A Estruturação de Notações Na Iconografia PDF
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A Estruturação de Notações Na Iconografia PDF
Instituto de Artes
Departamento de Artes
Mestrado em Artes
RESUMO
Essa dissertação trata da presença de uma ou mais notações no campo das performances
teatrais, limitando o espectro de estudo ao Ocidente. Desde a arte parietal, a título de mostrar
os primeiros registros sobre cada área, com foco maior no século XX, no qual mais se
desenvolvem e se debatem ideias, conceitos e teorias a respeito do tema – o confronto entre o
texto falado e o escrito –, especialmente nas artes cênicas. Como referência para a
argumentação, o mesmo processo de análise em relação à notação é realizado em quatro
outros campos. Na iconografia, com suas formas, cores e materiais que designavam estilos e
códigos de dominância social em favor de classes sócio-políticas. Na dança, especialmente a
clássica, devido à necessidade de estruturação técnica e a possibilidade de transmissão e
controle dos elementos relacionados com movimento. Na música, observa-se com mais
clareza o processo de configuração de formas de transcrição, adequadas às demandas de
estilos musicais, composicionais e de instrumentos e vozes diversas. E no código escritural, a
letra e seus reflexos como elemento de influência nas camadas sócio-políticas e artísticas, em
especial na dramaturgia teatral. O trabalho analisa a falta de um ou mais códigos específicos
para a performance teatral (na qual haja predominância verbal) e – com base nos benefícios e
especificidades do trabalho com um registro notatório nas áreas descritas e revisão
bibliográfica – busca também que autores abordam o tema, a necessidade e a funcionalidade
em pesquisa e transmissão, e como os treinamentos e as vocalidades são afetados por um
registro específico.
ABSTRACT
This dissertation deals with the presence of one or more notations in the field of theatrical
performances, limiting the spectrum of study in the West. Since the parietal art, by way of
showing the first records of each area, with greater focus on the twentieth century, in which
further develop and discuss ideas, concepts and theories on the subject - the confrontation
between the written and spoken word - especially in the performing arts. As a reference to the
argument, the same process of analysis in relation to the rating is carried out in four other
fields. In iconography, with its shapes, colors and materials that designated styles and codes
of dominance in social class socio-political. In dance, especially classical, because of the need
for structuring technique and the possibility of transmission and control of the elements
related to movement. In music, we observe more clearly the process of setting up forms of
transcription, appropriate to the demands of musical styles, compositional and various
instruments and voices. And in the code entry, the letter and its effects as an element of
influence in layers socio-political and artistic, especially in playwriting theater. The study
analyzes the failure of one or more specific codes for theatrical performance (which there is
predominantly verbal) and – based on the benefits and specifics of working with a record of
notation areas described and literature review – the authors also seeks to address the theme,
the necessity and functionality in research and transmission, and how the training and
vocalities are affected by a specific record.
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
Resumo .................................................................................................................................................................. 04
Agradecimentos ..................................................................................................................................................... 06
Introdução .............................................................................................................................................................. 09
Anexo III – Notas da encenação de Antonin Artaud para “Os Cenci” ............................................................... 147
9
INTRODUÇÃO
Dessa forma, a obra é, por natureza, teatral; o teatro, sua forma acabada. É de Paul Zumthor1
(1915-1995), em “Introdução à Poesia Oral” e “Escritura e Nomadismo”, a observação que
reflete a linha de pensamento nesta dissertação:
Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a performance
manifesta um saber-ser no tempo e no espaço. O que quer que, por meios linguísticos, o texto
dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um referente global que é da ordem do corpo.
É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama, emanação do nosso ser. A escrita
também comporta, é verdade, medidas de tempo e espaço: mas seu objetivo último é delas se
liberar (ZUMTHOR, 2010, p.166). Do texto, a voz em performance extrai a obra. Ela se
submete a este fim, ao funcionalizar todos os elementos aptos a sustentá-la, amplificá-la, a
declarar sua autoridade, sua ação, sua intenção persuasiva (ZUMTHOR, 2005, p.142).
1
Paul Zumthor, medievalista que conduziu longa pesquisa sobre a “poesia oral” universal, na qual mostrou a
predominância fundamental da “voz” sobre o código literário.
11
Como visto, partitura é uma notação de signo específico da música e não comportaria
a simbologia técnica característica de outras áreas, em especial as demandas tão amplas e
específicas teatrais. Usá-la para nomear registros notatórios diferentes soa como uma
impropriedade. “Notação”, em si, determina o ato ou efeito de notar, independente da arte ou
ciência a que se refira, daí porque designações como ‘notação musical’ ou ‘partitura’
pertencem ao ambiente da música. Não raro, as expressões ‘partitura cênica‘ ou ‘partitura
2
Patrice Pavis, professor de Estudos Teatrais da Universidade de Kent, em Canterbury. Ele tem escrito
extensivamente sobre o desempenho, focando seu estudo e pesquisa, principalmente na semiologia e
interculturalidade no teatro. Ele foi agraciado com o Prêmio Georges Jamati em 1986.
12
CAPÍTULO 1:
CÓDIGOS DE NOTAÇÃO NA ICONOGRAFIA, DANÇA, MÚSICA E ESCRITA
1.1 – Iconografia
O desenvolvimento dos sistemas de representação gráfica em algumas expressões
artísticas e sua proximidade com sistemas de notação, com foco na cultura ocidental
conjunto das imagens que integram essa obra, seja um livro, série ou coleção. Até fins do
século XVI, era associada à simbologia de imagens inseridas num contexto religioso.
Atualmente, refere-se ao estudo da história e da significação de qualquer grupo temático.
Neste tópico estão descritas de forma sucinta modelos e fontes iconográficas que
originaram a escrita, e inspiraram movimentos nas artes plásticas e como, através delas, se
estabeleciam referências entre dominante e dominado. Características como o significado de
uma cor ou a recorrência de um tema, ao serem mostradas ao passar do tempo, salientam as
possibilidades de codificação e transmissão de significado, como as escolhas de materiais e
formas na construção de uma referência visual, notada ou não. Observar-se-á que da Alta
Idade Média à fase final do período Gótico, ou seja, do século IV ao XV, as transformações
iconográficas são lentas e marcantes para um período considerado longo, se comparadas à
velocidade das mudanças e possibilidades coexistentes a partir de então.
3
Horst W. Janson, pesquisador da História da Arte, foi professor da Of Fine Arts at New York University.
4
John Baines é professor titular de Egiptologia da Universidade de Oxford e membro do The Queen's College. É
autor de artigos acadêmicos e publicações relativas à antiga civilização egípcia.
16
Figura 1.
Neste quadro resume-se o desenvolvimento da escrita cuneiforme 7. Os últimos sinais são abstratos,
combinações quase arbitrárias de cunhas verticais, horizontais e diagonais. O exame de inscrições mais
antigas demonstra que a maioria dos sinais deriva de figuras identificadas como objetos reais (ROAF, 2006,
p.68).
5
Jaromír Málek é professor aposentado da Faculdade de Estudos Orientais da Universidades de Oxford. Seu
principal interesse de pesquisa foi o Egito Antigo, com foco nos textos e monumentos. Não foi encontrada sua
data de nascimento.
6
Michael Roaf foi diretor da Escola Britânica de Arqueologia no Iraque (1981-1985) e catedrático adjunto do
Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
7
Escrita cuneifrome: escritas feitas com auxílio de objeto em formato de cunha.
17
O Período Tardio (712 a.C. – 332 a.C.) e o Greco-Romano (332 a.C. – 395 d.C.) do
Egito Antigo testemunharam a expansão do código escritural. Ao longo dos séculos a
quantidade de símbolos e suas combinações cresceram de tal forma, que a escrita se afasta
cada vez mais do domínio comum e os hieróglifos perdem a conexão com a escrita cotidiana.
Já somente podem ser escritos por uma pequena minoria – principalmente sacerdotes –
desejosa de cultivar a complexidade e favorecer uma relação de poder através de atividade
que exigia especialidade restrita a um grupo específico.
Figura 2.
Reprodução de um selo cilíndrico do período de
Uruk final. O tamanho dos selos (este tem 4cm de
altura) permitia imprimir facilmente grandes
superfícies (ROAF, 2008, p.68).
Com a escrita coexistia outro tipo de registro feito com contas (pecinhas) de argila de
diferentes formatos e tamanhos: cones, discos, esferas, cilindros etc. É provável que
representassem quantidades ou produtos diferentes, como grãos ou ovelhas. Eram depositadas
em esferas ocas, marcadas e envoltas por selos cilíndricos.
Estes sinais (selos) são muitas vezes simples figuras de significado evidente: a cabeça
de um touro representa o gado e uma espiga de cevada, a cevada. Com o tempo, adaptou-se a
forma dos sinais para escrevê-los com um punção retangular de junco. Como resultado, todas
as incisões tinham a forma de cunha, razão pela qual a escrita se conhece como cuneiforme.
No Período Dinástico (3200 a.C.- 1085 a.C.), terceira etapa da escrita mesopotâmica, a escrita
mudou do sentido vertical para o horizontal.
Na antiguidade greco-romana (séc. VI a.C. – IV d.C.) os artistas já dominavam os
problemas da perspectiva, com modos de construção específicos – segundo Frédéric Barbier8,
em um espaço curvo e segundo uma representação agregadora –, como mostram os mosaicos,
pinturas e rolos ilustrados que sobreviveram ao tempo. Nesse período, a totalidade do mundo
“permanece uma realidade essencialmente descontínua, de maneira que o espaço não é
suscetível de uma representação sistemática” (BARBIER, 2008, p.88).
8
Frédéric Barbier, arquivista-paleólogo, doutor em História e doutor em Letras e Ciências Humanas. Orientador
de pesquisas na CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) e na Escola Prática de Altos Estudos, é
professor de História do Livro na Escola Nacional Superior de Ciências da Informação e das Bibliotecas de
Lyon.
18
Figura 3. Músicos
de rua romanos.
Mosaico em
Pompéia (cerca de
15 a.C. a 60 d.C.).
Uma mulher
mascarada
tocando um aulo
acompanha dois
dançarinos que
usam
“castanholas” e
um pandeiro
(LEVY, 1983,
prancha 3).
Nos séculos XIII – XV, o estilo Gótico, muitas vezes identificado como o período das
grandes catedrais, implicava renovação das formas e técnicas de toda a arte. Apoiava-se nos
princípios de um forte simbolismo teológico, fruto do pensamento escolástico: as paredes
9
E. Panofsky, “La perspective comme forme symbolique”, trad. Fr., Paris, 1975.
20
Na pintura, em estreito contato com a iconografia cristã, a linguagem das cores era
completamente definida: o azul, por exemplo, era a cor da Virgem Maria, e o marrom, a de
São João Batista. A finalidade primordial da pintura gótica era ensinar a criação divina e, num
sentido mais didático, narrar as Escrituras para o maior número de pessoas, quase sempre
analfabetas. A informação e a estética caminhavam lado a lado no sentido de assegurar a
dominação e o exercício do poder.
Nos séculos XIII e XIV10, a ilustração e a encadernação tendem a se impor como
atividades artesanais ou artísticas. A figura do pintor se individualiza e o iluminador é
responsável pela decoração secundária no caso do escrito. No início do século XIV, o poeta
alemão Hans Sachs (1494-1576) zomba dos “tolos camponeses”, que não sabem ler nem
escrever, contrariamente aos habitantes das cidades. O lugar da iconografia nas “Horas”11
10
A virada destes séculos foi marcada também pelo desenvolvimento de poderosas correntes místicas em estreita
ligação com a escrita, gerando, entre outras coisas, a necessidade da solidão tendo a leitura como um meio para a
meditação (BARBIER, 2008, p.108).
11
As Horas: livro de preces privadas sucessivamente recitadas ao longo do dia. O livro de Horas contém, em
geral, desde o século XIV: o calendário, o pequeno ofício da Virgem, salmos de penitência, as litanias, os
sufrágios e ofício dos mortos. Acrescenta-se aí frequentemente certo número de elementos secundários:
fragmentos de evangelhos, Paixão de São João, preces à Virgem, Horas e Ofícios da Cruz etc.; enfim, entre os
elementos acessórios pode-se destacar Horas específicas, orações, as preces do dia e as da missa, o livro de
salmos de São Jerônimo, os Dez Mandamentos, além de textos devotos de vários tipos.
21
remete provavelmente ao fato de que os proprietários desses livros não eram de todo
alfabetizados:
Pois esse entendimento que as letras ocasionam aos doutos, as imagens asseguram aos
ignorantes e aos simples, de acordo com a famosa frase: a pintura é a escrita dos leigos, é na
verdade por intermédio dela que aqueles que não conhecem as letras podem ler e compreender
o segredo das coisas (KEVER, 1533 apud BARBIER, 2008, p.157).
Figura 8.
Livro das Horas
do ano de 1500
(HEITLINGER,
2010, p.153).
12
É a técnica de gravura na qual se utiliza madeira como matriz e possibilita a reprodução da imagem gravada
sobre papel ou outro suporte adequado. É um processo muito parecido com um carimbo.
13
Incunábulo: os livros publicados de 1450 a 1500 levam o nome de incunábulos. Trata-se de livros impressos
nos primeiros tempos da imprensa de tipos móveis, que imitavam o manuscrito. Assim, demorou-se 50 anos para
que o livro impresso passasse a ter suas próprias características, abandonando, paulatinamente, as características
do livro manuscrito.
22
Figura 9.
Xilogravura de Guillaume Le
Signerre, representando
Francesco Tornielo da Novara,
na obra “Opera del modo de fare
le littere maiuscole antique”,
impressa por Gotardo da Ponte,
em Milão, no ano de 1517
(Heitlinger, 2010, p.449).
O período Barroco (séc. XVI — XVIII), com claras diferenças de expressão artística
em relação ao Renascimento, tornou evidentes no tratamento de temas a mutabilidade das
formas, maior dramaticidade, exuberância e realismo, além do dinamismo de seus elementos.
A Contra-Reforma (séc. XVI) tratou com atenção redobrada a imaginária sacra, na linha de
antiga tradição que afirmava que as imagens de santos, pintadas ou esculpidas, eram
elementos intermediários na comunicação dos homens com as esferas espirituais. Isso
desencadeou grandes movimentos iconoclastas em regiões protestantes que provocaram a
destruição de incontáveis obras de arte. A imaginária sacra, então, voltou a ser vista como
elemento central no culto católico. Fazia parte de um conjunto de instrumentos usados pela
Igreja para invocar emoções específicas nos fiéis e levá-los à meditação espiritual (PISCHEL,
1966, p.22-27).
Figura 10.
Andrea Pozzo: A glória de Santo Inácio – Roma, Igreja de Santo Inácio (PISCHEL, 1966, p.24).
14
Transferência de uma imagem litográfica sobre uma placa de zinco para obter um clichê em relevo.
15
Amplamente empregado a partir de 1904, evita o desgaste excessivo da forma de imprimir e permite imprimir
dos dois lados ao mesmo tempo.
25
Figura 11.
Realismo:
Mulheres
Peneirando
Trigo
(1855), de
Gustavo
Courbet
(1819-
1877)
(PISCHEL,
1966,
p.148).
Figura 12.
“Uncle Sam Supplying the World with Berry Brothers Hard Oil Finish”. Cromolitografia datada de 1880
(HEITLINGER, 2010, p.465).
Figura 13.
Surrealismo:
“A persistência da
memória”,
Salvador Dali -
1931
(BECKETT, 1997,
p.364).
1.2 – Dança
O desenvolvimento dos sistemas de notação na dança clássica, com foco na cultura
ocidental
16
Cinestesia: sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros.
17
Gayle Kassing, PhD, ensina história da dança há mais de 25 anos em quatro universidades diferentes. Kassing
ganhou um BFA em ballet e teatro, um mestrado em dança moderna, um PhD em dança e artes afins e um tapete
no K-12.
29
também uma ferramenta apta para ajudar bailarinos a aprender um ballet ou coreografias com
maior rapidez e precisão.
Figura 14. The Wedding Dance (A Dança do Casamento) – Peter Bruegel, século XVI
(KASSING, 2007, p.77).
19
O Balé Real, em inglês Royal Ballet, é a primeira e dominante companhia de ballet do Reino Unido. Tem sua
base no Royal Opera House (Teatro de Ópera Real), em Covent Garden (distrito no centro de Londres) e em
Birmingham.
31
Registros oriundos do Império Romano20 (por volta de 100 a.C. – 400 d.C) mostram
que a dança, num primeiro momento é considerada teatralizada e não mereceria a importância
que lhe devotavam os gregos, apesar de “os romanos educados” olharem para a Grécia como
“fonte de cultura e civilização” (KRAUS; CHAPMAN, 1981, p.42). Entretanto, com as
guerras e mudanças nas estruturas políticas-sociais, a dança e outras formas artísticas aos
poucos perderam o viço e assumiram “ares vulgares” (KASSING, 2007, p.58).
Segundo Kassing, a dança na Idade Média (por volta de 476 a 1400) seria categorizada
como uma associação entre igreja (litúrgica ou sacra) e sociedade. As danças surgiam do livre
improviso, com execução ao som de poucos instrumentos; pouco a pouco, eram absorvidas
pelas classes mais abastadas que reestruturavam-nas ao gosto artístico dos “maestros de
dança”. Desde o final do século VII há registros de jograis ensinando suaves cantos aos
20
Após a morte de Teodósio I em 395 d.C., o império foi dividido pela última vez. O Império Romano do
Ocidente caiu em 476 d.C., e o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, durou até mais ou menos
1453 d.C. com a morte de Constantino XI e a tomada de Constantinopla.
33
clérigos, bem como de cantos e danças “saltatórias e diabólicas” em rodas de festas de São
João (CAMINADA, 1999, p.72).
Segundo Arbeau21 (1519-1595), em Orchésographie22, os estilos e tipos de danças até
o século XI tinham a participação de dançarinos de ambos os sexos que dançavam de mãos
dadas ao som do guia de dança, sem distribuição regulada e em formações circulares
dependendo do espaço disponível. Os movimentos básicos dos pés eram o caminhar, o passo
e o salto executados juntamente com os braços de acordo com os versos da canção. Nas
canções sérias, as mãos eram mantidas na altura dos quadris, e nos cantos joviais e alegres, na
altura dos ombros. A dança de par, de origem cortesã, ainda não era conhecida (ARBEAU,
1967, p.11-23).
Por esse tempo, as manifestações dançadas ainda tinham um caráter realista, tal como as
encontradas entre os povos primitivos e entre os povos dinamarqueses; faltavam-lhes o
galanteio, a sedução e o se deixar seduzir; o século XI já registrava, entretanto, o surgimento da
dança bávara de galanteio e o aparecimento da primeira dança de par e do pateio. A dança
profissional e a acrobática pura quase não mostravam linhas divisórias; “as provas de perigo e
habilidade, que compunham essas danças, já vinham de longe, do Egito, da Grécia, e até de
mais distante” (CAMINADA, 1999, p.73).
Figura 16.
Ilustração da
dança
macabra de
1486
(KASSING,
2007, p.75).
21
Thoinot Arbeau, clérigo francês, publicou “Orchésographie”, o maior tratado de dança até o século XVI, um
dos primeiros manuais de instrução sobre a dança.
22
Orchésographie, um dos principais livr com proposta de notação do século XVI, aparece na França em 1588,
por Thoinot Arbeau.
34
Os registros de notação musical mostram que a música era feita para a dança medieval
e, de maneira geral, em curtas canções cuja linguagem técnica conservou conceitos de
movimentos (CARLEY, 2000, p.IV).
23
Eliana Caminada, foi bailarina, é professora, orientadora e consultora em dança. Escreveu vários livros sobre
dança e leciona as disciplinas de História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da
Cidade do Rio de Janeiro.
24
Não foi encontrado registro exato de nascimento.
25
O “frappamento” constituiu-se no primeiro elemento da antiguidade clássica que passou pelos códigos
estabelecidos pelos maestros de ballet, quando foram fixadas as regras do ballet clássico, chegando às nossas
aulas atuais com o nome de “frappé”.
35
Figura 18.
