Interpela Do Magnificat

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ESQUEMA

PARTE PRIMEIRA: A interpelação do Magníficat


I)- Breve introdução
II)- O estado da questão
III)- Contexto: alguns traços da conjuntura continental
IV)- O Magníficat para as massas pobres e oprimidas
1)- Quem são as massas pobres e oprimidas
2)- Como Maria entra no clamor dessas massas
3)- A justiça divina intervém
4)- Precipita o poder oco
5) Despede os ricos de mãos vazias
V)- O Magníficat para as massas excluídas ou sobrantes
1)- Quem são as massas excluídas ou sobrantes
A)- A dimensão da tradição mística
B)- A dimensão contemplativa
C)- A espiritualidade libertadora
2)- As pessoas humildes são exaltadas
3)- As pessoas famintas são saciadas
4)- As pessoas desamparadas são socorridas

PARTE SEGUNDA: A mística de Maria à interpelação do Magníficat

I.A mística da contemplação


1)- Exaltou os humildes: Maria contempla a Deus atuando na história
2)- Os famintos cobriu de bens: Maria contempla o Deus que sacia
3)- Socorre Israel lembrado de sua misericórdia: Maria contempla o Deus fiel à promessa.

II. A mística do compromisso ético


1)- A mística do vigor
2)- A mística da eficácia
3)- A mística do serviço
4)- A mística da militância hoje
A)-Maria proclama os feitos de Deus
B)-Maria descreve os feitos de Deus
C)- Maria alimenta a esperança dos povos
D)- Mística, militância e mistério pascal

III. O questionamento de conclusão: Que mística nos inspira Maria para o Terceiro Milênio?
2
A FALA DE MARIA NO MAGNÍFICAT AOS POVOS DO SUL DO MUNDO
(Para uma mística evangélica do Terceiro Milênio)1

Parte Primeira: A interpelação do Magníficat

I)- Breve introdução

O que se entende dizer com esse título? Primeiro: a fala é a característica


humana da qual Maria se serve para dizer ao seu povo de que lado está e com quem
luta. Segundo: através da sua fala no Magníficat, Maria aproxima toda a
Comunidade divina do povo do qual faz parte, e o faz da seguinte forma:
- como mãe traz para o meio de Israel a Palavra viva do Pai que é Jesus Cristo;
- como mulher abre-se ao imperativo do Plano salvífico e torna possível a
comunicação do Pai com o povo escolhido por meio do Mistério da Encarnação;
- como esposa dá forma ao Espírito Santo que a engravida, fecunda a comunicação
que se dá entre o Pai e o Filho para que o Pai realize seu Projeto divino e o mundo
seja libertado para sempre.

Desse modo Maria assume a atitude de ser a Mãe libertadora de todos os


povos, a Mulher profética de todos os tempos, e a Esposa fiel ao Plano de salvação
do mundo. Pergunta-se ainda: Porque “para uma mística evangélica”? Porque a vida
cotidiana dos nossos povos, vida vivida em contexto latino-americano, caribenho e
antilhense, é referente à proclamação do mistério salvífico do Pai e à celebração
desse mistério na fé, na vida e no cotidiano. Por isso a palavra mystikos significa
aquilo que é referente à celebração dos mistérios cristãos a partir da vida concreta.
É este processo que faz a história da salvação ser o que é. Para o nosso povo não
existe uma mística desvinculada da realidade cotidiana vivida em todas as suas
dimensões.

Os nossos povos não explicam o que seja a mística evangélica; eles a


testemunham com a sua vida, com seu compromisso pelo Reino e a expressam com
suas celebrações cheias de festa e de alegria. Tais gestos revelam a atuação salvífica
de Cristo, gestos que culminam na realização plena do mistério profundo de Deus
(cf. Rm 16, 25-27), que é o mistério da paixão-morte-ressurreição de Jesus. Os
nossos povos guardam na sua intimidade uma realidade profundamente mística que
pertence ao sagrado e é alimentada sobretudo, na leitura da Palavra de Deus e na
sua interpretação brotada da vida concreta. Daí o significado de mística evangélica.

Finalmente, ao fazer rápido balanço de fim de século, tende-se a falar sobre as


perspectivas que o século vindouro trará. Essa reflexão quer falar da grande
perspectiva mariana apresentada no Magníficat da Mulher de Nazaré, com o
objetivo de continuar alimentando a esperança e o sonho que pervadem o coração

1
- Conferência proferida no IV Congresso Internacional Mariológico do México: Faculdade de Mariologia da Pontifícia
Universidade Católica do México, Cidade do México, em 29 de julho de 1998.
3
de cada pessoa, esperança e sonho que povoam a imaginação humana e ao mesmo
tempo alimentam a jovialidade cristã.

Todo esse processo porém, não é apenas uma mudança de calendário. É uma
leitura de fé do contexto no qual vivemos e padecemos, contexto esse interpretado
na ótica da opção evangélica preferencial e solidária pelos pobres (cf. DP 1134),
opção feita hoje em favor das massas de pessoas pobres e oprimidas e pelas massas
de pessoas excluídas ou sobrantes.

Essas duas fortes expressões humanas representadas por tais categorias de


pessoas, proclamam com voz cada vez mais forte e contundente, as primeiras por
justiça e as segundas por vida. A voz das massas pobres e oprimidas e das massas
excluídas ou sobrantes encontra éco e significado na fala de Maria quando, com seu
Magníficat, anuncia ao povo a chegada próxima do Deus Libertador no meio de
Israel.

Esse modo típico de testemunhar a fé é um carimbo de esperança que marca


as massas oprimidas na luta pela justiça e as massas excluídas na luta pela vida.
Tais pessoas só contam com o socorro vindo do Deus Libertador e a explosão da
gratuidade solidária e bondosa desse Deus Libertador como Comunidade divina.
Mas por que se fala de massas oprimidas e de massas excluídas? Mas por que as
primeiras clamam por justiça e as segundas por vida ou melhor dizendo, por
sobrevivência? Onde está a diferença? O critério para essa reflexão mariológica à
luz do Magníficat é o de dar o protagonismo da história a essas duas categorias de
pessoas que são: as pobres e oprimidas e as excluídas ou sobrantes.

Do Cântico de Maria atribuo à primeira categoria, isto é, às pessoas pobres e


oprimidas, as frases e as expressões que clamam a Deus por justiça mais explícita
e diretamente, e às pessoas excluídas ou sobrantes atribuo as frases e as expressões
do mesmo Cântico que clamam por vida em todas as suas dimensões.

II)- O estado da questão

Maria sempre foi proposta pela Igreja como pessoa de fé e exemplo de vida
cristã comprometida, não pelo tipo de vida que ela levou, mas sim porque, nas
condições concretas de seu tempo ela acreditou que a realidade última da pessoa
humana não é habitada pela solidão, mas pela comunhão de todas as pessoas em
igualdade perfeita, como se dá na Comunidade divina do Pai com o Filho, no
Espírito Santo.
4
2
Às portas do Terceiro Milênio Maria se faz presente através da sua fala no
Magníficat de forma mais intensa. O pronunciamento de Maria no Cântico do
Magníficat, é lido e interpretado a partir da realidade latino-americana, caribenha e
dos povos antilhenses. O contexto vital desses povos me leva a dizer que a fala da
mulher de Nazaré ama as pessoas loucas, as mendigas, as escorchadas 3 e as pessoas
aniquiladas.

Maria recolhe os soluços dessas pessoas, enxuga-lhes as lágrimas, consola-as


em seu desalento. Sabe entrever as reservas que cada uma dessas pessoas guarda
soterradas sob os escombros de uma vida golpeada pelos planos sócio-econômicos
dos poderosos, sabe trazê-las à tona da consciência e dinamizar essas reservas para
a vida do terrível cotidiano.

A fé comprometida de Maria porém, sabe também se insurgir contra toda a


banalização da palavra. Sabe se rebelar e gritar quando os povos pobres são
manipulados. Não tem medo de dizer a verdade toda, sabendo que a luz espanca 4 as
trevas e cria a ruptura necessária e salutar: a ruptura que faz espaço para a atuação
do Espírito de Deus, a graça encarnada (cháris), e impede o avanço do mal sob suas
diferentes formas.

A reflexão teológica feita em tal perspectiva, quer partir dessa realidade social
que cada vez mais se apresenta complexa ao nosso modo de lê-la, e interpretá-la.
Ela é de uma complexidade progressiva que cada vez mais se nos apresenta
desafiadora ao compromisso da fé. Repito: essa realidade é sobretudo constituída
por duas categorias de pessoas que passo a chamá-las de massas de pessoas pobres
e oprimidas e massas de pessoas excluídas ou sobrantes.

Com esse critério se quer sistematizar uma teologia feita em perspectiva


mariana ou uma mariologia que nasce “de baixo”, isto é, da vida concreta dos
povos do nosso extenso Continente com seus povos vizinhos. Uma mariologia que
nasce dos fatos concretos, fatos que apesar de tudo, realizam a história da salvação
e fazem parte da caminhada da Igreja humana e divina, santa e pecadora ao mesmo
tempo.
Daqui se levantam para nós homens e mulheres, algumas perguntas: Nas
nossas condições de vida, estamos falando a linguagem de Maria para as massas de
2
- JOÃO PAULO II. Tertio millennio adveniente. Carta Apostólica sobre a preparação para o ano 2000. Ed. Paulinas, S.
Paulo 1994, parágrafos seguintes: 12: “Maria participa da emancipação de todos os habitantes carecidos de libertação”;
48: “Ela (Maria) leva à sua expressão plena o anseio dos pobres de Javé, resplandecendo como modelo para quantos se
confiam, com todo o coração, às promessas de Deus”; cf. 54: “Como ela própria afirma no Cântico do Magníficat,
grandes coisas fez nela o Onipotente (cf. Lc 1,49), por ter uma missão única recebida do Pai, na história da salvação: a de
ser Mãe do Salvador esperado por seu povo; CNBB. Rumo ao novo milênio. Documentos da CNBB, no. 56. Ed. Paulinas,
S. Paulo 1996, parágrafos: 2; 42; 60; 116; 178. Neste último parágrafo os bispos assim se expressam referente à Maria do
Magníficat: “Maria cantou em ação de graças pela Encarnação, também a Igreja deseja cantar o Magníficat pelo tempo
novo de evangelização”.
3
- Sinônimos: escangalhar, desconjuntar, destruir, ferir, maltratar, despojar, onerar pesadamente.
4
- Sinônimos: afugenta, afasta, dissipa, dissolve.
5
pessoas pobres e oprimidas e para as massas de pessoas excluídas ou sobrantes?
Temos a coragem de nos insurgir contra a banalização da palavra como Maria o fez
em seu Magníficat? Criamos espaço para o Espírito ao colocar-nos do lado mais
fraco dos nossos povos?

A presente reflexão não pretende responder exaustivamente a essas perguntas,


mas tenta uma sistematização teológica da experiência mariana do nosso povo, em
ordem à fé e à vivência cristã, reflexão essa que tem seu locus em nosso contexto
vital.

III)- Contexto: alguns traços da conjuntura continental5

A conjuntura atual do nosso Continente - e com algumas diferenças -, do


Caribe e das Antilhas6, pode ser vista em síntese, desse jeito. A proposta do sistema
neoliberal continua sendo uma proposta de morte e não de vida, pois está gerando
uma cultura da qual quero ressaltar dois aspectos que me parecem importantes
nessa reflexão feita em perspectiva teológico mariana.

Os dois aspectos da cultura neoliberal que acentuo são: o primeiro é referente


à tão falada globalização que não é apenas um processo econômico, mas afeta
todas as dimensões da sociedade. Exemplo claro do momento é a queda da Bolsa de
Valores, primeiro a partir dos países asiáticos, e agora a partir de todos os grandes
centros de investimentos direcionados aos vários campos da economia, sobretudo
no campo da tecnologia de ponta. Esta situação está tendo graves conseqüências
para a economia de todos os povos, sobretudo para o Brasil, país imbatível na
concentração de renda e na criação de situações de miséria e de fome que matam
muito mais que as guerras de hoje.

