A Gênese de Satã

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1

A GNESE DE SAT
Jos Rafael Capella
1



RESUMO

Este trabalho tem por objetivo rastrear a origem e o contexto do surgimento da
crena em Sat no pensamento religioso hebreu do ps-Exlio. Para tanto, sero
tomados por fontes principais os textos da Torah e do Antigo Testamento da Bblia
crist, que, em perspectiva com os trabalhos de outros autores acerca do tema, terminam
por revelar uma srie de inovaes prticas e filosficas na religio de Israel. Essas
inovaes, em ltima anlise, resultam de intensa convivncia e trocas culturais com os
povos da Mesopotmia e, em particular, com os persas do Imprio Aquemnida. ,
precisamente, no conjunto dicotmico das crenas persas que o Sat das escrituras
hebraicas vislumbra paralelos e um provvel antepassado.

Palavras-chave: Sat Satans Origem Religio Israel.

ABSTRACT

This paper aims to trace the origins and the context of the emergence of Satans
belief in the Hebrew religious thought of the post-Exile. To do so will be taken by the
texts of the main sources of the Torah and the Old Testament of the Christian Bible
that, in perspective with other works on the subjects, end up revealing a series of
practical and philosophical innovations in the religion of Israel. These innovations,
ultimately, result of intense interaction and cultural exchanges with the people of
Mesopotamia, and in particular the Persian Achaemenid Empire. It is precisely the set
of dichotomous of the Persians belief that the Satan of the Hebrew Scriptures sees
parallels and a probable ancestor.

Key-words: Satan Devil Origin Religion Israel.

1
Discente da graduao em Histria pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ.


2


1. INTRODUO

Uma lenda muito difundida no mundo cristo da atualidade d conta da origem
do mal nos primrdios da criao: aconteceu um dia uma guerra no cu. Aquele que
outrora havia sido o mais excelso dos anjos de Deus, sucumbindo prpria ganncia e
sede de poder, voltara-se contra Deus e, reunindo um squito de partidrios celestiais,
insuflara uma revolta cujo objetivo era o trono de toda a criao. Fora, porm,
combatido, derrotado e precipitado aos infernos juntamente com todos os seus
favorveis pelos anjos fiis, sobretudo por Miguel. A partir de ento, tornara-se o mais
terrvel opositor de Deus e inimigo da humanidade, numa busca desenfreada pela
perverso de toda a criao, mas em particular da alma humana, considerada a obra-
prima e mais querida do criador.
Muitos so os nomes ou alcunhas devotadas a este que acabou por se tornar o
personagem mais temido e execrado do imaginrio religioso ocidental. Interessa-nos,
todavia, aquele que parece ter sido o primeiro, tal como nos revelam os escritos
sagrados da f judaica e crist: Sat.
A despeito da mais remota dvida, Sat ocupa um papel de destaque no mundo
ocidental, cuja cultura foi construda ao longo dos ltimos dois milnios sobre
patamares cristos. A crena em sua existncia, embora tendo atravessado momentos de
maior ou menor popularidade no decorrer dos sculos, constitui um dos dogmas de f
essenciais ao cristianismo, afirmado desde sempre pelos mais eminentes telogos da
Igreja e oficialmente estabelecido pelo Conclio IV de Latro
2
(1215 E.C.): [...] O
Diabo e demais demnios, por Deus certamente foram criados bons por natureza; mas
eles, por si mesmos, se fizeram maus [...]
3
.
Com efeito, Satans
4
uma figura onipresente no imaginrio ocidental. Reina
absoluto sobre as hostes decadas e as vastas regies do inferno, onde, de acordo com a
teologia crist, sofrem eternamente aquelas almas desafortunadas que se entregaram ao

2
COUST, Alberto. Biografia do Diabo: O Diabo Como a Sombra de Deus na Histria. Trad. de Luca
Albuquerque. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996, p. 278.
3
FELIPE COELHO. A heresia dos que negam a existncia do Demnio. Montfort Associao Cultural.
Disponvel em:<http://missatridentinaemportugal.blogspot.com/2010/01/heresia-dos-que-negam-
existencia-do.html>. Acesso em: 6 de set. 2011.
4
O termo Satans, que, embora mais recente, aparecer algumas vezes no decurso deste texto como
alternativa para Sat, figura como equivalente deste nos textos originalmente redigidos em aramaico.


