Aristoteles Horacio Longino - A Poetica Cropped

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A POETICA CLAsSICA

Aristóteles. Horácio e Longino

A despeito dos muitos séculos decorridos desde a época em que


foram originariamente escritos, bem como da circunstância de repre-:
sentarem a teoria ou preceptlstica de uma prática literária muito dife-
rente da nossa, os três textos reunidos neste volume ainda têm plena
atualidade. Isso porque tanto a Poética, de Aristóteles, quanto a Arte
Poética, de Horàcio, e o Tratado do .Sublime, de Longino, que lhe re-
colheram e ampliaram as lições, representam uma visão de conjunto
extremamente lúcida da essência e. da finalidade da literatura como arte.
Do seu valor histôrico e da sua permanente atualidade dá testemunho. > .;

quando mais não fosse, o fato de, em nosso século, primeiramente a


Nova Crítica americana, depois o Estruturalismo francês, e, mais re-
centemente, a Hermenêutica ou Estética da Recepção alemã, terem a
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APOETICA
eles voltado em busca de novos pontos de partida para a sua teorizaçào
acerca da práxis literária. Daí o excepcional interesse, para professores
e estudantes de Letras, assim como para outros leitores que tenham a
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;CLÃSSICA
atenção voltada para tal campo de estudos, deste volume onde se coli-
gem, para maior comodidade de leitura, consulta e cotejo, os três
textos fundamentais da Poética clássica. Foram eles traduzidos direta- _r~~
mente do grego e do latim, "e anotados, pelo Pro]. Jaime Bruna, do )\,1

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filo-


sofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. e a
seu respeito escreveu o Prof. Roberto de Oliveira Brandão, do mesmo
Departamento, o estudo introdutório também aqui recolhido.

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EDITORA CULTRIX
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ARISTOTELES, HORÁCIO, LONGINO

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A POÉTICA CLÁSSICA
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP Introdução
ROBERTO DE OLIVEIRA BRANDÃO
Aristóteles, 384-322A.C. (Professor-assistente doutor de Literatura Brasileira
A 75p Apoética clássica/ Aristóteles, Horácio, Longino; introdução .da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
7. Ed. por Roberto de Oliveira Brandão; tradução direta do grego e do Humanas da Universidade de São Paulo)
latim por Jaime Bruna. - 12, Ed. :-:::-São Paulo: Cultrix: 2005.

1. Poética I, Horácio, 65-8A"!C. 11.Longino, 2137-273. III


'1 Tradução direta do grego e do latim
Brandão, Roberto de ali veira,: 1.~34- N. Bruna, Jaime, 1910-
V. TItulo. ,I JAIME BRUNA
81-0649 CDD-808.1 (Professor-assistente doutor de Latim da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo)

Índices para catálogo sistemático:

1. Arte poética: Retórica: Literatura 808.1


2. Poética: Retórica: Literatura 808.1

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EDITORA CULTRIX
São Paulo
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Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzi da ou
usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive
fotocópias, gravações ou sistema de armazenarnento em banco de dados, sem
permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas
ou artigos de revistas.

SUMÁRIO

TRÊs MOMENTOS DA RETÓRICA ANTIGA tRoberto de Oliveira


Brandão)

Aristóteles
ARTE POETICA 19

Horácio
ARTE POETTCA 55

Longino ou Dionisio
DO SUBLIME 70

o primeiro número à esquerda indica a edição, ou reedição, desta obra. A primeira


°
dezena à direita indica ano em que esta edição, ou reedição foi publicada.

Edição Ano
] 6-] 7-] 8-] 9-20-2 ]-22 11-]2-13-14-15-16-] 7

Direitos reservados
EDITORA)'ENSAMENTO-CULTRlX LTDA. , ,
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Foi feito o depósito legal.

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TREs MOMENTOS DA POÉTICA ANTIGA1

1. A P.O~TICA DE ARISTOTELES: DA REFLEXÃO A LEI

1.1. Como reflexão sobre às problemas da arte em geral e em


especial sobre a literatura, a Poética aristotélica ocupa hoje um lugar
relevante. A trajetória de sua importância começa efetivamente no
século XVI, pois mal conhecida durante a Idade Média, através de
compilações siríacas e árabes, só em 1498 sai a público a primeira
edição latina feita sobre o original grego cuia impressão apàrece ape-
nas em 1503. A partir desse momento sua influência e seu poder
estimulante serão cada vez maiores. .
Nas inúmeras leituras - traduções, comentários, estudos - que
até os nossos dias já se fizeram de seu' texto ou por sua inspiração,
os conceitos ali emitidos ora são vistos globalmente como problemas
a serem resolvidos e esclarecidos, daí o permanente trabalho exegé-
tico a que tem sido submetido, com que se procura chegar ao sentido
"exato" de suas palavras, ora tais conceitos são encarados isolada- L
mente e aprofundados como formulações deiinidoras do específico .
literário enquanto postura teórica preocupada em explicar o funcio-
namento da literatura, independente do contexto aristotélico original,
ora são considerados, no extremo oposto, como soluções práticas que
devem orientar tanto a criação quanto a crítica de obras concretas.
Estas três tendências na verdade não são estanques, mas inter-
penetram-se freqüentemente. Aquilo que em Aristóteles correspondia
certamente a um trabalho de reflexão a partir de uma realidade histó-
rico-artística-cultural pode dar lugar, e isso de fato aconteceu, ou a um
critério estratijicaâo que se aplicava às formas artísticas, ou, no melhor
caso, a um estímulo para reproduzir os atos de observação e de refle-
xão -capazes de encontrar no novo a dinâmica interna que permanece.

1. Ver do Autor A Tradição Sempre Nova. São Paulo, Atica, 1976.


1.2. Apesar disso, podemos dizer que a primeira tendência tem
sua forma exemplar nos comentários realizados pelos humanistas ita-
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ria desse conceito. No capítulo IX, quando o filó~ofo discute a dis-
tinção entre história e poesia, o problema central é exemplarmente
lianos do Renascimento. Foram eles que praticamente estabeleceram colocado:
a doutrina aristotélica da literatura que se difundiu nos países oci-
dentais, traduzindo, comentando, interpretando, e, em muitos casos,
"Ê claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta
recriando a Poética. De 1527, data em que Girolamo Vida publicou não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais
sua De arte poetica, até 1570, quando sai uma das mais importantes podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança
obras do renascimento italiano, a Poetica d'Aristotile vulgarizzata e ou da necessidade.
sposta de Castelvetro, a visão renascentista da teoria aristotélica da
Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o
literatura já apresenta seus contornos definitivos. Foram seus artí- poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria
fices, entre outros, Vida (1527), Robortello (1548), Segni (1549), menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença
Maggi (1550), Vettori (1560), Giraldi Cinthio (1554), Minturno está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais
(1559), Scaliger (1561), Trissino (1563), Castelvetro (1570). O papel podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e
elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais;
deste último foi decisivo no sentido de "recriar" a Poética aristotélica. esta relata fatos particulares." (Poét., IX)
René Bray diz que ele "não se contenta em explicar seu texto, como
haviam feito os Vettori e Robortello, ele deduz, acrescenta, modifica
mesmo, e constrói assim sobre as bases fragmentárias da Poética toda Observa-se que, embora importante, a verossimilhança é apenas
uma poética pessoal". 2 um dos componentes da poesia, importante porque, ao situá-Ia na
esfera do possível, aproxima-a da filosofia (o que não admitia Platão)
Independentemente do maior ou menor significado de cada um sem afastá-Ia da experiência comum de todo ser humano (no capítulo
daqueles estudiosos renascentisias, o que importa notar é a homo-
IV da Poética ele dirá que o "imitar é natural ao homem").
geneidade de suas preocupações: conhecer, explicar, difundir as for-
mulações aristotélicas. Nem destoam desse quadro as divergências, Em outro lugar, ao tratar dos problemas críticos, ele relaciona o
como a de Giraldi Cinthio que nos Discorsi (1554), procura legiti- ato experimental que deve orientar a criação da obra com a atitude
mar uma forma poética para a qual Aristóteles não havia legislado, o do receptor:
romanzo, espécie heróica criada por Ariosto e Boiardo. Na mesma
linha, Minturno em 1563 escreve uma Arte poetica em que coloca o "Quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível
romanzo ao lado da epopéia, além de buscar os exemplos não mais que não convença" (lbid., XXIV).
nas literaturas grega e latina, mas na italiana de seu tempo. Fatos
como esses, aliás, mostram que os.ieáricos renascentistas nem sempre
Pormuidções sugestivas como essas, que colocam não apenas o
obedeciam cegamente ao pensamento dos Antigos, mas, pelo contrá-
problema da relação da literatura com a realidade, mas também o pro-
rio, estavam atentos ao que se passava na produção viva de sua época.
blema da convencional idade do real artístico, isto é, que sugerem um
1.3. A segunda tendência por mim referida, a de encarar iso- compromisso entre o processo de representação como fator construti-
ladamente certos conceitos aristotélicos como fonte estimulante para vo e a natureza da realidade representada como efeito de sentido, não
novas observações e novas reflexões sobre o fenômeno artístico, pode é de admirar que tenham sido objeto de longas e acaloradas discussões
ser localizada em nossos dias. Tomemos o conceito de verossimilhan- durante o Renascimento italiano e o Neoclassicismo francês. Mas se
ça, que pertencia tanto JjO arsenal poético quanto ao retórico. A ma- nesses momentos históricos o problema da verossimilhança [oi.sempre
neira como o enunciou Aristóteles na Poética, por sua concisão e abordado dentro do contexto da poética como um todo, nos nossos
contundência, teve certamente papel decisivo na longa e rica traietô- dias o conceito é retomado isoladamente como problema autônomo
que tanto se aplica ao discurso literário como ao cinema, à publici-
2. Forma/íon de Ia doctrine classique. Paris, Nizet, 1963, p. 39. dade, à psicanálise, ele. Tal é o sentido dos estudos realizados pela

2 3
revista Communication 11 onde vários autores estudam o conceito de
criadora dos Antigos se encontra petrificada na ideotogia paralisante
verossimilhança dentro do campo de suas especialidades e interesses. 3 dos valores eternos, como se observa nestas palavras de um manual
1 .4. Finalmente, a tendência para ver na Poética (e na Retórica) usado no Colégio Pedra II do Rio de Janeiro:
um preceituário de soluções práticas que deviam orientar a criação
e a avaljação das obras concretas foi representada pelos manuais de- "Os antigos e primeiros ordenadores das, regrase preceitos tiveram
a intuição da verdade; estudaram muito acuradamente as leis
Retórica e Poética publicados durante o século XIX.
eternas e imutáveis da inteligência humana e por isso irá sempre
Tributários não aoenas de Aristóteles, mas também de outros muito seguro aquele que lhes for ao encalço." S
teóricos antigos, Horâcio, Cícero, Longino, Ouintíliano, esses manuais
sintetizam um momento do longo e lento processo de enrijecimento Mas é necessário lembrar, mais uma vez, que esse estágio não
das primitivas rejlexôes sobre a literatura. A crença na possibilidade surgiu já acabado. Nem sempre os nossos autores iam diretamente às
de disciplinar a força criativa interior, isto é, o talento ou o engenho, fontes antigas. Entre estas e aqueles se interpuseram outros autores
através da habilidade técnica jornecida pela arte (conceitolatino que que, a seu modo, já vinham realizando o mesmo processo de dilui-
traduz a palavra grega techne) estava na origem dos manuais e repre- ção, principalmente durante o século XVIII, entre eles: Lamy, 6 Gi-
sentava, em princípio, um esforço da razão por encontrar explicações bert, 7 Blair 8 e, já no século XIX, os portugueses Freire de Carva-
para a natureza e o funcionamento da obra literária. Do ato de refle- lho 9 e Borges de Figueiredo, 10 para citar apenas dois.
xão, que cria um conhecimento, à transmissão deste em forma de pre- Para nós, hoje, essas diferentes tendências de leitura e interpre-
ceito ou de regra foi um passo que a escola se encarregou de dar. In- tação da Poética aristotélica, bem como de outras obras antigas, assu-
tegrados no processo escolar, aqueles manuais passaram por um traba- mem um significado didático muito importante, pois mostram que, se
lho de simplificação e de diluição dos antigos conceitos, transjorman- por um lado, aquele texto goza de um grande poder sugestivo, por
do-os em leis rígidas e permanentes. 4 outro, revela que cada época vê' e compreende o passado de acordo
Paul Valéry descreve a passagem do ato de reflexão inicial, cal- COm suas próprias maneiras de pensar, e o significado histórico do
cado na observação dos procedimentos artísticos, para o estabeleci- texto resulta, em última instância, da interação das diversas formas
mento' da lei e da regra que devem ser obedecidas cegamente: de leitura ocorridas. E, pois, nesse quadro que se insere a necessidade,
sempre renovada, de voltarmos, diretamente, ao texto da Poética para
..Mas, pouco a pouco, e em nome da autoridade de grandes que a constelação de soluções já cristalizadas não impeça o exercício
homens, a idéia de uma espécie de legalidade foi íntroduzida e
substituiu as recomendações iniciais de origem empírica. Racio-
cinou-se e o 'rigor da regra se fez. Ela exprimiu-se em fórmulas 5. Silva, Dr. José Maria Velho da. Lições de Retórica. Rio, Serafim
precisas; a c'rítica armou-se; e então seguiu-se esta conseqüência José Alves, editor, s/d. (1882).
paradoxal: uma disciplina das artes, que opunha aos impulsos
do poeta dificuldades racionais, conheceu um grande e durável
6. Larny, Bernard. La Rhétorique ou l'Art de parler. ôê. éd., La Haye,
[737 (I.' ed. 1699).
prestígio devido à extrema facilidade que ela dava para julgar
e classificar as obras, a partir da simples referência a um 7. Gibert, Pe. Balthasar. Retórica ou Regras da eloqüência. Traduzida
código ou a um cânon bem definido." do francês. Porto, na oficina de Antônio Alvarez Ribeiro, 1789. 2 v.
8. Blair, Hughes. Cours de Rhétorique et de Be/les Letlres. Genêve, 1808
Tal fenômeno pode ser constatado nos numerosos manuais utili- (J.' ed. inglesa em 1782).

zados nas escolas brasileiras do século passado, onde a observação 9. Carvalho, Francisco Freire de. Lições elementares de Eloqüência
Nacional. 6.' ed., Lisboa, Tip. Rolandiana, 186[ (I.' ed. 1834).
---, Lições elementares de poética nacional. 3.' ed. Lisboa, Tip. Rolan-
3. Communicction li Recherches Sémiologiques _ Le Vraisemblable. diana, 1860 (I.' ed. 1840).
Paris, Seuíl, 1968.
10. Figueiredo, A. Cardoso Borges de. Instituições Elementares de Retórica.
. 4. Valéry, Paul. "Prerniêre Leçon du Cours de Poétique". I n Oeuvres I,
Paris, Gallirnard, 1957, págs. 1341-1342. J2.' ed. Coirnbra, livraria Central de f. Diogo Pires, 1883 (I.' ed. 1851
em latim).

4
5
da reflexão pessoal, o que constitui, certamente, a maior lição deixada central' o mérito da obra em qualidades que lhe parecem inerentes, a
pelo estagirita. economia, que impõe eliminar o supérfluo que cansa o ouvido, 12 o
equilíbrio, que leva a condenar tudo aquilo que vai além da justa
expressão do pensamento, 13 e a harmonia, que não admite transigir
2. A ARTE PO~TICA DE HORACIO: O TRABALHO E A DISCIPLINA com a unidade do poema. 14
COMO FATORES CRIATIVOS
2.2. Tais preocupações antecipam um dos pontos centrais do
2.1. A Epistola ad Pisones, mais conhecida pela designação de classicismo horaciano desenvolvido na Arte Poética: a obra é regida
Ars Poetica como lhe chamou Ouintiliano (Inst. Or., VIII, 3), expres- por leis que podem ser apreendidas e formuladas. O que certamente
sa o pensamento literário maduro de Horâcio e historicamente exerceu não suspeitava Horâcio é que a racionalidade antevista na organização
importante papel na constituição daquilo que se costuma entender pela da obra como qualidade objetiva estava em verdade comprometida
expressão "teoria clássica da literatura". Ela foi escrita nos últimos com o projeto da arte representativa e com os valores de sua época.
anos da vida do poeta, provavelmente entre 14-13 a.C. E sintomática a rejeição com que o crítico inicia a Arte Poética, rela-
Antes da Arte Poética, Horácio havia composto seis poemas onde tivamente a um suposto quadro sem unidade, que ele julga absurdo:
tratava de problemas literários, três sátiras (I, 4; I, 10; Il, 1) e três
epístolas (I, 19; II, 1; Il, 2). Algumas das posições aí assumidas serão "Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça
humana um pescoço de cavalo, ajuntar membr-os de toda prece-
depois retomadas e aprojundadas na Arte Poética, mas é de se notar dência e cobri-Ias de penas variegadas, de sorte que a figura, de
que revelam já certas direções básicas de seu pensamento: a procura mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto;
de perfeição, a busca do equilíbrio expressivo, a valorização da poe- entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o
riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com um quadro assim seria
sia contemporânea, a limitação da audiência como critério do gosto, um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais
etc. De um modo geral tais aspectos inserem-se no sentido pragmático sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se
que foi sendo forjado pelo pensamento romano e se cristalizarão nas combinassem num ser uno." (Arte Poética, 1·9)
frases e expressões de certa maneira emblemáticas contidas na Arte
Poética. Muito da rigidez que marcará os manuais de Poética de ex- Embora recuse aceitar esse quadro "fantástico", Horâcio tem
tração clássica posteriores está certamente preiigurada nas formas lapi- consciência de que há sempre uma lógica interna que comanda a
dares com que a Arte Poética coloca os problemas literários. composição da obra, e que a unidade nasce da ordem dos componen-
Mas é necessário observar que naquelas obras não atingira ainda tes, o que implica. em última instância, na seleção dos aspectos a
H orâcio a precisão e a síntese que o caracterizariam na Arte Poética. serem reunidos em função do efeito totalizante final, como ele mostra
em outro lugar:
Pelo contrário, nota-se lá uma procura permanente da expressão exata,
procura que se traduz na reiteração de certos temas e no tom polê-
"A força e a graça da ordenação, se não me engano, está em
mico com que os aborda, como se o crítico não tivesse encontrado dizer logo o autor do poema anunciado o que se deve dizer logo,
ainda sua formulação ideal. Aliás, essa atitude mostra um aspecto diferir muita coisa, silenciada por ora, dar preferência a isto,
particular do pensamento horaciano: a busca de perfeição pelo traba- menosprezo aquilo." (lbid. 42-45; ver também 151-152).
lho constante combina-se com a recusa às formas já cristalizadas. Nesse
sentido seu classicismo, ao acentuar o fator trabalho, opõe-se a certas Essa percepção do caráter construtivo da obra de arte estava bem
tendências posteriores de ver no classicismo não a busca de perfeição, l'ivaentre os artistas e os pensadores antigos e constituí um dos fato-
mas a reprodução das fq~'mas de perfeição já atingidas. res
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de sua permanente atualidade. Mas. se neles as estruturas ;,assumi-
Observa-se, portanto, nessas primeiras obras, um Horácio anti-
dogmático, recusando os valores preestabelecidos 11 e preocupado em 12. Sátiras 1, 10, 9-10.
n lbid. 1. 10. 67·70.
11. Epístolas 11. 79-85. J4 Fpisrol as 11. 1. 73-75.

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ram seu modo particular de ver e sentir o mundo, isso decorreu do "Já se perguntou se o que faz digno de louvor um poema é a
compromisso histórico entre forma e conteúdo, fato que não perce- natureza ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem
beram 03 repetidores e diluidores da poética clássica, que tomaram o uma veia rica; o esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um
pede ajuda ao outro, numa conspiração amistosa. Muito suporta
acidental (as soluções dadas) pelo essencial (a busca de soluções ade- e faz desde a infância, suando, sofrendo o frio, abstendo-se do
quadas a novas necessidades). ,_
' - amor e do vinho, quem almeja alcançar na pista a desejada meta;
o flautista que toca no concurso pítico estudou antes e temeu
2.3. Se a ordem e a unidade constituem os fatores estruturan- o mestre." (lbid., 408-415)
tes relativos à obra acabada, a razão, o trabalho e a disciplina são os
meios com que o poeta realiza seu objetivo. Embora para Horácio o Observa-se que para Horácio o trabalho do poeta não se restrin-
princípio da mediania, a aurea mediocritas,15 seja o ideal como pro- ge ao momento singular da criação, mas representa o acúmulo da
jeto de vida e possa ser aceitável como qualificação profissional, ao experiência criativa" entendida esta como disciplina interior e como
poeta tal atributo é absolutamente inadmissível, como ele declara:' domínio dos atos criativos. E essa atividade vai além, não termina
com a obra acabada, pois compreende ainda a necessidade de refazer
. "Recolha na memória isto que lhe digo: é d;'justiça, em deter- o que já foi feito, toda vez que a consciência artística julgar con-
minadas matérias, consentir com o mediano e o tolerável; o veniente:
jurisconsulto e o causídico medíocres estão longe do talento do
eloqüente Messala e não sabem tanto quanto Aulo Cassélio,
têm, não obstante, o seu valor. Aos poetas, nem os homens, nem "se você compuser versos, nunca o enganarão os sentimentos
os deuses, nem as colunas das livrarias perdoam a mediocridade," ocultos sob a pele da raposa. Quando se recitava alguma coisa
(Arte Poética, 367-373) a Quintílio, ele dizia: "Por favor, corrige isto e também isto";
quando você, após duas ou três tentativas frustradas, se dizia
incapaz de fazer melhor, ele mandava desfazer os versos mal
E O poeta só atingirá a perfeição se tiver pleno domínio do ma- torneados e repô-Ios na bigorna. Se, a modificar a falha, você
terial criativo, o que não será possível senão através da razão, do preferia defendê-Ia, não. dizia mais uma única palavra, nem se
trabalho e da disciplina, instâncias diferentes de uma mesma ativi- dava ao trabalho inútil de evitar que você amasse, sem rivais,
dade de busca de perfeição artística. Essas três instâncias estão implí- a si mesmo e à sua obra." (lbid., 436-444).
citas no conceito de arte. Nesse sentido, a razão representa o círculo
mais amplo enquanto consciência das necessidades face aos meios à Esta última objeção - o fato de o poeta ficar restrito à sua pró-
disposição do poeta ou a serem criados. E ela que o aconselha a medir pria subjetividade por não aceitar críticas - mostra um dos aspectos
as próprias forças: . mais importantes da concepção horaciana sobre a poesia: a atitude
'crítica está implícita no ato criativo. Por outro lado, esta autocons-
"Vocês, que escrevem, tomem um tema adequado a suas forças; ciência da poesia como capacidade de refletir sobre si mesma repre-
ponderem longamente o que seus ombros se recusem <1 carregar, senta uma resposta dada pelo Classicismo diante da triplice condena-
o que agüentemo A quem domina o assunto escolhido não faltará ção platônica: à inconsciência do poeta, ao ilusionismo da poesia e
eloqüência, nem lúcida ordenação." (lbid., 38-41)
ao poder encantatório da medide, do ritmo e da harmonia enquanto
componentes do poema.
Na realidade, o artista clássico é inimigo da improvisação. A obra
obtida está sempre condicionada ao trabalho posto em ação, desde o 2.4. Vê-se, pois, que a atitude do poeta prejigura o papel da
plano esboçado no pensamento até a execução concreta final. Mas Ho- audiência como fator implícito no poema. O destinatário de certa
râcio toma cuidado em mostrar que o papel da "arte" é inseparável maneira passa a funcionar como co-produtor da obra no sentido em
da "natureza", como fonte autônoma da inspiração, mas que, no seu que sua expectativa determina as exigências estruturais que o poeta
estado bruto, é informe, caótica. Arte e engenho se completam como deve atender se quiser obter a aprovação do público:
instâncias específicas, mas mutuamente compromissadas:
"Ouça você o que desejo eu e comigo o povo, se quer que a
15, Odes, li, 10, 5-8. Ver também Epístolas, r, 18, 9. platéia aplauda e espere, sentada, a descida do pano, até o
ator pedir "aplaudi "." tIbid., 153-155).
8
9
o fator de adesão nasce, portanto, do relacionamento que o pú- adesão. Esta, em última instância, não passa de meio para se atingirem
blico estabelece entre a lógica interna da obra e o que ocorre na sua fins mais importantes, que Platão, embora negasse à arte, entendia
experiência cotidiana onde ele aprendeu a ver um compromisso rela- como a utilidade moral inscrita no conhecimento da verdade, Aristô-
tivamente estável entre as formas do ser e do parecer como processo teles descrevia como uma forma de prazer específico, o autor do
de significação do mundo natural. O riso ou o choro, como manifes- Tratado do Sublime apontaria como a manifestação da elevação da
tações do parecer, por exemplo, revelam a alegria ou a tristeza, que alma humana, e Horácio, na Arte Poética, resume na fórmula visceral-
constituem espécies de ser. Este caso de conveniência (decorum) diz mente romana do utile dulci. (Ibid., 343-344)
respeito à relação ator-espectador:

"O rosto da gente, como ri com quem ri, assim se condói de 3. O TRATADO DO SUBLIME: ENTRE O CAOS E A ORDEM
quem chora; se me queres ver chorar, tens de sentir a dor
primeiro tu; só então, meu Télefo, ou Peleu, me afligirão os 3. 1. Tanto a autoria do Tratado do Sublime quanto a época em
teus infortúnios; se declamares mal o teu papel, ou dormirei,
ou desandarei a rir." (lbid., 101-105) que teria sido composto foram durante muito tempo objeto de con-
jeturas e controvérsias. Hoje apenas a data da composição parece
Mas há outras modalidades de conveniências igualmente neces- definitivamente assentada: a primeira metade do século 1 da era
sárias: entre as palavras de uma personagem e sua postura [acial ou cristã. 16
sua situação, entre seu caráter e sua idade ou seu comportamento, Conforme se pode verificar na leitura do texto, a obra foi escrita
entre o estilo da obra e seu gênero, entre a natureza de certas ações em resposta a um tratado anterior de Cecilio (de Calácte) que o Anô'
e seu modo de apresentação: representadas diretamente no palco ou nimo iulgava insuficientemente desenvolvido e erroneamente orienta-
relatadas por uma testemunha. A representação através de persona- do, pois, segundo suas palavras, "não tocava nos pontos essenciais".
gens em ação cria o efeito de "presentijicação", pois o caráter "vi- Cecilio, segundo os estudiosos, era um dos mais influentes retores gre-
sual" dos fatos confere maior verossimilhança porque os situa mais gos do tempo de Augusto e fazia parte de uma tendência que se ca-
próximos da realidade, exigindo assim do espectador uma participação racterizava pela defesa intransigente do aticismo, isto é, colocava a
mais efetiva; em resumo, a vista compromete mais com o presente do correção gramatical e a pureza da linguagem como qualidades supre-
que o ouvido: mas do discurso. Aticistas eram também Dionisio de Halicarnasso,
amigo de Cecilio, e Apolodoro de Pérgamo, preceptor de Augusto e a
"Quando recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do cujo nome costuma ser ligada essa tendência de volta às formas tra-
que quando, apresentadas à fidelidade dos olhos, o espectador dicionais da língua grega.
mesmo as testemunha." (lbid., 180-181)
Tendência oposta representava Teodoro de Gádara para quem a
A função persuasiva, contida na encenação, só deve ser substi- genialidade, o entusiasmo e a paixão, mesmo com pequenos defeitos,
tuída pela narração quando algum imperativo maior o determinar, superavam a pura correção e a mediocridade. Idéia semelhante ex-
como a economia da obra, a suscetibilidade do espectador e, princi- pressa Horácio quando reconhece que até Homero às vezes dormita
palmente, a inverossimilhança que acontecimentos estranhos ou cho- (A.P., v. 359).
cantes provocam:
3.2. O Anônimo esposa as teorias de Teodoro, e o verificamos
"Não vá Medéia trucidar os filhos à vista do público; nem o em vários momentos de sua obra. Por exemplo, quando refere-se à
abominável Atreu cozer vísceras humanas, nem se transmudará
Procne em ave otr Cadrno em serpente diante de todos. Descreio ---------",---- "
e abomino tudo que for mostrado assim." (lbid., 343-344) 16. Sobre o problema ver a introdução que. para a edição bilíngüe,
escreveu Henri Lebêcgue: Du Sublime. Paris, Societé d'Editions "Les Belles
Lettres", 1952; e PLEBE, Armando. Breve História da Retórica Amiga.
Mas se é fato que a audiência condiciona o modo de composição Tradução e Notas de Gilda Macíel de Barros, São Paulo, Ed. Pedagógica -
da obra, não o é apenas por exigência da necessidade retórica de Ed. da USP., 1978.