A esse exemplo segue-se o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) que


está sendo discutido pela Organização de Cooperação para o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), o qual reúne as 29 nações mais ricas do mundo contra as
nações periféricas, fazendo das mesmas uma tragédia mundial7. Esses dois centros

5
- A relevância dessa conjuntura é objeto de pesquisa e estudo por parte de muitos autores e autoras, que citamos aqui
alguns: Cf. SANTA ANA, Júlio de, “Neoliberalismo: A razão do Sistema: o princípio de exclusão”, in Tempo e
Presença/286, 1993, 5-8; SAMPAIO, Plínio Arruda, “Panorama e gravidade da pobreza”in ibid., 15-18; IANNI, Octavio.
Teorias da Globalização. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1995, 25-45; 93ss; VV.AA. Liberalismo e Socialismo.
Velhos e Novos Paradigmas. UNESP, 125-128; 215-217; VV.AA. Mercosul. Perspectivas de Integração. Fundação
Getúlio Vargas Editora, Rio de Janeiro1996, 124-125; TAVARES, Maria da Conceição, “Acordos de investimentos,
privatização e cidadania”, in Folha de São Paulo (jornal)/01/03/98, 6.
6
- Pequenas ilhas situadas entre Porto Rico, Santo Domingo e a República da Guiana e o Suriname. São conhecidas
também como Ilhas do Mar das Antilhas.
7
- Cf. SAMPAIO, Plínio de Arruda, “Com férias e tudo, um começo bem agitado”, in Boletim Rede/ fevereiro 1998, 1-2;
AA.VV (Professores de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Globalização e
Religião. Edit. Vozes, Petrópolis 1998. Analisa o fenômeno da globalização religiosa nos países do Mercosul, bem como
a situação religiosa destes; UCHOA, pe. Virgílio Leite, “Análise de Conjuntura”, in Convergência/ 311, abril 1998, 180-
191.
6
do capitalismo mundial, através do Fundo Monetário de Investimentos (FMI), estão
exigindo reformas internas do quadro econômico dos nossos povos que cada vez
mais os empobrecem e os fragilizam em todo o sentido.

O segundo aspecto, intimamente conectado com o primeiro - o da


globalização -, é referente à tecnologia levada às suas últimas conseqüências ,
conhecida também como tecnologia de ponta. Tal processo cria muitos fatores
negativos para a população pobre. Um deles é o desemprego em massa para tutelar
a estabilidade monetária e reduzir cada vez mais a liquidez porque esta, segundo a
ideologia do momento, detona a inflação. Hoje já se sabe que foram esforços
infundados da política econômica do país em levar adiante tal plano, porque as
condições de vida não só do Brasil, mas dos povos do Sul do Mundo está por um
fio, para não se dizer, um verdadeiro cáos.

A serviço da globalização e da tecnologia, estão ligados processos como


esses:
- a mídia que exerce um papel fundamental como indústria da cultura8, fazendo a
cabeça do povo em geral e sobretudo a do povo pobre e oprimido que vive dentro
do sistema, excluindo as massas que nada produzem para esse sistema. Temos então
duas categorias sociológicas de pessoas, as quais já me referi acima, que servem ao
sistema, e as massas excluídas que não têm lugar em tal sistema;
- o processo de desemprego estrutural9 para garantir o sucesso do neoliberalismo,
o qual repousa fundamentalmente no fracasso das pessoas, que trabalham para o
sistema;
- a economia informal que funciona como um atenuante dos choques econômicos
globais e a falta de salário, cujos serviços de terceirização não entram no
reconhecimento estatutário da nação;
- e o processo da exclusão10, que não só cria as massas sobrantes para as quais não
há lugar nessa estrutura, como abala a vida econômica de toda a sociedade,
nivelando por baixo, a produção e o poder aquisitivo de cada assalariado.
A partir desse contexto a proposta é portanto, refletir a figura de Maria à luz do
conhecido e comentado Cântico do Magníficat que Lucas atribui a Maria de

8
- O tema da cultura é particularmente importante nesse contexto. Veja-se: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização.
Companhia das Letras, S. Paulo 1992, 328-330; Documentos da CNBB: Para onde vai a cultura brasileira?. Desafios
pastorais. Ed. Paulinas, S. Paulo 1990, doc./58; Igreja: Comunhão e Missão na evangelização dos povos, no mundo do
trabalho, da política e da cultura. Ed. Paulinas, S. Paulo 1988, doc./40.
9
- Cf. TRASFERETTI, José Antonio, “Igreja dos excluídos: Pastoral na periferia dos centros urbanos”, in Cultura
Vozes/91, julh-agost 1997, 137-154.
10
- Cf. BOFF, Clodovis. Como trabalhar com os excluídos. Ed. Paulinas, S. Paulo 1998; da SILVA, Antonio Aparecido
(organizador). Existe um pensar teológico negro?. Ed. Paulinas, S. Paulo 1998; CNBB. O grito dos excluídos. Setor
Pastoral Social. Ed. Vozes, Petrópolis 1996.
7
11
Nazaré o qual inspira o anúncio e a prática das massas pobres e dá voz e vez às
pessoas excluídas através da reflexão teológica.

IV)- O Magníficat para as massas pobres e oprimidas

As frases do Magníficat nas quais as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)


e os grupos organizados encontram como que uma direta sintonia de vida e de fé,
são aquelas que expressam um nível crítico da consciência humana, um horizonte
amplo e ao mesmo tempo uma visão objetiva e estrutural das condições de vida nas
quais jazem os pobres e os oprimidos. Numa palavra, essas comunidades e esses
grupos se identificam com a parte mais profética e revolucionária do Magníficat.
Logo adiante ver-se-á com maiores detalhes.

1)- Quem são as massas pobres e oprimidas

Constituem o imenso número de pessoas que o sistema lhes permite viver


dentro dele. Vivem porém, como mão-de-obra barata e como parasitas. Essas
pessoas, segundo a ideologia dominante, em nada contribuem para o
desenvolvimento e a transformação da sociedade. O que sobra para as massas
pobres e oprimidas são os restos da comida, do conforto e do luxo que caracterizam
os grupos minoritários, detentores das decisões político-econômicas.

A vida dessas pessoas é deteriorada na sua dignidade humana e é atingida em


todos os seus níveis básicos: econômico, social e cultural. No entanto essas pessoas
são portadoras de grandes riquezas das quais se pretende colocar em evidência as
riquezas de natureza cultural religiosa.

Organizadas em Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)12, essas pessoas


testemunham ao mundo, à sociedade e à própria Igreja, um modo típico de viver o
cristianismo comprometido com a luta pela transformação da vida humana em
nome da fé. Destacam-se por criarem um ethos próprio para a cultura violenta que
11
- Cf. BOFF, Lina, “Dal Magníficat ai piedi della Croce”, in Atti del 2 Convegno Internazionale UNIFAS - Quebéc-
Canadá. Segretariato UNIFAS, Roma 1993, 95-115; “Quegli occhi tuoi misericordiosi”. Riparazione nel duemilla: una
cultura che genera vita, in Atti terzo convegno mariano delle Serve di Maria Riparatrici. Centro Mariano Rovigo 1996,
273-284; Maria e o Feminino de Deus. Ed. Paulus, S. Paulo 1997. BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. Ensaio
interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. Ed. Vozes, Petrópolis 1996; GEBARA Ivone e BINGEMER,
Maria Clara L. Maria, Mãe de Deus e Mãe dos Pobres. Um ensaio a partir da mulher e da América Latina. Coleção
“Teologia e Libertação”, Ed. Vozes, Petrópolis 1987, 93ss; MESTERS, Carlos. Maria, Mãe de Jesus. Ed. Vozes,
Petrópolis 1993; CANTALAMESSA, Raniero. Maria. Um espelho para a Igreja. Editora Santuário, Aparecida-SP 1992,
5-12; 185; PINKUS, Lucio. O mito de Maria. Uma abordagem simbólica. Ed. Paulinas, hoje Paulus 1991, 156-169.
12
- Cf. BARTOLOMÉ, Castor M. Martin. A força transformadora social e simbólica das CEBs. Ed. Vozes, Petrópólis
1998: Trata-se de um estudo sobre o imaginário nas CEBs. Como todos nós construimos formas simbólicas para
interpretar o mundo em que vivemos, o auto mostra as CEBs como um exemplo de construção desse imaginário que leva
as pessoas a uma ação social transformadora. CNBB. Rumo ao Novo Milênio. Doc. 56, Ed. Paulinas, S. Paulo 1996,
parágr. 154: “As CEBs têm experiências bem sucedidas de evangelização. Estão buscando aprimorar a aproximação ao
catolicismo popular e ao trabalho com as massas (cf. Texto-base do 9 Intereclesial), para que sejam ajudadas a fortalecer
a dimensão da espiritualidade e do diálogo com as outras expressões eclesiais”.
8
as ataca de frente. Os elementos culturais que marcam a prática dessas massas é, em
primeiro lugar, o elemento religioso. São grandes criadoras de religião, enquanto
experiência associada a uma prática de comunhão de bens materiais e espirituais,
cuja inspiração é buscada na palavra de Deus e na devoção aos santos e santas de
sua tradição. Essas pessoas são criadoras de uma nova cultura de vida e de uma
história em gestação que marca o esgotamento de um período e o nascimento de um
novo milênio13.

Apresentam um traço marcante de vitalidade e de renovação da Igreja, da


sociedade e da cultura dos nossos povos no Brasil, desde os anos 70, senão antes.
Foi no seio das CEBs que os leigos e leigas criaram consciência de sua cidadania
cristã, torrnando-se sujeitos e protagonistas da vida e da história de seu povo.
Passaram a viver seu batismo de maneira mais radical, que do ponto de vista
eclesiológico pode-se considerar como um grande êxito14. Para a aquisição da
consciência da cidadania cristã, as CEBs se tornam protagonistas da vida
organizada a partir das bases e dos direitos naturais ainda não reconhecidos e
respeitados, assim como os direitos sociais já adquiridos pelos povos considerados
desenvolvidos.

As CEBs assumem o protagonismo igualmente no processo de evangelização


das realidades terrestres e no campo eclesiológico. O significativo êxito consiste em
ter conseguido aquela união de fé-vida, que geralmente falta em tantas comunidades
católicas e cristãs das nossas Igrejas (cf. SD 24; 96). A grande maioria das CEBs
realiza enquanto comunidade de fé, os aspectos principais da vida cristã, tais como:
- a oração pessoal e comunitária
- a celebração litúrgica
- a solidariedade entre seus membros e com as massas de pessoas pobres e
excluídas
- o engajamento na defesa da vida e dos direitos humanos através de ações políticas,
quando necessário
- a comunhão com a Igreja local e universal
- a criação de novos ministérios para os distintos serviços da comunidade e como
criadoras de tais ministérios tornam-se agentes de formação para o serviço pastoral
nas distintas dimensões da vida das comunidades de fé15
13
- Cf. GOMEZ de SOUZA, Luiz Alberto, “O dinamismo transformador dos excluídos”, in Tempo e Pesença/268,
março/abril 1993 42-43.
14
- O papa João Paulo II, considerando a situação mundial, afirma que as CEBs são “sinal de vitalidade da Igreja,
instrumento de formação e de evangelização, um ponto de partida válido para uma nova sociedade” (Rmi 51).
15
- CNBB. Missão e ministério dos leigos na perspectiva do Novo Milênio. Documento de Trabalho de 20/02/98, p. 5,
traz em um das suas notas o seguinte: Conforme resultados parciais de uma pesquisa parcial realizada em 1996, relativos
a 16 dioceses com cerca de 10,4 milhões de habitantes e 725 padres, o número de “ministros leigos”é expressivo.
Somando todos os ministérios confiados a leigos, temos 68.212 ministrros, ou um para 152 habitantes, ou ainda 95
ministros para um padre. Mesmo deixando de lado catequistas, ministros extraordinários da comunhão e coordenadores
de grupos de jovens, temos 25.340 ministros (do Batismo e das Exéquias), animadores de comunidades (ou dirigentes de
culto) e testemunhas qualificadas do Matrimônio, que desempenham funções pastorais reservadas só ao clero até 20-25
anos atrás. Estes ministros representam (nas dioceses consideradas) 35 vezes o número dos padres.
9
- crescem na consciência missionária “ad gentes “, seja no sentido mais estrito, além
fronteiras, seja no sentido mais amplo16.

O aprofundamento da experiência religiosa configurada no pluralismo


cultural, na cultura de morte brotada do neoliberalismo e do fenômeno conhecido de
todos nós com o nome de modernidade, está tendo conseqüências explosivas em
todos os campos, e aqui se quer destacar o campo religioso.

