As Músicas Que Cantamos para Nossas Crianças
As Músicas Que Cantamos para Nossas Crianças
As Músicas Que Cantamos para Nossas Crianças
Resumo:
Este artigo tem como tema as músicas que são cantadas para as crianças pequenas
e busca explorar seus conteúdos, no sentido de apontar tanto para conceitos de
infância e de criança como para valores sociais nelas presentes. Para tanto, duas
fontes de análise são utilizadas: uma enquete realizada com dez educadoras acerca
de seus hábitos e preferências musicais em sala (e o das crianças com quem
trabalham) e um levantamento de músicas em compilações, CDs e livros sobre
música infantil, identificando gêneros e selecionando uma pequena amostra para
análise. Os resultados mostram diferenças entre as músicas tradicionais
selecionadas, que tratam a criança como um “adulto em desenvolvimento” e as
contemporâneas, que abrem mais espaço para a criança ser criança, isto é, tendem
a valorizar uma cultura infantil diversa da do adulto.
Summary:
This article focuses on the themes of the songs that we sing to young children, in an
attempt to explore their contents, trying to identify both concepts of childhood and
social values embedded in them. To that aim, we use two sources in our analyses: a
questionnaire filled out by ten teachers, inquiring about their (and their children’s)
musical preferences and use in the activity room; a survey of songs in collections,
CDs and books of children’s songs, identifying genres and selecting a small sample
for further analysis. Results show a difference between the traditional songs, which
see the child as “an adult in the making” and the contemporary songs, which allow
more room for the child to be a child, that is, the latter ones tend to value a childhood
culture that is different from an adult culture.
INTRODUÇÃO
O conceito de infância
A música na infância
Tanto Maffioletti (2001) como Brito (2003) mostram que quando a criança
ingressa na creche encontra certo tipo de ambiente musical no qual predomina a
música de rotina e de transição (Bom dia!, Meu Lanchinho etc.). Mas não raro
encontramos também nas aulas de música (com professor especializado, que
experimenta diferentes instrumentos e brincadeiras cantadas), músicas cantadas na
roda de conversa e músicas para a hora do sono.
Brito narra como a música na EI é tratada de forma rotineira e objetiva,
atendendo a um currículo, uma expectativa e, assim, o espaço para a exploração
fica mais restrito do que a necessidade de se cumprir um dever (exemplo, preparar
música para ao dia das mães). A autora aponta para avanços no espaço pedagógico
em áreas como a escrita e o desenho, o que contrasta com uma estagnação com
relação à música, que segue sendo mecânica e desprovida de significado. Brito
ressalta ainda que o trabalho musical na EI dedica tempo demasiado ao espetáculo
musical, ensaiando apresentações e comemorações que nada mais são do que uma
repetição desprovida de significados para a criança, o sujeito da nossa história.
Por fim, Brito recomenda que a música seja explorada em toda a sua riqueza:
incluindo a escuta, o improviso (Maffioletti concorda aqui com a autora), o espaço
para a criação e experimentação vocal, assim como para o uso e criação de
instrumentos musicais.
Segundo Maffioletti (op.cit.), a música na EI ocupa ainda outro lugar. No
momento de inserção da criança na instituição — um ambiente novo e desconhecido
—, ela pode encontrar o familiar nas músicas que já está acostumada a ouvir em
casa. A música, nesse caso, faz a transição da casa para o ambiente educacional.
J. Nogueira (2002) relaciona a música ao desenvolvimento da criança (social,
afetivo e cognitivo) e o espaço que ocupa — ou deve ocupar — na Educação
Infantil. O autor faz uma ressalva a respeito da importância desigual que se dá ao
desenvolvimento cognitivo, deixando de lado o social e o afetivo. Especificamente
com relação à música, ela é vivida de formas diferentes nos diversos contextos
sociais em que existe e nos quais é construída.