10 11

.~
i-i
I,

opinião de Cecília, para quem Lisias, orador aicniense cujo discurso


se caracterizava pela clareza e elegância, era superior a Platão que,
com sua linguagem, cheia de figuras ousadas, [reqiientemente se en-
contrava como que sob a ação de "um transporte báquico" que pro-
" ~... ) mas de que maneira
própria natureza a determinada
poderíamos encaminhar nossa
elevação, isso, não sei por
que, ele negligenciou, como desnecessário." (c. I, 1)

De fato, como livro didático que era, e integrado no espírito


,
;
~
11
,duzia nele "alegorias bombásticas" (c. XXXII, 7). Esta ,posição é pragmático implícito na techné retárica e poética antiga, o Anônimo
'atacada pelo Anônimo que, ironicamente, acusa Cecílio de se deixar está sobretudo preocupado em verificar se o sublime enquanto fenô-
guiar por "dois sentimentos prejudiciais à crítica"; "... amando meno pode ser sistematizado no nível da razão e, conseqüentemente,
Lísias mais que a si mesmo, ainda assim vota mais 6dio a PIatão do se os procedimentos capazes de reproduzi-lo podem ser ensinados.
que amor a Lisias" (c. XXXII, 8). Desse modo, ele dedica toda a parte que nos restou do segundo capí-
No capítulo seguinte o Anônimo formula esse problema fazendo tulo a discutir se existe uma arte do sublime. Lembra que havia
uma pergunta: pessoas que afirmavam ser o sublime um dom inato e que não poderia
ij
ser objeto de estudo sistematizado. Mas ele não partilha, evidente- rt
"Sus, tomemos um escritor deveras límpido e irrepreensível. Não mente, dessa opinião. Pelo contrário, sustenta que o sublime tem em :1
vale a pena submeter a um exame geral exatamente este ponto: si suas próprias leis. Se a natureza é sua fonte, cabe ao método mos- !
se, em poesia e prosa, devemos preferir uma grandeza com I
,.

alguns defeitos, ou uma mediocridade correta, em tudo sã e trar os limites adequados:


impecável?" (c. XXXIII, 1)
" ( ... ) ela constitui a causa. primeira e princípio modelar de toda
Em seguida ele faz outra pergunta, retomando e rejormulando a produção; quanto, porém, a dimensões e oportunidade de cada
obra e, bem assim, quanto à mais segura prática e uso; compete
anterior, mas deixando sugerida a resposta de que o valor do estilo é ao método estabelecer âmbito e conveniência". (c. 11, 2)
um problema qualitativo e não quantitativo:
3.4. Antes de dar início ao estudo das fontes do sublime, julga
"E também, por Zeus! se a preeminência na literatura cabe,
por justiça, às virtudes mais numerosas, ou às maiores." (c.
conveniente o Anônimo levantar duas preliminares. A primeira diz
XXXIII, 1) respeito a certos procedimentos - o estilo afetado, o estilo frio, o
patético inoportuno - que embora não sejam defeitos propriamente
E, como se não bastassem essas opiniões indiretamente formula- ditos, nada mais são do que qualidades frustradas ou por irem além
das, o Anônimo assume o lugar de sujeito de suas afirmações, mos- ou por ficarem aquém do sublime, fato que revela a precariedade de
trando que ele não critica a correção por amor ao erro, mas porque, seus limites:
il
ao se preocupar demasiadamente em não errar, o escritor desviará sua i!
atenção daquilo que realmente deve ser sua preocupação, a expressão .' É que as nossas virtudes e os nossos VIClOS de certo modo
da grandeza e do sublime: costumam ter a mesma origem. Por isso, se os ernbelezamentos
li:
do estilo, os termos elevados e, somados a esses recursos, os do
deleitamento concorrem para o bom resultado literário, esses
"Eu cá, no entanto, sei que as naturezas demasiado grandes mesmos requintes vêm a ser fonte e fundamento tanto do êxito
são as menos estremes; a precisão em tudo acarreta o risco quanto do malogro". (c. V)
da mediania e nos grandes gênios, assim como na excessiva
riqueza, alguma coisa se há de negligenciar". (c. XXXIII, 2)
3.5. Se essa condição preliminar alerta para um risco inerente
ao estrato lingüística que apreende o momento sublime, a segunda,
3.3. Mas ele sabe muito bem que a liberdade absoluta em rela-
para a qual chama a atenção o Anônimo, diz respeito ao amparo ideo-
ção à energia que dá origem ao sublime negaria a própria finalidade
de sua obra, que é encontrar os meios capazes de criar a elevação do lógico, isto é, à concepção que se deve ter da natureza do sublime.
estilo. Aliás, a falta dessa orientação metodol6gica é um dos pontos Este é um trabalho difícil, reconhece ele, porque "o julgamento do
importantes dos motivos de crítica ao tratado de Cecília: estilo é o resultado final de uma longa experiência" (c. VI).

13
Quanto a este aspecto ideológico, o Anônimo indica duas solu- e u todos" são termos englobantes inerentes ao conceito de razão.
ções, uma, pouco desenvolvida no texto, que apresenta o sublime Mas é preciso não esquecer que a poética clássica; pressionada pela
como uma espécie de grandeza de alma aue levá o homem a desprezar crítica platônica, procurou desenvolver um processo capaz de racio-
os bens materiais. E ele alinha os seguintes: "riqueza, honrarias, fama, nalizar a natureza como. meio de conseguir sua legitimidade artistica.
realeza, tudo mais que apresenta uma exterioridade teatral" (c. VII, 1). Além disso ela tem um caráter tautológíco e uma função formadora,
Mas é necessário observar que o desprendimento não pode apli- modelar. As grandes obras clássicas fornecem ao mesmo tempo os
car-se a quem nada possua nem a quem possua bens, mas não possa princípios construtivos e de avaliação, estabelecendo-se assim uma
dispor deles. O desprendimento de alma que caracteriza o sublime cadeia ininterrupia em que a produção e o julgamento são medidos
é o de quem, podendo possuir bens, os despreza: por um único parâmetro. .
O grande interesse desse último trecho do Tratado do Sublime
" ( ... ) mais admiração do que os possuidores deles desperta é que ele formula, talvez pela primeira vez, o caráter circular da teo-
quem, podendo possuí-los, por grandeza de alma os menoscaba." ria clássica da literatura. E tal [ormulação vai ser repetida ainda no
(c. VII, 1) século XIX- Freire de Carvalho em 1840, procurando uma "regra
fixa" para a determinação do gosto, dirá:
3.6. A essa concepção elitista do sublime como matéria da re- " [ ... } aquilo que os homens concordemente admirarem, isso
presentação corresponde outra equivalente aplicada ao receptor da deverá ser tido por belo, e o Gosto verdadeiro e exato será aquele que
mensagem. O modelo do ouvinte ideal é caracterizado por certas mais se conformar com o sentir universal dos homens." 17
qualificações recorrentes: "sensato", com "grandeza de alma" (c. VII, E; no Brasil do século XIX, Lopes Gama, autor de um manual
1), "um homem sensato" (c. VII, 3), e por uma resposta específica de eloqüência, faz eco àquelas palavras:
que representa uma projeção do sublime criado na obra:
"Devemos, pois, reconhecer que no homem há sensibilidade físi-
ca e razão; que umas vezes a sensibilidade física obra só, e então não
"É da natureza de nossa alma deixar-se de certo modo empolgar
pelo verdadeiro sublime, ascender a uma altura soberba, encher-se tem lugar o erro, nem a disputa; que outras vezes também a razão
de alegria e exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que obra por si só, e neste caso ela é a expressão de alguma causa de
ouviu." (c. VII, 3) objetivo, e por conseguinte de universal. Sé se reúnem a sensação e o
juizo, então existem um elemento individual, e um elemento univer-
Desse modo, o Anônimo chega a uma fórmula de avaliação da sal: nós sentimos como indivíduos e julgamos como humanidade; por
obra aparentemente paradoxal. Se há pouco ele considera como pro- outra, o juízo tem uma alçada que se estende fora da esfera pessoal." 18
dutor do sublime apenas aquele que "podendo possuí-tos [tais bens], .3 . 7. Finalmente, estabelecidas aquelas duas advertências, uma
por grandeza de alma, os menoscaba", agora ele alarga ao infinito o sobre os cuidados com a forma da linguagem que apreende e revela
círculo dos ouvintes potencialmente capazes de apreciar o sublime: o sublime, outra sobre o conceito que o define e o torna possível,
está o Anônimo em condições de abordar as fontes da elevação do
"Em resumo, -considera belas e verdadeiramente sublimes as pas- estilo.
sagens que agradam sempre e a todos. Quando. pois, mau grado
da diversidade das ocupações, do teor de vida, dos gostos, da São cinco as fontes do sublime literário. As duas primeiras dizem
idade, do idioma, todos ao mesmo tempo pensam unânimes o respeito aos pensamentos e aos sentimentos, isto é, a faculdade "de
mesmo a respeito duma mesma coisa, então essa, digamos assim,
sentença concorde de juízes discordes outorga ao objeto da admi-
ração uma garantia .sólida e incontestável." (c. VII, 4) 17.- .Carvalho, Francisco Freire de. Breve Ensaio sobre a crítica literária
ou Metajisica das Belas-Letras; para servir de continuação às Lições Elemen-
taresde Eloqüência e de Poética Nacional, pp. 2617. Em Lições elementares de
Essa postura, entretanto, deve ser compreendida dentro da situa- Poética Nacional, 6." ed., Lisboa, Tip. Rolandiana, 1860 (1.' ed. 1840).
ção da poética clássica onde o caráter universalizante da razão de- 18. Gama, Miguel do Sacramento Lopes. Lições de Eloqüência Nacional.
termina a natureza da apreciação individual. As expressões "sempre" 2 vols. Rio, Tip. Imparcial de F. de Paula Brito, 1846. 2.° vol., p. 3.

14 15
atear-se a pensamentos sublimados" e "a emoção veemente e inspi-
rada". São os fatores psíquicos, disposições inatas, que constituem o
objeto da representação. As três últimas fontes, "as figuras", "a no-
breza da expressão" e "o ritmo", são de natureza lingüística, e, por-
tanto, produtos da arte. ,- '-
Observe-se que tal divisão reproduz o duplo modelo proposto
pela retórica antiga: a relação "natura] ars" que comanda a ati viclade
criativa e correlata à relação "resf verba" que constitui a matéria da
criação, o discurso.
Portanto, apesar das diferenças, os dois grupos de fontes se com-
plementam. Aliás o Anônimo declara que "I ... ] no discurso ( ... ) O ARTSTÓTELES
pensamento e a linguagem se implicam mutuamente" e que "a beleza
das palavras é luz própria do pensamento". (c. XXX, 1)
Mas há outro fator que une as duas ordens de fontes: se a ele-
vação inerente ao sublime representa um momento excepcional ao POÉTICA
nível psíquico, como sugere o Anônimo, "não é a persuasão" que o
sublime conduz o ouvinte, "mas a arrebatamento" (c. I, 4) e "o su-
blime é o rebôo da grandeza de alma" (c. IX, 2), as três últimas fontes
representam uma espécie de anomalia ao nível lingüístico. A este res-
peito deve-se lembrar que a retórica antiga definia as figuras "por se
afastarem do modo simples e comum de falar". 19
Compreende-se, desse modo, que para o Anônimo a estrutura da
linguagem não era apenas o meio, mas a condição, o fator criativo
que instaura o sublime:

" ( ... ) o hipérbato, figura pela qual a ordenação das palavras


e pensamentos é tirada da seqüência regular; é, por assim dizer,
o mais verdadeiro cunho de uma emoção violenta." ·(c. XXII, 1)

Em última instância, a complementar idade existente entre senti-


mento e expressão reflete um dos fundamentos da realidade artística,
isto é, a íntima fusão entre a natureza e a arte:

" ( ... ) a arte é acabada quando com esta [a natureza] se


parece e, por sua vez, a natureza é bem sucedida quando dissimula
a arte em seu seio." (c. XXI[, 1)

ROBERTO DE OLIVEIRA BRANDÁO

19. Ouint., op. cit., 9, 3, 3.

16
I

Falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de cada


uma, de como se hão de compor as fábulas para o bom êxito do poe-
ma; depois, do número e natureza das partes e bem assim da demais
matéria dessa pesquisa, começando, como manda a natureza, pelas
noções mais elementares. .
A epopéia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo 1
e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citaredo, todas vêm
a ser, de modo geral, imitações. Diferem entre' si em três pontos:
imitam ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira
diferente e não a mesma.
Assim como alguns imitam muitas coisas figurando-as por meio
de cores e traços (uns graças à arte; outros, à prática )e outros o fazem
por meio da voz, assim também ocorre naquelas mencionadas artes;
todas elas efetuam a imitação pelo ritmo, pela palavra e pela melodia,
quer separados, quer combinados. Valem-se, por exemplo, apenas da
melodia e ritmo a arte de tocar flauta e a da cítara, mais outras que
porventura tenham a mesma propriedade, tal como a das fístulas; 2
já a arte da dança recorre apenas ao ritmo, sem a melodia; sim, por-
que os bailarinos, por meio de gestos ritmados, imitam caraçteres,
emoções, ações.
A arte que se utiliza apenas de palavras, sem ritmo ou metrifi-
cadas, estas seja com variedade de metros combinados, seja usando
Bibliografia: uma só espécie de metro, até hoje não recebeu uni nome. 3 Não dis-
pomos de nome que dar aos mimos 4 de Sófron e Xenarcó ao mesmo
Poética, de Aristóteles, nas seguintes edições: tempo que aos diálogos socráticos e às obras de quem realiza a imi-
"Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis, recognovit 1. Bywater.
Clarendon, editio altera, 1953. " 1. Hino coral em louvor de Díoniso '(Baco).
The Loeb Classical Library, with an English translation by W. Hamilton 2. Flauta de pastor. '
Fyfe, London, 1960.
3. Diz-se hoje Literatura, muito se discutindo sobre o conceito.
Soe. d'Edition "Les Belles Letrres", texte établi et traduit par T. Hardy.
4. Pequena farsa em prosa, de assunto ordinariamente familiar.
Paris. 1952.

19

..o..-~, .•
tação por meio de trímetros, disticos elegíacos ou versos semelhantes. Nessa mesma diferença divergem a tragédia e a comédia; esta os
Nada impede que pessoas, ligando à metrificação a poesia, dêem a uns quer imitar inferiores e aquela superiores aos da atualidade.
poetas o nome de elegíacos, a outros o de épicos, denominando-os,
não segundo a imitação que fazem, mas indiscriminadamente confor- III
me ometro que usam. ,_ "-
Costuma-se dar esse nome mesmo a quem publica matéria mé- Uma terceira diferença nessas artes reside em como representam
dica ou científica em versos, mas, além da métrica, nada há de comum cada um desses objetos. Com efeito, podem-se às vezes representar
entre Homero e Empédocles; por isso, o certo seria chamar poeta ao pelos mesmos meios os mesmos objetos, seja narrando, quer pela boca
primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta. Semelhante- duma personagem, como fez Homero, quer na primeira pessoa, sem
mente, quem realizasse a imitação combinando todos os metros, como mudá-Ia, seja deixando as personagens imitadas tudo fazer, agindo.
Querêmon na rapsódia Centauro, mesclada de todos os metros, tam- Essas, pois, as três diferenças que distinguem a representação,
bém devia ser chamado poeta. como dissemos de início: meios, objetos e maneira.
Quanto a este ponto, bastam as distinções feitas." Assim, dum modo Sófoclês 7 é imitador no mesmo sentido que
Artes há que se utilizam de todos os meios citados, quero dizer, Homero - pois ambos representam seres superiores - de outro, no
do ritmo, da melodia, do metro, como a poesia ditirâmbica, a dos mesmo sentido que Aristófanes, 8 pois ambos representam pessoas
nomos, 5 a tragédia e a comédia; diferem por usarem umas de todos fazendo, agindo.
a um tempo, outras ora de uns, ora de outros. A essas diferenças das Essa, segundo alguns, a razão do nome drama, o representá-Ias
artes me refiro quando falo em meios de imitação. em ação. Por isso também reivindicam os dórios para si tanto a tra-
gédia, quanto a comédia; a comédia, os megarenses 9 daqui, como
criada no tempo de sua democracia, e os da Sicília, por ser dali Epi-
II carmo, poeta muito anterior a Quiônides e Magnes; a tragédia, alguns
do Peloponeso. Alegam como prova a denominação, porquanto eles,
Como aqueles que imitam imitam pessoas em ação, estas são ne- dizem, dão o nome de comas aos arrabaldes; os atenienses, o de
cessariamente ou boas ou más (pois os caracteres quase sempre se re- demos. Os comediantes tirariam o nome, não do verbo komâzein, 10 .
duzem apenas a esses, baseando-se no vício ou na virtude a distinção mas do fato de vaguearem pelos arrabaldes, tocados, com desprezo,
do caráter), isto é, ou melhores do que somos, ou piores, ou então tais para fora da cidade; ademais, agir, no seu dialeto, é dran, ao passo
e quais, como fazem os pintores; Polignoto, por exemplo, melhorava que os atenienses dizem prâttein.
os originais; Pausão os piorava; Dionísio pintava-os como eram. Evi- Quanto, pois, às diferenças de representação, seu número e na-
dentemente, cada uma das ditas imitações admitirá essas distinções tureza, basta o que dissemos.
e diferirão entre si por imitarem assim objetos diferentes.
Essas diversidades podem ocorrer igualmente na arte da dança,
na da flauta ou da cítara; bem assim no que tange à prosa e na IV
poesia não musicada. Homero, por exemplo, imitava pessoas superio-
res; Cleofonte, iguais; Hegêmon de Tasos, o primeiro a compor pa- Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, am-
ródias, e Nicócares, o autor da Dilíada, 6 inferiores; o mesmo se diga bas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância - e nisso
quanto aos ditirambos e nomos; podem-se criar caracteres como· os
ciclopes de Timóteo e de Filóxeno. 7. Autor de tragédias.
8. Autor de comédias.
5. Cântico ao som de harpa, em louvor de Apoio. 9. Duas cidades se chamavam Mégara: uma, próxima do Istmo de
6. Dilíada lembra Ilíada,· mas celebra poltrões em vez de heróis, ao Corinto; a outra, na Sicília.
que sugere o nome. O poema, aliás, é desconhecido. 10. Percorrer. as ruas em cortejo, cantando e dançando.

20 21
difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir dramatizando, não o vitupério, mas o cômico, pois o Margites está
os primeiros conhecimentos por meio da imitação :- e todos têm para as comédias como a Ilíada e a Odisséia para as tragédias.
prazer em imitar. ' Surgi das a tragédia e a comédia, os autores, segundo a inclinação
Prova disso é o que acontece na realidade: das coisas cuja visão natural, pendiam para esta ou aquela; uns tornaram-se, em lugar' de
é penosa temos prazer em contemplar a imagem quanto mais per- jâmbicos, comediógrafos; outros, em lugar de épicos, trágicos, por
feita; por exemplo, as formas dos bichos mais desprezíveis e dos serem estes gêneros superiores àqueles e mais estimados.
cadáveres. Examinar se a tragédia em suas variedades alcançou ou não
Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos pleno desenvolvimento, julgada em si mesma e nos espetáculos, é
filósofos,mas igualmente aos demais homens, com a diferença de outra questão.
que a estes em parte pequenina. Se a vista das imagens proporciona Nascida, pois, de improvisações a princípio - tanto ela quanto
prazer é porque acontece a quem as contempla aprender e identificar a comédia, uma por obra dos que regiam o ditirambo, a outra por
cada original; por exemplo, "esse é Fulano"; aliás, se; por acaso, a obra dos que regiam os cantos fálicos, costume ainda hoje conservado
gente não o viu antes, não será como representação que dará prazer, em muitas cidades - a pouco e pouco a tragédia cresceu desenvol-
senão pela execução, ou pelo colorido, ou por alguma outra causa vendo os elementos que se revelavam próprios dela e, após muitas
semelhante. mudanças, estabilizou-se quando atingiu a natureza própria.
Por serem naturais em nós a tendência para a imitação, a melo- Foi Ésquilo quem teve a iniciativa de elevar de um para dois o
dia e o ritmo - que os metros são parte dos ritmos é fato evidente - número de atores; ele diminuiu o papel do coro e atribuiu ao diálogo
primitivamente, os mais bem dotados para eles, progredindo a pouco a primazia; o número de três atores e o cenário devem-se a Sófocles.
e pouco, fizeram nascer de suas improvisações a poesia. Adquirindo extensão com o abandono de fábulas curtas e da Iingua-
A poesia diversificou-se conforme o gênio dos autores; uns, mais gem cômica, que trazia de sua origem satírica, a tragédia só tardia-
mente adquiriu majestade. O seu metro, de tetrâmetro trocaico.J"
graves, representavam as ações nobres e as de pessoas nobres; outros,
passou a jâmbico; a princípio usavam o tetrâmetro trocaico porque o
mais vulgares, as do vulgo, compondo inicialmente vitupérios, como
poema era satírico 14 e mais chegado à dança, mas, tornando-se diá-
os outros compunham hinos e encômios.
logo, achou naturalmente o metro próprio, pois o jâmbico é o metro
De nenhum autor anterior a Homero podemos citar uma obra mais coloquial. Demonstra-o o fato de proferirmos na conversação
desse gênero, embora seja provável que tenha havido muitos; pode- muitos trímetros jâmbicos e raramentehexâmetros, e estes, quando
mos, a partir de Homero, mencionar, por exemplo o seu Margites e saímos do tom de conversa,
outros semelhantes, nos quais, em harmonia com o gênero, veio tam- O número de episódios e ornamentos em geral com que se diz
bém, o metro jâmbico 11 - ainda .hoje se denomina poesia jâmbica terem sido -ordenadas as partes, demo-los por estudados, pois daria
esse gênero - porque nesse metro se trocavam doestos. Houve, pois, longo trabalho discorrer sobre cada um.
entre os antigos, autores tanto de versos heróicos, 12 quanto de [ârn-
bicos.
v
Homero, assim como foi autor de poemas nobres - pois s6 ele
compôs obras, que, sobre serem' excelentes, são representação de A comédia, como dissemos, é imitação de pessoas inferiores; não,
ações - assim também foi o primeiro a mostrar o esboço da comédia, porém, com relação a todo vício, mas sim por ser o cômico uma
" -: ,
11. O jambo é um pé de duas sílabas, a primeira, breve e a segunda, 13. Tetrâmerro, verso formado de quatro metros, cada um de dois pés.
longa. Usava-se nas invectivas. O troqueu, ou coreu, compõe-se de uma sílaba longa seguida duma breve.
12. Hexâmetro, verso teoricamente composto de seis dáctilos, pés formados 14. Interlúdio curto e jocoso, interpretado por atores vestidos como
de uma sílaba longa seguida de duas breves. sátiras. O nome nada tem com o de sátira, que é latino.

