CHARTIER, Roger - Cultura Popular
CHARTIER, Roger - Cultura Popular
CHARTIER, Roger - Cultura Popular
"CULTURA POPULAR":
revisitando um conceito historiográfico*
Roger Chartier
1.
A cultura popular é uma categoria erudita. Por que enunciar, no começo de uma
conferência, tão abrupta proposição? Ela pretende somente relembrar que os debates em torno
da própria definição de cultura popular foram (e são) travados a propósito de um conceito que
quer delimitar, caracterizar e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores
como pertencendo à "cultura popular". Produzido como uma categoria erudita destinada a
circunscrever e descrever produções e condutas situadas fora da cultura erudita, o conceito de
cultura popular tem traduzido, nas suas múltiplas e contraditórias acepções, as relações
mantidas pelos intelectuais ocidentais (e, entre eles, os scholars) com uma alteridade cultural
ainda mais difícil de ser pensada que a dos mundos "exóticos".
Assumindo o risco de simplificar ao extremo, é possível reduzir as inúmeras
definições da cultura popular a dois grandes modelos de descrição e interpretação. O primeiro,
no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a cultura popular como um
sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona segundo uma lógica absolutamente
alheia e irredutível à da cultura letrada. O segundo, preocupado em lembrar a existência das
relações de dominação que organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas
dependências e carências em relação à cultura dos dominantes. Temos, então, de um lado,
uma cultura popular que constitui um mundo à parte, encerrado em si mesmo, independente,
e, de outro, uma cultura popular inteiramente definida pela sua distância da legitimidade
cultural da qual ela é privada.
Estes dois modelos de inteligibilidade, portadores de estratégias de pesquisa. de estilos
de descrição e de propostas teóricas completamente opostas, atravessaram todas as disciplinas
que pesquisam a cultura popular, seja a história, a antropologia ou a sociologia.
Recentemente, Jean-Claude Passeron mostrou os perigos metodológicos de ambos: "Da
mesma forma que as cegueiras sociológicas do relativismo cultural, quando aplicado às
culturas populares, encorajam o populismo, para quem o sentido das práticas populares
cumpre-se integralmente na felicidade monádica da auto-suficiência simbólica, assim também
a teoria da legitimidade cultural corre sempre o risco [...] de levar ao legitimismo, que, sob a
forma extrema do miserabilismo, não faz senão descontar, com um ar compungido, as
diferenças como se fossem carências, ou as alteridades como se fossem um menos-ser."1
*
Nota: Este texto foi apresentado no seminário Popular Culture, an Interdisciplinary Conference, realizado no
Massachusetts Institute of Technology de 16 a 17 de outubro de 1992.
A tradução é de Anne-Marie Milon Oliveira.
1
Claude Grignon e Jean-Claude Passeron, Le savant et le populaire. Misérabilisme et populisme en sociologie et
en littérature (Paris, Gallimard / Le Seuil, Hautes Etudes, 1989), p.36. A tradução espanhola intitula-se Lo culto
y lo popular. Miserabilismo e populismo en sociologia y en literatura (Barcelona, Las Ediciones de la Piqueta,
1992).
Pode-se acompanhar Jean-Claude Passeron quando ele nota que, mesmo sendo lógica
e metodologicamente contraditórias, estas definições da cultura popular não são por isso
fundadoras de um princípio cômodo de classificação das pesquisas e dos pesquisadores: "a
oscilação entre as duas formas de descrever uma cultura popular pode ser observada numa
mesma obra, num mesmo autor", e a fronteira entre ambas "atravessa sinuosamente toda
descrição das culturas populares, dividindo-a quase sempre em movimentos alternativos de
interpretação".2
Como historiador, pode-se acrescentar que o contraste entre estas duas perspectivas —
a que enfatiza a autonomia simbólica da cultura popular e a que insiste na sua dependência da
cultura dominante — tem servido de base para todos os modelos cronológicos que opõem
uma suposta idade de ouro da cultura popular, onde esta aparece como matricial e
independente, a épocas onde vigoram censura e coação, quando ela é desqualificada e
desmantelada.
