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ESTUDO DA

SOCIEDADE

Marli de Fátima Silva


Cultura popular
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Reconhecer o que é cultura popular.


„„ Explicar a evolução, os agentes e a dinâmica da cultura popular.
„„ Identificar a quem servem os objetos produzidos pela cultura popular.

Introdução
Estudar cultura popular é entender um pouco mais os símbolos que
compõem nossa própria história, é entrar em contato com nossos avós e
bisavós, a fim de saber o que fomos para descobrir o que somos. Assim,
este texto aborda primeiro o conceito de cultura popular brasileira, para,
na sequência, apresentar uma breve evolução histórica, finalizando com
a ideia de produção e consumo.

O que é cultura popular?


Lembremos que cultura corresponde a um conceito bastante complexo asso-
ciado aos modos de pensar, de sentir e de fazer de uma determinada socie-
dade — sendo que, dentro desta, há, ainda, um emaranhado de subgrupos e
subculturas, os quais formam um painel geral intrincado. Consonante toda a
problemática que permeia a ideia de cultura, o certo é que ela ilumina modos
de comportamentos e de práticas sociais, por meio de uma emaranhadíssima
teia de signos e significados.
Embora haja certa padronização cultural (ou uma ideia de padronização
cultural) entalhada no contexto da globalização, o que se vê é uma mega-
diversidade cultural e multiculturalismos nos mais diversos quadrantes do
planeta. Se, por um lado, é certo que há uma assimetria naquilo que se chama
de globalização econômica, por outro lado, defender uma globalização cultural
é, seguramente, muito mais penoso (ao escolhermos a expressão entalhada,
buscamos uma remissão a um ofício manual, a qual se opõe à própria noção
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de escala industrial, típica de uma sociedade globalizada economicamente


sob o imperativo da tecnologia da repetição).
Portanto, em que consiste a cultura popular? Há cultura que não seja popu-
lar? Estamos diante apenas de uma discussão intelectual ou, simplesmente, de
uma construção semântica? Antes de abrir um leque de discussão a respeito
dessa “modalidade” de cultura, é preciso se deter especificamente em uma
conceituação de “cultura popular”, a qual corresponde a um conjunto de fatos
e fenômenos — como saberes, crenças, costumes e tradições — produzidos
por um determinado grupo social.
É importante chamar a atenção para o fato de que a ideia de cultura popu-
lar está associada a contingentes humanos e porções territoriais diminutos,
ou seja, não é extensiva à totalidade da sociedade em que se insere, pois o
conceito de popular se opõe a outras modulações culturais, como a erudita e
a massificada, embora as três formas de se pensar a cultura se permeiem de
modo constante e intenso.
Nesse tocante, é na possível oposição cultura popular x cultura erudita x
cultura de massa que reside um dos pontos mais debatidos dessa temática,
afinal, não é porque há uma universalidade na obra de Machado de Assis que
a literatura de cordel, associada mais ao improviso, à oralidade e à tradição,
se torna menos literatura, mas, sim, uma criação literária distinta.
Todavia, há uma extensa produção intelectual a respeito das modulações
culturais apontadas, além de certo consenso de que a cultura popular corres-
ponde a um conjunto de saberes determinados pela interação dos indivíduos
em contextos comunitário e geográfico específicos, e que, desse modo, reúne
elementos e tradições culturais associados à linguagem popular, à oralidade
e ao improviso, por exemplo.
Sendo assim, o folclore está incluso na cultura popular — note-se que,
não raro, essas expressões são utilizadas como sinônimo. A palavra folklore,
cunhada pelo arqueólogo inglês Willian John Thoms, por volta de 1850, signi-
fica folk (povo) + lore (saber), ou seja, saber de um povo. Constituem objetos
dos estudos folclóricos, lendas, superstições, crendices, sincretismo religioso,
culinária popular, além das festas populares, entre outros fenômenos de es-
trato popular (se, no Brasil, interessam aos folcloristas as festas juninas ou o
círio de Nazaré, por exemplo, aos irlandeses interessa a festa de São Patrício,
importante não somente na Irlanda, mas também na comunidade irlandesa
dos Estados Unidos).
Tradicionalmente, a expressão folclore foi relacionada a um conjunto de len-
das e mitos que constituem as heranças cultural e social de um povo, portanto,
transmitidos de geração para geração. No Brasil, escolheu-se o dia 22 de agosto
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como a data comemorativa do folclore brasileiro — é bastante ilustrativo que


