Huberto Rohden - Agostinho

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Huberto Rohden

Agostinho
Um Drama de Humana Miséria
e Divina Misericórdia

UNIVERSALISMO
Agostinho

Corria o ano 386 da era cristã.

Historicamente, o mundo se transformava. Começavam a baixar sobre o Império


Romano as primeiras sombras.

Em Milão, num dia qualquer de agosto, um homem de 32 anos perambulava nos


jardins de sua residência, mergulhado em profundas reflexões sobre respostas
definitivas que dessem sentido à sua própria problemática existencial.

Em dado momento, ouviu uma voz, estranhamente infantil, vindo de dentro de si


mesmo e de todas as partes: “Tolle, lege! tolle, lege!”

Apressadamente volta à casa e lê, num livro sacro, aberto sobre a mesa, frases
de profunda significação.

Um estado de beatitude toma-lhe a alma, e uma espécie de luz invade-lhe a


compreensão, dissipando-lhe todas as trevas e incertezas.

Foi esta a hora suprema de Agostinho...

A hora da crise — a hora da redenção...

Morrera o pagão sensual de Cartago — nascera o cristão de Milão.

Desde esse dia de “renascimento espiritual” e após a sua morte física, em 430,
em Hipona, cidade romana da Numídia, na África, Aurelius Augustinus percorre
a História como um luzeiro da cultura antiga, influindo o pensamento de todo o
mundo cristão.

E ele mesmo, metafisicamente, se autodefine e define todo o ser mortal, com a


sua famosa resposta-conclusão: “Fizeste-nos para ti, Senhor — e inquieto está
o nosso coração até que ache quietação em ti”.

Agostinho é um gênio.

Nesta narrativa, biografado e biógrafo, identificam-se. ROHDEN, após estudar


103 obras, em latim, de Agostinho, e aprofundar-se em extensa bibliografia, nos
apresenta uma análise empolgante do autor de “A Cidade de Deus”.

Ninguém, como o autor desta biografia, penetrou tão profundamente na


hermenêutica agostiniana. ROHDEN, indo além de outros biógrafos, nos
esclarece que “o problema angustioso de Agostinho, não era propriamente uma
luta entre a carne e o espírito, nem era conciliar a inteligência analítica com a
razão intuitiva. O problema central da vida do genial africano de Tagaste, era o
problema: Cristianismo ou Cristo”.

O autor de “Confessiones” — um dos homens mais humanos e mais divinos que


a história conhece — raras vezes teve, como em ROHDEN, um biógrafo que o
apresentasse com tão genial compreensão e verdade.
Sumário

Advertência

Prefácio

Capítulo 1 — Agonia dum Grande Império — Um Lar Desarmonizado

Capítulo 2 — Um Recanto da Numídia. — Amigo de Brinquedos e Inimigo dos


Livros

Capítulo 3 — Madaura — Prelúdios do Amor

Capítulo 4 — Férias em Tagaste

Capítulo 5 — “Carthago Veneris”

Capítulo 6 — Deliciosa Amargura

Capítulo 7 — Clarões em Plena Noite

Capítulo 8 — Entre a Inteligência e a Fé. — O Maniqueísmo

Capítulo 9 — Novamente em Tagaste. O Profano Gozador

Capítulo 10 — Angústia Dum Coração de Mãe. Um Sonho e Muitas Lágrimas

Capítulo 11 — A Volúpia das Saudades

Capítulo 12 — Silencioso Clamor Duma Alma

Capítulo 13 — O Primeiro Livro — O Novo Tântalo

Capítulo 14 — Planos de Viagem. — Adeus, Cartago!

Capítulo 15 — No Labirinto Romano — Trabalhos — Desânimo

Capítulo 16 — Adeus, Roma! — Funcionário Público em Milão

Capítulo 17 — Agostinho e Ambrósio

Capítulo 18 — Planos de Casamento — Três Mulheres e Um Homem

Capítulo 19 — A Grandeza de Uma Mulher Anônima

Capítulo 20 — Perseguido pelo Cristo — Crise Redentora


Capítulo 21 — A Paz da Alma no Idílio da Natureza

Capítulo 22 — Saudades da África — Na Praia de Óstia

Capítulo 23 — O Monge de Tagaste

Capítulo 24 — Sacerdote de Surpresa e Bispo à Força

Capítulo 25 — Governador, Juiz e Bispo

Capítulo 26 — Agostinho Versus Pelágio

Capítulo 27 — “De Civitate Dei”

Capítulo 28 — Agostinho como Pensador Autônomo

Capítulo 29 — Creação e Evolução Segundo Agostinho

Capítulo 30 — Solilóquios com Deus (Fala Agostinho)

Capítulo 31 — A África no Poder dos Vândalos. Ocaso dum Grande Luzeiro

Cronologia

Títulos das Obras Completas de Agostinho

Dados Biográficos

Relação de Obras de Huberto Rohden


Advertência

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar


é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental — mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a transição


de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de gado.

Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.

A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila,
tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se
escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer


convenções acadêmicas.
Prefácio

O angustioso problema de Agostinho não era, propriamente, a luta entre a carne


e o espírito, como certos biógrafos fazem crer e como, por vezes, o próprio
Agostinho parece supor. Esta luta é mais um problema de juventude, e que é
notavelmente atenuado na idade madura.

Nem era, a bem dizer, o problema de conciliar a inteligência analítica com a


razão intuitiva.

O problema central da vida do genial africano de Tagaste, e que perdurou os 76


anos da sua existência terrestre, era o problema: Cristianismo ou Cristo. Sendo
que toda a alma humana, como diz outro africano genial, é crística por sua
própria natureza, Agostinho passou a vida inteira lutando, consciente ou
inconscientemente, pela cristicidade ou cristificação da sua alma, a despeito dos
muitos cristianismos que o cercavam.

No tempo de Agostinho existiam algumas dúzias de cristianismos, cada um dos


quais afirmava ser a única mensagem autêntica do Cristo.

A maior tragédia de um grande gênio é ter discípulos após sua morte, que, de
boa fé, se dizem autênticos continuadores do grande Mestre, sem atingirem os
vôos do espírito dele. Nenhum talento, por mais aguçado, tem a visão cósmica
do verdadeiro gênio; todo o talento opera no nível horizontal do ego humano, ao
passo que o gênio recebe suas revelações na vertical duma invasão cósmica da
própria alma do Universo.

No tempo de Agostinho havia cristãos maniqueus, cristãos arianos, cristãos


pelagianos, cristãos donatistas, cristãos gnósticos, cristãos písticos, cristãos
monofisitas, cristãos monoteletas, cristãos nestorianos, cristãos católicos
ortodoxos, cristãos católicos romanos, etc. etc. Na cidade imperial de Milão
predominava o cristianismo católico romano, representado pelo imperador
Teodósio, pelo bispo Ambrósio, e por Mônica, mãe de Agostinho. Aos 32 anos o
filho de Mônica resolveu finalmente aceitar o cristianismo católico romano, não
como uma solução definitiva das lutas metafísicas do seu espírito inquieto, mas
como o melhor expediente do momento, sobretudo para contentar Mônica, que
chorara e orara 30 anos pela conversão do seu predileto caçula.

Todas as obras de Agostinho provam que ele nunca lançou âncora num porto
definitivo; o seu gênio navegava, em intermináveis odisséias, por todos os mares
tempestuosos dos pensadores inquietos. Horrorizado com as dezenas de
cristianismos em litígio, viu Agostinho a imperiosa necessidade de estabelecer
certa unidade no meio da caótica pluralidade das teologias cristãs, e o
cristianismo católico romano, sob os auspícios do próprio Imperador, prometia
garantir certa unidade. Se essa unidade externa coincidia com a verdade interna
— isto era outra pergunta, antes de consciência individual do que de
conveniência social.

Depois de ter abraçado oficialmente o cristianismo dominante em Milão,


continuou Agostinho, durante os restantes 44 anos de sua vida, a ansiar por seu
encontro pessoal com o Cristo. Não fosse ele o gênio metafísico que era, teria
identificado o cristianismo com o Cristo, ou com a cristicidade, como fazem
certos talentos teológicos. Mas, para Agostinho, a conversão oficial não era a
chegada a uma meta final; era apenas uma etapa na interminável jornada
evolutiva rumo ao Cristo. Para ele a posse não o dispensava duma busca ulterior;
o achar o impelia a procurar mais; a certeza gerava novas incertezas.

É esta a dolorosa felicidade dos grandes gênios; a sua felicidade está na certeza
de estarem no caminho certo — a sua dolorosidade está em se saberem longe
da meta final, porque eles sabem ou vislumbram que todo o finito em demanda
do Infinito está sempre a uma distância infinita. A vida eterna não é uma chegada
— é uma incessante jornada em linha reta.

Os livros dos últimos anos de Agostinho revelam uma progressiva superação da


análise intelectual e uma crescente aproximação da intuição espiritual. Em parte,
o filho de Mônica preludiou o itinerário de Tomás de Aquino, que, pelo fim da sua
vida, depois de ter provado com cinco argumentos analítico-intelectuais, a
existência de Deus, confessou “tudo que escrevi é palha”.

Também Agostinho, nos últimos anos de sua peregrinação terrestre, ultrapassou


a linha horizontal do intelecto e se deixou invadir pela misteriosa vertical da razão
espiritual, que é a mística sadia.

“Deus, noverim me ut noverim te” (Deus, conheça eu a mim para que te conheça
a ti) — palavras como estas marcam a saída do monoteísmo dualista da teologia
e a entrada no monismo unitário da filosofia cósmica,

“Deus, onde estavas tu — pergunta Agostinho — quando eu vivia nos meus


pecados?” Responde Deus: “Eu estava no meio do teu coração”. Replica
Agostinho: “Como podias tu, a Infinita Santidade, estar no coração do maior
pecador?” E Deus responde: “Agostinho, eu estava sempre presente a ti, mas tu
andavas sempre ausente de mim”. Com essas palavras confessa Agostinho a
imanência de Deus em todas as creaturas, e que o pecado não consiste na
ausência de Deus, mas na inconsciência da sua presença por parte do homem.
A evolução ascensional de Agostinho culmina em auto-conhecimento e auto-
realização, como diríamos em terminologia hodierna, culmina na compreensão
das palavras do Cristo: “Eu e o Pai somos um... o Pai está em mim... o Pai
também está em vós”.

* * *

No século quinto, o tronco do Cristianismo não acusava ainda a bifurcação nos


dois galhos de cristianismo católico e cristianismo protestante (evangélico). Em
face disto se compreende que tanto católicos como protestantes invocam a
autoridade de Agostinho. Quando, decênios atrás, resolvi escrever esta
biografia, encontrei as obras completas de Agostinho, em latim, somente na
Faculdade Teológica de uma Igreja Evangélica.

Nos últimos tempos, sobretudo desde o Concílio Vaticano II, verifica-se uma
reconvergência dos dois galhos cristãos para uma harmonização ecumênica;
decrescem as divergências teológicas, cresce a convergência cristã das igrejas.
Possivelmente, Agostinho poderia ter dito o que, em nosso século, Mahatma
Gandhi disse aos missionários cristãos que tentavam convertê-lo: “Aceito o
Cristo e seu Evangelho, não aceito o vosso cristianismo”. E talvez mesmo com
Albert Schweitzer poderia ter dito: “Nós injetamos aos cristãos o soro da nossa
teologia, e quem é vacinado com o soro da teologia cristã está imunizado contra
o espírito do Cristo”.

Agostinho, a despeito de tantas teologias cristãs em litígio, rompeu caminho


rumo ao Cristo, realizando o sentido das suas próprias palavras: “Fizeste-nos
para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que ache quietação em ti”.
CAPÍTULO 1

Agonia dum Grande Império —


Um Lar Desarmonizado

Incide a vida de Agostinho num período histórico estranhamente caótico sob


todos os pontos de vista.

Baixavam sobre o Império Romano as primeiras sombras do crepúsculo.

Ventos outonais arrebatavam da gigantesca árvore folhas murchas,


dispersando-as por todas as latitudes e longitudes do universo.

Todos os organismos, quer individuais, quer sociais, têm o seu nascimento, a


sua evolução, atingem o apogeu da sua vitalidade — e vão decaindo, decaindo,
em virtude de leis inerentes à sua própria natureza, até desaparecerem da face
da terra e cederem lugar a novos fenômenos.

Roma esgotava-se em orgias e bacanais.

Digladiavam-se em sangrentas guerras civis os chefes do Império.

Roía a medula da nação a gangrena de infrene luxúria.

A aristocracia romana apodrecia, moral e fisicamente, nas salas de banquete e


nos lupanares.

O povo explorado e gemendo sob o peso de tributos cada vez mais onerosos,
esperava, impaciente, por uma ocasião para sacudir o jugo e vingar-se da tirania
dos poderosos opressores.

Pelas vastas fronteiras, européias, asiáticas e africanas, do Império espreitavam


Godos, Vândalos e Hunos, povos selvagens, semi-bárbaros, porém cheios de
audácia juvenil; ansiosos, aguardavam o momento para pilhar os grandes
centros do Império e arrasar uma civilização milenar.

O mais funesto dos males, porém, era o paulatino estancamento dos mananciais
da vida. Milhares de famílias romanas eram desertos estéreis, lares sem filhos,
lindos recantos com todo o luxo e conforto da época, mas sem o alegre sorriso
duma vozinha infantil — e que futuro pode esperar uma nação em cujo seio é
maior o “deficit” da morte que o saldo da vida?...
Suicidava-se lentamente o gigantesco Império dos Césares...

Três séculos havia que o divino fermento do Evangelho se achava empenhado


numa luta titânica com as potências adversas, que procuravam sustar-lhe a
marcha e realizar o sacrílego vaticínio de Diocleciano: “Christiano nomine deleto”
— extinto o nome cristão! Verdade é que, já nesse tempo, haviam cessado as
carnificinas de Nero; mas a própria corrupção interna provou-se muito mais
funesta ao espírito do Evangelho do que todas as violências externas. O
Cristianismo estava rasgado de discórdias. Tão abundantes e poderosas
pululavam as heresias que São Jerônimo, contemporâneo de Agostinho, chegou
a ponto de afirmar que, um dia, despertou o orbe terráqueo — e viu que era
ariano.

Em 313, pelo edito de Milão, o Imperador Constantino Magno, deu liberdade ao


Cristianismo, que, depois de três séculos de vida nas catacumbas, começou a
viver na superfície da terra. Nem a mística das catacumbas, nem o martírio do
Coliseu foram capazes de exterminar a mensagem do Cristo. Mas a liberdade
lhe foi mais funesta do que as perseguições, porque juntamente com a liberdade
Constantino deu aos cristãos três presentes gregos: armas, política e dinheiro —
armas para matar seus inimigos, política para enganar os amigos, e dinheiro
para comprar e vender consciências.

Dentro de um século surgiram algumas dezenas de cristianismos, cada um dos


quais afirmava ser a verdadeira e única mensagem do Cristo. Hoje, essas
poucas dezenas proliferaram em centenas e milhares de cristianismos; pois toda
a análise de coisas espirituais é desastrosa e mortífera; toda e qualquer teologia
analítica, substituindo a vivência intuitiva, é dissolvente. A própria palavra grega
analysis quer dizer dissolução.

Um século após a libertação do Cristianismo por decreto imperial, o ocidente


cristão do Império Romano, europeu, asiático e africano, se digladiava em
controvérsias sobre a verdadeira mensagem do Cristo.

No meio desta atmosfera nasce, na província romana da Numídia, ao norte da


África, uma criança de débil constituição — e nasce num lar que era bem o
reflexo e a miniatura do triste estado mundial.

Era chefe da família um homem por nome Patrício, pagão, espírito medíocre,
cuja principal aspiração se cifrava na posse de bens materiais e no brilho das
glórias mundanas. Descendente, talvez, dum antigo legionário romano, herdara
dos seus maiores uma modesta propriedade na cidade de Tagaste e ocupava
um cargo na Prefeitura local.

Sua esposa, Mônica, era bem o avesso de Patrício. Se jamais existiu


“incompatibilidade de gênio”, então foi nesse matrimônio, tão profundamente
heterogêneo. Nesses tempos era o noivo escolhido pelos pais e impingido à
jovem, que não tinha voz ativa nesta importante decisão da sua vida.

Mônica, de estirpe púnica, filha talvez de distinta família cartaginesa, era cristã,
e revela-se-nos, através de tudo que dela sabemos pelos escritos do grande
filho, inteligência lúcida, alma de forte sensibilidade, coração dotado de grande
potência afetiva.

Parece que a esposa de Patrício não encontrou na vida conjugal o necessário


desafogo para a potencialidade de sua alma feminina. Insatisfeita como mulher,
tornou-se sublime como mãe. Procurou no amor materno um substituto para o
amor conjugal deficiente. Concentra num de seus filhos toda a afetividade — que
não encontrara no coração do marido.

Sabemos de dois filhos e uma filha deste casal. Navigius parece ter sido o mais
velho dos três. Porque concentrou Mônica o seu amor precisamente no segundo
filho, e não em Navigius ou na filha?

Insondáveis mistérios da afinidade, ou, se preferirem, da polarização dos


espíritos. Não sabemos quais os elementos que se atraem, e quais os que se
repelem, no mundo psíquico. Será como na eletricidade, onde pólos iguais se
repelem e pólos desiguais se atraem? Neste caso, a chamada “afinidade” teria
precisamente por base a diferença, a heterogeneidade dos caracteres, que se
uniriam como complemento um do outro.

Tem se dito — e muitos casos históricos o confirmam — que os grandes gênios


da humanidade são, geralmente, filhos de lares profundamente desarmonizados.

No caso que assim seja, compreende-se o porquê deste fenômeno.

O curso suave e plácido da vida familiar embala a criança, o jovem, na tépida


atmosfera dum bem-estar, deixando de ferir certas cordas que dormitam nas
profundezas da alma humana — ao passo que as dolorosas tempestades
provocadas pela desarmonia doméstica sacodem, abalam, agitam com tal furor
o espírito do homem em formação que lhe despertam nas profundezas as
potências dormentes, jogando a pobre vítima desse terremoto espiritual ao meio
do campo de batalha da vida humana.

A alma juvenil que acorda num lar infeliz volta-se desde cedo para as realidades
circunjacentes, em busca dum paraíso que a sorte adversa lhe negou no seio da
família. É uma plantinha que, em vez de medrar pacificamente na tépida
atmosfera dum jardim cuidadosamente cercado e cuidado, é obrigada a lutar, à
beira da estrada, com impiedosos vendavais e suportar as intempéries da
natureza — clima esse propício à evolução dos grandes heróis da humanidade
— e também dos grandes celerados da história...

Gênio do bem — ou gênio do mal...


Sol vivificante — ou incêndio arrasador...

Num ambiente assim nasceu um dos homens mais humanos e mais divinos que
a história conhece.
CAPÍTULO 2

Um Recanto da Numídia.
— Amigo de Brinquedos e
Inimigo dos Livros

Murmuram as límpidas águas do rio Bagradas, e, cada vez mais volumosas, vão
em demanda do golfo azul que hoje tem nome de Túnis.

Espelham-se na vasta superfície do salso elemento as casas maciças de


Cartago, um dia poderosa rival de Roma, e, nesse tempo, apenas um empório
comercial do Império. De ingentes lutas parece falar o mutismo das ruínas em
derredor: do sangrento encontro de Cipião e Aníbal, do passo cadenciado das
legiões dos Césares, do drama secular de dois povos a digladiar-se pela
hegemonia do mundo.

No ano 146 antes da era cristã rendera-se ao conquistador a histórica metrópole


da África, romântico cenário dos trágicos amores de Dido e Enéas. Reconstruída
pelos Romanos, apresentava Cartago aspecto mais moderno; faltava-lhe,
porém, aquele vetusto misticismo pré-histórico, que parecia dormitar ainda sob
o verde musgo que cobria os blocos de granito dispersos pelas encostas das
montanhas circunvizinhas.

Tombara a capital da África sob o furor das catapultas e dos aríetes romanos;
mas as vastas regiões da Numídia resistiram ao tirânico invasor.

Só um século mais tarde (46 a.C.), após a batalha de Tapsus, conseguiram os


Césares ocupar definitivamente a província da Numídia (hoje Constantine, na
Argélia).

Quebrado o principal centro de resistência, poucos anos depois, em 34 a.C.,


dominaram as águias do Capitólio todo o norte do continente, zona então
chamada Mauritânia (hoje Marrocos).

Decorreram séculos de intenso labor cultural.

À medida que o gênio construtor de Roma organizava essas regiões riquíssimas,


semeando em campos adubados de sangue e de lágrimas os germes da
civilização ocidental, percorriam os arautos do Nazareno, sem armas nem
dinheiro, as cidades e aldeias do vasto continente, espalhando idéias em
flagrante contraste com o espírito da época.

No seu curso superior, banha o rio Bagradas (hoje Oned Medjerda) uma
cidadezinha que os habitantes púnicos e os conquistadores europeus
chamavam Tagaste, e os nativos de hoje apelidam de Souk-Ahras.

Do importante porto setentrional Hippo-Regius partia uma estrada geral, rumo


sul, para Teveste, onde começava o mistério do deserto.

Os tempos modernos lançaram pelo leito desta antiga estrada de rodagem as


paralelas duma via férrea, que vai de Bône (a Hippo-Regius dos Romanos, e
nossa Hipona) à atual Tebessa (Teveste), cortando, na sua primeira metade, a
aldeia de Souk-Ahras (Tagaste), onde uma ponte de ferro lhe faculta passagem
sobre o Oned Medjerda (Bagradas).

Quantas vezes não terá este rio levado sobre o seu dorso as frágeis barquinhas
de cortiça que uma criança não menos frágil fabricava e lançava às ondas,
contemplando-as na sua célere viagem a ignotas regiões!

No topo duma das colinas arredondadas que circundaram o planalto de Tagaste,


verdejava farto vinhedo, por detrás do qual alvejavam os muros duma casa
modesta, onde residia o casal Patrício-Mônica.

No dia 13 de novembro de 354 achava-se em festa o lar no alto do outeiro.


Aparecera mais um bebê. Era o segundo pimpolho de Mônica, a qual contava
apenas 22 anos de idade.

Após alguma discussão, foi dado ao recém-nascido o nome latino Aurelius


Augustinus, nome em que parece vibrar uma discreta saudade de Patrício,
descendente de algum antigo legionário dos Césares. Marcus Aurelius, Caesar
Augustus — dois nomes gloriosos e queridos ao coração de todo militar romano
orgulhoso do imperador-filósofo e do imperador-soldado. Por que não podia um
nome ilustre ser presságio de futura celebridade?... não é que a fé num excelso
ideal costuma ser o berço duma grande realidade?...

Com estranheza ouvirá o piedoso leitor que o menino não foi batizado, ele, filho
de “santa Mônica”... Mais tarde, chegado ao uso da razão, resolveria Agostinho
por si mesmo se queria abraçar o diluído paganismo do pai ou o nítido
Cristianismo da mãe.

Nesse tempo, não era ainda costume batizar crianças; nem João Batista nem
Jesus conheciam batismo de crianças. O conceito de “pecado original” é
totalmente alheio ao Evangelho do Cristo.

Mônica, porém, mui dentro de sua alma, estava convencida de que seu filho
acabaria por abraçar espontaneamente o Evangelho do Cristo. Uma voz íntima
dizia-lhe que a alma de seu Agostinho era “naturalmente cristã”, como dissera
seu grande patrício Tertuliano.

Na igreja cristã da África, como em muitas outras partes, vigorava a praxe de


conferir o batismo aos adultos, mas não às crianças.

Jesus, que tão carinhosamente abraçou as criancinhas da Palestina, não terá


olhado com amor também para o filhinho pagão de Mônica, como olhou para as
crianças israelitas do seu tempo? “de tais é o reino dos céus”.

Por então, só foi traçado na fronte de Agostinho o sinal da cruz — e a criança


fazia parte do número dos “catecúmenos”.

E catecúmeno ficaria por mais de trinta anos.

* * *

Nas suas “Confessiones” refere-se o autor à primeira quadra da sua vida, e ele,
o profundo filósofo e preclaro metafísico, sabe descrever episódios da sua
infância com tão ingênua simplicidade e ternura como uma mãe a contar os
primeiros passos de seu filhinho.

“Era eu uma criança de peito — diz ele — que se conservava quieta, quando se
sentia bem, e chorava quando lhe doía alguma coisa. Depois, comecei a sorrir,
primeiro em sono, mais tarde, acordado. Com o tempo cheguei a dar conta de
mim, sabia onde estava. Para manifestar os meus desejos, agitava as pernas e
as mãozinhas e gritava a valer”.

Não lhe despertara ainda a razão, confessa Agostinho, e já ouvira inúmeras


vezes, dos lábios de sua mãe, o adorável nome de nosso divino Salvador.

Traçado assim em carta branca, não podia o nome de Jesus apagar-se jamais
da alma do ardente africano, embora viesse, mais tarde, a obliterar-se por longos
anos, ofuscado pelas paixões e pelos fogos fátuos das glórias mundanas.

É esta uma das mais tristes e também das mais consoladoras leis da psicologia:
chegará a vingar um dia o que foi semeado na terra virgem da alma humana.
Nada se perde. Parece que estas primeiras sementes lançadas à alma ainda
incolor, amorfa e vácua, formam nela potências dormentes que, passado o
período de hibernação, aparecem como forças atualizadas, como valores reais
em estado consciente e vígil.

Pode o despertar dessas energias dormentes ser para o homem um cataclismo


destruidor e pode ser também uma epopéia construtora de maravilhas. Tudo
depende da natureza dessas energias.

Em princípios do nosso século, foi um cientista ao Egito desenterrar o sarcófago


duma múmia. E encontrou ao lado do cadáver mumificado grãozinhos de
cereais, que nesse ambiente recluso haviam dormido milhares de anos. Plantou-
os — e eis que os grãozinhos brotaram.

Ainda criança, adoeceu Agostinho. Oscilou por diversos dias entre a vida e a
morte. Lembrou alguém que o menino, antes de morrer, devia ser batizado.
Entretanto, mal passou o perigo, e novamente foi adiado o batismo.

“Dizia-se — escreve Agostinho nas “Confessiones” — que eu, mais tarde,


fatalmente, me mancharia com pecados, enquanto me durasse a vida, e que
seria maior e mais funesta a minha culpa se, depois de purificado, tornasse a
cair no lodaçal do pecado”.

“Dilata est mundatio mea, quasi necesse esset ut adhuc sordidarer, si viverem”.

* * *

Tagaste era, nesse tempo, um dos notáveis centros comerciais da Numídia, zona
riquíssima em madeiras de lei, em cereais, ótimos vinhos e outros produtos
agrícolas. Ali, no vasto mercado à margem do Bagradas, confluíam os
negociantes das províncias limítrofes. Os pastores de Aurés com seus rebanhos
de gado; os fabricantes de artigos de couro e de palha; os vendedores de
tâmaras do Saara, mármores de Simithu — tudo isto era exposto à venda no
empório de Tagaste.

A cidade natal de Agostinho não era talvez uma “cidade maravilhosa” segundo
o nosso modo de ver hodierno; mas possuía algumas vias públicas que faziam
jus ao título de avenidas ou alamedas. Nem lhe faltava uma esplêndida galeria
ou colunata. Na vizinha cidade de Tubursicum foram escavados restos de um
teatro, dum forum e dum “Gymnasium” (estádio para exercícios físicos) — e por
que não teria Tagaste possuído semelhantes melhoramentos?

* * *

Cada idade da vida humana tem o seu “centro de interesses”.

Na infância e adolescência prevalecem os fatores que se referem ao


desenvolvimento do organismo e dos sentidos. Comer e brincar — são os
valores máximos da ante-primavera da vida.

Mais tarde, terminada mais ou menos a fase construtora do Eu, aparece nos
horizontes da vida um Tu. Começa o período social. Sente o jovem a sua solidão.
Sonha a donzela com um amigo que a compreenda e ampare. Desperta o amor,
faz-se mister garantir-lhe a subsistência e prosperidade — e prepondera então
na vida humana o elemento econômico. O homem, chefe de família, torna-se
cada vez mais negociante.

Nesta altura da vida, em plena posse do Eu e do Tu, na posse dos elementos


que garantem a vida e seus possíveis encantos, começa o homem pensante a
sentir quase sempre, com crescente nitidez a veemência, o clamor dos magnos
problemas da vida espiritual, as dolorosas esfinges da metafísica e as profundas
revoluções do próprio Eu.

A maior parte das grandes conversões da história incide neste terceiro período.

Agostinho, em Tagaste, achava-se ainda na primeira fase. Dormitava ainda a


sua alma infantil no paraíso da ignorância dos campos de batalha que, bem cedo,
o arrastariam a lutas interiores.

Brincar, jogar, correr, divertir-se, ver coisas bonitas e novas, cenas


movimentadas, de forte colorido, aventuras sensacionais — tudo isto é o
eldorado da criança sadia e normal. É o prelúdio do trabalho físico, intelectual e
moral que aguarda o homem futuro — é, a bem dizer, esse mesmo trabalho em
forma embrionária. Querer proibir à criança esse ambiente infantil, seria tão
absurdo e irracional como vedar ao jovem o amor, ou interditar ao homem
maduro a atividade intelectual e comercial.

Em casa de Mônica, felizmente, reinavam a inteligência e o bom-senso.

Agostinho foi uma criança, em todo o sentido da palavra.

* * *

Aos seis anos transpôs Agostinho o limiar do primeiro santuário do humano


saber.

E — para consolo de muitas celebridades — revelou-se péssimo aluno de escola


primária.

Coisa estranha! a maior inteligência filosófica do século foi o desespero do


mestre-escola de Tagaste.

Entretanto, luminosa lição teria sido para os mestres esse fracasso escolar do
pequeno Aurelius Augustinus, se eles tivessem tido o necessário critério para
compreender a lição do aluno — e a sua própria insensatez...

A alma da escola de Tagaste era a vara, o terror, o espantalho do castigo.

Desde o dia em que o cachopinho transpôs pela primeira vez os umbrais da


escola e defrontou com o seu primeiro mestre, encheu-se-lhe a alma sensível de
tanta repugnância aos livros que jurou guerra de morte a esses emissários
papiráceos de Satanás que, mais tarde, escreveria uma verdadeira biblioteca de
obras imortais.

“Unum et unum duo, duo et duo quatuor — odiosa cantio mihi erat; et
dulcissimum spectaculum vanitatis equus ligneus plenus armatis, et Trojae
incendium, atque ipsius umbra Creusae — um mais um são dois, dois mais dois
são quatro — que odiosa cantilena me era isto! e que dulcíssimo espetáculo de
vaidade aquele cavalo de madeira, repleto de gente armada, aquele incêndio de
Tróia, e a própria sombra de Creusa”.

A bola de jogo, a corda de pular, os barquinhos de cortiça ou de papel, as


corridas pelas montanhas, a caça aos passarinhos, as artes dos
prestidigitadores, a natação no rio Bagradas — isto, sim, era vida para ser vivida!
Finalmente, porém, aprendeu a ler, escrever e contar sofrivelmente — sabe Deus
com quantas lágrimas e à custa de quantas marcas lívidas deixadas pela vara
pedagógica nas carnes do frágil corpinho.

“Apanhei muito” — confessa Agostinho na sua autobiografia, rememorando este


período. Quando via o professor empunhando o ominoso instrumento de
suplício, tremia o menino em todo o corpo, e, como diz ingenuamente, punha as
mãozinhas em oração e todos os dias pedia a Deus que o preservasse do
castigo. “Livrai-nos do mal” — estas palavras com que a mãe terminava, todas
as noites, a oração dominical, faziam surgir aos olhos da débil criança o maior
dos males que ele conhecia de ciência própria — a vara ou a correia de couro
do mestre-escola.

“Puer, coepi rogare te, Domine, auxilium et refugium meum... rogabam te parvus,
non parvo affectu, ne in schola vapularer — ainda menino comecei a rogar-te,
Senhor, auxílio e refúgio meu... rogava-te, em pequeno com não pequeno afeto,
para que não apanhasse na escola” (Conf. IX, 14).

Foi nesse tempo, parece, que se formou na alma de Agostinho um estranho


“complexo” — como diriam os psicanalistas — complexo que, mais tarde, quando
moço, o levou a desprezar soberanamente todo e qualquer vínculo de ordem e
disciplina como injustiça e tirania. Se a vara do professor era a encarnação da
crueldade e da injustiça, como à criança dizia uma instintiva intuição, por que
não taxaria o jovem de prolongamento dessa mesma tirania a proibição materna
de gozar o que se lhe afigurava deleitoso? Um atentado aos sagrados direitos
da personalidade!...

A coação externa, sem a competente motivação interna, pode ser para o


educando, como para todo homem, ocasião, de funesta ruína; pode dar em terra
com todo o edifício dos valores éticos da sua vida. Em última análise, a única
norma dos nossos atos é a consciência — a voz de Deus dentro do homem —
suprema instância nesse perene litígio entre o lícito e o ilícito, entre o pecado e
a virtude, entre o bem e o mal. A formação da consciência é o primeiro e último
postulado de toda a pedagogia.

Do que Agostinho nos diz em suas “Confessiones” depreende-se que não se


sabia ainda na escola de Tagaste o que fosse ensino e educação individual.
Todos os alunos eram tratados da mesma forma, passados pelo mesmo chavão,
aferidos pela mesma bitola, como se as almas e inteligências fossem
mercadorias em série.
“Non deerat, Domine, memoria vel ingenium, quae nos habere voluisti pro illa
aetate satis; sed delectabat ludere; et vindicabatur in nos ab eis qui talia utique
agebant. Sed majorum nugae negotia vocantur; puerorum autem talia cum sint,
puniuntur a majoribus — não me faltava, Senhor, memória ou engenho que, para
aquela idade, te aprouvera dar-me suficiente; mas era deleitável brincar; e eu
era castigado por aqueles que não deixavam de fazer outro tanto. Mas, as farsas
dos adultos chamam-se negócios, ao passo que os meninos, quando se
entregam às mesmas, apanham dos adultos” (Conf. IX, 15).

Possuímos numerosos painéis sobre santo Agostinho — e nenhum sobre o


pequeno Agostinho, aluno da escola elementar de Tagaste, ou, como ele diz,
sua “penitenciária”.

Seria interessante representar uma escola africana do quarto século: meninos


bronzeados, cabelo de azeviche, sentados em tamboretes, ou acocorados em
esteiras e tapetes, como ainda hoje se vê em certas escolas da Arábia e Turquia.
Qualquer casa, barraca ou paiol servia de condigno local para instalação desses
primitivos templos do humano saber.

Mais tarde, quando na alma do pequeno númida despertou o patriotismo afro-


latino, gostava ele de tomar parte em certos jogos e certames que a meninada
de Tagaste e de outras cidades organizava, brincando de romanos e
cartagineses, de gregos e troianos, de Aníbal e Cipião, de Aquiles e Heitor, etc.
Muitos desses entretenimentos eram brutais, degenerando, não raro, em
verdadeiras brigas e lutas físicas travadas com projéteis de paus e pedras.

Em casa, estava a educação de Agostinho ao cargo exclusivo de Mônica.


Patrício não se interessava por semelhantes coisas. Contanto que o filho
conseguisse galgar, um dia, elevada posição social, conquistasse honras e
glórias — e todo o resto lhe era indiferente. O pai tinha ilimitada confiança nos
dotes naturais e na ambição do pequeno.

Eram realmente notáveis esses dotes. Com extraordinária facilidade e presteza


apreendia o menino qualquer pensamento, quando não ameaçado pelo
fantasma do castigo físico. Compreendia mais em virtude duma intuição imediata
do que pelo processo lento e complicado do silogismo. As suas idéias lembravam
intensos lampejos de gênio, e não tranquilas lâmpadas de homem talentoso.

Já nesse tempo, como se vê, era Agostinho mais platônico do que aristotélico.

Nenhum homem se torna o que não é. O que desde o início não está dentro do
homem, em germe e virtualmente, não se pode nele manifestar em evolução e
plenitude. Todo homem já é em potência o que mais tarde será em ato.

O pequeno Agostinho sentia também nas veias um quê de aventureiro. Gostava


de reunir em torno de si um bando de garotos da sua idade e chefiá-los para a
pilhagem de alguma horta repleta de sedutoras árvores frutíferas. Quanto maior
o perigo, mais interessante a aventura. Invadia a despensa da casa paterna e
distribuía previamente gulodices aos camaradas, a fim de estimulá-los à
coragem e intrepidez, “Viver perigosamente”, diria Nietzsche.

Se outro fora o destino, outro o ambiente de Agostinho, quem sabe se, em vez
dum luminar do Cristianismo, não teria dado um famoso caudilho de bandidos,
tipo Lampião, ou então um segundo Aníbal...

* * *

Inteligente e perspicaz, não deixava o menino de perceber a lamentável discórdia


que separava as almas de seus progenitores. Todos os bons conselhos que
Mônica lhe dava, todas as piedosas recomendações tendentes a fazê-lo amar
as virtudes cristãs, eram varridas do espírito do filho pelo exemplo de Patrício.

Assim atingiu Agostinho o 12.º ano de vida, com o espírito atulhado dum caos
de conhecimentos desconexos, e a alma repleta duma babel de conceitos morais
em conflito uns com os outros.

E, ainda por cima, estava o rapazinho disposto a desdenhar radicalmente tudo


quanto se chamasse ciência e virtude.

Nem o pai nem a mãe valeram mostrar-lhe o caminho da vida — Agostinho ia


descobrir por si mesmo essa maravilha, que tão promissora lhe sorria.

E lá se foi, mar em fora, a frágil barquinha, sem bússola nem leme!...


CAPÍTULO 3

Madaura — Prelúdios do Amor

Seguindo a ótima estrada estratégica Hippo-Tagaste-Teveste, chegava o


viandante do 4.º século, poucas horas depois de deixar Tagaste, a uma cidade
situada num vasto descampado, da qual restam apenas umas escassas ruínas
— fragmentos de mausoléus, pedras dispersas duma fortaleza bizantina, e
pouco mais.

É o berço e o túmulo de Madaura.

Foi ali que Agostinho cursou Ginásio, se assim se pode dizer. E foi também ali
que principiou, propriamente, a dolorosa odisséia desse arrojado e inquieto
bandeirante da verdade.

Tagaste era um idílio de luzes e sombras, um misto de escalvadas cúpolas de


montanhas e luxuriantes vargedos.

Madaura tinha um quê de épico e de trágico ao mesmo tempo. Aquela atmosfera


saturada de luz solar; o longínquo anfiteatro rochoso do Aurasius cingindo
imensas planícies de precária vegetação; para o leste, as estranhas silhuetas
duma cordilheira a recortar as linhas do horizonte; para o sul, uma desordenada
sucessão de colinas lembrando pirâmides, monstros pré-históricos ou
gigantescos tubos de órgão, em que os ventos do deserto soluçavam as suas
tristes elegias — tudo isto era de molde a encher a alma de meditação, de
silêncio, de nostalgia e de eternidade...

Tagaste parecia um sorridente presépio para crianças inocentes — Madaura era


uma esfinge cujos olhos hirtos interrogavam o Infinito...

Neste cenário africano, feito de espaços e de luzes, despertou a alma de


Agostinho do sono hibernal da infância para a vigília da doce e amarga realidade.

O coração vibrátil do adolescente soube amar quase com a mesma paixão os


sempre antigos e sempre novos encantos da Natureza com que, pouco depois,
o jovem estudante de Cartago se enamoraria de voluptuosos corpos femininos,
e, mais tarde o místico de Milão e Hipona abraçaria a imortal formosura da
intangível Divindade...
“Se as coisas sensíveis não tivessem alma — escreve ele, no apogeu da sua
espiritualidade — não as poderíamos amar com tanto ardor”.

Paulo de Tarso, desde que contemplou as belezas do céu, na pessoa do Cristo


redivivo, esqueceu-se de quase todos os encantos da terra; a sua teologia é
árida, abstrata, longínqua, super-terrena, nada poética; empalideceram-lhe
todas as auroras do mundo aos fulgores meridianos do Cristo, rei imortal dos
séculos...

