!
Mãe
Filha, coragem. E se der tudo certo... Espero que dê, se der certo... Não
esqueça do jantar do Luiz no domingo.
Entrevistadora
Alô? Raquel?
Raquel
Quem é?
Entrevistadora
Sou Solange Freitas, da TV.
Raquel
Da TV?
Entrevistadora
Querida, estamos com você.
Raquel
Comigo?
Entrevistadora
Estamos com você. Depois de tudo que passou. E nossa imagem no ex-
terior. Agora que somos um gigante da economia. Somos a sexta economia
do planeta! Estamos entre os mais ricos! Quando sair daí, se sair, queremos
a primeira.
Raquel
Comigo? Vocês não estão comigo porra nenhuma! Eu é que estou comi-
go nessa escola dos infernos cercada de traficantes e policiais. Corruptos!
Provavelmente corruptos.
Entrevistadora
Nós compreendemos.
O Clube 39
R aquel
Cala a boca, sua maluca! Cala a boca e para de usar minha voz sem di-
reitos autorais. Meu advogado. (como se fosse...)
Entrevistadora
Se algo acontecer com você ou com essas crianças. Eu prometo.
R aquel
Louca! Cala a boca! Urubu! Vaza!
Diretor
Meu Deus, que vergonha! Que vergonha, você aqui e...
R aquel
Cala a boca!
POLÍCIA
Vocês têm dez minutos ou vamos invadir. Não matem os reféns!
Aluno 1
Não vamos sair merda nenhuma! Vocês vão “cair”, meu pessoal apaga
um por um de vocês! “É nós na fita”!
Segurança
Como assim “não matem os reféns”? Como assim “não matem os reféns”,
seus idiotas!
R aquel
Mas o que aconteceu? Você deve ter catorze anos. Nem deve ter trepado
ainda. Devia estar jogando videogame. Comendo pipoca e falando alto no
cinema, perdendo tempo na frente da TV, fumando maconha. Por que você
entrou nessa?
Aluna
Ah, olha a vaca! Vive em Nova Iorque, a puta!
Aluno 1
Ah, dona. Olha esse lugar.
40 O Clube
Raquel
É uma escola. Vocês têm a chance.
Aluno 1
Ah, dona. Olha esse lugar. Escuro e úmido. Parece uma escola? Um pro-
fessor ganha dez Reais a hora.
Aluno 3
E um café da manhã numa padaria chique custa vinte e oito Reais.
Raquel
Dez Reais a hora? Um professor?
Diretor
Onze. Onze Reais. Foi reajustado.
Aluno 3
Com 55 alunos por sala.
Raquel
Mesmo? Isso é. Cinco dólares?
Aluno 4
Aquela modelo brasileira. Ela ganhou um milhão para fazer um desfile
ano passado na semana de moda.
Aluno 1
Sempre fomos tratados como animais.
Aluno 3
Cinco milhões de brasileiros não tem renda alguma. Sabe? Nada, nada,
nenhuma. Cinco milhões. Miseráveis.
Aluno 4
Começa na cadeia. Péssima qualidade da comida, tratamento indigno. O
judiciário é lento, lento, lento, deixa morrer lá, passamos por “sofrimentos
atrozes”, injustiças, humilhações, opressão e massacres nas prisões. Um Cam-
po de Concentração. Lembra, mataram 111 presos sem dó no Carandiru. As-
sim, entraram e massacraram. Isso jamais será esquecido. Um sindicato. Pra
defender seus direitos. É o que os humilhados precisam. E foi o que fizeram.
O Clube 41
Aluno 1
Cresceu. São mais de 500 mil agora.
Aluna
Uns anos atrás. A cidade de São Paulo, com seus arranha-céus de vidro,
helicópteros e a indústria mais poderosa, virou uma cidade fantasma. Nin-
guém na rua. Dezenove milhões e ninguém na rua. Mais de oitenta ônibus
incendiados, delegacias, fóruns, bombas em dezessete agências bancárias, o
comércio, as escolas, tudo fechado, ordem de matar policiais, entrar nas suas
residências, metralhar delegados, agentes penitenciários, até bombeiros.
Aluno 3
Jovens com fuzis pela rua, granadas e bombas. Carros incendiados na
garagem da polícia. Fogo, fogo por toda a cidade.
Segurança
O comando do governo disse que sabia que ia acontecer isso. Por que
não avisou os policiais? 48 mortos em quatro dias. Três cidadãos comuns.
Aluno 1
Por quê? Gota d’água. Ficaram dois dias sem comer. Os chefes. Humi-
lhação.
Segurança
E dizem que policiais sequestraram o filho do chefão. Queriam R$ 300
mil.
Aluno 3
O problema disso tudo... é que dançam os chefes. Se ficam ricos podem
comprar roupas de grife e carros importados, mas. Eles dançam quando,
sabe, muda a chefia. Um cabo de vassoura afiado foi a lança no pescoço do
chefão, e no peito. Ele era arrogante.
POLÍCIA
Vamos entrar! Não matem os reféns! Não matem os reféns!
42 O Clube
Segurança
Será o tigre farejador da polícia?
Raquel
Estou vendo. O que é isso? O que é isso? Estou alucinando? Meu Deus,
são cadáveres! Cadáveres! Um, dois. Dez. Vinte e nove. São corpos de mu-
lheres? São corpos de mulheres!
Diretor
Serão restos da ditadura? Serão mortos na guerra do tráfico? Serão...
Raquel
São corpos de mulheres em putrefação! Meu Deus.
POLÍCIA
Saiam agora! Saiam! Seus miseráveis, seus animais! Vamos colocar a baixo.
Demolir. Vamos explodir tudo! (A fumaça de gás lacrimogênio invade a sala)
Diretor
Seus malucos! Temos crianças aqui dentro! Vocês querem uma tragédia?
Raquel
Ah, meu Deus, isso é uma porra de um Buñuel, uma porra de um Berg-
man, uma porra de alguma coisa! É por isso que eu odeio esse país! Maldita
hora que meu avô... resolveu cantar ópera e querer provar que era homem.
A puta da minha avó.
Segurança
Isso deve ser o tipo de sonho pesadelo. Tudo dentro do crânio. Realida-
de virtual.
Raquel
Agora estou. Tem que ser um pesadelo. Tem que ser um pesadelo. Tem
que ser um pesadelo. (pausa) E se for do tipo de pesadelo que você acorda
e está num pesadelo pior. Pior. Pesadelo contínuo?
Segurança
Sandman.
O Clube 43
POLÍCIA
Vamos contar até dez! Vamos explodir! Um. Dois.
R aquel
Como assim, explodir? Quero acordar! Eu quero acordar!
Segurança
Se vamos morrer preciso saber. Desculpe, mas preciso saber. A senhora
já deu o rabo? Pra um caralho tipo vinte e oito centímetros?
Fim do Ato II
ATO 3
(Uma sala branca com duas janelas e uma mesa branca, cujo arranjo lembra um crânio –
olhos e dentes. Dois hackers ou, talvez, partes do mesmo homem. Agora busca-se o tom
impessoal, narrativo ou discursivo, distanciado, como se as organizações anônimas
que desejam derrubar os sistemas fossem elas próprias compostas por subjetividades
globais, despersonalizadas, transitáveis, no estilo “o que eu faço define quem eu sou.”
Ou estes homens só contaram muitas vezes para si o motivo pelo qual vão derrubar o
mundo. Um computador, um crânio, um busto de Darwin e um sofá.)
Homem 1
“Se e quando optarmos pela violência, ele deverá se tornar o foco de
nossas atenções”.
Homem 2
“Não cometemos assassinatos, mas, sim, elegemos como alvo todos os
locais onde ele possa estar”.
44 O Clube
Homem 1
Uma mansão. Livros. Uma escultura. Sonhei com dois travestis. Eles
amarravam um homem. A floresta, a névoa, facas e sangue. A lua entre as
árvores. “Eu gosto de escever crimes” – ela dizia. (Outro tom) Cavalo de Troia?
Homem 1
“Atualmente somos todos socialistas”. “Repensemos Marx para encontrar
os meios de salvar o capitalismo”.
Homem 2
“Estará o capitalismo morto?”
Homem 1
Os Estados Unidos deram US$ 17,4 bilhões para salvar corporações. O
Canadá deu US$ 3,3 bilhões. Agora são só empresas enormes.
Homem 2
Governo invisível. Fabricação. Do consentimento.
Homem 1
Você é um perdedor nato que chega sempre em casa e entra na rede
para ver pornografia, games, livros do Google e vídeos engraçados. E você
vai numa sinfonia, com o convite que ganhou de seu amigo, e conhece uma
moça com uma luz, umas sardas e ela é inteligente e não te trata como uma
barata como as novas mulheres arrogantes. E vocês
Homem 2
vão ao cinema, e vocês transam no seu apartamento rapidamente limpo
e arrumado e sem pedaços de pizza. E tem até uma flor na mesa. E ela adora
seus bonecos de heróis e fica maravilhada com seus arquivos de filmes raros,
seus lindos designs para as empresas globais,
Homem 1
e ela volta e volta. Então vocês estão como que noivos, numa cidade que
parece o inferno de pedra, e você vê agora o mundo como um grande
O Clube 45
Homem 2
organismo
Homem 1
pulsando, o globo das oportunidades, você trabalha para o Norte e ama
no Sul, e acredita que o sol vai brilhar por entre os carros, os mendigos
da rua e o inverno que se aproxima. Então você lê aquela matéria online,
os filipinos trabalham sem falar, nunca reclamam, são temporários, não
tem direitos trabalhistas e estão roubando o lugar dos brasileiros no Ja-
pão. Alguma coisa gela na sua espinha. E você está certo. As manchetes
são invejosas, querem superar umas às outras. “Colapso do sistema finan-
ceiro global”. Eu não sou “Grande Demais pra Quebrar”. O organismo me
desligou. Os dinossauros renascem: toda regulamentação é nociva, o que
é bom para os bancos é bom para todos, o fim dos impostos é a solução
para o problema. Cavalo de Troia.
