Texto de Apoio - Leitura e Professores Uma Relação em Crise

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International Studies on Law and Education 7 jan-abr 2011

CEMOrOc-Feusp / IJI-Univ. do Porto

Leitura e professores: uma relação em crise

Prof. Dr. Gabriel Perissé1


Nailton Santos de Matos2

Resumo: As práticas de leitura em ambiente escolar tem se revelado cada vez mais ineficazes. A
formação de leitores competentes capazes de ir além da mera decodificação tem sido um grande desafio.
O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade plena de participação social e política na
sociedade, pois é por meio dela que os homens se comunicam, têm acesso à informação, expressam e de-
fendem pontos de vista, partilham ou constroem visões de mundo, refletem sobre sua própria experiência
no mundo e produzem conhecimentos. Este artigo reflete sobre o papel do professor como leitor e agente
formador de leitores a partir principalmente dos trabalhos de Ezequiel Theodoro da Silva e Michèle Petit.
Palavras Chave: Leitura. Formação de leitores. Cidadania. Autonomia.
Abstract: Reading practices in the school environment has proved increasingly ineffective. It has been a
great challenge the formation of competent readers able to go beyond simple decoding has been a great
challenge. The mastery of language is closely related to the possibility of full social and political
participation in society, because it is through it that people communicate, access information, express and
defend points of view, share or build world views reflect about their own experience in the world and
produce knowledge. This article discusses on the teacher's role as reader and forming agent from readers
using especially the works of Ezequiel Theodoro da Silva and Michèle Petit.
Keywords: Reading. Formation of readers. Citizenship. Autonomy.

A leitura tem o poder de despertar em regiões que


estavam até então adormecidas
Michèle Petit

Introdução

Embora se verifique nos últimos anos um crescente aumento de investimentos


em acervos de qualidade com a finalidade de fomentar a leitura e estimular a formação
de leitores, o que se tem verificado é que professores e alunos estão cada vez mais
distantes de práticas significativas de leitura.
Segundo SANTOS; NETO e RÖSING (2009: 14),

Esse cenário, pode-se dizer, se deve, em grande parte, ao fato de


professores, dirigentes de escola, responsáveis por bibliotecas
escolares e municipais em número não definido, mas amplo, não
estarem preparados para reconhecer a riqueza que esses materiais
representam, nem de avaliar o quanto podem contribuir para a
construção da interioridade daqueles que tiverem a oportunidade de
manuseá-los. Não consideram o ato de ler como um processo de
significação de textos representativos de distintos gêneros textuais,

1
Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Professor do Programa de Mestrado-Doutorado da
Universidade Nove de Julho.
2
Doutorando em Educação pela Universidade Nove de Julho e mestre em Literatura e Crítica Literária
pela PUC-SP.

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entre os quais assumem importância ímpar os literários.
Conseguem viver e sobreviver nos diferentes grupos a que
pertencem sem terem consciência da necessidade de interpretar o
que subjaz às linhas, nas entrelinhas, para se apropriar de ideias
que possam contribuir significativamente no processo de
constituição do sujeito enquanto leitor e, consequentemente, do
cidadão leitor.

Constatações como esta tem sido muito comum por aqueles que têm se
dedicado à questão da leitura e da formação do leitor. Não basta ter contato com
acervos por melhores que sejam, é imprescindível ter contato com pessoas que façam
da leitura um ato prazeroso e enriquecedor.