Não é possível aceitar sem nuances a periodização clássica que vê na primeira metade
do século XVII um momento de corte maior, de contraste muito forte entre uma idade de
ouro, onde a cultura popular teria sido viva, livre, profusa, e uma época regida pela disciplina
eclesial e estatal, onde ela teria sido reprimida e subjugada. Este esquema pareceu pertinente
quando se tratava de dar conta da trajetória cultural da Europa ocidental: após 1600 ou 1650,
as ações conjugadas dos Estados absolutistas, centralizadores e unificadores, e das Igrejas das
Reformas protestantes e católica, repressivas e aculturantes, teriam abafado ou recalcado a
exuberância inventiva de uma antiga cultura do povo. Ao impor disciplinas inéditas e novas
submissões, ao inculcar novos modelos de comportamento, os Estados e as Igrejas teriam
destruído em suas raízes e seus antigos equilíbrios um modo tradicional de ver e de viver o
mundo.
"A cultura popular, tanto rural como urbana, sofreu um eclipse quase total na época do
Rei-Sol. Sua coerência interna desapareceu definitivamente. Nunca mais poderia constituir
um sistema de sobrevida, uma filosofia da existência",3 escreve Robert Muchembled,
descrevendo a "repressão da cultura popular" na França dos séculos XVII e XVIII. De forma
mais sutil, Peter Burke assim descreve os dois movimentos que desenraizaram a cultura
popular tradicional: de um lado, o esforço sistemático das elites, e particularmente dos cleros
protestante e católico, "para mudar as atitudes e valores do resto da população" e "para
suprimir, ou ao menos purificar, vários elementos da cultura popular tradicional"; de outro, o
abandono, pelas classes superiores, de uma cultura até então comum a todos. O resultado é
claro: "Em 1500, a cultura popular era a cultura de todo mundo; uma segunda cultura para os
instruídos e a única cultura para os demais. Por volta de 1800, contudo, em muitas partes da
Europa, o clero, a nobreza, os comerciantes, os homens de ofício — e suas mulheres —
2
Ibid., p.37.
3
Robert Muchembled, Culturee populaire et culture des élites dans la France moderne (XVe-XVIIIe siècles)
Essai (Paris, Flammarion, 1978), p.341. No prefácio de uma reedição do seu livro (Paris, Flammarion, 1991), o
autor matiza fortemente seu ponto de vista.
haviam abandonado a cultura popular, da qual estavam agora separados, como nunca antes,
por profundas diferenças de visão de mundo."4
Existem várias razões para só se retomar com muita prudência esta periodização e este
diagnóstico que concluem pela desqualificação da cultura popular ou pelo seu
desaparecimento. Em primeiro lugar, está claro que o esquema que opõe, em torno de um
momento-chave (1600-1650), o esplendor e a miséria da cultura da maioria, reitera para a
idade moderna um contraste que outros historiadores estabeleceram para outros tempos. É o
que ocorre, por exemplo, com o antes e o depois de 1200, quando a imposição de uma ordem
teológica, científica e filosófica isola a cultura erudita das tradições folclóricas, censurando as
práticas doravante tidas como supersticiosas ou heterodoxas, e constituindo como objeto
posto à distância, sedutor ou temível, a cultura dos humildes. Se Jacques Le Goff reconhece
antes de 1200 o "crescimento de uma cultura popular leiga que vai aproveitar o espaço criado,
nos séculos XI e XII, pela cultura da aristocracia leiga, ela mesma toda impregnada do único
sistema cultural então disponível fora do sistema clerical, precisamente o das tradições
folclóricas",5 segundo Jean-Claude Sdhmitt, o século XIII inaugura a época de uma
verdadeira "aculturação": "é preciso indagar se a suspeição crescente que pesou sobre as
práticas folclóricas do corpo (a dança, por exemplo), a personalização cada vez maior da
pastoral, com o uso cada vez mais generalizado do sacramento da penitência [...], a
instituição, no século XV, de uma educação religiosa para as crianças (ver Gerson), não
contribuíram conjuntamente para interiorizar o sentido de pecado e para 'culpabilizar' todos
aqueles homens, para mascarar aos seus olhos a 'aculturação' de que eram vítimas,
convencendo-os da imoralidade da sua própria cultura."6
Daí decorre mais uma razão para não se organizar toda a descrição das culturas do
Antigo Regime a partir do corte identificado no século XVII, pois a força com a qual os
4
Peter Burke, Popular culture in early modern Europe (London, Maurice Temple Smith Ltd., 1968; reed., New
York, Harper and Row, 1978), p.207-208 e 270. Há tradução brasileira: A cultura popular na Idade Moderna:
Europa, 1500-1800 (São Paulo, Companhia das Letras, 1989).