Homem 2
Caça. First Person Shooter. Quantas cabeças você já cortou, quantas cabe-
ças já explodiu, quanto tempo demora sua curva de aprendizagem, você é
um Camper que se esconde atrás de objetos para atirar em seus adversários,
você Frag o oficial superior como na Guerra do Vietnã, nosso clube, nosso
Teamplay, já não somos Newbies, somos Guy Fawkes, vocês serão os Owneds,
vocês nos fizeram assim, Frankenstein. Game over.
Homem 1
Até quando?
Homem 2
Realidade virtual, jogo: globalização financeira, fluxo de capitais, euro-
dólares, liberalização, concorrência, fusões e aquisições, diluição de riscos
no mercado, mecanismos de “auto-regulação”, subprime, “exploração finan-
ceira” de pobres, complexos modelos matemáticos, efeito dominó.
Homem 1
Muitos sapos. Até quando você brinca com uma cobra? Até quando você
semeia a violência sem colher violência? Até quando alguém pode ver pés
sujos, velhos doentes, mães carregando bebês mortos em carrinhos podres?
Até quando você pode bater num cachorro sem que ele te morda? É possível
convencer qualquer pessoa de qualquer coisa.
46 O Clube
Homem 2 (referindo-se a um possível ataque hacker)
Principalmente muitas pessoas de qualquer coisa. Massively multiplayer
online roleplaying game.
Homem 1
Na minha lápide, eu quero escrito: “Ele derrubou todos eles”.
Homem 2
Erro. Temos as mãos e os pés amarrados às costas. Ele diz que foi um
erro. O mestre dos bancos diz que foi um erro.
Homem 1
Mas continuamos. Por default. Os pobres têm que pagar.
Homem 2
(pausa) Minha vez:
Assinei esse documento. Só porque... As mãos e os pés amarrados às cos-
tas. A cabeça coberta por um saco. Apanhando por todos os lados, socos e
pontapés, que não sabia de onde vinham, enquanto ouvia uma mulher gri-
tar próximo de mim. Haviam me convencido de que seria a minha mulher.
Quando descobriam minha cabeça, mostravam fotos dos meus filhos. E di-
ziam: “Você acha que ainda os encontrará vivos?” “Acha que os deixamos em
casa, depois que tiramos você de lá?” Acabei convencido. O futuro da minha
família. Tive de escolher entre essas alternativas. E assinei, claro. Assinei.
Homem 1
Minha vez.
Homem 2
Você é um perdedor nato que chega sempre em casa e coloca seu CD do
Legião Urbana, lembra dos velhos tempos e de como esses caras geração Coca
Cola viram gente apanhando da janela. E, de fato, você acaba vendo gente
apanhando em plena Avenida Paulista e você pensa: algo está errado. E você
vai numa sinfonia, com seu amigo, vocês saem para tomar um malibu e vocês
dançam, é divertido. E você descobre que dois anos de casado foi um erro.
Vão ao cinema, e vocês transam no seu apartamento rapidamente limpo e
arrumado e sem comida chinesa de ontem. E você é o Super Homem, flor na
mesa. O globo das oportunidades, você trabalha para o Norte e ama no Sul, e
acredita que o sol vai brilhar por entre os carros, os mendigos da rua e o inver-
no que se aproxima. E ele te ama, mas acha uma opção de trabalho na China.
O Clube 47
Homem 1
De AAA para AA+. É tudo um jogo. (pausa)
Homem 2
Psicopatas.
Homem 1
Vendem tóxicos. (pausa) É grave.
Homem 2
Vamos explodir.
Homem 1
Vamos explodir tudo. Optar pela violência.
Homem 2
Sua vez. (pausa)
Homem 1
100 mil mortos. 100 mil mortos. Eu saí na foto humilhando um prisio-
neiro. Eles nos disseram sempre que éramos os mocinhos. Que estávamos
sendo atacados. “Operação Liberdade”. Eles alimentavam seus prisioneiros
com plástico. Usavam eles como cobaias de armas químicas. Mais de cem
pessoas foram mortas em um dia, sepultadas em covas coletivas. Nós os pe-
gamos pelas ruas e os prendemos sem motivo. Sem motivo? É uma guerra,
estamos sendo atacados. O arame não era eletrificado. Ou era eletrificado,
não faz diferença. Eles são monstros que odeiam a democracia. Não são?
Foram eles, os grandões. O oficial. Ele mandou apontar pro pau do cara e
sorrir. Ele foi forçado a se masturbar. Eu não queria, eles me pressionaram.
Meu namorado pediu que eu puxasse a coleira que ele colocou no pescoço
de um iraquiano com problemas mentais. Uma pirâmide de presos nus. Eles
estavam trabalhando o psicológico deles. Ou os caras estavam se divertindo,
tirando um sarro. Não sou eu. O deslocamento muda você.
Homem 2
Depois de destruirmos um país, nós podemos reconstruí-lo. A guerra é
o melhor negócio. (pausa)
Homem 1
Cavalo. O cavalo com asas do pensar era negro.
48 O Clube
Homem 2
Se pensamos na moral, nos chamam moralistas. Se fazemos políticas,
nos mostram com discursos “racionais”, cheios de dados, tabelas e leis que
pensamos errado, que o bem nos fará mal. Racionalidade parcial, pregui-
çosa, inércia da cidade. Não sabemos, devemos obedecer.
Homem 1
Nosso eu quebrado não pode mais ver. Não participamos mais de nossa
vida. Existem muitos perigos, mas eu sou apenas as coisas que faço. Eles ti-
ram o sangue das pessoas e suas esperanças para que tenham sonhos egoís
tas. Apocalipse e guerra.
Homem 2
Pode ser que sejamos pegos, eles vêm atrás de nós.
Homem 1
Eu entrei no exército para poder estudar. Eu trabalhava como caixa de
supermercado. Fui criada em um trailer estacionado em uma rua de terra
batida atrás de um bar. Meu pai trabalhava em uma ferrovia. Você está certo
se todos ao teu redor dizem que é certo. O mundo diz que é certo. Quem
teria coragem de ir contra o que é certo?
Homem 2
E o que eles fazem com os nossos homens e mulheres é justo?
Homem 1
Os interrogadores terceirizados incentivavam que amaciássemos os pri-
sioneiros. Queriam que impedíssemos eles de dormir. Sempre nus. Soldados
urinaram em cadáveres. Sodomia. Mostrar os peitos. Eram torturados nos
chuveiros. No começo... não aguentava mais. Ainda tenho pesadelos com
todos aqueles gritos. Não só com os gritos dos presos, mas com os soldados
gritando com eles. É uma guerra preventiva. O eixo do mal está à solta.
Homem 2
Cavalo de Troia. O jeito Milton Friedman de fazer castas: uns estudam
o tempo todo e outros trabalham o tempo todo. Nossa nobreza. Gritamos
para salvar nossas casas, nossas raízes, mas a especulação, o mercado pas-
sam por cima. Os deputados têm um preço, você diz, os vereadores têm
um preço. Fabricam revolução. Todos dizem que é hora de eu crescer. Guy
Fawkes, o revolucionário.
O Clube 49
Homem 1
Para quê servem empresas e governos? Se revogam o contrato com a
população e funcionários?
Homem 2
O eixo do mal está à solta.
Homem 1
E. Pode ser que sejamos pegos, que venham atrás de nós.
Homem 2
E o que eles fazem com os nossos homens e mulheres é justo?
Homem 1
Era uma vez. O presidente do Banco Central norte-americano, secretário
e secretário adjunto do Tesouro, na capa: o “comitê de salvação do mundo”.
Homem 2
Contribuições eleitorais por parte das grandes instituições financeiras.
Produtos “tóxicos”. Wall Street no governo.
Homem 1
“Infelizmente, os cortes de investimentos de multinacionais terão um
impacto importante no Brasil. Em menos de seis meses, as grandes multi-
nacionais e bancos já demitiram juntos quase meio milhão de pessoas diante
da crise. Demissões em massa”.
Homem 2
Na minha lápide eu quero escrito: “Ele derrubou todos eles”.
Homem 1
Derrubar. Arrombar. Tudo inteiro. Já colocamos 1 milhão nas ruas em
Londres. Milhões gritando pelas ruas do mundo.
Homem 2
Não apenas o Ministério da Defesa. Os cartões de crédito. A Casa Branca.
Imagine poder fazer tudo. Tudo, qualquer coisa. Mostrar sua força, atingir
milhares de pessoas. Você derrubaria um país? Você faria a era nuclear?
Você deixaria um cachorro morrer de fome trancado atrás de grades só
para vê-lo definhar? Jack matou 29 mulheres.
50 O Clube
Homem 1
OK. Somos feios. Falamos errado. Nos vestimos errado. Somos impuros.
Depois de 2000 anos formou-se como que duas formas de viver, duas tribos,
com línguas diferentes. Não temos mais jeito. Mas somos o vírus. O vírus
final. A Terra já morreu, uma massa enegrecida, e estamos todos morando
na lua, vivemos dentro da realidade virtual.
Homem 2
Duas prostitutas entram em uma mansão e matam um milionário sádico.
Contra o clube. O clube que comprou o mundo.
Homem 1
Vocês nos ensinam. A guerra é o melhor negócio.
(Um rato entra no palco e eles correm para pegá-lo. Matam o bicho.)
Homem 1
Eu tenho esperança.
Homem 1
Por default.
