Portunhol (A Intercompreensão em Uma Língua Da Fronteira)

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Monográco / Monográco

Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira


Eliana Rosa Sturza
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil

Neste mundo tan yeio de imposición


Fueron pasando los año
Y eu miorei meu español
Mas nunca perdí las gana
De gritar por rebelión
Insistiendo por u recreio
Pa’ abraza meu portunhol.
(Lingua Mae)

Resumo. A dinâmica da vida nas comunidades fronteiriças do Brasil - Uruguai e do Brasil - Argen-
tina tem favorecido o contato linguístico entre o português e o espanhol. O portunhol surgiu como
uma língua de contato, que se caracteriza como uma língua familiar e como prática comunicativa
usada pelos falantes para suas interações em diversas práticas sociais da vida cotidiana. Neste
texto, trata-se do portunhol uruguaio e do portunhol língua da fronteira como práticas comuni-
cativas usadas para atender às necessidades imediatas de comunicação, como se estruturam e
como funcionam pelo grau de intercompreensão estabelecido entre as duas línguas. O portunhol
se relaciona, ainda, à identidade dos fronteiriços e à valorização da cultura local.
Palavras-chave: fronteira; portunhol; intercompreensão; língua de contato.
Portuñol: la intercomprensión en una lengua de frontera
Resumen. La dinámica de la vida en las comunidades fronterizas de Brasil - Uruguay y de Brasil
- Argentina ha favorecido el contacto linguístico entre el portugués y el español. El portuñol surge 97
como una lengua de contacto que se caracteriza como una lengua familiar y como una práctica
comunicativa usada por los hablantes para sus interacciones en diversas práticas sociales de la vida
cotidiana. En este texto, se trata del portuñol uruguayo y el portuñol lengua de frontera como práticas
comunicativas usadas para atender a las necesidades inmediatas de comunicación, de como se
estructuran y de como funcionan por el grado de intercomprensión establecido entre las dos lenguas. 97
Además, el portunhol se relaciona con la identidad de las fronteras y la apreciación de la cultura local.
Palabras clave: frontera; portunhol; intercomprensión; lengua de contacto.
Portunhol: the inter-understanding in a border language
Abstract. The dynamics of life in the border communities of Brazil-Uruguay and Brazil-Argentina
has favored the linguistic contact between portuguese and spanish. Portunhol emerged as a con-
tact language that is characterized as a familly lenguage and as communicative practice used by
speakers for their interactions in various social practices of everyday life. In this text, we refer to
the uruguayan portunhol and to the portunhol border language as communicative practices used
to meet the immediate needs of communication, how they are structured and how they function
by the degree of inter-understanding established between the two languages. The portunhol is also
related to the identity of the frontiers and the appreciation of the local culture.
Keywords: frontier; portunhol; intercomprehension; contact language.

https://doi.org/10.35362/rie8113568 - ISSN: 1022-6508 / ISSNe: 1681-5653


Revista Iberoamericana de Educación [(2019), vol. 81 núm. 1, pp. 97-113] - OEI
recibido / recbido : 31/07/2019; aceptado /aceit: 16/08/2019
Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

1. Introdução

O poema da epígrafe, de autoria do grupo musical uruguaio Lingua


Mae1 exemplifica o quanto as línguas têm um componente de identificação
dos falantes com o território e com a cultura. A língua estabelece um elo
de pertença do sujeito ao seu espaço de vivência e convivência que, em se
tratando das zonas de fronteira, tem suas especificidades.

Camblong (2002) destaca que há um modo de viver e habitar a


fronteira. Os sujeitos fronteiriços expressam seu sentimento de pertença em
relação ao que é da ordem local, ou seja, a uma zona comum que abarca um
conjunto de traços diacríticos sobre os quais são construídos os vínculos de
pertencimento. O sentido identitário da língua para os habitantes de comu-
nidades fronteiriças, como as localizadas na fronteira Brasil - Uruguai e/ou
Brasil-Argentina, relaciona-se ao modo como os fronteiriços se reconhecem
e como atuam politicamente. Reconhecem-se como habitantes de uma
zona territorial do nem lá nem cá. A dinâmica da vida na fronteira os torna
“únicos”, tal como declara uma uruguaia da cidade de Rivera, entrevistada
no documentário Língua Imaginária.2 A construção de uma identidade fron-
teiriça, como por exemplo, as dos dobles chapas3, caracteriza-se por ser, ao
mesmo tempo, binacional, courbada e “entreverada”. Nessa condição social,
98 histórica, cultural e política destaca-se uma língua: o Portunhol.

O contato linguístico entre o português e o espanhol na América


do Sul produziu o portunhol como uma prática comunicativa usada pelos
fronteiriços em situações específicas e para determinados propósitos. Deste
modo, é uma língua que tem falantes, mas não tem ainda uma gramática
estável, nem há uma regularidade na construção linguística de suas formas.
Esse contato linguístico, tem sido tema de pesquisas em diferentes perspec-
tivas teóricas. (Albuquerque, 2014; Barrios, 2014; Fenner & Corbari, 2014;
Lipiski, 2011; Maia & Méndez, 2017; Sturza, 2006, 2019).

