A Censura Ao Teatro No Brasil Pós Golpe de 2016

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CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO – SESC SP

Albervan Reginaldo Sena

Elaine Pereira Aguiar

Igor Augustho Mattos Kijak

Tamara Batista Borges

A Censura ao Teatro no Brasil Pós-Golpe de 2016

Curso SESC de Gestão Cultural

São Paulo

2020
Albervan Reginaldo Sena

Elaine Pereira Aguiar

Igor Augustho Mattos Kijak

Tamara Batista Borges

A Censura ao Teatro no Brasil Pós-Golpe de 2016

Trabalho de conclusão de Curso


apresentado como exigência parcial para
conclusão do Curso de Gestão Cultural do
SESC SP, sob a orientação de Eder
Martins.

São Paulo

2020
Dedicamos este trabalho àquelas e aqueles
que foram, são ou serão artistas de teatro no Brasil.
Que este trabalho possa contribuir com o registro
e a memória (de parte) da nossa história.
Você na rua, de novo. Que interessante. Fazia tempo que não aparecia
com toda a sua família. Se me lembro bem, a última vez foi em 1964,
naquela "Marcha da família, com Deus, pela liberdade". É engraçado, mas
não sabia que você tinha guardado até mesmo os cartazes daquela época:
"Vai para Cuba", "Pela intervenção militar", "Pelo fim do comunismo". Acho
que você deveria ao menos ter tentado modernizar um pouco e inventar
algumas frases novas. Sei lá, algo do tipo: "Pela privatização do ar", "Menos
leis trabalhistas para a empresa do meu pai".
Vi que seus amigos falaram que sua manifestação foi uma grande "festa
da democracia", muito ordeira e sem polícia jogando bomba de gás
lacrimogêneo. E eu que achava que festas da democracia normalmente não
tinham cartazes pedindo golpe militar, ou seja, regimes que torturam,
assassinam opositores, censuram e praticam terrorismo de Estado. Houve
um tempo em que as pessoas acreditavam que lugar de gente que sai
pedindo golpe militar não é na rua recebendo confete da imprensa, mas na
cadeia por incitação ao crime. Mas é verdade que os tempos são outros.
Por sinal, eu queria aproveitar e parabenizar o pessoal que cuida da sua
assessoria de imprensa. Realmente, trabalho profissional. Nunca vi uma
manifestação tão anunciada com antecedência, um acontecimento tão
preparado. Uma verdadeira notícia antes do fato. Depois de todo este
trabalho, não tinha como dar errado.
Agora, se não se importar, tenho uma pequena sugestão. Você diz que
sua manifestação é apartidária e contra a corrupção. Daí os pedidos de
impeachment contra Dilma. Mas em uma manifestação com tanta gente
contra a corrupção, fiquei procurando um cartazete sobre, por exemplo, a
corrupção no metrô de São Paulo, com seus processos milionários correndo
em tribunais europeus, ou uma mera citação aos partidos de oposição, todos
eles envolvidos até a medula nos escândalos atuais, do mensalão à
Petrobras, um "Fora, Alckmin", grande timoneiro de nosso "estresse hídrico",
um "Fora, Eduardo Cunha" ou "Fora, Renan", pessoas da mais alta
reputação. Nada.
Se você não colocar ao menos um cartaz, vai dar na cara que seu
"apartidarismo" é muito farsesco, que esta história de impeachment é o
velho golpe de tirar o sujeito que está na frente para deixar os operadores
que estão nos bastidores intactos fazendo os negócios de sempre.
Impeachment é pouco, é cortina de fumaça para um país que precisa da
refundação radical de sua República. Mas isto eu sei que você nunca quis.
Vai que o povo resolve governar por conta própria.

Vladmir Stafatle. IMPEACHMENT É POUCO.


No Jornal Folha de São Paulo em 17/03/2015
AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos familiares, afetos e amigos que caminharam conosco até


agora, relevando nossas ausências e acompanhando - além de nossos tantos
encontros virtuais durante o isolamento social - todo o nosso processo antes de
chegarmos aqui.

A nossos e nossas colegas, amigos e amigas de turma, com quem


compartilhamos diversas experiências ao longo do último ano e com quem tivemos
tantas trocas afetivas. Ter vocês por perto foi um privilégio.

Nosso muito obrigado também aos professores, educadores, gestores e


realizadores que cruzaram nossa trajetória desde o início desta jornada, nas sextas e
sábados que passamos imersos do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São
Paulo durante o último ano.

A toda equipe do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo e do


Curso Sesc de Gestão Cultural, em especial: Isaura Botelho, Maurício Trindade,
Andrea Nogueira, Emily Fonseca, Gustavo Torrezan, Edson Martins Moraes e Carla
Ferreira. Estendem-se os agradecimentos ainda ao Sesc São Paulo como um todo,
instituição fielmente comprometida com a cultura brasileira.

Ao nosso orientador, Eder Martins, nossa eterna gratidão por sua sensibilidade
e disponibilidade, por reconhecer a urgência desta proposta e por tornar este processo
– tão intenso – mais leve. Sem ele não seria possível.

Agradecemos especialmente aos artistas entrevistados por este trabalho: Artur


Luanda Ribeiro, Biagio Picorelli, Fernando Yamamoto, José Neto Barbosa, Marco
André Nunes, Natalia Mallo e Zé Henrique de Paula. Estendemos nossos
agradecimentos também a seus respectivos grupos/coletivos/produtoras e aos seus
integrantes: Dos à Deux, A Motosserra Perfumada, Clowns de Shakespeare, S.E.M
Cia de Teatro, Aquela Companhia de Teatro, Núcleo Corpo Rastreado e Núcleo
Experimental.

A todxs vocês, o nosso muito obrigado.


RESUMO

Este trabalho se propõe à uma análise histórica, política e social que envolve
casos de censura ao teatro no Brasil especialmente após o ano de 2016, em que o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff marcou o início de um intenso processo
de polarização política no país, que culminou também nas eleições de 2018 e na
ascensão do Governo Bolsonaro, marcado pelo conservadorismo e pela
institucionalização de mecanismos de cerceamento da liberdade de expressões
artísticas e do pensamento, além da perseguição moral e política aos artistas do país.

Palavras-chave: Cultura, censura, política, conservadorismo, liberdade de expressão,


teatro.
ABSTRACT

This paper proposes a historical, political and social analysis involving cases of
censorship of theater in Brazil especially after the year 2016, when the impeachment
of President Dilma Rousseff marked the beginning of an intense process of political
polarization in the country, which also culminated in the 2018 elections, with the rise
of the Bolsonaro government, marked by conservatism and the institutionalization of
mechanisms to restrict freedom of artistic expression, speech and thought, in addition
to the moral and political persecution of artists in the country.

Keywords: Culture, censorship, politics, conservatism, freedom of speech, theater.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
PARTE I – CONTEXTOS E HISTÓRICO DA CENSURA NO BRASIL........................ 11
1.1 A Igreja Católica e a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado ............ 11
1.2 O Conservatório Dramático Brasileiro (CDB) ............................................................ 13
1.3 Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) ..................................................... 16
1.4 Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) ................................................ 17
1.5 Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP) .................................................. 18
PARTE II - O GOLPE E O PENSAMENTO CONSERVADOR NO BRASIL ............... 26
2.1 O Golpe de 2016 no Brasil............................................................................................ 26
2.2 As Eleições de 2018 e a Polarização Política/Social ............................................... 33
2.3 O Conservadorismo no Brasil ...................................................................................... 35
PARTE III – LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CENSURA............................................ 38
3.1 Direito à Liberdade de Expressão Artística ................................................................ 38
3.2 Limitação à Liberdade de Expressão .......................................................................... 42
3.3 Censura............................................................................................................................ 45
3.4 Formas de Censura ....................................................................................................... 47
PARTE IV – A CENSURA AO TEATRO NO BRASIL PÓS GOLPE DE 2016 ........... 50
4.1 O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu (Núcleo Corpo Rastreado) ........... 51
4.2 Abrazo (Grupo Clowns de Shakespeare)................................................................... 56
4.3 Res Pvblica 2023 (Grupo A Motosserra Perfumada) ............................................... 60
4.4 Caranguejo Overdrive (Aquela Cia. De Teatro) ........................................................ 63
4.5 Lembro Todo Dia De Você (Núcleo Experimental)................................................... 66
4.6 Gritos (Companhia Dos à Deux).................................................................................. 68
4.7 A Mulher Monstro (S.E.M Cia. De Teatro) ................................................................. 71
PARTE V – CONEXÕES E DESDOBRAMENTOS......................................................... 75
5.1 Das Dramaturgias e Abordagens Temáticas dos Trabalhos Analisados.............. 75
5.2 A Institucionalização da Arte Enquanto Mecanismo de Censura........................... 78
5.3 Censura Moral [ou] [e] Censura Política..................................................................... 83
5.4 Reações e Relações...................................................................................................... 86
5.5 As Influências dos Casos nas Trajetórias Posteriores dos Espetáculos .............. 93
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 97
REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA .................................................................................. 100
ANEXO I – DOSSIÊ DOS ESPETÁCULOS ANALISADOS ........................................ 109
ANEXO II – QUESTIONÁRIO ENVIADO AOS GRUPOS ............................................ 121
ANEXO III – TRANSCRIÇÕES DE RESPOSTAS RECEBIDAS POR ÁUDIO......... 122
ANEXO IV – RESPOSTAS RECEBIDAS VIA EMAIL................................................... 148
10

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca apresentar e analisar episódios de censura a


espetáculos teatrais no Brasil após o Golpe de 2016, que culminou na queda do
Governo Dilma e na escalada do conservadorismo político/social, desencadeando um
fenômeno de institucionalização da censura enquanto política de governo.

Ao longo do texto se traçou um panorama geral sobre os aspectos históricos,


sociais, jurídicos e institucionais da censura e sua relação com o teatro. Buscou -se
observar o quadro a partir de obras teatrais específicas, por meio de entrevistas aos
grupos cerceados após 2016 e da análise do material disponibilizado pela mídia
acerca de seus casos de censura (publicamente assim denominados).

Foram analisadas obras cujos atos de cerceamento estiveram em destaque


na opinião pública, o que evidenciou os atritos entre o contexto político/cultural em
que os espetáculos estavam inseridos e os seus conteúdos. A partir daí, foi proposto
um panorama de sete peças teatrais relevantes na cena artística brasileira,
especialmente pela forte repercussão midiática dos atos de censura.

Os espetáculos analisados tiveram suas expressões cerceadas por motivos


controversos – ora por ação de instituições públicas e empresas estatais
patrocinadoras, ora pela intensificação de manifestações populares de perseguição e
retaliação.

Associam-se, portanto, percepções como a de uma censura velada, que parte


do ato censor pelo conteúdo moral e/ou político, direcionada especificamente a
algumas das pautas mais relevantes e caras ao conservadorismo entranhado ao
Poder Público na atualidade, diretamente associadas ao ataque às chamadas
minorias sociais e a expressões políticas contrárias aos valores conservadores.

Por fim, se estabeleceu uma reflexão sobre os impactos dos atos de censura
no panorama cultural brasileiro, evidenciando similaridades entre os sete espetáculos
analisados e os dias atuais, além de outros períodos históricos em que a censura ao
teatro se fez presente de maneira bastante evidente.
11

PARTE I – CONTEXTOS E HISTÓRICO DA CENSURA NO BRASIL

A fim de compreender as justificativas e os mecanismos que envolvem os


casos recentes de censura a espetáculos teatrais no Brasil – principalmente após o
ano de 2016, objetivo a que se destina esta pesquisa – mostra-se necessário analisar
o surgimento e os mecanismos utilizados ao longo da história brasileira que foram, de
algum modo, responsáveis pela institucionalização do cerceamento da liberdade de
expressão artística e de pensamento no país, especialmente em relação às artes
cênicas.

Junto a isso, é fundamental ter em vista que este movimento de limitação às


expressões é recorrente em diversos períodos históricos da nação e não diz respeito
somente ao teatro, mas à criação artística como um todo.

1.1 A Igreja Católica e a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado

As primeiras manifestações da prática censória datam ainda do Brasil Colônia,


através dos processos inquisitoriais regidos pela Igreja Católica e legitimados pela
Monarquia Portuguesa. Qualquer discurso ou comportamento que pudesse ser
interpretado como uma ameaça à fé cristã, à monarquia ou aos bons costumes, seria
alvo da justiça inquisitorial – na qual o censor poderia decretar, inclusive, a sentença
de morte. Como explica Iná Camargo Costa, analisando a censura no período
imperial:

Com o virtual desaparecimento das cidades na Idade Média, o teatro foi


recolhido pelas igrejas e mosteiros e recebeu a tarefa, sempre política, de
ilustrar as passagens mais relevantes da Bíblia, com preferência centrada
no Novo Testamento. Como se sabe, esse mesmo teatro, tratando dos
assuntos definidos pela própria Igreja, acabou sendo expulso do recinto
sagrado porque os artistas, por uma espécie de impulso irrefreável,
começaram a introduzir nas peças cenas de diálogos consideradas
grotescas e obscenas pelas autoridades.1 (Grifo nosso)

1COSTA, Iná Camargo. Teatro político no Brasil. Trans/Form/Ação. v. 24, n. 1, Marília, 2001. p. 113-
120, 2001. Disponível em <https://doi.org/10.1590/S0101-31732001000100008>. Acesso em
08/05/2020.
12

O pesquisador Gessé Almeida Araújo, em seu artigo para a Revista


Urdimento2, aponta a relação intrínseca entre a censura e o autoritarismo, refletindo -
a partir da construção da nação sobre os pilares do colonialismo e da escravidão - a
constante desses aspectos antidemocráticos no espectro político brasileiro.
Após a chegada da família real portuguesa ao Brasil e com a busca por
modernização da nova capital do império, teatros foram construídos e companhias
europeias, principalmente francesas, passaram a fazer turnês pelo país.
Foi criada, então, a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do
Brasil, que fiscalizava os teatros e outras diversões públicas. Após a independência
do Brasil, D. Pedro I promulga a Constituição Federal de 1824, que trouxe em seu
conteúdo a liberdade de expressão como garantia, embora ainda submetida à
avaliação da polícia imperial, como explica Araújo:

A Carta Magna então aprovada, curiosamente “assegurava a ampla


liberdade de pensamento e expressão, isenta de qualquer censura, mas
sujeita, em casos de excessos, a preceitos legais definidos”. (Khéde, 1981,
p.55). O que se viu na prática foi a censura ganhar espaço, embora
submetida à Intendência Geral de Polícia (Khéde, 1981).3

O que se percebe na prática é que o imperador criou um mecanismo de


censura que estava nas mãos da Polícia Imperial, subordinada aos seus critérios de
abuso. Além disso, embora tenha sido retirada das mãos da Igreja Católica a
titularidade do ato censor, ela continuou a pautar os conteúdos a serem cerceados,
especialmente as expressões que violassem a moral vigente, bastante associada ao
pensamento conservador cristão.

Essa interferência do conservadorismo cristão nas expressões artísticas será


recorrente ao longo da história brasileira, seja por meio de influência política sobre o
Poder Público, seja pela organização dos fiéis como movimento coletivo/social. Isso,
é claro, sem distinguir a origem denominacional desses ataques que partem ora da
Igreja Católica, ora das igrejas protestantes, articulando ações contrárias às
manifestações consideradas ofensivas à fé.

2 ARAÚJO, Gessé Almeida. Teatro e autoritarismo: As bases coloniais da censura e o


Conservatório Dramático Brasileiro. Urdimento, Florianópolis, 2018.
3 Idem.
13

1.2 O Conservatório Dramático Brasileiro (CDB)

O Século XIX foi marcado pela criação do Conservatório Dramático Brasileiro


– CDB, que tinha como objetivos fomentar o desenvolvimento da linguagem teatral,
zelar pelos bons costumes, pela moral e pela conservação formal da língua
portuguesa. Embora com grandes poderes de controle sobre a programação do
Teatro Nacional, a trajetória da instituição foi marcada por um descaso político
considerável, manifesto até mesmo nos valores monetários dispensados pelo
Governo Imperial ao órgão.

Durante o período do Brasil Império, o CDB contava com intelectuais como


Machado de Assis, José de Alencar e Martins Pena atuando como censores.
Fundador do conservatório, Martins Pena deixou o órgão 3 anos após sua criação e
passou a ser um dos autores mais censurados do Século XIX, devido às amplas
críticas que promovia nas comédias de costumes de sua autoria.

O CDB institucionalizou, pela primeira vez no Brasil, a censura ao teatro,


regulamentando não só o que seria apresentado, mas também o comportamento do
público dentro das salas de espetáculos.

Segundo o Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845, que oficializou o CDB, o


público frequentador não poderia se dirigir em voz alta ou gritar durante as
apresentações, a não ser por elogios ou críticas aos artistas. Também era vetado aos
espectadores arremessar objetos como moedas, pedras e laranjas dentro ou fora do
teatro. Além disso, o ofício era responsável por regular a conduta dos frequentadores
dentro do teatro nas ocasiões em que a família real estava presente nas
apresentações.

Desta maneira, as regras impostas pelo referido decreto, foram também


responsáveis pela propulsão de um processo de elitização do público, ao impor uma
civilidade pautada nos públicos dos teatros europeus, que acabou por regulamentar
até mesmo as vestimentas apropriadas aos frequentadores dos teatros no país.

Enquanto isso, as normas impostas às produções teatrais continuavam


estabelecendo restrições ao conteúdo moral das apresentações, como nos diz a
professora Denise Scandarolli, ao abordar a censura ao teatro durante o Brasil
Império:
14

As regras para o julgamento das obras tinham por fundamento


preestabelecido a veneração à “santa religião; o respeito devido aos poderes
políticos da nação e as autoridades constituídas; a guarda da moral e
decência pública; a castidade da língua; e aquela parte que é relativa à
ortoépica”. 4

Só seriam apresentadas obras previamente aprovadas pelo inspetor do teatro.


O trabalho dos atores também era constantemente fiscalizado para que não houvesse
nenhuma alteração no conteúdo das obras previamente aprovadas, tampouco
comportamentos obscenos. Os artistas infratores poderiam ser multados e
encarcerados por até oito dias.

As produções estrangeiras que desejavam se apresentar no Brasil passavam


pelo mesmo pente fino. Um dos casos mais notórios da época foi a censura do
espetáculo Le diamants de la Couronne 5, que, fora submetida aos censores do CDB,
pela companhia francesa Compagnie Lyrique Française.

A obra narrava a saga de Maria Francisca, futura rainha de Portugal, filha do


rei José I. Durante a fase final do reinado de seu pai, Portugal passava por uma crise
financeira e agrícola, e a miséria do povo inquietava Maria. Ela decidiu então, substituir
os diamantes da coroa por cópias de cristal lapidado a fim de vendê-los e ajudar ao
seu povo.

Ao fazer o primeiro pedido de licença para apresentações no Rio de Janeiro,


em 1844, o diretor da companhia já imaginava que o enredo poderia ter algum
problema. Após diversas tentativas frustradas de liberações, a estratégia para burlar
a censura foi trocar o local no qual se passava a peça, transferindo-o de Portugal para
a Suécia.

O documento referente ao espetáculo, redigido por Francisco de Paula Ramos


de Azevedo enquanto funcionário do CDB, deixa clara a censura em função de
posição provocativa relacionada à monarquia, que surge de modo evidente na
dramaturgia:

4 SCANDAROLLI, Denise. A Censura teatral no Brasil Império. Caf é com História [online], 2017.
ISSN 2674-5917. Disponível em <https://www.caf ehistoria.com.br/a-censura-teatral-no-brasil-
imperio/>. Acesso em 08/05/2020
5 Os Diamantes da Coroa, escrito por Eugène Scribe, com música de Daniel-François-Esprit Auber.
15

Ainda quando o enredo total da peça se fundasse em um fato histórico, eu


não o consideraria bastante para que se representasse uma peça que
representa não pouca imoralidade, pelo fato de vermos uma soberana, que
se mete em farsas, à frente de uma quadrilha de ladrões, e convertida em
protetora deles, embora se alegue a fim de utilidade por que ela empregou
meios tão ignóbeis. Estes são sem dúvida reprovados por quem presa as
prerrogativas da coroa, e visto mais por um tribunal de censura, sobre que
pesa uma imediata responsabilidade moral a respeito de tais publicações. 6
(Grifo nosso)

O CDB era responsável pela censura prévia das obras, enquanto a


fiscalização dos teatros era de responsabilidade da Polícia da Corte. As duas
instâncias viviam em conflito, pois muitas vezes o CDB liberava obras que eram
proibidas pela polícia, levando o órgão censor ao descrédito.

A partir daí, então, o caráter policialesco da censura passou a incomodar os


intelectuais censores. Machado de Assis, por exemplo, acreditava que a função do
órgão era promover uma dramaturgia de alto nível, que teria um caráter pedagógico,
criticando constantemente os rumos que ele havia tomado. Sobre a celeuma, explicou
Araújo:

A ação desconexa entre os órgãos fiscalizadores foi, dentre outros fatores,


a responsável pelo fechamento momentâneo do Conservatório entre os
anos de 1864 e 1871. Após esta data, o órgão manteve suas atividades até
o ano de 1897, quando foi definitivamente extinto, transferindo para a polícia
a responsabilidade pela censura.7

O CDB foi extinto pelo Decreto nº 2.557, de 21 de julho de 1897, sob a


alegação de que a instituição não tinha conseguido exercer uma influência notória na
produção dramatúrgica do país, e, assim, não era mais necessária. A policialização
da censura, então, se torna efetiva, e o controle sobre os espetáculos, como dito acima
por Araújo, é transferido para a Polícia da Corte.

6 Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papéis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro,


I-8, 5, 48. Documento N.º 5.
7 ARAÚJO, Gessé Almeida. Teatro e autoritarismo: As bases coloniais da censura e o

Conservatório Dramático Brasileiro. Urdimento, Florianópolis, 2018. p. 375


16

Neste princípio, portanto, é interessante notar o modo como a censura possui


caráter político associado fundamentalmente à regimentos e regulamentações morais,
um cenário que se estende até os dias de hoje, como mais à frente será possível
perceber.

1.3 Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)

Com a ascensão de Getúlio Vargas à presidência do Brasil, foi promulgada a


Constituição de 1934, que não necessariamente garantia a liberdade de expressão às
diversões públicas.

Os espetáculos teatrais e outras manifestações artísticas ainda estavam sob


observação de órgãos censores, que se concentrava sob a responsabilidade policial.
Como nos conta a pesquisadora Miliandre Garcia, ao abordar a censura de costumes
no Brasil:

Sob orientação policial, os agentes da censura tinham como principal tarefa


conter manifestações públicas que, de modo geral, apresentassem
mensagem ofensiva às instituições nacionais ou estrangeiras, às crenças
religiosas, aos valores morais e aos bons costumes ou incitassem a prática
de crimes contra a ordem política e social.8

Em 1939, já no Estado Novo, cria-se o Departamento de Imprensa e


Propaganda – DIP, que tinha dentre suas muitas funções: coordenar a propaganda
nacional; organizar serviços de turismo; zelar pela imagem internacional do país,
evitando a divulgação de informações nocivas; censurar manifestações públicas,
culturais e esportivas, cinema, rádio, teatro, imprensa e literatura, além de fomentar
manifestações populares nacionalistas.

Com atuação nacional, o DIP possuía cinco divisões para atender a toda a
demanda do departamento. Dentre essas, três exerciam a censura prévia, conforme

8GARCIA, Miliandre. A Censura de Costumes No Brasil: da institucionalização da censura teatral


no Século XIX à extinção da censura da Constituição de 1988. Trabalho apresentado à
Coordenação-Geral de Pesquisa e Editoração -CGPE como parte dos requisitos necessários à
conclusão da bolsa pesquisador do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2009. p.8
17

o setor a ser fiscalizado. Os mais relevantes eram os Departamentos Estaduais de


Imprensa e Propaganda – DEIP e o Departamento de Turismo e Diversões Públicas
– DTDP, este último responsável pela análise dos textos e obras teatrais durante o
período. A cada obra enviada, seria atribuída um censor, que faria uma avaliação e
indicaria adaptações. Uma vez liberada, a obra seria apresentada ao censor, sendo
sujeita a mais uma avaliação.

Durante o declínio do Estado Novo e sob forte pressão popular, o DIP foi
extinto, e a fiscalização das expressões e manifestações passou a ser de
responsabilidade do Departamento Nacional de Informações – DNI.

Faz-se notar desde então a acepção da arte (e do teatro em especial) como


um tipo de expressão associado, no país, comumente à propaganda e ao marketing,
controlada por órgãos públicos não de incentivo à cultura, mas sim de comunicação.
A cultura, a partir daí e por diversas razões, passa a figurar entre um tipo de
ação de comunicação, de propaganda - que não diz respeito a sua essência,
verdadeiramente plural e democrática - sendo controlada por órgãos como o DIP, que
carrega a imprensa e a propaganda já em seu título, como enfoque principal de
atuação.

1.4 Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP)

Após a queda de Vargas e do Estado Novo, José Linhares assume a


presidência da república e, através do Decreto-Lei nº 8.462, de 26 de dezembro de
1945, cria o Serviço de Censura de Diversões Públicas – SCDP, subordinado ao
Departamento Federal de Segurança Pública – DFSP.

Em 1946 o presidente aprova o Decreto nº 20.493, de 24 de janeiro de 1946,


que regulamentou o trabalho do SCDP, sendo considerado como “coluna vertebral”
do órgão. Ainda como bem registrou Garcia, estavam entre suas responsabilidades:

[...] examinar a projeção de películas cinematográficas, a apresentação de


espetáculos teatrais, shows de variedades, pantomimas, bailados, peças
declaratórias, escolas de samba, marchas-rancho, cordões carnavalescos,
a reprodução de discos (cantados ou falados) e a exibição de espécimes
18

teratológicas, anúncios publicitários, programas de rádio e televisão, além


de aprovar excursões de artistas ao exterior [...]. 9

Em seu surgimento, o SCDP separou a censura da imprensa da censura de


diversões públicas e foi coordenado pelo chefe de polícia, atuando de forma autônoma
nos estados até 1967.

Devido a autonomia dada aos estados, mais uma vez as peças proibidas
poderiam ganhar espaço em outras praças, isto é, a mesma peça poderia ser, por
exemplo, censurada em São Paulo e liberada em Minas Gerais.

O processo para liberação de peças era similar aos dos órgãos censores
anteriores. Os produtores e companhias teatrais deveriam submeter dados das peças,
autorização dos autores e dois exemplares do texto. O SCDP daria um parecer
proibindo, liberando ou ordenando a realização de cortes/adaptações, além disso, a
obra deveria ser apresentada ao censor antes da estreia.

A experiência do SCDP revela que a censura é uma atividade presente


inclusive em períodos considerados democráticos da história brasileira, apesar do
cerceamento da liberdade de expressão ter ganhado mais força e legitimidade política
durante a Ditadura Militar.

1.5 Divisão de Censura e Diversões Públicas (DCDP)

Embora não seja o único período da história em que a censura esteve


presente no campo da criação em artes cênicas, durante a Ditadura Militar Brasileira,
a atividade se tornou notável como símbolo histórico do movimento censor no país.
Como nos diz A. P. Quartim de Moraes:

Essa história, contudo, está óbvia e estreitamente integrada a um contexto


mais amplo em que os artistas e intelectuais compartilharam com o
movimento estudantil o protagonismo nesse palco da resistência ao arbítrio.
É necessário, portanto, [...], espelhá-la com a movimentação estudantil, com
a qual compartilhou a missão de vocalizar, cada qual à sua maneira, o grito
de protesto da alma nacional contra a opressão da caserna. Até porque o
movimento estudantil empenhou-se naquele período, ele também, em fazer

9 Idem. p. 11
19

teatro como recurso adicional de manifestação de protesto e de


conscientização política.10

Entre os anos de 1962 e 1967, a censura de diversões públicas passa por um


processo de centralização, visando sistematizar e uniformizar o trabalho dos
censores, e tentando, assim, diminuir as divergências internas, além de aumentar o
controle nacional sobre a produção artística. Sobre isso Garcia informa:

Com o golpe militar, no entanto, a atividade censória passou por um


processo de ressignificação de prática preexistente que não só consolidou
a centralização do órgão na capital federal como também assumiu a censura
política. Ao papel de mantenedora dos valores morais e dos princípios
éticos, motivos alegados na criação do serviço na década de 1940,
assimilou-se a preocupação com a manutenção da ordem política e da
segurança nacional [...].11

No modelo descentralizado, com órgãos censores estaduais e regionais, o


produtor, diretor ou responsável pela apresentação poderia pedir autorização para a
unidade federal – que seria válida para todo o território nacional – ou para os órgãos
estaduais, válida apenas para apresentações regionais. Tal prática abria brecha para
que houvesse, mais uma vez, dualidade de pareceres entre os órgãos censores,
gerando conflitos internos e abrindo a possibilidade para a apresentação de peças
consideradas subversivas pelo regime militar.

A nova lei de censura consolidou, então, a transferência da censura teatral e


cinematográfica para a esfera federal, uma característica que irá tornar-se
fundamental para a compreensão do processo de censura no Brasil pós-2016, como
veremos na Parte V deste trabalho.

Com a Constituição de 1967, o Governo Federal passou a exercer o controle


nacional das diversões públicas, centralizando a censura não só do teatro e cinema,

10 MORAES, A. P. Quartim De. Anos de Chumbo: O Teatro Brasileiro na Cena de 1968. Edições
Sesc, São Paulo, 2018. p.15.
11 GARCIA, Mliandre. A Censura de Costumes No Brasil: da institucionalização da censura teatral

no Século XIX à extinção da censura da Constituição de 1988. Trabalho apresentado à


Coordenação-Geral de Pesquisa e Editoração -CGPE como parte dos requisitos necessários à
conclusão da bolsa pesquisador do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2009. p .4.
20

mas de programas de rádio e televisão, letras musicais e publicações periódicas.


Ainda segundo Moraes:

O golpe militar de 1964 anunciou-se com o propósito de assegurar "autêntica


ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da
pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às
tradições do nosso povo, na luta contra a corrupção" etc. e tal, como
constava do preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 6 de abril de 1964, que
institucionalizou a nova ordem. Nos quase três anos seguintes, o país viveu,
teste, sob a égide da Constituição de 1946, que sepultara a ditadura Vargas.
Durante esse período, a vocação autoritária dos novos donos do poder fez
tábula rasa daquela Carta Magna, desfigurando-a com medidas
supraconstitucionais impostas pelo "poder revolucionário": atos
institucionais complementares e emendas [...] Para botar ordem nessa orgia,
em janeiro de 1967, a "Revolução de 1964" providenciou uma Constituição
pra chamar de sua, docilmente aprovada por um Congresso Nacional
enquadrado na ordem unida do Planalto.12

A partir da promulgação da Constituição de 1967, as diretrizes responsáveis


por condicionar/nortear a censura de peças teatrais foram estabelecidas, conforme
Garcia:

[...] nove itens justificavam a interdição total (veto) ou a liberação parcial


(com cortes ou restrições de idade). Desse modo, a proibição incidia sobre
os espetáculos que contivessem cenas violentas, sugerissem a prática de
crimes, ofendessem o decoro público, induzissem aos maus costumes,
incitassem contra o regime vigente, a ordem pública e as autoridades
constituídas, afetassem as relações diplomáticas do Brasil com outros
países, ofendessem as coletividades/religiões ou as raças/classes, ferissem
a dignidade e interesse nacionais ou contivessem propaganda de qualquer
espécie.13

As novas medidas do governo foram amplamente criticadas pela imprensa e


pela classe artística, sendo as justificativas consideradas subjetivas e nocivas para o
desenvolvimento da própria linguagem teatral.

12 MORAES, A. P. Quartim De. Anos de Chumbo: O Teatro Brasileiro na Cena de 1968. Edições

Sesc, São Paulo, 2018. p . 145-146.


13GARCIA, Mliandre. A Censura de Costumes No Brasil: da institucionalização da censura teatral

no Século XIX à extinção da censura da Constituição de 1988. Trabalho apresentado à


Coordenação-Geral de Pesquisa e Editoração -CGPE como parte dos requisitos necessários à
conclusão da bolsa pesquisador do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2009. p.27
21

O ministro da Justiça da época, Gama e Silva, tentou , então, estreitar o


diálogo com os trabalhadores do teatro, criando um grupo de trabalho composto por
representantes de entidades culturais, a fim de desenvolverem um estudo sobre a
censura.

Em 1968 o ministro apresentou o resultado do trabalho com os artistas – um


decreto que excluía a censura prévia a espetáculos teatrais – criando assim uma crise
interna, de um lado o ministro e do outro a cúpula militar.

O presidente da República toma, então, partido do diretor-chefe do


Departamento da Polícia Federal - DPF, o coronel Florimar Capello. Capello,
contrariado, afirmava que a descentralização da censura causaria aborrecimentos
para o governo e que os autores teatrais não eram maduros o suficiente para lidar
com tanta liberdade.

Durante a Ditadura Militar, também é importante ressaltar o apoio de parte da


sociedade civil à prática censória. Em 1964, a título de exemplo, foi criado o grupo
Comando de Caça aos Comunistas – CCC, que reunia jovens de extrema direita,
apoiadores e entusiastas do Regime Militar, que gostariam de lutar contra o avanço
do comunismo.

Em 1968, uma de suas ações teve grande repercussão. O grupo invadiu o


Teatro Ruth Escobar após apresentação da peça Roda Viva. Escrita por Chico
Buarque e dirigida por José Celso Martinez Corrêa, o trabalho fazia/faz14 uma crítica
direta a sociedade de consumo e trazia propostas provocadoras para a época,
mudando a relação entre o público e artistas.

Depois de uma das apresentações da peça o CCC invadiu o Teatro, localizado


na cidade de São Paulo, depredando os equipamentos e deixando 19 pessoas feridas,
conforme relato da época:

Integrantes da peça, entre eles as atrizes Marília Pêra e Walkíria Mamberti,


foram brutalmente agredidos pelos invasores, que fugiram [...] Três deles

14 O espetáculo f oi remontado pelo Teatro Of icina, com nova f ormação d e elenco, em 2018.
22

foram detidos pelos atores. Um foi identificado como estudante de economia


e o outro como advogado.15

Há no evento, uma simbologia relevante, que torna evidente o engajamento


civil em relação ao militarismo e suas ideologias, algo que inclusive voltará a ser
bastante nítido na ocasião do Golpe de 2016, em que chegaremos mais à frente.

Conforme relato de um dos líderes do ataque, em matéria da Folha de São


Paulo:

‘Foi um gesto cultural. Antecipou o AI-5 e cortou a via subversiva que o teatro
estava seguindo’, disse João Marcos à Folha de S. Paulo, em 1993, ano em
que saiu do armário e identificou-se como líder do grupo responsável pelo
ataque. ‘O objetivo era realizar uma ação de propaganda para chamar a
atenção das autoridades sobre a iminência da luta armada, que visava à
instauração de uma ditadura marxista no Brasil’, contou o advogado [...].16

No decorrer de 1968, Gama e Silva passa a endossar alguns casos de


censura, encerra as negociações com a oposição, apoia cada vez mais as ações da
ala militar considerada “linha-dura” e se torna autor do Ato Institucional nº 5 – AI-5,
publicado no mesmo ano - documento que marca a politização da censura de
diversões públicas.

Em 1972, o SCDP passa a ser Divisão de Censura e Diversões Públicas,


subordinada a DPF. Vale a pena ressaltar que essa mudança foi apenas
organizacional e que os censores seguiram analisando as obras através do mesmo
viés moral e político.

Iniciava-se, no final de 1975, novamente o processo de descentralização da


censura teatral, primeiramente em São Paulo e Rio de Janeiro, e em estados com três
ou mais técnicos censores, aliviando a carga de trabalho do órgão central. Por um

15 HERDY, Thiago. Roda viva estreia em São Paulo; líder do CCC está morto. Época [online], 2018.
Disponível em< https://epoca.globo.com/thiago-herdy/roda-viva-estreia-em-sao-paulo-lider-do-ccc-
esta-morto-23296897/>Acesso em 08/05/2020.
16 MARTINO, Rodolf o Stipp. Atores de 'Roda Viva' são agredidos e veem teatro ser depredado

em SP. Folha de São Paulo [online] 2018. Disponível em <https://www1.f olha.uol.com.br/banco -de-
dados/2018/07/1968-atores-de-roda-viva-sao-agredidos-e-veem-teatro-ser-depredado-em-sp.shtm/>.
Acesso em 08/05/2020.
23

lado, este movimento também mostra que, a essa altura, o teatro não se caracterizava
mais como uma grande ameaça à ordem vigente, do ponto de vista da moralidade,
pois as peças com conteúdo político seguiram na mira dos censores centrais.