Observa-se que tal fenômeno está provocando um novo interesse pela


religião. Haja vista o número de seitas e movimentos que estão surgindo de um dia
para outro. Em linhas gerais, as novas atitudes religiosas, mais que se voltarem para
a revelação de Deus, Comunidade de amor, buscam a solução de problemas
pessoais por um lado, e por outro, buscam o aprofundamento da experiência
religiosa como resposta do desejo de dar um sentido maior à própria vida, enquanto
chamado do Senhor à missão. Esta experiência se dá pode-se dizer, de maneira
crescente e progressiva, em contato com as grandes dimensões da espiritualidade
cristã e católica. As dimensões para as quais se quer aludir rapidamente são as
seguintes:

A)- A dimensão da tradição mística

Um número pequeno ainda, mas significativo de pessoas leigas, procuram


viver nas pegadas de São Francisco, de Santo Inácio, de São João da Cruz, de Santa
Teresa de Ávila, de Santa Teresinha do Menino Jesus, ou então buscam um
itinerário de pessoas cristãs contemporâneas para a sua relação íntima e pessoal
com o Deus da Comunidade divina, isto é, um Deus relacionado com o Filho no
Espírito Santo.

A partir da realidade em que vivem, essas pessoas fazem a experiência de


uma união vital e afetiva com esse Deus que se revela a elas como Comunidade de
amor. Tal união estimula a uma presença e a um testemunho de fé, não só a um
testemunho dado pela confissão de fé, mas igualmente estimula a um testemunho
dado pela atuação através da qual essas pessoas manifestam a presença ativa de
Deus no mundo e nos processos históricos.

A pessoa que vive uma mística cristã comprometida penetra nas realidades
terrestres com a mesma fé de Jesus Cristo, com a mesma intenção que ele tinha e
com a mesma ação libertadora do Espírito que o impulsionava para transformar a
realidade segundo o desígnio salvífico do Pai cf. Rm 16, 25-27). Chamamos de
mística a essa força interior que, orientada pelo seguimento de Jesus Cristo,
transforma as pessoas, as comunidades e as estruturas circunstantes17.
16
- Cf. Ibid. : Está crescendo a consciência missionária e a descoberta de que há muita terra de missão dentro e fora do
Brasil e do Continente. Precisamos dar da nossa pobreza, que é a riqueza com a qual o Cristo e seu Espírito nos
presentearam. Cf. também DP 362-363.
17
- Cf. BERNARD, Charles Andrès. Teologia spirituale. Paoline, Roma 1982, 456ss.
10

Essas pessoas fazem uma experiência cristã comunitária que se identifica com
o mistério de Deus na história do povo, particularmente na história dos oprimidos.
Por isso afirmam um Deus histórico: o Deus de Abraão, de Isaac, de Sara, de Agar,
dos Profetas, de Isabel e Maria e de Jesus de Nazaré. Des-velam e penetram cada
vez mais profundamente a experiência mística de Jesus através da palavra da
Sagrada Escritura, sobretudo do Novo Testamento. Começam este des-velamento e
esta penetração na descoberta do contato íntimo que Jesus mantinha com o Pai (cf.
Rm 16,25-27), nos gestos, nas palavras e práticas que realizava no meio do povo
em geral e de modo particular com as pessoas excluídas da sociedade religiosa e
civil de seu tempo, tais como: as pobres, as aleijadas de nascença, as cegas, as
presas, numa palavra, todas as pessoas excluídas daquela sociedade e daquela
religião.

É uma mística que se orienta pelo seguimento de Jesus. Os santos e as santas


são as pessoas que servem de exemplo nesta experiência mística 18. Em Jesus de
Nazaré essas pessoas buscam estímulo e fé para viver a união mística com a
Comunidade divina que as torna capacitadas de construir o Reino e as torna aptas
para proclamar o seu anúncio de vida trazido por Jesus de Nazaré.

A partir da realidade em que vivem, essas pessoas fazem a experiência de


uma união vital e afetiva com esse Deus que se revela a elas Comunidade de amor.
Tal união estimula estas pessoas a uma presença ativa e a um testemunho de fé, não
só pela confissão pública desta fé, mas porque transformam os processos históricos
de pecado, em processos históricos-transcendentes de vida . Estes processos
constituem parte integrante da realização concreta do Reino em vista de sua
plenitude escatológica.

A pessoa de fé que vive uma mística cristã comprometida, penetra nas


realidades terrestres com a mesma fé de Jesus Cristo, com a mesma intenção dele e
com a mesma ação libertadora do Espírito para transformar a realidade segundo o
desígnio salvífico do Pai (cf. Rm 16, 25-27). Chamamos de mística a essa força
interior que, orientada pelo seguimento de Jesus, converte as pessoas, solidifica as
comunidades e as compromete com a transformação das estruturas de morte em
estruturas promissoras de vida.

Em Jesus de Nazaré essas comunidades buscam estímulo e fé para uma


experiência mística que as capacite para o anúncio da Boa Nova e as torne aptas
para a prática da construção do Reino.

B)- A dimensão contemplativa19


18
- Cf. BOFF, Leonardo e Fei BETTO. Mística e Espiritualidade, Rocco, Rio de Janeiro 1994, 12; 20-21. Veja-se
também: BOFF, Leonardo. Ecologia Mundialização Espiritualidade. Ática, S. Paulo 1993, 143-160.
19
- Cf. CNBB. “Missão e Ministérios ...”, já cit., 7; AA.VV. Espiritualidade e Mística. CESEP, Paulus, S. Paulo 1997,
19ss.
11

A contemplação é alimentada com a Palavra do Senhor na Bíblia que ilumina


a vida, é uma Palavra portanto, lida e interpretada a partir do dia-a-dia. Essa
experiência é feita sem “sair do mundo”, é feita no coração do mundo, na partilha
da vida do povo, de modo especial no convívio com as massas pobres e excluídas.
A redescoberta da dimensão contemplativa da vida de fé e de serviço ao Reino, até
pouco tempo foi sacrificada muitas vezes pela urgência da ação. Pode-se afirmar
que hoje, a consciência da dimensão contemplativa da vida cristã, é vista e vivida
como fundamento da ação e como necessidade imprescindível para se criar uma
espiritualidade que brote da vida de oração e da prática evangélica.

No âmbito do seguimento de Jesus Cristo, a palavra de Mateus proclamada


sobre o juízo final (cf. Mt 25, 31-46), onde fala que todas as pessoas serão julgadas
pela prática da fé, as comunidades cristãs encontram aí uma fonte de oração
contemplativa que as leva à prática da palavra auscultada. Alimentadas por essa
palavra, tais comunidades descobrem na prática cotidiana o “rosto humano” de
Deus, no rosto de cada pessoa pobre e excluída.

A experiência dessa descoberta impulsiona a cada pessoa transcender a


situação de pecado e injustiça, sem excluir a prática transformadora, para travar um
diálogo profundo com Deus, Comunidade de amor, que se revela no rosto do pobre
e do excluído. A oração e a prática seguem juntas e a comunidade passa a
indentificar-se com o Jesus da contemplação e da ação, encontrando profunda
ressonância em citações do NT, como estas por exemplo:

“Se alguém, possuindo os bens deste mundo,


vê seu irmão na necessidade e se fecha a toda compaixão,
como permanecerá nele o amor de Deus” (1Jo 3,17).
“/.../ não amemos com palavras, nem com a língua,
mas com obras e em verdade” (1Jo 3,18).

É dessa experiência que um significativo número de comunidades cristãs


haurem força e sentido para continuarem na luta em vista de uma transformação das
estruturas de morte em estruturas de vida, e mudar as situações de pecado e de
injustiça em situações de graça e de equidade. Deste modo, cada pessoa tem
condições de glorificar o Senhor como pessoa “vivente” e não como escória da
sociedade.

A história humana iluminada pela palavra viva do Senhor, se transforma pela


oração que alimenta a prática e dá sentido a toda a experiência de encontro com o
Senhor na realidade viva de cada pessoa e de todos os nossos povos. A experiência
contemplativa nasce da mística do compromisso ético, e é uma contemplação que
descobre e saboreia Deus no rosto da pessoa necessitada e na harmonia de toda a
obra da criação.
12

Alimentadas por essa palavra, tais pessoas descobrem na prática cotidiana o


“rosto humano” de Deus no rosto de cada pessoa pobre e excluída. A experiência
dessa descoberta impulsiona cada uma a transcender a situação de pecado e de
injustiça para travar um encontro vivo com Deus que se revela na vida das massas
pobres e excluídas.

Na comunidade de fé, a oração e a prática seguem juntas. Através destas, a


comunidade passa a identificar-se com o Jesus da contemplação e da ação, um Jesus
apresentado pela palavra do Novo Testamento e da Tradição judeu-cristã. Tanto a
prática quanto a oração contemplativa 20 despertam a atenção das comunidades para
o sentido concreto e transformador do amor de Deus como Comunidade divina que
se abre à compaixão, às necessidades concretas de seu povo e à ternura que
dispensa a todos. Para tais comunidades a palavra amor não é uma idéia ou um
conceito, mas uma convicção e uma prática empapadas da concretude da vida
cotidiana.

Anúncio e prática formam um binômio da experiência contemplativa que


nasce da realidade com a qual se entra em contato direto e na qual se atua como
pessoas construtoras do Reino e de uma Nova Criação. Por isso o amor é
testemunhado publicamente e toma a forma das obras que revelam a Única
verdade. A comunidade cristã identifica-se muito com tudo o que diz respeito à
unidade de amor-obras. “/.../, não amemos com palavras nem com a língua, mas
com obras e em verdade” (1Jo 3, 18). E assim poderíamos continuar compaginando
vida e Palavra viva da Escritura.

A palavra viva do Senhor se transforma na oração das comunidades cristãs,


oração esta que alimenta a prática do amor concreto e dá sentido a toda experiência
de encontro com o Senhor na realidade viva de cada pessoa e de todas as
comunidades de fé.

C)- A espiritualidade libertadora21

Esta é alimentada pela água do poço da sabedoria divina, e da contemplação


que nasce do empenho pela justiça e pela transformação da sociedade. Tal busca
aproxima as pessoas e dá vida aos encontros de grupos, leva à experiência de Deus
nos retiros espirituais e dá sentido profundo aos centros de espiritualidade. São
experiências que estão formando pessoas as quais realizam o serviço de serem
conselheiras espirituais de leigos e de leigas, quer acompanhando pessoas e grupos

20
- É a oração que brota da contemplação da história humana como revelação do plano salvífico de Deus que atua
enquanto Comunidade divina
21
- Cf. AA.VV. Espiritualidade y lberación. Departamento Ecuménico de Investigación (DEI), Costa Rica 1982, 12; 29-
33; BOFF, Clodovis, “Fisionomia das Comunidades Eclesiais de Base”, in Concilium/164, 1981, 72-78; -----., “Os pobres
na América Latina e suas práticas de libertação”, in Opção pelos Pobres . Edit. Vozes, Petrópolis 1986, 230-247
13
de oração, quer animando retiros ou encontros de natureza espiritual que desemboca
no compromisso ético.

Trata-se de uma experiência que nasce do Espírito, o qual desentranha todas


as virtualidades de uma autêntica experiência cristã na sua dimensão de
compromisso transformador. Viver a espiritualidade libertadora em nosso contexto
continental, significa encontrar-se com o “rosto novo” e dasafiador do Deus,
Comunidade solidária, que emerge dos fatos e dos eventos da realidade histórica.
Tal realidade remete a uma experiência típica do mistério do Deus três vezes Santo.

As linhas fundamentais que caracterizam essa experiência libertadora podem


ser assim chamadas:
- a conversão como necessidade vital
- a abertura ao impulso do Espírito
- a vida de oração como encontro com o Senhor vivo
- viver a kênosis de Jesus Cristo
- testemunhar o mistério cristão até o martírio, na doação total e na esperança do
“já” e do “ainda não”.

Seguem-se os elementos ligados à comunidade de vida e de trabalho como, a


ajuda recíproca, a partilha e o companheirismo solidário do dia-a-dia. É nesse
contexto vital que as massas pobres e oprimidas encontram força e sentido de
clamar por justiça. Como a Maria do Magníficat entra nesse clamor?

2)- Maria entra no clamor dessas massas

Ela entra anunciando a justiça divina. A luta pela justiça é própria das CEBs,
das Organizações Populares e Movimentos mais conscientes. Estes grupos de fé
estão dentro do sistema sem o direito de ter dele as necessidades básicas satisfeitas
para uma vida simplesmente humana. Tal processo de luta, vivido na esperança,
encontra seu fundamento espiritual na Palavra da Sagrada Escritura, e dessa Palavra
se quer evidenciar aqui, o Magníficat de Maria de Nazaré. Esse Cântico inspira a
ação de justiça das massas pobres e oprimidas, ilumina-lhes a vida e torna-lhes
possível a profecia. É ainda nesse grito que essas pessoas descobrem a Mãe
libertadora, a Mulher profética, a Maria companheira, a Mulher do povo e a Maria
negra22.

