Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
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Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
Porto Alegre
2017
ANDRÉIA CAROLINA DUARTE DUPRAT
Porto Alegre
2017
CIP - Catalogação na Publicação
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profa. Dra. Paula Viviane Ramos (PPGAV–UFRGS)
Orientadora
_______________________________________________________
Profa. Dra. Daniela Pinheiro Machado Kern (PPGAV–UFRGS)
_______________________________________________________
Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini (PPGAV–UFRGS)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Paulo César Ribeiro Gomes (PPGAV–UFSM)
RESUMO
Palavras-chave: arte social; Clube de Gravura de Porto Alegre; revista Horizonte; realismo
socialista; comunismo.
ABSTRACT
The present work entitled Clube de Gravura de Porto Alegre e revista Horizonte (1949-
1956): arte e projeto político, studies the actions of a group of artists related to a cultural
project of the Partido Comunista do Brasil which dedicated its artistic production to
popularize art as a mean to political conscientization. Among the artists involved in this
movement Vasco Prado, Glênio Bianchetti, Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves e Glauco
Rodrigues outstanded by using engraving as a privileged mean to difuse the ideas of the
movement exploring themes such as popular culture linking them as a way to draw attention
to the capitalist exploration and the North-American imperialism. The Clube de Gravura de
Porto Alegre was the main space for artistic production of the project and the Horizonte
magazine was its most important vehicle of image circulation and promotion of debates.
The first chapter of this work is about the context in which the Clube de Gravura de Porto
Alegre was created and its insertion in the Rio Grande do Sul artistic field. In the second
chapter, the insertion of these artists in the cultural environment of Porto Alegre is described,
mainly in the Associação Francisco Lisboa, as well as their actions for the great public as the
collaboration in a peace campaign and the engraving exhibitions whose purpose was to awake
the critical awareness of the working class through art. In the third and last chapter, the
influences which acted in these artists are addressed such as the socialist realism, zhdanovism
and the Chinese engraving, as well as a possible relation with other movements such as
regional culture. This part ends with an evaluation of the group production occurred twenty
years later at a time of criticism and contradictory analyzes regarding to its original proposal.
Key-words: social art; Clube de Gravura de Porto Alegre; Horizonte magazine; socialist
realism; communism.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora Paula Ramos, que aceitou ser minha orientadora e acompanha o
desenvolvimento da minha pesquisa; aos professores que integraram a banca avaliadora Paulo
César Ribeiro Gomes, José Augusto Costa Avancini e Daniela Pinheiro Machado Kern.
Sou grata ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, especialmente, às professoras que assumiram a Coordenação enquanto fui
estudante do curso de mestrado, Elaine Athayde Alves Tedesco e Ana Maria Albani de
Carvalho.
Aos colegas da Turma 22 do Mestrado, agradeço pela companhia nesta jornada.
Aos colegas de trabalho, servidores da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto
Alegre (UFCSPA), agradeço pelo suporte durante meu período de estudo.
Agradeço aos colegas do bacharelado em História da Arte com os quais formei o coletivo
HACER: Rosane Vargas, Elvio Rossi, Cláudio Jansen, Ana Laura Benacchio e Marcelo de
Sousa Silva.
Pela ajuda e pelo estímulo na realização deste trabalho, agradeço especialmente à Rosane
Vargas.
Pelo companheirismo na luta, agradeço aos camaradas do Fórum Sindicalista da ASSUFRGS.
Pelo amor e pelo apoio incondicional, agradeço ao meu pai, Cezar Ramon Duprat; à minha
mãe, Vera Iracema Duarte Duprat; e aos meus irmãos, Ana Cristina Duarte Duprat e Paulo
César Duarte Duprat. A minha família é meu alicerce e minha fortaleza. Obrigada!
Ao meu namorado, meu companheiro e meu colega, Frederico Duarte Bartz, sou grata por não
me deixar desistir, por me animar, por me consolar e por estar ao meu lado nos momentos
tristes e alegres. Agradeço por sua enorme paciência, sua disponibilidade, sua ajuda e seu
amor.
Num dia, tão certo, tão claro, tão perto,
verei pelas ruas o povo ondulando,
marchando a cantar.
LILA RIPOLL
LEOPOLDO MÉNDEZ
LISTA DE ABREVIATURAS
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17
1.5.1 O campo artístico do Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX .......... 63
2.2 A ATUAÇÃO DOS ARTISTAS DO CGPA NO CAMPO ARTÍSTICO LOCAL ............................ 102
2.4.1 O Movimento dos Partidários da Paz no Rio Grande do Sul .................................. 124
2.4.2 A repercussão do Movimento pela Paz na grande imprensa de Porto Alegre ....... 157
REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 256
APÊNDICE A – SALÕES DA ASSOCIAÇÃO FRANCISCO LISBOA (1938 - 1957) . 277
17
INTRODUÇÃO
1
Uma análise mais aprofundada da questão pode ser encontrada no capítulo Realismo versus abstracionismo e o
confronto com a Bienal do livro Arte para quê?, de Amaral (2003).
18
Antes de prosseguir, há de se fazer uma ressalva: nem todos os marxistas eram contra
a arte moderna. Mário Pedrosa, por exemplo, que foi membro do Partido Comunista e aderiu
ao trotskismo na década de 1920, defendia o abstracionismo, o surrealismo, interessava-se
pela produção artística dos alienados e pelas teorias da Gestalt, isso já nos anos 1940. Em
1943, as exposições de Alexander Calder no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (Moma)
marcaram o movimento inicial de aproximação de Pedrosa em direção a tendências
modernistas (MAMMÌ, 2015). Apesar das diferenças de concepções artísticas entre os
integrantes da esquerda, existia consenso em um ponto: a necessidade da luta contra o
fascismo.
Outra questão interessante é a defesa do nacionalismo por parte dos comunistas, tendo
em vista o caráter internacional da revolução. Porém, no momento de acirramento da Guerra
Fria, essa postura se explica por se relacionar com o combate ao imperialismo, ou seja, era
uma estratégia para lutar contra a interferência das potências capitalistas nas demais nações.
Este trabalho não vai se deter nos embates internos do campo artístico e no debate
entre realismo e abstracionismo, tratado por Aracy Amaral (2003). A pesquisa se volta aos
fatores externos ao campo que não podem ser negligenciados ao estudar a história do CGPA e
da Horizonte. O papel da militância política comunista para a materialização do CGPA e da
publicação é de tal forma preponderante que é difícil conceber que elas existiriam se não
estivessem engajadas ao projeto cultural do PCB. Essa constatação poderá ser averiguada pelo
leitor desta dissertação. Em meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em História da Arte,
de 2013, intitulado Revista Horizonte (1949–1956): imagem impressa e questões sociais,
apresentei brevemente a história do Taller de Gráfica Popular (TGP), entidade que serviu de
inspiração para o CGPA, e dos impressos de esquerda no Brasil até os anos 1950; portanto,
outras questões serão tratadas na presente dissertação.
Os Clubes de Gravura de Porto Alegre e de Bagé atuaram no Rio Grande do Sul na
década de 1950 e foram representantes do que Aracy Amaral (2003) chama de arte social 2.
Integrantes dessas associações colaboraram com a produção da revista cultural Horizonte.
O conceito de arte social abrange toda a produção artística que se volta aos problemas
sociais e políticos, que denunciam as mazelas sofridas pela classe trabalhadora e que apontam
novos caminhos rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Internacionalmente, a partir da
2
Aracy Amaral (2003), no livro Arte pra quê?, aborda a história da produção artística brasileira entre 1930 e 1970,
marcada pela preocupação social. A autora dedica um espaço para contar a trajetória dos Clubes de Gravura e seus
antecedentes, enfatizando a figura de Carlos Scliar. O artista gaúcho foi o primeiro coordenador de álbuns coletivos de
gravuras no Brasil e teve grande envolvimento com as causas comunistas. Amaral demonstra a importância do contato
de Scliar e Vasco Prado com Leopoldo Méndez na formulação do projeto de construção de uma associação de artistas
voltados às artes gráficas, do CGPA e na constituição da revista Horizonte.
19
3
Essa afirmação vale tanto para o movimento comunista quanto para os movimentos que o precederam, como o
socialista, o anarquista e o sindicalista revolucionário.
20
razões que o levaram a adotar uma postura mais radical e enrijecer as orientações de postura dos
seus filiados. A doutrina do realismo socialista zhdanovista, teoria oficializada em 1934 por
Andrei Zhdanov, secretário do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética
(PCUS), durante o I Congresso de Escritores Soviéticos, tornou-se predominante como
concepção artística comunista.
Os fundadores do Clube dos Amigos da Gravura de Porto Alegre (CGPA), Vasco
Prado (1914–1998) e Carlos Scliar (1920–2001), iniciaram suas trajetórias ainda nos anos
1930. Ambos estiveram na Europa para estudar as tendências de vanguarda do final de 1940;
porém, o debate entre os intelectuais de esquerda, na França principalmente, foi o que mais os
impactou. Vasco e Scliar já tinham se aproximado do PCB antes de embarcar rumo ao solo
europeu, e foi o Movimento pela Paz, organizado pelos comunistas, que encaminhou seus
futuros projetos. Em 1948, eles participaram do I Congresso Mundial dos Intelectuais pela
Paz, em Wroclaw, na Polônia. O clima de tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética
parecia configurar a Terceira Guerra, agora, de proporções atômicas e devastadoras.
Na Europa, além da mobilização pela paz, havia muitas discussões sobre os
caminhos da arte e sua função social no ambiente de esquerda. Entre os marxistas, os debates
giravam em torno da liberdade de criação e do comprometimento com a revolução socialista,
mas a referência que sobressaiu foi o realismo socialista zhdanovista. As publicações culturais
brasileiras ligadas ao PCB que se comprometeram em seguir as diretrizes da doutrina estética
soviética foram, por exemplo, Literatura, fundada em 1946, no Rio de Janeiro; Fundamentos,
criada em 1948, em São Paulo; e Horizonte, lançada em 1949, em Porto Alegre.
O contato com artistas latino-americanos, ainda no Velho Continente, também foi
determinante para Vasco e Scliar. Eles conheceram o pintor e gravurista Leopoldo Méndez
(1902–1969)4 e o trabalho desenvolvido pelo Taller de Gráfica Popular (TGP), organização
mexicana voltada às artes gráficas aplicando o modo de trabalho coletivo 5. Os gravuristas
mexicanos seguiram a trilha dos muralistas no que diz respeito à arte pública e ao
engajamento político, mas eram ligados a diversas correntes ideológicas, ou seja, não se pode
dizer que eram artistas que se restringiam a determinações partidárias. O TGP foi o modelo
4
Leopoldo Méndez (1902-1969) iniciou sua trajetória no movimento estridentista em 1921. Dedicou-se à arte de
cunho social por toda a sua vida, e colaborou com diversas publicações como o jornal El Sembrador e a revista
estridentista Horizonte. Participou da Liga de Escritores y Artistas Revolucionarios (LEAR), criada em 1933, e
fundou o Taller de Gráfica Popular(TGP), em 1937, ao lado de Pablo O’Higgins (1904-1983), Luis Arenal
(1908-1983), Raúl Anguiano (1915-2006) e Ángel Bracho (1911-2005).
5
Para saber mais sobre o Taller de Gráfica Popular e sobre Leopoldo Méndez, recomendam-se os livros El
Taller de Gráfica Popular, de Humberto Musacchio (2007), e Leopoldo Méndez: revolutionary art and the
Mexican print, de Deborah Caplow (2007).
21
6
Carlos Scarinci (1982) escreveu uma das referências principais acerca dos Clubes – A gravura no Rio Grande
do Sul 1900–1980. O livro foi fruto de sua dissertação de mestrado, na qual Scarinci procurou, a partir da
produção em gravura, contar a história das artes visuais do Rio Grande do Sul. O pesquisador expõe a trajetória
do Clube de Gravura desde seus antecedentes – o “Grupo de Bagé”, a formação artística de Carlos Scliar e o
encontro entre esse artista e Leopoldo Méndez – comentando a produção de seus integrantes. Ele ressalta ainda a
importante inspiração de modelo de trabalho coletivo voltado às artes gráficas vindo do Taller de Gráfica
Popular e critica a opção pelo seguimento de diretrizes zhdanovistas (SCARINCI, 1982, p. 90).
22
7
Marilene Burtet Pieta, no seu texto O Grupo de Bagé e a modernidade das artes plásticas no Rio Grande do
Sul (1997), para o catálogo do projeto Caixa Resgatando a Memória, apresenta a história dos artistas integrantes
do chamado “Grupo de Bagé” (a saber: Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues e Glênio
Bianchetti).
8
Luciana Haesbaert Balbueno (2001) estudou a poesia e os artigos da poetisa Lila Ripoll em sua dissertação A
produção de Lila Ripoll na Revista Horizonte, procurando discutir a função social do escritor. Esse trabalho foi
particularmente importante por ter recuperado exemplares da publicação e instrumentalizado os próximos
estudos.
9
Em Clube de Gravura de Porto Alegre – arte e política na modernidade, Cassandra Gonçalves (2005) apresenta a
história do Clube de Gravura de Porto Alegre relacionando-a aos aspectos históricos e ao ambiente artístico estadual,
nacional e internacional. A autora percorre as edições da Horizonte e apresenta brevemente seu conteúdo, citando
algumas obras e textos reproduzidos em suas páginas.
10
As revistas culturais ligadas ao PCB Horizonte, Literatura e Fundamentos, publicadas entre 1946 e 1956,
foram o tema do mestrado de Luciana Arbex (2012). O objetivo da pesquisa foi conhecer quais eram as
atividades e os temas de interesse dos intelectuais militantes durante o período marcado pela radicalização do
PCB e pela adoção da doutrina do realismo socialista. A pesquisadora enfatiza os eventos promovidos pelos
intelectuais do partido, como os congressos e a campanha pela paz. Quanto à revista porto-alegrense, Luciana
preocupa-se principalmente em estudar seus artigos e apontar as aproximações temáticas com as publicações de
outros estados.
23
condições sociais de possibilidade, que a tornam possível, mesmo que, aparentemente, pareça
transpor essas condições e envolver apenas a subjetividade e ser universal:
Segundo o autor, o próprio campo artístico estabelece seu modo de operar e a atitude
estética que permite que ele funcione. A emergência do artista como produtor especializado e
a obra de arte como produto específico que demanda saberes específicos é concomitante com
o aparecimento da crença no valor da arte, transmitida pelo próprio artista e pelos demais
agentes – instituições, críticos, compradores, etc. A invenção primordial que proporcionou o
surgimento do campo foi a linguagem artística, em seguida, veio a biografia do sujeito artista,
aclamado, por vezes, como um gênio. Os agentes do campo estão em constante disputa a fim
de legitimar sua visão de mundo e definir o que tem e o que não tem valor. Aqueles que
conseguem se impor são os que têm mais capital simbólico reconhecido por seus pares. A
concepção do olhar puro e a pretensa universalidade de juízo são também invenções do
campo que surgiram ao longo do seu percurso rumo à autonomia. Bourdieu chama a atenção
para as questões internas, o fechamento sobre si, de retorno reflexivo (BOURDIEU, 2011).
O retorno reflexivo do campo, a constituição da História da Arte e a conexão com o
passado foi o que permitiu as rupturas das vanguardas, visto que só é possível contestar os
cânones se se tem conhecimento deles. A recusa a admitir a importância do processo histórico
e a defesa de um pensamento “puro” das artes acarreta a ignorância das condições sociais de
possibilidade através de um discurso ingênuo e equivocado (BOURDIEU, 2011).
Apesar das ressalvas de Pierre Bourdieu a algumas concepções marxistas e
marxianas11, como o conceito de classe e o economicismo, percebe-se a semelhança entre
suas ideias e a tradição do materialismo histórico. Max Raphael (1946) expõe a ideia de
domínio, segmento derivado da divisão do trabalho. O trabalho intelectual e artístico se
11
Marxiano é o termo utilizado para as ideias do próprio Karl Marx, para suas elaborações teóricas e as
concepções presentes em seus escritos. Marxista é um termo mais amplo, sendo utilizado para um escopo maior
de referências teóricas e obras de autores influenciados por Karl Marx.
24
Não se trata de uma obediência cega à classe dominante, o que existe é uma
dependência mútua, em certo grau, e interesses em comum. O intelectual orgânico partilha
valores e objetivos com os demais membros de seu grupo. A posição no campo e a função
organizativa no âmbito da cultura desempenhada pelo intelectual o tornam especialmente
importante na difusão de princípios e na execução do projeto político.
Neste trabalho, procura-se observar as orientações de Bourdieu e de Max Raphael
acerca da necessidade de se verificar o processo histórico no qual o fenômeno artístico
acontece. Buscam-se os fatores internos e externos ao campo da arte que propiciaram a
existência do Clube de Gravura de Porto Alegre e da revista Horizonte, entre os quais se
sobressaiu o vínculo entre o CGPA e a Horizonte com o projeto político para a cultura dos
comunistas e com o realismo socialista. A noção de projeto político é sintetizada por
Frederico Duarte Bartz (2014, p. 113) como “as diversas ações que se relacionam com um
projeto coletivo para a sociedade [...] poderiam ser entendidos por projetos políticos tanto a
fundação de um partido, como a divulgação de um programa ou mesmo a formação de um
sindicato, quando este não tivesse a estrita função de luta econômica”.
Além dos exemplares da Horizonte, as fontes primárias incluíram os jornais A Hora12
e Correio do Povo e a Revista do Globo, do período de 1946 a 1956, além de documentos. A
seleção desses veículos de imprensa considerou sua importância para a época. A pesquisa foi
realizada nos acervos do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (Porto Alegre, RS),
da Associação Francisco Lisboa (Porto Alegre, RS), do Museu de Arte do Rio Grande do Sul
(Porto Alegre, RS), do Núcleo de Pesquisa Histórica da UFRGS (Porto Alegre, RS) e do
12
O jornal A Hora surgiu em Porto Alegre em 30 de novembro de 1954, tendo na direção Waldyr Borges e, na
secretaria, Josué Guimarães. Trouxe novidades para os diários da capital, como o amplo uso de fotografias e de
ilustrações, de cores e uma diagramação diferenciada. Trabalhavam no projeto gráfico Josué Guimarães, Vitório
Gheno, Xico Stockinger, Nelson Boeira Faedrich, Gastão Hofstetter e Paulo Sampaio (o Sampaulo). O
departamento fotográfico era chefiado por Ernani Contursi e composto por onze fotógrafos e quatro
laboratoristas. Apesar de o diretor-presidente ter sido advogado de João Goulart por anos e ser filiado ao PTB, o
impresso pretendia assumir uma postura independente. Outra inovação foi a presença constante de humor em
charges, em crônicas e na coluna Diário de Porto Alegre, assinada por D. Xicote, pseudônimo de Josué
Guimarães. Na redação, as mulheres se destacavam – Maria Terezinha Rodrigues (a primeira mulher editora de
jornal do Rio Grande do Sul), Nydia Moojen, Iara de Almeida, Eunice Holleben, Gilda Marinho. Ainda era
incomum a carreira profissional de mulheres no jornalismo. Marinho, pelotense e comunista, trabalhara como
tradutora para a Editora Globo e assumiu a função de cronista e colunista social em A Hora (SCHIRMER, 2000).
Em março de 1957, o jornal foi vendido para os Diários Associados de Assis Chateaubriand, entrou em
decadência e foi fechado em 1962.
26
informações relevantes para as tentativas de reconstituição histórica; porém, deve ser tratada
criticamente, porque está vinculada a escolhas baseadas em diversos fatores, como interesses
políticos, econômicos e de legitimação do próprio campo. Por conseguinte, os artigos de
época e posteriores utilizados para contar a história do CGPA no primeiro capítulo –
principalmente, a série de reportagens do Correio do Povo, em 1976, feita a partir de
entrevistas de Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves, Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues
concedidas a Antônio Hohlfeldt, Angélica de Moraes e Maria Helena Webster – precisaram
ser problematizados, a fim de se conferir as circunstâncias que estariam envolvidas nas
escolhas editoriais.
A revista Horizonte e o CGPA integraram um projeto político gerado pelos
comunistas. O primeiro capítulo é dedicado a contar a história do PCB e a trajetória de alguns
militantes envolvidos com a publicação e com os Clubes de Gravura. Enfatiza-se o período de
legalidade do partido dos anos de 1945 a 1947, marcado pelo florescimento de várias
atividades e da rede de imprensa partidárias. A dissertação De volta para o Presente: uma
história dos militantes comunistas de Porto Alegre e suas representações acerca da
democracia (1945-1947), de 2007, e a tese À Esquerda de Seu Tempo: escritores e o Partido
Comunista do Brasil (Porto Alegre – 1927-1957), de 2012, ambas de autoria da historiadora
Marisângela Martins, são as principais referências sobre a relação entre os intelectuais e a
militância no PCB. Nesse mesmo capítulo, é traçado um panorama do campo artístico do Rio
Grande do Sul na primeira metade do século XX utilizando-se os textos, por exemplo, de
Neiva Bohns (2005) e Maria Lúcia Bastos Kern (2007a, 2007b). As trajetórias de Carlos
Scliar e da escritora Lila Ripoll são brevemente formuladas, pois ambos são peças-chave para
explicar a adesão da Horizonte e do CGPA ao realismo socialista e seu vínculo com o PCB.
Trajetória, segundo Pierre Bourdieu (1998, p. 189), é a “série de posições
sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele
próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”. A “história de vida”
construída em termos cronológicos, listando fatos a fim de conferir um sentido ao passado e
ao futuro de um indivíduo, e baseada somente em fontes institucionais é equivocada e
insuficiente para compreender uma vida. Bourdieu explica que os acontecimentos biográficos
são colocações e deslocamentos possíveis de acordo com o espaço social, ou “diferentes
estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em
jogo no campo considerado” (BOURDIEU, 1998, p. 190). Conhecer esses estados sucessivos
e as relações entre o agente e seus pares é requisito para o entendimento da trajetória. Outro
conceito importante é o de superfície social, que diz respeito à capacidade do agente de
28
ocupar várias posições, agindo em diferentes campos. Para exemplificar, pode-se pensar no
caso do intelectual que atua no campo literário, que milita em algum partido e é funcionário
público, acrescentando-se a isso seus afetos, sua vivência familiar e seu círculo de amizade. A
compreensão de uma trajetória envolve, por fim, a percepção de que ela não obedece a uma
sequência linear e a uma coerência constante, existem inúmeros fatores que a influenciam.
O espaço social é multidimensional, um campo de forças no qual se estabelecem
interações entre os agentes que resulta na posição que cada um ocupa. O espaço social
engloba as diferentes posições do agente nos campos cultural, social, simbólico, econômico,
etc. A posição relativa no campo determina “os poderes atuais ou potenciais nos diferentes
campos e as probabilidades de acesso aos ganhos específicos que eles ocasionam”
(BOURDIEU, 2011, p. 135). O sociólogo francês complementa:
O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado em 1922, em Niterói (RJ), por um
grupo de militantes do movimento operário oriundos do anarquismo e do sindicalismo
revolucionário que decidiram seguir as orientações da recém-fundada Internacional
Comunista, aderindo aos princípios do bolchevismo. Ao longo dos anos, o PCB tornou-se um
espaço de referência para pensadores da realidade brasileira, que impulsionaram e apoiaram,
por meio de sua estrutura partidária, publicações de revistas, periódicos e livros que tinham
por fim serem veículos de conscientização para a classe trabalhadora 13.
A existência de intelectuais engajados no movimento dos trabalhadores organizados,
assim como a criação de órgãos de difusão de conhecimento e debate político, não foi
invenção dos comunistas. Nos primórdios do século XX, jornais, semanários e revistas
visavam prover a formação política e divulgar os eventos das organizações e, mais do que
isso, consistiam em um espaço de sociabilidade no qual atividades de lazer e de integração
também se noticiavam (JARDIM, 1990). O público-alvo se diferenciava daquele dos demais
órgãos de mídia por ser o leitor também um potencial militante e colaborador. A dura rotina
de trabalho e a escassa educação formal dos operários exigiam que os veículos adaptassem a
linguagem e o conteúdo a fim de que a categoria se identificasse com as causas defendidas e
se sentisse envolvida por elas, tornando possível a mobilização coletiva. Outro ponto
particular desse tipo de imprensa está no propósito de unir a classe, de demonstrar a
comunhão de interesses de seus integrantes. Esse objetivo propõe extrapolar o contexto local
e incitar a solidariedade em relação aos trabalhadores do resto do mundo.
A manutenção dos impressos, considerados fundamentais para a politização e para a
articulação dos movimentos, era tida como tarefa imprescindível. Ao longo do tempo, a
repressão do Estado ocasionou o fechamento de muitos deles, mas se buscavam estratégias
para contornar a situação. Retomavam-se as atividades assim que possível, mudava-se o nome
da publicação e a sede da redação, criavam-se novos jornais. A tradição de uma imprensa
engajada e de intelectuais militantes, desenvolvida ao longo das últimas décadas do século
XIX e das primeiras décadas do século XX vai influenciar o recém-fundado PCB. No caso do
13
Sobre o processo que levou à fundação do PCB, ver BARTZ, 2014. Sobre os primeiros anos do PCB, ver
Karepovs (2002).
31
Partido Comunista, o empenho nessa área gerou uma rede de imprensa próspera nos períodos
democráticos (como entre os anos 1945 e 1964) e, nos tempos de ilegalidade (como entre
1935 e 1945), manteve-se clandestinamente (DEAECTO; MOLLIER, 2013)14. A revista
Horizonte, por exemplo, foi um dos veículos que seguiam a linha oficial do partido. A
trajetória dos colaboradores se mescla à história do comunismo no Rio Grande do Sul; assim
também é o caso dos Clubes de Gravura de Porto Alegre e de Bagé. Trata-se de projetos
políticos derivados da vontade de militantes de servir à causa política e que também
contribuíram com as carreiras profissionais dos envolvidos e incrementaram o campo cultural
do estado.
Nos primeiros anos de sua criação, o PCB não impactou de maneira relevante o meio
cultural brasileiro e sul-rio-grandense. Porém, no final dos anos 1920, com a crise de 1929 e a
Revolução de 1930, intensificou-se a busca pelas contradições sociais brasileiras e o interesse
pelo modelo de transformação social da Revolução Soviética (PALAMARTCHUK, 2001).
Era o período da proletarização do partido, seguindo a orientação da III Internacional, o que
ocasionou o afastamento de líderes importantes como Octávio Brandão e Astrojildo Pereira 15.
Na década de 1930, encontramos no chamado romance social dois exemplares dessa corrente
que tratam sobre a “proletarização” de modos distintos: Parque Industrial (1932), de Patrícia
Galvão, e Caminho de Pedras (1936), de Rachel de Queiroz. Galvão era uma entusiasta da
diretriz partidária e procurou, de fato, proletarizar-se; já Queiroz criticava o autoritarismo e as
restrições impostas pelo PCB e, por essa razão, retirou-se do partido, por não aceitar a censura
e as mudanças determinadas para seu livro João Miguel.
A busca por um caráter mais social da arte era uma questão que estava colocada para
os intelectuais desde a década anterior. A Semana de Arte Moderna de 1922 já mostra
indícios do aprofundamento de interesse por referências nacionais. Ao se afastarem dos
círculos acadêmicos, muitos artistas procuraram a temática social e acabaram por se
aproximar do Partido Comunista. Em 1931, Tarsila do Amaral visitou uma exposição na
URSS e, dois anos depois, realizou a mostra que exibiu a tela Operários e na qual proferiu a
conferência Arte Proletária na URSS no Clube dos Artistas Modernos (CAM). Na mesma
época, expuseram-se trabalhos de Käthe Kollwitz (1867–1945) e David Alfaro Siqueiros
14
Os estudos sobre edição e difusão de livros pelos comunistas brasileiros têm avançado bastante nas últimas
décadas. Um balanço importante com os resultados desses estudos, com abundância de dados e registros
compilados, pode ser encontrado na coletânea Edição e Revolução: leituras comunistas no Brasil e na Franca,
organizada por Marisa Mondadore Daecto e Jean-Yves Mollier, lançada em 2013.
15
Conforme Dainis Karepovs (2002), a partir de 1929, o PCB passou pelo processo de proletarização, que, no
Brasil, ficou conhecido como obreirismo e que “significou a promoção de militantes de extração operária, em
detrimento dos tidos como de origem pequeno-burguesa” (p. 49). Esse processo foi implementado a partir de
orientação da Internacional Comunista e resultou na substituição de quase todo o núcleo dirigente do partido.
32
(1896–1974), este último visitou o Brasil e proferiu palestras sobre o muralismo mexicano.
Emiliano Di Cavalcanti (1897–1976) se filiou ao partido em 1928, manifestando a ideia do
artista engajado na realidade social. Em 1933, Portinari produziu sua primeira obra de
orientação mais engajada, Retirantes (RUBIM, 1995).
Em termos de arte social na produção internacional, a alemã Käthe Kollwitz foi uma
referência importante para os artistas brasileiros que desejavam tratar da temática social e
política. A divulgação de suas obras se dava por impressos e exposições desde a década de
1920. Um exemplo é o artigo do jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, que em 1926 trazia dados
biográficos acerca da artista alemã e celebrava o caráter humanitário e a excelência técnica de
sua produção. Também em Porto Alegre, existem evidências (por depoimento de Carlos
Scliar) de que suas gravuras eram expostas na Livraria Internacional, de propriedade do
anarquista Friedrich Kniestedt (AMARAL, 2003).
Naquele mesmo período, outros artistas alemães também eram relevantes para a arte
engajada, como Otto Dix (1891–1969) e George Grosz (1893–1959). Theodor Heuberger, que
fundou a Sociedade Pró-Arte em 1931, organizou a Exposição Allemã de Livros e Artes
Gráphicas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, em junho de 1930, reunindo aquarelas e
água-forte de Dix e desenhos de Grosz pertencentes a Mário de Andrade. O Diário da Noite
noticiou a mostra e ressaltou as águas-fortes de Käthe, “a maior desenhista social da Europa”
(EXPOSIÇÃO..., 1930a, p. 2). A mostra seguiu para São Paulo, e na notícia do Correio
Paulistano, os trabalhos de Kollwitz novamente são exaltados: “[...] série ‘guerra campestre’,
editada em Dresde, constitue uma maravilha, pelos assumptos observados e executados com
gênio” (EXPOSIÇÃO..., 1930b, p. 2).
Em 1932, o Clube de Artistas Modernos surgiu em São Paulo, idealizado por Flávio de
Carvalho, Di Cavalcanti, Antonio Gomide e Carlos Prado. Também na capital paulista, havia
a Sociedade Pró-Arte Moderna, encabeçada por Lasar Segall. A Pró-Arte enviou obras
gráficas alemãs para o Clube a fim de que organizasse exposições. A dedicada a Käthe
Kollwitz, em 1933, foi a mais relevante e gerou a conferência de Mário Pedrosa publicada
com o título de As tendências sociais da arte e Kaethe Kollwitz em O Homem Livre16.
É importante caracterizar o início dos anos 1930 como um período marcado também
pela luta contra o fascismo e a influência crescente de sua variante brasileira, o integralismo.
16
Em 1928, houve dissidências dentro do Partido Comunista do Brasil (PCB), surgindo a Liga Comunista
Internacionalista, vinculada à Oposição Internacionalista de Esquerda; o crítico Mário Pedrosa tornou-se
membro. Pedrosa estudara, em 1927, na Faculdade de Filosofia da Universidade de Berlim, regressando ao
Brasil em 1929. Filiou-se ao PCB em 1931, mas se afastou por se vincular à corrente trotskista. A palestra Käthe
Kollwitz e seu modo vermelho de perceber as cousas é considerada o marco inicial de sua trajetória como crítico
de arte e fo proferida no Clube dos Artistas Modernos (CAM), em 1932.