22 23

c••.• .;"""
-'
Como a imitação é feita por personagens em ação, necessaria-
,
espécie do feio. A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiúra
sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia
e contorcida, mas sem expressão de dor.
I mente seria uma parte da tragédia em primeiro lugar o bom arranjo
do espetáculo; em segundo, o canto e as falas, pois é com esses ele-

I
mentos que se realiza a imitação.
As transformações por que passou a tragédia, bem como os seus
autores. são conhecidos; os da comédia, porém, são desconhecidos Por falas entendo o simples conjunto dos versos; por canto, coisa
por não ter ela gozado de estima desde o começo. Com efeito, sã tar- que tem um sentido inteiramente claro. ,_
diamente o arconte 15 forneceu o coro de comediantes; antes, eram Como se trata da imitação duma ação, efetuada por pessoas
voluntários. Ela já 'tinha adquirido certa forma, quando se passou a
lembrar o nome dos chamados poetas cômicos. 1 agindo, as quais necessariamente se distinguem pelo caráter
(pois essas diferenças empregamos na qualificação das ações),
e idéias
existem
Não se sabe quem introduziu máscaras, prólogos, número de
I duas causas naturais das ações: idéias e caráter, e todas as pessoas
atores e semelhantes particularidades; o compor fábulas é de Epi- são bem ou mal sucedidas conforme essas causas.
carmo e Fórmis. O começo foi na Sicíli a; em Atenas, foi Crates o Está na fábula a imitação da ação. Chamo fábula a reunião das
primeiro a abandonar a forma jâmbica e compor diálogos e enredos ações; caráter, aquilo segundo o quê dizemos terem tais ou tais qua-
de assunto genérico. lidades as figuras em ação; idéias, os termos que empregam para
A poesia épica emparelha-se com a tragédia em serem ambas argumentar ou para manifestar o que pensam.
imitação metrificada de seres superiores; a diferença está em que Toda tragédia, pois, comporta necessariamente seis elementos,
aquela se compõe num metro uniforme e é narrativa. Também na dos quais depende a sua qualidade, a saber: fábula, caracteres, falas,
extensão; a tragédia, com efeito, empenha-se, quanto possível, em idéias, espetáculo e canto. Com efeito, dois elementos são os meios
não passar duma revolução do solou superá-Ia de pouco; a epopéia da imitação; um, a maneira; três, o objeto; além desses não há outro.
não tem duração delimitada e nisso difere. Não obstante, primitiva- Deles, por assim dizer, todos os poetas se valem, pois todo drama
mente, procediam assim tanto nas tragédias como nas epopéias .. envolve igualmente, espetáculo, caráter, fábula, falas, canto e idéias.
Das partes componentes, umas são as mesmas; outras, peculia- A mais importante dessas partes é a disposição das ações; a tra-
res à tragédia. Por isso, quem sabe discernir entre a boa tragédia e a gédia é imitação, não de pessoas, mas de uma ação, da vida, da feli-
ruim sabe-o também quanto à epopéia, pois o que a epopéia tem está cidade, da desventura; a felicidade e a desventura estão na ação e a
presente na tragédia, mas nem tudo que esta possui se encontra finalidade é uma ação, não uma qualidade. Segundo o caráter, as
naquela. pessoas são tais ou tais, mas é segundo as ações que são felizes ou o
contrário. Portanto, as personagens não agem para imitar os caracte-
VI res, mas adquirem os caracteres graças às ações. Assim, as ações e a
fábula constituem a finalidade da tragédia e, em tudo, a finalidade
Da arte de imitar em hexâmetros e da comédia trataremos adian- é o que mais importa.
te. Falemos da tragédia, tomando sua definição' em decorrência do Ademais, sem ação não poderia haver tragédia; sem caracteres,
que dissemos. E a tragédia a representação duma ação grave, de sim. As tragédias da maioria dos autores modernos carecem de ca-
alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com racteres; a muitos poetas sucede, de modo geral, o mesmo que a
o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, Zêuxis entre os pintores, em confronto com Polignoto; este, com
inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções. efeito, é um excelente pintor de caracteres, enquanto nenhum estudo
Chamo linguagem exornada a que tem ritmo, melodia e canto; e atavio de caráter há na pintura de Zêuxis.
adequado, o serem umas partes executadas com simples metrificação Outrossim, mesmo quando se alinhem falas reveladoras de cará-
e as outras, cantadas. ter, bem construídas em matéria de linguagem e idéias, não se realiza-
rá obra própria de tragédia; muito mais se obterá com uma tragédia
15, Magistrado 'executivo em Atenas. deficiente nessas partes, mas provida duma fábula e do arranjo das

24 25
ações. Além disso, os mais importantes meios de fascinação das tragé- quer necessana, quer ordinariamente, mas após o quê não há nada
dias são partes da fábula, isto é, as peripécias e os reconhecimentos. mais; meio o que de si vem após outra coisa e após o quê outra
Mais uma prova é que os que empreendem poetar logram exa- coisa vem.
tidão na fala e nos caracteres antes de a conseguirem no arranjo das As fábulas bem constituídas não devem começar num ponto ao
ações, como quase todos os autores primitivos. acaso, nem acabar num ponto ao acaso, mas utilizar-se das fórmulas
A fábula é, pois, o princípio, a alma, por assim dizer, da tragé- referidas.
dia, vindo em segundo lugar os caracteres. É mais ou menos como Outrossim, a beleza, quer num animal, quer em qualquer coisa
na pintura; se alguém lambusasse uma tela com as mais belas tintas composta de partes, sobre ter ordenadas estas, precisa ter determinada
em confusão, não agradaria como quem esboçasse uma figura em extensão, não uma qualquer; o belo reside na extensão e na ordem,
branco e preto. A tragédia é imitação duma ação e sobretudo em razão por que não poderia ser belo um animal de extrema pequenez
vista dela é que imita as pessoas agindo. (pois se confunde a visão reduzida a um momento quase impercep-
Vêm em terceiro lugar as idéias, isto é, a capacidade de expri- tível), nem de extrema grandeza (pois a vista não pode abarcar o
mir o que, contido na ação, com ela se harmoniza; tarefa, nos dis- todo, mas escapa à visão dos espectadores a unidade e o todo, como,
cursos, da política e da retórica. Os antigos faziam as personagens por exemplo, se houvesse um animal de milhares de estádios). Assim
falar como cidadãos; os modernos, como mestres de retórica. como as coisas compostas e os animais precisam ter um tamanho tal
que possibilite aos olhos abrangê-Ias inteiros, assim também é mister
Caráter é aquilo que mostra a escolha numa situação dúbia: acei-
que as fábulas tenham uma extensão que a memória possa abranger
tação ou recusa - por isso, carecem de caráter as palavras quando
inteira.
nelas não há absolutamente nada que o intérprete aceite ou recuse.
Há idéias quando os intérpretes dizem que algo é ou não é, ou ex- O limite de extensão com respeito aos concursos e à percepção
pressam alguma coisa em termos genéricos. da platéia não é matéria da arte; se houvessem de concorrer cem
O quarto componente literário é a fala; entendo, como ficou tragédias, fá-le-iam sob a clepsidra, como, dizem, já mais duma vez
dito, que fala é a interpretação por meio de palavras, o que tanto aconteceu. Quanto ao limite conforme a natureza mesma da ação,
sempre quanto mais longa a fábula até onde o consinta a clareza do
vale para versos como para prosa.
todo, tanto mais bela graças à amplidão: contudo, para dar uma de-
Dos restantes componentes é o canto o maior dos ornamentos. finição simples, a duração deve permitir aos fatos suceder-se, dentro
O espetáculo, embora fascinante, é o menos artístico e mais alheio à da verossimilhança ou da necessidade, passando do infortúnio à ven-
poética; dum lado, o efeito da tragédia subsiste ainda sem represen- tura, ou da ventura ao infortúnio; esse o limite de extensão con-
tação nem atores; doutro, na encenação, tem mais importância a arte veniente.
do contra-regra do que a dos poetas.
VIII

VlI Não consiste a unidade da fábula, como crêem alguns, em ter


um só herói, pois a um mesmo homem acontecem fatos sem conta,
Definidos os componentes, passemos ao problema do arranjo das sem deles resultar nenhuma unidade. Assim também uma pessoa pra-
ações, pois esse é fator primeiro e mais importante da tragédia. tica muitas ações, que não compõem nenhuma ação única. Daí pa-
Assentamos que a tragédia é a imitação duma ação acabada e rece terem errado todos os autores de Heracleidas e Teseidas 16 e poe-
inteira, de alguma extensão, pois pode uma coisa ser inteira sem ter m1),~congêneres, supondo que, por ser Heracles um só, a fábula ga-
extensão. Inteiro é cque tem começo, meio e fim. Começo é aquilo nharia também unidade.
que, de per si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas após
o quê, por natureza, existe ou se produz outra coisa; fim, pelo con- 16. Poemas sobre Heracles (Hércules) e Teseu, heróis de múltiplas
trário, é aquilo que, de per si e por natureza, vem após outra coisa, façanhas independentes umas das outras.

26 27
Homero, assim como é superior em tudo mais, parece ter visto No que concerne à comédia, isso a esta altura já se tornou evi-
muito bem também isso, seja pelo conhecimento da arte, seja pelo dente, pois a fábula é composta segundo as verossimilhanças e depois
seu gênio; escrevendo a Odisséia, não narrou tudo quanto aconteceu é que se dão nomes quaisquer às personagens, não como os poetas
ao herói, por exemplo, o Ierimento no Parnaso.V a simulação de [ârnbicos, que escrevem visando a pessoas determinadas.
loucura quando se arregimentava a tropa, 18 fatos dos quais a ocor- Já nas tragédias, os autores se apóiam em nomes de pessoas que
\'ência de um não acarretava a necessidade ou probabilidade do outro, existiram; 20 a razão é que o possível é crível; ora, o que não aconte-
mas compôs a Odisséia em torno duma ação única, como a entende- ceu não cremos de imediato que seja possível, mas o que aconteceu
mos, e assim também a Ilíada. o é evidentemente; se impossível, não teria acontecido.
Portanto, assim como, nas outras espécies de representação, a Não obstante, nalgumas tragédias são familiares uma ou duas per-
imitação única decorre da unidade do objeto, é preciso que a fábula, sonagens; as demais, fictícias; noutras, nenhuma, como no Anteu de
visto ser imitação duma ação, o seja duma única e inteira, e que suas Agatão: nesta, tanto a ação como as personagens são imaginárias;
partes estejam arranjadas de tal modo que, deslocando-se ou supri- nem por isso agrada menos.
mindo-se alguma, a unidade seja aluída e transtornada; com efeito, Assim, não é imperioso procurar ater-se a todo custo às fábulas
aquilo cuja presença ou ausência não traz alteração sensível não faz tradicionais, em torno das quais tem girado a tragédia. É esse um
parte nenhuma do todo. empenho risível, dado que as fábulas conhecidas o são de poucos e,
não obstante, agradam a todos.
IX Isso evidencia que o poeta há de ser criador mais das fábulas
que dos versos, visto .que é poeta por imitar e imita ações. Ainda
quando porventura seu tema sejam fatos reais, nem por isso é menos
É claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta
criador; nada impede que alguns fatos reais sejam verossímeis e pos-
não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam
síveis e é em virtude disso que ele é seu criador.
acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da
Das fábulas e ações simples, as episódicas são as mais fracas.
necessidade
Chamo episódica aquela em que a sucessão dos episódios não de-
Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poe- corre nem da verossimilhança nem da necessidade. Dessas fazem os
ta; a obra de Heródoto podia ser metrificada: não seria menos uma poetas medíocres por serem o que são, e também os bons por aten-
história com o metro do que sem: ele; a diferença está em que um ção aos atores; compondo para concursos e dilatando a fábula além
narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam acontecer. Por do que ela suporta, são amiúde forçados a contrafazer a seqüência
isso, a Poesia encerra mais filosofia e elevação do que a História; natural.
aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos particulares. Enun- O objeto da imitação, porém, não é apenas uma ação completa,
ciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo de mas casos de inspirar temor e pena, e estas emoções são tanto mais
natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a fortes quando, decorrendo uns dos outros, são, não obstante, fatos
isso visa a Poesia, ainda quando nomeia personagens. Relatar fatos inesperados, pois assim terão mais aspecto de maravilha do que se
particulares é contar o que Alcibíades 19 fez ou o que fizeram a ele. brotassem do acaso e da sorte; com efeito, mesmo dentre os fortuitos,
despertam a maior admiração os que aparentam ocorrer, por assim
dizer, de propósito; por exemplo, a estátua de Mítis em Argos matou
17. Mordido por um javali, na adolescência, numa caçada com o avô.
Ao exemplar da Odisséia de que dispunha Aristóteles faltava provavelmente
o culpado da morte de Mítis, tombando sobre ele, quando assistia a
a descrição que se lê no canto XIX a partir do verso 395. um festejo; ocorrências semelhantes não se afiguram casuais; segue-se
18. Em Aulís, a fim de não embarcar para a guerra, Odisseu fingiu ter necessariamente que as fábulas dessa natureza são mais belas.
enlouquecido, mas Palamedes o desmascarou.
19. Alcibíades é aqui como se dissesse Fulano. 20. Segundo a tradição.

28 29
x Como o reconhecimento se dá entre pessoas, às vezes é apenas
uma personagem que reconhece outra, quando não há dúvida sobre
a identidade de uma delas; às vezes ambas devem reconhecer; por
Umas fábulas são simples, outras complexas; é que as ações
exemplo, Ifigênia foi reconhecida por Orestes 22 pelo envio da carta,
imitadas por elas são obviamente tais. Chamo simples a ação quando,
mas para ele ser reconhecido por ela era preciso outro reconhecimento.
ocorrendo ela, como ficou definido, de maneira coerente e una, se dá
mudança de fortuna sem se verificarem peripécias e reconhecimen- Nesse passo se verificam duas partes da fábula, a peripécia e o
reconhecimento; mas há uma terceira, o patético. Das três já estuda-
tos; complexa, quando dela resulta mudança de fortuna, seja com
mos a peripécia e o reconhecimento; o patético consiste numa ação
reconhecimento, seja com peripécia, seja com ambas as coisas.
que produz destruição ou sofrimento, como mortes em cena, dores
Essas ocorrências devem nascer da própria constituição da fábula, cruciantes, ferimentos e ocorrências desse gênero.
decorrendo por necessidade ou verossimilhança de eventos anterio-
res; muita diferença vai entre acontecer isto, dum lado, por causa
daquilo e, doutro, após aquilo. XII

Dos elementos constitutivos da tragédia que -cumpre utilizar tra-


XI tamos atrás; quanto à extensão e divisão em secções distintas, estas
são as partes: prólogo, episódio, êxodo, canto coral, distinguindo-se
Peripécia é uma viravolta das ações em sentido contrário, como neste último o párodo e o estásimo; estas partes são comuns a todas
ficou dito; e isso, repetimos, segundo a verossimilhança ou necessi- as tragédias; os cantos dos atores e os comos são peculiares a algumas.
dade; como, no Edipo, quem veio com o propósito de dar alegria a Prólogo é toda a parte da tragédia que antecede a entrada do
Edipo e libertá-Io do temor com relação à mãe, 21 ao revelar quem coro; episódio, toda uma parte da tragédia situada entre dois cantos
ele era, fez o contrário; igualmente, no Linceu; este é levado para corais completos; êxodo, toda a parte da tragédia após a qual não
morrer e Dânao vai empós para o matar, mas, em conseqüência dos vêm canto do coro. Do canto coral, o párodo é todo o primeiro pro-
fatos, acabou morrendo Dânao e salvando-se Linceu. nunciamento do coro; estásimo, o canto coral sem anapestos e tro-
queus; 23 como, um lamento conjunto do coro e dos atores.
O reconhecimento, como a palavra mesma indica, é a mudança
do desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao ódio, das Dos elementos constitutivos da tragédia que cumpre utilizar tra-
pessoas marcadas para a ventura ou desdita. O mais belo reconheci- tamos atrás; quanto à extensão e à divisão em secções distintas, são
essas as partes.
mento é o que se dá ao mesmo tempo que uma peripécia, como acon-
teceu no Bâipo. ••. xm
Existem outras formas de reconhecimento, pois, com respeito a
coisas inanimadas e triviais, sucede por vezes o que acabamos de O que é preciso visar, o que importa evitar na composição das
dizer e se pode reconhecer se alguém praticou ou não uma ação. fábulas, por que meios lograr o efeito próprio da tragédia, eis o que
Porém o mais próprio da fábula e mais próprio da ação é o que foi cumpre expor em continuação ao que ora foi dito.
exposto acima. Com efeito, um reconhecimento dessa espécie, com Como a estrutura da tragédia mais bela tem de ser complexa e
peripécia, acarretará pena ou temor; de ações com tais efeitos é que não simples e ela deve consistir na imitação de fatos inspiradores de
se entende ser a-tragédia uma imitação. Outrossim, a má ou boa temor e pena - característica própria de tal imitação - em primeiro
sorte dependerá de semelhantes ações.
22. Em Eurípides, ljigênia em Táuride.
21'. Mérope, suposta mãe; o que Édipo temia estava acontecendo com 23. Anapestos são pés formados de duas sílabas breves seguidas duma
longa. Estásirno é canto coral que separa dois episódios.
a verdadeira, J ocasta.

31
30
lugar é claro que não cabe mostrar homens honestos passando de prio da tragédia, senão o da comédia, pois nesta os mais ferrenhos
felizes a infortunados (isso não inspira temor nem pena, senão indig- inimigos nos mitos, como Orestes e Egisto, saem, por fim, conciliados,
nação); nem os refeces, do infortúnio à felicidade (isso é o que há de sem que ninguém mate e ninguém morra.
menos trágico: falta-lhe todo o necessário, pois não inspira nem sim-
patia humana, nem pena, nem temor); tampouco o indivíduo per-
" verso em extremo tombando da felicidade no infortúnio;' semelhante
XIV '-
composição, embora pudesse despertar simpatia humana, não inspira-
ria pena, nem temor; de tais sentimentos, um experimentamos com Às vezes, os sentimentos de temor e pena procedem do espetá-
relação ao infortúnio não merecido; o outro, com relação a alguém culo; às vezes, também, do próprio arranjo das ações, como é prefe-
semelhante a nós; a pena, com relação a quem não merece o seu rível e próprio de melhor poeta. É mister, com efeito, arranjar a
infortúnio; o temor, com relação ao nosso semelhante; assim, o resul- fábula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar
tado não será nem pena, nem temor. as ocorrências sinta arrepios e compaixão em conseqüência dos fatos;
é o que experimentaria quem ouvisse a estória de Edipo. Obter esse
Resta o herói em situação intermediária; é aquele que nem
efeito por meio do espetáculo i menos artístico e requer apenas re-
sobreleva pela virtude e justiça, nem cai no infortúnio em conseqüên- cursos cênicos.
cia de vício e maldade, senão de algum erro, figurando entre aqueles
que desfrutam grande prestígio e prosperidade; por exemplo, Edipo, Aqueles que deparam por meio do espetáculo, em vez do senti-
Tiestes e homens famosos de famílias como essas. mento de temor, apenas o monstruoso, nada têm de comum com a
tragédia, pois nesta não se deve procurar todo e qualquer prazer,
Necessariamente, pois, deve a fábula bem sucedida ser singela e sim o que lhe é próprio. Como, porém, o poeta deve proporcionar
e não, como pretendem alguns, desdobrada; passar, não do infortú- pela imitação o prazer advindo da pena e do temor, é evidente que
nio à felicidade, mas, ao contrário, da felicidade a infortúnio que essas emoções devem ser criadas nos incidentes.
resulte, não de maldade, mas dum grave erro de herói como os men-
Examinemos quais eventos parecem temerosos e quais confran-
cionados, ou dum melhor antes que dum pior. gedores.
Di-Io a prática; a princípio, os poetas narravam as fábulas sem Ações dessa natureza ocorrem necessariamente entre pessoas ou
escolha; hoje, as mais belas tragédias se compõem em torno dumas amigas, ou inimigas, ou indiferentes. No caso dum inimigo atentar
poucas casas, por exemplo, as de Alcmeão, Edipo, Orestes, Meléagro, contra outro, tirante o patético em si mesmo, nada há que cause pena,
Tiestes e Télefo, e quantos outros vieram a sofrer ou causar desgra- quer chegue à execução, quer fique apenas no propósito; tampouco
ças tremendas. no caso de indiferentes. Quando, porém, o evento patético acontece
A mais bela tragédia, portanto, à luz dos preceitos da arte, tem entre pessoas que se querem bem, por exemplo, um irmão mata ou
essa estrutura. está a ponto de matar outro, ou o filho ao pai, a mãe ao filho, o filho
Portanto, nisso precisamente erram os que censuram Eurípides à mãe, ou se comete alguma outra monstruosidade semelhante, aí
temos o que buscar.
por proceder assim nas tragédias e por terminarem muitas das suas
nun:t infortúnio. Essa, como vimos, é a maneira correta. Uma prova Não se deve romper com as fábulas conservadas pela tradição;
muito válida é que, em cenas e nos concursos, os dramas desse tipo refiro-me, por exemplo, à morte de Clitemnestra às mãos de Orestes
são os mais trágicos, quando bem dirigidos, e Eurípides, embora não e a de Erifila às de Alcmeão: 24 o poeta deve criar, servindo-se atina-
tenha em geral uma boa economia, se mostra o mais trágico dos poetas. damente do legado tradicional. Expliquemos com maior clareza o que
entendemos por atinadamente.
Segue-se a tragédia que alguns qualificam como primeira, a que
tem uma estrutura desdobrada, como a Odisséia., e tem desfechos A ação pode ser praticada, como a concebiam os poetas de ou-
opostos para as personagens melhores e para as piores. Qualificam-na trora, por personagens cientes e conscientes, como também Eurípides
como a primeira, considerando os gostos da platéia; os autores acom-
panham a preferência dos espectadores. Mas esse não é o prazer pró- 24. Dois exemplos de matricídio.

32
33
figurou a Medéia matando os filhos; pode também ser praticada sem mulher ou um escravo podem ser bons, embora talvez a mulher seja
que o autor tenha consciência da monstruosidade, mas venha depois um ser inferior e o escravo, de todo em todo insignificante.
a reconhecer o parentesco, como o Edipo de Sófocles. Nesse caso, o O segundo alvo é que sejam adequados. O caráter pode ser viril,
acontecimento se deu fora do drama, mas exemplo de ação levada a mas não é apropriado ao de mulher ser viril ou terrível. O terceiro
efeito na tragédia' mesma é o Alcmeão de Astidamante, ou o Telé- é a semelhança, 26 o que difere de figurar um caráter bom e adequado,
gono do Ulisses Ferido. no sentido em que o dissemos. O quarto é a constância; mesmo quan-
Além dessas há unia terceira figuração: a de quem vai cometer, do o modelo representado é inconstante e se figura tal caráter, ainda
por ignorância, um ato irreparável, mas, antes de consumá-Io, reco- precisa ser constante na inconstância.
nhece a vítima. Além dessas não há outra hipótese, pois necessaria-
Um exemplo de baixeza de caráter desnecessária é o Menelau
mente a ação se pratica ou não se pratica, com conhecimento ou
no Orestes; de caráter inadequado e impróprio, a lamentação de
sem ele. Odisseu na Cita e o discurso de Melanipe; de inconstante, a Ifigênia
A menos eficaz das figurações é a duma personagem, na imi- em Áulis, pois a suplicante nada se parece com a que vem depois.
nência dum atentado consciente, não o consumar; causa repulsa, sim,
mas não é trágica, por não se dar a desgraça. Por isso, nenhum poeta E mister também, nos caracteres, como no arranjo das ações,
cria situação semelhante, salvo raros casos, como' o de Hêmon, na buscar sempre ° necessário ou o provável, de modo que seja neces-
Antígona, contra Creonte .25 sário ou provável que tal personagem diga ou faça tais coisas e ne-
cessário ou provável que tal fato se siga a tal outro.
Vem em seguida o caso da execução. Melhor é quando a perso-
nagem pratica a ação sem conhecimento e reconhece depois de a pra- O desenredo das fábulas, é claro, deve decorrer da própria fá-
ticar, pois então não há repulsa e o reconhecimento produz abalo. bula e não, como na Medéia, dum mecanismo 27 e como, na Iliada.t"
A melhor figuração é a última; refiro-me, por exemplo, à do quando se discute o zarpar de volta; à intervenção divina se recorre
Cresfonte, quando Mérope, a ponto de matar o filho, não o mata e para fatos fora do drama, quer anteriores, que um homem não possa
sim reconhece; igual conjuntura, na Liigênia, entre a irmã e o irmão, saber, quer posteriores, que demandem predição e anúncio, pois aos
e na Hele, quando, a ponto de entregar a mãe, o filho a reconhece. deuses atribuímos o poder de tudo ver. Nas ações não pode haver
nada de irracional, ou então, que se situe fora da tragédia, como no
Por esse motivo, como atrás dissemos, as tragédias giram em Édipo de Sófocles.
torno dumas poucas famílias. Em suas pesquisas, os poetas descobri-
ram, não por sua arte, mas por acaso, como deparar tais situações Visto ser a tragédia representação de seres melhores do que nós,
nas fábulas; são, pois, forçados a recorrer àquelas casas em que acon- devemos imitar os bons retratistas; estes reproduzem uma forma par-
teceram tais desgraças. ..•. ticular assemelhada com o original, mas pintam-na mais bela. Assim,
ao poeta que imita personagens temperamentais ou fleumáticas, ou
Do arranjo das ações e da natureza que devem ter as fábulas
dotadas de outras feições semelhantes de caráter, cumpre fazê-Ias de
ficou dito o bastante. boa cepa; por exemplo, o Aquiles de Agatão e o de Homero.
XV Essas são as normas de observar e além dessas as relativas às
sensações que acompanham necessariamente a poética; com efeito,
Quanto aos caracteres, há quatro alvos a que visar. Um e pri- °
meiro deles é quesejam bons. A peça terá caráter, se, como dissemos,
" 26. Entenda-se semelhança com a tradição; o contrário seria 'éhocante.
as palavras ou ações evidenciam uma escolha; ele será bom, se esta
for boa. Isso aplica-se a cada gênero de personagem; mesmo uma 27. Medéia, após matar os filhos, evade-se no "carro do sol", um
aparelho cênico.
28. A deusa Atena intervém para impedir os aqueus de embarcar de
25. Nesta tragédia de S6focles, Hêmon ameaça a Creonte, seu pai. volta, desistindo da guerra de Tróia. Jlíada, lI, 166 sgs.

