Psicopatologia de Freud A Lacan
Psicopatologia de Freud A Lacan
Psicopatologia de Freud A Lacan
impediment for the analytical cure. Lacan considered that this radical evil is also the
origin of a “pulsional” satisfaction that does not serve the purpose of the
civilization, because the symptom is for each individual a way to live and be happy.
> Key words: Psychopathology, repression on sexuality, unhappiness in civilization,
sympton and happiness
pulsional > revista de psicanálise >
ano XVIII, n. 184, dezembro/2005
*> Trabalho que resultou das discussões havidas no Grupo de Trabalho Psicopatologia e Psicanálise da
ANPEPP.
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co advém do excesso de coerções que pesam incestuosa não é a razão que impede o su-
sobre a vida sexual do homem civilizado. O jeito de usufruir do sucesso, obrigando-o a
laço entre a “Moral sexual civilizada e a fracassar? Não seria também esse mesmo
doença nervosa moderna”, de que falou sentimento, a causa que impele ao crime
Freud em 1908, generalizou-se em “O mal- para obter o castigo? A necessidade incons-
estar na civilização” durante os anos 1929/ ciente de punição tem raízes profundas na
30. Nesse momento, ele renova toda a po- vida psíquica tal como retrata o mito do par-
tência de sua crítica aos danos causados ricídio originário. O sujeito civilizado, se le-
pela civilização aos indivíduos avançando a vamos em conta sua dívida para com a
tese de que há um paradoxo da satisfação renúncia primordial ao incesto e à agressão,
pulsional, Quanto mais renunciamos, mais não foi feito para ser feliz.
renunciamos! A renúncia não é simples- Não vamos percorrer toda a teorização de
mente a conseqüência malsã da coerção re- Lacan acerca do tema da felicidade e do so-
pressiva que pesa sobre a sexualidade. A frimento psíquico. Penso que Lacan não foi
renúncia é uma erva daninha pois é, ela nada otimista no começo de sua teorização.
mesma, um modo de satisfação pulsional. As O sujeito () se constitui mortificado pelo
pulsões de morte avançam na direção desta significante e, em conseqüência dessa per-
modalidade nefasta de satisfação, sempre que da de gozo no momento do seu advento, está
a sexualidade, o erotismo e o desejo recuam. condenado a eternizar-se como falta-a-ser.
De certo modo, em seus trabalhos sobre o O gozo perdido é um obstáculo à simboliza-
caráter, Freud já havia antecipado a proble- ção embora não seja real. O gozo, no primei-
mática de uma satisfação pulsional que, ro ensino de Lacan, é apenas uma miragem,
afastada das vias da satisfação sexual dire- um resíduo imaginário do incesto. O campo
ta, encontra o caminho regressivo da satis- da fala e da linguagem, tal como se desen-
fação na identificação. Em “Alguns tipos de rolam na experiência analítica, contribuem
caráter encontrados no trabalho analítico” para dissolvê-lo. Somente depois do Seminá-
(1917[1916]), já contrapõe os indivíduos “que rio X 1962/63 (L’Angoisse), Lacan encontra
artigos
reivindicam ser tratados como exceção”, aos uma maneira de incluir o gozo – através da
“fracassados por causa do sucesso” e aos vertente do fantasma (<>a) – na consti-
“criminosos em conseqüência do sentimen- tuição do sujeito. Reconhece nessa época
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to de culpa”. Ele não dispõe ainda do concei- que o gozo não é apenas uma dimensão au-
ano XVIII, n. 184, dezembro/2005
sintoma. Se não há felicidade na vida civili- ticos e seu princípio é a colocação das peças
zada, deve haver, por isso mesmo, satisfação em apreço numa relação de equivalência. As-
pulsional nesse fracasso. O sinthoma é um sim, um problema será substituído pela so-
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voz imperativa que não coloca em pé de com isso, ele nos responde: — “Atenção, te-
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igualdade os parceiros em questão. A lei, nho que levar em conta o bem público, preen-
como lembra Miller, supõe o terceiro, en- cha por favor os papéis.” Se lhe dizemos que
quanto o contrato é um esforço para dar sta- se trata do bem nacional, trata-se da lei,
tus simbólico ao estádio do espelho. A lei logo, o que não está expressamente interdi-
funciona tanto pelo silêncio quanto pelo que to é permitido, ele responde: “atenção, uma
ela diz. Os regimes liberais, por oposição aos expertise científica tem necessidade de to-
autoritários, são aqueles em que a lei permi- das as informações. Logo, preencha!”. Na
te tudo que ela não interdita expressamen- versão antiga, havia as funções régias do
te. O silêncio da lei é o que a faz funcionar. Estado, mas o Estado não se mete senão na
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política exterior, na polícia, nos impostos. que se inscreve como um todo limitado.