As zonas de fronteira, ao longo dos seus territórios limítrofes, do


extremo sul ao norte do Brasil, apresentam uma diversidade e complexidade
social, política e linguística. Neste sentido, cada comunidade tem uma his-
tória, uma formação social e cultural e uma confluência de línguas. Nessas
zonas, o uso do portunhol é mais recorrente, em especial, nas comunidades

Lingua Mae, Editorial Independiente, 2015.


1

Língua Imaginária, Produção Maviola filmes, direção de Cíntia Langie e


2

Rafael Andreazza.
3
Doble chapas são chamados os fronteiriços uruguaios-brasileiros com dupla
nacionalidade. Refere-se ao fato de os carros terem durante um período duas placas de
identificação, uma brasileira e uma uruguaia.

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fronteiriças nas quais há um maior fluxo de pessoas e onde as relações são


mais intensas e favorecidas pelo tipo de fronteira existente: fronteiras secas,
menos controladas e mais urbanizadas.

Neste artigo, darei destaque ao portunhol praticado pelos falantes


que vivem nas cidades gêmeas ou em pequenas comunidades localizadas
nas fronteiras do Brasil com Argentina e do Brasil com o Uruguai, que são
fronteiras reconhecidamente com maior densidade demográfica, e que fazem
parte do chamado Arco Sul.4 As fronteiras localizadas no Arco Sul são mais
povoadas, com cidades gêmeas5 ao longo da sua extensão, como Santana
do Livramento-Rivera ou Uruguaiana - Paso de Los Libres. O acesso facili-
tado por meio de estradas, pontes e balsas, que realizam a travessia para
o “outro lado”, é um fator que contribui para aumentar o fluxo de pessoas,
estabelecendo-se um trânsito contínuo nas fronteiras. Embora haja o controle
aduaneiro e migratório, o tipo de fronteira, e como ela se organiza, favorece
os deslocamentos migratórios e as trocas, os intercâmbios e os negócios no
nível local, é uma relação cotidiana transnacional. O maior número de cidades
gêmeas nessa faixa de fronteira do Arco Sul permite discutir e exemplificar
situações de uso do portunhol uruguaio e o portunhol língua da fronteira como
dois fenômenos linguísticos, resultado do contato entre falantes de português
e de espanhol, que impulsionam as dinâmicas sociais, econômicas, políticas
e culturais na/da fronteira. 99

O contato e a mistura das línguas constituem o portunhol, condição


que nos possibilita debater também a sua funcionalidade nas interações
comunicativas. Enquanto uma prática linguística e comunicativa, a mistura
é potencializada pela intercompreensão construída a partir da proximidade
linguística entre as duas línguas. Além disso, a intercompreensão também
se torna mais efetiva à medida que verificamos a existência de uma gama
de identificações culturais, dada pelo nível de convivência entre os falantes
de português e espanhol e pelas práticas sociais nas quais o portunhol fun-
ciona de modo a responder às demandas de interação social requeridas no
dia a dia. Para abordar sobre essa intercompreensão, é necessário levantar
duas questões: pra quais propósitos de comunicação pretendido os falantes
recorrem ao portunhol e não ao português ou espanhol? Com que recorrência
os falantes se apoiam nas semelhanças linguísticas entre as duas línguas
para subsidiar sua competência comunicativa garantindo assim um grau de
intercompreensão?

4
Refere-se às fronteiras da região sul do Brasil, de acordo com as definições e os
mapas desenvolvidos para a Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento
da Faixa de Fronteira, Ministério da Integração Nacional, 2005.
5
Cidades gêmeas são cidades que se correspondem em relação às suas
localizações nos limites territoriais, estão de um lado e de outro na fronteira.

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Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

As questões levantadas aqui surgem pela observação de que o


portunhol se estabiliza cada vez mais como uma língua da fronteira. Soma-
se a isso, a reivindicação do portunhol como patrimônio cultural no Uruguai
reforçando uma luta pelo reconhecimento da cultura fronteiriça, que passa
também pelo reconhecimento da língua.

2. Portunhol: que língua é essa?

O portunhol é uma prática linguística e comunicativa, que tomo


aqui como língua considerando que há falantes e, cada vez mais, apresenta-
se como um traço da construção identitária para seus falantes, em especial,
no caso do portunhol uruguaio. É uma língua que, se não tem ainda um sis-
tema linguístico regular e estável, tem certamente um sistema interacional
e comunicativo vigoroso, dado a eficácia que apresenta em determinadas
práticas sociais: um anúncio em um estabelecimento comercial, a descrição
de um lugar, uma sinalização ou instrução, um cardápio de restaurante, uma
negociação de preços, um pedido de reserva de hotel, uma identificação
pessoal, entre outras tantas práticas comunicativas que são realizáveis em
portunhol e que dinamizam a vida na fronteira.
100
100

Fuente: foto da autora - 20146 Fuente: foto da autora - 20187

No entanto, com objetivo de descrever a importância e o funcio-


namento do portunhol como uma língua da e na fronteira, faz-se necessário
diferenciar o portunhol língua da fronteira do que se está designando como

