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Ensino e Pesquisa em Artes

experiências no âmbito
do ProfArtes

Antenor Ferreira Corrêa


&
Flávia Motoyama Narita

organizadores
Ensino e Pesquisa em Artes
experiências no âmbito do ProfArtes

Capa: Leandro Muñoz

Revisão: Lorraine Maciel

Editoração: Elias Filho

_________________________________________________________

F383e

Corrêa, Antenor Ferreira


Narita, Flávia Motoyama (orgs).
Ensino e Pesquisa em Artes: experiências no âmbito do ProfArtes /
Antenor Ferreira Corrêa
Flávia Motoyama Narita (orgs).
Goiânia: Gráfica UFG, 2019.
212 p.; 14,0 x 21,0 cm.
Livro em formato E-book com função PDF interativo.

ISBN: 978-85-495-0309-1

1. Artes. 2. Ensino de Artes.

I. Ensino e Pesquisa em Artes: experiências no âmbito do ProfArtes


II. Corrêa, Antenor Ferreira, Narita, Flávia Motoyama (orgs).

CDD: 700
CDU: 7.0

__________________________________________________________
IV IV

Ensino e Pesquisa em Artes


experiências no âmbito do ProfArtes

Universidade Federal de Goiás

Reitoria
Edward Madureira Brasil

Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação


Jesiel Freitas Carvalho

Conselho Editorial Media Lab / BR


Dr. André Gaudreault (Université de Montréal, CA)
Dr. Carlos Augusto da Nóbrega • UFRJ, BR
Dr. Cleomar Rocha, presidente do conselho • UFG, BR
Dr. Derrick de Kerckhove • Media Duemilla, IT
Dr. Felipe C. Londonho • Universidad de Caldas, CO
Drª Heloisa Buarque de Hollanda • UFRJ, BR
Dr. Hugo Nascimento • UFG, BR
Drª Lucia Santaella • PUC-SP, BR
Drª Maria Luiza Fragoso • UFRJ, BR
Dr. Michael Punt • Plymouth University, UK
Drª Mihaela Alexandra Tudor • Université Paul
Dr. Óscar Mealha (Universidade de Aveiro, PT)
Dr. Paul Hekkert (Delft University of Technology, NL)
Dr. Stefan Bratosin • Université Paul
Drª Suzete Venturelli • UnB, BR

Rede Media Lab / BR:


Media Lab / UFG
Media Lab / UnB
Media Lab / Unifesspa
Media Lab / UAM
Media Lab / PUC-Campinas
V V

Agradecimentos
Esta publicação não teria sido possível sem a
inestimável colaboração das pessoas e instituições descritas
a seguir. Recebam nossos mais sinceros agradecimentos:

Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal – FAPDF


Márcia Abrahão Moura
(Reitora da Universidade de Brasília)
Enrique Huelva
(Vice-reitor da Universidade de Brasília)
Fátima Aparecida dos Santos
(Diretora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília)
Nivalda Assunção de Araujo
(Vice-diretora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília)
Paulo Sergio de Andrade Bareicha
(Coordenador do ProfArtes, UnB)
Maria Cristina de Carvalho Cascelli de Azevedo
(vice-coordenadora do ProfArtes, UnB)
Emerson Dionísio Gomes de Oliveira
(Coordenador do PPGAV-UnB)
Cleomar Rocha
(Coordenador do Media lab-UFG)
Artur Cabral, Leandro Muñoz, Elias Filho
(Media Lab-UnB)
Todos os autores dos capítulos desta publicação.
VI VI

Sumário
Prefácio: Experiências fundantes, VIII
Cleomar Rocha

Introdução, 1
Antenor Ferreira Corrêa
Flávia Motoyama Narita

1 A formação acadêmica e profissional no contexto da rede


ProfArtes, 5
Antonia Pereira

2 Punk e pedagogia: Little Kids Rock desafia a hegemonia da


educação musical nos EUA, 17
Gareth Dylan Smith
Tradução: Flávia Motoyama Narita

3 Espiritualidade crítica: desenvolvendo alguns conceitos


para uma educação musical humanizadora, 39
Heloisa Feichas

4 Breve história da Escola de Teatro Popular (ETP) ou


aprendizagens político-teatrais em tempos de colapso, 51
Julian Boal

5 Interfaces da pesquisa sobre teatro em comunidade e teatro


na escola, 63
Rafael Litvin Villas Bôas
Wellington de Oliveira
VII VII

6 Companhia Negra de Revistas: cultura, raça e nação, 87


Beatriz da Silva Lopes Pereira
André Luís Gomes

7 A realidade pensável: teatro e vida brasileira em Oduvaldo


Vianna Filho, 105
Fernando Marques

8 Pedagogias musicais dialógicas: uma reflexão sobre os


modelos de Keith Swanwick e Lucy Green, 121
Flávia Motoyama Narita

9 Documentação narrativa de docente de música na educação


básica: uma proposta de extensão como campo empírico de
pesquisa no ProfArtes, 137
Delmary Vasconcelos de Abreu

10 A modelação no ensino da música: conceitos e reflexões,


155
Luciana Stadniki Morato Martins
Antenor Ferreira Corrêa

11 Vivenciar as metodologias: caminhos de formação de


docentes de teatro na contemporaneidade, 173
Jonas Sales

12 O ensino artístico no tempo digital: perspectivas


pedagógicas para um novo tempo, 187
José Mauro Barbosa Ribeiro

Sobre os autores, 199


VIII VIII

Prefácio
Experiências fundantes
Cleomar Rocha

O ato de ensinar e de aprender é tema inesgotável, a partir das


variantes contextuais e dos próprios sujeitos, que em si são mundos
completos. Perscrutar tais atos, mais analisá-los, significa manter-se
sensível à sua complexidade e, principalmente, aos lastros cognitivos
e sociais que perfazem a teia sobre a qual a experiência se constrói.
É com essa perspectiva que este livro, Ensino e Pesquisa em Artes:
experiências no âmbito do ProfArtes, se funda, relatando universos
de ensinar e de aprender, em um campo expandido da arte, em seu
viés de formação profissional.
Só pela apresentação já se verifica a qualidade e complexidade
do tema, índice de relevância deste livro. Mais ainda, ao explorar
o tema experiência, em suas dimensões subjetivas e objetivas,
individuais e sociais, os textos que formam essa coletânea evidenciam
preocupações que não são de elaboração de um manual ou normas
a serem observadas: são posicionamentos essencialmente humanos,
em uma lógica humanamente construída na e pela cultura. Mais que
isso, reverbera aqui o olhar atento e sensível da arte, em constante
tensionamento com o que se vê, o que se sente e o que transcende,
visto que o conteúdo, para além da forma, instaura dinâmicas
relacionais, tipificadas pela ação generosa do ensinar e do aprender. A
arte, como matéria bruta, e sua abordagem como matéria, disciplina,
curso, em percursos que sondam o imaterial, o interdisciplinar e o
transcendental.
Nos relatos que formam o conjunto aqui reunido, a expertise é
mais fluxo que fixo, mais dinâmicas que dominâncias, mais artes que
profes. Se os cursos denominados ProfArtes, mestrados profissionais
em Artes, conduzem a uma praxis voltada para o exercício da
profissão em Artes, e que por isso enseja um lastro não exclusivo ao
IX

ensino, não exclusivo à expressão artística, ainda há de se observar


que o pulsar de um mercado legitimamente sociocultural elegeu,
desde sempre, os produtos estéticos como centro de suas atividades.
Conservação, guarda, crítica, valoração e todo o movimento social
vinculados à Arte se coadunam à expressão da Arte como artifício
do humano, como valor simbólico do incomensurável, do indizível,
daquilo que não se contém em si.
E é essa riqueza que faz o campo sobejar essências, partes
delas visíveis, legíveis e invisíveis na coleção de textos que inauguram
a socialização não dos resultados, mas de percursos, do ProfArtes
da Universidade de Brasília. Do centro do país, figura simbólica de
um quase retângulo que comanda administrativamente a terra cor
de fogo, Brasilis, a UnB, relevante, inquieta e inspiradora, faz ver sua
incursão na área que já tem história: a arte.
Brindemos a inquietude, a experiência, e a nobre missão
de ensinar e de aprender. Brindemos nossos olhos e sentidos
com a dimensão das experiências e suas implicações, da arte e de
suas razões, das pessoas e suas missões, dos sentidos latentes nas
expressões ditas, imanentes nos lastros semânticos que ecoam por
letras, palavras, páginas e sensibilidades, de experiências fundantes.
1

Introdução
Antenor Ferreira Corrêa
Flávia Motoyama Narita

Apresentamos, neste primeiro livro do Mestrado Profissional


em Artes da Universidade de Brasília (ProfArtes, UnB), resultados de
pesquisas e de experiências docentes de pesquisadores das áreas de
Educação Musical e de Educação Teatral. O que une a multiplicidade
temática dessa publicação é o fato de os autores estarem direta ou
indiretamente envolvidos com o ProfArtes.
Desde sua criação em 2013, o ProfArtes tem contribuído
significativamente para a capacitação de professores atuantes no
Ensino Básico da rede pública do Brasil. Especialmente no contexto
da Região Centro-Oeste, já é possível avaliar quanti e qualitativamente
não somente o sucesso da Rede ProfArtes, mas também o impacto
positivo produzido nessa região do país. Os bastidores da criação do
ProfArtes, bem como a filosofia que norteou a concepção dessa rede,
nos é contada por sua personagem principal, Antonia Pereira, no
primeiro capítulo desse livro.
Essa publicação foi concebida durante o III ColoqueArte -
Colóquio do Mestrado Profissional em Artes da UnB e Simpósio
de Educação Musical - realizado em março de 2019 em Brasília e
financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal
(FAPDF) por meio de seu Edital 2/2018. Dentre as atividades do
III ColoqueArte, houve uma mesa-redonda com o tema “Educação
pela Arte: práticas, reflexões, contradições e subversões”. Os
palestrantes convidados - Gareth D. Smith, Heloisa Feichas e Julian
Boal - posteriormente ampliaram suas ponderações, que estão aqui,
respectivamente, registradas nos capítulos dois, três e quatro. Esses
autores apontam possibilidades para que a educação, de modo
geral, e a educação pela arte, especificamente, contribuam para uma
formação humanizadora, libertadora e para a autonomia. Apesar de
2 Ensino e Pesquisa em Artes

nem sempre haver referências diretas ao educador brasileiro Paulo


Freire, podemos relacionar as práticas apresentadas nessa mesa-
redonda aos conceitos freireanos.
Em seu capítulo, Gareth Smith apresenta o trabalho
desenvolvido nos Estados Unidos da América pela organização sem
fins lucrativos denominada Little Kids Rock. A visão dessa organização
de uma educação musical que empodere e emancipe as pessoas
para a condução de suas vidas pode ser relacionada a princípios
dialógicos para uma educação libertadora que Freire defendeu. Em
contraposição a práticas “bancárias” (Freire, 2014/1968, p.87), em
que estudantes passivamente recebem “depósitos” de informações
consideradas relevantes pelos professores, Little Kids Rock reconhece
e inclui diferentes gêneros musicais, incentivando que estudantes
produzam suas próprias músicas, em composições e improvisações.
Heloisa Feichas explicitamente traz a literatura freireana
para discutir o que seria uma educação musical humanizadora
no desenvolvimento de uma espiritualidade crítica. Buscando o
desenvolvimento integral, por meio de uma pedagogia holística que
conecte mente e coração, a autora ressalta a importância das relações
interpessoais e também da consciência sobre si no processo de
conscientização. As práticas musicais colaborativas são apresentadas
como potenciais contextos para o desenvolvimento de relações inter
e intrapessoais, que podem fomentar um melhor conhecimento
sobre si e sobre os outros, inspirando criticidade, benevolência e
autossuperação.
Julian Boal, ao traçar uma breve história da Escola de Teatro
Popular (ETP), apresenta a importância política da educação pela
Arte. Como acreditava Freire, “além de um ato de conhecimento, a
educação é também um ato político. É por isso que não há pedagogia
neutra” (Shor & Freire, 2008/1986, p.25). Discutindo o teatro como
um instrumento de formação crítica e organização política, Julian
Boal apresenta a ETP como um espaço complexo, com militantes
de diferentes organizações que buscam a construção de uma união,
inicialmente para a prática de teatro.
Também considerando práticas teatrais em comunidades e
na escola, Rafael Litvin Villas Bôas e Wellington de Oliveira discutem
3

as dimensões políticas dessas práticas e o lugar que ocupam na


historiografia do teatro brasileiro. Essas considerações levam os
autores a comprovarem a notória a influência da pedagogia de Paulo
Freire e das abordagens do Teatro do Oprimido (sistematizadas por
Augusto Boal) em grande parte das pesquisas que se dedicam ao
estudo do teatro comunitário.
Os dois capítulos seguintes trazem perspectivas históricas
sobre o teatro no Brasil. Beatriz da Silva Lopes Pereira e André
Luís Gomes resgatam a memória da Companhia Negra de Revistas
para, partindo dos conceitos de cultura, raça e nação, discutirem
e aprenderem o fazer teatral popular negro, articulado com as
condições econômicas, políticas e sociais de produção. Fernando
Marques, no capítulo seguinte, apresenta considerações atualizadas
sobre a trajetória biográfica e as polêmicas vividas pelo dramaturgo
Oduvaldo Vianna Filho. Além da intensa atuação como escritor,
intérprete e pensador teatral, o dramaturgo foi um dos fundadores
do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes
(CPC da UNE), no Rio de Janeiro em 1961. Este centro, embora
gestado no âmbito do Teatro de Arena, em São Paulo, inspirou-se
no Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife, fundado, entre
outros, por Ariano Suassuna e Paulo Freire.
Os três capítulos subsequentes apresentam pesquisas na
área da música. Flávia Narita apresenta uma reflexão sobre os
modelos pedagógicos dos educadores musicais Keith Swanwick
e Lucy Green. Utilizando conceitos de Freire, esses modelos são
apresentados como propostas “dialógicas”, que possibilitam tomadas
de decisão tanto das/dos estudantes quanto das/dos educadoras/
educadores. Os modelos de Swanwick e de Green são apresentados
como potenciais fomentadores de uma prática musical integrada
que possibilita ressignificações de valores e de conhecimentos por
meio de engajamento ativo em atividades de criação, performance
e apreciação. Tais ressignificações têm o potencial de criar novas
compreensões do objeto de conhecimento, do mundo, e dos
outros, buscando vivenciar o caráter “humanizador” da educação.
Delmary Abreu propõe a construção de epistemologias para a
educação musical, frutos dos relatos auto-biográficos de professores
4 Ensino e Pesquisa em Artes

de música. Desse modo, a atividade (auto)biográfica é apresentada


como procedimento viabilizador da formação, autoformação e
transformação dos docentes. Luciana Stadniki Morato Martins e
Antenor Ferreira Corrêa discorrem sobre a ideia de modelação no
contexto do ensino e aprendizagem da música, considerando como
esse procedimento pode apresentar resultados positivos para o
aperfeiçoamento da prática deliberada do estudo de um instrumento
musical de forma mais eficaz e motivadora.
Os dois últimos capítulos que integram essa publicação tratam
das pedagogias para o ensino de teatro. Jonas Sales propõe uma
discussão a respeito dos métodos utilizados na formação do professor
de teatro. O autor entende que não basta apenas apresentar e analisar
essas metodologias em sala de aula, mas é necessário vivenciá-las
na prática. José Mauro Barbosa analisa as transformações hodiernas
trazidas pelas diversas tecnologias digitais e nos instiga a refletir sobre
o afloramento dos fenômenos da cibercultura e do midialivrismo
como territórios possíveis do fazer e pensar contemporâneos e nos
seus desdobramentos para as pedagogias artísticas.
Esperamos que a leitura desse livro seja proveitosa e
inspiradora.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 56a ed. rev. e atual. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 2014.

SHOR, Ira; FREIRE, Paulo. Medo e Ousadia: O cotidiano do professor.


12a ed. Tradução de Adriana Lopez, revisão de Lólio Lourenço de
Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
A formação acadêmica e profissional no contexto da rede ProfArtes 5

1
A formação acadêmica
e profissional no contexto
da rede ProfArtes
Antonia Pereira

Quando fui nomeada coordenadora da área de Artes


na Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES, em abril de 2011, a primeira tarefa que
se apresentou foi o estudo e a análise acurada do Plano Nacional
de Pós-Graduação – PNPG1. O PNPG 2011/2020 assinalava a
expectativa de que o desenvolvimento da pós-graduação brasileira
elevasse o Brasil à condição de quinta economia do mundo nesse
período. Esse projeto envolvia desafios de crescimento qualitativo e
quantitativo, não somente para a área de artes, mas para todas as áreas
do conhecimento. Quantitativamente se fazia necessário aumentar
o número de mestres e doutores formados, tanto para atuação
acadêmica, quanto para atuação em outros setores da sociedade.
Particularmente, o desafio principal que se apresentou para
a área de Artes, consistia na consolidação de políticas de indução
à criação de novos mestrados profissionais, realidade ainda muito
recente para a área, mas que, na atualidade, começa a inaugurar
novas perspectivas de parcerias com o setor extra acadêmico
e outras formas de geração de conhecimentos e competências
artístico-culturais. A ênfase na qualificação de recursos humanos
para o mercado de trabalho marcou a diferenciação, orientada
pelo PNPG, para os mestrados profissionais e instaurou na área de
Artes, novas políticas e novas formas de interlocuções com outros
setores da sociedade. A possibilidade de ampliação do número de
1 Editado pela Fundação CAPES, o PNPG tem como objetivo definir novas diretrizes,
estratégias e metas para dar continuidade e avançar nas propostas para a política de pós-
graduação e pesquisa no Brasil.
6 Ensino e Pesquisa em Artes

mestrados profissionais da área, com impacto em outros segmentos


do mercado de trabalho, além do ensino fundamental e médio é,
hoje, uma realidade concreta. Para além da Rede ProfArtes, sobre a
qual falaremos longamente nas páginas que seguem, a área de artes
dispõe, hoje, de nove Mestrados Profissionais, quais sejam PPGPAC
Escola Superior de Artes Célia Helena, PPGARTES Instituto Federal
do Ceará, PPGPROM, Universidade Federal da Bahia, PROMU,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGEAC e PROEMUS,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e PPGARTES
UNESPAR, Universidade Estadual do Paraná.

Um pouco de história: a inserção da área de artes no ensino


fundamental e médio

Desde o triênio 2007/2009, a área de Artes vinha já


incentivando os programas a valorizarem as linhas de pesquisa
que contribuíam para o desenvolvimento da Educação Básica.
Não obstante, até 2012, a inserção/incidência da área no ensino
fundamental e médio ainda era bastante tímida e tinha lugar na
forma de cooperação entre os Programas e as Secretarias Municipais
e Estaduais de Educação.
Nos Programas acadêmicos stricto sensu o eixo de tal
cooperação centrava-se nas Linhas de Pesquisa em Arte/Educação,
através de projetos e ações extensionistas, que implicavam e
promoviam a participação dos professores da rede de ensino básico
em atividades dos programas de Música, de Artes Visuais de Teatro
e de Dança. Em todos esses Programas, a preocupação consistia em
proporcionar o desenvolvimento de atividades interdisciplinares
como parte da formação inicial e continuada de profissionais da
Educação Básica, com atenção especial aos professores da rede
pública, através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência - PIBID2 e Plano Nacional de Formação de Professores da
2 Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência que oferece bolsas de iniciação
à docência aos alunos de cursos presenciais que se dediquem nas escolas públicas. O
objetivo é antecipar o vínculo entre os futuros mestres e as salas de aula da rede pública.
O Pibid promove, com tal iniciativa, a articulação entre a educação superior (por meio das
licenciaturas), a escola e os sistemas estaduais e municipais.
A formação acadêmica e profissional no contexto da rede ProfArtes 7

Educação Básica - PARFOR3.


No final de 2012, a coordenação de área4, em ações articuladas
com docentes e representantes de 11 instituições de Ensino Superior
(UnB, UFMA, UFBA, UFRN, UFPA, UFC, UFPB, UFMG, UNESP,
UFU e UDESC) elaborou a Proposta de um Programa em Rede
Nacional de Mestrado Profissional em Artes (ProfArtes), aprovado
pelo Conselho Técnico Científico do Ensino Superior, CTC-ES/
CAPES, com nota 4, em junho de 2013. Oferecido em caráter
semipresencial, visando, em médio prazo, a formação de professores
da Educação Básica do Ensino de Artes em todo o território nacional,
o ProfArtes disponibilizou 220 vagas e teve cerca de 1.600 inscrições.
Em face ao sucesso da empreitada, a expectativa era de que, em 2015,
novas IES integrassem a rede e novos docentes se credenciassem
ao ProfArtes, promovendo assim uma oferta mais ampla, capaz de
atender à grande demanda existente.
A implementação do ProfArtes veio, então, acentuar as
proximidades e semelhanças entre o ensino e a arte, comprovando
que:

1) a sala de aula é também uma experiência estética – a busca de


construção e atribuição de sentidos;

2) os professores, assim, como os artistas, se envolvem numa trama


durante o processo (de ensino-aprendizagem);

3) existe a presença de uma tensão e uma harmonia entre automatismo


e inventividade;
3 Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica, implementado
pela Capes como ação para induzir e fomentar a oferta de educação superior, gratuita e de
qualidade, para profissionais do magistério que estejam no exercício da docência na rede
pública de educação básica e que não possuem a formação específica na área em que atuam
em sala de aula.

4 A rede que consolidou o ProfArtes foi articulada a partir das atividades da Coordenação
da Área de Artes da CAPES e, particularmente, da gestão dos processos de avaliação. Nesse
contexto, é importante citar e agradecer ao Professor Milton Sogabe (UNESP), à época
Coordenador Adjunto da área de Artes e à Profa. Lúcia Pimentel (UFMG) Coordenadora
para Assuntos de Mestrado Profissional, pelo apoio e disponibilidade incondicional na
implementação deste importante projeto para a área de artes.
8 Ensino e Pesquisa em Artes

4) tanto a arte como o ensino atingem fins inesperados: sabemos de


onde partimos, mas não onde chegaremos.

