Huberto Rohden - Agostinho
Huberto Rohden - Agostinho
Huberto Rohden - Agostinho
Agostinho
Um Drama de Humana Miséria
e Divina Misericórdia
UNIVERSALISMO
Agostinho
Apressadamente volta à casa e lê, num livro sacro, aberto sobre a mesa, frases
de profunda significação.
Desde esse dia de “renascimento espiritual” e após a sua morte física, em 430,
em Hipona, cidade romana da Numídia, na África, Aurelius Augustinus percorre
a História como um luzeiro da cultura antiga, influindo o pensamento de todo o
mundo cristão.
Agostinho é um gênio.
Advertência
Prefácio
Cronologia
Dados Biográficos
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila,
tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se
escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.
A maior tragédia de um grande gênio é ter discípulos após sua morte, que, de
boa fé, se dizem autênticos continuadores do grande Mestre, sem atingirem os
vôos do espírito dele. Nenhum talento, por mais aguçado, tem a visão cósmica
do verdadeiro gênio; todo o talento opera no nível horizontal do ego humano, ao
passo que o gênio recebe suas revelações na vertical duma invasão cósmica da
própria alma do Universo.
Todas as obras de Agostinho provam que ele nunca lançou âncora num porto
definitivo; o seu gênio navegava, em intermináveis odisséias, por todos os mares
tempestuosos dos pensadores inquietos. Horrorizado com as dezenas de
cristianismos em litígio, viu Agostinho a imperiosa necessidade de estabelecer
certa unidade no meio da caótica pluralidade das teologias cristãs, e o
cristianismo católico romano, sob os auspícios do próprio Imperador, prometia
garantir certa unidade. Se essa unidade externa coincidia com a verdade interna
— isto era outra pergunta, antes de consciência individual do que de
conveniência social.
É esta a dolorosa felicidade dos grandes gênios; a sua felicidade está na certeza
de estarem no caminho certo — a sua dolorosidade está em se saberem longe
da meta final, porque eles sabem ou vislumbram que todo o finito em demanda
do Infinito está sempre a uma distância infinita. A vida eterna não é uma chegada
— é uma incessante jornada em linha reta.
“Deus, noverim me ut noverim te” (Deus, conheça eu a mim para que te conheça
a ti) — palavras como estas marcam a saída do monoteísmo dualista da teologia
e a entrada no monismo unitário da filosofia cósmica,
* * *
Nos últimos tempos, sobretudo desde o Concílio Vaticano II, verifica-se uma
reconvergência dos dois galhos cristãos para uma harmonização ecumênica;
decrescem as divergências teológicas, cresce a convergência cristã das igrejas.
Possivelmente, Agostinho poderia ter dito o que, em nosso século, Mahatma
Gandhi disse aos missionários cristãos que tentavam convertê-lo: “Aceito o
Cristo e seu Evangelho, não aceito o vosso cristianismo”. E talvez mesmo com
Albert Schweitzer poderia ter dito: “Nós injetamos aos cristãos o soro da nossa
teologia, e quem é vacinado com o soro da teologia cristã está imunizado contra
o espírito do Cristo”.
O povo explorado e gemendo sob o peso de tributos cada vez mais onerosos,
esperava, impaciente, por uma ocasião para sacudir o jugo e vingar-se da tirania
dos poderosos opressores.
O mais funesto dos males, porém, era o paulatino estancamento dos mananciais
da vida. Milhares de famílias romanas eram desertos estéreis, lares sem filhos,
lindos recantos com todo o luxo e conforto da época, mas sem o alegre sorriso
duma vozinha infantil — e que futuro pode esperar uma nação em cujo seio é
maior o “deficit” da morte que o saldo da vida?...
Suicidava-se lentamente o gigantesco Império dos Césares...
Era chefe da família um homem por nome Patrício, pagão, espírito medíocre,
cuja principal aspiração se cifrava na posse de bens materiais e no brilho das
glórias mundanas. Descendente, talvez, dum antigo legionário romano, herdara
dos seus maiores uma modesta propriedade na cidade de Tagaste e ocupava
um cargo na Prefeitura local.
Mônica, de estirpe púnica, filha talvez de distinta família cartaginesa, era cristã,
e revela-se-nos, através de tudo que dela sabemos pelos escritos do grande
filho, inteligência lúcida, alma de forte sensibilidade, coração dotado de grande
potência afetiva.
Sabemos de dois filhos e uma filha deste casal. Navigius parece ter sido o mais
velho dos três. Porque concentrou Mônica o seu amor precisamente no segundo
filho, e não em Navigius ou na filha?
A alma juvenil que acorda num lar infeliz volta-se desde cedo para as realidades
circunjacentes, em busca dum paraíso que a sorte adversa lhe negou no seio da
família. É uma plantinha que, em vez de medrar pacificamente na tépida
atmosfera dum jardim cuidadosamente cercado e cuidado, é obrigada a lutar, à
beira da estrada, com impiedosos vendavais e suportar as intempéries da
natureza — clima esse propício à evolução dos grandes heróis da humanidade
— e também dos grandes celerados da história...
Num ambiente assim nasceu um dos homens mais humanos e mais divinos que
a história conhece.
CAPÍTULO 2
Um Recanto da Numídia.
— Amigo de Brinquedos e
Inimigo dos Livros
Murmuram as límpidas águas do rio Bagradas, e, cada vez mais volumosas, vão
em demanda do golfo azul que hoje tem nome de Túnis.
Tombara a capital da África sob o furor das catapultas e dos aríetes romanos;
mas as vastas regiões da Numídia resistiram ao tirânico invasor.
No seu curso superior, banha o rio Bagradas (hoje Oned Medjerda) uma
cidadezinha que os habitantes púnicos e os conquistadores europeus
chamavam Tagaste, e os nativos de hoje apelidam de Souk-Ahras.
Quantas vezes não terá este rio levado sobre o seu dorso as frágeis barquinhas
de cortiça que uma criança não menos frágil fabricava e lançava às ondas,
contemplando-as na sua célere viagem a ignotas regiões!
Com estranheza ouvirá o piedoso leitor que o menino não foi batizado, ele, filho
de “santa Mônica”... Mais tarde, chegado ao uso da razão, resolveria Agostinho
por si mesmo se queria abraçar o diluído paganismo do pai ou o nítido
Cristianismo da mãe.
Nesse tempo, não era ainda costume batizar crianças; nem João Batista nem
Jesus conheciam batismo de crianças. O conceito de “pecado original” é
totalmente alheio ao Evangelho do Cristo.
Mônica, porém, mui dentro de sua alma, estava convencida de que seu filho
acabaria por abraçar espontaneamente o Evangelho do Cristo. Uma voz íntima
dizia-lhe que a alma de seu Agostinho era “naturalmente cristã”, como dissera
seu grande patrício Tertuliano.
* * *
Nas suas “Confessiones” refere-se o autor à primeira quadra da sua vida, e ele,
o profundo filósofo e preclaro metafísico, sabe descrever episódios da sua
infância com tão ingênua simplicidade e ternura como uma mãe a contar os
primeiros passos de seu filhinho.
“Era eu uma criança de peito — diz ele — que se conservava quieta, quando se
sentia bem, e chorava quando lhe doía alguma coisa. Depois, comecei a sorrir,
primeiro em sono, mais tarde, acordado. Com o tempo cheguei a dar conta de
mim, sabia onde estava. Para manifestar os meus desejos, agitava as pernas e
as mãozinhas e gritava a valer”.
Traçado assim em carta branca, não podia o nome de Jesus apagar-se jamais
da alma do ardente africano, embora viesse, mais tarde, a obliterar-se por longos
anos, ofuscado pelas paixões e pelos fogos fátuos das glórias mundanas.
É esta uma das mais tristes e também das mais consoladoras leis da psicologia:
chegará a vingar um dia o que foi semeado na terra virgem da alma humana.
Nada se perde. Parece que estas primeiras sementes lançadas à alma ainda
incolor, amorfa e vácua, formam nela potências dormentes que, passado o
período de hibernação, aparecem como forças atualizadas, como valores reais
em estado consciente e vígil.
Ainda criança, adoeceu Agostinho. Oscilou por diversos dias entre a vida e a
morte. Lembrou alguém que o menino, antes de morrer, devia ser batizado.
Entretanto, mal passou o perigo, e novamente foi adiado o batismo.
“Dilata est mundatio mea, quasi necesse esset ut adhuc sordidarer, si viverem”.
* * *
Tagaste era, nesse tempo, um dos notáveis centros comerciais da Numídia, zona
riquíssima em madeiras de lei, em cereais, ótimos vinhos e outros produtos
agrícolas. Ali, no vasto mercado à margem do Bagradas, confluíam os
negociantes das províncias limítrofes. Os pastores de Aurés com seus rebanhos
de gado; os fabricantes de artigos de couro e de palha; os vendedores de
tâmaras do Saara, mármores de Simithu — tudo isto era exposto à venda no
empório de Tagaste.
A cidade natal de Agostinho não era talvez uma “cidade maravilhosa” segundo
o nosso modo de ver hodierno; mas possuía algumas vias públicas que faziam
jus ao título de avenidas ou alamedas. Nem lhe faltava uma esplêndida galeria
ou colunata. Na vizinha cidade de Tubursicum foram escavados restos de um
teatro, dum forum e dum “Gymnasium” (estádio para exercícios físicos) — e por
que não teria Tagaste possuído semelhantes melhoramentos?
* * *
Mais tarde, terminada mais ou menos a fase construtora do Eu, aparece nos
horizontes da vida um Tu. Começa o período social. Sente o jovem a sua solidão.
Sonha a donzela com um amigo que a compreenda e ampare. Desperta o amor,
faz-se mister garantir-lhe a subsistência e prosperidade — e prepondera então
na vida humana o elemento econômico. O homem, chefe de família, torna-se
cada vez mais negociante.
A maior parte das grandes conversões da história incide neste terceiro período.
* * *
Entretanto, luminosa lição teria sido para os mestres esse fracasso escolar do
pequeno Aurelius Augustinus, se eles tivessem tido o necessário critério para
compreender a lição do aluno — e a sua própria insensatez...
“Unum et unum duo, duo et duo quatuor — odiosa cantio mihi erat; et
dulcissimum spectaculum vanitatis equus ligneus plenus armatis, et Trojae
incendium, atque ipsius umbra Creusae — um mais um são dois, dois mais dois
são quatro — que odiosa cantilena me era isto! e que dulcíssimo espetáculo de
vaidade aquele cavalo de madeira, repleto de gente armada, aquele incêndio de
Tróia, e a própria sombra de Creusa”.
“Puer, coepi rogare te, Domine, auxilium et refugium meum... rogabam te parvus,
non parvo affectu, ne in schola vapularer — ainda menino comecei a rogar-te,
Senhor, auxílio e refúgio meu... rogava-te, em pequeno com não pequeno afeto,
para que não apanhasse na escola” (Conf. IX, 14).
Já nesse tempo, como se vê, era Agostinho mais platônico do que aristotélico.
Nenhum homem se torna o que não é. O que desde o início não está dentro do
homem, em germe e virtualmente, não se pode nele manifestar em evolução e
plenitude. Todo homem já é em potência o que mais tarde será em ato.
Se outro fora o destino, outro o ambiente de Agostinho, quem sabe se, em vez
dum luminar do Cristianismo, não teria dado um famoso caudilho de bandidos,
tipo Lampião, ou então um segundo Aníbal...
* * *
Assim atingiu Agostinho o 12.º ano de vida, com o espírito atulhado dum caos
de conhecimentos desconexos, e a alma repleta duma babel de conceitos morais
em conflito uns com os outros.
Foi ali que Agostinho cursou Ginásio, se assim se pode dizer. E foi também ali
que principiou, propriamente, a dolorosa odisséia desse arrojado e inquieto
bandeirante da verdade.
Bem diverso é o gênio de Agostinho; nunca deixou de ser poeta no meio das
suas especulações filosóficas e místicas; jamais conseguiu a inteligência, por
mais poderosa, asfixiar-lhe o coração. As suas obras estão repletas de imagens,
cenas, episódios colhidos na sorridente e nostálgica natureza da pátria. Neste
particular, parece-se o poeta-filósofo da Numídia mais com o divino Rabi da
Galiléia do que com o apóstolo-teólogo da Cilícia.
* * *
* * *
Assim foi que Agostinho deixou quase de parte as obras do imortal Homero e
seus colegas, e apaixonou-se literalmente pelo autor da Eneida, pelo cantor dos
amores infelizes da rainha Dido e das mirabolantes façanhas de Enéas.
Também, como podia um filho da África deixar de simpatizar com uma obra
clássica em que aparecia, aureolada de todos os fulgores do romantismo, a
lendária fundadora de Cartago, soberba metrópole do vasto continente?
O coração de Agostinho era como uma dessas gavinhas das trepadeiras que
tateiam no ar, incertas, ansiosas, à procura de algo a que se possam agarrar...
Vai esta nota característica por toda a vida e obras do grande africano, ainda
que, mais tarde, fossem as “Didos” — as do livro e as da vida real — substituídas
por outros alvos afetivos: Agostinho soube sempre compreender integralmente
e viver fulgurantemente o que intensamente amava.
* * *
* * *
Se este homem, mais tarde, fala em amor e gozo, fala “de cadeira”, fala de
ciência própria. E se ele, no auge da sua virilidade e no apogeu da sua vida
intelectual e espiritual, encontrou algo ainda mais digno de ser amado,
apaixonadamente procurado e ditosamente possuído do que as maiores
amabilidades da terra — então podemos ter plena fé em sua sinceridade, porque
deve ser realmente precioso o objeto do amor dum coração que tão
humanamente amou como talvez jamais homem algum soubesse amar.