M. Nogueira (2003) cita estudos que mostram a sintonia do bebê com a
música, acalmando-se ao som de uma música branda e agitando-se com músicas
de andamento mais rápido. Mas é quando fala do social e do cultural que a autora
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toca no ponto que concerne este trabalho. O universo musical no qual a criança se
insere muda de país para país, assim como entre regiões de um mesmo país. Os
significados transmitidos através das músicas são de interesse para nossa
discussão. Estes significados se encarregam de transmitir para a criança os valores
daquela sociedade e estes valores são afirmados — através da música — como
sendo bons ou “válidos”.
Em outro trabalho, M. Nogueira (2000) analisa o repertório recomendado pelo
RCNEI e aponta que nos últimos anos houve um declínio da prática da brincadeira
de roda entre as crianças. Quer seja pela mídia, internet, ou confinamento urbano,
as crianças dedicam hoje menos tempo do que dedicavam no passado às
brincadeiras de roda.
Por outro lado, as brincadeiras de roda ganharam um espaço quase que cativo
nas instituições de EI. A autora pergunta então: por que preservar a brincadeira de
roda? Para identificar os motivos de se trabalhar com cantigas de roda cita
Abramovich (1985). Primeiramente, há a identidade cultural, que é transmitida
através das cantigas. Em segundo lugar, o amadurecimento emocional (as músicas
tipicamente vêm carregadas de emoções). Em terceiro, o conhecimento do corpo
(nomeando e utilizando as partes). Por fim, a brincadeira pela brincadeira.
M. Nogueira comenta também as sugestões dadas pelo RCNEI para músicas a
serem usadas na EI. A autora aponta a lista como primando “pelo rigor técnico e,
principalmente, pela adequação ao universo infantil, isto é, promovem a boa música
sem buscar a erotização precoce nem o consumismo inveterado” (2000, p.6), mas
nota a ausência de alguns compositores de destaque, como Bia Bedran e
Braguinha. Em seguida, a autora elege suas próprias categorias para selecionar as
músicas para a Educação Infantil.
A seguir discutimos algumas das categorizações de músicas infantis existentes
na literatura brasileira, apresentando, de início, as categorias de Veríssimo de Melo,
que serviram como base para as classificações de outros autores.
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 132
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Mascarenhas selecionamos algumas canções que ainda são cantadas nos dias de
hoje, mas em versões um pouco modificadas.
Vale elucidar que quando usamos o termo “tradicional” salientamos o contraste
entre aquelas músicas que são cantadas há muitas décadas, e que constam nos
livros como músicas tradicionais do Brasil (ex., BRANDÃO & FROESELER, 1997;
FELIPE, 1999) e aquelas que são mais recentes, compostas e/ou gravadas por
músicos da atualidade.
As músicas contemporâneas foram selecionadas a partir das músicas
mencionadas em enquetes feitas com dez professoras de EI acerca das músicas
que elas cantam e ouvem com suas crianças. A pesquisa de músicas também foi
realizada na internet, e em diversas compilações no formato livro e no formato CD.
Músicas tradicionais/folclóricas
A Canoa Virou
A canoa virou
Por deixarem-na virar;
Foi por causa de Maria,
Que não soube remar.
Siri pra cá
Siri pra lá;
Maria é velha (feia, na versão contemporânea)
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Peixe Vivo
Como pode um peixe vivo
Viver fora da água fria?
(bis)
Como poderei viver,
Como poderei viver,
Sem a tua, sem a tua,
Sem a tua companhia?
(bis – dois últimos versos)
Os pastores desta aldeia
Já me fazem zombaria. (bis)
Por me ver assim chorando,
Por me ver assim chorando.
Terezinha de Jesus
Terezinha de Jesus,
De uma queda foi ao chão,
Acudiram três cavaleiros
Todos três de chapéu na mão.
O primeiro foi seu pai,
O segundo seu irmão
O terceiro foi aquele
A quem ela deu a mão.
Terezinha de Jesus
Levantou-se lá do chão
E sorrindo disse ao noivo:
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Ó Ciranda, Cirandinha
Ó ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Uma volta, meia volta
Volta e meia vamos dar.
(bis – dois últimos versos)
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou.