6
Cidade Jaguarão, fronteira Brasil - Uruguai.
7
Cidade Quaraí, fronteira Brasil - Uruguai.

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portunhol uruguaio. Nas figuras acima, observa-se o uso alternado das duas
línguas em uma mesma materialidade textual, mais recorrente no lado bra-
sileiro da fronteira. Os cardápios alternam os nomes das comidas e de seus
ingredientes, evidentemente na busca de comunicar de modo mais claro o
que oferecem como pratos nos estabelecimentos gastronômicos. O gesto de
fazê-lo, alternando as duas línguas, mostra como elas estão presentes no
mesmo espaço que são frequentados por brasileiros e/ou uruguaios e argen-
tinos, há nesse gesto um propósito comunicativo relevante para a convivên-
cia na fronteira. Os cardápios impressos ou expostos ao público constroem
paisagens linguísticas únicas sobre o funcionamento do portunhol como
língua da fronteira.

Os gestos dos fronteiriços demonstram atitudes que podem ser


positivas ou negativas em relação ao uso das duas línguas ou da “mistura”,
tal como costumam nomeá-la ao descrever o modo como falam. O portunhol
usado do lado brasileiro da fronteira pode ser reconhecido pela maneira como
se mistura o espanhol no português, não provoca mudanças na estrutura
linguística, mas bastante interferências verificadas nas escolhas lexicais, na
entonação e pronúncia dos falantes. Há uma linha de difícil percepção que
diferencie, pelo menos do ponto vista dos falantes imersos no mundo da
fronteira, se eles estão falando portunhol ou apenas alternando o uso das duas
línguas nas suas conversas. É fato que usam as línguas de modo a alterná- 101
las de acordo com o interlocutor, se falante de espanhol ou se falante de
português, porém se apoiam na mistura como estratégia interacional, sempre
e quando a comunicação requer uma efetividade. Para ilustrar, descrevo a
seguinte cena na fronteira Brasil – Uruguai8:

Hotel na cidade Quarai (Brasil) fronteira com Artigas (Uruguai). A hóspede


que acaba de chegar pergunta: um lugar para cenar? Recepcionista responde:
para jantar aqui enfrente tem restaurante. E acrescenta: el desayuno das
7h as 10h.. Me aproximo e pergunto ao recepcionista se os uruguaios não
falam português e ele me responde: a gente ajuda. Insisto se os uruguaios
não falam português com eles quando chegam ao hotel. Ele acrescenta:
Portunhol, porque português bem mesmo...eles não falam.

O recepcionista reconhece a relação do portunhol uruguaio com o


português do Uruguai, no entanto destaca a funcionalidade da mistura para
essa situação de uso, que resolve a comunicação entre ele e os hóspedes
uruguaios.

8
Nota registrada pela autora na cidade Quaraí – Brasil, fronteira com a cidade
Artigas - Uruguai, 2018.

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Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

O portunhol uruguaio tem diferenças significativas em relação ao


portunhol língua de fronteira, que seriam: uma relação histórica, de herança
com o português brasileiro; um sistema diglóssico que contribui para a
manutenção do portuñol/fronterizo como língua de casa, em disputa com o
espanhol; um estigma que marca seus falantes frente o “status social” do
português padrão e do espanhol, línguas de prestígio e, por último, o fato
de que cada vez mais se constitui em uma língua étnica dos fronteiriços do
norte uruguaio, portanto com vínculos identitários, que remetem a um lugar
de pertença e a uma cultura fronteiriça.

O relato do escritor fronteiriço uruguaio Severo (2015) mostra


claramente que o uso do portunhol uruguaio está relacionado ao ambiente
familiar, aprendido com os pais, falado por uma população marginalizada
por sua condição econômica, suas origens e seu fracasso escolar. O mudo
“intreverado” é uma experiência de conflito linguístico:

Yo nací na cidade de Artigas. Mi familia, mis vecino y mis amigo, falan


misturando las palabra del portugués y el español. El portuñol es mi língua
materna. Cuando yo istava na barriga de mi madre, ya iscutaba el mundo
intreverado. Despós, na época que hice la iscuela, me quiseron hacer creer
que los que hablábamo misturado éramos pobre, sucios, burros.9

102
102 O conflito lingüístico ocorre na disputa entre a língua do âmbito
familiar e a língua nacional, a que a escola impõe como língua da alfabeti-
zação, tal como relata Fabián Severo e que aparece também no poema do
Lingua Mae, na epígrafe. Não é só a percepção dos falantes, pois os estudos
de Barrios (2014) apontam que se criou um estigma em relação ao falante de
portunhol uruguaio, relacionando-o a pouca escolarização, à pobreza, muitos
falantes vivem no campo ou são oriundos de zonas rurais e, hoje em dia, tam-
bém nas periferias das cidades. Falar misturado é visto como um mal falar.