CAPÍTULO 4
Férias em Tagaste
Por isso, teve Agostinho de voltar à casa paterna e fazer férias até que houvesse
recursos para poder iniciar os estudos superiores na metrópole do país.
Em todos os tempos tem havido homens que da religião fazem trampolim para
a satisfação das suas ambições e de interesses pessoais.
Agostinho aparecia em casa apenas para as refeições e de noite, altas horas da
noite — se é que aparecia. Sem trabalho, passava os dias e grande parte da
noite nas ruas, nas tabernas, em cavalgadas, jogos, reuniões de amigos e
amigas.
Uma vez dado o primeiro passo nesse plano inclinado, não era possível parar a
meio caminho. Pois é da íntima natureza de toda a paixão ser totalitária,
extremista, tirânica; não se contenta com meias-medidas — ou tudo, ou nada. E
principia então este conhecido e funesto círculo vicioso: o desejo leva ao gozo;
o gozo gera novo desejo, tanto mais intenso quanto mais voluptuoso. E assim é
que o desejo potencializa o gozo, e o gozo intensifica o desejo, numa progressão
indefinida, até levar o pobre escravo da carne a um completo descontrole de si
mesmo, a um descalabro moral, acabando num perigo social.
Todas as vezes que uma força ou faculdade da nossa natureza se afirma a favor
de uma “parte” e em detrimento do “todo”, degradamos a nós mesmos e
provocamos desordem e desequilíbrio na hierarquia cósmica do nosso Ser.
Um dia, foram Agostinho e seu pai tomar banho nas termas de Tagaste. Não se
inventara ainda esse precário palminho de civilização que se chama calção de
banho. Ao saírem da piscina, Patrício, bom pagão que era, correu, cheio de
alegria a contar à esposa que o filho deixara de ser menino, e já era homem. Já
se via o pai ditoso avô cercado dum bando gárrulo de esperançosos netinhos...
Mônica não era, nesse tempo, tão cristã que pusesse de parte considerações
subalternas e pensasse exclusivamente no “único necessário”, a salvação da
alma de seu Agostinho. Um casamento prematuro cortaria cerce a brilhante
carreira que ela augurava ao filho. Mônica era bastante mãe, e não era assaz
cristã para admitir semelhante hipótese. Agostinho tinha de ser, antes de tudo,
um homem célebre, um grande orador, uma glória para a família — e Deus
providenciaria que não se perdesse sua alma. Ela, a mãe, rezaria muito, choraria
muitíssimo, para que o filho querido, um dia, abraçasse o Cristianismo e, depois
de alcançada a sonhada celebridade, seguisse os ditames do divino Mestre.
Era também esta a opinião de Patrício que, certamente, não deixou de influir no
espírito da esposa.
Mônica, insatisfeita no seu amor de mulher, ama duplamente como mãe, e, por
uma misteriosa afinidade psíquica, centralizou todo o seu amor na pessoa do
filho mais inteligente e afetivo.
Não é necessário ser freudista para compreender uma verdade tão antiga como
a própria humanidade.
“Carthago Veneris”
Aprova em gênero, número e caso tudo quanto Afonso Celso escreveu, tão
patriótica e hiperbolicamente, nas páginas de seu livro “Por que me ufano do
meu país”. Estas, mais ou menos, devem ter sido as impressões que se
apoderaram da alma do jovem Agostinho quando, aos 16 ou 17 anos, fez a sua
primeira visita a Cartago.
Cartago foi sempre um dos grandes amores do célebre númida, gentio e cristão.
Cartago era, nesse tempo, uma das cinco grandes metrópoles do Império
Romano: Roma, Constantinopla, Antioquia, Alexandria e Cartago. Das cidades
marítimas era de todas a mais importante. Se o gigantesco empório de Cartago
deixasse de exportar cereais para a Itália — adeus, Roma! Morreria de fome a
famosa “urbs”.
* * *
Para sua alma, porém, não se encontrou nenhum mecenas. Nem o jovem queria
saber de tutor ou mentor. Queria viver, à vontade, viver em toda a plenitude, viver
sem entrave nem freio de espécie alguma.
Grande era a sua fome de saber — maior ainda a sua sede de amar.
O que ele gozara nos últimos anos era primitivo sensualismo. Não era
propriamente amor.
Para amar, deve-se ser mais homem que animal. O animal não ama.
“Amar, e ser amado” — diz ele em sua autobiografia, isto lhe parecia o supremo
ideal da vida, a razão-de-ser da existência.
Agostinho não conhecia ainda o amor, mas já estava, como diz “enamorado do
amor”.
Não há poeta gentio que com tanta paixão tenha cantado o delírio do amor, esse
martírio dulcíssimo do coração.
Não é essa suavidade langorosa e anêmica de certos poetas dos nossos dias.
Agostinho não ama apenas com o coração, com o espírito, com os nervos; ama
com todo o seu ser, ama com toda a plenitude da sua personalidade; ama com
todas as potências do ego, com todas as energias da virilidade, com todas as
tempestades da juventude — e com todas as profundezas de sua alma
essencialmente metafísica.
Agostinho crê que o homem nasceu para amar. Crê que o homem que não ama
errou o seu destino.
Tudo quanto se via, ouvia e sentia em Cartago era de molde a inebriar o coração
e diluir com sutil veneno a vontade e o caráter do homem que não fosse
precisamente de bronze e granito.
Por outro lado, não faltavam à metrópole africana notáveis padrões de cultura.
Orgulhavam-se os poderosos senhores de Roma de terem feito da sua antiga
rival uma das mais belas e confortáveis cidades do mundo.
Os usos e costumes, como se vê, não mudaram muito, do 4.º ao 20.º século.
Que partido tomaria Agostinho, se cada uma dessas facções afirmava e provava
ser a única e verdadeira igreja de Jesus Cristo...
Para cúmulo da confusão, surgiu no meio desse caos religioso mais uma seita
cristã, sob a bandeira de Manes (ou Mani), religião denominada Maniqueísmo.
Deliciosa Amargura
Quão diferente não viria a ser, mais tarde, a impressão que lhe causaria o
falecimento da mãe!
Mônica era bastante “homem” para não permitir sofresse prejuízo a formação de
seu filho querido. Desde logo, iniciou um sistema de intensa atividade e estreita
economia para conseguir os recursos necessários à decente manutenção da
família e para facultar ao estudante a permanência na capital.
* * *
* * *
Agostinho queria ser amado com infinita veemência, com paixão, com delírio,
com um potencial que ultrapassasse todas as raias do possível e atingisse os
mais longínquos horizontes que idear pudesse a imaginação no vasto círculo das
suas divagações.
Agostinho queria gozar, mas gozar como nunca homem algum gozara.
A dor engendrada pelo amor age então como um tóxico, creando mundos
fantásticos, que eclipsam todas as maravilhas do universo real...
* * *
Quem era a mãe de Adeodatus? essa célebre anônima que tão importante papel
desempenhou na vida pagã do futuro luminar do Cristianismo?
Alguma graciosa estudantina de Cartago? Uma daquelas bronzeadas colegas
de Agostinho? Ou então uma bela patrícia romana? Ou, quiçá, uma humilde e
meiga garota do bairro dos operários? Uma dessas meninas pobres, de olhos
dolentes e sonhadores, que trazem na alma imensa riqueza afetiva, que ninguém
parece querer?...
Agostinho frisa que, apesar da sua vida desbragada não foi propriamente um
vulgar frequentador de bordel, mas que guardou à sua única amante a fidelidade
do tálamo — tori fidem. Nasceu um filho contra a vontade, mas, uma vez nascido,
conquistou o amor do pai — “pactum libidinosi, amoris, ubi etiam contra votum
nascitur, quamvis, jam nata, cogat se diligi”.
Entretanto, não era possível que um espírito como o seu encontrasse sossego e
quietação definitiva em tão suave idílio e em círculo tão acanhado.
O espírito medíocre e vulgar repousa, satisfeito, na posse daquilo que julga ser
a verdade integral e definitiva.
* * *
Agostinho leu este diálogo, que fazia parte do programa — quando subitamente
dá com uma frase que fuzila como relâmpago pela noite de sua alma. No fim de
uma longa exposição sobre a natureza da verdadeira beatitude dizia o filósofo
romano:
“Se é verdade que possuímos uma alma imortal e divina, como afirmam os
grandes e célebres pensadores da antiguidade, é de supor que tanto menos seja
ela contaminada pelas humanas fraquezas e paixões quanto mais se mantenha
nos trilhos da razão, do amor à verdade e do conhecimento. E tanto mais
facilmente subirá a alma ao céu”...
Não o dissera também Aristóteles? Não falara Platão nesse mundo invisível? E
não morrera Sócrates, sereno e calmo, porque entrara nesse luminoso universo
do espírito?...
E ninguém abre mão do belo senão para empolgar algo mais belo...
Mais tarde, após a sua conversão, escreve o autor das “Confessiones”, que não
o satisfizera “Hortensius” porque em suas páginas não encontrou alusão alguma
ao Cristo. Esta frase, como observa judiciosamente Bertrand, é antes um floreio
retórico e estético do que a expressão da realidade. Agostinho nunca deixou de
ser literato e orador. Escreveu o cristão e o bispo aos 50 anos o que deveria ter
sentido o estudante pagão de Cartago aos 19, mas que não o sentiu,
provavelmente. Pois nesse tempo não tinha ainda Agostinho pensado e sofrido
bastante para saber que não há perfeita sabedoria fora do Evangelho, nem
verdadeira felicidade fora do Cristo.
O que sucede com o mal acontece da mesma forma com o bem, graças a Deus.
Quanto maior for o número dos atos bons e quanto mais profundamente vividos
forem esses atos, tanto mais poderoso se tornará o invisível exército
concentrado na zona inconsciente da alma, lançando, no momento crítico, o seu
contingente para o campo de batalha do consciente.
“Encontrei um livro — escreve mais tarde — que não só era impenetrável para o
homem orgulhoso, mas que também ao espírito simples só dava meia revelação;
um livro cuja entrada estreita só se alarga gradualmente e termina em um cume
envolto em mistérios. Naquele tempo não chegara eu ainda ao ponto de curvar
a cabeça para poder entrar nesse santuário”.
Nem Cícero nem Cristo podiam satisfazer o espírito irrequieto de Agostinho. Ele
não era ainda suficientemente cristão para compreender o Evangelho, nem era
já bastante pagão para encontrar sossego na filosofia do “Hortensius”.
Com efeito, quem pecava no pecador era Ahriman, o deus do mal; o único
responsável era esse mau espírito.
Procuravam os adeptos de Manes eliminar dos livros sacros tudo quanto lhes
parecesse contraditório ou indigno de Deus, apresentando assim uma Bíblia
racionalizada, como diziam. Acabaram por rejeitar o Antigo Testamento quase
todo, e “expurgaram” o Novo Testamento das pretensas interpolações judaicas,
a fim de adaptar a sagrada Escritura aos fins peculiares da sua seita.
Neste ambiente viveu Agostinho largos anos. Para esse credo angariou
numerosos sequazes.
CAPÍTULO 9
Novamente em Tagaste.
O Profano Gozador
Por que esta súbita mudança de idéias? Por que esta renúncia aos altos projetos,
para se reduzir à condição de professor de aldeia?
O espírito tacanho, não raro, fossiliza-se nas suas idéias, que, geralmente, nem
são suas — ao passo que o espírito largo evolve, progride, abandona opiniões
antigas e menos exatas por outras, mais prováveis.
O homem pensante considera-se, nesta vida, incessante viajor; por mais que
caminhe e alcance, não se considera jamais chegado ao termo final da jornada,
nem possuidor integral do ideal que demanda.
Aos vinte anos, em Tagaste, não era ele, certamente, um místico da Divindade;
mas já sentia em si, vaga e obscuramente, a verdade das palavras que, mais
tarde, lançou ao papel: “Fizeste-nos para ti, Senhor e inquieto está o nosso
coração até que encontre quietação em ti”.
Nessa alma de pagão profano já dormitava uma alma de místico — mas ele não
o sabia...
Terno e doloroso ao mesmo tempo foi o reencontro de Agostinho com sua mãe.
Depois da morte de Patrício, mais ainda concentrara Mônica no caçula todo o
ardor da sua afeição, misto de insatisfação de mulher e amor de mãe, embora
desamasse o pagão, o herege, o maniqueu... Nesse doloroso conflito se debatia
a alma de Mônica...
De ano a ano, mais espiritualizava ela a sua vida cristã. Duas vezes por dia
visitava a basílica de Tagaste; de manhã, à hora da oração, e à tarde, para
assistir à pregação.
Insistia com o filho que abandonasse suas heresias; mas eram em pura perda
os seus esforços. Agostinho, no seu intelectualismo, sentia-se muito superior à
fé irracional dos bons cristãos e das piedosas mulheres do seu tempo. Amava
sua mãe, mas não estava disposto a imolar na ara desse amor a sua inteligência
e as suas convicções pessoais.
O novel maniqueu aproveitava todos os ensejos para fazer propaganda das suas
idéias. Levou numerosos amigos e conterrâneos para a seita que abraçara. Até
em praça pública discutia com seus adversários, e, graças à sua dialética, rebatia
com facilidade os argumentos em contrário, roubando ao Cristianismo grande
número de adeptos, precisamente dos mais cultos e influentes da sua cidade
natal.
A tal ponto chegaram as coisas que Mônica proibiu o filho de entrar em sua casa.
Com isto iniciou o futuro asceta e místico um teor de vida mundana, no meio de
requintado luxo, por entre jogos, banquetes, caçadas e indolentes passa-
tempos. A vastíssima propriedade de Romanianus era uma espécie de fazenda,
ou parque, com termas e piscinas de natação, com lindos repuxos, com bosques
e jardins de apurado gosto. À sombra duma pérgola de perfumosas trepadeiras,
encravada num dos pitorescos ângulos do pomar, sorria o “recanto dos filósofos”,
onde a dona da casa matava o tempo reclinada em fofo divã, lendo obras de
poetas e pensadores. Nesse convidativo recesso encontravam-se também
amiúde Agostinho e Romanianus, discutindo as opiniões dos filósofos da época.