Professor: a questão da identidade


Segundo SILVA (2009: 23), “o cerne do desenvolvimento da identidade de
um professor é, sem dúvida, a leitura. Para ele, a leitura constitui, além de instrumento
e/ou prática, uma “forma de ser e de existir”. [...] Professor, sujeito que lê, e leitura,
conduta profissional são termos indicotomizáveis – um nó que não se pode nem se
deve desatar”.
Nesta dimensão do trabalho docente, fica evidente a impossibilidade do
exercício profissional do professor dissociado de sua condição de leitor. A docência
não é um dom, mas um ofício que envolve “a vivência e a incorporação de porções
contínuas de leituras. O magistério, em termos de trabalho e de atualização, está
calcada em experiências de leitura”. (SILVA, 2009, p. 26)
Sem estas experiências significativas, há uma grande limitação na atuação e na
mediação do professor numa realidade que exige dele cada vez competências
multifacetadas de leituras. Suas práticas de leitura devem prover sempre novos olhares
sobre a realidade de modo que contenham em si mesmas uma dimensão política.
Para ser um agente formador de leitores, o professor deve invariavelmente ser
leitor. Entretanto, o que se tem percebido frequentemente é a não consciência das
deficiências leitoras por muitos destes professores. Isto pode ser facilmente verificado
na inexistência de leituras ou a leitura de obras que não lhe oferecem nenhum grau de
complexidade mais profunda. Essas leituras esporádicas feitas por muitos professores
não enriquecem a sua experiência uma vez que não estabelece uma relação mais ampla
com o contexto sócio-histórico-cultural em que ele está inserido.
O resultado disto, segundo SILVA (2009), é uma prática docente que tem
como protagonistas pseudoleitores, desprovidos habilidades e de competências de
leituras cujo quadro lamentável e vergonhoso será a completa estagnação intelectual.
É importante ainda se destacar que esta deficiência na formação do professor-
leitor cujas conseqüências são facilmente percebidas nas práticas de leituras
improdutivas na sala de aula, tem também origem nos cursos de graduação em Letras.
Um olhar mais detalhado para a formação de leitores neste curso revela que a prática
de leitura muitas vezes inexiste durante os anos de formação acadêmica.
É fundamental que cada professor perceba que seu ofício é intensamente
permeado por práticas contínuas e complexas de leitura. Segundo LAJOLO (1985), se
as relações do professor com os livros forem frágeis, grandes são as possibilidades de
que sua atuação como agente formador de leitores deixe muito a desejar.

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A formação do leitor e a leitura de literatura
Michéle Petit tem publicado trabalhos nos quais faz reflexões sobre a
formação do leitor e os desafios daqueles que trabalham com a literatura. A seguir,
retomaremos algumas questões, apresentadas por esta estudiosa, que podem
enriquecer nossa compreensão sobre a identidade do professor e os desafios que este
enfrenta para desenvolver programas de leituras junto aos estudantes.
Segunda a autora, em A arte de ler, a formação do leitor não se realiza com
uma supervisão de pais, professores e profissionais da área que os convence da
importância da leitura. Quando o professor impõe a leitura, destituindo o aluno do
prazer da leitura, não há uma experiência saudável com o texto. Não há diálogo. Lê-se
para mergulhar em dimensões profundas da alma. Lê-se para encontrar respostas que
consigam dar sentido àquilo que não tem sentido nenhum.

Do nascimento à velhice, estamos sempre em busca de ecos do que


vivemos de forma obscura, confusa, e que às vezes se revela, se
explicita de forma luminosa, e se transforma, graças a uma história,
um fragmento ou uma simples frase. E nossa sede de palavras, de
elaboração simbólica, é tamanha que, com freqüência, imaginamos
assistir a esse retorno de um conhecimento sobre nós mesmos
surgindo sabe-se lá de que estranhas fontes, redirecionando o texto
lido a nosso bel-prazer, encontrando nele o que o autor nunca teria
imaginado que o havia colocado. (PETIT, 2009, p. 112)

Esta experiência de leitura jamais pode ser imposta. O prazer do texto advem
da função catalisadora da leitura que coloca o leitor num processo de síntese e de
reflexão de sua própria experiência na direção de novas possibilidades de compreender
a realidade que o circunda.

Mitos, contos, lendas, poesias, peças de teatro, romances que


retratam as paixões humanas, os desejos e os medos ensinam às
crianças, aos adolescentes, aos adultos também, não pelo
raciocínio, mas por meio de uma decifração inconsciente, que
aquilo que os assusta pertence a todos. São tantas as pontes
lançadas entre o eu e os outros, tantos os vínculos entre a parte
indizível de cada um e a que é mostrada aos outros.

A leitura significativa para um leitor é aquela que o coloca em estado de


perda, aquela que o desconforta, que faz vacilar suas bases psicológicas, culturais e
históricas, mesmo em contextos marginalizados.
Vale ressaltar que não é qualquer texto que é capaz de colocar o sujeito em
xeque. O professor, como leitor experiente, deve ter experimentado este poder
transformador e organizador da realidade que a leitura pode propiciar. É aqui que entra
a necessidade de formação do professor. Não é qualquer texto que pode oferecer tal
experiência. Cresce assustadoramente a quantidade de narrativas esteriotipadas,
repetidas à exaustão que não desafiam o leitor na atividade do pensar, do refletir.

