A Valsa para Luiz Otávio PDF
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Título da tese: O imaginár io de ser esta e a inter pr etação das 12 Valsas de Esquina
par a piano de Fr ancisco Mignone
3 A VALSA
A palavra valsa vem do verbo alemão walzen, por sua vez derivado do latim
volvere que significa girar ou rodar . Alguns autores franceses, reivindicando a posse da
origem da valsa, apontam a antiga dança francesa volte do século XVI como a
predecessora da valsa1. No entanto, não existem evidências que façam a ponte entre essa
antiga dança francesa e a manifestação do termo walzen, que por volta de 1750 é
encontrado em comédia musical em Viena, na letra de uma canção sobre danças em
voga naquela época (LAMB, 1980).
O musicólogo Paul Nettl (1969) entende a história da valsa pelo viés das
próprias vivências e pesquisas no fim do século XIX e início do XX, dentro do antigo
império austro-húngaro, onde nasceu em 1889. Ele afirma que foi na corte austríaca,
perto de 1660, que a primeira valsa é tocada com forma musical artística definida. Mas
antes disso muitos austríacos e alemães do sul já tinham dançado danças precursoras
(NETTL, 1969, p. 252). Walzer integra um conjunto de termos usados para descrever
essas danças precursoras da Alemanha do Sul, Bavária, Áustria e Boêmia. Semelhantes
uma a outra e na maioria das vezes em compasso ternário, elas eram dançadas por casais
abraçados. O nome genérico era Deutscher (dança alemã), entretanto tinha nomes
particulares que indicaram a natureza da dança: Dreher (do verbo drehen: tornar);
Weller (algo que ondula); Spinner (algo que gira); ou Schleifer (moleiro), ou então a
origem geográfica: Steirer (da região Estíria na Áustria); ou Ländler (da região Landl
ob der Enns, outro nome para Alta Áustria) (LAMB, 1980, p. 200). A natureza
coreográfica da dança e a força cinética do verbo walzen é bem transmitida em um
romance de Goethe de 1774. Ele descreve um homem e uma mulher que “logo
começaram a girar [walzen] e circularam um em volta do outro como uns globos”2
(LAMB, 1980, p. 200, tradução minha). Nettl afirma que no início do século XIX os
nomes Deutscher Ländler (Ländler alemão) e Walzer eram usados de forma
indiscriminada, entretanto o Ländler era tocado em andamento mais lento (NETTL,
1969).
A valsa começa a ganhar vulto quando saída das raízes primordiais no campo,
1
Câmara Cascudo escreve: “Os franceses dizem que a valsa veio da Volta, dança popular na Provença
desde o séc. XII e que chegou, sob Luís XII, a Paris, onde foi muito dançada sob a dinastia dos Valois”
(CASCUDO, 1972, p. 881).
2
Lamb cita o livro Die Leiden des jungen Werther de Goethe: “[they] soon took to waltzing and circled
round each other like the spheres”.
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[...] tinha sido dançada por muito tempo como ‘Ländler’, ‘Alemão’, e
‘Langaus’. (O ‘Langaus’ era uma distorção de uma antiga dança popular, na
qual os pares atravessavam um espaço grande, dançando em compasso de
dois tempos, mas com o mínimo de viradas). As danças antigas tinham sido
dançadas em chão batido, com sapatos pregados batendo no chão: aqui, na
civilização, a dança assumiu um passo deslizante e corrediço3 (NETTL, 1969,
p. 254, tradução minha).
3
“[…] had been danced for a long time as ‘Laendler’, ‘German’, and ‘Langaus’. (The ‘Langaus’ was a
distortion of an old folk dance in which the couples danced to a two-beat measure through a large space,
but with the smallest possible number of turns.) The old dance forms had been danced on unpolished
floor with hob-nailed shoes beating the ground: here, in society, the dance took up the gliding, sliding
step”.
1y novks em Musica
4
“Many waltz airs can be traced back to simple yodeling melodies. This is surely the case in that ‘waltz
of all waltzes’ ‘The Blue Danube’. Conversely many waltzes written by Austrians have in their turn
shaped the character of Austrian folksongs. This intimate connection of the Alpine Yodler with the
Viennese Waltz shows us clearly how the virile, peasant cultural character shapes musical history, and
how the primitive erotic strength so clearly seen in the Alpine melodies influences the new forms of
dance music. Even Bach did not disdain peasant dance music. In the overture to his ‘Bauern-kantate’
(Peasant Cantata) he has a true rustic waltz, such as was danced customarily in the Province of Lausitz,
where there was a strong Slavic peasant element”.
5
“This kind of accompaniment was used as early as in the 17th century […]”.
6
“[…] an example of highly cultivated dance form used for practical purposes”.
7
“What force, grace and tenderness is expressed in its rhythm and melodies! Indeed, Weber, one of the
great talents in the history of dance music, expressed in it all his exuberant joy of living and the dynamics
force of his emotions”.
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8
“[…] are in truth nothing but suites conceived in the modern spirit. The mood of any one dance passes
over smoothly and naturally in to that of the next, and this transition always obeys psychological laws”.
1y novks em Musica
10
“[…] you can't find much seriousness in Vienna. The music of Lanner and Strauss drew out everything
else”.
11
“[…] the incarnation of Vienna's popular spirit”.
12
“The introductions, at first only a few bars, themselves gradually lengthened and became of a
descriptive nature and often in a contrasting tempo and metre”.
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13
“[…] settled down at around 70 bars per minute”.
13
“[…] settled down at around 70 bars per minute”.
14
“[…] on delicacy and melodic appeal” [...] “rhythmic variety”.
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á
a valsa alcançou o seu pico de perfeição quanto combinação de forma de
dança e composição musical, e quanto símbolo de uma época jovial e
elegante. Nenhum outro compositor de valsa conseguiu de maneira
consistente igualar a sua base melódica, a fluência musical desde o princípio
da introdução até a coda, ou o afiado contraste nos contornos dos temas15
(LAMB, 1980, p. 204, tradução minha).
Strauss filho fundou a sua própria orquestra bem jovem e fez com que a valsa
vienense, a sua herança da dinastia Strauss, prosperasse, inclusive dando à coda a
função de clímax. Mozart já usara na coda material temático das danças precedentes,
prática que Lanner e Strauss pai seguiram. No entanto a ideia realmente brilhou na
concepção e realização artística de Strauss filho. O seu estilo se assemelhava mais ao
estilo de Lanner do que ao do seu pai por causa da sua abordagem mais melódica do que
rítmica. “O ritmo se tornou implícito mais do que explícito, as frases musicais se
estenderam, os temas ficaram menos simétricos e a orquestração mais convencional do
que a orquestração um tanto impetuosa das valsas do mais velho Johann Strauss16”
(LAMB, 1980, p. 204, tradução minha).
Por sua vez, Nettl escreve sobre o encanto das valsas de Strauss filho: “Na coda,
todas as valsas da série, cada uma em seu tom, eram passadas em revista, reaparecendo
de forma velada, como reminiscência de um sonho17” (NETTL, ibid., p. 274, tradução
minha).
Strauss expandiu seu império da valsa para as Américas em 1872 quando foi
convidado à Boston para reger concerto comemorativo do centenário da independência
de Massachussets em um megaevento, no qual 20 mil pessoas cantaram o Danúbio
Azul, assistidos por outros 100 mil. Um gran finale para uma trajetória iniciada por um
rabequista no rio Danúbio.
A trajetória da valsa vienense vista acima é um exemplo nítido do fenômeno de
circularidade cultural, i.e., entre cultura popular e cultura erudita. Barbeitas, versando
sobre esse conceito, cita Burke (1989): “A nobreza adotava regularmente animadas
15
“[…] the waltz achieved its peak of perfection as a combination of dance form and musical
composition, and as the symbol of a gay and elegant age. No other waltz composer could consistently
match their fund of melody, the flow of the music from introduction through to coda, or the sharply
contrasted shapes of their themes”.
16
“The rhythm became implicit rather than explicit, the musical phrases were lengthened, the themes
became less symmetrical, and the scoring made more conventional use of instrumental colouring than in
the rather brashly scored waltzes of his father”.
17
“In the coda, each waltz of the series, each in its own key, was passed in review, re-appearing in veiled
form, like reminiscences of a dream”.
1y novks em Musica
Mas a música popular não desperta, como a música erudita, esse interesse
estético puro, por outro lado, a música erudita jamais expressaria como a
música popular, os caracteres afetivos e emocionais de uma comunidade
nacional. E eis porque, sendo embora menos artística que a música erudita, a
música popular, pelo fato mesmo de ser mais ‘representativa’ de uma
coletividade possui um maior e mais legitimo conteúdo humano.
