Interpela Do Magnificat
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III. O questionamento de conclusão: Que mística nos inspira Maria para o Terceiro Milênio?
2
A FALA DE MARIA NO MAGNÍFICAT AOS POVOS DO SUL DO MUNDO
(Para uma mística evangélica do Terceiro Milênio)1
1
- Conferência proferida no IV Congresso Internacional Mariológico do México: Faculdade de Mariologia da Pontifícia
Universidade Católica do México, Cidade do México, em 29 de julho de 1998.
3
de cada pessoa, esperança e sonho que povoam a imaginação humana e ao mesmo
tempo alimentam a jovialidade cristã.
Todo esse processo porém, não é apenas uma mudança de calendário. É uma
leitura de fé do contexto no qual vivemos e padecemos, contexto esse interpretado
na ótica da opção evangélica preferencial e solidária pelos pobres (cf. DP 1134),
opção feita hoje em favor das massas de pessoas pobres e oprimidas e pelas massas
de pessoas excluídas ou sobrantes.
Maria sempre foi proposta pela Igreja como pessoa de fé e exemplo de vida
cristã comprometida, não pelo tipo de vida que ela levou, mas sim porque, nas
condições concretas de seu tempo ela acreditou que a realidade última da pessoa
humana não é habitada pela solidão, mas pela comunhão de todas as pessoas em
igualdade perfeita, como se dá na Comunidade divina do Pai com o Filho, no
Espírito Santo.
4
2
Às portas do Terceiro Milênio Maria se faz presente através da sua fala no
Magníficat de forma mais intensa. O pronunciamento de Maria no Cântico do
Magníficat, é lido e interpretado a partir da realidade latino-americana, caribenha e
dos povos antilhenses. O contexto vital desses povos me leva a dizer que a fala da
mulher de Nazaré ama as pessoas loucas, as mendigas, as escorchadas 3 e as pessoas
aniquiladas.
A reflexão teológica feita em tal perspectiva, quer partir dessa realidade social
que cada vez mais se apresenta complexa ao nosso modo de lê-la, e interpretá-la.
Ela é de uma complexidade progressiva que cada vez mais se nos apresenta
desafiadora ao compromisso da fé. Repito: essa realidade é sobretudo constituída
por duas categorias de pessoas que passo a chamá-las de massas de pessoas pobres
e oprimidas e massas de pessoas excluídas ou sobrantes.
5
- A relevância dessa conjuntura é objeto de pesquisa e estudo por parte de muitos autores e autoras, que citamos aqui
alguns: Cf. SANTA ANA, Júlio de, “Neoliberalismo: A razão do Sistema: o princípio de exclusão”, in Tempo e
Presença/286, 1993, 5-8; SAMPAIO, Plínio Arruda, “Panorama e gravidade da pobreza”in ibid., 15-18; IANNI, Octavio.
Teorias da Globalização. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1995, 25-45; 93ss; VV.AA. Liberalismo e Socialismo.
Velhos e Novos Paradigmas. UNESP, 125-128; 215-217; VV.AA. Mercosul. Perspectivas de Integração. Fundação
Getúlio Vargas Editora, Rio de Janeiro1996, 124-125; TAVARES, Maria da Conceição, “Acordos de investimentos,
privatização e cidadania”, in Folha de São Paulo (jornal)/01/03/98, 6.
6
- Pequenas ilhas situadas entre Porto Rico, Santo Domingo e a República da Guiana e o Suriname. São conhecidas
também como Ilhas do Mar das Antilhas.
7
- Cf. SAMPAIO, Plínio de Arruda, “Com férias e tudo, um começo bem agitado”, in Boletim Rede/ fevereiro 1998, 1-2;
AA.VV (Professores de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Globalização e
Religião. Edit. Vozes, Petrópolis 1998. Analisa o fenômeno da globalização religiosa nos países do Mercosul, bem como
a situação religiosa destes; UCHOA, pe. Virgílio Leite, “Análise de Conjuntura”, in Convergência/ 311, abril 1998, 180-
191.