Apesar de descentralizados, os órgãos estaduais ainda respondiam ao órgão


central-federal, e deveriam enviar uma cópia de cada peça que solicitasse o parecer
do censor, além de ter que elaborar e enviar relatórios do ensaio geral, para que a
liberação fosse efetivada.

No processo de abertura política, a partir do ano 1980, a censura de diversões


públicas começa a se diluir, sendo extinta a censura a livros e revistas, e instituindo-
se, então, Conselho Superior de Censura – CSC, que reexaminou obras teatrais e
cinematográficas vetadas anteriormente, enquanto os programas e canais de rádio e
as produções e canais televisivos ainda seguiam sob rígida observação e controle.

O CSC era composto por representantes do governo, assim como da classe


artística e de instituições culturais, e deveria elaborar as novas normas para a censura
moral e política, sujeitas a aprovação do ministro da Justiça, Petrônio Portella.
Conforme explica Garcia:

No que tange à moral e aos bons costumes, ‘tolera-se o palavrão, tendo em


vista sua colocação no texto, isto é, a adequação da linguagem ao tema
explorado’, ‘é permitido o nu, desde que não seja com preocupação lasciva’
e ‘não é permitida a prática de sexo no palco’. No que se refere à esfera
política, ‘é permitido o texto político, desde que não seja injurioso às
autoridades constituídas, nem representem mensagem de violência contra
o regime’ e ‘não é permitida, na peça de caráter político, a crítica ofensiva à
moral e a dignidade das autoridades constituídas’ 17

Com exceção da retomada do diálogo entre o governo e o setor artístico, as


mudanças foram majoritariamente operacionais, e não possibilitavam a extinção da
censura no Brasil. Para agravo da situação, Petrônio Portella falece e é substituído

17GARCIA, Mliandre. A Censura de Costumes No Brasil: da institucionalização da censura teatral


no Século XIX à extinção da censura da Constituição de 1988. Trabalho apresentado à
Coordenação-Geral de Pesquisa e Editoração -CGPE como parte dos requisitos necessários à
conclusão da bolsa pesquisador do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de Janeiro, 2009. p.53
24

por Ibrahim Abi-Ackel, que por sua vez, apresenta um retrocesso ao que Petrônio
estava construindo.

Em resposta a grande pressão dos setores artísticos para que a abertura


política trouxesse liberdade de expressão, e juntamente com a nova diretora do
DCDP, Solange Maria Teixeira Hernandes (conhecida folcloricamente no campo
cultural como “A Dama da Tesoura” ou como “Solange da Censura”18), a censura se
apega ao fantasma do comunismo para legitimar sua prática.

A institucionalização da censura durante o militarismo é refletida nos próprios


discursos dos censores públicos durante a época, como Solange contou em entrevista
à jornalista Belissa Ribeiro:

[...] normalmente, eu me abstenho de falar com a imprensa, ou publicar


qualquer tipo de comentário. Eu aplicava a legislação. Nada era feito de
forma pessoal. Já tínhamos a preparação, sabendo que era uma atividade
conflituosa, não para agradar as pessoas. Nossa atividade não permitia
comentários. É como a profissão de médico, exige segredo profissional. Era
preciso ser reservada e eu me resguardo até hoje. Até por isso as pessoas
ficam muito à vontade para dizer de mim o que vem à boca.19

O CSC deixa de ter representantes da classe artística e passa a ter mais


representantes do governo e de grupos religiosos, visando a moralização da instância,
redobrando a atenção para letras musicais e peças teatrais, e retomando, assim, os
princípios da primeira fase da censura na Ditadura Militar Brasileira.

Ainda nos anos 1980, devido a movimentos sociais e campanhas para o fim
da ditadura - como o Diretas Já - o ministro da Justiça, Fernando Lyra, promete
substituir a censura política por classificação etária, e pede para que os autores de
teatro tenham como base os valores éticos.

Criou-se então o Departamento de Classificação de Espetáculo Público –


DECLEP, com a mesma estrutura do DCDP, transformando os censores em analistas

18 Estes e outros nomes f oram dados a Solange Hernandez, censora que se tornou personagem
símbolo da censura militar no país. Artistas como Rita Lee (em Arrombou o Cof re) e Leo Jaime (em
Solange) citaram a censora publicamente em suas criações.
19 RIBEIRO, Belissa. A dona da censura. Isto é, São Paulo, 1984, p. 17-24.
25

de espetáculo, sem o poder de veto, tendo como função a classificação dos


espetáculos.

A luta e discussão pelo fim da censura a diversões públicas perdurou durante


toda a década de 1980, até que a Constituição Federal de 1988 anunciou o fim da
censura.
26

PARTE II - O GOLPE E O PENSAMENTO CONSERVADOR NO BRASIL

A partir de agora, se propõe uma análise do panorama histórico recente do


país – guiando-se principalmente pelo desejo de compreensão das dinâmicas de
ascensão do conservadorismo. O objetivo é analisar, brevemente, o processo
social/político que culminou no Golpe de 2016.

Este acontecimento, histórico, é parte fundamental de um cenário político


cada vez mais ocupado por representantes da extrema direita brasileira, guiada
fundamentalmente pelo conservadorismo e pelo fundamentalismo religioso, gerando
repercussões diretas na liberdade de expressão e na produção teatral brasileira.

2.1 O Golpe de 2016 no Brasil

A análise da história recente do Brasil é um exercício complexo que


compreende aspectos profundos sob o ponto de vista político, econômico e social. É
interessante notar o modo como o cenário vinha se preparando a partir das
manifestações populares de 2013, e como esse ambiente fora aproveitado por uma
parcela conservadora da população para instalar um golpe político em 2016, com o
objetivo de abrir caminho para um projeto político que atendesse as aspirações
conservadoras - conservadoras nos costumes e liberais na economia, - como se
autoproclamaram os precursores desse movimento.

É importante ressaltar as similaridades entre o golpe vivido em 2016 e o seu


correspondente em 1964. Em ambos, o elemento de sustentação social é o
pensamento religioso conservador e a aversão ao comunismo. Há, também, nos dois
momentos a recusa em aceitar a ação política como golpista, por parte de seus
precursores, confirmando a tendência negacionista à ciência e à história.

Em ensaio publicado20, o pesquisador Tiago Bernardon de Oliveira


contextualiza brevemente a trajetória do Golpe de 2016, evidenciando relações
políticas mais amplas, como a ligação de uma operação contra a corrupção, a
Operação Lava Jato, que buscava apurar a existência de esquemas milionários de

20OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. O Golpe de 2016: Breve Ensaio de História Imediata Sobre
Democracia e Autoritarismo. Historiæ, Rio Grande, 2016. p. 191-231.
27

desvios de dinheiro público e outras práticas criminosas, em contratos da Petrobras,


como, um fator decisivo para os rumos da história recente do país.

Símbolo bastante controverso do combate a corrupção no Brasil, a operação


teve início ainda durante o mandato da presidenta Dilma, uma informação sintomática.
Conforme explica Oliveira:

A linha de investigação, reverberada e retroalimentada diariamente pela


grande mídia, é a de que se trata do maior esquema de corrupção jamais
descoberto no país e no mundo, tendo por articuladores e beneficiários
partidos políticos que formavam a base aliada dos governos Lula e Dilma
Rousseff, notadamente PMDB e PP, além do próprio PT e outros partidos
menores. Em uma apresentação midiática em 14 de setembro de 2016 [...],
o procurador do Ministério Público Federal e coordenador geral da Operação
Lava Jato, Deltan Dallagnol, acusou, literalmente, Lula de ser “o comandante
máximo do esquema de corrupção”, imputando-lhes os crimes de ocultação
de patrimônio, apropriação indébita de dinheiro público e formação de
quadrilha, a despeito, até o momento, de provas que balizassem a acusação
e sua eventual punição.21

A partir desse panorama, houve a depreciação do exercício político e da


política como fator de solução dos conflitos sociais, que levou às ruas de todo o país
grandes manifestações, contrárias e favoráveis à deposição de Dilma Rousseff. Este
movimento contaminou diversas discussões públicas e sociais, polarizando em
diversos níveis a população e acirrando rivalidades entre a esquerda e a direita.

A partir daí se intensificou o aparecimento de movimentos negacionistas


históricos e a retomada das narrativas que fundamentaram o Golpe Militar de 1964,
por parte dos apoiadores do novo movimento, conforme comenta Oliveira:

Não foram poucas as bizarras expressões manifestadas nas ruas, em redes


sociais e até no parlamento, que faziam apologias a uma intervenção militar
fundadas em paranoias anticomunistas, como se os governos do PT fossem
uma ameaça comunistizante. A defesa desavergonhada da ditadura e da
tortura vinha acompanhada da recusa do reconhecimento de que o golpe de
1964 foi, de fato, um golpe. No entender desses grupos extremistas, em
1964 houve uma “revolução” que livrou o país do comunismo; agora, caberia
uma “intervenção constitucional” das Forças Armadas, baseada em uma
interpretação bastante criativa do artigo 142 da Constituição Federal.22

21 Idem. p.198-199.
22 Ibidem. p. 195.
28

Por parte da esquerda brasileira cresce, então, a percepção de uma


perseguição política ao Partido dos Trabalhadores – PT, denunciada diversas vezes
pelo próprio partido, desde então principal alvo da direita crescente, mesmo depois de
ter seu governo derrubado inconstitucionalmente. Essa perseguição foi além da
política, avançando pelas instâncias judiciais e demais meios sociais, como bem
observado pelo pesquisador:

[...] acusações, em âmbito político, de perseguição política por parte dos


agentes do Estado ao PT. Essas narrativas tendem a indicar a seletividade
dos indiciamentos e dos vazamentos de delações e evidências que,
reinterpretadas pela mídia, ajudariam a conformar uma opinião pública que
identificaria apenas no PT e em suas principais lideranças os responsáveis
únicos pelo “maior esquema de corrupção jamais visto na história”. 23

A narrativa construída com, por e a partir da Operação Lava Jato e de seus


integrantes, passou a se desenvolver, cada vez mais. Ainda, segundo Oliveira:

A associação que a mídia fazia era direta entre corrupção e governos do PT,
respaldado no recorte das investigações da Operação Lava Jato, que
retroage somente até 2003, primeiro ano do primeiro mandato de Lula.
Questionado em uma palestra nos Estados Unidos sobre o porquê das
investigações não indiciarem políticos dos partidos de oposição,
notadamente a maior dessas legendas, o PSDB, o juiz Sérgio Moro, da 13ª
Vara Federal de Curitiba, responsável pelo caso, se explicou assim: “O juiz
Sergio Moro disse que não julgou casos relacionados ao PSDB porque
investigações sobre o partido não chegaram a ele. De acordo com o titular
da Operação Lava-Jato, em Curitiba, não houve evidência de que os
diretores da Petrobrás deram dinheiro para a legenda. “Esse partido estava
na oposição. Então, não faria sentido”, afirmou, durante palestra no Wilson
Center, em Washington.”24

Assim, ao longo do ano de 2015, cerca de cinquenta pedidos de impeachment


foram protocolados na Câmara dos Deputados, apelando para a destituição da
presidenta eleita.

No presente estudo a análise desse panorama político, se faz necessária


tendo em vista que este fato é considerado o marco zero entre a recente ascensão do

23 Ibidem. p.199.
24 Ibidem. p.200.
29

conservadorismo no Brasil e a institucionalização dessa visão como uma política de


governo, principalmente após a eleição de Jair Bolsonaro para presidente em 2018.

Em que pese existir vasta horda de apoiadores à destituição da presidenta


Dilma como um processo institucional, válido e regular, conduzido pelo Congresso
Nacional em conformidade com a legislação e supervisionado pelo Poder Judiciário,
há claro entendimento, conforme dito anteriormente, de que se tratou de uma manobra
política para tirá-la do cargo de mandatária, por ser considerada incapaz de satisfazer
os interesses políticos/econômicos predominantes no país.

A controvérsia quanto a existência ou não do Golpe reside nos fundamentos


de validade do processo de impeachment definidos pela legislação. Os defensores da
legalidade do procedimento que afastou a presidenta afirmam que a prática de
“pedaladas fiscais”25 configuraria crime de responsabilidade, apto ao afastamento.
Cumpre aqui transcrever o art. 85 da Constituição Federal de 1988:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República


que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério
Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que
estabelecerá as normas de processo e julgamento. 26

Não há nas hipóteses previstas na Constituição qualquer ato que se adeque


à prática de “pedaladas fiscais” que pudesse amparar o procedimento proposto. Além

25 Mecanismo de operação f inanceira f eita pelo Poder Executivo para cumprir as metas f iscais, em que
recursos de bancos públicos são utilizados para cumprir responsabilidades governamentais, com o
posterior reembolso pelos cof res públicos.
26 BRASIL. [Constituição Federal de 1988]. Constituição da República Federativa do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em Acesso em 27/04/2020.
30

disso, foi amplamente noticiado que o processo de impeachment da presidenta Dilma


Rousseff – que teve seu início por ato do ex-presidente da Câmara dos Deputados,
Eduardo Cunha, atualmente preso – foi motivado por vingança, visto que o partido da
presidenta votou contra ele no Conselho de Ética, onde era acusado de quebra de
decoro parlamentar por mentir quanto à existência de contas bancárias secretas na
Suíça27. É importante transcrever manifestação de presidenta Dilma sobre o
processo:

Eu jamais aceitaria ou concordaria com quaisquer tipos de barganha muito


menos aquelas que atentam contra o livre funcionamento das instituições
democráticas do meu País. Não existe nenhum ato ilícito praticado por mim.
Não paira contra mim nenhuma suspeita de desvio de dinheiro público. Não
possuo conta no exterior nem ocultei bens pessoais. [...] Tenho convicção e
absoluta tranquilidade quanto à improcedência desse pedido, bem como
quanto o seu justo arquivamento.28

A tese que amparou o recebimento da denúncia foi a de que as tais


“pedaladas” configurariam crime por violar o orçamento, contrariando o entendimento
jurídico vigente que admitira a prática nos mandatos de todos os presidentes eleitos
desde a vigência da Constituição Federal de 1988, e continuou a ser admitida nos
mandatos posteriores (Michel Temer e Jair Bolsonaro).

O pedido aceito pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha,


foi proposto pelos juristas Janaína Conceição Paschoal, Miguel Reale Jr. e Hélio
Bicudo. Era, também, subscrito por três líderes de movimentos sociais conservadores
que ajudaram a articular as grandes manifestações de ruas do ano de 2015 em prol
do Impeachment: Kim Patroca Kataguiri (Movimento Brasil Livre), Rogério Chequer
(Vem Pra Rua) e Carla Zambelli Salgado (Movimento Contra a Corrupção). Sobre a
trâmite, relata Oliveira:

27 GÓIS, Fabio. Temer admite que Cunha só autorizou impeachment porque petistas não o
apoiaram na Câmara. Congresso em Foco [online], 2017. Disponível em <
https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/temer-admite-que-cunha-so-autorizou-
impeachment-porque-petistas-nao-o-apoiaram-na-camara/>. Acesso em 27/04/2020.
28 PARTIDO DOS TRABALHADORES. Da Redação da Agência PT de Notícias. Jamais aceitari a

qualquer tipo de barganha, diz Dilma. PT.org.br [online], 2016. Disponível em


<https://pt.org.br/jamais-aceitaria-qualquer-tipo-de-barganha-diz-dilma/> Acesso em: 27/04/2020.
31

Um pouco mais contida, a narrativa que se tornou hegemônica é a de que o


reivindicado impeachment não era um golpe de Estado, senão apenas o
pertinente e justo acionamento de um dispositivo constitucional
encaminhado pelo Congresso Nacional, em respeito às manifestações de
rua conclamadas pela Rede Globo nas manhãs de diversos domingos de
2015 e 2016, sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal. De acordo
com este argumento, somente ocorreria um golpe de Estado se houvesse
uso da força bruta, à margem da Constituição, pelas Forças Armadas.
Porém, de forma geral, nas referidas manifestações de rua, nas quais a
camiseta da seleção brasileira de futebol, [...], tornou-se o uniforme padrão,
os partidários dessa argumentação nunca se esforçaram por diferenciar-se,
tampouco negaram o apoio das hordas saudosistas da barbárie
escancarada. Nenhuma única palavra neste sentido foi proclamada, nem
mesmo quando a tortura foi louvada nos microfones da Câmara dos
Deputados, como fez Jair Bolsonaro ao dedicar o voto pelo impeachment ao
“terror de Dilma Rousseff”, o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra [...].29

O golpe, fantasiado de impeachment, viria a se efetivar no dia 31 de agosto de


2016, data em que Dilma foi destituída de seu cargo. A partir daí, por cerca de dois
anos Michel Temer sustentou-se como presidente interino, muito embora suas
iniciativas públicas tenham sido fortemente ofuscadas pelo processo eleitoral de 2018,
que já refletia a polarização enfrentada pelo país há quase três anos.

Durante o processo de Impeachment o título de golpe foi veementemente


negado por seus apoiadores. É importante mencionar que o termo Golpe foi
posteriormente utilizado pelo beneficiado direto do processo, Michel Temer, em uma
entrevista para o programa Roda Viva, quando questionado sobre sua posição
pessoal em relação ao impeachment. A resposta também torna evidente o apelo
populista do processo:

Quando [...] a opinião pública está muito contra alguma coisa a tendência do
parlamentar é acompanhá-la. [...] O ponto é este. Eu jamais apoiei ou fiz
empenho pelo golpe. Aliás, muito recentemente, o jornal Folha [De São
Paulo] detectou um telefonema que o presidente Lula me deu, onde ele
pleiteava - e depois esteve comigo - para trazer o PMDB para impedir o
impedimento. Mas a essa altura, eu confesso, que a movimentação popular
era tão grande e tão intensa que os partidos já estavam mais ou menos
vocacionados, digamos assim, para a ideia do impedimento. Mas veja que

29OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. O Golpe de 2016: Breve Ensaio de História Imediata Sobre
Democracia e Autoritarismo. Historiæ, Rio Grande, 2016. p. 200.
32

até o último momento - e esse telefonema do ex-presidente Lula revela exata


e precisamente - que eu não era, digamos, adepto do golpe.30 (Grif os nossos)

Coincidentemente ou não, o nome do programa faz referência à música Roda


Viva, de Chico Buarque, composta para o já citado espetáculo teatral homônimo,
encenado pelo Teatro Oficina na década de 1960, que resultou no ataque do CCC (o
também já mencionado Comando de Caça aos Comunistas) contra o grupo dentro do
Teatro Ruth Escobar, durante temporada em 1968.

É importante dizer que a concepção de golpe de Estado foi ampliada pelos


estudiosos da ciência política, admitindo-se atualmente a ocorrência de golpes sem
as características clássicas de violência institucional. As novas configurações dessas
ações de destituição do poder político são chamadas de golpe de Estado de direito.
Pertinente é a consideração do Professor Alvaro Bianchi sobre o tema:

O sujeito do golpe de estado moderno é, como Luttwak destacou, uma


fração da burocracia estatal. O golpe de estado não é um golpe no Estado
ou contra o Estado. Seu protagonista se encontra no interior do próprio
Estado, podendo ser, inclusive, o próprio governante. Os meios são
excepcionais, ou seja, não são característicos do funcionamento regular das
instituições políticas. Tais meios se caracterizam pela excepcionalidade dos
procedimentos e dos recursos mobilizados. O fim é a mudança institucional,
uma alteração radical da distribuição de poder entre as instituições políticas,
podendo ou não haver a troca de governantes. Sinteticamente, golpe de
estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração
do aparelho de Estado que utiliza para tal, de medidas e recursos
excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político.31

Resta claro que na contemporaneidade os golpes de Estado nem sempre e


dão através de movimentos violentos e ações militarizadas, como era bastante comum
no passado. Em nosso tempo, o mais comum é a manipulação da ordem jurídica e da
opinião pública para atender anseios de grupos que exercem o poder de fato.

30 CONGRESSO em f oco. Veja o vídeo que Temer admite ‘golpe’ e entenda o contexto. Uol

[online], 2019. Disponível em <https://congressoemfoco.uol.com.br/video /veja-o-video-em-que-temer-


admite-golpe-e-entenda-o-contexto/> Acesso em 27/04/2020.
31 BIANCHI, Alvaro. Golpe de Estado: O Conceito e Sua História. In FREIXO, Adriano de (Org.)

Manif estações no Brasil: As Ruas em Disputa. Of icina Raquel, Rio de Janeiro, 2019. p. 7.
33

2.2 As Eleições de 2018 e a Polarização Política/Social

Após consumado o Golpe de 2016 – em que o Brasil viu cair sua primeira
presidenta legitimamente eleita – e antes mesmo de concluído o mandato do
presidente interino Michel Temer, as prévias do resultado das campanhas eleitorais
de 2018, já eram capazes de evidenciar o reflexo de algo que identificamos como a
intensificação do pensamento conservador no Brasil.

Este fenômeno, entretanto, foi o resultado de um outro, anterior, que também


havia culminado no golpe político já citado: a polarização entre a esquerda e a direita
no Brasil.

Neste sentido, este trabalho não pretende analisar suas bases teóricas e
políticas, mas sim o modo como estes movimentos e os agentes públicos nele
envolvidos se manifestam/manifestaram em relação à coletividade e à diversidade,
assuntos que influenciam diretamente a criação artística.

Entre 2016 e 2019, era O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu o


espetáculo censurado com maior repercussão na mídia. Ele será posteriormente
analisado junto com outros seis espetáculos, mas configura-se um exemplo notável:
a estreia do espetáculo, marcada pela primeira tentativa de censura contra a
montagem, aconteceria no dia 26 de agosto de 2016, apenas cinco dias antes da
finalização do processo de impeachment da presidenta Dilma, e já era pautado pelos
valores da autointitulada família tradicional brasileira, cristã e conservadora (apoiadora
voraz do golpe).

O principal aspecto do processo eleitoral de 2018, foi, como já exposto, a


polarização entre a direita (concentrada majoritariamente no candidato Jair Bolsonaro)
e a esquerda (no 1º turno dividida entre Ciro Gomes e Fernando Haddad). Além disso,
as discussões que fundamentaram as agendas eleitorais estavam intimamente
ligadas aos aspectos econômicos e de costumes morais. Questões falsas, criadas
pela direita com o objetivo de atacar a reputação de candidatos e partidos de
esquerda, foram centrais no processo eleitoral. Questões falsas como o chamado “kit
gay” e a “mamadeira de piroca”, pautaram as discussões.
34

Jair Bolsonaro viria a eleger-se posteriormente, após segundo turno contra


Fernando Haddad. O slogan do candidato eleito, dizia ainda: “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos”, revelando forte conotação nacionalista e religiosa.

Toda esta polarização – embora superficialmente dividida entre esquerda e


direita – refletia diversos pontos divergentes entre os dois grupos, dentre os quais
destacam-se as acepções controversas dos direitos e lutas de grupos políticos e
sociais marginalizados; as discrepantes noções acerca da produção cultural no Brasil
(em especial relacionadas a um mecanismo de incentivo, a Lei Federal de Incentivo à
Cultura); e a ascensão de certa efervescência religiosa associada às campanhas
eleitorais e, principalmente, a própria prática política.

Não podemos ignorar a maneira como o presidente eleito em 2018 se


relacionou, desde a campanha e continua a se relacionar até os dias de hoje, em
relação a assuntos de interesse nacional, como a Cultura e a Ditadura Militar
brasileira. Bolsonaro se pronunciou várias vezes demonstrando saudosismo ao
período da Ditadura Militar, seja declarando que o erro do regime foi matar pouco32,
ou dedicando seu voto durante a votação do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff ao torturador Coronel Calos Alberto Brilhante Ustra, como citado
anteriormente33.

Seus apoiadores não ficam atrás, realizando manifestações e defendendo o


fechamento do Congresso Federal, pedindo um novo AI-5, símbolo da perseguição
aos artistas brasileiros durante a Ditadura Militar34.

Em relação a cultura e aos artistas do país, Bolsonaro demonstrou, sempre,


e continua demonstrando em suas (ausências de) políticas públicas para o setor, total
descaso. Antes de ser eleito fez críticas a Lei de Incen tivo à Cultura, mais conhecida
como Lei Rouanet, dizendo que desperdiçava recursos 35 e que os artistas que se

32 REVISTA FÓRUM. Jair Bolsonaro: “Erro da ditadura foi torturar e não matar” . Revista Fórum
[online], 2016. Disponível em <https://revistaf orum.com.br/noticias/jair-bolsonaro-erro-da-ditadura-f oi-
torturar-e-nao-matar/> Acesso em 15/05/2020.
33 Idem.
34 MARCELLO, Maria Carolina. Bolsonaro discursa para manifestação com faixa “Fora Maia” e

apoio ao AI-5. Exame [online], 2020. Disponível em:<https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-


discursa-para-manif estacao-com-f aixa-f ora-maia-e-apoio-ao-ai-5/> Acesso em 15/05/2020.
35 ESTADÃO. Bolsonaro critica recursos da Lei Rouanet. Metro [online], 2018. Disponível

em<https://www.metrojornal.com.br/entretenimento/2018/12/27/bolsonarocritica-recursos-da-lei-
rouanet.html> Acesso em 15/05/2020.
35

opunham a ele, “mamavam na lei”. Deixava claro, desde então que, após sua eleição,
acabaria com a fictícia “mamata”36.

Eleito, Bolsonaro implementou inúmeras mudanças de gestão, extinguindo o


Ministério da Cultura e rebaixando-o a categoria de Secretária Especial de Cultura,
causando ampla instabilidade na pasta.

Além disso, a disseminação de fake news37 em relação à cultura e a


perseguição aos artistas pela sociedade civil, como durante o Regime Militar, voltaram
a ser comuns. Esse quadro, que se iniciou com os preparativos para o Golpe de 2016,
culminando com o resultado das eleições de 2018, torna-se objeto de análise a partir
de uma série de limitações às apresentações de espetáculos teatrais que, em suas
dramaturgias, trazem elementos que contrariam o os valores caros ao
conservadorismo, agora alicerçado no poder público, exercendo controle político.

Por isso, discorre-se a seguir sobre a ascensão do pensamento conservador


no Brasil, o que gerou diversos impactos na área da produção cultural como um todo,
inclusive no teatro e nas artes cênicas.

2.3 O Conservadorismo no Brasil

À primeira vista, é preciso assumir a in existência de um conservadorismo que


se possa considerar universal. Cada sociedade – e consequentemente cada um de
seus grupos sociais – desenvolve suas estruturas conservadoras a partir dos aspectos
políticos, econômicos, sociais e culturais que marcam o seu próprio desenvolvimento.

No Brasil, as profundas desigualdades sociais – conhecidas desde a época


da colonização – estão na gênese do pensamento conservador nacional. Isso se dá
muito também porque o país não viveu uma revolução popular, ou mesmo burguesa,
que rompesse com o passado colonialista, patrimonialista, patriarcal, autoritário e
escravocrata. Ao contrário, implementou medidas de transição para uma realidade
industrial/urbana, amparada por estruturas de poder já existentes (especialmente

36 CHAVES, Thais. Lei Rouanet: da ascensão à queda provocada pelas fake news. Carta Capital
[online], 2019. Disponível em < https://www.cartacapital.com.br/cultura/lei-rouanet-da-ascensao-a-
queda-provocada-pelas-f ake-news/> Acesso em 15/05/2020.
37 Idem.
36

oligárquicas e escravocratas), efetivando algo que pode se considerar uma


manutenção dos privilégios.

É importante dizer que o conservadorismo como pensamento e expressão


filosófica surge a partir de Edmund Burke, filósofo francês do Século XVII, em
oposição ao advento da Revolução Francesa. Conforme explica Robert Nisbet:

Só em 1830, na Inglaterra, o conservadorismo começou a fazer parte do


discurso político. Mas a sua substância filosófica nasceu em 1790, com
Edmund Burke, na sua obra Reflections on the Revolution in France.
Raramente, na história do pensamento, um conjunto de ideias foi tão
dependente de um único homem e de um único acontecimento como o
conservadorismo moderno o foi de Edmund Burke e da sua violenta reação
à Revolução Francesa. Em notável grau, os temas essenciais do
conservadorismo, durante os dois últimos séculos, não são mais do que a
continuação dos temas enunciados por Burke com referência específica à
França revolucionária.38

Embora carregue muito dos ideais nascedouros, o conceito de


conservadorismo é ressignificado – mas não rompido – ao longo do tempo, em
especial pela complexidade das relações sociais que vão se desencadeando na
medida em que a modernidade surge, criando ameaças utópicas.

Esse pensamento antirrevolucionário encontra no Brasil, em 2018, um


ambiente fértil à sua disseminação, com a definição de que os movimentos
progressistas, representados pelos partidos de esquerda, especialmente o Partido dos
Trabalhadores, são os inimigos que levaram o país à degradação política
(materializada nos escândalos de corrupção), moral (materializada em expressões
culturais como o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu a exposição
Queermuseu), e econômica (materializada na grave crise econômica vivida no país
entre 2014 e 2016).

Alie-se a este cenário, o crescimento de uma população fortemente ligada a


valores religiosos, especialmente evangélica, com lideranças aliadas e financiadas por
movimentos de extrema direita atuantes no resto do mundo 39.

38NISBET, Robert. O Conservadorismo. Editorial Estampa, Lisboa, 1987. p. 15.


39DIP, Andrea e VIANA, Natalia. Os pastores de Trump chegam à Brasília de Bolsonaro. Exame
[online], 2019. Disponível em <https://exame.abril.com.br/brasil/os-pastores-de-trump-chegam-a-
brasilia-de-bolsonaro/> Acesso em 08/05/2020.
37

Esse contexto consolida a aversão a tudo que se relaciona às pautas


tradicionalmente de esquerda, aos movimentos sociais, a negritude (demonizada a
partir das expressões culturais de origem africana), à pobreza, à igualdade de gênero
e lutas por direitos igualitários (incluindo as pautas LGBTQIA+), entre outras.

Nessa disputa de valores, as expressões teatrais são alvos naturais. Sua


tendência natural à quebra de paradigmas estéticos, morais, filosóficos etc., encontra
correspondente político nos movimentos progressistas, contrastando com os valores
que norteiam as estruturas de poder vigentes.

Dependentes dos recursos públicos, geridos pelos representantes desse


conservadorismo, os artistas passam a ver suas expressões sendo cerceadas, pela
institucionalização de políticas públicas que desprezam pressupostos democráticos,
impondo cerceamento a tudo que atente contra os valores caros a manutenção do
conservadorismo.
38

PARTE III – LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CENSURA

A partir de agora, passa-se a analisar a liberdade de expressão artística e a


censura, a partir dos aspectos conceituais e jurídicos. Buscando estabelecer uma
correlação entre os dois conceitos e a realidade da produção teatral.

3.1 Direito à Liberdade de Expressão Artística

Influenciada pelos ideais filosóficos do direito natural, a Revolução Francesa


alçou o marco dos direitos e garantias fundamentais, estabelecendo os mecanismos
para controle do poder estatal e impedindo o desrespeito aos direitos naturais do ser
humano.

A construção, iniciada com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão


de 1789, inaugurou a vinculação das constituições à garantia do respeito aos direitos
fundamentais.

Essa estrutura de direitos, como mecanismo de declaração de prerrogativas


inerentes aos indivíduos, sob a proteção das estruturas de poder do Estado, previstas
em leis, criadas como expressão da vontade coletiva, é o fundamento que garante a
limitação do poder e respeito aos direitos inerentes a todos os indivíduos.

Na base dessa estrutura de normas (leis) está a Constituição, que o Ministro


Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, define da seguinte forma:

A Constituição será, assim, o conjunto de normas que instituem e fixam as


competências dos principais órgãos do Estado, estabelecendo como serão
dirigidos e por quem, além de disciplinar as interações e controles recíprocos
entre tais órgãos. Compõem a Constituição também, sob esse ponto de
vista, as normas que limitam a ação dos órgãos estatais, em benefício da
preservação da esfera de autodeterminação dos indivíduos e grupos que se
encontram sob a regência desse Estatuto Político. Essas normas garantem
às pessoas uma posição fundamental ante o poder público (direitos
fundamentais). 40

40MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. Saraiva, São Paulo,
2012. p. 84.
39

Como se vê a Constituição é a base da organização do Estado, definindo as


regras básicas que devem nortear a vida da coletividade organizada. Especialmente,
como dito anteriormente, os direitos fundamentais dos indivíduos, como forma de
limitar as estruturas de poder e garantir a realização da democracia.

É importante ressaltar que as regras definidas pelas constituições vão além


da limitação contra a arbitrariedade dos poderes do Estado (governos, estruturas
jurídicas e legislativas). Os princípios e normas inscritos na lei suprema, vinculam
toda sociedade, inclusive os particulares em suas relações privadas.

São inúmeros os direitos fundamentais: direito à vida, à liberdade, à


intimidade, à honra, direitos sociais, econômicos, culturais, direito à paz e ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, entre outros. No presente trabalho aborda-se o
direito fundamental à liberdade de pensamento, expressão e manifestação, mai s
especificamente a liberdade de expressão artística em espetáculos teatrais.

O direito à liberdade de expressão artística, pertence à primeira dimensão dos


direitos fundamentais41, e está prevista na lei máxima brasileira, a Constituição
Federal de 1988, da seguinte forma:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença.42

Além desse dispositivo, a Constituição Federal de 1988, estabeleceu uma


série de outras normas com o objetivo de garantir o exercício da expressão artística:
a proibição de censura, prevista no art. 220, matéria a ser analisada posteriormente,

41 São direitos e garantias individuais propriamente ditos, verdadeira def esa do indivíduo contra
atividades arbitrárias do Estado.
42 BRASIL. [Constituição Federal de 1988]. Constituição da República Federativa do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em Acesso em 20/04/2020.
40

estabeleceu a cultura como direito no art. 215, com a garantia de exercício dos direitos
culturais, protegendo e apoiando as manifestações culturais, e também o patrimônio
cultural, a produção e a difusão de bens culturais, investindo na formação de pessoal
para gestão da cultura e democratizando o acesso à bens culturais.

Estabeleceu, ainda, no Art. 215, §1º, o dever do Estado de proteger as


manifestações culturais indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.

É importante dizer que a liberdade de expressão está prevista em diversas


outras normas de Direito Internacional das quais o Brasil é signatário: Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e
a Convenção Americana de Direitos Humanos.

A liberdade de expressão artística se encontra elencada entre as liberdades


individuais, núcleo de direitos considerados elementares para a existência da
democracia e da própria civilização, como pressuposto da dignidade da pessoa
humana, razão da existência do Estado. Como bem ensina o Professor Ingo Sarlet:

É amplamente reconhecido que a liberdade de manifestação do


pensamento e a liberdade de expressão, compreendidas aqui em conjunto,
constituem um dos direitos fundamentais mais preciosos e correspondem a
uma das mais antigas exigências humanas, de tal sorte que integram os
catálogos constitucionais desde a primeira fase do constitucionalismo
moderno. Assim como a liberdade de expressão e manifestação do
pensamento encontra um dos seus principais fundamentos (e objetivos) na
dignidade da pessoa humana, naquilo que diz respeito à autonomia e ao
livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, ela também guarda
relação, numa dimensão social e política, com as condições de garantia da
democracia e do pluralismo político, assegurando uma espécie de livre
mercado das ideias, assumindo, neste sentido, a qualidade de um direito
político e revelando ter também uma dimensão nitidamente transindividual,
já que a liberdade de expressão e os seus respectivos limites operam
essencialmente na esfera das relações de comunicação e da vida social.43
(Grifos nossos)

Continua o autor a explicar a dimensão artística da liberdade de expressão:

43 SARLET, Ingo. Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 2016. p. 492.
41

[...] um conjunto diferenciado de situações, cobrindo, em princípio, uma série


de liberdades (faculdades) de conteúdo espiritual, incluindo expressões não-
verbais, como é o caso da expressão musical, da comunicação pelas artes
plásticas, entre outras.
[...]
Importa acrescentar que, além da proteção do conteúdo, ou seja, do objeto
da expressão, também estão protegidos os meios de expressão, cuidando-
se, em qualquer caso, de uma noção aberta, portanto inclusiva de novas
modalidades, como é o caso da comunicação eletrônica. Para assegurar a
sua máxima proteção e sua posição de destaque no âmbito das liberdades
fundamentais, o âmbito da proteção da liberdade de expressão deve ser
interpretado como o mais extenso possível, englobando tanto a
manifestação de opiniões, quanto de ideias, pontos de vista, convicções,
críticas, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto e mesmo
proposições a respeito de fatos. Neste sentido, em princípio todas as formas
de manifestação, desde que não violentas, estão protegidas pela liberdade
de expressão, incluindo “gestos, sinais, movimentos, mensagens orais,
escritas, representações teatrais, sons, imagens, bem como as
manifestações veiculadas pelos modernos meios de comunicação, como as
mensagens de páginas de relacionamento, blogs etc.44

Como se vê, o valor inerente à liberdade de expressão se confunde com o


próprio valor da democracia. Essa relação de interdependência entre liberdade de
expressão artística e democracia está abrigada na noção de que a arte funciona como
verdadeira antena social que capta os sinais de mudança que transformam a
sociedade e, consequentemente, o próprio Estado.