Correria perigo de ser impelida pela força centrífuga das grandiosas futilidades
da terra, fugir pela tangente da sua órbita e desaparecer no tenebroso espaço
do nihilismo e do nada absoluto.
Mas não é possível essa fuga tangencial da alma, porque a imanente gravitação
da sua própria natureza espiritual lhe veda essa deserção definitiva.
A maior das infelicidades é não sentir esta infelicidade. O homem que vive a
impugnar o teísmo e a procurar argumentos para consolidar o seu chamado
“ateísmo” dá provas de que não está convencido do que desejaria ter
abandonado. Mil vezes pior quando o afirma e que sente a atração do centro que
abandonou “ateu” prescinde de qualquer apologia do seu sistema e entra na
zona mortífera duma grande calmaria espiritual, porque nesse ambiente corre
perigo de não mais sentir a feliz infelicidade dos seus tormentos metafísicos.
Mas parece que esta desgraça das desgraças só pode caber a um espírito
obtuso e medíocre, e não a uma alma de elevada potencialidade.
Pelo rumo que as coisas tomavam, convenceu-se Mônica de que seu dileto
Agostinho se alheara definitivamente do Cristianismo, religião em que ela via a
verdade e única possibilidade de salvação.
Mas, com a morte da fé cristã, na alma do filho não queria morrer na alma de
Mônica o amor de mãe. Pelo contrário, em virtude não se sabe de que estranho
paradoxo, quanto mais se distanciava Agostinho do espírito do Evangelho, tanto
mais se aproximava Mônica do coração do filho. Banhava com o amargor das
suas lágrimas um cadáver inerte... Embalsamava com a perfumosa essência das
suas preces um esqueleto de fé cristã...
Esperançada com esta mensagem, procurou revocar para casa o filho. O herege,
de fato, voltou. Voltou corporalmente, mas o seu espírito continuava longe, no
deserto da heresia de Manes. Procurou arrebatar à mãe a “ilusória felicidade”
que lhe dera aquele sonho, dizendo:
“Se nós dois, a julgar por teu sonho, estaremos um dia no mesmo plano, quer
dizer que tu abraçarás como eu o maniqueísmo”.
“De forma alguma! — protestou Mônica — não me disse a aparição que eu
estaria onde tu estás, mas que tu estarás onde eu estou”.
* * *
Em sua extrema aflição, foi Mônica procurar um bispo muito versado na Bíblia e
instou com ele que convidasse Agostinho para uma discussão pública, a fim de
o convencer dos seus erros. Negou-se o prelado a aceder ao pedido.
Mônica, porém, não se rendeu. Continuou a suplicar que, ao menos, falasse com
seu filho. Ao que o bispo lhe respondeu, um tanto irritado: “Vá, senhora, e
continue a viver como de costume. Não é possível que se perca um filho de
tantas lágrimas”. E fez ver à suplicante que um homem de tão penetrante
inteligência como Agostinho não professaria por muito tempo doutrina tão
incoerente como o maniqueísmo, doutrina que ele conhecia a fundo, porque
também fora um dia discípulo de Manes.
Tanto mais se afeiçoou a alguns amigos que comungavam nas suas idéias.
Quando Agostinho tornou a visitar o amigo, que deixara sem sentidos, e este lhe
falava, calma e reverentemente, do batismo, zombou o maniqueu de semelhante
“fraqueza” e convidou o convalescente para uma discussão filosófico-religiosa.
Este, porém, dirigiu-lhe um olhar doloroso e sério e declarou-lhe com firmeza:
“Se quiseres ser meu amigo, deixa-te de semelhantes falas”.
“Não tenho mais nada no mundo senão a minha dor — dizia — e esta dor me é
querida e cara”.
A breve trecho, resolveu Agostinho voltar para Cartago a fim de abrir um curso
de Retórica. Possivelmente, recebera também recado da sua amante,
comunicando-lhe o próximo nascimento de seu herdeiro.
Partiu, por mais que a tal passo se opusesse Romanianus, que se queria servir
do inteligente jovem como fogo de artifício para iluminar a sua cidade natal e o
município que administrava. Entretanto, sugestionado por Agostinho, acabou por
ceder, e, ainda por cima, pagou mais uma vez as despesas de viagem ao
simpático protegido.
CAPÍTULO 12
Nove meses passa o ser humano em formação no útero materno, para poder,
finalmente, contemplar a luz da vida — e nove anos levaria ainda essa “alma
naturalmente cristã” até surgir definitivamente do paganismo do “homem velho”
para a vida da “nova creatura em Cristo”.
Nunca talvez existisse um homem que, no meio dos seus pecados, se achasse
mais perto de Deus do que Agostinho.
Espírito agrilhoado pelo erro, alma escravizada pela carne, sentia-se esse “santo
pecador” tão infeliz, tão rasgado de desarmonias, tão enojado de si mesmo, que
o silencioso clamor do seu ser era um brado imenso da humana miséria pela
divina Misericórdia.
Quanto mais consciente nos for a nossa vacuidade, tanto mais perto estamos da
plenitude de Deus.
“Onde estava eu nesse tempo quando te procurava. Senhor — pergunta ele mais
tarde; e responde com estas palavras tão suas e tão de milhares de colegas seus
de todos os séculos: — Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Eu não
sabia encontrar a mim mesmo — e como seria então possível encontrar-te a ti?...
Noverim me ut noverim te. Conheça eu a mim, para que conheça a ti!”
* * *
Em Cartago foi Agostinho saudado com júbilo pela sua quase-esposa e talvez
pelo vagido de seu filhinho. Ingrata surpresa, essa, do aparecimento do
nenezinho. Agostinho não desejava, nesse tempo, ser pai. Mas, quando tomou
nos braços o pequenino ser plasmado do seu sangue, sentiu o delicioso orgulho
de quem contempla o próprio Eu refletido num pequeno Tu. Confessou
corajosamente a sua paternidade. Impôs ao recém-nascido o nome de
“Adeodatus” — dado por Deus. O “filho do pecado”, fruto da sua incontinência,
nascido daquela que não era sua esposa, e esse filho é um “presente de Deus”
— quanta ironia e quanta verdade neste nome!
Durante longos anos foi Agostinho fiel a essa jovem cartaginesa, sinal de que
esse volúvel nômade da inteligência e do coração a amava realmente, fosse por
causa de sua beleza, fosse pela bondade de seu coração, fosse por esses e
outros motivos. Não lhe vedava a lei repudiar a mulher e ficar com o filho. Não o
fez enquanto um novo teor de vida não o impelisse a esse extremo.
O que sabemos é que nem mais tarde, em Milão, quando Agostinho procurava
regularizar a sua vida, consentiu Mônica nesse casamento. Não faltou quem
visse na amante de Agostinho uma jovem de condição inferior, talvez sem cultura
de espírito, mas que cativou o coração do ardente filósofo em virtude daquelas
“razões de que a razão nada sabe”.
* * *
Entretanto, esses nove anos em Cartago foram também anos de intenso labor.
Agostinho, por mais afetivo, não deixou nunca de ser o sensato intelectualista e
o homem do bom-senso.
Apenas Mônica resistiu, invicta, a essa silenciosa ofensiva do filho, graças, sem
dúvida, a uma poderosa virtude do alto.
Não fossem esses nove anos de intensos labores intelectuais, inexplicável nos
seria a cultura enciclopédica que Agostinho revela nas páginas da “Civitas Dei”,
a mais vasta e profunda obra que dele possuímos. Que saber possuía, afinal,
um rhétor formado pela academia de Cartago? Conhecia escritores e poetas
gregos e latinos; sabia revestir de luxuosa roupagem as suas idéias — mas
seriam essas belas exterioridades assaz resistentes para contrabalançar a
potência demolidora dos séculos? Todo homem chegado à maturidade espiritual
sabe de experiência própria que o que o impressiona, empolga e convence não
são, em última análise, as idéias, a não ser que sejam a cristalização da própria
vida humana. Pode o homem vulgar extasiar-se ante uma deslumbrante
fraseologia, mas o homem formado pela vida e, sobretudo pelo sofrimento,
procura antes de tudo a alma da idéia, e só admira o invólucro literário na medida
que atue como veículo ou prisma para apresentar o homem em a sua natural
beleza e plenitude.
Foi nesse tempo que Agostinho se apaixonou pela filosofia neo-platônica. E ficou
fiel a esse amor através da sua vida cristã, até ao derradeiro suspiro.
Falar em filosofia aos inscientes e aos profanos gozadores é correr risco de ser
incompreendido. Quem nunca saboreou a deliciosa volúpia do saber intuitivo,
não passa dum analfabeto ou dum aluno de escola primária, em face da
verdadeira sapiência. Não sabemos aquilo cujos efeitos momentâneos
aparecem à superfície da nossa experiência quotidiana. Sabemos somente
aquilo que saboreamos, vivemos, sofremos — e somos.
Quem uma vez se apaixonou pelo saber, chega, não raro, a sacrificar por ele o
próprio bem-estar físico. O filósofo, vive muitas vezes fora do mundo, alheio às
palpáveis realidades da vida, absorto na própria realidade; é, geralmente
péssimo homem da sociedade, verdadeira negação para salões elegantes e
reuniões sociais. Não somente descura o seu trajo e aspecto externo, mas é
também deplorável “cavalheiro” e conversador. Não sabe dizer ocas banalidades
sobre o estado do tempo, como exigem as visitas e relações sociais. Não é capaz
de falar uma ou duas horas sem dizer nada. Não o interessam as intrigas
políticas. Não sabe servir blandiciosas mentiras às damas e aos amigos,
mentiras sem as quais não subsiste a sociedade — numa palavra, o verdadeiro
pensador e filósofo é, geralmente, um ser que vive a sua vida própria e, por isso
mesmo, é um corpo estranho no meio daqueles que vivem apenas a vida alheia.
Existe uma obra de Aristóteles, intitulada “As dez categorias”, em que o estagirita
remonta a tão vertiginosas alturas e usa duma terminologia tão abstrata que
poucos dos seus admiradores conseguem penetrar nessa floresta metafísica, e
muitos daqueles que cuidam ter atingido o pensamento do filósofo entenderam
coisa bem diversa do que ele queria dizer.
* * *
* * *
Nem tão pouco valeu Nebridius, amigo de Agostinho, dissuadi-lo de dar crédito
à pretensa ciência desses aventureiros astronômicos. Andava a alma do jovem
filósofo em adiantado estado de “gestação espiritual”. Já não a satisfaziam os
argumentos intelectuais. Tateava nas trevas, em demanda de algo sobrenatural,
algo celeste, algo divino; e, como ainda não lhe despontara a serena luz solar do
Cristo, refugiava-se esse espírito heliotrópico para onde julgava entressentir o
bruxulear duma luz que não fosse deste mundo.
* * *
No meio dessas especulações filosóficas e metafísicas, ocultistas e astrológicas,
ecoava a voz suave da mulher que ele amava, tremulava o choro duma criança
que era sangue do seu sangue — e Agostinho se lembrava de que não podia
passar os seus dias entre sonhos e lucubrações de estéreis teorias. Tinha de
contar com a prosaica realidade — tinha de ganhar dinheiro...
Vindicianus teve pena do pobre rhétor, que estava a pique de sacrificar a sua
existência física — sua e dos seus — pela metafísica das suas ideologias
espiritualistas. Acabava o abalizado médico de ser nomeado procônsul do norte
da África. Sob os auspícios do poderoso amigo resolveu Agostinho escrever
algumas peças para o teatro de Cartago. Quando se considera o nível em que
se encontrava o teatro da metrópole e o gosto depravado do público, é realmente
para muita estranheza que a fome espiritual do filho de Mônica se degradasse
até esse extremo.
Vivia, nesse tempo, na capital do Império Romano um famoso filósofo sírio, por
nome Hierius. Não tardou que a fama desse homem ultrapassasse as fronteiras
da Europa e repercutisse nas plagas da África. Os que se tinham na conta de
intelectuais acompanhavam com admiração a trajetória do novo astro.
Por esse mesmo tempo escreveu Agostinho a sua primeira obra filosófico-
estética, intitulada: “De pulchro et apto” (Do belo e conveniente). E teve a idéia
de a dedicar ao grande sírio. Ver o seu nome no mesmo livro com o do famoso
orador, saber-se nomeado no mesmo fôlego com Hierius, era então para
Agostinho motivo de satisfação e honra. Assim, calculava ele, teria esperança
de imortalizar o seu nome com o do grande sábio — assim como o obscuro
artífice gosta de perpetuar o seu nome no cantinho do monumento que tem de
erguer em praça pública a alguma celebridade. Quis, porém, a ironia da sorte
que se invertessem os papéis, que o nome de Hierius passasse à posteridade
graças ao livro que lhe dedicou o seu obscuro admirador africano.
Não chegou até nós essa primeira produção literária de Agostinho. Dela
sabemos apenas através da auto-biografia “Confessiones”.
“Num amamus aliquid nisi pulchrum?” — pergunta ele a seus amigos — será que
amamos algo que não seja belo?
Na “Civitas Dei”, quando fala da ressurreição dos corpos, acha que o corpo
humano deve ressurgir para uma vida nova e com todos os membros
devidamente purificados, “porque esses membros são belos”, e o que é belo não
pode perecer para sempre. Para Agostinho, o “belo” é tão imortal como o
“verdadeiro”.
