Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

Kethlen Santini Rodrigues

O SURGIMENTO DA IMAGEM DA BRUXA NAS ARTES VISUAIS:


BRUXARIA E SEXUALIDADE NAS OBRAS DE ALBRECHT DÜRER E HANS BALDUNG
GRIEN

Porto Alegre
2018
KETHLEN SANTINI RODRIGUES

O SURGIMENTO DA IMAGEM DA BRUXA NAS ARTES VISUAIS:


BRUXARIA E SEXUALIDADE NAS OBRAS DE ALBRECHT DÜRER E HANS BALDUNG
GRIEN

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do grau de Mestre em
Artes Visuais, ênfase História Teoria e
Crítica, pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Antonio De


Menezes Pereira da Silveira

Porto Alegre
2018
KETHLEN SANTINI RODRIGUES

O SURGIMENTO DA IMAGEM DA BRUXA NAS ARTES VISUAIS:


BRUXARIA E SEXUALIDADE NAS OBRAS DE ALBRECHT DÜRER E HANS BALDUNG
GRIEN

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do grau de Mestre em
Artes Visuais, ênfase História Teoria e
Crítica, pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Aprovada em 3 de setembro de 2018.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Antonio De Menezes Pereira da Silveira (PPGAV–UFRGS)
Orientador

_______________________________________________________
Profa. Dra. Daniela Pinheiro Machado Kern (PPGAV–UFRGS)

_______________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Marshall (PPGAV–UFRGS)

_______________________________________________________
Prof. Dr. Johnni Langer (PPGCR–UFPB)
RESUMO

Esta investigação analisa um número determinado de obras em gravura e desenho de


Albrecht Dürer (1471 - 1528) e Hans Baldung Grien (1484 - 1545) residentes nos
territórios germânicos da Europa no período do Renascimento, produzidos entre 1497
e 1545. Constata-se que o corpo da bruxa concebido na Europa pré-moderna foi um
corpo carregado de preceitos excessivamente masculinos e opressivos. É reconhecido
também que, independente das pretensões dos artistas, fosse para desenvolver suas
faculdades imaginativas, fosse para melhorar seu status social e econômico, a
capacidade de criação do artista resultou numa imagem feminina adulterada. Para
compreensão dos recursos culturais, políticos e sociais dos artistas em questão,
analisou-se no primeiro capítulo, as perspectivas historiográficas de uma teorização da
bruxaria, divididas em duas principais concepções: a crise na fé cristã e a questão de
gênero. Após a publicação dos primeiros incunábulos no final do século XV, em especial
o primeiro tratado inquisitorial ilustrado, De Laniis et phitonicis mulieribus (1489) de
Ulrich Molitor, no segundo capítulo, observou-se o início de uma tradição iconográfica
específica na Europa e a instauração da representação da bruxaria no âmbito das Artes
Visuais por Albrecht Dürer, que estabeleceu dois modelos de representação, a bruxa de
corpo grotesco e a bruxa de corpo afrodisíaco. No terceiro e último capítulo, analisou-
se as obras do discípulo de Dürer, Hans Baldung Grien, que no decorrer da sua trajetória
artística, tornou o corpo da bruxa protagonista de seus trabalhos. Elementos como a
forquilha, os cabelos soltos, o corpo nu e os voos em animais são sancionados por ele e,
de modo consequente, de seus contemporâneos. Assim, a última tarefa nesta parte foi
apresentar uma herança iconográfica oriunda da tradição estabelecida por Dürer e Hans
Baldung, como nas obras de Lucas Cranach, Peter Bruegel, Frans Francken, entre outros.
Palavras-chave: Cultura Visual. Iconografia. Renascimento. Demônio. Feiticeira.
ABSTRACT

This research analyzes a number of engraving and drawing works by Albrecht Dürer
(1471 - 1528) and Hans Baldung Grien (1484 - 1545) residing in the Germanic territories
of Europe during the Renaissance period, produced between 1497 and 1545. The body
of the witch conceived in Early modern Europe will be a body laden with excessively
masculine and oppressive precepts. It is also recognized that, regardless of the artists'
pretensions, whether to develop their imaginative faculties or to improve their social
and economic status, the artist's creative capacity has resulted in an adulterated female
image. In order to understand the cultural, political and social resources of the artists in
question, the historiographical perspectives of a theorizing of witchcraft were analyzed
in the first chapter, divided into two main concepts: the crisis in the Christian faith and
the question of gender. After the publication of the first incunabula, at the end of the
15th century, in particular the first illustrated inquisitorial treatise De Laniis et phitonicis
mulieribus (1489) by Ulrich Molitor, the second chapter notes the beginning of a specific
iconographic tradition in Europe and the establishment of representation of witchcraft
in the field of Visual Arts by Albrecht Dürer, who established two models of
representation, the grotesque body and the aphrodisiac body of the witch. In the third
and last chapter, the work of Dürer's disciple, Hans Baldung Grien, who in the course of
his artistic career, made the witch's body the protagonist of his works analyzed.
Elements such as the fork, loose hair, naked body and flights on animals are sanctioned
by him and, consequently, by his contemporaries. Thus, the last task in this part is to
present an iconographic heritage derived from the tradition established by Dürer and
Hans Baldung, as in the works of Lucas Cranach, Peter Bruegel, Frans Francken, among
others.
Keywords: Visual Culture. Iconography. Renaissance. Demon. Sorceress.
AGRADECIMENTOS

Esta importante etapa que encerro não teria acontecido se não fosse pelo amor
e apoio incondicional da minha família. Desde o dia que peguei o primeiro ônibus em
Caxias do Sul para morar em Porto Alegre, no ano de 2012, muitas experiências boas e
ruins aconteceram, muitos aprendizados foram obtidos e muitas histórias vividas,
sempre com o carinho e a compreensão de minha mãe, meu tio e meus avós. A
importância de vocês é imensurável. Perto ou longe, nunca esqueçam que para mim é
e sempre será um privilégio fazer parte das suas vidas e ser o orgulho de vocês.

Tenho enorme gratidão ao meu querido orientador Paulo que aceitou entrar
nessa fascinante viagem comigo, sempre presente com muita disposição e atenção para
que conseguíssemos conquistar nossos objetivos. Seja sobre suas recordações de
infância (“ah! a linda rainha má da Branca de Neve...”), seja sobre suas referências
acadêmicas, suas inspirações, ideias ou singelos comentários gerados de nossos
encontros, deixaram-me mais resistente e, principalmente, mais segura.

Sou muito grata a UFRGS e ao PPGAV que me auxiliaram em todas as etapas


burocráticas e na obtenção da bolsa CAPES no segundo ano de pesquisa para que a
mesma pudesse acontecer.

Agradeço também aos professores convidados à Banca examinadora:


professora Daniela, que me acompanha desde a Graduação, sua presença auxilia-me a
sempre buscar evoluir e ser uma melhor historiadora da arte; professor Marshall, um
exemplo de pessoa e de educador a ser seguido, foi um prazer realizar o estágio
docência na sua disciplina e estar próximo de tanto conhecimento; e professor Johnni
Langer, pela disponibilidade de me socorrer academicamente no momento em que a
aflição tomava conta de mim, sua sensibilidade foi fundamental para me restabelecer.

Essa dissertação não poderia estar completa sem o auxílio atencioso dos
museus Albertina, de Vienna e National Galleries of Scotland, de Edimburgo na obtenção
de imagens de qualidade presentes nesse trabalho.
Aos meus colegas da turma 24 do Mestrado, uma turma cheia de pesquisas
promissoras, um muito obrigado. Nossas conversas cheias de medos, aflições e
desesperos nos tornaram mais fortes. De modo especial, à querida amiga Thirzá, uma
pessoa acessível e verdadeira desde o primeiro dia em que a conheci, minha admiração
só aumentou a partir das nossas trocas no decorrer de todo o processo, me auxiliando
a crescer como mais profissional e como pessoa. Essa pesquisa não seria a mesma sem
tua ajuda.

E finalmente, aos meus amigos que suportaram meus longos sumiços e minhas
aparições rápidas durante esses dois anos, devido a energia que a pesquisa me tomava,
sem mencionar a paciência em ter que ouvir meus dilemas. À minha cunhada, Jeni, que
me auxiliou com muita dedicação na correção deste trabalho. E em especial, ao meu
amigo e companheiro de cinco anos. Chris, essa pesquisa não existiria sem teu amor,
carinho e serenidade. Enquanto eu proporcionava a ti e a tua família somente histórias
e conversas sobre bruxas (quando não era sobre minhas angústias e descrenças), vocês
sempre estavam lá, prontos para me reconfortar e tu, especificamente, fazendo-me
retornar ao meu estado de profundo bem estar.
As rosas da resistência
nascem no asfalto. A gente
recebe rosas, mas vamos
estar com o punho cerrado
falando de nossa existência
contra os mandos e
desmandos que afetam
nossas vidas.

Vereadora MARIELLE FRANCO (1979 -


2018)
em 8 de março de 2018, em um
pronunciamento no plenário da Câmara
Municipal após receber flores de um
homem
Ela foi assassinada quatro dias depois.
Ontem, hoje e sempre, presente!
LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Pieter Bruegel, O Velho. A luta entre o carnaval e a quaresma, 1559 ............ 76
Figura 2. James le Palmer. Omne Bono (Absolucio-Circumcisio), c. 1360 - c. 1375 ... Erro!
Indicador não definido.
Figura 3. Hans Vintler (? - 1419) Die plümen der tugent (1486), Fólio 331v.............. Erro!
Indicador não definido.
Figura 4. Artista desconhecido. Em De lamiis et phitonicis mulieribus (1489), reproduzido
em fac-símile da edição latina de Colônia, 1489, placa 6 ... Erro! Indicador não definido.
Figura 5. Artista desconhecido. Em De lamiis et phitonicis mulieribus (1489), reproduzido
em fac-símile da edição latina de Colônia 1489, placa 5 ............................................ 100
Figura 6. Artista desconhecido. Em De lamiis et phitonicis mulieribus (1489), reproduzido
em fac-símile da edição latina de Colônia 1489, placa 3 ........................................... 102
Figura 7. Artista desconhecido. Schleswiger Dom Volva, século XIII?Erro! Indicador não
definido.
Figura 8. Artista desconhecido. Figura feminina com uma vassoura, século c.
XIII...............108
Figura 9. Artista desconhecido. Detalhe de bruxa em transvecção, c. 1490 ............. Erro!
Indicador não definido.9
Figura 10. Oficina Elmelunde. Sem título, c. 1480 .............. Erro! Indicador não definido.
Figura 11. Artista desconhecido. Roubo de leite e bater manteiga, c. 1460-80 ........ Erro!
Indicador não definido.
Figura 12. Artista desconhecido. Mulher batendo manteiga com o diabo, c. 1492 .. Erro!
Indicador não definido.
Figura 13. Artista desconhecido. Detalhe de Mulher batendo manteiga com o diabo, c.
1492.................................................................................. Erro! Indicador não definido.
Figura 14. Albrecht Dürer. As quatro Bruxas, 1497 ............ Erro! Indicador não definido.
Figura 15. Artista desconhecido. As três Graças, Cópia romana ( 2 Século ?), .......... Erro!
Indicador não definido.
Figura 16. Albrecht Dürer. Detalhe As quatro Bruxas, 1497Erro! Indicador não definido.
Figura 17. Albrecht Dürer. Detalhe As quatro Bruxas, 1497Erro! Indicador não definido.
Figura 18. Albrecht Dürer. O banho das mulheres, 1496 .... Erro! Indicador não definido.
Figura 19. Albrecht Dürer. Detalhe de As quatro Bruxas, 1497Erro! Indicador não
definido.
Figura 20. Barthel Beham. A morte e Três Mulheres nuas, c. 1525-7Erro! Indicador não
definido.
Figura 21. Albrecht Dürer. A Bruxa ou Bruxa montada para trás, c. 1500Erro! Indicador
não definido.
Figura 22. Andrea Mantegna. A Batalha dos Deuses do Mar, ca. 1475Erro! Indicador
não definido.
Figura 23. Andrea Mantegna. Detalhe de A Batalha dos Deuses do Mar, ca. 1475 .. Erro!
Indicador não definido.
Figura 24. Albrecht Dürer. Detalhe de A Bruxa ou Bruxa montada para trás, 1500.. Erro!
Indicador não definido.
Figura 25. Albrecht Dürer. Detalhe de A Bruxa ou Bruxa montada para trás, 1500.. Erro!
Indicador não definido.
Figura 26. Autor desconhecido. Camafeu romano de Aphrodite Epitragia, c. 1 d.C – 2
d.C.......................................................................................................................................
...148
Figura 27. Agostino Veneziano (Agostino de'Musi). A rota das Bruxas ou A Carcaça (Lo
Stregozzo), 1520 ....................................................................................................... 149
Figura 28. Agostino Veneziano (Agostino de'Musi). Detalhe de A rota das Bruxas ou A
Carcaça (Lo Stregozzo), 1520 .................................................................................... 150
Figura 29. Hans Baldung Grien. Trabalhador tentado pelo demônio, 1509 .............. Erro!
Indicador não definido.
Figura 30. Hans Baldung Grien. As Bruxas, 1510 ................ Erro! Indicador não definido.
Figura 31. Albrecht Altdorfer. Partida para o sabá, 1506 .. Erro! Indicador não definido.
Figura 32.Hans Baldung Grien. Detalhe de As Bruxas, 1510Erro! Indicador não definido.
Figura 33. Hans Baldung Grien. Detalhe de As Bruxas, 1510Erro! Indicador não
definido.
Figura 34. Hans Baldung Grien. Detalhe de As Bruxas, 1510Erro! Indicador não
definido.
Figura 35. Oficina de Baldung (artista desconhecido). Reprodução da xilogravura original
de Die Emeis ..................................................................... Erro! Indicador não definido.
Figura 36. Hans Baldung Grien. Cartão de ano novo com três bruxas,1514.............. Erro!
Indicador não definido.
Figura 37. Hans Baldung Grien. Sabá das Bruxas, 1514 ..... Erro! Indicador não definido.
Figura 38. Hans Baldung Grien. Bruxa com um Dragão, 1515Erro! Indicador não
definido.
Figura 39. Urs Graf, cópia de Hans Baldung Grien. O sabá das bruxas, 1514 ........... Erro!
Indicador não definido.
Figura 40. Francisco de Goya e Lucintes. Linda maestra! ,1799Erro! Indicador não
definido.
Figura 41. A partir de Hans Baldung Grien/ monograma HF - Hans Frank. Sabá das Bruxas,
1515.................................................................................. Erro! Indicador não definido.
Figura 42. Hans Baldung Grien. O cavalariço enfeitiçado,1544Erro! Indicador não
definido.
Figura 43. A partir de Hans Baldung Grien/ Frans Crabbe. Um cavalo, 1520-1530 ... Erro!
Indicador não definido.
Figura 44. Lucas Cranach, o velho. Alegoria da Melancolia, 1528Erro! Indicador não
definido.
Figura 45. Lucas Cranach, o velho. Detalhe de Alegoria da Melancolia, 1528 .......... Erro!
Indicador não definido.
Figura 46. Jacob Cornelisz van Oostsanen. Saul e a bruxa de Endor,1526Erro! Indicador
não definido.
Figura 47. Jacob Cornelisz van Oostsanen. Detalhe de Saul e a bruxa de
Endor,1526 ....................................................................... Erro! Indicador não definido.
Figura 48. Jacob Cornelisz van Oostsanen. Detalhe de Saul e a bruxa de
Endor,1526 ....................................................................... Erro! Indicador não definido.
Figura 49. A partir de Pieter Bruegel, “o Velho”/ Pieter van der Heyden. São Tiago Maior
e Hermógenes, 1565 ................................................................................................. 201
Figura 50. Peronet Lamy. Detalhe de iluminura do manuscrito de Martin Le France, Le
Champion des Dames, 1451 ...................................................................................... 202
Figura 51. A partir de Pieter BRUEGEL, “o Velho”/ Pieter van der Heyden. Detalhe de São
Tiago Maior e Hermogenes, 1565 ............................................................................. 203

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................... 14
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 19
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS DE UMA TEORIZAÇÃO DA BRUXARIA ................ 28
TENSÃO NA CRENÇA CRISTÃ .................................................................................... 29
UMA QUESTÃO DE GÊNERO .................................................................................... 70
A INSTAURAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DA BRUXARIA NAS ARTES VISUAIS DA
EUROPA OCIDENTAL: AS BRUXAS DE ALBRECHT DÜRER . Erro! Indicador não definido.
OS DOIS MODELOS ESTABELECIDOS POR DÜRER: O GROTESCO E O
AFRODISÍACO ................................................................ Erro! Indicador não definido.
O PROTAGONISMO DO CORPO DA BRUXA NA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DE HANS
BALDUNG GRIEN .............................................................. Erro! Indicador não definido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................... Erro! Indicador não definido.
REFERÊNCIAS .................................................................... Erro! Indicador não definido.

APRESENTAÇÃO
Mal eu saberia que em todos aqueles anos de minha infância e adolescência
assistindo Sailormoon, Sakura Card Captors e Inuyasha, emocionando-me de todas as
formas possíveis, sem contar as várias abdicações para vê-los, não seriam em vão. Estes
desenhos televisivos feitos pelos estúdios japoneses (isto é, animes) foram minha base
imaginativa e meu alicerce para conseguir viver o período em questão. As pressões
psicológicas de tentar ser a melhor atleta de natação e ser a melhor filha, neta ou
sobrinha eram sentimentos intrínsecos a mim. Eu acompanhava também as emoções
de uma mãe que suportou os mais variados constrangimentos e intimidações por ter
tido uma filha muito jovem, sem mencionar o fator de ter tido um ex-marido e, no meu
caso, um pai, alcóolatra e ausente desde os meus quatro anos. Esses animes me
deixaram em uma realidade digamos, paralela, fortalecendo de alguma forma minha
imaginação e minha vontade de ser uma pessoa melhor e viver em um mundo que não
fosse aquele que eu enfrentava. Não consigo contar, por exemplo, quantas vezes
cheguei rapidamente em casa, depois de um treino difícil, para assistir exatamente a
sequência dos desenhos que apresentei acima.

Primeiro, mergulhava na vida de um grupo de amigas adolescentes com


poderes mais que especiais: se transformar e representar (cada uma) a lua e os outros
sete planetas, tendo como missão enfrentar o mal. A simbologia da vida de Serena e de
suas amigas foi baseada em mitologia e astrologia, e foi uma excelente maneira para eu
conhecer o cerne do poder feminino. Mas eu necessitava ir à essência do mundo mágico,
e Sakura e suas cartas Clow conseguiram fazer isso. A personagem abre um livro
misterioso, chamado Livro Clow que continha cerca de 50 cartas mágicas e que, em uma
tempestade feita por uma das cartas, foram libertadas e espalhadas por toda a cidade;
era seu dever capturá-las de novo. As cartas foram criadas por uma espécie de feiticeiro
chamado Mago Clow e eram objetos mágicos que podiam provocar fenômenos
estranhos e perigosos, cada um com uma personalidade e poder especifico como vento,
sono, canção, entre outros. Entre as maiores qualidades dessa animação é que, na
segunda parte da história, ela pode transformar as cartas do Mago em suas próprias
cartas. Teria ela então se tornado uma maga, ou uma feiticeira, ou se adaptarmos a essa
pesquisa, uma bruxa?
Eu não poderia, entretanto, ficar tanto tempo em um mundo fantástico, pois
também era uma adolescente um pouco incrédula, mesmo que isso possa parecer
contraditório. Daí que surge Inuyasha e suas histórias na Era feudal japonesa. O título
dado à animação vem do nome do personagem metade humano, metade yōkai, uma
espécie de monstro, que era um pouco bravo e bastante atraente. Apesar do seu
aparente protagonismo, foi Kagome, uma garota que vive no Japão atual, e Kikyou, uma
sacerdotisa do período feudal, que chamaram minha atenção. A primeira seria a
reencarnação da segunda, que era a guardiã da Joia de Quatro Almas, um objeto que
fornecia muito poder para quem o tivesse. Reencarnada, Kagome herda os poderes da
sacerdotisa, assim como sua beleza e seu romance com Inuyasha. Em determinado
momento do enredo, Kikyou é ressuscitada e é nesse instante ao ser desenvolvida mais
afundo sua história que tenho acesso aos costumes dos povos, que tinham na figura da
sacerdotisa um grande prestígio e valor social (mesmo que se trate, nesse caso, da
cultura oriental e suas especificidades), simbolizando uma figura materna, dona de uma
gama de conhecimentos da natureza e do mundo mágico (e também do submundo, já
que a personagem se mantinha viva a partir da captação das almas mortas), assim como
uma protetora do que era valioso para aquele povo.

De alguma forma, ao fugir dos meus problemas acabei criando possibilidades


para o meu futuro – quem diria – profissional. Por isso, afirmo que não foi em vão a
construção desse imaginário. Cheguei a esse tema a partir de uma longa herança
imagética e fantasiosa, precisando apenas de um “empurrãozinho” da vida e do acaso
para relembrar tudo isso.

Concretamente, encontrei o incentivo para essa pesquisa quando vi o filme de


terror de longa-metragem produzido em 2015, chamado A Bruxa (The Witch: A New-
England Folktale, título original) do diretor Robert Eggers. O fascínio crítico pelo filme só
tem aumentado, desde que foi visto pela primeira vez no cinema. Situado no ano de
1630, conta-se a história de uma jovem, bonita e esclarecida para a época, chamada
Thomasin (Anya Taylor-Joy), que se muda da sua antiga colônia na Nova Inglaterra,
Estados Unidos, e passa a viver em um terreno afastado e próximo de uma grande,
obscura e misteriosa floresta. Ela estava acompanhada de mais quatro irmãos, além de
sua mãe e de seu pai. O motivo da mudança foi a expulsão da família da região, acusada
de heresia pelo conselho puritano da comunidade, religião a qual, a maioria, senão
todos daquele local, seguiam. Quando instalados no novo lugar, coisas estranhas e
suspeitas passam a acontecer: um dos irmãos, Sam, ainda bebê e não batizado,
desaparece quando estava sob os cuidados de Thomasin; os animais pertencentes à
família passam a ter reações esquisitas; as colheitas, do qual a família dependia, se
tornam um desastre; e um dos irmãos, Caleb (Harvey Scrimshaw), com idade
aproximada da jovem, desaparece na floresta – também enquanto estava com
Thomasin –, retornando, depois de um tempo, com aspectos de uma pessoa
aparentemente enfeitiçada ou possuída por um “espírito maligno”. A família, que
demonstrava ter uma crença inabalável e um grande respeito com a hierarquia do pai,
passa a partir desses casos a questionar os acontecimentos e a se culpar; mas,
principalmente, passa a acusar uma pessoa específica de bruxaria: Thomasin.

Ela estará inserida em todos os momentos e áreas dos “crimes”, seja em ambos
os sumiços dos irmãos; seja com brincadeiras em forma de ameaça com seus irmãos
gêmeos, uma menina e um menino, de que seria realmente bruxa – em que jogaria um
feitiço se não parassem de irritá-la; ou então, quando confrontou o pai e o acusou de
ser o principal causador das desgraças da família. Enfim, comportamentos quase óbvios
para que as acusações caíssem sobre ela.

O encanto sobre o filme não é só na forma como a história é trabalhada,


contada e encenada. Isso não é o principal. A maneira como Eggers tratou a imagem da
mulher considerada bruxa é o ponto essencial, cujas várias representações são
apresentadas com diversos códigos e linguagens para que o imaginário do espectador
não se perca em um único ponto. Por isso, essas imagens pré-concebidas de uma bruxa
não se darão somente com Thomasin. De início, podemos ver uma mulher anciã que
sequestra a criança, manuseia seus restos mortais para fazer o unguento, completando
o ritual do voo. Vemos também uma linda mulher que seduz, beija e enfeitiça o irmão
de Thomasin, Caleb, quando perdido na floresta; e a jovem Thomasin, condenada e
julgada pela família, sendo acolhida pelo bode chamado Black Phillip, uma
representação declarada do Demônio, e levada para o conhecido sabá, ocorrido no
interior da floresta, com outras mulheres jovens e senhoras, todas nuas, com vassouras,
em um possível estado de transe.
É no filme que fica claro, principalmente, as várias representações da mulher
que em determinado contexto social, religioso e político foi condenada bruxa por seu
empoderamento e, especificamente, pela sua sedução e sexualidade, que passa a
incomodar e a atormentar toda e qualquer ordem imposta. Afirmou o diretor Eggers:
"Você tem que entender uma coisa: se uma sociedade inteira acredita em algo, aquilo
existe [...]. Metafisicamente, hoje em dia não acreditamos em bruxas. Mas este medo
do poder feminino e o processo de transformá-lo em algo obscuro e mau, as sombras
disso ainda existem hoje" (ZENDRON; NOGUEIRA, 2016).

Interessante ressaltar que o filme foi produzido em um contexto de crescente


e forte debate sobre o feminismo e o rompimento do mesmo com os padrões
estabelecidos socialmente, politicamente e, principalmente, artisticamente. Um dos
símbolos feministas do século XXI, a imagem da bruxa, é também muito presente na
literatura de Shakespeare, Goethe e Cardano, autores que Umberto Eco traz em A
História da Feiura (2007); em filmes e em séries, seja no gênero de terror, humor ou
fábula infantil, como no filme A Bruxa de Blair (1999), na série americana A Feiticeira (ou
Bewitched, título original) (1964), e no conto de fadas, compilado pelos Irmãos Grimm
no início do XIX e presente em filmes infantis como Branca de Neve e os sete anões
(1937), respectivamente.