Sobre a importância da liberdade de expressão, explicou o Ministro Celso de


Mello, do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do Julgamento da ADPF nº 187/DF,
que analisou a legalidade da “Marcha da Maconha”:

A reivindicação por mudança, mediante manifestação que veicule uma ideia


contrária à política de governo, não elide sua juridicidade. Ao contrário: a
contraposição ao discurso majoritário situa-se, historicamente, no germe da
liberdade da expressão enquanto comportamento juridicamente garantido.
[...]. Os direitos fundamentais em causa, vocacionados à formação de uma
opinião pública livre, socorrem fundamentalmente as minorias políticas,
permitindo-lhes a legítima aspiração de tornarem-se, amanhã, maioria; esta
é a lógica de um sistema democrático no qual o poder se submete à razão,
e não a razão ao poder.45

44Idem.
45 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº187/DF. Rel. Celso de Mello. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdão de 16/06/2011.
42

Resta clara a importância da liberdade de expressão artística para a


existência da sociedade e realização da democracia. Sobre essa relação, explicou o
filósofo Baruch Espinosa46, em seu Tratado Teológico-Político:

Com efeito, num Estado democrático (que é o que mais se aproxima do


estado de natureza), todos, como dissemos, se comprometeram pelo pacto
a sujeitar ao que for comumente decidido os seus atos, mas não os seus
juízos e raciocínios; quer dizer, como é impossível os homens pensarem
todos do mesmo modo, acordaram que teria força de lei a opinião que
obtivesse o maior número de votos, reservando-se, entretanto, a autoridade
de a revogar quando reconhecessem que havia outra melhor. Sendo assim,
quanto menos liberdade de opinião se concede aos homens, mais nos
afastamos do estado mais parecido com o de natureza e, por conseguinte,
mais violento é o poder [...].47

Aqui é importante ressaltar o contraponto iniciado com a Constituição Federal


de 1988, no período entre 1964 e 1985, em que o Regime Militar limitou o exercício
das liberdades individuais, impondo restrições às manifestações contrárias aos
valores da ditadura, incluindo aí as expressões artísticas.

Por fim, vale ressaltar que a liberdade de expressão artística vai além da
simples ação de manifestação artística, ela envolve a criação, a produção e a
divulgação da produção. Essa distinção é importante na medida em que a liberdade
de criação é uma liberdade de imaginação ou pensamen to sobre o objeto a ser criado,
enquanto a liberdade de expressão abrange a escolha da forma, momento e métodos
para a realização da criação.

3.2 Limitação à Liberdade de Expressão

Por se tratar de um sistema de normas harmônico, a Constituição Federal de


1988, traz elementos que servem para proteger outros direitos fundamentais,

46
Também chamado de Espinosa ou Espinoza.
47
ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. p. 308.
43

especialmente os direitos de personalidade 48, contra eventuais abusos no exercício


da liberdade de expressão artística.

Aqui, é importante ressaltar que não há a subordinação de um direito ao outro,


mas a ponderação, no caso concreto, por meio de um processo judicial, sobre a
gravidade dos danos decorrentes da expressão artística.

A luz do ordenamento constitucional, o pequeno dano ou a mera ameaça não


são suficientes para limitar o exercício da liberdade de expressão artística. Segundo
o Supremo Tribunal Federal, a liberdade de expressão ocupa, na ordem
constitucional, posição de preferência nessa ponderação:

[...] A primeira e mais conhecida delas é a presunção de primazia da


liberdade de expressão no processo de ponderação. Ela se funda na ideia
de que as colisões com outros valores constitucionais (incluindo os direitos
da personalidade) devem se resolver, em princípio, em favor da livre
circulação de ideias e informações. Isso não significa, por evidente, que a
liberdade de expressão ostente caráter absoluto. Excepcionalmente, essa
prioridade poderá́ ceder lugar à luz das circunstâncias do caso concreto.
Sua posição preferencial deverá, porém, servir de guia para o intérprete,
exigindo, em todo caso, a preservação, na maior medida possível, das
liberdades comunicativas.
Uma segunda presunção se refere à suspeição de todas as medidas –
legais, administrativas, judiciais ou mesmo privadas – que limitem a
liberdade de expressão. Tais restrições deverão, por isso, submeter-se a um
controle mais rigoroso, no qual se proceda a uma espécie de inversão da
presunção de constitucionalidade das normas restritivas e se atribua um
ônus argumentativo especialmente elevado para que se possa justificá-las.
Por fim, a terceira presunção é a da proibição da censura e,
consequentemente, da primazia das responsabilidades posteriores pelo
exercício eventualmente abusivo da liberdade de expressão. A vedação à
censura constitui, em verdade, uma das principais garantias da liberdade de
expressão. A proibição prévia de divulgação de uma ideia, informação ou
obra representa a violação mais extrema deste direito, uma vez que implica
a sua total supressão. Tal opção não ignora o perigo de que o exercício das
liberdades comunicativas seja abusivo e produza danos injustos. No
entanto, ela decorre do reconhecimento, historicamente comprovado, da
impossibilidade de eliminar a priori os riscos de abusos sem comprometer a
própria democracia e os demais valores essenciais tutelados, como a
dignidade humana, a busca da verdade e a preservação da cultura e da
memória coletivas. Em uma sociedade democrática, é preferível arcar com
os custos sociais que decorrem de eventuais danos causados pela
expressão do que o risco da sua supressão. Disso resulta a necessidade de

48Direitos considerados essenciais à pessoa humana, dizem respeito à existência e dignidade, tais
como: vida, intimidade, honra, paternidade, entre outros.
44

conferir à liberdade de expressão uma maior margem de tolerância e


imunidade e de estabelecer a vedação à censura.49

Como se vê, a regra é a fruição de ideias e manifestações, a Constituição


Federal admite eventual restrição apenas em caso de:

1. anonimato para garantir a responsabilização por danos a terceiros, nos


termos do art. 5º, IV;

2. violação à honra ou à imagem, conforme art. 5º, V;

3. proteção de crianças e adolescentes em espetáculos públicos, conforme


classificação etária definida em lei (art. 220, § 2º e § 3º, I);

4. direito de defesa contra veiculação de programação ou publicidade em


rádio ou TV que violem o art. 221 da Constituição Federal de 1988, ou
sejam nocivos à saúde e ao meio ambiente (art. 220, § 2º e § 3º, II);

5. conteúdo de apologia ao racismo ou à prática de crime de ódio (art. 5º,


XLII).

Cumpre ressaltar que outras normas ou atos do Poder Público (políticas


públicas, leis, editais etc.) não podem definir restrições à liberdade de expressão, pois
configurariam violação à Constituição.

Além disso, devem ser considerados outros aspectos na análise da suposta


violação ao direito personalíssimo. Sobre isso, o Supremo Tribunal Federal em
julgamento do Habeas Corpus nº 83.996/RJ, impetrado em favor do diretor de teatro
Gerald Thomas50, se manifestou:

No caso em apreço, ainda que se cuide, talvez de manifestação deseducada


e de extremo mau gosto, tudo está a indicar um protesto ou uma reação –
provavelmente grosseira – contra o público. [...] Não se trata, também, de
um gesto totalmente fora do contexto da própria peça teatral. [...] Com efeito,
não se pode olvidar o contexto no qual se verificou o ato incriminado. O
roteiro da peça, ressalte-se, envolveu até uma simulação de masturbação.
Estava-se diante de um público adulto, às duas horas da manhã, no Estado

49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.815/DF. Rel. Min.
Carmen Lúcia. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdão de 10/06/2015.
50 Em 2003, Gerald Thomas f oi denunciado criminalmente por ato obsceno após, ao f inal de uma

apresentação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, ter simulado masturbar-se e em seguida abaixado
as calças e mostrado as nádegas ao público.
45

do Rio de Janeiro. Difícil, pois, nesse contexto, admitir que a conduta do


paciente tivesse atingido o pudor público. A rigor, um exame objetivo da
querela, há de indicar que a discussão está inteiramente inserida no
contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada ou deseducada.
De resto, observe-se que a sociedade moderna dispõe de mecanismos
próprios e adequados a esse tipo de situação, como a própria crítica, sendo
dispensável, por isso o enquadramento penal.51

Percebe-se, da decisão do ministro Gilmar Mendes, que a possibilidade de


restrição da liberdade de expressão artística deve considerar as peculiaridades da
obra, público e contexto em que se apresenta.

Portanto, conforme se verifica no ordenamento jurídico brasileiro, é cabível, e


em certos casos até necessário, implementar a indicação informativa em relação às
manifestações artísticas que possam causar algum tipo de constrangimento de cunho
religioso ou alcançar crianças e adolescentes (em processo de construção da
personalidade).

Além disso, nos casos de abusos e violação dos direitos de personalidade


sempre será possível a ordem judicial para cessação da violação e reparação de
danos.
É sempre importante frisar que cautelas de aviso ou eventual restrição de
acesso não se confundem com censura ou proibição, claramente afastadas pela
Constituição.

3.3 Censura

Do ponto de vista jurídico, a censura pode ser definida como todo procedimento
do Poder Público objetivando a limitação da livre circulação de ideias, especialmente
aquelas contrárias aos interesses dos detentores de poder. Conforme explica o
pesquisador Rômulo Moreira Conrado:

[...] a censura pode ser entendida como a atuação estatal, preventiva ou


repressiva, que impedisse a exibição ou continuidade de exibição de
determinada obra intelectual, artística ou científica, ou a exposição de ideias

51BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 83.996/RJ. Rel. Min. Carlos Velloso. Rel.
para o acórdão: Min. Gilmar Mendes. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdão de 17/08/2004.
46

de qualquer natureza, inclusive pelos veículos de comunicação. A forma


mais odiosa de sua ocorrência é aquela que se verificava, por exemplo, na
ditadura militar brasileira, em que antes da exibição de qualquer produção
ou da veiculação de jornais, diários ou revistas se fazia necessário o carimbo
de aprovação do censor.52

Nesse sentido, o Estado estabelece previamente as regras e mecanismos para


monitoramento e cerceamento das expressões que violem os valores que devem ser
seguidos pela sociedade. Os censores oficiais aniquilam qualquer manifestação que
contrarie os valores relevantes aos detentores do poder.

No Brasil, este tipo de censura institucional foi abolido com a abertura


democrática após o fim do Regime Militar consolidada com a Constituição Federal de
1988. A Constituição estabeleceu, como dito anteriormente, a liberdade de expressão
como direito fundamental. Além disso, previu explicitamente a proibição de censura,
nos seguintes termos:

Art. 220 [...]


§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística.53

É notório que, sob a égide da Constituição vigente e na institucionalidade


inaugurada por ela, não há espaço para a censura. A questão que se apresenta no
presente trabalho, entretanto, como poderemos ver a partir da parte IV, demonstra o
Estado como agente censor, atuando agora de forma menos institucional ou
amparada num arcabouço jurídico. A abordagem atual acontece nas entrelinhas.

Mesmo durante o Regime Militar, por receio da imagem autoritária, a ditadura


determinava que a opinião pública não mencionasse a palavra “censura” ou
insinuasse controle sobre as publicações. Na atualidade não seria diferente. O
cerceamento de eventuais expressões artísticas que se contrapõem à pauta da
estrutura política/moral dominante está sob a tutela dos órgãos oficiais, especialmente

52 CONRADO, Rômulo Moreira. A Função Social das Liberdades de Expressão: Limi tes
Constitucionais. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: 2014. p. 249. Disponível em <
http://www.repositorio.uf c.br/bitstream/riuf c/12812/1/2014_dis_rmconrado.pdf . Acesso em: 27/04/20.
53 BRASIL. [Constituição Federal de 1988]. Constituição da República Federativa do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em Acesso em 27/04/2020.
47

por meio de mecanismos que limitam acesso aos recursos que viabilizam estas
expressões.

Esse processo se intensificou após a ruptura democrática marcada pelo Golpe


de 2016 e com a ascensão do Governo Bolsonaro. Sob essa nova ordem, outros tipos
de cerceamento, mais ou menos sutis, estão em vigor no Brasil, por meio de
mecanismos restrição à liberdade artística, que se configuram, assim, formas de
censura.

3.4 Formas de Censura

A forma mais conhecida de censura que vigorou no Brasil durante a Regime


Militar foi a censura prévia, restrição exercida de forma preventiva às manifestações
que se pretendia veicular.

Já na censura ex post facto ou posterior, o controle é exercido pela


possibilidade de responsabilização penal, civil e administrativa das manifestações que
se pretende cercear. Na censura ex post facto não há limitação à expressão, mas a
penalização posterior pela comunicação produzida.

Outra classificação possível é quanto ao agente censor, podendo ser censura


pública ou censura privada. Na primeira espécie há a atuação do Poder Público, por
meio das estruturas do Estado, com a aplicação de sanções penais, administrativas e
civis. Já a segunda, se opera a partir de interesses privados por meio de mecanismos
civis, empresariais, trabalhistas, econômicos, dentre outros. Exemplo comum deste
tipo de censura é a cessação de patrocínio a espetáculos pelo receio de que o
conteúdo apresentado possa gerar impacto negativo (que também irá tornar-se
bastante evidente na Parte IV deste trabalho).

Ainda é possível a existência de uma censura híbrida ou colateral, em que a


iniciativa privada limita a liberdade de expressão pelo receio de que o conteúdo
comunicado possa gerar eventuais responsabilidades civis ou criminais.

Mencione-se, ainda a heterocensura, em que a limitação ocorre pela


imposição, seja pelo Poder Público ou pela inciativa privada, através de um controle
externo.
48

Pode-se falar, ainda, na autocensura, em que os próprios responsáveis pela


expressão ou informação decidem silenciar devido ao temor de represálias públicas
ou sociais.

Mencione-se, também, a existência da censura velada, tipo de cerceamento


da liberdade de expressão que se opera por vias transversais, em que a f inalidade da
limitação se confunde com outras razões, apresentadas sob a forma de ações legais
e em atendimento aos princípios democráticos.

Note-se que os tipos de censura elencados podem ocorrer sob mais de uma
forma, sendo que em geral ocorrem de forma velada, dificultando a sua percepção,
impacto e enfrentamento na sociedade.

Cumpre, ainda, tecer algumas considerações sobre a divisão alardeada entre


censura moral e censura política. Entretanto, é relevante ressaltar que nesse ponto
estamos tratando do conteúdo da expressão censurada, enquanto a classificação
mencionada anteriormente, diz respeito à ação censora e a sua materialização sobre
o objeto censurado.

Como visto anteriormente, a história da censura no Brasil é marcada pela


alternância de seu conteúdo. Em momentos específicos centrada no comportamento
social e em outros utilizada como mecanismo de repressão a expressões políticas.
Nesse sentido, explica o professor Renan Quinalha:

A censura centrada em temas comportamentais também foi bastante


marcante no teatro feito durante o séc. XIX, sem mencionar essa prática de
interdição e controle durante os primórdios do período republicano, quando
a presença do censor se tornou uma constante no mercado, em franca
expansão dos divertimentos públicos (CARNEIRO, 2002). Já a censura
estritamente política teve ampla utilização, ao lado de mecanismos de
controle moral, durante regimes como o Estado Novo (1937-1945) e a
ditadura civil-militar (1964-1988). Nota-se, assim, que tipos distintos de
censura tiveram lugar e conviveram entre si em distintos momentos
históricos no Brasil.54

54QUINALHA, Renan. Censura moral na ditadura brasileira: entre o direito e a política. Revista
Direito e Práxis. Rio de Janeiro, 2019. p. 4.
49

Embora traga esse panorama sobre a análise dos conteúdos objetos de


censura o autor entende que não é possível dissociar, na prática, os dois conteúdos,
evidenciando que todo cerceamento de liberdade exercido pelo Estado possui, por
natureza, uma dimensão política, inclusive quando exercida sobre aspectos de
natureza estritamente moral. Sobre isso, o professor afirma:

Toda censura, sem dúvida, tem uma dimensão política inegável. Afinal, é da
própria definição do processo censório impedir a produção de determinadas
informações, restringir a liberdade de pensamento e de expressão, colocar
obstáculos para que opiniões circulem no espaço público e acabar, com
essa vocação autoritária, impondo uma visão única sobre assuntos
complexos e que deveriam comportar uma pluralidade de perspectivas.
Trata-se, portanto, de um ato essencialmente político. Além do mais,
qualquer censura moral e dos costumes de uma sociedade também possui
um aspecto intrinsecamente político de policiamento de condutas, de
limitação das liberdades, de sujeição de corpos, de controle de sexualidades
dissidentes, de domesticação dos desejos e mesmo de restrição às
subjetividades de modo mais amplo.55

Esta distinção entre censura política e moral, na prática, reflete uma visão
binária que em verdade não possui efeitos práticos, já que toda ação é política. No
presente trabalho, esta distinção tem o condão de identificar, nas expressões
censuradas, quais os conteúdos ou valores existentes na obra que ofenderam a
institucionalidade.

55 Idem. p.5-6.
50

PARTE IV – A CENSURA AO TEATRO NO BRASIL PÓS GOLPE DE 2016

Tendo como base a análise do panorama apresentado – o contexto histórico


da censura no Brasil e a ascensão do pensamento conservador no país – fica latente
a institucionalização da censura a partir do ano de 2016, num primeiro momento como
elemento moral mobilizador do pensamento conservador e, posteriormente, como
ação política, ora a partir de conteúdos morais, ora como meio de ação política.

A análise que se pretende buscará estabelecer conexões a partir da


observação de dois aspectos fundamentais de cada uma das obras teatrais
pesquisadas: em primeiro lugar o contexto político e social em que ocorreram os seus
cancelamentos, além do próprio conteúdo dos espetáculos censurados.

É importante notar, logo de antemão, que as dramaturgias e encenações dos


espetáculos levantados no presente trabalho, dialogam com aspectos centrais do
momento político/moral que atravessa o país.

Será possível notar a relação entre os casos analisados, especialmente em


razão da integração das narrativas à aspectos da vida política e cotidiana da realidade
brasileira. Nesse sentido se tornará mais evidente a simbiose entre os valores políticos
e morais, como objeto de ataque dos agentes conservadores, especialmente no que
se refere ao embate entre direita e esquerda e às ameaças aos valores de uma
suposta ‘maioria’ cristã e conservadora.

Como dito, a ascensão do conservadorismo no Brasil, parece estar


intimamente ligada aos recorrentes processos de limitação da liberdade de expressão
artística e de pensamento mais notoriamente divulgados, dentre eles diversos casos
de censura (ou tentativas de censura malsucedidas) ao teatro. Este processo se
estendeu, inclusive, a outras áreas da criação artística e expressões do pensamento,
que não exclusivamente às artes cênicas.

Até o ano de 2019, O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu (que foi
mencionado anteriormente e no qual nos aprofundaremos agora) era o caso mais
notável de espetáculo censurado.

A partir de 2019, contudo, após o término do mandato do presidente interino


Michel Temer e com o início do Governo Bolsonaro, o cancelamento massivo de
51

espetáculos teatrais por parte de diversas instituições levou as artes cênicas às


manchetes dos jornais no Brasil e no mundo, evidenciando clara perseguição artística,
moral e política por parte do novo governo, ainda em seu primeiro ano de mandato.

Como foco de trabalho, a presente pesquisa busca analisar os espetáculos


teatrais que tiveram suas apresentações censuradas após o Golpe de 2016,
especialmente aqueles que ganharam maior projeção midiática. Buscou-se verificar a
similaridade entre os temas tratados nas obras, a dramaturgia e o contexto de cada
cancelamento, com o objetivo de observar como a censura tem se apresentado e
perceber quais os mecanismos utilizados para a sua legitimação. A seguir o panorama
das obras analisadas:

4.1 O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu (Núcleo Corpo Rastreado)56

O espetáculo é uma montagem do texto da autora inglesa Jô Clifford, que foi


traduzido e dirigido no Brasil por Natalia Mallo e produzido pelo Núcleo Corpo
Rastreado. A peça transpõe a figura de Jesus Cristo para o corpo transexual, e foi
interpretada pela atriz transexual e militante Renata Carvalho, que conversa com a
plateia e reconta histórias bíblicas sob uma perspectiva da atualidade, convidando o
espectador a refletir sobre princípios da fé cristã, como tolerância e aceitação.

Desde sua estreia nacional, em agosto de 2016, no Festival Internacional de


Londrina – FILO, o espetáculo enfrentou problemas. Na ocasião, a abordagem
temática do trabalho gerou articulações que, inicialmente, partiram da própria
sociedade civil e ganharam voz institucional por meio de notas emitidas por
instituições religiosas, como a Arquidiocese de Londrina e o Conselho de Pastores
Evangélicos de Londrina e Região.

Estas instituições condenaram a realização do espetáculo dentro do evento,


solicitando a alteração de seu local de apresentações, que inicialmente seriam
realizadas na capela da Universidade Estadual de Londrina – UEL.

56A descrição do espetáculo e dos f atos ocorridos se baseiam na entrevista realizada com a diretora e
idealizadora do espetáculo, Natalia Mallo, em abril de 2020.
52

Após este episódio, em que a peça teve o local de realização alterado para
que apresentação pudesse acontecer, a trajetória do espetáculo foi marcada por
recorrentes cancelamentos e boicotes.

Em 2017, a apresentação do espetáculo agendada pelo Sesc Jundiaí, no


município de Jundiaí, em São Paulo, foi cancelada por determinação liminar do juiz
Luiz Antônio de Campos Júnior, da 1ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí, atendendo
a um pedido que vinha sendo articulado há alguns dias por congregações religiosas,
políticos e pela Sociedade Brasileira de Defesa a Tradição, Família e Propriedade,
simplesmente denominada TFP.57

É interessante notar, neste sentido, o cunho religioso dos ataques ao trabalho,


que resultou ainda em ofensas contra a integridade física de sua intérprete, situação
que envolveu inclusive a explosão de uma bomba caseira durante o espetáculo 58.
Segundo relata a diretora da montagem, Natalia Mallo:

[...] o cúmulo, o ápice dessa situação, se deu em Garanhuns, no Festival de


Garanhuns, onde a gente teve uma saga de tentativas de censura,
apresentação independente também censurada, um festival inteiro sendo
ameaçado de perder financiamento público se programasse a peça e uma
situação que evoluiu pra violência dentro do espaço. Jogaram uma bomba,
tinha polícia militar, revista do público, foi uma situação limite de muita
violência [...].59 (Relato verbal)

Ainda assim, o Bispo da Diocese de Garanhuns, Dom Paulo Jackson Nóbrega


de Souza, pediu o cancelamento da peça, pois o trabalho, supostamente, em seus
argumentos, não “constrói uma cultura de paz e diálogo” ao cometer equívocos que
ferem a Igreja Católica e a “sensibilidade das pessoas simples”60 da região.

57 FOLHA. Peça com transexual em papel de Jesus é cancelada após decisão judicial . Folha de
São Paulo [online], 2017. Disponível em <https://www1.f olha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1919033-
peca-com-transexual-em-papel-de-jesus-e-cancelada-apos-decisao-judicial.shtml>. Acesso em
30/01/2020.
58 KER, João. Atriz Trans que interpreta Jesus: ‘Os seguranças que contrataram para nos

defender queriam me bater’. The Intercept_Brasil [online], 2018. Disponível em


<https://theintercept.com/2018/08/08/atriz-trans-jesus/>. Acesso em 30/01/2020.
59 Entrevista concedida por. MALLO, Natalia. Entrevista I (13/04/2020). Entrevistadora Tamara Borges,

2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
60 SOUZA, Dom Paulo Jackson Nóbrega. Nota sobre a peça teatral “O Evangelho Segundo Jesus,

Rainha dos Céus”. Cnbbne2 [online], 2018. Disponível em <https://cnbbne2.org.br/nota-sobre-a-


peca-teatral-o-evangelho-segundo-jesus-rainha-dos-ceus/>. Acesso em 27/04/2020.
53

O Governo do Estado de Pernambuco cancelou a apresentação alegando que


o festival foi “criado para unir e divulgar nossas expressões culturais e não para dividir
e estimular a cultura do ódio e do preconceito”.61
Enquanto isso o gabinete do Prefeito de Garanhuns emitiu uma nota
comemorando a decisão do governo estadual, e “colocando-se não contra a liberdade
de expressão artística, mas sim contra a que essa liberdade não [sic] viesse a
desrespeitar nenhum símbolo sagrado de uma religião, e de todos os seus
seguidores62.

Para além dos cancelamentos efetivados, a trajetória do trabalho também


conta com diversas tentativas frustradas de censura. Mallo continua:

Em cada lugar onde se apresentava a peça era movida uma ação judicial.
Isso aconteceu em Porto Alegre (no Porto Alegre em Cena, o festival foi
notificado). Mas teve um parecer positivo pra gente, pela juíza que decidiu
pela continuidade da peça e fez uma sentença histórica, onde ela nomeou
a transfobia e foi muito importante. Teve em Belo Horizonte na Funarte, e
teve em Salvador uma ação que realmente cancelou o espetáculo onde ele
aconteceria, na Fundação Gregório de Matos, mas como a liminar proibia o
acontecimento ali a gente foi pra outro espaço, pro Goethe Institut, lá em
Salvador, que nos acolheu.63 (Relato verbal)

As decisões judiciais que limitaram a realização do espetáculo, tiveram como


argumento, em sua maioria, o vilipêndio e à violação do direito ao exercício da
liberdade religiosa. É importante ressaltar trechos da decisão que impediu a realização
do espetáculo em Jundiaí:

[...] muito embora o Brasil seja um Estado Laico, não é menos verdadeiro o
fato de se obstar que figuras religiosas e até mesmo sagradas sejam
expostas ao ridículo, além de ser uma peça de indiscutível mau gosto e
desrespeitosa ao extremo, inclusive.

61 VECGARANHUNS. Seria Encenada no Fig: Governo do Estado volta atrás e cancela em


Garanhuns peça que retrata Jesus como um transexual. V&C Garanhuns [online], 2018. Disponível
em <http://www.vecgaranhuns.com/2018/06/seria-encenada-no-f ig-governo-do-estado.html>. Acesso
em 27/04/2020.
62 G1. Peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” é cancelada no Festival de Inverno

de Garanhuns. G1 Caruaru, 2018. Disponível em < https://g1.globo.com/pe/caruaru-


regiao/noticia/peca-o-evangelho-segundo-jesus-rainha-do-ceu-e-cancelada-no-f estival-de-inverno-de-
garanhuns.ghtml>. Acesso em 24/05/2020.
63Entrevista concedida por. MALLO, Natalia. Entrevista I (13/04/2020). Entrevistadora Tamara Borges,

2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
54

De fato, não se olvide da crença religiosa em nosso Estado, que tem JESUS
CRISTO como o filho de DEUS, e em se permitindo uma peça em que este
HOMEM SAGRADO seja encenado como um travesti, a toda evidência,
caracteriza-se ofensa a um sem número de pessoas.
Não se trata aqui de imposição a uma crença e nem tampouco a uma
religiosidade. Cuida-se na verdade de impedir um ato desrespeitoso e de
extremo mau gosto, que certamente maculará o sentimento do cidadão
comum, avesso a esse estado de coisa. Não se olvida a liberdade de
expressão, em referência no caso específico, a arte, mas o que não pode
ser tolerado é o desrespeito a uma crença, a uma religião, enfim, a uma
figura venerada no mundo inteiro.
Nessa esteira, levando-se em conta que a liberdade de expressão não se
confunde com agressão e falta de respeito e, malgrado a inexistência da
censura prévia, não se pode admitir a exibição de uma peça com um
baixíssimo nível intelectual que chega até mesmo a invadir a existência do
senso comum, que deve sempre permear por toda a sociedade.64 (Grifos do
original)

Para a diretora do espetáculo, a decisão revela um profundo


desconhecimento acerca de sua dramaturgia, tanto do julgador, quanto das
organizações sociais contrárias:

E isso foi um argumento muito falho, muito discutido. Tivemos uma


assessoria legal, jurídica que nos explicou o quanto isso era equivocado.
Primeiro porque não há vilipêndio de nenhum símbolo. A peça é cristã. É em
favor do pensamento cristão em sua essência. Segundo que a peça é
fechada, só pra quem quer assistir, em locais fechados, com classificação
etária, ninguém é obrigado a ver se não quiser ver.65 (Relato verbal) (Grifo
nosso)

Mallo relata, ainda, que, por parte do grupo teatral, sempre existiram
tentativas de diálogo com todos aqueles que se colocaram contra a peça. O retorno a
estas tentativas, entretanto, nunca foi bem-sucedida:

Convidamos ao diálogo - em todas as instâncias - quando alguém nos


atacou (políticos e governantes), chamamos para uma conversa e nenhum
aceitou. Nos colocamos de uma maneira responsiva e bastante tranquila,
calma, convidando ao diálogo. E a gente ficou o tempo inteiro pensando que
não bastava a peça, a gente tinha que viver pelos valores que a peça prega

64BRASIL. 1ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí – TJSP. Processo nº 1016422-86.2017.8.26.030 9.


Juiz Luiz Antônio de Campos Júnior. Decisão Liminar de 15/07/2017.
65 Entrevista concedida por. MALLO, Natalia. Entrevista I (13/04/2020). Entrevistadora Tamara Borges,

2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
55

em sua dramaturgia. Então a comunicação foi essencial pra que a gente


pudesse servir como um veículo de denúncia dessas estruturas.66 (Relato
verbal)

Mesmo aberto ao diálogo, o grupo continuou a enfrentar inúmeras outras


tentativas de cerceamento. Foram casos de animosidades pelo Brasil inteiro, inclusive
novas tentativas judiciais de impedimento das apresentações.

É importante dizer que a tendência de censura ao espetáculo por meio de ações


judiciais não encontrou amparo em algumas instâncias. Em Porto Alegre, por
exemplo, o juiz José Antônio Coitinho afastou o pedido liminar para suspensão de
uma apresentação nos seguintes termos:

Há que ser indeferido o pedido liminar.


Não se pode simplesmente censurar a peça “O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu”, sob argumento de que estamos em desacordo com seu
conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada
- pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar
pensamento é impedir desenvolvimento humano.
O crime e a imoralidade que fere têm de ser oprimidos pelo julgador. A
liberdade preservada. A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga
transgênero escocesa, propõe - fato notório - uma reflexão sobre o
preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas.
A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo
presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mal
gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa.
Ao Juiz é vedado proibir que cada ser humano expresse sua fé – ou a falta
desta – da maneira que melhor lhe aprouver. Não lhe compete essa censura.
A alegada questão da sexualidade de personagens, imaginada para o
espetáculo, é absolutamente irrelevante. Transexual, heterossexual,
homossexual, bissexual, constituem seres humanos idênticos na essência,
não sendo minimamente sustentável a tese de que uma ou outra opção
possa diminuir ou enobrecer quem quer que seja representado no teatro.
Não se está a defender que é correta a total liberdade de escolha sexual e
muito menos a condenar essa postura. Defendemos a liberdade de escolher,
de toda pessoa escolher, de acordo com sua evolução, o que fazer de sua
vida, em todos os aspectos, mantido o respeito pelo seu semelhante. 67

66Idem.
67 BRASIL. 2ª Vara de Fazenda Pública d e Porto Alegre – TJRS. Processo nº 9038978-
35.2017.8.21.0001. Juiz José Antônio Coitinho. Decisão Liminar de 19/07/2017.
56

Ressalte-se que na decisão o juiz faz clara referência à censura, dizendo que
limitar a apresentação do espetáculo seria uma censura judicial, o que não se pode
admitir a luz da legislação brasileira.

Posteriormente, todos os tribunais de justiça que avaliaram os processos de


cerceamento das apresentações do espetáculo, reafirmaram a tese de que não cabe
ao judiciário limitar expressões artísticas, consolidando a liberdade de expressão do
espetáculo e afastando abusos cometidos pelos juízes em primeiro grau.

O cancelamento d’O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu no Sesc


Jundiaí em 2017 marcou o início de uma sequência de atos de restrição à liberdade
de expressão artística em espetáculos teatrais. Assim, a obra citada acabou por
adquirir outra dimensão, revelando um dos principais temas sensíveis a ‘nova moral
vigente’, agora apoiada em bases políticas.

4.2 Abrazo (Grupo Clowns de Shakespeare)68

Livremente inspirado no Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano, Abrazo


retrata a vida de um menino que vive em um país onde é proibido abraçar ou
demonstrar afeto, trazendo o universo de guerras e proibições para o mundo infanto-
juvenil. Tendo estreado em 2014, essa é segunda obra da trilogia de pesquisa latino-
americana da companhia Clowns de Shakespeare.

O grupo, criado em 1993, reside em Natal e é uma referência nacional devido


sua trajetória e pesquisa na linguagem, trabalhando com teatro popular, o clown e a
comédia.

Em setembro de 2019 a companhia Clowns de Shakespeare, contemplada


pelo Edital de Ocupação da Caixa Cultural, banco estatal que gerencia espaços
culturais em 7 cidades do Brasil, teve suas apresentações canceladas pela instituição.
O grupo havia sido contratado e licitado para realização de 8 apresentações do
espetáculo Abrazo entre os dias 7 e 15 setembro de 2019 na Caixa Cultural Recife.

68Com trechos de entrevista realizada pelos autores com o diretor geral do grupo, Fernando Yamamoto,
em abril de 2020.
57

Minutos antes da segunda apresentação, o grupo foi informado de que a


instituição havia cancelado as apresentações do fim de semana. Como nos conta
Fernando Yamamoto, diretor geral do grupo:

Enfim, a gente ficou bem perplexo e tal, e aí esperamos a chegada desse


cidadão, que era um Gerente Jurídico da Caixa, não mais da Caixa Cultural
no caso, da Caixa geral lá de Recife. Segundo ele, havia uma suspeita de
que a gente teria infringido uma cláusula do contrato, porque ele recebeu
duas gravações do bate-papo – do bate papo isso, não foi do espetáculo -
ele recebeu duas gravações do bate-papo. E que, por isso, preventivamente,
ele estava cancelando as apresentações - as apresentações do fim de
semana todo no caso [...] 69 (Relato verbal)

Para a Caixa Cultural, o grupo haveria infringido cláusula contratual não


durante a apresentação da peça, mas ao longo do bate papo realizado com o público
depois dela.

Na semana seguinte ao cancelamento, o grupo recebeu um comunicado da


Caixa Econômica Federal rescindindo o contrato da temporada sob a alegação de
descumprimento contratual.