(bis – dois últimos versos)
Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar.
Vamos ver dona Maria,
Que já está pra se casar.
(bis – dois últimos versos)
Por isso, dona Maria,
Entre dentro desta roda,
Diga um verso bem bonito,
Diga adeus e vá-se embora.
(bis – dois últimos versos)
Fui no Itororó
(domínio público)
Fui no Itororó
beber água não achei
Encontrei bela morena
Que no Itororó deixei.
Aproveite minha gente,
Que uma noite não é nada,
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ANÁLISE E DISCUSSÃO
A letra da música A Canoa Virou mudou pouco através dos tempos. Fala de
uma canoa e da responsabilidade de quem deixou que ela virasse. Na versão de
Mascarenhas (1956) a canção diz que a fulana “é velha e quer casar”; na versão
contemporânea, canta-se “ela é feia e quer casar” (Palavra Cantada). A música tem
alguns elementos que valem ser notados. Primeiramente, a inclusão da criança na
letra da música faz com que a canção fique mais lúdica e participativa. Em segundo
lugar, há na música uma supervalorização do casamento. Seja na versão
contemporânea (“feia”) ou na tradicional (“velha”) nota-se uma preocupação com o
matrimônio já desde a tenra idade. Mas esta preocupação toma formas diferentes
nas versões antiga e contemporânea: na versão “velha” valoriza-se a idade e o
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A Barata conta as peripécias de uma barata mentirosa. Ela conta mentiras para
afetar uma posição social que não tem. O narrador sabe a verdade e revela como
ela é de fato pobre e feia. A letra contém humor, rimas inesperadas e engraçadas.
Nas categorias apresentadas anteriormente esta música se encaixaria nas
“engraçadas e/ou satíricas” (PIMENTEL e PIMENTEL, 2003).
Fui morar numa casinha também se encaixa na categoria “animal”. Nela, os
bichos zombam do narrador, que mora em uma casa infestada com diversas pestes.
Uma das versões inclui mais duas estrofes: na primeira a casa está enfeitada de
flores – mudando drasticamente do tema sarcástico para o amoroso; na segunda
volta o tema da infestação (de morcegos) e traz o contraste da princesa com a
bruxa, retomando assim o sarcasmo. Boneca de lata igualmente é uma música com
sarcasmo. Mas também é educativa. A boneca bate diferentes partes do corpo no
chão e o tempo para desamassá-la é o contexto para ensinar a criança a contar (no
caso, as horas).
Na música Criança não Trabalha os compositores dialogam com o mundo
infantil da forma como é concebido hoje em dia. A canção cita itens materiais que
crianças usam no dia-a-dia (“lápis”, “chiclete”, “merenda” etc.) e também
brincadeiras. A letra foca o mundo infantil, ao invés de valorizar o adulto, revelando
assim um diálogo com aquela criança moderna de que Sarmento (2000) fala. A
música conclui com o bordão “criança não trabalha/criança dá trabalho” colocando-a
em contraste com o adulto, mas também como dependente deste, pois “dá trabalho”.
Em suma, na concepção expressa pela letra, a infância tem existência própria,
diferente da do adulto, mas interligada na forma de dependência.
Já Sabe trata do desenvolvimento infantil; as etapas a serem conquistadas e
que marcam o crescimento da criança. A canção valoriza a autonomia e
independência da criança como objetivos de conquista no desenvolvimento. Há no
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final a presença do carinho — “no colo quer carinho” — demonstrando que apesar
de todos os crescimentos e conquistas a criança ainda gosta de colo e de carinho.
Isso ilustra a valorização do apego e do afeto na sociedade brasileira, dissociando-
os da dependência, ou falta de autonomia. Desta forma, diferencia-se de muitas
interpretações já tradicionais da cultura brasileira que vêem na suposta afetuosidade
maior do brasileiro (em comparação com os europeus e norte-americanos) uma falta
de autonomia (HOLANDA, 1997).
