Altenhofen (2008)

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I

c ALTENHot,EN, Cléo \-. Os cotttttÍos lhgíiístic'os e seu papel na arealização do portug,uês


.falarlo no sul tkt B ra s il. In. ELtz.rmcÍx, Adolfo & EsPIGA. Jorge (orgs.). Espcríiol y
portLrsués: fronÍeiras e contaÍos. Pelotas: UCPtrL, 2008. p. 129-164.

Os contatos lingüísticos e seu papel na arealização do português falado no


sul do Brasil

CIéo V. ALTENHoFEN
*\ Universidade Federal do Rio Grande do Sul (L]FRGS)
Instituto de Letras
\
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x

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\X--z'
Resumo: O presente estudo tem por objetivo descrever a rede de contatos lingüísticos que interligam as
dif'erentes lireas de variação do português rural falado por monolíngües e bilíngües da classe menos
escolarizada. no sul do Brasil. Tal recorte está condicionado pelo corpus analisado e que corresponde à
base de dados coletados em 275 localidades distribuídas pelos três estados (Rio Grande do Sul, Paraná e
\/ Santa Catarina). para a elaboração do ALERS (Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil).
Parte-se. para tanto. de uma tipologia de contatos lingüísticos que engloba, com base em Altenhofen
(1007). os conratos entre 1) português e línguas autóctones (indígenas); 2) portuguôs e línguas afro-
brasileiras: 3) português e línguas alóctones (de imigração); 4) português como língua alóctone em
contato com 1ínguas oliciais; 5) português e línguas co-oficiais em contato; 6) contatos lingüísticos de
Ír-onteira com países vizinhos; e 7) contatos entre falantes de variedades regionais do português. Através
da macroanálise das cartas lingüísticos do Atlas, para a qual se considera neste artigo os tipos 3), 6) e 7),
descreve-se a clinâmica dos contatos, no espaço geográfico e social, cousiderando as diferentes áreas
lingüísticas postuladas nos estudos anteriores de Mercer (1992), Koch (2000) e Altenhofen (2005), bem
como os fatores que influenciam esse processo e que incluem os movimentos migratórios, as relações de
troca entre os diferentes grupos de fala, condicionamentos do meio físico geográfica (barreiras naturais,
tipo de atividade predominante, vias de comunicação, isolamento e gtau de urbanização etc.), ou ainda
diferenças e semelhanças sócio-culturais das populações em contato.

Palavras-chave: pltcílingüismo - contatos lingüísticos - variação lhgüística - portttguês do Brosil - áreas


língiiísticas atlas lingiiístico

0. Introdução: vqriedades lingüísticas. Afinal, o que entra em contato?

A percepção da variação diatópica (do uso da língua em "regiões" ou países

distintos) tem sido, ao longo da história, tão saliente e salientada quanto a percepção das
variações diastráticas da língua, entre segmentos sociais distintos (p.ex. entre a plebe e a
elite letrada). Em outro sentido, poder-se-ia admitir que as sociedades tradicionais do
passado, caracterizadas pela topostáticat dos falantes, se encontravam muito mais

propensas a perceber ou estranhaf a presença do que é exógeno ou estrangeiro à

comunidade, do que as sociedades modernas, caracterizadas pela topodinâmica2 dos


falantes e por uma heterogeneidade étnica e social, e muitas vezes inclusive de um

plurilingüismo acentuado. Nestas situações, vale ressaltar, o gérmen da variação aparece


perceptível já no interior da comunidade e, portanto, não se percebem com a mesma

ênfase e diferenciação os modos de falar vindos de Íbra, como acontecia antigamente,

' Terno usado por Thun (1996) para designar a situação de falantes mais tiros à localldade ,rndi nl.:r:l-
I O outro lado em que Thun ridemr dir-ide 6131opia.
"
2

em contextos mais isolados e tradicionais. Esta suposição aparentemente simples não dá

conta, no entanto, da complexidade dos diferentes contextos de contato lingüístico e de


plurilingüismo.

