Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
Porto Alegre
2018
KETHLEN SANTINI RODRIGUES
Porto Alegre
2018
KETHLEN SANTINI RODRIGUES
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Antonio De Menezes Pereira da Silveira (PPGAV–UFRGS)
Orientador
_______________________________________________________
Profa. Dra. Daniela Pinheiro Machado Kern (PPGAV–UFRGS)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Marshall (PPGAV–UFRGS)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Johnni Langer (PPGCR–UFPB)
RESUMO
This research analyzes a number of engraving and drawing works by Albrecht Dürer
(1471 - 1528) and Hans Baldung Grien (1484 - 1545) residing in the Germanic territories
of Europe during the Renaissance period, produced between 1497 and 1545. The body
of the witch conceived in Early modern Europe will be a body laden with excessively
masculine and oppressive precepts. It is also recognized that, regardless of the artists'
pretensions, whether to develop their imaginative faculties or to improve their social
and economic status, the artist's creative capacity has resulted in an adulterated female
image. In order to understand the cultural, political and social resources of the artists in
question, the historiographical perspectives of a theorizing of witchcraft were analyzed
in the first chapter, divided into two main concepts: the crisis in the Christian faith and
the question of gender. After the publication of the first incunabula, at the end of the
15th century, in particular the first illustrated inquisitorial treatise De Laniis et phitonicis
mulieribus (1489) by Ulrich Molitor, the second chapter notes the beginning of a specific
iconographic tradition in Europe and the establishment of representation of witchcraft
in the field of Visual Arts by Albrecht Dürer, who established two models of
representation, the grotesque body and the aphrodisiac body of the witch. In the third
and last chapter, the work of Dürer's disciple, Hans Baldung Grien, who in the course of
his artistic career, made the witch's body the protagonist of his works analyzed.
Elements such as the fork, loose hair, naked body and flights on animals are sanctioned
by him and, consequently, by his contemporaries. Thus, the last task in this part is to
present an iconographic heritage derived from the tradition established by Dürer and
Hans Baldung, as in the works of Lucas Cranach, Peter Bruegel, Frans Francken, among
others.
Keywords: Visual Culture. Iconography. Renaissance. Demon. Sorceress.
AGRADECIMENTOS
Esta importante etapa que encerro não teria acontecido se não fosse pelo amor
e apoio incondicional da minha família. Desde o dia que peguei o primeiro ônibus em
Caxias do Sul para morar em Porto Alegre, no ano de 2012, muitas experiências boas e
ruins aconteceram, muitos aprendizados foram obtidos e muitas histórias vividas,
sempre com o carinho e a compreensão de minha mãe, meu tio e meus avós. A
importância de vocês é imensurável. Perto ou longe, nunca esqueçam que para mim é
e sempre será um privilégio fazer parte das suas vidas e ser o orgulho de vocês.
Tenho enorme gratidão ao meu querido orientador Paulo que aceitou entrar
nessa fascinante viagem comigo, sempre presente com muita disposição e atenção para
que conseguíssemos conquistar nossos objetivos. Seja sobre suas recordações de
infância (“ah! a linda rainha má da Branca de Neve...”), seja sobre suas referências
acadêmicas, suas inspirações, ideias ou singelos comentários gerados de nossos
encontros, deixaram-me mais resistente e, principalmente, mais segura.
Essa dissertação não poderia estar completa sem o auxílio atencioso dos
museus Albertina, de Vienna e National Galleries of Scotland, de Edimburgo na obtenção
de imagens de qualidade presentes nesse trabalho.
Aos meus colegas da turma 24 do Mestrado, uma turma cheia de pesquisas
promissoras, um muito obrigado. Nossas conversas cheias de medos, aflições e
desesperos nos tornaram mais fortes. De modo especial, à querida amiga Thirzá, uma
pessoa acessível e verdadeira desde o primeiro dia em que a conheci, minha admiração
só aumentou a partir das nossas trocas no decorrer de todo o processo, me auxiliando
a crescer como mais profissional e como pessoa. Essa pesquisa não seria a mesma sem
tua ajuda.
E finalmente, aos meus amigos que suportaram meus longos sumiços e minhas
aparições rápidas durante esses dois anos, devido a energia que a pesquisa me tomava,
sem mencionar a paciência em ter que ouvir meus dilemas. À minha cunhada, Jeni, que
me auxiliou com muita dedicação na correção deste trabalho. E em especial, ao meu
amigo e companheiro de cinco anos. Chris, essa pesquisa não existiria sem teu amor,
carinho e serenidade. Enquanto eu proporcionava a ti e a tua família somente histórias
e conversas sobre bruxas (quando não era sobre minhas angústias e descrenças), vocês
sempre estavam lá, prontos para me reconfortar e tu, especificamente, fazendo-me
retornar ao meu estado de profundo bem estar.
As rosas da resistência
nascem no asfalto. A gente
recebe rosas, mas vamos
estar com o punho cerrado
falando de nossa existência
contra os mandos e
desmandos que afetam
nossas vidas.
Figura 1. Pieter Bruegel, O Velho. A luta entre o carnaval e a quaresma, 1559 ............ 76
Figura 2. James le Palmer. Omne Bono (Absolucio-Circumcisio), c. 1360 - c. 1375 ... Erro!
Indicador não definido.
Figura 3. Hans Vintler (? - 1419) Die plümen der tugent (1486), Fólio 331v.............. Erro!
Indicador não definido.
Figura 4. Artista desconhecido. Em De lamiis et phitonicis mulieribus (1489), reproduzido
em fac-símile da edição latina de Colônia, 1489, placa 6 ... Erro! Indicador não definido.
Figura 5. Artista desconhecido. Em De lamiis et phitonicis mulieribus (1489), reproduzido
em fac-símile da edição latina de Colônia 1489, placa 5 ............................................ 100
Figura 6. Artista desconhecido. Em De lamiis et phitonicis mulieribus (1489), reproduzido
em fac-símile da edição latina de Colônia 1489, placa 3 ........................................... 102
Figura 7. Artista desconhecido. Schleswiger Dom Volva, século XIII?Erro! Indicador não
definido.
Figura 8. Artista desconhecido. Figura feminina com uma vassoura, século c.
XIII...............108
Figura 9. Artista desconhecido. Detalhe de bruxa em transvecção, c. 1490 ............. Erro!
Indicador não definido.9
Figura 10. Oficina Elmelunde. Sem título, c. 1480 .............. Erro! Indicador não definido.
Figura 11. Artista desconhecido. Roubo de leite e bater manteiga, c. 1460-80 ........ Erro!
Indicador não definido.
Figura 12. Artista desconhecido. Mulher batendo manteiga com o diabo, c. 1492 .. Erro!
Indicador não definido.
Figura 13. Artista desconhecido. Detalhe de Mulher batendo manteiga com o diabo, c.
1492.................................................................................. Erro! Indicador não definido.
Figura 14. Albrecht Dürer. As quatro Bruxas, 1497 ............ Erro! Indicador não definido.
Figura 15. Artista desconhecido. As três Graças, Cópia romana ( 2 Século ?), .......... Erro!
Indicador não definido.
Figura 16. Albrecht Dürer. Detalhe As quatro Bruxas, 1497Erro! Indicador não definido.
Figura 17. Albrecht Dürer. Detalhe As quatro Bruxas, 1497Erro! Indicador não definido.
Figura 18. Albrecht Dürer. O banho das mulheres, 1496 .... Erro! Indicador não definido.
Figura 19. Albrecht Dürer. Detalhe de As quatro Bruxas, 1497Erro! Indicador não
definido.
Figura 20. Barthel Beham. A morte e Três Mulheres nuas, c. 1525-7Erro! Indicador não
definido.
Figura 21. Albrecht Dürer. A Bruxa ou Bruxa montada para trás, c. 1500Erro! Indicador
não definido.
Figura 22. Andrea Mantegna. A Batalha dos Deuses do Mar, ca. 1475Erro! Indicador
não definido.
Figura 23. Andrea Mantegna. Detalhe de A Batalha dos Deuses do Mar, ca. 1475 .. Erro!
Indicador não definido.
Figura 24. Albrecht Dürer. Detalhe de A Bruxa ou Bruxa montada para trás, 1500.. Erro!
Indicador não definido.
Figura 25. Albrecht Dürer. Detalhe de A Bruxa ou Bruxa montada para trás, 1500.. Erro!
Indicador não definido.
Figura 26. Autor desconhecido. Camafeu romano de Aphrodite Epitragia, c. 1 d.C – 2
d.C.......................................................................................................................................
...148
Figura 27. Agostino Veneziano (Agostino de'Musi). A rota das Bruxas ou A Carcaça (Lo
Stregozzo), 1520 ....................................................................................................... 149
Figura 28. Agostino Veneziano (Agostino de'Musi). Detalhe de A rota das Bruxas ou A
Carcaça (Lo Stregozzo), 1520 .................................................................................... 150
Figura 29. Hans Baldung Grien. Trabalhador tentado pelo demônio, 1509 .............. Erro!
Indicador não definido.
Figura 30. Hans Baldung Grien. As Bruxas, 1510 ................ Erro! Indicador não definido.
Figura 31. Albrecht Altdorfer. Partida para o sabá, 1506 .. Erro! Indicador não definido.
Figura 32.Hans Baldung Grien. Detalhe de As Bruxas, 1510Erro! Indicador não definido.
Figura 33. Hans Baldung Grien. Detalhe de As Bruxas, 1510Erro! Indicador não
definido.
Figura 34. Hans Baldung Grien. Detalhe de As Bruxas, 1510Erro! Indicador não
definido.
Figura 35. Oficina de Baldung (artista desconhecido). Reprodução da xilogravura original
de Die Emeis ..................................................................... Erro! Indicador não definido.
Figura 36. Hans Baldung Grien. Cartão de ano novo com três bruxas,1514.............. Erro!
Indicador não definido.
Figura 37. Hans Baldung Grien. Sabá das Bruxas, 1514 ..... Erro! Indicador não definido.
Figura 38. Hans Baldung Grien. Bruxa com um Dragão, 1515Erro! Indicador não
definido.
Figura 39. Urs Graf, cópia de Hans Baldung Grien. O sabá das bruxas, 1514 ........... Erro!
Indicador não definido.
Figura 40. Francisco de Goya e Lucintes. Linda maestra! ,1799Erro! Indicador não
definido.
Figura 41. A partir de Hans Baldung Grien/ monograma HF - Hans Frank. Sabá das Bruxas,
1515.................................................................................. Erro! Indicador não definido.
Figura 42. Hans Baldung Grien. O cavalariço enfeitiçado,1544Erro! Indicador não
definido.
Figura 43. A partir de Hans Baldung Grien/ Frans Crabbe. Um cavalo, 1520-1530 ... Erro!
Indicador não definido.
Figura 44. Lucas Cranach, o velho. Alegoria da Melancolia, 1528Erro! Indicador não
definido.
Figura 45. Lucas Cranach, o velho. Detalhe de Alegoria da Melancolia, 1528 .......... Erro!
Indicador não definido.
Figura 46. Jacob Cornelisz van Oostsanen. Saul e a bruxa de Endor,1526Erro! Indicador
não definido.