Individualista por natureza, a música erudita tem sempre um autor que a
torna representativa, mais de um indivíduo do que de um grupo social. Já a
musica popular, coletivista por definição e anônima pelo seu destino de
pertencer a todos, pois que nela colaboram, incessantemente, milhares e
milhões de indivíduos - por isso mesmo ela se torna a síntese inconsciente da
sensibilidade e do sentimento musical de um povo. A música popular será,
assim, a fonte necessária onde a música erudita terá que ir buscar a sua
inspiração (ARAÚJO, 1994, p. 48-9).
18
Foi Manuel Bandeira que chamou Mignone de ‘Rei da Valsa’ (HORTA, 1985, p. 395). Barbeitas
escreve, citando Jota Efegê (1979), que Mário Penaforte (1876-1928), que compôs inúmeras valsas de
influência francesa, inclusive com títulos em francês, também foi chamado de ‘Rei da Valsa’ (apud.
BARBEITAS, 1995, p. 79).
1y novks em Musica
valsa foi a ópera, como no caso de óperas dos compositores Gounod, Tchaikovsky,
Offenbach e Wagner. Dando continuidade, no final do século XIX, à sua existência no
gênero da ópera, a valsa marca presença em óperas de Massenet e Leoncavallo (LAMB,
1980). O primeiro tem uma ligação direta com o presente objeto de estudo, porque fora
professor de Ferroni e este, por sua vez, foi professor do Francisco Mignone em Milão,
como vimos em 2.2. O segundo, Leoncavallo, era ídolo no meio cultural italianizante na
juventude de Mignone em São Paulo. Alferio, pai de Mignone, venerava também outro
gigante da ópera italiana: Puccini. Este utilizou a valsa com grande efeito na ópera La
bohème (1896).
A intenção programática de Berlioz na obra orquestral Symphonie fantastique
(1830), sempre segundo Lamb, foi quase tão importante quanto a versão de Weber em
Aufforderung zum Tanz. Chopin, em uma época próxima, compunha suas valsas para
piano em estilos diferentes, variando desde o virtuoso brilhantismo à atmosfera de
melancolia, já demonstrando maior liberdade rítmica, que, note-se, diferenciava a valsa-
de-concerto da valsa-dança. Na contracapa do disco Mignone19, o compositor das 12
Valsas de Esquina escreve sobre compositores que abordaram o gênero da valsa,
assinalando “que as quatro baladas para piano de Chopin são outras tantas valsas que se
juntam à Berceuse e à Barcarola”, e continua, indicando que o Carnaval de Schumann
para piano, “contém muitos números valsísticos” (apud BARBEITAS, 1995, p. 79).
Brahms, que, fora um amigo íntimo de Strauss filho, também não deixou de pôr o seu
marco no gênero da valsa e compôs dois grupos de Liebeslieder Walzer (1869 e 1874) e
Liszt, do mesmo modo foi influenciado pela mania da valsa, compondo, por exemplo,
as Valsas Mephisto. Entre os compositores russos a valsa também fez história. Além de
Tchaikovsky, que não só se serviu da valsa em balés e óperas, como também em obras
orquestrais como na 5ª Sinfonia (1888), Glinka compôs a Valse-fantaisie (1839-56) e
Glazunov escreveu valsas também. Saint-Saëns homenageou a valsa com a obra Bolo
de casamento (1886), um ‘valsa-capricho’ para piano e cordas. O finlandês Jean
Sibelius compôs a Valse triste, uma das seis composições criadas para uma peça de
teatro chamada Kuolema (1903) (LAMB, 1980).
No final do século XIX os sinfonistas Mahler e Bruckner retornaram às fontes
viris do Ländler rústico. De acordo com Lamb, “Mahler introduziu uma versão grotesca
19
Contracapa do disco Mignone, no qual se encontram gravadas sete Valsas Brasileiras, a Nazarethiana ,
três Valsas de Esquina , o Improviso Romântico e a Valsa Elegante, para piano (apud BARBEITAS, 1995,
p.79).
1y novks em Musica
da valsa na sua 5ª Sinfonia20” (ibid., p. 205, tradução minha), o que confere, de certo
modo, a afirmação de Burke acima citada, no sentido de que as danças servem como
material para a nobreza até atingirem tal nível de sofisticação que esgota o seu frescor.
Portanto, não resta dúvida de que “a valsa tomou conta de toda a música
ocidental” (apud BARBEITAS, 1995, p. 79), nas palavras de Francisco Mignone. Na
visão de Lamb, foi Ravel que em suas obras resumiu a valsa:
Nessas obras Ravel retrata a valsa como algo de um tempo passado, enquanto
Mahler, na sua 5ª Sinfonia, e Stravinsky, em Petrushka (1911), apresentam a valsa de
maneira grotesca. A extinção do império austro-húngaro no fim da 1ª Guerra Mundial
marcou também o fim do reino da valsa no mundo. Nos anos 1920 novas formas de
dança, expressões corporais atualizadas de uma sociedade em transformação vindas dos
Estados Unidos da América, se espalharam pelo mundo e os compositores em atividade
se adaptaram às novidades.
Apesar dos rumos novos de música de entretenimento a valsa curiosamente
continuou sendo uma referência mundial, tendo lugar no sentimento popular. Ela está
presente em musicais, canções sentimentais, música de filmes e assim por diante. Na
área de música de concerto, compositores do século XX foram, sim, atraídos pelo
gênero. Como exemplo, cito os compositores russos: Khachaturian, na música composta
para Masquerade (1939); Prokofiev, na sua Suíte de Valsas op.110 (1947) e
Shostakovich, na sua música leve. O inglês Britten incluiu a valsa em Variações sobre
um tema de Frank Bridge (1937) (LAMB, 1980).
Segundo Lamb, a valsa dançada em bailes a partir de 1910 era uma valsa lenta,
derivada da Valsa Boston que teve procedência nos Estados Unidos dos anos 1870.
20
“Mahler introduced a grotesque version of the waltz into his Fifth Symphony”.
20
“Mahler introduced a grotesque version of the waltz into his Fifth Symphony”.
21
“But the composer who effectively summed up the whole era of the waltz was Ravel, whose Valses
nobles et sentimentales (1911) look back unashamedly over a period of 90 years to the waltzes of
Schubert, and whose choreographic poem La valse (1918) similarly looks back to an imperial ball of 1855
and magnificently captures the sweep of the waltzes of that period, while remaining notable for the
typically brilliant orchestration of its composer”.
1y novks em Musica
O curso tomado pela valsa a partir da sua chegada ao Brasil até ser incorporada
nas 12 Valsas de Esquina é caraterizado por dinâmica aculturação. Durante
aproximadamente um século o gênero se nutre dentro de uma rede de referências
culturais, absorvendo características musicais denominadas por autores como Andrade e
Araújo de constâncias, isto é, elementos que permanecem na cultura, se justapondo
àqueles que mudam de acordo com uma índole sociocultural de constantes
transformações, do qual a música faz parte inevitavelmente, conforme as ideias
colocadas pelo russo Asafiev.
Na parte que segue me debruçarei sobre o curso tomado pelo gênero valsa no
Brasil, com base em diversos autores dedicados ao assunto. Com o intuito de reconstruir
o cenário musical do qual o meu objeto de estudo provém, e dessa maneira propiciar
uma percepção mais real das suas origens e da sua razão de ser, aprofundarei nas
reminiscências de Alexandre Gonçalves Pinto, um violonista chorão da virada do
22
“[…] especially when played with the slight anticipation of the second beat of a bar and the subtle use
of rubato which are characteristics of the traditional Viennese performance”.
1y novks em Musica
século XIX. Darei enfoque tanto aos seus registros quanto a entrevistas realizadas com
músicos da atualidade: Luiz Otávio Braga, Maurício Carrilho e Guinga. A oportunidade
de entrevistar estes chorões e seresteiros, me colocou face à valsa popular no seu âmbito
real de hoje. Por outro viés vivencio a valsa popular como imagem quando executo as
12 Valsas de Esquina , que, por sua vez, também se classificam no âmbito da valsa
brasileira . Braga, fonte primária, que tocou em serestas, em grupos de choro, é um
legítimo representante dessas manifestações musicais. No momento em que o
entrevistei eu presenciei, de forma indireta, a seresta por ele vivida, porque ele me tocou
muitos exemplos no violão, mostrou baixarias de várias valsas, choros e samba-canções
para elucidar a sua fala, ou seja, ele me apresentou à coisa real, às características
musicais, ao estado de espírito, às inflexões nas frases e assim em diante. Recordando as
colocações fenomenológicas de Sartre, eu pude vivênciar o objeto com minha
consciência de percepção. Por outro lado, quando o objeto me aparece nas obras de
Mignone alegoricamente, eu as vivo com a minha consciência imaginante, no sentido
íntimo. Mas o mesmo objeto está presente nos dois casos, no primeiro o objeto é real,
no segundo caso ele é imaginário.
consagrava, 1830 e seguintes [...] No Brasil, no primeiro Império e segundo, a valsa era
dançadíssima, e o povo gostou do seu ritmo” (CASCUDO, 1972, p. 881).