De acordo com a Caixa, o grupo infringiu o inciso VII da Cláusula Quarta do


contrato, que prevê que a contratada seja obrigada a “zelar pela boa imagem dos
patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo”,
o que teria acontecido no bate-papo após a primeira sessão. O grupo relata não
reconhecer nenhuma atitude que pudesse gerar tal reação.70

De acordo com a cronologia dos trabalhos analisados Abrazo foi o primeiro


espetáculo censurado por empresa estatal através de vínculo de patrocínio, dando
sequência a uma série de outros, inclusive por parte da mesma instituição. A partir daí
surge também uma primeira relação direta com a Secretaria Especial de Comunicação
– Secom, do Governo Federal, conforme continua informando Yamamoto:

69 Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine


Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
70 DUARTE, Raf ael. Clowns de Shakespeare é censurado em Recife e decide entrar com
processo. Jornal GGN [online], 2019. Disponível em <https://jornalggn.com.br/teatro/clowns-de-
shakespeare-e-censurado-em-recif e-e-decide-entrar-com-processo/>. Acesso em 30/01/2020.
58

[...] ele [o gerente jurídico] já ampliou esse cancelamento para todo o


primeiro fim de semana – e que isso iria para Brasília ser analisado pela
SECOM.71 (Relato verbal)

A exemplo d’O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu, mais uma vez a
censura a um trabalho de artes cênicas teve seus desdobramentos jurídicos, como
vemos:

Entramos com um processo, um pedido de liminar que foi indeferido. E,


paralelamente a isso, uma ação pública que o Ministério Público abriu contra
a Caixa [...] 72 (Relato verbal)

Em relação à ação pública do MP, Yamamoto enaltece o apoio oferecido por


um grupo de Deputadas Estaduais de Pernambuco:

Existe um coletivo de Deputadas Estaduais em Pernambuco que se chama


JUNTAS. É uma gestão compartilhada do PSOL. Elas não só manifestaram
apoio, como ofereceram suporte, como elas entraram com uma denúncia
junto ao Ministério Público, e aí junto com elas, eu fiz uma reunião por Skype
com uma procuradora do Ministério Público. E, enfim, o Ministério Público
analisou tudo, o Ministério Público exigiu um posicionamento da CAIXA, foi
aí onde a gente teve o primeiro acesso a justificativa da Caixa e onde a gente
teve certeza que, na verdade, eles não tinham nada palpável contra a
gente.73 (Relato verbal)

É também interessante notar que Abrazo não faz o uso de texto ou falas, mas
constrói a sua dramaturgia a partir do corpo, da ação e da fisicalidade. Neste sentido,
a hipótese de que a temporada tenha sido cancelada em função de alguma
manifestação do grupo durante o bate papo pode, sim, sustentar-se. Essa acepção,
exposta pela própria Caixa Cultural, revela, entretanto, a perseguição direta aos
artistas – e não mais as obras – uma vez que se constrói a partir de exposições
particulares dos intérpretes ao término de uma apresentação, e não sobre a própria
dramaturgia ou conteúdo dos trabalhos.

71 Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020).


Entrevistadora Elaine Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra en contra-se
transcrita no Anexo 1 desta monograf ia.
72 Idem.
73 Ibidem.
59

Como poderemos aferir futuramente (na Parte V), há desde o início, uma
preocupação em relação ao posicionamento político pessoal dos artistas (não apenas
do coletivo artístico, mas dos intérpretes individualmente, também, especialmente por
parte da Caixa Cultural).

Abrazo também merece destaque por se tratar do único espetáculo voltado


ao público infantil/infanto-juvenil entre os sete trabalhos levantados por esta pesquisa.
É interessante notar que Yamamoto - sendo o diretor geral do primeiro grupo vítima
desta leva de ‘cancelamentos’’74 de 2019 – identifica um aspecto particular neste
sentido:

Acho que talvez o nosso episódio ele abriu uma... Ele inaugurou um novo
formato de censura - porque a gente já tinha visto outros acontecendo - que
foi uma censura com uma maquiagem jurídica. Eles criaram uma justificativa
jurídica para isso, por mais que seja muito evidente que não é isso que
aconteceu.75 (Relato verbal)

Pela primeira vez, então, esta ‘curadoria das estatais’ torna-se um mecanismo
efetivo de censura dentro da história recente do país, estando desde o princípio
fortemente associada à Secom.

Este movimento foi pautado por valores conservadores que, indiretamente,


retiram da criação artística sua característica particular de espaço potente para
reflexões coletivas e passa a entende-lo como entretenimento, sem provocação
crítica/social alguma, como poderemos continuar vendo.

74 Ao longo das Partes IV e V, f aremos ref erência a ‘cancelamentos’ (enf atizados entre as aspas, exceto
quando em ref erência a alguma das entrevistas produzidas para a pesquisa), uma terminologia utilizada
comumente nos casos citados, ao invés de ‘censura’, em especial quando relacionad os a instituições
públicas. Os ‘cancelamentos’ são mencionados pelos próprios criadores, não isoladamente, mas como
uma ‘leva de cancelamentos’, acontecidos em sequência, que só ressaltou todas as suspeitas de
censura e perseguição direta à determinadas temáticas e aspectos da produção artística brasileira.
75 Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020).
Entrevistadora Elaine Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra encontra -se
transcrita no Anexo III, desta monograf ia.
60

4.3 Res Pvblica 2023 (Grupo A Motosserra Perfumada)76

A peça Res Pvblica 2023, é uma criação do grupo paulista A Motosserra


Perfumada. A peça faz alegoria ao termo República em diversos aspectos (o bairro
central de São Paulo, a República de Platão, as repúblicas/moradias etc.). Escrita e
dirigida por Biagio Picorelli, a obra mostra um Brasil distópico (ou nem tanto), já em
2023, tomado por um governo autoritário, em que seis jovens amigos que dividem
apartamento, fundam o movimento Anaconda Brazil e levam às ruas grandes massas
populares. Como nos conta a sinopse do espetáculo, divulgada amplamente:

Réveillon de 2023. O movimento Anaconda Brazil leva às ruas grandes


massas patrióticas. O Brasil vive um período de grande prosperidade
econômica, mas não para Tom, Billy, Suzanne, Vincent, John e Vallentina,
que vivem amontoados numa pequena república no centro de São Paulo.
No limite entre ficção e realidade, contam histórias e se revezam na tarefa
de trazer da rua objetos com os quais vão construindo uma trincheira, atrás
da qual estarão sempre o combate a espera por dias melhores. 77

A peça estrearia em 2019, no Complexo Cultural da Fundação Nacional de


Artes (Funarte) em São Paulo, que cederia o espaço para realização das
apresentações. Uma matéria veiculada pelo jornal O Globo, entretanto, foi
responsável por anunciar a exoneração da funcionária pública Maria Ester Moreira,
coordenadora da Funarte em São Paulo que, em um texto publicado no Facebook,
afirmou que sua exoneração estava (segundo matéria d’O Globo) "ligada ao fato de
que me posicionei claramente ao Centro de Artes Cênicas da Funarte, não acatando
um posicionamento” do então Diretor de Artes Cênicas, Roberto Alvim, sobre um
projeto de ocupação de uma das salas do Complexo Cultural Funarte SP. 78

76 Com trechos de entrevista realizada pelos autores com o diretor do grupo e autor/diretor do
espetáculo, Biagio Picorelli, em abril de 2020.
77 POMBO CORREIO. RES PÚBLICA 2023, do grupo A Motosserra Perfumada, estreia dia 11 de

outubro no porão do Centro Cultural São Paulo. Pombo Correio [online], 2019. Disponível em
<http://pombocorreio.art.br/?p=2691> Acesso em 13/05/2020.
78 O GLOBO. Coordenadora da Funarte SP diz que foi exonerada após se opor a veto a
espetáculo. O globo [online], 2019. Disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/coordenadora-da-
f unarte-sp-diz-que-f oi-exonerada-apos-se-opor-veto-espetaculo-23899756>. Acesso em 30/01/2020.
61

Posteriormente, os integrantes d’A Motosserra Perfumada foram informados


de que o posicionamento de Roberto Alvim não acatado por Moreira, era justamente
a determinação pelo cancelamento da estreia de Res Pvblica 2023 na Funarte SP.
Alvim foi nomeado por Bolsonaro como Diretor do Centro de Artes Cênicas da Fun arte,
e vetou a estreia de Res Pvblica após leitura da sinopse da peça.

O cancelamento da estreia da montagem no espaço da Funarte suscitou


inúmeros questionamentos acerca da isonomia da decisão, já que Bolsonaro por
diversas vezes posicionou-se entusiasta não apenas do autoritarismo, como também
do Militarismo brasileiro, em especial referindo-se à Ditadura Militar.

A crítica promovida por Res Pvblica, portanto, mostra-se simbólica e, por


consequência, provocou mis uma reação censória. Segundo Biaggio Picorelli, diretor
e autor do trabalho:

No nosso caso, foi uma censura à sinopse da peça (conforme relata a carta).
Essa sinopse apresenta o argumento de um Brasil futuro, do ano de 2023,
dominado por um braço civil do Governo, chamado "Anaconda Brazil". Se
você pensar no que hoje é nomeado "gabinete do ódio", nota-se que a peça,
escrita em 2016/2017, acabou se tornando um raio-x do nosso presente. O
que acreditamos é que a carapuça caiu quando leram a sinopse. Mas,
tratando-se do Alvim, é possível especular que a censura tenha tido razões
bem mais particulares: na ficha técnica há pelo menos umas 3 personas non
gratas para ele, dentre elas, nosso sound designer, Dugg Mont, que
trabalhou no Club Noir por uns 2 anos e rompeu com Alvim quando da sua
guinada bolsonarista.79 (Arquivo digital)

A ‘guinada’ a que Picorelli se refere diz respeito, também, à produção artística


de Alvim antes de sua declaração pública de apoio a Jair Bolsonaro. O ex-diretor fora
responsável por trabalhos como ‘Leite Derramado’, a partir da obra homônima de
Chico Buarque.80

Picorelli faz, em sua análise, uma analogia que, por si só, dialoga com a
conjuntura política atual. Roberto Alvim foi, em algum sentido, um trunfo para o

79 Entrevista concedida por. PICORELLI, Biaggio. Entrevista I (28/04/2020). Entrevistador Igor


Augustho Mattos Kijak, 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se
transcrita no Anexo III, desta monograf ia.
80 Alvim dirigiu montagem de ‘Leite Derramado’, a partir da obra Homônima de Chico Buarque, que

contou com trilha original de Vladimir Staf atle. Buarque e Staf atle posicionam -se politicamente junto a
esquerda no Brasil, abertamente.
62

governo Bolsonaro, que recebeu dele – um nome até então relevante na produção
artística nacional – apoio público em favor do então candidato.

As recorrentes manifestações de Alvim em prol do bolsonarismo e do


desmonte da cultura nacional, foram criticadas por artistas de todas as áreas, uma
vez que ignoravam completamente o descaso público e as ofensivas de Bolsonaro às
minorias e à produção artística nacional.

Apenas quatro meses após o episódio de ‘cancelamento’ por parte da


Funarte, Roberto Alvim, que então já havia sido promovido a Secretário Especial da
Cultura, fora demitido pelo próprio presidente responsável pela sua nomeação, em
decorrência da publicação de um vídeo através dos canais de comunicação social da
Secretaria Especial de Cultura - Secult, em que anunciava o lançamento de um edital
de incentivo à projetos culturais, fazendo apologia a signos e simbologias nazistas de
maneira quase explícita.81

Após a censura de Alvim, a estreia de Res Pvblica viria a ocorrer no mesmo


ano, acolhida pelo Centro Cultural São Paulo, instituição pública da Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo. O CCSP – referência em todo o país em termos
de gestão de espaços culturais públicos - abrigou a montagem, contemplando-a na
programação do espaço, a convite do curador de teatro adulto do espaço, Kil Abreu,
com o aval do então secretário da cultura Alê Youssef.82

Picorelli enfatiza o trabalho da Prefeitura de São Paulo em oposição ao


exercício censor por parte do Governo Federal, que, através de seu Centro Cultural
São Paulo, acolheu a montagem:

Fomos prontamente apoiados pela Prefeitura de São Paulo que tem


marcado posição contra o Governo Federal especialmente no que diz
respeito a essa coisa da Censura. A peça estreou no Centro Cultural São
Paulo, da Prefeitura, e fez temporada lá outubro e novembro de 2019. 83
(Arquivo Digital)

81 O GLOBO. Roberto Alvim é demitido da Secretaria Especial da Cultura. O Globo [online],2020.


Disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/roberto -alvim-demitido-da-secretaria-especial-da-
cultura-24196589>. Acesso em 30/01/2020.
82 TECCHIO, Manuela. Vetada pela Funarte, ‘Res Publica 2023’ estreia no CCSP. Uol[online], 2019.

Disponível em <https://guia.folha.uol.com.br/teatro/2019/10/vetada-pela-f unarte-res-publica-2023-


estreia-no-ccsp.shtml> Acesso em 30/01/2020.
83 Entrevista concedida por. PICORELLI, Biaggio. Entrevista I (28/04/2020). Entrev istador Igor

Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se
transcrita no Anexo III, desta monograf ia.
63

No ‘cancelamento’ de Res Pvblica 2023, como sequência d’O Evangelho e de


Abrazo, percebe-se também uma relação essencial com o espaço físico das
apresentações previstas e, depois, canceladas.
O trabalho do grupo paulista A Motosserra Perfumada é, entretanto, o único
trabalho com relação direta junto a órgão público – sem mediação de contrato de
patrocínio.

4.4 Caranguejo Overdrive (Aquela Cia. De Teatro)84

A montagem escrita por Pedro Kosovski, dirigida por Marco André Nunes e
realizada pela Aquela Cia. De Teatro, conta a história de Cosme, ex-catador de
caranguejos no mangue carioca da metade do Século XIX. Convocado para integrar
as forças brasileiras na Guerra do Paraguai, ele enlouquece no campo de batalha,
volta ao Rio de Janeiro e encontra uma cidade em grande transformação. 85

Apesar de ambientado no Rio de Janeiro de 1870, o espetáculo propõe


relação direta com o contexto social que envolve a referida cidade atualmente, em
uma crítica que associa temáticas como a relação entre a cidade, a urbe e seus
fenômenos político-sociais como um todo, além do próprio indivíduo e suas
subjetividades dentro destes contextos.86

No ano de 2019, além do espetáculo ‘Guanabara Canibal’, o grupo integrava


a programação da mostra CCBB - 30 Anos de Cias com a montagem de Caranguejo
Overdrive que, entretanto, fora retirada da programação do evento, incentivado pelo
Banco do Brasil 87, empresa estatal com ampla trajetória de incentivo à produção
cultural nacional. Embora, a princípio, estivesse mantendo o espetáculo Guanabara

84 Com trechos de entrevista realizada pelos autores com o diretor do grupo e autor/diretor do
espetáculo, Marco André Nunes, em abril de 2020.
85 MITSP. Caranguejo Overdrive. mitsp [online], 2018. Disponível em
<https://mitsp.org/2018/caranguejo-overdrive/>. Acesso em 30/01/2020.
86 KOSOVSKI, Pedro. Caranguejo Overdrive. 1ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Cobogó, 2016.
87 GOBBI, Nelson. Grupo teatral questiona CCBB após cancelamento de 'Caranguejo overdrive'

em mostra comemorativa. O Globo [online], 2019. Disponível em


<https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/grupo -teatral-questiona-ccbb-apos-cancelamento-de-
caranguejo-overdrive-em-mostra-comemorativa-23989136>. Acesso em 30/01/2020.
64

Canibal, a instituição cancelou Caranguejo Overdrive, inicialmente sem justificativa


exposta.

Sem qualquer razão plausível para o cancelamento de Caranguejo, o grupo


declinou também das apresentações de Guanabara Canibal. Além disso, juntamente
ao movimento “342 Artes”, organizou ato em frente ao CCBB, no centro do Rio de
Janeiro, na mesma data em que estaria sendo feita a apresentação dentro do espaço,
realizando inclusive trechos do espetáculo em frente ao Centro Cultural. Como conta
Marco André Nunes, diretor do espetáculo e da companhia:

E aí perguntei, é claro, qual era a explicação, qual era o motivo, né, pra este
cancelamento. E não havia motivo nenhum. E nós por várias vezes
insistimos, no período de alguns dias, acho que durou quase uma semana,
eu insistindo, pedindo qual é a justificativa, qual é a justificativa, foram uns
quatro ou cinco dias perguntando a justificativa pro cancelamento. Porque é
uma peça simples de ser feita, então não havia nenhuma justificativa, a mais
complicada que é Guanabara Canibal estava mantida. Inclusive, havia uma
sugestão de que só se fizesse o Guanabara Canibal, mas, enfim, eu queria
saber o porquê de Caranguejo ter sido cancelado - já que Caranguejo
inclusive estava em cartaz na cidade, no Teatro Sérgio Porto. Então, por que
uma peça que estava em cartaz em um teatro estava sendo cancelada em
outro? Qual motivo? Não veio nenhuma resposta.88 (Arquivo digital)

Após a repercussão do evento na mídia, o Centro Cultural Banco do Brasil


manifestou-se, segundo nota divulgada no jornal O Globo:

Na encenação, segundo o relato, teriam sido acrescentados em seu roteiro


posicionamentos político-partidários, com citação a nomes de
personalidades políticas do atual governo e da oposição. 89

Ainda como relata Nunes, houve tentativa de alteração no espetáculo por


parte da instituição:

88 Entrevista concedida por. NUNES, Marco André. Entrevista I (03/05/2020). Entrevistador Igor
Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital (15 min.) A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Anexo III, desta monograf ia.
89 ARAGÃO, Helena e GOBBI, Nelson. Cancelamento de 'Caranguejo overdrive' é tema de
protesto, e CCBB se manifesta sobre o caso. O Globo [online], 2019. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/cultura/cancelamento -de-caranguejo-overdrive-tema-de-protesto-ccbb-se-
manif esta-sobre-caso-24012698>. Acesso em 27/04/2020.
65

Aí, em virtude da repercussão que essa ação teve, veio um comunicado -


depois que já tinha passado, sei lá, saiu no Jornal Nacional a nossa
manifestação – veio um comunicado do Banco do Brasil dizendo que a peça
havia sido cancelada porque nós havíamos modificado o texto da peça. Que
o texto da peça passou a ter conotações partidárias. Foi o que eles, nesse
dia, vieram a falar nesse dia e que, na verdade, eles tinham negociado de
mudar a peça com a produtora e, enfim, o que a produtora negou
veementemente.90 (Arquivo digital)

O diretor identifica no espetáculo um momento crucial na montagem que,


supostamente, justifica o argumento dado pelo Centro Cultural Banco do Brasil.
Apesar disso, cumpre ressaltar que, a cena em questão não diz respeito
exclusivamente a conjuntura política atual do país, mas a um panorama histórico que,
curiosamente, parece ter sido negado pelo CCBB e, consequentemente, pela Secom,
endossando o negacionismo histórico evidenciado nas posições do Governo Federal:

Porque tem um momento do espetáculo em que uma atriz, que faz a


personagem Puta Paraguaia (Carolina Virguez), ela vai falando a história do
Brasil. E chega nos dias atuais. Nós fazemos a peça desde o governo Dilma.
No final - a gente já está falando lá de trás, da ditadura, chegamos no
Sarney, vai pra Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, vai pro
Golpe, vai pra Temer e chega no governo atual. Em cada momento ia
parando em determinado ponto, né. Desde Dilma até agora ia parando em
determinado ponto. Parava na Dilma, depois parava no Golpe, depois
parava no Temer, depois parava na Eleição, enfim, e vai até agora. E nós
falamos sobre os assuntos divulgados pela imprensa. Não há nenhuma
ilação, não criamos nenhuma conexão, não levantamos nenhuma teoria
conspiratória, não fazemos nada disso, apenas falamos das notícias do
dia.91 (Arquivo digital)

Embora não seja possível identificar precisamente se o trecho da dramaturgia


a que o Banco do Brasil se refere é este, cumpre ressaltar que, por diversas vezes, o
Governo Bolsonaro e seus braços institucionais opuseram-se veementemente ao que
identificam como o uso da arte para discussão política.

90 Entrevista concedida por. NUNES, Marco André. Entrevista I (03/05/2020). Entrevistador Igor

Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital (15 min.) A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Anexo III, desta monograf ia.
91 Idem.
66

Mesmo que recorrentemente as duas – arte e política - sejam indissociáveis,


não apenas no Brasil, como também fora dele, a partir de 2018 o Poder Público
brasileiro não apenas toma como noção básica o distanciamento das duas como
também se considera no direito de controlar aquilo que poderá (ou não) ser visto pelas
plateias do país.

4.5 Lembro Todo Dia De Você (Núcleo Experimental)92

O musical inédito escrito por Fernanda Maia e dirigido por Zé Henrique de


Paula, conta a história de um jovem de vinte anos que descobre ser portador do vírus
HIV. O trabalho traz um olhar contemporâneo sobre o vírus, fortemente associado à
música, transitando por diversos núcleos sociais que circundam o personagem
central: sua família, seus amigos, seus amores, seus afetos, a vida noturna
LGBTQIA+, entre outros.

A obra do Núcleo Experimental também teve apresentações canceladas – e


posteriormente recontratadas - pela Caixa Cultural. A temporada do trabalho no Rio
de Janeiro havia sido contemplada pelo mesmo Edital de Ocupação responsável pela
aprovação de Abrazo e Gritos.

De acordo com a instituição, o cancelamento teve como motivo a realização


de obras no Teatro Nelson Rodrigues, que se encontrava sem alvará e, portanto,
incapaz de receber as produções e o público. O teatro é parte do complexo da Caixa
Cultural no Rio de Janeiro, que receberia as apresentações previamente agendadas
e contempladas.93

O release divulgado no site oficial do grupo e pela própria Caixa na ocasião


da retomada das apresentações94 deixa clara a proposição de abordagens relativas a
temáticas urgentes na contemporaneidade:

92 Com trechos de entrevista realizada pelos autores com o diretor do grupo e autor/diretor do
espetáculo, Zé Henrique de Paula, em abril de 2020.
93 FOLHA. Caixa Cultural cancela peça sobre gay soropositivo. Folha de São Paulo [online], 2019.

Disponível em <>. Acesso em 02/02/2020.https://www1.f olha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/caixa -


cultural-cancela-peca-sobre-gay-soropositivo.shtml>. Acesso em 02/02/2020.
94 CAIXA. Lembro todo dia de você. Caixa Cultural [online], 2019. Disponível em
<http://www.caixacultural.com.br/SitePages/evento -detalhe.aspx?uid=6&eid=2486>. Acesso em
02/02/2020.
67

Thiago é um jovem de 20 anos que tem sua vida transformada por um fato:
ele descobre-se portador do vírus HIV. Isso o leva a um processo de
autoconhecimento e a reavaliar a própria vida95

Quem nos fala é Zé Henrique de Paula, diretor do grupo e do espetáculo:

Nós ficamos muito chateados com o cancelamento. Entramos no site da


Caixa e realmente não havia programação no Teatro Nelson Rodrigues há
algum tempo. Mas, como isso aconteceu junto a uma onda de outros
cancelamentos - alguns deles inclusive em outras unidades da Caixa
Cultural espalhadas pelo Brasil - a gente achou que a gente estava, de fato,
fazendo parte dessa onda de cancelamentos, que eram cancelamentos
motivados por algum tipo de monitoramento que a Caixa sofria, ou andaria
sofrendo, por parte do Governo Federal.96 (Relato verbal)

Para além da realização do espetáculo o grupo promoveria - ainda de acordo


com a programação divulgada pela Caixa - dois debates: A questão do HIV como
motor de uma dramaturgia semidocumental e A criação de um mu sical original na
cena contemporânea do teatro brasileiro.

Como já vimos, isso é bastante relevante, uma vez que a instituição já havia
cancelado apresentações de espetáculos em decorrência de suas ações formativas
(caso de Abrazo, no bate-papo).

Apenas alguns meses depois do episódio, Jair Bolsonaro declararia que uma
pessoa com HIV é ‘uma despesa para todos’ 97.

Após o cancelamento do espetáculo, Lembro Todo Dia De Você passou a


figurar entre outros ‘cancelamentos’ pelas estatais. Pouco tempo depois, a Caixa
buscou o grupo novamente, oferecendo o Teatro de Arena para a realização da

95 NÚCLEO EXPERIMENTAL. Lembro todo dia de você. Núcleo Experimental [online], 2017.
Disponível em <http://nucleoexperimental.com.br/portfolio -item/lembro-todo-dia-de-voce/ >. Acesso em
02/02/2020.
96 Entrevista concedida por. PAULA, Zé Henrique De. Entrevista I (24. 04.2020). Entrevistadora Elaine

Aguiar, 2020. Arquivo digital (11 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
97 O GLOBO. Pessoa com HIV 'é uma despesa para todos', diz Bolsonaro. O globo [online], 2020.

Disponível em < https://oglobo.globo.com/sociedade/pessoa-com-hiv-uma-despesa-para-todos-diz-


bolsonaro-24231125>. Acesso em 08/05/2020.
68

temporada contemplada pelo edital, onde o trabalho de fato aconteceu. Conforme


comenta Paula:

Só que houve uma reviravolta nessa história, porque quando eu comecei a


dar algumas entrevistas para Folha de São Paulo, para o Jornal O Globo, no
Rio de Janeiro, porque alguns veículos começaram a me procurar para falar
sobre o cancelamento… Porque a gente divulgou o cancelamento, a gente
tinha divulgado a nossa temporada carioca e a gente evidentemente teve
que divulgar o cancelamento [...] Então a história do Lembro Todo Dia de
Você é a história de uma peça que foi cancelada, talvez censurada, nunca
soubemos, acho que jamais saberemos, mas que depois foi recontratada,
então no final de 2019 a gente fez no Teatro da Caixa as 8 sessões
contempladas no edital patrocínio da Caixa Cultural. 98 (Relato verbal)

Apesar de ter concluído o projeto que fora interrompido, Lembro Todo Dia de
Você já figurava – por sua própria construção e temática dramatúrgica – entre os
trabalhos com alguns dos temas mais provocados, embora não de modo inteligente,
pelo presidente da república. Isso porque, a essa altura, contudo, já era discernível,
entre tantos espetáculos em cartaz no país, quais pautas eram ofensivas ao governo
vigente.

Lembro Todo Dia De Você é, ainda, o exemplo claro e notável do modo como
a produção teatral – a partir de sua institucionalização – tornou-se refém do controle
público, que não apenas cancela espetáculos como também retoma a eles sob seu
próprio entendimento e vontade.

4.6 Gritos (Companhia Dos à Deux)99

Gritos é um espetáculo criado a partir do teatro gestual/físico como ferramenta


principal. Teve sua estreia em 2016, e reúne três poemas cênicos, transcorrendo
sobre as pessoas invisíveis e invisiblizadas na sociedade, através de abordagens
sobre o preconceito, o desprezo, os refugiados, a guerra e o amor. O primeiro deles
retrata Louise, personagem transexual e evidencia os preconceitos vividos pela

98 Entrevista concedida por. PAULA, Zé Henrique De. Entrevista I (24.04.2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital (11 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
99 Com trechos de entrevista realizada pelos autores com Artur Ribeiro, um dos atores/diretores do

grupo, em abril de 2020.


69

pessoa transexual na contemporaneidade.100 O segundo momento apresenta um


homem que perdeu a cabeça e o último revela a luta de uma mulher do extremo
Oriente.

A Dos à Deux é uma companhia formada por dois atores/dançarinos, Artur


Luanda Ribeiro e André Curti, que desde 1998 buscam a poesia através da
gestualidade, da manipulação de bonecos/objetos e do uso de máscaras. O grupo
franco-brasileiro realizaria apresentações dos espetáculos Gritos e Aux Pieds de la
Lettre 101 na Caixa Cultural de Brasília.

A partir dos materiais disponibilizados pela produção do projeto, a Caixa


Cultural efetivou o cancelamento do espetáculo Gritos, mantendo apenas as
apresentações de Aux Pieds de la Lettre e as oficinas propostas.102

Assim como Abrazo, o espetáculo tem a característica fundamental do


trabalho voltado ao corpo, bastante dissociado da palavra falada. A obra também
apresenta outra semelhança com um dos espetáculos já analisados: assim como no
espetáculo O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu, Gritos aborda, em seu
primeiro quadro, a realidade da pessoa transexual – apesar de interpretada por um
ator cisgênero, em oposição ao Evangelho, protagonizado por Renata.

A questão da transexualidade abordada na montagem poderia ser o motivo


pelo qual a Secom decidiu tirar o espetáculo da programação, como nos fala Riberio,
ator criador do espetáculo e idealizador do grupo:

Eu acho que somos adultos e sabemos muito bem que o que foi censurado
não foi Gritos na totalidade, e sim a Louise, que é o primeiro quadro de
Gritos, que é um grito transfóbico. Então a gente sabia muito bem que a
gente estava ali, tocando em uma coisa muito sensível e que por conta

100 LANNES, Paulo. “Gritos”, da companhia Dos à Deux, une poesia, dança e artes plásticas.
Metropoles [online], 2017. Disponível em <https://www.metropoles.com/entretenimento/teatro/gritos-
da-companhia-dos-a-deux-une-poesia-danca-e-artes-plasticas/amp>. Acesso em 12/02/2020.
101 COMPANHIA DOS À DEUX. Primeira nota oficial do grupo. Disponível em
<https://www.f acebook.com/photo.phpfbid=3189854274389374&s et=a.195711857136979&type=3>,
Acesso em 12/02/2020.
102 COMPANHIA DOS À DEUX. Segunda nota oficial do grupo. Disponível em
<https://www.f acebook.com/photo.phpfbid=3195028830538585&set=a.195711857136979&type=3&th
eater>. Acesso em 12/02/2020.
70

desse governo, totalmente moralista, isso foi uma das causas. 103 (Relato
verbal)

A Dos à Deux figurará, mais a frente, entre alguns dos grupos responsáveis
pela projeção internacional dos casos de censura ao teatro no Brasil, principalmente
após 2019. Isto ocorre também em decorrência da própria natureza do grupo,
binacional, característica bastante particular dentro do cenário de produção teatral
brasileira, chamando atenção da mídia internacional.

O discurso de Ribeiro é, também, bastante complementar ao de Nunes


(Caranguejo Overdrive), que assume a posição da en cenação artística também a
partir de seu viés político, explicitamente.

Em seu depoimento, Ribeiro enfatiza a interferência midiática nos casos de


censura às artes.

Então a gente tem reagido de forma contundente e colocando a cara a tapa,


e eu acho, de qualquer forma, eu acho que é caso a caso. Porque não foram
cancelados [só] esses casos todos que tiveram, que foram notificados pelas
mídias. Outros [foram] ofuscados porque não tinham uma visibilidade
midiática e também a gente não ficou sabendo, mas acredito que tiveram
muito mais do que foram citados. Mas eu acho que a reação nossa é
continuar fazendo nosso trabalho. Eu acho que não tem outra maneira a não
ser continuar criando e de continuar fazendo com que a arte e o nosso
trabalho sejam uma antena sobre o mundo, mas também sobre as
problemáticas do nosso país e contemporâneas. 104 (Relato verbal)

Como visto acima, se a mídia tem como responsabilidade divulgar os casos


de censura e assim legitimá-los, o caso Gritos se torna um marco histórico e revela o
contexto no qual os outros cancelamentos estão imersos. O espetáculo foi criado
ainda em 2016, e teve uma longa trajetória, de mais de duzentas e cinquenta
apresentações no Brasil, além de inúmeras apresentações internacionais, sem antes
receber questionamentos e ataques por parte de qualquer governo.

103 Entrevista concedida por. RIBEIRO, Artur Luanda. Entrevista I (02/04/2020). Entrevistadora Tamara
Borges, 2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
104 Idem
71

Assim, a eleição de Bolsonaro reafirma-se gradativamente como um divisor


de águas neste processo censor, utilizando as estatais para o cerceamento da
expressão artística e, portanto, adquirindo poder sobre a programação de alguns dos
espaços culturais mais relevantes no país.

Ribeiro também traz à tona o aspecto fundamentalmente humano das obras


que foram alvos de censura por parte do Governo Federal:

O novo projeto, que vai ter um…enfim, como todos os nossos projetos, têm
sempre um… não que a gente faça política, mas são espetáculos
humanistas, a gente fala do Homem, o Homem nesse contexto
contemporâneo. Acho que a gente vai enfiar o dedo na ferida, e que isso vai
incomodar, isso é certo.105 (Relato verbal)

A partir de sua visão, mais do que relacionados à militância em si, os temas


perseguidos pelo Governo Federal estão vinculados à uma perspectiva que é,
humana, em algum sentido existencialista e – portanto – indissociável do teatro.

4.7 A Mulher Monstro (S.E.M Cia. De Teatro)106

A obra da S.E.M. Cia. de Teatro (Sentimento, Estéticas e Movimento) é um


monólogo tragicômico que aborda a realidade político-social do país. Tem a sua
dramaturgia livremente inspirada no conto “Creme de Alface”, de Caio Fernando
Abreu, e é constituída por colagens de opiniões da internet, das ruas e declarações
de Jair Bolsonaro e de eleitores da extrema direita.

Se utilizando da estética dragqueen, o ator José Neto Barbosa dá vida a uma


mulher conservadora, que destila sua visão intolerante e preconceituosa acerca da
sociedade, revelando o ódio presente na atualidade.

A peça estreou em 2016, e já havia sido apresentada no Festival de Teatro


de Curitiba, em 2017, tendo todas as sessões lotadas.

105Ibidem.
106Com trechos de entrevista realizada pelos autores com José Neto Barbosa, ator e co-criador do
espetáculo, em abril de 2020.
72

Em 2019, o festival citado contava mais uma vez com o espetáculo Mulher
Monstro em sua programação, com apresentações agendadas para o começo de
abril, no Memorial de Curitiba, equipamento municipal que recebia parte da
programação do festival.

Após a divulgação da peça revelar que a obra fazia críticas diretas ao governo
bolsonarista e seus apoiadores, foi-se comunicado a proibição e o uso do espaço pelo
Festival, determinada pelo prefeito Rafael Greca (DEM).

A justificativa oficial foi de que o espaço seria usado pela prefeitura na mesma
data das apresentações, e que, portanto, não estaria mais disponível para o festival.107
Conforme nos conta José Neto Barbosa, idealizador e ator do trabalho:

Eram muitas ameaças de morte. Curitiba é uma cidade onde paira muito
amor, mas também muito ódio. Além de ser o local onde o ex-presidente
Lula está preso. Onde surge o juiz fajuto, e atual Ministro da Justiça de
Bolsonaro, Sergio Moro. Nas datas de minha apresentação também fazia
um ano da prisão de Lula. Então, o Sindicato dos Bancários de Curitiba e
Região, vendo o perigo eminente e tantas ameaças, colocou segurança
particulares para cuidar de mim na cidade. Andava escoltado, parece surreal
um artista de teatro ter que ser escoltado. Apresentei com seguranças na
frente do palco. A polícia militar ficava rondando o local de apresentação
com sirenes altas, era proposital para me atrapalhar, me intimidar. A polícia
militarizada no Brasil é treinada para colocar terror nas minorias, e
principalmente nos periféricos. A polícia brasileira mata, um horror. E eu
seguia firme, mesmo assim. Foram três dias de apresentações com mais de
três mil e duzentas pessoas, um dos maiores públicos da história do Festival
em rua. Foi um ato político.108 (Arquivo digital)

O relato do ator revela a ação da Polícia Militar durante suas apresentações


em Curitiba. É importante ressaltar que durante o período de censura prévia no Brasil,
a polícia tinha como responsabilidade a fiscalização e intimidação dos artistas, e em
alguns momentos de nossa história, essa instituição era a única responsável por
avaliar o que poderia ou não ser encenado no país, como já vimos anteriormente.

107 GALINDO, Rogério. Greca veta Memorial e trupe prejudicada fala em censura e retaliação.
Plural [online], 2019. Disponível em <https://www.plural.jor.br/noticias/cultura/greca-veta-memorial-e-
trupe-prejudicada-f ala-em-censura-e-retaliacao/>. Acesso em 14/02/2020.
108 Entrevista concedida por. BARBOSA, José Neto. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine

Aguiar, 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se no Anexo IV, desta
monograf ia.
73

Apesar das dificuldades financeiras e técnicas, a equipe decidiu manter as


apresentações, alterando o local para as Ruínas de São Francisco, espaço público
com livre acesso aos espectadores, que lotou a sessão de estreia. Além desse caso,
o ator conta ter sido perseguido em outros contextos e agredido fisicamente durante
uma de suas apresentações.109

A agressão ocorreu em 2019, no Sesc Piedade, no município de Jaboatão dos


Guararapes (PE).110 Durante a sessão algumas pessoas na plateia se manifestaram
e questionaram se aquilo era “teatro ou política”. O ator relata em suas redes sociais
que após contornar a intervenção, continuou o espetáculo, mas logo depois uma
pedra foi arremessada ao palco.