A fala dessa Mãe, dessa Mulher, dessa Maria é articulada com o grito que sai
da garganta das massas pobres e oprimidas. Esse grito toma forma concreta numa
atitude de indignação ética diante da miséria que urge a partilha do sonho coletivo

22
- BOFF, Clodovis. Maria na Cultura Brasileira. Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação. Edit. Vozes,
Petrópolis 1995, 77: Quatro são os traços de Maria sublinhados pelas CEBs nos seus cânticos: - Maria libertadora; - Maria
companheira; - Maria mulher do povo; - Maria negra.
14
pela construção de um novo projeto de vida e a garantia da gratuidade divina para
com seu povo que luta por condições de vida programadas e realizadas na justiça.

Esse sonho coletivo se faz presente e atuante na fala da Mulher de Nazaré,


que no seu Cântico, anuncia a chegada do Libertador dessas massas e ao mesmo
tempo denuncia a impertinente injustiça, através de expressões como estas:
- a justiça divina intervém
- precipita o poder oco
- despede os ricos de mãos vazias.
Cada expressão desta fé será refletida como grito de esperança.

3)- A justiça divina intervém

Com o anúncio Ele interveio com toda a força de seu braço (Lc 1,51), Maria
interpõe sua autoridade-serviço entre Deus e as massas pobres e oprimidas que
querem a libertação. Nesse caso, Maria toma parte da causa das pessoas mais
fracas; impõe medidas próprias do seu bom ofício para salvar a integridade física e
moral dessas pessoas; põe em debandada para diferentes direções o pensamento e a
atuação transviada dos homens e das mulheres que guardam no seu íntimo idéias e
pensamentos do mais refinado orgulho (cf. Lc 1, 51); apressa o passo incerto e
duvidoso de grupos, exímios produtores de injustiças das mais variadas formas, à
deriva; grita bem alto que o braço do Senhor intervém precipitando para o
despenhadeiro as pessoas opressoras, e dá ordem expressa de se afastarem com
mãos vazias e devolverem o que roubaram ( cf. Lc 1, 53).

Com essa atitude de Maria e sobretudo com a sua fala direta e objetiva, é que
as massas pobres organizadas se identificam e encontram nelas - atitude e fala de
Maria -, inspiração para agirem de maneira evangélica e inteligente. A consciência
cristã de compromisso com a construção do Reino, impulsiona essas pessoas a
construí-lo na sua dimensão intra-terrena, sem perder de vista a dimensão
transterrena ou a dimensão escatológica do mesmo Reino.

4)- Precipita o poder oco

Com o anúncio precipitou os poderosos de seus tronos (Lc 1,52), Maria


lança de cima para baixo as pessoas que se fizeram autoras de um lugar de poder
pelo poder, às custas das massas pobres; cria uma situação desfavorável para os
grupos que programam o empobrecimento e a injustiça, e desse modo dá lugar à
nova gestação histórica de uma humanidade que sai do fundo dos porões da atual
organização da sociedade; levanta a possibilidade impetuosa do perigo que o
dinamismo transformador dessas massas possa representar para o projeto de
globalização neoliberal dos chefes de Estado em questão.
15
Nesse caso, Maria se coloca do lado dos movimentos sociais populares e
alternativos, tais como: o dos sem-terra aos negros e às mulheres, com o fascínio da
Mulher que sustenta o dinamismo e a inventividade das massas pobres. Estes
elementos faltam freqüentemente aos programas oficiais de partidos e de grupos até
bem intencionados, mas com pouca consciência crítica. Não só, mas com essa
exclamação, Maria levanta a arrojada questão vital: as chamadas massas pobres e
oprimidas, não estarão muito mais do que pensamos, no centro da própria história
em gestação?

Esta linguagem mariana e arremessadora, ao mesmo tempo vem cheia de


convicção. As massas pobres encontram nela elementos evidentes de como explicar
o por que, no momento em que a humanidade dispõe de recursos suficientes para
erradicar a miséria da face do planeta, existam ainda grandes zonas em que homens
e mulheres que nelas vivem, estejam praticamente condenados ao sofrimento desde
que nascem.

5)- Despede os ricos de mãos vazias

Com a ordem e os ricos despediu-os de mãos vazias (Lc 1, 53), Maria


dispensa os serviços assistenciais filantrópicos dos grupos empresariais que
dominam a economia de mercado; despacha a presença de tais grupos, junto com
seu “espírito humanitário”, pois, fingem dar esse testemunho quando fazem suas
ofertas generosas para serem abatidos no Imposto de Renda e de outras taxas sociais
sempre sonegados ao campo social dos povos empobrecidos.

Nesse caso, Maria coloca um desfecho ao seu protesto contra os ricos,


mandando-os embora; formaliza publicamente um título de crédito para as massas
pobres, assegurando-lhes o crédito de direito; toma sobre si mesma a indignação
popular, e solta em alta voz a resolução inabalável tomada em favor das massas
destituídas dos bens básicos para uma vida humana vivida com dignidade.

Essa atitude corajosa de Maria torna-se lema de vida cristã consciente que
nada tem de ingenuidade, e é igualmente processo de identificação para uma
prática que faz do cristianismo um projeto de vida e de revolução evangélica. É
nessa luz que as massas pobres e oprimidas aplicam para a sua vida de fé a fala e a
atuação da Mulher de Nazaré.

V)- O Magníficat para as massas excluídas23 ou sobrantes


23
- BOFF, Clodovis. Como trabalhar com os excluídos. Ed. Paulinas, S. Paulo 1998, 21-22, nota 2: Notar que os
“excluídos”aqui são os “excluídos sociais” (e não apenas os excluídos do “mercado formal”). São os destituídos que
vivem em condições de vida miseráveis, abaixo do nível da pobreza e que necessitam da assistência do Estado ou da
Sociedade. O neoliberalismo os produz aos milhões. Daí a atualidade da questão. A parte utilizada para a presente
reflexão é da autoria de Valdemar BOFF: trabalha com os excluídos da Baixada Fluminense, coordena uma ONG que
prioriza a educação popular e a Conservação ambiental. É pai de cinco filhos e vive a espiritualidade franciscana à
maneira mais autêntica possível de São Francisco de Assis. Com esta força espiritual e temporal, Valdemar fez a pé, como
16

Deve ficar claro aqui, que é a reflexão teológica a dar voz às pessoas
excluídas. Trata-se de milhões que vivem na miséria e têm como estratégia,
economizar forças para sobreviverem. A essas pessoas excluídas atribui-se as
frases do Magníficat que expressam uma atitude básica de vida e de misericórdia.
Ver-se-á cada uma dessas expressões adiante.

1)- Quem são as massas excluídas ou sobrantes

Enquanto a pessoa oprimida e pobre encontra um estreito lugar ao sol dentro


do sistema, seja de forma individual ou coletiva, a exclusão se caracteriza pela
presença em massa da não-pessoa. Quem é a não-pessoa? Em nosso contexto, a
não-pessoa é toda a pessoa excluída dos bens primários básicos para a vida, do
sistema vigente, do universo cultural de seu povo e até da sua própria comunidade
cristã ou religiosa.

Enquanto as massas pobres e oprimidas clamam por justiça, as massas


excluídas clamam por vida. As massas excluídas se caracterizam por três traços
que clamam por vida e por isso desafiam toda a profissão de fé em Jesus Cristo.

Em primeiro lugar as pessoas excluídas se sentem rejeitadas, não-queridas e


sobrantes. Esse sentimento exige que se reconheça a dignidade humana dessas
pessoas, para que se crie condições de acolhê-las e dar-lhes gestos de amor
concreto e gratuito. Em segundo lugar essas pessoas não gostam de soluções
violentas, urgentes ou apressadas. Essa atitude exige de nossa parte respeito pelo
seu modo de solucionar os graves problemas de forma pacífica e mansa.

Finalmente, as pessoas excluídas encontram na religião a melhor solução.


Para essas pessoas, Deus não é mistério, é evidência; não é enigma, é luz. Religião
não é problema, mas solução. Tal prática exige que se respeite o direito que elas
têm de viver a religião como fator fundamental de sentido e de resposta às
conseqüências da exclusão que pesa sobre essas massas.

As atitudes que clamam por vida, são carregadas de paciência a toda prova,
isto é, carregadas de uma paciência histórica. As pessoas excluídas alimentam a
confiança na justiça imanente da vida; sonham com a chegada do dia em que
“lavarão sua alma” de todas as tribulações e injustiças; aguardam a manifestação
plena da vida-com-sentido, sentido que é vida dentro da vida. Como a Maria do
Magníficat entra nesse sonho empapado de confiança?

Aqui é a teologia que reflete a partir das condições de miséria das pessoas
excluídas. No quadro dessa realidade vital, a reflexão teológica se inspira na Mulher

peregrinação, a estrada que parte de Roma até Assis. Foi uma semana de peregrinação, acompanhada de meditação
contemplativa e mística.
17
do Magníficat para responder ao clamor das não-pessoas. Maria portanto, coloca-se
do lado dessas massas quando proclama que a vida está chegando porque:
- os humildes são exaltados
- os famintos cobertos de bens
- os excluídos são socorridos
- os deserdados da história contam com descendência.
Ver-se-á cada uma dessas exclamações marianas na ótica do excluído como já
acenamos acima.

2)- As pessoas humildes são exaltadas

Com a proclamação exaltou os humildes (Lc 1, 52), Maria explode com


todos os seus sentidos e todo o seu ser para exaltar as pessoas que têm dentro de si
mesmas, o sentimento da sua fraqueza24 e que, pela sua reverência e seu respeito à
vida, enternecem o coração de Deus; eleva sua voz para exaltar num cântico e em
versos, a confiança depositada no Deus da vida dessas pessoas; engrandece e afama
por todas as gerações a acolhida carinhosa e intensa da chegada dessa vida por parte
das pessoas que foram sujeitas à humilhação de grupos prepotentes (cf. Lc 1,52).

Maria está presente em meio a essas pessoas como a Mulher que dá vida
porque a dinamiza25. As pessoas excluídas querem sobreviver e nada mais; não
ousam diante dos desafios, nem arriscam diante do perigo de expor a própria vida,
pois elas têm consciência de que no enfrentamento de forças, perdem e sáem
apanhando como sempre. O que elas procuram fazer é economizar o sopro de vida
que lhes vem de Deus. Poupam o desperdício de energia vital para segurar a vida e
se manterem de pé com dignidade e soberania. São consideradas pelo sistema,
inúteis e constituem um sério problema para a “ordem normal” das coisas.

No entanto, essas pessoas são detentoras do segredo da vida e por conseguinte


são capazes de testemunhar e dizer à sociedade, a qual, programaticamente as
exclui, de que o segredo da vida não está em mãos humanas. É daqui que nasce a
profunda e jovial esperança das massas excluídas. Elas colocam esse princípio vital
fora do alcance humano, porque o poder sobre a vida pertence a Deus, o Senhor da
vida.

3)- As pessoas famintas são saciadas26

Com a afirmação pública, os famintos, ele cobriu de bens (Lc 1, 53), Maria
garante da parte do Deus da vida a grande quantidade de bens que satisfaz a fome e
a sede das massas excluídas; deixa entrever nas suas palavras e na sua voz de Mãe
24
- Cf. ORIGENE. “Comento al Vangelo di Luca 8,7” , in L’ora di lettura/6, ed. Dehoniane 1976, 437-438.
25
- Cf. BOFF, Lina, “Maria e os pobres de Javé hoje”. Uma reflexão em vista do Terceiro Milênio, in Convergência/ 310,
março 1998, 107-115.
26
- Cf. Imãos BOFF, “Teologia da libertação: Carta aberta ao cardeal J. Ratzinger”, in Grande Sinal/5, junho 1986, 382-
394.
18
da vida, que das pessoas famintas não se sacia só a fome, mas a fome e a sede, os
sentimentos e os desejos, a comunhão e a participação.

Com essa atitude Maria profeticamente afirma que o Deus da vida cobre as
massas excluídas de alimento, de víveres que criam condições sociais de fazer a
experiência da felicidade coletiva dos filhos e filhas de Deus; estende por cima das
massas excluídas a benevolência do seu gesto e a brandura de sua palavra que lhes
anuncia a Boa Nova integral: o primeiro dos bens é o pão cotidiano, para que essas
massas possam aceder ao pão da Palavra27. É o pão da Palavra que pervade toda a
vida , com vistas porém, a atingir o pão da Mesa onde o próprio Jesus Cristo se doa
como alimento28.

Assim sendo, no pão da Palavra e na urgente necessidade do pão de cada dia,


dá-se a união de dois elementos distintos mas vitais, que na experiência da vida
humano-divina, resgatam a nobreza, a dignidade e a honra devidas à Comunidade
divina, honra e louvor cancelados da face das massas cobertas de fome e por isso
excluídas do convívio humano e social.