Bem diverso é o gênio de Agostinho; nunca deixou de ser poeta no meio das
suas especulações filosóficas e místicas; jamais conseguiu a inteligência, por
mais poderosa, asfixiar-lhe o coração. As suas obras estão repletas de imagens,
cenas, episódios colhidos na sorridente e nostálgica natureza da pátria. Neste
particular, parece-se o poeta-filósofo da Numídia mais com o divino Rabi da
Galiléia do que com o apóstolo-teólogo da Cilícia.

O Evangelho do Nazareno é, quase todo ele, uma epopéia de maravilhas


poéticas. Mais numerosas que os anos da sua vida são as imortais parábolas
que lhe brotaram dos lábios. Vão para diversas centenas as lindas alegorias que,
quais centelhas de luz, saltaram da sua preclara inteligência e vivaz imaginação.

De modo análogo, Agostinho. As suas obras são sempre modernas, porque


tecidas das luzes da inteligência, das cores da fantasia e dos perfumes do
coração.

Agostinho é, antes de tudo, o cantor da luz, o poeta da claridade solar. Ninguém


como ele soube descobrir nas ondas luminosas, que vibram no universo, tão
belas e verdadeiras analogias com a eterna e increada luz da Divindade.

“Deus é luz, e não há trevas nele” — escreve o apóstolo do amor.

O que os olhos de Agostinho bebiam avidamente, na taça imensa daquela tépida


atmosfera da Numídia, ainda não era dado, então, à sua alma sedenta de
verdade, mas ainda sepulta nas trevas do erro e do pecado. Só daí a uns
decênios seria o veemente heliotropismo dessa “alma naturalmente cristã”
satisfeito definitivamente.

* * *

Pela primeira vez, lá entre os 12 e 13 anos, começou Agostinho a gostar dos


livros. Reconciliou-se com esses seus inimigos mortais da escola primária de
Tagaste. Descobriu a alma do livro — e tornou-se um grande amigo do livro.

Despertou-lhe em Madaura a inteligência, porque lhe despertara o coração.

Agostinho é o tipo clássico do intelectualista afetivo. Melhor do que ninguém


compreendeu ele, porque profundamente o sentiu, que não pode se
compreender integralmente o que não se ama ardentemente. As verdades mais
evidentes continuam obscuras e paradoxais quando não simpáticas ao coração,
e digamos cruamente — à carne e ao sangue. Por outro lado, pode uma doutrina
ser um aborto de estupidez e de contrasenso, quando lisonjeia ao coração e à
carne, é abraçada por milhares de homens e proclamada como suprema
conquista da humana sabedoria.

* * *

O que se lecionava no Ginásio de Madaura era, de preferência, literatura e


retórica.

Homero e Virgílio, esses corifeus da poesia helênica e latina, eram os autores


favoritos desses estudantes africanos romanizados.

Agostinho não conhecia a língua grega, e nunca chegou a aprendê-la com


perfeição. Faltava-lhe a necessária perseverança para decorar verbos
irregulares e essas mil e uma graciosas particularidades de que é riquíssimo o
idioma da Ilíada. De mais a mais, um romano às direitas, como ele se sentia,
pouco simpatizava com o gênio de Hélade. O filho do Império Romano — esse
império que abrangia a Europa, a Ásia e a África — considerava o mundo como
sua pátria, e não compreendia o espírito doméstico e bairrista do grego, que
girava com maternal carinho e solicitude em torno duma pequena nesga de terra,
ao sul do continente europeu, nesga a que chamava seu torrão natal. Muito
menos compreendia o autêntico romano aquela pedantesca meticulosidade com
que certos escritores helenos esmiuçavam pachorrentamente ocorrências de
interesse exclusivamente local. Essas teias e filigranas da poesia regionalista de
Atenas não harmonizavam com o caráter universalista de Roma. O autor latino
escrevia para o mundo, para os habitantes de todos os meridianos, longitudes e
latitudes do maior império que já existiu sobre a face da terra.

Assim foi que Agostinho deixou quase de parte as obras do imortal Homero e
seus colegas, e apaixonou-se literalmente pelo autor da Eneida, pelo cantor dos
amores infelizes da rainha Dido e das mirabolantes façanhas de Enéas.

Também, como podia um filho da África deixar de simpatizar com uma obra
clássica em que aparecia, aureolada de todos os fulgores do romantismo, a
lendária fundadora de Cartago, soberba metrópole do vasto continente?

Acabava Agostinho de dar o último adeus à infância, e dispunha-se a entrar no


mundo incógnito da adolescência, rumo aos mares deliciosamente revoltos da
puberdade. Estava no limiar daquele período de transição em que o jovem se
sente tomado de ruidosa alegria e de inexplicáveis saudades...

Mundos de indefiníveis contornos, sentimentos de amor sem objeto, nostalgias


sem motivo, anseios imponderáveis, vigílias de lágrimas inconscientes, imensa
necessidade de amizade, de compreensão, sonhos tecidos de feitos
cavalheirescos, incertos desejos de aventuras a serviço dum ideal ignoto — tudo
isto se agitava, fervia e turbilhonava na alma virgem do adolescente de
Madaura...

O coração de Agostinho era como uma dessas gavinhas das trepadeiras que
tateiam no ar, incertas, ansiosas, à procura de algo a que se possam agarrar...

Nas páginas da Eneida encontrou o filho de Mônica a definição consciente


daquilo que, obscura e crepuscularmente, lhe fervia no subconsciente.

Enamorou-se, apaixonou-se delirantemente pela obra imortal do poeta


mantuano, porque descobrira o próprio Eu na obra de Virgílio.

E quem descobre o Eu descobre a chave para todos os universos...

Amou, chorou, sofreu, profunda e intensamente com a rainha de Cartago.

Graças à sua extraordinária capacidade de adaptação e identificação psíquica,


reviveu Agostinho, na mais palpável realidade e com todo o ardor da sua
natureza tropical, os episódios descritos pelo grande poeta.

Entrou, com Aquiles, no cavalo lígneo...

Assistiu, apavorado, ao incêndio de Tróia...

Presenciou a fragorosa derrocada do reino de Príamo...

Fugiu com o impávido Enéas...

Errou com ele por terras e mares...

Com ele aportou ao litoral da África, exausto, heróico...

Viu emergir por entre as brumas do mistério o gracioso perfil da princesa


fenícia...

Sentiu as chamas do amor apoderarem-se de duas almas...

Viu Enéas alimentar no coração de Dido o incêndio voraz da paixão...

O jovem estudante de Madaura apaixonou-se, na pessoa do fugitivo de Tróia,


pela sedutora cartaginesa...

Cingiu-a nos braços...

Ardeu no fogo infernal da mais intensa volúpia...

Sofreu com Dido a dor imensa da despedida...

Sentiu arquejar o peito sob as ânsias do desespero...

Viu o aventureiro sumir-se ao longe, na vastidão do Mediterrâneo...


Viu, nos olhos da tresloucada amante, o fogo da revolta contra o Destino...

Viu reluzir o punhal mortífero nas mãos da suicida...

Viu tombar aquele corpo feminino, banhado numa onda rubra...

E a alma de Agostinho tombou com a de Dido, aniquilada de dor, de amor, de


revolta...

Tornou-se Agostinho um clássico da língua de Virgílio, porque classicamente


amou a obra de seu autor predileto.

Vai esta nota característica por toda a vida e obras do grande africano, ainda
que, mais tarde, fossem as “Didos” — as do livro e as da vida real — substituídas
por outros alvos afetivos: Agostinho soube sempre compreender integralmente
e viver fulgurantemente o que intensamente amava.

O coração foi para ele o chaveiro da inteligência e da vida.

* * *

Entretanto, não era a poesia o conteúdo único do programa escolar de Madaura.


Era cultivada também, e com grande esmero, a arte oratória. Exprimir em forma
graciosa os seus pensamentos e por meio deles arrebatar o público, passava
por um ideal digno dos melhores esforços.

Em sua autobiografia caracteriza Agostinho, não sem ironia, um desses mestres


de eloquência, pondo-lhe na boca as seguintes palavras:

“Aqui aprendem-se palavras! Aqui se adquire a arte de falar, arte indispensável


quando se trata de violentar a verdade e adulterar o sentido dos conceitos!”

Uma vez saboreado o doce veneno do amor e da paixão sensual, atirou-se o


estudante imberbe a todas as obras latinas em que o amor e o gozo são
apregoados como a suprema razão-de-ser da vida humana. Embora não o
satisfizessem, talvez, nesse período pré-púbere, as desbragadas comédias de
Plauto e Terêncio, que glorificam os mais vergonhosos excessos do humano
carnalismo, certamente devorou com delícias as elegias, tragédias e epopéias
clássicas que exaltam o estonteante martírio do “amor alexandrino”. Agostinho
leu e viveu as obras de Catulo, Propércio, Tíbulo, Ovídio, etc.

À leitura de “Ariadne” deflagrou novamente a labareda do amor sensual e


contaminou talvez mais a alma do jovem do que fizera a Eneida, porque nessa
obra nenhum arrependimento redime a criminosa ilusão do amor.

* * *

Nesse tempo não atingira Agostinho ainda o período da puberdade propriamente


dito. O seu amor era ainda, por assim dizer, intransitivo, impessoal. Não amava
em concreto nenhuma das sedutoras beldades de Madaura que diariamente lhe
cruzavam os caminhos e com olhos famintos pediam aquilo que lhe prometiam.
O estudante amava-as todas em globo, mas o seu amor era ainda neutro, incolor,
disperso; ainda não se cristalizara na irresistível veemência duma paixão
definida, personificada numa determinada Circe ou Beatriz.

Entretanto, esse prelúdio da primavera do coração; esse delicioso adivinhar de


coisas que ainda não se conhecem de ciência própria; essa ansiosa expectativa
dum mundo por descobrir; esse amor em germe, intransitivo, imanente, aljofrado
ainda da suave ignorância matinal — é talvez a parte mais bela e inebriante de
toda essa epopéia afetiva, cuja poesia sucumbe tantas vezes ao prosaico
realismo da vida.

Agostinho vivia, nesse tempo, o período dos sonhos felizes.

Se este homem, mais tarde, fala em amor e gozo, fala “de cadeira”, fala de
ciência própria. E se ele, no auge da sua virilidade e no apogeu da sua vida
intelectual e espiritual, encontrou algo ainda mais digno de ser amado,
apaixonadamente procurado e ditosamente possuído do que as maiores
amabilidades da terra — então podemos ter plena fé em sua sinceridade, porque
deve ser realmente precioso o objeto do amor dum coração que tão
humanamente amou como talvez jamais homem algum soubesse amar.
CAPÍTULO 4

Férias em Tagaste

Contava Agostinho entre 15 e 16 anos, quando terminou as “Humanidades” em


Madaura.

Os pais, orgulhosos da peregrina inteligência do adolescente, resolveram


facultar-lhe estudos acadêmicos em Cartago. Mas... esses estudos exigiam
dinheiro, muito dinheiro, e as finanças da família não andavam muito folgadas.

Por isso, teve Agostinho de voltar à casa paterna e fazer férias até que houvesse
recursos para poder iniciar os estudos superiores na metrópole do país.

Fora a Madaura um menino, pagão mais ou menos inconsciente — voltou de


Madaura um rapaz, pagão pleniconsciente.

O ano de férias e de expectativa que Agostinho passou em Tagaste pode ser


qualificado como o período mais mundano, mais tolo e vazio de toda a sua
existência. Nada fez que valesse alguma coisa sob o ponto de vista intelectual,
cultural, científico — para não falar do terreno espiritual. Foi um tempo negativo,
infeliz, humanamente indigno — tão vazio como a vida de milhares de rapazes
das cidades, praças, praias e salões do século vinte. Felizmente, dormitava sob
as cinzas e o pedregulho dessa aparente nulidade um vulcão de estupendo
potencial — o que nem sempre acontece com os nossos “Agostinhos” de hoje...

Estava o inteligente literato e rhétor de Madaura a pique de dar um exímio play-


boy, quando não um perigoso caudilho de bandidos e anarquistas. Ria-se
abertamente das advertências de Mônica.

Patrício, esse deixava-o perfeitamente em paz, embora mostrasse umas


veleidades de Cristianismo, tanto assim que se fizera inscrever no rol dos
catecúmenos da igreja de Tagaste. E por que não ser candidato ao batismo,
quando, já nesse tempo, quase toda a cidade era cristã, e a religião do Nazareno
dava melhores esperanças para uma boa colocação do que o paganismo
decadente?

Em todos os tempos tem havido homens que da religião fazem trampolim para
a satisfação das suas ambições e de interesses pessoais.
Agostinho aparecia em casa apenas para as refeições e de noite, altas horas da
noite — se é que aparecia. Sem trabalho, passava os dias e grande parte da
noite nas ruas, nas tabernas, em cavalgadas, jogos, reuniões de amigos e
amigas.

Uma vez dado o primeiro passo nesse plano inclinado, não era possível parar a
meio caminho. Pois é da íntima natureza de toda a paixão ser totalitária,
extremista, tirânica; não se contenta com meias-medidas — ou tudo, ou nada. E
principia então este conhecido e funesto círculo vicioso: o desejo leva ao gozo;
o gozo gera novo desejo, tanto mais intenso quanto mais voluptuoso. E assim é
que o desejo potencializa o gozo, e o gozo intensifica o desejo, numa progressão
indefinida, até levar o pobre escravo da carne a um completo descontrole de si
mesmo, a um descalabro moral, acabando num perigo social.

Se o instinto não fosse uma potência essencialmente irracional e privada de


liberdade, seria fácil canalizá-lo, assim como no animal aparece circunscrito a
certos limites e discretamente orientado pela própria natureza orgânica. No
homem, porém, ocupam a inteligência e a vontade o lugar desse instinto
regulador. Mas, como nem sempre o homem sabe ser bastante homem para
entregar as rédeas do governo às faculdades especificamente humanas —
inteligência e vontade — resulta daí essa repugnante caricatura, essa infra-
humana e anti-humana monstruosidade que é o homem tiranizado por uma
potência orgânica que devia ser obediente e bem disciplinada servidora da
personalidade integral.

Todas as vezes que uma força ou faculdade da nossa natureza se afirma a favor
de uma “parte” e em detrimento do “todo”, degradamos a nós mesmos e
provocamos desordem e desequilíbrio na hierarquia cósmica do nosso Ser.

Toda a faculdade do homem deve enquadrar-se harmoniosamente no panorama


do todo. Nada se deve extirpar, matar, suprimir, eliminar, — tudo se deve treinar,
disciplinar, canalizar, integrar, pôr a serviço da totalidade da perfeição do homem
integral.

Um dia, foram Agostinho e seu pai tomar banho nas termas de Tagaste. Não se
inventara ainda esse precário palminho de civilização que se chama calção de
banho. Ao saírem da piscina, Patrício, bom pagão que era, correu, cheio de
alegria a contar à esposa que o filho deixara de ser menino, e já era homem. Já
se via o pai ditoso avô cercado dum bando gárrulo de esperançosos netinhos...

Mônica, em vez de participar da ruidosa expansão do marido, quedou-se,


pensativa, tomada de solicitudes e apreensões. Conhecia o caráter do filho e os
perigos que o ameaçavam. Chamou o jovem e, entre lágrimas, lhe suplicou não
se entregasse à dissolução, que pelo menos guardasse medida no gozo dos
prazeres, que não envenenasse o sangue com meretrizes e respeitasse a
esposa do próximo.
Quem está habituado a ouvir falar em “santa Mônica”, estranha deveras essa
atitude da mãe de Agostinho. Por que não insistiu com o filho que procurasse
uma noiva decente e casasse quanto antes? Muitos africanos da sua época, a
exemplo dos hindus de hoje, casavam aos 15 ou 16 anos.

Mônica não era, nesse tempo, tão cristã que pusesse de parte considerações
subalternas e pensasse exclusivamente no “único necessário”, a salvação da
alma de seu Agostinho. Um casamento prematuro cortaria cerce a brilhante
carreira que ela augurava ao filho. Mônica era bastante mãe, e não era assaz
cristã para admitir semelhante hipótese. Agostinho tinha de ser, antes de tudo,
um homem célebre, um grande orador, uma glória para a família — e Deus
providenciaria que não se perdesse sua alma. Ela, a mãe, rezaria muito, choraria
muitíssimo, para que o filho querido, um dia, abraçasse o Cristianismo e, depois
de alcançada a sonhada celebridade, seguisse os ditames do divino Mestre.

Nutria Mônica esta firme confiança. Tinha fé ilimitada na misericórdia de Deus.

Era também esta a opinião de Patrício que, certamente, não deixou de influir no
espírito da esposa.

O amor feminino de Mônica, como dissemos, não encontrara satisfação cabal no


matrimônio. Ela, esposa de Patrício e mãe de diversos filhos, era afetivamente
virgem. Estava intata a poderosa reserva de amor que lhe enchia o coração. Não
conseguira derramar na alma do esposo — desse homem que lhe haviam dado
por marido — as ondas represadas da sua poderosa afetividade feminina. E, por
uma inextinguível lei natural, toda a potência que deixa de encontrar a sua
natural atualização procura manifestar-se de outra forma, realizando em outro
terreno o que lhe foi vedado em sua esfera normal.

Mônica, insatisfeita no seu amor de mulher, ama duplamente como mãe, e, por
uma misteriosa afinidade psíquica, centralizou todo o seu amor na pessoa do
filho mais inteligente e afetivo.

Afetivo? Sim, Agostinho era profundamente afetivo, embora não correspondesse


ainda a esse intenso amor materno. Bastante clarividente era a alma de Mônica
e dotada de suficiente estesia espiritual para pressentir ou adivinhar que, um dia,
os brados do seu amor despertariam eco e correspondência onde, por ora, só
encontravam desertos surdos e rochedos duríssimos...

Em seu clássico livro “Confessiones” escreve Agostinho os desvarios da sua


mocidade. Descreve-os em cores tão vivas e, não raro, tão carregadas,
acusando-se de tamanhas maldades, que o leitor sereno e imparcial chega a
desconfiar do valor histórico de certas passagens e tem vontade de defender
Agostinho contra Santo Agostinho. Com efeito, quem escreve aquela
autobiografia não é o homem, é o cristão, é o santo. Seja embora real o fundo
de tudo quanto expõe, é fora de dúvida que, nesse livro, o santo traiu muitas
vezes o historiador. Depois de convertido, contemplava Agostinho todos os
pecados da sua juventude pelo prisma do seu acendrado Cristianismo, e sente
em si o desejo, talvez inconsciente, de se reduzir ao último abismo da
depravação moral, a fim de exaltar tanto mais o poder da graça divina, que de
tão longe o foi buscar ao seio do Evangelho.

Papini, no seu conhecido livro sobre Agostinho, não considerou devidamente


este caráter das “Confessiones”. Chega mesmo ao ponto de querer reduzir o
filho de Mônica a um vulgar homossexual invertido, a fim de poder, ao depois,
com mais intenso brilho, cingir-lhe a fronte com a auréola de santo.

Nada encontramos nas “Confessiones” do genial africano que justifique esta


opinião. Agostinho era um jovem de profunda e ardente sensualidade, que não
punha freio aos instintos orgânicos. Mas a sua sensualidade era por demais
natural para não descambar ao vício desnatural do homossexualismo. O
invertido adultera a própria natureza. Se é homem, se é varão, — por que é que
deixa de ser o que é para ser o que não é? Tenha ao menos a sinceridade sexual,
a lealdade hominal, o brio de ser o que é — e não cometa a repugnante mentira
orgânica, o monstruoso paradoxo sexual de adulterar a sua virilidade e inverter
os imperativos categóricos da própria natureza...

A Bíblia considera o pecado do homossexualismo como um dos mais horrorosos


delitos contra a lei natural e positiva. Foi em castigo deste pecado que Deus
destruiu Sodoma, Gomorra, e mais outras cidades — “porque toda a carne
corrompera o seu caminho”.

Dificilmente, o homem pervertido e contaminado no profundo manancial das


suas energias vitais e das suas potências creadoras chegará a construir algo de
grande e notável para a humanidade — seja no campo intelectual, seja no
terreno social, seja na esfera espiritual.

Como levantar edifício sólido sobre ruínas e pantanais?...

Pode o homem sensual prestar grandes feitos, porque a sensualidade não é, em


última análise, senão excesso de energias orgânicas. A erótica é uma formidável
potência, que pode e deve ser canalizada e disciplinada para efeitos salutares
ao homem integral — e impulsionará mundos de estupenda grandeza e
sublimidade.

Não é necessário ser freudista para compreender uma verdade tão antiga como
a própria humanidade.

O invertido, porém, envenena a própria fonte dessas energias construtoras,


neutralizando assim uma poderosa torrente do seu ser, quando a devia dirigir e
aproveitar para grandes maravilhas.
Seria injusto nivelar o célebre númida com esses invertidos sexuais e caricaturas
da humanidade.

Assaz poderosa aparece a graça de Deus, que do abismo da luxúria normal


ergueu um pagão que deste abismo não queria sair.
CAPÍTULO 5

“Carthago Veneris”

O brasileiro provinciano que, da solidão dos pampas, dos sertões do “hinterland”,


das florestas do norte, ou de outro ponto qualquer do interior, visita pela primeira
vez uma das nossas modernas metrópoles, queda-se, boquiaberto, estupefato,
ante as magnificências desses centros.

Sente-se então mais brasileiro do que nunca.

Adora a sua pátria na esplêndida metrópole.

Aprova em gênero, número e caso tudo quanto Afonso Celso escreveu, tão
patriótica e hiperbolicamente, nas páginas de seu livro “Por que me ufano do
meu país”. Estas, mais ou menos, devem ter sido as impressões que se
apoderaram da alma do jovem Agostinho quando, aos 16 ou 17 anos, fez a sua
primeira visita a Cartago.

Trinta anos mais tarde, é verdade, detesta o convertido de Milão os anos


pecaminosos que passou na “cidade de Vênus”. Não deixa, porém, o leitor de
perceber nas entrelinhas de todas as obras de Agostinho a sincera admiração
que dedicava à opulentíssima capital, docemente embalada nas águas do golfo
de Túnis. Inúmeras vezes, quando bispo de Hipona, visitou ele a encantadora
“princesa da África”, que lhe fascinava o espírito culto e o coração enamorado
de beleza.

Quem consegue arrancar do coração o que uma vez amou sinceramente?

O universalismo afetivo de Agostinho abrangia tudo que era belo, harmônico,


esteticamente perfeito. O seu amor masculino é apenas um aspecto de sua alma
essencialmente afetiva. Soube tão bem amar a natureza tropical da sua pátria,
como os lindos corpos morenos das cartaginesas — e mais de tudo soube amar,
mais tarde, as eternas e intangíveis realidades do mundo espiritual.

Cartago foi sempre um dos grandes amores do célebre númida, gentio e cristão.

Cartago era, nesse tempo, uma das cinco grandes metrópoles do Império
Romano: Roma, Constantinopla, Antioquia, Alexandria e Cartago. Das cidades
marítimas era de todas a mais importante. Se o gigantesco empório de Cartago
deixasse de exportar cereais para a Itália — adeus, Roma! Morreria de fome a
famosa “urbs”.

* * *

Residia em Cartago um célebre argentário natural de Tagaste, por nome


Romanianus, humanitário mecenas de muito estudante pobre, e amigo da família
de Patrício e Mônica.

Interessou-se Romanianus vivamente pelo talentoso conterrâneo e facultou-lhe


pelo menos parte dos meios necessários para o prosseguimento dos seus
estudos. Possivelmente, ofereceu-lhe também generosa hospedagem em sua
casa.

Destarte, estavam garantidos os estudos e a subsistência de Agostinho.

Para sua alma, porém, não se encontrou nenhum mecenas. Nem o jovem queria
saber de tutor ou mentor. Queria viver, à vontade, viver em toda a plenitude, viver
sem entrave nem freio de espécie alguma.

Grande era a sua fome de saber — maior ainda a sua sede de amar.

Agostinho não sabia ainda, propriamente, o que era amar.

Não se sabe o que não se viveu — o que não se sofreu...

O que ele gozara nos últimos anos era primitivo sensualismo. Não era
propriamente amor.

Para amar, deve-se ser mais homem que animal. O animal não ama.

O corpo goza — a alma ama.

“Amar, e ser amado” — diz ele em sua autobiografia, isto lhe parecia o supremo
ideal da vida, a razão-de-ser da existência.

Agostinho não conhecia ainda o amor, mas já estava, como diz “enamorado do
amor”.

“Veni Carthaginem; et circunstrepebat me undique sartago flagitiosorum


amorum. Nondum amabam, et amare amabam... Quarebam quod amarem,
amans amare, et oderam securitatem et viam sine muscipulis... Amare et amari
dulce mihi erat; magis, si et amantis corpore fruerer... Et tamen, foedus et
inhonestus, elegans et urbanus esse gestiebam abundanti vanitate. Rui etiam in
amorem quo cupiebam capi — cheguei a Cartago; e espumejava em torno de
mim, qual caldeira em ebulição, a infâmia de vergonhosos amores. Eu ainda não
amava, mas ansiava por amar... Procurava o que amar pudesse, desejoso de
amor; detestava a segurança e o caminho sem perigos... Amar e ser amado, me
era suave; mais ainda quando gozava do corpo do ente amado... E, com ser tão
feio e desonesto, eu, no excesso da minha vaidade, fazia questão de aparecer
elegante e bem educado. Caí no amor que desejava me cativasse.”

“Nondum amabam, sed amare amabam... Amans amare...”

Não há poeta gentio que com tanta paixão tenha cantado o delírio do amor, esse
martírio dulcíssimo do coração.

O amor de Agostinho não é esse diletantismo amoroso de certos românticos.

Não é essa suavidade langorosa e anêmica de certos poetas dos nossos dias.

Não. O amor de Agostinho tem algo e trágico e de metafísico. Lembra a sinistra


veemência dos elementos das forças da natureza. Faz pensar em vendaval, em
relâmpago, em terremoto — na própria morte.

Amar é viver — não amar é morrer...

E, não raro, amar é morrer...

Existe um amor mortífero...

O homem, empolgado pela invisível e invencível veemência duma força natural,


não sabe se desse titânico amplexo vai sair vivo ou morto; não sabe se o ciclone
raptor o arremessará ao seio de Deus ou à geena de Satanás...

O amor é como o Destino de que falam as tragédias de Sófocles.

Agostinho não ama apenas com o coração, com o espírito, com os nervos; ama
com todo o seu ser, ama com toda a plenitude da sua personalidade; ama com
todas as potências do ego, com todas as energias da virilidade, com todas as
tempestades da juventude — e com todas as profundezas de sua alma
essencialmente metafísica.

Agostinho crê que o homem nasceu para amar. Crê que o homem que não ama
errou o seu destino.

E nesta convicção viveu e morreu o grande pensador, embora compreendesse,


mais tarde, que uma potência tão sublime, vasta e profunda como é o amor
necessita de um alvo igualmente grande e sublime para poder encontrar sossego
e definitiva quietação; pois uma grande potência não pode ser atualizada por
uma realidade mesquinha e medíocre.

Aos olhos do jovem provinciano espraiava-se a sorridente metrópole, com todos


os deslumbramentos da sua estonteante luxúria — Carthago Veneris, como a
apelidavam acertadamente os contemporâneos — a Cartago de Vênus...

Quando Agostinho, da gigantesca plataforma do templo de Esculápio, situado no


topo da acrópole, contemplava a cidade, tinha a seus pés todo aquele imenso
taboleiro de edifícios, de arruamento quase geométrico, cortado de jardins e
pomares, de praças e alamedas, de soberbos monumentos e refrigerantes
repuxos. À esquerda ruborejavam aos clarões do poente as águas plácidas do
golfo de Túnis, lembrando uma sonhadora laguna veneziana dos nossos dias.
Para a direita, o vasto porto coalhado de navios a panejar às tépidas brisas o
variegado colorido de seu velame. Para trás, os azulados píncaros do Atlas. À
frente, a planície líquida do Mediterrâneo a confundir com a linha do horizonte o
mistério das suas águas, para além das quais se adivinhavam os litorais da
Sicília.

Oh! como és bela Cartago, rainha da África!...

A atmosfera da cidade era, geralmente, tépida, amenizada pelas brisas


marítimas, voluptuosas carícias a embalarem corpo e alma naquele doce langor
que tanto predispõe ao amor e aos gozos sensitivos...

Tudo quanto se via, ouvia e sentia em Cartago era de molde a inebriar o coração
e diluir com sutil veneno a vontade e o caráter do homem que não fosse
precisamente de bronze e granito.

Por outro lado, não faltavam à metrópole africana notáveis padrões de cultura.
Orgulhavam-se os poderosos senhores de Roma de terem feito da sua antiga
rival uma das mais belas e confortáveis cidades do mundo.

O anfiteatro de Cartago era do mesmo tamanho que o de Roma. Um aqueduto


de 24 quilômetros de comprimento canalizava as fontes do Zaghonan e
abastecia a cidade. As termas de Antônio, de Maximio, de Gargilio gozavam de
fama mundial. Numerosos teatros, ginásios, academias e centros de arte e
diversão proporcionavam ao povo cultura e grato passatempo.

No campo religioso deparava-se ao jovem númida a mais estonteante babel que


imaginar se possa. Adeptos de todas as crenças e crendices, de todos os cultos
cristãos e gentios, alardeavam os seus sistemas, digladiando-se
encarniçadamente e forcejando por conquistar prosélitos.

Os escritores da época falam em 14 igrejas cristãs em Cartago.

Terá Agostinho frequentado alguma delas?

Frequentou-as, sim, como confessa para ver moças bonitas e convidá-las a um


rendez-vous...

Os usos e costumes, como se vê, não mudaram muito, do 4.º ao 20.º século.

Afirmavam o campo os cristãos donatistas, chefiados pelo bispo Parmenianus.


Ufanavam-se de “católicos genuínos”, ao passo que consideravam “bastardos”
aos católicos romanos, guiados pelo bispo Genetilus, difamando-os por toda a
parte como adventícios e intrusos na verdadeira igreja do Cristo.
No período em que Agostinho estudava em Cartago, abjurou o Donatismo o
bispo Rogatus, de Túnis, o que provocou grande sensação. Mas, ao mesmo
tempo, Tyconius, prestigioso orador e escritor, defendia vitoriosamente a
doutrina cristã segundo o espírito de Donatus.

Que partido tomaria Agostinho, se cada uma dessas facções afirmava e provava
ser a única e verdadeira igreja de Jesus Cristo...

Para cúmulo da confusão, surgiu no meio desse caos religioso mais uma seita
cristã, sob a bandeira de Manes (ou Mani), religião denominada Maniqueísmo.

Milhares de homens, máxime das classes cultas, aderiram prontamente a esse


novo movimento.

Agostinho assistia aos discursos e lia as dissertações dos protagonistas de todas


essas correntes religiosas, mas sem abraçar nenhuma delas. Se os mais
eruditos chefes se digladiavam e contradiziam uns aos outros, como podia um
jovem de 18 anos decidir entre a verdade e o erro. Não seria melhor ficar à
margem de todas as religiões e professar uma espécie de religião universal, e,
no mais, gozar a vida quanto possível?

Independência do espírito, independência da carne — eis o lema do estudante


em Cartago!

Com estas idéias jogou-se Agostinho ao sorvedouro da Carthago Veneris.


CAPÍTULO 6

Deliciosa Amargura

No meio de seus estudos e amores em Cartago, recebeu Agostinho a notícia da


morte do pai.

Nas “Confessiones”, menciona com poucas palavras, como que de passagem,


este fato, que não lhe parece ter abalado a alma.

Quão diferente não viria a ser, mais tarde, a impressão que lhe causaria o
falecimento da mãe!

Ainda que, material e economicamente, muito devesse o estudante a seu pai,


pouca afinidade existia entre os dois homens no terreno espiritual.

Morrera Patrício — e que seria dos estudos de Agostinho?

Mônica era bastante “homem” para não permitir sofresse prejuízo a formação de
seu filho querido. Desde logo, iniciou um sistema de intensa atividade e estreita
economia para conseguir os recursos necessários à decente manutenção da
família e para facultar ao estudante a permanência na capital.

De Navigius, o filho mais velho, nada ou quase nada sabemos. Os fulgores de


Agostinho, parece, eclipsavam as fosforescências de outro astro qualquer.

Felizmente, lá estava também Romanianus, o generoso amigo, que não se


esquecia do protegido, em cuja crescente celebridade adorava o poderoso
mecenas o próprio ego.

* * *

Agostinho, ainda que empolgado pelo torvelinho duma vida de amores e


aventuras, soube contudo manter sobre si mesmo o necessário controle para
não comprometer a sua carreira. Grande era a sua sede de amores, mas
igualmente poderosa a ambição de glória que lhe devorava o coração. Se
cedesse aos instintos, se esbanjasse em orgias a saúde precária, que seria do
seu futuro? Da sonhada celebridade de rhétor, de jurista, de magistrado?...

Veio, pois, uma paixão em socorro de outra paixão...

Compeliu o lúcifer do orgulho o demônio da luxúria...


Lançaram os abismos de Sodoma uma ponte para as alturas da torre de Babel...

* * *

Por esse tempo, cristalizaram-se os desordenados e intransitivos amores de


Agostinho em um determinado amor transitivo. Fixou a sua paixão amorosa em
uma creatura determinada.

Amou uma jovem, e sentiu integralmente retribuída a sua afeição.

Inefável delícia inundou a alma do estudante cartaginês. Por algum tempo


ameaçavam as torrentes do amor arrasar todos os diques e represas e dar novo
rumo ao inquieto aventureiro, lançando-o às praias tranquilas dum lar feliz e bem
constituído.

“Precipitei-me no amor — escreve — e por ele me deixei algemar”.

Entretanto, não tardou a alma de Agostinho de experimentar o que antes e


depois dele verificaram milhares de outros homens: por mais que fosse amado,
não se sentia amado bastante. É que todo o amor é por sua natureza insaciável,
ilimitado, infinito. Nunca diz: basta.

Agostinho queria ser amado com infinita veemência, com paixão, com delírio,
com um potencial que ultrapassasse todas as raias do possível e atingisse os
mais longínquos horizontes que idear pudesse a imaginação no vasto círculo das
suas divagações.

E aquela jovem cartaginesa, embora integralmente mulher, possuía, como todas


as mulheres, apenas uma potência afetiva. Era ardente, sincera, dedicada,
apaixonada. Dava ao amante todos os encantos do corpo e da alma feminina —
mas era humanamente limitada à sua paixão. Era como as amantes de todos os
amigos e colegas de Agostinho — e ele queria que fosse algo único, original,
inédito, imensamente profundo e sublime...

Tivesse o filho de Mônica encontrado no mundo feminino o que procurava, nunca


talvez saísse desse mundo; mas só encontraria sossego e quietação no infinito.
A carinhosa crueldade do amor finito devia ser para ele uma ponte para a austera
verdade do amor infinito.

Agostinho queria gozar, mas gozar como nunca homem algum gozara.

Queria encher a taça mais do que a taca comportava...

Queria um ato maior que sua potência...

Queria um efeito superior, à sua causa...

Começou então a sofrer no meio do gozo.


E descobriu este surpreendente paradoxo: que o homem pode sofrer o gozo e
gozar o sofrimento.

Desvendou o mistério da doce amargura, da amarga doçura...

Verificou com estupefação que o gozo, elevado ao supremo zênite da


possibilidade, acaba no profundo nadir do tormento — e que este mesmo
tormento, quando intensificado ao extremo da sua capacidade, gera uma delícia
tão grande que ultrapassa todas as alturas do primitivo zênite, e atinge tão
inefável veemência que arrebata os seus confessores e mártires a um delírio de
amor, a um indescritível paroxismo de paixão...

A dor engendrada pelo amor age então como um tóxico, creando mundos
fantásticos, que eclipsam todas as maravilhas do universo real...

Através da “espada flamejante” reconquista o herói do amor o “paraíso perdido”


defendido pelo fero querubim...

Agostinho, numa instintiva previsão desses mundos ignotos, inventou o


dulcíssimo martírio dos ciúmes.

“Precisamente porque era amado — escreve o fino psicólogo — é que gostava


de me precipitar ao labirinto dos sofrimentos, a fim de ser dilacerado pelos
açoites ígneos dos ciúmes, flagelado de suspeitas, de apreensões, de cólera, de
irritações”.

Por toda a escala das sensações eróticas passou a indômita paixão de


Agostinho.

Assim só podia amar um jovem em cujas veias rolasse o sangue tropical da


África, em cuja alma se agitasse caoticamente a lava candente da literatura
romântica que sorvera a largos haustos.

O que se acumulara no espírito do estudante de Madaura, à leitura da Eneida,


ao sofrer com Enéas e Dido a inebriante acerbidade da loucura amorosa, isto
irrompia agora irresistível, feito carne e sangue, do profundo vulcão da alma do
acadêmico cartaginês.

* * *

Numa dessas tépidas noites que embalavam o golfo de Túnis e a cidade


voluptuosa, foi concebida aquela criança a que Agostinho, mais tarde, chamaria
“filho do seu pecado”, e à qual pôs eufemisticamente o nome suave de
“Adeodatus” — dado por Deus.

Quem era a mãe de Adeodatus? essa célebre anônima que tão importante papel
desempenhou na vida pagã do futuro luminar do Cristianismo?
Alguma graciosa estudantina de Cartago? Uma daquelas bronzeadas colegas
de Agostinho? Ou então uma bela patrícia romana? Ou, quiçá, uma humilde e
meiga garota do bairro dos operários? Uma dessas meninas pobres, de olhos
dolentes e sonhadores, que trazem na alma imensa riqueza afetiva, que ninguém
parece querer?...

Ficam sem resposta todas estas impacientes interrogações da nossa


curiosidade. Eterno silêncio, impenetrável mistério envolvem a pessoa daquela
mulher com a qual Agostinho viveu 9 anos, que lhe deu o único filho, e que,
mesmo repudiada e sem filho, lhe foi fiel até a morte, na solidão da pátria
africana1...
1. Agostinho nunca revelou o nome dessa mulher; mas por outras fontes sabemos que se
chamava Melânia.

Agostinho frisa que, apesar da sua vida desbragada não foi propriamente um
vulgar frequentador de bordel, mas que guardou à sua única amante a fidelidade
do tálamo — tori fidem. Nasceu um filho contra a vontade, mas, uma vez nascido,
conquistou o amor do pai — “pactum libidinosi, amoris, ubi etiam contra votum
nascitur, quamvis, jam nata, cogat se diligi”.

Vai um quê de revoltante e de simpático, quase trágico, naquele episódio de


Milão, quando o recém-convertido, tomado de uma sublime crueldade, despede
a sua fiel amante cartaginesa, para cair nos braços duma menina italiana
escolhida por Mônica — enquanto a infeliz repudiada regressa à triste vacuidade
da sua vida de outrora e passa o resto da solitária existência como casta vestal,
chorando o seu primeiro e último amor...
CAPÍTULO 7

Clarões em Plena Noite

Fosse Agostinho um espírito menos revolucionário; não fosse ele um titã


demolidor de mundos; tivera ele uma natureza pacatamente burguesa —
certamente teria constituído em Cartago o seu larzinho tranquilo e levado uma
vida humanamente feliz, nos braços da dedicada amante e aos meigos carinhos
de seu pequeno filho e herdeiro.

Entretanto, não era possível que um espírito como o seu encontrasse sossego e
quietação definitiva em tão suave idílio e em círculo tão acanhado.

O homem atormentado de problemas transcendentes não encontra pouso e


querência no remanso da família e na tepidez do tálamo nupcial.

É esta a sua feliz infelicidade.

Agostinho, com os problemas da carne mais ou menos solucionados, começou


a sentir tanto mais impetuosamente os angustiantes problemas do espírito, mil
vezes mais dolorosos e enigmáticos que aqueles. Sucedeu-lhe o que sucede a
milhares de outros homens que cuidam encontrar no sexo o lenitivo aos seus
martírios íntimos — e só encontram martírios centuplicados.

O Agostinho cristão acusa-se, mais tarde, com estranha veemência e


assiduidade, das misérias da carne; mas essa mesma veemência e assiduidade
nos faz desconfiar. À luz da sua esclarecida espiritualidade cristã pareceram-lhe,
certamente, muito mais negras as sombras do sensualismo pagão do que eram
na realidade.

