DAS KLINGET PARA CONGRESSO 26jul2012
DAS KLINGET PARA CONGRESSO 26jul2012
DAS KLINGET PARA CONGRESSO 26jul2012
A transcrição O dolce harmonia (Op. 19, no 4) para violão por Fernando Sor a
partir do tema Das klinget so herrlich de A flauta mágica de W. A. Mozart
Este artigo visa abordar conceitos musicais, técnicos e estéticos que envolvem a transcrição para
violão feita pelo compositor violonista espanhol Fernando Sor (1778-1839), a partir do tema Das
klinget so herrlich, um fragmento de A flauta mágica k620 de Mozart. O processo de transcrição de
O dolce harmonia (1823-1825) empreendido por F. Sor exigiu, inclusive por necessidades
históricas (aproximadamente 35 anos separam essas obras), uma mudança de concepção da
escritura instrumental, pois, para Sor, tratava-se de verter a essência de um pensamento musical
concebido no meio operático e apresentá-lo sob o conceito sonoro de um instrumento solo
emergente, como fora o caso do violão no final do século XVIII e primeiras décadas do século XIX.
Assim, do ponto de vista instrumental, elementos como textura, estilo de acompanhamento e
conceito de condução de vozes, para citar apenas alguns exemplos, sofreram mudanças de
concepção, resultando quase em uma nova composição e até mesmo outra percepção da forma
musical, porque, acima de tudo, o elemento dramático-literário está ausente.
ABSTRACT
The O dolce harmonia’s transcription (Op. 19, no. 4) for guitar by Fernando Sor
for the theme Das klinget so herrlich of Mozart’s opera The Magic Flute
This paper aims at addressing the aesthetic, technical and musical concepts of the guitar
transcription by Spanish composer and guitarist Fernando Sor (1778-1839) for the theme Das
klinget so herrlich, a fragment of the Mozart’s Die Zauberflöte k620 (The Magic Flute). The
transcription’s process of O dolce harmonia (1823-1825) undertaken by F. Sor required, even for
historical purposes (the compositions were created 35 years apart), a change in the concept of
instrumental writing. For Sor, it was a question of translating the essence of the musical thought
conceived in an operatic way and presenting it under a sonorous concept of an emerging, solo
instrument as had been the case of the guitar in the late 18th century and in the first decades of the
19th century. From the instrumental perspective, therefore, elements such as texture, style of
accompaniment and the voice leading concept, to name but a few, have undergone conceptual
changes, resulting almost in a new composition and even a different perception of the musical form
since, above all, the elements of drama and literature are absent.
Keywords: Fernando Sor, Music Transcription, Acoustic Guitar, The Magic Flute, Pseudo-
Counterpoint, Die Zauberflöte.
2
A TRANSCRIÇÃO O DOLCE HARMONIA (OP. 19, NO 4) PARA VIOLÃO POR FERNANDO
SOR A PARTIR DO TEMA DAS KLINGET SO HERRLICH DE A FLAUTA MÁGICA DE W. A.
MOZART
Eusiel Rego
Edelton Gloeden
O tema Das klinget so herrlich, cantado por Monostatos e Escravos (Monostatos und
Sklaven – Die Zauberflöte, 1986, p.90), escrito originalmente em Sol maior, é um trio para dois
tenores – os escravos – e baixo representado pela figura de Monostatos. Esse trio, por seu caráter
alegre em tempo binário simples e seu contexto cômico-dramático configura um número de
contradance1 (Kunze, 1990, p.640). Tópico musical explorado pelos compositores do século XVIII,
a contradance geralmente integrava a popular quadrille, dança para quatro ou mais pares de
dançarinos (Randel, 1997, p.290 e 843).