El a
Escolha o amor. Porque eu estou aqui, eu te amo e você não me ama,
apesar de adorar fazer sexo comigo nesse sofá. E só pensa em vingança e em
como o governo jogou a polícia em cima daquela pobre gente e colocou fogo
em suas coisas, velhos, crianças, doentes correndo, e era uma área de dívida,
de um maldito corru-puto desses, polícia armada, e o governador, e o juíz
e ninguém queria saber e mandaram bala em cima dessa pobre gente, heli-
cóptero, metralhadora, fogo, soldados, cassetetes, camburão, e onde estão
eles agora senão pelas esquinas da vida, em casas abandonadas, na rua, na
chuva. Porque eu estou aqui, eu te amo e você talvez, mas eu preciso saber,
eu estou acabando nessa sua vingança doida e você só quer tirar o bando do
ar, tirar o governo do ar, tirar a maldade que infecta o ar. Mas eu sou de car-
ne e osso e estou cheia de ar. Escolha o amor. Isso iria aquecer sua barriga.
Homem 2
Na sua lápide quer: “Ele fez o Juízo Final”.
O Clube 51
El a
Mas eu também te amo. Como se pode amar um homem que não fica de
pau duro pra você. E você ama, mesmo assim, porque ele é inteligente, ele
gosta de cinema, ele sabe de tanta coisa legal e é tão nerd e caretão às vezes
com seus discos de Legião Urbana e seus discursos contra a mídia. E uma
mulher precisa apenas montar num homem e isso faz com que ele endureça,
é a natureza. Ele pode nem querer, mas ela quer e ele deixa e, no fim, dor-
mem como fadas. E eu quero que vocês esqueçam tudo, esqueçam, vamos
sair desse círculo, desse maldito padrão. Porque eu sei o que é ter uma fa-
mília que se repete e se repete e tudo volta sempre pro mesmo lugar. A filha
faz o que a avó fez, e o que a neta faz é o mesmo, reverência, mas de um jeito
novo. Elas sempre pensam que estão inovando, mas vão apenas obedecer o
Id, o Ego, o caralho. Mas eu sei que vocês têm medo. Eu sei que se eu desse
comida na boca de vocês, vocês iam florir como um jacarandá verdejante,
iam se abrir como uma lua depois da chuva, iam cantar como as cascatas,
blablablá. Vocês tentam se convencer que são vingadores, que vão explodir
tudo por amor. E no fundo a Terra já morreu, é uma massa enegrecida e
estamos todos morando na lua, mas vocês vivem dentro dessa realidade
virtual, vocês acham que podem salvar o mundo. É tudo um jogo. Querem
destruir o sistema da Nova Frota? É um jogo. Nunca mais vamos sair disso.
Homem 1
Acho que tocaram. Está chegando a pizza. Era quatro queijos. Mas hoje
só tinha dois.
Homem 2
Cavalo de Troia.
Homem 1
Escolha. (Beija Homem 2).
Fim
Afonso L im a nasceu em Porto Alegre (RS) e está radicado em São Paulo. Graduado em História,
com Mestrado em Filosofia – onde estudou a relação entre pós-estruturalismo e arte contemporânea.
Publicou Alguns Contos (Suliani, 2006) e O Livro (Scortecci, 2011), entre outros. Participou da antologia
Novíssimos da Literatura Brasileira (Cronópios Arraia PajeurBr, 2012).
Revide
F. A. Uchôa
desconhecido
Todos odeiam o semblante do homem bom
Os puros de coração serão sempre acertados no rosto.
***
âncora
As imagens obtidas com exclusividade captaram o exato momento em
que um dos quatro agressores ataca a vítima no rosto com uma garrafa de
cerveja. O rapaz fica atordoado e é atingido mais uma vez. As imagens da
agressão foram encaminhadas para o Ministério Público e semana que vem
a polícia vai ouvir o rapaz agredido.
[Luz em Desconhecido.]
desconhecido
Eles desperdiçaram com as próprias mãos
O motivo da violência, assim como foram desperdiçados
Os socos que poderiam salvar a humanidade
Já apanhei na cara e sei que bater nos outros
É um direito que ninguém escreveu no papel
Mas assim como o ódio que me enfiaram pela goela
53
E o rancor que não vai sair do meu corpo cheio de marcas,
Eu não merecia ter nascido homem.
âncora
O Juiz da 1ª Vara de Infância e Juventude de São Paulo determinou
ontem a internação dos menores agressores acusados de dois ataques na
Avenida Paulista no último domingo.
desconhecido
Já vi a notícia dos menores agressores em três canais diferentes, de ma-
drugada passam as reprises e já pus o relógio pra despertar. Fiz seis séries
de oito repetições na barra fixa e chupei uma tangerina antes de dormir.
***
54 Revide
âncora
O único maior do grupo, Luigi Beluzzo, de 19 anos, chegou a ser preso,
mas foi solto nas horas seguintes.
***
gigio
Pai, os caras caguetaram nosso endereço, e agora?
***
âncora
O pai de um adolescente suspeito da agressão ofereceu um abraço afetu-
oso a uma das vítimas e disse à repórter o que pode ter ocorrido.
***
irmão
Carcamano do caralho, como pode ser tão cínico?
***
âncora
Uma das vítimas prestou depoimento esta tarde, mas não quis gravar
entrevista. O rapaz que foi atacado no rosto por uma garrafa de cerveja, con-
tinua internado no Hospital do Município. Ele sofre de deficiência mental.
***
irmão
Eu não ando de mãos dadas com meu irmão porque eu quero, ele precisa
da minha companhia!
***
gigio
Como eu ia saber que o cara era retardado? Pensei que fosse um casal.
***
irmão
Como eu ia saber que o cara era marginal? Ele parecia um menino de
família.
***
Revide 55
gigio
Pai, eu tinha direito, eu já morei na Paulista, você deixou o apartamento
no meu nome, já levei os brothers pra lá, as putas pra lá, as vacas do cursinho
passaram pela minha vara, as bichas da Augusta já sentiram meu soco in-
glês, o prefeito deveria agradecer pela limpa, já apanhei na cara e sei que bater
nos outros é um direito que ninguém escreveu no papel, estão me estraçalhando
nos sites dos gays, estão me linchando nas redes sociais, estão me fodendo
no inferno chamado Internet, fiz dois anos de Muai-Thai, Jiu-Jitsu e tenho
medo de ver televisão e já não entro mais no meu perfil e não posso andar
de elevador e não posso andar em lugar nenhum.
irmão
É preciso acabar com estes meninos antes que virem homens.
***
gigio
Eu sou homem, pai, eu não mereço o cargo da pior pessoa de São Paulo,
eu achava que era um casal, se tivesse acertado viraria herói, foi você quem
me ensinou pai e hoje estão todos contra mim.
***
desconhecido
Rezei para mamãe e perguntei sobre minha atitude sem medo
Da bronca que ia levar porque quando a reportagem aparecer
Vão lembrar que sou do bem, vão lembrar que tenho mãe
Fique sossegada porque a âncora do telejornal me autorizou
Fique sossegada porque toda a humanidade me autorizou
Somente os grandes seres humanos são escolhidos pra vingar
irmão
Me perdoe.
vítima
...
irmão
A culpa foi minha. A culpa foi toda minha.
[Suspensão]
56 Revide
desconhecido
Você é desumano, Gigio
Você é um homem, Gigio
âncora
Os três suspeitos acusados de espancar dois jovens na Avenida Paulista
na semana passada serão encaminhados para uma fundação de menores
infratores.
Luigi Beluzzo, o único maior do grupo, está foragido,
Gigio está
aqui.
desconhecido
Entre nós.
âncora
Gigio, o único maior do grupo, está foragido. Neste galpão.
desconhecido
Você está nu e não tenho nenhuma atração por você
Você é moleque mas não vou mentir que vê-lo assim
O corpo pendurado no estuque, a veia saltando da testa
O olho vermelho latejando o sangue que pulsa no rosto
O medo através deste lindo olho azul que ganhou do papai
Sua cara tem a vermelhidão e o inchaço de um orgasmo
Meu pavor de ter uma ereção durante este acerto de contas
Não é pior que seu medo de mim.
Se você fosse mulher seria uma vontade de estupro
Que é o pior crime de todos.
âncora
A estatística de estupro masculino não foi contabilizada pelos órgãos
oficiais do Governo. Estima-se que quase totalidade das vítimas não presta
queixa contra seus agressores. Luigi Beluzzo, o único maior do grupo, po-
derá ser estuprado sem riscos de represálias.
desconhecido
Eu não tenho desejo porque o medo do menino
É infinitamente mais excitante que um estupro
Revide 57
âncora
Ele ama cada centímetro da sua vergonha, ele goza cada movimento da
sua sujeição, assim como eu adoro esta lágrima linda que está descendo
agora. O Jornal fica por aqui. Boa Noite.
desconhecido
Faltam dez dias para o Natal e tive um sonho estranho com Gigio. Passei à
frente da casa e as luzes estavam apagadas. Acordei e ninguém tinha voltado.
[Fim da suspensão]
pai
A culpa foi minha. A culpa foi toda minha.
gigio
Não pai, eu sou um escroto, eu gostei de ser escroto, tanto importava se
fosse uma bicha ou um retardado, tanto importava se fosse uma grávida ou
uma empregada, tanto importava.
pai
É a família, todos os assassinatos da família, você vai pagar pelo sangue
que caiu sobre a família, pelo sangue… Pelo meu sangue.
gigio
Pelo seu sangue?
pai
É o sangue de toda minha vida na cabeça de um menino…
gigio
Pai, me perdoa!
pai
Deus proteja o meu menino…
gigio
Pai, por favor me perdoa!
pai
Eu te amo, Luigi.
58 Revide
irmão
Eu sou um escroto, eu gostei de ser escroto, tanto importava se fosse uma
bicha ou um macho, tanto importava se fosse um ladrão ou um guarda,
tanto importava, eu não consegui reagir! Eu não merecia ter nascido homem.