Muito errado andaria quem considerasse as fraquezas de Agostinho como óbice


principal à sua conversão. As mais profundas raízes da sua hesitação se
encontram em terreno metafísico, no aparente conflito das luzes da inteligência
com as luzes da fé. O que as “Confessiones” fazem adivinhar vagamente, isto
aparece em meridiana claridade nas páginas dos “Pensées”, de Pascal.

Pascal, homem fraco, doentio, poucas dificuldades experimentava da parte da


carne e do sangue, e, no entanto, não conseguiu convencer-se das verdades do
Cristianismo de que estava persuadido. “Querer crer” era a única possibilidade
de “crer” para um homem que tinha a inteligência das matemáticas como diz
Unamuno — que tinha uma razão clara e um apurado senso da objetividade.
“Tenho fé, Senhor! Ajuda a minha falta de fé!” Esta exclamação dum pai israelita
resume bem o credo de muito Agostinho e Pascal dos nossos dias. “Se puderes
ter fé — dissera o divino Mestre — tudo é possível a quem tem fé”. O pai daquele
menino possesso não sabe se pode, só sabe que quer ter fé; e, por conhecer o
seu querer, exclama: Tenho fé! E por ignorar o seu poder, acrescenta logo:
“Ajuda a minha falta de fé!”

Revolver problemas que não se podem resolver — eis aí o constante martírio do


homem que pensa.

Estudar, investigar a verdade, desvendar os mistérios do mundo e os enigmas


do além, descer às profundezas da própria alma — quantos e quão dolorosos
pontos de interrogação para o espírito pensante!

“Não tenho a pretensão de ter já atingido o alvo — escreve Paulo de Tarso —


mas vou-lhe à conquista, a ver se o atinjo”.

É esta a atitude característica de todo o bandeirante da verdade, de todo o


espírito revolucionado por problemas.

O espírito medíocre e vulgar repousa, satisfeito, na posse daquilo que julga ser
a verdade integral e definitiva.

* * *

Estava Agostinho para terminar os seus estudos acadêmicos. Figurava no


programa do último ano um livro de Cícero, intitulado “Hortensius”, obra que,
infelizmente não chegou até nós. Era uma dissertação filosófica sobre a
verdadeira “sabedoria”, e a felicidade que o homem encontra na mesma.

Agostinho leu este diálogo, que fazia parte do programa — quando subitamente
dá com uma frase que fuzila como relâmpago pela noite de sua alma. No fim de
uma longa exposição sobre a natureza da verdadeira beatitude dizia o filósofo
romano:

“Se é verdade que possuímos uma alma imortal e divina, como afirmam os
grandes e célebres pensadores da antiguidade, é de supor que tanto menos seja
ela contaminada pelas humanas fraquezas e paixões quanto mais se mantenha
nos trilhos da razão, do amor à verdade e do conhecimento. E tanto mais
facilmente subirá a alma ao céu”...

Agostinho fecha o livro. Seus olhos vislumbravam os longínquos litorais de um


mundo desconhecido. Essas palavras feriram uma tecla dormente nas
incônscias profundezas de sua alma. O profano gozador de prazeres, o
ambicioso sonhador de glórias teve um momento de clarividência.
Compreendeu, ou antes farejou, que para além desse mundo de honras e
prazeres existia um vasto universo de valores que poderiam dar ao homem
perene e perfeita felicidade — a posse da sabedoria...

Não o dissera também Aristóteles? Não falara Platão nesse mundo invisível? E
não morrera Sócrates, sereno e calmo, porque entrara nesse luminoso universo
do espírito?...

Consagrar a vida ao estudo e à meditação da Divindade; investigar-lhe os


vestígios na obra da Natureza; levar uma existência aureolada dos fulgores
desse Ser supremo, eterno, infinito, — não encontraria o homem satisfação e
beatitude nessa atmosfera espiritual? Não descobriria na investigação da
suprema sabedoria a plenitude da felicidade?...

Tão intensa foi a emoção que de Agostinho se apoderou que abundantes


lágrimas lhe correram pelas faces, caindo sobre as páginas do livro que tão
vastos horizontes rasgava a seu espírito sedento de verdade, de vida e
felicidade...

Clarões em plena noite...

Fogos fátuos — e não uma jubilosa alvorada...

Não soara ainda para o filho de Mônica a hora da redenção...

Essa “anima naturaliter christiana”, depois desse rápido semi-despertar, tornou


a cair no leito fofo do seu querido e indolente paganismo...

Demasiadamente frágeis eram ainda as asas da águia de 19 primaveras para se


fixar definitivamente em tão excelso ideal...

O mundo era lindo. A vida cheia de promessas. As mulheres, sorridentes, belas,


sedutoras...

E ninguém abre mão do belo senão para empolgar algo mais belo...

Mais tarde, após a sua conversão, escreve o autor das “Confessiones”, que não
o satisfizera “Hortensius” porque em suas páginas não encontrou alusão alguma
ao Cristo. Esta frase, como observa judiciosamente Bertrand, é antes um floreio
retórico e estético do que a expressão da realidade. Agostinho nunca deixou de
ser literato e orador. Escreveu o cristão e o bispo aos 50 anos o que deveria ter
sentido o estudante pagão de Cartago aos 19, mas que não o sentiu,
provavelmente. Pois nesse tempo não tinha ainda Agostinho pensado e sofrido
bastante para saber que não há perfeita sabedoria fora do Evangelho, nem
verdadeira felicidade fora do Cristo.

Só se compreende integralmente o Evangelho no trecho entre o Getsêmane e o


Gólgota. Quem não viveu e sofreu o Cristianismo, não é cristão. Pode ser um
perfeito teólogo, mas de Cristianismo tem ele idéia tão imperfeita como o cego
de nascença tem idéia da luz e das cores sabendo que consistem em vibrações
ou ondulações do éter.

Agostinho não estava ainda maduro para assimilar a excelsa espiritualidade do


Evangelho.

Extinguiu-se rapidamente esse lampejo divino na escuridão da noite humana.


Mas não ficou sem efeito. O que uma vez empolga a alma fica eternizado nela.
Pode, sim, descer da luminosa superfície da consciência para as regiões
penumbrais da subconsciência; mas daqui não sai mais; aqui permanece, daqui,
do misterioso sub-solo do Eu, continua a agir insensivelmente e influir, incônscio,
sobre os atos conscientes do homem.

Todo pensamento, uma vez profundamente pensado, vivido e sofrido, é eterno,


imortal. Vigora no mundo metafísico a mesma lei que a ciência descobriu no
mundo físico: a constância da matéria e da energia. Nada se perde no mundo
físico — e nada se aniquila no mundo metafísico. Pode o homem “esquecer-se”
de alguma realidade mas, uma vez que essa realidade atingiu o centro do Eu,
está definitivamente gravada no espírito humano, e existirá enquanto existir esse
espírito. Cometi pecado, pratiquei ato desonesto — dizem os homens — mas
arrependi-me, confessei-me, e é tudo como dantes, como se nada acontecera.

Embora o arrependimento tenha restabelecido o estado moral de antes da


queda, nenhum arrependimento é capaz de restaurar integralmente na alma o
estado real anterior à falta voluntariamente cometida. Arrependimento não é
conversão, transmentalização.

Desapareceu a culpa — mas ficou o hábito, aumentou o pendor, a inclinação, a


facilidade para a queda e recaída. Estratificou-se, por assim dizer, no sub-solo
do homem uma nova camada, da qual poderão brotar sempre novos atos maus,
dificultando a vitória dos atos conscientemente bons.

Só uma nova atitude pode neutralizar a antiga.

O que sucede com o mal acontece da mesma forma com o bem, graças a Deus.
Quanto maior for o número dos atos bons e quanto mais profundamente vividos
forem esses atos, tanto mais poderoso se tornará o invisível exército
concentrado na zona inconsciente da alma, lançando, no momento crítico, o seu
contingente para o campo de batalha do consciente.

Todo o segredo da pedagogia e psicologia, toda a estratégia espiritual está em


saturar, por meio de atos eticamente bons e profundamente vividos, o terreno
donde brotam os impulsos inconscientes que em grande parte determinam o
caráter dos nossos atos conscientes e revestidos de imputabilidade.

O estudo de “Hortensius” não conseguiu abrir a Agostinho as portas do


Cristianismo, mas lhe deixou na alma uma dúvida salutar, uma grande
desconfiança na virtude redentora da filosofia pagã. Seria o homem capaz de
atingir por esforço pessoal as alturas do seu destino? Seria o intelecto escada
bastante alta e forte para levar o homem ao trono da divindade?...

Agostinho abriu a Bíblia, em cujas páginas diziam as igrejas encontrar a Deus


falando à humanidade. Procurou penetrar nesse mundo incógnito, mas em breve
desanimou e desistiu do tentame. Habituado com o classicismo dos períodos
ciceronianos, como podia ele achar gosto na sóbria e, por vezes tosca singeleza
do Gênesis ou dos Evangelhos? Como podia o viciado rhétor de Cartago,
habituado às iguarias literárias de Virgílio, aos lautos festins poéticos de Horácio,
sentar-se à mesa frugal dum pobre carpinteiro?...

Quidquid recipitur, per modum recipientis recipitur — diz um antigo axioma


filosófico. O que se recebe é recebido segundo o caráter do recipiente. A
disposição do sujeito dá ao objeto a forma e cor do próprio sujeito. Todo homem
enxerga o mundo através do prisma característico do seu caráter individual.

Não era possível que a Bíblia agradasse ao espírito daquele adolescente de 19


anos. A Bíblia supõe certa madureza de espírito e virilidade de caráter para ser
devidamente compreendida e saboreada.

Assim como o cientista que anatomiza e secciona meticulosamente tecido por


tecido e analisa célula por célula dum organismo humano não descobrirá jamais
a alma, embora essa alma exista — assim também o exegeta, por mais que
estude e investigue cada uma das frases, palavras, sílabas, e letras da
revelação, não topará jamais com a divindade, e, no entanto, é certo que Deus
está em sua obra. Mas só a visão panorâmica do conjunto nos faz compreender
o princípio vital dum organismo humano ou o princípio divino da Sagrada
Escritura. E Agostinho não possuía ainda essa visão panorâmica.

“Encontrei um livro — escreve mais tarde — que não só era impenetrável para o
homem orgulhoso, mas que também ao espírito simples só dava meia revelação;
um livro cuja entrada estreita só se alarga gradualmente e termina em um cume
envolto em mistérios. Naquele tempo não chegara eu ainda ao ponto de curvar
a cabeça para poder entrar nesse santuário”.

Abandonou, pois, o livro de Deus, assim como abandonara a obra de Cícero.


CAPÍTULO 8

Entre a Inteligência e a Fé.


— O Maniqueísmo

Nem Cícero nem Cristo podiam satisfazer o espírito irrequieto de Agostinho. Ele
não era ainda suficientemente cristão para compreender o Evangelho, nem era
já bastante pagão para encontrar sossego na filosofia do “Hortensius”.

Mas, não seria possível harmonizar as especulações da inteligência com as


doutrinas da Bíblia? Lançar uma ponte sobre o abismo que separava a ciência e
a fé? Escutar os ecos do além, sem desprezar as vozes do aquém? Crer num
Cristo platônico e admirar um Platão cristianizante?...

Na ânsia de descobrir o novo elixir da felicidade topou Agostinho com um livro


do persa Manes, que admitia dois seres eternos, um luminoso e bom (Ormuzd
ou Mazda), e outro tenebroso e mau (Ahriman). Acham-se esses dois seres —
dizia o sábio estribado em Zoroastro — empenhados num eterno conflito: luz
versus trevas e trevas versus luz. No homem encontram-se mesclados esses
dois elementos eternos. Daí a luta no seu interior. O homem é bom ou mau, não
pelo uso ou abuso do livre arbítrio, mas por necessidade física, e até metafísica.
Não é o homem que vence ou cai derrotado, é o bom ou mau gênio que nele
habita. Jesus Cristo veio ao mundo — dizia Manes — para libertar da matéria
sinistra e má as boas e luminosas partículas dentro do nosso ser.

É de admirar que a clara inteligência de Agostinho abraçasse sistema tão


confuso e arbitrário como este, chamado maniqueísmo. Entretanto... “o coração
tem razões de que a razão nada sabe”... Ele mesmo confessa, mais tarde,
porque se fez maniqueu: “Quem pecava não era eu, mas dentro de mim pecava
não sei que outra natureza; e o meu espírito se alegrava de estar isento de culpa,
e, quando praticava ato mau, não tinha de confessar que era eu que o cometera”.

Com efeito, quem pecava no pecador era Ahriman, o deus do mal; o único
responsável era esse mau espírito.

Alega Agostinho ainda outros motivos que o levaram a abraçar a doutrina de


Manes: uma amizade com um maniqueu, bem como os fartos aplausos que
colhia na luta com os adversários do sistema.
Havia entre os maniqueus duas classes: os “eleitos” e os “ouvintes”. Obrigavam-
se aqueles a rigorosa continência, a fim de derrotar em si o princípio do mal e
levar à vitória o elemento bom; ao passo que os “ouvintes” se contentavam com
a admiração platônica desse ideal e a contribuição para o sustento dos “eleitos”.

Agostinho nunca passou da classe dos “ouvintes”.

Procuravam os adeptos de Manes eliminar dos livros sacros tudo quanto lhes
parecesse contraditório ou indigno de Deus, apresentando assim uma Bíblia
racionalizada, como diziam. Acabaram por rejeitar o Antigo Testamento quase
todo, e “expurgaram” o Novo Testamento das pretensas interpolações judaicas,
a fim de adaptar a sagrada Escritura aos fins peculiares da sua seita.

Neste ambiente viveu Agostinho largos anos. Para esse credo angariou
numerosos sequazes.
CAPÍTULO 9

Novamente em Tagaste.
O Profano Gozador

Contava Agostinho 20 anos.

Terminava os estudos em Cartago. Era chegado o momento em que o jovem


rhétor tinha de abraçar a carreira de jurisconsulto, que lhe acenava com honras
e fortunas.

Em vez disto, abandonou inesperadamente Cartago e voltou para Tagaste. Aí


começou a lecionar gramática e línguas e foi nomeado por Romanianus
preceptor de seu filho Licentius.

Ridicularizando a sua profissão de mestre de retórica, escreve: “Victoriosam


loquacitatem, victus cupiditate, vendebam — vítima de cupidez, eu vendia a
minha vitoriosa loquacidade”.

Por que esta súbita mudança de idéias? Por que esta renúncia aos altos projetos,
para se reduzir à condição de professor de aldeia?

Nunca nos revelou Agostinho os motivos deste passo. Possivelmente


contribuíram para esta resolução razões de ordem econômica, tanto mais que o
autor das “Confessiones” afirma desdenhosamente que abriu em Tagaste uma
“taverna de palavras”.

Ou será que Romanianus, o argentário e senhor do município, insistiu com seu


jovem protegido no sentido de consagrar os seus talentos à glória e prosperidade
da sua terra natal?

Passou Agostinho quase um ano em Tagaste. Deixara em Cartago a mulher dos


seus amores.

Faz parte dos característicos do gênio de Agostinho, essa extrema facilidade e


rapidez com que abandona trilhos antigos da inteligência e do coração e se
adapta a novos ambientes. Precisamente agora, na alvorada de uma nova vida
de amor, ainda quase na “lua de mel” do seu primeiro amor definido, separa-se
ele da querida companheira e da sedutora metrópole, para se enterrar na solidão
duma insignificante cidade provinciana.
Agostinho é um verdadeiro nômade do espírito e do coração. Não é amigo de
residência fixa e definitiva. Não simpatiza com rotinas e tradições. Péssimo pai
de família teria sido ele, provavelmente, se chegasse a fundar um lar
propriamente dito. Não tolerava barreira de espécie alguma. Assim como
abraçou sucessivamente diversas ideologias filosóficas e religiosas, antes de
arribar ao porto seguro do Cristianismo, assim também, durante a sua longa vida
de apóstolo e apologista, modificou repetidas vezes a sua tática e estratégia, e
ainda no fim da existência escreve um livro intitulado “Retractationes”, obra em
que revoga e corrige muitas das suas idéias e opiniões expostas nos primeiros
tempos de convertido.

O homem menos inteligente acha desairoso mudar de idéias e aferra-se


fanaticamente a opiniões uma vez professadas e proclamadas como certas e
infalíveis. As idéias fixas impedem-no de ter pensamentos novos. Um
pensamento pode converter-se em outro pensamento, porque é algo móvel,
fluido, elástico em permanente estado de evolução — ao passo que uma idéia
se choca quase sempre com outra idéia, procura eliminá-la, suplantá-la, matá-
la. O homem de idéias fixas é um caminho estreito ladeado de muros altíssimos
— o homem do pensamento é um campo aberto para todos os horizontes.

O espírito tacanho, não raro, fossiliza-se nas suas idéias, que, geralmente, nem
são suas — ao passo que o espírito largo evolve, progride, abandona opiniões
antigas e menos exatas por outras, mais prováveis.

O sábio sabe que nada sabe.

O ignorante ignora que nada sabe.

Conhecer a própria ignorância já é porta aberta para a sabedoria.

Ignorar a própria ignorância é fechar as portas a todo o progresso.

Eu mesmo, durante a minha longa peregrinação terrestre, pus fora de circulação


mais de 30 dos meus livros, que chamo “pele de cobra”, porque não representam
mais o meu verdadeiro Eu; e reeditar esses livros, seria insinceridade comigo e
com os meus leitores. A cobra para poder crescer, despoja-se da pele velha: O
homem em evolução que não queira ser peça de museu morto, mas planta de
jardim vivo, não pode fossilizar-se em idéias fixas; tem de ultrapassar certo
estágio evolutivo para prosseguir na sua evolução ascensional.

O homem pensante considera-se, nesta vida, incessante viajor; por mais que
caminhe e alcance, não se considera jamais chegado ao termo final da jornada,
nem possuidor integral do ideal que demanda.

O espírito juvenil, mesmo quando habita em cérebro de ancião, não conhece


idéias fósseis, estereotípicas, imutáveis. Aceita conselho, instrução,
melhoramento; abraça, sem constrangimento nem humilhação, idéias alheias,
quando se convence de que são melhores do que as suas.

Decênios mais tarde, travou-se entre Agostinho e São Jerônimo veemente


correspondência epistolar sobre a origem da alma humana. Defendia este a
creação divina da alma, propendia aquele para a idéia de uma espécie de
geração por parte dos pais. Quando o colérico ermitão de Belém o censurou
acremente por esta opinião, confessou Agostinho, com encantadora
simplicidade e despretensão: “Libentius disco quam dico, ne audream docere
quod nescio — prefiro aprender a dizer, para não ensinar o que ignoro”.

Em período algum da sua longa existência sentia-se Agostinho chegado ao


termo final da sua jornada interior. Mesmo, quando venerandas cãs lhe cobrem
a cabeça, considera-se ele ainda no princípio do seu itinerário espiritual, e
continua como indefesso pioneiro a demandar novas zonas de conhecimento.

Agostinho foi um eterno itinerante, de espírito e de coração.

Aos vinte anos, em Tagaste, não era ele, certamente, um místico da Divindade;
mas já sentia em si, vaga e obscuramente, a verdade das palavras que, mais
tarde, lançou ao papel: “Fizeste-nos para ti, Senhor e inquieto está o nosso
coração até que encontre quietação em ti”.

Pensou em atravessar o Mediterrâneo para visitar a capital do império. Com que


fim? Não o sabia ele mesmo. Tão pouco o sabia, como a ave migratória, não
sabe da existência de outros países de clima mais ameno, e, no entanto, sente
a irresistível nostalgia das distâncias, o instinto de horizontes longínquos.

Agostinho queria fugir do conhecido para o desconhecido, para o mistério, para


o infinito. Tinha ímpetos de fugir de si mesmo, do velho ego, para, por assim
dizer, nascer de novo e começar vida nova. Tinha nojo de si mesmo e de tudo
que com esse infeliz ego se relacionava... E, por não poder suportar a si mesmo,
insuportável lhe parecia o mundo inteiro...

Nessa alma de pagão profano já dormitava uma alma de místico — mas ele não
o sabia...

Terno e doloroso ao mesmo tempo foi o reencontro de Agostinho com sua mãe.
Depois da morte de Patrício, mais ainda concentrara Mônica no caçula todo o
ardor da sua afeição, misto de insatisfação de mulher e amor de mãe, embora
desamasse o pagão, o herege, o maniqueu... Nesse doloroso conflito se debatia
a alma de Mônica...

De ano a ano, mais espiritualizava ela a sua vida cristã. Duas vezes por dia
visitava a basílica de Tagaste; de manhã, à hora da oração, e à tarde, para
assistir à pregação.
Insistia com o filho que abandonasse suas heresias; mas eram em pura perda
os seus esforços. Agostinho, no seu intelectualismo, sentia-se muito superior à
fé irracional dos bons cristãos e das piedosas mulheres do seu tempo. Amava
sua mãe, mas não estava disposto a imolar na ara desse amor a sua inteligência
e as suas convicções pessoais.

O novel maniqueu aproveitava todos os ensejos para fazer propaganda das suas
idéias. Levou numerosos amigos e conterrâneos para a seita que abraçara. Até
em praça pública discutia com seus adversários, e, graças à sua dialética, rebatia
com facilidade os argumentos em contrário, roubando ao Cristianismo grande
número de adeptos, precisamente dos mais cultos e influentes da sua cidade
natal.

Entre estes contava também Romanianus, o homem mais rico e poderoso de


Tagaste, amigo e protetor do filósofo.

A tal ponto chegaram as coisas que Mônica proibiu o filho de entrar em sua casa.

Agostinho, sereno e calmo — pelo menos exteriormente — abandonou a casa


materna e foi residir na luxuosa “vila” de seu grande amigo Romanianus. Estava
disposto a sacrificar tudo ao ídolo do seu intelectualismo.

Com isto iniciou o futuro asceta e místico um teor de vida mundana, no meio de
requintado luxo, por entre jogos, banquetes, caçadas e indolentes passa-
tempos. A vastíssima propriedade de Romanianus era uma espécie de fazenda,
ou parque, com termas e piscinas de natação, com lindos repuxos, com bosques
e jardins de apurado gosto. À sombra duma pérgola de perfumosas trepadeiras,
encravada num dos pitorescos ângulos do pomar, sorria o “recanto dos filósofos”,
onde a dona da casa matava o tempo reclinada em fofo divã, lendo obras de
poetas e pensadores. Nesse convidativo recesso encontravam-se também
amiúde Agostinho e Romanianus, discutindo as opiniões dos filósofos da época.

Romanianus, homem de maneiras distintas e de extraordinária liberalidade, não


possuía convicções pessoais sobre coisa alguma, menos ainda sobre os
magnos problemas da vida. Aceitava com facilidade as idéias dos que
considerava super-homens. Assim como abraçou sem resistência o
maniqueísmo de seu inteligente protegido, e como perfilhou as idéias platônicas
do mesmo, assim encampou também, mais tarde, o Cristianismo do convertido
de Milão. O aristocrático argentário de Tagaste nada tinha do espírito demolidor
nem do gênio creador de Agostinho. Só se sentia seguro sobre trilhos
previamente alinhados por outrem. Ingeria docilmente o que outros cérebros
haviam devidamente mastigado.

Com a transferência de Agostinho para a casa de campo do rico amigo, parecia


extinto em plena aurora aquele grande sol que devia aclarar o universo cristão
por séculos. Nada mais funesto para anquilosar o surto dum grande espírito do
que essa atmosfera de comodismo. Quando a energia elétrica não encontra na
sua passagem a necessária resistência não incandesce o fio condutor; quanto
mais difícil a passagem, mais intenso é o fulgor que a misteriosa corrente produz.

Para Agostinho já não havia resistência, lutas, dificuldades a vencer — assim


parecia. A vida na “vila” do amigo lhe corria por demais agradável e deliciosa
para que a águia do seu espírito pudesse expandir as asas para grandes vôos e
demandar ignotas alturas para além das suaves e queridas comodidades desse
vegetar sonambulesco...

Entretanto, não permitiu a Providência que apodrecesse nessa paz indolente e


anônima a grande alma do genial africano. Mais dolorosos do que adversidades
externas são para um grande espírito os tormentos nascidos em seu próprio
coração.

Quanto mais inteligente e sensível é o homem tanto mais conscientes e acerbos


são os problemas que surgem das profundezas de sua alma — problemas,
mistérios, enigmas, esfinges, interrogações sem resposta, que da sua vida
fazem uma silenciosa luta e um contínuo campo de batalha.

É precisamente no auge da prosperidade material que o espírito profundo sente


mais acerbamente a própria insuficiência, a insatisfação de todas as satisfações,
o amargor de todas as suavidades, o vácuo de todas as plenitudes terrenas... Ai
da alma humana se lhe faltasse essa gravitação, esse divino heliotropismo!...

Correria perigo de ser impelida pela força centrífuga das grandiosas futilidades
da terra, fugir pela tangente da sua órbita e desaparecer no tenebroso espaço
do nihilismo e do nada absoluto.

Mas não é possível essa fuga tangencial da alma, porque a imanente gravitação
da sua própria natureza espiritual lhe veda essa deserção definitiva.

Em astronomia vigora a lei newtoniana de que os corpos se atraem na razão


direta das suas massas e na razão inversa do quadrado da distância. Também
na astronomia do espírito se verifica lei análoga. O espírito creado sente-se
atraído pelo Espírito increado na razão direta do seu volume, ou seja da sua
potencialidade espiritual. A “infelicidade” do sofrimento é a maior das felicidades,
porque impele o planeta descarrilado a reentrar na trajetória do seu astro central
e evitar assim o grande cataclismo metafísico.

A maior das infelicidades é não sentir esta infelicidade. O homem que vive a
impugnar o teísmo e a procurar argumentos para consolidar o seu chamado
“ateísmo” dá provas de que não está convencido do que desejaria ter
abandonado. Mil vezes pior quando o afirma e que sente a atração do centro que
abandonou “ateu” prescinde de qualquer apologia do seu sistema e entra na
zona mortífera duma grande calmaria espiritual, porque nesse ambiente corre
perigo de não mais sentir a feliz infelicidade dos seus tormentos metafísicos.
Mas parece que esta desgraça das desgraças só pode caber a um espírito
obtuso e medíocre, e não a uma alma de elevada potencialidade.

Reproduzimos aqui o suspiro nostálgico que Nietzsche, o “ateu místico” deixou


entre os seus papéis, no princípio deste século:

Mais uma vez, antes de prosseguir caminho,


E olhar para a frente,
Ergo, solitário, minhas mãos a ti,
A ti, a quem me refugio,
A ti, ao qual consagrei altares, solenemente,
Nas mais profundas profundezas do meu coração,
Para que, em todos os tempos,
Tua voz me chamasse novamente.
Gravada profundamente no meu altar,
Resplende a palavra: AO DEUS DESCONHECIDO.
Dele eu sou, ainda que, até a presente hora,
Permaneça no bando dos ímpios.
Dele eu sou, e sinto os laços
Que me arrastam à luta,
Lá embaixo,
Que, embora eu fuja,
Me obrigam a servir-te.
Quero conhecer-te, ó Desconhecido!
Tu, que empolgas minha alma profundamente,
Que, qual tempestade, penetras minha vida,
Tu, o Inatingível, que és afim comigo.
Quero conhecer-te — quero até servir-te.
CAPÍTULO 10

Angústia Dum Coração de Mãe.


Um Sonho e Muitas Lágrimas

Pelo rumo que as coisas tomavam, convenceu-se Mônica de que seu dileto
Agostinho se alheara definitivamente do Cristianismo, religião em que ela via a
verdade e única possibilidade de salvação.

Mas, com a morte da fé cristã, na alma do filho não queria morrer na alma de
Mônica o amor de mãe. Pelo contrário, em virtude não se sabe de que estranho
paradoxo, quanto mais se distanciava Agostinho do espírito do Evangelho, tanto
mais se aproximava Mônica do coração do filho. Banhava com o amargor das
suas lágrimas um cadáver inerte... Embalsamava com a perfumosa essência das
suas preces um esqueleto de fé cristã...

Acabava Agostinho de ser proclamado chefe do maniqueísmo em Tagaste. A


privilegiada inteligência do jovem era agora uma lâmina aguda para matar no
coração de muitos homens aquela fé que Mônica alimentava em sua alma com
a carinhosa solicitude duma vestal a amparar o fogo sagrado no templo da
divindade.

Numa daquelas noites banhadas de lágrimas, teve Mônica um sonho ou uma


visão. Via-se em pé numa grande planície. De súbito, aproximou-se dela um
jovem sorridente, aureolado de vivos fulgores. Ela, porém, estava imersa em
profunda tristeza e coberta de luto. Inquiriu o jovem do motivo das suas lágrimas.
Choro a eterna condenação de meu filho — respondeu-lhe Mônica. Ao que o
desconhecido lhe respondeu: Não temas! Teu filho estará onde tu estás. Mônica
voltou o rosto, e viu Agostinho ao pé de si, no mesmo plano.

Esperançada com esta mensagem, procurou revocar para casa o filho. O herege,
de fato, voltou. Voltou corporalmente, mas o seu espírito continuava longe, no
deserto da heresia de Manes. Procurou arrebatar à mãe a “ilusória felicidade”
que lhe dera aquele sonho, dizendo:

“Se nós dois, a julgar por teu sonho, estaremos um dia no mesmo plano, quer
dizer que tu abraçarás como eu o maniqueísmo”.
“De forma alguma! — protestou Mônica — não me disse a aparição que eu
estaria onde tu estás, mas que tu estarás onde eu estou”.

Sorriu-se Agostinho — e continuou aferrado às suas idéias.

* * *

Em sua extrema aflição, foi Mônica procurar um bispo muito versado na Bíblia e
instou com ele que convidasse Agostinho para uma discussão pública, a fim de
o convencer dos seus erros. Negou-se o prelado a aceder ao pedido.

Mônica, porém, não se rendeu. Continuou a suplicar que, ao menos, falasse com
seu filho. Ao que o bispo lhe respondeu, um tanto irritado: “Vá, senhora, e
continue a viver como de costume. Não é possível que se perca um filho de
tantas lágrimas”. E fez ver à suplicante que um homem de tão penetrante
inteligência como Agostinho não professaria por muito tempo doutrina tão
incoerente como o maniqueísmo, doutrina que ele conhecia a fundo, porque
também fora um dia discípulo de Manes.

Conformou-se Mônica com o inevitável, redobrando de orações e prantos, para


alcançar a conversão de seu filho.
CAPÍTULO 11

A Volúpia das Saudades

Durante a sua permanência em Tagaste, ao que parece, pouco se preocupou


Agostinho com a sua amada em Cartago.

Tanto mais se afeiçoou a alguns amigos que comungavam nas suas idéias.

Havia entre estes um companheiro de estudos superiores, que também morava


em Tagaste e que Agostinho levara aos arraiais do maniqueísmo.

Adoece gravemente este amigo. Agostinho desvela-se em solicitudes pelo


enfermo, que trazia tão dentro do coração que bem o pudera apelidar de
“dimidium animae meae” (metade de minha alma), como dizia Horácio falando
de Virgílio. Às portas da morte, pediu o agonizante o batismo. Depois, com
grande surpresa de todos, convalesceu.

Quando Agostinho tornou a visitar o amigo, que deixara sem sentidos, e este lhe
falava, calma e reverentemente, do batismo, zombou o maniqueu de semelhante
“fraqueza” e convidou o convalescente para uma discussão filosófico-religiosa.
Este, porém, dirigiu-lhe um olhar doloroso e sério e declarou-lhe com firmeza:
“Se quiseres ser meu amigo, deixa-te de semelhantes falas”.

Perturbado com tão inesperada resposta, retirou-se Agostinho, aguardando o


completo restabelecimento do enfermo, na certeza de que então o faria voltar
aos antigos sentimentos. Mas o doente faleceu de improviso, daí a poucos dias,
sem que Agostinho tornasse a revê-lo.

Indescritível foi a dor que se apoderou da alma do jovem, quando soube do


desenlace do dileto amigo. “A dor que esta perda me causou — escreve mais
tarde — enlutou de trevas o meu coração. Por toda a parte se me antolhava a
morte. Em tormento se me tornou o torrão natal, e em martírio a casa paterna.
Tudo quanto compartilhara com o amigo tornou-se-me indizível tortura, agora
que ele não existia mais. Os meus olhos procuravam-no por toda a parte, e em
parte alguma o encontravam. Tudo me aborrecia, porque o não via em parte
alguma e porque nada me podia dizer: Aí está ele! Virá como outrora, quando
por momentos nos separávamos — no tempo em que ele ainda vivia”...

Tristeza, luto e pranto foram o pão quotidiano de Agostinho, após a morte do


amigo. E, por fim, julgou encontrar suavidade no amargor do pranto. Gozava, por
assim dizer, o seu próprio martírio. Entregou-se à volúpia das lágrimas e
saudades.

“Não tenho mais nada no mundo senão a minha dor — dizia — e esta dor me é
querida e cara”.

Nem queria saber de consolação. Apaixonara-se pelo sofrimento. Viciara o


coração com o doce entorpecente da dor e encontrava nessa estranha
embriaguez uma ilusão de alívio. “O meu pranto substitui-me a presença do
amigo do meu coração”.

Entretanto, quem conhecia o gênio de Agostinho podia adivinhar que


semelhantes labaredas do seu sentimentalismo não tardariam a ceder a outras
flamas não menos intensas, deixando de si apenas um punhado de cinzas frias.

A breve trecho, resolveu Agostinho voltar para Cartago a fim de abrir um curso
de Retórica. Possivelmente, recebera também recado da sua amante,
comunicando-lhe o próximo nascimento de seu herdeiro.

Partiu, por mais que a tal passo se opusesse Romanianus, que se queria servir
do inteligente jovem como fogo de artifício para iluminar a sua cidade natal e o
município que administrava. Entretanto, sugestionado por Agostinho, acabou por
ceder, e, ainda por cima, pagou mais uma vez as despesas de viagem ao
simpático protegido.
CAPÍTULO 12

Silencioso Clamor Duma Alma

Com o regresso de Agostinho para Cartago, principia o mais doloroso período


da sua angústia interior — prelúdio da sua redenção espiritual.

Cerraram-se em noite espessa todos os horizontes de sua alma.

Desceu o espírito de Agostinho ao mais profundo nadir da abjeção e do nojo de


si mesmo. E do fundo deste abismo seria, um dia, arrojado pelo poder da graça
ao mais alto zênite da espiritualidade.

Nove meses passa o ser humano em formação no útero materno, para poder,
finalmente, contemplar a luz da vida — e nove anos levaria ainda essa “alma
naturalmente cristã” até surgir definitivamente do paganismo do “homem velho”
para a vida da “nova creatura em Cristo”.

Nunca talvez existisse um homem que, no meio dos seus pecados, se achasse
mais perto de Deus do que Agostinho.

Espírito agrilhoado pelo erro, alma escravizada pela carne, sentia-se esse “santo
pecador” tão infeliz, tão rasgado de desarmonias, tão enojado de si mesmo, que
o silencioso clamor do seu ser era um brado imenso da humana miséria pela
divina Misericórdia.

Quanto mais consciente nos for a nossa vacuidade, tanto mais perto estamos da
plenitude de Deus.

“Onde estava eu nesse tempo quando te procurava. Senhor — pergunta ele mais
tarde; e responde com estas palavras tão suas e tão de milhares de colegas seus
de todos os séculos: — Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Eu não
sabia encontrar a mim mesmo — e como seria então possível encontrar-te a ti?...
Noverim me ut noverim te. Conheça eu a mim, para que conheça a ti!”

Realmente, o homem que não se encontra a si mesmo, jamais encontrará a Deus


— o Deus desconhecido imanente no homem desconhecido.

* * *

Em Cartago foi Agostinho saudado com júbilo pela sua quase-esposa e talvez
pelo vagido de seu filhinho. Ingrata surpresa, essa, do aparecimento do
nenezinho. Agostinho não desejava, nesse tempo, ser pai. Mas, quando tomou
nos braços o pequenino ser plasmado do seu sangue, sentiu o delicioso orgulho
de quem contempla o próprio Eu refletido num pequeno Tu. Confessou
corajosamente a sua paternidade. Impôs ao recém-nascido o nome de
“Adeodatus” — dado por Deus. O “filho do pecado”, fruto da sua incontinência,
nascido daquela que não era sua esposa, e esse filho é um “presente de Deus”
— quanta ironia e quanta verdade neste nome!

Mas esse nome é bem um símbolo da vida paradoxalmente sublime desse


“cristianíssimo gentio”, mais religioso talvez que muitos daqueles que nunca
andaram tão longe de Deus, nem nunca chegaram tão perto de Deus como ele...

Com o nascimento do filho estreitaram-se ainda mais as relações entre


Agostinho e aquela mulher anônima, adquirindo uns visos de matrimônio
legítimo.

Durante longos anos foi Agostinho fiel a essa jovem cartaginesa, sinal de que
esse volúvel nômade da inteligência e do coração a amava realmente, fosse por
causa de sua beleza, fosse pela bondade de seu coração, fosse por esses e
outros motivos. Não lhe vedava a lei repudiar a mulher e ficar com o filho. Não o
fez enquanto um novo teor de vida não o impelisse a esse extremo.

Por que não contraiu com a mãe de Adeodatus legítimo matrimônio?

O que sabemos é que nem mais tarde, em Milão, quando Agostinho procurava
regularizar a sua vida, consentiu Mônica nesse casamento. Não faltou quem
visse na amante de Agostinho uma jovem de condição inferior, talvez sem cultura
de espírito, mas que cativou o coração do ardente filósofo em virtude daquelas
“razões de que a razão nada sabe”.

Em terreno sexual e afetivo, como se vê, era Agostinho bem humano,


simpaticamente humano. Não entravam nos seus cálculos, como fatores
ponderáveis, a fortuna, os brasões de família, o prestígio social, as luzes de
saber da sua companheira; entrava somente ela, entrava apenas o eterno
feminino, potencializado talvez por um irresistível sex-appeal, como dizem os
modernos. Mas Mônica não admitia uma nora de condição inferior a seu filho...

* * *

Entretanto, esses nove anos em Cartago foram também anos de intenso labor.

Agostinho, por mais afetivo, não deixou nunca de ser o sensato intelectualista e
o homem do bom-senso.

Graças à influência de Romanianus, conseguiu uma colocação entre os rhétores


da metrópole. Dois filhos do poderoso amigo achavam-se entre seus educandos,
morando talvez na mesma casa com o mestre.
Eulogius e Alypius lograram escapar ao “negro vaso do esquecimento”, graças
à futura celebridade de Agostinho. O último tinha de seus pais proibição
categórica de frequentar as preleções do perigoso maniqueu, mas o jovem não
conseguiu resistir por muito tempo à ação envolvente dos “fluidos simpáticos” do
mestre.

À luz de fatos históricos, é de supor que esses “fluidos” — para usar de


terminologia moderna — fossem ignorados por muito tempo a Eulogius, Alypius,
Nebridius, Honoratius, Marcianus, Romanianus, e provavelmente, seus dois
filhos — todos os que entram no campo magnético de Agostinho sucumbem à
estranha fascinação da sua personalidade; o jovem africano desarma os seus
poderosos adversários; conquista para as suas idéias filosóficas e religiosas,
espíritos opostos à sua ideologia e munidos de todos os antídotos contra os
invisíveis venenos que dimanavam desse mago da inteligência e do coração.

Apenas Mônica resistiu, invicta, a essa silenciosa ofensiva do filho, graças, sem
dúvida, a uma poderosa virtude do alto.

Não fossem esses nove anos de intensos labores intelectuais, inexplicável nos
seria a cultura enciclopédica que Agostinho revela nas páginas da “Civitas Dei”,
a mais vasta e profunda obra que dele possuímos. Que saber possuía, afinal,
um rhétor formado pela academia de Cartago? Conhecia escritores e poetas
gregos e latinos; sabia revestir de luxuosa roupagem as suas idéias — mas
seriam essas belas exterioridades assaz resistentes para contrabalançar a
potência demolidora dos séculos? Todo homem chegado à maturidade espiritual
sabe de experiência própria que o que o impressiona, empolga e convence não
são, em última análise, as idéias, a não ser que sejam a cristalização da própria
vida humana. Pode o homem vulgar extasiar-se ante uma deslumbrante
fraseologia, mas o homem formado pela vida e, sobretudo pelo sofrimento,
procura antes de tudo a alma da idéia, e só admira o invólucro literário na medida
que atue como veículo ou prisma para apresentar o homem em a sua natural
beleza e plenitude.