Ana Mae Barbosa, com base em Eisner e Paulo Freire, nos


lembra que a educação é mediatizada pelo mundo em que se vive,
formatada pela cultura, influenciada por linguagens, impactada por
crenças, clarificada pela necessidade, afetada por valores e moderada
pela individualidade. Trata-se de uma experiência com o mundo
empírico, com a cultura e a sociedade personalizada pela geração
de significados. Portanto aproximar a Arte da Educação, tomando
ambas como mediadoras de experiências, é insinuar que o objetivo da
educação deveria ser, antes, preparar artistas, utilizando a expressão
artista, na acepção de Eisner, para qualificar:
[...] indivíduos que desenvolveram as ideias, as sensações, as
habilidades e a imaginação para criar um trabalho que está bem
proporcionado, habilmente executado, imaginativo e criativo...
(Eisner, 2002, p.9).

Essas breves referências nos servem apenas para ratificar a


natureza oportuna de um projeto como o ProfArtes, que entende
o papel da arte na Educação como fator estruturante e que situa as
linguagens da arte e suas diferentes manifestações, como construções
culturais e de identidades.

Contextualização

O Programa de Mestrado Profissional em Artes (ProfArtes),


oferecido em rede, é um Curso semipresencial que conta com a
participação de Instituições de Ensino Superior, no contexto da
Universidade Aberta do Brasil (UAB), e coordenado pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC). Este Programa tem alcance
nacional e objetiva a formação de professores da Educação Básica do
ensino de Artes em todo o território nacional. A opção inicial pela
UDESC deveu-se à infraestrutura que essa instituição dispunha para
a gestão do ProfArtes, e à experiência da mesma com processos de
formação continuada de docentes de Artes na Educação Básica. Tal
experiência acumulada por docentes da UDESC, especialmente do
A formação acadêmica e profissional no contexto da rede ProfArtes 9

Centro de Artes, unidade onde o Programa tem sua sede central,


vinha do projeto Magister realizado em parceria com a Secretaria
de Estado da Educação de SC. Este projeto consistiu na oferta de
Licenciaturas em Artes (Música e Artes Cênicas) nas cidades do
interior para a capacitação de professores da rede pública de ensino.
A articulação em rede, como base do ProfArtes, pressupunha a
possibilidade de uma reflexão sobre processos de ensino de artes
que nasceriam da reunião de docentes e discentes capazes de
representarem a diversidade de experiências pedagógicas do país.
Para tanto, sua organização a partir de uma estrutura institucional
de referência, era de fundamental importância na garantia da
unidade da ação de formação dos discentes. Seis anos depois da sua
implementação, o ProfArtes será em breve sediado pela Universidade
Federal de Uberlândia, tendo sua administração e gestão acadêmicas
sob responsabilidade do Instituto de Artes desta IES.

A Perspectiva de Cooperação e Intercâmbio

É possível dizer que a cooperação pretendida pelo projeto


já tinha raízes na interface dos docentes proponentes. O ProfArtes
com sua modalidade semipresencial tem como metodologia e
objetivo a realização de práticas de intercâmbios entre os docentes
das diferentes IES participantes. Isso se dá principalmente através da
interface com os potenciais alunos de diferentes estados. Esse foi um
fator estimulante para o desenvolvimento de novas perspectivas para
a reflexão sobre o ensino da arte no contexto das escolas. A troca de
experiências proporcionada pela rede estimulou o desenvolvimento
de projetos que teriam impacto direto no processo de capacitação
dos professores da Educação Básica (EB) - foco central de todo o
projeto. Considerávamos que a modalidade semipresencial do
curso também funcionaria como vetor para o desenvolvimento de
novos instrumentos de ensino. Por isso, a perspectiva do ProfArtes
combinava a formação dos professores da EB, e da equipe de docentes
das IES, confrontando-os com a necessidade de se relacionar com
novos procedimentos de ensino em nível de pós-graduação.
10 Ensino e Pesquisa em Artes

Capacidade instalada para o ensino e a pesquisa

A liderança do ProfArtes reúne pesquisadores respeitados


na área que reconhecem os compromissos requeridos por
projetos de grande porte. Os docentes são altamente experientes
nas especialidades demandadas pela proposta com produção
qualitativa e quantitativamente robusta e claramente vocacionada
ao empreendimento de capacitação de professores e de produção
de material didático voltado para a área, como subsídios concretos
à atuação em sala de aula no contexto da Educação Básica. Nesta
concepção em rede, o ProfArtes funciona com um conjunto integrado
de Instituições Associadas, de modo que cada uma delas garanta o
funcionamento do Programa, desenvolvendo:

1) Conteúdo único de capacitação dos docentes da Educação Básica,


julgado como indispensável para atingir resultados substantivos nos
educandos;

2) Formação integrada, tendo em vista as enormes diferenças que


sabemos existir entre professores e alunos da Educação Básica no
Brasil;

3) Implementação efetiva da escola inclusiva prevista em Lei em toda


a Nação;

4) Democratização na educação brasileira consideradas as diferenças


entre os sujeitos, suas vocações, suas possibilidades e dificuldades
reais, atores que são professores e alunos em todo o percurso do
letramento escolar no Brasil;

5) Formação de banco de dados constituído de textos de professores


e de alunos;

6) Pesquisas de natureza teórica e prática com base nos corpora que


vêm sendo constituídos;
A formação acadêmica e profissional no contexto da rede ProfArtes 11

7) Constituição de material didático inovador seguindo as tendências


contemporâneas apontadas pelas políticas de Ciência e Tecnologia;

8) Levantamento de questões teóricas como orientações importantes


para a pesquisa básica que, de forma dialética, opera na dinâmica da
Ciência.

ProfArtes: “A quem será que se destina”?

O público-alvo que o ProfArtes atende é constituído por


docentes de todas as gerações egressas de Cursos de Licenciatura
em Artes Visuais, Dança, Educação Artística, Teatro, Música e
demais cursos voltados para as linguagens das artes, em atividade no
contexto da Educação Básica.
A demanda do Mestrado Profissional, nesse contexto,
caracteriza-se então por um público de professores que atuam no
ensino de Artes na Educação Básica, em busca de aportes técnico-
científicos para melhor proceder às suas práticas profissionais. Face
às necessidades que se impõem para a efetivação da Escola Inclusiva,
com demandas de capacitação específica, o curso (ProfArtes) se
compõe de professores ávidos por desenvolver conhecimentos
que alavanquem os processos de ensino-aprendizagem artística no
contexto de atualidade da escola brasileira.

Objetivos

Por entender o papel da arte na Educação como fator


estruturante, a capacitação de discentes em nível de Mestrado
Profissional, como pretende o ProfArtes, tem como meta mais ampla
a capacitação de docentes com vistas ao enriquecimento e à eficácia
de suas práticas profissionais, de tal modo que o ProfArtes, em nível
nacional promova:

(1) a reflexão sobre o campo conceitual da arte no contexto


contemporâneo e sua articulação com o ambiente da Educação
Básica;
12 Ensino e Pesquisa em Artes

(2) o aumento do nível de qualidade de ensino da Arte na Educação


Básica, com vistas a efetivar a desejada curva ascendente quanto à
proficiência dos alunos no que se refere às habilidades de produção,
leitura e recepção da obra artística;

(3) uma atuação docente que busque o declínio das taxas de evasão
dos alunos durante o percurso da Educação Básica na Escola
brasileira;

(4) a capacidade de articulação dos elementos sígnicos/artísticos


exigida em um mundo globalizado com a presença pressuposta da
web;

(5) uma atitude pró-ativa dos professores em relação aos alunos com
graus distintos de atipicidade;

O ProfArtes busca, também, concretizar outros objetivos, a saber:

1. Qualificar os mestrandos/docentes para desenvolver múltiplas


competências comunicativas dos alunos em ambiente online, e
explorar as possibilidades de experimentações artístico-pedagógicas
com as diferentes linguagens artísticas nas práticas de ensino e da
aprendizagem com suportes digitais e não digitais;

2. Oferecer subsídios para a utilização de estratégias de mediação


para além da sala de aula;

3. Refletir sobre a especificidade das diferentes linguagens artísticas,


bem como sobre possíveis interfaces entre as mesmas;

4. Instrumentalizar os mestrandos/professores da Educação Básica


de maneira que eles passem a compreender e bem conduzir as
mais variadas formas de “diferenças” identificadas em classe, seja
do ponto de vista de níveis de competências de ensino dos vários
códigos artísticos dos alunos, seja no que tange aos cenários de
desenvolvimento atípicos que os alunos apresentem;
A formação acadêmica e profissional no contexto da rede ProfArtes 13

5. Instrumentalizar os docentes da Educação Básica para a elaboração


de material didático inovador que lance mão, quando conveniente
e relevante, de recursos tecnológicos modernos, eventualmente
disponíveis em seu contexto educacional.

Com esses objetivos em mente e considerando as múltiplas


tendências teórico-metodológicas e a perspectiva fortemente inter e
transdisciplinar, o ProfArtes busca formar professores das respectivas
subáreas artísticas voltados para a inovação na sala de aula, ao
mesmo tempo em que, de forma crítica e responsável, possam refletir
acerca de questões relevantes sobre diferentes formas de leitura e
compreensão de mundo presentes na contemporaneidade. A base
do projeto é a criação de um ambiente que favoreça uma formação
estimulante e que possibilite a esse professor a responder aos desafios
educacionais do Brasil contemporâneo, considerando princípios
fundamentais da construção de uma educação artística que vise a
práticas sociais mediadas pelas mais variadas formas culturais.

O Devir

A consolidação do ProfArtes constituiu uma importante meta


e impôs à área de artes, a necessidade de estreitar as relações com o
Ministério da Cultura, realidade que não se efetivou em função da
crise que assolou o país em 2015 e que conheceu seu paroxismo com
o Impeachment da Presidente Dilma Rousseff, em 2016. É inegável,
entretanto, que o ProfArtes deve sua existência e resistência aos cerca
de 141 docentes de diferentes IES, que tornam viável o projeto. Não
obstante os tempos de escassez e perspectivas pouco promissoras,
não se deve perder de vista a necessidade de implantação de:

a) formas de fomento aos processos e produtos artístico-pedagógicos


concebidos no âmbito do ProfArtes e que tenham a cultura como
objeto;

b) a concepção de Programas de Intercâmbio Nacionais e


Internacionais de Arte e Cultura, no âmbito específico do ProfArtes,
14 Ensino e Pesquisa em Artes

que possibilite intercâmbios, na forma de estágios artísticos e


pedagógicos em instituições nacionais e estrangeiras, destinados aos
professores-mestrandos do ProfArtes, incluindo, quando possível, a
participação de alunos do Ensino Médio da rede pública.

A realidade é de crise, isso já dissemos. Mas também não


foi fácil chegar até aqui e não foi nada agradável, nem harmônico,
quebrar os preconceitos, dirimir falsos dilemas e convencer toda uma
área da necessidade de implementação de um Mestrado Profissional
em Artes, articulado em Rede. E já que aqui chegamos guardemos
tais metas/programas como objeto de diálogos e projetos para o
futuro que se anuncia.

O espírito Interdisciplinar

Não é possível falar de metas e projeções futuras, sem


tocar no espírito interdisciplinar da área de artes, também multi
e transdisciplinar por natureza. No caso específico da pesquisa
em artes, a interdisciplinaridade funciona como elemento chave
de transformação dos objetos artísticos e principalmente de seus
lugares no contexto da cultura. Há vários exemplos de como
práticas interdisciplinares contribuem para que o objeto artístico
veja suas fronteiras expandidas. Sabe-se que a arte, suas instituições
e seus agentes (professor, artista, marchand, crítico, historiador,
etc.) atuam e interagem no campo expandido da cultura e que seu
entendimento requer o estabelecimento de um diálogo entre sujeitos
criadores, pensadores, críticos e pesquisadores, capazes de suscitar
interpretações mais densas e abrangentes.
Este diálogo instaura espaços para releituras da arte do
passado, para análises aprofundadas do papel de instituições basilares
do sistema de arte e para a gradativa incorporação de experiências
e técnicas, antes consideradas menores e/ou periféricas no discurso
oficial da história da arte. É nesse espírito que o ProfArtes agrega
docentes/pesquisadores com formações diversas e diversificadas;
comporta em sua estrutura curricular, disciplinas que dialogam
com diferentes domínios do conhecimento. A interdisciplinaridade
A formação acadêmica e profissional no contexto da rede ProfArtes 15

é inerente à área de Artes porque o fundamental das propostas


interdisciplinares são os processos mentais que supõem o
entrecruzamento de disciplinas.
Nesse espírito, ainda, o incentivo e apoio a eventos de natureza
interdisciplinar, promovidos e organizados no âmbito do ProfArtes,
deve constituir uma prioridade em face do desafio que consiste em
qualificar e possibilitar que os mestrandos/docentes desenvolvam
múltiplas competências comunicativas dos alunos, em ambiente
online e presencial; explorem as possibilidades de experimentações
artístico-pedagógicas com as diferentes linguagens artísticas nas
práticas de ensino e da aprendizagem com suportes digitais e não
digitais.

À Guisa de Conclusão ou Considerações Provisórias?

A educação cultural representa um instrumento de construção


de cidadania e a Escola é um agente fundamental na promoção de
processos de educação estética. À questão arte, luxo ou necessidade,
o projeto de Mestrado Profissional em Rede, responde na prática,
que a arte é absolutamente necessária! Mas enquanto pesquisadora,
artista e professora de teatro, com atuação predominante e afirmativa
na graduação e na pós-graduação em Artes, não posso deixar de
interrogar, ainda e mais profundamente, a natureza e os fins da Rede
ProfArtes.
Trata-se de tornar os discentes/docentes em melhores
espectadores, amadores esclarecidos e mais exigentes ou transformá-
los igualmente em «atores» sociais? O que realmente esperamos de
seus comportamentos sociais ao capacitá-los para o ensino das artes
em suas naturezas teóricas e práticas? Devemos lhes ensinar, de uma
só vez, que a arte é uma dimensão substancial do ser humano, o Solar
e o Lunar, Apolo e Dionísio, a clareza de espírito e as profundezas
noturnas do ser? Não são meras interrogações, mas questões
essenciais, que impregnam a vida no que ela possui de mais trivial e
concreto, mas também no que ela possui de mais metafísico.
E a arte interroga os corpos e os espíritos. Mas não se trata
de estabelecer um equilíbrio estático entre Apolo e Dionísio ou, para
16 Ensino e Pesquisa em Artes

retomar as oposições binárias, de colocar um pouco de «papel» e um


pouco de «personalidade», sob pena de confundirmos dois enfoques
absolutamente distintos: o da arte e a da vida cotidiana. Trata-se de
Ser e de Agir! E qual domínio interroga o homem nos seu corpo e no
seu espírito, ensinando-lhe a ser e a agir, que não o domínio da arte?

Referências

BARBOSA, Ana Mae. Teoria e prática da Educação Artística. São


Paulo: Editora Cultrix, 1975.

EISNER, Elliot. The Arts and the creation of mind. New Haven: Yale
University Press, 2002.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. 6ª edição. São Paulo: Cortez,


1993.
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 17

2
Punk e Pedagogia
Little Kids Rock desafia
a hegemonia da
educação musical nos EUA1
Gareth Dylan Smith
Tradução: Flávia Motoyama Narita

Introdução

Serviços públicos, incluindo a educação pública, são


frequentemente mal financiados nos Estados Unidos, deixando um
vácuo a ser preenchido por organizações terceirizadas. Nos EUA,
as escolas têm seus orçamentos baseados em grande parte em suas
receitas fiscais locais. Desse modo, áreas com populações menos
abastadas tendem a ser servidas por escolas com baixo orçamento,
atraindo professores e professoras2 com menos aspirações e incutindo
nos estudantes um senso generalizado de fracasso como cidadãos, de
não merecerem ter êxito na educação, no trabalho ou na vida (Reay,
2017; Wright, 2010). Em um ciclo vicioso de fracasso em um sistema
para o qual estudantes de baixo status socioeconômico não têm
sido adequadamente preparados (National Education Association,
1 Partes desse capítulo constam nas publicações abaixo em inglês e estão reproduzidas aqui
com a gentil permissão das editoras:
Smith, G.D.; Gramm, W.; Wagner, K. (2018). Music education for social change in the
United States: Towards artistic citizenship through Little Kids Rock, International Journal
of Pedagogy, Innovation and New Technologies, 5(2), 11-21.
Little Kids Rock is a Punk, APME POP blog. Disponível em: https://apmepopblog.
wordpress.com/2018/01/12/little-kids-rock-is-a-punk/

2 Nota da Tradutora: muitas palavras, em inglês, são comuns aos gêneros masculinos e
femininos. Nessa tradução, optei pela apresentação de ambos os gêneros quando senti não
prejudicar a fluência do texto. Outras vezes busquei alternar os gêneros.
18 Ensino e Pesquisa em Artes

2015), e no qual suas diferenças com o padrão de classe média-alta


são vistas como estupidez, inferioridade inerente e inabilidade de
serem ensinados (Giroux, 2018; Illich, 1971; Jones, 2016; Mckenzie,
2015), organizações educacionais sem fins lucrativos encontram
oportunidades de oferecer experiências educativas valiosas e
significativas que de outra forma poderiam estar ausentes das vidas
desses estudantes.
Uma dessas organizações é a organização nacional de
educação musical sem fins lucrativos Little Kids Rock, foco deste
capítulo. A arte-educação traz melhoras notáveis e consistentes no
desempenho acadêmico quando comparamos estudantes que tiveram
arte em sua educação com aqueles que não tiveram (Americans For
The Arts, 2017; Ruppert, 2006). Este conhecimento – combinado
à lei federal por meio do Every Student Succeeds Act - ESSA (Ato
Todo Estudante Tem Êxito), que estabelece a música como parte da
educação de todas as crianças, independentemente de circunstâncias
pessoais – fornece um incentivo poderoso para Little Kids Rock
levar às escolas americanas um programa e uma pedagogia musical
que reconhece a importância de se incluir as referências culturais dos
estudantes (U.S. Department of Education, 2015).
Neste capítulo, discuto como a educação pública nos EUA é
endemicamente injusta, e como o currículo, a pedagogia e o programa
de capacitação de Little Kids Rock pretendem ajudar a abordar
o déficit sistêmico na oferta de educação pública. Este capítulo
primeiramente aborda contribuições da literatura sociológica, que
oferece uma fundamentação e um histórico para o trabalho de
Little Kids Rock. Logo após, sugere formas em que a organização
exemplifica uma atitude punk para implementar uma educação
musical nas escolas. Eu argumento que há uma necessidade urgente
de se trabalhar em direção à equidade e à justiça em uma sociedade
cada vez mais dividida economicamente, com uma crise contínua
e profunda impregnando os ideais democráticos. Punk oferece um
ethos que mistura confrontação e compaixão, ira e amor, na busca
por uma sociedade mais justa.
Minha perspectiva como autor é parcial, uma vez que sou
empregado pela Little Kids Rock. Trabalho para Little Kids Rock
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 19

como avaliador e captador de recursos financeiros, procurando


compreender e articular o contexto no qual a organização realiza
suas operações e quão bem seus programas servem para satisfazer as
demandas observadas na sociedade. Além de meu trabalho integral
na Little Kids Rock, sou professor-pesquisador visitante de música
na New York University, trabalhando como performer, educador
e pesquisador. Por essas características particulares, é necessário
destacar a falta de objetividade que trago neste capítulo; entretanto,
também reconheço o valor que o entendimento de alguém de dentro
de um contexto pode oferecer (Chang, 2016). Bresler e Stake (2006,
p.278) admitem que “em educação musical, temos necessidade de
… compreensões experienciais de situações particulares”, e Muncey
(2010, p.8) afirma que “subjetividade não infecta seu trabalho,
aprimora-o. Fazer conexões entre sua própria experiência e seu
trabalho [acadêmico] é saudável”. Refletir e escrever este capítulo
provou ser revelador para mim ao considerar os métodos e o impacto
de Little Kids Rock. Espero que este texto também provoque a
reflexão de leitores e leitoras em seus contextos particulares.

Little Kids Rock

O objetivo de Little Kids Rock é criar uma mudança de


sistema sustentável na educação musical escolar dos EUA oferecendo
aos professores e às professoras desenvolvimento profissional,
instrumentos musicais e recursos para a implementação do
currículo. O termo geral para o que Little Kids Rock oferece é “banda
moderna”. Isso inclui conjuntos de músicas populares, atividades
criativas tais como escrita de canções colaborativas e individuais,
produção de batidas e bases com estação de trabalho de áudio
digital (DAW), e mais. Esta “banda moderna” é vista como uma
alternativa a e potencial parceira dos grandes conjuntos tradicionais
(orquestra, coro, banda marcial, banda de concerto, banda de jazz)
que compreendem a vasta maioria de oportunidades de educação
musical e de se fazer música para crianças no ensino secundário dos
EUA3 (Abril & Gault, 2008; Allsup & Benedict, 2008; Fonder, 2014;
3 NT: A educação secundária nos EUA atende crianças dentre 11 e 18 anos de idade,
correspondendo, no Brasil, à denominação atual de ensino fundamental II e médio.
20 Ensino e Pesquisa em Artes

Williams, 2011).
Um componente central da capacitação oferecida por Little
Kids Rock é introduzir os professores e as professoras à abordagem
pedagógica de “música como uma segunda língua” (M.S.L.). Como
apontado por Powell e Burstein (2017, p.246), M.S.L. “é menos sobre
música como uma ferramenta comunicativa (linguagem) e mais
sobre aprendizagem musical. Assim, Aprendizagem Musical como
Aprendizagem de Segunda Língua (M.L.S.L.L., em inglês) poderia
ser uma descrição mais precisa”. Desenvolvida a partir do trabalho
de Krashen (1982), sobre aquisição de segunda língua, a abordagem
relembra aspectos da aprendizagem musical informal de Green
(2002, 2008) e incorpora princípios de Suzuki sobre aprendizagem
da língua na pedagogia do violino (Wish, 2017, p.5). M.S.L. aborda
a aprendizagem musical de maneira não-formal, em que professores
adotam uma postura de facilitadores (Cremata, 2017) em vez de
oferecerem instrução direta. M.S.L. compreende aprendizagem
musical como:
Um processo natural, subconsciente, similar ao modo como as
pessoas aprendem suas línguas nativas. Baseia-se na utilização
significativa da nova língua e na comunicação natural. Os falantes
focam não na “exatidão correta” de seus discursos, mas no ato
comunicativo. (Wish, 2017, p.10)

Um princípio básico de M.S.L. é que “aprendizes com


alta motivação, auto-confiança, boa auto-imagem, e baixo nível
de ansiedade são melhores equipados a terem êxito na aquisição
de segunda língua” (Wish, 2017, p.11). Esta premissa é aplicada à
aprendizagem musical (ou aquisição musical) para que as jovens e
os jovens experienciem menos barreiras sociais e psicológicas que
impeçam uma participação significativa na música escolar. Como
Byo (2017) identificou em seu estudo de caso, a “banda moderna” nas
escolas cria comunidades colaborativas (p.6) e oferece experiências
de “educação musical significativas, autênticas e valorosas” para os
jovens (p.9). Na medida em que constantemente evita o didatismo
ou a prescrição, M.S.L. é (assim como a aprendizagem informal de
Green), possivelmente melhor compreendida como “um ethos, uma
abordagem, e não uma pedagogia por si só” (Linton, 2015, p.302).
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 21

O modelo principal de capacitação é um treinamento


de um dia com o curso introdutório “101”, com uma oficina
“102” normalmente cursada por cerca de 80% dos professores e
professoras que participaram do curso introdutório. Outro modelo
de capacitação é oferecido a formadores de professores em cursos
superiores; para estes acadêmicos, Little Kids Rock oferece formação
em cinco dias de imersão. Todos os recursos e treinamento ofertados
por Little Kids Rock são gratuitos ou a custo muito baixo. Little Kids
Rock é financiado por verbas filantrópicas, um modelo comercial
muito comum nos EUA para organizações sem fins lucrativos do
“terceiro setor”. Little Kids Rock opera nacionalmente, em 45 dos 50
estados e no Distrito de Columbia. Desde 2002, Little Kids Rock tem
feito parcerias com o governo do estado, secretarias de educação,
escolas, professoras e professores, alcançando mais de 850.000 jovens
em mais de 2.000 escolas.