6
do capitalismo mundial, através do Fundo Monetário de Investimentos (FMI), estão
exigindo reformas internas do quadro econômico dos nossos povos que cada vez
mais os empobrecem e os fragilizam em todo o sentido.
8
- O tema da cultura é particularmente importante nesse contexto. Veja-se: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização.
Companhia das Letras, S. Paulo 1992, 328-330; Documentos da CNBB: Para onde vai a cultura brasileira?. Desafios
pastorais. Ed. Paulinas, S. Paulo 1990, doc./58; Igreja: Comunhão e Missão na evangelização dos povos, no mundo do
trabalho, da política e da cultura. Ed. Paulinas, S. Paulo 1988, doc./40.
9
- Cf. TRASFERETTI, José Antonio, “Igreja dos excluídos: Pastoral na periferia dos centros urbanos”, in Cultura
Vozes/91, julh-agost 1997, 137-154.
10
- Cf. BOFF, Clodovis. Como trabalhar com os excluídos. Ed. Paulinas, S. Paulo 1998; da SILVA, Antonio Aparecido
(organizador). Existe um pensar teológico negro?. Ed. Paulinas, S. Paulo 1998; CNBB. O grito dos excluídos. Setor
Pastoral Social. Ed. Vozes, Petrópolis 1996.
7
11
Nazaré o qual inspira o anúncio e a prática das massas pobres e dá voz e vez às
pessoas excluídas através da reflexão teológica.
A pessoa que vive uma mística cristã comprometida penetra nas realidades
terrestres com a mesma fé de Jesus Cristo, com a mesma intenção que ele tinha e
com a mesma ação libertadora do Espírito que o impulsionava para transformar a
realidade segundo o desígnio salvífico do Pai cf. Rm 16, 25-27). Chamamos de
mística a essa força interior que, orientada pelo seguimento de Jesus Cristo,
transforma as pessoas, as comunidades e as estruturas circunstantes17.
16
- Cf. Ibid. : Está crescendo a consciência missionária e a descoberta de que há muita terra de missão dentro e fora do
Brasil e do Continente. Precisamos dar da nossa pobreza, que é a riqueza com a qual o Cristo e seu Espírito nos
presentearam. Cf. também DP 362-363.
17
- Cf. BERNARD, Charles Andrès. Teologia spirituale. Paoline, Roma 1982, 456ss.
10
Essas pessoas fazem uma experiência cristã comunitária que se identifica com
o mistério de Deus na história do povo, particularmente na história dos oprimidos.
Por isso afirmam um Deus histórico: o Deus de Abraão, de Isaac, de Sara, de Agar,
dos Profetas, de Isabel e Maria e de Jesus de Nazaré. Des-velam e penetram cada
vez mais profundamente a experiência mística de Jesus através da palavra da
Sagrada Escritura, sobretudo do Novo Testamento. Começam este des-velamento e
esta penetração na descoberta do contato íntimo que Jesus mantinha com o Pai (cf.
Rm 16,25-27), nos gestos, nas palavras e práticas que realizava no meio do povo
em geral e de modo particular com as pessoas excluídas da sociedade religiosa e
civil de seu tempo, tais como: as pobres, as aleijadas de nascença, as cegas, as
presas, numa palavra, todas as pessoas excluídas daquela sociedade e daquela
religião.
20
- É a oração que brota da contemplação da história humana como revelação do plano salvífico de Deus que atua
enquanto Comunidade divina
21
- Cf. AA.VV. Espiritualidade y lberación. Departamento Ecuménico de Investigación (DEI), Costa Rica 1982, 12; 29-
33; BOFF, Clodovis, “Fisionomia das Comunidades Eclesiais de Base”, in Concilium/164, 1981, 72-78; -----., “Os pobres
na América Latina e suas práticas de libertação”, in Opção pelos Pobres . Edit. Vozes, Petrópolis 1986, 230-247
13
de oração, quer animando retiros ou encontros de natureza espiritual que desemboca
no compromisso ético.