A ocupação política e econômica de luso-brasileiros na região


norte do Uruguai, mais sistemática a partir do final séc. XVIII, contribui para
expandir e fixar a presença do português em território uruguaio. A hegemonia
da cultura lusa e brasileira na região resultou em uma variedade de portu-
guês que predominou como língua das famílias, sobretudo no meio rural e
em localidades até cerca de 200 km para dentro do território uruguaio. Essa
situação instituiu um sistema diglóssico entre um português do Uruguai (PU) e
o espanhol. O espanhol passou a marcar sua presença como língua do Estado
nacional no final século XIX, através de uma política educacional e linguística,
que a instituiu como língua obrigatória e única na instrução escolar.

9
https://bit.ly/2ZXb98L

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Atualmente, os documentos oficiais que orientam a educação pú-


blica uruguaia reconhecem a situação linguística da fronteira e destacam os
efeitos dessa política educacional e linguística a partir da Ley de instrucción
Pública, de José Pedro Varela, de 1877: “Esta política educativo-linguística
fue seguida al pie de la letra en todo el territorio y, especialmente, en la
frontera, donde los lusohablantes que la poblaban casi exclusivamente fueron
aculturados desde entonces a partir del modelo de los hispanohablantes del
sur.”(2008)10

A presença do português na região norte do Uruguai e seu contato


com o português foi pesquisada por (Rona,1965; Elizaincín, Barrios & Beha-
res,1987; Hensey, 1972; Carvalho, 2003). O resultado deste contato linguístico
recebeu respectivamente o nome de: Fronterizo, Portuñol/Fronterizo, Dialectos
Portugueses del Uruguay (DPUs) e Português do Uruguai (PU). No entanto,
nas últimas décadas tem se fortalecido o nome de portunhol, em lugar das
designações atribuídas até então por esses pesquisadores. Barrios (2014)
aborda sobre as denominações de variedades em contato, afirmando que:

La denominación de una variedad en situaciones de contacto adquiere


particular relevancia porque involucra contiendas de adscripción; puede
destacar el vínculo con una lengua de base (como “portugués uruguayo”
o “dialectos portugueses del Uruguay”), su condición de mezcla entre las
lenguas en contacto (como “portuñol”) o ser relativamente independiente
103
en ambos sentidos (como “dialecto fronterizo” o “fronterizo”). Puede
adecuarse al estatus lingüístico que le asignan los investigadores o a las
experiencias comunitarias, pero siempre contribuye a la conformación de
representaciones y actitudes linguísticas. (Barrios, 2014, p.77)

Sturza (2006) os relaciona com as perspectivas metodológicas e as


teorias linguísticas que predominaram na designação da língua de contato.
No entanto, observa-se que atualmente os falantes passaram cada vez mais a
designá-la de portunhol, o que os linguistas descreveram e nomearam como
DPU e/ou PU. A respeito do que significa falar portunhol para os fronteiriços
do norte uruguaio, em entrevista ao jornalista João Vicente Ribas, publicada
no jornal do Comércio em 2019, o poeta, tradutor e dramaturgo Michel Croz
chama atenção:

existem muitos portunhóis. O falado em um bairro não é o mesmo de outro.


O portunhol de Artigas difere do encontrado em Bagé ou em Jaguarão. “A
sua beleza intocada se dá pelo fato de que ainda não pode ser direcio-
nado - as palavras não têm dicionário, ou uma gramática. Ainda bem!”,

10
Documentos de la Comisión de las Políticas Linguísticas en la Educación Pública.
Administración Nacional Pública, Consejo Directivo Central, Montevideo, 2008.

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Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

comemora Croz. Para ele, o portunhol é uma língua dos afetos, que se fala
para comunicar no presente, resgatando o passado. “Há uma tradição forte,
mas que se impulsa para o futuro”.

A “língua dos afetos” está na relação do portunhol uruguaio com sua


história, com o ambiente familiar e, portanto, remete a uma população que
se reconhece pela língua. O portunhol uruguaio tem apelo afetivo por seu uso
social e sua relação com a cultura fronteiriça, de origem luso-brasileira, que
quer se diferenciar de outras regiões do país. Há visivelmente uma mudança
cultural na sociedade fronteiriça em busca de valorização do Portunhol.

Neste sentido, Barrios (2014) afirma que:

Un término como “portuñol”, interpretado como peyorativo o descriptiva-


mente incorrecto por su alusión a la condición de mezcla, no deja de ser
interesante para reflejar la simbiosis cultural de las comunidades de frontera.
La representación “ni una cosa ni la otra” podría también interpretarse
como “las dos cosas al mismo tiempo”; si es así, una denominación que
no se identifique totalmente con una sola lengua podría ser adecuada para
simbolizar una identidad particular y autónoma. Si la población acepta una
denominación que remite a una identidad de mezcla, la estigmatización de
esa denominación desde el propio ámbito académico podría tener un efecto
negativo, ya que se podría interpretar que la mezcla es en sí misma algo
104
104 inaceptable. Si esto ocurre, las consecuencias podrían ser tan negativas
como las que se pretende evitar. (Barrios, 2014, p.102)

Para além de ser língua materna de muitos uruguaios do norte, e de


que a “mezcla” pode ou não ser aceitável como língua, o portunhol uruguaio
se aproxima ao portunhol língua da fronteira à medida que ambos só pude-
ram se constituir pela mistura entre português e o espanhol nas condições
sócio-históricas que se deram. Português e espanhol são duas línguas com
um espectro de semelhanças bastante amplo e suas intersecções são também
intensificadas pela situação de vizinhança geográfica. Ambos portunhóis
constituem comunidades de fala que convivem nos mesmos espaços, domi-
nados pelas línguas nacionais, nos quais os falantes buscam se adequar às
necessidades comunicativas e, assim, melhorar seus níveis de compreensão,
inclusive para identificar a relevância pragmática que orienta suas conversas
diárias, regulares, contínuas.