Abordando uma necessidade da sociedade

Little Kids Rock tem como perspectiva “um mundo onde a


música empodere as pessoas para conduzir vidas criativas, ricas e
com propósito” (Little Kids Rock, 2018). Muitas pessoas obviamente
conduzem vidas criativas, ricas e com propósito envolvendo diversos
graus ou mesmo graus mínimos do fazer musical (musicking).
Entretanto, à luz do papel que a música exerce e do valor que ela
carrega para as pessoas, especialmente para jovens em idades
correspondentes à segunda etapa do ensino fundamental e ao ensino
médio (Macdonald et al., 2009; Miranda, 2013), os educadores e
educadoras musicais e elaboradores de políticas educacionais são,
certamente, obrigados a oferecer programas de música que incluam
todos os estudantes e que os auxiliem a desenvolver identidades
positivas como cidadãos valorizados e membros da sociedade
confiantes e empoderados (D’Amore & Smith, 2016). A partir dessa
visão, a missão de Little Kids Rock é transformar vidas (Little Kids
Rock, 2018), fortemente alinhada à noção de “cidadania artística”, de
Elliott, Silverman e Bowman (2016, p.3). Esses autores afirmam que
música deve ser praticada como uma forma de “cidadania guiada
22 Ensino e Pesquisa em Artes

eticamente” (p.6, ênfase no original), com base na premissa que “a


prática artística envolve responsabilidades cívico-social-humanista-
emancipatórias, obrigações para engajar em um fazer artístico que
desenvolva “bens” sociais” (2016, p.7). Eles continuam a descrever
“artistas” de formas que, de fato, falam para e encorajam uma
educação musical democrática, orientada para a comunidade e com
referências culturais dos estudantes, afirmando que “por ‘Artistas’,
queremos incluir pessoas de todas as idades e níveis técnicos (desde
amadores a profissionais) que fazem e participam de arte(s) de todos
os tipos… com a intenção primeira de fazer diferenças positivas
nas vidas das pessoas” (Elliott, Silverman & Bowman, 2016, p.7).
Infelizmente, tal visão raramente é a visão dada às práticas artísticas
ou, por extensão, à prática musical em políticas, educação e formação
de professores de música. Ao contrário, o sistema de educação
musical é fortemente classista, sexista e racista, baseado amplamente
em suposições e objetivos comerciais e coloniais não-verificados
que enfatizam elitismo, competição e exclusão (Bull, 2016; Powell,
D’Amore, & Smith, 2017; Williams, 2011).
A ideologia que sustenta e caracteriza a maior parte da
educação musical nos EUA não é ensinada aos/às estudantes
ou professores. Entretanto, todos aprendem. Por isso, tem sido
denominado “currículo oculto” (Froehlich & Smith, 2017, p.102).
Abbott et al. (2014) descrevem como:
Lições, valores e perspectivas não-escritas, não-oficiais e
frequentemente não-intencionais que alunos e alunas aprendem
na escola. Enquanto o currículo formal consiste em cursos, lições e
atividades de aprendizagem em que os alunos participam, bem como
em conhecimento e habilidades que educadores intencionalmente
ensinam aos estudantes, o currículo oculto consiste em mensagens
acadêmicas, sociais e culturais implícitas ou não verbalizadas que
são comunicadas aos estudantes enquanto estão na escola. (Abbott
et al., 2014).

Assim, enquanto uma pequena “elite” identifica e é


identificada como musicista, a maioria aprende por meio de uma
percepção identitária passiva (Smith, 2013) que não é musical e que
não são musicistas (Welch, 2001). Wright (2017) declarou que “uma
educação musical diversa e culturalmente relevante que desenvolva
os talentos e habilidades musicais de todos os jovens e que os subsidie
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 23

a continuar fazendo música durante toda sua vida deveria ser um


direito humano”. Nos Estados Unidos, 79 porcento dos alunos têm
esse direito negado (Elpus & Abril, 2011, p.134), representando
“quase 10% de declínio na participação em música” desde 1982
(Elpus & Abril, 2011, p.138).
Somos testemunhas e cúmplices de um sistema em que,
como Ruth Wright (2018a) tem alertado:
Por meio de um processo oculto disfarçado em um modelo de
educação supostamente igualitário, certas classes de jovens são
predispostas a terem êxito, vindas de famílias que provêem o capital
cultural requerido para acessar o código da educação. O fato de
este código ser secreto, escrito na própria linguagem da educação,
faz com que o fracasso dos outros pareça ser baseado na sua falta
de habilidade; como se isso fosse natural, em vez de um resultado
distorcido de um sistema distorcido. (Wright, 2018a)

Em uma linha similar, Bourdieu (2000, p.168) acusa


professores e o sistema educacional de reprovar estudantes
e perpetuar uma “violência simbólica”. Henry Giroux (2018,
p.39) é mais veemente em sua crítica, descrevendo “a contínua
guerra à juventude economicamente favorecida e à comunidade
de cor”, argumentando que esta guerra estende-se também aos
“economicamente desfavorecidos, aos transgêneros e aos migrantes
não documentados”.
Nesse momento, cidadãos e residentes dos Estados Unidos
estão passando por um período particularmente desafiador. A
ideologia supremacista branca, conservadora cristã, capitalista
desenfreada, sobre a qual os EUA foi fundado, levou, talvez de modo
não surpreendente, a uma situação em que:
a presidência de Trump desencadeou um tipo de anti-política que
tira das pessoas o peso de qualquer responsabilidade para contestar
– quanto mais para modificar – os preceitos fundamentais de uma
sociedade esfacelada por intolerância aberta, misoginia gritante,
desigualdade massiva, e violência contra imigrantes, muçulmanos,
desfavorecidos economicamente e comunidades de cor. (Giroux,
2018, p.23).

Na educação, assim como em toda a sociedade contemporânea,


“Muitas pessoas agora veem-se vivendo em sociedades em que
experienciam um tipo de desalojamento social independente de e
24 Ensino e Pesquisa em Artes

invisível a políticas e à linguagem dos que estão no poder” (Giroux,


2018, p.25).
Elliott e Silverman (2014, p.58-59) afirmam que “música
não tem um valor; música tem inúmeros valores, dependendo das
formas como é concebida, utilizada, e ensinada por pessoas que se
engajam em estilos musicais específicos” e comunidades. Assim,
os programas de Little Kids Rock cultivam e respeitam as vozes de
todos os estudantes como indivíduos de culturas e comunidades
distintas.
Isso é um ethos poderoso que pode levar à criação de uma
cidadania artística capaz de se expressar e de se defender por si mesma.
Por meio de uma programação de educação musical culturalmente
responsiva, que traz músicas relevantes e experiências validadas
do fazer musical para a sala de aula escolar (isto é, enfocando nas
músicas que os estudantes conhecem e gostam, assim como nas
músicas que os professores e pais têm contato fora da escola), os
professores e as professoras de Little Kids Rock envolvem os jovens
que de outra maneira são frequentemente excluídos, “abraçando a
ideia das crianças como agentes e participantes ativas na construção
do conhecimento musical” (Linton, 2015, p.303). O ethos da banda
moderna reconhece todos e todas as/os jovens como tendo voz que
merece ser ouvida. Como Ranciere (1991) observou:
Educação emancipadora...começa do pressuposto que...todos
os estudantes já podem falar. Começa do pressuposto que os
estudantes não têm falta de capacidade de discurso, nem que estejam
produzindo barulho...quando classificamos tais sons como barulho,
não estamos declarando um fato psicológico, mas apresentando
uma distinção política. (Ranciere, 1991, p.39-40).

A banda moderna e M.S.L. capacitam e concretizam


oportunidades iguais para jovens, com foco na criatividade musical.
Em vez do padrão de se tocar música escrita por compositores
brancos, o currículo da banda moderna empodera minorias étnicas
e estudantes de todos os gêneros para escreverem suas próprias
músicas, por meio de seus valores centrais de composição e
improvisação. Os programas da banda moderna de Little Kids Rock
nas escolas auxiliam a reforçar a confiança dos jovens, enfocando
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 25

no desenvolvimento de habilidades criativas, colaborativas, e


experimentações sem medo ou julgamento. Reconhecendo as vozes
dos estudantes como válidas e vitais em suas experiências de fazer
música, os professores e as professoras da banda moderna estão
expandindo a participação musical nos EUA. Isso, apesar do fato de
a vasta maioria das professoras e dos professores de Little Kids Rock
ainda lutarem para ensinar ou mediar uma composição, escrita de
canções e improvisação em suas aulas. Dados indicam que a matrícula
em música em um distrito escolar é quatro porcento mais alta em
escolas com programas da banda moderna comparada a escolas que
não têm esse programa (Quadrant Research, 2017; Robison et al., in
review). Randles (no prelo) identificou que uma maioria significante
(76%) de “professoras e professores indicaram que seus estudantes
estão mais engajados nas aulas de música desde a incorporação dos
currículos de LKR [Little Kids Rock] e da banda moderna em sua
escola”.

Little Kids Rock como Punk

Confrontando e desafiando o modelo tradicional norte-


americano de educação musical baseado em apresentações de
grandes conjuntos que replicam performances, Little Kids Rock
forma professores e professoras para subverter currículos e modelos
pedagógicos normativos e exclusivos, simbolicamente violentos.
Para isso, propõe e insere uma abordagem alternativa baseada na
aprendizagem colaborativa e no desenvolvimento de habilidades
criativas e de improvisação por meio de repertório e de práticas de
aprendizagem culturalmente responsivos. Devido a essas atividades,
por vários anos Little Kids Rock foi visto por muitas autoridades da
educação musical, acadêmicos e filiados da Associação Nacional
pela Educação Musical [National Association for Music Education]
como algo transgressor, um intruso evangélico com pouca
consideração às tradições existentes ou àqueles educadores que
acreditam profundamente nelas; esta é ainda a visão de algumas
pessoas da área. Essas críticas não são totalmente infundadas, mas
considero que são originadas mais pela vigorosidade, boas intenções
26 Ensino e Pesquisa em Artes

e comprometimento imediato de membros da equipe de Little


Kids Rock para efetuar mudanças positivas do que por motivações
nocivas. Começou a ser difícil ignorar ou desconsiderar Little Kids
Rock. Essa organização tem feito a diferença – ou no mínimo deixado
uma impressão – nas vidas de mais de um milhão de jovens, em suas
famílias e suas comunidades. De acordo com Kahn-Egan (1998), o
comportamento e atitude de Little Kids Rock são de um punk (ver
também: Dines, 2015; Torrez, 2012; Santos & Guerra, 2017).
Kahn-Egan estabelece cinco características gerais de punk
– ao mesmo tempo em que reconhece a ironia e a complexidade
inerente de se tentar descrever algo que deliberadamente e mesmo
agressivamente escapa apreensão e em seu cerne resiste a rótulos e
a descrições criteriosas (Dines 2015; Sofianos, Ryde, & Waterhouse,
2015). Seguem aqui suas cinco premissas sobre punk; cada uma
acompanhada por uma breve explicação de como Little Kids Rock
corresponde a elas.

1) Um senso de fúria e de paixão que no final faz com que [a


pessoa] diga o que realmente está em sua mente.

Little Kids Rock é um líder em um movimento poderoso que


vem ocorrendo na educação musical nos EUA. Desde, e, na verdade,
bem antes do Simpósio de Tanglewood em 19674, educadores
musicais progressistas vêm tentando, em pequenos números, trazer
músicas alternativas e populares, e pedagogias apropriadas para as
escolas (Powell, Krikun, & Pignato, 2015; Williams, 2011). Alguns
tiveram êxito, mas a esmagadora maioria da educação musical dos
EUA não é adequada aos estudantes ou à sociedade a que deveria
estar servindo (Kratus, 2019). Frustração e perplexidade diante desta
inércia sistêmica perpétua levou Little Kids Rock a prosseguir em
sua missão, liderada por seu fundador e diretor executivo (CEO),
Dave Wish.
4 O Simpósio de Tanglewood foi um encontro seminal em 1967 em Tanglewood, MA, EUA,
no qual membros da Conferência Nacional de Educadores Musicais (The Music Educators
National Conference) concordaram que música na escola deveria incluir “música dos
adolescentes” (hoje cairia na ampla denominação de “música popular”). Resultados do
Simpósio foram publicados na Declaração de Tanglewood, um ano depois (MARK, sem
data).
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 27

2) A ética do Faça Você Mesmo (DIY), que demanda que façamos


nosso próprio trabalho pois qualquer um que faça o trabalho por
nós estaria nos sacaneando.
Seria incorreto afirmar que a diretoria da organização,
seu fundador ou empregados julgam que alguém esteja tentando
os prejudicar. Entretanto, as atividades de Little Kids Rock são
caracterizadas por uma ética do DIY. O fundador de Little Kids
Rock, David Wish, decidiu que já que ninguém parecia disposto a
modificar a educação musical americana (após 50 anos de conversas
sobre como isso seria uma boa ideia), “nós mesmos faríamos isso”.
“DIY” obviamente raramente significa fazer coisas completamente
sozinhos – ao contrário, isso envolve a colaboração de pessoas certas
em termos acordados mutuamente para que as coisas que precisam
ser feitas sejam feitas (Smith & Gillett, 2015). Primeiramente, isso
significou trabalhar com professoras e professores individualmente.
Agora, envolve a colaboração de acadêmicos de várias dúzias
de universidades, líderes e administradores escolares em níveis
municipais e estaduais em todo o país com o apoio de doações
filantrópicas no valor estimado de U$ 10.000.000 (dez milhões de
dólares) por ano.

3) Um senso de destrutividade que demanda um ataque às


instituições quando essas instituições são opressoras, ou não são
benquistas.

Little Kids Rock não tomou medidas destrutivas (os


programas de banda moderna ativados por Little Kids Rock são
complementares às ofertas de educação musical existentes, não
opositoras ou destruidoras delas); mas certamente chamou atenção
à estagnação – beirando ao rigor mortis – muito caracterizada na
educação musical do país. Com cerca de apenas 21 porcento de
estudantes do ensino correspondente ao ensino médio brasileiro
participando de música nas escolas (Elpus & Abril, 2011), com
professoras e professores de música do ensino fundamental agora
sabendo se ou como integrar músicas atuais nos currículos, e com a
maioria dos músicos nunca mais tocando seus instrumentos musicais
28 Ensino e Pesquisa em Artes

após se formarem no ensino médio, existe uma séria escassez do fazer


musical significativo nas escolas (Kratus, 2019; Williams, 2011). Se a
busca fervorosa de Little Kids Rock para cumprir sua missão tentou
destruir algo, foi a apatia sistêmica à entropia envolvendo a educação
musical nos EUA.

4) Uma disposição a suportar ou mesmo a buscar a dor para se


fazer ouvido ou notado.

Little Kids Rock tem recebido sua cota justa de crítica, suspeita
e deturpação de suas ideias durante essa década e meia em que vem
buscando cumprir sua missão. Tem sido acusada de várias formas de
apoiar uma indústria debilitada de vendas de violões, de encerrar a
participação de todas as outras formas de música nas escolas que não
sejam conjuntos de bandas modernas, e de substituir professores e
professoras licenciados em música por não-músicos sem qualificação
que têm uma parca noção de como se toca um ukulelê (nenhuma
dessas acusações representa de longe o trabalho da organização com
precisão). Entretanto, vivendo a letra da música “Tubthumping”, de
Chumba-Wumba – “Eu fui derrubado, mas eu me levanto novamente,
você nunca vai me deixar para baixo”5 (Chumbawamba, 1997) – o
espírito indomável de Little Kids Rock e sua valente determinação
de revolucionar a educação musical nacionalmente são as marcas do
ethos da organização. Mais recentemente, como mencionado acima,
Little Kids Rock tem envidado esforços orquestrados e contínuos
para trabalhar em parceria com principais influenciadores em
educação musical, desde acadêmicos de universidades e faculdades
a administradores encarregados de arte-educação nos municípios e
nos estados.

5) Uma busca pelo “princípio do prazer”, um divertimento em um


tipo de abismo Nietzcheano.

Fazer música é um componente vital da condição humana,


e é bom para o cerne das pessoas (Boyce-Tillman 2019; Hills &
5 No original em inglês: “I get knocked down, but I get up again, you’re never gonna keep
me down”.
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 29

Argyle, 2000). Trabalhar com crianças em escolas para criar música


significativa com elas, à medida que desenvolvem identidades,
trabalham com ética, criatividades e formação cultural (Froehlich &
Smith, 2017), é talvez a finalidade mais gratificante que um educador
pode almejar. Praticar música, fazendo música, é uma parte vital de
nossa própria humanidade (Elliott & Silverman, 2015). Fazer música
também é incrivelmente uma boa diversão. Quase todos sabem
disso, e esta é uma razão pela qual Little Kids Rock continua a ver
tal recepção entusiástica de milhares de professoras, professores,
administradores e jovens. Fazer música nos faz sentir bem e, portanto,
pode ser bom para todos nós (Bowman, 2006; Elliott, 2019; Elliott &
Silverman, 2015).

Conclusões

Little Kids Rock trabalha com educadores para potencializar


o meio poderosamente expressivo da música na arena carregada
emocional e politicamente da educação pública nos Estados Unidos.
Nesse contexto e em milhares de exemplos pelo país, “as crianças
não são apenas reprodutoras culturais, mas… elas também são
produtoras musicais ativas” (Linton, 2015, p.306). O ethos e o trabalho
de Little Kids Rock e sua crescente comunidade de professores e
professoras estão, portanto, alinhadas à busca de Elliott, Silverman e
Bowman de “práticas instrutivas com possibilidades transformativas
convincentes, práticas concebidas para fazer o mundo mais justo e
equitativo e para melhorar as vidas das pessoas” (2016, p.12).
A educação musical escolar tradicional, em conjunto com a
educação de modo geral, ajuda a perpetuar injustiças e desigualdades
em uma sociedade americana dividida em termos de raças e classes
(Horsley, 2015). Acadêmicos compreendem o valor de experiências
de educação musical culturalmente responsivas e o profundo impacto
que podem ter nas vidas das pessoas. Em programas centrados no
aluno tais como os oferecidos por meio da banda moderna e de
abordagens como M.S.L., de acordo com Linton, “as crianças não são
mais agentes passivos em relação à cultura musical da sala de aula. Em
vez disso, são agentes ativos, criando, interpretando e reproduzindo
30 Ensino e Pesquisa em Artes

suas próprias e únicas culturas musicais juntamente com a/o


professor(a)” (2015, p.311). Linton continua e diz que “talvez por
meio da alternância de tradições dentro das aulas de música, esses
jovens poderão participar na reestruturação da paisagem musical
no contexto escolar. Talvez seja possível modificar as percepções
das crianças sobre o que significa ser um ‘músico’” (2015, p.311). A
necessidade de mudança é urgente, e há movimentações e potenciais
palpáveis para que isso ocorra.
As aulas de banda moderna e M.S.L. não são um remédio
milagroso para os males de uma sociedade e de um sistema
educacional deliberadamente construído e sustentado para elevar os
ricos e brancos, para desempoderar os cidadãos e para educar de
forma “enganosa’ (Reay, 2017) os pobres e vulneráveis. Entretanto,
se considerarmos educação em larga escala como um bem
público, capaz e com a intenção de empoderar cidadãos de uma
sociedade democrática (como pensa este autor), os programas de
banda moderna e a abordagem de M.S.L. de Little Kids Rock são
peças cruciais de um quebra-cabeças para tornar a educação e as
oportunidades educacionais mais justas. Sabemos que:
Se desejarmos modificar a natureza de uma educação reprodutora
para emancipadora – proporcionando liberdade e um tratamento
mais justo àqueles menos privilegiados na sociedade, precisamos
escutar suas vozes musicais. Desesperança e alienação serão
resultado se não os escutarmos – se eles se sentirem ignorados.
Quando permitimos as músicas de nossos estudantes em nossas
aulas, nós os empoderamos para terem voz e para serem ouvidos
(Wright, 2018b).

Little Kids Rock auxilia professoras e professores a auxiliar


estudantes a acreditarem neles mesmos – a acreditarem que têm uma
voz, que sua voz vale a pena ser ouvida, e que sua contribuição é
valorizada por outros, incluindo aqueles em posição de autoridade.
Abraçando aprendizagens de empoderamento, identidade,
agency e auto-expressão fazendo música de maneira original,
pessoalmente significativa, Little Kids Rock, com sua abordagem
punk, vem ajudando a revitalizar a educação musical em um país rico
mas com um crescente empobrecimento na oferta de arte-educação.
O trabalho dinâmico de Little Kids Rock nas salas de aula de ensino
Punk e Pedagogia Little Kids Rock 31

fundamental pelos EUA oferece resistência vital e alternativas viáveis


para um conjunto sedimentado de crenças e práticas de educação
musical frequentemente exclusivas e anacrônicas, buscando a
abordagem punk de “elevar acima da maioria das outras aspirações
a importância de … autodeterminação e de supressão de regras”
(Sofianos, Ryde & Waterhouse, 2015, p.23). Novamente ecoando
Kahn-Egan (1998), a atitude de Little Kids Rock “de desafio constante
e determinação para perturbar” é também inerentemente punk
(Sofianos et. al., 2015, 26). O que Little Kids Rock inicia em suas aulas
de música educadores, administradores e políticos devem continuar
a levar para governos locais, regionais, estaduais e nacionais, pois “é
essencial mover adiante… formações sociais políticas e pedagógicas
opositoras que se disseminem dentro de sociedades autoritárias
para preservar e desenvolver justiça social, igualitarismo, tolerância
política, diversidade cultural, e uma comunidade vibrante centrada
na democracia” (Giroux, 2018, p.33). Professoras e professores de
música podem mudar o mundo – tanto por nossas ações como por
nossa inação. Nunca houve tamanha urgência para se criar condições
para transformar vidas nos Estados Unidos como agora.