3
pecado e distanciaram-se de Deus. Mais que isso, ao personificar a sntese de todo o
mal, o Diabo se converte numa advertncia prtica. o anjo mais perfeito que, contudo,
ousou se levantar contra Deus, desgraando a si mesmo e transformando-se em sua
anttese. De modo anlogo, o homem, tendo sido criado imagem e semelhana de
Deus
5
, desfruta privilgios nicos; mas, se desobediente, afasta-se do Criador e se
aproxima de Sat, cuja runa passa a ser o seu espelho.
A crena e o medo do Diabo so dois fatores bastante sensveis desde os
primeiros anos do cristianismo ainda no completamente distinto da religio judaica
at os dias atuais. Com efeito, muito do avano da religio crist deve sua marcha
vitoriosa ao temor inspirado pela figura de Satans e o castigo do inferno, que, de
maneira objetiva e em detrimento do temor a Deus, parece ter sido de mais fcil
absoro. Acerca disso, Peter Brown nos diz: Salvao significava, antes de tudo o
mais, salvaguarda frente idolatria e ao poder dos demnios.
6
.
Dentro dessa perspectiva, entretanto, revela-se problemtico e no mnimo
curioso que a tradio religiosa hebraica, da qual, principalmente, deriva a religiosidade
crist, no tenha em seus primrdios e mesmo hodiernamente nada parecido com a
figura de Sat, enquanto representante de um mal absoluto, como passou a ser
concebido pela cristandade e ainda nos dias de hoje
7
. Sat, ou qualquer de seus muitos
nomes, no mencionado nenhuma vez na Torah, cujo contedo constitui os cinco
primeiros volumes do Antigo Testamento, aparecendo, ainda que timidamente, apenas
nos escritos dos cronistas mais tardios.
A partir do questionamento apresentado, este trabalho buscar esclarecer a
identidade de Sat e, sobretudo, como e em que poca teria surgido no pensamento
religioso hebreu, de onde passou ao imaginrio cristo medieval. Para tanto, sero
tomados como fontes principais os textos da Torah e do Antigo Testamento, de cujas
narrativas desenhar-se- de maneira sucinta a gnese de Sat num contraste com o
contexto histrico de seu surgimento.


2. O PROBLEMA DO MAL NO MUNDO ANTIGO

5
Ver Gnesis, 1:26
6
BROWN, Peter. A Ascenso do Cristianismo no Ocidente. Traduo de Eduardo Nogueira. Lisboa:
Editorial Presena, 1999, p. 45.
7
Ver: PAGELS, Elaine. As Origens de Satans. Traduo de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Ediouro,
1996. p. 66. FORSYTH, Neil. The Old Enemy: Satan and the Combat Myth. Princeton: Princeton
University Press, 1987. p. 107.


4
Esquadrinhar a gnese de Sat esbarra na necessidade inicial de entender a
maneira pela qual os muitos povos do mundo antigo geralmente concebiam as questes
ticas e morais, ou melhor, o bem e o mal.
verdade que no mundo cristo contemporneo se encontra firmemente
enraizada uma viso dicotmica da realidade. A espiritualidade dominante, ao fornecer
os alicerces para as construes morais e ticas tanto no nvel social quanto individual
com suas ideias acerca do pecado, dividiu o mundo em dois: um bom e virtuoso, outro
mau e pervertido. Dentro dessa cosmoviso religiosa, legtimo pensar que se Deus
representa o bem e, como afirmou Agostinho, no criou o mal, o responsvel por esse
outro lado, escuro e indesejvel, poderia ser apenas Satans. Mas seria essa uma ideia
desde sempre to universal quanto pode parecer?
exceo do masdesmo persa, na verdade, as religies do mundo antigo em
geral entre as quais se pode incluir a f monotesta dos hebreus imaginaram um
universo um tanto menos conflituoso. No que no houvesse o mal, o bem ou
formulaes morais e ticas a respeito do que certo ou errado; mas essa classificao
parece estar ligada maneira pela qual se percebiam os produtos dos acontecimentos,
no natureza benfica ou malfica de seus agentes. Samuel Noah Kramer assim nos
diz da maneira pela qual os antigos sumrios concebiam seus deuses:

Era natural que os sbios e pensadores antigos concebessem em
termos humanos a criao do universo e a organizao da vida. Toda a
sociedade humana, como eles a conheciam, toda a ao dos homens era
dirigida por pessoas. Tambm o universo imaginavam eles devia, pois,
ser governado por entes antropomrficos, semelhantes aos homens, que em
geral no eram perceptveis aos humildes mortais. Os seres dominadores que
governavam o universo deviam ter maior poder e maiores dons do que as
suas cpias humanas na Terra, e deviam viver eternamente, pois a alternativa,
inadmissvel, seria a de uma total confuso sua morte. Invisveis,
onipotentes e imortais, eram deuses, dingir na lngua sumeriana. [...] Apesar
de sua amplitude e complexidade, o panteon criado pelos sbios imaginosos
em geral agia suave e harmoniosamente. [...] At o mais poderoso e mais
sbio dos deuses se assemelhava ao homem em suas atividades terrenas.
Banqueteavam-se, casavam, tinham filhos e eram dependendo da ocasio
bem-humorados, zangados, alegres, melanclicos, desprendidos, invejosos,
nobres, mesquinhos, cruis ou caridosos. Em geral, eram a favor da
honestidade e da decncia, contra mentiras e maldades; mas, a julgar pelo que
os mitos contam, estavam muito longe de ser sem mcula e pecado.
8


Talvez fosse ainda mais elucidativo, qui complementar, dizer que os deuses
antigos estavam mesmo muito longe do ideal esttico de perfeio imaginado pelos

8
KRAMER, Samuel Noah. Mesopotmia: O Bero da Civilizao. Traduo de Genolino Amado. Rio de
Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1983. pp. 105-107.