Do ponto de vista expressivo, o paralelismo de terças, recurso amplamente presente no
âmbito dramático-musical de A flauta mágica k620, representa aqui o elemento de concordância
entre os personagens e seu teor consoante simboliza a “união de sentimentos”, a união dos opostos,
que teve no duo (e no trio) um gênero musical propício para expressar tal unidade (Chailley, 1994,
p.193-4).
Sua harmonia fundamentada nas funções elementares da tonalidade acompanha uma
estrutura poética disposta em estrofes, que dirige ao público uma atmosfera de irrefletida alegria.
Disso decorre que o contentamento expressado pelo coro dos escravos manifesta-se com espírito de
divertido desapego, quando cantarolam o trivial “La-ra-la” do libreto de Schikaneder, ação que
parece subtrair qualquer mensagem ou ensinamento moral ao público. Das klinget so herrlich, com
sua ingenuidade e estilo rústico, expressa sentimentos simples entre personalidades conflitantes
como Monostatos, Papageno e Pamina (Ratner, 1980, p.358).
É essa cena de essência mítica pastoral,2 desencadeada pela ação musical de Papageno (o
prelúdio executado com o glockenspiel), que ambientará a cena do dueto seguinte (Könnte jeder
brave Mann, a Ária n° 5 Se potesse un suono &c) também transcrita por F. Sor em Sol maior, na
qual Pamina e Papageno, diferentemente de Das klinget so herrlich, conclamam o público a uma
reflexão moral (Chailley, 1994).
1
Rousseau (Dictionnaire de Musique (1768), p.122, apud RATNER 1980, p.13-4) descreve as peculiaridades da
contradance que era frequentemente escrita em métrica binária, de espírito jovial e brilhante, pouco elaborada e sem
ornamentos; uma expressão do low style (estilo baixo em oposição ao high style e ao middle style).
2
O tópico pastoral é tradicionalmente em movimento ternário e geralmente em tempo composto (MONELLE, 2006,
p.215, 227 e 230), mas podemos notar, entretanto, a presença do espírito idílico e da mítica pastoral no compasso Alla
Breve de Das klinget so herrlich.
3
Das klinget so herrlich pode ser traduzido por “Que som tão alegre!” (Guimarães, 1991,
p.71) e seu encaixe dramático ocorre no Primeiro Ato de A flauta mágica sob a forma de um
fragmento do Finale n° 8, cena XVII, compassos 293 a 325; portanto, 32 compassos, contando com
a introdução executada pelo glockenspiel.3
Esse instrumento-símbolo de Papageno – o glockenspiel (o outro é a flauta de pã); signo do
elemento terra no contexto simbólico de A flauta mágica –4 detém uma qualidade sonora capaz de,
por ação de sua música, realizar a magia pela qual Papageno, no contexto de suas provas, poderá
almejar a condição de humanidade Ilustrada e “aspirar à iluminação”, um ato de “determinação e
livre arbítrio” (Guimarães, 1991, p.10). A constituição e a sonoridade metálica desse instrumento,
entretanto, parece simbolicamente contrapor-se a esse ente pastoril, “caçador de pássaros habitante
dos ares” (Chailley, 1994, p.94 e 196).
Ratner observa o uso tópico, pelos compositores de fins do século XVIII, de instrumentos
musicais mecânicos como relógios (ex.: a Sinfonia O relógio – 1794 – de Haydn), caixinhas de
música e brinquedos sonoro-decorativos (Ratner, 1980, p.391), cujos efeitos evocavam a
ambientação mágica e sobrenatural dos contos de fadas, como o glockenspiel. Na partitura de
Mozart (Die Zauberflöte, 1986, p.90, compasso 292), o glockenspiel é denominado instrumento de
aço (stromento d'acciajo).5
Para Kunze (1990, p.633), a natureza idílica e intermediária entre pássaro e homem6 de
Papageno tem seus antecedentes “no reino dos sátiros e dos faunos”. Trata-se de um ente entregue
às necessidades básicas da vida de pássaro e, como portador desse instrumento, pode, com sua
música, evocar a ancestralidade primordial, imanente aos sons superiores da série harmônica. Tais
elementos de idealidade pastoral, provavelmente, levaram F. Sor a cultivar as qualidades
timbrísticas dos harmônicos no âmbito do violão, de forma peculiar.