Para focar mais adequadamente o olhar sobre relações importantes da


dinâmica de variação e uso da língua, parto do ponto de vista de que o que, enfim, entra
em contato são antes de tudo modos de falar individuais (idioletos) identificados com
variedades lingüísticas. Sem mergulhar em um nível excessivamente microlingúístico,
para não comprometer o reconhecimento de tendências coletivas, e tampouco adotar
categorias amplas demais, que pequem pela generalizaçáo excessiva, o que quero

analisar, neste recorte, são, acima de tudo, variedades em contato. Com isso, abarca-se

uma gama de relações sócio-culturais e lingüísticas muito maior do que sugere a

denominação "línguas em contato" (languages in contact, Weinreich 1970), pois, como

afirma Coseriu (1982l. 16), ninguém fala "O português", "O espanhol", "O alemão"; "lo
que se habla es siempre alguna foma determinada del [português], del [alemán]."

Por outro lado, a maior ou menor mobilidade espacial e a relativa estabilidade


social das diferentes comunidades de fala sugerem duas situações de contato lingüístico
essenciais, às quais retornarei mais adiante: a) da existência, lado a lado, de

comunidades de fala mais ou menos estáveis (por isso, mais topostáticas), que mantêm
ten:itorialidades próprias e separadas; e b) da existência de comunidades de fala com
forte mobilidade e interação entre os falantes (portanto, topodinâmicas), as quais
mantêm um intercurso permanente de elementos da língua, como no caso das áreas de
fronteira, ou de contextos mais urbanizados. Como enfatiza Thun (1996), no mundo
atual predomina a segunda situação, ou seja, de uma mobilidade tal,3 que tornou mais
dificil encontrar pessoas que "nascem, vivem e morrem" na mesma localidade,a como

ocorria em épocas passadas. Os contatos resultantes das migrações internas e diárias


(p.ex. entre o local de trabalho e a moradia), seja de grupos ou de indivíduos,
constituem uma variável imprescindível no estudo da variação e mudança lingüística e do
bilingüismo.

3
"La mayoía de la gente es móvil o muy móvil. Lo afirman los censos y las tantas autobiografias que
esbozaron los informantes" (THUN 1996:211), referindo-se ao ADDU.
a
Esta dificuldade faz-se notar, por exemplo, na escolha dos informantes, em projetos como ALERS,
ALiB e ADDU. O critério tradicional, de que o informante seja nascido no lugar e não tenha viajado
muito, nem morado por muito tempo em outra localidade, nem sempre tem sido possível, dando lugar a
uma flexibilização do critério, p.ex. de que o informante tenha vrvido 3/t da sua vida na localidade. Cf.
também Altenhofen (2006).
i
i

1. Objetivo e metodologia do estudo: macroanálise dos contatos lingiiísticos

No presente artigo, pretende-se analisar, em termos macroanalíticos (neste

caso, geolingüísticos), a dinâmica dos contatos das diferentes variedades do porluguês

falado no sul do Brasil entre si e com variedades de outras línguas, já que se trata, como

se verá a seguir, de uma região fortemente marcada pela presença de contextos


plurilíngües e de diferentes tipos de contato lingüístico. Por outro lado, ao enfocar o
contato entre variedades lingüísticas, torna-se necessário rever a questão da arealização

do português, através da qual se delimitam áreas geográficas de predomínio de

determinadas tendências em comum no uso de uma variedade particular da língua.

Esta questão, já abordada em estudos anteriores de Mercer (1992), Aguilera


(1994.,2000), Koch (2000) e Altenhofen (2005), será revista com base em 374 novas

cartas lingüísticas, ref'erentes aos volumes 3 e 4 do ALERS (Atlqs Lingüístico-


Etnográfico da Região Sul do Brasil), em vias de publicação. Nessa perspectiva de

ordem macrolingüística, busca-se em síntese abstrair no espaço as tendências gerais de


que se falou, de domínio e uso coletivo de uma detetminada variante ou "modo de
falar", como aliás já sugere o próprio significado original do termo dialeto, em grego. O
princípio parece legítimo e aceitável em diferentes contextos. O que muda é a intenção
que se quer com isso e o modo como se realizam tais arealizações.