Figura 47. Jacob Cornelisz van Oostsanen. Detalhe de Saul e a bruxa de
Endor,1526 ....................................................................... Erro! Indicador não definido.
Figura 48. Jacob Cornelisz van Oostsanen. Detalhe de Saul e a bruxa de
Endor,1526 ....................................................................... Erro! Indicador não definido.
Figura 49. A partir de Pieter Bruegel, “o Velho”/ Pieter van der Heyden. São Tiago Maior
e Hermógenes, 1565 ................................................................................................. 201
Figura 50. Peronet Lamy. Detalhe de iluminura do manuscrito de Martin Le France, Le
Champion des Dames, 1451 ...................................................................................... 202
Figura 51. A partir de Pieter BRUEGEL, “o Velho”/ Pieter van der Heyden. Detalhe de São
Tiago Maior e Hermogenes, 1565 ............................................................................. 203
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 14
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 19
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS DE UMA TEORIZAÇÃO DA BRUXARIA ................ 28
TENSÃO NA CRENÇA CRISTÃ .................................................................................... 29
UMA QUESTÃO DE GÊNERO .................................................................................... 70
A INSTAURAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DA BRUXARIA NAS ARTES VISUAIS DA
EUROPA OCIDENTAL: AS BRUXAS DE ALBRECHT DÜRER . Erro! Indicador não definido.
OS DOIS MODELOS ESTABELECIDOS POR DÜRER: O GROTESCO E O
AFRODISÍACO ................................................................ Erro! Indicador não definido.
O PROTAGONISMO DO CORPO DA BRUXA NA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DE HANS
BALDUNG GRIEN .............................................................. Erro! Indicador não definido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................... Erro! Indicador não definido.
REFERÊNCIAS .................................................................... Erro! Indicador não definido.
APRESENTAÇÃO
Mal eu saberia que em todos aqueles anos de minha infância e adolescência
assistindo Sailormoon, Sakura Card Captors e Inuyasha, emocionando-me de todas as
formas possíveis, sem contar as várias abdicações para vê-los, não seriam em vão. Estes
desenhos televisivos feitos pelos estúdios japoneses (isto é, animes) foram minha base
imaginativa e meu alicerce para conseguir viver o período em questão. As pressões
psicológicas de tentar ser a melhor atleta de natação e ser a melhor filha, neta ou
sobrinha eram sentimentos intrínsecos a mim. Eu acompanhava também as emoções
de uma mãe que suportou os mais variados constrangimentos e intimidações por ter
tido uma filha muito jovem, sem mencionar o fator de ter tido um ex-marido e, no meu
caso, um pai, alcóolatra e ausente desde os meus quatro anos. Esses animes me
deixaram em uma realidade digamos, paralela, fortalecendo de alguma forma minha
imaginação e minha vontade de ser uma pessoa melhor e viver em um mundo que não
fosse aquele que eu enfrentava. Não consigo contar, por exemplo, quantas vezes
cheguei rapidamente em casa, depois de um treino difícil, para assistir exatamente a
sequência dos desenhos que apresentei acima.
Ela estará inserida em todos os momentos e áreas dos “crimes”, seja em ambos
os sumiços dos irmãos; seja com brincadeiras em forma de ameaça com seus irmãos
gêmeos, uma menina e um menino, de que seria realmente bruxa – em que jogaria um
feitiço se não parassem de irritá-la; ou então, quando confrontou o pai e o acusou de
ser o principal causador das desgraças da família. Enfim, comportamentos quase óbvios
para que as acusações caíssem sobre ela.
Por isso, ressalto que uma área ainda acobertada de pesquisa é sobre a história
da bruxaria, e principalmente, sobre o desenvolvimento da imagem da bruxa, o que
dificulta não só o acesso acadêmico do tema no país, como também a problematização
das representações visuais, já que a maioria da nossa cultura visual aparenta ser tão
demarcada. Reuniremos, então, em um restrito recorte, uma pequena parte do
abundante número de pesquisas, desejando que cada vez mais o interesse e a procura
por elas se multipliquem.
INTRODUÇÃO
A questão central que move este trabalho é “por que surgem e para quem são
direcionadas as primeiras imagens da bruxa nas Artes Visuais?”. Para chegarmos a uma
possível resposta, foi preciso traçar um caminho com a relação por que e para quem a
fim de desenvolvemos um pensamento crítico sobre o tema e as imagens. Tal relação
esteve presente na análise consoante a algumas perspectivas historiográficas sobre os
motivos que levaram a criação do mito da bruxaria e a quem eram destinados tais
concepções e elaborações. Essa relação foi essencial também para após,
compreendermos as razões de determinados artistas utilizarem o tema da bruxaria em
seus trabalhos, assim como para identificar seus públicos-alvo. Eis em algumas palavras
a base dos três capítulos propostos nessa dissertação.
Professora de Literatura inglesa da Keble College de Oxford e também notável
pesquisadora sobre a bruxa moderna e sua fragmentada imagem do passado, Diane
Purkiss traz observações significativas em seu The Witch in History: Early Modern and
Twentieth-Century Representations ou A Bruxa na História: Representações da Pré-
Modernidade e do Século XX (1996). Ela analisa que nos dez anos anteriores ao ano da
sua publicação, houve um grande número de trabalhos abordando a questão do gênero
e do sobrenatural de maneiras até então não vistas. Mais do que isso, a pesquisadora
constata que desde o final dos anos setenta, a figura da bruxa tem sido central nos
debates ocorridos na tentativa de um renascimento da história das mulheres. As
possíveis causas vêm de um interesse duplo da pesquisa acadêmica e de mulheres
militantes:
Esse ressurgimento foi realizado por historiadores acadêmicos, mas não
apenas por eles; o ímpeto original por trás da tentativa de descobrir o passado
das mulheres veio de ativistas do movimento de libertação das mulheres, e
em parte do fato de que as bruxas estavam entre as poucas mulheres que
recebiam qualquer espaço na história pré-feminista. (PURKISS, 1996, p. 9)1
Escolha da protagonista
1
“This revival was carried out by academic historians, but not only by them; the original impetus behind
the attempt to uncover women's past came from activists in the women's liberation movement, and partly
from the fact that witches were among the few women who were given any space in pre-feminist history”.
Antes de tudo, não podemos nos moldar às informações fornecidas pelos
dicionários, com definições conflituosas, salvo somente se for para perpetuar o que
chamaremos de “teorização da bruxaria”, ideia desenvolvida no primeiro capítulo; ou
então para reforçar os termos e preconceitos de gênero da nossa fala contemporânea,
sendo tal forma muito difícil de escaparmos. Na última versão do Houassis, por exemplo,
temos que a palavra bruxa tem como: “1- mulher que tem fama de se utilizar de
supostas forças sobrenaturais para causar malefícios, perscrutar o futuro e fazer
sortilégios; feiticeira. 2- p.ext. mulher muito feia e/ou azeda e mal-humorada”. De fato,
houve bruxos homens que eram estudados, acusados e condenados, mas como veremos
no decorrer de toda a pesquisa, a ênfase dada ao gênero feminino é essencial não só
para fundamentar e desenvolver o mito da bruxaria, mas principalmente, para auxiliar
no surgimento das primeiras imagens sobre o mesmo.
Inteiramos que o termo “bruxa” não traz uma, nem duas definições fixas. Ela
acompanha as alteridades do tempo, assim como as instabilidades geográficas, políticas
e religiosas entre os diversos grupos que a utilizam. Em concordância com Purkiss,
“bruxa”
Escolha teórica
2
“It could be appropriated by patriarchy, protofeminism, medicine, skeptical rationalism and radical
religion. In villages and towns, witchcraft could become a central signifier in debates about power,
employment, norms, values, property rights and land ownership. None of this implies that the
supernatural aspects of witchcraft did not matter; they mattered in a variety of ways in different contexts.
As the term 'witch' traversed these diverse spaces, its own meaning s revised silently or openly rewritten”.
desenvolvidas por autores como Robert Mandrou (1968), Norman Cohn (1975) e Jean
Delumeau (1978).
As duas partes do nosso primeiro capítulo se baseiam, pois, na teoria
culturalista e a teoria da bruxaria como questão de gênero. De maneira geral, a primeira
trata a bruxaria como a relação da criação dos inquisidores, intelectuais e religiosos,
como um reflexo de crenças, mitos e folclores populares res-significados pelos valores
sociais da Idade Média Tardia, em que se inclui Carlo Ginzburg (1966), Alan Macfarlane
(1970), Keith Thomas (1971), Walter Stephens (2002), entre outros.
Para a maioria desses autores – inclui-se aqui aqueles pertencentes à teoria
romântica e racionalista, ou não ocorre o debate sobre a presença do gênero feminino
na relação de acusadores e acusados ou é visto por eles como um fator secundário. É
por esse motivo que serão pouco aprofundados, salvo em determinados momentos da
pesquisa, autores prestigiados como Alan Macfarlane e seu Witchcraft in Tudor and
Stuart England (1970) ou Bruxaria na Inglaterra dos Tudor e Stuart, Keith Thomas em
Religião e o Declínio da magia (1971) e Norman Cohn e seu Europe's inner demons
(1975) ou Demônios interiores da Europa. Seguimos esse caso partindo de Diane
Purkiss3, que observa que
A recusa dos “historiadores” em participar do debate [sobre a questão de
gênero] sugere que eles simplesmente não podem levar a sério a teoria do
fim da história das mulheres. O fato de o pós-estruturalismo ameaçar tirar os
historiadores do trabalho não o torna falso. Embora alguns historiadores
realmente ofereçam outras refutações, estas geralmente são baseadas em
certo descuido interpretativo. [...] Tanto os críticos literários, quanto os
historiadores agora reconhecem a importância de questões como “Quem
está falando aqui? A que horas? Em que tipo de contexto?” [...]. O contexto é
composto de outros textos, no entanto. Tal metodologia depende do acesso
a uma variedade de textos em gêneros semelhantes por autores
semelhantes, de classe social similar, gênero e assim por diante, e também
depende de encontrar um número de textos por autores diferentes do autor
sendo estudado em todos esses aspectos, para fornecer diferentes
usos. (PURKISS, 1996, p. 69, 71,73)4
3
Devemos destacar que Purkiss (1996) faz críticas específicas a Thomas e Macfarlane (ver p. 44, p. 62, p.
68). As “acusações” da autora são assim mencionadas na introdução de James Sharpe da segunda edição
do livro de Macfarlane (1999, p. XIX) – que não por acaso é uma versão modificada da tese de Doutorado
do autor (Oxford D.Phil. thesis) que foi orientado pelo próprio Keith Thomas com o título Witchcraft
Prosecutions in Essex, 1560-1680; A Sociological Analysis (1967) ou Processos de bruxaria em Essex, 1560-
1680; Uma análise sociológica.
4
“’Historians' refusal to join in the debate at all suggests that they simply cannot bring themselves to take
wom-en's history ender theory seriously of interest in.
