Livro Completo
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HIST
oRICA
PARA ALÉM DO
OCIDENTE CRISTÃO
Outras Idades Médias?
PARA ALÉM DO
OCIDENTE CRISTÃO
Outras Idades Médias?
Recife
2023
Universidade Federal de Pernambuco
Reitor: Alfredo Macedo Gomes
Vice-Reitor: Moacyr Cunha de Araújo Filho
Editora UFPE
Diretor: Junot Cornélio Matos
Vice-Diretor: Diogo Cesar Fernandes
Editor: Artur Almeida de Ataíde
Editoração
Revisão de texto: Pedro Henrique de Oliveira Simões
Projeto gráfico: Adele Pereira
Diagramação: Caio Cézar Abreu Pessoa de Albuquerque
Imagem da capa: Pintura extraída da obra Maqamat, de al-Hariri. Ima-
gem gentilmente cedida pela Biblioteca Nacional da França
Catalogação na fonte
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408
Vários autores.
Inclui referências bibliográficas.
ISBN 978-65-5962-171-2 (online)
O desconforto da governabilidade
Rômulo Luiz Xavier do Nascimento
Os Escravos do Santo
Robson Pedrosa Costa
A palavra e a imagem
Luísa Ximenes Santos
Historiografia:
Rastros e vestígios documentais de trabalhadoras e trabalhadores
Antonio Torres Montenegro
Karlene Sayanne Ferreira Araújo
Sumário
Introdução
Houve outras Idades Médias para além do Ocidente cristão? 10
Bruno Uchoa Borgongino
PARTE I
O Ocidente e seus Outros, os Outros no Ocidente
Capítulo I
Adelardo de Bath (c. 1080-1152) e a busca pela terra estrangeira:
um estudo de caso para rever conceitos e apontar novas
possibilidades explicativas acerca do Renascimento do (longo)
século XII 18
Carlile Lanzieri Júnior
Capítulo II
Judeus em Al-Andalus: uma outra Idade Média 54
Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo
Capítulo III
A quem pertence Al-Andalus? Reflexões sobre as historiografias
árabe e europeia 78
Celia Daniele Moreira de Souza
Capítulo IV
O Emirado da Sicília, 827-1090 96
Thomas Bonnici
PARTE II
Cristianismos para além do Ocidente
Capítulo V
Monasticismo cristão dos séculos III e IV: do eremitismo
ao cenobitismo 120
Juliana Salgado Raffaeli
Capítulo VI
A cultura político-religiosa nestoriana no Império Romano
do Oriente (século V d.C.) 142
Daniel de Figueiredo
Capítulo VII
O Kniaz e/contra a Tsrky: relações de força entre o poder laico
e a Igreja na Rus kievana (séculos XI e XII) 160
Leandro César Santana Neves
Capítulo VIII
A guerra e a sociedade bizantina entre os séculos IX e XIII 186
João Vicente de Medeiros Publio Dias
Capítulo IX
A construção de uma identidade cristã única na Etiópia Cristã:
o papel do duplo sabbath (século XV) 209
Vitor Borges da Cunha
PARTE III
Ainda mais além do Ocidente cristão
Capítulo X
Uma introdução ao sufismo 231
Alinde Gadelha Kühner
Capítulo XI
O período Kofun do Japão: periodizações e debates 245
Larissa Bianca Nogueira Redditt
Capítulo XII
Diversidade religiosa na Dinastia Tang: experiências e problemas 261
André Bueno
Capítulo XIII
O Império das Águas: origens e ascensão do Império Khmer
no Sudeste Asiático 285
Emiliano Unzer
Capítulo XIV
A águia de pedra e o rinoceronte de ouro: história, cultura e
arqueologia das sociedades do sudeste africano (séculos VI-XVI) 302
Otávio Luiz Vieira Pinto
ARS HISToRICA 10
um passado medieval no Brasil impossibilitariam que surgissem
medievalistas nas universidades brasileiras (LINHARES, 1979, p. 11).
Contrariando estas expectativas então vigentes, a partir dos anos
1990, os Estudos Medievais expandiram-se em solo brasileiro, fenô-
meno propiciado por políticas públicas voltadas à pesquisa científica
e às universidades públicas. Como resultado, ocorreram a prolifera-
ção de grupos de pesquisa sobre Idade Média pelo país, a fundação
da Associação Brasileira de Estudos Medievais (Abrem) em 1996 e a
contratação de medievistas como docentes universitários mediante
concursos públicos.
Portanto, a disponibilização, por parte do Estado, de recursos e
de amparo institucional possibilitou a consolidação do campo e a
formação de especialistas qualificados. Todavia, como bem frisou
Almeida, o crescimento dos Estudos Medievais não adveio de uma
resposta às demandas específicas da História (ALMEIDA, 2013, p.
8). Pela ausência de uma tradição acadêmica brasileira sólida e de
um debate prévio sobre a legitimidade de seu ensino e pesquisa,
a Idade Média prosseguiu aos olhos de muitos colegas de outras
áreas como recorte alheio aos nossos interesses historiográficos. A
publicação da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) em 2016, em que não constavam conteúdos referentes à
Antiguidade e ao Medievo na disciplina História, levou muitos cole-
gas de outras áreas a explicitarem o que pensavam: em concordân-
cia com o documento, posicionaram-se pela retirada da Idade Média
dos currículos escolares!
A despeito dos méritos da produção acadêmica nacional sobre
a Idade Média nos últimos vinte anos, a legitimidade de Estudos
Medievais realizados no Brasil permanecia em suspeição – para a
consternação dos medievistas, que se aliaram aos antiquistas para
responderem aos seus detratores. Na época, atento à controvérsia,
chamava-me a atenção um dos argumentos dos que se opunham
à permanência da História Medieval no Ensino Básico: o de que a
ARS HISToRICA 12
se não respondessem mais aos problemas agora levantados, uma
vez se centrariam demasiadamente numa região específica do que
hoje é a França. Outra resposta consiste na aproximação com novas
perspectivas teóricas, principalmente de campos como os Estudos
Pós-Coloniais e de abordagens como a História Global.
Nesse mesmo contexto, surgem questionamentos quanto ao con-
ceito de Idade Média entre os próprios medievistas. Primeiramente,
quanto a sua extensão espaçotemporal: afinal, até quando podemos
falar de Idade Média? E para quais regiões? Seria legítimo dizer que
houve um medievo africano, asiático ou de qualquer lugar fora da
Europa centro-ocidental? Outra ordem de indagações que paira atu-
almente entre os medievistas diz respeito à pertinência da própria
ideia de que houve um período, mesmo no dito Ocidente, de cerca
de mil anos que poderíamos designar como ‘medieval’. Em síntese:
há dúvidas de que ainda seja possível dizer que houve uma Idade
Média, onde e quando quer que seja.
O cerne do debate em torno à periodização tradicional entre os
medievistas consiste no viés eurocêntrico com que foi delimitado.
As balizas temporais a partir das quais se estabeleceu a Idade Média
estão compreendidas entre datas tidas como pontos de virada numa
narrativa histórica que tem o dito Ocidente como protagonista. Por
um lado, a linha cronológica do medievo teria início com o Édito
de Milão (313), a queda de Roma (476) ou talvez a ocupação muçul-
mana na Península Ibérica (711). Por outro, se encerraria com fenô-
menos como o Renascimento, as navegações ibéricas, a Reforma
Protestante, dentre outras tantas opções – todas europeias.
Foi em 2020, por ocasião de um evento que organizei virtual-
mente em função das medidas restritivas impostas pela pandemia
de Covid-19, que empreguei pela primeira vez a ideia de outros
medievos. Num momento inicial, a proposta era somente promo-
ver um evento de cinco dias, com uma palestra a cada dia, cujo
1 Não há como realizar uma aferição precisa. A estimativa foi realizada a partir
do preenchimento dos formulários de presença e do número de visualizações
registradas na época.
ARS HISToRICA 14
livro, escritos por pesquisadoras e pesquisadores de diversas espe-
cialidades, representam a diversidade de investigações possíveis
nessa abordagem. O material se encontra dividido em três partes.
A primeira parte, intitulada O Ocidente e seus Outros, os Outros
no Ocidente, reúne textos que abordam as relações do tradicional-
mente denominado ‘Ocidente cristão’ com grupos e sociedades
com os quais conviveu e se relacionou. Nesse bloco inicial, constam
contribuições de Carlile Lanzieri Júnior, Cecília Cintra Cavaleiro de
Macedo, Celia Daniele Moreira de Souza e Thomas Bonnici.
Na sequência, há a segunda parte, designada Cristianismos para
além do Ocidente. Os trabalhos de Juliana Salgado Rafaelli, Daniel de
Figueiredo, Leandro César Santana Neves, João Vicente de Medeiros
Publio Dias e Vitor Borges da Cunha, que integram a seção, versam
sobre experiências cristãs em locais não-ocidentais.
Por fim, a terceira parte tem por título Ainda mais além do
Ocidente cristão e reúne textos de Alinde Gadelha Kühner, Larissa
Bianca Nogueira Redditt, André Bueno, Emiliano Unzer e Otávio
Luiz Pereira Pinto. Em todos são explorados recortes espaciais mais
distanciados em relação ao ‘Ocidente cristão’ – inclusive, onde a pró-
pria aplicabilidade da noção de Idade Média torna-se controversa.
Referências
ALMEIDA, Néri de Barros. A História Medieval no Brasil. Revista
Signum, v. 14, n. 1, p. 1-16, 2013.
PACHÁ, Paulo. Why the Brazilian far right loves the European middle
ages. Pacific Standard, 12 mar. 2019. Disponível em: https://psmag.
com/ideas/why-the-brazilian-far-right-is-obsessed-with-the-crusa-
des. Acesso em 10 jan. 2021.
ARS HISToRICA 16
PARTE I
O Ocidente e seus
Outros, os Outros
no Ocidente
ARS HISToRICA 18
Por um longo período, as contribuições culturais advindas do
monaquismo dos séculos IX, X e XI que se fizeram na esteira da ini-
ciativa carolíngia foram negligenciadas por uma parcela significativa
da historiografia (RUBENSTEIN, VAUGHN, 2006, p. 1). A ganhar corpo
especialmente na segunda metade do século XX, boa parte desta des-
creveu os monges como símbolos de um mundo ainda rural e domi-
nado por uma religião de caráter meramente contemplativo e afeita
a questões comportamentais, não muito mais que isso. Na maioria
das narrativas então vigentes, eles se tornaram a antítese do pensa-
mento racional e laico fomentado pelo desenvolvimento urbano e
econômico iniciado no alvorecer do século XII (RUST, 2011, p. 59).
Por décadas, essas certezas alimentaram uma visão evolutiva dessa
história, como se o que veio na sequência fosse anunciado pela crise
generalizada e desaparecimento em bloco do que existiu antes.1
De um modo geral, a referida historiografia mostrou-se pouco
atenta ao legado deixado pelos monges para a formação do pensa-
mento ocidental nos séculos finais da Idade Média.2 Quando muito,
ARS HISToRICA 20
que os mestres monásticos receberam a devida reverência por parte
dos pósteros, e muito da pedagogia que fomentaram se manteve
em uso nos séculos subsequentes (MÜNSTER-SWENDSEN, 2006). Um
dos temas clássicos sustentado por essa produção foi o chamado
‘Renascimento do Século XII’. Moldado pelas mãos dos historiado-
res das primeiras décadas do século passado, com destaque para
Charles Homer Haskins (1927), que fincou em solo acadêmico o
marco de abertura desse debate (BURNETT, 2013, p. 365), esse termo
trazia em si a louvável tentativa de resgatar a Idade Média da obscu-
ridade criada pela ação das penas tantas vezes detratoras dos latinis-
tas e iluministas dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Como resultado,
foram estendidas para o medievo central a retomada do humanismo
ocidental. Todavia, sobre a mesa de prestigiados medievalistas do
século XX, essa renovação analítica assumiu as feições quase her-
méticas de uma ‘luta de classes’ em que um passado de estagna-
ção foi deposto e substituído pelo desenvolvimento representado
pelo mundo laico e urbano, o mundo das cidades, dos mercadores,
dos frades mendicantes e dos intelectuais.5 Como afirmou Charles
Burnett (2013, p. 366), um sentimento de mudança e transformação
certamente estava no ar, e há indícios diversos que dão conta disso,
mas este sentimento deve ser compreendido com a devida cautela.
Provavelmente, uma das pérolas mais reluzentes dessa histo-
riografia formou-se pelo acúmulo dos sedimentos produzidos pela
ARS HISToRICA 22
uma identidade pronta para o discípulo em suas diversas fases da
vida e práticas necessárias à sua formação (ENGEN, 2004, p. 15), e
investigar alguns dos pilares educacionais medievais, percebemos
que boa parte dos métodos utilizados (tais como castigos, exercí-
cios contínuos referentes à compreensão das artes liberais, leituras,
debates e valorização da ética e das tradições) eram assaz semelhan-
tes, quando não os mesmos.9 Ademais, pelo menos em parte, a ins-
piração para a aplicação desses métodos também se originava em
fontes da cultura greco-romana, o que de fato estreita ainda mais
as relações entre os mestres monásticos e os das catedrais urbanas.