Um primeiro modo e objetivo da arealizaçáo é representado pela dialetologia


tradicional, para a qual o reconhecimento de tendências de uso de variantes no espaço
geográfico tinha fortemente função taxonômica, pois visava à identificação e

classificação de "dialetos" definidos por isso como "feixes de isoglossas", ou seja, um


conjunto de variantes identificáveis como tipicamente usadas em uma determinada área
geográfica e que podem ser delimitadas em uma carta lingüística por linhas que se

sobrepõem sobre um mesmo traçado. Quanto mais isoglossas se soprepõem, formando


portanto um feixe (conseqüentemente, um "conjunto de variantes"), maior o contraste
entre os modos de falar de uma área e outra, podendo-se reconhecer não apenas uma

variante, mas sim toda uma variedade como distinta. Segundo Chambers & Trudgill
(1980: 104), podem-se identificar dois procedimentos de traçado de isoglossas, a saber.
i
a

AAAA
AAA
ooo
Modelo I- Uma linha pafticular separa a região onde ocoffe a forma L da fuea de

predomínio de sua contraparte O. A linha A corresponde a uma isoglossa.

AAA

Modelo 2 - Duas linhas separam as regiões onde ocorrem as fotmas A e O. As linhas

ligam falantes com traço A (linha B) e falantes com traço O (linha C). As
duas linhas formam uma heteroglossa.

Na análise e interpretação das cartas lingüísticas do ALERS, tem-se adotado o


primeiro modelo, de traçado das isoglossas. Este, aliás, configura apenas um dentre os
procedimentos possíveis para identificar mais claramente as relações entre as variantes

cartografadas pelo Atlas, lembrando que estas aparecem primordialmente em sua forma,
digamos, bruta, ou seja, como *uput ponto-símbolo. Um segundo procedimento
adotado para a análise das cartas lingüísticas consiste na elaboração de cartas
sintéticas, através das quais se somam ocorrências de mais de uma carta lingüística ou
lema6 em um único mapa. Em suma, através da cartograÍia das variantes lingüísticas
referentes a determinadavanárvel, procura-se delimitar a abrangência espacial de cada

variante e sua distribuição no espaço geográfico daárea em estudo.

' Apesar da distinção entre carta, mapa e ainda cartogratna, à qual chamam a atenção Teles & Ribeiro
(2006: 209), e que se faz na ítrea da geografia, utilizam-se para os fins deste artigo os dois termos ruapa e
L'arl.l com o mesmo sentido.
o
O item do questionário que é cartografado e que figura como tírulo da legenda do mapa.
a
5

Somam-se a esses procedimentos análises estatísticas dos dados, em que se

ignora a dimensão diatópica e se contrasta por exemplo as variantes usadas por


monolíngües e bilíngües, de bilíngües de determinada língua, ou ainda levando em
conta os diferentes estados. Apesar de seguir mesmo de Íorma não restrita a tradição de

um único informante por ponto (em muitos casos também um casal de informantes) - e

investigando o idioleto como unidade de análise além disso, inquirindo


primordialmente informantes do sexo masculino e de faixa etária entre 35 e 65 anos,
pode-se considerar, nessa.análise, um total de no mínimo 215 informantes

representativos do português rural falado na região sul do Brasil.

A variável <bilingüismo> aparece na maioria dos nossos estudos como uma

das mais representativas, tanto usando o método cartográÍico de corelação de variáveis

quanto em análises estatísticas, quando contrastamos a fala de bilíngües e monolíngües

no conjunto dos informantes dos 275 pontos pesquisados (v. p.ex. LEÃO;
ALTENHOFEN & KLASSMANN 2003), que se dividem em três grupos:

Tipo de.ponf.o de
inquérito' eorrf or.rne o
bilingüi*mo (ÀLER§)
Ponto bilíngüe com 84
l5 157o 44 55Va )1 26,3270
informante bilíngüe (30,55'lo )
Ponto bilíngüe com r23
62 62Va 24 307o 37 38,957a
informante monolíngüe t44,73Vc I
Ponto monolíngüe com 68
23 23Vc t2 l5Vc 33 34,7 470
(24,73Yo)
informante monolíngüe
?75
Tolal de pontos 10s 80 95
tlCI$7r)