3. Intercompreensão e a proximidade linguística

Entre as definições do que é o portunhol há, bastante difundida


no Brasil, a do portunhol como interlíngua, que é um sistema linguístico
que se produz durante o processo de aprendizagem do espanhol por parte

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E. R. Sturza

de aprendizes brasileiros (ou vice-versa). A característica dessa interlíngua


está na sua especificidade como um fenômeno de contato linguístico que
ocorre em situações de aprendizagem, em diferentes contextos e níveis de
aprendizagem. Mais do que uma etapa, para Selinker (1991, p.83-84) a
interlíngua é um terceiro sistema linguístico independente, no qual o aluno
busca ser eficiente no uso da norma da língua objeto, ou seja, da língua que
está aprendendo.

Na perspectiva das teorias de aprendizagem de línguas, o foco é o


aprendiz e o ensino da língua, não o propósito da comunicação imediata e
cotidiana como aquele necessário para os falantes fronteiriços, tampouco o do
uso do portunhol uruguaio como uma língua étnica. Como língua da fronteira,
por exemplo, o falante brasileiro lança mão do portunhol como uma estratégia
de comunicação que lhe ajuda interagir com argentinos e uruguaios e ser
assim compreendido. O portunhol interlíngua no processo de aprendizagem
se relaciona às fases de aquisição, é um estágio que o aprendiz passa ao
aprender a língua objeto, quando escolhe obter um nível de proficiência em
português ou espanhol como língua estrangeira ou, quando está imerso no
contexto de uso, sendo ela português ou espanhol.

Nos estudos sobre ensino de espanhol no Brasil, portunhol como


designação para ocorrência de interlíngua surge com o objetivo de dar conta 105
de nomear a fase em que os aprendizes ainda misturam a norma das duas
línguas, caracteriza-se pelas dificuldades apresentadas pelos aprendizes bra-
sileiros em aprender espanhol, considerando que essas línguas apresentam
sistemas linguísticos aproximados, às vezes facilitando, outras vezes dificul-
tando o aprendizado. O grau de interferências linguísticas do português na
fala dos aprendizes de espanhol advém da ênfase nas falsas semelhanças,
nomeadas inclusive como “falsos amigos”. Pautado pela análise contrastiva,
esse enfoque fortalece o lugar hegemônico de duas línguas nacionais no
imaginário do aprendiz, em geral por ter como meta alcançar a proficiência
de um falante nativo, portanto, nessa perspectiva, as línguas não devem ser
confundidas ou misturadas. Dominar a norma da língua materna e da segunda
língua (língua objeto) como ideal parece estar em consonância com o con-
texto no qual havia o predomínio de visões monolíngues, muito associadas
às políticas nacionalistas do século XX. Sendo assim, a interlíngua, nessa
visão, mais que ser uma fase no processo de aprendizagem, configura-se em
um “problema”, normalmente associado ao “erro”.

Em abordagens mais contemporâneas, destaca-se o portunhol inter-


língua como um “recurso”, entendido como um fenômeno normal no processo
de aprendizagem. As interferências são compreendidas como naturais pelos
contatos que se produzem entre o português e o espanhol, mas levando em
conta também as experiências linguísticas já trazidas pelo aprendiz, e que

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Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

são condizentes com as características deste mundo contemporâneo, no qual


as fronteiras linguísticas se tornam mais fluídas, ou seja, de algum modo
todos somos translíngues. Autores como Zolin-Vesz (2014) defendem que

pensar o Portunhol como translíngua envolve considerar o movimento entre


as fronteiras linguísticas do português e espanhol, ou seja, envolve um
“aprender movendo-se”, uma vez que essas fronteiras linguísticas em sala
de aula, exponencialmente, se tornam mais fluídas e porosas, maximizadas
pela proximidade entre as ambas as línguas. (Zolin-Vesz, 2014, p.327)

