Noções de Bioética

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

NOÇÕES DE BIOÉTICA

Tânia Adas Saliba Rovida


Wanilda Maria Meira Costa Borghi

O vocábulo “bioética” foi empregado pela primeira vez em 1927, por um pastor
protestante, filósofo e educador chamado Fritz Jahr (1895-1953). Ele publicou
um artigo intitulado “Bioética: uma análise da relação de ética para humanos,
animais e plantas” – a ética, portanto, aplicada a todos os seres vivos.

Foi só em 1970 que Potter (1911-2001), oncologista e biólogo norte-americano,


problematizou e difundiu esse termo. Ele considerava a bioética “uma ponte
para o futuro” e comparava-a com “[...] uma empresa que utiliza as ciências
biomédicas para melhorar a qualidade de vida humana [...]”.

Potter, como oncologista que era, chegou à conclusão de que o câncer não era
apenas uma enfermidade física, mas a manifestação das ameaças do
ambiente. Sentiu, então, necessidade de criar um novo campo de atuação ética
e de pesquisa, que tivesse conteúdo ecológico o bastante para se preocupar
com a sobrevivência da espécie humana. E usou o termo “bioética” para essa
nova “ciência da sobrevivência”, que mais tarde chamou de “bioética global”.

Ainda em 1970, o termo “bioética” foi usado, em língua inglesa, por Hellegers,
em estudos sobre reprodução humana, mas foi com Reich, organizador da
Encyclopedia of Bioethics, que o termo passou a ser usado definitivamente.
Para ele, a “Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo
visão moral, decisões, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à
saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário
interdisciplinar [...]”.

Kottow define a bioética como “[...] o conjunto de conceitos, argumentos e


normas que valorizam e justificam eticamente os atos humanos que podem ter
efeitos irreversíveis sobre os fenômenos vitais [...]”.

Percebe-se, por essas definições, que o campo de atuação da bioética, longe


de ser engessado, é bastante abrangente e engloba questões éticas relativas
às ciências da vida, da saúde e do meio ambiente.

BIOÉTICA E MORAL

Moral é aquilo que se submete a um valor. E valor é a característica real e


objetiva, positiva ou negativa (desvalor), presente nas coisas, nas pessoas, nas
ações, nas instituições e nos sistemas. O valor é uma crença duradoura.

Valor extrínseco, ou secundário, é aquele que se torna legítimo enquanto


busca algum objetivo (p. ex., a concentração, a pontualidade, a obediência). O
valor intrínseco, ou primário, é legítimo em si mesmo (p. ex., a beleza, a paz, a
justiça, o prazer, etc.).

A moral depende dos valores de cada grupo social, e, por isso, tanto pode ser
diferente no mesmo período em sociedades distintas, como em períodos
distintos na mesma sociedade. A moral muda no tempo e no espaço e orienta a
conduta dos indivíduos de uma sociedade específica. Existe, então, a moral
burguesa, a moral cristã, etc. Por conseguinte, para que se possa conhecer a
diversidade de valores presentes na sociedade, a moralidade humana deve ser
enfocada no contexto histórico e social.

O mais importante ingrediente na vida moral da pessoa é o desenvolvimento do


caráter, pois este é quem proporciona a motivação íntima e a força para fazer o
que é certo e bom. Isso está previsto nas grandes teorias éticas.

O homem inteligente pratica o bem e procura agir segundo a virtude. A ética


clássica cuida do bem (agathon), da virtude (arete, virtu) e do dever (kathêkon,
officium). Portanto, um ato eticamente recomendável é aquele ajustado a uma
regra (ética-lei) e que traz boa consequência (ética-ação). A ética é o estudo do
bom e do mau, e não sinônimo do bom. É um código interiorizado, pessoal, de
como agir.

A ética faz a reflexão e/ou o juízo crítico sobre os valores que geralmente estão
em conflito, para poder optar de forma adequada e responsável. Essa opção
exige, como condição fundamental, a liberdade. Para que a liberdade não
perca seu verdadeiro sentido, é indispensável que cada ser, antes de optar,
esteja despido de qualquer tipo de preconceito, coação, coerção, falsidade ou
sectarismo, para que o exercício da ética seja pleno e faça vir à tona a razão, a
emoção, o sentimento, o patrimônio genético e os valores morais. É por isso
que todo exercício ético provoca uma evolução da cidadania.

A discussão sobre ética e moral não é recente. Vem desde os primórdios,


quando a evolução do saber acontecia a passos lentos, ao contrário de agora,
época em que acontecem tantas mudanças em um mesmo momento. No
tempo de Galileu, por exemplo, demorava para se obter um novo
conhecimento. A partir do século XX, com o avanço técnico-científico,
sobretudo na área da saúde, as reflexões éticas retornaram, dessa vez de
forma prática, adequando sua roupagem às exigências socioeconômicas de
cada país e propondo a integração do ser humano à natureza. Eis a bioética.