o evento possua expressão oficial, sendo instituído pelo Congresso Nacional
Brasileiro, no contexto de uma ditadura conservadora e nacionalista, no qual se
oficializou o Dia do Folclore Nacional, tradicionalmente pensado e celebrado
em instituições escolares (sobretudo de ensino infantil) até os dias atuais.
Se, na essência, o folclore faz parte da cultura popular, incluem-se, também,
manifestações como o artesanato, as festas temáticas, as crenças no sagrado
e as práticas de cura. No entanto, há uma extensa lista de práticas e criações
ditas populares que tornam o conceito de cultura popular ainda muito crivado
de interrogações e lacunas, como no caso de produção artística, música, dança,
literatura, pintura e teatro.

Preconceito e resistência
Algumas denominações exigem muita cautela para serem usadas, na medida
em que, sem tal cuidado, podem ser empregadas para encobrir — em vez de
desvendar — a realidade, além de se transformarem em instrumento de hierar-
quização e discriminação entre pessoas, objetos, atos, caso, por exemplo, dos
termos arte popular e arte erudita. Um leigo, ou mesmo a visão capitalista,
pode dissociar os trabalhos intelectual e manual, vinculados respectivamente
à elite e ao povo. Daí fica subentendido que a produção popular pertence ao
campo do irracional ou simplesmente do executar sem se preocupar com
qualquer elaboração.
É inegável que essa classificação é um tanto quanto discriminatória, pois
confina as criações populares em um gueto, resultando em reserva de mercado
para a produção de origem erudita, dirigida geralmente à camada social domi-
nante. Para discutir a oposição entre o erudito e o popular nas artes plásticas,
vale a pena lembrar que, em seu conceito “teoria tradicional e teoria crítica”,
os pensadores Theodor Adorno e Max Horkheimer defenderam, em 1947, que
a arte não deveria ser massificada, pois era feita e destinada à elite.

Portanto, a dupla de pensadores da escola de Frankfurt defendia que, se o


povo não tem acesso à arte, não pode criá-la nem julgá-la. Para eles, Van Gogh
não deveria virar figurinha. Já para o pensador Walter Benjamim, da mesma
escola, “rompendo o envoltório da arte, põe os homens, qualquer homem, o
homem de massa, em posição de usá-las e gozá-las” (RAIZ, 2006, p. 28 apud
LOPEZ; FREIRE, 2007, p. 9).
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Vê-se que o caso está calcado em como a arte deve ou não ser introduzida
na sociedade.

Entre tantas possibilidades de definição de cultura popular, na Recomendação sobre


a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular foi cunhada a seguinte definição: “é o
conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural, fundadas na tradição,
expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem
às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e
social” (CONFERÊNCIA GERAL DA UNESCO, 1989, p. 2). O documento foi gerado na
25ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura (Unesco), em 1989.

A evolução, os agentes e a dinâmica da cultura


popular
Se há uma oposição polêmica entre culturas popular e erudita, nem sempre
a história foi assim, pois, como qualquer outra modulação cultural, a cultura
popular (e os fenômenos humanos que ela encerra) é extremamente dinâmica
e, portanto, sujeita ao contexto histórico em que se insere.

No final do século XVIII e início do século XIX, os intelectuais românticos valorizaram de


