Philippe Lacadee Versao Final 3
Philippe Lacadee Versao Final 3
Philippe Lacadee Versao Final 3
PHILIPPE LACADÉE
PHILIPPE LACADÉE
Recusa de gozo
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
Assim, a castração como recusa de gozo implica o fato de que este não ocorrerá.
Porém, Lacan, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” (1998), introduz um
raciocínio dialético: “O gozo deve ser recusado para ser alcançado”. Ele não deve ter
tido lugar para advir. Trata-se do fato de que a castração é um deslocamento do
gozo, de que o gozo deve ser recusado, em certo plano, para ser alcançado no nível
da lei. Ele deve ser recusado no real para ser alcançado sob a égide do simbólico.
O que Lacan chama de lei do desejo é justamente essa recusa do gozo no real, a
passagem do gozo para baixo (da barra). É isso que repercute a metáfora paterna,
que é a tradução, em termos edípicos, do processo do recalque e pode ser
generalizada, caso se postule que o operador essencial do recalque é a própria
linguagem, a palavra, que opera essa passagem do gozo para baixo, no sentido de
que bloqueia sua ocorrência.
Lacan, em seu retorno a Freud, especifica que o adversário de Eros, do amor, não é
o ódio; é a morte, Thanatos. É preciso diferenciar a violência do ódio. O amor, como
o ódio, são modos de expressão afetiva de Eros. O ódio está do lado de Eros e é, de
fato, um vínculo muito forte ao outro, é um laço social eminente, como se viu na
Jornada. Quanto à violência, ela está do lado de Thanatos.
A tendência é, como esclarece J.-A. Miller, algo já objetivado, algo que se apresenta
de maneira bruta, sem qualquer dialética de sentido, e algo sobre que a interpretação
permanece sem efeito.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
Na tendência à agressão, o sujeito é tomado por uma experiência de vida em que ele
não é mais um efeito de sentido, mas encontra no real alguma coisa fixada no corpo
que o arromba. Pode-se apreender essa tendência destacando-se do registro da
foraclusão do sujeito, e, portanto, da passagem ao ato. Lacan desenvolve, desse
modo, uma tese: o homem deve assumir seu despedaçamento original, em
decorrência do qual se pode dizer que, a cada momento, ele constitui seu mundo
pelo próprio suicídio e do qual Freud teve a audácia de formular a experiência psíquica
tão paradoxal como expressão, em termos biológicos, do instinto de morte – que,
mais tarde, chamará de pulsão de morte – ou mesmo como gozo fora de sentido.
Alexis, jovem herói de A Virgem dos assassinos, ilustra essa tendência à agressão
enodada ao próprio corpo como única saída para se defender de um real pulsional
que o persegue, no seio mesmo de seu corpo, e atualiza sua violência sobre o corpo
dos outros e, também, na cidade. Definitivamente, é o triunfo da pulsão de morte e
da violência como ato gratuito. Para Alexis, é o sinal da liberdade, porque desligada
de qualquer causa. Os sicários, contudo, rendem homenagem à Virgem, já que
encontram, nesse ato, um ponto de apoio essencial para justificar, na falta da
metáfora paterna, suas existências.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
Petit Roi, o herói da novela Inferno, ensina como as marcas violentas dos golpes de
sua mãe, na falta de um pai para se apoiar, o confrontam com uma escolha forçada:
matar ou morrer, a solução de ser um ator da violência na cidade. Ele ilustra
plenamente o mais de gozo implicado na sua violência, como se estivesse preso no
turbilhão de uma violência sem porquê. Ele nunca teve lugar nem endereço, devido
à ausência de seu pai e à violência de sua mãe, para situar uma possível razão para
o enigma de sua existência. Nenhuma explicação provável para o desejo do Outro e,
por via de consequência, não pode se vincular ao Outro. Como resultado, é a violência
que se tornará sua única resposta concebível em face do real que o persegue.