The fact that poststructuralism threatens to throw historians to
out of work does not make it untrue. Though some historians do offer other refutations,
Diante disso, trouxemos a teoria mais recente que estuda a bruxaria ligada às
questões de gênero. Especialmente na segunda parte, temos uma análise carregada de
textos de autores variados que direcionam nosso olhar para a vida das mulheres e a
cultura misógina na qual estavam inseridas. Essa parte será marcante na nossa pesquisa
já que uma das nossas bases teóricas, as questões ligadas à teoria da bruxaria, é
assimilada por nós como essencialmente vinculada ao estudo de gênero, principalmente
quando tivermos que nos concentrar na mentalidade do artista homem, definidor da
imagem da bruxa.
these are usually based on a certain interpretive carelessness. [...] Both literary critics and historians now
knowledge the importance of questions such as 'Who is speaking here? And to whom? At what time?
What kind of context?'[...]. The context is composed of other texts, however. Such a methodology
depends on access to a variety of texts in similar genres by similar authors of similar social class, gender,
and so on, and also depends on finding a number of texts by different authors of the author being studied
in all these respects to provide different uses".
Também temos a questão sobre o mito dos tempos das queimas maciças de
bruxas em fogueiras, chamado de Burning Times ou Tempos Ardentes. Temos que ter
claro a partir de Purkiss de que
5
“What does all this tell us about gender and history? The radical feminist creation of the myth of the
Burning Times is difficult to analyses and discuss because it has become such a key part of many feminists'
identities that to point to its limitations is bound to be painful and divisive. The myth reminds all of us that
want to find ourselves in the past, that we scan the past looking for confirmation of who we are, who we
want to be. We search for something to aim for, and something to aim against. […] It is visible in the way
the myth of the Burning Times covers over historical specificity in its eagerness to unite women, and in
the coerciveness of the myth thus created. […] These thefts show how far narcissism can go in clouding
the past to make a mirror for the endlessly uncertain present. In thus helping ourselves, we are silencing
early modern women anew. We are also denying ourselves the chance to hear historical differences which
might show us just how different things could be, how fragile the assumptions which make us suffer now
might seem to our descendants. If the past is different, the future can be”.
em favor de uma descrição mais detalhada das histórias das mulheres não
torna a questão do gênero irrelevante; coloca essa questão de uma forma
nova e urgente. Para ler as histórias produzidas pelas mulheres depoentes, as
feministas precisam fazer novas perguntas sobre o papel desempenhado pela
ideologia de gênero em despertar ansiedades e medos das
mulheres. (PURKISS, 1996, p. 92)6
6
“As male historians have somewhat gleefully pointed out, the theory that witch-hunting equals misogyny
is embarrassed by the predominance of women witnesses against the accused. However, this does not
mean that gender ideology plays no part in shaping women's stories. Abandoning simple global narratives
of misogyny in favor of a more detailed account of women's stories does not render the question of
gender irrelevant; it poses that question in a new and pressing form. In order to read the stories produced
by women deponents, feminists need to ask new questions about the role played by gender ideology in
arousing women's anxieties and fears”.
artista desenvolveu em apenas duas imagens os dois modelos corporais da personagem
determinados como a bela bruxa e a bruxa grotesca, vistos em trabalhos de seus
contemporâneos e de artistas dos séculos seguintes, e que estão presentes, inclusive,
na nossa cultura visual atual. Autores como Aby Warburg, Erwin Panofsky e André
Chastel estarão presentes nessa parte para conseguirmos ter uma melhor compreensão
do momento artístico que vivia um dos artistas mais marcantes do Renascimento.
Por mais que nós estejamos distantes desse período, assim como a relação do
historiador com o passado, tentaremos, pois, captar nas próximas páginas as sugestões
nos trabalhos deixadas pelos artistas sobre as falas do seu tempo.
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS DE UMA
TEORIZAÇÃO DA BRUXARIA
Esse estudo fez referência a outra importante pesquisa publicada no ano 2000,
realizada por Alan Charles Kors e Edward Peters. Os pesquisadores reuniram um
conjunto de textos, ensaios e anedotas que foram compilados em Witchcraft in Europe,
400-1700: a Documentary History ou Bruxaria na Europa, 400-1700: uma história
documentada. Através dos escritos, eles analisam as possíveis origens dessa ansiedade
e dos elementos que foram utilizados para concretizar o mito da bruxa. Através dos
narradores escolhidos pelos autores, não exploramos somente a especulação bíblica e
patrística sobre a natureza do mal e o trabalho filosófico a respeito da matéria e do
espírito; temos também um olhar singular de como foram assimilados a religião, o
folclore celta e germânico e os antigos cultos pré-cristãos, que passaram a ser notados
e agregados.
Mas a bruxaria europeia e todo seu universo teórico tem, ainda assim, algumas
ressalvas e que não podemos deixar de mencionar. A renomada pesquisa de Alan
Macfarlane (1999) sobre a bruxaria em território inglês nos mostra que ao contrário do
continente europeu (onde nossa pesquisa disserta), os tipos de crimes atribuídos às
bruxas de Essex não mostraram nenhum conteúdo sexual. Quando feita a leitura dos
crimes, o autor observou que a virilidade não fora atacada em nenhuma forma, como
veremos, por exemplo, de agressões sobre os genitais masculinos ou das massivas
participações em orgias sexuais em textos originados em terras germânicas e italianas.
Devemos ressaltar também que a ligação da religião com o desenvolvimento de uma
teorização da bruxaria, a qual desenvolvemos, deu-se de forma diferente na
configuração geográfica trabalhada por Macfarlane. Os escritos analisados por ele
demonstraram que
Aqueles que trouxeram a acusações foram principalmente desinteressados
no suposto pacto com o Diabo, na perda da alma do acusado ou qualquer
ataque presumido à Cristandade. O diabo nunca apareceu como um homem
em Essex antes do julgamento excepcional de 1645; quando ele apareceu era
então geralmente como um pequeno animal - um gato ou um furão. Isso
estava longe da terrível concepção de Satanás abrigado pelos puritanos. Na
maioria das descrições de Essex sobre bruxaria não houve menção do diabo
ou de um suposto compacto pela bruxa, que assim trocou sua alma pelo
poder diabólico. O problema sobre a origem do poder da bruxaria não parecia
ter interessado particularmente os aldeões de Essex. Suas preocupações
estavam em mostrar a relação entre a raiva e o acidente. Também não
estavam curiosos quanto ao método utilizado de enfeitiçar. Poucos relatos
descreveram o uso de dispositivos mágicos elaborados, e não há sugestão de
que as bruxas perverteram os rituais cristãos ou se utilizaram de práticas
católicas romanas para ganhar poder. (Macfarlane, 1999, p. 188-189)7
7
“Those who brought the accusations were mostly uninterested in the supposed compact with the Devil,
the loss of the accused person’s soul, or any presumed attack on Christianity. The Devil never appeared
as a man in Essex before the exceptional trial of 1645; when he did appear before then it was usually as a
small animal — a cat or a ferret. This was far from the awful conception of Satan harbored by the Puritans.
In the majority of the descriptions of Essex witchcraft, there was no mention of the Devil at all, or of a
supposed compact by the witch, who thereby exchanged her soul for diabolic power. The problem of
where the power of witchcraft originated does not seem to have particularly interested Essex villagers.
Their concern was to show the link between anger and accident. Nor were they curious as to the method
used in bewitching. Few accounts described the use of elaborate magical devices, and there is no
suggestion that witches perverted normal Christian rituals to gain power, or used Roman Catholic
practices”.
e tais desastres foram e estão hoje ligados de modo intrínseco, mas essa relação ficou
por um bom tempo somente entre um grupo restrito de pessoas. Antes de 1400,
observam Kors e Peters (2001), não havia uma consciência ampla, alfabetizada e ciente
das tensões sociais e políticas, da vulnerabilidade espiritual e do desamparo sobre os
acontecimentos da época. O envolvimento de diversos grupos da Europa formados por
clérigos, filósofos e políticos, surgiu somente com a junção das ideias disseminadas pelas
perseguições, principalmente nas áreas cristãs em guerra e o sombrio espalhamento de
pestes e da fome, que serviram para disseminar esse medo do poder demoníaco e,
consequentemente, das perseguições inquisitoriais.
8
“[…] All distinctions between humans and animals were erased, says Boccaccio people died like cattle,
and pigs died like people. What could cause such widespread death? Boccaccio is uncertain whether to
attribute it to God's righteous anger at human sin or to an astrological ‘dis-aster,’ a strange and deadly
Essa dúvida que ocorreu em Boccaccio e em tantos outros pensadores, só
escancara tal insegurança vivida por esses grupos. Na citação acima vemos a hesitação.
De acordo com Carlo Ginzburg, a sociedade em geral que tem no seu cerne o
atravessamento por conflitos, vive esse debate principalmente porque ambos os lados,
o bem e o mal, dependem de quem os define e, por isso, a identificação dos mesmos só
acontece a partir de uma relação de força, “tanto mais eficaz quanto mais seus
resultados se difundiam de maneira capilar” (2012, p. 27-28). É na tentativa de reparar
e reabilitar as suas crenças que a elite pensadora explorou e deduziu equivocadamente
a cultura de determinados grupos e suas visões sobre mundo espiritual. Nesse caminho,
tivemos ainda, segundo Ginzburg (p.91), em um seguimento social, os leprosos; daí um
grupo maior, numa identificação religiosa e étnica, os judeus; e o ponto culminante, a
seita guiada pelo demônio encarnado, os feiticeiros diabólicos e as bruxas. Ele
acrescenta (p. 294) que os elementos desse último grupo vieram de uma lenta
sedimentação entre as trocas dos grupos dos caçadores siberianos, dos xamãs da Ásia
Setentrional e Central e dos nômades das estepes, identificáveis também na região
alpina, onde possivelmente tenha sido a fonte mais próxima para os teóricos da bruxaria
definirem e condenarem a o ato e a imagem do que se tornou o sabá.
Tomemos como exemplo o caso dos Valdenses (Vaudois) presentes nos Alpes
Ocidentais, denominados assim por serem seguidores tardios da pregação religiosa
conduzida por Pedro Valdo (1140 - 1220). Através de Ginzburg, compreendemos que
estes se tornaram, no século XIV, um sinônimo para bruxa ou bruxo e que praticariam
rituais diabólicos, sendo evidenciada nas suas confissões a combinação dos seus
costumes e das suas práticas com as características artificiais pré-concebidas pelos
inquisidores.
alignment of the planets. In other words, Boccaccio hesitates over just that choice of causes that Aquinas
and the witchcraft theorists’ dreaded making: God or astrology, spirits or bodies”.