A reflexão teológica brotada dessa realidade tão contraditória e inclemente


para as massas excluídas dos nossos povos do Continente latino-americano, Caribe
e Antilhas, a fome de Deus será sempre a questão mais decisiva, mas a fome do pão
nosso de cada dia continua sendo a questão mais urgente29. É essa que determina a
caminhada histórica de fé dos nossos povos.

4)- As pessoas desamparadas são socorridas

Com a afirmação, Veio em socorro de Israel, seu servo lembrado de sua


bondade (Lc 1, 54), Maria entra em defesa das massas de pessoas que com a
exclusão foram largadas ao próprio abandono; a fala da Mulher de Nazaré proclama
que Deus não é um desertor: Ele não deixa de sustentar, de segurar e de amparar as
vítimas da situação dialética do sistema econômico com suas graves conseqüências
para o social; o grito de Maria sai de um contexto de proscrição, de desterro; é um
grito que exige a realização do tempo dinamizador da vida, não como kronos -
tempo das décadas que se sucedem sem nada trazer de novo -, mas do tempo como
kairós, o tempo oportuno do “aqui” e do “agora” , com vistas ao “ainda não”, tempo
feito dom e dádiva de Deus.

Conserva-se na memória de Maria aqu’Ele que deixou de si a lembrança não


somente nela, mas no povo todo que ela representa nesse evento profético. Assume
uma atitude de profetisa enquanto lembradora dos gestos concretos de Javé junto a
seu povo na caminhada do deserto. Quem é o profeta, se não aquele e aquela que

27
- Cf. Ibid., 382-394.
28
- Cf. Ibid.
29
- Cf. Ibid.
19
lembram ao povo as coisas reveladas pelo Pai, mas esquecidas na hora do
sofrimento e do degredo?

A felicidade coletiva depende de um conjunto de condições sociais e


religiosas que a possibilitem. E é aqui que se nos dá a conhecer um dos sinais
concretos da bondade de Deus, bondade aclamada fortemente pela Mulher de
Nazaré. Os sentimentos que se passam dentro dela podem ser traduzidos, partindo
da realidade em que vivemos e sofremos, da seguinte maneira:
- Maria aprova a felicidade terrena e trans-terrena que brota da justiça divina;
- diz em alta voz que as pessoas excluídas são tratadas por Deus com afeição,
brandura e merecem o título de pessoas bem-amadas, queridas30;
- afirma que a benevolência divina para com a vida das pessoas queridas, não deixa
impune a opressão programada e o roubo pré-meditado dos bens;
- e anuncia com toda a sua fé e com toda a dynamis do espirito de Deus que a
pervade, a graça encarnada de Javé com essas palavras: Deus veio em socorro de
Israel com sua bondade; e veio como dissera aos nossos pais, começando por
Abraão e sua descendência para sempre (cf. Lc 1, 54), isto é, os deserdados da
história contam com descendência imortal.

A partir desse tempo começa o novo tempo, o tempo da plenitude, o qual se


plenifica na eternidade. Os deserdados da história contam com descendência e o
Senhor Javé é proclamado o Senhor da Vida, porque Ele é a fonte dessa vida, Ele é
a descendência dos pobres e dos excluídos.
No momento atual, a perspectiva teológica latino-americana, caribenha e
antilhense, reflete os mistérios da fé a partir desse contexto, um contexto povoado
pelas pessoas oprimidas e excluídas. Tal contexto é interpretado na ótica de uma
clara e profética opção preferencial e solidária pelos pobres (DP 1134), opção feita
hoje, em favor das massas oprimidas e das massas excluídas. Repetimos: enquanto
as primeiras clamam por justiça, as segundas clamam por vida.

Esta é a leitura que se faz à luz nossa reflexão teológica como momento
segundo da experiência de fé. Considera-se essa experiência-processo um evento do
Espírito, evento que já tem uma caminhada de quase quatro décadas: nasceu como
aplicação prática do Vaticano II, e legitimado e estimulado pelas Conferências
Episcopais de Medellín, Puebla e Santo Domingo. Queremos concluir esta primeira
parte afirmando que a mística que pervade todo o Cântico do Magníficat encontra
sua forte expressão na oração contemplativa de Deus atuando na história e no firme
compromisso ético pela construção do Reino.

PARTE SEGUNDA: A mística de Maria à interpelação do Magníficat

30
- DURAN, Dolores. Como brasileiros com um forte veio de romantismo e sentimentos patéticos quase por natureza,
temos a coragem de atribuir a Deus que nos diz carinhosamente estas palavras poéticas de uma cantora clássica brasileira:
Eu quero a rosa mais linda que houver; quero a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem.
20
Nesta parte da reflexão o objetivo é articular na vida prática o impulso do
Espírito de Deus que toma suas distintas formas, através da mística da
contemplação de Deus na história da humanidade e na mística do compromisso
ético pela construção do Reino. Contemplação e mística portanto, irrompem da
experiência de fé feita na auscultação profunda e terna do clamor das massas pobres
e excluídas a partir do lugar em que se encontram.

Falar da mística do Magníficat é falar da mística de Maria de Nazaré. A


palavra mística tem a ver com o mistério. O significado dado à palavra mistério,
nesta reflexão, é referente ao mistério de Cristo que engloba toda a história da
salvação, história revelada e ao mesmo tempo realizada por Jesus Cristo (cf. Rm 16,
25-27). Este mistério possui uma dimensão cósmica porque pervade toda a criação e
ordena tudo para culminar em Cristo e no Espírito e finalmente desembocar no
Pai31.

No Magníficat Maria se coloca diante da Comunidade divina acompanhada


por seu povo e, junto com ele numa atitude mística de contemplação e de
compromisso ético consegue ver na história e suas articulações na vida do povo de
Israel, este fio condutor que une e eleva 32. Ver-se-ão agora, alguns traços da mística
contemplativa de Maria.

I. A mística da contemplação33

A mística da contemplação é mais intuitiva que reflexiva. Esta experiência


deixa-se penetrar pelo mistério de Deus que pervade tudo. Ela nos dá um
conhecimento mais vital da realidade e nos permite abordá-la e penetrá-la naquilo
que ela tem de mistério, de simbolismo, de comunhão com Deus e de vida
escatológica já aqui na terra.

Partindo do Magníficat torna-se acessível entender o protagonismo histórico


que Maria assume com sua palavra. Ela é uma mulher mística contemplativa
porque se insere no mundo do seu povo. Torna este mundo transparente,
desmascara as falsas imagens do Deus Vivo e desmascara também o deus
ideológico que fala em favor dos poderosos.34 Ninguém faz história de forma
31
- Cf. BOFF, Leonardo. Mestre Eckhart. A mística do Ser e de não Ter. Ed. Vozes, Petrópolis 1983, 15; de FIORES,
Stefano. Maria nella teologia contemporanea. Centro di Cultura Mariana “Madre della Chiesa”, Roma 1991, 182s; 306-
312.
32
- Cf. BOFF, Leonardo. Mestre Eckart. A mística de Ser e de não Ter. Ed. Vozes, Petrópolis 1983,15; DE FIORES,
Stefano. Maria nella teologia contemporânea. Centro di Cultura “Madre della Chiesa”, Roma 1991, 182s; 306-312.
33
- Para esta parte consultei autores e autoras, como: Cf. CAVALCANTI, Teresa, “Clareando conceitos e lembrando
histórias”, in Espiritualidade e mística. Curso de verão – ano XI. Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e
Educação Popular (CESEP). Paulus, S. Paulo 1997, 19-24; AA.VV. La mistica, fenomenologia e riflessione teologica.
Città Nuova Editrice, Roma 1984, vol1; BOFF, Leonardo e frei BETTO. Mística e Espiritualidade. Rocco, Rio de Janeiro
1994, 9-26; 154ss.
34
- Contribuição de membros da Equipe de Reflexão Teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil. Rio de Janeiro,
7 de maio 1999.
21
isolada ou ignorando aquilo que outros povos viveram e sem tomar consciência
daquilo que se está vivendo no momento presente. O Magníficat mostra Maria
como mulher que lê a história do seu povo, que a filtra em seu coração
evidenciando o elemento libertador-salvador nas antíteses35 dos eventos históricos
deste mesmo povo.

O Cântico do Magníficat coloca em evidência algumas expressões mais


fortemente ligadas à experiência da mística da contemplação referentes à mulher,
Maria de Nazaré. Das expressões que seguem, pode-se descrever muitos traços da
experiência mística da contemplação de Maria a partir do Cântico proclamado por
ela. Veremos três traços principais dos versículos abaixo:

...e exaltou os humildes;


os famintos, ele os cobriu de bens..
Veio em socorro de Israel,
seu servo lembrado de sua bondade,...
como dissera aos nossos pais
em favor de Abraão e da sua descendência,
para sempre.

Primeiro traço: Maria descreve a experiência contemplativa como experiência da


unidade. Esta se dá através da imersão no mundo dos humilhados, dos famintos e
dos que gritam por socorro.
Segundo traço: Maria penetra neste mundo com sua fé porque acredita na palavra
que lhe foi anunciada: o filho que está esperando é SANTO, porque é Filho do Deus
Libertador.
Terceiro traço: O terceiro leva em conta a experiência contemplativa da unidade
como experiência não só de imersão nas situações dominadas pela injustiça, mas
sobretudo como experiência de deixar-se absorver por Deus que cobre de bens os
pobres, socorre o seu povo e presenteia toda a esterilidade com abundante
descendência.

No Cântico do Magníficat portanto, temos uma Maria que testemunha a


experiência mística da contemplação na unidade da diferença: ela se torna uma com
o Deus do seu povo sem deixar de dar sua cooperação ao projeto divino através do
seu compromisso ético de transformar a realidade de opressão em vida plena. Maria
é toda de Deus, mas sabe se fazer uma só com seu povo e com a realidade concreta
deste mesmo povo36.
35
- Cf. VALENTINI, Alberto. Il Magnificat: Genere letterario. Struttura. Esegesi. Ed. Dehoniane, Bologna 1987, 107-
116, sobretudo p. 115: do ponto de vista religioso, no Magníficat existe um contraste entre os “humildes”e os “soberbos”
que caracteriza e qualifica o cântico. Ao lado há uma dimensão social e política expressa pelos têrmos: poderosos, ricos,
orgulhosos, força do seu braço: tal contexto é dominado pela intervenção do Todo-Poderoso que revolve as condições
sociais e as relações de violência existentes no mundo.
36
- Cf. Mestre Eckhart, .., o. c., 16-19.
22

1)- Exaltou os humildes: Maria contempla a Deus na história dos pobres

Maria busca um Deus vivo no interior da situação histórica. A mística da


mulher de Nazaré é a mística dos olhos abertos para a realidade. É a mística da
contemplação dos fatos da história do seu povo e dos rostos mais sofridos e
clamorosos. Através destes sinais vivos e destas testemunhas evidentes da ação
salvífica de Deus na história, Maria penetra essa história com toda a sua natureza
humana, isto é, com toda a sua corporeidade, com toda a sua identidade pessoal de
mulher37. É uma mulher comprometida com seu Deus pela participação direta que
tem na transformação da história salvífica não só de seu povo, mas de todos os
povos.

Maria perscruta a história de pecado e graça para compreender o


incompreensível projeto salvífico do Pai. Aquilo que se pode deduzir da mística da
contemplação de Maria, é que só Deus renova o espírito das pessoas que vivem a
justiça e a retidão. Ao contrário, é dito dos poderosos que o seu espírito não é
animado pela fé em Deus e que o seu coração não está voltado para Ele. À luz da
Palavra que Maria encarna, olha a história com grande realismo e ao mesmo tempo
com surpreendente coragem profética. Deus não está só a favor das massas pobres,
mas para poder estar deste lado, Deus se coloca contra os soberbos, os poderosos e
os ricos que programam e criam a opressão e a humilhação38.

Maria é bem-aventurada porque creu, mas também por que teve dois olhos
bem abertos para sua realidade e a do seu povo; é uma mulher sábia porque tem
uma memória dinâmica, vital e atualizadora39. No Magníficat, Maria expressa esta
sua memória fazendo de toda a sua identidade pessoal, uma linguagem anunciadora,
e profética ao mesmo tempo.

A memória dinâmica de Maria se expressa na sua pronta visita que faz a Isabel; ao
receber a saudação de sua companheira explode na exaltação do Deus que vem
salvar a humanidade inteira. A bondade desse Deus se estenderá de geração em
geração sobre todas as pessoas que o temem (cf. Lc 1, 50). Com Maria o
Evangelho começa sua marcha pelo mundo40.

