21 Museus Colecoes e Patrimonios Narrativas Polifonicas
21 Museus Colecoes e Patrimonios Narrativas Polifonicas
21 Museus Colecoes e Patrimonios Narrativas Polifonicas
E PATRIMÔNIOS:
NARRATIVAS POLIFÔNICAS
MINISTÉRIO OA CULTURA
INSTITUTO 00 PATRIMÓNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
DEPARTAMENTO DE Museus E CENTROS CuLTURAIS
COORDENAÇÃO
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Maria Alzira Brum Lemos
Luiz Inácio Lula da Silva
MINISTRO DA CULTURA
CoNSELHO EDITORIAL
Gilberto Passos Gil Moreira
PRESIDENTE DO IPHAN Bertha K. Becker
Luiz Fernando de Almeida Candido Mendes
DIRETOR DE MusEus E CENTROs CuLTURAIS Cristovam Buarque
José do Nascimento Junior lgnacy Sachs
DIRETOR DE PATRIMÓNIO MATERIAL E FISCALIZAÇÃO Jurandir Freire Costa
Dai mo Vieira Filho
Ladislau Dowbor
DIRETORA DE PATRIMÓNIO IMATERIAL Pierre Salama
Márcia Genesia de Sant'Anna
DIRETORA DE PLANEJAMENTO EADMINISTRAÇÃO
EDITORA GARAMOND lrDA.
Maria Emília Nascimento dos Santos
Caixa Postal 16.230 Cep 22.222-970
PROCURADORA-CHEFE
Telefax: (21) 2504-9211
Lúcia Sampaio Alho
[email protected] .br
CooRDENADOR GERAL DE PROMOÇÃO oo PATRIMÓNIO CuLTURAL
Luiz Philippe Peres Torelly www.garamond.com .br
M974
Museus, coleçOes e patrimónios : narrativas polifônicas I Regina Abreu,
Mário de Souza Chagas, Myrian Sepúlveda dos Santos [organizadores) .
- Rio de Janeiro: Garamond , MinCJIPHAN/ DEMU, 2007.
256p.- 16x23cm (Coleçâo Museu , memória e cidadania)
ISBN 97B-B5-7617-136-2
1. Património cultural • Proteção . I. Abreu, Regina . 11. Chagas, Mário de
Souza , 1956·. III. Santos , Myrian Sepúlveda dos . IV. Série.
SUlll3RIO
U NIVERSIDADE E SOCIEDADE
Atuação em rede
Focalizando especialmente os museus de ciências e tecnologia, cons-
tata-se que, com uma rica linguagem museográfica e diferentes corren-
tes metodológicas, esses museus vêm contribuindo de forma eficaz para
a educação científica formal e não formal, interagindo com diferentes
tipos de público, representados pela comunidade científica, por univer-
sitários e profissionais de diferentes áreas e pela comunidade em geral.
Além disso, e de modo especial, têm interagido com o público escolar,
sobretudo professores e estudantes de ensino fundamental e médio,
contribuindo para ressignificar o ensino de ciências na escola.
Mas apesar da amplitude e do alcance de suas ações, assim como de
suas potencialidades, os museus universitários - como as universida-
des que os abrigam - enfrentam problemas e limitações. Ao longo dos
últimos anos, esses museus vêm refletindo e avaliando sua atuação e
lutando pela implementação de novos modelos de interação, amplian-
do objetivos e metas. Uma das ações mais promissoras tem sido a atu-
ação em rede.
Diferentes modelos teóricos vêm sendo utilizados para embasar tal
trabalho, dentre eles modelos biológicos, como as inter-relações celula-
res (as interneuronais principalmente) e o modelo sistêmico, interativo
e de cooperação mútua baseado na formação dos organismos. Todos
eles são modelos integradores, indutores de inter-relações, que expres-
sam bem a intencionalidade do trabalho em rede na prática - descen-
tralizado, aberto, transversal e interativo. Desde as redes de comuni-
cação, de cooperação, troca de experiências, construção e difusão de
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
DUPAS, G. Economia global e exclusão social. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
MORAES, Flávio Fava de. "Os centros de ciências como vitrinas das
universidades". In: Centros e museus de ciência- visões e experiências.
São Paulo: Saraiva, 1998. p.111- 123.
sobre o golpe vem mudando de significado 5 durante esses quarenta anos. 6. Disponível em
httpJ/WWw.ternuma.
As diferentes configurações políticas e econômic~s acirram as disputas com .br/bsb23 5.htm.
e
e levantam outras memórias. Desde 1997, esta data não mais comemo- Acessado em
9 nov. 2007.
o espaço público e passar do 'não dito' à contestação e à reivindicação." Iidade na prática o ato
delituoso( .. .)" .
A preservação da memória política da ditadura militar também deve 15. Helio Bicudo, em
ter uma função pedagógica, no sentido de ser pensada como uma lição "Revisitando a lei da
Anistia", in: Jornal do
para as próximas gerações, para que nunca mais venham a acontecer Grupo Tortura Nunca
Mais, de setembro de
as atrocidades do passado. Ao olhar o passado com os olhos críticos e 2005, p. 12.
atentos aos erros, poderemos encontrar o sentido da vida em comuni- 16. Estamos acompa-
nhando o caso da se-
dade e da vida nacional. nhora lvanilda Veloso.
Seu marido, ltair José
Essa preservação deve levar em consideração que o significado da Veloso, líder sindical
memória política é o de luta social. Consagrar o patrimônio que tenha e dingente do Comitê
Central do PCB, de-
como função apenas ressaltar a presença do Estado opressor e negli- sapareceu de casa no
dia 22)05/ 1975 e está
genciar as experiências daqueles que se opunham ao regime ou ofuscar até hoje desaparecido.
Sua esposa, Dona
o seu poder político naquela época e hoje, é acentuar apenas o lado frio lvanilda, o procurou
durante estes 31 anos.
da memória, desconectá-la de sua representatividade, de sua luta po-
Não havia nenhum
lítica e das relações sociais que se estabeleceram. É também colaborar documento e nenhu-
ma testemunha que
para a perpetuação do trauma de centenas de indivíduos que foram lhe pudesse ajudar.
Somente no infcio
vítimas do regime militar e cruzar os braços para as centenas de novas do mês de agosto de
2006 é que ela conse-
vítimas que diariamente surgem. guiu um documento
Uma política de preservação da memória do regime militar no Brasil que comprovou a sua
prisão, dando um pas-
deve objetivar olhar para o presente e colaborar para a construção de so importante no que
se refere à reparação
uma sociedade mais justa. Este é também o compromisso histórico da na Justiça.
pos sociais, principalmente de ex-presos e torturados, pela abertura dos talhes da sua atuação
politica, procuram
arquivos secretos. As querelas em torno da abertura dos arquivos secre- depoimentos de
pessoas que foram
tos merecem um apêndice neste trabalho em razão do entendimento vítimas, enfim, se
certificam que essa
do motivo pelo qual há uma enorme luta dos movimentos em defesa pessoa realmente
colaborou com o re-
dos agredidos pela ditadura, que sequer podem recorrer à justiça por gime e, em seguida,
não terem provas documentais ou testemunhais que comprovem o seu alugam ônibus e se
postam em frente à
envolvimento na luta contra o regime. 16 sua residência, no lo-
cal de trabalho, com
Segundo Carlos Fico (2004, p. 126-127): um megafone na
mão, denunciando
No apagar das luzes do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o Conselho todas as arbitrarieda-
Nacional de Arquivos (Conarq) foi pego de surpresa: no dia 27 de dezembro de 2002, des que essa pessoa
cometeu. Também
o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o Decreto n• 4.553, que passaria notificam a imprensa
e mandam e-mails
a vigorar 45 dias após a sua publicação, já no governo de Luiz Ignácio Lula da Silva. para todas as pessoas
que colaboram com
O novo decreto não foi discutido com o Conarq, ao contrário do anterior, então sua luta mundialmen-
te. Tornam públicas
revogado. As novas regras são draconianas, especialmente as que estabelecem os
suas perversidades, e
prazos de classificação (período durante o qual o documento fica inacessível). Os sufocam o cotidiano
da pessoa.
documentos reservados tinham prazo de cinco anos e passaram para dez; os con-
19. O Dossiê de mor-
fidenciais subiram de dez para vinte anos; os secretos, de vinte para trinta anos; e tos e desaparecidos
do regime militar de
os ultra-secretos podem permanecer sigilosos para sempre. Além disso, as regras 1998, elaborado pelo
Grupo Tortura Nunca
para desclassificação tornaram-se confusas. Mais- RJ, levou à lo-
calização das ossadas
Na contracorrente desse movimento proposto pela memória do con- de vários militantes.
senso, identificamos a memória da luta, promovida por diversos grupos Os estudos de DNA
promovidos pela
de pressão. O principal grupo de pressão, que concentra um grande nú- UNICAMP levaram ao
recente aparecimento
mero de pessoas atingidas pelo regime ditatorial é o Grupo Tortura Nun- de dois militantes
considerados até
ca Mais, atuante em diversos estados. Este grupo teve seu início no Rio de então desaparecidos
políticos: em maio de
Janeiro, depois se espalhou pelo Brasil.17 Outro grupo de pressão no Rio de
2006, Flavio Molina,
Janeiro é o "Amigos de 68". Grupos de pressão existem em vários países da na vala do Cemitério
de Perus, em SP;
América Latina que passaram por ditaduras militares recentemente. 18 em agosto de 2006,
Luiz José da Cunha,
A emergência da abertura dos arquivos e das indenizações também o Comandante
Crioulo, também
é diariamente cobrada dos governos desses países. Esse fato unifica a na vala do Cemitério
luta dos atores envolvidos. Há constantes encontros, congressos e co- de Perus, em SP.
Os silêncios e os não ditos aos poucos cedem lugar para outras me- 22. Compartilhamos
a visão de Daniel
mórias. Fatos incontestáveis são postos em xeque pelos trabalhos da Aarão Reis e outros,
que consideram que
memória. É nessa direção que o golpe de Estado já não pode mais ser o movimento que deu
identificado como uma "revolução democrática", conforme argumenta- origem ao Golpe teve
início em 1961, com
vam os militares. Sem dúvida, uma leitura ainda que modesta da memó- a renú ncia de Jânio
Quadros. Os militares
ria desse período já relaciona os acontecimentos de agosto de 61 com o por ele nomeados não
aceitaram que seu
Golpe de 64. Em agosto de 1961 ocorreu uma tentativa de golpe. Naquele vice, João Goulart. que
naquele momento es-
momento, havia um grande movimento de protesto em todo o País. Se-
tava em visita à China
gundo Daniel Aarão Reis (2004, p. 123): popular, tomasse pos-
se como Presidente, e
Desencadeiam-se em todo o país amplos movimentos sociais populares: campone- ameaçaram um golpe.