Quadro 1 - Informantes do ALERS, conforme a variável <bilingüismo>

O número de pontos do ALERS com informante bilíngüe, conforme a segunda


língua que falam usualmente no lar é o seguinte:

i: ,:.':::=l TOTAL
AIemão ItêliáÉô Polonês Úcnániano C)utras bilínsües

PR 2 8 3 I t5
SC 11 21 4 0 2 44
RS o t2 3 0 I 25

Reriãr 2E 41 I 3 4 84

Quadro 2 - Informantes bilíngües do ALERS, conforme a segunda Íngua falada no lar


6

A partir da compreensão das "áreas dialetais", ou "áreas lingüísticas", como


"áreas de tendência e de predomínio" de determinado compofiamento lingüístico, tem-

se no mapa lingüístico uma função semelhante a de um gráfico ou estatística, visto que

serve de instrumento de visualização e de descrição de tendências da variação


lingüística no espaço. Trata-se, assim, de uma espécie de zoom com o qual se
interrelacionam e reconhecem variedades dentro da língua em uma iírea geográfica,
compreendida como uma reunião de pontos mais ou menos afastados.

Por outro lado, não se pode perder de vista a função complementar que deve
existir entre as análises estatística e cartográfica, devido sobretudo ao papel da

distribuição e/ou concentração de determinado fenômeno lingüístico no espaço


pluridimensional. Éo já alertei em outro texto (ALTENHOFEN 2006: 168),
que
comparando oS esquemas A e B do quadro a seguir, onde o mesmo percentual de
ocorrências de uma variante Y se diferencia pelo modo como ocoÍre ou se distribui no

contexto/ambiente considerado.

Esquema A Esquema B

x { Y
x x {
Y x x
x X x
x

2. Tipologia dos contatos lingüísticos

O estudo da variação lingüística e dos diferentes contextos plurilíngües de

contato lingüístico envolvendo o português falado no Brasil tem apontado a pertinência


de se distinguir tipos de contatos, para fazerjus às peculiaridades que caracterizam cada

um, no cenário brasileiro, e para, além disso, propiciar uma visão do conjunto de

situações presentes no país. Estas situações dão o seguinte quadro apontado pela
literatura (cf. OLIVEIR A 2003: 1):

a) cerca de 180 línguas indígenas (autóctones);

b) cerca de 30 línguas alóctones ou de imigraçào;


1I

c) línguas afro-brasileiras:7
d) fenômenos de fronteira (portunhol, "dialetos portugueses do Uruguai" - cf.

ELIZAINCIN, BEHARES & BARRIOS 1987; brasiguaios - cf. THIIN 2004);

e) variedades regionais do português brasileiro (v. mapa de Antenor Nascentes

1923 fcf. na bibliografia ed. 1953]).

Reconhecem-se, deste modo, pelo menos seis tipos de contato lingüístico, que

poderíamos resumir da seguinte maneira, melhorando o ordenamentoS e a formulação já


apresentados em Altenhofen (2007):

l) português e línguas autóctones (indígenas);

2) português e línguas afro-brasileiras;

3) português e línguas alóctones (de imigração);

1) português como língua alóctone em contato com línguas oficiais (p.ex. com
guarani e e,spa.nhol, no Paraguai, e espanhol no Uruguai);
5) português e línguas co-oficiais em contaÍo (p.ex. Tukano' Nheengatu e

Baniwa, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro);


6) contatos lingüísticos de fronteira com países vizinhos; e
7) contatos entre falantes de variedades regionais do português.

No primeiro tipo de contato, o status social das línguas envolvidas, português


e línguas autóctones (indígenas), assemelha-se em muitos pontos ao das línguas de

imigração. Contudo, difere até hoje seu status político, apesar de alguns indicativos de
mudanças, como no projeto do Livro das Línguas Brasileiras, em discussão no âmbito

do IPHAN e IPOL. Enquanto os grupos indígenas encontram amparo e respaldo na


Constituição e na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), não
há aí nenhuma referência, pelo menos explícita, a direitos e especificidades das
comunidades de falantes de línguas de imigração.' Ettut subsomem sob o atributo
genérico de "cultura local". Proporcionalmente, quando o MEC, que possui uma
Secretaria de Alfabetização e Diversidade Lingüística (SECAD), fala de diversidade
lingüística, refere-se muitas vezes exclusivamente às línguas indígenas faladas no