Identifica-se no portunhol interlíngua que a questão do contato


linguístico é tratada no contexto do ensino e apresenta assim duas posições
pedagógicas: a que coloca ênfase no aspecto negativo da Interlíngua, em
razão do grau de interferências do português ou espanhol (língua materna dos
aprendizes) no processo de aprender a língua alvo (o espanhol ou português
como língua segunda ou estrangeira), e aquela que considera esses processos
como naturais da sociedade contemporânea em que as línguas estão mais
presentes na vida dos sujeitos, tendo eles um propósito bem estabelecido
de aprender outra língua ou simplesmente porque já têm incorporado no seu
repertório linguístico experiências com outras línguas, fazendo com que essa
“vantagem” se reverta em um recurso para aprender uma segunda língua,
processos ou sistemas intermediários são parte do aprendizado.
106
106
O portunhol interlíngua traz para discussão a proximidade das
línguas, a natureza do contato e sua relação com o erro e com falar mal uma
das línguas. Tradicionalmente quando se trata de portunhol tem-se reforçado
a ideia da interlíngua. Porém, em outros contextos nos quais a vivência e
imersão nas duas línguas se potencializa, portunhol é um recurso para as
demandas de interação como as que ocorrem na sociedade fronteiriça, por isso
é fundamental discutir as diferenças de seus funcionamentos para cada con-
texto de uso. Sturza (2019) identifica quatro ocorrências: portunhol uruguaio,
portunhol língua da fronteira, portunhol interlíngua e portunhol selvagem.

Reafirma-se que o portunhol é uma prática linguística de valor inte-


racional nas diferentes práticas sociais dos falantes que vivem e habitam nas
fronteiras geopolíticas entre o Brasil, Argentina e Uruguai11. É uma língua que
os falantes recorrem pelo potencial de intercompreensão que se produz nas
trocas, nas tarefas e agendas da vida cotidiana; tem forte apelo interacional
e só possível entre as duas línguas. O portunhol mostra-se eficiente para as
situações cotidianas de interação como já foi exemplificado.

Fronteiras às quais me refiro nos exemplos mencionados e que constituem


11

o recorte das pesquisas realizadas.

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E. R. Sturza

A intercompreensão que é construída no uso da língua de contato


respond formaçãe às necessidades imediatas e são favorecidas de acordo
com a natureza das relações sociais desenvolvidas entre os falantes frontei-
riços. É preciso compreender o que significa a intercompreensão enquanto
constitutiva nao de uma língua de contato, as condições sociais em que
ela se origina, no tipo de relação que os falantes produzem ao alternar ou
misturar as duas línguas.

A questão que conduz a reflexão aqui apresentada não se refere aos


processos formais de aprendizagem de uma língua. Deste modo, proponho
tomar como referência as práticas sociais nas quais o portunhol se constitui
como uma língua de interação comunicativa, como forte circulação local bem
como por constituir-se em apelo identitário para os falantes que habitam as
zonas fronteiriças. O portunhol é tomado pelo falante como ponto de partida
para que ela seja melhor compreendido, utiliza-se da semelhança das línguas,
que potencializa, amplia e fortalece a comunicação imediata, dinamizada as
relações cotidianas, que são inclusive transnacionais. Outra questão que se
levanta é: a proximidade das duas línguas românicas, de formações grama-
ticais de mesma linhagem, não seria uma vantagem na interação social e na
integração entre as comunidades fronteiriças? Não haveria de se impulsionar
as vantagens da proximidade em lugar de temer a fossilização de formas e
usos errôneos? Ou ainda considerarmos então que todos estamos integrados 107
aos movimentos e trânsitos do mundo globalizado?

Para discutir esta proposta de olhar sobre o portunhol, associando-o


a um espaço de funcionamento da intercompreensão em lugar de cunhá-lo
como nome de uma Interlíngua, gerada inconvenientemente pelo contato,
os exemplos das situações de comunicação estabelecidas na vida cotidiana
dos fronteiriços nos subsidiam para debater quais características e em que
práticas sociais a intercompreensão está na base que estrutura o portunhol
como uma língua da fronteira. Em relação ao portunhol uruguaio, sendo a
base linguística predominantemente portuguesa, certamente, é uma vanta-
gem para dinamizar a comunicação entre os fronteiriços, do lado de cá e de
lá da fronteira.

Capucho (2010) ao abordar a Intercompreensão, ainda como um


tema da Didática das Línguas, afirma que:

A Intercompreensão (IC) é, como o afirmava recentemente Jean-Pierre


Chavagne (2009: 1), uma prática ancestral e um fenómeno recente. Re-
portada numa tradição secular de práticas comunicativas entre habitantes
de regiões limítrofes ou inserida nas vivências dos viajantes de todos os
tempos, a IC foi recuperada há cerca de vinte anos por investigadores no

Revista Iberoamericana de Educación [(2019), vol. 81 núm. 1, pp. 97-113]


Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

âmbito da Didáctica das Línguas, da Linguística Aplicada, da Sociolinguís-


tica, da Psicolinguística ou da Linguística Contrastiva, para referir apenas
as disciplinas mais frequentemente solicitadas. (Capucho, 2010, p.102)

Destaco da sua afirmação, o fato de mencionar a intercompreensão


como “práticas comunicativas de regiões limítrofes”, ou seja, antes de ser
o foco de uma abordagem didática, a intercompreensão tem seu funciona-
mento observado nas interações entre falantes de “regiões limítrofes”, quer
dizer, em zonas de fronteiras geopolíticas. Pois, a intercompreensão ocorre
nas identificações e semelhanças que línguas aparentadas possuem e que
servem para alavancar a aprendizagem de uma delas: um falante brasileiro
pode ter como ponto de partida um grau de intercompreensão do espanhol
que o leve a aperfeiçoar sua proficiência na língua espanhola.