Do ponto de vista da ação dramática, o tempo Alla Breve de Das klinget so herrlich fecha o
Allegro que se inicia no compasso 265 com Monostatos. Assim, a ação teatral da cena XVII
envolve, como dissemos, o mouro Monostatos7 e seus escravos que tentam aprisionar Pamina e
Papageno. No momento dessa ação, Papageno faz soar música dos “sinos” mágicos e é, pelo poder
dos sons, salvo com Pamina. A música expressa pelos sinos (mecânicos) é tão formidável e
3
Segundo Chailley, essa cena mágica de dança ao som do glockenspiel foi “extraída” de outro Singspiel de caráter
burlesco de nome Oberon, de muito sucesso na época em Viena (CHAILLEY, 1994, p.25).
4
Que se contrapõe à flauta de madeira de Tamino. Papageno personifica o Papagaio, arremedo do homem. Para
Chailley (idem, p.97 e 122), a “prova da terra”, ligada ao glockenspiel, evoca obscuridade e estatismo.
5
Chailley (op. cit., p.113) afirma que o libreto original o denomina como “brinquedo de madeira” e não de metal. O uso
do metal no século XVIII declara traços de mecanização da vida, trazida pela emergente sociedade industrial
(SCHAFER, 2001, p.107-29).
6
O “homem-pássaro”, o “homem-natureza”. O homem dividido em suas metades, uma divina e outra terrena.
(SALAZAR, 1983, p.357).
7
Monostatos é uma figura fria, errante, que procede de uma esfera “demoníaco-espectral” (KUNZE, 1990, p.637-8).
4
efetivamente sobrenatural que inebria e arrebata Monostatos e seus escravos,8 que saem dançando e
cantando alegremente, trazendo ao público uma paz reconciliadora surpreendente (Chailley, 1994,
p.196).
Na Figura 1, fizemos uma redução para clave de sol do original (Die Zauberflöte, 1986,
c.293) do prelúdio do glockenspiel, das partes vocais e do baixo de Das klinget so herrlich para que
se possa avaliar melhor a transcrição de Sor.
8
A oposição Papageno/Monostatos é simétrica (CHAILLEY, 1994, p.94), que representa, a nosso ver, o contraste
aparente entre a luminosidade e ombra (obscuridade). Entretanto, entendemos aqui ombra como um subtópico do
gênero pastoral (Cf. RATNER, 1980 e MONELLE, 2006).
9
Conforme a edição fac-símile de Jeffery (1996), o Op. 9 é denominado Oh cara armonia e na edição fac-símile do Op.
19, Ária no 4, como O dolce harmonia (JEFFERY, 1995).
5
(Sor esteve na Espanha até 1813, exilando-se em Paris nesse mesmo ano) pela voz de Angelique
Catalani sob o título de “O dolce contento”, de onde, provavelmente, Sor teria tido acesso à parte de piano.10
Na Tabela 1, observamos o texto de Das klinget so herrlich de Emmanuel Schikaneder e sua
tradução para o português. Na primeira coluna à esquerda, podemos notar a simplicidade harmônica
e formal relacionada a cada verso. Em O dolce harmonia de F. Sor, verifica-se uma sentença
clássica (Caplin, 1998).
Piris (1998, p.54-7) observa também a possibilidade de Sor ter conhecido Die Zauberflöte
por meio de amigos maçons residentes em Paris a partir de 1813 ou em sua fase na Espanha
(durante visita feita a Paris em 1808 mencionada por Muñoz (1965, p.47),11 ou no período que
compreende sua saída do Monastério de Montserrat e de seus estudos na Academia de Matemáticas
de Barcelona, quando teve contato com músicos, clérigos e militares franceses (Gásser, 2010, p.24).
