As Músicas Que Cantamos para Nossas Crianças

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As Músicas Que Cantamos Para Nossas Crianças: O Que Dizem?


Zena Eisenberg (PUC-Rio)
Cristina Carvalho (PUC-Rio)

Resumo:
Este artigo tem como tema as músicas que são cantadas para as crianças pequenas
e busca explorar seus conteúdos, no sentido de apontar tanto para conceitos de
infância e de criança como para valores sociais nelas presentes. Para tanto, duas
fontes de análise são utilizadas: uma enquete realizada com dez educadoras acerca
de seus hábitos e preferências musicais em sala (e o das crianças com quem
trabalham) e um levantamento de músicas em compilações, CDs e livros sobre
música infantil, identificando gêneros e selecionando uma pequena amostra para
análise. Os resultados mostram diferenças entre as músicas tradicionais
selecionadas, que tratam a criança como um “adulto em desenvolvimento” e as
contemporâneas, que abrem mais espaço para a criança ser criança, isto é, tendem
a valorizar uma cultura infantil diversa da do adulto.

Palavras-chave: músicas infantis; conceitos de infância; desenvolvimento infantil.

The songs we sing to our children: what do they say?

Summary:
This article focuses on the themes of the songs that we sing to young children, in an
attempt to explore their contents, trying to identify both concepts of childhood and
social values embedded in them. To that aim, we use two sources in our analyses: a
questionnaire filled out by ten teachers, inquiring about their (and their children’s)
musical preferences and use in the activity room; a survey of songs in collections,
CDs and books of children’s songs, identifying genres and selecting a small sample
for further analysis. Results show a difference between the traditional songs, which
see the child as “an adult in the making” and the contemporary songs, which allow
more room for the child to be a child, that is, the latter ones tend to value a childhood
culture that is different from an adult culture.

Keywords: children’s songs; concepts of childhood; child development


Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 126

INTRODUÇÃO

Neste artigo analisamos músicas que são cantadas para as crianças


pequenas buscando explorar seus conteúdos, no sentido de apontar tanto para
conceitos de infância e de criança como para valores sociais nelas presentes. Para a
realização desta investigação, utilizamos como fonte as escolhas musicais de
professoras da Educação Infantil e um levantamento de músicas infantis na literatura
e na atualidade, identificando gêneros e selecionando uma pequena amostra para
análise. O estudo foi realizado no contexto de um curso de especialização em
Educação Infantil do município do Rio de Janeiro.

O conceito de infância

O valor dado à criança, seu papel na sociedade e o que se entende por


infância sofreram alterações através dos séculos. Diversos autores pesquisaram e
descreveram as concepções de infância encontradas na nossa história, através da
investigação de diferentes fontes, como por exemplo, obras de arte (ARIÈS, 1981),
relatos de viajantes (LEITE, 1999) e teses acadêmicas (ESPÍRITO SANTO et al.,
2006).
O maior tratado de concepções de infância ainda é de Ariès (1981). Seu livro
aborda o desenvolvimento das concepções de infância através dos séculos na
Europa e, particularmente, na França. A infância, naquela época, era vista como um
estado de transição para a vida adulta. Assim, o conceito de infância da forma como
o entendemos atualmente, ou seja, um longo processo gradual de desenvolvimento
e aprendizado, é uma construção moderna.
Leite (1999), ao discutir os relatos de viajantes ao Brasil, mostra uma imagem
da criança brasileira como adulta, sem inocência, sem educação e sem diferença em
relação aos adultos. Por exemplo, do relato de Edgecumbe de 1886, a autora cita:
“No Brasil não existem crianças no sentido inglês. A menor menina usa colares e
pulseiras e meninos de oito anos fumam cigarros” (apud LEITE, 1999, p. 37). Já
Pancera (1994) demonstra através da análise dos vocábulos italianos como o
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significado de infância, naquele contexto cultural, carrega noções de criança sem


fala, ignorante, inferior.
Mais recentemente, a literatura da sociologia da infância focaliza em uma
criança que tem cultura própria que difere dos adultos. Para SARMENTO, por
exemplo: “O lugar da infância na contemporaneidade é um lugar em mudança. A
modernidade estabeleceu uma norma da infância, em larga medida definida pela
negatividade constituinte: a criança não trabalha, não tem acesso directo ao
mercado, não se casa, não vota nem é eleita, não toma decisões relevantes, não é
punível por crimes (é inimputável)” (apud DELGADO e MULLER, 2006, p. 17-18).
Para esta linha de pesquisa, a mudança na concepção de criança cria uma
necessidade de olharmos para o mundo que ela constrói e interpreta, visando seu
ponto de vista e não o nosso. Assim, como professores ou pesquisadores, olhamos
a criança pelos seus olhos, seus interesses, suas curiosidades, observando e
perguntando a ela.

A música na infância

Buscando o diálogo com a música, Jurado Filho (1985) traça a trajetória da


cantiga de roda, mostrando que ela começou como manifestação adulta, contexto de
flerte, em seguida foi incorporada ao mundo infantil, sendo cantada por crianças e
adultos igualmente, para enfim ocupar um lugar exclusivo na infância. Portanto, sua
função também mudou através dos anos. Ela começou com a função sócio-afetiva
de insinuação amorosa entre pares, sendo sua manifestação espontânea e
cotidiana, para tornar-se uma atividade pedagógico-cultural (assim, planejada), um
lazer programado especificamente para crianças pequenas (nos dias atuais).
Segundo Maffioletti (2001), a mãe que canta para a criança a música infantil
está ao mesmo tempo construindo um forte laço afetivo com a criança e preparando-
a para o desenvolvimento afetivo, pois fornece elementos de sua cultura para que a
criança possa se relacionar com os outros de sua comunidade e formar novos laços
afetivos. É, portanto, um movimento de afeto no sentido mais amplo do termo: eu te
amo e te preparo para amar os outros (ou algo assim).
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J. Nogueira (2002) apresenta uma breve trajetória do desenvolvimento da