Figura 19. (Orchesography (1589): 1967; p 81).
(Orchesography (1589): 1967; p 80).
36
26
Jean Baptiste Lully (ou Giovanni Battista Lulli), natural de Florença, compositor, maestro de dança e
bailarino, chegou à França em 1644 e por sua habilidade política, logo estava ao lado do rei Luis XIV, como
supervisor do ballet da corte. Seu trabalho contribuiu para o desenvolvimento profissional dos dançarinos e para
a criação de uma estética do século XVII.
27
Charles-Louis-Pierre de Beauchamps, coreógrafo, bailarino e compositor da França, e um dos diretores da
Academia Real de Dança. Um dos principais nomes, mesmo que inicialmente, na elaboração de uma codificação
da dança clássica. Foi responsável pela definição das cinco posições básicas do balé. Em 1671 foi indicado
diretor da Academia Real de Dança, e criou diversas coreografias para obras de Molière (ator e dramaturgo) e
Lully. Também foi indicado Mestre de Dança da Academia Real de Música, além de ser nomeado Compositor
dos Balés do Rei, para quem deu aulas de dança ao longo de vinte anos. Suas composições de dança seguiam o
rigor da época, estabelecido por Luís XIV em toda corte. Os passos eram desenvolvidos ao seu máximo, levando
em conta a beleza estética do movimento, exigindo do dançarino, precisão em cada gesto.
28
Monarca absolutista da França, cujo reinado foi de 1643 a 1715. A ele é atribuída a frase: “L'État c'est moi” (O
Estado sou eu).
29
Aluno de Beauchamps, Balon era bailarino, assistente coreógrafo na Ópera de Paris e conhecido pela
qualidade de saltos prodigiosos. Embora não haja evidência para apoiar a história, foi dito que seu nome seriaa
fonte para o nome balé, por associação com o termo “ballon” que descreve um salto suspenso ou suspendido que
aparenta leveza. Balon teve identidade confusa por longo tempo. Foi conhecido por muitos séculos da história da
dança como “John” quando seu nome real era Claude.
37
30
Jean-Georges Noverre, bailarino, coreógrafo, professor, mestre de ballet e historiador francês. Foi “maître de
ballet” em vários teatros europeus. Uma das primeiras pessoas a compreender o potencial artístico do balé, ele
expressou suas idéias em seu livro de 1760 “Lettres sur la danse et sur les ballets”. Nos dez anos seguintes
Noverre foi mestre de balé em Lyon e Stuttgart, trabalhando com bailarinos e Gaetan Vestris Dauberval Jean.
Em 1763 produziu “Médée et Jason”, um balé em que a ação dramática foi inteiramente retratada através da
dança e da pantomima. Em 1776 foi nomeado mestre de ballet da Ópera de Paris, mas deixou em 1781. Na
tentativa de varrer as regras estagnadas do ballet de côrte do século XVII, Noverre iniciou reformas que
estabeleceram o “ballet d'action”. Nesta forma de ballet o enredo não era geralmente uma tragédia, a ação
dramática foi prorrogada através de gestos e expressões faciais, e o corpo de baile era uma parte integral da
trama. Estes elementos contribuíram para a produção de um balé unificado. Noverre também colaborou com
compositores como Mozart, Haydn e Gluck.
39
processo seletivo que remontou à Grécia e ao Egito. Termos antigos (jetés, balancés,
battements, coupés e entrechats) aparecem ao lado de outros novos ou já em moda.
Figura 21. As cinco posições do ballet. Tratado “Le maître à danser” de Pierre Rameau (Kassing, 2007, p. 99).
Outro grande legado para o ballet no século XIX foi deixado pelo bailarino Carlo
Blasis31 (1797-1878), mercê de sua condição de professor e respeitado teórico da dança. Dele
foi a invenção da posição “ballet de attitude” e da codificação da técnica do balé daquela
época, distinguindo três “tipos” de dançarinos32: o sério, o semi-caricato, e o dançarino
cômico. Entre suas obras sobressaem o “Traité elementaire theorique et pratique de l’art de
danse” (O Tratado elementar na teoria e prática da arte da dança) publicado em 1820,
primeiro trabalho completo em técnica da dança que contém os principais preceitos de um
moderno método de ensino, e o “The Code of Terpsichore” (O Código de Terpsícore), livro
escrito para os bailarinos que estabeleceram a base do balé clássico moderno (KASSING,
2007, p. 134). Foi um guia para a técnica e definições de dança nos padrões da primeira
metade do século XIX, um autêntico legado para as gerações seguintes, no particular em
relação a posições de braço, cabeça, posturas que traçam linhas longelíneas e diagonais que se
31
Blasis, italiano, se tornou bailarino solo do La Scala em 1827. No início dos anos de 1830, criou ballets em
Londres e se apresentou em St. Petersburg, retornando ao La Scala em 1837 onde se tornou diretor da sua
academia de dança.
32
O tipo de dançarino sério foi a continuação do estilo nobre de dançar do século anterior, a quem Blasis
caracteriza como alto, bem proporcional, e apolíneo (nobre e elegante) na natureza. O bailarino semi-caricato era
de estatura média e estruturado, um bailarino versátil, que pode executar vários personagens, mas mantém um
verniz de estilo do bailarino sério. O bailarino cômico também é de estatura média, atlético com músculos
delineados, com uma técnica competente e, o mais importante, com um talento para a pantomima e para
comédia.
40
cruzam alongando e chamando a atenção para a postura e a leveza tão presentes no ballet
clássico.
Figura 22.
Attitude dérriere – Yvonne
Meyer (ACHCAR, 1985,
p.338).
Figura 23. Ilustrações do “Traité elementaire theorique et pratique de l’art de danse” de Carlo Blasis
(CAMINADA, 1999, p.131).
33
François Delsarte, cantor francês, admirado pela comunidade científica de sua época, apresentou
sistematização de gestos e movimentos do corpo humano no Grande Anfiteatro de Medicina da Sorbonne.
Através de Jacques-Dalcroze e de Steele MacKaye, nos Estados Unidos, impressionou Ruth Saint-Denis, que
passou a estudar seu método.
34
Emile Jacques-Dalcroze, músico suíço fundou em 1911 o “Instituto do Ritmo Aplicado”, em Hellerau. Entre
seus discípulos alinham-se Mary Wigman e Ivonne Georgi, que se serviram do conhecimento adquirido para
desenvolver os próprios sistemas de expressão. Apesar de seu objetivo ser o ensino da estrutura musical sob a
ótica científica, uma geração de dançarinos adotou seu método. Pragmático, rejeitou sistematicamente a
improvisação e os movimentos instintivos. Ocupou papel de fundamental importância na história da dança.
Colaborou com nomes importantes do mundo teatral, como o cenógrafo e iluminador suíço Adolphe Appia
(1862-1928).
42
De acordo com sua teoria da eukinetics, todos os movimentos podem ser divididos em duas
categorias principais: "saída" e "entrada". Laban desenvolveu um número de teorias relativas
ao movimento centrífugo (movimento originário do centro do corpo e radianting ou
espalhando-se para a periferia) e centrípeto (começando com as extremidades e movendo-se
para o centro do corpo). Ele cuidadosamente analisou-os quanto à velocidade de circulação, a
intensidade e a direção, fazendo uso do objecto conhecido como icosaedro, uma forma de 20
faces geométricas que é um ponto médio entre um cubo e uma esfera. O conceito fundamental
do icosaedro é que os movimentos do homem são representados pelo cubo. Assim, o
movimento ocorre em três dimensões, e também em diagonais e inclinações, limitados apenas
pelas possibilidades anatômicas do corpo; Laban usou os pontos imaginários no espaço ditados
pelo icosaedro, para desenvolver uma escala de movimentos complexos, que forneceu uma
base sistemática para treinamento da dança. Também foi conhecido por seu desenvolvimento
do movimento coral, uma forma de ginástica em massa um pouco similar a visualização no
sistema de Dalcroze com a música, mas com um maior grau de finalidade estética e de
conteúdo emocional do que foi encontrado no sistema de Dalcroze (KRAUS; CHAPMAN,
1981, p.138-139).
Essa contribuição para o universo da dança vem sendo não só preservada, mas também
amplamente difundida no meio artístico e acadêmico pela professora e escritora Ann
Hutchinson40. Novos métodos de notação de dança, a exemplo do Benesh Notation, surgiram
depois do Labanotation, mas não com ênfase em substituí-lo. O “Laban Center for Movement
and Dance”, de Londres, aceita alunos a partir de dezessete anos oferecendo-lhes um campo
de estudos e aprendizado mais amplo, que privilegia não só o ensino da técnica mas um
trabalho teórico que permite desenvolver o que Laban chamou de arte admitida como uma
posição ventral na vida cultural de um país.
40
Ann Hutchinson (1918-), co-fundadora e presidente do Notation Bureau Dance, New York, co-fundadora do
International Council of Kinetography Laban e professora na School of Performing Arts (New York) e na
Juillard School, autora dos livros “Labanotation”, de 1970, e “The System of Analysing and Recording
Movements” de 1977.
44
Figura 25.
Orientação Espacial
(LABAN, 1990, p.41).
A partir de 1947, Rudolf Benesh e sua companheira Joan deram início a oito anos de
intensos esforços conjuntos até chegarem ao sistema de notação denominado “Benesh
Movement Notation” (BMN). Ela com dificuldades em suas tentativas para escrever e depois
decifrar passos de dança; ele, por sua vez, escreveu poucas linhas para representar o
movimento de alguém em uma mesa, em seguida, pediu a um de seus pares para decifrá-las.
O sistema evoluiu no período de 1947-1955. Benesh utilizou um pentagrama (pauta) onde, em
vez de notas ou números, cada linha da pauta representava uma parte do corpo e símbolos
mostravam como essas partes se movem durante a dança.
45
através do Benesh Notação de Movimento. Monica Parker41 – pupila de Joan e Rudolf Benesh
enquanto estudante da Royal Ballet School – é a principal notadora da companhia Royal
Ballet. Em 2000 ganharam impulso trabalhos de informatização do sistema de notação Benesh
que em seu formato para processamento eletrônico será intitulado “Benesh Notation Editor”.
No futuro, talvez seja possível comparar esse aplicativo com o programa Finale de notação
musical, a versão da partitura em meio magnético.
O registro iconográfico da dança é antiquíssimo, mas em notação começa a ter
visibilidade a partir do século XV com os respectivos tratados. Se confrontarmos ao
desenvolvimento da iconografia e à tecnologia aplicada nos diversos períodos, a notação na
dança levou bastante tempo para ser pensada, vista suas passibilidades de emprego. Se
comparado ao processo da notação musical, sua difusão e uso ocorreram tardiamente e, ainda
assim, como perspectiva de registro promissor apenas no final do século XIX, início do século
XX. A importância e efetividade da notação têm-se destacado em importantes e variados
segmentos de atividades, até mesmo por um detalhe não menos relevante: o seu uso
representa um registro fidedigno da obra.
41
Monica Parker: seus trabalhos publicados incluem “Notação da dança para iniciantes”, “BMN Curriculares
Solo Fundamental - Aplicação Ballet” e “Benesh: a notação da dança” (Royal Academy of Dance -
www.rad.org.uk/article.asp?id=127).
47
1.3 – Música
O desenvolvimento dos sistemas de notação musical, com foco na cultura ocidental42
A notação musical é um análogo visual do som musical tanto como uma escrita de um
som ouvido ou imaginado, ou como conjunto de instruções para os executantes (SADIE,
2001, p.73). É compreendida como a inclusão de sistemas formais de significado entre
músicos e de memorização e ensino da música mediante sílabas, palavras ou frases expressas
oralmente. Essa última é muitas vezes chamada “notação oral” (SADIE, 2001, p.73). A
origem do sistema de notações escritas pode ser associada às “notações orais”. A
comunicação oral é a comunicação musical natural de sociedades baseadas em sistemas não
literários ou de classes não letradas.
No continente africano os países subsaarianos, por exemplo, exceto as comunidades
brancas, não cultivam o hábito de usar a notação escrita, porém muitos povos indígenas se
comunicam sobre música através do diálogo, pouco ou nada convencional, na forma de
sílabas, arranjos de palavras, número das teclas ou nome das cordas do instrumento musical
ou ainda de outro vocabulário técnico. Mesmo no século XI na Europa, os instrumentistas não
faziam uso da notação e músicos identificados com a igreja priorizavam a comunicação em
ensaios ou performances muito mais através de sílabas e sinais manuais do que da leitura de
partituras.
A notação musical escrita é um fenômeno de classes sociais letradas. Em todas as
sociedades ela se desenvolveu apenas depois da formação de um conjunto de signos para
linguagem escrita e no geral usa elementos desse conjunto (SADIE, 2001, p.73). O uso da
notação musical e da forma que ela toma está relacionado com o contexto social e cultural no
qual foi desenvolvida. Do ponto de vista sócio-cultural, é significante observar que, enquanto
na Europa Ocidental a música vocal foi a primeira a adquirir notação escrita, na Grécia,
Mesopotâmia e Egito, parece ter sido a música instrumental a contar com a prioridade da
notação. Na cultura grega e na mesopotâmica, e bem assim nas notações instrumentais do
leste da Ásia, os signos da linguagem fazem parte da notação.
Algumas notações são pensadas para suprir toda a carência de informação, enquanto
outras disponibilizam apenas uma pequena parte do que seria necessário ao não iniciado
(SADIE, 2001, p.73). A privação é um dos fatores que motivam o desenvolvimento.
42
Ver apêndice B.
49
Essa dicotomia entre informação total e parcial contida numa notação musical
específica advém do fato de que cada prática suscita diferentes necessidades. Em um
ambiente orquestral ou de música de câmara, as partituras são escritas com riqueza de
detalhes, enquanto músicos de jazz trabalham na maior parte das vezes com notações
simplificadas, nas quais apenas elementos essenciais estão disponíveis para nortear o que será
interpretado, procedimento esse aplicável também ao teatro onde o fazer teatral poderá
estabelecer a necessidade primordial e o ‘supérfluo’ para fins de registro.
Existem, entre outras, duas motivações importantes por trás do uso da notação
musical: a necessidade de auxílio à memória e a de comunicação. Como auxílio à memória, a
notação permite ao executante alcançar significativo repertório que, de outra maneira, não
poderia reter e/ou realizar. Pode ajudar a memória do executante em música previamente
conhecida, mas não perfeitamente decorada; pode também prover uma estrutura para a
improvisação ou permitir a leitura de música à primeira vista – esse último conceito é
predominantemente ocidental (SADIE, 2001, p.73). Como meio de comunicação, preserva a
música por um longo período de tempo e facilita a performance/ execução por aqueles que
não estão em contato com o compositor. Equipa o regente com um conjunto de informações
minuciosas a respeito de uma obra e apresenta a música como um ‘texto’ para estudo e
análise, contemplando necessidades da linguagem musical e oferecendo ao estudante os meios
de trazê-la a vida, em sua mente, quando a performance não é possível. Serve também aos
teóricos como um meio de demonstrar conceitos musicais ou acústicos (SADIE, 2001, p.74).
43
Sistemas logográficos de escrita — aqueles em que grafemas são logogramas que exprimem palavras ou
conceitos.
50
de sons musicais sobreviveram. Certos entalhes do período faraônico contêm cenas do fazer
musical que mostram o que parece ser um sistema usando sinais com braços, mãos e os dedos,
pelos quais instrutores davam detalhes de melodia e ritmo aos executantes (SADIE, 2001,
p.74). Consta que o método chamado Quironomia – uso das mãos para indicar elementos
rítmicos dos tons musicais e diferentes para atingir a interpretação mais perfeita – teria
existido entre os judeus por volta do segundo milênio antes de Cristo. Existem também
evidências de um sistema de notação fonética, isto é, instruções descritivas musicais que
podem ser vistas como notações esqueletais para instrumentos de corda, na antiga
Mesopotâmia por volta de 1800-500 a.C.
O sistema de notação alfabético mais antigo e conhecido é o de Ugarit, que se
expressava por símbolos cuneiformes representando 30 letras, cada signo um único som. Foi
preservado em tabuinhas de barro/argila. Já a primeira notação da altura ou intensidade das
notas musicais foi, na verdade, o mais antigo dos sistemas gregos de notação chamado
“notação instrumental”, o qual usava uma mistura de letras gregas e outros símbolos para
representar uma série contínua de notas diatônicas44 com extensão de três oitavas (SADIE,
2001, p.74). Essa notação deve ter entrado em uso num tempo anterior a 500 a.C., enquanto a
“notação vocal” usando o alfabeto jônico também tem suas origens, ao que tudo indica, por
volta desse mesmo período.
Tarefa que ocupou teóricos da Idade Média foi o desenvolvimento de uma notação
musical adaptada às exigências e necessidades da época. Enquanto os cânticos eram
transmitidos oralmente, tolerando-se imagens de variação na aplicação dos textos às melodias
tradicionais, não se fazia necessário mais do que um ou outro símbolo para a configuração
genérica da melodia. No século VII, o erudito do clero Isidoro de Sevilha (560-636) advoga
em sua obra “Etymologiae” que melodias não podiam ser escritas. Nesse pensar, de fato
44
São as notas que fazem parte de uma escala formada pelas notas brancas do piano ou por uma de suas
transposições. De forma prática são as notas que forma as escalas maiores e menores e também os modos
modernos derivados dos modos eclesiásticos. As escalas ‘menor harmônica’ e ‘menor melódica’, são ponto de
divergência entre especialistas, alguns às considerando diatônicas, enquanto outros as deixam de fora dessa
classificação.
51
nenhuma evidência concreta existe sobre o uso de notações musicais no ocidente medieval até
antes da era Carolíngia (751-987) (TARUSKIN45, 2010, p.170-190).
Por essa época, os francos ou carolíngios fizeram grandes esforços para remodelar
suas práticas litúrgicas junto ao poder de Roma, e iniciaram extenso programa de reforma
educacional no qual inclui-se a escrita musical. Os primeiros exemplos de notação musical
parecem vir do século IX, porém livros de canto completos e com sua notação datam do final
do século IX ou início do X. Foi nesse contexto social, político e cultural, nos domínios dos
reis francos Pepino, “O Breve” (751-768), e Carlos Magno (768-814), onde primeiramente se
impôs como necessário notar o canto gregoriano (TARUSKIN, 2010, p.170-190). Donde se
conclui que o desenvolvimento da escrita musical no ocidente sofre decisiva influência de
fatores políticos, talvez maior do que de fatores musicais.
Ainda antes de meados do século IX convencionou-se a colocação de sinais (neumas)
acima das palavras, indicando uma linha melódica ascendente (/), uma linha descendente (\),
ou uma combinação de ambas (/\). Estes neumas derivam, provavelmente, dos acentos
gramaticais tais como os usados no português, no francês e no italiano modernos. Essas
primeiras notações estavam longe do que se conhece atualmente e não podiam ser lidas à
primeira vista; eram apenas um auxílio à memória ou uma fonte de consulta àqueles que já
conheciam a melodia.
Com o passar do tempo tornou-se necessária uma forma mais exata de notação das
melodias, e já no século X os escribas colocavam neumas a uma altura variável acima do
texto para indicarem mais claramente a configuração da melodia – dá-se a esses sinais o nome
de “neumas mensuráveis” ou “diastemáticos”. Por vezes, acrescentavam-se pontos às linhas
contínuas para descrever a relação das notas individuais dentro do neuma, tornando assim
mais claros os intervalos que ele representava.
45
Richard Taruskin (1945 -) é musicólogo americano-russo, historiador de música, crítico que escreveu sobre
teoria da performance, música russa do século XV, música do século XX, a teoria do modernismo. Como
maestro, dirigiu o coral Collegium Musicum Columbia University. Tocava viola da gamba com o Ensemble de
Aulos no final dos anos 1970 aos anos 1980. Recebeu M.A. (1968) e doutorado em musicologia histórica (1976)
pela Universidade de Columbia.
52
46
Donald Grout foi professor emérito da Universidade de Cornell. Reconhecido internacionalmente como um
dos maiores vultos da musicologia ocidental de todos os tempos. Faleceu em março de 1987. Claude Palisca é
professor de Música na Universidade de Yale. Exerceu durante muitos anos as funções de presidente da
American Musicological Society e foi autor de diversas obras no campo da música.