Se formos pensar nos aspectos visuais televisivos e cinematográficos, estamos


fartos de bruxas e bruxaria, seja sobre o mal ou o bem. Dentro do campo das Artes
Visuais o número já se restringe dependendo da época, assim como o estudo das
mesmas, tratando-se de análises de alguns autores que se repetem. Preciso dar
destaque aqui para a disseminação de imagens em meio virtual em que a imagem da
bruxa vive em um modo “trash”. Se por algum momento eu tive alguma dúvida sobre a
sexualização das obras de Hans Baldung Grien, por exemplo, a internet deixou-me
segura: associações entre as imagens do artista e fotos eróticas de modelos nuas ou
seminuas apareceram centenas de vezes nas minhas buscas.

O que é surpreendente também, de um outro ponto de vista da pesquisa, é a


grande quantidade de obras escritas sobre a história da bruxaria, da origem e do
desenvolvimento do movimento da Caça às Bruxas em outras línguas que não em
português. Há um número interessante, entretanto, de publicações sobre o assunto dos
anos noventa traduzidas. Teria alguma razão específica para isso? Apesar de elas
existirem e algumas inclusive serem citadas aqui, minha maior dificuldade foi dar conta
de tantas leituras sobre estudos mais atuais e traduzi-las para a melhor compreensão
do leitor, assim como conseguir alguns livros e catálogos devido ao alto custo da moeda
estrangeira.

Por isso, ressalto que uma área ainda acobertada de pesquisa é sobre a história
da bruxaria, e principalmente, sobre o desenvolvimento da imagem da bruxa, o que
dificulta não só o acesso acadêmico do tema no país, como também a problematização
das representações visuais, já que a maioria da nossa cultura visual aparenta ser tão
demarcada. Reuniremos, então, em um restrito recorte, uma pequena parte do
abundante número de pesquisas, desejando que cada vez mais o interesse e a procura
por elas se multipliquem.
INTRODUÇÃO

A questão central que move este trabalho é “por que surgem e para quem são
direcionadas as primeiras imagens da bruxa nas Artes Visuais?”. Para chegarmos a uma
possível resposta, foi preciso traçar um caminho com a relação por que e para quem a
fim de desenvolvemos um pensamento crítico sobre o tema e as imagens. Tal relação
esteve presente na análise consoante a algumas perspectivas historiográficas sobre os
motivos que levaram a criação do mito da bruxaria e a quem eram destinados tais
concepções e elaborações. Essa relação foi essencial também para após,
compreendermos as razões de determinados artistas utilizarem o tema da bruxaria em
seus trabalhos, assim como para identificar seus públicos-alvo. Eis em algumas palavras
a base dos três capítulos propostos nessa dissertação.
Professora de Literatura inglesa da Keble College de Oxford e também notável
pesquisadora sobre a bruxa moderna e sua fragmentada imagem do passado, Diane
Purkiss traz observações significativas em seu The Witch in History: Early Modern and
Twentieth-Century Representations ou A Bruxa na História: Representações da Pré-
Modernidade e do Século XX (1996). Ela analisa que nos dez anos anteriores ao ano da
sua publicação, houve um grande número de trabalhos abordando a questão do gênero
e do sobrenatural de maneiras até então não vistas. Mais do que isso, a pesquisadora
constata que desde o final dos anos setenta, a figura da bruxa tem sido central nos
debates ocorridos na tentativa de um renascimento da história das mulheres. As
possíveis causas vêm de um interesse duplo da pesquisa acadêmica e de mulheres
militantes:
Esse ressurgimento foi realizado por historiadores acadêmicos, mas não
apenas por eles; o ímpeto original por trás da tentativa de descobrir o passado
das mulheres veio de ativistas do movimento de libertação das mulheres, e
em parte do fato de que as bruxas estavam entre as poucas mulheres que
recebiam qualquer espaço na história pré-feminista. (PURKISS, 1996, p. 9)1

O interesse pela história da representação visual da bruxa vem em seguida,


como consequência dos motivos elucidados por Purkiss. A nossa pesquisa parte de um
catálogo de imagens que tiveram origem e embasamento teórico nas pesquisas da
historiadora da arte americana, Linda Hults, e do historiador cultural, Charles Zika,
publicados na primeira década dos anos 2000. Já é possível afirmar, entretanto, o
quanto axiomático é a desproporção de análises de imagens feitas sobre o tema no
campo das Artes Visuais em relação aos outros campos que analisam a história da
bruxaria, da magia e dos diversos períodos das Caças às bruxas.
A importância então da nossa pesquisa não só se dá pela atualidade e pertinência
do assunto para as discussões vigentes, mas também por disponibilizar muitos trechos
de livros não traduzidos ainda para nossa língua; será proporcionado também – e esse
é um dos nossos objetivos fundamentais – a compreensão das possíveis origens dos
vários elementos que hoje fazem parte do nosso imaginário, principalmente fornecido
pela literatura, e as possíveis causas de determinados ícones se tornarem formas de
identificação de uma imagem de uma bruxa. Mais importante: esse trabalho não tem
como intenção reforçar o estereótipo e a nomenclatura sexistas e preconceituosos
criados e legitimados há muitos séculos atrás. Pretende-se, ao contrário, desconstruir
as imagens e trazer para o leitor oportunidades para julgar e refletir propositalmente a
representação visual da bruxa e a nossa herança imagética sobre a bruxaria.

Escolha da protagonista

A abordagem da dissertação intenciona trazer o gênero feminino e sua figuração


para o centro das discussões, estabelecendo o uso do termo “bruxa” como padrão para
o nosso recorte – e não feiticeira, sacerdotisa ou maga –, com base em fundamentos
que vão além da nossa imaginação.

1
“This revival was carried out by academic historians, but not only by them; the original impetus behind
the attempt to uncover women's past came from activists in the women's liberation movement, and partly
from the fact that witches were among the few women who were given any space in pre-feminist history”.
Antes de tudo, não podemos nos moldar às informações fornecidas pelos
dicionários, com definições conflituosas, salvo somente se for para perpetuar o que
chamaremos de “teorização da bruxaria”, ideia desenvolvida no primeiro capítulo; ou
então para reforçar os termos e preconceitos de gênero da nossa fala contemporânea,
sendo tal forma muito difícil de escaparmos. Na última versão do Houassis, por exemplo,
temos que a palavra bruxa tem como: “1- mulher que tem fama de se utilizar de
supostas forças sobrenaturais para causar malefícios, perscrutar o futuro e fazer
sortilégios; feiticeira. 2- p.ext. mulher muito feia e/ou azeda e mal-humorada”. De fato,
houve bruxos homens que eram estudados, acusados e condenados, mas como veremos
no decorrer de toda a pesquisa, a ênfase dada ao gênero feminino é essencial não só
para fundamentar e desenvolver o mito da bruxaria, mas principalmente, para auxiliar
no surgimento das primeiras imagens sobre o mesmo.

No primeiro capítulo, determinamos o tema a partir de uma investigação sob os


aspectos sociais, religiosos e culturais do período conhecido como Renascimento,
delimitado aqui entre os séculos XIV e o início do século XVI, que marcam o começo e a
expansão dos fundamentos da bruxaria, assim como os elementos relacionados ao
gênero feminino. Dividido em duas partes, temos, primeiramente, uma análise
detalhada de textos e anedotas a fim de determinar a lógica de um pensamento comum
de um grupo, composto por clérigos, inquisidores e filósofos, em um contexto que parte
de tensões na religião cristã, principalmente vindas do Catolicismo, no qual teriam
levado à criação da teoria da bruxaria. Ao captarmos que as mesmas pessoas que
escreveram sobre o mito da bruxaria são aquelas chamadas de demonologistas,
seguiremos o termo proposto pelo professor “guia” dessa primeira parte, Walter
Stephens (2002), de chamá-los de teóricos já que, preliminarmente, segundo o autor,
eles eram teólogos. O interesse racional desses teóricos pelos demônios era inseparável
de suas preocupações teológicas, e não de uma excentricidade secundária como é
proposto comumente por diversos historiadores. As crises, pois, que levaram à teoria
da bruxaria no início do século XV surgiram de um debate longo e desconfortável entre
a experiência corpórea e a teoria sobre Deus, a eficácia de seus sacramentos e os
demônios. A compreensão dos tratados, ensaios e anedotas foram, pois, cruciais para
entendermos o que a bruxaria significava no período da Europa Pré-Moderna e,
principalmente, na identificação da cultura vivida pelos contemporâneos desses
teóricos, os artistas.

Inteiramos que o termo “bruxa” não traz uma, nem duas definições fixas. Ela
acompanha as alteridades do tempo, assim como as instabilidades geográficas, políticas
e religiosas entre os diversos grupos que a utilizam. Em concordância com Purkiss,
“bruxa”

Pode ser apropriado pelo patriarcado, protofeminismo, medicina,


racionalismo cético e religião radical. Nas aldeias e cidades, a bruxaria
pode se tornar um significante central nos debates sobre poder,
emprego, normas, valores, direitos de propriedade e propriedade da
terra. Nada disso implica que os aspectos sobrenaturais da bruxaria
não importassem; eles importavam de várias maneiras em diferentes
contextos. Como o termo “bruxa” atravessou esses diversos espaços,
seus próprios significados foram revisados silenciosamente ou
abertamente reescritos. (PURKISS, 1996, p. 93)2

Escolha teórica

Uma hostilidade às questões de gênero na historiografia da bruxaria é


identificada por Diane Purkiss. Mesmo sendo mais abordadas nos últimos anos, segundo
a professora, as questões continuam na tangência de muitas pesquisas de historiadores
que abertamente são adversos às teorias e histórias feministas. Esse, pois, é um dos
motivos de não utilizarmos alguns autores de algumas linhas historiográficas específicas
da área de estudo sobre bruxaria, divididos em ao menos três. A teoria romântica não
nos é eficiente, já que estuda a bruxaria como uma resistência do paganismo em meio
ao cristianismo medieval, sendo a bruxa desde sempre uma feiticeira, vista como uma
heroína do povo e da natureza; essas ideias são defendidas pelos autores como Jules
Michelet (1862), James George Frazer (1890) e uma das primeiras pesquisadoras sobre
o tema, Margaret Murray (1921). Se basearmos na teoria racionalista, nossas análises
teriam problemas já que ela limita a bruxaria como uma construção mental,

2
“It could be appropriated by patriarchy, protofeminism, medicine, skeptical rationalism and radical
religion. In villages and towns, witchcraft could become a central signifier in debates about power,
employment, norms, values, property rights and land ownership. None of this implies that the
supernatural aspects of witchcraft did not matter; they mattered in a variety of ways in different contexts.
As the term 'witch' traversed these diverse spaces, its own meaning s revised silently or openly rewritten”.
desenvolvidas por autores como Robert Mandrou (1968), Norman Cohn (1975) e Jean
Delumeau (1978).
As duas partes do nosso primeiro capítulo se baseiam, pois, na teoria
culturalista e a teoria da bruxaria como questão de gênero. De maneira geral, a primeira
trata a bruxaria como a relação da criação dos inquisidores, intelectuais e religiosos,
como um reflexo de crenças, mitos e folclores populares res-significados pelos valores
sociais da Idade Média Tardia, em que se inclui Carlo Ginzburg (1966), Alan Macfarlane
(1970), Keith Thomas (1971), Walter Stephens (2002), entre outros.
Para a maioria desses autores – inclui-se aqui aqueles pertencentes à teoria
romântica e racionalista, ou não ocorre o debate sobre a presença do gênero feminino
na relação de acusadores e acusados ou é visto por eles como um fator secundário. É
por esse motivo que serão pouco aprofundados, salvo em determinados momentos da
pesquisa, autores prestigiados como Alan Macfarlane e seu Witchcraft in Tudor and
Stuart England (1970) ou Bruxaria na Inglaterra dos Tudor e Stuart, Keith Thomas em
Religião e o Declínio da magia (1971) e Norman Cohn e seu Europe's inner demons
(1975) ou Demônios interiores da Europa. Seguimos esse caso partindo de Diane
Purkiss3, que observa que
A recusa dos “historiadores” em participar do debate [sobre a questão de
gênero] sugere que eles simplesmente não podem levar a sério a teoria do
fim da história das mulheres. O fato de o pós-estruturalismo ameaçar tirar os
historiadores do trabalho não o torna falso. Embora alguns historiadores
realmente ofereçam outras refutações, estas geralmente são baseadas em
certo descuido interpretativo. [...] Tanto os críticos literários, quanto os
historiadores agora reconhecem a importância de questões como “Quem
está falando aqui? A que horas? Em que tipo de contexto?” [...]. O contexto é
composto de outros textos, no entanto. Tal metodologia depende do acesso
a uma variedade de textos em gêneros semelhantes por autores
semelhantes, de classe social similar, gênero e assim por diante, e também
depende de encontrar um número de textos por autores diferentes do autor
sendo estudado em todos esses aspectos, para fornecer diferentes
usos. (PURKISS, 1996, p. 69, 71,73)4

3
Devemos destacar que Purkiss (1996) faz críticas específicas a Thomas e Macfarlane (ver p. 44, p. 62, p.
68). As “acusações” da autora são assim mencionadas na introdução de James Sharpe da segunda edição
do livro de Macfarlane (1999, p. XIX) – que não por acaso é uma versão modificada da tese de Doutorado
do autor (Oxford D.Phil. thesis) que foi orientado pelo próprio Keith Thomas com o título Witchcraft
Prosecutions in Essex, 1560-1680; A Sociological Analysis (1967) ou Processos de bruxaria em Essex, 1560-
1680; Uma análise sociológica.
4

“’Historians' refusal to join in the debate at all suggests that they simply cannot bring themselves to take
wom-en's history ender theory seriously of interest in.
The fact that poststructuralism threatens to throw historians to
out of work does not make it untrue. Though some historians do offer other refutations,
Diante disso, trouxemos a teoria mais recente que estuda a bruxaria ligada às
questões de gênero. Especialmente na segunda parte, temos uma análise carregada de
textos de autores variados que direcionam nosso olhar para a vida das mulheres e a
cultura misógina na qual estavam inseridas. Essa parte será marcante na nossa pesquisa
já que uma das nossas bases teóricas, as questões ligadas à teoria da bruxaria, é
assimilada por nós como essencialmente vinculada ao estudo de gênero, principalmente
quando tivermos que nos concentrar na mentalidade do artista homem, definidor da
imagem da bruxa.

Ressalvas às visões feministas radicais

Vale darmos destaque a alguns pontos complicadores que merecem maior


atenção, não só registrado por aqueles autores avessos às teorias e histórias feministas,
mas por autoras da segunda linha teórica utilizada nessa dissertação, como Linda Hults,
Lyndal Roper e Diane Purkiss. Elas observam as poucas evidências de algumas das
afirmações defendidas por algumas feministas radicais. De acordo com as autoras, por
mais que os homens fizessem a maioria das acusações às bruxas, eles não eram
responsáveis por todas: muitas das mulheres eram acusadas por mulheres. Purkiss
(1996, p. 110) faz profundas leituras sobre as histórias contadas por mulheres desde o
período inicial da Caça às Bruxas, as quais a bruxa era vista como uma mulher que
desejava fazer parte de uma relação íntima vista como indevida ou quase maternal, ao
invés de permanecer distante, com a dona de casa e, especificamente, com seus filhos.
Passou-se a ser claro o medo maternal dessas mulheres de uma intromissão e uma
possível incapacidade de proteger a criança.

these are usually based on a certain interpretive carelessness. [...] Both literary critics and historians now
knowledge the importance of questions such as 'Who is speaking here? And to whom? At what time?
What kind of context?'[...]. The context is composed of other texts, however. Such a methodology
depends on access to a variety of texts in similar genres by similar authors of similar social class, gender,
and so on, and also depends on finding a number of texts by different authors of the author being studied
in all these respects to provide different uses".
Também temos a questão sobre o mito dos tempos das queimas maciças de
bruxas em fogueiras, chamado de Burning Times ou Tempos Ardentes. Temos que ter
claro a partir de Purkiss de que

A criação feminista radical do mito dos Tempos Ardentes é difícil de analisar


e discutir porque se tornou uma parte tão fundamental das identidades de
muitas feministas que apontar suas limitações está fadada a ser dolorosa
e divisora. O mito lembra a todos nós que queremos nos encontrar no
passado, que examinamos o passado buscando a confirmação de quem
somos, quem queremos ser. Nós procuramos por algo para apontar e algo
contra o qual nos apontar. [...] É visível na maneira como o mito dos Tempos
Ardentes cobre a especificidade histórica em sua ânsia de unir as mulheres e
na coação do mito assim criado. [...] Esses roubos mostram até onde o
narcisismo pode ir, nublando o passado para fazer um espelho para o
presente infinitamente incerto. Assim, ajudando a nós mesmas, estamos
silenciando as mulheres modernas primitivas de novo. Também estamos nos
negando a chance de ouvir diferenças históricas que poderiam nos mostrar o
quão diferente as coisas poderiam ser, quão frágeis as suposições que nos
fazem sofrer agora podem parecer aos nossos descendentes. Se o passado é
diferente, o futuro pode ser. (PURKISS, 1996, p. 26)5
Como uma possível solução para elas, para todos nós e para todas aquelas que
desejam escrever sobre aspectos de uma bruxaria sobre um olhar feminista, que
segundo Purkiss é tendencialmente uma reescrita de uma reescrita, devemos fugir não
só das restrições impostas pela tradição historiográfica, mas também não cair na
tendência de tratar as histórias de mulheres testemunhas e de mulheres representadas
como aquele discurso pronto sobre o patriarcado e a feminilidade; este pode ter
surgido, segundo a professora, das primeiras tentativas feministas de buscar uma
explicação global para a Caça às bruxas. Por último, mas não menos importante, a autora
ressalta que

Como os historiadores do sexo masculino têm apontado com certa satisfação,


a teoria de que a Caça às Bruxas é igual à misoginia é constrangedora pela
predominância de mulheres testemunhas contra o acusado. No entanto, isso
não significa que a ideologia de gênero não participe da modelagem das
histórias das mulheres. Abandonar as narrativas globais simples da misoginia

5
“What does all this tell us about gender and history? The radical feminist creation of the myth of the
Burning Times is difficult to analyses and discuss because it has become such a key part of many feminists'
identities that to point to its limitations is bound to be painful and divisive. The myth reminds all of us that
want to find ourselves in the past, that we scan the past looking for confirmation of who we are, who we
want to be. We search for something to aim for, and something to aim against. […] It is visible in the way
the myth of the Burning Times covers over historical specificity in its eagerness to unite women, and in
the coerciveness of the myth thus created. […] These thefts show how far narcissism can go in clouding
the past to make a mirror for the endlessly uncertain present. In thus helping ourselves, we are silencing
early modern women anew. We are also denying ourselves the chance to hear historical differences which
might show us just how different things could be, how fragile the assumptions which make us suffer now
might seem to our descendants. If the past is different, the future can be”.
em favor de uma descrição mais detalhada das histórias das mulheres não
torna a questão do gênero irrelevante; coloca essa questão de uma forma
nova e urgente. Para ler as histórias produzidas pelas mulheres depoentes, as
feministas precisam fazer novas perguntas sobre o papel desempenhado pela
ideologia de gênero em despertar ansiedades e medos das
mulheres. (PURKISS, 1996, p. 92)6

Como nossa proposta é analisar as imagens, estamos restritos, entretanto, à


retórica e às visões do meio artístico, que era composto majoritariamente pelo gênero
masculino e que apareceram como artistas, espectadores e compradores. Isso não reduz
nosso papel de dar um rápido destaque aos aspectos elencados acima por Purkiss,
relevantes para problematizações futuras que não cabem no nosso recorte.

O aparecimento da bruxa nas Artes Visuais

Após esse desenvolvimento teórico, nossa percepção é levada para as análises


das primeiras obras de arte que trouxeram a bruxa como protagonista contextualizadas
no período da Europa Pré-Moderna. Dado o recorte metodológico de obras feitas em
gravura e desenho, o capítulo dois e o capítulo três apresentam os motivos que levam o
surgimento da personagem nas Artes Visuais e o valor simbólico dado a ela que é
evidenciado pela presença em trabalhos de importantes artistas.

No segundo capítulo constatamos a instauração da representação da bruxaria


nas artes visuais da Europa ocidental a partir de duas gravuras feitas pelo renomado
artista alemão Albrecht Dürer (1471 - 1528), conhecidas como Quatro bruxas ou Quatro
mulheres nuas, de 1497, e A Bruxa ou Bruxa montada para trás, de cerca de 1500. O

6
“As male historians have somewhat gleefully pointed out, the theory that witch-hunting equals misogyny
is embarrassed by the predominance of women witnesses against the accused. However, this does not
mean that gender ideology plays no part in shaping women's stories. Abandoning simple global narratives
of misogyny in favor of a more detailed account of women's stories does not render the question of
gender irrelevant; it poses that question in a new and pressing form. In order to read the stories produced
by women deponents, feminists need to ask new questions about the role played by gender ideology in
arousing women's anxieties and fears”.
artista desenvolveu em apenas duas imagens os dois modelos corporais da personagem
determinados como a bela bruxa e a bruxa grotesca, vistos em trabalhos de seus
contemporâneos e de artistas dos séculos seguintes, e que estão presentes, inclusive,
na nossa cultura visual atual. Autores como Aby Warburg, Erwin Panofsky e André
Chastel estarão presentes nessa parte para conseguirmos ter uma melhor compreensão
do momento artístico que vivia um dos artistas mais marcantes do Renascimento.

No último capítulo, apresentamos o protagonismo do corpo da bruxa na


trajetória artística de Hans Baldung Grien (1484 - 1545), discípulo de Dürer, que
percorreu um caminho singular rumo ao desenvolvimento do seu trabalho sobre o corpo
feminino em conjunto com suas percepções artísticas e humanísticas da época,
tornando as bruxas as protagonistas da sua trajetória. Delimitamos um recorte
específico de suas obras (entre tantas que trabalham exponencialmente a sexualidade
feminina) que nos auxiliarão para captarmos as transformações de muitos dos
elementos que determinaram uma construção imagética em uma ou mais
representações da bruxa.

Em ambos os capítulos, trabalharemos também as particularidades dos


territórios alemães, e os motivos pelos quais levaram os artistas dessas regiões se
interessarem pelo tema. O que podemos adiantar é que foram nessas terras que o
estereótipo da bruxa fora determinado. Foram nelas também que se viu surgir a mistura
entre as reflexões sobre a natureza indisciplinada e perigosa da imaginação feminina, e
a curiosidade sobre os desejos corporais. Veremos também que a imagem da bruxa a
partir da instauração de Dürer e após, com o desenvolvimento de Hans Baldung, se
tornou um índice do intelecto da capacidade inventiva do artista renascentista, que
auxiliará no fornecimento de um status elevado do artista masculino.

Por mais que nós estejamos distantes desse período, assim como a relação do
historiador com o passado, tentaremos, pois, captar nas próximas páginas as sugestões
nos trabalhos deixadas pelos artistas sobre as falas do seu tempo.
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS DE UMA
TEORIZAÇÃO DA BRUXARIA

A incompreensão do presente nasce fatalmente da


ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão
esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do
presente.

(Marc Bloch em Apologia da História ou O


Ofício de Historiador, 2002)

TENSÃO NA CRENÇA CRISTÃ


É preciso, antes de mais nada, compreender a conjuntura nas áreas da filosofia,
da religião e da política em que os artistas estavam inseridos no período do
Renascimento europeu. Grupos eruditos, entre eles juízes, pregadores, clérigos e
filósofos, tinham acesso não só à Bíblia e aos estudos dos doutores da Igreja, mas
também à Filosofia Clássica, tendo como principal fonte o filósofo Aristóteles (384 - 322
a.C.). Eles também fizeram uso do pensamento escolástico, que, em poucas palavras, foi
a associação da fé com a razão, numa relação em que ambos se correspondiam,
instituído e aprofundado pelo grande Tomás de Aquino (1225 - 1274). O adjetivo dado
a ele não é por acaso: Aquino não desenvolveu exclusivamente a filosofia católica e o
direito canônico, por exemplo, mas passou a ser um pioneiro na discussão que originou
a corporificação da bruxa, tendo apresentado em seus estudos diversos elementos que
os teóricos se apropriaram e tornaram fundamentais para a existência de uma teoria da
bruxaria.

O período que trabalhamos vai do século XIV até a metade do XVI,


compreendido como Renascimento (apesar de não haver um consenso do recorte
cronológico). Sobre essa época temos um notável estudo, entre aqueles realizados em
uma perspectiva culturalista, do professor da Universidade Johns Hopkins (EUA) Walter
Stephens, de enfoque equivalente a sua formação em literatura comparada e filosofia.
A obra, Demon Lovers: Witchcraft, Sex, and the Crisis of Belief, ou Amantes do Demônio:
Bruxaria, sexo e a crise da crença (2002), traz uma coleção de textos denominados por
Stephens como os primeiros tratados sobre bruxaria, que partem do ano de 1430 e que,
segundo o autor, serviram como tentativa para resolver questões sobre a anatomia,
fisiologia e copulação demoníaca, e o ceticismo diante dos sacramentos. Tais tratados
desempenharam um forte papel de defesa dos princípios cristãos fundamentais e é a
partir da leitura deste autor que conseguiremos nos aproximar da realidade cristã
estremecida e das origens para o aparecimento e utilização da teoria sobre bruxaria
como um recurso de salvação.