5
Jacques Le Goff, "Culture ecclésiastique et culture folklorique au Moyen-Age: Saint Marcel de Paris et le
dragon" (1970), em Jacques Le Goff, Pour un autre Moyen-Age. Temps, travail et culture en Occident: 18
essais (Paris, Gallimard, 1977), p.236-279 (citação p.276). Há tradução portuguesa: Para um novo conceito de
Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente (Lisboa, Estampa, 1979).
6
Jean-Claude Schmitt, "'Religion populaire' et culture folklorique", Annales E.S.C., 1976, p.941-953.
7
Eugen Weber, Peasant into Frenchmen: the modernization of rural France, 1870-1914 (Stanford, Stanford
University Press, 1976).
modelos culturais impõem sentido não anula o espaço próprio da sua recepção, que pode ser
resistente, matreira ou rebelde. A descrição das normas e das disciplinas, dos textos ou das
palavras com os quais a cultura reformada (ou contra-reformada) e absolutista pretendia
submeter os povos não significa que estes foram real, total e universalmente submetidos. É
preciso, ao contrário, postular que existe um espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção
e a prática, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se
reformulações e deturpações. Nem a cultura de massa do nosso tempo, nem a cultura imposta
pelos antigos poderes foram capazes de reduzir as identidades singulares ou as práticas
enraizadas que lhes resistiam. O que mudou, evidentemente, foi a maneira pela qual essas
identidades puderam se enunciar e se afirmar, fazendo uso inclusive dos próprios meios
destinados a aniquilá-las. Reconhecer esta mutação incontestável não significa romper as
continuidades culturais que atravessam os três séculos da idade moderna, nem tampouco
decidir que, após o corte da metade do século XVII, não há mais lugar para gestos e
pensamentos diferentes daqueles que os homens da Igreja, os servidores do Estado ou as elites
letradas pretendiam inculcar em todos.
2.
Para a América do século XIX, David D. Hall responde negativamente às duas perguntas.
Segundo ele, de um lado, a "cultura pública compartilhada" do início do século XIX não era
isenta de exclusões, clivagens internas e concorrências externas; de outro lado, a
"mercadorização" dos bens simbólicos aparentemente mais estranhos ao mercado e a captura
pela cultura comercial de massa dos signos e valores da legitimidade cultural preservaram um
forte intercâmbio entre cultura letrada e cultura popular.9
Outra questão é a da articulação cronológica entre as duas trajetórias, a européia e a
americana. Devemos supor que a cultura americana percorre, com um ou dois séculos de
atraso, o caminho das sociedades do Antigo Regime da Europa Ocidental? Ou, ao contrário,
devemos considerar que as evoluções culturais da segunda metade do século XIX, que levam
as elites a desprezar uma cultura popular identificada com uma cultura industrial, são
idênticas no conjunto de um mundo ocidental unificado pelas migrações transatlânticas?
Existe, sem dúvida, um forte laço entre, de uma lado, a reivindicação de uma cultura "pura"
(ou purificada), distanciada dos gostos vulgares, subtraída às leis da produção econômica,
sustentada por uma cumplicidade estética entre os criadores e o público por eles escolhido e,
de outro lado, as conquistas da cultura comercial, dominada pela empresa capitalista e
destinada à maioria. Como o mostrou recentemente Pierre Bourdieu, a constituição na França
da segunda metade do século XIX de um campo literário definido como um mundo à parte e a
definição de uma posição estética fundada na autonomia, no desprendimento e na absoluta
liberdade de criação são fatos diretamente ligados à rejeição das servidões da "literatura
industrial" e das preferências populares que garantem seu sucesso: "As relações que os
escritores e os artistas mantêm com o mercado, cuja sanção anônima pode criar entre eles
disparidades sem precedentes, contribuem, sem dúvida, para orientar a representação
ambivalente que eles têm do 'grande público', ao mesmo tempo fascinante e desprezível, no
qual eles confundem o 'burguês', subjugado pelas preocupações vulgares dos negócios, e o
'povo', entregue ao embrutecimento das atividades produtivas."10
3.
