Arte Popular e Arte Erudita

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Nuno Saldanha

III
ARTE POPULAR,
ARTE ERUDITA E
MULTICULTURALIDADE
Influências, confluências
e transculturalidade
na arte portuguesa
Nuno Saldanha

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III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

A abordagem deste complexo tema envolve naturalmente aspectos que,


não obstante o facto de se arrastarem há bastante tempo, ainda hoje se
mantêm alvo de profundas controvérsias.

Efectivamente, estes dois conceitos, que tanto podem ser interpretados como
antagónicos, concordantes ou complementares, devem ser usados com gran-
de precaução, tendo em conta a inexistência de uma definição precisa e clara
das realidades a que se referem. A indefinição dos termos tende invariavel-
mente a derivar no preconceito, e na criação de hierarquizações axiológicas
de âmbito sociocultural, ou mesmo socioeconómico, excessivamente datadas.

O problema reside fundamentalmente na tentativa de uma delimitação dos


respectivos postulados. Ora, tanto a definição de «arte popular», como a de
«arte erudita», pressupõe a crença numa essência, partindo do axioma da
unidade e da coerência, na existência supra-individual e colectiva, num subs-
trato suprafenoménico subjacente a uma cultura ou a um povo que, na rea-
lidade, não parece existir.

O termo «popular» em si próprio, ainda muito marcado pelo ideário român-


tico de Vico e Herder, é sem dúvida um dos mais ambíguos, quase tão inde-
finível quanto a própria arte. E, ao associar os dois, a questão torna-se ainda
mais nebulosa, mormente quando se confunde com arte de massas, artes
primitivas, artesanato e folclore, com os quais, não obstante as semelhanças,
nem sempre se podem identificar. Como refere James Ayres: «The definition
of the two words “folk” and “art” also produces imponderables» (Ayres,
1996, 240).

Segundo Toschi, o «povo», como classe social, identifica-se com estruturas


culturais de formação e a formas de apreensão do saber, mas também a pro-
cessos de criação/produção, a modelos tradicionais de expressão e com-
preensão, bem como da sua transmissão (Toschi, 1960). Mas será que os con-
ceitos, tanto «popular» como «erudito», se podem reportar a realidades
sociais, culturais e educativas distintas? Esta ideia, parece esquecer a dialéc-
tica do «ser social», como refere Hauser, e que os factores do processo histó-
rico são dinâmicos (Hauser, 1977, II).

Na verdade, podemos questionar-nos se «povo» pode ser identificado a um


grupo social definido. Eventualmente, nas sociedades com classes tipifica-

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das, como a medieval, a questão seja mais linear mas, actualmente, refere-se
a uma realidade bem mais abrangente, e daí que a «sua arte», se confunda
com a «arte de massas», ou «indústrias culturais», segundo a designação de
Adorno e Horkheimer.

Num sentido mais alargado, a «arte popular» tem sido entendida como aque-
la arte que se desenvolve fora dos cânones de gosto estabelecidos por, ou
para, os líderes de uma dada sociedade, onde a tradição desempenha um pa-
pel preponderante, em termos de conteúdo, de temas e utilização, mas tam-
bém de estrutura, técnicas, instrumentos e materiais (Ayres, 1996, 239).

No entanto, dado que «popular» é, muitas vezes, associado a termos tão


vastos com povo, camponês, primitivo, naïf, não académico, analfabeto,
classe trabalhadora ou classe média, acaba por englobar em si mesmo aspec-
tos contraproducentes.

Por um lado, a «arte popular» pode estar dependente do gosto estabelecido,


retomando, com certo atraso, os problemas e mutações da «arte erudita»,
naquilo a que G. Carlo Argan intitula como «arte provinciana», dependente
do gosto da cidade.

No que se refere à tradição, mormente para épocas mais recentes, dentro dos
parâmetros urbanos da sociedade contemporânea – de auto-exclusão e mar-
ginalização (arte marginal) –, sem precedentes ou tradição, ela revela-se
antitética desse mesmo conceito. Curiosamente, essa tradição e conservado-
rismo, com que frequentemente se identifica a «arte popular», são precisa-
mente as características do academismo que pretende combater.

Quanto ao carácter não académico, e geralmente autodidacta da «arte popu-


lar», trata-se naturalmente de generalizações excessivas, dado ela ser maiori-
tariamente anónima, resultando na impossibilidade de conhecermos o nível
ou tipo de formação dos seus criadores.

A sua leitura está naturalmente dependente da dinâmica dos contextos geo-


gráficos e temporais em que são produzidas, bem como do tecido hermenêu-
tico em que são apresentados. O conceito de «arte popular» acaba sempre
por se construir como uma criação social, historicamente elaborada, carre-
gada de fragilidades, tanto do ponto de vista da conceptualização teórica,
como do próprio desenvolvimento da criação artística subsequente.

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O problema tende a agravar-se, quando os termos mudam consoante os âm-


bitos culturais e linguísticos. De facto, na nossa língua não existem as variá-
veis «popular» e «folk», dado que folk não pode ser traduzido por folclore.
Daí, o enunciado de Henry Glassie, de que existem «clear distinctions bet-
ween “popular culture” and “folk culture”» (cf. Glassie, 1968), parecer intra-
duzível para português. Para Glassie, «popular culture» é o que nós entende-
mos como «cultura de massas», enquanto que «folk culture» seria o que
designamos como «cultura popular». Posto isto, «popular culture» não é «cul-
tura popular» (ou, nem sempre), assim como pop art não é «arte popular».

Para além disto, existem ainda particularidades culturais, nacionais e regio-


nais, que proporcionaram outras especificidades linguísticas e conceptuais,
dando origem a outras designações. Por exemplo, o conceito «vernacular art»
que, para J. Russel Harper (ou James Ayres) 1, é preferível ao outro mais vago,
e assente num estética da recepção, de «folk art» (cf. Harper, 1974). Ele em-
prega-se para designar obras de arte produzidas por artesãos treinados numa
aptidão relevante, dentro de uma clientela económica local. A arte vernácula
é o produto de tradições enraizadas profundamente nos materiais que a ins-
piraram, num trabalho desenvolvido de forma empírica e com uma gramá-
tica visual que depende da estrutura e da convenção. (Ayres, 1996, 32, 325)

Também em Itália, G. Carlo Argan e G. Cocchiara, introduziram na discus-


são novos conceitos, como os de «arte campesina» e «arte provinciana» (cf.
Argan, Cocchiara, 1963). Assim, a «arte popular» não se pode identificar
nem com a «arte campesina», nem com a «arte provinciana», dado que, en-
quanto que a arte da província depende do gosto da cidade, revelando um
certo complexo de inferioridade, a arte popular conserva uma dose original
de autonomia.

Por outro lado, o conceito de erudição não oferece maiores certezas ou segu-
rança no seu enunciado. Menos debatida, a «arte erudita» parece mais con-
sensual, como se todos soubessem do que se trata.

Se a intelectualidade constitui uma forma social de definição, ela não repre-


senta nenhuma classe, como os operários industriais ou a burguesia, ainda
que, de modo algum, a elas seja indiferente. Ela não institui nenhum esta-
tuto profissional homogéneo, não se reveste dos traços de uma formação ins-
titucional, corporação, associação, partido ou religião. De facto, o intelec-
tual, não se distingue dos outros indivíduos sociais (Hauser, 1977, 293).

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Não existe erudição na cultura popular? O que distingue então a erudição da


não-erudição? Que tipos de saber se podem incorporar nela? E o que diferen-
cia a erudição artística da não artística? Além de que, numa época tão voltada
para a especialização, a condição de «erudito» já não é necessariamente um
valor cultural (ou socialmente) positivo. Como se pode facilmente entender, o
problema suscita dúvidas que poderiam promover um debate interminável.

Actualmente, dado tratar-se de produtos culturais onde as fronteiras acabam


por ser imperceptíveis, a questão não parece fazer tanto sentido (do mesmo
modo que os conceitos valorativos de «high» e «low culture»), dado que a exis-
tência de uma, condiciona a existência da outra.

Como referia Arnold Hauser, embora em contextos sociológicos já ultrapas-


sados, trata-se de uma realidade não dissociável, ou seja, «a “arte popular” só
tem sentido quando contraposta à “arte dos grupos ou classes dominantes”.
A arte de uma colectividade que não se encontra ainda dividida em cama-
das, em “dirigentes e dirigidos”, não pode ser considerada como “arte popu-
lar”, pela simples razão de que não existe a seu lado qualquer outra espécie
de arte» (Hauser, 1972, 38)

De forma mais pertinente, pode-se enquadrar o ponto de vista desconstruti-


vista de Jacques Derrida, que se desenvolve na década de 80, ao criticar este
tipo de estruturas binárias de significado e valor, que constituem o discurso
ocidental 2. Derrida chama precisamente a atenção para o facto que, ambos
os termos de um par, acabam por ter a mesma validade, apesar da tendência
de subordinar um deles ao outro. Eles constituem dois tipos de perspectiva
que acabam por se complementar, duas «faces da mesma moeda», e que não
podem existir independentemente.

Neste sentido, a Arte, ou o seu percurso histórico, resulta num exemplo


paradigmático destes postulados. Efectivamente, ela desenvolve-se nesta pers-
pectiva de múltiplas complementaridades, multiculturais e interculturais,
onde ambos os estratos culturais contribuíram de forma operante para a sua
caracterização. Quer através da partilha de processos operativos e métodos
de produção, como da interpenetração e formas de apropriação de arquéti-
pos iconográficos, ou simples modelos visuais, tanto a vertente popular
como a erudita, cooperam na formação da expressão artística que define
uma realidade temporal ou geográfica.

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Cultura, globalização e informação

Por outro lado, presentemente, estas distinções tornam-se dificilmente per-


ceptíveis (pelo menos nas sociedades ditas desenvolvidas), sobretudo como
resultado dos fenómenos de globalização e informa(tiza)ção.

A globalização, que se desenvolve aceleradamente desde o século passado,


tende a uniformizar os grupos culturais e, uma das consequências, poderá
cifrar-se pelo fim da produção cultural identitária, ou seja, entendida como
produto individualizado de uma colectividade, ou de um grupo determi-
nado, social, económico ou cultural.

Para além dos fenómenos da informação globalizada (ou globalizante), a vida


moderna desdobra-se num vasto mundo da visualidade, onde todos os
aspectos do quotidiano são passíveis de ser registados em imagens, possibili-
tando um sistema crescente de apropriação do real. Dos grandes aconteci-
mentos, aos mais vulgares, todos são susceptíveis da sua conversão em
imagens reais, ou virtuais, que rapidamente percorrem o mundo, numa
constante troca de informação.

E, se qualquer assunto é possível de se transformar em imagem, também as


novas tecnologias permitem o seu acesso generalizado, a sua vulgarização, ou
até mesmo a sua manipulação. Em larga maioria, as pessoas têm hoje à sua
disposição um computador, um acesso à internet, uma máquina digital, um
telemóvel com câmara, ou um simples scanner, que lhes permite uma rápida
obtenção de qualquer tipo de imagem, mas também, a possibilidade de as
criar, controlar, alterar e transformar.

Esta circunstância facilita, não só a apropriação, como a criação de vertentes


de contracultura. Dado que elas assumem tradicionalmente valores e objec-
tivos, despoletados por ideologias entendidas como opressivas, por agitações
políticas e sociais, mas igualmente por convenções artísticas, é natural que
movimentos populares alternativos se desenvolvam, inspirados em ideais
progressivos, e também a arte moderna, face à crescente autoridade institu-
cional e corporativa, nas suas diversas vertentes – política, social, e também
artística e educativa.

O declínio relativo dos sistemas educativos, e do valor de uma formação su-


perior, nomeadamente no tocante ao ensino das Humanidades e do ensino

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artístico, torna favoráveis as condições para o desenvolvimento de movi-


mentos culturais «populares» que se opõem à mainstream. Isto é estimulado
pelo facto de um largo segmento da população se encontrar desempregado,
apesar de possuir uma licenciatura, promovendo uma maior diversidade de
ideias e paradigmas, orientados, política, económica e culturalmente.

A difusão crescente de sites de partilha de informação e imagem, como o


Myspace, Youtube e outros, permite o acesso a um grande número de méto-
dos diferentes de expressão e de pontos de vista, através da arte e dos media,
com a possibilidade de manter redes globais de suporte pessoal. Curiosa-
mente, enquanto que a revolução tecnológica industrial se constituiu como
uma séria ameaça ao artesanato e ao folclore (não obstante os movimentos
de reacção que se desenvolveram, como o Arts and Crafts), a revolução infor-
mática tem contribuído largamente para o seu desenvolvimento e divulga-
ção, a uma escala globalizada inédita, através dos novos meios postos à sua
disposição.

A saturação da sociedade pelos meios de entretenimento, por outro lado,


bem como o predomínio ascendente do conteúdo popular amador, contri-
bui em larga escala para anular a capacidade de distinguir entre arte e entre-
tenimento, realidade e representação, proporcionando interpretações equí-
vocas da realidade, bem como do papel tradicional da arte como catalisador
cultural.