Se a historiografia (não toda ela, mas pelo menos uma parte
significativa dela) apressou-se em agrupar os monges sob rótulos
arcaicos e de recusa do que era novo, os testemunhos de então nos
oferecem uma outra via interpretativa, menos esquemática e gene-
alógica. Assim, ao superar as certezas que se aninharam na retórica
historiográfica que ora criticamos, percebemos nas palavras deixa-
das por nossos protagonistas medievais muito mais trocas e ins-
piração do que a simples ruptura definida pela ação posterior dos
historiadores. Em definitivo, pelo olhar de então, o monaquismo
e seu universo não formaram o Antigo Regime cujos canhões dos
revolucionários das escolas urbanas e futuras universidades deve-
riam derrubar. Com isso, o século XII parece ter sido de fato longo,
muito longo... (JAEGER, 2020).
De acordo com que foi apresentado nos primeiros parágrafos, o
referido século XII com o seu respectivo renascimento foi descrito
ARS HISToRICA 24
merecem ser submetidos a novas abordagens que se mostrem no
mínimo menos herméticas e verticais.
Sem dúvida, um dos representantes mais recentes dessa histo-
riografia é C. Stephen Jaeger (1994). Em livro publicado em 1994,
Jaeger levou adiante a tese de Jacques Le Goff e agrupou em campos
diferentes monges e intelectuais. Enquanto os primeiros eram os
símbolos da ‘aprendizagem antiga’ (old learning), os últimos foram
organizados sob o rótulo da ‘aprendizagem nova’ (new learning).
Na acepção de Jaeger, ainda que não tão compartimentada como
a do medievalista francês e seus seguidores, o ponto central que
os dividia era a autoridade. Se na pessoa e no carisma dos mestres
monásticos residiam a essência dos saberes e as boas maneiras
transmitidas aos discípulos, aos novos intelectuais, afeitos a uma
incipiente cultura letrada humanista e a receber algum pagamento
pelos serviços prestados, era permitido debater e criticar essa auto-
ridade que migrava das pessoas para os textos. Não por acaso o refe-
rido autor igualmente tomou as histórias dos enfrentamentos de
Pedro Abelardo como o ponto de ebulição da renovação que defi-
niu. Ainda de acordo com Jaeger (1994, p. 229-233), para Abelardo,
importavam os escritos e a capacidade de debatê-los, não quem os
portava ou um dia os leu. Embora as nossas discordâncias com C.
Stephen Jaeger sejam evidentes, o fato de ele demonstrar que a
ética monástica alcançou as cortes então emergentes e por lá per-
maneceu por muito tempo indica que pensar em rupturas não é
uma unanimidade, algo absolutamente plausível ou que possa ser
naturalizado nas operações historiográficas, sobretudo quando nos
voltamos para a circularidade das ideias e suas possíveis adaptações
ao se aninhar em outros contextos.
Já tendo como base os apontamentos oferecidos por Mia Münster-
Swendsen (2006, p. 307-309), outra pesquisadora do período e que
tangencia o tema aqui proposto, existem diversas fontes (poesias,
ARS HISToRICA 26
lógica espacial outrora útil, mas naturalizada e cujos limites se tor-
nam cada vez mais evidentes e empobrecedores (BORGOLTE, 2017,
p. 83-84; CONRAD, 2016, p. 2). Ao pensar em rede (ou em redes)
e na miríade de conexões sociológicas e culturais nela dispostas,
outros renascimentos em outros lugares até então pouco usuais
com outros personagens e a defesa da existência de outros saberes
a enxergar o passado e o futuro também vem à tona (GOODY, 2011).
Como um dos referidos pontos nodais desta rede, mas não único ou
o mais importante, o renascimento do século XII e as pessoas que
o fizeram existir certamente foram impactados pelo que aconteceu
nesses outros lugares com os seus personagens e juntamente com
os seus saberes e percepções de mundo. Se o papel dos tradutores
do árabe para o latim foi imprescindível e exaltado pela historio-
grafia ao longo de décadas, esse material não teria existido se algo
igualmente importante não tivesse acontecido (ou ainda estivesse a
acontecer) para muito além.10 Assim, os fios tão diversos que cha-
mam a nossa atenção e que compõem essa paisagem se justapõem.
E estes novamente ganham vida, sempre a apontar para vários luga-
res pelos quais passaram esses vários saberes e personagens, dentro
e fora da Europa.
Portanto, ao pensar desta maneira descentrada e tomar os renas-
cimentos como épocas de tradução e fases de trocas culturais, nós
nos permitimos também trazer para o centro do debate aquilo
que Alain de Libera certa vez definiu como a ‘herança esquecida’
(LIBERA, 1999, p. 97-98). Para Libera, esta herança trazia estampada
em seu corpo os resultados de uma abertura do ocidente para o exte-
rior onde muita coisa também estava se passando. Ademais, ainda
que com suas origens múltiplas, uma herança esquecida porque
ARS HISToRICA 28
uma vez mais como referência as obras traduzidas pelos cristãos e
os debates por eles absorvidos e ampliados. Porém, assim como fez
Cédric Giraud, ele não as trouxe para o centro, não lhes deu o devido
protagonismo; por fim, não as viu conectadas. Na verdade, Burnett
as encaixou como um elemento secundário em sua argumentação,
uma herança ou uma mera inspiração.
Com efeito, a abordagem global que trazemos a lume nos per-
mite um olhar diverso, não genealógico e muito menos internalista,
algo que infelizmente se fez pouco presente nas narrativas dos pes-
quisadores até aqui elencados. Um olhar diverso que busca não se
satisfazer com os marcos fronteiriços naturalizados pelos séculos
XIX e XX e que deseja seguir o deslocamento das pessoas e das ideias
nos enredamentos que se formaram nesta ação. Portanto, ao invés
de se basearem em territorialidades fixas, as propostas mais ino-
vadoras nesta direção começam por colocar novas perguntas para,
na sequência, seguir as pessoas, as ideias e os processos para onde
quer que estes conduzam (CONRAD, 2016, p. 121). Para nós, pen-
sar o renascimento do século XII é pensar em seus movimentos e
nos movimentos daqueles que o fizeram existir, assim como nos
movimentos dos que vieram antes e percorreram outros caminhos
e seguiram em outras direções. E diferente de séculos anteriores,
que também testemunharam a existência de uma mobilidade dis-
cente, porém, controlada por instâncias superiores dentro do clero,
o século XII viu o nascer de uma renovada mobilidade iniciada e
controlada pelos próprios discípulos que permitiram a fama dos
mestres e dos locais de formação se espalhasse muito rapidamente
(STECKEL, 2019, p. 77-78). Certamente, quem viveu esse processo
não enxergou e/ou vivenciou o mundo com as delimitações que vie-
ram bem depois.
Na esteira das assertivas propostas por Sebastian Conrad em
seu manual de introdução aos estudos de História Global (What is
Global History?), Aline Dias da Silveira (2019, p. 216-217, 219 e 221)
ARS HISToRICA 30
é capaz de se afastar dessa moral depravada?’ Nisto, eu disse:
‘Esqueça. A única medicina dos males que não pode ser rejei-
tada é o esquecimento. Quem portanto pondera o que odeia,
do mesmo modo permite aquilo não ama’. Quando essas pala-
vras foram trocadas, uma vez que uma parte não pequena do
dia restava, tanto que havia espaço para ensinar algo, entre os
outros que estavam a fazer os seus chamados, havia um sobri-
nho meu que, ao investigar as causas das coisas, mais impli-
cava do que explicava. Ele me propôs apresentar algo novo dos
estudos dos Árabes. Com o assentimento dos outros, empre-
endi o seguinte tratado que será útil à sua audiência, não sei
se será aos néscios (BATH, 2006, p. 82, tradução nossa).
ARS HISToRICA 32
das marcas da pedagogia vitorina. No contexto de nossa argumen-
tação, seu apelo ao desenraizamento salta aos olhos.11 A busca pela
terra estrangeira, a terra dos outros (terra aliena), por ele proposta
seria uma forma de desapego pessoal em benefício de experiências
e conhecimentos novos, experiências e conhecimentos que não
seriam possíveis no convívio permanente com as mesmas pessoas
e com os mesmos mestres. Para Hugo, viajar física e existencial-
mente era preciso. Certamente, em diálogo com a documentação
até aqui consultada, estamos diante de uma das características que
desde o início assumimos como uma das mais vistosas do renasci-
mento do século XII: a movimentação de pessoas e saberes. Mas essa
característica também indica o quanto este mesmo renascimento
deve ser compreendido não apenas por uma abordagem temporal
profunda, como outrora fizemos (LANZIERI JÚNIOR, 2014b e 2017),
mas também por uma que dê conta das amplas e igualmente lon-
gevas conexões territoriais que gradativamente o permitiram existir
e se consolidar.
Ao escrever já no final de sua vida, João de Salisbury também evi-
denciou o quanto foi importante para ele passar por diferentes mes-
tres detentores de diferentes especialidades ao longo das décadas
nas quais se dedicou aos estudos (Metalogicon, Livro II, cap. 10).12 De
igual forma, ele muito exaltou o fato de ter vivido em diferentes luga-
res a ensinar e ocupar cargos políticos na hierarquia do clero e dos
poderes temporais à época vigentes. Uma espécie de peregrinação
que o fez viver em um permanente exílio que, de acordo com suas
ARS HISToRICA 34
premissa em fins do século XI e início do XII foi o próprio Adelardo
de Bath. Assim como Hugo e João, Adelardo viveu alguns anos
em terras estrangeiras distante dos seus e exposto a uma miríade
de experiências que seguramente o ajudaram a moldar sua visão
de mundo. Todavia, ele foi além e aprendeu com os ditos ‘infiéis’
(LYONS, 2011, p. 74-76). Em busca ele próprio de conhecimentos,
construiu um périplo que englobou partes da Europa e do que hoje
conhecemos como Oriente Médio. Em suas andanças que dura-
ram anos, Adelardo de Bath conheceu diferentes lugares e diferen-
tes mestres, acessou diferentes saberes que deixou guardados na
memória. De acordo com a cronologia com a qual aqui trabalhamos,
a inspiração para o despertar de tal desejo em Adelardo não estava
nas lições deixadas pelos mestres acima citados. Como estes vieram
depois, é provável que o contrário tenha ocorrido e que, na verdade,
Adelardo tenha sido ele próprio a fonte de inspiração.
De acordo com Charles Burnett (2006, p. xi-xix), tradutor
contemporâneo dos escritos adelardianos para o inglês e pesqui-
sador do período que desde as primeiras páginas nos referencia,
Adelardo nasceu e passou os primeiros anos de vida em Bath, uma
pequena cidade no sudoeste da Inglaterra medieval. Na juventude,
depois de estudar e ensinar por alguns anos nas cidades de Tours e
Laon, ambas localizadas no norte da França, Adelardo seguiu para
Salerno, na Itália, cidade pertencente à Magna Grécia e famosa por
sua escola de medicina então revitalizada pelo acesso aos conhe-
cimentos médicos de origens greco-árabes (ESPAÑA, 1994, p. 36 e
47; POUCHELLE, 2002, p. 151). Logo em seguida, Adelardo rumou
para a Sicília, a ilha ‘onde três mundos se encontravam’. Segundo
Sarah Davis-Secord (2017), autora desta expressão que serviu de
título para o seu livro, a longa história da Sicília foi moldada pelas
interações culturais, políticas, econômicas e sociais entre o norte da
África e os mundos latino e bizantino. Ainda de acordo com o que
nos informou Davis-Secord, por lá, ano a ano, passavam peregrinos,
ARS HISToRICA 36
matemáticos e astronômicos de origens variadas que Adelardo tra-
duziu nos anos seguintes e que lhe permitiram dar conta do pedido
que seu sobrinho algum tempo depois o faria.
Pelas vivências de Adelardo de Bath, pelos ensinamentos que
absorveu e transmitiu ao final da vida, sobretudo os de origem gre-
co-árabe-islâmica instados por seu mencionado sobrinho, podemos
aqui conjecturar que o desejo pela viagem em busca de conheci-
mentos não se explica tão somente pelas referências cristãs oci-
dentais mais acima dispostas. Na verdade, como evidenciado, a
cronologia e as tradições intelectuais com as quais Adelardo convi-
veu indicam outras possibilidades explicativas no mínimo comple-
mentares. Vamos a elas. Para a cultura islâmica, o viajar significava
um abrir-se a outras experiências e, também, era a oportunidade de
estar diante dos mestres e ouvi-los in loco. Portanto, sem a viagem,
não haveria conhecimento, não haveria evolução espiritual e inte-
lectual. Tais premissas permitiram grandes desenvolvimentos em
termos de conhecimentos geográficos e astronômicos (LYONS, 2011,
p. 90-91), algo que alcançou Adelardo e está estampado nas linhas e
entrelinhas das páginas de Questiones naturales.
Adelardo de Bath certamente enxergou nos ‘infiéis’ algo além
das representações discriminatórias amplificadas pelas narrativas
comuns ao tempo da primeira cruzada. Como expresso mais acima,
uma parcela significativa de sua história pessoal de abertura ao
outro e de seus ensinamentos pode ser encontrada nas várias tradu-
ções que produziu e em parte dos escritos em forma de diálogo que
deixou para o seu inominado sobrinho em processo de formação,
destacadamente De eodem et diverso (Sobre o mesmo e o diverso) e
Questiones naturales, segundo o que foi mencionado linhas atrás. O
primeiro livro é uma exaltação às sete artes liberais; o segundo um
detalhado tratado de filosofia natural nitidamente inspirado em pas-
sagens do Timeu, de Platão (c. 428-c. 347 a.C.), mas sobretudo nos
conhecimentos que ele encontrou na Itália e no Oriente. Ouçamos
ARS HISToRICA 38
seu Kitāb al-tambīh ‘alà sabīl al-sa ‘āda (O caminho da felicidade).