Pessoas que não podiam ler e escrever foram, obviamente, incapazes de
deixar registros em primeira mão de suas crenças sobre os espíritos: as
descrições que herdamos foram registradas pelos alfabetizados e
provavelmente estão manchadas por pressupostos e ansiedades dos
alfabetizados. No entanto, parece que, ao longo da história da bruxaria
europeia, os acusadores iletrados e os réus em julgamentos tiveram uma
crença mais firme e menos complicada na realidade dos espíritos do que a
elite alfabetizada que os forçou a discutir a realidade espiritual. (STEPHENS,
2002, p. 17-18)9
9
”People who could not read and write were obviously unable to leave firsthand records of their beliefs
about spirits: the descriptions that we have inherited were recorded by the literate and are probably
tainted by literate presuppositions and anxieties. Nonetheless, it appears that, throughout the history of
European witchcraft, the illiterate accusers and defendants in trials had a firmer, less complicated belief
in the reality of spirits than did the literate elite who forced them to discuss spiritual reality. Fairies, elves,
and. other beings foreign to the biblical and theological tradition were probably mentioned initially by
defendants or accusers, not interrogators”.
que a Igreja pregava. Apesar do presente estudo destacar o período a partir do século
XV, filósofos e teólogos escolásticos do século XII e XIII já realizavam teorias
contundentes através do método com perguntas, hipóteses e respostas. Na verdade,
essa ansiedade já pode ser percebida desde o início do século XI, com o embate entre
as Igrejas conhecidas hoje como Católica Romana e Ortodoxa. A partir do Grande Cisma
do Oriente, que ocorreu em cerca de 1054, tivemos a ruptura da Igreja de Roma e a
Igreja de Constantinopla. Naquela época, escritores ortodoxos se utilizaram de
acusações para lidar com tais aflições, vindas da elite pensadora teológica, os quais
antecedem as dos teóricos da bruxaria e da Reforma Protestante.
Dos acusadores aos acusados, temos, por exemplo, o debate sobre a realidade
da Eucaristia e da Santa Comunhão, presente nos escritos de Heinrich Kramer e seu
Malleus Maleficarum (1487); temos também Johannes Nider, outro importante teórico
que alertou sobre o hussitismo, assim como outros primeiros teóricos da bruxaria que
mencionaram e alertaram sobre os Cátaros e os Valdenses. Todos esses movimentos
parecem ter surgido e se transformado em grupos significativos, partindo desse mal-
estar expressivo à determinados mitos e ritos ainda não assimilados pela Igreja.
a) Benéfica
(com muitas
variedades)
[MAGIA]
b) Maléfica
(com muitas
variedades)
III.feminina
medieval
I. feminina,
clássica greco-
romana (feitiçaria)
II.feminina
germânica
10
“Entre los germanos cada «situación» social dio lugar a un tipo de Magia y que incluso se afirma que los
dioses la usaron en determinadas circunstancias. Podemos decir asimismo que, apesar de lo extraño que
parezca esto, la práctica de la Magia se ajusta a un orden lógico y a un orden social: como ocurre en otras
comunidades bien estudiadas modernamente y que la maléfica florece en determinados estados de
tensión”.
A partir do esquema acima, segundo o autor e seu método singular, podemos
realizar rapidamente (e como forma de complementar a discussão) uma distinção entre
Feitiçaria e Bruxaria: magia maléfica relacionada aos personagens mais específicos
(denominados por ele de Feitiçaria), e também relacionada a outros dois grupos que
Baroja definiu como “mais complexos”, “aparentemente associados a um verdadeiro
culto que para nós será a própria Bruxaria” (BAROJA, 1961, p. 112)11. Como bem destaca
o autor, essas variações, que causaram profundas modificações, surgiram de debates e
observações gerados pela Escolástica de Tomás de Aquino e outros filósofos dos séculos
XIII e XIV. Passamos então a eles.
11
“Asociada, al parecer, a un verdadero culto que para nosotros será la Brujería propiamente dicha”.
12
Podemos complementar aqui, de um modo mais geral, a definição de Alan Macfarlane (1999). A partir
da sua pesquisa relembramos que a bruxaria na Inglaterra, mais especificamente no Condado de Essex,
era diferente do Continente Europeu e na Escócia (não foi identificado que as bruxas poderiam voar, assim
como não se encontravam em sabás e nem em orgias sexuais). Macfarlane afirma também que na maioria
das descrições em Essex não houve menção do diabo (p.189) e, por isso, define como bruxaria “uma
atividade sobrenatural, sendo o resultado do poder dado por alguma força externa (por exemplo, o Diabo)
e resultar em lesão física à pessoa ou objeto atacado por ela” (1999, p.3) (mais informações sobre a
terminologia ver esquema em Capitulo 1, página 4.
dá principalmente pela razão de que elas coincidem com os elementos que foram
trabalhados pelos artistas.
O ato sexual foi uma singularidade na construção teórica sobre bruxaria, pelo
menos no continente Europeu. Talvez por isso que o mesmo tenha sido trabalhado de
certa forma e com suas particularidades nas artes visuais do período, se tornando a
expressão mais comum de demonologia, segundo o jurista Jean Bodin, no final século
XVI (STEPHENS, 2002, p. 13). A ideia desenvolvida de que haveria um ato de submissão
sexual das bruxas para com os demônios, as quais foram denominadas servas de corpo
e alma, não chega a ser explícita nas imagens, mas essa informação é relevante para
compreendermos melhor de que maneira foi estabelecida a figura literária da bruxa.
Como veremos nos próximos capítulos, as primeiras figuras femininas como bruxas
foram trabalhadas dentro das suas individualidades, sem a presença física da figura
masculina e sem uma conjuntura organizacional de uma postura de devoção em relação
às figuras demoníacas. Como veremos, em concordância com Baroja (1961), o artista
juntamente com a Igreja auxiliou na difusão das ideias para a disseminação de certas
concepções dos teólogos: assim como a literatura eclesiástica circulava através dos
textos em latim e que, após, passou a circular em vernáculo, as imagens direcionavam
o olhar e, de certa forma, o entendimento do seu espectador.
13
“In his defense of Christian monotheism, Augustine declared that the gods worshiped by pagan Egypt,
Greece, and Rome had all been demons who misrepresented themselves to humans. This meant that
idolatry was a form of demon worship. In addition, pagan literature did not represent the god’s pure
spirits. Although the gods could change their appearance at will, they had bodies that were as real as any
human’s was, and they interacted constantly with mortals in very physical ways. This was particularly true
in the texts that future theologians studied to refine their knowledge of Latin, Virgil's epic Aeneid and,
especially, Ovid's Metamorphoses. The latter declaredly about the transformations of bodies and its
treatment of sex is often quite explicit. Greco-Roman stories of sexual liaisons between gods and humans
would eventually be exploited by witchcraft theorists to […] physical interactions with demons. The
question was, what kind of bodies these "gods" or demons actually had?”
Dificilmente teremos uma resposta para essa pergunta, se é que existe alguma.
Tanto é que as imagens que trabalharam o tema propiciaram mais elementos e subsídios
à discussão sem, necessariamente, dar uma solução. De qualquer forma, como
resultado dos argumentos de Stephens (2002) e Kors e Peters (2001), a relação sexual
entre o ser humano e o ser animal, muito presente nas histórias e anedotas das histórias
pagãs, foram adaptadas pelos teóricos da bruxaria para definir o sujeito e a ordem.
Podemos adiantar aqui uma observação de Julio Baroja (1961): apesar da perpetuidade
de referências no decorrer do século XVI sobre os cultos noturnos das bruxas às deusas
pagãs (como adiante veremos), o frequente aparecimento nos livros e processos de um
diabo denominado como um senhor natural, ganhando, inclusive, particularidades
físicas foi muito significativa, compreendido pelo autor como uma “verdadeira
demonolatria” na Europa no final da Idade Média e os primórdios do Moderno.
CRISTIANISMO
____________
PAGANISMO
Seu método, usado por Kramer e seu Malleus Maleficarum, por exemplo,
trouxe a posição do autor sobre a defesa da doutrina em questão, assim como a
discussão e o desenvolvimento de uma “contra doutrina”. As consequências do
esquema de Aquino, segundo Kors e Peters (2001, p. 88) não só foram essenciais por
servir como um nova maneira de exercer o pensamento – no caso da teoria da bruxaria,
em especial, se via uma disputa acadêmica muito dependente do argumento sed contra
de Aristóteles –, mas também como uma solução às objeções e posições daquelas
pessoas que defendiam o contrário do pensamento do autor, como a própria existência
da bruxaria, a transvecção (ou voo noturno), a transubstanciação, a corporeidade do
demônio, entre outros.
Profanação da eucaristia
Você é esse deus dos cristãos? Você é aquele Jesus Cristo quem a credulidade
louca dos cristãos considera e acredita ser absolutamente para Deus? Se você
é aquele homem, a quem meus pais desistiram de ser espancado, então, por
meio deste, eu o comprometo com as ondas ferventes! Se eles te torturaram
com a cruz, eu te entrego para cozinhar! Eles te deram a morte quando você
14
“One key reason for this was the very structure of their dialectical reasoning itself. That form of
reasoning attributed great authority to scripture, ecclesiastical tradition, and the words of the church
fathers. When authorities appeared to contradict each other, theologians had to find a satisfactory means
of reconciling those apparent contradictions. That means became the basis of scholastic logic (that is, the
logic of the schools, later the universities)”.
estava vivo, mas, agora que você está morto, eu lhe darei a morte
novamente! Se você quer falar, se você é Deus, mostre todo o poder que você
tem, e defenda-se do fogo!”. (SPINA apud STEPHENS, 2002, p. 212)15
Nesse exato momento, ele e os filhos que ali estavam teriam visto um menino
pequeno surgindo e caminhando na água fervente. Era Cristo em forma humana.
Este conto está presente no tratado, Fortalitium Fidei ou Fortitude da Fé, escrito
cerca de 1460, por Alphonso de Spina (1412 - 1491), um importante pregador espanhol,
escritor e demonólogo. Segundo Stephens, ele trouxe em palavras algo que já circulava,
mais ou menos, por mais de dois séculos antes dessa publicação e que serviu como uma
excelente anedota postuladora da sacralidade da santa comunhão e da veracidade dos
sacramentos – além da validação do estereótipo do judeu.
Por isso, uma das melhores soluções encontradas pelos teóricos da bruxaria
para manter a credibilidade das energias e efeitos dos sacramentos foi, a partir da noção
de maleficia, passar a construção imagética do judaísmo para a bruxaria. O embate da
Igreja contra aqueles que dessacralizavam porque eram céticos, no caso dos judeus,
passou àqueles que acreditavam o suficiente a ponto de denegri-los.
15
“Are you that god of the Christians? Are you that Jesus Christ whom the crazy credulity of the Christians
considers and believes absolutely to e God? If you are that man, whom my father’s gave up to be beaten
then I hereby commit you to the boiling waves! If they tortured you with the cross, I give you up to
cooking! They gave you to death when you were alive, but, now that you are dead, I will give you death
again! If you want to talk, if you are God, show whatever power you have, and defend yourself from the
fire!".
Malleus podemos ler muitas anedotas com aspectos, digamos, inventivos, tentando
formalizar muitas das experimentações corriqueiras da época. Stephens (2002) afirma
que muito do que Kramer se utiliza como exemplo de acusação seria, na verdade, um
ato de recomendação para que os seus leitores, na sua maioria, inquisidores e teólogos,
experimentassem nos acusados. Muito do que ele trouxe como provas de acusação, na
verdade estaria servindo como uma grande corrente de experimentos.
16
“The Eucharist was commonly defined by theologians as corpus verum, the true body of Christ. Just as
the virtual body of demons had to make imperceptible demonic reality evident, so the Lord's body was
required to demonstrate its hidden nature to human perception. The corpus demonis and the corpus
domini were subject to the same doubts, and only a real body would calm those doubts”.