Transculturalidade na época contemporânea

No entanto, estes fenómenos de inter e multiculturalidade, não são obvia-


mente um exclusivo do mundo actual, e não se revestiram sempre das
mesmas características.

Por um lado, sabemos que a «arte erudita» tem usado o imaginário popular
como referência, numa longa tradição de apropriação de imagens, formas e
produtos, procedentes das culturas populares. Tanto nas artes plásticas,
como na música, os exemplos destes contactos são amplamente conhecidos:
Chagall, Gauguin, Brancusi, Bartok, Stravinsky, etc.

Mais recentemente, nos anos 50 e 60 do século XX, o melhor exemplo deste


tipo de apropriação, e de interculturalidade, patenteia-se na Pop Art que se

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desenvolve em Inglaterra e nos Estados Uni-


dos. Esta corrente que, ainda hoje, conhece
alguns desenvolvimentos ou reinterpretações,
do qual a obra de Joana Vasconcelos é um
claro sintoma (Fig. 1), teve efectivamente o
mérito de ter contribuído para diluir as distin-
ções entre «high» e «low culture», no tocante à
criação artística, ao tornar a «arte erudita»
numa «arte popular», entendida no sentido de
arte de massas, acessível ao grande público e
com a qual ele se podia identificar. Natural-
mente, ela não deixa de ser uma «arte eru-
dita», ou de se revestir dos seus aspectos, dado
que se mantém nos circuitos restritos da críti- Figura 1
ca, das grandes galerias e, economicamente, Joana Vasconcelos,
Coração Independente, 2004
inacessível à maioria.

E, no seguimento da Pop Art, embora mais «intelectualizado», podemos


situar o Camp, essa forma de parodiar os aspectos mais kitsch do quotidiano
popular, que ocupam lugar de destaque nas galerias, exposições, ou salas de
espectáculo.

Sob pressupostos bem distintos, embora apostando também na ideia de uma


«socialização» ou «popularização» da arte, se haviam desenvolvido, nas déca-
das anteriores, os movimentos muralistas, mormente no México, cujos pro-
pósitos se baseavam precisamente na criação de uma arte popular, não
comercial, e acessível a todos, não obstante os ditames de cariz, de forma-
ção/orientação política subjacente. Os principais mentores deste movi-
mento foram Orozco, Rivera e Siqueiros, mas nele participaram muitos
outros artistas que contribuíram significativamente para o desenvolvimento
da posterior Escola Mexicana de Pintura.

Em 1922 cria-se o Sindicato de Pintores, Escultores, y Trabajadores Técnicos


Revolucionários de México que, no ano seguinte, publica o seu conhecido
manifesto, onde se explanam os seus pressupostos estéticos e sociais: a rejei-
ção do individualismo na arte, os ideais revolucionários, a defesa da arte mo-
numental e pública, a reivindicação dos direitos dos povos oprimidos, e,
realmente interessante, a ligação à tradição indígena.

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Orozco considera o mural uma forma de arte, que tem a vantagem de não
poder ser alvo do lucro e do usufruto pessoal, ou de estar escondida para pri-
vilégio de poucos. «É uma arte para o povo, é uma arte para todos.» Este inte-
resse colectivista da arte, já presente no México, quando da polémica entre
os Colectivistas e os Contemporâneos, é comum a Siqueiros e Rivera, bem
como ao Realismo Socialista em geral, ou à defesa que o futurista italiano
Mario Sironi faz no seu Manifesto da Pintura Mural: «La pittura murale è pit-
tura sociale per eccellenza. Essa opera sull'immaginazione popolare più diret-
tamente di qualunque altra forma di pittura, e più direttamente ispira le arti
minori» 3.

Siqueiros, outro dos intervenientes da Declaração de 1922, defende que o


princípio estético essencial do Muralismo era o de socializar a expressão
artística, e acabar com o individualismo burguês. Repudiando a pintura de
cavalete, e todo o tipo de arte favorecida por círculos ultra-intelectuais, por
ser aristocrática, louva a arte monumental por ser propriedade pública: «A
arte deve ser feita para o povo, não podendo ser mais a expressão de satisfa-
ção individual que hoje é, mas deve apontar para se tornar numa arte luta-
dora e educativa para todos.»

Este movimento insere-se numa tendência vasta, como o alvorecer da cultura


americana, e as influências que exerceria tanto na Europa como nos Estados
Unidos (veja-se, por exemplo, o caso de Thomas Hart Benton [1889-1975],
um dos principais expoentes do muralismo norte-americano, e líder do mo-
vimento dos Regionalistas), marcada pela defesa do nacionalismo, na recusa
do Modernismo e na afirmação pública de uma arte social.

Para além destes aspectos da arte contemporânea, que contribuíram para


uma identificação generalizada em termos da cultura visual, através de uma
apropriação de referentes visuais, tornados comuns, também podemos iden-
tificar outros sintomas desta miscigenação, entre os foros tradicionais do
erudito e do popular – o próprio processo de produção.

De facto, grande parte da criação artística contemporânea, tradicionalmente


integrável na produção «erudita», recorre a processos, modelados por uma
ausência de métodos formais, apoiados numa reflexão teórica, convertendo-
-se assim numa praxis empírica que parece tomada de empréstimo da produ-
ção popular.

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Quanto à arte popular, também ela se caracterizou, recorrentemente, por fe-


nómenos de contaminação cultural, derivando muitas vezes numa simples
emulação formal das expressões plásticas das «elites» culturais, e da tradição
académica. Vejam-se, por exemplo, as inúmeras transposições da famosa
Última Ceia de Leonardo nos mais variados materiais – barro, cortiça, con-
chas –, que podemos encontrar nas bancas do artesanato local; ou as pajelas
religiosas feitas por artífices locais, que se inspiram em obras dos artistas
mais consagrados.

No entanto, a arte popular, não se reduz a esta auto-submissão e dependên-


cia de correntes culturais que lhe são estranhas, e tomadas de empréstimo.
Hoje em dia, ela envolve também realidades distintas, constituindo-se como
contracultura, e não mera subcultura, que acaba por se opor à cultura popu-
lar (entendida como mainstream, ou cultura de massas), ao mesmo tempo
que se assume como forma de resistência à «arte erudita» e académica.

Assim, aquilo que hoje pode ser entendido como arte popular contemporâ-
nea (para uns, Folk Art), associa-se a formas da expressão cultural pouco
identificáveis com a corrente tradicional (mais conservadora e de cariz rural),
como a Arte Marginal (Outsider Art), a Arte Visionária (Visionary Art), ou o
Graffiti, onde apenas o autodidactismo parece permanecer como o único
elo em comum.

Interculturalidade no processo histórico: alguns exemplos

Podemos encontrar inúmeros casos desta troca intercultural, entre aspectos


próprios às duas vertentes da cultura – tanto popular, como erudita –, desde
os tempos mais remotos da produção artística nacional, cujo resultado aca-
bou por ditar as especificidades da Arte Portuguesa.

Claro que não pretendemos fazer aqui um enunciado exaustivo, ou apro-


fundado, das inúmeras ocorrências em que se comprovam estas relações de
interculturalidade, mas somente apontar alguns casos, que poderão even-
tualmente servir de pistas para posteriores investigações.

Logo no início da expressão artística no nosso território, durante o período


romano, a arte do mosaico fornece exemplos, de forma evidente, destas per-
mutas entre substratos culturais distintos.

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Sabemos que o mosaico geométrico, executado nos mais variados confins do


Império, usa tipologias estereotipadas, resultante muitas vezes do trabalho
de artífices populares, depositários de formas e processos tradicionais, com
fórmulas arcaizantes.

Para além do mosaico em «tapete», cujo padrão é nitidamente de ascendên-


cia popular, mormente de origem mediterrânica, é nos emblemas e no mo-
saico figurativo que podemos precisar melhor esta conjuntura.

Contrapondo-se à «Escola Oriental», e à sua decoração mitológica, a «Escola


Romana», como defendia G. Beccatti, privilegia motivos de origem plebeia,
como as cenas marítimas nas termas, os cães nos vestíbulos das casas, as na-
turezas-mortas, etc.

Em alguns dos motivos dos medalhões centrais que decoram o pavimento das
casas romanas de Conímbriga, podemos atestar uma conjugação destes dois
níveis culturais. Se, por um lado, a temática mitológica apela aos estratos mais
eruditos da cultura clássica, a sua transposição visual, executada de forma tra-
dicional por artífices incultos, revela uma simplicidade que parece denunciar
a ignorância dos temas. Ora, esta simplificação parece resultar mais de uma
apropriação popular dos temas que de um desconhecimento, revelando
mesmo uma certa originalidade na liberdade da sua interpretação.

Veja-se, por exemplo, o caso do emblema


figurando Perseu, na célebre Casa dos Re-
puxos de Conímbriga (Fig. 2), no ângulo
sudoeste do peristilo. Ao representar este
conhecido herói da mitologia, os mosaicis-
tas resolveram associar dois episódios dis-
tintos da sua história. Por um lado, o da
morte de Medusa, figurando a sua cabeça;
por outro, o do salvamento de Andróme-
da na Etiópia, com a presença do monstro
Figura 2 marinho.
Perseu, mosaico romano da Casa dos Repuxos,
Conímbriga, séc. III
Esta iconografia não é contudo inédita,
geralmente identificada como Perseu e Andrómeda, ou O Triunfo de Perseu.
Efectivamente, existem vários exemplares deste tipo (Museu Bardo em

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Tunes, Museu Gaziantep e Museu Antakya, na Turquia) 4, geralmente do


século III, onde estes dois passos estão associados. No entanto, distinguem-
-se de forma evidente do mosaico de Conímbriga, dado que nele não se en-
contra representada Andrómeda, e a única referência a esse episódio é-nos
dada pela presença do monstro. Isto faz com que o tema do mosaico conim-
bricense incida na morte de Medusa, e não na libertação de Andrómeda,
como nos outros casos.

Mas, ao mesmo tempo, isso revela-nos que os autores conheciam os dois tre-
chos, não sendo portanto resultado de uma ignorância da narrativa de
Perseu, mas de uma liberdade iconográfica de grande originalidade. Claro
que nos podemos interrogar se a iniciativa terá partido dos artífices ou do
seu encomendador, no entanto, este tipo de soluções é comum noutros
exemplos da produção mosaicista nacional.

Também deste período romano, datam os primeiros exemplares da temática


de «género», quer no mosaico – nas cenas de temática cinegética, por exemplo
– quer na escultura tumular, em cujos sarcófagos podemos encontrar, asso-
ciadas ao tema das Estações, figuras populares ligadas aos trabalhos rurais.

Mais tarde, já no período da formação do país, correspondendo paralela-


mente ao nascimento da Arte portuguesa, podem-se verificar outros arqué-
tipos de cooperação e interacção cultural.

Na época em que se desenvolve a Arte Românica, entre os séculos XII e XIV,


a escultura conheceu um ciclo de inusitada renovação, naturalmente aquela
que estava associada à decoração arquitectónica. Numa fase artística, cuja
riqueza decorativa se pode comparar à do posterior Barroco, as igrejas são
profusamente ornamentadas de escultura, preenchendo os seus tímpanos,
arcarias dos portais, capitéis, ou modilhões.

Derivando, muitas vezes, de modelos visuais procedentes da arte da Ilumi-


nura, das ilustrações dos Beatus ou de outras narrativas bíblicas, e até (embo-
ra raramente) da literatura épica profana, portanto, de fontes eruditas, os
artistas encontram ali a possibilidade de criar um repertório vastíssimo de
escultura, tanto sagrada como meramente decorativa.

É precisamente nesta segunda vertente, geralmente reservada ao exterior dos


edifícios, no quadro dos cachorros das cornijas das igrejas (sobretudo do

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Alto Minho), que podemos encontrar um interessantíssimo conjunto de


figuras, em muito ditadas pelo imaginário e pela criatividade popular.
Assim, para além dos temas animalescos e seres fantásticos (sereias, a «bicha-
moura» da mítica popular), motivados pelo desejo de protecção, como repre-
sentações de motivações antropopáticas, figuram-se homens e mulheres em
poses impróprias, figuras nuas, grávidas, dançarinos, partes genitais, etc.

Podemos ver mesmo aí algu-


mas figuras típicas do folclore
nacional, como a representada
na cachorrada da igreja româ-
nica de Algozinho, em Moga-
douro (Fig. 3), que nos recorda
imediatamente as máscaras
populares tradicionais daquela
região de Bragança, como o
Velho, o Chocadeiro, ou o Fa-
Figura 3
Cachorrada da igreja de Algozinho, Mogadouro, séc. XIII randulo, ou mesmo os famosos
Caretos, das zonas de Podende
e Lazarim (Fig. 4).

Como refere Meyer Schapiro, eles fazem parte de uma


esfera da criação artística que está para além do con-
teúdo meramente religioso, impregnada dos valores de
espontaneidade, fantasia individual e deleite estético 5.
Efectivamente, muitos destes elementos decorativos são
Figura 4
Máscara de Careto, inteiramente inúteis de um ponto de vista religioso-
Lazarim
-didáctico e estrutural (Schapiro, 1984, 15). Eles fazem
parte de um universo de emoções projectadas, imagens
psicológicas de força, jogo, ansiedade e medo, muitas vezes derivados de ele-
mentos pré-cristãos, do folclore ou de crenças populares. E não se destinam a
um ensinamento religioso ou a um corpo doutrinal, ou dependentes de um
simbolismo teológico ou moral oculto, como pensavam alguns estudiosos.