35
34
A quarta é a que utiliza um silogismo, como nas Coéioras: 36
também nesse domínio se cometem muitos enganos. Mas delas trata-
mos suficientemente nos estudos publicados. 29 chegou alquém parecido comigo; ninguém se parece comigo senão
Orestes; portanto, foi ele quem chegou. Lembro também o reconhe-
cimento usado por Poliido, o sofista, no caso de Ifigênia; é natural
-
, XVI '- a reflexão de Orestes, de que não só foi imolada a irmã, mas o mesmo
acontece a ele. Também, no Tideu, de Teodectes, diz o herói que,
Dissemos atrás em que consiste o reconhecimento; das espécies tendo vindo com esperança de achar o filho, vem a perecer ele pró-
de reconhecimento, a primeira é a menos artística e a ela mais co- prio. E nas Fineidas: ao verem o lugar, as mulheres inferem qual o
mumente se recorre por incapacidade: o reconhecimento por meio de seu destino, o de morrerem ali, pois ali tinham sido expostas.
sinais. Desses, uns são congênitos, como a "lança que portam os Fi- Há também um reconhecimento construído num paralogismo dos
lhos da Terra", 30 ou "estrelas", quais emprega Cárcino no Tiestes; espectadores, como no Oclisseu Falso Mensageiro; 37 ele e ninguém
outros são adquiridos, e destes uns no corpo, tais como cicatrizes, ou- mais armar o arco é invenção do poeta, pura suposição; mesmo se
tros fora, como os colares ou, como na Tiro, 'a cesta. declarasse que reconheceria o 'arco, sem o ter visto; mas imaginar que
O emprego desses sinais pode ser melhor ou pior; por exemplo, se daria a reconhecer por esse meio é um paralogísmo.
Odisseu, graças à cicatriz, foi reconhecido dum modo pela nutriz, 31 O melhor de todos os reconhecimentos é o decorrente das ações
doutro pelos porcaríços: 32 com efeito, são menos artísticos os reco- mesmas, produzindo-se a surpresa por meio de sucessos plausíveis, por
nhecimentos obtidos por comprovação e todos os equivalentes; me- exemplo, no Edipo 38 de Sófocles e na Iiigênia.ê" pois é plausível
lhores os que vêm duma peripécia, como o da passagem do Banho. 33 querer ela confiar uma carta. Somente esses, com efeito, dispensam ar-
Vêm em segundo lugar os reconhecimentos forjados pelo poeta e por tifícios, sinais e colares. Em segundo lugar, os surgidos dum silogismo.
isso não artísticos, por exemplo, na Ijigênia, quando Orestes revela
que é Orestes; ela é reconhecida graças à carta, mas ele próprio diz
o que o poeta deseja, não o que a fábula requer. Por isso, avizinha-se XV II
do referido defeito, pois bem podia trazer ele alguns sinais. Menciono
também a "voz da lançadeira" no Tereu.t+ de Sófocles. Quando se está construindo e enformando a fábula com o texto,
A terceira espécie é a do reconhecimento devido a uma lem- é preciso ter a cena o mais possível diante dos olhos; vendo, assim,
brança, quando a vista de algum objeto causa sofrimento, como nos as ações com a máxima clareza, como se assistisse ao seu desenrolar,
Cíprios, de Diceógenes, onde, ao ver o quadro, a personagem chora; o poeta pode descobrir o que convém, passando despercebido o menor
igualmente no Conto de Alcínoo,35 onde, ouvindo o citaredo, as re- número possível de contradições. Prova-o a censura que se fazia a
cordações provocam lágrimas; graças a essas emoções é que foram Cárcino; o seu Anfiarau assomava do templo; como o espectador não
reconhecidos. via este, não percebia esse pormenor; a falha desagradou à platéia e
causou o malogro da peça.
E preciso também, quanto possível, reforçar o efeito por meio
29. Obras exotéricas, isto é, publica das para circular fora do Liceu;
as esotéricas se destinavam a uso interno, como a presente Arte Poética, das atitudes. Com efeito, por terem a mesma natureza que nós, são
sorte de apostila explicada em classe pelo mestre.
30. São os Espartas, nascidos dos dentes do dragão semeados por Cadmo.
36. De Esquilo, O silogismo é de Electra.
31. Odisséia, XIX. 392: descobrimento graças à cicatriz.
32. Odisséia, XXI. 207: o próprio Odisseu declara quem é. 37. Tragédia desconhecida, inspirada sem dúvida no canto XXI da
Odisséia.
33. Odisséia, XIX. 391 e sgs.
38. Edipo investiga o assassínio de Laio, seu pai, e acaba descobrindo
34. Filomela, cuja língua Tereu cortara, revela a Procne, sua irmã,
ser ele próprio o assassino.
a violência sofrida, tecendo o recado num tapete. Veja-se Ovídio, Metamorfoses,
VI, 576. 39. Ifigênia confia a Pílades uma carta, que ele entrega ao destinatário
35. Odisséia, VIII, 521 e sgs. Orestes, ali presente, declarando a sua identidade.

36 37
muito convincentes as pessoas tomadas de emoção; com a maior ve- rapto da criança ... (lacuna no texto) desde a acusação de assassínio
racidade tempestua quem está tempestuoso e raivece quem encoleri- até o final.
zado; por isso, a arte poética pertence ao, talentoso ou ao inspirado; Existem quatro tipos de tragédias: a complexa, formada toda de
no primeiro caso estão os que facilmente se amoldam; no segundo, os peripécia e reconhecimento; a patétic-a, por exemplo, as de Aiax e
fora de si. as de Ixion; a de caráter, como as Ftiótidas e Peleu; as de monstros,
As fábulas, quer tradicionais, quer inventadas, cabe ao poeta como as Fórcidas, o Prometeu e todas as desenroladas no Hades.r"
mesmo esboçá-Ias em linhas gerais e depois dividi-Ias em episódios e Deve-se principalmente tentar abranger todos os tipos, ou, pelo
desenvolvê-Ias. Entendo que se pode ter uma visão das linhas gerais,
menos, os mais importantes e em maior número, sobretudo levando
por exemplo, da Iiigênia, assim: certa donzela, imolada, desapareceu
em conta as aleivosias modernamente assacadas aos poetas; como
sem que o notassem os oficiantes; instalada noutro país, onde era
houve poetas que sobressaíam neste ou naquele, pretende-se que cada
costume sacrificar à deusa os estrangeiros, desempenhou esse sacer-
qual sobrepuje quem mais se distinguiu em cada um.
dócio. Passados anos, aconteceu que ali chegou o irmão da sacerdo-
tisa. O ter o deus prescrito, por alguma razão, que lá fosse ter e o Para dizer com acerto se uma tragédia é a mesma ou uma outra,
propósito da viagem 40 ficam fora da fábula. Chegado, é preso e, pres- nada importa tanto como a fábula. B a mesma, quando tem o mesmo
tes a ser imolado, dá-se a conhecer, quer como concebeu Eurípides, enredo e desfecho. Muitos enredam bem, mas desenredam mal; cum-
quer como Poliido, plausivelmente observando que não só fora imo- pre dominar bem uma e outra parte.
lada sua irmã, mas também ele tinha de ser e veio daí a salvação. E preciso, como dissemos muitas vezes, lembrar-se de não dar à
Após isso, é dar nomes às personagens e dividir os episódios, sem tragédia uma estrutura épica; chamo épica uma multiplicidade de
descuidar de que estes sejam apropriados, como,em Orestes, a lou- fábulas, por exemplo, compor uma com toda a fabulação da Ilíada.
cura, causa de ser preso, e o salvamento pelo expediente da purificação. Ali, graças à extensão, as partes recebem todo o desenvolvimento
Os episódios são breves nos dramas, mas por meio deles é que adequado; ao invés, nos dramas elas acabam muito aquém da con-
se alonga a epopéia. A fábula da Odisséia não é longa: um homem cepção. Prova é que quantos escrevem o assolamento de Tróia por
passa longos anos no exterior, impedido por Posidão de voltar, e está inteiro e não, como fez Eurípides, por partes, ou toda a estória de
só; ademais, a situação em sua casa é tal que pretendentes 41 lhe con- Níobe, e não como Esquilo, ou se frustram na encenação, ou se clas-
somem as riquezas e ameaçam a vida do filho; ele chega maltratado sificam mal nos concursos, pois foi essa a causa única do malogro
das intempéries, revela a alguns quem é, ataca, salva-se e extermina os de Agatão.
inimigos. Aí está o essencial; o mais são episódios. E, porém, nas peripécias e nas ações singelas que os poetas acer-
tam admiravelmente no alvo, que é obter a emoção trágica e os sen-
'xvm timentos de humanidade. Isso se dá quando o herói hábil, porém
mau, sai logrado, como Sísiío. e o valente, porém iníquo, sai vencido.
Tal desfecho é verossímil, no dizer de Agatão, pois é verossímil que
Toda tragédia tem um enredo e um desfecho; fatos passados fora
aconteçam muitas coisas inverossírneis.
da peça e alguns ocorridos dentro constituem de ordinário o enredo;
o restante é o desfecho. Entendo por enredo o que vai do início até O coro também deve ser contado como uma das personagens,
aquela parte que é a última antes da mudança para a ventura ou integrada no conjunto e participando da ação, não à maneira de Eurí-
desdita, e por desfecho o que vai do começo da mudança até o final; pides, mas à de Sófoc1es. Na maioria dos poetas, as partes cantantes
assim, no Linceu de.Teodectes, enredo são os fatos anteriores mais o não-pertencem à fábula mais do que a uma outra tragédia; porIsso,
o coro canta interlúdios, adotados a partir de Agatão. Ora, que dife-

40. Roubar e levar para Atenas a imagem da deusa Ártemis.


41. Pretendentes à mão de Penélope, suposta viúva. 42. Lugar para onde vão as almas dos mortos.

38 39
rença vai de cantar interlúdios a transportar duma outra peça uma Divide-se a letra em vogal, semivogal e muda. Letra vogal é
longa fala ou um episódio inteiro? aquela que, sem obstáculo, 44 tem som audível; semivogal é aquela
que, com obstáculo, tem som audível, por exemplo, o S e o R; muda,
XIX aquela que, além de ter obstáculo, por si mesma não tem som algum,
mas acompanhada de alguma das que têm som, se torna audível;
'- '-
Dos outros componentes já tratamos; resta-nos falar da lingua- por exemplo, o G e o D.
gem e das idéias. Deixemos aos tratados de Retórica, por ser mais Essas letras diferem conforme o arranjo da boca e o lugar, aspi-
próprio desse ramo, o que concerne às idéias. É matéria das idéias ração ou ausência desta, segundo sejam longas ou breves e, ainda,
tudo quanto se deve deparar por meio da palavra. Divide-se em de- agudas, graves ou intermédias; aos tratados de Métrica compete o
monstrar, refutar, suscitar emoções quais compaixão, temor, cólera e estudo de cada uma dessas variedades.
todas as congêneres, e ainda exagerar e atenuar. Sílaba é um som sem significado, composto de letra muda mais
Evidentemente, devem ser usadas as ações segundo os mesmos uma com som; com efeito, o grupo GR sem o A, tanto quanto com
princípios, quando for preciso produzir os efeitos "XIe pena, temor, o A, em GRA, é uma sílaba. Compete, porém, igualmente à Métrica
exagero ou naturalidade. Toda a diferença está em que uns efeitos se estudar essas diferenças.
devem manifestar independentemente de didascália, ao passo que ou-
O conetivo é um som sem significado, que não impede nem
tros, dependentes do texto, têm de ser produzidos pelo intérprete em
ocasiona a constituição duma voz significativa, formada de várias
sua fala. Realmente, qual a função do intérprete, se o efeito desejado
letras, à qual não quadra situar-se independentemente no começo
se manifestasse mesmo sem recurso à palavra?
duma frase, por exemplo {.LÉ\J o'!Í "to~ oÉ, ou um som sem significado,
No tocante à linguagem, um aspecto sob o qual éla pode ser
capaz de formar, de várias vozes cada qual com um sentido, uma voz
estudada é o da sua variedade; conhecê-Ia compete ao ator e ao espe- una significativa, por exemplo: à. {.LepL , m:pL
cialista dessa matéria, por exemplo, o que é uma ordem, um pedido,
um relato, uma ameaça, uma pergunta, uma resposta e quejandos. Articulação é um som sem significado que assinala o início, ou
o fim, ou a divisão duma sentença,' cuja posição natural é tanto nos
Como base no conhecimento ou na ignorância dessas diferenças,
extremos como no meio.
não atinge a arte poética nenhuma pecha que se tome em conside-
ração. Pois quem admitirá em Homero o erro, vituperado por Protá- Nome é um som composto significativo, sem referência a tempo,
goras, de dar uma ordem querendo pedir, quando diz: "Canta-me, do qual nenhuma parte é de si significativa, pois nas composições de
deusa, a cólera" ... ? Dizer que faça ou não faça alguma coisa, alega dois elementos não os empregamos como tendo cada um o seu senti-
ele, é dar uma ordem. Por isso, fique de lado, como objeto doutra do; por exemplo, -doro, em Teodoro, nada significa.
arte que não a poética. Verbo é um som composto, com significado, com referência de
tempo, do qual nenhuma parte tem sentido próprio, como no caso
xx dos nomes; com efeito, homem, ou branco, não dão idéia de quando,
mas anda, ou andou, trazem de acréscimo, um a idéia do tempo pre-
Compõem o todo da linguagem as seguintes partes: letra, sílaba, sente, o outro, a do passado.
conetivo, articulação, nome, verbo, flexão, frase. 43
Flexão é acidente do nome ou do verbo, que ou significa de ou a
Letra é um som indivisível: não qualquer, mas um de que se
e relações que tais, ou dá a idéia de um ou muitos, por exemplo,
produz naturalmente uma fala inteligível. Com efeito, também os bru-
homens ou homem, ou, com a inflexâo do ator, uma pergunta, ou
tos emitem sons indivisíveis, a nenhum dos quais chamo letra.

43, J:, dispensável a leitura deste capítulo que, como parte do seguinte, 44, O termo grego não significa exatamente obstáculo. mas parece
só diz respeito à língua grega. Ademais. chegado até nós em mau estado. tem significar os movimentos da língua e dos lábios na articulação de semivogais
pouco que ver com a arte poética, e consoantes, com obstrução total ou parcial da passagem do ar na Ionação.

40 41
uma ordem; com efeito, as vozes caminhou? ou caminha, são fIexões quarto em lugar do segundo, ou o segundo em lugar do quarto; às
dum verbo segundo esses aspectos. vezes se acrescenta ao termo substituto aquele com que se relaciona
Frase é uma composição de sons significativa, algumas partes da o substituído. Refiro-me a analogias como a seguinte: o que a taça é
qual significam de per si alguma coisa (pois nem toda frase é com- para Dioniso o escudo é para Ares; assim, o poeta dirá da taça que
posta de verbos e nomes, por exemplo a definição de homem; dão-se é o escudo de Dioniso e, do escudo, que é a taça de Ares. Ou então:
frases sem verbo, mas sempre terão alguma parte com significado); a velhice está para a vida como a tarde para o dia; chamará, pois, à
por exemplo. Cleão, em Cleão caminha. tarde velhice do dia. e à velhice, tarde da vida, como fez Empédocles,
De duas maneiras a frase é una: designando ou um fato isolado, ou ocaso da vida. As vezes não existe palavra assentada para um dos
ou um conjunto de fatos ligados. A Ilíada, por exemplo, é una em termos da analogia; nem por isso deixará de se empregar o símile;
virtude de ligação; a definição de homem é una por significar só uma por exemplo, diz-se semear o esparzir a semente, mas para o esparzir
coisa. o sol a sua chama não há termo próprio; mas isso está para o sol
como o semear para a semente; por isso se disse: "semeando a chama
XXI pelos deuses criada." Além desse modo de empregar a metáfora,
existe outro, quando, após usar o termo alheio, se negar algo que lhe
Os nomes pertencem a dois tipos: os simples (chamo simples os é próprio, como se ao escudo se chamasse taça, não de Ares, mas
resultantes de partes desprovidas de significado, por exemplo, terra) sem vinho.
e os duplos; destes, uns procedem dum elemento que, embora tenha Forjado é o nome ainda absolutamente não usado por ninguém,
sentido, não o tem no composto, unido a outro que não tem sentido; a que o poeta mesmo dá curso; parece esse o caso de alguns termos
outros provêm da união de elementos com significado. Pode haver como galhos por comas e oficiante por sacerdote.
também nomes triplos, quádruplos e até múltiplos, como tantos dentre
O nome é alongado ou encurtado; alongado, quando usada mais
os nomes longitroantes: Hermocdicoxantos ... 45
longa do que normalmente uma vogal, ou quando enxertada uma
Todo nome ou é corrente, ou raro, ou metafórico, ou ornamen- sílaba; encurtado, se lhe for tirada alguma coisa. Exemplo de
tal, ou forjado, ou alongado, ou encurtado, ou modificado. alongado: 7tóÀ:T)oç em lugar de 7tÓÀ,EWÇ e II'llÀ,'llLrXbEW em lugar de
Por corrente entendo o empregado por todos; raro, o usado por II'llÀ,dboU; de encurtado XPL e bW e 1J.,LcX.YLvE't"aL rX!J.Cjlo-rÉpwv ótjJ.
alguns; assim, é claro, o mesmo nome pode ser corrente ou raro, não,
O nome é modificado quando, da forma corrente, parte se deixa
porém, para as mesmas pessoas; por exemplo, crLYUVOV é corrente em
ficar e parte se inventa como bd;L-rEpOV Ka't"a. !J.cx.<;'6v em vez de bE!;LÓV.
Chipre e raro entre nós.
Dos nomes em si mesmos, uns são masculinos, outros femininos,
Metáfora é a transferência dum nome alheio do gênero para a
outros neutros. Masculinos são todos os terminados em N, R e S e
espécie, da espécie para o gênero, duma espécie para outra, ou por
sons compostos deste (são dois: psi e csi); femininos, os que termi-
via de analogia. Do gênero para a espécie significa, por exemplo,
nam pelas vogais sempre longas, como ela e ômega, ou pela vogal
"Meu barco está parado ali", porque fundear é urna espécie de parar;
alia alongada. Assim, é igualo número de terminações masculinas ao
da espécie para o gênero: "Palavra! Odisseu praticou milhares de
de femininas, porque psi e csi se reduzem a S. Nenhum nome
belas ações!", porque milhares equivale a muitas e aqui foi empre-
termina em mudas, nem em vogal breve. Em iota, só três: !J.D,L,
gado em lugar de muitas; duma espécie para outra, por exemplo:
XÓIJ..IJ..L,7tÉ7tEpL. Em Y. cinco; os neutros terminam nessas letras e tam-
"Extraiu a vida com o bronze" e "talhou com o incansável bronze";
bém em N e S.
nesses exemplos extrair está por talhar e talhar por extrair, pois am-
bos querem dizer tirar. ,, XXIl "
Digo que há metáfora por analogia quando o segundo termo está
para o primeiro como o quarto para o terceiro; o poeta empregará o A excelência da linguagem consiste em ser clara sem ser chão A
mais clara é a regida em termos correntes, mas é chã; por exemplo,
45. Palavra fictícia. formada dos nomes de três rios. a poesia de Cleoíonte e 3 de Fstênelo. Nobre e distinta do vulgar é a

42 43
no verso 48 que diz "foi um baixo te, ordinário e feio", se dissesse,
que emprega termos surpreendentes. Entendo por surpreendentes o
termo raro, a metáfora, o alongamento e tudo que foge ao trivial. com os termos triviais, "um pequeno, fraco e feio". Igualmente, "pon-
do-lhe um banco humilde e uma mesa acanhada" 49 e "pondo-lhe um
Mas, quando toda a composição se faz em termos tais, resulta um
enigma, ou um barbarismo; a linguagem feita de metáforas dá em banco ordinário e uma mesa pequena". Assim também "bramam as
enigma; a de termos raros, em barbarismo; a essência cio enigma con- Ialésias" e "gritam as falésias".50
'- ,-
siste em falar de coisas reais associando termos inconciliáveis; isso Outrossim, Arífrades, em cena, metia à bulha os trágicos por usa-
não é possível com a combinação de palavras próprias, mas é admis- rem construções que ninguém empregaria na conversação, por exem-
sível com a metáfora; por exemplo, "vi um homem colando bronze plo oW{.J.á'tw\IcX.'1tO
em vez de á'1to oW{.J.<Í'tW\I
e mais ITESE\I,Éyw oE VLV
num outro por meio do fogo" 46 e outras adivinhas que tais. Dos ter- e 'AX~À.À.Éw,> '1tÉp~em vez de m:pt 'AX~ÀÀÉw<; etc. Todas as expressões
mos raros resulta barbarismo. É necessário, portanto, como que fundir dessa natureza, por não pertencerem ao uSQ corrente, comunicam dis-
esses processos; tirarão à linguagem o caráter vulgar e chão, por exem- tinção à linguagem e isso ele não compreendia.
plo, a metáfora, o adorno e demais espécies referidas; o termo COt- É importante o uso criterioso de cada um dos citados recursos,
rente, doutro lado, lhe dará clareza. dos nomes duplos, bem come dos raros, mas muito mais a fertilidade
Trazem não mesquinha contribuição a uma linguagem clara e em metáforas. Unicamente isso não se pode aprender de outrem e é
invulgar os alongamentos, encurtamentos e modificações das palavras; sinal de talento natural, pois ser capaz de belas metáforas é ser capaz
o aspecto diferente do usual, afastado do cotidiano, dar-lhe-á distinção, de apreender as semelhanças.
mas a participação do usual deparará clareza. Assim, não assiste razão Dos vocábulos, os duplos são os mais apropriados aos ditiram-
aos que censuram essa maneira de ser do estilo e metem a riso, em bos; os raros, aos poemas heróicos; as metáforas, aos jâmbicos. Aliás,
cena, o poeta, como fez Euclides, o Antigo, dizendo ser fácil versejar todos esses podem ser empregados nos heróicos; já nos jâmbicos, que
quando é dado alongar sílabas à vontade. 47 Ele satirizou o proce-di- imitam a fala antes de tudo, os termos apropriados são os que se
mento com uma paródia:
usariam na conversação, a saber: termos correntes, metáforas e or-
namentos.
'EmX<Íp"I'J\IEtoO\l Mapa8Gí\lcioE ~aW~o\l'ta
e A respeito das tragédias e imitação de ações, basta o que temos
dito.
OU" cX.\Iy'Ép<Í{.J.E\lO>
'tO\l i"d\lou iÀ.À.É~opo\l.
XXIII
Ora, é ridículo, sim, dar na vista pelo uso dessa facilidade, mas
moderação se espera em todos os aspectos da linguagem; quem usasse,
fora de propósito, metáforas, termos raros e demais adornos, obteria No tocante à imitação narrativa metrificada.P! evidentemente,
o mesmo efeito que se o fizesse visando ao cômico. devem-se compor as fábulas, tal como nas tragédias, em forma dra-
mática, em torno duma só ação inteira e completa, com início, meio
Que diferença faz nas epopéias o seu uso adequado, verifique-se
e fim, para que, como um vivente uno e inteiro, produza o prazer
introduzindo no verso os termos ordinários. Substituindo os termos
peculiar seu; não sejam os arranjos como o das narrativas históricas,
raros, as metáforas etc. pelas palavras correntes, pode-se ver que dize-
onde necessariamente se mostra, não uma ação única, senão um es-
mos a verdade. Ésquilo e Eurípides compuseram o mesmo verso jârn-
paço de tempo, contando tudo quanto nele ocorreu a uma ou mais
bico, com a mudança apenas duma palavra de uso corrente por outra
pessoas, ligado cada fato aos demais por um nexo apenas fortuito.
rara; o verso de um parece-nos belo e o do outro, vulgar. Dissera,
com efeito, Ésquilo no Filoctetes: "úlcera que come as carnes de
meu pé". Eurípides usou repastar-se em lugar de comer. Também se, 48. Odisséia, lX, 515.
49. Odisséia, XX, 259.
46. Solução da adivinha: aplicação duma ventosa. 50. Iliada, XVII, 265.
47. Liberdade poética, comparável à sístole e diástole. 51. Definição da epopéia.