17
Relembramos que é um conceito trazido por Stephens que significa a situação de quando bruxas são
carregadas corporalmente pelos demônios.
18
Sobre isso, Stephens ressalva: “De fato, há evidências de que, embora muitas vezes contassem tais
contos anti-semitas [...], os eclesiásticos cristãos frequentemente condenavam a violência contra os
judeus em seus escritos e às vezes tentavam impedir ou deter massacres deles” (2002, p. 216).
Entre os tratados sobre bruxaria mais importantes está o do dominicano
Johannes Nider (1380 - 1438), chamado Formicarius ou Formigueiro ou Colônia das
Formigas. Escrito em forma de diálogo entre um teólogo e um cético, entre 1431 e 1438,
foi publicado em 1475. As informações presentes nele foram citadas também no
Concílio de Basileia por volta de 1437, durante o pontificado de Eugênio IV (1383 - 1447).
O autor de Formicarius era reitor do convento dominicano da mesma cidade do Concílio.
Peters e Kors constataram que seu método para lidar com os céticos que ali se inseriam
foi a utilização de escrituras dos fundadores da Igreja e dos escolásticos. Ginzburg (2012)
destacou que Nider também usou os conselhos e as opiniões obtidas de dois
informadores: o juiz Peter von Greyerz, castelão de Blankenburg no Simmenthal de
Berna, e o inquisidor dominicano de Evian, reformador do convento de Lyon.
O teólogo alemão afirmou que o juiz Peter teria descoberto como as bruxas
"aprenderam a arte" da bruxaria: "As bruxas chegaram a uma certa reunião e, por meio
de seus próprios esforços, visivelmente viram [visibiliter viderunt] o demônio na imagem
assumida de um homem. Para ele, o discípulo tinha que prometer [fidem dare] a
abandonar o cristianismo, nunca adorar a eucaristia e pisotear o crucifixo, sempre que
puder fazê-lo em [latenter] segredo." (NIDER apud STEPHENS, 2002, p. 198).19
Possivelmente, foi na transmissão das informações de Nider no Concílio de Basileia que
pode se ver a repercussão de muitos dos elementos abaixo em outros tratados de
bruxaria.
[...] O juiz Peter me disse que em território bernês, treze bebês foram
devorados por bruxas em um curto espaço de tempo. A justiça pública
investiu severamente contra esses parricidas. Quando Pedro perguntou a
uma bruxa capturada como devoravam essas crianças, ela respondeu que o
método é este: com crianças não batizadas, ou mesmo com crianças já
batizadas se não estiverem protegidas pelo sinal da cruz e por orações,
matamos em nossas cerimônias, em seus berços, ou quando elas estão
deitadas na cama ao lado de seus pais, de modo que se pensava que elas
foram esmagadas (cobertos por seus pais) ou morreram de outra forma
natural. Nós as removemos secretamente de suas sepulturas e as cozinhamos
em um caldeirão até que sua carne, cozida e separada dos ossos, seja
transformada em líquido poderoso. Dos sólidos desse material, fazemos um
certo unguento que é útil para nossos desejos, artes e transformações. E, a
19
"The witches came to a certain meeting and by their own efforts visibly saw [visibiliter viderunt] the
demon in the assumed image of a man. To him the disciple had to promise [fidem dare] to abandon
Christianity, never to adore the Eucharist, and to trample the crucifix, whenever he could do so in secret
[latenter] ".
partir disso, com algumas cerimônias adicionais, qualquer uma que bebe
imediatamente se torna um membro e mestre da nossa seita. (NIDER apud
KORS; PETERS, 2001, p. 157)20
Uma ação importante praticada na sua maioria pelas bruxas, comum no nosso
imaginário dos séculos XX e XXI (como no meio cinematográfico), o ato de pisotear o
objeto do crucifixo (um sacramental) serviria, como no caso da eucaristia, para
prejudicar ou até acabar com o poder Divino. O interessante é que, no caso do crucifixo,
o sinal é onde está o poder (ou a magia?), não no objeto. Stephens afirmou que, em
Formicarius, a alegação não era clara de que atividades singulares como essa
possibilitariam o encontro inicial com o demônio, mas também não era negado. Outros
teóricos deixarão mais transparentes essa relação.
20
“[…] the judge Peter told me that in Bernese territory thirteen infants were devoured by witches in a
very short time. Public justice grew harsh toward these parricides. When Peter asked a captured witch
how they devoured these infants, she answered that the method is this: with unbaptized infants, or even
with infants already baptized if they are not protected by the sign of the cross and by prayers, we kill by
our ceremonies in their cradles, or when they are lying in bed beside their parents, so that they are
thought to have been crushed (overlain by their parents) or to have died some other natural way. We
then remove them secretly from their graves and cook them in a cauldron until their flesh, cooked and
separated from the bones, is made into powerful liquid. From the solids of this material we make a certain
unguent that is useful for our desires, arts, and transformations. From the liquids we fill container, and
from this, with a few additional ceremonies, anyone who drinks immediately becomes a member and
master of our sect”.
21
Stephens (2002, p. 186) destaca que: “Todo tratado de bruxaria mostra exemplos de demônios que
foram encaminhados por esse remédio. Kramer até recomendou que as bruxas acusadas bebessem água
benta para quebrar o maleficio de taciturnidade ‘através do qual seus familiares demoníacos os deixavam
confessar’”.
Uma resistência ao ceticismo
Verbalizando a expressão e induzindo o leitor a pensar que "isso não pode não
ser verdade", o autor de Demon Lovers analisa que os teóricos da bruxaria trabalharam
arduamente para manter a crença e a fé contra aqueles que estavam duvidando e
desacreditando nos dogmas e sacramentos da Igreja. De Tomás de Aquino, em 1270
com sua Summae Theologiae ou Suma Teológica, até Bartolomeo Spina (1474 - 1546),
de 1520, foram escritos tratados, ensaios e anedotas trabalhando essa dupla negação
um tanto quanto estranha se pensarmos numa lógica racional.
22
“The proof that demonic forces are at work is precisely the unreliability of the experiment, which is
construed as unnaturalness. Because the true witches' ointment has no natural, inherent powers, the
Devil can protect his interests by choosing freely whether to make it work”.
com as ideias apresentadas passaram a ser mais claros. Na evolução das histórias
experimentais de Nider (1437) e Alonso Tostado (1455), professor e comentarista da
Bíblia Sagrada, até chegar a Spina, a substituição já acontecia. Ambos os autores
elevaram a bruxa à posição de autoridade suprema, se valendo das experiências vividas
e ditas por ela para que pudessem criar suas provas testemunhais.
23
Como bem detalha Stephens (2002, p. 89), a ordem dominicana, conhecida como a Ordem dos
Pregadores, tinha como tarefa expor às pessoas comuns o dogma ortodoxo em suas próprias línguas. Por
isso, teria assumido Alberti, por experiência própria, que as teorias demonológicas da bruxaria eram
estranhas às pessoas comuns.
personagem que passou de cético àquele convertido na verdadeira crença, que era na
crença da existência da bruxaria.
Como Spina, Giovan Francesco Pico della Mirandola trouxe a experiência para
dentro de suas histórias, mostrando não só para o leitor uma melhor forma de
compreensão da teoria, mas também reforçando para os teóricos que o liam, que a
24
“[Phronimus]: Ora mai, o Dicaste, il venire della notte c'invita, e persuade a ritornare a casa. Perocchè,
se non ti basta, Apistio, questa disputa, non so veramente ciò che abbia a bastarti, conciossiacosachè tu
abbi potuto comprendere e per l'antiquità, e per le cose fatte a' nostri tempi, questo giuoco non essere
una favola vana, ma in essenza antiquissimo, e nella maggior parte delle cose nuovo, mutato poi secondo
che è piaciuto al demonio. E muterassi forse ancora; tanta è grande la sottigliezza dell'ingannare
nell'antico persecutore degli uomini. Ti ho mostrato che i circoli, gli unguenti, le parole magiche, i viaggi
per la regione dell'aria, gli amorosi congiungimenti de' demonj si trovano così nei tempi nostri come in
quelli degli eroi, e che i demonj insino da principio della antiquità trovarno calunnie contra l'umana
generazione; avere con risposte schernito, ingannato con la familiarità, con imagini e simulacri, e tentato
tendere insidie ad ogni età, e ad ogni sesso; falsamente essersi mostrati Dii, avere dati agli uomini conviti
mortiferi [...];[DIC]: Credi tu queste cose?; [AP]: Credole; [DIC]: E così hai mutata opinione?; [AP]: Senza
dubbio alcuno, e perchè io ho mutato l'abito della mente, da qui innanzi voglio anco mutare nome; [DIC]:
Come ti piace, e per l'avvenire sarai chiamato Pistico”.
realidade da bruxaria nunca poderia depender da lógica. E eis outro grande feito da
dupla Alberti e Giovan Francesco Pico della Mirandola: combinar o texto em vernáculo
e em forma de narrativa, dois fatores que ampliaram o círculo de leitores, facilitando o
acesso e a assimilação do texto. É claro que as anedotas presentes no Malleus de
Kramer, cerca de trinta e cinco anos antes, e sua lógica teórica também foram exemplos
a serem seguidos. Agora, não podemos deixar de lado o público leigo, que encontrava
pela primeira vez uma história a qual eles poderiam ouvir e imaginar. Com isso, um
grupo mais amplo passou a captar o debate da elite pensadora e, possivelmente, a
adentrar nesse universo criado por eles.
Conhecida por teoria humoral ou teoria dos humores, utilizada pela Medicina
desde a Antiguidade até o período Moderno europeu, era creditado que toda fisiologia
normal do corpo dependia do equilíbrio de determinados humores. Sangue associado
ao coração, a fleuma ao cérebro, bílis amarela ao fígado e bílis negra ao baço. Todos
possuíam características já estabelecidas: o primeiro era quente e úmido, o segundo era
frio e úmido; a bílis, quente e seca; e a bílis negra; fria e seca. Cada ser humano e sua
constituição natural trazia diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo, o fleumático, o
colérico e o melancólico.
Quanto ao princípio do contágio, ele foi, a nosso ver, o vetor principal de uma
visão mágica do corpo, cuja parte sombria foi a de contribuir para dar crédito
às teses demonológicas e para desencadear perseguições em massa às
feiticeiras. Como adiante veremos, o elo entre esses fenómenos pode ser
estabelecido, analisando dos efeitos da doença, às causas da epidemia, com
o diabo desempenhando um papel na produção dos vapores da peste ou na
transformação do envoltório carnal de feiticeiros reputados igualmente
contagiantes. A seita diabólica adquiriu um novo sentido por seu poder de
contaminação, no momento em que a ideia em questão obcecava tanto os
médicos quanto os seus clientes. (MUCHEMBLED, 2001, p.95)
O mais interessante nessa questão da teoria dos humores é que a mesma serviu
como argumento não só para a demonização do corpo feita pela teoria da bruxaria,
muito utilizado no Malleus Maleficarum, por exemplo, mas também como forma de
detectar sintomas de uma doença física e psicológica defendida pelos céticos. O
historiador Walter Stephens (2002, p.137) afirma que, no final do século XVI, existiram
oponentes e críticos, como o médico holandês Johann Weyer (1515 - 1588) e o cavaleiro
inglês Reginal Scot (1538 - 1599), que afirmaram que a maioria das bruxas – o foco aqui
são as mulheres – foram claramente afetadas pela melancolia, uma doença física e
psicológica complexa, e não pelo demônio. Provocada por um excesso de bile negra, ela
causava ilusões, demonstrando que muitas das experiências físicas defendidas pela
teoria da bruxaria, como o voo noturno e a copulação demoníaca, não passavam de
alucinações, servindo como causa, a pobre dieta da velhice e a pré-disposição da mulher
ao humor melancólico.