Atualmente, reina a transação, conservamos Para prosseguir nesta investigação inaugu-
uma função régia do Estado, mas ela vai se rada por Lacan, precisamos refletir sobre as
ocupar de todos os aspectos que fazem a condições éticas tanto da demanda, quanto
vida pública moderna. Entre esses elemen- do exercício da psicanálise no mundo globa-
tos, a saúde pública, a saúde mental, e o lizado. O que fazer, quando o declínio da or-
mal-estar. Não há mais nenhum limite que ganização edipiana do laço social, o avanço
se possa impor à função régia do Estado, em do discurso da ciência e de seus aparelhos de
nome do bem de todos. gestão da saúde mental e do mal-estar
É uma coisa que aparece em todas as gran- (Miller e Milner, 2004), o aprofundamento da
des doutrinas materialistas, supomos um “a inconsistência do Outro com seus comitês
mais” que excede toda forma de contrato, de ética (Laurent e Miller, 1996-1997), assim
excede toda absorção pela forma problema- como o esvaziamento de toda palavra ora-
solução. Marx demonstrou a existência desse cular (Miller, 2002-2003) nos confronta com
excesso com respeito à venda da força de casos de difícil classificação?
trabalho no mercado. Ela é supostamente li- O que se apresenta na clínica, nesse tempo
vre (quem o faz, faz porque quer), igualitá- em que o Nome-do-pai e o Estado foram ab-
ria (um compra e o outro vende). sorvidos pela lógica do ilimitado (do não-
Entretanto, há um “a mais” que se chama todo) será ainda a neurose, serão novas
mais-valia. Não se trata de um valor “a doenças da mentalidade hipercontratual,
mais”, e sim de um “mais de valor”. Um ex- canalhice pura e simples, ou novos sinto-
cesso que resiste a toda substituição calcu- mas e novas modalidades de psicose? Como
ladora. Entre força de trabalho e salário, a distinguir uma clínica do sinthoma, da ten-
essência do impossível é que há sempre um dência contemporânea ao gozo ilimitado?
objeto que não vai se deixar absorver pela
forma problema-solução. O “a mais” é algu- A solução continuísta e a
ma coisa que não se substituirá de modo descontinuísta: sinthoma e
artigos
lacanianos não pensam que isso seja um hipótese nova: a de uma foraclusão genera-
problema! O problema é também a solução lizada do Nome-do-pai. O que vamos desen-
do problema. Vivemos com o elemento in- volver neste trabalho é uma tentativa de
solúvel. A solução é a não-solução, o im- construir um quadro classificatório, compa-
passe, assumido, consentido. Essa posição é rativo, que nos permita estabelecer diagnós-
a essência de uma política lacaniana. Ela ticos diferenciais entre as neuroses/psicoses
advoga que há uma diferença essencial modernas e contemporâneas. A idéia central
entre o Estado que se d e i x a absorver é a seguinte: o afrouxamento da organiza-
pelo ilimitado da sociedade, e o Estado ção edípica modifica o regime das relações
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entre o gozo e a lei ou, se quisermos, entre e à psicose, ou seja, o que o ser falante
o permitido e o proibido. Hoje, Estado e So- apresenta de mais singular e inclassificável
ciedade se equivalem. Novo regime demo- – em seu esforço de nomeação e de defesa
crático em que a lei se reduz ao contrato contra o gozo invasor – sem desprezar, mas
intersubjetivo, esvaziando-se do que ela sem nos servir exclusivamente da diferen-
tem de incondicional. O Nome-do-pai, nes- ça entre neurose e psicose. A perspectiva
se novo regime, está foracluído do simbóli- continuísta pode esclarecer porque, em RSI
co e os contratos sociais tentam inscrevê-lo (1974-1975), Lacan pluraliza os Nomes-do-pai.