“Ubi venit, expertus sum hominem gratum et jucundum verbis, et ea ipsa quae
alii solebant dicere, multo suavius garrentem. Sed quid ad mean sitim
pretiosiorum poculorum decentissimus ministrator? Jam rebus talibus satiatae
erant aures meae; nec ideo mihi meliora videbantur quia melius dicebantur, nec
ideo vera quia diserta; nec ideo sapiens anima quia vultus congruus et decorum
eloquium — quando (Fausto) chegou, tive diante de mim um homem de presença
agradável e de palavras jucundas, que sabia exprimir com torneios muito mais
suaves as mesmas coisas que outros costumavam dizer. Mas que adiantava
para saciar a minha sede o fato de ser o servente da taça um homem simpático?
Das coisas que ele proferia já estavam fartos os meus ouvidos; nem por isso me
pareciam melhores porque eram ditas de modo mais elegante; nem por isso
verdadeiras porque eloquentes; nem por isso me parecia mais sábio o espírito
porque o semblante era atraente e a frase bem cuidada”.
Indica Agostinho como um dos motivos desse passo a selvageria dos seus
ouvintes cartagineses, que obrigavam o professor a um rigor e uma energia de
que este não dispunha. Em Roma, esperava encontrar ambiente melhor, mais
humano, mais propício para sua futura carreira. Mulher e filho ficariam na África
até que ele encontrasse posição garantida.
Quando Mônica soube do plano do filho, viu por momentos desmoronar todas as
esperanças da sua vida. Que seria dele, de sua alma, se se subtraísse ao influxo
da fé? Quem o revocaria dos seus erros? Quem o conduziria ao seio da igreja
do Cristo, naquela Babilônia de Roma, foco de todas as aberrações espirituais
da época?...
Foi a Cartago. Cingiu nos braços o seu filho pródigo. Conjurou-o que não fosse
a Roma, ou, pelo menos, a levasse em sua companhia.
No porto de Cartago estava surto um navio com destino à Itália. Esperava pelo
primeiro vento propício para içar velas. Mas a calmaria era total. A atmosfera
pesada e úmida.
Agostinho dirigiu-se ao porto, seguido de sua mãe. Enganou-a dizendo que ia
apenas a bordo para ver um amigo que partia.
Caiu a noite. Mônica derramou sobre o altar do santo a angústia do seu coração.
Depois de muito orar e muito chorar, sentou-se numa das galerias que
circundavam o templo, no meio de outras pessoas que lá passavam a noite.
Com a alma dilacerada de desarmonias, réu de enganar sua mãe, que tanto o
amava e tanto por ele sofria — sentia Agostinho náusea de si mesmo, e quase
desejava que as ondas do Mediterrâneo o tragassem de vez com todo esse
inferno da sua miséria e da sua infelicidade...
Tinha nojo de si, nojo da sua vida, nojo do passado e do presente — e não podia
divorciar-se desse tormento da consciência culpada...
No Labirinto Romano —
Trabalhos — Desânimo
E, logo no início, foi colhido pela febre, que era então muito comum nesses
meses úmidos de outono.
Mas quando, após uma dessas noites horríveis passadas ao clarão dum
candieiro, ou duma caçarola cheia de brasas, Agostinho descia da sua “torre de
babel” e demandava as zonas residenciais de Roma, parava, extasiado, ante
uma montanha de neve, ante o palácio marmóreo de algum magnata da
metrópole. Logo ao saltar no porto de Óstia, ficara Agostinho deslumbrado pela
magnificência do Septizonium, de Septimus Severus, gigantesco complexo de
castelos e colunatas, que rematava a famosa via Appia. No coração da cidade
se erguiam, em majestosas colinas, as obras ciclópicas do Capitólio e do
Palatino, e, mais além, o imenso anel do Coliseu.
A urbis que Agostinho viu era a Roma da decadência, crepúsculo do seu triste
ocaso, prelúdio da sua próxima destruição pelos povos nórdicos. Afora um pugilo
de sinceros intelectuais e dos adeptos do Nazareno, era Roma uma podridão
imensa. Não se cogitava senão em comer, beber e divertir-se. Os “banquetes de
Luculo” estavam na ordem do dia, entre os sibaritas dos palácios. Agostinho
conhecia o desbragado sensualismo de Cartago; sabia que o africano, em geral,
não primava
1. Quem visitou certos recintos das ruínas de Pompéia sabe o que significa esta palavra.
Nas horas suaves do crepúsculo, quando o sol submergia nas águas azuis do
Mediterrâneo, fugia a alma do jovem númida, qual ave de arribação, para as
plagas sulinas; contemplava as águas mornas do golfo de Túnis; repousava no
cume do monte Byrsa e banhava-se na atmosfera cariciosa que envolvia a
“princesa do sul”, a cidade dos amores de Dido e Enéias... Em fantástica
fosforescência reluziam ao luar as águas das enseadas, embaladas em verdes
pomares e brancos rochedos...
E aquela outra mulher, de olhos sempre úmidos, mulher que ele deixara
dormente no porto de Cartago?...
CAPÍTULO 16
Acabou Agostinho por se convencer de que não podia viver da profissão que
escolhera. A filosofia se revelava péssima “vaca leiteira”, dolorosamente ingrata
e estéril para seus servidores.
Ocorreu então a Agostinho uma idéia, que é também tábua salvadora para
milhares de estudantes de outras terras; voltou os olhos para as alturas do
funcionalismo público. Pensou em ocupar um emprego em alguma repartição do
governo. Assim estaria livre das incertezas de cada dia e das perfídias do
público.
Foi assim que, em virtude duma estranha ironia da sorte foi Agostinho, o pagão
e herege, enviado, por obra e mercê de hereges e gentios, à cidade de Milão
onde o filho de Mônica iniciou, mais tarde, a sua fulgurante trajetória de terrível
adversário de todas as doutrinas que ele mesmo professara.
Nesta cidade, esperava o novel funcionário público lançar os alicerces para uma
sólida posição econômica e social, e realizar, finalmente, o seu velho sonho de
glórias. Chamaria sua querida cartaginesa e seu filhinho Adeodatus, e gozaria
em cheio a vida, sem deixar de investigar a verdade.
Não contava Agostinho com um poder maior que todos os que figuravam nos
seus cálculos — e por isso falharam todos os seus planos.
Agostinho e Ambrósio
Esta vida nova podia ter começado desde já, em Milão — mas não começou...
A corte imperial, que residia na capital da Lombardia, era católica, mas não
ocultava os seus amores pelo arianismo.
Era bispo católico de Milão o hábil estadista e abalizado orador, Ambrósio, gênio
diametralmente oposto ao de Agostinho, e que, no entanto, devia exercer
influência decisiva sobre o destino ulterior do grande africano.
Agostinho, assim que chegou a Milão, ouviu da fama desse orador, no qual via
um filósofo — também um colega. Sem demora resolveu fazer uma visita a
Ambrósio, na certeza de que ia ser por ele recebido como em Cartago o fora pelo
célebre Vindicianus. Entreter-se-ia com o grande pensador sobre os
angustiantes problemas filosóficos e religiosos que lhe dilaceravam o espírito.
Não ignorava, certamente, Ambrósio que o seu visitante viera com cartas de
recomendação de Symmachus, prefeito pagão de Roma. Sabia que Agostinho
vinha com a intenção de contrabalançar a excessiva influência do catolicismo
milanês na vida social.
Ambrósio, é certo, estava longe de se guiar por sentimentos hostis. Era o seu
gênio. Habituado ao expediente administrativo, sobrecarregado de trabalhos
materiais e espirituais, mal interrompia a leitura espiritual quando assomava na
sala de audiências, sempre aberta a todos, a figura franzina do professor de
filosofia recém-chegado da África.
Agostinho descreve uma dessas visitas, em que ele se quedava largo tempo,
sentado quase defronte ao “santo bispo”, a tal ponto assediado de visitas ou
abismado no estudo da Bíblia que parecia prescindir completamente da
presença do visitante. Queixa-se Agostinho de que Ambrósio não lhe
compreendesse os ardores da carne e do espírito — “nec ille sciebat aestus
meos” — e que não lhe fosse dado ensejo para uma entrevista em regra — “non
quaerere ab eo poteram quod volebam, sicut volebam, secludentibus me ab ejus
aure atque ore catervis negotiosorum hominum, quorum infirmitatibus serviebat”.
Era intensa em Milão a vida religiosa. Não menor, porém, era a ambição e
perfídia dos poderosos, que se serviam da religião como trampolim para granjear
as boas graças do imperador e galgar o fastígio do poder.
Por outro lado, acabara num como cepticismo desolador e não mais esperava
encontrar em parte alguma a verdade, nem no catolicismo, que lhe parecia o
culto da escravidão espiritual e a destruição da personalidade.
As pregações de Ambrósio interessavam a Agostinho não tanto pela sedução da
frase, que era bem mais sóbria que a do rhétor, mas antes porque lhe
descortinavam novos horizontes e prometiam solucionar algumas das suas
dúvidas mais cruciantes.
No tocante à Bíblia, teve Agostinho grata surpresa nos sermões do grande bispo.
Ambrósio era amigo da interpretação simbólica e alegórica de muitas passagens
do texto sacro que, tomadas ao pé da letra, repugnavam ao bom senso e, não
raro, à dignidade da causa que advogavam. O Antigo Testamento, que Agostinho
abandonara como livro escabroso, repleto de fábulas pueris e até de
imoralidades, começou a parecer-lhe, à luz dessa inteligente exegese, menos
absurdo e mais aceitável. Bem quisera pedir ao famoso orador esclarecimentos
sobre uma série de tópicos obscuros e, aparentemente, inconciliáveis com a
dignidade do homem; mas as decepções das visitas anteriores o haviam tornado
mais prudente e reservado.
No meio dos sinceros elogios que Agostinho tece ao prelado, encontramos estas
palavras que são como que o soluço de um coração que ansiava pela luz divina
e se via condenado às trevas:
“Nesse tempo, teria eu sido discípulo inteligente e dócil como nenhum outro, se
alguém se tivesse dado ao trabalho de me instruir”...
Para que correr atrás de belas miragens, quando elas fogem na medida que
delas se aproxima o ludibriado viajor?
Mandou vir de Cartago a sua amada e seu filhinho. Começou a viver como os
demais cidadãos, honestamente medíocres, satisfeito com as pequeninas gotas
de felicidade, ou quase-felicidade, de cada dia, já que não lhe era dado atingir o
oceano imenso da felicidade com que sonhara nos tempos juvenis de Madaura.
Neste semi-consciente sonambulismo do espírito cicatrizariam talvez as
dolorosas chagas de sua mente.
Agostinho alugou uma confortável vivenda no meio dum jardim. Estava
realizando o seu sonho dourado de tempos antigos: morar numa casinha
pitoresca, cercada de árvores e canteiros em flor, e levar horas inteiras a filosofar
em coisas sublimes — e isto, por cúmulo da sorte, na terra de Virgílio, seu poeta
predileto, que tão magistralmente descrevera os amores de Dido e Enéas...
Por um triz se teria perdido, nas areias fofas duma vida pacatamente doméstica,
essa impetuosa torrente que viera das montanhas de Deus para revolucionar as
almas.
Não tardou a aparecer também Mônica. Parece que nem censurou ao filho a
perfídia e crueldade que este cometera, naquela noite, no porto de Cartago.
Em Milão, apressou-se a procurar o santo bispo. Mas não teve mais sorte do que
Agostinho. Ambrósio via em Mônica uma alma profundamente piedosa, mas
duma piedade um tanto esquisita, recordando usanças do paganismo africano.
Segundo o costume dos cristãos de Cartago, levava a boa mulher ao cemitério
de Milão e colocava sobre os túmulos dos mártires cestinhos de pão e de carne.
Certo dia, estava a entrar com os seus cestinhos na basílica, quando o porteiro
a interpelou e lhe proibiu categoricamente essa praxe, porque o prelado não
permitia usos e costumes inspirados na idolatria pagã. Aterrada, voltou Mônica
para casa com os seus cestinhos, e abandonou essa forma de piedade.
Quando, um dia, Ambrósio encontrou Agostinho, felicitou-o pela santidade de
sua mãe. Em vão esperou o professor de Retórica uma palavrinha de louvor para
sua própria pessoa... Ambrósio era um enigma ambulante...
* * *
Neste céu azul de bucólica tranquilidade pairava uma nuvem sinistra — aquela
“mulher anônima”, que não era a esposa de Agostinho, porém a mãe de seu
filho...
Parece que Agostinho deu carta branca à mãe para agir e assistiu como mero
comparsa a essas manobras, como se não fosse ele o centro de tudo aquilo.
Trocaram-se as costumadas promessas, de parte a parte — tudo parecia sair a
contento de Mônica. Agostinho era noivo de uma menina honesta e bem dotada.
Entra então em cena a “mulher anônima”. Como podia Agostinho repudiar a mãe
de seu filho, que por espaço de um decênio lhe fora fiel companheira e dedicada
amiga? Como podia obrigá-la a abandonar Adeodatus e voltar, solitária, para sua
pátria africana?...
Este “onde estivera unido o meu coração” (cor ubi adhaerebat), parece indicar
que já nesse tempo não era tão vivo o amor que unia o coração de Agostinho ao
daquela mulher. O amor dela era ainda o mesmo, sempre ardente, fiel e
dedicado.
Ela, essa amante anônima, essa infeliz repudiada, que cedia o lugar a outra mais
feliz, revela admirável grandeza d’alma. Pagã ou cristã, o certo é que a atitude
da cartaginesa, no meio dessa tragédia do seu amor, a torna imensamente
simpática à posteridade.