Para alcançar ambos, ele entendia que havia o imperativo da reali-
zação de uma extensa jornada, tanto física quanto existencial. Nas
entrelinhas das palavras deixadas por Adelardo de Bath e Al-Farabi,
estava incrustado o incentivo ao desenraizamento pessoal, ao anseio
pelo conhecimento onde e sobretudo com quem ele estivesse.
As referências a Aristóteles (384-322 a.C) são outra marca nos
escritos de Al-Farabi que pertenceu a um universo cultural que há
tempos consumia os conhecimentos oriundos da filosofia grega e
a esta fazia importantes acréscimos. Como o filósofo que o prece-
deu, Al-Farabi confiava que a prática (ou hábito) conduzia à per-
feição.16 Evidências de tal proposição de verniz aristotélico tam-
bém podem ser encontradas em João de Salisbury. Nas páginas de
seu Metalogicon, João asseverou que uma natureza humana plena
de suas condições logo se degeneraria sem o devido cuidado coti-
diano; em outras palavras, sem o hábito.17 Essas breves referências
de linhagens intelectuais variadas e distantes entre si no espaço e
no tempo nos fazem vislumbrar o quanto Adelardo, assim como
tantos outros mestres e discípulos dos séculos X, XI e XII, período
ARS HISToRICA 40
estava a acontecer além, ou mesmo como parte de outros renas-
cimentos que se fizeram dentro do sistema-mundo de então, um
sistema que estabeleceu redes entre Europa, África e Ásia em dife-
rentes rotas pelos quais passavam pessoas a transportar todo tipo de
bens, materiais e imateriais. Portanto, segui-las em suas trajetórias
é uma maneira acreditamos ser interessante para se compreender a
percepção de mundo à época vigente.
Mesmo no original em latim, o texto de Adelardo de Bath prima
pela objetividade. Sem rodeios, ele vai logo ao cerne dos temas
abordados: encontrado em lugares e com pessoas diferentes, o
conhecimento está acima de todas as riquezas materiais. De início,
o anseio por convencer e ajudar o próprio sobrinho nos parece a
explicação mais plausível para essa objetividade. Mas não descar-
tamos a possibilidade de um cuidado com outros jovens em pro-
cesso de formação semelhante, afinal, Adelardo passou anos a
ministrar aulas em cidades como Paris e Lyon. Se a valorização dos
saberes inerentes às Artes Liberais é o principal tópico disposto
nas assertivas exortativas deixadas por Adelardo, os extratos acima
também trazem duas preocupações específicas que merecem um
olhar mais atento: as importâncias dadas à memória e à referida
obrigação do discípulo passar por distintos mestres em sua procura
por conhecimento.
Para os doutos da Antiguidade e da Idade Média, a memória era
o pilar da razão e prelúdio da sabedoria (LANZIERI JÚNIOR, 2014, p.
15-38). Uma pessoa desprovida de uma memória preenchida com
conhecimentos letrados e experiências de vida seria incapaz de
afirmar algo racional (ILLICH, 2002, p. 62). Com efeito, a concep-
ção de memória à época vigente trazia um importante princípio:
a memória vazia tornava o homem que a portava indigno de sua
condição e perigosamente próximo de uma existência animalesca.
Em uma cultura oral como foi a medieval, cultivar as técnicas neces-
sárias à memorização dos conteúdos de um livro era imprescindível
ARS HISToRICA 42
Com essas referências à mão, é absolutamente plausível imagi-
nar que, ao mencionar os ‘gregos’ em De eodem et diverso, Adelardo
de Bath estava a se referir a grupos que se encontravam espalhados
por várias regiões da Europa, Ásia da África. E eles também estavam
na Magna Grécia, região ao sul da Itália, próxima de Salerno, como
sabemos, local no qual Adelardo esteve algum tempo como estu-
dante. Com isso, confiamos que os testemunhos por ele eterniza-
dos ganham profundidade e amplitude quando abordados por um
viés culturalista atento à diversidade pintada com cores múltiplas
por trás da palavra ‘gregos’. Com efeito, as mesmas urdiduras cul-
turais detectadas nos permitem afirmar com alguma segurança que
o atual sentido de ‘fronteira’ diz muito pouco sobre as realidades
antiga e medieval cujos enredamentos não seguiam determinações
geográficas prévias (DAVIS-SECORD, 2017, p. 3 e 9).
Mais do que uma janela aberta a revelar as nuances de um pas-
sado exótico e distante, os escritos de Adelardo de Bath dizem muito
acerca de sua percepção de mundo, e esta deve ser compreendida
historicamente, pois ela tem muito a nos ensinar. Bem antes dos
rompantes nacionalistas e civilizacionais que orientaram a história
da Europa moderna e contemporânea, Adelardo se pôs ao lado dos
que estiveram a buscar outras referências que lhes permitiram pen-
sar em termos que hoje classificaríamos como transculturais. Além
disso, tal percepção de mundo nos faz ter a certeza de que as asserti-
vas que emergem das páginas com os relatos de Adelardo nos levam
a universos culturais de fronteiras sobremaneira fluídas. Ainda que
de forma intuitiva, estas permitiram Adelardo conectar muitos dos
vários saberes então existentes. E estes podem responder a várias
das questões que o mundo contemporâneo globalizado faz ao pas-
sado na esperança de aprender e melhor lidar com as relações inter-
culturais que hoje se fazem tão presentes em nosso dia a dia, dentro
e fora da Europa (DAVIS-SECORD, 2017, p. 28).
ARS HISToRICA 44
pensada e praticada neste século XXI a construção de novos eixos
interpretativos a movimentar perspectivas e abordagens mais amplas.
Como já evidenciado, Michael Borgolte e Sebastian Conrad
estão entre os defensores de uma nova História para o século XXI,
uma História que dê conta de oferecer explicações plausíveis para
as novas demandas apresentadas por sociedades há tempos em
transformação. A divisão da História em pedaços que predominou
nos dois últimos séculos, nas palavras do próprio Conrad, não mais
dá conta das demandas apresentadas por um mundo pós-colonial
no qual as minorias emergem das antigas periferias a questionar
estruturas explicativas consagradas tão e simplesmente pelo uso.
Assim, uma História Global que trabalhe com enredamentos cul-
turais outros e aquilo que os sustentou se faz urgente. De acordo
com Borgolte e Conrad, o risco de se fazer novas perguntas ao pas-
sado deve ser assumido pelos historiadores. Para que um mínimo
de segurança possa existir na esteira deste processo, nada melhor do
que ouvir as experiências oriundas do próprio passado, experiências
de gente como Adelardo de Bath que, a seu modo, foi capaz de pen-
sar grande, em escala global, o que o permitiu compreender o quão
precioso é aprender com a diversidade, com a terra estrangeira.
Considerações Finais
Inicialmente analisada como um estudo de caso que nos ajuda a
pensar outramente o renascimento do século XII, a trajetória de
Adelardo de Bath é a de um homem que viveu muito antes da
demarcação dos limites territoriais nacionais contemporâneos.
Intencionalmente ou não, ele se movimentou a descobrir e a conec-
tar fios de saberes de matrizes variadas forjados ao longo de gera-
ções no âmbito do mundo afroeuroasiático. Com as andanças de
Adelardo como referência e tantos outros que como ele assim fize-
ram, parece ficar mais nítido que a Idade Média não é apenas uma
ARS HISToRICA 46
mundo de então a descobrir formas renovadas de renascer e crescer
e quem se embrenhou em suas redes muito ganhou e muito teve a
oferecer. Em outras palavras, embora as mudanças estivessem em
curso naquele momento na Europa ocidental, e elas eram nítidas,
sem dúvida, elas eram igualmente tributárias do que estava simul-
taneamente em curso em diversos lugares, alguns muito distantes.
Adelardo, assim como outros personagens sobre os quais escrevere-
mos e falaremos em oportunidades futuras, evidenciou isso no que
aprendeu, traduziu, escreveu, ensinou e deixou aos pósteros como
um valioso legado.
No penúltimo capítulo de seu belíssimo e instigante Sem fins
lucrativos: porque a democracia precisa das humanidades (2015, p. 112-
117), Martha Nussbaum contou a história de uma passagem pessoal
com o Coro das Crianças de Chicago. Um coro formado majorita-
riamente por crianças e jovens pobres oriundas de bairros periféri-
cos de uma das mais importantes cidades dos Estados Unidos. Em
sua maioria, estas crianças e jovens eram filhos de migrantes vindos
de diferentes partes do mundo. Nussbaum ficou surpresa e feliz ao
saber que aquelas pessoas até então excluídas certa vez estavam a
cantar em tom de brincadeira uma canção de Johann Sebastian Bach
(1685-1750), algo que certamente não aprenderam nas ruas dos bair-
ros pobres onde moravam em Chicago. A possibilidade do contato
com expressões artísticas próprias de outras culturas e com outras
momento oportuno, mas deixamos aqui um ponto fundamental para a sua cons-
trução e que justifica nossa oposição ao que Sylvain Gouguenheim propôs: a
circulação de pessoas, bens e saberes que permitiu o renascimento do século
XII não se explica apenas por razões internas que não levem em consideração
as redes e conexões que se fizeram ao longo de séculos dentro e fora do que
hoje entendemos como Europa. Por fim, sem ignorar as contribuições de Sylvain
Gouguenheim à historiografia especializada, pensar em processos eminente-
mente autônomos seria não considerar as trocas e adaptações ampla e profun-
damente constituídas ao longo de séculos. Trocas e adaptações que, pelo menos
em parte, ajudaram a formar o renascimento cultural sobre o qual aqui tratamos.
Referências
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ARS HISToRICA 48
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América. São Paulo: Globo, 2006.
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der a razão só com as forças da razão?’: a disputa entre Bernardo de
Claraval e Pedro Abelardo. In: Seminário Internacional Filosofia
e Educação: Antropologia e Educação: IdEias, Ideais e História,
10., São Paulo. Anais Eletrônicos... São Paulo: Centro de Estudos
Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP,
Núcleo de Estudos de Antropologia, 2010, p. 67-78.
DAVIS-SECORD, Sarah. Where three worlds met: Sicily in the early medie-
val Mediterranean. Ithaca/London: Cornell University Press, 2017.
ENGEN, John Van (ed.). Educating people of faith: exploring the his-
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GOODY, Jack. Renascimentos: um ou muitos? São Paulo: Unesp, 2011.
JAEGER, C. Stephen. The envy of the angels: cathedral schools and social
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Pennsylvania, 1994.
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monastic culture. New York: Fordham University, 1961.
LIBERA, Alain de. Pensar na Idade Média. São Paulo: 34, 1999.
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RUBENSTEIN, Jay; VAUGHN, Sally N. (ed.). Teaching and learning in
northern Europe – 1000-1200. Turnhout: Brepols, 2006.
Judeus em Al-Andalus:
uma outra Idade Média
Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo
Alain de Libera
Introdução
Quando pensamos em Idade Média, assumimos que seja o perí-
odo que se estende entre a queda de Roma (476) e a tomada de
Constantinopla (1453) pelo Império Otomano. Nossa periodização
é determinada por datas que são ditadas pela história do Império
Romano e, consequentemente, só se aplicam aos povos que se con-
sideram herdeiros deste legado. Temos, no chamado Ocidente,1 o
costume de pensar que nossas periodizações e recortes historiográ-
ficos não são meras categorias de finalidade didática, construídas
para o ensino da história a partir de uma perspectiva eurocêntrica,
as quais se aplicam somente a esta parte do mundo. Estendemos,
por vezes, inconscientemente, nossa compreensão da história à
ARS HISToRICA 54
totalidade, desprezando as particularidades e eventos históricos
notórios de outras culturas.
Algumas culturas – como as do extremo Oriente – possuem
uma história que, em larga medida, não se relacionou diretamente
com a Europa Ocidental, senão através de trocas comerciais e/ou
missões religiosas. Outras despontaram durante a 'nossa' Idade
Média, concorrendo política e militarmente com ela, como o recen-
temente surgido poderio islâmico, desenvolvendo-se rapidamente e
conquistando domínio tanto sobre territórios estrangeiros, como o
Império Persa, quanto sobre aqueles anteriormente no âmbito cris-
tão. Outras ainda, como a comunidade judaica, conviveram em boa
parte dessa história, mesmo que tenham vivido também sob gover-
nos que não o cristão ocidental.
A vida dos judeus sob o domínio islâmico foi significativamente
distinta daqueles que viveram sob o poderio cristão ocidental e isso
pode ser observado através da diferença entre os tipos de produ-
ção intelectual desenvolvidos nas diferentes localidades. Talvez a
diferença mais chamativa consista na produção científica e filosó-
fica. Enquanto entre os judeus sob o domínio cristão é notória a
ausência de qualquer atividade propriamente filosófica (nos moldes
do que é canonicamente considerado 'filosofia', ou seja, aquela de
matriz grega), o mesmo não ocorre com seus correligionários sob o
domínio islâmico. Nomes como Isaac Israeli, Salomão Ibn Gabirol,
ou o mais célebre deles, Moisés Maimônides,2 só são encontrados
vivendo sob o domínio islâmico, onde o acesso ao conhecimento
culto da época não foi vedado por motivos religiosos.3 Também
quanto ao envolvimento científico houve diferença significativa, que
4 Esse foi, por exemplo, o caminho tomado pela família Abravanel, célebre tanto
pelo pai, Isaac e pelo filho Yehuda, o que ocasionou que um filósofo português
(Leão Hebreu/Yehudá Abravanel) redigisse seus célebres Diálogos de Amor
(LEÃO HEBREU, 1983) em italiano.