música na infância e faz um paralelo entre o desenvolvimento da fala e do canto. O
autor cita Vygotsky ao discutir o papel do balbucio no desenvolvimento da fala e
também da música. Segundo Nogueira, o balbucio é a primeira manifestação do
desenvolvimento do canto e o elo entre o canto e a fala. Dos 12 aos 18 meses,
enquanto o balbucio começa a se transformar em palavras distintas, as vogais se
alongam de maneira claramente musical.
J. Nogueira observa também que a música chega primeiramente pela melodia.
As palavras que compõem a letra da música servem de “meio de transporte” para a
melodia. Assim, tanto crianças como adultos frequentemente cantam músicas para
as quais não conseguem traduzir a história ou o significado. O significado vem
depois da melodia e requer uma experiência consciente de compreensão, seja lendo
a letra da música ou ouvindo-a com atenção.
Assim como Vygotsky, J. Nogueira acredita que é a partir dos dois anos de
idade que a criança adquire uma boa compreensão e o uso adequado da linguagem.
Para o autor, nessa mesma época a música infantil passa a ter um caráter
socializador e revela a “sua ‘impressão cultural’, como um selo personalizado de
cada cultura” (op. cit., p. 16). A criança nessa idade está ávida por qualquer tipo de
brincadeira com sonoridades vocais. Este período é ideal então para apresentá-la às
parlendas, aos fonemas engraçados, vogais longas e curtas, rimas e assim por
diante. Desta forma, pensando no uso da música na Educação Infantil, é importante
que a seleção seja criteriosa, tendo-se sempre em mente o que se quer transmitir da
cultura para as crianças. Ou seja, trata-se de uma decisão pedagógica.
A partir dos três e quatro anos, quando as crianças estão testando os limites
das regras e normas da sociedade, elas já têm familiaridade com diversas cantigas e
então arriscam transgressões também com elas. Trocam a letra das músicas e
brincam com diferentes rimas e significados. A liberdade que sentem ao poder
manipular algo que parece rígido e sedimentado revela um campo fértil para o
exercício da criatividade e do aprendizado. J. Nogueira chama este momento de
“canto espontâneo” (op. cit., p. 16).
Pimentel e Pimentel (2003), citando Garcia (1999, apud Pimentel e Pimentel),
ressaltam o papel das cantigas e das brincadeiras de roda para o desenvolvimento
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da criança. Nelas as crianças se socializam, trabalham a amizade e solidariedade, e


desenvolvem a capacidade de liderança, iniciativa, raciocínio rápido e esperteza,
reforçando também sua autoestima.

O tratamento da música na Educação Infantil

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI, BRASIL,


1998) defende a música como uma forma universal de expressão e dá ênfase aos
brinquedos cantados como legítimas expressões da infância, que carregam a
tradição oral da cultura.
Na Educação Infantil (EI), a canção ocupa um lugar especial que passa a ser
minimizado no Ensino Fundamental. Os dados obtidos na pesquisa realizada por
DINIZ & DEL BEN (2006) apontam que a música tem espaço garantido nesse
segmento: 99,19% das professoras entrevistadas ressaltaram a presença da música
em suas práticas pedagógicas. É inconteste o valor e sua onipresença na nossa vida
e na de nossas crianças (M. NOGUEIRA, 2003). Existem até mesmo autores que
argumentam que a música nunca foi vivida de forma tão intensa como nos tempos
atuais (SNYDERS, 1992, apud M. Nogueira, 2003).
Tiago (2002) faz um breve panorama da presença da música na EI, mostrando
que seu uso se dá em diversas atividades, como recreação, canção e
comemoração, e cita Cauduro (1989, apud Tiago) quando defende a importância da
música para suprir a necessidade da criança de cantarolar, dançar, e se
movimentar, inventando, brincando, correndo, saltando etc. O autor discute também
o uso da música na Educação Infantil como mecanismo de camuflagem do poder e
controle escolar. Assim a música entra na EI com músicas de comando (como “Meu
lanchinho”) para organizar e direcionar o comportamento das crianças.
Veríssimo de Melo (s.d.) já apontava para o uso das brincadeiras de roda nos
jardins de infância, por serem uma brincadeira completa, em que a criança pode
exercitar seu raciocínio e memória, seu gosto pelo canto e a dança.
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Tanto Maffioletti (2001) como Brito (2003) mostram que quando a criança
ingressa na creche encontra certo tipo de ambiente musical no qual predomina a
música de rotina e de transição (Bom dia!, Meu Lanchinho etc.). Mas não raro
encontramos também nas aulas de música (com professor especializado, que
experimenta diferentes instrumentos e brincadeiras cantadas), músicas cantadas na
roda de conversa e músicas para a hora do sono.
Brito narra como a música na EI é tratada de forma rotineira e objetiva,
atendendo a um currículo, uma expectativa e, assim, o espaço para a exploração
fica mais restrito do que a necessidade de se cumprir um dever (exemplo, preparar
música para ao dia das mães). A autora aponta para avanços no espaço pedagógico
em áreas como a escrita e o desenho, o que contrasta com uma estagnação com
relação à música, que segue sendo mecânica e desprovida de significado. Brito
ressalta ainda que o trabalho musical na EI dedica tempo demasiado ao espetáculo
musical, ensaiando apresentações e comemorações que nada mais são do que uma
repetição desprovida de significados para a criança, o sujeito da nossa história.
Por fim, Brito recomenda que a música seja explorada em toda a sua riqueza:
incluindo a escuta, o improviso (Maffioletti concorda aqui com a autora), o espaço
para a criação e experimentação vocal, assim como para o uso e criação de
instrumentos musicais.
Segundo Maffioletti (op.cit.), a música na EI ocupa ainda outro lugar. No
momento de inserção da criança na instituição — um ambiente novo e desconhecido
—, ela pode encontrar o familiar nas músicas que já está acostumada a ouvir em
casa. A música, nesse caso, faz a transição da casa para o ambiente educacional.
J. Nogueira (2002) relaciona a música ao desenvolvimento da criança (social,
afetivo e cognitivo) e o espaço que ocupa — ou deve ocupar — na Educação
Infantil. O autor faz uma ressalva a respeito da importância desigual que se dá ao
desenvolvimento cognitivo, deixando de lado o social e o afetivo. Especificamente
com relação à música, ela é vivida de formas diferentes nos diversos contextos
sociais em que existe e nos quais é construída.
M. Nogueira (2003) cita estudos que mostram a sintonia do bebê com a
música, acalmando-se ao som de uma música branda e agitando-se com músicas
de andamento mais rápido. Mas é quando fala do social e do cultural que a autora
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toca no ponto que concerne este trabalho. O universo musical no qual a criança se
insere muda de país para país, assim como entre regiões de um mesmo país. Os
significados transmitidos através das músicas são de interesse para nossa
discussão. Estes significados se encarregam de transmitir para a criança os valores
daquela sociedade e estes valores são afirmados — através da música — como
sendo bons ou “válidos”.
Em outro trabalho, M. Nogueira (2000) analisa o repertório recomendado pelo
RCNEI e aponta que nos últimos anos houve um declínio da prática da brincadeira
de roda entre as crianças. Quer seja pela mídia, internet, ou confinamento urbano,
as crianças dedicam hoje menos tempo do que dedicavam no passado às
brincadeiras de roda.
Por outro lado, as brincadeiras de roda ganharam um espaço quase que cativo
nas instituições de EI. A autora pergunta então: por que preservar a brincadeira de
roda? Para identificar os motivos de se trabalhar com cantigas de roda cita
Abramovich (1985). Primeiramente, há a identidade cultural, que é transmitida
através das cantigas. Em segundo lugar, o amadurecimento emocional (as músicas
tipicamente vêm carregadas de emoções). Em terceiro, o conhecimento do corpo
(nomeando e utilizando as partes). Por fim, a brincadeira pela brincadeira.
M. Nogueira comenta também as sugestões dadas pelo RCNEI para músicas a
serem usadas na EI. A autora aponta a lista como primando “pelo rigor técnico e,
principalmente, pela adequação ao universo infantil, isto é, promovem a boa música
sem buscar a erotização precoce nem o consumismo inveterado” (2000, p.6), mas
nota a ausência de alguns compositores de destaque, como Bia Bedran e
Braguinha. Em seguida, a autora elege suas próprias categorias para selecionar as
músicas para a Educação Infantil.
A seguir discutimos algumas das categorizações de músicas infantis existentes
na literatura brasileira, apresentando, de início, as categorias de Veríssimo de Melo,
que serviram como base para as classificações de outros autores.
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As categorias de músicas infantis