33
Existia um movimento de engajamento dos intelectuais que buscavam justiça social na luta
contra o autoritarismo dos camisas-verdes e dos camisas-negras17. Nesse contexto foi criada,
em São Paulo, em 1933, a Frente Única Antifascista. A FUA foi dirigida por Francesco Frola
e era composta por membros do Partido Socialista Brasileiro, da União dos Trabalhadores
Gráficos, da Legião Cívica 5 de Julho, do Partido Socialista Italiano, do Grêmio Universitário
Socialista, do Bandeira dos Dezoito, da Liga Comunista e dos grupos Socialista Giacomo
Matteotti e Italia Libera. Os periódicos vinculados à FUA eram A Rua, O Homem Livre e O
Socialismo. O PCB não participou da fundação da Frente devido à presença de trotskistas;
entretanto, os comunistas estiveram em eventos como os comícios realizados em novembro e
dezembro de 1933 e janeiro de 1934 (CASTRO, 2005).
O CAM abriu a mostra individual de Kollwitz no mês de junho de 1933 e, no dia 16,
Mário Pedrosa proferiu a comunicação Käthe Kollwitz e seu modo vermelho de perceber as
cousas. Em julho, a conferência foi convertida em uma série de artigos publicada em O
Homem Livre. O redator-chefe do periódico, Geraldo Ferraz, exprimiu sua admiração à
artista:
17
Como eram conhecidos os integralistas e os fascistas, pelas respectivas cores de seus uniformes.
34
Pedrosa ressalta que a arte individual era uma invenção recente, mas havia aqueles que
resistiam à concepção da arte pela arte, que era o caso de Kollwitz, que visava ao proletariado.
Seu trabalho estava marcado por um “humanismo superior” e, acrescenta: “pela sua atitude
em frente à guerra, define-se a tendência social dominante em Kollwitz – a fidelidade à sua
classe” (PEDROSA, 1933b, p.4). Conforme observa Eliana Simone (2004), poderia ser um
erro de entendimento entre o termo construtor e pedreiro em alemão que fez com que Käthe
fosse considerada “filha de pedreiro” por Pedrosa, o que não era verdade, sua origem
burguesa, porém, não impediu sua aproximação e interesse pelas classes mais populares. O
crítico revela sua crença na função socializadora e transformadora da arte:
Partido Comunista do Brasil, da qual participaram Sigaud, Bruno Giorgi, Pancetti, Portinari,
Burle-Marx, Santa Rosa, entre outros. Além desta exposição, as publicações partidárias eram
um dos principais espaços de atuação de artistas e intelectuais como militantes. Di Cavalcanti,
Paulo Werneck, Carlos Scliar e Renina Katz, por exemplo, ilustraram e contribuíram com a
programação visual de vários impressos.
Nesse contexto, o PCB incentivou a criação de clubes de gravura em várias cidades 20.
A arte gráfica poderia ser uma ferramenta importante para difundir os preceitos ideológicos
aos moldes das gravuras com temática revolucionária21. O Clube dos Amigos da Gravura de
Porto Alegre foi o pioneiro e o mais ativo, tendo surgido já em 1945. Os gravadores
defendiam a figuração e o conteúdo político nas artes, o que os distanciou das tendências
abstracionistas que passaram a dominar as vanguardas naquele momento, como pode ser
verificado nas bienais de São Paulo. Os comunistas se aventuraram inclusive no audiovisual,
organizando a Tabajara Filmes e cineclubes, como o Clube de Cinema da Bahia, encabeçado
por Walter da Silveira, pelo qual passaram Paulo Gil Soares e Glauber Rocha (RUBIM,
1995).
As revistas culturais dedicavam suas páginas ao cinema brasileiro e à crítica
cinematográfica, chegando a empreitada dos comunistas à produção de filmes. Oscar
Niemeyer e Rui Santos criaram a Liberdade Filmes, que lançou o documentário O comício de
Prestes do Pacaembu e 24 anos de luta, este sobre a história do partido. Os acontecimentos
partidários também eram o tema de Juventude e Atividades políticas em São Paulo, de Nelson
Pereira dos Santos, Esperança das multidões e Congressos, de Salomão Scliar. As produções
de maior projeção foram Estrela da Manhã (1950), dirigido por Oswaldo Marques de
Oliveira, conhecido por Jonald, com argumento de Jorge Amado e música de Radamés
Gnattali e Dorival Caymmi; O Saci (1953), dirigido por Rodolfo Nanni, da produtora
Brasiliensis Filmes, e Rosa dos Ventos, coprodução Brasil e República Democrática da
Alemanha (RUBIM, 1995).
20
O Clube de Gravura de Porto Alegre foi o pioneiro em sua experiência, tendo surgido em 1950. Nos anos
seguintes, organizaram-se os Clubes de Bagé, de São Paulo, de Santos, do Rio de Janeiro e o Ateliê Coletivo do
Recife (AMARAL, 2003, p. 175-190).
21
Uma das principais referências para os clubes de gravura eram os expressionistas alemães e os artistas do
Taller de Grafica Popular do México. Também havia uma considerável influência da gravura revolucionária
chinesa, que despontava naquele período como imagem da Nova China, onde os comunistas haviam saído
vitoriosos no ano de 1949 e onde se consolidava uma concepção de arte como arma política (AMARAL, 2003, p.
177-178).
37
22
O Komintern (Kommunistsch Internationale) ou Internacional Comunista foi uma organização criada em
1919, em Moscou, para unificar e coordenar as lutas dos diversos PCs ao redor do mundo. Sua extinção se deu
no ano de 1943.
38
Figura 2 – Ilustração da capa do jornal A Classe Operária, 1 maio 1928, Segunda Phase, n. 1.
Fonte: <https://www.marxists.org/portugues/tematica/jornais/classe_operaria/pdf/51_594.pdf>.
40
Outra figura de destaque foi Emiliano Di Cavalcanti. Além de colaborar com suas
obras, também se empenhou em escrever sobre a arte social, como demonstrado
anteriormente. Aracy Amaral (2003) exemplifica essa questão mencionando artigo acerca da
exposição de Tarsila do Amaral no Diário Carioca de 15 de outubro de 1933. O artista
defendia a necessidade de se perceberem a realidade e os problemas da sociedade. Em 1933,
Di Cavalcanti lançou o álbum A realidade brasileira (Fig. 4), uma obra crítica da política e
dos costumes.
A Aliança Nacional Libertadora (ANL) tornou-se um movimento de destaque dos
comunistas23, com caráter antifascista e popular, apoiado por Luiz Carlos Prestes. Muitos
intelectuais que almejavam mudanças na base da sociedade brasileira se aproximaram da
ANL, sendo a maioria proveniente da classe média urbana. A Aliança geria três diários: Folha
do Povo (Pernambuco), A Manhã (Rio de Janeiro) e A Platéia (São Paulo). Vários intelectuais
– Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Rubem Braga, Jorge de Lima, entre outros – escreviam
23
A ANL não era um movimento exclusivo do PCB, mas abrangia pessoas de diversas vertentes políticas
interessadas em lutar contra o fascismo.
41
para esses jornais, que continham ilustrações de Di Cavalcanti, Paulo Werneck e Santa Rosa
(RUBIM, 1995). Paulo Werneck colaborou com vários impressos comunistas, incluindo o
jornal A Classe Operária (Fig. 5).
Figura 4 – Emiliano Di Cavalcanti. O espírito das leis acima de tudo, 1933, do álbum A Realidade Brasileira
Fonte: Coleção Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo.
24
Informações sobre o zhdanovismo serão aprofundadas no capítulo 3 desta dissertação.
25
Em revistas sindicais ou de movimentos de esquerda, era comum aparecerem matérias não assinadas, não
apenas por receio de perseguição policial, mas também porque isso pressupunha uma autoria coletiva do
movimento ou então a opinião da própria revista.
46
carreira de advogado para se tornar construtor e transmitiu à filha as ideias socialistas. Käthe
casou-se com o médico Karl Kollwitz, com quem morava em um bairro de proletários de
Berlim. O autor desse comentário ainda enfatiza o caráter de denúncia das mazelas sociais de
suas obras. Uma das causas mais caras à artista alemã foi a pacifista, até mesmo por questões
pessoais. Durante a Primeira Guerra, o filho de Käthe, Peter, alistou-se como voluntário e foi
morto em batalha cerca de um ano depois. Esse trauma fez com que ela se dedicasse ainda
mais às campanhas promovidas por socialistas e comunistas em defesa da paz, dos direitos
dos trabalhadores e das mulheres. A artista morreu em 1945, sem ver o fim do conflito
mundial, após ser obrigada a se retirar de sua casa, que acabou bombardeada, em Berlim.
Figura 8 – Käthe Kollwitz. Guerra nunca mais (Nie Wieder Krieg), 1924
Capa da revista Fundamentos, n. 9-10, mar.-abr. 1949
Fonte: Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional
No ano de sua morte, Käthe Kollwitz esteve representada por treze obras na Exposição
de Arte Condenada pelo III Reich, inaugurada em 10 de abril de 1945, na Galeria Askanazy,
localizada na cidade do Rio de Janeiro. A mostra reuniu trabalhos de 39 artistas banidos por
Hitler que pertenciam a refugiados de guerra. No texto para o catálogo, Hannah Levy
47
Figura 9 – Käthe Kollwitz, Em Prol da Grande Berlim (Für Gross Berlin), 1912
Litografia, 72,7 X 95,8 cm, MoMA
quinze anos com a obra Solidariedade (1931–1932). No ano de 1927, Käthe e seu marido,
Karl, visitaram a Rússia a convite da Associação dos Artistas Revolucionários Russos. O
casal integrou a delegação que participou do Congresso Mundial dos Amigos da União
Soviética, organizado pelos dez anos da Revolução. A relação de Kollwitz com a URSS não
foi de todo harmoniosa, pois a artista criticava os casos de violência e autoritarismo, como o
caso da prisão de Maria A. Spiridonova, em 1930, e a morte de intelectuais e cientistas
contrários ao regime (SIMONE, 2004). De qualquer maneira, a artista foi um dos principais
exemplos para os comunistas. O resgate dos trabalhos de temas pacifistas e revolucionários se
intensificou no período de atuação dos partidários da paz.
Reproduções de Kollwitz ilustraram as páginas da revista Horizonte e ela foi assunto
de algumas matérias. O artigo de E. Cary (1951), A Gravura Chinesa, ressalta o papel do
expressionismo alemão, do início do século XX, para o desenvolvimento da gravura
revolucionária chinesa. O escritor Jou Chen conhecia a produção de Käthe Kollwitz, e o
literato Lu Xun chegou a organizar uma exposição dedicada à artista (CARY, 1951).
Na sétima edição da revista, as obras da alemã estamparam a capa e várias páginas
(Fig.10). Nesse exemplar, publicaram-se as resoluções do Conselho Mundial dos Partidários
da Paz, reunido em Viena, e a notícia da reunião, em Porto Alegre, do Movimento Brasileiro
pela Paz, nas páginas centrais. Acompanhando os textos, encontram-se um autorretrato e a
gravura em água-forte A Marcha dos Tecelões/Weberzug (Fig. 11), da série A Revolta dos
Tecelões/Ein Weberaufstand (1893–1897).
O ciclo A Revolta dos Tecelões se inspirou na peça Os Tecelões, de Gerhard
Hauptman, sobre a revolta na indústria Zwanziger, em 1844, na Silésia (Prússia), a que
Kollwitz assistiu no ano de 1893, em Berlim (SIMONE, 2004). Naquela região prussiana,
passava-se por um processo de pauperização e de diminuição de salários. A rebelião eclodiu
no dia 3 de junho devido à detenção de um operário (SCHMICKL, 2008). O movimento foi
reprimido pelas forças militares, o que resultou na morte de vários trabalhadores. A gravura
de Käthe Kollwitz mostra vários tecelões em cortejo, dirigindo-se para um destino
desconhecido. O rosto fechado e as cabeças cabisbaixas manifestam as duras condições de
vida. A transmissão do clima tenso e triste é alcançada graças à expressividade conferida pela
artista à obra.
49
arte influenciadas pelo realismo socialista zhdanovista e pode ser entendido, inclusive, como
uma declaração dos princípios estéticos da revista. Di Cavalcanti reclama do afastamento da
realidade de artistas como Kandinski, Paul Klee, Mondrian e Calders, cujas obras chama de
“especialização estéril”, “visões monstruosas” e “abortos estéticos” (DI CAVALCANTI,
1949, p. 242). Esse debate não estava restrito ao Brasil, mas também se realizava, naquele
momento, na Europa e tinha um caráter internacional. A defesa do realismo, para Di
Cavalcanti, passa por compreender que se encontra em um processo de evolução social e
artística. O artista deveria ter liberdade para criar, mas suas escolhas não deveriam fugir à
compreensão do público, e Di Cavalcanti remete a Kant, Hegel e Marx para basear sua
argumentação.
O artista deve submeter os meios que emprega a uma ideia, a um conteúdo. A arte
consistiria na forma superior do uso da natureza pelo homem, inclusive da natureza humana.
Di Cavalcanti prossegue em seu artigo escrito para a revista Fundamentos:
26
O Partido Republicano, influenciado pelo positivismo de Augusto Comte, impôs-se no governo do estado logo
após a Revolução Federalista (1893-1895). A oposição que reunia antigos liberais, conservadores e republicanos
dissidentes se organizou no Partido Federalista, que tinha como principal defesa a implantação do
parlamentarismo e do federalismo.
52
27
O México vivia um intenso processo de ebulição social e cultural desde o início da Revolução Mexicana, em
1910, atraindo campanhas de solidariedade e contra a ameaça de intervenção estrangeira.
53
ocorriam aos domingos. A pauta do debate incluía informes sobre o México, o imperialismo e
os problemas da classe trabalhadora. Durante seu segundo e último ano de existência, 1928,
cerca de cem pessoas participaram da instituição, cujos principais dirigentes foram o escritor
Jorge Bahlis, o dentista russo Nicolau Artzvensco, o advogado Hugo Ungaretti, Manoel Scliar
e Luiz Cuervo. Bahlis a presidiu e, devido ao seu conhecimento do funcionamento do meio
intelectual, possibilitou que a Liga se destacasse e fosse bem-sucedida.
Jorge Bahlis reforçou os laços com seus pares e criou vínculos com o corpo de
diplomatas do México devido ao seu trabalho na Liga. O embaixador mexicano Ortiz Rubio,
pessoa das relações de Bahlis, retornou ao seu país, tornou-se ministro e presidente pelo
Partido Nacional Revolucionário, em 1930, e nomeou o escritor cônsul do México no Rio
Grande do Sul.
Em 1929, o PCB adotou o obreirismo ou proletarização, seguindo as resoluções da
Internacional Comunista. A proletarização, basicamente, pregava que os dirigentes do partido
deveriam ser proletários, abandonando a ideia de que os intelectuais pequeno-burgueses e o
operário poderiam se equivaler e formar uma frente única. Isso ocasionou o afastamento da
intelectualidade voluntária ou involuntariamente. O comitê sul-rio-grandense passou a adotar
a política de mais atenção à classe trabalhadora quando Marcos Piatigorski se tornou
dirigente; porém, por pouco tempo, pois foi preso e deportado. As prisões de comunistas
ocasionaram a radicalização do discurso e a defesa da luta armada. O resultado foi ainda mais
repressão e a desarticulação do partido.
Policarpo Hibernon Machado, barbeiro, assumiu a liderança do PCB gaúcho em 1933.
Os comunistas se dedicaram a construir o movimento dos trabalhadores e adentraram na
Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS), criaram o jornal A Voz do Trabalhador e
a Liga Eleitoral Proletária (LEP), visando ao pleito de 1934 (MARTINS, 2012).
A ascensão dos regimes nazifascistas na Europa alterou as convicções da Internacional
Comunista, que voltaram a admitir a frente única, constituída pelos operários e pelos
54
28
Dyonélio Machado (1895–1985) exercia diversas profissões, escritor, jornalista e médico, além de político.
Seu nome completo é Dyonélio Tubino Machado, sua cidade natal é a fronteiriça Quaraí. Apesar de pertencer a
uma família tradicional republicana, tinha poucos recursos financeiros. Mudou-se aos 17 anos para Porto Alegre,
onde formou um círculo de amizade com interessados em literatura, leitores de clássicos como Eça de Queirós e
Flaubert (MARTINS, 2012).
Em meio a dificuldades financeiras, teve de retornar à sua terra e não pôde, no primeiro momento, cursar a
desejada faculdade de Medicina. Em Quaraí, conseguiu trabalho de redator no jornal oficial do Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR) e de professor municipal. No ano de 1920, de volta a Porto Alegre, Dyonélio
assumiu o cargo público no Almoxarifado Central na Secretaria de Obras Púbicas estadual. Ele publicou textos
ficcionais em periódicos, entre eles, Diário de Notícias e Correio do Povo. Nessa época, sua filiação política
ainda era republicana e chegou a fundar o jornal A Informação dessa linha partidária e a dirigir o Club
Republicano Borges de Medeiros. É interessante recordar que na década de 1920 existia a vontade de escritores
de produzir uma literatura que contribuísse com mudanças estruturais da sociedade. Pode-se considerar que
Machado compactuava dessa ideia e isso, juntamente com sua história familiar, explica a sua atuação no campo
da política, sendo que sua formação inicial foi castilhista e positivista (MARTINS, 2012).
A Livraria do Globo publicou o primeiro livro ficcional de Dyonélio, a compilação de contos Um Pobre Homem,
em 1927. Os anos seguintes foram dedicados à formação médica, mas Machado continuou a ter uma vida pública
notável e era reconhecido por seus escritos e por sua militância política. Quando a Revolução de 1930 eclodiu,
ele estava no Rio de Janeiro se especializando em Psiquiatria, mas não foi um feito que o entusiasmou, pois já
não acreditava no potencial de mudanças de “partidos burgueses”. Seus estudos culminaram na publicação da
tese Uma Definição Biológica do Crime, pela Livraria do Globo, no ano de 1933. No ano seguinte, seu livro
mais famoso veio a público, Os Ratos, um romance cujo enredo trata de questões sociais e psicológicas.
55
Alguns literatos ligados ao PCB tiveram sua produção sob a mira da censura
e da crítica desfavorável durante o Estado Novo. Coincidência ou não, o
peso da crítica se fez maior dependendo do quão declaradamente comunista
era o/a escritor/a. Dyonélio Machado e Ivan Pedro de Martins –
estigmatizados desde suas participações na ANL, o primeiro em Porto
Alegre, o segundo no Rio de Janeiro – foram atingidos mais diretamente,
enquanto Cyro Martins – de atuação discreta – não teve problemas nesse
sentido. Todos eles, juntamente com Lila Ripoll, foram publicados pela
Editora Globo entre o fim dos anos 1930 e a primeira metade da década
57
Ivan de Martins é autor de Fronteira Agreste, que foi editado pela Globo em 1943 e
que ficou por um período apreendido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A
Revista do Globo aproveitou o ocorrido para promover o debate entre os intelectuais a
respeito da neutralidade da produção artística, tema da reportagem Serão fascistas os
escritores gaúchos?, de 6 de maio de 1944, lembrando que Justino Martins ainda estava à
frente da publicação. O balanço das colocações revela que a maioria dos entrevistados
defendia a missão social da literatura, um dos principais temas abordados no I Congresso dos
Escritores, que aconteceria no próximo ano, em São Paulo29.
O I Congresso dos Escritores movimentou o campo cultural. O evento não tratou
apenas de literatura, mas também de teatro, direitos autorais, cinema, rádio, imprensa,
formação de público, cultura em geral. Os comunistas, que permaneciam na ilegalidade, não
foram majoritários no Congresso; porém, tiveram uma participação importante. Dyonélio
Machado coordenou mesa e comissão e também liderou a delegação sul-rio-grandense.
Os militantes do PC, embora não houvesse no momento um controle rígido partidário
sobre os escritos de seus membros, tentavam transmitir sua linha ideológica nas discussões.
Martins (2012) nos conta que encontros coletivos promovidos na casa de Jorge Amado, nos
quais estavam presente o dirigente Pedro Pomar, os escritores Vinícius de Moraes, Dyonélio
Machado, Moacir Werneck de Castro e outros. Eram o espaço de decisão sobre como os
escritores deveriam se posicionar, o que deveria convergir com as diretrizes tiradas na
Conferência da Mantiqueira de 1943, momento em que os principais dirigentes do partido se
reuniram para debater a posição do PCB em face à Guerra mundial e à situação política do
Brasil. Os princípios basilares eram a difusão da cultura e a conscientização da população.
Ao final, o I Congresso elaborou uma Declaração de Princípios. No documento, lê-se
que as maiores preocupações eram a defesa da democracia, a liberdade de expressão, o
comprometimento com os anseios do povo e com a transformação da sociedade para que suas
aspirações fossem satisfeitas.
Ainda em 1945, o PCB retornou à legalidade, surpreendentemente apoiando Getúlio
Vargas, e tratou de ter a maior visibilidade. O partido organizou sua rede de veículos de
29
Os participantes desta entrevista foram Antonio Barata, Athos Damasceno, Ciro Martins, Darcy Azambuja
Dyonelio Machado, Erico Verissimo, Limeira Tejo, Juvenal Jacinto, Mario Quintana, Emilio Kemp, Moises
Vellinho, Othelo Rosa, Waldemar de Vasconcelos, Reynaldo Moura, Telmo Vergara e Walter Spalding.
58
imprensa e suas instâncias de ação, assim como também se reorganizou sua atuação junto ao
movimento operário.
APARATOS CULTURAIS
Brasileira dos Amigos do Povo Espanhol e a Liga das Donas de Casa. A política de
“centralismo democrático” garantiria a coesão ideológica e de prática de toda essa estrutura.
As decisões aconteciam, várias vezes, em reuniões ampliadas nas quais os militantes davam
os informes de suas ações. Analisando o relato do comunista e padeiro Edgar Curvello sobre o
encontro Pleno Ampliado, Marisângela Martins ressalta os seguintes pontos:
No Rio Grande do Sul, alguns intelectuais filiados eram Dyonélio Machado, Cyro
Martins, Laci Osório, Beatriz Bandeira, Edith Hervé, Lila Ripoll e Plínio Cabral. O público
62
podia encontrar os textos dos militantes na Revista do Globo, dirigida, naquele momento, por
Justino Martins, o que facilitava o acesso à publicação aos seus camaradas. Outra importante
instância de legitimação para os literatos foi a Província de São Pedro30, fundada em 1945,
apesar de ter um grupo mais intelectualizado. O conteúdo da Província consistia de contos,
poesias e ensaios de temas diversos, por exemplo, o regionalismo. Lila Ripoll, Cyro Martins,
Beatriz Bandeira e Dyonélio Machado eram colaboradores da publicação. Verifica-se a
presença de escritores comunistas até 1947, quando o PCB entrou na ilegalidade novamente.
A revista cultural Libertação, fundada por Décio Freitas, passou a circular em 14 de
abril de 1945, dirigida por Alfredo Antônio Gerhardt e Sibilis da Rocha Viana. Vinculada ao
Comitê Municipal de Porto Alegre, o lema da publicação era “Democratização, Progresso,
pela Organização Unitária do Povo”. Os colaboradores e os leitores pertenciam à parcela
intelectualizada da esquerda. Os temas dos escritos privilegiavam o partido e figuras ligadas a
ele, destacando-se Luiz Carlos Prestes. A exaltação das personalidades pode se relacionar ao
culto da personalidade característica do realismo socialista. Prestes era elevado à categoria de
herói à maneira que se vê, posteriormente, nas páginas da Horizonte.
Os intelectuais se originavam, em sua maioria, da pequena burguesia; por conseguinte,
despertavam desconfiança porque não pertencerem à classe revolucionária, o proletariado.
Assim, deveriam demonstrar sua firmeza ideológica, seu comprometimento e sua lealdade
partidários. Martins (2012) destaca textos da Libertação que justificam a presença desses
pequenos burgueses, colocados na posição de amigos ao empregarem seu saber nas causas
dos trabalhadores, tornando-se merecedores de ocupar posições na hierarquia do partido.
30
A Província de São Pedro circulou entre 1945 e 1957, tendo 21 edições. Seu diretor foi Moysés Vellinho; e
seu secretário, Carlos Reverbel. A revista visava divulgar o pensamento de intelectuais sul-rio-grandenses e
promover sua valorização, a fim de inseri-los no espectro da cultura nacional (RAMOS, 2016).
63
Bandeira e Eunídia dos Santos. O projeto do jornal tnha a tiragem diária e ampla, diversidade
de temas e de natureza das notícias, o que pode ser verificado nos exemplares dos primeiros
anos, de 1947 a 1949. O jornal, claro, colaborou na realização de tarefas do partido, uma delas
foi a busca de figuras do passado que se notabilizaram pela defesa dos desfavorecidos, tais
como o poeta abolicionista Castro Alves. A intenção era colocar os comunistas na posição de
herdeiros de sua luta. No centenário de nascimento, em 11 de março de 1947, o poeta recebeu
homenagens na página 8 da Tribuna Gaúcha que o exaltava pelo seu ímpeto combativo e por
ser um representante do desejo de libertação do povo. Há de se atentar que se tratava de um
escritor, ou seja, ia ao encontro da ideia do intelectual e sua missão social.
A atuação cultural do PCB não se limitava aos impressos. Na Sociedade Espanhola de
Socorros Mútuos, estabeleceu-se, em 20 de maio de 1945, o Clube de Cultura Popular
Euclides da Cunha, que promovia atividades variadas de educação, cultura e entretenimento e
até de assistência médica. A equipe da entidade apresentava os seguintes nomes: Jorge Bahlis,
Homero de Castro Jobim, Manoel Castilhos, Jorge Muller Mendes, Gilda Marinho, entre
outros. Em 1945, há registro de 45 conferências oferecidas, algumas ministradas pelos
escritores Cyro Martins, Jorge Amado, Dyonélio Machado e Álvaro Moreyra. A professora,
musicista e poetisa Beatriz Bandeira organizava apresentações de música e de teatro do
projeto Horas de Arte. O espaço do clube era cedido para eventos da Juventude Comunista.
Durante a fase de legalidade, o PCB gaúcho manteve dois programas de rádio, a Hora do
Partido Comunista do Brasil e o Programa Político do Comitê Municipal, nas emissoras
Rádio Difusora e Rádio Cruzeiro, respectivamente.
A constituição do campo artístico no Rio Grande do Sul foi marcada pelo debate a
respeito da adoção de tendências internacionais e da manutenção dos costumes e dos gostos
locais, conforme observa Maria Lúcia Bastos Kern (2007a). Um dos pilares da formação da
arte gaúcha foi a fundação do Instituto Livre de Belas Artes, em 1908, dirigido por Olinto de
Oliveira. Inicialmente, criou-se o Conservatório de Música, em 1909, e, no ano seguinte, a
Escola de Artes (SIMON, 2002). A Escola foi comandada por Libindo Ferrás, que seguiu
modelos europeus de ensino acadêmico tradicional (GASTAL, 2007).
64
31
Sobre o assunto, ver Ramos (2016).
65
derivada da crise gerada pela descrença no liberalismo. No Brasil, Getúlio Vargas assumiu o
papel de chefe que atenderia às demandas populares, resolveria os problemas sociais e, por
outro lado, exerceria forte controle sobre a população, reprimiria seus opositores e tentaria
coibir os socialistas. Empenhado em transformar a cultura e fazer um projeto de nação, o
Estado Novo atraiu uma série de intelectuais e artistas modernistas e tradicionais preocupados
com questões da brasilidade que acabaram por formular a ideia de pertencimento de cada
brasileiro a um povo. Virna Braga (2008, p. 9) delibera que: “Antes isolado pelo liberalismo,
o homem brasileiro passa a se integrar à vida popular por meio do Estado, ‘o verdadeiro
sujeito da liberdade’”. Todos são convocados para participar da construção da história do país
baseada no bem comum. O campo simbólico foi grande aliado na transmissão da ideologia
estadonovista.
Houve incremento de fluxo de informações sobre artes e artistas, profissionais e
amadores. Em abril de 1936, Tasso Corrêa assumiu a direção do Instituto de Belas Artes
(IBA)32 e inaugurou o Curso de Artes Plásticas, que substituiu a Escola de Artes fundada em
1910 (SIMON, 2002). Corrêa promoveu mudanças curriculares seguindo o modelo da Escola
Nacional de Belas Artes, inserindo disciplinas como Modelagem, Desenho e Escultura
(KERN, 2007b; SIMON, 2002), porém o IBA manteve um caráter elitista.
A fim de proporcionar outro caminho além da academia para artistas que desejavam
visibilidade, criou-se a Associação Francisco Lisboa (a Chico Lisboa), em 1938, da qual
participaram João Faria Viana, Carlos Scliar, Nelson Boeira Faedrich, Guido Mondin, Vitório
Gheno, Edla Silva, entre outros. Embora a proposta de Associação fosse proporcionar uma via
alternativa ao IBA, os temas e as linguagens artísticas empregados não eram muito diferentes
daqueles da academia. Verifica-se que o mesmo artista era premiado pelos salões de ambas as
instituições. Além disso, vários alunos, ex-alunos e docentes do IBA passaram pela Chico
Lisboa (SIMON, 2002).
Em 1939, o IBA recebeu auxílio dos governos federal, estadual e municipal para a
promoção do I Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul em comemoração ao
Cinquentenário da Proclamação da República Brasileira (BOHNS, 2005; SIMON, 2002).
Conforme Flavio Krawcyck (1997), o I Salão do IBA teria sido uma resposta ao Salão da
Chico Lisboa e também uma forma de legitimar o próprio Instituto. Sua comissão julgadora
contou com os professores da instituição, ou seja, Angelo Guido, José Lutzenberger, João
32
O Instituto Livre de Belas Artes foi substituído pelo Instituto de Belas Artes, sendo que as duas denominações
coexistiram entre 1934 e 1939. O IBA foi uma das entidades fundadoras da Universidade de Porto Alegre (UPA)
no ano de 1934. A UPA foi efetivamente instalada e reconhecida em 1936, quando se deu a posse do primeiro
reitor (SIMON, 2002).
67
Fahrion, Luiz Maristani de Trias e Ernani Dias Correa (KRAWCYCK, 1997, p. 39). A cidade
contava com poucos locais de exposição, havia o auditório do Correio do Povo, a Galeria da
Casa das Molduras e algumas lojas que dispunham suas vitrines para isso (KERN, 2007b).
Na década de 1940, os críticos de arte Angelo Guido e Aldo Obino promoveram um
debate sobre o modernismo e o antimodernismo. Os artistas modernos eram criticados pelo
abandono das tradições e dos valores clássicos e da beleza, além de serem vinculados ao
bolchevismo. Essas concepções encontraram adeptos no IBA e na AFL.
Em 1942, realizou-se o 1º Salão Moderno de Artes Plásticas do Rio Grande do Sul, na
Casa da Cama Patente, cujo objetivo era ridicularizar a arte moderna. Participaram da mostra
21 artistas, entre eles, os organizadores do evento, João Faria Viana, Guido Mondim,
Oswaldo Goidanich e Edgar Koetz (RAMOS, 2016). Esses quatro artistas redigiram um texto,
publicado no jornal Diário de Notícias, que esclarecia que o Salão Moderno, na verdade, tinha
um caráter de crítica ao modernismo, que era responsabilizado pelo desvirtuamento da arte
(BOHNS, 2005). No ano seguinte, Edgar Koetz e Oswaldo Goidanich foram premiados no
Salão do IBA (KERN, 2007b).
Entretanto, o modernismo tinha seus entusiastas, como o diretor do Departamento
Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), Manoelito de Ornelas. Ele proferiu Elogio da
Arte Moderna, celebrando o retorno de Carlos Scliar a Porto Alegre, em 1941, e promoveu a
Exposição dos Novos, no ano de 1944. Carlos Scliar se destacou na defesa da modernização
das artes através de escritos, de palestras e por suas obras, mas sua atitude não agradou nem
mesmo seus colegas da Chico Lisboa (KERN, 2007a).