ARS HISToRICA 56
de famílias ilustres que viviam nas cidades e não raramente colabo-
ravam até com a administração pública – concentradas em vilas ou
comunidades próprias: 'A população era organizada em pequenas
comunidades com seus sábios, uma coletividade que havia criado
e mantinha um modo de vida próprio, fiel às suas tradições e cos-
tumes' (BEINART apud FALBEL, 2001, p. 7). Fechados nas próprias
comunidades, pouco participavam da vida comum dos cristãos, a
não ser por comércio ou necessidade. Os cruzados, muitos deles
mercenários atuando escudados na bandeira da Igreja Católica, e
alguns deles assassinos sanguinários, buscavam botins sob a ima-
gem da defesa da fé e não poupavam essas comunidades ao por
elas passarem em seus caminhos, deixando seus rastros em forma
de expropriações, estupros e extermínios, dos quais temos notícias
através da documentação nas crônicas judaicas da época (ver FALBEL,
2001). Assim, a diferença entre a produção intelectual dos pensado-
res judeus sob o domínio dessas duas diferentes religiões deveu-se
fundamentalmente a três fatores: a) segurança em relação à sobrevi-
vência física; b) autonomia em relação à manutenção dos costumes;
c) acesso aos textos cultos.
ARS HISToRICA 58
Autonomia em relação à manutenção dos costumes
Pelo estatuto da dhimma, o governo muçulmano garantia aos 'Povos
do Livro' (Ahl Al-Kitab) a proteção em diversos aspectos, como o
amparo aos indivíduos e suas propriedades pela lei local, incluindo
a permissão de manutenção de suas crenças e obrigações religiosas,
também com garantias legais. Isso ocorria mediante o pagamento
de um imposto:6 a jizia. Em geral, judeus e cristãos eram conside-
rados como membros menos esclarecidos da Comunidade, que, ao
enxergarem a verdadeira religião, converter-se-iam às palavras do
Profeta. Em Al-Andalus, aos 'povos protegidos', foi permitida a con-
servação de seu direito interno e a manutenção dos locais de culto
preexistentes à ocupação, ainda que não tivessem permissão para
a construção de novos sítios. Através do pagamento de tributos, a
dhimma visava a garantia de respeito à vida, aos bens, à religião e à
organização comunitária, desde que permanecessem fiéis às suas
crenças; pois, ainda que conversão ao Islam fosse estimulada, as
conversões de uma fé minoritária a outra eram proibidas e severa-
mente punidas.
Em algumas regiões, a lei foi flexível com esses povos e chegou
a conferir até o direito de defender publicamente suas religiões dos
ataques por parte de muçulmanos, ainda que a distinção social fosse
sempre nítida. Houve distinções nos modos de vestir e não eram
tolerados casamentos mistos.7
doteis e vos caseis com elas e não vivais em sua companhia em fornicação ou
como concubinas escondidas. Quem renegar sua fé, desvalorizará suas próprias
obras e estará no outro mundo entre os derrotados. (Corão, sura 5:8).
8 Ao completar 13 anos, o jovem atinge a maioridade religiosa e passa a ser
responsável pela observância dos mandamentos e obrigações (mitzvot). Para
marcar a passagem, é celebrada uma cerimônia, o Bar Mitzva, que ressalta a
importância de cada um dos judeus na corrente ancestral do judaísmo. Nessa
data também o jovem coloca, pela primeira vez, os Tefilin (filactério utilizado
pelos judeus: duas caixas presas a uma tira de couro que contém pergaminhos
com quatro trechos da Torá que enfatizam a recordação dos mandamentos e da
obediência a Deus). Diante da comunidade, durante as preces da manhã, deve
ler o primeiro segmento da Parashá (porção semanal da Torá), que será lida por
inteiro, no Shabat seguinte. Assim sendo, a menos que as condições econômi-
cas da família sejam realmente desastrosas, podemos dizer que, entre os judeus
homens, praticamente não havia analfabetismo.
ARS HISToRICA 60
comunidade judaica utilizava, na maior parte das vezes, o idioma
franco local ou dialetos, como o iídiche ou o ladino. Isso fez com
que a produção intelectual se limitasse a temas teológicos, éticos
e místicos, que dependiam unicamente da literatura em hebraico.
Vale ressaltar que, frente a períodos de perseguição, mesmo essa era
difícil de conservar, dependendo às vezes de transmissão oral por
parte dos rabinos que se dedicavam aos estudos.
Em contraposição a isso, do ponto de vista cultural, o mais
importante impulso que propiciou o desenvolvimento das demais
culturas sob o domínio islâmico foi o fato de que o estudo regular
e aprofundamento do idioma árabe fosse permitido aos praticantes
das outras religiões. E não somente era permitido, como estimu-
lado. Os governantes muçulmanos desde muito cedo estimularam
o estudo do idioma árabe como instrumento de consolidação polí-
tica nos territórios recém-conquistados. Além disso, dependeram
de judeus e cristãos para o processo de tradução das obras científicas
e filosóficas gregas.9 Isto foi concebido inicialmente, em geral como
um artifício para atrair através da cultura os adeptos de outras reli-
giões para a conversão ao islamismo.
Na Espanha, o processo de tradução foi utilizado também para
estabelecer o idioma árabe como língua comum. Este procedimento
conduziu ao conhecimento por parte de judeus e cristãos dos textos
gregos traduzidos para o árabe, além de facilitar a disseminação das
obras de autores muçulmanos entre os outros povos. De certo modo,
o pensamento islâmico acabou por influenciar o cristianismo10 e o
9 Ver como exemplo a 'Casa da Sabedoria' Bait al-Hikhmah, centro dedicado à tra-
dução das obras gregas, que esteve longo período sob a coordenação do cristão
nestoriano, Hunain Ibn Ishaq.
10 Entre os pensadores cristãos, essa integração e disseminação do idioma árabe
iria nos legar mais tarde um dos maiores pensadores medievais, Raimundo Lúlio
(Ramon Llull). Por suas próprias declarações, ele não conhecia o latim, mas pos-
suía profundos conhecimentos de catalão e árabe.
ARS HISToRICA 62
bases fundamentais de nossa história e cultura' (LOMBA FUENTES,
1997, p. 6). A diversidade presente em Al-Andalus – nome árabe
para a Espanha – ou Sefarad – seu nome judaico – incluiu árabes e
berberes, cristãos trinitários e unitaristas, e a comunidade judaica
sefaradi que congregava, por sua vez, a ortodoxia rabínica e os cara-
ítas.12 Esta diversidade desempenhou papel fundamental para o
avanço do conhecimento científico, bem como do desenvolvimento
literário e artístico-cultural do período.
Através da ciência, da filosofia e da poesia, bem como da arte –
notável na arquitetura, na música, entre outras expressões – vemos
como a cultura judaica é influenciada e influencia a convivência
pacífica com muçulmanos e cristãos. A profusão de informações e
publicações científicas, teológicas, filosóficas, literárias e manifesta-
ções artísticas, acessíveis por essa relação proporcionada por alguns
dos governantes muçulmanos, atinge muito mais do que esta pro-
dução. Atingindo a própria religião, apresentará novas formas de
espiritualidade,13 acabando por lançar as bases de uma linha própria
de mística especulativa – a Kabbalah –, que já surge influenciada
pelo neoplatonismo islamizado (cf. MUNK, 1927) e vem, por sua
vez, séculos depois, a contaminar novamente o cristianismo, pelas
suas influências marcantes na mística cristã espanhola, em autores
como São João da Cruz e Santa Tereza D’Ávila.14
A chegada dos muçulmanos na Espanha ocorre em 711 quando
Tariq Ibn Ziad (m. 720) cruza o estreito que separa a África da
Península Ibérica, ingressando com seu exército, e termina em 1492
12 Também conhecidos por ananistas, qaraim ou, a partir do século IX, Bene Miqrá,
os caraítas são uma seita do judaísmo que remonta ao século VIII, e professa a
estrita adesão à Torah (Pentateuco) como única fonte de lei religiosa, não acei-
tando a autoridade do Talmud.
13 Sobre a influência da espiritualidade islâmica sobre o judaísmo, sua ética e suas
práticas, ver, por exemplo, o estudo de LOBEL (2007, p. 34 et seq.), que aponta a
incorporação da interioridade Sufi no pensamento de Ibn Paquda.
14 Ver sobre o tema os trabalhos de LOPEZ-BARALT (1985, p. 99-117 e 1990).
ARS HISToRICA 64
entrada islâmica na península foi sendo gradativa, propiciada pelas
relações amigáveis, que nesse momento existiam entre os grupos
cristãos unitaristas e judeus e o mundo islâmico, abrindo espaço
para a islamização da Península. Olagüe (1974) explica como os aria-
nistas16 e priscilianistas17 unitaristas e judeus solicitaram a ajuda e
o auxílio dos muçulmanos para se libertar do jugo da monarquia
visigoda, sediada em Toledo. Quanto aos judeus, pouca dúvida resta
com relação a esse ponto, pois, devido à incerteza à qual viveram
submetidos a cada modificação de governo na época dos reis visi-
godos, e à perseguição e opressão que sofreram sob o reinado de
alguns deles, 'viram, portanto, nos árabes, seus libertadores e aju-
daram-lhes o quanto puderam, e estes, cujo dogmatismo se diri-
giu principalmente contra os cristãos que atacavam publicamente o
Islam, começaram muito cedo a colocar judeus em cargos públicos'
(VARELA apud MAESO, 2001, p. 14).
Em 929, Abd Al-Rahman III assume o título de Califa, sediando
seu governo em Córdoba, e iniciando um período de independência
política e tolerância religiosa que coincidiu também com o início da
fase de esplendor islâmico na península.
Após a ruína do Estado visigodo, os israelitas irrompem
novamente na Espanha pelas mãos dos muçulmanos.
Começa então a época de Ouro dos judeus espanhóis [...]
Os Onipotentes califas de Córdoba presenciaram o apogeu
ARS HISToRICA 66
cristã e restauram uma certa unidade de Al-Andalus. Consistiam
numa confederação de três tribos berberes do norte da África que
construíram um império no Maghreb e dominaram Al-Andalus
durante os séculos XI e XII. Estes mantiveram uma estrutura base-
ada em comandantes militares, os quais eram também administra-
dores e se autointitulavam fuqaha (juristas). A seguir, a partir de
1147, os Almôadas ( املوحدونal-muwahiddun), outro grupo berbere,
desafiam a autoridade dos Almorávidas, vindo a substituí-los no
poder. Governaram estes por 122 anos até cerca de 1229. Tinham
uma visão 'puritana' da religião e foram os responsáveis por uma
verdadeira 'cruzada' para purificar o Islam. Tomaram a cidade de
Sevilha, e a partir dali estabeleceram seu governo independente. Do
espírito de tolerância e convivência inter-religiosa que caracterizara
outrora o governo muçulmano, pouco restou durante este período.
Simultaneamente, os reinos cristãos vinham retomando os terri-
tórios perdidos. Toledo, retomada pelos cristãos em 1085, jamais
foi recuperada, e até mesmo Saragoça caiu sob o domínio cristão,
assim como outros importantes territórios andaluzes.
Internamente aos territórios islâmicos, o período de domínio
dos Almorávidas e Almôadas foi caracterizado pelo fanatismo reli-
gioso e pela perseguição que atingiu não apenas aqueles que pro-
fessavam outras religiões – dos quais os governantes passaram a
exigir a conversão – mas também seus correligionários muçulma-
nos. A partir de meados do século XII, as perseguições foram esten-
didas aos próprios muçulmanos andaluzes. Ibn Rushd (Averróes),
brilhante médico e filósofo, expoente maior do pensamento de
Al-Andalus, foi censurado e preso, seus livros foram queimados e
seu nome execrado. O filósofo judeu Maimônides – pilar da filosofia
judaica –, mesmo após converter-se, foi obrigado a buscar refúgio
em Marrocos e no Egito.
O Golpe de misericórdia à esplendorosa cultura judaica de
Al-Andalus, foi dado pelos Almôadas, fanáticos religiosos
ARS HISToRICA 68
Arcebispo D. Raimundo. Nesta, cristãos, muçulmanos e judeus
criaram um lugar destinado à tradução dos autores clássicos que,
dessa maneira, deixaram seu confinamento no Oriente árabo-par-
lante e passaram a ser acessíveis aos estudiosos de origem latina,
bem como muito do material produzido no âmbito da Falsafa.18
Muitas obras foram ali traduzidas; inclusive, dessa escola, surgiu a
primeira tradução do Corão,19 como também os tratados do mate-
mático Abraham Bar Hiyya Hanassi (1035-1136), as obras do tam-
bém matemático Al-Huarizmi e a obra filosófica de Salomão Ibn
Gabirol. Mas, mesmo nos reinos cristãos da Espanha, a situação dos
judeus estava prestes a se tornar difícil.