Mais recentemente, Pimentel e Pimentel (2003) sinalizam a preocupação das


músicas de roda com o matrimônio, com algumas cantigas descrevendo o processo
que leva ao casamento. Os autores citam o exemplo de Therezinha de Jesus que dá
a mão ao pai, ao irmão e, por fim, ao futuro marido, e apresentam a versão da
música encontrada na região sul do Brasil, em que a idade da menina é marcada na
letra (“uma menina de doze anos/quebrou a perna e foi ao chão...”). Esta
modificação deixa evidente uma preocupação com o sentido transmitido pela letra
da música e uma marcação mais explícita da idade de reprodução da menina.
Pimentel e Pimentel (op.cit.) revisam as classificações de Veríssimo de Melo
(1985) e oferecem sua própria classificação, que contém músicas: Amorosas,
Religiosas, Engraçadas e satíricas, Imitativas, Históricas, Animais, Várias.
Das 124 cantigas de roda pesquisadas pelos autores em Cabedelo (Paraíba),
61 pertenciam à categoria “Amorosas”, o que eles interpretam como sendo uma
preferência das meninas (mais assíduas da roda) pelo tema.
Olhando apenas as cantigas de ninar presentes no mundo como um todo, Ilari
et al. (2002) encontram tipos diferentes, com base nas letras das músicas. O
elemento em comum a todas as cantigas analisadas é o objetivo final de fazer com
que a criança durma. Os motivos encontrados pelos autores incluem: o lamento, a
súplica para que o bebê durma, a ameaça com monstros imaginários ou reais, o
castigo, a recompensa, a busca por tranquilizar o bebê e o agradecimento aos
deuses.

O que não se discute

Diversos trabalhos compilam músicas infantis, mas poucos analisam seu


conteúdo de forma temática e histórica. Madeira (2002) aponta que a música erudita
ocupa um lugar cativo nos currículos cristalizando seu posto de padrão e
perpetuando a noção de que música boa é a erudita. Aquela que mais se ouve — a
popular — é relegada a um lugar menor (mesmo que recentemente haja um
crescimento da sua presença nos currículos universitários; ver BARBEITAS, 2002;
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os cursos de Música da UFBA e da UNICAMP, por exemplo). Para a autora, esta


escolha curricular tem repercussão de dimensões maiores que a simples formação
de estudantes de música. Ela exclui a cultura que é nacional, em favor de uma
cultura que é estrangeira, contribuindo ainda mais para a baixa autoestima e a falta
de incentivo à produção nacional.
O trabalho que mais se aproxima daquele aqui proposto foi realizado por Terry
(1997). A autora faz uma análise de músicas populares brasileiras que falam de
crianças e como elas são refletidas nessas músicas. Faz parte de sua seleção
canções de Chico Buarque, Dorival Caymmi, Renato Russo, entre outros. A autora
encontra nessas canções a imagem da criança como miniatura de adulto, como
anjo, o sentimento nostálgico da infância e a infância dura e sofrida de uma criança
pobre. Ela esclarece que as diferenças no tratamento da infância vêm em grande
parte da escolha do compositor com relação a qual eu lírico adotar — um que fala do
outro, de seus filhos ou de si mesmo. Há ainda um terceiro tratamento da infância:
aquele que trata a criança pelo que ela é e pela sua ótica de criança. Por fim, Terry
(op.cit.) conclui sua análise refletindo sobre o papel do adulto e do educador, na
prática profissional com crianças, e chamando a atenção para a importância de a
criança sentir-se e ser olhada e do adulto vê-la em suas múltiplas facetas, em sua
complexidade, ao invés de reduzi-la a um ideal ou um estereótipo.
Em seu livro, Brito (2003) discute o que é o som e quais suas qualidades e
relata também, mesmo que brevemente, o modo como o que é considerado música
se alterou através dos séculos. Para a autora, “como uma das formas de
representação simbólica do mundo, a música, em sua diversidade e riqueza,
permite-nos conhecer melhor a nós mesmos e ao outro — próximo ou distante.”
(op.cit., p. 28).
Maffioletti (2001) nota uma preocupação com as músicas “populares”, aquelas
que não são desejadas no ambiente de EI, mas que para as crianças sua proibição
é incompreensível — “se minha mãe gosta, porque não posso gostar?” Ela aponta
que a melhor forma de “combater” a cultura de massa, que domina os meios de
comunicação é justamente trazendo-a para dentro da educação, debatendo e
questionando-a, desconstruindo assim estereótipos e preconceitos e também
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permitindo à criança trabalhar esses significados em um ambiente seguro, onde