Certa manhã, a mãe de Jean me telefona, às 8h, para dizer que não pode mais e
quer que eu a receba com urgência, porque seu filho havia destruído tudo em casa.
Digo-lhe: “Mas você sabe que devo vê-lo às 17h”. E ela responde: “Sei. Ele está ao
meu lado”. E acrescenta: "Porém, não é mais possível. É preciso fazer alguma coisa,
e ele concorda com que eu o acompanhe".
Recebo os dois. A mãe está com muita raiva do filho e explica-me que ele tinha
quebrado tudo. Ele diz que arrebentou uma corda grossa e bateu a cabeça contra a
parede, para se acalmar. Decido não aceitar sem discutir a imposição do significante
‘violento’ usado pela mãe e por seu filho. Isso pode ser apenas um fator secundário.
Tento não ignorar que há uma revolta da criança, que pode ser sã e se distinguir da
violência errática. Pode ser que ele teve razão de se revoltar? "Tem-se razão de se
revoltar"2.
Com Jean, nesse dia acompanhado de sua mãe, devo, então, entrar no plano da
investigação sobre crianças violentas proposto por J.-A. Miller. Trata-se de uma
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
violência que pode ser falada e, em caso afirmativo, resta saber o que ela diz? Não
é, também, o caso de se procurarem os traços discretos da paranoia precoce, sem
se esquecer de que o sujeito aparece, que a criança nasce sob a égide da paranoia?
A violência que fala pode ser tanto de ordem paranoica quanto de ordem histérica.
A mãe insiste sobre a violência do filho e diz que esta deve ter uma causa, que ela
não a aguenta mais, e detalha-me as circunstâncias da situação. Dou-me conta de
que ao filho foi destinado, muito cedo, o lugar de violento, de quebrador.
Mesmo considerando que a violência na criança talvez seja de ordem psicótica, tento
implantar-lhe um significante de autoridade, um ersatz com ofício de significante
mestre, pois a mãe não para de afirmar que é a única a tomar posição e que,
divorciada, o marido se recusa a intervir. Digo-lhe que, se isso é insuportável, ela
pode chamar a polícia, pois não tem de suportar tudo, que há limites e que a polícia,
como guardiã da paz, também pode ser usada para tanto, que “às vezes é preciso
de um terceiro para parar”. Ela perturba-se: "Mas meu filho não é um delinquente e
vim falar com um psicanalista e não com um comissário de polícia”. Minha
intervenção visava a introduzir um significante com a função, o valor, de S1. Procuro
‘distinguir a violência como surgimento de uma potência no real da violência
simbólica inerente ao significante’ que se sustenta na imposição de um significante
mestre. Se essa imposição de um significante mestre falta, Jean não precisa
encontrar um substituto e acaba impondo violência a seu corpo, porque não é a
primeira vez.
"Eu proporia que, quando se lida com o que chamamos, na nossa vulgata, fenômenos
próprios de gozo, se busque sempre articulá-los em seu lugar no processo simbólico,
porque isso continua a ser a lição fundamental de Lacan" (MILLER, 2003, p. 239).
O processo simbólico
Isso só pode ser abordado mais tarde. Resolvo, nesse momento, ser muito minucioso
no levantamento dos propósitos da mãe no que concerne a seu “destruiu tudo”,
solicitando-lhe especificar o que Jean tinha destruído e, levantando-me da minha
cadeira, olho a cabeça dele e digo-lhe: "Sua cabeça, porém, não tem nada. Não vejo
onde ela arrebentou”.
Esclareço aos dois que, às vezes, é preciso prestar atenção às palavras que se
emprega, porque, depois, não se apreende muito bem o que aconteceu. Após a
invocação ao guardião da paz, empreendo um processo simbólico.