Em entrevista ao jornalista João Vicente Ribas, publicada em 21


de julho de 2019, no jornal do Comércio12, o historiador Eduardo Palermo,
sintetiza a funcionalidade do portunhol uruguaio nas relações cotidianas,

Se tu perguntar a um uruguaio aqui em Rivera qual o idioma que ele fala,


ele irá dizer espanhol, ou talvez o português; não dirá que fala portunhol”,
garante. Mas repara que, no cotidiano, é o portunhol que se fala mais.
“As pessoas falam da melhor forma possível para se comunicar, sem que
108
108 se pense nisso.

Essa “melhor forma possível para se comunicar” evidencia-nos


que, dentro do repertório linguístico que os fronteiriços uruguaios dispõem,
a escolha pelo portunhol ocorre por uma percepção, como a do historiador,
que os falantes fronteiriços uruguaios optam pela “mistura” para as dinâmi-
cas do cotidiano. Desta forma, confirma-se o que o cantor riverense Chito de
Mello defende nas suas músicas, ao dizer que é um “rompidiomas” porque
canta “misturado”.

“Entender e se fazer entender” é a pauta que determina as tro-


cas cotidianas nas interações comunicativas feitas em Portunhol. Na sua
dissertação de mestrado Coutinho (2016) mapeia a presença do espanhol
nos anúncios de estabelecimentos comerciais na cidade de Uruguaiana. Em
registro fotográfico desses anúncios, a autora mostra como o espanhol está
presente na fronteira brasileira pelo uso de palavras que são compreendi-
das nas duas línguas, ainda que com alterações ortográficas. Tal presença
está marcada no uso recorrente dos artigos definidos El e La do espanhol,
de modo a especificar e particularizar o nome do estabelecimento, em um
gesto de aproximação: La Campeira, La fronteira; El turco; La Fiambreria, La
Whisqueria, El gordo, entre outros exemplos.

12
https://bit.ly/2YYR30C

Revista Ibero-americana de Educação, vol. 81 núm 1 [(2019), pp. 97-113]


E. R. Sturza

Se há uma base de português no portunhol uruguaio, no portunhol


língua de fronteira há uma significativa presença de palavras e expressões do
espanhol no chamado português gaúcho da fronteira (PFG) (Trindade, Brehares
& Fonseca, 1995). No lado brasileiro se incorporam ao português palavras
sobretudo relativas à vida rural, à lida campeira, às tradições culturais. No
“Dicionário Compartilhado de Língua de Fronteira”13 (2015), elaborado por
estudantes de escolas da cidade de Itaqui, na fronteira Brasil-Argentina, há
um número considerável de léxicos do espanhol, como: chancho, entrevero,
remolacha, aragano, avil, paisano, xisme, churipã, que tal, a la pucha. Ou-
tro conjunto vem do Minidicionário do Uruguaianês, de autoria de Lourival
Araújo Gonçalves, publicado no livro “A terra de longos olhares” (2005),
organizado por Lucia Silva e Silva. Entre algumas palavras do “castellano”
estão: abombado, al pedo, alambrado, apucherado, boludo, borracho, buenas,
bueno, buenacho.

Uma pesquisa de Henriques (2000) enfocando a intercompreensão


na leitura de textos escritos por parte de falantes brasileiros, aprendizes de
espanhol, a autora resume:

Como mostramos, existe um alto grau de intercompreensão entre os falan-


tes de ambas as línguas, em relação à: (1) compreensão de textos (já que
esses falantes podem usar estratégias de inferência lexical para ajudá-los 109
na compreensão global do texto); (2) tradução (já que existe um alto ín-
dice de palavras cognatas idênticas e não-idênticas); e (3) inferência de
itens lexicais (com a ajuda de estratégias de vocabulário e de gramática).
(Henriques, 2000, p.29).

As considerações de Henriques (2000) mostram um número sig-


nificativo de léxicos comuns que impulsionam a compreensão na leitura de
textos. Pensemos sobre as pautas que organizam a vida fronteiriça e certamente
se identificará nelas um conjunto de léxicos, como os mencionados acima,
relativos a uma cultura transfronteiriça compartilhada e que significam nas e
pelas dinâmicas da fronteira, e não se repetem em outros lugares, facilitando
assim a comunicação entre brasileiros, argentinos e uruguaios.

Na fronteira Brasil-Argentina, há também pesquisas que abordam


a presença do português do lado argentino da fronteira, e como o contato lin-
guístico com o espanhol impulsionou a existência de uma mescla linguística,
chamada de portunhol. Este é o caso do portunhol falado em comunidades
localizadas nos limites territoriais do Brasil com as províncias de Corrientes
e de Missiones. Nesse caso, o deslocamento de brasileiros durante meados

13
Este dicionário (dois volumes) foi elaborado por alunos das duas escolas
do município de Itaqui, fronteira Brasil-Argentina, participantes do Programa Escolas
Interculturais de Fronteira, antigo Projeto Escolas Interculturais Bilingues de Fronteira.