preconceitos podem ser problematizados e discutidos.
A autora também alerta para o uso deste tipo de música como “pano de fundo”
enquanto as crianças estão fazendo atividades. Sugere títulos de CDs que
recomenda por sua riqueza de sentidos e melódica, entre outros. Critica certos
gêneros musicais infantis que julga não terem sentido algum, serem uma repetição
massificante de ritmo e de refrão com a intenção única de marcar a memória da
criança no menor espaço de tempo. Para Maffioletti (op.cit.), o conceito de criança
que essas músicas trazem é o de “bobinha”, “que não pensa e vive no mundo da
fantasia” (op.cit., p. 128).

Música de criança e música de adulto

Pimentel e Pimentel (2003) datam o surgimento da cantiga de roda infantil nas


rotinas de dança dos adultos que, já desde tempos primitivos, têm o hábito de
dançar e cantar em volta numa roda. Portanto, para os autores, teria surgido então
do hábito da criança de imitar o mundo adulto.
Ostetto (2004) discute o que é música de criança e o que é música de adulto e,
mais importante ainda, o que é música boa para criança e o que não é. Seu artigo
começa com certa nostalgia pela infância perdida e idealizada, com cantigas
tradicionais e brincadeiras singelas. Transporta-nos então para o presente, onde as
salas de EI estão “invadidas” por músicas populares contemporâneas tomando o
lugar das tradicionais e folclóricas. O argumento chave da autora é que ao incluir
músicas de cultura de massa na rotina da sala as educadoras julgam estar
respeitando o gosto das crianças, mas na verdade estão ignorando a diversidade
musical possivelmente existente entre as crianças e ativamente massificando-as.
Assim, as educadoras vivem a ilusão de que respeitam as crianças (“elas gostam”),
quando na verdade ignoram suas diferentes vivências.
A autora destaca a responsabilidade das professoras de EI de optar por “seguir
a moda” usando as crianças como subterfúgio. Conforme ressalta LINO (2010, p.
81), “num momento histórico em que se pretende ver conquistada a obrigatoriedade
do ensino de música na escola, os estudos que tenham como foco investigativo as
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relações articuladas entre música, infância e educação parecem tomar lugar de


destaque nos debates contemporâneos”.
Ostetto (op.cit.) propõe então que o uso da música na EI seja criterioso, isto é,
que as músicas que lá chegam sejam sim questionadas, mas não de uma “forma
racional, explicativa, didática” (2004, p. 58). Predica também que é tarefa da escola
ampliar o repertório cultural das crianças, colocando à sua disposição uma
diversidade de tipos de músicas.
Algumas das músicas de que a autora fala, como a sertaneja e as de crianças
adolescentes, também estão presentes na EI, mas, como a proposta deste trabalho
é analisar o conteúdo conceitual de músicas que são feitas/cantadas para crianças
pequenas, as categorias sertaneja e adolescência não pertencem ao escopo da
presente análise. O motivo para sua exclusão é justamente manter o denominador
comum entre as cantigas tradicionais e as contemporâneas, pois acreditamos que
elas tenham as crianças pequenas como público alvo principal e, arriscamos dizer,
exclusivo (nos seus usos atuais).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Pesquisa e seleção de músicas

A coleta de fontes escolhida para a realização desta investigação consistiu de


duas etapas: (1) pesquisa e seleção de músicas tradicionais/folclóricas, (2) pesquisa
e seleção de músicas contemporâneas (internet, CDs e enquetes com professoras
da Educação Infantil).
Na primeira etapa, foi feita uma pesquisa em arquivos buscando um registro de
outro tempo histórico de cantigas infantis. Encontramos em um livro de piano
músicas tradicionais/folclóricas para crianças (MASCARENHAS, 1956). O livro traz
versões de um tempo mais remoto, permitindo assim uma comparação histórica
entre a versão de 1956 e as músicas da atualidade. Entendemos que há inúmeras
versões das músicas tradicionais e que houve também transformação em suas
letras ao longo do tempo. Por este motivo, julgamos melhor selecionar um exemplo
de um corte temporal para exemplificar este grupo de músicas. Do livro de
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 136

Mascarenhas selecionamos algumas canções que ainda são cantadas nos dias de
hoje, mas em versões um pouco modificadas.
Vale elucidar que quando usamos o termo “tradicional” salientamos o contraste
entre aquelas músicas que são cantadas há muitas décadas, e que constam nos
livros como músicas tradicionais do Brasil (ex., BRANDÃO & FROESELER, 1997;
FELIPE, 1999) e aquelas que são mais recentes, compostas e/ou gravadas por
músicos da atualidade.
As músicas contemporâneas foram selecionadas a partir das músicas
mencionadas em enquetes feitas com dez professoras de EI acerca das músicas
que elas cantam e ouvem com suas crianças. A pesquisa de músicas também foi
realizada na internet, e em diversas compilações no formato livro e no formato CD.

Músicas tradicionais/folclóricas

Como explicado acima, o grupo de cantigas analisadas vêm de um registro


para piano da autoria de Mario Mascarenhas (1956). Das músicas da compilação
original de Mascarenhas foram selecionadas aquelas que apareceram nos
resultados das enquetes, ou seja, que são ainda cantadas nos dias de hoje
para/com as crianças. As cantigas selecionadas foram então comparadas com a
seleção de músicas contemporâneas. São elas: A canoa virou, Peixe vivo, Terezinha
de Jesus e Ciranda Cirandinha. Apresentamos abaixo as versões que serão
analisadas com as alterações nas versões contemporâneas conforme pesquisa na
internet e escuta em salas de EI:

A Canoa Virou
A canoa virou
Por deixarem-na virar;
Foi por causa de Maria,
Que não soube remar.
Siri pra cá
Siri pra lá;
Maria é velha (feia, na versão contemporânea)
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E quer casar. (bis)


Se eu fosse um peixinho
E soubesse nadar,
Tiraria a Maria
Lá do fundo do mar.