Na reta final das eleições presidenciais a peça foi considerada “propaganda


eleitoral irregular”, e desde que Jair Bolsonaro foi eleito, Barbosa conta ter perdido
dois patrocínios no Rio Grande do Norte, sendo uma dessas perdas sob a justificativa
que a imagem divulgada do espetáculo - uma mulher com o rosto pintado de verde e
amarelo de forma irônica - poderia ofender os clientes da empresa, conforme relata
Barbosa:

Eu comecei a apresentação normalmente em Jaboatão dos Guararapes/PE,


na região metropolitana do Recife. Aí, percebi que um grupo ficou me
incitando desde o início, tentando me desestabilizar com palavras
grosseiras. À medida que o espetáculo foi avançando percebi que os
xingamentos aumentavam e passaram para agressões verbais, sempre em
que eu fazia duras críticas ao presidente brasileiro. Uma pessoa, a mais
alterada, fazia questionamentos como: é um absurdo, isso é teatro ou é
política? Essa pessoa se levantou e foi embora depois de discussões
intermediadas pelos assistentes de produção e por mim (ainda como
personagem) no meio do espetáculo. [...] Em seguida, quando o palco
estava com a luz baixa, recebi uma pedrada. A pedra foi atirada em direção
a mim, para minha cabeça, mas atingiu a estrutura metálica do cenário, que
é uma jaula, me poupando de ferimentos. O risco de explodir a iluminação
foi grande. O autor da pedrada não foi identificado. Eu consegui finalizar o

109 DUARTE, Raf ael. Abrazo e A mulher Monstro representam RN em festival de obras
censuradas pelo governo Bolsonaro. Saiba Mais [online], 2020. Disponível em
<https://www.saibamais.jor.br/abrazo -e-a-mulher-monstro-representam-rn-em-f estival-de-obras-
censuradas-pelo-governo-bolsonaro/>. Acesso em 14/02/2020.
110 DIARIO DE PERNAMBUCO. 'Tentativa de censurar a minha arte', diz ator vítima de pedrada

durante espetáculo no Recife. Diário de Pernambuco [online], 2019. Disponível em


<https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/viver/2019/09/tentativa-de-censurar-a-minha-arte-
diz-ator-vitima-de-pedrada-duran.html>. Acesso em 14/02/2020.
74

espetáculo, fiz completo. Foi difícil, mas o público que ficou até o final amou
nosso trabalho.111 (Arquivo digital)

Somando-se ao Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu, A Mulher Monstro


é marcada pela forte intervenção por parte da sociedade civil, não como um agente
censor – já que não imputa, por si só, no cancelamento das montagens – mas como
um movimento popular contra a liberdade de expressão artística. Tais casos remetem
à perseguição que acontecia durante a Ditadura Militar, organizadas pelo CCC, vista
na Parte I desse trabalho.

A Mulher Monstro também torna mais evidente a ofensiva não somente aos
espetáculos e às artes em si, mas aos próprios artistas e intérpretes, englobando –
inclusive – atentados contra as suas integridades físicas.
Além disso, é mais um dos trabalhos com conteúdo explicitamente político.
Contudo, enquanto Res Pvblica e Abrazo exercem este discurso em espaços
fantasiosos, Mulher Monstro figura ao lado de Caranguejo Overdrive, ambas com
abordagens políticas explicitamente direcionadas à conjuntura política atual do país.

111
Entrevista concedida por. BARBOSA, José Neto. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida p or e-mail, íntegra encontra-se no Anexo IV, desta
monograf ia.
75

PARTE V – CONEXÕES E DESDOBRAMENTOS

A partir de agora, se propõe uma conexão entre os dados anteriormente


levantados. Num primeiro momento, foi brevemente apresentado os panoramas
históricos da censura (em especial ao teatro) no Brasil, relacionando o exercício
político, a influência religiosa e a militarização com a censura.

Depois, se apresentou a ligação entre o processo histórico recente do país e


a ascensão do conservadorismo, além de conceitos relevantes para o tema, como o
direito à liberdade de expressão artística e censura.

Após breve relato dos casos de censura dos sete espetáculos analisados e,
para que se possa nortear as próximas considerações, contudo, é preciso que se tome
como base um histórico amplo de ofensivas do Governo Bolsonaro, não apenas em
relação à classe e produções artísticas brasileiras, mas às diversas pautas políticas,
sociais e coletivas ligadas à diversidade em seus mais amplos sentidos.

5.1 Das Dramaturgias e Abordagens Temáticas dos Trabalhos Analisados

Numa análise inicial, verificou-se nas obras teatrais analisadas diversidade de


temas, entretanto eles convergem para abordagens diretamente associadas às pautas
de grupos sociais historicamente marginalizados (as chamadas minorias
sociopolíticas).

Deste modo, a noção de censura foi atribuída aos espetáculos cerceados,


muito em razão do conservadorismo vigente, consubstanciado no discurso e em
ações governamentais de Jair Bolsonaro (enquanto candidato e presidente) que se
opôs, sempre, ao desenvolvimento de políticas públicas direcionadas às minorias e à
cultura112.

Ao se debruçar sobre os temas centrais de cada um dos trabalhos isto fica


ainda mais evidente. Destacamos principalmente as temáticas centrais dos sete
espetáculos analisados: transexualidade, identidade de gênero, religião, política e

112Diz-se ‘minorias’ às minorias políticas, sem qualquer relação quantitativa. Leve-se em conta a
posição da mulher na contemporaneidade enquanto grupo politicamente minorizado, mas
quantitativamente expressivo.
76

conjuntura política atual brasileira, homoafetividade, soropositividade, provocação


crítica e explícita ao autoritarismo e ao militarismo, conforme apresentado abaixo.113

Tabela 1 – Relação dos temas abordados nos espetáculos analisados


O
Evangelho
Abrazo Res Gritos Mulher Caranguejo Lembro
Segundo
Pvblica Monstro Overdrive Todo Dia
Jesus
2023 de Você
Rainha do
Céu

Transexualidade X X X

Homoafetividade X

Política X X

(Autoritarismo)

Política X X

(Conjuntura Atual)

Soropositividade X

Religião X

Violência Doméstica X

Refugiados X

Fonte: Própria. Elaborada a partir da dramaturgia e texto dos espetáculos analisados.

Assim, tendo como pano de fundo a ascensão do conservadorismo no Brasil,


as artes cênicas viram crescer um processo de cerceamento não apenas ao exercício
artístico, mas – mais do que isso – direcionado também à limitação de assuntos
permitidos ou não dentro das produções.

Em 2016, na ocasião da estreia de O Evangelho Segundo Jesus Rainha do


Céu, o debate sobre a identidade de gênero e a transexualidade suscitou a primeira
de várias tentativas de cerceamento do espetáculo, que foi cancelado, em alguns
casos, inclusive na esfera judicial.

Já em 2019, esta fiscalização moral se intensificou, justamente durante o


primeiro ano de mandato do presidente eleito. Nesse novo cenário o componente

113Planilha elaborada a partir de análise individual de cada um dos trabalhos listados. As temáticas
identif icadas não dizem respeito necessariamente às abordagens centrais de cada trabalho, mas a
assuntos que são abordados nas obras ao menos uma vez durante o/s espetáculo/s.
77

moral é reforçado pela nova política conservadora e as ações de censura passam a


ostentar restrições de caráter moral e político.

A partir de 2019, então, a censura passa a cumprir o papel de satisfazer a


base eleitoral do governo eleito. Os temas que contrariam os valores conservadores
são boicotados e algumas apresentações de montagens que abordam tais assuntos
‘canceladas’. Isso é notório nos trabalhos analisados. Por exemplo, a identidade de
gênero possui destaque nas dramaturgias (O Evangelho Segundo Jesus Rainha do
Céu, Gritos e Res Pvblica 2023) assim como a homoafetividade (Lembro Todo Dia de
Você).

É também interessante notar que dois dos espetáculos (Gritos e Abrazo) não
fazem o uso da palavra em cena, lançando mão principalmente do teatro gestual em
suas encenações. Percebe-se, então, o peso não necessariamente do discurso literal
encontrado na dramaturgia, para a ação repressora, mas de todo o material
disponibilizado pelas produções às instituições (sinopses, vídeos, textos de
apresentação, release etc.).

Deve-se mencionar, ainda, a recorrente abordagem de pautas políticas nas


dramaturgias, uma característica marcante da produção teatral brasileira e
contemporânea. Enquanto Abrazo e Res Pvblica 2023 criticam nitidamente os regimes
autoritários, Caranguejo Overdrive e Mulher Monstro possuem discursos associados
diretamente à conjuntura política do Brasil dos dias atuais.

Assim, as similaridades temáticas dos espetáculos configuram um painel de


abordagens urgentes e necessárias, embora polêmicas. São assuntos que dizem
respeito diretamente ao processo eleitoral de 2018 e à consequente eleição de
Bolsonaro, como já pudemos ver. Soma-se a isso a própria natureza do governo, que
se inspira contrariamente à produção e gestão cultural nacionais.

A Lei Rouanet, um dos mecanismos de incentivo à cultura mais relevantes no


país, se tornou alvo principal no ‘marketing político’ de Bolsonaro, já ao longo do
processo eleitoral, buscando atingir as estruturas culturais do país, que massivamente
se posicionaram contra sua eleição.

Frise-se que, embora muito comentada durante o processo eleitoral de 2018,


o governo eleito não apresentou efetivamente qualquer plano para a cultura durante
o período de mais de um ano e meio de exercício do poder, ao contrário, implementou
78

um plano de desestruturação das instituições governamentais. Somente na Secretaria


Especial de Cultura, até junho de 2020, mês em que seu mandato sequer chegara à
metade, foram sete transições114 de mandato no cargo de Secretário(a) Especial da
Cultura115.

5.2 A Institucionalização da Arte Enquanto Mecanismo de Censura

Falaremos agora da institucionalização da arte (e por consequência da


produção teatral) enquanto, por si só, um modo eficaz de interferência externa que se
opõe a liberdade de expressão artística.

Em um primeiro olhar, o exemplo mais notável são os próprios contratos de


patrocínio, que permitem a grandes empresas certa função ‘curatorial’. Isto ocorre
muito em função dos próprios modos de produção cultural no Brasil, fortemente
associados às Leis de Incentivo à Cultura e as ações estatais.

Além disso, as baixas porcentagens de dedução fiscal previstas pela


legislação vigente, condicionam os patrocínios às empresas de grande porte, que
também adquirem autonomia e controle em relação aos projetos que serão produzidos
ou não no país. Estas decisões são, na maior parte das vezes, pautadas em interesses
de marketing e publicidade destas empresas, um modelo que comumente limita os
patrocínios a artistas que já possuem projeção nacional.

Esta dinâmica, é claro, não está dissociada do extenso processo de


mercantilização da arte, em que espetáculos teatrais tornam-se ‘produtos’ disponíveis
para compra e aquisição de grandes instituições (no Brasil, principalmente as estatais
vinculadas ao Governo Federal).

114Desde a eleição de Bolsonaro, com início do exercício do mandato em 2019: Henrique Pires (janeiro
a agosto), José Paulo Martins (agosto a setembro) e Ricardo Braga (setembro a novembro). Entre 2019
e 2020, Roberto Alvim (novembro a janeiro). Já em 2020 Jo sé Paulo Martins retorna, (permanecendo
entre janeiro e março). Em março de 2020 a atriz Regina Duarte é empossada pelo presidente ,
permanecendo no cargo apenas até junho do mesmo ano, mês em que Marcio Frias é nomeado como
seu substituto.
115 Na gestão de Bolsonaro, ef etivou-se a extinção do Ministério da Cultura (MinC). A Pasta foi

incorporada como Secretaria Especial, inicialmente dentro do Ministério da Cidadania. Em novembro


de 2019, o presidente transf eriria a Secretaria Especial de Cultura para o Ministério do Turismo (e por
consequência o Conselho Nacional de Política Cultural e a Comissão do Fundo Nacional de Cultura) .
79

O incentivo por parte das grandes empresas configura-se, assim, um primeiro


exemplo de dinâmica institucional/corporativa em que a produção cultural no Brasil se
insere. Como consequência, o atentado contra à liberdade de expressão artística
camufla-se e entremeia-se, muitas vezes, em cláusulas bastante questionáveis de
contratos de patrocínio controlados, na maior parte das vezes, por departamentos de
marketing e comunicação.

Ainda falando das Leis de Incentivo à Cultura, e mantendo a referência


centrada no diverso painel temático criado a partir dos trabalhos listados, outra
camada institucional associa-se à produção e criação teatral: a política.

Um exemplo notável desta abordagem é o modo como o atual Governo


Federal tem se relacionado com estes assuntos, mesmo antes de sua eleição e
passando, com o início de seu mandato, a utilizar as estatais (mais uma vez, empresas
de grande porte) como uma ferramenta de controle sobre a produção teatral no país.

Em números, esta interferência institucional fica bastante clara: dentre os sete


casos listados acima, quatro contavam com aporte financeiro de empresas públicas
como a Caixa Cultural e o Banco do Brasil. Outros dois contavam com o apoio de
instituições públicas na cessão de espaços para realização das ações – a exemplo da
Funarte e da Prefeitura de Curitiba.

Esta relação corporativa e institucional também é a causa fundamental de algo


que podemos chamar de censura velada. Embora existam claras semelhanças
temáticas entre os espetáculos ‘cancelados’ dentro de um mesmo contexto político e
social, os motivos pelos quais estes ‘cancelamentos’ são justificados colocam-se
desconexos frente às grandes semelhanças existentes entre as dramaturgias (como
exposto no Item 5.1).

Neste sentido, é interessante notar o modo como a institucionalização do


incentivo à cultura por parte das estatais torna-se efetivamente um mecanismo de
controle e censura sobre as próprias produções incentivadas/patrocinadas.

Por detrás desta relação, quase comercial, esconde-se ainda a perseguição


política e moral aos artistas brasileiros de hoje, envolta em contextos que permitem
ao Poder Público esquivar-se da censura declarada através de ‘cancelamentos’,
rescisões contratuais, entre outros.
80

A partir daí a institucionalização se torna, efetivamente, um mecanismo de


censura. Uma matéria da Folha de São Paulo, de 04 de outubro de 2019, denunciou,
por exemplo, a criação de um sistema de censura prévia por parte da Caixa Cultural
(que censurou os espetáculos Gritos, Abrazo e Lembro Todo Dia de Você).116

De acordo com a notícia, que obteve ampla repercussão nos espaços de


promoção e discussão da produção artístico cultural brasileira, funcionários da Caixa
relataram que novas regras implementadas pela instituição, após a eleição de
Bolsonaro, buscavam filtrar o acesso aos patrocínios por parte dos projetos
contemplados em editais da estatal.

Isto ocorreu através de uma ficha preenchida pelos funcionários dos


complexos culturais do banco, em que, além de alertar para possíveis ‘polêmicas’
decorrentes dos espetáculos selecionados, deveriam também sinalizar manifestações
políticas e sociais por parte dos artistas e grupos em suas respectivas redes sociais
(particulares). Ainda segundo os funcionários entrevistados pela matéria, o conteúdo
dos relatórios era analisado diretamente pela Secom.

Justificando-se, a Caixa declarou que os procedimentos relacionados à


contratação dos projetos são submetidos a Instrução Normativa nº 09/2014 da Secom,
que regulamenta patrocínios concedidos por órgãos e entidades da Administração
Pública Federal.

Por contemplar amplos aspectos deste tipo de patrocínio, a leitura da


Instrução acima citada não permite a compreensão exata da razão que fundamenta o
cancelamento e análise dos espetáculos e das redes sociais de seus artistas
realizadores.

É pertinente também notar a curiosa maneira como essa institucionalização


surge de modo similar aos períodos históricos mencionados na primeira parte deste
trabalho. Se durante o Brasil Império, a Era Vargas, a Quarta República e a Ditadura
Militar no país o ato censor provinha, em sua maioria, de instituições públicas, agora
não é diferente.

116 FOLHA. Caixa Econômica cria sistema de censura prévia a projetos de seus centros culturais.
Folha de São Paulo [online], 2019. Disponível em
<https://www1.f olha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/caixa-economica-cria-sistema-de-censura-previa-a-
projetos-de-seus-centros-culturais.shtml>. Acesso em 12/02/2020.
81

Quatro dos casos analisados por este trabalho envolveram diretamente a


interferência da Secom, responsável, dentre outras, por atividades como o controle,
supervisão e administração de contratos pu blicitários firmados pelo Governo Federal
(incluindo aqueles de incentivo à cultura firmados pela Caixa Cultural e Centro Cultural
Banco do Brasil).

Para além disso não se pode deixar de lado a semelhança dos tempos atuais
para com a Era Vargas. Se agora a Secom possui grande atuação no processo
censor, isto também era visto no passado, por ocasião do Departamento de Imprensa
e Publicidade – DIP.

As instituições foram criadas nos dois casos com a responsabilidade de


efetivar a comunicação oficial do Estado na esfera federal. Num primeiro momento
não surgem com a função de exercer censura, mas acabam assumindo essa função.

Há, contudo, uma distinção possível, já que hoje este movimento opressor
surge através de (e embasado por) contratos de patrocínio. A mercantilização, a
institucionalização e a vinculação extrema da produção cultural e do Poder Público
tornam-se espécies de artifícios que conferem ao Estado a possibilidade de regular a
apresentação ou a não-apresentação de projetos artísticos específicos.

Pertinentemente, voltamos a temática dos trabalhos que – coincidentemente


ou não - encontram algumas das pautas sobre as quais o presidente, inclusive, se
elegeu fazendo oposição feroz.

Retomando o olhar sobre a ascensão do pensamento conservador n o Brasil,


fica evidente o modo como as temáticas e pautas levantadas pelas montagens,
atingem diretamente o governo vigente e os valores que ele vem associando à sua
atuação. Dentre estes elenca-se: a homofobia, a transfobia, a provocação reflexiva às
religiões e a análise crítica e social da política atual.

Parte dos grupos entrevistados pela pesquisa, contudo, sinaliza certa


submissão institucional por parte de instituições como a Caixa e o Banco do Brasil:

Acho interessante ressaltar que - acho que - essa censura não veio do
Banco do Brasil. O próprio Banco do Brasil nos pautou, então isso não está
em quem pauta, na curadoria… Isso veio de outro lugar. Que talvez esteja
82

além do Banco do Brasil, essas decisões não foram dadas ali pelos
funcionários e curadores do banco.117 (Arquivo Digital)

Há, portanto, além da dimensionalidade pública das empresas


patrocinadoras, uma direta relação com a esfera federal do poder, relacionada por
consequência à Secom. Conforme lembra Ribeiro:

E o próprio pessoal da Caixa foi pego de surpresa - fomos selecionados,


contemplados, então eles também estavam, no momento, se estruturando,
tentando entender o que estava acontecendo. 118 (Relato verbal)

O discurso é endossado por Yamamoto, do grupo Clowns de Shakespeare,


de Abrazo:

[...] o Rafael Telles que é o nosso produtor foi chamado por alguém da
produção do espaço e foi informado que a apresentação estava cancelada
e que o resto da temporada estava suspensa e que eles mesmos da Caixa
Cultural não sabiam exatamente o que era [...]. 119 (Relato verbal)

Os depoimentos dos grupos também evidenciam uma transição nítida na


própria linha curatorial dos editais da Caixa Cultural e do Centro Cultural Banco do
Brasil, duas instituições que – como já dito – têm sua trajetória marcada pelo incentivo
a projetos culturais de grande qualidade artística e de relevância social e política
evidentes.

117 Entrevista concedida por. NUNES, Marco André. Biaggio. Entrevista I (03/05/2020). Entrevistador
Igor Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se
transcrita no Anexo IV, desta monograf ia.
118 Entrevista concedida por. RIBEIRO, Artur Luanda. Entrevista I (02/04/2020). Entrevistadora Tamara

Borges, 2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
119 Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine

Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
83

5.3 Censura Moral [ou] [e] Censura Política

A partir da análise prévia das temáticas retratadas pelos trabalhos,


despontam, então, noções ligadas à dois campos principais: a moral e a política.

Os próprios depoimentos reunidos pela pesquisa, revelam como, inseridas


dentro do contexto censor, as noções de censura moral e política se colocam cada
vez mais nubladas às vistas dos grupos analisados. Para Mallo:

Eu considero difícil a gente separar a [censura] moral da política. Acho que


elas caminham juntas. E que o campo da política está em tudo, em todas
essas operações de censura. Assim como o campo da moral, porque ou ela
se apoia numa suposta moral para justificar-se, ou ela. É moral - o que é um
ato político. Mas se a gente pensar que a [censura] moral, a gente poderia
dizer que vem da sociedade civil, que vem através de julgamento,
movimentos de boicote, e a [censura] política é operada por estruturas de
poder, mais institucionais, com poder jurídico, eu digo que sim, foram as
duas formas de censura - que eu separaria em institucional e não-
institucional. A que tem poder jurídico para impedir a realização e a que
trabalha mais com movimentos de difamação, fake news e demais - que
também tem sua base política. Eu acho que a gente passou pelas duas.
Fomos censuradas mesmo antes do governo atual, que institucionalizou a
censura, mas a gente vinha passando por isso antes. A peça estreou quando
o Temer já estava na presidência, já havia o impeachment da Dilma. Toda
essa estrutura conservadora já havia sido fortalecida, e mirando as eleições
que elegeram Bolsonaro, essa censura sobre as obras de arte foi muito
usada como moeda de troca. O movimento de censura começou - num lapso
de 2 semanas teve o episódio do Queermuseu, que foi uma autocensura do
Santander, cedendo às pressões políticas. Aí nosso primeiro episódio de
censura que foi em Jundiaí, no Sesc Jundiaí, onde o Sesc recebeu a
primeira liminar cancelando o espetáculo. Antes disso tinha havido
tentativas e boicotes, mas nunca um impedimento de realizar o espetáculo.
E o movimento de fake news contra o Wagner Schwartz, artista do La Bete,
em sua performance no MAM. Então são duas [as censuras], elas têm
sinergia. Elas têm sinergia com movimentos religiosos, movimentos político-
religiosos, movimentos políticos alicerçados em movimentos religiosos e
também com a criação de jurisprudência, com juízes que decidiram ignorar
a constituição e emitir essas liminares de cancelamento.120 (Relato verbal)

120Entrevista concedida por. MALLO, Natalia. Entrevista I (13/04/2020). Entrevistadora Tamara Borges,
2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
84

Esta percepção é relevante já que o período histórico recente e a conjuntura


política brasileira evidenciam cada vez mais o modo como a moral e a política
caminham lado a lado.

Se por um lado os espetáculos possuem dramaturgias que provocam e


refletem alguns aspectos de uma suposta ‘moral da maioria’, por outro os próprios
modos de produção das artes cênicas no Brasil criam entre o teatro e o Poder Público
uma relação que é, também, de poder.

Através de contratos de patrocínio e incentivo, cabe a empresa incentivadora


ou ao órgão público apoiador não apenas a curadoria de parte dos trabalhos
realizados no país, como também o controle dos espetáculos que – após aprovados
e licitados – terão a oportunidade de concluir os projetos previstos e contratados.

Sob esta perspectiva, a censura política e a censura moral, nos dias de hoje,
caminham juntas e não podem ser dissociadas. Esta visão é defendida não apenas
por Natalia Mallo (O Evangelho), mas também por Biaggio Picorelli (Res Pvblica
2023), José Neto Barbosa (Mulher Monstro) e Fernando Yamamoto (Abrazo), que
notam os dois campos – moral e política – alicerçados na ofensiva à liberdade de
expressão.

Já para Marco Antônio Nunes (Caranguejo Overdrive), a censura em seu caso


ocorreu motivada principalmente por aspectos políticos, muito também em função da
própria dramaturgia do trabalho, em referência a cena citada n o item 4.4. Ainda como
nos diz Nunes:

O que eu entendo que aconteceu foi uma [censura] política. Não teve nada
a ver com moral. O espetáculo tem até uma cena de nudez, mas é
totalmente dessexualizada, não tem nenhuma sexualidade, nada disso.
Acho que a peça foi cancelada e censurada no Banco do Brasil por uma
questão política.121 (Arquivo digital)

121 Entrevista concedida por. NUNES, Marco André. Entrevista I (03/05/2020). Entrevis tador Igor
Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital (15 min.) A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Anexo III, desta monograf ia.
85

Zé Henrique de Paula (Lembro Todo Dia de Você) identifica nitidamente a


censura moral, dissociada da política, também em função da abordagem temática do
espetáculo e de sua dramaturgia em si:

Se isso foi determinado em alguma instância dentro da Caixa, por algum tipo
de censura, eu tenho certeza que isso foi de caráter moral, acima de
qualquer coisa, e não de caráter político. Porque Lembro todo dia de você é
uma peça que trata da trajetória de um jovem soropositivo e como ele lida
com as suas questões homoafetivas e de soropositividade dentro da sua
comunidade, sua família, seus amigos, seus parceiros, enfim… Então, por
tratar desse tema, e a gente sabe que é um tema sensível, o monitoramento
deste governo que está atualmente em Brasília, então a gente acreditou que
pudesse ser essa a razão deste cancelamento.122 (Relato verbal)

Artur Luanda Ribeiro, de Gritos, entende o cancelamento do espetáculo por


parte da Caixa Cultural motivado por pautas morais, projetando ainda – no futuro –
possíveis censuras/perseguições políticas aos grupos censurados, inclusive por conta
da repercussão midiática dos casos:

Eu acredito que completamente foi moral. Política ainda não, talvez agora,
porque eu acho que estamos de uma certa forma fichados, temos uma
visibilidade dentro do governo. O nome ‘Dos à Deux’ eu acho que já tá
circulando lá dentro, não só dentro dessa nova Secretaria, mas mesmo no
Itamaraty - porque as matérias que saíram foram divulgadas no mundo todo,
- então, de certa forma deve ter chegado até no Itamaraty.123 (Relato verbal)

Pela própria história recente do país, as visões – apesar de aparentemente


dissonantes – se complementam. Como já se pôde entender, há pouco espaço para
a distinção das duas: ou ela está relacionada ao patrocínio (que tem comumente
associação ao Poder Público na esfera federal), ou está relacionada à valores morais
da chamada ‘maioria’ (que encontra base política forte no governo eleito em 2018).

122 Entrevista concedida por. PAULA, Zé Henrique De. Entrevista I (24/04/2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital (11 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
123 Entrevista concedida por. RIBEIRO, Artur Luanda. Entrevista I (02/04/2020). Entrevistadora Tamara

Borges, 2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
86

5.4 Reações e Relações

A percepção pública do crescente movimento censor por parte do Governo


Federal e seus braços de contato direto com os projetos culturais, despontou inúmeras
reações na sociedade civil, inclusive através do respaldo do Poder Público na esfera
municipal, por exemplo.

Em 2019, quando do cancelamento de Abrazo pela Caixa Cultural Recife, o


Ministério Público Federal – MPF, de Pernambuco expediu recomendação para a
Caixa retomar o espetáculo. A medida não foi cumprida.124

Posteriormente à expedição da recomendação, o MPF ajuizou ação civil


pública contra a Caixa Cultural por conta do cancelamento do espetáculo do grupo
Clowns de Shakespeare.125

Sob a gestão do então secretário de cultura, Alexandre Youssef, o município


de São Paulo promoveu ainda, em janeiro de 2020, o festival Verão Sem Censura,
que reuniu extensa programação na cidade.

Dentre as atrações programadas pelo evento estavam diversos espetáculos


censurados pelo Governo Federal, encontros formativos e shows musicais de artistas
como Arnaldo Antunes e a banda feminista russa Pussy Riot, além de cinco das sete
obras analisadas nesse trabalho,126 exceto por Mulher Monstro e O Evangelho
Segundo Jesus Rainha do Céu (que não foram censurados na esfera f ederal).

Há, na realização do Festival Verão Sem Censura, uma chancela bastante


simbólica. Até então, o Governo Federal e seus braços institucionais e estatais vinham
negando veementemente qualquer tipo de censura. A realização do festival com

124 FOLHA. Procuradores abrem procedimentos para apurar se há censura em suspensões.


Folha de São Paulo [online], 2019. Disponível em
<https://www1.f olha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/procuradores -abrem-procedimentos-para-apurar-se-
ha-censura-em-suspensoes.shtml>. Acesso em 02/02/2020.
125 FOLHA. Ministério Público Federal ajuíza ação contra Caixa Cultural por censura. Folha de

São Paulo [online], 2019. Disponível em <https://www1.f olha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/ministerio -


publico-f ederal-ajuiza-acao-contra-caixa-cultural-por-censura.shtml>. Acesso em 12/02/2020.
126 SÃO PAULO. Secretaria Municipal Especial de Comunicação. Festival Verão Sem Censura

acolhe manifestações culturais censuradas e oprimida. Capital [online], 2019. Disponível em


<http://www.capital.sp.gov.br/noticia/festival-verao-sem-censura-acolhe-manif estacoes-culturais-
censuradas-e-oprimidas-1>. Acesso em 02/02/2020.
87

recursos públicos da Prefeitura de São Paulo – uma das maiores potências


econômicas da América Latina – reconheceu, de algum modo, as ofensivas do Poder
Público Federal às artes como censura, nomeando-a assim publicamente e dando
espaço a espetáculos que foram vítimas de cancelamentos na esfera federal.

Como dito no próprio site da Prefeitura, em release de divulgação:

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Cultura,


celebra a democracia e a liberdade de expressão com o Festival Verão Sem
Censura. O evento acolhe todas as manifestações culturais oprimidas em
15 dias de evento, realizado nas cinco regiões da cidade. São mais de 45
atividades abertas e gratuitas, como peças de teatro, filmes, debates, shows,
exposições, performances e carnaval. A iniciativa apoia e fortalece a
resistência aos ataques à cultura e aos artistas no Brasil. Para o secretário
municipal da Cultura, Alexandre Youssef, o Verão Sem Censura não é um
projeto de antagonismo ao Governo Federal. ‘É uma medida de valorização
da nossa cultura’, explica. ‘Uma resistência que luta pelo bem mais valioso
da nossa cultura, a liberdade de expressão’.127

Outro exemplo de mobilização a favor da liberdade de expressão inicia-se em


19 de julho de 2019, quando, após declarações controversas do Presidente Bolsonaro
em relação a Ancine, artistas de todo o país articularam-se em um movimento coletivo
gerado pelo Whatsapp.

O grupo promoveu a publicação de uma nota de repúdio 128 coletivamente,


embasada em aspectos jurídicos que garantem ao artista brasileiro a liberdade de sua
expressão criativa.

Nomeado Movimento Artigo 5º 129 e hoje articulado estadualmente, o


coletivo/movimento é responsável ainda pela elaboração e gerenciamento de
manifestos lidos ao término de espetáculos que contam com a participação dos
integrantes do movimento:

127 Idem.
128 ARTIGO 5º. A Nota de Repúdio. Artigoquinto [online], 2019. Disponível em
<https://www.artigoquinto.art.br/o-manif esto>. Acesso em 12/02/2020.
129 ARTIGO 5º. Início. Artigoquinto [online], 2019. Disponível em <https://www.artigoquinto.art.br/>.

Acesso em 12/02/2020.
88

Eu peço licença para falar uma coisa que afeta nós, artistas, e vocês, o
público. O que acontece num espetáculo não é apenas sobre arte. É sobre
nossa liberdade. Você está aqui porque tem todo o direito de escolher. Você
pode assistir algo sobre um herói negro, sobre a vida de Jesus, sobre
mulheres liderando uma revolta, sobre homossexualidade, sobre
princesas... Estar aqui é um exercício do seu direito de ser quem você é e
pensar diferente. Muitas obras artísticas são feitas com o imposto que
pagamos. É como se cada um de nós colocasse moedas numa caixa onde
está escrito “Cultura” para que a sociedade possa ver obras de arte, como
prevê a Constituição. O governo de um país, assim como a arte, deve
representar todos os cidadãos, todas as crenças e todas as famílias. E
nenhum governo pode impedir que você se veja na arte do seu povo. Hoje
o governo está dizendo que a verba da Cultura só poderá ser utilizada para
obras que representem um tipo de família. Neste momento, órgãos públicos
estão inventando desculpas para censurar ou suspender filmes, livros e
peças. Nós, artistas, somos livres para escolher que arte queremos fazer. E
você é livre para escolher o que quer assistir. Somos o Movimento Artigo 5º.
O Estado tem que cumprir a Constituição que respeita a diversidade cultural
brasileira. Liberdade, Liberdade! Ninguém cala ninguém! 130

Entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 2020, a organização do Movimento Artigo


5º no estado de São Paulo promoveu a Semana da Arte Contra a Barbárie, que
contemplou diversas ações artísticas realizadas gratuitamente na hora do almoço, em
frente a escadaria do Teatro Municipal de São Paulo.

O evento, em defesa das políticas culturais democráticas, suscitou ainda


ações em cidades do interior do estado, como Campinas, São José do Rio Preto,
Mairiporã, São José dos Campos, Piracicaba, Ribeirão Preto, Jacareí, Matão,
Americana, Sorocaba, Capivari, Suzano, Franco da Rocha e Francisco Morato. Além
disso, a organização do Movimento nos estados de Minas Gerais, Paraná e Ceará
também iniciaram movimento para realização do evento nas suas regiões. 131

Em boa parte dos casos levantados pelo trabalho, destaca-se também o apoio
dado aos grupos e artistas por parte da sociedade civil, assim como pela própria
classe artística.

Nunes, por exemplo, nos fala da extensão da temporada carioca do trabalho


após o cancelamento em São Paulo:

130 ARTIGO 5º. Defenda a Liberdade de Expressão – Leia o manifesto para o seu público.
Artigoquinto [online], 2019. Disponível em <https://www.artigoquinto.art.br/leia-o-manif esto>. Acesso
em 12/02/2020.
131 ARTIGO 5º. Semana de Arte contra a Barbárie’ reúne artistas em defesa da produção artística

e da liberdade de expressão. Artigoquinto [online], 2019. Disponível em


<https://www.artigoquinto.art.br/semana-de-arte-contra-a-barbarie-20>. Acesso em 12/02/2020.
89

[...] tivemos apoio escrito, falado, telefonado, tudo. Como também a


Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro nos deu mais alguns dias no Teatro
Sérgio Porto, acabou que as apresentações que faríamos no CCBB viraram
a extensão da nossa temporada no Sergio Porto.132 (Arquivo Digital)

Yamamoto, de Abrazo, relata a mobilização de artistas de Recife após o


cancelamento do trabalho na Caixa Cultural.

Acho que é legal falar, a partir disso, um desdobramento que houve: foi que
existe um movimento dos artistas de Recife, chamado “Batendo Texto na
Coxia”. São pessoas com as quais a gente não tinha nenhum contato, a
gente não conhecia previamente, e que eles entraram em contato logo
depois com a gente, dizendo que iriam fazer uma manifestação no sábado
seguinte, que seria o dia da apresentação seguinte, pelo bairro do Recife
antigo com - passando em frente a - e fazendo uma ação em frente a Caixa
Cultural. [...] Não só isso foi feito, como - é vários, aí sim, parceiros nossos
produtores, grupos e outros artistas lá de Pernambuco e de Recife, nos
propuseram fazermos uma força tarefa para neste dia, fazermos uma
apresentação do ABRAZO em outro espaço que a gente precisaria
procurar. [...] Então a gente acabou fazendo uma ação que saiu da Praça
do... esqueci o nome agora.... depois eu posso verificar e acho que nos
nossos comunicados tem isso. Mas a gente fez uma grande caminhada pelo
Recife antigo até chegar no Teatro Apolo, onde a gente conseguiu a pauta
do Teatro Apolo de graça. O Diretor do Teatro – Carlos Carvalho nos
ofereceu a pauta. A gente fez uma apresentação gratuita, livre, em que
voltou gente de tão cheio. Tinham mais de 500 pessoas lá e no final a gente
passou o chapéu, só, pedindo uma colaboração. 133 (Relato verbal)

Barbosa, d’A Mulher Monstro, ainda relata suportes oferecidos ao grupo, de


modos distintos:

A sociedade civil sim, nos apoiando de diversas maneiras. Negamos ofertas


de dinheiro como apoio de pessoas físicas. Achamos prudente para o
momento com o objetivo de não transparecer qualquer infundada acusação
de querer lucrar com os ocorridos. Só pedíamos apoio nas divulgações e na

132 Entrevista concedida por. NUNES, Marco André. Entrevista I (03/05/2020). Entrevistador Igor

Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital (15 min.) A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no
Anexo III, desta monograf ia.