Por volta de 1320 começaram a difundir-se pelos reinos hispa-
nos as acusações de que os judeus envenenavam águas e pro-
fanavam hóstias [...] tais acusações foram mais violentas no
reino de Aragão, onde ocorreram numerosos alvoroços popu-
lares contra as 'juderias' (ROMERO CASTELLÓ; MACÍA CAPÓN,
1997, p. 44-45).
ARS HISToRICA 70
constituía um grande avanço, no sentido de que conferia o status
de 'povo protegido' aos praticantes das demais religiões, notada-
mente, judeus e cristãos. Vale reforçar que quando descrevemos
aqui a tolerância religiosa propiciada pela dhimma em Al-Andalus,
referimo-nos especialmente à época do Emirado, do Califado e à
política praticada em alguns dos reinos de Taifas, períodos nos quais
a tolerância efetivamente floresceu. Com a instalação dos governos
berberes, nada disso se aplicou, pois sua estruturação militar, que
transformava os comandantes militares em fuqaha, não permitia
uma condução jurídico-política independente dos objetivos e estru-
turas militares. Cabe observar que, durante este período, como já
mencionado, até o século XIV, a situação dos judeus em diversos dos
territórios recém-conquistados pelos cristãos ainda era favorável
(Ver CRUZ, 2015, p. 21-164).
A comunidade judaica em Al-Andalus era economicamente
diversificada. Sob o Califado existiam judeus na zona rural, que
lavravam terras próprias, mas a maioria era de artesãos, comer-
ciantes e donos de lojas nos mercados, constituindo uma popula-
ção majoritariamente urbana. Nos períodos de calmaria, a estrutura
administrativa das comunidades judaicas medievais, ainda que
estas não desfrutassem de total autodeterminação, foi bastante autô-
noma. Os judeus viviam agrupados em determinados bairros – que,
após a reconquista, ficaram conhecidos como juderías. Conforme
Varela Moreno (2001, p. 15), isso não ocorria por obrigatoriedade
ou segregação, mas por maior comodidade devido às facilidades
existentes para organizar a vida comunitária, a alimentação, a edu-
cação e as orações. Mantinham relações com seus correligionários
do norte da África e dependiam da tradição cultural das grandes
Academias da Babilônia. A vida comunitária contava com bastante
autonomia. Mantiveram suas autoridades rabínicas e eram regidos
pelas suas próprias leis internas, nos litígios e conflitos estritamente
ARS HISToRICA 72
No século XIII, o regime das aljamas que se conhece com
mais detalhes na área aragonesa, tem à frente um conselho
de anciãos o qual nomeia, por sua vez, um número variável de
destacados (mucaddemim) e juízes (dayyanim). Também era
nomeado o bedin, um funcionário público que atuava como
fiscal da comunidade e dirigia a polícia. Por último, o rei, ou
o poder senhorial na área, podia designar o rab da comuni-
dade ou do território. Frente ao caráter religioso do cargo, e
a autoridade moral que exercia sobre o conjunto da aljama, o
rab devia ser uma pessoa virtuosa e versada no Talmud-Torah,
circunstâncias que nem sempre ocorriam simultaneamente
no designado (RUIZ GÓMEZ, 1993, p. 60).
21 Para uma extensa lista dos intelectuais judeus em Al-Andalus, ver ORFALI, 1997.
ARS HISToRICA 74
diálogo com a cultura islâmica, bem como com seus correligioná-
rios no Oriente. O nível cultural atingido pelos judeus andaluzes
como consequência destes fatores foi determinante, inclusive, para
a manutenção de suas vidas e de uma relativa autonomia durante
o período da retomada dos territórios já sob o domínio cristão. Mas
essa tranquilidade relativa não foi uma política duradoura, mas uma
conveniência da transição, posto que se encerraria exatamente no
ano em que o processo de Reconquista Cristã se completou: 1492.
Referências
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Hispanomusulmanes. Madrid: Hiperión, 1992.
ARS HISToRICA 76
MUNK, Salomon. Mélanges de Philosophie Juïve et Arabe. Paris:
Librairie philosophique J. Vrin, 1927.
Introdução
ARS HISToRICA 78
logo converteu-se em uma estratégia organizada e militarizada de
conquista com o avanço de Ṭarīq Ibn Ziyād em 711, conquista esta
que perduraria até 732, com a derrota do avanço árabe no Reino
Franco, na fatídica Batalha de Poitiers (KENNEDY, 2014, p. 22). De
732 em diante, maiormente até meados do séc. XII, a presença árabe
se deu pela profunda arabização do povo ibérico e, sobretudo, pela
diferenciação de sua cultura e identidade da cultura do resto da dar
al-Islam. Al-Andalus se identificava como árabe andalusina,1 e, nos
sécs. X e XI, competia em igualdade com a primazia pelo saber e o
poder político com o Oriente, representado pelo Califado Abássida.
Ainda que conectados pelo comércio e pela troca de saberes, Oriente
e Ocidente árabes despontavam como concorrentes pela legítima
autoridade do mundo muçulmano (MARTINEZ-GROS, 2017, p. 191).
Assim, essa realidade histórica permaneceu como marca inde-
lével da identidade ibérica, porém não isenta de polêmicas e silen-
ciamentos. Findada a presença islâmica na Espanha em 1492, com
a conquista do reino de Granada (vassalo de Castela), inicia-se um
processo de anulação e extirpação do elemento muçulmano na
península, o qual culmina na definitiva expulsão dos mouriscos –
descendentes de muçulmanos convertidos ao cristianismo – em
1609 (MARTÍN CORRALES, 2004, p. 40).
Assim, ainda que o passado de Al-Andalus representasse um
esplendor em muitos momentos para a história da Península
Ibérica, com a chegada da era moderna, o elemento árabe-muçul-
mano passou a comportar um sentido alóctone, associado também
aos embates que a Espanha enfrentaria com o Império Otomano
ARS HISToRICA 80
os árabes a considerarem a conquista da região. Logo, de 711 a 712
temos o início da conquista com Ṭarīq Ibn Ziyād; e novas levas com
o governador da Ifrīqyia2 Mūsa, de 712 a 714; com seu filho ʿAbd
Al-ʿAzīz, primeiro governador de Al-Andalus, de 713 a 714; e com os
demais governadores até 732. A partir de 732, há perdas de algumas
regiões conquistadas no norte da Península, mas de modo geral há
o estabelecimento do poder muçulmano na Península Ibérica, com
a arabização do povo autóctone, mais do que uma islamização – esta
vai ser mais presente no período do Califado Omíada de Córdoba
(929-1031). Vemos, portanto, um processo de ocupação territorial,
o qual se dá pelo estabelecimento de um poder árabe-muçulmano,
pela chegada de novas levas de árabes, sobretudo de exércitos sírios
e, principalmente, pela distinção cultural com a arabização e a ele-
vação de uma identidade árabe local, a árabe-andalusina (MARTINEZ-
GROS, 2017, p. 101).
Logo, a presença do domínio árabe e islâmico na Península
Árabe, além de fato histórico, marcou indiscutivelmente a cultura e
a identidade ibéricas. Ainda assim o processo de seu resgate e refle-
xão históricos foi marcado por políticas posteriores, o que muitas
vezes levou a compreensões completamente díspares entre si sobre
a importância e a valorização de Al-Andalus como parte das histó-
rias ibérica e árabe.
O resgate de Al-Andalus
O movimento responsável pelo resgate da história de Al-Andalus
e de seu lugar na história europeia e árabe é o Orientalismo.
Conforme teorizado por Edward Said, o movimento orientalista foi
importante para a construção da visão do Oriente para o mundo
2 Ifrīqyia era a denominação dada pelos árabes ao Norte de África que hoje corres-
ponde à Tunísia, noroeste da Líbia e nordeste da Argélia.
ARS HISToRICA 82
movimento dito 'orientalista', ainda que não fosse para uma viagem
ao Oriente, mas para um Oriente do passado, suspenso no tempo
e cheio de nostalgia. Para os povos árabes dominados pela política
imperialista do séc. XIX, visitar a Espanha em busca de Al-Andalus
era uma forma de encontrar uma conexão com o mundo europeu,
o qual se lançava como promotor da modernidade e da evolução;
assim tornando estes mesmos árabes, então vistos como inferio-
res, herdeiros de uma história comum que os colocava como iguais
ou às vezes superiores aos seus opressores. Os árabes que foram
explorar de maneira orientalista o passado andalusino se caracteri-
zaram por dois movimentos: um romântico, que se relacionava às
raízes cristãs e europeias; e outro religioso, que se relacionava com
o islã cultural. Enquanto o primeiro buscava essa semelhança com
o dominador, o segundo reconhecia em Al-Andalus o esplendor de
uma civilização muçulmana, e, assim, estabelecia o passado tam-
bém como uma resistência e uma valorização de sua cultura 'origi-
nal' ante a modernização europeia (PARADELA AFONSO, 1993, p. 136
apud GONZÁLEZ ALCANTUD, 2017, p. 598).
Desta forma, cada grupo mobilizava este sentimento de nos-
talgia quanto a Al-Andalus para responder aos seus anseios atuais
na geopolítica Ocidente-Oriente. Ainda que os europeus resgatas-
sem o passado andalusino como uma forma de enaltecer um perí-
odo idílico de sua história, algumas vezes esta visão idealizada se
chocava com a política imperialista no Oriente, sobretudo com o
Africanismo Espanhol no Marrocos, com o qual a própria Espanha
compartilhava um passado comum justamente pela história de
Al-Andalus (GONZÁLEZ ALCANTUD, 2017, p. 1239). Assim, ao se des-
locar para o Oriente, a Espanha se encontrava muitas vezes consigo
mesma, o que levou os historiadores espanhóis a responderem a
este paradigma com a elaboração de uma historiografia que desse
conta de explicar e abarcar esta idiossincrasia.
ARS HISToRICA 84
andalusino por ter recebido a diáspora de seus habitantes (judeus,
muçulmanos e mouriscos), sobretudo após a expulsão de 1609
(BENABOUD, 2015, p. 28). Ainda que não seja muito vasta, a produção
historiográfica francesa sobre Al-Andalus, marcada sobretudo pela
contribuição dos trabalhos de Pierre Guichard, foi importante para a
compreensão das relações étnicas entre berberes e árabes e da ques-
tão da preservação de valores tribais dentro da sociedade andalusina
(BENABOUD, 2015, p. 28).
Já a perspectiva espanhola é, de longe, a mais ampla na produ-
ção de reflexões sobre o passado andalusino. Segundo o historiador
Alejandro García SanJuan, atualmente, a historiografia espanhola
é dividida em três correntes: a tradicional/espanholista/nacional-
-católica, que opõe o elemento muçulmano à história 'oficial' espa-
nhola, atualmente marcada pelo movimento negacionista do legado
de Al-Andalus; a perspectiva reformista/'neutra', que instrumenta-
liza o processo de reconquista apenas como um fenômeno medie-
val, buscando compreender as contendas entre cristãos e muçul-
manos como um fenômeno contextual; e a perspectiva crítica, que
rechaça a ideia do conceito de reconquista por considerá-lo tóxico
e tendencioso, buscando compreender a influência árabe-islâmica
como parte da história espanhola, sem pensar em uma oposição,
seja histórica (medieval) ou conceitual (SANJUAN, 2013, passim).
A primeira corrente foi iniciada pela contribuição do historia-
dor Javier Simonet (1829-1897). De atitude antiárabe, Simonet des-
pontava para uma tendência nacionalista dos estudos Orientalistas
ao mudar a denominação dos gentios de Al-Andalus de 'árabes da
Espanha' para 'muçulmanos espanhóis'. Essa mudança de compre-
ensão sugeria que o elemento islâmico de Al-Andalus havia sido
um fenômeno estritamente espanhol, praticamente sem relação
com as contribuições orientais, o que desvitalizava esta relação
devido à depreciação do Oriente provocada pela política imperia-
lista. A nacionalização do passado islâmico era concordante com
ARS HISToRICA 86
enviesado, mesmo que empregado sem anacronismos, uma vez que
o próprio termo seria um neologismo criado no séc. XIX para des-
locar Al-Andalus do resto de uma 'oficial' história espanhola, esta
autêntica quando sob uma pretensa identidade cristã (SANJUAN,
2013). Destas correntes, temos as contribuições dos historiado-
res como Maribel Fierro, Juan Vernet, Rafael Valencia Rodríguez,
Eduardo Manzano Moreno, sendo Alejandro García SanJuan o mais
abertamente crítico. De toda maneira, como percebemos, a historio-
grafia espanhola se fundamenta na discussão maiormente do início
e do final de Al-Andalus, uma vez que a problemática mais aguda
ocorre quanto ao pertencimento ou não de Al-Andalus à história
espanhola (BENABOUD, 2015, p. 24).
3 Aqui consideramos como 'árabes' povos que possuem a língua árabe como ofi-
cial, e não mobilizamos a noção de árabe como parâmetro étnico.