Nesse período estudou Agostinho tudo quanto o espírito humano havia


produzido no campo da ciência e da arte.

Do terreno literário passou para as vastas regiões da filosofia. Desceu com


Pitágoras às profundezas metafísicas do Ser Supremo. Devassou o cosmos.
Analisou os mistérios do próprio Eu. Ascendeu com Platão às excelsas
culminâncias do Eidos. Interrogou sobre o donde, o para onde e o por quê desse
ente estranho que, com o farol da razão, procura iluminar a noite do mundo
irracional.

Foi nesse tempo que Agostinho se apaixonou pela filosofia neo-platônica. E ficou
fiel a esse amor através da sua vida cristã, até ao derradeiro suspiro.
Falar em filosofia aos inscientes e aos profanos gozadores é correr risco de ser
incompreendido. Quem nunca saboreou a deliciosa volúpia do saber intuitivo,
não passa dum analfabeto ou dum aluno de escola primária, em face da
verdadeira sapiência. Não sabemos aquilo cujos efeitos momentâneos
aparecem à superfície da nossa experiência quotidiana. Sabemos somente
aquilo que saboreamos, vivemos, sofremos — e somos.

Quem uma vez se apaixonou pelo saber, chega, não raro, a sacrificar por ele o
próprio bem-estar físico. O filósofo, vive muitas vezes fora do mundo, alheio às
palpáveis realidades da vida, absorto na própria realidade; é, geralmente
péssimo homem da sociedade, verdadeira negação para salões elegantes e
reuniões sociais. Não somente descura o seu trajo e aspecto externo, mas é
também deplorável “cavalheiro” e conversador. Não sabe dizer ocas banalidades
sobre o estado do tempo, como exigem as visitas e relações sociais. Não é capaz
de falar uma ou duas horas sem dizer nada. Não o interessam as intrigas
políticas. Não sabe servir blandiciosas mentiras às damas e aos amigos,
mentiras sem as quais não subsiste a sociedade — numa palavra, o verdadeiro
pensador e filósofo é, geralmente, um ser que vive a sua vida própria e, por isso
mesmo, é um corpo estranho no meio daqueles que vivem apenas a vida alheia.

Existe uma obra de Aristóteles, intitulada “As dez categorias”, em que o estagirita
remonta a tão vertiginosas alturas e usa duma terminologia tão abstrata que
poucos dos seus admiradores conseguem penetrar nessa floresta metafísica, e
muitos daqueles que cuidam ter atingido o pensamento do filósofo entenderam
coisa bem diversa do que ele queria dizer.

Afirma Agostinho que os mestres cartagineses apregoavam buccis typho


crepantibus com bochechas crepitantes de vaidade), como algo de “grande e
divino” esse mistério aristotélico. E, no entanto, descobriu ele as idéias contidas
nas “categorias” e sem mestre algum as compreendeu. É que o espírito arguto
do africano era congenial ao do inteligente heleno — e sempre é mais fácil
apreciar com justeza um fenômeno quando se está em sintonia espontânea com
o objeto e seu locutor.

* * *

A par do estudo intenso da filosofia helênica continuava Agostinho a investigar a


verdade religiosa, pesquisando nas páginas da Bíblia e procurando a justificação
do seu confuso maniqueísmo. Entretanto, como mais tarde confessa, nunca a
sua alma encontrou quietação no sistema religioso que abraçara. Esperava, de
ano para ano, luzes mais amplas, alguma grande revelação que lhe tirasse as
dúvidas e esclarecesse umas tantas obscuridades que lhe envolviam o espírito
insatisfeito. Inúmeras vezes expôs aos corifeus da seita essas suas dúvidas e
incertezas. Eles, porém, não tinham outra consolação senão esta: “Espera e
verás; estuda, e saberás”. Apelavam para “dogmas esotéricos”. Davam às suas
teses e hipóteses certo colorido de profundidade ocultista, certo fulgor
metafísico, certo verniz poético, e assim narcotizavam os espíritos de seus
adeptos.

Agostinho compara-se a si mesmo com um pobre passarinho devorado de sede:


abeira-se de um regato para beber, e encontra as águas turvadas,
propositalmente turvadas por pérfido caçador que na vizinhança armou o seu
laço traiçoeiro para apanhar a avezinha incauta.

* * *

Mais e mais se convence Agostinho de que não é possível atingir a verdade à


força de especulações filosóficas, nem à luz da Bíblia, nem pelas doutrinas das
igrejas, que se digladiavam na mais vergonhosa discórdia, negando umas o que
outras defendiam e desmentindo todas elas com descaridosas polêmicas a
caridade que apregoavam como sendo a alma do Evangelho. Existiam pelo
menos vinte cristianismos diferentes, cada um dos quais se dizia a verdade
única.

Na atmosfera crepuscular desse cepticismo desanimador, foi a alma do jovem


resvalando cada vez mais para o terreno do misticismo pagão. Se não havia um
Deus na inteligência dos filósofos nem no coração dos teólogos, se nem a ciência
nem a fé estavam em condições de construir uma escada que atingisse o céu —
quem sabe se essa verdade se encontrava nos círculos esotéricos dos magos e
astrólogos, que diziam manter secretas relações com potências sobrenaturais?...

Travou Agostinho relações com diversos “taumaturgos” da época, como eram


considerados, geralmente, os neo-platônicos.

Em breve, porém, se sentiu desencantado da magia e do ocultismo, e começou


a pesquisar no terreno da astrologia, cujo caráter científico o satisfazia mais do
que os manejos fantásticos dos chamados taumaturgos. Entusiasmou-se
vivamente pela ciência desses “matemáticos”, como então se intitulavam os
cultores da astrologia. Manteve longos colóquios com Vindicianus, médico
cartaginês, que, todavia, procurou convencer Agostinho de que as profecias dos
tais matemáticos não passavam de coincidências fortuitas, sem nenhuma
influência da constelação dos corpos sidéreos.

Nem tão pouco valeu Nebridius, amigo de Agostinho, dissuadi-lo de dar crédito
à pretensa ciência desses aventureiros astronômicos. Andava a alma do jovem
filósofo em adiantado estado de “gestação espiritual”. Já não a satisfaziam os
argumentos intelectuais. Tateava nas trevas, em demanda de algo sobrenatural,
algo celeste, algo divino; e, como ainda não lhe despontara a serena luz solar do
Cristo, refugiava-se esse espírito heliotrópico para onde julgava entressentir o
bruxulear duma luz que não fosse deste mundo.

* * *
No meio dessas especulações filosóficas e metafísicas, ocultistas e astrológicas,
ecoava a voz suave da mulher que ele amava, tremulava o choro duma criança
que era sangue do seu sangue — e Agostinho se lembrava de que não podia
passar os seus dias entre sonhos e lucubrações de estéreis teorias. Tinha de
contar com a prosaica realidade — tinha de ganhar dinheiro...

Vindicianus teve pena do pobre rhétor, que estava a pique de sacrificar a sua
existência física — sua e dos seus — pela metafísica das suas ideologias
espiritualistas. Acabava o abalizado médico de ser nomeado procônsul do norte
da África. Sob os auspícios do poderoso amigo resolveu Agostinho escrever
algumas peças para o teatro de Cartago. Quando se considera o nível em que
se encontrava o teatro da metrópole e o gosto depravado do público, é realmente
para muita estranheza que a fome espiritual do filho de Mônica se degradasse
até esse extremo.

“Colocou-me Vindicianus o laurel da vitória sobre a cabeça enferma” — geme


Agostinho, ao relembrar este período da sua vida.
CAPÍTULO 13

O Primeiro Livro — O Novo


Tântalo

Vivia, nesse tempo, na capital do Império Romano um famoso filósofo sírio, por
nome Hierius. Não tardou que a fama desse homem ultrapassasse as fronteiras
da Europa e repercutisse nas plagas da África. Os que se tinham na conta de
intelectuais acompanhavam com admiração a trajetória do novo astro.

Por esse mesmo tempo escreveu Agostinho a sua primeira obra filosófico-
estética, intitulada: “De pulchro et apto” (Do belo e conveniente). E teve a idéia
de a dedicar ao grande sírio. Ver o seu nome no mesmo livro com o do famoso
orador, saber-se nomeado no mesmo fôlego com Hierius, era então para
Agostinho motivo de satisfação e honra. Assim, calculava ele, teria esperança
de imortalizar o seu nome com o do grande sábio — assim como o obscuro
artífice gosta de perpetuar o seu nome no cantinho do monumento que tem de
erguer em praça pública a alguma celebridade. Quis, porém, a ironia da sorte
que se invertessem os papéis, que o nome de Hierius passasse à posteridade
graças ao livro que lhe dedicou o seu obscuro admirador africano.

Não chegou até nós essa primeira produção literária de Agostinho. Dela
sabemos apenas através da auto-biografia “Confessiones”.

É bem notável e profundamente simbólico que a primeira obra de Agostinho


versasse tema estético. Durante toda a sua vida continuou ele fiel a sua
orientação. Agostinho não deixou nunca de ser o cantor da beleza. Ainda que
nesse tempo, como parece, ignorasse os célebres diálogos dos grandes
discípulos de Sócrates — Phaidron, Georgias, etc. — são profundamente
platônicas as idéias de Agostinho.

O Cristianismo agostianiano é platônico, religião da luz, da beleza, da estética,


do coração, do amor — assim como o Cristianismo de Tomás de Aquino, é antes
a religião da inteligência, do raciocínio sóbrio de Aristóteles.

“Num amamus aliquid nisi pulchrum?” — pergunta ele a seus amigos — será que
amamos algo que não seja belo?
Na “Civitas Dei”, quando fala da ressurreição dos corpos, acha que o corpo
humano deve ressurgir para uma vida nova e com todos os membros
devidamente purificados, “porque esses membros são belos”, e o que é belo não
pode perecer para sempre. Para Agostinho, o “belo” é tão imortal como o
“verdadeiro”.

Hierius não respondeu à gentil dedicatória e oferta do livro de seu desconhecido


admirador.

Agostinho continua a lecionar retórica em Cartago, procurando amenizar a


monotonia da sua “taverna de vender palavras”, como apelida sarcasticamente
a sua profissão, com o estudo de novos sistemas filosóficos e religiosos.

A astrologia levou-o, aos poucos, ao terreno mais seguro da astronomia. O


estudo desta ciência encheu-lhe a alma de dúvidas sobre a exatidão da doutrina
de Manes. A arbitrária cosmogonia do maniqueísmo contradizia em muitos
pontos as firmes realidades da cosmologia.

O simples “ouvinte” da seita resolveu expor as suas dúvidas a alguns “eleitos”


da mesma. Mas, em vez duma solução, teve como resposta apenas este magro
consolo: “Espere até que venha o nosso bispo Fausto”.

Depois de longos anos de espera apareceu, finalmente, em Cartago, esse


suspirado Messias do maniqueísmo. Agostinho ouviu-o e visitou-o. Expôs-lhe as
suas dificuldades — e retirou-se profundamente decepcionado...

Fausto era um espirituoso literato, um agradável causeur, mas não um filósofo


nem um sábio. Era incapaz de medir o alcance das objeções do jovem, que
procurava sinceramente conciliar a ciência dos astros com as doutrinas dos
mestres da seita.

“Ubi venit, expertus sum hominem gratum et jucundum verbis, et ea ipsa quae
alii solebant dicere, multo suavius garrentem. Sed quid ad mean sitim
pretiosiorum poculorum decentissimus ministrator? Jam rebus talibus satiatae
erant aures meae; nec ideo mihi meliora videbantur quia melius dicebantur, nec
ideo vera quia diserta; nec ideo sapiens anima quia vultus congruus et decorum
eloquium — quando (Fausto) chegou, tive diante de mim um homem de presença
agradável e de palavras jucundas, que sabia exprimir com torneios muito mais
suaves as mesmas coisas que outros costumavam dizer. Mas que adiantava
para saciar a minha sede o fato de ser o servente da taça um homem simpático?
Das coisas que ele proferia já estavam fartos os meus ouvidos; nem por isso me
pareciam melhores porque eram ditas de modo mais elegante; nem por isso
verdadeiras porque eloquentes; nem por isso me parecia mais sábio o espírito
porque o semblante era atraente e a frase bem cuidada”.

Desde então, foi Agostinho um céptico. A verdade, a grande e saudosa verdade,


pela qual suspirava o seu espírito sedento e exausto de infrutíferas migrações,
começou a se lhe afigurar como simples miragem do deserto, ilusório oásis, que
o fatigado viajor nunca atingiria, por mais que andasse e sofresse...
CAPÍTULO 14

Planos de Viagem. — Adeus,


Cartago!

Dilacerado de profunda insatisfação interior, agitado de cruéis solicitudes pelo


futuro dos seus, dolorosamente decepcionado nas suas aspirações metafísicas,
concebeu Agostinho o plano de atravessar o Mediterrâneo e procurar paz e
salvação em um novo ambiente — na capital do Império. Lá estava o seu querido
amigo Alypius, que acabava de terminar os estudos de Direito. Para lá o
chamavam os amigos Marcianus, Honoratius, e outros.

Indica Agostinho como um dos motivos desse passo a selvageria dos seus
ouvintes cartagineses, que obrigavam o professor a um rigor e uma energia de
que este não dispunha. Em Roma, esperava encontrar ambiente melhor, mais
humano, mais propício para sua futura carreira. Mulher e filho ficariam na África
até que ele encontrasse posição garantida.

De mais a mais. Agostinho sentia-se cada vez menos seguro em Cartago. O


imperador Teodósio perseguia inexoravelmente a heresia de Manes, chegando
ao ponto de decretar pena de morte para os adeptos impenitentes — e Agostinho
era conhecido como um dos principais caudilhos da seita, para a qual
conquistara inúmeros amigos.

Quando Mônica soube do plano do filho, viu por momentos desmoronar todas as
esperanças da sua vida. Que seria dele, de sua alma, se se subtraísse ao influxo
da fé? Quem o revocaria dos seus erros? Quem o conduziria ao seio da igreja
do Cristo, naquela Babilônia de Roma, foco de todas as aberrações espirituais
da época?...

Foi a Cartago. Cingiu nos braços o seu filho pródigo. Conjurou-o que não fosse
a Roma, ou, pelo menos, a levasse em sua companhia.

Agostinho, embora com o coração a sangrar, permaneceu irredutível.

No porto de Cartago estava surto um navio com destino à Itália. Esperava pelo
primeiro vento propício para içar velas. Mas a calmaria era total. A atmosfera
pesada e úmida.
Agostinho dirigiu-se ao porto, seguido de sua mãe. Enganou-a dizendo que ia
apenas a bordo para ver um amigo que partia.

Passaram dias e noites. Continuava a mesma calmaria.

Na véspera da partida estava o navio ancorado num pequeno porto, ao norte da


cidade. À beira-mar havia uma capela dedicada a São Cipriano, patrono de
Cartago. Sugeriu Agostinho à mãe a idéia de passar a noite orando nesse
santuário. Mônica para lá se dirigiu em companhia do filho. Não o perdia de vista.

Caiu a noite. Mônica derramou sobre o altar do santo a angústia do seu coração.

Depois de muito orar e muito chorar, sentou-se numa das galerias que
circundavam o templo, no meio de outras pessoas que lá passavam a noite.

Exausta da longa espera, adormeceu, finalmente, sobre o frio lajedo da galeria...

Agostinho aproveitou a ocasião para se esgueirar e embarcar apressadamente.

Antes de clarear o dia, o veleiro levantou ferro. Sopravam ventos galernos. E lá


se foi Agostinho, rumo à Itália, deixando sua pobre mãe submersa em sono no
santuário de São Cipriano...

Adeus, Cartago, adeus, África, adeus, almas queridas!...

A vastidão do mar, as belezas da alvorada — nada, nada foi capaz de aliviar o


pesadelo que oprimia o coração de Agostinho...

Com a alma dilacerada de desarmonias, réu de enganar sua mãe, que tanto o
amava e tanto por ele sofria — sentia Agostinho náusea de si mesmo, e quase
desejava que as ondas do Mediterrâneo o tragassem de vez com todo esse
inferno da sua miséria e da sua infelicidade...

Tudo suporta o homem quando suporta a si mesmo.

Mas Agostinho não suportava mais o próprio ego...

Tinha nojo de si, nojo da sua vida, nojo do passado e do presente — e não podia
divorciar-se desse tormento da consciência culpada...

Vem, ó morte querida!... Vem libertar-me do inferno de mim mesmo!...


CAPÍTULO 15

No Labirinto Romano —
Trabalhos — Desânimo

Seria em fins de agosto ou princípios de setembro quando Agostinho pôs pé na


capital do Império.

E, logo no início, foi colhido pela febre, que era então muito comum nesses
meses úmidos de outono.

Convidado por um “ouvinte” do maniqueísmo, hospedou-se num dos últimos


andares dum edifício.

Com pouco dinheiro no bolso, com a alma rasgada de desarmonias, prostrado


na cama, ora a arder em fogo, ora sacudido de gélidos arrepios, julgava
Agostinho chegada a sua última hora. Um inferno de horrores negrejava-lhe na
alma ao pensar que, nesse infeliz estado moral, teria de aparecer ante o divino
juiz. Sabia que andava mais longe de Deus do que nunca. Em pequeno, tinha ao
menos o desejo de receber, mais tarde, o batismo e guiar-se pela doutrina do
Nazareno; mas agora, nem esse piedoso desejo vislumbrava em sua alma,
através da noite do seu desespero...

Lembrou-se de sua boa mãe, que a essas horas se debulhava em pranto e


passava noites de dolorosa vigília por causa dele, seu filho pródigo. Recordou-
se da perfídia que contra ela cometera na noite do embarque...

Mônica a definhar de saudades e angústias no litoral da África, e Agostinho a


morrer de febre e de remorsos num escuro e úmido desvão dessa tristonha
Babilônia, como se lhe afigurava a cidade das sete colinas...

Mal entrado em ligeira convalescença, meteu-se pelas ruas de Roma, à procura


de alunos para o seu planejado curso de filosofia.

Nunca em dias de sua vida ulterior conseguiu Agostinho simpatizar com a


“cidade dourada”, como a apelidavam seus habitantes, em vista dos numerosos
telhados de ouro. Cartago continuava a merecer todo o amor desse africano.

Depois de longos dias chuvosos; depois de infrutíferas correrias, ruas acima,


ruas abaixo, por becos e vielas, nada conseguira o jovem acadêmico. Para um
obscuro rhétor provinciano era imensamente difícil angariar alunos na orgulhosa
urbs. As antigas famílias patrícias da opulenta metrópole mediam com mal
disfarçado desdém o enfermiço mancebo africano, se é que se dignavam mandá-
lo entrar nos luxuosos palacetes. Agostinho não era bastante hábil na tortuosa
política de subornar os porteiros, para que o levassem à presença de seus
ilustres senhores e patrões e lhe advogassem a pretensão.

Recusas, negativas, desprezos, sobranceira displicência, desdenhoso dar de


ombros — tudo isto coube ao filho de Mônica em excessiva abundância. Foram,
a bem dizer, semanas de murros e pontapés.

O movimento nas estreitas ruas era um contínuo perigo de vida. Em


desapoderado galope costumavam os aristocratas lançar de praça em praça as
suas soberbas quadrigas, atropelando, não raro, incautos pedestres e veículos
mais modestos. E quando, então, passava uma distinta matrona romana,
carregada em luxuosa liteira pelos seus eunucos e circundada do fausto da sua
corte, sob as ordens de um dux então ficava por largo espaço de tempo
interrompido o trânsito na respectiva zona urbana.

Depois de um dia desses, cheio de fadigas e desilusões, regressava Agostinho


à sua pobre mansarda em casa do amigo maniqueu e suspirava pela morte
redentora... Recordava-se das palavras de Sêneca sobre a única entrada na vida
e as muitas saídas; “ninguém é obrigado a ser infeliz — dizia o filósofo estóico
— és feliz? Continua a viver! És infeliz? Volta para donde vieste”...

Achava-se a casa onde se hospedou Agostinho no bairro de Velabrius. Era esse


bairro o eldorado das pulgas, dos piolhos e de toda a espécie de sevandijas, que
se sentiam muito a gosto nessa zona de falta de asseio e higiene. Gregos, sírios,
armênios, egípcios e outros emigrantes de terras levantinas e africanas
formavam o grosso da população desse bairro. As acanhadas ruas e vielas
fervilhavam de marujos, operários, carregadores, estivadores, etc., porque nas
proximidades se achavam os depósitos e armazéns do rio Tibre.

Mas quando, após uma dessas noites horríveis passadas ao clarão dum
candieiro, ou duma caçarola cheia de brasas, Agostinho descia da sua “torre de
babel” e demandava as zonas residenciais de Roma, parava, extasiado, ante
uma montanha de neve, ante o palácio marmóreo de algum magnata da
metrópole. Logo ao saltar no porto de Óstia, ficara Agostinho deslumbrado pela
magnificência do Septizonium, de Septimus Severus, gigantesco complexo de
castelos e colunatas, que rematava a famosa via Appia. No coração da cidade
se erguiam, em majestosas colinas, as obras ciclópicas do Capitólio e do
Palatino, e, mais além, o imenso anel do Coliseu.

A urbis que Agostinho viu era a Roma da decadência, crepúsculo do seu triste
ocaso, prelúdio da sua próxima destruição pelos povos nórdicos. Afora um pugilo
de sinceros intelectuais e dos adeptos do Nazareno, era Roma uma podridão
imensa. Não se cogitava senão em comer, beber e divertir-se. Os “banquetes de
Luculo” estavam na ordem do dia, entre os sibaritas dos palácios. Agostinho
conhecia o desbragado sensualismo de Cartago; sabia que o africano, em geral,
não primava

pela continência e sobriedade; mas o que ele presenciava em Roma


ultrapassava todas as raias da imaginação. Não se comia para viver — vivia-se
para comer, para se embriagar, para extrair da vida o último e requinte do gozo,
da luxúria, de glutonaria e voracidade. Afirma um escritor contemporâneo que as
bibliotecas de Roma estavam fechadas como os túmulos, que as ciências eram
evitadas como veneno, que o romano só se deliciava em corridas de cavalos,
circos e carnificinas de atletas e gladiadores nos anfiteatros — e no
pornographicum1.

1. Quem visitou certos recintos das ruínas de Pompéia sabe o que significa esta palavra.

Por ocasião duma grande carestia, foram expulsos de Roma todos os


estrangeiros; mas se abriu exceção para 3.000 mulheres impudicas, porque sem
elas não se concebia a vida na metrópole.

Os poderosos do Império açambarcavam quase todo o ouro e as propriedades


imóveis, ao passo que milhares de pobres, de indigentes e escravos viviam na
miséria, em completo abandono, espreitando ensejo propício para estrangular
os seus tiranos.

Symmachus, o Prefeito de Roma no tempo de Agostinho, possuía vastíssimas


propriedades, suntuosos palácios e casas de campo na Sicília, Mauritânia, por
toda a parte.

Agostinho não era, certamente, um santo. Mas tinha um coração desejoso de


algo que não fosse essa podridão envernizada de cultura; tinha sede dum ideal
desconhecido. Repugnava-lhe essa vida grosseiramente material da aristocracia
romana. Quantas vezes, nos seus solitários passeios à sombra do Janiculus, ou
pelos jardins de Sallustius, terá repetido a si próprio as palavras que, mais tarde,
disse aos seus ouvintes cristãos de Hipona: “Levai um africano a uma terra cheia
de verdores e de frescor — e vereis que não ficará; impelido pelas saudades,
voltará para os ardores do seu deserto”.

Nas horas suaves do crepúsculo, quando o sol submergia nas águas azuis do
Mediterrâneo, fugia a alma do jovem númida, qual ave de arribação, para as
plagas sulinas; contemplava as águas mornas do golfo de Túnis; repousava no
cume do monte Byrsa e banhava-se na atmosfera cariciosa que envolvia a
“princesa do sul”, a cidade dos amores de Dido e Enéias... Em fantástica
fosforescência reluziam ao luar as águas das enseadas, embaladas em verdes
pomares e brancos rochedos...

E a alma do africano sentia-se exilada e triste... Imensamente triste...


Onde estariam, a essas horas, aquela mulher anônima e seu filhinho...

E aquela outra mulher, de olhos sempre úmidos, mulher que ele deixara
dormente no porto de Cartago?...
CAPÍTULO 16

Adeus, Roma! — Funcionário


Público em Milão

Após infinitos trabalhos e humilhações, conseguiu Agostinho, finalmente,


auxiliado por amigos e correligionários, alguns alunos para o seu curso de
filosofia. Foi, sobretudo, Alypius, “irmão de sua alma”, que lhe aplainou os
caminhos. Alypius ocupava, nesse tempo, o elevado cargo de Ministro da
Fazenda, como diríamos em terminologia moderna. Nessa qualidade, gozava de
grande prestígio na corte imperial. Convertido ao maniqueísmo por Agostinho,
em Cartago, não podia deixar de se interessar pela carreira do colega. Homem
de caráter íntegro e de índole prática, servia de oportuno contrapeso ao
temperamento impressionável e especulativo do jovem amigo. As diversões
sociais levavam os dois rapazes a termos opostos. Agostinho não sentia em si a
força de viver castamente e continuou a ser em Roma o que fora em Cartago,
amigo das suas amigas — ao passo que Alypius, mais indiferente em face do
mundo feminino, se apaixonara pelo anfiteatro e pelas sangrentas lutas de
gladiadores na arena.

Logo ao chegar à metrópole, comunicara Agostinho ao amigo que se desligara


interiormente do maniqueísmo, porque o julgava incompatível com a física do
cosmos. Nem os corifeus da seita sabiam solucionar satisfatoriamente as
dificuldades que ele lhes apontara.

Alardeavam os “eleitos” numa vida de rigorosa continência; condenavam como


pecaminoso o uso de certos manjares, sobretudo de carnes e de vinho;
consideravam impuras as relações conjugais — mas, em sua vida particular,
sabiam desforrar-se ocultamente dos sacrifícios que em público ostentavam.
Banqueteavam-se nababescamente, usando e abusando de manjares e bebidas
“puros”, com o fim de se aproximarem cada vez mais da “divindade da luz” e
eliminarem do organismo a “divindade das trevas”. Sabia Agostinho de diversos
“eleitos” que, inimigos jurados do matrimônio, pelo fato dele multiplicar a matéria,
sede do mal, viviam em secretas desordens sexuais, havendo mesmo entre eles
quem se entregasse a repugnantes vícios contra a natureza.
Em suas polêmicas, soube Agostinho manejar, mais tarde, contra essas idéias
o látego da sua causticante ironia, arma que o tornava temido de todos os
adversários.

Com o bispo maniqueu de Roma antipatizou Agostinho desde o primeiro


encontro, porque lhe parecia um campônio sem cultura espiritual, e destituído
até de boas maneiras. Ao despedir-se dele recordou a primeira decepção que
lhe ocasionara outro pontífice da seita. Fausto.

Embora interiormente desligado do maniqueísmo, continuava Agostinho


externamente maniqueu, por motivos de conveniência social. Também era tão
cômodo narcotizar a consciência com o suave entorpecente duma moral que
atribuía ao “deus das trevas” todos os atos reprováveis do homem, isentando-o
de culpa própria...

Não via possibilidade de romper categoricamente com a religião de Manes sem


ofender seus amigos e benfeitores, aos quais tanto queria e devia.

Insensivelmente, foi o espírito do infatigável pesquisador descambando para o


declive do “cepticismo acadêmico”, hospital e leito fofo de espíritos cultos que,
depois de exaustivas lutas pela conquista da verdade, encolhem os ombros, num
gesto de cansado pessimismo, e perguntam com Pilatos: “Quid est veritas?” Que
coisa é a verdade? Existe a verdade? E, se ela existe, é acessível à humana
experiência?

Que adiantava pesquisar problemas metafísicos, quando os problemas físicos


do pão nosso de cada dia atormentavam o pobre lutador, de saúde abalada e
bolsos vazios? Tinha lecionado filosofia a uma turma de alunos que, com imenso
trabalho e com auxílio de bons amigos arrebanhara; mas, quando chegava a
hora do pagamento, muitos deles desapareciam. Eram menos selvagens, esses
romanos, do que os estudantes cartagineses, porém piores caloteiros...

Acabou Agostinho por se convencer de que não podia viver da profissão que
escolhera. A filosofia se revelava péssima “vaca leiteira”, dolorosamente ingrata
e estéril para seus servidores.

Ocorreu então a Agostinho uma idéia, que é também tábua salvadora para
milhares de estudantes de outras terras; voltou os olhos para as alturas do
funcionalismo público. Pensou em ocupar um emprego em alguma repartição do
governo. Assim estaria livre das incertezas de cada dia e das perfídias do
público.

Estava o governo de Milão à procura dum professor para a cadeira de filosofia.


Imediatamente se inscreveu Agostinho na lista dos pretendentes. Mas, nesse
tempo era como hoje: não bastava a competência profissional para conseguir o
cargo; era indispensável a proteção dum poderoso da política ou do governo.
Não faltou entre os amigos de Agostinho quem recomendasse o jovem a
Symmachus, Prefeito de Roma. Symmachus, que fora procônsul em Cartago era
ariano1 e não simpatizava com a expansão do catolicismo nos grandes centros
do Império. Sabendo que o candidato era maniqueu e, portanto, adversário do
catolicismo, não hesitou em nomeá-lo professor da cátedra de Filosofia na
importante cidade residencial dos Imperadores, onde um inteligente e piedoso
bispo conquistava inúmeros adeptos para a religião católica.
1. Adepto de Arius, heresiarca do 4.º século.

Foi assim que, em virtude duma estranha ironia da sorte foi Agostinho, o pagão
e herege, enviado, por obra e mercê de hereges e gentios, à cidade de Milão
onde o filho de Mônica iniciou, mais tarde, a sua fulgurante trajetória de terrível
adversário de todas as doutrinas que ele mesmo professara.

Contava Agostinho 30 anos quando, em 384, em luxuosa carruagem imperial, a


expensas da Prefeitura de Roma, cortou as vastas planícies setentrionais da
Itália, em demanda da cidade episcopal de Santo Ambrósio.

Nesta cidade, esperava o novel funcionário público lançar os alicerces para uma
sólida posição econômica e social, e realizar, finalmente, o seu velho sonho de
glórias. Chamaria sua querida cartaginesa e seu filhinho Adeodatus, e gozaria
em cheio a vida, sem deixar de investigar a verdade.

Não contava Agostinho com um poder maior que todos os que figuravam nos
seus cálculos — e por isso falharam todos os seus planos.

Saulo de Tarso cai às portas de Damasco, no momento em que menos o


esperava. E em Milão ia Agostinho ser bombardeado pelo poder do mesmo
Cristo.
CAPÍTULO 17

Agostinho e Ambrósio

“O dia que te der vida nova deve de ti fazer um homem novo”...

Com estas palavras, um tanto enigmáticas, se despedira de Agostinho seu amigo


Marcianus, naquela infeliz madrugada no porto de Cartago.

Esta vida nova podia ter começado desde já, em Milão — mas não começou...

Agostinho, havia tempo, deixara de ser maniqueu convicto.

A corte imperial, que residia na capital da Lombardia, era católica, mas não
ocultava os seus amores pelo arianismo.

Para Agostinho, estava solucionado o problema econômico da sua vida.


Ganhava mais que o suficiente para viver com folga. Entretanto, vinha chegando
o momento em que a sua crise espiritual entraria no período mais agudo.

Era bispo católico de Milão o hábil estadista e abalizado orador, Ambrósio, gênio
diametralmente oposto ao de Agostinho, e que, no entanto, devia exercer
influência decisiva sobre o destino ulterior do grande africano.

Descendente de família ilustre, filho do ex-prefeito do Pretório dos Gauleses,


governava Ambrósio as províncias romanas da Emília e da Ligúria. Era pagão,
mas de costumes tão irrepreensíveis e dotes tão invulgares que, por ocasião da
vacância de sede episcopal de Milão, o povo o aclamou unânime como pastor
da diocese. Ambrósio vendo na vox populi a cox Dei, cedeu à vontade popular.
Mas, como era gentio, recebeu primeiramente o batismo e, pouco depois, foi
ordenado sacerdote e sagrado bispo.

Não se admire o leitor da vertiginosa sucessão de tão graves acontecimentos na


vida de Ambrósio. Nem sempre existiu na igreja a lenta e complicada liturgia
hierárquica dos nossos dias.

Ambrósio continuou a governar as suas províncias como de costume,


acrescentando aos onerosos cargos administrativos mais as solicitudes do
múnus episcopal. Era solteiro e consagrava grande parte da noite ao estudo;
pois o dia todo era reclamado pelo expediente e pelas visitas e consultas de
todas as partes.
Desde o dia em que a vontade do povo o elevou à dignidade de antístite,
intensificou grandemente o estudo das Escrituras Sagradas. Não tardou a
iluminar com o fulgor da sua inteligência e o brilho da oratória os púlpitos das
igrejas da sua vasta diocese, sobretudo da basílica de Milão.

Agostinho, assim que chegou a Milão, ouviu da fama desse orador, no qual via
um filósofo — também um colega. Sem demora resolveu fazer uma visita a
Ambrósio, na certeza de que ia ser por ele recebido como em Cartago o fora pelo
célebre Vindicianus. Entreter-se-ia com o grande pensador sobre os
angustiantes problemas filosóficos e religiosos que lhe dilaceravam o espírito.

“Comecei a amá-lo — escreve mais tarde — não como um mestre da verdade,


que já não tinha a menor esperança de encontrar na igreja, mas como um
homem benigno para comigo... Ouvia-o como que para lhe explorar a facúndia,
a ver se esta era maior ou menor do que a fama de que ele gozava... A dicção
era menos suave e blandiciosa que a de Fausto; mas, quanto ao resto,
impossível traçar paralelo: aquele enredado nos erros dos maniqueus, ao passo
que este ensinava sadiamente o caminho da salvação”.

Dolorosa foi a decepção do jovem africano. Decepção, é verdade, de outro


caráter do que a que levara das visitas a Fausto e ao bispo maniqueu de Roma.
Ambrósio tratou Agostinho com um quê de lacônica superioridade. Agostinho,
nas suas obras, refere-se repetidas vezes ao “santo bispo de Milão”, chega
mesmo a dizer que foi por ele recebido “paternalmente”. Mas não consegue
ocultar algo de doloroso, que o leitor percebe nas entrelinhas dos seus escritos.
Quando refere que Ambrósio “peregrinationem meam satis, episcopaliter dilexit”
(gostou bastante episcopalmente da minha peregrinação), não será que vibra
nestas palavras uma tal ou qual desilusão e, quiçá, uma pontinha de ironia?
“Peregrinatio”, faz-se a um santuário a algum célebre foco de espiritualidade.
“Satis episcopaliter” — quer dizer que Ambrósio viu no professor de filosofia uma
simples ovelha do seu rebanho, e ovelha fora do redil, um diocesano qualquer
confiado à sua solicitude pastoral.

Não ignorava, certamente, Ambrósio que o seu visitante viera com cartas de
recomendação de Symmachus, prefeito pagão de Roma. Sabia que Agostinho
vinha com a intenção de contrabalançar a excessiva influência do catolicismo
milanês na vida social.

É possível que Ambrósio, o eminente conselheiro imperial, bispo e governador,


fizesse sentir ao “mercador de palavras” a vacuidade das idéias que professava
e a indignidade da vida que vivia.

Não fosse Agostinho sincero investigador da verdade, não possuísse ele a


humildade dos espíritos famintos e sedentos de saber, é certo que teria, de início,
cortado as relações com o prelado. Teria, possivelmente, movido contra ele e
suas idéias intensa campanha. Mas a admiração que o jovem maniqueu votava
ao bispo católico era maior que a decepção que sentiu em face da frieza
protocolar de Ambrósio. Por demais tinha o filho de Mônica sofrido com os seus
tormentos íntimos para não fugir duma fonte em que esperava dessedentar a
sua alma atormentada.

Ambrósio, é certo, estava longe de se guiar por sentimentos hostis. Era o seu
gênio. Habituado ao expediente administrativo, sobrecarregado de trabalhos
materiais e espirituais, mal interrompia a leitura espiritual quando assomava na
sala de audiências, sempre aberta a todos, a figura franzina do professor de
filosofia recém-chegado da África.

Agostinho descreve uma dessas visitas, em que ele se quedava largo tempo,
sentado quase defronte ao “santo bispo”, a tal ponto assediado de visitas ou
abismado no estudo da Bíblia que parecia prescindir completamente da
presença do visitante. Queixa-se Agostinho de que Ambrósio não lhe
compreendesse os ardores da carne e do espírito — “nec ille sciebat aestus
meos” — e que não lhe fosse dado ensejo para uma entrevista em regra — “non
quaerere ab eo poteram quod volebam, sicut volebam, secludentibus me ab ejus
aure atque ore catervis negotiosorum hominum, quorum infirmitatibus serviebat”.

Ambrósio, no apogeu da celebridade, parecia ao ambicioso Agostinho o “homem


mais feliz do mundo”, se não vivesse sem companhia feminina; pois o celibato
que o bispo governador praticava voluntariamente, se afigurava ao jovem filósofo
“fardo muito pesado”.

E, de fato, Ambrósio era um “homem feliz”, se poder e prestígio são felicidade.


Fora amigo do imperador Teodósio; mentor do jovem príncipe Graciano, e
exercia ainda notável influência no conselho de Valentiniano II, cuja corte pagã
e ariana trabalhava por reconquistar o jovem imperador de treze anos para as
ideologias anticatólicas.

Era intensa em Milão a vida religiosa. Não menor, porém, era a ambição e
perfídia dos poderosos, que se serviam da religião como trampolim para granjear
as boas graças do imperador e galgar o fastígio do poder.

Se Agostinho se declarasse publicamente adepto e defensor do catolicismo, é


certo que só teria a lucrar com essa atitude. Bem poderia ele aderir, sem
hipocrisia, à igreja católica; pois interiormente deixara de ser maniqueu. Mas, já
nesse tempo, lhe eram por demais sagradas as suas idéias e saudades
metafísicas para não as profanar com uma exibição rumorosa ou com interesses
materiais.

Por outro lado, acabara num como cepticismo desolador e não mais esperava
encontrar em parte alguma a verdade, nem no catolicismo, que lhe parecia o
culto da escravidão espiritual e a destruição da personalidade.
As pregações de Ambrósio interessavam a Agostinho não tanto pela sedução da
frase, que era bem mais sóbria que a do rhétor, mas antes porque lhe
descortinavam novos horizontes e prometiam solucionar algumas das suas
dúvidas mais cruciantes.

No tocante à Bíblia, teve Agostinho grata surpresa nos sermões do grande bispo.
Ambrósio era amigo da interpretação simbólica e alegórica de muitas passagens
do texto sacro que, tomadas ao pé da letra, repugnavam ao bom senso e, não
raro, à dignidade da causa que advogavam. O Antigo Testamento, que Agostinho
abandonara como livro escabroso, repleto de fábulas pueris e até de
imoralidades, começou a parecer-lhe, à luz dessa inteligente exegese, menos
absurdo e mais aceitável. Bem quisera pedir ao famoso orador esclarecimentos
sobre uma série de tópicos obscuros e, aparentemente, inconciliáveis com a
dignidade do homem; mas as decepções das visitas anteriores o haviam tornado
mais prudente e reservado.

O credo de Agostinho, nesse período, se reduzia mais ou menos, a estes pontos


básicos: Existe um Deus que governa o mundo. A alma humana é imortal. O
resto parecia-lhe problemático.