133
Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
90

compra de nossos ingressos. Teve o caso também do Sindicato dos


Bancários e Funcionários de Curitiba e Região que nos proporcionou
segurança privado no caso de lá.134 (Arquivo digital)

Em contraponto, instituições diversas continuam ‘remando contra a maré


conservadora’ e esforçando-se para manter programações culturais diversas, plurais
e democráticas. O sociólogo e filósofo Danilo San tos de Miranda, diretor regional do
Sesc São Paulo, instituição com compromisso nítido para com a cultura brasileira,
mostrou-se bastante elucidativo em sua análise acerca desta nova censura, em
entrevista à revista online ARTE!Brasileiros:

Miranda, aos 77 anos, afirma que o governo Jair Bolsonaro chega a ser, em
certos aspectos, pior para a cultura do que o foi o regime militar que assolou
o país por 21 anos. “Havia a questão gravíssima da censura, não tem nem
o que dizer. Mas existem muitas maneiras de fazer censura. E uma delas é
diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então
naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é
que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm
incentivos e mecanismos”135

É possível notar aí - mais uma vez distanciando obra e criadores - o suporte


direcionado aos artistas, aos coletivos, como um todo, por parte da instituição.

Isso também nos permite identificar aspectos amplos da produção artística no


país, que nem sempre garante às produções estrutura ampla para lidar (juridicamente,
fisicamente, estruturalmente) com os casos.

Yamamoto, por exemplo, enfatiza a relevância de um apoiador cultural


durante o acontecido:

134 Entrevista concedida por. BARBOSA, José Neto. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se no anexo IV, desta
monograf ia.
135 FERRAZ, Marcos Grinspum. Para Danilo Miranda, governo censura artistas ao não dar

condições para que produzam. ARTE!Brasileiros [online], 2020. Disponível em <


https://artebrasileiros.com.br/arte/entrevista/para-danilo-miranda-governo-censura-artistas-ao-nao-
dar-condicoes-para-que-
produzam/?f bclid=IwAR3sqwICllHxCzkYdNAoNf 8EEwf uar9sRbv1ncadJj0KkF_VFvSsV7Lc6_Q>
Acesso em 29/05.2020.
91

Então, assim que a gente recebeu a notícia, eu já entrei em contato com um


dos nossos advogados, perguntando qual procedimento que eu deveria
adotar, e ele falou “escute e peça a declaração por escrito de tudo que eles
falaram”. Então quando a gente teve essa reunião, eu pedi uma declaração
por escrito. Ele relutou muito em entregar, disse que “Não...Veja bem, é final
de semana. Vamos esperar. Na segunda feira, vocês recebem e tal”. Eu falei
“Não. A gente tem que dar uma justificativa pública do porquê deste
cancelamento e a gente não sai daqui do teatro enquanto não tiver isso”. 136
(Relato verbal)

Neste interim, o posicionamento público das companhias e coletivos atingidos


torna-se também uma ferramenta de combate à censura. Ribeiro, de Gritos, enfatiza
a relevância da manifestação pública dos grupos atingidos pelos recentes atentados
à liberdade de expressão artística:

Eu acho que a gente de qualquer forma teve um movimento de falar, de


expor isso. Não ficamos acuados, pelo contrário, fomos para um debate
público, aberto - não só nas nossas mídias, mas como na imprensa escrita,
na mídia audiovisual também, porque a gente deu várias entrevistas, fizeram
um retrato sobre a gente - mais uma vez no exterior. Então a gente tem
reagido de forma contundente e colocando a cara a tapa, e eu acho, de
qualquer forma, eu acho que é caso a caso. [...]foram cancelados [só] esses
casos todos que tiveram, que foram notificados pelas mídias. Outros [foram]
ofuscados porque não tinham uma visibilidade midiática e também a gente
não ficou sabendo, mas acredito que tiveram muito mais do que foram
citados. 137 (Relato verbal)

Na fala de Ribeiro pode-se voltar a identificar a importância, dentro dos


contextos citados, de estrutura institucional dos grupos em casos como esses, sendo
a Dos à Deux uma companhia binacional de ampla repercussão que possui estrutura
bastante superior a diversas companhias teatrais brasileiras.

A partir dos espetáculos analisados por este trabalho – justamente por sua
visibilidade midiática – é possível verificar o renome de seus grupos e companhias,
uma característica que, por consequência, imputa maior estrutura para

136 Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
137 Entrevista concedida por. MALLO, Natalia. Entrevista I (13/04/2020). Entrevistadora Tamara Borges,

2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
92

comunicação/divulgação dos casos de censura e maior respaldo


jurídico/administrativo.

Enfatizemos, ainda, a relevância e interferência direta da mídia e da imprensa


não apenas na divulgação dos casos de censura, mas também por sua contribuição
na promoção de registros históricos, compondo algumas das mais importantes e
(ainda) referências a censura no Brasil pós-golpe.

Como se pode aferir a partir dos levantamentos realizados, a cobertura de


imprensa dada aos casos foi fator fundamental, em algumas ocasiões, como já citado,
até mesmo para a retomada de espetáculos cancelados.

Menciona-se ainda, de modo enfático, a relevância do papel midiático na


construção da imagem deste movimento censor como um aspecto mais amplo e
fundamentalmente político, associando-o publicamente ao Governo Federal por
diversas vezes e construindo um panorama que perpassou por vários campos da
criação artística.

A partir de 2019, então, não raro encontraram-se manchetes como: Censura,


um efeito cascata que corrói a arte no Brasil de Bolsonaro (El País Brasil)138, Como o
cancelamento de peças, filmes e mostras deve opor artistas e governo na Justiça
(BBC News Brasil)139, Produções LGBT enfrentam a censura do governo de Jair
Bolsonaro (IstoÉ)140, entre outras.

Não apenas a imprensa brasileira, mas também a internacional, noticiaram os


ataques à liberdade de expressão no Brasil, incluindo a censura ao teatro e a outras
áreas da produção artística.

Em 4 de novembro de 2019, a ABC News, lançou reportagem realizada com


o Grupo Clowns de Shakespeare (de Abrazo), intitulada: Censorship or caution?

138 JUCA, Beatriz. Censura, um efeito cascata que corrói a arte no Brasil de Bolsonaro. Brasil el
pais [online], 2019. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/17/politica/1568751185_533748.html >.Acesso em
19/05/2020.
139 MORI, Letícia. Como o cancelamento de peças, filmes e mostras deve opor artistas e governo

na Justiça. Bbc [online], 2019. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50092030>.


Acesso em 19/05/2020.
140 AFP. Produções LGBT enfrentam a censura do governo de Jair Bolsonaro. Istoé [online], 2019.

Disponível em <https://istoe.com.br/producoes-lgbt-enf rentam-a-censura-do-governo-de-jair-


bolsonaro/>. Acesso em 19/05/2020.
93

Culture war burns in Brazil 141. O jornal francês La Croix, por sua vez, a partir do caso
de cancelamento de Dos à Deux, também na Caixa Cultural, no dia 27/09/2019
noticiou: Brésil: les productions LGBT en proie à la censure sous Bolsonaro 142.

A realidade dos grupos analisados por este trabalho, entretanto, não é


compartilhada por todos os grupos teatrais brasileiros, uma noção que coloca em
pauta diversas questões sobre este aspecto, especialmente diante da possibilidade
de passar a atingir grupos, coletivos e companhias de pequeno porte ou
independentes, sem estrutura de produção institucional para lidar com este tipo de
acontecimento.

5.5 As Influências dos Casos nas Trajetórias Posteriores dos Espetáculos

Também se mostra necessário compreender e analisar as trajetórias das


montagens após os casos de censura. Deste movimento surgem distintas percepções,
ora complementares, ora dissonantes. Para Biagio Picorelli, de Res Pvblica 2023:

Tivemos a inteligência de reverter a censura a nosso favor. O espetáculo é


bem maior que ela, claro. Mas, é impossível negar que a censura
impulsionou o público a prestigiar o trabalho.143 (Relato digital)

Esta percepção, contudo, não é compartilhada de modo unânime pelos


grupos. Yamamoto contrapõe:

Já tivemos insinuações de achar que isso é um episódio positivo para o


grupo, que o grupo poderia aproveitar o marketing, a divulgação que o
episódio gerou. E a única coisa que posso falar em relação a isso: é que

141 JEANTET, Diane. Censorship or caution? Culture war burns in Brazil. Abcnews [online], 2019.
Disponível em <https://abcnews.go.com/Entertainment/wireStory/censorship-caution-culture-war-
burns-brazil-66738478>. Acesso em 19/05/2020.
142 AFP. Brésil: les productions LGBT en proie à la censure sous Bolsonaro. La-croix [online],

2019. Disponível em <https://www.la-croix.com/Culture/Bresil-productions-LGBT-proie-censure-


Bolsonaro-2019-09-27-1301050353>. Acesso em 19/05/2020.
143 Entrevista concedida por. PICORELLI, Biaggio. Entrevista I (28/04/2020). Entrevistador Igor
Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se
transcrita no Anexo IV, desta monograf ia.
94

quem pensa nisso não tem ideia do que é passar o que a gente passou. Foi
um episódio muito doloroso, muito sofrido.144 (Relato verbal)

Barbosa da S.E.M Cia. De Teatro, é enfático em sua abordagem,


manifestando impacto negativo gerado pelos acontecimentos na trajetória posterior
de A Mulher Monstro:

Houve uma diminuição significativa [de apresentações após a censura] sim.


Embora uma boa repercussão do trabalho. Participamos de dois festivais
com essa temática da censura. Mas como relatei, alguns curadores,
produtores, programadores seguem temerosos. O preço de ficar conhecido
por ter um trabalho polêmico é muito alto, não vale a pena, mas já que
estamos nessa tempestade de acontecimentos: Vamos lá, ter resiliência e
continuar. Precisamos existir e recomeçar todos os dias, renovar nossa
capacidade de lida, não apenas de luta. Já não basta todas as dificuldades
de se fazer teatro sem apoios, sem valorização, agora os artistas precisam
saber se posicionar diante de tanto desgoverno. A política de cultura e a
democracia estão sendo desmontadas. Isso influencia no nosso dia a dia.
São tentativas de extermínio.145 (Relato digital)

Apesar das noções distintas acerca dos desdobramentos de cada caso, o


interesse do público pelas obras não pode ser questionado.

Inclusive, deve-se enfatizar a relevância não apenas dos espetáculos citados,


mas também de seus grupos e artistas realizadores. Trata-se de alguns dos mais
notáveis criadores brasileiros, com repercussão inclusive no exterior.

Trabalhos como O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu, que sofreu


censura já em sua estreia - início de vários outros casos - tiveram trajetórias
consagradas e fizeram história no teatro brasileiro.

Há ainda exemplos como Caranguejo Overdrive, que, tendo estendido a


temporada no Teatro Sérgio Porto, pôde confirmar o grande apreço do público pelo
trabalho, apesar do cancelamento no CCBB pouco tempo antes. Nunes nos conta em
relação ao episódio:

144 Entrevista concedida por. YAMAMOTO, Fernando. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine
Aguiar, 2020. Arquivo digital (22 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
145 Entrevista concedida por. BARBOSA, José Neto. Entrevista I (10/04/2020). Entrevistadora Elaine

Aguiar, 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se no Anexo IV, desta
monograf ia.
95

Teve um aumento de publicidade, então talvez quem nem estava


interessado na peça ou sabia que a gente estava em cartaz, correu para lá.
Nos últimos dias houve uma superação, caso de abrir sessão nova e lotar
em uma hora pela internet. Mas não que não estivesse lotando antes, lotou
toda a temporada do Sérgio Porto, do primeiro ao último dia. 146 (Relato
Digital)

Mallo, d’O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu, também aborda a


redução de apresentações do espetáculo, por outra ótica:

[...] passada essa apresentação [de Garanhuns], a gente parou o trabalho.


Parou de ir atrás de fazer. Fez algumas coisas pontuais, como uma
apresentação que foi histórica no Teatro Oficina, em São Paulo, e algumas
coisas fora do Brasil. A gente foi pra Cabo Verde, Alemanha, e pra Escócia.
Então a gente realmente diminuiu, por sentir também que a peça tinha
cumprido seu ciclo de luta, de representatividade e que a gente precisava
cuidar da gente. Então foi uma retirada também pra que outros trabalhos
também venham fazer essa função de abrir esse olhar, abrir essa reflexão
e a gente pudesse também se curar e se recuperar de todas essas situações
que não foram fáceis.147 (Relato verbal)

Estas considerações revelam noções controversas entre os entrevistados,


mas, acima de tudo, contrariam a linha curatorial do Governo Bolsonaro para as artes
cênicas. Mostram, por si mesmas e a partir de números, a potência dos trabalhos que
vêm sofrendo ‘cancelamentos’ em suas trajetórias e, acima disso, todas as suas
urgências. Isto é: são proposições cênicas que debatem alguns dos tópicos mais
custosos ao governo e, por isso, durante o seu exercício, este assume postura
censora.

Além disso, simbolicamente – através das artes cênicas – o Poder Público


acaba colocando-se em oposição a uma característica intrínseca da própria produção
artístico-cultural nacional, a contestação, que se apresenta cada vez mais engajada.

146 Entrevista concedida por. NUNES, Marco André. Entrevista I (03/05/2020). Entrevistador Igor
Augustho Mattos Kijak 2020. Arquivo digital. Entrevista concedida por e-mail, íntegra encontra-se
transcrita no Anexo IV, desta monograf ia
147 Entrevista concedida por. MALLO, Natalia. Entrevista I (13/04/2020). Entrevistadora Tamara Borges,

2020. Arquivo digital (15 min). A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Anexo III, desta
monograf ia.
96

A história do país, contudo, nos mostra que os períodos de autoritarismo


vividos pelos artistas brasileiros não foram suficientes para calá-los. Ao contrário,
foram responsáveis por tornar suas criações ainda mais engajadas e políticas (a
exemplo de grupos como o próprio Teatro Oficina e o Aren a).

A resiliência e a (re)existência do teatro brasileiro (e do teatro de grupo


brasileiro) sofre por diversos aspectos: a negligência relacionada às políticas públicas
para a cultura, a superficialização do exercício artístico e a negação de sua potência
transformadora enquanto agente social eficaz.

Entretanto, alimentando-se sempre da existência humana e de tantos dilemas


e problemáticas sociais, as artes cênicas continuarão, por muito tempo, tendo
conteúdo, base e referências para tornar suas obras ainda mais engajadas, políticas
e diretas.
97

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Evidencia-se, em primeiro lugar, um aspecto curioso em relação a processos


censores anteriores, nos quais ainda era possível identificar, de modo mais claro e
distanciado, o movimento censor político e o movimento censor moral.

A partir da análise dos espetáculos levantados e, também, através dos


depoimentos de seus criadores/gestores, torna-se evidente o modo como hoje estas
duas – a moral e a política – caminham juntas, muito também em decorrência do
processo eleitoral de 2018, norteado fundamentalmente pelos valores de uma suposta
‘maioria’.

É importante perceber como a censura sempre esteve presente na história do


país – mesmo durante regimes democráticos – tendo os seus mecanismos de
cerceamento da liberdade de expressão desenvolvidos e aprimorados ao longo do
tempo.

Com o objetivo de manter a moral da “família tradicional brasileira” e as


ideologias do governo seguras, o ato censor encontrou , durante a história do país,
primeiramente nas Igrejas, depois em órgãos especializados e institucionalizados, e,
também, na polícia, maneiras asseguradas pela constituição de exercer a censura.

Mesmo após 35 anos de abertura política e de liberdade de expressão, vemos


a ascensão da censura – dessa vez velada – mas ainda assim utilizando-se de
equipamentos públicos, a exemplo dos espaços culturais das estatais, para impedir
que o povo brasileiro tenha contato com obras que ameaçam a moral daquela que se
intitula maioria e do governo atuais. Trata-se de um retrocesso drástico.

A mercantilização da arte no país, condicionada comumente à grandes


empresas patrocinadoras, permite aos contratantes e ao próprio Poder Público –
através das estatais – o controle daquilo que pode ou não ser visto pelos espectadores
brasileiros.

Os sete espetáculos censurados com maior destaque na mídia desde 2016,


analisados por este trabalho, possuem temáticas intrinsecamente associadas entre si
e ligadas à conjuntura política brasileira de hoje. Assim, os recorrentes cancelamentos
de espetáculos, nos permitem identificar também certa relutância ao próprio exercício
98

artístico enquanto espaço de reflexão coletiva, uma tendência do teatro brasileiro


contemporâneo, bastante politizado, que passou a ser questionado após a transição
de um governo de esquerda para o exercício político da direita.

Em termos históricos, percebe-se que a trajetória do país não foi capaz de


distanciar a arte da propaganda e, assim, as artes cênicas seguem seu trajeto nas
mãos de departamentos de marketing que dizem, agora, o que pode ou não ser
produzido através de recursos públicos, com a contribuição fiscal de toda a população
brasileira.

Por parte da população, enfatize-se a polarização extrema de grupos sociais


que culmina, inclusive, como pôde-se ver, em ataques por parte da sociedade civil em
direção não apenas às obras, mas a seus criadores.

O interesse controverso e repentino de parcela da população pelo que


consideram arte subversiva e imoral não surge sozinho, mas sob forte incentivo de
certa força política gerada entre os anos de 2016 e 2018, que culminaria na eleição
de Bolsonaro, figura política que vem dedicando-se ao desmonte e sucateamento da
produção artística e cultural nacional em supérflu as abordagens.

Ainda em continuidade a postura opositora por parte da população em relação


a produção artística nacional, diferenciam-se as ‘tentativas de censura’ dos casos
efetivos de censura, compreendendo também a relevância história de ambas – por
tratarem-se, respectivamente, de uma manifestação pública e outra governamental –
operando diretamente sobre a criação teatral brasileira.

A pluralidade dos trabalhos listados ainda torna evidente um incômodo


direcionado a suas temáticas, e não a suas construções estéticas. Isso é reflexo da
própria banalização da curadoria, já que mesmo em casos de espaços culturais com
programação relevante (como a Caixa Cultural e os CCBBs), a interferência da Secom
(órgão sem qualquer aptidão técnica para a curadoria em artes cênicas) a partir de
certo momento marca diversas ofensivas à liberdade de expressão artística, premissa
básica de uma sociedade democrática, sustentada pela própria Constituição
brasileira.

Listam-se ainda os temas trazidos pelas montagens analisadas, sempre


associados a – simultaneamente – subjetividades e coletividades da humanidade. São
algumas das pautas mais debatidas no país e no mundo, que ganharam, contudo, um
99

inimigo dentro do próprio Poder Público, no Brasil mais focado em despender seu
tempo cancelando espetáculos teatrais do que desenvolvendo políticas públicas
efetivas para o campo.

Enfatize-se a possível existência de demais trabalhos censurados, com


menos repercussão midiática e, consequentemente, pouco conhecidos que, contudo,
são parte fundamental deste recente fenômeno histórico nacional.
100

REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA

AFP. Brésil: les productions LGBT en proie à la censure sous Bolsonaro. La-
croix [online], 2019. Disponível em <https://www.la-croix.com/Culture/Bresil-
productions-LGBT-proie-censure-Bolsonaro-2019-09-27-1301050353>. Acesso em
19/05/2020.

______. Produções LGBT enfrentam a censura do governo de Jair Bolsonaro.


IstoÉ [online], 2019. Disponível em <https://istoe.com.br/producoes-lgbt-enfrentam-a-
censura-do-governo-de-jair-bolsonaro/>. Acesso em 19/05/2020.

ARAGÃO, Helena e GOBBI, Nelson. Cancelamento de 'Caranguejo Overdrive' é


tema de protesto, e CCBB se manifesta sobre o caso. O Globo [online], 2019.
Disponível em <https://oglobo.globo.com/cultura/cancelamento-de-caranguejo-
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27/04/2020.

ARAÚJO, Gessé Almeida. Teatro e autoritarismo: As bases coloniais da censura


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PAULA, Zé Henrique De. Entrevista concedida aos autores em abril de 2020.

PARTIDO DOS TRABALHADORES. Da Redação da Agência PT de Notícias. Jamais


aceitaria qualquer tipo de barganha, diz Dilma. PT.org.br, 2016. Disponível em
<https://pt.org.br/jamais-aceitaria-qualquer-tipo-de-barganha-diz-dilma/> Acesso em:
27/04/2020.

PICORELLI, Biagio. Entrevista concedida aos autores em abril de 2020.

POMBO CORREIO. RES PÚBLICA 2023, do grupo A Motosserra Perfumada,


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RIBEIRO, Artur. Entrevista concedida aos autores em abril de 2020.

RIBEIRO, Belissa. A dona da censura. Isto é, São Paulo, 1984, p. 17-24.

SÃO PAULO. Secretaria Municipal Especial de Comunicação. Festival Verão Sem


Censura acolhe manifestações culturais censuradas e oprimida. Capital [online], 2019.
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TECCHIO, Manuela. Vetada pela Funarte, ‘Res Publica 2023’ estreia no CCSP.
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VECGARANHUNS. Seria Encenada no Fig: Governo do Estado volta atrás e


cancela em Garanhuns peça que retrata Jesus como um transexual. V&C
Garanhuns [online], 2018. Disponível em
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YAMAMOTO, Fernando. Entrevista concedida aos autores em abril de 2020.


109

ANEXO I – DOSSIÊ DOS ESPETÁCULOS ANALISADOS

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS RAINHA DO CÉU

Corpo Rastreado I Estreia em 2016 I 16 Anos

SINOPSE: Com texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, o espetáculo –


uma espécie de mistura entre monólogo e contação de histórias – apresenta Jesus no
tempo presente corporificado pela empática atriz e travesti Renata Carvalho. Histórias
bíblicas conhecidas, como “O Bom Samaritano”, “A semente de mostarda” e “A Mulher
Adúltera”, são recontadas em uma perspectiva contemporânea, propondo uma reflexão
sobre assuntos extremamente relevantes no contexto de hoje: a opressão e a intolerância
sofridas por pessoas trans e grupos sociais minorizados. Como não poderia deixar de ser,
visto que subverte questões religiosas, a peça vem causando grande frisson e alguma
controvérsia por onde passa, ainda que a ideia seja, justamente, transmitir uma
mensagem de amor e aceitação, buscando a transformação do olhar do público para
diferentes identidades.
110

FICHA TÉCNICA: Direção, tradução e adaptação: Natalia Mallo / Texto: Jo Clifford /


Atuação: Renata Carvalho / Assistência de direção: Gabi Gonçalves / Trilha sonora:
Natalia Mallo / Iluminação: Juliana Augusta e Anna Turra / Cenografia: Jimmy Wong /
Figurino: Natalia Mallo e Gabi Gonçalves / Treinamento corporal: Fabricio Licursi e Gisele
Calazans / Treinamento vocal: Patricia Antoniazi / Produção: Núcleo Corpo Rastreado -
Thais Venitt / Apoio: British Council / Fotografia acima de Lenise Pinheiro.
111

ABRAZO

Clowns de Shakespeare I Estreia em 2014 I Livre

SINOPSE: Segunda parte da trilogia que compõe o projeto de pesquisa latino-americano,


Abrazo é uma obra voltada para o público infanto-juvenil, que pode ser assistido por
crianças e adultos de todas as idades. Num lugar em que não é permitido abraçar,
personagens atravessam um quadrado contando histórias de encontros, despedidas,
opressão, exílio e, porque não, de afeto e liberdade. O espetáculo feito sem a palavra oral,
conta com uma trilha sonora especialmente composta para a cena e com o vídeo de
animação para narrar essa aventura inspirada em “O Livro dos Abraços”, de Eduardo
Galeano.

FICHA TÉCNICA: Direção: Marco França / Elenco: Camille Carvalho, Dudu Galvão E
Paula Queiroz / Argumento e Roteiro Dramatúrgico: César Ferrario / Dramaturgia: O
Grupo / Música Original, Arranjos E Direção Musical: Marco França / Músicos Convidados:
Simone Mazzer, Roberto Taufic, Júnior Primata, Sami Tarik, Zé Hilton E Vitor Queiroz /
Desenho De Som (Cena Guerra Dos Insetos): Fernando Suassuna / Preparação Corporal:
Anádria Rassyne / Figurino: João Marcelino / Adereços: João Marcelino, Nando Costa e
Janielson Silva / Iluminação: Ronaldo Costa / Cenografia: O Grupo / Cenotecnica: Nando
112

Galdino e Janielson Silva / Ilustrações: José Veríssimo / Animações: Paula Vanina /


Produção: Rafael Telles / Fotografia acima de Pablo Pinheiro.
113

RES PVBLICA 2023

A Motosserra Perfumada I Estreia em 2019 I 16 Anos

SINOPSE: Réveillon de 2023. O movimento Anaconda Brazil leva às ruas grandes


massas patrióticas. O Brasil vive um período de grande prosperidade econômica, mas não
para Tom, Billy, Suzanne, Vincent, John e Vallentina, que vivem amontoados numa
pequena república no centro de São Paulo. No limite entre ficção e realidade, eles contam
histórias e se revezam na tarefa de trazer da rua objetos com os quais vão construindo
uma trincheira, atrás da qual estarão sempre entre combater ou esperar misticamente por
dias melhores.

FICHA TÉCNICA: Texto E Direção Artística: Biagio Pecorelli / Elenco: Biagio Pecorelli,
Bruno Caetano, Camila Rios, Edson Van Gogh, Jonnata Doll E Leonarda Glück / Diretora
De Produção: Danielle Cabral / Desenho De Luz: Cesar Pivetti / Assistente De Iluminação
E Operador De Luz: Rodrigo Pivetti / Preparação Viewpoints: Guilherme Yazbek /
Assistente De Direção: Dugg Monteiro / Cenário E Figurinos: Rafael Bicudo E Coko /
Design De Som, Sonoplastia,Trilha Sonora: Dugg Monteiro / Realização: A Motosserra
Perfumada / Produção Geral: Dcarte E Contorno / Fotografia acima de Lenise Pinheiro.
114

Caranguejo Overdrive

Aquela Companhia de Teatro I Estreia em 2015 I 16 Anos

SINOPSE: Acompanha a volta de Cosme, catador de caranguejos, ao Rio de Janeiro,


cinco anos após ter sido convocado para lutar na Guerra do Paraguai. Um colapso nervoso
decorrente dos horrores testemunhados e também perpetrados no conflito o traz à cidade
natal que, por estar em um processo acelerado de revitalização urbana, ele não
reconhece. Ambientada no ano de 1870, a peça evoca o momento presente ao aludir às
atuais obras urbanísticas ocorridas no Rio de Janeiro e às inúmeras remoções que dela
vêm decorrendo, um processo semelhante ao verificado no Mangue - a região da cidade
então chamada Rocio Pequeno, hoje Praça Onze -, local onde o catador de caranguejos
vivia antes de ir para o campo de batalha. O espetáculo ganhou os prêmios Shell (Direção,
Texto e Atriz), Cesgranrio (Direção e Texto) e APTR (Autor, Direção e Atriz) e Questão de
Crítica (Direção, Atriz e Direção Musical).

FICHA TÉCNICA: Direção: Marco André Nunes / Texto: Pedro Kosovski / Elenco: Carol
Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni, Matheus Macena, Fellipe Marques / Músicos em
cena: Maurício Chiari, Pedro Leal, Felipe Storino e Pedro Nego / Direção Musical: Felipe
115

Storino / Iluminação: Renato Machado / Instalação Cênica: Marco André Nunes /


Operação de luz: Tamara Torres / Produção: Thaís Venitt | Núcleo Corpo Rastreado / Foto
acima de Lenise Pinheiro
116

Lembro Todo Dia de Você

Núcleo Experimental I Estreia em 2017 I 16 Anos

SINOPSE: Thiago é um jovem que se descobre soropositivo aos 20 anos e, para aprender
a conviver com o HIV, precisa antes passar por um acerto de contas consigo mesmo.
“Lembro todo dia de você” é um musical inédito que faz um retrato realista e
contemporâneo do HIV, colocando em questão muito do que se conhece sobre o assunto.

FICHA TÉCNICA: Texto: Fernanda Maia / Colaboração: Hebert Bianchi E Zé Henrique De


Paula / Música: Rafa Miranda / Direção: Zé Henrique De Paula / Direção Musical:
Fernanda Maia / Assistência De Direção E Preparação De Atores: Inês Aranha / Elenco:
Anna Toledo, Davi Tápias, Fabio Augusto Barreto, Fabio Redkowicz, Luiza Porto, Pier
Marchi, Zé Henrique De Paula / Regência: Rafa Miranda / Violino: Benjamin Bernardes /
Viola: Branco Bernardes / Violoncelo: Felipe Parisi / Piano: Fernanda Maia / Baixo: Clara
Bastos, Pedro Macedo / Bateria: Abner Paul / Preparação Vocal: Fernanda Maia e Rafa
Miranda / Figurinos: Zé Henrique De Paula / Assistência De Figurinos: Danilo Rosa /
Iluminação: Fran Barros / Cenografia: Gabriel Malo / Projeto Sonoro: João Baracho /
Operação De Luz: Tulio Pezzoni / Operação De Som: Ki Somerlate / Produção: Cláudia
117

Miranda, Laura Sciulo, Louise Bonassi e Mariana Mello / Assistência De Produção: Julia
Maia / Realização: Núcleo Experimental / Foto acima de Giovana Cirne.
118

Gritos

Dos à Deux I Estreia em 2016 I 14 Anos

SINOPSE:

Grito 1 « Louise » Louise nasceu num corpo de homem que ela não quer, deseja ser
invisível aos olhares dos outros, convivendo com um turbilhão de preconceitos. Cuidando
de sua mãe, uma velha senhora doente, também invisível perante a sociedade, Louise
busca o amor e a aceitação.

Grito 2 « O Homem » Um poema metafórico e metafísico sobre o homem que perdeu a


cabeça. Um muro os divide. Um poema gestual entre o sonho, o onírico e o absurdo.

Grito 3 « Amor em tempos de guerra » Numa atmosfera surrealista, uma mulher vestida
de negro surge revelando sua beleza e seus gestos lentos. Em meio à guerra, uma dança
de amor misteriosa começa revelando a trajetória e a luta de uma mulher do Extremo
Oriente na sua existência.

FICHA TÉCNICA: Concepção, Dramaturgia, Cenografia E Direção: André Curti E Artur


Luanda Ribeiro / Interpretação: Artur Luanda Ribeiro E André Curti / Pesquisa E
Realização De Objetos/Bonecos: Natacha Belova E Bruno Dante / Assistente De
Realização De Objetos/Bonecos: Cleyton Diirr / Criação Musical Grito 1: Fernando Mota /
Criação Musical Grito 2 e 3 e Colaboração Grito 1: Beto Lemos E Marcello H /
119

Cenotécnico: Jessé Natan / Iluminação: Artur Luanda Ribeiro e Hugo Mercier / Figurinos:
Thanara Schonardie / Contra Mestra: Maria Madalena Oliveira / Comunicação Visual:
Bruno Dante / Direção De Produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela / Produção
Executiva: Árthemis / Realização De Próteses Ortodônticas: Dra. Rita Guimarães De
Freitas / Foto acima de Renato Mangolin.
120

A Mulher Monstro

S.E.M Cia. De Teatro I Estreia em 2016 I 16 Anos

SINOPSE: Em “A Mulher Monstro”, uma burguesa é perseguida pela própria visão


intolerante da sociedade, não sabendo lidar com a solidão e as relações num tempo de
ódio visto sem vergonha. O espetáculo aborda a atualidade político-social do Brasil,
baseado nas opiniões da internet, ruas, na postura de figuras públicas e no conto “Creme
de Alface” de Caio Fernando Abreu.

FICHA TÉCNICA: Direção, dramaturgia, atuação, cenografia e figurino: José Neto


Barbosa / Iluminação, sonoplastia e coordenação de palco: Sérgio Gurgel Filho / Direção
de fotografia de cena, fotos e sonoplastia: Mylena Sousa / Concepção de maquiagem e
de sonoplastia: Diógenes Luiz / Produção executiva e Secretaria Teatral: Alyson Oliveira
/ Assistência de coordenação de palco e produção: Marcos Pergentino / Produção
artística, de camarim e de visagismo: Augusto Freitas / Preparação de atuação: Jan
Macedo / Costura de figurino: Iara Bezerra / Concepção de Figurino: João Marcelino / Foto
acima de Brunno Martins.
121

ANEXO II – QUESTIONÁRIO ENVIADO AOS GRUPOS

A fim de constituir a análise dos trabalhos cênicos estudados por este trabalho,
um mesmo questionário fora elaborado e submetido aos representantes de todos os
grupos. Lista-se abaixo as questões enviadas aos entrevistados, estando as respostas
recebidas disponíveis no Anexo III (transcrições de respostas em áudio) e no Anexo
IV (íntegras de respostas escritas via e-mail).

1. Pode detalhar para a gente quando, como e onde ocorreu o caso de censura
que envolve o seu trabalho? Se foi mais de um, seria muito importante entender
quantas vezes ocorreu e quais foram os contextos.
2. Qual(is) a(s) justificativa(s) oficial(is) dada(s) pela(s) instituição(ões) no(s)
caso(s) citado(s)?
3. Pensando sobre uma perspectiva que aborda dois tipos de censura, a moral e
a política, o grupo acredita que uma das duas tenha sido o motivo fundamental
de seu cancelamento? Ou compreende que sejam as duas?
4. Para a gente, é muito importante entender como as equipes e produções têm
reagido a este movimento. Neste sentido, qual a posição e medidas tomadas
pelo grupo em reação ao(s) caso(s) citado(s)?
5. Por parte da sociedade civil, organizações não governamentais, instituições
públicas ou privadas, houve algu m tipo de suporte fornecido ao grupo após o
cancelamento?
6. Como foi a trajetória do trabalho APÓS o cancelamento? Houve aumento ou
redução no número de apresentações?
122

ANEXO III – TRANSCRIÇÕES DE RESPOSTAS RECEBIDAS POR ÁUDIO

Este anexo reúne as transcrições das respostas recebidas via áudio, do questionário
enviado aos grupos.

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS RAINHA DO CÉU

Corpo Rastreado I Entrevistada: Natalia Mallo (tradutora, idealizadora e diretora)

Entrevistadora: Tamara Batista Borges I *Transcrição de arquivo digital (áudio).

“Então, primeira pergunta: sobre o tipo de censura. Eu considero difícil a gente


separar a [censura] moral da política. Acho que elas caminham juntas. E que o campo
da política está em tudo, em todas essas operações de censura. Assim como o campo
da moral, porque ou ela se apoia numa suposta moral para justificar-se, ou ela É moral
- o que é um ato político. Mas se a gente pensar que a [censura] moral, a gente poderia
dizer que vem da sociedade civil, que vem através de julgamento, movimentos de
boicote, e a [censura] política é operada por estruturas de poder, mais institucionais,
com poder jurídico, eu digo que sim, foram as duas formas de censura - que eu
separaria em institucional e não-institucional. A que tem poder jurídico para impedir a
realização e a que trabalha mais com movimentos de difamação, fake news e demais
- que também tem sua base política. Eu acho que a gente passou pelas duas. Fomos
censuradas mesmo antes do governo atual, que institucionalizou a censura, mas a
gente vinha passando por isso antes. A peça estreou quando o Temer já estava na
presidência, já havia o impeachment da Dilma. Toda essa estrutura conservadora já
havia sido fortalecida, e mirando as eleições que elegeram Bolsonaro, essa censura
sobre as obras de arte foi muito usada como moeda de troca. O movimento de censura
começou - num lapso de 2 semanas teve o episódio do Queermuseu, que foi uma
autocensura do Santander, cedendo às pressões políticas. Aí nosso primeiro episódio
de censura que foi em Jundiaí, no Sesc Jundiaí, onde o Sesc recebeu a primeira
liminar cancelando o espetáculo. Antes disso tinha havido tentativas e boicotes, mas
nunca um impedimento de realizar o espetáculo. E o movimento de fake news contra
o Wagner Schwartz, artista do La Bete, em sua performance no MAM. Então são duas
123

[as censuras], elas têm sinergia. Elas têm sinergia com movimentos religiosos,
movimentos político-religiosos, movimentos políticos alicerçados em movimentos
religiosos e também com a criação de jurisprudência, com juízes que decidiram ignorar
a constituição e emitir essas liminares de cancelamento.