por meio de suplências imaginárias. Quando Ele nos apresenta a inibição como a patolo-
a foraclusão do Nome-do-pai é generalizada, gia do fazer ou do laço social, nomeação do
é muito mais difícil distinguir as neuroses imaginário e, a angústia, como a patologia da
das psicoses. O que encontramos na clínica, esperança, nomeação do real. Esse passo
no lugar das doenças do grande Outro, isto implica colocar os três registros em igualda-
é, as neuroses e psicoses clássicas, são as de de condições. Desta forma, o sintoma e
doenças da mentalidade. Do mesmo modo, o delírio, patologias da crença ou do saber,
neo-modalidades de psicose – mais ordiná- não são mais os critérios, por excelência, do
rias do que extraordinárias – são a respos- diagnóstico de neurose ou de psicose. Pre-
ta psicótica à rarefação dos representantes cisamos considerar também que a inibição e
paternos. Chamamos de doenças do Outro, a angústia podem ser defesas psicóticas. O
as neuroses organizadas em torno do com- mais importante são as lições que podemos
plexo de Édipo e as psicoses desencadeadas tirar para o trabalho do analista diante das
pelo encontro com Um pai. O simbólico é o doenças da mentalidade e das psicoses or-
lugar eletivo das perturbações típicas. Na dinárias. A clínica da neurose é hoje habita-
modernidade, o sintoma e o delírio são as da por impulsões, compulsões, depressões
respostas do sujeito, neurótico ou psicótico inespecíficas, astenias, conversões histéri-
ao Outro consistente. Chamamos doenças da cas ou psicóticas, além de fenômenos psi-
mentalidade, as neuroses e psicoses em que cossomáticos. Muitas vezes não sabemos
artigos
o Outro é inconsistente, não-todo, ilimitado. distinguir esses quadros de uma psicose não
O corpo e sua imagem, e não mais a lingua- desencadeada. Como diferenciar eventos de
gem, são o campo preferencial de eclosão corpo, de fenômenos de corpo (Miller, 2003).
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das perturbações. O gozo hiperlocalizado, e Como saber quando isso é uma inibição neu-
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o gozo deslocalizado, são o modo de apre- rótica, ou uma suplência à psicose? Essa di-
sentação dos novos sintomas neuróticos e ficuldade se acentua porque, quando o
dos fenômenos psicóticos. Outro não existe, as psicoses também são
Numa cultura em que o Outro tende a ser in- menos delirantes. Quando uma psicose não
consistente, não-todo, uma clínica conti- é delirante, o corpo, na sua vertente real ou
nuísta (Georges et al., 1999) vem responder imaginária vem suprir a carência do simbó-
ao que fazer, como e quando o sintoma é lico, produzindo uma nomeação. É o caso
cada vez menos típico ou coletivo. Valoriza- das neo-conversões (Georges et al., 1999,
mos, desta feita, o que é comum à neurose p. 101-43) e dos fenômenos psicossomáticos.
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É a partir dessa modalidade de nomeação zer que não procede de uma interpretação,
que teremos que pensar os neo-desenca- nos remete a um Outro como imagem (que
deamentos. São muito mais desenlaçamen- é um saber não limitado pela interpretação),
tos e reenlaçamentos do discurso comum saber que não é suposto, e sim exposto. A
(laço social), do que grandes desencadea- isso chamamos uma neo-conversão. Ela se
mentos à maneira das psicoses extraordi- distingue também do fenômeno psicosso-
nárias. O corpo em sua vertente real (lesões mático. Este último escapa à regulação fáli-
psicossomáticas), ou imaginária (neo- ca por meio de um significante ilegível, es-
conversões), é o terreno onde se dão os crito no corpo, no lugar de um sintoma. Na
fenômenos de encadeamento e desenca- neurose ele reflete um fracasso momentâ-
deamento das neo-psicoses, ou psicoses or- neo da defesa diante de um evento traumá-
dinárias. tico. Na psicose, pode funcionar como uma
bolha do nome próprio, delimitando um es-
Como tratar o sofrimento, paço separado do Outro, que lhe permite
quando supomos que o sujeito é existir sem passar pelo Nome-do-pai. A essa
sempre feliz? passagem direta do significante ao real do