[Luz em Desconhecido.]
irmão
Pois não?
desconhecido
Tudo bem?
irmão
Estou dando de comer a meu irmão. Por favor.
desconhecido
O que ele tem?
irmão
Não interessa.
desconhecido
Ele fala?
irmão
Não. [A alguém] A conta!
desconhecido
Gigio está foragido.
irmão
E daí?
desconhecido
Eu sei o que aconteceu e sei o que você sente.
irmão
Sinto culpa.
Revide 59
desconhecido
Nenhuma culpa existe quando há muitos homens
No mundo.
Quando há sujos
No mundo.
Você precisa vingar seu irmão.
irmão
Deus existe pra mim… Ele me protegeu da garrafa porque sou um ho-
mem do mundo, não há nada de feminino em mim, não há nada de humanidade
em mim, me deixe em paz. A culpa foi minha.
desconhecido
Não interessa, nada interessa quando um homem precisa pagar
Nada interessa quando a violência vaza feito um órgão inflamado
Não há mais o que fazer, tenho uma legião de quarenta pessoas
Que foram contaminadas por mim e querem a cabeça do Gigio
Uma legião de quarenta homens que querem vingar seu irmão
irmão
Louco! Olha o que você fez!
desconhecido
Eu só quero sua permissão!
irmão
Sai daqui!
desconhecido
Eu jurei que pedia sua permissão, por favor! Eu só quero sua permissão!
irmão
Vai embora!
desconhecido
Eu preciso da sua permissão!
60 Revide
âncora
Luigi Beluzzo, o único maior dos quatro jovens agressores da Avenida
Paulista diz estar arrependido pelo que fez. Segundo uma entrevista me-
diada por seu advogado, o jovem diz querer trilhar o caminho do bem. O
rapaz espera um habeas corpus e continua foragido.
desconhecido
Eu sei onde ele está.
âncora
Luigi Beluzzo, o único maior dos quatro agressores da Avenida Paulista
será capturado daqui uma semana por um cidadão de bem. O autor da cap-
tura, um herói desconhecido, concederá uma entrevista ao Jornal da Noite
sob a condição de não ser identificado.
desconhecido
Meu único compromisso com o mundo é fazer dele um lugar melhor
Meu único compromisso comigo é fazer do mundo um lugar pra mim
âncora
Luigi Beluzzo, o único maior dos quatro agressores da Avenida Paulista,
deixará este mundo pelas mãos do homem mais puro da Terra que até o
final de sua vida lutou pelo mais verdadeiro sentimento de compaixão pela
humanidade, pela maneira mais bela de existir.
desconhecido
Já organizei uma gincana onde vencia quem enfiasse mais garrafas em
Gigio Beluzzo.
âncora
Luigi Beluzzo, o único maior dos quatro agressores da Avenida Paulista,
será punido pelas mãos do filho mais humano que tive. Você. Meu querido.
desconhecido
Obrigado, mãe. Obrigado.
âncora
Eu te amo, meu homenzinho.
Revide 61
pai
Eu já vi de tudo meu filho
Vi marmanjo chorar feito filhote,
Recém-nascido morrer na frente da mãe,
Vi uma mãe morrer na frente da cria,
Um escritório banhado de sangue,
Meninos da sua idade sendo espancados em iniciações sem sentido,
Vi o branco do osso de um calcanhar saltar na minha vista,
Eu já vi de tudo meu filho,
Vi todo o mal do mundo passar na minha frente,
Todo o mal do mundo me chamar para dentro,
Tudo, meu filho.
Tudo.
***
irmão
Mas não fiz nada por você, meu irmão.
Nada.
pai
Virei homem e não consegui afastar minha truculência
Não há nada de feminino em mim, não há nada de humanidade em mim
E quem vai pagar por isso é você, meu filho.
***
irmão
Não, não é assim. Estão me protegendo nos sites dos gays, estão me de-
fendendo nas redes sociais, estão me adorando no inferno chamado Internet,
dane-se: eu tenho o direito, nenhuma culpa existe quando há muitos machos
no mundo. Eu tenho o direito. Fique sossegado porque toda a humanidade
me autorizou, há uma legião de quarenta homens querendo vingar meu ir-
mão, Alô? Eu dou minha permissão, cara! Você tem toda minha permissão!
desconhecido
Permissão aceita. Faltam cinco dias para o Natal.
pai
Um homem é uma guerra, é sempre a guerra
Está na saliva, no suor, no sangue, na seiva
62 Revide
Dos Mantovani, agora dos Beluzzo
Um sobrenome não muda nada
gigio
Se ao menos a mídia não divulgasse nosso nome…
pai
Jurei que nunca mais apertaria um gatilho depois que virasse um Beluzzo,
E não vou cumprir minha promessa.
gigio
Se ao menos a mídia não divulgasse nossa foto…
pai
Não interessa,
Nada interessa quando a violência vaza feito um órgão inflamado.
irmão
Eu nunca revidei um soco qualquer
Eu nunca revidei uma ofensa sequer
Fui um menino que apanhei de outros meninos e hoje guardo
Toda masculinidade do mundo nos meus músculos subdesenvolvidos
Chegou minha vez.
[Luz em Desconhecido]
desconhecido
Atenção tudo que me cerca e me faz,
irmão
Tudo que é invisível e que ninguém sabe,
desconhecido
Tudo que é masculino e domina a Terra,
irmão
Tudo que é domínio, conto com tudo,
desconhecido
Pra fazer da justiça o tutano destes homens,
Revide 63
irmão
Conto com tudo que seja contra o feminino,
desconhecido
Pra fazer destes homens tudo que é desumano,
irmão
E com eles destruir do humano tudo que não é humano
Conto com tudo,
desconhecido
Conto com os homens.
âncora
Mesmo na véspera do Natal, a movimentação de pedestres não para de
crescer nos arredores da Avenida Paulista, um dos cartões-postais da capi-
tal. A cada ano a decoração natalina das ruas, prédios, agências bancárias
recebe admiradores de todas as idades.
pai
Ontem mesmo questa pazza disse que a Paulista tinha virado palco da
barbárie…
gigio
É o pior Natal da minha vida desde que minha mãe morreu.
âncora
[a Gigio]
Mesmo na véspera do Natal, a movimentação de delinquentes não para de
crescer nos arredores da Avenida Paulista, um dos cartões-postais da capi-
tal. A cada ano a decoração natalina das ruas, prédios, agências bancárias
recebe agressores de todas as idades.
gigio
…
64 Revide
pai
Gigio, você percebeu que tem um carro estacionado aqui na frente des-
de manhã?
âncora
[a Gigio]
Reviravolta no caso dos jovens agressores da Avenida Paulista. Nem a
decoração de Natal poderá salvá-los do linchamento em praça pública, tra-
tamento dado aos bárbaros, às piores pessoas do mundo.
gigio
…
pai
Gigio, você viu onde o papai colocou a munição do revólver?
âncora
[a Gigio]
Somente uma punição exemplar servirá de lição a esses filhinhos-de-
-papai desalmados que ameaçam o bem-estar de cidadãos como meu filho
e meus familiares.
gigio
Desliga essa tevê, pai…
âncora
[a Gigio]
Pergunte ao bandido do seu pai o que ele faria se algum vândalo como
você estourasse uma garrafa de cerveja no rostinho do único bambino que
ele fez o desserviço de colocar no mundo.
gigio
Desliga essa tevê, pai.
âncora
[a Gigio]
Pergunte ao bandido do seu pai o que ele faria se algum presidiário de
Tremembé enfiasse toda rola no rabinho do único bambino que ele fez o
desserviço de colocar no mundo.
Revide 65
gigio
Desliga essa tevê, pai!
âncora
[a Gigio]
Pergunte ao bandido do seu pai o que ele faria se algum psicopata como
ele terminasse de uma vez por todas com a vidinha do único bambino que
ele fez o desserviço de colocar no mundo.
gigio
Eu vou dar um chute nessa merda, pai!
pai
Meu filho calma!
gigio
Você não entende! Eu vou morrer!
pai
Gigio!
gigio
Eles sabem onde nós estamos, eu preciso sair daqui!
pai
Aqui é seguro!
gigio
Você não me escondeu direito!
pai
Gigio, está tarde!
gigio
Me solta, eu vou te bater!
pai
Gigio, não!
66 Revide
gigio
Me deixa sair!
pai
Gigio, você vai me matar!
gigio
Pai, você não entende!
pai
Gigio, para!
gigio
Pai, eu vou morrer!
pai
Gigio, não…
gigio
…
pai
…
âncora
O Jornal da Noite deseja Boas Festas a todos que estão se preparando
para a comemoração dessa data tão especial. Feliz Natal e até amanhã.
gigio
Por favor, já passou da meia-noite, eu estou aqui desde ontem chamando
carona e ninguém para, por favor: me ajuda.
desconhecido
Eu não te conheço…
gigio
Aonde você vai?
Revide 67
desconhecido
Rio de Janeiro.
gigio
Eu vou junto!
desconhecido
Como eu posso saber que você não vai me matar, que você não é um
bandido?
gigio
Eu não sou um bandido! Eu sou uma boa pessoa! Por favor!
[Pausa]
desconhecido
Entra.
desconhecido
Nervoso?
irmão
O melhor Natal da minha vida desde que minha mãe morreu.
desconhecido
[Cantando]
Peguei o carro do ano em que eu nasci,
Pra realizar o grande feito da minha vida.
irmão
Será que o seu pessoal vai estar lá quando Gigio chegar?
desconhecido
Quarenta homens órfãos de mãe…
Prontos pra bater…
irmão
E o bandido?
68 Revide
desconhecido
Desistiu na última hora.
irmão
Nenhuma mulher?
desconhecido
Nenhuma.
irmão
Tudo que é humano vem da mulher.
desconhecido
[Cantando]
Peguei o carro do ano em que eu nasci,
Pra realizar o grande feito da minha vida.
gigio
Você se importa se eu tirar um cochilo?
desconhecido
Fique à vontade.
desconhecido
[A Irmão e a Gigio]
Chegamos.
gigio e irmão
[Acordando]
Cara, mas aqui é a Paulista…
desconhecido
Desce!