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Espiritualidade crítica 39

3
Espiritualidade crítica: desenvolvendo
alguns conceitos para uma educação
musical humanizadora
Heloisa Feichas

Introdução

E ste trabalho pretende estabelecer interrelações sobre


espiritualidade e pedagogia musical apontando perspectivas
humanizadoras para a formação de músicos e educadores musicais.
Primeiramente serão apresentadas ideias sobre inteligência emocional
e espiritual seguidas de reflexões sobre uma pedagogia holística que
inclua alguns conceitos sobre espiritualidade. Serão analisados alguns
princípios da obra de Paulo Freire, que são baseados numa visão
humanizadora da educação e que fomentam o desenvolvimento de
competências humanas que podem ser analisadas como “espirituais”,
o que nos leva a discutir a possibilidade de uma “espiritualidade
crítica”. Finalmente serão discutidas possibilidades na pedagogia
musical onde esses princípios podem ser trabalhados.
A ideia de desenvolver conceitos sobre espiritualidade e
conectá-los com a Educação Musical surgiu durante minhas reflexões
sobre as pedagogias de Paulo Freire (2011a; 2011b) e minhas
próprias experiências lecionando há anos na Escola de Música da
UFMG. Diante de tantos desafios de nosso cotidiano e com o senso
de responsabilidade de colaborar para a formação de profissionais
na área da música e da educação, tenho refletido sobre o conjunto
de competências (aqui entendido como conjunto de conhecimentos,
habilidades, atitudes e comportamentos) necessário para a formação
de músicos e educadores musicais. Cada vez mais entendo que essa
formação profissional deve levar em conta não apenas o estudo
40 Ensino e Pesquisa em Artes

de disciplinas específicas com seus conteúdos fundamentais, mas


também propiciar a aquisição e aprimoramento de competências
inter e intrapessoais. As competências na esfera dos relacionamentos
pessoais são cruciais para uma educação realmente humanizadora,
aquela que respeita o indivíduo como ser humano, dotado de
intelecto, mas também de emoções e percepções que vão além do
mental/racional. Falo aqui de uma Educação holística que pense
em várias dimensões do ser humano e que conecte a mente com o
coração, de forma que valores e virtudes como respeito, tolerância,
humildade, compreensão do outro, empatia, e, sobretudo atitudes
amorosas, possam ser valorizados.

Inteligência emocional e espiritual

Gregory (2014) nos lembra que o músico e o educador


musical devem desenvolver habilidades sociais e interpessoais, com
base em valores éticos e morais para atuarem em diversas funções
que a música possa ter nas sociedades contemporâneas. Somente
habilidades musicais e artísticas não são suficientes para as novas
demandas da vida moderna. Como Gardner (1983, 1999) teorizou
em seu famoso livro “Estruturas da Mente: a teoria das inteligências
múltiplas”, a inteligência interpessoal é a habilidade de interagir
efetivamente com os outros, comunicar e cooperar a fim de trabalhar
como parte de um grupo, sendo sensível aos humores, sentimentos,
temperamentos e motivações dos outros. Já a inteligência intrapessoal
tem a ver com capacidades introspectivas e auto-reflexivas com
sensibilidade aos próprios sentimentos. Implica em desenvolver
uma compreensão profunda de seus próprios pontos fracos e
fortes em processo de autoconhecimento. Ambas as inteligências
são componentes importantes da inteligência emocional, como
examinada por Goleman (1998). Na teoria de Goleman (1998), a
autoconsciência e a autorregulação estão relacionadas às habilidades
intrapessoais, ao passo que a empatia e as habilidades sociais com
as habilidades interpessoais. Além dessas inteligências, Gardner
(1999) categorizou mais duas inteligências: naturalista e existencial.
A inteligência existencial pode ser entendida como “inteligência
Espiritualidade crítica 41

espiritual”, embora Gardner tenha evitado esse rótulo pelo fato da


palavra “espiritual” ter sentido ligado à religiosidade. A inteligência
existencial (Gardner, 1999, p.60) é definida como “uma preocupação
com as questões vitais da vida”. Ele descreve a capacidade central
dessa inteligência como:
a capacidade de se localizar em relação aos cantos mais distantes do
cosmos – o infinito e o infinitesimal – e a capacidade de se localizar
em relação a características existenciais da condição humana como
o significado da vida, o sentido da morte, o destino final dos mundos
físico e psicológico, e experiências profundas como o amor de outra
pessoa ou a imersão total em uma obra de arte (Gardner, 1999, p.60,
tradução minha).

Embora a explicação para a inteligência existencial levante


questões relacionadas ao domínio espiritual, Gardner (1999) afirma
que não está propondo uma inteligência espiritual, religiosa ou
moral baseada em quaisquer verdades específicas que tenham
sido discutidas por indivíduos, grupos ou instituições. Questões
profundas como “quem somos nós? “O que significa tudo isso?
“Para onde a humanidade está indo?” “Qual o sentido da vida?”
são exemplos de tópicos da inteligência existencial. Ela envolve a
capacidade do indivíduo usar os valores coletivos e a intuição para
entender os outros e o mundo ao seu redor. Normalmente, indivíduos
que possuem essa inteligência em alto nível conseguem enxergar as
coisas em uma perspectiva ampla.

Pedagogia holística: em direção à espiritualidade crítica

Compreender as inteligências interpessoal, intrapessoal e


existencial é importante para o desenvolvimento de uma abordagem
pedagógica que inclua a espiritualidade. O desenvolvimento dessas
inteligências em contexto educacional desperta virtudes espirituais
como “amor”, “compaixão”, “perdão” e “esperança”. Todos esses
valores e qualidades humanas, além de respeito mútuo, tolerância,
confiança, honestidade, humildade, integridade, autenticidade,
empatia, alegria, são encontrados nas pedagogias de Freire e podem
ser entendidos como parte de um conjunto de competências humanas
que levam à espiritualidade crítica.
42 Ensino e Pesquisa em Artes

Embora Freire nunca tenha usado a palavra “espiritualidade”


em seus escritos, examinando esse aspecto da vida pessoal de Freire, é
possível encontrar ideias para alimentar conceitos de espiritualidade.
Segundo Boyd (2012, p.760) a natureza da espiritualidade pessoal de
Freire e a influência que a espiritualidade teve em sua vida e em seu
trabalho ainda precisam ser exploradas. Contudo, é bem conhecida
a conexão de Freire com a teologia da libertação e também que ele
escreveu alguns ensaios teologicamente orientados, que mostraram
“uma espiritualidade pessoal que informou sua perspectiva
esperançosa diante de muitas barreiras e lutas pessoais”. Portanto, é
claro em seus escritos um forte otimismo e capacidade de esperança,
que provavelmente estava ancorada em sua vida espiritual, enraizada
em um profundo senso de fé. Ao analisar o trabalho e a vida de
Freire, Boyd (2012, p.761) levanta questões sobre a origem da visão
moral de Freire perguntando de onde veio sua força interior, alegria
pela vida e persistência diante do fracasso? Como a espiritualidade
pessoal nos oferece força e resiliência no esforço de trabalhar pela
justiça social?
De acordo com Boyd (2012, p.761), Michael Dantley propôs
uma perspectiva chamada de “espiritualidade crítica”, que reúne os
insights políticos da teoria crítica, princípios da pedagogia crítica
e educação popular e elementos de espiritualidade, que no caso de
Freire emergem de sua história pessoal com a fé cristã católica. Esse
conceito de espiritualidade crítica explica como Freire foi capaz de
integrar questões políticas com uma autêntica fé pessoal. Assim,
através dessa janela de uma possível espiritualidade crítica que
podemos vislumbrar a espiritualidade pessoal de Paulo Freire (Boyd,
2012, p.761) e sua influência em suas pedagogias. Essa maneira
de ver a espiritualidade fornece uma nova lente através da qual a
espiritualidade é algo não somente interno e privado, mas também
algo que ativamente engaja o indivíduo nas necessidades e questões
do mundo: ao invés de pensar a espiritualidade como uma busca do
divino através de orações, meditação, leitura de textos sagrados ou
veneração, essa abordagem encontra o transcendente na justiça social
e ativismo ambiental. Isso também é chamado de “espiritualidade
engajada” (Boyd, 2012, pp 764-765).
Espiritualidade crítica 43

Enquanto a teoria crítica fornece aos estudiosos uma estrutura


cognitiva com a qual pode se analisar e desafiar práticas e
estruturas existentes, a espiritualidade é geralmente considerada
uma orientação geral para a vida que inclui não apenas o intelecto,
mas também as emoções e até práticas físicas (Boyd, 2012, p.765,
tradução minha).

O conceito de espiritualidade crítica preenche dois domínios


distintos e aparentemente irreconciliáveis do intelecto e das
emoções ou, em termos mais metafóricos, a “cabeça” e o “coração”
(Boyd, 2012, pp.765-771); é também reflexivo e ativo, instigando
justiça, benevolência e igualdade. É uma enorme inspiração para
o desenvolvimento de uma pedagogia holística que lidará com
indivíduos como seres humanos inteiros. Este é o cerne de muitos
livros de Paulo Freire, como Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da
Esperança, Pedagogia do Coração, Pedagogia da Liberdade, Pedagogia
da Autonomia, entre muitos outros.
As principais idéias de Paulo Freire têm muitos aspectos
em comum com o psicólogo humanista Erich Fromm (Pretto &
Zitkoski, 2016; Lira, 2015). Ambos discutiram questões relacionadas
à formação da consciência em indivíduos, uma chave central para a
liberdade humana, extremamente necessária à educação de qualquer
sociedade democrática (Borgheti, 2013). Lira (2015) também
examinou semelhanças entre o trabalho de Fromm e as ideias de
Freire. Ela aponta que Fromm teve influência nas principais obras de
Freire, como Educação, a prática da liberdade (1971), Pedagogia do
Oprimido (2005) e Conscientização (1980). Pretto e Zitkoski (2016)
encontraram nas obras de Paulo Freire, vários trechos inspirados
nos pensamentos de Fromm, baseados em valores humanos. Para
ambos o papel fundamental da educação é humanizar; o princípio
humanizador baseado no amor, carinho, respeito está na essência
do pensamento de ambos, visando à construção de um mundo que
deve ser mais humano e livre e que sempre sofreu com as imposições
da sociedade e de ferramentas de segregação social. Pretto e Zitkoski
(2016, p.50) explicam que Fromm aprofunda sua teoria psicanalítica
a partir da concepção de natureza humana surgida do pensamento de
Freud e Marx com ênfase na importância nas relações interpessoais,
44 Ensino e Pesquisa em Artes

percepção intuitiva, sentimentos e capacidade cognitiva do ser


humano e na construção de sua própria história e num mundo
mais socializado. Para a psicanálise humanista de Fromm, afeição,
amor e solidariedade com as pessoas são a base de desenvolvimento
emocional. Isso significa que essencialmente nós todos somos iguais,
uma vez que somos todos humanos, e isso implica que não somos
apenas de carne e osso e que além de termos um cérebro programado
pela racionalidade científica nós também somos coração através
do qual nossas emoções e sentimentos são limitados pelas nossas
experiências subjetivas. Fromm criticou as sociedades modernas
declarando que as relações não são guiadas pelos sentimentos como
afeição e amor, compreensão e respeito, mas por valores de troca que
governam o sistema de mercado (Pretto & Zitkoski, 2016, p.52).
Fromm argumentou em seu livro clássico A Arte de Amar
(2006, p.56) que “o tipo mais fundamental de amor, básico em todos
os tipos de amor, é o amor fraterno”. Ele apresenta o amor como uma
habilidade que pode ser ensinada e desenvolvida, apontando para
o caráter ativo do amor verdadeiro que envolve quatro elementos
básicos: cuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento. Entre
todos os tipos de amor, Fromm (2006) explica que amar a si mesmo
é bem diferente da arrogância ou do egocentrismo. Amar a si mesmo
significa cuidar de si mesmo, assumir a responsabilidade por si
mesmo, respeitar a si mesmo e conhecer a si mesmo (por exemplo,
ser realista e honesto sobre os pontos fortes e fracos de alguém). Para
poder amar verdadeiramente outra pessoa, é necessário primeiro
amar-se desta maneira. Freire também tomou conceitos sobre o amor
em sua pedagogia afirmando que educar deve ser um ato de amor. A
força amorosa que atravessa a relação dos indivíduos no processo de
ensino-aprendizagem propicia condições para o surgimento da auto-
estima e coragem para todos os envolvidos. Portanto, o amor não
pode existir em um relacionamento de dominação onde o opressor
subjuga os oprimidos (Pretto & Zitkoski, 2016, p.55).

Espiritualidade e pedagogias musicais

Para o desenvolvimento de uma pedagogia holística e


Espiritualidade crítica 45

humanizadora é necessário o estabelecimento de níveis de conexão


tanto consigo mesmo quanto com os outros. Ter consciência de suas
habilidades intra e interpessoais além do desejo de se aprimorar
como ser humano e ter curiosidade diante da vida e seus mistérios
podem instigar a uma busca de autoconhecimento que desperta para
a dimensão espiritual da vida. A partir disso podemos pensar numa
pedagogia que inclua a espiritualidade. O conceito de parcerias
também é fundamental nesse processo do desenvolvimento da
espiritualidade. É através do contato comigo mesmo e com os outros
que me aprimoro como ser humano. Do contato com os outros eu
percebo os espelhos onde posso me reconhecer, e assim me avaliar
e melhorar minhas atitudes e comportamentos. As relações inter e
intrapessoais são um campo fértil para meu aprimoramento como
ser humano.
Gregory (2014) explica a importância de desenvolvermos
parcerias com conexões significativas, levando-se em conta o lado
artístico, educacional e social, sempre atentos à compreensão dos
contextos e abertos a diálogos respeitosos. Em outras palavras, a
parceria deve levar em conta as pessoas com suas intenções, valores,
crenças, atitudes, percepções, sentimentos, esperanças, medos e
incertezas. Este é o cerne de qualquer parceria (Renshaw, 2010).
E nas parcerias saudáveis o aspecto dialógico é importante para
garantir que valores humanos como respeito, alteridade, empatia
estejam presentes. Nesse sentido as pedagogias de Paulo Freire
iluminam a perspectiva humanista e colaboram para pensarmos
na educação musical como campo onde esses valores poderão se
desenvolver. Como explicado anteriormente, essa visão humanista
e holística da educação contém em sua natureza aspectos cognitivos
e afetivos. Ela leva em conta o reino da afeição, dos sentimentos.
De acordo com Pretto e Zitkoski (2016), a educação que prioriza
o desenvolvimento das habilidades cognitivas dos alunos, sem
considerar as habilidades afetivas, restringe a educação como uma
mera ferramenta para o progresso material. As pedagogias de Freire
oferecem possibilidades de quebrar essa noção da educação para
o materialismo substituindo-a por uma educação que conecte o
coração e a mente. Assim o indivíduo tem chances de despertar para
46 Ensino e Pesquisa em Artes

uma nova consciência sobre si mesmo e sobre o mundo e buscar


uma liberdade num processo de empoderamento e emancipação, o
que Freire chama de “conscientização”.
As abordagens pedagógicas que priorizam o aprendizado
colaborativo-criativo têm um potencial enorme para o
desenvolvimento da espiritualidade. Um contexto de aprendizagem
que crie espaço para que várias vozes dialoguem e interajam de forma
democrática é possível através, por exemplo, de práticas de conjunto
onde alunos criam e tocam coletivamente. Além das habilidades
musicais que naturalmente são desenvolvidas e adquiridas nesses
contextos, outras habilidades podem ser adquiridas através de
estratégias que privilegiem a criatividade, e levem em conta a
diversidade cultural e as diferentes bagagens de cada indivíduo
envolvido no trabalho colaborativo.
Dessa forma, a aprendizagem criativa-colaborativa é um
exemplo onde os princípios de Paulo Freire podem ser aplicados.
Gregory e Renshaw (2013) explicam que a aprendizagem
criativa é caracterizada pelo compromisso de desenvolvimento
pessoal e cultural de todos; valoriza a imaginação e criatividade na
prática; busca a excelência e refinamento artístico (para não ser um
“vale tudo”); exercita o potencial do espírito humano no sentido
de cada um expor as próprias fraquezas e pontos fortes no grupo
sendo respeitosos com o processo de todos; valoriza os processos de
improvisação com a participação de todos, independentemente do
nível musical, reforçando a não-hierarquia; fomenta relações críticas
em que se aprende a criticar uns aos outros de forma construtiva
e estimula as práticas de auto-reflexão e auto-análise; incentiva
atitudes de se arriscar para novas descobertas e para invenções;
reconhece, cria e explora novos conhecimentos para gerar novas
ideias e conceitos. Criatividade nesse caso não é visto como um
processo isolado ou um ato individual de um gênio, mas como um
processo crítico e social baseado em relações sociais e interações. A
criatividade floresce numa atmosfera onde o pensamento original,
a inovação e o diálogo são estimulados e encorajados. Através do
desenvolvimento da reflexão sobre a prática aprimoram-se os
mecanismos de avaliação, pois a auto-avaliação e avaliação dos pares
Espiritualidade crítica 47

são potencializadas contribuindo para aumentar a consciência e


autonomia dos envolvidos.
Além das práticas de conjunto, onde cada um toca seu
instrumento, qualquer atividade musical coletiva que tenha uma
liderança engajada no espírito de fomentar o crescimento pessoal
além do musical e artístico, pode desencadear contextos para que
aspectos da espiritualidade floresçam e, sobretudo que despertem a
consciência dos indivíduos nos grupos.

Considerações finais

Termos a consciência de que somos corpo, mente, emoções e


espírito, nos traz uma perspectiva holística como seres humanos
e consequentemente implica numa responsabilidade enquanto
educadores. Não podemos pensar a educação sem levar em conta
a dimensão dos valores humanos que podem ser encorajados e
desenvolvidos nas relações coletivas das práticas pedagógicas. Nas
práticas musicais colaborativas, há um grande potencial para o
desenvolvimento de relações nas quais surgem necessidades de
conexões consigo mesmo, de uns com os outros e que serão refletidos
na comunidade na qual o indivíduo está inserido. Obviamente
esse processo requer treinamento e uma liderança engajada nesse
propósito. Como consequência há grandes chances de formação de
cidadãos mais críticos e conscientes e também de seres humanos
mais humanos na medida em que cada um vivencia situações nas
quais a fé, o otimismo, a alegria, a curiosidade, a paixão, a liberdade,
a esperança e, sobretudo, o amor podem ser despertados.

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Paulo Freire e Erich Fromm, 2013. Disponível em: http://www.teses.
usp.br/teses/disponiveis/59/59137/tde-08102013-150326/pt-br.php.

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Espiritualidade crítica 49

RENSHAW, Peter. Engaged Passions: Searches for Quality in


Community Contexts. Delft: Eburon Delft, 2010.
Breve História da Escola de Teatro Popular 51

4
Breve História da Escola de Teatro
Popular (ETP) ou
Aprendizagens
político-teatrais em tempos
de colapso
Julian Boal

Em junho de 2016, me foi dada a oportunidade de


organizar um Encontro Internacional de Teatro do Oprimido na
Escola Nacional Florestan Fernandes (o espaço de formação mais
importante do Movimento Sem Terra).
Desse encontro, que contaria com a presença de artistas
e militantes de vários países, também participaram militantes do
Movimento Popular La Dignidad (MPLD) que fizeram parte da
construção da Escola de Teatro Político. Esses militantes explicaram
tanto o funcionamento de seu movimento quanto o funcionamento
da escola. La Dignidad é um movimento que tenta organizar a classe
trabalhadora através da construção de espaços e serviços que atendam
às necessidades concretas da população. Assim, o movimento criou
refeitórios populares, escolas, creches, postos de saúde, corpo de
bombeiros, uma rede de ambulâncias, uma distribuidora de botijões
de gás e outras estruturas. Cada uma dessas estruturas geram postos
de trabalhos ocupados por militantes do movimento e tentam criar
uma sociabilidade na prática que se distancie das relações impostas
pelo mercado e pelo Estado. Assim, nas escolas do movimento, os
pais e mães das crianças são convidados a não somente ajudar a
consertar e limpar os locais ou a preparar a comida, mas também a
participar mensalmente de assembleias aonde o projeto pedagógico
da escola é debatido e construído. Os espaços criados pelo MPLD
52 Ensino e Pesquisa em Artes

tentam romper com o imobilismo imposto através tanto dos direitos


“dados” aos cidadãos como da mercadoria que se apresenta ao
consumidor sob sua forma já acabada. Os espaços do MPLD tendem
a ser processos contínuos e a Escola de Teatro Político (ETP) participa
desse esforço na medida em que responde a algumas demandas do
movimento, como treinar os bombeiros-militantes para melhorar
seu trato à população ou a construção de peças sobre violência
doméstica para o coletivo feminista do movimento, mas também
formando seus alunos e alunas, recrutados principalmente fora do
movimento, como um modo de construir teatro que não obedecesse
às formas impostas em regime capitalista e com viés explicitamente
político.
Foi o exemplo dessa escola que impulsionou a criação da
ETP no Rio de Janeiro. Seus fundadores, Geo Britto e eu, Julian
Boal, sabiam que pelo fato do cenário político carioca ser totalmente
diferente, a escola do Rio não poderia ser a réplica da de Buenos Aires.
A primeira avaliação era que não havia algo parecido a Dignidad no
Rio, portanto a escola não poderia ser de um movimento e aberta
para aqueles que demonstrassem interesse por teatro político de
forma muito genérica. A escola teria que ser dos movimentos e
aberta somente para militantes. Em abril de 2017, a primeira turma
era composta de militantes do MST- Movimento Sem Terra, o
MTST-Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, do Rua-Juventude
Anticapitalista e do Levante Popular da Juventude. Todos os
movimentos tinham representação dentro da Coordenação Político-
Pedagógica da ETP, instância onde a direção da escola é elaborada.
O objetivo primeiro da escola, que permanece até hoje, era
de formar militantes para que pudessem voltar a seus movimentos a
fim de fortalecer a construção de seus coletivos de cultura próprios.
Outra diferença importante era que cada militante vinha
imbuído das práticas culturais de seus movimentos quando essas
existiam.
Muitas vezes tais práticas tendem a ser representações
muito idealizantes, em que sujeitos poderosos e perversos decidem,
por livre e espontânea vontade ou sede de ganância, oprimir
sujeitos heroicos e puros, cuja vitória é garantida em função de sua
Breve História da Escola de Teatro Popular 53

inquebrantável vontade ou pavimentada pelo sacrifício altruísta


que garantirá a vitória das futuras gerações. Essas representações,
herdeiras inconscientes do realismo-socialista, são as dominantes
hoje nos movimentos sociais e, segundo a avaliação da equipe
pedagógica, pouco contribuem para uma análise concreta da situação
que por si, já é concreta, assim como dos caminhos possíveis para
sua superação. Portanto, a Escola se posicionava como sendo feita
com os movimentos e para os movimentos, mas também, em certa
medida, contra os movimentos.