Para Piris, a composição de sua ópera de juventude (19) Il Telemaco nell’isola di Calipso (1796),
por sua temática helênica,12 teria sido uma prova maçônico-iniciática. Para Gásser (2010, p.154), a
iniciação ao mundo da ópera formou em Sor seu caráter ilustrado.13
A edição fac-símile de Jeffery (1996) do Op. 9, Oh cara armonia (Variations on a theme of
Mozart), que utilizamos aqui (comentamos o Op.9 por sua temática comum ao Op.19) é constituída
10
Segundo Jeffery, além de Viena, as apresentações de A flauta mágica ocorreram na Itália em 1794 e, posteriormente,
em Londres em 1819. Para esse autor, Sor baseou-se em uma partitura vocal de Il flauto magico publicada por Birchall
em Londres no ano de 1813. Outra edição do Op. 9 também foi publicada em Paris (1816-1822) pelo editor A.
Meissonnier sob o título Nouvelle Collection, 9e. et 10e. Livraison e, posteriormente, outra edição francesa foi publicada
pelo próprio compositor em 1826-7, sendo dedicada a seu irmão Carlos Sors, também violonista e compositor. Edições
alemãs como a Peters e Simrock apareceram em 1824-5 (JEFFERY, 1994, p. 62-3 e p.153).
11
Segundo Piris (1998, p.54), até o ano de 1810, A flauta mágica não havia ainda cruzado as fronteiras do mundo
germânico e provavelmente Sor não a conheceu na Espanha e nem mesmo durante sua permanência em Paris.
12
O tema pedagógico desta ópera séria de F. Sor, de caráter bucólico – onde o compositor “utiliza recursos e inovações
expressivas preconizadas por Gluck” (GÁSSER, 2010, p.163) – foi bastante difundido na época e baseou-se no texto
Les Aventures de Télémaque (1699), um dos romances franceses mais lidos na Europa no século XVIII, de autoria do
arcebispo Fenelón (idem, p.34).
13
O perfil do homem ilustrado dessa época, símbolo da nova era, representa o cidadão do futuro: a self-made man, o
inventor empresário, poliglota, autodidata e estadista (HOBSBAWM, 1977, p.205).
6
de uma Introdução em tempo lento – Andante Largo em mi menor, com figuras pontuadas na voz
principal ( ) ao estilo de Abertura Francesa, importante tópico cerimonial do século XVIII
(Ratner, 1980, p.20);14 cinco variações e coda escrita na tonalidade homônima maior.
Apojaturas, retardos e valores pontuados marcam a transcrição de Sor sobre Das klinget so
herrlich (Figura 2).15 Se, por um lado, a utilização de tais recursos possa configurar algum excesso
diante da proposta de simplicidade temática de Mozart, por outro o estilo de acompanhamento da
melodia em terças de Sor e a linha do baixo entrecortada por pausas (efeito pizzicato) (Chailley,
1994, p.196) conferem a O dolce harmonia um valor expressivo próprio da música de ópera e que,
ao mesmo tempo, revela-se como peça independente, abstraída de seu contexto dramático. Tais
recursos aplicados por Sor foram, a nosso ver, determinantes na formação de um conjunto de
idiomatismos que se cristalizaram na escrita para o instrumento durante o século XIX.16 Segundo
Ratner (1980, p.62), a música de Mozart (e o estilo clássico) estava “altamente saturada de
apojaturas” sendo um dos principais elementos formadores do discurso musical do século XVIII.