Em Lua de Cristal (1990), a criança é lúdica, imaginativa e sonha muito. A idéia
que passa é que basta a criança sonhar para seu sonho se realizar. O destino, o
esforço, a sorte, a felicidade, a presença de Deus são outros temas presentes na
letra da música. Os apelos são lugar-comum e como se trata de música para as
massas, tem como objetivo criar/trazer esperança para os “desesperados”.
Transmite também um sentimento de inferioridade, pois se você quer ser algo
diferente, então o que você é não é bom. A letra não dialoga com o mundo real de
seu público, mas com o que ele pode/deve vir a ser.
A segunda música escolhida, Doce Mel, é uma música mais antiga (XUXA,
1986) que traz a ideia de criança como aquela que brinca, se suja, faz coisa errada,
é livre, gosta de açúcar e de faz de conta. Dialoga mais com o que há de “universal”
na infância da forma como é concebida nos dias de hoje. Enfatiza a liberdade de
fazer o que quiser e brincar do que quiser. A criança é livre hoje e presa amanhã
(como adulto). No cenário desenhado pela letra, o capitalismo ou a educação são
castradores. Por isso há que se gozar da vida enquanto se pode.
Em suma, as músicas contemporâneas tratam de temas amorosos, satíricos e
sarcásticos (como as tradicionais), mas as autorais (que não são de domínio
público) têm também a preocupação de dialogar com o mundo infantil da forma
como ele é concebido no mundo contemporâneo: são educativas, retratam o
cotidiano infantil e suas aspirações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, H. & FROESELER, M das G. O livro dos jogos e das brincadeiras: para
todas as idades. Belo Horizonte: Editora Leitura, 1997.
DINIZ, L. & DEL BEN, L. Música na educação infantil: um mapeamento das práticas
e necessidades de professores da rede municipal de ensino de Porto Alegre. Revista
da ABEM. Porto Alegre, V.15, 27-37, set.2006.
LINO, D. Barulhar: a música das culturas infantis. Revista da ABEM, Porto Alegre, v.
24, 81-88, set. 2010.
TATIT, P. & PERES, S. Canções Curiosas. São Paulo: Palavra Cantada, 1998.
TATIT, P & PERES, S. Canções de Brincar. São Paulo: Palavra Cantada, 1996.
Submetido em:
Aceito em: Agosto de 2011
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 150
Anexo 1
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8. Quais são as músicas que você MENOS gosta de cantar/tocar com as
crianças?
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9. Quais são as músicas mais pedidas pelas crianças?
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 152
Anexo 2
Músicas contemporâneas e de domínio publico selecionadas
Contemporâneas
A barata
(domínio público)
Boneca de Lata
(domínio público) Versão: Eliana
Minha boneca de lata bateu a cabeça no chão...
levou quase uma hora pra fazer a arrumação
Desamassa aqui, pra ficar boa...
Minha boneca de lata bateu o ombro no chão...
Levou mais de duas horas pra fazer a arrumação
Desamassa aqui, desamassa ali,
Desamassa aqui, desamassa ali pra ficar boa...
Já Sabe
(Sandra Peres/Luiz Tatit)
Já gosta da mamãe
Já gosta do papai
Não sabe tomar banho não
Já sabe tomar banho
Já quer ouvir histórias
Não sabe pôr sapato não
Já sabe pôr sapato
Já come até sozinho
Mas nunca escova os dentes não
Já escova bem os dentes
Já vai até na escola
Não sabe jogar bola não
Já sabe jogar bola
Já roda, roda, roda
Não sabe pular corda não
Já sabe pular corda
No colo quer carinho
Lua de cristal
Que me faz sonhar
Faz de mim estrela
Que eu já sei brilhar
Lua de cristal
Nova de paixão
Faz da minha vida
Cheia de emoção
Lua de cristal
Que me faz sonhar
Faz de mim estrela
Que eu já sei brilhar
Lua de cristal
Nova de paixão
Faz da minha vida
Cheia de emoção
Em qualquer faz-de-conta
A gente apronta
É bom ser moleque
Enquanto puder