A bioética, por ser uma ética prática, quer acabar de vez com os conflitos. Para
isso, tenta modificar a maneira de abordar os problemas e acaba por acarretar
uma transformação da própria vida.
BIOÉTICA: MULTI, INTER E TRANSDISCIPLINAR

Os termos multi, inter e transdisciplinar são geralmente utilizados como


sinônimos, gerando confusão e ambiguidade.

O ensino é multidisciplinar quando as disciplinas envolvidas não sofrem


modificações ou enriquecimento; interdisciplinar quando a interação de vários
saberes resulta em enriquecimento mútuo; e transdisciplinar quando não há
limites rígidos para as interações ou reciprocidades das disciplinas.

A interdisciplinaridade requer:

• interação de pessoas;
• troca de saberes e opiniões;
• uma linguagem comum;
• objetivos comuns;
• reconhecimento da necessidade de considerar as diferenças existentes;
• domínio dos conteúdos específicos de cada um dos participantes; e
• elaboração de uma síntese complementar.

A bioética é classificada como multi, inter e transdisciplinar, embora alguns


autores considerem-na, apenas, interdisciplinar. A reflexão ética é pluralista e
multidisciplinar, por oscilar entre o aspecto técnico-científico e o aspecto ético,
humanitário e moral. É, também, transdisciplinar, por fundir vários
conhecimentos que acabam gerando novas abordagens e soluções distintas
daquelas da base de sua formação.

NASCIMENTO DA BIOÉTICA

Segundo Pessine e Barchifontaine, o Código de Nuremberg é considerado a


certidão de nascimento da bioética.

O Código de Nuremberg surgiu na Alemanha, em 1947, logo após o término da


Segunda Guerra Mundial e das atrocidades dos nazistas contra os seres
humanos (1945). Dentre os seus 10 itens, o Código de Nuremberg deu
relevância à relação risco/benefício, ao consentimento informado e ao
ajustamento de cada desenho à sua pesquisa.

O Código deu, ainda, liberdade ao sujeito da pesquisa com seres humanos de,
a qualquer instante, poder desistir do experimento. Assim, estabeleceu a
condição de liberdade e soberania do ser humano, com rejeição do ato de
tortura. Esse código foi tão importante que, no ano seguinte (1948), a
Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
O Código de Nuremberg foi revisto e transformado na Declaração de
Helsinque, que foi depois atualizada por assembleias médicas mundiais no
Japão (1975), em Veneza (1983), em Hong Kong (1989) e em Somerset West,
na África do Sul (1996). O Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque
inspiraram o Belmont Report, ou Relatório Belmont, que tem esse nome por ter
surgido no Centro de Convenções Belmont, em Elkridge, estado de Maryland,
Estados Unidos.

O Relatório Belmont inspirou Beauchamp e Childress a publicar, em 1979, os


“Princípios da ética biomédica”, a principal fundamentação teórica do novo
campo da ética biomédica. Essa obra inaugurou a bioética principialista, ou
principialismo, que se baseia nos quatro princípios norteadores das decisões:
autonomia, beneficência, não maleficência e justiça (ou equidade). Esses
princípios são considerados prima facie, isto é, não absolutos, o que significa
que, quando comparados entre si, podem ser priorizados de acordo com as
circunstâncias.

O Relatório Belmont mostra que, no início, a reflexão ética norte-americana se


preocupava, apenas, com o controle social da pesquisa com seres humanos.
Foram Beauchamp e Childress que ampliaram o foco da preocupação ética
para a prática clínica e assistencial, sendo bem aceita nesse campo, daí o
sucesso desse modelo bioético.

BIOÉTICA NORTE‐AMERICANA E BIOÉTICA EUROPEIA

A bioética principialista, ou anglo-saxônica, foi influenciada por John Dewey


(1859-1952), considerado o pai do pragmatismo. Assim, essa linguagem
bioética aprendeu a cuidar das ações humanas (procedimentos) de forma
racional, positivista, individualista, buscando soluções imediatas e decisivas,
baseadas em um conjunto de regras (moral) que, quando respeitadas, levam a
uma boa ação.

No entanto, esse modelo anglo-americano, normativo, permite o uso da


liberdade por vontade do próprio indivíduo. É o liberalismo anglo‐saxão.

O modelo bioético europeu, ao contrário, alicerçado na antropologia, é


fenomenológico, hermenêutico, personalista e muito humanista, pois nele a
dignidade universal da pessoa ocupa o centro das ações e decisões éticas. Por
isso, não adota regras de ação, mas critérios de valor, classificando-os como
bons ou maus. Sempre se preocupou com o caráter e as virtudes, ou seja,
sempre buscou o fundamento (metafísico) do agir humano. Entretanto, para
que se possam resolver os problemas de procedimento (ação), é necessário
resolver, também, sua fundamentação. Além disso, as questões éticas
envolvem ações, hábitos (virtudes) e atitudes (caráter). Por isso, pode-se dizer
que esses dois modelos se completam.

Depois da ética dos princípios, surgiram outras abordagens, dentre as quais se


destacam o modelo da casuística; o modelo das virtudes; o modelo do cuidado;
o modelo do direito natural; o libertário, que foca na autonomia; o contratualista
e o personalista, dentre outros modelos.