maneira positiva a cultura popular em um momento em que a repressão sobre ela se
intensificou. Esses estudiosos, bastante curiosos em relação ao bizarro, dedicaram-se
a esse tema e foram “responsáveis pela fabricação de um popular ingênuo, anônimo,
espelho da alma nacional, [sendo] os folcloristas seus continuadores, buscando no
Positivismo emergente um modelo para interpretá-lo” (VILHENA, 1997, p. 24). Entre
esses românticos, estão os alemães Jacob e Wilhelm Grimm, que, impulsionados em
grande parte pelo interesse nas tradições populares despertado pelo movimento
romântico naquele país e pelo contexto de grandes transformações do qual faziam
parte, inauguraram uma coleta de contos pelo contato direto com os camponeses,
indicando inclusive o local onde a história fora ouvida. Esses estudiosos alemães e o
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método utilizado por eles na coleta das tradições populares tiveram grande influência
sobre os primeiros folcloristas brasileiros.
Como aponta Ortiz (1985), até meados do século XVII, a fronteira entre cultura popular
e cultura de elite não estava bem delimitada, porque a nobreza participava das crenças
religiosas, das superstições e dos jogos realizados pelas camadas subalternas. É claro
que não se pode dizer o mesmo com relação ao povo no universo das elites. No
entanto, o que nos interessa é que pouco a pouco começou a ocorrer o distanciamento
entre a cultura de elite e a cultura popular, intensificando o processo de repressão
da primeira sobre a última. Na Europa, os motivos que contribuíram para isso foram,
principalmente, de ordem política. A implementação de uma política de submissão
das almas com base na doutrina oficial definida pela teologia, feita por parte das igrejas
católica e protestante, e o processo de centralização do Estado, ou seja, instituição
de uma administração unificada dos impostos, da segurança e da língua, podem ser
identificados como os principais fatores que levaram à separação entre as duas culturas
apontadas. Ortiz (1985) destaca ainda a crescente preocupação das autoridades com
práticas que geram protestos e tumultos, como o Carnaval e outras manifestações
populares. Dessa forma, o povo entra no debate moderno e passa a interessar para
legitimar a hegemonia burguesa, mas incomoda como o lugar do inculto. Nesse
período, teve início o processo de desencantamento do mundo, baseado em valores
não apenas de universalidade e racionalidade, mas também de valorização da cultura
burguesa moderna em detrimento da cultura popular tradicional.
Fonte: Catenacci (2001, p. 28-29).

Cultura popular — Quem a produz e para quem


se produz?
Ao redor deste “vasto mundo” (ANDRADE, 1930, documento on-line) — como
o classificou o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade no “Poema de
sete faces” —, as realidades sociais se materializam por meio de diversidades
culturais, sendo que a cultura, por sua vez, possui as mais variadas modulações,
como no caso de certas manifestações que se convencionou designar pelo
complexo, polissêmico e polêmico conceito de “cultura popular”.
Assim, a extensa variedade de perspectivas de visões de mundo engendradas
no interior das classes sociais orienta formas culturais distintas entres diferen-
tes agentes sociais ao longo da história. Enquanto tantas práticas e criações
culturais tornam-se registros memorialísticos ou objetos para a reconstituição
historiográfica, um tanto dessa criação humana permanece viva nas práticas
sociais cotidianas, sobretudo as manifestações da cultura popular, que surgem
fora dos salões oficiais, portanto informais, e são desenvolvidas com elevadas
doses de espontaneidade e improvisação.
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A filósofa Marilena Chauí, para quem a cultura popular constitui uma forma
de resistência, afirma que esse fenômeno equivale a um “conjunto disperso de
práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria,
distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas,
representações e formas de consciência” (CHAUI, 1986, p. 25).
Se há uma duração na permanência dos produtos da cultura popular, isso
se deve tanto ao apreço que as comunidades que os produziram possuem pela
tradição e pela oralidade — mecanismo de linguagem que lhes é pertinente
—, quanto aos agentes envolvidos na produção/recepção de tais produtos
culturais. E quem são eles?
A resposta a essa questão é razoavelmente simples, pois, longe de todo
o debate que se tem realizado a respeito do tema, há um consenso de que a
cultura popular não apenas possui distintos modos de expressão no interior
de diversificados grupos sociais, os quais se manifestam por meio da arte, do
folclore, da religião, entre tantos outros, mas também possui um acento no
fato de que é produzida pelo grupo que a consome.
Diferentemente da produção cultural feita para atender à massa, a cul-
tura popular é consumida por aqueles que a produzem. De um lado, a massa
corresponde a um aglomerado heterogêneo de pessoas, as quais os meios de
divulgação e de comércio tratam de forma homogênea como um possível
consumidor, ou seja, trata-se de um genérico universo de consumidores de
objetos em geral e de produtos culturais em escala, especificamente — a cultura
para massas está associada ao processo de industrialização, sendo típica da
era industrial. Por outro lado, a cultura popular está lastreada na produção
de itens para atender às necessidades comunitárias, seja a necessidade de
sobrevivência material ou a de utilitarismo cotidiano.