Esse estudo fez referência a outra importante pesquisa publicada no ano 2000,
realizada por Alan Charles Kors e Edward Peters. Os pesquisadores reuniram um
conjunto de textos, ensaios e anedotas que foram compilados em Witchcraft in Europe,
400-1700: a Documentary History ou Bruxaria na Europa, 400-1700: uma história
documentada. Através dos escritos, eles analisam as possíveis origens dessa ansiedade
e dos elementos que foram utilizados para concretizar o mito da bruxa. Através dos
narradores escolhidos pelos autores, não exploramos somente a especulação bíblica e
patrística sobre a natureza do mal e o trabalho filosófico a respeito da matéria e do
espírito; temos também um olhar singular de como foram assimilados a religião, o
folclore celta e germânico e os antigos cultos pré-cristãos, que passaram a ser notados
e agregados.

Para compreendermos o desenvolvimento teórico vindo da transformação dos


costumes e cultos de grupos culturais específicos e como o mesmo conduziu a criação
de estereótipos totalmente prejudiciais – condicionados e transformados a partir da
identidade cultural desses grupos –, temos a tradicional obra Las Brujas y su Mundo ou
As bruxas e seu mundo (1961) do historiador e folclorista espanhol Julio Carlo Baroja. A
sua elaboração teórica partiu da concepção primária do mundo e sua existência no
mundo greco-latino, da relação entre magia e religião, da extensão da prática do culto
das bruxas do século XIV e dos processos inquisitoriais com uma detalhada análise sobre
as bruxas do País Basco, conhecidas como as bruxas de Zugarramurdi. Da sua densa
pesquisa, aprofundaremos seu estudo sobre a terminologia de magia maléfica e
benéfica, a tradição da bruxaria nos territórios germânicos e a adoração do demônio
pelos povos naquele período.

Faremos uso também da pesquisa de Carlo Ginzburg conhecida como História


Noturna (1989). Com o historiador italiano, podemos chegar mais perto dos elementos
de proveniência xamânica, vindos da cultura folclórica, como o voo mágico e as
metamorfoses animalescas, até alcançarmos o que conhecemos hoje como sabá das
bruxas, termo construído pelos inquisidores e juízes, associado a uma seita ou um grupo
social adverso, muito trabalhado nas artes visuais.

Por último, mas não menos importante, temos a pesquisa do especialista em


história do cristianismo na Europa Moderna e professor emérito de História e Estudos
Religiosos na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, Hans C. Erik Midelfort. A
presença de sua análise se faz a partir de um artigo (1981) no qual investiga os motivos
pelos quais mais bruxas foram executadas nos territórios de língua alemã em relação ao
restante do território europeu. Auxilia-nos a compreender a bruxaria em terras
germânicas de um ponto de vista legislativo, essencial para entendermos para quem as
obras foram feitas.

Partindo de uma elite pensadora

Numa constante em que a linha fundamental era a dúvida e os elementos de


apoio eram a alfabetização e o estudo teológico, muitos daqueles pensadores que
desenvolveram os tratados em questão, isto é, os teólogos, filósofos e os
interrogadores, trocaram as mais variadas suposições a fim de achar respostas para
apaziguar os ânimos. Lembrando que a discussão estava em torno da matéria versus
espírito, do bem versus o mal, do real versus imaginário, um dos objetivos desse grupo
de pensadores era provar a realidade do mundo espiritual, que estava em crise desde
1400. O que o autor Walter Stephens examinou nos escritos e que passa a ser o
elemento chave da sua pesquisa é o aparecimento das relações sexuais entre humanos
e demônios servindo como prova essencial desse mundo espiritual, e mais
especificamente, do demônio. Esses estudos, segundo ele, trouxeram o conhecimento
carnal dos investigados como a prova mais valiosa dessa realidade.

Mas a bruxaria europeia e todo seu universo teórico tem, ainda assim, algumas
ressalvas e que não podemos deixar de mencionar. A renomada pesquisa de Alan
Macfarlane (1999) sobre a bruxaria em território inglês nos mostra que ao contrário do
continente europeu (onde nossa pesquisa disserta), os tipos de crimes atribuídos às
bruxas de Essex não mostraram nenhum conteúdo sexual. Quando feita a leitura dos
crimes, o autor observou que a virilidade não fora atacada em nenhuma forma, como
veremos, por exemplo, de agressões sobre os genitais masculinos ou das massivas
participações em orgias sexuais em textos originados em terras germânicas e italianas.
Devemos ressaltar também que a ligação da religião com o desenvolvimento de uma
teorização da bruxaria, a qual desenvolvemos, deu-se de forma diferente na
configuração geográfica trabalhada por Macfarlane. Os escritos analisados por ele
demonstraram que
Aqueles que trouxeram a acusações foram principalmente desinteressados
no suposto pacto com o Diabo, na perda da alma do acusado ou qualquer
ataque presumido à Cristandade. O diabo nunca apareceu como um homem
em Essex antes do julgamento excepcional de 1645; quando ele apareceu era
então geralmente como um pequeno animal - um gato ou um furão. Isso
estava longe da terrível concepção de Satanás abrigado pelos puritanos. Na
maioria das descrições de Essex sobre bruxaria não houve menção do diabo
ou de um suposto compacto pela bruxa, que assim trocou sua alma pelo
poder diabólico. O problema sobre a origem do poder da bruxaria não parecia
ter interessado particularmente os aldeões de Essex. Suas preocupações
estavam em mostrar a relação entre a raiva e o acidente. Também não
estavam curiosos quanto ao método utilizado de enfeitiçar. Poucos relatos
descreveram o uso de dispositivos mágicos elaborados, e não há sugestão de
que as bruxas perverteram os rituais cristãos ou se utilizaram de práticas
católicas romanas para ganhar poder. (Macfarlane, 1999, p. 188-189)7

Para Macfarlane (1999), pelo menos se tratando do território inglês, pouca


relação se observou entre o medo de bruxaria e as tensões religiosas, inclusive defende
que as autoridades da Igreja eram muito menos severas sobre a bruxaria do que os
oficiais do Estado. Para ele, a bruxaria refletiu tensões entre um ideal de vizinhança e as
necessidades econômicas e sociais. De qualquer maneira, entretanto, o autor concorda
que as mudanças no pensamento religioso (pelo menos aquelas ocorridas durante o
período que estuda, entre os séculos XVI e XVII) devem ser acompanhadas se quisermos
compreender a ascensão e declínio dos processos.

Brevemente, mencionadas tais informações, percebidas como essenciais para


uma compreensão mais geral e esclarecedora sobre as particularidades territoriais
desse assunto, retornamos à análise da teorização da bruxaria feita no continente
europeu, cuja área implicou nas ações dos artistas e sua cultura. Dando prosseguimento,
os desastres naturais e humanos surgiram também para alimentar o debate e, como
consequência, as teorizações sobre as práticas e consequências do que se convencionou
chamar de “bruxaria” chegou posteriormente às narrativas das artes visuais. O malefício

7
“Those who brought the accusations were mostly uninterested in the supposed compact with the Devil,
the loss of the accused person’s soul, or any presumed attack on Christianity. The Devil never appeared
as a man in Essex before the exceptional trial of 1645; when he did appear before then it was usually as a
small animal — a cat or a ferret. This was far from the awful conception of Satan harbored by the Puritans.
In the majority of the descriptions of Essex witchcraft, there was no mention of the Devil at all, or of a
supposed compact by the witch, who thereby exchanged her soul for diabolic power. The problem of
where the power of witchcraft originated does not seem to have particularly interested Essex villagers.
Their concern was to show the link between anger and accident. Nor were they curious as to the method
used in bewitching. Few accounts described the use of elaborate magical devices, and there is no
suggestion that witches perverted normal Christian rituals to gain power, or used Roman Catholic
practices”.
e tais desastres foram e estão hoje ligados de modo intrínseco, mas essa relação ficou
por um bom tempo somente entre um grupo restrito de pessoas. Antes de 1400,
observam Kors e Peters (2001), não havia uma consciência ampla, alfabetizada e ciente
das tensões sociais e políticas, da vulnerabilidade espiritual e do desamparo sobre os
acontecimentos da época. O envolvimento de diversos grupos da Europa formados por
clérigos, filósofos e políticos, surgiu somente com a junção das ideias disseminadas pelas
perseguições, principalmente nas áreas cristãs em guerra e o sombrio espalhamento de
pestes e da fome, que serviram para disseminar esse medo do poder demoníaco e,
consequentemente, das perseguições inquisitoriais.

Walter Stephens observou, entretanto, que os grandes desastres do século XIV,


como a Peste Negra e a epidemia da Lepra, vieram depois dos estudos que estavam
sendo feitos pelos teólogos escolásticos. Por mais de um século, afirma o autor (2002,
p. 267), as possíveis provas da existência ou não dos demônios e os problemas da
eficiência dos sacramentos já estavam na pauta das discussões, juntamente com
questões como os problemas do mal e suas origens, a existência de Deus, se ele era
todo-poderoso e perfeitamente justo e a existência corporal dos anjos.

Um bom exemplo desse pensamento vem do escritor Giovani Boccaccio (1313


- 1375) e seu Decameron, escrito entre 1348 e 1353. Uma excelente fonte para
compreendermos como os europeus letrados tinham sua fé abalada quando esses
desastres se faziam presente; ele tornou palpável o aparecimento do sentimento de
descrença no ser humano frente a uma adversidade. Stephens lembra-nos que
Boccaccio foi testemunha ocular da temível epidemia de peste em Florença, em 1348, e
elucida-nos:

[...] todas as distinções entre humanos e animais foram apagadas, diz


Boccaccio: pessoas morreram como gado e porcos morreram como pessoas.
O que poderia causar essa morte generalizada? Boccaccio não tem certeza se
deve atribuí-lo à justa ira de Deus contra o pecado humano ou a um “des-
astre” [dis-aster] astrológico, um alinhamento estranho e mortal dos
planetas. Em outras palavras, Boccaccio hesita justamente sobre essa escolha
de causas que Aquino e os teoristas de bruxaria temiam fazer: Deus ou
astrologia, espíritos ou corpos. (STEPHENS, 2002, p. 267) 8

8
“[…] All distinctions between humans and animals were erased, says Boccaccio people died like cattle,
and pigs died like people. What could cause such widespread death? Boccaccio is uncertain whether to
attribute it to God's righteous anger at human sin or to an astrological ‘dis-aster,’ a strange and deadly
Essa dúvida que ocorreu em Boccaccio e em tantos outros pensadores, só
escancara tal insegurança vivida por esses grupos. Na citação acima vemos a hesitação.
De acordo com Carlo Ginzburg, a sociedade em geral que tem no seu cerne o
atravessamento por conflitos, vive esse debate principalmente porque ambos os lados,
o bem e o mal, dependem de quem os define e, por isso, a identificação dos mesmos só
acontece a partir de uma relação de força, “tanto mais eficaz quanto mais seus
resultados se difundiam de maneira capilar” (2012, p. 27-28). É na tentativa de reparar
e reabilitar as suas crenças que a elite pensadora explorou e deduziu equivocadamente
a cultura de determinados grupos e suas visões sobre mundo espiritual. Nesse caminho,
tivemos ainda, segundo Ginzburg (p.91), em um seguimento social, os leprosos; daí um
grupo maior, numa identificação religiosa e étnica, os judeus; e o ponto culminante, a
seita guiada pelo demônio encarnado, os feiticeiros diabólicos e as bruxas. Ele
acrescenta (p. 294) que os elementos desse último grupo vieram de uma lenta
sedimentação entre as trocas dos grupos dos caçadores siberianos, dos xamãs da Ásia
Setentrional e Central e dos nômades das estepes, identificáveis também na região
alpina, onde possivelmente tenha sido a fonte mais próxima para os teóricos da bruxaria
definirem e condenarem a o ato e a imagem do que se tornou o sabá.

Tomemos como exemplo o caso dos Valdenses (Vaudois) presentes nos Alpes
Ocidentais, denominados assim por serem seguidores tardios da pregação religiosa
conduzida por Pedro Valdo (1140 - 1220). Através de Ginzburg, compreendemos que
estes se tornaram, no século XIV, um sinônimo para bruxa ou bruxo e que praticariam
rituais diabólicos, sendo evidenciada nas suas confissões a combinação dos seus
costumes e das suas práticas com as características artificiais pré-concebidas pelos
inquisidores.

Ao contrário de Ginzburg, mas consoante a ele, Stephens declara que as


crenças dessas populações foram distorcidas e exploradas em julgamentos, usando-as
como ponte para resolver as questões relacionadas a crise na religião cristã e dissolver
as preocupações existentes. Em uma rápida passagem sobre os acusados, confirma que:

alignment of the planets. In other words, Boccaccio hesitates over just that choice of causes that Aquinas
and the witchcraft theorists’ dreaded making: God or astrology, spirits or bodies”.
Pessoas que não podiam ler e escrever foram, obviamente, incapazes de
deixar registros em primeira mão de suas crenças sobre os espíritos: as
descrições que herdamos foram registradas pelos alfabetizados e
provavelmente estão manchadas por pressupostos e ansiedades dos
alfabetizados. No entanto, parece que, ao longo da história da bruxaria
europeia, os acusadores iletrados e os réus em julgamentos tiveram uma
crença mais firme e menos complicada na realidade dos espíritos do que a
elite alfabetizada que os forçou a discutir a realidade espiritual. (STEPHENS,
2002, p. 17-18)9

Tal observação, presente no início do seu estudo, é um dos poucos momentos


em que Stephens expõe sua visão sobre aqueles que eram acusados. Não que fosse ao
acaso, mas nos parece que a desconstrução que Ginzburg realiza sobre os grupos
populares em relação aos elementos que definiram a bruxaria e a verdadeira origem
deles, Stephens realiza, ao contrário, sob a perspectiva dos acusadores e das suas
concepções.

Analisando um pouco mais essa elite pensadora, principalmente os filósofos


teólogos, vemos que a sua batalha teórica era baseada em provar suas hipóteses aos
seus pares e àqueles que os contestavam. Uma onda de pensamentos céticos crescia
cada vez mais, e, por isso, viu-se duras reações teóricas servindo como movimentos de
resposta na função de ser tão objetivo quanto.

Heranças de uma ansiedade

Houve determinados momentos no período medieval do Cristianismo que se


ansiou por respostas sobre os sacramentos elaborados e legitimados pela Igreja. Muitos
grupos questionadores – posteriormente, difamados e denominados hereges –,
negaram um ou mais sacramentos acreditando não ter validade segundo a maneira em

9
”People who could not read and write were obviously unable to leave firsthand records of their beliefs
about spirits: the descriptions that we have inherited were recorded by the literate and are probably
tainted by literate presuppositions and anxieties. Nonetheless, it appears that, throughout the history of
European witchcraft, the illiterate accusers and defendants in trials had a firmer, less complicated belief
in the reality of spirits than did the literate elite who forced them to discuss spiritual reality. Fairies, elves,
and. other beings foreign to the biblical and theological tradition were probably mentioned initially by
defendants or accusers, not interrogators”.
que a Igreja pregava. Apesar do presente estudo destacar o período a partir do século
XV, filósofos e teólogos escolásticos do século XII e XIII já realizavam teorias
contundentes através do método com perguntas, hipóteses e respostas. Na verdade,
essa ansiedade já pode ser percebida desde o início do século XI, com o embate entre
as Igrejas conhecidas hoje como Católica Romana e Ortodoxa. A partir do Grande Cisma
do Oriente, que ocorreu em cerca de 1054, tivemos a ruptura da Igreja de Roma e a
Igreja de Constantinopla. Naquela época, escritores ortodoxos se utilizaram de
acusações para lidar com tais aflições, vindas da elite pensadora teológica, os quais
antecedem as dos teóricos da bruxaria e da Reforma Protestante.

Esses grupos externos a Santa Sé, desprendidos por si mesmos ou excluídos


pelos homens da Igreja, viviam a ansiedade já enraizada dos teóricos da bruxaria. Alguns
destes grupos debateram os elementos do ritual da Santa Comunhão e não
concordaram com as respostas dadas pela Igreja, distanciando-se e estruturando-se em
outras correntes de pensamento. Tivemos o movimento dos hussitas, originado pelo
teólogo da Boêmia Jan Hus (1372 - 1452) que, entre outras questões, acreditavam que
na Santa Comunhão todos deveriam comer a hóstia e beber o vinho. Na mesma origem,
houve as facções como o utraquismo e os taboritas, em posições mais críticas. No
decorrer do tempo, todos eles estiveram relacionados às crises da Igreja, tendo sua
sobrevivência completamente interligada às diferenças ideológicas da mesma, como
com a Reforma Protestante.

Dos acusadores aos acusados, temos, por exemplo, o debate sobre a realidade
da Eucaristia e da Santa Comunhão, presente nos escritos de Heinrich Kramer e seu
Malleus Maleficarum (1487); temos também Johannes Nider, outro importante teórico
que alertou sobre o hussitismo, assim como outros primeiros teóricos da bruxaria que
mencionaram e alertaram sobre os Cátaros e os Valdenses. Todos esses movimentos
parecem ter surgido e se transformado em grupos significativos, partindo desse mal-
estar expressivo à determinados mitos e ritos ainda não assimilados pela Igreja.

O folclorista Julio Baroja (1961, p.71) analisou de um ponto de vista particular


os grupos em territórios germânicos (onde essa ansiedade estava fortemente presente)
e a maneira compreendida por eles e por outros povos europeus – que se encontravam
fora do mundo Clássico –, de associar os acontecimentos diários às suas crenças:
Entre os Germânicos, cada "situação" social deu origem a um tipo de magia e
é ainda alegado que os deuses as usaram em certas circunstâncias. Nós
também podemos dizer que, por mais estranho que pareça, praticar a magia
se ajusta a uma ordem lógica e uma ordem social: como acontece em outras
comunidades bem estudadas modernamente e que o malefício floresce em
certos estados de tensão. (BAROJA, 1961, p. 71)10

Apesar de dominada por diferentes concepções, Baroja (1961, p. 97) observa


que houve um período da Idade Média (“a segunda metade”) em que foi conectado o
universo mágico a algumas perspectivas da Antiguidade. Na concepção do autor,
poderíamos estabelecer ao menos três grupos associados à magia maléfica: aqueles
associados a um mistério de culto, multiplicados na Grécia e em Roma de determinados
períodos da Antiguidade; após, poderíamos identificar (adiante mais detalhado) outros
dois grupos que, a partir de certas compreensões, foram combinados aos termos e
definições determinados pela teorização da bruxaria. Em um sucinto esquema
conceitual feito por Baroja (p. 107) podemos rapidamente captar essas transformações:

a) Benéfica
(com muitas
variedades)

[MAGIA]

b) Maléfica
(com muitas
variedades)
III.feminina
medieval

I. feminina,
clássica greco-
romana (feitiçaria)

II.feminina
germânica
10
“Entre los germanos cada «situación» social dio lugar a un tipo de Magia y que incluso se afirma que los
dioses la usaron en determinadas circunstancias. Podemos decir asimismo que, apesar de lo extraño que
parezca esto, la práctica de la Magia se ajusta a un orden lógico y a un orden social: como ocurre en otras
comunidades bien estudiadas modernamente y que la maléfica florece en determinados estados de
tensión”.
A partir do esquema acima, segundo o autor e seu método singular, podemos
realizar rapidamente (e como forma de complementar a discussão) uma distinção entre
Feitiçaria e Bruxaria: magia maléfica relacionada aos personagens mais específicos
(denominados por ele de Feitiçaria), e também relacionada a outros dois grupos que
Baroja definiu como “mais complexos”, “aparentemente associados a um verdadeiro
culto que para nós será a própria Bruxaria” (BAROJA, 1961, p. 112)11. Como bem destaca
o autor, essas variações, que causaram profundas modificações, surgiram de debates e
observações gerados pela Escolástica de Tomás de Aquino e outros filósofos dos séculos
XIII e XIV. Passamos então a eles.

Corpos demoníacos e a sexualidade diabólica

Trabalhando a teoria da bruxaria como aquela surgida a partir de uma crise


instaurada na fé cristã, profundamente sentida pela Igreja Católica, temos que ter em
mente que a bruxaria é dentro dessa análise a combinação entre a ideia de maleficia
(ação existente desde a Antiguidade com as placas de maldição e as bonecas vodu, por
exemplo) e a demonolatria, que serve como culto propositado, submisso aos demônios,
cuja data de início é complexa, mas que é exposta no início da Europa Moderna 12. O fato
de trazermos aqui essas delimitações, como corpos demoníacos e sua sexualidade, se

11
“Asociada, al parecer, a un verdadero culto que para nosotros será la Brujería propiamente dicha”.
12
Podemos complementar aqui, de um modo mais geral, a definição de Alan Macfarlane (1999). A partir
da sua pesquisa relembramos que a bruxaria na Inglaterra, mais especificamente no Condado de Essex,
era diferente do Continente Europeu e na Escócia (não foi identificado que as bruxas poderiam voar, assim
como não se encontravam em sabás e nem em orgias sexuais). Macfarlane afirma também que na maioria
das descrições em Essex não houve menção do diabo (p.189) e, por isso, define como bruxaria “uma
atividade sobrenatural, sendo o resultado do poder dado por alguma força externa (por exemplo, o Diabo)
e resultar em lesão física à pessoa ou objeto atacado por ela” (1999, p.3) (mais informações sobre a
terminologia ver esquema em Capitulo 1, página 4.
dá principalmente pela razão de que elas coincidem com os elementos que foram
trabalhados pelos artistas.

O ato sexual foi uma singularidade na construção teórica sobre bruxaria, pelo
menos no continente Europeu. Talvez por isso que o mesmo tenha sido trabalhado de
certa forma e com suas particularidades nas artes visuais do período, se tornando a
expressão mais comum de demonologia, segundo o jurista Jean Bodin, no final século
XVI (STEPHENS, 2002, p. 13). A ideia desenvolvida de que haveria um ato de submissão
sexual das bruxas para com os demônios, as quais foram denominadas servas de corpo
e alma, não chega a ser explícita nas imagens, mas essa informação é relevante para
compreendermos melhor de que maneira foi estabelecida a figura literária da bruxa.
Como veremos nos próximos capítulos, as primeiras figuras femininas como bruxas
foram trabalhadas dentro das suas individualidades, sem a presença física da figura
masculina e sem uma conjuntura organizacional de uma postura de devoção em relação
às figuras demoníacas. Como veremos, em concordância com Baroja (1961), o artista
juntamente com a Igreja auxiliou na difusão das ideias para a disseminação de certas
concepções dos teólogos: assim como a literatura eclesiástica circulava através dos
textos em latim e que, após, passou a circular em vernáculo, as imagens direcionavam
o olhar e, de certa forma, o entendimento do seu espectador.

Destacamos também que, através dos documentos originados dos


interrogatórios – em que o alfabetizado interrogador induzia a acusada(o) através de
uma longa lista de perguntas já formuladas, sendo os réus obrigados a responder e, de
maneira constante e induzida, admitir a demonolatria e a copulação demoníaca –,
percebe-se que, com o uso da tortura, segundo Stephens (2002, p. 14-15), as confissões
se tornaram mais detalhadas e fantasiosas, com os acusados sendo estimulados e
obrigados a gerar confissões mais minuciosas e com demasiados contornos
estereotipados – vide as várias anedotas de Heinrich Kramer em Malleus.

A ideia da copulação demoníaca, pois, desenvolveu-se muito lentamente, assim


como a corporeidade demoníaca, e, como no caso dos sacramentos, teve que superar
os adversários como, por exemplo, o grupo de teólogos cristãos ocidentais que seguiam
a proclamação de que os anjos e os demônios seriam "espíritos puros" e, por isso, não
possuiriam corpos. Uma importante referência é Agostinho de Hipona (354 - 430 d.C.)
ou Santo Agostinho, um dos teólogos e filósofos mais influentes da História Ocidental.
Sua atuação foi muito significativa visto que, mil anos depois, os teóricos da bruxaria
fizeram uso da obra De divitate Dei (426 d.C.), ou Cidade de Deus, para trabalhar algumas
questões complexas como a sexualidade, a Trindade, o pecado original e,
essencialmente, os opostos mundos do terreno, dos homens, e do espiritual, dos céus.
Segundo Stephens, do livro 8 ao 10 ocorreu o desenvolvimento do pensamento sobre
os seres humanos e é nele que vemos o debate sobre os demônios (daemons) que,
quando caídos, se tornariam anjos doentios. O pensamento desenvolvido partindo
desse ponto favoreceu a criação da futura teoria da bruxaria, deixando mais
compreensível e argumentado a teoria da relação e da copulação dos corpos
demoníacos e humanos. Um ponto valioso do pensamento é a relação feita das
narrativas sexuais vindas da literatura Antiga entre humanos e animais para a
formulação do mito sobre o ato sexual maléfico:

Em sua defesa do monoteísmo cristão, Agostinho declarou que os deuses


adorados pelo Egito pagão, Grécia e Roma tinham sido todos demônios que
se deturpavam com os humanos. Isso significava que a idolatria era uma
forma de adoração demoníaca. Além disso, a literatura pagã não
representava os espíritos puros dos deuses. Embora os deuses pudessem
mudar sua aparência à vontade, eles possuíam corpos tão reais quanto
humanos, e eles interagiram de maneira constante com os mortais de
maneira muito física. Isso se tornou particularmente verdade nos textos que
os futuros teólogos estudaram para refinar seu conhecimento do latim, o
épico Eneida, de Virgílio e, especialmente, Metamorfoses de Ovídio. Este
último, muitas vezes demasiado explícito sobre as transformações dos corpos
e seu tratamento do sexo. As histórias greco-romanas de relações sexuais
entre deuses e humanos acabariam por ser exploradas por teóricos da
bruxaria para interações físicas [...] com demônios. A questão era: que tipo
de corpos esses "deuses" ou demônios realmente tinham? (STEPHENS, 2002,
p. 61) 13

13
“In his defense of Christian monotheism, Augustine declared that the gods worshiped by pagan Egypt,
Greece, and Rome had all been demons who misrepresented themselves to humans. This meant that
idolatry was a form of demon worship. In addition, pagan literature did not represent the god’s pure
spirits. Although the gods could change their appearance at will, they had bodies that were as real as any
human’s was, and they interacted constantly with mortals in very physical ways. This was particularly true
in the texts that future theologians studied to refine their knowledge of Latin, Virgil's epic Aeneid and,
especially, Ovid's Metamorphoses. The latter declaredly about the transformations of bodies and its
treatment of sex is often quite explicit. Greco-Roman stories of sexual liaisons between gods and humans
would eventually be exploited by witchcraft theorists to […] physical interactions with demons. The
question was, what kind of bodies these "gods" or demons actually had?”
Dificilmente teremos uma resposta para essa pergunta, se é que existe alguma.
Tanto é que as imagens que trabalharam o tema propiciaram mais elementos e subsídios
à discussão sem, necessariamente, dar uma solução. De qualquer forma, como
resultado dos argumentos de Stephens (2002) e Kors e Peters (2001), a relação sexual
entre o ser humano e o ser animal, muito presente nas histórias e anedotas das histórias
pagãs, foram adaptadas pelos teóricos da bruxaria para definir o sujeito e a ordem.
Podemos adiantar aqui uma observação de Julio Baroja (1961): apesar da perpetuidade
de referências no decorrer do século XVI sobre os cultos noturnos das bruxas às deusas
pagãs (como adiante veremos), o frequente aparecimento nos livros e processos de um
diabo denominado como um senhor natural, ganhando, inclusive, particularidades
físicas foi muito significativa, compreendido pelo autor como uma “verdadeira
demonolatria” na Europa no final da Idade Média e os primórdios do Moderno.