A contribuição vital da leitura na adversidade, observada há muito


tempo, não é portanto o apanágio daqueles que foram introduzidos
precocemente nos usos da cultura escrita; tampouco é próprio de
uma idade ou de certas gerações. Quando dispositivos do tipo que

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evoquei existem, as crianças, os adolescentes, os adultos fazem uso
de fragmentos de obras literárias para fundar um trabalho de
construção ou reconstrução de si mesmos, ainda quando cresceram
bem longe dos livros. (PETIT, 2009, p. 284)
O domínio da cultura escrita é condição essencial para o professor. Sem ela, é
impossível se pensar no papel mediatizador do docente. Se o professor não se constitui
leitor, como pensar em criar condições de desbloquear os alunos em relação à leitura.
Não há como exercer plenamente a cidadania quando se inábil para se compreender os
discursos e para se perceber como sujeito com voz ativa nos espaços públicos.

[..] compreendemos que a literatura, a cultura e a arte não são um


suplemento para a lama, uma futilidade ou um monumento
pomposo, mas algo de que nos apropriamos, que furtamos e que
deveria estar à disposição de todos, desde a mais jovem idade e ao
longo de todo o caminho, para que possam servir-se dela quando
quiserem, a fim de discernir o que não viam antes, dar sentido a
suas vidas, simbolizar as suas experiências. Elaborar um espaço
onde encontrar um lugar, viver tempos que sejam um pouco
tranqüilos, poéticos, criativos, e não apenas ser o objeto de avalia-
ções em um universo produtivista. Conjugar os diferentes univer-
sos culturais de que cada um participa. Tomar o seu lugar no devir
compartilhado e entrar em relação com outros de modo menos
violento, menos desencontrado, pacífico. (PETIT, 2009, p. 289)

É necessário que o professor enxergue a leitura como possibilidade de


descoberta. O contato com a leitura literária deve sempre proporcionar desvelamento,
resposta para o grande enigma da existência humana. Michèle Petit encerra o livro A
Arte de ler afirmando que “a literatura não é uma experiência separada da vida; a
literatura, a poesia e a arte estão também na vida; é preciso prestar atenção”. (p. 292)

Os jovens e a leitura - escola


Em Os jovens e a leitura, Petit discute também sobre o papel do professor na
formação do leitor jovem. Em suas pesquisas, é recorrente a afirmação de jovens para
o fato de que a escola tem sido um espaço desestimulador de leitura, uma vez que no
ambiente escolar ler é sempre obrigação.
Estes jovens não veem o ato de ler como aprisionamento. Há uma atitude
controladora, de dominação dos leitores. Os livros didáticos corroboram para esta
visão quando controlam o modo como um texto deve ser lido, compreendido e
interpretado.
O professor precisa entender que o ato de ler é sempre uma experiência de
liberdade.
Na realidade, os leitores apropriam-se dos textos, lhes dão outro
significado, mudam o sentido, interpretam à sua maneira,
introduzindo seus desejos entre as linhas: é toda alquimia da
recepção. (PETIT, 2008, p. 26)

A recepção de um texto por seus leitores ultrapassa os limites impostos por


uma única leitura autorizada. É fundamental que o professor se desvencilhe desta
concepção controladora que tem caracterizado a leitura em ambiente escolar.

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É necessário que a escola e os professores construam uma nova percepção da
leitura e dos mecanismos que contribuem para formação do leitor.

O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele


reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce,
reemprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas
ele também é transformado: encontra algo que não esperava e não
sabe nunca aonde isso poderá levá-lo. (p. 29)

O leitor jovem precisa ver no ato de ler uma atividade libertária. A leitura
desestrutura o mundo e as certezas do leitor, oferecendo-lhe outras possibilidades de
enxergar sua própria experiência.