Esta memória é ao mesmo tempo histórica religiosa, pois eclode do Cântico


do Magníficat que sintetiza a história sofrida de Israel. Com isso Maria se insere na
história e abre-se à experiência de des-velar Deus nos intrincados nós da caminhada
37
- Cf. NAVARRO, Mercedes, “Maria persona umana”, in Maria, la mujer. Ensayo psicológico-bíblico. Publicaciones
Claretianas, Madrid 1987, 248-251.
38
- Cf. VALENTINI, Alberto. Il Magnificat. Genere letterario. Struttura. Esegesi. Ediz. Dehoniane, Bologna 1987, 231s.
39
- Cf. PUERTO, Navarro Mercedes. Maria, la Mujer. Ensayo psicológico-bíblico. Publicaciones Claretianas, Madrid
1987, 236-243.
40
- Cf. PIKAZA, Xabier. La Madre de Jesús. Introducción a la mariología. Edic. Sígueme, Salamanca 1992, 278-286;
NAVARRO, Mercedes Puerto, o. c., 117-118.
23
humana. Levar em conta o contexto da nossa realidade e lê-lo à luz dessa atitude de
Maria, significa penetrar a nossa história para optar pelos interesses fundamentais
das massas pobres e excluídas, interesses que determinam a vida ou a não-vida
dessas milhões de pessoas, sobretudo do Sul do Mundo. O processo que nasce da
memória dinâmica de Maria, por um lado investiga e confronta a atuação divina na
história do povo de Israel; por outro evidencia a atitude sapiencial da mulher de
Nazaré que lembra os feitos do Senhor: recorda para aprofundar, acompanha com o
coração quando os caminhos de Deus se fazem mistério.

A memória de Maria é vital porque a sua experiência mística de contemplação dá


início ao tempo messiânico. Trata-se do nascimento de uma nova geração, de um
novo povo, o povo da era messiânica, o qual tem agora a primeira indicação da
chegada do tempo da libertação através de uma mulher. Maria medita a Palavra,
interpreta-a para a realidade de seu povo à luz da fé de Israel e re-interpreta-a numa
adequação constante, para que todos tenham acesso ao seu sentido e à sua riqueza
profética. Com a profundidade do seu espírito, com a força de VIDA de sua alma e
a exuberante explicação de todo o seu ser, Maria impulsiona o mistério de Deus que
cria e recria dentro de cada pessoa e em toda a comunidade humana, aquilo que a
Palavra veio realizar: o Reino de Deus concretizado na vida, paixão, morte de Jesus
e plenificado com a sua Ressurreição. Com o Magníficat Maria colocou em
destaque esse mistério e o interpreta em forma de revolução social: “precipitou os
poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52).

A memória de Maria é atualizadora porque fala com mordência profética do Deus


que invoca para libertar seu povo, tirá-lo da alienação do esquecimento e torná-lo
consciente de que ele, povo escolhido, deve buscar Deus no coração dos afazeres
deste mundo; acolher as injunções mais adversas para responder à sua vocação
divina de povo convocado. Maria proclama bem alto seu Cântico para que o povo
retome a palavra de Javé como caminho da sua vida; ordena que o povo rompa
com os esquemas dos poderosos seja da religião seja da dinastia davídica.
Finalmente Maria insiste para que o povo invoque com sinceridade o Deus fiel à
Promessa e não o poder religioso41.

Pois bem, Maria testemunhou com sua vida esse Reino ainda em mistério e
debruçou-se para contemplar a encarnação desse Reino em cada um de nós, na
comunidade humana e nos processos históricos. Em conseqüência, a comunidade
cristã deve repensar, em escala universal, a sua relação com Maria como Mãe de
Jesus. Tudo no mundo caminha para a “globalização”, que pode ser um sinal
revelador de um universalismo dos povos no meio dos quais Deus abandona o
Templo para habitar no meio das Gentes. Mas pode ser também o avanço acelerado
de um processo de empobrecimento geral que não atinge só as populações dos
vários Continentes: o poder que impera em tais Continentes empobrece, os meios
para enfrentar a desordem escasseiam de maneira crescente e a parca distribuição
41
- Cf. Mestre Eckhart. o.c., 42-43.
24
de grãos e de renda como direito à vida, cessa para os povos do Sul do Mundo e
diminui para os que se consideram ricos dos bens terrenos.

2)- Os famintos cobriu de bens: Maria contempla o Deus que sacia os famintos

A experiência mística da contemplação de Maria é marcada pelo traço da


solidariedade humana. Maria contempla as massas pobres e excluídas a partir da
pessoa faminta, da pessoa que não tem o que comer. A partir desta realidade ela
descobre o Deus da contemplação, da misericórdia e da maternidade/paternidade
que alimenta. A comida é um valor material básico da vida humana: comer para
viver. A fome é um dos flagelos mais cruéis e desapiedados que a humanidade já
tenha criado como parte de sua história. A mística da contemplação é a mística que
se debruça sobre quem tem fome de comida e fome de justiça e se abre para a
mística do compromisso ético.

Por isso Maria, ao auscultar o clamor das massas pobres e excluídas


contempla Deus e seu mistério em toda a humanidade. Maria descobre nesses rostos
humanos, o Deus da Misericórdia que se debruça e genuflete para ouvir o grito de
cada pessoa humana e infundir-lhe a esperança já presente e atuante no Cântico que
ela ela proclama junto com Isabel.

3)- Socorre Israel com sua bondade: Maria contempla o Deus fiel à Promessa

Outro traço que marca a experiência mística da contemplação de Maria é


quando toma uma atitude lúcida e corajosa ao interpelar o Deus de Israel sobre as
promessas feitas por Ele a seu povo. Até parece que ela faz uma espécie de
“cobrança” a Javé. Ao lembrar as promessas da bondade divina, Maria intervém a
favor de seu povo sim, mas cobra também deste último a sua morosidade em querer
descobrir a atuação de Deus nos processos históricos vividos e sofridos em tantos
milênios. E como todo profeta chamado empresta sua boca a Deus para lembrar ao
povo as promessas que esqueceu, Maria como profetisa, também empresta sua boca
a Javé: lembra ao povo com seu Cântico, de que é urgente a busca de um Deus que
irrompa da história humana e liberte uma vez por todas os oprimidos. Só assim
poderá forjar os processos que entram em consonância com o “anúncio” de Maria e
a prática daqu’Ele que está para chegar, o Libertador.

Cabe descrever aqui a cena do encontro de Maria e Isabel, encontro que


confirma a chegada do Libertador pela boca da mãe precursora que traz em seu seio
o Precursos, Batista. É um quadro que se reveste de graça e resplendor. As palavras
que brotam dos lábios dessas Mulheres, falam da profundidade, da simplicidade e
da pureza com que a experiência da contemplação de um Deus presente na história
humana pela sua fidelidade, é capaz de se fazer sentir e reconhecer. A narrativa
evangélica nos dá a conhecer de maneira bastante clara e direta que o encontro de
25
Maria com Isabel se dá na casa de Zacarias. É um lugar portanto, doméstico, laico,
não é sagrado como o templo, a sinagoga. É um lugar onde se desenrola a rotina da
vida sem maiores caracterizações. Nesse encontro não há trombetes, rituais e
exterioridades, como era comum para os sacerdotes do templo em momentos
especiais da celebração religiosa judaica naquela cultura42.

Pode-se dizer que chegou o tempo em que os verdadeiros adoradores,


adorarão o Pai em espírito e verdade, porque o Pai se deixa encontrar também fora
dos ambientes considerados sagrados e ritualizados. Deus é Espírito e aqueles que o
adoram devem adorá-lo em espírito e verdade (cf. Jo 4,21.23-24). Foi esse o
ambiente que caracterizou o encontro de Maria com Isabel. Esta é a descendência
deixada a Abraão, a Hagar e a Sara para sempre: a laicidade parece marcar o quadro
da narrativa histórica dos feitos de Deus através do Magníficat. Quem mais que
Maria está em condição de compreender que o verdadeiro lugar de contemplação
nasce da leitura da história com o coração atento à realidade, o Templo humano do
Espírito, onde Deus mesmo quer habitar e ser contemplado?

II. A mística do compromisso ético

A experiência da mística contemplativa de Deus na história do povo de


Israel, abre Maria para uma mística da libertação que é a do compromisso ético.
Pode-se dizer que a mulher permeada do Espírito de Deus, hoje, tem uma palavra
específica a dizer. O que diz Maria nesse contexto? Maria fala do tempo que ela
vive, é o tempo que nós chamamos de tempo do Espírito. Ela fala do tempo que
vive e que conhece pelo espírito de Deus, o qual a pervade. Este tempo do Espírito
não quer sufocar o tempo do anúncio feito pela palavra humana em nome de Jesus
Cristo – a Palavra do Pai. Mas cabe a nós criar espaço e dar espaço ao Espírito para
que ele tome a iniciativa de congregar todos os povos na unidade da fé no Pai de
todos, na pluralidade de culturas, crenças e religiões; e na diversidade das etnias,
tradições e costumes, fazendo com que cada povo ausculte de maneira respeitosa e
aberta tudo aquilo que o Espírito nos tem a dizer aqui e agora, neste momento
histórico.

Só assim poderemos falar de uma identidade aberta e em diálogo com as


outras identidades religiosas ou não, pois a identidade que nos distingue diante de
outros povos, nos é doada pelo mesmo Espírito que nos congrega, ultrapassando as
dolorosas discriminações que ainda afetam tantos povos43.

42
- NICOLA., Giulia de, “Maria ed Elisabetta”, in Theotokos. Ricerche interdisciplinari di Mariologia. Ediz. Monfortane
1997/1, 126-128.
43
- Trata-se de uma troca de idéias e experiências com o professor doutor Waldemar Boff, educador popular da Baixada
Fluminense. Representou a religião católica vivida no Sul do Mundo, no Forum Internacional das Religiões, realizado nos
Estados Unidos, em setembro de 1992. Petrópolis-Rio de Janeiro 1999.
26
Dos versículos que seguem pode-se perfilar alguns traços da experiência
mística da libertação ou do compromisso ético, traços que sobressáem na pessoa de
Maria de Nazaré, ao proclamar seu Cântico. Destacam-se aqui estes traços:

Ele interveio com toda a força do seu braço;


Dispersou os homens de pensamento orgulhoso;
Precipitou os poderosos de seus tronos...
E os ricos despediu-os de mãos vazias (Lc 1, 51-53).

Salta aos olhos da percepção humana os contrastes que tecem a força


significativa da fala atribuída a Maria. Os verbos empregados tais como, interveio,
dispersou, precipitou, despediu, falam de uma virada da situação: neste caso, a de
uma prática de poderosos que esvaziam o potencial histórico- salvífico dos pobres,
para uma prática do vigor, da eficácia e do serviço gratuito destes mesmos pobres.
São os pobres que enchem até às bordas a taça do banquete do Reino, o qual se faz
visível nas situações históricas que atendem ao serviço da vida. Estas situações são
indicadoras do Reino que há de vir.

1)- A mística do vigor

A experiência mística do compromisso ético encontra no vigor, sua forte


expressão verbal e sua significativa representação prática. Maria deixa transparecer
representações do agir divino, mas com características até certo ponto contrastantes.
A primeira frase que Lucas coloca na boca de Maria, Ele interveio com toda a força
do seu braço, dá a esta expressão um sentido de força e energia vitais. Mas não só.
Seguida da segunda, dispersou os homens de pensamento orgulhoso, explica
claramente que a proclamação de Maria é referente ao poder de Deus, que não é só
a favor dos humildes, mas é contra os orgulhosos. Porque Deus é a favor dos
humildes é que Maria se coloca contra os soberbos que os oprimem. O eixo central
do Cântico evidencia sempre a relação humildade-grandeza. À força física do braço
divino se opõe a arrogância dos pensamentos orgulhosos do coração humano44.

A robustez ativa dessa mística introduz a explosão decisiva de Deus que


socorre seu povo mudando o movimento escabroso da história. Cheia do Espírito de
Deus Maria exulta no seu espírito fazendo claras referências temporais que abraçam
passado, presente e futuro45 do projeto salvífico do Pai: A sua bondade se estende
de geração em geração sobre aqueles que o temem (Lc 1,50).