Durante muito tempo, a concepção clássica e dominante da cultura popular teve por
base, na Europa e, talvez, nos Estados Unidos, três idéias: que a cultura popular podia ser
definida por contraste com o que ela não era, a saber, a cultura letrada e dominante; que era
possível caracterizar como "popular" o público de certas produções culturais; que as
expressões culturais podem ser tidas como socialmente puras e, algumas delas, como
intrinsecamente populares. Foram estes três postulados que fundamentaram os trabalhos
clássicos realizados na França (e em outros lugares) sobre a "literatura popular", assimilada ao
repertório da "littérature de colportage",* e sobre a "religião popular", isto é, o conjunto das
crenças e dos gestos considerados próprios da religiosidade da maioria.
Mas ficou claro agora que estas afirmações devem ser postas em dúvida. A "literatura
popular" e a "religião popular" não são tão radicalmente diferentes da literatura da elite ou da
religião do clero, que impõem seus repertórios e modelos. Elas são compartilhadas por meios
9
David D. Hall , resenha do livro de Lawrence W. Levine, Higbbrow / lowbrow, op. cit., em Reviews in
American History, mar 1990, p.10-14.
10
Pierre Bourdieu, Les règles de l'art. Genèse ett structure du champ littéraire (Paris, Editions du Seuil, 1992),
p.89.
*
Nome dado às obras populares difundidas por vendedores ambulantes do século XVI ao XIX. Seu equivalente
no Brasil seria a literatura de cordel.
sociais diferentes, e não apenas pelos meios populares. Elas são, ao mesmo tempo,
aculturadas e aculturantes.
É portanto inútil querer identificar a cultura popular a partir da distribuição
supostamente específica de certos objetos ou modelos culturais. O que importa, de fato, tanto
quanto sua repartição, sempre mais complexa do que parece, é sua apropriação pelos grupos
ou indivíduos. Não se pode mais aceitar acriticamente uma sociologia da distribuição que
supõe implicitamente que à hierarquia das classes ou grupos corresponde uma hierarquia
paralela das produções e do hábitos culturais. Em toda sociedade, as formas de apropriação
dos textos, dos códigos, dos modelos compartilhados são tão ou mais geradoras de distinção
que as práticas próprias de cada grupo social.
O "popular" não está contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar,
repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de relação, um modo de
utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são recebidos, compreendidos
e manipulados de diversas maneiras. Tal constatação desloca necessariamente o trabalho do
historiador, já que o obriga a caracterizar, não conjuntos culturais dados como "populares" em
si, mas as modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados.
É por isso que esta noção parece central para toda história cultural — com a condição,
talvez, de ser reformulada. Esta reformulação, que enfatiza a pluralidade dos uso e dos
entendimentos, se afasta, de saída, do sentido dado ao conceito por Michel Foucault quando
coloca "a apropriação social dos discursos" como um dos mais importantes procedimentos por
meio dos quais os discursos são dominados e confiscados pelas instituições ou pelos grupos
que se arrogam o direito de exercer um controle exclusivo sobre eles.11
Ele se afasta, também, do sentido que a hermenêutica dá à apropriação, quando a
representa como o momento em que a "aplicação" de uma configuração narrativa particular à
situação do sujeito transforma, pela interpretação, a compreensão que este tem de si mesmo e
do mundo, transformando assim, também, sua experiência fenomenológica tida como
universal.12
A apropriação tal como a entendemos visa a elaboração de uma história social dos
usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas
práticas específicas que os controem. Prestar, assim, atenção às condições e aos processos que
muito concretamente são portadores das operações de produção de sentido, significa
reconhecer, em oposição à antiga história intelectual, que nem as idéias nem as interpretações
são desencarnadas, e que, contrariamente ao que colocam os pensamentos universalizantes, as
categorias dadas como invariantes, sejam elas fenomenológicas ou filosóficas, devem ser
pensadas em função da descontinuidade das trajetórias históricas.