ARS HISToRICA 88
nostálgico pelos árabes na sua primeira fase, é na segunda fase que
se tem uma formação de historiadores árabes, sendo fundamental
a atuação do pensador Taha Hussein. Este havia se formado em
estudos na Europa e voltado ao Egito a fim de 'modernizar' sua
nação formando também novos pensadores seguindo o modelo
europeu, primeiramente francês. Posteriormente, Hussein decidiu
investir no estudo da Espanha, e na primeira leva deste empreen-
dimento formaram-se os pesquisadores Muḥammad ´Abd Allāh
´Inān (1898-1986), Ḥusayn Mu’nis (1909-1996) e ´Abd al-´Azīz
al-Ahwānī (1915-1980), o último considerado o precursor do ara-
bismo-hispanismo, que é a vertente histórica árabe que estuda
Al-Andalus (VIGUERA MOLINS, 2014, p. 214).
Com o sucesso da produção historiográfica arabista-hispanista,
mais pesquisadores árabes foram estudar na Espanha, sendo o
estudioso mais destacado sobre Al-Andalus o egípcio Mahmud Ali
Makki (1929-2013), o qual em parceria com seu orientador espa-
nhol, Emílio García Gómez (1905-1995), criou a conexão, outrora
inexistente, entre as produções historiográficas árabe e espanhola
sobre Al-Andalus (MAKKI, 1996, p. 115-116).
Ainda que o processo de reflexão e problematização de Al-Andalus
seja um fenômeno recente, para a tradição árabe, as obras medie-
vais árabes também contam como parte da produção historiográfica
sobre Al-Andalus, pois estas, ainda que pudessem contar com ele-
mentos fantásticos, já possuíam uma reflexão e percepção históricas
concernentes a uma abordagem historiográfica (MAKKI, 1957, 160).
O historiador marroquino M’hammad Benaboud considera que
os estudos árabes sobre Al-Andalus são divididos em dois grandes
grupos: aqueles produzidos por andalusinos (medievais) e aqueles
produzidos por não-andalusinos, estes magrebinos4 e levantinos5.
ARS HISToRICA 90
Certamente, a historiografia árabe é bastante extensa e comporta
várias abordagens. Entretanto, se sobressai a tentativa de sobrepor
o elemento árabe – até mesmo antes do islâmico – sobre a histó-
ria andalusina, adquirindo, esta historiografia, portanto, um cará-
ter endocêntrico. Isto acontece porque o estudo de Al-Andalus recai
numa tentativa de percebê-la como parte de história e cultura ára-
bes, como se houvesse uma cultura árabe-generalizante, suspensa
no tempo. Essa compreensão é muito importante, pois não se deve
considerar Al-Andalus como genericamente árabe, uma vez que,
em sua época, ela era concorrente com a identidade árabe oriental;
e, além disso, devemos nos atentar de que Al-Andalus comportou
não uma, mas diversas sociedades que variaram culturalmente, lin-
guisticamente e etnicamente ao longo dos séculos de sua existência
(BENABOUD, 2015, p. 30).
Portanto, a historiografia árabe moderna também sofre com
o problema da extrapolação da identidade de Al-Andalus para as
discussões identitárias presentes nos sécs. XIX e XX. O historiador
Benaboud sugere que haja um retorno às fontes andalusinas para
se analisar a história de Al-Andalus, de modo que ela não seja ape-
nas amparada nas disputas supremacistas das civilizações moder-
nas atuais (BENABOUD, 2015, 30). Os árabes produziram e ainda
produzem muito material historiográfico a respeito de Al-Andalus.
Todavia, a maioria destes trabalhos – fontes históricas e historio-
grafia moderna – não se encontra traduzida para línguas ociden-
tais. Ainda assim, há um esforço de alguns pensadores árabes em
fazer circular pelo Ocidente compreensões e análises feitas pelos
próprios árabes de sua história, como vemos pelas contribuições de
Fatema Mernissi, Malek Chebel, Mohamed Abd Al-Jabri, Mahmud
Ali Makki e M’hammad Benaboud. Ainda que as obras destes auto-
res se insiram em diversos recortes históricos, elas são de imenso
valor para compreendermos como os árabes reelaboram e analisam
o legado andalusino.
ARS HISToRICA 92
aventamos aqui a possibilidade de uma sociedade de três culturas
como alguns pesquisadores já levantaram, mas da heterogeneidade
da sociedade andalusina desde a sua formação. Ainda que o processo
de islamização tenha sido intenso, os muçulmanos nunca chegaram
a superar o número de cristãos no território dominado por líderes
muçulmanos, sendo a arabização o processo de reconhecimento e
pertencimento que as populações andalusinas receberam para se
submeterem à autoridade central (REI, 2015, p. 13-18).
Deste modo, a cultura árabe-islâmica era a amálgama que unia
grupos confessionais, étnicos e políticos diferentes, mas esta cultura
não era puramente importada do Oriente, via Egito, para ser usada
como modelo na Península Ibérica. Ela passou por um processo
de reelaboração, que deve, em grande parte, ao Projeto Cultural
do Califado Omíada de Córdoba (929-1031), quanto a estimular os
saberes, a ciência e a língua árabe, sendo este projeto dispersado por
toda a península, inclusive por reinos cristãos, quando da dissolu-
ção do califado em reinos (LIARTE ALCAINE, 2010, p. 10).
Vemos, assim, que Al-Andalus pertence igualmente à história
espanhola e à história árabe, porém sem que ela se adapte para com-
portar os anseios de cada sociedade contemporânea. Al-Andalus não
existe como um ente sempiterno, não é tangível, nem idílica e nem
caótica; ela é uma realidade histórica que precisa ser reconstruída e
discutida por meio de sua própria história, sem a necessidade de se
assemelhar a nenhuma realidade que está além dela.
Referências
FANJUL, S. Al-Andalus contra España: La forja del mito. Madrid:
Ediciones Akal, S.A., 2014. (Edição Kindle).
ARS HISToRICA 94
MARTINEZ-GROS, G. L’idéologie omeyyade: La construction de la légi-
timité du Califat de Cordoue (Xe-XIe siècles). Madrid: Casa de
Velázquez, 2017. (Edição Kindle).
O estado da questão
Uma visita, mesmo superficial, ao sul da Itália, especialmente à
Calábria, às ilhas da Sicília, Malta, Sardenha e aos pequenos arqui-
pélagos adjacentes, espalhados no Mar Mediterrâneo, revela uma
região de inúmeras igrejas, procissões com estátuas de santas e
santos, fogos de artifícios em homenagem aos padroeiros, e devo-
ções católicas enraizadas nos povos que lá habitam. Pouca gente
sabe que há mil anos essa região era muçulmana; que um quarto
de milhão de agricultores e comerciantes, professando a religião de
Maomé, trabalhava respectivamente na zona rural e nas cidades;
que havia centenas de mesquitas e escolas islâmicas onde se lia e
estudava o Alcorão; que quase toda a população falava árabe; que as
reclamações e as queixas eram julgadas conforme a lei islâmica; e
que as pessoas eram enterradas segundo ritos muçulmanos. Hoje,
não há nenhum resquício dessa vida exuberante nesse rincão sulino
ARS HISToRICA 96
da Europa. A historiografia no Brasil trata com profundidade as
vicissitudes de al-Andaluz, a Espanha árabe, entre 711 e 1492 EC,
mas carece de estudos sobre a Sicília islâmica entre 827 e 1060 EC.
Igualmente pode se dizer da França islâmica, ou da orla mediterrâ-
nea de La Garde-Freinet, onde grupos islâmicos tinham comunida-
des e desenvolviam a agricultura e o comércio com várias regiões.
No desconhecimento profundo e compreensivo da história do
mediterrâneo islâmico pode estar a raiz do preconceito atual contra
o árabe, contra o Islã, contra os costumes muçulmanos, ou seja, con-
tra o outro diferente. Muitos historiadores sicilianos consideravam
o período islâmico da Sicília entre os séculos IX e XI EC como um
parêntese ou até um desvio entre a Antiguidade grega e romana e o
Renascimento, o qual interrompeu o fluxo ‘natural’ do desenvolvi-
mento itálico. Embora escritores da Modernidade, como Tommaso
Fazello, Vito Maria Amico Statella e Rosário Gregorio, visitassem
as grandes ruínas sicilianas de Agrigento, Selinunte, Taormina e
Siracusa, inclusive ruínas árabes, o foco de suas investigações era a
civilização grega e romana e sua continuidade nas obras renascen-
tistas. Foi Michele Amari (1806-1889) que fez emergir da poeira do
tempo a história, a literatura e a historiografia sobre a Sicília islâmica.
Amari não somente escreveu a história da Sicília islâmica, mas tra-
duziu do árabe para o italiano muitos livros ou trechos de livros que
versavam sobre as vicissitudes do povo muçulmano que habitava
a Sicília e as ilhas adjacentes durante quase 250 anos. Amari não
teve muitos seguidores e somente a partir de meados do século XX
que historiadores, arqueólogos, numismáticos, ceramistas e paleó-
grafos sicilianos, italianos, britânicos, franceses e alemães iniciaram
um trabalho árduo para reconstruir essa história que indiretamente
aparecia na topografia, na toponímia e na dialetologia desses povos
mediterrânicos (AHMAD, 1975; CHIARELLI, 2011).
A finalidade desse capítulo é iniciar a pessoa interessada nos
eventos havidos na Sicília e nas ilhas mediterrâneas circundantes,
ARS HISToRICA 98
integrar os exércitos muçulmanos (ğund) na conquista (ğihad) de
terras de toda a África do norte e da península ibérica. Predominava
o comércio de escravos e de ouro, trocado por grãos nos portos
europeus. Nessa época, os aglábidas dominavam Ifrīqiya e fizeram
a cidade de Qayrawan sua capital. Todavia, tinham ambições para
estender seu domínio para as terras ricas e férteis da Sicília (ğazirat,
a ilha) e da Calábria (chamada al-’ard al-kabira, a terra grande).
A invasão da Sicília
As incursões árabes oriundas de Ifrīqiya contra a Sicília e Malta eram
frequentes no final do século VII e todo o século VIII EC. A arqueo-
logia revelou grandes fortificações e torres bizantinas ao longo do
litoral das ilhas para impedir as invasões islâmicas. Todavia, em 827
EC, os aglábidas decidiram invadir a Sicília e ocupá-la para expandir
as fronteiras do Islã através da conquista dos ‘infiéis’, com a conse-
quente aquisição de território, butim, escravos e riquezas. O autor
anônimo de Tar’ikh ğazirat Siqilliyya (também chamada Crônica de
Cambridge), escrita no século X EC, afirma: ‘O início [da conquista]
foi no ano 6335 da era do mundo, [a contagem] empregada pelos
Rum [bizantinos] em seus escritos. Em meados de julho desse
ano [827], os muçulmanos invadiram a Sicília. No ano 6339 [830-
831 EC] [a cidade de] Mineo foi capturada e Theodotus foi morto.
Em 6340 Balarm [Palermo] foi conquistada [...]’ (AMARI, 1880, p.
277-298). A gota d’água foi uma luta interna entre as autoridades
bizantinas mencionadas pelo cronista árabe al-Aṭir (AMARI, 1880).
Euphemios usurpou a governança da Sicília, mas foi derrotado. Em
seguida, pediu ajuda aos aglábidas para invadirem a Sicília e aju-
dá-lo a recuperar o poder na ilha. Evidentemente, a aceitação dos
aglábidas da proposta de Euphemios tinha finalidades ulteriores. O
exército ifriqiano, composto por árabes e berberes e liderado por
Asad ibn al-Furāt, chegou a Mazara em 18 de junho de 827 EC, e
O idioma
Apuleius (125-170 EC) denominou os sicilianos ‘siculi trilingues’
(APULEIUS, 1915). Embora não seja o único idioma falado pelos sici-
lianos, sabe-se que o grego bizantino, falado extensivamente na
Sicília e Malta até meados do século IX EC, foi praticamente elimi-
nado e substituído pelo árabe. O grego bizantino continuou sendo
o idioma de pequenas populações do leste siciliano, mas a língua
franca era o árabe e, às vezes, o bilinguismo (METCALFE, 2012; AGIUS,
1996). É muito relevante salientar que o árabe falado na Sicília,
Sardenha e em Malta não era o idioma clássico do Alcorão. O árabe
ifriqiano levado à Sicília já era um idioma dialético (por exemplo,
em árabe clássico, o número ‘onze’ é ‘aḥada ‘ašara, enquanto no dia-
leto ifriqiano é hada‘šar), diferente do idioma corânico, com mistura
de vocábulos berberes e de outros povos conquistados. Conjetura-se
que na Sicília esse idioma dialetal recebeu também influência de
alguns vocábulos e estruturas gregos e itálicos, também dialetais,
e pela metade do século IX EC, consolidou-se num idioma que
Amari denomina ‘sículo-árabe’, falado por toda a população sici-
liana. Contrário ao idioma andaluz, com literatura própria, o sículo-
-árabe não tem nenhuma testemunha literária, a não ser inúmeros
vocábulos encontrados na toponímia e em documentos tardios, sem
sintaxe ou literatura.
