Huberto Rohden - Paulo de Tarso
Huberto Rohden - Paulo de Tarso
Huberto Rohden - Paulo de Tarso
PRESENTED BY
The Author
BS 2505 .R63 1941
Rohden, Huberto.
Paulo de Tarso, o maior
bandeirante do evangelho
HUBERTO ROHDEN
PAULO DE TARSO
O MAIOR BANDEIRANTE DO EVANGELHO
SEGUNDA EDIÇÃO
1941
RIO DE JANEIRO
Caixa Postal 831
NIHIL OBSTAT IMPRIMATUR
Rio, 3 de Fevereiro de 1939 Rio, 6-2-1939
P. J. Bt. de Siqueira Mons. R. Costa Rego, V, G»
PRELIMINARES
Na alvorada do Cristianismo, nenhum homem prestou tão ingente tra-
balho como Paulo de Tarso. homem
de vistas largas,
Espírito dinâmico,
livre de quaisquer compromissos e preconceitos, reunindo em sua pessoa
as três grandes culturas da época —
hebraica, grega e romana é ele o -
—
apóstolo por excelência, o maior campeão do Evangelho.
Nenhumoutro homem teve sobre a evolução histórica do Cristianismo
maior mais decisiva influência do que Paulo de Tarso. Percorrendo o
e
oriente e o ocidente, levou ao seio da jovem igreja inumeráveis multidões
de almas, povos e países inteiros.
Divide-se a existência desse- homem singular em dois períodos, de du-
ração quase igual, mas de caráter diametralmente oposto um ao outro. Pó-
de-se mesmo falar em duas como
vidas desse intrépido evangelizador, assim
também usava dois nomes, Saído e Paulo: 30 anos de Tarso a Damasco,
e 30 anos de Damasco a Õstia. E, tanto na primeira como na segunda fase,
desempenha ele completa e integralmente o seu papel. Adversário mortal
de atitudes penumbristas e de posições indefinidas, cumpre Paulo a sua
tarefa sempre com corpo e alma, com todas as fibras do seu ser, com toda
a veemência do seu génio, com
toda a paixão da sua natureza de fogo. A
princípio, combate o Nazareno sem tréguas nem descanso, porque vê nele
o grande inimigo da religião revelada; e depois o adora com todas as veras
do coração, e o quer ver adorado do mundo inteiro, porque o reconhec
como o Redentor da humanidade.
No centro da vida de Paião está o Cristo ontem como inimigo, —
hoje como amigo; a princípio, alvo de ódio; depois, objeto de amor c
glorificação.
- Paulo não conhece meias medidas. Detesta a mediocridade. É o tipo
autêntico do cristão integral.
E, em todo esse ardor, nada há de fanatismo; tudo é pautado por uma
serena racionalidade, que mais parece ocidental do que oriental.
—3—
sua orgulhosa filosofia judaica. . . Ruínas e escombros . . . Não ficou pedra
sobre pedra. .
Tão intensa é a luz do céu que apaga todas as luzes da terra. Saulo
está cego.Completa escuridão por espaço de três dias. É necessário que,
por algum tempo, se cale a terra para que o céu possa falar . .
M.
—4—
Paulo todo o perigo que vai na hipertrofia do corpo e atrofia da alma da
religião.
giosa.
Por isso, encontrou Paulo maiores óbices entre os judeus do que entre
os gentios. É que o Evangelho não cala numa alma que não esteja inti-
mamente convencida da sua miséria moral e da necessidade do auxílio
divino.
gião ! . . .
É
de urgente necessidade recolocarmos o Evangelho bem ao meio da
vida real da sociedade e dos povos. Não há um Cristo domingueiro e
um Cristo da semana; não há um Cristo da igreja e outro da sociedade;
há um só Cristo, um só Redentor, um só Medianeiro entre Deus e os ho-
mens. .
—6—
nha de campanha de evangelização, campanha de interio-
espiritualização,
rização,campanha mesmo —
por mais que escandalize aos inexperientes e
aos sonâmbulos —
campanha de "cristianização" do nosso decantado cato-
licismo tradicional.
w
-ri- -if
Atualmente em a edição.
(1) 3.
—7—
Ê possível que o espírito deste livro não agrade a todos os meus lei-
tores —
eu escrevo para agradar a quem quer que seja
nem maximê —
àqueles que consideram a religião apenas como um artigo de luxo, uma
espécie de trajo domingueiro que se veste em dias festivos e se despe em
dias de trabalho e diversão profana. São Paulo não conhecia essa espécie
de "cristianismo" . .
Este livro visa tão somente os espíritos de boa vontade, os que since-
ramente procuram a verdade, os que teem a coragem de sacrificar as con-
venções do ambiente à convicção da conciência, os que realmente querem
viver de Cristo, com Cristo e para Cristo, sem perguntar pelas opiniões
de quem quer que seja.
A
primavera espiritual inaugurada pelo movimento da "Ação Cató-
lica" está a reclamar uma sincera, profunda e vigorosa re cristianização de
cada um de nós, um decidido retorno às fontes eternas da espiritualidade
cristã. Se a "Ação Católica" não quiser ser uma simples modalidade li-
túrgica e definhar aos poucos, a exemplo de tantos outros movimentos
religiosos, promissor amente iniciados, e ingloriamente extintos, é indispen-
sável informá-la do espírito do grande convertido de Damasco; é necessário
<jhc como ele recoloquamos no centro de todas as nossas práticas re-
a
Aditamento para a 2. edição
Diversos leitores, mais "piedosos" que inteligentes, escandalizaram-se
da liberdade e do desassombro com que verbero certos fetichismos pseudo
cristãos dos nossos dias. Dois deles deram-se ao trabalho de respigar pa-
cientemente as "heresias" que julgam ter encontrado nas paginas de "Paulo
de Tarso" . Um
deles exarou, a maquina, nada menos de 75 enormes lau-
das, ao passo que outro se limitou a 15 paginas datilo grafadas.
É profundamente deplorável e tristemente sintomático que os mais
veementes protestos contra esta obra —
cuja perfeita ortodoxia católica está
amplamente garantida pelo NIHIL OBSTAT e IMPRIMATUR da Curia
Metropolitana do Rio de Janeiro —
tenham partido precisamente de homens
que, vi muneris, teriam o dever de defender a pureza do Evangelho no sen-
tido do apostolo Paulo, e preservá-o de toda a tentativa de adulteração.
A nenhum desses "escandalizados" levo a mal a campanha que moveram
contra "Paulo de Tarso" ; porque, afinal de contas, cada um pensa e age
conforme a orientação do seu espirito e as qualidades do seu caráter. Peço-
Ihes apenas que me concedam a mim a mesma liberdade de pensamento que
reclamam para si mesmos. E, antes de tudo, não cometam o sacrilégio de
identificar a largueza do Cristianismo com a estreiteza de sua mentalidade
pessoal.
Não leiam os espíritos acanhados esta segunda edição, que reproduz as
mesmíssimas "heresias" da primeira. Se a alguém interessar o que penso
dos magnos problemas espirituais, encontrará amplas notícias nos meus li-
vros; "Problemas do Espírito", "Jesus Nazareno", "Em Espírito a Verda-
de", "Agostinho" e outros.
,
HUBERTO ROHDEN.
Rio de Janeiro — Caixa postal 831.
—9—
I
DE TARSO A DAMASCO:
FARISEU E PERSEGUIDOR
1. ISRAELITA E CIDADÃO ROMANO
(Fp. 3, 5; At. 22, 28)
— 13 —
Quem era Saulo? (1).
Responde ele mesmo: "Sou do povo de
Israel, da tribu de Benjamin,
hebreu e filho de hebreus, circuncidado no oitavo dia; fui fariseu em face
da lei" (Fp. 3, 5).
À interrogação do comandante da fortaleza romana em Jerusalém,
não hesita Saulo em declarar: "Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade
nada obscura da Cilicia" (At. 21, 39).
À
pergunta do oficial sobre a sua nacionalidade, responde ele: "Eu
sou cidadão romano de nascimento" (At. 22, 28).
Vai através de todas essas declarações um quê de briosa ufania: or-
gulha-se Saulo da qualidade de hebreu ;
gloria-se Paulo dos foros de cidadão
romano. É que via nisto e naquilo armas poderosas para a conquista es-
• piritual do mundo.
(1) Haurimos muitos dos elementos deste livro nas obras de Holzner : Paulus;
de Bauman : Saint Paul, e de outros autores modernos.
— 14 —
Aqui, sobre as águas do Cydnus, reclinada em luxuosos coxins
de elegante galera, aguardara a sereia egípcia, Qeópatra, o seu poderoso
amante Marco Antônio (41 a. Cr.).
Mais acima, não longe das cachoeiras, mostravam os professores a
seus alunos o lugar histórico onde Alexandre Magno acampara com o seu
exército, depois de atravessar o fatídico desfiladeiro do Taurus. Pouco
além, às margens do Issus, era o cenário da trágica derrota de Dario, rei
dos persas.
Tudo isto via e ouvia o hebreuzinho, filho de ancestrais fariseus, nas-
cido no ambiente livre e amplo duma província da Ásia, onde as armas
de Roma dominavam os corpos e a filosofia de Atenas empolgava os es-
píritos.
— 15 —
como ''lixo" (1) toda essa jactância de perfeição legal e todas essas prosá-
pias genealógicas de Israel.
Nada sabemos dos progenitores de Saulo. Não os menciona com pa-
lavra alguma. É de supor, todavia, que seu pai, tenha sido um homem
austeramente religioso, meticulosamente mosaico. Qesde cedo, naturalmente,
iniciou os filhos nos mistérios da Bíblia hebráica, fazendo-lhes conhecer,
outrossim, a versão grega dos tradutores alexandrinos.
Do fato de ter Saulo aprendido o ofício de tecelão, será lícito inferir
que seu pai exercia profissão idêntica?
Terá Saulo conhecido sua mãe? ou terá a infância desse grande es-
pírito corrido à sombra duma orfandade sem afeto nem carinhos maternos?
Mais de uma vez, nas suas cartas, recorre o apóstolo a suaves alegorias
tiradas do ambiente das dores e solicitudes maternas. Na epístola aos Ro-
manos (16, 13) envia cordiais saudações à mãe de Rufo, "que também
é minha", diz ele, revelando ternura finial para com uma senhora que,
nas penosas expedições apostólicas, o agasalhara e tratara com carinho
de mãe.
A única notícia histórica que temos da parentela de Saulo é a menção
que Lucas faz nos "Atos dos Apóstolos" (23, 16) duma irmã casada que'
ele tinha em Jerusalém e dum sobrinho, filho dessa mesma irmã.
— 16 —
2. ENRIQUECENDO A INTELIGÊNCIA
E O CORAÇÃO *
— 17 —
campinas, onde hirsutos caçadores perseguiam as feras e ingénuos pastores
tangiam as suas primitivas charamelas. E quando os seus camaradas, no
Ginásio de Tarso, brincavam de " Cipião e Anibal", ou contavam os feitos
bélicos de César e Alexandre, peregrinava Saulo com Moisés pelas estepes
da Arábia, ou penetrava com o atleta Sansão nas cidades dos filisteus . . .
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— 18 —
3. POR ENTRE O SUSSURRO DO TEAR
— 19 —
Tal deve ter sido, nos anos subsequentes, o trabalho noturno do grande
arauto do Evangelho.
Em face disto se compreende o sentido das palavras com que ele
finaliza a epístola aos gálatas: "Vede com que letras grandes vos escrevo"
pois. como poderia caprichar em caligrafia um homem exhausto de fadiga,
com as mãos calejadas e os dedos endurecidos pelo diuturno contacto com
tão pesados e primitivos instrumentos?
Mais no apogeu do seu apostolado, continua Paulo fiel ao seu
tarde,
ofício de tecelão. É que não quer ser "pesado a ninguém", não tolera
que o acusem de prègar o Evangelho por vil interesse; pois, diz ele: "Eu
não procuro o que é vosso, mas, sim, a vós mesmos".
— 20 —
4. AOS PÉS DE GAMALIEL
(At. 22,3; 26,4; GL 1, 14)
— 21 —
a mentalidade de Gamaliel as palavras sensatas e calmas que ele dirige
ao Sinédrio, em defesa dos apóstolos presos, ponderando: "Se essa obra
vem dos homens, não tardará a ser destruída; se, porém, vem de Deus, não
a podereis destruir —
a menos que vos queirais opôr ao próprio Deus"
(At. 5, 38-39).
Não cabe aqui o provérbio: "Qual mestre, tal discípulo". Pois quem
conhece a índole de Saulo não deixará de nela descobrir qualidades diame-
tralmente opostas às do grande rabi de Jerusalém. É bem provável que
entre o liberalismo tolerante de Gamaliel e a intransigente ortodoxia do
fariseu de Tarso se tenham travado violentos conflitos, durante aqueles
anos de tirocínio bíblico, à sombra do santuário nacional de Israel.
Mais tarde, insatisfeito com a desídia e as meias-medidas do Sinédrio,
vai Saulo a toda a brida a Damasco, afim de exterminar o último adepto
do Nazareno. Não conhecia transigência nem perdão. É extremista reli-
— 22 —
a enfrentar legiões de inimigos, capitulou ante o fogo das pupilas de Be-
renice . .
Sei que em mim, isto é, em minha carne, não habita o que seja bom. Está
em mim o querer o bem, mas não o executar. Segundo o homem
.
interior, acho satisfação na lei de Deus; mas percebo nos meus membros
outra lei, que se opõe à lei do meu espírito, e me traz cativo sob a lei do
pecado, que reina nos meus membros. De maneira que, segundo o espírito,
sirvo à lei de Deus —
e, segundo a carne, à lei do pecado".
— 23 —
iução nem sossego na vastidão do universo — e muito menos na tépida
estreiteza do tálamo nupcial.
Todaa regra, naturalmente, tem a sua exceção . .
— 24 —
Uma vez que a grande paixão do jovem discípulo de Gamaliel era
a investigação dos problemas do espírito, fez ele da Bíblia o seu livro.
Porque nesse livro se condensa tudo quanto a humanidade, no decorrer
dos séculos e milénios, tem pensado e sofrido de mais profundo e sublime,
de mais belo e verdadeiro; tudo quanto o homem tem gozado de mais
suave e padecido de mais acerbo —
tudo isto se encontra imortalizado nas
páginas lapidares da Sagrada Escritura.
A última fase evolutiva do espírito humano coincide quase sempre com
o estudo e a diuturna meditação do texto bíblico, em que se acha como que
cristalizada a alma da humanidade.
Nenhum problema de psicologia existe, nenhuma questão filosófica, ne-
nhum aspecto teológico ou ético do mundo ou da vida humana se pôde
imaginar que não repercuta, veemente ou suave, nas cordas eternas dessa
gigantesca harpa da humanidade.
Mais antigos que as pirâmides do Egito mais profundos que os abismos
;
— 25 —
5. O PRIMEIRO SANGUE
(At. 6, 8-8, 1)
dos seus discípulos, ou então o mais feroz dos seus adversários mas nunca ;
Entremos.
No meio da sala, sobre um estrado, acha-se Estêvão, o ardoroso cam-
peão do Evangelho, o intrépido lider do novo movimento espiritualista.
Não longe, semi-ocultos por uma coluna, Pedro e João, discípulos do Cruci-
ficado. Acompanham, cheios de interesse e emoção, os acontecimentos. Na
primeira fila de assentos, quase defronte a Estêvão, vemos um homem dos
seus 30 anos. Figura de asceta, magro, rosto pálido, olhos cintilantes por
debaixo dum par de negras sobrancelhas —
Saulo de Tarso, doutor da lei..
É a primeira vez que se defrontam esses dois poderosos espíritos.
Descem à um formidável certame
arena, jovens gladiadores, para — pró
e contra Cristo vão cruzar as agudas lâminas da inteligência
! . . . — numa
luta de vida e de morte ! . .
— 28 —
<e o Filho do homem à direita de Deus!". . . Depois, com um derradeiro
olhar a Saulo, murmura:
"Senhor... não lhes imputes este pecado!"...
Um fulgor estranho ilumina por momentos o semblante do jovem
herói — apagam-se aquelas pupilas, para sempre emudecem aqueles lábios
tão eloquentes e cessa de pulsar o coração de fogo . .
— 29 —
1
DE DAMASCO A ROMA:
APÓSTOLO E ORGANIZADOR
6. ÀS PORTAS DE DAMASCO
(At. 9, 1 ss; cf. At. 22, 5 ss; 26, 12 ss; 1 Cr. 15, 7; 9, 1; 2 Cr. 4, 6;
d. 1, 12, 15 s; Ef. 3, 3; Fp. 3, 12; Tm. 1, 9)
— 33 —
Em Jerusalém vivia Tiago, universalmente conhecido como amigo e
respeitador da lei mosaica, alvo da admiração de Israel.
Cegueira completa . .
Saulo, sempre plenamente ele mesmo, quer saber quem é esse invi-
sível acusador. Está pronto a servir a um "senhor" que tenha o direito
de lhe dar ordens; mas não está disposto a se render a um desconhecido,
um Ser anónimo, talvez a algum fantasma quimérico. A vigilante von-
c'.
tade de Saulo resiste até ao momento supremo. Não cede senão à verdade
insofismável, à inegável evidência. Eminentemente racionalista, exige o
derrotado que o seu misterioso vencedor se declare, se identifique, apre-
sente as suas credenciais. A
poderosa inteligência de Saulo, a sua vontade
de ferro só se renderão a um "mais inteligente", a um "mais poderoso". . .
Jesus vive ! —
foi esta a mais estupenda revelação da vida de Saulo.
Estêvão tinha razão. O Crucificado ressuscitara.
. . Vivia. . . .
— 34 —
sado, da história, da Palestina — mas, sim, o Cristo vivo, pessoal, presente,
hoje e por todos os séculos — adoramos o Cristo Deus!. .
tivas orais, cada um dos quais afetava a conciência com maior ou menor
gravidade.
Em face desse cáos formalístico da religião judáica, sentia-se Saulo
impressionado pela encantadora simplicidade religiosa dos discípulos do
Nazareno. Amavam a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a
si mesmos —
eis aí a sua religião todos os mais atos dimanavam, com !
Cegueira completa. .
Saulo, sempre plenamente ele mesmo, quer saber quem é esse invi-
sível acusador. Está pronto a servir a um "senhor" que tenha o direito
de lhe dar ordens; mas não está disposto a se render a um desconhecido,
i\ um Ser anónimo, talvez a algum fantasma quimérico. A vigilante von-
tade de Saulo resiste até ao momento supremo. Não cede senão à verdade
insofismável, à inegável evidência. Eminentemente racionalista, exige o
derrotado que o seu misterioso vencedor se declare, se identifique, apre-
sente as suas credenciais. A
poderosa inteligência de Saulo, a sua vontade
de ferro só se renderão a um "mais inteligente", a um "mais poderoso". . .
Jesus vive! —
foi esta a mais estupenda revelação da vida de Saulo.
Estêvão tinha razão. Crucificado ressuscitara.
. . O Vivia. . . . .
— 34 —
sado, da história, da Palestina — mas, sim, o Cristo vivo, pessoal, presente;,
hoje e por todos os séculos — adoramos o Cristo Deus!...
"Eu sou Jesus a quem tu persegues"...
Foi o momento trágico ...
Foi o golpe fatal . .
tivas orais, cada um dos quais afetava a conciência com maior ou menor
gravidade.
Em face desse cáos formalístico da religião judáica, sentia-se Saulo
impressionado pela encantadora simplicidade religiosa dos discípulos do
Nazareno. Amavam a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a
si mesmos —
eis aí a sua religião todos os mais atos dimanavam, com
!
— 35 —
razão judaica e humana relutavam contra a idéia de um Messias morto, um
Deus crucificado, um Redentor justiçado por um juiz pagão, a título de
criminoso.
O orgulho farisaico do doutor da lei levantara uma barreira imensa
à graça divina.
Eis senão quando esse mesmo Jesus morto lhe aparece vivo! o Cruci-
ficado, glorioso o Nazareno, a continuar a sua obra na pessoa dos
! . . .
seus discípulos ! . .
porque sou vivo — redivivo ! e estarei com os meus até à consumação dos
séculos. .
Estava cego . .
Era um vidente . .
— 36 —
7. AGIR!
(At. 9, 1 ss)
obra! está com um futuro diante de jsi. Já que está por terra o edifício
. .
— 37 —
Oh como
! é admirável o espírito de Saulo ! Se mais não dissera o
cego às portas de Damasco senão só essas três palavrinhas, bastante seria
para ter jus à admiração de todos os séculos. Manda, decreta, impera,
ó divino Ditador, e aqui está um leal vassalo para levar as tuas ordens à
Ásia e à Europa, até às mais longínquas plagas do globo
Nunca homem algum inaugurou com melhores disposições e sob me-
lhores auspícios o seu apostolado do que Saulo.
"Eu vim para cumprir a vontade de meu Pai celeste", dizia Jesus,
resumindo nestas poucas palavras a alma da sua missão.
"Que queres, Senhor, que eu faça?", exclama o maior dos discípulos
de Cristo, animado do mesmo espírito cumprir a vontade de Deus. :
Desde então, não há apóstolo genuíno que não repita estas palavras:
Como? irá esse oceano acabar num regato vulgar ?... Por que não
vem Jesus pessoalmente completar a sua obra tão gloriosamente iniciada?
Mistérios — e mais mistérios ! . .
— 38 —
Por que não conduz Deus, pessoal e diretamente, essa alma que tão
lealmente o procura? por que a expõe à dolorosa contingência de um
possível naufrágio no porto ? . . . por que obriga essa águia do pensamento
a encolher as possantes asas abertas na luminosa amplidão do espaço e
entrar na estreita clausura duma alma alheia?
Por que, meu Deus, por que ? . .
— 39 —
8. SILÊNCIO E ORAÇÃO
(At. 9, 10 ss; 22, 11 cc)
— 40 —
a solução de um "recalque" psíquico, ou ainda como a resultante de pro-
longados estudos e experiências íntimas de Saulo, esquecem-se de quase
todas as circunstâncias concomitantes do fenómeno, esquecem-se de que
os companheiros de Saulo também viram o estranho clarão e perceberam
as palavras do céu, sem as compreenderem; esses explicadores, no afan
de eliminar uma incógnita espiritual, introduzem outra incógnita, psíquica,
não menos enigmática que a primeira.
Não é possível, com todos os recursos da nossa adiantada psicologia
do fato histórico ocorrido
e psicanálise, dar explicação natural satisfatória
às portas de Damasco.
Entretanto, sem querermos despojar o fenómeno do seu nimbo sobre-
natural, tentemos penetrar um pouco nessa misteriosa penumbra.
Aparece aqui, pela primeira vez em todo o seu fulgor, o cunho caracte-
rístico da alma de Saulo: uma inquebrantável energia de vontade, servida
por uma penetrante agudeza de inteligência.
— 41 —
Saulo não se dobra a coisa alguma senão só à verdade nitidamente
conhecida; não se curva diante de ninguém senão diante de Deus somente,
o Deus da Verdade. Por isso, antes de oferecer os seus serviços ("que
queres, Senhor, que eu faça?"), quer saber quem é que lhe fala ("quem
és tu,Senhor?").
Mas, uma vez convencido da Verdade, entrega-se de corpo e alma e
sem reserva a esse supremo ideal da sua vida.
Integralmente de Moisés —
integralmente de Cristo.
O caráter de Saulo é perfeitamente o caráter de Paulo. Nada se ex-
tinguiu, nada nada se sufocou, nada se eliminou nem se matou
se apagou,
nessa poderosa personalidade. Continua na alma do apóstolo toda aquela
indómita virilidade do perseguidor.
Não mudou o caráter, mudou apenas o alvo, o ideal, a causa que
patrocinava.
- 42
9. REGENERADO EM CRISTO
(At. 9, 10 ss)
Geralmente, a alma nada sabe dessas vibrações íntimas que emite, mas
que nem por isso deixam de existir realmente, e às quais ninguém se pôde
subtrair.
— 43 —
Por isso, dentro do âmbito das leis humanas, só existe um meio para
melhorar os homens, para os tornar mais puros, mais caridosos, mais santos
— é ser eu mesmo bom, puro, caridoso e santo. O que decide não é aquilo
que eu sei, e, sim, o que eu sou. Pouco importa o que eu diga ou faça.
contanto que eu seja alguém.
Até o maior e mais perfeito dos mestres e educadores, Jesus de Na-
zaré, nada podia esperar dos seus discípulos se lhes faltasse esse elemento
personal. A ordem "ide pelo mundo inteiro" só teria eficácia no caso que
eles fossem apóstolos, emissários e amigos de Cristo, vasos de eleição,
veículosduma vida divina. Por isso, escolheu ele, à beira do Genesaré,
pessoas idóneas para se tornarem veículos de ondas divinas. Para isto
não se requeria dinheiro nem prestígio, nem ciência nem eloquência — mas
era mister uma grande receptividade psíquica; porque esses emissários do
Evangelho deviam encher a alma duma luminosa plenitude, que depois ir-
radiariam pelo mundo. Por isso acrescentou o Mestre: "Eu estarei con-
vosco todos os dias"...
Um homem interiormente bom, muito antes de proferir uma palàvra,
já atuou salutarmente sobre seus semelhantes. Por outro lado, um homem
que oculta nas profundezas do seu ser a impureza, a insinceridade, o es-
pírito de interesse ou ambição, exercerá sempre sobre os outros uma ação
deletéria e contaminadora, mesmo que não faça propaganda explícita das
suas idéias o pior dos contágios é a corrupção íntima da sua personali-
;
dade. E, por mais que tal homem fale da beleza, da virtude e da grandeza
de Deus —
todo o seu zelo deixará, quando muito, indiferentes e frios os
ouvintes, se é que não os fere e ofende . .
perícia, a sua eloquência que conduz as almas do erro à verdade, das trevas
do mal à luz da virtude. E é dificílimo tirá-lo dessa ilusão. É o último
e mais árduo capítulo da psicologia, da pedagogia e também da vida es-
piritual, convencermo-nos íntima e profundamente de que não é o nosso
saber ou poder que torna melhores os homens, mas unicamente o nosso ser.
O que influe sobre os outros, o que os comove, abala, arrasta, ilumina,.
— 44 —
converte, santifica, é, em última análise, a nossa santa e pura personali-
dade, e não a nossa ardente e espalhafatosa atividade.
Ser intimamente bom é o mais poderoso apostolado.
Onde quer que, na vastidão do globo, exista um
poderoso foco de
personalidade, aí está um E ainda
centro salvador do género humano.
que essa central de energias espirituais se encontre padecendo sobre o catre
anónimo dum hospital, ou reclusa por detrás das grades escuras dum claus-
tro, ou perdida na solidão das florestas amazônicas, nos desertos da África,
ou nas geleiras do Alasca —
pouco importa! —
esse foco atua poderosa-
mente sobre a humanidade. Basta que de fato exista e tenha a devida
potencialidade (cf. Lippert Zweierlei Menschen)
:
do tempo e do espaço.
Essa calma e serenidade atingiram o seu mais alto grau na pessoa de
Jesus Cristo.
E todos os seus discípulos participam desse carisma.
Às portas de Damasco converteu-se o demonismo feroz de Saulo no
luminoso cristianismo de Paulo —
e com isto estava lançada a base para
a força mágica que esse homem, sublimado pela graça, exerceu sobre os
seus contemporâneos e exerce ainda hoje sobre centenas de milhões de
espíritos.
— 45 —
ruinas do judaísmo, disse Deus a um piedoso discípulo de Cristo, em Da-
masco "Ananias, põe-te a caminho e vai à rua Direita e procura em casa
:
Nesse meio-tempo tivera também Saulo uma visão que coincidia com
a de Ananias.
É bem compreensível a hesitação de Ananias. Só mesmo uma ordem
categórica do alto o podia mover e penetrar na caverna do leão . .
"Irmão Saulo —
disse Ananias, com voz trémula o Senhor Jesus, —
que te apareceu pelo caminho, enviou-me para que recuperes a vista e sejas
repleto do Espírito Santo.
— 46 —
Gamaliel, ex-fariseu e ainda ontem o mais fanático perseguidor da igreja
de Cristo.
Saulo trazia, certamente, no bolso, durante essa lição, a ordem de pri-
são contra esse mesmo Ananias, que não podia deixar de ser um dos chefes
do movimento religioso em Damasco — e eis que o algoz se converte em
dócil discípulo, e a vítima em preceptor e diretor espiritual.
O lúpus rapax da tribu de Benjamin, feito mansa o velhinha. .
divino vencedor. .
- 47 —
10. A SÓS COM DEUS
(At. 9, 20 ss; Gl. 1, 11, s; 16-17; 2 Cr. 11, 32 s.)
Refere o apóstolo, em sua epístola aos Gálatas (1, 17), que. depois
disto, se "retirou para a Arábia".
Estas palavras brevíssimas compendiam um período de vida de nada
menos de três anos. Paulo desaparece do cenário da história. Se a sua
— 48 —
conversão se deu no ano 34 da nossa éra, só em 37 é que ele torna a
Qual a razão desse triénio solitário nas plagas da Arábia? Nem Paulo
nem o seu biografo Lucas o dizem. Temos de recorrer a conjeturas mais
ou menos plausíveis.
Antes de tudo, convém rebater a ideia pueril de certos cristãos piedosos
e ingénuos que imaginam os santos como que " caídos do céu" e se esque-
cem de que o santo se forma aos poucos, evolue, progride, se aperfeiçoa,
através de mil vicissitudes, por entre os fluxos e refluxos da luz e das
do bem e do mal. O céu não é uma espécie de panóptico ou cos-
trevas,
morama de almas humanas que nasçam perfeitas ou apareçam definitiva-
mente santas e imaculadas desde o dia da sua conversão, homens que de
monstros que talvez tenham sido, passem repentinamente em virtude não —
se sabe de que inaudito milagre de Deus —
a criaturas angélicas sem de-
feito algum.
— 50 —
amarelentos das Sagradas Escrituras, pergaminhos preciosos, inseparáveis
companheiros desse grande aventureiro do Evangelho. Os vaticínios de
Isaias, Jeremias, Davi e Daniel, tão seus conhecidos, lhe aparecem agora
numa luz nova. O que mais tarde, nas suas epístolas lapidares, escreverá
aos cristãos da Ásia e da Europa, sobre a pessoa do Messias, aqui, no si-
— 51 —
^vras: "A tal ponto amou Deus o mundo que lhe enviou o seu Filho
Unigénito, para que todos os que nele cressem tivessem vida eterna".
Paulo de Tarso, educado na atmosfera do rigor jurídico da legislação
romana, vê no corpo dilacerado do Crucificado o título de dívida dos nossos
pecados, título agora roto pelos cravos e cancelado pelo sangue de Cristo,
que se constituiu fiador nosso, devedores insolventes perante o credor jus-
ticeiro.
At,
te
— 52 —
ram esse período de liberdade para organizar uma vasta e intensa cam-
panha de proselitismo religioso.
Paulo de Tarso tornou a hospedar-se, provavelmente, em casa de seu
amigo Judas, relembrando o memorável acontecimento de três anos
atrás.
No primeiro sábado dirigiu-se à sinagoga local e, na qualidade de
doutor da lei, subiu ao estrado dos rabis e começou a ler alguns vaticínios
de Isaias, mostrando em seguida como eles se haviam cumprido na pessoa
de Jesus de Nazaré, o qual, portanto, era o Messias prometido.
Dentro de poucos minutos, estabeleceu-se universal tumulto na sina-
goga. "Abaixo com ele!... traidor!... desertor!... blasfemo!... da
seita dos nazarenos !" . .
— 53 —
íl. EM JERUSALÉM
(At. 9, 26 ss)
w •}<
— 54 —
de considerar esse homem o seu inimigo número um? depois daquela ines-
perada deserção de havia três anos ? Como poderiam os escribas, sacerdotes
e doutores da lei olvidar a vergonhosa derrota que esse colega lhes in-
com
fligira a sua pública adesão ao Nazareno e a atitude que assumira em
Damasco ?
Entretanto, lá se vai o herói, sereno e calmo, em linha reta à caverna
do leão.