Revide 69
âncora
Ontem,
Em plena madrugada de Natal, a Avenida Paulista,
Artéria central por onde todo tipo de sangue passa,
Reduto de sangues por onde todo tipo de homens passam,
Novamente viu sua reputação ser manchada por homens.
desconhecido
Eu não me reduziria ao lugar de homem nem pela justiça
E senti nojo quando vi a estirpe dos homens que eu juntei
O mesmo sangue que mancharia a reputação da Paulista,
âncora
Não seria jamais derramado pelo único homem,
Meu filho,
Pequeno homem macho que criei entre os machos,
Meu filho,
O grande homem-fêmea que criei distante dos machos,
Meu filho,
Que nunca quis se misturar a estes homens.
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando os primeiros socos começaram,
irmão
É na cara, vocês ouviram? Bate na cara!
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando o primeiro supercílio rompeu,
irmão
Isso mesmo! Arregaça! Estraçalha!
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando caíram os primeiros dentes,
irmão
Arrebenta, vai! Não para!
70 Revide
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando o rosto daquele irmão transfigurou-se,
irmão
Olha pra mim, desgraçado! Me encara!
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando o rosto de Gigio transfigurou-se,
irmão
Engole o choro, desgraçado! Não chora!
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando deixaram Gigio pelado na rua,
irmão
Mostra o rabo pra câmera, sua praga! Se entrega!
desconhecido
Eu estava dentro do carro quando Gigio tentou abrir a porta de trás,
Eu estava dentro do carro quando Gigio virou um menino vermelho,
Eu estava dentro do carro quando um tiro…
… estourou o pára-brisa da frente…
irmão
Meu irmão, escuta. Estas duas garrafas são para você estourar no rosto
do cara que te bateu. Ouviu bem? Ele está aqui na sua frente, eu estou se-
gurando a cabeça dele. Agora é com você! Por favor.
vítima
…
irmão
Meu querido, eu te imploro. Eu sei que você sente, eu sei que você tem
ódio nesse coração, eu sei que você é um homem. Por favor.
vítima
…
Revide 71
irmão
[Chorando]
Você é um homem, meu irmãozinho… Arrebenta a cara dele!
a vítima
[Deixa as garrafas cair, tateia o rosto de Gigio]
…
irmão
Você é um homem!
[Vítima enlaça Gigio pelo tórax e o abraça. Longa rajada de tiros. Longo silêncio.]
pai
[A alguém]
Podem ir, podem ir…
Morreram todos.
Todos homens, graças a Deus.
gigio
Pai… você pode me dizer que horas são?
pai
São quase duas horas, filho.
gigio
Feliz Natal, pai.
pai
Feliz Natal, Gigio.
F IM
72 Revide
Metaplágio
LeandroDoregon
Numa rádio,
Voz de uísque.
Puxa!
Voz de uísque.
Vou me lembrar de alguns anos da minha vida que passaram... Filmes, novelas,
músicas, ou sentir no ar o perfume que usava. Mas nunca é como foi.
ALÔ! OI! Você tá no ar. Está ao vivo, às 2h45 da manhã, no “Jogo im-
provisado de Talento do Senhor Coruja” – eu. Você não me disse seu nome.
Nada faz sentido, né? Sílvia. Gostaria... Gostaria... Gostaria... Merda! (...) Tudo
nela ser tão falso. Copiando tudo... Tudo. Viver. Ela! Ela!
73
Valeu! Valeu! Não sei se conseguiu finalizar sua historinha, mas estou-
ramos o tempo. Infelizmente.
Quem?
Você. Sabiá.
É nossa ouvinte?
Sylvia?
É a sua música?
Da Sylvia.
Caiu a ligação? Porra cara, caiu! Eu sei, sei que estou no ar. Mas essa mu-
lher... (cortes) “Ligar ou não ligar.” Que merda! Tomando decisões o tempo
todo. Liga de volta, vai, produção! Li, retorna, retorna pra maluca. Não, eu
não a conheço. Só estou curioso, faz favor, oquei?
Sylvia passou a odiar os amigos e quis um amor clichê. Eu também era casada
cum... Gostava de pedir música nas rádios de madrugada. Passava a noite grudada
no telefone...
Quem fala?
74 M e ta p l á g i o
Voz de uísque. Sabiá... Ele se apaixonou. Amou a voz dela. Nunca se encontraram.
Uísque, pó, Sylvia. Descobriu. Foi embora.
Sei que agora fui eu que desliguei; porra! Chega... Chega de aguentar...
Me traz aí uma água com gás... um... alguma coisa pra eu... Próximo tele-
fonema... Alô!
Bom-dia.
É a Sylvia, Sabiá.
Eu voltei.
Morre!
Cala a boca!
Ressaca.
Então me sirva um Bloody Mary. Tão poucas vezes eu não soube o que
disse. Poucas também eu não soube o que fiz. Só falei, agi. Poucas, poucas
vezes eu não sei o que senti. É tão estranho o que estou sentindo. Não sei o
que é... Sei da causa, sei de você. Que tou falando? Que estou fazendo? Será
que eu te encontraria? Será? Quantos comprimidos eu preciso tomar? Será
que eu encontraria Deus?
M e ta p l á g i o 75
Então, a mulher que viveu Sylvia é, na verdade, uma atriz, e todo processo
de não se conhecer por repetir as reações de outras pessoas e não reconhe-
cer suas próprias ações faz parte do trabalho enclausurador do ator, ponto?
Conheci a mulher que quis ser personagem... Não disse que sou ladra?
Meu Sabiá...
Quem é você?
Fim,
Num quarto...
Certo. E você faz o quê, bonitinha? Ah, não me disse seu nome.
Legal. Preparada pra nos mostrar? Você tem dois minutos... Valendo!
Nada faz sentido, né? Entretanto tudo está sintonizado. Se eu, de repente,
dissesse (Sílvia) eu só tenho criatividade e nada de inteligência. Gostaria
76 M e ta p l á g i o
também de ser engraçada ao meu modo que é, às vezes, forçar a piada e, às
vezes, copiar de alguém ou reaproveitar e mudar a oportunidade dela. Es-
pontânea?! Gostaria de ter o andar songo-mongo como eu acho que andei
um dia, de ser corajosa como algumas vezes devo ter sido, de me encontrar
comigo bebê pra me ver ainda imaculada de tudo que copiei numa vida in-
teira. Merda! É que, ao invés deu me entregar, fico tentando raciocinar sobre
tudo. É um saco pensar, não é? Acordo pensando em mil coisas, nos comen-
tários que gostaria que fizessem ao meu respeito, no restante do pensamento
interrompido pelo sono... Não sei parar de pensar e não quero parar. Um
pensamento recorrente é tudo nela ser tão falso. Desde sempre copiando as
reações corporais e faciais alheias. “Repetir a reação e gravá-la em algum lu-
gar do cérebro para quando precisar, eu usar.” Em terceira pessoa, ela é uma
vontade incontrolável de interpretar tudo... Tudo o que vejo, sinto, cheiro;
desde as placas das ruas ao som do teclado e os carros; cada verso e letra;
cada número... Quero ser tudo. Só, então, respiro. Hoje está doendo viver.
É um dia em que me encontrei com o meu passado, não suporto ser quem
eu sou. A inverdade que há em mim me é dolorida, me é maldita. Não sei o
que odeio; tudo sempre vai parecer interpretação. Ela! Ela estava cansada
de tudo o que tinha, era saudosa do futuro, da vida que esteve ao seu lado
desde o nascimento esperando a hora certa de se manifestar.
Valeu! Valeu! Não sei se conseguiu finalizar sua historinha, mas estouramos o
tempo.
Oi?
Você.
M e ta p l á g i o 77
quis trocar de lugar com ela, ir ao céu de baunilha de Monet: não tomei
álcool, ouvi músicas deliciosas repetidamente e pensei em como o amor
nos nasce, e na mentira que é acharmos que só o percebemos já grandinho;
alguém está invadindo resolutamente sua vida, alguém que pode mudar
tudo, te dar um novo destino pelos próximos 12 anos, e isso é um tsuna-
mi devastador. Quando esse fenômeno lunar acontecer novamente será
outra vida, outro momento, outra cidade, novas músicas descobertas...
Ou existirei apenas através das palavras. Sorri, agora, e me vi sorrindo,
cada músculo trabalhando para a incontrolável exibição dental. Acho que
me reencontrei um pouquinho, é que estive longe, bagunçado, deve ser o
amor... E o caos que ele traz é um fenômeno transumano, enluarado em
nossa existência, capaz de fazer você se perder de você para se encontrar
noutra pessoa, e assim se retornar transformado.
Ainda não vi a lua e o seu perigeu... Daqui a 12 anos, tudo estará dife-
rente... Esse é o momento!
Li, ela não tem... (?) Ei, você tem uma voz conhecida. É nossa ouvinte?
Nos conhecemos?
QUEM É QUE ESTÁ FALANDO? Tão dando trote ou vocês estão armando pra
mim.
Sou tudo que li, vi, ri, odiei, tentei amar, e amei. Essa entidade que me
possui e me inspira na hora de criar desde que nasci me fazia repetir no
quintal de casa tudo, o que refletiu em muito na forma como interpreto e
descubro minhas esquizóides, até hoje. Reescrever, recriar, desdizer, até
eu começar escrever, criar, dizer... Quem te inspirou a usar esse chapéu
ridículo?
78 M e ta p l á g i o
É a sua música?
Alô?
Quem fala?
Sylvia. Até eu ouvir uma voz de uísque do outro lado da linha... Meu
querido Sabiá... Ele se apaixonou por Sylvia. Amou essa mulher, ou a voz
dela a ponto de deixar a família falando sozinha e se mudar pra minha casa.