A mãe explica-me então, que, na verdade, Jean quebrou o vidro de uma mesa,
socando-a com o punho cerrado, e, em seguida, quebrou a porta de seu quarto com
um soco. "Você sabe que essa não é a primeira vez. Na escola também, um dia, por
causa de sua namorada, Léa, ao socar a porta do banheiro, com raiva, ele luxou o
pulso. Logo você vê bem que ele é violento com ele mesmo, que ele se bate. E estou
farta de ele quebrar tudo".
Jean explica-me que, de fato, não arrebentou a cabeça, mas que a bateu contra a
parede, para acalmar "seu surto de violência":
– Ah, bom! Você teve um surto de violência? Pode explicar como isso
aconteceu?
– Sim. A coisa sobe e a única maneira de acalmar tudo é a minha
tendência, são os punhos cerrados.
̶ Explique-me isso: “minha tendência são os punhos cerrados”.
– Começa no baixo ventre e, depois, me toma o corpo, a garganta,
fixa-se em mim e faz cócegas nos braços. Meus braços contraem-se,
como em convulsões, e a única maneira de se resolver, de fazer isso
parar, é socar com os punhos cerrados, para o arrancar.
– Arrancar o quê?
– É como alguma coisa em excesso, fixada em mim, cócegas
enormes.
– Ah, bom! Porém, às vezes, sentir cócegas é agradável, não?
– Não. De fato, no caso, é a cólera que me faz cócegas no corpo; são
as observações que fazem a meu respeito. Guardo-as para mim, em
mim, e, depois, isso transborda do meu corpo e sai pelos punhos
cerrados.
Em seguida, conta-me que, sem dúvida, ele passa por um registro muito diferente,
quando bate a cabeça contra as paredes – trata-se, na verdade, do muro da
linguagem, pois afirma, com segurança, ter arrebentado a cabeça, o que não parece
uma metáfora, mas, sim, o que ele viveu no real. Parece que esse fenômeno traduz,
então, o fracasso do processo de defesa, e é por isso que tentei, ao me levantar e
olhar a cabeça de Jean, um processo de deslocamento.
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
A violência de Jean parece ser o oposto do sintoma. Ela não é resultado do recalque,
mas, antes, a marca de que este não se operou. E não parece ser um substituto da
pulsão, mas, ao contrário, a satisfação da pulsão de morte.
A criança violenta é aquela que quebra e encontra prazer no simples fato de quebrar,
de destruir. Será preciso interrogar Jean sobre o gozo implicado nisso e sobre o que
se poderia chamar de “o puro desejo de destruição”. J.-A. Miller determina: “Quando
se denunciam os quebradores, denuncia-se, no final das contas, o puro gozo de
quebrar. Não se denuncia a política dos quebradores, denuncia-se o ‘mais de gozar’
implícito na violência dos quebradores”. É, pois, esse ‘mais de gozar’ que convém
questionar.
Para Jean, esse não parece ser o caso. Ele declara que não tem palavras no momento
da ocorrência, portanto, não pode repeti-las, já que é como uma pulsão, algo que
cresce e se replica. Ele tenta, então, um esforço de tradução do que lhe parece
aumentar esse gatilho de violência. É, no mais das vezes, uma recusa de sua mãe,
mas ligada, sobretudo, às palavras ditas por ela. Afirma, a propósito, que são essas
que o ferem, principalmente as observações dela, que se repetem em sua cabeça e
se transformam nele, como se ele próprio se dissesse: “Você só faz merda. Ainda
que trabalhe, não conseguirá nada”. O que o deixa colérico é o fato de as advertências
de sua mãe lhe tomarem o corpo, como se ele os contivesse em si mesmo, quando,
como explica, “elas são dela e, de repente, me encontro com elas em mim, o que me
faz perder a cabeça”. Jean não compreende os comentários dela, porque ele sabe
que consegue:
Tiro boas notas, embora seja verdade que não faço os exercícios de
revisão, pois, para mim, é perda de tempo. Presto atenção às aulas,
tenho uma memória excelente e isso é suficiente. No entanto, ela
quer que eu deixe minha tela e faça as revisões. E, de noite, ela toma
meu celular.