Peixe Vivo
Como pode um peixe vivo
Viver fora da água fria?
(bis)
Como poderei viver,
Como poderei viver,
Sem a tua, sem a tua,
Sem a tua companhia?
(bis – dois últimos versos)
Os pastores desta aldeia
Já me fazem zombaria. (bis)
Por me ver assim chorando,
Por me ver assim chorando.

Terezinha de Jesus
Terezinha de Jesus,
De uma queda foi ao chão,
Acudiram três cavaleiros
Todos três de chapéu na mão.
O primeiro foi seu pai,
O segundo seu irmão
O terceiro foi aquele
A quem ela deu a mão.
Terezinha de Jesus
Levantou-se lá do chão
E sorrindo disse ao noivo:
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 138

“Eu te dou meu coração”.

Ó Ciranda, Cirandinha
Ó ciranda cirandinha
Vamos todos cirandar
Uma volta, meia volta
Volta e meia vamos dar.
(bis – dois últimos versos)
O anel que tu me deste
Era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
Era pouco e se acabou.
(bis – dois últimos versos)
Ciranda, cirandinha
Vamos todos cirandar.
Vamos ver dona Maria,
Que já está pra se casar.
(bis – dois últimos versos)
Por isso, dona Maria,
Entre dentro desta roda,
Diga um verso bem bonito,
Diga adeus e vá-se embora.
(bis – dois últimos versos)

Fui no Itororó
(domínio público)
Fui no Itororó
beber água não achei
Encontrei bela morena
Que no Itororó deixei.
Aproveite minha gente,
Que uma noite não é nada,
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Se não dormir agora


Dormirá de madrugada.
Ó Dona Maria,
Ó Mariazinha,
Entrará na roda,
E ficará sozinha.
Sozinha eu não fico,
Nem hei de ficar
Porque tenho o Chico
Que será meu par!

Musicas contemporâneas — Enquetes com educadoras

As enquetes (Anexo 1) foram realizadas com dez educadoras da região


metropolitana do Rio de Janeiro. As educadoras trabalhavam em instituições
diversas — privadas, públicas, comunitárias e filantrópicas — e foram recrutadas em
um Curso de Especialização em Educação Infantil. No total obtivemos 10 respostas.
O questionário foi preenchido anonimamente, com o objetivo de preservar a
identidade e privacidade da participante.
As questões desenvolvidas para a enquete tinham por objetivo buscar uma
compreensão de: quais músicas eram ouvidas no contexto da EI, a partir de que
critérios, as preferências musicais tanto das educadoras como das crianças, e a
frequência e os contextos de escuta e execução das músicas. Foram formuladas
nove questões no total, em forma de questionário, com espaço em branco para a
participante escrever e enumerar as músicas.
A análise das enquetes revelou que das 66 músicas citadas pelas educadoras
doze eram músicas tradicionais e 18 eram de domínio público (compositor
desconhecido). Encontramos ainda músicas que são versões de canções em inglês
(Cinco Macaquinhos), músicas gravadas pela apresentadora Xuxa, músicas do
Braguinha (Chapeuzinho Vermelho e Quem tem medo do Lobo Mau), da Arca de
Noé (A casa) e do selo Palavra Cantada (A Sopa).
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Com base nas enquetes, na pesquisa realizada na internet e em compilações,


um conjunto de 12 músicas foram selecionadas para análise, dentre elas, 5
tradicionais, 3 de domínio público mais recentes e 4 de autoria contemporâneas. O
critério utilizado para a seleção das músicas e das versões foi o conteúdo variado e
de teor educativo ou moral. No caso das músicas de domínio público, optamos por
versões mais populares, como da cantora Eliana. Para as contemporâneas, optamos
por contrastar músicas populares gravadas pela cantora Xuxa com músicas de
público menor, como as do Palavra Cantada. Na Tabela 1 mostramos a relação
completa das músicas incluídas neste trabalho e no Anexo 2 consta a letra de cada
uma.

Tabela 1. Lista de músicas


Tradicionais Domínio público Autorais
A canoa virou A barata A casa (Vinicius de
Moraes)
Peixe vivo Fui morar numa casinha Criança não trabalha
(Palavra Cantada)
Terezinha de Jesus Boneca de lata Já sabe (Palavra
Cantada)
Ó ciranda cirandinha Lua de cristal (Xuxa)
Fui no Itororó Doce mel (Xuxa)

ANÁLISE E DISCUSSÃO

Análise das músicas tradicionais

A letra da música A Canoa Virou mudou pouco através dos tempos. Fala de
uma canoa e da responsabilidade de quem deixou que ela virasse. Na versão de
Mascarenhas (1956) a canção diz que a fulana “é velha e quer casar”; na versão
contemporânea, canta-se “ela é feia e quer casar” (Palavra Cantada). A música tem
alguns elementos que valem ser notados. Primeiramente, a inclusão da criança na
letra da música faz com que a canção fique mais lúdica e participativa. Em segundo
lugar, há na música uma supervalorização do casamento. Seja na versão
contemporânea (“feia”) ou na tradicional (“velha”) nota-se uma preocupação com o
matrimônio já desde a tenra idade. Mas esta preocupação toma formas diferentes
nas versões antiga e contemporânea: na versão “velha” valoriza-se a idade e o
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matrimônio jovem; já na versão “feia” (contemporânea), a ênfase do casamento não