54
Todas essas notações tratam da música monódica que, por possuir apenas uma linha
melódica, não possibilitou maiores aplicações para as formas de representação rítmica
tornando-a pouco expressiva, até que se criasse a técnica da polifonia47 para que o método
rítmico então ganhasse destaque e reconhecimento.
47
Polifonia, em música, é uma técnica compositiva que produz uma textura sonora específica, onde duas ou mais
vozes se desenvolvem preservando um caráter melódico e rítmico individualizado, em contraste com a
55
Até então, apenas uma das necessidades básicas do código musical havia sido
resolvida, isto é, a notação da altura da nota musical. É a partir da segunda metade do século
XIII, com a popularização da música polifônica, que a preocupação em notar a duração dos
sons, ou melhor, do ritmo, passa a fazer parte de documentos históricos de maneira
consistente. Essa primeira representação rítmica se desenvolve junto com as tentativas iniciais
de registrar a polifonia. A necessidade de escrever duas vozes independentes que, no entanto,
mantêm uma relação íntima, parece ter acelerado um processo que já estava em andamento.
Diferente da notação atual que utiliza diversas figuras para significar as diferentes durações
do som, essa primeira tentativa de registrar, em conjunto, altura e durações rítmicas se valia
das próprias neumas antigas em um sistema muito complexo que variava seu sentido em
função da maneira como essas neumas eram agrupadas. De acordo com sua posição, as
neumas podiam ganhar o status de nota longa ou breve, e com o agrupamento desse modo de
duração, foram criados seis padrões rítmicos diferentes que deram origem ao sistema
chamado de “modos rítmicos” (SADIE, 2001, p.120).
Bem antes do período da notação mensural da polifonia (1260-1500), o registro de
altura já havia perdido toda sua ambiguidade. A pauta de quatro linhas usada no cantochão
manteve-se por vezes em uso na polifonia, porém a pauta de cinco linhas passa a ter
frequência para as vozes polifônicas. Linhas adicionais podiam ser colocadas em qualquer
ponto onde a extensão da voz se fizesse necessária, mas as linhas suplementares em si eram
raras. Eram utilizadas claves em qualquer linha – as claves eram as de ‘dó’ e de ‘fá’. A clave
de sol aparece no século XIV, sobretudo em manuscritos ingleses como uma necessidade de
aumentar a extensão das vozes.
Durante esse período existiram três signos principais que correspondem ao que se
chama hoje de acidentes – bemol, sustenido e bequadro. Eles não funcionavam como os
acidentes modernos, por isso não significavam abaixamento ou elevação de uma nota natural
em um semitom (SADIE, 2001, p.129). Esses símbolos eram na verdade elementos do
sistema de solfejo proposto por Guido D’Arezzo no século XI.
O desenvolvimento da notação musical por volta de 1260–1500 deu-se quase que
exclusivamente no campo do ritmo, a par da preocupação de se criar uma transcrição precisa
monofonia, onde só uma voz existe ou, se há outras, seguem a principal em uníssono ou à distância de oitava(s),
ou apenas tecem floreios em torno da principal; com a monodia, onde uma voz melódica é acompanhada ou não
de acordes sem caráter melódico próprio; e com a homofonia e com o contraponto, onde as várias vozes se
movem com ritmo idêntico ou muito semelhante de modo a formar acordes nítidos, podendo elas ter ou não
caráter melódico próprio e pronunciado. A palavra vem do grego e significa “várias vozes”. No contexto da
música erudita do ocidente, polifonia usualmente se refere à música composta na Idade Média tardia e no
Renascimento, quando era a técnica de composição em voga. Mas formas barrocas como a fuga, também são
claramente polifônicas.
56
para valores mais curtos que a “longa” e a “breve”, utilizadas no sistema de modos rítmicos.
O século XIII presencia gradual adoção de distinções gráficas entre “longa” e “breve”. A
figura de uma nota quadrada com haste indica uma nota longa e, sem haste, uma nota breve.
Esse tipo de notação é a denominada mensural (TARUSKIN, 2010, p.212). Essas inovações
aparecem pela primeira vez no tratado “Ars cantus mensurabilis”, do escritor alemão Franco
de Colónia (1215-1270). Outra inovação descrita por de Colónia em seu tratado é a divisão da
“breve” em “semibreve” de modo que três figuras rítmicas estavam disponíveis a partir desse
momento. A “semibreve” passava a ser representada por uma “forma de diamante”
(TARUSKIN, 2010, p.216).
Compositores como Petrus de Cruce48 (por volta de 1290-1347) experimentaram no
final do século XIII novas possibilidades rítmicas. Em suas composições, de Cruce passou a
dividir a “semibreve” em figuras menores chamadas “mínimas”, de modo que agora existiam
quatro figuras rítmicas possíveis – “longa”, “breve”, “semibreve”, e “mínima” – cada uma
com sua representação dentro de um sistema de valores relativos entre elas.
O século XIV foi sem dúvida um tempo de intenso progresso técnico na arte da escrita
musical, isso resultou inevitavelmente numa grande mudança de estilo da música, uma vez
que mudanças no suporte têm impacto direto no fazer artístico em si. A melhor evidência do
progresso técnico dessa época são dois tratados de 1320: “Ars novae musicae”, de Jehan des
Murs49 (1290-1351), e “Ars Nova”, de Philippe de Vitry (1291-1361). Essas contribuições
foram tão decisivas para a prática musical desse século e dos posteriores que esse período da
música é geralmente conhecido como “Ars Nova”. O alcance dessas mudanças pode ser
sentido na frase do teórico Jehan des Murs: “qualquer coisa que possa ser cantada, pode ser
transcrita para o papel” (TARUSKIN, 2010, p.252).
Foi nesse período que se usaram pela primeira vez fórmulas de compasso, não como
as conhecemos hoje e sim como símbolos que representavam relações específicas entre as
figuras rítmicas. Essas relações continuaram como base para a notação musical (e o que se
conhece como partitura) na Europa até por volta do final do século XVI.
48
Petrus de Cruce (Pierre de la Croix), francês, clérigo, compositor e teórico. Sua maior contribuição na música
foi para o sistema de notação.
49
Jehan des Murs e Philippe de Vitry foram alunos da Universidade de Paris e eram matemáticos assim como
músicos.
57
Figura 32.
Notação
mensural do
século XVI
(APEL,
2010,
p.121).
Nos séculos XVI e XVII foram criadas a barra de compasso, a haste entre as notas de
pequeno valor e a ligadura, inovações que permitiram melhor agrupamento das notas e maior
precisão rítmica na partitura.
59
Figura 34. Grade orquestral da 5ª Sinfonia de Mahler (1902) (MAHLER, 1991, p.75).
60
Figura 35. Partitura de Zyklus (1959), obra de Stockhausen para solo de percussão, que pode ser lida em
qualquer sentido. Paralelamente à notação convencional, são usados sinais gráficos – alguns deles estão
circulados em vermelho (GRIFFTHS, 1998, p.167).
50
Por exemplo: col legno e pizzicato bartók.
51
Theremin e ondas martenot, instrumentos radioeletrônicos que produzem o som através de válvulas.
61
52
Krzysztof Penderecki, compositor polonês contemporâneo, classificado no período do pós-serialismo. Suas
primeiras obras eram enquadradas na chamada música de vanguarda. Tempos depois, contudo, passou a escrever
62
Tsilicas54 (1930-), por exemplo, contêm em seu início uma “bula” onde se especificam os
significados de símbolos não presentes na notação tradicional.
Figura 38.
Bula da partitura “Espiral” para
violão, de Jorge Tsilicas
(TSILICAS, 1974).
Mas se a música dispõe de um sistema muito preciso para notar as partes instrumentais
de um trecho, o teatro está longe de contar com semelhante metalinguagem capaz de fazer o
levantamento sincrônico das artes cênicas como um todo, dos códigos ou dos sistemas
significantes para esse universo.
Figura 39.
Trecho da parte de piano de
“Prozession”, de Stockhausen, com a
notação + - (mais-menos). “Per”
indica que o ritmo deve ser periódico
(GRIFFITHS, 1998, p.153).
obras com uma estética mais conservadora, retornando ao sistema tonal, eventualmente utilizando alguns
elementos atonais. Sua música se enquadra no período denominado classicismo pós-moderno. É um dos poucos
compositores contemporâneos renomados entre o grande público.
53
Luciano Bério, compositor italiano do período do vanguardismo na música, destacando-se, sobretudo, no
domínio da música experimental.
54
Jorge Tsilicas, compositor argentino.
63
1.4 – Escrita
O desenvolvimento dos sistemas de notação escritural, com foco na cultura ocidental
Os conceitos mais próximos da escrita derivam, regra geral, de uma raiz indo-europeia
que faz referência à primeira maneira de traçar sinais sobre um suporte, sinais esses
encontrados no grego, no latim e nas línguas derivadas (graphein, scribere, écrire, scrivere),
nas línguas germânicas e eslavas (script, schreiben, skribu), nos termos “gratter” e “graver”
(arranhar, raspar, gravar) (BARBIER, 2008, p.18-23).
Permanece aberta a discussão, em relação à natureza de expressões da arte parietal
registradas historicamente, se seria possível identificar traços próprios de um sistema de
representações gráficas organizado. Admite-se, porém, que características sejam ampliadas e
multiplicadas até constituírem um sistema coerente de símbolos – sem a necessidade de
transcrever especificamente todo o discurso contido em seu intermédio (como na notação
musical).
55
Referente a imagens encontradas em paredes de cavernas.
64
Três principais formas de escrita são objeto de estudos: os pictogramas, revelados por
volta de 3300 a.C. na Mesopotâmia entre os Sumérios, representam objetos concretos por
meio de desenhos; os ideogramas, sinais que traduzem uma ideia, mas não expressam
qualquer tipo de som (ideogramas que representam sons são chamados de fonogramas); e a
terceira, as escritas ideográficas que derivam das escritas silábicas, nas quais os ideogramas
representam os sons sucessivos de cada palavra. Tais escritas destacam-se como as principais
da antiguidade pré-clássica, juntamente com os ideogramas cuneiformes e a escrita
hieroglífica egípcia. Os hieróglifos tomam forma a partir de 3150 a.C.
Como adendo aos conceitos sobre representações iconográficas tratados
anteriormente, na escrita cuneiforme avançada os sinais das palavras podiam representar o seu
valor fonético (como se em português uma cara e uma vela representassem a palavra
“caravela”). Ao incorporar sinais silábicos nos signos de palavras, estas assumem uma forma
eficaz de transcrever a linguagem humana. O uso de sinais para representar objetos foi uma
etapa importante; a sua aplicação posterior para representar sons teve, provavelmente, a
mesma importância.
De fato, a escrita não constitui um sistema que dispõe de uma lógica unívoca. Sob o
impulso das necessidades, a escrita mesopotâmica e, sobretudo, a egípcia, combinam várias
lógicas (ideogramas, fonogramas e determinativos56), resultando em um sistema bastante
complexo que favorece a especialização, conforme se observa no Egito antigo, onde uma
categoria social particular, os escribas, responde por esse domínio. Do mesmo modo, a escrita
chinesa do terceiro milênio a.C. é uma escrita ideográfica que integra caracteres fonéticos.
Os passos iniciais da invenção da escrita alfabética se fizeram notar a partir do
segundo milênio a.C., no Mediterrâneo Oriental. O emprego da consoante destaca-se a partir
desse momento. No século XIII a.C. os fenícios empregam um ‘sistema de escrita 57 no qual
vinte e dois signos designam, cada um, uma consoante. “A combinação das consoantes
permite reconstituir, por assim dizer, o esqueleto da palavra” (BARBIER, 2008, p.29).
56
Sinais que determinam a que grupo pertence a palavra. Por exemplo: determinativo de cidade (uma bola com
um “X” dentro, de deus (um faraó sentado), de árvores (o contorno de uma árvore).
57
O alfabeto fenício pode ser considerado o mais importante tronco na “árvore genealógica” dos alfabetos. Os
alfabetos árabe, hebraico, grego, romano, todos têm um ascendente comum: o alfabeto fenício (HEITLINGER,
2010, p.30).
65
Figura 40.
Escrita Fenícia. Museu
ao ar livre de Karatepe-
Arslantas, Turquia
(HEITLINGER, 2010,
p.31).
Em síntese, por volta de 1500 a.C., no Egito, estabeleceu-se um alfabeto fonético com
23 ou 24 caracteres representando consoantes. Por volta do ano 1000 a.C, os fenícios
receberam o alfabeto egípcio e adaptaram-no gradualmente até assentar aquele que viria a ser
a base não somente de todos os alfabetos usados atualmente no Ocidente, mas também das
línguas indo-europeias. Os Gregos o importaram dos fenícios e adicionaram-lhe as vogais58.
Para Paulo Heitlinger59, o alfabeto latino, base da escrita e também da tipografia
ocidental, é um legado principalmente do Império Romano e colonizadores da Península
Ibérica (HEITLINGER, 2006, p.17).
Dos gregos o alfabeto passou para os etruscos, cuja cultura foi o berço da cultura latina. Por
sua vez, os romanos em expansão territorial, conhecidos pelo seu à-vontade em assimilar os
mais diversos elementos culturais estrangeiros, adaptaram o alfabeto grego/etrusco à sua língua
e à sua fonética (HEITLINGER, 2006, p.18).
Assim, o alfabeto latino em sua origem é um legado itálico do mesmo tipo do etrusco,
mas a universalidade do Império Romano lhe assegurará uma posição privilegiada no
Ocidente.
As consequências da invenção do alfabeto são absolutamente consideráveis. Primeiro, “Platão
e Aristóteles insistem sobre o fato de que a fala está, de agora em diante, fixada e que uma
crítica em relação a ela torna-se então possível”, ainda que, na civilização antiga, o problema
essencial resida na matriz da comunicação oral (daí a importância da retórica, depois da
maiêutica socrática, que conduzirá à dialética). À posteriori, as consequências da aparição da
58
Um conjunto de cinco vogais – a, e [é], i, o [ó], u – completado em seguida pelas duas vogais longas “e” [ê] e
“o” [ô].
59
Paulo Heitlinger, nascido em Lisboa, pesquisador da origem da história das letras, exerceu parte de sua
atividade profissional na Alemanha. Depois de se doutorar em Física Nuclear, trabalhou para a comunicação
social em jornalismo e fotografia. Fez publicidade e marketing. Como designer gráfico produz cartazes,
anúncios, brochuras, revistas, livros e websites.
66
escrita foram descritas por Jack Goody60: “É a transcrição da fala que permite claramente
separar as palavras, manipular a ordem e desenvolver assim as formas silogísticas de
raciocínio”. Para Goody, a escrita alfabética conferiu ao Ocidente sua forma lógica, pois ela
combina três elementos: - possibilidade de emprego universal e eficiência (uma vez que o
número de signos é limitado): de onde a democracia possível, pois cada um pode bastante
facilmente aprender a ler; - a abstração da lógica analítica sobre a qual a escrita se funda; -
enfim, a possibilidade de uma ampla difusão dos usos da escrita e a constituição de uma
verdadeira cultura escrita (GOODY, 1979 apud BARBIER, 2008, p.33).
60
Jack Goody, “La raison graphique: la domestication de la pensée sauvage”, trad. Fr., París, 1979.
61
O termo criptografia surgiu da fusão das palavras gregas "kryptós" e "gráphein", que significam "oculto" e
"escrever", respectivamente. Trata-se de um conjunto de conceitos e técnicas que visa codificar uma informação
de forma que somente o emissor e o receptor possam acessá-la, evitando que um “intruso” consiga interpretá-la.
Para isso, uma série de técnicas são utilizadas e muitas outras surgem com o passar do tempo.
67
A partir do século III a.C., a difusão de livros tornou-se um hábito em locais batizados
de salões de leitura a partir da leitura oral executada pelo autor ou pelo depositário do texto.
Logo, a difusão em butiques de livreiros (hoje corresponderiam às livrarias), juntamente com
a multiplicação do ateliê de copistas e a alfabetização ajudaram a difundir a cultura escrita,
principalmente em Roma (BARBIER, 2008, p.37-39).
Nota-se, curiosamente, a recorrência de uma questão amplamente difundida na área
cênica: diversificadas versões ou interpretações de um mesmo texto. A maior difusão dos
livros gera a intervenção de um ou mais copistas entre o autor e o público, o que introduz
problemas novos quanto à identidade e ao estatuto do autor, à exatidão do escrito, até mesmo
à vontade do autor de vê-lo difundido.
Além disso, secretários e escribas cometem certos erros de interpretação e de cópia,
acontecendo também de procederem não só a supressões de passagens por eles consideradas
menos interessantes, mas, em grande medida, a adições e correções, até difundir o texto sem o
aval do autor. “A prática do erro intervém igualmente muito cedo, uma vez que se encontram
textos apócrifos desde a tradição judaica62” (BARBIER, 2008, p.40).
Nos séculos I a IV dois fatos notáveis chamam a atenção. O primeiro é o
desenvolvimento da letra minúscula e cursiva que faculta à escrita adquirir cada vez mais
formas cursivas e simplificadas, nas quais começam a aparecer as hastes acima e abaixo da
linha, maior rapidez e mais facilidade expressiva pelo fato de os elementos que dão
especificidade às letras estarem mais aparentes. O outro, a criação do códex ou livro dobrado
e encadernado. O material de suporte para a escrita podia ser madeira ou pele de carneiro
preparada.
A invenção do códex é fundamental para o futuro da civilização escrita (da ciência e
das artes) porque proporciona caminhos para o progresso do trabalho intelectual sobre
documentos escritos. Sem maiores dificuldades pode-se consultá-lo nos mais inusitados
momentos, o que permite o abandono da leitura oralizada e privilegia o trabalho individual e
em silêncio. A combinação do códex e da minúscula produz uma potente ferramenta
intelectual, desconhecida até então, mas com respeitável capacidade de utilização que só será
plenamente explorada no século XVI.
No entanto, devido a suas características, a leitura individualizada e silenciosa se
contrapõe à atividade teatral que é essencialmente coletiva e trabalha com recursos da
oralidade.
62
Tradição judaica: desde 3761 a.C.
68
Nos séculos V a VII, quando a civilização se deixava conduzir em grande parte pela
tradição oral, os monastérios impõem-se como refúgio da cultura escrita e da tradição antiga,
em face do cristianismo e do forte movimento de evangelização. As principais regras
monásticas preveem que uma parte do dia seja consagrada à cópia dos livros no scriptorium
(ateliê dos escribas). Por toda a parte, nas novas casas religiosas, os ateliês dos copistas se
organizam, montam-se bibliotecas e a propagação dos livros se faz de forma mais ampla e
mais rapidamente (BARBIER, 2008, p.60-62).
Figura 41.
Pergaminho com versais romanas elaborado
entre 890 e 900 (HEITLINGER, 2010,
p.64).
Figura 42. Título: De adoratione crucis ab opifice, de Carmina Figurata. O comentário a seguir foi extraído do
artigo: “Este texto foi extraído do livro de ensaios Langue, Texte, Énigme. Paris, Editions du Seuil, 1975, p 25-
35. O autor vale-se aqui do duplo sentido do termo ‘lettre’ (letra e carta), que desdobrará a seguir em ‘signo
escrito e epístola’ (nota do tradutor)” (ZUMTHOR, 1992/93, p.69). Cabe acrescentar que letrados, no caso, são
os que sabem desenhar e decifrar letras.
tardio, possivelmente criado por Teócrito63 (cerca de 310 a.C. – 250 a.C.). Introduzido no
mundo latino pela poesia de Publilius Optatianus Porfyrius, poeta da corte de Constantino64
(272-337), foi redescoberto pelos letrados da dinastia franca carolíngea, por volta dos séculos
VII-IX. Dos vinte e um poemas figurados que deixou, alguns formam caligramas nos quais o
comprimento e a disposição dos versos desenham a silhueta de um objeto (uma flauta, um
altar); os outros, construídos geometricamente (cada verso comporta o mesmo número de
letras), permitem leituras no sentido horizontal, vertical ou em cruz (ZUMTHOR, 1992/93,
p.69-75).O poema “figurado” é em seu conjunto um ideograma: signo complexo, mas único,
sustentando uma espessura de camadas semânticas não necessariamente hierarquizadas. Em
tal contexto, as letras do alfabeto são as “figuras”, quer dizer, “constituintes que nesse nível
de análise, aparecem desprovidas de sentido próprio” ou formas superficiais articuladas,
definíveis como léxicas, sintáticas, retóricas e figurativas, que geram, como o produto da
criatividade, um efeito visual que acusa espacialidade específica da escritura impedindo o
deslizar ao longo da linearidade indiferente dos grafismos. O desenho preenche a função de
título, uma moldura na qual se subscreve o discurso (ZUMTHOR, 1992/93, p.69-75).