[...] ler permite ao leitor, às vezes, decifrar, às vezes, decifrar sua


própria experiência. É o texto que “lê” o leitor, de certo modo é ele
que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões
dele que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto
constituem o leitor, lhe dão um lugar. (PETIT, 2008, p. 38)

Embora a leitura aparentemente pareça um ato de isolamento, de solidão, o


texto insere o adolescente no mundo de forma diferente, colocando-o diante da
realidade, exigindo dele uma posição crítico-reflexiva.
Michèle Petit aponta algumas razões para que a leitura seja estimulada pelos
professores na escola. Os jovens precisam perceber na leitura uma prática necessária
para sua inserção no mundo. A leitura oferece possibilidade de transformar sua
experiência individual e social.
Segundo a autora, “a leitura é um meio para se ter acesso ao saber, aos
conhecimentos formais” (p. 61). Desta forma, a leitura abre uma porta para o mundo
de conhecimento produzido ao longo de séculos, nos colocando a par das múltiplas
formas de compreender o mundo que a humanidade construiu.
O segundo aspecto destacado pela autora é que “a leitura é também uma via
privilegiada para se ter acesso a um uso mais desenvolto da língua” (p. 66). O hábito
de ler coloca o leitor em contato com as várias possibilidades da língua. A leitura
oferece várias maneiras de organizar o pensamento. “Ousar tomar a palavra, pegar a
pena, são gestos próprios de uma cidadania ativa [...]”, afirma Petit (p.68).
O aspecto mais relevante destacado pela pesquisadora diz respeito ao valor
qualitativo, formativo da leitura.

Porém, a habilidade desigual para servir-se da linguagem não


pressagia somente uma posição mais ou menos elevada na ordem
social. A linguagem não pode ser reduzida a um instrumento, tem a
ver com a construção de nós mesmos enquanto sujeitos falantes.
[...] o que determina a vida dos seres humanos é, em grande
medida, o peso das palavras ou o peso de sua ausência.” (PETIT,
2008, p. 71)

Esta experiência enriquecedora não é possível com qualquer livro. A leitura de


qualquer texto deve primar pelo quesito qualidade. Não é todo texto que é capaz de

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tornar inteligível a nossa experiência caótica. Tal experiência não pode ser
transformada em um dado numérico ou termos estatísticas.

[...] uma das dimensões essenciais da leitura, mencionadas com


frequência pelos leitores quando relembram sua descoberta de
textos: seu encontro com as palavras que lhes permitiram
simbolizar suas experiências, dar sentido ao que viviam, construir-
se. (PETIT, 2008, p. 78)

A autora aponta ainda outros dois aspectos muito interessantes: a leitura


amplia nossos horizontes de referência e oferece novas formas de sociabilidade.

Ler, como vimos, é conhecer a experiência de homens e mulheres,


daqui ou de outros lugares, de nossa época ou de épocas passadas,
transcritas em palavras que podem nos ensinar muito sobre nós
mesmos, sobre certas regiões de nós mesmos que ainda não
havíamos explorado, ou que não havíamos conseguido expressar.
Ao longo das paginas, experimentamos em nós, a um só tempo, a
verdade mais subjetiva, mais íntima, e a humanidade
compartilhada. (PETIT, 2008, p. 94)

Considerações finais
A percepção do que deve significar a leitura para o jovem precisa ocupar
maior espaço nas reflexões escolares. Professores precisam se constituir leitores
competentes a fim de que possam influenciar positivamente os discentes na sua
inserção no mundo da escrita. Precisam ver nesta atividade uma chave imprescindível
para o exercício da cidadania. No entanto, só um leitor experiente pode perceber a
diferença entre uma leitura de pura distração, e entretenimento, de uma leitura
transformadora, inquietante, que abala as certezas do sujeito, colocando em xeque seus
valores individuais e os valores.da sociedade.
O que está em jogo na leitura é a possibilidade de conduzir cada leitor, indepen-
dentemente de sua faixa etária, ao exercício pleno de uma cidadania ativa que, segun-
do Michèle Petit, “não é algo que cai do céu, é algo que se constrói” (2008, p. 101).

Referências bibliográficas
LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (Org.). Leitura em crise
na escola. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
SANTOS, Fabiano dos; NETO, José C. Marques; RÖSING, Tania M. K. Mediação de
Leitura: discussão e alternativas para formação de leitores. São Paulo: Global, 2009.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Formação de leitores literários: o professor leitor. In:
SANTOS, Fabiano dos; NETO, José C. Marques; RÖSING, Tania M. K. Mediação de
Leitura: discussão e alternativas para formação de leitores. São Paulo: Global, 2009.
PETIT, Michèle. A arte de ler. São Paulo: Ed. 34, 2009.
________. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Ed. 34, 2008

Recebido para publicação em 12-11-10; aceito em 25-11-10

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