25
“Visconti clearly understood that, if we cease punishing witches, we necessarily imply that their
interactions with devils, and possibly the devils themselves, are imaginary. Visconti's ultimate insinuation
is that witches must die in order to preserve the credibility of devils and, hence, the credibility of the
entire world of spirit”.
experimentações. Fundamentalmente estruturados com o pensamento lógico
aristotélico, os experimentos foram raramente vistos pelos teóricos, mas comprovados
através de determinado grupo de pessoas (bruxas), que tinham determinados aspectos
que justificavam sua legitimidade, visto que somente certo grupo vivia e manifestava
tais experiências (como a copulação demoníaca, a transvecção, entre outros). Como
afirmado antes, os teóricos não conseguiram ver a interação homem-demônio, senão
pelas testemunhas. Mas eram somente as bruxas?
Dessa maneira, podemos perceber que uma discussão acontecia entre os vários
grupos sociais quando pensava-se sobre a magia. Entre os leigos e analfabetos havia
predisposição para ver a magia como algo natural (vide em Ginzburg). Com os
intelectuais, segundo Kieckhefer (STEPHENS, 2002, p.349), houve pelo menos três
definições: pelos primeiros cristãos, tem-se a ligação direta com o demônio; com as
descobertas e estudos da erudição islâmica de uma filosofia natural, em que alguns dos
efeitos tidos como maravilhosos tinham causas não-demoníacas e sim naturais, passou-
se a admitir que muito do que era desconhecido ou maligno poderia ser visto como
26
“Doubt was present from the beginning of necromancy and grew throughout the time during which
witch-hunting was becoming established. Fuller knowledge of Aristotle's works after 1100 did more than
anything to make doubt about spirits be possible. We have seen that Aquinas and his followers were
profoundly disturbed by the implication that natural causes, including astrology, might be responsible for
the magical effects that they wished to attribute to demons. Contact with Muslim scholarship brought
other influences as well, among them ‘new conceptions of the occult sciences, including astrology,
alchemy, and related areas of natural magic’”.
pertencente a natureza; após, com as alegações dos necromantes, capazes de
contatarem o demônio, foi percebido um movimento de retorno a desconfiança do que
parecia natural, mas provinha do maligno.
Os demônios, sui generis, foram definidos como aqueles que traziam tormento
e tensão para a humanidade, não só na Cristandade, vale lembrar. Ele era e ainda é o
desconhecido, o estranho que aparecia e ainda aparece sem estarmos esperando. Mas
nós, seres humanos, possuímos maldade e, através dela, damos oportunidade para que
esses demônios causem qualquer tipo de destruição física ou psicológica. Por isso,
acreditou-se que naquela época eles precisaram das bruxas. Estas são importantes e
peças-chave para desenvolver a maldade de cada um e de si mesmo. A cópula
demoníaca estava especialmente e não por acaso firmada como a principal “prova” dos
teóricos da Europa continental. Sob um ponto de vista do interrogado, lembremos, as
confissões sobre tais atividades sexuais foram provocadas muitas vezes pelas perguntas
dos interrogadores sobre a sedução e a necessidade de construir uma história verossímil
de um possível encontro com um espírito maligno ora poderoso demais para ser
resistido, ora desagradável o bastante para ser atraente. O historiador britânico da
University of South Wales do Reino Unido, autor de Witchcraft, Gender and Society in
Early Modern Germany ou Bruxaria, Gênero e Sociedade na Alemanha Pré-moderna
(2007), Jonathan Durrant complementa nossa análise ao afirmar que
Tudo isso, pois, foi confirmado pela bula gerada em 1484, Summis desiderantes
Affectibus, pelo papa Inocêncio VIII (1432 - 1492) para legitimar essa relação da prova
existencial e carnal do Demônio com as bruxas. O tratado mais bem detalhado e
formulado sobre essas questões, o Malleus Maleficarum, teve com a bula28 a autoridade
por escrito da prova de que a cópula demoníaca e a maleficia aconteciam, relação essa
que o inquisidor alemão procurou provar, sem sucesso, em tratados e ensaios católicos
antes da sua singular publicação. Não podemos ter certeza de quem partiu a iniciativa
desse vínculo, mas Stephens propõe que Kramer teria exigido tal documento para
aquietar aqueles que questionavam e duvidavam dos seus movimentos e de seu
trabalho na Inquisição.
27
“In grappling with this scenario, the witch-suspects recycled personal experiences or fantasies of sex
with real people, experiences which made sense because they had, or could have, happened, and because
they followed a similar pattern of exchange as occurred between the Devil and the potential witch. In
popular culture, it was common for young men to seduce women into sex by promising marriage, and a
prostitute required the payment of a fee in exchange for access to her body. This form of exchange is
mirrored in the conventional tales of witchcraft. The Devil claimed he could supply a significant need
(usually for money rather than the security of marriage) in exchange for the person’s soul, a transaction
sealed through sexual intercourse […]”.
28
Publicado e impresso em conjunto – presente, inclusive, nas duas últimas edições do tratado no Brasil.
às queixas do inquisidor de que outros estavam obstruindo suas Inquisições.
(STEPHENS, 2002, p. 56)29
29
“The close agreement between the most explicit witchcraft bull and the most explicit treatise raises the
suspicion that the pope might have granted the bull because the future author of the Malleus convinced
him that demonic copulation was fundamental to witchcraft. Kramer might even have provided
"boilerplate" or ready-made text to the papal scribes once the pope had approved his ideas. Theoretically,
of course, Innocent could have convinced Kramer of this idea; the latter could have written his book to
explain the pope's theory. Or the two could have reached their conclusions separately: after all, the
Malleus's ideas were not original, only more elaborate than usual. Still, Kramer sought the bull actively;
the pope granted it in response to the' inquisitor's complaints that other authorities were obstructing his
inquisitions”.
30
"[…] if witchcraft were imaginary, there would be no laws against it. The very idea that the church could
be in error was impious. They were right in a way: the bull established the reality of witchcraft through
legislation”.
condenação dos crimes apresentados por Kramer. A dúvida que permanece de quem
influenciou quem talvez não tenha tanta importância.
31
Particularmente, defendendo que o título traduzido para o português de Malleus Maleficarum deveria
ser Martelo das Bruxas e não aquele utilizado atualmente, e a justificativa que não cabe aqui pela
extensão, está no decorrer de toda essa dissertação.
O Malleus foi divido em: PARTE I, Das três condições para a bruxaria: o diabo,
a bruxa e a permissão do todo-poderoso; PARTE II, Dos métodos pelos quais se incluem
os malefícios e que modo podem ser curados; e PARTE III, Que se trata das medidas
judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a serem tomadas contra as bruxas e também
contra todos os hereges. No decorrer da pesquisa com as imagens, remeteremos a vários
trechos da obra, que é extensa e muito detalhada. De uma forma rápida, podemos
adiantar que na primeira parte houve um enfoque escolástico, em que Kramer trouxe
vários argumentos contra os céticos, fazendo uma rápida revisão do Canon Episcopi;
analisou o pecado da infidelidade desde o menor dos pagãos e, em ordem crescente, os
judeus, hereges e as bruxas; e examinou os argumentos sobre a permissão de Deus
sobre todos esses temas, respectivamente.
Na segunda parte, fez a defesa dos sacramentos. Desde o começo dos tratados
sobre bruxaria, vimos essa proposição ser debatida e não seria diferente no tratado de
Kramer. Nessa parte, tivemos uma continuidade na discussão da confirmação dos
sacramentos, somando-se a comprovação da corporeidade dos demônios e da
copulação demoníaca. Quem participava disso, isto é, as pessoas que tinham a
propensão para estar nesse meio (as bruxas), mais cedo ou mais tarde, seriam
descobertas e condenadas. Temos a presença de um trecho de Formicarius, de Nider,
no qual foram apresentadas as classes de homens que estariam protegidos dos atos de
bruxaria. Todos os outros grupos e pessoas inocentes citados por Kramer, no decorrer
dessa parte, estavam expostas aos métodos do demônio que, com o auxílio das bruxas,
subverteram-se exibindo a deslealdade a Deus. Lemos também um tema muito presente
nas imagens sobre bruxaria que era o funcionamento do ato carnal, o método de voo e
os remédios ilícitos, em conjunto com a enunciação dos sacramentais.
32
“Each new treatise reviewed the same basic collection of authorities and sources; each usually added
some new detail, a bit of bibliography or a fanciful explanation. And each treatise had its own
characteristic touches of doubt, hesitation, and exaggeration”.
teria se dado pela competitividade que pairava entre os pensadores da Igreja, cada um
visando desenvolver suas próprias ideias e provas científicas.
Temos também uma questão não menos importante sobre o pouco uso inicial
do Malleus nas primeiras décadas do século XVI, a qual se dá sobre a legislação dos
territórios em que o mesmo esteve demasiadamente presente. O historiador Erik
Midelfort (1981) analisa um código criminal dentro do que seria o primeiro corpo de leis
alemão chamado Constitutio Criminalis Carolina (conhecido também como Lex
Carolina), promulgado pelo Imperador Carlos V (1500 - 1558) do Sacro Império Romano
Germânico no ano de 1532. A cláusula sobre bruxaria que estava ainda distante da ideia
reproduzida em Malleus estava referida no Artigo 109 e afirmava que:
Quando alguém prejudica pessoas ou lhes traz problemas por bruxaria, deve-
se puni-lo com a morte, e deve-se usar a punição da morte pelo fogo. Quando,
no entanto, alguém usa a bruxaria e ninguém é prejudicado, ele deve ser
punido de outra forma, de acordo com o costume do caso; e os juízes devem
se aconselhar, conforme descrito posteriormente a respeito de consultas
jurídicas. (Lex Carolina apud MIDELFORT, 1981, p. 29)33
Este trecho vem de encontro com a perspectiva feita por Julio Baroja (1961)
sobre a distinção entre magia maléfica e benéfica. Esse artigo, a princípio, pode ter
deixado íntegro a herança deixada pelos romanos de distinguir tais tipos de magia.