E, nesse momento, pesa, cada vez mais, o fato de a mãe se recusar a aceitar Léa, a
namorada dele, ou de concordar que ele saia pela cidade com ela. Além disso, à
noite, toma-lhe o celular, para que eles não se falem pelo telefone por toda a noite.
É, portanto, essa recusa de sua mãe, ligada à sua maneira de falar com ele, que o
faz explodir. É, pois, essa recusa do gozo no real que ele não pode simbolizar. No
caso de Jean, mostra-se defeituoso o próprio operador da linguagem – ou seja, a
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
De fato, Jean também explica muito bem que o que ele não suporta é o tom de voz
de sua mãe, sua maneira de lhe dirigir observações. Ele sente na entonação dela o
fato de o tratar como um cão, que deve obedecer, e sente-se um pouco humilhado.
Há nisso um traço discreto de paranoia? Porque ele se sente perseguido por essa
voz, que parece doutrinar seu ser. Sente-se que, quando sua mãe lhe fala, isso fala
dele e, mesmo, fala nele. Como indica Lacan, em “Posição do inconsciente”, para o
sujeito, “isso fala dele e é nisso que ele se apreende” (LACAN, 1998, p. 843). Em
“Observação sobre o relatório de Daniel Lagache...” (LACAN, ibid. 653-691), há uma
passagem muito elucidativa sobre a determinação do sujeito pelo discurso que o
precede. Antes mesmo que ele surja, isso fala dele. Porém, de fato, Jean será mais
preciso.
Ele dirá que sente, nessa voz, o fato de sua mãe não ser feliz, visto que ela declarou,
um dia, aos filhos, que tinha sacrificado tudo – sua carreira, sua vida de mulher –
para criá-los sozinha. Então, ele lhe fala que não entende por que ela não é feliz; que
se isso lhe é insuportável, ela deveria refazer sua vida, ter um companheiro e,
sobretudo, tentar de novo o curso superior, a fim de ganhar mais e parar de se
queixar de sua vida diante deles:
A violência de que Jean fala pode ser tanto de ordem paranoica quanto de ordem
histérica. Com base no que ele informa, pode-se levantar a hipótese de que, numa
clínica sob transferência, no ponto em que a palavra permite encontrar um lugar de
endereçamento, tal violência é de ordem histérica. Ela tem o valor de demanda de
amor ou de queixa contra a falta a ser. E encontra seu lugar no registro de Eros.
Nesse registro, a violência da criança é o substituto de uma satisfação não advinda
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais – Almanaque On-line n°20
Conclusão
Vimos que é preciso ‘distinguir a violência como surgimento de uma potência no real
e da violência simbólica inerente ao significante’, que se sustenta na imposição de
um significante mestre: “Quando essa imposição do significante mestre falta, o
sujeito pode se encontrar um ersatz, marcando-se a si mesmo – escarificação,
tatuagem, piercing, diferentes maneiras de se cortar, de se torturar, de impor
violência contra o próprio corpo”, como afirma J.-A. Miller (2003).
Hoje, isso está de tal forma generalizado, que se torna moda, é um fenômeno de
civilização, é superficial; mas eu diria que é o sintoma da perturbação própria da
ordem simbólica herdeira da tradição. Isso dito, restará sempre saber por que alguns
sujeitos são mais sensíveis que outros, a ponto de cometerem violência contra seus
corpos.
Referências
VALLEJO, Fernando. La Vierge des tueurs (1942) [La Virgen de los sicarios]. Paris:
Belfond, 1997. Romance adaptado para o cinema pela cineasta Barbet Schroeder
(2000).
Tradução e revisão
Ana Lydia Santiago e Cristina Vidigal
p. 212-217.