Kiefer apurou evidências relativas à publicação e execução de valsas
estrangeiras e valsas compostas no Brasil nesse período. Ele constatou a publicação de
valsas de Beethoven em 1829 e dois anos depois, em 1831, a edição de Doze Valsas
para piano do compositor brasileiro Cândido Inácio da Silva, cujo editor as vendeu
como não “[...] excedidas por nenhuma obra deste gênero vindo da Europa” (KIEFER,
1983b, p. 8), indicando assim um grande fluxo de valsas chegando ao Brasil do exterior.
Um jornal de 1839 anuncia a execução de uma “Grande, bela e difícil Valsa Alemã de
Strauss” (ibid., p. 9) na Assembleia Estrangeira. Compositores brasileiros como
Francisco Manuel da Silva e Henrique Alves de Mesquita escrevem valsas e do punho
deste último vem: Saudades de Mme. Charton, valsa que no julgamento de Kiefer “não
tem nada de brasileiro” (ibid., p. 9).
Através de crônica de 1877 do grande escritor Machado de Assis percebe-se o
espírito da sociedade brasileira à época: “Não faço ao leitor a injúria de crer que nunca
passou pela porta de uma sociedade ou aula de dança. De fora ouve-se o som da rabeca,
ou do trombone, a desenvolver as mais animadas quadrilhas francesas e valsas alemãs”
(apud KIEFER, ibid., p. 9).
A valsa acarretou toda uma produtividade relativa a seu cultivo dentro da
sociedade do Brasil imperial. Kiefer (1983b) organizou a produção acerca da valsa da
época nas seguintes categorias:
a) Valsas de autores europeus, reimpressas no Brasil;
b) Valsas de estrangeiros, formados na Europa, que se radicaram no Brasil;
c) Valsas de autores brasileiros, muitas vezes com títulos em línguas estrangeiras,
com predominância da língua francesa.
23
Segundo Kiefer a quadrilha consta de cinco partes vivas em 6/8 ou 2/4, sempre terminando com galope.
Ele cita Grove’s Dictionary of Music and Musicians (5ªedição, 1955): “[...] a palavra quadrilha vem do
francês quadrille. Originalmente a expressão teria sido, na França, quadrilha de contradanças o que, por
abreviatura, deu quadrilha. Por sua vez, contradança é corruptela de country-dance, antiga dança inglesa,
alegre e simples. O nome da quadrilha se justifica, pois provém do número de dançadores, formado por
quatro pares” (KIEFER, 1983b, p. 31).
1y novks em Musica
Brasil com muita rapidez. De mesma origem, porém, causando efeito em menor escala,
a mazurca , dança de três tempos com uma característica acentuação no segundo, veio
algum tempo depois. O schottische24 se divulgou no Brasil nos inícios de 1850 e a
habanera , originada de negros no Haiti e em Cuba, veio da Espanha por volta de 1866.
Kiefer, junto com uma maioria de autores, aponta que pelo menos na época do
Império a influência da valsa francesa, no processo de assimilação da valsa em terras
brasileiras, era superior a influência da valsa austríaca-alemã, pelo número de valsas
dessa nacionalidade publicadas e títulos de valsas em francês compostas no Brasil. A
valsa francesa era mais lenta e talvez por isso tenha caído mais no gosto no Brasil, de
acordo com Luiz Otávio Braga25 (BRAGA, 2017). Francisco Mignone complementa
sobre a receptividade da valsa francesa no Brasil no século XIX:
O francês Jean Batiste Debret testemunhou a vida no Rio de Janeiro entre 1816 e
1831 e descreve as lojas de barbeiros como uma cópia deste tipo de loja na Espanha
“com a única diferença de que o oficial de barbeiro no Brasil é quase sempre negro ou
pelo menos mulato. [...] Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha
escapada de uma meia de seda, como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e
contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu jeito” (apud KIEFER, 1983b, p.
8).
De fato, essa determinada descrição de Debret: “arranjadas a seu jeito”, já
prenuncia o caminho que a valsa tomaria no Brasil. Todas as danças acima listadas
vieram de raízes populares, chegando ao salão da nobreza para serem curtidas durante
um tempo, até se tornarem sóbrias demais e serem substituídas, me referindo à ideia de
Burke, antes citada. A valsa manteve certa celebridade na alta sociedade, sendo
dançada até hoje em momentos importantes da burguesia, - como bailes de formatura,
24
Essa palavra alemã significa ‘escocesa’. No Brasil também escrito xote ou chótis. Kiefer cita Grove’s
Dictionary of Music and Musicians (5ªedição, 1955): “O ponto de vista moderno é que esta dança nada
tem a ver com Escócia. Trata-se de uma dança francesa derivada do que os franceses imaginavam que
fosse uma dança escocesa” (KIEFER, 1983b, p. 27).
25
Luiz Otávio Braga, professor do Departamento de Educação Musical do Instituto Villa-Lobos da
Universidade do Rio de Janeiro/Unirio, violonista, compositor e arranjador. Foi integrante dos conjuntos
Galo Preto e Camerata Carioca. Publicou O violão brasileiro, Ed. Europa, 1988, método para ensino de
violão.
1y novks em Musica
A coisa do regional no lugar onde você vive é tão forte, o clima, as benesses,
as dificuldades, que formam a cultura de um povo. Você jamais vai fazer
uma valsa vienense morando em Jacarepaguá, não tem como! E o que faz
para ser brasileiro, eu acho que é isso: é o clima; é a esquina; é o botequim; é
o salão de festa; é o clube; é a seresta; é a música que entra de uma maneira e
você entende de outra às vezes. Até por falta de um conhecimento formal
(Guinga, 2017).
3.2.2 A modinha
Barbeitas afirma sobre esse juízo dos nacionalistas: “Escapava a Mário e aos
nacionalistas em geral, a percepção de que as várias manifestações culturais no interior
de uma mesma sociedade poderiam percorrer diversos segmentos sociais, ter, enfim, um
caráter circular” (BARBEITAS, 1995, p. 20), relacionando, assim, à modinha a tese da
circularidade cultural entre classes sociais, teoria que observamos ao versar sobre a
valsa na Áustria.
O zeloso e mais recente pesquisador de modinhas José Ramos Tinhorão
desconstrói a tese da origem erudita da modinha, apresentando diversas evidências que
apontam a sua origem popular. De acordo com este autor a modinha é o primeiro gênero
de canção popular no Brasil, da qual tem notícia desde o final do século XVII através de
tocadores populares de viola (TINHORÃO, 1991).
Estudioso de modinhas Mozart de Araújo afirma que “o verdadeiro criador da
modinha [...] e do lundu26 de salão, cantiga maliciosa e cômica, acompanhada de
26
Segundo Azevedo, “Gregório de Matos, o grande poeta satírico brasileiro do século XVII, passa por ter
sido um dos criadores do lundu, transplantando-o dos terreiros em que dançavam negros e mulatos para
os salões da casa-grande, onde a sua viola reproduzia os ritmos estimulantes e o dengo melódico dessa
dança por tanto tempo famosa. Em sua poesia descobrem-se numerosas produções que estão impregnadas
desse espírito do lundu: graça lasciva, ternura brasileira, jeito desabusado de capadócio gingando”
(AZEVEDO, 1956, p.143-144). Quando a polca europeia invade os salões brasileiros, o espírito e o
movimento do lundu se recolhem no novo gênero, sempre instrumental. “O binário esperto do seu
andamento, baixos fortemente marcados e variações da linha melódica, amoldavam-se com perfeição a
1y novks em Musica
bandolim, viola de arame ou violão foi Domingos Caldas Barbosa” (ARAÚJO, 1994, p.
83-84). Tanto o seu nome quanto o da modinha, novamente de acordo com Tinhorão,
tem primeiros registros em documentação de Lisboa do final do século XVIII. Caldas
Barbosa nasceu por volta de 1740, filho de branco com negra angolana e até aparecer na
capital portuguesa por volta de 1775, ele tinha, - e Tinhorão traz evidências pelas
origens populares da modinha -, se relacionado somente “com mestiços, negros,
pândegos em geral e tocadores de viola, e nunca com mestres de música eruditos (que
por sinal, por essa época praticamente não existiam no Brasil)” (TINHORÃO, 1991, p.
15). As suas composições não condiziam com os parâmetros da música erudita de
então:
O que iria acontecer com a modinha, a partir dos últimos anos do século
XVIII, até a segunda metade do século seguinte, seria o fato de que, passando
a interessar aos músicos de escola, o novo gênero acabaria realmente se
transformando em canção camerística tipicamente de salão, precisando
aguardar depois o advento das serenatas à luz dos lampiões de rua, nos
últimos anos do século XIX, para então retomar a tradição de gênero popular,
pelas mãos dos mestiços tocadores de violão (TINHORÃO, 1991, p. 18-19).