- 55 —
"Depois da sua chegada a Jerusalém diz o historiador —pro- —
curava Saulo juntar-se aos discípulos mas todos o temiam, porque não
;
Paulo, ainda que espírito autónomo e génio dinâmico, não era nenhum
revolucionário ou anarquista. Na qualidade de cidadão romano e ministro
da lei mosaica, bem sabia que nada prospera no mundo, quer material,
quer espiritual, sem ordem e disciplina, sem uma inteligente harmonia de
idéias e uma sábia concatenação de atividades.
— 56 —
o leitor esperava encontrar uma extensa narração de fatos de sumo in-
teresse. Quase nada sabemos do intercâmbio de idéias e ideais que, sem
dúvida, se estabeleceu, nessas duas semanas, entre Paulo e os demais após-
tolos presentes em Jerusalém, e que era precisamente o trio dos "predile-
tos" de Jesus, os que tinham presenciado as suas mais estupendas mara-
vilhas, como também a sua mais profunda humilhação.
— 57 —
breu. Revoltou-se contra essa concepção universalista o bairrismo regio-
nalista dos judeus e o de não poucos judeu-cristãos.
Grande tumulto na sinagoga!
Amigos bem intencionados aconselharam a Paulo a que se retirasse
de Jerusalém, porque corria sério perigo de ser "eliminado".
— 58 —
luz que as suas pupilas clarividentes adivinhavam, para alem do horizonte
da história.
Depois dos Evangelhos, nada existe, na literatura mundial, de mais
profundo e genial do que as cartas que esse homem escreveu, às vezes à
penumbra dos cárceres e com os pulsos carregados de pesadas algemas.
Paulo não escreveu para o primeiro século nem para os cristãos do
seu tempo —
escreveu para todos os milénios da história e para a huma-
nidade inteira.
12. O ERMITÃO ANÓNIMO
(At. 9, 30 s; GL 1, 21; 2 Cr. 12, 2 ss)
— 60 —
Não o moveram, de certo, sentimentos humanos, saudades da família
ou desejos de rever os companheiros da mocidade. A exemplo de Cristo,
Paulo, uma vez chamado ao apostolado, não mais conhece laços de sangue
nem vínculos de ordem natural.
Que fez ele durante esse longo retiro na capital da Cilicia?
Ignoramos . . .
A vida desse homem parece-se com o curso de certos rios, que subi-
tamente desaparecem em misteriosas profundezas, para reaparecerem, mui-
to alem, à superfície da terra.
Havia cerca de 25 anos que o jovem estudante da lei mosaica aban-
donara o seu torrão natal e sua família, afim de beber a sabedoria de Ga-
maliel, em Jerusalém.
Terá ele reencontrado, agora, seus pais em Tarso? E, em caso afir-
mativo, que idéia terão eles formado do filho? Não o terão considerado
como desertor, trânsfuga, apóstata?... O dialogo que Justino Mártir
travou, mais tarde, com o judeu Trifon, daria uma idéia aproximada do
que teriam sido, talvez, as conversas do Paulo cristão con> seus pais e pa-
rentes judeus
"Saulo, tu já não és dos nossos. Tornaste-te discípulo de um im- . .
cumprir todas as coisas que estão escritas no livro da lei E não era ! . . .
pois Elias não veio para o ungir e proclamar, conforme prometeu Moisés.
E como nos provarás que ele ressuscitou e vive ? Há um só Deus ver- . . .
dadeiro —
e nunca nos convencerás de que existam dois ou três deuses". . .
na sua plenitude; que era a aurora, mas não o sol das revelações de
.Jahvé, etc.
'
— 61 —
para aprofundar o grande mistério da redenção. Tinha de armazenar em
sua alma toda aquela inesgotável plenitude espiritual que, mais tarde, ia
derramar, em ináudita profusão, nas almas dos seus ouvintes e leitores.
Esses silenciosos anos em Tarso, como outrora os da Arábia, foram
um período de intensa receptividade, que devia preceder, qual primavera,,
ao subsequente outono duma exuberante distribuição.
Toussaint, Loisy, e outros, julgam descobrir nesse período de estranho
retraimento as origens da teologia mística de Paulo, dando-o como discí-
pulo dos filósofos da Grécia e dos teosofistas do oriente.
Verdade é-que, em Tarso, não lhe faltava contacto fácil e assíduo com
certos filósofos estóicos e peripatéticos, doutrinadores ambulantes, que amoe-
davam em pequenas sentenças, para uso do povo, os grandes pensamentos
de Platão, Aristóteles, Sócrates e outros preclaros espíritos de Hélade.
Também é inegável que, repetidas vezes, em suas epístolas, cita o apóstolo
ditos ou pensamentos de sábios pagãos assim, por exemplo, no célebre
;
— 62 —
Nessa longa solidão imposta pela vontade de Deus, experimentou a
alma dinâmica de Paulo toda a acerbidade, como também toda a verdade
das palavras do Mestre: "Se o grão de trigo não cair em terra e morrer,
ficará a sós consigo; mas, se morrer, produzirá muito fruto".
É possível que Paulo tenha levado verdadeira vida de ermitão, ha-
bitando em alguma caverna, nas dependências do Taurus, que não fica
longe.
Foi, certamente, aqui que Deus se dignou arrebatá-lo a misteriosas vi-
sões, como
escreve 14 anos mais tarde aos coríntios (II, 12, 2-4) ''Conheço
:
— 63 —
13. ANTIOQUIA. PRIMAVERA APOSTÓLICA
(At. 11, 19-24)
— 66 —
O trabalho que o esperava era ingente, sobrehumano. Erguer do pro-
fundo lodaçal da luxúria e libertar dum cáos de superstições religiosas
aquele povo, e guindá-lo às alturas da fé cristã e da moral evangélica —
maior cabedal de heroísmo exigia esta missão do que todos os feitos bélicos
de Alexandre Magno, Julio César ou Anibal.
Barnabé, confiando no auxílio divino, pôs mãos à obra.
— 67 -
14. PAULO E BARNABÉ - PIONEIROS
DO EVANGELHO
(At. 11, 25 ss; 12, 1 ss)
Capítulos como este não devem ser lidos pelos rapazes chiques das
nossas avenidas, casinos ou salões elegantes, nem por outra pessoa que
não possuaideais eternos, mas avalia a felicidade da vida pela maior ou
menor soma de divertimentos fáceis ou de prazeres sensitivos.
Todo o homem que escapou ao flagelo duma obtusa mediocridade
que se encontra no fundo das mais
espiritual conhece a inefável delícia
árduas lutas em prol duma grande
Estes, sim, podem, sem remorsos,
ideia.
acompanhar o impávido herói de Tarso ao campo de batalha dos seus pri-
meiros amores apostólicos.
— 68 —
Começou Barnabé a descrever ao amigo o campo imenso que os aguar-
dava em Antioquia —
e os olhos negros de Paulo reassumiram aquele fulgor
intenso, quase terrífico, que denunciava o incêndio do seu interior. Depois
de tão longo período de retraimento e potencialização ascética, ardia aquele
grande espírito por iniciar o seu vasto apostolado social.
Saulo vendeu os últimos côvados de tecido caprino —
e no dia se-
guinte, bem de madrugada, desceram os dois aventureiros de Cristo, numa
pequena embarcação, as águas plácidas do Cydnus, até ao litoral do Me-
diterrâneo. Daí, com pouca demora, prosseguiram viagem a bordo de um
veleiro mercante, rumo sul, com destino ao porto de Selêucia.
Que resposta terão dado esses dois homens, na flor da idade, aos
demais passageiros que lhes perguntavam pelo objetivo da viagem? Os
outros iam comprar ou vender cereais, couros, pêlo de cabra, ferro, cobre,
etc. —e eles? Iam levar a dezenas de milhares de almas a boa nova da
redenção. Trabalhariam de graça. Exporiam a sua vida, todos os dias,
aos maiores perigos —
e tudo isto por motivos espirituais, por simples
idealismo religioso Deveras, um par de enigmas ambulantes
!
— 69 —
Este período antioqueno foi para Paulo o que para os recem-casados
costuma ser a chamada "lua de mer' —
uma verdadeira "viagem nupcial"
através de mundos encantados, e, contudo, perfeitamente reais ; através dum
imenso cosmos espiritual de maravilhas e grandezas, que empolgavam a
alma vibrátil desse homem na flor da idade e no apogeu da sua dinâmica
intelectual.
tus Dei ferebatur super aquas". Não existiam ainda formulários e pro-
tocolos. A única lei vigente era o amor, o amor de Deus e do próximo.
A religiosidade desse tempo era singela e profunda, caracterizada por uma
, exuberante pujança e elasticidade juvenil, uma atmosfera matutina, um
fulgor estelar, uma iniciativa que não conhecia barreiras nem impossíveis.
Era o Cristianismo virgem, em toda a abundância da sua intacta vitalidade,
em todo o fulgor da sua divina poesia, orvalhado ainda da madrugada da
redenção. . .
Talvez" que Paulo, nos trinta anos da sua vida ulterior, nunca mais
tenha experimentado tão deliciosamente as grandezas do apostolado como
neste cenário do seu "primeiro e santo amor"...
— 70 —
gentios abraçavam as verdades do Cristianismo, verdades que a numerosos
israelitas causavam insuperáveis dificuldades.
Os dois grandes mestres espirituais não exigiam dos seus discípulos
a observância da lei mosaica, mas apenas da lei natural e das normas la-
pidares do Evangelho.
Tudo era alma, amor, espontânea naturalidade. Nada de formalismos
nada de chapas prescritas!
artificiais,
diversas carnes, para não comprar a que fora imolada aos deuses e, por-
tanto, "carne impura". Comer "carne sufocada" ou "carne saturada de
sangue", seria o mesmo que contaminar gravemente a conciência.
Paulo e Barnabé nunca falavam aos seus catecúmenos ou neófitos de
bemeihantes "pecados". Tanto mais lhes inculcavam um sagrado respeito
à justiça, à caridade, à fidelidade, à verdade e a à sinceridade em todas
as coisas.
Essa largueza de vistas e essa liberdade de espírito, cunho caracterís-
tico da alma paulina, não tardaria a levar o apóstolo dos gentios a veemen-
tes conflitos com os arautos do Evangelho ainda dominados pela ideologia
do mosaísmo tradicional.
— 72 —
15. CARIDADE SOCIAL DE PAULO
(At. 11, 25 ss; 12, 1 ss)
— 73 —
trono a São Paulo, que sabia perfeitamente que o reino de Cristo, embora
não seja deste mundo, está neste mundo e não pôde prescindir dos hones-
tos expedientes da prudência humana.
Certamente, seria mais belo e distinto viver da "pura espiritualidade' '
#
IP "7V
seus atos de culto. Tinha Maria Marcos uma criada por nome Rode (nome
grego, que significa Rosa), a qual ceve a honra de se encontrar primeiro
com Simão Pedro libertado. Mas, de tão aterrada, esqueceu-se de lhe abrir
o portão do jardim onde o apóstolo estava à espera. Os cristãos reunidos,
incapazes de crer coisa tão incrível, cuidavam que fosse o anjo tutelar de
Pedro, e não ele pessoalmente. Só depois de ele entrar e narrar circuns-
tanciadamente a sua maravilhosa libertação, é que eles creram na jubilosa
realidade.
Pedro, porém, retirou-se de Jerusalém e "foi para outro lugar", diz
Lucas, nos "Atos dos Apóstolos" (12, 17).
Que outro lugar?
Se o historiador suspeitasse a curiosidade dos seus futuros leitores,
certamente teria acrescentado mais uma ou duas palavras à frase acima.
Opinam muitos que, nesta ocasião, tenha o pescador da Galiléia demandado
a metrópole do império romano, onde estava mais seguro do que na Pa-
lestina.
No primeiro século não havia rádio, nem telégrafo, nem serviço postal
organizado. Pelo caminho entre Antioquia e Jerusalém, por boca dos ca-
ravaneiros que regressavam da Judéia, souberam Paulo e Barnabé desses
acontecimentos.
Chegados a Jerusalém, ouviram pormenores sobre a perseguição re-
ligiosa movida por Herodes Agripa. Souberam também que o rei, indignado
— 74 —
com a evasão de Simão Pedro, mandara eliminar sumariamente toda a
guarda do cárcere, que constava de 16 pessoas —
tão sem valor era a
vida humana, e tão valiosa, já nesse tempo, a vida do antigo pescador do
Genesaré.
De maneira que os missionários de Antioquia encontraram em Jeru-
salém apenas o apóstolo Tiago Menor, parente de Jesus. Tamanho era
o prestígio desse homem que o próprio Herodes lhe respeitava a vida.
Alem de profundo asceta, era Tiago Menor um espírito tolerante e con-
ciliador,evitando quanto possível qualquer conflito desnecessário entre o
Evangelho e as tradições seculares da sinagoga.
Paulo e Barnabé entregaram a sua preciosa coleta e falaram aos cris-
tãos de Jerusalém das grandes maravilhas que Deus operara entre os ir-
mãos em Antioquia.
E, de conciência serena, voltaram para o teatro dos seus labores apos-
tólicos.
16. EXPEDIÇÃO APOSTÓLICA A CHIPRE
(At. 13, 1 mj
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é necessário que esse trigo seja triturado pelos dentes dos leões, para que
se tome pão agradável a Deus".
— 77 —
Barnabé e Paulo, acompanhados dos presbíteros e do povo, atraves-
sam a "avenida marmórea" e a ponte sobre o Orontes e descem ao porto
de Selêucia, onde até ao presente dia se vêem, por sob as ondas diáfanas,
dois rijos quebra-mares, que levam os nomes daqueles dois aventureiros de
Cristo.
Oh como ! era tão lindo, tão sincero, tão poético o cristianismo desses
tempos ! . . . quantas saudades desperta na alma de quem é condenado a
viver num ambiente "religioso'' que nada tem dessa sorridente juventude
espiritual ! . .
dicetur Christus . . .
— 78 —
Saltaram os dois missionários no porto de Salamina, alguns quilóme-
tros ao norte de Famagusta, torrão natal de Barnabé. Perlustraram a ilha
toda, ensinando nas' sinagogas, que eram assás numerosas. Não consta de
hostilizações judaicas, nessa expedição, devido talvez ao delicado tato e à
prudência de Barnabé, que gozava de grande prestígio em Chipre.
Depois de percorrer as planícies litorâneas, galgaram as montanhas
do interior, seguindo o curso do rio Pedeus. Não deixaram, certamente,
de visitar as célebres minas de cobre (1), que Herodes o Grande arrendara
de César Augusto e onde trabalhavam centenas de operários.
Se os dois bandeirantes do Evangelho visitaram as 15 principais ci-
dades da ilha, enumeradas pelo historiador romano Plínio, devem as suas
peregrinações ter levado vários meses. Chipre mede, de leste a oeste, 150
quilómetros, linha aérea.
Que pensamentos terá evocado nas almas desses dois pioneiros da
espiritualidade o aspecto do monte Amathus, cujo cume se achava co-
roado pelo famoso santuário de Vénus —
a infame "Vénus Amathusia"?
Não era mais a graciosa Afrodite de Platão, nem a deusa da beleza dos
poetas helenos; era a impudica Astarte dos fenícios, esses filhos de Cam,
que celebravam repugnantes orgias sexuais a Vénus Amathusia como per-
sonificação da fecundidade e da luxúria. Ai do mundo se não se realizara
a senha do velho Catão, no senado de Roma: "Ceterum censeo, Carthagi-
nem esse delendam".
Desceram os dois viajores a cadeia de montanhas, rumo ao litoral,
deixando a antiga Pafos e chegando a Neo-Pafos, sede do pro-consul ou
governador romano, que, nessa época, era um tal Sérgio Paulo.
Segundo Plínio, era este aristocrata romano um homem de notável
cultura,amigo de especulações filosóficas e autoridade em matéria de ciên-
cias naturais. Não encolhia ceticamente os ombros, como Pilatos, em face
da pergunta: " Quid est ventas?", mas procurava investigá-la sincera-
mente.
Afirma Lucas que Sérgio Paulo era um homem criterioso e sensato
— e esses,como diz o divino Mestre, não estão longe do reino de Deus,
Dorque existe em todo o espírito reto um reflexo do Criador.
Infelizmente, o governador de Chipre não sabia distinguir do espi-
ritismo o espiritualismo. Privava com um sábio judeu, por nome Bar-
jesus, poeta, teosofista e mago. Era praxe, nesse tempo, cercarem-se os
(1) Chipre, em latim Cyprum, deriva de cuprum, que significa cobre. Também
o nome cipreste tem origem nessa ilha, onde é abundantíssima essa árvore funérea e
vulgar aquele metal.
homens cultos duma atmosfera de teosofia ou ocultismo oriental. O povo
ingénuo e simples cria ainda Ha mitologia de deuses, deusas e semi-deuses.
A filosofia, porém, acabara em ceticismo e ria-se dessas fábulas. Para
saciar a sêde do sobrenatural, inata na alma humana, praticava-se, maxime
nas rodas intelectuais, a magia em todos os seus aspectos.
— 80 —
jesus, exclama em tom solene: "Eis que vem sobre ti a mão do Senhor!. . .
xiliar.
romano "Paulo".
(1) Saulo (ou Shaúl) quer dizer: "o que foi implorado". Paulo (ou Paulus)
ignifica :
" o pequeno "
— 81 —
17. NO PAÍS DOS GÁLATAS
(At. 13, 33; c£. 2 Cr. 6, 4-10; 11, 23-28; 2 Tm. 3, 11)
— 82 —
O jovem não compreendia a louca temeridade do aventureiro de Tarso r
que arrastava consigo o bondoso Barnabé.
Travou-se violento conflito de ideias. Paulo, sempre inflexível. Ia
pregar o Evangelho aos povos bárbaros que habitavam aquelas regiões
silvestres e quase inexploradas. Nada era capaz de o demover deste intento.
E, se necessário fosse, prosseguiria só, sozinho galgaria as alturas do
Taurus . .
— 83 —
sofrido tanto pela defesa e pelo triunfo das suas convicções íntimas como
o herói de Tarso. Ele sabe que a "palavra de Deus não está algemada";
sabe que ela é mais "aguda que uma espada de dois gumes" ; está disposto
à praia de Óstia — mas sabe também que não serão compreendidos os seus
ideais por um mundo inerte e uma sociedade medíocre.
.Paulonão conhece ressentimento pessoal. Todos os seus atos veem
pautados pelos ditames superiores da razão e da fé. Por isso, vendo, mais
tarde, em João Marcos um genuíno apóstolo, aceita-o como colaborador,
durante o seu longo cativeiro em Roma.
Não fosse Paulo uma personalidade extraordinária, provavelmente o
seu espírito rectilíneo e a veemente dinâmica do seu caráter o teriam levado
a um rompimento trágico e funesto com os demais arautos do Evangelho.
Felizmente, porém, o elevado potencial do seu génio coincidia com a pro-
funda humildade de sua alma, que só vivia por Cristo, o Crucificado.
— 84 —
são do espírito de Deus; parecem-lhe estultícia, porque devem ser enten-
didas em sentido espiritual.
Não devemos censurar, e menos ainda desprezar o incrédulo, o cético ;
— 85 —
demonstra com impecáveis silogismos que o sacerdote é um "alter
Christus" .
— 88 —
18, PELA UBERDADE DO EVANGELHO
(At. 13, 14; cf. 2 Cr. 6, 4 ss; 11, 23 ss; 2 Tm. 3, 11; Gl. 4, 13 s)
É sábado.
No ghetto de Antioquia da Pisídia não se trabalha.
israelita Todos
os bazares fechados. Emtrajos festivos se dirigem os judeus e os pro-
sélitos à sinagoga, situada às margens do Anthios. Sobre a entrada do
santuário re recurvam dois ramos de oliveira com a legenda: "Templo do.s
Hebreus". Uma larga escadaria dá acesso ao espaçoso recinto. Pesada
cortina verde oculta o altar, sobre o qual jazem os rolos sagrados. Diante
dele, o candelabro de sete braços, e, suspensas do teto, numerosas lâmpa-
das. No centro, sobre um estrado, se ergue o púlpito para o rabi. As
mulheres estão sentadas de um lado, por detrás dum balaustre de madeira.
Os homens enchem a vasta sala.
Ansiosa espectativa ! . .
Na cidade fala-se muito nos dois hóspedes que vão falar, nesse sábadu.
Entram Paulo e Barnabé. Pende-lhes dos ombros o talith, espécie de
manto com listas brancas e pardacentas, que os distingue dos prosélito.^.
Todos os olhos fitos neles
— 89 —
Quem lê com atenção o discurso de Paulo, consignado por Lucas no
capítulo 13 dos "Atos dos Apóstolos", tem a impressão de haver o orador
falado com certa solenidade protocolar, num tom impessoal, se assim se
pôde dizer.
Oauditório era mixto, fortemente heterogéneo, embora preponderasse
o elemento judaico. Em
face disto, não podia o apóstolo silenciar a pri-
vilegiada posição do povo eleito no plano divino da redenção.
Cabeças encanecidas e frontes emolduradas de negros cachos acena-
vam complacente aprovação às palavras do inteligente discípulo do grande
Gamaliel.
Mas, quando Paulo proferiu a frase fatídica: "Em Jesus Cristo é
que vos é anunciado o perdão dos pecados e de todas as coisas de que
;
não vos podia absolver a lei de Moisés, será por ele absolvido todo o homem
que crer" —
então se ouviu no meio do povo um murmúrio de reprovação
e desagrado. Paulo entre-sentia uma como onda de crescente antipatia e
animosidade a envolvê-lo de todos os lados. Sabia que o orgulho nacional
e o estreito bairrismo de seus irmãos de raça não tolerariam a equiparação
dos gentios com os israelitas; mas possuía bastante liberdade de espírito
para advogar, em plena sinagoga, a universalidade da redenção e a virtude
salvadora da fé em Jesus Cristo. Para Paulo, não havia judeu nem gentio,
nem homem nem mulher, nem grego nem bárbaro, nem livre nem escravo
— mas tão somente discípulos de um e o mesmo Cristo — Cristo ontem,
Cristo hoje e por todos os séculos. .
'A-
— 90 —
Paulo e Barnabé foram à sinagoga, que estava à cunha. Desta vez,
os gentios tinham vindo em maior número. Espalhara-se a notícia de que
o recem-chegado doutor da lei não fazia diferença entre judeus e gentios
exigia apenas que todos tivessem fé em Jesus Cristo —
e todos se salva-
riam indistintamente.
Era, como diriam um pregador "moderno".
hoje,
À vista dessa multidão,encheram-se os judeus de inveja, contradiziam
<.s palavras de Paulo e proferiam injúrias.
— 91 —
Retiraram-se os dois apóstolos e foram pregar em outras partes o
Evangelho da redenção.
"A palavra de Deus não está algemada"...
— 92 —
/
de canais.
Romanos, gregos, judeus e gálatas lhe compunham a população.
Hospedaram-se os adventícios em casa dum tal Onesíforo.
(1) Eicon ou Icon == figura, imagem; daí: Icônio, a cujo nome alude a
lenda.
— 93 —
/
tempo um documento intitulado "Acta Pauli et Theclae" , bem como um
a
códice bíblico que às palavras de São Paulo na 2. Timóteo (3>
epístola a
11): "Que grandes perseguições não tive de suportar!" acrescenta: "por
causa de Tecla".
O próprio Harnack, racionalista protestante, mas, sem dúvida, um dos
melhores conhecedores dos primeiros séculos do Cristianismo, concede a.
historicidade de Tecla e do seu encontro com o apóstolo Paulo.
É de admirar que os romancistas e agentes de películas cinematográ-
ficas não se tenham ainda apoderado desse episódio para o explorar "tecni-
camente" e adulterá-lo a seu gosto e talante, como soem fazer com outros
fatos bíblicos.
Tecla era o nome duma jovem
que, em Icônio, vivia com sua mãe
Teóclia, e era noiva de um
Thamyris. Referem os documentos contem-
tal
porâneos que Paulo, entrando em casa de Onesíforo e ajoelhando, procedeu
à cerimónia cultual da "fração do pão" (Eucaristia). Depois falou à
multidão reunida. Devido à grande afluência de povo, estavam abertas
de par em par as portas da casa de Onesíforo. De fronte dela ficava a
residência de Teóclia. Tecla, sentada ao pé da janela, escutava atenta-
mente as palavras do apóstolo, que, nesse dia, discorria sobre a castidade
e a ressurreição. Sentiu-se a donzela a tal ponto enlevada pela sublimidade
do ideal da voluntária renúncia, que, terminado o sermão de Paulo, se
quedou imóvel, como que extática, dias inteiros, sentada ao pé da janela.
Não reagia às admoestações da mãe, dizem os historiadores; desejava falar
com Paulo.
É chamado Thamyris. Debalde procura demover a jovem das suas
idéias. Tecla estava firmemente resolvida a consagrar a Jesus Cristo a
sua virgindade.
Todos em pranto . .
Teóclia receia perder uma filha dileta: Thamyris, uma noiva querida;,
e as escravas, uma dona sempre amável.
O noivo, furioso, acusa Paulo de feiticeiro perante o governador da
cidade. A multidão, indignada, arrasta o apóstolo à presença das autori-
dades de Icônio. Paulo, porém, aproveita o ensejo para lhes falar em
Cristo, o Crucificado.
É denunciado como inimigo do matrimónio e lançado ao cárcere.
Tecla procura ensejo para falar com Paulo; consegue sair de casa,,
horas mortas da noite, subornando o porteiro com um par de preciosos
braceletes, e ganhando as boas graças do carcereiro em troca de uns es-
pelhos de prata.
Na manhã seguinte, grande alvoroto em casa de Teóclia. Onde está
— 94 —
Por mais fantástico que pareça este "romance" em torno de Paulo e
Tecla, faz contudo entrever uma verdade preciosa: o idealismo religioso
que, nesse tempo, empolgava certas almas, depois de uma vez compreen-
derem o espírito do Cristianismo.
Com efeito, o espírito do Evangelho, quando levado aos últimos con-
sectários lógicos, conduz fatalmente ao total desprezo da matéria e seus
derivados, e à progressiva valorização do espírito e seus aliados.
Para abraçar de vez a "loucura da cruz" é mister muita sabedoria. . .
— 95 —
20. EM LISTRA. PAULO APEDREJADO
(At. 14, 8 ss; cf. 2 Cr. 11, 25 ss; 2 Tm. 1, 5; 3, 11 ss)
"Se vos perseguirem numa cidade, fugi para outra" — dissera o di-
vino Mestre.
E assim fizeram os dois arautos do Evangelho. Abandonando Icônio,
somaram rumo sudeste, pelas regiões inhóspitas da Licaonia, em demanda
'luma pequena cidade, por nome Listra.
Atravessaram a pé a imensa monotonia da estepe, animada apenas de
longe em longe por algum rebanho de carneiros e cabras, ou pelo hirsuto
perfil de um jumento silvestre.
— 96 —
par de tílias tinha a sua história. Eram árvores sagradas, dizia o povo.,
e vinham aureoladas dum nimbo de mitos fantásticos.
Certo dia, contavam os "iniciados" nos arcanos da divindade, resolveu
•
— 97 —
Paulo e Barnabé falavam ora na cidade, ora no campo, onde reuniam
em torno de si os singelos pastores e dóceis campônios, guiados, sem dú-
— 98 —
De relance, percebeu Paulo a intenção dos idólatras. Tomado de dor
e indignação, rasgou as vestes, consoante a praxe judaica, e exclamou:
"Que estais a fazer, ó homens? Também nós somos simples mortais como
vós Viemos anunciar- vos a boa nova da redenção, para que destes idolos
!
vãos vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra e o mar, e tudo
.
A
custo conseguiu dissuadir o sacerdote e o povo de que não lhes
oferecessem holocaustos.
Prevaleceu a teologia de Paulo sobre a sua psicologia. Genuíno israe-
lita, rigoroso monoteísta, era-lhe insuportável o simples pensamento duma
pluralidade de deuses, e a ideia dum sacrifício em homenagem a uma cria-
tura afigurava-se-lhe infame sacrilégio e alta traição ao seu divino Rei e
Soberano. Daí a veemência das suas palavras, que, certamente, feriram o
orgulho e os sentimentos religiosos dos devotados politeístas da Licaónia.
"ídolos vãos" apelida ele a Júpiter e Mercúrio, amigos e protetores da
cidade —
que "blasfémia"
Todo o homem é religioso por natureza, e, quanto mais ignorante,
tanto mais se aferra às suas idéias, por mais absurdas que sejam. Ofender
os seus queridos idolos, procurar arrebatar-lhe os seus sublimes fetiches,
c o mesmo que arrancar das mãosinhas inhábeis duma criança o seu único
brinquedo; entre gritos e protestos segura o pequerrucho com os dedinhos
crispados o pedaço de pau ou de pedra que elegeu para ideal e suprema
tazão de ser da sua vida. Em matéria de religião, todo o homem é criança.
Ai de quem se atreva a zombar dos seus sentimentos religiosos ai de quem !
ouse afirmar que aquele toro de madeira esculpida não é Deus que aquela !
lasca de granito não é um santo que aquele amuleto que o devoto traz ao
!
— 99 —
Antes que pudesse tomar providências, ouviu o orador em torno de
si sibiliar de pedras
o —
e de repente caiu ao chão sem sentidos um ! . . .
dos projetis arremessados por mão robusta o atingira em plena testa. Largo
fio de sangue jorra da ferida, ruborizando os degraus do portal da cidade,
que serviam de tribuna ao apóstolo. Entre gritos e uivos de cólera, se
atiram dezenas de feras humanas ao corpo inerte da vítima, espezinhando-o
e cobrindo-o de pedras.
Depois, convencidos da sua morte, chamam uns homens vigorosos e
mandam arrastar para fora da cidade o cadáver do apedrejado. Não longe
das duas tílias o jogam ao monturo, ao meio do lixo e de corpos de
animais.
Assim terminou esse dia fatídico em Listra de Licaónia . . .
-ri*
Mm 4b
'if -A-
— 100 —
Querer comparar com esse titan da espiritualidade evangélica certos
"apóstolos" dos nossos dias, que recuam covardemente em face do menor
sacrifício pessoal, e levam uma vida de indolente comodismo seria uma —
vergonha, um ultraje, quase um sacrilégio...
Tem-se perguntado que escola cursaram os apóstolos do Evangelho e
os arautos da " Ação Católica" formados por São Paulo que seminário ;
Aresposta aqui está, nas páginas lapidares dos "Atos dos Apóstolos"
cursaram a escola da abnegação e do desinteresse, frequentaram a academia
do heroísmo e formaram-se na universidade do martírio. . .
— 101 —
21. SOLIDÃO E SOFRIMENTO
— 104 —
paganismo ao Cristianismo, mediante a fé em Jesus Cristo e a recepção
do batismo?
Para Paulo e seus amigos não existia dúvida alguma. Para ser ge-
nuíno discípulo de Cristo bastava ter nele uma fé sincera que se mani-
festasse pela caridade universal. Em face do Evangelho não havia hebreu
nem gentio, nem romano nem grego, nem cita nem persa, nem asiata nem
europeu — havia só homens criados por Deus e necessitados de redenção.
Paulo, embora filho de judeus e um dia fanático zelador da lei mosaica,
fôra educado na "diáspora", em pleno ambiente helênico-romano ; o seu
espírito perspicaz e a sua inteligência culta apanhavam de relance as linhas-
mestras do Cristianismo, a alma libérrima do Evangelho; e essa alma, bem
o percebia Paulo, era essencialmente mundial, universal, extra-temporal e
supra-nacional.
Não acontecia, porém, o mesmo com os seus colegas da Palestina,
judeus de sangue, de espírito, de sentimento e educação, não conseguiam
emancipar-se da idéia milenar de uma religião nacional. Consideravam a
lei mosaica como indispensável propedêutica do Evangelho, como curso
nas quais deviam os pagãos ser admitidos ao seio da igreja. visão que A
— 105 —
Pedro tivera em Jope que o levara a incorporar à igreja o oficial gentio
e
Cornélio, podia ser interpretada como uma exceção e um privilégio. Pedro,
João e, sobretudo, Tiago, um dos ''irmãos do Senhor", embora não ex-
cluíssem do Cristianismo os candidatos pagãos, não os igualavam simples-
mente aos judeu-cristãos. Na falta duma liturgia cristã, observavam nas
reuniões cultuais o cerimonial da lei mosaica.