Mas quando me viu pessoalmente, eu era aquela gorda-cega com a casa ba-
gunçada... A Sylvia lhe disse que eu era a babá da filha dela, que alugando
um quarto na minha casa, ficaria mais fácil deles se encontrarem... Mas ela
sempre vinha quando ele não estava, deixava seu perfume pelo ar, bilheti-
nhos, esfregava seu sexo nos lençóis dele e se falavam durante a noite intei-
ra, o que pra ele era mais que uma “metida”. Eles falavam sobre qualquer
assunto, inclusive eu. Meu marido... que sabia de tudo, e estranhamente
compactuava, dizendo a ele que Sylvia realmente o amava e sentia muito
por nunca se encontrarem. Mas meu Sabiá triplicou o uísque, o pó, adoeceu
de amor e quis ir embora, dez anos depois de ouvir que a Sylvia se falava
com outros, além dele. Por pouco, não fui descoberta pelo jornalista Wilian
Boner, no início da carreira, quando fazia reportagens e lhe arrumei um
furo. Quando ele e Sylvia marcaram um encontro, eu o estava observando
à distância... Mas, por um breve momento, ele me olhou e sorriu, depois foi
embora, assim como o meu Sabiá.
M e ta p l á g i o 79
Você está no “Jogo improvisado de Talento do Senhor Coruja”. Quem fala?
Me perdoa por sumir por tanto tempo, meu amor. Mas eu voltei pra você.
Sou eu, a sua Sylvia. Diz que ainda gosta de mim.
Morre!
Cala a boca.
Interpretar é uma dor sem fim Nunca tive prazer Não sei onde sou atriz
No pensamento No comportamento No jeito Na alma Sei o que sinto Quan-
do não mais racional Quando sou tudo o que penso de verdade Quando
mais me odeio Quando mais sinto medo Quando mais me conheço Quando
mais me desprezo Quando não sei quem eu sou tudo entra em conflito O
que acredito quando começa a passar os meus momentos passo também pelo
processo Daqui a pouco vai completamente então perco a lucidez Posso me
controlar Não sei porque faço isso Eu me vejo mais É daqui a pouco passa
Hum?
80 M e ta p l á g i o
Não, se você pensa em Deus?
Não penso... Falo: “meu Deus, me ajuda?!”, “obrigado Pai!”, “vai com Deus”, “se
Ele quiser...”, “pede pra Deus...” Essas coisas...
Cada um de nós seria uma persona Dele, tentando encontrar seu eixo,
seu eu mais interior? Todos seríamos Sylvia.
É?
E por que, não? Se fosse a única vivalma com superpoder, acha que não
ia pirar? Ainda mais sendo confuso e cheio de crise, é um ser humano...
É, ia. Então, a mulher que viveu Sylvia é na verdade uma atriz, e todo processo de
não se conhecer por repetir as reações de outras pessoas e não reconhecer suas próprias
ações faz parte do trabalho enclausurador do ator, ponto?
Diante daquele epitáfio, pela mãe que não esteve no enterro e chorava
com atraso, conheci a mulher que quis ser personagem... Alguns de nós
M e ta p l á g i o 81
somos assim. Ela também, em 93 com 20 anos, largou Psicologia, estágio,
namorada para se casar com um executivo mais velho e mais alemão que
ela. Mais tarde o largou, sem dizer nada, e foi para as ruas de São Paulo tra-
balhar como prostituta, engravidou, deu a menina que teve dentro de um
carro ao ex-marido, e fez clientes apaixonados por ela e por suas tatuagens
feitas de tinta de caneta. Não me apresentei pra mãe de Sylvia, não disse que
sou ladra, que roubo inconscientemente tudo de todo mundo. Seu jeito de
andar, falar, frases, sorriso, basta eu gostar.
Sua maior definição é ser mulher. Agora, quando é que esse inferno termina?
Meu Sabiá... Sabe quantos anos eu tenho, agora? Oitenta redondos. Vivo
num asilo com o meu marido, lembra-se dele? Acabou de dormir, não re-
conhece mais ninguém... Mas hoje, depois do jantar, enquanto comia sua
gelatina, me olhou esquisito e falou: “Como está, Sylvia?” Então, eu me ma-
quiei como ela: batom bem vermelho, unhas roídas, tirei a calcinha, e me
tornei aquele bolo, do qual todos queriam uma fatia, recheado de carisma,
coberto por cultura, inteligência e ousadia. Eu preciso disso pra continuar
morrendo, Sabiá.
Sylvia! Sylvia!
Fim
82 M e ta p l á g i o
relógios de areia
Maria Shu
mar
engolindo
terra
engolindo
cidade
engolindo
pessoas
que engolem
pessoas
sem menos
nem mar.
( Tade u R e n ato, poeta e dramat ur go)
1.
JONAS
Misturado a restos de comida, eu navego em oceanos ilegais. Pisei fileiras
de dentes, atolei língua e escorreguei noite adentro na garganta da baleia.
83
Eu aceitei o compromisso. A viagem. A paga.
Não quis nem saber a rota.
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
(som de coaxar)
(Pausa)
BALEIA
Faze bem o teu trabalho.
Pois neste reino não há perdão.
2.
JONAS
De tanto aluguel a barriga estufou.
O ventre intumescido se debate em contrações.
(som de coaxar)
0 00 0 0 0 0 0 0
0 0 0 0 0 0 0 0 0
0 00 00 00 0 0 0
00 0 0 00 0 0 00
00 00 0 00 000
00 0 00 0 0 000
000 0 0 0 0 0
0 0 0 0 0 0 00
0000 00 00
Oitenta e três.
Pode conferir.
Estão todos aí, conforme o combinado.
Vinde de mim as criancinhas!
(Pausa)
Tem certeza
de que foram lavados?
Evidente que sim, senhor.
JONAS
A virtude?
Você quer saber o que fiz com a minha virtude?
BALEIA
O Baleia aqui não te promete nada.
JONAS
A virtude eu engoli…
BALEIA
É por tua conta e risco.
JONAS
num dia de tédio e armários vazios.
BALEIA
Esquema simples.
JONAS
Tudo é dinheiro…
BALEIA
Pago bem.
JONAS
Se eu tivesse seu carro
sua casa
seu iPhone…
BALEIA
Tu podes conseguir o que não tens.
BALEIA
Ou não.
JONAS
Também são feitos de carne, sangue e sonho
os corações dos burros-de-carga.
BALEIA
Esta é a hora, Jonas. Destrói tuas rédeas, empina!
Derruba o antigo cavaleiro. E segue-me a partir de agora.
Ancorado à quilha
seu coração enxergou
um aroma dentro:
Jonas soltou as amarras
e enlaçou o sonho a navegar
além.
.
.
.
.
.
JONAS
Eu aceito, senhor.
Quero saber o que se esconde depois da onda.
4.
O alimentador
JONAS
Foi enfiando o braço na sua goela que, por anos, eu o alimentei.
Noites, a boca desdentada engolia as brancas montanhas
e pedia bis.
Pais sabem a medida exata da fome de seus filhos.
(Pausa)
História de estivador:
Acidentes acontecem…
O socorro virá
Ele será içado.
Vamos trabalhar!
Dias amargos
de sal
e
de sol.
5.
Tempo
tem
pó.
6.
Cronos engoliu
todos os seus filhos
à medida em que eles nasciam.
JONAS
Permaneçam um tempo mais, queridos. Por favor. Fiquem em mim até
chegar a boa hora.
JONAS
Sim, quer dizer, n-não!
Apenas cansaço.
JONAS
É, duas horas de atraso.
JONAS
Ssssssssssei....
JONAS
Hmmmmmm
JONAS
Não se preocupe. Está tudo bem. Com licença.
Cronos devora os seus.
Faz piada.
Debocha.
JONAS
Filhos que nascem prematuramente
precisam ser reengolidos.
7.
Decrifa-me ou me engole
8.
BALEIA
Jonas, Jonas. Acorde!
JONAS
Algum problema, capitão?
BALEIA
Quero que viajes até uma cidade distante
e alimentes uma boca com 35 ervilhas.
JONAS
Está certo da quantidade, capitão?
O capitão sabe que tenho as vísceras generosas,
que eu posso mais…
JONAS
Eu só acredito em úlceras.
BALEIA
Mas que falta de fé é essa?
(saca um revólver)
Reza um pai-nosso agora.
JONAS
Pater noster, Qui es in caelis, sanctificetur nomem tuum. Adveniat reg-
num tuum.
Fiat voluntas tua, sicut in caelo et in terra.
(som de coaxar)
BALEIA
Mais alto!
JONAS
Panen nostrum quotidianum da nobis hodie. Et dimitte nobis debita
nostra, sicut et
nos dimittimus debitoribus nostri.
Et ne nos inducas in tentationem: sed libera nos a malo. Amen.
BALEIA
Amém, amém, amém.
Muito bom, meu filho.
Olha-me assim, por quê?
O Baleia não é feio como pintam.
O Baleia só ajuda gente vazia a se preencher.
JONAS
Onde estão as ervilhas, capitão?
BALEIA
Acalma-te e prepara-te!
Em breve farás a boa ação.
(som de coaxar)
MAIS ALTO!
EU ENGOLI EU SOU UM ENGOLIDO!
COCAÍNA OU ECSTASY?
CONSIDERE-SE UM HOMEM ENCRENCADO SE EU TIVER DE RE-
PETIR ESSA PERGUNTA!
achei que era melhor ser mula
que burro-de-carga
mas não é!
a origem é a mesma doutor
continuo atraindo olhares para a minha jaula apertada
nasci híbrido
e vou morrer híbrido
(Pausa)
(Pausa)
quando o baleia botou na minha frente o prato com a carga pra engolir
dei um jeito de trocar a coca pelo sal
10.
SAL da vida.
JONAS
Depois de tudo
AINDA
O cheiro intenso da mandrágora
Escapa pelos poros
os sete buracos da cabeça
e vãos de dente.