Para entender melhor a cultura popular brasileira, confira


o link ou código a seguir (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2018).

https://goo.gl/8vKzVM
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O Instituto e projeto “A Gente Transforma”, que tem Marcelo Rosembaum como um dos
criadores, usa o design para expor a alma brasileira, mergulhando na cultura dos povos
que constituem o país. De acordo com a proposta do grupo, o projeto trabalha com um
resgate de histórias do passado com o intuito de recriar o presente e construir o futuro
sob novos pilares. O projeto multidisciplinar iniciou em 2012, com o intuito de fazer
com que profissionais de diferentes áreas vivenciassem o dia a dia de um povoado no
sertão do Piauí. Visava-se, desse modo, a descobrir, por meio do artesanato, os valores
essenciais daquela comunidade a fim de que ela se apropriasse da própria memória
cultural, adquirindo liberdade para mudar a realidade. Com o intuito de usar o design
como ferramenta estética para geração de valor e transformar o artesanato produzido
pela comunidade em produto, o projeto propunha que a comunidade entregasse
objetos de valor para o mundo, que reconheceria o valor daquela peça como arte,
tal qual ocorre nos grandes centros. No entanto, no momento em que estabeleceram
contato com a comunidade, os profissionais do projeto não apenas descobriram e
começaram a trabalhar com a ideia do design essencial como metodologia de trabalho,
mas também aprenderam a trabalhar em conjunto, a entender melhor a história dos
antepassados, a compartilhar saberes e entender o valor da própria cultura ancestral
como algo sagrado.

ANDRADE, C. D. de. Poema de sete faces. In: . Alguma poesia, 1930. Disponível
em: <http://www.horizonte.unam.mx/brasil/drumm1.html>. Acesso em: 01 ago. 2018.
CATENACCI, V. Cultura popular: entre a tradição e a transformação. São Paulo em
Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 28-35, abr./jun. 2001. Disponível em: <http://www.
scielo.br/pdf/spp/v15n2/8574.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2018.
CHAUI, M. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
CONFERÊNCIA GERAL DA UNESCO, 25., 1989, Paris. Recomendação sobre a salvaguarda
da cultura tradicional e popular. Paris: UNESCO, 1989. Disponível em: <http://portal.
iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Recomendacao%20Paris%201989.pdf>. Acesso
em: 1 ago. 2018.
LOPEZ, D.; FREIRE, M. O jornalismo cultural além da crítica: um estudo das reportagens na
revista Raiz. Biblioteca Online de Ciências da Comunicação, [S. l.], p. 1-12, 2007. Disponível
em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/lopez-debora-freire-marcelo-jornalismo-cultural.
pdf>. Acesso em: 1 ago. 2018.
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MINISTÉRIO DA CULTURA. Entenda o que é cultura popular e suas diferentes manifesta-


ções. Prêmio culturas populares 2018, [S. l.], 2018. Disponível em: <http://culturaspopulares.
cultura.gov.br/entenda-o-que-e-cultura-popular-e-suas-diferentes-manifestacoes/>.
Acesso em: 1 ago. 2018.
ROSENBAUM. Várzea queimada: espírito, matéria e inspiração. São Paulo, 2016. Dispo-
nível em: <http://rosenbaum.com.br/projetos/agtvarzeaqueimada/espirito-materia-
e-inspiracao/>. Acesso em: 1 ago. 2018.

Leituras recomendadas
ARANTES, A. A. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BALEIRO, Z. Vai de Madureira. Letras de músicas.fm, [2015]. Disponível em: <http://www.
letrasdemusicas.fm/zeca-baleiro/vai-de-madureira>. Acesso em: 1 ago. 2018.
BOSI, E. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis: Vozes, 1972.
BURKE, P. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CANCLINI, N. G. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CHAUI, M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo:
Moderna, 1984.
ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
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