Figura 1: oficina na ETP no primeiro ano, foto Geo Britto.

A primeira parte do ano foi consagrada ao estudo das peças


do repertório do período mais fecundo da dramaturgia política
brasileira, que vai desde meados dos anos 1950 até o inicio dos anos
1970. Esse período via o teatro se afastar dos modelos do drama
burguês, onde sujeitos dotados de livre arbítrio fazem escolhas
baseadas em suas éticas pessoais sem serem atravessados em nada
por nenhuma dinâmica social e se via rumo ao teatro épico, onde
os personagens são dialeticamente sujeitos e objetos das forças
sociais que os condicionam e que, por sua vez, constroem. Esse
54 Ensino e Pesquisa em Artes

mesmo período via também a transformação do teatro de objeto de


consumo destinado ao lazer em instrumento de construção de forças
políticas que se oporiam à ditadura. A partir desse estudo realizamos
um espetáculo que chamamos de “Guerrilha Teatral”, expressão
usada por Augusto Boal em sua autobiografia para qualificar o que
foi a Feira Paulista de Opinião. Nessa peça, contávamos essa história
que começava com Eles não usam Black-tie, passava por Revolução
na América do Sul e pela Mais-Valia Vai Acabar, Seu Edgar, pelos
musicais do Arena para acabar com uma cena de teatro-jornal1 que
acabava com uma notícia daquele mesmo dia, a declaração do então
presidente Michel Temer para o dia 1º de Maio. A grande repressão
à greve geral que ocorrera poucos dias antes fez com que a sala
estivesse particularmente receptiva para o espetáculo, que se queria,
ao mesmo tempo, um processo didático sobre as diferentes formas
que o teatro político tinha assumido no Brasil.
Logo a seguir se iniciou o estudo de Brecht. Através do
dramaturgo alemão, o objetivo era aprender os modelos de construção
de cenas em que a ideologia dominante era combatida pelo uso da
dialética. O estudo do real enquanto constituído por contradições
dinâmicas virou o ponto central dessa etapa. O critério para a escolha
dos textos foi de buscar as obras em que o próprio trabalho militante
aparecia tematizado, assim, peças que normalmente não recebem
uma grande atenção como é o caso de Mãe, foram estudadas. No final
dessa etapa, pensamos que ensaiar textos do Brecht exigia um grau
de acúmulo que não tínhamos ainda alcançado. Preferimos então
organizar uma grande oficina de um dia inteiro, preferencialmente
aberta para os militantes de movimentos sociais, onde os alunos da
Escola conduziram exercícios baseados no uso da dialética no teatro.
A etapa seguinte começou na verdade devido a um
acontecimento político, a execução de Marielle Franco. A escola abriu
suas portas no dia 14 de abril para mais de 30 pessoas, participantes
ou não da escola, construírem em algumas horas cenas que foram
apresentadas tanto na concentração quanto ao longo do desfile. A
1 O leitor que já conhece o importantíssimo livro de Iná Camargo Costa, A hora do teatro
épico no Brasil, já adivinha o quanto nos foi útil sua leitura. Ele nos serviu de roteiro e nele
encontramos várias das análises formais que eram dadas ao público entre as cenas teatrais
propriamente ditas.
Breve História da Escola de Teatro Popular 55

escola fazia essas apresentações em qualquer lugar que juntasse gente


e que estivesse no percurso, na tentativa de dialogar com a população
de outra forma que somente através da marcha. Se, em algumas
apresentações sentimos reações negativas (comentários do tipo
“por que não falam dos policiais mortos?”, “Só falam da Marielle,
do Anderson ninguém fala”), na maioria dos casos sentimos que
fomos recebidos com atenção e simpatia nos lugares aonde nos
apresentamos. Mais importante ainda foi a emoção sentida por todos
e todas que construíram as cenas e as apresentaram.

Figura 2: apresentação na Marcha por Marielle, 14/04/2018, foto: Geo Britto.

A partir desse momento, a Escola sentiu necessidade de se


abrir mais, de atuar mais para o circuito do fora. A cena de teatro-
fórum “Questões de ocupação” sobre violência doméstica dentro
das ocupações foi atuada em diversos espaços, inclusive na própria
ocupação donde vieram as participantes que mais ajudaram a
conceber essa cena. Durante a campanha, seguindo o modelo feito
para marcar o mês da execução da Marielle Franco(cenas montadas
em um curto tempo para serem apresentadas em atos logo a seguir),
abrimos nossas portas vezes várias para acolher pessoas que queriam
56 Ensino e Pesquisa em Artes

se expressar através do teatro contra o avanço do autoritarismo em


ações chamadas “Teatro contra o Fascismo”.
Também criamos a Feira Carioca de Opinião, evento
pensado para homenagear os 50 anos da Feira paulista, mas também
para tentar juntar coletivos de teatro incomodados com a conjuntura
num processo que tinha por objetivo a criação de uma aliança entre
esses grupos. No total, 12 coletivos de teatro nos dois dias da Feira
para um público estimado em mais de 150 pessoas.

Figura 3: oficina na ocupação 6 de Abril do MTST, 28/07/2018.

Nesse terceiro ano que começa agora em 2019, o principal


objetivo é de uma formação em Teatro do Oprimido para que os
participantes possam desde o ano que vem começarem a multiplicar
em seus espaços. O grupo de participantes atual ainda está se
definindo. A primeira aula no dia 16 de março contou com membros
dos seguintes coletivos: RUA, Levante Popular da Juventude, MTST,
MNLM, UMP, Coletivo de Cultura da Zona Oeste, assim como
pessoas não organizadas (geralmente já com um acúmulo maior
sobre o teatro) que foram encontradas nos processos de Teatro
contra o Fascismo. Avaliamos que seria bom abrir a escola para
Breve História da Escola de Teatro Popular 57

não militantes por duas razões: a primeira é que “raiva boa é raiva
organizada”, do tipo de raiva que encontra um espaço para poder
se tornar produtiva, para organizar ações concretas contra o novo
regime que se desenha. Muitos dos atores e atrizes que encontramos
não tinham espaços de militância para se organizar e, portanto,
seus anseios de luta poderiam não ter ido além do evento da eleição
caso não tivéssemos aberto a escola para que nela participassem.
A segunda razão é que entendemos que nossa formação é bastante
rudimentar e só se complementará na prática.

Figura 4: participante da ETP preparando o estandarte para a manifestação contra a


reforma da previdência, 14/06/2019, foto Geo Britto.
58 Ensino e Pesquisa em Artes

Para essa prática de lidar com oficinas de teatro, imaginamos


proveitoso que os militantes dos movimentos que compõem a Escola
sejam acompanhados por pessoas com mais bagagem teatral.
Talvez aqui seja importante ressaltar que nosso uso do
Teatro do Oprimido (TO) já vem depois das experiências feitas por
outros movimentos sociais, principalmente do MST e, portanto,
beneficia-se do acúmulo desses movimentos também no que se
trata dos limites identificados por esses do TO. Nomeadamente,
tentamos fazer com que o Teatro-Fórum (TF) ultrapasse o limite de
ser um drama intersubjetivo para que ele possa abarcar com mais
precisão as contradições sociais que perpassam os sujeitos. Uma
representação “usual” de TF opõe um opressor a um oprimido num
confronto binário onde as motivações são sempre encontradas na
subjetividade dos personagens. Assim, a burocracia universitária
massacrante que torna difícil o ingresso de alunos egressos de meios
populares é reduzida à má vontade de um funcionário motivado
pelo seu racismo escancarado. O complexo problema da violência
doméstica e sua base social são “simplificados” nos termos de uma
relação nociva entre um homem e uma mulher. A crítica que se quer
corrosiva é na verdade bem branda: bastaria ter um funcionário
mais compreensivo para os problemas institucionais desaparecerem,
uma mulher resoluta sairia de casa fazendo com que a violência
cessasse. O uso feito pela ETP do TO e, mais especificamente, do
TF tenta conciliar a intervenção dos espectadores em cena com uma
apresentação que não elude que cada opressão somente existe graças
a um quadro social mais amplo que sobredetermina parcialmente
seus agentes e vítimas.
A ETP também está abrindo uma nova frente para seus
participantes mais antigos ou que possuem maior bagagem teatral.
Com 8 membros da Escola divididos em 4 duplas, formaremos 4
grupos em distintas unidades do + Nós (Caxias, Complexo do
Alemão, IFCS e São Gonçalo). Essa etapa corresponde a uma virada
estratégica da Escola, que já não considera que a formação que dá
em seus espaços próprios seja suficiente, e que essa formação tem
que ser completada por um acompanhamento dos seus participantes
que estejam prontos a se tornarem monitores. Essa virada tem um
Breve História da Escola de Teatro Popular 59

objetivo triplo:

1) Criar espaços em que jovens dos bairros populares possam


exercer seu espírito crítico na construção de cenas sobre sua própria
realidade.

2) A maior aproximação entre jovens e movimentos sociais: muitas


vezes esses jovens frequentam espaços criados por movimentos
sociais, como os pré-vestibulares, sem se identificarem muito
com eles. A ideia seria que as peças criadas circulassem dentro
dos espaços militantes (acampamentos, encontros, etc.) para aí
apresentarem suas visões de mundo e se confrontarem ao que é um
movimento social para além das aulas que recebem. A ideia é que o
projeto possa ter um saldo organizativo positivo para o movimento
social, no caso o RUA. A perspectiva daqui a dois anos seria de ter
no mínimo quatro grupos de teatro constituídos, pessoas que vão
estar construindo coletivamente e de forma política com o RUA
(através do debate sobre a estética, o teatro), pessoas que podem ser
ganhas pelos movimentos e grupos que vão fazer com que se possa
ter com mais frequência grupos de teatro se apresentando e criando
intervenções contra os governos, contra o capitalismo/machismo/
racismo nas ruas e nos territórios, dando capilaridade para as
intervenções políticas do RUA dentro de uma temporalidade mais
estendida que a da preparação para o vestibular.

3) Requalificar a cultura enquanto instrumento potente para a luta


política das massas. Longe de ser unicamente um apetrecho lúdico
das festas, a cultura tem a capacidade de ser ferramenta de formação
e de organização popular. Essa lição que foi dada por movimentos
do passado como o Movimento de Cultura Popular, os Centros
Populares de Cultura, as Comunidades Eclesiásticas de Base e, numa
proporção menor, mas igualmente interessante, pelo mandato de
Augusto Boal, precisa ser reaprendida urgentemente. A ETP aposta
nesse projeto como num plano-piloto capaz de demonstrar pela
prática da potencialidade de uma arte crítica enquanto instrumento
para as lutas. Vimos que muitos militantes formados pela ETP não
60 Ensino e Pesquisa em Artes

tem aonde “retornar” posto a inexistência de coletivos de cultura em


seus movimentos. Portanto, sentimos a necessidade de dar um passo
à frente para demonstrar pela prática.

Figura 5: primeira oficina no + Nós do IFCS, 15/05/2019.

São muitos os nossos desafios. Os participantes vêm, na


maioria dos casos, da parte menos afortunada da classe trabalhadora.
São moradores de ocupações que às vezes chegam a fazer 6h de
transporte para poder assistir às 5h de aula, estudantes que combinam
seus estudos com o trabalho e com a militância, habitantes de bairros
populares por vezes impedidos de assistirem às nossas aulas por
causa de confrontos nas áreas onde moram. Os poucos recursos da
ETP mal conseguem contribuir para o transporte de alguns e esses
recursos têm os dias contados por fazerem parte de um projeto que
se acabará em fins de 2019, se tudo ocorrer normalmente. A nossa
pedagogia tem como tarefa tanto contemplar aqueles que vêm
regularmente, quanto aqueles que não podem assistir ao curso com
tanta regularidade. Também são muito diferentes os acúmulos entre
Breve História da Escola de Teatro Popular 61

os participantes, um reflexo da disparidade existente na própria


classe trabalhadora. As formas de aprender divergem e nós nos
esforçamos para contemplar a todos sem ter realmente como saber o
quanto logramos. Outra dificuldade é a de que várias sensibilidades e
práticas políticas coabitam dentro da ETP. Militantes de movimentos
da juventude que se confrontam nas eleições em suas universidades
ensaiam cenas juntos durante as aulas, os diferentes movimentos
de ocupação que compõem a escola não têm a mesma análise da
conjuntura, nem edificam o mesmo arco de alianças. A ETP também
é isso, um espaço aonde militantes de diferentes organizações
constroem uma união pela base e pela prática (de teatro, mas
esperamos que a dinâmica ali instaurada não se limite à cena). Como
manter o equilíbrio entre não desarmar qualquer debate e não deixar
a conflitualidade inerente à própria política se tornar tamanha a
ponto de inviabilizar a ETP como existe hoje? Sabemos que nesse
cenário é mais que provável que as tendências autoritárias que todos
podemos ver se acentuem na medida em que as políticas econômicas
atuais mostrem seu potencial de destruição do que ainda restou de
bens comuns aqui no Brasil, ao mesmo tempo em que a miséria e o
descontentamento aumentem.
Pouco se falou nas páginas que antecederam sobre o por
quê usar o teatro. São vários os motivos. Existe um real interesse
na periferia por teatro, interesse que não é contemplado, deixando,
assim, espaço aberto para os movimentos que queiram utilizar esse
desejo genuíno como forma de dialogar com a população. O teatro
é uma forma que muito rapidamente pode se exercer pela prática,
uma crítica da divisão social do trabalho; seu modo de fabricação
mais artesanal permite uma criação coletiva onde cada um assume
vários papeis e, portanto, participa de um processo potencialmente
mais rico e distante das disposições exclusivas ao qual o regime da
mercadoria nos submete. Essa construção coletiva, quando o tema
é a vida mesmo das pessoas que participam da oficina, tem alto
grau reflexivo e ajuda então na melhor compreensão do real à nossa
volta. Ainda há outros motivos para se fazer teatro. Um deles, talvez
não o menor, seja o de poder mostrar, no âmbito da arte, que “se
a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence”. Isso quer
62 Ensino e Pesquisa em Artes

dizer que a arte também nos pertence. Pertencer aqui não significa
dizer que somos donos dela, que podemos vendê-la, no atacado ou
aos pedacinhos. Que a arte nos pertence, significa que somos nós
que podemos torná-la melhor. Se a produção pertencesse, de fato, à
classe trabalhadora, ela não seria caótica e destrutiva como de fato
ela é hoje, a ponto de não sabermos se haverá amanhã. Ela seria
harmoniosa, capaz de dar mais sentido ao mundo e a cada pessoa que
faz parte dele. Se a cultura fosse nossa, de fato, todos os problemas,
toda a tacanhez que vemos nos palcos pequeno-burgueses (política
ou socialmente) desapareceria. Nós somos aqueles que podem
tornar a cultura melhor. Todas nossas dificuldades, nossa falta de
tempo, nossa falta de acúmulo, são, nos nossos melhores momentos,
o espelho da dificuldade da classe trabalhadora de se apoderar do
mundo. Nós somos os débeis e magníficos portadores do amanhã.
E por isso, apesar de todos nossos problemas, de todas nossas
dificuldades, a ETP tem um sentido tão forte. E se fizermos bonito,
seremos a prova de que é possível se sobrepor a essas dificuldades,
que é possível sim que, tomando os termos de Benjamin, algo de
novo e belo surja “com a sobriedade de um amanhecer”.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 63

5
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em
Comunidade e Teatro na Escola

Rafael Litvin Villas Bôas


Wellington de Oliveira

Os espaços em que a linguagem teatral é trabalhada são


mais amplos que as salas de encenação dos teatros profissionais.
Espaços escolares, comunitários ou de organizações sociais também
se configuram como potenciais espaços teatrais em que as dimensões
de ensino, pesquisa e atuação se manifestam com grade vigor criativo.
Portanto, neste capítulo propomos analisar o lugar que o teatro em
comunidade e o teatro na escola ocupam na historiografia do teatro
brasileiro, identificando campos de pesquisa produtivos, como a
interface entre o teatro político e o teatro em comunidade, e a forma
como a construção de redes potencializa o intercâmbio, a criação e a
circulação das experiências coletivas desenvolvidas.
A despeito da narrativa sobre o teatro nacional ter tomado
como centro a produção de dois estados da região sudeste do país
– São Paulo e Rio de Janeiro –, a vida teatral se fez presente em
diversos estados da federação, em capitais e cidades do interior. As
histórias que tangenciam o cânone começam a ser documentadas
e publicadas na medida em que se multiplicam as universidades e
institutos federais de educação pelo interior do país, o que faz com
que as culturas artísticas e políticas, locais e tradicionais, passem a
ser tomadas como objetos de análise em diversos cursos.
Outro traço marcante da historiografia sobre o teatro brasileiro
é a centralidade conferida à dramaturgia, ao texto teatral, como
principal elemento dos processos de trabalho. Talvez pela facilidade
de registro, num momento anterior ao barateamento das tecnologias
dos aparelhos fotográficos e, sobretudo, audiovisuais. Por essa via
64 Ensino e Pesquisa em Artes

de abordagem, são secundarizados os processos metodológicos


e os desenvolvimentos formais da linguagem teatral, emergentes
de grupos de teatro em comunidades e/ou de espaços escolares,
desconsiderando a quantidade e qualidade dessas experiências.

Elementos da trajetória da cena teatral do Distrito Federal

A cena teatral do Distrito Federal é reconhecida por uma


trajetória histórica bastante alinhada com as questões sociais e
políticas do seu tempo, além de ter sido bastante impulsionada
por grupos teatrais amadores e estudantis. Antecedendo a própria
construção da cidade, há registro de encenações que surgiam nos
canteiros de obras, a exemplo da peça Os Pioneiros (1959), em que
trabalhadores se baseavam em cordéis e autos de natal para falar
sobre a grande realização que seria a construção da capital. De
acordo com Celso Araújo “a peça foi apresentada no Teatro da Rádio
Nacional, no início da Asa Sul, em que também havia shows e sessões
de cinema” (Araújo, 2012, p.184). Pouco depois, no ano de 1960,
o Teatro de Estudantes de Brasília, dirigido por Maria José Braga
Ribeiro, estreia no Clube de Teatro do Colégio Elefante Branco uma
das primeiras produções locais. Segundo Araújo: “Para o ator Murilo
Eckhardt, esse é de fato o primeiro grupo de teatro da cidade e um
bom público compareceu à primeira peça montada, uma adaptação
de A revolução dos brinquedos, de Pernambuco de Oliveira e Pedro
de Veiga” (Op. Cit., 2012, p.185).
Também foi no âmbito do teatro escolar e de grupos teatrais
amadores que Sylvia Orthof e o grupo TEMA1 em plena ditadura
militar, levaram ao público uma das peças mais representativas
do teatro brasiliense, na década de 1960, Cristo x Bomba (1968),
premiada no V Festival Nacional de Teatro de Estudantes do Rio
de Janeiro. Repleta de provocações políticas e desafiando o público
a renunciar as atitudes de passividade diante do palco, assim como

1 O grupo TEMA – Teatro de Máscaras do Ciem - teve origem no Centro Integrado de Ensino
Médio (CIEM), escola de aplicação das propostas pedagógicas que eram desenvolvidas na
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e que teve um curto período de
funcionamento, em decorrência do Golpe de 1964 e dos sucessórios acontecimentos que
promoveram o desmonte da estrutura universitária.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 65

no teatro dialético e didático de Brecht, Cristo x Bomba reafirma a


potência das experiências teatrais realizadas com jovens estudantes
nas primeiras décadas da capital, recebendo, inclusive, convites do
Grupo Opinião e do Teatro Arena para apresentar o espetáculo no
Rio de Janeiro. A importância deste trabalho teatral, para além de
um olhar focado na profissionalização dos artistas da cidade e de
um primeiro passo para a nacionalização do teatro brasiliense, reside
também no caráter político, social e comunitário que permeou as
montagens teatrais dirigidas pela professora e diretora Sylvia Orthof.
Sobre a constatação destas dimensões políticas e sociais, Glauber
Coradesqui, ao referir-se à montagem do texto Morte e Vida
Severina, de João Cabral de Melo Neto, dirigida por Orthof em
1970, na oficina de teatro do SESI Taguatinga, sugere que ao montar
o espetáculo com “não-atores” a diretora cria uma outra “camada
de sentido muito potente para o contexto da época e ainda presente
nos dias de hoje: de que maneira a constituição de Brasília absorveu
os candangos que vieram erguer suas catedrais?” (Coradesqui,
2012, p.33). Essa “camada de sentido”, mencionada pelo autor, se
relaciona ao fato de o texto Morte e Vida Severina recontar a saga
de um retirante nordestino em busca de melhores condições de
vida no litoral, constituindo uma contundente crítica social sobre
as desigualdades de classe, a luta pela terra e a ação dos sistemas de
dominação capitalistas e autoritários. Assim, levar para o palco um
grupo de pessoas em contextos tão próximos aos tratados no texto
teatral, neste caso os operários e filhos de operários da construção
da capital federal, confirma que os sentidos agenciados em cena
também estão relacionados aos modos organizativos e às formas
como se estruturam os processos de criação, cujo potencial político se
amplia a partir da relação das presenças humanas com os conteúdos
colocados em cena.
Podemos detalhar diversos outros artistas e educadores
envolvidos na construção da história do teatro brasiliense, mas nossa
intenção é olhar estes primeiros registros históricos buscando um
reconhecimento de que as bases que sustentaram o desenvolvimento
do teatro da cidade estão diretamente relacionadas ao teatro
estudantil e ao trabalho de artistas/professores que se expande para
66 Ensino e Pesquisa em Artes

além dos muros da escola. As publicações existentes, até então,


destacam a história com um olhar muito focado no âmbito teatral
considerado profissional e a partir de espetáculos considerados
emblemáticos, não colocando em cena uma diversidade de projetos
teatrais que ocorrem fora dos circuitos oficiais e o trabalho de muitos
profissionais que atuam nas escolas e em comunidades.
Se há uma afirmação que podemos fazer é a de que a
formação de grande parte dos artistas do Distrito Federal teve suas
origens no contexto escolar ou em oficinas abertas à comunidade,
desenvolvidas por artistas e professores pouco referenciados na
história do teatro de Brasília. Desse modo, a intenção deste capítulo
é apresentar alguns percursos de análises de experiências – sob a
forma de pesquisas desenvolvidas no Mestrado Profissional em Artes
da UnB – e abordagens metodológicas desenvolvidas por coletivos
teatrais em contextos escolares e comunitários do Distrito Federal,
enfatizando as potencialidades das articulações entre teatro, escola
e comunidade, para caracterizar um campo de pesquisa e ação que
tem se mostrado cada vez mais latente na cidade.