Destoava bruscamente dessa prudente tolerância dos chefes da igreja
palestinense o procedimento de não poucos cristãos vindos do farisaismo.
Com o despimento da indumentária da sua casta não haviam despojado o
espírito da seita farisaica. Trabalhavam ati vãmente por ''coser remendo
novo em vestido velho", por " deitar vinho recente em odres gastos" —
segundo a expressão clássica do Mestre. Se tivesse vingado a mentalidade
desses judeu-cristãos não teríamos hoje um cristianismo mundial, mas, sim,
um judaísmo cristianizado. Não acabavam esses neófitos de se convencer in-
timamente de que, em face de Deus, era tão autêntico discípulo de Cristo
o "goi" de Roma ou Atenas que abandonara os seus idolos pelo Deus
verdadeiro —
como os filhos de Abraão que, por espaço de longos séculos,
haviam professado o mais extreme monoteísmo e recebido extraordinários
privilégios divinos.
— 106 —
mito em plena vida. Nem fariseus, nem saduceus, nem Herodes tiveram
a coragem de enfrentar esse misterioso eremita de Jerusalém.
Aí estava, segundo a opinião dos judaizantes, o tipo clássico do santo
<lo Novo Testamento. Aí estava também a prova viva de que a lei de
Moisés se harmonizava perfeitamente com o Evangelho.
É fato que, a princípio, muitos sacerdotes judeus, convertidos ao Cris-
tianismo, continuavam a funcionar como serventuários do culto mosaico.
Estabelecera-se uma engenhosa síntese entre Moisés e Cristo, entre a sina-
goga de Israel e a Igreja dos povos.
Com o derradeiro suspiro de Estêvão parecia ter morrido o espírito
largo e livre do Evangelho.
Não, não estava morto, esse espírito vivia na alma de Paulo, um dia
!
— 107 —
Nas epístolas de Paulo e nas exortações de Barnabé, os cristãos oriun-
dos do gentilismo são intitulados constantemente "santos", "eleitos", "fi-
lhos de Deus", "cidadãos do céu" —
e aos olhos dos piedosos ascetas de
Jerusalém não passam de "impuros", "profanos", "pecadores"...
Estava o Cristianismo a pique de ser reduzido a uma seita palestinense
e perder o seu caráter de religião mundial.
E essas divergências atingiam as íntimas raizes dogmáticas do Evan-
gelho ;
porque, em última análise, se reduzia a questão a este dilema : é pela
leimosaica ou pela graça de Jesus Cristo que o homem alcança a salvação?
No meio dessa temerosa tormenta que agitava a nau da jovem igreja,
percebe-se sensivelmente a voz do divino Timoneiro, que dá ordem aos
ventos e aos mares —
e faz-se uma grande bonança. . .
— 108 —
23. Q CONCÍLIO APOSTÓLICO
(At. 15, 1-34; cf. GI. 2, 1-10)
(1) Calúnia essa que Paulo repele com veemência na epístola aos gálatas.
a io).
— 109 —
Deve essa viagem ter levado algumas semanas ;
pois nesse tempo ainda
não se vivia eletricamente ; havia tempo e sossego para tudo.
Em Jerusalém deparou Paulo com três classes de homens: 1) os após-
tolos, 2) o conselho dos anciãos ou presbíteros, 3) os irmãos ou cristãos
em geral.
Entre os apóstolos sobressaíam três que, como ele diz, eram conside-
rados como "colunas", a saber: Pedro, Tiago e João.
A atmosfera estava carregada, prenúncio de tempestade iminente.
Inaugurou-se com a maior simplicidade talvez com — um cerimónia
religiosa —
o proto-concílio ecuménico da Igreja.
"Chegando a Jerusalém — refere Lucas — foram recebidos pela cris-
tandade, pelos apóstolos e presbíteros, e falaram das maravilhas que Deus
realizara por meio deles. Ao que se levantaram alguns da seita dos fari-
seus que tinham abraçado a fé, e disseram: "É necessário circuncidar os
gentios e obrigá-los a observar a lei de Moisés" (At. 15, 4 ss).
do seu método missionário, que ele sabia certo e exato, mas que sofria vee-
mente impugnação da parte de certos cristãos mal orientados; 2 decla- —
ração explícita de que para a salvação era suficiente a fé em Jesus Cristo
manifestada pela caridade ativa.
menta com a sabedoria de Paulo, nem com a santidade de Tiago, nem com
a elevada mística de João nem tão pouco relembra os numerosos e estu-
;
— 111 —
e clareza. Principia por mostrar que Deus mesmo decidira a questão, man-
dando incorporar à Igreja os pagãos crentes (alusão ao batismo de Cor-
nélio, At. 10, 1 ss) prossegue evidenciando que a lei mosaica é um "jugo"
;
tâo pesado que nem eles nem seus pais o puderam suportar; e termina
frisando que tanto judeus como gentios alcançam a salvação pela graça do
Senhor Jesus Cristo.
Calou-se a assembleia toda.
Revela-se mais uma vez a psicologia de Paulo: não é ele que fala; é
o amigo Barnabé, persona grata em Jerusalém, homem comedido, de pre-
sença simpática e maneiras atraentes. Paulo limita-se a confirmar e com-
pletar um ou outro fato narrado pelo colega.
'A- W
— 112 —
abstenham da contaminação dos idolos, da luxúria, de carnes sufocadas e
do sangue".
Três coisas pede, portanto, esse venerando asceta tradicionalista, se
retenham da saudosa lei mosaica: 1 —
que os étnico-cristãos não comam
dos manjares oferecidos aos idolos, para evitar escândalo da parte dos judeu-
cristãos; 2 —
que se abstenham da luxúria, quer dizer, provavelmente, do
matrimónio entre determinados graus de parentesco e afinidade, previstos
na lei mosaica; porquanto a abstenção dos excessos sexuais era preceito
universal; 3 —
que os neófitos vindos do gentilismo evitem comer carnes
de animais mortos sem derramamento de sangue, bem como toda a comida
feita com sangue animal; porque, segundo opinião antiquíssima, o sangue
é a alma, ou tem ao menos estreitas relações com a mesma, e, pela ingestão
desses manjares, o homem assimilaria, de certo modo, a alma ou o prin-
cípio vital do respectivo animal.
Não sabemos com que disposições receberam Paulo e os outros esta
" emenda" de Tiago, que prova a imensa dificuldade do homem, mesmo
santo, em se despojar de certos hábitos e piedosos preconceitos, que lhe to-
lhem a liberdade do espírito e impedem a ampliação dos seus horizontes
espirituais.
O hábito é uma segunda natureza.
As potências crepusculares do sub-conciente influem insensivelmente
na esfera meridiana do nosso conciente . .
— 113 —
de corpo e alma, organizador genial, apóstolo infatigável, não se esquece
da base material de todas as suas empresas espirituais. Sabe perfeitamente
que, para a maior parte dos homens, o caminho da fé vai pelo coração, e,
não raro, pelo estômago. A mais eficiente apologia do Cristianismo é a
caridade.
Regressou Paulo para a Antioquia, levando na alma o sentimento be-
néfico duma grande vitória.
Mas não se dava a ilusões. . .Sabia perfeitamente que até ao fim da
vida teria de lutar contra a estreiteza espiritual e o fetichismo religioso dos
adeptos de Moisés, afim de romper caminho ao triunfo definitivo do
Evangelho.
— 114 —
24. PAULO EM CONFLITO COM PEDRO
(Gl. 2, 11 ss; At. 15, 35)
m.
"Vi*
— 115 —
circuncisão. O Concílio dispensara dessa cerimónia os prosélitos do gen-
íilismo.
Cristo, sentia uma dor imensa ao ver amesquinhado o espírito de seu divino
Senhor e Mestre . . Todo e qualquer fetichismo lhe parecia reverter em
.
— 116 —
desdouro da excelsa racionalidade do Evangelho — quanto mais essa du-
plicidade de Simão Pedro . .
era o doutor da lei e não o pescador. E para o povo, que mais se guia
pela força da intuição imediata de que pelas leis do raciocínio silogístico,
para o povo equivalia a atitude de Pedro, Barnabé e dos "da parte de
Tiago", a uma nova religião, a uma aversão do Evangelho e uma conversão
à lei mosaica. Se uma comida podia contaminar, e outra conferir pureza
moral —
que era então da virtude redentora do Evangelho?. se tão po- . .
— 117 —
hesita em estigmatizar de simulação ou "hipocrisia" esse procedimento do
chefe dos apóstolos.
O que Paulo, após a narração do caso, escreve aos gálatas em 2, 15-21,
deve ser um resumo do que expôs, naquela ocasião, em plena assembleia,
e o que repte sem cessar aos seus discípulos Não é pelas obras rituais que
:
— 118 —
Ninguém, naquele dia, saiu da reunião com a impressão de que Pedro
tivesse sido humilhado por Paulo. Havia mais sinceridade, mais singeleza,
mais espiritualidade e, sobretudo, mais caridade entre os cristãos dos pri-
meiros séculos do que hoje se encontra, geralmente, entre os que dizem
professar a religião do divino Mestre. Reinava também entre superiores e
inferiores maior fraternidade e menos pose hierárquica do que, por vezes,
se observa na igreja do nosso século.
É próprio das almas mesquinhas e sem ideal ofenderem-se a cada passo,
tecer intrigas e guardar rancor — mas aqui, em Antioquia, se encontraram
dois espíritos superiores, empolgados pela divina veemência do mais excelso
idealismo que já ardeu em coração humano.
Não queiramos medir os gigantes pela bitola dos pigmeus
Dentro do universo da igreja de Cristo há espaço para todos os pla-
netas,pequenos e grandes; há jogo suficiente para todos eles traçarem des-
impedidamente a sua órbita; não há motivo para conflitos e colisões catas-
trofais . . .
As almas grandes são como outras tantas paralelas, que, embora não
se toquem, correm todas no mesmo sentido, em demanda do mesmo alvo,
sem se cortarem jamais umas as outras .
— 119 -
A igreja não é uma figura geométrica, um ser petrificado em estática
imobilidade; é antes um organismo dotado duma admirável elasticidade,
capaz de se adaptar a todas as formas e ambiências, sem perder o cunho
característico da sua natureza específica; ela incorpora em si os elementos
e os informa do seu poderoso princípio vital.
É esta a igreja de Pedro e de Paulo, a igíeja de todos os séculos e
povos — porque é a igreja de Deus.
— 120 —
25. MORTE DUMA GRANDE AMIZADE
(At. 15, 33 ss)
apresentar o maior dos seus heróis a suar sangue, a pedir consolo aos após-
tolos, a suplicar instantemente ao Pai celeste "que passe o cálice do sofri-
mento". .
— 121 —
deserção para o "partido" de Pedro e Tiago. Acima de tudo estavam os
magnos interesses do reino de Deus —
e Barnabé se havia provado ótimo
arauto do Evangelho. Se Barnabé não possuía o arrojo e o génio criador
do Tarsense, era, em compensação, senhor duma admirável serenidade de
espírito e duma solidez de critério, que bem supriam o que, porventura,
lhe faltasse em audácia e dinamismo.
Parecia essa amizade destinada a ser eterna — e, no entanto, acabou
ainda naquele mesmo ano...
Paulo não era homem para trabalhar muito tempo no mesmo lugar.
Rolava-lhe nas veias um
quê de aventureiro, de "bandeirante", diríamos
em linguagem moderna; o seu maior prazer consistia, como ele mesmo diz,
em prègar o Evangelho onde nunca fôra ouvido o nome de Cristo. Era
um desbravador de florestas virgens, explorador de terras incógnitas, des-
cobridor de novas Américas, semeador de campos maninhos e sem
cultura . .
Deus o sabe. .
A
julgar pela expressão "paroxismo" (quer dizer: exasperação), que
se lêno texto grego de Lucas, deve a discussão entre os dois ter assumido
formas assás veementes.
Separaram-se.
Paulo partiu sozinho. Barnabé e João Marcos foram em demanda de
novos campos de atividade apostólica.
Assim morreu uma longa e sincera amizade entre dois homens insignes
— naufragou no escolho duma questão pessoal . .
— 122 —
O movei de Paulo não foi, de certo, nenhum sentimento de rancor
ou vindicta;mas tão somente o senso da responsabilidade da sua missão,
que não admitia considerações humanas, provenientes de laços naturais.
Separou-se. Rompeu com um amigo que melhor do que outro qual-
quer o compreendia; o homem que, em Jerusalém, quando todos se esqui-
vavam, lhe estendera a mão e o apresentara aos antigos apóstolos o homem ;
— 123 —
26. SEGUNDA EXPEDIÇÃO APOSTÓLICA.
PELAS MONTANHAS. TIMÓTEO
(I Tm. 6, 20; At. 15, 39-16, 5)
ML
'rC "Vi*
— 124 —
da cristandade de Jerusalém, amigo de Pedro, era ótimo elemento e bem
podia servir como traço de união entre os étnico e judeu-cristãos.
Desde esse dia encontramos Silas inseparável companheiro e colabo-
rador de Paulo. Empolgado pelo campo magnético dessa extraordinária
personalidade, sente-se o espírito de Silas em breve sincronizado pela alma
do grande mestre. A simples presença de Paulo lhe inspira confiança e
gosto pelo trabalho.
Pena que o genial narrador Lucas não tenha sido sócio de Paulo
nessas jornadas. Talvez nos tivesse conservado o esboço de alguma das pa-
lestras do apóstolo com os companheiros de hospedaria, ou com um grupo
de soldados de César, da guarnição de Pagrae.
Desceram os dois à extensa planície de Issus, onde, no ano 333 a.Cr.,
se travara uma das mais importantes batalhas da história, entre Alexandre
e Dario. Sem a vitória do grego sobre o persa, não teria sido possível,
provavelmente, a expedição de Paulo pelas províncias do império romano;
nem o espírito de Atenas teria informado o organismo do mundo civilizado,
nem Paulo teria exarado as suas luminosas epístolas no admirável idioma
de Demóstenes e Homero.
O homem põe — e Deus dispõe. .
— — 125'
Num dos dias seguintes chegaram Paulo e Silas à capital da Cilicia*
torrão natal do grande apóstolo.
Daí, depois de se proverem do necessário, demandaram as alturas do
Taurus.
Afirma Cícero, numa carta a Atiço, que, ainda em princípios de junho,
o Taurus é impraticável, devido às neves do inverno e das águas torrenciais
do degelo, na primavera.
Mas, para os dois arautos do Evangelho não existia a palavra "im-
possível".
Também o Taurus tem os seus desfiladeiros, precipícios e recôncavos,
um dos quais se chama até hoje a "garganta do diabo". Por entre os so-
berbos cabeços das montanhas, cujos caprichosos recortes fazem lembrar a
nossa "Serra dos Órgãos", se desdobravam lindas esplanadas cobertas de
exuberante vegetação. Aí branquejavam, no seio de jardins e pomares, os
palacetes de veraneio dos argentários de Roma.
Por essa mesma estrada, ao longo do Cydnus, carregaram os guerreiros
da Idade Média o corpo exânime do seu grande imperador Barbarroxa. Por
aí transitaram, cheios de fé, os belicosos cruzados, à reconquista da Terra
Santa.
Na primavera do ano 49 palmilhavam essa estrada militar dos Césares
sem dinheiro nem armas, mas com uma fé ina-
dois solitários viandantes,
balável e um ardente amor no coração.
Iam desvendar ao inundo da matéria
e dos prazeres as grandezas do Verbo eterno que se despojou dos esplen-
dores da divindade, assumiu forma de homem, forma de servo, forma de
vítima, e acabou por se revestir das glórias do ressuscitado. Vinham os
mercadores buscar riquezas nessas regiões —
Paulo e Silas vinham para
falar dos tesouros celestes e taxar de lixo as preciosidades da terra.
— 126 —
Descendo do Taurus pelo lado do norte ou noroeste, chegaram os dois
missionários à extensa planície da Capadócia meridional, estepe monótona,
cortada de crateras extintas e, em tempo de
chuvas prolongadas, convertida
num brejo a perder de vista. Não sabemos
se Paulo se serviu alguma vez
duma cavalgadura. Mesmo em caso afirmativo, pouco lhe valeria nessa pla-
nície; qualquer cavalo ou jumento atolariam até o corpo nessa água lama-
ecnta, quando não perdiam de todo a terra de sob os pés.
Timóteo era filho de mãe judia e de pai gentio, este já falecido. Se-
gundo a praxe vigente, devia ter sido circuncidado em pequeno. Não o fôra.
Pôde causar estranheza que Paulo tenha aconselhado a circuncisão, quando
a outro discípulo, Tito, nunca sugeriu esta idéia. Mas é que Tito era filho
de pai e mãe pagãos. Alem disto, no caso de Timóteo concorriam circuns-
tâncias especiais, que aconselhavam essa medida, afim de atalhar aos judeu-
cristãos todo e qualquer pretexto de não aceitação do Evangelho.
Paulo não era menos prudente que intransigente.
Timóteo veio provar-se fidelíssimo e excelente colaborador de Paulo
Fraco de saúde, é objeto de carinhosas solicitudes da parte do mestre, que
até lhe aconselha o uso discreto do vinho por causa do seu estômago.
Escrevendo aos filipenses, diz o apóstolo (2, 20 ss) "Não tenho outro
:
homem de idênticos sentimentos e que por vós se interesse com afeto mais
sincero. .Como um filho serve a seu pai, assim me serviu ele, a bem do
.
Evangelho".
~ 128 —
27. O BRADO DA EUROPA. LUCAS,
O MÉDICO
(Ât. 16, 6 ss. CL 4, 4)
— 129 —
Não tardaria, porém, a surgir um novo Homero que escreveria, para
todos os milénios vindouros, a epopéia do grande herói que ia imolar a sua
vida, não pela beleza frágil duma mulher, mas por amor ao Homem-Deus,.
Rei imortal dos séculos . .
— 130 —
macedônios ;
aquela clâmide de bastas pregas e aquele chapéu de abas largas,
como só se usavam na Macedónia.
"Desta visão — —
concluímos que para lá nos cha-
acrescenta Lucas
mava Deus afim de prègarmos o Evangelho".
Era o brado da Europa —
o brado pelo Cristianismo . . .
— 131 —
28. EM FILIPES. LÍDIA, A PURPUREIRA
(At. 16, 11 ss)
Macedónia derrotou a Dario, rei dos persas e médos, depois de haver ex-
pugnado todas as fortalezas e vencido todos os reis da terra e avançado
até aos confins do globo —
então emudeceu o mundo ante a sua face . . .
— 132 —
Pouco se demoraram os dois viandantes na cidadezinha marítima de
Neápolis (hoje: Cavala). Do alto dum penhasco sobranceiro saudava-os o
templo de Diana —
silencioso desafio do paganismo ao Evangelho.
De Neápolis conduzia, através das montanhas de Pangaios, a famosa
via Egnátia, que desde Dyrrachium cruzava a Ilíria, a Trácia e a Macedó-
nia, e, do outro lado do Mar Adriático, se prolongava até Roma.
Transposta a cadeia de montanhas, espraiam os caminheiros a vista
por uma campina bucólica, pontuada de flores e amenizada de numerosos
rebanhos de ovelhas e cabras; e, no meio da planície, a cidade de Filipes.
Ali se forjara, um dia, a coroa e a dinastia dos Augustos.
Filipes fôra fundada por soldados romanos, os quais, com o' seu pro-
verbial espírito de ordem e disciplina, tinham nela implantado também o
culto às divindades de Roma: Minerva, Diana, Mercúrio, Hércules, etc.
Filipes era uma Roma em miniatura, com o seu fórum, o seu teatro, o seu
castelo e as suas muralhas ciclópicas. Cada ano era eleito pelos cidadãos
um duumvirato confiado a dois "arcontes" (archontes). Quando o arconte
subia ao fórum para dar sentença e distribuir justiça, era ladeado de dois
"lictores" que carregavam as célebres "fasces" romanas com a machadinha
no centro, símbolos do poder pela uni^o.
Os habitantes de Filipes, como em geral os macedônios, eram de es-
pírito guerreiro, amantes da liberdade. Também as mulheres tomavam parte
na vida civil, nas eleições e, não raro, nas revoluções.
Por falta de número suficiente de doutores da lei, não existia sinagoga
do lugar, senão apenas uma "proseuqué" (proseuché), ou casa de oração.
Achava-se essa fora da cidade, às margens do pequeno rio Gangas.
Na manhã imediata, para lá se encaminharam Paulo e seus amigos, a
ver se encontrariam ensejo para anunciar a boa nova de Jesus Cristo.
Entraram no recinto sagrado, que não era senão uma área cercada de
um muro baixo e sombreada por umas árvores. Ali, ao ar livre, encontra-
ram um grupo de mulheres judias e pagãs, entretidas em exercícios de
piedade.
Sentou-se Paulo no meio dessas mulheres desconhecidas e, com a sua
natural simplicidade,começou uma palestra religiosa.
Cena encantadora Para alem, os soberbos cabeços do Pangaios
! . . .
;
— 133 —
Sendo que a púrpura é um tecido de elevado preço, só podiam explorar
esteramo pessoas ou firmas que dispunham de vultosos capitais.
Essa "Lídia purpurei ra", depois da morte de seu marido, chefiava, com
seguro critério comercial, a grande "casa das púrpuras" de Filipes.
Entretanto, o seu deus não era de ouro nem de púrpura. Era assídua
em acompanhar à casa de oração as suas amigas israelitas, adorando a Deus
em espírito e verdade.
"E o Senhor abriu-lhe o coração para prestar atenção às palavras de
Paulo" — refere Lucas.
Não no meio do materialismo profano pessoas duma
é raro encontrar-se
acendrada espiritualidade. Em busca do "Deus desconhecido", estão sempre
com as antenas do espírito estendidas no ar, à espera duma onda divina
que venha percorrer os espaços; e, mal percebam essa onda celeste, logo
reagem, como sensíveis receptores, previamente afinados pelas imponderá-
veis vibrações da graça de Deus.
Com tanto acerto e tanta compenetração falou Paulo da pessoa e dou-
trina do Nazareno, que Lídia pediu instantemente admissão ao reino de
Cristo, ela, com toda a sua família.
Mais ainda: genuinamente feminina, quis logo provar pela caridade
do próximo o amor de Deus que lhe abrasava o coração: convidou Paulo e
-seus companheiros para sua casa, dizendo: "Se é que me considerais fiel
discípula do Senhor, vinde hospedar-vos em minha casa".
A mulher precebe muitas vezes, graças a uma intuição direta, o que
o homem só atinge através de complicados raciocínios e eruditos silogismos.
Lídia compreendeu de relance que Jesus era o caminho, a verdade e a vida
— a resposta explícita a tantas perguntas tácitas que, desde menina, lhe in-
quietavam o coração.
Os três missionários abandonaram, pois, o seu primeiro albergue e pas-
saram a morar na confortável residência da novel discípula de Cristo.
Lídia, Evódia e Síntique —
três nomes femininos de Filipes, referidos
nas letras sacras. Às duas últimas recomenda São Paulo, na epístola aos
filipenses, que sejam pacíficas e cultivem a fraternidade e harmonia. Deve
ter havido entre Evódia e Síntique alguma desavença ou rivalidade, tão
comum entre mulheres, mesmo "piedosas". De Lídia, porém, nada disto
ouvimos . .
TO
'A" TO
— 134 —
dramática e ares oficiais como no palácio do pro-cônsul de Chipre; entrou
com ao nascer do sol duma sugestiva
idílica simplicidade, manhã de outono,
sobre as asas leves duma hora de catecismo . . .
— 135 —
29. A PITONISA DE FILIPES
(At. 16, 16 ss; 1 Ts. 2, 2)
— 136 —
Certa manhã, a caminho do lugar de oração, saiu duma casa vizinha
uma menina e foi no encalço dos arautos do Evangelho, bradando "Esses :
— 137 —
com lágrimas nos olhos, prostrou-se aos pés do seu libertador e acompa-
nhou-o à casa de- oração. É possivel que tenha abraçado o Evangelho.
Quando, porém, os gananciosos senhores da escrava verificaram o que
acontecera e que se lhes fôra uma fonte de grande lucro, indignaram-se
contra Paulo.
Que fazer? acusá-lo? mas de que crime? A lei romana não cogitava
de casos dessa natureza nem defenderia a exploração de artes mágicas.
Força era descobrir outro pretexto.
E pretextos não faltavam.
Os prejudicados, provavelmente os sacerdotes pagãos do lugar, foram
ter com os duúmviros —
ou estrateges, como dizia o povo — e, em nome
— 138 —
30. UMA NOITE MISTERIOSA. PACIÊNCIA
DE MÁRTIR E BRIO DE HOMEM
(At. 16, 23 ss)
o paladar ressequido duma sede atroz, e ainda por cima sem possibilidade
de movimento, com ambos os pés barbaramente apertados entre as duas
partes escavadas duma trave, que se fechavam com uma espésie de grande '
c-
— 139 —
santíssima em que "o Verbo se íez carne e habitou entre nós", ou, como diz
tão belamente a liturgia do Natal: "Quando o universo se achava abismado
em quando a noite parava a meio caminho
silêncio noturno, e então desceu —
do trono régio o teu Verbo onipotente, ó Deus!" Também era convicção
geral daqueles cristãos que a "parusia" (segunda vinda) de Cristo se daria
à meia-noite.
Paulo e por se unirem a Cristo, preludiavam com salmos,
Silas, ansiosos
e cânticos opróximo advento do seu Senhor e Mestre. Do duplo cárcere
de pedra dura e de carne frágil, levantariam vôo para as regiões da suprema
liberdade.
"Subitamente se fez sentir um terremoto tão forte que abalou os ali-
Parece que a salvação a que o carcereiro aludia era uma libertação desses,
estranhos fenómenos e supostos perigos. Paulo, porém, lhe fala de outra,
salvação, dizendo: "Crê no Senhor Jesus, e serás salvo".
Foram à casa do carcereiro e lhes falaram de Jesus Cristo, a ele e
à sua família.
Catequese noturna Preparação sumária para o batismo
! !
— 140 —
Também os magistrados e oficiais da justiça de Filipes tinham percebido
terremoto, que lhes abalara a conciência. Compreenderam, ou julgavam
adivinhar uma relação entre a clamorosa injustiça do dia precedente e esse
estranho fenómeno noturno. Por isso, logo de madrugada, deram ordem ao
carcereiro para escancarar as portas do calabouço e pôr os presos em li-
berdade.
Deu-se então um fato inesperado e tão genuinamente paulino que só
mesmo um espírito superior como Lucas o podia referir, sem medo de des-
lustrar a auréola do seu herói.
"Paulo, porém, mandou dizer: Sem processo algum nos mandaram
açoitar publicamente e lançar ao cárcere, a nós, que somos cidadãos roma-
nos — e agora nos querem despedir às ocultas? Não! de modo algum!"
Aí temos o Paulo de Tarso, em toda a verdade e plenitude do seu
brio varonil. Humilde discípulo de Cristo, capaz de sofrer calado as maiores
injúrias, não deixa nunca de ser um homem genuíno, cheio de coragem e
intrepidez, que sabe fazer valer os seus foros de cidadão do império dos
Césares, quando o exigem a honra e o prestígio do Evangelho.
Muito hagiógrafo dos nossos dias não teria a independência de espírito
para descrever este episódio, com medo de descristianizar o seu biografado
pelo fato de o apresentar como verdadeiro e autêntico homem. Imenso pre-
juízo teem causado ao Cristianismo certos escritores que procuram extin-
guir em seus heróis o elemento natural em vez de o dar sublimado pela
virtude divina do Evangelho.
Pela Lex Porcia era passível de pena capital toda a autoridade que
mandasse flagelar um cidadão romano. Só podia ser flagelado um aliení-
gena, um bárbaro, um escravo, mas nunca um cidadão do império de César.
Paulo conhecia essa lei, e quem sabe se não foi precisamente por isso que
permitiu o deshumano castigo do dia anterior? Assim, tratado com clamo-
rosa injustiça, podia bancar a vítima inocente e impor a sua vontade ao
tribuno da cidade, reclamando plena liberdade de ação, sob pena de de-
nunciar a autoridade local como incursa no artigo fatídico da Lex Porcia.
Segundo o conselho do divino Mestre, e consoante a sua própria dou-
trina, sabia Paulo ser "simples como a pomba", mas também "atilado como
a serpente".
"Os oficiais da justiça referiram a resposta deles aos magistrados; e
estes, ouvindo que eles eram cidadãos romanos, se encheram de medo. Fo-
ram ter com Paulo e Silas e lhes pediram desculpas e os conduziram para
fora, rogando que abandonassem a cidade".
Quão depressa se inverteram os papéis Esses magistrados, ainda havia
!
— 141 —
Paulo, todavia, permanece irredutível. Declara-lhes, firme e categori-
camente que não sairá da cidade senão acompanhado duma escolta militar;
•porque publicamente foram maltratados e publicamente há-de essa injustiça
ser reparada, para que Filipes em peso veja e saiba que eles são inocentes
e que o Evangelho de Cristo está sendo prègado por dois honrados e leais
cidadãos romanos, e não por um par de escravos ou vagabundos anó-
nimos. . .
— 142 —
31. EM TESSALÔNICA
(At. 7, 1 ss; cí. 1 Ts. 2, 1 ss; Fp. 16)
Filipes foi uma das poucas cidades das quais Paulo saiu em paz com
as autoridades civis, e até com solenidade e glória. De quase todas as de-
mais cidades sai corrido, expulso, enxotado, arrastado, quando não flage-
lado, apedrejado e jogado ao monturo.
1C W
— 143 —
Pelos fins do outono de 49, talvez em novembro, encontramos Paulo,
Silas e Timóteo palmilhando a Via Egnatia, estrada militar que de Filipes
conduzia a Anfípolis, e de Apolónia, a Tessalônica.
daí, através Não se
demoraram naquelas porque Paulo costumava es-
três localidades menores,
tabelecer o seu quartel-general nos grandes centros comerciais e industriais,
e irradiar dai para as cidades circunvizinhas a sua atividade conquistadora.
Tessalônica, essa sim, prometia tornar-se um magnífico ponto estraté-
gico para um apostolado de grande envergadura. Tinha o nome de uma
irmã do grande Alexandre gozava desde muito as honras de metrópole da
e
Macedónia. Situada num dos maiores e mais seguros portos do Mar Egeo,
ligada com Roma e Bisâncio pela via Apia, que aqui se chamava via Egna-
tia, derramava-se a cidade profusamente pelas fraldas do Olimpo (2895 m),
— 144 —
com eles sobre as Escrituras. Expôs-lhes e demonstrou que fôra necessário
padecesse Cristo e ressuscitasse dentre os mortos".
Quer dizer que atacou logo o ponto central, a eterna pedra de tropeço
dos judeus: o Messias padecente. Assim o predissera Isaias, o "evangelista'
do Antigo Testamento.
"Alguns deles —
prossegue o historiador —
abraçaram a fé e aderiram
a Paulo e Silas, bem como numerosos gentios tementes a Deus e não poucas
mulheres nobres".
Poucos judeus, muitos gentios e muitíssimas mulheres de posição —
resultado magnífico da pregação de Paulo.
Da prègação? Sim, mas principalmente do seu exemplo. Um homem
que, depois de exhausto dos labores apostólicos, passa grande parte da noite
empunhando a lançadeira do tear, para "não ser pesado a ninguém", esse
homem pôde falar com liberdade e desassombro da pobreza de Jesus e pôde
também dizer a seus ouvintes: "Sede imitadores meus, assim como eu sou
imitador de Cristo". Por outro lado, que fruto poderia Paulo esperar da
sua evangelização, do mais eloquente dos seus sermões, se comprasse ou
alugasse, no bairro aristocrático de Tessalônica, um confortável palacete,
contratasse um ou dois criados, comendo bem, dormindo fartamente, fre-
quentando teatros e diversões e vivendo à custa do seu rebanho? e se ainda
por cima exigisse pingues estipêndios e espórtulas das suas "fadigas apos-
tólicas"? Que adiantaria, nesse caso, o erudito "secretário" Lucas escrever
um belo volume sobre as "excelências do sacerdócio", sobre a "sublimidade
do Cristianismo", ou tentar provar que Paulo de Tarso era um "alter
Christus" ?. .