Revista Iberoamericana de Educación [(2019), vol. 81 núm. 1, pp. 97-113]


Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

do século XX para outro lado da fronteira, para exploração da erva mate, da


madeira e também para cultivo de arroz e soja, colocou em contato não só
falantes de português como também falantes de alemão (teuto-brasileiros),
de russo, de polonês com falantes de espanhol e guarani, em comunidades
localizadas em Posadas, ou em comunidades localizadas às margens do rio
Uruguai, como El Soberbio e Oberá.

Tal como no norte uruguaio, o português nessas regiões se manteve


como língua familiar e, em contato com o espanhol, produziu uma mescla,
identificada pelos falantes como brasilero ou portuñol. Maia & Méndez (2017,
p.160) nomeiam esse português como português missioneiro de fronteira
(PMF), e esclarece que “O PMF, para os informantes é uma mistura, é não
falar bem o português. Algumas delas utilizam como sinônimo a palavra
brasilero. Reconhecem que é uma versão do português, com um pouco de
mistura do espanhol.”

O documentário dirigido por Ana Zanotti Escenas de la vida en el


borde, a seção “Mixtura de Vidas”, gravado na colônia Santa Rita, no lado
argentino da fronteira, província de Missiones, a docente da escola da comu-
nidade comenta que os estudantes, filhos ou netos de brasileiros, chegam à
escola falando português e que, aos poucos vão incorporando o “castellano”,
110
110 que há muita mistura das línguas, e destaca que: “En el patio siguen hablando
su idioma, entre comillas, en “portuñol”.

Destaca-se que ambas regiões de fronteira, Brasil-Uruguai e Brasil-


Argentina, o deslocamento de brasileiros para outro lado da fronteira, contri-
buiu para a instauração de um sistema, no mínimo diglóssico, o português
como língua familiar, com menos status social, e o espanhol como língua de
prestígio, usado para as atividades mais formais. O portunhol, funciona como
uma língua de entremeio nesse sistema diglóssico.

O quadro de exemplos e dos estudos referidos nos mostram a neces-


sidade de investir em mais pesquisas sobre o contato português e espanhol
na América do Sul. O portunhol como uma língua de contato, é a língua da
fronteira, determinada pelas dinâmicas da vida e da cultura fronteiriças,
que se intensificam pela capacidade dos falantes de se comunicarem, de
interagirem. No entanto, não temos estudos descritivos que mostrem quais
mudanças linguísticas ocorrem na formação da mistura das línguas, se há
uma tendência de regularidade na estrutura linguística que resulta no por-
tunhol, se é uma terceira língua. Temos indícios do seu funcionamento para
determinadas práticas sociais, porém não se tem certeza se este é seu limite.

Revista Ibero-americana de Educação, vol. 81 núm 1 [(2019), pp. 97-113]


E. R. Sturza

Vale ressaltar que na fronteira Brasil-Argentina amplia-se o repertório


linguístico, os fronteiriços dispõem do: português, espanhol, alemão, guara-
ni e mais o portunhol, ou seja, um quadro mais plurilíngue, em oposição à
fronteira Brasil-Uruguai que tende a manter seu potencial para o bilinguismo.

4. Considerações finais

Para responder às questões levantadas inicialmente, buscou-se


realizar um percurso panorâmico sobre o contato linguístico nas fronteiras
Brasil-Argentina, Brasil-Uruguai, enfocando o funcionamento tanto do por-
tunhol uruguaio como do portunhol língua da fronteira.

Os exemplos apresentados mostram, por um lado, a percepção


dos falantes sobre a relação do portunhol com uma identidade e cultura
de fronteira, com características, inclusive, transnacionais. Essa relação se
pauta no reconhecimento de um modo de falar que não é nem português nem
espanhol, mas que tem funcionado para as relações cotidianas, sustentadas
em um grau de intercompreensão que coloca os falantes em uma dinâmica,
impulsiona as interações sociais, de modo que se efetivem plenamente, em
especial, em certas práticas sociais. Seria necessário descrever e ampliar as 111
pesquisas que venham a mapear quais práticas sociais o portunhol funciona,
mas também quais ele não é efetivo para a comunicação entre falantes de
português e de espanhol.

Por outro lado, há indícios importantes sobre a constituição da


“mistura”. Ainda que existam escolhas aleatórias no falar o portunhol, há
estratégias comunicativas que podem auxiliar a caracterizar e compreender
como se forma a mistura: um conjunto significativo de léxicos compartilha-
dos assim como a incorporação de vocábulos e expressões, no exemplo do
espanhol na variedade do português da fronteira; também o uso dos artigos
definidos nas nomeações dos estabelecimentos comerciais, uma evidente
estratégia de aproximação, visando ao “cliente” do outro lado da fronteira.

Um mapeamento descritivo do portunhol, sobretudo, portunhol língua


da fronteira pode contribuir na implementação de políticas linguísticas que
promovam a integração nos espaços transnacionais na América do Sul, sub-
sidiadas no conhecimento sobre as situações linguísticas das fronteiras vivas.

Revista Iberoamericana de Educación [(2019), vol. 81 núm. 1, pp. 97-113]


Portunhol: a intercompreensão em uma língua da fronteira

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