Os modelos bioéticos não se excluem. Pelo contrário, complementam-se na


busca de melhor compreender os mecanismos ético-morais que regem o ser
humano. Isso torna a bioética poliglota, e sua fluência depende de muita
humildade e grandeza para que o diálogo permaneça pacífico.

A bioética latino‐americana e caribenha prioriza a ética social, preocupada com


o bem comum, com a justiça e a equidade, mas também busca a virtude e a
excelência, pois julga os atos como bons ou ruins e não como certos ou
errados. As bioéticas norte-americana e europeia têm bastante influência no
discurso bioético latino-americano, tanto que são os princípios bioéticos as
ferramentas que transformam a pessoa humana no alicerce de maior valor
dentro do contexto social brasileiro, em que a exclusão social é forte vertente.
Contudo, cabe ao Estado providenciar o suporte necessário para que a bioética
possa atuar em conformidade com a plural sociedade brasileira.

CRÍTICA AO PRINCIPIALISMO

Inicialmente, a teoria dos princípios foi bem aceita, por não se opor à teoria das
virtudes de Aristóteles: “[...] todo ser humano quer prosperar, e para isso só há
o caminho da virtude [...]”.

A teoria dos princípios se difundiu tanto que os Estados Unidos e a Inglaterra


começaram a achá-la universal. Assim, de 1970 a 1980, a teoria dos princípios
influenciou a ética médica tradicional, e bioeticistas de áreas não médicas,
como filósofos e moralista passaram a uma reflexão neutra sobre problemas
médicos. Principiantes na área da ética passaram a encarar a bioética de modo
simplista e superficial, como um campo limitado à aplicação dos princípios,
que, por sua vez, seriam capazes de resolver todas as questões bioéticas.

A teoria dos princípios veio perdendo força diante de situações bioéticas mais
complexas, inclusive no campo da ética biomédica. A partir dos anos 1990,
passou a ser criticada pelo fato de os princípios serem muito abstratos e
brigarem entre si por hierarquia, além de serem insuficientes para acompanhar
as atualizações éticas contemporâneas quanto à maneira de apreciar o que é
bom ou ruim.
Teve início, então, o período antiprincipialista, no qual a ética da qualidade
moral não se preocupa tanto com o bom, mas com cultivar virtudes como a
alegria, a fidelidade, o cuidado solícito e as decisões morais específicas. É a
ética da casuística, em que a tomada de posição é feita a partir de casos
concretos, para serem usados como exemplo de consenso. O período
antiprincipialista não conflita com os princípios, apenas não os absolutiza.

DIÁLOGO BIOÉTICO

O neologismo “bioética” surgiu com a tomada de consciência dos riscos que a


biologia molecular poderia oferecer à humanidade, se usada de forma indevida.

Apesar de não ter surgido como ciência, por não possuir conceitos ou métodos
próprios, a bioética ou ética biomédica chegou para mostrar que a reflexão
ética é importante, não apenas nos campos da saúde, das ciências da vida e
nas ciências do meio ambiente, mas também na interface desses campos. Isso
quer dizer que a bioética avalia de que maneira cada opção tomada em um
desses três campos irá interagir com os outros dois.

Além disso, é importante destacar que, se a bioética não fosse multi e


transdisciplinar, ela não existiria, porque envolve todas as disciplinas
técnico-científicas, exatas, humanas e/ou sociais relacionadas ao tema
que está sendo analisado. É, portanto, um diálogo entre diferentes
disciplinas, é a escolha fundamentada em diferentes teorias éticas,
baseando-se no exame crítico das dimensões morais. A bioética é, pois, a
ciência das visões morais diferentes.

Por ser um processo plural, o diálogo bioético não visa ao monopólio do saber
solitário, mas ao consenso, que é a estrutura da bioética. Este é conseguido
graças à credibilidade do tribunal multidisciplinar que sustenta as discussões
bioéticas, fundamentadas nos seus valores trinos.

O objetivo central da ética é o conhecimento, e não a prática. Por


conseguinte, no diálogo bioético, quem entra médico não sai filósofo, nem
vice-versa; para ser ético, ninguém precisa trocar de papel, e sim assumir o
próprio papel com rigor e competência. O que conta é a isenção e a precisão.
O equilíbrio ético está em função da qualidade em que mais importante do que
a solução do conflito é o exercício da tolerância entre diferentes moralidades,
embora o diálogo bioético atinja uma variedade de contextos, e não apenas as
questões morais.

A bioética é um movimento que estuda a ética, desde as situações da vida


cotidiana, à bioética social, ambiental e outras. Trata-se de questões
persistentes, como fome, abandono, racismo, exclusão social, e aquelas
decorrentes do progresso técnico-científico, dos conceitos globais que
envolvem direitos humanos, cidadania, liberdade, universalidade,
acessibilidade e equidade, qualidade de vida ou de morte, saúde, humanização
e livre consentimento.

Você também pode gostar