Entretanto, para provar tão grande verdade não era necessário escre-
ver livro algum: bastava que Paulo ou Silas desnudassem as costas — e
logo apareciam as "palavras", as "linhas", os "capítulos", dessa estupenda
Cristologia, que os gananciosos negociantes de Filipes haviam gravado com
rudes açoites naquelas páginas de carne. . .
— 145 —
brados, irmãos, dos nossos trabalhos e fadigas : trabalhámos dia e noite
para não sermos pesado a nenhum de vós" (1 Ts. 2, 7 ss).
Em Tessalônica, não obstante a profunda depravação moral, se con-
verteram ao Evangelho da pureza e da renúncia, numerosos gentios, entre
eles bom número de mulheres pagãs da alta sociedade. É que a alma fe-
minima, graças àquela intuição que lhe é peculiar, não encontra satisfação
plena e definitiva no papel de odalisca ou de fêmea —e é esta a sua con-
dição fora do Cristianismo — nem mesmo a satisfaz a condição de simples
mulher e mãe, do ponto de vista puramente natural. Saturada de gozo,
sente o fastio dos prazeres sensuais, e quando então se lhe descortina, em
algum ponto longínquo do horizonte, um novo mundo de valores espiri-
tuais, vai sua alma, com sofreguidão e avidez, em demanda desse universo
de maravilhas inéditas e de incógnitas grandezas.
Frisa Lucas a circunstância de ter Paulo insistido no estudo das sa-
gradas Escrituras. É que nessas páginas lapidares se encontra o eterno
manancial da verdade revelada, o misterioso elixir que garante indefectivel
juventude ao espírito, a prodigiosa fénix que, mil vezes reduzida a cinzas
pela ignorância de uns e perversidade de outros, ressurge sempre formosa
e sempre imortal.
Feliz do povo que amanheceu para o Evangelho guiado por mestres
tão esclarecidos e robustecido por apóstolos tão abnegados
— 146 —
32. DE TESSALÔNICA A BEREIA
(At. 17, 5 ss; 1 Ts. 2, 1 ss; Fp. 4, 16)
— 147 —
menos heroísmo maior suavidade mística, começou a prevalecer a men-
e de
talidade do Cristo-Esposo. Muitas almas devotas do nosso século não co-
nhecem outro Cristo senão o "divino esposo das almas", ou então o "terno
amigo das almas virginais". Com esta orientação dulçorosa perdeu o Cris-
tianismo grande parte do seu vigor másculo, do seu dinamismo realizador,
da santa audácia dos indómitos pioneiros do Evangelho dos tempos pri-
mevos.
A "Ação Católica" promete reviver a ideia vigorosa e sadia de Cristo-
Rei. É ele o nosso soberano, general em chefe, o supremo diretor das
hostes da igreja militante. Todo o homem que a ele queira aderir deve
ser "soldado de Cristo", quer na defensiva quer na ofensiva, como diz São
Paulo na defensiva deve lutar pela pureza e integridade do espírito do
;
dos para seu Senhor e Soberano. No centro desse drama não está a pe-
quenez do Eu humano, mas, sim, a grandeza do Tu divino. Pouco importa
que o Eu sofra, seja ferido, tombe e sucumba no campo de batalha; o que
importa é que outros vassalos arranquem do punho sangrento do soldado
ferido ou morto as armas sagradas e, de bandeira ao vento, avancem deste-
midos e plantem a cruz de Cristo nas mais longínquas plagas do universo
e alarguem os seus domínios até aos confins do mundo.
É este o genuíno espírito de Paulo, o santo mais "masculino" que a
história conhece, e, por isso mesmo, o mais completo ideal para os homens
da "Ação Católica" do nosso século.
Em mais de um dos seus sermões deve Paulo ter falado aos tessalo-
nicenses sobre a "parusia", isto é, o segundo advento de Cristo, a sua
— 148 —
Crescia rapidamente o número dos adeptos do Evangelho vindos do-
paganismo. O gentio, terreno baldio em matéria de religião, era campo
mais propício à sementeira evangélica do que o judeu, com o espírito re-
pleto de ruinas que necessitavam de ser previamente removidas.
— 149 —
Imensa era a dor de Paulo . .
Não poder levar a termo a sua tão bem iniciada campanha evangélica
«?.m Tessalônica! Os judeus estavam à sua espreita por toda a parte, e em
breve o teriam eliminado dentre os vivos. E Paulo tinha de cumprir ainda
uma tarefa ingente —
antes de tombar nas areias de Óstia Tiberina. . .
-n-
-A- "a-
•Vi*
ML vM.
'A- 'A-
— 150 —
Em Beréia, como se vê, organizou-se um verdadeiro movimento bí-
blico. Havia nessa cidadezinha bucólica um pugilo de intelectuais, homens
e mulheres, que, antes de crer, queriam convencer-se racionalmente de que
o Nazareno era de fato o Messias vaticinado nos livros sagrados dos he-
breus.
Também aqui ganhou Pauloum prestimoso colaborador, na pessoa de
Sópatro, filho de Pirro. Mais tarde o encontramos entre os companheiros
de viagem do apóstolo.
Entrementes, apareceram em Beréia judeus de Tessalônica e come-
çaram a minar o terreno. À guisa de certos cães que perseguem o vian-
dante com impertinentes latidos, assim importunavam os judeus o aposto-
lado de Paulo, onde quer que aparecesse. Ele mesmo, na epístola aos Fili-
penses (3, 2), compara os seus adversários macedônios a molestos caninos.
Afim de prevenir males maiores, insistiram os amigos de Paulo com
cie para que abandonasse a cidade. Receavam pela vida do mestre.
Paulo atendeu a seus pedidos e encaminhou-se ao porto. Deixou na
Beréia parte do seu coração Silas e Timóteo. Estava com a saúde abalada
:
;
Beréia,
Em companhia de alguns amigos embarcou, com destino à Grécia.
Chegado a Atenas, doente, saudoso, despediu-se dos amigos e reco-
mendou-lhes encarecidamente: "Dizei a Silas e Timóteo que venham quan-
to antes".
Parece que cuidava chegada a sua hora derradeira. A fragilidade do
seu corpo não resistia à sobrecarga do espírito.
— 151 —
33. SOZINHO EM ATENAS
(At. 17, 16 ss; 1 Ts. 3, 1)
— 152 —
Paulo estava no inundo — mas já não era do mundo. .
— 153 —
Paulo estava só. Entretanto, mais do que a solidão externa o ator-
mentava a solitude interior. Se para um israelita monoteista era dolorosa
a visão desse politeismo idólatra, para um ardente discípulo de Cristo era in-
suportável a idéia de centenas de pseudo-deuses sem a noção do único Deus
verdadeiro.
Nessa disposição escreveu Paulo aos tessalonicenses esta frase tão la-
cónica quão significativa: "Estou só"...
Acresce a isto a progressiva inquietação pela sorte do Evangelho na
Macedónia. Se os adversários pervertessem o espírito dos neófitos nas
recem-fundadas igrejas de Filipes, Tessalônica, Beréia?...
"Por isso, não podendo por mais tempo suportar a situação —
escreve
ele — mandei colher informações a respeito da vossa fé, com medo de que
o tentador vos armasse ciladas e frustrasse o nosso trabalho" (1 Ts. 3, 5).
Pediu a Timóteo que viesse de Tessalônica a Atenas.
Também os génios e os santos teem as suas horas de desalento. Paulo,
nesses dias de solidão externa e interna, parece ter sido vítima duma pro-
funda depressão psíquica e moral. A sua fragilidade física; a lembrança
dos ingentes labores e sofrimentos dos últimos anos, com tão pouco fruto;
a incessante hostilidade dos judeus; o perigo da apostasia das recem-fun-
dadas cristandades a perspectiva do sobrehumano esforço que lhe custaria
;
a evangelização duma cidade como Atenas, com aquela vida farta e dis-
plicente leviandade em face dos grandes problemas do espírito —
tudo isto
enervava, irritava, desvigorava a alma de Paulo.
Mais do que nunca em Atenas, de que a ciência por
se convenceu ele,
si só não pôde salvar o homem,
que a arte não vale torná-lo interior-
e
mente melhor do que é. Não há redenção senão em Cristo. O grego,
homem dos sentidos e do sentimento, adorava a elegância das linhas, a for-
mosura do corpo, o ritmo das palavras, a estética do pensamento, a har-
monia da vida —
mas não havia Deus nem alma em seus conceitos . .
Quem uma vez saboreou uma gota de Deus e da alma, não encontra
descanso enquanto não se abisme no oceano dessas grandes e eternas rea-
lidades.
Certo dia desceu Paulo para o antigo porto de Faleron, quando numa
esquina viu um templozinho pagão. Entrou e viu gravadas na ara estas
palavras Agnostô Theô, que quer dizer Ao deus desconhecido.
: :
universo, e não convinha expor-se às iras desse nume ignorado; era pru-
dente granjear-lhe as boas graças por meio de preces e sacrifícios.
Assim calculavam eles. Ainda em nossos dias vigora entre os gentios,
como também entre alguns muçulmanos, esse mesmo costume.
Paulo leu essa dedicatória —
e estava tomada a sua resolução: ia
falar aos atenienses do deus desconhecido, Jesus Cristo,
O mutismo frio daquela ara com as duas palavrinhas Agnostô Theô
era duma eloquência enternecedora ; era um veemente brado do paganismo
'
pelo Deus que ignorava. Desde o tempo de Sócrates e dos Órficos, ama-
nhecera no espírito dos helenos cultos, sobretudo dos Estóicos, a idéia de
— 155 —
que as corriqueiras divindades populares não passavam de símbolos multi-
formes de um único Deus invisivel. Platão demonstrara pelo mundo íntimo
do Eu sentimental a existência dessa grande e única deidade. Aristóteles
provara o mesmo pelo mundo externo da realidade objetiva. Infelizmente,
sobreviera a Academia dos Céticos, que fez recuar para alem das nuvens
c- Deus verdadeiro que o coração e a inteligência estavam adivinhando —
c no tempo de Paulo era novamente o "deus desconhecido" velado pelos
nevoeiros da indiferença e da superficialidade.
Entretanto, a parte melhor e mais sã do povo continuava a orar e
sacrificar ao deus ignoto, que a conciência lhe dizia existir sob a proteiforme
multiplicidade dos idolos, ainda que outros, irrefletidos, identificassem esses
mesmos idolos com a divindade.
Só o Cristianismo estava em condições de responder à ansiosa inter-
rogação pagã do agnostô Theô com a jubilosa e segura afirmação do gnostós
Christós — do Cristo conhecido.
— 156 —
35. PAULO NO AREÓPAGO
(At. 17, 21 ss)
— 157 —
reição" (1), seu tema predileto; mas aquele auditório, habituado à idéia de
deuses e deusas, entendeu que se tratava de um novo casal divino : Jesus
e Anástasis. Pudera não! Se na Grécia cada virtude e cada vício tinha a
sua divindade peculiar, masculina ou feminina . .
ironia, o ateniense não se interessa por outra coisa que não seja contar e
ouvir novidades. Esperavam gozar uma hora de interessante palestra.
Ainda que o recem-chegado não fosse filósofo e expusesse uma nova ideo-
— 159 —
36. O DISCURSO FILOSÓFICO DE PAULO
(At. 17, 33 ss)
— 160 —
w -vi
— 161 —
como se encontra em escritos mais recentes.
e Aristóteles, e "supersticioso",
De maneira que o auditório ficou na duvida se o orador elogiava a sadia
religiosidade dos seus grandes pensadores, ou censurava a mórbida demo-
nomania de largas camadas populares.
Subiu de ponto a atenção do auditório quando o orador anunciou enfa-
ticamente que ia desvendar o enigma do "deus desconhecido", que eles ve-
neravam :
tios, que de revelação verbal nada sabiam, invoca a obra do Deus criador,
desdobrada, qual livro imenso, aos olhos de todo o homem que tenha olhos
para ver.
Esse Deus, prosseguiu o orador, não vive encerrado na estreita clau-
sura dos vossos templos, mas enche todos os espaços do universo. Dele
não temos imagem exata, porque Deus é puro espírito. Nem ouro nem
prata o representam dignamente. Os verdadeiros adoradores de Deus o
adoram em espírito e em verdade .
(1) Estas palavras magistrais que Paulo escreveu aos Romanos (1, 19), certa-
mente, também foram proferidas em Atenas.
— 162 —
caram a honra das excelsas divindades nacionais Palas Atene, toda de ouro
:
nos arcanos dos mitos os vossos artistas Fídias, Praxiteles, que o vis-
; :
— 163 —
divina. Não pôde vigorar antagonismo entre o ser e o jazer, entre a ordem
real e a ordem moral.
exija dos seus ouvintes algum sacrifício pessoal, perdeu o seu " intelectua-
lismo" e passa a ser considerado como um medíocre e vulgar missionário
ou palrador, quando não um "fanático", um "retrógrado", um "espírito
sectário". Se Deus enviasse ao mundo o mais genial dos seus serafins ou
o mais eloquente dos arcanjos que lhe circundam o trono, e se esses inte-
ligentíssimos espíritos exigissem do auditório que mortificasse as suas pai-
xões, praticasse a humildade e proclamasse a soberania do espírito sobre a
tirania dos instintos —é fora de dúvida que essas preclaras inteligências
do alem seriam acoimadas de retrógradas, intolerantes, obscurantistas, etc.
É que "o coração tem razões de que a razão nada sabe".
Depois daquelas exposições filosóficas, lançou Paulo rapidamente ao
meio do auditório quatro pensamentos, que não conseguiu terminar: 1) —
taxa de ignorantes aos que não conhecem e servem a Deus; 2) exige —
sincera conversão do erro para a verdade, do vício para a virtude; 3) —
fala do juizo final; 4 —
menciona a ressurreição dos mortos.
Quando o orador acusou de obscurantismo o período pagão dos povos,
inclusive a Grécia com todas as luzes da sua ciência e arte, começaram os
ouvintes a murmurar, descontentes. Quando exigiu conversão e penitência,
levantaram-se alguns deles e sairam. E quando começou a discorrer sobre
o juizo universal a que teriam de comparecer todos os homens, para prestar
contas da sua vida, rompeu o auditório em franca risada, e os que tinham
alcunhado a Paulo de cata-sementes e comediante apelaram para a sua pro-
funda intuição psicológica, graças à qual tinham adivinhado, desde o prin-
cípio, no adventício um pobre palhaço e rotineiro narrador de fábulas pueris.
— 164 —
De fato, porém, não o desejava ouvir discorrer nunca mais sobre ponto
algum.
Mas, é sempre mais delicado consolar o derrotado com a perspectiva
de uma "outra ocasião" do que proibir-lhe redondamente uma nova ascen-
são à tribuna.
Paulo, é certo, não deixou de perceber a subtil ironia que vibrava
nessas palavras. Mais que uma descompostura em regra dói um sarcasmo
velado com requintes de amabilidade.
Paulo desceu do Areópago sem ter proferido sequer o nome de Jesus r
sem ter lançado ao espaço noturno de Atenas o nome adorável que lhe
ardia na alma e que lhe valia mais do que toda a filosofia da Grécia e do
mundo inteiro.
Com um sentimento de amarga decepção se retirou para a sua mo-
desta hospedaria, absorto em cogitações . . . Não
melhor silen-
teria sido
ciar, por ora, os dogmas característicos do Evangelho? não fora mais pru-
dente contar por extenso a encantadora vida do Nazareno, antes de lem-
brar os horrores da sua morte e o mistério da sua ressurreição?. .
Mas o amor não calcula, ama simplesmente. Paulo, desde que saíra
de Beréia, andava com a alma tão repleta de Cristo. E a longa solidão . .
— 166 —
Na manhã seguinte foram ter com Paulo algumas pessoas e lhe soli-
citaram uma entrevista. À frente do grupo vinha um membro do Areópago,
por nome Dionísio, ilustre senador de Atenas; e mais uns poucos. Entre
eles também uma senhora da alta sociedade, vestida de preto e com um
longo véu a cobrir-lhe o rosto; chamava-se Dâmaris. Desejavam conhecer
mais a fundo a religião daquele sábio a que se referira Paulo, no Areppago.
Com um sentimento de silenciosa gratidão na alma, acolheu o apóstolo
os visitantes e começou a explicar mais por miúdo o espírito da doutrina
de Cristo. Falava com fogo e amor, como que a defender um ente querido
injustamente agredido por uns sicários.
Essa hora de catequese íntima levantou um tanto o espírito abatido
do Era pequenino o grupo, porém distinto e de almas
solitário sofredor.
sinceras. Alem disto, Dionísio, dada a sua posição social, podia vir a
tornar-se ótimo elemento de propaganda. E Dâmaris, a nobre dama
ateniense, saberia advogar a causa de Cristo com o espontâneo ardor e a
dedicação da alma feminina.
Entretanto, apesar desse pugilo de discípulos, Paulo não se dava a
ilusões a respeito de Atenas. Sabia que mais facilmente abraçavam o
Evangelho os escravos da carne do que os demónios do orgulho.
Em nenhuma das suas cartas se refere aos atenienses. Conhecemos-lhe
epístolas às igrejas de Corinto, de Tessalônica, de Filipes, de Êfeso, de
Colosses, de Roma, da Galácia; mas não consta duma carta paulina aos
cristãos de Atenas. É que Paulo não chegou a fundar na capital da Grécia
uma cristandade coesa, com vida própria.
Ainda no segundo século era muito precário o Estado do Evangelho
em Atenas foi, no dizer de Renan, o mais rijo baluarte que se opôs
Atenas.
à marcha triunfal do Cristianismo.
Maldição do orgulho do espírito.
— 167 —
38. FUNDAÇÃO DA IGREJA DE CORINTO
(At. 18, 1 ss)
— 168 —
Em todas as ruas e praças da cidade se viam templos e altares dedi-
cados às divindades da terra ou importadas de fora. Netuno com o delfim
e tridente tivera de ceder a hegemonia da cidade a Vénus chamada "Afro-
dite Pandemos" ou "Cipris", espécie de Astarte fenícia, que tinha o seu
majestoso santuário no topo de Acrocorinto. Ummilhar de sacerdotisas
(hierodules) moravam, em lindas casinhas, ao redor do santuário, servindo
à fantástica divindade com o sacrifício voluntário do seu pudor e a pros-
tituição do seu corpo. Soldados e marinheiros, negociantes e industriais,
operários e gladiadores, milhares de forasteiros deixavam no poder das fa-
mosas hierodules o seu dinheiro e levavam pelo mundo fora a proverbial
"moléstia coríntia".
A Vénus de Corinto era simbolizada pela efígie da hierodule-mor Laís,
representada por uma leoa a devorar a sua vítima presa entre as garras.
Essas sacerdotisas da luxúria cultual gozavam em Corinto das mesmas
honras que em Roma se tributavam às Vestais por toda a parte, tanto
;
— 169 —
toriador contemporâneo Suetônio que esse decreto foi provocado por um
motim suscitado por um tal "Chrestos". É possível que esse "Chrestos"
seja idêntico a Cristo, embora o
historiador, mal informado, localize a sua
vida em Roma, quando
nessa f idade apenas se achavam adeptos dele. Na-
quele tempo muitos confundiam os cristãos com uma seita judaica; eram os
" nazarenos" — logo, judeus, concluíam eles.
tarde encontramos esse casal em Êfeso. Essa vida instável não lhes
permitia, naturalmente, prosperidade económica. Tanto mais ricas
eram as almas desses dois cristãos. Priscila parece ter sido dona duma
notável cultura, espírito empreendedor, coração idealista e possuidora de
preclaros dotes de inteligência. Tanto em Corinto, como em Êfeso, e mais
tarde em Roma, na colina do Aventino, põem eles a sua casa à disposição
dos apóstolos do Evangelho, para as reuniões cultuais da primitiva igreja.
Quando Paulo foi bater à porta de Áquila e Priscila, parece que eles
já eram cristãos; pois, quando o apóstolo, na l. a epístola aos coríntios (1,
14), enumera as pessoas que batizou nessa cidade, não menciona os seus
dedicados hospedeiros.
A casa de Áquila era um bazar de tapetes; situada numa rua bastante
movimentada. Largamente aberta, não podia deixar de atrair numerosos
fregueses. Nessa tenda aluguou Paulo um modesto tear, adquiriu determi-
nada quantidade de matéria-prima, e principiou logo a trabalhar com grande
ardor, afim de "não ser pesado a ninguém". "Nunca comi de graça o pão
de ninguém — escreve ele, e, mostrando as mãos calejadas, acrescenta —
estas mãos ganharam o necessário para mim e meus cooperadores".
Essa atitude de Paulo inspirava-se na mais fina psicologia. Se, como
doutor da lei, sabia defender o direito de viver à custa dos fiéis, como dis-
cípulo de Cristo compreendia a conveniência de não fazer uso desse direito.
"Tudo me é licito — diz ele —
mas nem tudo convém". É o que Paulo
chama a "liberdade do Evangelho".
Ninguém podia fazer calar aqueles lábios eloquentes, porque todos sa-
biam que aquela boca não comia um pedaço de pão que não fosse arran-
cado ao sussurro do tear e à escuridão das noites trabalhosas.
É nisto que está um dos maiores segredos das estupendas vitórias desse
incomparável campeão do Evangelho. Tem ele milhares de admiradores —
e quantos imitadores ? . . .
Talvez nunca mais, nos séculos vindouros, foi o Cristianismo tão glo-
rioso, tão simpático e tão ele mesmo, como nesses primeiros anos, quando
em algum bazar, na praça pública ou na praia dum rio,
os seus discípulos,
viviam de corpo e alma para essa grande realidade e enchiam dessa sorri-
dente plenitude todo o mundo da sua vida individual, familiar e social.
Nunca despontou na terra mais bela primavera do que a desses tempos.
Quem ama, de fato, a Cristo e seu Evangelho, não pôde evocar essa
quadra sem sentir a alma repassada de pungentes saudades e dolorosa
nostalgia dessa encantadora alvorada da espiritualidade cristã. . .
— 171 —
Um abastado catecúmeno de Corinto, por nome Estéfanas, solicitou o>
batismo, e abraçou o Evangelho, ele com toda a sua família. "Primícia da
Ásia", é o lindo título que Paulo dá a esse novel soldado de Cristo.
Seguiram o exemplo do prosélito dois homens conspícuos, Fortunato,
e Acaico.
Em Corinto abriu Paulo exceção da regra geral e administrou o ba-
tismo com suas próprias mãos. Por via de regra, limitava-se a pregar a.
palavra de Deus, deixando aos seus auxiliares a parte litúrgica. Deve ter
sido mui tocante essa cerimónia. Paulo, acolitado por Silas e Timóteo e
do casal Áquila e Priscila, conduz os candidatos às margens do rio Leuca.
(quer dizer: Rio Branco), e ali, à sombra amena dos pinheiros e ciprestes,
dirigeuma breve e incisiva alocução aos batizandos, recebe deles a profissão
de fé em Jesus Cristo, e, por entre salmos e cânticos, descem os catecúme-
nos às águas, emergindo depois como discípulos de Cristo.
"Pelo batismo fostes consepultos com Cristo, e com ele ressurgistes,
para uma vida nova", escreve, mais tarde, o apóstolo. E quão natural e
obvio não era esse paralelismo simbólico, à vista do batismo por submersão,
que tão ao vivo lembrava o sepultamento do gentio ou judeu e a ressur-
reição do cristão! ou, em terminologia paulina, a morte do "homem velho"
e a vida da "nova criatura", feita à imagem e semelhança de Jesus Cristo.
Conquista não menos notável fê-la Paulo nos dias seguintes Tício :
batizar".
— 172 —
Nada de grande acontece no mundo sem que a sociedade se revolte.
Em breve, estava Corinto transformado num campo de batalha. Hos-
tilizavam os judeus de todos os modos a pregação do nome de Jesus.
"O Senhor, porém, apareceu a Paulo numa visão noturna e disse-lhe:
Não temas continua a falar, e não te cales porque tenho muito povo nesta
;
;
cidade".
No meio daqueles 500.000 homens havia muitas almas de boa vontade
que sinceramente procuravam o "deus ignoto", a que os atenienses haviam
-dedicado uma ara de pedra, mas ao qual não queriam sacrificar o seu or-
gulho filosófico.
"Pelo que ficou Paulo um ano e seis meses, prègando a palavra de
Deus no meio deles".
Dezoito meses de permanência no mesmo lugar era muito para o irri-
quieto caminheiro apostólico de Tarso. Mas é que Paulo tinha a intuição
das coisas e um pressentimento lhe dizia que Corinto viria a ser um ponto
estratégico do Evangelho, poderosa atalaia, magnífico farol entre a Europa,
a Ásia e África.
E não se enganou.
— 173 —
39. PAULO COMO ESCRITOR
(l. a epístola aos tessalonicenses)
— 174 —
disto, um pouco de goma para colar as folhas, e demais adminículos para
lacrar e sigilar a epístola.
Escrevia-se, nesse tempo, também em pergaminho, feito de pele de ani-
mal. Mas esse material era empregado, de preferência, para correspondência
particular. Mais tarde, quando preso em Roma, pede Paulo a Timóteo que
lhe traga de Tróade, juntamente com a capa que lá deixara, as suas "mem-
branas", ou pergaminhos.
Refere o historiador romano, Plínio, que corriam nesse tempo diversas
qualidade de papel, importadas quase todas do Egito. Havia também uma
espécie de "papel diplomata", chamado "hierática", que media 24 centíme-
tros de largura e era de preço elevado. Mas quem mandara tão ricos do-
nativos como os tessalonicenses, bem merecia uma epístola em "papel de
luxo". Na aquisição desse material superior tinha Paulo de gastar o lucro
de dois ou três dias de trabalho.
Foi assim que, no ghetto de Corinto, provavelmente na casa comercial
de Áquila e Priscila, por entre as tapeçarias e tecidos de pêlo de cabra
dum pitoresco bazar, teve início o "Novo Testamento", esses livros vene-
randos, tão antigos e eternamente novos, que constituem um dos maiores
tesouros da humanidade.
A l.
a
epístola de Paulo aos tessalonicenses, escrita provavelmente no
ano 51, é o primeiro e mais antigo livro que possuímos da pena do grande
apóstolo, e talvez do "Novo Testamento" em geral.
Bem singulares foram as circunstâncias e o ambiente em que se iniciou
o texto sacro da Nova Aliança. Fazem lembrar os albores do Cristianismo
inaugurado na humilde casinha de Nazaré e na solidão duma caverna em
Belém. .
— 175 —
— Xão ! — replicou Paulo, com um gesto enérgico. —
Quem escreve
a carta somos nós, os três. Vós sois companheiros meus de trabalhos e
de lutas . .
— 176 —
ilógico e versátil, não é fácil uma harmonia entre o reino de Cristo e o
mundo profano.
Todas as epístolas paulinas, embora não silenciem o desfecho final que
aguarda o género humano, giram em torno dos problemas espirituais da
vida presente. Porque, sem a conveniente solução desses problemas, nada
de bom pôde Paulo era por demais realista para não
esperar do futuro.
cravar os olhos nos reflexos sanguíneos de arrebóis crepusculares e perder
de vista o fulgor meridiano do dia corrente; não sacrifica as realidades
concretas do presente pelos sonhos vagos do futuro. Fôra Paulo de espírito
menos ocidental, e mais oriental, teria talvez sacrificado os imperativos da
ética do presente às sugestões da mística do futuro; mas o caso é que ele
revela em todas as suas epístolas um acentuado "ocidentalismo", se assim
se pôde dizer. Sem deixar de ser asiata de coração e de sentimento, sabe
ser europeu de inteligência e de vontade.
Por isso, envia aos seus diletos tessalonicenses uma série de instruções
e diretivas para a vida cristã do presente, como preparação para a vida
feliz do futuro. Castidade nas relações da vida sexual, sinceridade nas tran-
sações comerciais, caridade fraterna para com todos —
são estes os pontos
capitais que lhes recomenda com grande insistência.
— 177 —
rerem as ruas, clangores de trombetas, vibrações de clarins a encher os
ares ! Jogos públicos fascinando as multidões
. . . Sacrifícios e holo- . . .
— 178 —
fação sobre um sepulcro como em torno da câmara sepulcral do Gólgota,
ruborizada pelo sangue do Crucificado.
Quase todas as orações litúrgicas da igreja cantam a alegria do espí-
rito e fazem subir ao trono de Deus o perfume da ação de graças. O
Cristianismo primitivo, a despeito das perseguições externas, era, todo ele,
uma jubilosa ação de graças pelo inestimável benefício da Redenção, uma
alegria perene pela sorridente perspectiva da eterna união com Cristo. Se
hoje em dia encontramos, não raro, uma religião privada desses atributos,
é certo que ela aberrou do caminho do Evangelho de Cristo e das epístolas
de São Paulo-
Terminada a carta, Timóteo a relê mais uma vez em voz alta. Não
há nada que corrigir. Está aprovada na íntegra.
O secretário cola uma na outra as diversas laudas de papiro e fecha-as
em forma de rolo. " Timóteo —
exclama Paulo —
queira acrescentar ainda
o seguinte: Conjuro-vos no Senhor que esta carta seja lida a todos os
irmãos".
Vê-se por esta ordem perentória e solene que Paulo fazia questão de
que todos os neófitos tomassem conhecimento das suas instruções. Bem
necessária era, aliás, esta recomendação, porque nem todos os cristãos de
Tessalônica se achariam presentes à primeira leitura da epístola, que teria
de ser repetida nas próximas reuniões cultuais.
Por fim acrescenta ainda Paulo de próprio punho, com letras grandes
e pesadas, como diz em outra ocasião: "A graça de Nosso Senhor Jesus
Cristo seja com todos vós. Amen".
Timóteo introduz o rolo num estojo de pergaminho (paenula), apõe-
lhe o endereço e sigila-o com lacre ou cera.
— 180 —
40. O ANTI-CRISTO
a
(2. epístola aos tessalonicenses)
— 181 —
o apóstolo — já está trabalhando; mas é necessário que primeiro seja eli-
minado aquele que lhe põe embargo. Então aparecerá aquele perverso".
Mas o triunfo definitivo será de Cristo, "porque o Senhor Jesus ma-
tará (o perverso) com um sopro da sua boca e o destruirá com o esplendor
da sua vinda".
— 182 —
litário, o incessante tentame, ora aberto, ora traiçoeiro, dos poderosos do
mundo no sentido de fazerem da religião um pedestal, escada e trampolim
para as suas ambições pessoais e interesses políticos.
Nesse tempo ainda vivia a igreja sombra da sinagoga e era
cristã à
considerada pelos romanos como seita judaica. Ainda não evoluirá a orga-
nização cristã ao ponto de aparecer como algo de autónomo e perigoso
aos olhos dos legisladores e estadistas de Roma. Os judeus, porém, não
descansavam —
e bem o sabia Paulo enquanto—não convencessem o go-
verno de que os cristãos não se identificavam com eles, os filhos de Abraão
que os piores inimigos do império eram esses cristãos, que não se adapta-
vam ao espírito das leis civis. Tanto assim que, no ano 64, reinando Nero,
conseguiram os judeus o seu intento por intermédio de Popéia, esposa do
:
roso e sábio para fazer reverter para a sua maior glória as peripécias e o
desfecho final desse conflito multimilenar.
— 183 —
modo que o homem se torne um perfeito cristão, e esse cristão autêntico
continue a ser um homem genuíno e um cidadão prestimoso.
Por isso exige Paulo aos tessalonicenses que, com os olhos no futuro,
vivam no presente; que assim orem como se Cristo aparecesse no dia ime-
diato, e assim trabalhem como se ainda os aguardasse um longo período de
espectação e de sofrimentos.
— 184 —
41. PAULO E GALIÃO
(At. 18, 12 ss)
— 185 —
Mal souberam os judeus da chegada de Galião a Corinto, tentaram
logo aproveitar-se da bondade dele para executar os seus planos de vin-
gança contra Paulo. Pois bem sabiam eles que, se as coisas continuassem
naquele andar, seria cada vez mais diminuido o prestígio da sinagoga, en-
quanto que a doutrina do Nazareno ia ganhando terreno, dia a dia.
Falharam, porém, os seus cálculos. Ignoravam que o anti-semitismo
era tradicional na família de Séneca e Galião. De resto, era bem de prever
que no no caráter dum homem tão sereno e equilibrado como do novo pro-
cônsul de Acaia não encontraria eco o apaixonado fanatismo dos acusa-
dores de Paulo.