2)- A mística da eficácia

A palavra eficácia no contexto do Magníficat e no âmbito da nossa reflexão


teológica, significa que a proclamação do Magníficat por Maria de Nazaré cria as

44
- Cf. VALENTINI, Alberto. o.c., 108-109.
45
- Cf. KOHA FONG , Maria, “Lectio divina su Lc 1,39-45”, in Theotokos/1, 1997, 177-195.
27
condições, até então ab-rogadas e proscritas, para que o anúncio da era messiânica
se torne um fato salvífico, de acordo com a expectativa do povo. Por esse motivo a
experiência da mística do compromisso ético, tem na eficácia uma das suas
manifestações mais incisivas, pois, ela se plenifica no testemunho, isto é, na
confissão pública da fé no Libertador já presente no meio do povo de Israel. Para
Lucas, anunciar os fatos salvíficos de Deus é testemunhar a fé publicamente.

Ora, a teologia diz que o testemunho requer, entre outras coisas, como
condição indispensável, ter visto de pessoa os fatos anunciados e tê-los
acompanhado em sua história evolutiva desde o início 46. No cântico do Magníficat
Maria dá esse testemunho: manifesta sua proximidade e intimidade com Deus e
com o povo. Primeiro porque reforça a expectativa do povo já tornada realidade
libertadora. Segundo porque com a eficácia da sua mística coloca o povo no núcleo
central da vida divina que se entrelaça com a vida humana para o resgate definitivo
de toda a humanidade.

O Magníficat portanto, não é um hino de um movimento ou de uma seita ou


de um grupo particular, mas o Cântico de um verdadeiro israelita e hoje, o Cântico
da tradição judeu-cristã. Os pobres são salvos não porque são pobres, mas porque
são o povo preferido de Deus ; os ricos são despedidos de mãos vazias não pelo fato
de serem ricos, mas porque orgulhosos, soberbos e opressores sobre o povo de
Israel. Pode-se dizer que o Magníficat é um canto de redenção, e o seu transfundo
primitivo recorda a grande libertação do Egito.

As palavras desse Cântico foram colocadas em primeiro lugar na boca de


todo o povo de Israel. Mas no Novo Testamento, só Maria o retoma para celebrar a
salvação messiânica. Deve ser lido em profundidade e a níveis diferentes. Em
primeiro lugar deve-se levar em consideração o contexto vital em que nasceu esse
Cântico, que é o do de uma comunidade judeu-cristã das origens. Em segundo lugar
é um Cântico estreitamente conectado com a literatura canônica, espécie de saltério
e da poesia do judaismo da época. Finalmente lembra a grande libertação do Êxodo
e o canto de Moisés que celebra este evento.

3)- A mística do serviço solidário47

A experiência mística do serviço solidário é a mística que dá formas distintas


à atuação do espírito humano de Maria, espírito esse que a remete ao Espírito divino
e este ao espírito do Pai. É a mística da revelação do sempre novo e antigo mistério
de Deus Pai Filho Espírito Santo (cf. Rm 16,25-27), que Ele dá a conhecer através

46
- Cf. BOFF, Lina. Espírito e Missão na obra de Lucas-Atos. Para uma teologia do Espírito. Ed, Paulinas, S. Paulo 1996,
64-68.
47
- ORDEM DOS SERVOS DE MARIA. Servos do Magníficat. 210 Capítulo Geral. Roma, Casa geral 1996; cf.
SOBRINO, Jon, “Comunión, conflicto y solidariedad eclesial”, in Mysteruim Liberationis. Tomo II, Luca Editores, El
Salvador 1992189-204.
28
48
da salvação-libertação proclamada por Maria, e realizada por Jesus. A partir de
agora, Jesus e o Espírito já habitam em meio a seu povo capaz de testemunhar
publicamente, o mistério presente-futuro da Encarnação, tornado possível pelo SIM
de Maria. O útero de Maria abre-se para o imenso útero da humanidade inteira. A
mística do serviço solidário é finalmente, a mística da celebração e do louvor à
Comunidade divina, porque celebra a chegada do Evangelho como Boa Nova a
partir da palavra de Jesus, como atuação libertadora do Espírito e como revelação
do projeto salvífico do Pai.

Nesse âmbito o Magníficat não pode ser um simples salmo judaico, mas um
Cântico dos nossos Pai e Mães ancestrais. Se por um lado o Magníficat reflete uma
mentalidade inteiramente hebraica, deve-se acentuar por outro que ele celebra um
evento salvífico extraordinário no qual encontram seu cumprimento as Promessas
da Escritura. Dentro da linguagem empregada pelo AT revela-se, até certo ponto,
prepotente a novidade do Evangelho.

No Magníficat Maria se apresenta como a mulher do serviço solidário porque


vive uma mística do compromisso ético com seu povo; articula com a vida prática
o impulso do Espírito de Deus que se encarna nela como mulher inserida no meio
do povo e na vida do mistério do plano salvífico do Pai. Esse grande mistério da
salvação-libertação não o compreenderam os poderosos e poderosas deste mundo,
mas uma mulher simples do povo. Desta forma a mulher de Nazaré testemunha a
sua missão de SERVA, torna –se como que ‘administradora’ dos mistérios de Deus
(cf. 1Cor 4,1), porque estes são revelados pelo Espírito.

A Serva do Senhor pertence, como Israel, à descendência desse mesmo povo


sobre quem a bondade do Senhor se estende de geração em geração (cf. Lc 1,50). A
linguagem é própria de um campo semântico religioso. Junto porém, a essa
dimensão religiosa do vocabulário empregado, existe a dimensão social e política.
Maria afirma um Deus histórico, um Deus que intervém com sua justiça para
dispersar os orgulhosos, precipitar os potentes e despedir os ricos. Estes e outros
contrastes qualificam e caracterizam o Cântico. Vê-se bem que tal contexto é
dominado pela intervenção de Deus. Esta intervenção vira de cabeça para baixo a
situação humana da história, as condições sociais dos povos, a violência que
embrutece e faz morrer, as relações assimétricas que tecem o chão bruto e
desafiador das massas excluídas dos bens primários da vida no mundo.

Para o povo desta realidade o serviço tem uma fisionomia toda particular: É
uma relação de total pertença a Javé fundada na libertação e no pacto da aliança.
Deus não é só o Guia, o Senhor Javé, mas igualmente o protetor e defensor do seu
povo, especialmente das pessoas humildes e oprimidas. Dentro deste quadro o povo
mostra que experimentou a própria fragilidade no exílio: distanciando-se do

48
- Cf. BOFF, Clodovis e BOFF, Leonardo. Da Libertação. O teológico das libertações sócio-históricas. Ed. Vozes,
Petrópolis 1979, 106-107.
29
verdadeiro Deus remete-se, agora, a Javé em atitude de humilde confiança e filial
amor. Os pobres e os humildes pertencem a Deus, confessam o seu nome e esperam
tudo d’Ele. Nesse contexto, o serviço solidário significa sobretudo, uma atitude
mística que se abre para projetos concretos, num impulso irresistível de conservar a
vida onde ela escasseia ou esse serviço está ausente. Maria faz parte desta categoria
de pessoas pobres que esperam a salvação messiânica. O Magníficat portanto, é
também uma expressão de serviço, de solidariedade, de humildade e de ação
redentora.

4)- A mística da militância hoje49

A fala de Maria é um imperativo para todos os Povos que de uma maneira ou


de outra estão se preparando para viver o congraçamento do Terceiro Milênio,
prestes a irromper como uma experiência cheia de esperança e de fé no futuro
próximo. No contexto do Magníficat prefiro dizer que Maria fala a todos os Povos
de boa vontade através de três modos: São eles: Maria fala em nome do Espírito que
a insere no Projeto salvífico do Pai, proclamando os feitos de Deus; descrevendo
esses feitos salvíficos; alimentando a esperança dos povos.

A)- Maria proclama os feitos de Deus50

Proclamar os feitos de Deus (cf. Sl 104,1-7) é anunciar a salvação-libertação


que está irrompendo na vida das pessoas, no cosmos e na vida de todos os povos. O
verbo anunciar na boca da Maria do Magníficat, significa que ela afirma com
ênfase e publicamente que o seu espírito, no Espírito do Senhor Javé, se antepõe à
palavra anunciada pelos profetas, e que não foi realizada em plenitude na prática da
vida cotidiana e na história do seu povo. A palavra dos profetas foi desconhecida e
desprezada por aquelas pessoas fechadas ao Espírito do Deus salvador que falou
pela boca de tais profetas (cf. Lc 1,70). Veio uma mulher, Maria, ouviu a palavra,
acreditou e deu à luz ao Autor Único dessa salvação-libertação, Jesus.

Ao mesmo tempo Maria proclama os grandes feitos do Senhor a partir do


mistério da iniquidade que toma forma concreta no peso da injustiça e na opressão
das pessoas alquebradas e excluídas da história, ela coloca todas estas pessoas em
relação com a graça divina, por ser a cheia de graça e mãe de Deus, fonte da graça.
49
- Encontra-se uma literatura considerável sobre esse tema na reflexão teológica latino-amenricana e caribenha. Seguem
algumas referências: Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, Espiritualidade. A emergência de um novo
paradigma. Ed. Ática, Rio de Janeiro 1993, 155-162; GUTIÉRREZ, Gustavo. Beber do próprio poço. Ed. Vozes,
Petrópolis 1988; BOFF, Clodovis. Como trabalhar com o povo. Ed. Vozes, Petrópolis 1984, 39-50; LIMA, Alceu
Amoroso. Tudo é Mistério. Ed. Vozes, Petrópolis 1984.
50
- Cf. TUROLDO, M. Davide – RAVASI, Gianfranco. “Lungo i fiumi...”. I Salmi. Traduzione poética e commento.
Ediz. Paoline, Milano 1987. À página 357, o salmo 104(105) fala dos feitos (da gesta) do Senhor em favor da história do
povo de Idrael oprimido e é assim introduzido: Poderão outros povos oprimidos, os pobres de sempre, od pobres de todo
o mundo: esta humanidade escrava como o antigo teu povo, Senhor; poderá este oceano de pobres cantar um dia o
salmo da libertação? Ou haverá somente novos faraós sem novos êxodos? Que sentido terão as nossas Páscoas e este
cantar ainda salmos, se nos encontramos coniventes com os mesmos faraós? Ó igrejas!...
30
Por isso Maria afirma um Deus que exalta os humildes, cobre de bens os famintos,
socorre a todos com sua bondade e favorece uma descedência feliz e abundante a
todas as pessoas deserdadas. Maria vive no Espírito do Senhor Javé; este mantém
permanentemente uma relação amorosa e terna com a viúva, o órfão, o estrangeiro;
e continua hoje no rosto das pessoas pobres e excluídas do nosso sistema de morte.
Nestas pessoas Maria encontra o Espírito de Vida do Senhor Javé que se derrama
em abundância, e por isso tudo Maria proclama:
Minha alma exalta o Senhor
E meu espírito se encheu de júbilo por causa de Deus, meu Salvador,
Porque Ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva.
Sim, doravante todas as gerações me proclamarão bem-aventurada,
porque o Todo-poderoso fez por mim grandes coisas.:
Santo é o seu Nome.
A sua bondade se estende de geração em geração
sobre aqueles que o temem.

Os feitos que Maria proclama com seu espírito, com sua alma, com seu corpo,
numa palavra, com toda a força da sua personalidade identificada com a esperança
de seu povo, com toda a sua corporeidade, são a Graça, o Reino, a Salvação; dons
que passam pela prática dos homens e das mulheres construtores da nova história
humana. O anúncio de Maria é da ordem da salvação oferecida a todos os Povos, é
a salvação universal. As práticas da ética humana e social, a luta popular, o
compromisso com a transformação social, o trabalho com os empobrecidos, tudo
nasce da inspiração interior das pessoas, da mística poderosa do Espírito, numa
palavra, nasce do chamado do Senhor.

B)- Maria descreve os feitos do Senhor

Ao conclamar os Povos para um novo começo que se dá na prática da


solidariedade humana51, a mulher de Nazaré descreve os feitos de Deus através dos
processos históricos do seu povo junto com outra mulher, Isabel (cf. Lc 1, 39ss).
Maria não faz essa descrição sozinha. A palavra descritiva de Maria a Isabel, não é
só palavra, é evento, é instrumento através do qual o Espírito se comunica a outra
mulher e a faz profetizar (cf. Lc 1,41). Ao descrever os feitos do Senhor Javé, Maria
se torna a primeira evangelizadora, e com ela o Evangelho inicia sua marcha pelas
estradas do mundo. Essa marcha descrita por Maria e Isabel enche a obra teológica
de Lucas-Atos. A palavra de Deus se faz presente e atuante, de Nazaré a Jerusalém,
de Jerusalém à Judéia e da Samaria até os confins da terra (cf. At 1,8), sem pensar
nas conseqüências que poderia ter indo sozinha, pois Maria partiu às pressas.