O Museu Nacional de Belas Artes, fundado por um decreto de Getúlio Vargas em
1937 e dirigido por Oswaldo Teixeira, a Escola de Belas Artes, integrada à Universidade do
Brasil (nome transitório da UFRJ) também em 1937, e o Salão Nacional de Belas Artes eram
considerados organizações conservadoras e modelos para as demais entidades do país. O
modernismo encontrava seu recanto no Ministério da Educação, pasta de Gustavo Capanema,
que agregou os artistas mais arrojados daquele momento, que elaboraram a Divisão Moderna
do Salão Nacional. Cândido Portinari era um dos mais reconhecidos entre os modernos. A
disputa não se limitava à atração por determinada tendência estética, mas extrapolava para
questões políticas e ideológicas. Portinari e Di Cavalcanti tinham simpatia pela esquerda,
Oswaldo Teixeira, pelo nazi-fascismo (KERN, 2007b). O governo também apreciava a
política do Eixo desde 1933, mas quando ela ameaçou o país e o Brasil entrou na Segunda
Guerra, isso, obviamente, modificou-se.
68
imprensa partidários adquiriram importância como espaço de trabalho para eles. Entre estas
estavam as revistas culturais ligadas ao PCB, criadas nas décadas de 1940 e 1950 33.
A Horizonte teve, no total, três diretores: Cyro Martins (1949); Lila Ripoll (1950–
1951 e 1954–1956); Fernando Guedes (1951–1954). Ela passou a circular em março de 1949,
sob a direção de Cyro Martins, tendo por secretários Zaira Martins e Flamarion Silva. Os
redatores haviam tido uma militância pública pelo PCB: Lila Ripoll, Dyonélio Machado,
Juvenal Jacinto, Edith Hervé, Flamarion Silva, Zaira Martins, Mario Escobar Azambuja e
Thereza de Almeida. As secções de música e de cinema ficaram a cargo de José Salanky e
Plínio de Morais, respectivamente. Segundo o editorial da primeira edição, a publicação
almejava incrementar a educação e a cultura da população e ser espaço para os literatos já
reconhecidos e novatos.
Embora feita por comunistas, no período em que Cyro Martins estava à frente, o
conteúdo da revista não tinha um viés panfletário. Havia notícias a respeito de personalidades
do partido, por exemplo, a participação de Vasco Prado no Congresso Mundial de Intelectuais
em Defesa da Paz, na coluna de Juvenal Jacinto, Notas e Notícias. As próprias capas
denotavam neutralidade, compostas por planos geométricos de cor, e o nome da revista em
caixa alta, sem chamadas. Essa fase teve apenas três exemplares, em março, abril e julho de
1949, cujas capas eram simples, compostas por planos chapados de cor e o nome da revista
em caixa alta (Fig. 13). Já Ripoll e Guedes seguiram a linha mais rígida do partido,
procurando empregar os preceitos do realismo socialista e criticando enfaticamente o
imperialismo estadunidense e os artistas “traidores do povo” (expressão usada pelos militantes
do PCB).
33
Por exemplo Literatura, do Rio de Janeiro; Fundamentos, de São Paulo; Seiva, de Salvador; e Orientação, de
Recife (RUBIM, 1995).
70
Figura 13 – Da esquerda para a direita: capas das edições 1 (mar. 1949), 2 (abr. 1949) e 3 (jul. 1949)
da revista Horizonte.
Fonte: Arquivo João Batista Marçal, Viamão, RS [reproduções fotográficas da autora]
A revista podia ser adquirida por assinatura e em bancas pela cidade. Era distribuída
pela Agência Farroupilha e impressa pela Tipografia Barata (MARÇAL, 2004). Talvez por
não dispor de um orçamento fixo para sua produção, não seguia uma periodicidade regular
(BALBUENO, 2001). A sede da redação ocupou salas nos logradouros de Porto Alegre: Rua
Tobias Barreto, número 181; Avenida 3 de Novembro, número 138/2; e Rua Marechal
Floriano, número 504/2.
Os anseios de democratizar o acesso às artes, conscientizar politicamente a população,
servir aos interesses do povo impulsionavam a equipe que assumiu o comando da Horizonte
no ano de 1950. O formato da revista se modificou – suas dimensões aumentaram para 23 por
31 centímetros, e a capa passou a ser ilustrada e a estampar parte do editorial ou chamadas
para os artigos. O texto de apresentação da Nova Fase, de autoria da nova diretora, Lila
Ripoll, revelava os preceitos que guiariam a revista. A posição era clara: admiração às
democracias populares da China e da União Soviética, engajamento no Movimento pela Paz,
repúdio ao imperialismo norte-americano, concepção da arte como instrumento de
transformação social:
Aqui estamos, em nossa nova fase e, à boa maneira gaúcha, digamos logo
quem somos e o que queremos.
<HORIZONTE> é uma revista de intelectuais de vanguarda. Nossa arte,
portanto, estará a serviço do que, na sociedade humana e em nossa terra,
represente o que há de novo, de progressista, que consulte às mais nobres
aspirações da Humanidade e do nosso povo.
Uma linha, nítida e tensa, divide o mundo de hoje em dois campos. De um
lado, os partidários da Paz, da cultura, de um mundo novo, com o qual
sonharam os grandes pensadores do passado e que já se ergue, a nossos
olhos, na gloriosa União Soviética, na Nova China e nas Democracias
71
Lila Ripoll (Fig. 14) nasceu em Quaraí, no dia 12 de agosto de 1905, filha de
Florentino Ripoll e Dora Pinto Ripoll. Seus estudos iniciais se realizaram na escola da
professora Onda Talaia. Em 1927, Lila se mudou para Porto Alegre, onde completou sua
formação na Escola Complementar. Sua educação se assemelhava à das demais moças da
época: aulas de piano, de matérias básicas (Português e Matemática), formação moral e
religiosa. Formou-se pianista no Conservatório de Música de Porto Alegre. Interessante notar
que as escritoras comunistas – Esther Scliar, Adalgiza Martins Machado, Gilda Marinho,
Beatriz Bandeira – tiveram uma educação inicial similar. No Rio Grande do Sul, a doutrina
positivista influenciava a sociedade e, quanto às mulheres, a enfermagem e o magistério
seriam áreas adequadas, pois corroboravam a concepção de “mãe” e “cuidadora”, vocações
femininas “naturais”. A esposa do autor Dyonélio Machado, Adalgiza Machado, foi
professora de música; Beatriz Bandeira, de educação artística. Lila Ripoll deu aulas de Canto
Orfeônico no Grupo Escolar Venezuela a partir de 1930 (BORDINI, 1987).
Essas mulheres empregaram seus saberes em prol da militância. Beatriz Bandeira era
responsável por planejar as atividades culturais do Clube de Cultura Popular Euclides da
Cunha. Lila Ripoll esteve à frente do Departamento Cultural do Sindicato dos Metalúrgicos,
para o qual preparou peças de teatro, deu aulas de música e literatura e organizou o Coral dos
Metalúrgicos (MARTINS, 2012; BORDINI, 1987).
73
Waldemar Ripoll, primo de Lila, foi muito importante na inserção da parente no meio
intelectual. Waldemar se envolvera com política desde a juventude – participou do Centro
Acadêmico da Faculdade de Direito, da Revolução de 30 e da Revolução Constitucionalista.
Pelo ingresso na Revolução Constitucionalista, teve de se exilar em Portugal. Após um ano,
instalou-se no Uruguai e envolveu-se com a Aliança Popular Revolucionária Americana
(APRA). De muita firmeza de princípios, Waldemar apoiava a luta armada. Sua vida foi
intensa e curta: no ano de 1934, foi assassinado aos 28 anos de idade a golpes de machado,
em Rivera. Consta que o crime foi encomendado por Camilo Alves a mando do general Flores
da Cunha (MARTINS, 2012; BORDINI, 1987).
O comprometimento e a morte de Waldemar afetaram intensamente sua prima e
motivaram-na a militar pelo comunismo. Vários familiares exerciam papéis relevantes na
cidade de Quaraí. O pai de Waldemar, Raymundo Ripoll, fundou o Clube União Caixeral; seu
tio Pedro foi presidente do diretório do Partido Republicano. Assim, o ambiente em que
crescera era de pessoas inclinadas ao protagonismo na vida pública.
Lila Ripoll militou pelo comunismo quase sua vida inteira. Nos anos 1930, era
conhecida por suas posições políticas, embora ocupasse cargo no gabinete de Coelho de
Souza na Secretaria Estadual da Educação. O primeiro livro de poemas, De mãos postas, teve
edição pela Livraria do Globo, em 1938, e conseguiu boas críticas na imprensa, mesmo caso
de Céu Vazio, de 1941. Este último título foi agraciado com o Prêmio Olavo Bilac de
Literatura de 1943, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Justino Martins dedicava
espaço para as poesias de Lila na Revista do Globo e rendia-lhe elogios comparando-a a
autores como Mário Quintana e Athos Damasceno. Dos seus colegas literatos, recebeu
homenagens em almoços e coquetéis. Não era usual ser dispendida toda essa receptividade a
escritoras por parte da grande imprensa da cidade – Diário de Notícias, Correio do Povo e
a Revista do Globo –, conforme consta em matéria da publicação da Globo, em agosto de
1943, na qual membros da Academia Feminina de Letras do Rio Grande do Sul, notadamente
a presidente da entidade, Lídia Moschetti, reclamam da falta de oportunidades de mostrar seu
trabalho. Marisângela Martins (2012, p. 221) propõe o seguinte para entender o caso de Lila
Ripoll:
Entre 1947 e 1960, diversos espaços serviram de cenário para a atuação legal
das comunistas: organizações de massa – como a Federação de Mulheres do
Brasil, a Solidariedade, a Associação Nacional de Mães, a Associação
Feminina de Porto Alegre –, associações de bairro da capital do estado e
departamentos femininos de alguns sindicatos. Nos núcleos menores, as
participantes desenvolviam atividades manuais (crochê, tricô); aprendiam a
ler e a escrever; promoviam festas, churrascos e chás para arrecadar recursos
para as campanhas; organizavam abaixo-assinados em favor da paz;
discutiam problemas de seu bairro (água, luz, transporte etc.) e alguns
aspectos da situação das mulheres e das crianças no Brasil (MARTINS,
2012, p. 235).
atuação literária: assumiu a presidência da seção regional da União Brasileira dos Escritores e
ajudou a organizar o IV Congresso Brasileiro de Escritores, em Porto Alegre.
Por ocasião do conflito travado entre trabalhadores e policiais na comemoração do Dia
do Trabalhador de 1954, em Rio Grande, Lila Ripoll publicou o poema Primeiro de Maio.
Naquele dia, integrantes da passeata foram metralhados por agentes de segurança do estado. A
escritora tornou-se colaboradora do jornal A Tribuna, tanto com textos quanto na parte
administrativa. Ela lançou Poemas e Canções em 1957, também pela Cadernos da Horizonte.
No final da década, Lila trouxe ao público outra faceta de sua produção com a peça
teatral Um Colar de Vidro, que estreou no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, sob a direção
de Luiz Carlos Saroldi. Ela também montou Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes.
Nos derradeiros anos de sua existência, Lila continuou ativa. Em 1961, publicou O
Coração Descoberto; em 1965, Águas Móveis. Promoveu recitais no Clube de Cultura e
participou de ações a favor do teatro na cidade. No início do regime militar, ela chegou a ser
presa; entretanto, por estar com câncer em estágio avançado, acabou por ser liberada. Seu
amigo e poeta Walmyr Ayala organizou Lila Ripoll – Antologia Poética, lançado poucos dias
antes de a escritora falecer, em 7 de fevereiro de 1967.
Figura 15 – Da esquerda para a direita, os irmãos Isaac, Manoel José e Henrique Scliar.
Fonte: CARLOS..., 1983, p. 20.
A primeira rua em que Henrique Scliar viveu na cidade de Porto Alegre foi a Tomás
Flores, próximo à Igreja do Bom Fim, local que se tornaria um reduto importante da
comunidade judaica na capital. Em seguida, mudou-se para a Fernandes Vieira, caracterizada
pelas residências familiares. Henrique se tornou alfaiate, foi empregado dos irmãos Guaspari,
e esteve à frente de uma confecção. A maioria dos seus irmãos era marceneiro. Entre seus
irmãos estavam Isaac, pai da musicista Esther Scliar e da professora Leonor Scliar-Cabral, e
Manoel José, pai do escritor e médico Moacyr Scliar, que chegou a trabalhar para Henrique
(SCLIAR, 1983). Posteriormente, José casou-se com a professora Sara, originária da cidade
de Tomashpol, da região da Bessarábia, Rumânia, atual Moldava.
De espírito inquieto, Henrique viajou para Buenos Aires, onde trabalhou em
confecções, envolveu-se em movimentos grevistas e com anarquistas. De volta ao estado,
casou-se com Cecília Stechman em 1919. Cecília morava na colônia de Quatro Irmãos, uma
das áreas compradas pelo Barão Hirsch.
O casal se mudou para Santa Maria da Boca do Monte, e Henrique conseguiu o cargo
de gerente em uma fábrica de confecções (Fig. 16). Carlos Scliar nasceu nessa cidade em 21
de junho de 1920. Logo, a família migrou para Porto Alegre em função da frágil saúde do
primogênito prematuro. Dois anos depois, os Scliar se fixaram em uma chácara no morro
Santo Antônio, no bairro Partenon. No total, Henrique e Cecília tiveram três meninos: Carlos,
Marcos e Salomão. Salomão investiu na carreira de cineasta e fotógrafo.
78
Figura 16 – Fábrica de confecções gerenciada por Henrique Scliar, que está em pé ao fundo,
em Santa Maria, RS, 1919.
Fonte: CARLOS..., 1983, p. 21.
O pai de Carlos Scliar possuía uma chácara em Viamão, onde hoje se localizam os
bairros Cecília e Augusta, nomes de sua esposa e de sua nora. Era frequentada por
personalidades notáveis como Jorge Amado, Zélia Gattai e Pablo Neruda. Henrique 34
costumava oferecer à comunidade transporte gratuito de ônibus a fim que usufruísse de sua
propriedade. Os Scliar reuniam amigos e parentes para discutir assuntos diversos – política,
Israel, livros, teatro, música, as correntes de esquerda anarquista, stalinista, sionista. A
residência era simples, mas a cultura era estimada. Havia quadros nas paredes, livros. Faziam-
se apresentações de poesia e de música nesse ambiente doméstico, além de teatro amador na
comunidade (Fig. 17).
34
Henrique Scliar foi o principal idealizador do Clube de Cultura, importante entidade judaica progressista
fundada em Porto Alegre nos anos 1950 e ainda hoje em atividade. O Clube de Cultura está instalado na Rua
Ramiro Barcelos, nº 1853. (AGUIAR, 2009).
79
Figura 17 – Teatro Amador Israelita em Porto Alegre, RS, 1927. Henrique Scliar à direita, de barba preta.
Fonte: CARLOS..., 1983, p. 21.
Carlos Scliar foi aluno do tradicional colégio Júlio de Castilhos. Desde criança, sua
paixão pela arte, primeiramente, e pela música chamava a atenção. As primeiras referências
em artes visuais do garoto foram as ilustrações de Di Cavalcanti, Santa Rosa, Portinari e
Paulo Werneck. Na Livraria Internacional, do anarquista alemão Friedrich Kniestedt, amigo
de seu pai, Carlos pôde manusear publicações germânicas nas quais viu reproduções de Käthe
Kollwitz e George Grosz. Carlos Scliar também era maravilhado por cinema. Quando criança,
via filmes projetados no Largo da Igreja de Santo Antônio, em Porto Alegre, durante as festas
juninas (SCLIAR, 2000). Assistiu às produções de Méliès e de Charles Chaplin, faroestes e,
na década de 1920, aos expressionistas alemães Fritz Lang e Murnau. Em 1934, teve a
oportunidade de estudar desenho e aquarela com Gustav Epstein, amigo de seu pai. Um marco
literário para o jovem Scliar foi O Lobo da Estepe, de Herman Hesse (SCLIAR, 1983).
A família de Scliar sofreu um baque financeiro no réveillon de 1930, quando a fábrica
de confecção de roupas de Henrique Scliar, que ficava ao lado de sua casa, pegou fogo. As
crianças foram salvas pelos operários que retornavam das festas. O pai precisou recomeçar
seus empreendimentos apesar dos grandes prejuízos. Carlos Scliar vivia, mesmo nas
dificuldades, em um ambiente motivador:
80
Justino Martins frequentava a casa dos Scliar, no bairro Bom Fim, na sua juventude.
Justino se lembra de Henrique Scliar confeccionando acolchoados e estimulando o interesse
pela arte do filho. Na época em que Justino dirigiu a Revista do Globo, Scliar ilustrou contos
reproduzidos na publicação de diversos autores.
Em depoimento colhido por Roberto Pontual (1981), Carlos Scliar fala de seu apreço
pelas artes ainda bem criança. Quando tinha 12 anos, já enviava desenhos para suplementos
para o público infanto-juvenil e escrevia contos. Seus pais o incentivaram bastante:
Aos treze ou quatorze anos, meu pai conversou com seu amigo, o pintor
Epstein, e decidiu que eu trabalhasse sob suas ordens. Deu-me, o mestre,
reproduções para que eu as copiasse em aquarela. Trabalhei nisso poucos
meses. Creio que fui péssimo aluno, estava sempre contra, hoje nem me
lembro bem contra o quê. Em 1935 fiz meu primeiro envio para a Exposição
Farroupilha, que congregava artistas rio-grandenses de várias gerações. Eu
estava com quinze anos. Conheci outros jovens que, como eu, lidavam com
arte; um deles, Gastão Hofstetter, trabalhava no Departamento de Desenho
da Editora Globo. Lá encontrei diversos artistas que deveriam me influenciar
por certo tempo, como Nelson Boeira Faedrich, João Fahrion e Edgar Koetz
(PONTUAL, 1970, p. 117-118).
Andrade, Jorge Amado, entre outros. Integrou a Família Artística Paulista e participou da
Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes. Portinari, Lasar Segall, Goeldi e Marcelo
Grassmann eram grandes referências das artes gráficas para Scliar.
O ano de 1940 foi marcado por acontecimentos marcantes para a carreira de Scliar: a
primeira exposição individual, o ingresso na Família Artística Paulistas e a medalha de prata
em pintura na Primeira Divisão de Arte Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes. Jorge
Amado propôs que Scliar se estabelecesse no Rio de Janeiro. Durante 1941, residiu em Santa
Teresa, conheceu Axel Leskoschek, Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva. No ano
seguinte, realizou uma série para o livro Carlitos (Fig. 21), de Manuel Villegas Lopez, e
ilustrou o livro As águas não têm memória, de Clóvis Assumpção (Fig. 19 e 20) (PONTUAL,
1970; SCLIAR, 2000).
Figura 19 – Ilustração de Carlos Scliar para As águas não têm memória, 1942
Fonte: ASSUMPÇÃO, 1942, p. 6.
83
Figura 20 – Ilustração de Carlos Scliar para As águas não têm memória, 1942
Fonte: ASSUMPÇÃO, 1942, p. 22.
Posteriormente, a vida de Scliar sofreu uma grande mudança, quando convocado pela
Força Expedicionária Brasileira (FEB) para lutar na Segunda Guerra (Fig. 22). Em 1943, ele
foi à Itália. Passou a servir em uma central de tiro de agosto de 1944 a julho de 1945. Quando
noticiou a convocação do artista para a FEB, em artigo para O Imparcial de 1943, Jorge
Amado não lhe poupou elogios e destacou o comprometimento social de sua obra. A arte pura
84
foi alvo da crítica do escritor baiano. Jorge exaltou a luta contra o nazi-fascismo em que se
engajara o jovem de 23 anos e afirmou que isso lhe serviria para transformar sua arte em arma
contra a opressão (CARLOS..., 1983, p. 44).
Figura 22 – Carlos Scliar preparado para servir à FEB. Rio de Janeiro, 1944
Fonte: CARLOS..., 1983, p. 45
O serviço militar na Europa colocou Carlos Scliar perante a triste realidade do front e
enriqueceu-o pelo contato com gente de diversas nacionalidades e da estada em várias
cidades. O componente afetivo e emocional derivado de suas origens intensificou ainda mais
a experiência:
parte artística, além dos desenhos de figuras humanas, passou a pintar naturezas-mortas,
elegendo objetos simples do cotidiano como tema. Durante a guerra, esteve em Pisa,
Marzolara, Porreta-Terme, Scandiano, Alessandria, Florença, Roma e Veneza e registrou
notas e desenhos em um caderno e em papéis avulsos. Quando retornou ao Brasil, em 1945,
organizou a mostra Com A FEB na Itália, patrocinada pelo Instituto Brasil-Estados Unidos,
pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil e pelo Comitê Democrático Progressista dos Artistas
Plásticos. A exposição percorreu as capitais Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Scliar
foi morar no Rio de Janeiro e retomou o convívio com o casal de pintores estrangeiros Arpad
Szenes e Maria Helena Vieira da Silva. Fez incursões cinematográficas, produziu Escadas
(1943) e um documentário sobre Lasar Segall. Esses dois amigos o acompanharam a Paris em
1947 (PONTUAL, 1970).
Carlos Scliar ambicionava integrar-se à Escola de Paris (Fig. 23). Aproveitou ao
máximo os eventos culturais que a capital francesa oferecia, inclusive os debates: “[...] eram
as correntes abstratas impostas por galerias, tendo alguns bons pintores por bandeiras; eram as
discussões em torno do realismo socialista, muito discutido e mal aplicado por todos; era a
certeza de que tudo tinha que mudar, mas na sua essência, e não na fachada” (PONTUAL,
1970, p. 133). Alguns artistas, incluindo Scliar, formaram a Associação Latino-Americana
(AMARAL, 2003). Aumentava dentro de Scliar a percepção de que precisava se aprimorar e
aplicar-se ao desenvolvimento da arte no Brasil.
Na capital francesa, Scliar produziu 30 linoleogravuras para a versão francesa de
Seara Vermelha, Les Chemins de La Faim, de Jorge Amado, livro lançado em 1950 pela
editora da Associação Latino-Americana e publicado no ano anterior em Les Lettres
Françaises (PONTUAL, 1970). O desejo de aperfeiçoamento das técnicas diminuiu sua
relevância ao perceber que o aprendizado que acessou poderia fomentar preconceitos estéticos
e formais e menosprezar o conteúdo. Após três anos, Scliar voltou ao Brasil. Durante seu
tempo fora, a arte moderna ganhara impulso pela criação de museus no Rio de Janeiro e em
São Paulo. A opção por se estabelecer no Rio Grande do Sul se explica pela vontade de
executar o projeto de uma publicação e de uma entidade voltada à gravura e ao trabalho
coletivo, aos moldes do Taller de Gráfica Popular. Assim iniciou a trajetória da revista
Horizonte e do Clube de Gravura de Porto Alegre.
86
A partir de 1956, Scliar se dividiu entre Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e Ouro Preto,
em Minas Gerais, e voltou-se à pintura. O trabalho em impressos continuou a ocupá-lo na
revista Senhor, da qual foi diretor de arte entre 1958 e 1960, e no suplemento do Jornal do
Brasil.
Antes de partirmos para o segundo capítulo, no entanto, é necessário fazer
apontamentos sobre o campo artístico do estado, no período, para entender conjuntura na qual
foram criados a revista Horizonte e o CGPA. Com efeito, a atividade cultural dos comunistas
se desenvolveu em um contexto bastante específico de mudanças políticas e econômicas que
impactou as instituições artísticas do estado. Dessa forma, temos de fazer uma
contextualização mais abrangente do campo artístico no extremo sul do Brasil, para
compreender onde se realizou a empreitada artística dos comunistas gaúchos.
O resgate da história do CGPA nas páginas do Correio do Povo, nos anos 1970, é
utilizado como referência por vários pesquisadores. A quantidade de detalhes fornecidos pelos
artistas em entrevistas a Antônio Hohlfeldt, Maria Helena Webster e Angélica de Moraes não
podem ser desconsiderados ao se reconstituir suas trajetórias. A série de artigos do jornal foi
motivada pela realização do Projeto CULTUR, dedicado ao “Grupo de Bagé”, promovido
pela Secretaria de Turismo do Rio Grande do Sul. Evidentemente, é preciso problematizar a
situação do campo das artes, as implicações políticas do empreendimento governamental e o
próprio veículo de comunicação no qual se divulgam as informações, o Correio do Povo, a
fim de fazer um uso crítico delas. No capítulo 3, essas questões serão discutidas. Neste
momento, restringe-se a utilizar as reportagens jornalísticas como fonte para construir um
levantamento de dados sobre o CGPA, visto que foram elaboradas a partir da fala dos artistas
e amplamente usadas em pesquisas acadêmicas.
A primeira experiência de trabalho artístico coletivo de parte dos membros do CGPA
foi o chamado “Grupo de Bagé”, do qual participaram Glauco Rodrigues, Danúbio Gonçalves
e Glênio Bianchetti, formado em torno da figura do escritor baiano Pedro Wayne e do pintor
José de Morais na década de 1940. Carlos Scliar não chegou a integrar o grupo na época, mas
teve uma passagem importante.
O literato Ernesto Wayne, filho de Pedro Wayne, lecionava no Departamento de
Letras de uma faculdade da cidade e integrara o Grupo de Bagé nos anos 40. Era amigo de
infância de Glauco, com quem convivera desde muito novo; ambos, inclusive, nasceram no
mesmo ano, 1929. Cursaram juntos o ginásio no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora,
interessavam-se por cinema e revistas sobre o assunto, como A Scena Muda e Cine-Arte.
Infelizmente, a cidade não fornecia muitas opções de filmes, a maioria das projeções era de
musicais hollywoodianos. Em 1941, conheceram Bianchetti. Clóvis Assumpção e Carlos
Scliar eram frequentadores da casa dos Wayne. Scliar havia ilustrado o livro de Pedro Wayne
Almas penadas (1941) quando estava na Bahia, período em que também trabalhou em As
águas não têm memória (1942), de Clóvis Assumpção. Pedro era um entusiasta do
modernismo e da Semana de 22 e introduziu o assunto para seu filho e seus amigos. Na noite
do baile de formatura do ginásio de Ernesto Wayne, Glênio conheceu Ailema, sua
companheira de toda a vida. Assumpção contribuía para a formação dos meninos enviando
publicações, tais como a Revista Acadêmica, que continham reproduções de Lasar Segall e
textos de Mário de Andrade.
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Glauco Rodrigues era vizinho de Pedro Wayne e amigo do seu filho Ernesto. Pedro
Wayne possuía telas de Carlos Scliar na parede e admirava a produção moderna artística,
tanto em artes plásticas quanto em música e literatura. Ele inspirou os jovens Glênio
Bianchetti e Glauco ao transmitir seu conhecimento e apreço pelo modernismo, sobretudo,
por Mario de Andrade e Oswald de Andrade.
O contato com a pintura era raríssimo na Bagé dos anos 1930 e 1940, o que se via
eram reproduções em impressos. Apesar da estagnação cultural, um caso curioso, relatado por
Scliar, é a existência de uma “bailarina expressionista” chamada Maria de Lourdes Collares,
para quem projetou cenários para um espetáculo de balé. Glauco Rodrigues revelou que só se
tornaram artistas graças a “forças da natureza” e às aulas de pintura da mãe de Ailema
Bianchetti (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976d). A precariedade era tal que uma
coisa simples como a troca de tampinhas de garrafa por uma paleta a fim de misturar as tintas
foi marcante para Glênio. O pai de Glênio era padeiro e o de Glauco, um empregado
assalariado, e ambos não tinham muitos recursos para investir em sua formação. A situação de
Glênio Bianchetti na juventude não apontava para uma carreira artística. Segundo ele:
O meio de tomar conhecimento sobre arte em Bagé eram as revistas, como a argentina
Para Ti, que publicava reprodução de obras clássicas e de surrealistas argentinos. Em 1944,
Danúbio fez uma exposição individual na cidade. Ele tinha grande interesse em histórias em
quadrinhos, que estavam em ascensão, e chegou a publicar caricaturas na imprensa carioca
aos 14 anos.
No ano de 1945, Carlos Scliar é convidado para ir a Bagé a fim de falar sobre a
participação na FEB. Nessa ocasião, é apresentado a Glênio, Glauco e Clóvis Chagas. Glênio
admite o impacto positivo das obras de Scliar durante sua adolescência, na fase que ele chama
de “Tango”, a mais dramática (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976e).
A volta de Carlos Scliar a Bagé e suas visitas aos Wayne instigaram ainda mais os
aspirantes a artistas. Scliar explicou que a pintura se tratava de desenho e cor, o tema ou o
objeto de representação não era o mais importante, e tentava demonstrar o que era o
modernismo. Danúbio viajou a Bagé de férias e acabou aderindo ao “Grupo”. Ele trazia
consigo álbuns de Picasso, Rembrandt, Rubens, entre outros. Danúbio explicava que a tudo
deveria ser dado o devido valor, incluindo os clássicos e o estudo do modelo vivo.
No ano seguinte, 1946, outro fato relevante tem vez na formação do grupo, a chegada
do pintor José de Morais, que elegera Bagé como um dos destinos da Viagem ao País, prêmio
que recebera. Morais se hospedou na chácara dos Stechman, tios de Carlos Scliar, onde
montou seu ateliê, que foi aberto a Glauco e Bianchetti. Clóvis Chagas e Ernesto Costa
também se integraram ao “Grupo”. José Morais lhes ensinou como organizar um ateliê e a
apreciar a arte moderna. Morais foi aluno de Quirino Campofiorito e de Portinari. Quirino
fazia parte do grupo de “não acadêmicos” 35 dentro da academia, valorizava o desenho e
admirava Portinari. Morais aprimorou sua técnica e desenvolver o gosto pelo moderno, o que
passou para seus pupilos de Bagé.
Pedro Wayne (1946) conta a história de adolescentes bageenses aspirantes a artistas
que se interessavam pela arte moderna e pela arte tradicional, de Rafael e Goya a Manet e
35
O termo pintura acadêmica se referia à pintura francesa do século XIX que se opunha ao impressionismo. Seus
temas remetiam à antiguidade clássica e usava muita alegoria.
91
Portinari, nas páginas da Revista do Globo, em “Montparnasse” em Bagé. Eram eles: Clóvis
Chagas, Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues. Posteriormente, juntaram-se ao grupo
Danúbio Gonçalves e Deny Bonorino.
Os três moços apreciavam a pintura, mas lhes faltava orientação. Essa necessidade foi
em parte sanada pela chegada de José Morais, que se dedicou aos estudos de tipos populares,
dando maior atenção aos proletários e aos pobres. Generosamente, o pintor dividiu seu tempo
entre seu trabalho e a orientação artística para os principiantes. Clóvis Chagas, o mais velho
dos aprendizes, com 21 anos de idade, foi o que mais lera a respeito de arte e produzia
quadros que vendia. Provido de poucos recursos, tinha aparência humilde. Quando servira o
Exército, os oficiais lhe pediam retratos, desse modo, seu tempo no quartel pôde ser
preenchido com atividades mais aprazíveis para ele. Chagas aprimorou sua habilidade em
desenho com a ajuda de Morais. Aluno do primeiro ano do curso comercial do Colégio Nossa
Senhora Auxiliadora, Glênio Bianchetti, 18 anos, encontrou em Morais o exemplo de carreira
que o inspirava. Bianchetti era filho único e voltou-se para o estudo do comércio um tanto
contrariado. Desejava ir ao encontro de Danúbio Gonçalves, no Rio de Janeiro, e concentrar-
se apenas na arte.
Glauco Rodrigues era o mais novo dos três, tinha 17 anos. Suas primeiras referências
de pintura foram acadêmicas. O contato com Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves e José Morais
trouxe ao rapaz as possibilidades da arte moderna. Outro fator que ampliou seu horizonte
artístico foi a observação de obras reproduzidas em revistas, por exemplo, as de Lasar Segall.
José Morais seguiu para Porto Alegre e, depois, Pelotas. Sua passagem por Bagé marcou a
vida dos jovens (WAYNE, 1946). Clóvis Chagas foi o único que, aparentemente, não seguiu a
carreira artística.