O professor e historiador Carlos Nogueira (1991), da Universidade de São Paulo,


desenvolveu de uma maneira clara a estrutura do pensamento surgida no século XIII,
com o papa Inocêncio III (1161 - 1216). Ela foi baseada em uma severa construção
organizacional da moral entre o mundo Cristão e o mundo Pagão e herege, o primeiro
sendo a esfera do bem e o segundo a esfera do mal. Essa organização, que antes se
encontrava numa linha horizontal, se tornou uma divisão “vertical, hierarquicamente
qualitativa” (NOGUEIRA, 1991, p.19), em que as divindades pagãs passaram a significar
um conjunto de elementos de viés essencialmente negativo:

CRISTIANISMO

____________

PAGANISMO

Já introduzido tal período para essa concepção, tivemos a elaboração do


pensamento de Agostinho de Hipona por Tomás de Aquino, este último disposto a
resolver a questão da corporeidade do demônio e explanar sobre a copulação. Dentro
da definição de Súcubo e Íncubo (demônio em forma feminina e em forma masculina,
respectivamente), Aquino explicou em sua Summa Theologiae que, para haver
procriação humana através do ato sexual, primeiramente, o demônio devia se
transformar em uma mulher através de gases e vapores. Assim, o súcubo seduzia um
homem com o propósito de roubar o sêmen através do sexo. Com sucesso, se
transformava num corpo masculino (íncubo), a fim de copular com uma mulher e então
procriar. A dúvida de que essa relação poderia acontecer da mesma forma com uma
mulher e um homem sem a possessão ou transformação corporal do demônio ocorreu
em Aquino. Então, ele desenvolveu o pensamento de que o mais próximo possível da
potência ideal para a reprodução da natureza humana era a inseminação artificial por
um corpo virtual com gênero comutável, já que os demônios, assim como os anjos, não
possuíam nem os corpos adequados, nem o poder de gerar uma vida por si só, algo que
só o poder divino e único do deus Cristão seria capaz.

Será que, mesmo assim, o pensamento se tornou mais claro a ponto de se


acreditar? Talvez, já que estavam lá os céticos duvidando da demonologia de Aquino e
seus seguidores. O fato é que esses pensamentos foram muito utilizados pelos teóricos
da bruxaria, tornando-se peça central do pensamento da copulação demoníaca pela
interação do demônio e o ser humano, salvando a sagrada procriação humana. Os
demônios não poderiam interferir nisso, por isso, combinado às suas artimanhas, os
espíritos malignos poderiam sim ter corpos aptos para as relações sexuais, capazes de
reproduzir, conforme a análise de Stephens (2002), e protegendo a prova mais
importante. O sexo passou a ser a confirmação da realidade do demônio, seja
preliminarmente, seja finalmente. Mas, segundo tal raciocínio, porque veremos
predominantemente citações e representações femininas relacionadas a essa
sexualidade? Teríamos aqui um problema de gênero que não foi discutido pelo autor?
Voltaremos a essas questões.

Os historiadores Kors e Peters (2001), de forma complementar, elucidam o


porquê das divergências e disputas entre os teólogos e os teóricos da bruxaria, bem
como com os muçulmanos e os judeus, por exemplo. Uma das principais razões dadas
pelos autores foi a estrutura do raciocínio dialético criado por Aquino, que vai ser
essencial para a construção teórica de muitos pensadores subsequentes:
Essa forma de raciocínio atribuía grande autoridade à escritura, à tradição
eclesiástica e às palavras dos pais da igreja. Quando as autoridades pareciam
se contradizer, os teólogos tinham que encontrar um meio satisfatório de
reconciliar essas aparentes contradições. Isso significa que se tornou a base
da lógica escolar (isto é, a lógica das escolas, depois das universidades).
(KORS; PETERS, 2001, p. 88)14

Seu método, usado por Kramer e seu Malleus Maleficarum, por exemplo,
trouxe a posição do autor sobre a defesa da doutrina em questão, assim como a
discussão e o desenvolvimento de uma “contra doutrina”. As consequências do
esquema de Aquino, segundo Kors e Peters (2001, p. 88) não só foram essenciais por
servir como um nova maneira de exercer o pensamento – no caso da teoria da bruxaria,
em especial, se via uma disputa acadêmica muito dependente do argumento sed contra
de Aristóteles –, mas também como uma solução às objeções e posições daquelas
pessoas que defendiam o contrário do pensamento do autor, como a própria existência
da bruxaria, a transvecção (ou voo noturno), a transubstanciação, a corporeidade do
demônio, entre outros.

Profanação da eucaristia

A fim de ameaçar o poder da Cristandade, um homem de religião judaica, para


fazer seu ritual maléfico, chantageou uma cliente cristã a fim de obter uma hóstia
eucarística. Num ofício de roupas, ele se aproveitou do prazo exigido pela mulher para
que tivesse o melhor vestido a tempo do domingo de Páscoa e a convenceu que, em
troca do cumprimento do prazo, ela deveria trazer-lhe a hóstia oferecida pelo padre no
momento da consagração. Feito o combinado, o homem sozinho, antes de derramar a
hóstia em óleo e água fervente, fez um pronunciamento:

Você é esse deus dos cristãos? Você é aquele Jesus Cristo quem a credulidade
louca dos cristãos considera e acredita ser absolutamente para Deus? Se você
é aquele homem, a quem meus pais desistiram de ser espancado, então, por
meio deste, eu o comprometo com as ondas ferventes! Se eles te torturaram
com a cruz, eu te entrego para cozinhar! Eles te deram a morte quando você

14
“One key reason for this was the very structure of their dialectical reasoning itself. That form of
reasoning attributed great authority to scripture, ecclesiastical tradition, and the words of the church
fathers. When authorities appeared to contradict each other, theologians had to find a satisfactory means
of reconciling those apparent contradictions. That means became the basis of scholastic logic (that is, the
logic of the schools, later the universities)”.
estava vivo, mas, agora que você está morto, eu lhe darei a morte
novamente! Se você quer falar, se você é Deus, mostre todo o poder que você
tem, e defenda-se do fogo!”. (SPINA apud STEPHENS, 2002, p. 212)15

Nesse exato momento, ele e os filhos que ali estavam teriam visto um menino
pequeno surgindo e caminhando na água fervente. Era Cristo em forma humana.

Este conto está presente no tratado, Fortalitium Fidei ou Fortitude da Fé, escrito
cerca de 1460, por Alphonso de Spina (1412 - 1491), um importante pregador espanhol,
escritor e demonólogo. Segundo Stephens, ele trouxe em palavras algo que já circulava,
mais ou menos, por mais de dois séculos antes dessa publicação e que serviu como uma
excelente anedota postuladora da sacralidade da santa comunhão e da veracidade dos
sacramentos – além da validação do estereótipo do judeu.

Vemos, de fato, a trivialidade entre a elite pensadora, seus tratados e ensaios


para com a teoria da bruxaria. Ambos os historiadores, Ginzburg e Stephens,
confirmaram o fato de que as bruxas, após os judeus, foram excelentes bodes
expiatórios para ser demonstrado primeiro por escrito, depois oralmente, quais eram
os grupos perdedores – já que eles seriam arruinados caso combatessem o poder divino.

Por isso, uma das melhores soluções encontradas pelos teóricos da bruxaria
para manter a credibilidade das energias e efeitos dos sacramentos foi, a partir da noção
de maleficia, passar a construção imagética do judaísmo para a bruxaria. O embate da
Igreja contra aqueles que dessacralizavam porque eram céticos, no caso dos judeus,
passou àqueles que acreditavam o suficiente a ponto de denegri-los.

O quarto Concílio de Latrão (1215), em que foi formalizada a eucaristia e o


dogma da transubstanciação, pode ter sido um excelente movimento a fim de cessar as
dúvidas sobre o confronto corpo versus espírito e as experimentações sobre a existência
de Deus, anjos e demônios. Mas tudo isso só aumentou e dificultou não só o processo
da Igreja, mas também o entendimento da sociedade leiga e letrada. Tanto é que em

15
“Are you that god of the Christians? Are you that Jesus Christ whom the crazy credulity of the Christians
considers and believes absolutely to e God? If you are that man, whom my father’s gave up to be beaten
then I hereby commit you to the boiling waves! If they tortured you with the cross, I give you up to
cooking! They gave you to death when you were alive, but, now that you are dead, I will give you death
again! If you want to talk, if you are God, show whatever power you have, and defend yourself from the
fire!".
Malleus podemos ler muitas anedotas com aspectos, digamos, inventivos, tentando
formalizar muitas das experimentações corriqueiras da época. Stephens (2002) afirma
que muito do que Kramer se utiliza como exemplo de acusação seria, na verdade, um
ato de recomendação para que os seus leitores, na sua maioria, inquisidores e teólogos,
experimentassem nos acusados. Muito do que ele trouxe como provas de acusação, na
verdade estaria servindo como uma grande corrente de experimentos.

Denominado “transubstanciação” pelos teólogos escolásticos, este momento


da encarnação de Deus já fica simbolizado na hóstia consagrada, não sendo necessário,
por exemplo, oferecer aos leigos o cálice de vinho eucarístico, este destinado somente
às autoridades eclesiásticas. Lembremos aqui dos grupos externos antes mencionados,
que reivindicam o direito de participar desse ritual. Eles insistiam em receber vinho e
pão, como posteriormente seus sucessores Protestantes, tanto que fizeram ser
necessárias as reuniões eclesiásticas como o Concílio de Florença (1439) e o Concílio de
Trento (1551), para reforçar a importância da manutenção do ritual somente para seus
homens.

Deixando de ser invisível e se tornando visível e material, o sacramento foi,


então, autenticado através da profanação da eucaristia pelas bruxas e pelos feiticeiros
diabólicos. Através das acusações de maus-tratos e desrespeito, a saber, quando o
acusado ou a acusada não ingeria a hóstia e a levava ao ritual do sabá; ou então quando
a cuspia e a pisava na cerimônia (como também o faziam com a cruz), o sacramento da
Eucaristia presente nas anedotas e nos contos sobre bruxaria tornou-se uma maneira
eficaz de destruir o poder de Deus.

De fato, comprovando não só a realidade do demônio, mas também o poder


de Deus, a profanação eucarística foi essencial à lógica da teoria da bruxaria e dos
sacramentos, ambos caracterizados pela interação corporal com o sobrenatural e,
consequentemente, das imagens sobre o tema.

A eucaristia era comumente definida pelos teólogos como corpus verum, o


verdadeiro corpo de Cristo. Assim como o corpo virtual de demônios teve que
tornar evidente a realidade demoníaca imperceptível, também o corpo do
Senhor foi obrigado a demonstrar sua natureza oculta à percepção humana.
O corpus demonis e o corpus domini estavam sujeitos às mesmas dúvidas, e
apenas um corpo real acalmaria essas dúvidas. (STEPHENS, 2002, p.209)16

Tais semelhanças na lógica do método estiveram presentes também nas


anedotas e nos contos sobre a cópula demoníaca. Houve aqueles que trabalharam a
corporeidade dos demônios com histórias do coito demoníaco e da transvecção17,
preocupados menos com um comportamento respeitoso e mais em mostrar a violação
da ordem pelas obras maléficas realizadas pelo poder demoníaco. Os contos de
profanação não são diferentes. Os teóricos, segundo Stephens, afirmaram que
frequentemente as bruxas profanadoras, reconhecendo a existência de Cristo, tinham a
intenção de insultá-lo através do sacramento, que era uma via instantânea para
encontrá-lo. Criou-se, certamente, uma convenção excelente para os perpetuadores do
mito no decorrer da história, como, por exemplo, no século XVII, que trouxeram em seus
escritos, assim como nas obras de arte, excessivos detalhes.

As análises de Ginzburg e Stephens se pactuaram no que diz respeito aos


aspectos estereotipados de judeus e de bruxas. As histórias tinham um propósito
ideológico, especialmente como exemplos sobre um ódio motivado, que serviriam como
um ato de defesa das atrocidades cometidas por esses heréticos 18 e apóstatas. Só
alguém verdadeiramente mal e com ódio em seu espírito é que veria pessoalmente essa
transformação presente no conto de Spina. Ceticismo à parte, sem dúvida, essa era uma
ótima solução. Se você não vê ou não desconfia da realidade dos sacramentos, é porque
está no caminho certo.

O caminho traçado por Formicarius

16
“The Eucharist was commonly defined by theologians as corpus verum, the true body of Christ. Just as
the virtual body of demons had to make imperceptible demonic reality evident, so the Lord's body was
required to demonstrate its hidden nature to human perception. The corpus demonis and the corpus
domini were subject to the same doubts, and only a real body would calm those doubts”.
17
Relembramos que é um conceito trazido por Stephens que significa a situação de quando bruxas são
carregadas corporalmente pelos demônios.
18
Sobre isso, Stephens ressalva: “De fato, há evidências de que, embora muitas vezes contassem tais
contos anti-semitas [...], os eclesiásticos cristãos frequentemente condenavam a violência contra os
judeus em seus escritos e às vezes tentavam impedir ou deter massacres deles” (2002, p. 216).
Entre os tratados sobre bruxaria mais importantes está o do dominicano
Johannes Nider (1380 - 1438), chamado Formicarius ou Formigueiro ou Colônia das
Formigas. Escrito em forma de diálogo entre um teólogo e um cético, entre 1431 e 1438,
foi publicado em 1475. As informações presentes nele foram citadas também no
Concílio de Basileia por volta de 1437, durante o pontificado de Eugênio IV (1383 - 1447).
O autor de Formicarius era reitor do convento dominicano da mesma cidade do Concílio.
Peters e Kors constataram que seu método para lidar com os céticos que ali se inseriam
foi a utilização de escrituras dos fundadores da Igreja e dos escolásticos. Ginzburg (2012)
destacou que Nider também usou os conselhos e as opiniões obtidas de dois
informadores: o juiz Peter von Greyerz, castelão de Blankenburg no Simmenthal de
Berna, e o inquisidor dominicano de Evian, reformador do convento de Lyon.

O teólogo alemão afirmou que o juiz Peter teria descoberto como as bruxas
"aprenderam a arte" da bruxaria: "As bruxas chegaram a uma certa reunião e, por meio
de seus próprios esforços, visivelmente viram [visibiliter viderunt] o demônio na imagem
assumida de um homem. Para ele, o discípulo tinha que prometer [fidem dare] a
abandonar o cristianismo, nunca adorar a eucaristia e pisotear o crucifixo, sempre que
puder fazê-lo em [latenter] segredo." (NIDER apud STEPHENS, 2002, p. 198).19
Possivelmente, foi na transmissão das informações de Nider no Concílio de Basileia que
pode se ver a repercussão de muitos dos elementos abaixo em outros tratados de
bruxaria.

[...] O juiz Peter me disse que em território bernês, treze bebês foram
devorados por bruxas em um curto espaço de tempo. A justiça pública
investiu severamente contra esses parricidas. Quando Pedro perguntou a
uma bruxa capturada como devoravam essas crianças, ela respondeu que o
método é este: com crianças não batizadas, ou mesmo com crianças já
batizadas se não estiverem protegidas pelo sinal da cruz e por orações,
matamos em nossas cerimônias, em seus berços, ou quando elas estão
deitadas na cama ao lado de seus pais, de modo que se pensava que elas
foram esmagadas (cobertos por seus pais) ou morreram de outra forma
natural. Nós as removemos secretamente de suas sepulturas e as cozinhamos
em um caldeirão até que sua carne, cozida e separada dos ossos, seja
transformada em líquido poderoso. Dos sólidos desse material, fazemos um
certo unguento que é útil para nossos desejos, artes e transformações. E, a

19
"The witches came to a certain meeting and by their own efforts visibly saw [visibiliter viderunt] the
demon in the assumed image of a man. To him the disciple had to promise [fidem dare] to abandon
Christianity, never to adore the Eucharist, and to trample the crucifix, whenever he could do so in secret
[latenter] ".
partir disso, com algumas cerimônias adicionais, qualquer uma que bebe
imediatamente se torna um membro e mestre da nossa seita. (NIDER apud
KORS; PETERS, 2001, p. 157)20

A bruxaria e seu conjunto de elementos sendo legitimados foram vistos como


um contrassacramento. Para combatê-la, segundo Stephens, os teólogos da Idade
Média e do início do Período Moderno definiram dentro da teoria dos sacramentos a
contramagia ou os contrademônios. Este se caracterizava na imaterialidade, como a
oração e o ato de fazer o sinal da cruz, e na materialidade, como a água benta, sal ou
pão abençoado, velas e medalhas. Podendo ser praticados e utilizados de maneira livre
não só pelos clérigos, mas também pelos leigos, eles eram menos relevantes do que os
sacramentos e serviam também como mais um recurso para a aproximação com Deus.
Complementando os sacramentos, isto é, a presença momentânea de Deus, os
sacramentais afastavam o poder maligno, seus seguidores e destruíam suas
artimanhas 21.

Uma ação importante praticada na sua maioria pelas bruxas, comum no nosso
imaginário dos séculos XX e XXI (como no meio cinematográfico), o ato de pisotear o
objeto do crucifixo (um sacramental) serviria, como no caso da eucaristia, para
prejudicar ou até acabar com o poder Divino. O interessante é que, no caso do crucifixo,
o sinal é onde está o poder (ou a magia?), não no objeto. Stephens afirmou que, em
Formicarius, a alegação não era clara de que atividades singulares como essa
possibilitariam o encontro inicial com o demônio, mas também não era negado. Outros
teóricos deixarão mais transparentes essa relação.

20
“[…] the judge Peter told me that in Bernese territory thirteen infants were devoured by witches in a
very short time. Public justice grew harsh toward these parricides. When Peter asked a captured witch
how they devoured these infants, she answered that the method is this: with unbaptized infants, or even
with infants already baptized if they are not protected by the sign of the cross and by prayers, we kill by
our ceremonies in their cradles, or when they are lying in bed beside their parents, so that they are
thought to have been crushed (overlain by their parents) or to have died some other natural way. We
then remove them secretly from their graves and cook them in a cauldron until their flesh, cooked and
separated from the bones, is made into powerful liquid. From the solids of this material we make a certain
unguent that is useful for our desires, arts, and transformations. From the liquids we fill container, and
from this, with a few additional ceremonies, anyone who drinks immediately becomes a member and
master of our sect”.
21
Stephens (2002, p. 186) destaca que: “Todo tratado de bruxaria mostra exemplos de demônios que
foram encaminhados por esse remédio. Kramer até recomendou que as bruxas acusadas bebessem água
benta para quebrar o maleficio de taciturnidade ‘através do qual seus familiares demoníacos os deixavam
confessar’”.
Uma resistência ao ceticismo

Verbalizando a expressão e induzindo o leitor a pensar que "isso não pode não
ser verdade", o autor de Demon Lovers analisa que os teóricos da bruxaria trabalharam
arduamente para manter a crença e a fé contra aqueles que estavam duvidando e
desacreditando nos dogmas e sacramentos da Igreja. De Tomás de Aquino, em 1270
com sua Summae Theologiae ou Suma Teológica, até Bartolomeo Spina (1474 - 1546),
de 1520, foram escritos tratados, ensaios e anedotas trabalhando essa dupla negação
um tanto quanto estranha se pensarmos numa lógica racional.

O tratado de Spina é um bom exemplo para compreendermos que cada teórico


desejava satisfazer a sua necessidade teórica e argumentativa, não necessariamente,
lembremos, concordando com os escritos já publicados. No início do século XVI, o
mesmo teórico admitiu que existiram dificuldades na crença de uma personificação ou
existência do encontro com o demônio materialmente. Com um método padronizado,
seja porque era um inquisidor ou um filósofo-teólogo escolástico, Spina acumulou
muitos argumentos contrários aos seus e, sistematicamente, refutou-os. Um ponto
marcante do seu pensamento é o detalhe de que o voo noturno (um dos assuntos mais
discutidos) e a transvecção só aconteceria com o uso do unguento. Essa pequena
informação solucionava grandes problemas como, por exemplo, quando alguém
conseguia tal substância de “verdadeiras bruxas” e nada acontecia. Para funcionar, era
necessária uma força demoníaca, isto é, “como a pomada das bruxas verdadeiras não
tem poderes naturais e inerentes, o Diabo pode proteger seus interesses, escolhendo
livremente se deve fazê-lo funcionar” (SPINA apud STEPHENS, 2002, p. 168)22.

Um detalhe importante, presente no Malleus Maleficarum de Kramer e que


ocorre também em Spina é a confirmação da experimentação como substituição das
evidências judiciais para acusação. Dessa forma, o contato e o entendimento do leitor

22
“The proof that demonic forces are at work is precisely the unreliability of the experiment, which is
construed as unnaturalness. Because the true witches' ointment has no natural, inherent powers, the
Devil can protect his interests by choosing freely whether to make it work”.
com as ideias apresentadas passaram a ser mais claros. Na evolução das histórias
experimentais de Nider (1437) e Alonso Tostado (1455), professor e comentarista da
Bíblia Sagrada, até chegar a Spina, a substituição já acontecia. Ambos os autores
elevaram a bruxa à posição de autoridade suprema, se valendo das experiências vividas
e ditas por ela para que pudessem criar suas provas testemunhais.

Outro notável teórico, singular na maneira como respondeu ao movimento


ceticista, é Giovan Francesco Pico della Mirandola (1470 - 1533). Diferentemente de
muitos seguidores da filosofia de Aristóteles e de outros pensadores do período Antigo,
Pico viu o movimento aristotélico como aquele que destrói a fé cristã e orientou seus
leitores a limitarem-se somente à Bíblia e aos estudos daqueles que pertenciam à Igreja.
Strix é o nome da sua obra feita em 1520 e, quando traduzida do latim pelo italiano
Leandro Alberti23 (1479 - 1552) em vernáculo italiano, vemos uma das primeiras
discussões impressas chegar aos leigos, tendo, pois, outros grupos de pessoas acesso ao
que antes era direito de apenas um conjunto restrito.

Giovan Francesco Pico della Mirandola transformou seu tratado em teatro,


escrevendo um diálogo dramático em quatro vozes, no qual abandonou o formato de
tratado da teologia profissional. Pode ter sido influenciado pelos diálogos do
dominicano alemão Johannes Nider, em Formicarius (1437); pelo debate literário sobre
o caráter das mulheres em vernáculo francês, encontrado em Le Champion des dames
de Martin Lefranc (1440); ou então pelo diálogo sobre lealdade e ceticismo em relação
à bruxaria e a obrigação do duque da Áustria de procurar e punir bruxas de Ulrich
Molitoris, em De Lamiis Et Pythonicis Mulieribus (1489).

Temos em Strix quatro personagens nominados como Apistius, o homem sem


fé – que no final do diálogo se torna Pistius, o homem de fé; Phronimus, o homem
prudente; Dicaste, o juiz; e Strega, a bruxa. As interpretações de Apistius estariam
apresentando um exemplo do ceticismo aprendido e desenvolvido sobre as crenças em
bruxaria. O destaque dado a obra está, entre outros, no desenvolvimento do

23
Como bem detalha Stephens (2002, p. 89), a ordem dominicana, conhecida como a Ordem dos
Pregadores, tinha como tarefa expor às pessoas comuns o dogma ortodoxo em suas próprias línguas. Por
isso, teria assumido Alberti, por experiência própria, que as teorias demonológicas da bruxaria eram
estranhas às pessoas comuns.
personagem que passou de cético àquele convertido na verdadeira crença, que era na
crença da existência da bruxaria.