11
Michel Foucault, L' ordre du discours (Paris, Gallimard, 1971), p. 54. A tradução espanhola se intitula El
orden del discurso (Barcelona, Tusquets Editores, 1987).
12
Paul Ricoeur, Du texte à l'action. Essais d'herméneutique II (Paris, Editions du Seuil, 1986), p.152-153. Há
tradução portuguesa: Do texto à ação: ensaios de hermenêutica (Porto, Res, 1989).
continuam sendo objeto de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua
hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação).
4.
Este tipo de modelo de inteligibilidade permite transformar profundamente a
compreensão que se tem de uma prática ao mesmo tempo exemplar e central: a leitura.
Aparentemente passiva e submissa, a leitura é, na realidade, e à sua maneira, inventiva e
criadora. Falando da sociedade contemporânea, Michel de Certeau sublinha magnificamente
este paradoxo: "A leitura (da imagem ou do texto) parece constituir o ponto máximo da
passividade que supostamente caracteriza o consumidor, instituído em voyeur (troglodita ou
itinerante) numa 'sociedade do espetáculo'. Na realidade, a atividade de leitura apresenta, a
contrário, todos os traços de uma produção silenciosa: é uma deriva ao longo das páginas,
uma metamorfose do texto pelo olho viajante, uma improvisação e uma espera de
significações induzidas a partir de algumas palavras, um prolongamento de espaços escritos,
uma dança efêmera [...]. [O leitor] insinua as manhas do prazer e de uma reapropriação no
texto do outro: invade a propriedade alheia, transporta-se para ela, torna-se nela plural como
os barulhos do corpo."14
Esta imagem do leitor, invadindo uma terra que não lhe pertence, evidencia uma
questão fundamental para todo trabalho de história ou de sociologia cultural: a da variação,
em função dos tempos e dos lugares, dos grupos sociais e das "interpretive communities", das
condições de possibilidade, das modalidades e dos efeitos dessa invasão. Na Inglaterra dos
anos 50, segundo a descrição de Richard Hoggart, a leitura (ou a escuta) popular dos jornais
de grande tiragem, das canções, dos anúncios publicitários, das fotonovelas, dos horóscopos,
se caracterizava por uma atenção "oblíqua" ou "distraída", por uma "adesão entrecortada de
13
Michel de Certeau, L'invention du quotidien, 1. Arts de faire, (1980, reed. Paris, Gallimard, 1990), p.XXXVII.
Há tradução brasileira: A invenção do cotidiano, 1. Artes de fazer (Petrópolis, Vozes, 1994).
14
Ibid., p. XLIX.
eclipses" que levava a crer ou a descrer, a aderir à verdade do que se lia (ou ouvia) sem que
jamais desaparecesse a desconfiança, a dúvida sobre sua autenticidade.15 A noção de atenção
"oblíqua" permite assim entender como a cultura da maioria faz para manter à distância, ou
então para se apropriar, inscrevendo neles sua própria coerência, dos modelos que os poderes
ou os grupos dominantes lhe impõem pela autoridade ou pelo mercado. Esta perspectiva
contrabalança valiosamente aquelas que acentuam, de uma forma por demais exclusiva, os
dispositivos discursivos e institucionais que, numa dada sociedade, visam a disciplinar os
corpos e as práticas ou a modelar as condutas e os pensamentos. A mídia moderna não
impõem, como se acreditou apressadamente, um condicionamento homogeneizante,
destruidor de uma identidade popular, que seria preciso buscar no mundo que perdemos. A
vontade de inculcação de modelos culturais nunca anula o espaço próprio da sua recepção, do
seu uso e da sua interpretação.