Mas seu cunhado,
ses, trabalhadores urbanos, principalmente do setor público e das empresas esta- Leonel Brizola, então
governador do Rio
tais, estudantes e graduados das Forças Armadas. Greves econômicas e políticas,
Grande do Sul, mo-
manifestações, comícios, invasões de terra, nunca se vira, como já se disse, algo bilizou a população
do estado e o coman-
semelhante na história republicana brasileira(...) alegava-se, era preciso reformar dante do III Exército,
a mais poderosa
as bases do sistema econômico e do regime político. Reforma agrária, urbana, ban- unidade do Estado
brasileiro, e resistiram
cária, financeira, universitária , educacional. Reforma das políticas públicas, em ao golpe, formando
a Rede da Legalidade
especial do estatuto dos capitais estrangeiros, que deveriam ser controlados e, no
(Reis, 2004, p. 120).
limite, em certos casos, expropriados. Este fato postergou
o golpe, mas levou a
Esses protestos irão se radicalizar para a luta contra a legalidade, uma lenta organiza-
ção de diversas frentes
até então pronunciada por Leonel Brizola, que em 1961, na tentativa de mobilizadoras do Gol-
pe de 1964, entre elas
salvaguardar o governo João Goulart, promove a Rede da Legalidade.ZZ as Forças Armadas, a
Enquanto as esquerdas caminham para o fim da legalidade, as direitas cúpula da Igreja Cató-
lica e as elites apoiadas
utilizam esse discurso para fazer o Golpe de 1964. pela classe média.
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
REIS, Daniel Arão; RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo Patto Sá.
O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru: EDUSC,
2004.
INTRODUÇÃO
1. Programa de servi-
ço e pesquisa sobre os
museus e sua relação
O presente texto apresenta e descreve os resultados da
Pesquisa Perfil-Opinião 2005, realizada no âmbito do Ob-
servatório de Museus e Centros Culturais. 1 Após relembrar, em linhas
gerais, os marcos conceituais que influenciaram a Pesquisa 2005, serão
com a sociedade.
Éfruto da parceria
descritos os seus primeiros resultados, propondo-se, nas considerações
entre o Museu da
finais, algumas linhas de reflexão sobre a operacionalização dos concei-
Vida, a Casa de
Oswaldo Cruz, a Fun- tos de capital cultural e capital social para analisar as práticas de visita aos
dação Oswaldo Cruz,
o Departamento de museus na sociedade urbana do Rio de janeiro.
Museus e Centros
Culturais do Insti-
tuto do Patrimônio
Artístico e Histórico
Algu ns pressupostos sobre cultura, distinção e inclusão social
Nacional, o Museu É comum aproximar a Cultura (a maiúscula assinalando sua univer-
de Astronomia e
Ciências Afins, o MCT salidade), do ponto de vista da Sociologia, como arbitrário cultural do-
e a Escola Nacional de
Ciências Estatlsticas minante, imposto e reconhecido como cultura legítima em suas relações
do Instituto Brasileiro
de Estatlstica e
com os diferentes segmentos sociais ou frações de classe. A cultura é
Geografia .
sempre atributo de um grupo, reunindo os sistemas simbólicos (arte,
religião, língua, ciência etc.) vigentes em determinado espaço-tempo.
A discussão sobre as desigualdades no acesso à Cultura, presente desde
a década de 1960 no campo da Sociologia, sublinha as funções sociais
A PESQUISA
Objetivos gerais
Identificar os processos e os contextos promotores de acesso aos mu-
seus para os variados segmentos sociais. Dessa forma, espera-se contri-
buir para a reflexão sobre o papel atual dos museus nos grandes centros
urbanos e para a compreensão dos fatores e situações determinantes
de experiências culturalmente inclusivas (democratização do acesso,
representatividade nos processos institucionalizantes do bem cultural,
discussão e apropriação reflexiva da cultura exposta).
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Universo do estudo
A pesquisa interroga o visitante com 15 anos ou mais de idade, em
situação de visita a um museu, que não participe de visitas organizadas
por escolas, pagante ou não pagante. Foram excluídos da pesquisa os
grupos escolares com visitas agendadas caracterizadas como visitas es-
colares de todas as idades e séries. Trata da prática real de visita, ao con-
trário das pesquisas realizadas nos domicílios ou em situações diversas
em que a visita ao museu é informada, constituindo prática declarada.
A pesquisa piloto foi realizada durante os meses de junho, julho e
agosto de 2005. Onze museus participaram dessa aplicação. O Quadro 1
a seguir apresenta as instituições, a data de fundação, o tipo de acervo,
a tutela correspondente a cada uma das instituições e o quantitativo de
questionários válidos.
Data de Questionários
Museus Tipo de acervo Tutela
fundação válidos
JNCAER/
-·
História, técnica, Coml\lndoda
Museu Aeroespacial 1973 349
dência áeronáuttcaJ
; - " ,_ MO
Museu de Arte
- 1996
,-
Arte SMC·Niterói 393
Contemporânea
Museu de Astronomia
1985 Ciência, técnica MCT 428
e Ciências Afins
'
Museu Casa de Ruí Barbosa 1930 História MINC 384
Etnografia,
Museu Nacional 1818 UFRJ 331
hi stória natural
1-
Total 3407
Fonte: Cadastro preenchido pelos museus participantes do Observatório I Pesquisa Perfil -Opinião 2005, OMCC
Área de Planejamento
Museus
AP1 A P2 AP3 AP4 APS
Museu de A st ro nomia
16.4% 21,0% 41 ,3% - -
e Ci ência s Afins
~ -
1-
Museu do lndio - 7.9,5% 10,3%
-
7,7% -
M useu Casa de Rui Barbosa - 57,8% 18,6% 16,5% -
Museu do Universo
,_ Planetário da Cidade - 58,7% 19,3% 17,8% -
~
47,5%
31,2%
Até Funda mental Completo Ensino Médio Superior Incompleto Superior em diante
3S,O%
Até SOO reais Mais de SOO a 2.000 MaiS de 2.000 a Acima de 4.000 reais N~o soube informar
reais 4.000 reais
19,9% 19,9%
r-- 18,6% ~
- 18,0%
-
15,9%
14,8% -
r-
84,4%
- 79,1%
73,3%
-
r-- 70,2%
64,4%
69,0%
r-- - 65,8%
- 60,8% r--
56,8% - 57,8%
r--
r--
49,5%
-
35,2%
-
73,7%
-
,--
62,1% -64,9% 60,5%
43,3%
72.4%
.---
52,3%
r--
39,9% 38,6%
r--- 36,3%
- 34,7%
r--- 32.4%
CoNSIDERAÇÕES
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
{ROGeR sansi-ROCa} 95
seificação da cultura afro-brasileira em Salvador é o momento da in-
corporação, por parte de uma elite de casas de candomblé, dos valores
e instituições da cultura e dos museus. Isto é: essa elite de casa de can-
domblé aprendeu a se· definir em termos de cultura e como instituição
cultural, e a negociar o seu lugar na sociedade brasileira por intermédio
das instituições da cultura.
Os museus são, e sempre foram, de fato, areias da construção dessa
relação entre o candomblé e o mundo da cultura oficial tanto no nível
nacional como internacional. Nesse sentido, gostaria de estender a pro-
2. "As in the colonial
examples evokeo by posta de ]ames Clifford, de ver os museus como "zonas de contato"2 nas
Pratt, negotiations of
borders and centers
quais os museólogos e os assim chamados "nativos" negociam sua rela-
are historically struc-
ção. Às vezes o contato é amigável e construtivo, outras vezes é hostil
tured in dominance.
To the extent that e polêmico; mas ainda assim os museus podem ser vistos como espaços
museums understand
themselves to be in- de produção de culturas. O discurso dominante na teoria crítica nas úl-
teracting with specific
communities across timas décadas tem descrito os museus como instituições de controle so-
such borders, rather
than simply eoucating
cial e imposição de ideologias hegemônicas (Vergo, 1989; Sherman and
and edifying a public, Rogoff, 1994; Marstine, 2006). 3 Mas poderíamos dizer que os museus não
they begin to opera te
consciously and at são só espacos de dominação, mas também fóruns de discussão de valo-
times self-critically in
contact histories" (Cii - res culturais (Karp and Lavine, 1991; Thomas, 1999).
fford 1997, p. 204) .
E poderíamos ir mais longe. Os museus poderiam ser ferramentas de
3. Por exemplo, "mu-
seums both sustain construção da cultura como tal, isto é, dentro deles alguns tipos de ob-
and construct master
narratives that achieve
jetos e os discursos a eles associados viram "cultura" e "arte". Eles não
an internal unity by são só cenários de negociação entre culturas, ou fóruns, mas também
imposing one cultural
tendency as the most oficinas onde construímos os valores da própria "cultura", a cultura
prominent manifes-
tation of a historical como instituição pela qual definimos o valor do próprio e do alheio.
period" (Sherman
and Rogoff, 1994:
Poderíamos dizer também que esse valor não é necessariamente re-
xi); "though museum
duzível à imposição das relações de poder, um valor de troca alienado
workers commonly
naturalize their poli- ou um desejo projetado. A revalorização do objeto como "cultura" pode
cies and procedures as
professional practice, não ser só um resultado da perspectiva etnocêntrica do curador. Pode
the decisions these
workers make reflect ser também o resultado de uma história de trocas entre produtores,
underlying value
systems that are en-
curadores e o público do museu, que produz ainda uma nova revalori-
codeo in institutional zação desses objetos. Os museus podem ajudar a construir certos valo-
narratives" (Marstine,
2006, p. 5). res sociais, incluindo os que chamamos "culturais" (Myers, 2001). Nesse
UM GABINIETE DE CURIOSIDADES:
O INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO
{ROGeR SaTISI-ROCa) 97
história local que priorizasse o rol da aristocracia local e a importância
da província dentro do Brasil.
A coleção do IHGB é essencialmente um gabinete de curiosidades.
4. Em 1919, o Dr. Muitos dos objetos da coleção estão agora perdidos, mas podemos achar
Álvaro Reis doou
"1 pilão de Oxalá, 1 referência a eles no jornal do Instituto, que faz referência às doações rece-
santo africano, 1 iché
de Xangô". O Coronel
bidas. Essas doações incluem medalhas comemorativas, coleções de ar-
Arthur Athayde doou mas, selos, pinturas, lembranças de guerra, minerais, bandeiras, restos
"Aros, rosanas, talhas,
moringas, feitiços, da aristocracia dos fazendeiros da província ... Todos esses objetos foram
pedras, roupas,
enfeites de plumas acumulados progressivamente, e sem uma intenção didática precisa;
de várias qualidades,
orações escriptas
são resultado de histórias particulares e eventos, suvenires e raridades.
etc. etc." (Revista do
Instituto Geographi-
Entre essas raridades, encontram-se os objetos do candomblé.
co e Historico, n. A origem da maioria desses objetos é incerta. Ainda assim, temos
45, ano XVI, 1919,
p.282) . Em 1926, o algumas provas de que vários são resultado de apreensões policiais. Nas
Profesor Bernardino
Madureira doou "3 relações de doações ao IHGB constam os nomes de oficiais da polícia,4 e
ata baques e santos:
(Oxalá, Oxum, Oledê),
nos jornais da época várias notícias fazem referência a expedições po-
"aprehendidos pela liciais que deixam os "arsenais de feitiçaria" (A Tarde 20 mai. 1920), os
polícia" (Revista do
IGH, n. 52, 1926, p. "apetrechos bélicos" (A Tarde 3 out. 1922) do candomblé no IHGB. Uma
415). Em 1927, o
Dr. Aristides Mendes placa no Instituto indica que muitos desses objetos foram doados por
deu 3 ata baques e
1 agogô (Revista do
um oficial da polícia, Pedro Gordilho. Gordilho é "Pedrinho Gordo" da
IGH, n. 53, 1927). Em
1934, o Dr. Federico
Tenda dos milagres de Jorge Amado, segundo a legenda grande flagelo do
Ferreira Bandeira deu candomblé nos anos 1920.