51
- Cf. SEBASTIANI, Lília. Maria e Isabel. Ícone da solidariedade. Ed. Paulinas; MUÑOZ, Ronaldo. Solidariedade
Libertadora. Missão da Igreja. Ed. Vozes, Petrópolis 1982, 39ss; BASILE, Nívea Gomes. Solidários no mesmo destino.
Ed. Vozes, Petrópolis 1977, 45; JOÃO PAULO II. Instrução sobre a liberdade cristã e a Libertação. Documento
Pontifício 207. Edit. Vozes, Petrópolis 1986: “Promoção da Solidariedade”, artigos: 89-91; ÁVILA, Fernando Bastos de,
“Solidariedade”, in Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. Ed Loyola, S. Paulo 1991, 411-412;
31
Para resgatar a memória histórica de seu povo e a presença atuante do Espírito
de Deus em meio a esse povo, Maria celebra com Isabel a libertação que já está
presente; vive simbolicamente aquilo que a história nega concretamente às massas
sobrantes, canta a revolução vitoriosa das partes consideradas vencidas, goza da
libertação dos oprimidos e injustiçados e senta à mesa com Deus Salvador junto
com os pobres52. Aqui manifesta o seu esvaziamento e diz publicamente que não
aceita passivamente as circunstâncias adversas da vida humana, nem quer ser vítima
da alienação; proclama que Deus é “vingador dos humildes” e se é o caso, depõe
do trono os soberbos (cf. DP 297). Maria descreve os feitos do Senhor pela palavra
que irrompe da prática solidária, da memória histórica e da celebração que antecipa
a vida infinita em Deus Pai Filho Espírito Santo.

C)- Maria alimenta a esperança dos povos53

Antes de tudo deve-se reconhecer que o Deus Comunidade divina cada vez
mais está se revelando na história sofrida de todos os povos. Para os povos cristãos
sobretudo, esta revelação passa pela história que tem marcas do feminino de Deus
Pai/Mãe na pessoa de uma mulher do povo, de dois mil anos atrás – Maria de
Nazaré. Ela é invocada como a Mãe da esperança que alimenta a fé desses povos e
os acompanha na dura travessia. Os nossos povos vivem de esperança, mesmo
quando não vêem sinais que apontem para dias melhores e para uma vida mais
digna.

O Espírito que habita Maria se revela no horizonte da fé e da esperança, e no


cumprimento das promessas feitas pelo Senhor Javé. Todo o AT é pervadido por
essa esperança. Com esta atitude Maria vive uma realidade de futuro no qual se une
o passado com o presente. No NT a ressurreição de Jesus deu a todos os povos uma
esperança que supera toda e qualquer esperança humana, não no sentido de esvaziá-
la como esperança humana, mas no sentido de levá-la à sua plenitude através das
mediações históricas em vista do futuro escatológico.

Maria continua, na geração das demais mulheres que a precederam nesta


esperança, a contribuir ativamente na libertação da miséria social em que jaz a
maioria dos povos que estão entrando no Terceiro Milênio. O Magníficat hoje,
representa um projeto de todos os nossos povos espoliados e encontra na Teologia
da Libertação a inspiração e a base da esperança bíblica. Ainda: alimenta os justos
desejos dos povos latino-americanos, caribenhos e antilhenses com a autenticidade
e a atualidade das suas palavras.

52
- Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia, Mundilização, Espiritualidade. A emergência de um novo paradigma. Ed. Ática, Rio
de Janeiro 1993, 146ss.
53
- No grego bíblico, as palavras que exprimem esperança ou espera, elpís, elpizo, com seus derivados, são as mais
significativas e freqüentes. Cf. HOFFMAMM, Ernst, “Speranza”, in Dizionario dei concetti biblici del Nuovo
Testamento. Ed. Dehoniane, Bologna 1991, 1762ss.
32
Nesse contexto a palavra esperança não indica só o ato de esperar, a
expectativa como tal, mas compreende também o objeto da espera, a coisa
esperada; ter esperança significa ter fé e confiança de conseguir o que se deseja;
crer na realização das promessas divinas; estar em atitude de expectância
messiânica sem ansiedades puramente terrenas, mas considerá-las mediações
urgentes e necessárias para a instauração do Reino que todos esperamos. Esse
sentido de espera acentua a tensão viva da esperança como dom que vem pela força
do Espírito. Por isso a esperança suporta com tenacidade as tribulações que nascem
da tensão entre o presente e o futuro.

D)- Mística, militância e mistério pascal

Para o cristianismo as libertações sócio-históricas são abertas à


transcendência e apontam para o Reino de Deus. Todas as pessoas de boa vontade
participam desse processo libertário e humanizador que se dá dentro do cotidiano
como processo trans-histórico. A militância feita com mística saboreia a Deus a
partir das pessoas que clamam por vida e contemplam a Deus no rosto dessas
pessoas. A mística e a contemplação portanto, constituem uma única experiência
fundante: o Deus proclamado por Maria no Cântico do Magníficat não se encarnou
na pessoa do poderoso em seu trono, nem do Sumo Sacerdote em seu altar, nem do
sábio em sua cátedra, mas na pessoa do oprimido e excluído que acaba fora da terra,
da cidade e é crucificado54.

O mistério Transcendente que se encarnou se encontra crucificado. Grita na


cruz por vida e quer ressuscitar. A ressurreição de Jesus crucificado quer reafirmar
o primado da justiça e da vida55. A mística da militância e do mistério pascal se
inspira na fala da Maria do Magníficat para exigir justiça e vida enquanto serviço
solidário realizado na esperança. A mística vivida na militância empapada de
mistério pascal por ser histórica, passa pelo testemunho evangélico e pelo serviço
solidário como se viu acima. Esse testemunho configura uma mística cristã que se
expressa em algumas atitudes consideradas fundamentais para o/a militante hoje.
Tal experiência expressa-se sobretudo nestas atitudes:
- no amor ao povo
- na confiança depositada nele
- na valorização do que realiza
- no serviço gratuito
- no respeito à sua história
- na descoberta da misericórdia e da justiça em cada encontro vivo que fazemos com
o Deus Trino.

A experiência mística feita na militância atinge sua expressão plena quando se


faz prática do cotidiano, uma prática aberta ao Transcendente, ao Inefável, ao Deus

54
- Cf. BOFF, Leonardo e Frei Betto. Mística e Espiritualidade. Rocco, Rio de Janeiro 1994, 49-66.
55
- Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia Mundialização Espiritualidade. Edit. Ática, S. Paulo 1993, 141-170.
33
Comunidade de Amor e de Relação amorosa. O impulso dessa experiência mística
permite que se ilumine toda a vida, num processo de elaborar uma imagem de Deus
como Comunidade relacionada e de comunhão.

IV. O questionamento de conclusão: Que mística nos inspira Maria para o


Terceiro Milênio?

Ressaltam-se dois pontos indicativos:


Primeiro ponto: O nosso propósito nasce da reflexão feita como momento segundo
da prática pastoral: quando se fala da Maria do Magníficat como mulher
revolucionária e profética, os pobres e os oprimidos aplicam de forma crítica e
consciente, as palavras de Maria à própria vida e á própria condição social.
Enquanto que, quando se fala às massas excluídas da Maria do Magníficat, estas se
identificam muito mais com a Maria que se dá a conhecer como Mãe do Cristo
crucificado, Mãe dos famintos, solidária com as pessoas humildes e serva bondosa
que acolhe, do que com a Maria corajosa que destrona os poderosos. Esta
identificação com a Maria do Magníficat ficou demonstrada no texto que
elaboramos nos títulos e sub-titulos de cada parte.

Segundo ponto: As mulheres e os homens de hoje querem proclamar o Magníficat


de Maria no Terceiro Milênio a partir da mesma experiência de fé cristã que fazem.
Querem realizar esta experiência com sua identidade aberta para encontrar pontos
de identificação com outras experiências religiosas do sagrado, do mistério e do
transcendente, os quais se revelam nas distintas culturas dos sem-número de povos
que habitam os Continentes do Mundo. Será a grande realização profética dos
povos do mundo inteiro que já experimentam o clima do Terceiro Milênio. Todos
os povos se reunirão para se encontrarem no mesmo Pai de todos e louvá-l’O de
acordo com a sua tradição religiosa e cultura próprias. Nesse espírito homens e
mulheres proclamam o Magníficat do século XXI de formas e maneiras diferentes.
Uma delas é esta56:

Cheia de toda a Graça, grávida de uma Nova Consciência,


Meu Espírito engrandecido se exalta e já não cabe na estreiteza do meu ser.
Do fundo das entranhas, o impulso de louvar e agradecer, arrebata a minha Alma.
A voz aprisionada rasga o meu peito e irrompe num hino de exaltação.
O corpo cheio de Entusiasmo dança com alegria.
Meus gestos são a proclamação do poder da VIDA.
Sejam dadas toda a honra, glória e louvor ao Supremo Espírito,
56
Iris Boff Serbena é a autora do Magníficat transcrito acima. Iris é professora do Estado do Paraná, trabalha a questão
ecumênica e inter-religiosa há algumas décadas nas escolas públicas; dá assessorias em todo o Brasil dentro desse
campo e já realizou várias experiências ecumênicas e de natureza inter-religiosa também. Trabalhou por mais de dez
anos na Secretaria de Educação em Curitiba, na orientação do ensino religioso ecumênico nas escolas estaduais do
Paraná. É autora de vários livros didáticos que orientam, com método e objetivo claros, a formação religiosa
ecumênica não só dos alunos como dos pais e das famílias. As assessorias dadas pela professora atingem
pastoralistas, clero, párocos e sobretudo leigos em geral.
34
Útero de MÃE, receptáculo do sêmen fecundo do PAI,
E que no Amor feito carne em Maria,
a Humanidade enquanto VIDA engendrada, continua eternamente.
Investido e revestido Dela, assim sou e aqui estou.

Bendita essa Comum-união da qual sou parte do Todo e o Todo da parte.


Sagrado todo o ser portador e guardião do Mistério da semente, da força da raiz,
do segredo das flores e frutos que garantem a perpetuidade da Vida.
Quão magnífico e perfeito é esse Ventre Feminino gerador,
Integrador de cada célula do meu ser,
movimento silencioso que me mantém vivo,
eu que sou apenas o tênue fio que tece essa exuberante Teia da Vida!

De eras em eras, de geração em geração, de culturas em culturas,


Esse Imenso Útero Feminino, Templo comum, quase sempre profanado e
saqueado,
Resiste à nossa estúpida ganância, e ainda assim, insiste em nos salvar!
Como Mãe cheia de compaixão, seus imensos braços se erguem para nos proteger.
Compassiva, os abre como refúgio de nossos desvarios.
Sob tuas vestes escondemos o rosto de vergonha pela miséria com que nos
tratamos
e pela violência com que vivemos nessa única família, a Humanidade.

Todos te chamarão de Bem-aventurada, pois tua Fé dispersa os arrogantes,


Aborta os projetos de morte, acumula de riqueza os que têm as mãos vazias,
Dá paz à sã consciência, liberdade ao coração desapegado
E alegria nos cansaços e nos descansos da vida.
MATÉRIA, MATER, MADONA, MÃE, MATRIZ DE TODOS OS MATIZES, MARIA,
Cantadora do MAGNÍFICAT, do teu Deus de Israel,
Gingue, sambe e erga o tom do teu canto, amplie teu Templo e teu espaço,
e, sem exclusão, misture-se com outros ritmos, línguas, culturas, cores e tradições,
orquestrando ao compasso de um só coração
a Sinfonia Universal deste novo Magníficat !

De muito tempo e de bem longe,


o som do ETERNO FEMININO acordará do seu longínquo sono,
e, saindo do seu silêncio cativo, imposto e consentido,
com a voz embargada na garganta,
entrará pelas ondas do ar, nas telas de TV, nas redes da Internet,
fertilizando as consciências para o nascimento do MAGNÍFICAT planetário
que abre os portais do Terceiro Milênio.

Que este Canto celebre os novos Esponsais, estabeleça uma nova Aliança.
Aliança que, de mãos dadas cante pois,
35
na ciranda do Arco-Iris, a canção de que somos todos
Herdeiros do mesmo Sangue,
Filhos da mesma Graça.
Estamos em busca da mesma Luz,
Caminhamos rumo a um novo nascimento
Como foi prometido aos nossos Ancestrais:
o futuro e a descendência de toda a família Humana está garantida.
Ela completará sua gravidez e renascerá na Paz oceânica do GRANDE ESPÍRITO,
para todo o sempre. Amém!

Revisto pela autora, em 04 de fevereiro de 2010, na PUC-Rio - Brasil

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