está na idade, mas sim na beleza, refletindo assim um novo valor aparentemente de
maior importância na sociedade contemporânea — a menina pode ser velha, mas,
tendo mantido sua beleza, pode casar.
Em Peixe Vivo, assim como na Canoa Virou, é utilizado o recurso à situação
dramática de uma pessoa precisar da outra para viver, ou seja, a salvação está no
casamento. Aqui encontramos também o uso da troça: os pastores fazem zombaria
ao ver a criança chorando. Na versão contemporânea, no entanto, este trecho já não
é cantado; no lugar, os pastores fazem prece noite e dia. Então, apesar desta
canção também usar um pretexto para falar de matrimônio, ela perde o cunho
sarcástico presente em sua versão tradicional.
Em Terezinha de Jesus vemos uma sucessão de homens tomando seus
lugares na vida da protagonista. A canção enfatiza o papel da mulher como
propriedade de homens — como dizem Pimentel e Pimentel (2003), primeiro seu
pai, em seguida seu irmão e em terceiro seu marido. Reflete, assim, valores
tradicionais da mulher como objeto de posse masculino — passando de mão em
mão.
Em Ó Ciranda Cirandinha o tema também é o casamento. O anel de
compromisso de nada valia e se quebrou. O amor se acabou. Na versão de 1956 há
ainda a frase “vamos ver dona Maria que já está para se casar”. Ou seja, já que o
meu amor se acabou vamos olhar para alguém que está encaminhada — dona
Maria. Aqui, como na Canoa, a criança participa com o seu nome na canção. Isto a
torna mais lúdica. Por outro lado, a mensagem da necessidade de uma união com
alguém e do casamento fica mais forte. A parte sobre o casamento de dona Maria se
perdeu nas versões contemporâneas, mas as ideias de amor quebrado e promessa
desfeita persistiram.
Por fim, a letra de Fui no Itororó parece um pretexto para falar do tema
amoroso. Existe um jogo quase sarcástico de declarar que Mariazinha ficará sozinha
na roda, mas a resolução mostra uma menina assertiva e determinada a ficar
acompanhada (“sozinha eu não fico”). Além disto, o clima da letra é de folia,
declarando que “uma noite não é nada”, o sono pode ficar para a “madrugada”.
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Como podemos ver, todas as músicas tradicionais que apareceram nas


enquetes das educadoras são da categoria amorosa. Aquelas que tinham algum
cunho sarcástico perderam-no através dos anos.

Análise das músicas contemporâneas

A Barata conta as peripécias de uma barata mentirosa. Ela conta mentiras para
afetar uma posição social que não tem. O narrador sabe a verdade e revela como
ela é de fato pobre e feia. A letra contém humor, rimas inesperadas e engraçadas.
Nas categorias apresentadas anteriormente esta música se encaixaria nas
“engraçadas e/ou satíricas” (PIMENTEL e PIMENTEL, 2003).
Fui morar numa casinha também se encaixa na categoria “animal”. Nela, os
bichos zombam do narrador, que mora em uma casa infestada com diversas pestes.
Uma das versões inclui mais duas estrofes: na primeira a casa está enfeitada de
flores – mudando drasticamente do tema sarcástico para o amoroso; na segunda
volta o tema da infestação (de morcegos) e traz o contraste da princesa com a
bruxa, retomando assim o sarcasmo. Boneca de lata igualmente é uma música com
sarcasmo. Mas também é educativa. A boneca bate diferentes partes do corpo no
chão e o tempo para desamassá-la é o contexto para ensinar a criança a contar (no
caso, as horas).
Na música Criança não Trabalha os compositores dialogam com o mundo
infantil da forma como é concebido hoje em dia. A canção cita itens materiais que
crianças usam no dia-a-dia (“lápis”, “chiclete”, “merenda” etc.) e também
brincadeiras. A letra foca o mundo infantil, ao invés de valorizar o adulto, revelando
assim um diálogo com aquela criança moderna de que Sarmento (2000) fala. A
música conclui com o bordão “criança não trabalha/criança dá trabalho” colocando-a
em contraste com o adulto, mas também como dependente deste, pois “dá trabalho”.
Em suma, na concepção expressa pela letra, a infância tem existência própria,
diferente da do adulto, mas interligada na forma de dependência.
Já Sabe trata do desenvolvimento infantil; as etapas a serem conquistadas e
que marcam o crescimento da criança. A canção valoriza a autonomia e
independência da criança como objetivos de conquista no desenvolvimento. Há no
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final a presença do carinho — “no colo quer carinho” — demonstrando que apesar
de todos os crescimentos e conquistas a criança ainda gosta de colo e de carinho.
Isso ilustra a valorização do apego e do afeto na sociedade brasileira, dissociando-
os da dependência, ou falta de autonomia. Desta forma, diferencia-se de muitas
interpretações já tradicionais da cultura brasileira que vêem na suposta afetuosidade
maior do brasileiro (em comparação com os europeus e norte-americanos) uma falta
de autonomia (HOLANDA, 1997).
Em Lua de Cristal (1990), a criança é lúdica, imaginativa e sonha muito. A idéia
que passa é que basta a criança sonhar para seu sonho se realizar. O destino, o
esforço, a sorte, a felicidade, a presença de Deus são outros temas presentes na
letra da música. Os apelos são lugar-comum e como se trata de música para as
massas, tem como objetivo criar/trazer esperança para os “desesperados”.
Transmite também um sentimento de inferioridade, pois se você quer ser algo
diferente, então o que você é não é bom. A letra não dialoga com o mundo real de
seu público, mas com o que ele pode/deve vir a ser.
A segunda música escolhida, Doce Mel, é uma música mais antiga (XUXA,
1986) que traz a ideia de criança como aquela que brinca, se suja, faz coisa errada,
é livre, gosta de açúcar e de faz de conta. Dialoga mais com o que há de “universal”
na infância da forma como é concebida nos dias de hoje. Enfatiza a liberdade de
fazer o que quiser e brincar do que quiser. A criança é livre hoje e presa amanhã
(como adulto). No cenário desenhado pela letra, o capitalismo ou a educação são
castradores. Por isso há que se gozar da vida enquanto se pode.
Em suma, as músicas contemporâneas tratam de temas amorosos, satíricos e
sarcásticos (como as tradicionais), mas as autorais (que não são de domínio
público) têm também a preocupação de dialogar com o mundo infantil da forma
como ele é concebido no mundo contemporâneo: são educativas, retratam o
cotidiano infantil e suas aspirações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa proposta foi discutir a presença da música infantil na Educação Infantil.