O argumento jurídico, das censuras judiciais…. Que foram várias, mas nem
todas bem-sucedidas - por sorte - houve jurisprudências em nosso favor, foram várias
e históricas. Mas o argumento usado foi vilipêndio, que estaríamos vilipendiando um
símbolo religioso. E uma coisa curiosa: que estaríamos ferindo o direito de outros
exercerem sua religião. E isso foi um argumento muito falho, muito discutido. Tivemos
uma assessoria legal, jurídica que nos explicou o quanto isso era equivocado. Primeiro
porque não há vilipêndio de nenhum símbolo. A peça é cristã. É em favor do
pensamento cristão em sua essência. Segundo que a peça é fechada, só pra quem
quer assistir, em locais fechados, com classificação etária, ninguém é obrigado a ver
se não quiser ver. Então esse argumento não se aplica. Agora, os argumentos pra
censura moral, pro boicote nas redes, fake news, eram, primeiro, baseados em
transfobia. Jesus seria a imagem e semelhança de qu alquer pessoa menos de uma
mulher trans, de uma travesti. Então, primeira base: transfobia. A segunda é o que a
peça denuncia como um mal entendido diante do que seria uma mensagem cristã de
aceitação, de dar as mãos aos vulneráveis, etc. Então são argumentos que não se
sustentam nem sequer pelo pensamento religioso, o que foi confirmado pelo aval que
a gente teve de várias congregações, principalmente a Anglicana.

Desde o início, desde a nossa estreia em Londrina, onde um vereador fez uma
campanha contra a peça, chamou um ato de repúdio, comunicou as autoridades
religiosas para que nos repudiassem também, etc., tivemos que ter uma salvaguarda,
uma equipe legal nos assessorando. Do ponto de vista legal, sempre respondemos
através de advogados, agora do ponto de vista da comunicação foi muito importante
o quanto a gente bolou um alinhamento de comunicação em que, em todos os nossos
canais, sempre abrimos o diálogo. Apagamos mensagens ofensivas, as que não eram
ofensivas a gente respondeu. Convidamos ao diálogo - em todas as instâncias -
quando alguém nos atacou (políticos e governantes), chamamos para uma conversa
124

e nenhum aceitou. Nos colocamos de uma maneira responsiva e bastante tranquila,


calma, convidando ao diálogo. E a gente ficou o tempo inteiro pensando que não
bastava a peça, a gente tinha que viver pelos valores que a peça prega em sua
dramaturgia. Então a comunicação foi essencial pra que a gente pudesse servir como
um veículo de denúncia dessas estruturas. Pra gente poder denunciar corretamente,
nos canais corretos, esse tipo de censura, a gente tinha que manter uma comunicação
adequada. Isso foi - eu acho - uma coisa chave.

Ai, completando a resposta anterior, a gente também teve que responder do


ponto de vista de preservar a nossa segurança. Então em algumas ocasiões teve
revista do público, para que o público não entrasse armado. A gente teve uma equipe
atenta durante o espetáculo pra que a atriz não sofresse nenhum ataque - e isso se
mostrou necessário. E a gente teve também, o que a gente chama de endereçamento
de riscos: em algumas ocasiões, principalmente com apoiadores institucionais e
parceiros internacionais, a gente precisou criar uma espécie de planilha, onde a gente
estruturou quais eram os riscos e como a gente ia mitigar. Teve toda uma questão de
produção envolvida neste preparo.

A gente teve muito apoio da sociedade civil, muito apoio da comunidade LGBT,
das organizações que protegem direitos LGBTS, de pessoas trans, de direitos
humanos, juristas, instituições da cultura que nos apoiaram, também, fizeram cartas
de apoio. Algumas instituições religiosas como a Igreja Batista do Caminho (do Rio) e
a Igreja Anglicana do Brasil. A comunidade acadêmica se manifestou também,
inclusive o trabalho foi e é objeto de muitos trabalhos acadêmicos em várias
linguagens e disciplinas: seja teologia, estudos de gênero, filosofia, saúde pública,
política pública… É realmente um trabalho artístico que entrou na discussão e foi
inclusive dispositivo para discussões em várias instâncias. Que vão dos direitos da
pessoa trans à representatividade trans nas artes – que é uma coisa importantíssima
e eu quero frisar como uma coisa que movimentou demais por causa da peça. Porque
a Renata Carvalho (atriz) pegou essa bandeira e pôs o corpo ali, nessa luta por
representatividade trans nas artes e a peça virou uma coisa emblemática nesse
sentido. E também algumas organizações internacionais. A peça é britânica, então a
125

gente teve um respaldo do British Council, da Associação de Escritores e Dramaturgos


do Reino Unido... Tivemos muito apoio. Apoio do público, apoio de quem viu , apoio
de quem não viu, foi um movimento bem bonito.

Bom, depois da primeira censura judicial, antes haviam tido tentativas, mas foi
no Sesc Jundiaí em setembro de 2017 – se não me engano, depois eu posso conferir
isso – teve a primeira censura judicial. Depois disso começaram a fazer a nossa vida
impossível. Em cada lugar onde se apresentava a peça era movida uma ação judicial.
Isso aconteceu em Porto Alegre (no Porto Alegre em Cena, o festival foi notificado).
Mas teve um parecer positivo pra gente, pela juíza que decidiu pela continuidade da
peça e fez uma sentença histórica, onde ela nomeou a transfobia e foi muito
importante. Teve em Belo Horizonte na Funarte, e teve em Salvador uma ação que
realmente cancelou o espetáculo onde ele aconteceria, na Fundação Gregório de
Matos, mas como a liminar proibia o acontecimento ali a gente foi pra outro espaço,
pro Goethe Institut, lá em Salvador, que nos acolheu. Foram algumas ações judiciais
e claro que isso, não só criou um problema pra realização da peça, como criou um
desgaste emocional, afetivo, de saúde... Foi muito difícil. E o cúmulo, o ápice dessa
situação, se deu em Garanhuns, no Festival de Garanhuns, onde a gente teve uma
saga de tentativas de censura, apresentação independente também censurada, um
festival inteiro sendo ameaçado de perder financiamento público se programasse a
peça e uma situação que evoluiu pra violência dentro do espaço. Jogaram uma
bomba, tinha polícia militar, revista do público, foi uma situação limite de muita
violência, muitos níveis e, passada essa apresentação, a gente parou o trabalho.
Parou de ir atrás de fazer. Fez algumas coisas pontuais, como uma apresentação que
foi histórica no Theatro Oficina, em São Paulo, e algumas coisas fora do Brasil. A
gente foi pra Cabo Verde, Alemanha, e pra Escócia. Então a gente realmente diminuiu,
por sentir também que a peça tinha cumprido seu ciclo de luta, de representatividade
e que a gente precisava cuidar da gente. Então foi uma retirada também pra que
outros trabalhos também venham fazer essa função de abrir esse olhar, abrir essa
reflexão e a gente pudesse também se curar e se recuperar de todas essas situações
que não foram fáceis”.
126

QUESTÃO EXTRA: Discutindo sobre os diversos casos e contextos,


percebemos episódios nos quais as apresentações foram canceladas, e você
cita alguns casos em que houve tentativas de impedir a obra de ser apresentada.
Você enxerga a essas tentativas como atos que são, também, censores? Ou
não? Houve mais ocasiões de cancelamento ‘oficial’?

“Então respondendo a sua pergunta: cancelamento mesmo só teve um, o de


Jundiaí. Nos outros casos que foram vários, como eu já te falei, teve uma derrubada
da liminar, favorável à gente. Em todos os outros casos aconteceu isso e o espetáculo
pode acontecer, ou no caso de Salvador, a liminar era contra um espaço, uma
instituição específica, e a gente foi pra outro espaço. A gente conseguiu driblar [a
censura] mudando de local. Então cancelamento mesmo só em Jundiaí, no Sesc
Jundiaí. Agora, eu considero, quando a ação está instrumentalizada por uma via
jurídica, considero censura mesmo que não se concretize [o cancelamento]. As outras
coisas - manifestações públicas e difamações ou coisas da sociedade civil - eu não
considero, não enquadraria como censura. As pessoas podem se manifestar, podem
execrar, podem odiar, mas não podem impedir. Claro que em uma dimensão simbólica
a gente se sente censurada. Mas eu acho que quem faz arte dá essa cara a tapa e
pode enfrentar essas estas oposições, até porque se a gente faz contracultura, que é
o que a gente fez com essa peça, a gente tem que entender que nesse processo a
gente não vai ser totalmente assimilada pela opinião pública ou mesmo pelas
instituições. Mas como não é uma coisa instrumentalizada - não tem uma estrutura de
poder que nos impede de fazer o trabalho - eu diria que a censura talvez tenha outro
nome, não sei qual é. Agora é fato que essas ações têm um poder de censura indireto,
porque elas criam um ambiente propício a formas mais veladas, como a autocensura,
como quando um curador recebe essa obra e fala “Nossa, seria incrível fazer, mas vai
dar muito problema para gente, então não vamos fazer.” Essas coisas geram
autocensura, geram medo e receio em programadores, pessoas que poderiam
chamar um trabalho para acontecer, então tem uma ação sub-reptícia velada. Mas
vamos considerar censura aquilo que nos impede, através de uma estrutura de poder,
de trabalhar. Até porque, como eu disse, se a gente faz contracultura a gente não
pode esperar ser assimilada. Então se a gente quiser fazer o trabalho a gente faz. Eu
faço na garagem de casa, na rua, onde for necessário fazer, como já fiz. Então não
127

vão me impedir, a não ser que venham com um instrumento legal, alguma força
coercitiva que me impeça de fazer. São coisas contraditórias, mas eu acho que deu
pra dar um pouco a minha visão do tema”.
128

ABRAZO

Clowns de Shakespeare I Entrevistado: Fernando Yamamoto (diretor do grupo)

Entrevistadora: Elaine Pereira Aguiar I *Transcrição de arquivo digital (áudio).

“Em relação ao episódio em si, no dia 07 de setembro - simbolicamente no dia


07 de setembro do ano passado [2019] - a gente começou a temporada, na Caixa
Cultural de Recife, do Espetáculo Abrazo. Foi uma temporada que foi selecionada por
edital público, ainda na gestão anterior, no ano anterior, e iria cumprir 8
apresentações. Seriam 2 sábados e domingos, com 2 sessões por dia - 2 finais de
semana com 2 sessões por dia. E aí a gente fez a primeira sessão, transcorreu
normalmente, acabou com meia casa mais ou menos - é um teatro relativamente
pequeno. Terminou essa primeira sessão, a gente fez um bate-papo, ficaram bem
poucas pessoas, ficaram, sei lá, umas 7 a 8 pessoas. E a gente falou sobre o
espetáculo, falou sobre uma série de coisas e tal. Mas foi um bate papo também muito
convencional, como normalmente a gente faz, com algumas falas com o teor mais
político, porque isso faz parte da natureza do grupo e tal. E terminou. Os atores foram
descansar, porque a gente teria a segunda sessão uma hora e pouco depois disso. E
aí, faltando 5 minutos para abrir a porta do teatro, o público já estava do lado de fora,
os atores já estavam prontos, no palco, prontos para começar. O Rafael Telles - que
é o nosso produtor - foi chamado por alguém da produção do espaço e foi informado
que a apresentação estava cancelada e que o resto da temporada estava suspensa.
E que eles mesmos, da Caixa Cultural, não sabiam exatamente o que era e que estaria
vindo uma pessoa para conversar com a gente sobre isso. Enfim, a gente ficou bem
perplexo e tal, e aí esperamos a chegada desse cidadão, que era um Gerente Jurídico
da Caixa, não mais da Caixa Cultural no caso, da Caixa geral lá de Recife. Segundo
ele, havia uma suspeita de que a gente teria infringido uma cláusula do contrato,
porque ele recebeu duas gravações do bate-papo – do bate papo isso, não foi do
espetáculo - ele recebeu duas gravações do bate-papo. E que, por isso,
preventivamente, ele estava cancelando as apresentações - as apresentações do fim
de semana todo no caso, ele já ampliou esse cancelamento para todo o primeiro fim
de semana - e que isso iria para Brasília ser analisado pela SECOM. E que na
segunda feira a gente teria uma notícia sobre o resto da temporada, se seria mantida
129

ou não. Eu pedi uma declaração, na verdade, imediatamente, logo após eu receber a


notícia de que não teria mais...

Então, a gente na verdade, acho que teve a sorte, ou o privilégio - sei lá como
isso pode ser chamado - de termos um escritório de advocacia que é parceiro do
grupo, que é apoiador do grupo permanente. Então, assim que a gente recebeu a
notícia, eu já entrei em contato com um dos nossos advogados, perguntando qual
procedimento que eu deveria adotar, e ele falou “escute e peça a declaração por
escrito de tudo que eles falaram”. Então quando a gente teve essa reunião, eu pedi
uma declaração por escrito. Ele relutou muito em entregar, disse que “Não...Veja bem,
é final de semana. Vamos esperar. Na segunda feira, vocês recebem e tal”. Eu falei
“Não. A gente tem que dar uma justificativa pública do por que deste cancelamento e
a gente não sai daqui do teatro enquanto não tiver isso”. A gente já teve que esperar,
até ele chegar no teatro, mais de duas horas. A gente teve mais, tipo, uma hora, quase
duas, de espera pra receber um e-mail muito lacônico da gerente do espaço - da Caixa
Cultural - dizendo que o fim de semana estava cancelado e a temporada estava em
suspenso. Só isso. Aí na segunda feira a gente recebe um outro e-mail dela,
igualmente lacônico, só informando que o resto da temporada estava cancelado. E aí
a gente pediu tudo - obviamente seguindo os encaminhamentos dos advogados -
imediatamente a gente pediu detalhamento do porquê, justificativa e tal. Ela mandou
um outro e-mail ainda, dizendo que a gente tinha descumprindo uma cláusula, sem
dizer qual que era. Pedimos, mais uma vez. Indicaram qual era a cláusula, mas não
disseram no quê que a gente infringiu. Enfim, resumindo, eles não tinham nada
concreto, e ficaram segurando isso, e diante da impossibilidade de defesa que a gente
teve - porque a gente sequer sabia do que estava sendo acusado - aí a gente partiu
para outros procedimentos legais. Entramos com um processo, um pedido de liminar
que foi indeferido. E, paralelamente a isso, uma ação pública que o Ministério Público
abriu contra a Caixa.

Bom estava revendo aqui tuas perguntas, acho que eu falei dá 1, falei da 2, e
falei da 4. Eu vou pular para 5, tá? E aí depois eu falo da 3 e a 6 que ficaram faltando.
130

Então, voltamos para Natal. Antes de voltarmos para Natal, ainda no domingo, a gente
deixou tudo montado lá em Recife, porque tinha a possibilidade, inicialmente, da gente
fazer o segundo final de semana lá e na segunda feira a gente ficou sabendo que não.
A partir do momento que a gente publicou o primeiro comunicado oficial, que foi um
comunicado ainda muito cuidadoso - mais uma vez seguindo todas as instruções dos
nossos advogados, porque era muito evidente pra gente que eles não tinham nada de
concreto, então que eles estavam procurando algum argumento. Então a gente, até
que a coisa não tenha se concretizado, a gente em nenhum momento chamou isso
de censura - por mais que obviamente isso estava muito evidente e todo mundo estava
falando nisso - a gente não usou esses termos, a gente não deu declaração. Quando
a imprensa veio procurar a gente, a gente explicou que a gente, por orientação dos
advogados, ainda não estava dando nenhuma declaração, mas que falava por nós
eram os comunicados oficiais do grupo, até segunda ordem. Então a gente foi super
cuidadoso em relação a isso.

Mas a gente teve por parte da sociedade civil uma adesão enorme, assim, e
surpreendentemente, nos nossos canais oficiais, pelo menos, nenhum
posicionamento contra a gente, não teve nenhum... A gente até sabe que nos sites,
nessas coisas, naqueles comentários, aí tem toda aquela indústria do ódio, destilando
todo veneno contra a gente. Mas diretamente nas nossas redes sociais e nos nossos
canais de comunicação, a gente só teve o apoio maciço do Brasil inteiro, da América
Latina e dos outros países do mundo e tal. Foi uma coisa muito forte e muito bonita,
porque isso nos deu muita força, porque foi um episódio muito violento pra gente, que
até hoje reverbera ainda e até hoje é difícil. Inclusive porque o próprio processo
jurídico tá em aberto ainda, enfim, enquanto não se resolver isso, vai continuar sendo
difícil.

Além da sociedade civil em geral, população em geral, a gente teve por parte
de muitas instâncias governamentais - governamentais não, públicas - de deputados
de Pernambuco, do Rio Grande Norte, de Minas Gerais, enfim, de diversos lugares,
manifestando apoio e oferecendo suporte, suporte jurídico e etc. Existe um coletivo
de Deputadas Estaduais em Pernambuco que se chama JUNTAS. É uma gestão
131

compartilhada do PSOL. Elas não só manifestaram apoio, como ofereceram suporte,


como elas entraram com uma denúncia junto ao Ministério Público, e aí junto com
elas, eu fiz uma reunião por Skype com uma procuradora do Ministério Público. E,
enfim, o Ministério Público analisou tudo, o Ministério Público exigiu um
posicionamento da CAIXA, foi aí onde a gente teve o primeiro acesso a justificativa da
Caixa e onde a gente teve certeza que, na verdade, eles não tinham nada palpável
contra a gente. E aí, depois dessa averiguação aí dessa investigação do Ministério
Público, eles entraram com uma ação pública também, então esses dois processos
estão correndo na justiça. Enfim, acho que disso a gente não pode se queixar: do
apoio de todos os lados que a gente teve, do poder executivo aqui do RN, do governo
do RN, enfim... A gente teve muito apoio de muitos lados, o SATED - PE (Sindicato
dos Artistas de Pernambuco), porque a gente é filiado ao SATED de Pernambuco. A
gente teve um grande apoio e que foi muito importante.

Acho que é legal falar, a partir disso, um desdobramento que houve... Existe
um movimento dos artistas de Recife, chamado “Batendo Texto na Coxia”. São
pessoas com as quais a gente não tinha nenhum contato, a gente não conhecia
previamente, e eles entraram em contato logo depois com a gente, dizendo que iriam
fazer uma manifestação no sábado seguinte - que seria o dia da apresentação
seguinte - pelo bairro do Recife antigo passando em frente a, e fazendo uma ação em
frente a Caixa Cultural. A gente ficou super tocado, super comovido com isso, né?
Porque não eram parceiros nossos, não eram pessoas que estavam fazendo isso pela
relação de proximidade com a gente, eram artistas com os quais a gente não tinha
contato. Não só isso foi feito, como, aí sim, parceiros nossos produtores, grupos e
outros artistas lá de Pernambuco e de Recife, nos propuseram fazermos uma força
tarefa para neste dia, fazermos uma apresentação do Abrazo em outro espaço que a
gente precisaria procurar. E prontamente, não só a gente abraçou essa ideia, como a
gente propôs para o pessoal que estava organizando o movimento e que eles se
entusiasmaram muito. Então a gente acabou fazendo uma ação que saiu da Praça
do... esqueci o nome agora.... depois eu posso verificar e acho que nos nossos
comunicados tem isso. Mas a gente fez uma grande caminhada pelo Recife Antigo
até chegar no Teatro Apolo, onde a gente conseguiu a pauta do Teatro Apolo de graça.
O diretor do Teatro Apolo, Carlos Carvalho, nos ofereceu a pauta. A gente fez uma
132

apresentação gratuita, livre, em que voltou gente de tão cheio. Tinham mais de 500
pessoas lá e no final a gente passou o chapéu, só pedindo uma colaboração.

Então acabou sendo um dia muito especial, um dia que a gente conseguiu expurgar
ao menos uma parte de toda a dor e toda a dureza que este processo estava sendo e
está sendo, né? Acho que é importante falar mais uma coisa, para finalizar esse áudio
que também está enorme, que a gente teve um gasto enorme. A gente teve um gasto
de cerca de 20 mil reais, porque esse edital da Caixa ele funciona da seguinte forma:
você faz primeiro o projeto e depois você recebe o dinheiro. Então, nisso, entre
contratação de pessoal, produção de material de divulgação, transporte de equipe e
de material, hospedagem, alimentação e etc., a gente teve um gasto de mais de 20
mil reais, que a gente segue com este prejuízo até agora. Numa situação super
delicada - agora com essa coisa do COVID-19 mais ainda - a gente tá nessa situação
e esse dinheiro… A gente não recebeu pelo que a gente já trabalhou, né? Por ter ido
e ter feito essa única apresentação... A gente nem isso recebeu.

Bom indo para 3 questão, eu acho que o que você está chamando de uma
motivação moral e uma motivação política… Eu acho que elas são mais ou menos a
mesma coisa. Não há nenhuma dúvida, é muito óbvio que tem uma motivação política
que conduz todo esse processo, né? Eu acho que houve um erro de leitura por parte
deles, porque eles, acho que, não imaginavam que um grupo do Rio Grande do Norte,
se apresentando em Recife, poderia ter uma repercussão tão grande em um episódio
acontecendo com um grupo dessas características. Mas é fato que somos um grupo
muito articulado nacionalmente e internacionalmente, etc. A gente, no mês seguinte,
a gente estava fazendo um projeto na Colômbia, em Bogotá, e uma equipe das
Associated Press foi fazer uma matéria com a gente lá, em relação a esse episódio
pra soltar internacionalmente. Enfim, teve uma repercussão nacional e internacional
muito grande. E aí eu acho que é fato de que existe um projeto de desmonte da cultura
em curso. Acabamos sendo não o primeiro caso que sofreu censura, mas acho que o
primeiro caso que sofreu censura, de teatro, nessas circunstâncias que a gente conta,
que é de ser impedido de apresentar o espetáculo ali no palco, e não de uma
temporada que iria acontecer e acabou não acontecendo e tal. Mas é fato, que assim,
133

fomos sorteados, mas isso está acontecendo com muita gente, com muitos grupos,
isso faz parte de um projeto de desmonte muito maior.

E aí já seguindo para pergunta 6 eu acho que é muito pertinente, é muito


importante falar sobre isso que você me pergunta, porque já tivemos insinuações - ou
até mesmo perguntas mais abertas como essa que você faz - mas de achar que isso
é um episódio positivo para o grupo, que o grupo iria aproveitar o marketing, a
divulgação que o episódio gerou. E, a única coisa que eu posso falar em relação a
isso, é que quem eventualmente pode pensar nisso, não tem ideia do que é passar o
que a gente passou. Porque é um episódio que foi muito doloroso, muito sofrido até
hoje, que nos fez perder não só o resto desse projeto - além desse prejuízo que eu já
citei que a gente teve - a gente teria uma outra temporada mais ou menos parecida
do Abrazo na Caixa Cultural de Curitiba em dezembro [2019] que, automaticamente,
foi também cancelada. Essa ainda não estava com contrato assinado, estava em
processo de assinatura de contrato de envio de documentação e tal.

E a gente perdeu um outro projeto, esse um projeto muito grande, de montagem


e temporadas, várias temporadas pelo Brasil. Era um projeto de um ano, por uma
outra instituição governamental, esse eu não quero falar oficialmente, porque a
justificativa que foi dada... Também estava em fase de elaboração de contrato - já
estava tudo fechado, já tinha datas fechadas, orçamento fechado e tudo - mas, como
a gente não tinha contrato assinado e a justificativa que nos foi dada, foi uma
justificativa outra, né? Na mesma semana que aconteceu isso em Recife a gente
recebeu um e-mail deles, informando que houve uma mudança de linha curatorial,
então que eles iriam postergar o projeto, mas obviamente que a gente sabe que não
é isso que aconteceu. Mas o fato é que assim, gerou um prejuízo muito grande para
o grupo. O grupo de fato, as nossas pernas foram quebradas com isso. E efetivamente
o único desdobramento positivo foi um, duas ou três apresentações desse espetáculo
no festival que a Prefeitura de São Paulo fez, agora no começo do ano com os
espetáculos e obras censuradas. Ou seja, é um ganho mínimo para um prejuízo
enorme - sem contar o prejuízo de outras naturezas, da nossa saúde, mental e física
e etc... Então tem sido extremamente difícil, já estava muito difícil, desde o golpe a
134

coisa já estava muito difícil, com a eleição do Bolsonaro a coisa piorou e depois disso,
então, a gente tem sentido na pele o esforço que tem sido feito para que aconteça
com a gente o que tem acontecido com vários outros grupos parceiros, como A outra
companhia de teatro. Os grupos estão sendo desmobilizados a um ponto de
terminarem. Esse exemplo que eu falei A outra companhia de teatro, de Salvador, eles
oficialmente lançaram um comunicado público dizendo que o grupo estava acabando,
porque não estavam em condições, né? E o fato é que isso tem acontecido muito e a
gente tem conseguido sobreviver à duras penas, mas é uma experiência terrível que
eu não desejo isso para ninguém.

Acho que talvez o nosso episódio ele abriu uma... Ele inaugurou um novo
formato de censura - porque a gente já tinha visto outros acontecendo - que foi uma
censura com uma maquiagem jurídica. Eles criaram uma justificativa jurídica para
isso, por mais que seja muito evidente que não é isso que aconteceu .”
135

CARANGUEJO OVERDRIVE

Aquela Companhia de Teatro I Entrevistado: Marco André Nunes (diretor)

Entrevistador: Igor Augustho Mattos Kijak I *Transcrição de arquivo digital (áudio).

“Vamos começar. Vou responder a primeira pergunta. Nós tivemos um único


caso, que foi esse caso do CCBB, do Caranguejo Overdrive que foi cancelado no
CCBB. Nós íamos participar da Mostra de 30 Anos do CCBB, chamava-se, acho que,
30 Anos de Companhias. Cinco companhias foram convidadas para participar - a
minha companhia (Aquela Companhia de Teatro) - e outras: Cia Dos Atores, Dos A
Deux, acho que a PeQudo, e mais alguma que agora não me recordo. E aí, faltando,
sei lá, 10 dias para a nossa primeira apresentação, que começaria justamente com
Caranguejo Overdrive (nós participaríamos com 2 espetáculos, Caranguejo Overdrive
e Guanabara Canibal). 10 dias antes da apresentação de Caranguejo Overdrive, a
peça foi cancelada lá. Fomos informados pela produtora que organizava a mostra. A
produtora nos informou – Galharufa, a produtora, produtora do Sérgio Saboya, -
informou que nós estávamos fora da mostra. E aí perguntei, é claro, qual era a
explicação, qual era o motivo, né, pra este cancelamento. E não havia motivo nenhum.
E nós por várias vezes insistimos, no período de alguns dias, acho que durou quase
uma semana, eu insistindo, pedindo qual é a justificativa, qual é a justificativa, foram
uns quatro ou cinco dias perguntando a justificativa pro cancelamento. Porque é uma
peça simples de ser feita, então não havia nenhuma justificativa, a mais complicada
que é Guanabara Canibal estava mantida. Inclusive, havia uma sugestão de que só
se fizesse o Guanabara Canibal, mas, enfim, mas eu queria saber o porquê de
Caranguejo ter sido cancelado - já que Caranguejo inclusive estava em cartaz na
cidade, no Teatro Sérgio Porto. Então, por que uma peça que estava em cartaz em
um teatro estava sendo cancelada em outro? Qual motivo? Não veio nenhuma
resposta.

Bem, a segunda [pergunta] eu acho que já respondi na primeira [resposta], né?


Não houve resposta. Oficialmente não houve nenhuma resposta naquele momento.
Seguindo a cronologia dos acontecimentos, uma semana depois - cinco, seis dias,
agora não me recordo precisamente o número de dias - já estávamos nos
136

aproximando do dia da apresentação e não tínhamos nenhuma justificativa pro


cancelamento, e colocamos no Facebook na página da companhia uma informação
ao público de que não iríamos mais participar, porque nossa participação estava
amplamente anunciada. Que não iríamos participar, relatando tudo o que tinha
acontecido. Mais uma vez perguntando - agora publicamente - PORQUE não iríamos
participar da mostra. Não houve resposta, mesmo com essa chamada pública e
mesmo com o interesse de toda a imprensa, dos os jornais que se interessaram e
divulgaram nossa carta, né, enfim, ecoaram a nossa questão. Recebemos imensos
apoios de todos os lugares, da classe artística e tudo o mais. Mas eles não
responderam. Aí resolvi, no dia da apresentação, tive a ideia de apresentar o
espetáculo na rua, em frente ao CCBB. Aí nós fomos pra lá, a 342 Artes entrou
também nesse movimento e acabou sendo uma coisa até grande, fizemos um ato e
realizamos trechos da peça, era o dia do aniversário do Banco do Brasil. Aí, em virtude
da repercussão que essa ação teve, veio um comunicado - depois que já tinha
passado, sei lá, saiu no Jornal Nacional a nossa manifestação – veio um comunicado
do Banco do Brasil dizendo que a peça havia sido cancelada porque nós havíamos
modificado o texto da peça. Que o texto da peça passou a ter conotações partidárias.
Foi o que eles, nesse dia, vieram a falar nesse dia e que, na verdade, eles tinham
negociado de mudar a peça com a produtora e, enfim, o que a produtora negou
veementemente.

Terceira [pergunta]. O que eu entendo que aconteceu foi uma [censura] política.
Não teve nada a ver com moral. O espetáculo tem até uma cena de nudez, mas é
totalmente dessexualizada, não tem nenhuma sexualidade, nada disso. Eu acho que
a peça foi cancelada e censurada, através do cancelamento no Banco do Brasil, por
uma questão política. Porque tem um momento do espetáculo em que uma atriz, que
faz a personagem Puta Paraguaia (Carolina Virguez), ela vai falando a história do
Brasil. E chega nos dias atuais. Nós fazemos a peça desde o governo Dilma. No final
- a gente já está falando lá de trás, da ditadura, chegamos no Sarney, vai pra Collor,
Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, vai pro Golpe, vai pra Temer e chega no
governo atual. Em cada momento ia parando em determinado ponto, né. Desde Dilma
até agora ia parando em determinado ponto. Parava na Dilma, depois parava no
Golpe, depois parava no Temer, depois parava na Eleição, enfim, e vai até agora. E
137

nós falamos sobre os assuntos divulgados pela imprensa. Não há nenhuma il ação,
não criamos nenhuma conexão, não levantamos nenhuma teoria conspiratória, n ão
fazemos nada disso, apenas falamos das notícias do dia. Esse momento inteiro é de
notícias amplamente conhecidas por todos, da história do Brasil já. Acho que só o fato
de se tocar nesse assunto criou esse mal-estar. Interessante ressaltar pra você que
acho que essa censura não veio do Banco do Brasil. O próprio Banco do Brasil nos
pautou, então acho que isso não está em quem pauta, na curadoria, isso veio de outro
lugar. Que talvez esteja além do Banco do Brasil, essas decisões não foram dadas ali
pelos funcionários, pela curadoria do banco, que, inclusive, não só nos pautou, como
pautou um espetáculo nosso (Guanabara Canibal) que também seria apresentado na
Mostra e foi feito lá em 2017, e tivemos toda a liberdade para realizar. E são as
mesmas pessoas que estão lá. Então não foi daí que veio essa censura, esse
cancelamento.

Bem, acho que a quatro eu já respondi na primeira e na segunda. Bom, nós


tomamos atitudes né, atitude de publicizar o acontecido, não esconder, porque
acredito que muita gente talvez tenha escondido. Lembro que quando participei em
Goiânia de um bate papo depois de um espetáculo, um produtor de arte, um ator,
diretor... Não lembro bem... Mas, enfim, um artista me questionou se a peça já havia
sido censurada. Tomei um susto, na época, falei que não, não havia nada na peça pra
ser censurado e não havia, mesmo, nunca houve, essa [do CCBB] foi a primeira vez.
E ele falou ‘não, porque a minha já foi. A minha chegaram pra mim e falaram – há
pouco tempo – para eu não abordar determinado tema, pra mudar determinado trecho
da peça que abordava determinado tema e me falaram pra eu modificar o espetáculo’.
Quando ele perguntou pra mim eu disse que não, que isso nunca tinha acontecido.
Mas, assim como isso aconteceu, Dos à Deux foi um que também veio a público falar...
E outros tantos, Clowns de Shakespeare, e tantos outros falaram. Então, acho que
primeiro é falar, tornar público e nós fomos além: fizemos um ato, no centro da cidade,
ao lado do CCBB, pra marcar - no dia em que iríamos nos apresentar lá dentro -
fizemos ao lado de fora e chamar ainda mais atenção para o fato, acho que o que tem
que fazer é isso: chamar atenção pro fato. Entramos, a produtora do espetáculo entrou
com uma ação no Ministério Público, também, pedindo esclarecimentos oficiais ao
CCBB.
138

Sim, tivemos apoio. Apoio escrito, falado, telefonado e tudo. Como também a
Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro foi muito sensível, nos deu mais alguns dias
no Teatro Sérgio Porto (acabou que as apresentações que faríamos no CCBB viraram
a extensão da nossa temporada no Sergio Porto), outras: o estado também nos
ofereceu teatro pra fazer, mas a peça não cabia no palco. Parque Lage também
ofereceu... Enfim, tivemos muito suporte, muita solidariedade de outras instâncias, do
município, estado, secretarias, tivemos bastante apoio.

Olha, o espetáculo sempre teve muito apelo popular, muito interesse. En tão era
uma temporada que estava acontecendo no Sérgio Porto, que já era um grande
sucesso, já estava lotada, já estava lotando todos os dias, pra dias depois já lotado.
Teve um aumento de publicidade, porque saiu em todos os jornais. Então talvez quem
nem estava interessado na peça ou quem nem sabia que a gente estava em cartaz
naquele momento, correu pra lá. Nos últimos dias teve uma superlotação, caso de
abrir sessão nova e lotar em uma hora pela internet. Mas não que não estivesse
lotando antes, lotou toda a temporada do Sérgio Porto, do primeiro ao último dia.
Sendo que nas apresentações finais, em virtude da publicidade que esse fato teve,
aumentou a procura e o interesse pela peça.

E nós fizemos duas apresentações em virtude disso. Outras tantas foram


tentadas, mas está um momento difícil pra verba, pra dinheiro e tudo, pra teatro, então,
não conseguimos fazer mais do que isso. Teve tentativa de fazermos em outras
cidades (Juiz de Fora, outras em Minas, interior de São Paulo) mas acabou não
viabilizando por falta de verba. Mas fizemos o Verão Sem Censura, em São Paulo,
onde vários espetáculos que foram censurados foram apresentados, um apoio imenso
da Secretaria Municipal de São Paulo. Também fizemos agora em Niterói, um
pouquinho antes do carnaval, final de fevereiro [de 2020]. O Sem Censura foi em
janeiro e pouco antes do carnaval fizemos Niterói, um convite feito pra gente realmente
na época da questão com o CCBB. Agora com a pandemia tudo parou, então,
devemos retomar o espetáculo assim que as coisas melhorem.”
139

LEMBRO TODO DIA DE VOCÊ

Núcleo Experimental I Entrevistado: Zé Henrique de Paula (diretor)

Entrevistadora: Elaine Pereira Aguiar I *Transcrição de arquivo digital (áudio).

“O Lembro Todo Dia de Você é um musical autoral original, de uma dramaturga


chamada Fernanda Maia. Ela escreveu esse musical em 2017, a gente estreou em
2017 mesmo, no CCBB aqui em São Paulo - em maio de 2017 - ele teve uma carreira
aqui em SP. Ele se apresentou em uma temporada muito bem sucedida no CCBB,
depois se apresentou no nosso espaço, que se chama Experimental, depois ele se
apresentou no Itaú Cultural e, finalmente, ele foi contemplado para fazer uma
temporada carioca, uma curta temporada de 8 sessões, na Caixa Cultural - teatro que
tem lá no centro do Rio de Janeiro - e isso no final de 2019. E aí foi na Caixa Cultural
que a gente teve essa questão de que a peça, ela foi contemplada no Edital, ela estava
já em processo de contratação e aí, durante o processo de contratação, de uma hora
para outra, a gente foi informado que a peça tinha sido cancelada. Em nenhum
momento eles, obviamente, em nenhum momento eles usaram a palavra censurada.
Eles usaram a palavra cancelada e - já estou te respondendo a sua segunda pergunta
- a justificativa que foi dada pela Caixa, para o cancelamento da temporada, foi
indisponibilidade de execução do projeto devido a questões relativas ao espaço da
Caixa Cultural. A Caixa Cultural tem dois teatros no centro do Rio Janeiro, um deles
se chama Teatro Nelson Rodrigues e o outro se chama Teatro de Arena. Nós fomos
contemplados no edital deles para fazer essa curta temporada no Teatro Nelson
Rodrigues. E, segundo eles, o Teatro Nelson Rodrigues estava sem alvará, há algum
tempo - desde que ele tinha sido reformado - estava sem alvará e, estando sem alvará,
a nossa temporada não poderia ser feita.