Certo dia, assalariaram os judeus os piores elementos da plebe, inva-
diram a modesta oficina do pobre tecelãõ-apóstolo, arrastaram-no tumultuo-
samente à "basiliké" (isto é, ao "fórum"), ao tribunal do governador.
Antes que Galião pudesse proferir palavra, vociferaram os judeus: "Este
homem persuade a gente a prestar culto a Deus de um modo contrário
à lei".
— 186 —
uma desforra: de improviso cairam sobre os hebreus, arrancaram-lhes das
mãos as varas e os açoites com que tinham maltratado a Paulo, e espan-
caram-nos barbaramente. Quem
que todos foi Sóstenes, chefe
se saiu pior
da sinagoga, o qual, ao descer da escada do fórum, arrastando amplo manto
de rabi, foi subitamente alvo duma formidável carga de pancadas da parte
dos helenos, improvisados em auxiliares da polícia de Corinto.
Galiâo presenciou tudo isto, diz Lucas com certo humorismo, e não
fez caso. Estóico da gema, não se perturbava com coisa alguma.
Insondáveis mistérios ! . . .
— 187 —
Ihão de habitantes e 21 quilómetros de circunferência; com 23 templos^
5 soberbas galerias ladeadas de lojas e magazins de luxo, 5 grandes mer-
cados. 5 famosas termas, duas "basilikés", numerosos teatros e anfiteatros,
um dos quais com 22.000 assentos; dois portos abanharem a cidade pelo
norte e pelo sul — que tentação para o espírito empreendedor de Paulo!
Entretanto, não fixou residência em Corinto. A sua missão era a
do infatigável bandeirante do Evangelho, para levar o nome de Cristo a
todas as latitudes e longitudes do orbe terráqueo.
Durante, os 18 meses —entre 51 e 52 —
que passou em Corinto,
Paulo soube compreender no âmbito da sua atividade —
quer pessoalmente,
quer pelos seus auxiliares — quase toda a vastidão da península; e ê
com verdadeiro carinho que ele se refere aos cristãos da Acaia. No porto
de Cencreia tinha o apóstolo uma excelente catequista na pessoa de Febe,
que, sob a orientação do mestre, exercia uma intensa atividade no quar-
teirão dos marinheiros e pescadores daquele importante centro.
Linda alvorada da "Ação Católica" no primeiro século do Cris-
tianismo !
— 188 —
42. REGRESSO À ÁSIA
(At. 18, 18 ss)
— 189 —
Eram os jônios uma cias primitivas tribus da Grécia, os quais, ex-
pulsos pelos dórios, se estabeleceram nessa parte da Ásia e não tardaram
íi revelar-se as mais privilegiadas inteligências da raça helénica.
A
Jônia que mundo de sentimentos não evoca este nome na alma
! . . .
de quanto se f ez . .
— 190 —
No porto de Panormus, foz do Cestros, saltaram os viajores apostó-
licos e tomaram um frágil bote, que, por um canal de dois quilómtros, os
levou ao pequeno porto interno, bem ao pé dos soberbos edifícios de Êfeso.
Ao desembarcar, viram-se Paulo e seus amigos em plena Agorá (1).
Não longe daí se desdobrava o imenso semi-círculo do teatro grego.
Êfeso, aberta para o lado do mar e fechada ao norte, leste e sul pelos
montes Coressus (Búlbúl-Dagh), Pion (Panajir-Dagh) e Gallesion, lem-
brava uma gigantesca concha auri-verde, com a opulência dos seus edifícios
no primeiro plano, e a sorridente poesia dos seus lindos palacetes encra-
vados nas luxuriantes dependências das montanhas. Pelo dorso dos
montes circun jacentes descobrem-se ainda hoje os restos da muralha cicló-
pica com que Lisímaco, sucessor de Alexandre Magno, cerco a cidade.
Existia em Êfeso uma colónia israelita com a competente sinagoga.
Sendo que o navio permanecia no porto até a próxima semana, aproveitou
Paulo o ensejo e, no sábado, falou sobre o Messias que aparecera na pessoa
de Jesus de Nazaré. Tão grande foi o entusiasmo despertado por essa
dissertação que o apóstolo teve de prometer um próximo regresso.
Partiram.
Em Jerusalém, parece, nãofoi muito afetuosa a acolhida ao grande
evangelizador. Lucas refere apenas que " Paulo subiu e saudou a cristan-
dade". Não menciona sequer a cidade.
Fato estranho Na capital da Judéia não chegou a florescer propria-
!
— 191 —
Paulo parte de Jerusalém e vai em demanda de Antioquia e das
demais cidades da Ásia-Menor, que conhecera na sua primeira viagem
evangélica.
Com esta terceira expedição atinge a vida de Paulo o apogeu das suas
glórias externas.
Mas, neste ano, 52 ou 53, principiam a acumular-se também em todos
os horizontes as nuvens sinistras da oposição contra sua pessoa e contra
sua obra. O herói vai ao encontro da sua catástrofe, e vai a passo firme.
Naquele corpo frágil e doentio habita uma alma de inquebrantável energia,
porque iluminada de um ideal sublime, eterno, imortal.
Nada de grande acontece no mundo sem que alguém sofra ou morra.
O anfiteatro e a fogueira, a forca e a cruz, as pedras e a espada assinalam
os marcos miliários da história onde nasceu alguma torrente de nova vida
espiritual. Nenhum passo decisivo dá a humanidade sem que algum de
seus filhos expire na ara do sacrifício. Não nasce uma vida nova sem
que a preceda uma morte. "Se o grão de trigo não cair em terra e morrer,
"
ficará sem fruto. . .
— 192 —
Em Antioquia "demorou-se Paulo algum tempo", diz Lucas; descan-
sou no doce convívio de amigos dedicados e ótimos auxiliares evangélicos.
Hospedou-se, provavelmente, à rua Singon, onde residira da primeira vez.
£ possivel que nessa cidade tenha encontrado a Simão Pedro, João Marcos
c, talvez. Barnabé.
Ia adiantado o outono, e, como Paulo costumava iniciar as suas grandes
viagens na primavera, é de supor que tenha passado o inverno em Êfeso.
jovem amigo Tito, cujo nome
Nesta cidade, parece, se lhe associou o
não ocorre nos "Atos dos Apóstolos", mas que, daí em diante, desempe-
nha papel saliente na vida do apóstolo e da primitiva igreja. Silas, por
seu turno, desaparece do cenário. Será que Paulo o cedeu a Pedro, de
quem se tornou mais tarde colaborador e secretário ? . .
— 193 —
43. ÊFESO — CIDADE SAGRADA
Êfeso, a "primeira metrópole da Ásia", era nesse tempo um dos mais
poderosos centros de atração mundial. A par de Jerusalém e Atenas, era
considerada universalmente como "cidade sagrada". O "Artemisium", ou
templo de Ártemis, uma das sete maravilhas da antiguidade, edificado na
soberba eminência duma gigantesca plataforma, era o maior foco da magia
e superstição religiosa da Ásia.
A deusa venerada nesse santuário era antes a grosseira Astarte dos
fenícios do que a graciosa protetora da caça que os Romanos apelidavam
Diana, e os Gregos Ártemis. A sua imagem esculpida em madeira escura
caíra do céu, dizia o povo, à guisa da pedra preta da deusa-mãe de Pessius
c a Kaaba sagrada de Meca. Símbolo de fecundidade, tinha ela todo o
corpo coberto de seios túmidos e o ventre ornado de fórmulas mágicas.
O templo da deusa, dentro do qual funcionava também uma grande
casa bancária, era um edifício gigantesco e de notável valor artístico. Sus-
tentavam o teto 127 colunas jónicas, que repousavam sobre figuras de
mármore primorosamente trabalhadas. Uma dessas colunas encontra-se
hoje no Museu Britânico. Admiráveis esculturas de Fídias e Policleto,
de Scopas e Praxiteles aformoseavam o santuário. Lisipo erigira nele
a estátua de Alexandre Magno. Os grandes pintores Parrasio, Zeuxis e
Apeles tinham posto os seus pincéis de mestre ao serviço do maior sacrário
de Diana.
Constantemente se organizavam préstitos e procissões, que, por entre
música e cânticos, desfilavam pelo interior e adjacências do templo, pelas
ruas da cidade e arredores. Milhares de sacerdotes e sacerdotisas viviam
à sombra da fantástica divindade e mantinham acesa a chama sagrada do
entusiasmo religioso. Os sacerdotes, todos eles eunucos, obedeciam à su-
prema direção de um megabyzos, ou sacerdote-mór.
Sabe Deus quantas vezes foi Paulo perturbado nos seus discursos
pelas vozes ululantes desse exército de serventuários de Diana, cujas ma-
nifestações religiosas degeneravam quase sempre em verdadeiros delírios
e terminavam, não raro, em cenas horripilantes de violenta mutilação física.
— 194 —
íntimo desses veneradores de Diana uma centelha de verdade e o inconciente
desejo de purificação moral e sublimação das potências sinistras do instinto.
Quis a divina Providência que, quatro séculos mais tarde, em 431,
fosse proclamado precisamente em Êfeso, sobre as ruinas do templo da
célebre deusa-mãe, o dogma da divina maternidade de Maria Santíssima.
Não parece essa proclamação uma resposta, conciente ou inconciente, à in-
terrogação de milhares de almas pagãs desejosas de verdade e vida, de
fecunda virgindade e ilibada maternidade?
A todos os anseios implícitos do gentilismo sincero deu o Cristianismo
resposta explícita.
Nas plagas bucólicas da Jônia filosofavam, um dia, os sábios de Hélade
sobre os princípios do mundo.
No princípio era a água — diziaTales.
No princípio era o fogo — sentenciava Heráclito.
No princípio era o intangível — exclamava Anaximandro.
No princípio era a luta entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal —
doutrinavam outros.
E, depois de extinto o espírito filosófico da Jônia, apareceu um vate,
com os olhos banhados de luz divina, e escreveu esta sentença de suprema
sabedoria
No princípio era o Lógos — o Verbo — e o Verbo era Deus, de cuja
plenitude todos nós recebemos, Jesus Cristo, filho Unigénito do Pai, cheio
de graça e de verdade.
44. APOLO — O FILOSOFO CRISTÃO
(At. 18, 24 ss; 19, 2 ss)
Oh ! loucura inconcebivel
Paulo de Tarso, que pódes tu erigir em lugar desse suntuoso templo
pagão, ornado das obras-primas dos maiores artistas da Grécia?
Uma cruz coberta do sangue de um sentenciado . .
O Evangelho da renúncia...
E em vez dessa estonteante literatura efesina saturada de magia, de
paixão, de luxúria e erotismo?
— 196 —
nadora do universo e das almas. Para se arriscar a semelhante temeridade
deve o homem ter passado por uma escola de completa e radical inversão
de todos os valores correntes, deve considerar como sombras vagas as po-
tências do mundo e do demónio, da carne e do sangue, e abraçar como
única força real o espírito de Deus e a sua graça.
" Creio! — escreve Paulo, desta cidade, aos coríntios — por isso é
que falo".
Realmente, quem crê como ele cria não pôde deixar de falar. Crer
é ver com os olhos da fé a maior das realidades, e esta visão nítida impele
a falar, a descortinar aos descrentes, aos semi-crentes, aos céticos, um mundo
de maravilhas que eles nem suspeitam sequer.
Paulo tinha fé na humanidade porque tinha fé em Deus.
"Vi*
'/<" -Ti*
— 197 —
drina", devia fornecer importante contingente para a apologia do Cristia-
nismo. Distinguia-se, essa escola, por sua verve filosófica e uma espiri-
— 198 —
valia seguir-lhe os vôos metafísicos. O genial paralelismo que Apolo esta-
— 199 —
Parece que nessa cidade foi Apolo recebido oficialmente na igreja, foi
batizado e crismado por um dos discípulos de Paulo.
"Aí chegado — diz o historiador — prestou excelentes serviços aos
fieis, graças aos seus talentos, porque rebatia vigorosamente os judeus em
público, demonstrando pelas Escrituras que Jesus era o Messias".
Tão vasta foi a repercussão dos seus discursos, que em breve se tor-
naram o tema obrigatório de todas as conversas em Corinto. Falava ao ar
livre, porque não havia local na cidade que comportasse a multidão dos ou-
vintes.
Este, sim, é nosso homem! — exclamavam os "intelectuais" de Co-
rinto. — Não é como aquele Paulo, que de filosofia nada entende, aquele
bárbaro, sem estilo nem retórica . . . Este, sim ! . . . Orador para a
a "elite", era isto que fa£atva em Corinto...
E logo se formaram partidos
— Eu sou do partido de Apolo
— Eu também!
— Eu também!
— Eu sou de Paulo !
— intervinham outros, descrentes da filosofia e
avessos à retórica.
Apolo, perspicaz e sincero, logo percebeu o perigo duma cisão entre
os neófitos de Corinto, e, para evitar tão grande mal, resolveu embarcar
para a Ásia — prova da integridade do seu caráter e da lealdade das suas
intenções.
— 200 —
Ouvindo isto, fizeram-se batizar em nome do Senhor Jesus. Paulo
impôs-lhes as mãos, e desceu sobre eles o Espírito Santo; falavam em
diversas línguas e profetizavam".
Na mãos", isto é,
igreja primitiva considerava-se a "imposição das
a Confirmação, como a plenitude do Cristianismo; com
rematava a
ela
iniciação sacral do batizado, assim como a vinda do Espírito Santo no
Pentecostes completara a Páscoa e formava o fecho da obra da redenção.
A Confirmação é, de fato, a coroa e o remate do Batismo, a "plenitude
do batismo", por assim dizer. A "cristianização ritual" pelo Batismo e
pela Confirmação prossegue mais tarde pela "cristianização pessoal", me-
diante a Eucaristia. Estes três sacramentos poderiam apelidar-se, por isso,
os sacramentos da redenção, ou seja, a tríplice fonte da cristianização
integral.
— 201 —
45. O EVANGELHO NO "GYMNASION"
HELÉNICO
(At. 19, 8 ss)
— 202 —
exercícios físicos, como corridas, jogos olímpicos, lança-disco, natação e
outros esportes praticados a corpo desnudo ou semi-nu. Nesses mesmos
estabelecimentos existiam, geralmente, salas especiais onde os filósofos, pro-
fessores, rétores e poetas faziam conferências ou discorriam sobre assuntos
de interesse público.
Há anos, uma sociedade arqueológica européia escavou, perto da "Bi-
blioteca de Celso", em Êfeso, a planta de um edifício com a inscrição
"auditorium". É possível que seja idêntico ao local onde Paulo lecionava
o seu "curso popular de religião", durante o inverno de 53.
Esses "auditórios" eram salas em forma de absides semi-circulares,
mais ou menos como as salas de audição das nossas modernas universi-
dades. Às vezes também eram galerias de colunatas circundando um pátio
interno, em grego "Stoa", donde a conhecida designação de "estóicos"
aplicada aos discípulos de Zenon, que se reuniam numa galeria dessas. O
termo geral com que os gregos designavam essas localidades era "scholé",
transformado pelos romanos em "schola", e por nós em "escola".
"Scholé" significava primitivamente "tempo livre", ócio, entretenimento.
Mais tarde prevaleceram os trabalhos intelectuais sobre os exercícios físicos.
O texto de Beza transmitiu-nos o horário exato das dissertações do
apóstolo. Às 11 horas encerrava Tirano as suas preleções. Seguia-se uma
pausa de meia hora. A partir das 11,30 até às 16,30 estava a sala à
disposição de Paulo. Era esta a "tarde apostólica" a manhã era consa- ;
grada aos trabalhos manuais ao pé do tear. Depois das 16,30 pela noite
a dentro ficavam ainda muitas horas para a cura d'almas individual e do-
miciliar, tempo também para atender a mil e uma visitas e consultas, para
mandar cartas às igrejas distantes, para formar os colaboradores evangé-
licos, para lutar como Deus em prolongadas preces, etc, etc. Se Paulo enu-
mera entre os seus grandes sofrimentos a "solicitude por todas as igrejas
e a afluência quotidiana de visitantes" (2 Cr. 11, 28), não deve ter sido
pequeno o movimento religioso por ele iniciado e chefiado em meados do
primeiro século. O certo é que não se conhecia em homem
torno (lesse
o que fosse aborrecimento ou enfado, nem horas de palestra inútil, como
acontece com herdaram o múnus, mas
certos "apóstolos" modernos, que lhe
não o espírito. Quem quer que entrasse no campo magnético dessa pode-
rosa personalidade, ardia logo do desejo de agir, e encontrava no trabalho
apostólico a plenitude da sua vida e a recompensa dos seus esforços.
Dois anos passou Paulo nesses exhaustivos labores de operário e de
apóstolo, deamigo e de pai, de diretor espiritual e de arauto de Cristo.
As grandes solenidades em honra de Diana, que se realizavam sobretudo
no mês de maio, canalizavam multidões de curiosos para o "auditorium"
de Paulo. Adventícios de todos os recantos da Ásia; frígios dos vales do
Meandro e do Licos; lídios em grande número; gente de Mileto, Smirna,
Pirene, do Halicarnasso, da lendária Pérgamo, de Tróade e dos arquipé-
— 203 —
lagos do Mar Egeo; estudantes de Êfeso, marinheiros e estivadores, nego-
ciantes e funcionários públicos; soldados romanos e filósofos gregos; ope-
rários e aristocratas; senhores, escravos e libertos — de tudo isto havia
entre os ouvintes do estranho rabi hebreu, que não falava como os outros-
rabinos, nem ensinava o que eles ensinavam.
De vez em quando, um dos ouvintes aparteava ou pedia explicação-
ulterior.
— 204 —
46. PAULO — TERROR DOS DEMÓNIOS
(At. 19, 11 ss)
anuncia. Quem isto praticava eram os sete filhos de um tal Scevas, sumo
sacerdote judeu. O espírito maligno, porém, replicou: Conheço a Jesus,
-e sei quem é Paulo; mas vós, quem sois? E com isto o homem possesso
do espírito maligno investiu contra eles, subjugou dois deles e a tal ponto
lhes fez sentir o seu poder que, nus tiveram de fugir daquela casa".
e feridos,
Êfeso, como foi dito, era o centro de toda a espécie de charlatanismo
pseudo-científico e religioso. Magia, ocultismo, feitiçaria, teosofia, espiri-
tismo, demonismo — tudo isto pululava exuberantemente no campo da
superstição efesina fecundada pelo insaciável desejo do preternatural. Tal-
vez tenha andado por aí, nesse tempo, o célebre "taumaturgo" Apolo de
Tiana. O famigerado astrólogo Balbillus, que tão funesta influência exerceu
sobre o espírito fraco de Nero, era natural de Êfeso. As curas milagrosas
de Asclépios, apelidado "Soter" (salvador"), com todo o seu cortejo de
crendices populares, davam prestígio e lucro a uma legião de sacerdotes e
charlatães, que exploravam a ignorância e superstição das massas sob pre-
texto de iniciarem os seus adeptos nas "profundezas de Satanás" (Ap.
2, 24).
Florescia então em Êfeso um ramo especial de magia, os famosos
"Ephesina grammata" (escritos efesinos), literatura ocultista que corria
mundo.
No meio dessa babel saturada de demonismo não era suficiente um
esclarecimento intelectual; era necessário que Paulo fizesse brilhar a força
dos seus carismas sobrenaturais, que dessem prova visível e palpável de
que o nome de Jesus encerrava uma virtude superior a todas as potências
do inferno. Arma contra arma! prodígios divinos contra portentos dia-
bólicos !
— 205 —
Toda a vez que entramos nasregiões do milagre, do carisma, do preter-
natural, do divino, ou mesmo do espiritual ou demoníaco, escurecem os
horizontes do nosso saber conciente, envolvem-nos o intelecto as sombras
dúbias do incerto, do vago, do enigmático. Não sabemos precisar onde
terminam as forças " naturais" e onde principiam as influências "preter-
naturais". Para Deus só existe uma ordem, para ele tudo é natural, e,
quanto mais o homem se espiritualiza e "diviniza", mais e mais se apagam
também as linhas divisórias entre as duas ordens.
Não é provável que Paulo entregasse para esses fins os seus lenços
e aventais ; mas não terá a boa Priscila cedido, de vez em quando, às
súplicas de uma amiga, uma dessas peças para a colocar
emprestando
sobre um enfermo ou endemoninhado? Também aqui e acolá, durante os
sermões de Paulo ao ar livre, alguma ouvinte lhe terá surrupiado o lenço
ou cortado um pedacinho do manto, fugindo despercebida com o piedo-
so furto.
— 206 —
ninhado, dizendo: "Esconjuro-vos por Jesus, a quem Paulo anuncia! O
espírito maligno, porém, replicou: Conheço a Jesus, e sei quem é Paulo;
mas vós, quem Com isto, o homem possesso do espírito maligno
sois?
investiu contra subjugou dois deles e a tal ponto lhes fez sentir o
eles,
— 207 —
47. A ESCRAVIDÃO DA LETRA — EA
UBERDADE DO ESPÍRITO
(Epístola aos gálatas)
Toda a religião, por mais pura, espiritual e divina, uma vez lançada
ao meio dos homens e confiada a mãos profanas, corre perigo de ser as-
fixiada sob o excesso de elementos humanos que, no correr dos séculos,
se acumulam fatalmente em torno do seu núcleo divino. Pode a religião
cair vitima de hipertrofia material e atrofia espiritual. Triste sorte das
centelhas divinas quando do céu caem à terra ! . .
— 208 —
resume numa luta sem tréguas pela pureza e contra a deturpação do
Evangelho.
Muitas vezes, os grandes propugnadores da pureza da revelação divina
são incompreendidos pelos seus contemporâneos, que teem por inovação
e heresia a demolição dos seus ídolos e o retorno à primitiva simplicidade
oa religião.
Éque nem todos os homens religiosos atingem a alma da religião,
e os amigos das fórmulas feitas dificilmente compreenderão o que seja
"adorar a Deus em espírito e verdade". Passar da periferia para o centro,
não é dado a todos.
mosaicos.
Que diziam esses mestres?
Diziam que Paulo não era verdadeiro apóstolo como os outros, os
arqui-apóstolos de Jerusalém, tanto assim que nem vira ao Senhor Jesus,
nem dele recebera missão alguma. Era um intruso. O Evangelho de
Paulo —
diziam esses judaizantes —
era um Evangelho truncado, incom-
pleto e falso em muitos pontos; aprendera dos outros apóstolos algumas
verdades, que depois mesclara com aditamentos arbitrários e opiniões pes-
soais. Paulo —
frisavam eles —
silenciava um dos pontos capitais do
Evangelho : a necessidade da lei mosaica para todos os cristãos, quer vindos
úo judaísmo, quer convertidos do gentilismo. Preteria de propósito esta
parte,porque procurava ajeitar a seu modo o Evangelho, afim de ganhar
o maior número possível de adeptos e gloriar-se diante dos outros após-
tolos. Sacrificava a verdade ao número, a qualidade à quantidade. Agia
arbitrariamente, sem regra nem norma. Em Listra mandara circuncidar
a Timóteo afim de lisonjear aos judeus, ao passo que entre os gentios não
dizia palavra da circuncisão, para lhes agradar. Eles, os verdadeiros cris-
tãos,tinham vindo de Jerusalém, da parte de Tiago, irmão do Senhor,
afim de substituir o Evangelho mutilado e falso de Paulo pelo verdadeiro
e completo Evangelho de Cristo e dos arqui-apóstolos.
Assim referiram os gálatas, no fundo escuro do bazar de Áquila.
Paulo ouviu em silêncio a estranha mensagem. Tinha os olhos cheios
— 209 —
de lágrimas, e na alma lhe tumultuava uma tempestade imensa. O seu
primeiro pensamento acompanhar para a Galácia os bons amigos,
foi partir e
E por que tudo isto ? por que essa campanha ? não tinha, acaso, o . . .
— 210 —
malismo tradicional e sobre as asas do espírito se ergueria às luminosas
regiões da liberdade, levando a divina herança de Jesus Cristo, através de
todos os séculos, por todas as latitudes e longitudes do universo, a todos
os povos do globo . .
com a sobrecarga asfixiante das suas pompas religiosas tão vazias de espí-
rito e verdade, como a moral estreita e a mesquinha casuística dos rabinos
(1) Que diria o autor da epístola aos gálatas se voltasse ao mundo e encon-
trasse novamente milhares de cristãos que do Evangelho nada sabem e que fazem
consistira religião em simples cerimónias e fórmulas exteriores?... uma religião
quase só para piedosas almas femininas ? e se encontrasse " ministros de Deus
. . .
que favorecem com o seu silêncio ou sua aprovação esse fetichismo pseudo-religioso ? . .
Não escreveria Paulo uma nova epístola, cheia de estranheza, de veemência e de aná-
temas ? . .
— 211 —
Colosses. E todos eles acudiram, pressurosos, e, qual intrépido estado-
maior, cercaram o previdente general-em-cheíe da nova milícia espiritual.
Tratava-se duma batalha decisiva, da definitiva libertação do Cristia-
nismo das malhas constrictoras do judaísmo ritual, que ameaçavam asfixiá-lo
em plena alvorada.
Bem pudera Paulo agir por si só; mas é próprio dos grandes condu-
tores de homens, quando desinteressados, fazerem participar os seus amigos
das magnas decisões da sua vida.
Dissolvida a longa reunião, retirou-se Paulo para a casa de Áquila,
chamou o seu secretário e começou a ditar. Ditou a mais veemente e
vibrante, como também a mais terna e maternal de todas as suas cartas
apostólicas.
A epístola aos gálatas, bem se vê, foi escrita duma assentada; é uma
peça homogénea, repassada duma profunda emoção; é uma epís-
inteiriça,
— 212 —
aos homens? Se procurasse agradar os homens, não seria servo de
Cristo". . .
Tudo isto, conclue ele, era prova suficiente de que a sua vocação e
doutrina equivaliam às dos outros apóstolos.
Invoca, ainda, como prova frisante da autonomia da sua mentalidade
apostólica em matéria de salvação, o conflito que teve com Pedro, em An-
tioquia. A sua hermenêutica culmina neste argumento se o homem, pela
:
Com isto, passa Paulo à segunda parte da sua carta, que forma também
o tema central da epístola aos Romanos : a justificação pela fé.
— 213 —
ritório das boas obras praticadas no estado da graça ressalta de todos os
escritos paulinos. Em parte alguma advoga o apóstolo um quietismo pas-
sivo e, muito menos, declara inútil a prática das virtudes cristãs. Na pole-
mica contra os judaizantes trata ele da primeira justificação, da transição
<lo estado do pecado mortal para o estado da graça santificante. Afirma
Paulo que esta transição, ou antes, transferência, é obra exclusiva de Deus,
em atenção à morte expiatória de Cristo. O homem pôde apenas preparar
o terreno para esta justificação; e mesmo esta preparação, baseada na
contrição perfeita, não é possível sem o prévio e concomitante auxílio
de Deus.
De duas maneiras desenvolve o autor a sua demonstração sobre a
gratuidade da justificação. Apela, primeiramente, para a experiência pes-
soal das gálatas, cristianizados sem conhecerem a lei mosaica. Em seguida
demonstra que Abraão alcançou a justificação, não pelas obras da lei, mas
pela fé no Messias vindouro.
— 214 —
Previne contra duas espécies de escravidão: a tirania do fetichismo
ritual e a prepotência do sensualismo carnal.
Livre não é aquele que sujeita a alma espiritual do Evangelho ao
corpo material das fórmulas externas.
Livre não é aquele que submete a soberania do espírito ao despotismo
brutal dos instintos.
Livre, verdadeiramente livre só é o homem que, liberto dos grilhões
dos formalismos sufocantes e senhor da servidão dos sentidos, paira nas
serenas alturas onde se adora a Deus em espírito e em verdade. É o . .
que Paulo apelida a "gloriosa liberdade dos filhos de Deus". "Onde reina
a liberdade, ali reina o espírito de Deus" — exclama o Platão da nova
aliança.
Tão belas e profundas são as palavras do apóstolo que não podemos
deixar de as transcrever, ao menos em parte:
"Cristo nos conquistou a liberdade. Ficai, pois, firmes e não vos do-
breis novamente ao jugo da escravidão. Eis que eu, Paulo, vos digo: Se
vos fizerdes circuncidar, de nada vos servirá Cristo. Mais uma vez declaro
que todo o homem que se fizer circuncidar está obrigado a cumprir toda
a lei. Se procurardes a justificação pela lei, estais separados de Cristo e
perdestes a graça; pois é pelo espírito e em virtude da fé que aguardamos
a desejada justificação. Em Cristo, Jesus nada vale estar circuncidado ou
mcircunciso; mas, sim, a fé que opera pela caridade.
Andáveis tão bem! Quem vos embargou o passo para deixardes de
obedecer à verdade? A esta mudança não vos persuadiu aquele que vos
chamou. É que um pouco de fermento leveda toda a massa. . . Entre-
tanto, confio de vós no Senhor que não mudeis de sentimentos. Quem
vos perturbou será castigado, seja quem for.
Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Se, porém, vos mordeis e di-
lacerais mutuamente — tomai cuidado que não vos devoreis uns aos
outros ! . .
— 215 —
e coisas semelhantes. Repito o que já vos disse em outra ocasião: os que
praticam estas coisas não herdarão o reino de Deus. Os frutos do espírito,
porém, são a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a benignidade, a bon-
:
— 216 —
48. A SABEDORIA DO MUNDO — EA
LOUCURA DA CRUZ
ã
(l. epístola aos Coríntios, cap. 1-4) •
— 217 —
lidade. Pois, se o centro de gravitação se desloca da fé para o conheci-
mento, o homem faz convergir toda a sua atenção para o próprio interior,
abisma-se numa contínua introspecção do Eu e perde de vista o Deus
revelador, nem aceita facilmente o que ultrapasse os horizontes da sua
compreensão intelectual — e está aberto o caminho para um racionalismo
glacial e uma perigosa hipertrofia da própria personalidade. De teocêntrica,
passa a religião a ser antropocêntrica, ou egocêntrica.
Esse homem, filosoficamente piedoso, considera então as realidades
históricas como meras alegorias; perde o interesse pela vida religiosa em
comunidade; segrega-se do convívio da sociedade cristã; procura estabe-
lecer uma união com Deus mediante o pensamento; engendra uma espécie
de mística intelectual —
e ao dia sereno da teologia cristã sucede, não raro,
a noite enluarada duma teosofia vaga, panteística, pagã.
M.
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^
W
— 218 —
Estas dissensões, como dissemos, nasciam em parte do culto exage-
rado da personalidade, tão do espírito helénico. Acrescia, no caso presente,
a idéia de entrar a pessoa batizada numa relação de afinidade ou depen-
dência espiritual com o batizante.
O grupo que se recrutava sob a bandeira de Apolo (ausente) se
arvorava em adversário de Paulo. Apolo e Paulo, como sabemos, eram
amigos, unidos pelo mesmo ideal apostólico. Mas de génio diferente. Se
aquele era de índole mais especulativa e teórica, este se distinguia por um
realismo prático ;
primava o filósofo alexandrino pelos seus surtos plató-
nicos e dicção clássica, ao passo que o convertido de Damasco punha em
cada uma das suas palavras todo o peso da sua experiência, toda a seriedade
<la sua vida saturada de trabalhos e sofrimentos. Dos discursos de Apolo
saíam os ouvintes satisfeitos com o orador, saíam com a inteligência ilumi-
nada das belezas do Cristianismo — dos sermões de Paulo se retiravam,
silenciosos, insatisfeitos consigo mesmos e prontos para as mais dolorosas
resoluções.
Ambas essas espécies de pregações se justificam ; ambas tiveram e
terão sempre os seus patronos e amigos : tanto a espirituosa elegância de
um Bossuet como a profundeza teológica de um Bourdaloue, tanto a cari-
dosa suavidade dum Francisco de Sales como a seriedade lúgubre dum
Segneri.
Mas, o fato é que aqueles helenos e semi-helenos de Corinto, superfi-
ciais,amigos de picantes novidades intelectuais e pensamentos vaporosos
•como um sopro, envoltos na gaze flutuante de um estilo melodioso, achavam
por demais pesado o sistema férreo e inflexível de Paulo. Para eles, o
ex-fariseu de Tarso era um homem sem cultura filosófica nem gosto estético.