Ela entra anunciando a justiça divina. A luta pela justiça é própria das CEBs,
das Organizações Populares e Movimentos mais conscientes. Estes grupos de fé
estão dentro do sistema sem o direito de ter dele as necessidades básicas satisfeitas
para uma vida simplesmente humana. Tal processo de luta, vivido na esperança,
encontra seu fundamento espiritual na Palavra da Sagrada Escritura, e dessa Palavra
se quer evidenciar aqui, o Magníficat de Maria de Nazaré. Esse Cântico inspira a
ação de justiça das massas pobres e oprimidas, ilumina-lhes a vida e torna-lhes
possível a profecia. É ainda nesse grito que essas pessoas descobrem a Mãe
libertadora, a Mulher profética, a Maria companheira, a Mulher do povo e a Maria
negra22.
A fala dessa Mãe, dessa Mulher, dessa Maria é articulada com o grito que sai
da garganta das massas pobres e oprimidas. Esse grito toma forma concreta numa
atitude de indignação ética diante da miséria que urge a partilha do sonho coletivo
22
- BOFF, Clodovis. Maria na Cultura Brasileira. Aparecida, Iemanjá, Nossa Senhora da Libertação. Edit. Vozes,
Petrópolis 1995, 77: Quatro são os traços de Maria sublinhados pelas CEBs nos seus cânticos: - Maria libertadora; - Maria
companheira; - Maria mulher do povo; - Maria negra.
14
pela construção de um novo projeto de vida e a garantia da gratuidade divina para
com seu povo que luta por condições de vida programadas e realizadas na justiça.
Com o anúncio Ele interveio com toda a força de seu braço (Lc 1,51), Maria
interpõe sua autoridade-serviço entre Deus e as massas pobres e oprimidas que
querem a libertação. Nesse caso, Maria toma parte da causa das pessoas mais
fracas; impõe medidas próprias do seu bom ofício para salvar a integridade física e
moral dessas pessoas; põe em debandada para diferentes direções o pensamento e a
atuação transviada dos homens e das mulheres que guardam no seu íntimo idéias e
pensamentos do mais refinado orgulho (cf. Lc 1, 51); apressa o passo incerto e
duvidoso de grupos, exímios produtores de injustiças das mais variadas formas, à
deriva; grita bem alto que o braço do Senhor intervém precipitando para o
despenhadeiro as pessoas opressoras, e dá ordem expressa de se afastarem com
mãos vazias e devolverem o que roubaram ( cf. Lc 1, 53).
Com essa atitude de Maria e sobretudo com a sua fala direta e objetiva, é que
as massas pobres organizadas se identificam e encontram nelas - atitude e fala de
Maria -, inspiração para agirem de maneira evangélica e inteligente. A consciência
cristã de compromisso com a construção do Reino, impulsiona essas pessoas a
construí-lo na sua dimensão intra-terrena, sem perder de vista a dimensão
transterrena ou a dimensão escatológica do mesmo Reino.
Essa atitude corajosa de Maria torna-se lema de vida cristã consciente que
nada tem de ingenuidade, e é igualmente processo de identificação para uma
prática que faz do cristianismo um projeto de vida e de revolução evangélica. É
nessa luz que as massas pobres e oprimidas aplicam para a sua vida de fé a fala e a
atuação da Mulher de Nazaré.
Deve ficar claro aqui, que é a reflexão teológica a dar voz às pessoas
excluídas. Trata-se de milhões que vivem na miséria e têm como estratégia,
economizar forças para sobreviverem. A essas pessoas excluídas atribui-se as
frases do Magníficat que expressam uma atitude básica de vida e de misericórdia.
Ver-se-á cada uma dessas expressões adiante.
As atitudes que clamam por vida, são carregadas de paciência a toda prova,
isto é, carregadas de uma paciência histórica. As pessoas excluídas alimentam a
confiança na justiça imanente da vida; sonham com a chegada do dia em que
“lavarão sua alma” de todas as tribulações e injustiças; aguardam a manifestação
plena da vida-com-sentido, sentido que é vida dentro da vida. Como a Maria do
Magníficat entra nesse sonho empapado de confiança?