Depois de reiteradas tentativas de aproximação, desistiu Agostinho das visitas a


Ambrósio e chegou a dar interpretação estranha a essa sistemática recusa da
parte do prelado católico. O que Agostinho queria era discussão de textos
bíblicos. Mas Ambrósio quase só conhecia o livro sagrado desde o dia da sua
iniciação no Cristianismo. Não era, pois, de admirar que se sentisse fraco em
matéria de conhecimentos bíblicos e evitasse medir-se, nesse terreno, com o
professor de filosofia, que talvez, melhor do que ele conhecia os mistérios do
texto sacro.

Assim pensava Agostinho, embora outras fossem, provavelmente, as razões


dessa atitude de Ambrósio.

Eram tão heterogêneos, esses dois luminares do Cristianismo, que dificilmente


podiam simpatizar um com o outro — assim como Paulo de Tarso jamais
harmonizou, intimamente, com Simão Pedro, ainda que os irmanasse o mesmo
ideal.

Agostinho, espírito platônico, gênio labiríntico, caráter céptico de Tomé, de rara


agudeza — Ambrósio, espírito positivo, dogmático, simples, de calma e lucidez
— que admira que entre os dois medeasse intransponível abismo, tanto mais
que aquele sentia estuar no sangue as tempestades da libido, ao passo que este
parecia pairar acima das misérias da carne frágil?

No meio dos sinceros elogios que Agostinho tece ao prelado, encontramos estas
palavras que são como que o soluço de um coração que ansiava pela luz divina
e se via condenado às trevas:
“Nesse tempo, teria eu sido discípulo inteligente e dócil como nenhum outro, se
alguém se tivesse dado ao trabalho de me instruir”...

Em suma: subjetivamente, nada ou quase nada contribuiu Ambrósio para


conduzir Agostinho do paganismo ao Cristianismo; objetivamente, porém, foi ele
o veículo decisivo na vida de Agostinho.

Tão estranhos são os caminhos de Deus!...

... Todas as paralelas encontram-se no infinito...


CAPÍTULO 18

Planos de Casamento — Três


Mulheres e Um Homem

Na cidade residencial do imperador católico, à sombra da Sé episcopal do


grande Ambrósio, num dos maiores e florescentes focos da vida cristã, onde
todas as circunstâncias pareciam propícias à ascensão espiritual — em Milão,
afastou-se Agostinho ainda mais do Evangelho do que na metrópole africana da
luxúria e da heresia.

Afastou-se, porque, depois dum longo período de lutas e infrutíferas odisséias


espirituais, resvalou o filósofo pagão, já agora bem instalado funcionário público,
para o leito fofo dum comodismo indolente e duma quase completa apatia em
face dos grandes problemas do espírito. Tinha mensalmente o seu ordenado,
que o punha a coberto dos azares e incertezas do futuro.

Literatura, poesia, eloquência, filosofia, especulações metafísicas, magia,


ocultismo, astrologia, sabedoria de Manes, estudos bíblicos — por tudo isto havia
passado o espírito inquieto de Agostinho. E tudo isto lhe parecia agora um acervo
caótico, inextricável labirinto de coisas díspares e desencontradas, incapazes de
satisfazerem a sua alma tantalizada.

Para que correr atrás de belas miragens, quando elas fogem na medida que
delas se aproxima o ludibriado viajor?

Neste ambiente de desânimo e cansado cepticismo, resolve Agostinho desistir


de ulteriores campanhas espiritualistas, instalar-se com o maior conforto
possível nesta vida material e gozar o que gozar se pode na fugaz existência
terrestre.

Mandou vir de Cartago a sua amada e seu filhinho. Começou a viver como os
demais cidadãos, honestamente medíocres, satisfeito com as pequeninas gotas
de felicidade, ou quase-felicidade, de cada dia, já que não lhe era dado atingir o
oceano imenso da felicidade com que sonhara nos tempos juvenis de Madaura.
Neste semi-consciente sonambulismo do espírito cicatrizariam talvez as
dolorosas chagas de sua mente.
Agostinho alugou uma confortável vivenda no meio dum jardim. Estava
realizando o seu sonho dourado de tempos antigos: morar numa casinha
pitoresca, cercada de árvores e canteiros em flor, e levar horas inteiras a filosofar
em coisas sublimes — e isto, por cúmulo da sorte, na terra de Virgílio, seu poeta
predileto, que tão magistralmente descrevera os amores de Dido e Enéas...

Por um triz se teria perdido, nas areias fofas duma vida pacatamente doméstica,
essa impetuosa torrente que viera das montanhas de Deus para revolucionar as
almas.

Não tardou a aparecer também Mônica. Parece que nem censurou ao filho a
perfídia e crueldade que este cometera, naquela noite, no porto de Cartago.

Em breve surgiu também uma turma de amigos africanos: Navigius, irmão de


Agostinho; Rusticus e Lastidianus, dois primos dele, seus diletos amigos Alypius
e Nebridius, e outros. Acontecia naquele tempo o que sói acontecer em nossos
dias, quando uma pessoa conquista posição segura e brilhante na vida pública:
aparecem logo os amigos e afilhados de todos os quatro pontos cardiais,
invocando antigos vínculos afetivos, por vezes bem problemáticos.

Contava Mônica 54 anos. O que a movera a atravessar o Mediterrâneo e


procurar o seu “filho pródigo” eram as angústias de sua alma de cristã e de mãe.
“Teu filho estará onde tu estás”, lhe dissera a noturna visão, e Mônica tinha firme
confiança nessa mensagem celeste. Seu Agostinho terminaria a sua odisséia de
pecados e heresias aos pés do Cristo Redentor. Já nesse tempo merecia ela o
título de santa. Vivia com grande pobreza e simplicidade. Jejuava, orava e
praticava austeridades mais duras do que muitas virgens do claustro. Pela
assídua e diuturna leitura e meditação das Sagradas Escrituras intensificara
extraordinariamente a sua vida sobrenatural. Pois, ainda nesse tempo, eram os
livros divinamente inspirados o inseparável vademecum de todo cristão que
levasse a sério a vida espiritual. Na travessia marítima para a Itália correra o
navio risco de naufrágio. No meio do geral desespero de passageiros e
tripulantes, conservou Mônica perfeita calma e serenidade, porque Deus lhe
revelara que tornaria a ver seu filho, a luz do Cristianismo.

Em Milão, apressou-se a procurar o santo bispo. Mas não teve mais sorte do que
Agostinho. Ambrósio via em Mônica uma alma profundamente piedosa, mas
duma piedade um tanto esquisita, recordando usanças do paganismo africano.
Segundo o costume dos cristãos de Cartago, levava a boa mulher ao cemitério
de Milão e colocava sobre os túmulos dos mártires cestinhos de pão e de carne.
Certo dia, estava a entrar com os seus cestinhos na basílica, quando o porteiro
a interpelou e lhe proibiu categoricamente essa praxe, porque o prelado não
permitia usos e costumes inspirados na idolatria pagã. Aterrada, voltou Mônica
para casa com os seus cestinhos, e abandonou essa forma de piedade.
Quando, um dia, Ambrósio encontrou Agostinho, felicitou-o pela santidade de
sua mãe. Em vão esperou o professor de Retórica uma palavrinha de louvor para
sua própria pessoa... Ambrósio era um enigma ambulante...

Entrara a vida de Agostinho nos trilhos duma existência burguesmente rotineira


e pacata: de manhã, dava as suas preleções. À tarde ficava para as visitas a
pessoas influentes e para o entretenimento com os amigos. À noite, preparava
a lição para o dia seguinte e lia os seus autores prediletos.

A saúde precária de Agostinho sofria notavelmente com o clima da metrópole


lombarda, cujos canais e baixadas exalavam constante umidade, que atacava a
laringe do professor, obrigando-o, não raro, a interromper a preleção. Para um
filho da África meridional devia o aspecto dos eternos glaciares dos Alpes ser
espetáculo inédito e de grande encantamento.

Como todo o funcionário público, pensava Agostinho em “cavar” colocação


melhor e mais bem remunerada. Sonhava com o cargo de Governador de uma
das províncias do Império. E é fora de dúvida que, mais dia menos dia, realizaria
os seus sonhos ambiciosos, se a carinhosa. crueldade da graça divina não lhe
demolira, inesperadamente, a soberba torre de Babel.

Apareceu em Milão o antigo argentário Romanianus, amigo e protetor de


Agostinho. Implacável inimigo lhe movia pérfido processo, que punha em perigo
todas as propriedades do Creso africano. Viera a Milão a fim de falar com
pessoas influentes na corte imperial.

Não longe da cidade, à margem do lago como, residia o famoso milionário


Manlius Theodorus, que fora procônsul em Cartago e, certamente, não era
desconhecido de Agostinho. Dedicava o último quartel da sua vida opulenta ao
estudo da filosofia platônica e à cultura de imensos vinhedos e olivais. Nas horas
vagas, demandava Agostinho o esplêndido “sítio” de Manlius Theodorus, e,
sentado sobre o lago azul, emoldurado em rochas cor de neve, filosofavam os
dois e procuravam na sabedoria a suprema beatitude da vida.

“Amava eu a vida na felicidade” — confessa Agostinho, candidamente. Nunca


lhe sorrira tão bela e amena a existência como agora. Dinheiro, amizades,
tranquilidade, amor de mulher e filho, sorridentes perspectivas de mais larga
prosperidade e fama — que mais podia desejar um genuíno epicurista?

Fosse Agostinho apenas um desses fartos burgueses dos bairros residenciais


de Milão, provavelmente teria desaparecido na atmosfera tépida desse bem-
estar, e nenhum filho do nosso século teria sequer notícia da sua existência.
Mas, é esta a gloriosa tragédia de toda alma naturalmente cristã: sentir-se mais
insatisfeita precisamente quando a vida material atinge o zênite da felicidade...

* * *
Neste céu azul de bucólica tranquilidade pairava uma nuvem sinistra — aquela
“mulher anônima”, que não era a esposa de Agostinho, porém a mãe de seu
filho...

Não sabemos até que ponto influíram os amigos e, sobretudo, Mônica, em


Agostinho para persuadi-lo a que abandonasse a sua amante de longos anos.
Era incompatível com a sua dignidade de funcionário imperial viver com uma
amásia. Casar com ela? Com essa mulher talvez inculta e sem prestígio socia?...

Mônica, a despeito do seu acendrado cristianismo, jamais reconheceria como


nora aquela mulher. A presença dela sob o mesmo teto com seu filho era para
Mônica ominoso pesadelo, e, como ela cuidava, o maior óbice à definitiva
conversão de Agostinho ao Cristianismo prático.

Em face da indiferença ou relutância do filho, saiu a mãe à procura dum “bom


partido” para ele, a fim de o pôr, quase de improviso, diante dum fato consumado.
Não tardou a descobrir uma menina em condições e que, como todos diziam,
encheria as medidas a Agostinho. Possuía também o necessário para que o
casal pudesse viver sem preocupações de ordem econômica.

Parece que Agostinho deu carta branca à mãe para agir e assistiu como mero
comparsa a essas manobras, como se não fosse ele o centro de tudo aquilo.
Trocaram-se as costumadas promessas, de parte a parte — tudo parecia sair a
contento de Mônica. Agostinho era noivo de uma menina honesta e bem dotada.

Entra então em cena a “mulher anônima”. Como podia Agostinho repudiar a mãe
de seu filho, que por espaço de um decênio lhe fora fiel companheira e dedicada
amiga? Como podia obrigá-la a abandonar Adeodatus e voltar, solitária, para sua
pátria africana?...

Menos desumano e antipático se nos afiguraria o procedimento de Agostinho,


se ele resolvera viver, daí por diante, em continência sexual. Mas não era o caso.
Repudiava a amiga da sua mocidade, a mãe de seu filho, para casar com outra,
com uma estranha — por quê? Por que esta possuía maior prestígio social, mais
cultura e talvez mais dinheiro do que a sua dedicada amante cartaginesa, por
que assim o decretara Mônica?...

O próprio Agostinho não sabe como harmonizar a verdade com seus


sentimentos. É com ardente vergonha e confusão que ele, mais tarde, descreve
o drama do seu amor atraiçoado. “Quando arrancaram do meu lado aquela
mulher com a qual vivia, sob pretexto de que ela impedia o meu matrimônio;
quando separaram o meu coração do seu, do ponto onde o meu estivera unido
ao dela — então se me dilacerou a alma, e eu arrastava comigo a minha chaga
sangrenta”...

Este “onde estivera unido o meu coração” (cor ubi adhaerebat), parece indicar
que já nesse tempo não era tão vivo o amor que unia o coração de Agostinho ao
daquela mulher. O amor dela era ainda o mesmo, sempre ardente, fiel e
dedicado.

Ela, essa amante anônima, essa infeliz repudiada, que cedia o lugar a outra mais
feliz, revela admirável grandeza d’alma. Pagã ou cristã, o certo é que a atitude
da cartaginesa, no meio dessa tragédia do seu amor, a torna imensamente
simpática à posteridade.

Lá estavam duas mulheres e um homem conspirando contra outra mulher.

Mônica, a cristã, Agostinho, o filósofo, e a jovem milanesa, noiva improvisada —


todos eles fazem triste figura em face da mulher anônima, que brilha com intenso
fulgor, nesse drama cheio de sombras.

Em virtude daquela estranha intuição feminina, adivinhou ela, talvez, que sua
presença na vida daquele homem inteligente e sedento de espiritualidade era
um entrave, quase um “sacrilégio”, porque esse homem tinha de cumprir uma
grande missão no mundo, e a companhia duma mulher, fosse mesmo como
esposa, seria um óbice à realização do seu alto destino. Sacrificou-se a
“anônima”, para que o amigo de longos anos pudesse brilhar e tornar-se sem ela
o que com ela não se tornaria...

Desapareceu essa nova Agar no deserto da sua solidão...

Separaram-se para sempre...

Adeus, Agostinho!... Adeus, Adeodatus!...

A cartaginesa submergiu nas trevas de eterno e impenetrável anonimato — no


dia em que Agostinho começou a brilhar com inextinguíveis fulgores para todos
os séculos da História. Regressou para sua pátria africana. Jurou e guardou
perpétua castidade — solitária e dolorosa fidelidade àquele que não lhe seria
fiel...

Assim viveu — e assim morreu a incógnita vestal africana...

Agostinho nunca revelou o nome da mãe de seu filho, mas erigiu-lhe um


monumento eterno nesta frase lapidar:

“Et illa in Africam redierat, vovens tibi (Deus) alium se virum nescituram, relicto
apud me naturali ex illa filio meo. At ego infelix, nec feminae imitator, dilationis
impatiens, tanquam post biennium accepturus eam quam petebam, quia non
amator conjugii, sed libidinis servus eram — procuravi aliam”...

“Voltou ela para a África, e fez voto a ti (ó Deus) que jamais conheceria outro
varão, deixando comigo o meu filho natural gerado dela”.

Em face de tamanho heroísmo e nobreza d’alma, da parte duma frágil mulher,


que, do duplo sacrifício de perder o filho e o pai de seu filho, faz voto a Deus de
perpétua continência, sente-se Agostinho como que aniquilado de vergonha e
confusão, por não ter ao menos a coragem de viver dois anos em continência
sexual; e acrescenta estas palavras humilhantes, verdadeiro ferro em brasa para
seu amor-próprio:

“E eu, desgraçado, nem sequer fui capaz de imitar essa mulher!... Não tive a
paciência de esperar dois anos para receber a minha esposa, e, sem amor ao
matrimônio, mas escravo da libido, fui procurar outra mulher”...

Lá está, para todos os tempos e todos os povos, o grandioso monumento que


Agostinho erigiu ao seu primeiro e último amor: Saiba todo o mundo que a
incógnita cartaginesa soube ser mais que uma simples amiga e amante, mais
que mulher — soube ser uma heroína de renúncia e um holocausto na ara da
mais pura e dolorosa espiritualidade; soube acrisolar na fornalha do sofrimento
e da oração o ouro do seu grande amor e tornar-se assim digna daquele que,
nesse tempo, ainda não era digno dela...

Parece que essa fenícia anônima dos bairros de Cartago aceitou


resignadamente o cruel repúdio do homem que amara durante 9 anos e
continuava a amar em silêncio, porque via que sua presença na vida de
Agostinho seria um impedimento para a futura grandeza dele.

Há mulheres singularmente clarividentes, e há no “sexo fraco” almas capazes de


imolar a sua própria felicidade na ara da felicidade alheia. Por vezes, o
verdadeiro amor atinge estas alturas, desconhecidas aos amantes vulgares...

Ao pé deste monumento ereto à grandeza feminina cavou Agostinho o abismo


da sua profunda miséria moral: esculpiu no pedestal desse obelisco a mais
humilhante de todas as suas “confessiones”: Eu, desgraçado, mais fraco que a
fragilidade duma mulher, me degradei a vil escravo de luxúria em face da sublime
renúncia dessa heroína anônima...

Mais tarde, porém, levantou Agostinho sobre este mesmo abismo da sua
vergonha um monumento que talvez tenha ultrapassado as excelsitudes
espirituais da solitária vestal do litoral africano...

Falharam, pois, os planos de Mônica. Falharam as esperanças daquela noiva da


última hora... Nem uma nem outra conheciam o verdadeiro Agostinho.

Mal embarcara a cartaginesa para o eterno exílio, quando o filósofo gentio se


sentiu tomado de um grande horror à solidão. “Parecia-me a mais acerba das
misérias — escreve ele — ver-me privado das ternuras duma mulher”. A sua
noiva era menina; só daí a dois anos poderia levá-la como esposa. Dois anos!
— tempo demais para a incontida sensualidade desse homem. E veio o grande
escândalo...
Mônica ficou como que alucinada ao saber que Agostinho vivia com outra
amante. Orava, jejuava, flagelava-se, chorava diante de Deus, suplicando-lhe
fosse propício ao plano matrimonial que ela tão bem engendrara e do qual
esperava mudança de vida para o filho.

Tudo em vão. O silêncio da voz divina parecia uma reprovação dos cálculos de
Mônica...

Agostinho, depois dessa vergonhosa recaída, parecia pior que nunca. Não só se
entregava de corpo e alma à nova paixão, mas parecia possesso dum verdadeiro
demônio de luxúria e de cinismo. Procurava arrastar aos mesmos vícios todos
os seus amigos. O próprio Alypius sentia-se abalado na sua castidade, e, mais
por curiosidade do que por sensualismo, resolveu saborear o fruto proibido.
Agostinho fez-lhe ver que gozos eróticos e vida sexual eram ótimos para a
“filosofia dos sentimentos”, que todo o verdadeiro intelectual devia conhecer de
ciência própria.

No meio desta sua vida desregrada, cultivavam esses jovens filósofos o que
depois deles, através de todos os séculos, constituiria e constitui ainda ocupação
predileta de numerosos intelectuais: o esporte da verdade. É no jogo das idéias,
é na agridoce nostalgia de intangíveis ideais metafísicos que eles fazem consistir
a razão-de-ser da sua vida e a sua chamada “religião” Não querem ferir-se nas
agudas arestas da cruz do Gólgota, mas também não querem passar por
grosseiros materialistas. Por isso, brincam de cristianismo e namoram com a
Verdade, assim como um rapaz leviano passa a vida brincando com a jovem que
não quer como esposa, nem quer deixar como amante, fazendo-a joguete dos
seus caprichos. “Odi profanum vulgus et arceo” — dizem eles com Horácio —
odeio o vulgo profano e dele me afasto. Odeiam o mundo — cujas delícias gozam
sem cessar, filosoficamente... Folgam no “paraíso das idéias”, encontram-se no
“recanto dos filósofos”. Com Lessing procuram a verdade pelo gosto de a
procurar, e não pela esperança de a possuir. A posse da verdade, dizem eles, é
direito privativo de Deus; ao homem só lhe compete ir à busca da verdade. E
neste inquieto procurar, dizem, há maior satisfação do que no tranquilo possuir
— assim como o arrojado bandeirante prefere as arriscadas aventuras de ínvias
florestas à suave vida doméstica no meio dos seus.

Este narcisismo da inteligência era o vício científico daquele grupo de filósofos


afro-latinos que se reuniam na convidativa casa de campo, nos subúrbios de
Milão. Fundaram um simulacro de convento para amigos da filosofia, incerto
prelúdio, daqueloutro que Agostinho fundaria, mais tarde, em Tagaste e em
Hipona. Eram dez ou doze os “monges” desse claustro sem clausura nem votos.
Chegaram ao ponto de elaborar uma espécie de Regulamento, pelo qual se
guiavam os “cenobitas” dessa original Tebaida em plena sociedade.
Esqueceram-se, porém, de um ponto capital — as mulheres. Cada filósofo na
sua cela — muito bem. Mas onde ficariam as belas filhas d’Eva? Estariam de
acordo? Não fariam questão de morar com os seus Adões sob o mesmo teto? E
haveria naquela casa espaço para tantas famílias? E sabe Deus quantas
crianças a perturbar o sossego dos filósofos!... Se Agostinho não estava mais
com a “anônima”, tinha de contar com a “menina” (para nós também anônima),
que era a sua noiva convencional e devia ser sua esposa.

Em sua autobiografia se queixa ele acerbamente da frustração do seu belo


sonho cenobita. “Éramos três homens esfaimados, e a nossa boca só se abria
para deplorar a nossa miséria, e esperávamos por um tempo determinado para
de ti, ó Deus, receber alimento. E quando com o olhar abrangíamos as nossas
ações humanas, que tua misericórdia enchia de amargura, e quando
suspirávamos pelo termo dos nossos sofrimentos, não enxergávamos nada
senão só escuridão. Então voltávamos as costas e suspirávamos dizendo: Até
quando?... Até quando?”...

Assim foi Agostinho arrastando a sua vida, tão cheia de diversões — e tão
terrivelmente vazia.
CAPÍTULO 19

A Grandeza de Uma Mulher


Anônima

Nenhuma das biografias de Agostinho que conheço focaliza a figura daquela


mulher com a qual Agostinho viveu 9 anos e que foi a mãe de seu único filho
Adeodatus. Mônica não permitia que seu querido caçula casasse com essa
mulher, que talvez fosse uma pobre operária analfabeta, dos bairros de Cartago.
Mais ou menos dos 22 até aos 31 anos, viveu Agostinho com essa fenícia
morena, cujo nome não consta sequer da sua autobiografia, mas que o amava
ardentemente — tanto assim que seguiu o fugitivo para a Itália e o descobriu
finalmente em Milão. Imagine-se a coragem de uma mulher, com um filho de
cinco a seis anos, sem o auxílio de um homem, meter-se num desses navios
veleiros sem o menor conforto nem segurança arriscar-se a horrível travessia do
mar Mediterrâneo! E depois, o trabalho da busca em Roma e Milão, até
finalmente encontrar o Pai de seu filho.

Também Agostinho, como consta das palavras dele amava essa mulher, que
deve ter tido irresistível fascinação para o jovem estudante de filosofia na grande
metrópole africana; pois Agostinho se revelou sempre um exímio esteta, sensível
a todas as belezas.

Mas... faltava à fenícia anônima um predicado importante: ela não tinha status,
como diríamos hoje; ela não tinha condição social; ela era, possivelmente, da
baixa classe dos operários ou estivadores do porto de Cartago — e Mônica, a
“santa” ambiciosa, não permitia que seu filho filósofo, já no início da sua
celebridade casasse com uma mulher dessa condição. Agostinho teria casado
com sua amante de 9 anos de convivência, mas teria de entrar em conflito
violento com sua mãe, que ele amava. Por isto, obedeceu à cruel injunção de
Mônica e mandou embora a moreninha de Cartago, privando-a ao mesmo tempo
do marido e do único filho.

E isto com a agravante sumamente dolorosa de ela saber que ia ser substituída
no seu amor por uma jovem italiana.

A jovem fenícia anônima se despede de Agostinho e de Adeodatus, jurando que


jamais seria mulher de outro homem por toda a sua vida — e desapareceu para
sempre na obscuridade do seu grande sacrifício de mulher e de mãe.
A história só conhece a santidade de Agostinho e de Mônica. Possivelmente a
fenícia anônima nunca se tornou cristã no sentido oficial da palavra; mas não
revela a sua heróica atitude a mais pura cristicidade? Será que, algum dia essa
heroína anônima não será considerada mais crística do que os cristãos, Santo
Agostinho e Santa Mônica?

A elite da humanidade dos nossos dias está começando a dar mais valor à
experiência do que à crença. Se essa mulher anônima não tivesse tido uma
grande experiência espiritual — anônima e desconhecida como ela mesma —
teria ela sido capaz de aceitar sem protestos nem amargura o repúdio de
Agostinho e o desprezo de Mônica?

Se Agostinho e Mônica tivessem praticado essa crueldade para que o filósofo


cristão fosse um brahmacharya de abstenção sexual, menos dolorosa teria sido
a renúncia da fenícia — mas ela sabia que ia ser substituída por outra mulher,
considerada mais merecedora de Agostinho que ela. Verdade é que Agostinho,
mais tarde, viveu sem mulher, mas disto nada sabia, nesse tempo a heroína
africana.

Agostinho tece estranhos louvores à espiritualidade e à genialidade de seu filho


Adeodatus, que morreu aos 13 anos. Não haveria uma relação secreta entre o
caráter angelical do menino e a silenciosa heroicidade de sua mãe?
CAPÍTULO 20

Perseguido pelo Cristo —


Crise Redentora

A vida do apóstolo Paulo é grandiosa depois da sua conversão. Ignoramos as


lutas íntimas que precederam a inesperada e quase violenta crise às portas de
Damasco.

A vida de Agostinho tem caráter diametralmente oposto àquela. O que nos


interessa na conversão do africano é precisamente o longo e doloroso período
que precedeu a crise final, em Milão; essa odisséia dum espírito genuinamente
humano, tão humana como a de quase todos os homens que, através dum
inferno de lutas, conseguem, finalmente, arribar, não às praias dum paraíso de
felicidade, mas pelo menos ao purgatório dum sofrimento resignado,
compreendido e serenamente cristão.

A conversão de Saulo parece repentina, instantânea, e, por isso mesmo, para


nós sem proveito psicológico, inacessível a toda investigação.

A conversão de Agostinho, porém, é um drama que se desenrola


paulatinamente, ato por ato, cena por cena. Podemos acompanhar cada uma
das fases evolutivas dessa emocionante epopéia das trevas à luz. E, por fim, nos
vemos em face desta grande verdade: O homem que uma vez em sua vida sentiu
dentro de si as saudades de Deus — seja mesmo do Deus desconhecido —
acabará finalmente aos pés do Cristo. A maior desgraça é não ter nunca sentido
esse tormento da Divindade. Por mais que a força centrífuga dos seus erros e
desvarios o arremesse à periferia dum mundo sem Deus, esse homem acabará
por ser atraído pela força centrípeta da sua imanente nostalgia para o invisível
foco dinâmico: “Deus”.

“Rebelles etiam ad te nostras compelle voluntates” — diz uma das mais


profundas orações da liturgia — compele para ti, ó Deus, as nossas vontades,
mesmo rebeldes.

Pode a vontade ser compelida a voltar para Deus, sem que seja violado o
intangível privilégio do livre arbítrio? Não consegue o homem fugir a Deus pela
tangente do erro e do mal, para o eterno vácuo do sem Deus? Cedo ou tarde,
será compelido pela graça a querer voltar. A graça não obriga o filho pródigo a
voltar à casa paterna, mas faz com que ele queira livremente voltar. É esta a
maior vitória do Altíssimo: fazer com que o homem queira livremente o que antes
não queria nem a força.

Se Deus obrigasse o homem a conhecê-lo e amá-lo, assim como obriga os


astros, as plantas e os animais a lhe prestar inconsciente e involuntária
homenagem, que haveria nisto de extraordinário? Mas o fato é que Deus dá a
todo homem plena liberdade para conhecê-lo e para não conhecê-lo, para amá-
lo e não amá-lo — e, no entanto, esse homem, conhecedor da árvore do bem e
do mal, se decide livremente pelo bem; o homem com perfeita autonomia e
espontânea decisão, resolve oferecer a Deus o preito do seu conhecimento,
amor e serviço. E isto reverte em imensa glória para Deus. “O felix culpa”!
Exclama, o cântico do Exultet — ó culpa feliz de Adão que tal e tão grande
Redentor mereceste!...

* * *

Estava Agostinho em vésperas de fechar a grande curva, que, havia trinta anos,
o distanciava cada vez mais do centro do seu verdadeiro destino. Tinha chegado
ao extremo apogeu da sua iniquidade. Com o repúdio da mãe de seu filho, com
a aceitação de outra noiva, e, ainda por cima, com a vergonhosa recaída à
escravidão da sua desenfreada luxúria, perdera Agostinho, também aos olhos
de todo o homem sensato, o último resquício de simpatia, de atrativo e de bela
humanidade. Agostinho, além de pagão e herege, libertino e sedutor, acabava
de se tornar também uma repelente caricatura de homem, de amante, de
esposo, de amigo.

Reduzido assim ao profundo abismo da sua miséria, era chegado o momento de


estender mãos suplicantes à altura da divina Misericórdia.

* * *

Havia tempo que Agostinho deixara de ser internamente maniqueu, como


dissemos. Renunciara à idéia de dois deuses eternos, autores do bem e do mal.
Sabia que o mal vinha dele, do abuso de sua liberdade. Mas não possuía ainda
a necessária humildade para aceitar a doutrina sobre o pecado próprio e a
necessidade duma redenção divina. Cria ainda numa ego-redenção. Redenção
pela ciência, pela filosofia, pela arte, pelo amor, por qualquer grandeza humana.
A queda do homem pelo ego adâmico e o erguimento pelo Eu crístico — duras
demais eram para seu orgulho e sua vaidosa autonomia estas verdades básicas.
“O meu rosto inchado de orgulho — diz ele — fechava-me os olhos”.

Certo dia, um dos seus amigos entregou-lhe os diálogos de Platão, traduzidos


para o latim pelo famoso rhétor Victorinus. Compreendeu Agostinho que o
“Lógos” (Verbo) de que falava o exímio pensador, existia independente do tempo
e do espaço. E não falava também João Evangelista do “Lógos”, que no princípio
estava com Deus e que era Deus?...

Agostinho continuou a ler, e com crescente surpresa verificou que muitas


doutrinas do profeta de Nazaré estavam contidas, em germe, na filosofia de
Platão. Por algum tempo reacendeu-se na alma do africano a esperança de
possuir a Deus nos caminhos da inteligência. Pesquisar, conhecer, analisar,
intensificar ao mais alto potencial a capacidade intelectiva — não seria isto uma
escada para galgar o céu?

Era o último sorriso da filosofia pagã... Era o derradeiro lampejo dum dia que
para sempre morria nos braços duma noite estrelada...

Ainda não acabara o filho de Mônica de se convencer de que não se pode possuir
integralmente a Deus pela luz fria do intelecto. Não sabia ainda que a inteligência
só pode conduzir a alma até ao vestíbulo do santuário, até ao “sanctum” do
templo; mas introduzi-la nos inefáveis mistérios do “sancta sanctorum”
impossível...

Não eram Platão nem Aristóteles, nem filósofo algum que ia descerrar as portas
da fé a esse espírito sedento de Deus — era Paulo de Tarso, ou melhor, era o
próprio Cristo através das epístolas de seu grande discípulo...

Pela primeira vez começou Agostinho a vislumbrar luzes estranhas por entre as
palavras do grande convertido às portas de Damasco. Paulo exigia, sim, um
“culto racional”, falava até em “compreender” o Evangelho; mas insistia ainda
mais, muito mais, na necessidade de “viver” e de “sofrer” a doutrina do Cristo.
Não basta apreender a Deus através de elevados conceitos filosóficos, é
necessário purificar o coração e dar a toda a vida um caráter digno de Deus. O
Evangelho não é para ser estudado, é para ser vivido e sofrido. Só o compreende
quem o vive e sofre. Não se pode viver e sofrer o Evangelho senão à luz estelar
do Getsêmane e à luz solar do Gólgota. Todos os homens que pretenderam
conhecer o Cristianismo apenas à força de estudos e análises ficaram eternos
analfabetos e descompreenderam o Cristo e seu Evangelho.

Agostinho, por entre o crepúsculo matinal da nova compreensão, continuou a ler,


a soletrar, talvez, os rudimentos da fé cristã...

“Deus resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes”...

“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus”...

“Graças te dou, meu Pai, porque revelaste estas coisas aos simples e
pequeninos e as ocultaste aos eruditos”...

“Deus cura o coração que sangra, e esmaga a mente soberba”...


“O homem mental não compreende as coisas do espírito de Deus; parecem-lhe
até estultícia; nem está em condições de as compreender, porque elas devem
ser tomadas em sentido espiritual”...

“Vinde a mim, todos os que andais aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei,


e encontrareis paz para a vossa alma; porque o meu jugo é suave e o meu fardo
é leve”...

“Encontrareis paz para a vossa alma”...

Agostinho repetia a si mesmo, uma e muitas vezes, estas palavras dulcíssimas.


Paz... paz... paz... Bebia o divino refrigério desta palavrinha com a sofreguidão
dum homem prestes a morrer de sede...

Paz... sossego de espírito... tranquilidade de consciência... quietação do


tormento atroz das suas dúvidas... felicidade na posse da verdade...

Nada disto encontrara Agostinho em sua vida, não obstante o bem-estar e a


prosperidade que o cercavam nos últimos tempos...

Compreendeu, com amarga tristeza, que, para possuir a Deus, teria de


abandonar tantos ídolos queridos da sua vida mundana... Homem de 32 anos,
ardente, sensual, noivo duma menina de boa sociedade, ex-amante duma
mulher repudiada, amante de outra que o prendia com os vínculos de irresistível
paixão... Homem com a cabeça cheia de planos e projetos ambiciosos — como
podia ele fazer dessa Babel profana um silencioso santuário da Divindade?...

“Prendiam-me à carne as amigas de outrora — escreve ele, rememorando esse


período — e segredavam-me ao ouvido: Queres então abandonar-nos? Como?
Mas reflete: a partir desse momento, não estaremos mais contigo, nunca mais,
para todo o sempre... Non erimus tecum ultra in aeternum”...

Agostinho escutou, atento, estas vozes da carne e do sangue... Olhou para as


amigas de outrora... Amigas queridas... E, repleto de amor e de ódio ao mesmo
tempo, respondeu-lhes: “Bem vos conheço!... Vós sois os desejos, a desmedida
concupiscência, as fauces insaciáveis e sem fundo!... Demais tenho sofrido por
vós!”...

Elas, porém, essas “amigas de outrora”, não se rendiam. Vendo-se em perigo de


serem por Agostinho repudiadas, redobravam de encantos e jogavam ao cenário
todos os argumentos de que dispunham para enredar a alma do homem que
tentava fugir-lhes das garras:

“Que importa? — diziam as vozes sedutoras — que importa que sofras?... Quem
sabe se não é precisamente esta a única felicidade para ti, sofreres por nossa
causa, sacrificares sempre de novo o teu corpo às fauces insaciáveis, sem termo
nem medida”...
Tamanha é a perfídia da paixão! Uma vez que não pode ocultar à sua vítima a
profunda infelicidade, o sofrimento que lhe causa, quer fazê-lo crer que é
precisamente neste martírio que consiste a missão do padecente; quer persuadi-
lo a que ele é um mártir do destino, um herói, um super-homem, um holocausto
imolado na ara sagrada dum sublime mistério; quer convencê-lo de que a
grandeza do escravo dos apetites consiste em se exaurir e aniquilar, gota a gota,
nesse delicioso inferno da paixão, nesse incêndio voraz da carne e do sangue...

É esta a narcose fatal da volúpia...

É esta a mística satânica de Eros...

“Vossas palavras — replicou-lhes o melhor Eu de Agostinho — são de covardes.


Mas para mim ainda existe outra felicidade além desta de que falais. Sim, há
outra felicidade... tenho disto plena certeza”...

Palavras tão enérgicas fizeram emudecer, por algum tempo, as “amigas de


outrora”. Estas, porém não deram o jogo por perdido. Excogitaram outra tática,
e voltaram à ofensiva:

“Mas quem te garante que não renuncias à nossa felicidade por uma ilusão
fantástica, mais inconsistente que a nossa? Confias demais em tuas forças...
Nunca serás capaz de viver sem nós...”

Agostinho estremeceu. Sentia-se atingido no ponto vulnerável, no seu “calcanhar


de Aquiles”... Grande era a sua fraqueza, poderoso o hábito do vício. Ardente a
sua imaginação, que potencializava ao infinito as dificuldades da renúncia e
duma vida pura. Começou a fantasia a trabalhar febrilmente, pintando-lhe em
cores deslumbrantes os gozos da vida, esbatendo ao mesmo tempo em tom de
cinza e noite a vida espiritual. Renunciar a que? Se fossem apenas os prazeres
sensuais, talvez que ele se sentisse bastante homem para esta renúncia. Mas
há na vida do homem inteligente e culto um mundo de pequenos nadas que dão
à existência precisamente o mais delicioso sabor e são a alma da sua razão-de-
ser. E o asceta renuncia a todas essas queridas suavidades de cada dia... Vive
morrendo... O seu viver é uma lenta agonia...

Percebendo este recuo do espírito vacilante, os astutos guerrilheiros logo


entraram na brecha e segredaram carinhosamente ao ouvido de Agostinho:

“Espera mais um pouco... As coisas que desprezas não deixam de ter os seus
encantos... Dão-te grande prazer... Não podes, assim sem mais nem menos
desfazer-te delas... E seria vergonhoso se, mais tarde, depois de as desprezar,
quisesses a elas voltar”...

Agostinho, estonteado e como que tomado de vertigens em face dessas visões,


deu ordem aos prazeres mundanos para desfilarem a seus olhos. E eles
desfilaram, numa deslumbrante parada, orgulhosos e belos como senhores do
universo: jogos, lautos festins, música, perfumes, essências inebriantes, lindos
corpos femininos, longas noitadas de amor; e, depois, os livros, as diversões, as
caçadas, os colóquios com os amigos, a liberdade do pensamento — mundos
de beleza e valores, sem os quais não podia chamar-se vida o humano viver...

Não existe em toda a literatura do mundo descrição igual a esta que Agostinho
faz do seu estado psíquico, nesse vaivém de esperanças e desânimos, de
ofensiva e defensiva, de vitórias e de derrotas. Nenhum homem soube pintar
com tão dramática plasticidade a silenciosa peleja dos dois Eus que se
digladiam, dentro do homem sempre arrastado à terra pela prepotência dos
sentidos e sempre arrebatado ao céu pela veemência do espírito.

Nessa ocasião não se decidiu Agostinho nem pró nem contra suas “amigas de
outrora”. A sua vontade enferma não tinha forças suficientes para proferir um
enérgico e decisivo eu quero. Continuou a forrar a vida com a claudicante
irresolução de quisera, quisera... Continuou a “ser devorado pelo tempo”, como
diz. Deixou-se arrastar pela onda da sociedade, sem saber ao certo o que queria.

Foram também, aos poucos, empalidecendo os seus ideais políticos, em face do


quadro de horripilante decadência que preludiava a agonia do império dos
Césares.

Agostinho, em véspera da sua grande metamorfose, retraiu-se do público,


concentrando-se em si mesmo, numa dolorosa introspecção.

* * *

Em transes de extrema agonia interior, quando se tornava insuportável o nojo


que Agostinho tinha do mundo profano, e, sobretudo, de si mesmo, dirigia-se à
basílica, não tanto para ouvir a palavra eloquente de Ambrósio — que não
conseguia sossegar as angústias do seu espírito — como para embalar, por uma
hora, ao som de hinos sacros, a pobre criança soluçante de sua alma chagada
e infeliz... A ver se aquelas suaves melodias cobriam com uma camada de cinzas
frias as brasas vivas do seu espírito...

Ah! Esses hinos e cânticos sacros!... Como empolgavam a alma do filósofo!...


Que bálsamo lhe instilavam no coração sofredor!... Que visões de paz lhe abriam
em pleno campo de batalha!...