Assim, o Carmina Figurata manifesta a unidade conceitual e simbólica da página. Os
versos, iguais em número de letras, são compostos de modo a conter, em lugares
determinados, letras tais que formem uma frase revelando o sentido oculto do poema. Foi esse
também o modelo apurado pelos poetas da corte imperial do século IX. É possível estabelecer
um paralelo entre esse modelo e a poesia concreta, movimento iniciado na Europa no século
XX, década de 30, e no Brasil nos anos 50, de caráter experimental, basicamente visual, que
procura estruturar o texto poético escrito a partir do espaço do seu suporte, sendo ele a página
de um livro ou não, buscando a superação do verso como unidade rítmica-formal.
Ainda no contexto da Antiguidade e da Alta Idade Média, em ateliês importantes
empregou-se o estilo denominado iluminura, no qual predomina o conjunto de elementos
decorativos e representações imagéticas feitas em manuscritos medievais, em princípio
produzidos nos conventos e abadias. Faz parte de um momento caracterizado pela
especialização, pois constitui-se em elemento essencial de numerosos manuscritos. A imagem
preenche duas funções: decoração e informação – esta última como apelo às construções
simbólicas. Três modelos diferentes merecem citação: a ilustração, a letra enfeitada ou a
inicial enfeitada, e as bordas tingidas.
63
Teócrito, poeta grego de maior destaque no período helenístico.
64
Constantino I, também conhecido como Constantino Magno ou Constantino, o Grande, foi um imperador
romano, proclamado Augusto pelas suas tropas em 25 de julho de 306 e governou uma porção crescente do
Imperio Romano até a sua morte.
71
Figura 43.
Exemplo de iluminura medieval.
Autor desconhecido
(HEITLINGER, 2010, p. 674).
65
José Saramago (prêmio Nobel de Literatura em 1998) foi escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta,
jornalista, dramaturgo, contista e poeta português.
72
como utiliza o ponto final e a vírgula, utilizando-os com sinais de pausa, marcando a frase
com um ritmo mais aproximado ao da fala. Dois exemplos são “O Evangelho segundo Jesus
Cristo”, romance publicado em 1991, e “Ensaio sobre a cegueira” de 1995.
Figura 44.
São Gregório Magno no seu scriptorium,
aqui representado numa capa de livro em
marfim, do século X, com uma pomba, o
seu símbolo, pousada no ombro direito
(MATTHEW, 2008, p.45).
A escrita através dos livros atinge um público mais vasto, mas ainda minoritário em relação
ao conjunto da sociedade.
Um dos indicadores mais significativos da modernidade, que se afirma de modo cada
vez mais claro – a começar no século XII – no mundo da escrita é a tendência à
individualização. O novo leitor, silencioso, mergulhado no texto e como que fechado em si
mesmo, limita-se ao objeto de sua leitura e de sua reflexão. Nada há de surpreendente se essa
nova solidão se faz acompanhar do aumento de uma sensibilidade religiosa diferente, mais
atenta ao texto, mais voltada também para a experiência interior e, frequentemente, para
práticas de devoção individual. É sabido também que essas transformações são mais visíveis
nas regiões mais engajadas no processo de modernização referente aos planos demográfico
(urbanização), econômico e social (BARBIER, 2008, p.105).
Nos séculos XIII e XIV a atividade da escrita se desenvolve rapidamente: há a
produção de romances e narrativas históricas a pedido de príncipes, as bibliotecas tornam-se
mais numerosas, os ateliês de copistas se multiplicam. A virada desses séculos foi marcada
também pelo desenvolvimento de poderosas correntes místicas em estreita ligação com a
escrita, gerando, entre outras coisas, a necessidade da solidão tendo a leitura como um meio
para a meditação (BARBIER, 2008, p.108).
66
Johannes Gutenberg nasceu em Maiença, Vale do Reno médio, na Europa Ocidental, entre 1394 e 1400. “Se
Gutenberg e seus associados decidiram lançar inicialmente a “Bíblia de 42 linhas”, isso ocorreu não somente
para demonstrar a capacidade da nova técnica de reproduzir textos tão importantes em condições materiais
comparáveis às do manuscrito, mas também porque estavam certos de seu sucesso sob o plano material”
(BARBIER, 2008, p.147).
74
Figura 45.
Página de um
exemplar da “Bíblia
de 42 linhas”
(HEITLINGER, 2010,
p.413).
Figura 46.
A quadratura da letra versal
romana (HEITLINGER, 2010,
p.448).
Sendo assim, no plano das práticas culturais a tipografia em caracteres móveis coroa
uma longa evolução, engajada por uma mudança interior nos modos de leitura e manifesta no
aumento constante das demandas em relação às estruturas de produção dos livros manuscritos.
A crescente complexidade da paginação, a separação das palavras, a pontuação, são elementos
que designam “a reorganização do espaço gráfico”. A leitura se torna cada vez mais silenciosa
(e não mais oralizada, ainda que seja feita em voz baixa), feita consigo e para si mesmo. Com
o contínuo crescimento dos leitores potenciais – ainda em meio a uma minoria estreita de
profissionais ou de semiprofissionais –, o leque das diferentes práticas remete a uma forma de
pertencimento social e cultural. Exemplos de leituras oralizadas, vistos como “arcaicos”,
serão encontrados até à época contemporânea – em particular “no mundo rural”
(HEITLINGER, 2006, p.43-70).
“A invenção de Gutemberg reforça uma evolução antiga, não lança suas bases.
Perturba ainda menos os hábitos e as práticas da leitura e do trabalho intelectual pelo fato de
os primeiros livros impressos copiarem a sua forma material da forma dos manuscritos”
67
Os primeiros impressos não tinham página de título, seu “registro” figurava mais frequentemente na
apresentação e principalmente no posfácio (BARBIER, 2008, p.291).
76
68
O primeiro periódico do mundo, o alemão “Relation aller Fürnemmen und Gedenckwürdigen Historien”, foi
publicado por Johann Carolus (1575-1634) em 1609. No Brasil, a título de comparação, o primeiro jornal
“Gazeta do Rio de Janeiro” foi publicado em 10 de setembro de 1808, editado pela Imprensa Régia (CHAUNU,
2012, p.69).
77
A função da informação também evolui a cada período por força dos estilos
tipográficos, o que significa dizer que a forma material e a escolha de um caractere
tipográfico não são feitas de modo independente e nem gratuito. Desde o século XIV, a
bastarda69, por exemplo, é reservada aos manuscritos em língua vulgar destinados a uma
clientela mais refinada, enquanto o romano redondo70, no século XV, remete ao modelo da
modernidade humanista. A partir dos anos 1500, essas escolhas possuem uma dimensão
política cada vez mais forte.
Os séculos XV a XVII testemunham o impulso que impressores os mais diversos
deram à chamada revolução impressa na Europa, sem contar tratadistas que propuseram
formas didáticas para a prática caligráfica, pelo emprego de textos, imagens e a organização
de um catálogo completo de letras antigas e modernas de todas as nações. Merece destaque no
final do século XVII, período do absolutismo de Luís XIV, a publicação da primeira edição
do “Dicionário da Academia Francesa”, de Claude Perrault (1613-1688), até mesmo porque
nesse momento a escrita ainda não conseguia cruzar a fronteira das camadas abastadas e
eruditas.
Observado como questão mais ampla, o livro religioso permanece sendo o clássico
para a maioria das pessoas, como mostram os inventários de bibliotecas; percebe-se todavia
que as lógicas de fabricação, difusão e apropriação do impresso “popular” são adaptadas às
próprias características de seu público potencial. “A difusão do impresso cresce mais depressa
do que se esperava”. Ainda que, na maioria das vezes, se trate de alguns “livretos”, observam-
se, no entanto, cerca de sessenta bibliotecas contendo mais de cinquenta títulos e mais ou
menos outras vinte, com mais de cem (BARBIER, 2008, p.315).
No Iluminismo do século XVIII, o estilo do livro e da ilustração caracteriza-se pela
atenção cada vez maior à forma material. No que concerne à imagem, a função de
representação simbólica tende a se fazer menos recorrente em proveito da informação. Em
relação ao vocabulário estilístico, os elementos decorativos ocupam lugar cada vez maior,
com vinhetas ornamentais gravadas em madeira à base de elementos primeiro do “rococó” e
depois mais e mais arcaizantes.
Na década de 1730 há um investimento em bibliografias, principalmente de pintores e
artistas renomados como Molière. Os livros têm aparência rebuscada com retratos,
69
Bastardas: variantes regionais da Gótica que são letras violentamente condensadas, com formas quebradas
(fracturadas) ou geométricas, hastes e descendentes reduzidas, proporcionando mais letras por linha e mais
linhas por página.
70
Romano Redondo: caracterizam-se por uma altura da minúscula pequena, dado que as maiúsculas são
generosamente altas. Esta qualidade garante a estes tipos uma excelente legibilidade.
78
71
Escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha. A
Bauhaus foi uma importante expressão do que é chamado Modernismo no design e na arquitetura, sendo a
primeira escola de design do mundo.
80
A discussão sobre a relação mais próxima entre a palavra escrita e a falada é recorrente
em diversos espaços e momentos. Enfim, a contraposição entre retórica, oralidade,
normatização e práticas coexistem e interferem no pensamento de diversas disciplinas,
incluídas a arte cênica e sua conjugação de linguagens e expressões, conforme se depreende:
A oralidade e a escrita acabam por darem espaço, desde então, a dois conceitos muito
discutidos no final do século XX com a denominação “globalização”. A oposição conceitual
entre comunidade e coletividade. A comunidade designa um grupo humano de dimensões
suficientemente reduzidas para que todos possam, em princípio, conhecer-se diretamente – um
modelo possível seria “a cidade antiga”. Ao contrário, coletividade designa um grupo
excessivamente grande para que esse conhecimento seja possível. Em consequência, a via oral,
que ainda é adaptada à comunidade (de onde o lugar da retórica, mas também do teatro, no
mundo greco-latino), nem pode mais construir o meio de comunicação principal sobre o qual
se apoiará a coletividade: essa deverá oscilar globalmente em direção à escrita, de acordo com
modalidades, cronologias e práticas que são, bem evidentemente, muito diferentes de um
espaço geo-histórico a outro (BARBIER, 2008, p.117).
81
CAPÍTULO 2:
A NOTAÇÃO NAS PERFORMANCES TEATRAIS
Existem inúmeras variáveis que acompanham o tema da notação para o teatro. E não
se trata apenas das relações entre o texto escrito e a obra encenada, a poesia oral e a escrita, a
palavra proferida, a performance e seu campo visual e auditivo. Ocorrem também variáveis
comuns às ciências biológicas, às ciências humanas e às artes que devem ser observadas como
fundamentais para uma análise que pretenda cobrir uma parte das nuances do tema, avaliando
a predominância do sentido da visão sobre o sentido da audição, a questão da voz e, além
disso, a questão simbólica da escrita, a própria concepção de notação e partitura. Enfim,
inserir a discussão da notação teatral nas sociedades ocidentais pressupõe conduzir uma
quantidade mínima de questões importantes relacionadas ao tema.
A enunciação é a realização vocal da língua, a linguagem transformada em discurso
gerando relação com o mundo. Na escrita, o autor enuncia e faz indivíduos – e mais à frente
atores – enunciarem. “A situação da fala é atualizada na encenação” (PAVIS, 1999, p.361).
Interpretar um texto (em todo o sentido do termo) obriga a tomar partido quanto à situação de
enunciação. Certos textos (naturalistas, principalmente) contêm mais indicações precisas sobre
as situações e as personagens. A enunciação limita-se então, muitas vezes, a fundir texto e
situação numa mesma mensagem. Quando, ao contrário, o texto ou as indicações cênicas*
dizem poucas coisas sobre a situação, a margem de manobra do encenador/ enunciador [ou
ator/enunciador] é muito ampla e a escolha de uma situação de enunciação produz
frequentemente um leitura e uma iluminação novas [...] Não se trata de determinar quem fala e
a quem se dirige, mas de apreender como a enunciação, enquanto enunciação cênica global, se
abre e se apresenta ao público, como ela é a visualização (e a “audialização”), pelo espaço e
pelo tempo, das condições de enunciação para que a encenação seja recebida pelo público. A
enunciação é igualmente classificada pela atitude dos locutores, em face de seus enunciados.
Estas atitudes (no sentido brechtiano de Haltung, isto é, de maneira de se manter e de se
comportar e também de postura diante de uma questão) não se limitam à enunciação gestual
dos atores; a cenografia, a dicção, o jogo das luzes também dizem bem da relação do dizer e do
enunciado. Os diversos enunciadores cênicos dão uma imagem concreta da situação de
enunciação propondo uma hierarquia ou, pelo menos, uma interdependência das fontes de
enunciação (PAVIS, 1999, p.361-362).
Durante séculos, as fontes das quais emergem o registro cênico estiveram limitadas a
poucos documentos como o Antigo Testamento, ou narrativas de escritores da Antiguidade. Já
com os avanços tecnológicos, a presença crescente das universidades e o incentivo à pesquisa,
arqueólogos e historiadores registraram a descoberta de pinturas em cavernas e ruínas de
palácios, de mosaicos encrustados em edifícios, enfim, de documentos que proporcionaram
indicações sobre os espetáculos cênicos de antigamente.
Sabemos do ritual mágico-mítico do “casamento sagrado” dos mesopotâmicos e temos
fragmentos descobertos das disputas divinas dos sumérios; agora somos capazes de reconstruir
a origem do diálogo na dança egípcia de Hator e a organização da paixão de Osiris em Abidos.
Sabemos que o mimo e a farsa, também, tinham seu lugar reservado. Havia o anão do faraó,
que lançava seus trocadilhos diante do trono e também representava o deus/gnomo Bes nas
cerimônias religiosas. Havia os atores mascarados que divertiam as cortes principescas do
Oriente Próximo antigo, parodiando os generais inimigos e, mais tarde, na época do crepúsculo
dos deuses, zombavam até mesmo dos seres sobrenaturais (BERTHOLD, 2001, P.7-8).
A história do teatro europeu tem seu início na Grécia. Segundo Margot Berthold 72 em
História Mundial do Teatro, “A Ática é o berço de uma forma de arte dramática cujos valores
estéticos e criativos não perderam nada da sua eficácia depois de um período de 2500 anos”
(BERTHOLD, 2001, p.103). Suas origens encontram-se nos rituais de sacrifício, dança e
culto relacionados com os deuses louvados.
Muitos registros chamam atenção nesse período: os concursos dramáticos, os registros
escriturais das peças e de como se davam os espetáculos, a presença do coro, do coreuta, do
72
Margot Berthold, autora alemã de História Mundial do Teatro.
84
Figura 49. Máscara de Figura 50. Máscara na Figura 51. Máscara de Figura52. Máscara de
mármore de uma heroína mão de uma estátua de um escravo, séc. III a.C. um jovem, encontrada
da tragédia antiga mármore, a qual se (Milão, Museo Teatrale em Samsun (Amiso),
(Nápoles, Museu julga representar Ceres alla Scala) Turquia, sec. III a.C.
Nazionale) (Paris, Louvre) (BERTHOLD, 2001, (Munique, Staatliche
(BERTHOLD, 2001, (BERTHOLD, 2001, p.119). Antikensammlung)
p.119). p.119). (BERTHOLD, 2001,
p.119).
Mas no que diz respeito ao desenvolvimento de uma notação para o teatro, nada se
tem, a não ser registros escriturais ou iconográficos.
O teatro na Idade Média dialoga com o sagrado e com o profano, traz heranças da
antiguidade no modo de expressão, mas seu padrão “desafiou a disciplina das proporções
harmoniosas” e trouxe mais exuberância e exagero na dramaticidade. É um teatro que tem
‘mimo’ como grande viabilizador do espetáculo (BERTHOLD, 2001, p.185).
A cristianização da Europa Ocidental traz a força da fé e a representação nas igrejas
como forma de arte. Há uma dramatização teatral do Sacramento e a preocupação em
85
Figura 55.
Plano cênico de Renward Cysat para o auto da Paixão de Lucerna (primeiro dia), representada em
1583. Observa-se que, sobre a linguagem utilizada para mostrar o que se pretendia, que as imagens,
ou seja, a iconografia acompanha indicações feitas através da escrita. (BERTHOLD, 2001, p.218).
87
73
O palco do teatro: seu formato devia ser planejado de modo que o comprimento da área mais baixa (partindo
do centro), em um círculo podia ser descrito. E dentro desse círculo quatro triângulos equilaterais e equidistantes
(BERTHOLD, 2001, p.284-313).
74
William Shakespeare, poeta e dramaturgo inglês, reconhecido mundialmente.
88
como estrutura fundamental nas artes cênicas e ter cada vez mais espaço, seu formato ainda
não é discutido.
Figura 56. Phasma Dionysiacum, festa balé no estilo dos “Ludi Caesarei” romanos, na
corte imperial de Praga, em 1617. Observa-se o cenário em perspectiva (BERTHOLD,
2001, p.343).
75
Jean-Baptiste Poquelin, conhecido como Molière, dramaturgo francês, além de ator e encenador.
76
Jean Baptiste Racine, poeta trágico, dramaturgo, matemático e historiador francês.
77
“Commedia Dell’Arte – comédia da habilidade. Isto quer dizer arte mimética segundo a inspiração do
momento, improvisação ágil, rude e burlesca, jogo teatral primitivo tal como na Antiguidade os atelanos haviam
apresentado em seus palcos itinerantes: o grotesco de tipos segundo esquemas básicos de conflitos humanos,
demasiadamente humanos, a inesgotável, infinitamente variável e, em última análise, sempre inalterada matéria-
prima dos comediantes no grande teatro do mundo. Mas isso também significa domínio artístico dos meios de
expressão do corpo, reservatório de cenas prontas para a apresentação e modelos de situações, combinações
engenhosas, adaptação espontânea do gracejo à situação do momento” (BERTHOLD, 2001, p.353).
78
Apesar de se referenciar uma espécie de “classicismo romântico”, os dois períodos se definem por contrastes
(BERTHOLD, 2001, p.433).
79
Johann Wolfgang von Goethe, escritor, artista e político alemão.
80
Friedrich Schiller, poeta, filósofo e historiador alemão.
81
Friedrich Schlegel, poeta, crítico literário, filósofo e tradutor alemão. Era o irmão mais novo do também
filósofo August Wilhelm Schlegel.
90
A – Constantin Stanislavski
Pavis afirma que as “ondas rítmicas” de Stanislavski estão entre algumas tentativas de
“escritura cênica autônoma” e que, para Stanislavski, compor uma encenação consistiria em
tornar evidente, de forma material, o vasto sentido do texto dramático. Para isso, a encenação
82
Constantin Stanislavski, russo, foi ator, diretor, teórico, pedagogo e escritor do teatro.
83
Bertolt Brecht (Eugen Berthold Friedrich Brecht), alemão, foi dramaturgo, poeta e encenador.
84
Antonin Artaud, francês, foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro.
91
precisaria dispor de “recursos cênicos (dispositivo cênico, luzes, figurinos etc.) e lúdicos
(atuação, corporalidade e gestualidade)”. A encenação compreenderia ao mesmo tempo o
ambiente que envolve os atores e a sua “interpretação psicológica e gestual” (PAVIS, 1999,
p.124 e 279). No entanto Stanislavski não conjectura sobre a forma da notação.