A modinha de salão era uma peça de canto erudito em salas burguesas escrita em
partitura, na qual o piano substitui o cravo nos meados do século XIX. Ela marca o que
Mozart de Araújo (1994) denomina a 1ª fase da música popular brasileira e Oneyda
Alvarenga chama de 1ª fase da modinha. Trazida ao Brasil pela corte de Dom João VI
em 1808, a modinha de salão é cultivada intensamente no 1ºImpério brasileiro (1822-
1840) por músicos ligados a Capela Real, como Padre José Maurício, o cavaquinhista e
compositor mulato Joaquim Manuel e Cândido Inácio da Silva e “a partir de 1841, ao
conservatório de Música da capital do Império, chegando a confundir-se com árias de
óperas italianas, o que explica a sua voga inclusive nos teatros, interpretadas por
cantores líricos estrangeiros” (TINHORÃO, 1991, p. 19).
Mário de Andrade chama de ‘modinhismo universal’ a “coincidência da
Modinha de salão com os autores europeus melodramáticos do fim do séc. XVIII e
início de seguinte” e procura por características nacionais na modinha imperial:
Mesmo dentro das nossas Modinhas mais antigas e europeias, em que mais a
gente reconheça alguns acentos de Gluck, vário sabor de alemães,
especialmente de austríacos (Mozart), e em principal arabescos e açúcares do
Cantabile melodramático italiano, vem um delicado, sutil, misterioso hálito
brasileiro (apud ALVARENGA, 1982, p. 329).
[...] não é fácil para nós, brasileiros, perceber o conteúdo nacional que os
viajantes são unânimes em apontar distinguindo-as das modinhas
portuguesas. É possível que este ‘quê’ brasileiro estivesse na língua, na
prosódia, no jeito de interpretar, na sincopação do acompanhamento. É
possível. Mas não é fácil para nos identificá-lo. Isso, porém, já não acontece
com as composições surgidas daí em diante, isto é, a partir da segunda
metade do século XIX, quando as características nacionais começam a
repontar. A sintaxe brasileira começa a contrariar a gramática portuguesa. A
síncopa brasileira começa a se insinuar na melodia importada, que adquire
uma moleza sutil; certas maneiras de ritmar se tornam freqüentes e em
poucos viram constâncias (ARAÚJO, 1994, p. 86).
Comentário feito sobre os músicos populares na fase da modinha popular, segunda metade do século
27
XIX.
28
F. Biard estava instalado no prédio do Paço Imperial, atualmente sede dos Correios e Telégrafos do Rio
de Janeiro. Ele escreveu um livro chamado Dois anos de Brasil.
28
F. Biard estava instalado no prédio do Paço Imperial, atualmente sede dos Correios e Telégrafos do Rio
de Janeiro. Ele escreveu um livro chamado Dois anos de Brasil.
1y novks em Musica
Tinhorão julga certo que o francês descreve cantores de modinha neste depoimento e
aponta a presença de dois dos três instrumentos que formariam em pouco tempo o trio
instrumental clássico do choro carioca, faltando só o cavaquinho. A modinha “adaptou-
se afinal ao violão, que substituía a viola desde meados do século XIX [e ganhou] as
ruas com os conjuntos de músicos de choro, dentro do estilo derramado do ultra-
romantismo popular (TINHORÃO, 1991, p. 22-23). Mariza Lira, citada por Barbeitas,
entende que “em sua maioria, os compositores e cantadores de modinhas eram destros
violonistas” (apud BARBEITAS, 1995, p. 24). O violão tinha assumido “o lugar de
acompanhador, que antes cabia ao piano”, conforme Alvarenga (ALVARENGA, 1982,
p. 329).
Ao tratar da influência da ópera na fase da modinha de salão, Ayres de Andrade
denota que a suavidade melancólica das melodias de um Bellini “tão condizentes com a
sensibilidade do brasileiro, passou a influenciar os trovadores do país, a tal ponto que no
repertório da modinha brasileira não são raras aquelas que parecem provir diretamente
das óperas de Bellini” (ANDRADE apud TINHORÃO, 1991, p. 19). Em suas
reminiscências Pinto se recorda de um cantor preto chamado Alexandre Trovador - uma
celebridade (morreu na Santa Casa e foi jogado numa vala comum) -, que
“acompanhava-se ao violão nas operas e modinhas que cantava” (PINTO, 1978, p. 176-
177). O convívio íntimo dos dois gêneros fica assim exposto. E se a “inebriante
atmosfera de belcanto” (AZEVEDO, 1956, p. 62) dos anos de exaltação romântica na
primeira metade do século XIX se infiltrou no âmbito dos seresteiros, como escreve
Azevedo, a hereditária exaltação interpretativa ainda é detectável na execução dos
seresteiros nas semanais processões serenateiras em Conservatória/RJ, que abordarei em
mais detalhe mais adiante. O aspecto ‘universal’, na seguinte análise de Azevedo da
modinha popular, provavelmente está ligado a essa herança:
Nesse sentido, a modinha se dilui para dentro de outros gêneros, como, por
exemplo, a valsa e a canção e estas incorporam algumas das suas características. Para
Tinhorão, a escolha do nome ‘canção’, - e por que não, o nome ‘valsa’ também -,
“visava libertar os compositores do espírito exclusivamente lamuriento e sentimental
em que a modinha se estruturara” (TINHORÃO, 1991, p. 40). Entretanto, a modinha
volta e meia reaparece, e um bom exemplo é a menos ortodoxa Serenata do adeus de
1957, do poeta carioca Vinicius de Moraes, por sinal neto do compositor de modinhas
Melo Moraes Filho, membro da Sociedade Petalógica d’outrora (TINHORÃO, ibid.).
29
O ano da 1ª edição do livro Compêndio de História da Música Brasileira
1y novks em Musica
3.2.3 O chor o
início de presente século eram, na sua quase totalidade, representantes da baixa classe
média do Segundo Império e da Primeira República” (TINHORÃO, 1991, p. 105). A
sua ode a modinha sentimental é um testemunho de grande valor, apesar de todos os
erros ortográficos:
É fácil imaginar que ao chorão não bastava repetir, nos seus ‘pagodes’ e nas
suas ‘tocatas’, essa música que entrava no País através da Alfândega. Mais
fácil ainda é compreender que o Choro terá sido o recurso de que se utilizou
o músico popular carioca para executar, ao seu modo, essa música de
procedência estrangeira, que era consumida nos salões, nos saraus e nos
bailes da alta burguesia do Império. Penetrando no recesso do Choro, essas
músicas seriam aí não apenas digeridas com o tempero brasileiro da
sincopação, das ‘descaídas’ e das ‘negaças’, mas perderiam também o seu
caráter coreográfico de origem e se transformariam em música para ser
apenas ouvida. Sim, porque, ao executar a música importada, esses chorões
imprimiram a ela um estilo próprio de interpretação que logo se transferiu do
intérprete ao compositor que, por sua vez, passou a designar com o nome de
Choro as polcas, xótis e tangos de sua própria criação (ARAÚJO, 1994, p.
1y novks em Musica
186).
Sobre a origem do nome choro, nas palavras de Tinhorão, foi a maneira de tocar
violão “rolando pelos sons graves, em tom plangente” (TINHORÃO, 1991, p. 103).
Aqui ele se refere à baixaria , um modo específico do violão chorístico de frasear nas
notas graves, que teria produzido a melancolia que conferiu o nome choro ao estilo e ao
grupo, e, em consequência, chorão ao músico do conjunto. Henrique Cazes (2010)
contradiz essa hipótese, argumentando que nas primeiras gravações de choro, por volta
de 1907, “o violão ainda não era usado com a exuberância com que hoje estamos
habituados” (CAZES, 2010, p. 17). Ele aponta a maneira de tocar a melodia como a
responsável pelo nome: “Sendo assim, acredito que a palavra Choro seja uma
decorrência da maneira chorosa de frasear, que teria gerado o termo chorão, que
designava o músico que ‘amolecia’ as polcas” (ibid., p. 17). Em uma visão ampliada,
Cazes ainda considera que em outros países colonizados por Portugal, como Cabo
Verde, Jacarta, Indonésia e Goa, a música popular não só se desenvolveu com o mesmo
caráter nostálgico, mas também com a mesma base instrumental de cavaquinho e violão.
Para Azevedo, choro parece significar “a maneira sentida, dir-se-ia soluçante, de
conceber o desenho melódico e, sobretudo, de executá-lo” (AZEVEDO, 1956, p. 144).
E quem viveu o choro dos primórdios, o chorão Animal, descreve a maneira com que os
seus colegas chorões ‘tocam com alma’ ou ‘sabem tocar o que sentiam’ (PINTO, 1978).
A palavra chor o, de acordo com Cascudo, ainda se aplicava a “certos bailaricos
populares30” (CASCUDO, 1972, p. 257), e Cazes confirma que uma festa, onde se
tocava choro, também levava o nome (CAZES, 2010).