44 45
Com efeito, assim como se deram na mesma ocasião a batalha naval única audição. Para alongamento da extensão, a epopéia goza duma
de Salamina e o combate dos cartagineses na Sicília, sem visarem a vantagem especial: enquanto na tragédia não cabe representar muitas
nenhum objetivo comum, assim também às vezes, na seqüência dos partes como realizadas ao mesmo tempo, senão apenas a parte em
tempos, um fato vem após outro, sem que deles ocorra nenhum fim cena, que os atores estão desempenhando, na epopéia, por se tratar
único. Todavia, quase todos os poetas incidem nesse erro. duma narrativa, é possível representar muitas partes como simultâ-
Por isso também sob esse aspecto Homero em confronto com os neas; sendo pertinentes essas partes, engrossa-se o volume do poema.
outros, como já dissemos, parece inspirado; ele não tentou narrar a Isso contribui para a opulência; bem assim, a variedade e a diversi-
guerra inteira, embora ela tenha tido um começo e um fim; a fabula- ficação dos episódios, pois a monotonia não tarda a entediar a platéia
ção seria excessivamente longa para ser abrangida numa visão única, e acarretar o malogro das tragédias.
ou, se moderada a extensão, a variedade de incidentes a complicaria. De acordo com a experiência, o metro que se ajusta é o heróico.
Ele, porém, tomou apenas uma parte e lançou mão de muitos episó- Se, com efeito, alguém compusesse uma imitação narrativa em qual-
dios, que distribuiu em seu poema, entre outros, o Catálogo dos quer outro ou em vários metros, a inadequação seria flagrante; o
. Navios. 52
heróico é dos metros o mais pausado e amplo; por isso, abriga me-
Em geral, porém, os poetas compõem em torno dum só herói ou lhor os termos raros e as metáforas; a imitação narrativa é, assim,
um só tempo,' ou duma só ação de muitas partes, como o autor dos mais esmerada que as outras. O verso jârnbico e o terrâmetro são mo-
Cantos Ciprios e o da Pequena llíada. Assim é que, da llíada e da vimentados, próprios o primeiro para a dança, o segundo para a ação.
Odisséia se faz, de cada uma, uma única tragédia, ou duas apenas, Outrossim, mais descabido seria misturá-Ios, como Querêmon. Por
ao passo que muitas se fizeram dos Cantos Ciprios e mais de oito da isso, em composições longas, ninguém emprega outro verso, senão o
Pequena Ilíada, por exemplo: O Julgamento das Armas, Filoctetes, heróico, mas, como dissemos, a natureza mesma ensina a escolher
Neoptôlemo, Euripilo, Mendicância, As Lacedemônias, O Saque de o conveniente.
Tróia e Regresso, Sinão e As Troianas. Homero, merecedor de louvores por tantos outros títulos, é, ainda,
o único poeta que não ignora o que deve fazer em seu próprio nome.
O poeta deve falar em seu nome o menos possível, pois não é nesse
XXIV sentido que é um imitador. Os outros representam um papel pessoal
de extremo a extremo, imitando pouco e poucas vezes, enquanto ele,
Outrossim, a Epopéia deve ter as mesmas espécies que a tragé- após breve preâmbulo, introduz logo um homem, uma mulher ou
dia: simples, complexa, de caráter ou patética. Seus componentes, alguma outra figura, nenhuma despersonalizada, todas com o seu
fora a melopéia e o espetáculo, são os mesmos; ela requer, com efeito, caráter.
peripécias, reconhecimentos e desgraças; ademais, os pensamentos e a
Nas tragédias se deve, por certo, criar o maravilhoso, mas o irra-
linguagem precisam ser excelentes. De todos esses componentes usou
cional, fonte principal do maravilhoso, tem mais cabida na epopéia,
Homero pela primeira vez e cabalmente. Realmente, dos dois poemas,
porque não estamos vendo o ator; haja vista a perseguição de Heitor;
ele compôs simples e patética, a Ilíada; complexa, toda de reconheci-
em cena, daria em cômico, com os gregos parados, sem ir no encalço,
mentos e de caráter, a Odisséia. Além disso, superou a todos na lin-
guagem e nas idéias. e Aquiles a acenar que não; na epopéia isso passa despercebido. O
maravilhoso agrada; prova está que todos o acrescentam às suas nar-
A epopéia difere da tragédia na extensão da cornposiçao e no rativas com o fito de agradar.
metro. Da extensão bastará o limite já referido; é preciso que se possa
Foi sobretudo Homero quem ensinou aos outros poetas a ma-
ter uma visão global do começo e do fim . .Isso aconteceria, se as
neira certa de iludir, isto é, de induzir ao paralogismo. Quando, ha-
composições, dum lado, fossem mais curtas que as de outrora e, dou-
vendo isto, há também aquilo, ou, acontecendo uma coisa, outra acon-
tro, se aproximassem da duração total das tragédias encenadas numa
tece também, as pessoas imaginam que, existindo a segunda, a pri-
meira também existe ou acontece, mas é engano. Por isso, se um pri-
52. Parte do canto II da lliada. meiro fato é falso, mas, existindo ele, um segundo tem de existir ou

46 47

~,~---
produzir-se necessariamente, cabe acrescentar este, porque, sabendo-o em algum ramo das ciências, como a medicina ou alguma outra, ou
real, nossa mente, iludida, deduz que o primeiro também o é. Exemplo criou algo impossível, o erro não é de arte.
disso é a passagem do Banho. 53 É, pois, mister ter isso em vista quando se responde às censuras
Quando plausível, o impossível se deve preferir a um possível contidas nas críticas. Para começar no que tange à arte mesma, se o
que não convença. As fábulas não se devem compor de partes irra- poema encerra impossíveis, houve erro: mas isso passa, se alcança o
-
,
cionais; tanto quanto possível, não deve haver nelas nada de absurdo, fim próprio da poesia (o fim, com efeito, já foi explicado) e assim
ou então que se situe fora do enredo, como o ignorar Edipo as cir- torna mais viva a impressão causada por essa ou por outra parte do
cunstâncias da morte de Laia, e não na ação, como, por exemplo, poema. Exemplo disso é a Perseguição de Heitor. 55 Se, todavia, o
na Electra, as personagens que descrevem os jogos píticos, ou, nos objetivo pode ser atingido melhor ou tão bem sem contrariar a ciência
Mísios, aquela que chegou de Tégea à Mísia e nada diz. Assim, ridí- respectiva, não está bem errar, porquanto.. se possível, não se deve
culo é alegar que aliás se destruiria a fábula, pois, de início, estória cometer erro algum.
desse tipo não merece ser composta; quando, porém, o poeta assim Outra questão é a categoria do erro, conforme fira os princípios
a faz e ela parece mais verossímil, é aceitável, apesar do insólito; se da arte, ou de outro domínio. Com efeito, ignorar que a corça não
não; mesmo na Odisséia, evidentemente não seria de tolerar o que há tem galhos é erro menos grave do que pintá-Ia numa figura irreco-
de irracional no desembarque, 54 se o houvesse escrito um autor de nhecível. Além disso, se a censura é de que não se representam os
inferior categoria; o Poeta, porém, deleitando-nos com os outros en- originais quais são, quiçá os tenham figurado quais deviam ser. Só
cantos, escamoteia-nos a absurdeza. . focles, por exemplo, dizia que ele representava as pessoas como de-
f: nas passagens sem ação, caráter ou idéia, que importa esmerar viam ser e Eurípides, como eram. Essa a solução; se, porém, nem
a linguagem, pois· um estilo demasiado brilhante ofusca os caracteres como são, nem como deviam ser, a solução é que "assim consta";
e os pensamentos. por exemplo, no que toca aos deuses. Talvez não os façam melhores,
nem como são na realidade, mas como ocorreu a Xenófanes: "é como
xxv dizem". Às vezes, quiçá não tenha havido melhora e sim represen-
tou-se como costumava ser; por exemplo, no caso das armas, "lanças
Quanto às objeções e sua solução, ao número e natureza de suas
a prumo, conto fincado no chão", por esse era o costume do tempo,
espécies, podem esclarecer-nos as seguintes considerações. Imitador,
como ainda hoje na Ilíria,
como o pintor ou qualquer outro artista plástico, o poeta necessaria-
mente imita sempre por uma de três maneiras: ou reproduz os origi- Para examinar se alguma personagem disse ou fez alguma coisa
nais tais como eram ou são, ou como os dizem e eles parecem, ou bem ou não, devemos não só considerar se é nobre ou vil em si o
como deviam ser. Isso se exprime numa linguagem em que há termos ato ou palavra, mas também levar em conta a personagem que age
raros, metáforas e muita modificação de palavras. pois consentimos ou fala, a quem o faz, quando, por quem ou para que; por exemplo,
isso aos poetas. a fim de deparar um benefício maior, ou prevenir maior malefício.
Ademais, correção não significa o mesmo na atuação social e na Algumas objeções se têm de rebater de olhos no texto, como
poética, nem em artes outras que a da poesia. O erro na poética mes- por exemplo, pelo termo raro em oUp1)a., [J.EV 1tpw't'ov, onde talvez o
ma se dá de duas maneiras: erro de arte e erro acidental. Se o poeta poeta não se refira às alimárias, mas aos guardas, e quando diz de
resolver imitar um original e não o imitar corretamente por incapaci- Dolão Ó, p 1) 't'OL doo, [J.Év ÉllV xcocós não por ter corpo mal propor-
dade, o erro é de arte; mas se errou na concepção do original e pintou cionado, mas por ter feições feias, porque quando os cretenses dizem
um cavalo com ambas as patas dianteiras avançadas, ou se enganou formoso, referem-se à beleza do rosto. Também em SWpÓ't'EPOV oE
XÉpa.LE não quer dizer que sirva vinho "não temperado", como para
53. Odisséia, xrx, 215. Se o hóspede viu Odisseu, sabe como estava
beberrões, mas sim "mais depressa".
vestido; se sabe como estava vestido, é porque o viu. O hóspede, porém,
era o próprio Odisseu.
54. Odisséia, XIrI, 116. Os feácios depõem Odisseu e sua bagagem
na costa de Itaca, sem que ele desperte. 55. V. capo xxrv.

48 49
Noutro lugar se empregou metáfora; por exemplo, o poeta diz 56 dum absurdo, pois é verossímil que algo aconteça contra a veros-
"todos os deuses e homens dormiram a noite toda" e, ao mesmo similhança.
tempo, "quando observa o campo troiano, o concerto das flautas e Devem-se examinar as contradições como nas refutações dialé-
gaitas de Pã". É que diz todos em lugar de muitos por metáfora, pois ticas: se o poeta, tratando do mesmo objeto, nas mesmas relações e
todos é uma espécie de muitos. É também metáfora "só ela não par- no mesmo sentido, contradiz as suas próprias palavras, ou aquilo que
ticipa", pois o que é o mais conhecido é único. uma pessoa inteligente supõe.
Também se resolvem dificuldades pela entonação, como Hípias É, porém, justa a crítica a um absurdo ou maldade, quando, des-
de Tasos explicava as passagens OLOOIJ..EV oÉ OL ... e "to (J.EV ou XC1."tC1.- necessariamente ele usar seja do absurdo, como Eurípides usou de
7tlJ8E"tC1.L óIJ..8pw. Algumas, por uma pausa, como Ernpédocles: "Sem Egeu, 59 seja de maldade, como a de Menelau," no Orestes.
demora se tornaram mortais as coisas antes imortais, e as puras antes
se misturaram." Outras, pela ambigüidade: TIC1.pWX11XEV õE TIÀÉw vúç Assim, pois, fazem-se críticas sob cinco capítulos: impossibili-
pois que TIÀÉw é termo ambíguo. Outras, pelos hábitos da língua; dade, irracionalidade, maldade, contradição e violação das regras da
chamam vinho às bebidas diluídas e por isso se disse que Ganimedes arte; as soluções se hão de procurar nos itens atrás desenvolvidos,
servia vinho a Zeus, quando os deuses não bebem vinho; também aos que são doze.
que trabalham o ferro se dava o nome de bronzistas; daí ter dito o
poeta "greva de estanho recentemente forjado"; esse exemplo, porém, XXVI
podia igualmente constituir metáfora.
Quando uma expressão parece envolver uma contradição em seus Pode alguém ficar em dúvida sobre qual a melhor imitação, se
termos, é mister averiguar quantos sentidos ela pode ter no texto; a épica, se a trágica. Com efeito, se a menos vulgar é a melhor e tal é a
por exemplo, em "a lança de bronze foi detida por esta",57 cumpre que visa a um público melhor, é por demais evidente ser vulgar a
verificar de quantas maneiras é admissível que a lança fosse detida que imita tendo em vista a multidão. Por sinal, os atores cuidam que
por aquela chapa. É essa a melhor maneira de interpretar, ao inverso a platéia não compreende sem que eles aumentem a carga e por isso
do método de alguns críticos que, como diz Glaucão, partindo irra- se desmancham em gesticulação; por exemplo, os flauteiros ordiná-
cionalmente dum juízo formado, raciocinam depois de sentenciar e rios, que se contorcem para sugerir o lançamento do disco e arrastam
condenam o autor por ter dito o que imaginam eles, se for de encon- o corifeu quando tocam a Cila.
tro à presunção deles. Ê o que se deu com relação a Icário.P' Pre- Tal é, portanto, a tragédia, quais julgavam os atores de antanho
sumem-no lacedemônio e estranham não o tenha encontrado Telê- aos que os sucederam. Como. Calípides 61 se excedia, Minisco 62 cha-
maco quando foi à Lacedemônia. Mas talvez estejam certos os cefalê- mava-lhe macaco e opinião semelhante se fazia de Píndaro. 63 A mes-
nios, ao dizerem que Odisseu casou em sua terra e não se trata de ma relação existente entre os atores se verifica entre toda sua arte
Icãrio, mas de Icádio. Essa objeção talvez se deva a um erro. e a epopéia. Esta, de fato, alegam, destina-se a espectadores distintos,
De modo geral, o impossível se deve reportar ao efeito poético,
à melhoria, ou à opinião comum. Do ângulo da poesia, um impossível 59. Na Medéia, Egeu, passando casualmente pelo lugar, e não em decor-
convincente é preferível a um possível que não convença. A existên- rência da ação mesma da tragédia, oferece acolhida em Atenas a Medéia,
cia de homens quais pintava Zêuxis talvez seja impossível, mas seria que foge de Corinto,
melhor, pois o modelo deve sobrexceler. As absurdezas devem-se re- 60. Na opinião de Aristóteles, Eurípides em Orestes, exagerou dema-
portar à tradição; assim, também se dirá, por vezes, que não se trata siada e desnecessariamente a baixeza de caráter de Menelau,
,,
61. Intérprete de Sófocles e causador involuntário de sua morte, por lhe
ter enviado as uvas com que o poeta nonagenário engasgou.
56. Ilíada, X, 1, 2 e 11, 13.
62. Intérprete de Esquilo.
57. I/íada, IX, 272.
63. Ator desconhecido, que não deve ser confundido com o célebre poeta
58. Sogro de Odisseu. homônimo.

50 51
que dispensam a representação, enquanto a tragédia é para uma pla-
téia somenos. E se é ordinária, evidentemente será inferior.
Em primeiro lugar, a censura não atinge a arte do poeta, senão
à dos atores; despropósitos nos gestos são possíveis não só na récita
dum rapsodo, qual é Sosístrato, como também num concurso de canto, "
como fazia Mnasíteo de Opunte. Depois, nem toda gesticulação é
condenável, se tampouco o é a dança, mas sim a dos atores medíocres; HORÁCro
essa censura se fazia a Calípides e agora a outros, a de imitarem mu-
lheres de condição inferior.
Outrossim, mesmo sem gesticulação, a tragédia produz o efeito
próprio, tal como a epopéia, pois basta a leitura para, evidenciar a ARTE POÉTICA
sua qualidade. Se, pois, ela é superior nos demais requisitos, não é
indispensável que conte mais esse. E e1a o é, por ter todos os méritos
da epopéia (pois pode valer-se também do hexâmetro), e mais a mú-
sica e o espetáculo, partes de não mesquinha importância, por meio Epistula ad Pisones
das quais o prazer se efetua com muita viveza. Ademais, tem viveza
quer quando lida, quer quando encenada.
Tem, ainda, .o mérito de atingir o fim da imitação numa exten-
são menor, pois maior condensação agrada mais do que longa dilui-
ção; quero dizer, por exemplo, se o Édipo de Sófocles fosse passado
para tantos versos quantos conta a Iliada. Também é menos una a
imitação das epopéias (uma prova: de qualquer delas se extraem vá-
rias tragédias), de sorte que, se os autores a compõem sobre uma só
fábula, esta se afigura, numa narrativa curta, mirrada; estirada para
atingir extensão, aguada. Digo, por exemplo, se for composta de várias
ações, como a Ilíada, que tem muitas partes assim, tal qual a Odisséia,
partes que, por sua vez, têm extensão; não obstante, esses poemas
estão compostos com a maior perfeição e são, tanto quanto possível,
imitações duma ação única.
Se, pois, ela sobreleva por todos esses méritos e ainda pela
eficiência técnica - pois lhe incumbe produzir, não um prazer qual-
quer, mas o atrás mencionado - está claro que, atingindo melhor o
seu fim, é superior à epopéia.
A respeito, pois, da tragédia e da epopéia em si mesmas, de suas
espécies e elementos, de quantos são estes e em que diferem, das cau-
sas de seu bom ou mau êxito, das críticas e suas soluções, basta o
que dissemos.

52
Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a Uma cabeça
humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência
e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher for-
mosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver
o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões.?
bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasias-
sem formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira
que o pé e a cabeça não se combinassem num ser uno.
- A pintores e poetas sempre assistiu a justa liberdade de ou- [10]
sar seja o que for.
- Bem o sei; essa licença nós a pedimos e damos mutuamente;
não, porém, a de reunir animais mansos com feras, emparelhar cobras
com passarinhos, cordeiros com tigres.
Não raro, a uma introdução solene, prenhe de promessas gran-
diosas, cosem um ou dois retalhos de púrpura, que brilhem de longe,
quando se' descreve um bosque sagrado e um altar de Diana, os
meandros duma fonte a correr apressada por amena campina, o Reno
ou o arco-íris; mas esses quadros não tinham lugar ali. Você talvez
pinte muito bem um cipreste, mas que importa isso, se está nadando,
sem esperanças, entre os destroços dum naufrágio, o freguês que [20]
pagou para ser pintado? 2 Começou-se a fabricar uma ânfora: por que,
ao girar o torno do oleiro, vai saindo um pote? Em suma, o que quer
que se faça seja, pelo menos, simples, uno.
A maioria dos poetas, ó pai e moços dignos do pai, deixamo-nos
enganar por uma aparência de perfeição. Esfalfo-me por ser conciso
e acabo obscuro; este busca a leveza e faltam-lhe nervos e fôlego;
Bibliografia:
aquele promete o sublime e sai empolado; um excede-se em cautelas
com medo à tempestade e roja pelo chão; outro recorre ao maravi-
Epistula ad Pisones, de Horácio, nas seguintes edições:
••• I" •• ,

1. Scriptorum Classicorum 'Bibliotheca Oxoniensis, Q. Horati Flacci opera; 1. Este pequeno tratado é uma carta dirigida pelo poeta a seus amigos
recognovit Eduardus C. Wíckrnan, editio altera, Oxford, Clarendon, 1967. os Pisões, pai e filhos.
2. Soco d'Edition "Les Belles Lettres", Horace, Epitres, texte établi et traduit 2. Salvo dum naufrágio, o freguês encomendou ao pintor um quadro
par François Villeneuve, 4eme édition, Paris. 1961. alusivo à graça alcançada , que depositará num templo.

55
lhoso para dar variedade a matéria una e acaba pintando golfinhos no cunhagem recente. Como, à veloz passagem dos anos, os bosques
mato e javalis nas ondas. [30J mudam de folhas, que as antigas vão caindo, assim perece a geração [60]
', velha de palavras e, tal como a juventude, floreiam, viçosas, as nas-
A fuga a um defeito, faltando arte, conduz a um vício. O mais
cediças. Somos um haver da morte, nós e o que é nosso. Pode Netuno,
apagado artífice das imediações da escola de Emílio 3 pode, em bronze,
gasalhado em terra, abrigan.dos aquilões nossas esquadras - uma
modelar unhas, pode até reproduzir a 'maciez dos cabelos e, não
obra de rei; pode um paul, por longo tempo improdutivo e praticável
obstante, malograr-se no conjunto da obra por não saber compor o
aos remos, alimentar as cidades ribeirinhas e sentir o peso do arado;
todo. Eu cá, se me pusesse a criar uma obra de arte, a ser como ele,
pode um rio aprender um caminho melhor e abandonar um curso
preferiria viver com nariz torto, olhos negros, cabelos negros de cha- fatal às searas; as obras humanas passarão. Muito menos se há de
mar atenção.
manter de pé, vivedoura, a voga prestigiosa das expressões. Revive- [70J
Vocês, que escrevem, tomem um tema adequado a suas forças; rão muitos termos que haviam caído e outros, hoje em voga, cairão, se
ponderem longamente o que seus ombros se recusem a carregar, o assim reclamar a utilidade, de cujo arbítrio exclusivo pende o justo
que agüentemo A quem domina <2.,.assuntoescolhido não faltará elo- [40] e o normal numa.Iíngua.
, qíiência, 4 nem lúcida ordenação. A força e graça da ordenação, se Homero mostrou qual o ritmo apropriado à narração dos feitos
não me engano, está em dizer logo o autor do poema enunciado o que dos reis e capitães nas guerras funestas. Em dísticos de versos desi-
se deve dizer logo, diferir muita coisa, silenciada por ora, dar prefe- guais encerrou-se de início a endecha; mais tarde, também a satisfação
rência a isto, menos preço aquilo. '
dum voto atendido. Mas quem seria o inventor da curta estrofe
Outrossim, se, empregando-se delicada cautela no encadeamento elegíaca? Discutem-no os filólogos e o processo ainda se encontra nas
das palavras, um termo surrado, graças a uma ligação inteligente, lo- mãos do juiz. A cólera armou a Arquíloco 9 de jambos todo seus;
grar aspecto novo, o estilo ganhará em requinte. Se acaso idéias nun- esse pé adequado ao diálogo, que sobrepuja a zoada do público e
ca enunciadas impuseram a criação de expressões novas, será o caso [50] nasceu para a ação, perfilharam-no os socos e os imponentes cotur-
de forjar termos que não ouviram os Cetegos 5 de túnica cintada. To- nos. 10 A Musa conferiu à lira o privilégio de celebrar os deuses, os [80]
mada com discrição, tal liberdade será consentida e palavras novas filhos dos deuses, o púgil vencedor, o cavalo ganhador da corrida, as
em folha terão curso quando pingarem da bica grega, numa derivação inquietações da mocidade e as liberdades do vinho.
parcimoniosa. Ora, que regalia consentirá o romano a Cecília e Plauto, Se não posso nem sei respeitar o domínio e o tom de cada gê-
mas negará a Vergílio e Vário? 6 Se eu sou capaz dumas minguadas nero literário, por que saudar em mim um poeta? por que a falsa
aquisições, por que mesquinhar-me esse direito, uma vez que a lin- modéstia de preferir a ignorância ao estudo?
guagem de Catão 7 e Ênio 8 enriqueceu o idioma nacional lançando A um tema cômico repugna ser desenvolvido em versos trágicos;
neologismos? Era e sempre será lícito dar curso a um vocábulo de doutro lado, o Jantar de Tiestes 11 indigna-se de ser contado em com-
posições caseiras, dignas, por assim dizer, do soco. Guarde cada [90J
3. Escola de gladiadores. gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta.
4. E o velho preceito de Catão: rem tene, verba sequentur, domina o
assunto, que as palavras virão. 9. Arquíloco de Paros, admirado e imitado por Horácio, foi o provável
5. Família tradicional, tardou a adotar túnicas de modelo novo. criador da elegia; usou o metro jâmbico em suas invectivas.
6. Plauto e Cecílio, autores já antigos de comédias; Vergílio e Vário, 10. Socos, calçado próprio da comédia; coturnos, da tragédia.
épicos contemporâneos e amigos de Horácio. 11. Tema de tragédias gregas e latinas, de que se lembrou CaIDÕes:
7. Catão, o Censor, um dos primeiros prosadores latinos, orador e
historiógrafo, deixou também obras técnicas, notadamente um tratado de "Bem puderas, ó Sol, da vista destes
agricultura. Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
8. Ênio, o maior dos primitivos poetas latinos, compôs os Anais, poema Quando os filhos por mão de Atreu comia."
épico, e mais sátiras, tragédias e comédias. Grandemente apreciado por
Cícero. Lusladas, III, 133.