De forma objetiva, em “A Preparação do Ator”, Stanislavski fala do desenvolvimento
de recursos ‘emocionais’ interiores e a libertação da mente e do corpo para responder às
exigências do texto.
Em seu segundo livro, “A Construção da Personagem”, destaca temas como a
expressão corporal, a dicção e o canto, entonações e pausas, “tempo-ritmo no movimento [e]
no falar”, entre outros aspectos de um sistema técnico de interpretação (STANISLAVSKI,
2009, p.6). Também estabelece inúmeras comparações com elementos utilizados na música
(partitura, tom, notas agudas e graves, solfejo, ritmo) e sugere o seu estudo e domínio como
trabalho técnico. Refere-se a técnicas de canto que deveriam ser objeto de estudo do ator para
a “criação” e interpretação do papel.
Stanislavski considera a relação tempo-ritmo nas palavras e no movimento em cena. Para ele o
tempo-ritmo da fala aproxima a fala à música. Observa uma grande diferença entre uma frase
pronunciada em semibreves, semínimas ou semicolcheias, ou, ainda, quando se lança mão de
terças e quintas. [...] Mesmo quando não se entende o significado das palavras, seus sons nos
afetam através do tempo-ritmo. Assim existe para Stanislavski uma interdependência e vínculo
indissolúveis entre o tempo-ritmo e o sentimento, e, inversamente, entre o sentimento e o
tempo-ritmo. Já tempo-ritmo no movimento para Stanislavski se manifesta nas ações físicas, ou
seja, no que define como tempo-ritmo exterior. Para Stanislavki o tempo-ritmo também dá vida
à memória visual e às suas imagens, por isso não condiz considerar o tempo-ritmo apenas
como compasso e velocidade. (STANISLAVSKI 1997 PP.183-6) Acima Stanislavski aponta o
quanto o tempo-ritmo pode ser uma referência orientadora no trabalho do ator. Assim em seu
discurso remete-se a alguns termos advindos da música com relação à duração das notas e das
alturas do som para explicitar a musicalidade, sobretudo da palavra. Contudo considera o
tempo-ritmo intrínsecos à palavra e ao movimento para a produção de sentidos em cena
(LIGNELLI85; VIEIRA86, 2009, p.59-60).
Em “A Criação de um Papel”, seu terceiro livro, ele diminui a ênfase dada à vida
interior do ator e do personagem como fonte para um papel e volta ao estudo das ações/
sensações físicas/ musculares, como meio de estimular os sentimentos indispensáveis à
execução do que chama de “superobjetivo” e “ação direta”.
No entanto, as “ondas rítmicas” mencionadas por Pavis relacionam-se mais com
subtexto, ações internas e externas, enfim, com ênfase à interpretação psicológica. Trata-se
85
César Lignelli, é ator, compositor, diretor musical e professor da área de voz e performance do Departamento
de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Doutor em Educação pela UnB, mestre em Arte e Tecnologia, na
linha de pesquisa Processos Composicionais para a Cena (IDA/UnB).
86
Sulian Vieira Pacheco, é atriz, professora da Universidade de Brasília na área de voz e performance do
Departamento de Artes Cênicas. Integra o Grupo de Pesquisa Vocalidade e Cena. É Bacharel em Interpretação
Teatral pela Universidade de Brasília e Mestre em Teatro Aplicado pela University of Manchester, Inglaterra.
92
de uma metáfora para indicar a precisão com que ator e diretor deveriam se preocupar e
requisitar em cada trabalho, traçando, inclusive, parâmetros musicais como referência. A
questão específica da notação manifesta-se, nos três primeiros livros de Stanislavski, apenas
na utilização quase recorrente da palavra ‘partitura’, referente à área da música. E aparece
também nos ‘cadernos de encenação’ das peças encenadas, o que não deixa de constituir-se
num registro, numa anotação do seu trabalho, porém sem o objetivo específico de ‘notação’.
No fim da década de 60, Jerzy Grotowski87 (1933-1999) considerava Stanislavski
como o “teórico da interpretação e figura central da moderna consciência teatral”
(CARLSON, 1997, p.443). Em sua obra “Para um Teatro Pobre”, embora enalteça o trabalho
de Stanislavski e dele aproveite os conceitos sobre ações físicas, Grotowski segue uma linha
de ação distinta na procura de um teatro mais ‘ritualístico’, para poucas pessoas (público). Em
seu processo de ensaio aplicava exercícios que buscavam levar o ator ao controle de seu corpo
para desenvolver um espetáculo que nada deveria ter de supérfluo, isto é, luzes e efeitos de
som que pudessem contrariar o cenário e o palco tradicionais.
Grotowski não se preocupou em separar pensamento e atividade corporal, intenção e
realização, ideia e ilustração em comparação com Stanislavski. O gesto para ele é objeto de
uma pesquisa e produção de ideogramas. O gesto teatral torna-se fonte e finalidade do
trabalho do ator. Para ele, a imagem do hieróglifo é sinônimo de signo icônico intraduzível,
tanto o objeto simbolizado como o símbolo.
O texto era considerado um elemento entre tantos, matéria prima a ser lapidada e
transformada, uma fonte de arquétipos, não a obra em si, uma representação notacional. E o
ator, nessa mesma linha, deveria ser arquetípico, bem preparado fisicamente, forçando o
corpo a uma expressividade que parecesse transcender os limites naturais para que a dinâmica
e o ritmo fossem rigidamente controlados; isso o aproximava dos atores idealizados por
Artaud, ou do teatro de marionetes do cenógrafo Gordon Craig88 (1872-1966). Na tradição do
teatro simbolista de Adolphe Appia89 (1862-1928), das imagens erguidas por Craig e da
87
Jerzy Grotowski, polonês, diretor e teórico do teatro.
88
Edward Gordon Craig, inglês, foi ator, cenógrafo, produtor, e diretor de teatro.
89
Adolphe Appia, suíço, arquiteto e encenador, cujas teorias, especialmente no campo interpretativo da luz,
ajudaram a concretizar as encenações simbolistas do século XX.
93
somente correlações que se aplicariam a elementos de uma partitura: tempo, ritmo, notas etc.,
de forma abrangente. Cria-se então uma estrutura metafórica descolada de sua origem,
perdida, sem referencial preciso na notação/registro, uma percepção generalizada e
escorregadia para ser utilizada numa sustentação teórica a ser perpetuada.
B – Bertolt Brecht
Assim como o faz a voz, o gesto também projeta o corpo no espaço da performance
visando conquistá-lo e preenchê-lo com seu movimento. “A palavra pronunciada não existe
em um contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo geral,
operando numa situação existencial que ela altera de alguma forma e cuja tonalidade engaja
os corpos dos participantes” (ZUMTHOR, 2005, p.147). Dentro da perspectiva da
performance, Brecht moldou a noção de “gesto” como jogo físico do ator, no caso, uma
maneira de dizer o texto e uma atitude crítica do locutor diante das frases que ele enuncia. O
“gesto” dá conta de que uma atitude corporal encontre seu equivalente numa inflexão de voz,
e vice-versa, continuamente.
A gestualidade para Brecht constitui o conjunto de evidências que determinam a
situação da personagem em relação a um grupo, meio ou classe. Salienta que a ação humana
não é convencional nem totalmente inventada e que não se repete da mesma maneira. Os
atores devem então controlar sua gestualidade constantemente com a finalidade de indicar
uma atitude social característica, uma conduta. O ‘gesto’ determina-se como materialização
das atitudes tomadas pelas personagens, uma diante da outra. Define-se como social: registro
físico manifesto no tom de voz, sem convenções estilísticas, expressão facial, olhar ou ações
determinadas que caracterizam o universo das relações das personagens.
Em Brecht, chama atenção o quanto a discussão conceitual pode marcar a prática
teatral. A implementação do gesto no teatro brechtiano acentua a intensidade da atuação, a
tensão entre texto e gesto, tendo como um dos pontos fomentadores a palavra dita.
expressão facial, olhar ou ações determinadas que caracterizam o universo das relações entre as
92
personagens (DAVINI , 1998, p.39).
Em Estudos sobre Teatro, Brecht fala de uma espécie de música gestual que distingue
o gesto ‘normal’, ‘cotidiano’, ‘tradicional’ do “gesto” buscando o efeito de distanciamento em
contraponto ao teatro psicológico.
Por “gesto” não se deve entender simples gesticular; não se trata de movimentos de mão para
sublinhar ou começar quaisquer passagens da peça, e sim atitudes globais. Toda a linguagem
que se apoia no “gesto”, que mostra determinadas atitudes da pessoas que fala em relação às
outras, é uma linguagem-gesto. A frase “arranca o olho que incomoda” tem um valor de
“gesto” mais reduzido do que esta outra: “quando o teu olho te incomodar, arranca-o”. Aqui, o
que nos é primeiramente revelado é o olho, a primeira parte da frase comporta o “gesto”
preciso do ato de supor algo; por fim, como que de surpresa, vem o conselho libertador da
segunda parte da frase (BRECHT, 2005, p.237).
Em “Pequeno Organon para o Teatro”, Brecht reuniu vários elementos da teoria épica.
Entre elas está a divisão da ação em episódios individuais e dialeticamente opostos, cada qual
com seu “gesto” básico. No Anexo II deste trabalho (transcrição dos tópicos 63, 64 e 65, de
“Pequeno Organon para o Teatro”), vê-se que ele percorre a concepção do conteúdo do
‘gesto’ nas cenas iniciais de sua peça “Vida de Galileu”. No entanto, é uma pesquisa em cima
do texto e não há registro notatório específico relacionado ao ‘gesto’, apenas as anotações
sobre as construções realizadas para as peças montadas pelo autor.
92
Silvia Adriana Davini foi PhD em Teatro pela Universidade de Londres, lecionou na Universidade de Brasília.
Sua produção artística e conceitual, entre música e teatro juntos, buscavam novos estilos de desempenho a partir
da voz e da palavra, e a interação destas com novas tecnologias.
96
Figura 57.
Construção de “partituras
gestuais” (KOUDELA, 2001,
p.82).
“O gesto tem um início, um
meio e um fim passíveis de
serem fixados. O gesto pode
ser imitado (representado) e
reconstruído (repetido). Ele
pode ser armazenado na
memória” (KOUDELA,
2001, p.46).
C – Antonin Artaud
Entre os teóricos presentes na obra de Carlson e Pavis, Antonin Artaud é o que mais
discorre e aprofunda a temática da linguagem teatral. Em “Teatro e Seu Duplo” – sua obra
mais influente, segundo Carlson –, Artaud sustenta que a encenação e a representação
precisariam ser compreendidas como sinais visíveis da linguagem; os atores deveriam ser
como “hieróglifos animados” cuja atuação despertasse na plateia uma resposta intuitiva. A
linguagem deveria despertar aquilo que geralmente não expressa (CARLSON, 1992, p.380).
No tópico Teatro Oriental e Teatro Ocidental, de “O Teatro e Seu Duplo”, o autor
discursa sobre o quanto o teatro está encerrado na própria linguagem e não consegue
expressar seus aspectos “metafísicos” através de gestos ativos, ruídos, cores, plasticidades e
todas as suas possibilidades de expressão.
Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a
importância que elas têm em sonhos. Quanto ao resto, é preciso encontrar novos meios de
anotar essa linguagem, quer esses meios sejam aparentados com os da transcrição musical,
quer se faça uso de uma espécie de linguagem cifrada. No que diz respeito aos objetos comuns,
ou mesmo ao corpo humano, elevados à dignidade de signos, é evidente que se pode buscar
inspiração nos caracteres hieroglíficos, não apenas para anotar esses signos de uma maneira
legível que permita sua reprodução conforme a vontade, mas também para compor em cena
símbolos precisos e legíveis diretamente. Por outro lado, essa linguagem cifrada e essa
transcrição musical serão preciosas como meio de transcrever as vozes. Uma vez que faz parte
da base da linguagem uma utilização particular das entonações, essas entonações devem
constituir uma espécie de equilíbrio harmônico, de deformação secundária da palavra, que deve
poder ser reproduzida à vontade. Do mesmo modo as dez mil e uma expressões do rosto
97
Figura 58. De Artaud, o caderno de encenação de “Os Cenci”, guardado por Roger Blin. Artaud busca através de
linhas,letras e setas, apontar o encaminhamento da cena. Ver em anexo III um resumo publicado nos Cahiers
Renaud- Barrault, nº 51, nov de 1965 extraído de VIRMAUX com todas as imagens (VIRMAUX, 2000, p.237-
353).
Obter um resultado como o requerido por Artaud exige controle e treinamento técnico.
Alcançar a linguagem notada ou colocá-la em prática e representá-la em cena com domínio de
seu conteúdo demanda tempo, além de treinamento disciplinado e específico. Isso não
significa ‘engessar’ a cena. Em “Ponto de Mudança”, Brook faz comparações entre o teatro e
o esporte (BROOK, 1994, p.25). Afirma que no esporte não se confunde o treinamento de
antes da corrida com a estratégia da corrida, que o esporte fornece imagens mais precisas e
melhores metáforas para a performance teatral e, assim como no esporte existem regras e
rígidos parâmetros, no teatro cada ator aprende seu papel e respeita-o até a última palavra.
Mas que essa realidade determinante não impede a improvisação, ou seja, é um aporte para a
expressão e sensibilidade. Numa prova, o atleta vale-se de todos os meios a seu dispor,
(lembrando que ele não trabalha com a expressão); iniciado o espetáculo, o ator se deixa
envolver pela estrutura da mise-en-scène e pode improvisar dentro dos parâmetros
93
Peter Brook, inglês, é diretor de teatro e cinema.
98
estabelecidos. Para o público, o evento ocorre naquele preciso instante: nem antes, nem
depois. Pode-se estender essa comparação à área da música e da dança.
Meierhold (1874-1940), diretor e pensador de teatro, assim como Artaud, também
inspira Peter Brook com a ideia dos hieróglifos. O conceito de partitura pode aparecer através
do que ele denominou de “desenho de movimentos” ou de “desenhos plásticos” (PAVIS,
1999, p.185). Meierhold atribuiu grande importância ao movimento (hieróglifo de
significação particular) e realizou estudos para o trabalho do ator a partir da compreensão
desse fundamento, trabalhando com outros dois princípios que também se aplicam ao teatro
de marionetes: a economia de meios e a precisão no movimento. Desenvolveu o método
biomecânico que visa traduzir vivências psíquicas primeiras despidas de nuances psicológicas
e concede importante função à pantomima grotesca e às figuras arlequinescas do teatro
popular das feiras. A biomecânica é uma forma de normatização que poderia ser utilizada no
registro ou notação de peças.
“Para exprimir tristeza, o ator não recorre a um jogo mímico matizado, à maneira de
Stanislávski; põe uma espécie de máscara pantomímica: fica de ombros caídos, move-se de
modo contorcido, negligencia os trajes; a alegria pode ser expressa por uma dança saltitante, a
atmosfera matinal pela marcha vigorosa e confiante de um grupo, etc” (ROSENFELD, 2008,
p.116).
Figura 60. Exercícios de biomecânica fotografados por Lee Strasberg, 1934 (GUINSBURG,
2001, p.64).
94
Jean Vauthier era dramaturgo francês.
95
Audureau e Vinaver são dramaturgos franceses.
100
(PAVIS, 1999, p.280). Sabe-se que cada obra musical detém um ritmo, mas sabe-se também
que no momento em que o maestro rege a orquestra ele reescreve aquele momento. Por mais
que haja treinamento técnico, executar um tempo perfeitamente calculado (como é
concebido), sem referência mecânica, é tarefa árdua e na maioria das vezes improvável. E é
ser esse ato de reescrever o momento que pode trazer vida à orquestra. O ritmo nesses casos é
um parâmetro referencial e não imutável. Não foram encontradas imagens para exemplificar o
caso.
No século VII, Isidoro de Sevilha96, considerado um grande erudito do período,
escreveu em sua enciclopédia “Etimologia” ou “Origens” que se os sons não fossem mantidos
na memória pelos homens, eles pereceriam, pois não podiam ser escritos; sustentava ser
impossível notar o canto. Entretanto, dois séculos depois acontecia a construção notacional na
música.
Do mesmo modo, Vauthier, Audureau e Vinaver também se preocupam com a notação
em seus textos. Notam as pausas e encadeamentos, as cadências, ligações, tempos rápidos ou
lentos, procurando dar à obra ao menos o tempo de sua execução.
É possível afirmar que, no século XX, entre Stanislaviski, que traça paralelos à
partitura musical, e Brecht, que traz no “gesto” demandas simbólicas inclusas no texto épico,
Artaud desponta como o teórico que ressalta de forma mais clara e objetiva a ideia de uma
notação específica para a performance teatral. Suas formulações motivam variadas formas de
propostas. “O surrealismo, o existencialismo, o absurdo, o pânico, o teatro pobre gravitam em
torno da proposta do teatro da crueldade de Artaud” (DAVINI, 1998, p.39). Davini acrescenta
que a percepção de Artaud sobre a problemática da palavra é afiada, mas as práticas propostas
a respeito são limitadas e acabam se inserindo no âmbito do teatro não verbal. “Considera-se
de fato a voz, não mais a palavra” (DAVINI, 1998, p.39). Ou seja, a fuga da matéria textual
na busca conceitual de novos caminhos desestrutura inclusive a instância da voz, no fazer
teatral.
96
Isidoro de Sevilha, teólogo, matemático, doutor da igreja e arcebispo de Sevilha, considerado o primeiro dos
grandes compiladores medievais. A sua obra enciclopédica Etymologiarum Libri XX, compendiando vinte livros
com os conhecimentos da época sobre artes e ciências influenciou largamente toda a produção intelectual na
Espanha medieval.
101
A percepção sonora e a visual comparadas entre si são muito mais díspares do que se
imagina. A pouca consciência desse fato se dá porque no contrato audiovisual essas
faculdades se influenciam mutuamente e emprestam uma à outra, por contaminação e
projeção, as suas propriedades receptivas. A própria relação com o movimento e com a
imobilidade é sempre diferente, uma vez que o sonoro, ao contrário do visual, pressupõe logo
um movimento.
102
A par dessa observação, grande parte dos esforços para o aperfeiçoamento tecnológico
da captação de som nas rodagens cinematográficas concentrou-se na fala. Porque se trata da
fala enquanto suporte da expressão verbal. Procura-se obter a garantia da inteligibilidade clara
e da sutileza das palavras pronunciadas.
Segundo Chion97 (1947-), para os ouvintes o som é o veículo da linguagem, e uma
frase falada faz o ouvido trabalhar mais depressa (em termos comparativos, a leitura com os
olhos é, salvo treino especial dos surdos, por exemplo, sensivelmente mais lenta). Por outro
lado, se o olho tende a ser mais lento, é porque tem mais trabalho a fazer: funciona, em
simultâneo, no espaço, que explora, e no tempo, que segue. Por conseguinte, deixa-se
ultrapassar rapidamente quando tem de assumir essas duas dimensões. A orelha isola uma
linha, um ponto do seu campo de audição e os segue no tempo. Todavia, tratando-se de uma
partitura musical familiar ao ouvinte, a sua escuta abandona mais facilmente a linha do tempo
para se dispersar espacialmente. Em suma, o olho é mais ágil espacialmente e o ouvido
temporalmente (CHION, 2008, p.16-17).
Simon Ings98 (1965-), em “O Olho”, defende que, em comparação com a visão, a
audição, o tato, o paladar e o olfato são sentidos relativamente passivos. Esse sentimento
parece confirmar-se de forma redobrada considerando que se vê muito mais o que se ouve do
que aquilo que se sente (sons, cheiros e toques). Somos inundados por imagens. Os olhos não
absorvem passivamente todo o cenário à sua volta – seria o caos. Eles buscam e selecionam.
A orelha, por exemplo, é moldada para receber o ar que transmite sons; é dispositivo coletor
de sons (1º estágio de absorção sonora). De outro lado, os olhos são esféricos e se movem;
não são coletores passivos, mas buscadores (INGS, 2008, p.173-176).