Em virtude daquela estranha intuição feminina, adivinhou ela, talvez, que sua
presença na vida daquele homem inteligente e sedento de espiritualidade era
um entrave, quase um “sacrilégio”, porque esse homem tinha de cumprir uma
grande missão no mundo, e a companhia duma mulher, fosse mesmo como
esposa, seria um óbice à realização do seu alto destino. Sacrificou-se a
“anônima”, para que o amigo de longos anos pudesse brilhar e tornar-se sem ela
o que com ela não se tornaria...
“Et illa in Africam redierat, vovens tibi (Deus) alium se virum nescituram, relicto
apud me naturali ex illa filio meo. At ego infelix, nec feminae imitator, dilationis
impatiens, tanquam post biennium accepturus eam quam petebam, quia non
amator conjugii, sed libidinis servus eram — procuravi aliam”...
“Voltou ela para a África, e fez voto a ti (ó Deus) que jamais conheceria outro
varão, deixando comigo o meu filho natural gerado dela”.
“E eu, desgraçado, nem sequer fui capaz de imitar essa mulher!... Não tive a
paciência de esperar dois anos para receber a minha esposa, e, sem amor ao
matrimônio, mas escravo da libido, fui procurar outra mulher”...
Mais tarde, porém, levantou Agostinho sobre este mesmo abismo da sua
vergonha um monumento que talvez tenha ultrapassado as excelsitudes
espirituais da solitária vestal do litoral africano...
Tudo em vão. O silêncio da voz divina parecia uma reprovação dos cálculos de
Mônica...
Agostinho, depois dessa vergonhosa recaída, parecia pior que nunca. Não só se
entregava de corpo e alma à nova paixão, mas parecia possesso dum verdadeiro
demônio de luxúria e de cinismo. Procurava arrastar aos mesmos vícios todos
os seus amigos. O próprio Alypius sentia-se abalado na sua castidade, e, mais
por curiosidade do que por sensualismo, resolveu saborear o fruto proibido.
Agostinho fez-lhe ver que gozos eróticos e vida sexual eram ótimos para a
“filosofia dos sentimentos”, que todo o verdadeiro intelectual devia conhecer de
ciência própria.
No meio desta sua vida desregrada, cultivavam esses jovens filósofos o que
depois deles, através de todos os séculos, constituiria e constitui ainda ocupação
predileta de numerosos intelectuais: o esporte da verdade. É no jogo das idéias,
é na agridoce nostalgia de intangíveis ideais metafísicos que eles fazem consistir
a razão-de-ser da sua vida e a sua chamada “religião” Não querem ferir-se nas
agudas arestas da cruz do Gólgota, mas também não querem passar por
grosseiros materialistas. Por isso, brincam de cristianismo e namoram com a
Verdade, assim como um rapaz leviano passa a vida brincando com a jovem que
não quer como esposa, nem quer deixar como amante, fazendo-a joguete dos
seus caprichos. “Odi profanum vulgus et arceo” — dizem eles com Horácio —
odeio o vulgo profano e dele me afasto. Odeiam o mundo — cujas delícias gozam
sem cessar, filosoficamente... Folgam no “paraíso das idéias”, encontram-se no
“recanto dos filósofos”. Com Lessing procuram a verdade pelo gosto de a
procurar, e não pela esperança de a possuir. A posse da verdade, dizem eles, é
direito privativo de Deus; ao homem só lhe compete ir à busca da verdade. E
neste inquieto procurar, dizem, há maior satisfação do que no tranquilo possuir
— assim como o arrojado bandeirante prefere as arriscadas aventuras de ínvias
florestas à suave vida doméstica no meio dos seus.
Assim foi Agostinho arrastando a sua vida, tão cheia de diversões — e tão
terrivelmente vazia.
CAPÍTULO 19
Também Agostinho, como consta das palavras dele amava essa mulher, que
deve ter tido irresistível fascinação para o jovem estudante de filosofia na grande
metrópole africana; pois Agostinho se revelou sempre um exímio esteta, sensível
a todas as belezas.
Mas... faltava à fenícia anônima um predicado importante: ela não tinha status,
como diríamos hoje; ela não tinha condição social; ela era, possivelmente, da
baixa classe dos operários ou estivadores do porto de Cartago — e Mônica, a
“santa” ambiciosa, não permitia que seu filho filósofo, já no início da sua
celebridade casasse com uma mulher dessa condição. Agostinho teria casado
com sua amante de 9 anos de convivência, mas teria de entrar em conflito
violento com sua mãe, que ele amava. Por isto, obedeceu à cruel injunção de
Mônica e mandou embora a moreninha de Cartago, privando-a ao mesmo tempo
do marido e do único filho.
E isto com a agravante sumamente dolorosa de ela saber que ia ser substituída
no seu amor por uma jovem italiana.
A elite da humanidade dos nossos dias está começando a dar mais valor à
experiência do que à crença. Se essa mulher anônima não tivesse tido uma
grande experiência espiritual — anônima e desconhecida como ela mesma —
teria ela sido capaz de aceitar sem protestos nem amargura o repúdio de
Agostinho e o desprezo de Mônica?
Pode a vontade ser compelida a voltar para Deus, sem que seja violado o
intangível privilégio do livre arbítrio? Não consegue o homem fugir a Deus pela
tangente do erro e do mal, para o eterno vácuo do sem Deus? Cedo ou tarde,
será compelido pela graça a querer voltar. A graça não obriga o filho pródigo a
voltar à casa paterna, mas faz com que ele queira livremente voltar. É esta a
maior vitória do Altíssimo: fazer com que o homem queira livremente o que antes
não queria nem a força.
* * *
Estava Agostinho em vésperas de fechar a grande curva, que, havia trinta anos,
o distanciava cada vez mais do centro do seu verdadeiro destino. Tinha chegado
ao extremo apogeu da sua iniquidade. Com o repúdio da mãe de seu filho, com
a aceitação de outra noiva, e, ainda por cima, com a vergonhosa recaída à
escravidão da sua desenfreada luxúria, perdera Agostinho, também aos olhos
de todo o homem sensato, o último resquício de simpatia, de atrativo e de bela
humanidade. Agostinho, além de pagão e herege, libertino e sedutor, acabava
de se tornar também uma repelente caricatura de homem, de amante, de
esposo, de amigo.
* * *
Era o último sorriso da filosofia pagã... Era o derradeiro lampejo dum dia que
para sempre morria nos braços duma noite estrelada...
Ainda não acabara o filho de Mônica de se convencer de que não se pode possuir
integralmente a Deus pela luz fria do intelecto. Não sabia ainda que a inteligência
só pode conduzir a alma até ao vestíbulo do santuário, até ao “sanctum” do
templo; mas introduzi-la nos inefáveis mistérios do “sancta sanctorum”
impossível...
Não eram Platão nem Aristóteles, nem filósofo algum que ia descerrar as portas
da fé a esse espírito sedento de Deus — era Paulo de Tarso, ou melhor, era o
próprio Cristo através das epístolas de seu grande discípulo...
Pela primeira vez começou Agostinho a vislumbrar luzes estranhas por entre as
palavras do grande convertido às portas de Damasco. Paulo exigia, sim, um
“culto racional”, falava até em “compreender” o Evangelho; mas insistia ainda
mais, muito mais, na necessidade de “viver” e de “sofrer” a doutrina do Cristo.
Não basta apreender a Deus através de elevados conceitos filosóficos, é
necessário purificar o coração e dar a toda a vida um caráter digno de Deus. O
Evangelho não é para ser estudado, é para ser vivido e sofrido. Só o compreende
quem o vive e sofre. Não se pode viver e sofrer o Evangelho senão à luz estelar
do Getsêmane e à luz solar do Gólgota. Todos os homens que pretenderam
conhecer o Cristianismo apenas à força de estudos e análises ficaram eternos
analfabetos e descompreenderam o Cristo e seu Evangelho.
“Graças te dou, meu Pai, porque revelaste estas coisas aos simples e
pequeninos e as ocultaste aos eruditos”...
“Que importa? — diziam as vozes sedutoras — que importa que sofras?... Quem
sabe se não é precisamente esta a única felicidade para ti, sofreres por nossa
causa, sacrificares sempre de novo o teu corpo às fauces insaciáveis, sem termo
nem medida”...
Tamanha é a perfídia da paixão! Uma vez que não pode ocultar à sua vítima a
profunda infelicidade, o sofrimento que lhe causa, quer fazê-lo crer que é
precisamente neste martírio que consiste a missão do padecente; quer persuadi-
lo a que ele é um mártir do destino, um herói, um super-homem, um holocausto
imolado na ara sagrada dum sublime mistério; quer convencê-lo de que a
grandeza do escravo dos apetites consiste em se exaurir e aniquilar, gota a gota,
nesse delicioso inferno da paixão, nesse incêndio voraz da carne e do sangue...
“Mas quem te garante que não renuncias à nossa felicidade por uma ilusão
fantástica, mais inconsistente que a nossa? Confias demais em tuas forças...
Nunca serás capaz de viver sem nós...”
“Espera mais um pouco... As coisas que desprezas não deixam de ter os seus
encantos... Dão-te grande prazer... Não podes, assim sem mais nem menos
desfazer-te delas... E seria vergonhoso se, mais tarde, depois de as desprezar,
quisesses a elas voltar”...
Não existe em toda a literatura do mundo descrição igual a esta que Agostinho
faz do seu estado psíquico, nesse vaivém de esperanças e desânimos, de
ofensiva e defensiva, de vitórias e de derrotas. Nenhum homem soube pintar
com tão dramática plasticidade a silenciosa peleja dos dois Eus que se
digladiam, dentro do homem sempre arrastado à terra pela prepotência dos
sentidos e sempre arrebatado ao céu pela veemência do espírito.
Nessa ocasião não se decidiu Agostinho nem pró nem contra suas “amigas de
outrora”. A sua vontade enferma não tinha forças suficientes para proferir um
enérgico e decisivo eu quero. Continuou a forrar a vida com a claudicante
irresolução de quisera, quisera... Continuou a “ser devorado pelo tempo”, como
diz. Deixou-se arrastar pela onda da sociedade, sem saber ao certo o que queria.
* * *
“Como eu chorava, meu Deus — escreve ele — ao ouvir os teus hinos e cânticos!
Como me extasiavam essas vozes! Enchiam-me os ouvidos e traziam-me a
verdade ao coração. Mais e mais sentia eu o impulso da minha piedade... E
saltavam-me dos olhos as lágrimas... E eu sentia alívio”...
* * *
Pouco tempo depois, teve a visita dum conterrâneo seu, Pontitianus, alto
funcionário da Corte Imperial. Agostinho, Alypius e Pontitianus começaram a
discorrer largamente sobre as epístolas de São Paulo, que se achavam sobre a
mesa de jogo, no meio das cartas e dos dados. O hóspede africano era cristão,
e pôs-se a falar com grande entusiasmo da vida de Santo Antão e seus
companheiros, nos ermos no Egito. Faziam muito bem esses ascetas, dizia o
orador, em desprezar os bens terrenos, tanto mais que, em breve, todas as
riquezas do Império cairiam presas dos bárbaros, que nas fronteiras do norte e
do leste se preparavam para uma pilhagem universal. Contou ainda um caso
dramático da sua própria vida. Estava o César em Treviris. De tarde, quando o
soberano se divertia no circo, foi Pontitianus passear com três fidalgos da corte
pelos arredores da cidade. Afastando-se cada vez mais, chegaram a umas
choupanas, onde um grupo de eremitas imitava a vida austera de Santo Antão.
Tocados pela graça divina, dois dos áulicos, que eram noivos, resolveram
abandonar tudo e servir a Deus, numa vida de oração e austeridade, associando-
se aos cenobitas.
Este fato, descrito por Pontitianus com a dramática viveza de quem se acha
profundamente emocionado, abalou a alma de Agostinho. Era noivo também ele
e trazia na alma um mundo de ambições profanas. Agarrou o braço de Alypius e
com desusada veemência lhe bradou no rosto: “E nós?... Como matamos o
nosso tempo?... Sim, nós?... Ouviste? Os ignorantes animam-se e conquistam o
céu, e nós, com a nossa fria erudição, nos revolvemos na carne e no sangue!”...
Com inimitável viveza e plasticidade descreve Agostinho, mais tarde, essa peleja
ingente entre a natureza e a graça, como se dentro dele se digladiassem dois
seres adversos:
“Tu, Senhor, me retorquias para mim mesmo, tirando-me de trás das minhas
costas, onde eu me escondera, porque não me queria ver; e me colocavas ante
os meus olhos, para que visse quão feio era, quão deformado e sujo, quão
manchado e coberto de úlceras. E eu me via — horrorizado... E não sabia para
onde fugir de mim mesmo... E, quando eu tentava tirar de mim os olhos, tu
novamente me colocavas diante de mim e me impingias aos meus olhos, para
que encontrasse a minha iniquidade e me odiasse”...
Agostinho gemia como um moribundo, por entre o silencioso fragor dessa luta
de vida e de morte... Estorcia-se como um desesperado em face da vitoriosa
ofensiva do Cristo, que, após três decênios de incessante assédio tomava, enfim,
de assalto, a praça forte dessa grande inteligência, o rijo baluarte dessa alma de
fogo.
Eis senão quando percebe uma voz de criança a repetir em cadências rítmicas:
“Tolle, lege! tolle, lege!”... “Toma e lê! toma e lê!”...
Agostinho escuta. Donde partia a vozinha infantil? De alguma casa vizinha? Era
o estribilho de alguma modinha popular?... Era uma voz do além, um convite de
Deus?
Ergue-se o ferido lutador, e, como que sonâmbulo, vai ter com Alypius. Sobre a
mesa da casa de campo estava o volume das Epístolas paulinas, que lá haviam
deixado. Agostinho tomou-o nas mãos, abriu-o a esmo — e deu com as palavras
da Epístola aos Romanos (13,11 ss); “Vai adiantada a noite e vem despontando
o dia. Despojemo-nos, pois, das obras das trevas e revistamo-nos das armas da
luz. Vivamos honestamente como em pleno dia; não em glutonerias e
bebedeiras, não em volúpias e luxúrias, não em contendas e rivalidades — mas
revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não ceveis a carne para as
concupiscências”...