Nós ficamos muito chateados com o cancelamento. Entramos no site da Caixa


e realmente não havia programação no Teatro Nelson Rodrigues há algum tempo.
Mas, como isso aconteceu junto a uma onda de outros cancelamentos - alguns deles
inclusive em outras unidades da Caixa Cultural espalhadas pelo Brasil - a gente achou
que a gente estava, de fato, fazendo parte dessa onda de cancelamentos, que eram
cancelamentos motivados por algum tipo de monitoramento que a Caixa sofria, ou
140

andaria sofrendo, por parte do Governo Federal. Em nenhum momento a gente teve
nenhuma prova concreta, nem desse monitoramento e nem da ligação real entre os
vários espetáculos que foram cancelados. Se isso foi determinado em alguma
instância dentro da Caixa, por algum tipo de censura, eu tenho certeza que isso foi de
caráter moral, acima de qualquer coisa, e não de caráter político. Porque Lembro Todo
Dia de Você é uma peça que trata da trajetória de um jovem soropositivo e como ele
lida com as suas questões homoafetivas e de soropositividade dentro da sua
comunidade, sua família, seus amigos, seus parceiros, enfim… Então, por tratar desse
tema, e a gente sabe que é um tema sensível, o monitoramento deste governo que
está atualmente em Brasília, então a gente acreditou que pudesse ser essa a razão
deste cancelamento.

Só que houve uma reviravolta nessa história, porque quando eu comecei a dar
algumas entrevistas para Folha de São Paulo, para o Jornal O Globo, no Rio de
Janeiro, porque alguns veículos começaram a me procurar para falar sobre o
cancelamento… Porque a gente divulgou o cancelamento, a gente tinha divulgado a
nossa temporada carioca e a gente evidentemen te teve que divulgar o cancelamento,
porque tinha uma... Musicais em geral, passam por uma situação muito peculiar,
porque costumam ter uma base de fãs muito fiel. Então esses fãs já estavam
espalhando... os fãs de São Paulo já estavam espalhando para os fãs do Rio Janeiro,
que sequer tinham visto a peça, que a peça iria para o Rio de Janeiro e tal. Então a
gente teve que divulgar o cancelamento e, quando a gente divulgou o cancelamento,
alguns veículos me procuraram e eu comecei a falar abertamente sobre isso para
imprensa e a reviravolta foi que nós recebemos um telefonema, da Caixa, dizendo que
eles tinham reavaliado a nossa situação e que havia uma brecha para que a gente
pudesse fazer a temporada - só que em outro Teatro, no segundo teatro deles, não
no teatro para o qual a gente tinha sido aprovado no Edital. Então eles nos propuseram
trocar o teatro Nelson Rodrigues pelo teatro de Arena. O que de fato, na verdade, era
inclusive melhor para o espetáculo, porque o teatro de Arena é menor, tem menos
lugares, tem 200 lugares, 200 e pouco lugares. Então, como é um musical pequeno,
mais intimista, seria até melhor para peça. A gente avaliou, pensou nas possibilidades
e nas consequências - tanto de negar quanto de aceitar - e a gente decidiu fazer a
temporada no Rio de Janeiro. Então, a história do Lembro Todo Dia de Você, é a
141

história de uma peça que foi cancelada, talvez censurada - nunca soubemos, acho
que jamais saberemos - mas que depois foi recontratada. Então no final de 2019 a
gente fez no Teatro da Caixa as 8 sessões contempladas no edital patrocínio da Caixa
Cultural.

Por conta da história do cancelamento e da provável censura da peça, sim,


houve muito suporte. A gente recebeu muitas mensagens, tanto de repúdio à atitude
da Caixa, quanto de apoio e solidariedade. Mas acredito que a principal delas veio da
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, do município de São Paulo, da
Prefeitura de São Paulo. O Lembro Todo Dia de Você é uma peça que foi escrita
graças ao Programa Municipal de Fomento para Cidade de São Paulo, então a
dramaturgia da peça foi desenvolvida num programa de fomento. E depois num outro
fomento seguinte - depois que a peça já tinha estreado e feito suas primeiras
temporadas no CCBB e no Núcleo Experimental - a gente, num outro fomento que a
gente pegou, a gente circulou com a peça dentro do município de São Paulo, em
diversos equipamentos culturais da Prefeitura, da Secretaria Municipal de Cultura.
Então é uma peça que tem uma história e uma ligação, diria, afetiva até, com a
Prefeitura de São Paulo, porque foi escrita com uma verba da prefeitura de São Paulo
e circulou em São Paulo graças a Prefeitura também. Então acho que o principal apoio
que a gente teve foi da Secretaria de Cultura, entre outros, na verdade. E, depois da
temporada carioca, a gente participou de um projeto que a Secretaria Municipal de
Cultura realizou aqui em São Paulo, chamado Verão Sem Censura, no qual diversas
atividades, não só teatrais, diversas atividades foram reunidas, num curto período de
tempo - e essa programação aconteceu em vários teatros e vários outros
equipamentos culturais - reunindo atividades que tinham sofrido algum tipo de
censura, de veto, de constrangimento ou de cancelamento, recentemente. Então
Lembro Todo Dia de Você participou deste festival, fez apresentações de novo em
teatros da prefeitura, e a repercussão foi excelente, na verdade. A gente fez sessões
lotadas da peça dentro do Festival Verão Sem Censura.

Essa é uma das peças que a gente tem no nosso repertório, e essas
apresentações nesse festival foram as últimas que a peça fez. Ela continua no nosso
142

repertório. Mas, acho que pouco mais de um mês depois dessas apresentações, a
gente sofreu, e continua sofrendo, com os fechamentos dos teatros por conta da
pandemia. Então não há previsão e não há programação para que a peça volte em
cartaz - pelo menos a curto e médio prazo. Então essas foram as últimas
apresentações que ela fez. Na verdade, já passamos de 100 apresentações da peça
desde que ela estreou, desde o início da sua carreira, e as últimas foram no Rio de
Janeiro e aqui no Verão Sem Censura, em São Paulo.”
143

GRITOS

Dos à Deux I Entrevistado: Artur Luanda Ribeiro (ator criador)

Entrevistadora: Tamara Batista Borges I *Transcrição de arquivo digital (áudio).

“Então, fomos um dos primeiros grupos a serem censurados pela Secom, de


forma velada - não teve nada escrito, nenhuma resposta telefônica, WhatsApp, nada.
Como era um projeto de repertório, fomos convidados a reestruturar o projeto inicial,
retirando o espetáculo Gritos. E o próprio pessoal da Caixa foi pego de surpresa -
fomos selecionados, contemplados, então eles também estavam, no momento, se
estruturando, tentando entender o que estava acontecendo. E a gente, por conta de
uma equipe que estava dependen do do projeto, reestruturou o projeto para estar em
cena, pra poder ter palco, pra poder ter voz, pra poder ter mídia e pra continuar
justamente tendo a possibilidade de continuar falando sobre isso, né? Teve uma
grande repercussão internacional, várias matérias no mundo todo sobre a gente, por
conta que a gente tem uma visibilidade lá no exterior. Então foi isso, foi uma coisa
velada, não foi dita e então ficamos assim, também sem muitas explicações. Eu acho
que somos adultos e sabemos muito bem que o que foi censurado não foi Gritos na
totalidade, e sim a Louise, que é o primeiro quadro de Gritos, que é um grito
transfóbico. Então a gente sabia muito bem que a gente estava ali, tocando em uma
coisa muito sensível e que por conta desse governo, totalmente moralista, isso foi uma
das causas.

Então, a justificativa foi um convite a reestruturar o projeto, como eu acabei de


responder na primeira pergunta. Então, a instituição foi a Caixa Cultural, que também
se prontificou a tentar ajudar a gente de todas as formas. Na Caixa foram parceiros,
em nenhum momento a gente se sentiu agredido e manipulado, pelo contrário, a gente
sentiu que eles estavam também do mesmo lado que gente, pegos numa armadilha,
e sem saber como se livrar dela. Nos dias atuais, eu acho que o que tá faltando agora
é espaço pra gente se apresentar. Eu acho que isso, nesse momento tá quase
obsoleta a questão. Isso é que é muito louco, né? O coronavírus veio pra destruir o
pouco que estava em andamento e agora eles vão ter todas as desculpas do mundo
para ter cortes, pra poder ter tudo. Isso está sendo muito duro. A gente olhar pro futuro
144

e ver que dentro dessa pirâmide estamos lá embaixo e que então, eles agora nem vão
precisar dar desculpa - os projetos nem vão andar. Então as justificativas foram essas:
nos aconselharam a reestruturar o projeto inicial, retirando Gritos da grade.

Pensando sobre uma perspectiva que aborda dois tipos de censura, a moral e
a política, o grupo acredita que uma das duas tenha sido o motivo fundamental de seu
cancelamento? Ou compreende que sejam as duas? Eu acredito que completamente
foi moral. Política ainda não, talvez agora, porque eu acho que estamos de uma certa
forma fichados, temos uma visibilidade dentro do governo. O nome Dos à Deux eu
acho que já tá circulando lá dentro, não só dentro dessa nova Secretaria, mas mesmo
no Itamaraty - porque as matérias que saíram foram divulgadas no mundo todo, então,
de certa forma deve ter chegado até no Itamaraty. Então, de uma certa forma, a
política, futuramente, a gente vá sofrer mais algum tipo de represália, em relação ao
nosso projeto que está em andamento, ou seja a nova criação. Gritos, de qualquer
forma, no âmbito federal, eu acredito que não tenha mais nenhuma possibilidade de
ser difundido aqui no Brasil. A gen te já sabe disso, por isso que estamos participando
de festivais que vão contra isso, que é o Sem Censura, que foi agora em São Paulo.
E o espetáculo estava programado agora no exterior, que infelizmente, com tudo isso
que tá acontecendo, tivemos diversos cancelamentos. Íamos fazer agora em maio,
Polônia, Colômbia e Egito, então a gente já sabe que não vai rolar. E agora ainda se
mantêm a França, agora em novembro, também não sabemos se vai acontecer - tudo
está caminhando para que aconteça. Mas eu acho que vai ser muito mais turnês
internacionais com Gritos do que aqui no Brasil. O novo projeto, que vai ter um…enfim,
como todos os nossos projetos, têm sempre um… não que a gente faça política, mas
são espetáculos humanistas, a gente fala do Homem, o Homem nesse contexto
contemporâneo. Acho que a gente vai enfiar o dedo na ferida, e que isso vai
incomodar, isso é certo.

Pensando sob a perspectiva que aborda dois... não, esse foi o que já respondi.
A próxima questão é: Pra gente, é muito importante entender como as equipes e
produções têm reagido a este movimento. Neste sentido, qual a posição e medidas
145

tomadas pelo grupo em reação aos casos citados? Eu acho que a gente de qualquer
forma teve um movimento de falar, de expor isso. Não ficamos acuados, pelo
contrário, fomos para um debate público, aberto - não só nas nossas mídias, mas
como na imprensa escrita, na mídia audiovisual também, porque a gente deu várias
entrevistas, fizeram um retrato sobre a gente - mais uma vez no exterior. Então a gente
tem reagido de forma contundente e colocando a cara a tapa, e eu acho, de qualquer
forma, eu acho que é caso a caso. Porque não foram cancelados [só] esses casos
todos que tiveram, que foram notificados pelas mídias. Outros [foram] ofuscados
porque não tinham uma visibilidade midiática e também a gente não ficou sabendo,
mas acredito que tiveram muito mais do que foram citados. Mas eu acho que a reação
nossa é continuar fazendo nosso trabalho. Eu acho que não tem outra maneira a não
ser continuar criando e de continuar fazendo com que a arte e o nosso trabalho sejam
uma antena sobre o mundo, mas também sobre as problemáticas do nosso país e
contemporâneas. Porque agora, neste sentido atual que a gente tá vivendo, no nosso
novo espetáculo o tema é o medo. Então se pode imaginar, antes mesmo de isso tudo
- do coronavírus - o tema já era esse, então eu acho que o nosso medo agora se
prolongou no âmbito internacional. Saímos um pouco do problema nacional, lógico
que com ecos muito maiores, porque somos um país que estava tendo cortes na
cultura muito importantes e que acredito que agora seja muito mais radical e que vai
ter que se refletir, se repensar, se reestruturar, de como a gente vai caminhar daqui
pra frente, porque vai ter que ter uma reinvenção, não tem jeito. Porque o próprio
formato dos teatros, nesse próximo ano agora a vir, não vai ter aglomeração, já
estávamos com problema de público, já tinha essa caça às bruxas, em relação a essa
moralidade desse governo, então estávamos demoniados, demonizados,
perseguidos, enfim… Com o astigmatismos que eram completamente equivocados, e
acho que agora só tende a piorar. Então essa reflexão, eu tô falando em voz alta,
porque estamos agora pensando sobre isso, de como vai ser. Então esse debate está
apenas começando.

Não. Tivemos um aporte, vamos dizer, afetivo da sociedade civil que estava
totalmente - como achar a palavra? - sensibilizada com o fato de um espetáculo que
já tinha tido uma trajetória importante, e que o espetáculo teve um eco muito forte, em
relação aos temas desenvolvidos e etc. Lógico que tivemos muito mais contatos
146

profissionais, pessoas que vieram até a gente pra saber mais sobre o trabalho, e os
espetáculos que estavam em andamento para turnês internacionais, a gente teve
também uma sensibilização da parte deles. A gente fez Berlim logo após a censura,
então foi muito forte apresentar o espetáculo em Berlim, num país em que viveu tudo
aquilo que a gente já conhece e que não consegue entender o que seria uma censura
no século XXI. Então é muito louco, porque a visibilidade que a gente está tendo lá
fora é tão negativa, e quando chega nesse ponto - da censura - isso coloca realmente
um ponto de exclamação dizendo “Opa! Então estamos tocando em problemas, que
são de base”. Ou seja, o direito de ir e vir, o direito de falar, o direito. Mas não teve
nada que fosse um apoio financeiro, nem público nem privado, a não ser um apoio
moral, no sentido das instituições dizerem “Não vamos acatar isso”, entendeu? Mas
de forma geral, generalizada, eu acho que tá todo mundo ainda um pouco acuado,
ninguém sabe como se manifestar, tá todo mundo andando em ovos, e porque tá tudo
desestruturado. Então, de qualquer forma, não sabemos o andamento disso tudo,
porque todos mudam - não sei mais nem quem é o diretor da SECOM. A gente está
num governo totalmente destruído e totalmente esquizofrênico. Então não sei como é
que vai ser isso, e também não sei quais vão ser as diretivas da nova Secretária
Especial da Cultura, até agora a gente não teve nenhuma resposta, então é muito…é
um abismo o que a gente tá vivendo, realmente.

Não houve aumento nem redução no número de apresentações, porque,


simplesmente, esses espetáculos que estavam programados, eles estavam
programados antes do Bolsonaro ser eleito. Então a gente recebeu realmente um
ataque de uma coisa que já estava agendada. Então na sequência, no Brasil, os
convites estão sendo, a nível realmente individual das prefeituras, como São Paulo, a
gente teve também um convite pra Salvador, mas teve u ma baixa muito grande na
cultura em geral. E Gritos já teve uma trajetória muito importante... Se a gente tivesse
criado o espetáculo e tivesse vivido a censura, eu acho que o massacre poético teria
sido muito maior. Mas não foi tanto porque o espetáculo já tinha feito mais de 250
apresentações pelo Brasil, então ele já tinha tido uma vida pública muito grande,
então, não sofremos assim… Não foi um ataque de uma rasteira brutal, foi moral pra
gente, de ser atacado, que uma obra nossa seja censurada. Enfim, a gente não
pensou que iria viver isso ainda neste século, nem em nenhum século. Pensávamos
147

que isso, essa censura teria sido realmente coisas que estavam escritas em livros.
Então a gente sentiu sim um aumento em número de público, porque estávamos em
temporada no Rio de Janeiro depois da censura, Gritos não entrou na grade da Caixa
Cultural, também foi reestruturado no projeto que foi inicial - era um projeto de três
espetáculos, acabou que só ficaram dois - mas a gente sentiu realmente um eco desse
movimento todo, e um movimento que estava se espalhando de medo, o medo de sair
de casa, o medo de gastar dinheiro. O medo já estava permeando a sociedade e agora
a cereja do bolo é o medo do outro, o medo de contrair essa doença. Essa doença
vem pra aniquilar o que já estava por um fio. O futuro próximo, a gente não tem a
menor ideia, mas eu acredito que vai ser brutal. Acredito que os teatros vão viver um
momento de deserto. Então, apertem os cintos que o piloto sumiu mesmo.”
148

ANEXO IV – RESPOSTAS RECEBIDAS VIA EMAIL

Este anexo reúne a íntegra das respostas recebidas por e-mail, em resposta
ao questionário enviado.

RES PVBLICA 2023

A Motosserra Perfumada I Entrevistado: Biagio Picorelli (autor e diretor)

Entrevistador: Igor Augustho Mattos Kijak I Respostas enviadas via e-mail.

Pode detalhar para a gente quando, como e onde ocorreu o caso de censura que
envolve o seu trabalho? Se foi mais de um, seria muito importante entender
quantas vezes ocorreu e quais foram os contextos.

Sofremos uma censura, em 2019, pelo nosso trabalho "RES PVBLICA 2023".
Aconselho a leitura da carta pública que escrevemos à época. Lá, detalhamos todo o
processo.

Link da carta pública: https://observatoriodoteatro.uol.com.br/destaque/2019/08/em-


carta-grupo-acusa-roberto-alvim-de-censurar-peca-que-estrearia-na-funarte-em-
outubro

Qual(is) a(s) justificativa(s) oficial(is) dada(s) pela(s) instituição(ões) no(s)


caso(s) citado(s)?

O Roberto Alvim, na época Coordenador do Coacen, da FUNARTE, argumentou após


a censura que se tratava de uma "curadoria", conforme matéria d'O Globo copiada
abaixo.

https://oglobo.globo.com/cultura/e-curadoria-nao-censura-diz-roberto-alvim-apos-ser-
questionado-por-mp-sobre-criterios-da-funarte-23995062
149

Pensando sobre uma perspectiva que aborda dois tipos de censura, a moral e a
política, o grupo acredita que uma das duas tenha sido o motivo fundamental de
seu cancelamento? Ou compreende que sejam as duas?

Acredito que não se pode separar muito, ainda mais no atual contexto político, onde
pautas "morais" historicamente associadas às políticas identitárias têm sustentado o
bolsonarismo e o ataque à Cultura. No nosso caso, foi uma censura à sinopse da peça
(conforme relata a carta). Essa sinopse apresenta o argumento de um Brasil futuro,
do ano de 2023, dominado por um braço civil do Governo, chamado "Anaconda
Brazil". Se você pensar no que hoje é nomeado "gabinete do ódio", nota-se que a
peça, escrita em 2016/2017, acabou se tornando um raio-x do nosso presente. O que
acreditamos é que a carapuça caiu quando leram a sinopse. Mas, tratando-se do
Alvim, é possível especular que a censura tenha tido razões bem mais particulares:
na ficha técnica há pelo menos umas 3 personas non gratas para ele, dentre elas,
nosso sound designer, Dugg Mont, que trabalhou no Club Noir por uns 2 anos e
rompeu com Alvim quando da sua guinada bolsonarista.

Para a gente, é muito importante entender como as equipes e produções têm


reagido a este movimento. Neste sentido, qual a posição e medidas tomadas
pelo grupo em reação ao(s) caso(s) citado(s)?

Escrevemos essa carta pública e ela teve ampla repercussão no país. A partir disso,
agregamos e conhecemos diversos movimentos que encampam u ma luta histórica
contra a censura, que não começou nem terminou em nosso caso. Além disso,
movemos um processo jurídico contra a FUNARTE, via Ministério Público Federal. O
Alvim cairia do cargo alguns meses depois, por ocasião daquele vídeo de cunho
nazista.

Por parte da sociedade civil, organizações não governamentais, instituições


públicas ou privadas, houve algum tipo de suporte fornecido ao grupo após o
cancelamento?

Total. Fomos prontamente apoiados pela Prefeitura de São Paulo que tem marcado
posição contra o Governo Federal especialmente no que diz respeito a essa coisa da
150

Censura. A peça estreou no Centro Cultural São Paulo, da Prefeitura, e fez temporada
lá outubro e novembro de 2019.

Como foi a trajetória do trabalho APÓS o cancelamento? Houve


aumento/redução no número de apresentações?

Não houve perda em termos de número de apresentações. O espetáculo é bem maior


que ela, claro. Mas, é impossível negar que a censura impulsionou o público a
prestigiar o trabalho. Em 2020, já apresentamos a peça em 2 festivais e os planos são
ótimos para o decorrer do ano, após a pandemia.
151

A MULHER MONSTRO

S.E.M Cia. De Teatro I Entrevistado: José Neto Barbosa

Entrevistadora: Elaine Pereira Aguiar I Respostas enviadas via e-mail.

Pode detalhar para a gente quando, como e onde ocorreu o caso de censura que
envolve o seu trabalho? Se foi mais de um, seria muito importante entender
quantas vezes ocorreu e quais foram os contextos.

Meu espetáculo faz denúncias da situação política e social do Brasil. Desde que
Bolsonaro se candidatou perdi dois patrocínios no Rio Grande do Norte, parcerias que
tinha há anos. Um deles alegou que a foto de divulgação onde a personagem aparece
com rosto pintado de verde e amarelo de forma irônica (cores escolhidas para a
campanha da extrema direita brasileira) ia contra a ideologia dos clientes que votariam
no atual presidente. Fiz apresentações em Natal/RN no final de semana do segundo
turno das eleições e recebi ameaças de propaganda eleitoral irregular, como tentativa
de que eu desistisse das apresentações. Sempre taxam de espetáculo “comunista e
petista”, isso já me aconteceu com um debatedor oficial de um festival no Sul do país
que tentava deslegitimar meu trabalho. Desse episódio até hoje fomos perseguidos
por uma verdadeira milícia digital. Hoje conseguimos burlar isso das perseguições nas
redes por robôs conscientes e máquinas mesmo com algumas ferramentas que
bloqueiam os interesses nas redes sociais.

Em Curitiba fui vetado de apresentar em um espaço cultural da Prefeitura do


Município. Estava pautado e já divulgado para apresentar em um equipamento cultural
da Prefeitura de Curitiba. Dias antes da apresentação, depois de termos investido caro
para divulgar e atravessar o país, o Prefeito vetou nossa apresentação no espaço. O
Prefeito é um apoiador e defensor do Bolsonaro. O Festival teve que nos relocar, e eu
optei por fazer na mesma rua, em praça pública. Eles sempre inventam justificativas
sem sentido. O Festival me informou que a Prefeitura descumpriu um acordo
contratual, e meu deu apoio. Eu denunciei nas redes sociais e o caso tomou
proporções gigantes nacionalmente. Sempre recebi críticas na internet quando
divulgava a peça. Mas depois dessa repercussão, ainda antes das apresentações,
estavam me ameaçando de morte. Algo grave. Eram muitas ameaças de morte.
Curitiba é uma cidade onde paira muito amor, mas também muito ódio. Além de ser o
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local onde o ex-presidente Lula está preso. Onde surge o juiz fajuto, e atual Ministro
da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro. Nas datas de minha apresentação também
fazia um ano da prisão de Lula. Então, o Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região,
vendo o perigo eminente e tantas ameaças, colocou segurança particulares para
cuidar de mim na cidade. Andava escoltado, parece surreal um artista de teatro ter
que ser escoltado. Apresentei com seguranças na frente do palco. A polícia militar
ficava rondando o local de apresentação com sirenes altas, era proposital para me
atrapalhar, me intimidar. A polícia militarizada no Brasil é trein ada para colocar terror
nas minorias, e principalmente nos periféricos. A polícia brasileira mata, um horror. E
eu seguia firme, mesmo assim. Foram três dias de apresentações com mais de três
mil e duzentas pessoas, um dos maiores públicos da história do Festival em rua. Foi
um ato político. Recebi muito carinho, muito apoio, o público sempre me pede para
voltar para lá semanalmente no Instagram. Mas sempre digo para as pessoas para
não romantizarem o fato de eu ficar conhecido por essas questões. Na minha
intimidade, sofro e sofri demais com tudo isso. Em Curitiba, fora do palco, eu só fazia
chorar sem controle, passava horas no telefone com a minha mãe, tive ataques de
pânico e ansiedade. Todos os dias decidia desistir, por medo, e era ao mesmo tempo
convencido a apresentar. Foi horrível, não conseguia me controlar. Mas venci essa
etapa, eu e a equipe fomos firmes. Mas depois de toda essa repercussão enfrentamos
outras formas de censura.

Eu comecei a apresentação normalmente em Jaboatão dos Guararapes/PE, n a região


metropolitana do Recife. Aí, percebi que um grupo ficou me incitando desde o início,
tentando me desestabilizar com palavras grosseiras. À medida que o espetáculo foi
avançando percebi que os xingamentos aumentavam e passaram para agressões
verbais, sempre em que eu fazia duras críticas ao presidente brasileiro. Uma pessoa,
a mais alterada, fazia questionamentos como: é um absurdo, isso é teatro ou é
política? Essa pessoa levantou e foi embora depois de discussões intermediadas
pelos assistentes de produção e por mim (ainda como personagem) no meio do
espetáculo. Dizem que ele é um professor de história, alguém da produção o
identificou. Olha que contradição, um professor de história defendendo o
bolsonarismo. Intervi para que ninguém se agredisse fisicamente, já que outras
pessoas levantaram para me defender. Fui alvo de agressões verbais e xingamentos
durante toda a performance. Mas me mantive firme, na personagem entre ficção e
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realidade – algo que já propositalmente experimento na encenação. Eles não


conseguiam me desestabilizar, e eu acabava por ter saídas para todas as situações,
sem me deixar ficar refém ou paralisar o andamento das cenas. Isso os irritava, era
perceptível. Em seguida, quando o palco estava com a luz baixa, recebi uma pedrada.
A pedra foi atirada em direção a mim, para minha cabeça, mas atingiu a estrutura
metálica do cenário, que é uma jaula, me poupando de ferimentos. O risco de explodir
a iluminação foi grande. O autor da pedrada não foi identificado. Eu consegui finalizar
o espetáculo, fiz completo. Foi difícil, mas o público que ficou até o final amou nosso
trabalho.

Qual(is) a(s) justificativa(s) oficial(is) dada(s) pela(s) instituição(ões) no(s)


caso(s) citado(s)?

A instituição responsável pela a apresentação no caso da pedrada em Pernambuco,


soltou uma nota para a imprensa apenas. Embora nossa relação foi tranquila e
parceira. Mas normalmente as instituições sempre tentam minimizar os
acontecimentos em casos de polêmicas. Foi o que aconteceu no caso do veto da
apresentação no Paraná pela organização. Já a gestão municipal do equipamento
cultural que apresentaríamos negou censura publicamente, com desculpas
esfarrapadas.

Pensando sobre uma perspectiva que aborda dois tipos de censura, a moral e a
política, o grupo acredita que uma das duas tenha sido o motivo fundamental de
seu cancelamento? Ou compreende que sejam as duas?

As duas. As motivações são sempre políticas e algumas com desculpas morais. Existe
a censura velada. O medo que produtores, curadores e programadores f icam de
escalar uma obra que fale diretamente de política e relações sociais. Embora não seja
só disso que minha peça fale. Teatros impedirem apresentações sem claros motivos,
principalmente. Essa censura tem acontecido em muitos lugares. Torna-se cada vez
mais difícil, para não dizer impossível, estar em festivais, mostras, projetos de
circulação, ocupação de teatros patrocinados ou de instituições. Difícil sair do estado
de origem, difícil continuar chegando em outras cidades. Agora o problema está no
teatro que se diz, na temática. É um absurdo. E normalmente essas pessoas são
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também as mesmas que dizem essas frases de efeito que nascem da esquerda, que
bradam palavras de ordem, mas que no fundo, se preocupam em não perder o
emprego, em não buscar nada qu e seja "polêmico". Seguem caladas na prática,
omissas. Os curadores e programadores brasileiros estão com medo de perder
dinheiro. A saída, para eles, é apenas vender um teatro nordestino inventado. Aqui no
nordeste brasileiro se desenhou um teatro marrom, rimado, com cores terra,
mambembe, que fale da seca da água, com músicas regionais, engraçadíssimo e
baseado no sofrimento do sertanejo. Não que eu queira atingir os que optam por fazer
esse teatro, acho legítimo e super batalhador. Mas só se pauta o aceitável, já
autorizado pela massa e pela televisão. Agora eu consigo entender algo que sempre
me perguntava ao estudar o período da ditadura militar brasileira, anos que não vivi:
como é que o país passou tantos anos vivendo aquele inferno? Está aí a resposta. A
omissão também está com a mão suja de sangue. Em lei deveríamos ter a liberdade
de expressão assegurada, isso está sendo violado. Que possam pautar as obras por
suas singularidades, autenticidade e atributos artísticos.

Para a gente, é muito importante entender como as equipes e produções têm


reagido a este movimento. Neste sentido, qual a posição e medidas tomadas
pelo grupo em reação ao(s) caso(s) citado(s)?

Estávamos até nos organizando com uma assessoria jurídica para solicitar
reparações. Mas depois que juízes negaram ações judiciais no mesmo teor, como o
que aconteceu no caso de censura da Caixa Cultural Recife, nós nos desmotivamos.
Em alguns casos não optamos por não ter quaisquer represálias das instituições.
Nesse nosso meio existem essas perseguições por baixo dos panos. Participamos de
algumas conversas com advogados, acharam que o desgaste político já havia sido
grande e nós concordamos. O judiciário é cheio de ultraconservadores e não
acompanham as pautas da cultura, isso é fato. Colocar a boca no trombone e construir
uma rede de afetos é mais reparador nesses momentos, acredite. Isso tudo mexe
muito com o psicológico de todos.
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Por parte da sociedade civil, organizações não governamentais, instituições


públicas ou privadas, houve algum tipo de suporte fornecido ao grupo após o
cancelamento?

A sociedade civil sim, nos apoiando de diversas maneiras. Negamos ofertas de


dinheiro como apoio de pessoas físicas. Achamos prudente para o momento com o
objetivo de não transparecer qualquer infundada acusação de querer lucrar com os
ocorridos. Só pedíamos apoio nas divulgações e na compra de nossos ingressos.
Teve o caso também do Sindicato dos Bancários e Funcionários de Curitiba e Região
que nos proporcionou segurança privado no caso de lá.

Como foi a trajetória do trabalho APÓS o cancelamento? Houve


aumento/redução no número de apresentações?

Houve uma diminuição significativa sim. Embora uma boa repercussão do trabalho.
Participamos de dois festivais com essa temática da censura. Mas como relatei,
alguns curadores, produtores, programadores seguem temerosos. O preço de ficar
conhecido por ter um trabalho polêmico é muito alto, não vale a pena, mas já que
estamos nessa tempestade de acontecimentos: Vamos lá, ter resiliência e continuar.
Precisamos existir e recomeçar todos os dias, renovar nossa capacidade de lida, não
apenas de luta. Já não basta todas as dificuldades de se fazer teatro sem apoios, sem
valorização, agora os artistas precisam saber se posicionar diante de tanto
desgoverno. A política de cultura e a democracia estão sendo desmontadas. Isso
influencia no nosso dia a dia. São tentativas de extermínio. Precisamos estar juntos,
criando redes e territórios de afeto para não nos abalarmos a ponto de parar, desistir,
se calar. Quando falo que meu trabalho é resistente é porque eu não negocio meu
teatro, meu modo de fazer teatro. Nós devemos continuar apresentando em praças,
em espaços independentes, onde nos acolherem, ouvir mais e falar para mais
pessoas. Os opressores dominaram as redes sociais, os algoritmos da internet, nisso
nos isolam para nos atacar por diversos lados (meio ambiente, educação, crenças,
cultura e arte, questões de gênero, raça, cor e sexualidades) para ficarmos inertes.
Hoje, se olharmos as redes sociais, imediatamente surgem diversos assuntos
urgentes, revoltantes, puxam nossas atenções por diversos lados para nos deixar
parados. Como diversas cordas em variadas direções, ficamos amarrados, parados.
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E minha geração tem sido muito apática. As famosas fake news também fazem parte
disso, e são gravíssimas. Como diz Marcio Abreu, elas acontecem por serem a
ausência dos corpos. E o teatro precisa re-existir nesse avanço de globalização, para
se firmar. Nós somos necessários. Simone Ordones do Grupo Galpão uma vez disse
em uma aula que num futuro próximo o teatro será extremamente necessário. Eu
acredito nisso. As pessoas não se olham mais nos olhos, os celulares representam
nossas emoções e sentimentos com meros emoticons, siglas, abreviações. A
humanidade precisa de encontros. E o teatro é a arte do encontro. Essa é uma frase
muito usada no Brasil, e é muito verdadeira. Precisamos de renovações de força
coletiva, profunda e também particular, diria até individual, para nos mantermos vivos.
Machuca tudo o que estamos vivendo no Brasil, qualquer pessoa com o mínimo de
empatia sente essa dor. Vivemos o início de mais um processo ditatorial com novas
vestimentas e os mesmos comportamentos. Bolsonaro ataca as instituições,
desrespeita laicidade do Estado, persegue artistas e adversários, ataca a imprensa,
beneficia parentes com seu Poder. Isso é comportamento de ditador. Nosso objetivo
com esse espetáculo é que as pessoas se enxerguem na personagem, com a
bivalência de ser humana e monstro. Que possam repensar suas atitudes, as palavras
que usam no cotidiano, num jantar de família, nas expressões da cultura popular, nas
redes sociais. As palavras podem matar alguém por dentro. Esse espetáculo é um
grito de socorro. Esse é um espetáculo que incomoda mesmo, e ele não é fácil para
quem assiste e muito menos para quem o faz. Para esses monstros, dói se ver podre,
dói se ver apodrecendo, dói se ver numa jaula, dói se ver numa personagem, dói. Fica
nu, exposto. Não subestime e nem diminua a dor dessas pessoas. Ser da classe
trabalhadora e defender a extrema direita radical nesse país é algo degradante. Falo
do oprimido, muitos são pobres, vítima de um sistema, que ignorantemente defende
os burgueses. Essas pessoas sofrem e para elas nos cabem emanar bons
pensamentos. É inquietante e desesperador para algumas pessoas que se identificam
a tal ponto com a personagem. Algumas aguentam ficar até o final, outras não, fogem.
Mas fogem reflexivas, lá no fundo, tenho certeza. Umas ficam rindo de nervosas, vias
de escape, outras choram e vejo lágrimas tão silenciosas que só eu que estou no
palco e de frente vejo. Há pessoas que não admitem que toquem em feridas, ou que
os critique por tamanha alienação. Como um animal selvagem e até mesmo ferido,
tende a morder. Só o fato de se incomodarem tanto, a arte cumpre seu objetivo. Em
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paralelo a isso, temos ganhado muitos admiradores, seguidores e carinho do público.


Aplausos sempre calorosos e demorados.

QUESTÃO EXTRA: Você disse para a gente que sofreu pressão pra desistir das
apresentações sob o pretexto de ‘propaganda eleitoral irregular’. Pode detalhar
este fato um pouquinho mais? Achamos muito pertinente.

A acusação de propaganda eleitoral irregular surgiu nas redes sociais. Como relatei
fomos bem atacados por milícias digitais.

QUESTÃO EXTRA: Na ocasião do Festival de Curitiba, o seu espetáculo foi o


único retirado do Memorial?

Já em relação ao festival, não. O Memorial de Curitiba sempre tinha sido um local de


muitos espetáculos pela programação. Mantiveram os espetáculos da sala de teatro.
Mas boicotaram os que apresentariam nos espaços do memorial que não a sala de
teatro. Estávamos para apresentar em um espaço que não era a sala de espetáculos.
Se não me engano, esses espaços abraçariam os espetáculos de rua em caso de
chuva. E nós éramos os pautados para estarmos lá fixamente e dividir com esses de
rua. No final das contas todas tiveram que ser remanejados. E os da sala de
espetáculo do Memorial foram prejudicados com sonoridade e restrições de público
no hall pela prefeitura. Quem ia assistir tinha que andar direto pra sala, não poderia
esperar lá dentro normalmente. Foi bem estranho. E a prefeitura fez evento lá dentro
do Memorial enquanto tinha espetáculo. A imprensa levantou essa possibilidade da
motivação ter sido o teor do nosso espetáculo, porque foi uma censura e prejudicou
outras pessoas. Mas nós colocamos a questão publicamente, foi uma clara estratégia
de tentar justificar a relocação pós rompimento do acordo.

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