É mais fácil mover os olhos do que fazer a mente lembrar-se. Em comparação com o
processo de memorização, são nossos mais rápidos mecanismos de busca, pois podem
observar repetidamente. Quando o motorista vai fazer uma curva, seus olhos enviam
informações motoras para os braços apenas um segundo antes de insinuar qualquer
movimento. Parece que a informação visual de uma fração de segundos é mantida em uma
espécie de ‘buffer’ de memória. Eles se antecipam ao corpo, lidando com a próxima imagem,
a tarefa seguinte, a imediata série de previsões e cálculos, enquanto o corpo confia na
97
Michel Chion, francês, compositor de música experimental. Leciona em diversas instituições dentro da França
e atualmente ocupa o cargo de Professor Associado na Universidade de Paris III: Sorbonne Nouvelle, onde é
teórico e professor de audio-visual. Depois de estudar literatura e música começou a trabalhar para o (Rádio e
Televisão Francesa Organisation) ORTF Serviço de La Recherche como assistente de Pierre Schaeffer, em 1970.
Era membro do Groupe de Recherches Musicales (GRM) entre 1971-1976. Suas peças de composição eram
referenciadas como música concreta, por Schaeffer. Ele também escreveu livros, bem como ensaios, expondo
teorias sobre a interação entre som e imagem dentro do meio cinematográfico.
98
Simon Ings, romancista Inglês e escritor sobre ciências.
103
memória temporária. Ou seja, quando dizemos que ‘algo capta nosso olhar’, estamos sendo
menos fantasiosos do que imaginamos.
As imagens se dão em partes do cérebro voltadas para a percepção. As ‘imagens
mentais’ são uma espécie de percepção na ausência da sensação. O córtex visual é estimulado
quando surgem as ‘imagens mentais visuais’, e o auditivo, quando se trata de ‘imagens
mentais auditivas’. Todas as percepções, exceto as mais simples, são atos de construção.
Quando se olha para alguma coisa, os olhos fazem uma série rápida e altamente seletiva de
fixações, em grande parte inconscientes, para reunir apenas as informações de que o cérebro
precisa para o processo de captação. Para captar o objeto ‘cadeira’, por exemplo, assim que
ele reúne informações suficientes para suspeitar que a encontrou, procura apenas suas
características específicas. O cérebro percebe por antecipação. Ele formula hipóteses
perceptuais, depois as confirma (JOURDAIN99, 1998, p.215).
Já a fala não é só uma sucessão de palavras na ordem apropriada. Ela tem inflexões,
entonações melodiosas, andamento e ritmo. Linguagem e música dependem de mecanismos
fonadores e articulatórios que em outros primatas são rudimentares, e ambas, para serem
avaliadas, precisam de técnicas cerebrais distintamente humanas, dedicadas à análise de séries
de sons complexos, sedimentadas e em rápida mudança. Acompanha-se involuntariamente o
ritmo da música e, por consequência, da linguagem em performance, e mesmo se não se está
prestando atenção ao som em estado consciente, o rosto e a postura espelham a “narrativa” da
melodia e os pensamentos e sentimentos por ele provocados (SACKS, 2007, p.9-11).
99
Robert Jourdain, pianista, compositor, trabalha com inteligência artificial dedicando-se ao desenvolvimento de
esquemas conceituais para a representação do conhecimento. Criador de software sintetizador de música, feito
para representação gráfica e manipulação dos conceitos musicais, é também autor de cinco livros sobre
computação.
104
Além disso, a tendência ao falar é reagir a cada situação seguindo o tom e o gesto até
do próprio ato de falar. Já o escrever tende a ser uma espécie de ação separada e
especializada, sem muita oportunidade e apelo para a reação. O filósofo francês Henri
Bergson100 (1859-1941) viveu e escreveu dentro de uma tradição de pensamento que
considerava a língua como uma tecnologia humana que permite ao intelecto destacar-se no
imenso bioma do planeta. “A linguagem é para a inteligência o que a roda é para os pés, pois
lhe permite deslocar-se de uma coisa a outra com desenvoltura e rapidez [...].”
(MCLUHAN101, 2007, p.97).
A escrita designa um sistema102 convencional de signos gráficos que visam transmitir
a linguagem sob a forma visual. O cérebro com seus milhares de células combina sítios
primários (recepção de informação bruta transmitida pelos sentidos), sítios superiores
(tratamento dessa informação) e um conjunto neuronal bastante complexo (associação de
informações e elaborações de sínteses mentais pela comunicação entre células). A
especificidade humana reside, a um só tempo, na integração desses caracteres em um sistema
global – em sua auto elaboração individual e no lugar ocupado pela experiência (ou seja, pela
história) do processo.
Quanto à leitura, é um ato do presente cuja liberdade, todavia, se constrói em relação a
um horizonte determinado – pela bagagem social e cultural do leitor, pelas necessidades que
ele procura satisfazer lendo, também por sua disponibilidade no instante em que deseja ou
efetivamente vai ler (o acesso ao livro). Em segundo lugar, os conteúdos das leituras indicam
os estágios ao mesmo tempo sociais e culturais. O texto determina o leitor mais por sua
ausência que por sua presença. Os leitores menos instruídos não podem se apropriar de textos
demasiadamente complexos, enquanto aqueles com maior conhecimento não hesitam em se
100
Henri Bergson, filósofo e diplomata francês. Conhecido principalmente por “Ensaios sobre os dados
imediatos da consciência”, “Matéria e memória”, “A evolução criadora” e “As duas fontes da moral e da
religião”, sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes disciplinas - cinema, literatura,
neuropsicologia, bioética, entre outras. Recebeu o Nobel de Literatura de 1927.
101
Marshall Mcluhan (1911-1980), filósofo e educador canadense. Estudou engenharia, na Universidade de
Manitoba, em 1932, mas se formou em Literatura Inglesa Moderna, em 1934. Ensinou na Universidade de
Wisconsin, entre 1936 e 1937. Fez o mestrado em Cambridge, em 1939, e doutorou-se em filosofia, em 1943,
com uma tese sobre o autor satírico inglês Thomas Nashe. Entre 1944 e 1946, foi professor de literatura na
Universidade de Assumption, Wisconsin e Saint Louis, nos Estados Unidos, e na Universidade de Toronto, entre
1946 e 1979.
102
A maioria dos sistemas de escrita pode ser classificada nas seguintes categorias: sistemas logográficos – os
grafemas são logogramas (ideogramas ou pictogramas) que denotam palavras ou conceitos; sistemas silábicos ou
silabários – grafemas representam sílabas; abugidas – grafemas principais representam consoantes às quais está
associada uma vogal inerente e a mudança ou ausência de vogal é representada por diacríticos; abjads – grafemas
principais representam consoantes e as vogais são representadas por diacríticos; sistemas alfabéticos ou alfabetos
– grafemas representam consoantes ou vogais; sistemas mistos, que combinam elementos das categorias
anteriores (BARBIER, 2008, p.47).
105
103
Le Goff e Schmitt são historiadores franceses.
106
harmonia e, talvez no nível mais fundamental, ritmo. Integra-se isso tudo e constrói-se ‘a
música’ na mente usando muitas partes do cérebro. E a essa apreciação estrutural, em grande
medida inconsciente, adiciona-se uma reação muitas vezes intensa e profundamente
emocional (SACKS104, 2007, p.211).
A partir do século XV, o texto impresso e seu espaço materializam um modelo cultural
complexo. A multiplicação e a banalização dos impressos favorecem a tendência à abstração e
à racionalização que está na própria base do sistema alfabético – e da tipografia com
caracteres móveis (BARBIER, 2008, p.214). Com o interesse concentrado apenas em um dos
sentidos (o da visão), manifesta-se o princípio mecânico de abstração e repetição.
Na escola de hoje, quase sempre o ensino de um texto literário, entendido somente
como leitura e escrita, é mal concebido. Os traumas causados por um processo de
alfabetização repleto de carências ressoam dolorosamente nas aulas de teatro. Escritos são
recitados em tom monocórdio por alunos de cênicas, se não houver reorientação
metodológica. A criança brinca, dramatiza com situações e diálogos. Nas brincadeiras de roda
o texto é introduzido com leveza. Uma “alfabetização assassina” pode truncar essa relação
espontânea com a fala (KOUDELA, 2001, p.45-46).
E se na linguagem teatral os signos são irrisoriamente ínfimos em comparação com as
possibilidades sonoras, tímbricas e rítmicas, na escrita as marcas dinâmicas da fala são
praticamente nulas. Quando presentes, correspondem na maioria dos casos a leis gramaticais
distantes da fala. A voz, com sua natureza dinâmica e móvel, acaba por ser fixada pela escrita
no Ocidente. A análise dos elementos visuais também não escapa a um corte em unidades que
passam pela “grade da linguagem” no texto, o que altera de imediato a apreensão do
fenômeno cênico (PAVIS, 1999, p.200). E nesse ponto, uma notação específica incidiria, se
não como ‘a obra’, mas como ponte para a realidade cênica, mais eficaz e menos inibidora
para a voz e demais expressões, do que o texto apenas em forma literária. Não no sentido de
podar a criatividade, mas de abstrair descontroles conceituais e guiar tanto o ator quanto o
encenador nos objetivos artísticos concebidos para a obra.
A encenação é uma regulagem dos elementos textuais e visuais [...]. A presença física do ator
monopoliza a atenção do público e predomina sobre o sentido imaterial do texto: [o público]
“tende a desviar a atenção do texto para a realização vocal, do discurso para as ações físicas e
mesmo para a aparência física da personagem cênica etc. [...] Há uma tensão dialética entre o
texto dramático e o ator, baseada primariamente no fato de que os componentes acústicos do
signo linguístico são uma parte integral dos recursos vocais utilizados pelo ator”
(VELTRUSKÝ, 1977:115) (PAVIS, 1999, p. 430-431).
104
Oliver Sacks (1933-) é neurologista britânico e escritor. Bacharelou-se em medicina na Universidade de
Oxford.
107
Percebendo a linguagem escrita como letra e a falada como evento acústico, pode-se
modular a voz.
105
Vocalidade: É sobre a distinção entre oralidade e vocalidade que Zumthor baseia a “Introdução à Poesia
Oral”. Oralidade é um termo histórico, designa um fato que diz respeito às modalidades de transmissão: significa
simplesmente que uma mensagem é transmitida por intermédio da voz e do ouvido. Vocalidade, por sua vez,
sugere uma noção antropológica, não histórica, relativa aos valores que estão ligados à voz como voz os quais
encontram-se, portanto, integrados ao texto que ela transmite. Se este for composto por escrito em vista de uma
performance – assim como a poesia destinada ao canto –, sua vocalidade aparece como uma intenção
incorporada ao texto.
108
toda a sua espessura, sua complexidade provável. Mas quando há performance, uma
pluralidade de significantes se constitui (ZUMTHOR, 2005,p.18-19).
Para o intérprete em performance oral, a arte poética consiste em assumir a
instantaneidade da palavra. Daí a necessidade técnica, e eloquente, proveniente de estruturas
rítmicas, melódicas, harmônicas e dinâmicas, da emissão da palavra em performance. Ainda
assim, segundo Pavis no verbete ‘voz’, “a voz do ator é a última etapa antes da recepção do
texto e da cena pelo espectador: isto diz de sua importância na formação do sentido e do afeto,
mas também da dificuldade que existe em descrevê-la e em avaliá-la e em apreender seus
efeitos” (PAVIS, 1999, p.433). E segue:
[...] A altura, a potência, o timbre, a coloração da voz são fatores puramente materiais,
portanto, pouco controláveis pelo ator. Eles permitem identificar imediatamente a personagem
e, ao mesmo tempo, influem diretamente, como uma percepção direta e sensual, sobre a
sensibilidade do espectador. Quando ARTAUD descreve seu “teatro da crueldade”, ele nada
faz, na verdade, senão descrever toda enunciação de um texto no teatro: “A sonorização é
constante: os sons, os ruídos, os gritos são procurados primeiro por sua qualidade vibratória, e
em seguida pelo que representam” (1964b: 124). As palavras são “tomadas num sentido
encantatório verdadeiramente mágico – por sua forma, suas emanações sensíveis, e não mais
apenas por seu sentido” (1964b: 189). A voz é uma extensão, um prolongamento do corpo no
espaço (PAVIS, 1999, p.433).
106
Retórica: “eloquência, oratória; estudo do uso persuasivo da linguagem, em especial para o treinamento de
oradores; tratado que encerra essas regras; adornos empolados ou pomposos de um discurso; discurso de forma
primorosa porém vazio de conteúdo” (BUARQUE, 2009, p.1751). Por Pavis: “arte de bem falar e persuadir”;
três gêneros principais de retórica: demonstrativo – expõe os fatos descrevendo os acontecimentos, deliberativo –
as partes em conflito se esforçam para persuadir o campo adversário, defender seu ponto de vista e fazer com
que a ação desenrole a seu favor, e o judiciário – divide os papeis entre acusação e defesa (PAVIS, 1999, p.341).
107
Dicção: “maneira de dizer ou falar; arte de dizer, recitar, falar, com articulação e modulação apropriadas”
(BUARQUE, 2009, p.674). Pavis relaciona dicção à retória e à declamação (PAVIS, 1999, p.95).
109
inclinam para a massificação, eliminação das diferenças de desejo e criação, levando à perda
da autenticidade orgânica da voz e, consequentemente, do fazer ouvir (DAVINI, 2007, p.89).
Importa tocar neste ponto porque a notação teatral para performances, nas quais a
enunciação tenha destaque, não deve desconsiderar os parâmetros sonoros dessa enunciação,
vista a importância e abrangência da palavra falada. Pavis esclarece:
[...] A entonação regula a altura da voz e os acentos da frase. A voz do ator é igualmente
portadora da mensagem da entonação*, da acentuação, do ritmo. A entonação indica de
imediato (antes mesmo que o sentido intervenha) a atitude* do locutor, seu lugar no grupo, seu
gestus* social. Ela modaliza os enunciados, imprimindo-lhes uma luz muito sutil, donde o teste
bem conhecido pelos atores que consiste em fazê-los representar várias situações pronunciando
as mesmas palavras em diferentes tons (ver JAKOBSON, 1963: 215). A entonação marca a
posição do locutor em face de seus enunciados, exprime sua modalidade, principalmente as
emoções, a volição, a adesão aos enunciados etc. Ela também exprime, como bem mostrou
BAKHTIN, o contato com o ouvinte, a relação com o outro, a avaliação da situação, daí seu
lugar estratégico: “A entonação se encontra sempre no limite entre o verbal e o não-verbal, o
dito e o não-dito. Na entonação, o discurso entra em contato imediato com a vida” (citado em
TODOROV, 1981: 74). A entonação diz respeito tanto ao enunciado quanto à enunciação,
tanto ao sentido do texto quanto àquele do trabalho do ator, tanto à semântica quanto à
pragmática. [...] Encenadores como LEMAHIEU, VILLÉGIER, VITEZ (os quatro MOLIÈRE)
ou MNOUCHKINE (o ciclo dos SHAKESPEARE) ou BUCHVALD se esforçam para
teatralizar a voz do ator, evitando as produções de efeitos de naturalidade, de psicologia ou
expressividade, e acentuando ou ritmando o texto a ser dito de acordo com uma retórica
autônoma dotada de suas próprias leis que tratam o texto como material fônico, mostrando
claramente a localização da fala no corpo e sua enunciação como um gesto* que estira o corpo
inteiro. [...] (PAVIS, 1999, p.433).
Ela cita Brecht e seu “gesto”, a respeito do caráter físico e material da proposta, e reforça que
o gesto da palavra está presente ali:
Cada momento de fala implica a justaposição simultânea de várias instâncias, ao nível da
contracena (plano da relação entre os atores) e da cena (plano da relação dos atores com a
audiência). Dificilmente a complexidade desta realidade será apreendida através de estruturas
hierárquicas construídas a partir de infinitas oposições binárias que, se bem possam dar conta
de abordar outras realidades, como a do texto escrito, por exemplo, tendem a omitir na sua
lógica a vocalidade de quem atua, através da qual o texto oral deixa de ser uma possibilidade
para tornar-se uma realidade concreta (DAVINI, 1998, p.41).
Zumthor faz uma distinção fundamental entre texto e obra. Considera ‘texto’ a
sequência linguística que constitui a mensagem, cujo sentido global não se reduz à soma dos
efeitos de sentidos particulares produzidos por seus componentes sucessivos; ‘obra’, a
totalidade dos fatores da performance – texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais e
situacionais – que produzem juntos um sentido global. Sob sua ótica, a obra é por natureza
teatral; o teatro, sua forma acabada.
Do texto, a voz em performance extrai a obra. Ela se submete a este fim, ao
funcionalizar todos os elementos aptos a sustentá-la, amplificá-la, a declarar sua
autoridade, sua ação, sua intensão persuasiva. Utiliza o próprio silêncio que ela motiva
e torna significante (ZUMTHOR, 2005, p.142).
Dessas distinções resulta que não seria correto falar de performance de forma
totalmente unívoca, nem de notação desse mesmo modo. Na acepção que hoje se lhe atribui, a
performance é virtualmente (no sentido filosófico da palavra, ou seja, está predeterminada e
contém todas as condições essenciais à sua realização) um ato teatral no qual se integram
todos os elementos visuais, auditivos e táteis que constituem a presença de um corpo e as
circunstâncias nas quais ele existe (ZUMTHOR, 2005, p.69).
Do ponto de vista das relações entre o texto e a obra, pode-se enumerar ao menos três
situações interrelacionadas. A audição (com a visualização da obra em cena), a leitura
dramática (sem a montagem da obra) e a leitura solitária. A primeira se dá pela visão global
da situação de enunciação; é a performance em sua completude, na qual se constata
provavelmente a oposição mais forte entre obra e texto. Na segunda, a sensação de presença
111
física é suprimida, de forma visual ou tátil, e a oposição entre ambos tende a ser diminuída. Já
na leitura solitária, marca-se a enunciação performática em grau mais fraco se comparado.
Com efeito, o leitor pratica duas modalidades de leitura e torna-se receptor em uma
apreciação: ora a puramente visual, ora a articulada/ vocalizada, comportando um mínimo
jogo muscular (procedimento habitual no Ocidente até os séculos XV e XVI). Em outro
extremo, acontece o embate com a performance vocalizada.
Em relação às formas constituintes da obra, deve-se ainda avaliar duas vertentes.
Aquela em que se manifestam as sequências linguísticas das quais resulta o texto; depois, as
“sócio corporais” que compreendem os elementos não textuais (pelo signo da letra) da
performance relativos à corporeidade dos respectivos participantes (incluídas a voz e suas
fronteiras não delineáveis a olho nu) e à existência social, individual e grupal. Ao considerar
uma notação para a cena, deve-se portanto considerar a obra em sua totalidade e o texto como
parte do código desta notação.
Mas, ainda assim, nenhum sistema de signos dará a ideia acabada à obra performática.
O que se busca são indícios mais consistentes daquilo que o texto em linguagem escrita pode
fornecer, das imagens sonoras e visuais, pois os enlaces orgânicos e de sentido se
concretizarão a partir da obra vocalizada.
Há textos que se destinam ao consumo visual (em princípio solitário e silencioso) pela
leitura; outros, à audição e, portanto, à percepção de efeitos sonoros (e por isso abertos ao
consumo coletivo – um texto dramatúrgico seria um exemplo). Os primeiros apresentam-se
como um objeto – folha de papel, livro; os segundos, como uma ação vocal.
Neste trabalho sugere-se que abrir espaço à transcrição no teatro possa trazer
benefícios ao fazer teatral, inclusive aos estudos. Observar num primeiro momento o que há
de mais simbólico na linguagem teatral e agregar a métodos como a biomecânica de
Meierhold, os hieróglifos de Artaud e a outras propostas relacionadas com o contorno físico e
acústico do corpo, talvez seja um bom início. Para tanto, examinar com cautela e pertinência a
abordagem e elementos comuns a outras áreas (música, dança, iconografia, escrita) seria
relevante e apontaria caminhos para propostas de notação em performance.