Em 1948, Danúbio retornou para Bagé e organizou sua segunda exposição no
Conservatório de Música, com a ajuda de Glauco e Glênio, que estavam na sua “fase
terrorista” de pintura, conforme Glênio (1976): “Essa fase terrorista significava, para nós, a
quebra total, o rompimento com tudo. Mas nós não sabíamos nem o que era tudo em pintura”
(HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976g, p. 19). Era a primeira fase de sua formação,
na qual conheceram Pedro Wayne, interessavam-se pelo “antiformal” e pelo que viam de
Lasar Segall nos impressos. Na verdade, nunca tinham estado com pinturas “ao vivo”,
imaginavam e inventavam. O adjetivo “terrorista” , jocosamente, também alude ao “massacre
visual” que faziam quando pintavam coisas desastrosas.
Danúbio, Glauco e Glênio alugaram um imóvel da Rua Sete de Setembro, em Bagé,
para montar um ateliê coletivo. Em outubro de 1948, uma exposição de trabalhos de Danúbio
92
36
Portinari era uma referência inicial importante para o Grupo de Bagé. Carlos Scliar o conheceu em 1939, e
Danúbio foi seu aluno de pintura em 1948. A obra de Portinari, naquele momento, alinhava-se aos princípios da
literatura que ia encontro da realidade nacional de José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Cyro
Martins, entre outros. Dois anos depois, em 1937, Getúlio Vargas deu o golpe e surgiu o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP), que censurou, principalmente, escritores. Talvez pelo fato de as artes plásticas não
terem tanto alcance de público e facilidade de propagação, Portinari permaneceu em suas temáticas, sendo
premiado nos Estados Unidos e convidado a integrar a equipe de Lúcio Costa na construção do pavilhão
brasileiro na Feira Mundial, em Nova Iorque, em 1939. O projeto acabou por ser liderado por Oscar Niemeyer, e
os painéis ficaram a cargo de Portinari, que obteve grande reconhecimento internacional a partir de então. Carlos
Scliar conheceu o pintor quando este produzia os painéis do Ministério da Educação, também em 1939.
Paradoxalmente, Osvaldo Teixeira e Portinari eram vistos como representantes da arte oficial, sendo Teixeira
mais próximo ideologicamente do Estado Novo (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976e).
93
Eu não era bem um aluno dele naquela época. Ele emprestava o atelier para
trabalharmos na parte da manhã. Depois que ele levantava, recorria o que
tínhamos feito e dava opiniões sobre o trabalho da gente. Era eu, o Iberê
Camargo, o Cesquiatti e outros. Esse aprendizado não foi durante um
período longo, mas serviu muito para me dar uma sólida formação de
observação e anatomia [...] O movimento em artes em si era muito precário e
esparso. Portinari era tido como um monstro que deformava as figuras. Tudo
que se fazia de horroroso em arte era da “escola Portinari”. Ele tinha costas
largas... O público entrava nas exposições para rir ou cortar com gilete os
quadros (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976f, p. 11).
O público brasileiro ainda tinha certa resistência à arte moderna no início do decênio
de 1940. Scliar, que fora a Rio e São Paulo anos antes, vivenciou uma experiência difícil na
qual o grupo de artistas modernos era menor e a rejeição, ainda maior. Qualquer afronta à arte
acadêmica era fortemente combatida.
No fim de 1949, Danúbio partiu para uma viagem pelo continente europeu. Em suas
aulas na Academia Julien, Danúbio se empenhava em aprimorar o desenho, e isso era
considerado muito antiquado até por seu professor. O desejo de aprender as técnicas
tradicionais foi vista por ele como uma reação à liberdade que tinha. Ao rever Glauco e
Glênio, temeu ser considerado acadêmico pela sua postura e por seus pensamentos na sua
estada na Europa.
Scliar se impressionou com a arte europeia na sua primeira viagem ao Velho
Continente, em 1944, durante o serviço na FEB. Os pintores modernos italianos, como
Morandi e Gironi, impactaram-no mais do que os clássicos. Posteriormente, ele atribuiu essa
reação a sua falta de técnica e de conhecimento para analisar corretamente as obras clássicas.
A sua predileção era baseada na afeição aos modernos:
Em 1947 eu fui para a Europa para ficar morando em Paris. E voltei depois
de dois anos. Porque tomei consciência que era inúmeros países cheios de
problemas que não me tocavam. A arte que mais me interessava estava
terminando. Foi num processo intuitivo que constatei serem as minhas raízes
de Brasil muito mais profundas e sérias do que eu imaginava. Foi quando eu
senti que não era lá o meu lugar de trabalhar ( HOHLFELDT; MORAES;
WEBSTER, 1976a, p. 17).
Scliar se viu insatisfeito acerca do aprendizado e do que via na escola francesa. Sua
consciência política se acentuava e sentia necessidade de produzir algo de relevante para sua
terra. Influenciado pelos trabalhos do Taller de Gráfica Popular, sobretudo, os de Leopoldo
Méndez, resolveu editar um álbum de gravuras produzidas para a versão francesa de Seara
Vermelha, de Jorge Amado, a fim de arrecadar dinheiro para um ano de estada no México. O
livro recebera o título Les Chemins de La Faim e fora publicado em Les Lettres Françaises,
em 1949. Carlos Scliar já admirava o muralismo e ficou muito interessado também nas artes
gráficas mexicanas: “Toda essa experiência de arte ligada à manifestação popular, dirigida ao
povo, me interessava muito. É claro que via o mural como a linguagem natural para isso.
Assim como a gravura” (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976i, p.17). Havia também
outro atrativo: Hannes Meyer, ex-diretor da Bauhaus que trabalhava em publicações do
Taller. No fim das contas, Scliar não foi ao México. Ele voltou para o Brasil, para Porto
Alegre, e resolveu agir de acordo com suas maiores motivações – a luta pela paz e a arte de
caráter coletivo. Assim, entrou na equipe da revista Horizonte e fundou o Clube dos Amigos
da Gravura de Porto Alegre. Carlos Scliar conta como surgiu o Clube de Gravura de Porto
Alegre:
O Clube de Gravura foi criado em Porto Alegre, no final de 1950. Nós
buscávamos condições econômicas para a criação de uma revista dos
intelectuais gaúchos que não possuíam um veículo para expressar suas
ideias. O Clube seria uma forma de interessar o público e assim conseguir
dinheiro para a revista, bem como a futura edição de poetas e outros
escritores. Mas em pouco tempo ele se mostrou com tais possibilidades de
existir como resposta de uma espécie de indagação que todos nós tínhamos
que a revista Horizonte, que criamos, passou a se bastar apenas aos seus
95
Vasco fora à capital francesa a fim de estudar escultura nos anos 1940. Ao retornar
para Porto Alegre, no final da década, passou a trabalhar com Edgar Koetz. Ele e Scliar
fundaram o CGPA, cuja primeira sede foi um sobrado na Avenida Farrapos ao lado do Hotel
São Luis. Bianchetti fazia uma exposição no auditório do Correio do Povo e aderiu à entidade
em seguida. A principal preocupação deles era a popularização da arte e a promoção de artes
gráficas.
Participaram mais ativamente da entidade Vasco Prado, Danúbio Gonçalves, Glauco
Rodrigues, Carlos Scliar e Glênio Bianchetti. Scliar contou que todos se preocupavam com
possíveis falhas da formação praticamente autodidata e se comprometiam a se aperfeiçoar.
Uma das estratégias foi visitar estâncias em Bagé para exercitar suas habilidades técnicas e
observar a realidade do campo. Um dos objetivos do CGPA era incentivar o interesse pela
arte e o gosto pela gravura por meio da realização de exposições – foram duzentas mostras em
cinco anos.
No ano de 1951, Scliar, Danúbio, Bianchetti e Glauco fundaram o Clube de Gravura
de Bagé, sediado no Teatro Espanhol. Eles se interessam, sobretudo, pelos aspectos da vida
campesina e buscaram registrar o cotidiano dos trabalhadores. O CGB inaugurou um clube de
cinema e uma galeria de arte. Porém, a iniciativa teve vida curta e o CGB se desmanchou no
início de 1952, pela partida de seus membros para outras cidades.
Muitos artistas brasileiros eram autodidatas. Não frequentar as escolas de Belas Artes,
por vezes, era uma forma de manifestar a contrariedade em relação ao método de ensino e aos
valores difundidos por elas (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976a). Nas primeiras
décadas do século XX, o reconhecimento ocorria precocemente no país, davam-se prêmios
para quem ainda estava em formação. Aos 20 anos, Scliar recebeu a medalha de prata no
Salão Nacional do Rio de Janeiro. Para ele, a melhor maneira de aprimorar o conhecimento de
arte seria através de um curso livre, que contasse com desenho de observação, modelo vivo e
muitas discussões em conjunto, como procuraram fazer no Clube de Gravura. Glauco
Rodrigues corroborou com essas informações:
Acho que todos nós tivemos essa formação autodidata. E não tem outro jeito
em termos de América Latina. Se fosse europeu, já tinha uma cultura vinda
de séculos. Aqui é tudo na base da improvisação, do mal feito, do grotesco,
96
do esbanjamento. O jeito que a gente come carne aqui no Sul dá uma noção
disso, uma noção do Brasil. Então é todo um outro modo de vida. Mas a
gente foi educado, sempre, para achar que o modelo europeu é o modelo
certo. Quando eu estava no segundo ano ginasial, meu sonho era fugir para
Paris, ter uma carreira e vencer na Europa. Hoje eu não tenho o mesmo
interesse nisso. Eu quero descobrir o Brasil. Exatamente o oposto. Mas essa
era uma mentalidade que existia até mais ou menos 1960: o importante era
fazer uma arte universal. Eu acho que o que é importante, hoje, é fazer uma
arte nacional (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976a, p. 17).
Nós sabíamos que a guerra atômica não pouparia ninguém, não haveria
vencedores, só vencidos. Então, a consciência desse problema com que eu,
voltando para o Brasil em 1950, me filiasse ao Movimento da Paz aqui. Eu
tinha a obrigação moral de participar, transmitindo a experiência adquirida
na Europa. Isso foi uma das coisas mais sérias que fiz na minha vida. [...] um
artista jovem era um homem que acreditava ser uma parte da consciência de
um povo (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976b, p. 14).
Sobre a atuação no Movimento dos Partidários da Paz, Glauco Rodrigues relatou que
os Estados Unidos difundiam a ideia de que os participantes do movimento eram todos
comunistas e estavam empenhados em combater as atividades dos “vermelhos”. Porém, o
desejo de um mundo pacífico não era exclusivo desse grupo, mas sim de toda a humanidade
(HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976b). Várias gravuras voltadas para o Movimento
pela Paz ilustraram as páginas da revista Horizonte.
Após as críticas sobre o Movimento pela Paz, vieram as distinções entre vanguarda e
não vanguarda. Glauco lembra que a arte geométrica era promovida pelo Jornal do Brasil, e
que eles eram desdenhados por serem figurativos:
Aproveitando-se de que o júri era isento em alguns casos da participação das obras, os
artistas gaúchos continuaram a enviar seus trabalhos gráficos. A intenção era provocar o
questionamento e posicionar-se frente ao abstracionismo.
O Clube de Gravura ia contra o que se considerava atual e arrojado no centro do país,
onde a figuração e a construção de uma arte voltada a aspectos nacionais pareciam ter sido
excluídas da ordem do dia. Em 1951, aconteceu a I Bienal de São Paulo. Sobre o
acontecimento, Scliar avalia: “[...] nascia o processo, na minha opinião, de desligamento ou
de desvalorização de toda uma arte anterior que surgira em 1922 com a Semana e sua
tentativa de redescoberta do Brasil” (HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976c, p. 15).
Os gravadores gaúchos receberam diversas críticas, mas também elogios, como os de Diego
Rivera sobre a exposição de 1953, no Chile, durante a Conferência Continental pela Paz. O
Clube acabou por incentivar a criação de outras entidades semelhantes no país e motivava a
valorização do que era típico de cada lugar, mas fugindo do que seria interessante ao
estrangeiro, ou seja, o exótico, o primitivo, o subdesenvolvido. Porém, Glênio observa que,
mais do que o gosto pelo exotismo, a postura dos grandes centros internacionais tinha a ver
com o mercado, a fim de preservá-lo para si, estimulavam a tal arte primitiva. Glauco
comenta que, quando morava na Europa, as pessoas que viam seu trabalho se admiravam por
ele fazer algo parecido com a arte abstrata e não se dedicar ao “primitivo”.
Figura 24 – Fotografia de Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues e Carlos Scliar na Fazenda Delícias, em Bagé.
Fonte: QUADROS, 2010, p. 54.
98
Esse xingamento de realismo socialista era mais sóbrio. Sim, porque naquele
momento a maneira mais violenta e agressiva de nos criticar era a de tentar
nos colocar como artistas primários. Resquícios da nossa campanha a favor
da Paz. Já na época desses adjetivos pouco airosos o Movimento pela Paz
tinha se tornado oficial. De repente, toda aquela força que eles combatiam
não podiam combater mais. Até o Papa aderira à causa pacifista
(HOHLFELDT; MORAES; WEBSTER, 1976c, p. 15).
A relação dos artistas comunistas com as tendências abstracionistas era tensa por
motivos ideológicos e políticos. Quando a Bienal de São Paulo apareceu, a tensão se acirrou.
Os integrantes do CGPA manifestaram sua reprovação ao evento e a seus promotores. Scliar
fala sobre o assunto:
Eu sempre tive meus pés muito ligados à terra, mas a gente esquece coisas, e
rever e reencontrar e poder saber de coisas ao lado da gente é um dado muito
importante. A lição dos mexicanos, devidamente preparada para a nossa
realidade, não pode ser esquecida. Nós temos, obviamente, formação
europeia, todos nós, mas é hora de pensarmos nossa realidade, é hora de
brigarmos para que possamos ser nós mesmos. (GONÇALVES apud
HOHLFELDT, MORAES, WEBSTER, 1976a, p.17).
2.1 INTRODUÇÃO
Este capítulo analisa a atuação dos integrantes do CGPA no campo artístico local,
assim como a ação social desses artistas, que estavam vinculados ao Partido Comunista do
Brasil durante a primeira metade da década de 1950. Essa atuação se deveu, em grande
medida, ao projeto político e cultural dos comunistas, que tinha como objetivo produzir uma
arte mais próxima da classe trabalhadora, dos operários e dos camponeses. Além disso, havia
também uma forte vinculação com os objetivos políticos do partido, o que não quer dizer que
essa produção se limitasse a essa função, mas a agenda política dos comunistas foi um
componente muito importante para se compreender a difusão das obras dos artistas ligados ao
PCB.
Os artistas tinham como espaço primordial de produção e formação o Clube de
Gravura de Porto Alegre e, em menor medida, o Clube de Gravura de Bagé, o que lhes
permitia uma distribuição periódica de seus trabalhos, além de garantir um espaço importante
de ensino e debates sobre as funções da arte na sociedade. Uma publicação fundamental para
a difusão de seus trabalhos e de seu pensamento era a revista Horizonte de Porto Alegre, na
qual as imagens eram estampadas e textos teóricos, políticos e sobre de cultura geral, eram
publicados.
Os Clubes de Gravura e a revista Horizonte se consolidaram como espaços de
produção, debate e difusão das obras (e ideias) dos artistas ligados ao PCB. Estas instâncias
foram muito importantes para viabilizar as intervenções públicas, ou seja, a ação social dos
artistas deste grupo. Entre essas ações se destaca a Campanha Mundial Pela Paz, iniciativa
fomentada por intelectuais comunistas no mundo inteiro para barrar uma possível hecatombe
nuclear no âmbito do recrudescimento da Guerra Fria. A Campanha pela Paz, no Rio Grande
do Sul, foi uma ação política e cultural de massa, que envolveu os artistas em uma série de
ações como exposições, festivais e campanhas de assinatura em busca de um pacto pacifista.
Também se destacavam os cursos e as exposições promovidos pelos Clubes de
Gravura. As mostras tiveram um papel particularmente importante. Na grande exibição de
gravuras no Parque Farroupilha, o público podia, inclusive, votar nos melhores trabalhos.
Evidentemente, as obras traziam valores ligados à cultura popular e à valorização da classe
101
trabalhadora, tanto do campo como da cidade, o que objetivava fomentar a consciência entre o
proletariado sobre o importante papel que ele exercia para a manutenção da cultura regional.
Por fim, cabe ressaltar que os artistas ligados ao PCB não abandonaram instâncias tradicionais
de legitimação. Prova disso foi a sua presença marcante na Associação Francisco Lisboa
quando esta retoma seus salões a partir de 1951. Claro, aqui o discurso partidário não estava
tão presente, mas a temática popular permanecia.
A inserção dos gravadores do CGPA no campo artístico se deu por outras vias além do
Clube. A gravura vinha ganhando impulso desde 1935 com a reprodução de xilogravuras e
linoleogravuras nas publicações Revista do Globo e Novela (1936–1938), ambas com o selo
da Livraria do Globo. Alguns dos componentes da Seção de Desenho dessa editora, Gastão
Hofstetter (associado do CGPA), Edla Silva, Edgar Koetz e Nelson Boeira Faedrich,
participaram de um curso de gravura ministrado pelo artista alemão Júlio Schmischke na
década de 1930 (SCARINCI, 1982). Além disso, o Clube não exigia dedicação exclusiva, e
seus membros tinham uma produção paralela em técnicas diversas. Por exemplo, Vasco era
um reconhecido escultor, e Glauco Rodrigues nunca abandonou a pintura. As obras expostas
nos salões da Associação Francisco Lisboa e do Instituto de Belas Artes de autoria de
integrantes do CGPA estavam presentes em várias seções, o que demonstra a produção em
outras técnicas e linguagens além da gravura. Detenho-me na presença desses artistas na AFL,
contando um pouco da sua história, já que um de seus fundadores foi Carlos Scliar e que ela
surgiu como instância de legitimação alternativa ao IBA.
Este capítulo se inicia, inclusive, com o levantamento da atuação desses sujeitos no
campo artístico local, dando ênfase à AFL como um espaço de legitimação onde poderiam
inserir sua produção. Em seguida, mostro como este grupo ligado ao CGPA teve como
referência de organização e de modelo estético os artistas do Taller de Gráfica Popular do
México, principalmente na figura de Leopoldo Méndez. Por fim, o texto se estende na análise
da ação social desses artistas, em um esforço de difusão de uma arte voltada para o povo, cuja
função não se delimitava ao campo artístico, mas procurava influenciar politicamente a
sociedade por meio de conscientização da classe trabalhadora.
102
O ponto alto do Salão, para Aldo Obino, foi Vasco Prado, cujo estilo foi considerado
exuberante e bem conduzido.
Os membros da Chico, embora quisessem a modernização e o desenvolvimento do
campo artístico porto-alegrense, eram adeptos ainda das tradições, e sua produção era pouco
inovadora, à exceção de Carlos Scliar, defensor da arte moderna. Em 1942, 21 artistas da AFL
decidiram demonstrar sua resistência ao modernismo promovendo o jocoso 1º Salão
Moderno, no qual figuraram obras que ridicularizavam as vanguardas modernistas e do qual
se tratou anteriormente. Uma delas era Souvenir de Isadora, de Fedor Kalinski, personagem
criado por João Faria Viana que era uma embalagem de goiabada usada para limpar pincéis.
Oswaldo Goidanich, Guido Mondim Filho, João Faria Viana e Edgar Koetz escreveram um
texto proferido no fechamento do Salão, o mesmo publicado no Diário de Notícias, em que
afirmavam que o modernismo subvertia, destruía os valores tradicionais, agredia o Belo e
estava comprometido com o socialismo. Esses artistas eram próximos ao movimento
integralista, de conotação fascista (KRAWCZYK, 1997).
Passados quase dez anos, o V Salão de Artes Plásticas da Francisco Lisboa aconteceu
no auditório do Correio do Povo durante os dias 3 a 16 de outubro de 1951.
Concomitantemente, a AFL inaugurou sua sede no décimo andar do edifício União, na
Avenida Borges de Medeiros, que possuía salas de reunião, ateliês e biblioteca. As
premiações do certame foram medalhas de ouro, prata e bronze e duas menções honrosas para
cada seção, Pintura, Escultura, Desenho e Arte Gráfica, Arquitetura, Gravura e Cerâmica. A
partir desse evento, percebe-se a presença significativa dos membros do CGPA nas atividades
da Associação.
Compunham o júri de seleção José Rasgado Filho, Clóvis Assumpção e Álvaro
Pereira. A visitação pública era diária, das 9h30min às 11h30min e das 16 às 22h. É
interessante notar que o horário das exposições incluía o turno da noite, possibilitando que os
trabalhadores pudessem frequentá-las.
Em sua coluna, Aldo Obino apontou a ausência de salões por nove anos e comemorou
a retomada das mostras da Associação. Enfatizou que a entidade tinha um papel aglutinador e
de reconhecimento dos novos talentos e que os professores antigos de artes plásticas não
expuseram.
105
O embate original entre o Instituto de Belas Artes e a Chico Lisboa se atenuou com o
passar do tempo. Inicialmente, a Associação queria ser uma organização para promover
artistas que não possuíam formação oficial, diplomação, e contava com o incentivo do
jornalista e crítico de arte Aldo Obino. Na época, havia, podemos dizer, um confronto entre
Obino e o professor Ângelo Guido no que diz respeito a quem teria autoridade de falar sobre
arte (KRAWCZYK, 1997). Guido era a voz do IBA, e o surgimento de outra instituição era
oportunidade para os interessados em arte atuar tanto como produtores como críticos e
comentadores. As rivalidades todas se assentam e há mais similaridades de posturas do que
disparidades no final dos anos 1950.
O surgimento do Clube de Gravura de Porto Alegre traz para as artes da cidade
características do realismo socialista de referência expressionista. Os integrantes do Clube
participam dos salões com obras que representam suas opções estéticas; no entanto, não têm
um conteúdo político imediatamente apreensível. Há temas regionais, mas isso poderia ser
encarado como uma exaltação de temas folclóricos, e não como a representação da classe
trabalhadora do campo. Vê-se também que os artistas expõem trabalhos em outras técnicas
que não a gravura, por exemplo, desenho, aguada e pintura. Esse é o caso de Vasco Prado,
escultor reconhecido desde os anos 1940, que concorria e recebia prêmios na seção de
Escultura. A posição ideológica e partidária tinha mais vigor e era mais explícita na produção
feita para o Clube e para a Horizonte, principalmente.
O mercado de arte da capital sul-rio-grandense era muito limitado na década de 1950.
Os salões eram vitrines, e os prêmios, atestados de legitimidade. A oportunidade de obter
reconhecimento e visibilidade nas mostras da Chico e do IBA não era dispensável para os
jovens que queriam fazer carreira na arte. Em um ambiente conservador em que a oposição ao
comunismo preponderava, obras que defendessem os ideais de esquerda de modo explícito
teriam enorme dificuldade de aceitação.
Não foram somente as atividades do CGPA que integraram a pauta sobre cultura da
Horizonte. Nas páginas da revista, lê-se sobre cinema, literatura, teatro e música. A seguir,
exponho algumas matérias acerca de mostras individuais e salões de Porto Alegre.
No quarto número da Nova Fase, Carlos Scliar escreveu sobre a primeira exposição de
Vasco Prado após retornar ao país, que ocorreu no dia dois de maio de 1951, no Auditório
do Correio do Povo. Scliar analisou, principalmente, a escultura Negrinho do Pastoreio sob a
109
qualidades do pintor e reclama-se das poucas chances de apreciar seus trabalhos, que estavam
sendo depreciados por seus herdeiros.
Como já foi dito anteriormente, o Clube dos Amigos da Gravura de Porto Alegre
nasceu no final de 1950, fruto da experiência de Carlos Scliar e Vasco Prado na Europa,
particularmente, do convívio com Leopoldo Méndez, do Taller de Gráfica Popular (SCLIAR,
1952). Méndez impressionou os sul-rio-grandenses pelas suas convicções políticas e artísticas
muito claras e firmes sobre o compromisso social da arte. Scliar teve a oportunidade de
organizar uma exposição do TGP na capital francesa e de obter álbuns editados por La
Estampa Mexicana – Álbum del Taller de Gráfica Popular, 85 Estampes de La Revolución
Mexicana – através do seu diretor Hannes Meyer, e outros materiais, como o livro Incidentes
Melódicos del mundo Irracional, ilustrado por Leopoldo Méndez, cartazes com gravuras de
Alfredo Zalce e cromolitografias de Jean Charlot (AMARAL, 2003).
O primeiro contato de Scliar com as obras de Méndez ocorreu em 1941, na casa do
escritor Jorge Amado, que possuía algumas de suas gravuras. Os trabalhos lhe despertaram o
interesse, mas não tiveram o impacto tão decisivo quanto o encontro com o artista mexicano
anos depois. Scliar confessa que, naquele momento, se voltava para a experimentação
formalista (SCLIAR, 1950). Em Wroclaw, Scliar teve a oportunidade de conversar
longamente com Méndez, pedir para que contasse sua história, falasse de sua opinião sobre a
função da arte e o realismo. Méndez foi categórico sobre o dever dos intelectuais em relação
ao engajamento nos movimentos pacifistas: “É uma responsabilidade que todos os intelectuais
progressistas de todo o mundo devem concretizar, frente ao povo, com um trabalho constante
de esclarecimento dos perigos incalculáveis, para o progresso e a vida humana, da ameaça de
uma nova guerra” (SCLIAR, 1950, p. 26).
Por intermédio de Leopoldo Méndez, Scliar pôde conhecer a contribuição dos artistas
na história de libertação do povo mexicano, notadamente, através de imagens feitas para
veículos impressos, como jornais, cartazes e panfletos, e vislumbrou a importância da tradição
gráfica do país de José Guadalupe Posada. É relativamente compreensível por que o TGP
tornou-se a entidade modelar para os Clubes de Gravura do Rio Grande do Sul – e do Brasil,
como um todo, aliás. Os comunistas favoreceram a produção de gravuras em função de sua
reprodutibilidade e do uso das imagens para ilustrar seus impressos e, após a Segunda Guerra,
111
A criação de uma organização que levasse aos nossos artistas os meios para
transmitir suas mensagens parecia-nos da maior oportunidade, e com êsse
propósito nascia o Clube dos Amigos da Gravura de Pôrto Alegre. O
contacto dos artistas mais experimentados com os mais jovens só poderia
trazer os melhores resultados para o enriquecimento de nossas artes
plásticas. Aos que julgavam, minados por preconceitos, que o trabalho em
comum, as discussões em tôrno dos problemas mais vivos do nosso povo,
neutralizariam o talento e a personalidade dos diferentes artistas, sabíamos
que a prática responderia decisivamente. (SCLIAR, 1952, p. I).
37
A partilha do protagonismo do mesmo personagem em diferentes territórios (tais como Simón Bolívar, que
lutou pela independência de Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Panamá e Venezuela) e similaridades históricas e
culturais podem ser fatores que ajudem a explicar a simpatia e a empatia entre os latinos que os motivaram a
olhar para as práticas e os pensamentos uns dos outros em espaços de convívio e em encontros de diversas
naturezas nos países da América Latina.
112
A ideia não era criar uma escola em termos de estilo, mas sim formar um grupo que
tivesse pontos em comum, tais como a dedicação à gravura, o gosto pelo trabalho coletivo e
pela observação da realidade e o interesse em promover a arte nacional. O acesso do público
ao material produzido era um ponto fundamental e uma das razões de ser do Clube, como bem
salienta Scliar:
No final dos anos 1940, o mundo assistiu ao início da Guerra Fria. Por parte do bloco
capitalista, tem-se a Doutrina Truman, o Plano Marshall, a formação da Organização do
Tratado do Atlântico Norte e a difusão da propaganda anticomunista protagonizada pelos
Estados Unidos; por parte do bloco comunista, a articulação dos comunistas em campanhas
anti-imperialistas. O PCUS determinava as linhas de atuação para os partidos comunistas. Em
1949, o Kominform designou que a “luta pela paz” deveria ser prioridade. O argumento era
que as armas atômicas e bacteriológicas desenvolvidas e empregadas pelos Estados Unidos
representavam um grande perigo para a humanidade e que esse país do Norte era inimigo da
paz, promotor da guerra. Pretendia-se a proibição do uso desse tipo de armamento e a
diminuição do poderio militar das nações.
O Movimento dos Partidários da Paz realizou seu primeiro evento de destaque em
1948, no Congresso Mundial de Intelectuais em Defesa da Paz, em Wroclaw, na Polônia.
Várias personalidades das artes, da religião e da política compareceram. Durante os dias de
agosto no qual transcorreu o Congresso, houve desfiles nas ruas da cidade dos congressistas e,
inclusive, dos aprisionados em campos de concentração com seus uniformes listrados e a
estrela sobre o peito. A Europa recém-saída da II Guerra expunha seus traumas talvez na
tentativa de amenizá-los coletivamente. Não é à toa que as pessoas aderiram ao movimento,
tanto os que estiveram no conflito, a exemplo de Carlos Scliar, como aqueles que se
solidarizaram sem tê-lo vivido diretamente, como Vasco Prado.
No I Congresso Mundial, decidiu-se pela formação de um escritório internacional que
deveria estar de acordo com o Kominform da União Soviética (MILZA, 1987). Segundo a
visão do historiador Philippe Buton (1991), as campanhas pela paz, lideradas pelos
113
comunistas, teriam uma finalidade prática a favor da União Soviética, já que ocorriam
ocasionalmente e conforme os interesses do partido, por exemplo, a crítica ao armamento
atômico estadunidense só teria se dado porque, naquele momento, os países socialistas não
tinham domínio sobre essa tecnologia militar.
No II Congresso do Movimento pela Paz, estabeleceu-se o Conselho Mundial pela
Paz, cujo primeiro presidente seria Frédéric Joliot-Curie. O movimento seguia a estrutura
comum à das organizações comunistas, compostas, geralmente, por conselhos comunitários e
departamentais, comitês de base e secretarias. Entre os maiores empreendimentos dos
Partidários da Paz estavam o Apelo de Estocolmo e o Apelo por um Pacto de Paz, que eram
abaixo-assinados que pediam a abolição das armas nucleares e o fim dos conflitos entre as
grandes potências mundiais, respectivamente.
Vasco Prado e Carlos Scliar integraram a delegação brasileira do Congresso de
Wroclaw. Além do objetivo principal do evento, que era a causa pacifista, o congresso
proporcionou, paralelamente, a troca de ideias e experiências entre artistas de vários países.
Representando o México, lá estava Leopoldo Méndez, artista ligado à Vanguarda Estridentista
mexicana, nos anos 1920, bem como ao TGP, que provocou a admiração e inspirou os
brasileiros. Méndez era um exemplo de artista combativo e já se convencera do valor de falar
das coisas do seu povo, do trabalho coletivo, desde o começo de sua trajetória.
Como se podia esperar, pelo perfil e pelo histórico da instituição, o TGP se empenhou
em responder à convocação de Wroclaw e elaborou ilustrações para impressos de divulgação
do movimento pacifista do México. Assim também o fizeram os integrantes da Horizonte e do
CGPA, focando na divulgação dos abaixo-assinados pela paz e contra as armas atômicas. O
TGP era o modelo, a inspiração dos gravadores sul-rio-grandenses, portanto, é necessário
conhecer a sua produção.
Desde os primórdios do TGP, a denúncia das atrocidades da guerra e do nazi-fascismo
eram temas recorrentes nos trabalhos dos seus integrantes, lembrando que a instituição fora
fundada em 1937, período de avanço dos regimes totalitários. Naquele ano, a Itália de
Mussolini e a Alemanha de Hitler estreitam seus laços, o Japão invadiu a China e a Espanha
encontrava-se em guerra civil.