Se estes elementos escultóricos, patentes na arquitectura religiosa, revelam


uma interessante transculturalidade, entre o foro do sagrado e do profano,
ao mesmo tempo, tornam-se sintomáticos de distintos estratos culturais (e
mesmo sociais), ou seja, entre o popular e o erudito.

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No final da Idade Média, assiste-se a uma maior laicização da sociedade e,


com ela, da cultura e da arte, promovendo assim o desenvolvimento de
novos padrões visuais e estilísticos.

Durante o período gótico, que em Portugal se prolonga até ao século


XVI, também se podem deparar claros indícios desta permuta, entre as
tradições e o imaginário popular, com os preceitos mais eruditos da ar-
quitectura.

Efectivamente, como já foi por diversas vezes referido, parte da originalidade


da arquitectura do Manuelino resulta da habilidade com que os canteiros
locais, ou regionais, transferem para os elaborados pórticos das suas igrejas e
capelas uma decoração inspirada nos arcos e arranjos efémeros das suas
festas populares, cortejos, procissões, romarias, etc.

Contudo, se isto é verdade, por outro lado, podemos observar num mesmo
edifício a presença de um tipo de decoração mais «erudita», com tondi e
ornatos em grotesco, de origem renascentista italiana.

O sucesso do estilo está nitidamente comprovado pela sua longa duração, e


daí talvez resulte o facto que, os períodos mais elitistas e cortesãos do Re-
nascimento e Maneirismo, onde imperou uma estética clássica (ou reagindo
a ela), tenham tido tão fraca expressão arquitectónica.

Embora tardiamente, o Barroco acaba por se desenvolver no nosso territó-


rio, voltando-se novamente para uma corrente estética mais popular ou,
melhor dizendo, populista, de acordo com os ditames catequéticos contra-
reformistas, para a tornar acessível a todos, mormente aos «iletrados».

Além disso, o Barroco favoreceu o desenvolvimento de uma tradição onde


os valores seculares puderam emergir, enraizados e alimentados pela forma-
ção oficinal medieval – por exemplo, o uso de decoração pintada e da poli-
cromia, na escultura e nos relevos em madeira.

Também o aumento significativo da procura tendeu a diversificar a oferta, e


a sua correspondente liberalização, levando a que alguns pintores artesãos
(distintos, portanto, dos chamados «pintores de óleo»), chegassem a decorar
tectos, ou mesmo a fazer pintura de retábulos e de «cavalete».

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Esta «liberdade», foi mesmo interpretada como excessiva, e alguns artistas


«eruditos» viriam a queixar-se 6, pelo perigo da concorrência ou em nome do
prestígio da sua arte 7.

Mas, mais do que esta nova sensibilidade, de aproximação aos valores e à


espiritualidade popular, com uma tónica mais «realista», é sobretudo no
desenvolvimento da pintura de género [ou Género], que se pode perceber
uma nova contaminação entre o foro do «erudito» com o «popular».

A emancipação do Género

Como vimos, o uso do imaginário popular como referência, por parte da


chamada «arte erudita», tem uma longa tradição que transparece, de forma
evidente, na emergente temática do género, quer considerada autonoma-
mente, quer integrada em outras temáticas, então encaradas como «superio-
res» – as representações históricas e religiosas.

Não obstante o carácter moral e didáctico subjacente da pintura flamenga e


holandesa, é sobretudo nesses países que podemos presenciar o nascimento
de uma temática que acabará por dominar o panorama da pintura interna-
cional, dois séculos depois.

Mesmo em França, que ditara a rígida hierarquia dos géneros pictóricos no


seio da sua academia, já se desenvolvem os primeiros passos para a sua ascen-
são, através do prestígio das obras dos irmãos Le Nain, ou de Le Valentin.

Nos finais do século XVII e inícios do XVIII, assiste-se na «academizada» arte


francesa, a um renovado interesse pelas correntes da pintura flamenga e
holandesa, patente por exemplo nos escritos de Roger De Piles, que louvava
artistas como Rembrandt ou Rubens (e até mesmo Van Eyck), ou de De-
zallier Dargenville 8, que defende a escola flamenga contra a italiana.

Este movimento é complementado pela crescente divulgação da própria


teoria setentrional que, senão mesmo influenciando directamente amadores
e curiosos, reflecte claramente a expressão do gosto público. Estes teóricos,
como Joachim de Sandrart, Karel van Mander, Corneille de Bie ou Isaac
Bullart, para além de tecerem uma apologia à pintura dos seus países, con-

119
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

tribuem igualmente para um maior conhecimento e divulgação da mesma, e


os catálogos, recolhas de colecções e exposições são bastante procurados
pelos novos coleccionadores. Também a influência dos pintores (como
Metsu, Mieris, Vermeer, ou Terborch) virá a fazer-se sentir na própria prática
pictórica setecentista, presente nas obras de Jean Raoux, Chardin, Frago-
nard ou Greuze.

Diversamente do que sucedeu nos Países Baixos, em França, ou na vizinha


Espanha, só nos alvores do século XVIII podemos assistir em Portugal ao
desenvolvimento de uma temática de género, de forma autónoma, embora
esta se deva quase inteiramente à presença de artistas estrangeiros que aqui
trabalharam.

O panorama nacional apresenta-se bastante limitado, sendo poucos os artis-


tas que se aventuravam naquela temática da pintura, dada a desconsideração
académica de que era alvo, dentro da rígida hierarquia dos géneros pictóri-
cos. Não obstante, o gosto por esse tipo de obras estava bem patente nas
colecções de nobres, prelados e particulares, recheadas com inúmeros qua-
dros seiscentistas da escola flamenga e holandesa, adquiridos nos mercados
e leilões internacionais (cf. Saldanha, 1994, 1995a).

Apesar da sua crescente popularidade, sobretudo nos meios amadores e no


coleccionismo, este género de pinturas suscitava ainda forte oposição nos
meios académicos, nomeadamente ligados à teoria clássica, onde a pintura
histórica mantinha o seu predomínio incontestável.

Assim, não obstante esta importante característica do gosto setecentista, não


encontramos qualquer paralelo no discurso teórico coetâneo. Pelo contrá-
rio, nota-se uma persistente rejeição (pelo menos até Garrett) quer da pin-
tura flamenga e holandesa, quer dos temas que geralmente desenvolviam.

Os críticos mantinham uma viva condenação a um estilo que consideravam


desprezível, acusando flamengos (Berghem, Wouwermanns, Ruysdaël ou
Teniers) ou franceses (Watteau, Boucher) de fazerem imitações exactas e
servis da natureza.

Um dos artistas que revela um desprezo por este tipo de produção pictórica
é o pintor António Joaquim Padrão que, em meados do século XVIII, con-
denava tanto os seus autores como os temas que tratavam 9.

120
Nuno Saldanha

E, já na viragem para o século XIX, um dos grandes expoentes do espírito


neoclássico nacional, Cirillo Volkmar Machado, perfilharia idêntica tomada
de posição, ao condenar a escola flamenga e holandesa 10.

Também no tocante à prática da pintura, durante os reinados de D. João V


e de D. José I, a temática quase não teve expressão. Antes da segunda metade
do século XVIII houve, é certo, alguns autores que se dedicaram a este
género, mas sem consequências de maior. Entre esses, podemos destacar
alguns nomes, como os de P.-A. Quillard, Nicolau Monteiro, Francisco da
Silva, Tomás Gomes e filhos, Morgado de Setúbal, J. Manuel da Rocha,
Pedro de Alcântara, o Cavaleiro de Faria, ou Vitorino Manuel da Serra.

Na sequência de alguma literatura da época, retratando os aspectos típi-


cos da vida rural e urbana, dos costumes populares, etc., uma das facetas
mais populares era a pintura de bambochata 11, representada em numerosas
colecções da época, tendo-se nela aplicado diversos artistas, quer ocasional-
mente (André Gonçalves, Delerive), ou mesmo fazendo escola (caso do
pintor algarvio Nicolau Monteiro que se dedicou ao fabrico de figuras para
presépios, juntamente com os discípulos que formou: o filho Manuel
Francisco Monteiro, José Antunes dos Reis, Teodoro da Fonseca, entre
outros).

Entre as excepções, destaque para os apon-


tamentos galantes e campestres de Pierre-
-Antoine Quillard (c. 1703-1733), no seio
de uma formação francesa rococó. Con-
tudo, para além da idílica figuração aristo-
crática, também representa já – de forma
inédita – festas rurais, pastores, interiores
de estalagens, quintas, e até mesmo danças
típicas populares portuguesas (Dança do
Outavado, 1745). (Fig. 5)

A sua herança, embora sob parâmetros e


Figura 5 preocupações estéticas diferentes, será con-
P.-A. Quillard, Dança do Outavado, tinuada por outros artistas conterrâneos,
grav. por Debrié, 1743
que aqui viriam a residir e trabalhar, na
segunda metade do século XVIII 12.

121
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

De facto, ao longo da centúria, chegam a Portugal pintores como Jean Pille-


ment (1728-1808) 13, Alexandre-Jean Noël (1752-1834) e Nicolas Delerive
(1755-1818) que, embora mais voltados para o paisagismo, envolveram as
suas vistas com costumes rurais, figurando pescadores, aldeões, peregrinos,
lavadeiras, pastores e camponeses. Trata-se efectivamente da primeira grande
apropriação de um universo da «realidade» rural e popular portuguesa, que
constitui em si um importante registo. No entanto, esta visão é feita do exte-
rior, tanto cultural, como socialmente, constituindo uma forma idealizada,
preconcebida, logo, «erudita».

Entre essa geração de artistas, destaque para Nicolas Delerive, mais preo-
cupado com a pintura de género do que com a paisagem. Ele foi, sem
dúvida, o melhor intérprete dos costumes e tipos populares do nosso país,
mormente de ambientes urbanos.

Chegado a Portugal em 1792, fugindo à Revolução Francesa, e salvo uma


curta viagem a Espanha, entre 1797 e 1800, aqui residiu com a sua mulher
até ao fim da vida, em 1818. Dedicou-se ao Retrato, temática onde obteve
grande sucesso, e sobretudo ao Género, elaborando várias composições, em
grande ou pequeno formato, que descrevem os lugares, actividades e tipos
característicos portugueses, na viragem do século.

São bem famosos os pequenos quadradinhos


em madeira (c. 1801), que representam as prin-
cipiais actividades profissionais lisboetas, algu-
mas delas com uma visão crítica da sociedade e
dos costumes de então (Fig. 6).

Para além das pinturas que conhecemos, dei-


xou-nos igualmente um importante caderno de
desenhos, com alguns estudos de vários tipos
populares que, simultaneamente ao importante
testemunho que constitui, é também um exem- Figura 6
Nicolas Delerive, Os Aguadeiros,
plo pioneiro da posterior tendência ar-librista, c. 1801
de pintar «do natural» (cf. Saldanha, 1997).
Como o atestava Cirillo Volkmar Machado (não obstante a sua aversão pela
temática), o pintor Delerive «sahia ás praças e aos campos a desenhar, e a
pintar arvores, animaes, paizanos, etc.» 14.

122
Nuno Saldanha

Para além do exemplar trabalho dos barristas, António Ferreira e Machado


de Castro, com os seus famosos presépios, onde o popular e o «erudito» se
conjugam de forma exemplar, ou dos desenhos e gravuras do Cavaleiro de
Faria (António Leitão de Faria), apenas as obras do conhecido Morgado de
Setúbal (José António Benedito Soares de Faria e Barros, 1752-1809), marca-
ram o escasso cenário da arte portuguesa da segunda metade do século
XVIII (cf. Araújo, 1991). Efectivamente, devem-se a este artista, alguns exem-
plares curiosos dentro desta temática – A Mulher da Roca e A fiandeira –, no
seguimento da corrente naturalista setecentista internacional, que se assu-
mem plenamente na temática de Género e não apenas, como sucedera em
épocas anteriores, na inclusão de detalhes paisagísticos em vistas urbanas e
campestres, ou no cenário da pintura religiosa.

Não obstante a deficiente qualidade de muitos destes quadros, Almeida


Garrett não deixa de os mencionar, nas Viagens na Minha Terra, elogiando a
graça e naturalidade flamengas, e aludindo à sua pintura como «aqueles qua-
dros tão verdadeiros». Seria também enaltecendo esse aspecto «realista» que
Raczynski a ele se refere no seu Dictionnaire: «Il avait le talent de saisir la
nature avec vérité» 15. Alguns dos seus tipos populares, constituirão modelos
pictóricos, que seriam posteriormente retomados. Veja-se, por exemplo, a
obra de Malhoa, Velha Fiando, de 1902, que parece parafrasear a obra homó-
nima de José António Faria e Barros, executada dois séculos antes.

O Portugal «pinturesco»

Na viragem para a primeira metade do século XIX, caberá à geração român-


tica prosseguir com esta inclinação para representar os costumes e tipos po-
pulares portugueses. De acordo com a tendência já iniciada em Setecentos,
ela será sobretudo desenvolvida por artistas estrangeiros.