A pesquisa de literatura relacionada a esta temática revelou uma preocupação com
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o desenvolvimento da música enquanto forma e tradição: ritmo, melodia, harmonia,


cultura e folclore. Alguns autores apresentam categorizações das músicas pelo teor
de suas letras, mas restringem-se a uma análise ligeira de seus conteúdos. Não há,
no entanto, uma análise sistemática das letras e dos valores contidos nessas
músicas. As obras que trabalham com essas categorizações definem-se melhor
como compilações e objetivam mais a documentação da cultura oral do que sua
análise. Há também um reconhecimento de que as cantigas são, em sua maioria,
amorosas. Vemos isto nos resultados das enquetes, que mostram a persistência das
músicas tradicionais amorosas, o que não se pode dizer das músicas de outras
categorias.
Cantigas como as tradicionais selecionadas e analisadas marcam os papéis da
menina e do menino na sociedade e o que esperar de seus futuros. As canções
transmitem os valores de uma sociedade de outra época, ou valores que hoje
identificamos com uma moral conservadora: a menina que se prepara desde
pequena para o casamento e que é vista e tratada como uma pequena adulta. O
mesmo se aplica ao menino que, já desde pequeno, deve preocupar-se com quem
irá se casar, de quem irá tomar conta ou quem irá possuir. Apesar desses valores
societais e conceitos de infância terem sido mais fortes ou mais aceitos em “tempos
passados”, é possível perceber que continuam sendo veiculados no presente, ainda
que cantadas com letras levemente alteradas. Assim, ao cantarmos essas cantigas
para nossas crianças podemos transmitir a elas, mesmo que de maneira não
intencional e automática, valores que refletem a importância central do casamento e
a possessão da mulher pelo homem.
As músicas contemporâneas, por outro lado, sejam elas da Xuxa ou do Palavra
Cantada, refletem uma preocupação com o mundo infantil da forma como
concebemos a criança no mundo atual. A criança de hoje, da forma como é
entendida no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), na Lei de
Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996), no RCNEI (BRASIL, 1998) na mídia e na
educação em geral, não é um projeto de adulto: ela brinca, se suja, come bala,
desenvolve autonomia, independência, sonha, faz de conta e assim por diante.
No entanto, vimos também diferenças entre as músicas contemporâneas. As
da Xuxa valorizam um sonho a se realizar, a criança almeja uma realidade diferente,
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idealiza um mundo. Nas músicas do selo Palavra Cantada a ênfase reside em


descrever e dialogar com a experiência da criança na realidade em que ela vive.
Uma criança não deve trabalhar, mas dar trabalho. Ela aprende e se desenvolve no
seu ritmo vencendo pequenos desafios sucessivamente, brinca com a linguagem e
com os significados, faz rimas e dança, brinca com as regras e as desafia.
A transferência da música infantil das ruas para as instituições de EI, se por um
lado garante um lugar para que esta cultura não se perca no rápido movimento de
transformações do mundo contemporâneo, por outro cristaliza a tradição e a
ressignifica, perdendo assim seu teor espontâneo e sua fluidez oral. Adquire
possivelmente um caráter estéril e aliena-se das transformações que ocorrem na
cultura do lado de fora da instituição.
Schroeder & Schroeder (2011) ressaltam o quanto a música é um
acontecimento vivo e dinâmico, que se atualiza a cada realização, e não um sistema
fechado e inerte, sujeito a regras fixas e imutáveis: “uma mesma realização musical
pode ter significados diferentes em situações distintas”, o que não significa, porém,
“que não haja pontos de estabilidade no discurso musical. Assim como na linguagem
verbal, diferentes contextos culturais vão cristalizando determinadas formas de
organização sonora” (p. 107).
Para concluir, destacamos a necessidade de se continuar a pesquisar o que
cantamos para as nossas crianças e o lugar que essas canções ocupam na nossa
sociedade e na Educação Infantil.
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A barata. Disponível em: < http://letras.cifras.com.br/musicas-infantis> Acesso em:


20 abr. 2011.

Zena Winona Eisenberg, Professora Assistente no Departamento de Educação


da PUC-Rio. Possui graduação em Letras com Bacharelado e Licenciatura pela
Universidade Estadual de Campinas (1990); Especialização em Educação Infantil
pelo CCE/PUC-Rio (2008), mestrados em Psicologia pela City University of New
York (2001) e pela New School for Social Research (atual The New School
University 1995) e doutorado em Psicologia do Desenvolvimento Humano - The City
University of New York (2006). Pós-doutora no Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação (ProPEd) da UERJ (2008). É colaboradora do Núcleo de
Estudos da Infância: Pesquisa & Extensão (NEI:P&E). Atualmente coordena o Grupo
de Pesquisa Desenvolvimento Humano e Educação (Grudhe) no Departamento de
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Educação da PUC-Rio. Tem experiência nas áreas de Psicologia e Educação, com


interesse especial pelo Desenvolvimento do Pensamento e da Linguagem. Atua
principalmente nas seguintes áreas: aquisição de noções temporais, de conceitos,
desenvolvimento da linguagem e do pensamento.
E-mail: [email protected]

Cristina Carvalho, Professora do Departamento de Educação e Coordenadora


do Curso de Especialização em Educação Infantil da PUC-Rio, e Coordenadora do
Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Museus (GEPEM/PUC-Rio/CNPq).
E-mail: [email protected]

Submetido em:
Aceito em: Agosto de 2011
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 150

Tabela 1. Lista de músicas


Tradicionais Domínio público contemporâneas Autorais
(Fonte: contemporâneas
Mascarenhas,
1956)
A canoa virou A barata Criança não
(http://letras.cifras.com.br/musicas- trabalha (Tatit &
infantis) Peres, 1998)
Peixe vivo Fui morar numa casinha (Versão: Já sabe (Tatit &
Eliana) Peres, 1996)
Terezinha de Boneca de lata (Versão: Eliana) Lua de cristal
Jesus (Xuxa, 1990)
Ó ciranda Doce mel (Xuxa,
cirandinha 1986)
Fui no Itororó
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Anexo 1

Enquete: QUAIS AS MÚSICAS QUE VOCÊS OUVEM E CANTAM NA ESCOLA?

1. A música é um recurso utilizado por você no trabalho com as crianças?


Se sim, como você escolhe/ escolheu as músicas? Quais os critérios?

2. Quantas vezes por semana você coloca CD de música para as


crianças ouvirem/cantarem/dançarem?

3. Quais CDs de música são tocados? Se for coletânea, o que contém?

4. As crianças trazem músicas de casa para serem tocadas? Quais?

5. Você canta com as crianças ao longo do dia? Se sim, quantas vezes


por semana? Em que contexto?

6. Liste abaixo as músicas que vocês cantam. Se puder, escreva atrás a


letra para aquelas mais desconhecidas ou próprias da sua escola.
-
-
7. Quais são as músicas que você MAIS gosta de cantar/tocar com as
crianças?

-
-
8. Quais são as músicas que você MENOS gosta de cantar/tocar com as
crianças?