O campo da pesquisa em Teatro em Comunidade no Brasil

Nas últimas duas décadas, presenciamos um aumento


expressivo de coletivos teatrais nos mais diversos contextos
comunitários, o envolvimento de grupos sociais em projetos
realizados por organizações da sociedade civil e por espaços culturais
vinculados ao poder público, colocando em cena outros protagonistas
e ampliando as possibilidades para que variados segmentos da
população tenham acesso à produção e apreciação teatral. Esta
diversificação de contextos e as potencialidades dos trabalhos teatrais
realizados, principalmente em locais em que os equipamentos
públicos não chegam, passou a demandar atenção das universidades
e dos pesquisadores no âmbito da Pedagogia do Teatro, sobretudo
pelo alcance das intervenções na vida social das comunidades e da
constatação de processos de pesquisa e experimentação artística
que, de modos peculiares, mostravam-se tão complexos quanto aos
realizados pelos artistas ditos profissionais.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 67

Em sintonia com esta nova realidade de democratização do


teatro e ampliação de espaços de intervenção teatral, foram surgindo
publicações acadêmicas e tentativas de buscar nomenclaturas para
definir este campo tão abrangente e plural, além de se organizar
seminários de debate sobre o tema. Em 2008, por exemplo, ocorreu na
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) o 1º Seminário
Teatro e Comunidade: interações, dilemas e possibilidades, reunindo
pesquisadores do Brasil e exterior, em resposta a uma necessidade
de levar para a academia a reflexão sobre as práticas teatrais em
comunidades. O empenho para ampliação bibliográfica e integração
de profissionais que atuam nestas áreas, entre outros envolvidos,
configurou um campo de ensino, pesquisa e extensão universitária,
aqui denominado “Teatro em Comunidade”, que está em crescente
desenvolvimento e consolidação no interior da Pedagogia do Teatro.
Amplamente utilizado pela professora Marcia Pompeo Nogueira
(2015), no contexto brasileiro, a denominação teatro em
comunidade não se refere a um tipo específico de teatro que é feito
em comunidades, mas a diversas formas teatrais que acontecem
em contextos comunitários, abrangendo variadas instâncias de
interação entre artistas e comunidades. Para mencionar abordagens
semelhantes, em várias partes do mundo encontramos terminologias
como Applied Theatre (Prentki, 2009), Community Theatre
(Kershaw, 1992) e Community-based performance (Cohen-Cruz,
2005), fator que indica uma diversidade de abordagens e questões
conceituais, adquirindo diferentes formatos, ligações institucionais e
finalidades.
Entretanto, embora sejam diversas as terminologias utilizadas,
compreendemos que a denominação “Teatro em Comunidade”
possui ampla abrangência e congrega as convergências de todas
estas definições específicas, ou seja, refere-se a práticas teatrais que
envolvem em alguma medida a participação de pessoas, histórias
de vida, ligações com os territórios, engajamento em causas sociais
e culturais de grupos específicos, além de um compromisso com o
caráter coletivo dos processos de criação2.
2 Nogueira (2009) destaca três categorias do teatro em comunidade: teatro para comunidades
– onde atores apresentam um espetáculo teatral sem conhecer a realidade da comunidade;
Teatro com comunidades – modelo em que atores investigam uma comunidade para criar
68 Ensino e Pesquisa em Artes

O olhar da academia, mesmo diante das tensões


institucionais e dos riscos de reprodução de relações colonizadoras
do conhecimento, tem aprofundado de modo exponencial a
problematização acerca destas práticas teatrais, relacionando-as
com processos educativos e refletindo sobre as condições que os
qualificam como emancipadores ou não. Assim, busca se estabelecer
como espaço significativo de formação de professores, artistas e
pesquisadores comprometidos com a reflexão sobre os aspectos
éticos e estéticos do teatro em comunidades, gerando pesquisas em
teatro-educação fortemente conectadas com as esferas culturais e
sociais, a priori de simplesmente atribuir a nomenclatura de teatro
em comunidade.
É notória a influência da pedagogia de Paulo Freire e das
abordagens do Teatro do Oprimido, sistematizadas por Augusto
Boal, na maior parte dos estudos do teatro em comunidades no
mundo inteiro, fato que indica um empenho reflexivo em torno do
compromisso de tais práticas com os sujeitos envolvidos, criando
condições para uma participação ativa e deliberativa nos processos
de criação. O princípio freiriano da dialogicidade como essência de
uma educação libertadora apoia muitas destas reflexões, destacando
a importância das referidas práticas teatrais estarem constantemente
envolvidas pelas dimensões da ação e da reflexão. Portanto, somos
implicados ao reconhecimento de que as palavras, discursos e
adjetivos utilizados não são suficientes para a qualificação deste modo
de fazer e pensar teatro se não estiverem radicalmente integrados à
ação, ou seja, se não constituírem uma práxis.
No seguimento das perspectivas mencionadas, a ação-
reflexão se constitui como princípio prático do trabalho teatral e
busca coletiva do direito de dizer as palavras e pronunciar o mundo,
convocando os cidadãos a assumirem o papel de sujeitos e não de
meros objetos dos processos criativos. De acordo com Freire, é
justamente no exercício dialético de ação-reflexão que os sujeitos
encontram as possibilidades de compreensão dos fatores históricos
que interferem nas circunstâncias sociais, identificando as estruturas
de dominação e reconhecendo-as como construções passíveis de
um trabalho teatral; e o teatro por comunidades – que inclui as próprias pessoas da comunidade
no processo de criação teatral.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 69

transformação. Assim, “ao alcançarem, na reflexão e na ação em


comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores
permanentes” (Freire, 2014, p.78), como sujeitos históricos capazes
de pronunciar o mundo e modificá-lo constantemente.
O potencial transformador do teatro em comunidades reside,
portanto, no ato de colocar em primeiro plano os sujeitos envolvidos
no processo teatral, garantindo espaços democráticos de autoria das
formas e dos conteúdos artísticos, constituindo assim um exercício
crítico e participativo situado em dimensões semelhantes a dos
processos simbólicos de construção social e cultural. Neste sentido,
não podemos deixar de mencionar as contribuições de Augusto Boal
com o Teatro do Oprimido, ao destacar a necessidade de incluir as
próprias pessoas nos processos de criação. Segundo ele, a atitude de
socializar os meios da produção teatral, em contraposição a um teatro
que impõe uma forma estética ou uma visão particular de mundo,
contribui para a restituição das capacidades de ação daqueles a quem
o teatro sempre se habituou a impor visões acabadas de mundo (Boal,
2013).
A atitude política de Boal, também fundada nos princípios
da dialogicidade, reestabelece as possibilidades de os sujeitos
produzirem suas próprias representações, em contraposição às
imposições das classes dominantes que monopolizam os canais de
comunicação e erguem os muros da opressão. Desse modo, temos
um teatro que nos desafia a interromper as narrativas que tendem
ao conformismo, buscando alternativas éticas e solidárias, além
de convocar a transformação de ideias em atos sociais concretos
e continuados. Estes referenciais, entre tantos outros que também
poderíamos citar, indicam algumas pistas sobre as abordagens que
orientam o teatro em comunidade como campo de ensino, pesquisa
e extensão universitária. Sem dúvidas, um campo que tem muito a
contribuir com a ampliação da Pedagogia do Teatro e com a formação
de professores, dado que os processos de criação com comunidades,
inclusive pelo caráter dialógico, frequentemente são baseados na
pesquisa-ação.
70 Ensino e Pesquisa em Artes

Diálogo entre o Teatro em Comunidade e a tradição do Teatro


Político

A categoria “Teatro Político” é anterior a de “Teatro em


Comunidade” e com ela guarda fortes semelhanças, sobretudo pelas
referências comuns, como a produção teórica e metodológica de
Augusto Boal e a proposta do Teatro do Oprimido, que recupera
e ressignifica diversas formas do teatro de agitação à propaganda
(agitprop) que foram vigentes em outros contextos e países, como o
Teatro Jornal na União Soviética e o Teatro Invisível na Alemanha da
década de 1930.
Teatro Político é uma expressão alçada à condição de conceito
por Erwin Piscator, encenador e diretor alemão, que buscou nos
processos coletivos em que esteve engajado construir uma proposta
que incorporasse os procedimentos narrativos possibilitados por
tecnologias como a projeção de imagens cinematográficas na cena, e
pelo uso de cenários de complexa engenharia, com diversos planos
e engrenagens. Piscator buscou aproximar o teatro das questões do
modo de vida e dos interesses cruciais de seu tempo histórico, se
distanciando dos procedimentos ilusionísticos da carpintaria do
drama moderno.
Na sequência da tradição piscatoriana, o dramaturgo,
diretor e encenador alemão Bertolt Brecht construiu as propostas
do teatro épico, em contraponto, e em perspectiva de superação
dialética dos limites identificados no teatro dramático, trabalhando
posteriormente com a concepção de teatro dialético. O efeito de
distanciamento, ou estranhamento, foi criado naquele contexto e
muitos procedimentos épicos narrativos foram desenvolvidos e ou
sistematizados no período.
No decorrer do século XX, muitos procedimentos forjados
com intuitos emancipatórios foram assimilados e mercantilizados,
como despojos de guerra, incorporados na vitrine como relíquias do
passado. Todavia, apesar de assistirmos na abertura de telejornais e
em vídeos publicitários a banalização de procedimentos do teatro
político, criados com objetivos anti-ilusionistas, essa mercantilização
que transforma as descobertas em meros estilos estéticos não
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 71

suprime a força do uso de procedimentos de teatro épico e dialético


nos trabalhos desenvolvidos pelas companhias no contato direto
com a população.
Desse modo, seja em sala de aula, em escolas, universidades
e institutos, seja em espaços comunitários, como casas de cultura,
sindicatos e centros de formação dos movimentos sociais, o contato
direto do trabalho estético do coletivo com o público, proporcionado
pela linguagem teatral, permite que as estruturas que configuram
a ilusão dos padrões hegemônicos de representação da realidade
sejam decompostas, tornando os procedimentos de manipulação
reconhecíveis e criticáveis. De tal forma que o teatro, ainda que
numa escala infinitamente menor que o raio de abrangência dos
meios televisivos e radiofônicos das empresas privadas, permanece
como linguagem, como meio de comunicação e como estrutura
formal, um espaço de resistência e crítica à pasteurização reificada
da realidade, promovida sistematicamente pela Indústria Cultural.
Por essa perspectiva, o Teatro Político contemporâneo não
se define por procedimentos estilizados, não se caracteriza por uma
ou outra opção estética, mas, sobretudo, pelas seguintes dimensões:
por meio da relação produtiva que estabelece entre o conteúdo
abordado, ou a matéria social, e a forma teatral trabalhada pelo
coletivo, buscando a melhor eficácia estética e política no contato
estabelecido com o público; por meio da relação estabelecida com a
plateia, superando a relação mercantil que define o espectador como
consumidor; buscando maior qualidade política no diálogo com
públicos organizados social, cultural e politicamente, interessados
não apenas no acesso aos bens culturais, mas também na apropriação
dos meios de produção dos bens simbólicos, para que exerçam o
direito de atuarem como comunicadores e produtores de cultura
- o que qualifica a própria condição de consumidores das formas
estéticas.
A qualidade dessa relação almejada pelos coletivos de teatro
político contemporâneo passa pelo desafio da construção de uma
cultura política participativa, indo além dos limites impostos pela
democracia representativa. Os coletivos passam a assumir para si
tarefas pedagógicas, como a ação de informar, formar, organizar e
72 Ensino e Pesquisa em Artes

articular em conjunto com as forças políticas existentes (movimentos


sociais, sindicatos, casas de cultura, etc.). Por isso, passa a ser cada
vez mais comum, nos coletivos, o empenho na construção de
boletins informativos (Figuras 1 e 2) e a busca pela construção de
redes de produção e circulação teatral que garantam aos grupos
experiências de intercâmbio, aprendizado recíproco, luta social e,
principalmente, construção compartilhada da estratégia política de
ação. São estratégias, portanto, que apontam uma intenção conjunta
de reconstrução de um movimento progressista e emancipatório
ampliado, com a elevação da cultura política de participação das
pessoas e das organizações que fazem parte.

Figura 1: Boletim da Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do DF, diagramado pela
professora Simone Menezes Rosa, integrante da coordenação da escola e do Coletivo Terra
em Cena.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 73

Figura 2: Boletim nº 01 da Cia Burlesca, companhia do Distrito Federal, de fevereiro de


2018. Esse coletivo integra a coordenação da Escola de Teatro Político e Vídeo Popular do
DF.
74 Ensino e Pesquisa em Artes

O Mestrado Profissional em Artes – ProfArtes: interfaces entre o


Teatro Político, o Teatro em Comunidade e o Teatro na Escola

Em 2014, teve início a primeira turma do Mestrado


Profissional em Artes (ProfArtes) da Universidade de Brasília, curso
de pós-graduação strictu sensu destinado à formação continuada
de professores da Educação Básica pública, cuja proposta se
alinha ao debate sobre o papel do ensino da arte na escola e na
comunidade. Um espaço para que diversos artistas-professores se
tornem, também, pesquisadores, colocando em pauta suas práticas,
documentando os seus processos artísticos e metodológicos, além
de promover o encontro de diversos profissionais que, muitas vezes,
não estão em contato ou proximidade geográfica. O programa existe
atualmente em onze universidades públicas brasileiras, sendo nove
delas federais e duas estaduais. O curso tem estrutura semipresencial
com oferta de duas disciplinas de fundamentação à distância, três
disciplinas obrigatórias e as três optativas, além da realização de
trabalho de conclusão orientado de forma presencial. Os docentes
do Profartes se dividem em duas linhas de pesquisa: processos de
ensino, aprendizagem e criação em artes; e abordagens teórico-
metodológicas das práticas docentes.
Abriu-se, então, um espaço propício à incursão de diversos
trabalhos artísticos e coletivos teatrais nos debates acadêmicos,
ampliando as possibilidades de visibilidade das experiências
realizadas em diversas cidades satélites e, arriscamos dizer, gerando
materiais que possibilitam a escritura de uma história do teatro no
DF com um olhar privilegiado para as práticas de teatro nas escolas
e em comunidades. As dissertações defendidas pelas duas turmas
já formadas pelo ProfArtes confirmam a dedicação de inúmeros
professores e artistas que atuam não só no interior das escolas,
mas que ampliam seus projetos gerando vínculos profundamente
comunitários e apresentando um campo possível de alternativas de
circulação e produção teatral ainda pouco incentivado na capital
federal.
Consideramos, portanto, que seria bastante limitado
abordarmos as práticas empreendidas por estes artistas e professores
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 75

a partir de uma perspectiva centrada apenas no âmbito da educação


escolar formal, pois muitos projetos se desdobram das salas de aula
e ganham um alcance extracurricular que ultrapassa os limites da
comunidade escolar e passa a intervir na vida social dos cidadãos.
Portanto, se pudermos falar de um campo de pesquisa capaz de
agregar toda essa diversidade de projetos de teatro-educação do DF,
precisamos ampliar o foco dos nossos estudos para contemplar as
práticas que não se restringem aos muros escolares e que, muitas
vezes, buscam outros espaços comunitários devido às múltiplas
limitações institucionais.
Cabe mencionar que esta não é uma característica restrita
ao Distrito Federal, como bem destaca a professora Maria Lucia de
Barros Pupo, no artigo “Dentro ou fora da escola?”, ao tratar dos
modos como as múltiplas iniciativas teatrais em espaços de educação
não escolar repercutiram no curso de Licenciatura em Artes Cênicas
oferecido pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade
de São Paulo. Conforme a referida professora, “antigos papéis
cristalizados se embaralham, dando origem a vínculos inesperados
entre o fazer artístico e a preocupação com a cidadania” (Pupo, 2008,
p.57), originando processos de conhecimento que envolve pessoas
na qualidade de atuantes ou espectadores e que se insere “em uma
noção ampla de educação, baseada no princípio de que as ações
interativas entre os indivíduos promovem a construção de saberes”
(Pupo, 2008, p.55-56).
Em consonância com essas dinâmicas do fazer teatral, a
ampliação dos focos de atenção da Pedagogia do Teatro, referente
aos estudos das relações entre teatro e educação não restritos aos
espaços escolares, confirma-se pela própria proposta do ProfArtes ao
agregar a reflexão sobre práticas artísticas escolares e comunitárias.
No escopo destes estudos, o “Teatro em Comunidade” se configura
como um enquadramento em crescente debate e construção no
âmbito acadêmico, e como campo de pesquisa no qual podemos
incluir as práticas de muitos coletivos teatrais e de professores da
rede pública de educação Distrito Federal.
Vale mencionar, por exemplo, os trabalhos desenvolvidos
por alguns dos professores, artistas e pesquisadores no âmbito do
76 Ensino e Pesquisa em Artes

Mestrado Profissional em Artes da UnB, caracterizados pela forte


presença nas comunidades em que atuam, pelo desenvolvimento
de metodologias próprias de trabalho e por um deslocamento das
perspectivas que centralizam a produção cultural e a circulação das
produções artísticas apenas nos grandes centros urbanos. Além disso,
são trabalhos que representam significativas contribuições para o
debate e construção de uma história do teatro político, estudantil
e comunitário no Distrito Federal, tanto pelo reconhecimento
das comunidades quanto pelo fato de estarem documentados nas
dissertações e trabalhos acadêmicos, constituindo importantes
materiais que convocam um olhar das instituições universitárias,
educacionais e culturais para a estruturação de políticas públicas
capazes de abranger as especificidades deste tipo de produção teatral
no Distrito Federal.
Uma experiência representativa de um grupo de teatro com
ampla trajetória e construção comunitária, surgiu em 2007 na Região
Administrativa do Gama, cuja história, processos e metodologias de
trabalho são descritos e analisados na dissertação de mestrado do
professor Valdeci Moreira de Souza, intitulada “Espaço Semente: o
teatro comunitário como agente transformador na periferia” (Souza,
2018). O Coletivo Semente é fruto de uma ação política de ocupação
da antiga Casa do Artesão, situada ao lado da rodoviária do Gama,
dando origem a um dos mais importantes espaços culturais da
cidade – o Espaço Semente. O espaço, abandonado e degradado,
foi transformado em “caixa preta”, com equipamentos de som e
iluminação cênica, além da instalação de arquibancadas em formato
de arena octogonal.
Com ações de engajamento e criação de redes de intercâmbio
artístico características do teatro em comunidade, o grupo foi
composto por estudantes da escola pública em que o professor
Valdeci Moreira ministra aulas de Arte e por outras pessoas que
realizaram oficinas abertas à comunidade no Espaço Semente, este
transformado em centro cultural para receber outros grupos teatrais
e musicais do DF para apresentações e oficinas, além de promover as
próprias formações, realizar os ensaios e apresentações do grupo.
A literatura brasileira é fonte de inspiração para várias
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 77

montagens do coletivo, como visto na recente versão adaptada do


romance Macunaíma, de Mário de Andrade, em que a cultura e
as matrizes das religiões afrodescendentes foram assimiladas na
melodia, na instrumentação musical e, de forma mais geral, na estética
do espetáculo, que também se inspira no teatro farsesco e em formas
da agitação e propaganda. Um exemplo é a cena final do espetáculo,
em que o livro da Constituição Brasileira é rasgado e mastigado pelo
personagem Macunaíma, num contexto em que o meio cultural se
manifestava em uníssono contra o golpe parlamentar-midiático-
jurídico que retirou do poder a presidenta Dilma Roussef e contra o
avanço exponencial do neofascismo no Brasil.
Em outro contexto educativo e comunitário, a dissertação
de mestrado do professor Adriano Duarte Araújo, intitulada “Alice
no CEF 316 e o que ela encontrou por lá: a história de uma escola
por meio do teatro” (Araujo, 2018), reflete sobre um trabalho que
tem como sede de ensaios e local de encontro uma escola pública,
culminando na criação e consolidação do Grupo Estudantil do
Centro de Ensino Fundamental 316 de Santa Maria (GET CEF
316). Trata-se, portanto, de um grupo que surgiu no interior de uma
instituição escolar a partir de um projeto integrado da escola CEF
316, em que o grupo de professores optou trabalhar com a obra Alice
no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.
O projeto também foi desenvolvido no período conturbado
da história recente do país, que culminou no impeachment da
presidenta Dilma Roussef, algo que levou o grupo a estabelecer
elos da obra com a realidade e com os fatos políticos presentes,
construindo uma narrativa em forma de Teatro Procissão, em que
todo o espaço da escola se tornou o palco da apresentação em
movimento. A obra de ficção fantástica passou a ser trabalhada
por meio de recursos alegóricos e metafóricos, como prisma
de abordagem sobre as manobras arbitrárias e ilegítimas que
desencadearam a queda da primeira presidenta eleita no país. No
espetáculo, a cena do julgamento de Alice faz alusão indireta ao
julgamento da presidenta Dilma e remete ao público o poder de
julgar se ela deve ser considerada culpada ou inocente. A história
da montagem desta peça e a dinâmica de circulação da mesma
78 Ensino e Pesquisa em Artes

em eventos na capital paulista, em Uberlândia e em atividades na


UnB – II Colóquio do Mestrado Profissional em Artes da UnB e III
Mostra Terra em Cena e na Tela, no campus de Planaltina da UnB,
em 2018 – constituiu o objeto da dissertação defendida por Duarte
no ProfArtes. Atualmente o elenco tem a maioria de integrantes
formados por estudantes do Ensino Médio, egressos do CEF 316, e
está circulando com a segunda montagem, uma adaptação de Romeu
& Julieta.
Há três características presentes nas duas montagens do
grupo: o trabalho de adaptação com obras literárias conhecidas –
Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll e Romeu & Julieta,
de Shakespeare – o trabalho de encenação por meio dos recursos da
dança e música, com ênfase nas coreografias, e o trabalho com coros
como forma de interpretar coletivamente o texto teatral.
Ainda no sentido de ampliar as perspectivas de atuação dos
professores, artistas e pesquisadores, outro trabalho que demonstra
a pluralidade das experiências teatrais presentes nas pesquisas do
ProfArtes é a dissertação intitulada Cidade: território de experiência
do teatro em comunidade (Oliveira, 2016), elaborada pelo artista e
professor Wellington de Oliveira, que integrou a primeira turma do
referido programa de pós-graduação. Ressaltando a importância
da pesquisa-ação no contexto de pesquisa com comunidades, o
trabalho relata uma experiência realizada pelo Coletivo Ateliê Aberto,
integrado por estudantes de diversas escolas da região de Planaltina/
DF e por moradores da comunidade do Vale do Amanhecer.
O grupo surgiu em 2014, como desdobramento das atividades
pedagógicas realizadas pelo professor no Centro Educacional Vale do
Amanhecer e a partir do convite de alguns estudantes que relataram
a necessidade de alguém para ministrar oficinas de teatro em uma
organização comunitária da cidade. Após uma primeira oficina,
que resultou na montagem do espetáculo Fragmentos, que abordava
questões sobre gênero e racismo na comunidade, a organização que
sediava os ensaios foi transferida de local e o grupo ficou sem espaço
para os encontros, restando uma praça para tal atividade. A partir
deste momento, o professor que já estava desenvolvendo sua pesquisa
de mestrado no ProfArtes, propôs aos estudantes a realização de um
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 79

trabalho que dialogasse com os espaços públicos, aproximando a


reflexão sobre o teatro em comunidade à perspectiva da pesquisa-
ação comunitária.
Resultado deste processo, o espetáculo Muro de Promessa
reflete uma criação dramatúrgica profundamente conectada com
os espaços, os sujeitos e a história do Vale do Amanhecer, cuja
encenação, em espaço urbano, transitava por diversos espaços da
cidade, partindo de uma praça, percorrendo ruas, adentrando a
intimidade de uma residência e encerrando o percurso nas ruínas
de uma casa abandonada. Criado a partir de um processo que teve
duração de quase um ano, entre experiências de experimentação
cênica em espaço urbano, interação com outros moradores da
comunidade, registros fotográficos, cartografias afetivas e desenhos
diversos, a peça foi montada a partir das leituras dos lugares de
pertencimento dos sujeitos envolvidos, das relações sociais e das
formas como se configuram os territórios da cidade, articulando
agenciamentos comunitários, ocupação e ressignificação de espaços
públicos.