Ambrósio era apaixonado cultor da liturgia. Literato, poeta, talvez mesmo


compositor, enchia desses sopros sonoros da Divindade as amplas crastas da
sua basílica episcopal. Os lindos textos e as suaves melodias que, nos séculos
subsequentes, empolgariam milhares de almas e arrebatariam a célicas alturas
os adoradores de Deus, muitos deles remontam a esse tempo e nasceram,
grande parte, em Milão. O Te-Deum brotou, provavelmente, da alma desse
bispo-governador, desse estadista-sacerdote, desse grande místico de Deus
feito apóstolo da sociedade e artista da palavra.
Te lucis, ante terminum...
Magnificat anima mea Dominum...
Benedictus Dominus, Deus Israel
Deus, Deus meus, ad te de luce vigilo...

Quanta poesia nestes cânticos!... Quanta alma nessas venerandas estrofes!...

Sobre as invisíveis asas dos Salmos, pairava no perfumoso espaço da catedral


de Milão, a alma nostálgica de Agostinho... E, insensivelmente, se enchiam de
lágrimas os seus olhos...

“Como eu chorava, meu Deus — escreve ele — ao ouvir os teus hinos e cânticos!
Como me extasiavam essas vozes! Enchiam-me os ouvidos e traziam-me a
verdade ao coração. Mais e mais sentia eu o impulso da minha piedade... E
saltavam-me dos olhos as lágrimas... E eu sentia alívio”...

Diluía-se em pranto a asfixiante angústia de sua alma dilacerada de dúvidas, de


tristezas, de desespero do mundo e de si mesmo... A música, os cânticos, eram
para seu coração uma válvula de segurança, quando ameaçava estalar sob a
pressão da agonia interior...

O que não valiam todos os argumentos da inteligência operava nele a saudade


do coração.

* * *

Num desses dias de dúvidas e tormentos íntimos, resolveu Agostinho procurar


velho sacerdote, por nome Simplicianus. Era o mesmo homem que educara
Ambrósio e, talvez, contribuíra para a sua cristianização. Agostinho abriu-se com
este ancião. Falou-lhe dos escritos filosóficos que lia, das dificuldades que sentia
em abraçar a religião cristã, etc.

Simplicianus ouviu em silêncio a narração do filósofo africano, e, em resposta,


contou-lhe calmamente a conversão do célebre orador Victorinus, que até tinha
estátua no Forum Romanum e era universalmente conhecido como um dos mais
brilhantes espíritos da época. Havia tempo que Victorinus era catecúmeno, mas
não sentia em si a coragem de pedir o batismo e expor-se assim ao escárnio da
aristocracia romana, em grande parte pagã. De súbito, num dia de batismo
solene, subiu Victorinus ao estrado dos catecúmenos da basílica e fez pública
profissão de fé cristã, solicitando o batismo. “Victorinus! Victorinus!” Foi o brado
uníssono que ecoou pela devota multidão que enchia o vasto recinto.

Agostinho ouviu, atento e comovido, a narração de Simplicianus — e já lhe


soavam aos ouvidos os delirantes aplausos dos cristãos: Agostinho! Agostinho!

Admirou-se da coragem de Victorinus — e sorriu-se da sua própria vaidade, essa


pérfida vaidade que procurava influir na sua conversão ao Cristianismo. Não, ele
só abraçaria o Evangelho depois de vencer as suas dúvidas e sentir em si a força
para o praticar dignamente.

Assim calculava Agostinho.

Pouco tempo depois, teve a visita dum conterrâneo seu, Pontitianus, alto
funcionário da Corte Imperial. Agostinho, Alypius e Pontitianus começaram a
discorrer largamente sobre as epístolas de São Paulo, que se achavam sobre a
mesa de jogo, no meio das cartas e dos dados. O hóspede africano era cristão,
e pôs-se a falar com grande entusiasmo da vida de Santo Antão e seus
companheiros, nos ermos no Egito. Faziam muito bem esses ascetas, dizia o
orador, em desprezar os bens terrenos, tanto mais que, em breve, todas as
riquezas do Império cairiam presas dos bárbaros, que nas fronteiras do norte e
do leste se preparavam para uma pilhagem universal. Contou ainda um caso
dramático da sua própria vida. Estava o César em Treviris. De tarde, quando o
soberano se divertia no circo, foi Pontitianus passear com três fidalgos da corte
pelos arredores da cidade. Afastando-se cada vez mais, chegaram a umas
choupanas, onde um grupo de eremitas imitava a vida austera de Santo Antão.
Tocados pela graça divina, dois dos áulicos, que eram noivos, resolveram
abandonar tudo e servir a Deus, numa vida de oração e austeridade, associando-
se aos cenobitas.

Este fato, descrito por Pontitianus com a dramática viveza de quem se acha
profundamente emocionado, abalou a alma de Agostinho. Era noivo também ele
e trazia na alma um mundo de ambições profanas. Agarrou o braço de Alypius e
com desusada veemência lhe bradou no rosto: “E nós?... Como matamos o
nosso tempo?... Sim, nós?... Ouviste? Os ignorantes animam-se e conquistam o
céu, e nós, com a nossa fria erudição, nos revolvemos na carne e no sangue!”...

Alypius encarou o amigo, aterrado com a estranha expressão de seu semblante


e o tom singular da voz.

Agostinho, como que tomado de irresistível comoção, afastou-se a largos passos


para o fundo do pomar. Tinha necessidade de estar a sós consigo. O vulcão da
alma começava a transbordar-lhe em pranto, e ele queria chorar às ocultas...

Depois de algum tempo, Alypius, apreensivo, foi no encalço do amigo.


Encontrou-o, sentado num banco, imóvel, com os olhos cheios de lágrimas.
Sentou-se ao lado dele. Agostinho, porém, parecia não dar pela presença do
companheiro. Como que alheio ao mundo, só pensava na sua vergonhosa
fraqueza, que não lhe permitia rompesse de vez com o passado e começasse
vida nova; que se despojasse, enfim, do homem velho e se revestisse do homem
novo em Cristo, como dizia Paulo. Era imenso o nojo que sentia de si mesmo...

De súbito, levantou-se e, como que acossado por invisível perseguidor,


precipitou-se mais para o fundo da selva. Parou ao pé duma figueira. Deixou-se
cair em soluços incoercíveis. Sem a menor resistência, abandonou-se ao
sentimento duma dor imensa. Era como se impetuosa torrente, por longo tempo
represada, rompesse de súbito os diques e barreiras e alagasse com a potência
das suas vagas tudo quanto encontrasse em sua passagem...

Com inimitável viveza e plasticidade descreve Agostinho, mais tarde, essa peleja
ingente entre a natureza e a graça, como se dentro dele se digladiassem dois
seres adversos:

Tu, Domine, retorquebas me ad me ipsum, auferens a dorso meo, ubi me


posueram, dum nollem me attendere; et constituebas me ante faciem meam, ut
viderem quam turpis essem, quam distortus et sordidus, maculosus et ulcerosus.
Et videbam — et horrebam... Et quo a me fugerem non erat... Et, si conabar a
me avertere aspectum, tu me rursus opponebas mihi, et impingebas me in oculos
meos, ut invenirem iniquitatem meam et odissem...

“Tu, Senhor, me retorquias para mim mesmo, tirando-me de trás das minhas
costas, onde eu me escondera, porque não me queria ver; e me colocavas ante
os meus olhos, para que visse quão feio era, quão deformado e sujo, quão
manchado e coberto de úlceras. E eu me via — horrorizado... E não sabia para
onde fugir de mim mesmo... E, quando eu tentava tirar de mim os olhos, tu
novamente me colocavas diante de mim e me impingias aos meus olhos, para
que encontrasse a minha iniquidade e me odiasse”...

Agostinho gemia como um moribundo, por entre o silencioso fragor dessa luta
de vida e de morte... Estorcia-se como um desesperado em face da vitoriosa
ofensiva do Cristo, que, após três decênios de incessante assédio tomava, enfim,
de assalto, a praça forte dessa grande inteligência, o rijo baluarte dessa alma de
fogo.

Entretanto, na iminência da derrota, o “velho homem” de baixo, embora


agonizante, se defendia ainda com o último resto das suas forças contra o terrível
agressor lá de cima... Não, não era possível render-se sem mais nem menos...
Entregar para sempre o que durante a vida inteira adorara como ídolo querido...

“Oborta est procella ingens — escreve ele — ferens ingentem imbrem


lacrymarum... Dimisi habenas lacrymis, et prorupuerunt flumina oculorum
meorum, et dixi: usquequo, Domine, irasceris in finem? ne memor fueris
iniquitatum nostrarum antiquarum!... Sentieban enim me eis teneri... Jactabam
voces miserabiles... Quamdiu? quamdiu?... cras et cras?... quare non modo?...
quare non hac hora finis turpitudinis meae?... Et ecce, audio vocem de vicina
domo cum canticu dicentis et crebro repetentis, quasi pueri ant puellae, nescio:
Tolle, lege! tolle, lege!”

“Armou-se então no meu interior uma tempestade imensa, trazendo imensa


torrente de lágrimas. Soltei as rédeas ao pranto que me arrasava os olhos... E
gemia: Até quando, Senhor, continuas irado?... lança ao olvido as minhas
iniquidades de outrora!... Pois eu me sentia preso por elas. E suplicava com voz
miserável: Até quando?... até quando?... amanhã, sempre amanhã?... e por que
não agora... por que não seria esta hora o fim das minhas torpezas?”...

Perdeu-se no vácuo o angustioso clamor de seu coração dilacerado... Só o


impetuoso latejar do sangue nas veias túmidas respondia ao bramir da sua
tempestade interior...

Eis senão quando percebe uma voz de criança a repetir em cadências rítmicas:
“Tolle, lege! tolle, lege!”... “Toma e lê! toma e lê!”...

Agostinho escuta. Donde partia a vozinha infantil? De alguma casa vizinha? Era
o estribilho de alguma modinha popular?... Era uma voz do além, um convite de
Deus?

Ergue-se o ferido lutador, e, como que sonâmbulo, vai ter com Alypius. Sobre a
mesa da casa de campo estava o volume das Epístolas paulinas, que lá haviam
deixado. Agostinho tomou-o nas mãos, abriu-o a esmo — e deu com as palavras
da Epístola aos Romanos (13,11 ss); “Vai adiantada a noite e vem despontando
o dia. Despojemo-nos, pois, das obras das trevas e revistamo-nos das armas da
luz. Vivamos honestamente como em pleno dia; não em glutonerias e
bebedeiras, não em volúpias e luxúrias, não em contendas e rivalidades — mas
revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não ceveis a carne para as
concupiscências”...

Agostinho fechou o livro, profundamente abalado com o que lera. Não eram
estas palavras de Paulo uma resposta do céu ao inferno das suas angústias?...
Sim, era necessário despojar-se de vez da noite do seu paganismo sensual e
saudar a aurora duma vida nova, espiritual, em Cristo Jesus...

Mostrou o texto a Alypius, e este leu a frase que se segue (14,1): “Acolhei a
quem é fraco na fé” — e considerou-a como um aviso do céu para corroborar na
fé o amigo vacilante...

Houve momentos de grande silêncio...

Agostinho cobriu o rosto com as mãos — e rendeu-se incondicionalmente ao


Cristo...

E foi neste instante solene que desceu sobre a alma do filho de Mônica uma paz
imensa, profunda, inefável, divina...

...............................................................................................................................

Sentiu Agostinho, nessa hora, o que nunca disse nem descreveu, porque é
indizível e indescritível... Nos momentos mais humanos e mais divinos da sua
vida, todo o homem está a sós com Deus, circundado da solitude do Infinito...
Sentiu Agostinho o que só pode sentir o homem que, sem reserva, lança o seu
pequeno Eu humano ao oceano do grande Tu divino...

Foi esta a hora suprema de Agostinho...

A hora da crise — a hora da redenção...

Cessou a procela da inteligência, do coração e da carne, e fez-se uma grande


bonança em todo o seu ser...

E neste momento sentiu Agostinho pela primeira vez, na sua longa vida de gozos
e prazeres, o que é felicidade, profunda, profundíssima felicidade...

Morrera o pagão sensual de Cartago — nascera o cristão espiritual de Milão...

“Fizeste-nos para ti, Senhor — e inquieto está o nosso coração até que descanse
em ti”...

...............................................................................................................................

Em companhia de Alypius foi procurar sua mãe para lhe dar parte do ocorrido.
Mônica, ainda que radiante de júbilo, não pareceu surpreender-se com a notícia.
Tinha a certeza de que, mais dia menos dia, se realizaria o que lhe dissera a voz
celeste: “Teu filho estará onde tu estás”.

Quando viu cumprida a sua dolorosa missão, sentiu ímpetos de exclamar com o
velho Simeão no templo: “Agora, Senhor, despede em paz o teu servo, porque
os meus olhos contemplaram a tua salvação!”...
CAPÍTULO 21

A Paz da Alma no Idílio


da Natureza

Passara a grande crise na vida de Agostinho. Convertera-se para o Cristianismo.


Para ele, essa conversão não consistia em algum ato externo, nem mesmo na
recepção do batismo. Esse ritual seria, sim, a ratificação externa da sua
regeneração interna. Mas a alma de Agostinho já estava batizada, isto é,
“mergulhada” no espírito do Cristo.

Por isso, não se deu pressa em receber o batismo ritual. Estava tomada a sua
firme e sincera resolução de pautar, daí por diante, a sua vida pelo Evangelho.
O que mais urgia era consolidar esta resolução e esclarecer os motivos da
mesma pelo estudo das Escrituras Sagradas e pela meditação das verdades
eternas.

É este um dos traços mais típicos no caráter do filho de Mônica: a seriedade com
que encara a vida cristã. Adia por longos anos a sua conversão porque não se
sente com forças para cumprir o que esta conversão lhe exige. Mas, uma vez
convertido, quer ser cristão integral, e não apenas pagão batizado, um homem
qualquer envernizado de cristianismo, como tantos cristãos dos nossos dias.

Escreveu a Ambrósio uma longa carta em que lhe narrava os desvarios da sua
vida e manifestava o desejo de abraçar, com seu filho Adeodatus e seu amigo
Alypius, a religião cristã.

Entrementes, continuou a viver tranquilamente na propriedade rural onde residia


com os seus. Agostinho tinha um nome feito. Era funcionário do Império.
Ocupava um cargo de projeção intelectual. A sua profissão de fé cristã teria, sem
dúvida, provocado extraordinária sensação na cidade e muito além. Os católicos
teriam aplaudido entusiasticamente o neófito. Os pagãos e arianos teriam
atribuído esse passo, não se sabe a que interesses subalternos.

Agostinho, porém, era inimigo de toda a exibição. Por demais tinha sofrido pelo
Evangelho para não profanar agora o filho das suas dores, fazendo dele alvo de
elogios ou objeto de invectivas. Bastava-lhe o tesouro divino da paz de
consciência. Convalescente, precisava da solidão e do convívio com almas
amigas, a fim de robustecer a sua saúde espiritual.
E também as forças físicas. Agostinho sentia-se exausto, com os pulmões em
petição de miséria. O clima úmido da Lombardia não convinha ao filho da África.

Faltavam 20 dias para terminar o ano letivo. Não era prudente que o professor
de filosofia suspendesse prematuramente as suas lições, provocando
comentários e descontentamentos.

Romanianus, que seguira Agostinho para o labirinto do maniqueísmo, resolveu


acompanhá-lo também para as alturas do Evangelho.

Num daqueles dias tranquilos, foi relembrado o velho plano de Agostinho de


fundar uma espécie de irmandade de homens que quisessem dedicar a sua vida
ao estudo da suprema sabedoria. E o plano começou a tomar formas definidas.
Voltariam todos para a África. Romanianus custearia com a sua grande fortuna
a fundação e manutenção desse mosteiro de filósofos cristãos que hoje talvez
chamaríamos ashram. O inteligente Nebridius, o dedicado Alypius, bem como o
amigo Trygetius e o professor de línguas, Verecundus, colega de Agostinho, logo
se apresentaram como candidatos e noviços da nova “ordem”.

Possuía Verecundus, perto de Milão, uma propriedade rural, chamada


Cassiciacum. Convidou Agostinho, sua família e amigos todos para irem morar
com ele e considerarem como casa própria a vasta residência do professor de
línguas, enquanto não abrissem, além-Mediterrâneo, o mosteiro definitivo.

É admirável a hospitalidade e o espírito de coleguismo desses africanos.

O jovem Licentius, dono de forte veia poética, celebrou em elegantes versos a


beleza e a vida bucólica desse eldorado dos filósofos, embalado em exuberante
vegetação, situado no ponto em que os fartos vargedos da Lombardia
setentrional se encontram com as últimas dependências dos Alpes italianos —
lindo paraíso a espelhar-se em águas azuis encimadas por esses céus auri-
róseos que vemos nos painéis de Paulo Veronese.

A casa de moradia, a julgar pela descrição que dela nos deu Agostinho, parecia-
se com as nossas velhas casas de fazenda, onde a comodidade e conforto
prevalecem sobre o granfinismo e o luxo. Vastos pomares, hortas extensas onde
a incansável Mônica encontrava largo campo de atividade. Nem faltavam
canteiros de flores.

No meio de toda esta exuberância brilhava um sorriso do Éden — Adeodatus. O


que dele sabemos através da pena de seu pai é antes misterioso do que
compreensível. Era um adolescente de pureza angelical, bom demais para este
mundo tão imundo. Não terão as invisíveis asas daquela heroína anônima, que
era sua mãe, circundado a alma de Adeodatus, preservando-o das angústias de
Agostinho? Onde estaria a essas horas, aquela mulher que, na sua dolorosa
renúncia, nos parece tão digna de admiração como seu grande amigo de
outrora? Tem-se feito pouco caso dessa ignota cartaginesa que por um decênio
presenciou o drama de quedas e surtos de Agostinho, ao passo que este e sua
santa mãe fulguram como astros de primeira grandeza no firmamento da
cristandade... Terá ela tido notícia da conversão do ex-amante?... Ter-se-á
encontrado com ele em Cristo?... Enquanto Agostinho vivia no remansoso idílio
de Cassiciacum, orava e chorava a “anônima” na asperidade de alguma caverna
ou numa choupana do golfo de Túnis, relembrando os dias e as noites que
passara ao lado daquele homem que só depois do eclipse dessa mulher heróica
podia brilhar na noite sagrada da sua grande missão...

Que grandes surpresas nos reservará ainda o futuro!... Quando conhecermos a


verdadeira história da mãe de Adeodatus, que era, certamente, muito mais que
uma amante vulgar...

* * *

Aos poucos, ia Agostinho restaurando as forças e retemperando a saúde


abalada pelos excessivos trabalhos e pelas profundas emoções dos últimos
tempos. E foi-se abismando cada vez mais no estudo do Evangelho. Pôs-se a
filosofar com ardor sobre a origem da alma humana, problema esse que não
daria tréguas a seu espírito até à hora da morte. Donde vem a alma? Dos pais?
Do corpo ou da alma deles? Mas, como então evitar a conclusão da divisibilidade
da alma, o que equivaleria à negação da sua imaterialidade? Donde vem a alma?
De Deus? Creada por Deus? Mas, não era isto fazer Deus autor do pecado
original?...

A idéia do pecado original foi, para Agostinho, durante a vida inteira, um


problema insolúvel. Entende ele por pecado original, mais ou menos, o mesmo
que as nossas teologias eclesiásticas de hoje: um ato pessoal de desobediência
da parte de Adão, ato esse cujos efeitos teriam passado para todos os seus
descendentes. E, apesar da redenção pelo Cristo, essa tara hereditária
continuaria a ser herdada por cada indivíduo humano, e lhe impossibilitaria a
salvação.

Nesse inextricável cipoal de paradoxos se debateu Agostinho durante a vida


inteira — como se debatem, há quase 20 séculos, os nossos teólogos.

Nada disto tem fundamento no Evangelho do Cristo, que ignora totalmente a


idéia de pecado original, no sentido exposto. Toda essa questão remonta a umas
poucas palavras nas epístolas de São Paulo, sobretudo aos Romanos, como
fizemos ver em nosso livro “Paulo de Tarso”. Escreve o apóstolo: “Por um só
homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte — e por um só homem
veio o ajustamento e a vida”. Como dissemos no citado livro, não é certo, nem
mesmo provável, que o grande apóstolo se tenha referido a um ato isolado de
um homem chamado Adão, como supõem as nossas teologias. Que quer dizer
“por um só homem entrou o pecado no mundo”? De que modo foi Adão
responsável pelo tal pecado original?
A palavra bíblica “Adam” é a contração de duas palavras sânscritas ‘adi’
(primeiro) e “aham” (ego) — o “primeiro-ego”, ou seja, o primeiro ser vivo da terra
que adquiriu a consciência do ego hominal. Representa assim o adi-aham, o
primeiro estágio do ser hominal, o primeiro ego. No seu estado pré-hominal, no
Éden, não tinha esse ser pecado algum, por não ter ainda o uso do livre-arbítrio;
era inocente por ignorância e imperfeição. Mais tarde, o ser infra-hominal e
inconsciente passou para o plano do ser hominal e consciente, egoconsciente
(Adam), e com isto se tornou capaz de ser moralmente bom ou mau, ou, na
linguagem simbólica do Gênesis, “comeu do fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal”. E com isto se lhe abriram os olhos da ego-consciência hominal,
simbolizada pela serpente, que, em todas as culturas da humanidade,
representa a inteligência humana no estágio do ego, do adi-aham mental, mas
ainda não espiritual. (O Eu espiritual é, segundo a filosofia oriental, o Adi-Atman,
o “primeiro-Eu, tão dramaticamente descrito no capítulo 11 da Bhagavad-Gita).

Neste primeiro estágio da sua homificação vive o homem-ego na ilusão de estar


separado de Deus, de ser uma entidade independente, autônoma, podendo agir
por conta própria, possui liberdade sem responsabilidade — e o que é isto senão
a quintessência do pecado? Pecado é a ilusão duma existência separada de
Deus, que gera necessariamente um egoísmo luciférico, satânico. O Adi-Atman,
o homem-Eu, sabe que “Eu e o Pai somos um; as obras que eu faço não sou eu
(ego) que as faz, mas é o Pai em mim (Eu) que faz as obras”. Mas o homem-ego
ignora tudo isto, e age por conta do seu ego separatista, do seu adi-aham, do
seu Adam, pelo qual entrou o pecado no mundo.

Aí está a origem do homem-ego, do Adam, coincidindo com a origem do homem-


pecador. Neste sentido evolutivo, é o homem-ego, o Adam, o iniciado da
humanidade pecadora; não mediante um ato pessoal transitório de
desobediência, como os nossos teólogos ensinam, mas em virtude duma atitude
hominal permanente do primeiro-ego, iniciando a evolução hominal, no plano
primitivo da ilusão, do separatismo errôneo, que é o pecado.

O homem-ego (Adam) já comeu do “fruto da árvore do conhecimento do bem e


do mal”, já se acha nessa antítese dualista “bem-mal” — mas não atingiu ainda
a zona do homem-Eu, comendo do “fruto da árvore da vida”, que é o grande
monismo crístico “Eu e o Pai somos um”. E enquanto o ilusório dualismo adâmico
não culminar no verdadeiro monismo crístico, não haverá redenção do pecado,
nem imortalidade, predomina a mortalidade do adi-aham (primeiro ego, Adam)
— a imortalidade só virá com o nascimento do Adi-Atman (primeiro-Eu, Cristo),
o “primogênito de todas as creaturas” (Paulo), o “Unigênito da Divindade” (João).

Neste sentido profundamente verdadeiro e evolutivo, não contradizem as


palavras de Paulo de Tarso ao Evangelho do Cristo, que focaliza a realidade
interna do homem-Eu, e não as facticidades externas do homem-ego.
“Assim como Moisés, no deserto, ergueu às alturas a serpente (ego), assim deve
também o Filho do Homem (Eu) ser erguido às alturas, para que todos os que
com ele tiverem fidelidade não pereçam, mas tenham a vida permanente”. Estas
palavras do Cristo iluminam admiravelmente o problema milenar do homem-ego
(serpente rastejante) em transição ao homem-Eu (serpente erguida às alturas).
O pecado original do homem adâmico é abolido pela santidade do homem
crístico — o ego pecador neutralizado pelo Eu redentor.

É nisto que consiste a “justificatio” (em grego dikaiosyne), isto é, o “ajustamento”


do ego mediante o Eu, do Adão pecador pelo Cristo Redentor.

Sendo que, nos séculos passados, pouco ou nada se sabia da epopéia evolutiva
multimilenar do homem e da humanidade, supondo que o homem tivesse saído
diretamente, perfeito, das mãos de Deus, e ter sofrido desastrosa queda, por
obra de Satanás — não era possível formar idéia exata do pecado e da
redenção. Hoje em dia, sabemos que o homem, como todas as coisas, vieram
de Deus, da mesma e única Fonte Infinita — mas que o homem fluiu, no seu
aspecto humano, através de milhares de canais infra-humanos, e, futuramente,
vai fluir ainda por muitos canais até atingir a sua última perfeição.

Hoje em dia, creação e evolução não são mais conceitos antagônicos, mas sim
complementares. O homem veio da Fonte Divina através de muitos canais
humanos e infra-humanos.

Se Agostinho tivesse tido idéia exata disto, teria encontrado solução ao problema
do pecado original e da origem da alma humana.

* * *

Paulo, o fariseu, prostrado às portas de Damasco, ergue-se como apóstolo, e,


antes de evangelizar o Cristo, fica três anos na solidão das estepes da Arábia.

Agostinho, iluminado pela luz do Evangelho — que faz? Deixa-se ficar


tranquilamente na solidão bucólica de Cassiciacum, discutindo filosofia
platônica. E, mesmo depois de regressar à África, não pensa em evangelizar o
mundo. Retira-se ao seu ashram, para estudar, em companhia de alguns amigos
sintonizados pelo seu espírito.

Lá, o ardente doutor da lei e rabino — aqui, o tranquilo filósofo e eremita.

Lá um discípulo de Moisés, que vê ruir por terra o palácio da sua teologia judaica
— aqui, um discípulo de Platão, que assiste ao naufrágio de uma formosa
filosofia.

Paulo, depois daquele terremoto, vê-se no meio dum campo coberto de ruínas;
mas essas ruínas são pedras de boa qualidade, material para uma nova
construção. Errada estava apenas a arquitetura, deficiente o estilo do edifício,
mas a matéria-prima do mosaísmo, ora dispersa na estrada de Damasco, podia
ser utilizada, em parte, para a gigantesca basílica do Evangelho, que o “sábio
arquiteto” ia levantar. Por isso, depois daquele silêncio e introspecção, aparece
Paulo como arrojado pregador do Cristianismo.

Mas que faria Agostinho com o material da sua filosofia arrasada? De que
serviriam as pedras que Platão, Aristóteles e Cícero lhe haviam fornecido?...
Força era procurar material de construção, mais sólido, se não quisesse expor à
ruína o edifício que ia levantar nos escombros da sua torre. E Agostinho desce
às profundezas da revelação divina, eternizada nas páginas do Evangelho e
dessa mina — a mesma de mestre Paulo — extrai as pedras de granito e o ouro
de lei com que edificou o santuário da sua vida espiritual e da sua mística...

Entrementes, viera o outono do ano 386. Ao sopro das brisas redemoinhavam


pelo solo as folhas amarelas das castanheiras e dos plátanos de Cassiciacum.
Como as aves migratórias, sentiam essas almas tropicais em si a atração das
regiões equatoriais. Mas, contra a sua vontade, teriam de passar na úmida
Lombardia mais um inverno. E este inverno foi para Agostinho a mais profunda
solidão que viveu na Europa, solidão em que todo o seu ser mergulhou no
oceano da meditação.

E, como a exuberante fecundidade do solo após as chuvas estivais, pululou na


alma de Agostinho imensa floração de idéias, que ele imortalizou numa dezena
de obras escritas nesse ano.
CAPÍTULO 22

Saudades da África —
Na Praia de Óstia

Na páscoa de 387, dia 25 de abril, quando ao longe começavam a degelar os


glaciares dos Alpes, e nos pomares de Cassiciacum desabrochavam as
primeiras flores da primavera, dirigia-se um trio de homens para uma igreja de
Milão — Agostinho, Adeodatus e Alypius — e em profundo silêncio, receberam
o batismo.

Confundia-se o silencioso aleluia dessas almas com os jubilosos hinos da


natureza ressuscitada.

A conversão extinguira na alma de Agostinho o gosto pelas coisas do mundo.


Só desejava viver para as grandes realidades do espírito — Deus e a alma, e
nada mais, como ele dizia. Entregou a sua demissão da cadeira de filosofia.
Alguns amigos despediram-se dele, enquanto outros resolveram acompanhá-lo
para a África, onde fundariam o sonhado mosteiro dos “amigos da verdade”.

Adeodatus era o mistério de sempre, mistério cada vez mais incompreensível.


Parecia destinado para uma vida de grande santidade. Com os seus 13 a 14
anos e os invulgares dons de espírito, vivia ainda no paraíso da inocência.
Herdara do pai as preclaras luzes da inteligência, enquanto a libido passara de
largo — Adeodatus era um enigma para o pai, quanto mais para nós, que
ignoramos o caráter da sua obscura progenitora.

Mônica tomara o véu de viúva consagrada a Deus, vivendo sua segunda


virgindade; e em nada teria que modificar o teor da sua vida se com seu filho e
neto se encerrasse entre as paredes dum claustro.

Um só ideal pairava ante os olhos do neófito: passar o resto da sua vida na


solidão do ermo, entregue aos labores espirituais; talvez em alguma caverna à
beira do deserto, longe de mulheres sedutoras, livre da lufa-lufa das ambições e
da caça às felicidades do mundo. Por demais se convencera Agostinho de que
não havia no mundo o que satisfazer pudesse um espírito conhecedor de si
próprio e sequioso da Divindade. Ninguém mais lhe arrancaria da alma esta
grande e feliz convicção. Sorvera até à lia a taça das delícias da vida: honras,
glórias, ciência, celebridade, amizades, amores, — e não se sentira feliz.
Agostinho era assaz intuitivo para compreender que o defeito não estava na
quantidade das satisfações gozadas, mas, sim, na sua qualidade. Se essa
profunda insatisfação de seu ser radicasse no insuficiente quantum dos
prazeres, necessariamente devia ela decrescer na razão direta do crescimento
do acervo dos gozos. Mas não era o que acontecia. Acontecia precisamente o
contrário. Aumentavam os tormentos do espírito e as angústias de sua alma na
razão direta das ruidosas alegrias e das festas dos sentidos. E, quando os gozos
mundanos pareciam atingir o máximo da sua intensidade, baixava ao mínimo a
felicidade do seu verdadeiro Eu, e tornava-se insuportável a agonia do seu
coração.

Águas salobras eram os prazeres profanos. Quanto mais o sedento viajor


procurava com elas matar a sede de sua alma, mais se lhe acendia esta sede.

É raríssimo o homem que tenha a coragem de ser integralmente sincero consigo


mesmo. Nesta sinceridade está a conversão — e está a felicidade.

Agostinho chegara à definitiva e nítida compreensão que não estava na maior


ou menor quantidade dos bens terrenos a beatitude do homem, mas, sim, na
qualidade dos bens. Era necessário adquirir bens de outra natureza para
estabelecer na alma um ambiente de paz e sossego.

Que bens seriam esses?

Deviam ser bens da mesma natureza da alma. Bens espirituais, imperecíveis,


eternos. Desses valores eternos falavam as Sagradas Escrituras. Deles falavam
muito Jesus Cristo e seus discípulos.

Auto-conhecimento e auto-realização. Mística divina revelada em ética


humana...

Mais tarde resumiu Agostinho a sua filosofia cristã nesta frase eternamente
verdadeira e bela: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração
até que descanse em ti”.

* * *

No verão de 387 pôs-se a pequena caravana em marcha e cruzou os Apeninos,


em demanda do Mediterrâneo, em busca do porto de Óstia, à foz do Tibre.
Longa, exaustiva foi a viagem, sobretudo para Mônica. Mas no 4.º século vivia-
se ainda no tempo em que vive até hoje parte dos nossos sertanejos, e vivem os
homens naturais de todos os países, para os quais tempo não é ouro, mas
apenas um punhado de areia vã, que se joga gostosamente aos quatro ventos.
Gastar tempo não é gastar coisa alguma. “Amanhã é outro dia”... “Não tenha
pressa”... “Paciência”... “Volte daqui a uma semana”... Com esta filosofia
conserva o homem simples a sanidade dos seus nervos e a tranquilidade do seu
espírito.
E assim procederam também os nossos viajores africanos.

Chegaram, finalmente, a Óstia, onde tinham de esperar um navio com destino a


Cartago. Esses navios não partiam todos os dias, nem todas as semanas. E,
quando algum veleiro levantava ferro, nem sempre ousavam os passageiros
expor-se ao desconforto e às incertezas da travessia.

Hoje não passa Óstia dum lugarejo sem importância. Naquele tempo, porém,
tinha ainda caráter de notável empório fluvial e marítimo, o maior porto de Roma,
onde se enfileiravam vastos armazéns repletos de cereais e óleos da África. Era
um dos grandes pontos de intersecção da navegação do Mediterrâneo.
Arqueólogos escavaram recentemente os alicerces duma antiga cidade
soterrada, estátuas e mausoléus, restos dum templo, dum fórum e duma caserna
militar.

* * *

Sobre a sua permanência em Óstia escreveu Agostinho uma das páginas mais
líricas e místicas das “Confessiones”. O que aconteceu a ele e a Mônica não
cabe em palavras humanas. Percebe-se nas entrelinhas que o autor luta por
encontrar expressões que deem uma idéia aproximada do mistério que, por
momentos, envolveu as almas dos dois africanos, fazendo lembrar a visão que
o apóstolo Paulo tenta descrever no capítulo 12 da segunda Epístola aos
Coríntios.

Estavam Agostinho e Mônica sentados, uma noite, no terraço da casa que


habitavam em Óstia, contemplando o céu, falando de Deus e abismando o
espírito faminto na meditação da vida eterna. “Fazíamos desfilar em nossa
conversa — escreve Agostinho — uma após outra, todas as coisas essenciais,
sem excetuar o próprio céu. Admirávamos, ó Deus, a beleza das tuas obras”.

A alma de Agostinho, sensível e vibrátil, enamorava-se tão facilmente dos


fulgores da natureza como o seu espírito suspirava pelas pulcritudes do mundo
invisível. Era noite. Quase nada enxergavam os olhos dos dois africanos. Tanto
mais, porém, adivinhavam as suas almas. Para um lado estendia-se a monotonia
do Agro Romano. Do outro lado, o Mediterrâneo, quietude imensa, símbolo da
Divindade.

Prossegue Agostinho: “Então remontaram as nossas almas mais além, em


demanda de Deus. Perguntaram, uma a uma, todas as creaturas: Onde está o
vosso Deus? E todas elas respondiam: Não somos nós! Não somos nós!
Procura acima de nós”...

“Atingimos então as nossas próprias almas. Ultrapassamo-las a fim de alcançar


as regiões da plenitude inesgotável, onde tu, meu Senhor e meu Deus, alimentas
Israel eternamente com o pão da verdade. E, enquanto falávamos e, esfaimados,
voávamos em demanda das regiões da Divindade, aconteceu que, num ímpeto,
das profundezas do coração, por um momento, ao de leve as atingimos...
Suspiramos... Voltamos à terra... Tornaram os nossos lábios a balbuciar palavras
mortais, que nascem e morrem”...

“Ao de leve atingimos, por um momento, as regiões da Divindade... Lá deixamos,


encadeadas, as primícias do espírito” — palavras destas só as compreende
quem viveu experiência igual...

Impossível dizer o indizível. Em face desse mundo ignoto, todo o homem é


analfabeto e mudo. Quando Jesus falava desse mundo da Divindade, só se
servia de parábolas e alegorias, soletrando diante dos homens o que dizer-lhes
não podia. “O reino de Deus é semelhante a uma festa nupcial... a uma
sementeira... a uma rede... a um fermento... a um grão de mostarda”... Com
estes recursos ingênuos e infantis procurava o Nazareno dar aos seus ouvintes
uma idéia da mais estupenda realidade.

Naquele momento eterno pareciam as almas de Agostinho e Mônica


desprendidas dos seus corpos e remontaram ao infinito, assim como um par de
andorinhas, soltas de longa prisão, desferem o vôo às luminosas excelsitudes
do espaço, até perderem de vista todos os horizontes terrestres... E depois,
deslumbrados pelo insólito esplendor desses mundos divinos, e como que
tomadas de vertigem em face do Infinito, essas almas ditosas encolhem
subitamente as asas, e, exaustas, tornam a descer para as cinzentas baixadas
da vida terrestre, onde o homem profano não adivinha sequer uma sombra de
tão inefáveis maravilhas...

Terminado o inefável êxtase, fez-se em torno de Mônica e de Agostinho um


grande silêncio — a quietude das coisas terrestres, a grande bonança da própria
alma...

“Se fosse perene este silêncio — prossegue Agostinho — se se apagasse toda


outra visão e só esta visão empolgasse a alma, pela delícia da contemplação,
fazendo calar tudo o mais, não se assemelharia à vida eterna este instante de
conhecimento, pelo qual suspiramos cheios de amor? Não seria isto o
cumprimento das palavras: Entra no gozo de teu Senhor... Mas, quando
entraremos?... Será só, meu Deus, quando ressuscitarmos dentre os mortos?...”

Voltaram à terra, Agostinho e Mônica, lentamente, tristemente, como um par de


sonâmbulos que, dos encantados mundos do super-consciente regressam à
prosaica realidade do consciente.

Quando olharam em derredor, era noite — a pesada e pressaga noite de Óstia


Tiberina...

Como que tomada de estranho pressentimento, inclinou-se Mônica para


Agostinho e disse-lhe ao ouvido: “Meu filho, já não tem encantos para mim esta
vida. Não sei o que ainda faço aqui, porque ainda vivo no mundo... Só uma coisa
me retinha aqui na terra, por algum tempo: era o desejo de ver-te cristão. Prouve
a Deus que eu atingisse, acima de toda a expectativa, o alvo dos meus anelos.
Para que ainda estou no mundo?!...”

Mônica sabia que estava terminada a sua missão terrestre.

Daí a poucos dias adoeceu. Uma febre traiçoeira começou a minar-lhe o


organismo, moléstia muito comum na zona quente e úmida da foz do Tibre. A
afluência caótica de toda a classe de adventícios asiatas e africanos,
estivadores, operários, embarcadiços, etc., fazia do porto de Óstia uma cidade
malsã, foco de epidemias.

Debilitada pela longa jornada desde as plagas da Lombardia, não resistiu o corpo
de Mônica à moléstia. Num dos acessos febris perdeu o acordo. Parecia entrar
em agonia. Agostinho, Adeodatus, Navigius, Evodius, Rusticus, Lastidianus e
outros amigos da família cercavam o leito da doente. De súbito, ergueu-se
Mônica, olhou em derredor e disse:

“Onde estava eu?”...

E, quando leu nos semblantes de todos o terror de sua própria morte iminente,
acrescentou, com calma:

“Sepultai aqui vossa mãe”...

Navigius, abalado com estas palavras, exclamou entre soluços:

“Não, minha mãe! Hás de convalescer... Tornarás a ver a pátria... Não morrerás
em terra estranha”...

Mônica encarou o filho e, com tristeza na voz, disse a Agostinho:

“Ouviste o que ele disse?”

Depois de uma pausa, acrescentou com voz clara e firme, como que a ditar aos
filhos a última vontade:

“Sepultai o meu corpo onde quiserdes. Não vos dê isto preocupações. Só uma
coisa vos peço: Lembrai-vos de mim em vossas orações, onde quer que
estiverdes”...

Mônica viveu ainda alguns dias. Depois fechou para sempre os olhos para as
coisas do mundo. Contava quase 56 anos.

Agostinho conservou-se firme, de olhos enxutos, ao pé do corpo exânime, ao


passo que Adeodatus se debulhava em pranto. O sofrimento do filho foi para
Agostinho uma das mais acerbas dores, como confessa.
Mesmo na igreja, aonde levaram o corpo da extinta, conservou Agostinho o seu
estranho e quase forçado estoicismo. Assistiu às exéquias sem derramar uma
lágrima. Não chorara à morte do pai, e não chorou à morte da mãe, dessa mãe
que lhe era tudo na terra.