O primeiro álbum lançado pelo TGP foi La España de Franco (1938), que integrava a
coleção Nuestra Lucha e continha quinze litografias de Leopoldo Méndez, Xavier Guerrero,
114
Luis Arenal e Raul Anguiano. Somente 19 exemplares foram impressos. Pode-se supor que o
objetivo do TGP não era a difusão massiva, porém marcar uma posição contra o franquismo e
alertar sobre as tendências totalitárias que se alastravam na Europa. A litografia Aprende,
América ¡El fascismo amenaza a los países americanos! (Fig. 25), de Méndez, pode ser
entendida como um aviso da possibilidade de o fascismo atravessar o Atlântico. Verifica-se
que a linguagem caricata é empregada, principalmente, na representação dos ditadores e de
seus agentes de opressão, dando um tom ridículo e ao mesmo tempo monstruoso a esses
personagens. Quando se trata de construir cenas que remetem à situação de sofrimento da
população, percebe-se um tratamento mais realista encontrado em cenas dramáticas que
pareceram despertar maior respeito e solenidade do seu autor ao desenhá-las, como no caso de
Se termina con la enseñanza (Fig. 26), na qual se vê um professor morto e seus alunos em
frente à escola.
Para o ano de 1938, o TGP confeccionou o calendário da Universidad Obrera de
México, em que são destacados os dias nos quais ocorreram eventos políticos relacionados à
história mexicana, às personalidades de esquerda e a acontecimentos recentes para a época
que diziam respeito aos regimes totalitários. Jésus Bracho ilustrou a folha de março com um
retrato de Karl Marx em recordação de sua morte no dia 14 (Fig. 27). Para o mês de julho,
Pablo O’Higgins gravou a cena do golpe armado dos generais espanhóis comprometidos com
a classe reacionária, mostrados como abutres, contra o povo que tenta se defender (Fig. 28).
Figura 25 – Leopoldo Méndez. Aprende, América ¡El fascismo amenaza a los países americanos!, 1938
Litografia, 32,5 X 28,8 cm, álbum La España de Franco, editado pelo TGP em 1938.
Fonte: <https://www.fulltable.com/vts/t/ttf/tgp/franco/l.htm>.
115
Figura 26 – Xavier Guerrero. Franco prepara “sus ofensivas”, Se termina con la enseñanza, 1938
Litografia, 32,5 X 28,8 cm, álbum La España de Franco, editado pelo TGP em 1938.
Fonte: <https://www.fulltable.com/vts/t/ttf/tgp/franco/i.htm>.
Figura 27 – Jésus Bracho. Carlos Marx, Creador del Socialismo Científico – 14 de março de 1883, 1938
Litografia, 50 X 35 cm, folha do mês de março do calendário de 1938, produzido pelo TGP, com a gravura
Fonte: <https://www.fulltable.com/VTS/t/time/calendars/tgp/03.jpg>.
116
Figura 29 – Páginas com fotografias de El Libro del Terror Nazi em Europa, 1943
Fonte: LEAL et al., 1943.
Figura 30 – Página de El Libro Negro de Terror Nazi em Europa, com ilustração de Alfredo Zalce.
Fonte: LEAL et al., 1943.
119
Figura 31 – Página de El Libro Negro de Terror Nazi em Europa, com ilustração de Leopoldo Méndez.
Fonte: LEAL et al., 1943
Figura 33 – Francisco Mora, Albe Steiner. Congreso mundial de intelectuales en favor de la paz.
Wroclaw, Polonia, agosto de 1948... los intelectuales y artistas de México saludan cordialmente a sus colegas
del mundo..., 1948
Linoleogravura impressa em cartaz, 95 x 70 cm
Fonte: <http://www.graficamexicana.com/ImageViewer.asp?id=6846&level=2>
122
Figura 34 – Arturo García Bustos, Mariana Yampolsky. Congreso Continental Americano por la Paz. México
5-10 de septiembre 1949. Ganaremos la paz si luchamos por ella, 1949. Linoleogravura impressa em cartaz,
82 x 60 cm. Fonte: <http://www.graficamexicana.com/ImageViewer.asp?id=6852&level=2>.
Figura 35 – Alberto Beltrán. Conferência Continental por La Paz, 1951. Linoleogravura impressa em cartaz.
63 x 55 cm. Fonte: <http://www.graficamexicana.com/ImageViewer.asp?id=6883&level=2>.
123
38
Estruturas de base do partido.
125
dos partidários em outros países, como Polônia e Estados Unidos (JACINTO, 1949c). Em
abril, realizou-se o Congresso Nacional em Defesa da Paz a fim de elencar quem iria ao
Congresso Internacional de Paris, cuja convocação foi integralmente publicada (JACINTO,
1949b).
Em julho de 1949, Juvenal Jacinto noticiava o Congresso de Partidários da Paz,
ocorrido em abril daquele ano, e o Congresso Continental Americano pela Paz, que
aconteceria no 5 de setembro seguinte. Na comissão organizadora desse último evento,
constavam mandatários do México, Lázaro Cárdenas e Ávila Camacho; dos Estados Unidos,
Henry Wallace; e de Cuba, Fulgêncio Batista. Houve variedade entre os participantes: eram
políticos, militares, sacerdotes, artistas e escritores. A fim de eleger os representantes do
Brasil, promoveram-se várias conferências regionais – a de Porto Alegre foi em agosto. No
último parágrafo de texto de convocação do Congresso Continental, lê-se: “A paz é o caminho
da liberdade e da grandeza da América. Assegurando-a a América cumpre o seu destino mais
elevado e presta um serviço ao mundo [...]” (JACINTO, 1949a, p. 57). Nesse pequeno trecho,
percebe-se que a luta pacifista era associada às causas progressistas, democráticas e, para os
comunistas, socialistas.
Na Nova Fase da Horizonte, a diretora Lila Ripoll esmerou-se em convidar pessoas de
diversas correntes políticas para o Movimento Brasileiro dos Partidários da Paz (MBPP) e
para assinarem as petições. O substituto de Ripoll na coordenação da revista, o médico
Fernando Guedes, manteve a publicação na mesma linha. Os artistas colaboraram com
ilustrações e artigos. Leonor Scliar Cabral e Maria Dinorah Luz do Prado escreveram poesias
em prol da causa da paz. Entre as escritoras envolvidas com a revista, Lila Ripoll era a mais
produtiva e escrevia textos em quantidade e de natureza diversa: reportagens, traduções,
poemas. É interessante notar esse espaço disponibilizado às mulheres, muitas vezes
desfavorecidas nas publicações locais, como também aos estreantes na literatura, como Laci
Osório e Heitor Saldanha (MARTINS, 2012).
No período de 1950 a 1952, a presença de matérias acerca do Movimento pela Paz é
constante nas páginas da revista. O editorial do primeiro exemplar sob o comando de Lila
Ripoll explicita os princípios da publicação. Em suas linhas, já se percebe que o Movimento
dos Partidários da Paz seria beneficiado:
dos cortes. As matrizes em madeira e em linóleo eram as preferidas pelos artistas dos Clubes
de Gravura.
No mesmo exemplar, publicou-se o artigo, de autoria desconhecida, Os Povos do
Mundo em Defesa da Paz e da Cultura (OS POVOS..., 1950), que nos fornece informações e
dados sobre o Congresso de Varsóvia. Nessa ocasião, divulgou-se o número estimado de 500
milhões de assinaturas do Apelo de Estocolmo pela interdição das armas atômicas. O
encontro reuniu 1600 delegados de oitenta países que formularam resoluções como o pedido
de redução dos efetivos das forças armadas das grandes potências – Estados Unidos, União
soviética, República Popular da China, Grã-Bretanha e França – e a condenação da
intervenção militar norte-americana na Coreia. Pelo Brasil, lá estiveram os pintores Cândido
Portinari e Clóvis Graciano. Durante o Congresso, foram concedidos os Prêmios
Internacionais da Paz, incluindo uma medalha de ouro a Portinari pelo mural Tiradentes. As
resoluções e a Carta da Paz formuladas em Varsóvia seriam reproduzidas na íntegra na edição
de janeiro e fevereiro de 1951, respectivamente.
O Prêmio Stalin da Paz foi instituído na União Soviética a fim de “estreitar o
sentimento de paz entre os povos”. Uma comissão era responsável por conceder a distinção,
que, inicialmente, foi presidida pelo professor Dimitri Skobeltsin e composta pelo escritor
russo Fadeyev, pelo novelista Ylia Ehremburg, pelo escritor chinês Kuo Mo-Jo (presidente da
Sociedade Amigos da Rússia), pelo escritor e jornalista francês Louis Aragon, pelo escritor
dinamarquês Martin Andersen Nexo, pelo professor londrino John Bernal, pelo professor
polonês Jan Dembowski, pelo escritor alemão Bernhardt Kellerman, pelo deputado e
professor italiano Marquês de Concantto, pelo poeta chileno Pablo Neruda e pelo escritor
romeno Mikhail Sabodianu (PRÊMIO..., 1951).
Ainda na edição de dezembro de 1950, encontra-se a Mensagem dos Intelectuais
Gaúchos a Stálin (MENSAGEM..., 1950), assinada, entre outros, por Carlos Scliar, Vasco
Prado, Lila Ripoll e Flamarion Silva, publicada para celebrar o aniversário do líder soviético,
glorificado como “campeão da Paz, chefe e guia da Humanidade Progressista” (p. 19). Stalin
era identificado como um grande combatente pela paz e pelo socialismo no mundo. Na
contracapa, reproduziram-se a linoleogravura La Bomba Atómica, de Alfredo Zalce, e o texto
do Apelo de Estocolmo. Zalce apresentava o artefato nuclear como um cogumelo de fumaça
de onde saía um ser, meio soldado, meio caveira, portando um capacete com a insígnia nazista
e estampando um sorriso macabro (Fig. 38). Em 1954, essa obra integrou a série Coplas de La
Muerte H y La Vida Popular, publicada pelo TGP.
128
de Paz e o pedido para que o leitor assinasse e enviasse esse documento para a redação da
revista ou para a sede do Movimento Estadual dos Partidários da Paz e contra as Armas
Atômicas, localizada na Rua Vigário José Inácio, 251, segundo andar, no Centro de Porto
Alegre (APELO..., 1951).
Em janeiro de 1951, foi lançada, no Rio de Janeiro, a “Quinzena Contra a Participação
do Brasil na Guerra”, por meio de um manifesto que repudiava o uso da arma atômica, a
convocação para o serviço militar de brasileiros de 16 a 45 anos e a guerra. Assinaram o
manifesto expoentes do Movimento, tais como Abel Chermont e Branca Fialho. No Rio
Grande do Sul, firmaram o texto, publicado no Correio do Povo, representantes da Comissão
Central da Associação Rio-Grandense pela Proibição das Armas Atômicas, Vitorio Veloso; da
ABDE, Lila Ripoll; do Centro Cívico Castro Alves, Luiz Carlos Brum; da União Estadual dos
Trabalhadores, Eloy Martins; Associação dos Servidores Estaduais, Jader Domingues; da
Federação das Mulheres do Rio Grande do Sul, Rita Guedes Brandão; da Liga de Defesa das
Liberdades, Julio Teixeira e Eloar Guazzelli; do Centro Estudos e Defesa do Petróleo, José
Morais Terra; e pessoas físicas como Carlos Scliar e Vasco Prado (AO POVO..., 1951).
No território coreano, travou-se o embate do Sul do país, apoiado pelos Estados
Unidos e pelo Reino Unido, contra o Norte, aliado à União Soviética e à República Popular da
China. A Guerra se estendeu de 1950 a 1953. No primeiro ano da guerra, foi firmado o
Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, que estipulava o envio de vinte mil soldados
brasileiros. Os comunistas, já preocupados com o desencadear da Terceira Guerra Mundial e
com a vida dos jovens militares, articularam a Campanha contra o Envio dos Soldados
Brasileiros para a Coreia (RIBEIRO, 2010). Os partidários da paz logo se engajaram nessa
empreitada.
A Horizonte de junho de 1951 reforça a Campanha através de artigos como O povo
coreano: sua história e sua cultura, de Georges Cogniot, e A Palavra Paz, da escritora
chilena Gabriela Mistral. A reflexão de Mistral disserta sobre a palavra “paz” e as venturas e
as desventuras a que se submetiam aqueles que ousavam expor publicamente suas objeções
contra a guerra. Ter a “paz” como tema e como estandarte era alvo de suspeitas naquele
momento, era coisa dos “vermelhos”. Parece mesmo que, em momentos de crise, certas
expressões são repudiadas e têm seu sentido deturpado, tais como democracia, justiça e
igualdade. Porém, Mistral transmite uma mensagem de ânimo:
Figura 39 – Carlos Scliar. União por uma Vida Melhor e pela Paz, 1951
Capa e contracapa da Horizonte, Nova Fase n. 6, jun. 1951. Fonte: Coleção do NPH – IFCH/UFRGS.
39
A grafia do sobrenome de Dimitri Shostakovitch está incorreta na revista Horizonte, sendo escrito
“Chostakovitch”. Esse trabalho adota a grafia da publicação por ser a referência original do texto.
133
portadores do Apelo por um Pacto de Paz contendo duzentas e sessenta mil assinaturas. Lila
Ripoll assumira a presidência da ABDE, e Fernando Guedes a substituiu na direção da revista
a partir desse número. O IV Congresso recebeu atenção especial, contando com vários artigos,
reprodução de mensagens e de discursos, como também cobertura fotográfica que ocuparam
várias páginas (Fig. 43).
Figura 43 – Fotografia da mesa do IV Congresso dos Escritores na qual se veem Lila Ripoll e Graciliano Ramos
(da esquerda para a direita).
Horizonte, Nova Fase n. 10, out. 1951, p. 288
Fonte: Coleção do NPH – IFCH/UFRGS.
O Apelo por um Pacto de Paz foi mais uma vez publicado, juntamente com a lista de
nomes de intelectuais e artistas que o assinaram. Glênio Bianchetti ajudou a divulgar o apelo
em sua gravura da capa, na qual se veem pessoas trajadas à moda gaúcha em um ambiente
rural, tendo uma goleira de futebol ao fundo (Fig. 44). A menção ao esporte popular e os tipos
representados eram tentativas de aproximação com o público a partir de sua possível
identificação com a cena.
Entre as determinações do III Congresso Gaúcho pela Paz estão o pedido de paz na
Coreia, a condenação do acordo bilateral entre Estados Unidos e Brasil que resultaria na
participação de tropas nacionais em conflitos promovidos pelo país do norte, o combate à
promoção da guerra e a denúncia de que partidários e coletores de assinaturas dos Apelos do
Movimento pela Paz eram perseguidos.
136
O aniversário de um ano da Nova Fase da revista é saudado como uma vitória dos
intelectuais de vanguarda, defensores da Democracia Popular e da Revolução Socialista
(EDITORIAL, 1955a, p. 315). O socialismo seria o caminho para o progresso cultural do
país, para a liberdade e para a paz. Stalin, Mao-Tsé-Tung e a Revolução de Outubro são
lembrados como referências no editorial. Na capa, vislumbra-se a linoleogravura de Danúbio
Gonçalves Apelo por um Pacto de Paz, que, posteriormente, integrou o álbum Gravuras
Gaúchas, de 1952 (Fig. 45).
Danúbio introduz o olhar do espectador para o interior de uma sala de aula de uma
escola rural. No primeiro plano, um homem portando um chapéu de barbicacho apoia uma
folha sobre a moldura da janela a fim de escrever. No alto da página, vê-se a palavra “paz”
escrita em caixa alta. Dentro da sala, as crianças estão acomodadas em bancos ou cadeiras,
não há as convencionais mesas de estudantes, e observam a professora e o quadro negro, no
qual também está escrito “paz”. A cena mostra o momento da assinatura do Apelo por um
camponês em um ambiente escolar no qual, provavelmente, a docente é uma partidária do
137
Movimento e ensina seus alunos sobre ele. Na parede, encontra-se um quadro de um homem
de bigode que pode ser uma menção a Stalin. Na imagem, podemos perceber o papel de
protagonismo da mulher na formação política40.
40
A questão feminina merece uma reflexão à parte. As mulheres do partido se empenharam nas campanhas pela
Paz, contribuindo intelectualmente na produção de textos e nos debates e discursando nos palanques. O papel
feminino no PCB se modificou ao longo do tempo, ganhando destaque. Nos anos iniciais, observa-se que às
mulheres cabiam as tarefas ligadas à esfera assistencial das organizações de esquerda. O Comitê Central do PCB
não teve nenhuma mulher em sua composição até a década de 1940, embora houvesse militantes importantes e
diretoras em comitês municipais. A explicação da parca presença feminina na estrutura formal do partido pode
ser explicada pela discriminação sexual ou pelo fato de que a participação político-partidária das mulheres se
tornou mais expressiva somente nos anos 1930 e ainda era tímida e minoritária em termos quantitativos
(ALVES, 2015). Outro motivo que poderia ser cogitado é que os comunistas focavam no operariado urbano
industrial, cujo contingente de mulheres era pequeno. Apesar do papel fundamental das mulheres na trajetória do
PCB, somente nos anos 1970 o partido faria uma autocrítica mais profunda sobre a desatenção dada à questão da
mulher, visto que muitas vezes o feminismo foi considerado um movimento pequeno-burguês. Porém, as
comunistas foram protagonistas da história do feminismo no Brasil (ALVES, 2015).
As comunistas defenderam publicamente medidas emancipatórias para as mulheres em uma perspectiva de
classe. Embora se admitisse que a desigualdade de gênero fosse causa de sofrimento de todas, entendia-se que as
trabalhadoras e as que não dispunham de recursos financeiros eram ainda mais afetadas. Iracélli Alves (2015)
explica que a proletária sofria as consequências da subjugação econômica, social e afetiva. Além de não ser
tratada de igual para igual na relação com seu companheiro e na sociedade, as necessidades específicas de uma
mulher no ambiente de trabalho eram menosprezadas, como a oferta de creches.
138
editora La Estampa Mexicana com o título de Rio Escondido: diez grabados de Leopoldo
Méndez.
A película trata da história da maestra Rosaura Salazar, que se dispõe a lecionar em
um povoado distante onde o cacique Dom Regino domina e explora a população. A heroína
acaba por matar o algoz após uma tentativa de abuso por parte dele. Méndez representa esse
momento em Venciste (Fig. 46), quando a professora aparece quase como uma figura mística,
envolta por uma aura luminosa, no fundo, à esquerda, trajando um vestindo largo, os cabelos
soltos e com uma arma na mão. Ela está acompanhada por pessoas que se revoltaram contra
os capangas do cacique. A brutalidade investida contra a população por esses homens que
despencam do penhasco se volta contra eles e, assim, a justiça se concretizaria. O discurso do
caráter emancipatório da educação perpassa toda a película. Atitudes extremas e o uso da
violência podem ser entendidos como metáforas da capacidade de reação popular quando
adquirida consciência das causas de suas mazelas. Sánchez (2011) observa que tanto as
gravuras de Méndez quanto a fotografia do filme, de Gabriel Figueroa, empregam elementos
formais do muralismo, como horizontes estendidos e traços sintéticos. Os murais de Diego
Rivera também estão na película. O principal objetivo da produção é mostrar o drama do
povo, além disso, Río Escondido exalta a capacidade de liderança feminina e a importância
das mulheres na transformação da sociedade.
41
Defensor da Paz foi um dos epítetos de Stalin, como aparece de forma recorrente nas páginas dos veículos
comunistas. Essa ideia era parte importante das campanhas que o movimento comunista internacional propagava
e que tinha como um dos objetivos caracterizar o Bloco Comunista com o pacifismo ao mesmo tempo em que
identificava o Bloco Capitalista com a violência e o espírito belicista.
140
dos Santos, médico; Cezar Ávila, professor da Faculdade de Medicina; Cláudio de Toledo
Mércio, presidente do Movimento Estadual de Defesa da Paz. O documento da fundação da
Comissão é exposto na contracapa da revista.
Alguns apoiadores do Movimento, entre eles Diego Rivera, não puderam comparecer
à conferência e enviaram mensagens à comissão organizadora e aos delegados. O caso do
artista mexicano se torna ainda mais interessante porque implica o episódio do roubo,
atribuído a agentes da embaixada norte-americana, do painel Pesadelo de Guerra e Sonho de
Paz do Museu de Belas Artes. O afresco móvel foi levado para o evento (MURAL..., 1952).
A ausência de Rivera fora motivada justamente porque ele trabalhava na confecção da obra
que, aliás, tivera sua exibição proibida pelo governo do México por meio dos diretores do
Instituto de Belas Artes Carlos Chaves e Fernando Gamboa: “[...] Trabalho nesse momento,
dia e noite, em uma pintura mural de ampla envergadura; todo meu esforço tem sido para
condensar nesse trabalho a expressão do Partidário da Paz que sou” (PESADELO..., 1952, p.
80-81). O governo mexicano encomendara o painel para uma exposição em Paris, mas, sob a
acusação de que fazia apologia ao stalinismo e atacava as potências ocidentais, foi recusado.
Os delegados brasileiros enviaram um telegrama a Rivera, publicado na Horizonte, a fim de
144
O mural tem ao fundo três cenas: primeiro, uma alegoria que mostra Stalin e
Mao Tse Tung oferecendo a assinatura de um pacto de paz aos Estados
Unidos, Inglaterra e França; em seguida, cenas de horror e morticínio na
Coreia e no segundo plano a explosão da bomba atômica; finalmente, uma
visão do trabalhador pacífico e de progresso humano após a assinatura do
pacto entre os cinco grandes.
Ao longo de todo o painel, no primeiro plano, Rivera destaca cenas da luta
pela paz no México: operários, camponeses, gente do povo assinando o
apelo por um pacto de paz (O MURAL..., 1952, p. 6).
42
A escritora e dramaturga Lorraine Hansberry (1930-1965) foi uma ativista política que participou das
organizações Young Progressives of America (YPA), Labor Youth League (LYL) e Jefferson School, e esteve à
frente do jornal Freedom. Foi a primeira mulher negra a escrever uma peça para a Broadway, A Raisin in the
Sun. Disponível em: <www.workers.org>. Acesso em: 3 jan. 2017.
145
Figura 53 – Capa do Segundo Caderno da Imprensa Popular, Rio de Janeiro, n. 1017, p. 6-7, 30 mar. 1952
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
43
Para saber mais análise da caricatura, recomenda-se a tese de doutorado de Carlos Enrique Vilarreal Morales
(2013), “Estrategias y tácticas en el género discursivo de la caricatura política contemporânea: la primera época
de La Garrapata”.
147
A mobilização das mulheres passava por lembrar o risco a que estavam submetidos
seus filhos e seus maridos caso fossem enviados aos campos de batalha.
A gravura de Glênio Bianchetti não trata das campanhas pacifistas, mas serve para
ilustrar o texto do abade. Fazendo Marmelada (1952), denominada de Cena Campestre na
revista, mostra duas mulheres descascando frutas, trabalhadoras do campo, portanto, e um
jovem que mexe o grande tacho no qual se cozinha o doce (Fig. 58). Ao fundo, um cavaleiro
se aproxima de alguns bovinos. É um cenário bucólico, as pessoas, apesar da simplicidade,
parecem estar tocando suas vidas normalmente, tendo recursos para se manter. Tudo isso
cairia por terra se a tragédia da guerra atingisse suas famílias. O registro dos costumes
campesinos marcou a produção de Bianchetti no começo da década de 1950.
A Nova Fase completou dois anos em dezembro de 1952. No editorial, era expressa a
satisfação com o trabalho feito pela cultura no Rio Grande do Sul. Ao longo daqueles meses,
a revista se voltou às campanhas pela paz, aos artigos sobre cinema, literatura, artes plásticas,
matérias sobre economia e política. Por vezes, a tiragem atrasou e dois números se
condensaram em apenas um por motivos de racionamento de eletricidade da oficina e de
dificuldades financeiras, conforme consta em nota da revista. A Horizonte pedia auxílio dos
intelectuais para angariar mais assinaturas, anúncios publicitários e contribuir com escritos
(EDITORIAL, 1952).
152
Nesse exemplar, Victorio Velloso (1952), no artigo Por que os povos lutam pela paz,
aborda o tema caro aos colaboradores da publicação, explicando que a população não tem
motivo algum para apoiar uma guerra e disserta sobre a ineficiência de organização como a
Liga das nações e a Organização das Nações Unidas na tarefa de preservar a paz no mundo. O
artigo do deputado Hélio Cabal (1952) Quadro Comparativo das Obrigações – a propósito do
Acordo Militar Brasil-Estados Unidos levanta as cláusulas do referido pacto e demonstra a
postura arrogante e imperialista do país do Norte em relação ao Brasil exigindo muito mais
obrigações econômicas e militares do que se dispõe a cumprir. A desigualdade de condições
era tamanha que o Brasil não poderia reclamar caso os Estados Unidos modificassem e
revogassem o acordo unilateralmente. Acompanhando a análise do parlamentar, acha-se a
gravura chinesa Guerrilheiros, de traços sintéticos. Trata-se, provavelmente, da técnica de
papel recortado. O efeito das linhas remete aos dos caracteres desenhados com as tradicionais
escovas de caligrafia (Fig. 59).
também apareceu na mídia tradicional e uma nota publicada a título de apedido no Correio do
Povo, na qual a Comissão Organizadora expunha as motivações para executar o evento:
do Movimento pela Paz viam nas artes a possibilidade de comunicação de uma mensagem,
uma arma de luta, sendo assim, elas deveriam facilitar o contato com a população, deveriam
ser um meio de identificação. As manifestações culturais de uma região, de um país,
permitiriam compreender os valores e a cultura daquele lugar. Tendo isso em mente, os
militantes concebiam os festivais e as exposições itinerantes como instrumentos de diálogo
cultural ente os povos que viria a possibilitar a compreensão mútua e facilitar a convivência
fraterna e o zelo pela paz.
O Festival Crioulo da Paz teve uma edição na Praça Dr. Fernando Abbott, na cidade
de São Gabriel, nos dias 20 e 21 de dezembro de 1953. Uma das maiores atrações foi o
torneio de trovadores, que teve a presença de Gildo de Freitas (indicado como “o maior
cantador do interior do Rio Grande” e “astro de primeira grandeza”), Geraldo Ribeiro,
Francisco Pastoriza, Rivadavia Correa Fogaça, entre outros. No segundo dia, no teatro
Vitória, a final da competição foi antecedida pela esquete sobre a campanha da Paz, encenada
por Lucio Vieira e Inez Carvalho (FESTIVAL..., 1954, p. 23).
O primeiro número de 1954 da Horizonte acrescentava na direção, além de Fernando
Guedes, os nomes de Demétrio Ribeiro, Lila Ripoll, Carlos Scliar e Nelson Souza. Essa
equipe permaneceu até janeiro do ano seguinte e produziu quatro edições da revista. Exceto
por um artigo de Hugo Madureira e um informe sobre o Conselho Mundial da Paz,
praticamente não se encontra mais produção de escritos e imagens ligadas ao Movimento dos
Partidários da Paz. Concomitantemente ao enfraquecimento das campanhas pacifistas,
verifica-se a diminuição da frequência e da produção da publicação: em 1954, foram quatro
números; em 1955, dois; em 1956, somente um, o derradeiro.
156
Figura 60 – Fotografias do Festival Crioulo da Paz no Parque Farroupilha, em Porto Alegre, em novembro de
1953. Da esquerda para direita, tem-se o registro do público, dos trovadores Sabiá e Sebinho, dos Irmãos
Bertussi e da dupla de cantoras infantis Rosaly e Sara Marly.
Fonte: HORIZONTE, nov.-dez. 1953, p. 80-84.
157
44
Não foram encontrados artigos sobre o Movimento pela Paz em outros veículos da grande imprensa de Porto
Alegre durante a pesquisa.
45
Recomenda-se o livro Capítulos da Guerra Fria: o anticomunismo brasileiro sob o olhar norte-americano
(1945-1964), de Carla Simone Rodeghero (2007).
158
Na coluna Notas de Arte, o posicionamento político de Aldo Obino era mais evidente
enquanto o CGPA estava em plena atividade. Porém, ainda se localizam textos que
demonstram que o jornalista não modificou seus princípios. O exemplo do artigo sobre a
produção artística soviética é um exemplo disso.
A capa do Correio do Povo de 29 de dezembro de 1953 estampa uma nota vinda de
Londres, exclusiva do jornal, intitulada A campanha da “paz” e seu papel na estratégia
soviética, de Michael Padev. Ele afirma que o movimento visava sustentar a política externa
da União Soviética e que era uma arma da guerra fria. Os Congressos da Paz de Wroclaw e
Paris, segundo o autor, utilizavam uma falsa fachada de intelectualismo apartidário. Os
objetivos dos apelos e das campanhas era enfraquecer as defesas dos países ocidentais. Toda
vez que Padev emprega a palavra paz, ele a coloca entre aspas.
Logo após a morte de Stalin (5 de março de 1953), Mozart Victor Russomano
escreveu para o jornal A verdadeira campanha pela paz, em que acusava as campanhas
pacifistas de estratégia de arregimentação partidária e afirmava que elas fracassaram. A
verdadeira paz viria de sociedades reformadas e da distribuição de recursos financeiros e
econômicos. Russomano era categórico:
Embora tenha fortes ressalvas contra o Movimento pela Paz, contra o marxismo e,
principalmente, contra o stalinismo, Russomano não repudiava totalmente o socialismo e
admitia a necessidade da partilha dos meios de produção. Os Partidos Comunistas durante a
Guerra Fria, sobretudo nas três décadas do regime de Stalin, praticamente monopolizaram a
interpretação e a transmissão das teorias de Marx e do socialismo, obedecendo às diretrizes do
PCUS. Isso provocou insatisfações e o afastamento de quem se vinculava a outras tendências,
mesmo as de esquerda, haja vista os trotskistas.
Obviamente, a maior adversária dos partidários da paz era a burguesia, que dispunha
também de seus intelectuais. No final de 1952, ocorreu o Congresso pela Liberdade da
Cultura, que reuniu escritores, artistas e cientistas em oposição ao Congresso pela Paz. A
reunião resultou no manifesto Colocamos a Liberdade em primeiro lugar. O mote do
documento é expressar o repúdio aos Estados totalitários, uma referência aos países
socialistas, que se negavam a aceitar a autoridade internacional e tolhiam as liberdades
individuais, algo muito caro, na teoria, aos países do bloco capitalista. Compunham a
comissão executiva do Congresso o norte-americano Irving Brown, o inglês Arthur Koestler,
o francês David Rousset e o alemão Carlo Schmid; apoiaram a causa Bertrand Russel,
Benedetto Croce, entre outros (PAZ..., 1952a).
A revista Horizonte divulgou números expressivos de assinaturas do Apelo por um
Pacto de Paz e do Apelo de Estocolmo, de público presente no Festival Crioulo pela Paz e de
participantes e apoiadores dos congressos e conferências do Movimento pela Paz. Se os dados
são exatos, não é possível afirmar, porque não há meios de conferi-los. No entanto, parte
significativa da população deveria saber das campanhas devido ao fato de alguns eventos
acontecerem em praça pública, inclusive a coleta de assinaturas, e porque muitas
personalidades conhecidas estavam engajadas – parlamentares, escritores, artistas, etc.
Destarte, a ausência de notícias das ações dos partidários da paz no Rio Grande do Sul em um
de seus maiores jornais, o Correio do Povo, indica uma escolha referente a uma política
editorial.
As opções de um jornal estão condicionadas às possiblidades existentes no campo
jornalístico, no qual há dominantes e dominados. A posição de um periódico é relativa e
deriva do resultado da disputa de forças econômicas e simbólicas. O poder de um meio de
comunicação se mede pelos índices econômicos, sua cota de mercado e pelo seu peso
simbólico, que se relaciona ao lugar ocupado comparado a outros meios quanto ao domínio
técnico e econômico. O grau de dominação de um veículo de mídia pode ser medido por sua
161
capacidade de transformar o espaço ao seu redor e ditar a lei. O jornal não é autônomo e
neutro, visto que é influenciado por demandas de mercado e que depende financeiramente dos
assinantes, da publicidade e, às vezes, de verba governamental. Um fato se tornar notícia
envolve todos esses fatores (BOURDIEU, 1997).