Suscintamente, na primeira parte da obra, Apistius tem uma conversa ocorrida


durante um período de dois dias com Phronimus sobre a realidade da bruxaria, tendo
como referência as fontes Clássicas. Na parte dois, marcada no dia seguinte, Dicaste
extrai de Strega uma confissão sobre seus atos e de outras ações de bruxas. Na terceira
e última parte, em um pequeno trecho abaixo, Dicaste e Phronimus convencem Apistius
de que ele estava errado sobre a bruxaria, e no final Dicaste lhe dá um novo nome:
Pistius, o homem de fé.

[Phronimus]: Por agora, Dicaste, a chegada da noite nos convida e nos


convence a voltar para casa. Entretanto, se não for o suficiente, Apistius, essa
disputa, eu não sei realmente o que tem de ser suficiente, na medida em que
tu és capaz de compreender a antiguidade, e as coisas feitas nos “nossos
tempos”, este jogo não é uma fábula em vão, mas em essência muito antiga,
e na maioria das coisas novas, mudou-se de acordo com o que o demônio
gostava. E talvez ainda estivesse mudando; tão grande é a sutileza de enganar
o antigo perseguidor dos homens. Eu te mostrei que os grupos, as pomadas,
as palavras mágicas, as viagens pelo ar, as junções amorosas dos demônios
são tão em nossos tempos como naqueles dos heróis, e que os demônios
[insino?] desde o início da antiguidade encontram calúnias contra a geração
humana; ele provocava com as respostas, enganado com a familiaridade, com
imagens e estátuas, e tentou colocar armadilhas em todas as idades e ambos
os sexos; falsos deuses têm mostrado, ele têm dado aos homens convites
mortais [...];[Dicaste]:Você acredita nessas coisas? [Apistius]: acredito nelas;
[Dicaste]: E então você mudou de ideia?; [Apistius]: Sem dúvida alguma, e
porque mudei o hábito da mente, de agora em diante quero mudar meu
nome; [Dicaste]: Como desejas, e no futuro você será chamado Pistius. (PICO
DELLA MIRANDOLA, 1864)24

Como Spina, Giovan Francesco Pico della Mirandola trouxe a experiência para
dentro de suas histórias, mostrando não só para o leitor uma melhor forma de
compreensão da teoria, mas também reforçando para os teóricos que o liam, que a

24
“[Phronimus]: Ora mai, o Dicaste, il venire della notte c'invita, e persuade a ritornare a casa. Perocchè,
se non ti basta, Apistio, questa disputa, non so veramente ciò che abbia a bastarti, conciossiacosachè tu
abbi potuto comprendere e per l'antiquità, e per le cose fatte a' nostri tempi, questo giuoco non essere
una favola vana, ma in essenza antiquissimo, e nella maggior parte delle cose nuovo, mutato poi secondo
che è piaciuto al demonio. E muterassi forse ancora; tanta è grande la sottigliezza dell'ingannare
nell'antico persecutore degli uomini. Ti ho mostrato che i circoli, gli unguenti, le parole magiche, i viaggi
per la regione dell'aria, gli amorosi congiungimenti de' demonj si trovano così nei tempi nostri come in
quelli degli eroi, e che i demonj insino da principio della antiquità trovarno calunnie contra l'umana
generazione; avere con risposte schernito, ingannato con la familiarità, con imagini e simulacri, e tentato
tendere insidie ad ogni età, e ad ogni sesso; falsamente essersi mostrati Dii, avere dati agli uomini conviti
mortiferi [...];[DIC]: Credi tu queste cose?; [AP]: Credole; [DIC]: E così hai mutata opinione?; [AP]: Senza
dubbio alcuno, e perchè io ho mutato l'abito della mente, da qui innanzi voglio anco mutare nome; [DIC]:
Come ti piace, e per l'avvenire sarai chiamato Pistico”.
realidade da bruxaria nunca poderia depender da lógica. E eis outro grande feito da
dupla Alberti e Giovan Francesco Pico della Mirandola: combinar o texto em vernáculo
e em forma de narrativa, dois fatores que ampliaram o círculo de leitores, facilitando o
acesso e a assimilação do texto. É claro que as anedotas presentes no Malleus de
Kramer, cerca de trinta e cinco anos antes, e sua lógica teórica também foram exemplos
a serem seguidos. Agora, não podemos deixar de lado o público leigo, que encontrava
pela primeira vez uma história a qual eles poderiam ouvir e imaginar. Com isso, um
grupo mais amplo passou a captar o debate da elite pensadora e, possivelmente, a
adentrar nesse universo criado por eles.

A teoria dos humores e a teoria da bruxaria

Conhecida por teoria humoral ou teoria dos humores, utilizada pela Medicina
desde a Antiguidade até o período Moderno europeu, era creditado que toda fisiologia
normal do corpo dependia do equilíbrio de determinados humores. Sangue associado
ao coração, a fleuma ao cérebro, bílis amarela ao fígado e bílis negra ao baço. Todos
possuíam características já estabelecidas: o primeiro era quente e úmido, o segundo era
frio e úmido; a bílis, quente e seca; e a bílis negra; fria e seca. Cada ser humano e sua
constituição natural trazia diferentes tipos fisiológicos: o sanguíneo, o fleumático, o
colérico e o melancólico.

O historiador Robert Muchembled (2001) lembra-nos que o homem, segundo


a teoria dos humores, era, por natureza, quente e seco, e a mulher fria e úmida. Quando
não era vista essa combinação, utilizavam-se de remédios que tinham a tarefa de
reequilibrar os humores internos. O autor observa também que tal teoria, utilizada por
muitos filósofos, poetas e teólogos, tinha uma determinada ideia sobre o contágio que
foi decisiva para contribuir com as relações humanas com o demônio:

Quanto ao princípio do contágio, ele foi, a nosso ver, o vetor principal de uma
visão mágica do corpo, cuja parte sombria foi a de contribuir para dar crédito
às teses demonológicas e para desencadear perseguições em massa às
feiticeiras. Como adiante veremos, o elo entre esses fenómenos pode ser
estabelecido, analisando dos efeitos da doença, às causas da epidemia, com
o diabo desempenhando um papel na produção dos vapores da peste ou na
transformação do envoltório carnal de feiticeiros reputados igualmente
contagiantes. A seita diabólica adquiriu um novo sentido por seu poder de
contaminação, no momento em que a ideia em questão obcecava tanto os
médicos quanto os seus clientes. (MUCHEMBLED, 2001, p.95)

O mais interessante nessa questão da teoria dos humores é que a mesma serviu
como argumento não só para a demonização do corpo feita pela teoria da bruxaria,
muito utilizado no Malleus Maleficarum, por exemplo, mas também como forma de
detectar sintomas de uma doença física e psicológica defendida pelos céticos. O
historiador Walter Stephens (2002, p.137) afirma que, no final do século XVI, existiram
oponentes e críticos, como o médico holandês Johann Weyer (1515 - 1588) e o cavaleiro
inglês Reginal Scot (1538 - 1599), que afirmaram que a maioria das bruxas – o foco aqui
são as mulheres – foram claramente afetadas pela melancolia, uma doença física e
psicológica complexa, e não pelo demônio. Provocada por um excesso de bile negra, ela
causava ilusões, demonstrando que muitas das experiências físicas defendidas pela
teoria da bruxaria, como o voo noturno e a copulação demoníaca, não passavam de
alucinações, servindo como causa, a pobre dieta da velhice e a pré-disposição da mulher
ao humor melancólico.

Um século antes, entretanto, esse argumento vindo dos opositores da teoria


da bruxaria já era previsto. O dominicano italiano Girolamo Visconti (? - 1478) traz em
seu Opusculum (cerca de 1460) uma demonstração sistemática em que as acusadas de
bruxaria eram melancólicas e viam como reais aquilo que se julgava ser imaginário. De
certa forma, ele foi certeiro nos argumentos: “Visconti claramente entendeu que, se
cessarmos punir bruxas, implicamos necessariamente que suas interações com os
demônios, assim como os próprios demônios, são imaginários. A insinuação final de
Visconti é que as bruxas devem morrer para preservar a credibilidade dos demônios e,
portanto, a credibilidade do mundo inteiro do espírito” (STEPHENS, 2002, p. 138)25.

Necessitou-se, através da filosofia ou ciência, provas que afirmassem


determinadas hipóteses, que poderiam ser mais confiáveis e legíveis ou vindas de

25
“Visconti clearly understood that, if we cease punishing witches, we necessarily imply that their
interactions with devils, and possibly the devils themselves, are imaginary. Visconti's ultimate insinuation
is that witches must die in order to preserve the credibility of devils and, hence, the credibility of the
entire world of spirit”.
experimentações. Fundamentalmente estruturados com o pensamento lógico
aristotélico, os experimentos foram raramente vistos pelos teóricos, mas comprovados
através de determinado grupo de pessoas (bruxas), que tinham determinados aspectos
que justificavam sua legitimidade, visto que somente certo grupo vivia e manifestava
tais experiências (como a copulação demoníaca, a transvecção, entre outros). Como
afirmado antes, os teóricos não conseguiram ver a interação homem-demônio, senão
pelas testemunhas. Mas eram somente as bruxas?

O Exorcismo, o Batismo, a Necromancia e a Bruxaria

Reforçando a verdade nos escritos da Bíblia e nos sacramentos, Vineti defendeu


que o exorcismo deveria ser feito antes do batismo. Esse argumento indiretamente
demonstrou a insegurança da eficácia dos sacramentos, aqui já elucidado. Mas, como
Stephens destacou, Vineti estava sugerindo que o exorcismo fosse parte da própria
cerimônia batismal, cuja associação reforçava o poder do sacramento. Contudo, se
pensarmos, por exemplo, naquelas pessoas que foram batizadas, que em sua maioria
eram crianças e que teriam sido possuídas ou prejudicadas pelo demônio? Segundo
Stephens, os primeiros teóricos da bruxariam tiveram essa dúvida. Por isso, eles
relacionaram a bruxaria com o exorcismo, já que tanto a bruxa, quanto a pessoa
possuída interagiam fisicamente com o demônio.

Não nos esqueçamos que os clérigos, teólogos e filósofos tiveram interesse e


muita curiosidade em realizar testes a respeito dessas interações espirituais e
demonológicas. Como sabemos, nesse período humanístico de retorno à literatura
Clássica, via-se cada vez mais a tentação de investigar e vivenciar energias percebidas
como sobrenaturais e desconhecidas. Sem fazer um pacto direto ou algo do tipo, como
acriminavam os cultos pagãos e seus mitos, os teólogos tinham o objetivo de achar uma
maneira de contatar tais espíritos ou demônios, mas sem se comprometerem. Assim, a
solução veio a partir de uma apropriação de atividades de grupos culturais que
trabalhavam com performances espirituais em sua raiz, como os necromantes e,
posteriormente e mais explicitamente, as bruxas. Os primeiros, eruditos, estavam
relacionados a um “clero clandestino ou subterrâneo”, conforme observa o historiador
e medievalista americano Richard Kieckhefer (apud STEPHENS, 2002), estes, praticantes
de muitos experimentos que tinham como método entrevistar demônios a fim de
verificar sua realidade. Da mesma forma, baseado em experimentações, poderíamos
considerar o exorcismo.

As dúvidas recorrentes entre os pensadores e teóricos da época, juntamente


com os experimentos e as novas descobertas científicas vindas dos estudos
muçulmanos, trouxeram o ceticismo para a frente da batalha, cujo intuito era a busca
de respostas. De acordo como Stephens, através de exaustivas pesquisas, eles puderam
aproximar o exorcismo da necromancia e, em seguida, da bruxaria.

A dúvida estava presente desde o início da necromancia e crescia por toda


parte que a Caça às Bruxas estava se estabelecendo. Um conhecimento mais
completo das obras de Aristóteles depois de 1100 fez mais do que qualquer
coisa para tornar possível a dúvida sobre os espíritos. Nós vimos que Aquino
e seus seguidores estavam profundamente incomodados pela implicação de
que as causas naturais, incluindo a astrologia, poderiam ser responsáveis
pelos efeitos mágicos que eles desejavam atribuir aos demônios. O contato
com a erudição muçulmana trouxe também influências, entre elas "novas
concepções das ciências ocultas, incluindo astrologia, alquimia e áreas afins
da magia natural”. (STEPHENS, 2002, p. 348-349)26

Dessa maneira, podemos perceber que uma discussão acontecia entre os vários
grupos sociais quando pensava-se sobre a magia. Entre os leigos e analfabetos havia
predisposição para ver a magia como algo natural (vide em Ginzburg). Com os
intelectuais, segundo Kieckhefer (STEPHENS, 2002, p.349), houve pelo menos três
definições: pelos primeiros cristãos, tem-se a ligação direta com o demônio; com as
descobertas e estudos da erudição islâmica de uma filosofia natural, em que alguns dos
efeitos tidos como maravilhosos tinham causas não-demoníacas e sim naturais, passou-
se a admitir que muito do que era desconhecido ou maligno poderia ser visto como

26
“Doubt was present from the beginning of necromancy and grew throughout the time during which
witch-hunting was becoming established. Fuller knowledge of Aristotle's works after 1100 did more than
anything to make doubt about spirits be possible. We have seen that Aquinas and his followers were
profoundly disturbed by the implication that natural causes, including astrology, might be responsible for
the magical effects that they wished to attribute to demons. Contact with Muslim scholarship brought
other influences as well, among them ‘new conceptions of the occult sciences, including astrology,
alchemy, and related areas of natural magic’”.
pertencente a natureza; após, com as alegações dos necromantes, capazes de
contatarem o demônio, foi percebido um movimento de retorno a desconfiança do que
parecia natural, mas provinha do maligno.

A grande jogada: A Bula Papal de 1484

Os demônios, sui generis, foram definidos como aqueles que traziam tormento
e tensão para a humanidade, não só na Cristandade, vale lembrar. Ele era e ainda é o
desconhecido, o estranho que aparecia e ainda aparece sem estarmos esperando. Mas
nós, seres humanos, possuímos maldade e, através dela, damos oportunidade para que
esses demônios causem qualquer tipo de destruição física ou psicológica. Por isso,
acreditou-se que naquela época eles precisaram das bruxas. Estas são importantes e
peças-chave para desenvolver a maldade de cada um e de si mesmo. A cópula
demoníaca estava especialmente e não por acaso firmada como a principal “prova” dos
teóricos da Europa continental. Sob um ponto de vista do interrogado, lembremos, as
confissões sobre tais atividades sexuais foram provocadas muitas vezes pelas perguntas
dos interrogadores sobre a sedução e a necessidade de construir uma história verossímil
de um possível encontro com um espírito maligno ora poderoso demais para ser
resistido, ora desagradável o bastante para ser atraente. O historiador britânico da
University of South Wales do Reino Unido, autor de Witchcraft, Gender and Society in
Early Modern Germany ou Bruxaria, Gênero e Sociedade na Alemanha Pré-moderna
(2007), Jonathan Durrant complementa nossa análise ao afirmar que

Ao lidar com esse cenário, os suspeitos de bruxaria reciclaram experiências


pessoais ou fantasias de sexo com pessoas reais, experiências que faziam
sentido porque tiveram, ou poderiam ter tido, e porque eles seguiram um
padrão semelhante de troca como ocorreu entre o diabo e a bruxa em
potencial. Dentro da cultura popular, era comum que os jovens seduzissem
as mulheres por sexo prometendo casamento, assim como uma prostituta
exigir o pagamento de uma taxa em troca de acesso ao seu corpo. Esta forma
de troca é espelhada nos contos convencionais de bruxaria. O Diabo alegou
que ele poderia fornecer uma necessidade de peso significativo (geralmente
por dinheiro em vez de segurança do casamento) em troca da alma da pessoa,
uma transação selada através da relação sexual [...]. (DURRANT, 2007, p. 154)
27

Interessante também é sua observação sobre a difusão da concepção de uma


sedução sexual e diabólica com formas alternativas de sedução não sexual pelo Diabo.
O autor constata que o segundo tipo não ocorreu com grande proeminência nas
narrativas de confissão, apesar de haver tido perguntas (como visualizamos algumas)
sobre a entrada da bruxa no grupo diabólico, por exemplo, antecedentes àquelas sobre
a cópula demoníaca.

Tudo isso, pois, foi confirmado pela bula gerada em 1484, Summis desiderantes
Affectibus, pelo papa Inocêncio VIII (1432 - 1492) para legitimar essa relação da prova
existencial e carnal do Demônio com as bruxas. O tratado mais bem detalhado e
formulado sobre essas questões, o Malleus Maleficarum, teve com a bula28 a autoridade
por escrito da prova de que a cópula demoníaca e a maleficia aconteciam, relação essa
que o inquisidor alemão procurou provar, sem sucesso, em tratados e ensaios católicos
antes da sua singular publicação. Não podemos ter certeza de quem partiu a iniciativa
desse vínculo, mas Stephens propõe que Kramer teria exigido tal documento para
aquietar aqueles que questionavam e duvidavam dos seus movimentos e de seu
trabalho na Inquisição.

O estreito acordo entre a bula e o tratado mais explícito sobre bruxaria


levanta a suspeita de que o Papa poderia ter concedido a bula porque o futuro
autor do Malleus o convenceu de que a cópula demoníaca era fundamental
para a bruxaria. Kramer poderia até ter fornecido "boilerplate" ou texto
pronto para os escribas papais, uma vez que o papa aprovou suas ideias.
Teoricamente, é claro, Inocêncio poderia ter convencido Kramer dessa ideia;
o último poderia ter escrito seu livro para explicar a teoria do Papa. Ou os dois
poderiam ter chegado às suas conclusões, em parte: depois de tudo, as ideias
de Malleus não eram originais, apenas mais elaboradas do que o habitual.
Ainda, Kramer procurou a bula ativamente; o papa o concedeu em resposta

27
“In grappling with this scenario, the witch-suspects recycled personal experiences or fantasies of sex
with real people, experiences which made sense because they had, or could have, happened, and because
they followed a similar pattern of exchange as occurred between the Devil and the potential witch. In
popular culture, it was common for young men to seduce women into sex by promising marriage, and a
prostitute required the payment of a fee in exchange for access to her body. This form of exchange is
mirrored in the conventional tales of witchcraft. The Devil claimed he could supply a significant need
(usually for money rather than the security of marriage) in exchange for the person’s soul, a transaction
sealed through sexual intercourse […]”.
28
Publicado e impresso em conjunto – presente, inclusive, nas duas últimas edições do tratado no Brasil.
às queixas do inquisidor de que outros estavam obstruindo suas Inquisições.
(STEPHENS, 2002, p. 56)29

Vale lembrar a partir da pesquisa de Julio Baroja (1961, p.127) de que


ocorreram muitas perseguições e ordens papais anteriores ao que recém mencionamos.
Ocorridas em várias partes do território germânico no século XV, como as queimadas de
1446 (Heidelberg) e de 1456 (Colônia), por exemplo, esses eventos histórico-dramáticos
aconteceram sob regulamentação papal contra os hereges. Alguns nomes como Eugenio
IV em 1437 e 1445, e Pio II (1405 - 1464) em 1459, deram ordens para regulamentar a
repressão. Mas, sem dúvida, Baroja reforça a ideia de que a bula Summis desiderantes
Affectibus foi essencial nas ações dos juízes, clérigos e civis, dirigida a vários prelados
alemães para que reprimissem a bruxaria.

O tratado de Kramer, apesar da bem definida construção teórica e


metodológica, era, pois, um entre muitos na discussão que ali fervia, com várias ideias
referenciadas de outros autores, antecedentes ou contemporâneos a ele. Sua
incomparável fama, entretanto, está na certeza de Stephens (2002, p. 55) 30 de que “se
a bruxaria fosse imaginária, não haveria leis contra isso. A própria ideia de que a Igreja
poderia estar errada era impiedosa. Eles estavam certo de certa forma: a bula
estabeleceu a realidade da bruxaria através da legislação”. Sem dúvida, o Malleus
Maleficarum e a Summis Desiderantes foram os dois documentos mais influentes
criados sobre bruxaria na Europa continental. O primeiro se torna o tratado melhor
detalhado, construído a partir de profundos estudos da sua época; o segundo não só
legitima os pressupostos do inquisidor dominicano, como também torna explicita a

29
“The close agreement between the most explicit witchcraft bull and the most explicit treatise raises the
suspicion that the pope might have granted the bull because the future author of the Malleus convinced
him that demonic copulation was fundamental to witchcraft. Kramer might even have provided
"boilerplate" or ready-made text to the papal scribes once the pope had approved his ideas. Theoretically,
of course, Innocent could have convinced Kramer of this idea; the latter could have written his book to
explain the pope's theory. Or the two could have reached their conclusions separately: after all, the
Malleus's ideas were not original, only more elaborate than usual. Still, Kramer sought the bull actively;
the pope granted it in response to the' inquisitor's complaints that other authorities were obstructing his
inquisitions”.
30
"[…] if witchcraft were imaginary, there would be no laws against it. The very idea that the church could
be in error was impious. They were right in a way: the bull established the reality of witchcraft through
legislation”.
condenação dos crimes apresentados por Kramer. A dúvida que permanece de quem
influenciou quem talvez não tenha tanta importância.

O Martelo das Bruxas31

Em 1976, no estado de São Paulo, acontecia a primeira publicação no Brasil em


língua portuguesa do Malleus Maleficarum. Intitulado Manual da Caça às Bruxas, ele foi
lançado na edição mensal da Planeta Especial, existente desde o ano de 1972, da Editora
Três, que tinha como enfoque temas como esoterismo, ufologia, parapsicologia e
política ambiental. Com 194 páginas, a publicação foi composta por apresentação,
introdução (a mesma da versão em inglês) e a Questão I e Questão II, Parte II, do original
traduzido por José Rubens Siqueira da versão inglesa de Montague Summers (1880 -
1948), publicada em 1928.

Irônico ou não, temos a inauguração de um clássico tratado da história político-


religiosa da Europa Pré-Moderna no Brasil, com uma carga simbólica demasiadamente
violenta, servindo para o leitor daqui como fonte de “contos de um passado tão
distante”.

Diferentemente das próximas edições de duas outras editoras, a Rosa dos


Tempos, em 2011, e a Record, em 2017, com uma edição de celebração, nesta primeira
versão ainda constavam as notas de rodapé da sua fonte em língua inglesa e várias
imagens de diversos períodos sobre o assunto em geral, sem necessariamente serem
discutidas ou problematizadas. Estas duas últimas versões passaram a ter o título de
Martelo das Feiticeiras e a constar as três partes totais do tratado original, com uma
introdução da historiadora e feminista Rose Marie Muraro, a Bula Summis desiderantes
affectibus, de 1984, e o certificado de aprovação do Malleus Malleficarum pela
Faculdade de Teologia da Universidade de Colônia de 1487.

31
Particularmente, defendendo que o título traduzido para o português de Malleus Maleficarum deveria
ser Martelo das Bruxas e não aquele utilizado atualmente, e a justificativa que não cabe aqui pela
extensão, está no decorrer de toda essa dissertação.
O Malleus foi divido em: PARTE I, Das três condições para a bruxaria: o diabo,
a bruxa e a permissão do todo-poderoso; PARTE II, Dos métodos pelos quais se incluem
os malefícios e que modo podem ser curados; e PARTE III, Que se trata das medidas
judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a serem tomadas contra as bruxas e também
contra todos os hereges. No decorrer da pesquisa com as imagens, remeteremos a vários
trechos da obra, que é extensa e muito detalhada. De uma forma rápida, podemos
adiantar que na primeira parte houve um enfoque escolástico, em que Kramer trouxe
vários argumentos contra os céticos, fazendo uma rápida revisão do Canon Episcopi;
analisou o pecado da infidelidade desde o menor dos pagãos e, em ordem crescente, os
judeus, hereges e as bruxas; e examinou os argumentos sobre a permissão de Deus
sobre todos esses temas, respectivamente.

Trazendo Aquino como parâmetro em todo o Malleus, especificamente na


primeira parte do tratado de Kramer, lemos a discussão da efetivação do sacramento do
matrimônio ou o que impediria do mesmo acontecer. O pensamento do principal
representante da escolástica foi útil para resolver não só a realidade dos demônios, mas
também as aflições entre a disfunção sexual no matrimônio cristão. Agostinho de
Hipona também apareceu em peso para o debate da relação entre anjos e demônios,
sobre íncubos e súcubos e o funcionamento biológico da cópula demoníaca, assim como
o autor muito utilizado entre outros teóricos contemporâneos à Kramer, Aristóteles.

Na segunda parte, fez a defesa dos sacramentos. Desde o começo dos tratados
sobre bruxaria, vimos essa proposição ser debatida e não seria diferente no tratado de
Kramer. Nessa parte, tivemos uma continuidade na discussão da confirmação dos
sacramentos, somando-se a comprovação da corporeidade dos demônios e da
copulação demoníaca. Quem participava disso, isto é, as pessoas que tinham a
propensão para estar nesse meio (as bruxas), mais cedo ou mais tarde, seriam
descobertas e condenadas. Temos a presença de um trecho de Formicarius, de Nider,
no qual foram apresentadas as classes de homens que estariam protegidos dos atos de
bruxaria. Todos os outros grupos e pessoas inocentes citados por Kramer, no decorrer
dessa parte, estavam expostas aos métodos do demônio que, com o auxílio das bruxas,
subverteram-se exibindo a deslealdade a Deus. Lemos também um tema muito presente
nas imagens sobre bruxaria que era o funcionamento do ato carnal, o método de voo e
os remédios ilícitos, em conjunto com a enunciação dos sacramentais.