A esta base instrumental é adicionada a flauta, na 2ª metade do século XIX,
então o terceiro instrumento mais popular, completando, assim, o ‘terno’ do choro: a
flauta na melodia, o violão na baixaria e cavaquinho no centro:
30
Câmara Cascudo afirma: “Por fim, choro é denominação de certos bailaricos populares, também
conhecidos como assustados ou arrasta-pés. Essa parece ter sido a origem da palavra, conforme explica
Jacques Raimundo, que diz ser originária da contracosta, havendo entre os cafres uma festança, espécie
de concerto vocal com danças, chamado xolo. Os nossos negros faziam em certos dias, como em São
João, ou por ocasião de festas nas fazendas, os seus bailes, que chamavam de xolo, expressão que, por
confusão com a parônima portuguesa, passou a dizer-se xoro, e, chegando à cidade, foi grafada choro,
com ch” (CASCUDO, 1972, p. 257).
1y novks em Musica
Um dos “antigos batutas dos choros da velha guarda”, nas palavras de Pinto
(PINTO, 1978, p. 52) era o flautista Calado (1848-1880), ou Joaquim Antônio da Silva
Calado. Este foi, além de virtuoso flautista e compositor, um sistematizador do conjunto
de choro e um formador de uma escola brasileira de flautistas. Citando Mariza Lira, que
colheu impressões de velhos músicos conhecidos de Calado, Azevedo reporta que o que
diferenciava a sua interpretação de outros flautistas “não eram os desenhos que traçava
com a melodia, nem o ritmo, nem tampouco as variações do contracanto; era tudo isso
repousando numa preguiça, indecisão propositada, espécie de ganha-tempo”
(AZEVEDO, 1956, p. 149):
Compositor desde os verdes anos [...] Calado leva para a sua música muito
dêsse ‘estilo’. O chôro carioca, repousando, sempre, no solo de um
instrumento de sôpro, que improvisa variações virtuosísticas, em caprichoso
plano tonal, com modulações inesperadas, acompanhado pelos violões e
cavaquinhos, recebeu definitivo influxo do conjunto instrumental que ele
havia formado, e que era o mais famoso da cidade. Calado dominava o
conjunto com as suas composições, propícias ao gênero, e com a sua
diabólica execução. Chôro é música essencialmente instrumental; repele
qualquer feição melódica vocalizável; e, muito mais ainda, textos poéticos.
Geralmente a flauta ou o clarinete- às vêzes o cornetim, ou, mesmo, o
trombone ou o velho oficlide - encarregavam-se dos solos e, estes últimos,
dos baixos melódicos (AZEVEDO, 1956, p.150).
Pinto, comparando os choros dos anos 1930, quando escreve o seu livro, com os
de antigamente, entende que “os verdadeiros choros eram constituídos de flauta, violões
e cavaquinhos, entrando muitas vezes o sempre lembrado ophicleide e trombone, o que
constituía o verdadeiro choro dos antigos chorões” (PINTO, 1978, p. 11). O poema de
exaltação aos chorões, que inicia o livro, aponta os instrumentos usados:
instrumentos era improvisada, fato que “refletiu nas execuções, surgindo daí um estilo
interpretativo que, por ser inconfundível, se tornaria característico do Choro. A
improvisação passou a ser a condição básica do bom chorão” (ARAÚJO, 1994, p. 186).
Almeida escreve que os chorões não “tinham um tipo de música, tocavam as peças
populares, em geral da autoria dêles mesmos, com suas frases longas, as variações
prodigiosas das flautas e as surpreendentes improvisações dos ponteios dos violões”
(ALMEIDA, 1958, p. 46). Por sua vez, Cazes, ao versar sobre Heitor Villa-Lobos, diz
que o compositor, que frequentava o ambiente dos chorões, “chamava o Choro de
‘improvisação inteligente’” (CAZES, 2010, p. 47). No entanto, o mesmo autor afirma
ter analisado gravações de choro entre 1902-1920, e constatado uma surpreendente falta
de improvisação: “Muitas vezes a mesma parte de uma música é repetida quatro ou
cinco vezes sem nenhuma alteração. Só dá para sentir o calor da improvisação quando
toca o Pixinguinha” (ibid., p. 44). Pixinguinha (1897-1973) começou a aparecer em
gravações com 14 anos e “foi demonstrando sua vocação para o improviso e
acrescentando umas ‘bossas’ que não estavam na partitura mas agradavam ao regente”
(ibid., p. 51). Cazes ainda considera que “na década de 10, pelas mãos geniais de
Pixinguinha, Choro passou a significar também um gênero musical de forma definida”
(ibid., p. 17).
A entrada do violão no cenário da música brasileira, segundo Braga, coincide
com o começo historiográfico da música popular brasileira. Sobre a baixaria, por ele
também chamada de soldadura , ele diz que vem “da tradição das bandas, dos
contracantos de bombardinos, que existem na tradição das bandas de música” (BRAGA,
2017). Almeida refere-se a essas bandas, dizendo que o repertório era quase sempre de
autoria popular anônima e que a arte dos contracantos se revela
Zé da Gávea, ou José Francisco da Costa e Souza, ”que se destacava pelo facto de reunir
nesse instrumento o saxe e o bombardom” (ibid., p. 192). Braga destaca as baixarias,
tocadas pelo sax-tenor de Pixinguinha em gravações com o flautista Benedito Lacerda
entre 1946 e 1950: “E os violões acompanhavam. Faziam umas intervenções de
baixarias, que já era da tradição do violão, mas quem chamava a baixaria mesmo, essas
frases, essas soldaduras longas nos graves, era o Pixinguinha” (BRAGA, 2017).
Segundo Braga, Pixinguinha aprendera as baixarias com o seu professor Irineu de
Almeida (1863-1914). Quando se escuta essas baixarias, gravadas por Irineu, Braga
comenta, conclui-se: “Pixinguinha veio daí!” (BRAGA, 2017). Cazes reporta este
professor tocando contraponto de oficleide em gravações dos anos 1910, o que nessa
época era novidade. O violonista como Tute, Arthur de Souza Nascimento (1886-1957),
foi pioneiro e típico acompanhador do choro e introdutor do violão de sete cordas, e
Dino Sete Cordas (1918-2006), depois de tocar violão de modo convencional por vinte
anos, mandou fazer um violão “com a sétima corda, como havia visto o velho Tute usar.
No sete cordas, Dino desenvolveu enormemente a linguagem contrapontística e brilhou
em um sem-número de gravações de Choro e samba” (CAZES, 2010, p. 84).
Maurício Carrilho31 (CARRILHO, 2017) levantou a questão da malandragem, da
brincadeira e esperteza musical, em hipótese derivada da ‘intenção de derrubar o outro’,
característica da luta-dança capoeira que veio com escravos negros do sul de Angola.
Carrilho considera que a ambiguidade entre a métrica de 6/8 e 3/4, com característicos
acentos, que existe em muitos ritmos ternários de culturas com origens negras, como o
pasillo colombiano, reflete essa malandragem. Do mesmo modo, Pinto descreve um
violonista do século XIX, Nené Mario, que “tinha accordes maviosos, e tão diffíceis que
o escriptor [o próprio Pinto] que tambem era um malandro chorão, naquelle tempo,
nunca poude apanhar delle nenhumas de suas modulações” (PINTO, 1978, p. 86).
Ainda na linha modulatória, Araújo afirma que Anacleto de Medeiros, o grande
saxofonista e organizador-regente da Banda do Corpo de Bombeiros, expandiu o seu
talento na composição na qual ele tinha uma “habilidade em armar passagens difíceis
para derrubar os acompanhadores, ou seja, o emprego freqüente de modulações
caprichosas e inesperadas” (ARAÚJO, 1994, p. 88). Por sua vez, Tinhorão registra o
31
Violonista, arranjador e compositor, da formação original da Camarata Carioca (1979). Vice-presidente
do Instituto Casa do Choro, organização dedicada à preservação do choro e importante integrante e
professor da Escola Portátil de Música. Fundador da Acari Records, primeira gravadora do Brasil
especializada em choro, que lançou em 2014 a 3ª edição do livro de Alexandre Gonçalves Pinto O Choro:
reminiscências dos chorões antigos, numa versão comentada, revisada e ilustrada, com música em CD.
1y novks em Musica
caso do flautista Viriato F. da Silva (1851-1883), sucessor de Calado, que com o título
da sua polca Caiu, não disse? mostra “uma clara referência à preocupação [...] de
inventar passagens (modulações) capazes de derrubar os acompanhadores”
(TINHORÃO, 1991, p. 105).