Apolo, sim, que era um "pensador moderno", um "orador para os intelec-
— 219 —
a Apolo — nem convinha mencionar o nome desse filósofo pagão, que
era um verdadeiro perigo para o Cristianismo . .
— 220 —
Nos quatro primeiros capítulos da epístola fala Paulo do espírito par-
— 221 —
A nós, porém, a revelou Deus por seu espírito; porque o espírito-
penetra todas as coisas, mesmo as profundezas de Deus. Quem sabe o
que vai no interior do homem, a não ser o espírito, que dentro do homem
está? assim também ninguém conhece o íntimo de Deus, senão o espírito
de Deus. Não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que vem
de Deus, para que conheçamos os dons que nos foram prodigalizados por
Deus. E é o que anunciamos, com palavras ditadas, não pela sabedoria
humana, mas pelo espírito, declarando o que é espiritual a homens espi-
rituais. O homem natural não compreende o que é do espírito de Deus
íem-no em conta de estultícia; nem o pôde compreender, porque é em
sentido espiritual que deve ser entendido. O homem espiritual, pelo con-
trário, compreende tudo, ao passo que ele mesmo não é por ninguém com-
preendido. Pois quem compreende a mente do Senhor, que o possa ensi-
nar? Nós temos o espírito de Cristo". (1 Cr. 2, 1-16).
Portanto, o que vale não é a pessoa e o seu saber natural, e, por isso,
também não há motivo algum para estabelecerdes diferença entre apóstolo
e apóstolo, entre pregador e prégador. Todos nós somos apenas servos
de Cristo, somos porta-vozes não somos salvadores nem medianeiros entre
;
— 222 —
de madeira, de feno e de palha, não tardará a manifestar-se na obra de
cada um; há-de revelá-lo o dia do Senhor, porque se há-de patentear no
fogo. Pois há-de o fogo provar o que vale a obra de cada um. Se a
construção que alguém levantou resistir, será ele premiado; se, porém, a
sua obra for consumida pelo fogo, sofrerá dano ele mesmo será salvo, mas ;
na sua própria astúcia; e mais ainda: Sabe o Senhor que são vãos os
pensamentos dos sábios.
Não quem se enalteça a favor de um e com pre-
haja, pois, entre vós
juízo de outro. Quem
que te dá distinção? que possues o que não re-
é
cebeste? mas, se o recebeste, porque te ufanas, como se o não receberas ?"
Neste momento, parece, se lembra o apóstolo do ridículo intelectualismo
dos atenienses e da repulsa da sabedoria cristã no Areópago ;
e, vendo entre
os coríntios alguns desses filósofos enfatuados, fartos, super-saturados do
seu pretenso saber, lança ap papel estas frases de candente satirismo
"Vós, é verdade, já estais fartos... sois ricos... estais reinando
sem nós". .
telectual . . .
— 223 —
"Parece que Deus assinou a nós, apóstolos, o último lugar, como con-
denados à morte —
espetáculo para o mundo, para os anjos e para os
homens ! Até à presente hora, andamos sofrendo fome, sede e desnudez
. . .
seguem-nos —
e nós o sofremos; caluniam-nos e nós consolamos; até
esta hora somos considerados como o lixo do mundo e a escória de todos.
Escrevo-vos não para vos envergonhar, mas para vos admoestar,
isto,
— 224 —
49. NO MUNDO — MAS NÃO DO
MUNDO
(l.
a
epístola aos coríntios — cap. 5 até ao fim)
vam com uma carta dos presbíteros que, em nome do apóstolo, pastoreavam
a recem-fundada cristandade.
Paulo abre e lê a carta. Carrega-se-lhe o semblante . . . Más no-
tícias . .
— 225 —
Os coríntios bem intencionados resolveram consultar Paulo a esse
respeito, e aproveitaram o ensejo para propor mais uma série de dúvidas
e controvérsias agitadas entre eles : se era melhor casar ou não casar ; se
era permitido o divórcio; se os cristãos podiam confiar um processo a
tribunais pagãos; se lhes era lícito comerem das carnes sacrificadas aos
ídolos ; podiam
se aceitar convites para os festins rituais de gentios.
Tinham, alemdisto, não poucas dificuldades concernentes à celebração
culdades.
A carta-consulta não devia ser leitura lá muito agradável para Paulo;
para nós, porém, e para toda a cristandade foi verdadeiramente providen-
cial, porque deu ensejo ao grande apóstolo para expor, um por um, os as-
suntos em questão.
A primeira epístola aos coríntios é de todas as cartas paulinas a de
mais rico conteúdo e de mais palpitante interesse.
Na focalização dos numerosos problemas sociais, religiosos e éticos
desse documento bíblico sobressai, com todo o esplendor, o seguro critério
e o largo descortino espiritual desse incomparável condutor de almas. Paulo
não é otimista nem pessimista, é sempre dessombrado e bem equilibrado
realista. Sabe que o cristão, por mais espiritualizado, nunca deixa de ser
homem, homem com todas as suas fraquezas e misérias. Sabe que também
o discípulo de Cristo, embora morto para o pecado pelo sepultamento na
água batismal, e ressuscitado com Jesus para uma vida nova, sabe que
esse " homem novo" tem de viver no meio do mundo sem ser do mundo
que, embora espiritual, tem de lutar até ao derradeiro suspiro pela espiri-
tualização do seu Eu. O homem, empolgado pelas grandes realidades do
alem, e preso sempre às mesquinhas realidades do aquém, fica como que
suspenso entre dois mundos já não o satisfaz a materialidade profana, mas
:
— 226 —
Nesse contexto chega a falar também da virgindade. Para Paulo, não
há antagonismo entre o estado matrimonial e o da virgindade voluntária;
ambos, quando considerados à luz do Evangelho, radicam no mistério de
Cristo. A virgindade como tal não é superior ao matrimónio, senão apenas
quando abraçada por motivo sobrenatural, como expressão duma completa
e indivisa entrega a Deus.
"Quanto mandamento do Senhor; dou, porém,
às virgens, não tenho
um conselho como quem merece confiança por ser agraciado do Senhor.
Entendo que, por causa da presente tribulação, é bom ficarem assim —
como é bom Se estás ligado a uma mulher, não
para outro qualquer.
procures separação ; se não procures mulher. Entretanto,
estás solteiro,
se casares, não pecas. E se a virgem casar não peca. Estes, todavia, pa-
decerão tribulação da carne, de que eu quisera preservar-vos. O que vos
digo, meus irmãos, é que o tempo é breve. Pelo que convém que os ca-
sados vivam como se casados não fossem os tristes, como se não andassem
;
ao marido.
Digo isto para vosso bem, e não para vos armar um laço; mas porque
me uma desimpedida entrega ao Senhor.
interesso pelos bons costumes e por
Entretanto, se alguém acha desairoso que uma filha donzela passe da idade,
e, se tem conveniência, não peca, podem casar. Mas quem possue coração
firme e não tem que ceder a nenhuma necessidade, quem é senhor da sua
vontade e assentou consigo conservar virgem a sua filha, faz bem. Quem,,
por conseguinte, casa a sua virgem, faz bem; quem não a casa faz melhor.
A mulher está ligada enquanto o marido vive mas, se ele morrer, está ;
livre epôde casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor. Contudo,
será mais feliz se ficar como está. Isto é meu conselho, e creio que também
eu tenho o espírito de Deus" (1 Cor. 7, 25-40).
Paulo, como sabemos, não Mas, sempre fiel à orientação
era casado.
do divino Mestre, não nega ao apóstolo esse direito. Apela para o exemplo
dos "irmãos do Senhor" —
Tiago, José, Simão e Judas e, principal- —
mente, para o de Simão Pedro, o qual, como consta pelo Evangelho, era
casado.
Ter o direito, mas renunciar ao uso desse direito — é este um dos
traços característicos de Paulo. Como na questão do sustento material por
parte dos fiéis, sustento, a que ele tinha direito, mas ao qual renuncia livre
— 227 —
e espontaneamente —
assim também no caso do matrimónio bem podia :
"Se eu falasse a língua dos homens e dos anjos, mas não tivesse a
caridade, não passaria dum metal sonoro ou duma campainha a tinir" —
como o som espalhafatoso dos tímpanos e o rui do estridente dos címbalos
que os sacerdotes eunucos agitavam freneticamente no templo de Diana,
perturbando as lições evangélicas do apóstolo. "E, se tivesse o dom da
profecia, se penetrasse todos os mistérios e possuísse todos os conhecimentos,
se tivesse toda a fé a ponto de transportar montanhas, mas não tivesse a
-caridade — nada seria.
— 228 —
E se distribuísse entre os pobres todos os meus haveres, e entregasse
o meu corpo à fogueira, mas não possuísse a caridade — de nada me serviria.
•St.
— 229 —
onze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos reunidos, a
maior parte dos quais ainda vive, ao passo que alguns morreram. Depois,
apareceu a Tiago mais tarde, a todos os apóstolos, e, por último de todos,
;
apareceu-me também a mim, que nem ainda estava maduro. Pois eu sou
-o menor dentre os apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo, por-
que persegui a igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou;
a sua graça não tem sido estéril em mim pelo contrário, tenho trabalhado
;
— 230 —
Andai com toda a sobriedade e não pequeis. Alguns não teem ideia de
Deus —
para vergonha vossa o digo.
Mas, perguntará alguém : Como hão-de os mortos ressuscitar ? com que
corpo virão?
Insensato! o que semeias não chega a viver sem que primeiro morra.
O que semeias não é a planta que se há-de formar, mas é o simples grão,
por exemplo de trigo, ou outro qualquer. Deus, porém, lhe dá a forma
que lhe apraz, e a cada semente a sua forma peculiar.
Nem todos os corpos são da mesma espécie ; outro é o corpo do
homem, outro o dos quadrúpedes, outro o das aves, outro o dos peixes.
Há também corpos celestes e corpos terrestres, mas uma é a glória dos
celestes e outra a dos terrestres; diverso é o brilho do sol, diverso o da
lua, e diverso o das estrelas — e até vai diferença de claridade de estrela
a estrela.
É o que se dá com a ressurreição dos mortos. O que se semeia é
tais os terrestres ;
qual o celeste, tais os celestes. Assim como representa-
mos em nós a imagem do que é terrestre, assim também representaremos
em nós a imagem do que é celeste. O que vos declaro, meus irmãos, é
que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrup-
tibiíidade partilhará a incorruptibilidade.
Graças a Deus, que nos dá a vitória por Jesus Cristo, nosso Senhor!"
(1 Cr. 15, 1-57).
— 231 —
Como de costume, no fim da carta, acrescenta Paulo de próprio punho
a sua saudação e apõe a sua chancela de autenticidade; porque não eram
poucas as "cartas paulinas" apócrifas que corriam com o nome do grande
evangelizador.
"Aí vai a minha saudação de próprio punho: Paulo. Quem não ama
a nosso Senhor Jesus Cristo, maldito seja!"
E, como ardente saudade, repercute o suspiro final:
"Marana tha!" isto é: "Vem, Senhor!"
50. "GRANDE É A DIANA DE ÊFESO!"
(At. 19, 23 ss)
— 233 —
Encontramos nas ruínas de Êfeso, gravado numa pedra de mármore
branco, um decreto deste teor: "Sendo notório que, não só entre os efésios,
mas em toda a Grécia existem templos e localidades, imagens e altares
dedicados a Ártemis sendo que, além disto, foi consagrado à sua veneração
;
(1)Este mesmo espírito se manifesta ainda entre muitos "devotos" dos nossos
dias, que advogam com estupenda eloquência e piedade certas festas religiosas popu-
lares, só porque dão margem a notáveis transações comerciais.
— 234 —
•desse produto; arrefecera o entusiasmo religioso; as mercadorias "encalha-
vam" em parte nas lojas e nas bancas que rodeavam o templo e enchiam
as praças.
Todos compreenderam o porquê dessa mudança de coisas. Era Paulo,
esse judeu fanático, que dissuadia o povo de tributar culto à excelsa divin-
dade e de adquirir artefatos de ouro, prata, chumbo e argila, que lhe repro-
duziam a imagem e o santuário.
— 235 —
Num ápice, milhares de peregrinos, de ociosos, de transeuntes, de
estudantes e operários, de multidões anónimas estacionaram na praça do
templo, ouvindo, atentos, a eloquência torrencial do ardoroso demagogo.
Ainda não terminara Demétrio a sua arenga, quando no meio do imenso
auditório romperam delirantes vivas à grande deusa, ultrajada por aquele
estrangeiro. E, numa sugestão repentina, toda aquela mole popular lançou
ao espaço este brado unânime " Grande é a Diana de Êfeso grande é a
: !
Diana de Êfeso!"
"Ao teatro! ao teatro!" gritaram algumas vozes possantes. E logo,,
— 236 —
que dele necessitavam. Entre estes últimos havia alguns "asiarcas", homens
influentes e que possuíam as chaves para as jaulas das feras. Conheciam
de sobejo os instintos do povo, que só queria ver lutas de gladiadores e
cenas truculentas de corpos humanos dilacerados pelas panteras da Meso-
potâmia e leões da Numídia. Os "asiarcas" estimavam a Paulo e o re-
tiveram.
Observa Lucas, com deliciosa ironia, que uns gritavam isto, outros
aquilo, e que a maior parte nem sabia por que tinha vindo.
É a clássica "sugestão da massa", essencialmente cega e irracional.
Nisto aparece à entrada do proscénio do teatro o "escriba" de Êfeso,
ou, como diríamos em linguagem moderna, o Prefeito da cidade. Este,
felizmente, não era demagogo, mas um funcionário côncio da sua respon-
sabilidade, e, alem disto, um fino conhecedor de homens. Sabia ele que
a fera na arena, quando exhausta, é dominada com facilidade. Deixou voci-
ferar aquele povo por espaço de duas longas horas, e, quando todos os
pulmões estavam cansados, e roucas todas as laringes, assomou à boca do
palco o primeiro magistrado da cidade. A sua atitude firme, a serena
placidez do seu semblante, a calma absoluta de todo o seu ser, o longo
silêncio com que contemplou a multidão amotinada —
tudo isto atuou sobre
os espíritos como um calmante, como uma sugestão hipnótica. Pouco a
pouco se fez silêncio no vasto recinto do teatro, e no meio dessa calmaria
universal cairam, compassadas e graves, as primeiras palavras do Prefeito.
Palavras sóbrias, sensatas, felizes
"Homens de Êfeso ! haverá no mundo quem ignore que a nossa cidade
é a protetora do templo de Diana e da sua imagem descida do céu ?" . .
era do partido dos devotos. Prosseguiu o escriba: "Mas quem foi que
profanou o santuário? quem cometeu sacrilégio contra a deusa? Não está
em jogo a religião. Trata-se apenas duma questão económica, financeira.
Ora, para resolver questões dessa natureza, temos o recurso aos tribunais
competentes, temos uma lei que faculta assembléias populares, afim de ga-
rantir a cada um o seu direito. Nós somos um povo ordeiro e pacífico.
— 237 —
Mas com os acontecimentos de hoje corremos perigo de sermos considerados
desordeiros, e Êfeso perderia o grande prestígio de que goza na Ásia e no
mundo inteiro ". .
A
suntuosa metrópole da Jônia, onde o exímio apóstolo das gentes
concebeu idéias grandiosas e realizou obras estupendas; onde o apóstolo
da caridade viveu longos anos e escreveu as palavras sublimes: "Deus é
amor. A nossa fé é uma vitória dominadora do mundo". — Êfeso é
hoje um lugar obscuro, onde nunca parece ter brilhado a luz divina do
Evangelho . .
— 238 —
as suas relações internacionais; mas, se lhe minguar a alma do Evangelho,
o elemento divino e eterno, os espíritos retos e sinceramente cristãos se
afastam da igreja e adoram em silêncio e solidão o Deus que Cristo evan-
gelizou na Palestina. Porque a alma humana é "naturalmente cristã" e
se volta instintivamente para a verdade, assim como a flor se volta para o
sol, mesmo que esse sol se esconda por detrás de espessas nuvens . . .
— 239 —
51. FUGA DE ÊFESO. SEGUNDA
EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS
(At. 20, 1 s)
— 240 —
sivãmente grandes, acima das nossas forças, a ponto de já desesperarmos
da vida; já traziamos dentro de nós a sentença de morte. Mas Deus, . .
Sete anos haviam passado desde a última visita de Paulo a esta cidade.
Daquela vez, nada pudera empreender. Desta feita, porém, apesar do seu
estado de prostração, começou logo a pregar o Evangelho, porque o Senhor
lhe "abriu uma porta".
Entretanto, eram tantos e tão cruéis os sofrimentos morais causados
pelo estado de Corinto e pela falta de notícias ulteriores, que Paulo não
conseguiu desenvolver uma atividade eficiente; "não tinha paz na alma —
escreve — por não encontrar meu irmão Tito; por isso me despedi (de
Tróade) e fui em demanda da Macedónia" (2 Cr. 2, 13).
Paulo falava — mas era sem metal a sua voz . . .
Numa
impaciência febril, esperou o primeiro navio que o levasse à
Macedónia, onde se encontraria com Tito.
Chegou — mas Tito não estava. .
— 241 —
Paulo, cercado da carinhosa solicitude dessas almas dedicadas e dos
seus queridos filipenses, criou alma nova.
Num dia desses, ouve-se bater à porta da casa de Lídia, e a porteira
vem com a alviçareira notícia : Está aí Tito
do reencontro. Pudera! Paulo nunca
Indescritível o júbilo, a alegria
tinha a certeza de rever os seus emissários não sabia se voltariam ou ;
Corinto; nas suas cartas e à distância, diziam, era corajoso, mas, quando
presente, tímido e sem energia . .
bulações, angústias d'alma e muitas lágrimas que vos escrevi, não para
vos contristar, mas para vos mostrar o muitíssimo que vos quero" (2 Cr.
1, 23 — 2, 4).
E depois: "Começamos de novo a louvar-nos a nós mesmos? será
que, como certa gente, temos mister de carta de recomendação para vós
ou de vós? Não; a nossa carta de recomendação sois vós mesmos, carta
escrita dentro do nosso coração, legível e inteligível a todo o mundo.
Não há dúvida, vós sois uma carta de Cristo, por nós exarada, não.
com tinta, mas com o espírito de Deus vivo ; não em tábua de pedra, mas
nas tábuas de carne dos vossos corações. Esta confiança temos em Deus,
— 242 —
por Cristo. Por virtude própria, não somos capazes de conceber pensa-
mento algum a nossa capacidade vem de Deus foi ele que nos capacitou para
; ;
— 243 —
ultrajes e louvores; tidos por impostores, porém verdadeiros; ignorados,
porém conhecidos como moribundos, e ainda vivos castigados, porém
; ;
afim de vos apresentar a Cristo como virgem pura". (2 Cr. 11, 1-2).
"Ninguém —
repito —
me tenha por insensato; ou então, tende-me
em conta de insensato, para que também eu possa gloriar-me um pouco.
O que vou dizer não o digo no espírito do Senhor, mas como um insensato,
gloriando-me de tais Já que tantos se gloriam segundo a carne,
coisas.
também eu me gloriarei de tão sábios que sois, de boa mente tolerais
;
pois,
os insensatos; tolerais que vos escravizem, que vos explorem, que vos de-
fraudem, que vos tratem com aivez, que vos firam no rosto.
Nessa parte — com vergonha o confesso — tenho sido fraco. Mas
daquilo de que outrem se ufana — falo com insensatez — também eu me
ufano.
— 244 —
São hebreus ?— também eu São !
— também eu São
israelitas ? !
falo como insensato — ainda mais o sou eu: em trabalhos sem em conta,
prisões muitíssimas, em maus tratos sem medida, em perigos de morte bem
frequentes. Dos judeus recebi cinco vezes quarenta açoites menos um
três vezes foi vergastado, uma vez apedrejado; três vezes sofri naufrágio;
perdido em alto mar andei uma noite e um dia. Nas jornadas tenho estado
frequentemente em perigos da parte dos rios, perigos da parte de saltea-
dores, perigo da parte dos meus patrícios, perigos da parte dos pagãos
perigos nas cidades, perigos nos desertos, perigos no mar, perigos da parte
de falsos irmãos. Alem disto: trabalhos e canseiras, numerosas vigílias,,
— 245 —
52. INVERNO EM CORINTO. EPISTOLA
AOS ROMANOS
(At. 20, 2)
— 246 —
O ocidente !
—
eis a grande fascinação do espírito de Paulo. Ele
não o conhecia, esse mundo do oeste não lhe prègara o Evangelho
; . . .
Roma !.'.'_. a metrópole dos Césares ... Não devia ela tornar-se tam-
bém o centro do Cristianismo?
Paulo, na sua estranha clarividência, prevê os séculos futuros e adivinha
os acontecimentos. Ante os seus olhos surge o reino mundial de Cristo,
a igreja universal, com sede em Roma, .
Bem sabia ele que em Roma já existia uma cristandade, fundada por
outros apóstolos. Entre o ano 50 e 60 deve ter chegado à capital do
império Simão Pedro, em companhia de seu intérprete Marcos.
Paulo, fiel ao seu princípio, não queria "edificar sobre fundamento
alheio". Mas precisava de uma base e ponto de apoio em Roma afim de
poder alargar o seu apostolado para a " Espanha", como diz, compreendendo
todas as regiões do ocidente. Alma de Colombo, queria seguir o curso do
sol e iluminar as plagas ocidentais com os fulgores do oriente.
Trabalho ingente para os ombros de um homem de saúde precária,
forças alquebradas, ao limiar da velhice Mas a força do seu espirito sus-
!
w
M. «Jí.
— 248 —
A justificação é apenas um início, assim como é um princípio a vida
que a criança recebe dos pais. Mas como a vida natural, depois de rece-
bida gratuitamente, deve ser desenvolvida e aperfeiçoada pelo vivente —
de modo análogo deve também a vida inicial da graça ser aumentada pela
conciente colaboração do agraciado. Esta colaboração consiste nas boas
obras com que o cristão desenvolve, robustece e aperfeiçoa a vida sobre-
natural.
Lacrimae rerum"
" —
lágrimas das coisas —
apelidava Virgílio esses
"gemidos da natureza" de que nos fala o apóstolo.
— 249 —
Não parece justificada esta hipótese. Ainda que no ambiente pagão
de Tarso, saturado de sensualismo, não faltassem ao inteligente hebreu oca-
siõesinúmeras para profundos desregramentos éticos, e ainda que não quei-
ramos eximir o ardente discípulo de Gamaliel de todas as desordens da
mocidade irrefletida, nada nos autoriza, todavia, a fazer da sua juventude
um "caso de sensação" e admitir uma ruina catastrofal na vida religiosa
e moral do jovem doutor da lei. O que ele diz de si mesmo, no citado
capítulo, é antes uma genial personificação do que, por via de regra, ex-
perimenta todo o homem normal o eterno conflito entre a matéria
: e o
espírito, a tendência ascensional da alma e a depressão sensual do corpo,
o heliotropismo do nosso Eu superior e a pesada inércia da nossa parte
inferior. Paulo e todo o homem pensante sabem que, para a definitiva
quietação do nosso Ser espiritual, para a nossa redenção moral, não basta
a filosofia socrática, que vê na plenitude do saber a panacéia de todos os
males e o elixir da beatitude.
me vale saber? que adianta enxergar nitidamente o caminho
Mas, que
a seguir, se me faltam as forças para me levantar da minha fragilidade
moral ? para me manter em pé ? para trilhar de fato esse caminho, iluminado
pela luz fria duma ciência teórica? pelo luar glacial da mais linda das filo-
sofias?... Poderá esse saber infundir-me a energia para me erguer das
minhas misérias?. .
É indispensável que venha uma energia nova que restitua forças à alma
debilitada pelo pecado. "Infeliz de mim! quem me libertará deste corpo
mortífero ?"
E, como um eco redentor das regiões da divindade, vem a resposta,
infinitamente consoladora: "A graça de Deus, por Jesus Cristo, nosso
Senhor"...
— 250 —
Em seguida, canta Paulo as maravilhas da vida segundo o espírito
"Assim, já não se encontra nada de condenável naqueles que estão
em Cristo Jesus e não vivem segundo a carne; porque a
lei do espírito,
é que diz ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos,
— 252 —
Inúmeros cristãos substituíram por uma caricatura arbitrária o for-
moso retrato da fisionomia moral de Cristo; absteem-se cuidadosamente da
leitura do Evangelho, como se receassem ver destruído pela serena espi-
ritualidade do Mestre o lúgubre subterrâneo da sua própria "vida espi-
Só um retorno sincero às fontes divinas da sanidade espiritual poderá
curar a espiritualidade mórbida e doentia dessas almas.
e a mim também.
— 253 —
Saudações de Gaio, hospedeiro meu, e de toda a igreja.
Saudações de Erasto, prefeito da cidade, e do irmão, Quarto.
A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amem
A ele, que é poderoso para vos confirmar, segundo meu Evangelho,
pregação de Jesus Cristo — revelação do mistério que desde a eternidade
andou oculto, mas agora, graças às Escrituras dos profetas e por ordem
do eterno Deus, se revelou a todos os povos para os levar à obediência da
fé— a ele, o único Deus sábio, seja por Jesus Cristo glória pelos séculos
dos séculos. Amen". (Rm. 16).
— 254 —
53. ÚLTIMA VIAGEM A JERUSALÉM
(At. 20, 3 ss; Rm. 15, 25 ss)
— 255 —
dum mundo religioso corroído de formalismos vazios e saturado de interesses
materiais, é o mais perigoso dos cometimentos.
Por motivos de prudência, não embarcou Paulo no porto de Cencréia.
Soube por meio de amigos que um bando de homens perversos conspirava
contra sua vida e só aguardava oportunidade para o eliminar. E era tão
fácil, numa dessas noites escuras em alto mar, cravar-lhe o punhal nas
costas, e jogá-lo despercebidamente às ondas . .
— 256 —
ceiro andar abaixo, e foi levantado morto. Paulo desceu, debruçou-se sobre
ele, cingiu-o nos braços, e disse : Não vos perturbeis ; ainda está com vida.
Tornou a subir, partiu o pão e comeu. Falou ainda largo tempo até ao
romper do dia; em seguida partiu. Ao jovem, porém, trouxeram-no vivo,
sentindo-se muito consolados". (At. 20, 7-12).
A narração é breve, concisa, intuitiva, cheia de "it", como diria um
autor moderno. Para gozar todo o enlevo e toda a sagrada poesia dessa
reunião cristã em Tróade, deve o leitor representar-se ao vivo as circuns-
tâncias do fato: Um lindo sol de abril a mergulhar suavemente nas brumas
azuladas do poente, fechando após si as cortinas purpúreas de ligeiras nu-
vens . Na sala espaçosa do terceiro andar duma casa, com vista ampla
. .
— 257 —
Embarcaram os companheiros. Paulo, porém, seguiu por terra, 25
quilómetros de jornada. Talvez tencionasse, pelo caminho, visitar alguns
amigos, ou sentisse necessidade da solidão, depois de uma noite inteira de
discurso. Como era suave entreter-se a sós com Deus, por entre a fresca
da madrugada e o silêncio da natureza ! . .
toral . .
— 258 —
e ri, geme e rejubila nas palavras do apóstolo, palavras que seu inteligente-
"E agora vos recomendo a Deus e à palavra da sua graça, ele, que
é poderoso para vos edificar e conceder a herança com todos os santos.
A ninguém pedi ouro, nem prata, nem veste; bem sabeis que estas minhas
mãos me forneceram o sustento, a mim, e aos meus companheiros. Em
tudo vos tenho mostrado como convém trabalhar e acudir aos fracos, re-
cordando a palavra do Senhor Jesus, que disse: "Maior felicidade está em
dar que em receber" (At. 20, 32-35).
"Depois destas palavras —
refere o historiador — Paulo se pôs de
joelhos e orou com todos eles". .
E todos resolvidos a viver essa nova vida espiritual que se lhes descor-
tinava como um mundo novo de divina grandeza e formosura. .
— 259 —
e beijando-o. O que mais os afligia era a palavra de que não lhe tornariam
a ver a face. E acompanharam-no até ao navio".
— 260 —
os judeus, em Jerusalém, o homem a quem pertence este cinto, entregando-o
aos gentios".
Consternados, suplicaram os amigos que não fosse a Jerusalém. Paulo,
porém, ficou irredutível. Obedecia a um impulso superior. "Que estais
por uma força invisível, cujo como e porquê escapava, talvez, ao controle
do seu Eu conciente e vigil, mas que um instinto sagrado lhe dava como
providência divina. Qual rochedo imóvel em pleno oceano tempestuoso,
resistia ele a todas as sugestões de deserção e infidelidade, sempre com
os olhos no seu grande destino — rumo ao sacrifício final ! . . .
— 261 —
54. CONSELHO FUNESTO
(At. 21, 17 ss)
Como se» vê, a idéia racista não é de hoje nem de ontem. "A salvação
pelo sangue", este princípio proclamado pelos anti-semitas de hoje, também
já o foi dos semitas.
Boa parte dos cristãos de Jerusalém estava contagiada dessa animosi-
dade contra Paulo. Constava que ele recomendava aos prosélitos a não
se fazerem circuncidar e falava abertamente da inutilidade da lei de Moisés.
— 262 —
Com que reverência terão esses neo-cristãos contemplado a figura vene-
randa e solene de Tiago, todo vestido de branco, com a longa barba de
neve a lhe descer sobre o peito, e aquele par de olhos profundos, cujo
clarão parecia o revérbero de regiões longínquas e mundos incógnitos ! . .
Era este o homem de que lhes falara Paulo; Tiago, parente próximo de
Jesus . Ele, que brincara com o divino adolescente nas montanhas da
. .
É que nas suas veias não corria o sangue de Abraão Cristãos de . . . se-
gunda categoria. . .
— 263 —
E, depois de uns momentos de silêncio penoso, desabou sobre Paulo
tão tremenda decepção que Lucas não a quis preterir, e, mui enfaticamente,
escreve
"
"Em seguida, porém. . .
Sim, em seguida caiu como que uma catadupa de água fria no meio
do sagrado fervor com que o apóstolo historiara as misericórdias de Deus
entre os pagãos . . .
— 264 —
Realmente, se a igreja não fosse divina, os seus filhos e chefes já a
teriam destruído —
desde o primeiro século...
Paulo ouviu em silêncio tão "grave" censura da parte dos presbíteros
de Jerusalém. Tiago, provavelmente, não apoiou essa opinião ; mas estava
velho e já não tinha poder sobre certos colegas...
Duplamente pesada era para Paulo essa exigência, quer material quer
moralmente.
Pagar as despesas de nazireato para cinco pessoas equivalia a adquirir
15 ovelhas e boa quantidade dos comestíveis prescritos. Ele era pobre.
Vivia do trabalho das suas mãos. Por ocasião da sua última viagem a
Jerusalém, fizera espontaneamente o voto de nazireu, ele só ; mas desta vez
eram cinco pessoas, e, além disto, uma imposição arbitrária e em circuns-
tâncias desfavoráveis. Teria de pagar uma espécie de multa — por que?
Pelo fato de ter pregado o Evangelho independentemente da lei mosaica?
Pelo fato de ter proclamado a Cristo como único salvador da humanidade,
e Moisés como simples "pedagogo" e "servo" do Evangelho?...
Se Paulo fizesse a vontade aos judeus, que diriam os étnico-cristãos ?
— 265 —
Desejaríamos saber o que replicou Paulo ao conselho dos presbíteros;
quais as razões que o moveram a aceitar tão estranha sugestão Nada, . . .
nada ! . .
Deve se ter travado uma luta tremenda em sua alma, e, se não su-
pusermos uma revelação divina, não compreendemos a sua atitude ulterior.
"Embora livre — escrevera aos coríntios — me fiz escravo de todos".
E aqui temos a realização literal desta palavra.
Receava ele que a sua recusa provocasse um cisma na igreja?...