Ao contrário de outros tratados, Kramer não se utilizou do Canon Episcopi


quando defendeu a veracidade do voo noturno das bruxas. Sua teoria dependia dessa
situação em que o corpo, seja corporalmente, seja pela imaginação ou sonho, viajaria
ao encontro do demônio e aos rituais do sabá. A partir do conceito de transvecção, o
método de Kramer utilizou os testemunhos dos acusados para apresentar suas provas
da realidade do transporte.

Na terceira e última parte, vemos uma análise profunda sobre as medidas


judiciais no Tribunal Eclesiástico e Civil, uma longa citação dos processos e as trinta e
cinco resoluções das ações a respeito dos acusados por bruxaria. Foram apresentados
os quatro meios para se condenar uma prisioneira (pelo depoimento de testemunhas
no tribunal, pela prova dos fatos, em virtude de prévias condenações e em virtude de
grave suspeita), conforme os perfis religiosos (apóstatas ou hereges) e os atos
praticados ilegalmente e suas possíveis reincidências, isto é, aumentando ou
amenizando a pena.

No geral, é claro que muitos elementos teóricos, críticos e metodológicos


presentes no Malleus, principalmente sobre a corporeidade demoníaca e a copulação
na primeira e segunda parte, foram baseados em discussões anteriores. No entanto, a
potência do conjunto da obra e a concisão de Kramer sobre o tema, especialmente seu
esclarecimento sobre os métodos de julgamento, são singulares, basta termos em
mente a grande utilização a partir do século XVII, inclusive pelas Igrejas Reformadas. Um
fato curioso, segundo Stephens, é de que os teóricos consecutivos pouco usufruíram do
Malleus como referência: “Cada novo tratado analisou a mesma coleção básica de
autoridades e fontes; cada um geralmente adiciona novos detalhes, um pouco de
bibliografia ou uma explicação fantástica. E cada tratado teve seus próprios toques
característicos de dúvida, hesitação e exagero” (STEPHENS, 2002, p. 86)32. Esse caso

32
“Each new treatise reviewed the same basic collection of authorities and sources; each usually added
some new detail, a bit of bibliography or a fanciful explanation. And each treatise had its own
characteristic touches of doubt, hesitation, and exaggeration”.
teria se dado pela competitividade que pairava entre os pensadores da Igreja, cada um
visando desenvolver suas próprias ideias e provas científicas.

Temos também uma questão não menos importante sobre o pouco uso inicial
do Malleus nas primeiras décadas do século XVI, a qual se dá sobre a legislação dos
territórios em que o mesmo esteve demasiadamente presente. O historiador Erik
Midelfort (1981) analisa um código criminal dentro do que seria o primeiro corpo de leis
alemão chamado Constitutio Criminalis Carolina (conhecido também como Lex
Carolina), promulgado pelo Imperador Carlos V (1500 - 1558) do Sacro Império Romano
Germânico no ano de 1532. A cláusula sobre bruxaria que estava ainda distante da ideia
reproduzida em Malleus estava referida no Artigo 109 e afirmava que:

Quando alguém prejudica pessoas ou lhes traz problemas por bruxaria, deve-
se puni-lo com a morte, e deve-se usar a punição da morte pelo fogo. Quando,
no entanto, alguém usa a bruxaria e ninguém é prejudicado, ele deve ser
punido de outra forma, de acordo com o costume do caso; e os juízes devem
se aconselhar, conforme descrito posteriormente a respeito de consultas
jurídicas. (Lex Carolina apud MIDELFORT, 1981, p. 29)33

Este trecho vem de encontro com a perspectiva feita por Julio Baroja (1961)
sobre a distinção entre magia maléfica e benéfica. Esse artigo, a princípio, pode ter
deixado íntegro a herança deixada pelos romanos de distinguir tais tipos de magia.
Entretanto, segundo Midelfort (1981, p.29-30) a contradição teológica – já que poderia
se fazer bruxaria desde que não prejudicasse ninguém, um desacordo com terminologia
empregada pelos tratados – se tornou explicita do decorrer do século XVI com o “o
desenvolvimento do julgamento maníaco alemão”. A lei passou a fazer parte de um
sistema adulterado em que a decisão final deslocou-se para os interesses de um
conselho instruído no momento em que os juízes procuravam pareceres, como foi
indicado no trecho acima da Lex Carolina. Talvez seja nesse momento que possamos
retornar a ideia do porquê Malleus teria se tornado relevante com o passar do tempo.

Como veremos na terceira parte desta dissertação, segundo Midelfort, os


distritos locais das terras germânicas passaram a fazer uso das faculdades jurídicas das

33
“When someone harms people or brings them trouble by witchcraft, one should punish him with death,
and one should use the punishment of death by fire. When, however, someone uses witchcraft and yet
does no one any arm with it, he should be punished otherwise, according to the custom of the case; and
the judges should take counsel as is described later regarding legal consultations”.
universidades alemãs. O problema é que os homens responsáveis por esse trabalho
específico viviam (como já demonstramos) muitas vezes ligados ao estudo sobre
demonolatria e a teoria da bruxaria e, possivelmente, às ilusões e fantasias que as
mesmas geravam. De “juristas instruídos”, passou-se, na verdade, a decisão para juízes
iludidos que, segundo Midelfort, alteraram sua doutrina romana e interpretaram-na aos
olhos das teorias que circundavam-nos sobre bruxaria. Tendo em vista essa informação,

O sabá das bruxas tornou-se uma obsessão comum entre a elite dominante;
e, assim como gradualmente, as leis territoriais foram alternadas para
permitir a execução das bruxas cujo único crime foi a associação com o diabo,
independentemente do dano (maleficium) a qualquer um. (MIDELFORT,
1981, p. 29-30)34

Vale destacar o problema jurídico ocorrido disso tudo: o território do Sacro


Império Romano-Germânico tornou-se o local mais conhecido dos processos de bruxaria
devido a um sistema legal “que permitia aos bispos e outros eclesiásticos um grau
incomparável de influência em seus territórios e permitia que os professores
universitários se tornassem membros plenos do mecanismo judicial” (MIDELFORT, 1981,
p. 29-30)35 – os mesmos, aliás, que escreviam e liam sobre bruxaria, assim como os
mesmos que encomendavam e compravam as primeiras imagens da bruxa, estas,
muitas vezes, carregadas de suas fantasias e suas assombrações.

A mulher em Malleus Maleficarum: uma reinterpretação

Sem dúvida, o Malleus é não só o tratado mais conhecido nos dias de hoje
dentre todos aqueles produzidos a partir de uma teorização da bruxaria, mas podemos
denominar também como aquele que mais vinculou a existência da bruxa com a figura
feminina – essa, lembremos, definida a partir do olhar masculino. Como bem destaca
Stephens, a insistência de Kramer em legitimar a copulação demoníaca como a maior

34
“The witches’ Sabbath became a common obsession among the ruling elite; and, just as gradually,
territorial laws were alterned to allow for the execution of the witches whose only crime was association
with the devil, regardless of harm (maleficium) to anyone”.
35
“A system that allowed bishops and other ecclesiastics an unparalleled degree of influence in their
territories, and permitted university professors to become full members of the judicial mechanism”.
prova da corporeidade do demônio se tornou matéria na provação de que a bruxaria só
existiria através da cópula carnal com demônios. Vindo de uma herança teológica desde
Santo Agostinho, que visava a mulher como a mais propensa a luxuria e a cobiça aos
prazeres sexuais, devido “ao fato” de ser mais carnal (eis que temos Eva como exemplo),
a figura da mulher se tornou o principal alvo do inquisidor alemão, convertendo-a à
principal parceira sexual do maligno, seja este em forma de um íncubo, espírito ou de
ações com homens.

Caracterizada como tendo sua sexualidade passiva, a mulher no formato


teórico de Kramer auxiliava o demônio por ter uma sexualidade ativa, assim como a
característica de ser dominada, o que antes era somente algo atribuído aos homens. O
autor de Malleus, segundo Stephens, desejava que o seu leitor acreditasse que a
penetração sexual do maligno era o que o trazia para a esfera da realidade, em grau
superior no caso de ser ele o penetrado, fato apresentaria passividade e subordinação
ao poder dos seres humanos. Por isso, a figura feminina era o foco: “se a vagina é o
marcador de um papel sexual passivo, então as mulheres são parceiras sexuais
necessárias para os demônios para que a realidade demoníaca possa ser passivamente
sofrida” (STEPHENS, 2002, p. 54)36.

Lembremos que o demônio vinha de uma herança literária e imagética, cujo


feito não podia mais estar à mercê do poder humano. Em Uma História do Diabo (2001),
Muchembled insistiu nessa transformação do demônio nos seus aspectos físicos e
psíquicos:

A insistência nos traços físicos, como o talhe diminuto, o queixo, o crânio em


ponta e a corcunda, exprime claramente uma ideia de anormalidade mas
ainda no registro do humano, sem evocar diretamente o sobrenatural. A
agitação do personagem apenas o torna mais vivo e serve igualmente para
realçar a superioridade da vida monástica, baseada em um ideal de
serenidade. Alguns toques sugerem animalidade, de forma puramente
metafórica: a barba de bode, as orelhas peludas, os dentes pontudos. Este
demônio não tem nem cauda, nem pés fendidos, [...] (eles são apenas
negros) ou aptidões propriamente sobre-humanas. No fundo, não é mais que
um mau diabinho, um homem transviado, um reflexo negativo do bom
monge da época. Ele encarna o Mal no coração do homem, mais que um
príncipe reinando em infernos sulfurosos. (MUCHEMBLED, 2001, p. 23)

36
“If the vagina is the marker of a passive sexual role, then women are necessary sex partners for
demons so that demonic reality can be passively suffered”.
Segundo o autor, a ameaça do demônio se torna mais dramática a partir do
século XIV, tendo a definição de pecado mais detalhada e, por isso, obrigando
emocionalmente, por exemplo, os fiéis, que tinham já o sentimento de culpa
internalizados, a tentar eximir-se por meio da confissão e da devoção. A ameaça do
inferno e do terrível diabo vai servir como “arma para reafirmar em profundidade a
sociedade cristã, [servindo] [...] como instrumento de controle social e de vigilância das
consciências, incitando à transformação das condutas individuais” (MUCHEMBLED,
2001, p. 36).

Reforçando a metodologia empregada por Kramer, Stephens lembrou-nos que


essa mesma compreensão de ativo e passivo a respeito da sexualidade entre o feminino
e o masculino, foi vista também em relação ao intelecto. As mulheres eram ativas na sua
decisão de se unir ao demônio, mas, por serem elas mais fracas mentalmente e "mais
impressionáveis", tinham a tendência natural de serem influenciadas por aqueles que
tinham o dom de enganar e iludir. Elas não teriam a capacidade de discernir a realidade
da fantasia (temos aqui como prova o dilema da veracidade do voo em seus
testemunhos) e, por isso, serviriam como um termômetro do invisível que passa a se
tornar visível e sensível37.

A grande ênfase do autor de Demon Lovers dentro da sua teoria sobre a crise
na fé cristã como a grande base para o surgimento da teoria da bruxaria foi que nem a
sexualidade, nem a questão de gênero eram pontos centrais desses teóricos,
principalmente no caso de Kramer. Stephens afirmou que o contato primordial do
inquisidor alemão com muitas das questões aqui apresentadas foi a partir da sua
proximidade com a história de um homem clérigo da Boêmia que teria sofrido possessão
demoníaca e não de uma ou mais mulheres.

O autor ressalta que, de fato, a possessão demoníaca trouxe à tona a


sexualidade reprimida desses pensadores, mas não especificamente com um viés
pornográfico, este mais explícito nas obras de arte. A curiosidade e a obsessão desses
teóricos era captar e visualizar esses espíritos encarnados que tanto se estudava e se

37
Nesse caso, Stephens (2002, p. 55) chega a lembrar da comparação feita por Kramer das mulheres para
com os geólogos, em que as primeiras serviriam como sismômetros, instrumentos para detectar e medir
a força dos fenômenos que não podiam ser observados diretamente.
tentava comprovar. Sem entrar em maiores detalhes sobre as consequências físicas e
psicológicas sofridas pelas mulheres para que esses pensadores conseguissem chegar
aonde chegaram, Stephens conclui que:

Eles examinaram corpos na esperança de vislumbrar "espírito". O problema é


complexo, mas as mulheres eram culturalmente determinadas como as
principais vítimas de posse de massa pela mesma razão que eram
estereotipadas como mais propensas do que os homens a copular com
demônios. Como as mulheres eram vistas como passivas, mais materiais e
menos "espirituais" do que os homens, os demônios teriam que se manifestar
agindo sobre as mulheres. (STEPHENS, 2002, p. 347)38

Essa seria a importância da mulher, mesmo que isso não sirva como um poder
dado a ela. Sua natureza física e psicológica, diferentemente da masculina, tornou-as o
modelo por excelência definido por Kramer como parceiras sexuais dos demônios. Mas
Stephens reforçou a ideia de que houve muitas outras partes do livro que não estavam
lidando diretamente com essa relação da mulher com o maligno e que, por isso,
devemos ter cautela ao defender que o Malleus Maleficarum seria um tratado criado
para menosprezar e inferiorizar a mulher.

Na constatação de que o mesmo surgiu em meio a uma grave crise na crença


cristã, não se tratando de uma teoria desenvolvida a partir de questões sexistas, como
a degradação da figura feminina, uma das grandes particularidades de Demon Lovers é,
pois, o interesse de uma reinterpretação do papel da mulher nesse popular tratado.

Explicitamente contra essa ideia de que a elite pensadora da teoria da bruxaria


foi guiada por fundamentos misóginos, Stephens deixou claro que os equívocos
começaram, em primeiro lugar, pelo erro de tradução. Aconteceram poucas
interpretações a partir do texto original em latim. Compreendendo o Malleus em língua
portuguesa, por exemplo, ao invés de uma tradução vinda do latim, temos em todas as
três edições uma versão vinda da língua inglesa, traduzida pelo clérigo inglês, Montague
Summers. O problema “brasileiro” aumenta quando Stephens afirma que essa versão
de Summers seria demasiadamente problemática, com informações distorcidas e

38
“They scrutinized bodies hoping to glimpse "spirit." The problem is complex, but women were culturally
determined as the primary sufferer’s mass possession for the same reason that they were stereotyped as
more likely than men to copulate with demons. Because women were viewed as passive, more material,
and less "spiritual" than men, demons would have to manifest themselves by acting on women”.
sensacionalistas. Um dos poucos nomes que trouxe para sua lista de “vítimas” pelo erro
de tradução está o de Anne Llewellyn Barstow, que explicitamente relacionou a Caça às
Bruxas com a caça às mulheres em seu Chacina de Feiticeiras (1995), o qual
retomaremos a seguir.

Aliás, seu foco na pesquisadora intensificou-se quando Stephens resolve


identificar que, somente na “Parte 1, questão 6” do Malleus, focou-se especificamente
na mulher e não a obra toda, como foi defendido por ela e outros historiadores. Em uma
análise mais profunda, Stephens ponderou que, no texto original em latim, esta parte
em destaque consta: “Aqui segue o que pertence a essas bruxas [maléficas] que se
submetem aos demônios, e é a sexta questão e divisão da obra” (KRAMER apud
STEPHENS, 2002, p. 38). Isso é muito diferente do que veremos da versão em português,
derivada da tradução inglesa: “Sobre as bruxas que copulam com demônios. Porque
principalmente as mulheres se entregam às superstições diabólicas” (tradução de
Paulo Fróes, 2017, p. 92). A teoria do autor de Demon Lovers se efetiva quando
verificamos a versão em italiano, traduzido do original: “Le Streghe che si sottomettono
ai diavoli” (tradução de Armando Verdiglione, 2003, p. 85) ou Bruxas que se submetem
aos demônios, título muito mais próximo da versão em latim.

Outro detalhe que foi visto por Stephens é que o primeiro parágrafo desse
mesmo capítulo também não teria relação com o tema do mal das mulheres. A versão
original dizia respeito à anatomia e às características fisiológicas dos corpos demoníacos,
algo presente também na versão em italiano. Sintetizando a mais profunda análise feita
por Walter Stephens, lembramos novamente a ideia de que o Malleus visava comprovar
a copulação demoníaca e, para chegar a isso, Kramer teve que, em determinado
momento de seu tratado, detalhar as características que faziam da figura feminina o
fator determinante. Para isso, Kramer discutiu e estabeleceu aspectos e motivos pelo
quais as mulheres estavam moralmente predispostas a buscar sexo com demônios.

Analisando diversos manuscritos antes daquele que fora finalmente publicado,


Stephens constatou que Kramer inseriu um capítulo sobre o mal inerente das mulheres
para conseguir tornar mais palpável sua teoria da cópula demoníaca. Diferenciando-se
de outros teóricos, pois, o inquisidor trouxe uma discussão específica sobre a natureza
das mulheres, com concepções de importantes pensadores da Igreja para anteceder a
discussão técnica do coito com o demônio. Além de trazer fortes argumentos sobre a
pré-disposição da mulher para o caminho do mal, Kramer legitimou o que se tornara
uma das maiores provas para os seus argumentos e de seus sucessores: os testemunhos
vindos das próprias bruxas. Somente através das confissões e das experiências delas que
os especialistas e teóricos passaram a ter uma poderosa prova da corporeidade do
demônio. E mais: foi através da publicação (ou construção) desses testemunhos que se
legitimou a combinação do malefício e da copulação demoníaca.

No entanto, é claro que a aversão às mulheres existiu e Stephens não poderia


deixar de mencionar. Mas, de uma maneira ímpar, ele reconfigurou o pensamento sobre
Malleus:

Ao se concentrar na apresentação de mulheres de Malleus, os estudiosos


geralmente afirmam que sua argumentação é ilógica, mas isso é impreciso. A
lógica está lá, mas visa provar algo diferente do que pretendemos provar. A
lógica do Malleus é abominável, mas não apenas porque é misógino: o
Malleus explora a misoginia para reforçar a demonologia - e, em última
instância, uma teologia - que Kramer encontrou não convencional. Dizer que
ele desenvolveu a teologia para demonizar as mulheres exige transformar sua
lógica de dentro para fora. [...] É claro que o Malleus era misógino, mas o que,
para Kramer, era o uso da misoginia? Ler seu tratamento de copulação
demoníaca como um discurso contra os poderes sexuais das mulheres é errar
completamente o ponto dele. Se qualquer coisa, seu discurso é para a
sexualidade das mulheres. A questão não era manter as mulheres em seu
lugar ou controlar sua sexualidade. Heinrich Kramer não temia que as
mulheres estivessem se associando aos demônios: ele esperava que elas
estivessem. Toda a sua teologia dependia da transgressão sexual, e teria
entrado em colapso se ele tivesse que admitir que o comportamento das
mulheres se conformava ao ideal patriarcal de castidade e submissão.
(STEPHENS, 2002, p. 37)39

39
“When focusing on the Malleus's presentation of women, scholars often claim that its argumentation
is illogical, but this is inaccurate. The logic is there, but it aims to prove something other than what we
expect to prove. The logic of the Malleus is abominable, but not solely, because it is misogynistic: the
Malleus exploits misogyny to reinforce demonology – and, ultimately, a theology – that Kramer found
unconvincing. To say that he exploited theology in order to demonize women requires turning his logic
inside out. […] Of course the Malleus was misogynistic but what, for Kramer, was the use of misogyny? To
read his treatment demonic copulation as a tirade against women's sexual powers is to miss his point
entirely. If anything, his tirade is for women's sexuality. The issue was not keeping women in their place
or controlling their sexuality. Heinrich Kramer did not fear that women were associating with demons: he
hoped that they were. His whole theology depended on omen's sexual transgression, and it would have
collapsed if he had ever had to admit that women's behavior conformed to the patriarchal ideal of chastity
and submissiveness”.
Dessa maneira, sem deixar de problematizar a misoginia explicita em Malleus,
Stephens deixou nítido que a análise mais significativa da obra seria aquela feita quando
avaliado os motivos de Kramer, seu método e suas implicações, uma possível visão geral
do que passavam os outros teóricos. O desenvolvimento de tais ideias associada às
práticas dos Inquisidores, de fato, pode ter sido reflexo desses elementos,
principalmente auxiliando na resolução dos problemas ideológicos que a Igreja passava.
Mas temos um problema de gênero, o qual se mostra em circunstâncias perigosas de
ser deixado em um segundo plano. O historiador Jonathan Durrant (2007) confirma que
muitos relatos feitos no período das perseguições e dos julgamentos entre o século XVI
e XVII, os quais passaram a circular também em vernáculo, demonstravam aos seus
leitores que a maioria das bruxas existentes antes dos tribunais em territórios
germânicos eram mulheres. Tais representações demonológicas da bruxa feminina
seriam efetivamente fortalecidas por outras abordagens literárias e mitológicas
anteriores ao que trabalhamos aqui. Julio Baroja (1961) confirma, por exemplo, a forte
presença depreciativa da figura feminina na literatura germânica primitiva e nos escritos
históricos em latim sobre os povos do mesmo círculo no período posterior, os quais
abordaram obstinadamente a desconfiança sobre as mulheres. Permitamos, então, dar
a palavra àqueles que proporcionaram novas leituras da história das mulheres e,
simultaneamente, da história da bruxaria.

UMA QUESTÃO DE GÊNERO

Após compreendermos o desenvolvimento teórico da bruxaria, através


daqueles que tinham o privilégio do uso da escrita, devemos agora nos aproximar
daquela que será nossa protagonista nos estudos iconográficos e conhecer, a partir de
leituras alternativas, o seu contexto, as suas obrigações para com a sociedade patriarcal
e, principalmente, as características engendradas pelos homens que as tinham em seu
domínio. Antes de vir à tona um pensamento preconcebido de que essa parte do
trabalho se valeria apenas da ideia de que só mulheres vivenciaram e sofreram no
movimento da Caça às Bruxas, já adiantamos que não é essa a nossa intenção. O que
aqui pretendemos concilia com a pesquisa da professora de História da Arte no The
College of Wooster nos Estados Unidos, Linda Hults, chamada The witch as muse: art,
gender, and power in early modern Europe ou A bruxa como musa: arte, gênero e poder
na Europa pré-moderna (2005). Sua análise e defesa de que as questões ligadas à teoria
da bruxaria competem a um estudo de gênero será uma de nossas bases teóricas,
principalmente, quando tivermos que nos concentrar na mentalidade do artista,
definidor da imagem da bruxa. A autora capta que tanto nas obras de arte, como nos
tratados, os homens não mediam esforços para obter poder e status, baseados em
ideais contemporâneos de masculinidade. Além disso, ela entende que, à medida que
as bruxas eram acusadas, julgadas e executadas, via-se uma educação cultural orientada
pelo gênero em todos os níveis, seja na aldeia, na corte ou no Estado.

Apesar dos alertas dados anteriormente por Walter Stephens, não podemos
deixar de mencionar a pesquisa especifica sobre a Caça às Bruxas da historiadora
americana Anne Llewellyn Barstow, nominada Chacina de Feiticeiras: uma revisão
histórica da Caça às Bruxas na Europa (1995), que nos auxilia nas análises sobre as
consequências do olhar patriarcal e masculino sobre a mulher nesse complexo período.
Devemos salientar que a autora teve como intenção nortear seu trabalho a partir de três
questões, essenciais para nós: qual o significado do sexo das vítimas; quais foram os
acontecimentos, como o uso de violência dos homens pelas mulheres, que eram ligados
pela sexualidade das vítimas; e qual a natureza sexual de grande parte dessa violência
captada.

Pertencente a uma parte de uma densa pesquisa, temos também o olhar sobre
a mulher a partir de dois historiadores especialistas em Idade Média e um jornalista,
todos franceses. Eles são, respectivamente, Georges Duby e seu História da Vida
Privada, volume 2: Idade Média (2009), e Uma história do corpo na Idade Média (2006),
de Jacques Le Goff e Nicolas Truong. As obras enriquecem o debate com os olhares
singulares dos autores a partir de temas específicos. Duby aborda o contexto social do
homem e da mulher a partir do privado da sociedade, além da influência do romance
cortês no imaginário, tal perspectiva essencial para nos basearmos posteriormente nas
obras de arte. Já com Le Goff e Truong entendemos que, entre as tensões geradoras da
dinâmica do Ocidente, o corpo teve o seu o lugar. Compreendemos também muitos
mitos, definições e relações feitas a partir de uma perspectiva histórica do corpo,
elemento esse decisivo não só na construção da teoria da bruxaria, mas também no
nosso entendimento sobre a percepção do artista.

Ainda sobre a história do corpo nesse período, temos uma análise específica de
Mikhail Bakhtin intitulada A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1987),
baseado no ambiente e nos textos do escritor e médico francês François Rabelais (1494
- 1553) sobre as culturas populares do Renascimento, como os festejos carnavalescos e
suas inversões de valores, e a definição do corpo grotesco como corpo social.

O segundo volume da História das Mulheres no Ocidente: Idade Média (1998),


organizado pela historiadora Michelle Perrot e, novamente, Georges Duby, é outra
excelente oportunidade para debatermos pontualmente a ideia de gênero e, mais ainda,
a interpretação da figura feminina partindo de olhares alternativos àqueles que estamos
acostumados, seja sobre as normas de controle sobre as mulheres ou a respeito da sua
natureza, de suas obrigações, dos seus medos ou de suas conquistas.