Aqui é a teologia que reflete a partir das condições de miséria das pessoas
excluídas. No quadro dessa realidade vital, a reflexão teológica se inspira na Mulher
peregrinação, a estrada que parte de Roma até Assis. Foi uma semana de peregrinação, acompanhada de meditação
contemplativa e mística.
17
do Magníficat para responder ao clamor das não-pessoas. Maria portanto, coloca-se
do lado dessas massas quando proclama que a vida está chegando porque:
- os humildes são exaltados
- os famintos cobertos de bens
- os excluídos são socorridos
- os deserdados da história contam com descendência.
Ver-se-á cada uma dessas exclamações marianas na ótica do excluído como já
acenamos acima.
Maria está presente em meio a essas pessoas como a Mulher que dá vida
porque a dinamiza25. As pessoas excluídas querem sobreviver e nada mais; não
ousam diante dos desafios, nem arriscam diante do perigo de expor a própria vida,
pois elas têm consciência de que no enfrentamento de forças, perdem e sáem
apanhando como sempre. O que elas procuram fazer é economizar o sopro de vida
que lhes vem de Deus. Poupam o desperdício de energia vital para segurar a vida e
se manterem de pé com dignidade e soberania. São consideradas pelo sistema,
inúteis e constituem um sério problema para a “ordem normal” das coisas.
Com a afirmação pública, os famintos, ele cobriu de bens (Lc 1, 53), Maria
garante da parte do Deus da vida a grande quantidade de bens que satisfaz a fome e
a sede das massas excluídas; deixa entrever nas suas palavras e na sua voz de Mãe
24
- Cf. ORIGENE. “Comento al Vangelo di Luca 8,7” , in L’ora di lettura/6, ed. Dehoniane 1976, 437-438.
25
- Cf. BOFF, Lina, “Maria e os pobres de Javé hoje”. Uma reflexão em vista do Terceiro Milênio, in Convergência/ 310,
março 1998, 107-115.
26
- Cf. Imãos BOFF, “Teologia da libertação: Carta aberta ao cardeal J. Ratzinger”, in Grande Sinal/5, junho 1986, 382-
394.
18
da vida, que das pessoas famintas não se sacia só a fome, mas a fome e a sede, os
sentimentos e os desejos, a comunhão e a participação.
Com essa atitude Maria profeticamente afirma que o Deus da vida cobre as
massas excluídas de alimento, de víveres que criam condições sociais de fazer a
experiência da felicidade coletiva dos filhos e filhas de Deus; estende por cima das
massas excluídas a benevolência do seu gesto e a brandura de sua palavra que lhes
anuncia a Boa Nova integral: o primeiro dos bens é o pão cotidiano, para que essas
massas possam aceder ao pão da Palavra27. É o pão da Palavra que pervade toda a
vida , com vistas porém, a atingir o pão da Mesa onde o próprio Jesus Cristo se doa
como alimento28.
27
- Cf. Ibid., 382-394.
28
- Cf. Ibid.
29
- Cf. Ibid.
19
lembram ao povo as coisas reveladas pelo Pai, mas esquecidas na hora do
sofrimento e do degredo?
Esta é a leitura que se faz à luz nossa reflexão teológica como momento
segundo da experiência de fé. Considera-se essa experiência-processo um evento do
Espírito, evento que já tem uma caminhada de quase quatro décadas: nasceu como
aplicação prática do Vaticano II, e legitimado e estimulado pelas Conferências
Episcopais de Medellín, Puebla e Santo Domingo. Queremos concluir esta primeira
parte afirmando que a mística que pervade todo o Cântico do Magníficat encontra
sua forte expressão na oração contemplativa de Deus atuando na história e no firme
compromisso ético pela construção do Reino.
30
- DURAN, Dolores. Como brasileiros com um forte veio de romantismo e sentimentos patéticos quase por natureza,
temos a coragem de atribuir a Deus que nos diz carinhosamente estas palavras poéticas de uma cantora clássica brasileira:
Eu quero a rosa mais linda que houver; quero a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem.