A codificação musical é um bom exemplo, pois indica com mais clareza como se
desenvolveu e se estruturou o formato de notação, de partitura, e como esta caminha ao lado
112
108
Ataque (música): “Ato de começar a emissão de um som com a voz, com um instrumento musical tradicional,
ou com outro qualquer instrumento musical mecânico” (BUARQUE, 2009, p.218).
113
mesma obra, às vezes diferentes para um ou outro instrumento, em sua maioria por eles
desenvolvidas para ilustrar especificidades de suas músicas.
A ópera também apresenta estrutura de notação, embora sua proposta esteja na música
e no texto cantado, os quais, no entanto, facultam imenso suporte a um tipo de representação
bastante complexo em sua montagem (cenários, figurinos, figurantes, bailarinos, coro etc.).
Outro exemplo importante que pode servir à demanda e experiência teatral é o canto
falado (“Pierrot Lunaire op. 21”)109 de Schoenberg (1874-1951). De todas as suas obras é a
que se tornou mais célebre, na avaliação de René Leibowitz110. Naturalmente a originalidade
da concepção contribuiu muito para o seu grande sucesso. A voz da recitante presta-se
essencialmente à originalidade da obra. Os princípios desse novo meio de expressão vocal são
o “sprechgesang” (canto falado) e o “sprechstimme” (voz falada)111. O ritmo deve ser
observado estritamente, como se se tratasse de um canto, mas enquanto a melodia cantada
mantém a altura do som112, a melodia falada não faz senão indicá-la, abandonando-a
imediatamente de maneira ascendente ou descendente. Aliás, a fim de ‘cortar pela raiz’ toda
tentação ou desejo de cantar, Schoenberg não só encomenda um ensaio a um de seus
discípulos, Erwin Stein, sobre a maneira de executar o “sprechgesang” como, mais tarde,
formula a notação “sprechstimme” sobre uma só linha, em vez de fazê-lo sobre o pentagrama,
o que constitui, ao contrário do que se pensaria, uma notação julgada musicalmente mais
precisa e mais adequada.
A voz devia “dar a altura com precisão, mas imediatamente depois deixá-la descer ou
subir; o intérprete deve fazer de tal forma que o “sprechgesang” não se pareça nem com a fala
natural nem com o canto autêntico” (SCHOENBERG apud SADIE, 1994, p.895).
Relativamente às considerações de Pavis acerca da dificuldade de se constituir uma
notação para o teatro, a música também enfrentou não poucos obstáculos, mas conseguiu
superá-los, e exemplo acabado de transcrição nessa área é uma grade orquestral (toda a obra,
os diversos instrumentos e as divisões entre eles, todos os cuidados implícitos no processo de
apresentação). Habitualmente apenas compositores e maestros dispõem de técnica e
especialização para interpretá-la em todas as suas particularidades. Os músicos, de forma
109
Trata-se de 21 melodramas para recitante, flauta, que alterna com flautim, clarinete, que alterna com baixo,
violino, que alterna com viola, violoncelo e piano. São peças curtas que se agrupam em três partes de sete
melodramas cada uma. Schoemberg consegue criar uma diversidade de timbre tão acentuada, com um número
reduzido de instrumentos. Apesar de o estilo aforístico já estar ultrapassado aqui, pode-se dizer que a concepção
da obra praticamente não teria sido possível sem as experiências composicionais adquiridas por meio dele.
110
René Leibowitz, francês, foi compositor, musico teórico, maestro e professor.
111
Termos para um tipo de enunciação vocal entre a fala e o canto.
112
Altura, na música, designa a nota e não o volume, como comumente/popularmente é referenciado.
115
geral, leem na partitura o que lhes é devido interpretar, mas não necessariamente precisam
compreender ou acompanhar em leitura toda a grade. Sem o auxílio dela seria difícil imaginar
outra maneira de lidar com tantos músicos (de trinta a mais de cem).
Com relação ao treinamento corporal, muitas propostas, inclusive aquelas com mais
ênfase à ‘expressão corporal’ (destituídas a princípio de um trabalho vocal) ou ao teatro físico
(não se inclui a voz nesse corpo a não ser dicotomicamente e em uma segunda instância),
como princípio de pesquisa e linha de atuação – como em Copeau113 (1879-1949), Lecoq114
(1921-1999), Decroux115 (1898-1991) – podem auxiliar na composição simbólica e imagética
de uma ou várias notações.
A taquigrafia também poderia ser uma opção, posto que seus padrões de registro
textual são diferentes e isso poderia delinear uma leitura mais fluida (com devido
treinamento) e menos fixada em padrões gramaticais.
Enfim, o desenvolvimento de notações parece prever demandas, se não tão intensas,
ao menos mais presentes nos campos conceitual e técnico por parte de diretores, dramaturgos
e, porque não, de professores.
Na tabela a seguir há interrelações que poderiam ser notadas, de forma relativa e/ou
individual. Com elas o teatro dialoga e, a partir delas, em muitos casos, se realiza. Sem maior
pretensão a não ser aprofundar a discussão do assunto, e sem descer ao mérito da
fundamentação conceitual necessária para desenvolver uma notação no teatro, as referências
de mútua relação exemplificadamente indicadas, representam tão só uma conjectura, uma
sugestão da multiplicidade de movimentos hábeis para compor a notação teatral, e ressaltar o
porquê das tantas dificuldades associadas ao tema.
113
Jacques Copeau, francês, foi diretor, autor, dramaturgo e ator de teatro. Fundador do Théâtre du Vieux-
Colombier em Paris. Fundou uma importante escola de atores junto ao seu teatro onde influenciou gerações de
artistas franceses, através de seu treinamento para o ator. Copeau trabalhou a corporalidade do ator para depois
voltar ao texto como elemento principal.
114
Jacques Lecoq, francês, foi ator, mímico e instrutor de teatro. Fundou a escola de teatro, L’École
Internationale de Théâtre Jacques Lecoq.
115
Étienne Decroux, francês, ator e mímico. Estudou na escola do teatro Vieux-Colombier de Jacques Copeau,
participou da companhia de Charles Dullin. Trabalhou sob a direção de Antonin Artaud, de Louis Jouvert e
participou de filmes dirigidos por Marcel Carné e pelo surrealista Jacques Prévert. Seu interesse principal era o
estudo da expressão do corpo, e se dedicou a pesquisar a técnica chamada de Mímica Corporal Dramática (Mime
Corporel).
116
Dimensão Acústica (incluindo a 1. Texto gritado, falado ou sussurrado. A intensidade da voz em diversos
voz) trechos e palavras: (f, mf, p, mp...) fraco, mezzo fraco, piano, mezzo piano
etc.
- os aspectos podem ser divididos 2. Ritmo da fala.
entre textuais e musicais 3. Marcação de entradas de texto - se são sucessivas ou simultâneas
(polifonia textual).
4. A ALTURA ou o REGISTRO DA VOZ - agudo, médio e/ou grave;
monocórdio.
5. Tempo de sustentação de trechos definidos; ou o texto apresentado de
forma monocórdica ou seja, acentos, dinâmica e andamento.
6. Se constarão efeitos vocais, onomatopeias, vocalizes, melodias.
7. Marcação em uma linha relativa/absoluta do evento sonoro ou música.
8. Interação entre o som e outros eventos como a luz.
9. Como se distribui o som: espacialização através de caixas de som 2.1, 5.1,
7.1 por exemplo, ou através da distribuição dos atores no espaço cênico.
Corpo Cinético (atitude e 1. Presença de coreografia.
2. Pequenos e grandes gestos.
intensão)
3. Movimentação no espaço.
4. Sincronia de movimentações individuais e/ou grupais.
Cenografia, Figurino e 1. Posição específica de objetos significantes ou de importância específica.
2. Movimentação dos objeto em cena ou entre atos. Reorganização do cenário
Maquiagem
e seus constituintes.
3. Modificação de maquiagem e figurino. Se, em cena, com que precisão,
tempo e lugar.
116
Finale: o programa já evoluiu a ponto de ser utilizado como ferramenta de composição, e em conjunto com
programas de gravação e mixagem.
117
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ou num plano maior, de um registro para encenações de estilo muito particular. Parcela desse
discurso procura se sustentar na ideia de que a notação deva ser uma metodologia que abranja
todos os estilos. No entanto, vê-se nos métodos da escrita, da música e da dança que as
possibilidades podem e devem variar de acordo com a necessidade da obra.
A existência de uma notação não reduz o espetáculo a um objeto analisado. Na dança e
na música, que propõem formas próprias de notação, a análise do objeto em adaptação/ versão
é imprescindível para a apuração da obra e, a princípio, em sua utilização detectam-se mais
pontos positivos que negativos.
Outras correntes entendem o código teatral como um empecilho, uma barreira ao
desenvolvimento artístico, não só em razão da logística demandada pela variedade de signos
da notação e pela maneira como tratar questões estilísticas, mas pela egrégora acerca da
liberdade criativa/ imaginativa/ espontânea/ intuitiva que sugere que esta é passível de
cerceamento artístico em consequência de regras, técnicas e normativas.
Parece dicotômica essa linha de raciocínio, pois muito se cobra e se fala sobre a
presença da “técnica” no teatro; é como se ela tivesse se tornado uma entidade intangível.
Perguntar a um estudante ou mesmo a um profissional do teatro quais técnicas são estudadas
ou utilizadas por ele, pode ser constrangedor. Certamente o mesmo não aconteceria se
idêntica pergunta fosse endereçada a um estudante de psicologia, de música ou de dança.
Ademais, entendimento técnico é o estado primordial para lidar com um código
específico. E não poderia ser diferente. Se a técnica por vezes não é tratada com clareza no
treinamento do ator, a concretização da notação torna-se mais distante de ser realizada.
Ao deixar claros os pormenores mais importantes de uma obra dramatúrgica,
facilitando a performance e equipando o encenador ou diretor com informações minuciosas, a
notação no teatro, assim como em outras expressões artísticas, cumpriria papel ainda mais
relevante que o de elemento de difusão e arquivo de montagens em tempos e lugares diversos.
Traria ainda subsídios à execução dessa mesma obra por outros agentes. Peças com uma
estrutura formal e conceitual mais aberta poderiam se beneficiar de notações ágeis, capazes de
prover mapas ou esqueletos para a improvisação. Como ocorre nas cifras de jazz, na música.
A formação técnica do dramaturgo, do diretor, do ator e do professor em métodos de
codificação seria um facilitador para a elaboração e transmissão da obra, com o vínculo
estético gerado em segundo plano. Uma peça notada apresentaria desde logo a encenação com
uma perspectiva geral, um “texto” para estudo e análise, contemplando as necessidades da
linguagem cênica e oferecendo ao estudante os meios de trazê-la a vida em seu intelecto,
enquanto a performance não for possível.
119
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75, 1992/93.
WEB SITES:
APÊNDICE A
Historiografia da Arte:
Identificação dos Estilos Artísticos por Ordem de Detecção e Convenção
ARTE ANTIGA
Mesopotâmica (3.000 a.C.)
Arte Suméria
Arte Assíria
Arte Babilônica
Persa (500 a.C.)
Egípcia (3000 a.C.)
Celta (400 a.C.)
Fenícia (1000 a.C.)
Egeia
Arte Cicládica (3.000 – 2000 a.C.)
Arte Minoica (3.000 – 1400 a.C.)
Arte Micênica (1.600 – 1200 a.C.)
Antiguidade Clássica
Arte Etrusca (850 – 550 a.C.)
Arte Grega (800 – 200 a.C.)
Arte Romana (750 a.C – 450 d.C.)
Arte Carolíngea
Românico
Arte Mudéjar
Gótico
Manuelino
Simbolismo
Art Nouveau
Vanguardas
Expressionismo
Fovismo
Die Brüke
Der Blauereiter
Abstracionismo
Neoplasticismo
Cubismo
Construtivismo
Bauhaus
Suprematismo
Dadaísmo
Surrealismo
Futurismo
Realismo Socialista
131
APÊNDICE B
O Sistema de Notação117Musical
a) Materiais: Geral
Uma notação musical requer, em essência, duas coisas: um grupo de signos e uma
convenção que explique como esses signos se relacionam entre si. Uma notação musical
escrita requer um arranjo especial desses signos na superfície de escrita de modo a criar um
sistema com esse agrupamento; é esse sistema que permite uma analogia com o sistema de
sons musicais permitindo que os signos signifiquem elementos individuais do sistema
musical.
A exceção dos exemplos criados no século XX, a notação musical sempre se apoiou
na prática de se apropriar de elementos de outro sistema significante, para o propósito musical
(como as representações de valores aritméticos, acentos e outros sinais de inflexão do
discurso, ou sons da linguagem natural). Nessa prática partes do sistema eram descartadas e o
formato dos signos podiam ser modificados para os novos propósitos. Esses signos, os
“materiais” da notação, podem ser classificados de forma geral em duas categorias: os
sonoros e os gráficos. Signos sonoros incluem letras, sílabas e palavras. Sinais gráficos
incluem figuras geométricas, linhas, pontos, curvas, grades (linhas horizontais e verticais que
se cruzam formando quadrados) etc.
Signos sonoros naturalmente já representam sons com função fora da “música”. Eles
podem ser falados assim como escritos, o que aumenta o seu poder comunicativo. Tanto se
eles tiverem significado (como palavras ou números) ou se eles pertencem a algum sistema de
ordenamento (como as letras de um alfabeto). Essas são as propriedades que estão implícitas
quando se adota sistemas que já têm outros usos.
b) Letras do Alfabeto
A ordem das letras no alfabeto oferece uma base pronta para a notação sendo possível
essa ordem ser relacionada diretamente à intrínseca ordem dos sons musicais. Essa ordem
então se transforma em algo análogo à ordem musical: um item da ordem musical é
especificado de forma referente ao seu lugar nesse outro sistema.
117
Referência base: SADIE, Stanley (edited by). The New Grove Dictionary of Music and Musicians- 29
volumes.2ª Ed. New York: Oxford University Press, 2001 (volume 18). Tradução feita pela mestranda.
133
Um exemplo ainda em uso é o sistema de cifras utilizado por músicos populares para
se referirem às notas ou aos acordes. São usadas as sete primeiras letras do alfabeto, sempre
em maiúsculas, cada uma indicando uma das sete notas musicais ou acordes a serem tocados,
dependendo do contexto. Sendo assim: “C”, se refere à nota dó; “D”, à nota ré; “E”, à nota
mi; “F”, à nota fá; “G”, à nota sol; “A”, à nota lá; “B”, à nota si.
Uma das vantagens do alfabeto para a notação musical é que ele consiste de signos
simples ao invés de compostos (signos que são distintivos e ao mesmo tempo compactos).
Além do mais, as letras dos alfabetos são geralmente conhecidas por nomes, dessa forma a
notação pode ser falada assim como escrita. O alfabeto foi usado para notação das “alturas”
na Grécia Antiga, e até por volta do século X na Europa Ocidental, antes desse sistema ser
absorvido como “claves” e “acidentes” no sistema de notação em pauta.
Existem muitos exemplos de abreviação verbal nas notações ocidentais: a letra p é
usada como instrução para se tocar uma nota com pouca intensidade, assim como a letra f
pode ser usada como instrução para se tocar uma nota ou passagem de forma mais intensa.
Em todos esses usos não alfabéticos das letras, a notação pode ser descrita como secundária:
isto é, as letras significam palavras que por sua vez significam elementos musicais, ao invés
de significar elementos musicais diretamente. Muitas vezes essas letras acabam se tornando
sinais gráficos de origem irreconhecível, como, por exemplo, as claves de Sol e Fá que tem
sua origem nas letras G e F.
c) Sílabas
Assim como as letras, as notações com sílabas caem em duas categorias: as que se
organizam com referência em uma ordem estabelecida das sílabas, e assim se relacionam
diretamente com a ordem musical; e aquelas que usam uma abreviação silábica de palavras, e
operam por referência a um significado ou nome. O Ocidente Medieval criou as sílabas de
solfejo conhecidas como ut, re, mi, fá, sol, lá. Elas são na verdade, sílabas na forma escrita,
sendo as sílabas iniciais de seis, das sete linhas, de um hino a São João. Elas são, por acaso,
características e funcionam a partir de uma ordem textual. Porém seu caráter referencial foi
fortalecido pelo fato de que as seis primeiras linhas da melodia do hino começam
sucessivamente nos graus da escala c-a (da nota “dó” à “lá”), assim elas funcionam também
em relação a uma ordem musical externa estabelecida. Ou seja, Guido d’Arezzo, se utilizou,
no início do século XI, de um Hino que “todos” tinham referência para propor nome às notas
134
e começou assim a proposta de estudo de solfejo para que os cantores pudessem treinar
melodicamente frases diversas e aperfeiçoar técnica e performance.
d) Palavras
Palavras assumiram um lugar na notação em pauta apenas durante os últimos 350
anos. Isso aconteceu com o aparecimento da partitura e do desejo dos compositores em
especificar a instrumentação de sua música; e isso aconteceu simultaneamente com o desejo
de também especificar o andamento, caráter e detalhes com respeito à produção das notas e
articulação. Assim, para o andamento, palavras como “largo” e “alegro”, e um grupo de
termos foi aplicado a eles para expressar variações: “molto”, “assai”, “non tropo”, e assim por
diante. Essas palavras, junto com outras que expressam o caráter (“andante”, “scherzo” e
“scherzando”, “dolente”), geralmente aparecem no início de seções ou movimentos
completos. A predominância dos termos em italiano se deve ao fato de que a Itália era o
centro do fazer musical na Europa, no momento em que o uso de palavras escritas passa a ser
uma opção para detalhar ainda mais aspectos da execução musical.
Não é apenas coincidência que a introdução desses termos tenha ocorrido na transição
do período Renascentista ao Barroco, especificamente na parte a qual a “Teoria dos Afetos”118
era uma estética predominante, e que a grande expansão na quantidade de termos, e das
línguas de onde foram tirados aconteça durante o Período Romântico. Outras palavras, como
“rallentando”, “ritenuto” e “stringendo”, para andamento, e “pizzicato”, “leggiero” e
“flautando”, para articulação, produção das notas, e controle da mudança de andamento,
também aparecem como elementos da notação musical.
O aspecto mais surpreendente do uso das palavras na notação ocidental é o seu uso de
natureza auxiliar. Palavras quase nunca são usadas na pauta, e sim acima ou abaixo dela, ou
em suas margens. Aos poucos, foram se tornando indispensáveis, porém mantiveram sua
posição auxiliar, de modo que um copista irá escrever primeiro os símbolos que representam
altura e duração para só depois achar os lugares mais convenientes para inserir os elementos
verbais da notação de modo que sejam facilmente lidos. Essa situação não é meramente o
resultado de circunstâncias históricas. As palavras ocidentais são escritas se utilizando de um
alfabeto, sendo assim implica duas desvantagens para o uso notacional: elas ocupam mais
espaço, e tomam tempo para leitura e compreensão. Essas desvantagens não estão presentes
118
Os compositores do início da período Barroco, continuando uma tendência já vista em composições do século
XVI (como os Madrigais) buscavam meios musicais de exprimir afetos, ou estados de espírito como raiva,
heroísmo, assombro ou contemplação. Para a comunicação desses afetos aos poucos surge um vocabulário de
recursos e figuras musicais que se tornam recorrentes na música desse período.
135
na maioria dos sistemas escritos asiáticos, onde apenas um caractere representa uma sílaba ou
palavra.
e) Números
Números parecem ser os materiais mais facilmente adaptáveis para fins de notação.
Eles fornecem um sistema de referência que pode controlar qualquer parâmetro do som
musical como os “pioneiros do serialismo integral”119 mostraram. A altura das notas pode ser
controlada associando números às notas da escala, às teclas de um teclado, à posição dos
dedos ou trastes em um instrumento de corda, ou aos buracos e válvulas de instrumentos de
sopro. Qualquer outro parâmetro, como intensidade, ataque ou timbre, podem em teoria ser
medidos como uma escala de valores e assim ser representados através de números, porém
esses sistemas geralmente estão restritos à codificação de música computacional, ou para fins
de teoria e análise.