Efectivamente, serão franceses e, depois, ingleses, italianos e alemães, quem


ampliará esta temática no nosso território, tanto na pintura como na gra-
vura, avulsa, ou na ilustração de diversas obras que se publicaram sobre
Portugal.

Os franceses marcam novamente a sua presença, nos guaches e têmperas de


Félix Doumet, nas gravuras de Charles Legrand ou Henry L’Évêque. À

123
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

medida que o interesse por Portugal crescia no estrangeiro, nomeadamente


na viragem para o século XIX, iam chegando aqui diversos viajantes, litera-
tos, artistas ou simples curiosos (para além dos militares que vinham inte-
grar os contingentes da Guerra Peninsular), que faziam as suas descrições de-
talhadas dos sítios, usos e costumes, quer através da palavra, quer da
imagem, ou na associação das duas, em obras isoladas, ou em diversas publi-
cações que surgiam por toda a parte 16.

Depois, são os ingleses que sobressaem, nomeadamente após a fuga da


Corte para o Brasil e a ameaça napoleónica, com os importantes trabalhos
descritivos e ilustrados de James Murphy, William Bradford, W. M. Kingsey,
Charles Landseer ou William Beckford, para citar apenas os mais impor-
tantes e cujo interesse foi além das meras paisagens urbanas, ou simples
vistas topográficas.

Com o avançar do século, e restabelecida a paz, os nossos artistas românticos


retomariam a tradição e o estilo, nas obras de Leonel Marques Pereira (1828-
-1892), Francisco José Resende (1825-1893), João Cristino da Silva (1829-
-1877), Tomás da Anunciação, nas aguarelas de Miguel Ângelo Lupi (entre
1860 e 1870) e, sobretudo, nas pinturas de Auguste Roquemont (1804-
-1852).

Os quadros de Roquemont, re-


presentando costumes e tipos po-
pulares, eram mostrados de forma
pioneira, na exposição trienal da
Academia de Belas Artes de Lis-
boa, em 1847, o que viria a causar
sensação na época (Fig. 7).

Entre essas pinturas de género,


com camponesas e varinas, figura-
vam personagens típicas das re- Figura 7
giões nortenhas de Entre Douro Augusto Roquemont, O Chafariz de Guimarães, 1842

e Minho.

Também a escultura dava sinais desse interesse, e José Joaquim Teixeira


Lopes (1837-1919) transpunha em bronze, ou em figurinhas de barro (Fá-

124
Nuno Saldanha

brica Cerâmica das Devesas), as imagens populares que outrora enriquece-


ram os presépios de Ferreira e Machado de Castro.

O triunfo do Género. A «estetização» do popular

O Género, apesar da tendência crescente para o «trans-género» (segundo a


expressão de Calvo Serraller) 17, é sem dúvida a temática triunfante de Oito-
centos. Durante este século, ele atinge uma emancipação completa, bem
como uma vitória, sobretudo no confronto com a pintura histórica, cujo
peso da tradição ainda ditava as regras no panorama artístico ocidental. Este
triunfo constitui um contributo fundamental para que a classificação hie-
rárquica dos temas pictóricos se torne obsoleta.

Esta ascensão do Género está directamente ligada a uma nova atitude da per-
cepção artística, face ao tempo histórico. O artista, como várias vozes repe-
tiam, um pouco por toda a parte, devia representar o Presente.

A História é a do presente, elevando assim a pintura de costumes à antiga


dignidade da pintura histórica, usurpando-lhe o lugar. Mais do que atacar a
história, combate-se o conceito de história do passado, defendendo-se a do
presente.

Não será contudo de estranhar que, tal como sucedeu com as revoluções
sociais, os novos líderes acabem por simular os hábitos e posturas dos «anti-
gos senhores». Assim, as cenas mais banais são pintadas nos formatos tradi-
cionalmente reservados aos quadros históricos, onde os indivíduos vulgares
ocupam o lugar dos anteriores heróis míticos.

Os novos heróis são os contemporâneos, os homens da «Vida Moderna»,


como defendia Baudelaire em 1845, ou Daumier, quando proclamara «il
faut être de son temps».

Para além disso, o moderno conceito de Beleza devia assentar mais nos cos-
tumes característicos do presente, do que nos factos tomados como impor-
tantes que marcavam a actualidade, advogava Baudelaire na sua crítica ao
Salon de 1859. Paradoxalmente, o eterno estava no transitório, segundo o
que se anunciava em Le peintre de la vie moderne. (Baudelaire, 1859).

125
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

Neste sentido, desenvolvem-se várias correntes distintas, das quais destaca-


mos a que se preocupa mais com os temas humanitários e sociais, e princi-
palmente com o mundo da sociedade rural: a «Estética Realista» de Courbet
e Millet. Este positivismo prosaico era visto como simplório e vulgar, pelos
surnaturalistes, ou «modernistas» 18, que reivindicam os direitos da realidade
contemporânea, de modo ardente e fantasioso, propugnando a exaltação da
imaginação no contexto com a realidade, de forma subtil, refinada, com-
plexa e poética.

De facto, o mundo rural acaba por se constituir num novo ideal, ao mesmo
tempo que se torna reflexo da recusa do mundo urbano e industrial, ele é
simultaneamente o «paraíso perdido» e a «terra prometida».

Como afirmava Bernard Lamblin, esta recusa do mundo moderno indus-


trializado revestia-se de uma nostalgia pelo mundo rural, em vias de desapa-
recer, um campo «qui garderait quelque parfum du jardin d’Éden» 19.

Esta feliz expressão de Lamblin,


parece espelhar a extraordinária
pintura de Luciano Freire (1864-
-1935), Perfume dos Campos (Fig. 8),
que esteve presente na Exposição
Universal de Paris, em 1900. Ape-
sar da pouco importância que lhe
é dada pela historiografia, ela surge
como um modelo da ideia que a
época fazia do confronto entre o
campo e a cidade. Veja-se como a
figura feminina despida, envolvida
pelo perfume do campo, contrasta
com o fumo cinzento que sai das
chaminés das fábricas que enchem Figura 8
a cidade, um dos raríssimos exem- Luciano Freire, Perfume dos Campos, 1900
plos, na pintura portuguesa oito-
centista, de uma referência directa à Revolução Industrial urbana. Ela pode-
ria de facto ter servido de ilustração na capa do romance de Eça de Queirós,
A Cidade e as Serras, publicado precisamente em 1900, onde a ilusão per-
versa da cidade se opõe à vida saudável do campo.

126
Nuno Saldanha

O camponês torna-se, assim, num dos temas mais importantes na incorpora-


ção da atitude dos artistas relativamente à revolução urbano-industrial. O
grande crescimento das cidades fez-se com gente do campo, através de vagas
migratórias que conduziram ao despovoamento rural. Estes, deixam as suas
terras para trabalhar na indústria urbana, no comércio ou nos serviços do-
mésticos (cf. Herbert, 2002).

Neste enquadramento, o camponês é visto como o «bom selvagem» do sé-


culo XVIII, figura em redor da qual se cristalizam as recusas, as lamentações,
mas também as esperanças (Lamblin, 1987, 550). O campo é entendido
como o espaço das verdades eternas, onde se processa uma relação directa
dos indivíduos com a natureza.

No entanto, este camponês não é um reflexo da «verdade». Ele é uma ima-


gem construída, dado que o pintor de Género busca o «homem genérico», o
tipo e não o indivíduo. Nestas obras, onde o realismo é mais formal que con-
ceptual, os artistas não eram atraídos pela vontade de captar a realidade em
que viviam, mas de compor cenas curiosas, interessantes, ou mesmo cho-
cantes, com um vocabulário técnico realista, facilmente entendido pelo
público, permitindo a sua distracção 20.

Note-se, por exemplo, a recusa em representar os instrumentos agrícolas mais


modernos e industriais, desenvolvendo-se a predilecção pelas alfaias agrícolas
mais rudimentares e antiquadas, senão mesmo pelo trabalho manual. Esta
nostalgia do passado pré-industrial tende geralmente a tornar-se sentimental.

Este «mito do primitivismo» assentava nos ideais de simplicidade, trabalho


virtuoso e inocência. Na imagem de uma sociedade atemporal, estável e
assente na tradição (secular e religiosa), na ausência do individualismo e do
materialismo (cf. Herbert, 2002), e numa divulgação e interesse pelas artes
artesanais e folclore, aquilo a que João Leal virá a designar – para o Portugal
de inícios de Novecentos – como uma «etnografia artística» 21.

Tratava-se, portanto, de uma realidade frequentemente manipulada, que


acaba por se inserir nas propostas éticas, sociais ou políticas da sua época,
como veremos a propósito da busca pela essência da «portugalidade».

Segundo María Jesus R. García, as imagens, que hoje entendemos como tes-
temunhos claros e autênticos dos aspectos antropológicos e etnográficos da

127
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

época, e que surgem nas pinturas de personagens do meio rural, matizados


ou inclinados para uma certa visão etnográfica, pouco mais não são do que
um «folklore», criado de acordo com a visão poética dessas mesmas repre-
sentações 22.

Como referia Guy de Maupassant, fazer verdadeiro consiste em dar a ilusão


completa do verdadeiro. O realista não deve procurar mostrar a fotografia
banal da vida, mas em sacrificar a verdade estrita à simples, mas lógica, vero-
similhança 23.

Em França, a região da Bretanha constituiu-se como exemplo paradigmático


disso mesmo. Mais do que um simples local de eleição para os artistas tra-
balharem, como sucedera anteriormente com Barbizon, ela parecia reunir
todas as condições para a concretização deste «mito do primitivismo».

Também já não eram as paisagens que fascinavam os artistas, mas justamen-


te a imagem de uma vida rural onde o tempo parecia ter parado, mostrando-
-se mais avessa aos progressos da revolução urbano-industrial. As caracterís-
ticas representações das mulheres bretãs, trabalhando no campo com o seu
toucado tradicional (que subsistem ainda nas pinturas de Cézanne, por
exemplo), são em grande parte uma construção poética, dado que aquele
tipo de traje só era usado aos domingos e em algumas ocasiões especiais.
(cf. Herbert, 2002).

Assim, estas obras são, numa dimensão superior ao que se divulgou, um


amplo repertório de imagens que, de forma invariável, se referem a realida-
des poetizadas, aludindo quase sempre a fenómenos próprios do ambiente
rural, previamente seleccionados (Rueda García, 1992, 120-121). Era, no
fundo, uma recuperação do ideal da verosimilhança clássica, da junção entre
Natureza e Ideia; portanto, uma das características mais enraizadas do pen-
samento erudito.

Este interesse pelo mundo rural dos camponeses e dos estratos sociais mais
humildes era ditado mais por razões de ordem estética, do que social ou polí-
tica, como já o confirmara Théophile Thoré na sua crítica ao Salon, de 1847.
Defensor do Realismo e da pintura de Género, ele toma partido pela ver-
tente não-baudelairiana, rural, precisamente por razões estéticas: «Nos
peintres feraient bien de se tourner un peut du côté populaire [...] les scènes

128
Nuno Saldanha

officielles de la vie moderne ne se prêtent pas beaucoup aux images origi-


nales ou magnifiques! [...] La physionomie et la mimique du peuple sont
bien plus expressives que le masque et le mannequin du Tiers État» 24.

Estabelece-se assim uma junção entre Harmonia e Beleza, na relação entre


as figuras populares do campo e o meio que as rodeia. Esse «Realismo Poé-
tico», como o designa o historiador Léonce Bénédicte, é marcado pelas obras
de Jules Breton, Bastien-Lepage, Léon Lhermitte, Jean-Paul Laurens, ou pelo
finlandês Albert Edelfelt (Bénédite, 1904, 432), precisamente aqueles cuja
pintura irá marcar, de forma profunda, grande parte da cultura visual da
segunda metade de Oitocentos, entre os artistas salonnards, dos mais diver-
sos países, dos quais Portugal não foi excepção.

Contudo, não é a questão do maior ou menor realismo da representação


que aqui nos interessa. O facto é que o «triunfo do Género» acaba por impor
o «triunfo do popular», em termos de cultura visual, não obstante ele provir
de um meio cultural não-popular, ou melhor dizendo, não rural (ou folk, se-
gundo a terminologia anglo-saxónica). De
facto, estas representações do mundo popular
não são menos «realistas» do que as imagens
dos santos, dos heróis mitológicos ou dos am-
bientes aristocratas da pintura histórica. Será
que Cristo, São Pedro, César, ou Alexandre da
Macedónia, se reconheceriam na maior parte
das suas representações? Pelo contrário, sabe-
mos que muitas das criadas e lavadeiras se sen-
tiam identificadas, nas pinturas que J.-B. S.
Figura 9
Chardin apresentava nos sucessivos salons pari-
J. B. Siméon Chardin, A Criada, c. 1739 sienses do século XVIII (Fig. 9).

Pelas diversas razões apontadas, o universo da cultura visual populariza-se,


não só em termos de imagem e dos seus referenciais, como no sentido de se
tornar numa «arte popular», entendida com a arte da mainstream. Esta «este-
tização» do popular reflecte-se assim no triunfo da temática de Género, vol-
tada para o universo popular rural, como no desenvolvimento da «etnografia
artística» a que nos referimos.