Depois de tudo
AINDA
Metamorfoseiam girinos
No coaxar do estômago pantanoso desse burro-mula.
Homem
ao
mar.
11.
SALVA-VIDAS
Uma-duas-três-quatro-cinco-seis-sete-oito-nove-dez-onze-doze-treze-
-catorze-quinze.
(Respiração boca-a-boca)
Uma-duas-três-quatro-cinco-seis-sete-oito-nove-dez-onze-doze-treze-
-catorze-quinze.
Força, Jonas! Estou te dando o que você precisa na boca!
(Respiração boca-a-boca)
Uma-duas-três-quatro-cinco-seis-sete-oito-nove-dez-onze-doze-treze-
-catorze-quinze.
Respire! É só isso o que você tem que fazer!
(Respiração boca-a-boca)
Uma-duas-três-quatro-cinco-seis-sete-oito-nove-dez-onze-doze-treze-
-catorze-quinze.
Vamos! Deixe de frescuras! Seja homem ao menos uma vez na vida!
(Respiração boca-a-boca)
Uma
Duuuuuas
Trinnnnntequat
Trinnnnnta e CINCO!
Jonas vomita
Eu, zerado.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Silêncio.
(pausa)
F IM
ENTIDADES
Menino
Mãe
Pai
Coro
Admirar-se-ão os habitantes da terra, cujos nomes não estão escritos no livro da vida,
desde o começo do mundo, vendo reaparecer a Fera que era e já não é mais.
A pocal ipse 17: 8
MENINO
se não me fala a memória
invento
103
meu quarto
meu não
era deles quando eu cheguei
aqui no
tudo já era
tinha também um jardim onde
mas andava
anda
por aqueles idos
um
que ninguém nunca viu
104 Licantropia
um demônio
matava quem achasse na frente um esfarrapado um degredado
filho de eva
nem missa acontecia direito
mas nem padre nem polícia nem prefeito
ninguém entendia
ninguém nunca viu
o filhodaputa que é lobisomem
eu tenho certeza
MÃE
larga disso menino
que lobisomem é coisa de não-existência
é invencionice de gente maljeitada
MENINO
pessoa humana não faz assim
arrancaram os olhos de uma menina
forçaram a ximbica dela
enfiaram os dentes enormes naquele velho
MÃE
eram facadas
MENINO
deixaram em pedaços
MÃE
para de tolice e vem almoçar
MENINO
tem carne?
MÃE
tenho
Licantropia 105
CORO
viemos do barro
da nau dos insensatos brota a alta voltagem
que incendeia nossos canaviais tão longe tão longe
do mar
foi problema de encarnação
excomungado sem nome
esse que nunca chegou direito no mundo
aleluia aleluia
o lodo
aleluia aleluia
o tolo
MENINO
a rua ainda era de barro mas o asfalto vinha despencando pela avenida
uma chuva que ficaria no durante da eternidade
MÃE
é hoje que mundo acaba
PAI
dona Dínfna mudou do município
MÃE
toda vez que desamanheço
acho que sou chuva
PAI
disse que tava com medo
MÃE
fico me espojando no chão
até que eu entenda o chão
106 Licantropia
PAI
porque não quer mais ter outro filho
ou neto ou cão
MÃE
e já não tenho mais medo de tudo que vai acabar
PAI
deixou o esposo e os outros rebentos pra trás
MÃE
durmo dançando
PAI
nessa idade?
MÃE
e me deixo ir
PAI
não tem mais pra onde
MÃE
te aperto de noite só pra ter onde me conter
PAI
mas tá certa depois de ter aquele filho
… … … estouvado
MÃE
aí me sinto juntada ao mundo nos conforme
PAI
tem carne?
MÃE
tenho
Licantropia 107
2. as palavras dos batizados eram outras
MENINO
nos tempos do gelo os lobos corriam
se aboletando nas cavernas onde as pessoas achavam
habitar de jeito mais prazenteiro
só ficar sozinho ou dar as costas ao que era criança
e uma matilha rasgava o peito
e tirava o pulso
e pulava a moita
e chamava a noite
CORO
menino!
MENINO
menino não que tenho nome
CORO
esse diabo esconjura sozinho
não é bando
só se for lobo-guará
que vive ermo
por que nos conjuntos não tem maneira
tendo pousada só no dos quando quer não ficar extinto
MENINO
em sendo um no somente
pode até acontecer
mas o bicho-cheira-terra tem nos poros
toda parentela
toda alcateia
é mais que um
lobo
é ancho
é entidade
é assombro
108 Licantropia
CORO
ente que não é de espanto de outro plano
mas bichumano destas ordens
MENINO
lobisomem é planta do mundo de cá
mas com raíz que se arvoreda pra lá
na ponta do mistério
CORO
menino!
MENINO
menino não que tenho nome
CORO
pois o torce-dentes
o sangra-cria
o desnomeado
o zarapelho
o azarape
o manfarro
o mal-falado
é filho enjeitado de pia batismal
sétimo filho da linhagem dos homens
temporão na casa de mulheres céticas
aquele que não teve água benta na testa
nos tempos dos mais devidos
ficou sem
como ser chamado
é o transmutado em gente de não-ser que anoitece virado lobo
MENINO
também que vira gente
isso não erra
CORO
não se abasbaque
que isso é dos antigamentes
Licantropia 109
quando do povo acreditava que tudo era resto de mudança
nada era o que era
MENINO
… … e o que é?
CORO
é homem de vontade ruim
olhos baços pra vida
sujeito rasteiro que não tem desculpa que apague seu afazer
figura que só sangrando é que se limpa
pondo pra secar nos braços de um jequitibá
um merda que não vale um cango
MENINO
e se ele não sabe o que se é quando é outro?
CORO
tá ficando parvo
cheio de resposta-pergunta
fosse lobisomem não saberia nada
que estes animalejos não cavaqueiam língua de gente
o tempo
é uma fala que me escapa
MÃE
tem carne
MENINO
não quero
MÃE
tem que ter querência
110 Licantropia
PAI
vai que no-depois você me ajuda na lavra
MÃE
você tá em fogo
fica acamado que isso é assomo de quarentena
dê um momento pra descansar
MENINO
gosto é de ver meu corpo-máquina
produzindo
meu corpo-eu fazendo esculturas de merda
sem que precise por as mãos
nem ter verbo antes
MÃE
que tanto tempo passa no banheiro
o menino?
PAI
é da idade
não envergonha ele
MENINO
nos porém chega uma idade
que não pode mais se espantar
com o próprio fazimento
e os restos devem ser deixados pra trás
afundarem
a
deus
MÃE
não pode tocar
Licantropia 111
PAI
no assunto
MENINO
mãe
tenho coceiras que não acho por onde
aqui aqui
aqui
aqui ó
vontade de morder o comichão
MÃE
faça não
que eu te arrumo com beijo
meu
MENINO
eu tenho nome
de parente passado
MÃE
menino
MENINO
foi no pois das horas que o pó da estrada me cobriu de beijos
e remigrar não mais posso
que já deixei os quintais em modo de lembrança
e a vila é agora uma pequena estrela
luziluzindo ao norte do leste do
sem direção
112 Licantropia
e sempre que chovia mãe tiritava por causa
do chamado medo-dos-ais
que era quando o céu gomitava trovão nas cabeças
e deixava a criatura pra sempremente
desassossegada
vivente
de déu-em-déu nas beiras dos ocos do planeta
lá fora
o ciciar do passarim-à-toa
chanchão cativo me açoitando com seu cantar amanhecido
desadormeci empapado
no suor da madrugada queimosa
PAI
aquele caminhante
um que é filho de Dínfna
ele não é muito bom dos pensamentos
não coisa fala-com-fala
conta das vez
que é campo-santo de gente morrida desde as gêneses
Licantropia 113
quando sou susto relampeando no confins
me amplio em buracos
MÃE
nos-dias-de-eumenina
achava pecado troçar assim do
ele era menino quando eu-menina
meu pai contava nos mais dos murmúrios que não era assim
nos seios de Dínfna
foi meramente só nos sete anos corridos que ele andou pasteando
comeu estrela
é o que falam
falam por aí
CORO
lá vem o bebe mijo
na eterna idade
vive de pau rijo
o doido da cidade
á tenra distância
se vê a sengraceza
deste poço de ânsia
moço de lua acesa
MENINO
ouvi gritos no estender da noite
quem era?
PAI
não berre
mulher
que acorda os do arredor
114 Licantropia
MÃE
que já nem sei se é o que me gozo
ou se te ecoo no apenas
MÃE
era o desatinado
PAI
o atrolhado?
MÃE (NOS-DIAS-DE-EUMENINA)
escuta
pai
que o menino insensato
deu agora de não falar
só gramunha ruído de animal estremecido
fica bailando que nem cachorro
atrás da culatra
CORO
da boca sai coruja
com a palavra armada
tem a cabeça intruja
não se sabe parada
do avesso é filho
sem começo nem fim
calma com o andarilho
que rouba alma de mim
MÃE
foi neste portando aquele sucedido
e ficou no sem linguarejar até os de há pouco
quando já homem
assim
PAI
tá agora sempre no agourando
não se faz no entendido
Licantropia 115
MÃE
danado
só atira frase sem mais nem sem
é desiquilibrado
só que nos porém apreciam ele por demais
aqui nestes distantes
CORO
olha o descapricho
deste micho
que resfala
pega logo o bicho
de pelixo
e empala
PAI
um lamurioso isto é
mas não grita no deslimite dos turnos
feito galo desespertador
MÃE
será se era o rosna-e-fuça?
MENINO
me levo no rememorar
estas conversas de mãe e pai
nos caminhados de antes da estrada
preciso alvorar
PAI
também você nesse fabular
de lobisomem?