7 "idolos"do pai-de-
santo Severiano. da O objetivo dessas expedições, teoricamente, era perseguir a "falsa
Fazenda Engenho
Madruga, em São medicina": acabar com as traças do fetichismo negro para permitir o
Francisco do Conde
(Revista do IGH, n.60,
desenvolvimento de uma sociedade moderna. Mas os objetos recolhidos
1934, p.577) . Em
pela polícia nem sempre correspondem ao que poderíamos considerar
1937, o Capitão Han-
nequim Dan tas deu como provas de "falsa medicina" - como remédios ou folhas; são outros
atabaques proceden-
tes do "Candomblé tipos de objetos. Por exemplo, a cadeira do pai de santo ]ubiabá, que ain-
da Mata Escura"
(Revista do IGH, n. da se encontra lá: pelos jornais da época, sabemos que em 5 de outubro
62, 1936).
de 1921, a polícia entrou no terreiro de ]ubiabá em companhia de um
jornalista. A invasão foi claramente preparada para dar uma lição ao
então famoso pai-de-santo. O jornalista explica graficamente como os
policiais se apropriaram da cadeira de ]ubiabá justo no momento em que
ele ia cair em transe, sentado, rodeado por seus "acólitos":
{ROGeR sanSI-ROCa} 99
Do CRIME À PATOLOGIA: O MUSEU ESTÁCIO DE LIMA
no Museu da Cidade.
O interessante do caso é que o coletivo de defesa da cultura negra
não pede o retorno das peças de candomblé às casas de onde eles vêm
- dentre outras razões porque não têm nenhuma notícia sobre a ori-
gem das peças. Mas, além disso, eles concordam com a legitimidade
da instituição museográfica como um lugar onde essas peças podem
ser mostradas. Eles só não concordam com o tipo de museu: não vêem
essas peças como objetos de análise médico-legal, mas como obras de
arte sacra negra - a serem mostradas em um museu de arte, de forma
"condigna". Os valores do museu, a arte e a cultura, valores perfeita-
mente modernos, ocidentais, foram assumidos pelos membros do can-
domblé como legítimos.
Mas havia uma exceção: o atá, ou pedra sagrada do candomblé. No
relatório do processo, o otá é citado como uma peça que não pode ser
mostrada, sendo a sua exibição um sacrilégio. 6 O otá não é uma obra de
arte ou artefato: seu poder imanente tem de ser respeitado; tem que ser
escondido, e não mostrado. Seguindo esse argumento, o caráter "sagra-
do" do otá não é transformado pelo museu. Assim, ainda que os repre-
sentantes do candomblé tenham apropriado os valores culturais repre-
sentados pelo museu e reconheçam que a maioria dos seus objetos de
culto tem um valor cultural, ainda existem objetos que ficam fora dessas
considerações museológica, e as dinâmicas de invisibilidade e segredo
do candomblé ainda estão presentes neles.
9. Carta de Verger
lianista, Verger era um fotógrafo errante até que descobriu a Bahia nos
ao Departamento de
anos 1940, seguindo suas leituras de Jorge Amado. Sua paixão pelo can- Cultura do ltamaraty
(MRE), 9/7/1975.
domblé transformou-se em pesquisa etnográfica, não só na Bahia, mas
essencialmente na África, em Benin e na Nigéria. Verger tem uma visão
radicalmente diferente da de Nina Rodrigues: para ele, o candomblé é
arte e cultura, não patologia. Ainda assim, Rodrigues e Verger compar-
tilham a convicção de que o candomblé da tradição Nago-Ketu, essen-
cialmente aquele praticado pelos terreiros da Casa Branca e do Ilé Axé
Opô Afonjá, é o mais puro, o mais africano e o mais interessante como
objeto de pesquisa. Assim, Verger vai procurar na África as origens desse
candomblé africano, e no trajeto vai virar um "mensageiro dos deuses", o
contato entre as tradições dos Orixás e Vodus na África e na Bahia.
Verger foi comissionado pelo Itamaraty para comprar peças para o
museu em Benin em 1975. Depois de três meses Iá, ele voltou com 251
itens. Comprou alguns objetos de arte antigos, mas a maioria fora feita
por encomenda por artesões em Porto Novo e Abomey. Ele pediu cópias
de obras de arte, como a escultura de Gu do Museu do Homem em Paris.
Verger observa com satisfação que o custo da cópia é apenas $50;9 o total
21 . Campos, 19g9,
voltou da África "com o fim de dotar essa comunidade de uma dimensão
p. 171 histórico-cultural explicitada e continuada no trabalho das gerações". 20
O museu do Opô Afonjá apresenta esse terreiro como o local da cul-
tura africana no Brasil, onde as imanências são preservadas:
Ressaltar a presença forte e íntegra da religião e da cultura ioruba nesta casa(...)
como as imanências, essências preservadas e cuidadas transcendem as dimensões
contingentes, circunstanciais: perseguições policiais, distorçoes ambientais e inte-
reses individuais. Não é um museu de candomblé (... ) mas sim um depoimento, um
museu do Ilê Axé Opô Afonjá, sobre a cultura e religião ioruba, da qual o Axé aqui
no Brasil é depositário e mantenedor.U
O Ilê Ohum Lailai explica essencialmente a história do Opô Afonjá
através das histórias de vida das mães-de-santo da casa, com seus objetos
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
CAMPOS, Vera Felicidade. "O Museu do Ilé Axé Opô Afonjá". ln:
LODY&MARTINS, 1999.
LIMA, Estácio de. O mundo místico dos negros. Salvador: EGBA, 1975.
LODY, Raul & MARTINS, Cléo. Faraimará: Mãe Stella 60 Anos de iniciação.
Rio de Janeiro: Pallas, 1999.
LUHNING, Angela. "Acabe com este Santo, que Pedrito vem aí..."
ln: Revista da USP 28. São Paulo: Edusp, 1996.
ainda inexistente Museu do Índio, várias coleções etnográficas e em com uma antropolo-
gia solidária e 'in teres-
especial a coleção Urubu, formada por 164 objetos, recolhidos entre os sada nos índios como
pessoas' . A essa altura
anos de 1949 e 1950". Ione nos mostra como a escolha do grupo, bem o velho indigenista já
deveria estar seduzido
como a posterior seleção dos objetos para a formação da coleção, se pelo jovem etnólogo"
(Chagas, Mário.
prendeu a diferentes fatores relacionados àquela conjuntura política A imaginação museal.
e intelectual. Um deles pode ser atribuído à influência da escola alemã Tese de doutoramen-
to apresentada ao
de Antropologia, especialmente de Herbert Baldus, que havia sido pro- PPCIS da UERJ, 2003,
mimeo).
fessor de Darcy Ribeiro na disciplina Etnologia ~r~sileira, e de Harold
Schultz, funcionário do SPI e um dos primeiros cinegrafistas da ins-
tituição. Além disso, os Urubu haviam sido pacificados recentemente
(1928) por agentes do SPI e ainda não tinham sido estudados. O conjun-
to dos objetos coletados por Darcy Ribeiro é descrito por ele como de
A criação do museu foi precedida de uma pesquisa de opinião pública na qual duas
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
1. Meus agradecimen-
tos ao Departamento
dos Museus do lphan,
a Regina Abreu e
Manuel Ferreira Filho,
a relação entre a disciplina antropológica e a instituição mu-
seu tem sido pautada por sucessivos momentos de apro-
ximação, distanciamento, ruptura e reaproximação. 2 Em suma, ela se
revestiu, desde o início da Antropologia enquanto saber disciplinar em
pelo amável convite meados do século XIX, de um carácter problemático.
para participar do
simpósio "Antropolo- Por um lado, os museus etnográficos parecem estar num estado
gia e museus: revitali-
zando o diálogo", na de crise permanente que se manifesta nos países europeus através da
24" Reunião Brasileira
de Antropologia, em sua renovação ou transformação radical. São numerosos os debates,
Goiânia, em julho de
2006.
as mesas-redondas e os colóquios dedicados ao presente e ao futuro
2. Sobre as relações
dessas instituições. Que fazer com os museus de etnografia? Qual o
entre Antropologia e
papel que o museu pode desempenhar na paisagem conceptual da in-
museus, ver o artigo
clássico de William vestigação antropológica contemporânea? E, mais propriamente, qual
Sturtevant. "Does An-
thropology need Mu- o papel do museu enquanto espaço de mostra das diferenças culturais
seums?". ln: Procee-
dmgs of the Bio/ogical na época da globalização?
Society of Washing-
ton. Washington:
Por outro lado, a Antropologia parece também estar num estado
Biological Society of permanente de questionamento em torno do seu objeto de estudo e das
Washington, 1969, p.
82; Jean Jamin. "Faut- suas fronteiras disciplinares. Nessa perspectiva, a relação entre Antro-
il brOier les musées
d'ethnographie?", pologia e museus só pode se revestir de contornos problemáticos, e ten-
1n: Gradhiva 24, pp.
65-69, 1998 e Mary
tar revitalizar o diálogo constitui uma tarefa algo hercúlea. São dois os
Bouquet, Academic
aspectos que pretendo desenvolver neste texto: em primeiro lugar ten-
Anthropology and
the Museum. Back to tarei examinar alguns dos fatores que contribuíram para o fosso entre a
the Future. Nevv York/
Oxford: Berghahn Antropologia e os museus. Em segundo lugar tenciono esclarecer aquilo
Books, 2001.
que parece ser, à primeira vista, algo paradoxal: o fato de os museus
Há mais de vinte anos que o tema da crise dos museus de etnografia 3. Para um panorama
dos debates em torno
é objeto de colóquios, seminários e publicações um pouco por toda a da crise dos museus
de etnografia. ver
Europa. 3 Em nossos dias, os termos do debate não evoluíram sensível- Nélia Dias. "Does
Anthropology need
mente, mas se colocam de outra forma e revestem-se de uma manifesta
Museums?". Teach1ng
atualidade com a construção dos novos museus e a renovação dos an- Ethnographic Mu-
seology in Portugal.
tigos. Ora, a questão que podemos colocar é a seguinte: até que ponto Thirty years la ter. ln:
Mary, Bouquet. Aca-
a crise diz respeito ao museu, à Antropologia ou à relação entre ambos? demic Anthropology
and the Museum.