14
Sparks (In: GÁSSER, 2010, p.434-6) denuncia uma omissão histórica (de performance) a que foram submetidas as
Variações Op. 9 de Sor. Segundo o autor, Sor tocava frequentemente essas variações em concertos públicos durante a
década de 1820 (“Arranged with an Introduction an Variations for the guitar”, consta do frontispício da versão fac-
símile de JEFFERY, 1996). A abertura (Introduction) em mi menor não era executada na primeira metade do século
XX, cabendo a Andrés Segóvia (que influenciou diversas gerações de violonistas durante quase todo o século XX) a
difusão pública dessa versão “mutilada”.
15
Conforme Koch (Versuch, II, p.155 apud RATNER, 1980, p.62), no estilo livre ou galante do século XVIII, a
apojatura foi a mais notável forma de aplicação da dissonância, prescindindo de preparação.
16
W. G. Sasser, em sua tese The Guitar Works of Fernando Sor (1960), iniciou um interessante estudo de classificação
de algumas características idiomáticas e de estilo, como o uso de texturas, ritmos, tonalidades etc., presentes em obras
representativas para violão de Fernando Sor.
7
Diferentemente da transcrição que colhemos de uma das variações Op. 24 de Matteo
Carcassi sobre Das klinget so herrlich (Figura 7), que trata o tema vocal e orquestral de Mozart ao
estilo de melodia acompanhada, Sor constrói a textura de O dolce harmonia em camadas, uma
espécie de condensação da condução de vozes. Apesar de atualmente tal estilo de acompanhamento
nos parecer trivial, é curioso notar como as linhas melódicas aplicadas à escritura violonística são
frequentemente organizadas de forma que pareçam configurar camadas sonoras interdependentes.
Para Sasser (1960, p.115), tal tipo de escritura, o estilo Freistimmigkeit,17 advém da
experiência de Sor com a escritura vocal dos duos da ópera italiana e da prática da transcrição
baseada no conceito de redução a duas partes de sinfonias, quartetos etc., que exigiam do
compositor a elaboração de uma terceira voz que poderia mover-se livremente “entre” as partes
existentes (baixo ou melodia) (Ratner, 1980, p.108-9).
Na Figura 3, por exemplo, observamos uma aplicação do estilo Freistimmigkeit e como Sor
modificou a figuração original, especialmente na “voz” do baixo, criando uma solução (com uso de
pausas) que contribuiu para uma maior liberdade técnica do violonista. Tal passagem permite o
fluxo da melodia em terças em direção ao ponto culminante da frase18 (nota mi) e as pausas de
semicolcheia e colcheia no baixo parecem configurar uma necessidade técnico-idiomática do
instrumento. O salto de oitava no baixo, além de ampliar o âmbito, a textura (dando impressão de
uma nova camada sonora), estabelece um contraste (o movimento contrário) com a continuação
melódica nas vozes agudas. Sor sugere, assim, a solução de um problema idiomático para violão
solo, que, nos moldes de Mozart, seria inexequível.
Mozart Sor
Figura 3 Solução idiomática de Sor em Das klinget so herrlich, compasso 6
17
Sasser (1960, p.134) atribui o uso da técnica do pseudocontraponto (Freistimmigkeit (APLE, 1947, p.333 – verbete
Freistimmigkeit) como textura e tópica importantes na concepção estético-violonística de Sor. O conceito de tratamento
“semicontrapontístico” e “quase-contrapontístico” (semi and quasi-contrapuntal treatment) é utilizado por Schoenberg
(1970, p.82-7) para diferenciar técnicas de acompanhamento.
18
Ponto culminante como local de aglutinação de forças, portanto de grande energia intelectual e expressiva. Diz
Jeppesen (1970, p.58): “Quanto maior a altura de um ponto melódico, maior a impressão de energia mental”.