O Correio do Povo, fundado em 1895, tinha tradição e queria transparecer que só
transmitia a verdade. Era um diário tradicional, de grande circulação e liderava as pesquisas
como o jornal mais lido (NOGUEIRA, 2009). No campo jornalístico porto-alegrense, estava
em posição de destaque, e isso também implica que estava comprometido com os grupos da
elite política e econômica do estado. Isso não significa, de uma maneira simples e direta, que
Obino fosse subserviente às diretrizes da direção do jornal, mas sim que suas posturas
conservadoras eram compatíveis com a tradição desse veículo de imprensa. Ao longo da sua
história, constata Maristel Nogueira (2009), o Correio do Povo adotou posturas
anticomunistas correspondentes às das classes conservadoras. Isso ajuda a explicar por que
Aldo Obino não mencionava a militância política do Clube de Gravura de Porto Alegre e por
que as atividades do Movimento Brasileiro pela Paz não constavam na pauta.
Figura 61 – Fotografia do calendário do ano de 1958 da Indústria de Chocolates Ernesto Neugebauer, ilustrado
por uma gravura de Glênio Bianchetti.
Fonte: QUADROS, 2010, p. 59.
A exibição pública é a forma mais tradicional de dar visibilidade à arte e, portanto, era
uma maneira de o CGPA divulgar sua produção. Em seguida, são apresentadas as exposições
mais importantes do CGPA, informações sobre os artistas participantes, as temáticas e as
estratégias para atrair os espectadores. Enfatiza-se a proposta inédita e mais arrojada foi Por
uma Arte Nacional, a mostra do Parque Farroupilha.
A retrospectiva das realizações do CGPA, publicada em janeiro de 1956, no Correio
do Povo, está repleta de elogios. Nos quatro anos anteriores, contabilizaram-se cerca de 30
exposições do Clube pelo mundo, que estimularam a criação de entidades voltadas às artes
gráficas em Curitiba, São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Recife, Lisboa e Montevidéu.
Castilhos (1956) afirmava que, segundo a crítica europeia, o CGPA só ficava atrás dos
chineses e dos mexicanos. Durante o ano de 1955, ocorreram mostras na Argentina, no
Uruguai, no Chile e na China. No interior do Rio Grande do Sul, as cidades de Rio Grande
(durante o II Congresso Tradicionalista), Novo Hamburgo e Caxias do Sul receberam as obras
de Honoré Daumier (1808–1879), selecionadas pelo CGPA. Em intercâmbio com a União dos
Artistas Plásticos da China, o Clube promoveu A Estampa Chinesa Contemporânea. A
exposição Por uma Arte Nacional teve duas montagens, uma no Parque Farroupilha; outra,
nas dependências pertencentes à Exposição Feira da Indústria, apoiada pela Sociedade Pró-
Melhoramentos, no 4º Distrito de Porto Alegre (CASTILHOS, 1956).
165
As técnicas da gravura através dos tempos é apontada como uma das melhores
exposições do inverno de 1955 por Carlos Scarinci (1955c). Em reportagem para a Revista do
Globo, Scarinci reclama de lacunas de obras e artistas, mas elogia a exemplificação das
técnicas de gravação. A expressividade e a simplicidade de Matambreiros, de Danúbio
Gonçalves, a “graça sem transbordamento” de Pedreiros, de Glênio Bianchetti, e a bela
resolução de Composição, de Regina Yolanda, são-lhe dignas de elogios. Quanto ao apuro
técnico, destaca Carlos Scliar pelas gravuras em cores Perus e Patos e Ponche Emalado,
Serigote e Pelegos. As impressões do colaborador da Globo são positivas em relação a Moça
e Pombas, do português Julio Pomar, Paisagem, de Morandi e Fome, de Käthe Kollwitz.
Desagrada-lhe a presença de A Morte a Espreita, de Goeldi, Reconstrução de Varsóvia, de
Leopoldo Méndez, Vista do Cais, de Carlos Mancuso, Homenagem a Benito Juarez, de
Alfredo Zalce, e Carnaval, de Mario Avati. As avaliações parecem basear-se em critérios
subjetivos, já que não há uma análise profunda nem muitas explicações.
166
O colunista Aldo Obino (1955c), em tom elogioso, proferiu: “Eis uma mostra de
sentido social e artístico de crítica satírica”. Nesse mesmo mês, ocorreu a exposição de
gravuras de Vasco Prado no Círculo Bageense: “Vasco Prado, o mais significativo escultor
rio-grandense de sua geração, não deixa de lado o puro desenho e cultiva, com palpitante
plasticismo, o gravurismo, em que o senso do relevo das formas e dos volumes fica
otimamente sugerido, com a força vinculante do desenho e dos instrumentos de gravar”
(OBINO, 1955c, p. 8).
Clóvis Assumpção (1955b) forneceu ao leitor do Correio do Povo uma breve biografia
do artista francês. Nascido em Marselha em 1808, Daumier iniciou na litografia em 1825,
chegou a ser preso por suas caricaturas políticas em 1832. Introduziu a sátira dos costumes na
sua produção a partir de 1835. Conheceu Balzac, Baudelaire, Delacroix, Millet, Rousseau,
Corot e outros grandes nomes da cultura francesa do século XIX. Daumier passou por
dificuldades nas finanças e na saúde, quase ficou cego. Apenas em 1871, conseguiu sua
primeira exposição individual; faleceu oito anos depois. Assumpção ressalta a objetividade, o
realismo e o humor ácido das litografias expostas em Porto Alegre. Não havia tema da
sociedade da época que escapasse ao olhar crítico do francês.
deveriam ser compreendidas por todos, não fazia sentido produzir algo somente para si
mesmo ou para um pequeno grupo (OLMEDO, 1955b).
Scliar reuniu trabalhos produzidos entre 1942 e1955. Assumpção ressalta a sagacidade
e o aprimoramento constante da arte de Scliar. Observa que, mesmo procurando manter-se
atualizado, Scliar permaneceu coerente e não modificou abruptamente seu estilo, inspirado
pelo cubismo, pelo expressionismo e pelo “neo-realismo” e que nunca se afastou da realidade
ao seu redor. Assumpção (1955a, p. 9) observa a mudança no tratamento da cor ao longo dos
anos. De 1942 a 1947, o artista realiza experiências com cores, aplicando-a em largas
superfícies, como pode ser visto em A Mulher com Gato na Janela (1943) e Carlitos em Vida
de Cachorro. Scliar parece optar por zonas coloridas, no que Assumpção (1955d) chama de
“fase de Paris”, a que pertence Meu Quarto. O ano de 1951 é marcado na sua trajetória pelo
abrandamento da esquematização do desenho e pela representação mais objetiva das figuras.
Exemplo desse período é o Retrato do Escritor Plínio Cabral. O colunista acredita que a
tendência “neo-realista” se torna mais perceptível a partir de 1953, em obras de temática
regionalista em que há uma riqueza maior de detalhes das figuras, como visto em Carroça e
Arreios e na série Estância. As zonas de cor e o traço são mais trabalhados.
A mostra mais marcante do CGPA foi a Por uma Arte Nacional, instalada no Parque
Farroupilha. Ela foi assunto do Correio do Povo, do jornal A Hora e da Horizonte. É
interessante que todos os periódicos apresentaram fotografias acompanhando o texto. A Arte
Submetida ao Julgamento Popular (SILVA, 1955), matéria da Horizonte, indica que o
número de espectadores chegou a aproximadamente dois mil.
Por uma Arte Nacional teve 60 gravuras, o patrocínio de Serviço de Recreação
Pública Municipal, apoio da Editora Globo e foi aberta para o público no domingo, 2 de
outubro de 1955. O ineditismo da iniciativa ganhou a atenção da imprensa. No Correio do
Povo, Aldo Obino anunciou: “Teremos a primeira exposição no Rio Grande do Sul, ao ar
livre” (OBINO, 1955b, p.10). Os visitantes receberam um catálogo em que havia um espaço
ao lado dos trabalhos para que assinalassem o de que mais gostassem. Os artistas ganharam
como prêmios os volumes da Coleção Província fornecidos pela Globo, conforme sua
classificação, após o escrutínio. Participaram da mostra Ailema Bianchetti, Plínio Bernhardt,
Glênio Bianchetti, Manuel Francisco Ferreira, Nelson Boeira Faedrich, Fortunato, Gastão
Hofstetter, Danúbio Gonçalves, Edgar Koetz, Carlos Mancuso, Charles Meyer, Carlos Alberto
169
do público. Os artistas que organizaram aquela exposição não buscavam apenas uma
consagração pelo mercado ou pelo campo artístico, mas estavam colocando em prática ações
inspiradas por seu projeto político, que era promover a elevação cultural da população por
meio do acesso à arte, buscando despertar a consciência crítica da classe trabalhadora.
A consagração popular de Por uma Arte Nacional, segundo Abdias Silva (1955, p.
16), serviu para “[...] destruir e desmoralizar a tese reacionária de que a arte é um assunto da
elite e de entendidos pois exatamente os quadros que os entendidos julgavam melhores foram
os consagrados pela votação popular”. O povo seria perfeitamente capaz de apreciar a arte,
mas, para isso, seria necessário que a arte se aproximasse do povo, o que envolveria temas e
tratamento formal que participassem de experiências comuns entre o artista e o espectador, a
fim de estabelecer a comunicação. Seria também essencial que os locais de exposição fossem
acessíveis e que as pessoas se sentissem confortáveis ao visitá-los. O esforço para levar as
obras ao parque, no domingo, foi uma tentativa nesse sentido (Fig. 67).
Figura 62 – Uma família e um menino votam nos seus trabalhos favoritos na exposição Por uma Arte Nacional,
no Parque Farroupilha. Fotografia: Santos Vidarte
Fonte: CORREIO DO POVO, 9 out. 1955, p. 24 [registro fotográfico da autora]
Figura 63 – Estampa chinesa em papel recortado presente na exposição de gravuras chinesas organizada pelo
CGPA
Fonte: A HORA, 26 nov. 1955, p. 8 [registro fotográfico da autora]
172
Figura 64 – Reportagem do jornal A Hora sobre a exposição As Técnicas da Gravura Através dos Tempos
Fonte: A HORA, 19 jul. 1955, p. 8 [registro fotográfico da autora]
173
Figura 67 – Reportagem do jornal A Hora sobre a exposição Por uma Arte Nacional
Fonte: A HORA, 14 out. 1955, p. 8 [registro fotográfico da autora]
176
46
O termo “miniatura” se refere às pequenas dimensões dos trabalhos, alguns feitos sobre discos de vitro la e
caixas de fósforos.
178
Figura 69 – Reportagem do jornal A Hora sobre o curso de gravura de Iberê Camargo organizado pelo CGPA
Fonte: A HORA, n.187, 16 jul. 1955, p. 8 [registro fotográfico da autora]
Neste capítulo, foram analisadas as principais ações sociais dos artistas ligados ao
Partido Comunista, como eles intervieram publicamente, tendo como principais instrumentos
os Clubes de Gravura e a revista Horizonte. Esses artistas se engajaram em ações que tiveram
um efeito notável entre a população, como animar uma campanha de assinaturas que teve
ampla participação popular e organizar uma exposição pública de gravura com uma
excepcional assistência. Dessa forma, eles foram promotores de um projeto cultural que
179
procurava popularizar a gravura com temas regionais, mas também foram participantes de um
projeto político que buscava ganhar a classe trabalhadora para os ideais do socialismo.
Essas ações e intervenções públicas não se davam sem um lastro teórico que orientasse
a produção desses artistas. Uma das principais influências do grupo ligado ao PCB era o
realismo socialista, corrente artística que se desenvolveu na União Soviética na década de
1930 e que teve um profundo impacto em artistas de diversas partes do mundo. O próximo
capítulo vai ser dedicado a explicar essa corrente e seu impacto no Rio Grande do Sul, assim
como mostrar como essa orientação foi decisiva para moldar a imagem criada posteriormente
sobre esse grupo e enfraquecer o teor político-partidário do CGPA.
180
No capítulo anterior, procurou-se apresentar a ação social dos artistas gaúchos ligados
ao Partido Comunista do Brasil durante os anos 1950. Essa ação, no entanto, não se dava
apenas a partir de concepções artísticas pessoais, mas carregava as marcas de uma orientação
teórica específica. Para se compreender melhor a produção realizada pelo grupo de artistas
estudado, é necessário investigar essas premissas e seus desdobramentos. A ideia mais
generalizada é que os artistas daquele período atuavam sob a orientação do realismo
socialista, que seria a linha adotada pelos intelectuais que estavam sob a influência da União
Soviética.
No período, entretanto, destacava-se um desdobramento dessa tendência, o
zhdanovismo, que se caracterizara por um enrijecimento das premissas do realismo socialista
por meio da orientação do PCUS. Mas, ao se analisarem as obras publicadas na Horizonte,
fica claro que esses artistas não atuavam apenas sob o cânone soviético, mas seguiam outras
influências que poderiam ter mais sentido para seu projeto político e cultural, que era produzir
uma arte com penetração popular. Por isso, neste capítulo também será vista uma outra
influência importante para esses sujeitos: a gravura revolucionária chinesa.
Além das influências, também é necessário abordar os possíveis diálogos que esses
artistas estabeleceram em um contexto em que a cultura popular e regional não era tratada
apenas pelos intelectuais de esquerda. Com efeito, a partir do final dos anos 1940, estruturou-
se com força no estado do Rio Grande do Sul o movimento tradicionalista, responsável pela
fundação de CTGs e pela difusão de uma cultura criada a partir de referências da vida no
campo. Mesmo que não se possam considerar esses artistas como “tradicionalistas”, sua
promoção de uma cultura popular e proletária os aproximava, em termos temáticos, dos
tradicionalistas, e a possibilidade de um diálogo deve ser levada em conta.
Por último, será analisado o balanço da produção desses artistas vinte anos depois,
quando o governo do estado promoveu seu reencontro e dedicou-lhes uma exposição de
destaque. A reação de parte do campo artístico, especialmente de jovens artistas
contemporâneos, foi de contestação e crítica, denunciando a produção desse grupo como
figurativa, comercial e conservadora. No final do capítulo, será realizada uma análise deste
balanço e das críticas ao grupo, contextualizando-se a forma como elas emergiram nos anos
1970, dando-se especial destaque ao modo como o tempo e o contexto distorceram a
importância que a produção desses gravuristas teve nos anos 1950.
181
3.1 INFLUÊNCIAS
Paul Wood (1998) observa que o realismo socialista não é simplesmente uma “efígie
sem vida” como dizem alguns teóricos ocidentais, como também não era arte experimental.
Os seus limites eram definidos pela visão de responsabilidade social. A corrente do realismo
socialista oficializada pelo PCUS se sobrepôs à multiplicidade de possibilidades para a arte
revolucionária discutida em debates entre intelectuais e artistas. A burocracia partidária
elegeu uma doutrina rígida que encontrou opositores dentro do próprio partido e na esquerda
de modo geral.
Nesse estudo, adota-se a diferenciação entre realismo socialista e zhdanovismo
defendida por autores como Stefan Morawski (1977), Vitorio Strada (1987) e Dênis de
Moraes (1994). Saber distinguir essas duas tendências é fundamental a fim de compreender a
produção realista socialista e as peculiaridades do zhdanovismo e melhor avaliar os juízos
posteriores acerca delas.
O filósofo e professor de estética polonês Stefan Morawski (1977) observa que as
teorias da arte se conectam ao tempo das seguintes maneiras:
os acontecimentos precedem a teoria, ela não propõe inovações, sua função é
explicar;
a teoria e a prática artística se dão concomitantemente, a proposta teórica
direciona, consolida e dá significado às obras e distingue-as das precedentes;
a teoria surge antes do fenômeno artístico, ela é normativa e indica o que deve
ser feito, é dogmática e, geralmente, fornece falsos critérios para a apreciação
das artes.
Existiriam dois tipos de teorias diferentes em se tratando da arte soviética. O realismo
socialista faria parte do segundo tipo apontado por Morawski, pois foi a formulação teórica
que preponderou entre os comunistas que seguiam as diretrizes do Partido Comunista da
União Soviética até o início da década de 1930. Essa corrente surgiu a partir de um processo
histórico de engajamento de intelectuais com as causas sociais durante o período de crise do
czarismo e teria se desenvolvido durante a Revolução Russa de 1917, expandindo-se na
primeira década de existência da União Soviética. Não foi plenamente planejado, mas foi se
desenvolvendo à medida que as condições de engajamento dos intelectuais em um processo
de mudança social também se modificavam. Essa corrente passou a ser denominada de
182
zhdanovismo entre as décadas de 1930 a 1950, encaixando-se no terceiro tipo apontado por
Morawski. Ela foi oficializada por Andrei Zhdanov, o primeiro-secretário do Comitê Central
do partido, durante o I Congresso dos Escritores em 1934, e chegou ao Brasil nos anos 1940,
adotada nominalmente pelos artistas e pelos intelectuais que colaboravam com veículos de
imprensa de esquerda, como é o caso da revista Horizonte de Porto Alegre. Basicamente, os
princípios defendidos incluíam:
Lênin pensava que a intervenção do partido no campo das artes seria importante a fim
de haver a prevalência do partiinost, ou seja, o espírito de partido. Entretanto, seus escritos
possibilitavam interpretações ambíguas, porque tanto poderiam ser utilizados na defesa da
liberdade artística quanto do controle sobre os artistas e intelectuais (MORAES, 1994).
Vittorio Strada (1987a) aponta que a visão vulgar acerca do pensamento leninista levou ao
autoritarismo partidário, mas Lênin não restringia a liberdade da arte, mesmo havendo ligação
aos propósitos do partido.
Stefan Morawski (1977) afirma que o realismo socialista, no seu processo de
desenvolvimento, resgatou teorias e práxis passadas e originou uma nova arte,
correspondendo às necessidades da vida pós-revolução. O estudioso adverte que essa corrente
teórica não surgiu em 1934, junto com o zhdanovismo, mas que trabalhos foram feitos bem
antes disso, como A Mãe (1907), de Máximo Gorki, e que suas premissas nasceram de obras
como essa.
A Revolução Russa de 1917 foi um momento fundamental para a estruturação daquilo
que ficou conhecido como realismo socialista. A tomada do poder pelos bolcheviques alterou
profundamente a sociedade e os modos de relação entre as pessoas, o que exigiu novas
formulações filosóficas. O termo realismo remete à tradição, e socialista remete ao
engajamento dos artistas nos primeiros anos após a Revolução, destacando-se Gorki,
Maiakóvski, Eisenstein, entre outros.
enrijecimento ao longo dos anos 1920. Segundo Morawski (1977), não se deve pensar que
Zhdanov propôs essa tendência espontaneamente apenas em 1934, mas sim a fez alicerçadas
em bases que já existiam. No início da década de 1920, surgiu a Associação dos Artistas da
Revolução (AKR ou AKRR), que dominou o cenário e direcionou a arte soviética para o
realismo socialista. A Associação não chegou a formular uma teoria estética, somente
divulgou uma declaração durante sua primeira exposição, em 1922, denominada de Pinturas
de Artistas de Tendência Realista em Auxílio dos Famintos. No texto, os artistas se
comprometiam a representar o realismo heroico, próprio da Revolução, e descartar o abstrato
(WOOD, 1998). Alguns integrantes da AKRR foram Abram Arkhipov, Ilia Mashkov e Boris
Kustodiev.
A partir da morte de Lênin, em 1924, e da ascensão de Stalin como principal liderança
soviética, os debates sobre política cultural se caracterizaram pela dominação das linhas mais
duras. Sobre a política do partido no campo literário (1925) trata da submissão das artes às
diretrizes do partido. A “representação verídica da sociedade” (ARBEX, 2012, p. 96) deveria
ser a meta da literatura na visão da Associação Russa dos Escritores Proletários (RAPP),
criada na época.
A institucionalização do realismo socialista deu seus primeiros sinais em 1929, quando
Aleksandr Fadeiev publicou Abaixo Schiller! na Literaturnaia gazeta. Em 1932, ocorreram
fechamentos de instituições desligadas do partido sob o argumento de que gerariam conflitos
entre os militantes socialistas, e criou-se a União dos Escritores Soviéticos da URSS. No texto
do editorial da Literaturnaia gazeta de 29 de maio de 1932, intitulado Ao trabalho!, cunhou-
se o termo realismo socialista: “As massas exigem do artista a sinceridade e a veracidade do
realismo socialista, revolucionário na figuração da revolução proletária” (STRADA, 1987b, p.
190). Dois anos depois, ocorreu o I Congresso dos Escritores, no qual o realismo socialista se
consagrou como a estética oficial da União Soviética (STRADA, 1987b).
Gorki e Zhdanov, em 1934, reuniram as concepções sobre a arte dos soviéticos e
elaboraram generalizações que culminaram na formulação de diretrizes básicas para o
realismo socialista existente até aquele momento. Dos discursos proferidos por eles, pode-se
retirar as seguintes formulações, expostas por Morawski (1977): o realismo extrai a essência e
transforma-a em imagem; ao se incorporar à imagem o que se deseja ver realizado, tem-se o
tipo de romantismo que pode ser útil à causa revolucionária; o trabalho deve ser o tema
principal do escritor. A realidade deveria ser representada em seu processo de evolução, para
isso, admitir-se-ia o uso de todas as formas e métodos artísticos. A verdade artística seria
pessoal e é alcançada pela síntese de dados reais:
185
Figura 71 – Isaak Brodsky. Discurso de Lênin perante o Exército Vermelho, enviado ao front polonês em 5 de
maio de 1920, 1933
Fonte: <http://soviet-art.ru/socialist-realism-artist-isaak-brodsky/>.
Figura 72 – Vera Mukhina. O Operário e a Kolkhoziana/O Trabalhador e a Mulher da Fazenda Coletiva, 1937
Aço inoxidável, 25 m. Moscou
Fonte: <http://www.flogao.com.br/soviet/66463559>.
Figura 73 – Tatyana Yeryomina. As garotas dirigem o trator corajosamente e dão aos soldados um seguro
mandato: combatam brava e habilmente os fascistas, e nós faremos o trabalho por vocês, 1941
Fonte: <http://soviet-art.ru/soviet-artist-tatyana-yeryomina-1912-1995/the-girls-boldly-drive-tractor-and-give-
soldiers-secure-mandate-beat-fascists-bravely-and-skillfully-and-well-do-the-work-for-you-1941/>.
189
discussão. Uma das ideias vigorantes foi a de que o realismo não seria a reprodução da
realidade – isso seria próprio do naturalismo –, mas sim a representação da realidade
percebida através de uma nova visão que proporcionaria a revelação da complexidade da
estrutura social que condiciona a existência de cada um (POSADA, 1970). Já o realismo
socialista em seu desenvolvimento posterior à institucionalização está vinculado a um projeto
de sociedade moldado pela vontade de líderes partidários, sem espaço para alternativas de
construção social. O objetivo do zhdanovismo era efeitos políticos rápidos, por isso, as obras
deveriam ser otimistas e deixar de lado sentimentos “negativos”, tais como o desamparo e a
tristeza.
Para uma compreensão mais ampla das ideias e das práticas dos artistas ligados ao
projeto comunista, é necessário ir além da simples identificação da constituição das correntes
artísticas na União Soviética; deve-se avançar nas noções e nas concepções marxistas sobre a
arte. Mesmo que os jovens artistas ligados ao PCB não tivessem, em sua maior parte, uma
profunda formação teórica marxista, conhecer esses conceitos é importante, pois se
constituíam em uma constelação de referências a partir do qual esses sujeitos se orientavam.
Leandro Konder (2013) reforça o predomínio, entre os marxistas, da concepção de arte
como “reflexo” da realidade e como forma de conhecimento particular de apreensão do real.
Ele explica a influência de Hegel sobre as teorias marxistas, destacando o modo com que esse
autor trata a mimesis de Aristóteles: “em sua forma vulgarizada, semelhante teoria [mimesis]
tem servido de escora a um naturalismo que empobrece a arte [...] a arte de se situar acima da
natureza, pois o espiritual é superior ao natural” (KONDER, 2013, p. 33).
A ideia da arte como reflexo da realidade está incluída no pensamento do materialismo
dialético. Porém, admite-se que o campo artístico tem várias peculiaridades se comparado
com outras áreas, por exemplo, a economia. György Lukács explica que essa concepção não é
inédita nem exclusiva dos marxistas:
Lukács afirma que o critério qualitativo de avaliação de uma obra deve ser seu esforço
em representar a realidade. Os marxistas mais conscientes devem se sentir herdeiros da arte
191
Engels postula um dos traços básicos do realismo socialista, o tipo, e também seu tema
preferencial, a classe trabalhadora. Alguns equívocos foram realizados pelos artistas que
adotaram essa teoria ou pelo partido que os orientava quando o tipo se transformou em uma
massa de personagens uniformes, sem dissonâncias. A definição de tipo é dada por Lukács:
O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele convergem, em sua unidade
contraditória, todos os traços salientes daquela unidade dinâmica na qual a
autêntica literatura reflete a vida; nele, todas as contradições – as mais
importantes contradições sociais, morais e psicológicas de uma época – se
articulam em uma unidade viva. A representação da média, ao contrário, faz
com que tais contradições que sempre são o reflexo dos grandes problemas
de uma época, apareçam necessariamente diluídas e enfraquecidas no estado
de espírito e nas experiências de um homem medíocre, com o que são
sacrificados os seus traços essenciais (LUKÁCS, 2010, p. 27).
192
O tipo seria, portanto, uma solução de síntese entre a essência e o fenômeno formulada
pela arte, capaz de refletir a realidade. A atividade criadora para alcançar os objetivos da arte
realista – o reflexo da realidade, a busca da essência no fenômeno – não poderia ser
subestimada, e a imaginação e a fantasia deveriam ser livres. Lukács adverte que essa
captação do real é um processo, não um ato, pois a totalidade não é plenamente apreendida
em uma ação determinada.
O realismo supõe a transmutação da realidade através de uma estrutura formal
organizada de acordo com o tema. Seus traços básicos são, segundo Stefan Morawski (1977):
a concepção se baseia em uma orientação filosófica com ramificações ideológicas; interesse
pelos recursos fundamentais e constantes da cultura, ou seja, o “essencial”; a vida social é
considerada em uma interpretação histórica concreta e social relativa. Supõe-se que surjam
novos modos consciência e novas circunstâncias que afetam o real.
O realismo não se confunde com o idealismo e o naturalismo. O naturalismo parte de
dados empíricos e da percepção imediata do fenômeno, observado, assim, superficialmente,
apenas toca a história social. O ser humano é entendido como uma entidade imutável, cujo
destino é determinado por suas condições biológicas e ambientais. O idealismo adota o
procedimento da idealização em detrimento com dados concretos, fundamenta-se em ideias
abstratas acerca dos seres humanos e das relações que estabelecem (MORAWSKI, 1977).
O pensamento de Karl Marx e Engels tem como elementar a questão de que o
processo histórico é unitário. As verdades absolutas e relativas se fundem em unidade. Dentro
desse processo, encontram-se também a cultura e as artes. Assim, a história da arte, sob o
ponto de vista marxista, pode ser construída segundo o materialismo histórico, cujo princípio
diretor é econômico (LUKÁCS, 2010). Porém, não há fixidez; em todas as áreas, o ser
humano goza de autonomia relativa, inclusive na criação artística. Isso explica a desigualdade
entre as obras e a sociedade que a produz:
Os objetos artísticos, segundo a explicação de Marx, não fogem à lógica seguida por
outros produtos. Há de se despertar a percepção de valor, de necessidade, para se chegar ao
consumo e à apreciação. Os seres humanos são capazes de humanizar e socializar um objeto,
de acordo com as peculiaridades de sua força essencial, que não se limita apenas ao raciona,
ao pensamento, mas sim engloba todos os sentidos.
nova sociedade gera novos modos de pensar e de sentir, novas consciências que necessitam
ser incentivadas de novas maneiras.
A arte exerceria seu papel na transformação social na medida em que compreendesse
sua inserção nos modos de produção de sua época e apresentasse aos espectadores as
condições históricas em que viviam. Essas ideias são encontradas nos escritos de Walter
Benjamin e no teatro épico de Bertolt Brecht. Para Benjamin (2012), a arte tem uma função
política, e o autor deve se envolver de forma operante nos processos sociais. O teatro de
Brecht enfatiza o papel didático da obra que chama o público a refletir e conscientizar-se de
sua situação a fim de possa tomar atitudes em relação a ela. No centro, está o ser humano, em
seu tempo e seu espaço (BENJAMIN, 2012).
Em 1934, Benjamin (2012) pronunciou a conferência O autor como produtor, no
Instituto para o Estudo do Fascismo, acerca de como o escritor/autor poderia contribuir para
mudanças na sociedade. Ele alerta que o escritor não deve abrir mão de sua autonomia em
prol de uma “tendência correta” e que para que seu trabalho tenha efeitos políticos deve
prezar por sua qualidade. Os contextos sociais não são estanques, portanto, o objeto deve ser
considerado em meio a condições sociais dinâmicas, mas condicionadas pelas relações de
produção. A pergunta a ser feita, para Benjamin, é como a obra se situa dentro das relações de
produção de sua época. A consciência de onde e como se insere no sistema produtivo
possibilita ao autor, entendido como produtor, participar ativamente dos processos, deixando
de ser um agente passivo. Ele se torna “operativo”.
Benjamin destaca o procedimento de fusão de diversas linguagens e da montagem de
fragmentos encontrados no teatro épico de Brecht como exemplares de modos de
transformação do processo produtivo pelo autor. Aliás, a ideia de montagem está presente no
pensamento do intelectual alemão também quando trata da concepção da História, pois ela
seria formada por fragmentos que, unidos, poderiam alterar o contexto linear convencionado.
Outro aspecto fundamental do seu trabalho intelectual também aparece nesse texto, o
tratamento dialético.
O autor produtor, progressista e operativo, conforme Walter Benjamin (2012), visa aos
meios de produção e estimula os espectadores a serem colaboradores, incitando-os a tomarem
posições. Ele não se limita a omitir opiniões. Dessa perspectiva, olhando para os artistas do
Clube de Gravura criticamente e partindo da hipótese que eles seriam servis ao realismo
socialista, pode-se pensar que eles seguiam uma tendência considerada correta,
comprometendo a natureza e a qualidade do trabalho artístico. Por outro lado, eles
participavam e promoviam ações em prol das causas em que acreditavam, por exemplo, os
195
O autor pertence a uma classe e precisa estar ciente disso a fim de “trair” seu modo de
operação e promover a transformação de seu aparelho em prol da “revolução proletária”.
Segundo as ideias marxistas, o artista deve se afastar da alienação, da arte pela arte e
estar ciente das relações que estabelece no seu meio. Nos textos da revista Horizonte,
percebe-se essa linha de pensamento. Conforme os colaboradores da publicação, a
preocupação com as pessoas e seus problemas se relacionava a uma continuidade do
humanismo originado no Renascimento. O formalismo das tendências modernistas era
considerado danoso, pois tratar-se-ia da fetichização da arte e do afastamento do mundo. O
público não poderia se identificar com trabalhos abstratos e eles em nada auxiliariam em seu
desenvolvimento pessoal e na conscientização política, pelo contrário. Desse modo, a
figuração seria o meio mais adequado.
Apesar dos julgamentos negativos formulados posteriormente, o modernismo e as
chamadas vanguardas históricas ambicionavam mudanças sociais por meio de novas formas
artísticas; entretanto, esse desejo foi frustrado. Em Da Vanguarda ao Pós-Moderno, Eduardo
Subirats defende que “a utopia social e cultural das vanguardas, de signo revolucionário e
emancipador, carregava implícitos os momentos de sua integração a um processo regressivo
de colonização tecnológica da vida, e racionalização coercitiva da sociedade e da cultura”
(SUBIRATS, 1987, p.2). A constatação do fracasso da utopia da modernidade se fez presente
ainda na primeira metade do século XX – a crença no progresso tecnológico contínuo e nos
benefícios da racionalização se mostrou falha perante os males causados pelos grandes
conflitos mundiais e pela ascensão de regimes totalitários.