56 57
Às vezes, contudo, a comédia ergue a voz e um Cremes 12 zan- • Orestes, 20 sorumbático. Quando se experimenta assunto nunca ten-
gado ralha de bochechas inchadas; muitas vezes, também, na tragédia, tado em cena, quando se ousa criar personagem nova, conserve-se
um Télefo ou Peleu 13 se lamenta em linguagem pedestre, quando este ela até o fim tal como surgiu de começo, fiel a si mesma.
ou aquele, na pobreza e no exílio, rejeita os termos empolados e É difícil dar tratamento original a argumentos cediços, mas, a
sesqüipedais.V se lhe importa tocar, com suas queixas, o coração da ser o primeiro a encenar temas desconhecidos, ainda não explorados, é
platéia. preferível transpor para a cena uma passagem da Ilíada. Matéria [130]
Não basta serem belos os poemas; têm de ser emocionantes, de ! pública se tornará de direito privado, se você não se demorar aí pela
conduzir os sentimentos do ouvinte aonde quiserem. O rosto. da [100] arena vulgar, aberta a toda gente, nem, tradutor escrupuloso, se em-
gente, como ri com quem ri, assim se condói de quem chora; se me penhar numa reprodução literal, ou, imitador, não se meter numas
queres ver chorar, tens de sentir a dor primeiro tu; só então, meu Téle- aperturas de onde a timidez ou as exigências da obra o impeçam de
fo, ou Peleu, me afligirão os teus infortúnios; se declamares mal o teu arredar pé.
papel, ou dormirei, ou desandarei a rir. Se um semblante é triste, qua- Tampouco se deve começar como certo autor cíclico 21 outrora:
dram-lhe as palavras sombrias; se irado, as carregadas de ameaças; "Cantarei a sorte de Príamo e a guerra ilustre ... " Que matéria nos
se chocarreiro, as joviais; se severo, as graves. A natureza molda-nos dará esse prometedor, digna de tamanha boca aberta? Vai parir a
primeiramente por dentro para todas as vicissitudes; ela nos alegra montanha, nascerá um ridículo camundongo. Bem mais. acertado andou
ou impele à cólera, ou prostra em terra, agoniados, ao peso da afli- este outro, 22 que nada planeja de modo inepto: "Fala-me, Musa, [140]
ção; depois é que interpreta pela linguagem as emoções da alma. [110] do herói que, após a tomada de Tróia, viu os costumes e cidades de
Se a fala da personagem destoar de sua boa ou má fortuna, romperão muitos homens"! Ele não se propõe tirar fumaça dum clarão, mas luz
em gargalhadas os romanos, cavaleiros e peões. da fumaça, a fim de nos exibir, em seguida, maravilhas deslumbran-
Muito importará se fala um deus ou um herói, um velho ama- tes, um Antífates e uma Cila, uma Caribde além dum Ciclope. Não
durecido ou um moço ardente na flor da juventude, uma autoritária inicia pela morte de Meléagro o regresso de Diomedes, 23 nem pelo
matrona ou uma governanta solícita, um mascate viajado ou o culti- par de ovos 24 a guerra de Tróia; avança sempre rápido para o des-
vador duma fazendola verdejante, um cidadão da Cólquida ou um fecho e arrebata o ouvinte para o centro dos. acontecimentos, como
da Assíria, alguém criado em Tebas ou em Argos. se fossem estes já conhecidos; abandona os passos que não espera
Deve-se ou seguir a tradição, ou criar caracteres coerentes consi- possam brilhar graças ao tratamento e de tal forma nos ilude, de [150]
go. Se o escritor reedita o celebrado Aquiles 15 que este seja estrê- [120] tal modo mistura verdade e mentira, que do começo não destoa o
nuo, irascível, inexorável, impetuoso, declare que as leis não foram meio, nem, do meio, o fim.
feitas para ele e tudo entregue à decisão das armas. Medéia 16 será Ouça você o que desejo eu e comigo o povo, se quer que a pla-
feroz e indomável; Ino, 17 chorosa; Ixíon, 18 pérfido; 1,9, 19 erradia; téia aplauda e espere, sentada, a descida Cio pano, até o ator pedir
"aplaudi". Cumpre observar os hábitos de cada idade, dar a carac-
12. Cremes, personagem de comédias, especialmente de Heautontimoru-
menus e Phormio, de Terêncio.
13. Télefo e Peleu, personagens de tragédias gregas. . 20. Perseguido pelas Eríneas, divindades infernais, pelo assassínio de
14. Sesqüipedal é o que mede um pé e meio; palavras sesqüipedais Clitemnestra, sua mãe.
são as demasiado longas. 21. Muitos poemas se escreveram sobre Tróia, Tebas e outros assuntos
15. Herói da Iliada, o maior guerreiro aqueu. da antigüidade mítica. Desconhece-se o autor aqui censurado.
16. Medéia, traída por J asão, vinga-se matando-lhe a noiva e o sogro, 22. Homero, na Odisséia.
e seus próprios filhos. 23. Entre os poemas cíclicos, algúns narravam a volta de heróis da guerra
17. Ino, perseguida por Hera, ciumenta esposa de Zeus, precipitou-se de Tróia: por exemplo, a Odisséia, sobre o regresso de Odisseu (Ulisses)-
no mar e tornou-se deusa marinha com o nome de Leucotéía. 24. Segundo uma das versões da lenda, Zeus, apaixonado por Le.da,
18. Ixíon tentou raptar Hera; em castigo, foi preso, no Hades, a uma esposa de Tíndaro, visitou-a disfarçado em cisne. De um ovo teriam. nascído
roda, que girava sem parar. Pólux e Helena filhos de Zeus: de outro Cástor e Clitemnestra, filhos do
19. 10, raptada por Zeus e mudada em novilha. marido.' "

58
teres e anos mudáveis o aspecto que lhes convém. Uma criança ja não condiga com o assunto, nem se ligue a ele estreitamente. Cabe-lhe
capaz de falar, que imprime no chão a marca de passos seguros, an- apoiar os bons, dar conselhos amigos, moderar as iras, amar aos que
seia brincar com seus iguais, sem motivo se encoleriza e se acalma, se arreceiam de errar; louve os pratos da mesa frugal, bem como a
muda duma hora para outra. Afastado, finalmente, o seu aio, um [160]
justiça salutar, as leis, a paz de portas abertas; guarde os segredos
moço ainda imberbe se deleita com os cavalos, com os .çães, com o
confiados a ele, ore aos deuses, peça que a Fortuna volte aos infelizes
" gramado a céu aberto do Campo de Marte; 25 molda-se como cera ao
e abandone os soberbos. [200J
vício, áspero às advertências, moroso em prover às necessidades, pró-
digo de dinheiro, empertigado, apaixonado, pronto a largar as coisas A flauta, não revestida de latão, como agora, a rivalizar com a
que amou. Com a idade e o espírito varonil, mudam-se os gostos; o trombeta, mas sim, suave, duma só peça, com poucos furos, servia
homem passa a buscar o prestígio, as amizades; cativa-se das honra- para dar tom aos coros e acompanhá-Ias, enchendo de som a platéia,
rias, acautela-se de empresas que talvez em breve se empenhe em mu- ainda não apinhada demais, aonde afluía um público fácil de contar,
dar. Ao velho cercam muitos incômodos, ou porque procura e, coi- pouco que era, sóbrio, pio, pudoroso. Desde que, vencedor, o povo
tado, depois de achar se abstém, temeroso de usar, ou porque em [170] passou a dilatar os campos, um mgro mais longo a envolver a cidade
tudo que executa põe timidez e frieza, sempre adiando, pondo longe e o Gênio a ser aplacado, nas festividades, com vinho em pleno dia
as esperanças, inativo, inquieto quanto ao futuro, impertinente, quei- impunemente, uma licença mais larga penetrou nos ritmos e melo- [210]
xoso, gabando sempre o tempo passado em sua meninice, repreen- dias. Que gosto, com efeito, podia ter, forrado aos trabalhos, confundi-
dendo e reprovando os mais novos. Os anos, à medida que vêm, tra- do com os citadinos, um campônio sem instrução, um pé-rapado entre
zem consigo vantagens sem número; à medida que se vão, levam gente distinta? Foi assim que o flauteiro, à arte primitiva, juntou mo-
consigo um sem-número delas. Não se atribua a um jovem o quinhão vimentação e luxo e arrastou as vestes vagando pelos tablados. Assim
da velhice, nem a um menino o dum adulto; a personagem manterá também se aumentaram as notas da severa lira, uma eloqüência arre-
sempre o feitio próprio e conveniente a cada quadra da vida. batada assumiu um estilo desusado e o pensamento capaz de úteis
As ações ou se representam em cena ou se narram. Quando [180] conselhos e de previsão do futuro não se diferencia do oráculo de
recebidas pelos ouvidos, causam emoção mais fraca do que quando, Delíos.
apresentadas à fidelidade dos olhos, o espectador mesmo as testemu- Quem concorreu com uma tragédia ao prêmio barato dum [220)
nha; contudo, não se mostrem em cena ações que convém se passem bode, 28 pouco depois também pôs em cena, despidos, os agrestes sáti-
dentro e furtem-se muitas aos olhos, para as relatar logo mais uma ras e rudemente, sem abandono da gravidade, tentou o cômico, porque
testemunha eloqüente. Não vá Medéia trucidar os filhos à vista do tinha de ser retido por atrações e novidades agradáveis um espectador
público; nem o abominável Atreu cozer vísceras humanas, nem se que acabava de sacrificar, avinhado e desmoderado. Mas a apresenta-
transmudará Procne 26 em ave ou Cadmo 27 em serpente diante de
ção dos sátiros galhofeiros e mordazes e a mudança em cômico dum
todos. Descreio e abomino tudo que for mostrado assim.
espetáculo sério convém que não redundem, por uma linguagem acha-
Para ser reclamada e voltar à cena, não deve uma peça ficar vascada, na transferência de qualquer deus ou herói, há pouco visto
aquém nem ir além do quinto ato; nem intervenha um deus, salvo [190] vestido de ouro e púrpura, para escuras tavernas; nem o façam, para
se ocorrer um enredo que valha tal vingador; nem se empenhe em falar evitar o chão, agarrar-se às nuvens e ao vazio. [230]
uma quarta personagem. Que o coro desempenhe uma parte na ação
Não fica bem à tragédia a paroleira em versos chochos; como
e um papel pessoal; não fique cantando entre os atos matéria que
uma matrona forçada a dançar em dias festivos, ela corará um pouco
de se achar no meio de sátiros atrevidos. Eu, Pisões, se escrever dra-
25. Lugar onde os jovens romanos se exercitavam para a guerra. Ali
também se realizavam os comícios. mas satíricos, não me satisfarei com nomes e verbos precisos e sem
26. Procne vingou-se da infidelidade de Tereu matando Itis, filho do ornamentos, nem porei empenho em me conservar longe do colorido
casal. Foi metamorfoseada em rouxinol.
27. Cadmo, fundador de Tebas, e Harmonia. sua esposa, foram conver- 28. Esse, conforme a tradição, o prêmio conferido aos primitivos autores
tidos em serpentes. ele tragédias; este nome se derivaria de tragos, apelativo do bode em grego.

60 61
trágico ao ponto de não se diferençar da linguagem de Davo 29 e da "1 e seguro, nos limites duma esperada tolerância? Será evitar
atrevida Pitíade, 30 que enriqueceu com um talento esmoncado .do sem merecer o louvor. Vocês versem os modelos gregos co a ce~sura,
nariz de Simão, a dum Sileno, aio e criado dum deus 31 seu pupilo. ! rurna e diurna. m mao no-
Comporei um poema sobre matéria conhecida, de modo que um [240] í M dirã , . .
qualquer espere fazer o mesmo, porém, atrevendo-se a igual empresa, ! - as, irao, vossos avos louvaram o ntmo e o chiste de [270J

sue muito e se esforce em vão; tal é a força da ordem e do arranjo!


tal beleza ganham termos tomados ao trivial! Trazidos das mata~, I
! Plauto.
-: Un:a e ?utra coi~a ~dmiraram eles com demasiada tolerância,
devem os faunos, no meu entender, acautelar-se de, como os naturais , para nao dizer incompetêncía, ou então eu e você não sabemos dis-
dos becos ou os freqüenta dores da praça, compor jamais juvenilmente. tinguir a ~xpressão grosseira da espirituosa e escandir com os dedos
versos delicados demais, ou estalar em palavreado sujo e degradante; , ou de ouvido, a cadência justa. '
isso confrange quem tem cavalo, pa! e ha~eres 3~ e, mesmo qU~3apro-: Segundo consta, T~s~is 37 foi o inventor do até então ignorado
A

ve alguma COIsa o comprador de grao-de-blco fnto e de nozes, nem 1 genero da Camena 38 trágica e transportava em carretas poemas que
por isso o aceita de bom grado e lhe outorga a coroa. [250J ~ atores ca~tav~m e representavam de cara besuntada de borra. Após
Uma sílaba longa ajuntada a uma breve é o que se chama [ambo: , ele, Esquilo, inventor da máscara e mantos nobres, estendeu tablados
é um pé ágil; por isso ele determinou que s~ dess~ aos versos ,iâm-I sobre pequenos caibros e e.nsinou co,m? emi~ir voz forte e firmar-se
bicos o nome de trímetros, 34 embora conte seis batidas, sempre Igual, nos coturnos. A ~sses seguiu a comedia antiga, não sem muito [280J
a si mesmo do começo ao fim; não faz tanto tempo, 35 a fim de chegar apl~uso; mas_ a liberdade descambou num excesso e violência, que
aos ouvidos um pouco mais lento e grave, teve a benevolência e tole-I pedia repressao legal; aprovou-se uma lei e, tolhido o direito de fazer
rância de admitir a participar de seus direitos hereditários os equili-; mal, o coro calou-se ignobilmente.
brados espondeus, sem todavia" deixar-lhes, em boa camaradagem, o i. Nada deixaram de tentar os nossos poetas; nem foi o menor mé-
segundo ou o quarto lugar. Alem de aparecer raramente nos nobres ~ nto a coragem de abandonar as pegadas gregas e celebrar os fastos
trímetros e ·ClO,36 aos versos d.e .p,'
n~lO, 1ança dos
os a] c~na com [260]" ! nacionais, tanto dos que encenaram tragédias b pretextas 39 como dos
d Á
grande peso, ele faz ~arga pelo fel~ cnrr:e ~u de excessiva pressa no I autor~s de t0f>atas. 40 Não seria mais poderoso o Lácio pela bravura
trabalho e falta de CUIdado, ou de 19norancla da arte. '. e glonosos feitos de guerra do que pela língua, se não entediasse [290]
_ Não é qualquer juiz que vê nos poemas a falta de cadência ~ cada um d?s poetas o demorado trabalho da lima. Vocês, descendentes
e aos poetas romanos se deu não merecida indulgência. ~ lde PompplO, 41 rete~ham 42 o poema que não tenha sido apurado em
; ongos dias por muita rasura polido dez vezes té h
_ É isso razão para ~u desgarrar e escrever sem regra? ou d~vo! bem aparada não sinta asperezas, . a e que uma un a
cuidar que toda gente vera as mmhas faltas e manter-me, precavido, I . D"emocnto considera . mais. afortunado o gênio do que a mes-
. ' quinha da arte e exclui do Helicão 43 os poetas de juízo perfeito'
comédia. por ISSO bo t d 1 d id '-d- -- __ 'o _.'
29. Nome usual de escravos de de Cecília, extorquia dinheiro de seu) ,a par e e es escui a e aparar as unhas e a barba, busca-o
30. Personagem duma comédia
amo, com que dotar a filha. 37. Teria vivido no século IV a. C.
31. Baco. .. • 38. Divindade latina, identificada com a Musa grega.
32 . Cidadão pertencente à ordem equestre. 39 . T rage'doIa de assun t o h'ist óririco romano.
33. Indivíduo do povo. ' .
' t f m do de três dipodias cada uma de dois jambos. Com 40. Comédia com personagens latinas.
34 . T nme ro, or a ' ., d
exceção do 2.0 e do 4.°, estes podiam ser substi tuídos por espon eus (d 5
ua '
41. Numa Pompílio, lendário segundo rei de Roma.
sílabas longas)." 42. Reprehendite pode significar "censurai" como entendeu F Villeneuve
35. É uma das traduções possíveis. de ,n~n ita pridem; de quantas se. na edição Beyes Lettres. O sentido original 'de reprehendere, 'contudo, é
propuseram nenhuma é inteiramente satlsfatona.. segu!ar por Iras, reter. Pensamos ser este o desejado pelo A. que, mais adiante
36. Um dos primeiros poetas latinos, autor de tragédias de que restam (v. j89), recomenda a retenção dos originais por oito anos antes da publicação.
apenas fragmentos. 43. Monte da Bcócia. onde residiam as Musas.

63
62
lucrares retirados, evita os banhos; ganharão, com efeito, o prestigioso Os poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao
nome de poetas, se jamais confiarem ao barbeiro Licino uma C3.- (300J mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida. O que quer que
beça que as três Antíciras 44 não conseguiriam curar. se preceitue, seja breve, para que, numa expressão concisa, o reco-
Mas que desastrado sou eu, que purgo a bile ao chegar a prima- lham docilmente os espíritos e fielmente o guardem; dum peito já
"veral Outro não faria melhores poemas! Bem, isso não é tão impor- cheio extravasa tudo que é supérfluo. Não se distanciem da realidade
tante. Farei o trabalho da pedra de amolar, que não tem fio para as ficções que visam ao prazer; não pretenda a fábula que se creia
cortar, mas é capaz de dar gume ao ferro; sem nada escrever eu tudo quanto ela invente, nem extraia vivo do estômago da Lârnia 49
próprio, ensinarei as regras do mister, as fontes de recursos, o que um menino que ela tinha almoçado. As centúrias 50 dos quarentões [340J
nutre e forma o poeta, o que fica bem, o que não, aonde leva o recusam as peças sem utilidade; os Ramnes 51 passam adiante, desde-
acerto, aonde o erro. nhando as sensaborias. Arrebata todos os sufrágios quem mistura o
útil e o agradável, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor;
Princípio e fonte da arte de escrever é o bom senso. Os escritos·
esse livro, sim, rende lucros aos Sósias; 52 esse transpõe os mares e
socráticos poderão indicar as idéias; obtida a matéria, as palavras [31OJ
dilata a longa permanência do escritor de nomeada. /
seguirão espontaneamente. 45 Quem aprendeu os" seus deveres para
com a pátria e para com os amigos, com que amor devemos amar o Há, todavia, faltas que estamos prontos a perdoar, pois a corda
pai, o irmão, o hóspede, qual a obrigação dum senador, qual a dum nem sempre dá o som pretendido pela mão e pela intenção; muitas
juiz, qual o papel do general mandado à guerra, esse sabe com segu- vezes, pede-se-lhe uma nota grave e ela desfere uma aguda; também
rança dar a cada personagem a conveniente caracterização. Eu o acon- nem sempre o arco ferirá o alvo ameaçado. Mas quando, num poe- [350]
selharei a, como imitador ensinado, observar o modelo da vida e dos ma, a maior parte brilha, não sou eu quem vá agastar-se por umas pou-
caracteres e daí colher uma linguagem viva. Uma peça abrilhantada cas nódoas, que ou o descuido deixou passar, ou a natureza humana
pelas verdades gerais e pela correta descrição dos caracteres, porém não preveniu bastante. Um copista não tem desculpa se, apesar de
de nenhuma beleza, sem peso nem arte, por vezes deleita mais forte- advertido, comete sempre a mesma falta, e o citaredo que erra sempre
mente o público e o retém melhor do que versos pobres de assunto [320] na mesma corda provoca o riso; assim também, a meu ver, quem relaxa
e bagatelas maviosas. muito se torna o famoso Quérilo; 53 este, por duas ou três vezes, sor-
Aos gregos deu a Musa o gênio; aos gregos concedeu ela fluência rindo, chego a considerar bom e admirar, ao passo que me revolto
harmoniosa no falar, por serem ávidos apenas de glória; os meninos quando o excelente Homero acaso cochila; todavia, é perdoável que
romanos aprendem por meio de cálculos demorados a dividir o asse 46 o sono se insinue numa obra extensa. [360]

em cem partes. "Fale o filho de Albano: se dum quíncunce se tira Poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais
uma onça, quanto fica? Vamos, já devia ter respondido! - Um terço perto; outra, se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela
de asse. - Muito bem! já pode defender o seu capital. Repõe-se a quererá ser contemplada em plena luz, porque não teme o olhar pe-
onça; quando fica? - Meio asse." E é quando essa azinhavrada preo- netrante do crítico; essa agradou uma vez; essa outra, dez vezes re-
cupação de poupança tiver impregnado os espíritos que esperamos [330} petida, agradará sempre.
se possam criar poemas que valha a pena untar com óleo de cedro 4, e
Você, o mais velho dos dois moços, embora, além de estar sendo
guardar em cipreste polido? 48
moldado para o bem pela palavra de seu pai, também tenha senso

44. Três cidades tinham esse nome e forneciam heléboro, usado no


49. Um papão.
tratamento da loucura.
45. V. nota 4. 50. Alusão à primitiva divisão do povo de Roma em 193 classes; repre-
senta aqui os homens de mais de 45 anos.
46. Moeda romana de pouco valor, dividida em 12 onças. Um quincunce
valia 5 onças. 51. A tribo que reunia os cidadãos latinos na primitiva população de
Roma; representa aqui os cavaleiros jovens.
47. Com ele se untava o papiro, como proteção contra as traças.
52. Livreiros.
48. Alusão à capsa, estojo cilíndrico de madeira. onde se guardavam os
rolos de papiros ou pergaminhos (volumlnav . 53. Medíocre poeta épico grego, contemporâneo de Alexandre, o Grande.

64 65
por si mesmo, recolha na memória isto que lhe digo: é de justiça, em nunciaram-se em versos e foi mostrado assim o caminho da vida; o
determinadas matérias, consentir com o mediano e o tolerável; o juris- favor dos reis foi solicitado em ritmos piérios.P? inventaram-se os
consulto e o causídico medíocres estão longe do talento do eloqüente festejos cênicos e a folga após longos trabalhos. Não há por que
Messala 54 e não sabem tanto quanto Aula Cassélio; 55 têm, não [370] corar da Musa perita na lira e de Apolo cantor.
obstante, o seu valor. Aos poetas, nem os homens, nem os deuses, Já se perguntou se o que faz digno de louvor um poema é a
nem as colunas das livrarias perdoam a mediocridade. Assim como,
num jantar de bom gosto, repugnam uma sinfonia desafinada, um I natureza ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem uma
veia rica, o esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um pede ajuda
perfume forte e semente de papoula com mel da Sardenha, porque
os pratos podiam ser servidos sem tais acompanhamentos, assim um
poema, nascido e inventado para encanto dos espíritos, por pouco
i ao outro, numa conspiração amistosa. Muito suporta e faz desde [410J
a infância, suando, sofrendo o frio, abstendo-se do amor e do vinho,
quem almeja alcançar na pista a desejada meta; o flautista que toca
que desça do ponto mais alto, cai no mais baixo. Quem não sabe na concurso pítico estudou antes e temeu o mestre. Hoje em dia, o
manejá-Ias, abstém-se das armas do Campo de Marte; quem não apren- poeta se contenta em dizer: "Eu componho poemas admiráveis; apa-
deu a lidar com a bola, o disco, ou o arco, permanece quieto, receoso nhe a sarna quem chegar por último; 58 seria para mim vergonha
de que a roda de espectadores apinhados rompa em gargalhadas [380] ficar para trás e confessar que deveras não sei o que não aprendi."
impunes; no entanto, aventura-se a compor versos um que não sabe!
Como o pregoeiro que atrai a multidão a comprar sua merca-
Por que não? É livre, assim nasceu; ademais, no recenseamento, a
doria, assim chama os bajuladores ao ganho o poeta rico de terras,
soma de seu dinheiro assegurou-lhe a ordem eqüestre e está a salvo
voltar atrás. [390]
rico de dinheiro a juros. Se é de fato alguém capaz de proporcio- [420J
nar tia maneira certa uma mesa lauta, afiançar um pobre sem crédito,
Você não dirá nem fará nada contrariando a Minerva; tal é o arrancando-o à trama dum processo tenebroso, muito me surpreen-
seu sentir, o seu feitio. Se, porém, alguma vez vier a escrever algo, deria que, na sua felicidade, soubesse distinguir do falso amigo o
sujeite-o aos ouvidos do crítico Mécio, aos de seu pai e aos meus e verdadeiro. Se você deu ou pretende dar alguma coisa a alguém, não
retenha-o por oito anos, guardando os pergaminhos; o que você não. o leve, ainda cheio de alegria, a ouvir versos de sua lavra; ele, é
tiver publicado poderá ser destruído; a palavra lançada não sabe • claro, exclamará: "Belo! ótimo! perfeito!" A uns. versos, perderá a
voltar atrás.' {390]
cor, chegará a destilar orvalho de olhos amigos, baterá com o pé no

I
O rfeu , pessoa sagrada e intérprete dos deuses, incutiu nos ho- chão. Como, num funeral, as carpideiras choram, falam e fazem {430]
mens da selva o horror à carnificina e aos repastos hediondos; daí " quase mais do que os familiares de coração enlutado, assim o louvami-
dizerem que ele amansava tigres e leões bravios; também de Anfíon, nheiro se comove mais do que o louvador sincero. Os reis, consta,
fundador da cidade de Tebas, dizem que movia as pedras com o som quando empenhados em verificar se uma pessoa merece a sua amizade,
da lira e, com um pedido carinhoso, as levava aonde queria. Existiu a pressionam ~om taças e mais taças, com a tortura do vinho; se você
um dia a sabedoria de díscernir o bem público do particular, o sa-I compuser versos, nunca o enganarão os sentimentos ocultos sob a
grado do profano, pôr fim aos acasalamentos livres, dar direitos aos pele da raposa.
maridos, construir cidades, gravar leis em tábuas. Foi assim que
adveio aos poetas e seus cantos o glorioso nome de divinos. {400]
Quando se recitava alguma coisa a Ouintílio, 59 ele dizia: "Por
Depois desses, assinalou-se Homero; Tirteu.j" com seus versos, I
favor, corrige isto e também isto"; quando você, após duas ou três
tentativas frustradas, se dizia incapaz de fazer melhor, ele mandava
estimulou para as guerras de Marte as almas viris; os oráculos pro- \
desfazer os versos mal torneados e repô-los na bigorna. Se, a modi- [4401
54. Prestigioso político, orador e guerreiro, protetor dum círculo de poetas. '
-57. O monte Píero, na Tessália, era consagrado às Musas,
55. Iurisconsúíto contemporâneo de Cícero.
S8. Alusão a uma brincadeira em que um grupo de meninos é desafiado
56. Conta-se que, no século VII a. C., os espartanos teriam pedido a
para uma corrida, cabendo uma pena ao último a chegar.
Atenas um general que lhes ensinasse estratégia. Os atenienses. por irrisão, .
lhes teriam enviado o poeta Tirteu, um inválido. Este, compondo hinos t 59. Quintílio Varo, um cremonense, amigo de Vergílio e de Horácio, que
lamentou a sua morte na ode 24 do livro L
guerreiros, teria inspirado bravura ao exército de Esparta.