Por um lado, podemos efectivamente assistir a uma espécie de submissão do


«popular» ao universo cultural do «erudito», num processo de «domestica-

129
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

ção» face a uma cultura dominante (erudita), como defendia Augusto Santos
Silva (Silva, 1994, 101), ao imprimir a sua visão do mundo através deste cunho
estético que encerra a cultura popular no «círculo do museu e da erudição».

No entanto, este processo não pode resumir-se a uma mera condição de


«dominante/dominado», como propõe o mesmo autor, dado que também o
universo visual da classe «erudita» é invadido por um imaginário que lhe é
estranho e que lhe conquista um espaço próprio.

Portugal em busca da sua essência:


Malhoa e a «Arte Portuguesa»

Outro aspecto da cultura que se desenvolve no nosso país, nos finais de


Oitocentos, e que vai contribuir em muito para o desenvolvimento de uma
nova cultura visual, essencialmente rural, consiste na busca da sua essência –
a «portugalidade» –, e que se irá ampliando com o emergir de uma «cultura
republicana» 25, que carecia de novos valores e modelos, distintos dos para-
digmas do Antigo Regime.

Desde inícios do século XIX (e, em França, desde a Revolução) que a arte se
encontrou investida de um valor político, não porque ela o comportasse em
si própria, mas porque a vida artística foi percebida através das categorias da
vida política 26. No importante estudo de Francis Haskell, Art and the
Language of Politics, ficou bem demonstrado como o vocabulário da política
se difundiu no seio da crítica da arte de Oitocentos 27.

Desde logo, o próprio Realismo, mormente na sua associação com o positi-


vismo proudhoniano, e a importância dada às questões sociais, de reforma e
de justiça, fomentava muito esta associação.

Esta procura de novos modelos, sobretudo culturais, começa a fazer-se sentir


nas referências sucessivas em que se louva o «portuguesismo» de vários artis-
tas, tanto do presente como do passado, que se inserem numa busca das
raízes e da essência da arte portuguesa.

O interesse pela cultura popular nacional, e a sua correspondente estetiza-


ção, desenvolve-se sobretudo em Portugal pela via literária, nomeadamente

130
Nuno Saldanha

por Almeida Garrett, seguida mais tarde por Teófilo Braga, Adolfo Coelho,
Consiglieri Pedroso, Leite de Vasconcelos, Rocha Peixoto ou Joaquim de
Vasconcelos (Pereira, 2001, 132-133).

No final de Oitocentos, a inflamada década de 1890, marcada pelos sucessi-


vos arrebatamentos nacionalistas ou de patriotismo, motivados pelo Ultima-
tum, prestava-se de forma conveniente, ao enfatuar das raízes portuguesas da
cultura do tempo 28, e à busca da sua especificidade, que incluía natural-
mente a cultura artística.

Em 1890, conforme refere Rui Ramos, «a exaltação patriótica era já uma ins-
tituição no país», de modo que a participação em actividades deste tipo aca-
bava por se tornar numa forma de confirmação do estatuto social, ou de ga-
rantia de ascensão social, cimentada pela «cultura republicana». No seio
desta cultura de patriotismo desenvolvia-se a ideia de que urgia determinar
uma identidade colectiva (Ramos, 2001, 111).

Estas questões já eram colocadas por Ramalho Ortigão, que se interrogava


acerca da existência de uma «arte original portuguesa» e, em 1876, queixava-
-se do vazio de sentido do conceito de pátria e da necessidade de uma tradi-
ção popular. Assim, para ele, Pátria era «uma certa comunhão de ideias – e
nós não temos ideias –; [...] uma literatura própria e uma unidade artística –
e nós não temos nem literatura nem arte nacional –; uma tradição popu-
lar...» 29. Mais tarde, viria mesmo a recomendar que se reduzissem as bolsas
de estudo no estrangeiro, de cinco anos para apenas um, evitando deste
modo que «os artistas se desnacionalizassem, e perder-se o cunho da raça» 30.

Em 1884, também Joaquim de Vasconcelos proferia uma conferência na Ex-


posição Industrial de Coimbra, onde se questionava acerca da possibilidade
de se criar um estilo artístico português original, se alguma vez tal tinha suce-
dido, e quais eram os elementos que o caracterizavam (França, 1966, vol. II,
119). A resposta encontrada residia precisamente nas indústrias artísticas,
«mais caseiras». O «futuro da arte portuguesa» estava assim na indústria
popular.

Defendendo o carácter popular e ruralista da arte, esta ideia insere-se – em-


bora apenas em certa medida – nos modelos do movimento inglês do Arts
and Crafts, que se desenvolve a partir de 1860, na defesa das indústrias popu-
lares artesanais.

131
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

Em 1876, Luciano Cordeiro interrogava os pintores, num estudo sobre a


arte nacional: «Porque voltais as costas ao vosso país?» (Da Arte Nacional,
Lisboa, 1876, 19). Cinco anos após ter escrito que: «Em Portugal, apesar dos
esforços, mais patrióticos que sensatos, d’alguns que pretendem affirmar a
existência d’uma eschola distincta de pintura, apenas póde reconhecer-se
certa independência e originalidade nacional n’um curto período da histo-
ria da architectura» (Cordeiro, 1871, 61-62).

Alguns anos depois, em 1892, António Nobre repetia poeticamente a mes-


ma questão, perguntando o que era feito «dos pintores do meu país», que
«não vinham pintar Portugal?» 31.

Ao mesmo tempo, Teófilo Braga defendia o sentimento da nacionalidade


como a maior força de Portugal, lamentando a maneira como o País aban-
donava a «tradição nacional na arte» e o desprezo pelos seus monumentos 32.
Esta ideia, inseria-se naquilo que ele próprio considerava ser o estabeleci-
mento das «bases positivas da nacionalidade», no seguimento dos seus traba-
lhos sobre a sua essência, patentes num estudo sobre os costumes, crenças e
tradições do povo português, que publicara em 1885 33.

Alberto de Oliveira, defensor das correntes do neogarretismo, que se opu-


nha ao neolusitanismo de Silva Gaio (1895), escrevia um manifesto em
1894, Palavras Loucas, que se revelava o mais radical desta tendência, contra
cidades e máquinas, pregando a ideia nacionalista e paternalista do regresso
à terra e à aldeia familiar.

Este autor, pedia precisamente aos artistas para irem para os campos e
aldeias, retratarem a «pátria», antes que ela desaparecesse, sob a ameaça da
industrialização. A nação portuguesa definia-se assim por uma tradição fol-
clórica e por uma aproximação ao campo e à ruralidade 34.

Mais uma vez, era o apelo à terra e à inocência primitiva do campo, exacta-
mente outra das características essenciais do Realismo.

As ideologias, assinaladas pela confusão e insegurança, na adaptação à «vida


moderna», evidenciam-se nas personagens marcadas por um forte ruralismo,
e que vieram do campo para a cidade. Mesmo quando ocupavam lugares
públicos, mantinham os padrões ideológicos de origem como garantes da
morfologia social.

132
Nuno Saldanha

Também o universo artístico era constituído, maioritariamente, por indiví-


duos que haviam nascido numa sociedade eminentemente rural (Silva
Porto, Malhoa, Carlos Reis, etc.). Essa especificidade da intelectualidade re-
flecte-se na própria produção. Ela tende assim a mostrar a preferência por
temas como a integração da tradição cultural portuguesa na conjuntura
social e política, as saudades de uma origem ainda presente, na paisagem e
no folclore, e na antinomia cidade/campo, cujo resultado se pauta pela aver-
são à cidade e pela apologia do campo (Pacheco, 1993, 53).

Outro aspecto deste nacionalismo caracterizou-se pela aversão ao estrangeiro


e às influências nefastas que trazia, na definição de uma cultura e especifici-
dade nacional.

No ano seguinte à publicação, em Paris, do livro saudosista de António No-


bre, Trindade Coelho, director da Revista Nova, defendia a «religião sagrada»
do nacionalismo, pregando a «guerra santa» contra o estrangeirismo.

Os resultados do Ultimatum, ampliados pela «cultura republicana» de que


fala Rui Ramos, tendiam a emergir de forma cada vez mais militante.

A «pintura portuguesa» não era, portanto, uma questão estilística ou estética,


mas apenas temática, que se reduzia a figurar as coisas portuguesas. Em
Portugal, sê (ou pinta em) português. Os artistas pareciam assim estar con-
denados à mera condição de ilustradores das ideologias políticas do seu
tempo.

Este novo realismo refere-se a um conceito de «realidade» (ou de verdade)


que corresponde, sobretudo, a uma concepção cultural (e política), enraizada
entre a intelectualidade nacional, e as suas aspirações nacionalistas, basea-
das nas tradições culturais portuguesas.

Mas esta situação não era exclusiva da realidade portuguesa. Também na vizi-
nha Espanha o panorama não se mostra muito diferente, na busca dum
novo «modelo nacional». O Estado tentará concretizar este novo nacionalis-
mo, através de iniciativas que irão girar em torno da ideia de «perigo exte-
rior» (Rueda García, 1992, 123), ou numa proliferação de concursos literá-
rios e artísticos, geralmente comemorativos, das grandes figuras históricas
(tal como sucederá em Portugal).

133
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

O sentimento nacionalista também se tornava presente na aceitação, ou


recusa, da influência estrangeira no desenvolvimento da vida cultural es-
panhola. No início, houve um consenso pleno, no momento de constatar
a transcendência da influência francesa. Isto leva a que, ao longo do sé-
culo XIX, haja um claro sentimento antifrancês no mundo artístico
espanhol 35.

Claro que as razões subjacentes a esta aversão eram bastante distintas nos
dois países, embora se fizessem sentir do mesmo modo. O próprio Eça de
Queirós publicava, em 1900, o seu livro A Cidade e as Serras contra o estran-
geirismo galicista (que advogara em 1870), opondo-se à ilusão perversa da
cidade, defendendo a vida forte e saudável do campo.

Como já tivemos oportunidade de referir (cf. Saldanha, 2006), foram estas


circunstâncias que levaram à eleição do pintor José Malhoa (1855-1933)
como um paradigma desta «portugalidade», e é à sua obra que se referem a
maioria dos elogios neste sentido. Eles são sintomáticos do que a crítica pen-
sava acerca do que, efectivamente, constituía a verdadeira arte portuguesa e
de como este artista se tornou num modelo das aspirações nacionais, em
busca da essência da «arte portuguesa».

Em 1905, por ocasião da V Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes,


embora não se referindo especificamente ao «portuguesismo» da sua arte, já
se escrevia que ele era «o inigualável documentalista da nossa vida rural, que
ele tem colhido e transplantado flagrantemente para a tela, [...] seja qual for
o género abordado» 36.

Também nesse sentido, João Chagas, elogiando Malhoa, exaltava uma figura
que se dedicara à «observação dos costumes rurais portugueses» e que estava
«transportando, para telas que não morrerão, a nossa vida do campo, nos
seus aspectos mais característicos, mais curiosos, mais comovedores e poéti-
cos» 37. Além do valor patrimonial, a sua obra revestia-se também de um
cunho antropológico e etnográfico.

Ramalho Ortigão, em vésperas da partida de Malhoa para o Rio de Janeiro,


quando da sua primeira grande exposição individual, salientava do mesmo
modo o conhecimento exemplar da realidade portuguesa, dos lugares e das
gentes, que o artista tão bem representava nas suas telas 38.

134
Nuno Saldanha

Ortigão inseria-se, deste modo, na nova corrente de patriotismo da geração


de 90, caracterizada por essa busca da «realidade portuguesa». Esta, queria-se
distinta dos outros países europeus; as suas raízes só se poderiam encontrar
nas lendas e costumes rurais, no artesanato e numa nostalgia por uma vida
mais perfeita, «primitiva». Assim o defendia já, como vimos, Alberto de
Oliveira em 1894.

O extenso artigo dedicado a Malhoa, pela Illustração Portugueza, em Maio


de 1906, acerca da Exposição no Gabinete Português de Leitura, também o
refere como o «mais realista dos nossos pintores, o mais authentico e prodi-
gioso interprete da paizagem e vida rural portugueza, [...] é pelo sentimento
o mais portuguez de quantos procuram pela arte» 39.

Para além disso, a sua obra constituía também, «um documento precioso
para o estudo dos costumes ruraes do nosso paiz» (Illustração Portugueza, 7
de Maio de 1906). A pintura de Malhoa revestia-se também de um cariz pe-
dagógico, antropológico e documental.

Outro exemplo desta atitude sobressai dos discursos de Julião Machado,


Olavo Bilac e Coelho Netto, no Rio de Janeiro, durante o grande banquete
de homenagem a Malhoa, no salão do Hotel Paris. Relatada pelo vespertino
brasileiro Correio da Manhã, ali se referia que «na exposição não existiam [...]
simples telas, mas pedaços da própria terra portugueza, animados pelas
gentes que nela vivem», onde, numa atitude saudosista que agradaria a todos
os luso-descendentes, encontravam aí «o Portugal que conhecemos desde as
primeiras narrações que nos foram feitas pelos nossos paes, vindos d’além»
(Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 5 de Julho de 1906).