196
Figura 76 – André Fougeron. Retour du marché, 1953. Óleo sobre tela, 19, 46 X 12,97 cm. Tate Gallery, Reino
Unido Fonte: <http://www.tate.org.uk/art/artworks/fougeron-return-from-the-market-t07705>.
197
Figura 77 – Renato Guttuso. Campieri, 1949. Aquarela, 52,1 x 68,9 cm. Tate Gallery, Reino Unido
Fonte: <http://www.tate.org.uk/art/artworks/guttuso-campieri-n05948>.
Figura 78 – Página do jornal A Classe Operária, Rio de Janeiro, ano II, n. 73, p. 4, 17 mai. 1947, p. 4. A matéria
trata da cassação do registro do PCB pelo Supremo Tribunal Eleitoral em 7 de maio de 1947.
Aqui estamos, em nossa nova fase e, à boa maneira gaúcha, digamos logo
quem somos e o que queremos.
<HORIZONTE> é uma revista de intelectuais de vanguarda. Nossa arte,
portanto, estará a serviço do que, na sociedade humana e em nossa terra,
represente o que há de novo, de progressista, que consulte às mais nobres
aspirações da Humanidade e do nosso povo.
Uma linha, nítida e tensa, divide o mundo de hoje em dois campos. De um
lado, os partidários da Paz, da cultura, de um mundo novo, com o qual
sonharam os grandes pensadores do passado e que já se ergue, a nossos
olhos, na gloriosa União Soviética, na Nova China e nas Democracias
Populares. Em tôrno dêste campo, se reúne o que há de melhor na
Humanidade.
[...]
Queremos que nossa arte seja mais uma arma, e poderosa, da Revolução
Brasileira e nos ajude a construir o grande Brasil democrático-popular, que
já antevemos.
Nossa revista estará aberta a todos aqueles que, com sua arte, quiserem
defender a paz e a independência nacional, a todos os que crêm em nosso
povo e se colocam a serviço de suas melhores aspirações (Horizonte, n. 4,
ano I, 20 dez. 1950, p.1).
Figura 79 – Gravura de Carlos Scliar para a capa da Horizonte, n. 4, ano I, 20 dez. 1950, p.1
pelo realismo socialista. Se levar-se em consideração a exposição sobre realismo dos teóricos
marxistas exposta anteriormente, a escolha do episódio retratado por Vasco poderia ser
encarada como denúncia e crítica, o que caberia para uma obra realista. Vasco estava, naquele
momento, envolvido na onda do zhdanovismo, portanto, o sofrimento humano não deveria ser
o tema escolhido.
[...] eu posso constatar como artista que procura fazer de sua arte um
instrumento de luta contra a opressão, que vê na arte um meio de esclarecer a
consciência dos homens no caminho do progresso e do bem estar social,
posso constatar, repito, que aquele realismo que procurei imprimir ao
Negrinho não corresponde às necessidades sociais dos dias que
atravessamos, não representa a realidade completa desses dias de luta de um
mundo em marcha para o socialismo (PRADO, 1951b, p. 85).
Figura 80 – Cópia da escultura de Vasco Prado do Negrinho do Pastoreio, 1943, em São Francisco de Paula, RS
Fonte: [registro fotográfico da autora]
202
utópico, ela não poderia ser indicada na forma positiva de um projeto como ocorreu, de um
dever-ser. A utopia seria uma transgressão, uma crítica da ideologia dominante, mas sem
suplantá-la por outra, pois trata de alternativas do real que não seriam predeterminadas.
Alguns trabalhos dos gravuristas visavam à divulgação das atividades e dos líderes do
Partido Comunista. Porém, a maior parte da produção revela a busca por representar situações
locais. Encontra-se cenas de trabalho no campo e na cidade, a notação de costumes, de
artefatos e trajes típicos. Geralmente, as pessoas mais humildes são as retratadas. O realismo
das obras é marcado por referências ao expressionismo, como a grande parte da arte engajada
daquele período, segundo Aracy Amaral (2003), afastando-se do caráter positivo e objetivo
que pregavam as diretrizes de Zhdanov. Apresentar o real, modificado pela visão do artista,
pretendia a aproximação do espectador e a promoção de seu apreço pelas artes e de sua
conscientização política.
O trabalho artístico pode ter efeitos políticos se for capaz de produzir dissensos,
provocar conflitos nos regimes de sensorialidade por meio de novas formas de experiência
estética capazes de alterar referenciais. Ou seja, a obra não deve direcionar, mas pôr em crise
os modos passivos e convencionais de percepção. Rancière (2012, p. 63) indica que a arte
205
Smedley, residente na China, intermediou a relação de Lu Xun com Käthe Kollwitz. Ela era
amiga da artista alemã, que lhe enviava obras, como a série Revolta dos Tecelões, as quais
eram repassadas ao escritor chinês, que promoveu mostras de trabalhos e de fac-símiles de
Kollwitz. Com as exibições e os cursos promovidos por Lu Xun, os chineses conheceram a
produção europeia, e parte da xilogravura moderna da China passou a empregar seu estilo
compositivo e suas formas (SIMONE, 2004). A cultura visual socialista buscava as formas
nacionais em vez das importadas. A concessão a Kollwitz e a outros artistas da Europa se deu
pelo cunho social de seus trabalhos e pelo uso da gravura em madeira.
A xilogravura moderna foi promovida por Lu Xun porque ele alegava que a inspiração
deveria vir das raízes tradicionais, nas formas populares e nas estampas dos camponeses. O
escritor expôs seus argumentos no texto Sobre o uso das velhas formas, publicado em 1934
(LAGO, 2011). O moderno se construiria a partir do antigo. Lu Xun tinha contatos no Japão e
vários de seus seguidores viajaram àquele país para acompanhar o movimento de renovação
da gravura japonesa e para conhecer mestres da técnica como Yamamoto Kanae. Em 1931,
Lu Xu promoveu um seminário sobre xilogravura ministrado por Uchiyama Kanzo, em
Xangai. A técnica ensinada pelo japonês derivava dos alemães Kollwitz e Max Klinger. Essa
tendência de gravação inspirada nos europeus se chamou de “xilogravura moderna” ou
chuangzuo banhua / sosaku hanga (LAGO, 2011, p. 227).
Depois de 1949, o Estado socialista empenhou-se em desenvolver uma arte própria
capaz de impulsionar a transformação cultural e propiciar a aceitação e a legitimação das
novas políticas. A cultura visual socialista era um componente crítico e propunha-se a ser uma
cultura de massa alternativa à produção artística dominante no Ocidente (TANG, 2015).
Em primeiro de outubro de 1949, Mao Zedong (Mao Tsé-Tung) fundou a República
Popular da China. Meses antes, em julho de 1949, ocorreu o Congresso dos Trabalhadores da
Literatura e da Arte de Toda a China, em Pequim, que reuniu mais de 800 delegados de várias
regiões e tradições e estipulou a organização nacional dos trabalhadores da cultura e a criação
da “literatura e arte do povo da Nova China”. Concomitantemente, realizou-se a primeira
exposição de artes da Nova China, com cerca de 550 obras, destacando-se as xilogravuras da
cidade de Yan’an.
Jiang Feng (1910-1982), um dos principais gravadores e instrutores da Academia Lu
Xun de Yan’an, declarou, no Congresso, que a arte deveria estar a serviço dos trabalhadores,
dos camponeses e dos soldados. A revolução veio do campo para a cidade, assim, a arte
também deveria se ocupar das demandas dos trabalhadores industriais. Para Jiang Feng, o
primeiro passo para a criação da nova arte era a autotransformação de artistas, artesãos e
207
Figura 82 – Li Hua. China ruge!, 1935. Xilogravura, 20 x 15 cm. National Art Museum of China (NAMOC)
Fonte: <http://www.namoc.org/en/collections/201306/t20130619_254018.htm>
Outro nome importante da moderna gravura foi o professor e editor de arte Huang Yan
(1920-1989), proveniente do condado de Xing Ning. Suas atividades iniciais envolveram a
propaganda da guerra antijaponesa. Finalizado o conflito, morou em Taiwan e, em seguida,
em Hong Kong, onde se juntou ao ateliê de pintura Renjian, em 1948. A xilogravura Uma
Pessoa Cai, Milhares de Pessoas Se Levantam (1948), inicialmente intitulada A Chama da
Democracia, é uma homenagem aos mártires que lutaram pela democracia, especialmente,
Wen Yidou (Fig. 83). No plano de fundo, recorda-se o Incidente de 28 de Fevereiro de 1947,
208
no qual um conflito contra o governo chinês liderado pelo Kuomintang (Partido Nacionalista
da China) foi violentamente reprimido e milhares de civis taiwaneses, mortos. É notável a
riqueza de detalhes, os efeitos de luz e sombra e a complexa composição dessa gravura.
Figura 83 – Huang Yan. Uma Pessoa Cai, Milhares de Pessoas Se Levantam, 1948. Xilogravura
Fonte: <http://www.namoc.org/en/collections/201306/t20130619_253906.htm>
Figura 86 – Liu Xian. Máximo Górki, 1949. Xilogravura, 32,1 x 25,1 cm. NAMOC
Fonte: <http://www.namoc.org/en/collections/201405/t20140516_277264.htm>.
210
O projeto de reconfiguração das artes era pautado pela modernização das práticas
tradicionais e pela ideia de arte como experiência pública. Na fase inicial, entre os anos de
1949 a 1952, surgiram associações artísticas e publicações culturais por todo o país, as escolas
foram remodeladas, exposições foram montadas e vários artistas ingressaram no
funcionalismo público.
Já em 1950, a gravura entrou em crise, perdendo a competição para as reformuladas
nianhua, pôsteres e pinturas a óleo. O gravador Li Qun (1912–2012), da primeira geração da
xilogravura moderna chinesa, avaliou que as referências europeias e a falta de características
211
locais afastaram o público. Li Qun observou que, apesar da busca por incorporar elementos
nativos, a preocupação excessiva com aspectos formais e o viés naturalista das gravuras
levaram a trabalhos afastados da realidade e da classe trabalhadora e falharam ao optar pelos
modelos europeus. Lembrando que Käthe Kollwitz foi uma referência importante para a
geração de Li Qun. A ausência da representação do operário urbano também explicaria o
desinteresse nas xilogravuras. Para mudar esse quadro, o artista orientou seus colegas a
estudar as teorias marxistas a fim de compreender melhor o realismo crítico, conhecer
profundamente a vida do povo e procurar se basear nas artes folclóricas.
As publicações comunistas do Brasil divulgaram e comemoraram a Revolução
Chinesa. A edição da Fundamentos de fevereiro de 1950 dedicou várias páginas à Nova China
e a exaltou com o maior acontecimento na época da crise do capitalismo, uma vitória na
direção da libertação dos povos (Fig. 88). A luta e o combate do Exército Popular de
Libertação contra as tropas do Kuomintang, patrocinadas pelos Estados Unidos, eram motivos
de júbilo. A história de resistência chinesa deveria ser um exemplo. Durante o século XIX, o
país atravessou períodos de exploração de ingleses, norte-americanos, franceses, japoneses,
alemães e russos. A classe feudal estava aliada aos interesses estrangeiros. Em 1911, estourou
a revolução popular, liderada por Sun Yat-Sen, que derrubou a dinastia manchu. Em 4 de
maio de 1919, tem-se o importante levante nacionalista e, em 1921, a fundação do Partido
Comunista Chinês. Após episódios da traição da burguesia, que ascendeu ao poder, de Chiang
Kai-Shek, das baixas numerosas nos movimentos de resistência, finalmente, as forças
revolucionárias se consolidaram, tendo à frente Mao Tsé-Tung. A Revolução possuía três
princípios: acabar com os resquícios do feudalismo, livrar a China das intervenções
estrangeiras e estabelecer a democracia. Devido a todos os anos de luta contra o imperialismo
e contra a elite feudal e burguesa, a Nova China se tornou o modelo e representaria um
avanço democrático em direção à paz e à liberdade dos povos (A REVOLUÇÃO..., 1950).
Os gravuristas chineses desempenharam um papel fundamental para consolidar os
valores revolucionários junto à população. A xilogravura, sobretudo, serviu como um canal de
comunicação com a classe trabalhadora, a maioria era analfabeta. Um dos primeiros nomes
reconhecidos da moderna gravura em madeira foi Jou Shi, que muito se inspirou na obra de
Käthe Kollwitz. O artista foi preso e fuzilado por integrante do Kuomintang. Posterirormente,
Lu Xun organizou uma exposição dos trabalhos de Jou Shi em Xangai (A ARTE..., 1950).
Temerosa da influência sobre o povo, a polícia, entre 1932 e 1937, declarou a moderna
gravura inimiga da ordem. Em homenagem aos artistas da Nova China, a Fundamentos
212
ilustrou suas páginas com os trabalhos deles, “que constituíram eficiente arma de combate
contra o imperialismo, a opressão e a miséria” (A REVOLUÇÃO..., 1950, p. 19).
Na capa da Fundamentos, percebem-se as formas orientais para elaborar a cena do
grupo de pessoas que parece estudar e conversar. As linhas são limpas, não existe um plano
de fundo nem a marcação do chão. Já em Trabalhadores, percebe-se um tratamento realista, a
construção de texturas através dos entalhes na madeira, aspectos compositivos,
provavelmente, apreendidos das referências europeias (Fig. 89).
Figura 88 – Capa da Fundamentos – Revista de Cultura Moderna, ano II, n.12, fev. 1950
A revista Horizonte estampou gravuras chinesas em quatro capas dos trinta e dois
exemplares (Fig. 90, 91, 92 e 93) e publicou alguns textos de Mao Tsé-Tung – A Propósito de
Literatura (1951); Sobre A Contradição (1952), ensaio de 1937 sobre a dialética materialista;
o poema A Neve (1953), sobre a Grande Marcha47; e Perspectivas da Cultura Nacional
Chinesa (1954). O primeiro artigo é o resumo do discurso inaugural dos debates do fórum de
Yan’an, proferido em 1942, quando Mao era presidente do Partido Comunista da China. Ele
explica que há várias frentes de combate pela libertação nacional, entre elas, a frente cultural.
O escritor deveria se preocupar em produzir para a maioria da população, que era proletária, e
não cair no engano de pôr a classe média em primeiro lugar (muito menos as classes burguesa
e feudal), deixando de lado os operários, os camponeses e os soldados. O primeiro passo do
método para chegar à arte revolucionária seria aprender com o público o que o interessa; o
segundo, definir a matéria-prima a ser empregada, que poderia ser a tradição literária aplicada
de modo crítico. Para o líder chinês, “A função do escritor ou do artista é a de pôr a
experiência de cada dia numa forma organizada e sistemática, de dar relevo aos pontos
essenciais, de caracterizar os tipos, a fim de que o todo se transforme numa peça de arte ou de
literatura” (TSÉ-TUNG, 1951, p.62). As palavras de Mao se remetem às teorias marxianas e
marxistas sobre o tipo e sobre a busca da essência da realidade, que não se limita à aparência e
é capaz de suscitar a reflexão sobre a realidade.
Perspectivas da Cultura Nacional Chinesa integra um trabalho maior intitulado A
Nova Democracia na China, publicado na revista Cultura Chinesa de 1941. É um estudo de
Mao que procura adaptar os princípios de marxismo-leninismo aos países coloniais e
semicoloniais (1954, p. 60). O dirigente chinês declara que a cultura da Nova China participa
da cultura socialista mundial pelo seu caráter anti-imperialista e antifeudal, é a cultura da
Nova Democracia, ainda não é plenamente socialista. Ainda haveria traços da velha política e
da velha economia, a história da China deveria ser respeitada, mas olhando-se para frente,
para o desenvolvimento de uma cultura revolucionária liderada pelo comunismo e voltada
para o proletariado. Novamente, aparece a concepção de que a arte é capaz de mostrar
possibilidades de futuro a partir da realidade. A sociedade transformada pode ser antevista nas
imagens realistas.
A moderna gravura chinesa se tornou modelo de comprometimento social e político.
As concepções do protagonismo da arte na revolução e da busca de elementos tradicionais
47
A Grande Marcha se trata do percurso de 10 mil quilômetros, que atravessou onze províncias até o Norte da
China, de cerca de 100 mil combatentes do Exército Vermelho em apoio a Mao Tsé-Tung contra o governo de
Chiang Kai-shek. Iniciou-se em 27 de outubro de 1934. KOKOTOWSKI, Christa. Disponível em:
<http:/dw.com/p/45ZG>. Acesso em: 3 jan. 2017.
214
eram inspiradoras para os artistas militantes. O realismo socialista no Brasil estava embasado
teoricamente na doutrina soviética e na arte revolucionária da China comunista.
Esteticamente, as referências principais eram os mexicanos, os alemães (sobretudo, Käthe
Kollwitz) e os chineses.
Figura 93 – Anônimo. Ajudando o guerrilheiro, [de 1940 a 1952]. Capa da Horizonte, n. 10, ano II, dez. 1952
Fonte: Coleção do NPH – IFCH/UFRGS
3.2 DIÁLOGOS
refletisse a realidade campesina sul-rio-grandense foi tomada como um elogio aos temas
folclóricos. Neste ponto do trabalho, procura-se investigar, brevemente, a história do
tradicionalismo, aspectos do regionalismo e suas motivações, na tentativa de esclarecer as
relações possíveis entre esses fenômenos e o CGPA.
Não é difícil encontrar textos de artistas e intelectuais dos anos 1940 e 1950 que
protestam contra a invasão estrangeira no país. A americanização da cultura dos países latino-
americanos, deliberada pelo governo dos Estados Unidos e fruto da Política da Boa
Vizinhança, ajuda a entender o porquê dessas manifestações. No caso dos tradicionalistas,
pode-se pensar que se trata da repulsa a novidades e do culto às tradições. Quanto aos
comunistas, a postura anti-imperialista e a favor da independência e da liberdade nacionais
que adotavam parece ser a melhor explicação. Em todo caso, a defesa da arte nacional e o
regionalismo voltam à pauta dos debates. Espera-se que as informações apresentadas a seguir
indiquem um caminho para elucidar essas questões.
Os Estados Unidos, desde o lançamento da Doutrina do Presidente Monroe, de 1823,
pregam o discurso da segurança da América e colocam-se na posição de garanti-la, já que se
dizem defensores da liberdade e da democracia. A principal ameaça, no século XIX, seria a
recolonização dos países recém-independentes. Sob essa alegação, os norte-americanos
poderiam afastar os rivais europeus e transformar o continente em uma zona de influência
quase exclusiva em que poderiam expandir suas atividades econômicas e intervir na política e
na cultura. As agressões cometidas contra as nações latino-americanas ao longo da história
foram justificadas não como constituintes de um programa expansionista, mas sim como
etapas de uma missão civilizatória baseada em valores “democráticos, liberais e
humanitários” (SANTOS, 2007, p. 24).
O capital norte-americano adquiria cada vez mais importância na América do Sul e
fazia-se necessário mudar parâmetros da relação com a região, também em função da crise de
1929 e da ascensão dos regimes totalitários. Na década de 1930, o presidente Franklin
Roosevelt estabeleceu o programa da Política da Boa Vizinhança, cujas bases eram o aparente
respeito à soberania dos países latino-americanos, acordos de cooperação mútua e facilidades
nas trocas comerciais. A intervenção dos Estados Unidos não era totalmente aceita, e a
indicação de que não haveria mais intromissão nas políticas internas foi uma tentativa de
manter a supremacia no continente.
Longe de ser um projeto desinteressado em prol da harmonia continental, a Política da
Boa Vizinhança visava conter os movimentos populares anti-imperialistas e assegurar a
satisfação dos interesses dos Estados Unidos sem o uso da força militar. O país se tornou a
217
48
Para a história do MAM de São Paulo e a formação de sua coleção, ver Amaral (2006).
219
O CTG “35” foi gerado na cidade, não na campanha gaúcha; entretanto, o rural
perpassava todas as manifestações tradicionalistas. O procedimento de coleta de
indumentárias, danças, música e costumes demandaram uma grande pesquisa. Porém, o
resultado foi uma montagem de fragmentos elaborada conforme critérios diversos. São
tradições inventadas. O próprio Barbosa Lessa admite e alerta que lacunas foram preenchidas
segundo a imaginação. Por exemplo, a “dança do pezinho” foi montada tendo por base uma
brincadeira de roda infantil vista em Palmares do Sul.
O desenvolvimento do gauchismo já passara por uma longa trajetória anterior. Paulo
Gomes (2008) aponta dois momentos do regionalismo artístico do Rio Grande do Sul: o
primeiro foi marcado pela criação do Partenon Literário, pela repercussão da Revolução
Farroupilha, pelo escritos de Apolinário Porto Alegre, Oliveira Belo e Cezimbra Ribeiro; o
49
Para uma análise crítica do tradicionalismo, indicam-se Golin (1983) e Oliven (1992).
220
segundo surgiu com o modernismo das vanguardas e da arte social das décadas de 1920 e
1930 e o projeto cultural de Gustavo Capanema, sobretudo com a literatura regionalista de
nomes como Darcy Azambuja, Vargas Netto e Simões Lopes Neto. Na literatura, percebe-se
que o “gaúcho” teve uma construção multifacetada, diferenciada conforme a época e o autor.
Encontram-se vários tipos de gaúchos: o romântico, de José de Alencar; o trágico, de
Apolinário Porto Alegre; o realista, de Oliveira Belo; o idealizado, de Simões Lopes Neto.
Quanto às artes visuais, os primeiros pintores que trataram em suas telas os cenários e os tipos
locais foram Guilherme Litran (1840–1897) e Pedro Weingärtner (1853–1929).
Durante a República Velha, no Rio Grande do Sul, a agropecuária e as charqueadas
eram as principais atividades econômicas e, portanto, eram a base econômica da classe
dominante local. Entre a intelectualidade, predominava o positivismo, que contemplava os
anseios dos pecuaristas de manutenção do poder; da classe média urbana, de ascensão
econômica; das classes populares, da defesa da questão social (PESAVENTO, 1980).
Destaca-se a tendência de glorificar a imagem do gaúcho, o que se aproxima do modo como
os senhores do campo gostariam de ser vistos, como também a de construir um passado de um
povo bravo, disposto a lutar por suas terras. Os personagens da Revolução Farroupilha, tais
como os generais Bento Gonçalves e Souza Neto, tornaram–se heróis. O gaúcho recebeu a
aura de um guerreiro da liberdade e defensor das fronteiras do país, bem diferente de como
era considerado em suas origens.
Sergius Gonzaga (1980) conta que o gaúcho ou gaudério é um tipo mestiço, errante,
socialmente marginalizado, que se ocupava em arrebanhar o gado. Esse indivíduo se
converteu em peão de estância, um subemprego contratado por um acerto entre ele e seu
patrão. Constituir as tropas que deveriam enfrentar os índios ou qualquer outra ameaça contra
as terras também era uma atividade sua. No século XVIII, gaúcho ou gaudério denotavam um
estigma social, como se vê nesse depoimento de Miguel Lastarria de 1805:
Esses homens não deixam de espantar a quem não esteja habituado a vê-los.
Estão sempre sujos; suas barbas sempre por fazer; andam descalços, e
mesmo sem calças sob a completa cobertura do poncho. Por seus costumes,
maneiras e roupas, conhecem-se seus hábitos; sem sensibilidade e muitas
vezes sem religião. Eles são chamados gaúchos, camiluchos ou gaudérios
[...] Trabalham apenas para adquirir o tabaco que fumam e a erva-mate
paraguaia que tomam em regra sem açúcar e tantas vezes por dia quanto é
possível (NICHOLS, 1946, p. 32, apud GONZAGA, 1980, p. 117).
águas. A classe dominante rural almejava proclamar virtudes comuns entre patrões e peões
para estabelecer uma convivência favorável, deixando de lado a questão de explorador e
explorado. O gaúcho, inicialmente deslocado da sociedade, obtém toda uma carga de
significados na constituição do Rio Grande do Sul. No final do século XIX, as fronteiras já
estavam bem demarcadas e as propriedades, cercadas. Essa “paz no campo” determinou o fim
da necessidade dos serviços habituais do gaúcho e instaurou-se o saudosismo de um passado
romantizado. A literatura contribuiu imensamente na construção do imaginário desse gaúcho
virtuoso idealizado.
A produção literária popular apresentava versos acerca do homem sem terra, da
liberdade, do cavalo, da espada, de uma coragem e orgulho ilimitados. Sergius Gonzaga
(1980, p. 131) alerta que “tudo indica que os estancieiros formularam dentro da ‘práxis’
cotidiana a valorização da coragem sem peias, o desprezo pela vida e por todas as formas de
posse, a fim de eternizar a sua hegemonia e garantir a estabilidade do regime pastoril que
haviam implantado”. Quanto à literatura, em 1911, Ramiro Barcelos lançou Antonio
Chimango, um poema satírico sobre Borges de Medeiros, que apesar de crítico politicamente,
apontava para diversos traços constituintes do imaginário gauchesco.
Na década de 1920, a par dos debates sobre o modernismo, o regionalismo também
despontava como uma questão culturalmente importante, principalmente em relação ao
cosmopolitismo universalista que tinha em São Paulo uma de suas principais portas de
entrada no país. O modernismo da década de 1920 exaltava o regionalismo e o
tradicionalismo como estratégia para unir o país, mostrando a importância de cada lugar que o
formava. Realizaram-se o I Congresso Regionalista (1926), em Recife, e o lançamento do
Manifesto Regionalista, que defendia a conservação dos valores regionais e a região enquanto
unidade constituinte da nação. Gilberto Freyre estava no comando dessas iniciativas que
visavam propor uma maneira de reorganizar o país a partir da convivência das diferenças
regionais. A harmonia entre as identidades regionais era imprescindível para contemplar os
anseios de unidade nacional.
Entre os intelectuais sul-rio-grandenses, o regionalismo foi um ponto de disputa por
posições no campo artístico. A distinção do Rio Grande do Sul do restante do país foi
interessante na conquista da autonomia no período de Júlio de Castilhos, na passagem do
século XIX para o XX. Porém, logo se mostrou necessário que a união cultural se
restabelecesse para que os intelectuais conseguissem seu lugar, visto que não havia
mecanismos de consagração fortes o suficiente no estado. Os estudiosos gaúchos
necessitavam penetrar no mercado; tinham dificuldades de serem publicados em editoras
222
nacionais. A criação da Livraria do Globo veio suprir essa demanda ao forjar um regionalismo
editorial com projeção nacional (MARTINS, 2015; RAMOS, 2016). A questão regional
permaneceu na pauta dos intelectuais gaúchos, principalmente no âmbito da Revolução de
1930, quando a oligarquia do Rio Grande do Sul ocupou postos-chave do poder central:
O regionalismo era uma tendência nacional culturalmente forte dos anos 1920 e 1930
e também tinha seus representantes literários no Rio Grande do Sul. Naquele momento, o
gauchismo ufanista e idealizado se atenuava e apareceram romances sociais críticos.
Destacam-se as obras de Cyro Martins (1908-1995), escritor da “trilogia do gaúcho a pé”,
composta pelos livros Sem Rumo (1937), Porteira Fechada (1944) e Estrada Nova (1954),
que tocam em temas como o êxodo rural, a miséria e a exploração cometida pelos
estancieiros. Cyro Martins rejeitou a visão romântica da história do regionalismo e adotou o
localismo, um tipo de literatura preocupado com os temas locais, fundamentado na
consciência social, que evitava o uso de arquétipos positivos e voltava-se para a vida dos
trabalhadores (ZALLA, 2002).
Nos anos 1940, a gauchismo passou por uma nova fase. A iniciativa dos estudantes do
Júlio de Castilhos recebeu o aval de membros da intelectualidade interessados em preservar a
cultura regional; as ações iniciais foram descritas nas páginas anteriores. Manoelito de
Ornelas elogiou o que viu na Ronda Gaúcha de 1947, celebrando o entusiasmo dos jovens
que, mais do que resgatar os costumes gauchescos, enalteciam as virtudes morais do caráter
gaúcho (ZALLA, 2002, p.81). As motivações dos pioneiros do tradicionalismo incluíam a
rejeição aos elementos modernizadores e “americanizadores”, citados anteriormente, e o
estranhamento que o ambiente urbano provocava naqueles que vinham do interior. O quadro
que se configurava era o de conflito entre tradição e modernidade. Logo, apoiado pela camada
conservadora da sociedade porto-alegrense, forjou-se uma identidade regional calcada em
valores “rurais” adaptados, da cidade para o campo. Resgataram-se textos regionalistas para
reforçar os laços históricos da empreitada. Em 1949, Simões Lopes Neto foi reeditado. O
223
gaúcho voltou a andar a cavalo e surgiram novos “costumes antigos”. O próprio chimarrão,
originalmente tomado para amenizar o gosto ruim de águas salobras e ajudar na digestão da
carne mal preparada ao longo do percurso dos peões, passou por uma ressignificação e
consolidou-se como um hábito por todo o Rio Grande do Sul50. Entidades governamentais
tiveram a função de promotoras do tradicionalismo.
O papel do Estado na constituição da identidade cultural é preponderante: “Assim
como o Estado-nação procura delimitar e zelar por suas fronteiras geopolíticas, ele também se
empenha em demarcar suas fronteiras culturais, estabelecendo o que faz e o não faz parte da
nação” (OLIVEN, 1992, p. 20). A escolha do que é nacional e do que é regional não abarca as
múltiplas expressões de um país ou de uma região, mas sim a seleção de um grupo que tem o
poder de fazê-la. O regionalismo tem dimensões políticas e econômicas, envolve
desigualdades sociais, apesar de funcionar no sentido de suscitar a união despertando
sentimentos coletivos. Tanto o regionalismo quanto o nacionalismo envolvem as questões de
memória coletiva e de identidade que resultam da disputa de forças no campo simbólico pela
hegemonia. A disseminação do resultado dessa luta, vinculada à ideologia dominante, fica sob
a responsabilidade de outros agentes, os meios de comunicação, o sistema escolar e os
intelectuais. A historiadora Sandra Pesavento afirma que ideologia é
[...] uma concepção ou visão de mundo ligada a uma classe que traduz a
realidade objetiva e formula conceitos sobre ela a partir dos interesses desta
classe [...] a escala de valores desta classe se impõe sobre o conjunto da
sociedade, apresentando-se como verdadeira expressão da realidade.
(PESAVENTO, 1980, p.6)
50
Em 1950, contabilizava-se que, dos 36 milhões de quilos de erva-mate produzidos no Brasil, 18 milhões eram
consumidos pelos gaúchos (ZALLA, 2002).
224
social e na economia do Rio Grande do Sul, o que atraiu para o movimento pessoas que
tinham raízes na campanha, porém, moravam na área urbana. O caráter popular e a ênfase na
prática dos costumes tradicionalistas, em vez da formulação de teorias, facilitaram o acesso
das camadas populares. A representação espetacularizada dos costumes dos peões e dos
colonos, própria da estética do galpão, seduzia os citadinos e proporcionava aos descendentes
de simples agricultores certo orgulho de suas origens. A ludicidade e o aspecto ritual e mítico
do tradicionalismo são propriedades relevantes para se entender o engajamento de parte
considerável da população, ávida por algo que a distinguisse culturalmente.
Os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs), conforme indica Sergius Gonzaga, são
resultado de tentativas de enaltecer o passado idealizado e defendem uma identidade
vinculada a concepções de uma raça valorosa e livre. Isso, provavelmente, ocorreu pela
grande dificuldade de compreensão dos mecanismos do sistema de produção capitalista
contemporâneo, que destitui a possibilidade de integração de uma gente que requeria um
senso de comunhão. Letícia Borges Nedel, em seu texto sobre o regionalismo no campo
intelectual, também enfatiza o papel dos CTGs na formação de uma unidade cultural
imaginária:
hospedaram nas terras de Ubirajara Morais, em Bagé. Nos dois anos seguintes, o grupo
passou um período na Fazenda Delícias, de Ismael e Pepita Collares (QUADROS, 2010;
SCARINCI, 1982), com exceção de Bianchetti, que se mudara com sua esposa, Ailema, para
Curitiba, em 1952. Os objetivos do grupo eram aperfeiçoar o desenho e estudar a paisagem, as
pessoas e os artefatos empregados nas atividades corriqueiras. A estada no campo gerou
muitos trabalhos, como a série Estância, de Carlos Scliar.