É com uma constatação semelhante que Janice A. Radway conclui seu minucioso
estudo sobre a apropriação, por uma determinada "interpretive community" (no caso, uma
comunidade de leitoras), de um gênero maior do "mass market publishing", ou seja, os
"romances": "Mercadorias como textos literários produzidos em massa são selecionadas,
compradas, construídas e usadas por pessoas reais com necessidades, desejos, intenções e
estratégias interpretativas pré-existentes. Ao readmitirmos esses indivíduos ativos e suas
atividades criativas e construtivas no centro de nosso esforço interpretativo, evitamos nos
cegar diante do fato de que a prática essencialmente humana de criar sentido pressegue
mesmo num mundo crescentemente dominado pelas coisas e pelo consumo. Lembrando assim
o caráter interativo de atividades como a leitura [...] aumentamos nossas chances de resolver
ou de articular a diferença entre a imposição repressiva de uma ideologia e as práticas de
oposição que, embora limitadas em seu alcance e efeito, pelo menos disputam ou contestam o
controle das formas ideológicas."16
Se "ainda existem no processo de comunicação de massas oportunidades para os
indivíduos resistirem, alterarem e se reapropriarem de bens destinados, em outras esferas, a
ser comprados por eles",17 temos que admitir que, a fortiori, semelhantes possibilidades eram
oferecidas aos leitores das sociedades do Antigo Regime, num tempo em que a influência dos
modelos transmitidos pelo material impresso era menor (a não ser em situações peculiares)
que no nosso século XX. Devemos, pois, recusar toda abordagem que considere o repertório
das littératures de colportage como expressão da "mentalidade" ou da "visão de mundo" dos
seus supostos leitores populares. Tal ligação, comum nos trabalhos sobre a Bibliothèque Bleue
francesa, os chapbooks ingleses ou os pliegos de cordel castelhanos e catalães, não é mais
admissível por várias razões: porque os textos publicados em livros ou folhetos pertencem a
gêneros, épocas e tradições múltiplas e fragmentadas; porque existe, freqüentemente, uma
distância (cronológica e social) considerável entre o contexto da sua produção e os da sua
recepção ao longo dos séculos; porque há sempre um espaço entre o que o texto propõe e o
que o leitor faz dele. A prova disso são os textos que, num dado momento de sua existência
impressa, entraram para o repertório da Bibliothèque Bleue. De origem letrada, pertencendo a
gêneros muito diversos, eles conseguiram atingir, graças à sua nova forma impressa (a das
edições baratas) e ao seu modo de distribuição (a venda ambulante), públicos muito diferentes
15
Richard Hoggart, The uses of literacy: aspects of working-class life with special reference to publications and
entertainments (London, Chatto and Windus, 1957). Ver, também, a tradução francesa deste livro e a
apresentação de Jean-Claude Passeron, La culture du pauvre. Etude sur le style de vie des classes populaires en
Angleterre (Paris, Les Editions de Minuit, 1970).
16
Janice A. Radway, Reading the romance. Women, patricarchy and popular literature (Chapel Hill, The
University of North Carolina Press, 1984), p.221-222.
17
Ibid., p.17.
daqueles que garantiram seu sucesso inicial, revestindo-se assim de significações bastante
afastadas do objetivo inicial.
18
Roger Chartier, "Des 'secrétaires' pour le peuple? Les modèles épistolaires de l'Ancien Régime entre littérature
de cour et livre de colportage", em La correspondance. Les usages de la lettre au XIXe siècle (obra dirigida por
Roger Chartier, Paris, 1991), p.159-207. Há tradução espanhola: "Los secretarios. Modelos y prácticas
epistolares", em Roger Chartier, Libros, lecturas y lectores en la Edad Moderna (Madrid, Alianza Editorial,
1993), p. 284-314).
raramente é atestada antes da segunda metade do século XIX. Mas a declamação destes textos
— o que implicava que fossem conhecidos de cor e restituídos por uma palavra viva, livre da
leitura do texto e próxima da recitação dos contos — era uma das mais importantes formas de
transmiti-los, e uma das fontes das variantes que modificam a sua versão impressa de uma
edição popular para outra. Mas de outro lado ocorreu, também, o inverso: a circulação do
repertório impresso não deixou de ter efeitos sobre as tradições orais, que foram
profundamente contaminadas e transformadas (como o mostra o exemplo dos contos de fada)
pelas versões letradas e eruditas das narrativas tradicionais, tais como foram maciçamente
difundidas pela littérature de colportage.25
Atribuir a categoria de "popular" a modos de ler, e não a classes de textos, é, ao
mesmo tempo, essencial e arriscado. Após o estudo exemplar de Carlo Ginzburg, tem sido
muito grande a tentação de caracterizar a leitura popular a partir da de Menocchio — ou seja,
como uma leitura descontínua que desmembra os textos, descontextualiza as palavras e as
frases, limita-se à literalidade do sentido.26 Este tipo de diagnóstico encontrou confirmação na
análise das estruturas — ao mesmo tempo textuais e materiais — dos impressos destinados ao
grande público, cuja organização em seqüências breves e desconjuntadas, encerradas em si
mesmas, repetitivas, parece adequar-se a uma leitura picotada, sem memória, sustentada por
fragmentos do texto.