Agostinho fechou o livro, profundamente abalado com o que lera. Não eram
estas palavras de Paulo uma resposta do céu ao inferno das suas angústias?...
Sim, era necessário despojar-se de vez da noite do seu paganismo sensual e
saudar a aurora duma vida nova, espiritual, em Cristo Jesus...
Mostrou o texto a Alypius, e este leu a frase que se segue (14,1): “Acolhei a
quem é fraco na fé” — e considerou-a como um aviso do céu para corroborar na
fé o amigo vacilante...
E foi neste instante solene que desceu sobre a alma do filho de Mônica uma paz
imensa, profunda, inefável, divina...
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Sentiu Agostinho, nessa hora, o que nunca disse nem descreveu, porque é
indizível e indescritível... Nos momentos mais humanos e mais divinos da sua
vida, todo o homem está a sós com Deus, circundado da solitude do Infinito...
Sentiu Agostinho o que só pode sentir o homem que, sem reserva, lança o seu
pequeno Eu humano ao oceano do grande Tu divino...
E neste momento sentiu Agostinho pela primeira vez, na sua longa vida de gozos
e prazeres, o que é felicidade, profunda, profundíssima felicidade...
“Fizeste-nos para ti, Senhor — e inquieto está o nosso coração até que descanse
em ti”...
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Em companhia de Alypius foi procurar sua mãe para lhe dar parte do ocorrido.
Mônica, ainda que radiante de júbilo, não pareceu surpreender-se com a notícia.
Tinha a certeza de que, mais dia menos dia, se realizaria o que lhe dissera a voz
celeste: “Teu filho estará onde tu estás”.
Quando viu cumprida a sua dolorosa missão, sentiu ímpetos de exclamar com o
velho Simeão no templo: “Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, porque
os meus olhos contemplaram a tua salvação!”...
CAPÍTULO 21
Por isso, não se deu pressa em receber o batismo ritual. Estava tomada a sua
firme e sincera resolução de pautar, daí por diante, a sua vida pelo Evangelho.
O que mais urgia era consolidar esta resolução e esclarecer os motivos da
mesma pelo estudo das Escrituras Sagradas e pela meditação das verdades
eternas.
É este um dos traços mais típicos no caráter do filho de Mônica: a seriedade com
que encara a vida cristã. Adia por longos anos a sua conversão porque não se
sente com forças para cumprir o que esta conversão lhe exige. Mas, uma vez
convertido, quer ser cristão integral, e não apenas pagão batizado, um homem
qualquer envernizado de cristianismo, como tantos cristãos dos nossos dias.
Escreveu a Ambrósio uma longa carta em que lhe narrava os desvarios da sua
vida e manifestava o desejo de abraçar, com seu filho Adeodatus e seu amigo
Alypius, a religião cristã.
Agostinho, porém, era inimigo de toda a exibição. Por demais tinha sofrido pelo
Evangelho para não profanar agora o filho das suas dores, fazendo dele alvo de
elogios ou objeto de invectivas. Bastava-lhe o tesouro divino da paz de
consciência. Convalescente, precisava da solidão e do convívio com almas
amigas, a fim de robustecer a sua saúde espiritual.
E também as forças físicas. Agostinho sentia-se exausto, com os pulmões em
petição de miséria. O clima úmido da Lombardia não convinha ao filho da África.
Faltavam 20 dias para terminar o ano letivo. Não era prudente que o professor
de filosofia suspendesse prematuramente as suas lições, provocando
comentários e descontentamentos.
A casa de moradia, a julgar pela descrição que dela nos deu Agostinho, parecia-
se com as nossas velhas casas de fazenda, onde a comodidade e conforto
prevalecem sobre o granfinismo e o luxo. Vastos pomares, hortas extensas onde
a incansável Mônica encontrava largo campo de atividade. Nem faltavam
canteiros de flores.
* * *
Sendo que, nos séculos passados, pouco ou nada se sabia da epopéia evolutiva
multimilenar do homem e da humanidade, supondo que o homem tivesse saído
diretamente, perfeito, das mãos de Deus, e ter sofrido desastrosa queda, por
obra de Satanás — não era possível formar idéia exata do pecado e da
redenção. Hoje em dia, sabemos que o homem, como todas as coisas, vieram
de Deus, da mesma e única Fonte Infinita — mas que o homem fluiu, no seu
aspecto humano, através de milhares de canais infra-humanos, e, futuramente,
vai fluir ainda por muitos canais até atingir a sua última perfeição.
Hoje em dia, creação e evolução não são mais conceitos antagônicos, mas sim
complementares. O homem veio da Fonte Divina através de muitos canais
humanos e infra-humanos.
Se Agostinho tivesse tido idéia exata disto, teria encontrado solução ao problema
do pecado original e da origem da alma humana.
* * *
Lá um discípulo de Moisés, que vê ruir por terra o palácio da sua teologia judaica
— aqui, um discípulo de Platão, que assiste ao naufrágio de uma formosa
filosofia.
Paulo, depois daquele terremoto, vê-se no meio dum campo coberto de ruínas;
mas essas ruínas são pedras de boa qualidade, material para uma nova
construção. Errada estava apenas a arquitetura, deficiente o estilo do edifício,
mas a matéria-prima do mosaísmo, ora dispersa na estrada de Damasco, podia
ser utilizada, em parte, para a gigantesca basílica do Evangelho, que o “sábio
arquiteto” ia levantar. Por isso, depois daquele silêncio e introspecção, aparece
Paulo como arrojado pregador do Cristianismo.
Mas que faria Agostinho com o material da sua filosofia arrasada? De que
serviriam as pedras que Platão, Aristóteles e Cícero lhe haviam fornecido?...
Força era procurar material de construção, mais sólido, se não quisesse expor à
ruína o edifício que ia levantar nos escombros da sua torre. E Agostinho desce
às profundezas da revelação divina, eternizada nas páginas do Evangelho e
dessa mina — a mesma de mestre Paulo — extrai as pedras de granito e o ouro
de lei com que edificou o santuário da sua vida espiritual e da sua mística...
Saudades da África —
Na Praia de Óstia
Mais tarde resumiu Agostinho a sua filosofia cristã nesta frase eternamente
verdadeira e bela: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração
até que descanse em ti”.
* * *
Hoje não passa Óstia dum lugarejo sem importância. Naquele tempo, porém,
tinha ainda caráter de notável empório fluvial e marítimo, o maior porto de Roma,
onde se enfileiravam vastos armazéns repletos de cereais e óleos da África. Era
um dos grandes pontos de intersecção da navegação do Mediterrâneo.
Arqueólogos escavaram recentemente os alicerces duma antiga cidade
soterrada, estátuas e mausoléus, restos dum templo, dum fórum e duma caserna
militar.
* * *
Sobre a sua permanência em Óstia escreveu Agostinho uma das páginas mais
líricas e místicas das “Confessiones”. O que aconteceu a ele e a Mônica não
cabe em palavras humanas. Percebe-se nas entrelinhas que o autor luta por
encontrar expressões que deem uma idéia aproximada do mistério que, por
momentos, envolveu as almas dos dois africanos, fazendo lembrar a visão que
o apóstolo Paulo tenta descrever no capítulo 12 da segunda Epístola aos
Coríntios.
Debilitada pela longa jornada desde as plagas da Lombardia, não resistiu o corpo
de Mônica à moléstia. Num dos acessos febris perdeu o acordo. Parecia entrar
em agonia. Agostinho, Adeodatus, Navigius, Evodius, Rusticus, Lastidianus e
outros amigos da família cercavam o leito da doente. De súbito, ergueu-se
Mônica, olhou em derredor e disse:
E, quando leu nos semblantes de todos o terror de sua própria morte iminente,
acrescentou, com calma:
“Não, minha mãe! Hás de convalescer... Tornarás a ver a pátria... Não morrerás
em terra estranha”...
Depois de uma pausa, acrescentou com voz clara e firme, como que a ditar aos
filhos a última vontade:
“Sepultai o meu corpo onde quiserdes. Não vos dê isto preocupações. Só uma
coisa vos peço: Lembrai-vos de mim em vossas orações, onde quer que
estiverdes”...
Mônica viveu ainda alguns dias. Depois fechou para sempre os olhos para as
coisas do mundo. Contava quase 56 anos.
O Monge de Tagaste
* * *
Havia 4 anos que fizera essa mesma travessia, em sentido contrário. Naquela
madrugada, depois de iludir sua mãe, embarcara para Roma a fim de conquistar
posição brilhante e ajuntar dinheiro para levar vida regalada nos braços duma
mulher, por entre o conforto dum lindo palacete e bafejado pela aura da
celebridade. Agora voltava com um só desejo, de viver só para as humildes
grandezas do mundo espiritual, longe do mundo, na paz duma choupana ou no
silêncio duma caverna. E sentia-se mais feliz agora na sua humildade do que em
384, atormentado de ambições mundanas.
Em Cartago hospedou-se com seu velho amigo e colega Elogius, por uns poucos
dias. Estava com saudades de Tagaste e duma querida solidão onde pudesse
dar largas às suas idéias.
O programa desse ashram era dos mais simples. Nem clausura nem votos.
Procurava cada um realizar espontaneamente e do melhor modo possível o
preceito do divino Mestre: Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como
a si mesmo. Neste ponto do amor ao próximo era Agostinho de grande rigor. Não
tolerava intrigas e maledicências, e por isso se tornou o seu pequeno mosteiro
uma nesga do céu, que atraía os cristãos que tomavam a sério a alma do
Evangelho. O regulamento externo limitava-se a certas horas de meditação em
comum, e umas poucas normas indispensáveis à vida coletiva.
Uma das faces que nos tornam tão simpático o caráter de Agostinho é
precisamente seu grande e sincero amor para com todos os homens.
* * *
Estas últimas frases são bem um retrato do espírito de Agostinho. Ele mesmo,
embora mestre, não se dá por infalível; embora guia, não rejeita quem lhe
estenda mão condutora. Já nesse tempo se guiava ele pelo lema clássico: “Odiar
o erro — e amar os errantes”.
Agostinho, filósofo, teólogo, poeta, artista, esteta, sabia fazer das obras da
natureza e da cultura escada para subir a Deus. Pelas coisas creadas conduz
ele a sua alma e as almas dos amigos às coisas increadas.
“O que admirais nos filósofos — diz ele — eu o fiz propriedade minha. Escutai e
reconhecei nos meus lábios a cadência sonora dos vossos oradores. Entretanto,
o que vós preconizais eu o desprezo. Nada valem as ciências do mundo sem a
sabedoria do Cristo”.
* * *
Não conseguiu Agostinho levar por muito tempo a vida retirada que desejava.
Os grandes homens, precisamente por serem grandes, são de Deus, e, portanto,
do mundo inteiro.
Ninguém pode ser solitário em Deus sem ser solidário com os homens.
Em Cartago, Hipona, Madaura, Tagaste; nos teatros, nas basílicas, nas praças
públicas, por toda a parte se travava intensa luta de idéias, pró e contra Cristo.
Maniqueus e donatistas, filósofos de todos os matizes impugnavam ou
ridicularizavam aquilo que Agostinho acabava de reconhecer como o único valor
positivo da vida humana.
Não lhe sofria o amor à verdade permanecer calado. Lançou mão da sua arma
predileta, a pena, para combater os semeadores do erro.
Nessas pelejas do espírito, que deviam abranger toda a sua vida futura, creou
Agostinho uma nova modalidade de estilo. Abriu mão dos longos períodos
clássicos, cuidadosamente burilados, porque lhe pareciam pesados e de difícil
compreensão; lançou mão de pequenas frases incisivas, que, como afiados
punhais, atingiam em cheio os pontos vulneráveis do adversário. Nessas
apologias do Cristianismo chegou ao ponto de empregar certas locuções
populares incorretas, ele, o fino esteta e hábil estilista latino, quando esses
modos de dizer emprestavam maior clareza e plasticidade ao seu pensamento.
Alguns escritos de Agostinho, exarados no solene e majestoso latim dos
clássicos romanos, fatigam o leitor, porque diluem o colorido natural em
complicados meandros de períodos artisticamente flexionados; ao passo que os
seus sermões e tratados populares primam quase todos por uma clareza diáfana
e uma esfuziante vibração de colorido e precisão. Inventa neologismos, recorre
à gíria, para se fazer compreender. A prosa analítica de Agostinho tem um sabor
mais moderno que antigo e forma como que uma ponte entre o latim clássico de
Cícero e o latim popular, do qual nasceram as línguas neo-latinas da atualidade:
o português, o espanhol, o italiano, o francês e o romeno.