A visão que certa crítica faz de Malhoa vai-se tornando, à medida que entra-
mos no século XX, mais centrada nesta referência mítica de pintor portu-
guês por excelência, bem como à interpretação que o pintor parecia fazer da
realidade nacional (Freitas, 1983, 38).

Malhoa parecia, então, começar a tomar o lugar antes ocupado por Silva
Porto, a quem também se havia exaltado a capacidade de retratar a realidade e
os costumes portugueses, embora sem a mesma insistência ou unanimidade.

No artigo citado da Illustração Portugueza, a propósito da exposição de Ma-


lhoa no Rio de Janeiro, onde, de forma inequívoca, já se considera o pintor

135
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

como «o mais português do portugueses», o crítico termina precisamente a


sua frase com «[Malhoa] é pelo sentimento o mais portuguez de quantos pro-
curam pela arte, depois de Silva Porto, fixar a paizagem e os costumes cam-
pesinos de Portugal» (Illustração Portugueza, 7 de Maio de 1906, 329).

O governo republicano, depois de 1910, no seguimento das ideias culturais


desenvolvidas anteriormente, vai precisamente identificar o regime com a
nação e proteger toda uma série de movimentos «lusitanizantes» e «naciona-
listas» que proliferavam de forma crescente. Esta moda das «coisas portu-
guesas», como já notava António Sérgio, coincidia com a afirmação de novas
classes médias e a ascensão de médicos, advogados e negociantes, que emer-
giram durante a República, como referia Rui Ramos, muitos deles, afinal, os
principais clientes de Malhoa.

O êxito deste tipo de pintura era cada vez maior, favorecendo um aumento
da oferta, proporcionada por uma série de artistas dedicados a esta temática
das coisas portuguesas, ou mesmo de simples amadores que, cada vez mais,
se fazem agora representar nos salões da Sociedade Nacional de Belas Artes.

Também a Aguarela conhece grande desenvolvimento, seguindo as pisadas


da pintura a óleo, onde se destacam artistas como Roque Gameiro, Alfredo
de Morais ou Alberto de Sousa. Este, em 1913, no mesmo ano em que surge
o Integralismo Lusitano (defendendo o regresso à terra e olhando o espírito
estrangeiro como o «mal»), promove uma exposição dos seus trabalhos nos
salões do jornal A Capital. Apresentava-se ali, como refere o catálogo, aquilo
que se considerava ser uma «reportagem artística pelo País», podendo obser-
var-se os costumes e aspectos típicos nacionais.

Do mesmo modo, na arquitectura, começava a evoluir um movimento de


procura da identidade da arte portuguesa, na sua vertente mais ruralista,
liderado por Raul Lino que, em 1900, no seu projecto para o Pavilhão de
Portugal da Exposição Universal de Paris, dava um passo decisivo para a
campanha da «Casa Portuguesa», que iria marcar grande parte da estética
arquitectónica na primeira metade do século 40.

Idêntica situação se desenvolve na fotografia, com a publicação de vários


volumes de imagens fotográficas, figurando monumentos, obras de arte, cos-
tumes e paisagens. Muitas delas seriam ulteriormente transpostas em bilhete-

136
Nuno Saldanha

postal ou publicadas nos oito volumes de A Arte e a Natureza em Portugal,


da casa Emílio Biel, ou no Portugal Artístico da casa Magalhães e Moniz 41.

Outro autor que se insere claramente neste tipo de sentimento patriótico e


nacionalista da «cultura republicana» é Veiga Simões, que faz uma entusiasta
apologia daquilo a que chama o «Neo-Lusitanismo» (Simões, Set. de 1909) 42.
Este membro do Partido Republicano Radical, e colaborador do jornal Re-
pública, acusa a falta de um ideal gerador, claramente concretizado em obras
de arte, naquilo que considera ser a «característica basilar da época presente»
(Simões, 1909, 201). Ataca o individualismo e o egoísmo schopenhauriano
de uma época de decadência, entroncado em Nietzsche, e que gerara as
«bizarras gerações dos symbolistas e esthetas francezes».

Contra o materialismo da poesia contemporânea, e defendendo o ideal do


universalismo, Veiga Simões via os inícios deste movimento nalgumas obras
de Teófilo Braga, nomeadamente na Alma Portuguesa e em Tradições Popu-
lares, onde se podia encontrar o ideal nacional, articulado com o ideal uni-
versal e apoiado em bases científicas e filosóficas. Para além dele, estava a
corrente regionalista do Conde de Monsaraz (A Musa Alentejana), pela
penetrante observação da terra, ou João Correia de Oliveira, pela sua «psi-
cologia regional estudada na alma da paisagem».

Este mito do «portuguesismo» atinge o seu ponto mais alto em 1928, duran-
te a grande Exposição de Homenagem a José Malhoa, precisamente quando,
segundo afirmava José-Augusto França, o pintor terá sido elevado a uma
categoria carismática 43.

Depois da morte de Malhoa, o «mito» parece voltar a crescer, e esta imagem


ficará para sempre ligada ao mestre, embora, muitas vezes, sem qualquer
conteúdo justificativo, passando a constituir uma espécie de simples «epí-
teto», tão comum aos artistas da Idade Moderna, que sistematicamente es-
colhiam, ou recebiam, a alcunha de «Lusitano». De pintor nacional, trans-
forma-se em pintor «nacionalista», modelo de portuguesismo e fonte de
inspiração, como a ele se referia António Montês (Freitas, 1983, 40).

Em 1933, a notícia da morte de Malhoa tornava a preencher os jornais com


inúmeras referências à sua vida e obra, tanto em Portugal como no Brasil,
com a mesma importância com que, cinco anos antes, se falava dele, a pro-

137
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

pósito da sua Exposição de Homenagem. Era referido como o «pintor do


povo», o «português de têmpera», o «mestre da paisagem portuguesa», o
«pintor do Sol» e, também, o «português dos portugueses» 44.

Alguns dias depois, Artur Portela exaltava a «figura excepcional» de Malhoa,


que considerava ter construído uma obra de extraordinária beleza, mas «de
forte e sadio portuguesismo», tendo ido buscar a inspiração ao próprio povo
e sobre quem se podia exclamar: «Portugal inteiro está na sua obra» 45.

Manuel de Sousa Pinto, em 1934, voltava a repetir, numa conferência pro-


nunciada nas Caldas da Rainha, as palavras que escrevera para o Livro da
Homenagem, apelidando-o de: «Pintor para toda a gente, pintor do povo e
para o povo, [...] uma pintura sem preconceitos de escola ou sociedade [...]
nacionalitantemente portuguesa. Historiador do Portugal rústico do seu
tempo, [...] levou tão longe as características portuguesíssimas dos seus
temas» 46.

Diogo de Macedo, em 1948, intitula justamente a sua obra, de forma inequí-


voca, Malhoa e o Seu Portuguesismo, considerando-o como o «cronista bon-
doso e realista da alma do povo português [...] retratou boa parcela da alma
nacional», esse louvável Malhoa que, ao longo da sua vida, «só criou
Portugal, e só pintou “em português”» (Macedo, 1948). Repare-se particular-
mente neste argumento que acaba por definir Malhoa, não como um mero
retratista da realidade portuguesa (o que, desde os finais de Oitocentos, era
recomendado aos artistas por Alberto de Oliveira), mas, como sendo ele pró-
prio o autor dessa realidade. Perante as dificuldades da crítica, na definição
do que consistia exactamente a essência da «pintura portuguesa», Macedo
não só tinha encontrado o seu melhor exemplo, como o seu criador. A «rea-
lidade portuguesa» ia-se assim formando, à medida que Malhoa pintava os
seus quadros.

José-Augusto França, por seu lado, que irá marcar de forma significativa o
novo entendimento da História da Arte Portuguesa durante décadas, não
deixa contudo de ser influenciado por esta visão da «portugalidade» 47.
Embora reconheça que Malhoa, apesar de viver sinceramente esse seu popu-
lismo, «retratando toda uma falsa alegria portuguesa», sem encobrimentos
ou enfeites, não deixa de enaltecer a sua «visão populista da realidade psi-
cológica portuguesa», concluindo que, «Malhoa é, coerentemente, no pri-

138
Nuno Saldanha

meiro quartel do século XX, o pintor português por excelência» 48. Trinta
anos depois, quando das comemorações do Cinquentenário da Morte de
Malhoa, escrevia um novo artigo, a propósito do pintor, dizendo que a ele
coubera mostrar, pelo gosto, quais os valores tradicionais, senão castiços, da
pátria em que nascera e verificá-los na sua obra, inserindo-o no espírito de
uma burguesia citadina, embora de raízes rurais 49 (França, 1983, 10-13).

É verdade que a «estética de poder» republicana, na sua busca pela simbolo-


gia, encenação e recriação da portugalidade, «minada pelo estrangeirismo»,
se aproveitara da obra de Malhoa como forma de exemplo paradigmático da
aplicação prática dos seus princípios políticos. Claro que não foi o único e
muitos dos epítetos que lhe são atribuídos podemos encontrá-los referidos a
outros artistas, numa extensa lista que vai desde Silva Porto ou Columbano,
passando por Isaías Newton, Carlos Reis, José Campas, até Adriano de
Sousa Lopes, a partir da década de 20 50. O mesmo se passaria, aliás, nos
mais diversos campos da cultura, da arquitectura, da literatura ou da música.

Mas esta busca da especificidade cultural nacional não se ficava por aqui, ela
desenvolvia-se também retrospectivamente, procurando na História os seus
modelos paradigmáticos. Malogradamente, na pintura, não os havia, nomea-
damente na Paisagem. E só o «mítico» Nuno Gonçalves haveria de sobres-
sair, empolado ao limite.

Seria precisamente a aposta de Malhoa na temática de Género, que possibi-


litaria este aproveitamento da sua obra e a consequente ascensão de prestí-
gio, nomeadamente dentro das correntes estéticas ou estilísticas do Rea-
lismo 51. Malhoa não se tornou realista por fazer pintura de género, mas o
Género acabou por o levar ao Realismo.

Esta associação, entre o artístico e o político, de que o pintor se tornara alvo,


era de facto uma tendência que se fazia crescente na primeira metade do sé-
culo, quando, ao mesmo tempo, os nacionalismos europeus se desenvolviam
de forma galopante.

Apesar de tudo, das incongruências e das críticas, Malhoa não fora apenas
vítima do seu sucesso. As circunstâncias acabariam por se tornar favoráveis,
fazendo dele uma figura incontornável da história e historiografia da Arte
Portuguesa. E, ao mesmo tempo, torna-se num marco fundamental da cul-

139
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

tura visual portuguesa, que ainda hoje subsiste, independentemente do


gosto ou aversão que desperta 52.

E, um dos aspectos que efectivamente lhe granjeou tamanha admiração e


êxito, foi precisamente a sua capacidade de saber interpretar e recriar o ima-
ginário da cultura visual popular, a que a época aspirava. Para isso, fez
recurso de diversos expedientes, que passavam desde a observação directa
(não esquecer que Malhoa nasceu num meio rural das Caldas da Rainha e
que passou a sua carreira a pintar em Figueiró dos Vinhos), à representação
de costumes, atitudes e sentimentos do imaginário popular.

Os quadros que alcançaram maior sucesso foram justamente aqueles em que


o pintor melhor conseguiu exprimir estes aspectos.

No quadro As Cócegas (Fig. 10), por exem-


plo, revela-se um aspecto deveras interes-
sante – em ambas as versões, de 1894 e
1904 – e sintomático do seu recurso (e in-
fluência) a imagens retiradas do universo
visual popular, tal como Courbet fizera
anteriormente.

Figura 10
Meyer Schapiro, no seu brilhante ensaio José Malhoa, As Cócegas, 1904
sobre Courbet e o imaginário popular,
chamara já a atenção para o papel crucial das bases imagéticas de algumas
obras do realismo 53. Efectivamente, alguns dos mais representativos quadros
do Realismo, como o Enterro em Ornans (e Bom Dia Sr. Courbet), devem-se
em grande parte à influência do imaginário popular.

Em As Cócegas, esta obra parece socorrer-se não tanto da recolha directa do


natural (embora ela tenha existido, pelo número de estudos conhecidos),
mas através de elementos tomados do imaginário popular.

A cena de sedução não parece surgir espontaneamente dum registo pessoal,


mas de uma imagem corrente da cultura visual popular. De facto, podemos
encontrar algumas imagens que reproduzem esta situação brejeira da vida
rural, como a figurada num postal, produzido através de uma fotografia colo-
rida, pela firma Bergeret et Cie., de Nancy (Fig. 11).

140
Nuno Saldanha

Um exemplo da flexibilidade estilística e técnica de


Malhoa está patente, de modo claro, no tratamento dís-
par com que o artista tratou o tema dos bêbados, pro-
duzindo algumas das melhores pinturas da sua carreira:
Volta da Romaria, Pensando no Caso, Vinho Verde,
Os Bêbados e Basta, Meu Pai!