8
1.3 O motivo de cinco notas, a imitação do glockenspiel e os sons harmônicos
O “motivo do silvo” (cinco notas ascendentes) e seu caráter pastoral (flauta de pã) é a marca
de Papageno:19 ideia onipresente em A flauta mágica na “inocente” tonalidade de Sol maior (Kunze,
1990, p.601 e 656). Esse motivo é trabalhado por variação na Seção 2 da transcrição de F. Sor. No
âmbito de A flauta mágica, sua presença torna-se mnemonicamente evocativa, (um alerta!), tanto do
canto dos pássaros quanto do silvo das serpentes, do assobio dos ventos e uma alusão simbólica ao
reino natural, ao gênero pastoral (Monelle, 2006, p.215 e 227). Esta pentatonia intrínseca ao motivo
(um pentacorde) é interpretada por Sor na forma de harmônicos naturais (sons flautados) em O
dolce harmonia,20 Figura 4 acima.
Na música para violão de F. Sor, o uso auxiliar dos sons harmônicos é recorrente, e pode ser
encontrado, por exemplo, em diversas passagens como na 4ª variação da Fantaisie Op.16 sobre o
tema Nel cor non più mi sento de G. Paisiello (Jeffery, edição fac-símile, 1996). É de grande
dificuldade técnica a execução ao violão dos harmônicos naturais em O dolce harmonia, apreciados
enquanto recurso estético. Tal efeito timbrístico exige, além de uma apurada construção do
19
Sobre a herança do gênero pastoral na música de finais do século XVIII e início do XIX, ver Monelle (2006, p.208).
Para esse autor, a flauta de pã é o instrumento-símbolo do gênero.
20
Sons flautados (do francês flutés, Sor, 2005, p.91) era uma denominação para sons harmônicos usada pelos
compositores guitarristas dos séculos XVIII e XIX (GÁSSER, p.375). Ver no Méthode pour la guitare de 1830 (Sor,
1971, p.33, plates xxi, xxii e xxiii) onde o compositor guitarrista dedica um capítulo ao estudo dos sons harmônicos.
9
instrumento, uma execução precisa sobre os pontos onde estão situados os harmônicos na corda,
que, nem sempre, coincidem com a divisão “temperada” dos trastes. 21
No exemplo a seguir (Figura 5), escreveremos as notas reais na camada inferior do
pentagrama com a fonte maior, delimitadas por uma linha curva pontilhada para indicar as cordas,
conforme o procedimento de Sor em sua transcrição O dolce harmonia. Os números marcam o local
no braço ou o traste sobre o qual o dedo da mão esquerda se “encosta” sobre a corda. As notas em
fonte menor, escritas na camada superior e delimitadas por colchetes, correspondem aos sons
resultantes (harmônicos).
O pentacórdio (Chailley, 1994) de Papageno exprime uma presença mágica e musical que
pode ser percebida em todo o âmbito de A flauta mágica. Sor, em sua transcrição (Figura 4 e 5
acima), “metamorfoseou” tal motivo, expressando-o como efeito tópico em O dolce harmonia,
Figura 6.
21
No século XVIII, distinguem-se dois tipos básicos de sons harmônicos usados pelos violonistas: os naturais,
praticados pelos guitarristas desde fins do século XVIII e que podem ser obtidos teoricamente sobre os trastes 12, 9, 7,
5, 4, 3 e os artificiais, com os quais é possível obter toda a gama cromática em cada corda (Gásser, 2010).
10
Figura 7 Matteo Carcassi (1792-1853), transcrição Op. 24 de Air des mystères d'Isis varie
CONCLUSÃO
A escritura violonística de Sor afasta-se muito pouco do gesto em pizzicatos (Chailley, 1994,
p.196) presente em Das klinget so herrlich. Do estilo de acompanhamento do baixo, até a
construção melódica em terças na camada superior, O dolce harmonia denota uma enriquecedora
experiência de transcrição musical. Sua musicalidade simples pode, por meio do tratamento e do
trabalho motívico-composicional, permitir múltiplas abordagens interpretativas – e, talvez, seja esse
o fator de sua grande aceitação pelos compositores dos séculos XVIII e XIX: a capacidade de
amoldar-se a múltiplas exigências estéticas.
11
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