Imolou na ara sagrada da unidade do reino de Cristo, não a sua convicção,
mas todo o seu sentimento natural, todo o seu orgulho, tudo quanto de
èeu podia sacrificar sem contrariar a própria conciência. Afinal de contas,
trata va-se dum ato de piedade judaica, e não duma apostasia do Evange-
lho ... E a caridade para com quatro companheiros pobres também não
desdizia do espírito do apóstolo. Fosse Paulo um obstinado sectário, teria
sustentado a sua opinião, mesmo à custa da unidade religiosa. Cedeu até
onde podia ceder, na certeza de que Deus pesa as intenções e aceita o sa-
crifício do Eu como holocausto de imenso valor . .
— 266 —
55. "SOU CIDADÃO ROMANO!"
(At. 21, 26 — 22, 29)
— 267 —
va-se o templo, cercado das habitações dos serventuários do culto. À en-
trada do templo se erguia o gigantesco "altar dos holocaustos", onde se
matavam e queimavam as vítimas, e aonde o povo podia entrar só durante
os sacrifícios matutinos e vespertinos.
Era vedado aos pagãos, sob pena de morte, transporem o "átrio dos
gentios", como diziam numerosos avisos, em grego e latim, colocados nos
interstícios dos pilares: "Nenhum goi se atreva a transpor esta barreira
e penetrar no recinto sagrado. O contraventor pagará com a morte a sua
transgressão".
Os defendem com o mesmo
árabes, atuais donos do lugar do templo,
rigor a área do seu santuário do cristão que pusesse pé nesse lugar t
; ai
— 268 —
porta! de bronze, que só podia ser movido pela força conjugada de vinte
homens, diz a tradição.
Para Paulo era simbólico esse trovão e esse fechamento do templo
estava definitivamente expulso do seu povo, excomungado de Israel, entregue
aos gentios... Pela última vez viu brilhar ao sol matutino os alvejantes
muros do santuário depois —
uma nuvem de sangue lhe toldou os . . .
Por este mesmo lugar fôra arrastado, havia mais de vinte anos, o jovem
levita Estêvão . . . Paulo o sabia . . . Daí a momentos . . . estaria ele com
Etêvão . . . e com o divino Mestre . .
Não, não era chegada ainda essa hora suspirada. Paulo não sofrera
ainda bastante pelo nome de Jesus . .
cidade nada obscura" — com orgulho. E, sem fazer caso frisou certo do
espanto do oficial, acrescentou: "Rogo-te me permitas falar ao povo".
Pedido estranho, esse! um homem que por um triz escapou à morte,
pisado como um verme, pede a palavra, deseja fazer um discurso...
— 269 —
medindo com olhares inquisitoriais a silhueta
Lísias acedeu ao pedido,
frágil daquele estranho personagem que, de improviso, lhe caíra nas mãos»
Um como sentimento de mistério e terror se apoderou da alma do militar
romano... Que ia esse homem dizer à multidão fanatizada?...
"Paulo colocou-se sobre os degraus e fez sinal ao povo com a mão.
Seguiu-se grande silêncio. Então começou a falar-lhe em língua hebraica,
dizendo Irmãos e pais, ouvi o que tenho a dizer-vos em minha defesa".
:
Os judeus escutavam.
Mas, quando Paulo mencionou a ordem que
recebera de Deus, em
Jerusalém: "Vai, porque eu te enviarei para longe,
aos gentios" —
começaram a clamar furiosamente: "Abaixo com este
homem! não pôde viver por mais tempo!"
E, enquanto vociferavam, arrojavam de si as capas e lançavam pu-
nhados de pó aos ares contra Paulo. Numa palavra, portaram-se como
energúmenos e loucos furiosos.
Lísias não entendeu palavra do discurso de Paulo. Estranhava a ati-
Cidadão romano ! —
palavra mágica, que num ápice mudou a situação.
Imenso era o respeito que os representantes de César tinham a esse título
civis romanus. A posse legítima deste direito valia tudo, assim como a sua
arrogação indébita acarretava pena de morte.
— 270 —
O oficial mandou incontinente suspender a planejada tortura e correu
a dar ao tribuno Lísias a notícia de que o preso era cidadão romano, e,
Deu ordem para que Paulo fosse guardado na fortaleza e tratado com
benignidade.
— 271 —
56. PERANTE O SINÉDRIO. VISÃO
NOTURNA
(At. 22, 30 — 23, 35)
que por fora aparentais muita beleza, e por dentro estais cheios de ossadas
!"
e podridão
Por esse tribunal de religião adulterada foi Jesus condenado, e ante
â mesma categoria de representantes oficiais da religião aparece Paulo, seu
maior discípulo. Seria incompreensível se esses dois autênticos adoradores
de Deus em espírito e verdade fossem reconhecidos como homens religiosos
por aqueles escravos de um formalismo vazio.
Alem dos tinham também assento no Sinédrio os saduceus,
fariseus,
espécie de racionalistas e céticos, que criam mais firmemente na física da
carne do que na metafísica do espírito e achavam impolítico sacrificar os
prazeres certos da vida presente pela felicidade problemática duma existência
futura. Aproveitavam-se, todavia, do sentimento religioso do povo para
garantir a plenitude das suas bolsas. Mais ainda : para não expor a perigo
as suas vantajosas relações com os romanos, sopitavm solicitamente qual-
quer de entusiasmo religioso-nacionalista entre os judeus; nada de
início
política na religião! obediência à autoridade constituída Relegavam ao !
— 273 —
Lucas, que não assistiu à sessão do Sinédrio, não nos dá o histórico
dos debates aí travados. O certo é que nada se positivou contra Paulo,
tanto mais que fariseus e saduceus não se entendiam uns aos outros.
Paulo, para pôr termo à sessão inútil, lançou mão de um expediente
genial. Conhecedor da mentalidade de ambas as facções religiosas e dos
seus pontos de controvérsia, lançou ao meio do Sinédrio o pomo da dis-
córdia :
Paulo passa uma noite tormentosa numa estreita cela do "castelo An-
tônia". O corpo contundido... o rosto inchado... a alma em profunda
aflição . .
— 274 —
vam as luzes a noite toda, e o débil clarão iluminava as faces pálidas de
Lucas, Timóteo, Tito, Trófimo e das pessoas da família, entre elas um
jovem sobrinho do apóstolo, que não perdia ensejo para tirar informações
sobre o andamento das coisas.
Entrementes, na húmida escuridão do cárcere adormecera Paulo, acor-
rentado a um guarda. E por entre os mistérios dos sonhos lhe apareceu,
numa visão de luz, o divino Mestre e disse-lhe: "Tem confiança, Paulo;
assim como déste testemunho de mim em Jerusalém, hás-de dá-lo também
em Roma". .
Que felicidade, nesses lances dolorosos, ter a seu lado Jesus Cristo ! . .
— 275 —
57. CONSPIRAÇÃO MALOGRADA.
NA FORTALEZA DE CESARÉIA
(At. 23, 12)
mento de não tocarmos em comida até que matemos a Paulo. Ide, pois,
em companhia do Sinédrio, ao comandante e pedi que mande Paulo à vossa
presença, sob pretexto de examinardes melhor a causa dele ; nós estaremos
à espreita para o matar antes que chegue" (At. 23, 12-15).
O plano estava muito bem arquitetado e não podia falhar.
— 276 —
Falaram os dois à meia-voz, enquanto o carcereiro esperava à porta.
Terminada a entrevista, pediu Paulo ao guarda que chamasse um
oficial. Chegado este, disse-lhe: "Leva este moço ao comandante, porque
tem alguma coisa a comunicar-lhe".
Lá se foram os dois ter com Cláudio Lísias. O oficial, tipo autêntico
do militar disciplinado, apresenta o seu cliente e repete literalmente, sem
mudar uma só palavra, o recado recebido: "O preso Paulo mandou-me
chamar pediu-me que levasse este moço à tua presença porque tem al-
e
guma coisa a comunicar-te". Entrega o jovem e, com uma enérgica con-
tinência militar, desaparece.
O mancebo contou ao comandante o que sabia. Este o ouviu em si-
— 277 —
soma de dinheiro", devendo, portanto, saber corresponder a essa honra e
lisonjear o mais possível ao representante de César.
Às nove horas da noite, à luz serena das estrelas, partiu a singular
caravana, rumo noroeste. Estranha celebridade, a de Paulo de Tarso
JRoma protege com os seus legionários o apóstolo de Cristo contra as in-
sídias dos seus patrícios de Jerusalém. O paganismo mostra-se mais amigo
do Evangelho do que o judaísmo. .
— 279 —
a amante, a qual, daí por diante, desaparece na escuridão do anonimato,
ao passo que sua irmã Drusila, como refere Flávio Josefo, pereceu com seu
filho sob a lava do Vesúvio, na erupção catastrofal de 79 depois de Cristo.
Achava-se, pois, Paulo cercado dos velhos muros da fortaleza que tantos
horrores haviam presenciado nos últimos decénios.Por esses tétricos cor-
redores errara, horas mortas, Herodes o Grande, cla-
o velho tirano
mando pela alma de sua querida Mariamna, que assassinara numa hora
de ciúme feroz. Em torno dessas muralhas duríssimas tinham chorado e
gemido os judeus quando Calígula resolvera profanar o templo de Jeru-
salém com a ereção duma estátua à sua pessoa.
— 280 —
segundo testemunho unânime —
afirma o orador era um exímio bem- —
feitorda Palestina —
quando, na realidade, era objeto do ódio de todos,
fautor de banditismos e duma tão escandalosa incúria na gestão dos ne-
gócios públicos que, dois anos depois, Nero pôs termo ao descalabro gover-
namental de Félix, destituindo-o do cargo. Tal era a realidade. Entre-
tanto, convinha a Tertulo matar a verdade com mentiras e adulações.
Não menos infeliz do que no exórdio foi ele no corpo do discurso,
quando, em vez de provar a existência de algum delito, surpreendeu os
ouvintescom esta malcriada invetiva:
"Achamos que esse homem é uma peste, um desordeiro entre todos os
judeus do mundo e um dos principais caudilhos da seita dos nazarenos ".
Como se vê, o "pequeno três" tinha decorado sofrivelmente o que lhe
disseram os seus constituintes, os quais também não estavam longe da tri-
O sumo sacerdote e seus amigos devem ter suado frio durante esse
discurso, e Paulo terá sorrido compassivamente desse bom rapaz, que não
tinha queda para advogado . .
— 281 —
É admirável o critério de Paulo, toda a vez que aborda este assunto.
Considera o Antigo e o Novo Testamento como uma grandiosa unidade
dogmática, uma só religião; porque o Cristianismo estava contido em germe
no mosaismo — tanto assim que opróprio Jesus frisa que não veio para
abolir a lei e os profetas, mas, sim, levá-los à perfeição. O que Paulo,
portanto, ensinava, não era inovação religiosa, era antes a alma de Israel,
plenamente evoluída — ao passo que o Sinédrio, rejeitando o Messias,
adulterava as profecias dos seus próprios chefes religiosos, reduzindo o
judaísmo a um Para Paulo, não há duas religiões,
raquitismo espiritual.
teveladas, mas uma só, que vai de Abraão, através de Moisés, até Cristo.
Assim como a árvore não é a adulteração da semente que lhe deu exis-
tência, nem a flor a falsificação do botão,nem o dia a abolição da aurora —
assim também não é o Evangelho a negação da Tora (1), mas, sim, a sua
plenitude e definitiva evolução.
Nestes pensamentos se movia o discurso de Paulo, como se depreende
do ligeiro esboço que dele nos deixou seu secretário.
Félix,governador da Judéia havia largos anos e casado com uma
judia, conhecia melhor que a média dos seus colegas romanos as questões
religiosas de Israel e estava bem em condições de dar parecer sobre o
assunto e reconhecer a procedência da apologia* de Paulo.
Entretanto, em vez de o absolver, como lhe pedia a conciência, optou
pela protelação do processo. Alma de Pilatos, desejava agradar ao Siné-
drio, cujo desfavor lhe poderia acarretar não poucos aborrecimentos. De
resto, como diz o historiador, esperava fazer bons negócios com a prisão
de Paulo pois, sabendo-o chefe duma poderosa facção religiosa, convinha
;
retê-lo como refém para obrigar os adeptos desse credo a resgatá-lo a peso
de ouro.
Em todo o caso, deu ordem que lhe fosse aliviada a prisão, conceden-
do-lhe "sala livre" e permitindo-lhe receber visitas de amigos. Nesse estado
de custódia militaris, podia Paulo mover-se livremente no interior da
fortaleza.
— 282 —
59. PAULO, FELIX E DRUSILA
(At. 24, 17 ss)
fulgor daqueles olhos e no eco daquela voz, que falava de Cristo, sempre
de Cristo?... Podia uma filha de Israel encontrar o seu mundo e seu
paraíso nos amplexos sensuais de um devasso ? . .
— 283 —
queria levar à morte, verificou que o cárcere se abrira por si mesmo, caíram
os grilhões e evadira-se o mago. . .
— 284 —
dos seus roubos, homícidios, injustiças, orgias sexuais... Levantou-se,
cambaleante, e disse a Paulo: "Por esta vez chega... Oportunamente
mandarei chamar-te". .
— 285 —
60. ORIGEM DE DOIS LIVROS
ENCANTADORES
(At. 24, 27)
— 286 —
Paulo e Lucas, amigos dedicados, completam-se reciprocamente sob
Paulo, embora não des-
o ponto de vista intelectual, teológico e literário.
preze a parte histórica da vida de Cristo, propende mais para a ideologia
compraz-se em penetrar nas profundezas das minas au-
místico-prof ética
ríferas
;
— 287 —
Lucas, porque não nos disseste uma palavrinha ao menos sobre a vida
oculta do divino adolescente em Nazaré ? se soubesses com que ânsia
. . .
cobrir com o véu do silencio esses longos anos de vida operária do Re-
dentor ? . .
Por esse mesmo tempo deve ter Lucas principiado a sua segunda obra
conhecida com o título de "Atos dos Apóstolos". Nela faz o historiador
passar aos nossos olhos os primitivos tempos do Cristianismo e os trabalhos
e sofrimentos de alguns dos seus maiores representantes.
Para a elaboração deste livro, que deve ter levado diversos anos, tinha
Lucas tão numerosas fontes, quer escritas quer orais, que a dificuldade
não estava na matéria, mas antes na seleção dos fatos. Filipe, apelidado
o "evangelista", pai daquelas quatro profetisas de Cesaréia, era uma das
mais antigas testemunhas dos acontecimentos.
Nesse mesmo tempo se achava na dita cidade, fazendo companhia a
alguns sacerdotes presos, o conhecido historiador judeu Flavius Josephus,
ao qual devemos a mais completa relação das ocorrências desses anos.
Será que se conheceram os dois historiadores?...
Félix, que não contava mais com os antigos protetores, foi deposto.
Um dos seus últimos atos governamentais consistiu em algemar novamente
a Paulo e entregá-lo a seu sucessor.
Sabemos pela história profana que esta mudança de governador ocorreu
no ano 60, uma das datas mais precisas na vida do apóstolo Paulo.
61. "APELO PARA CESAR"
(At. 25 e 26)
Não haviam esses dois anos de interrupção extinguido o ódio dos judeus
contra Paulo, tanto assim que logo aproveitaram a oportunidade e soli-
Depois de dez dias, pois, teve Paulo de submeter-se mais uma vez
ao ominoso protocolo processual, na cidade do governador. Lá
residencial
estavam também os seus acusadores, cerrando os punhos, rangendo os dentes,
vomitando imprecações contra o "renegado".
Festo sentia-se cada vez mais enojado dessa atitude indigna dos se-
nhores do Sinédrio.
— 289 —
Paulo rebatia tranquilamente as gratuitas acusações e tornava a frisar:
''Era nada faltei contra a lei judaica, nem contra o templo, nem contra
César".
Duma coisa se convenceu, finalmente, o governador: que o processo
era antes da competência do tribunal religioso do que da alçada civil. Pelo
que se dirigiu a Paulo e lhe perguntou: " Queres subir a Jerusalém e ser
— 290 —
"Caesar em appellasti — ad Caesar cm ibis! para César apelaste —
para César irás í"
Caíra o dado
Para o destino ulterior de Paulo foi decisivo este dia em Cesaréia e
esta invocaçãoda suprema autoridade judicial do império romano.
Paulo, definitivamente desligado do seu povo e entregue aos gentios. . .
— 291 —
62. PAULO, AGRIPA E BERENICE
(Ât. 25, 13 ss)
— 292 —
de Drusila, Berenice, e dele, autor da matança dos inocentes de Belém ;
um seu tio, assassino de João Batista; seu pai, o matador de Tiago, e
perseguidor de Pedro.
Agripa tinha, pois, motivos de sobra para se ocupar com estudos de
religião.
Quando ouviu o nome de Paulo, exclamou, interessado: "Quisera ouvir
esse homem!" —
assim como, outrora, Herodes Antipas desejara "ver a
Jesus".
Festo folgou de poder prestar esse favor a seu ilustre hóspede; assim
também teria o que escrever ao seu superior em Roma. "Amanhã o
ouvirás", respondeu, satisfeito.
Dest'arte se originou um dos mais empolgantes episódios da história
religiosa da humanidade. Felizmente, lá estava Lucas para consignar os
principais incidentes dessa memorável entrevista religiosa em Cesaréia.
— 293 —
Xa antiguidade, em sinal de afirmação solene e grave, costumava o
orador estender os três dedos, médios —
os "dedos de juramento" —
encolhendo o polegar e o mínimo. Assim é que podemos imaginar o
apóstolo, no momento decisivo da sua oração.
Neste lance histórico improvisou Paulo a mais estupenda apologia do
Cristianismo que já se proferiu em todos os séculos. Convidado a falar
em sua própria defesa, ele se esquece da sua situação e tece, em face do
império romano e da sinagoga de Israel, uma genial defesa de Cristo e do
Evangelho. Jamais falara Paulo com tão ardente entusiasmo, com tão es-
pontânea veemência e insinuante simpatia como desta vez. Parece que o
longo isolamento e a falta de expansão lhe represara na alma um oceano
de espiritualidade, que, neste momento, rompe os diques, alaga o mundo
e arrasta na sua corrente os espíritos mais inveterados no seu mundanismo
profano.
O orador, sempre polido e distinto, sem servilismo nem adulação,
principia por se dirigir ao presidente honorário da sessão, dizendo
"Rei Agripa, sinto-me feliz em poder defender-me hoje em tua pre-
sença de todas as acusações que me assacam os judeus, porque tu és exímio
conhecedor de todos os costumes e de todas as questões judaicas. Pelo
que te rogo que me ouças com paciência".
Em seguida, dirigindo-se aos ouvintes em geral, passa a historiar, em
largos traços, a sua vida de fariseu, a sua inesperada conversão e subse-
quente vida cristã.Torna a frisar, como em outras ocasiões, que o Evan-
gelho não é nenhuma apostasia do judaísmo, mas antes o seu desdobramento
cabal, conforme predisseram os próprios profetas e patriarcas da lei antiga.
Para Paulo, pessoalmente, é decisivo o acontecimento dramático às portas
de Damasco. Mas para os outros, objeti vãmente, era essencial a harmonia
entre o antigo e o novo Testamento. A cruz não está no Calvário isolada,
sem nexo com o passado; é antes o élo final duma longa cadeia de aconte-
cimentos; radica nas profundezas do mosaismo de Israel — tanto assim
que ao lado do Cristo transfigurado aparecem Moisés e Elias, e falam com
ele sobre a sua morte redentora em Jerusalém. E este mesmo Cristo res-
suscitou, conforme as Escrituras sagradas de Israel. . .
— 294 —
aquele vaticinou como ponto culminante da lei e dos profetas. Diante de
Agripa, profundo conhecedor do judaísmo, podia Paulo jogar à cena todos
os argumentos "escriturísticos".
Festo, porém, pagão ignorante, nada compreendeu. Para ele era tudo
isto um mundo incógnito, e, quando Paulo, num rasgo de sublime audácia,
afirmou que sua missão era levar a todos os povos, pequenos e grandes,
o Evangelho de Cristo e converter o mundo inteiro à fé no ressuscitado,
exclamou o governador:
" Estás louco, Paulo ! os teus muitos estudos te fizeram perder o
juízo!"...
O Sem perder por um mo-
orador não leva a mal a ofensa grosseira.
mento a linha de perfeito cavalheiro, responde com firmeza: "Não estou
louco, excelentíssimo Festo; o que digo é verdade e bem ponderado. O rei
sabe destas coisas; pois não posso supor que ignore algum desses fatos,
que não se passaram em algum recanto obscuro da terra". .
Filho de Israel, não quer lançar ao meio do auditório uma apostasia pública
da lei de Moisés, e, por outro lado, pressente o perigo duma profissão de
fé judaica em face do inteligente orador, que, possivelmente, tiraria dessa
profissão consequências práticas a que Agripa não queria chegar; era mais
amigo dum liberalismo curvilíneo do que dessa inexorável lógica rectilínea
de Paulo. Por isso, acha preferível ficar calado.
Paulo, porém, responde em público o que a conciência do rei diz taci-
tamente :
— 295 —
Propriamente, não o quisera dizer, ele, espírito forte, emancipado;
mas, num momento mal vigiado, o subconciente se antecipou ao conciente
e revelou o que este recalcava discretamente às penumbras do Eu. .
Quase . .
— 296 —
Ill
DE ROMA A ÓSTIA:
PRISIONEIRO E MÁRTIR
63. EM DEMANDA DE ROMA.
TORMENTA E NAUFRÁGIO
(At. 27)
do Evangelho —
"espetáculo para os homens e os anjos" com os olhos —
fitos no divino Soberano. Ia agora continuar a ingente peleja, na metró-
pole dos Césares.
— 299 —
Júlio tratava a Paulo com humanidade, quase com reverência. Era
da classe daqueles oficiais romanos que aparecem na pessoa do centurião
de Cafarnaum e de Cornélio de Cesaréia. Chegara a conhecer e estimar
Paulo, provavelmente, por ocasião da solene reunião no "Herodeion", quando
o preso falara diante de Festo e de Agripa. O comandante adivinhava,
nele algo de superior, porque em nada se parecia com os outros cativos^
Graças à bondade de Júlio, tiveram permissão para embarcar com
Paulo alguns dos seus amigos, entre eles Lucas, Timóteo e Aristarco.
Enquanto o navio, tangido por ventos galernos, se distanciava aos
poucos do continente asiático, ficou-se Paulo no convés a contemplar, com
a alma cheia de gratidão, o cenário de tantas lutas e vitórias tamanhas . . .
— 300 —
Os navios daquele tempo eram veleiros de madeira, que, por falta de
bússola, se guiavam pelo curso dos astros e se mantinham, quanto possível,
nas proximidades do litoral. O navio fretado por Júlio foi costeando a
Ásia Menor, rumo norte, até ao porto de Mira, na Licia. Deste notável
empório comercial costumavam os navios mercantes do Egito levantar ferro
com destino à Itália, para onde exportavam grandes quantidades de cereais.
Alguns deles comportavam mais de duas mil toneladas.
No porto de Mira ajustou Júlio com o dono de um navio de trigo
vindo de Alexandria o transporte do seu pessoal para a Itália. Eram ao
todo 276 pessoas, entre tripulantes e passageiros. Na qualidade de coman-
dante da polícia imperial competia-lhe também a direção do navio.
Levantaram ferro, com vento desfavorável. Soprava um forte nordeste,
que a custo os deixou chegar a Cnido. Havia três semanas que tinham
-deixado Cesaréia.
Prevaleceu este último alvitre, por mais que Paulo dissuadisse de se-
melhante temeridade.
Levantaram ferro de Kaloi-Limenes — mas nunca viram o porto de
Fenice. . . A princípio, ao deixarmos aquele porto, soprava um ligeiro
vento sul, razão por que se julgou possível a execução do plano. Mas eis
— 301 —
"O nordeste! o nordeste!" — este grito de horror irrompeu de todos
os lábios. De velas ferradas, inclinava-se a embarcação sobre o lado es-
querdo, rente ao nivel das águas, enquanto montanhas líquidas coroadas de
espumas avançavam contra a nau e varriam fragorosamente o convés. Es-
talavam as vergas, estilhaçavam os mastros, gemia o casco do navio. . .
Por uns momentos, uma pequena ilha perto do litoral por nome Cauda
(hoje Gozzo) lhes ofereceu abrigo suficiente para poderem recolher a bordo
o maciço escaler que levavam a reboque. Mal, porém, passaram a ilhota,
continuou o navio a corcovear freneticamente à mercê dos ventos e das
vagas, que ora o erguiam no seu dorso vacilante, ora o despenhavam ao
gorgolejante abismo... Daí a momentos, o faziam empinar com a proa
para as nuvens — e logo o jogavam ao encontro duma montanha líquida,
"Por diversos dias não se viam nem sol nem estrelas. A procela con-
tinuava com o mesmo
Já não nos restava esperança de salvação.
furor.
Havia muito tempo que ninguém comia".
Nestes rápidos apontamentos do diário de Lucas ecoa ainda a an-
gústia daqueles dias e noites de horror.
— 302 —
Numa dessas noites horrorosas conseguiu Paulo dormir uns momentos,
e teve uma visão: viu diante de si um anjo de Deus que. lhe dizia: ''Não
temas, Paulo; importa que compareças diante de César. E Deus te dará
os teus companheiros de viagem". E logo viu, em sonhos, emergir uma
ilha do seio das águas, e a voz lhe dizia: "A esta ilha é que sereis lan-
çados". .
"Não perecerá nenhum de nós, senão somente o navio; vamos ser lan-
çados a uma ilha".
Havia quatorze dias que o navio redemoinhava nessa dansa macabra
entre a Grécia e a Sicília, mar que os antigos chamavam "Adria".
Eis senão quando, pela meia-noite, se ouve a grita alviçareira : "Terra
estamos perto da terra!". .
— 303 —
gem com Havia 15
a perspectiva do próximo fim da horrorosa odisséia.
dias que estavam Ajuntando o exemplo à palavra, "tomou um
em jejum.
pedaço de pão, deu graças, aos olhos de todos, e, partindo-o, começou a
comer. E todos cobraram ânimo e principiaram também a comer".
Em circunstâncias dessas não vale o cargo, mas vale o homem e —
Paulo era o maior homem de bordo. Mais de uma vez tinha ele naufragado
uma vez andara ao sabor das vagas um dia e uma noite, agarrado a uma
prancha ; sabia o que era sofrer e passar aventuras mortíferas . .
— 304 —
Foi uma hora de indescritível sensação Centenas de náufragos,
. . .
— 305 —
64. INVERNO EM MALTA
(At. 28, 1 ss)
— 306 —
deusa dá vingança não o deixa viver; vai morrer de mordedura de ví-
bora". .
Paulo, e isto com uma simples imposição das mãos. Com este benefício
e ademonstração de virtudes carismáticas, abriram-se as portas à prègação
do Evangelho de Cristo. "Acudiram também os demais enfermos da ilha,
e foram curados. Pelo que nos cumularam de honras, e, ao nosso em-
barque, nos proveram do necessário".
É sempre assim o caminho à alma vai pelo coração e pelos nervos.
:
— 307 —
65. SALVE, ROMA!
(At. 28, 11 ss)
— 308 —
terrâneo. Aqui Herculano, Pompeia e Stabiae; acolá Bajae, onde Plínio^
pai do célebre escritor homónimo e comandante da frota romana, pereceu
sob a lava do Vesúvio. Mais alem, às margens do lago Lucrino, a vila
imperial onde Agripina excogitara as suas infâmias e fôra estrangulada no
próprio leito, por ordem de Nero.
Deslisam graciosas as ilhas de Prócida, Ischia e Nísida. Arremessa-se
mar a dentro o pitoresco promontório de Miseno, onde Tibério César,
fugindo à morte, pereceu asfixiado.
Para o sul de Nápoles se ergue, tranquilo e aparentemente inócuo, o
Vesúvio, não com a sua fumarola de hoje, mas sem o menor indício de
perigo, todo coberto de vinhedos, pomares, jardins e casas que teriam —
ainda uns dois decénios de vida —
e depois morte repentina. . .
receber, pelas mãos desse semeador, o pão divino do Evangelho, que ele
espargia a mãos cheias desde o oriente — e também o ocidente cristão se
nutriria durante séculos e milénios desse cibo espiritual. .
— 309 —
•depois, teve o grande pensador ordem de Nero para se suicidar — e abriu
as veias, morrendo a morte do estóico...
"À vista dos irmãos criou Paulo alma nova" —
refere Lucas, por sinal
que ainda não se refizera cabalmente da sua grande prostração moral.
Em Arícia pisou pela primeira vez o "solo sagrado" do Lácio — solo
histórico, onde nasceu o génio latino de Roma, que, unindo-se com a alma
de Atenas, e, mais tarde, com o espírito empreendedor da raça celto-germâ-
nica, criou, à luz do Evangelho, a maior cultura do universo: a civilização
cristã do ocidente.
Lá no fundo do vale aparecem as casas de
Alba Longa, célula-mater
de Roma, como rezam vetustas lendas. No topo do Mons Albanus erguia-se
ainda nesse tempo o santuário da divindade nacional do Lácio o "Júpiter :
Para alem, desdobrava o lago Nemi o espelho azul das suas águas,
sobre cujo dorso plácido pairava a luxuosa "nau imperial", onde o infeliz
Calígula procurava baldadamente refúgio e sossego contra as fúrias sinis-
tras dos demónios, de que se julgava acossado no meio da sociedade hu-
mana; não sabia que esses demónios vinham do seu interior, e nenhum
homem pôde fugir de si mesmo, a não ser que se precipite nos abismos de
Deus — nos braços de Cristo Redentor . .
— 310 —
Durante os dez primeiros dias teve Paulo de ficar sob os olhos de um
guarda pretoriano, enquanto o "Prefeito" investigava a legitimidade do
título que facultava o direito de apelação para César.
Depois desta fase preliminar, teve Paulo "custodia libera", isto é, prisão
suave, que lhe permitia a escolha de um local de residência, com um soldado
de plantão.
Quão diferente dos judeus eram esses romanos
Paulo alugou uma casa, ou sala, perto do quartel pretoriano. Os
cristãos romanos, certamente, rivalizaram entre si para lhe suavizar o mais
possível o cativeiro.
Estava, pois, em Roma aquele homem que trazia na alma um mundo
de fé e de amor — na Roma de Nero, que, como diz um historiador,
suspirava por uma gota de amor e um sopro de humanidade. .
— 311 —
66. O PRISIONEIRO DE CRISTO.
ENTREVISTA RELIGIOSA
(At. 28, 17 ss)
— 312 —
A "esperança de Israel" era o Messias, por quem suspiravam os povos.
Paulo continua a insistir em que o verdadeiro israelita é ele, israelita como
Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Davi, Jeremias, Isaias, Daniel porque todos —
eles prenunciaram o advento do Messias, que ele, Paulo, préga por toda a
parte. Até ao tempo do profeta Malaquias, 400 anos antes de Cristo,
aguardava Israel um Messias espiritual, um redentor da escravidão moral
do pecado. Só mais tarde, quando por espaço de quatro séculos emudeceu
a voz dos videntes de Javé e quando os pagãos d'alem-mar destruíram a
independência nacional, então é que os israelitas adulteraram a sua espec-
tação messiânica, materializando a idéia do salvador vindouro; a partir daí
só pensavam em libertação política. E, quando a voz poderosa de João
Batista despertou os hebreus do funesto letargo e indigitava o " cordeiro
de Deus que tirava os pecados do mundo", só perguntavam eles se esse
Messias os libertava do jugo romano; e, quando ouviram que o profeta
de Nazaré só falava em emancipação da escravidão do pecado, da regene-
ração moral, do "reino de Deus dentro do homem" — então rejeitaram
o seu Redentor e o crucificaram como um embusteiro. E, no entanto, era
ele o verdadeiro Messias, no qual crera e esperara Israel, nos melhores dias
da sua história — Messias esse que Paulo anunciava aos israelitas da de-
cadência.
dessa "seita" era que por toda a parte era alvo de contradição bem —
como dissera de Jesus o velho Simeão, no templo de Jerusalém !
—e que
seriam muito gratos a Paulo se lhes désse alguns esclarecimentos a res-
peito . .
— 313 —
Paulo marcou-lhes um dia, e logo correu pelo ghetto romano a notícia
dessa grande entrevista religiosa.