A modulação no choro, segundo Cascudo, “foi sempre curiosa, passando do
modo maior para o menor e volvendo ao maior, ou vice-versa, variando sempre o modo
nas suas três partes” (CASCUDO, 1972, p. 257). Desta maneira, a modulação se torna
parte da forma rondó, tradicionalmente empregada no choro. A construção da melodia
do choro é virtuosística, de acordo com Barbeitas. Ela é arpejada conforme a harmonia,
feita com combinação de grandes saltos e graus conjuntos. O acompanhamento do baixo
melódico, da baixaria, forma um diálogo com a melodia superior. Para Braga, a melodia
arpejada é difícil de vocalizar. No posterior samba-choro, a melodia do samba, que
através dos seus graus conjuntos é mais facilmente vocalizada, é incorporada à música
do choro. O samba urbano, por sua vez, assimila toda a tradição do choro, a baixaria
incluída, porque eram os músicos do choro que faziam o acompanhamento do samba
(BRAGA, 2017).
Cascudo afirma32 que começam a “aparecer letras para os choros e a dividi-los
em duas partes apenas” (CASCUDO, 1972, p. 257). Braga demonstra como exemplo
disso o Rosa , uma valsa de Pixinguinha, composta na tradicional forma rondó que
consta em disco gravado por ele em 1917:
O Rosa é uma música bem anterior do ano que foi gravada. Foi gravada, se
não me engano, em ’3733. E ela tinha três partes que remete à valsa-choro [...]
A valsa-choro ela é escrita na forma do rondó que era caraterístico do choro.
Rondó de cinco tempos: uma parte A, normalmente com repetição; uma parte
B com repetição; retorna ao A sem repetição; vai para o trio, a parte C, com
repetição; retorna ao A e encerra. A valsa do Pixinguinha, o Rosa , que é
talvez uma das músicas mais célebres dele [...], era uma valsa instrumental,
tocada em três partes, também ela tinha uma terceira parte. Tem uma
gravação do Jacob do Bandolim, que ele toca essa versão em três partes [...]
E, no entanto, foi gravada em duas partes (BRAGA, 2017).
música era pouco. Daí, músicas com duração acima de três minutos diminuíram a
possibilidade de serem tocadas. Com a pressão do lema: “tem que tocar no rádio”, a
tendência foi de encurtar as composições. Consequentemente o parâmetro da forma
ternária ABA se estabeleceu. Braga diz: “É uma possível explicação do porque o choro,
por exemplo, perdeu as três partes e passou a ser composto só em duas. A valsa-choro
perdeu a última parte” (BRAGA. 2017). Constatei que a forma ternária, ABA, foi
utilizada por Mignone na maioria das suas 12 Valsas de Esquina . Por outro lado, as
valsas populares Coca , Flor de Jurema , No cinema, Saudades de Araquara e Suave
tormento são composições de Mignone que foram gravadas pela Parlophon em 1930
com a forma rondó, ABACA.
34
Espanhol: serenada/Português: serenata . Vem de serenus (latim) que significa tanto céu sem nuvens
quanto calma ou tranquilidade (TINHORÃO, 1976, p. 9).
1y novks em Musica
Findo o baile, alta madrugada, o ‘chôro’ sahia tocando uma polka dengosa e
o pessoal mergulhava no primeiro botequim que encontrava aberto [...] E o
‘choro’ continuava. O sol invadia o botequim e a flauta se fazia ouvir
acompanhada do cavaquinho, do violão. O botequim enchia-se de seresteiros
que vinham de outros forrobodós e o ‘chôro’ continuava, até 9, 10 e 11 horas
(PINTO, 1978, p. 117).
Por outro lado, ao descrever as serenatas, Pinto aplica um tom mais exaltado:
“[As] grandes serenatas nas lindas noites de luar, despertavam quarteirões inteiros para
apreciarem os cantores daquella época [...] tal eram as melodias dos accordes que elles
arrancavam nos accompanhamentos de suas modinhas” (ibid,. p. 57).
De acordo com Cascudo havia dois tipos de serenatas: as amorosas e as
homenagens sociais:
todo mundo querendo ir para orgia, mas às vezes não tinha o que fazer e a
gente enfrentava a seresta. Vamos enfrentar a seresta. Vamos para a seresta e
comia lá um caldo, uma porra lá de um caldo verde. E a gente passando a
noite. Até sonhei com uma música que tocava nessas serestas. Sonhei essa
semana. Uma música muito pouco conhecida (GUINGA, 2017).
Segundo Guinga, as valsas que ele compõe têm as suas raízes na seresta:
35
Guinga, ou Carlos Althier de Souza Lemos Escobar, violonista e compositor brasileiro, nascido em
Madureira em 1950 e criado no subúrbio do Rio de Janeiro. Tem recebido reconhecimento pela
originalidade da sua extensa obra de música popular brasileira, gravada por diversos artistas.
1y novks em Musica
É à noite, a coisa vai pela noite. Acho que a seresta vem um pouco disto. Da
serata . É essa coisa da Europa mesmo dentro do Brasil. E aqui ela tomou a
forma, né. Porque aqui tinha compositor que trabalhava na Central do Brasil.
Compositor que era até pedreiro, né, porque isso tem a ver com o aspecto
econômico do povo, financeiro, né. Povo pobre [...] A burguesia também
fazia seresta. Até o presidente da República Juscelino Kubitschek fazia
seresta lá em Brasília, assim que ele fundou a Brasília. Levava alguns
seresteiros que ele gostava [...] É, porque essa é uma coisa que entrou pelo
Brasil todo. Também sair na rua tocando. A seresta que sai todo mundo com
um violão na rua, quase uma procissão. É uma coisa reverente, reverenciar a
seresta (GUINGA, 2017).
Para Braga, a seresta é “da mesma índole do choro, quando a gente fala do choro
como um gênero que denota em primeiro lugar uma forma de execução e a partir daí
1y novks em Musica
então você pode tocar um repertório muito variado. A seresta é o mesmo princípio”
(BRAGA, 2017). A seresta não pode ser deslocada do choro porque ela traz “dentro
dela todas essas referências: traz o acompanhamento, traz o repertório. Não tem uma
seresta que não se tocasse choro. Até mesmo para os cantores descansarem um pouco a
voz” (ibid.).
Ele relembra o repertório das serestas nas quais tocou: “o violonista, tem que
conhecer bem esse repertório: das valsas, das canções, dos sambas-canções, dos sambas
em andamento mais lento...” e alguns choros com letra já. Os cantores cantavam como
exemplo Carinhoso do Pixinguinha e Chão de estrelas de Orestes Barbosa e Sylvio
Caldas, que segundo Braga, é uma música típica do repertório das valsas langorosas e
canções românticas da seresta. É um 3/4 e insere-se no rótulo de canção, “mas tem
todas as demandas dessa valsa seresteira, dessa valsa que é cantada na roda do choro,
dessa valsa que era cantada nas janelas, possivelmente nos subúrbios”, diz Braga. Um
samba-canção como Último desejo de Noel Rosa tem “todos os elementos [que] servem
para evocar algo [que] não está mais ali, mas é como se [...] estivesse” (ibid.).
A seresta, pois é, o que é que é a seresta? [...] Ela é mais uma figura
evocativa de uma ambientação, de um ambiente lírico, onde se procura
traduzir sentimentos com belas palavras, com música, claro, mas
principalmente com belas palavras. Então, você evoca logo essa imagem do
cantor cantando de baixo da lua, acompanhado de violões e tal. Isso empurra
você também para pensar a coisa com caráter bem lírico mesmo [...] a gente
pode dizer que é romântico, também, mas não no sentido do romantismo
musical. Mais lírico, talvez. Uma exaltação dos sentimentos amorosos que
vem da tradição da modinha e do lundu, que falam de amor [...] Agora, essa
ambiência é fundamental, o instrumental é fundamental para essa ambiência.
Para esse clima de aproximação de coisas que estão sendo evocadas. Então, o
instrumental, digamos assim, é a única, - além da voz do cantor -, é a única
base material para todas essas evocações, para toda essa nostalgia, para toda
essa rememoração (BRAGA, 2017).
Esta definição traduz perfeitamente uma experiência pessoal que tive em visita a
Conservatória/RJ em dezembro de 2014. Esta pequena cidade comemora 140 anos de
tradição seresteira e tem nela uma fonte de sobrevivência sendo que as serenatas, com
as suas valsas e canções dolosas em tom menor, viraram atração turística. Na ocasião
entrevistei o seresteiro Edgar Vilela que revelou dados interessantes sobre seresta,
música de seresta e serenata. A tradição de seresta iniciou-se há uns 135 anos, com
tropeiros músicos que passaram por lá com seus instrumentos e cantoria ou com grupos
de músicos contratados para tocar para os fazendeiros de café da região. Na primeira
metade do século XX formou-se uma inspirada união direcionada ao fortalecimento e
1y novks em Musica
36
Conceito popularizado na obra de três volumes (1984-1992) do historiador francês Pierre Nora.