De uma certa forma, as críticas recentes lançadas contra os museus Back to rhe Future.
de etnografia fazem lembrar as objeções levantadas nos anos 1960 con- op. crt. •p 92-104.
museus foram denominados consoante o conteúdo das suas colecções Andrew Zimmerman.
Anthropology and
- históricas, artísticas, etnográficas e arqueológicas. Este modelo, que Antihumanism in
Imperial Germany.
emergiu no século XIX e à luz do qual os museus foram designados em Chicago and London:
The University of Chi-
função dos saberes disciplinares - museus de arte, de história, de et- cago Press, 2001 .
CRISE DA ANTROPOLOGIA?
7. Barbara Kirshen- Até que ponto a crise dos museus etnográficos está relacionada com
blatt-Gimblett. "The
Museum as Catalyst" . a crise da Antropologia? O fosso entre os museus etnográficos e a Antro-
ln: Museum 2000 -
Confirmation or Chal-
pologia não é de forma alguma recente. Grosso modo, a partir dos anos
/enge? Stockholm : 1950, os antropólogos debruçaram-se sobre temas -parentesco, práticas
Riksutstallningar
- Svenska, Museifore- rituais, saberes orais, sistemas simbólicos - que não requeriam de forma
ningen, 2000.
alguma o estudo dos objetos materiais. Tal é, em todo o caso, a explicação
8 . Maurice Godelier.
"Un musée pour les avançada por Maurice Godelier para tornar compreensível o estado de
cultures" . ln: Sciences
humaines, dez . 1998, abandono do Museu do Homem em Paris. 8 O mesmo se passou na Antro-
n° 23, p. 19.
pologia de origem britânica: o estudo da cultura material divorciou-se da
antropologia social, com a conseqüente divisão de trabalho entre os peri-
tos que estudavam os artefatos e os especialistas que analisavam a socie-
dade ou a cultura, ou seja, que elucidavam os contextos socioculturais.
Ao circunscreverem o estudo dos objetos materiais à dimensão fun-
cional e simbólica, os antropólogos abandonaram a abordagem estéti-
ca desses mesmos objetos. Uma das consequências dessa limitação da
abordagem antropológica dos anos 1950 em diante vai repercutir na
emergência paralela de uma perspectiva estética sobre os objetos não
ocidentais, em termos de universalidade das expressões artísticas. Esta
perspectiva, liderada pelos historiadores de arte e pouco receptiva à di-
mensão contextuai dos objetos, engloba aspectos negligenciados pelos
antropólogos, tais como a exploração da forma interna, a atenção pres-
tada ao artefato enquanto tal e o relacionar de um estilo com o outro.
Noutras palavras, o corte entre Antropologia e museu remete a um ou-
discipline". 10 Com efeito, assistimos, por um lado, à explosão das frontei- la question des dé-
signations. Arquivos
ras do discurso etnográfico e ao conseqüente apagamento dos limites do Centro Cultural
Calouste Gulbenkian,
entre etnografia e história cultural e cultural criticism. Por outro lado, as XLV. pp. 3-13, 2003.
ÜBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS
Em nossos dias, podemos ter museus e/ou exposições quase sem ob- 13. Jacques Galinier
e Antoine! te Molinié.
jetos. A própria noção de objeto de museu é assim questionada; o objeto "Le Crépuscule des
lieux. Mort et re-
de museu não implica forçosamente materialidade do objeto, podendo naissance du musée
incluir tudo que é suscetível de ser exposto: vídeos, performances, re- d'anthropologie". ln:
Gradhiva, 24, pp. 93-
gistros sonoros e outros elementos. Nos dias de hoje, alguns museus de 102, 1998.
etnografia, como é o caso do Museu de Etnografia de Neuchâtel sob a di- 14. Sobre as transfor-
mações da instituição
reção de Jacques Hainard, não se limitam a analisar e a expor os objetos museu, ver Elaine H.
Gurian. "What is the
não europeus como meros testemunhos ou documentos. Pelo contrário, Object of this Exerci-
se? A meandering ex-
esses objetos constituem o ponto de partida para uma reflexão sobre o ploration of the many
meanings of objec1s
funcionamento da cultura, sendo neste caso o objeto um objeto cultural
in museums". ln:
e não tanto um objeto testemunho. A partir do momento em que o ob- Daeda/us (summer),
pp.163-184, 1999.
jeto material deixa de ser central para o museu, é a própria instituição
museu que se torna problemática. 14
De instituição ligada a diversos saberes disciplinares, o museu tran-
formou-se num campo disciplinar autônomo, os museum studies, e insti-
tucionalizado (com a criação de revistas especializadas, de departamen-
tos universitários e de séries editoriais). Talvez o diálogo que tentamos
restabelecer passe não tanto entre a Antropologia e os museus, mas sim
entre a Antropologia e a Museologia.
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
APRESENTAÇÃO
de estágios mais atrasados que comprovassem uma "infância da civi- 4. Schwarcz, Lilia.
Op cit., p. 87.
lização". A prática de colecionar vestígios de outros povos iniciou-se,
5. Curt Nimuendajú
portanto, no Brasil como uma prática ligada à Antropologia Física, com emigrou para o
Brasil em 1903, aos
a proliferação da coleta de ossos humanos entre os nativos. Nessa pri- 20 anos de idade, e
aqui viveu até a sua
meira fase da Antropologia, o ideal de todo antropólogo era organizar
morte, em 1945.
uma "coleção sistematicamente e cientificamente classificada", como Participou de dezenas
de expedições cienti-
dizia o naturalista Emílio Goeldi. 4 ficas e relacionou~se
com diversos povos
Outro fator determinante nas práticas de colecionamento nos pri- indígenas. Como
assinalou Grupioni,
meiros anos da Antropologia eram as políticas de museus estrangeiros, "seu trabalho abarcou
que fomentaram grandes expedições científicas ao Brasil para coletar domínios do indige-
nismo, da lingüfstica,
acervos de povos indígenas. Apreender o exótico era, antes de tudo, da etnografia e do
colecionamento". Ver:
salvar o que irremediavelmente iria se perder, daí a significação de re- Grupioni, luiz Doni-
sete Benzi. Coleções e
líquia ou de testemunho expressa pelo recolhimento de artefatos pro- expedições vigiadas.
São Paulo: Hucitec,
duzidos por esses povos. 1998, p. 2 50.
O personagem emblemático desse período é Curt Nimuendajú, que
se tornou a maior autoridade no campo da etnologia indígena durante
toda a primeira metade do século, mantendo relações com praticamen-
te todas as instituições e órgãos importantes de ·seu tempo. Sua vida e
obra se relacionam diretamente com a emergência da etnologia como
disciplina no Brasil e a institucionalização do indigenismo nacional,
ocorridos no início do século, chegando a ser considerado o "pai da
etnologia brasileira". 5
o museu deveria privilegiar informações sobre as condições de vida lone Couto produzida
no âmbito do Progra-
intelectual que delas compartilhava na maior parte dos países do Ocidente. Tal
concepção favorecia uma visão menos rígida sobre os conceitos de arte e estimulava
a percepção de novas formas expressivas. (...) Éjustamente essa maleabilidade das
fronteiras que vai possibilitar que se olhe de maneira diferente para a atividade
criativa em geral, permitindo a identificação do caráter artístico em obras que não
obedeciam aos grandes estilos reconhecidos, como é o caso das obras feitas pelos
artistas populares. 13
Desse modo, além do campo da Antropologia, o campo da arte es-
tava se renovando, com a valorização da chamada "arte primitiva" ou
"arte naif".
Darcy Ribeiro era contemporâneo de uma geração de artistas bra-
sileiros que, como seus pares na Europa, buscavam inspiração na pro-
dução artística das etnias indígenas ou dos segmentos populares, como
Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Augusto Rodrigues, este último res-
ponsável pela descoberta do ceramista Vitalino Pereira dos Santos, o
mestre Vitalino (1909-1963), cuja obra, como assinàla Ângela Mascelani,
"viria a chamar a atenção para uma peculiar criação, em barro, existen-
te em várias partes do país". É importante assinalar que, em 1947, logo
seis anos antes da inauguração do Museu do Índio, Augusto Rodrigues
havia organizado no Rio de janeiro a primeira exposição da arte popular
pensadores uma reflexão importante sobre o papel dos intelectuais na apresentada à École
des Hautes Études
construção da paz mundial. Diversos combates centrados na luta contra en Sciences Sociales,
2006.
o fascismo e o racismo foram travados por essa geração de antropólo-
16. Rivet. Paul. "Mu-
gos, que conjugavam pesquisa e ação, ciência e militância. No final da sées de l'homme et
comprehension inter·
guerra, o Museu do Homem iria assumir-se como veículo estratégico no nationale" . ln : Revista
Museum . Paris: UNES-
combate a todas as formas de racismo e na afirmação do conceito antro- CO. 1948.
gica, pastoril, mercantil, industrial, termonuclear; 2. O homem americano: suas conta a fundação,
em 1968, no Rio de
origens, seus níveis de desenvolvimento evolutivo e suas civilizações; 4. O índio Janeiro, do Museu
de Folclore Édison
brasileiro: seus graus de desenvolvimento, suas línguas e culturas; S. A civilização Carneiro como um
dos resultados do
brasileira: suas matrizes lusitanas e africanas e seus ciclos civilizatórios; 6. A civi- movimento folclo-
rista. em especial da
lização do ouro: Minas Gerais o contexto histórico, a expressão barroca nas artes
Campanha de Defesa
e na economia industrial moderna. 7. O Brasil no mundo e 8. A cultura caipira e a do Folclore Brasileiro,
que congregou dife-
tecnologia da vida rural. 25 rentes intelectuais e
teve forte atuação de
O Museu do Homem de Minas Gerais não chegou a se efetivar, mas 194 7 a 1964. Outras
iniciativas museológi-
seu projeto, acalentado nos anos 1970, representava a permanência do cas, como a formação
paradigma do Museu do Homem enquanto idéia-força que congregava da Coleção de Arte
Popular de Jacques
o tema da diversidade das culturas humanas com a unidade da espécie Van de Beuque du-
rante os anos 40, até
humana, que pretendia por intermédio dos museus afirmar diferen- sua morte nos anos
90, também têm
tes processos civilizatórios e contribuir para a solidariedade entre os relação di reta com as
novas tendências da
povos e a paz mundial. Além disso, assim como o Museu do Índio e o arte e da Antropolo-
Museu do Homem do Nordeste, o projeto do Museu do Homem de Minas gia, particularmente
nos contextos de fu n-
Gerais representou mais um exemplo de iniciativas vinculadas a ins- dação da UNESCO e
das "antropologias da
tituições estatais, protagonizadas por antropólogos renomados, com ação" que animaram
os antropólogos do
claros objetivos de intervenção social e política na construção de novas pós-guerra.
mentalidades na luta contra o preconceito, o racismo, a intolerância e
na afirmação e valorização da mestiçagem como via para o desenvolvi-
mento nacional e regional. 26
O museu Máguta
O pequeno museu, instalado numa casa de arquitetura simples, com
varandas ao redor, cinco salas de exposição e uma pequena biblioteca,
foi criado no bojo da luta pela demarcação de terras. Algumas lideran-
ças ticuna perceberam que seu direito à terra dependia, em grande par-
te, de serem reconhecidos como índios pela sociedade brasileira. Muitas
vezes, eles eram identificados como "caboclos" pela população local. Do
ponto de vista das lideranças indígenas, era preciso fortalecer a iden-
tidade ticuna, muitas vezes escondida pelos próprios índios e negada
sempre pela população regional. A idéia da criação do museu surgiu
como um instrumento de luta, num momento crítico de mobilização po-
30 . Gruber. J. 1995.
mais apoio junto à população local. Segundo Jussara Gruber: citado por Freire,
O trabalho educativo do museu- através de um programa de interação com ases- 2003 .
colas da cidade, que tem por finalidade aproximar as novas gerações da cultura e da
história dos ticuna - vem cumprindo a importante função social de promover uma
maior harmonia nas relações interétnicas na região, colaborando para que sejam
desfeitas, gradativamente, as idéias preconceituosas e discriminatórias a respeito
das populações indígenas. 30
Em 1995, o museu foi premiado como "museu-símbolo" pelo Inter-
national Council of Museums (ICOM), realizado em julho do mesmo ano
em Stavanger (Noruega). No mesmo ano obteve o prêmio Rodrigo Melo
franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), por sua contribuição para a preservação da
memória cultural brasileira.