— 314 —
aurora vislumbraram os vates antigos — sol, que, há quase dois milénios,
«descreve a sua gigantesca trajetória pelo firmamento da humanidade...
Também de Paulo, poucas notícias temos daí por diante, a não ser as
cartas que escreveu durante a sua prisão romana, de 61 a 63.
67. RESTAURAÇÃO UNIVERSAL
EM CRISTO
(Epístola aos Efésios)
"Paulo está preso!" — este grito corre célere por todo o Oriente. E
todas as igrejas por ele fundadas oram pela libertação do querido mestre
e pai. Muitas delas lhe mandam mensageiros, cartas de amizade, protestos
de solidariedade. Outras enviam donativos para lhe suavizar a vida na
prisão. A Macedónia está representada por Aristarco, a Galácia por Ti-
móteo, Êfeso por Tíquico, Colosses manda seu fundador Epafras, Filipes
envia Epafrodito. A casa de Paulo transformou-se num lugar de romaria,
um verdadeiro santuário. Que terá pensado o taciturno legionário, ao ver
seu preso tão homenageado ? . .
— 316 —
Paulo conta quase 60 anos.
Declina o sol do seu grande dia . . .
317
volvendo essa bela poderíamos parafraseá-la do modo seguinte Assim
idéia, :
mentos —
judeus e gentios, gregos e romanos, sábios e ignorantes — e
todos os que se deixarem empolgar pelo divino princípio vital de Cristo
serão por ele assimilados e tornados partícipes da sua natureza divina. Essa
absorpção pelo espírito de Deus, que pôde parecer uma escravidão, é, de
fato, a mais bela das liberdades, a "liberdade dos filhos de Deus", a liber-
— 318 —
Virgílio e emudecera a voz da sibila tiburtina: a imagem da mãe com o
filhinho ao peito submergira na "cloaca máxima", de que nos fala o realismo
de Juvenal.
satírico
W
Jfi O'-
'a-
Estava Paulo a terminar a sua epístola, quando o seu olhar caiu sobre
o legionário romano, que, de plantão à entrada da casa, vigiava o seu famoso
prisioneiro. Contemplou por uns momentos a garbosa figura do soldado,
na sua luzente armadura, o arnez de escamas a lhe cobrir o corpo robusto,
o escudo ao braço esquerdo, a espada à cintura e o capacete na cabeça —
e ditou ao secretário as palavras seguintes:
"Meus irmãos, sede fortes no Senhor, por sua poderosa virtude. Re-
vestí-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do
demónio. A nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os
principados e as potestades, contra os sinistros dominadores deste mundo,
contra os espíritos malignos nas alturas do céu. Revestí-vos, pois, da ar-
madura de Deus, para que no dia mau possais debelar tudo e afirmar o
campo. Ficai, pois, alerta, cingidos da verdade, cobertos da couraça da
justiça, os pés calçados de prontidão para anunciar o Evangelho da paz
Por cima de tudo, embraçai o escudo da fé,com que extinguir possais
todos os projetis igneos do maligno. Lançai mão do capacete da salvação
e do gládio do espírito, que é a palavra de Deus. Com ardentes preces e
súplicas pedi sem cessar em espírito ; e vigiai com perseverança e rogai
por todos os santos e também por mim, para que me sejadada a verda-
deira palavra, quando tiver de abrir os lábios, afim de anunciar desassom-
bradamente o mistério do Evangelho, do qual sou advogado, embora entre
algemas. Assim falarei destemidamente, como é meu dever" (Ef 6, 10-20).
Fechou a carta, e no dia seguinte pediu a Tíquico que a levasse aos
cristãos da Ásia-Menor, lhes agradecesse o carinhoso interesse e lhes désse
notícias do "prisioneiro de Cristo".
68. RECONCILIAÇÃO EM JESUS CRISTO
(Epístola aos Colossenses)
Pela resposta que Paulo deu aos colossenses não se pôde reconstruir
— 320 —
-cabalmente o corpo dessas doutrinas supersticiosas, mas depreende-se uma
espécie de teosofia judeu-helenística, ou seja um gnosticismo rudimentar.
Os judeus, não conseguindo persuadir os pagãos a aceitarem o mo-
saísmo puro, davam-lhe um verniz de filosofia. Falavam em "aiones" e
"dáimones", e contavam, com ares de mistério, como alguns desses seres
haviam aparecido a Moisés nas alturas do Sinai. Mais tarde, diziam,
baixara à terra o supremo "aion", que tomara o nome de Jesus. Servira
à lei de Moisés, como os espíritos do Sinai, razão por que também os seus
discípulos deviam professar essa mesma doutrina.
— 321 —
Na solução que Paulo dá a esse complexo problema, misto de verdade
e de ilusão, ressalta mais uma vez o critério seguro e a iluminação superior
do seu espírito. Não fosse ele o exímio realista da sadia espiritualidade,
teria simpatizado sem reservas com uma ideologia que tanto enaltecia o
culto do espírito e tanto reprimia a prepotência da matéria.
Entretanto, para Paulo a perfeição cristã não consiste simplesmente
na fuga das mas no reto uso das mesmas; não na extinção das
criaturas,
energias mas na sua espiritualização mediante uma completa
orgânicas,
subordinação à vontade de Deus. O Cristianismo, se não é do mundo,
também não está jora do mundo, mas vive no mundo e os seus adeptos —
devem aprender a viver no mundo, sem serem do inundo. É esta a vir-
tude divina do Evangelho e a vitória suprema da fé.
Nestas palavras refuta Paulo todos os erros dos colossenses. Não foi
Jesus que sofreu e Cristo que nos remiu. Quem sofreu e com sua morte
— 322 —
remiu a humanidade foi o Deus-homem Jesus Cristo, sofreu como homem,
mas a sua divindade deu valor ao seu sofrimento.
Fazer distinção entre "Jesus" e " Cristo" é, segundo a expressão clás-
sica de João Evangelista, "dissolver Jesus Cristo".
Cristo, portanto, não é uma das numerosas "centelhas" emanadas da
divindade; ele é a própria "plenitude" da divindade; nele habita toda a
substância da natureza divina. Como homem, sim, faz parte da criação,
desse transbordamento do amor de Deus, desse incessante extravasar da
divina plenitude para o vácuo circun jacente, para que esse vácuo, povoado
de criaturas, reflita em mil cores e cambiantes as perfeições do Criador.
O mais perfeito desses reflexos do Criador humanidade de Cristo,
é a
ao passo que a sua divindade é esse próprio astro central, que tudo produz,
sustenta, ilumina e vivifica. Para além desse reflexo perfeitíssimo existem
milhões e miríades de seres menos perfeitos, continuando numa infinda
graduação, até à derradeira sombra de criatura que vislumbra na extrema
periferia do ser, até à mais longínqua ilha da criação, colocada no ponto
onde a realidade confina com o vácuo, com o irreal, lá onde o ser se dilue
no sopro subtil do quase-ser e se desvanece no tenebroso abismo do
não -ser. . .
(1, 24).
A vida moral do cristão não é pautada pela abstenção arbitrária de
certos manjares ou coisas, nem pela observância servil de determinadas
cerimonias.
— 323 —
"Xinguem, pois, vos condene por causa de comida ou de bebida, por
causa duma festa, lua nova ou sábado. Estas coisas não passam de sombras
daquilo que estava por vir; a realidade disso é Cristo. Ninguém vos roube
o galardão, afetando humildade ou culto de anjos, gabando-se de visões,
enfatuado, sem fundamento, no seu sensualismo carnal. Em vez disto adira
àquele que é a cabeça, a qual, por meio de tendões e juntas, conserva todo
o corpo unido e firme, fazendo-o crescer para Deus.
Se com Cristo morrestes para os elementos do mundo, porque per-
mitis que vos imponham preceitos, como se ainda vivêsseis com o mundo?
"Não pegues nisto!" "Não comas aquilo!" "Não o toques sequer!" e, no
•Jí.
tf
& â&
— 324 -
"Saudações de Aristarco, meu companheiro de prisão; e de Marcos,
sobrinho de Barnabé. A respeito dele já recebestes recomendação; acolhei-o
bem quando for ter convosco. Saudações também de Jesus, apelidado Justo.
São estes os únicos dos circuncidados que comigo trabalham pelo reino de
Deus, e me dão consolação.
Saudações de vosso patrício Epafras, servo de Jesus Cristo, que não
cessa de lutar por vós em suas orações, para que sejais perfeitos, na plena
observância de toda a vontade de Deus. Asseguro-vos que muito se afa-
diga por vós e pelos irmãos em Laodicéia e Hierápolis.
Saudações de Lucas, o caríssimo médico; como também de Demas.
Saudai os irmãos de Laodicéia, mormente a Ninfas e os que se reúnem
em sua casa.
Depois de lida entre vós, esta carta, providenciai para que seja lida
também na igreja dos laodicenses, e procurai ler a de Laodicéia. Dizei a
Arquipo que procure desempenhar bem o cargo que recebeu no Senhor.
Vai de próprio punho a minha saudação: Paulo.
Lembrai-vos de que estou algemado. A graça seja convosco" (Cl.
4, 10-18).
Tíquico e Onésimo tiveram ordem para levar a carta a Colosses, en-
quanto Epafras ainda se demoraria algum tempo em Roma, em companhia
<lo "prisioneiro de Cristo".
— 325 —
69. UMA CARTA DE AMIZADE
(Epístola a Filemon)
1v
— 326 —
Depois de levar uma vida aventureira e gastar todos os recursos, vê-se
em apuros —
e vem-lhe a idéia de se refugiar a Roma, foco de todos
os
vagabundos do império.
Lá chegado, urgido pela necessidade, vai ter com Paulo, cujo para-
deiro não lhe podia ser desconhecido, pois mais de uma cartinha de
Filemon
tinha ele entregue ao "prisioneiro de Cristo". As leis romanas eram se-
— 327 —
e ao mesmo tempo profundamente imoral — tanto assim que até havia
deuses e deusas imorais (1).
Em Paulo, como aliás na vida de todo o cristão sincero e genuíno,
a moral ou ética é a flor do dogma e da fé. Por isso, insiste Paulo com
Onésimo para que volte a Colosses, confesse a sua culpa, aceite o castigo
e supra com duplicada fidelidade as faltas do passado. Quanto à impor-
tância surripiada, Paulo se entenderá ao depois com Filemon.
Respeita o apóstolo os conceitos sociais em vigor; não se julga na
obrigação de abolir, de um dia para outro, a escravatura. Em vez de se
arvorar em pregoeiro duma nova ordem social e propugnar uma subitânea
revolução dos usos e costumes da época, prefere o prudente sociólogo pre-
parar o terreno para uma solução paulatina e suave do magno problema.
Faz ver a Filemon que, embora senhor e dono de Onésimo, deve tra-
tá-lo como amigo, uma vez que o servo é da mesma natureza que seu amo
— e isto com dobrada razão depois que Onésimo se tornou seu irmão em
Cristo.
— 328 —
"Tempo hou^e, em que ele te foi inútil (um "não-Onésimo") ;
agora,
porém, te é útil" (um "Onésimo" de verdade).
E, para quebrar a última resistência ou desvanecer o derradeiro ves-
tígio de rancor da parte de Filemon, acrescenta:
"Aí t'o remeto. Acolhe-o como se fôra o meu coração".
Era pedir muito
Depois de identificar Onésimo consigo mesmo, passa a nivelá-lo com
Filemon
"Bem me poderia ele prestar serviços em teu lugar, em prol do Evan-
gelho; mas nada quis fazer sem o teu consentimento".
Como sabe o apóstolo ser cavalheiro
Mais ainda : vê até na fuga do escravo um desígnio de Deus : escapou
gentio — regressa cristão. Fugiu um estranho — volta um irmão em
Cristo.
"Se, portanto, me tens amizade, recebe-o como se fôra eu mesmo".
Mas — justiça haja! — se te causou qualquer prejuízo, se te está
devendo alguma coisa, amigo Filêmon, "lança isto à minha conta; eu, Paulo,
te escrevo de próprio punho que o pagarei".
Sorriu, sem dúvida, Filêmon em face de tão ousada fiança. Com . .
Por fim, promete Paulo visitar o amigo em Colosses, logo que se veja
posto em liberdade; convida-se a si mesmo, porque entre amigos há comu-
nidade de bens. "Prepara-me pousada; porque espero ser- vos restituído
em virtude das vossas orações".
— 329 —
70. AUDÁCIA DIVINA
(Epístola aos filipenses)
— 330 —
os manejos de certos cristãos romanos, que "pregavam a Cristo com se-
gundas intenções", movidos de egoísmo, ambição e interesse.
"Mas que importa? —
exclama o apóstolo, pondo os olhos nas alturas
do idealismo —
que importa? contanto que de todos os modos seja anun-
ciado Cristo. É esta a minha alegria, e alegria minha sempre será".
Ah ! se todo o pregador do nosso século pudesse, em conciência, re-
petir estas palavras, que bem valem por um programa, por uma ban-
deira ! . .
Em seguida, lança Paulo ao papel meia dúzia de frases que por si sós
dispensam alentados volumes de tratados sobre virtude e perfeição cristã.
Ante os seus olhos está a vida e a morte, e o apóstolo delibera, com ab-
soluta calma e serenidade de espírito, o que seria melhor: viver ou morrer.
A morte o uniria para sempre com Cristo, mas a vida lhe faculta ulteriores
trabalhos pelas almas e sofrimentos por Cristo e assim Paulo se vê —
indeciso, não sabe que partido tomar: pedir a morte ou a vida e acaba —
por entregar tudo às mãos de Deus.
"Quero que Cristo seja glorificado em minha pessoa, também agora,
como o foi sempre —
quer na vida, quer na morte. Porque, para mim,
Cristo é a vida, e a morte me é lucro. Se tenho de continuar a viver,
é-me isto trabalho frutuoso; de maneira que não sei o que escolher. Sin-
to-me impelido para uma e outra parte: anseio por me desprender e estar
com Cristo —
seria isto sem comparação o melhor. Mas, continuar a
viver é mais necessário por causa de vós. Pelo que nutro a confiança de
ficar e permanecer ainda em vossa companhia, para proveito vosso e con-
solação da vossa fé. Então será ainda bem maior o vosso júbilo em Cristo
Jesus por minha causa, para quando tornar a vós" (Fp. 1, 21-26).
Sobre um homem que atingiu as serenas alturas desse equilíbrio es-
piritual, já não tem poder o destino, não o perturbam os labores da
vida nem os horrores da morte. Está desarmado o carrasco em face duma
vítima que saúda a morte como a aurora da verdadeira vida.
O homem realmente livre é este, e só este.
— 331 —
Paulo desenvolve o seu pensamento e motiva a sua ética, descendo^
às profundezas da divindade, remontando à existência pre-histórica da
Verbo. O Adão tentou arrogar-se indebitamente a dignidade di-
primeiro
vina — como Deus"
"serás —
e arrastou à perdição o género humano;
Pelo que também Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de
iodos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho, dos
que estão no céu, na terra, e nos infernos, e toda a língua confesse, pela
glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é o Senhor (Fp. 2, 5-11).
— 332 —
que servimos a Deus em espírito, que nos gloriamos em Cristo Jesus, e não
confiamos em privilégios externos, ainda que desses privilégios me pudesse
eu gabar. Se alguém julga poder gabar-se de privilégios externos, com
mais razão o poderia eu. Fui circuncidado no oitavo dia, sou do povo de
Israel, da tribu de Benjamin, hebreu e filho de hebreus; fui fariseu em
face da lei
; ardoroso perseguidor da igreja, e de vida irrepreensivel, à luz
da justiça legal.
— 333 —
tristeza do cristão supera em júbilo todas as alegrias do mundano. Quem
abre mão de todas as criaturas goza no Criador todas as maravilhas da
criação.
Xão é possível convencer da verdade deste aparente paradoxo ao ho-
mem profano e inexperiente na espiritualidade. Só o iniciado, o ciente,
o clarividente é que descobre por detrás de tamanha loucura a suprema
sabedoria —a sapientíssima loucura da cruz . .
- 334 —
I
71. ABSOLVIÇÃO DE PAULO. VIAGENS
ULTERIORES. ROMA EM CHAMAS
Havia dois anos que Paulo estava preso. Girava o processo em torno
duma questão de caráter religioso, de que os tribunais do império não
achavam saída.
Acabava o jovem Nero de despedir os seus sensatos preceptores, Séneca
e Afranius Burrus.
Despertavam no sangue do príncipe os instintos selvagens herdados
de sua mãe. Em pouco tempo eliminou ele do número dos vivos a Britan-
nicus, a Octavia e sua própria progenitora Agripina. Exigiu de Séneca
que com a sua autoridade cohonestasse o nefando matricídio que acabava
de perpetrar. Recusou-se o estóico a aquiescer ao pedido do César e re-
tirou-se para a sua casa de campo, não longe da capital, onde, mais tarde,
recebeu a intimação de escolher entre a morte por mão própria e a por
mão alheia. Optou Séneca pela primeira alternativa e morreu a "morte
do estóico", abrindo as veias com uma navalha.
Entregou Nero o supremo comando sobre os pretorianos a dois homens
perigosos Tigellinus, o famigerado cúmplice dos delitos do soberano, e
:
— 335 —
Acaminho de Filipes, encontrou-se com Timóteo. Que alegria!
Agora, após tão longos anos de sombras e de solidão, parecia a alma do
apóstolo ter acumulado um grande cabedal de energias para uma nova
primavera. Primavera? ou antes um suave sol de outono, que viria dar
ao vinho generoso do seu caráter o último fogo e a doçura final ? . . .
— 336 —
•eSéneca. Desejoso de levantar uma nova capital do império, não via o
soberano outra solução senão destruir primeiro a antiga.
Entretanto, necessitava de um "bode expiatório" para se inocentar de
tamanha iniquidade, e lançou a culpa à odiada "seita dos nazarenos". O
povo não sabia distinguir entre judeus e cristãos, religiões oriundas, ambas
elas, da Palestina. Mas os israelitas, por intermédio dos seus validos na
côrte — sobretudo Tigellinus, Alityrus, a influente prosélita e Popéia Sa-
bina — souberam lançar toda a culpa do incêndio aos cristãos.
No
meio do fragor insano dessa formidável campanha anti-cristã da
parte do paganismo e do judaísmo, cai pela primeira vez, da pena dum
historiador gentio, o adorável nome de Cristo, ou, como ele escreve:
"Chrestos".
Entre dois celerados fôra Jesus crucificado, e por dois facínoras é a
igreja de Cristo apontada ao mundo como a grande criminosa do império
romano e inimiga mortal da humanidade. A partir daí, duas gigantescas
moendas trituram o Cristianismo, por espaço de três séculos se ele não ;
— 337 —
cruéis das perseguições que a preservem da putrefação e a purifiquem dos
parasitas . . .
— 338 —
morte — e até hoje continuam a guerreá-lo, seja de emboscada, seja em
campo aberto, quer pela sangrenta sinceridade de ferro e fogo, quer pela
traiçoeira perfídia duma legislação liberticida.
Assim como seu divino fundador e mestre, vive o Cristianismo no
mundo, mas não é do mundo. Não mendiga favores aos soberanos polí-
ticos. Respeita-lhes as leis, quando justas, mas não tolera jamais que se
dê a César o que é de Deus . .
— 339 —
72. "COLUNA E ALICERCE DA VERDADE"
a
(l. epístola a Timóteo)
-!{•
— 340 —
jovem ,pede a Timóteo que persevere firme em Êfeso, e de caminho à
;
— 341 —
Sem essa unidade na fé não há unidade de culto nem comunidade
na oração.
Lex orandi — lex credendi.
Paulo recomenda à oração dos fieis sobretudo as autoridades civis,
não seja amigo de bebidas, nem violento; mas, sim, modesto, avesso a con-
tendas e ganâncias que saiba governar bem a sua casa e trazer os filhos
;
Por fim —
como um velho pároco a seu coadjutor mocinho — dá a
Timóteo uns avisos práticos para a sua saúde precária:
"Não continues a beber só água, mas toma também um pouco de
vinho, por causa do teu estômago e dos teus frequentes achaques" (Tm.
5, 23).
73. INVERNO EM NICOPOLIS.
A IGREJA EM CRETA
(Epístola a Tito)
— 343 —
é mister que o pastor, na qualidade de dispenseiro de Deus, seja irrepreen-
sivel; que não seja arrogante, nem iracundo, nem dado ao vinho, nem
violento, nem ávido de sórdido lucro mas, sim, hospitaleiro, amigo do bem,
:
— 344 —
74. SEGUNDO CATIVEIRO ROMANO
O TESTAMENTO DE PAULO
a
(2. epístola a Timóteo)
Por esse tempo foi Paulo preso. Não consta ao certo onde nem como.
Existem conjeturas diversas.
À luz das recentes excavações e pesquisas científicas, é provável a
versão seguinte:
Paulo chegou a Roma na primavera — abril ou maio — do ano 67.
É o que parece supor também um documento do 2.° século, intitulado
a
"Passio Petri et Pauli". Hospedou-se na ll. zona da cidade, perto da
ilha do Tibre, sobre a margem esquerda do rio, num lugar chamado "ad
arenulam" (às areias). Não longe daí, próximo à Porta Ostiensis, existia
um grande armazém de trigo, vulgarmente denominado "horreum extra
urbem" (celeiro fóra da cidade). Como o armazém estivesse vazio, re-
Ao
pé do Capitólio, no Fórum Romanum, achava-se o famoso "Cár-
cere Mamertino",chamado também "Tullianum", hoje em parte soterrado.
Segundo uma tradição antiga, mais ou menos certa, foi Paulo lançado a
esta masmorra.
Esta segunda prisão romana tornou-se bem mais dura que a primeira.
Carregado de cadeias, como um criminoso, falta ao ancião todo e qualquer
conforto. A solidão é quase absoluta. A custo conseguem alguns amigos
romanos visitar o preso. Eubulo, Pudente, Lino e Claudia saudam-no cau-
telosamente, porque — diz a tradição —
sabiam do paradeiro de Simão
Pedro e queriam evitar todas as suspeitas da parte do público.
Inventou ainda a tradição cristã um encontro entre Pedro e Paulo, no
Cárcere Mamertino — invenção essa que mais tem de piedosa que de pro-
vável. Espiritualmente, sim, encontraram-se os dois grandes chefes, coadu-
nados no mesmo ideal apostólico, irmanados no mesmo heroismo do martírio.
Mais do que nunca sentiu o prisioneiro a deserção de quase todos os
seus amigos de outrora, entre eles Demas, receoso de ter de compartilhar
a sorte do mestre. Também os seus antigos auxiliares da Ásia, Figelo e
Hermógenes e outros, deixaram de atender ao seu comité. Apenas Lucas
estava com ele.
— 346 —
"Na minha primeira defesa não houve ninguém que me valesse; todos
me abandonaram —
perdoados sejam !
—
o Senhor, porém, me assistiu e
me deu forças para que por meu intermédio fosse anunciado o Evangelho
e chegasse aos ouvidos dos gentios. Escapei às fauces do leão".
Sem advogado nem amigo, defendeu-se Paulo sozinho, e tão às claras
pôs a sua inocência que desta vez escapou aos dentes das feras, cujos ru-
gidos ouvia todos os dias, nas jaulas do Coliseu.
Após o primeiro interrogatório, voltou ao cárcere.
— 347 —
em tamanha pobreza é necessário ter vivido com a alma repleta duma ri-
queza imensa. . .
Mais alguns dias, e Paulo se convence de que o seu processo vai ter-
minar com a sentença de morte. No caso que Timóteo não chegue a tempo
para trocar o abraço de despedida e receber as últimas recomendações, aí
vão elas, por escrito:
"Sê forte, meu filho, em virtude da graça que está em Cristo Jesus.
O que de mim homens de confiança e idóneos para
ouviste, transmite-o a
ensinar a outros. Sofre comigo como bom soldado de Cristo Jesus. O
lutador na arena não é coroado sem que tenha lutado legitimamente. . .
— 348 —
sinar, para arguir, para corrigir, para educar na justiça. Dest/arte chega
o homem de Deus à perfeição, habilitado para toda a boa obra".
Paulo revê-se ferido em Listra, jogado ao monturo, num delíquio pro-
fundo, dado por morto; quando abre os olhos percebe, através dum véu
de sangue, as pupilas dessa criança frágil, que devia tornar-se um dia o
seu grande discípulo, Timóteo . . .
Anoitece . .
— 349 —
75. NO TERMO DA VIAGEM
Pelos meiados do ano 67 correu a segunda fase do processo contra
Paulo. Novamente comparece o "prisioneiro de Cristo " às barras do tri-
bunal de César — e desta vez para ouvir a sua sentença de morte.
Face a face encontram-se dois homens Paulo e Nero, o melhor e o :
A virtude em algemas —
e o vício sobre o trono . .
Ouve Paulo a sentença fatal com serenidade, mas não com a indife-
rença artificial e fictícia dos estóicos. Sócrates tenta afugentar os horrores
da morte à força de argumentos filosóficos. Epicteto procura narcotizar
o sentimento natural com zombarias e facécias ao "espantalho de crianças".
Séneca refugia-se a uma violenta e acintosa abstração, fingindo ignorar o*
Sabe que "a morte é o último inimigo". Inimigo que ele conhece,
aliás,de longa data. Quantas vezes não se viu o apóstolo face a face com.
a morte quantas vezes não lhe sentiu o hálito letal, contemplou-lhe a caveira
!
Nenhuma outra espécie de morte teria sido tão digna de Paulo como
esta. . . Sozinho. . . Sem uma lágrima de amigo. Sem um gemido de . .
Cristo, o Crucificado . .
— 351 —
Sepultaram o corpo do apóstolo no ponto em que se eleva hoje a grandiosa
de "São Paulo fora dos muros".
basílica
Aí repousaram os restos mortais do grande evangelizador até ao 3.°
século, quando, sob o reinado de Valeriano, procurava o paganismo des-
Os fieis de Roma
truir e saquear todos os santuários e cemitérios cristãos.
preveniram o sacrílego intento e ocultaram no fundo das catacumbas de
São Sebastião, na Via Appia, os corpos dos seus grandes chefes espirituais,
Pedro e Paulo.
Mais tarde, quando despontou para o Cristianismo o dia da paz uni-
versal, foram as venerandas relíquias restituídas aos seus jazigos primiti-
vos. Deu-se esta trasladação no dia 29 de junho, razão por que a Igreja
celebra nesta data a solenidade coletiva de São Pedro e São Paulo.
Em 1823 foi a antiga basílica de São Paulo destruída por um incêndio,
que respeitou apenas o esplêndido arco em mosaico de Galla Placídia, pie-
dosa filha do grande imperador.
Reedificou-se a basílica, que é uma das mais belas do mundo.
À sombra desse majestoso santuário —
que tem algo do espírito do
grande apóstolo —repousa até ao presente dia o invólucro material daquela
grande alma, aguardando a Páscoa universal da humanidade.
E só então chegará o mundo a conhecer cabalmente a vida heróica de
Paulo de Tarso — o maior discípulo de Cristo, o mais intrépido bandeirante
do Evangelho.
— 352 —
DESPEDIDAS
É de imensa gravidade a hora que atravessamos.
Desmoronam, dum dia para outro, as mais sagradas instituições.
Tratados internacionais são farrapos de papel.
Revoluções por dentro e guerras por fora.
Mais vale o direito da força que a força do direito.
Prèga-se por toda a parte o ódio das classes.
O credo da raça pretende abolir o decálogo do Sinai.
A idolatria do sangue ameaça desvirtuar o sangue de Cristo.
O sermão da montanha emudece sob o fragor dos canhões.
Estremece o solo do velho mundo ao passo cadenciado dos seus
exércitos.
Escurecem os horizontes da Europa ao perpassar de formidáveis
esquadras aéreas, abutres agourentos que vão em demanda de alguma
carniça . .
— 353 —
Empalidecem os faróis da praia . .
— 354 —
Um ideal sensual sensualiza o homem.
Um ideal espiritual espiritualiza o homem.
Um ideal divino diviniza o homem
Homem que não tem um ideal digno dele não é homem com-
pleto.
Âcena ao longe o luminoso cume duma grande aspiração; mas o
caminho que para lá conduz é íngreme, escabroso, semeado de espi-
nhos e margeado de precipícios.
E, no entanto, é de absoluta necessidade que o homem, seja qual
for a sua filosofia ou o seu credo, cultive um ideal espiritualizador,
porque uma vida sem ideal é uma vida falida . .
Esses homens que, às vezes, parecem tão mundanos e maus, mas ainda
conservam acesa no santuário da alma a lâmpada sagrada do idealis-
mo espiritual, o anseio do infinito, a nostalgia do eterno, a incom-
preendida saudade de Deus.
Paulo, o homem da crua realidade —
Paulo, o apóstolo do ideal
divino ! . .
— 355 —
ra Epístola aos coríntios, é bem um retrato da grande alma desse gran-
de crente .. .Crê porque ama ama porque crê — . .
— 356 —
de que o Cristo vivo e verdadeiro reine e impere dentro do nosso Eu,
na prática sincera e constante da Verdade, da Justiça, da Pureza, da
Caridade universal . . Sem o fundamento da ética natural não há mo-
.
—
O divórcio entre a fé e a moral eis aí a grande chaga da socie-
dade hodierna!
Para muitos cristãos de hoje, uma coisa é crer e outra fazer, quan-
do para o genuíno apóstolo de Cristo o fazer é a flor do crer, o decálo-
go é a exuberante riqueza que brota da vigorosa plenitude do cretio.
A pedra de toque do verdadeiro cristianismo não é o maior ou me-
nor número de atos externos de piedade, mas, sim, a constante harmo-
nia da vida prática com os ditames da fé, a perfeita sincronização da
moral com o dogma, a completa consonância da ética e da ascética.
Paulo de Tarso, esse cristão integral, passou mais de trinta anos
lutando por estabelecer nos regenerados em Cristo essa grande har-
monia entre o credo e o decólogo:
"Se credes em Cristo vivei com Cristo Se com Cristo ressus-
! . . .
— 357 —
Urge que restabeleçamos a grande, a maravilhosa, a salvadora
harmonia entre a fé e a moral.
É necessária que vivamos a nossa fé.
O conhecimento profundo e a prática sincera e constante do
Evangelho de Cristo — eis aí a única esperança de salvação individual
e social!
É esta a filosofia, a teologia, a ética e ascética de Paulo de Tais©,
o mais ardente apóstolo de Cristo, o maior bandeirante do Evan-
gelho.
FIM
ÍNDICE
Pgs.
Preliminares 3
6. Às portas de Damasco 33
7. Agir! ......... f
.
.
-
. . :\~ 37
8. Silêncio e oração 49
9. Regenerado em Cristo 43
1€. A sós com Deus 48
11. Em Jerusalém 54
12. O ermitão anónimo 6d
\Z. Antioquia. Primavera apostólica 64
14. Paulo e Barnabé — pioneiros do Evangelho 68
15. Caridade social de Paulo . 73
16. Expedição apostólica a Chipre 76
17. No país dos Gálatas 82
18. Pela liberdade do Evangelho 89
19. Em Icônio. Paulo e Tecla 93
20. Em Listra. Paulo apedrejado 96
21. Solidão e sofrimento 102
22. Moisés ou Cristo? Prenúncios da luta pela liberdade do Evangelho . 104
23. O concílio apostólico 109
24. Paulo em conflito com Pedro 115
25. Morte de uma grande amizade 121
26. Segunda expedição apostólica. Pelas montanhas. Timóteo 124
27. O brado da Europa.- Lucas, o médico 129
28. Em Filipes. Lídia, a purpureira 132
29. A pitonisa de Filipes 136
30. Uma noite misteriosa. Paciência de mártir e brio de homem 139
31. Em Tessalônica 143
32. De Tessalônica a Beréia 147
— 359 —
Pgs.
— 360 —
/
Reapareceu, em 3.
a edição, a grande biografia de Jesus Cristo:
"JESUS NAZARENO
POR
HUBERTO ROHDEN
QUE DISSERAM DESTA OBRA?
Um cardial:
Um diplomata:
Um jornalista:
Um sacerdote:
Um médico:
"Pode Huberto Rohden viver cem anos — livro igual a este não
escreverá mais!"
Dr. Ricardo Barreto (Natal)
FAfi
TV
_
MY12 49T
9
Princeton Theological Seminary Libraries