Só no dia seguinte, ao relembrar o que acontecera, deu livre curso aos


sentimentos.
CAPÍTULO 23

O Monge de Tagaste

Entre a morte de Mônica e a volta de Agostinho para a África medeia quase um


ano.

Difícil explicar o porque dessa demora. Possivelmente, o reteve na Itália a


circunstância de ter a flotilha do usurpador Máximo derrotado a esquadra
mediterrânea de Teodósio e ocupado o litoral da África setentrional, capturando
todos os navios mercantes que demandavam essas plagas.

Passou Agostinho em Roma quase todo esse período de expectativa,


abismando-se em estudos bíblicos e procurando argumentos para rebater as
idéias dos maniqueus, seus antigos correligionários. Possivelmente, também
estudou a organização de algumas ordens religiosas da época; pois tencionava
fundar em sua terra natal um cenáculo de homens devotados à meditação da
suprema sabedoria.

Agostinho, depois da sua conversão, nunca teve a menor intenção de aceitar


dignidades eclesiásticas. Por demais tinha ele sofrido para não se emaranhar
novamente no labirinto das coisas humanas. Nem pensava em ser sacerdote.
Desejava, na qualidade de simples eremita leigo, retirar-se, em companhia de
alguns amigos e irmãos de ideal, a um recanto solitário e consagrar o resto da
sua vida ao estudo e à meditação dos magnos problemas relacionados com
Deus e a alma humana. Sentia Agostinho na alma uma grande fome espiritual.
E já nesse tempo se lhe cristalizara no espírito esta síntese de toda a filosofia:
Deus e a alma.

Mas... o homem põe — e Deus dispõe.

* * *

No mês de agosto ou setembro de 388, com 34 anos, voltou Agostinho a Óstia,


onde embarcou para Cartago.

Havia 4 anos que fizera essa mesma travessia, em sentido contrário. Naquela
madrugada, depois de iludir sua mãe, embarcara para Roma a fim de conquistar
posição brilhante e ajuntar dinheiro para levar vida regalada nos braços duma
mulher, por entre o conforto dum lindo palacete e bafejado pela aura da
celebridade. Agora voltava com um só desejo, de viver só para as humildes
grandezas do mundo espiritual, longe do mundo, na paz duma choupana ou no
silêncio duma caverna. E sentia-se mais feliz agora na sua humildade do que em
384, atormentado de ambições mundanas.

Em Cartago hospedou-se com seu velho amigo e colega Elogius, por uns poucos
dias. Estava com saudades de Tagaste e duma querida solidão onde pudesse
dar largas às suas idéias.

Possuía Agostinho em Tagaste “uns poucos lotes de herança paterna”, como


diz. Segundo os conselhos do divino Mestre, desfez-se desta propriedade,
distribuindo-a entre os pobres. Ficou morando num dos terrenos. E para logo
iniciou a sua vida monástica. Moravam com ele na mesma casa seu filho
Adeodatus, seus amigos Alypius, Evodius, Severus, e outros convertidos para a
verdade do Evangelho.

O programa desse ashram era dos mais simples. Nem clausura nem votos.
Procurava cada um realizar espontaneamente e do melhor modo possível o
preceito do divino Mestre: Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como
a si mesmo. Neste ponto do amor ao próximo era Agostinho de grande rigor. Não
tolerava intrigas e maledicências, e por isso se tornou o seu pequeno mosteiro
uma nesga do céu, que atraía os cristãos que tomavam a sério a alma do
Evangelho. O regulamento externo limitava-se a certas horas de meditação em
comum, e umas poucas normas indispensáveis à vida coletiva.

Uma das faces que nos tornam tão simpático o caráter de Agostinho é
precisamente seu grande e sincero amor para com todos os homens.

* * *

Concretizou-se assim, às portas de Tagaste, uma das velhas aspirações de


Agostinho. E ele julgava ter chegado ao estado definitivo de sua vida.

Com sofreguidão atirou-se à elaboração de vários escritos, em que procurava


fixar as suas idéias sobre assuntos de seu interesse. Gramática, dialética,
retórica, geometria, aritmética, filosofia, música, etc. Alguns desses trabalhos já
os iniciara em Milão. Tudo despertava o interesse do espírito enciclopédico de
Agostinho. Uma destas obras que chegou até nós é a que trata de música, arte
de que Agostinho foi sempre apaixonado cultor. Tencionava completar este
trabalho num segundo volume, como diz; mas os subsequentes labores
espirituais lhe “fizeram cair das mãos essas coisas delicadas”.

O caráter de Agostinho, de encontro ao de muitos outros apologistas da verdade


cristã, nada tem de fanático e intolerante. Era vivo desejo do “monge de Tagaste”
converter as almas para Deus e convencer seus amigos das novas idéias que
abraçara. Mas não os obrigava a dar de um salto este passo da matéria para o
espírito. Sabia por dolorosa experiência quão difícil é este passo, sabia ter pena
e paciência com seus discípulos. Por isso, preferia conduzi-los suavemente
pelas rampas floridas das ciências e artes humanas para as alturas da verdade
divina. Desculpa-se ele de usar este processo indireto, que aos ascetas mais
radicais podia parecer indecisão. “Só me anima — diz — uma intenção: a de
conduzir para Deus esses jovens e homens de outros tempos, a quem Deus
concedeu inteligência lúcida; mas não os quisera arrancar repentinamente dos
seus pensamentos e das suas paixões. Procuro, por meio de explicações, fazer
com que delas se desapeguem aos poucos; procuro por meio do amor imutável
encaminhá-los para Deus, único mestre de todas as coisas. Quem lê meus livros
não deixará de se convencer de que trato com poetas e filósofos tão-somente
obrigado pelas necessidades da jornada terrestre e não com o fito de me
estabelecer no meio deles. Foi por isso que escolhi o caminho dos fracos — tanto
mais que eu mesmo não me sentia forte e com asas bastante vigorosas para me
lançar ao vácuo”...

Estas últimas frases são bem um retrato do espírito de Agostinho. Ele mesmo,
embora mestre, não se dá por infalível; embora guia, não rejeita quem lhe
estenda mão condutora. Já nesse tempo se guiava ele pelo lema clássico: “Odiar
o erro — e amar os errantes”.

Jamais teria Agostinho despertado no mundo inteiro e através dos séculos


tamanho entusiasmo e amor, se homens de todos os tempos e condições não
encontrassem no filho de Mônica o seu próprio Eu — homens cheios de boa
vontade, mas quase sempre escravizados pelas potências da carne ou do
orgulho e sem um amigo que os compreenda e que, em vez de os condenar
peremptoriamente, procure ajudá-los a alcançar o que tanto desejam.

Agostinho, filósofo, teólogo, poeta, artista, esteta, sabia fazer das obras da
natureza e da cultura escada para subir a Deus. Pelas coisas creadas conduz
ele a sua alma e as almas dos amigos às coisas increadas.

Já nesse tempo era frequente a objeção que os pagãos e hereges faziam ao


Cristianismo: de desprezar as ciências e artes por amor à fé — objeção essa que
ia ser repisada infinitas vezes através dos séculos.

Agostinho insiste em provar aos dissidentes que a religião cristã não é


obscurantista, não despreza por amor à fé o que há de verdadeiro, de belo e de
bom nas creações do espírito humano.

“O que admirais nos filósofos — diz ele — eu o fiz propriedade minha. Escutai e
reconhecei nos meus lábios a cadência sonora dos vossos oradores. Entretanto,
o que vós preconizais eu o desprezo. Nada valem as ciências do mundo sem a
sabedoria do Cristo”.

* * *
Não conseguiu Agostinho levar por muito tempo a vida retirada que desejava.
Os grandes homens, precisamente por serem grandes, são de Deus, e, portanto,
do mundo inteiro.

Ninguém pode ser solitário em Deus sem ser solidário com os homens.

Em Cartago, Hipona, Madaura, Tagaste; nos teatros, nas basílicas, nas praças
públicas, por toda a parte se travava intensa luta de idéias, pró e contra Cristo.
Maniqueus e donatistas, filósofos de todos os matizes impugnavam ou
ridicularizavam aquilo que Agostinho acabava de reconhecer como o único valor
positivo da vida humana.

Não lhe sofria o amor à verdade permanecer calado. Lançou mão da sua arma
predileta, a pena, para combater os semeadores do erro.

Nessas pelejas do espírito, que deviam abranger toda a sua vida futura, creou
Agostinho uma nova modalidade de estilo. Abriu mão dos longos períodos
clássicos, cuidadosamente burilados, porque lhe pareciam pesados e de difícil
compreensão; lançou mão de pequenas frases incisivas, que, como afiados
punhais, atingiam em cheio os pontos vulneráveis do adversário. Nessas
apologias do Cristianismo chegou ao ponto de empregar certas locuções
populares incorretas, ele, o fino esteta e hábil estilista latino, quando esses
modos de dizer emprestavam maior clareza e plasticidade ao seu pensamento.
Alguns escritos de Agostinho, exarados no solene e majestoso latim dos
clássicos romanos, fatigam o leitor, porque diluem o colorido natural em
complicados meandros de períodos artisticamente flexionados; ao passo que os
seus sermões e tratados populares primam quase todos por uma clareza diáfana
e uma esfuziante vibração de colorido e precisão. Inventa neologismos, recorre
à gíria, para se fazer compreender. A prosa analítica de Agostinho tem um sabor
mais moderno que antigo e forma como que uma ponte entre o latim clássico de
Cícero e o latim popular, do qual nasceram as línguas neo-latinas da atualidade:
o português, o espanhol, o italiano, o francês e o romeno.

Agostinho escreveu cartas tão numerosas como poucos homens, cartas aos
amigos da Ásia, da África e da Europa, cartas longas, algumas verdadeiros
tratados sobre assuntos filosóficos e religiosos. Sofria quase sempre de penúria
de papel ou outro material a que confiasse os seus pensamentos. Não se podia,
naquele tempo, como hoje, ir à próxima papelaria da esquina comprar um
caderno de papel, ou um volumoso livro em branco para enchê-lo de
pensamentos. O papel era artigo caro, e, por conseguinte, bastante raro. Mesmo
as delgadas lâminas de “papyrus”, fabricadas com o miolo da planta egípcia
deste nome, não existiam em quantidade suficiente para que um homem rico em
pensamentos as encontrasse na devida abundância. O pergaminho, feito de pele
de cabra ou outro animal era ainda mais caro. Das lâminas de marfim, então,
nem falemos. Verdade é que Romanianus se servia deste material aristocrático
para a sua correspondência; e também Agostinho empregou algumas vezes
essas luxuosas lâminas ebúrneas, que recebia do mecenas; mas só em ocasiões
excepcionais. Esta dificuldade em adquirir veículo idôneo para fixar o
pensamento, se por um lado era um mal, por outro não deixava de reverter em
benefício da literatura do tempo; porque assim o escritor condensava o mais
possível os seus pensamentos, valorizando-os mais pela qualidade que pela
quantidade. Quanto estudante dos nossos dias, dono de meia dúzia de idéias,
não é preconizado pelo jornalismo venal como astro de primeira grandeza no
firmamento da literatura nacional ou internacional, máxime quando dispõe de
dinheiro ou prestígio político! Não poucos desses pretensos gênios acabam por
cair vítimas da funesta epidemia mental de esparramarem litros de tinta em
toneladas de papel para ventilar a sua sapiência, adquirir celebridade e desistir,
daí por diante, de qualquer estudo sério, arvorando-se em críticos e
desprezadores de tudo quanto brotou de outros cérebros. E, como esses literatos
pensam pelas colunas dos jornais, parece-lhes que a quantidade representa o
único valor positivo, enquanto a qualidade passa a ser fator imponderável.

Tão importunado se viu Agostinho em consequência da sua vasta


correspondência epistolar, que a solidão se lhe converteu quase em praça
pública. Pensou em retirar-se deserto adentro a fim de poder pensar mais a sós
consigo. Graças às suas relações sociais e à amizade que o ligava a altas
personagens da política do decadente império, era, não raro, solicitado para
intervir em questões mundanas, que aborrecia e das quais quisera desvencilhar-
se.

Outro “perigo” havia, bem mais grave que o de ordem política: o perigo de se
ver, de um dia para outro, colocado à testa duma das igrejas ou dioceses da
África. Por que não lhe podia acontecer o que, tão de improviso, sucedera a
Ambrósio?

Para nós, filhos do século vinte, é dificilmente compreensível o que nos primeiros
tempos do Cristianismo acontecia, não raro, a homens da têmpera de Agostinho:
de um dia para outro, sobretudo quando inteligentes ou ricos, eram aclamados
sacerdotes ou bispos e, à força, investidos do cargo de pastor duma porção
maior ou menor do rebanho do Cristo. Quando inteligentes, eram idôneos para
reger judiciosamente a sua grei; quando ricos, deixariam a paróquia ou diocese
a sua fortuna, coisa muito ambicionada, sobretudo na África, onde quase só
havia igrejas pobres.

Agostinho não era abastado, desfizera-se de quase tudo; mas sempre possuía
em Tagaste alguma propriedade, e o que era de grande valor é que era amigo
íntimo do argentário Romanianus e mantinha ótimas relações com os poderosos
da corte imperial.

Estas idéias andavam nas cabeças de muita gente eclesiástica, enquanto


Agostinho, desprevenido, continuava enamorado da esplêndida natureza da
Numídia e abismado nas suas lucubrações filosófico-religiosas.
CAPÍTULO 24

Sacerdote de Surpresa e
Bispo à Força

No meio do silencioso triênio que Agostinho passou na solidão de Tagaste incidiu


a morte de seu filho Adeodatus.

As palavras com que ele refere este fato, embora enlutadas de dor, revelam
grande resignação e serenidade do espírito. Já nesse tempo habitava o espírito
de Agostinho naquelas excelsas regiões que não são atingidas pelo clamor das
emoções humanas, onde não há nascer nem morrer, mas somente o eterno
viver.

Chorou, sim, mas agradeceu a Deus ter chamado para si aquele adolescente
antes que o ardor das paixões lhe crestasse a candura da alma.

Adeodatus era, como já dissemos, segundo as palavras do pai, um jovem de


dotes espirituais tão grandes que Agostinho, por vezes, se sentia aterrado diante
do fulgor das suas idéias, como se estivesse em presença de um ser de outros
mundos. Filho daquele pagão sensual que fora Agostinho, era Adeodatus duma
inocência admirável, e nos perigosos tempos da incipiente puberdade, quando a
maior parte dos jovens sucumbe à prepotência dos instintos, parecia esse jovem
ignorar o que fossem paixões carnais.

“Senhor — escreve Agostinho — bem cedo o chamaste deste mundo. E eu


penso nele de espírito tranquilo. Nenhuma solicitude perturba a lembrança que
tenho do menino, do adolescente que foi, e do homem maduro que poderia vir a
ser”.

Cada vez mais espiritualizado, continuava o filósofo cristão a viver na sua


querida solidão em Tagaste, quando, certo dia, um funcionário imperial de
Hipona solicitou a sua visita, porque necessitava resolver dúvidas que o
impediam de abraçar o Cristianismo.

Agostinho via nesse homem um novo membro para o seu ashram e sócio da sua
vida espiritual. Sem nada suspeitar, demandou à cidade de Hipona, no litoral
norte da África.
Hipona tinha um velho bispo, por nome Valério. De origem grega, conhecia mal
o latim e ignorava por completo o idioma púnico que se falava na terra, o que lhe
dificultava grandemente o desempenho do seu múnus episcopal. Era uma voz
clamantis in deserto, tanto mais que a diocese de Hipona não tinha clero. Os
donatistas aproveitavam-se desta precária situação e entraram na brecha,
enviando os seus oradores e propagandistas a todos os centros culturais da
diocese; em breve tornaram-se senhores da situação, enquanto os católicos iam
perdendo terreno.

Além disto, não possuia a diocese patrimônio que tal nome merecesse; a maioria
dos cristãos era pobre e esperava dos pastores não apenas “o reino de Deus”
mas também o “pão nosso de cada dia”. Pastor que não tivesse com que encher
as bocas famintas, perdia em breve as simpatias e a popularidade das suas
ovelhas.

Agostinho, desprevenido, não sabia que lhe haviam armado um laço.

Enquanto Valério pregava na basílica, foi o monge-filósofo mesclar-se com o


povo para ouvir o sermão.

Queixava-se o bispo amargamente da penúria de sacerdotes e frisava o avanço


alarmante das heresias, que não encontravam quem lhes fizesse frente e
defendesse a verdade do Evangelho.

Eis senão quando, do meio do auditório, soam vozes bradando:

“Agostinho! Agostinho! Agostinho deve ser sacerdote!”

E, antes que este pudesse tomar providências, apoderaram-se da vítima inerme,


arrastaram-na aos pés do altar e insistiram com o bispo que lhe conferisse a
ordenação sacerdotal.

Estes costumes reinavam nesse tempo por toda a parte, até na culta Itália, onde
um governador gentio fora, da noite para o dia, batizado, ordenado sacerdote e
sagrado bispo de Milão — Ambrósio.

Ai de quem resistisse a essa vox populi vox Dei! Não há paixões mais inexoráveis
do que as paixões religiosas. E os cristãos africanos eram conhecidos pelo seu
fanatismo...

Valério, sem soltar Agostinho da “prisão preventiva”, convocou rapidamente um


conselho de pessoas gradas e criteriosas, e, sem mais delongas, conferiu ao
ermitão de Tagaste as ordens sagradas.

Agostinho, gemendo e chorando, sujeitou-se ao inevitável destino.

Alguns dos circunstantes, maus psicólogos e piores cristãos, interpretaram às


avessas a relutância e as lágrimas de Agostinho e, a modo de consolo, lhe disse
alguém: “Tens razão, o sacerdócio é minguada recompensa para teus méritos;
mas consola-te, porque em breve serás nosso bispo”.

Não tardaria a positivar-se esta quase ameaça do intempestivo consolador.


Valério, pouco depois, convidou Agostinho para seu auxiliar. O neo-sacerdote
relutou. Não se sentia habilitado para ombrear com tão elevado múnus. O bispo
deu-lhe prazo até à próxima Páscoa, mas não permitiu que voltasse a residir em
Tagaste, com medo, talvez, de que sumisse em algum ermo ignorado. Cedeu ao
“coadjutor” um extenso pomar, em Hipona, para que aí fundasse novo mosteiro.

Mosteiro, ou melhor, Seminário, porque essa Betânia veio a ser em breve a


célula-mater e o fecundo viveiro de numerosos obreiros na vinha do Senhor.

Em seus escritos considera Agostinho a sua escolha para o sacerdócio como um


“castigo de Deus”; pois, diz ele, na sua linguagem pitoresca e intuitiva, “como se
me podia confiar o lugar de segundo-piloto, a mim, que nem sabia manejar o
remo”...

* * *

No topo duma colina que se ergue perto de Hipona encontra o viajor do presente
século uns restos de ruínas carcomidas, que são, possivelmente, as derradeiras
relíquias do convento-seminário fundado por Agostinho. Atualmente se ergue ao
pé desses escombros um asilo de velhos dirigido por Irmãs de Caridade —
eloquente símbolo daquela alma que era bem a personificação da misericórdia
e da caridade.

O panorama que do alto do outeiro se descortina é dos mais belos. À hora


saudosa do ocaso, quando o sol derrama ondas de ouro e púrpura sobre o azul
do Mediterrâneo, que soluça nas brancas areias da vetusta cidade fenício-
romana; quando, para as bandas do sul, se recortam no horizonte incerto os
rochedos abruptos das serranias de Edough a altear-se sobre o vale de Seybuse
— então se apodera do solitário espectador, sentado nos seculares blocos de
granito, um sentimento de indefinível melancolia... E em cada sussurro das
brisas vespertinas adivinha ele o espírito daquele homem tão profundamente
humano e tão intensamente divino, homem que amou e sofreu como todos os
homens humanos e iluminou com os fulgores do seu espírito todos os séculos
do Cristianismo. Escuros abetos margeiam o caminho que conduz a Hipona,
traduzindo em abafados gemidos a voz dos ventos que lhes agitam as negras
agulhas... Ali, circundado dum bosque de oliveiras e limoeiros, alvejava, há 15
séculos, o silencioso reduto da maior espiritualidade da época.

* * *

O programa que Agostinho adotara para si e para os seus era duma simplicidade
ditada pela experiência, revelando antes a serena espiritualidade do Nazareno
do que o rigor ascético do Batista. O “justo meio”, tão do espírito de Agostinho,
era também o cunho característico desse retiro espiritual, no topo da colina de
Hipona. Os que ali se refugiavam eram, por via de regra, homens cultos que,
nauseados das grandiosas futilidades do mundo, ansiavam por encontrar na
união com Deus a paz da alma, que o mundo lhes prometia, mas não lhes dava.
Era o regulamento bastante severo para facular uma completa e profunda
concentração interior, e ao mesmo tempo bastante amplo para não fazer
degenerar em escravidão a liberdade de espírito. Não eram os religiosos que
serviam à ordem estabelecida, mas era esta que se lhes revelava amiga e
servidora, escada para as alturas, mentora para as regiões da perfeita liberdade
interior.

Livre não é aquele que faz o que quer, mas, sim aquele que espontaneamente
quer o que deve. Escravo não é o homem que se guia por uma norma pré-
estabelecida mas aquele que se emancipou da tirania do ego para servir à
soberania de Deus. Mais deplorável é a sorte da videira que, infecunda, rasteja
livremente pela imunda umidade do chão do que a que vive presa ao parreiral e
carregada de frutos.

Agostinho e seus colegas calçavam sapatos ou sandálias, vestiam singela túnica


e usavam um byrrhus escuro com capuz, parecido com o bornós dos árabes do
nosso tempo. Tornou-se proverbial a falta de asseio dos monges e cenobitas dos
primeiros séculos. De alguns dos antigos penitentes sabemos que, pela maior
glória de Deus e perfeição própria, não lavavam jamais o corpo nem cortavam o
cabelo nem mudavam de roupa durante a vida toda. Alguns se julgavam tanto
mais santos quanto mais imundos. Se eram grandes amigos de Deus, não o
eram certamente, por causa desta falta de higiene, mas apesar da mesma e em
atenção à sua boa vontade. Se esses santos podem invocar como patrono e
modelo o Precursor, não podem apelar para o exemplo do Messias.

Agostinho, graças à sua cultura e ao apurado senso estético, não media o grau
da pureza moral pela ausência de pureza física. O mosteiro no alto da colina de
Hipona primava pelo asseio, e os seus inquilinos não envergonhariam os
homens cultos da melhor sociedade hiponense.

Os manjares preferidos por essa novel comunidade religiosa eram vegetais e


frutas. Só em casos especiais, máxime para doentes e hóspedes, aparecia na
mesa um prato de carne e um copo de vinho. São Jerônimo, que considerava o
vinho como “bebida diabólica”, não teria perdoado a seu grande colega africano
o uso do precioso licor.

Contrastavam com a simplicidade frugal da mesa os talheres de prata, que


Agostinho trouxera de Tagaste. Preferiu usar estes, de meio-luxo, a comprar
outros; pois para ele e os seus, o espírito da pobreza residia na disposição da
alma, e não nesta ou naquela qualidade de metal. Em compensação, eram de
argila os pratos; alguns de madeira ou alabastro comum.
O costume que hoje em dia reina em casas religio sas, de ouvirem leitura em voz
alta durante as principais refeições do dia, remonta a estes tempos. No mosteiro-
seminário de Hipona não se alimentava o corpo sem nutrir também o espírito.

Grande era o espírito de hospitalidade de Agostinho. Aquela modesta casa de


colina era a hospedaria de todos os missionários em trânsito. Também os
apóstolos leigos encontravam agasalho acolhedor entre esses muros
benfazejos.

Há quem diga que reuniões do clero são ocasiões de maledicência. Se assim


for, não cabe essa injúria à comunidade dos primeiros religiosos agostinianos.
Era rigorosamente interdita, no mosteiro de Hipona, toda a espécie de intriga e
descaridade. Agostinho admitia antes censura a presentes do que a ausentes.
Havia nesse tempo sacerdotes e bispos católicos que se digladiavam
cruelmente, acusando-se uns aos outros de fanáticos ou de laxos em face do
perene conflito com os maniqueus, donatistas, pelagianos e outros dissidentes.
Por isso mandara Agostinho pintar na parede do refeitório, em caracteres bem
visíveis, estas palavras:

“Saiba cada qual que quem errantes dilacera é indigno de sentar-se a esta
mesa!”

Refere Possidius, colega e primeiro biógrafo de Agostinho, que, certo dia, dois
prelados, hóspedes do convento, se esqueceram do grande preceito do divino
Mestre. Levantou-se então Agostinho e, apontando para a legenda na parede,
exclamou: Ou eu me retiro desta sala — ou mandarei apagar estes dizeres!...
CAPÍTULO 25

Governador, Juiz e Bispo

De encontro aos costumes da época, permitiu Valério ao jovem ajudante que,


em sua presença, pregasse o Evangelho, na basílica de Hipona. E fez bem. Pois,
como podia um estrangeiro, desconhecedor das tradições e da língua do povo,
falar à alma desse povo?

Maior espanto e desapontamento que esta inovação causou entre os africanos


a notícia de que o velho pastor de Hipona ia nomear seu novel sacerdote bispo
coadjutor da diocese. Entretanto, Valério não desistiu da resolução ante a
estranheza dos colegas. Depois de obter a aquiescência de Aurélio, primaz de
Cartago, fez o velho antístite saber ao povo que Agostinho seria sagrado bispo.

Desencadeou-se tremenda tempestade. Megálio, prelado de Guelma e primaz


da Numídia, foi o que mais tenazmente se opôs a essa idéia. Chegou ao ponto
de endossar as calúnias que contra Agostinho se haviam espalhado. Dizia-se
que o novel ministro da igreja dera a uma sua penitente um amavio, beberagem
com ingredientes mágicos que, segundo a crendice popular, tinha a propriedade
de despertar sentimentos amorosos.

De mais a mais, dizia Megálio, e diziam com ele muitos outros, Agostinho fora
maniqueu, até chefe desses hereges; Cartago e Hipona bem lhe conheciam o
fanatismo com que defendera os erros dessa seita, arrastando inúmeras almas
ao mesmo abismo; e só Deus sabia o que ele fizera nos mistérios cultuais e nas
secretas reuniões dos sequazes de Manes.

Se tivesse prevalecido esta campanha de intrigas, talvez tivesse o Cristianismo


perdido um dos seus maiores luminares. Felizmente, não podem os pigmeus
humanos ligar com as suas teias os gigantes da Divindade. Há uma lei eterna
que se cumpre inexoravelmente, quer queiram quer não queiram os homens.

Megálio não conhecia Agostinho de trato pessoal. Quando, daí a pouco, visitou
Hipona e chegou a conhecer de perto esse homem e ouviu da sinceridade da
sua conversão e da pureza dos seus costumes, mudou de parecer e revogou
publicamente as calúnias e juízos temerários que endossara a respeito dele.

Agostinho tomou sobre si o múnus episcopal como um ônus, pelos desvarios da


sua mocidade, e também como preventivo contra possíveis quedas futuras. Se
tivesse obedecido ao seu pendor natural, ter-se-ia retirado à solidão do ermo ou
ao silêncio duma cela onde pudesse mais a vontade investigar as belezas da
ciência e sabedoria, porque era, antes de tudo, um pensador, no universo das
idéias encontrava as maiores delícias da sua vida.

Mas... Agostinho conhecia muito bem a fragilidade do próprio ego... Esse


completo abandono à ciência e arte, à filosofia e poesia, — não viria esta vida
introspectiva a ser para ele um perigo? Não corria a sua personalidade risco de
se hipertrofiar e recair ao antigo subjetivismo egocêntrico?

Por outro lado, nada haveria de melhor para manter em seguro equilíbrio as
potências do seu espírito, e para garantir a sujeição da carne, do que o fardo
quotidiano do pastoreio e as fadigas de um apostolado dinâmico espiritualizado
pela oração e meditação.

O múnus episcopal seria para Agostinho um fogo purificador e uma escola de


aperfeiçoamento moral.

* * *

Valério faleceu, não muito depois. E pela primeira vez sentiu Agostinho todo o
peso do seu cargo.

Desde os tempos de Constantino Magno, princípios do século 4.º, era o


catolicismo religião oficial do Império Romano. Praticamente, porém, alastravam
por todas as províncias, impunemente, dezenas de religiões e seitas. O poder
militar e a disciplina administrativa de Roma enfraqueciam, dia a dia. Teodósio
via-se empenhado numa luta desesperada com o usurpador Eugênio. Os
bárbaros, que compunham a maior parte do exército romano, assumiam atitudes
cada vez mais hostis, promovendo revoluções para conseguir maior soldo e
constituindo um perigo permanente dentro do organismo estatal. Alarico, o
poderoso caudilho dos visigodos, acampava no Peloponeso e se dispunha a
invadir a península itálica.

Morreu Teodósio durante a guerra contra Eugênio. Sucedeu-lhe, ainda menor,


Honório, cujo ministro poderoso, Stilicho, semi-bárbaro, prometeu proteção mais
eficaz aos católicos, porém nada fez.

Tal era o ambiente religioso e político do Império quando Agostinho ascendeu à


cátedra episcopal de Hipona, e que havia de ocupar durante 34 longos anos.

* * *

Quem resolvesse traçar um paralelo entre o cargo pastoral, dum bispo dos
nossos dias e a tarefa de Agostinho, não formaria idéia dos trabalhos
heterogêneos que pesavam sobre os ombros desse homem.

Nesses tempos e lugares, ser bispo era também ser governador, administrador
e juiz em toda a circunscrição da diocese. Inúmeras alusões nos escritos de
Agostinho provam o quanto ele estava familiarizado com todos os problemas de
caráter administrativo, agrícola, comercial, industrial, etc. Conhecia a fundo a
legislação civil e criminal do Império, e estava a par de todo o complicado
labirinto dos processos, da jurisprudência e das questões forenses.

Ele, que, por motivo de idealismo religioso, fizera voto de pobreza e distribuíra
entre os pobres a herança paterna, vê-se agora feito repentinamente
latifundiário, capitalista, proprietário de vastos domínios.

Montado no lombo dum cavalo, jumento, ou camelo perlustra Agostinho,


semanas e semanas a fio, todas as latitudes e longitudes da extensa zona
confiada a seus cuidados administrativos. Inspeciona campos, vinhedos, olivais,
herdades, moinhos, lagares. Interessa-se por animais de raça, qualidade de
cereais, frutas de mesa, uvas para vinho de mesa e de exportação. Estuda os
preços das diversas mercadorias — a África era, nesse tempo, o celeiro da
Europa — fiscaliza o movimento dos centros industriais e dos postos aduaneiros,
estuda e aprova plantas de edifícios públicos, dá parecer sobre remodelação de
cidades, traçado de estradas de rodagem. Familiariza-se com as diversas formas
legais de contratos, compras, vendas, doações. Dispõe sobre o arrendamento
de terras de lavoura. Entra em contato com o homem do povo, com o mundo
operário, com o pequeno produtor, com as famílias, com todas as classes
sociais. Procura levantar o nível cultural, fazendo abrir estabelecimentos de
ensino, nomeia professores, designa matérias de ensino, preside a exames
finais.

Poeta nato, apreende de relance, à beira das poeirentas estradas da Numídia,


na arenosa praia do Mediterrâneo, à sombra das florestas africanas, apreende
mil e mil imagens pitorescas, que ao depois, reaparecem, com espontânea
naturalidade, nas suas produções filosóficas e teológicas. Não desdenha tomar
sugestivas alegorias, comparações das coisas mais ordinárias da vida
quotidiana; fala do “limoeiro que frutifica o ano todo”; menciona até as “cabras
que se firmam nas patas traseiras para atingir as folhas das árvores”, etc. etc.

* * *

Pior que o cargo de administrador era o de juiz. Em determinados dias sentava-


se Agostinho no secretarium da Basílica da Paz, ou no pórtico adjacente, e ouvia
as queixas e os agravos dos litigantes que se julgavam defraudados ou lesados
nos seus legítimos direitos. Eram proverbiais as paixões, a perfídia e teimosia
dos africanos. E, no entanto, para extorquir sentença ao juiz chegavam eles ao
extremo da bajulação, procurando conseguir com suavidade felina o que não
valiam alcançar à força de gritos e ameaças brutais. Ouvir, por espaço de horas,
todas as misérias e perfídias humanas; ouvir, sobretudo, a vozeria infernal
desses rudes africanos, primitivos e violentos, devia ser um tormento exaustivo
para a apurada sensibilidade de um intelectual e esteta como Agostinho. Quem
visse assim o grande luminar do Cristianismo, sentado à guisa dum kadi
muçulmano dos nossos dias, tomá-lo-ia por um homem vulgar consubstanciado
com esse meio medíocre e profano, com esse estrépito dos negócios forenses.

Aludindo a essas odiosas ocupações, escreve ele: “Posso asseverar, pela


salvação de minh’alma, que, para mim, seria bem mais agradável entregar-me a
quaisquer trabalhos físicos bem ordenados, como os há nos conventos, e
dedicar o resto do tempo à oração, à leitura e ao estudo da Escritura Sagrada —
do que ocupar-me com esses complicados e importunos processos”.

Agostinho, administrador e juiz, era, antes de tudo, pastor do seu rebanho. Vivia
com ele e por ele. Incansável pregador do Evangelho, conseguiu dar àquele povo
semi-selvagem um profundo conhecimento da revelação cristã e moldar-lhe a
natural rudeza de caráter pela suavidade daquele que disse: “Aprendei de mim
que sou manso e humilde de coração”.

Os 497 sermões de Agostinho — e sabe Deus quantos se perderam! — são


quase todos sugestivas palestras espirituais com o seu povo. Por vezes, chega
o orador a instituir verdadeiros diálogos com os ouvintes. Embora tivesse escrito
sobre matemática e geometria, Agostinho não é amigo de divisões metódicas do
assunto a tratar. Nunca aparece, nas suas práticas, o 1.º, 2.º, 3.º ponto de
modernos doutrinadores, que, por vezes, se esquecem de que a língua não é
uma figura geométrica, mas, sim, um ser orgânico, e, como tal, de formas
mutáveis e dificilmente cabíveis em moldes pré-estabelecidos. O orador, senhor
do assunto e compenetrado do que vai dizer, não corre perigo de aborrecer o
auditório. Não se conhecia nesse tempo, parece, essa invenção do século da
eletricidade, que são os “sermões de dez minutos”, práticas de cinco minutos...
Quando chegaremos à extrema condescendência de deliciar os nossos ouvintes
com “sermões de um minuto”? Muitos sermões de Agostinho devem ter levado
horas. O homem do 4.º e 5.º séculos ainda não aprendera a arte desumana de
levantar o programa da sua vida sobre o ponteiro dum cronômetro, nem tinha de
tomar, na próxima esquina, o bonde ou ônibus a tal hora, tantos minutos e tantos
segundos.

Graças à solicitude dos estenógrafos, que nunca faltavam entre os ouvintes,


foram-nos conservadas algumas centenas dessas palestras tão profundas quão
espirituosas.
CAPÍTULO 26

Agostinho Versus Pelágio

Quase toda a vida cristã de Agostinho, cerca de meio século, é uma luta, oculta
ou manifesta, contra outro cristão, um monge britânico que vivia em Roma e que,
por ter vindo dos pélagos do norte, passou a ser apelidado simplesmente
Pelágio.

A controvérsia girava em torno da redenção do homem: auto-redenção ou alo-


redenção, como diríamos hoje em dia.

Sendo que Agostinho, depois dos 30 anos, se sentiu redimido por um poder que
não era do seu ego humano consciente, atribuiu a sua conversão a uma
intervenção da graça divina. Nesse tempo, a teologia não estava em condições
de distinguir entre o ego pecador e o Eu redentor do homem. Prevalecia a
doutrina de ser o homem integralmente o seu ego pecador, que, evidentemente,
não o podia redimir. Ego não redime ego, pecador não salva pecador, réu não
absolve réu. Logicamente, Agostinho não podia atribuir a sua conversão a um
fator humano.

Pelágio, porém, adivinhava no homem algum fator que não era o seu ego
humano, embora não tivesse idéia nítida desse fator misterioso, ao qual o monge
britânico atribuía a redenção.

Se Agostinho e Pelágio tivessem tido idéia exata sobre a bipolaridade da


natureza humana, que sempre foi aceita pela filosofia oriental, e, desde o início
do presente século, é professada também pela psicologia ocidental, os dois
exímios pensadores do século quinto, possivelmente, teriam feito as pazes. No
fundo, ambos defendiam a mesma verdade, mas cada um dos contendores
encarava a natureza humana unilateralmente; e por isto não encontraram
denominador comum para sua filosofia e teologia.

Aliás essa controvérsia de Agostinho e Pelágio sobre a graça e o livre arbítrio


reverteu em benefício para toda a posteridade. Cada um dos dois contendores
elucidou quanto possível os argumentos da sua tese, fosse da alo-redenção
agostiniana, fosse da auto-redenção pelagiana.

Em nossa Filosofia Univérsica, equidistante do pensamento agostiniano e


pelagiano, mostramos nitidamente a bipolaridade da natureza humana integral.
A graça de Deus, que Agostinho entende em sentido apenas transcendente, é
também imanente no homem; o Deus de fora é também o Deus de dentro,
consoante as palavras do Cristo: “Não sou eu (ego) que faço as obras; é o Pai
em mim (Eu) que as faz; eu e o Pai somos um, o Pai está em mim e eu estou no
Pai”.

À luz do Evangelho, a auto-redenção, que é Cristo-redenção, Teo-redenção; não


há ego-redenção, há somente ego-perdição. Pelo seu ego humano, todo o
homem é pecador, como diria Paulo de Tarso. Por seu Eu divino, todo o homem
pode ser seu redentor.

Acontece, porém, que no homem comum o ego está plenamente acordado, ao


passo que o seu Eu divino está em total ou parcial dormência, é ainda uma “luz
sob o velador”, e ainda não uma “luz no candelabro”.

Segundo o Evangelho do Cristo, o Eu divino do homem é um tesouro oculto, uma


pérola no fundo do mar, e por isto o homem comum não se auto-redimiu. O Eu
divino, enquanto inconsciente, não redime o homem; somente quando
plenamente consciente, redime o homem.

Hoje em dia, salvação ou redenção é chamada auto-realização. Mas a auto-


realização não é possível sem o auto-conhecimento.

Se Agostinho e Pelágio tivessem tido a noção nítida do auto-conhecimento, que


hoje assinala a mais avançada filosofia e psicologia, não se teriam digladiado
sobre alo-redenção ou auto-redenção, sem chegarem a um acordo definitivo.

A idéia da redenção do homem pela graça levou Agostinho ao extremo da idéia


da predestinação: Deus deixa de dar sua graça a alguns homens, e estes se
perdem por culpa própria, uma vez que a perdição é unicamente do homem e
não de Deus. Mas Deus dá sua graça a alguns e os salva, porque assim quer.
Agostinho justifica esse procedimento de Deus com o apelo para uma espécie
de mosaico cósmico do Universo: Se houvesse apenas pedras brancas, não
haveria mosaico; as pedras pretas são necessárias para a grandiosidade
cósmica da majestade divina — mas Deus não é responsável pela existência
dessas pedrinhas pretas; o homem tem o poder de se fazer preto (mau) por si
mesmo; mas só Deus o pode fazer branco (bom).
CAPÍTULO 27

“De Civitate Dei”

A maior obra que Agostinho escreveu e na qual trabalhou 13 anos são os dois
volumes “De Civitate Dei”, sobre o Estado de Deus.

Desde tempos remotos, tentam os pensadores traçar as normas para uma


humanidade ideal.

Platão o tentou na sua “Politeia” (falsamente traduzido por “República”).

Pitágoras fundou em Crotona, no litoral do Mar Adriático, o seu Templo de


Iniciação.

Na Idade-Média, o chanceler da Inglaterra, Thomas Morus, escreveu a sua


“Utopia”, palavra grega para “Nenhures”, onde ele idealiza uma humanidade que
vive nenhures.

Em nossos dias, Aldous Huxley publicou a sua “Ilha”.

Eu mesmo escrevi o meu “Cosmorama”, e meu livro “Educação do Homem


Integral”, que culmina em “Cosmocracia”.