20
Nesta parte da reflexão o objetivo é articular na vida prática o impulso do
Espírito de Deus que toma suas distintas formas, através da mística da
contemplação de Deus na história da humanidade e na mística do compromisso
ético pela construção do Reino. Contemplação e mística portanto, irrompem da
experiência de fé feita na auscultação profunda e terna do clamor das massas pobres
e excluídas a partir do lugar em que se encontram.
I. A mística da contemplação33
Maria é bem-aventurada porque creu, mas também por que teve dois olhos
bem abertos para sua realidade e a do seu povo; é uma mulher sábia porque tem
uma memória dinâmica, vital e atualizadora39. No Magníficat, Maria expressa esta
sua memória fazendo de toda a sua identidade pessoal, uma linguagem anunciadora,
e profética ao mesmo tempo.
A memória dinâmica de Maria se expressa na sua pronta visita que faz a Isabel; ao
receber a saudação de sua companheira explode na exaltação do Deus que vem
salvar a humanidade inteira. A bondade desse Deus se estenderá de geração em
geração sobre todas as pessoas que o temem (cf. Lc 1, 50). Com Maria o
Evangelho começa sua marcha pelo mundo40.
Pois bem, Maria testemunhou com sua vida esse Reino ainda em mistério e
debruçou-se para contemplar a encarnação desse Reino em cada um de nós, na
comunidade humana e nos processos históricos. Em conseqüência, a comunidade
cristã deve repensar, em escala universal, a sua relação com Maria como Mãe de
Jesus. Tudo no mundo caminha para a “globalização”, que pode ser um sinal
revelador de um universalismo dos povos no meio dos quais Deus abandona o
Templo para habitar no meio das Gentes. Mas pode ser também o avanço acelerado
de um processo de empobrecimento geral que não atinge só as populações dos
vários Continentes: o poder que impera em tais Continentes empobrece, os meios
para enfrentar a desordem escasseiam de maneira crescente e a parca distribuição
41
- Cf. Mestre Eckhart. o.c., 42-43.
24
de grãos e de renda como direito à vida, cessa para os povos do Sul do Mundo e
diminui para os que se consideram ricos dos bens terrenos.
2)- Os famintos cobriu de bens: Maria contempla o Deus que sacia os famintos
3)- Socorre Israel com sua bondade: Maria contempla o Deus fiel à Promessa
42
- NICOLA., Giulia de, “Maria ed Elisabetta”, in Theotokos. Ricerche interdisciplinari di Mariologia. Ediz. Monfortane
1997/1, 126-128.
43
- Trata-se de uma troca de idéias e experiências com o professor doutor Waldemar Boff, educador popular da Baixada
Fluminense. Representou a religião católica vivida no Sul do Mundo, no Forum Internacional das Religiões, realizado nos
Estados Unidos, em setembro de 1992. Petrópolis-Rio de Janeiro 1999.
26
Dos versículos que seguem pode-se perfilar alguns traços da experiência
mística da libertação ou do compromisso ético, traços que sobressáem na pessoa de
Maria de Nazaré, ao proclamar seu Cântico. Destacam-se aqui estes traços:
44
- Cf. VALENTINI, Alberto. o.c., 108-109.
45
- Cf. KOHA FONG , Maria, “Lectio divina su Lc 1,39-45”, in Theotokos/1, 1997, 177-195.
27
condições, até então ab-rogadas e proscritas, para que o anúncio da era messiânica
se torne um fato salvífico, de acordo com a expectativa do povo. Por esse motivo a
experiência da mística do compromisso ético, tem na eficácia uma das suas
manifestações mais incisivas, pois, ela se plenifica no testemunho, isto é, na
confissão pública da fé no Libertador já presente no meio do povo de Israel. Para
Lucas, anunciar os fatos salvíficos de Deus é testemunhar a fé publicamente.
Ora, a teologia diz que o testemunho requer, entre outras coisas, como
condição indispensável, ter visto de pessoa os fatos anunciados e tê-los
acompanhado em sua história evolutiva desde o início 46. No cântico do Magníficat
Maria dá esse testemunho: manifesta sua proximidade e intimidade com Deus e
com o povo. Primeiro porque reforça a expectativa do povo já tornada realidade
libertadora. Segundo porque com a eficácia da sua mística coloca o povo no núcleo
central da vida divina que se entrelaça com a vida humana para o resgate definitivo
de toda a humanidade.