A guinada de Linda Hults

No decorrer da análise de Demon Lovers, deve-se admitir que surgiu a dúvida


sobre o quanto realmente a questão de gênero era intrínseca na construção da teoria
da bruxaria e, principalmente, na elaboração das imagens artísticas que aqui serão
analisadas. É então que a nossa investigação toma uma reviravolta ao aproximar-se da
profunda pesquisa de Linda Hults, publicada em 2005.

A historiadora da arte toma como base para sua análise – e seguiremos na


mesma linha –, de que o objeto da arte, nos seus mais variados períodos históricos,
assumiu um semelhante valor às construções históricas sobre a bruxaria e a Caça às
Bruxas. O trabalho e a carreira dos artistas estavam consolidados numa realidade de
competição e autoconstrução, ambos atravessados culturalmente pela dualidade entre
o feminino e o masculino, acarretando na imagem da bruxa feminina o domínio do
artista homem sobre as ameaças não só da fantasia, mas também dos sentidos e do
corpo. Os artistas que efetivaram tal construção pictórica a partir de Albrecht Dürer,
como Hans Baldung Grien e, posteriormente, Frans Francken e David Teniers, aderiram
maior poder e notoriedade, principalmente nas suas particulares habilidades de
sintetizar elementos vindos das discussões sobre a bruxaria nos círculos de influência,
entre eles filósofos, juízes, teólogos, médicos e oficiais; e de mostrar,
concomitantemente, um engenho singular sobre os corpos estranhos e misteriosos
dessas figuras femininas determinadas como bruxas.

De um modo geral, Linda Hults estuda rapidamente o debate sobre a origem


misógina das perseguições relacionadas ao crime de bruxaria, que viriam a partir de dois
pontos: 1. Da retórica dos tratados e 2. Do antagonismo ente as mulheres. O primeiro
motivo já tivemos a oportunidade de constatar, com fundamentações teóricas e
metodologias dos autores que produziram a teoria da bruxaria, mesmo que a misoginia
não fosse o objetivo principal deles. Com o passar do tempo e com novos estudos a
partir de historiadoras mulheres – e isso é relevante e específico –, foi percebido uma
problematização sobre o papel do gênero que antes, segundo Hults (2005), era
amplamente desconsiderado. De certa forma, é independente o nível de importância
que motivou e levou essa elite pensadora e artística a qualificar e caracterizar a mulher
nos seus argumentos e interpretações. A questão de gênero está inerentemente
relacionada à ideia de bruxaria, tanto quanto a crise na fé cristã. E é isso que Hults (2005,
p. 13) escolheu mostrar: claramente, a misoginia não é a única justificativa para a Caça
às Bruxas, mas acompanhou e funcionou juntamente às questões daquele momento,
como a própria tensão teológica, as divergências filosóficas, a construção do Estado e as
aflições nas aldeias e nos campos.

Já sobre o antagonismo entre as mulheres, o qual introduzimos com a pesquisa


de Diane Purkiss, Hults analisa, a partir da investigação de Lyndal Roper em Oedipus and
the Devil ou Édipo e o Diabo (1994), que, no período inicial da Caça às Bruxas, muitas
mulheres fizeram parte desse sistema, acusando outras mulheres ou fazendo parte dos
processos inquisitoriais. Ela ressalta que as motivações que as regiam não eram pelo
controle patriarcal, mas sim pelas adversidades próprias da natureza das mulheres,
como a amamentação, o parto, a alimentação, as questões domésticas e o uso da magia.
Esta última, desde a Antiguidade, era uma prática realizada predominantemente pelo
homem e se diferenciava àquela gerada pela mulher, com um viés terapêutico, ligado
ao útero e a outros mistérios da vida. As mulheres, de fato, permeavam os modelos
definidos pela sociedade vigente, isto é, patriarcal. Ver a mulher como uma pessoa
sofredora, como bem lembra Hults, também é herança desse sistema: “A participação
aparentemente complacente das mulheres na vitimização de outras mulheres também
é inteligível. As mulheres modernas primitivas não existiam fora da ideologia do
patriarca; elas também assimilaram noções de vulnerabilidade feminina ao mal e o
estereótipo da bruxaria” (HULTS, 2005, p. 11)40.

Desde já, podemos adiantar que o maior ganho da sociedade a partir desse tipo
de abordagem não só de Hults e Purkiss, mas também de Anne Barstow, Lyndal Roper,
entre outras pesquisadoras, é esse questionamento sobre a padronização da história,
da arte e da cultura que, nas últimas décadas, visou não só a compreensão dos motivos
que geraram a teoria da bruxaria ou a Caça às Bruxas, mas também a desconstrução
social e imagética de uma das maiores protagonistas que por muito tempo ficou na
obscuridade. Tal movimento é herança de uma abordagem feminista, que cada vez mais
se insere na pesquisa acadêmica desde o final do século XX e que sempre se fez
necessário, principalmente para entender essa padronização da mulher. O impacto
psicológico e social desse estereótipo feminino da bruxa deve ser falado e estudado,
principalmente quando relacionado ao imaginário construído e às imagens produzidas.
Numa disposição ímpar, Linda Hults propõe, então, o modelo que necessitamos
entender:

A formulação e perpetuação do discurso da Caça às Bruxas, seja visual ou


verbal, e o engajamento no debate em torno da bruxaria e sua punição
apropriada, eram prerrogativas masculinas. A bruxaria era a expressão mais
extrema do desvio feminino: uma acusação não imposta às mulheres, mas
contra as mulheres que foram imaginadas como iludindo ou subvertendo o

40
“Women's seemingly compliant participation in the victimization of other women is also intelligible.
Early modern women did not exist outside patriarchal ideology;
they too assimilated notions of female vulnerability to evil and the stereotype of witchcraft”.
controle arcaico patriarcal. Como tal, o estereótipo da bruxa representa o
profundo medo da Europa Moderna do desvio feminino. Foi a própria
banalidade da misoginia [...]. (HULTS, 2005, p. 15)41

Cabe a nós, portanto, problematizar essa formulação a partir do discurso


masculino e seguir para novas perspectivas que vem sendo criadas. Assim uma história
inédita pode ser contada, na qual não faça parte dela tais construções enganosas.
Mesmo que hoje a bruxa esteja enraizada na nossa cultura literária e cinematográfica,
com os contos de fada e de terror, por exemplo, a história com uma bruxa nunca terá
um final feliz e pleno.

A mulher no Renascimento

Compete ao historiador Georges Duby (2009) nos elucidar sobre a vida da


mulher no período em questão. Quando o autor analisa a vida privada nas casas
aristocráticas da França feudal, por exemplo, ele identifica que, no espaço doméstico, o
perigo era essencialmente percebido como vindo das mulheres, que eram portadoras
do veneno, das feitiçarias e dos encantamentos, das doenças inesperadas e das mortes
sem explicação, seja dos filhos ou do senhor da casa: “Tudo aparecia como provocado
pelas artimanhas das mulheres, da dama principalmente.” (DUBY, 2009, p.87). Nesse
caso, é “especial” o cuidado que as mulheres bem-nascidas recebiam, ao contrário
daquelas submissas ao chefe da família ou as donas da casa. Era tão notável o que faziam
ou deixavam de fazer que chagava-se ao ponto de serem levadas à morte se suas
obrigações e sua educação não fossem bem feitas.

O dever primeiro do chefe da casa era vigiar, corrigir, matar, se preciso, sua
mulher, suas irmãs, suas filhas, as viúvas e as filhas órfãs de seus irmãos, de
seus primos e de seus vassalos. O poder patriarcal sobre a feminilidade via-
se reforçado, porque a feminilidade representava o perigo. Tentava-se
conjurar esse perigo ambíguo encerrando as mulheres no local mais fechado
do espaço doméstico, o quarto ou "quarto das damas", que não se deve
tomar, com efeito, por um espaço de sedução, de divertimento, sim de

41
“The formulation and perpetuation of the discourse of witch-hunting, whether visual or verbal, and
engagement in the debate surrounding witchcraft and its appropriate punishment, were male
prerogatives, Witchcraft was the most extreme expression of female deviance: a charge levied not against
women in general but against women who were imagined as eluding or subverting patriarchal control. As
such, the stereotype of the witch represents early modern Europe's profound fear of female deviance. It
was the very banality of misogyny […]”.
desterro: elas eram ali encerradas porque os homens as temiam. (DUBY,
2009, p. 88)

No quarto, então protegidas, as mulheres deveriam buscar ocupar-se para não


deixar a mente livre para a chegada do espírito maligno. Os dias divididos entre a oração
e as atividades domésticas eram o ideal previsto pelos seus senhores. Tarefas como a
fiação e o bordado foram designadas como femininas, muito trabalhadas visualmente
nos romances cortês e nas canções “de fiar” dos poetas do século XI, por exemplo, que
Duby nos apresenta. Podemos ver essa tradição correr os séculos seguintes, chegando
a época de Dürer e sua Bruxa montada para trás (c. 1500): uma figura feminina anciã
que representa o mal (entre outras interpretações que daremos na segunda parte) e
carrega no seu braço direito um fuso e uma roca, elementos da atividade de fiar.
Qualquer semelhança não é mera coincidência.

A historiadora Christiane Klapisch-Zuber (1998) analisa por outra perspectiva.


Segundo ela, nos últimos séculos da Idade Média, via-se um grupo de pensadores guiado
por Tomás de Aquino e pela teoria de Aristóteles, estes esforçados em melhor limitar o
exercício de poder da mulher e sua participação na área judicial. O pensamento do
filósofo da Antiguidade foi extremamente significativo para dar a esse grupo a base
teórica como justificativa: “O filósofo traz a estrutura necessária: talvez nunca antes da
sua reinterpretação pelo Ocidente medieval, tivessem os pensadores sabido exprimir de
forma tão coerente e sistemática a sua ideia da fraqueza constitutiva da mulher e a sua
necessária submissão ao homem” (PERROT; DUBY, 1998, p.27).

Uma constatação essencial para a nossa pesquisa é feita pela historiadora, que
observa a redenção da mulher através da imagem de Madalena nos séculos XI e XII, uma
excelente concepção proposta pela Igreja para “abraçar” aquelas mulheres que não
tinham em quem se enxergar. Antes, elas dispunham de dois polos opostos para se
nortearem: Maria, a imagem materna, virginiana, de pureza e utópica, e Eva, a
representação da morte, do pecado Original e, por isso, do perigo. O problema para
essas mulheres se tornou maior quando as representações e os princípios seguidos pelo
grupo de Aquino e sua base aristotélica conduziram um pensamento em torno do
corpo feminino, cuja finalidade era dar um caráter categórico a ele, interpretando esse
corpo como ativador dos fantasmas masculinos e de suas terríveis ansiedades.

Georges Duby (2009, p. 90), numa linha de pensamento semelhante, afirma


que a dicotomia entre o masculino e o feminino atravessava a sociedade doméstica, se
originando em grande parte dos comportamentos e das atitudes mentais. Quando
solteiros, o historiador afirma que se via um jogo de conquista e exibição inevitável de
ambos, mas, no caso das mulheres, que eram exibidas como um objeto raro pelos seus
senhores para seus visitantes, tinham que estar protegidas pela honra que gerava a
ordem familiar. Não nos esqueçamos disso: era proibido submeter o homem, por
exemplo, a algum poder feminino, pois nessa situação o homem era desonrado.
Quando encaminhada ao casamento, a mulher era passada para seu marido
como uma posse e Duby lembra-nos que tal costume da época não foge muito do que
víamos até pouco tempo: “Um pai ‘dá’ sua filha a um genro, que a ‘toma’ por mulher”
(DUBY, 2009, p. 127). O principal objetivo da mulher nesse período, a fim de ter uma
vida segura e estimada, era conseguir casar e ter filhos. Se lembrarmos da base do
pensamento dos teóricos da bruxaria, de que o ato sexual legitimava a existência do
demônio, numa mesma lógica funcionava o casamento: as relações sexuais entre o
noivo e a noiva, quando completas, legitimavam o sacramento do matrimônio. Esse
comportamento, aliás, segundo Duby (2009, p.136), foi determinado pela Igreja até o
final do Concílio de Trento, em 1563.
É de conhecimento de Klapisch-Zuber a realidade da mulher casada, que tinha
seu papel reduzido ao cuidado da casa, das tarefas domésticas e da educação dos filhos.
Com o aval do pensamento aristotélico, a hierarquia dos sexos foi efetivada, com a
exclusão das mulheres da vida pública, principalmente quando casadas, salvo exceções.
Elas deviam estar acondicionadas no interior da casa ou no convento e serem
obedientes aos seus maridos. A historiadora, assim como Linda Hults (2005), ressalta o
poder de uma leitura alternativa, principalmente quando se adentra e se contesta essas
construções culturais e históricas do feminino e sua natureza:

A sobredeterminação fisiológica da mulher cauciona [...] uma psicologia


redutora dos seus afetos. Por causa desta mistura de excesso e de submissão
que ela deve à sua natureza, a mulher não pode gerir sozinha os seus desejos
e as suas relações com os outros: é ainda ao homem que compete domá-las,
refreá-las. Assim, a esposa será repudiada, incapaz de dirigir o seu amor para
os seus filhos, para o seu marido, com a sábia moderação que caracteriza este
último. Pelas suas referências incessantes à natureza da mulher, os
pensadores medievais enraízam na cultura ocidental a ideia de que o
feminino se opõe ao masculino como a natureza à cultura, uma equação que
orientou certas discussões recentes sobre a antropologia e a história vistas do
lado das mulheres. (PERROT; DUBY, 1998, p.27)

Os trabalhos femininos estigmatizados

Nessa perspectiva, tentamos analisar agora os estereótipos femininos que


auxiliaram na denominação da mulher como bruxa. Apesar da referência de Madalena
na teologia católica às mulheres casadas, que perderam o selo virginal e desejavam ser
resgatadas, conforme Georges Duby elucida, o poder de Maria e sua castidade
continuaram no decorrer dos anos firmes e fortes na ordem geradora do casal,
simbolizando a virtude do corpo e da alma, uma busca ou culpa eterna das mulheres.
Essa castidade era objetivada não só pelas mulheres casadas, mas também pelas virgens
e viúvas, conforme Klapisch-Zuber determina, visando um dilema para essas mulheres
entre a recusa e o controle para gerar filhos, refletido numa batalha perpétua da mulher
em enfatizar os aspectos espiritual e racional sobre o corpóreo e o sensual. Em virtude
desse dilema, a maioria dos casos de crimes de bruxaria foram relacionados às mulheres
viúvas, prostitutas, adúlteras e “solteironas”. Elas eram determinadas como impuras e
libidinosas, seja por desejarem casar novamente, no caso das viúvas; seja por não
quererem ou não conseguirem casar a tempo, no caso das solteiras; ou então aquelas
que eram acusadas de serem dominadas pela luxúria e pela lascívia, como as prostitutas
e as adúlteras.

Essas classificações estereotipadas se contextualizam, pois, numa época que,


segundo Klapisch-Zuber, as mulheres tinham alguns caminhos profissionais a seguir. Se
não pertencesse a uma Ordem Religiosa para servir somente ao Deus cristão, elas
poderiam trabalhar somente com questões domésticas ou então seguir a prostituição
ou o trabalho como fiandeiras. A prostituição, por exemplo, acontecia muitas vezes
pelos mesmos motivos que vemos hoje: solteiras e sozinhas, devendo sustentar seus
filhos quando tinham, essas mulheres não portavam condições financeiras para viver
minimamente. Quando não seguiam o caminho do roubo ou da mendicidade (outro
modelo de bruxa), muitas criadas solteiras, viúvas, jovens abandonadas e pobres
seguiam esse caminho. Assim, Klapisch-Zuber (1998, p.412) lembra-nos que, ao
contrário dos escritos estereotipados dos clérigos, a prostituição escancarou, antes,
uma realidade social. Tal ofício não só se apresentava como uma saída para essas
mulheres, mas também se deu como um sistema lucrativo para os donos de bordéis,
local que, apesar de ser repudiado pela Igreja de um modo geral, não fora destruído
pelo simples fato de, segundo Duby (2009), servir como um incentivo aos homens a não
praticarem a sodomia, uma grave heresia.

Outro trabalho dado como principal das mulheres solteiras era ser fiandeira.
Apesar de ser melhor visto pela sociedade patriarcal, Klapisch-Zuber clarifica que elas
sofriam concorrência direta com os tecelões, que eram homens. Em Estrasburgo, por
exemplo, havia uma disputa de sexo nesse tipo de trabalho, em que nas corporações
havia o predomínio de tecelões que, para manter seu mercado, denegriam suas
concorrentes nos conselhos da cidade. As mulheres fiadoras de lã estavam fora dessas
corporações e, por esse fato, eram exploradas em virtude da ausência de poder político
e organizacional das mulheres.

Tais conflitos levavam o fim a que as mulheres transferissem a sua oficina


para fora da cidade ou tivessem de procurar outros meios de subsistência,
tanto mais que lhes era continuamente negado o direito à formação de
«aprendizes». Assim, depois de 1500, deixa de se haver notícia sobre
mulheres exercendo a sua actividade na indústria de lanifícios em
Estrasburgo! Que as mulheres não se deixavam no entanto excluir dos seus
ofícios sem resistência mostram-no por exemplo as lutas das fabricantes de
bolsas de Nuremberga, que no início do século XVI apresentaram queixa na
corporação em virtude de os regulamentos da aprendizagem de 1530 lhes
terem retirado o direito de possuírem uma criada na sua oficina. (PERROT;
DUBY, 1998, p 404)

Longe desses ofícios, reclusa no interior das casas, sobre proteção masculina,
para não ser acusada e condenada, Carla Casagrande (1998) analisa, a partir da doutrina
proposta por Aquino, a melhor maneira pela qual as mulheres e sua sexualidade deviam
se basear:

A virgem é virgem não tanto e não só pela integridade do seu corpo, mas
sobretudo pela pureza dos seus pensamentos, afastados de toda a
concupiscência graças à escolha meditada que soube fazer e manter; se
tivesse de sofrer violência sem consentir nem experimentar prazer, a sua
virgindade não ficaria diminuída. A viúva vive virtuosamente a sua condição
não apenas graças a um evento casual que libertou o seu corpo da obrigação
das relações sexuais, mas sobretudo se, a partir desse acontecimento, sabe
libertar a sua mente de todo o desejo carnal. A mulher casada vive
virtuosamente a sua sexualidade no interior do matrimônio porque as suas
intenções se mantêm puras e castas, voltadas como estão para o
cumprimento do dever conjugal e para a propagação da espécie. (PERROT;
DUBY, 1998, p 112)

Dessa forma, fica um pouco mais explícita a origem de muitas complicações e


dificuldades cotidianas que hoje nós, mulheres, presenciamos, seja com nós mesmas,
seja com os homens, ou então com a nossa cultura. Herança de um tempo que não pode
mais voltar, devemos ainda compreender melhor como se deu a perspectiva do corpo
feminino e todos os seus fantasmas.

Um corpo pecaminoso por natureza

Na Idade Média Cristã, vemos a transformação do corpo a partir do pecado


original de Adão e Eva, no Gênesis, para o pecado sexual. Temos também sua redenção
através do milagre da encarnação de Cristo e da ressureição da carne, referido nos
evangelhos do Novo Testamento. A sociedade vivia a partir das máximas da ordem Cristã
e do combate da sua repressão.

Numa época em que se via o corpo direcionado ou para o caminho da glória e


da exaltação, ou da repressão e do isolamento, Jacques Le Goff e Truong (2006)
constatam que foi no período compreendido por eles como Idade Média, para nós, se
tratando do Renascimento, que tivemos a criação desse elemento antagônico,
fundamental do nosso pensamento sobre o corpo humano. Como ressaltam os autores,
houve, de um lado, a Quaresma, a derrota das práticas corporais a favor de uma pureza
espiritual, e, do outro, o Carnaval, a entrega do corpo aos excessos, fosse, por exemplo,
pela alimentação, pelo riso ou pela luxuria. Não é por acaso que temos o
reconhecimento desse confronto pelo importante pintor flamengo, Pieter Bruegel, O
Velho (1525 - 1569), e seu O Combate do Carnaval e da Quaresma, de 1559.
Na obra, temos o que Le Goff e Truong denominaram como Quaresma, os
quarenta dias de privação do corpo instalado desde o século IV, visto como um novo
modo de inscrição corporal, com as representações da abstinência do corpo, do jejum
alimentar e sexual, de um resguardo estético, no caso da presença de roupas bem
cobertas e escuras nas figuras que excedem na magreza, e na figuração da "velha
Quaresma" e seu cortejo de penitentes, conforme a análise dos autores. Por outro lado,
Bruegel personificou o Carnaval na parte inferior do quadro, que, segundo eles (2006,
p. 58), tornou-se um personagem popular. Na obra, a “Terça-Feira Gorda” foi o dia de
Carnaval, pois precedia a Quarta-Feira de Cinzas. Por isso, vemos um homem gordo, em
cima de uma forma que lembra um barril, que, gestualmente, representaria a
abundância alimentar. Aqueles que o seguem, utilizam máscaras e roupas coloridas e
fazem uso de bebida e instrumentos musicais.

O filósofo e pensador russo Mikhail Bakthin (1987), a partir da obra


renascentista de Rabelais, complementa a análise sobre essa realidade carnavalesca de
que, enquanto acontecia a festividade, não se conhecia outra vida senão a do carnaval
para o indivíduo:

O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar do mundo: o


seu renascimento e a sua renovação, dos quais participa o indivíduo. Essa é a
própria essência do carnaval, realização da festa, só se pode viver de acordo
com as suas leis, isto é, os que participam dos festejos sentem-no
intensamente”. (BAKTHIN ,1987, p. 6)

Aliás, esse caráter não sério do carnaval, ao contrário do moralista pregado


pelo rito da quaresma, pode permanecer existindo em virtude das concessões feitas
pelo Estado e pela Igreja para que pudessem continuar controlando a população. Ao
invés de banir completamente, eles, então, “adaptavam-se”. De acordo com Bakhtin
(1987, p.78), nas praças públicas, em datas festivas específicas definidas rigidamente,
com seus antigos costumes e diversos folclores, as pessoas estavam autorizadas a
afastar-se “dos trilhos oficiais” e, “como uma válvula de escape para a ‘segunda natureza
humana’, isto é, a bufonaria e o riso” (1987, 78) a sociedade tinha a permissão de se
expressar corporalmente através de danças, de interpretações teatrais e,
principalmente, pelo riso.
Figura 1. Pieter Bruegel, O Velho
A luta entre o carnaval e a quaresma, 1559
Óleo em carvalho, 118 × 164 cm
Museu Kunsthistorisches, Viena, Áustria
Fonte: www.khm.at/de/object/320722549d/

Dialogando com a obra de Bruegel e seus personagens carnavalescos, temos


abaixo um pequeno trecho que exemplifica essa ideia da "segunda natureza do
homem", da bufonaria e da tolice, segundo Bakthin, opostos à seriedade da teologia e
do culto cristãos:

Os tonéis de vinho explodiriam se de vez em quando não fossem destapados,


se não se deixasse penetrar um pouco de ar. Nós, os homens, somos
tonéis mal ajustados que o vinho da sabedoria faria explodir, se
se encontrasse sempre na incessante fermentação da piedade e do temor
divino. E preciso dar-lhe ar, a fim de que não se estrague. Por isso permitimo-
nos alguns dias de bufonaria (a tolice), para em seguida regressar com
duplicado zelo ao serviço do Senhor [...]. (BAKHTIN, 1987, p. 65)

Retomamos e reforçamos aqui com Le Goff e Truong o que antes mencionamos


rapidamente a partir da pesquisa do professor Carlos Nogueira: esse choque de culturas
consideradas pagãs e hereges, na qual a teologia Cristã teve que experimentar e
dominar para se tornar a instituição geradora da Ordem, trouxe à tona a ideia de que
esse público herdeiro de diferentes ritos, costumes e tradições seria anticivilizado. A
questão é que essa sociedade não administrou essas mudanças de forma rápida e, muito
menos, naturalmente:

Banquetes em oposição ao corpo flagelado, desregramento contra ascese, as


festas do Carnaval burlesco, com essas danças, as caroles, consideradas
obscenas pelo clero, opõem-se à Quaresma dos jejuns. [...] Quaresma, já o
vimos, é esse período de jejum originário da nova religião, o cristianismo. E a
cultura dessa anticivilização não encontra melhor maneira para se exprimir
do que através do Carnaval, que se instala verdadeiramente no século XII, isto
é, em pleno triunfo da reforma gregoriana, para culminar, no século XIII, no
próprio coração da cidade. (LE GOFF; TRUONG, 2006, p. 60)

É conveniente ressaltar que não devemos, entretanto, cair no erro de achar que
haveria uma dicotomia exata, conforme os autores elucidam, entre o paganismo dos
gregos e romanos, que seriam caracterizados por uma liberdade sexual e um maior culto
ao corpo, e o cristianismo, simbolizado pela abstinência cultural e pela obsessão da
castidade. Contra essa caricatura, os autores afirmam que: “os trabalhos de
Paul Veyne e Michel Foucault mostram claramente que um ‘puritanismo da virilidade’
existe antes da guinada decisiva do alto Império Romano (séculos I-II) em direção ao
cristianismo" (LE GOFF; TRUONG, 2006, p.41).