Agostinho escreveu cartas tão numerosas como poucos homens, cartas aos
amigos da Ásia, da África e da Europa, cartas longas, algumas verdadeiros
tratados sobre assuntos filosóficos e religiosos. Sofria quase sempre de penúria
de papel ou outro material a que confiasse os seus pensamentos. Não se podia,
naquele tempo, como hoje, ir à próxima papelaria da esquina comprar um
caderno de papel, ou um volumoso livro em branco para enchê-lo de
pensamentos. O papel era artigo caro, e, por conseguinte, bastante raro. Mesmo
as delgadas lâminas de “papyrus”, fabricadas com o miolo da planta egípcia
deste nome, não existiam em quantidade suficiente para que um homem rico em
pensamentos as encontrasse na devida abundância. O pergaminho, feito de pele
de cabra ou outro animal era ainda mais caro. Das lâminas de marfim, então,
nem falemos. Verdade é que Romanianus se servia deste material aristocrático
para a sua correspondência; e também Agostinho empregou algumas vezes
essas luxuosas lâminas ebúrneas, que recebia do mecenas; mas só em ocasiões
excepcionais. Esta dificuldade em adquirir veículo idôneo para fixar o
pensamento, se por um lado era um mal, por outro não deixava de reverter em
benefício da literatura do tempo; porque assim o escritor condensava o mais
possível os seus pensamentos, valorizando-os mais pela qualidade que pela
quantidade. Quanto estudante dos nossos dias, dono de meia dúzia de idéias,
não é preconizado pelo jornalismo venal como astro de primeira grandeza no
firmamento da literatura nacional ou internacional, máxime quando dispõe de
dinheiro ou prestígio político! Não poucos desses pretensos gênios acabam por
cair vítimas da funesta epidemia mental de esparramarem litros de tinta em
toneladas de papel para ventilar a sua sapiência, adquirir celebridade e desistir,
daí por diante, de qualquer estudo sério, arvorando-se em críticos e
desprezadores de tudo quanto brotou de outros cérebros. E, como esses literatos
pensam pelas colunas dos jornais, parece-lhes que a quantidade representa o
único valor positivo, enquanto a qualidade passa a ser fator imponderável.
Outro “perigo” havia, bem mais grave que o de ordem política: o perigo de se
ver, de um dia para outro, colocado à testa duma das igrejas ou dioceses da
África. Por que não lhe podia acontecer o que, tão de improviso, sucedera a
Ambrósio?
Para nós, filhos do século vinte, é dificilmente compreensível o que nos primeiros
tempos do Cristianismo acontecia, não raro, a homens da têmpera de Agostinho:
de um dia para outro, sobretudo quando inteligentes ou ricos, eram aclamados
sacerdotes ou bispos e, à força, investidos do cargo de pastor duma porção
maior ou menor do rebanho do Cristo. Quando inteligentes, eram idôneos para
reger judiciosamente a sua grei; quando ricos, deixariam a paróquia ou diocese
a sua fortuna, coisa muito ambicionada, sobretudo na África, onde quase só
havia igrejas pobres.
Agostinho não era abastado, desfizera-se de quase tudo; mas sempre possuía
em Tagaste alguma propriedade, e o que era de grande valor é que era amigo
íntimo do argentário Romanianus e mantinha ótimas relações com os poderosos
da corte imperial.
Sacerdote de Surpresa e
Bispo à Força
As palavras com que ele refere este fato, embora enlutadas de dor, revelam
grande resignação e serenidade do espírito. Já nesse tempo habitava o espírito
de Agostinho naquelas excelsas regiões que não são atingidas pelo clamor das
emoções humanas, onde não há nascer nem morrer, mas somente o eterno
viver.
Chorou, sim, mas agradeceu a Deus ter chamado para si aquele adolescente
antes que o ardor das paixões lhe crestasse a candura da alma.
Agostinho via nesse homem um novo membro para o seu ashram e sócio da sua
vida espiritual. Sem nada suspeitar, demandou à cidade de Hipona, no litoral
norte da África.
Hipona tinha um velho bispo, por nome Valério. De origem grega, conhecia mal
o latim e ignorava por completo o idioma púnico que se falava na terra, o que lhe
dificultava grandemente o desempenho do seu múnus episcopal. Era uma voz
clamantis in deserto, tanto mais que a diocese de Hipona não tinha clero. Os
donatistas aproveitavam-se desta precária situação e entraram na brecha,
enviando os seus oradores e propagandistas a todos os centros culturais da
diocese; em breve tornaram-se senhores da situação, enquanto os católicos iam
perdendo terreno.
Além disto, não possuia a diocese patrimônio que tal nome merecesse; a maioria
dos cristãos era pobre e esperava dos pastores não apenas “o reino de Deus”
mas também o “pão nosso de cada dia”. Pastor que não tivesse com que encher
as bocas famintas, perdia em breve as simpatias e a popularidade das suas
ovelhas.
Estes costumes reinavam nesse tempo por toda a parte, até na culta Itália, onde
um governador gentio fora, da noite para o dia, batizado, ordenado sacerdote e
sagrado bispo de Milão — Ambrósio.
Ai de quem resistisse a essa vox populi vox Dei! Não há paixões mais inexoráveis
do que as paixões religiosas. E os cristãos africanos eram conhecidos pelo seu
fanatismo...
* * *
No topo duma colina que se ergue perto de Hipona encontra o viajor do presente
século uns restos de ruínas carcomidas, que são, possivelmente, as derradeiras
relíquias do convento-seminário fundado por Agostinho. Atualmente se ergue ao
pé desses escombros um asilo de velhos dirigido por Irmãs de Caridade —
eloquente símbolo daquela alma que era bem a personificação da misericórdia
e da caridade.
* * *
O programa que Agostinho adotara para si e para os seus era duma simplicidade
ditada pela experiência, revelando antes a serena espiritualidade do Nazareno
do que o rigor ascético do Batista. O “justo meio”, tão do espírito de Agostinho,
era também o cunho característico desse retiro espiritual, no topo da colina de
Hipona. Os que ali se refugiavam eram, por via de regra, homens cultos que,
nauseados das grandiosas futilidades do mundo, ansiavam por encontrar na
união com Deus a paz da alma, que o mundo lhes prometia, mas não lhes dava.
Era o regulamento bastante severo para facular uma completa e profunda
concentração interior, e ao mesmo tempo bastante amplo para não fazer
degenerar em escravidão a liberdade de espírito. Não eram os religiosos que
serviam à ordem estabelecida, mas era esta que se lhes revelava amiga e
servidora, escada para as alturas, mentora para as regiões da perfeita liberdade
interior.
Livre não é aquele que faz o que quer, mas, sim aquele que espontaneamente
quer o que deve. Escravo não é o homem que se guia por uma norma pré-
estabelecida mas aquele que se emancipou da tirania do ego para servir à
soberania de Deus. Mais deplorável é a sorte da videira que, infecunda, rasteja
livremente pela imunda umidade do chão do que a que vive presa ao parreiral e
carregada de frutos.
Agostinho, graças à sua cultura e ao apurado senso estético, não media o grau
da pureza moral pela ausência de pureza física. O mosteiro no alto da colina de
Hipona primava pelo asseio, e os seus inquilinos não envergonhariam os
homens cultos da melhor sociedade hiponense.
“Saiba cada qual que quem errantes dilacera é indigno de sentar-se a esta
mesa!”
Refere Possidius, colega e primeiro biógrafo de Agostinho, que, certo dia, dois
prelados, hóspedes do convento, se esqueceram do grande preceito do divino
Mestre. Levantou-se então Agostinho e, apontando para a legenda na parede,
exclamou: Ou eu me retiro desta sala — ou mandarei apagar estes dizeres!...
CAPÍTULO 25
De mais a mais, dizia Megálio, e diziam com ele muitos outros, Agostinho fora
maniqueu, até chefe desses hereges; Cartago e Hipona bem lhe conheciam o
fanatismo com que defendera os erros dessa seita, arrastando inúmeras almas
ao mesmo abismo; e só Deus sabia o que ele fizera nos mistérios cultuais e nas
secretas reuniões dos sequazes de Manes.
Megálio não conhecia Agostinho de trato pessoal. Quando, daí a pouco, visitou
Hipona e chegou a conhecer de perto esse homem e ouviu da sinceridade da
sua conversão e da pureza dos seus costumes, mudou de parecer e revogou
publicamente as calúnias e juízos temerários que endossara a respeito dele.
Por outro lado, nada haveria de melhor para manter em seguro equilíbrio as
potências do seu espírito, e para garantir a sujeição da carne, do que o fardo
quotidiano do pastoreio e as fadigas de um apostolado dinâmico espiritualizado
pela oração e meditação.
* * *
Valério faleceu, não muito depois. E pela primeira vez sentiu Agostinho todo o
peso do seu cargo.
* * *
Quem resolvesse traçar um paralelo entre o cargo pastoral, dum bispo dos
nossos dias e a tarefa de Agostinho, não formaria idéia dos trabalhos
heterogêneos que pesavam sobre os ombros desse homem.
Nesses tempos e lugares, ser bispo era também ser governador, administrador
e juiz em toda a circunscrição da diocese. Inúmeras alusões nos escritos de
Agostinho provam o quanto ele estava familiarizado com todos os problemas de
caráter administrativo, agrícola, comercial, industrial, etc. Conhecia a fundo a
legislação civil e criminal do Império, e estava a par de todo o complicado
labirinto dos processos, da jurisprudência e das questões forenses.
Ele, que, por motivo de idealismo religioso, fizera voto de pobreza e distribuíra
entre os pobres a herança paterna, vê-se agora feito repentinamente
latifundiário, capitalista, proprietário de vastos domínios.
* * *
Agostinho, administrador e juiz, era, antes de tudo, pastor do seu rebanho. Vivia
com ele e por ele. Incansável pregador do Evangelho, conseguiu dar àquele povo
semi-selvagem um profundo conhecimento da revelação cristã e moldar-lhe a
natural rudeza de caráter pela suavidade daquele que disse: “Aprendei de mim
que sou manso e humilde de coração”.
Quase toda a vida cristã de Agostinho, cerca de meio século, é uma luta, oculta
ou manifesta, contra outro cristão, um monge britânico que vivia em Roma e que,
por ter vindo dos pélagos do norte, passou a ser apelidado simplesmente
Pelágio.
Sendo que Agostinho, depois dos 30 anos, se sentiu redimido por um poder que
não era do seu ego humano consciente, atribuiu a sua conversão a uma
intervenção da graça divina. Nesse tempo, a teologia não estava em condições
de distinguir entre o ego pecador e o Eu redentor do homem. Prevalecia a
doutrina de ser o homem integralmente o seu ego pecador, que, evidentemente,
não o podia redimir. Ego não redime ego, pecador não salva pecador, réu não
absolve réu. Logicamente, Agostinho não podia atribuir a sua conversão a um
fator humano.
Pelágio, porém, adivinhava no homem algum fator que não era o seu ego
humano, embora não tivesse idéia nítida desse fator misterioso, ao qual o monge
britânico atribuía a redenção.
A maior obra que Agostinho escreveu e na qual trabalhou 13 anos são os dois
volumes “De Civitate Dei”, sobre o Estado de Deus.
Mas onde estão esses muitos homens cristificados? Existem, sim, e sempre
existiram homens individuais crísticos, mas não em número suficiente para
garantir uma cosmocracia crística.
“O meu Reino não é deste mundo”, disse o Cristo; não é do caráter deste mundo,
embora esteja neste mundo. “Eu vim ao mundo e nasci para isto, para dar
testemunho à Verdade, e todo o homem que é filho da Verdade ouve a minha
voz”. Essas palavras que o carpinteiro de Nazaré disse ao representante do
Império Romano, na sexta-feira de manhã, em Jerusalém, seriam o segredo para
realizar um Estado Cristocrático na terra, se houvesse muitos amigos da
Verdade, muitos que conscientizassem e vivenciassem a Verdade libertadora.
Todas as obras literárias acima citadas, desde Platão até nossos dias, são visões
de uma potencialidade longínqua, que ainda não se concretizou em atualidade.
Hoje em dia, em plena Era do Aquário, mais do que nunca uma elite da
humanidade se convence de que a “única coisa necessária” é aquilo que Maria
de Bethânia estava fazendo quando ouviu estas palavras dos lábios do grande
Mestre.
E até em nossos dias continua ser esta a “única coisa necessária”, a “parte boa”
que nunca nos será tirada: auto-realização baseada em auto-conhecimento.
No tempo de Agostinho não havia ainda uma teologia eclesiástica com dogmas
nitidamente definidos. A organização da hierarquia começara somente em
princípios do quarto século, com a libertação do Cristianismo, pelo edito de Milão,
de 313. A teologia achava-se ainda em estado de elasticidade plasmável, sem
uma rigorosa cristalização oficial. A suprema autoridade eclesiástica residia nos
Concílios, e não num pontífice pessoal infalível.
Assim sendo, não admira que Agostinho tenha defendido doutrinas que, hoje em
dia, talvez lhe merecessem a pecha de herege.
Agostinho, em sua lógica retilínea, não admite que um homem chamado “carne
e sangue” fosse proclamado como fundamento da igreja do Cristo tanto mais
que esse mesmo Pedro, carne e sangue, é, pouco depois, chamado “satanás”
pelo próprio Cristo: “Vai no meu encalço, satanás (adversário), porque o teu
modo de pensar não é de Deus, mas do homem”.
Se, mais tarde, a pessoa de Pedro foi declarada como sendo a pedra da igreja,
não obedeceu essa declaração à mentalidade de Agostinho, mas a
conveniências do crescente prestígio da hierarquia eclesiástica.
* * *
Para certos teólogos, Deus fez uma sessão especial para crear o homem, e o
creou diretamente; mas, para Agostinho, a essência do homem veio do único ato
creador de Deus, e sua existência se desenvolveu aos poucos através de
substâncias inferiores.
Esta lógica de Agostinho é inatacável, embora não compreendida até hoje por
muitos. Ele admite tanto a creação como a evolução. A creação é o início de tudo
que existe, porque nenhum finito tem a sua origem no finito, mas no Infinito. Mas
os finitos, uma vez emanados do Infinito (creação), fluem constantemente
através de outros finitos (evolução).
De maneira que seria ilógico admitir evolução sem creação, como ilógico seria
admitir creação sem evolução.
* * *
Entre as 103 obras de Agostinho que chegaram até nós não se encontra uma só
que trate de assuntos tipicamente católicos no sentido de hoje; nenhuma obra
sobre Maria mãe de Deus, rainha do céu, medianeira de todas as graças.
Nenhuma obra sobre a veneração dos santos, sobre missa, confissão,
eucaristia, indulgências, etc.