Desde o início, o ticuna Constantino Ramos Lopes Cupeatücü desta-
cou-se nas atividades de coordenação e colecionamento de objetos para
o museu. Guardando as devidas proporções, Constantino representou
para o colecionamento ticuna no final do século XX o mesmo que Curt
Nimuendajú representou no início do século em termos de objetivo de
coleta de artefatos e estudo da cultura material. Entretanto, enquanto o
primeiro procurava representar sua própria cultura, o segundo integra-
va uma visão de Antropologia e uma prática de colecionamento que re-
tirava os objetos de seus contextos de origem para enviá-los aos grandes
museus etnográficos, onde diferentes culturas. deveriam ser exibidas
em conjuntos-síntese da diversidade cultural da humanidade. O museu
ticuna emergiu como uma experiência articulada aos próprios índios
que, talvez pela primeira vez na história do Brasil, realizavam uma ex-
O Museu da Maré
Mas o movimento de mudanças na relação entre Antropologia e mu-
seus abarcava também outros agrupamentos sociais. Assim, no início
do século XXI, um pequeno museu instalado na Favela da Maré, no Rio
de Janeiro, chamava a atenção do Ministro da Cultura, que fez questão
de participar de sua inauguração em maio de 2006. O museu trazia uma
curiosa linguagem antropológica, sendo dividido em 12 tempos, como
os meses do ano: tempo da água, da resistência, da casa, da festa, da
brincadeira, do medo, do futuro ...
Moradores da Maré organizados numa associação civil expressavam
o ponto de vista daqueles que viviam numa comunidade de baixa renda
e que foram os protagonistas de incansáveis lutas para se manter no es-
paço de uma cidade plena de conflitos e exclusões. O museu era funda-
mentalmente criado para fomentar a auto-estima dos trabalhadores que
habitavam o lado considerado feio e violento da cidade. Contar a história
da Maré, trabalhar com o público escolar (são várias escolas públicas
no Complexo da Maré) para mudar a imagem do bairro para os próprios
moradores, propiciar a reflexão sobre as tensas relações entre a favela e a
cidade, mas ao mesmo tempo lembrar com alegria e nostalgia das festas,
dos batizados, das redes de amigos e familiares que se teceram ao longo
do tempo, estes têm sido alguns dos objetivos do Museu da Maré.
O grande ícone é a casa de palafitas, símbolo maior da resistência
e da insistência do próprio homem em sobreviver nas condições mais
adversas.
todas diferentes entre si, acabam por assim formar um conjunto interessante. Ali é
um lugar de encontro, de celebração, ali se encontram as individualidades que vivem
na casa. Na mesa se expõem as angústias, nela se conversa e se silencia. Podemos ver
a família, os amigos, os vizinhos, tomando o café da tarde, passando no coador de
pano, com um pedaço de pão; a avó fazendo o "capitão", misturando o feijão cozido
com carne seca e a farinha crua de mandioca; os pais alegres no dia do batizado
servindo o macarrão com galinha.
O telhado é pesado, de telhas de barro tipo francesas, em duas águas, de acabamento
irregular. Não protege tão bem do sol e das chuvas, tem frestas e goteiras. As telhas,
o vento pode arrancar e expor os medos.
Essa casa é de todos e de ninguém. Um barraco de madeira, razão de ser e centro da
história de vida de milhares. É mais que um lugar, é um lugar de memória! (texto
de um dos di retores do Museu, Antonio Carlos Pinto Vieira)
O Museu da Maré emerge assim como estratégia de um movimento
social contemporâneo, em que os cidadãos se apropriam de instrumen-
tos antes ligados a políticas públicas, construindo novas possibilidades
para suas próprias vidas. O discurso antropológico, antes restrito às
academias e aos museus de ciência, é absorvido e reinterpretado por
segmentos populacionais que lutam em defesa de novos projetos sociais.
Os novos usos dos museus e, em particular dos museus etnográficos ou
antropológicos, merecem ser estudados, pois configuram novidades in-
teressantes para os impasses e questões do mundo contemporâneo.
Em 2007, o tema ofictal dos museus foi definido pelo ICOM: "A relação
dos museus com o patrimônio universal". Não é por acaso que o princi-
pal organismo de àglutinação dos museus traga o tema do Patrimônio
Universal. Os museus, e muito especialmente os museus antropológi-
cos, vivem da conjugação entre o singular e o universal. Se, de um lado,
podem ser considerados patrimônios etnográficos relacionados a gru-
pos culturais específicos, por outro lado, eles congregam patrimônios
abrangentes. Podem ser locais, regionais, nacionais e universais. Todas
essas dimensões combinam-se nos museus. Resulta dessas combinações
a riqueza das instituições museológicas.
Por outro lado, novas experiências museológicas protagonizadas
por movimentos sociais vêm representando uma novidade interessante
e plena de possibilidades. Contudo, precisamos mais do que nunca fi-
car atentos. Num contexto mundial em que a lógica de mercado tende
a lançar as culturas e os povos em regras competitivas na busca de fi-
nanciamentos, subsídios, prêmios, distinções de vários tipos, parece-me
crucial refletir sobre a atuação e o pensamento de intelectuais como
Paul Rivet, Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre. Particularmente importante
me parece o papel que esses intelectuais atribuíam ao Estado enquanto
instância fomentadora do encontro e do relacionamento entre as cul-
turas. Idealizando instituições museológicas de grande porte, formu-
lando políticas públicas, esses intelectuais viam as diferentes culturas
como expressões do humano. E essas instituições como o lugar de troca
e reconhecimento da igualdade na diferença. Ainda podemos e devemos
crer que as culturas expressam a unidade fundamental da espécie hu-
mana e que o destino não apenas da humanidade, mas da própria vida,
depende do entendimento e da colaboração entre elas.
FREIRE, José Ribamar Bessa. "A descoberta do museu pelos índios". ln:
Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: DPA, 2003.
JORNAL MUSEU AO VIVO (n. 20, ano XII, fev. 2001 a jan. 2002). Rio de
Janeiro: Museu do Índio, 2002.
INTRODUÇÃO
0 ESPAÇO DE TRADUÇÃO
(OLECIONISMO X DESAPARECIMENTO
CoNSIDERAÇÕEs FINAIS
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
INTRODUÇÃO
de devoção religiosa.
2. Segundo Alvim A Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
(1997, p. 200), após
o incêndio, os altares, Pretos encontra-se localizada no centro do Rio de Janeiro e foi constru-
as tribunas, o coro
e os pilares foram
ída no início do século XVIII. Apresentando um pavimento comprido e
"reconstruidos em
concreto aparente, e
estreito, reconstruída após um incêndio em 1967 que descaracterizou o
as tribunas da Capela- seu interior recoberto de ouro, a igreja apresenta hoje paredes e tetos
Mar, guarnecidas com
treliças em madeira". pintados de branco.
Venho percebendo a
existência do termo Ao entrar na igreja logo se percebem duas enormes imagens dos san-
"pobreza" para de-
signar a igreja antes tos padroeiros: do lado esquerdo está a imagem de Nossa Senhora do Ro-
e após o incêndio em
algumas bibliografias
sário e à direita a imagem de São Benedito. Cada santo apresenta um altar,
(Soares, 2000; Alvim, forrado sempre por um pano branco e de renda. Abaixo de cada altar há
1967; Mauricio,
1947) e nos comen- jarros de flores e uma grande cesta de palha onde os fiéis depositam ali-
tários de alguns fiéis;
em geral, cometam a mentos, que simbolizam suas doações e agradecimentos a esses santos.
pobreza existente na
ornamentação do seu A igreja apresenta ainda em seu interior, à esquerda, as imagens de
interior em compa-
ração com as demais
Nossa Senhora das Dores e de São Sebastião e, à direita, as imagens de
1grejas do Rio de
Janeiro e a valorizam
Nossa Senhora das Cabeças, Nossa Senhora da Luz e Nossa Senhora Apa-
pela sua "importância recida. Na parte externa, seu corpo central é ladeado por duas torres
história", com vere-
mos mais adiante. sineiras e por uma fachada, alterada no século XIX. 2
vendem velas ao lado de crianças, cachorros e alguns moradores de exercício dessa ocu-
pação (na "pista", no
rua. Notei que a maioria destes trabalhadores é composta de mulhe- camelôdromo e nas
barracas), torna-se
res negras de classe baixa. Em alguns momentos, ao passar em frente à uma importante refe-
rência para a pesqui-
igreja, o pedestre pode se surpreender com alguns devotos que vendem sa, visto que a autora
atribui um destaque à
medalhas de santos a qualquer preço, "o preço da sua devoção" (como rua Uruguaiana.
certa vez ouvi), para ajudar a igreja. Esse espaço da rua Uruguaiana se 4. Em ida ao campo
em 12 de março, foi
apresenta, assim, como uma categoria física e simbólica e, como tal, de
feita uma conferência
importância fundamental na vida dos devotos. 3 pelos "irmãos" no
salão nobre da igreja.