Assunto recorrente na sua obra, que o autor desenvolve


entre 1901 e 1908 (embora já pensado desde 1898), ele
Figura 11 permite tomá-lo como exemplo paradigmático do vir-
La Fenaison,
postal ilustrado, tuosismo que caracteriza a sua pintura que, para além
Bergeret et Cie., s.d. do «trans-género», é também reflexo do que podemos
qualificar de transmutação estilística.

Efectivamente, o que o seu realismo tem de especial é o uso de motivos que


derivam da experiência visual directa dos próprios ambientes que rodeavam
o pintor: uma romaria numa aldeia minhota, uma tasca de Figueiró em dia
de S. Martinho, ou uma tenda de bebidas na Feira de São Pantaleão que,
como referia a Illustração Portugueza na época, tratava-se de uma «scena
vulgar das nossas feiras, um episodio bastante usual da nossa vida aldeã»
(Illustração Portugueza, 27 de Jan. de 1908, 110)

Neste sentido, Malhoa parece situar-se bastante mais próximo da pintura


holandesa do século XVII, produzindo uma espécie de «provérbios ilustra-
dos», lugares-comuns que são exemplo de uma sabedoria tradicional. O
recurso ao provérbio é utilizado como fonte de conhecimento sobre os cos-
tumes e hábitos populares, mas também como forma de meditação.

Para isso, era indiferente o tratamento estilístico ou técnico. Vejam-se as dis-


semelhanças, na pintura holandesa, de como esse mesmo tema é tratado pela
escola de Haarlem ou em Leiden. Em Leiden, podemos encontrar um rea-
lismo de detalhe visual, como suporte de um conteúdo simbólico e moralista,
ao que não será estranho o facto de ali existir uma Universidade. Essa pin-
tura meticulosa, de desenho cuidado, altamente acabado, cores escuras e
forte sentido do claro-escuro, praticada por Gerrit Dou, Frans van Mieris, Ga-
briel Metsu ou Gerard Terborch, conhecidos precisamente pelos Fijnschilders,
era do agrado de uma classe culturalmente mais favorecida 54. É esse o estilo
de pintura que justamente vamos encontrar em Os Bêbados, pintado por

141
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

Malhoa em 1907, sem dúvida, uma das obras


mais importantes da sua carreira (Fig. 12).

No entanto, a pintura O Fado é, sem dúvida,


uma das mais emblemáticas, mais populares
e mais divulgadas entre as suas obras, para
além da indiscutível qualidade técnica e
completiva. Uma obra incontornável, não Figura 12
José Malhoa, Os Bêbados, 1907
apenas no contexto da carreira do artista,
como da arte portuguesa em
geral (Fig. 13).

Enquanto, em Os Bêbados, a
sua composição é estudada,
resultado de uma construção,
fazendo recurso a modelos
(de recordar que Jerónimo
Godinho figura, pelo menos,
em outras cinco obras de
Malhoa), neste caso, o pintor,
numa atitude «positivista»,
Figura 13
elaborou uma profunda pes- José Malhoa, O Fado, 1910
quisa sobre o assunto.

Rejeitando aquilo em que, já na época, se tornara o fado, partiu em de-


manda das raízes mais antigas e originais do tema. Não satisfeito com o uso
dos habituais modelos, que empregou nos primeiros ensaios, percorreu os
bairros mais pobres e degradantes da capital, até encontrar quem lhe servisse
de arquétipo, e mesmo de consultor. Este cuidado não se conteve perante os
mais ínfimos pormenores do cenário, recuperando os objectos e mais adere-
ços decorativos da casa de Adelaide, na Rua do Capelão.

Veja-se como a recepção da obra foi condicionada pela própria avaliação que
o género musical foi recebendo na sociedade portuguesa, desde os seus iní-
cios obscuros e marginais, passando pela sua «descoberta» e apropriação
pelas classes mais altas, «eruditas», até à sua aceitação e institucionalização e,
depois, tornando-se num objecto de exploração turística. Efectivamente, a
partir de 1860, com a classe média em crescente expansão, o fado começava

142
Nuno Saldanha

a atrair um público exterior à sua base social tradicional, que incluía desde
aristocratas a burgueses e intelectuais 55. Desde os finais do século XIX, veri-
fica-se um alargamento gradual do universo do fado a diferentes grupos
sociais, alheios ao circuito específico da sua origem e da sua prática, inva-
dindo progressivamente o crescente mercado das indústrias de entreteni-
mento, dirigidas às classes médias urbanas. O fado entra no mundo do
Teatro Musical e da Revista e os novos executantes passam a ser trabalhado-
res assalariados, actores e cantores profissionais.

Na pintura O Fado, mais do que o pitoresco da cena, como na actualidade é


geralmente visto, dadas as mudanças radicais que o fado entretanto sofreu, o
pintor procurou retratar uma realidade social de exclusão e marginalidade.
Estamos, portanto, nos antípodas dos dramas domésticos campestres que
roçam por vezes o burlesco e a paródia, que caracterizavam a sua pintura de
Género anterior, ao mesmo tempo que o cenário se traslada para um am-
biente urbano (embora de raiz rural, como sucedia com a maioria da popula-
ção lisboeta). Se, em Os Bêbados, outra das obras onde o seu realismo é mais
ousado, a tónica (ou o olhar de recriminação) recai sobre a acção, em O Fado,
ela recai sobre a condição. Ao mesmo tempo, revela-se como um contraponto
curioso ao quadro As Cócegas, que se estabelece nestas duas cenas de sedu-
ção, a rural e a urbana. No primeiro caso, é a mulher que toma a iniciativa,
numa imagem sadia e alegre, de cariz luminista, enquanto que, na segunda,
a mulher passa de sedutora a seduzida, num ambiente fechado, taciturno e
devasso, marcado pelos contrastes de claro-escuro, de cariz «tenebrista».

Este contraste reflecte, de forma clara, as preferências do pintor, no tocante


ao confronto entre campo e cidade. Se o fado não era ainda a «Canção de
Portugal», era já sem dúvida a «Canção de Lisboa», pelo que o seu quadro
denuncia assim algo da visão crítica e negativa que o pintor fazia da cidade.
O Fado, portanto, não pretendia ser o «postal turístico» de Lisboa, que qui-
seram fazer dele e, talvez, se possa assumir mesmo como uma alegoria anti-
-urbana.

De salientar também que se trata de uma das raras ocasiões em que o artista
figura uma cena de ambiente urbano, mas escolhendo precisamente o
aspecto mais «popular» da sua cultura.

Embora aqui possamos estar perante uma oposição entre «popular» e «eru-
dito», mais do que de uma relação de interculturalidade, as suas posteriores

143
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

leituras viriam a reverter esta ideia. Ao converter-se numa das obras mais
mediáticas do pintor, de maior impacto na cultura visual e de referência
obrigatória sobre a vida e obra de Malhoa, ou mesmo da pintura portuguesa
da época, ela acabaria por se tornar alvo das mais diversas apropriações.

O Modernismo da primeira metade do século XX não parece ter dado tanta


atenção aos aspectos da cultura popular, não obstante o facto de muitos
artistas se terem dedicado à pintura de Género, ou mesmo de terem elegido
para tema das suas pinturas objectos do artesanato tradicional, como Ama-
deu, Eduardo Viana, António Soares, Almada, Dórdio Gomes, ou alguns
artistas do Neo-realismo, onde o seu interesse é agora mais de âmbito polí-
tico e social do que estético.

Alguns artistas chegam mesmo a criar uma linguagem plástica bastante inte-
ressante, que parece emular os processos de criação e expressão da «arte po-
pular», em vez de se centrarem apenas nos aspectos temáticos. Afastando-se
assim das correntes de execução mais académicas, Milly Possoz, ou Francis
Smith com o seu estilo naïf, reinterpretam os aspectos da pintura tradicio-
nal, e dos ex-votos, com uma aparente inocência e autodidactismo.

No entanto, o caso de Malhoa é paradigmático destes fenómenos de inter-


culturalidade entre os níveis «popular» e «erudito» da pintura portuguesa.
Embora, naturalmente, seguindo uma tendência corrente da arte nacional
e internacional, ele soube efectivamente desenvolver um estilo próprio,
mormente na adaptação das exigências estéticas e do gosto contemporâneo,
cujo resultado se pautou precisamente por uma adesão generalizada do
público. Não obstante as resistências e oposições, dos meios mais «intelec-
tualizados» das vanguardas, podemos efectivamente ver nele um dos melho-
res exemplos da manifestação plástica de uma «arte popular», não só em
termos da cultura visual, modelada pelos interesses dum Portugal rural,
como no sentido da expressão do gosto da «cultura popular», entendida
como a cultura da mainstream.

O sucesso de O Fado é disso exemplo. Efectivamente, a obra viria a figurar


em diversas exposições, até aos dias de hoje, tornando-se objecto de diversas
críticas e referências, reprodução em jornais, edição de postais ilustrados e
inspirando, posteriormente, peças teatrais (Bento Mântua, 1915), quadros
vivos e montras de lojas comerciais, teatro de revista (Vista Alegre, com Maria

144
Nuno Saldanha

Albertina, 1934) 56, letras de canções (José Ga-


lhardo, Fado Malhoa, 1948) e até obras cinema-
tográficas (O Fado, de Maurice Mariaud, 1923) 57
(Fig. 14), ou ainda azulejos, artes gráficas, cari-
catura e outras pinturas contemporâneas (João
Vieira, O Fado Portuguez, 2005).
Figura 14
Maurice Mariaud, O Fado,
cliché do filme, 1923

Notas
1
«Vernacular art is more susceptible to definition, than the all-encompassing implications
of Folk Art.» (Ayres, 1996, 32, 326).
2
Veja-se a entrevista a Christopher Norris, Paris, Março de 1988, publicada em Christopher
NORRIS, 1994, «Jacques Derrida: In Discussion with Christopher Norris», Deconstruction II,
Paris, pp. 7-11.
3
O Manifesto della pittura murale, foi publicado no La Colonna, em Dezembro de 1933, e
assinado também por Campigli, Carrà e Funi.
4
Veja-se Perseu e Andrómeda, Bardo Museum, Tunes (Tunísia), Cat. n.º TBA, c. séc. III; Ga-
ziantep Museu, desc. Triclinium da Casa de Poseidon, Zeugma, séc. II-III; Antakya Museum,
inv. 849/a., de Samanda ı, c. séc. II-III.
5
Meyer SCHAPIRO, 1984, Estúdios sobre el românico, Madrid, Alianza Editorial (1.ª ed. Nova
Iorque, George Braziller, 1977).
6
Como o caso de Cirillo que, em 1794, afirmava: «Visto que a pintura se achava nhum
estado bem semelhante ao de huma herdade colocada entre coitados cheios de animaes que
impunemente, e á vista dos cultivadores destroem as seáras...» (Cirillo V. MACHADO, 1794,
Novo Compromisso da Irmandade de São Lucas, Lisboa).
7
Veja-se, por exemplo, o Regimento ou Compromisso do officio de Pintor da Cidade do Porto, e
sua Comarca, Porto, 1817, subscrito por cerca de duas dezenas de artistas dessa cidade e que
constitui um interessante documento pelo retrocesso que parece representar relativamente
ao movimento de liberalização da Pintura, tentando impedir o exercício daquela arte por
qualquer um.
8
Dezallier DARGENVILLE, 1727, «Lettre sur le choix et l’arrangement d’un cabinet curieux», in
Mercure, Fevereiro de 1727, Paris.
9
Em meados do século, numa carta de António Joaquim Padrão, espelham-se bem as críti-
cas à pintura flamenga e à temática de que tratavam: «Entre os flamengos, Alberto se visse
Itália não cederia a Rafael. A pintura deve muito aos seus estudos, mas a sua maneira he bar-
bara. Rubens engana os homens, e athe a mesma pintura engana; poes sem possuir o belo do
antigo domina aquelles sujeitos, a quem a pintura deve muito. Dos caprixos de bambuxatas,
marinhas, batalhas, caças, pexes, flores, arvoredos, etc. que forão objecto de grandes habili-