Não se localizaram textos de autoria dos artistas sobre o tradicionalismo; entretanto,
pode-se supor que compartilhavam das opiniões de seus colegas da Horizonte. A criação do
“35” completava três anos em 1951. Os objetivos difusos da organização, que mais do que
cultivar o folclore se propunha a fundar o movimento tradicionalista, é tema de Mário Mattos
(1951, p. 134). Mattos observa que o momento exige mais clareza devido à invasão da cultura
importada, dos Estados Unidos, principalmente, que impõem a mesma feição a todos os povos
e cultua a guerra. O autor avalia que se deve sim preservar as tradições do Rio Grande do Sul,
mas não de forma generalizada; é preciso selecionar o que vale a pena. A história do estado
tem traços que em nada dignificam o ser humano, como a prática da degola de prisioneiros em
conflitos e a exploração e a submissão dos peões imposta pelo dono da terra. No “35”, o
presidente é chamado de “patrão” e os demais, de “peões”, e isso é alvo da crítica de Mattos,
pois exalta a exploração em vez de criticá-la. Os aspectos positivos da tradição, que deveriam
ser preservados, seriam aqueles que ajudariam o povo a compreender a realidade e construir o
futuro: “Fugir a esta realidade é cair no tradicionalismo vazio e sem consequências, no lirismo
infantil impotente contra os fatos, no saudosismo bolorento e no medo do futuro” (MATTOS,
1952, p. 134).
Para o autor, o verdadeiro regionalismo se encontra entre a gente simples, ele se volta
contra a opressão e visa à melhoria da vida do povo que habita os ranchos e que busca o seu
pedaço de terra e condições dignas de trabalho. O marxismo favoreceria o desenvolvimento
da cultura local e não prega dogmas e padrões e “e nos ensina que a tradição, surgida sempre
do seio do povo, é depois monopolizada e deformada pelas classes dominantes em proveito de
seu poderio” (MATTOS, 1951, p. 135). Mário Mattos chama a atenção dos integrantes do
“35” para que as tradições não sejam desvirtuadas e que sejam mantidas a fim de edificar uma
sociedade mais justa.
Sobre os episódios lamentáveis da história do estado, Sérgio da Costa Franco lembra
que a prosperidade das charqueadas estava fundamentada na exploração do trabalho dos
negros escravizados “disciplinados a chicotes e aquartelados nas senzalas” (FRANCO, 1956,
p. 6). Quanto aos pequenos camponeses, muitos deles de origem açoriana, há de se recordar
227
Ao falar das várias gravuras de Glênio Bianchetti sobre a realidade rural, Carlos
Scarinci afirma que o artista as executou aplicando uma “visão idealizante do homem do
campo sulino, pronunciando uma adesão involuntária, talvez, à ideologia conservadora do
movimento tradicionalista gauchesco” (SCARINCI, 1982, p. 91). Tal afirmação é discutível.
Imbuído da vontade de aprimorar a linguagem plástica e de conhecer a vida dos camponeses,
Bianchetti observou e anotou as tarefas diárias, as vestimentas e os hábitos. Não se percebe
nessas obras a retórica grandiloquente que representaria os trabalhadores do campo de
maneira heroica, com físicos fabulosos, com a altivez do herói positivo zhdanovista. As
mulheres não estão de “prenda” nem os homens trajam uma “pilcha” completa. Ao ver a
simplicidade das vestes da camponesa descalça que usa o pilão (Fig. 95), dificilmente se
poderia declarar que se trata de uma cena idealizada em prol de tornar aquela figura
fenomenal.
Em Preparando o Banho, peões juntam o material necessário para a higiene dos
cavalos, possivelmente. Percebe-se que seus rostos não aparecem, como se sua identificação
fosse irrelevante. Talvez Bianchetti quisesse demonstrar a falta de atenção dada a apenas mais
alguns campeiros, que deveriam ser menos considerados pelo patrão do que os animais de que
cuidavam. Como a vida não é só labuta e sofrimento, o artista também representa momentos
de divertimento. Na feira, as mulheres escolhem os vasos diretamente do oleiro; no pátio, as
crianças brincam com bolinhas de gude. Ao ar livre, o povo festeja tocando a gaita, o violão e
o pandeiro (Fig. 94, 95, 96, 97 e 98).
expressão criativa legítima e que os fatores sociais e ambientais podem inspirar artistas
talentosos. Ele é o autor de duas séries de xilogravuras importantes, Xarqueadas (1953) e
Mineiros de Butiá (1956), confeccionadas a partir da observação da realidade. Danúbio se
esforçou em registrar em inúmeros desenhos as atividades e as ferramentas dos mineiros e dos
charqueadores (STORI, 2000). Norberto Stori observa que o artista abdica do emocional lírico
e trabalha a partir de uma perspectiva realista em tom objetivo e trágico. As obras têm um
viés expressionista conferido pela dramaticidade dos efeitos de luz e sombra, mais notável em
Mineiros.
Danúbio utiliza a técnica da xilogravura de topo em Xarqueadas, mas sem se perder
no virtuosismo técnico, os entalhes são secos e é possível ver as marcas do buril (STORI,
2000). A série foi editada pelo CGPA e premiada no Salão Nacional de Arte Moderna de
1954. O trabalho nasceu de anotações feitas na cidade de Bagé e inspirou-se no romance
homônimo do escritor baiano Pedro Wayne. Algumas obras da série foram reproduzidas nas
páginas da Horizonte. Danúbio busca representar a realidade dos trabalhadores das
charqueadas do interior do Rio Grande do Sul. Tanto o livro quanto as gravuras podem ser
considerados representantes do realismo socialista, no entendimento mais profundo do termo,
além do zhdanovismo. Eis um trecho descritivo das atividades dos charqueadores presente na
obra de Wayne:
Rio Grande do Sul, já em declínio na época da escrita do livro, a produção de charque. Pedro
Wayne participou ativamente do processo, pois trabalhou no boliche que fornecia suprimentos
aos empregados da charqueada de seu sogro, em Bagé. A busca pelos aspectos regionais era
característica dos intelectuais que queriam modernizar o campo artístico e viam na
valorização do que seria tipicamente brasileiro as bases da construção de uma arte nacional
nas primeiras décadas do século XX. Mais do que isso, havia a vontade de tratar dos
problemas sociais e de se afastar dos temas agradáveis às elites. Isso tudo se acentua quando
há o comprometimento com causas políticas, como é o caso do escritor Pedro Wayne e do
artista Danúbio Gonçalves.
Figura 99 – Danúbio Gonçalves. Salga (série Xarqueadas). Xilogravura, reproduzida na Horizonte, n. 9, ano II,
out.-nov. 1952, p. 260
Fonte: Arquivo João Batista Marçal, Viamão, RS [ registro fotográfico da autora]
Danúbio também não foi simplesmente um observador externo do que se passava nas
propriedades rurais, mas sim um dos personagens da história em certa medida. Seu pai
fornecia reses a charqueadas de Bagé (LEITE, 2011). Motivado pelo desejo de registrar os
trabalhadores mais humildes em sua obra, ele se dedicou a diversos estudos acerca da
produção do charque, o que resultou na série de gravuras mais importante de sua carreira.
233
O artista registrou as etapas da fatura da carne seca, nas quais cada peão tinha sua
função: o zorreiro, o carneador, o manteiro, o matambreiro, o picador, o lingueiro, o tirador de
carretilha e o mergulhão. Em Salga (Fig. 99), veem-se os mergulhões em ação. Esses
trabalhadores eram assim denominados porque sua função era manter as mantas de carne
mergulhadas na salmoura. Na cena, vários homens manipulam o produto com o que parecem
ser grandes varas de madeira em uma cancha dividida em tanques. Ao lado deles, operários
deslocam, presume-se, montes de sal. Ao fundo, figuras parecem estar em repouso.
A série Xaqueadas merece atenção não só por sua qualidade artística. Danúbio deixa
como legado o registro do final da “Era do Charque”, cujas marcas ainda podem ser
percebidas em muitas cidades do Rio Grande do Sul até hoje.
Para fazer Mineiros de Butiá, Danúbio desceu as minas do município sul-rio-
grandense a fim de experimentar o ambiente e estudar as condições de trabalho a que estava
submetida diariamente aquela categoria profissional. A realidade dos mineiros é registrada em
madeira de fio e de topo (STORI, 2000), e Danúbio emprega cores em algumas gravuras. O
artista descreve o que viu nos subterrâneos:
Não foi à toa que os mineiros chamaram a atenção de Danúbio. A mineração era uma
atividade econômica relevante que, sabidamente, sacrificava os trabalhadores51. Em 1955, o
jornal A Hora publicou uma reportagem sobre os operários das minas da cidade de São
51
A mineração de carvão iniciou-se no Rio Grande do Sul no século XIX e recebeu grande impulso durante a
Primeira e a Segunda Guerra devido às dificuldades de importar o produto. Em 1936, as empresas exploradoras
do combustível de São Jerônimo e de Butiá formaram o CADEM (Consórcio Administrador de Empresas de
Mineração). No princípio da década de 1940, o carvão era o principal produto de exportação, em volume, do
estado. As minas atraíam muitos trabalhadores que se sujeitavam aos perigos de explosões, de desabamentos e
de moléstias como a pneumoconiose. A insegurança, a insalubridade e a insatisfação com os proventos
miseráveis motivaram a mobilização dos mineiros e a promoção de piquetes e greves, como a de 1946, que
deixou Porto Alegre às escuras e prejudicou a produção e os transportes. Foram 36 dias parados, sem receber,
sob forte pressão (SPERANZA, 2012). A Lei nº 9070, de 15 de março de 1946, do presidente Eurico Gaspar
Dutra, inviabilizava as paralisações e muitos confrontos entre operários e a polícia ocorriam, bem como
processos judiciais e perseguições contra os líderes sindicais (CHASSAVOIMAISTER et al., 2005). O PCB
participava e organizava o movimento paredista, geralmente, através do Movimento Unificado dos
Trabalhadores (MUT). A ida de Danúbio Gonçalves às minas para registrar o dia a dia dos trabalhadores gerou
uma série de gravuras, em que o drama da experiência transparece nos cortes da madeira, que serviram de
testemunho, de denúncia da injustiça e da opressão sofridas pessoas que geravam a riqueza gaúcha.
234
Figura 100 – Danúbio Gonçalves. Colocando o carro nos trilhos, 1956. Xilogravura, 20 X 25 cm
Fonte: DANÚBIO, 2000, p. 78
positivo não somente para a promoção do estado, mas por motivar artistas de outros locais –
São Paulo, Santos, Curitiba, Rio de Janeiro – a criarem entidades semelhantes (SILVA, 1953).
O jornalista, também colaborador da Horizonte, exaltava a gravura em madeira e
linóleo como fator de democratização artística. A técnica envolve a criação artística e práticas
artesanais e possibilita a confecção de múltiplas cópias. Todo mês, o CGPA escolhia um
trabalho a ser distribuído aos associados, que, até aquele momento, chegavam ao número de
cem. Em agosto de 1953, o Clube registrou seu estatuto no qual constava como sua principal
finalidade difundir e ensinar a arte da gravura. Outros projetos em andamento destacados por
Silva são os álbuns Xarqueadas, de Danúbio Gonçalves, Antonio Chimango, de Glênio
Bianchetti, e Estância, de Carlos Scliar.
O CGPA possuía duas categorias de sócios, os contribuintes e os artistas. No segundo
grupo, estavam Plínio Bernhardt, Glênio Bianchetti, Ailema de Bem Bianchetti, Fortunato
Oliveira, Gastão Hofstetter, Danúbio Gonçalves, Edgar Koetz, Carlos Mancuso, Carlos
Alberto Petrucci, Vasco Prado, Glauco Rodrigues e Carlos Scliar. O contribuinte pagava a
mensalidade de 50 cruzeiros e tinha direito a uma gravura por mês. O Clube tinha a proposta
de confeccionar uma edição de luxo de doze obras em duplicata por ano.
Silva cita as palavras de Sérgio Milliet para explicar que a gravura implica a vontade
de transmitir a “mensagem realista, de fé no homem do trabalho, no construtor da riqueza
gaúcha, uma mensagem também de amor à terra” (MILLIET apud SILVA, 1953, p. 17). Em
um rompante entusiasmado, o jornalista finaliza o texto declarando que o trabalho dos Clubes
de Gravura “representa um esforço de divulgação e exaltação aos motivos eternos do nosso
folclore, como se fosse um verdadeiro sindicato de amor ao Rio Grande” (SILVA, 1953,
p.17).
É evidente a valorização dos temas regionais pelos gravadores; entretanto, por tudo o
que já foi dito até aqui, não se pode concordar plenamente que se tratava de mera exaltação ao
folclore. Existiu a deliberação de empregar uma linguagem que se afinasse ao gosto do
público e que permitisse a conexão entre o espectador e a obra. Nem todos os sócios artistas
tinham interesse em se focar na vida campesina. Em entrevista a Susana Gastal, Vasco Prado,
que não participou das excursões às estâncias, declarou o seguinte a respeito da preferência
pelo mundo rural: “Eu era contra isto. Tanto que no meu trabalho apresentei o tipógrafo, fiz o
oleiro, personagens da cidade. A vida da cidade sempre me interessou mais, dos jogos na
cidade, do futebol” (GASTAL, 1994, p. 97). Edgar Koetz e Glênio Bianchetti compartilhavam
do interesse nas paisagens e no proletariado urbano. Prado retrata homens em uma fundição
na xilogravura utilizando a cor laranja a fim de remeter ao brilho característico do metal a
237
altas temperaturas (Fig. 102). Em Lavadeiras (Fig. 103), Bianchetti mostra a pobreza e o
serviço árduo das mulheres encarregadas da roupa suja e localizadas em um ponto baixo da
cidade, tanto geográfico quanto econômico e social. Koetz volta o seu olhar aos operários da
construção e registra o momento em que se empenham no desmonte de uma casa (Fig. 104).
Projeto CULTUR “Por uma Arte Brasileira: Grupo de Bagé”. As concepções por trás da
iniciativa e a grande verba implicada provocaram uma reação dos jovens artistas Carlos Asp,
Romanita Martins, Telmo Lanes, Vera Chaves Barcellos, Mara Alvares, Clóvis Dariano,
Jesus Escobar e Carlos Pasquetti, que organizaram uma “exposição-manifesto” Atividades
Continuadas, no MARGS, nos dias 9 e 10 de dezembro.
O discurso sobre “raízes culturais” pregava que havia elementos unificadores,
históricas e culturais que superavam as discrepâncias econômicas, sociais e ideológicas. A
ideia de que haveria objetos que corresponderiam a um gosto compartilhado e a um consenso
satisfazia os investidores que queriam aplicações seguras. O Grupo de Bagé, considerado
autêntico representante da cultura gaúcha, foi a escolha dos que estavam à frente do Projeto
CULTUR. Primeiro, promoveu-se o Encontro de Bagé, que reuniu os ex-integrantes do
CGPA Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti e artistas
convidados – Anna Letícia, Antônio Maia, Darcy Penteado, João Henrique, José Lima, Maria
Luisa Leão, Norberto Sarttori, Anico Herskovitz, Armando Nogueira e Clébio Sória – a fim
de passar uma temporada na cidade fronteiriça e elaborar obras inspiradas na observação da
paisagem local e trocar experiências.
No Salão de Atos da UFRGS, o público pôde ver mais de 80 obras contemporâneas e
da época do CGPA. A mostra gerou uma publicação na qual se reproduziram fotografias dos
locais que serviram de referência para os trabalhos a fim de estabelecerem-se comparações. O
propósito era transmitir a ideia de continuidade daqueles ambientes e das relações entre as
pessoas e sua terra. No texto de apresentação do catálogo, os secretários de Turismo, Mario
Ramos, e da Educação e Cultura, Aitton Vargas, afirmavam que o Projeto CULTUR era uma
tomada de posição pelo nacionalismo, pela defesa das raízes e do folclore. Os secretários
declaravam que se constituiu a união entre o governo e os artistas em prol da luta pela arte
brasileira (CARVALHO, 1994).
Motter (2015). Esses artigos serviram de base para reconstituição da história do CGPA do
primeiro capítulo.
A história exposta no Correio do Povo é contada pelos próprios protagonistas, Carlos
Scliar, Danúbio Gonçalves, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti e, em uma entrevista à parte,
Vasco Prado. Porém, é importante apontar os seguintes aspectos: as parcas menções sobre o
teor político e partidário do CGPA; a falta de aprofundamento sobre o tema do realismo
socialista; a escolha pelos quatro componentes do “Grupo de Bagé” como representantes do
CGPA; o destaque para as obras sobre o interior gaúcho.
Acredita-se que a escolha editorial pela omissão acerca dos laços dos artistas com o
comunismo recai nas mesmas questões discutidas no capítulo anterior. A postura
conservadora e, por vezes, anticomunista do Correio do Povo se explica pela posição que
ocupava no campo jornalístico e seu compromisso com leitores, empresas publicitárias e seu
papel de porta-voz da ideologia da classe dominante. Não seria durante a ditadura militar que
se revolucionaria a conduta em relação à política. A respeito do realismo socialista e do
zhdanovismo, apesar de fundamental para entender a produção do CGPA, o assunto nunca foi
pauta de investigação dos colaboradores do jornal, nem mesmo quando estava em evidência
nos anos 1950.
A restrição do CGPA ao Grupo de Bagé é uma tentativa de resgatar os precedentes da
entidade na década de 1940. Clóvis Assumpção apelidou o grupo de artistas formado por
Danúbio Gonçalves, Carlos Chagas, Glênio Bianchetti, Glauco Rodrigues e Deny Bonorino
de Novos de Bagé ou Grupo de Bagé e realizou a conferência de abertura da mostra na qual
enfatizou que era a primeira vez que pintores de Bagé expunham e quão excelentes eram as
realizações daqueles jovens (ASSUMPÇÃO, 1953, p. 8). Os propósitos do Grupo de Bagé
original incluíam o aprendizado em pintura e a apropriação dos preceitos da arte moderna.
Apesar de eles ingressarem no CGPA anos depois, seus objetivos na época eram outros. A
gravura e a arte de cunho social entraram nas suas vidas posteriormente.
Durante os anos 1950, em suas colunas do Correio do Povo, Assumpção continuou a
utilizar a expressão Grupo de Bagé ao escrever sobre os integrantes do CGPA vindos da
cidade da fronteira. Isso se justifica pela intenção de valorizar seus conterrâneos, e não de ser
sinônimo de CGPA. Clóvis Assumpção foi presidente do Círculo Social de Bagé ou Círculo
Bageense, localizado na Rua Coronel Vicente, número 515, em Porto Alegre, que recebia
verbas do município de Bagé, conforme disposto na Lei Municipal nº 624, de 29 de outubro
de 1955. O objetivo da entidade, inaugurada em abril de 1955, era oferecer um local de
243
do CTG 35 foi construída em um terreno doado pelo estado em 1971. Três anos depois, criou-
se o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, órgão da Secretaria de Cultura Desporto
Turismo do Rio Grande do Sul.
A década de 1970 assistiu à ascensão do nativismo, tendo como marco a 1ª Califórnia
da Canção Nativa de 197152. Os festivais nativistas eram essencialmente musicais e se
notabilizaram pela participação de jovens da classe média urbana (FERRARO, 2013).
O gauchismo ganhou um novo ânimo no período de abertura do final dos anos 1970 e
começo dos 1980. A sociedade civil se reorganizava em partidos, sindicatos e movimentos de
grupos específicos – feministas, ambientalistas, etc. Ruben Oliven (1992) explica que, apesar
de alguns considerarem o gauchismo uma ideologia ultrapassada, a sua retomada pode ser
compreendida por dois fenômenos: a dificuldade em lidar com a diversidade brasileira, que
leva à defesa da identidade regional; e o retorno das discussões em torno do nacional que
ocorriam internacionalmente, apesar da ascensão da ideia de globalização. A interferência do
Estado na definição da identidade cultural, mencionada anteriormente, manifestava-se nas
iniciativas do governo estadual dos anos 1970, que privilegiava o gauchismo.
Ana Carvalho (1994) analisa a intervenção governamental na área cultural através do
Projeto CULTUR da Secretaria de Turismo. Chama atenção a verba de 600 mil cruzeiros para
o evento que envolveu encontros, produção de catálogo e de audiovisual e exposição. Para o
ano de 1976, o orçamento do MARGS foi de 100 mil cruzeiros, o que dificultou o bom
desempenho da programação da entidade. Essa gritante diferença de valores incomodou os
artistas que consideraram que os recursos para a cultura eram decididos por outros setores.
Um grupo de artistas Artes – Mara Alvares, Clóvis Dariano, Carlos Pasquetti, Telmo
Lanes, Carlos Athanázio, Carlos Asp. Ana, Luisa Alegria, Elton Manganelli, Jesus Escobar e
Vera Chaves Barcellos – realizou reuniões no MARGS e no Instituto de a fim de discutir a
distribuição de verbas públicas e o poder do mercado para as artes. O Projeto CULTUR foi
[...] considerado exemplar de uma situação que se tornava cada vez mais
desfavorável ao desenvolvimento de uma produção artística de cunho
“experimental”, ou que simplesmente não se encaixasse nos critérios
estabelecidos pelo mercado para comercialização de obras de arte, tais como
caráter decorativo da imagem, materiais nobres e duráveis (CARVALHO,
1994, p. 162).
52
Para saber mais sobre o nativismo, ver Ferraro (2013).
245
Outro ponto do passado difícil de lidar é a conexão entre o CGPA e o PCB, mais
especificamente, às orientações do realismo socialista soviético. Adotaram-se diversas
atitudes quanto a isso: o desprezo, a negação e a ignorância. Alguns estudiosos preferem
diminuir a qualidade artística do CGPA alegando que se tratava de uma produção limitada
demais:
porém, não se pode menosprezar a referência ao realismo socialista nos trabalhos dos
gravadores gaúchos.
Não só pesquisadores e críticos reprovaram a ligação dos artistas de esquerda com o
programa cultural comunista. Os próprios protagonistas das ações negaram a relevância dele
em seus projetos posteriores. Vasco Prado afirmou que: “Eu nunca recebi uma cartinha ou
notinha de dinheiro: nem sabiam o que estávamos fazendo aqui. Foi através do exemplo
mexicano que realizamos a experiência [...] quanto às normativas, isto é lenda” (GASTAL,
1994, p. 98). Danúbio Gonçalves, designado pelo PCB, participou da delegação que fora à
União Soviética em 1953. Anos mais tarde, negou sua ligação com o partido:
Há uma coisa que não é certa. Tinham pessoas que eram engajadas
politicamente, até militante, o Scliar, o Vasco, de esquerda, tinha jornal
naquela época, agora, os outros não eram, apenas a temática do Rio Grande
do Sul interessava; a gente não impunha nada, era livre, não tinha uma
doutrina, um tipo de arte. Tem gente que acha que tinha, não tinha.
(GONÇALVES, 2005, p. 108).
A desilusão com Stalin levou alguns artistas a repensar seus posicionamentos quanto
ao zhdanovismo. Carlos Scliar, em determinado momento nos anos 1950, procurou se
empenhar no seu aprimoramento artístico do que em seguir as diretrizes partidárias, e revelou
desavenças com outros militantes:
Congresso do PCUS, no ano de 1956. O impacto nos militantes ao redor do mundo foi
tremendo. A imagem do líder pacifista e humanista se estilhaçou. Muitas pessoas se afastaram
do Partido Comunista e, consequentemente, interromperam-se inúmeros projetos, incluindo
publicações. A Horizonte tem sua última edição em janeiro de 1956. O CGPA se desfez
também naquele ano. O PCB levou pelo menos dois anos para iniciar sua reestruturação,
adotando uma postura menos agressiva (GONÇALVES, 2005). A reação dos intelectuais, de
adesão e de distanciamento quanto à doutrina do partido, pode ser compreendida pela busca
de espaço para desenvolver seu trabalho e pela consciência política:
Criadora, uma escola para crianças a partir dos 3 anos apoiada pelo MEC e pela Secretaria de
Educação (RIBEIRO, 2010).
Figura 106 – Vasco Prado, painel para a campanha à Presidência de Lula em 1989
Fonte: ZERO HORA, 11 dez. 1989, p. 10 [registro fotográfico da autora]
Para Scliar, o artista precisa estar atento à situação da política e da cultura do lugar em
que se encontra e sua obra precisa, de alguma forma, contribuir para o pensamento crítico. O
artista deve ser uma agente da nacionalidade, do povo, e, pensando no futuro, ter os pés no
chão (ROSE, 1976).
Danúbio Gonçalves se tornou um crítico da arte contemporânea e persistiu defendendo
o valor da gravura e da arte regional, como pode ser verificado no seu livro Ser ou Não Ser
Arte (2003). Dirigiu por anos o Ateliê da Prefeitura de Porto, onde lecionou, e foi professor
do Instituto de Belas Artes. Em algumas ocasiões, manifestou-se publicamente pelo descaso
250
do poder público com a cultura. Em 199653, protestou nos tapumes do MARGS contra a falta
de verbas destinadas ao Museu e o grande montante destinado à Bienal do Mercosul, durante
a exposição Grupo de Bagé: Trajetórias, do Projeto da Caixa Econômica Federal Resgatando
A Memória (Fig. 107). Junto à manifestação gráfica de Danúbio, Carlos Scliar publicou uma
carta aberta ao governador Antônio Britto reclamando das condições da instituição (SCLIAR,
1996).
53
No ano de 1996, o Projeto Resgatando a Memória, da Caixa Econômica Federal, lançou Grupo de Bagé:
Trajetórias, uma série de eventos que homenagearam a história de Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves, Glauco
Rodrigues e Glênio Bianchetti. Realizaram-se exposições na Galeria da Caixa, no Centro Municipal da Cultura,
na Galeria de Arte Mosaico, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul e no Museu da Gravura Brasileira (Bagé).
251
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
gráfica de seus países a inspiração. O CGPA fez um trabalho de observação de realidade a fim
de que seu público pudesse se identificar e, a partir daí, estar disponível para compreender a
mensagem política das imagens. Nos três casos, entretanto, verifica-se a mesma influência
estrangeira: os expressionistas alemães, principalmente Käthe Kollwitz.
Os primeiros anos do CGPA e a Nova Fase da Horizonte foram intensamente
dedicados às iniciativas comunistas, destacando-se o Movimento dos Partidários pela Paz. Os
artistas colaboraram com as campanhas por meio de gravuras veiculadas na revista, coletando
assinaturas do Apelo por um Pacto de Paz e do Apelo de Estocolmo, assumindo a função de
delegados em reuniões e organizando exposições concomitantes aos eventos partidários, como
o Festival Crioulo pela Paz. Além do cumprimento da tarefa política, a participação no
Movimento rendeu uma contrapartida interessante, a visibilidade da produção do CGPA. A
rodada intensa de congressos e conferências internacionais se tornou uma oportunidade para
os gravadores mostrarem seu trabalho e serem conhecidos por pessoas de várias partes do
mundo.
Para as artes do Rio Grande do Sul, o principal legado do CGPA foi a valorização da
gravura. A associação promoveu cursos das diferentes técnicas de gravação e estimulou
artistas jovens e experientes a dedicarem-se às artes gráficas. As exposições organizadas pelo
CGPA oportunizaram ao público porto-alegrense visualizar obras com que, provavelmente,
nunca tiveram contato. São os casos das mostra dos gravadores chineses, da história da
gravura, de Honoré Daumier. A inovação de uma mostra em praça pública, a Por uma Arte
Nacional, certamente, agitou o meio artístico e entusiasmou os frequentadores do Parque
Farroupilha que, talvez, nunca ousassem ir a uma exibição de arte e, muito menos, julgar os
trabalhos expostos.
A estratégia de atrair os espectadores pelo emprego da temática regional gerou uma
querela – a suposta ligação do CGPA com o tradicionalismo gaúcho (abordada no terceiro
capítulo). Se essa contenda não se deu explicitamente na década de 1950, vinte anos depois
isso aconteceu. Integrantes do CGPA, reduzidos ao “Grupo de Bagé”, participaram do Projeto
CULTUR do governo do estado, ao qual foi destinado um montante considerável de
investimento. O destaque aos “autênticos representantes da arte gaúcha” gerou a insatisfação
de artistas contemporâneos que tinham outra visão da arte e queriam seu espaço. Este grupo,
que posteriormente fundou o Nervo Óptico, questionou a distribuição de verbas públicas para
a cultura tradicional e a permanência de critérios conservadores para a produção artística.
Esse caso ilustra bem a questão da interferência do Estado no campo artístico e na
constituição da identidade cultural, que, tratando-se do Rio Grande do Sul, se ligava (e se liga
254
se) aos costumes tradicionalistas. O quanto os artistas do “Grupo de Bagé” estavam cientes do
projeto da “arte gaúcha” é difícil dizer. O tom das reportagens do Correio do Povo baseadas
em entrevistas dos artistas, de 1976, leva a crer que o interesse era resgatar a história do
CGPA e homenageá-lo. Entretanto, a ênfase nos trabalhos sobre o mundo rural e o retorno às
estâncias de Bagé atenuaram a relevância da produção de gravuras ligadas ao proletariado
urbano, às campanhas pela paz e à propaganda comunista (como os retratos de Luiz Carlos
Prestes). Houve uma minimização do potencial crítico e político das obras. A ideia de arte
para o povo que guiou a atuação do CGPA parece não ter alcançado os jovens artistas dos
anos 1970, que viam nas “gravuras gaúchas” uma conivência aos interesses do mercado.
Talvez a concepção original do CGPA não tenha sido transmitida de forma eficaz ou não
tenha resistido a ressignificações construídas ao longo do tempo.
A militância comunista no período stalinista de integrantes do CGPA foi,
aparentemente, motivo de desconforto posterior. Nas falas dos artistas editadas e reproduzidas
nos veículos de imprensa e nos trabalhos acadêmicos, constata-se que eles procuraram
minimizar a influência soviética sobre seu trabalho, mas assumiram a sua adesão ao realismo
socialista. Obras de arte vinculadas diretamente a um programa partidário se tornam um
incômodo também para os estudiosos que creem que o valor artístico está alicerçado na “arte
pela arte”, na renúncia a exigências externas. Uma saída para contornar o “problema” gerado
pela arte partidária é abordar essa produção procurando elementos nas imagens que revelem o
indivíduo, o estilo único e criativo do artista. Não foi esse o caminho escolhido aqui.
Nesta dissertação, admitir que o CGPA e a revista Horizonte surgiram da adesão ao
projeto político comunista não é um problema, mas sim consideração ao processo histórico no
qual despontaram. A valorização da produção gráfica comunista como arte não requer que ela
seja apartada de seus intentos originais. Caso os artistas gaúchos estivessem em um contexto
histórico, social e político mais favorável, de maior abertura democrática, e obtivessem maior
embasamento teórico, talvez a Horizonte e o CGPA sobrevivessem por mais tempo. Essa
ideia corrobora o que disse Vasco Prado há mais de 40 anos:
de nós, nesta ânsia de descoberta das coisas, talvez tenhamos nos perdido um
pouco, aplicando mal os seus princípios. Aliás, outro problema sério que não
se pode esquecer e que persiste até hoje, é que em geral o artista plástico no
Brasil lê pouco, é ignorante das coisas que o rodeiam, não tem teoria. Então,
se o Clube supriu a lacuna da disciplina e do aprendizado técnico, não
chegou a suprir para todos nós a lacuna da teoria, o que foi muito prejudicial
mais adiante (VASCO..., 1976, p. 31).
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Arquivos
Salão Anual de Artes Plásticas Câmara Municipal de Porto Alegre organizado pela
Associação Francisco Lisboa (1953–1958)