A conversão é um fato de estrutura e, é idên- corpo, chamamos sinthoma. É algo do cam-
tica ao desejo se considerada a partir da po da psicose, mas que generalizamos para
causa (o objeto a), e da inscrição corporal da todo ser falante na clínica continuísta. Mes-
castração (S1, o significante fálico). Um cor- mo assim, a posição do analista, e seu ato,
po é efeito da ação do significante mestre numa clínica continuísta, não se desvenci-
(S1), é uma significação fálica, que anima lham de uma exigência de decidir quanto ao
todo ser falante. O sintoma histérico é, jus- diagnóstico. Entretanto, não enfatizamos o
tamente, a conseqüência da desproporção déficit: presença ou ausência da metáfora
entre a causa e o significante do ideal. A paterna, porque todo sintoma, pode ser re-
castração do sujeito remete à divisão do Ou- duzido a um sinthoma, a uma conexão dire-
tro, sua impotência ou sacrifício, que coloca ta do simbólico ao real que não precisa do
pulsional > revista de psicanálise > artigos
tamento parecia inviável. As faltas prome- mais ou menos. Com ela, passamos à regu-
tiam multiplicar-se. Comecei a perceber que lação de suas relações com os pais, os ami-
ela não gozava do corpo, mas o reforçava gos, os compromissos com os estudos. Essa
como uma defesa contra a invasão de gozo. língua “dietética” resultava em evitar uma
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Outra mudança no enquadre se impôs. A lógica feroz do tudo ou nada. Uma nova su-
cada vez que me ligavam de sua casa, eu plência, tornou-se a língua comum: tudo que
pedia que a trouxessem ao consultório. Por é bom, é só “mais ou menos”. Por exemplo:
fim, quando ninguém se dispunha à fazê-lo, não se deve faltar às provas quando não se
eu solicitava que a colocassem num táxi, eu pode tirar 10. Tirar 7 já é ótimo. Daí à con-
descia e ia buscá-la na portaria. Com esse clusão de que tirar dez não é bom, foi um
dispositivo eu me oferecia como muro, ten- passo. Deste modo conseguimos evitar a
tando trocar o reforçamento de seu corpo, ameaça de novos desenlaçamentos em suas
pelo reforçamento de nosso vínculo. Apro- relações com os outros e em seus compro-
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missos. Os efeitos estabilizadores dessa prá- _____ ([1930]1929). O mal-estar na civilização.
tica verificam-se na redução da angústia e da In: Edição Standard Brasileira da Obras Psico-
depressão. Contornam a ausência do fantas- lógicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Ja-
ma neurótico e da significação fálica. Sem o neiro: Imago, 1972. v. XXI.
Nome-do-pai, resta fazer alguma coisa com G EORGES, P. et al. (org.). La convention
esse S1/a real: Gorda! d’Antibes. Paris: Agalma/Seuil, 1999. (Le Paon).
LACAN, J. (1974-1975). Le Seminaire XXII. RSI. Edi-
Referências tions de L’ Association Freudienne Internationale,
C OELHO DOS SANTOS, T. O que não tem remédio re- lições dos dias 10/12/1974, 14/1/75, 11/2/1975.
mediado está! Revista de Latinoamericana de LAURENT, É. e M ILLER, J.-A (1996-1997). L’autre qui
Psicopatologia Fundamental, São Paulo: Escu- n’existe pas et ses comités d’éthique. Seminá-
ta, v. VII, n. 1, p. 63-74, mar./2004. rio inédito, Aula I.
_____ O analista parceiro dos sintomas in- M ILLER, J.-A. (2002-2003). Un effort de poésie.
classificáveis. Latusa , Rio de Janeiro: Contraca- Cours du Département de Psychanalyse, Paris
pa, 2002. VIII, seção I e II.
FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença _____ Conversation sur les embrouilles du
nervosa moderna. In: Edição Standard Brasilei- corps. Ornicar? Paris: Navarin/Seuil, n. 50,
ra da Obras Psicológicas Completas de Sigmund 2003.
Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. IX.
Miller, J.-A. e Milner, J. C. Évaluation, entre-
_____ ([1917]1916). Alguns tipos de caráter en- tiens sur une machine d’imposture. Paris:
contrados no trabalho analítico. In: Edição Agalma, 2004. p. 7-30.
Standard Brasileira da Obras Psicológicas Com-
pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Ima- Artigo recebido em março de 2005
go, 1972. v. IV. Aprovado para publicação em outubro de 2005
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