Figura 3: A foto de Julia Nogueira ilustra a reportagem “Comunidade em Cena” do portal


da UnB3
3 Disponível em: <https://noticias.unb.br/112-extensao-e-comunidade/892-comunidade-
em-cena>. Correio Brasiliense: <http://sites.correioweb.com.br/app/noticia/encontro/
80 Ensino e Pesquisa em Artes

Este processo, que também gerou um vídeo documentário4,


além da dissertação, situa o teatro em comunidades como parte da
construção de uma cultura política participativa, mobilizada por
diversas práticas criativas que se organizam nos espaços urbanos e
permitem gestos de profanação das lógicas que excluem os cidadãos
dos processos de construção dos territórios que compartilham.
Desse modo, o trabalho do Coletivo Ateliê Aberto, no que diz
respeito ao envolvimento comunitário e à ligação com o território da
cidade – inclusive pelo gesto de resistir à ausência de equipamentos
públicos destinados às atividades culturais – também surge como
demonstração de uma característica de trabalho bastante comum
aos professores, artistas e pesquisadores do DF , ou seja, cada vez
mais comprometidos com a ação-reflexão sobre suas metodologias
de trabalho, com a pesquisa, o compartilhamento de práticas e
processos criativos, além de inspirar alternativas de circulação teatral
a partir do uso dos espaços públicos, contribuindo para a superação
de um circuito cultural que diferencia centro versus periferia e coloca
esta última como mera consumidora do que é gerado do outro lado.

Considerações finais – O potencial de uma rede em construção

Pelas pesquisas concluídas e em andamento no Mestrado


Profissional em Artes, observamos o potencial que uma turma de
mestrado direcionada para um segmento específico de trabalhadores
– neste caso os professores de artes das redes públicas estaduais e
municipais de ensino – tem ao permitir o conhecimento das
experiências em desenvolvimento nas escolas e comunidades,
ampliando as possibilidades de intercâmbios e de circulação da
produção das experiências coletivas coordenadas pelos professores.
A diversidade das experiências e a relevância do caráter de
mobilização presentes no trabalho destes profissionais e coletivos
teatrais, em sua maioria invisibilizados no interior das redes
de produção artística pelo conjunto dos agentes culturais que
revista/2017/01/19/interna_revista,3730/a-forca-do-teatro.shtml>.

4 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=12&v=xN98n4vQ-A8>


.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 81

compõem as cadeias criativas, aponta a necessidade de ampliação


de espaços de formação como o ProfArtes. Principalmente porque
os espaços de reflexão e as pesquisas geradas podem constituir um
importante mecanismo de articulação destes professores em torno
da necessidade de construção de políticas públicas que contemplem
a natureza dos trabalhos teatrais escolares e comunitários, sobretudo
no que se refere aos modelos de editais de financiamento cultural
que são pautados por modos de organização mercadológicos.
Para além das políticas públicas, as possibilidades de
circulação de muitos destes trabalhos residem na articulação das
redes mobilizadas pelos coletivos e em parcerias com diversas
instituições, como universidades, escolas, sindicatos e organizações
da sociedade civil, propiciando mecanismos de sustentabilidade das
práticas e um circuito alternativo para inserção e articulação das
iniciativas.
No Distrito Federal, algumas destas iniciativas fazem parte
de uma rede de produção e circulação de teatro e vídeo popular
em construção, articulada pela Escola de Teatro Político e Vídeo
Popular do DF (ETPVP-DF). A escola, que funciona como projeto
de extensão universitária, em parceria com a Casa da América Latina
da UnB, é ligada ao programa de extensão Terra em Cena (UnB –
Campus Planaltina). A ETPVP-DF, por sua vez, é parte integrante
de uma rede denominada Rede de Escolas de Teatro e Vídeo Político
e Popular Nuestra América, que conta com escolas em Buenos
Aires, e nas capitais brasileiras: Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e
Florianópolis. No Distrito Federal, essa rede tem envolvido escolas
da rede pública da Secretaria de Educação do Distrito Federal, como
a Escola Parque da Natureza de Brazlândia (EPNBraz), os campi
da Universidade de Brasília, espaços sindicais, casas de cultura, e
centros de formação de movimentos sociais.
Pelo que observamos, até o momento, a iniciativa de
construção das redes aumenta o potencial de circulação dos
trabalhos desenvolvidos pelos coletivos nas escolas e ou nas
comunidades, gerando com isso forte intercâmbio entre grupos e
organizações de regiões administrativas do Distrito Federal. Além
disso, amplia a oferta de espaços de formação cultural, estética e
82 Ensino e Pesquisa em Artes

política, articulando de forma mais eficaz os espaços da escola e da


comunidade, envolvendo-os como locais de interlocução sobre os
problemas e as demandas das cidades e suas populações.
No decorrer da pesquisa, também identificamos que o teatro
produzido nas escolas e nas comunidades é base originária da
produção teatral do Distrito Federal e que, atualmente, o Mestrado
Profissional em Artes da Universidade de Brasília tem se configurado
como um dos polos de construção das narrativas a respeito dessas
experiências, ainda não devidamente registradas na história do
teatro candango e brasileiro. Portanto, a dimensão da pesquisa pode
constituir um importante mecanismo para geração de documentos
sobre os processos de criação teatral realizados em sala de aula e
comunidades, ampliando as possibilidades de inscrição das práticas
nos registros históricos e convocando novos olhares para as formas e
materialidades que circunscrevem a história do teatro.
Interfaces da Pesquisa Sobre Teatro em Comunidade e Teatro na Escola 83

Figura 4: Boletim informativo da EPNBraz, cuja experiência foi registrada e analisada pela
professora Simone Menezes Rosa (2018), em dissertação defendida no ProfArtes da UnB.
84 Ensino e Pesquisa em Artes

Referências

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por lá: a história de uma escola por meio de teatro, 2018. Dissertação
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como agente transformador na periferia, 2018. Dissertação (Mestrado
Profissional em Artes) – Instituto de Artes, Universidade de Brasília.
Companhia Negra de Revistas 87

6
Companhia Negra de Revistas:
Cultura, Raça e Nação
Beatriz da Silva Lopes Pereira
André Luís Gomes

A multiplicidade de interpretações e usos do termo


“cultura” sempre marcou as discussões dos intelectuais. O estudo
das linguagens, a literatura, as artes, as ideias filosóficas, além dos
sistemas de crença morais e religiosos, constituíram o seu conteúdo
fundamental, muito embora a ideia de que tudo isso compusesse um
conjunto diferenciado de significados e de “culturas” não tenha sido
comum nessas discussões.
No início do século XX, vamos encontrar o pensamento
social brasileiro impactado por teorias cientificistas e por concepções
que apontam a cultura como um espaço privilegiado no qual se
processa a tomada de consciência daquilo que nos falta e do que nos
faz singular. Assim, ora o exagero mimético da cultura civilizada
europeia ora a ênfase na autenticidade revelam a necessidade visceral
de se construir uma identidade que se oponha à visão civilizatória
europeia e acabe por exaltar a autoafirmação de nossa singularidade.
Nesse movimento, o qual Antonio Cândido (2010, p.117) denomina
de “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, a questão nacional,
até então intimamente ligada ao problema étnico, elege a nação
como categoria central de reflexão cultural - categoria essa que busca
encobrir as diferenças de classes e elaborar uma ideologia unificadora
capaz de cauterizar as feridas abertas no fosso entre as elites e o povo.
Desse modo, no conjunto de imagens que vão constituir-se sobre o
Brasil e os brasileiros, estaria o desafio de criação de uma “cultura
brasileira”. Segundo estudos recentes que abordam a questão1,
1 Entre eles, destacamos os estudos de Marilena Chauí, Flora Süssekind e Lilia Shwarcz.
88 Ensino e Pesquisa em Artes

intelectuais vinculados às mais diversas vertentes teórico-ideológicas


abraçaram o desafio e se lançaram na busca do Brasil. Nessa tarefa,
não somente apresentaram-se correntes de tendência positivista,
cujo lema da “ordem e progresso”, inspirados em modelos de
organização social cujas concepções e práticas racistas passam pela
eugenia2 e demais visões conservadoras, mas também vertentes de
cunho liberal cujos pressupostos eram a possibilidade de se instituir
uma cultura tipicamente brasileira, autônoma, livre dos modelos
estrangeiros e dos estrangeirismos tão admirados desde o período
colonial. Entretanto, em ambos os casos, a ideia de reformar o Brasil
é muito mais evidente do que a possibilidade de uma transformação
social mais profunda por meio de mudanças estruturais da sociedade.
Na evolução do pensamento social brasileiro, o mito ou
a fábula das três raças3 articularam-se muito bem com a ideia da
origem do Estado moderno brasileiro, no qual os conflitos raciais e
sociais foram diluídos pela construção da identidade nacional. Não
obstante, as interpretações sobre o Brasil e seu povo no processo
de modernização, urbanização e industrialização nos anos de
consolidação da República, viriam a se tornar mais complexas.
A questão que “nunca” se resolvia era a da construção de uma
identidade nacional única e homogênea. Era a nação sendo pensada
unicamente em sua positividade, escamoteando a sua complexidade.
Para os intelectuais da época, grande parte de posições “ilustradas”

2 A ideia foi disseminada por Francis Galton, responsável por criar o termo, em 1883.
Ele imaginava que o conceito de seleção natural de Charles Darwin – que, por sinal, era
seu primo – também se aplicava aos seres humanos. O Brasil não só ‘importou’ a ideia
como criou um movimento interno de eugenia. Médicos, engenheiros, jornalistas e muitos
nomes considerados a elite intelectual da época no Brasil viram na eugenia a ‘solução’
para o desenvolvimento do país. Segundo a antropóloga social Lilia Schwarcz, a eugenia
oficialmente veio ao país em 1914, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, com uma
tese orientada por Miguel Couto, que publicou diversos livros sobre educação e saúde
pública no país. Quando se deparou com a tese orientada por Couto, o médico e sanitarista
Renato Kehl (1889-1974), considerado o pai da eugenia no Brasil, achou que a comunidade
científica tinha que se esforçar mais. Ele acreditava que a melhoria racial só seria possível
com um amplo projeto que favorecesse o predomínio da raça branca no país. Disponível
em: <www.geledes.org.br/o-que-foi-o-movimento-de-eugenia-no-brasil-tao-absurdo-que-
e-dificil-acreditar>.

3 Expressão de Roberto da Mata (1986) em sua crítica às concepções que formularam


interpretações sobre a formação do Brasil.
Companhia Negra de Revistas 89

– segundo os quais cabem aos esclarecidos intelectuais, políticos


e governantes a “missão” de administrar os interesses e orientar a
ação do povo –, a grande dificuldade era a de que a invenção das
tradições no caso da nação brasileira não se “encaixava” nos modelos
clássicos europeus, pós-revolução francesa e da independência
dos Estados Unidos, filiados ao pensamento liberal-iluminista. A
nação brasileira não se “encaixava” adequadamente no contexto
inseparável da cidadania e da participação do povo soberano para a
formação das nações e de suas identidades, porque tanto o Brasil já
nascera múltiplo quanto a ideia de miscigenação era, a um só tempo,
problema e virtude, nela residindo a verdadeira alma do povo.
Assim, a interface entre Cultura, Raça, Nação e Identidade
Nacional está na origem do processo de nossa formação em que a
nação torna-se um discurso simbólico de modernidade e civilização,
empenhado na produção de significados que relacionam premissas e
temas em articulações complexas, muitas vezes contraditórias, entre
pensamento, práticas sociais e realidade histórica.
Em primeira instância, pode-se pensar a nação como um
sistema classificatório a partir do qual se evidenciam categorias que
ligam o Estado a seus membros e estes entre si. O território e a língua
são categorias que sustentam um sentimento de pertencimento e
lealdade entre os membros de uma nação, assim como a ideia de
uma “tradição cultural” comum. Essa ligação realiza-se por meio
de representações simbólicas ou, como afirma Benedict Anderson
(2005), a partir das “comunidades imaginadas”4.
Partindo dessas considerações, o nacionalismo e os seus
produtos culturais comungam, através da língua, o modo pela qual
ela é imaginada. Enquanto a nação é um sistema classificatório que
define as relações entre o Estado e seus membros e estes entre si,
o nacionalismo configura a utilização do símbolo “nação” para
a realização de um projeto político, o que, segundo Hobsbawm,
fundamenta-o (1998, p.214). Como um discurso homogeneizador
dos sentidos da nação, o nacionalismo controla os sentimentos que
unem e diferenciam determinados grupos entre si.
4 Segundo Benedict Anderson (2005), “a nação é imaginada como uma comunidade
porque, independente da desigualdade e da exploração reais que possam prevalecer em
cada uma das nações, é sempre concebida como uma agremiação horizontal e profunda.”
90 Ensino e Pesquisa em Artes

Entre todos os “elementos” que compõem o discurso da nação,


que conferem sentido à ideia de pertença identitária, que mobilizam
a percepção estética de um fenótipo nacional, está a “raça”. A raça,
durante o século XIX, será o dispositivo estruturante das narrativas
nacionais. Será o dispositivo a partir do qual se “governará” a
população, dispositivo que irá movimentar as estratégias de limpeza
racial, higiene e melhoria da espécie.
Para o Estado-nação, o problema da raça surge com essa
problematização da população como massa disforme, que precisa
ser homogeneizada. A condição da nação se vincula à condição da
raça e tanto a impureza quanto a disgenia devem ser combatidas
em nome da nação5. Nessa direção, a miscigenação se apresenta
como promotora de inúmeras degenerescências, fenômeno a ser
combatido e evitado. Deriva daí uma série de questões que irão pautar
as discussões sobre a miscigenação e a construção do Estado-nação
no Brasil e as narrativas identitárias que nortearam a “brasilidade”
durante grande parte do século XX.
Em meio aos enunciados articuladores dessas narrativas sobre
a “identidade”, destacamos a miscigenação, que, mesmo considerada
em suas idiossincrasias contextuais, constitui a base sobre a qual se
articulam as teorias e interpretações sobre a nação brasileira.
Os anos iniciais da República podem ser considerados
o período em que a “identidade nacional” fora pensada a partir
de categorias cientificistas oriundas da segunda metade do
século XIX, quando o biodeterminismo estruturou as formas de
pensamento social no ocidente. No caso brasileiro, após a abolição
as problematizações referentes à raça e à constituição da população
estavam colocadas no centro da agenda político-cultural, pois com
a emergência do republicanismo, uma nova percepção da população

5 Em 1928, em uma das passagens de Macunaíma (1976) de Mário de Andrade, a personagem


Macunaíma, escrevendo uma carta à sua tribo, ao caracterizar a dinâmica de vida da cidade
de São Paulo, faz críticas, por meio da ironia, à questão da eugenia, apresentando-se como
voz dissonante ao discurso calcado em preconceitos das elites econômicas e intelectuais do
país contra os negros e mestiços: “(...) A essa Polícia compete ainda equilibrar os excessos
da riqueza pública, por se não desvalorizar o oiro incontável da Nação; e tal diligência
emprega nesse afã, que, por todos os lados devora os dinheiros nacionais, quer em paradas
e roupagens luzidas, quer em ginásticas da recomendável Eugénia, que inda não tivemos o
prazer de conhecermos (...).”
Companhia Negra de Revistas 91

nacional, ou melhor, da “identidade nacional” era colocada em


xeque. No caso, é interessante observar como os intelectuais
estadistas da época traduziram as teses racialistas de matriz europeia,
colocando em movimento uma série de discursos problematizadores
da formação antropológica do povo brasileiro para a construção
civilizatória nacional, apontando a sua degenerescência em função
da miscigenação.
Segundo Lilia Shwarcz (1994, p.137), desde a segunda
metade do século XIX a miscigenação do povo brasileiro chamava
a atenção de europeus, nomeadamente dos viajantes e naturalistas
que passavam pelo país, como é o caso do naturalista suíço Louis
Agassiz (1807-1873) e do diplomata francês Conde Joseph Arthur
de Gobineau (1816-1882). Louis Agassiz, que viajou pelo Brasil com
sua esposa Elizabeth Cary Agassiz, entre 1865 e 1866, deixou a sua
percepção da população brasileira em seu diário de viagem. Dizia ele
que:
[...] qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua
por mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras
que as separam, venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração
decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em
qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as
melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um
tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental (1868,
p.71. apud Shwarcz, 1994, p.137).

Também Gobineau, autor do Ensaio sobre a desigualdade


das raças humanas (1858) e diplomata francês no Brasil entre 1869
e 1870, considerava a miscigenação uma das causas da degeneração
civilizatória do país (apud Shwarcz, p.137).
Porém, segundo Shwarcz (1994, p.137), essa visão mestiça
da nação não se resumia ao olhar que vinha de fora, aos inúmeros
naturalistas que aqui estiveram. Internamente o tema se reproduzia
a partir de diferentes locais. Nos censos, jornais, pinturas, expressões
artísticas em geral, na visão de políticos e cientistas, a raça aparecia
como argumento partilhado, com uma interpretação interna bastante
consensual. Ao comentar “a composição étnica e anthropológica
singular” da população brasileira (apud Shwarcz, 1994, p.137),
o crítico literário Sílvio Romero (1888), da Escola de Recife, um
92 Ensino e Pesquisa em Artes

dos mais importantes críticos literários do tempo de Machado de


Assis, tinha como interpretação a ideia de que “formamos um paiz
mestiço... somos mestiços se não no sangue ao menos na alma”. A
miscigenação foi objeto de discussão de grande parte da intelligentsia
da época. Oliveira Viana (1883-1951) no verbete escrito para o
Dicionário histórico, geográfico e etnográfico do Brasil (1922), ano
comemorativo da secular Independência Nacional, apontava os
perigos da miscigenação e da degeneração física e mental do povo
brasileiro, considerado como híbrido de selvagens bárbaros e de
um único civilizado, o português. Para ele, nessa mistura de raças,
a vitória era, inevitavelmente, do sangue dos inferiores sobre o dos
superiores.
Do ponto de vista da ciência racialista da época, fora
Raimundo Nina Rodrigues, um dos mais importantes expoentes
tanto na pesquisa, como é o caso de suas investigações sobre o negro,
quanto na divulgação, por meio da chamada Escola de Medicina da
Bahia. A miscigenação foi a grande preocupação de Nina Rodrigues,
que chegou a considerar a necessidade de mais de um código
penal para o caso brasileiro em função das diferenças raciais e da
profunda miscigenação da população. Entendia que as diferenças
raciais e mesmo as diferenças entre mestiços tinham repercussão na
mentalidade, na inteligência e na concepção dos valores sociais, o que
fazia da igualdade jurídica um contrassenso, pois a responsabilidade
penal deveria atender de forma desigual os desiguais.
Tais posturas profundamente pessimistas sobre a mestiçagem
juntavam-se a outras leituras menos escatológicas. É o caso dos
juristas, nomeadamente da Escola de Direito de São Paulo, que
procuravam pensar a unidade nacional defendendo uma postura mais
afeita ao liberalismo. Contudo, mesmo esses pensadores vinculados
à Escola Paulista, quando se posicionavam sobre as hierarquias
sociais passavam a postular as teses darwinistas e racializavam os
argumentos (Schwarcz, 1994, p.142).
Entre os diversos entusiastas das teses racialistas como
suporte para a superação dos males da raça no Brasil, destaca-se
sobre todos os outros, o eugenista Renato Kehl (1889-1974), autor
de inúmeras obras sobre eugenia e um divulgador implacável da
Companhia Negra de Revistas 93

ciência de Galton entre os brasileiros (Kehl, 1923). Renato Kehl


foi o mais arguto articulador de um discurso biopolítico da sua
geração. Em um subitem intitulado “idealismo” da obra Lições de
eugenia, o autor afirma que “o Estado, um dia, assumirá o ‘controle’
do ‘crescei’ e ‘multiplicae-vos’; começará organizando a genealogia
de toda gente” (1923, p.21, apud Shwarcz, 1994, p.144). Entre o seu
ideal de política eugênica a ser instrumentalizada pelo Estado, Kehl
não hesitava em propor esterilizações, controle de casamentos, bem
como a formação de uma elite eugenizada para governar o país. Fica
claro, em diversas publicações de sua autoria, o ideal eugenista do
autor, o qual, em 1917, foi pioneiro na América Latina ao fundar
uma sociedade eugenista, a Sociedade Eugênica de São Paulo. Kehl
foi editor também do Boletim de Eugenia, publicação com clara
intenção propagandística do Instituto Brasileiro de Eugenia.
A miscigenação, em que pesem os signatários de uma
eugenia negativa, como Kehl, vai constituir-se em um recurso
eugênico no Brasil. Um dado era considerado insuperável por
parte significativa dos intelectuais da época: a população brasileira
passava por mestiçamentos há séculos e a ideia de uma raça pura,
ao estilo do discurso europeu, era uma quimera. Assim, a partir de
1911, uma interpretação heterodoxa das teses eugenistas passou a
ser articulada. Naquele ano, o governo brasileiro enviou a Londres,
para participar do Congresso Universal das Raças, o cientista João
Batista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de
Janeiro. Foi nessa ocasião que Lacerda proferiu a famosa conferência
em que defendia a miscigenação como estratégia de branqueamento
da população brasileira, ou, em outras palavras, da miscigenação
como meio de solucionar o problema do negro na composição
populacional da nação (Schwarcz, 1994, p.138).
A política de branqueamento conjugava a seleção de
imigrantes europeus, considerados eugênicos, assim como o
estímulo a miscigenações sucessivas nas quais o sangue branco, por
sua natural superioridade, haveria de se sobrepor ao sangue negro.
A eugenia brasileira fez da miscigenação uma forma de
intervenção sobre a cultura nacional e, nesse sentido, constituiu-se
em uma rede discursiva com efeitos significativos na constituição
94 Ensino e Pesquisa em Artes

de regimes de verdade sobre a população e a “identidade nacional”.