Agostinho viveu nos séculos IV e V da nossa cronologia. Foi o maior filósofo neo-
platônico do seu tempo e um dos maiores pensadores filosófico-teológicos do
cristianismo desses quase 20 séculos.
Agostinho discorre com genial agudeza sobre estes textos, fazendo ver que não
há contradição, porque Deus creou simultaneamente todo o mundo em estado
potencial, mas, através dos períodos cósmicos, esse mundo potencial se
desenvolveu sucessivamente rumo ao estado atual. E o filósofo joga com o
paralelismo da semente e da planta, mostrando que a planta está contida “causa
liter et potentialiter” na semente; que a semente é a própria planta em estado
potencial, assim como a planta é a semente em estado atual.
Agostinho sabe realizar essa acrobacia mental com inscedível precisão e acribia
de uma irrefutável lógica e matematicidade.
Ora, conclui o filósofo, tanto o estado potencial como o atual é um estado real.
O homem potencial era um homem real, embora ainda não atualmente realizado.
Não era um animal, que não é um homem real, nem potencial nem atualmente.
“O Eterno creou tudo de uma vez (Ecl. 17,1). O Universo é comparável a uma
grande árvore, cuja beleza jaz desdobrada aos nossos olhos, no tronco, nos
ramos, nas folhas e nos frutos. Não foi num ápice que tal organismo nasceu.
Bem lhe conhecemos a evolução: originou-se da raiz que o germe lançou terra
a dentro, e desta origem desenvolveram todas as formas. De modo análogo,
teremos de conceber o Universo: se está escrito que Deus creou tudo de uma
vez, quer dizer que tudo quanto existe no Universo estava encerrado naquele
único ato creador — não somente o céu com o sol, a lua e as estrelas, não
somente a terra e os abismos da terra, mas tudo quanto se ocultava na força
germinadora dos elementos, antes que, no decurso dos períodos cósmicos, se
desenvolvesse, assim como está visível diante de nós nas obras que Deus crea
até ao presente dia. Por conseguinte, a “obra dos seis dias” não significa uma
sucessão cronológica, mas representa uma disposição lógica. Também o
homem faz parte dessa creação em germe: Deus o creou, assim como creou a
herva da terra antes que ele existisse. “Creou-os como varão e mulher e
abençoou-os” — creou-os segundo a força que a palavra de Deus, no único ato
creador, depositou em germe no seio do mundo, forca que, no decurso
cronológico da evolução, leva tudo sucessivamente ao desdobramento, fazendo
aparecer, a seu tempo, também Adão, “do elemento da terra”, e sua mulher “do
lado do varão”. Porque, do mesmo modo que a Escritura faz surgir o homem “do
elemento da terra”, faz originar-se também da terra os animais do campo. Se
pois Deus formou da terra tanto o homem como o animal, que vantagem tem
então o homem sobre o animal? O que o distingue é somente isto: que o homem
foi creado segundo a imagem de Deus; isto é, o homem não segundo o corpo,
mas apenas segundo a alma”.
Com estas palavras não nega Agostinho a alma espiritual do homem, que não
veio do animal, mas do Eterno, embora os seus, invólucros materiais tenham
fluido através dos mesmos canais dos organismos vivos. A Potência do Eterno
é a fonte e causa única de todas as potencialidades temporárias.
Nada mais?
Nada mais! Nada mais sei senão isto: que é desprezível o que morre e se
desvanece, e desejável o que é permanente e eterno.
Não queremos nada daquilo que ele deu, se ele, que tudo deu, não se der a si
mesmo.
Calem-se os céus!
Permite que eu fale da tua misericórdia, eu, pó e cinza, permite que eu fale. Pois
é à tua misericórdia que me dirijo, e não a um homem que de mim escarneça.
Ó eterna Verdade! Ó Amor verdadeiro! Que tormentos sofria o meu coração nas
dores de parto do conhecimento!... Deveras, não em buscar a verdade está a
beatitude, mas em possuí-la.
A ti suspirava eu, noite e dia, dizendo: pois, não tem a verdade valor algum?...
Interroguei a terra, e ela respondeu: Não sou eu! E tudo que nela existe
confessava o mesmo.
Interroguei o sussurro dos ventos e a atmosfera com todo o cortejo dos seus
habitantes, eles bradaram: Não somos nós teu Deus!
E foi então, meu Deus, que tu, de grande distância, clamaste: “Em verdade, eu
sou o que sou”.
Bem longínqua era esta voz, porém muito clara. E eu a ouvi, assim como se ouve
com o coração.
Assim foi que, conduzido por ti, meu Deus, entrei no meu interior e abri os olhos
de minh’alma — por mais turvos que eles fossem — e vi por cima de mim uma
luz imutável, não uma luz comum, visível a todo o ser carnal; não era dessa
natureza a luz; era bem mais clara e sublime e tudo enchia com os seus fulgores
— não, não era como as outras luzes. Era uma luz de natureza completamente
diversa. Quem conhece a verdade conhece essa luz. E quem a conhece conhece
a eternidade. Também o amor conhece essa luz.
Tu és meu Deus!
Acordei em ti...
Reconheci que “castigas o homem por causa do pecado” (Tb 13,5), que “fazes
definhar minha’alma qual teia de aranha” (IS. 38,12).
* * *
E eu orava: Deus, que és o autor do universo, dá-me antes de tudo que eu saiba
orar assim como convém. E ainda: Faze que tais sejam os meus atos que do teu
atendimento me façam digno. E finalmente: Faze com que eu encontre a
liberdade.
Deus, por cuja virtude atinge o ser tudo quanto por si mesmo não teria o ser...
Deus, que não deixas perecer o que na luta da vida se aniquila reciprocamente...
Deus, que do nada creaste o mundo, objeto de grato prazer a teus olhos...
Deus, que és a base de tudo, e por creatura alguma és contaminado, nem pela
ignomínia, nem pelo erro, nem pela malícia...
Deus, pai da verdade, pai da sabedoria, pai do verdadeiro e santo amor, pai da
felicidade, pai da bondade, pai do belo, pai da luz espiritual, pai da alvorada de
nossa alma, pai da iluminação, pai da voz, testemunha tua que nos convidou
para voltarmos a ti...
Deus-Sabedoria, no qual, do qual e pelo qual tudo é sábio o que tem sabedoria...
Deus-Felicidade, no qual, do qual e pelo qual tudo é feliz o que goza felicidade...
Deus, cuja perda é morte, cujo reencontro é renascimento, cuja posse perene é
vida...
Deus, para o qual nos desperta a fé, ao qual nos ergue a esperança, com o qual
nos une o amor...
Deus, pelo qual a nossa parte melhor se afirma contra a parte inferior...
Deus, pelo qual temos sede da bebida que, quando sorvida, nos dá sede
perene...
Deus, que nos purificas e nos tornas suscetível das coisas divinas...
Olha, que bem pesado tem sido o castigo que sofri... Por demais tenho servido
aos teus adversários, que manténs sob os teus pés... Por demais tenho sido alvo
de escárnio deste mundo falaz...
Não me resta senão voltar — bem o sinto...
Senhor, meu Deus, única esperança. Atende-me para que eu não desfaleça em
procurar-te, para que sempre procure com ardor a tua face. Dá-me a força de
procurar-te, tu, que te fazes encontrar e dás esperança cada vez maior de seres
encontrado.
Ante os teus olhos está o meu vigor e o meu desvigor — cura este, conserva
aquele.
Aumenta em mim esses dons, até que me transformes num homem perfeito.
* * *
Quão tarde te amei, ó antiga e sempre nova Formosura — quão tarde te amei!...
Eis que tu estavas dentro do meu coração — eu porém, andava fora, e lá fora te
buscava...
Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que entrasses em meu coração
e o inebriasses com a tua presença, para que eu olvidasse toda a minha miséria
e em íntimo amplexo te possuísse, meu único Bem!
Ó Deus, tu, que és o mais alto, o melhor, o mais poderoso, o mais benigno e
justo, o mais oculto e onipresente, o mais belo e terrível; tu, que és o permanente,
o incompreensível; tu, que és o imutável, e mudas todas as coisas; tu, que nunca
és novo e nunca és velho, e sempre renovas tudo (enquanto “os orgulhosos
envelhecem sem o saber” (Jó 9,5); tu, que sempre ages e sempre repousas; tu,
que recolhes sem sofreres necessidades; que procuras sem que nada te falte;
que amas sem te abrasares; que zelas sem te preocupares; que te arrependes
sem dores; que te irritas, mas em toda a paz — tu mudas as tuas obras, mas
nunca os teus desígnios; acolhes o que se lança aos teus braços, mas sem o
teres perdido; tu, que não conheces indigências, te alegras com o lucro; tu, que
ignoras o que seja avareza, reclamas os juros; pagam-te em excesso para te
reduzirem a devedor — mas quem possuiria algo que não te pertencesse?
Meu Deus! Vida e doçura minha! Que outra coisa poderia alguém dizer de ti, se
ousasse falar de ti? E, no entanto — ai daqueles que de ti se calarem, embora
sejam mudas as palavras mais eloquentes!
Eis que eu amo — e, se não for bastante, mais ainda te amarei. Não estou em
condições de medir o meu amor, se é suficiente, se nada lhe falta — nada! para
que a minha vida se identifique na união contigo e nunca mais de ti se afaste,
até que eu esteja perfeitamente amparado, oculto no mistério da tua face.
A única coisa que sei é que sou infeliz quando não te possuo — infeliz, não só
para fora, mas infeliz, infelicíssimo, dentro de mim mesmo. Sei que toda a
riqueza que não vem de ti é pobreza para mim.
Deus, acima do qual nada há; além do qual nada há; sem o qual nada há —
Deus, que me valerá tudo o que me dás, se não te deres a ti mesmo? Não, nada
me é doce a não ser que me conduza a ti, meu Deus. “A mim me convém aderir
a Deus” (SI. 72,28). Pois, se eu não ficar em ti, também não poderei ficar em
mim.
Quisera antes perder tudo e encontrar-te do que ganhar tudo e não te encontrar.
Tu nos fizeste para ti, Senhor — e inquieto está o nosso coração até que ache
quietação em ti”.
CAPÍTULO 31
Pela última vez estremeceu o rijo travejamento do império dos Césares. Pela
última vez tremeram os alicerces seculares da poderosa res publica. Pela última
vez gemeram os lábios moribundos do maior titã da história.
“Quanto mais se sabe mais se sofre”, dissera ele, e, porque muito sabia muito
sofria...
“Lágrimas eram o seu pão de dia e de noite”, diz Possidius, seu primeiro biógrafo,
que com ele vivia sob o mesmo teto.
Das províncias circunvizinhas chegavam consultas dos pastores espirituais, se
convinha fugir para o interior. “O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas”,
respondeu Agostinho.
No dia 28 de agosto de 430, enquanto lá fora, por entre o fragor das catapultas
e aríetes e o vociferar da soldadesca vandálica, ruía por terra um mundo que
parecia indestrutível, lá dentro, à penumbra duma cela paupérrima, se extinguia
um dos maiores luzeiros do Cristianismo...
1 — Retractationes
2 — Confessiones
3 — Soliloquia
4 — Contra Academicos
5 — De beata vita
6 — De Ordine
7 — De immortalitate animae
8 — De quantitate animae
9 — De Musica
10 — De magistro
11 — De libero arbitrio
14 — Epistolae
15 — De doctrina christiana
16 — De vera Religione
19 — De Genesi ad litteram
22 — Annotationes in Job
24 — De consensu Evangelistarum
26 — Quaestiones Evangeliorum
28 — In Joannis Evangelium
32 — Enarrationes in Psalmos
33 — Sermones de Scripturis
34 — Sermones de Tempore
35 — Sermones de Sanctis
36 — De diversis quaestionibus
40 — De fide et Symbolo
41 — De Fide et Operibus
43 — De Agone Christiano
44 — De catechisandis rudibus
45 — De continentia
46 — De bono conjugali
47 — De sancta virginitate
48 — De bono viduitatis
49 — De conjugiis adulterinis
50 — De mendacio
51 — Contra mendaciurn
52 — De opere Monachorum
53 — De divinatione daemonum
55 — De patientia
56 — De Symbolo ad Catechumenos
57 — De disciplina christiana
58 — De cantico novo
59 — De quarta feria
60 — De cataclysmo
61 — De Tempore Barbarico
62 — De utilitate jejunii
63 — De Urbis excidio
64 — De civitate Dei
65 — De Haeresibus ad Quodvultdeum
78 — Sermonem Arianorum
80 — De Trinitate
92 — De Spiritu et Littera
93 — De Natura et Gratia
95 — De Gestis Pelagii
97 — De nuptiis et concupiscentia
Rohden não está filiado a nenhuma Igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo.
Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden
Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor
hindu desse ashram.
Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
a fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU)
de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões
Comparadas; mas, em virtude da Guerra na Coreia, a universidade japonesa
não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado
professor de Filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, cargo do qual
não tomou posse.
Nos últimos anos, Rohden residia na cidade de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.
À zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir a Humanidade”.
A Filosofia Contemporânea
O Sermão da Montanha
Ídolos ou Ideal
O Caminho da Felicidade
Deus
Filosofia da Arte
Roteiro Cósmico
A Metafisica do Cristianismo
Novo Testamento
Lúcifer e Lógos
A Grande Libertação
A Voz do Silêncio
A Nova Humanidade
O Homem
Estratégias de Lúcifer
O Homem e o Universo
Imperativos da Vida
Profanos e Iniciados
Lampejos Evangélicos
Maravilhas do Universo
Alegorias
Isis
COLEÇÃO BIOGRAFIAS:
Paulo de Tarso
Agostinho
Pascal
Myriam
COLEÇÃO OPÚSCULOS:
Catecismo da Filosofia