1y novks em Musica
letra evocativa, seguindo a tradição seresteira, mas a harmonia é tão sofisticada, que
transpassa a tradição seresteira. Um acompanhamento congruente com a tradição
seresteira, não daria certo. “Tem que ser assim, aquela harmonia. [A valsa] é evocativa,
mas ela traz outros elementos. Isso é não deixar a tradição morrer!” (BRAGA, 2017),
diz Braga sobre a valsa brasileira inovadora de Guinga.
3.2.5 Os pianeir os
Essa experiência fez parte da sua bagagem como pianista e, possivelmente, influenciou
a sua maneira de interpretar as 12 Valsas de Esquina .
Os pianeiros eram especialistas em valsas lentas, polcas saltitantes e
schottisches, e muitas vezes, como no caso do Mignone, a música era de autoria própria.
Nas reminiscências de Pinto ficam registrados diversos pianeiros. Tomo como exemplo
emblemático o pianeiro Júlio Barbosa, que tocava em sociedade dançante e “era
especialista nos tangos do inesquecível Ernesto Nazareth, e nas valsas lentas de
escriptores allemães. Era um prodígio nas nossas polkas, e nas mazurcas [...]” (PINTO,
1978, p. 141).
Chiquinha Gonzaga, Francisca Hedwiges Gonzaga (1847-1935), com seu estilo
“faceiro, saltitante, genuinamente carioca” (ARAÚJO, 1994, p. 87), teve atuação
marcante na formação dos primeiros grupos de choro e na fixação da dança popular
brasileira maxixe37. Pinto, no seu testemunho sobre essa mulher pianeira e em muitas
áreas na música brasileira também pioneira, relatou que, quando requisitada, ela “não se
fazia de rogada, abria o piano e, com os seus dedos hábeis e admirados principiava com
um chôro composto por ella pois são innumeros, e fazia a delicia dos que a escutavam”
(PINTO, 1978, p. 42). Além das próprias composições, Chiquinha tocava músicas de
Carlos Gomes, Verdi, Puccini, Leoncavallo e Paganini, revelação feita por Pinto que
confirma a popularidade da ópera à época.
Ao pianeiro carioca Ernesto Júlio de Nazareth (1863-1934), Araújo atribui o
mérito de ser o músico mais refinado da história da música popular e de ter traduzido as
músicas da moda na sua época “para uma linguagem musical vernácula” (ARAÚJO,
1994, p.88). Cazes ressalta “a maneira refinada como construiu seu estilo, entre o
sofisticado e o espontâneo, entre o balanço rasgado de um maxixe e as sutis fermatas de
37
Do século XIX e até segundo decênio do século XX “o maxixe teve uma grande importância, embora
nunca houvesse chegado aos salões de um modo franco e dominador. Isso naturalmente porque se tratava
de uma dança de muita desenvoltura, com uma coreografia de figurações um tanto lúbricas, além de
difícil e fatigante. Foi a dança popular em voga, e se acreditou viesse a ser um padrão brasileiro,
privilégio que lhe tiraria depois o samba, que dêle é um prolongamento. No maxixe se encontra da
habanera, polca e do lundu, numa caracterização caprichosa, com uma melodia sincopada, cuja base
rítmica é o grupeto semi-colcheia, colcheia, semicolcheia, bem característico da nossa música folclórica.
Seu movimento é de binário simples e moderado. Em geral o maxixe é instrumental”(ALMEIDA, 1958,
p. 24-25).
1y novks em Musica
uma valsa chopiniana” (CAZES, 2010, p. 34). E Horta relaciona o renomado pianista à
valsa, quando diz que esta “brilhava nos salões em composições pianísticas que
chegariam a elevado nível artístico com Nazareth” (HORTA, 1985, p. 395).
As três primeiras valsas dessa série, não tinham esse nome, não. Eram apenas
três valsas brasileiras. Mário de Andrade ouvindo-as, de pronto, disse: ‘Essas
valsas me reconduzem ao tempo da minha mocidade quando músicos
seresteiros com suas flautas, clarinetas e violões improvisavam, nas esquinas
inequívocas mensagens melódico-românticas às moças que se escondiam
atrás de cortinas ou grades da época. E a música subia até elas que, ansiosas e
suspirando, recebiam embevecidas a mensagem sonora que os notívagos
seresteiros prolongadamente tocavam. Era o ‘chôro’ que vinha lá das
esquinas: ‘chôro’ que muitas vezes era misturado à brancura do luar ou ao
piscar das estrelas. E assim nasceu a idéia de denominar as doze valsas
escritas em todos os tons menores da escala diatônica. Cada valsa tem sua
peculiaridade e são inconfundíveis. Manuel Bandeira depois de ouvir as
valsas de Mignone assim se manifestou: ‘Mignone é o rei da valsa, com ele
canta todo o Brasil’ (GOMES, 1997).
A Valsa, gênero que se abre em leque desde o Brasil Imperial, para várias
estilizações, é para Mignone o resultado de todo um acervo adquirido na
cidade e voltado à improvisação, à serenata, a descontração, à nostalgia. Em
sua mocidade, o jovem Francisco percorria com amigos seresteiros
determinadas ruas paulistanas, improvisando melodias em instrumento
‘genético’39, a flauta, e cedo apreende o fascínio e os segredos do conteúdo
noturno voltado à serenata, à musa, despertando através do sonoro a
possibilidade do enlevo. A acompanhá-lo alguns instrumentistas, entre estes
o violonista, pedra angular na compreensão do urbano musical de Mignone.
A serenata vem a ser a referência inconsciente que perdurará durante a longa
existência do compositor, e nela a improvisação é determinante (MARTINS,
1990, p. 94).
39
Pai do Francisco Mignone, Alferio Mignone, era flautista.
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Ela segue seu depoimento falando sobre o cuidado que Mignone teve “de dar a
essas composições o caráter mais natural possível fugindo o quanto possível a
influências estrangeiras” (CHIAFFARAELLI, 1947, p. 68), fazendo então comparação
com as famosas valsas de Ernesto Nazareth, cuja “linha melódica e a essência
denunciam a proveniência ‘chopiniana’” (ibid., p. 68). Braga aponta que as valsas de
Nazareth “são diferentes da tradução que o Mignone fez dessa valsa, [que] talvez o
Mignone tenha chegado mais perto, se a gente pudesse definir assim o que é que é essa
‘valsas brasileira’” (BRAGA, 2017).
De qualquer modo, como foi versado anteriormente, Mignone voltava às fontes
seresteiras populares por necessidade, nelas se reencontrando. E quando compôs as
Valsas de Esquina , ele estava obedecendo, nas palavras de Chiaffarelli, “a um
prepotente desejo de dar vida nova às músicas que lhe viviam na alma e no espírito
desde a juventude” (CHIAFFARELLI, 1947, p. 68). Por outro lado, ele também se
dispôs a criar as valsas “para que não [desaparecesse], como estava acontecendo, uma
significativa e genuína expressão da música popular brasileira” (CHIAFFARELLI,
1947, p. 68). O próprio Mignone estava bem ciente dessa intenção:
queiram. Elas se mantêm num ponto em que eu posso fazer alguma coisa, e
lembrei do meu tempo de seresteiro, daquelas Valsas e consegui em São
Paulo um grande número delas. Comecei a escrever, mas essas Valsas de
Esquina, que parecem escritas de um jato só, algumas levaram meses até eu
conseguir elaborar e tornar simples, sem parecer uma coisa vazia. Foi muito
difícil. Depois, eu fiz a série de Valsas Choro, quase que para me redimir das
primeiras, mas aí o cerebralismo entrou demais. Eu quis mostrar que são
brasileiras, enquanto as primeiras saíram brasileiras (MIGNONE, 1991, p. 7,
grifo meu).
O termo valsa br asileir a, como vimos, é um tanto duvidoso, porque não se trata
de uma só valsa brasileira, mas muitas. Araújo nos apontou diversos tipos. O que os
nacionalistas definiram como valsa brasileira, - aquela valsa lenta e seresteira fabricada
no meio de músicos populares no Rio de Janeiro nas décadas da virada do século XIX -,
com o intuito de forjar uma identidade musical brasileira, é apenas um deles.
Foi esse o tipo que a pesquisadora Verhaalen (1971) compreendeu como a ‘valsa
brasileira’. Com a sua ótica de fora, de estrangeira, ela declarou dúvidas em relação à
capacidade de ouvintes, com escuta e temperamento internacional, apreciarem essa
40
Verhaalen realizou entrevistas com Mignone em out.1969 e maio 1970.
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valsa. Podia, para estes, soar um tanto emocional e sentimental demais: “[essa valsa]
tem que ser julgada em termos brasileiros” (VERHAALEN, 1971, p. 44, tradução
minha), diz Verhaalen. Em contraste à jovialidade da valsa europeia, ela segue dizendo,
“a valsa brasileira é uma serenata cantante muito nostálgica, sempre em tom menor e
sem o pesado acento da valsa alemã”41 (ibid., p. 44, tradução minha). De forma
resumida, porém nítida, está aí definida uma valsa brasileira: seresteira, cantábile,
nostálgica, em tom menor, e contrastante à alegre dança que a originou.