5
telogos cristos, notadamente influenciados pela filosofia clssica sobretudo pelos
neoplatnicos. De fato, no se pode dizer que houvesse qualquer embarao quanto s
qualidades demasiado humanas dos deuses. Uma vez que os seres humanos foram
divinamente concebidos, apenas natural que herdassem caractersticas divinas. Desse
modo, no so os deuses que tm qualidades humanas, os seres humanos que tm
qualidades divinas e, assim, possuem livre arbtrio, sendo igualmente capazes do bem e
do mal.
Adad, por exemplo, divindade sumrio-acadiana associada ao tempo e s
tempestades, tambm chamado de iras terrveis, apresenta-se oras benvolo, oras
destruidor. Rege tanto as chuvas quanto a seca, com a qual, por vezes, castiga a
humanidade. No mito mesopotmico do Dilvio, o mais antigo de que se tem notcia
9
,
foi ele quem, por ordem do deus Enlil, tendo fracassado em eliminar a espcie humana
atravs da seca, cobriu a Terra inteira com as guas. No entanto, Adad tambm
responsvel pelas cheias peridicas dos rios, que fertilizam a terra e garantem o sucesso
e a prosperidade da agricultura, quando assume o papel de um deus provedor.
10

Do mesmo modo, Pazuzu, gnio sumrio-acadiano associado ao vento sul,
destruidor das plantaes e rei dos demnios do vento tambm um esprito protetor.
Uma de suas representaes mais conhecidas com cabea de co, corpo escamado,
asas e patas de ave de rapina, alm de um falo em forma de serpente consistia, na
verdade, numa espcie de pingente a ser usado por mulheres grvidas. Tal pingente
oferecia, ao que se acreditava, proteo contra o esprito Lamashtu, um gnio feminino,
hostil e estril, conhecido por atacar gestantes, raptar e matar recm-nascidos, alm de
vampirizar os homens.
11

Analisando, de sua parte, a concepo grega do mundo divino, Walter Friedrich
Otto nos diz:

Na verdade, no podemos afirmar que os gregos da poca arcaica e
clssica viveram menos moralmente do que ns com nossas concepes do
bem e do mal e da vontade capaz de decidir por livre arbtrio. Porm o olhar
piedoso voltado para seus deuses elevou o grego acima do vulgar, e quando
lhe sucedia cair vtima de uma deusa augusta como Afrodite ele podia pensar
com grandeza de alma sobre a falta cujas consequncias tinha de sofrer,

9
O mito mesopotmico do Dilvio, do qual provavelmente se origina o posterior relato bblico, encontra-
se descrito na Epopia de Gilgamesh.
10
GARDIN, Nanon. Histria das Mitologias do Mundo. Traduo de Pedro Eli Duarte. Lisboa: Edies
Texto & Grafia, 2011. p. 25.
11
Ibidem, p. 26.


6
deixando de parte o srdido, o vicioso pois para ele no existia o mal com
sua diablica magia.
12


Tambm Iahweh, o Deus nico dos hebreus, como anteriormente referido, no
fugia a esta regra. Em Isaas, 45:7, encontramos a seguinte passagem: Eu formo a luz e
crio as trevas, asseguro o bem-estar e crio a desgraa: sim eu, Iahweh, fao tudo isso
13
.
H pelos menos outros trs versculos parecidos no Antigo Testamento. No livro
de Ams, 3:6, est escrito: Se uma trombeta soa na cidade, no ficar a populao
apavorada? Se acontece uma desgraa na cidade, no foi Iahweh quem agiu? Tambm
em J, 2:10: Ele respondeu: Falas como uma idiota [diz J sua esposa
14
]: se
recebemos de Deus os bens, no deveramos receber tambm os males? Apesar de tudo
isso, J no cometeu pecado com seus lbios. E em Eclesistico, 11:14: Bem e mal,
vida e morte, pobreza e riqueza, tudo vem do Senhor.
Sobre essa natureza ambivalente de Iahweh, Mircea Eliade diz:

Da mesma forma, a violncia de Jav provoca um rompimento nos
quadros antropomrficos. Sua raiva revela-se s vezes de tal maneira
irracional que se pde falar do demonismo de Jav. Sem dvida alguns
desses traos negativos sero endurecidos mais tarde, aps a ocupao de
Cana. Mas os traos negativos pertencem estrutura original de Jav. [...]
A coexistncia dos atributos contraditrios e a irracionalidade de alguns de
seus atos distinguem Jav de todo ideal de perfeio na escala humana.
15


razovel, pois, concluir que, uma vez que os prprios deuses, ou Deus, no caso
especfico do javismo hebraico, eram tidos como fonte tanto do bem quanto do mal,
esses povos tinham uma cosmoviso em todos os aspectos diversa da que
hodiernamente partilhada, sobretudo no que diz respeito existncia do mal.
Nesse panorama, no parece haver espao para a figura de Sat. Enquanto
entidade personificadora do mal, ele fica deslocado no contexto de crenas to
complexas, em que a dicotomia que nos pode parecer to verossmil simplesmente no
faz sentido, pois no encontra paralelo em parte alguma.
Com efeito, apenas na Prsia antiga, com o supracitado masdesmo de
Zaratustra, que se pode encontrar um conjunto de crenas religiosas em vrios aspectos
familiares cosmoviso que se tornou comum no universo judaico-cristo ocidental.