7 Acepção que vem se tornando corrente, em uma série de discussões, como no caso do I Fór-um
Internacional da Diversidade Lingüística, realizado emjulho de 2007, na UFRGS, em Porto Alegre.
I
Respeitando, p.ex., a ordem cronológica em que aparecem e subdividindo o contato com línguas oficiais
(sralrrs desigual) ou co-oficiais (mesmo srdlus político-instirucional).
e
Na verdade, "o Estado não agtu da mesma maneira, não lhes concedeu [aos cidadãos falantes de 1ín,euas
alóctones ou de imigraçãol direitos culturais e lingüísticos''. acenando acima de tudo para a cc.ntinuidade
da política integracionista (OLI\IEIR\ 100-i: 9 ).
8

Brasil. Fica, deste modo, evidente a necessidade de ampliar o conceito de "diversidade


lingüística", incluindo todas as línguas faladas em comunidade no Brasil.

No caso das línguas alóctones (de imigração) em contato com o português,


tem-se fundamentalmente o contato de uma "língua européia oficial majoritária e de

colonização (o português) com línguas minoritárias exógenas, importadas e imersas na


área de domínio e predomínio da língua oficial do país". Uma pergunta que se pode
levantar é se as línguas aÍiicanas dos escravos negros, trazidas ao Brasil em decorrência

de uma imigração forçada, constituem um tipo à parte ou se compartilham traços com as

línguas de imigração. A verdade é que essas línguas se diferenciam consideravelmente,

na forma de existência e nos condicionamentos históricos e sociais. Parece haver um


consenso de que o mais adequado, neste caso, seria falar de línguas afro-brasileiras.

Em situação parecida à das línguas de imigração no Brasil, encontram-se os

contatos do português como língua alóctone em contato com uma língua oficial. É o

caso do português falado pelos brasiguaios em contato com o guarani e o espanhol no


Paraguai, ou ainda do português falado no norte do Uruguai, que Elizaincín, Behares &
Barrios (1987: 13) descrevem como "dialectos portugueses del Uruguay" (DPU). Thun
(2000) refere-se a esse português como "o português americano fora do Brasil" e

ressalta a importância de sua descrição e consideração pela lingüística brasileira, como

uma de suas atribuições também. Nesses contextos, o português ocupa uma posição
marginal, de língua minoritária e inoficial, da mesma maneira como de modo geral as

línguas de imigração no contexto brasileiro.

De certa forma, esse tipo de contato lingüístico do português americano fora


do Brasil, apesar de muitas vezes envolver comunidades mais ou menos estabelecidas e

territorialmente demarcáveis, costuma ser tratado sob o tipo de coníato lingüístico de

fronteira. De fato, tal definição depende do conceito de "Íionteira" que se adota. Me


parece que se deveria reservar a esse tipo essencialmente fronteiriço aquelas situações

de intercurso (de elementos) das línguas entre um lado e outro dos limites de cada país,

embora considerando as alterações de fronteira, como no caso dos limites fixados pelos
tratados de Madri (1750) e de Santo Ildefonso (1,111), entre o Rio Grande do Sul e o

Uruguai/Argentina. É ,ma questão complexa que precisa ainda ser aprofundada.

Diferente é a situação do português em contato com línguas co-oficiais. Pode-


se projetar que essa situação inaugurada por São Gabriel da Cachoeira. no Alto Rio
Negro, o primeiro município brasileiro a aprovar uma 1ei de co-oficializaqão de 1íneuas
o

indígenas, venha a sen'ir de fundamento e inspiração para outros contextos, incluindo


p.ex. municípios com forte presença de línguas de imigração. A Lei municipal

145/2002, pautada no espírito da Constituição Federal e da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional, determina que, em São Gabriel da Cachoeira, além do português


também as línguas Tukano, Nheengatu e Baniwa - línguas veiculares da região - devem

ser utilizadas nas diversas instituições públicas e privadas do município (cf. www.ipol.org.br).