Todavia, antes de realizar uma categorização das Valsas de Esquina cabe revisar
o que já foi escrito em relação à tipologia da valsa praticada no Brasil. Baptista
Siqueira, por exemplo, classificou as valsas no 2º Império em três grupos:
Azevedo, por sua vez discursando sobre os tipos de valsa brasileira que Mignone
captou para dentro das Valsas de Esquina , denomina quatro tipos:
a) Valsa de violão;
b) Valsa de pianeiros;
c) Serestas rasgadas;
d) Chorinhos caipiras (AZEVEDO, 1947).
Por outro viés o próprio Mignone aborda o caráter das suas Valsas de Esquina ,
dizendo que elas “tem caráter ora paulista, ora nazarethiano, por vias chopinianas, e
talvez italianizantes, mesmo, dependia talvez da figura a quem dedicávamos a música,
em geral era improviso” (LIÇÃO, 1978).
Agora, relembrando o anteriormente citado Araújo, este lista sete categorias de
valsas no Brasil de 1870 a 1940, a saber:
a) Valsa caipira;
b) Valsa bravura para concerto (como as de Carlos Gomes);
c) Valsinha sestrosa (choro);
d) Valsa rápida;
e) Valsa brilhante;
41
“[…] the Brazilian waltz is a very nostalgic, song-like serenade, always in minor and without the
heaviness of accentuation of the German waltz”.
1y novks em Musica
f) Valsa capricho;
g) Valsa lenta para piano (pianeiros do início do séc. XX) (ARAÚJO, 1994).
Você não pode levar um piano para as ruas, para debaixo da janela da amada.
Então, isso evoca um ambiente em que novamente a presença do violão [...]
tem um sentido figurado. Nas valsas de Mignone, esse violão está ali
simbolicamente, na mão esquerda, na baixaria, nos cantos [...], que os
violonistas chamam de ‘primas’ e ‘bordões’. Então, os bordões do violão eles
aparecem [na mão esquerda] (BRAGA, 2017).
Para uma maior clareza sobre a relação de contraste e semelhança das Valsas
entre si, assim como também a relação da série com a valsa brasileira em geral,
procurarei agora organizar as Valsas em categorias, usando dados colhidos através de
revisão bibliográfica sobre as características da valsa brasileira e as minhas análises das
12 Valsas de Esquina , seguindo um modelo de categorização descrito por Zbikowski
(2002).
Nesse modelo trata-se de categorias naturais (natural categories), referente a
origem delas na interação de seres humanos com o ambiente, mas Zbikowski também as
denomina Tipologia 1 (Typology 1)42 (ZBIKOWSKI, 2002, p. 39). Essa tipologia foi
organizada sobre “uma construção cognitiva estável chamada protótipo43, que
42
Tipologia 1 foi assim denominada por Zbikowski para diferenciar da Tipologia 2, que refere a
categorias que remetem a Aristóteles, também chamadas clássicas ou artificiais, porque em geral não são
uma representação análoga ao mundo natural (ZBIKOWSKI, 2002, p. 40-41).
1y novks em Musica
Quadro 3. Modinha, choro e valsa brasileira: resumo de características relativas aos atributos baixaria,
43
Essas noções sobre a Tipologia 1 foram elaboradas pelas pioneiras Eleanor Rosch e Carolyn Mervis
(ZBIKOWSKI, 2002, p. 41).
44
“[…] stable cognitive construct called a prototype, which encapsulated the statistically most-prevalent
features of members of the category and against which potential category members were compared”.
45
O uso do quadro, desenvolvido em pesquisas de inteligência artificial, foi sugerido por Lawrence
Barsalou (ZBIKOWSKI, 2002, p. 41).
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Quadro 4. Valores e especificidades das 12 Valsas de Esquina referentes aos atributos da categorização.
Valsa de Esquina Baixaria* Melodia Caráter** Forma***
Nº1 A: baixo melódico; Graus conjuntos e arpejos Soturno e seresteiro. ABA e coda.
B: baixaria. ascendentes.
Nº2 A: baixaria; A: Graus conjuntos Lento e mavioso; ABA.
B: baixo melódico. descendentes; Com entusiasmo e
B: saltos e graus conjuntos. brilhantismo.
Nº3 Baixaria: diálogo Graus conjuntos e Com entusiasmo. ABA e coda.
com melodia; arpejos ascendentes.
Coda: baixo
melódico.
1y novks em Musica
Nº6 Baixaria: diálogo Saltos combinados com Tempo de valsa ABA e coda.
com melodia. graus conjuntos. movimentada;
Muito expressivo;
Movendo e cantando
com brilhantismo;
Nº7 A: baixo melódico; Graus conjuntos e arpejos Vagaroso e muito ABA e coda.
B: baixaria em ascendentes. expressivo; (o canto
diálogo. com luminosidade);
Imitando a flauta
seresteira;
apaixonado.
Nº8 B: baixo melódico. A: grupos de colcheias Tempo de valsa ABA.
seguidas de notas de caipira.
repouso; saltos e graus
conjuntos;
B: graus conjuntos e arpejos
ascendentes.
Nº9 Raras baixarias. Graus conjuntos e arpejos Quase preludiando; ABA e coda.
ascendentes. Tempo de valsa
lenta;
Expressivo e
cantábile.
Nº10 Baixarias. Graus conjuntos, pequenos Lento, romântico e ABA e coda.
saltos ascendentes. contemplativo, molto
cantato.
Nº11 C: baixo melódico. A: Melodia de saltos Con spirito; ABCACBB.
grandes ascendentes; Imitando violão.
B: graus conjuntos e arpejos
ascendentes;
C: saltos grandes
ascendentes.
Nº12 B: baixarias. Graus conjuntos Vivo; ABA e coda.
combinados com arpejos Moderato grazioso;
ascendentes. Più vivo.
* Baixo melódico significa baixaria com papel de melodia. Baixaria refere a uma linha do baixo, que
dialoga com a melodia principal, se torna ativa quando esta está inativa.
** Esse atributo consta das indicações de caráter inscritas na partitura por Mignone.
*** Não são consideradas variações na repetição de uma mesma parte: uma seção A, quando repetida com
variação, continua A e não A¹ (A com alguma modificação).
Depois desse levantamento das características básicas de cada valsa, vou prosseguir
para a categorização propriamente dita. A categorização será exposta em seguida no
Quadro 5. Antes, porém, convém esclarecer os valores e especificidades a serem usados
dentro de cada atributo da categorização:
a) Baixar ia: todas as valsas a possuem em maior o menor grau, como bem
1y novks em Musica
b) Melodia:
a) Cantábile – melodia de graus conjuntos, normalmente descendentes,
combinados com arpejos ascendentes; nostálgica, sentimental e cantável,
à qual falta só a letra. Remete à seresta (BARBEITAS, 1995). Siqueira se
referiu à melodia de valsa em tom menor, como grupo de colcheias
seguido por nota longa de repouso;
b) Virtuosística – melodia de saltos combinados com graus conjuntos
(BARBEITAS, 1995);
c) Brincalhona – melodia de saltos grandes ascendentes e descendentes
(BARBEITAS, 1995).
c) Car áter :
a) Seresteiro – com representação alegórica de instrumentos típicos de
seresta muitas vezes presentes em indicações como: seresteiro; imitando
a flauta seresteira e assim em diante;
b) Brincalhão – andamento mais rápido, apesar do tom menor, apresenta
características da melodia brincalhona;
c) Chopiniano – apesar de contar como atributo ‘caráter’, aqui se trata de
influências estilísticas do referido compositor;
d) Brilhante – o caráter ao qual Araújo e Siqueira se referiram nas
respectivas classificações. Valsa grandiosa e virtuosística;
e) Violoneiro – remete a representação alegórica desse instrumento;
f) Caipira – um dos tipos listados por Araújo, e indicado por Mignone na
Valsa Nº 8: tempo de valsa caipira.
d) For ma:
a) ABA – esse valor se aplica às valsas que tem a forma ABA, indiferente se
tem também introdução ou coda ou ambos;
b) Rondó – esse valor só se aplica a Valsa Nº11, cuja forma é ABCACBB,
ou seja, não é estritamente rondó. Porém, remete ao rondó porque têm
três partes diferentes, - como é de costume no choro -, em vez de duas,
como na maioria das outras Valsas;
c) A – esse valor só se aplica à Valsa Nº4. Nela, a parte A se repete por três
vezes, sempre em texturas diferentes.
Chopiniano 1 Nº 9
Brilhante 2 Nº 3 e 12
Violoneiro 1 Nº 4
Caipira 1 Nº 8
FORMA ABA* 10 Todas menos Nº 4 e Nº 11
ABACA 1 Nº 11
A 1 Nº 4
* Valores do protótipo.
(fonte para método de categorização: ZBIKOWSKI, 2002).