Entretanto, segundo Midelfort (1981, p.29-30) a contradição teológica – já que poderia
se fazer bruxaria desde que não prejudicasse ninguém, um desacordo com terminologia
empregada pelos tratados – se tornou explicita do decorrer do século XVI com o “o
desenvolvimento do julgamento maníaco alemão”. A lei passou a fazer parte de um
sistema adulterado em que a decisão final deslocou-se para os interesses de um
conselho instruído no momento em que os juízes procuravam pareceres, como foi
indicado no trecho acima da Lex Carolina. Talvez seja nesse momento que possamos
retornar a ideia do porquê Malleus teria se tornado relevante com o passar do tempo.
33
“When someone harms people or brings them trouble by witchcraft, one should punish him with death,
and one should use the punishment of death by fire. When, however, someone uses witchcraft and yet
does no one any arm with it, he should be punished otherwise, according to the custom of the case; and
the judges should take counsel as is described later regarding legal consultations”.
universidades alemãs. O problema é que os homens responsáveis por esse trabalho
específico viviam (como já demonstramos) muitas vezes ligados ao estudo sobre
demonolatria e a teoria da bruxaria e, possivelmente, às ilusões e fantasias que as
mesmas geravam. De “juristas instruídos”, passou-se, na verdade, a decisão para juízes
iludidos que, segundo Midelfort, alteraram sua doutrina romana e interpretaram-na aos
olhos das teorias que circundavam-nos sobre bruxaria. Tendo em vista essa informação,
O sabá das bruxas tornou-se uma obsessão comum entre a elite dominante;
e, assim como gradualmente, as leis territoriais foram alternadas para
permitir a execução das bruxas cujo único crime foi a associação com o diabo,
independentemente do dano (maleficium) a qualquer um. (MIDELFORT,
1981, p. 29-30)34
Sem dúvida, o Malleus é não só o tratado mais conhecido nos dias de hoje
dentre todos aqueles produzidos a partir de uma teorização da bruxaria, mas podemos
denominar também como aquele que mais vinculou a existência da bruxa com a figura
feminina – essa, lembremos, definida a partir do olhar masculino. Como bem destaca
Stephens, a insistência de Kramer em legitimar a copulação demoníaca como a maior
34
“The witches’ Sabbath became a common obsession among the ruling elite; and, just as gradually,
territorial laws were alterned to allow for the execution of the witches whose only crime was association
with the devil, regardless of harm (maleficium) to anyone”.
35
“A system that allowed bishops and other ecclesiastics an unparalleled degree of influence in their
territories, and permitted university professors to become full members of the judicial mechanism”.
prova da corporeidade do demônio se tornou matéria na provação de que a bruxaria só
existiria através da cópula carnal com demônios. Vindo de uma herança teológica desde
Santo Agostinho, que visava a mulher como a mais propensa a luxuria e a cobiça aos
prazeres sexuais, devido “ao fato” de ser mais carnal (eis que temos Eva como exemplo),
a figura da mulher se tornou o principal alvo do inquisidor alemão, convertendo-a à
principal parceira sexual do maligno, seja este em forma de um íncubo, espírito ou de
ações com homens.
36
“If the vagina is the marker of a passive sexual role, then women are necessary sex partners for
demons so that demonic reality can be passively suffered”.
Segundo o autor, a ameaça do demônio se torna mais dramática a partir do
século XIV, tendo a definição de pecado mais detalhada e, por isso, obrigando
emocionalmente, por exemplo, os fiéis, que tinham já o sentimento de culpa
internalizados, a tentar eximir-se por meio da confissão e da devoção. A ameaça do
inferno e do terrível diabo vai servir como “arma para reafirmar em profundidade a
sociedade cristã, [servindo] [...] como instrumento de controle social e de vigilância das
consciências, incitando à transformação das condutas individuais” (MUCHEMBLED,
2001, p. 36).
A grande ênfase do autor de Demon Lovers dentro da sua teoria sobre a crise
na fé cristã como a grande base para o surgimento da teoria da bruxaria foi que nem a
sexualidade, nem a questão de gênero eram pontos centrais desses teóricos,
principalmente no caso de Kramer. Stephens afirmou que o contato primordial do
inquisidor alemão com muitas das questões aqui apresentadas foi a partir da sua
proximidade com a história de um homem clérigo da Boêmia que teria sofrido possessão
demoníaca e não de uma ou mais mulheres.
37
Nesse caso, Stephens (2002, p. 55) chega a lembrar da comparação feita por Kramer das mulheres para
com os geólogos, em que as primeiras serviriam como sismômetros, instrumentos para detectar e medir
a força dos fenômenos que não podiam ser observados diretamente.
tentava comprovar. Sem entrar em maiores detalhes sobre as consequências físicas e
psicológicas sofridas pelas mulheres para que esses pensadores conseguissem chegar
aonde chegaram, Stephens conclui que:
Essa seria a importância da mulher, mesmo que isso não sirva como um poder
dado a ela. Sua natureza física e psicológica, diferentemente da masculina, tornou-as o
modelo por excelência definido por Kramer como parceiras sexuais dos demônios. Mas
Stephens reforçou a ideia de que houve muitas outras partes do livro que não estavam
lidando diretamente com essa relação da mulher com o maligno e que, por isso,
devemos ter cautela ao defender que o Malleus Maleficarum seria um tratado criado
para menosprezar e inferiorizar a mulher.
38
“They scrutinized bodies hoping to glimpse "spirit." The problem is complex, but women were culturally
determined as the primary sufferer’s mass possession for the same reason that they were stereotyped as
more likely than men to copulate with demons. Because women were viewed as passive, more material,
and less "spiritual" than men, demons would have to manifest themselves by acting on women”.
sensacionalistas. Um dos poucos nomes que trouxe para sua lista de “vítimas” pelo erro
de tradução está o de Anne Llewellyn Barstow, que explicitamente relacionou a Caça às
Bruxas com a caça às mulheres em seu Chacina de Feiticeiras (1995), o qual
retomaremos a seguir.
Outro detalhe que foi visto por Stephens é que o primeiro parágrafo desse
mesmo capítulo também não teria relação com o tema do mal das mulheres. A versão
original dizia respeito à anatomia e às características fisiológicas dos corpos demoníacos,
algo presente também na versão em italiano. Sintetizando a mais profunda análise feita
por Walter Stephens, lembramos novamente a ideia de que o Malleus visava comprovar
a copulação demoníaca e, para chegar a isso, Kramer teve que, em determinado
momento de seu tratado, detalhar as características que faziam da figura feminina o
fator determinante. Para isso, Kramer discutiu e estabeleceu aspectos e motivos pelo
quais as mulheres estavam moralmente predispostas a buscar sexo com demônios.
39
“When focusing on the Malleus's presentation of women, scholars often claim that its argumentation
is illogical, but this is inaccurate. The logic is there, but it aims to prove something other than what we
expect to prove. The logic of the Malleus is abominable, but not solely, because it is misogynistic: the
Malleus exploits misogyny to reinforce demonology – and, ultimately, a theology – that Kramer found
unconvincing. To say that he exploited theology in order to demonize women requires turning his logic
inside out. […] Of course the Malleus was misogynistic but what, for Kramer, was the use of misogyny? To
read his treatment demonic copulation as a tirade against women's sexual powers is to miss his point
entirely. If anything, his tirade is for women's sexuality. The issue was not keeping women in their place
or controlling their sexuality. Heinrich Kramer did not fear that women were associating with demons: he
hoped that they were. His whole theology depended on omen's sexual transgression, and it would have
collapsed if he had ever had to admit that women's behavior conformed to the patriarchal ideal of chastity
and submissiveness”.
Dessa maneira, sem deixar de problematizar a misoginia explicita em Malleus,
Stephens deixou nítido que a análise mais significativa da obra seria aquela feita quando
avaliado os motivos de Kramer, seu método e suas implicações, uma possível visão geral
do que passavam os outros teóricos. O desenvolvimento de tais ideias associada às
práticas dos Inquisidores, de fato, pode ter sido reflexo desses elementos,
principalmente auxiliando na resolução dos problemas ideológicos que a Igreja passava.
Mas temos um problema de gênero, o qual se mostra em circunstâncias perigosas de
ser deixado em um segundo plano. O historiador Jonathan Durrant (2007) confirma que
muitos relatos feitos no período das perseguições e dos julgamentos entre o século XVI
e XVII, os quais passaram a circular também em vernáculo, demonstravam aos seus
leitores que a maioria das bruxas existentes antes dos tribunais em territórios
germânicos eram mulheres. Tais representações demonológicas da bruxa feminina
seriam efetivamente fortalecidas por outras abordagens literárias e mitológicas
anteriores ao que trabalhamos aqui. Julio Baroja (1961) confirma, por exemplo, a forte
presença depreciativa da figura feminina na literatura germânica primitiva e nos escritos
históricos em latim sobre os povos do mesmo círculo no período posterior, os quais
abordaram obstinadamente a desconfiança sobre as mulheres. Permitamos, então, dar
a palavra àqueles que proporcionaram novas leituras da história das mulheres e,
simultaneamente, da história da bruxaria.
Apesar dos alertas dados anteriormente por Walter Stephens, não podemos
deixar de mencionar a pesquisa especifica sobre a Caça às Bruxas da historiadora
americana Anne Llewellyn Barstow, nominada Chacina de Feiticeiras: uma revisão
histórica da Caça às Bruxas na Europa (1995), que nos auxilia nas análises sobre as
consequências do olhar patriarcal e masculino sobre a mulher nesse complexo período.
Devemos salientar que a autora teve como intenção nortear seu trabalho a partir de três
questões, essenciais para nós: qual o significado do sexo das vítimas; quais foram os
acontecimentos, como o uso de violência dos homens pelas mulheres, que eram ligados
pela sexualidade das vítimas; e qual a natureza sexual de grande parte dessa violência
captada.
Pertencente a uma parte de uma densa pesquisa, temos também o olhar sobre
a mulher a partir de dois historiadores especialistas em Idade Média e um jornalista,
todos franceses. Eles são, respectivamente, Georges Duby e seu História da Vida
Privada, volume 2: Idade Média (2009), e Uma história do corpo na Idade Média (2006),
de Jacques Le Goff e Nicolas Truong. As obras enriquecem o debate com os olhares
singulares dos autores a partir de temas específicos. Duby aborda o contexto social do
homem e da mulher a partir do privado da sociedade, além da influência do romance
cortês no imaginário, tal perspectiva essencial para nos basearmos posteriormente nas
obras de arte. Já com Le Goff e Truong entendemos que, entre as tensões geradoras da
dinâmica do Ocidente, o corpo teve o seu o lugar. Compreendemos também muitos
mitos, definições e relações feitas a partir de uma perspectiva histórica do corpo,
elemento esse decisivo não só na construção da teoria da bruxaria, mas também no
nosso entendimento sobre a percepção do artista.
Ainda sobre a história do corpo nesse período, temos uma análise específica de
Mikhail Bakhtin intitulada A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1987),
baseado no ambiente e nos textos do escritor e médico francês François Rabelais (1494
- 1553) sobre as culturas populares do Renascimento, como os festejos carnavalescos e
suas inversões de valores, e a definição do corpo grotesco como corpo social.