Esta constatação é sem dúvida pertinente, mas deve ser matizada. Será que as práticas
de leitura que ela considera como especificamente populares, enraizadas numa antiga cultura
oral e camponesa, são (elas e outras modalidades) diferentes das que, na mesma época,
caracterizam a leitura dos letrados? Os dois objetos emblemáticos da leitura erudita no
Renascimento — a roda de livros, que permite manter vários livros abertos ao mesmo tempo
e, em conseqüência, confrontar e extrair os trechos tidos como essenciais, e o caderno de
lugares comuns, que reúne em suas rubricas citações, exemplos, sentenças e experiências —
também fazem supor e inferir uma leitura que recorta, fragmenta, descontextualiza, e que
investe de uma absoluta autoridade o sentido literal do texto.27 A identificação dos traços
morfológicos que organizam as práticas é, por conseguinte, uma condição necessária, porém
não suficiente, para designar adequadamente as diferenças culturais. As formas populares das
práticas nunca se desenvolvem num universo simbólico separado e específico; sua diferença é
sempre construída através das mediações e das dependências que as unem aos modelos e às
normas dominantes.
5.
25
Catherine Velay-Vallantin, L'histoire des contes (Paris, Fayard, 1992).
26
Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del '500 (Torino, Einaudi Editore, 1976). Há
tradução brasileira: O queijo e os vermes (São Paulo, Companhia das Letras, 1987).
27
Lisa Jardine e Anthony Grafton, "'Studied for action': how Gabriel Harvey read his livy", Past and Present,
129, nov.1990, p.30-78; Ann Blair, "Humanist method in natural philosophy: the common place book", Journal
of the History of Ideas, vol. 53, n.º 4, out-dez 1992, p.541-551.
sistema fechado de signos cujas relações produzem sentido automaticamente; considerar esta
construção da significação como isenta de qualquer intenção ou controle subjetivos; pensar a
realidade como constituída pela própria linguagem, independentemente de toda referência
objetiva. John E. Toews fez um resumo claro desta posição radical que, a partir da
constatação de que "a linguagem é pensada como um sistema autocontido de 'signos' cujos
significados são determinados por suas relações uns com os outros, muito mais do que por
suas relações com algum objeto ou sujeito 'transcendental' ou extra-lingüístico", postula que
"a criação do sentido é impessoal e opera 'pelas costas' dos usuários da linguagem, cujas ações
lingüísticas podem apenas exemplificar as regras e os procedimentos das linguagens que eles
habitam, mas não controlam".28
Contra essas formulações radicais, acredito ser preciso relembrar que não é lícito
restringir as práticas constitutivas do mundo social à lógica que governa a produção dos
discursos. Afirmar que a realidade só é acessível através dos discursos que querem organizá-
la, submetê-la, ou representá-la (e, para o historiador, discursos que são sempre textos
escritos), não significa postular a identidade entre a lógica logocêntrica e hermenêutica que
comanda a produção desses discursos e a lógica prática, o "sentido prático" que regula as
condutas cuja trama define as identidades e as relações sociais. Toda análise cultural deve
levar em conta esta irredutibilidade da experiência ao discurso, resguardando-se de um uso
incontrolado da categoria de texto, indevidamente aplicada a práticas (ordinárias ou rituais)
cujas táticas e procedimentos não são, em nada, semelhantes às estratégias produtoras dos
discursos. Manter esta distinção é essencial, como assinala Bourdieu, para que se evite
"postular como princípio da prática dos agentes a teoria que se deve construir para dar conta
dela" ou, ainda, projetar "nas práticas [não para os atores mas] para alguém que as estuda
como algo a ser decifrado".29
Por outro lado, o objeto fundamental de uma história ou de uma sociologia cultural
compreendida como uma história da construção da significação reside na tensão que articula