12
OTTO, Walter Friedrich. Teofania. O Esprito da Religio dos Gregos Antigos. Traduo de Ordep
Trindade Serra. So Paulo: Odysseus, 2006. p. 75.
13
Para esta e demais passagens bblicas deste texto, a Bblia de Jerusalm foi tomada por base.
14
Observao nossa entre colchetes.
15
ELIADE, Mircea. Histria das Crenas e das Idias Religiosas, volume I: da Idade da Pedra aos
mistrios de Elusis. Traduo de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 178.


7
Inicialmente, os povos que habitavam a regio do Iro praticavam uma religio
politesta, cuja mitologia remonta s religiosidades das antigas tribos indo-europias ou
arianas
16
. Pretende-se que a situao tenha se modificado por uma reforma creditada ao
profeta Zaratustra, ou Zoroastro
17
, um sacerdote que, em algum momento entre 628 e
551 a.E.C.
18
, teria se levantado contra a religio e os deuses tradicionais (aqui chamados
daeva) e institudo um culto mais ou menos monotesta ao deus Ahura-Mazda.
A exemplo de outros lderes carismticos da antiguidade, como Buda e Jesus, a
biografia de Zaratustra est repleta de passagens nas quais uma narrativa fantstica
mescla-se ao verossmil e sua existncia histrica tem sido, inclusive, alvo de
contestao. Todavia, importa-nos para o momento a originalidade da filosofia e das
crenas de Zaratustra, que, por ocasio do Cativeiro da Babilnia (597-538 A.E.C.),
teriam influenciado profundamente o pensamento religioso hebreu com uma srie de
elementos at ento desconhecidos.
O masdesmo, como j dissemos, est centrado na crena a Ahura-Mazda, ou,
segundo uma grafia mais tardia, Ohrmazd, o criador universal, e sua eterna luta contra o
esprito do mal, Angra Mainyu ou Arimane.
19
Existem algumas verses diferentes para
o mito do nascimento dos dois deuses. Por agora, no entanto, nos importa observar que
esta se trata da primeira vez em que aparece um dualismo to radical e bem definido na
histria das crenas religiosas. Ahura-Mazda, Ohrmazd, ou ainda Spenta Mainyu o
deus do bem, da luz, da vida e de tudo que bom. Angra Mainyu ou Arimane, por outro
lado, representa o mal absoluto, as trevas, a morte e a destruio nas palavras de
Nanon Gardin: o antepassado incontestado de Satans.
somente no masdesmo persa, e no no javismo primitivo, que a crena em
Sat encontra um paralelo de correspondncia. A crena em uma entidade
personificadora do mal, enquanto um princpio absoluto, uma das inovaes
introduzidas no pensamento religioso hebreu durante e depois do tempo em que
estiveram exilados.

16
GARDIN, op. cit., p. 142.
17
Na realidade, no existe consenso a esse respeito. Segundo Mircea Eliade (op. cit., p. 290), existem
pelo menos duas perspectivas historiogrficas distintas. Uma considera que Zaratustra realmente existiu e,
tal como ilustra a crena indo-iraniana, foi um reformador da religio tradicional. Para a outra, jamais
houve uma reforma e o masdesmo representa apenas um aspecto da religio iraniana, isto , o culto de
Ahura-Mazda.
18
Aqui nos deparamos novamente com um problema de consenso entre os especialistas. A tradio
masdesta, como afirma Mircea Eliade (loc. sit.), estabelece que Zaratustra viveu 258 anos antes de
Alexandre, ou seja, entre 628 e 551 a.E.C. Essa perspectiva aceita pela maior parte dos estudiosos,
todavia no por todos. De maneira geral, possvel situar a vida do profeta entre ~1000-600 a.E.C.
19
GARDIN, op. cit., p. 143.


8


3. O CATIVEIRO DA BABILNIA.

Em 598 A.E.C., buscando restabelecer o controle mesopotmico sobre os
territrios ocidentais perdidos no colapso da Assria
20
, Nebuchadrezzar II, ou
Nabucodonosor II, invade e sitia Jerusalm, enviando a primeira leva de hebreus para o
Exlio em Babilnia. Mais tarde, em 587-586 a.E.C., como resultado de uma nova
insurreio no reino de Jud, Jerusalm novamente invadida. Desta vez o templo de
Salomo destrudo e a cidade, inteiramente devastada. Inicia-se o tempo do Exlio
propriamente dito, que duraria cerca de 47 anos, quando, em 539 a.E.C., por causa de
disputas internas, Babilnia invadida e dominada quase sem luta por Ciro II, rei dos
persas.
Logo no primeiro ano de seu reinado, Ciro, que tinha a fama de respeitar as
tradies religiosas dos povos dominados, faz jus ao enunciado e edita um decreto
autorizando os judeus exilados a voltarem Jerusalm, dando incio reconstruo do
templo e da cidade.
Durante o tempo em que estiveram exilados, os hebreus permaneceram em
estreita convivncia com os babilnicos politestas. Um pouco antes do final do exlio e
por muito tempo depois, essa mesma convivncia aplicou-se aos persas, adeptos da
religio de Zaratustra. Inevitvel, parece, que no houvesse trocas entre povos de
culturas to diversas.
Samuel Noah Kramer, iminente assirilogo, nos fala das influncias
mesopotmicas sofridas pelas religies ocidentais, notadamente o judasmo e o
cristianismo:

Da mesma forma, um opulento conjunto de rituais e de mitos
mesopotmicos, institudos por um notvel grupo de telogos que viveram
3.000 anos antes do nascimento de Cristo, influenciou profundamente o
judasmo e o cristianismo. A idia mesopotmica de que da gua nasceram
todas as coisas, por exemplo, infiltrou-se na narrativa do Gnesis sobre a
criao do mundo, e a noo bblica de que o homem foi feito de barro e
recebeu o sopro da vida brotou de razes mesopotmicas. Assim tambm o
conceito bblico de que o homem foi criado primordialmente para servir a
Deus e o de que o poder criador da divindade est no Seu Verbo. A idia de
que as catstrofes so castigos celestes por ms aes, como a de que a dor e
a adversidade devem ser suportadas com pacincia, tambm encontram
analogias na Mesopotmia. At a regio dos mortos, imaginada pelos

20
KRAMER, op. cit., p. 64.


9
mesopotmicos, a sua escura e lgubre terra de onde no se volta, tem a
sua contrapartida no Sheol dos hebreus e no Hades dos gregos.
21


Mais adiante, ele diz: Durante o seu exlio em Babilnia os hebreus tambm
adquiriram a crena nos demnios e sua exorcizao, o que sem dvida explica diversas
passagens do Novo Testamento concernentes expulso dos espritos malignos.
22

Paul Du Breuil, historiador considerado um dos maiores especialistas que j
houve na religio de Zoroastro e na filosofia masdaica, observa, por sua vez, os
emprstimos espirituais tomados em sculos de amizade recproca entre a Prsia antiga
e Israel:

Depois do Exlio a ascendncia da religio persa sobre o
renascimento da religio hebraica se imps, paralelamente ajuda poltica e
financeira que o protetorado aquemnida oferecia ao povo libertado do jugo
babilnico. Com o comrcio intercontinental do novo imprio persa, o
aramaico, enquanto lngua universal, iria favorecer o intercmbio cultural
intenso, da Palestina at o Ir oriental. [...] Com Nehemias, copeiro do grande
rei e strapa da Judia, Jerusalm ressuscita de suas runas. Enfim,
confirmando as liberalidades de seus predecessores, Artaxerxes subvenciona
Esdras para reunir o conjunto das tradies da Tor, cuja renovao ser
introduzida como lei de deus e lei do rei. A libertao de Israel por um
soberano persa ver-se-ia completada pela elaborao de uma nova lei
religiosa, graas proteo de um outro rei masdaico. Esdras passar por ter
sido o autor de uma renovao essencial ao pensamento judaico e a
severidade implacvel dos livros profticos, redigidos depois do Exlio, para
com a antiga religio, demonstra o ardor reformista que se tinha introduzido
entre os pensadores judeus, sob influncia do pensamento religioso persa. [...]
Atravs do profetismo ps-judasmo, esse reforo da religio legalitria que
se nutriu, durante cinco sculos, do esoterismo persa, introduziu conceitos
inditos no pensamento mosaico. Com a Nova Aliana, percebe-se a lenta
judaizao de temas exticos ignorados da Aliana original e marcados de
gnose zorostrica. [...] As principais marcas dessa herana esotrica surgiram
sob os seguintes traos: sabedoria monotesta que cede, de maneira
crescente, o mal ao dualismo, no qual o Tandem Yahe-Sat corresponde
ao de Ahura Masda e de Ahriman
23
rejeio dos sacrifcios (Isaas,
Osias) , teologia acentuada sobre a oposio da Luz e das trevas. Isaas
(45.7) afirma que Yahv fez to bem a luz como as trevas, a felicidade
como a desgraa, em reao contra a introduo do dualismo
zorostrico, em que Yahv se liberta da responsabilidade das trevas e do
mal
24
a angelologia dos arcanjos (Amashas Spenta) e dos anjos Paraso,
inferno e purgatrio reino de Deus evoluo da idia de responsabilidade
pessoal em uma moral prvia de grupo (Isaas II, Ezequiel) ressurreio dos
mortos transportados para o plano fsico (Ezequiel) messianismo
completamente espiritual do Redentor do fim dos tempos.
25



21
KRAMER, op. cit., p. 168.
22
KRAMER, loc. sit.
23
Grifo nosso.
24
Grifo nosso.
25
DU BREUIL, Paul. Zoroastro: religio e filosofia. Traduo de No Gertel. So Paulo: IBRASA, 1987.
p.p. 93-95.


10
O texto de Du Breuil muito pertinente ao ilustrar de modo bastante claro como
se deu o delicado processo de assimilao das crenas persas pelo pensamento religioso
hebreu e como, antes do Exlio, elas lhes eram completamente estranhas.
De fato, no Pentateuco inteiro, como dissemos, no h sequer uma meno a
Sat, que aparece muito pouco na obra dos profetas escatolgicos do Exlio e de
depois.