Desde já, podemos adiantar que o maior ganho da sociedade a partir desse tipo
de abordagem não só de Hults e Purkiss, mas também de Anne Barstow, Lyndal Roper,
entre outras pesquisadoras, é esse questionamento sobre a padronização da história,
da arte e da cultura que, nas últimas décadas, visou não só a compreensão dos motivos
que geraram a teoria da bruxaria ou a Caça às Bruxas, mas também a desconstrução
social e imagética de uma das maiores protagonistas que por muito tempo ficou na
obscuridade. Tal movimento é herança de uma abordagem feminista, que cada vez mais
se insere na pesquisa acadêmica desde o final do século XX e que sempre se fez
necessário, principalmente para entender essa padronização da mulher. O impacto
psicológico e social desse estereótipo feminino da bruxa deve ser falado e estudado,
principalmente quando relacionado ao imaginário construído e às imagens produzidas.
Numa disposição ímpar, Linda Hults propõe, então, o modelo que necessitamos
entender:
40
“Women's seemingly compliant participation in the victimization of other women is also intelligible.
Early modern women did not exist outside patriarchal ideology;
they too assimilated notions of female vulnerability to evil and the stereotype of witchcraft”.
controle arcaico patriarcal. Como tal, o estereótipo da bruxa representa o
profundo medo da Europa Moderna do desvio feminino. Foi a própria
banalidade da misoginia [...]. (HULTS, 2005, p. 15)41
A mulher no Renascimento
O dever primeiro do chefe da casa era vigiar, corrigir, matar, se preciso, sua
mulher, suas irmãs, suas filhas, as viúvas e as filhas órfãs de seus irmãos, de
seus primos e de seus vassalos. O poder patriarcal sobre a feminilidade via-
se reforçado, porque a feminilidade representava o perigo. Tentava-se
conjurar esse perigo ambíguo encerrando as mulheres no local mais fechado
do espaço doméstico, o quarto ou "quarto das damas", que não se deve
tomar, com efeito, por um espaço de sedução, de divertimento, sim de
41
“The formulation and perpetuation of the discourse of witch-hunting, whether visual or verbal, and
engagement in the debate surrounding witchcraft and its appropriate punishment, were male
prerogatives, Witchcraft was the most extreme expression of female deviance: a charge levied not against
women in general but against women who were imagined as eluding or subverting patriarchal control. As
such, the stereotype of the witch represents early modern Europe's profound fear of female deviance. It
was the very banality of misogyny […]”.
desterro: elas eram ali encerradas porque os homens as temiam. (DUBY,
2009, p. 88)
Uma constatação essencial para a nossa pesquisa é feita pela historiadora, que
observa a redenção da mulher através da imagem de Madalena nos séculos XI e XII, uma
excelente concepção proposta pela Igreja para “abraçar” aquelas mulheres que não
tinham em quem se enxergar. Antes, elas dispunham de dois polos opostos para se
nortearem: Maria, a imagem materna, virginiana, de pureza e utópica, e Eva, a
representação da morte, do pecado Original e, por isso, do perigo. O problema para
essas mulheres se tornou maior quando as representações e os princípios seguidos pelo
grupo de Aquino e sua base aristotélica conduziram um pensamento em torno do
corpo feminino, cuja finalidade era dar um caráter categórico a ele, interpretando esse
corpo como ativador dos fantasmas masculinos e de suas terríveis ansiedades.
Outro trabalho dado como principal das mulheres solteiras era ser fiandeira.
Apesar de ser melhor visto pela sociedade patriarcal, Klapisch-Zuber clarifica que elas
sofriam concorrência direta com os tecelões, que eram homens. Em Estrasburgo, por
exemplo, havia uma disputa de sexo nesse tipo de trabalho, em que nas corporações
havia o predomínio de tecelões que, para manter seu mercado, denegriam suas
concorrentes nos conselhos da cidade. As mulheres fiadoras de lã estavam fora dessas
corporações e, por esse fato, eram exploradas em virtude da ausência de poder político
e organizacional das mulheres.
Longe desses ofícios, reclusa no interior das casas, sobre proteção masculina,
para não ser acusada e condenada, Carla Casagrande (1998) analisa, a partir da doutrina
proposta por Aquino, a melhor maneira pela qual as mulheres e sua sexualidade deviam
se basear:
A virgem é virgem não tanto e não só pela integridade do seu corpo, mas
sobretudo pela pureza dos seus pensamentos, afastados de toda a
concupiscência graças à escolha meditada que soube fazer e manter; se
tivesse de sofrer violência sem consentir nem experimentar prazer, a sua
virgindade não ficaria diminuída. A viúva vive virtuosamente a sua condição
não apenas graças a um evento casual que libertou o seu corpo da obrigação
das relações sexuais, mas sobretudo se, a partir desse acontecimento, sabe
libertar a sua mente de todo o desejo carnal. A mulher casada vive
virtuosamente a sua sexualidade no interior do matrimônio porque as suas
intenções se mantêm puras e castas, voltadas como estão para o
cumprimento do dever conjugal e para a propagação da espécie. (PERROT;
DUBY, 1998, p 112)
É conveniente ressaltar que não devemos, entretanto, cair no erro de achar que
haveria uma dicotomia exata, conforme os autores elucidam, entre o paganismo dos
gregos e romanos, que seriam caracterizados por uma liberdade sexual e um maior culto
ao corpo, e o cristianismo, simbolizado pela abstinência cultural e pela obsessão da
castidade. Contra essa caricatura, os autores afirmam que: “os trabalhos de
Paul Veyne e Michel Foucault mostram claramente que um ‘puritanismo da virilidade’
existe antes da guinada decisiva do alto Império Romano (séculos I-II) em direção ao
cristianismo" (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.41).
Assim, a mulher foi considerada "um macho defeituoso" (LE GOFF; TRUONG,
2006, p.54), segundo os teólogos seguidores do pensamento aristotélico da Idade
Média. A condição feminina desvalorizada, com seu corpo inferior e imperfeito
promulgado por Tomás de Aquino, difere-se do masculino, possuidor de um outro
modelo de corpo, sagaz e provador da ação divina com sua semente única no ato da
copulação, segundo Le Goff e Truong. É ele que eterniza o gênero humano e não a
mulher. Aliás, não só eterniza como também origina.
Um dos crimes que mais vemos descrito nos tratados e nas anedotas sobre
bruxaria e nos documentos inquisitoriais, a partir das nossas fontes, foi o infanticídio.
Em sua maioria, vimos as mulheres como geradoras desse crime, acusações que
caminham na mesma época em que a mortalidade dos bebês é considerada alta, isto é,
no momento das pestes, que foram desde 1348 até 1430, último ano que marca o início
da construção da teoria da bruxaria. Segundo Georges Duby (2009), desde esse
momento e mais ainda a partir do século XV, será visto um infanticídio originado por
sufocação e por abandonos, esse último acarretando na criação de asilos. O historiador
francês nos traz uma interessante percepção sobre o sexo da maioria dos bebês mortos,
que era feminino. Menos desejáveis entre as famílias reais, nobres e prósperas, as
recém-nascidas seriam, como complementa Klapisch-Zuber, proporcionalmente mais
abandonadas do que os de sexo masculino. Sobre a questão de abandono das famílias
mais abastadas, o autor traz o fato de uma crônica da época: “na Basileia, no século XV,
as mulheres que não queriam ou não podiam criar os seus filhos recém-nascidos
colocavam-nos à porta da Câmara ou do hospital [...]” (PERROT; DUBY, 1998, p.389). Ao
contrário desse costume da cidade, o abandono dos filhos nas famílias mais pobres,
passa a ser a última escolha a ser feita. Visto que era algo doloroso para aquelas que
passaram por gravidezes e partos difíceis, Klapisch-Zuber clarifica com um exemplo de
Estrasburgo, a difícil realidade que é presente ainda nos dias de hoje das famílias
miseráveis:
Sabemos que esse contexto não era compreendido claramente como um sério
problema social por aqueles que viviam esse período. Pelo contrário, as causas das
mortes dos recém-nascidos estavam arraigadas ao pensamento pré-concebido
discriminatório sobre mulheres, principalmente, idosas e mendicantes. Acreditava-se
que essas mulheres, invejosas da saúde das outras mulheres, com os corpos mais
depreciados, na menopausa e com a incapacidade de gerar filhos, a partir do seu pacto
com o demônio, sequestrariam e matariam as crianças saudáveis das famílias
tradicionais e castas. Tal pensamento pode ser um reflexo da crise na fé cristã, o qual já
elucidamos. No entanto, e aqui retornamos ao que Diane Purkiss (1996) e Linda Hults
(2005) captaram sobre esses aspectos, percebe-se que muitas mulheres fizeram parte
desse sistema de acusações de crimes de bruxaria contra outras mulheres, cuja
motivação derivava de seus medos e aflições corporais e sociais, como a amamentação,
o parto, a alimentação e as questões domésticas.
E então, temos aqui uma questão de gênero que precisa ser melhor discutida.
No período em que essas funções e definições foram formadas, tínhamos o homem com
acesso aos escritos da tradição Clássica e Hermética. Já a mulher, que em sua maioria
era analfabeta, quando tinha o poder da leitura, como no caso das damas, era restrito à
sua educação e cortesia.
42
“Some women being tormented by demons ‘were interrogated about the secrets of Holy Scripture by
a group of educated [litteratos] men, and they responded as if they had been steeped in sacred literature
for their entire lives’. So far, so good: following Aquinas's lead, Vineti reasons that, whereas women rarely
have theological training, devils have firsthand experience of the realities that theology discusses. Thus,
the devils must have suggested or spoken these wonderful answers”.
Os artistas e a misoginia
Por esse motivo, acompanhamos Linda Hults quando afirma que “as imagens
da bruxaria participam do relacionamento duplamente antifeminista e recíproco da
criatividade artística masculina e o mal feminino” (HULTS, 2005, p. 26) 44. Elas não
servem como um retrato correspondente do movimento da Caça às Bruxas e muito
menos uma ilustração dos tratados escritos da época. Nas obras do início do século XVI,
as bruxas são as mulheres no nível do simbólico, afirma a historiadora da arte (2005, p.
107), elaboradas pelos artistas que viviam uma realidade artística concorrida, com
diversas inquietações, inúmeras fantasias recorrentes e ideais, muitas vezes,
indecifráveis.
43
“She became an index of the inventive capacity intellect, and thus the heightened status of the male
artist in the early modern period, even though her image was handed down within an iconographic
tradition. She stood at the intersection of two discourses-both dependent on notions of male intellectual
and moral superiority. She displayed male artists’ inventiveness in the competitive context of art's
relationship to poetry and the status of both as liberal arts”.
44
“Witchcraft images participate in the doubly antifeminist, reciprocal relationship of male artistic
creativity and feminine evil”.
completamente temporais e restritas a um determinado grupo. Como Hults analisa,
essas bruxas trabalhadas em imagens serviram como um termômetro das expectativas
do seu público, como as diferenças entre as pessoas urbanas e rurais, as aspirações
sociais exigidas e os discursos normativos e constitutivos desses espectadores e
compradores. Além disso, temos um contexto artístico demasiadamente sexuado, com
a transgressão feminina, seus olhares, formas de portar o corpo e seus atributos físicos
servindo como um “prato cheio” temático para um agradável relacionamento entre o
artista e o visualizador da sua obra.