116 Licantropia
MÃE
acordei meio sonada
PAI
urro nenhum
o menino tava na febre ainda
se piorar
tem que fazer sangria
MENINO
já convalesci
PAI
tô de divertimento com você
menino
CORO
carniça que nem com unguento se lava
garrote de sete palmos
nem cobra atamanhada servicia maneira tal
…crendospadre
…crendospadre
Licantropia 117
é o miúdo de cria de dona-costureira
tava ontem mesmo no açude
assistindo peixe nascido do sereno
…crendospadre
…cagão
118 Licantropia
me coça a pele
chame o pai pra ver o passarim
no chão da gaiola
você viu quem morreu mãe?
PAI
ô meu chanchão cantador
meu passarim
MÃE
coitadinha da velha
PAI
bom
depois de migrar de todo jeito
até rio tem seu leito
MENINO
coitadinho dele
do menino
MÃE
você não me sai mais
até o raivoso sumir
pousa no quarto e se planta lá
PAI
vou enterrar no jardim
MENINO
queria poder sair do quarto agora
mas anda por aí
um
que ninguém nunca viu
um demônio
mata quem estiver na frente um esfarrapado
ninguém nunca viu
Licantropia 119
o bruto que é lobisomem
eu tenho certeza?
PAI
seja o que seja
tem que fazer sangrar
MENINO
lobisomem se quebra mandinga
é no correr do vermelho
MÃE
não gosto quando finge
que ainda não morreu
PAI
fazer armadilha
até o cismático cair
MÃE
não tem mais nada por dentro
e ainda se bole
MENINO
assim é que se vê
os íntimos do animal
PAI
criatura enche bucho de achados
até escangalhar os internos
MENINO
quando a sangria secar
aí se cria uma temperança
MÃE
tá oco que até ecoa
e se estremece na mesmência
120 Licantropia
MENINO
é no se descobrir de contrário
que a gente vê que é feito gente
MÃE
se não magoar a cabeça
se faz de nem-te-sei com a morte
PAI
só depois de descourar o ser
que o silêncio
aí sim
vem
e limpa os acontecidos
MÃE
limpa as tripas aqui do peixe
menino
PAI
cuidado com as trilhas do perdido
menino
que o matador te faz
que nem fez com o finado
MENINO
o corpo-seco
o abolido
o ofendido
o morto
tinha nome
tem
o menino
CORO
alguém tem que guardar o doido
que logo é ele quem embruma
nas mãos do assassinador
Licantropia 121
abre a porta do convento
que é onde os atoleimados
se repousam
ôôôôô
que o negrume do céu
anuncia tormenta
MENINO
poeira desanuvia e tudo atravessa por mim
os gritos no rio
o passar do rio
o rio
a noite atormentada
TUDO
PARECIA
EM
CONSTRUÇÂO
tendo nascido nos setemeizinho mãe achou pequeno por demais
e fez promessa a santo de tudo que é romaria
na minha salvação eu fosse rebatizado
na capela do cumpridor
122 Licantropia
eu volto
chora não
inspira
estou voltando
ou estou indo?
5. noturno do enredado
CORO
é hoje que o matador
encontra seu passamento
MENINO
tem precisão de prata
assim se desfaz o mal
do endividado com o cruz-canhoto
CORO
lobisomem ou homem lobo
tá condenado a berro e fogo
archote e apedrejamento
haja visto que tem tocaia
até nos encobertos dos arvoredos
Licantropia 123
MENINO
posso atentar?
CORO
isso não é folia-de-reis
nem teatro de praça
vai pra casa
menino
MENINO
eu tenho nome
e não desenraízo nem por nada daqui
MÃE
menino
vem que é hora de remediar
CORO
se aquiete no quarto
e não me saia nem por nada de lá
PAI
ventania de desviar rumo
assobiando miúdo maneiramente assim
é azo de trazer tempestade empoeirada
tranca as portas
passa as tramelas
que sopro robusto arria até casa
MÃE
ai meu santo que lhe devo um rebatizamento
livrai-me do fogo e do inferno
que logo eu lhe atiço uma vela
PAI
é chuva
mulher
não o juízo final
124 Licantropia
MÃE
o apocalipse se faz em cada piscar
viu como a lua tá afogueada?
PAI
afogueado já basta o menino
febre reveio crescente nos trinta e sete
tá meio banzaró
se piora voltamos no doutor
MENINO
trinta e sete de quentura é de pouquice
quase que nem é
só o frio que me queima no desflorar da manhãzinha
CORO
no caso de qualquer sombra tiver no movente
das horas que correm
um certeiro direto na cabeça
meu calibre 38 dá conta e
MENINO
nem parece mais a mesma
a cidade que nem era cidade eram
casas agraudando em volta da fazenda
arcaica
arcaica
aquecido o dia nesta estrada que me retorna
à morada do meu pai
da minha mãe
o tinir agudo que me viola
na memoração dos passados
Licantropia 125
ou na sala
a vitrola
a varanda ponteando arriba do rio onde os antepassados
dançam ladainhas
piedade de nós
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
e tudo que pasta nem é boi nem é ruim
o LOBISOMEM
MENINO
por nossenhora
que figura é sua pessoa na escureza?
CORO
ciciam pelas bocas miúdas
que ele pulou a janela
e encontrou assombração
MENINO
é seu o bramido de esgueio
de enturvar água de bica?
coro
debandou do resguardo
no calar da chuva
e se atreveu pelo estradão
MÃE
eu vi os sete anjos
que espreitam diante do
Incriado.
CORO
fugiu
o doido
PAI
tá por demais atarantado
o menino
não coisa fala com fala
126 Licantropia
MENINO
vai ficar me orvalhando ou vem
tratar comigo?
sou de bem-fazer
aterre não que estou de paz
MÃE
foram entregues sete
trombetas
quem desrolhou a janela?
CORO
ciciam que o doido
encontrou o setepele
o tisnado
o ferino
o capiroto
o assassino
PAI
deu de agora tresvariar
falando propriamente só
CORO
ficou muquiado no canto
sem saber se entedia ou se
fazia de descabido
MENINO
não desfio nem um nada que você
fala
MÃE
eles tem o mesmo juízo
escambar pra fera
a sua força
Licantropia 127
MENINO
você não palavreia minha língua?
CORO
ele deparou com o verdugo
PAI
para com essa cantilena
carola
que nem um são aguenta
a chuva finda logo
igual a tudo
CORO
sabe como é
o doido
foi açular o matador
com roncados de não
linguagem
MÃE
meu menino tá morrendo
ou tá espertado no dormir?
tem que fazer sangria
CORO
o outro chegou cheio de
danação de quem não
entende
entende?
PAI
eu que desfechei a janela
pro ar entrar
e o incômodo sair
128 Licantropia
CORO
entende?
MÃE
e se entra o lobisomem?
figura que só sangrando
é que se limpa
CORO
um certeiro direto
na cabeça
PAI
e o doutor
que não enxergo sua
chegança?
CORO
entra na fronte e é
capaz de não sair
MENINO
lobisomem se quebra mandinga
é no correr do vermelho
MÃE
desatadora de nós ampara a
cabeça
do meu menino
CORO
se não magoar a cabeça feriu a cabeça do doido
se faz de nem-te-sei com a morte até ele calar fundo
Licantropia 129
6. existências nos passeiam
MENINO
escaqueirei a cabeça do lobisomem
e na precisão de não topar outro deste
que se acercasse pra bisar a sina
debandei pra estrada de terra que sai da cidade e vai em direção a
130 Licantropia
eu RENOMEADO
menino não
que eu tenho nome
fala pai
qual é o meu nome
como serei evocado?
MENINO
assim é que se foi
Licantropia 131
ninguém na rua sem fazendas sem poeira
lençol de asfalto nas trilhas de terra
CORO
Está sozinho?
MENINO
não mais sozinho
que tô no diz-que-diz
com sua pessoa
CORO
Perdido?
MENINO
pensei que trocava de passos na errância
nos porém é esta cidade mesmo
com diferença tamanha que quase nem é a mesma
CORO
Você fala?
MENINO
tá no não-entendimento?
sai do escuro que eu não enxergo
o quem me conversa
CORO
AAAAAAAAAAAAAAAAAA
MENINO
era outro lobisomem
eu sem pedra que rachasse a cabeça do dito cujo
e fizesse escaldar de sangue os pêlos
132 Licantropia
apressei busca do jardim
pai e mãe
não é minha casa minha cidade meu
I N T E R I O R
TUDO
ESTAVA
EM
RUÍNAS
CORO
O menino insensato não consegue falar: apenas emite sons sem sentido
feito animal raivoso.
MENINO
sete meses
trinta e nove graus
oitenta anos no atravessar de
uma noite
sem bois
sem jardim
é terra de lobisomem
maldição espalhada nos apanhados de todos os viventes
cidade encardida
pela peste
quando voltei
não atinava no pensar o que os perdidos rosnavam
Licantropia 133
e nos depois assim
aquele que parte a danação
leva no peito o jeito de ser também
e se demuda
…
…
LOBISOMEM eu-menino?
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
se eu não mais linguajeio na mesmência que todos demais
nem mais tenho pertença nesta cidade
entende?
entende?
134 Licantropia
em sendo um no somente
pode até acontecer
mas o bicho-cheira-terra tem nos poros
toda parentela
toda alcateia
é mais que um
lobo
é ancho
é entidade
é assombro
trago dentro de mim todo bando
todo coro de lobisomens nos idos de antes da minha nascença
e nos depois dos depois dos depois
entende?
no tempo das chuvas
só um lobisomem alcança os
sentidos
de outro ser-lobisomem
e todo palavrar
é uma maldição
pra quem entende
F IM
Licantropia 135
NESTE NÚMERO
Apresentação
Ivam Cabral
Prefácio
Sílvia Fernandes
O Clube
Afonso Junior Ferreira de Lima
Revide
F. A. Uchôa
Metaplágio
LeandroDoregon
relógios de areia
Maria Shu
Licantropia
Tadeu Renato
ISSN 2237-2938
01