4. SURGE SAT, O ACUSADOR OU OS OLHOS DO SENHOR.

A etimologia da palavra sat (do hebraico !+f#f) nos remete aos significados
de adversrio e acusador. Deriva da raiz semtica s0tWn, que significa ser hostil
ou acusar.
26

No sistema de governo aquemnida
27
, havia funcionrios cuja atribuio
consistia em percorrer as vastas terras do Imprio acompanhados de escoltas, com o
objetivo de fiscalizar o que era feito de errado e, consequentemente, aplicar punies.
Fernando Sampaio, em seu livro: A Histria do Demnio, faz referncia aos seguintes
autores:

Em Bases da Poltica Imperial dos Aquemnidas, Pedro Freire
Ribeiro refere-se, tambm, a verdadeiras expedies de fiscalizao,
acompanhadas de tropas, para arrecadar impostos e aplicar corretivos (pg.
66). Jeanyne Auboyer, na Histria Geral das Civilizaes, volume I, pg.
205, diz, tambm, sobre este sistema: mas apenas a correspondncia no
suficiente: o governo central envia, alm disto, a fim de controlar a
administrao local, inspetores designados por uma metfora j corrente nas
monarquias precedentes como os olhos e os ouvidos do rei.
28


O autor observa ainda que: Pode-se perceber, facilmente, as conotaes de
medo, repulsa e verdadeiro pavor que tais funcionrios exerciam.
29
A partir disto,
parece justo pensar que a palavra sat, em ambos os sentidos que lhe so atribudos,
tenha de fato sido usada primeiro para referir-se pejorativamente a estes
funcionrios imperiais, no como nome prprio, mas como um adjetivo, um

26
Informaes relativas etimologia da palavra sat obtidas em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Satans>.
Acesso em: 24 de out. 2011.
27
O Imprio Aquemnida, tambm designado Primeiro Imprio Persa, situava-se ao sudoeste da sia e
foi fundado por Ciro II, o Grande, no sculo VI a.E.C.
28
SAMPAIO, Fernando G. A Histria do Demnio: da antiguidade aos dias atuais. Porto Alegre:
Garatuja, 1976. p. 22.
29
Loc. cit.


11
qualificativo; e apenas depois, dadas as influncias religiosas e filosficas masdaicas,
teria passado a ser empregada para designar um ser espiritual
30
.
A Bblia, sem dvida, corrobora essa hiptese. Uma das primeiras aparies de
Sat nas Escrituras no livro de J (cuja lenda, preciso observar, encontra paralelo
quase idntico em um mito mesopotmico mais antigo), em que ele desempenha um
papel inquestionavelmente anlogo ao do funcionrio imperial aquemnida conhecido
como os olhos do rei. Vejamos a passagem:

No dia em que os Filhos de Deus vieram se apresentar a Iahweh,
entre eles veio tambm Sat. Iahweh ento perguntou a Sat: De onde
vens? Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo, respondeu
Sat. Iahweh disse a Sat: Reparaste no meu servo J? Na terra no h outro
igual: um homem ntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal. Sat
respondeu a Iahweh: por nada que J teme a Deus? Porventura no
levantaste um muro de proteo ao redor dele, de sua casa e de todos os seus
bens? Abenoaste a obra das suas mos e seus rebanhos cobrem toda a
regio. Mas estende tua mo e toca nos seus bens; eu te garanto que te
lanar maldies em rosto. Ento Iahweh disse a Sat: Pois bem, tudo o
que ele possui est em teu poder, mas no estendas tua mo contra ele. E
Sat saiu da presena de Iahweh.
31


A expresso Filhos de Deus, presente no fragmento acima, refere-se, segundo
nota explicativa da Bblia de Jerusalm, aos anjos, corte de Iahweh, que, a exemplo
dos monarcas humanos, com eles reunia-se em audincia.
Ressalte-se, ainda, que a palavra Sat, embora grafada com inicial maiscula, no
original em hebraico aparece precedida de artigo, o que por si j a descaracteriza como
um substantivo prprio.
Sat se apresenta com os anjos na corte de Iahweh e no parece um inimigo ou
coisa que o valha. Antes, dialoga pacificamente com a divindade e parece ser um tipo de
espio, encarregado de fiscalizar as aes dos homens na terra. O ttulo de sat
provavelmente lhe foi dado pelo autor semelhana dos funcionrios, fiscais do
Imprio Aquemnida, em razo de seu papel no famigerado drama de J.
Elaine Pagels, em As Origens de Satans, apia esta hiptese quando afirma:

Quando o Senhor lhe perguntou de onde vinha, ele respondeu: De
rodear a terra e passear por ela. Neste ponto, o cronista explora a

30
Coisa parecida aconteceu com a palavra anjo, que deriva do latim angelos, que por sua vez vem do
grego ggelos (aggeloj) e significa, literalmente, mensageiro. A palavra grega foi usada quando a
Septuaginta foi escrita, entre o terceiro e o primeiro sculos a.E.C., traduzindo para o koin o substantivo
hebraico malakh (K;)fl;m) que, da mesma forma, significa mensageiro. Esta palavra, que inicialmente
era usada para designar mensageiros humanos, passou, depois do Cativeiro Babilnico, a designar
tambm os mensageiros divinos.
31
J: 1, 6-12.