Notações ocidentais usam números arábicos nas tablaturas para teclado e alaúde da
renascença. Eles também são usados na notação em pauta para indicar métrica e para mostrar
grupos rítmicos fora do comum.
f) Sinais Gráficos
O ato de escrever uma sucessão de sílabas notacionais é gráfico porque ele traça um
caminho/direção através da superfície de escrita. Esse caminho/direção é análogo ao
transcorrer da música através do tempo. A direção desse caminho tende a seguir a direção
preferencial de escrita da linguagem do país ou região onde é desenvolvida. As línguas
chinesa, coreana e japonesa são escritas de cima para baixo, em colunas começando no lado
direito da página: consequentemente a maioria das notações chinesas e coreanas são da
mesma maneira escritas em colunas assim como as notações instrumentais japonesas. Porém,
as neumas japonesas são escritas horizontalmente da direita para a esquerda. Notações
Tibenas, Balinesas, Javanesas, Gregas e Latinas são todas feitas horizontalmente, da esquerda
para a direita.
Esse caminho através da superfície escrita pode ser definido de forma mais precisa
pelo espaçamento de símbolos notacionais de forma que cada um desses espaços represente
119
No início do século XX o compositor Arnold Schoenberg (1874-1951) desenvolve uma técnica de composição
chamada “Serialismo”, que recusa o sistema tonal e organiza a música através de séries de notas escolhidas
arbitrariamente. No início dos anos 50 alguns compositores extrapolam a ideia de uma melodia serial e passam a
fazer isso com vários, ou mesmo todos os parâmetros de uma composição musical. Essa corrente ficou
conhecida como “Serialismo Integral”.
136
um pulso de uma métrica em questão. Alternativamente os pulsos podem ser definidos por um
símbolo gráfico, como pontos ou linhas, usados em sistemas japoneses ou coreanos, ou como
as barras de compasso da notação em pauta ocidental. Essas marcações gráficas possuem a
vantagem da economia, uma vez que os espaços disponibilizados para os pulsos não têm
necessidade de serem sempre iguais em tamanho: unidades métricas contendo muitos
símbolos podem tomar mais espaço do que unidades métricas mais simples.
O próprio sistema rítmico ocidental utilizado para representar a duração dos sons em
uma música, é basicamente composto por cinco sinais gráficos distintos – haste, bandeira,
ponto e dois tipos de cabeça de nota, a vazia e a cheia – que combinados permitem a escrita
de virtualmente qualquer ritmo executado na prática por instrumentistas ou cantores.
g) Sistemas Híbridos
Muitas notações são híbridas pelo fato de usarem mais de um tipo de material. A mais
híbrida das notações é a Notação em Pauta Ocidental. Ela usa todos os tipos de material
discutidos acima.
A figura 54, o início do prelúdio do primeiro livro Etudes d’exécution transcendante, de Liszt,
contém exemplos de notação com letras nas (1) claves, as quais são as letras “G” e “F”
estilizadas; (2) os acidentes, os quais são estilizações das letras “b” () e “h” (, ); e (3) o
símbolo de dinâmica , o qual é uma abreviação de uma notação verbal (forte). O exemplo
também contém notações silábicas, ambas abreviações de palavras: (1) o uso do pedal “Ped”.,
de tal forma estilizado que quase já se tornou um símbolo puramente gráfico; e (2) a instrução
técnica ‘rinforz’., para ‘rinforzando’. Ele também contém dois exemplos de notação verbal: (1)
a designação geral “Presto” para o andamento e o caráter do Prelúdio como um todo; e (2) a
instrução técnica localizada ‘enérgico’. Ele tem vários exemplos de notação numérica: (1)
especificação do andamento, o qual suplementa a informação referente ao andamento “Presto”;
(2) a indicação de transposição de oitava; (3) a digitação no compasso 2, a qual é uma notação
técnica; e (4) a indicação “19” para indicação da quiáltera. Porém, seus constituintes principais
são notações gráficas: (1) a pauta, barra de compasso e a chave que une as duas pautas; (2) as
137
figuras das notas e das pausas; (3) a fórmula de compasso ; (4) marcação de frase, a qual é em
parte uma duplicação gráfica da altura e em parte uma indicação da articulação de frases que
duplica a ligação dos símbolos da nota; (5) o sinal de pausa; (6) a indicação de soltar o pedal;
(7) o símbolo para ‘staccatissimo’; (8) a indicação de arpejar o acorde no compasso 1; e (9) os
sinais de crescendo e decrescendo (SADIE, 2001, p.83).
Dessa forma pode-se ver que a notação em pauta é um sistema híbrido e complexo
com pouca redundância. Voltando ao conceito, a notação musical é um análogo visual do som
musical, tanto como uma escrita de um som ouvido ou imaginado, ou como conjunto de
instruções para os executantes. A notação, ao menos na música erudita, é algo praticamente
indispensável ao estudo e execução de qualquer peça. Mas é importante salientar que a cultura
oral guarda tamanha importância que ela transforma tudo o que toca, ao mesmo tempo em que
ela mesma continua a se transformar sob o signo do esquecimento e da memória, da
observação e da discussão.
138
ANEXO I
– Sobre a pantomima, a mimese, a mímica, o mimo e o mimodrama
A - Pantomima
A pantomima antiga era a “representação e a audição de tudo o que se imita, tanto pela voz,
como pelo gesto: pantomima náutica, acrobática, equestre; procissões, carnavais, triunfos etc.”
(DORCY, 1962 apud PAVIS, 2003, p. 274). No final do século I a.C., em Roma, a pantomima
separa texto e gesto, o ator mima cenas comentadas pelo coro e pelos músicos. A Commedia
dell’arte usa tipos populares que falam e se exprimem através de lazzis. A pantomima tem sua
época áurea nos séculos XVIII e XIX: arlequinadas e paradas, jogo não verbal (cenas mudas)
dos atores de feira, que reintroduzem a palavra através de subterfúgios engraçados. Hoje, a
pantomima não usa mais a palavra. Tornou-se um espetáculo composto unicamente dos gestos
do comediante. Próxima da anedota ou da história contada através de recursos teatrais, a
pantomima é uma arte independente, mas também um componente de toda representação
teatral, particularmente dos espetáculos que exteriorizam ao máximo o jogo dos atores e
facilitam a produção de jogos de cena ou quadros vivos. A pantomima “sem palavras” dos
atores da feira utilizava cartazes para contornar a proibição do uso da palavra. A partir da
segunda metade do século XVIII, com DIDEROT e sua exigência de realismo cênico, apela-se
ao “homem de gênio que sabia combinar a pantomima com o discurso, entremear uma cena
falada com uma cena muda [...] A pantomima é parte do drama”. No século XIX, a
pantomima-arlequiana, como, por exemplo, a de um DEBUREAU, instala-se no Boulevard du
Temple; seu mimo puro foi imortalizado no filme de CARNÉ, Les Enfants du Paradis (1943) e
pela pantomima de PRÉVERT, Baptiste (1946). No século XX,os melhores exemplos
encontram-se nos filmes burlescos de exemplos encontram-se nos filmes burlescos de B.
KEATON e C> CHAPLIN. Na pantomima a postura e a posição dizem muito para a plateia.
Segue abaixo alguns exemplos de expressão corporal utilizados na pantomima (PAVIS, 2003,
p.274).
B - Mimese120
120
PAVIS, 2003, p.241-242.
140
C - Mímica121
121
PAVIS, 2003, p.242-243.
141
D - Mimo122
122
PAVIS, 2003, p.243-244,
142
abstrato e despojado (PAVIS, 1980d). O mimo corporal provém das experiências de COPEAU
no Vieux-Colombier: o ator, o rosto mascarado, o corpo, “tão nu quanto o permitia a decência”
(DECROUX, 1963: 17), praticava uma “arte dramática interpretada exclusivamente com o
corpo”, ancestral de todo o teatro gestual contemporâneo. 4 - Relação entre Mimo, Gesto e
Verbo: O mimo está apto a produzir um constante dinamismo do movimento, é uma “arte em
movimento na qual a atitude é apenas pontuação” (DECROUX, 1963: 124). O gesto restitui o
ritmo de uma espécie de fraseado valorizando os momentos-chaves do gesto, detendo-se
imediatamente antes do início ou do fim de uma ação, atraindo a atenção para o
desenvolvimento da ação gestual e não para seu resultado (técnica épica): “No mimo, o
espectador só capta o gesto se o preparamos para isso. Assim, quando vou apanhar um carteira,
primeiro levanto a mão, olha-se para a mão, e em seguida é que me dirijo à carteira. Existe um
tempo de preparação, e depois uma outra ação” (MARCEAU, 1974: 47). O mimo estrutura o
tempo à sua maneira, decide o tempo das paradas ou da “pontuação” marcada pelas atitudes
dos atores. Deste modo, ele se separa do ritmo da frase verbal e evita o efeito de redundância.
E - Mimodrama123
123
PAVIS, 2003, p.245.
143
ANEXO II
– Bertolt Brecht
63
Para melhor conceber o conteúdo do gesto, percorramos as cenas iniciais de uma peça
moderna, de minha autoria, Vida de Galileu.
E já que o nosso propósito é verificar também como as diferentes formas de
exteriorização se esclarecem reciprocamente, partamos do princípio de que não se trata de um
primeiro contato com a peça. Esta principia com as abluções matinais de um homem de 46
anos, que as interrompe a certa altura para vasculhar alguns livros e dar ao jovem Andrea
Sarti uma lição sobre o novo sistema solar. Para desempenhar essa cena, não é verdade que o
ator deve saber que a peça termina com a ceia de um homem de 78 anos, a quem esse mesmo
aluno terá acabado, precisamente, de deixar para sempre? Iremos encontrá-lo, então,
modificado, modificação muito mais terrível do que a que poderíamos esperar que se
produzisse durante este período de tempo. É com uma gula irrefreável que devora a comida,
com o pensamento alheio a tudo o que não seja comer; desembaraçou-se da sua missão
didática de forma ignominiosa, como se se tratasse de um fardo, e pensar que é o mesmo que
outrora tomava distraído o leite, ao café da manhã, ávido de ensinar o jovem discípulo! Mas
estará de fato distraído, ao tomar leite? O prazer que sente em beber e em lavar-se não se
identificará com o que sente devido aos novos pensamentos que o tomam? E não esqueçamos,
também, que ele pensa pela voluptuosidade de pensar! Tal circunstância parece merecer
apreço ou censura? Aconselho a que a apresente como algo que merece apreço, uma vez que
ao longo de toda a peça nada encontrará que a revele desvantajosa para a sociedade e,
sobretudo, porque o próprio ator – assim o espero – é um digno filho desta era científica. Note
bem, muitas e terríveis coisas se vão passar. O fato de o homem que saúda agora a nova era
ser obrigado, no fim, a lançar-lhe um repto, e de esta repeli-lo com desdém – se bem que
expropriando-o, simultaneamente, da sua obra – relaciona-se diretamente com esses
acontecimentos. No que respeita à lição, o ator terá que decidir se ela brota de um coração
repleto, que não consegue travar a língua e que diria o mesmo a quem quer que fosse, neste
124
BRECHT, 2005, p.155-159.
144
caso até a uma criança, ou se é esta criança que tem de levá-lo a revelar-lhe o seu saber,
mostrando-se interessada, como boa conhecedora que é da sua personalidade. E pode também
dar-se o caso de se tratar de duas pessoas que não conseguem conter-se, uma de fazer
perguntas, a outra de responder; tal afinidade seria interessante, pois haveria uma altura em
que seria gravemente lesada. Decerto o ator concordará em fazer, um tanto precipitadamente,
a demonstração do movimento de rotação da Terra, pois esta não lhe rende nada; surge então
o discípulo estrangeiro rico, que paga a peso de ouro o tempo do sábio. Embora este não
mostre interesse pelos seus ensinamentos, Galileu não pode deixar de atendê-lo, uma vez que
se encontra sem quaisquer recursos; assim o vemos dividido entre o aluno rico e o aluno
inteligente, e o vemos escolher entre ambos com um suspiro. Não pode ensinar muita coisa ao
novo discípulo, e é, antes este que lhe ensina: por meio dele toma conhecimento da existência
do telescópio, descoberto na Holanda. Tira, assim, partido, à sua maneira, da perturbação que
sobreveio ao seu trabalho matinal. Aparece o Curador da Universidade. A petição de Galileu
solicitando aumento de ordenado foi indeferida, a Universidade não dá de bom grado por
teorias físicas a mesma quantia que paga pela teologia; dele, que se move num plano
subestimado da investigação, apenas solicita algo que tenha utilidade para o dia-a-dia. Pela
maneira como apresenta o seu tratado, notará que Galileu está habituado às recusas e às
repreensões. O Curador aponta-lhe o fato de a República conceder liberdade de investigação,
se bem que remunerando mal; Galileu responde que pouca coisa pode fazer com esta
liberdade, desde que não disponha do tempo necessário que provém de uma boa remuneração.
Convém que não atribua à impaciência de Galileu um caráter demasiado sobranceiro, senão a
sua pobreza fica em segundo plano. Momentos depois ele está preso a lucubrações que
precisam de uma explicação. O arauto de uma nova era de verdades científicas pondera acerca
da possibilidade de burlar a República, apresentando-lhe o telescópio como invenção sua.
Verificará que esta nova invenção, que ele estuda visando, unicamente, a dela se apoderar,
não significa para Galileu senão maneira de ganhar alguns ducados. Porém, se passar à
segunda cena, verá que, ao vender à Signoria de Veneza esta invenção, com um discurso que
as mentiras aviltam, quase esqueceu o dinheiro, pois descobriu que o instrumento, além de ter
uma importância militar, é também valioso no campo da astronomia. A mercadoria que
fabricou como que por chantagem, chamemos finalmente as coisas pelo seu nome, parece-lhe
agora excelente para a investigação que tivera de interromper para fabricá-la. Ao aceitar,
lisonjeado, durante a cerimônia, as honras imerecidas, ao apontar ao sábio seu amigo as suas
maravilhosas descobertas – repare bem em sua atitude teatral –, descobrirá nelas uma
excitação muito mais profunda do que a que foi provocada pela perspectiva de lucro
145
pecuniário. E, mesmo que a sua charlatanice pouco signifique sob este aspecto, ela revela a
que ponto este homem está decidido a escolher o caminho mais fácil e a utilizar a sua razão
tanto de uma forma inferior como de uma forma superior. Uma prova mais significativa está
iminente, e não é verdade que uma fraqueza conduz a outra fraqueza?
64
É como uma interpretação como a que acabamos de realizar, expondo o “gesto” que
informa a ação, que o ator se apodera da personagem, ao apoderar-se da “fábula”. Só a partir
desta, do acontecimento global delimitado, o ator consegue chegar, como de um salto, à
personagem definitiva, que funde em si todos os traços particulares. Se o ator tudo fez para
surpreender-se com as contradições contidas nas diversas atitudes – consciente de que terá
também de levar o público a surpreender-se com elas –, encontra na fábula, encarada como
um todo, uma possibilidade de associação dos aspectos contraditórios. Na medida em que a
fábula é um acontecimento restrito, dela resulta um sentido bem determinado, ou seja, a
fábula, entre vários interesses possíveis, satisfaz apenas certos e determinados interesses.
65
Tudo depende da “fábula”, que é o cerne da obra teatral. São os acontecimentos que
ocorrem entre os homens que constituem para o homem matéria de discussão e de crítica, e
que podem ser por ele modificados. Mas o homem particularizado que o ator desempenha
ajusta-se, ao fim, a mais do que apenas aquilo que acontece; e, se é preciso ajustá-lo apenas ao
que acontece, é porque a ocorrência é tanto mais sensacional quanto se realiza num homem
particularizado. A tarefa fundamental do teatro reside na “fábula”, composição global de
todos os acontecimentos-gesto, incluindo juízos e impulsos. E tudo isto que, doravante, deve
constituir o material recreativo apresentado ao público.
66
Cada acontecimento comporta um “gesto” essencial. Richard Gloster corteja a viúva
de sua vítima. Por meio de um círculo de giz, é descoberta a verdadeira mãe da criança. Deus
aposta com o Diabo a alma do dr. Fausto. Woyzek compra uma faca barata para assassinar a
mulher etc.
Pela agrupação das personagens em cena e aos movimentos de grupo, há que alcançar
a necessária beleza, principalmente através da elegância, da elegância com que são
apresentados e expostos ao olhar do público todos os elementos que constituem esse “gesto”.
146
9.12.40
O teatro sueco daqui está interessado em montar Mãe Coragem. (?) Isso me deu
oportunidade de examinar algumas cenas com o ator Greid. Decompor as grandes cenas em
fragmentos é fácil; mas Greid ainda não foi capaz de propor um único título. Por exemplo, a
cena 2.
Sugestão de G Sugestão de B
MC, vendendo uma mercadoria que já é escassa, MC lucrando com a venda de comida na cozinha do
tira vantagem da chegada do filho. (2 cenas general. (a) Reencontro de C com o filho após dois anos
combinadas!) de separação. Ela usa a chegada e a fama do filho para
aumentar o preço. (b)
Eilif conta seu feito heróico. Ela ouve contar como é perigosa a vida de soldado para o
filho. Ao mesmo tempo Eilif é festejado pelo general por
sua astúcia e ousadia ao roubar alguns camponeses.
MC fala dos maus generais. MC se aborrece com o general porque ele exige atos de
heroísmo do filho dela.
Etc.
125
BRECHT, 2002, p.144-146.
147
ANEXO III
– Notas da encenação de Antonin Artaud para “OS CENCI”
Aqui a cena do banquete126, segundo Virmaux uma das mais importantes no que diz
respeito aos movimentos cênicos.
Na coluna à esquerda encontra-se o texto da cena e à direita as notas da encenação
correspondentes.
“OS CENCI”
I ATO
Cena III
126
VIRMAUX, 2000, p.336-353.
148
em que eu me tornei.
Hoje eu desci para vos dizer que o
Mito Cenci acabou, e que estou pronto a
realizar minha lenda.
Apalpai esses ossos e dizei-me se eles
foram feitos para viver do silêncio e do
recolhimento.
CAMILO
OUTRO CONVIVA, com a voz meio B. estoura de rir com esse grito. E. e Andrea
sufocada se cruzam; E. esbofeteia Andrea, depois
soluça (três soluços), a cabeça entre as mãos;
Se bem me lembro, Conde Cenci, tu B. segue A., à sua esquerda, J. dança com um
nos reuniste para festejar conosco um manequim.
acontecimento que te diz respeito.
Grito
Riso
CENCI Soluço
= a cada dois segundos, a partir do primeiro
Eu vos reuni, não para destruir, mas
para confirmar uma lenda. E eu vos pergunto A. anda com o comendador,
antes de mais nada: sou o homem dos crimes G. o imita, mas com passos curtos.
que me imputam? Tu, Príncipe Colonna,
responde: Eles prosseguem em seus movimentos de
pantomima
O Príncipe Colonna se levanta Um minuto e 3/4 no mínimo, antes da
chegada de Cenci.
COLONNA
CENCI
CAMILO
N. adormece,
UM CONVIVA
C. aperta contra K.
Atendeu! Em que?
F. passa seu braço esquerdo atrás de I., que se
agarra a ele,
BEATRIZ, muito agitada no seu lugar, faz
menção de se levantar. Colonna tosse e bate no peito,
Meu Deus, acho que sei o que ele vai Camilo se inclina para Colonna,
acrescentar.
J. se abaixa.
CENCI
BEATRIZ (3) afirmativa e como que (4) Aqui, Lucrécia torna a sentar-se. O terror
adivinhando. aumenta. Todos os convivas com feições
apreensivas.
Aconteceu alguma desgraça horrível
aos meus irmãos.
LUCRÉCIA (4)
BEATRIZ
Tenho medo.
CENCI
Beatriz hesita
BEATRIZ
151
CENCI
Esperai.
UM OUTRO CONVIVA
(14) Cenci, tu não estás no teu perfeito (15) O conviva dá dois passos, depois vacila.
juízo. Eu ainda quero acreditar que tu
sonhas. Deixa-me dizer que não estás
bem (15). (16) Ele vacila.
CENCI
BEATRIZ
Meu pai.
CENCI
Deixa.
Um tempo.
PANO