Um último tipo, de cunho intra-lingual, é o derivado das migrações internas


de.falantes de variedades regionais distintas, para novas áreas de coloniz.ação, como é

o caso do contato de falantes de variedades do português de gaúchos, paÍanaenses,

paulistas, mineiros, baianos e nordestinos, de modo geral. Repetindo, cabe ressaltar


também aqui novamente o papel dos contatos lingüísticos e das migrações, como
características fundamentais das populações sul-americanas.l0

Falta no entanto ainda uma delimitação mais sistemática das variedades


regionais do português falado no Brasil, o que em termos nacionais será possível com o

ALIB (Atlas Lingüístico do Brasil - v. www.alib.ufba.br). Tal vem complementar a

descrição já mais avançada desse português falado especificamente na parte sul do país

através de dados do ALERS, que no entanto refletem apenas o "português rural falado
pela classe menos escolarizada, incluindo falantes monolíngües e bilíngües", como se

verá a seguir.

3. Á."as e contatos lingüísticos do português falado no sul do Brasil

Cada mapa lingüístico implica, conforme a {fitureza da variável cartografada


(se engloba por exemplo uma variação fonética, morfossintática, semântico-lexical, ou

ainda etnográfica) uma complexidade particular. O traçado de isoglossas, que constitui

o primeiro passo para a sua análise e interpretação, já demonstra muitas vezes


arealizações diversas. É preciso, por isso, comparar diferentes variáveis (ou itens do
questionário) para identificar compofiamentos recorentes do uso da língua, representada

aqui pelo português rural de falantes de baixa escolaridade do sul do Brasil.

Dentro do que é possível apresentar em um breve artigo como este, e

considerando também os poucos mapas que já se conseguiu analisar com mais

r0 esses aspectos são analisados atrarés da dinren:ão


No modelo da dialetologia pluridimensional
dialingual e da topodinâmica.
10

profundidade, gostaria de apresentar alguns resultados que permitem abstrair diferentes

tipos de relações entre as variedades do português identificadas no eixo da diatopia (em


tetmos de sua arealização e delimitação) e o papel dos contatos lingüísticos nessas
relações. Em função do corpus, podem ser considerados para análise apenas os tipos 3,

6 e 7 de contato lingiiístico apontados acima. Além disso, os novos mapas que


compõem os volumes 3 e 4 do ALERS, ainda por publicar, referem-se acima de tudo à

variação semântico-lexical, acrescida de um número razoável de cartas fonéticas, nos


casos em que predominou uma única variante lexical (portanto, monomorfismo).

Aqui, chama a atenção como se comportam os diferentes campos semânticos


que dividem o questionário semântico-lexical (QSL) do Projeto. Algumas variáveis
apresentam uma grande quantidade de variantes, que dificilmente perrnite reconhecer
"arealidades". Isto é, configura-se uma situação mais instável e diversa em que nem
sempre se pode reconhecer o uso de uma variante como vinculado a determinada área
de abrangência no espaço. É o caso, mais freqüente, de variáveis ligadas ao "colpo
humano", ou seja, variáveis de caráter mais universal. Há contrariamente outras
variáveis que se caracterizam por uma concentração bem definida e delimitável da
ocorrência das respectivas variantes no mapa. Neste sentido, a cartografia de variantes
ligadas p.ex. ao tema'Jogos e divertimentos" mostra, nos dados do ALERS, arealidades

bem precisas. Constatações desse tipo reibrçam a importância e necessidade de estudos


interdisciplinares, envolvendo por exemplo e sobretudo a história, a sociologia, ou a

antropologia.

Para os fins de descrição da variação do portuguôs falado nos três estados do

sul do Brasil, há que considerar ainda a possibilidade de "ausência de variação", melhor


dizendo, de pouca variação de determinado fenômeno no conjunto da área, observando
que no mapa de Antenor Nascentes t923, v . anexo) se concebe toda a região como parte

de um único "falar", o "falar sulino", como ele denomina o português falado do Rio
Grande do Sul a São Paulo e Mato Grosso, e parte de Goiás e Minas Gerais. Pode-se,
por outro lado, reconhecer nessa relativa invariância traços comuns que se aplicam ao
português brasileiro de modo geral, ressalvados alguns comportamentos desviantes,
p.ex. de falantes bilíngües de uma língua de imigração, cuja aquisição do português
recebeu uma influência particular da escrita. Alguns exemplos que demonstram essa

relação, no ALERS, são

a) a queda de /r/ finalde infinitivo (mapa 155 - QSL 196 [Íbn.]):


11

b) a monotongação de /ai. er. ou/, como em (c)ai(xão mortudrio) (mapa 288 -

QSL 477 [fon.]r. (galinh)ei(ro) (mapa 118 - QSL 162.d [Íon.]), (t)ou(ro)
(mapa 141- QSL 187.c [fon.]).