Os intelectuais dessa geração articularam uma série de enunciados
que procuravam governar a população a partir de critérios do
biodeterminismo. Assim sendo, a eugenia pode ser entendida como
uma prática discursiva (baseada em saberes biológicos sobre a raça
e sua pureza, científicos ou não) ou não discursiva (as estratégias de
intervenção). Ao procurar redesenhar a população, o objetivo foi o
de fundar uma identidade nacional baseada nos critérios clássicos da
categoria Estado-nação, conforme a tradição europeia.
Entre os dias 01 e 07 de julho de 1929 realizou-se o primeiro
Congresso Brasileiro de Eugenia (CBE), solicitado por Miguel Couto,
presidente da Nacional Academia de Medicina. Nesse Congresso,
dividido em três seções (Antropologia, Genética e Educação e
Legislação) nota-se, de acordo com Diwan (2007, p.113), uma
ênfase na última seção, o que indica uma hierarquia no interior do
Congresso, uma vez que as discussões sobre legislação eram mais
valiosas do que as questões de genética e de antropologia. Isso sugere
o interesse dos participantes do CBE na disputa pela formulação de
leis entre médicos e advogados a favor da eugenia. De fato, durante os
anos 1920 e 1930, uma série de proposições de políticas públicas de
caráter eugenista foram apresentadas. Contudo, a ênfase recaia sobre
a política de imigração. Interessava aos eugenistas a construção do
povo brasileiro com a importação de tipos assimiláveis e eugenizados,
o que atendia a duas motivações, o branqueamento e a depuração do
negro na composição da população.
Ainda segundo Diwan, “preservar o futuro racial do Brasil,
sua unidade nacional e sua homogeneização foram algumas das
principais preocupações dos eugenistas ao longo de toda a década de
1920, intensificadas no início do período Vargas” (2007, p.119). Assim,
se desde o início do século XX, os estudiosos estavam convivendo
com posturas mais radicais de caráter puramente eugenista, recaía
também uma visão positiva sobre a miscigenação que, a partir da
década de 1930, passa a sofrer uma reinterpretação. Esse fora o
momento em que os principais estudiosos brasileiros do assunto
destacaram os aspectos positivos da mestiçagem, consolidando-se a
ideia de “democracia racial”.
Companhia Negra de Revistas 95

Desse modo, em um momento em que os intérpretes do


nosso passado ainda se preocupavam especialmente com os aspectos
de natureza biológica, manifestando, mesmo sob aparência do
contrário, a fascinação pela “raça” herdada dos evolucionistas e em
um tempo ainda banhado de indisfarçável saudosismo patriarcal,
surge um quadro ideológico de “novas” explicações socioeconômicas,
políticas e culturais, o qual se fundamentaria em um conjunto de
obras que marcaram a história do pensamento intelectual brasileiro
e o mundo acadêmico nos meados do Século XX. São elas: Evolução
Política do Brasil, de Caio Prado Júnior (1933), Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freyre (1933) e Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda (1936). Essas obras irão formular discursos
sobre brasilidade vinculando-se tanto ao “novo” e “moderno” no
Brasil, quanto à tradição. (Cândido, 1984, p.27).
Com efeito, os fermentos dessas “novas explicações” se
encontram especialmente no decênio de 1920 que, como bem
explica Antonio Cândido, “tinha sido uma sementeira de grandes
e inúmeras mudanças.” (1984, p.27). Mudanças, principalmente no
plano artístico, trazidas pelos ventos do Modernismo, de Macunaíma,
de Retratos do Brasil e tantas outras realizações artísticas populares,
que possibilitaram as condições de realizar, difundir e normalizar
uma série de aspirações e inovações que seriam decisivas para o
pensamento social e a sociedade brasileira, na década de 1930.
Podemos dizer que essa (re)confecção do passado acaba por mostrar
certa intelectualidade do país, mais notadamente gravitando em
torno dos ditames do Modernismo, quer reafirmando valores
nacionalistas quer afiliando-se aos valores liberais iluministas.
Faz-se importante destacar como o próprio modelo das
relações entre raça e nação é redefinido em função da matriz que o
originou, com novos significados, o que, segundo Shwarcz (1994),
comprova que no Brasil a raça era um conceito original e negociado.
Assim, não se trata de entender apenas os reflexos das teses raciais no
pensamento da época, mas indagar sobre os seus novos significados
contextuais, além do impacto dessas teorias nas práticas sociais e
no contexto político em que se inserem, atentando para a dinâmica
de reconstrução de conceitos e modelos, principalmente no
96 Ensino e Pesquisa em Artes

campo artístico, que, como prática sociossimbólica, é o que mais


particularmente nos interessa.
Por suposto, essas narrativas compreendidas da forma como
Antonio Cândido (1984, p.27) identificou, um entorno de um eixo
catalisador, não abrangeriam apenas as concepções e práticas dos
intelectuais. Participaram também dessas narrativas sobre a nação
e a identidade brasileira modos de produção artística materializados
na “arte popular”, na qual identificamos, entre elas, uma prática
social específica: o teatro musicado como palco para a “arte negra” e
a sua ascensão nas primeiras décadas do Século XX, que, a despeito
das influências de modas estrangeiras, sobretudo francesas e norte
americanas, produziria no Brasil, notadamente nos anos 1920 e 1930,
uma disputa entre as modalidades de interpretar e “transformar” as
realidades sociais e políticas no Brasil.
Ao retomarmos aqui, mesmo que sinteticamente, as
ressonâncias dessas questões nas linhas interpretativas do pensamento
intelectual brasileiro, o nosso objetivo é apontar a base das questões
ideológicas coletivas e sociais6 da época, isto é, o processo de luta
ideológica que, na perspectiva gramsciniana, concebe a cultura
como um terreno historicamente moldado em que todas as correntes
filosóficas e teóricas operam e com a qual devem chegar a um
acordo. Nesse terreno de caráter determinado, dada a complexidade
dos processos de construção e desconstrução, velhos alinhamentos
são derrubados e novos alinhamentos podem ser efetuados entre os
elementos dos distintos discursos, as ideias e as forças sociais, sendo
a mudança ideológica concebida não em termos de substituição
ou imposição, mas no sentido de articulação e desarticulação das
ideias. E é nessa perspectiva que queremos destacar o jogo de forças
que se estabelece também nas práticas sociais das classes populares,
sobretudo em suas práticas artísticas, com “suas formas de fazer” em
permanente tensão com as formas hegemônicas de representação.
Isso posto, à luz do distanciamento temporal e das
6 Para Gramsci, as questões ideológicas são sempre coletivas e sociais, e não individuais.
Para ele não existe qualquer “ideologia dominante” unificada e coerente que permeie tudo;
um fluxo único das ideias dominantes no qual tudo e todos têm que ser absorvidos. Sua
análise da ideologia conforma-a com um terreno diferenciado das distintas correntes
discursivas, de seus pontos de junção e ruptura e das relações de poder entre elas: em suma,
um complexo ou conjunto ideológico ou formação discursiva (apud Hall, 2011, p.306).
Companhia Negra de Revistas 97

contribuições dos Estudos Culturais, a partir de teóricos como


Raymond Williams e Stuart Hall, teóricos interessados em investigar
as formas de cultura não canônicas e as manifestações sociais não
hegemônicas, e a nos trazer conceitos-chave, como cultura, tradição,
popular, raça, identidade, entre outros, buscamos o entendimento do
modo de produção artística que particularmente nos interessa.
Para tanto, acrescentando ao debate sobre as formas
culturais não hegemônicas, o conceito de popular, Hall e Williams
se dedicam a desconstruir a noção, distinguindo-a da compreensão
de popular como aquilo que as massas compram ou consomem,
além do entendimento de que “cultura popular” é coisa que o “povo”
faz ou fez. Desse modo, chegam à compreensão de cultura popular
como aquela que se caracteriza por tensão contínua com a cultura
dominante. Essa compreensão de popular considera, em qualquer
tempo, formas e atividades cujas raízes se situam nas condições
sociais e materiais de classes específicas que estiveram incorporadas
às tradições e práticas populares. Acrescenta-se, então, aos conceitos-
chave a noção de tradição, vista como elemento vital da cultura,
porém distante de meras permanências intocadas e persistências
em coisas velhas e cristalizadas. Em seu texto seminal, Notas sobre
a desconstrução do popular, Hall destaca o quanto o termo popular
é problemático, concluindo que a “a cultura popular é um dos locais
onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada, é
também o prêmio a ser conquistado ou perdido nesta luta. É a arena
do consentimento e da resistência” (2011, p.246).
As contribuições desses teóricos nos permitem reler e
apreender o teatro de revista, em especial o teatro da Companhia
Negra de Revistas e o seu fazer teatral popular negro, articulado com
as condições econômicas, políticas e sociais de produção. Ainda,
possibilitam o entendimento de que a cultura popular não é um
terreno construído de binarismo simples, em que as diferenças são
vistas em sua essência e compreendidas em termos de estrita oposição,
como “as tradições deles versus as nossas”, mutuamente excludentes,
autônomas e autossuficientes. A compreensão da estética da cultura
popular e da estética da cultura negra nela incluída deve apreender
as estratégias dialógicas e híbridas que a constituem, em que “[...]
98 Ensino e Pesquisa em Artes

o que é socialmente periférico é amiúde simbolicamente central...”7


(Hall, 2011, p.229).
Ainda nas trilhas do pensamento de Hall, nos reportamos a
outro texto não menos importante: “Que ‘Negro’ é esse na Cultura
Negra?”8. Nas suas considerações, o autor destaca diferentes
qualificações ao momento do debate sobre a cultura popular negra
e que, por definição, é um espaço contraditório e de contestação
estratégica. E esclarece que o momento essencializante é fraco por
naturalizar e desistoricizar a diferença, confundindo o que é histórico
e cultural com o que é natural, biológico e genético, e anuncia o fim
da noção ingênua de um sujeito negro essencial. Assim, registra Hall:

[...] No momento em que o significante negro é arrancado de seu


encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria
racial biologicamente constituída, valorizamos, pela inversão, a
própria base do racismo que estamos tentando desconstruir [...]
fixamos esse significante fora da história, da mudança e da intervenção
política. [...] Somos tentados, ainda a exibir esse significante como
um dispositivo que pode purificar o impuro e enquadrar irmãos e
irmãs desgarrados, que estão desviando-se do que deveriam estar
fazendo [...] Além do mais, tendemos a privilegiar a experiência
enquanto tal como se a vida negra fosse uma experiência vivida fora
da representação. Só precisamos, parece, expressar o que já sabemos
sobre nós mesmos. Em vez disso, é somente pelo modo no qual
representamos e imaginamos a nós mesmos que chegamos a saber
como nos constituímos e quem somos. (Hall, 2011, p.328)

Entretanto, aponta que esse fim é também um começo, visto


que a negritude enquanto signo nunca é suficiente; importando saber
o que o sujeito negro faz, como age, como pensa politicamente.
É nessa perspectiva que trazemos à cena a Companhia Negra
de Revistas, que teve um curto período de sua existência, de julho
de 1926 a julho do ano seguinte, mas traçou uma das histórias mais
interessantes dos palcos brasileiros dos anos 1920. Apresentar essa
Companhia no corpo desse capítulo é subverter o silêncio imposto
às peças Tudo Preto e Preto e Branco e aos artistas que as encenaram,
é revolver as camadas ideológicas das críticas jornalísticas racistas
7 Trecho em que Hall cita uma descrição do que está envolvido no entendimento de cultura
popular, numa forma dialógica em vez de estritamente de posição, extraído de “A política e
a poética da transgressão”, de Stallybrass e White (apud Hall, 2011, pp.329-330).

8 Trata-se de outro texto, porém publicado na mesma coletânea (Hall, 2011, pp.317-330).
Companhia Negra de Revistas 99

apresentadas e apreender o contexto sociocultural em que se


inseriram as disputas e os embates de sua experiência histórica e
artística de teatro negro popular. Ressaltamos ainda que a Companhia
Negra de Revistas soube assimilar, estilizar e reelaborar os elementos
artísticos e socioculturais, em voga, ressignificando-os de maneira
própria, produzindo novos significados, causando forte impressão
em seu tempo. Sobretudo, para mostrar que outras experiências
importantes de teatro negro, mesmo desconsideradas por seus pares,
antecederam ao Teatro Experimental Negro (TEN).
Em uma sociedade ainda fortemente marcada pelo
preconceito racial, parecia não haver espaço para que os negros
buscassem se inserir ou intervir na contemporaneidade. “Seus
modos de fazer”, parcialmente recuperados por este ensaio, apontam,
entretanto, para os múltiplos significados de suas práticas teatrais,
entre os quais pensamos que, no limite do quadro de referências em
que se inscrevia, a Companhia Negra de Revistas desestabilizou as
fronteiras simbólicas entre “raça, nação e identidade brasileira” e o
sistema relativamente estabilizado dos padrões culturais dominantes
da época, soando como ameaça ao projeto civilizatório, quando tenta
apropriar-se das possibilidades de inserção social que se abria para o
negro nos anos 1920.
A Companhia Negra de Revistas, acompanhada de suas
formas de articulação, criação e apropriação discursivas das
relações entre cultura, raça, nação e identidade brasileira podem ser
analisadas à luz do que Gramsci conceitua de sujeitos da ideologia.
Assim, seguindo-se a linha do pensador italiano, de que a natureza
multifacetada da consciência não é um fenômeno individual, mas
coletivo, sendo uma consequência do relacionamento entre “o eu” e os
discursos ideológicos que compõem o terreno cultural da sociedade,
com a ideia de que o campo ideológico da cultura apresenta um
caráter complexo e interdiscursivo, pensamos poder evitar um
caminho analítico interpretativo reducionista e homogeneizador
da Companhia e de seus espetáculos negros. Desse modo, nos
perguntamos:
Que negro é esse que compõe a Companhia Negra de Revistas?
Que a insere no quadro de referência sobre a “mestiçagem brasileira”
100 Ensino e Pesquisa em Artes

nos meados da década de 1920, em meio a um forte movimento


eugenista, criando, articulando e encenando uma sequência de
espetáculos negros, Tudo Preto, Preto e Branco, Carvão Nacional, Na
Penumbra9, reelaborando esteticamente os debates da época sobre
identidade brasileira e disputando uma posição, por meio de uma
poética própria do teatro de revista, no caso, uma poética negra?
Que negro é esse? Que agita o campo teatral durante um ano,
apresentando-se em diversas cidades brasileiras, com o seu grupo de
atores e músicos negros, deslocando concepções racistas e eugênicas,
canalizando um debate sobre o seu papel social, com sua “metáfora
da inclusão”, vinculando valores da modernidade com afirmação de
sua identidade negra, expressões potencializadas em suas metáforas
musicais e na estilização retórica do corpo, com um repertório da
cultura popular negra?
Que negro é esse? Que se torna objeto de críticas na imprensa,
ora positivas pelo desempenho artístico, pela criatividade, pela
inovação, ora negativas pelo desconforto que a exposição de seus
corpos negros causava aos olhares racistas. Projeta-se no circuito
de diversão da época como o criador do “teatro negro” no Brasil.
Faz parcerias, nem todas bem-sucedidas, para conquistar um espaço
de trabalho artístico com as suas peças, a despeito das negociações
e rupturas necessárias à sua luta para se manter no cenário teatral.
Peças que são vistas e apreciadas pela fina flor modernista e seus
afins, representada na plateia por Mário de Andrade, Prudente de
Moraes Neto, Menotti Del Picha, Tarsila do Amaral, Sérgio Buarque
de Holanda e, em especial, Gilberto Freyre que, naquele ano, voltava
9 Não foram localizados os textos originais das peças Carvão Nacional (Pacheco Filho e
De Chocolat) e Na Penumbra (De Chocolat e Lamartine Babo) no catálogo do Arquivo
Nacional, nem no catálogo e no Acervo Digital do SBAT, sob guarda da Biblioteca Nacional.
As informações sobre a temática negra e o elenco negro, das referidas peças encontram-
se em notícias e cartas publicadas em diversos periódicos do Rio de Janeiro e São Paulo,
além daquelas noticiadas nas cidades por onde excursionaram as companhias. Tem-se que
Carvão Nacional foi encenada pela Companhia Negra de Revistas, estreou em 28/10/1926
no Teatro Apolo, em São Paulo, excursionando por várias cidades brasileiras, sob direção
de Jaime Silva, após dissidência de De Chocolat. Na Penumbra, por sua vez, foi encenada
pela Companhia Ba-ta-clan Preta, Empresa Deo Costa & De Chocolat, cuja estréia se deu
no Teatro Santa Helena em 11/11/1926, em São Paulo. Formada pelo cançonetista, após
seu desentendimento com Jaime Silva, em sociedade com a atriz e vedete Deo Costa,
denominada de “Vênus de Ébano”, a Bataclan Preta não logrou o mesmo êxito da Companhia
Negra de Revistas (apud Barros, Orlando, op.cit., pp.116-184).
Companhia Negra de Revistas 101

de seus estudos culturalistas e que, possivelmente, bebeu na fonte


daquela “negritude artística” para fortalecer o “cadinho das três
raças” de suas formulações teóricas em torno da mestiçagem e da
“democracia racial”?
Que negro é esse? Que em Tudo Preto apresenta uma meta
revista, articulando personagens dispostas a afirmar o seu papel
social, deixando as atividades subalternas de serviçais domésticos
pelo reconhecimento artístico, caracterizados pela sua originalidade,
por seus vínculos com a tradição, sem abrir mão dos benefícios da
modernidade, incorporando-se a um movimento geral de valorização
artística do negro com a sua música, dança, teatro, diversidade em
diálogo com a sua participação ativa na identidade nacional, em um
contexto histórico no qual o senso comum racista se contrapunha
aos ventos modernistas que desafiavam os padrões estéticos
conservadores. Que afirma a sua negritude e dialoga com temas
transversais, como a questão de gênero, inserida em um quadro de
referências em que a independência feminina era considerada uma
transgressão social. Que desloca e reelabora um ícone do teatro de
revista francês, não por mera imitação ao modelo europeu, mas na
perspectiva de inspiração criativa em que a Mistinguett francesa é
recuperada pela beleza e pelos encantos da mulher negra brasileira.
Que se apropria e se insere criativamente do debate sobre a construção
de um monumento à Mãe Preta, como apoteose do espetáculo, em
um apelo estético-emotivo, a reforçar a índole generosa do negro em
contraposição à ampla difusão de sua índole negativa, naturalizada
pela visão racista. Enfim, uma estratégia dialógica da identidade
negra, socialmente discriminada e periférica, mas simbolicamente
central à identidade nacional?
Que negro é esse? Que em Preto e Branco representa uma
grande alegoria do Brasil e de suas riquezas naturais, étnicas e
culturais, firmando posição para a redefinição das relações entre
raça e nação, negociando a afirmação da identidade negra e da
miscigenação como riquezas de “brasilidade” desentranhadas da terra
mãe brasileira. Um discurso alegórico “nacionalista” carnavalizado
e ambivalente, articulado pelos elementos constitutivos da poética
do teatro de revista: polifonia, dialogismo, humor, ironia, mistura de
102 Ensino e Pesquisa em Artes

gêneros textuais, crítica social, referências à atualidade, ao cotidiano,


compromisso com a diversão?
Que negro é esse? Que envolvido no movimento e nas
contradições de seu tempo e de sua prática social, antecipa-se
a formulações teóricas dos intelectuais e opera um teatro em que
representa e reivindica a democracia racial, não como um mito que
naturaliza as diferenças e justifica as desigualdades sociais e étnicas,
mas como “formas de fazer” e (re)inventar o cotidiano, desafiando
as formas hegemônicas de representação com sua poética da
transgressão “possível”?

Figura 1: A Companhia negra de revistas. A primeira organização do Brasil.


Careta, 14/08/1926, a XIX, 947.

Figura 2: O Bataclan preto. As Black Girls genuinamente brasileiras.


Careta, 14/08/1926, a XIX, 947.
Companhia Negra de Revistas 103

Referências

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Origem e a Expansão do Nacionalismo. Portugal: Edições 70, 2005.

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