Apresentando ainda em sua estrutura física dois bares, um salão de A reunião tratava
da criação de um
barbearia e uma loja de artesanato onde são vendidos, sobretudo, ima- novo estatuto que
permitiria às mulheres
gens de santos e bonecas de pano, é nessa igreja setecentista que tam- o direito de ocupar
bém está localizado o Museu do Negro. Tanto o museu quanto a igreja papéis até então mas-
culinos, como o cargo
estão sob os cuidados da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São de provedor, mudan-
do uma "tradição
Benedito dos Homens Pretos, criada em 1640. de 370 anos", como
afirmavam. Para esta
Seus membros são homens, mulheres e crianças de diversas faixas descrição cabe um
estudo detalhado
etárias. Observo entre eles a denominação da Irmandade como uma
sobre o termo de
organização que reúne "brancos", "negros" e "mestiços". Em campo, compromisso anterior
desta Irmandade,
podemos perceber a existência de papéis sociais e simbólicos bem dis- que data do século
XVII, e o termo atual,
tintos entre eles, e o uso da categoria "irmão" na nominação ou refe- criado em 2006. Vale
destacar na tese a
rência a alguns membros: aos homens cabem os cargos de procurador, discussão entre os
provedor, tesoureiro, escrivão e irmão; às mulheres, os cargos de juí- "irmãos" a respeito
dessa mudança, arti-
zas, zeladoras e irmãs. culando os conceitos
de "tradição" e "mo-
Essa divisão de trabalho por gênero parece funcionar como um dernidade" .
os fundadores das irmandades do Rosário, que assim se difundiam ra- Segundo Quintão
(2002), nesse século
pidamente. Em Lisboa, o convento dominicano tornou-se famoso por também era emprega-
da freqüentemente a
causa de uma imagem da Virgem à qual se atribuíam milagres. Logo expressão "irmandade
dos pardos", "irman-
começaram a surgir irmandades e, entre as dedicadas à Virgem, a de dade dos crioulos"
e "irmandade dos
Nossa Senhora do Rosário foi das mais importantes, rivalizando em nú- homens pretos". Em
mero com as irmandades do Santíssimo Sacramento e das Almas, ainda conversa em campo
com um membro da
mais populares. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Irmandade, este expli-
cava que o termo res-
surgiu em Portugal a partir de uma transformação gradativa, a partir tringia a participação
de "pessoas brancas"
das irmandades de brancos. na congregação e
cêndio, dentre elas, os castiçais e lustres.9 Há um armário que contém pe- 9. Segundo um dos
informantes, que
ças de rostos e vestimentas de negros do Brasil, Senegal, Angola e Nigéria. trabalha há 40 anos
como porteiro da
Objetos como algemas de ferro (para pernas e mãos) e algemaduras de igreja, apenas uma
"cruz fot salva". Ele
castigos infantis ocupam espaço ao lado de uma pintura do artista Jean comentou que as
imagens de Nossa
Baptiste Debret: trata-se de uma sinhá que aparece batendo com uma Senhora do Rosário
palmatória na mão estendida de um menino escravo, que se encontra ajo- (à esquerda do altar)
e de São Bendito (à
elhado e vestido de branco. Abaixo, a classificação do objeto no museu: direita) foram trazidas
de Portugal após o
Palmatória: castigo preferido na disciplina de negros e moleques, era comum ser incêndio de 1967.
cidadania, um recorte de apoio à iniciativa da Ação Afirmativa, ao lado e São Benedito dos
Homens Pretos.
de imagens de negros (a maioria crianças sorrindo). Há também imagens
de artistas negros brasileiros representados pelo quadro da atriz Ruth
de Souza, que chegou a doar ao museu quatro troféus de sua "famosa
coleção" em 3 de outubro de 2000. Somam-se ao colecionamento fotos
do artista negro Grande Otelo em cenas do filme Macunaíma, cujo acervo
pertence à família Prata. Do lado esquerdo, podemos ver fotografias de al-
guns políticos, como Benedita da Silva e Abdias Nascimento (ainda como
senadores), do deputado José Miguel (autor da Lei n. 598 de 13/12/1983,
que instituiu o movimento Zumbi dos Palmares, e da Lei n. 675 de 5/12/
1983, que dispõe sobre a "Quinzena de Feira da Cultura Afro-brasileira",
a ser realizada anualmente no mês de novembro), finalizando com uma
homenagem a Zumbi. Há fotos também do pastor evangélico e ativista
negro norte-americano Martin Luther KingJr (1929-1968).
Duas esculturas representam o corpo da Princesa Isabel ao lado de
seu esposo Conde D'Eu. Segundo fontes históricas, seus ossos teriam sido
guardados nessa igreja antes de serem encaminhados ao Museu Impe-
rial de Petrópolis. Há fotografias dos membros da Irmandade de Nossa
· Senhora do Rosário e de São Benedito recebendo a princesa e seu esposo,
após retornarem de Paris. Na maioria das fotos, podemos notar a Irman-
dade desfilando ao centro, tendo ao lado (ou atrás) a Guarda Imperial.
Mas o destaque maior, atribuído pela museóloga, parece estar na fi-
gura de João Batista de Mattos. Em algumas visitas ao museu, ela fazia
questão de narrar a importância desse juiz da Irmandade, que teria ob-
tido recursos e iniciativa para a reconstrução da igreja após o incêndio,
como mostra os dizeres escritos por ela ao lado de' um dos quadros de
Mattos, dentre eles um doado pela Irmandade em 5 de abril de 1987:
Neste painel sobre o glorioso exército brasileiro faremos homenagem a João Ba-
tista de Mattos que percorreu todos os escalões da vida militar, atingindo o posto
máximo de Marechal. Foi brilhante na tropa e no gabinete de estudos. Foi bacharel
CoNSIDERAÇõEs FINAis
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
JACKNIS, Ira. "Collecting" ln: The Storage Box ofTradítion: Kwakiutl Art,
Anthropologísts and Museums, 1881-1981. Washington: Smithsonian
Institution Press. 2002, pp. 19-72.
STOKING JR., Georg W. "Essays on Museums and Material Culture. ln: The
Storage Box ofTradition: Kwakiutl Art, Anthropologists and Museums,
1881-1981. Washington: Smithsonian Institution Press, 2002, pp. 3-14.
Ü CONCEITO DE FETICHE
0 DESAFIO DO FETICHE
CoNcLusÃo
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
xacriabá têm uma história de mestiçagem que é própria desse povo e as mesmas regras
sociais e padrões
dotada de características únicas. Não faz sentido, nem é correto esque- de comportamento
simbólicos. Todavia, o
cer e cancelar essa história. A mestiçagem é, sem dúvida, uma caracte- que é criticável nesse
interessante exemplo
rística central do caminho percorrido pela maioria dos povos indígenas citado por Cohen é
que a essa comuni·
do Nordeste, caracterizados por muitos anos de contato com a socie- dade falta um fator
dade envolvente. Mas é evidente que cada grupo, de maneira única e essencial para ser
considerada "étnica":
particular, reinterpretou e reinterpreta a mistura, criando e recriando a reivindicação de
uma identidade étni-
com orgulho a própria identidade sociocultural e étnica. Somente se os ca, a self-ascription
ressaltada por Barth
índios tiverem a liberdade de recriar essa identidade sem ter por obri- (1969)
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
ALBERT B. Territorialité, ethnopolitique et développement: à propos du
mouvement indien en Amazonie brésilienne. ln: "Cahiers des
ameriques latines", XXIII, 1997, pp.177-210.
das sociabilidades, do confronto de significados, dos conflitos sociais e 2006) e Mairesse &
Desvallées (2007).
suas diferenças, da diversidade. Os museus são sem dúvida o espaço da
representação do "poder simbólico" das sociedades (Bourdieu, 2000).
A DÁDIVA MUSEAL
sas parcerias institucionais - como de resto boa parte do trabalho no 5. Nesse sentido,
poderíamos falar
território dos museus e do patrimônio - tem muito de dádiva. Digo numa "cidadania
institucional", que
dádiva, digo dívida realimentada, mas não digo sacrifício. O sacrifício compreende, como
tende à anulação da dádiva. sugere Edmund Lea-
ch, a instituição não
Existem, como é sabido, diferentes acepções, definições e imagens apenas como "parte
de acordos usuais",
associadas ao termo museu. Os museus podem ser concebidos como "ga- mas também como
"as pessoas que estão
binetes de curiosidade", "universidades do objeto", "templos", "fóruns", envolvidas nestes
acordos, os recursos e
"teatros de memória", "laboratórios", "centros de convivência" etc. En-
os processos técnicos
tre as várias acepções e entendimentos possíveis, eu gostaria de desta- que empregam nas
suas atuações, as 're-
car um: o do museu como um espaço privílegiado da res publica. gras do jogo', e as 'es-
crituras miticas' que
Na sociedade brasileira contemporânea os museus particulares ou dão justificação à exis-
tência da instituição e
públicos, 5 municipais, estaduais ou federais, são (ou devem ser) espaços à sua perpetuação" .
privilegiados dares publica. Não estou falando da república como alguma Pensar o museu na sua
dimensão institucional
coisa perdida num passado qualquer, estou falando da república como é compreendê-lo
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
BOSI, Ecléa . O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
INTRODUÇÃO
A cidade
Surgida no primeiro século de povoamento, em 1580, Santana de
Parnaíba se destaca como vila colonial por volta de 1620, como um dos
pontos de partida mais importantes das bandeiras em virtude de sua
localização estratégica às margens do Rio Tietê e da antiga rota de pe-
netração nos sertões de Mato Grosso e Goiás. Essa primeira atividade de
significado econômico mais amplo se manteve durante quase um sécu-
lo, propiciando o desenvolvimento de um comércio que fez da vila uma
importante pousada, bem como centro de oferta de tropas de muares
para o transporte de cargas.
No século XVII, com a abertura de três novas vias de comunicação
ligando São Paulo, respectivamente, a Sorocaba, Itu e Jundiaí, sem pas-
sar por Parnaíba, o dinamismo inicial que fizera do comércio parnaiba-
no um importante rival do paulistano se reduziu, entrando a vila num
A PESQUISA
Os moradores
Delimitada a área da pesquisa- o Centro Histórico, recorte já dado
através do tombamento, e o bairro Vila Nova, fora do perímetro tomba-
do, como contraponto, -buscou-se trabalhar a partir da hipótese acerca
da heterogeneidade dessa população e suas opiniões a respeito do pa-
trimônio. Para tanto foi preciso montar a rede dos diversos segmentos
em função dos significados que atribuem ao cotidiano, à história, ao pa-
trimônio. Com base nos primeiros contatos e entrevistas, foi estabele-
cido o corte inicial que divide essa população: ser "de dentro", ou seja,
ser parnaibano e ter pelo menos três gerações nascidas em Santana de
Parnaíba; e ser "de fora", grupo que, por sua vez, se subdivide a partir
de alguns critérios, como a auto-imagem, a relação que se tem com a
cidade, as razões pelas quais esses novos moradores aí se fixaram: são os
estrangeiros, os artistas e os profissionais.
Os profissionais
Eram professores, donas de casa, comerciantes, integrados portanto
ao cotidiano da cidade, mas sem constituir um grupo fechado, como os
artistas e os estrangeiros. Foi a partir do discurso dessas pessoas que se
pôde delimitar os diferentes grupos e precisar melhor o que era ser "par-
naibano" e o que era ser "de fora" nessa cidade. Essas pessoas manifesta-
ram logo no começo dos depoimentos suas dificuldades de adaptação:
A vida foi difícil prá gente no começo, mais difícil ainda foi a recepção aqui. O povo aqui
não encara você assim como uma pessoa que tá vindo fazer o bem, ele olha meio des-
confiado .... levou um ano prá uma daqui me cumprimentar. (Virgínia- professora)
É muito diferente se você vem só prá passear, aí tudo bem, sorrisos, cafezinhos etc.