Na mesma linha, observa-se para algumas variáveis o predomínio quase

majontário de variantes consideradas não-padrão ou menos neutras, no sentido de sua


conotação regional ou social, algumas delas inclusive já dicionarizadas (cf. Dic. Houaiss
2001), como no caso das variantes redemunho (redemoinho - mapa 0201 022) e chimia
(mapa 357). Outros exemplo's: água saloba (ao invés de água salobra, mapa 012),
chamichungtt (entre outras variantes pata sanguessuga - Ínapa090), ímbigo (ao invés de

wnbigo -mapa 174),picumã (aoinvés de.fuligem-mapa337),vargem(patavárzea-


mapas 003, 004). O poder de diÍusão de muitas dessas pronúncias reflete, na verdade, o

efeito de uma ir:radiação lexical.

O certo é que a grande maioria dos mapas do ALERS mostra uma grande
variação do português, que toma difícil aceitar a idéia de um único "falar". No mínimo,
como se verá a seguir, se distinguem duas grandes arealizações que demarcam os

territórios de uso de duas grandes variedades do português em contato: a variedade


gaúcha (ou rio-grandense) e a paranaense, provavelmente mais próxima da idéia de
"falar sulino" a que se refere Nascentes, uma vez que se pode hipotetizá-la como um
prolongamento da variedade paulista. Nessas duas grandes áreas, ainda é possível
distinguir subáreas menores, com comportamento próprio.

3.1 Variedades do português em contato

Uma primeira conclusão, trazida à luz com os novos mapas e análises feitas
com base nos dados do ALERS, é a de que, em um plano mais amplo, se confirmam as

áreas lingüísticas do português delimitadas anteriormente em Altenhofen (2005: mapa

06) e que representava uma tentativa de ampliar as arcalizações de Koch (2000) e

Merçer (1992). O que se constata, através de uma série de comparações entre os mapas,
são delimitações em dois planos de abstração, um mais amplo e outro mais específico.

Plano mais genérico: duas grandes áreas

Como já se mencionou, os dados mostram de modo geral o contato entre duas


grandes frentes: uma paranaense. vinda do norte, e outra rio-grandense. projetando-se
t2

do sul para o norte/noroeste. Ambas as áreas (ou variedades) aparecem separadas por
uma zona de transição que Koch (2000) denomina de Leqwe Catarinense e que oscila
mais para o sul ou para o norLe. conforrne as variantes e os grupos sociais em contato.

Na maioria dos casos, a variedade paranaense avança sobretudo pelo centro,


acompanhando o caminho das antigas rotas de migração de paulistas na direção sul (v.
mapa 02). Uma dessas rotas principais segue os Campos de Lajes até as imediações de

Porto Alegre/Viamão, passando pelos Campos de Cima da Sera, razáo por que algumas
variantes do norle chegam a, se difundir até parte do nordeste do Rio Grande do Sul,

como mostram as isolexias de primavera (mapa 035, QSL 063 - reverberação), carpir
(mapa 107, QSL 146 - capinar) e funda (mapa 303, QSL 514 - estilingrze), embora às

vezes em processo de substituição e de variação com outras formas. Outros exemplos

indicam o avanço de uma variante do norte pelo lado oposto, até a região das Missões,
no Rio Grande do Sul. É o caso das variantes orvalho, em oposição à fotma rio-
grandense sereno (mapa 032 - QSL 059), e dieta, uma variante de quarentena,
empregada com mais freqüência nas áreas bilíngües (mapa 259 - QSL 421 - puerpério).
Essa corrente ocolre em um momento posterior, no séc. XVIII, em parte também como
prolongamento das rotas migratórias mais próximas do litoral e dos Campos de Lajes.