12
similaridade entre o som das palavras hebraicas satan e sht, que significa
rodear, sugerindo que o papel especial de satans na corte celestial o de
uma espcie de agente ambulante de espionagem, tais como aqueles que
muitos judeus da poca teriam conhecido e detestado como membros do
refinado sistema de polcia secreta e espies do rei da Prsia. Tidos como o
olho do rei ou o ouvido do rei, esses agentes vagueavam pelo imprio
procura de sinais de deslealdade entre o povo.
32


Nas outras passagens bblicas em que Sat aparece, seu papel mudar pouco e de
forma mais ou menos gradual. Vejamos no livro de Zacarias:

Ele me fez ver Josu, sumo sacerdote, que estava de p diante do
Anjo de Iahweh, e Sat, que estava de p sua direita para acus-lo
33
. O
Anjo de Iahweh disse a Sat: Que Iahweh te reprima, Sat, reprima-te
Iahweh, que elegeu Jerusalm. Este no , por acaso, um tio tirado do
fogo?
34


Aqui o papel de Sat sem dvida o mesmo que ele desempenha no livro de J.
Outras passagens embora de forma menos objetiva, preciso salientar
tambm aludem a esta crena, que atribui ao plano espiritual e divino um modo de agir
similar quele do monarca persa: Pois os olhos de Iahweh percorrem toda a terra para
sustentar aqueles cujo corao totalmente voltado para ele; agiste como insensato
desta vez e, doravante, sofrers a guerra.
35

Embora os cronistas bblicos paream distinguir Sat dos Filhos de Deus, ou
dos anjos, como viriam a ser conhecidos mais tarde, razovel concluir que na verdade
eles tivessem uma mesma natureza; quer dizer, que Sat fosse um anjo encarregado por
Deus de executar uma tarefa indesejvel aos homens ou com cujo julgamento o prprio
cronista no podia concordar.
Observado que aos anjos tambm dado livre-arbtrio, o pensamento religioso
hebraico ps-exlio certamente considerava menos ofensivo questionar as atitudes de
um anjo do que as do prprio Iahweh. H, no primeiro livro dos Reis, uma passagem
que ilustra tal afirmativa com perfeio:

Miquias retrucou: Escuta a palavra de Iahweh: Eu vi Iahweh
assentado sobre seu trono; todo o exrcito do cu estava diante dele, sua
direita e sua esquerda. Iahweh perguntou: Quem enganar Acab, para que
ele suba contra Ramot de Galaad e l perea? Este dizia uma coisa e aquele
outra. Ento o Esprito se aproximou e colocou-se diante de Iahweh: Sou eu
que o enganarei, disse ele. Iahweh lhe perguntou: E de que modo?
Respondeu: Partirei e serei um esprito de mentira na boca de todos os seus

32
PAGELS, op. cit. p. 68.
33
Grifo nosso.
34
Zac: 3, 1-2.
35
II Cr: 16, 9.


13
profetas. Iahweh disse: Tu o enganars, sers bem sucedido. Vai e faze
assim. Eis, pois, que Iahweh infundiu um esprito de mentira na boca de
todos esses teus profetas, mas Iahweh pronunciou contra ti a desgraa.
36


Este Esprito, que o cronista no ousa referir por Sat, certamente no se
encontra to distante das funes de acusador e, sobretudo, de adversrio do ponto
de vista do rei de Israel, Acab.
Mais adiante, no livro das Crnicas, encontramos a primeira modificao efetiva
no papel desempenhado por Sat: Sat levantou-se contra Israel e induziu Davi a fazer
o recenseamento de Israel.
37
Vemos que aqui Sat aparece no apenas como um
acusador, mas como algum capaz de induzir ao erro e ao mal. Essa passagem, no
entanto, torna ainda mais evidente as modificaes pelas quais passava a religio
javista, fruto da assimilao de crenas prprias do pensamento religioso masdaico, pois
aquilo que o cronista atribui a um mal-feito de Sat, Samuel, um profeta mais antigo,
relega prpria ira de Iahweh: A ira de Iahweh se acendeu contra Israel e incitou Davi
contra eles: Vai disse ele, e faze o recenseamento de Israel e de Jud.
38

Finalmente, o nome de Sat, j rebatizado Satans, ser invocado muitas vezes
no Novo Testamento fato que atesta a popularidade crescente dessa crena nos
primeiros sculos da f crist. Pelo menos numa das vezes em que aparece, Satans
ainda mantm sua antiga atribuio, a de acusador: Simo, Simo, eis que Satans
pediu insistentemente para vos peneirar como trigo;
39
A afirmativa de Jesus nessa
passagem torna explcitas as dvidas que o angustiavam e que teriam sido suscitas
pelo esprito de Satans acerca do carter da f de Pedro.
Na maior parte do Novo Testamento, porm, a figura de Sat, ou Satans,
aparece como personificadora do conceito de um mal absoluto, aproximando-se
paradoxalmente mais de seu ancestral iraniano Arimane. Outrora, quando nos
primrdios de sua insero no conjunto de crenas israelitas, no era propriamente um
inimigo de Iahweh, mas sim um servo obediente e fiel, possivelmente um anjo ou
anjos, j que o texto no suficientemente claro encarregado de tarefa ingrata.
Ainda sobre a crena em Sat, apropriado observar que no foi, em tempo
algum, uma inovao aceita de maneira universal pelos hebreus, como viria a se tornar

36
I Rei: 22, 19-23.
37
I Cr: 21, 1.
38
II Sm: 24, 1.
39
Luc: 22, 31.


14
no cristianismo medieval. O historiador Andr Aymard, que, inclusive, soube situar de
forma admirvel o problema da religio javista aps o Exlio, esclarece essa questo:

A doutrina individualista (judaica) no obteve outros xitos. Ser-lhe-
ia necessrio provar que a virtude era sempre recompensada e o vcio sempre
punido, to s na pessoa do interessado: e, certamente, no seria possvel
chegar-se a tal objetivo. O problema da existncia do Mal definia-se de
maneira angustiosa. Alguns, aps o Exlio, isto , quando, segundo parece, o
dualismo iraniano j fizera sentir sua influncia, colocaram Sat ou Belial ao
lado de Jav, sempre abaixo, claro. At ento haviam ignorado tudo isto,
bem como os demnios (Asmodeu um nome derivado do persa). Outros
insistiram na idia do juzo final, da catstrofe derradeira, quando a cada um
se renderia exata justia. Ainda neste ponto sensvel a influncia iraniana.
Mas tanto uma como outra destas solues, que, alis, no foram as nicas,
permaneceram como simples ideologias que no encontraram aprovao nem
unnime, nem oficial. Passara-se o tempo da evoluo criadora.
40


possvel perceber que no apenas a crena em Sat, como muitas outras que se
tornaram notadamente populares no cristianismo em grande parte graas aos essnios,
que muito influenciaram a doutrina de Jesus no eram seno ideologias de grupos
mais ou menos isolados. Alguns acreditavam em Sat, outros no juzo final, outros,
ainda, em ambas as doutrinas, enquanto outros em nenhuma delas. E pela diversidade
de opinies e de sentidos que se pode perceber nos muitos livros que compem o
Velho Testamento, textos de cronistas partidrios de diferentes doutrinas foram
includos nas Escrituras e essa uma das razes possveis para a personagem de Sat
aparecer to pouco.


5. CONSIDERAES FINAIS

O estudo at aqui realizado, embora longe de esgotar o assunto, permite concluir
que Sat, enquanto entidade autnoma, aparece no pensamento religioso hebreu
inequivocamente aps o Cativeiro da Babilnia, em meados do sculo VI a.E.C.
Tambm no resta dvida de que a crena em um ser espiritual a encargo da maldade
uma inovao que resulta da intensa e prolongada troca cultural entre persas e hebreus
no perodo que sucedeu libertao do povo de Israel e que, como vimos, acarretou
tambm outras mudanas significativas no panorama geral das crenas espirituais
hebraicas.

40
AYMARD, Andr. Histria Geral das Civilizaes I, O Oriente e a Grcia, volume II: o homem no
oriente prximo. 1971. In: SAMPAIO, Fernando G. Op. cit., p. 21.


15
Ao menos inicialmente, Sat no desponta como inimigo ou opositor de Deus,
maneira pela qual concebido pelo imaginrio cristo medieval e ainda nos dias atuais.
Pelo contrrio, nesses primeiros tempos de sua gnese transposta da filosofia masdaica,
ele mais como um aliado ou, ainda melhor, um servo de Iahweh. Servo indesejvel,
verdade, e de provvel natureza angelical, mas ainda um servo, que, contudo, ganhar
contornos mais antagnicos e expressivos sculos adiante, com as dissidncias
filosfico-religiosas do judasmo e, um pouco depois, com os primeiros cristos.


6. FONTES TEXTUAIS

MELAMEDE, Meir Matzliah. Tor, a Lei de Moiss. So Paulo: Sefer, 2001.

BBLIA. Portugus. A Bblia de Jerusalm. Nova edio, revista e ampliada. So Paulo:
Paulus, 2002.


7. ORIENTAO BIBLIOGRFICA

KRAMER, Samuel Noah. Mesopotmia: O Bero da Civilizao. Traduo de
Genolino Amado. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1983.

COUST, Alberto. Biografia do Diabo: O Diabo Como a Sombra de Deus na Histria.
Trad. de Luca Albuquerque. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1996.

BROWN, Peter. A Ascenso do Cristianismo no Ocidente. Traduo de Eduardo
Nogueira. Lisboa: Editorial Presena, 1999.

PAGELS, Elaine. As Origens de Satans. Traduo de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1996.

GARDIN, Nanon. Histria das Mitologias do Mundo. Traduo de Pedro Eli Duarte.
Lisboa: Edies Texto & Grafia, 2011.

OTTO, Walter Friedrich. Teofania: O Esprito da Religio dos Gregos Antigos.
Traduo de Ordep Trindade Serra. So Paulo: Odysseus, 2006.

DU BREUIL, Paul. Zoroastro: religio e filosofia. Traduo de No Gertel. So Paulo:
IBRASA, 1987.

SAMPAIO, Fernando G. A Histria do Demnio: da antiguidade aos dias atuais. Porto
Alegre: Garatuja, 1976.



16
ELIADE, Mircea. Histria das Crenas e das Idias Religiosas, volume I: da Idade da
Pedra aos Mistrios de Elusis. Traduo de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010.

ELIADE, Mircea. Histria das Crenas e das Idias Religiosas, volume II: de Gautama
Buda ao triunfo do cristianismo. Traduo de Roberto Cortes de Lacerda. Rio de
Janeiro: Zahar, 2011.

LINK, Luther. O Diabo: a mscara sem rosto. Traduo de Laura Teixeira Motta. So
Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio Temtico do Ocidente
Medieval, volume I. Coordenador da traduo Hilrio Franco Jnior. So Paulo:
Edusc, 2006.

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