Agora, quando você diz que veio pra ficar, aí muda tudo .... no começo foi horrível,
eles são muito fechados, sofri muito, ficou uma marca. (Letícia - dona de casa, casada
com parnaibano, há cinco anos em Parnaíba)
Na verdade, foi através do discurso dessas pessoas que se estabeleceu o
eixo que organiza a formação dos grupos e seus discursos, independente-
mente de faixa etária ou de condições socioeconômicas: o corte mais preciso
e ao mesmo tempo mais amplo se resumia em ser "de fora" ou "de dentro".
... uma das primeiras reuniões aqui na escola, uma das professores aqui da cidade me
olhou e disse:- 'mais uma forasteira na cidade .. .'. Eles são só entre a família deles,
só se for parente .... é assim aqui ; porque eu nasci aqui, meu avô, meu bisavô, meu
As FESTAS
Descrição
Corpus Christi
A festa de Corpus Christí é realizada em Parnaíba há muito tempo,
havendo registres em documentos até do século XVII. A maneira tradi-
cional de enfeite da cidade era jogar flores e ervas aromáticas nas ruas
por onde a procissão passava. Sua forma atual, com tapetes de serragem
colorida decorando as ruas é, entretanto, bastante recente. Por volta dos
anos 1960, uma professora vinda de Itu introduziu essa técnica de enfei-
te e, a partir de então, todas as festas foram feitas assim.
A festa é organizada pela Prefeitura, pelos moradores e pela Igreja,
cabendo à primeira tingir a serragem e distribuí-la; aos moradores a
decoração das ruas, que compreende a definição dos temas, desenhos
e a escolha das pessoas para ajudar a fazer o trabalho; à Igreja, cabe a
organização e a realização da missa e da procissão.
A preparação da festa que foi objeto de observação para a pesquisa6 co-
6 . Como as demais meçou mais ou menos dez dias antes, com a tintura da serragem feita por
descrições que
constam neste funcionários da Prefeitura em uma pracinha em frente ao Largo São Ben-
relato, a desta
festa tem como
to. Durante esse período também foram feitas reuniões com os responsá-
base observações veis por rua para saber a quantidade de serragem, nas diferentes cores,
feitas à época da
pesquisa. que cada um iria precisar. Também os moldes de madeira ou de papel que
iriam ser utilizados para os desenhos foram feitos alguns dias antes. As
Carnaval
O carnaval em Santana de Parnaíba é uma festa tradicional e bas-
tante conhecida na região, principalmente em Barueri, Osasco e Pira-
pora. A abertura é, há mais de cem anos, na sexta-feira à noite, com o
Bloco dos Fantasmas e o Grito da Noite. Este último é o grupo que vai
puxando o samba, com temas improvisados, geralmente sobre perso-
nagens e situações do cotidiano da cidade. Atrás do 1'Grito" vem o Bloco
dos Fantasmas, do qual todos participam vestidos com mortalhas bran-
cas, caveiras e máscaras ou com fantasias de terror; o maior cuidado é
não ser reconhecido. O primeiro grupo de "fantasmas" saiu, no ano de
realização da pesquisa, por volta das 22hOOmin do Museu, no Largo da
CoNcLusõEs
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
EXPEDIÇÃO São Paulo 450 anos: uma viagem por dentro da metrópole.
Coordenação José Guilherme Cantor Magnani, Julio Abe Wakahara,
Jupira Cauhy, Maria Cristina Oliveira Bruno, Maria Ignês Mantovani
Franco. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura: Instituto
Florestan Fernandes, 2004, 224 p.
A forma de uma cidade pode mudar mais depressa que o coração dos homens
Bernard Lepetit
XXI. Mais do que nunca há que se construir pontes para um futuro me-
nos inóspito. Sintoniza-se com saberes profundos, 3 de colchas de reta-
lhos de culturas populares, indígenas, afro-americanas. Vulcaniza-se a
cidadania globalizada dos wajãpi e do saber fazer das baianas do acarajé,
das paneleiras de barro do Espírito Santo.
Rompe-se, assim, quase que definitivamente, com a idéia totalizadora
de património como tombamento. Ensaia-se uma nova roupagem de con-
trole do Estado e de políticas públicas com o nome de Registro do Patri-
mónio Imaterial, que mesmo assim ainda se contamina da noção de ex-
cepcionalidade advinda da gênese e de uma práxis de políticas públicas
a
patrimoniais no Brasil (Lima Filho, 2006). Contudo, meu ver, o relevante
desse movimento todo é a função social que o património, na contempo-
raneidade, tem de materializar e disseminar entre os comuns, aquilo que
a noção antropológica de cultura já insistia em fazer: a pluralidade, a re-
lativização, a desconstrução de dicotomias inventadas pelo Ocidente. Em
A gênese da cidade
Concebida num contexto de transição do século XIX para o século
XX, Goiânia nasce querendo ser moderna, mas traz em sua gênese de
cidade planejada um passado, a antiga capital, a colonial Goiás, como
testemunhou Arménia P. Souza (1989). O espaço é representado pela
ambigüidade do passado diante da instauração de uma nova concepção
territorial do futuro que se fazia presente:
No dia 4 de maio de 1936, pela manhã, seis horas precisamente fechamos a casa e
entramos no carro. Chegara a nossa vez de seguir para Goiânia, o Públio, nossa filha
e eu. (...) Para trás ficava a cidade querida (a cidade de Goiás). E as doces recorda-
ções da vida de uma moça nascida no seio de uma numerosa família , criada num
ambiente de proteção e carinho, mas também de princípios rígidos e preconceitos
arraigados. Educada num severo colégio de religiosas francesas, dali saíra com alma
cheia de sonhos e idealismo e o coração povoado de ilusões. (...) Agora esposa e mãe,
iniciava com a sua própria família, a caminhada para uma nova vida numa nova
cidade, numa cidade que ainda estava começando a nascer. (Souza, 1989, p. 13)
Os goianos, em sua vida nova, não deixavam de sentir uma grande saudade de sua que-
rida Goiás, daquele mundo tranqüilo e organizado, dos luares de prata, do murmúrio
do rio Vermelho, que na época das enchentes chegavam a lamber o piso das pontes,
das comidas goianas e de tudo aquilo que ficara pra trás. (Souza, 1989, p. 34)
Assim Goiânia recebe, como seus primeiros atores, sujeitos partidos,
fragmentados. Para trás, um passado organizado, regras preestabeleci-
das, ethos torneado pela tradição do modo de pensar,' nO como agir- rígi-
dos, como disse D. Arménia-, no que comer. O mundo era fechado, circu-
lar como a circunscrição geográfica cercada de morros da antiga capital:
cidade de Goiás. A mudança para a nova capital significava a instabili-
dade, a insegurança, o medo da perda do que ficou para trás. O mundo
Tornando-se "patrimônio"
No ano de 2002, Goiânia é alvo de um processo de tombamento fede-
ral de seu núcleo pioneiro, juntamente com edifícios públicos e compo-
nentes art déco (IPHAN, 2002). Esse processo foi conduzindo por várias
instituições e atores sociais, liderados pelo IPHAN regional, movidos
pelo sucesso de um processo anterior que culminou na declaração da
cidade de Goiás como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Nova-
mente as duas cidades são coladas no imaginário e nas ações políticas do
Estado brasileiro. Uma para romper (1933), outra para unir (2002).
Tal processo colocou em pauta o patrimônio cultural da cidade e in-
dagações sobre os significados desse tombamento nas representações
sociais que os pioneiros e habitantes da tinham sobre ela. Embora seja
uma cidade relativamente nova (73 anos), a questão do "centro histó-
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
ARAUJO, Maria Emília Carvalho de, Lugar é laço: o saber profundo nas
comunidades goianas de Cibele e Caiçara. Tese de Doutorado em
Educação. Universidade Federal de Goiás. Goiânia. 2006.
RIEGL, Alo'is. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese.
Tradução de Eláne ~ibeiro Peixoto e Albertina Vicentini. Goiânia:
Editora da UCG. 2006.
Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado
por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim
absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós
nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não
porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos
une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável
e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas.
Tudo se transforma, tudo varia -o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo
o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas
fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada
vez maior, o amor da rua. 1
A CIDADE MODERNA
Uma das mais caras noções que, nós cientistas sociais, adquirimos
nas últimas décadas é a de que não é possível atribuirmos um único signi-
ficado a uma palavra. Embora tal contribuição possa colocar em questão
a própria noção de ciência, ela tem sido apropriada por aqueles que prefe-
rem o conhecimento das incertezas e da transitoriedade do que a redução
e a arbitrariedade do conhecimento. Nesse sentido, para que uma contri-
buição possa ser feita às práticas a serem desenvolvidas por um museu da
cidade, é necessário antes de tudo partir de uma definição sobre o que é
museu e o que é cidade. Inicio minha análise pelo último conceito.
Embora seja possível falarmos em uma história das cidades e traçar-
mos o desenvolvimento de aglomerados humanos da Antigüidade até
nossos dias, pois inegavelmente há aspectos entre cidades distantes no
tempo e espaço que podem ser comparados, minha opção aqui será prio-
rizar a análise das relações sociais inerentes às cidades modernas. São
muitos os autores que apontam modificações radicais nas concepções
de tempo e subjetividade, bem como nas formas de organização social
que ocorrem em torno dos séculos XVII e XVIII. Essas modificações são
ÜS TEATROS DA MEMÓRIA
locais de trabalho e assim por diante. As memórias são contadas e re- quadros sociais da
memória, ver Santos
contadas e, com isso, são consolidadas entre os membros de um grupo 2003.
sem a organizar seus artefatos de memória. Surge nesse período uma p. 168.
RefeRênciaS BIBLIOGRáfiCaS
HEELAS, Paul, Lash, S., Morris, P. and Centre for the Study of Cultural
Values at Lancaster University. De-tradítionalization: Critical
Reflections on Authority and Identity at a Time of Uncertainty.
Cambridge, Mass.: Blackwell Publishers, 1996.
INTRODUÇÃO
Em 1988 os parâmetros de classificação das APAs foram legalmente 10. Decreto Munici-
pal n°7.612.
instituídos: de acordo com o artigo P do Decreto Municipal, seria APA
11 . Artigo 350 - Lei
a área que apresentasse "características notáveis nos aspectos naturais Orgânica do Mu-
nicípio.
ou culturais" e que fosse ocupada e utilizada "no sentido da valorização
12. Lei Complemen-
do património ambiental". 10 Nota-se que nessa primeira definição de pa- tar n° 16 · Plano
Diretor Decenal da
trimónio ambiental não são separadas, com políticas patrimoniais dife- Cidade do Rio de
Janeiro.
renciadas, as noções de "natural" e "cultural". No artigo 4Qdo Decreto
são delineadas as características especificamente "culturais" desejáveis
a um bem preservado por uma APA:
1. Seja integrante de um conjunto de bens de valor
cultural na área que está inserido;
2. Apresente características morfológicas típicas e
remanescentes na área na qual está inserido;
3. Constitua-se em testemunho de várias etapas de
evolução urbana da área na qual está inserido;
4. Possua valor afetivo ou se constitua em marco na
história da comunidade.