46
- Cf. BOFF, Lina. Espírito e Missão na obra de Lucas-Atos. Para uma teologia do Espírito. Ed, Paulinas, S. Paulo 1996,
64-68.
47
- ORDEM DOS SERVOS DE MARIA. Servos do Magníficat. 210 Capítulo Geral. Roma, Casa geral 1996; cf.
SOBRINO, Jon, “Comunión, conflicto y solidariedad eclesial”, in Mysteruim Liberationis. Tomo II, Luca Editores, El
Salvador 1992189-204.
28
48
da salvação-libertação proclamada por Maria, e realizada por Jesus. A partir de
agora, Jesus e o Espírito já habitam em meio a seu povo capaz de testemunhar
publicamente, o mistério presente-futuro da Encarnação, tornado possível pelo SIM
de Maria. O útero de Maria abre-se para o imenso útero da humanidade inteira. A
mística do serviço solidário é finalmente, a mística da celebração e do louvor à
Comunidade divina, porque celebra a chegada do Evangelho como Boa Nova a
partir da palavra de Jesus, como atuação libertadora do Espírito e como revelação
do projeto salvífico do Pai.
Nesse âmbito o Magníficat não pode ser um simples salmo judaico, mas um
Cântico dos nossos Pai e Mães ancestrais. Se por um lado o Magníficat reflete uma
mentalidade inteiramente hebraica, deve-se acentuar por outro que ele celebra um
evento salvífico extraordinário no qual encontram seu cumprimento as Promessas
da Escritura. Dentro da linguagem empregada pelo AT revela-se, até certo ponto,
prepotente a novidade do Evangelho.
Para o povo desta realidade o serviço tem uma fisionomia toda particular: É
uma relação de total pertença a Javé fundada na libertação e no pacto da aliança.
Deus não é só o Guia, o Senhor Javé, mas igualmente o protetor e defensor do seu
povo, especialmente das pessoas humildes e oprimidas. Dentro deste quadro o povo
mostra que experimentou a própria fragilidade no exílio: distanciando-se do
48
- Cf. BOFF, Clodovis e BOFF, Leonardo. Da Libertação. O teológico das libertações sócio-históricas. Ed. Vozes,
Petrópolis 1979, 106-107.
29
verdadeiro Deus remete-se, agora, a Javé em atitude de humilde confiança e filial
amor. Os pobres e os humildes pertencem a Deus, confessam o seu nome e esperam
tudo d’Ele. Nesse contexto, o serviço solidário significa sobretudo, uma atitude
mística que se abre para projetos concretos, num impulso irresistível de conservar a
vida onde ela escasseia ou esse serviço está ausente. Maria faz parte desta categoria
de pessoas pobres que esperam a salvação messiânica. O Magníficat portanto, é
também uma expressão de serviço, de solidariedade, de humildade e de ação
redentora.
Os feitos que Maria proclama com seu espírito, com sua alma, com seu corpo,
numa palavra, com toda a força da sua personalidade identificada com a esperança
de seu povo, com toda a sua corporeidade, são a Graça, o Reino, a Salvação; dons
que passam pela prática dos homens e das mulheres construtores da nova história
humana. O anúncio de Maria é da ordem da salvação oferecida a todos os Povos, é
a salvação universal. As práticas da ética humana e social, a luta popular, o
compromisso com a transformação social, o trabalho com os empobrecidos, tudo
nasce da inspiração interior das pessoas, da mística poderosa do Espírito, numa
palavra, nasce do chamado do Senhor.
51
- Cf. SEBASTIANI, Lília. Maria e Isabel. Ícone da solidariedade. Ed. Paulinas; MUÑOZ, Ronaldo. Solidariedade
Libertadora. Missão da Igreja. Ed. Vozes, Petrópolis 1982, 39ss; BASILE, Nívea Gomes. Solidários no mesmo destino.