Em contrapartida, a variedade rio-grandense projeta-se, através das migrações


mais recentes, a partir das primeiras décadas do séc. XX, de gaúchos que vão ocupar as
áreas despovoadas do oeste catarinense e sudoeste do Paraná. Esse avanço decorrente da

migração de gaúchos pelo oeste,1l até o sudoeste do Paraná, reflete, em uma série de
mapas, o avanço da variedade do português sul-riograndense, ressaltando ainda que há,
entre esses migrantes, muitos bilíngúes descendentes de lmigrantes alemães, italianos e
poloneses do Rio Grande do Sul.

Dois exemplos que ilustram esse contato entre as variedades gaúcha e


paranaense e sua difusão por essas duas frentes (nos sentidos centro-sul e oeste) são

dados pelos mapas 04 e 05 em anexo. O primeiro mapa, que cartografa os limites


meridional e setentrional do uso espontâneo de tu (io-grandense) e você (paranaense),
no contato "irmão com irmão", reflete uma situação que é confirmada por uma série de

novos dados. Um desses dados é a arealização de Schmier (mapa 357 - QSL 608 -
chimia, em anexo), um empréstimo do Hunsrückisch (língua de imigração alemã) para
designar a "pasta de frutas para passar no pão". Curiosamente, a variante chimia serve

" Esta -igração recente de gaúchos foi tema inclusive de uma série recente da televi:ão RBS. que
recebeu o título sugestivo de "A conquista do Oeste" e que segue até áreas do -\;re : .\li,: R.il \:-so.
t3

para indicar de modo muito nítido a área de projeção recente da variedade gaúcha na

direção noroeste. Vale obserr.ar que os bilíngües alemão-português do Vale do Itajaí, no

leste de Santa Catarina, não empregam, contrariamente, a mesma variante do alemão'

Ao invés de chimia (ol Sclmtier), utilizam predominantemente a forma musse. Há,


assim, uma corelação entre migração intema e ocorrência da variante lingüística. Esta

inclusive se difunde, conforme se pode depreender de sua atealízaçáo, para outras


variedades em contato.

Podem-se encontrar diversos outros exemplos de mapas que apresentam essa

polarização de isolexias entre as variedades paranaense e rio-grandense, resguardadas as

variações internas que veremos no plano mais específico e a difusão maior ou menor
pelas três coffentes (em ordem cronológica de ocupação, respectivamente leste, centro e

oeste). O quadro a seguir dá uma idéia da representatividade dessa primeira oposição:

N.o N,o da Lema Yariante gâúchâ Yariante pârâüâenso


mapâ pergrrnta predominante predominante
010 QSL 021 barragem (água) açude repre sa

032 QSL 059 orvalln ,teren0 orualho

045 QSL 074 m.anclta.ç na Lua var. Nossa Senhora (...) var. Sdo Jorge (...)
(etn.)

062 bergamota vergamoto/bergamota me x e ric a/tan g rí nahnimo a


QSL 126 e s

101 QSL 146 captnar captnar carptr

109 QSL 149 lavrar lavrar arar (PR também tombar)


119 QSL 163 local para guardar galpao p ai o l/ g a r a g e nt/ r anc ho
(etn.) instrutnentos
agrícolas

120 QSL 16s mangual mangua/mangual c amb al/c amb ão. v ar o/v ar ão

208 QSL 314 canhoto canhoto canhoteiro

232 QSL 354 furúnculo furúnculo licenço (...) (PR norte também
tumor)

252 QSL 403 rasteira tranca/tranqueira ( RS rastetra


fronteira tamhém
capoeira/capoeirada)

259 QSL 421 puerpério resguardo ( SC açoriano- dieta


catarinense ), quarentena
(áreas bilíngües),
re poLtso (RS fronteira)

292 QSL 491 tocato tocdio mrá (PR norte e parte SC


açori ano-catarinense)

302 QSL 5r 3 bolinlta de gude bolita, bolinha de gude bolinha de vidro, bnrquirtltct
(RS leste) (...),c'lica (SC Vale do Itajaít

303 QSL s 14 estilingue bodoque (rfzrnda no RS fiotda (SC centro e le:1t,. esi)!,'.::t.
leste e nordeste) t PR i:L.,te . r;:'-; PR ..r.

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