É interessante notar que nada restou desse idioma dialetal na
Sicília, ou seja, durante a época normanda, o sículo-árabe tornou-se
uma língua morta. Todavia, quando em c. 1050 EC, um grupo de
famílias sicilianas muçulmanas colonizou o arquipélago de Malta,
o qual se encontrava totalmente despovoado, introduziu o idioma
sículo-árabe, o qual, por causa do isolamento do arquipélago,
O desenvolvimento político
Desde 827 EC. a colonização muçulmana na Sicília foi caracterizada
por profundas tensões oriundas das raízes do próprio empreendi-
mento. Houve rivalidades constantes entre a elite árabe, dona do
poder, e a grande multidão de berberes islamizados que povoava
as cidades e a zona rural. Todos estavam ávidos por poder, butim e
terras férteis. Devido a essas hostilidades, a conquista total da Sicília
levou 75 anos. De fato, Taormina e Rometta somente se renderam
em 902 EC. Formaram-se várias facções islâmicas (sicilianos, sicilia-
nos-berberes, sicilianos-árabes) e grupos étnicos, antagonizando-se
simultaneamente ou em épocas diferentes. Embora reforços milita-
res de Ifrīqiya fossem de grande valia para as conquistas de várias
cidades do leste siciliano, eles contribuíram para formar outros
grupos ávidos por poder. Tar’ikh ğazirat Siqilliyya (AMARI, 1880;
BONNICI, 2019) narra a revolta étnica das elites sicilianas contra os
soldados de Ifrīqiya comandadas por Sawāda ibn Ḫafağa, em 890
EC. Ademais, em 898 EC, os árabes e os berberes do exército muçul-
mano da Sicília estavam mais uma vez em guerra com Abū l-‘Abbās
‘Abd Allāh, filho de Ibrāhim II, o califa ifriqiano, direcionado para
‘reconquistar’ a Sicília. Em 900 EC, o ğund de Palermo e as tropas
berberes de Agrigento estavam em plena guerra civil provavelmente
causada por rivalidade étnicas e tensões de terras. Diante de uma
Os muçulmanos pós-conquista
Devido às guerras civis entre as facções islâmicas com o subse-
quente desmoronamento do poder central kalbita; e às tentati-
vas normandas de ocupar a Sicília, houve uma diáspora de elites
muçulmanas (famílias ricas, intelectuais) para terras islâmicas,
como Egito, Ifrīqiya e al-Andaluz. A reconstrução das atividades
Conversão
Há pouquíssimos casos de conversão de muçulmanos (Hamud,
o wālī de Castrogiovanni, e Filipe de Mahdiyya, o eunuco) para o
cristianismo, embora os eunucos do palácio real fossem batizados.
Em A vida de Santo Anselmo, Eadmer afirma que o conde Rogério
proibia as tropas muçulmanos a se converterem ao cristianismo
(SOUTHERN, 1962), provavelmente para não perder impostos e
para a manutenção de disciplina nas tropas. Indaga-se, portanto,
como em c. 1300 não havia mais muçulmanos na Sicília. Há várias
teorias sobre o assunto, inclusive, conversão em massa, exílio, o
uso de taqiyya (fingir ser cristão) e outras. Provavelmente, houve
conversões através de gerações, tacitamente e sem muito alarido.
Rebeldia e exílio
O conde Rogério, conquistador da Sicília, sempre teve grande estima
para com os muçulmanos e sempre os protegia contra tentativas
latinas de outremizá-los e escravizá-los. A sua morte em 1101 EC e
a sucessão de seu filho Rogério II, rei da Sicília a partir de 1130 EC,
não provocaram grandes mudanças na vida dos milhares de muçul-
manos nas cidades e na zona rural siciliana. Devido à influência de
Georgios de Antioquia, as construções em Palermo e a administra-
ção do reino foram baseadas em modelos fatímidas do Egito, bizan-
tinos e latinos. Todavia, diante da preferência da administração
normanda aos cristãos e aos latinos, os dias da definitiva derrocada
muçulmana na Sicília estavam chegando. Quando o valenciano Ibn
Ğubayr (2016) estava de passagem na Sicília em 1184-1185 EC, ele
Lucera na Apúlia
Frederico II, o ‘tirano da Sicília’, conforme Ibn Ḥaldun (1958),
formou um enclave com cerca de 20.000 muçulmanos. O oeste
da Sicília foi praticamente despovoado, a cultura material foi per-
dida e houve um grande declínio em produção agrícola e artística
(cerâmica). Apesar da falta de documentos e ruínas arqueológicas,
em Lucera, a comunidade prosperava. Foram construídos masjid
al-ğami‘, hammām, escolas corânicas, enquanto os juízes (qādī) diri-
miam casos conforme a šari‘a. A autonomia judicial muçulmana
foi respeitada e, embora ahl ḍimmī, gozavam de independência na
administração da justiça e no governo da comunidade. Serviam nas
tropas normandas, especialmente como arqueiros, trabalhavam na
agricultura (criação de cabras, ovelhas, abelhas e até porcos), pos-
suíam propriedades (casas, pomares e hortas) e mantinham um
comércio ativo (fabricantes de tendas, carpinteiros, ferreiros, ven-
dedores de frutas). Apesar dessa prosperidade, os papas (Inocêncio
IV, Urbano IV e Clemente IV) e os bispos condenavam a colônia
muçulmana de Lucera; e pregações anti-muçulmanas por Eudes de
Chateauroux (1190-1273 EC) e provavelmente por Raimundo Llull
(1232-1316 EC) (BONNICI, 2020) foram proferidas.
Sabe-se que os muçulmanos de Lucera não tinham nenhum
apoio, nem de Ifrīqiya nem da Sicília, e sofriam de todo tipo de pre-
conceito dos cristãos circundantes ávidos por seus bens e terras. O
apoio que os muçulmanos davam aos hohenstaufen os antagoni-
zava contra os angevinos. Em 1289 EC, Carlos II de Anjou iniciou
Conclusão
‘Quem, olhando as grandes e amplas ruínas de fortalezas e cida-
des dos muçulmanos e, observando a vasta destruição de seus palá-
cios, construídos com tão grande habilidade, não consideraria isso
como uma enorme e múltipla tragédia e uma perda incalculável?’
(COLLURA, 1961, p. 18, tradução nossa) Essa citação, alegadamente do
conde Rogério de Hauteville, sobre a destruição causada pela inva-
são e conquista normanda da Sicília no século XI EC explica a escas-
sez de ruínas islâmicas na Sicília, mesmo em cidades importantes
Referências
ACTA IMPERII INEDITA SECULI XIII ET XIV. Ed. Eduard Winkelmann.
Innsbruck: Wagner’schen Universitäts-Buchhandlung, 1880-1885.
NEF, A. Islamic Palermo and the dar al-Islam. In: NEF, A. (Ed.). A
Companion to Medieval Palermo. Leiden: Brill, 2013, p. 39-60.
2 Convém lembrar que a regra de Bento de Núrsia, produzida no século VI, levou
ao menos três séculos para que fosse oficializada como a regra do Império
Carolíngio, na versão revisada por Bento de Aniane (747-821), e adotada intensiva-
mente pelas regiões cristãs do Ocidente Medieval (BENVENUTI, 2011, p. 212-221).
Antão e o eremitismo
No século III, uma mobilização monástica de retirada social – ana-
choresis –começou a se intensificar entre os cristãos do Egito, atraindo
muitas pessoas (ARRANZ GUZMÁN, 1985, p. 6; MELVILLE, 2016, p. 2).
Esta experiência foi idealmente registrada na Vita Antonii, escrita
por Atanásio de Alexandria, que teve como seu protagonista Antão
(251-356). A narrativa informa que o personagem havia atendido a
um chamado para abandonar o mundo e não se preocupar com o
futuro. Ele, então, passou a imitar os renunciantes – apotaktikoi –
mais experientes, que antes dele já eram conhecidos por viver às
margens das aldeias egípcias, locais desérticos, mas que, pela proxi-
midade com zonas habitadas, ainda mantinham atendidas as neces-
sidades básicas de sobrevivência (MELVILLE, 2016, p. 3).
Com o objetivo de maiores desafios, Antão buscava uma retirada
social mais completa, que culminou na sua partida para a Montanha
Inner, em 313. Segundo o relato atanasiano, a partir desse episó-
dio, o distante deserto do Egito, o qual Antão teria sido o primeiro
asceta a alcançar, foi conquistado para o monaquismo cristão. O
termo monge, do qual as nomenclaturas do movimento ascético
vão passar a se desenvolver, já era reconhecido no contexto do Egito
romano, em princípios do século IV, como um voto de castidade e
Considerações finais
Podemos considerar que os séculos III e IV foram um período em
que o monaquismo cristão estabeleceu, de forma cada vez mais
sistemática e organizada, um processo de institucionalização das
manifestações de renúncia ao mundo secular, práticas ascéticas e
ações de desenvolvimento espiritual, que pautaram as ações das
mulheres e homens que buscavam os desertos egípcios.
Sem desconsiderar as manifestações autóctones, em outras
regiões tanto do Império Romano Oriental quanto do Ocidental, a
historiografia se dedica aos personagens aqui apresentados, Antão,
Pacômio e Basílio, não por um ineditismo comportamental, mas
por terem sido o combustível necessário para a construção e ampli-
ficação de modelos que pudessem ser repetidos, divulgados e defen-
didos pelo espaço cristianizado.
Embora as formas comunitárias de monacato fossem vistas com
mais simpatia pelas hierarquias eclesiásticas, não podemos deixar
de notar que o eremitismo continuou tendo um papel modelar e de
autoridade moral junto aos autores monásticos. Este desempenhou
um papel importante nas carreiras de monges e clérigos, que aderiam
Referências
JONES, A. H. M. The late Roman Empire. Oxford: Blackwell, 1964, 2v. v.2.
5 No que se refere à realeza persa, Ze’ev Rubin (2008, p. 651-654) destaca que
o quadro de uma sociedade hierárquica bem ordenada, controlada e regulada
por uma monarquia forte tem sido reavaliado pela historiografia em relação ao
Império Persa na Antiguidade Tardia. No período da dinastia Sassânida (224-
651 d.C.), o controle do vasto império persa era exercido por um governo cen-
tral, mas não uniformemente efetivo. Os soberanos sassânidas respeitavam os
territórios assegurados pelos grandes senhores do reino, alguns dos quais per-
tenciam a linhagens cujas raízes alcançavam tão longe quanto o período Parta
(247 a.C.-224 d.C.). No século V d.C., os líderes daquelas linhagens admitiam
apenas uma fidelidade nominal ao governo central e, desse modo, gozavam de
certa autonomia nos seus domínios territoriais hereditários. Nesse sentido é que
entendemos a alcunha de ‘Rei dos reis’ que o soberano persa atribuía a si.
Essa estratégia que Cirilo articulou a seu favor teve como meta
contrabalançar aquele apoio recebido por Nestório entre importan-
tes chefes militares e funcionários civis de peso na estrutura admi-
nistrativa imperial (FIGUEIREDO, 2018, p. 112-122). A manobra surtiu
efeito, uma vez que Teodósio II confirmou a deposição de Nestório
da Sé episcopal de Constantinopla, em 431 d.C., e determinou seu
exílio, em 435 d.C. (NESTÓRIO, Liber, 516-520). Mesmo com o afasta-
mento de Nestório, seus apoiadores ainda permaneceram atuantes
e renovavam, constantemente, o conflito na arena político-religiosa.
Em vista disso, Teodósio II convocou um segundo Concílio episco-
pal, que se realizou, novamente, em Éfeso, em 449 d.C. Naquela
reunião, o imperador enviou representantes com ordens enfáti-
cas de impedir a participação de bispos de inclinação nestoriana e
Referências
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Eduard Schwartz et al. Berlin et Leipzig: Walter de Gruyter & Co., 1914.
PAGELS, Elaine. Adam, Eve, and the Serpent. New York: Vintage Books,
1989.
7 Arkhon (arconte) era o título usado nas fontes bizantinas para denominar gover-
nantes eslavos como um todo. Para os ‘ocidentais’, o termo em grego geral-
mente era rex.
14 Vladimir Vodoff (1988, p. 119) e Iaroslav Chtchapov (1993, p. 219) dizem ser
‘Nestor’, mas obras mais recentes ignoram o nome do bispo de Rostov.
15 Etimologicamente, o nome do metropolita é um enigma. É desconhecida a ori-
gem do primeiro nome, se seria realmente Klim (USPENSKII, 2017, p. 174) ou uma
variação de Clemente (segundo Vodoff, Klim seria um diminutivo pejorativo, cf.
VODOFF, 1988, p. 118), com o segundo sendo mais usual. ‘Smoliatitch’ também é
um mistério, podendo significar um patronímico ‒ filho de Smoliata (Smola) ‒,
a procedência de Smolensk (USPENSKII, 2017, p. 175).
Referências
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Traduzido por Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Presença; Rio
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n. 51, p. 47-69, 2014.
Financiando a guerra
O fisco bizantino era complexo, abrangente e altamente eficiente
para os padrões de um estado pré-moderno. Ele tinha a ambição
de registrar todas as propriedades rurais em territórios sob a auto-
ridade imperial. No entanto, sua capacidade de manter os regis-
tros atualizados esbarrava na rapidez com que propriedades eram
transferidas através de compra, herança, doações e dotes (NEVILLE,
2004, p. 47-65). Embora não tenhamos disponíveis documen-
tos que permitam reconstruir com fidelidade o orçamento estatal
romano medieval, não é arriscado propor que uma parte significa-
tiva, senão a maioria, dos recursos captados pelo fisco servia para
fornecer dinheiro e outros recursos em espécie às forças armadas.
Esse sistema poderia ser altamente opressivo, principalmente para
pequenos proprietários. Enquanto isso, grandes proprietários pode-
riam usar sua influência junto às autoridades locais ou mesmo à
Conclusão
Referências
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1204-1453. Filadelfia: University of Pennsylvania Press, 1992.