Na cidade, visto por aqueles detentores da palavra e da escrita, o corpo


carnavalesco passou por profundas mudanças. E a mulher é quem mais sofreu com isso.
Identificado como a prisão e o veneno da alma por Le Goff e Truong, o corpo acabou
sofrendo uma demonização, tendo sua associação com a alimentação e a luxúria. As
mulheres, já relacionadas ao poder do demônio, como vimos no pensamento de
Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino, tiveram sua sexualidade extremamente
controlada e governada. Aliás, a sexualidade foi o ápice da depreciação do corpo,
afirmam os autores franceses (2006, p. 41). A menstruação se tornou uma das provas
da inferioridade da mulher, ocorrendo a proibição da Igreja aos homens casados de
copular durante esse período já que causaria sérias consequências não só para o casal,
mas, principalmente, para a criança, como, por exemplo, a doença da lepra. Anne
Barstow (1995) complementa esse estudo afirmando que acreditavam, inclusive, que o
sangue menstrual tinha efeitos mágicos, podendo enfeitiçar um amante, numa função
afrodisíaca e estimuladora, ou, nos piores casos, levar o homem a morte.

A análise, pois, da vida e dos deveres da mulher na sociedade renascentista não


bastaria para a nossa compreensão sobre a questão de gênero presente na teoria da
bruxaria e, posteriormente, nas representações das bruxas. Aliás, para
compreendermos as imagens a seguir, devemos analisar rapidamente como eram vistos
os corpos femininos.

A partir da tradição cortês, Georges Duby (2009) constata um fetichismo nos


corpos das mulheres: estas deviam saber como se posicionar a mesa, fazer as unhas,
mostrar os pés, ajeitar o decote (no caso, por exemplo, dos colos abundantes que
deviam ser enfaixados) e fazer os cabelos. Em relação a esse último elemento da
natureza feminina, podemos apresentar até uma rápida linguagem e seu significado, a
partir do historiador: se trançado, sinônimo de beleza; se estivessem desfeitos ou
desgrenhados, significavam tristeza; se soltos, a sedução e o erotismo entravam em
jogo.

É nesse ambiente de luxúria que temos a diferença entre o corpo nu masculino


e o feminino. Nos discursos que propõem e impõem a ordem, isto é, os teológicos e
filosóficos, a norma foi ditada a partir de um uso comedido e prudente do corpo. Ao
contrário desses discursos normativos, Duby se utiliza dos romances para nos
apresentar o olhar imaginário e os lugares de liberdade que os autores e leitores homens
pretendiam adentrar – situação em que os artistas visuais também estavam inseridos.
No geral, o historiador constata que o nu originou-se da vergonha e da fragilidade. Mas
temos, é claro, diferença de gênero. No caso da figura masculina, o homem nu articulou-
se com o ser humano que passaria a ser selvagem, que rejeitaria o vestuário. Ele seria a
ruptura da ordem, uma anarquia às leis de comportamento, segundo Duby. Já sobre a
figura feminina, temos uma normatividade que estaria entranhada no olhar do outro,
isto é, do homem: “ela está sempre ligada à trajetória de um desejo nascente ou
confirmado” (DUBY, 2009, p. 385). Por isso e, essencialmente nesse caso, é importante
lembrarmos, como observam Klapisch-Zuber (1998) e Hults (2005), de que o que passou
a constituir uma mulher foi o olhar do homem sobre ela.
Visto nos tratados na primeira parte, entendemos que a mensagem da Igreja,
a partir da construção filosófico-teológica de Tomás de Aquino, foi a elaboração de um
imaginário em que os homens se tornariam pecadores quando não conseguiriam
controlar seus sentidos e seus impulsos, nem dominar o dom da razão, da erudição e do
conhecimento. As mulheres, ao contrário, possuidoras dos corpos transgressores desde
Eva, não necessitavam ter o mesmo controle dos homens já que, segundo Klapisch-
Zuber, elas seriam um modo de pecar oferecido ao homem.

Assim, a mulher foi considerada "um macho defeituoso" (LE GOFF; TRUONG,
2006, p.54), segundo os teólogos seguidores do pensamento aristotélico da Idade
Média. A condição feminina desvalorizada, com seu corpo inferior e imperfeito
promulgado por Tomás de Aquino, difere-se do masculino, possuidor de um outro
modelo de corpo, sagaz e provador da ação divina com sua semente única no ato da
copulação, segundo Le Goff e Truong. É ele que eterniza o gênero humano e não a
mulher. Aliás, não só eterniza como também origina.

Na introdução do Malleus Maleficarum, feita pela historiadora Rose Muraro,


podemos constatar a concepção de gerar um ser transferida da mulher para o homem,
isto é, o que antes era valorizado nas primeiras civilizações matriarcais, a partir do mito
de Adão e Eva, tal tarefa biológica fora deslocada. Adão, criado sozinho do barro por
Deus, teve a mulher originada da sua costela. Por isso, segundo a historiadora, temos a
ideia de que o primeiro homem daria a luz (pare) a primeira mulher.

Esse fenômeno psicológico de deslocamento é um mecanismo de defesa


conhecido por todos aqueles que lidam com a psique humana, e serve para
revelar escondendo. Tirar da costela é menos violento do que tirar
do próprio ventre, mas, em outras palavras aponta para a mesma direção.
Agora, parir é ato que não está mais ligado ao sagrado e é, antes, mais uma
vulnerabilidade do que uma forca. A mulher se inferioriza pelo próprio fato
de parir, que outrora lhe assegurava a grandeza. A grandeza agora pertence
ao homem, que trabalha e domina a natureza. (KRAMER; SPRENGER, 2017,
p.15)

Notamos, então, uma depreciação psicológica e natural se seguirmos os


argumentos do Gênesis, como os homens letrados de fato o faziam. Advertidos para não
consumirem os frutos da Árvore do Conhecimento, graças à sedução da mulher, o
homem cedeu à tentação da serpente, comeu a maçã oferecida pela mesma e o casal
foi expulso do Jardim das Delícias. Onde antes o alimento era abundante e colhido sem
trabalho, agora, o homem e a mulher deveriam, no caso do primeiro, trabalhar e no caso
da segunda, ter a dor do parto como formas de punição. Essa transgressão acarretou à
mulher o papel de tentadora do homem, aquela que perturbaria não só a ordem, como
também a relação entre o homem e seus semelhantes. O contato da mulher com a
serpente foi e é ainda relacionado diretamente à sua associação à natureza e ao poder
maligno, isto é, ao demônio e ao prazer. Assim, chegamos às bruxas.

A mulher: uma bruxa em potencial

Carlos Nogueira afirmou que a bruxaria é um fenômeno essencialmente


feminino (1991, p. 111). É indiscutível afirmar que o tema da bruxaria está
extremamente condicionado a tal gênero. Aliás, poderia se dizer que uma mulher é uma
bruxa em potencial. Como elas não teriam o dom do conhecimento, inerente ao homem,
seriam mais curiosas e mais propensas à influência do mal, por exatamente não serem
geridas pela razão, mas pela emoção e pelos sentidos.

O cenário e os atores que a teoria da bruxaria criou, segundo o autor (1991, p.


100), desenvolveram-se exatamente nesse pecado sexual visto pelos teólogos do
Cristianismo como a origem da queda do homem. Eles estavam, por isso, acompanhados
por um erotismo reprimido desenvolvido por um pensamento misógino, percebido não
só no contexto social e político, mas também teórico, como já elucidamos. Rose Muraro
(2017) nos elucida devidamente sobre essa associação do demônio e de seu poder
maligno com a figura feminina:

E ao Demônio é alocado o pecado por excelência, o pecado da carne. Coloca-


se no sexo o pecado supremo e, assim, o poder fica imune à crítica. Apenas
nos tempos modernos se tenta deslocar o pecado da sexualidade para o
poder. Isto é, até hoje não só o homem como as classes dominantes tiveram
seu status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram penalizadas
como causa máxima da degradação humana. (KRAMER; SPRENGER, 2017,
p.16)
Convenientemente, temos então a construção teórica de Anne Barstow (1995)
para reforçar a ideia de que sim, ter um corpo feminino se tornou um fator mais
suscetível ao considerar essa pessoa ou aquela como uma possível bruxa (ou, nesse
caso, a edição traduzida como feiticeira). Como já constatado, tivemos a demonstração
de homens acusados e condenados pelo crime de bruxaria, e sabemos que não foram
poucos, mas ter um corpo feminino, como bem lembra a historiadora americana, é ter
vivido (como nos dias de hoje) uma constante existência com conotações e violência
sexuais.

As mulheres eram suficientemente poderosas para serem temidas, escreveu


Barstow (1995, p. 117), e seus argumentos para tal afirmação vêm do tradicional ofício
da mulher como curandeira, ocupação essa que também se tornou uma das
características de uma bruxa. Elas existiam no mesmo período dos médicos, estes
últimos consultados muitas vezes pelas pessoas da cidade. As mulheres sábias, como
eram conhecidas nas aldeias e nos locais afastados da cidade, eram encarregadas de
oferecerem os cuidados médicos, responsáveis por um conhecimento transferido de
geração em geração. O trabalho das curandeiras partia de “um cabedal de
conhecimentos [...] constantemente ampliado pelos métodos empíricos da observação,
do julgamento e da avaliação. Seu trabalho consistia principalmente na prescrição de
tratamentos com ervas, na prática da obstetrícia e na realização de rituais de
adivinhação e curas” (BARSTOW, 1995, p. 138). Como afirmei anteriormente, a
concepção de curandeira pela literatura filosófica e teológica nos diz muito não só sobre
a importância delas nos costumes populares, mas também sobre uma tradição
antifeminista, baseada em um controle de regras e saberes restrito somente aos
homens.

Um dos crimes que mais vemos descrito nos tratados e nas anedotas sobre
bruxaria e nos documentos inquisitoriais, a partir das nossas fontes, foi o infanticídio.
Em sua maioria, vimos as mulheres como geradoras desse crime, acusações que
caminham na mesma época em que a mortalidade dos bebês é considerada alta, isto é,
no momento das pestes, que foram desde 1348 até 1430, último ano que marca o início
da construção da teoria da bruxaria. Segundo Georges Duby (2009), desde esse
momento e mais ainda a partir do século XV, será visto um infanticídio originado por
sufocação e por abandonos, esse último acarretando na criação de asilos. O historiador
francês nos traz uma interessante percepção sobre o sexo da maioria dos bebês mortos,
que era feminino. Menos desejáveis entre as famílias reais, nobres e prósperas, as
recém-nascidas seriam, como complementa Klapisch-Zuber, proporcionalmente mais
abandonadas do que os de sexo masculino. Sobre a questão de abandono das famílias
mais abastadas, o autor traz o fato de uma crônica da época: “na Basileia, no século XV,
as mulheres que não queriam ou não podiam criar os seus filhos recém-nascidos
colocavam-nos à porta da Câmara ou do hospital [...]” (PERROT; DUBY, 1998, p.389). Ao
contrário desse costume da cidade, o abandono dos filhos nas famílias mais pobres,
passa a ser a última escolha a ser feita. Visto que era algo doloroso para aquelas que
passaram por gravidezes e partos difíceis, Klapisch-Zuber clarifica com um exemplo de
Estrasburgo, a difícil realidade que é presente ainda nos dias de hoje das famílias
miseráveis:

A pobreza era demasiado grande nos quais pertenciam muitas destas


mulheres - e a «opinião pública» também demasiado compreensiva para com
estas -, coagidas pela sua extrema miséria a violar as leis e os bons costumes.
Sabemos que, em Estrasburgo, no final do século XV, se entregavam todos os
anos na catedral entre seis a vinte crianças enjeitadas «de condição
miserável, encontradas por pessoas que nada tinham para comer e por isso
não podiam criá-las com os seus próprios filhos», O pregador popular da
cidade, Geiler von Kaysersberg, que nos seus sermões se comovia com esta
miséria [...] partilhava de resto a mesma opinião que o direito regional
vigente, o Espelho dos Suábios; também aqui o direito à vida e ao bem-estar
dos pais estava acima do das crianças e as parteiras, comadres e curiosas
agiam de acordo com este princípio: se houvesse que optar entre a vida do
recém-nascido e a da mãe, era preferida a vida da mãe à da criança. (PERROT;
DUBY, 1998, p. 389)

Sabemos que esse contexto não era compreendido claramente como um sério
problema social por aqueles que viviam esse período. Pelo contrário, as causas das
mortes dos recém-nascidos estavam arraigadas ao pensamento pré-concebido
discriminatório sobre mulheres, principalmente, idosas e mendicantes. Acreditava-se
que essas mulheres, invejosas da saúde das outras mulheres, com os corpos mais
depreciados, na menopausa e com a incapacidade de gerar filhos, a partir do seu pacto
com o demônio, sequestrariam e matariam as crianças saudáveis das famílias
tradicionais e castas. Tal pensamento pode ser um reflexo da crise na fé cristã, o qual já
elucidamos. No entanto, e aqui retornamos ao que Diane Purkiss (1996) e Linda Hults
(2005) captaram sobre esses aspectos, percebe-se que muitas mulheres fizeram parte
desse sistema de acusações de crimes de bruxaria contra outras mulheres, cuja
motivação derivava de seus medos e aflições corporais e sociais, como a amamentação,
o parto, a alimentação e as questões domésticas.

O preconceito se escancara quando captamos um Cristianismo que desviava a


magia exercida pelos homens em direção a uma punição das mulheres e toda sua
“natureza transgressora”. Em concordância com o pensamento de Nogueira (1991, p.
124), é, pois, o triunfo da misoginia sobre os ofícios ditos tradicionais das mulheres, uma
repressão material e mental vistos desde aquela época até hoje, em meados do século
XXI.

Os magos, necromantes e exorcistas – casos a parte

Os textos, ensaios e anedotas existentes antes do século XV, produzidos a


partir de questões sobre a existência do demônio, da veracidade dos sacramentos e
sobre o acesso ao poder maléfico, não tinham a mulher como elemento essencial, como
veremos a partir de 1430 com a efetivação da Caça às Bruxas. Pelo contrário, certos
homens, que tinham acesso ao estudo (ao contrário das mulheres, que só conseguirão
através dos demônios), irão invocar intencionalmente demônios e outros espíritos
sobrenaturais devido aos conhecimentos em magia, alquimia e necromancia.
Inquisidores e clérigos consideraram esses necromantes e magos como comandantes
dos demônios, assim como grandes especialistas em técnicas elaboradas e misteriosas,
ao contrário do que se tornou a bruxa, uma serva.

Necessitamos retornar a primeira parte dessa dissertação para constatarmos


uma adversidade relacionada à questão de gênero. De fato, o contato com demônios
nem sempre foi identificado como algo maléfico. A única tarefa e proximidade
permitidas pela Igreja era a atividade de exorcistas, definidos por homens em ordens
sacerdotais que tinham como obrigação expulsar os demônios que atordoavam e
causavam doenças nos fiéis que estariam possuídos. Segundo o historiador, os
exorcistas, ativos em toda a Idade Média, trouxeram referências bíblicas para justificar
suas atividades que até hoje existem. Mesmo assim, até o século atual, ainda é vista
como uma prática controversa dentro da Igreja Católica.

Novamente, ao contrário da figura das bruxas, não só os necromantes, mas


também os exorcistas não tinham contato direto e físico com demônios, mas, em
concordância com Stephens, ao que tudo indica, contatavam intimamente os demônios
através de pessoas. Em desvantagem, o interessado em investigar e comprovar a
existência da bruxaria se baseava somente nas declarações e confissões de outros, não
partindo de experiência própria.

O historiador analisa também que, enquanto os teóricos da bruxaria reuniam


suas informações, paralelamente, eles buscaram realizar "trabalho de campo", de pouco
sucesso. Por isso, eles se valeram de informações sobre a possessão demoníaca, o
exorcismo e a necromancia e, assim, organizar ideias preexistentes como a corporeidade
do demônio e a existência real dos seus poderes. Dessa forma, lembramos que o apogeu
dessa teoria sistemática foi a interação física e sexual com os demônios, algo que nem
os exorcistas, nem os necromantes poderiam realizar.

E então, temos aqui uma questão de gênero que precisa ser melhor discutida.
No período em que essas funções e definições foram formadas, tínhamos o homem com
acesso aos escritos da tradição Clássica e Hermética. Já a mulher, que em sua maioria
era analfabeta, quando tinha o poder da leitura, como no caso das damas, era restrito à
sua educação e cortesia.

Jean Vineti, o inquisidor de Carcassonna, uma comuna francesa da região da


Occitânia, afirmou sem rodeios em seu Tractatus contra demonum invocatores, cerca
de 1470, que uma pessoa possuída é uma prova essencial da realidade demoníaca. A
dúvida é como se identifica alguém verdadeiramente possuído. Eis que temos situações
especiais com mulheres para servir como possível resposta:

Algumas mulheres sendo atormentadas por demônios "foram interrogadas


sobre os segredos da Sagrada Escritura por um grupo de homens letrados e
educados, e responderam como se tivessem sido mergulhados em literatura
sagrada por toda a vida”. Até agora, tudo bem: seguindo o exemplo de Aquino
como líder, Vineti raciocina que, enquanto as mulheres raramente têm
treinamento teológico, os demônios têm experiência em primeira mão das
realidades que a teologia discute. Assim, os demônios devem ter sugerido ou
falado essas respostas maravilhosas. (STEPHENS, 2002, p. 328)42

Os necromantes, em sua maioria, tinham conhecimento especializado em


filosofia, teologia e poder de escrita. Como o historiador bem lembra, no início do século
XVI, tivemos a criação da história do Doutor Fausto, personagem de uma lenda alemã
baseada na vida do médico e mago alemão, Dr. Johannes Georg Faust (1480 - 1540), que
compactuou com o demônio. A história é criada já no período em que a figura da bruxa
fora formada, mas, anterior a padronização da mesma como serva do demônio; Doutor
Fausto, então, lembra muito o ideal da atividade oculta reservada para os homens
eruditos.

O fato é que os necromantes, ao contrário das bruxas, não foram


estereotipados como parceiros sexuais dos demônios, nos dando um sentido de que a
questão de gênero aqui é determinante. A observação de que a maioria das mulheres
não liam fez com que a sexualidade feminina fosse um caminho conveniente, além da
sua natureza maléfica, para trazê-las em contato com os demônios. Passivas com os
homens criados por Deus, pensavam os teóricos, por que elas não acabariam sendo
também dominadas pelos demônios?

Podemos salientar que os necromantes teriam auxiliado na ascensão dos


julgamentos europeus nos séculos XV e XVI. Eles têm, em parte, responsabilidade na
criação dessa figura adulterada da mulher. A tolerância dos homens da Igreja com os
necromantes e a proteção do trabalho dos exorcistas fizeram com que fosse viabilizada
a base da teoria sobre a corporeidade do demônio e, ainda mais, a expectativa do
contato físico com os demônios. O ponto culminante para efetivá-la é a inserção da
mulher, com seu desejo sexual insaciável e a característica de ser passiva por natureza
(lembremos de Eva). A mulher, então, foi o bode-expiatório único e completo para a
apropriação do mal do homem e dos demônios.

42
“Some women being tormented by demons ‘were interrogated about the secrets of Holy Scripture by
a group of educated [litteratos] men, and they responded as if they had been steeped in sacred literature
for their entire lives’. So far, so good: following Aquinas's lead, Vineti reasons that, whereas women rarely
have theological training, devils have firsthand experience of the realities that theology discusses. Thus,
the devils must have suggested or spoken these wonderful answers”.
Os artistas e a misoginia

Na primeira parte da nossa análise historiográfica, demos enfoque à crise na fé


cristã como um dos motivos para a construção de uma teoria da bruxaria.
Acompanhando essa ideia de crença, Carlos Nogueira (1991) observou que o irracional,
ligado às práticas da vida, das crenças e das ilusões, se torna um suporte da mentalidade
humana quando tornado real e palpável. Por mais que irracional por definição não
pertença ao domínio da razão e seja considerado ilógico, ele passa a ser verdadeiro e a
ter sentido quando entra no horizonte da crença e, por isso, passa a se concretizar.
Como bem explanou Nogueira: “Onde as barreiras entre o real e o fantástico são
praticamente inexistentes, não existem absurdos, as possibilidades de imaginação são
[então] inesgotáveis” (1991, p. 165). Dessa maneira, quando especificados os elementos
que compõem o mito da bruxaria e a figura pictórica da bruxa, devemos lembrar-nos
dessa rápida divagação.

Aproximando-se, pois, de uma abordagem geográfica, resgatamos o que o


historiador Erik Midelfort (1981) afirmou: o “coração da chacina”, isto é, o principal local
das mortes de mulheres por crimes de bruxaria, foi na região central do Sacro Império
Romano, atual Alemanha e as províncias ocidentais da Polônia. Os ataques mais
numerosos foram nos territórios católicos, no período após o hiato da Caça às Bruxas, a
partir de 1560. Retomamos essa constatação territorial para nos aproximarmos da
concepção do artista para a elaboração do que virá a ser chamado de imagem de uma
bruxa, criada a partir de dois artistas pertencentes a essa mesma região. Antes de nos
aproximarmos de cada um deles, vindos exatamente desse período europeu da Pré-
Modernidade, devemos reforçar que a realidade na qual eles estavam inseridos se
baseava, segundo Linda Hults (2005, p. 26), num monitoramento desproporcional sobre
as mulheres e sua sexualidade vindo das autoridades religiosas e seculares. Como os
artistas eram os produtores de imagens sobre bruxas e conviviam entre esse público
controlador, consequentemente, segundo a historiadora, as suas obras, mesmo que de
maneira implícita e discreta, fomentaram a misoginia, principalmente, por estarem
envolvidos nesse debate sobre a crise na crença cristã. Mais do que isso, esses artistas
precursores da imagem da bruxa, segundo Hults, serviram-se desse mito, que utiliza a
figura feminina associada a uma natureza perigosa e descomedida, a fim de
desenvolverem suas faculdades da imaginação e trazer para seus trabalhos o máximo
de suas habilidades. As produções dessas imagens auxiliaram o artista a melhorar seu
status, para ser mais que um imitador da natureza, como Leon Battista Alberti e seu
Da pintura (1435) instituiu, mas se tornar um autor e criador da sua arte, como Leonardo
da Vinci o fez, associando a imaginação e o intelecto do artista:

Ela [a bruxa] se tornou um índice do intelecto da capacidade inventiva, e


assim, o status elevado do artista masculino no início do período moderno,
embora sua imagem fosse transmitida dentro de uma tradição iconográfica.
Ela permaneceu na intersecção de dois discursos - ambos dependentes de
noções de superioridade intelectual e moral masculina. Ela mostrou artistas
masculinos inventivos no contexto competitivo da relação da arte com a
poesia e o status de ambos como artes liberais. (HULTS, 2005, p. 16)43

Por esse motivo, acompanhamos Linda Hults quando afirma que “as imagens
da bruxaria participam do relacionamento duplamente antifeminista e recíproco da
criatividade artística masculina e o mal feminino” (HULTS, 2005, p. 26) 44. Elas não
servem como um retrato correspondente do movimento da Caça às Bruxas e muito
menos uma ilustração dos tratados escritos da época. Nas obras do início do século XVI,
as bruxas são as mulheres no nível do simbólico, afirma a historiadora da arte (2005, p.
107), elaboradas pelos artistas que viviam uma realidade artística concorrida, com
diversas inquietações, inúmeras fantasias recorrentes e ideais, muitas vezes,
indecifráveis.

É nesse contexto que podemos reforçar a questão de gênero como um dos


motivos da existência de uma teoria da bruxaria e, principalmente, das imagens sobre
bruxaria. As imagens analisadas na Parte dois e na Parte três dessa dissertação são

43
“She became an index of the inventive capacity intellect, and thus the heightened status of the male
artist in the early modern period, even though her image was handed down within an iconographic
tradition. She stood at the intersection of two discourses-both dependent on notions of male intellectual
and moral superiority. She displayed male artists’ inventiveness in the competitive context of art's
relationship to poetry and the status of both as liberal arts”.
44
“Witchcraft images participate in the doubly antifeminist, reciprocal relationship of male artistic
creativity and feminine evil”.
completamente temporais e restritas a um determinado grupo. Como Hults analisa,
essas bruxas trabalhadas em imagens serviram como um termômetro das expectativas
do seu público, como as diferenças entre as pessoas urbanas e rurais, as aspirações
sociais exigidas e os discursos normativos e constitutivos desses espectadores e
compradores. Além disso, temos um contexto artístico demasiadamente sexuado, com
a transgressão feminina, seus olhares, formas de portar o corpo e seus atributos físicos
servindo como um “prato cheio” temático para um agradável relacionamento entre o
artista e o visualizador da sua obra.

E, novamente, não podemos esquecer de mencionar que, assim como os


autores das anedotas, dos ensaios e dos tratados sobre bruxaria não necessariamente
acreditavam no que escreviam, os artistas, na mesma lógica, não precisavam acreditar
no que representavam. O fato é que todos eles se caracterizavam como homens ativos
nas suas construções, sejam teóricas ou visuais, os quais se utilizaram dos meios
disponíveis para moralmente e intelectualmente depreciar a figura feminina. Por isso,
não podemos defender que há um empoderamento da mulher na “persona da bruxa”,
pelo menos no início do período moderno, como bem define Linda Hults (2005, p. 25).

Verdadeiramente, podemos dizer que o que vemos sobre a imagem da bruxa


não é o que parece. Talvez essa seja a única afirmação que reproduzimos dos teóricos,
se é que podemos fazer isso. Mas, ao contrário daqueles que acreditavam que, por baixo
da beleza dos seus corpos, existiriam somente excrementos e maus fluidos, aqui sob um
ponto de vista psicológico, o corpo que vemos da bruxa é um corpo carregado de
preceitos totalmente masculinos, autoritários e agressivos. Independente das
pretensões, a capacidade de criação do artista resultou numa imagem feminina
corrupta.

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