67
66
ficar a falha, você preferiria defendê-Ia, não dizia mais uma única pa-
lavra, nem se dava ao trabalho inútil de evitar que você amasse, sem
rivais, a si mesmo e à sua obra.
Um homem honesto e entendido criticará os versos sem arte,
,_ condenará os duros, traçará, com o cálamo.P? de través, um sinal '-
negro junto aos desgrenhados, cortará os ornatos pretensiosos, obri-
gará a dar luz aos poucos claros, apontará as ambigüidades, marcará
e
o que deva ser mudado, virará um Aristarco 61 não dirá: "Por que
LONGlNO OU DIONÍSI0
1
hei eu de magoar um amigo por causa duma ninharia?" Tais ni- [450]
nharias levarão o autor a sérios dissabores, uma vez achincalhado e
recebido desfavoravelmente.
Como com o indivíduo atacado de ruim sarna, do mal dos reis,62 DO SUBLIME
do delírio fanático 63 ou da fúria de Diana, 64.•.•quem tem juízo teme
o contacto do poeta maluco, foge dele; a garotada o acossa e persegue
incautamente. Se ele, enquanto empertigado, arrota seus versos an-
dando a esmo e, como um passarinheiro de olhos nós melros, cair
num poço ou num vala, por mais que grite "eh! gente! socorro!",
não haverá quem pense em tirá-Ia. Se alguém cuidar de lhe acudir [460]
e descer uma corda, eu direi: "Como sabes se ele não se atirou
ali de propósito e se quer ser salvo?" e lhe contarei o fim do poeta
siciliano: desejoso de passar por um deus imortal, Empédocles 65 sal-
tou, de sangue frio, nas chamas do Etna.
Reconheça-se aos poetas o direito de morrer a seu gosto; salvar
alguém contra sua vontade é o mesmo que matá-Ia. Não é a primeira
vez que ele faz isso; tirado fora, não se tornará logo um homem, não
deixará o desejo duma morte famosa. Não é bastante clara a razão
por que verseja: se foi por ter urinado nas cinzas do pai, ou por ter
profanado com uma ação impura o sinistro lugar onde caiu um {470j
raio. Não há dúvida, que enlouqueceu e, como um urso que logrou
quebrar as barras da jaula, esse declamador molesto afugenta o sábio
e o ignorante; e quando agarra algum, não o larga, mata-o lendo, san-
guessuga que só farta de sangue se despega da pele.

60. Como se faz hoje com o lápis vermelho.


61, Aristarco da Samotrácia, crítico literário, bibliotecário em Alexandria,
empreendeu expurgar de interpolações os poemas de Homero.
62, Icterícia.
63, Mal que se apoderava dos sacerdotes de Belona, deusa da guerra. 1, Ignora-se o nome do autor e a data da obra. Esta é provavelmente
64. Mal dos lunáticos. Diana é divindade lunar, do século I d. C. e seu autor se chamou Lonaino, ou Dionísio, ou Dionísio
65. Filósofo naturalista, de Agrigento. Longino, Muitos preferem dizer Anônimo.

68
I

1. O pequeno tratado que Cecília 2 compôs sobre o sublime,


como sabes, caríssimo Postúmio Terenciano, quando o examináva-
mos juntos, mostrou não estar à altura do assunto em todos os pon-
tos, nem mesmo tocando nos principais; assim, não ministrava muita
ajuda aos leitores, como deve antes de tudo visar o autor. Depois,
de todo tratado de arte se requerem duas coisas: primeira, a definição
do assunto; segunda, na ordenação, porém mais importante no valor,
como e por quais métodos pode ele ser obtido por nós; no entanto,
Cecílio procura mostrar, por milhares de exemplos, como para igno-
rantes, o que vem a ser o sublime, mas de que maneira poderíamos
encaminhar nossa própria natureza a determinada ele.vação, isso, não
sei por que, ele negligenciou, como desnecessário.

2. Censurá-Ia, contudo, pelas omissões não é tão justo quanto


louvá-lo pela concepção mesma e pelo esforço. Tu, porém, me exor-
- taste a registrar, por minha vez, tão-somente para te ser agradável,
algumas anotações a respeito do sublime. Então, vamos lá, examine-
mos se pareço ter concebido alguma teoria útil a homens públicos.
Entretanto, amigo, como é de teu feitio e de teu dever, tu me ajudãrãs
1 a julgar os pormenores com a maior sinceridade; razão tinha, com
efeito, quem asseverou que o que nos assemelha aos deuses é bondade
e sinceridade.

3. Escrevendo para ti, homem instruído e culto, de certo modo,


Bibliografia: caríssimo amigo, estou dispensado de assentar, num longo preâmbulo,
q~e o sublime é o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do
Do Sublime, nas seguintes edições: " dIscurso e que, por nenhuma outra razão senão essa, primaram e cer-
!
1. Du Sublime, texte établi et traduit par Henri Lebêgue, deuxiêrne édition caram de eternidade a sua glória os maiores poetas e escritores.
_ Paris - 1952 - Société d'Edition "Les Belles Lettres".
2. "Longinus" on the Sublime, Loeb Classic Library, London, 1960, with
an English translation by W. Hamilton Fyfe. 2. Mestre de retórica judeu, que ensinava em Roma no tempo de Augusto.

71
4. Não é a persuasão, mas a arrebatamento, que os lances ge- da arte, não mais, penso, julgaria supérflua e inútil a teoria a esse
niais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável, com seu respeito. (lacuna no ms.)
impacto, supera sempre o que visa a persuadir e agradar; o persuasi-
vo, ordinariamente, depende de nós, ao passo que aqueles lances car-
III
reiarn um poder, uma força irresistível e subjugam inteiramente o ,-
ouvinte. A habilidade da invenção, a ordenação da matéria e sua dis-
tribuição, nós a custo as vemos emergir, não de um, nem de dois 1. " ... ainda que detenham a longuíssima chama da chaminé,
passos, mas do total da textura do discurso, enquanto o sublime, sur- se eu vir um só guardador de lareira, farei entrar um turbilhão tor-
gido no momento certo, tudo dispersa como um raio e manifesta, rencial, com um incêndio reduzirei a casa a brasas; mas ainda não
inteira, de um jato, a força do orador. Essas particularidades, sua- bramei o canto de minha raça." 3 Isso não chega ao trágico; apenas
víssimo Terenciano, e outras afins, tu mesmo as poderias expor com o contrafazem os turbilhões, o vomitar para o céu, o comparar Bóreas
a tua experiência. a um flauteiro e tudo mais; o trecho antes se turbou com o fraseado
e tumultuou com as imagens do que ganhou em ênfase e, se à luz
n meridiana examinarmos as expressões uma a uma, aos poucos, de
terríveis, vão afundando no ridículo. Se, numa tragédia, gênero por
natureza inflado e aberto à ênfase, é, não obstante, imperdoável o
1. Mas cumpre-nos propor desde o começo a questão da exis-
exagero desafinado, muito menos, a meu ver, se afinará num contexto
tência duma técnica do sublime ou da profundidade, pois, na opinião
de realidade.
de alguns, equivoca-se inteiramente quem reduz a regras técnicas tais
qualidades. A genialidade, dizem eles, é inata, não se adquire pelo 2. Por isso é que riem de Górgias de Leontinos quando escreve
ensino; a única arte de produzi-Ia é o dom natural. No seu entender, "Xerxes, o [úpiter dos persas" e "abutres, esses túmulos vivos", bem
as obras naturais se deterioram e aviltam de todo, se reduzidas a es- como de alguns passos de Calístenes, que não são sublimes, senão
queleto pelas regras da arte. levantados, e mais ainda dos de Clitarco; o homem é epidérmico,
sopra, na expressão de Sófocles, "em flautinhas, sem forbias".4
2. Eu, de minha parte, assevero que ficará provado que as coisas
Outros exemplos em Anfícrates, Hegésias e Mátris; 5 em muitos lu-
se passam doutra maneira, se examinarmos que a natureza, embora
gares eles se imaginam inspirados, mas os seus transportes não passam
quase sempre siga leis próprias nas emoções elevadas, não costuma
de puerilidades.
ser tão fortuita e totalmente sem método e que ela constitui a causa
primeira e princípio modelar de toda produção; quanto, porém, a 3. Em geral, o empolamento é um vício difícil de evitar entre
dimensões e oportunidade de cada obra e, bem assim, quanto à mais os que mais o sejam. Naturalmente, todos quantos ambicionam a
segura prática e uso, compete ao método estabelecer âmbito e conve- grandeza, não sei como, para evitar a pecha de fraqueza e aridez,
niência, sem esquecer que, deixados a si mesmos, sem os preceitos deslizam para essa outra, persuadidos de que "errar um alvo grandio-
técnicos, sem apoio nem lastro, abandonados apenas a seus ímpetos e so é sempre um nobre erro".
arrojo deseducado, os gênios correm perigo maior, pois, se muitas 4. Mas inchaços são ruins no corpo e no estilo, inconsistentes,
vezes precisam de espora, muitas outras, de freio. falsos; quiçá nos voltem para a direção oposta, pois, como dizem,
3. Demóstenes declara que, na vida comum dos homens, ter nada mais seco do que um hidrópico.
sorte é o maior dos bens; o segundo, não inferior ao primeiro, é tomar O empolamento aspira a ultrapassar o sublime, enquanto a pueri-
boas decisões e quando falta este, se anula totalmente o primeiro. lidade é precisamente o oposto do grandioso; rasteira de todo, tacanha
O mesmo podemos dizer da literatura: a natureza ocupa o lugar da
boa sorte; a arte, o da boa decisão. E, o que é mais importante, 3. Fala de Bóreas na Oritiia de Esquilo.
mesmo o dependerem exclusivamente da natureza alguns dos predí- 4. Assim se chamavam tiras de couro aplicadas nos lábios de quem tocava
cados do estilo, temos de aprendê-I o da arte e de nenhuma outra flauta, para suavizar o som'.
fonte. Se refletisse sobre isso lá consigo quem censura os estudiosos 5. Mestres de retórica do estilo asiático.

72 73
de idéias, ela é na realidade o mais ignóbil dos defeitos. Mas que ,- respeito do tirano Dionísio, que "por ter sido ímpio para com Zeus
vem a ser a puerilidade? não é deveras uma mentalidade escolar, que, e Heracles, foi despojado da tirania por Dião 8 e Heraclides " ,
por excesso de lavor, desanda em frieza? Deslizam para esse gênero
aqueles que, aspirando à originali.dade, ao reb~scado, e acima de tudo
ao agrado, encalham no falso bnlho e afetaçao.
I
4. Que necessidade há de falar de Timeu, quando os famosos
semideuses Xenofonte e Platão, apesar de saídos da escola de Sócra-
tes, às vezes se esquecem de si mesmos pelo gosto de tais ouropéis?
I"

S. Emparelha-se com essa uma terceira espécie de vício dos . O primeiro escreve em Constituição de Esparta: "Deles, menos que
de estátuas de mármore, se ouviria a voz, menos do que das de bronze
passos einocionantes, que Teodoro, 6 chamava parentirso; é a emoção
se atrairia o olhar; julgá-Ias-íamos mais modestos do que mesmo as
deslocada e vazia, onde não se requer emoção, ou desmedida, onde se
meninas dos olhos." Quadraria a Anfícrates e não a Xenofonte cha-
requer medida. Muitas vezes, alguns são desviados, como que por
mar às pupilas dos olhos meninas modestas, É como, por HeracIes!
efeito de embriaguez, para emoções já dispensadas pelo assunto, sub- acreditar que as pupilas de toda gente sejam modestas, quando se
jetivas e de escolar; então, diante de ouvintes que nada sentiram, diz que a impudência de alguns em nada se revela tão bem como nos
perdem a compostura; é natural, eles desatinam diante de pessoas olhos. Dum desavergonhado diz o Poeta: 9 "Borracho! Olhos de
não desatinadas. .... 1"
cao.
Reservamos, todavia, outro lugar para tratar do patético. S. Timeu, todavia, como se deitasse mão a coisas roubadas, nem
essa frialdade deixou a Xenofonte; falando do gesto de Agátocles,
que arrebatou, na festa da retirada do VéU,10 a prima dada em
IV casamento a outro: "Quem o faria, a não ser quem nos olhos tivesse,
em lugar de meninas, umas marafonas?"
1. Do segundo vício atrás referido, ou seja da frieza, está cheio
6. E que dizer de Platão, aliás divino? Querendo referir-se a
Timeu, 7 homem aliás capaz e nada estéril em matéria de grandeza,
tábuas votivas, diz: "escreverão e depositarão nos templos memórias
culto, inventiva, apenas muito inclinado à censura das falhas alheias de cipreste'" e ainda "quanto a muralhas, Megilo, eu concordaria com
e insensível às próprias, que, pela paixão de sempre lançar idéias Esparta em deixar os muros deitados no chão a dormir, sem os le-
novas, descamba amiúde no que há de mais infantil. vantar".
2. Alegarei um ou dois exemplos dele, pois Cecílio já registrou 7. Não fica longe disso a expressão de Heródoto, quando chama
a maior parte. No elogio de Alexandre, o Grande, ele diz: "o qual às mulheres formosas "suplício dos olhos". Se bem que ele tem algu-
tomou a Ásia inteira em menos anos do que levou Isócrates para es- ma escusa, porque em seu texto quem assim se expressa são os bár-
crever o discurso Panegírico a favor duma guerra contra a Pérsia", baros, de mais a mais, embriagados; mas nem mesmo na boca de
Estranho esse cotejo entre o Macedônio e o sofista, pois, ó Timeu, personagens como essas fica bem faltar com as conveniências antea
evidentemente Isócrâtes em questão de bravura deixava muito para posteridade.
trás os Iacedemônios, porque estes precisaram de trinta anos para
tomar Messena, enquanto ele compôs o Paneglrico apenas em dez. v
3. E em que termos alude aos atenienses capturados na Sicília? Todos esses desaires, seja como for, nascem na literatura apenas
"Por terem cometido o sacrilégio de mutilar as imagens de Hermes por uma causa, a busca de novidade nas idéias, devido principalmen-
foram punidos, principalmente por culpa dum só homem, descenden- te à qual desvariam os de hoje. É que as nossas virtudes e os nossos
te do ofendido pela linhagem direta dos pais, Hermócrates, filho de
Hermão.t'Assim, caríssimo Terenciano, admira-me que não escreva, a "] 8. O nome de Dião, por um trocadilho impossível de re~~oduzir, joga
I com o de Zeus, como o de Herrnócrates com o de Hermes,
6. Retórico de Gádara e mestre do imperador
7. Historiador do século IV a. C. Apelidaram-no
Tibério.
Epitimeu, isto é, Pechoso.
iI 9. Iliada, I, 225.
10. Terceiro dia da lua-de-mel.

74 I 75
texto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível
VICiaS de certo modo costumam ter a mesma origem. Por isso, se os
resistência e forte lembrança, difícil de apagar.
embelezamentos do estilo, os termos elevados e, somados a esses re-
cursos, os do deleitamento concorrem para o bom resultado literário,
4. Em resumo, considera belas e verdadeiramente sublimes as \1
esses mesmos requintes vêm a ser fonte e fundamento tanto do êxito passagens que agradam sempre e a todos. Quando, pois, mau grado
quanto do malogro. Mais ou menos assim as transposições, as hipér-
boles e os plurais em lugar do singular; mostraremos adiante o perigo
da diversidade das ocupações, do teor de vida, dos,.gostos, da idade,
do idioma, todos ao mesmo tempo pensam unânimes o mesmo a res-
peito duma mesma coisa, então essa, digamos assim, sentença concorde
\~I
que parecem acarretar. Por isso cumpre desde já suscitar o problema !
e determinar como podemos evitar os vícios que impurificam o su- de juízes discordes outorga ao objeto da admiração uma garantia
blime. sólida e incontestáveL

VI VIII
Isso é possível, meu amigo, se, de início, adquirirmos um claro
1. Sendo cinco as fontes, como se 'diria, mais capazes de gerar
conhecimento e juízo do que seja na realidade o sublime. a ponto é
a linguagem sublime e pressuposto, como fundamento comum a essas
difícil de apreender, porquanto o julgamento do estilo é o resultado
cinco faculdades, o dom da palavra, sem o qual não há absolutamente
final duma longa experiência. Todavia, à guisa de sugestão, talvez não
nada, a primeira e mais poderosa é a de alçar-se a pensamentos subli-
seja impossível proporcionar discernimento nessa matéria a partir dos
mados, como definimos nos comentários a Xenofonte; a segunda, a
pontos seguintes.
emoção veemente e inspirada.
VII Mas essas duas nascentes do sublime são na maior parte inatas;
já as demais se adquirem também pela prática, nomeadamente deter-
1. E preciso saber, caríssimo amigo, que, no curso ordinário da minada moldagem das figuras (estas talvez sejam de duas ordens, as
vida, nada é grande quando haja grandeza em desprezá-lo: por exem- de pensamento e as de palavra) mas, além dessas, a
nobreza da ex-
plo, riqueza, honrarias, fama, realeza, tudo mais que apresenta uma pressão, da qual, por sua vez, fazem parte a escolha dos vocábulos
exterioridade teatral, ao sensato não pareceriam bens superiores, por- e a linguagem figurada e elaborada. A quinta causa da grandeza, que
quanto o mesmo desprezá-los é um bem não medíocre (pelo menos, encerra todas as anteriores, é a composição com vistas à dignidade
mais admiração do que os possuidores deles desperta quem, podendo
e elevação.
possuí-Ice, por grandeza de alma os menoscaba); mais ou menos assim Ora, pois, examinemos o conteúdo de cada uma dessas faculda-
se deve examinar se os passos elevados em verso e prosa não têm uma
des, dizendo previamente apenas que Cecílio omitiu algumas das cinco
aparência de grandeza semelhante, a que se tenha juntado grande
partes, incluída obviamente a emoção. 2. Mas se, no seu entender,
soma de elementos forjados ao acaso, removidos os quais, aliás, eles
o sublime e o patético vêm a ser uma só coisa e lhe parece que em
se revelam ocos, havendo mais nobreza em os desprezar do que em toda parte se deparam naturalmente juntos, está enganado; com efeito,
admírá-los.
encontram-se algumas emoções separadas do sublime e sem grandeza,
2. E da natureza de nossa alma deixar-se de certo modo empol- quais a pena, os sofrimentos, os temores e, ao inverso, muitos passos
gar pelo verdadeiro sublime, ascender a uma altura soberba, encher-se sublimes sem patético, como, além de milhares de outros, o ousado
de alegria e exaltação, como se ela mesma tivesse criado o que ouviu. trecho dos Alóadas em Homero: 11 "Lidaram por erguer o assa
3. Quando, pois, uma passagem, escutada muitas vezes por um sobre o Olimpo e sobre o assa o Pélio com suas frondes móveis, para
homem sensato e versado em literatura, não dispõe a sua alma a escalar o céu" e este acréscimo ainda mais arrojado: "e tê-lo-iam
sentimentos elevados, nem deixa no seu pensamento matéria para re- levado a cabo."
flexões além do que dizem as palavras, e, bem examinada sem inter-
rupção, perde em apreço, já não haverá um verdadeiro sublime, pois 11. Odisséia, XI, 315. Trata-se de Oto e Efialtes, gigantes, filhos da
dura apenas o tempo em que é ouvida. Verdadeiramente grande é o Terra, em guerra com Zeus.

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3. Na oratória, os panegíricos, os discursos de solenidades e Já Homero como engrandece as coisas divinas? "Quanto espaço
aparato, encerram do começo ao fim dignidade e elevação, mas em brumoso abarca o olhar dum homem sentado numa atalaia, de olhos
geral falta-lhes emoção; daí os oradores emotivos serem muito fracos postos no mar cor de vinho, tanto vence o salto dos cavalos de forte
panegiristas e, ao invés, os bons no encômio, muito fracos na emoção. nitrido, das deusas." 14 Ele mede o salto deles pela largura do
4. Doutro lado, se Cecílio achava que o patético não contribui de mundo. Quem, pois, diante do exagero da extensão não exclamaria,
modo algum para o sublime e por essa razão não o considerou digno com razão, que, se os cavalos das deusas fossem dar dois saltos se-
de menção, enganou-se completamente. Eu não trepidaria em afirmar guidos, já não achariam lugar no mundo?
que nada é tão grandiloqüente como, em seu lugar próprio, a emoção 6. Ele superou a si mesmo na criação da Batalha dos Deu-
genuína, quando, por efeito dum delírio e dum sopro inspirador, exala ses: 15 "Soaram em redor as trombetas do vasto céu e do Olimpo;
e como que anima dum transporte profético os discursos. Aidoneu, rei dos mortos, tremeu nas profundezas, saltou de seu trono
com um grito, temendo que Posidão, que abala o solo, rompesse a
terra, seu palácio se devassasse aos mortais e imortais, com sua terrí-
IX vel umidade que aos deuses mesmos horroriza." Não estás vendo,
amigo, como se fendeu a terra desde as profundezas, como o Tártaro
1. Pois bem, uma vez que a primeira das faculdades, quero mesmo se desnudou, como todo se subverteu e partiu o universo,
dizer, o dom inato da grandeza, desempenha o papel mais eficiente como tudo junto, céu e inferno, mortais e imortais, então entrepele-
entre todas, também aqui, embora seja antes um dom do que uma jam afrontando os perigos da batalha?
aquisição, é mister educar as almas, quanto possível, para a grandeza 7. Passagem terrível, salvo se for entendida como uma alegoria,
e, por assim dizer, torná-Ias prenhes sempre de arrebatamento. de todo em todo ímpia, sem respeito às conveniências. Homero, a meu
2. "Como?" perguntarás. Escrevi alhures algo assim: "O su- ver, quando narrava os ferimentos de deuses, suas rixas, vinganças,
blime é o rebôo da grandeza da alma." Por isso, mesmo sem uma lágrimas, prisões, paixões de toda espécie, tanto quanto pôde, mudou
palavra, suscita admiração de per si um mero pensamento, graças à em deuses os homens da guerra de Tróia, e os deuses em homens.
sua grandeza mesma, como o silêncio de Ãjax na Evocação dos Mor- Mas a nós, desventurados, aguarda-nos, como um "porto dos males",
tos, 12 algo grandioso e mais sublime que qualquer palavra. 3. Pri- a morte, ao passo que ele fez eterna, não a natureza dos deuses, mas
meiramente, pois, é absolutamente necessário assentar em princípio a sua desventura.
de onde nasce o sublime: o verdadeiro orador não pode ter senti- 8. Muito superiores à Batalha dos Deuses, porém, são todas as
mentos rasteiros e ignóbeis. Com efeito, pessoas de pensamentos e passagens que representam o ser divino como algo impoluto, grande,
ocupações mesquinhas e servis a vida toda é impossível que produzam verdadeiramente puro, por exemplo (o passo foi tratado por muitos
algo admirável, merecedor de imortalidade; grandeza, naturalmente, antes de mim), os versos a respeito de Posidão: 16 "Quando Po-__
existe nas palavras daqueles cujos pensamentos são graves. 4. Assim sidão caminha, sob os seus pés imortais, tremem as serras, as flores-
é que as frases sublimes ocorrem às pessoas de sentimentos elevados, tas, os cumes, a cidade dos troianos, os navios dos aqueus. Ele guiou
pois quem, quando Parmenião 13 disse: "Eu cá me contentaria ... " o seu carro sobre as ondas; de toda parte saltaram das profundezas
(lacuna no ms.) diante dele os monstros marinhos, reconhecendo o seu soberano; de
... a distância entre o céu e a terra; essa medida, dir-se-ia, era alegria, o mar abriu-se em dois, e eles partiram céleres."
tanto a da Discórdia, quanto a de Homero. 5. Bem outra é a expres- 9. Assim também o legislador dos judeus, 18 homem extraor-
são de Hesíodo na descrição de Áclis - se de fato se deve consi- dinário, depois de conceber de maneira digna o poder divino, deu-lhe
, ,
derar de Hesíodo também o Escudo: "de suas ventas escorria manco"
- pois ele 'não fez terrível a imagem, senão repugnante. 14. Iliada, V, 770.
15. Passagem da Iliada, XXI.
12. Passagem da Odisséia, li, 543. 16. Ilíada, XIII. 18, 19, 27, 28, 29.
13. Um dos generais de Alexandre, o Grande. 17. Moisés, no Gênesis.