as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades com os constrangimentos, as
normas e as convenções que limitam — mais ou menos poderosamente segundo sua posição
nas relações de dominação — o que lhes é lícito pensar, enunciar, fazer. Esta constatação vale
para uma história das obras letradas, pois elas se inscrevem sempre no campo dos possíveis
que as tornam pensáveis. Vale para uma história das práticas que são, elas também, invenções
de sentido limitadas pelas múltiplas determinações (sociais, religiosas, institucionais etc.) que
definem, para cada comunidade, os comportamentos legítimos e as normas incorporadas. Ao
caráter automático e impessoal da produção de sentido tal como postula o "linguistic turn", é
preciso opor outra perspectiva que enfatize as diferenças, as liberdades culturais e socialmente
determinadas, que os "interstícios inerentes aos sistemas gerais de normas [ou as contradições
existentes entre eles] deixam para os atores".30
28
John E. Toews, "Intellectual history after the linguistic turn: the autonomy of meaning and the irreductibility
of experience", American Historical Review, 92, out.1987, p.879-907 (citação p.882). Ver, também, nos dois
pólos da discussão, David Harlan, "Intellectual history and the return of literature", American Historical Review,
94, jun.1989, p.581-609, e Gabrielle M. Spiegel, "History, historicism, and the social logic of the text in the
Middle Ages", Speculum a Journal of Medieval Studies, vol. 65, n.º 1, jan.1990, p.59-86.
29
Pierre Bourdieu, Choses dites (Paris, Editions de Minuit), p.76 e 137). Há tradução brasileira: Coisas ditas
(São Paulo, Brasiliense, 1990).
30
Giovanni Levi, "Les usages de la biographie", Annales E.S.C., 1989, p. 1325-1335, que discute a definição do
conceito de representação proposta por Roger Chartier em "Le monde comme représentation", Annales E.S.C.,
1989, p. 1505-1520 (este último tem tradução em português: "O mundo como representação" Estudos
Avançados, 5/11, jan-abr 1991, p. 173-191).
Uma segunda dificuldade reside nas definições implícitas de uma categoria como a de
"cultura popular". Queira-se ou não, esta categoria leva a perceber a cultura que ela designa
como tão autônoma quanto as culturas longínquas e como situada simetricamente em relação
à cultura dominante, letrada, elitista, com a qual forma um par. É preciso dissipar essas duas
ilusões complementares. De um lado, as culturas populares estão sempre inscritas numa
ordem de legitimidade cultural que lhes impõem uma representação da sua própria
dependência. De outro, a relação de dominação, simbólica ou não, nunca é simétrica: "Uma
cultura dominantes não se define, em primeiro lugar, por aquilo a que renuncia, enquanto os
dominados sempre se confrontam com aquilo que lhes é recusado pelos dominantes —
qualquer que seja sua atitude depois: resignação, negação, contestação, imitação ou
recalque".31
Ao nos afastarmos do implícito espontâneo que habita o conceito de cultura popular
somos levados de volta à nossa pergunta inicial: como articular (e não só utilizar de forma
alternada) esses dois modelos de inteligibilidade da cultura popular que são, de um lado, a
descrição dos mecanismos que levam os dominados a interiorizar sua própria ilegitimidade
cultural e, de outro lado, o reconhecimento das expressões pelas quais uma cultura dominada
"consegue organizar, [numa] coerência simbólica cujo princípio lhe é próprio, as experiências
da sua condição"?32 A resposta não é fácil e hesita entre duas alternativas: operar uma triagem
entre as práticas mais submetidas à dominação e aquelas que usam de astúcia com ela ou a
ignoram; ou, então, considerar que cada prática ou discurso "popular" pode ser objeto de duas
análises que mostrem, alternadamente, sua autonomia e sua heteronomia. O caminho é
estreito, difícil, instável mas acredito que seja, hoje em dia, o único possível.
Roger Chartier é diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales.
31
Jean-Claude Passeron, op.cit., p.61.
32
Ibid., p. 92.