Agostinho, na “De Civitate Dei”, em vez do filósofo-rei de Platão, idealizou um


Cristo-rei como soberano do Estado de Deus. Mas, como o Cristo invisível
necessita de um lugar tenente visível, imaginou o autor um Sumo Sacerdote
humano como governador desse Estado Teocrático.

E foi assim que tudo naufragou.

Como poderia uma clerocracia representar a Cristocracia? Esse estado


Teocrático ou Cristocrático não pode nascer duma especulação teológica nem
duma organização social, mas só da evolução individual de muitos homens
profundamente cristificados, cuja atuação se reflita sobre a sociedade.

Mas onde estão esses muitos homens cristificados? Existem, sim, e sempre
existiram homens individuais crísticos, mas não em número suficiente para
garantir uma cosmocracia crística.

“O meu Reino não é deste mundo”, disse o Cristo; não é do caráter deste mundo,
embora esteja neste mundo. “Eu vim ao mundo e nasci para isto, para dar
testemunho à Verdade, e todo o homem que é filho da Verdade ouve a minha
voz”. Essas palavras que o carpinteiro de Nazaré disse ao representante do
Império Romano, na sexta-feira de manhã, em Jerusalém, seriam o segredo para
realizar um Estado Cristocrático na terra, se houvesse muitos amigos da
Verdade, muitos que conscientizassem e vivenciassem a Verdade libertadora.

Enquanto a grande vertical da consciência mística do “primeiro e maior de todos


os mandamentos” não transbordar no “segundo mandamento” de vivência ética,
não será proclamado o Reino de Deus sobre a face da terra, como profetizaram
os livros sacros.

Cada um de nós é solidariamente responsável por esse advento do Reino de


Deus entre os homens.

Todas as obras literárias acima citadas, desde Platão até nossos dias, são visões
de uma potencialidade longínqua, que ainda não se concretizou em atualidade.

Hoje em dia, em plena Era do Aquário, mais do que nunca uma elite da
humanidade se convence de que a “única coisa necessária” é aquilo que Maria
de Bethânia estava fazendo quando ouviu estas palavras dos lábios do grande
Mestre.

E até em nossos dias continua ser esta a “única coisa necessária”, a “parte boa”
que nunca nos será tirada: auto-realização baseada em auto-conhecimento.

A cada um de nós só nos compete semear a Verdade, sem esperar festa de


colheita. A semeadura é nossa — a colheita é de Deus...

Se houver bastante semeadores dessa semente, será o Reino de Deus


proclamado sobre a face da terra.

E o Estado de Deus entre os homens será uma realidade.


CAPÍTULO 28

Agostinho como Pensador


Autônomo

No tempo de Agostinho não havia ainda uma teologia eclesiástica com dogmas
nitidamente definidos. A organização da hierarquia começara somente em
princípios do quarto século, com a libertação do Cristianismo, pelo edito de Milão,
de 313. A teologia achava-se ainda em estado de elasticidade plasmável, sem
uma rigorosa cristalização oficial. A suprema autoridade eclesiástica residia nos
Concílios, e não num pontífice pessoal infalível.

Por isto, havia vasto campo para divergência de opiniões.

Assim sendo, não admira que Agostinho tenha defendido doutrinas que, hoje em
dia, talvez lhe merecessem a pecha de herege.

As conhecidas palavras de Jesus, no Evangelho de Mateus, “tu és Pedro, e


sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, não se referiam, segundo Agostinho,
à pessoa do pescador galileu; a pedra da igreja não era ele; era o próprio Cristo,
proclamado por Pedro como sendo o Filho de Deus. A pedra, diz Agostinho, era
a confissão de Pedro, mas não o Pedro da confissão.

Agostinho, em sua lógica retilínea, não admite que um homem chamado “carne
e sangue” fosse proclamado como fundamento da igreja do Cristo tanto mais
que esse mesmo Pedro, carne e sangue, é, pouco depois, chamado “satanás”
pelo próprio Cristo: “Vai no meu encalço, satanás (adversário), porque o teu
modo de pensar não é de Deus, mas do homem”.

Se, mais tarde, a pessoa de Pedro foi declarada como sendo a pedra da igreja,
não obedeceu essa declaração à mentalidade de Agostinho, mas a
conveniências do crescente prestígio da hierarquia eclesiástica.

* * *

A outra dissidência da doutrina de Agostinho, como descrevemos em outro


capítulo, se refere à evolução do mundo e do homem. No livro Eclesiastes, diz
Salomão que “Deus creou tudo de uma só vez” (omnia simul fecit), ao passo que,
no Gênesis, descreve Moisés a creação sucessiva em seis períodos (yom).
Agostinho não acha contradição entre esses dois textos dos livros sacros,
porque, diz ele com admirável perspicácia, todas as coisas inclusive o homem,
foram creadas simultaneamente na sua potencialidade, e evolveram
sucessivamente na sua atualidade. E recorre a ilustração da semente e da
árvore: a árvore existe potencialmente na semente, embora não atualmente.
Assim, diz Agostinho, todas as coisas, inclusive o homem, existiam antes de
existirem; existiam potencialmente em virtude da energia creadora que reside na
palavra de Deus, mas se desenvolveram pouco a pouco através dos períodos
cósmicos, assim como são hoje.

Agostinho insiste que também o homem estava contido na infinita potência


creadora da palavra de Deus, mas se desenvolveu paulatinamente como é hoje.

Para certos teólogos, Deus fez uma sessão especial para crear o homem, e o
creou diretamente; mas, para Agostinho, a essência do homem veio do único ato
creador de Deus, e sua existência se desenvolveu aos poucos através de
substâncias inferiores.

Esta lógica de Agostinho é inatacável, embora não compreendida até hoje por
muitos. Ele admite tanto a creação como a evolução. A creação é o início de tudo
que existe, porque nenhum finito tem a sua origem no finito, mas no Infinito. Mas
os finitos, uma vez emanados do Infinito (creação), fluem constantemente
através de outros finitos (evolução).

De maneira que seria ilógico admitir evolução sem creação, como ilógico seria
admitir creação sem evolução.

Certos evolucionistas darwinistas de nossos dias não têm a retilínea logicidade


de Agostinho; por isto, pretendem proclamar uma evolução independente da
creação. À luz da mais rigorosa matemática, o início da evolução é a creação, e
a continuação da creação é a evolução.

* * *

Entre as 103 obras de Agostinho que chegaram até nós não se encontra uma só
que trate de assuntos tipicamente católicos no sentido de hoje; nenhuma obra
sobre Maria mãe de Deus, rainha do céu, medianeira de todas as graças.
Nenhuma obra sobre a veneração dos santos, sobre missa, confissão,
eucaristia, indulgências, etc.

Agostinho está interessado em assuntos Teo-cêntricos e Cristo-cêntricos, como


pecado e redenção, livre arbítrio e graça, a natureza espiritual e material do
homem, salvação e perdição. No fim da sua vida, o centro da espiritualidade de
Agostinho é a experiência mística de Deus pela meditação e oração.

Em face deste Cristocentrismo se compreende porque os cristãos sinceros, tanto


do campo católico como evangélico, consideram Agostinho como um campeão
de cristicidade, em face da qual pouco importam estas ou aquelas idéias
particulares que o grande gênio africano tenha tido sobre assuntos periféricos da
teologia contemporânea.
CAPÍTULO 29

Creação e Evolução Segundo


Agostinho

Agostinho viveu nos séculos IV e V da nossa cronologia. Foi o maior filósofo neo-
platônico do seu tempo e um dos maiores pensadores filosófico-teológicos do
cristianismo desses quase 20 séculos.

No presente livro descrevo a vida dramática desse genial africano e analiso


algumas das suas 103 obras, que, felizmente, chegaram até aos nossos dias.

Todas as obras de Agostinho foram escritas num maravilhoso latim de sabor


clássico. E eu tive a oportunidade de as perlustrar todas na própria língua original
do autor.

No livro “De Genesi ad Litteram” discorre o grande pensador sobre o problema


da creação e da evolução do mundo e do homem. Enfrenta a aparente
contradição de dois textos: o do Gênesis, onde Moisés fala da creação dos
mundos em 6 dias, e o do livro Eclesiastes onde Salomão afirma que “o Eterno
creou tudo duma só vez”.

Agostinho discorre com genial agudeza sobre estes textos, fazendo ver que não
há contradição, porque Deus creou simultaneamente todo o mundo em estado
potencial, mas, através dos períodos cósmicos, esse mundo potencial se
desenvolveu sucessivamente rumo ao estado atual. E o filósofo joga com o
paralelismo da semente e da planta, mostrando que a planta está contida “causa
liter et potentialiter” na semente; que a semente é a própria planta em estado
potencial, assim como a planta é a semente em estado atual.

Quem lê estas palavras tem a impressão de estar assistindo à conferência de


um cientista ou filósofo moderno, ou de estar lendo um tratado de lógica de Kant
ou um livro de matemática de Einstein.

Agostinho sabe realizar essa acrobacia mental com inscedível precisão e acribia
de uma irrefutável lógica e matematicidade.

Depois disto, passa o grande pensador à creação e evolução do homem,


afirmando que também o homem foi creado pelo Eterno nesse único ato creador;
o homem estava contido potencialmente na onipotência creadora desse ato
divino, não no estado atual de hoje, mas assim como o cosmos estava no caos
e como a planta está na semente.

Ora, conclui o filósofo, tanto o estado potencial como o atual é um estado real.
O homem potencial era um homem real, embora ainda não atualmente realizado.
Não era um animal, que não é um homem real, nem potencial nem atualmente.

É deveras estranho que certos evolucionistas de nosso tempo não tenham


atingido o vigor e a clareza da lógica desse genial africano do século V,
afirmando que o homem de hoje seja a transformação de um animal pré-
histórico. Agostinho percebeu nitidamente que ninguém se torna o que não é,
que ninguém pode vir a ser explicitamente o que hoje não é implicitamente. Um
coco, por exemplo, nunca produzirá um carvalho, porque, no estado de coco, já
é implicitamente o que o coqueiro será explicitamente.

Agostinho estabelece uma perfeita síntese entre creação e evolução, e não vê


nenhuma incompatibilidade entre esses dois conceitos, como acontece com
certos teólogos, filósofos e cientistas de nossos dias. Há quem diga “eu aceito a
creação e rejeito a evolução”; ou vice-versa “eu aceito a evolução e rejeito a
creação”. Somente quem não sabe pensar logicamente descobre
incompatibilidade entre creação e evolução, entre início e continuação.

Mas, vamos transcrever uma página textual, em vernáculo, da lavra do próprio


autor:

“O Eterno creou tudo de uma vez (Ecl. 17,1). O Universo é comparável a uma
grande árvore, cuja beleza jaz desdobrada aos nossos olhos, no tronco, nos
ramos, nas folhas e nos frutos. Não foi num ápice que tal organismo nasceu.
Bem lhe conhecemos a evolução: originou-se da raiz que o germe lançou terra
a dentro, e desta origem desenvolveram todas as formas. De modo análogo,
teremos de conceber o Universo: se está escrito que Deus creou tudo de uma
vez, quer dizer que tudo quanto existe no Universo estava encerrado naquele
único ato creador — não somente o céu com o sol, a lua e as estrelas, não
somente a terra e os abismos da terra, mas tudo quanto se ocultava na força
germinadora dos elementos, antes que, no decurso dos períodos cósmicos, se
desenvolvesse, assim como está visível diante de nós nas obras que Deus crea
até ao presente dia. Por conseguinte, a “obra dos seis dias” não significa uma
sucessão cronológica, mas representa uma disposição lógica. Também o
homem faz parte dessa creação em germe: Deus o creou, assim como creou a
herva da terra antes que ele existisse. “Creou-os como varão e mulher e
abençoou-os” — creou-os segundo a força que a palavra de Deus, no único ato
creador, depositou em germe no seio do mundo, forca que, no decurso
cronológico da evolução, leva tudo sucessivamente ao desdobramento, fazendo
aparecer, a seu tempo, também Adão, “do elemento da terra”, e sua mulher “do
lado do varão”. Porque, do mesmo modo que a Escritura faz surgir o homem “do
elemento da terra”, faz originar-se também da terra os animais do campo. Se
pois Deus formou da terra tanto o homem como o animal, que vantagem tem
então o homem sobre o animal? O que o distingue é somente isto: que o homem
foi creado segundo a imagem de Deus; isto é, o homem não segundo o corpo,
mas apenas segundo a alma”.

Com estas palavras não nega Agostinho a alma espiritual do homem, que não
veio do animal, mas do Eterno, embora os seus, invólucros materiais tenham
fluido através dos mesmos canais dos organismos vivos. A Potência do Eterno
é a fonte e causa única de todas as potencialidades temporárias.

Agostinho faz jus à matemática, na qual, segundo Einstein, “reside o princípio


creador” — e faz jus também à ciência, que afirma o processo evolutivo do
mundo e do homem.
CAPÍTULO 30

Solilóquios com Deus


(Fala Agostinho)

“Deus e a alma — é o que desejo conhecer.

Nada mais?

Nada mais! Nada mais sei senão isto: que é desprezível o que morre e se
desvanece, e desejável o que é permanente e eterno.

Fora com toda a sedução!

Fora com todas as carícias!

Derramemos as nossas almas e confessemos entre lágrimas, gemendo cheios


de saudades e de misérias: não nos convém o que há fora de Deus.

Não queremos nada daquilo que ele deu, se ele, que tudo deu, não se der a si
mesmo.

Calem-se as tempestades da carne! Calem-se todas as cintilantes miragens da


terra, da água e do ar!

Calem-se os céus!

Cale-se a própria alma, e, esquecida de si mesma, ultrapasse o seu próprio ser!

Cale-se a língua e todo o sinal e tudo quanto nasce e perece, cale-se em


profundo silêncio para que fale só ele, não por meio de sinais, mas por si mesmo.
Não por enigmas e parábolas, mas sem intermédio algum, de modo que
percebamos a ele mesmo.

A ti, Senhor, hei de procurar. A ti hei de aderir.

Permite que eu fale da tua misericórdia, eu, pó e cinza, permite que eu fale. Pois
é à tua misericórdia que me dirijo, e não a um homem que de mim escarneça.

Ou será que também tu escarneces de mim?... Oh! Converte-te a mim! Faze-me


objeto da tua misericórdia!

Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim!


Não oculto as minhas chagas. Tu és o médico — eu sou o enfermo.

Tu és a misericórdia — eu sou a miséria.

Fala-me de modo perceptível. Abre os ouvidos do meu coração e dize à


minh’alma: “Eu sou tua salvação” (SI. 34,3). Hei de correr no encalco desta
palavra, e assim te apreenderei. Não me ocultes a tua face. Quero morrer, a fim
de não morrer, mas para contemplar-te.

Ó eterna Verdade! Ó Amor verdadeiro! Que tormentos sofria o meu coração nas
dores de parto do conhecimento!... Deveras, não em buscar a verdade está a
beatitude, mas em possuí-la.

Que gemidos lançava minh’alma a ti, ó Deus! Perceberam-nos os teus ouvidos


sem que eu o soubesse. E, enquanto eu investigava e cismava na solidão, era a
silenciosa luta do meu coração um brado ingente pela tua misericórdia.

Tu conhecias os meus sofrimentos — homem algum os conhecia... Deles, quão


pouco transpirava dos meus lábios, aos ouvidos dos meus íntimos amigos...

A ti suspirava eu, noite e dia, dizendo: pois, não tem a verdade valor algum?...

Interroguei a terra, e ela respondeu: Não sou eu! E tudo que nela existe
confessava o mesmo.

Interroguei o mar, os abismos e as alimárias que neles rastejam, e eles


responderam: Não somos nós teu Deus! Procura-o acima de nós...

Interroguei o sussurro dos ventos e a atmosfera com todo o cortejo dos seus
habitantes, eles bradaram: Não somos nós teu Deus!

Interroguei os céus, o sol, a lua e as estrelas, e ecoou a resposta: Não somos


nós o Deus que procuras!

Destarte, interrogava eu todos os seres que a meus sentidos se ofereciam: Oh,


por favor, falai-me de meu Deus. Já que vós não sois Deus, dai-me notícias
dele...

E foi então, meu Deus, que tu, de grande distância, clamaste: “Em verdade, eu
sou o que sou”.

Bem longínqua era esta voz, porém muito clara. E eu a ouvi, assim como se ouve
com o coração.

Com aguilhões internos me compelias, para que eu não encontrasse sossego


até que tivesse certeza de ti, pelo conhecimento íntimo.

Assim foi que, conduzido por ti, meu Deus, entrei no meu interior e abri os olhos
de minh’alma — por mais turvos que eles fossem — e vi por cima de mim uma
luz imutável, não uma luz comum, visível a todo o ser carnal; não era dessa
natureza a luz; era bem mais clara e sublime e tudo enchia com os seus fulgores
— não, não era como as outras luzes. Era uma luz de natureza completamente
diversa. Quem conhece a verdade conhece essa luz. E quem a conhece conhece
a eternidade. Também o amor conhece essa luz.

Ó verdade, em ti está a eternidade!

Ó amor, em ti está a verdade!

Ó eternidade, em ti está o amor!

Tu és meu Deus!

E foi assim que, sem que eu o soubesse, me curaste a cabeça enferma...


Fechaste-me os olhos para que não contemplassem vaidades...

Tive então um pouco de sossego diante de mim mesmo... Adormeceu a minha


loucura...

Acordei em ti...

Vi-te em tua imensidade...

Reconheci que “castigas o homem por causa do pecado” (Tb 13,5), que “fazes
definhar minha’alma qual teia de aranha” (IS. 38,12).

* * *

E eu orava: Deus, que és o autor do universo, dá-me antes de tudo que eu saiba
orar assim como convém. E ainda: Faze que tais sejam os meus atos que do teu
atendimento me façam digno. E finalmente: Faze com que eu encontre a
liberdade.

Deus, por cuja virtude atinge o ser tudo quanto por si mesmo não teria o ser...

Deus, que não deixas perecer o que na luta da vida se aniquila reciprocamente...

Deus, que do nada creaste o mundo, objeto de grato prazer a teus olhos...

Deus, ante o qual não é desarmonia a dissonância do mais longínquo


afastamento da divindade, quando o errado procura harmonizar com o certo...

Deus, que tudo amas o que de amor é suscetível, consciente ou


inconscientemente...

Deus, que és a base de tudo, e por creatura alguma és contaminado, nem pela
ignomínia, nem pelo erro, nem pela malícia...
Deus, pai da verdade, pai da sabedoria, pai do verdadeiro e santo amor, pai da
felicidade, pai da bondade, pai do belo, pai da luz espiritual, pai da alvorada de
nossa alma, pai da iluminação, pai da voz, testemunha tua que nos convidou
para voltarmos a ti...

Eu te invoco, Deus-Verdade, no qual, do qual e pelo qual tudo é verdadeiro o


que verdade é...

Deus-Sabedoria, no qual, do qual e pelo qual tudo é sábio o que tem sabedoria...

Deus-Vida, verdadeira e imensamente forte, no qual, do qual e pelo qual tudo


vive o que possui vida verdadeira e forte...

Deus-Felicidade, no qual, do qual e pelo qual tudo é feliz o que goza felicidade...

Deus, cuja perda é morte, cujo reencontro é renascimento, cuja posse perene é
vida...

Deus, para o qual nos desperta a fé, ao qual nos ergue a esperança, com o qual
nos une o amor...

Deus, ao qual devemos o fato de não nos perdermos por completo...

Deus, pelo qual a nossa parte melhor se afirma contra a parte inferior...

Deus, que em nós fala tudo e que é bom...

Deus, que nos dá o pão da vida...

Deus, pelo qual temos sede da bebida que, quando sorvida, nos dá sede
perene...

Deus, que nos purificas e nos tornas suscetível das coisas divinas...

Vem visitar-me com a tua graça!

Só a ti é que amo, só a ti é que sigo, só a ti procuro, só a ti quero servir, porque


só tu tens sobre mim domínio legítimo — e não quero estar sujeito a outro
domínio.

Dize-me, para onde devo ir para te contemplar — e cobrarei esperanças para


levar a termo tudo quanto me ordenaste.

Acolhe-me, eu te suplico, para que procure refúgio contigo, Senhor e Pai de


bondade.

Olha, que bem pesado tem sido o castigo que sofri... Por demais tenho servido
aos teus adversários, que manténs sob os teus pés... Por demais tenho sido alvo
de escárnio deste mundo falaz...
Não me resta senão voltar — bem o sinto...

Aconselha-me... Mostra-me e dá-me o viático...

Se é a fé que teus braços reconduz os desviados, dá-me a fé.

Se é a virtude, dá-me virtude.

Se é o saber, dá-me saber.

Aumenta-me a fé, aumenta-me a esperança, aumenta-me o amor...

Senhor, meu Deus, única esperança. Atende-me para que eu não desfaleça em
procurar-te, para que sempre procure com ardor a tua face. Dá-me a força de
procurar-te, tu, que te fazes encontrar e dás esperança cada vez maior de seres
encontrado.

Ante os teus olhos está o meu vigor e o meu desvigor — cura este, conserva
aquele.

Ante os teus olhos está o meu saber e o meu ignorar...

Onde quer que me abras uma porta, abençoa o meu ingresso.

Onde quer que me feches a porta, abre-a quando eu bater.

Quisera trazer-te sempre na lembrança, quisera entender-te, quisera amar-te.

Aumenta em mim esses dons, até que me transformes num homem perfeito.

Feliz de mim, quando te percebo — três vezes feliz, quando te saboreio


intimamente. Pois é nisto que está a felicidade: em alegrar-se em ti, contigo e
por ti. Os que pensam diversamente, procuram felicidade, mas não a verdadeira.
Oxalá se convertam! — e eis que tu já estás no coração deles, no coração dos
que te confessam, que se lançam em teus braços e, após a triste odisséia dos
seus erros, desafogam o seu pranto em teu peito. Sempre pronto estás para
enxugar as lágrimas. Eles chorarão, e no pranto encontrarão alívio; porque tu,
Senhor, que os creaste, os re-creas e consolas.

* * *

Ó luz do meu coração! Eu me perdi a mim mesmo e em trevas me tornei. Mas


foi precisamente ali, nas trevas, que me sobrevieram as saudades de ti.

Extraviei-me — e tornei a lembrar-me de ti. E por detrás de mim percebi a tua


voz.

E assim, exausto de cansaço e de ardor, volto para a tua fonte. Ninguém mo


embargará. Dela quero beber. Por ela ganhar minha vida. Não sou eu mesmo a
minha vida — em maldades tenho vivido e tornei-me morte para mim mesmo.
Agora, porém, revivo em ti.

Fala-me. Faze-me ouvir a tua palavra — eu creio em ti.

Sempre estavas perto de mim com a tua ira misericordiosa. Embebias em


amargura todas as delícias dos meus pecados, para que eu aprendesse a
procurar uma delícia sem dores, e não encontrasse senão a ti — a ti, Senhor,
“que em mestra converteste a dor” (SI. 93,20), a ti, que feres para curar, e matas
para que vivamos.

Quão tarde te amei, ó antiga e sempre nova Formosura — quão tarde te amei!...

Eis que tu estavas dentro do meu coração — eu porém, andava fora, e lá fora te
buscava...

Tu estavas comigo — mas eu não estava contigo...

E então me chamaste em altas vozes e rompeste a minha surdez. Relampejaste


e afugentaste a minha cegueira. Rescendeste suaves perfumes em torno de
mim, e eu os sorvia — e agora vivo a suspirar por ti...

Saboreei-te e agora tenho fome e sede de ti...

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que entrasses em meu coração
e o inebriasses com a tua presença, para que eu olvidasse toda a minha miséria
e em íntimo amplexo te possuísse, meu único Bem!

Ó Deus, tu, que és o mais alto, o melhor, o mais poderoso, o mais benigno e
justo, o mais oculto e onipresente, o mais belo e terrível; tu, que és o permanente,
o incompreensível; tu, que és o imutável, e mudas todas as coisas; tu, que nunca
és novo e nunca és velho, e sempre renovas tudo (enquanto “os orgulhosos
envelhecem sem o saber” (Jó 9,5); tu, que sempre ages e sempre repousas; tu,
que recolhes sem sofreres necessidades; que procuras sem que nada te falte;
que amas sem te abrasares; que zelas sem te preocupares; que te arrependes
sem dores; que te irritas, mas em toda a paz — tu mudas as tuas obras, mas
nunca os teus desígnios; acolhes o que se lança aos teus braços, mas sem o
teres perdido; tu, que não conheces indigências, te alegras com o lucro; tu, que
ignoras o que seja avareza, reclamas os juros; pagam-te em excesso para te
reduzirem a devedor — mas quem possuiria algo que não te pertencesse?

E agora, que disse eu com tudo quanto tenho dito?

Meu Deus! Vida e doçura minha! Que outra coisa poderia alguém dizer de ti, se
ousasse falar de ti? E, no entanto — ai daqueles que de ti se calarem, embora
sejam mudas as palavras mais eloquentes!

Restitui-me integralmente a ti, meu Deus.


* * *

Eis que eu amo — e, se não for bastante, mais ainda te amarei. Não estou em
condições de medir o meu amor, se é suficiente, se nada lhe falta — nada! para
que a minha vida se identifique na união contigo e nunca mais de ti se afaste,
até que eu esteja perfeitamente amparado, oculto no mistério da tua face.

A única coisa que sei é que sou infeliz quando não te possuo — infeliz, não só
para fora, mas infeliz, infelicíssimo, dentro de mim mesmo. Sei que toda a
riqueza que não vem de ti é pobreza para mim.

Deus, acima do qual nada há; além do qual nada há; sem o qual nada há —
Deus, que me valerá tudo o que me dás, se não te deres a ti mesmo? Não, nada
me é doce a não ser que me conduza a ti, meu Deus. “A mim me convém aderir
a Deus” (SI. 72,28). Pois, se eu não ficar em ti, também não poderei ficar em
mim.

Quisera antes perder tudo e encontrar-te do que ganhar tudo e não te encontrar.
Tu nos fizeste para ti, Senhor — e inquieto está o nosso coração até que ache
quietação em ti”.
CAPÍTULO 31

A África no Poder dos Vândalos.


Ocaso dum Grande Luzeiro

Havia quase dois decênios que os godos eram senhores de Roma e da


península itálica.

Na África receava-se catástrofe igual.

E não tardaria o cataclismo.

Bonifácio, governador de Cartago, amigo dos novos senhores do império,


preparou a invasão dos povos nórdicos, convidando-os para semear no meio
duma cultura decadente e agonizante o espírito juvenil duma nova mentalidade,
como ele entendia.

Na primavera de 429 deixou o chefe vândalo, Genserico, a península ibérica e


transpôs com as suas hordas aguerridas o estreito de Gibraltar, invadindo, quase
sem resistência, as províncias romanas do continente africano.

Pela última vez estremeceu o rijo travejamento do império dos Césares. Pela
última vez tremeram os alicerces seculares da poderosa res publica. Pela última
vez gemeram os lábios moribundos do maior titã da história.

Dos pináculos de Cartago, extrema baliza do poder imperial, tombaram as águias


romanas, para nunca mais erguerem as asas quebradas...

Hipona, cidade episcopal de Agostinho, foi cercada pelos vândalos, pagãos ou


arianos. Os donatistas, inimigos mortais de Agostinho e do catolicismo romano,
exultaram de júbilo e aliaram-se aos invasores. Com horror previu Agostinho que
arianos e donatistas destruiriam em breve o que ele edificara, em quase meio
século de ingentes labores. Não assistiu ao desfecho final da tremenda
catástrofe; mas, à luz do que via adivinhou o futuro que não via...

“Quanto mais se sabe mais se sofre”, dissera ele, e, porque muito sabia muito
sofria...

“Lágrimas eram o seu pão de dia e de noite”, diz Possidius, seu primeiro biógrafo,
que com ele vivia sob o mesmo teto.
Das províncias circunvizinhas chegavam consultas dos pastores espirituais, se
convinha fugir para o interior. “O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas”,
respondeu Agostinho.

Na primavera de 430 começou o sítio de Hipona, que durou 3 meses. A


guarnição da cidade, triste ruína dum exército de mercenários, não valeu resistir
à prepotência dos invasores. De dia a dia, esperava-se a rendição da praça.

Agostinho, com o clero e os fiéis, não cessavam de orar na Basílica Pacis.

Acometido de febre, caiu de cama. Na parede negrejavam, em grandes


caracteres, as palavras do Salmo: “Miserere mei, Deus... Tem piedade de mim,
ó Deus!”...

No dia 28 de agosto de 430, enquanto lá fora, por entre o fragor das catapultas
e aríetes e o vociferar da soldadesca vandálica, ruía por terra um mundo que
parecia indestrutível, lá dentro, à penumbra duma cela paupérrima, se extinguia
um dos maiores luzeiros do Cristianismo...

Contava Agostinho 76 anos de idade.


Cronologia

313 — Constantino promulga o Edito de Milão, tornando o cristianismo religião


oficial do Império Romano Ocidental.

350 — Ulfila traduz a Bíblia para o gótico.

354 — Agostinho nasce em Tagaste, Numidia na África.

355 — Invasão da Gália pelos francos, alamanos e saxões. Os hunos surgem


na Rússia.

365 — Agostinho estuda em Madaura.

369 — Vive em Tagaste.

370 — Estuda em Cartago. Os hunos atingem o Don e vencem os ostrogodos.

372 — Nasce o filho Adeodato. Agostinho descobre a filosofia através de Cícero


e segue os maniqueístas.

373 — Leciona em Tagaste. Santo Ambrósio torna-se bispo de Milão.

374 — Leciona em Cartago.

380 — Teodósio e Graciano contêm os godos no Épiro e na Dalmácia. O Edito


de Teodósio torna o cristianismo religião oficial no Império Romano do Oriente.

383 — Agostinho abandona o maniqueísmo e leciona em Roma.

384 — É professor em Milão. São Jerônimo começa a tradução da Bíblia para o


latim, tradicionalmente conhecida como Vulgata.

386 — Agostinho descobre o neoplatonismo; lê as cartas de Paulo de Tarso;


converte-se ao cristianismo; parte para Cassicíaco, demite-se do cargo de
professor e redige Contra Acadêmicos.

De Beata Vita e De Ordine. Teodósio repele os godos no Danúbio.

387— Agostinho é batizado juntamente com Alípio e Adeodato; passa algumas


semanas em Roma, depois da morte de Mônica, sua mãe, e escreve De
Imortalitate Animae.
388 — Parte para a África e começa a viver monasticamente em Tagaste. Redige
De Vera Religione.

389 — Morte de Adeodato.

390 — Conflito entre Santo Ambrósio e Teodósio.

391 — Agostinho torna-se presbítero de Hipona.

392 — Polemiza com o maniqueu Fortunato. O direito de asilo é reconhecido nas


igrejas. São Jerônimo escreve De Viris Illustribus.

394 — Os Jogos Olímpicos são suprimidos.

395 — Agostinho torna-se bispo de Hipona. Sulpício Severo escreve A Vida de


São Martinho. Os hunos invadem a Asia e chegam até Antióquia.

396 — Os godos invadem a Grécia. Fim dos Mistérios de Elêusis.

397/398 — Agostinho redige Confessiones.

399/422 — Redige a obra De Trinitate.

400 — Os hunos atingem o Elba.

407 — Invasão da Gália pelos vândalos e suevos.

408 — Os saxões entram na Bretanha.

409 — Pelágio em Cartago. Os vândalos e os suevos invadem a Espanha.

410 — Alarico conquista Roma.

413 — Agostinho começa a redigir De Civitate Dei.

417 — Paulus Orosius, discípulo de Agostinho publica a História Universalis.

429 — Os vândalos penetram na África.

430 — Agostinho falece em 28 de agosto.


Títulos das Obras Completas
de Agostinho
(Edição Migne, Paris 1877)

1 — Retractationes

2 — Confessiones

3 — Soliloquia

4 — Contra Academicos

5 — De beata vita

6 — De Ordine

7 — De immortalitate animae

8 — De quantitate animae

9 — De Musica

10 — De magistro

11 — De libero arbitrio

12 — De moribus Ecclesiae catholicae, et de moribus Manichaeorum

13 — Regula ad servos Dei

14 — Epistolae

15 — De doctrina christiana

16 — De vera Religione

17 — De Genesi contra Manichaeos

18 — De Genesi ad litteram imperfectus

19 — De Genesi ad litteram

20 — Scripturae sacrae locutiones


21 — Quaestiones in Pentateuchum

22 — Annotationes in Job

23 — De Scriptura sacra speculum

24 — De consensu Evangelistarum

25 — De Sermone Domini in monte

26 — Quaestiones Evangeliorum

27 — Quaestiones septemdecim in Evangelium secundum Mathaeu

28 — In Joannis Evangelium

29 — Expositio quarundam propositionum ex Epistola ad Romanos

30 — Epistolae ad Romanos inchoata expositio

31 — Expositio Epistolae ad Galatas

32 — Enarrationes in Psalmos

33 — Sermones de Scripturis

34 — Sermones de Tempore

35 — Sermones de Sanctis

36 — De diversis quaestionibus

37 — De diversis quaestionibus ad Simplicianum

38 — De octo Dulcitü quaestionibus

39 — De fide rerum quae non videntur

40 — De fide et Symbolo

41 — De Fide et Operibus

42 — Enchiridion de Fide, Spe et Caritate

43 — De Agone Christiano

44 — De catechisandis rudibus

45 — De continentia

46 — De bono conjugali

47 — De sancta virginitate
48 — De bono viduitatis

49 — De conjugiis adulterinis

50 — De mendacio

51 — Contra mendaciurn

52 — De opere Monachorum

53 — De divinatione daemonum

54 — De cura pro mortuis gerenda

55 — De patientia

56 — De Symbolo ad Catechumenos

57 — De disciplina christiana

58 — De cantico novo

59 — De quarta feria

60 — De cataclysmo

61 — De Tempore Barbarico

62 — De utilitate jejunii

63 — De Urbis excidio

64 — De civitate Dei

65 — De Haeresibus ad Quodvultdeum

66 — Tractatus adversus Judaeos

67 — De utilitate credendi ad Honoratum

68 — De duabus animabus contra Manichaeum

69 — Acta seu disputatio contra Fortunatum Manichaeum

70 — Contra Adimantum Manichaei discipulum

71 — Contra Epistolam Manichaei quam vocant Fundamenti

72 — Contra Faustum Manichaeum

73 — De Actis cum Felice Manichaeo

74 — De Natura boni contra Manichaeos


75 — Contra Secundinum Manichaeum

76 — Contra Adversarium Legis et Prophetarum

77 — Ad Orosium contra Priscillianistas et Origenistas

78 — Sermonem Arianorum

79 — Collatio cum Maximinum Arianum

80 — De Trinitate

81 — Psalmus contra partem Donati

82 — Contra Epistolam Parmeniani

83 — De Baptismo contra Donatistas

84 — Contra Litteras Petiliani

85 — Epistola ad Catholicos contra Donatistas, vulgo de Unitate Ecclesiae

86 — Contra Cresconium Grammaticum Donatistam

87 — De unico Baptismo contra Petilianum

88 — Breviculus Collationis eum Donatistis

89 — Post Collationem ad Donatistas

90 — Sermo ad Caesareensis Ecclesiae plebem Emerito praesente habitus

91 — De peccatorurñ meritis et remissione

92 — De Spiritu et Littera

93 — De Natura et Gratia

94 — De Perfectione justitiae hominis

95 — De Gestis Pelagii

96 — De Gratia Christi et de peccato originali

97 — De nuptiis et concupiscentia

98 — De anima et ejus origine

99 — Contra duas Epistolas Pelagianorum, ad Bonifacium

100 — Contra Julianum

101 — De gratia et libero arbitrio


102 — De correptione et gratia

103 — De praedestinatione Sanctorum


Dados Biográficos
HUBERTO ROHDEN

Nasceu em São Ludgero, Santa Catarina, Brasil (1893-1981). Fez estudos no


Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em
universidades da Europa — Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e
Nápoles (Itália).

De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.


Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais, várias
traduzidas em outras línguas, inclusive o esperanto; algumas existem em braille,
para institutos de cegos.

Rohden não está filiado a nenhuma Igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo.

De 1945 a 1946, obteve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas na


Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática,
Metafisica e Mística.
Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de
Washington, D.C., a reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo este que exerceu por cinco anos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, foi convidado pelo Bureau of Inter-American


Affairs, de Washington, a fazer parte do corpo de tradutores das notícias de
guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de
Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de
manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos.

Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden
Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda, diretor
hindu desse ashram.

Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
a fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU)
de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões
Comparadas; mas, em virtude da Guerra na Coreia, a universidade japonesa
não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado
professor de Filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, cargo do qual
não tomou posse.

Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,


onde, além de cursos na capital paulista, mantinha cursos permanentes, no Rio
de Janeiro e em Goiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e
dirigia Casas de Retiro Espiritual (ashrams) em diversos estados do Brasil.

Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência


espiritual pela Palestina, pelo Egito, pela Índia e pelo Nepal, realizando diversas
conferências com grupos de yoguis na Índia.

Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre


autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Autorrealização Alvorada.

Nos últimos anos, Rohden residia na cidade de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.

Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora


responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e
inspiração.

Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-se em


grandes segmentos: 1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização),
em São Paulo, que tem a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação;
2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são oferecidos,
periodicamente, os Retiros Espirituais, de três dias completos; 3) a Editora Martin
Claret, de São Paulo, que difunde, por meio de livros, a Filosofia Univérsica; 4)
um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalham na
consolidação e na continuação da sua obra educacional.

À zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir a Humanidade”.

Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé


e trabalho somente comparados aos dos grandes homens do nosso século.

Huberto Rohden é o principal editando da Editora Martin Claret.


Relação de Obras de
Huberto Rohden

COLEÇÃO FILOSOFIA UNIVERSAL:

O Pensamento Filosófico da Antiguidade

A Filosofia Contemporânea

O Espírito da Filosofia Oriental

COLEÇÃO FILOSOFIA DO EVANGELHO:

O Sermão da Montanha

Filosofia Cósmica do Evangelho

Assim Dizia o Mestre

O Triunfo da Vida Sobre a Morte

COLEÇÃO FILOSOFIA DA VIDA:

De Alma Para Alma

Ídolos ou Ideal

O Caminho da Felicidade

Deus

Em Comunhão com Deus

Por Que Sofremos

Bhagavad Gita (tradução)

Setas Para o Infinito


Cosmorama

Filosofia da Arte

Orientando para a Autorrealização

Educação do Homem Integral

Roteiro Cósmico

A Metafisica do Cristianismo

Tao Te Ching, de Lao-Tsé (tradução) — Ilustrado

Sabedoria das Parábolas

O 5º Evangelho Segundo Tomé (tradução)

A Mensagem Viva do Cristo (Os quatro Evangelhos — tradução)

Rumo à Consciência Cósmica

Novo Testamento

O Cristo Cósmico e os Essênios

Novos Rumos para a Educação

Lúcifer e Lógos

A Grande Libertação

Entre Dois Mundos

Minhas Vivências na Palestina, Egito e Índia

“Que Vos Parece do Cristo?”

O Drama Milenar do Cristo e do Anticristo

Luzes e Sombras da Alvorada

A Voz do Silêncio

A Nova Humanidade

O Homem

Estratégias de Lúcifer

O Homem e o Universo

Imperativos da Vida
Profanos e Iniciados

Lampejos Evangélicos

COLEÇÃO MISTÉRIOS DA NATUREZA:

Maravilhas do Universo

Alegorias

Isis

Por Mundos Ignotos

COLEÇÃO BIOGRAFIAS:

Paulo de Tarso

Agostinho

Mahatma Gandhi — ilustrado

Jesus Nazareno — 2 vols.

Einstein — O Enigma da Matemática — ilustrado

Por um Ideal — 2 vols. (autobiografia)

Pascal

Myriam

COLEÇÃO OPÚSCULOS:

Catecismo da Filosofia

Saúde e Felicidade pela Cosmo-meditação

Aconteceu entre 2000 e 3000

Ciência, Milagre e Oração São Compatíveis?

Cem Pensamentos de Mahatma Gandhi (tradução)

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