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2018, p. 394-439.
Introdução
2 No original: 'Christians must not judaize by resting on the Sabbath, but must work on
that day, rather honouring the Lord’s Day; and, if they can, resting then as Christians.
But if any shall be found to be judaizers, let them be anathema from Christ'.
3 No original: '[…] eine neue Wertschätzung des Sabbats im vierten Jahrhundert
auf: man fing an, gottesdienstliche Versammlungen, ja sogar Eucharistiefeiern am
Samstag abzuhalten und manchmal auch Arbeitsruhe an diesem Tag zu fordern […]'.
Considerações finais
Neste trabalho, pudemos ver como Ewosṭātewos e seus filhos espiritu-
ais iniciaram um movimento que divergia da ortodoxia etíope no norte
da Etiópia Cristã. Estes territórios setentrionais eram regiões onde
estavam grupos dissidentes da dinastia salomônida, o que contribuiu
para que o movimento conseguisse expandir suas áreas de influência.
Entre os séculos XIV e XV, os salomônidas conseguiram impor seu
domínio político nestas regiões através de reformas administrativas
e da instalação de regimentos militares. Apesar disso, esse domínio
político não compreendeu, também, um domínio religioso, e essas
áreas continuaram a ser importantes para a teologia eustatiana. Ao
mesmo tempo, as ideias eustatianas ganharam adeptos de diferentes
regiões e redes monásticas etíopes – entre eles, alguns nomes impor-
tantes para a 'corte' etíope. Giyorgis de Saglā foi um destes persona-
gens. De grande importância na corte, o monge foi preceptor dos
filhos de Dāwit, entre eles Zarʾa Yāʿeqob. Assumindo o governo da
dinastia em 1434, o governante centralizou o poder político e religioso
em sua figura. Com a morte do metropolitano Bartalomēwos, grande
opositor da observância do duplo sabbath, Zarʾa pôde dar um fim a
esta questão: submetendo os novos metropolitanos a seu comando, o
1 Apesar do problema de se atribuir uma Idade Média ao Islã, por ser um marco
cronológico eurocêntrico, são usados aqui termos relativos a esta periodização,
por ser de amplo entendimento. Em termos de datas, será usado o calendário
gregoriano, marcado como Era Comum (E.C.). As localidades dos sufis mencio-
nados ao longo do artigo dizem respeito às fronteiras contemporâneas.
4 Abu al-Nasr al-Sarraj (m. 988 E.C – Irã), Abu Bakr Muhammad Kalabadhi (m.
994, Uzbequistão), Abu Hafs ‘Umar al-Suhrawardi (m. 1234, Irã).
Referências
CHAGAS, Gisele Fonseca. Sufismo, carisma e moralidade: uma etno-
grafia do ramo feminino da tariqa Naqshbandiyya-Kuftariyya
em Damasco, Síria. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.
Introdução
Enquanto a Europa entrava no que conhecemos hoje como Idade
Média, o arquipélago japonês passava por desenvolvimentos históri-
cos muito diferentes. Isto nos permite discutir a questão das perio-
dizações que são tão naturalizadas na historiografia ‘ocidental’. Este
capítulo tem como objetivo realizar este questionamento ao oferecer
um breve panorama do período Kofun do Japão (séculos III a VII),
aproximadamente concomitante à Alta Idade Média europeia.
Serão também apresentados alguns dos principais debates da
historiografia e arqueologia com relação a temas específicos que
têm ocupado os especialistas em arqueologia Kofun, como forma-
ção do Estado, homogeneização cultural, ritual, apropriações pelos
discursos modernizantes Meiji etc.
Nossa expectativa é de que este breve panorama sirva de inspi-
ração e como ponto de partida para aqueles interessados em iniciar
O período Kofun
Por conta das restrições de espaço não irei me alongar aqui sobre
pormenores das características materiais dos kofun. Por ora irei
apenas introduzir as características básicas dos kofun e algumas de
suas mudanças mais significativas ao longo das diferentes fases do
período Kofun.
O início da construção dos kofun foi caracterizado pela adoção de
um ‘pacote inicial’, que incluía: enterramentos de tipo tumulus em
formato de fechadura; espelhos de bronze; ferramentas e armas de
ferro e bronze; cova da câmara mortuária de pedra; itens de jaspe
e tufo verde. A este pacote foram sendo adicionados progressiva-
mente novos itens (MIZOGUCHI, 2013, p. 220-228).
Os kofun foram construídos em praticamente todas as regi-
ões do arquipélago japonês como exceção das ilhas que hoje for-
mam Okinawa e da Ilha de Hokkaido, bem como do Norte da
Ilha de Honshu.
Referências
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SASAKI Ken’ichi. The Kofun era and early state formation. In: FRIDAY,
Karl (org.). Routledge Handbook of Premodern Japanese History.
London: Routledge, 2017. p. 68–81.
Introdução
Desde a Antiguidade, os chineses desenvolveram um modo bas-
tante diferente de encarar aquilo que podemos classificar conceitu-
almente como ‘religião’. De fato, tal proposição – a ideia de ‘religar’
o ser humano ao divino, razão etimológica da palavra latina – lhes
era mesmo estranha; afinal, nada em suas formas de pensamento
está ‘desligado’ da natureza. O natural, o divino e o terrestre fazem
parte de um mesmo todo no qual o ser humano se insere, razão pela
qual o campo da especulação ‘filosófica’, ‘religiosa’ ou ‘científica’ se
encontra amplamente imbricado no pensamento chinês.
Por esta razão, a maneira como os chineses receberam, ao longo
de sua história, a vinda de religiões estrangeiras, caracterizou-se por
um conjunto de reações variáveis, mas nunca essencialmente antir-
religiosas. As atitudes chinesas, em linhas gerais, não se orientaram
por qualquer tipo de preconceito teológico, mas muitas das críticas
1 Por essa época, a palavra polissêmica Jiao 教, que pode significar ‘ensinar’ e
‘educar’, ganhou igualmente o sentido de ‘religião’, como traduzido por muitos
autores ocidentais.
A experiência Budista
O movimento religioso budista era, sem sombra de dúvidas, o mais
bem sucedido de todas as religiosidades estrangeiras presentes na
dinastia Tang. Desde o século 2 E.C., aparições esporádicas de budis-
tas já eram vistas na China (ZURCHER, 2007, p. 18-42); nos séculos
seguintes, a movimentação de missionários aumentaria exponen-
cialmente, e chineses convertidos iriam realizar viagens de aprendi-
zado e coleta de livros sagrados na Índia, como é o caso do monge
Faxian 法顯 (337-422 E.C. – [LEGGE, 1886]). Até o século 5 E.C. – ape-
sar várias crises políticas internas –, uma ampla rede de mosteiros,
templos e monumentos budistas foi construída no país, tornando-o
o novo centro do budismo mundial (ZURCHER, 2007: 154-160).
As escolas budistas chinesas (Fojiao 佛教) variavam em suas
orientações, mas produziram experiências originais, como a criação
do Budismo Chan 禪 (em japonês, ‘Zen’), que privilegiava os aspec-
tos da meditação e da introspecção em detrimento das práticas litúr-
gicas. Esse movimento atingiu seu ápice com o monge Huineng
慧能 (618-713), um dos mais expressivos religiosos budistas chine-
ses, cujas ideias imprimiram uma renovação sinizada na doutrina.
Todavia, esse sucesso não foi alcançado sem enfrentar a oposição de
daoístas e confucionistas.
A chegada do Budismo ao país foi cercada de controvérsias. Em
torno dos séculos 4 e 5 E.C., os daoístas sentiram a concorrência
budista, que diminuiu sensivelmente sua influência junto a vários
Judeus e Islâmicos
Frutos da diáspora instaurada pela dominação romana de Israel, e
continuada pelas pressões exercidas pela ascensão do Cristianismo,
alguns grupos judaicos (Yutaijiao 猶太教) deslocaram-se ao longo
do Oriente e da Ásia central, chegando até a China. Dedicando-se
a atividades cotidianas como o comércio, conseguiram estabelecer
pequenas e discretas comunidades, que foram capazes de sobreviver
a séculos de história. Para termos uma ideia, a última sinagoga chi-
nesa só seria fechada em 1912, o que demonstra uma capacidade de
sobrevivência e assimilação impressionantes (SMITH, 1973, p. 220-3).
A China testemunharia também a chegada dos islâmicos
(Dashijiao 大食教 ou Yisilanjiao 伊斯蘭教) de maneiras bastante dis-
tintas. Em 751, o califado abássida e a dinastia Tang se enfrentaram
na épica batalha de Talas (Daluosi zhanyi 怛羅斯戰役), que resultou
em derrota chinesa, mas brecou tanto o avanço islâmico em direção
à China quanto dos chineses para a Ásia central. Isso poderia cau-
sar certa animosidade contra a religiosidade islâmica por parte dos
Tang, mas o que aconteceu depois é bastante revelador sobre a polí-
tica de tolerância e inclusão dessa dinastia. Milhares de conversos
Reflexões finais
O episódio de perseguição promovido por Wuzong coloca em
questão o papel da relação entre Religião e Estado; quais são seus
limites? Qual é a linha que define o que é repressão religiosa?
Até onde o governo pode ou deve interferir nas questões internas
das religiosidades?
Uma leitura superficial e generalizada, usualmente presente nas
mídias ocidentais, entende que acontecimentos como esse revelam
uma longa tradição milenar de perseguição religiosa por parte do
Estado chinês, que culminou na forma como o governo contempo-
râneo trata esse tipo de problema. Para aceitar esse tipo de ponto de
vista, é preciso deliberadamente ignorar todos os outros longos perí-
odos de tolerância e inclusão que a sociedade chinesa vivenciou. É
preciso questionar, também, se essa conceituação sobre ‘repressão’
não significa, de certa forma, colocar as crenças pessoais acima da
lei estabelecida. Alguns governos ocidentais – e seu sinólogos –, em
geral, se pretendem ‘laicos’, mas são incapazes de aceitar a interfe-
rência do Estado chinês sobre questões religiosas. Há uma repro-
dução insistente do expediente orientalista em sujeitar as leituras
sobre a China a uma figuração estereotipada de coerção e controle
sobre a liberdade religiosa.
Referências
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Minority Affairs, v.16, n. 1, p.31-39, 1996.
YU, Anthony. State and religion in China. Estados Unidos: Carus, 2005.
Há uma antiga lenda cambojana que nos conta que, certo dia, um
estrangeiro advindo das terras indianas, um brâmane chamado
Kaundinya ou Preah Thaong, veio a barco para a costa do que hoje
referimos como o Camboja. Certo dia, uma princesa local, Nagi
Soma, foi falar com o viajante e foi atingida por uma flecha mágica
que a fez se apaixonar por ele. Tomada pela paixão, a princesa foi
logo pedir a aprovação de seu pai, o rei de linhagem dos Nagas,1 que,
como dote, deu ao novo casal todas as terras que tinha emergido
depois que as águas foram engolidas pelo rei. A essas novas terras
deu-se o nome de ‘Kambuja’. A lenda nos revela um pouco das ori-
gens míticas dos cambojanos, advindos por parte de seres ligados
à natureza e, por outra parte, de povos estrangeiros aculturados no
universo indiano.
4 Conta-se que a dominação tai sobre os khmers foi tão evidente que alguns anti-
gos vassalos do Império Khmer pensaram em se converter ao cristianismo para
contar com o apoio militar espanhol no século 16 (COTTERELL, 2014, p. 66).
Referências
6 A arquitetura suaíli não se restringe ao período pré-Moderno e pode ser vista, até
hoje, nas principais cidades costeiras, como Zanzibar e Lamu.
7 A presença portuguesa trouxe impactos para as sociedades suaíli não apenas
pela submissão, mas também porque as aristocracias locais precisaram desen-
volver novas estratégias para lidar com a realidade que se impunha (PRESTHOLDT,
2018, p. 517-520).
10 Destaco estes dois objetos em específico porque, por muito tempo, a construção
do Grande Zimbabwe foi atribuída a povos não-africanos e os vestígios arqueo-
lógicos mais comuns, como a cerâmica, podia ser facilmente vista como prática
tribal ou primitiva. Pela complexidade, simbologia e ‘africanidade’ da Águia de
Pedra e do Rinoceronte de Ouro, estes achados eram mais óbvios no que diz res-
peito ao questionamento das ideologias históricas racialistas que surgem entre
os séculos XIX e XX (cf. MITCHELL, 2002).
Fontes primárias
BARROS, João de. Décadas da Ásia de João de Barros: dos Feitos que os
Portugueses fizeram no Descubrimento, e Conquista dos Mares, e
Terras do Oriente. Lisboa: Nova Edição, 1778. v. 2.
Referências bibliográficas
ALTSCHUL, N. R. Postcolonialism and the Study of the Middle Ages.
History Compass, v. 6, n. 2, p. 588–606, 2008.
Capítulo VIII
Capítulo XIII
Figura II Foto de Anandajoti Bhikkhu (2010), sem alterações, dis-
ponível online sob licença Creative Commons (CC BY 2.0).
Figura III Foto de Olaf Taush (2015), sem alterações, disponível
online sob licença Creative Commons (CC BY 3.0).
Figura IV Foto de Marcin Konsek (2016), sem alterações, disponível
online sob licença Creative Commons (CC BY-SA 4.0).