-
-
9. Quais são as músicas mais pedidas pelas crianças?
Cadernos de Educação | FaE/PPGE/UFPel 152

Anexo 2
Músicas contemporâneas e de domínio publico selecionadas

Contemporâneas
A barata
(domínio público)

A Barata diz que tem sete saias de filó


É mentira da barata, ela tem é uma só
Ah ra ra, iá ro ró, ela tem é uma só !

A Barata diz que tem um sapato de veludo


É mentira da barata, o pé dela é peludo
Ah ra ra, Iu ru ru, o pé dela é peludo !

A Barata diz que tem sete saias de filó


É mentira da barata, ela tem é uma só
ah ra ra, oh ró ró, ela tem é uma só

A Barata diz que tem um sapato de fivela


É mentira da barata, o sapato é da mãe dela
ah rá rá, oh ró ró, o sapato é da mãe dela

A Barata diz que tem uma cama de marfim


É mentira da barata, ela tem é de capim
Ah ra ra, rim rim rim, ela tem é de capim

A Barata diz que tem um anel de formatura


É mentira da barata, ela tem é casca dura
Ah ra ra , iu ru ru, ela tem é casca dura

A Barata diz que tem o cabelo cacheado


É mentira da barata, ela tem coco raspado
Ah ra ra, ia ro ró, ela tem coco raspado

Fui morar numa casinha


(domínio público)

Fui morar numa casinha-nhá


Infestada- da de cupim-pim-pim
Saiu de lá- lá-lá
Uma lagartixa-xá
Olhou pra mim
Olhou pra mim
E fez assim: (mostrar a língua)

Fui morar numa casinha nhá


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Enfeitada da de florzinha nhas


Saiu de lá la la
Uma princesinha nha
Olhou pra mim, olhou pra mim
E fez assim: (beijinhos)

Fui morar numa casinha nhá


Infestada da de morceguinho nhos
Saiu de lá la la
Uma bruxinha nha
Olhou pra mim, olhou pra mim
E fez assim: (há há há há!!)

Boneca de Lata
(domínio público) Versão: Eliana
Minha boneca de lata bateu a cabeça no chão...
levou quase uma hora pra fazer a arrumação
Desamassa aqui, pra ficar boa...
Minha boneca de lata bateu o ombro no chão...
Levou mais de duas horas pra fazer a arrumação
Desamassa aqui, desamassa ali,
Desamassa aqui, desamassa ali pra ficar boa...

Minha boneca de lata bateu o outro ombro no chão...


levou mais de três horas pra fazer a arrumação
Desamassa aqui, desamassa ali
Desamassa aqui, desamassa ali
Desamassa aqui, desamassa ali pra ficar boa...

Criança não Trabalha


(Arnaldo Antunes/Paulo Tatit)

Lápis, caderno, chiclete, pião


Sol, bicicleta, skate, calção
Esconderijo, avião, correria, tambor
Gritaria, jardim, confusão

Bola, pelúcia, merenda, crayon


Banho de rio, banho de mar, pula-cela, bombom
Tanque de areia, gnomo, sereia
Pirata, baleia, manteiga no pão

Giz, merthiolate, band-aid, sabão


Tênis, cadarço, almofada, colchão
Quebra-cabeça, boneca, peteca, botão
Pega-pega, papel, papelão

Criança não trabalha, criança dá trabalho


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Criança não trabalha...

1,2 feijão com arroz,


3, 4 feijão no prato
5, 6 tudo outra vez...

Criança não trabalha, criança dá trabalho


Criança não trabalha, criança dá trabalho

Já Sabe
(Sandra Peres/Luiz Tatit)

Já gosta da mamãe
Já gosta do papai
Não sabe tomar banho não
Já sabe tomar banho
Já quer ouvir histórias
Não sabe pôr sapato não
Já sabe pôr sapato
Já come até sozinho
Mas nunca escova os dentes não
Já escova bem os dentes
Já vai até na escola
Não sabe jogar bola não
Já sabe jogar bola
Já roda, roda, roda
Não sabe pular corda não
Já sabe pular corda
No colo quer carinho

Lua de Cristal (Xuxa)


Composição: Michael Sullivan
Versão: Paulo Massadas

Tudo pode ser, se quiser será


O sonho sempre vem pra quem sonhar
Tudo pode ser, só basta acreditar
Tudo que tiver que ser, será

Tudo que eu fizer


Eu vou tentar melhor do que eu já fiz
Esteja o meu destino onde estiver
Eu vou buscar a sorte e ser feliz
Tudo que eu quiser
O cara lá de cima vai me dar
Me dar toda coragem que puder
Que não me falte forças pra lutar
Vamos com você
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Nós somos invencíveis, pode crer


Todos somos um
E juntos não existe mal nenhum
Vamos com você
Nós somos invencíveis, pode crer
O sonho esta no ar
O amor me faz cantar

Lua de cristal
Que me faz sonhar
Faz de mim estrela
Que eu já sei brilhar
Lua de cristal
Nova de paixão
Faz da minha vida
Cheia de emoção

Tudo que eu fizer


Eu vou tentar melhor do que eu já fiz
Esteja o meu destino onde estiver
Eu vou buscar a sorte e ser feliz
Tudo que eu quiser
O cara lá de cima vai me dar
Me dar toda coragem que puder
Que não me falte forças pra lutar
Vamos com você
Nós somos invencíveis, pode crer
Todos somos um
E juntos não existe mal nenhum
Vamos com você
Nós somos invencíveis, pode crer
O sonho esta no ar
O amor me faz cantar

Lua de cristal
Que me faz sonhar
Faz de mim estrela
Que eu já sei brilhar
Lua de cristal
Nova de paixão
Faz da minha vida
Cheia de emoção

Doce Mel (Xuxa)


(Renato Corrêa)

Bom estar com você


Brincar com você
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Deixar correr solto


O que a gente quiser

Em qualquer faz-de-conta
A gente apronta
É bom ser moleque
Enquanto puder

Ser super humano


Boneco de pano
Menino ou menina
Que sabe o que quer

Se tudo o que é livre


É super incrível
Tem cheiro de bala, capim e chulé

Doce, doce, doce


A vida é um doce
Vida é mel
Que escorre da boca feito um doce
Pedaço do céu

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