A partir desses itens, percebe-se que as concepções de "proteção
ambiental" norteadoras da seleção de bens preservados por uma APA
- já absorvidas as experiências anteriores do Corredor Cultural e do
projeto SAGAS - se direcionaram tanto para a valorização de suas ca-
racterísticas históricas e arquitetónicas quanto de suas características
"afetivas" e "comunitárias". A conjugação dessas duas últimas noções
seria responsável pela oficialização da representação do património por
meio da preservação de moradias, por incorporar à legislação municipal
os discursos referentes às construções de "identidades culturais locais"
calcados em uma perspectiva subjetiva de sentimento de pertença dos
moradores às áreas protegidas.
Com o apoio da Lei Orgânica.U o Plano Diretor da cidade/ 2 de 1992,
instituiu oito diferentes tipos de unidades de conservação, entre elas
as APAs e as APACs. Passou a ser APA a área "dotada de características
Em muitos casos, a medida foi tomada para preservar o bairro até que seja aprovada
uma nova legislação urbana que impeça a degradação. Depois disso, podemos até
permitir a demolição de alguns prédios- Secretário municipal das Culturas."
Essa atitude não é uma forma democrática. Toda a sociedade deveria se pronunciar.
Não acredito que o prefeito baixe um decreto desses( ...) eu queria um apartamento
melhor, com vaga de garagem. Confesso que estou atônito- Morador e participante
da Associação dos Proprietários de Pequenos Prédios do Leblon. 15
Os imóveis são velhos, de arquitetura ultrapassada, sem elevador nem garagem. Só
valem pelo terreno. Tombados, valem muito menos. Os que ganham com isso são
os donos dos imóveis novos desses bairros, que ficarão valorizados. O prefeito está
perseguindo um setor que gera empregos e ajuda a movimentar a economia, que já
está em crise- Presidente da imobiliária Patrimóvel.' 6
A forma como as APACs foram criadas, sem que houvesse uma dis-
14. Jornal do Brasil, cussão prévia com os segmentos que estavam diretamente envolvidos
27/07!2001.
com os imóveis preservados, foi um dos aspectos da política patrimonial
15. Jornal do Brasil,
26/07/2001. que mais indignou seus opositores. Moradores, vereadores e construto-
16.0Giobo, res civis acusaram a Prefeitura de, com a medida, estar interferindo no
27/07/2001.
direito de propriedade, já que os donos dos imóveis não puderam mais
vendê-los para a demolição ou fazer reformas e modificações sem que
houvesse uma aprovação do DGPC. Os especialistas da Prefeitura, por
seu turno, argumentaram que é função do Plano Diretor da cidade miti-
gar o direito de propriedade, que deve ser definido prioritariamente por
sua função social. No caso mais polêmico, da APAC do Leblon, foi funda-
da por moradores do bairro a Associação de Proprietário de Pequenos
que comprou um terreno para fazer um prédio de dez andares que vai virar cinco? 19 . O Globo,
20/12/2001
17
-Presidente da Associação de Dirigentes do Mercado Imobiliário.
Todo processo de uma mudança da legislação urbana tem uma discussão demorada
na casa [Câmara de Vereadores] se não é interessante à construção civil - Vereador
da Comissão de Assuntos Urbanos.'"
Os especialistas da Prefeitura admitiram estarem utilizando o me-
canismo de decretação de uma lei patrimonial para interferir de for-
ma mais ágil no processo de crescimento da cidade, por considerarem
a Câmara dos Vereadores muito suscetível às pressões do mercado imo-
biliário e, portanto, não comprometida com a causa preservacionista.
Uma parcela dos vereadores, por sua vez, acusou a Prefeitura de estar
acordada com alguns empresários da construção civil para acelerar as
demolições nos bairros, já que toda vez que se noticiou nos jornais um
plano de estudos do DGPC para a criação de uma nova APAC muitos imó-
veis foram vendidos às pressas e por preços abaixo do mercado por seus
proprietários. E os construtores civis criticaram a Prefeitura de estar
inviabilizando empreendimentos imobiliários que já haviam sido apro-
vados pela gestão anterior. Também apontaram como prejudicial à atu-
ação do setor as variações de gabaritos de uma mesma rua que, a par-
tir da decretação das APACs, foram diminuídos na parte ocupada pelos
imóveis tutelados, enquanto nos demais imóveis o gabarito permaneceu
o indicado pelo Plano de Estruturação Urbanística.
Se o imóvel mereceu ser tombado ou preservado, por que os critérios para concessão
da isenção ou do desconto seriam diferentes? O desco~to acaba ficando condicio-
nado a um subjetivismo que, na prática, torna sem efeito o instrumento de con-
servação que é a Apac. (. ..) Com a decretação da preservação ou do tombamento, a
propriedade do imóvel é relativizada. Se o bem tem importância para toda a cidade,
então a cidade deve contribuir para sua preservação- Vereador."
Se a gente fosse fazer um balanço de perdas e danos, eu diria que o Rio perdeu muito.
Imagine o que foi desmontar um morro com o do Castelo, em 1922, o berço da cidade.
Mas ainda temos imóveis bem representativos de vários períodos da nossa história
-Coordenadora do Programa de Urbanismo da UFRJ. 22
como um processo de constante destruição ou desfiguração dos objetos 25. Jornal do Brasil,
27/12/2001.
que personificariam tais valores. A ênfase discursiva de legitimação das
26 . Jornal do Brasil,
ações patrimoniais de resguarda recaiu sobre a condenação das demoli- 26/07/2001.
27. O Globo, Se não fosse preservado, o Leblon perderia aquele ar de bairro família- Moradora
28/07/2001.
do Leblon. 27
28 . O Rajah é um pré-
dio localizado na Praia A região, que tinha um perfil residencial, acabou se tornando um bairro de passa-
de Bota fogo que ficou
famoso na cidade por gem, cheio de lojas comerciais. Um símbolo de como essas mudanças prejudicaram
ser palco de inúmeras
Botafogo é o edifício Solymar, antigo Rajah. Antes de ele ser construído, havia no
ocorrências policiais
principalmente liga- local um casarão de estilo francês- Historiador e morador de Botafogo. 28
das à prostituição e
ao tráfico de drogas. Não tenho nada contra construírem um prédio na frente do meu, como aconteceu
Ediflcio de pequenos
apartamentos conju- recentemente. Acho de um elitismo facistóide este egoísmo dos moradores que vie-
gados e com muitos
andares, o Rajah é
ram viver em edifícios construídos onde antes havia casas, mas não querem outros
uma opção para a
edifícios lhes tirando a vista- Proprietário da Demolidora Carioca. 29
classe média baixa
que deseja morar As noções de "modernização" ou "transformação da cidade foram iden-
na Zona Sul. Seus
moradores são cons- tificadas de forma negativa pelos preservacionistas, que as contrapuseram
ta ntemente estigmati-
zados pelos outros do com as noções de "tradição" e "familiar". Para os defensores da preserva-
bairro, sendo comum,
quando interpelados
ção, a ameaça promovida pela especulação imobiliária e pelo conseqüente
por alguém sobre adensamento populacional se concentrou principalmente na percepção
seu local de moradia,
responderem que da perda de um estilo de vida e de uma relação de vizinhança identifica-
moram na Praia de
Sotafogo, omitindo dos como "característicos" dos bairros. A valorização de um estilo arqui-
o nome e o número
do prédio. Jornal do
tetônico ou de época foi muitas vezes associada a um tipo de morador que
Brasil, 27/07/2001 .
se buscava preservar. Os contrários às medidas de preservação rebateram
29. O Globo,
07/04/2 002.
esta conjugação de valores acusando os preservacionistas de provocarem
um "engessamento" da cidade e um "elitismo de vizinhança" que desejava
evitar novos moradores aos prestigiados bairros da Zona Sul.
"favelização", categoria que foi por ele utilizada para estimular a asso-
ciação subjetiva do crescimento da cidade a um estado de precariedade,
feiúra e desestruturação das relações sociais. Os opositores às preserva-
ções não abordaram os aspectos ecológicos do adensamento populacio-
nal, preferindo enfatizar o "elitismo", que consideraram ser a base da
proposta de criação das APACs.
A situação do Leblon era urgente. Mas já estava em nossa pauta conversar com Gra-
jaú, Tijuca e Vila Isabel, berço de muita história do Rio- Diretor do DGPC. 32
As pessoas têm preconceito em relação à Zona Norte. Temos coisas históricas, bo-
nitas. Vamos começar a fazer nosso levantamento - Presidente da Associação de
Moradores de Rocha Miranda. 33
Embora várias associações de moradores tenham solicitado o estu-
do de suas edificações e logradouros ao DGPC, somente as da Zona Sul
da cidade se beneficiaram de fato com as decretações. Segundo os espe-
cialistas do patrimônio, a prioridade da Zona Sul se deveu ao assédio do
mercado imobiliário e à grande procura de seus apàrtamentos por mora-
dores de outras regiões da cidade. Entre as críticas recebidas pelo favo-
recimento da Zona Sul, vale destacar o caso do pedido de criação de uma
APAC para o Morro da Mangueira. A solicitação, embora tenha sido enca-
minhada por um membro do CMPC, foi a única sumariamente recusada
CoNCLUSÃo
Sibele Cazelli
Graduada em Biologia, mestre em Educação e doutora em Educação Bra-
sileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro (PUC-RJ). É
Nélia Dias
Nélia Dias, professora no departamento de Antropologia do ISCTE (Portu-
gal), é autora de dois livros - Le Musée d'Ethnographie du Trocadéro. Anthro-
pologie et muséologie en France (CNRS, 1991) e La Mesure des Sens. Les an-
thropologues et le corps humain au XIXe siecle (Aubier, 2004) - e de vários
artigos sobre coleções de etnografia, história da Antropologia e as relações
entre museus e a questão da diversidade cultural. Sua pesquisa incide sobre
o Musée du Quai Branly, tendo publicado "Cultural Difference and Cultural
Diversity: The Case of the Musée du quai Branly", in: Daniel]. Sherman
(ed.), Museums and Difference (Indiana University Press, 2007) e "Le Musée du
quai Branly perspective historiques", Le Débat, 2007.
Roger Sansi-Roca
Roger Sansi-Roca é professor de Antropologia no Goldsmiths College da
Universidade de Londres.
Suas publicações recentes incluem Fetíshes and Monuments: Afro-Brazi-
lian Art and Culture in the 20Th century (Berghahn Books, New York, 2007)
e Cultures of the Lusophone Black Atlantíc (Palgrave, New York, 2007), editado
com David Treece e Nancy Naro.