145
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

dades não se lembram sempre os amantes da arte, e pintores possuidos de huma magestosa
sizudeza» (cf. Saldanha, 1995).
10
Cirillo V. MACHADO, 1823, Collecção de Memórias relativas às vidas dos pintores, e esculto-
res, architectos, e gravadores portuguezes..., Lisboa, Victorino Rodrigues da Sylva (escrito desde
1780 a 1794, e publicada postumamente), p. 5: «A Escola Flamenga, que se jacta de ter visto
florecer hum Rubens, e hum Vandyk, he forte no colorido, na sciencia do claro-escuro,
n’hum pincel pastoso, e suave; mas copiando tambem o natural do seu paiz sem a melhor
escolha. A Hollandeza destingue-se mais pelo asseio, e excessiva paciencia, que pela nobreza,
e dignidade dos assumptos.»
11
O termo «bambuxata», como se usa em Portugal, deriva do epíteto dado a Pieter Van Laer,
Il Bamboccio, artista nórdico que trabalhou em Itália, ficando famoso pelo tipo de pintura de
costumes onde se representavam cenas típicas do povo mais rude – embriagados, discussões
populares, cenas de rua e tabernas, etc. Esta pintura bambochianti era, então, votada ao
desprezo como estilo baixo, cujo paralelo literário se estabelece com a comédia ou a novela
picaresca.
12
Sobre este artista, veja-se Agostinho R. Marques de ARAÚJO, Experiência da Natureza e
Sensibilidade Pré-Romântica em Portugal. Temas de pintura e seu consumo (1780-1825), Porto
(dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto), 1991; Nuno SALDANHA, Artistas, Imagens e Ideias na Pintura do
Século XVIII. Estudos de Iconografia, Prática e Teoria Artística, Lisboa, Livros Horizonte,
1995; Agostinho ARAÚJO, 1994, «Pierre-Antoine Quillard», in Saldanha, 1995, 261-267;
Nuno SALDANHA, O Tesouro das Imagens, Lisboa, Museu Ricardo do Espírito Santo Silva,
1996; ID., Jean Pillement (1728-1808) e o Paisagismo em Portugal no Século XVIII, cat. exposi-
ção, Lisboa, FRESS, 1997; ID., «Pierre Antoine Quillard. Os Livros e a Ilustração na Gravura
Joanina», in Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, n.º 21, Lisboa, Centro de História
da Cultura/UNL, 2005.
13
Curiosamente, graças à sua chamada de atenção por Athanasius Raczynski, seriam as obras
de Quillard e Pillement a marcar a posterior pintura de Tomás da Anunciação. Veja-se Isabel
FALCÃO, 2003, Pintura Portuguesa/Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa, IPCM.
14
Cirillo Volkmar MACHADO, Collecção de Memorias Relativas ás Vidas dos Pintores, e Es-
cultores, Architectos, e Gravadores Portuguezes..., Lisboa, Imp. de Victorino Rodrigues da
Silva, 1823.
15
Athanase RACZYNSKI, Dictionnaire historico-artistique du Portugal, Paris, Jules Renouard et
Cie., 1847, p. 202.
16
Nuno SALDANHA, Memórias de Viagem. Um olhar europeu sobre o Portugal do século XVIII,
Lisboa, Festival dos Oceanos, 2000.
17
Francisco Calvo SERRALLER, Los Géneros de la Pintura, Madrid, Taurus, 2005.
18
Léonce BÉNÉDICTE, «Beaux Arts», in Exposition Universelle Internationale de 1900 à Paris.
Rapports du Jury International, Paris, Imprimerie Nationale, MCMIV, 1904, p. 356.
19
Bernard LAMBLIN, Peinture et Temps, Paris, Meridiens Klincksieck, 1987, p. 550.
20
Francesc FONTOBA, Del Romanticismo al Novecentismo: Cien años de pintura española en la
colección Central Hispano, Santa Fé, Ayuntamineto de Santa Fé, 1999.

146
Nuno Saldanha

21
Sobre este assunto, veja-se João LEAL, Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular
e Identidade Nacional, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2000, pp. 44-54.
22
María Jesús Rueda GARCÍA, «Temática y academismo. Los géneros en las exposiciones
nacionales españolas entre 1901 y 1917», in Arte, Individuo y Sociedad, 4, Madrid, Editorial
Complutense, 1992, pp. 119-168.
23
Guy de MAUPASSANT, «Le Roman», Préface à Pierre et Jean, Paris, 1888, pp. 11-14.
24
Théophile THORÉ, Le Salon de 1847, précédé d'une lettre à Firmin Barrion par T. Thoré,
Paris, Alliance des Arts, 1847, p. 74 (publicado originalmente no jornal Constitutionnel).
25
Sobre este assunto, veja-se Rui RAMOS, «A Segunda Fundação (1890-1926)», in MATTOSO,
José (dir.), História de Portugal, vol. 6, 2.ª ed. revista e actualizada, Lisboa, Editorial Estampa,
2001, pp. 47-112.
26
Pierre VAISSE, La Troisième République et les peintres, Paris, Flammarion, 1995, p. 27.
27
Francis HASKELL, «Art and the language of Politics», in Journal of European Studies, 4, 1974,
pp. 215-232. Reed., in Francis HASKELL, Past and Present in Art and Taste: Selected Essays,
Yale, Yale University Press, 1987.
28
Sobre as manifestações patrióticas da cultura republicana, em finais do século XIX e iní-
cios do século XX, veja-se Ramos, 2001.
29
Ramalho ORTIGÃO, As Farpas, vol. XI e XV, Lisboa, Fluminense/Clássica, 1871-1882.
30
Ramalho ORTIGÃO, in Revista Ilustrada, Ano 2.º (31 de Mar. de 1891), Lisboa.
31
António NOBRE, 1980, Só, Mem Martins, Europa-América (1.ª ed. Paris, Léon Vanier,
1892).
32
Teófilo BRAGA, As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, Porto, Ernesto Chardron,
1892.
33
Teófilo BRAGA, O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições, 2 vols., Lisboa,
Livraria Ferreira, 1885.
34
Alberto de OLIVEIRA, Palavras Loucas, Coimbra, França Amado, 1894. Este nacionalismo
de Alberto de Oliveira, no dizer de Rui Ramos (2001, 499), era mais do que uma simples
moda literária, mas toda uma indústria que consistia num «voltar a representar Gil Vicente,
escrever romances regionalistas, exaltar o estilo manuelino, construir “casas portuguesas”
com alpendres e azulejos, mobilar as salas em estilo D. João V e pendurar nas paredes tape-
tes de Arraiolos e quadros de José Malhoa, com cenas populares».
35
J. Gutiérrez BURÓN, Exposiciones nacionales de pintura en España en el siglo XIX [texto poli-
copiado], Tesis doctoral en Historia del Arte, presentada a la Universidad Complutense de
Madrid, Madrid, Editorial de la Universidad Complutense, 1987, pp. 41-46.
36
S. A., «Sociedade Nacional de Bellas Artes. A quinta exposição», in O Século, ano 25, (15
de Abr. de 1905), 8367, Lisboa, p. 1. O texto sobre a exposição prolongar-se-ia durante os
dias 16 a 19, e 22 de Abril.
37
João CHAGAS, «Malhôa», in O Primeiro de Janeiro, 23 de Abr. de 1905, reproduzido em
Livro da Homenagem ao Grande Pintor José Malhoa, Lisboa, SNBA, 1928, pp. 59-61.
38
«O campo da Estremadura portuguesa, [...] ninguém mais íntimamente do que Malhôa o
conhece, ninguém mais profundamente o ama, nos seus aspectos pitorescos, nas suas tradi-

147
III ARTE POPULAR, ARTE ERUDITA E MULTICULTURALIDADE

ções, nas suas culturas, e nêsses usos e costumes provinciais [...] desfilam nos quadros dêste
pintor quási todas as fases da vida dos campos e das casas rústicas do coração de Portugal...»
(Ortigão, Abr. de 1906).
39
S. A., «O Pintor Malhôa no Brasil», Illustração Portugueza, 2.ª Série, 11, (7 de Maio de
1906), Lisboa, p. 329.
40
Veja-se José-Augusto FRANÇA, «Raul Lino e a “Casa Portuguesa”», in França, vol. II, 1966,
153-160. No entanto, o problema da procura de um «typo português de casa», surge logo na
década de 90 do século XIX, questão colocada por Gabriel Pereira, Paula Oliveira e
Henrique das Neves. Sobre esta questão, veja-se Pedro Vieira de ALMEIDA e José Manuel
FERNANDES, História da Arte em Portugal. A arquitectura moderna, vol. 14, Lisboa, Publicações
Alfa, 1986, pp. 44-50.
41
Sobre este assunto, consulte-se António SENA, Uma História de Fotografia: Portugal – 1839-
1991, Lisboa, INCM, 1991; e António SENA e Jorge CALADO (dir.), Portugal 1890-1990,
Bruxelas, Fundação Europália Internacional, 1991.
42
Alberto da Veiga Simões (Arganil, 16.12.1888-Paris, 01.12.1954). Diplomata, jornalista,
político, diplomata, historiador e poeta. Colabora em Serões (1909), na Águia (1910-1932) e
no jornal República (1914). Veiga Simões assume o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em
1921 (19 de Out. a 16 de Dez.) durante o governo de Manuel Maria Coelho e Maia Pinto.
Foi membro do Partido Republicano Radical, constituído em 1922. Por volta de 1930-38, é
embaixador em Berlim.
43
Embora esse «carisma» fosse bastante anterior a 1928 (cf. França, 1966, vol. II).
44
Em 1955, Armando de Lucena intitulava o seu artigo sobre Malhoa, para o jornal
O Comércio do Porto, «Malhoa, o pintor da terra portuguesa», mas no qual não dava qual-
quer justificação para este «portuguesismo» (Armando de LUCENA, s.d., «Malhoa, o pintor
da terra portuguesa», in BARRETO, Costa [org.], Estrada Larga, vol. 2, Porto, Porto Editora,
1959, pp. 251-254).
45
Veja-se como, ao contrário do que sucedia em 1917, este «fatalismo» era já aceite como
uma característica tipicamente portuguesa. Artur PORTELA, «A morte de Malhoa», in O No-
tícias Ilustrado, ano 6.º, 282, (5 de Nov. de 1933), Lisboa, 1933, p. 11.
46
Manuel de Sousa PINTO, Últimos Anos de Malhoa, Caldas da Rainha, Tip. Caldense
(Confer. na Assoc. de Socorros Mútuos Rainha D. Leonor, em 28 de Abr. de 1934).
47
Veja-se José-Augusto FRANÇA, Malhoa, o Português dos Portugueses & Columbano, o
Português sem Portugueses, Lisboa, Bertrand Editora, 1987.
48
José-Augusto FRANÇA, «Malhoa, 1955», in BARRETO, Costa (org.), Estrada Larga, vol. 2,
Porto, Porto Editora, s.d. [1959], pp. 242-244 (artigo publicado em O Comércio do Porto, a 10
de Mai. de 1955).
49
De facto, muitos dos lisboetas da altura vinham da província ou frequentavam a província,
e as famílias de alta estirpe possuíam parentes e propriedades fora da cidade, mas o mesmo
se passava com a maioria dos empregados do comércio da capital, como os polícias, operá-
rios e criadas de servir (Ramos, 2001, 515).
50
E o mesmo se passava em Espanha, onde idênticos termos e argumentos, eram usados
para caracterizar os pintores daquele país, desde os preceitos de verdade, realismo, do «pintor

148
Nuno Saldanha

do esplêndido sol espanhol», ou mesmo do «más genuinamente español de nuestra época»,


como se referia S. Lago a Zuloaga (S. Lago, 1917, «El arte de Zuloaga», in La Esfera, Madrid).
51
Embora as suas paisagens sejam também louvadas, e associadas no genuíno retrato que
Malhoa fizera de Portugal, serão sobretudo as pinturas de Género que se tornarão em ícones
da portugalidade e em referenciais da sua obra: Os Bêbados, Ilha dos Amores, O Fado, ou
O Emigrante.
52
Efectivamente, não é difícil encontrar obras de Malhoa fora do âmbito da História da
Arte, num conjunto de publicações de âmbito tão abrangente que vão da Etnografia à
Gastronomia.
53
Meyer SCHAPIRO, «Courbet and Popular Imagery: An Essay on Realism and Naïveté», in
Journal of the Warburg and Courtauld Institutes 4 (3–4), (Abril–Junho 1941), pp. 164-191; ree-
ditado em Meyer SCHAPIRO, Modern Art: Nineteenth and Twentieth Centuries, New Edition,
Nova Iorque, George Braziller, 1978, pp. 47–86.
54
Veja-se Rudolf Herman FUCHS, Dutch Painting, Londres, Thames and Hudson, 1978, p. 48.
55
Apesar deste interesse por intelectuais e escritores, note-se que a sua posição relativa ao
fado era geralmente bastante negativa, situação que perdura ainda vivamente na época de
Malhoa, apesar das diferenças dos circuitos sociais subjacentes. Eça de Queirós tece-lhe uma
forte crítica social, considerando que o fado termina sempre no hospital ou na enxovia,
tendo como pano de fundo uma mortalha. Ramalho Ortigão (que descreve o fadista como
«um criminoso tolerado, que vive da exploração dos outros») e Fialho de Almeida (que inti-
tula o fado como «canto de criminosos») vêem na lírica fadista um claro exemplo da deca-
dência moral do País. Já no século XX, idêntica opinião terão António Arroyo, em 1909,
considerando o fado como a canção portuguesa mais inferior de todas, e Armando Leça, em
1918, recomendava que não se tirasse o fado das vielas onde se desenvolvia e que, mostrá-lo
no estrangeiro, era envergonhar Portugal. Esta hostilidade intelectual, nomeadamente entre
os meios republicanos e socialistas, partia muitas vezes da ideia que o fado era fatalista e
conivente com uma aceitação passiva das condições sociais adversas (Nery, 2004, 145).
56
Veja-se Maria GUINOT, Ruben CARVALHO, e José Manuel OSÓRIO, Um Século de Fado.
Histórias do Fado, Madrid-Lisboa, SAPE/Capital, 1999.
57
Sobre este assunto, veja-se Raquel Henriques da SILVA, «Malhoa e o Naturalismo Portu-
guês. O Fado em Pintura», in BAPTISTA, Tiago (org.), Lion, Mariaud, Pallu: Franceses tipica-
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