Ed. Vozes, Petrópolis 1977, 45; JOÃO PAULO II. Instrução sobre a liberdade cristã e a Libertação. Documento
Pontifício 207. Edit. Vozes, Petrópolis 1986: “Promoção da Solidariedade”, artigos: 89-91; ÁVILA, Fernando Bastos de,
“Solidariedade”, in Pequena Enciclopédia de Doutrina Social da Igreja. Ed Loyola, S. Paulo 1991, 411-412;
31
Para resgatar a memória histórica de seu povo e a presença atuante do Espírito
de Deus em meio a esse povo, Maria celebra com Isabel a libertação que já está
presente; vive simbolicamente aquilo que a história nega concretamente às massas
sobrantes, canta a revolução vitoriosa das partes consideradas vencidas, goza da
libertação dos oprimidos e injustiçados e senta à mesa com Deus Salvador junto
com os pobres52. Aqui manifesta o seu esvaziamento e diz publicamente que não
aceita passivamente as circunstâncias adversas da vida humana, nem quer ser vítima
da alienação; proclama que Deus é “vingador dos humildes” e se é o caso, depõe
do trono os soberbos (cf. DP 297). Maria descreve os feitos do Senhor pela palavra
que irrompe da prática solidária, da memória histórica e da celebração que antecipa
a vida infinita em Deus Pai Filho Espírito Santo.
Antes de tudo deve-se reconhecer que o Deus Comunidade divina cada vez
mais está se revelando na história sofrida de todos os povos. Para os povos cristãos
sobretudo, esta revelação passa pela história que tem marcas do feminino de Deus
Pai/Mãe na pessoa de uma mulher do povo, de dois mil anos atrás – Maria de
Nazaré. Ela é invocada como a Mãe da esperança que alimenta a fé desses povos e
os acompanha na dura travessia. Os nossos povos vivem de esperança, mesmo
quando não vêem sinais que apontem para dias melhores e para uma vida mais
digna.
52
- Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia, Mundilização, Espiritualidade. A emergência de um novo paradigma. Ed. Ática, Rio
de Janeiro 1993, 146ss.
53
- No grego bíblico, as palavras que exprimem esperança ou espera, elpís, elpizo, com seus derivados, são as mais
significativas e freqüentes. Cf. HOFFMAMM, Ernst, “Speranza”, in Dizionario dei concetti biblici del Nuovo
Testamento. Ed. Dehoniane, Bologna 1991, 1762ss.
32
Nesse contexto a palavra esperança não indica só o ato de esperar, a
expectativa como tal, mas compreende também o objeto da espera, a coisa
esperada; ter esperança significa ter fé e confiança de conseguir o que se deseja;
crer na realização das promessas divinas; estar em atitude de expectância
messiânica sem ansiedades puramente terrenas, mas considerá-las mediações
urgentes e necessárias para a instauração do Reino que todos esperamos. Esse
sentido de espera acentua a tensão viva da esperança como dom que vem pela força
do Espírito. Por isso a esperança suporta com tenacidade as tribulações que nascem
da tensão entre o presente e o futuro.
54
- Cf. BOFF, Leonardo e Frei Betto. Mística e Espiritualidade. Rocco, Rio de Janeiro 1994, 49-66.
55
- Cf. BOFF, Leonardo. Ecologia Mundialização Espiritualidade. Edit. Ática, S. Paulo 1993, 141-170.
33
Comunidade de Amor e de Relação amorosa. O impulso dessa experiência mística
permite que se ilumine toda a vida, num processo de elaborar uma imagem de Deus
como Comunidade relacionada e de comunhão.
Que este Canto celebre os novos Esponsais, estabeleça uma nova Aliança.
Aliança que, de mãos dadas cante pois,
35
na ciranda do Arco-Iris, a canção de que somos todos
Herdeiros do mesmo Sangue,
Filhos da mesma Graça.
Estamos em busca da mesma Luz,
Caminhamos rumo a um novo nascimento
Como foi prometido aos nossos Ancestrais:
o futuro e a descendência de toda a família Humana está garantida.
Ela completará sua gravidez e renascerá na Paz oceânica do GRANDE ESPÍRITO,
para todo o sempre. Amém!