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expressão logo na introdução das Leis, escrevendo: "Disse Deus". grandeza. Aqui ele já não mantém o vigor dos grandes poemas sobre
O quê? "Faça-se luz" e luz se fez; "haja terra", e houve terra. Tróia, nem uma elevação uniforme jamais abaixada, nem igual pro-
fusão de emoções em fluxo perpétuo, nem uma versatilidade orató-
10. Talvez, meu amigo, não me aches importuno por citar ainda
ria e densa de imaginação realista, mas, à semelhança de quando o
um passo do Poeta, de conteúdo humano, para aprendermos como
Oceano se retrai, acalmado, para dentro de seus próprios limites,
ele cosíúmava acompanhar a grandeza do heroísmo. A Batalha dós
aparecem então, as marés baixas da grandeza e os errares em narra-
Gregos, 18 ele a interrompe com um súbito nevoeiro e trevas
tivas inverossímeis. 14. Dizendo isso, não esqueço as tempestades da
impérvias; nesse momento, Ajax, impotente, exclama: "Zeus pai, va-
Odisséia, a passagem do Ciclope e algumas outras, mas falo duma
mos, salva dessa neblina os filhos dos aqueus; faze um céu sereno;
velhice - velhice, embora, de Homero; apenas, em todos esses pas-
deixa que nossos olhos enxerguem; aniquila-nos, mas na luz." É de-
50S, seguidamente prevalece o fabuloso sobre o real.
veras o que sentiria um Ãjax; ele não pede para viver - seria baixo
demais para um herói - mas como, tolhido pela escuridão, não pode Digressionei nesses exemplos a fim de, como disse, mostrar
_ empregar a sua bravura em nenhuma proeza nobre, indignado com como por vezes a genialidade, em seu deelínio, muito facilmente
sua inércia na batalha, reclama luz com urgência, com a esperança desliza para a garrulice, como, por exemplo: no passo do odre, no
de achar um funeral à altura de seu valor, ainda que o arrostasse dos homens mudados em porcos por Circe, que Zoilo chamava baco-
Zeus. rinhos chorosos, no de Zeus alimentado pelas pombas como um
borracho, no do náufrago sobre destroços dez dias sem comer, e no
11. Aqui, com efeito, Homero aviva com um sopro vigoroso
da incrível matança dos pretendentes. Que outra coisa posso dizer que
os combates; seus próprios sentimentos não são outros, senão que
sejam, senão verdadeiros sonhos de Zeus?
"raiveja como Ares quando arremessa lanças, ou como a queimada
destruidora nas montanhas, na espessura da floresta profunda, e em 15. Ponham-se em cotejo as passagens da Odisséia para um se-
torno de sua boca ferve espuma." 19 12. Ele, não obstante, ao gundo fim, o de saberes como a decadência da emoção nos grandes
longo da Odisséia - e por muitas razões é mister observar essa par- escritores e poetas se dilui em pintura de costumes. Constituem, com
ticularidade - mostra que, no declínio da grande genialidade, é efeito, uma espécie de comédia de costumes as cenas características do
próprio da velhice o gosto das estórias. cotidiano no palácio de Odisseu.
Além de muitos outros indícios de que compôs essa obra em
segundo lugar,' há o fato de ter produzido, na Odisséia, como epi- x
sódios, a seqüência das agruras de Tróia e, por Zeus! ter tributado
aqui aos heróis, como de muito tempo decididas, as Iamentações e
1. Bem, agora vejamos se contamos com ainda outro meio de
pranteias: "Jaz ali o denodado Ãjax; jaz ali Aquiles; jaz ali Pátro-
tornar sublime o nosso estilo. Visto como são inerentes a todas as
elo, cuja sapiência pedia meças à dos deuses; jaz ali o meu filho
coisas certos elementos naturais coexistentes com a sua substância,
díleto." 20 Assim, a Odisséia não é senão a continuação da Iliada.
não é certo que encontraríamos necessariamente uma causa do subli-
13. Por essa mesma causa, creio eu, tendo sido composta a me na escolha indefectível das partes mais essenciais e no podermos
Ilíada no auge da inspiração, ele estruturou de ações e combates formar, reunindo-as numa composição, como que um corpo único?
todo o seu corpo, enquanto a maior parte da Odisséia é narrativa, De fato, um autor atrai o ouvinte pela escolha das idéias; outro, pela
como é próprio da velhice. Por isso podemos comparar Homero na composição das idéias escolhidas.
Odisséia ao sol no ocaso, quando conserva, já não a força, mas a
Safo, por exemplo, sempre colhe dos sintomas e da realidade
mesma os sentimentos que acompanham as paixões amorosas. Mas
18. Ilíada, XVII, 645.
19. Ilíada, XV, 605.
onde mostra a sua mestria? Na hábil escolha e cornbinacão dos mais
agudos e intensos deles:'
20. Odisséia, m. 109.
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2. "Igual aos deuses se me afigura aquele homem,
coração dos marujos, pois passam a um passo da morte." 22 6.
"que, sentado contigo face a face,
Também Arato se aventurou à mesma metáfora: "por uma fina pran-
"ouve de perto a tua doce- fala,
cha os separa do Hades"; somente, em lugar de terrível, a imagem lhe
"o teu sorriso encantador,
saiu medíocre e elegante. Ademais, ele limita o perigo dizendo "uma
"e isso convulsa-me o coração dentro do peito. tábua impede a morte"; portanto, impede.
"Mal te vejo, não me resta um fio de voz,
"a 'língua se me parte e logo, sob a pele, , Já o Poeta não limita uma vez por todas o perigo, mas pinta os
marujos muitas vezes, constantemente, a cada escarcéu, a um palmo
"percorre-me uma chama delicada,
da morte. Outrossim, forçando as preposições, normalmente desuni-
"os meus olhos não vêem mais nada,
"os meus ouvidos zumbem, " das, a uma composição não natural, U1tEX 8rx.va:t'oLo, torturou a ex-
pressão à imitação da calamidade iminente e pela compressão do
"o meu suor escorre,
vocábulo representou esplendidamente o desastre, quase imprimindo
"possui-me toda uma tremura, no estilo a marca do perigo: uúx 8rx.va:toLo cpÉpOV'trx.L.
"fico mais verde que erva e pouco falta
7. Procedeu de igual modo Arquíloco no passo do naufrágio e
"para que me sinta morta!"
Demóstenes no da chegada da notícia: 23 "Era sobre a tarde", diz
3. Não te admira como a poetisa busca juntamente a alma, o ele. Eles depuraram o melhor material, por assim dizer, por or-
corpo, os ouvidos, a língua, os olhos, as cores, tudo, como alheio e dem de nobreza, e compuseram-no sem entremear de nenhum acrés-
apartado dela e, contraditoriamente, ao mesmo tempo gela, arde, de- cimo superficial, grosseiro ou pedantesco. Como se praticassem ra-
satina, atina (pois ou se apavora, ou quase morre), para que apareça' chaduras e vãos, esses vícios danificam de todo o edifício das gran-
nela, não apenas uma emoção, todo um congresso de emoções? Todos dezas, cujas paredes constitui o mútuo ajustamento das partes.
os sintomas dessa natureza acontecem aos apaixonados, mas, como
disse, a colheita dos mais agudos e a combinação deles num todo é
que consuma o primor. XI

Desse modo, na minha opinião, na descrição das tempestades, ~ 1. Associa-se às qualidades acima expostas a chamada amplifi-
seleciona o Poeta as mais horríveis circunstâncias. 4. O autor da I,' cação, quando, admitindo o assunto e os debates, em seus períodos,
Arimaspéia 21 acha terrível esta descrição: "Também isto causa muitos inícios e interrupções, o estilo se eleva gradativamente em
grande espanto a nosso espírito: homens habitam a água, longe da frases que se acumulam cerradamente umas sobre as outras. 2. Quer
terra, em pleno oceano; são infelizes, pois seu trabalho é penoso, têm" isso resulte do desenvolvimento de lugares comuns, quer do encareci-
os olhos nos astros, o pensamento nas águas. Amiúde, por certo, rezam mento da realidade, ou dos artifícios, quer ainda do sábio arranjo dos
de mãos erguidas para os deuses, enquanto suas entranhas são horri- fatos, em das emoções (pois a amplificação tem milhares de formas),
velmente sacudidas." Qualquer um, parece-me, pode ver aí mais flor deve o orador, não obstante, saber que, de per si, sem o sublime,
do que terror. nenhum desses meios se manteria eficaz, salvo, por Zeus! para sus-
citar pena ou para atenuar o vigor; suprimir nas demais formas de
5. E Homem como faz? Tome-se um exemplo entre muitos;
amplificação o sublime é como arrancar a alma do corpo; logo se
"Caiu-lhes em cima, como, alimentado sob as nuvens pelo vento, um
lhe enfraquece e esvazia a eficácia, quando não avigorada pelo con-
vagalhão impetuoso cai sobre um navio veloz; a espumarada cobre-o
dão do sublime.
todo, enquanto no velame ruge o terrível tufão; trepida apavorado o
3. Entretanto, por amor à clareza mesma, cumpre discernír em
21. Al:J;téas de Proconeso compôs um poema sobre um povo fantástico. que diferem da exposição anterior os preceitos de agora (era um es-
os arirnaspos, que tinham um olho único na testa e viveriam no extremo
norte da Europa. Deles teve notícia Heródoto por meio dos citas. que. por sua 22. lliada, XV, 624.
vez, a deviam aos issédones.
23, Na famosa Oração da Coroa,
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baço dos pontos capitais e seu agrupamento numa unidade) e em que de aparato, às narrações e dissertações sobre a natureza e outros não
de modo geral, se distingue das amplificações o sublime. poucos gêneros.
XIII
'-
,- XII J_

1. Voltando, todavia, a Platão, ele, embora flua numa corren-


teza silenciosa, nem por isso deixa de se elevar ao grandioso. Leste a
1. A mim, com efeito, a definição dos tratadistas não me sa- República, não desconheces o seu cunho. "Aqueles, diz ele, que não
tisfaz. Amplificação, dizem eles, é uma linguagem que confere gran- experimentaram a razão e a virtude, sempre metidos em banquetes e
diosidade ao assunto. Essa definição pode caber indiferentemente ao quejandos deleites, são puxados, por assim dizer, para baixo; por isso,
sublime, à emoção e às figuras, visto como também esses recursos »agueiam vida em fora, sem jamais erguerem os olhos para a verdade,
conferem ao discurso certa grandiosidade. A, meu ver, a distinção nem serem alçados até ela, nem provarem um prazer firme e puro; à
entre eles está em consistir o sublime numa elevação; a amplificação, maneira dos brutos, sempre de olhos baixados, curvados para a terra
numa abundância; por isso, o primeiro se acha muitas vezes até num e para as mesas, repastarn-se à tripa forra e copulam; na disputa da
único pensamento, enquanto a segunda se acompanha sempre de quan- satisfação desses apetites, com cascos e aspas de ferro desferem coi-
tidade e certa redundância. ces e camadas uns nos outros, entrematando-se em conseqüência da
2. A amplificação, em síntese, é uma aglomeração de todas as ínsaciabilidade." 24

partes e tópicos ligados ao assunto, a qual, pela demorada insistência, 2. Esse homem nos mostra, se não quisermos desdenhá-Ia, que,
reforça um arrazoado; ela difere da prova em que esta demonstra o a par dos mencionados, outro caminho leva ao sublime. Que cami-
ponto em debate ... (lacuna no ms.) ... de muita riqueza, muitas ve- nho? como é ele? A imitação e inveja dos grandes prosadores e poe-
zes se espraia, como um mar, numa preamar de grandeza. tas do passado. Apeguemo-nos inseparavelmente a esse propósito,
3. Por isso, creio, logicamente, o orador, por ser mais emocio- caríssimo amigo. Muitos, com efeito, são inspirados por um sopro
nal, tem muito calor, inflama-se de paixão, enquanto o outro, sereno alheio, tal como, ao que consta, aproximando-se da trípode, onde,
em sua gravidade majestosa e magnífica, está longe de ser frio, mas conforme dizem, existe uma fenda da terra, que exala um vapor im-
não se contorce tanto. pregnado de divindade, imediatamente, pelo poder do deus, a pito-
4. Não em outros aspectos, senão nesse, caríssimo Terenciano, nisa se torna fecunda e passa logo a oracular segundo a inspiração;
no meu entender (isto é, se também os gregos temos o direito de opi- assim também, do gênio natural dos antigos para as almas dos que
nar), difere Cícero de Demóstenes nas passagens grandiosas. Este, os invejam, fluem, como de algares sagrados, certas emanações, ins-
com efeito, eleva-se ordinariamente a um sublime alcantilado, en- pirados pelas quais, mesmo os não muito favorecidos do sopro divino
quanto Cícero se espalha. O nosso orador, visto como, por assim se inspiram, contagiados da grandeza dos outros.
dizer, queima e juntamente despedaça tudo com a sua violência e 3. Teria sido Heródoto o único grande imitador de Homero?
mais a sua rapidez, o seu arroubo, o seu engenho, pode ser compara- Eram-no, ainda antes, Estesícoro e Arquíloco; mais que todos, cana-
do a um tufão ou um raio; Cícero, creio, é como uma queimada lizou Platão para si milhares de regos derivados da famosa fonte ho-
alastrada, que grassa por toda parte, devoradora, de fogo abundante rnérica. Talvez nos faltassem exemplos, se Amônia e seus discípulos
e duradouro, sempre a arder, distribuído aqui e acolá e realimentado a não os tivessem recolhido e classificado.
espaços.
4. Essa prática não constitui furto; é como um decalque de be-
5. Isso, porém, podeis vós outros julgar melhor; mas a opor- los sinetes, de moldados, ou de obras manuais. Parece-me que Platão
tunidade do sublime demostênico, excessivamente tenso, ocorre nos não faria abrolhar tão belas flores entre pontos doutrinários da filo-
passos terríveis e nas emoções violentas, quando é preciso abalar sofia, nem acompanharia amiúde a Homero nas selvas da poesia e
totalmente os ouvintes; a oportunidade do alastramento é quando se das expressões, senão, por Zeus! para, de corpo e alma, disputar com
faz mister inundá-Ias. Ele ajusta-se aos lugares comuns, às perora-
ções, em geral, às digressões, a todos os desenvolvimentos e passos 24, República, IX. 586 a.

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ele a primazia, como um competidor jovem em frente dum lutador ravilhar e, na oratória, dar vividez, mas uma e outra, além desses
já de muito admirado; talvez emulasse com demasiado ardor e, por efeitos. procuram, não obstante, ao mesmo tempo, excitação: "Mãe,
assim dizer, de lança em riste, não, porém, sem proveito; na expres- eu te suplico, não estumes contra mim as virgens de olhos de san-
são de Hesíodo, "boa para a humanidade é tal disputa". Belo, na gue, de aspecto de cobra; ei-las aqui, ei-las aqui, a saltar perto de
verdade, e merecedor de coroa de glória é esse combate em que mes- mim" e "ai de mim! vai-me matar! para onde fugir?" 25 Nesse passo
mo em ser derrotado pelas gerações anteriores não deixa de haver o poeta mesmo viu Eríneas; o que ele fantasia, pouco falta para que
glória. force os ouvintes a vê-lo por sua vez.
. 3. De fato, Eurípides afana-se sobremaneira para dar expressão
XIV trágica a estas duas emoções, o desvario e o amor, e não sei se nelas
ou em algumas outras é que o assiste a maior felicidade; seja como
1. Logo, também nós, quando elaboramos algum trecho que re- for, ousadia não lhe falta para se arrojar às demais espécies de ima-
queira estilo elevado e pensamento grandioso, é bom formulemos no ginação. Embora absolutamente não nascido para o sublime, ele pró-
íntimo a pergunta: como diria isso Homero, se calhasse? como Platão, prio em muitos lugares forçou o seu natural a tornar-se trágico e, de
ou Demóstenes, o alçariam ao sublime? ou Tucídides, na Histó- cada vez, nos lances de grandeza, na expressão do Poeta, ele "açoita
ria? Graças à emulação é que acudirão à nossa presença esses vultos com a cauda, de ambos os lados, os flancos e ancas, açulando-se para
e, como que brilhando, erguerão as almas de algum modo às alturas
o combate"." 4. Ao entregar as rédeas a Faetonte, diz-lhe o Sol: 27
imaginadas.
"Dá-Ihes rédeas, mas não invadas o éter da Líbia; como não está
2. Mais ainda, se esboçarmos em nosso pensamento mais esta misturado com umidade, ele fará baixar o teu carro" e prosseguindo:
indagação: como ouviria Homero, ou Demóstenes, se presentes, algu- "Mantém o curso no rumo das Plêiades." Ouvido isso, o menino em-
ma coisa que eu dissesse assim? como reagiriam? Em verdade, é um palmou as rédeas, fustigou os flancos das aladas parelheiras, lançan-
grande pleito imaginário o dum tribunal semelhante e semelhante do-as; elas puseram-se a voar nas dobras do éter. Atrás, montando
audiência para nossas próprias expressões, onde prestássemos contas Sírio, cavalgava o pai, ensinando o filho: "Vai naquele rumo! volta
de nossos escritos na presença de tais heróis, juízes e testemunhas. o carro deste lado! deste lado!"
3. Mais forte estímulo seria acrescentar: se eu tiver escrito isso, Não dirias que a alma do autor ia ao lado, na boléia, correndo
como me ouvirá após mim toda a posteridade? se alguém receasse o mesmo perigo, voando com os cavalos? pois, se ela não acompa-
proferir algo que ultrapassasse a sua vida e o seu tempo, fatalmente nhasse numa corrida igual aquelas proezas pelo céu, jamais teria fan-
abortariam, quais fetos malogrados e cegos, as concepções de sua tasiado tais ações. Houve-se de igual maneira a respeito de Cassandra:
alma, de todo incapazes de atingir o tempo duma fama póstuma. "Pois bem, troianos, amigos de cavalgar ... "
-~
5 ." Ésquilo aventura-se a imaginações do tipo mais heróico, como
XV nos seus Sete contra Tebas: "Sete impetuosos capitães, diz ele, dego-
lando um touro num escudo de negros engastes e molhando as mãos
1. Também as fantasias, jovem amigo, são muito produtivas de no sangue da vítima, juraram solenemente por Ares, Enio e Fobo
majestade, grandiloqüência e vigor. Pelo menos, nesse sentido é que sedento de sangue ... " comprometer-se reciprocamente a morrer cada
alguns as chamam idolopéias; com efeito, chamamos fantasia indife- um de seu lado sem lamentação; às vezes, porém, ele introduz pen-
rentemente todo pensamento que, de qualquer maneira, ocorra capaz samentos não esmerados, como que de lã bruta, ásperos; no entanto,
de gerar uma palavra; mas hoje em dia o termo prevalece nos casos Eurípides, por emulação, impele a si mesmo a iguais perigos.
em que, inspirado e emocionado, parece-te estares vendo o de que
falas e o pões sob os olhos dos ouvintes. 25. Eurípides, Orestes, 255.
2. Que a fantasia tem um objetivo na oratória e outro na poe- 26. Iliada, XX, 170.
sia não te passa despercebido. nem que o seu fito, na poesia, é ma- 27. Da tragédia Faetonte, de Eurípides, de que se conhecem fragmentos.

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6. Em Esquilo, a régia de Licurgo, quando do aparecimento de 11. Em todos os casos semelhantes, naturalmente sempre ouvi-
Dioniso, estranhamente entra em êxtase: "O palácio caí em transe, mos a palavra mais forte; assim, somos distraídos da demonstração
o teto delira"; a mesma imagem, atenuada, exprime Eurípides nou- para o efeito impressionante da fantasia, que ofusca a argumentação
tras palavras: "A montanha toda participa da bacanal." 28 real com o brilho difundido em derredor. O que se passa conosco é
7. Igüalmente Sófocles imaginou supernamente a Edipo mori- normal; postas lado a lado duas causas, sempre a mais forte atrai
bundo sepultando a si mesmo entre prodígios celestes, bem como a para si o poder da outra.
Aquiles, no momento da partida dos gregos, aparecendo sobre o seu 12. E quanto bastará a respeito do sublime nos pensamentos,
túmulo aos que embarcavam, quadro que não sei se alguém pintou gerado pelos sentimentos elevados. pela imitação ou pela fantasia.
com mais vida do que Simônides.
8. Exemplificar tudo seria impraticável. Todavia, os exemplos XVI
colhidos nos poetas, como eu dizia, encerram uma exageração mítica,
_que transcende por demais a credibilidade, enquanto o mais belo da 1. Tem seu lugar aqui, em continuação, o estudo das figuras,
imaginativa oratória consiste sempre em sua possibilidade e verossi- pois, se empregadas da maneira devida, como disse, serão parte não
milhança. As violações desta norma são chocantes, estranhas; em dis- secundária do sublime. Contudo, como aprofundar todas agora seria
cursos de estrutura poética e fabulosa, descambam num conglome- um trabalho longo, melhor, infindável, examinaremos umas poucas, as
rado de impossíveis, como, por Zeus! fazem os modernos oradores capazes de criar a grandiloqüência, com propósito de corroborar o
entre nós; à maneira dos trágicos, eles vêem Eríneas, incapazes de que dissemos atrás.
compreender, esses bem-nascidos, uma coisa: Orestes, quando diz 2. Demóstenes apresenta uma exposição de sua atuação política.
"Larga-me! és uma de minhas Eríneas e me agarraste pela cintura Qual era a forma natural dela? "Não errastes vós, que assumistes os
para me derrubar no Tártaro",29 imagina isso por estar delirando. riscos da luta pela liberdade da Grécia; tendes exemplos desse gesto
9. Qual, então, o condão da fantasia na oratória? Talvez car- em casa, pois não erraram os heróis de Maratona, nem os de SaIEl.-
rear para os discursos grande variedade de lances veementes e paté- ( mina, nem os de Platéias." 31 Mas, quando, como se recebesse de sú-
ticos; misturada à argumentação real, sobre convencer os ouvintes, bito inspiração divina, possuído, por assim dizer, de Febo, proferiu
avassala-os. "Sem dúvida, diz Demóstenes.P? se, neste mesmo ins- o juramento pelos heróis da Hélade: "Não é possível que tenhais erra-
tante, se ouvisse um alarido diante do tribunal e alguém então dis- do, juro-o pelos que afrontaram perigos outrora em Maratona!" evi-
sesse "Abriram as portas da cadeia e os presos estão escapando", não dencia-se que, por meio apenas duma figura de juramento, que eu
há velho ou jovem tão negligente que não acudisse na medida de aqui chamo apóstrofe, ele endeusa os antepassados, sugerindo que se
suas forças; e mais, se alguém assomasse para dizer "foi esse homem deva jurar pelos que assim morreram como se jura pelos deuses; inspi-
ra nos seus juizes o ânimo dos que lá tinham arrostado os perigos;
quem os soltou", o indicado seria morto no mesmo instante, sem uma
transformada a exposição num sublime e numa emoção soberba, com
palavra de defesa."
a força de persuasão dum juramento novo e extraordinário, ao mesmo
1O. Foi assim, por Zeus! que, acusado em justiça por ter de- tempo ministra às almas dos ouvintes uma palavra salutar, um antí-
cretado a libertação dos escravos depois da derrota, Hiperides disse:' doto, de sorte que os leva, reconfortados pelos louvores, a considerar
"Esse decreto não foi o orador quem o propôs, foi a batalha de Que- a batalha contra Filipe como em nada inferior às vitórias de Mara-
ronéia." Ao mesmo tempo que arrazoava, o orador empregou a ima- tona e Salamina.
ginação, de sorte que, com esse pensamento, foi além do alcance da Em toda essa passagem foi graças à imagem que ele pôde arre-
persuasão. batar consigo os ouvintes. 3. Dizem, porém, que o germe do jura-
mento se encontrava em Eupolis: 32 '''Pela minha batalha de Marato-
28. Bacantes, 726.
29. Eurípides, Orestes, 264. 31. Oração da Coroa, 208.
30. Timâcrates, 208. 32. Comediógrafo do século V a. C.

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na! nenhum deles magoará meu coração. impunemente!" Nem todo a resistir absolutamente às palavras persuasivas. Por isso, parece exce-
juramento, porém, é grandioso; depende do lugar, do modo, das cir- lente a figura quando precisamente não deixa transparecer que o é.
cunstâncias, do motivo. Ali nada existe além dum mero juramento, 2. Assim, pois, o sublime e o patético constituem um antídoto e
diante de atenienses ainda prósperos, não precisados de conforto; ade- auxilio maravilhoso contra a suspeição despertada pelo uso de figu-
mais, o poeta, jurando, não imortalizou os homens a fim de criar nos ras; o embairnento, de certo modo aureolado de beleza e grandiosi-
ouvintes um conceito digno do valor deles, mas derivou dos que dade, daí por diante encoberto, escapa a toda desconfiança. Prova
tinham afrontado os perigos para um ente inanimado, a batalha. Em cabal é o citado "juro pelos que em Maratona". Nesse lugar, com que
Demóstenes, porém, o juramento foi preparado para um auditório de ocultou o orador a figura? É claro que com o brilho mesmo. Mais ou
vencidos, para que os atenienses não mais vissem em Queronéia um menos como as luzes baças esvaecem quando rodeadas do brilho do
desastre; como dizia, é, ao mesmo tempo, uma demonstração de que sol, o grandioso, derramado em redor dos artifícios, obscurece-os.
nenhum erro houvera, um exemplo, uma garantia jurada, um louvor,
3. Disso talvez não difira muito o que acontece na pintura: em-
um encorajamento.
bora postas em cores, lado a lado, no mesmo plano, a sombra e a luz,
4. Uma objeção se opunha ao orador: "Falas duma derrota cau- esta se oferece melhor à vista e aparenta estar não só em relevo, mas
sada pela tua política e juras em nome de vitórias?" Por isso, prosse- muito mais perto. Nos discursos, pois, o patético e o sublime, mais
guindo, ele mede as palavras, escolhe-as com segurança, ensinando aproximados de nossa alma, graças a uma afinidade natural e ao bri-
que "mesmo nos transportes orgíacos importa a temperança". 33 Diz lho, sempre se mostram antes das figuras, obumbrando e mantendo
ele: "os que afrontaram perigos em Maratona, os da batalha naval de encoberto o artifício destas.
Salamina e de Artemísio, os alinhados em Platéias"; em lugar nenhum
falou em vencedores, mas em toda parte calou o nome do resultado,
XVIII
por ser o dum bom sucesso, ao inverso de Oueronéia. Por isso, ante-
cipando-se a objeções dos ouvintes, logo acrescenta: "A cidade, És-
1. E que diremos das perguntas e respostas? Não é justamente
quines, distinguiu com funeral a expensas públicas a todos eles, não
pela sua natureza específica de figuras que elas avi goram o discurso
apenas aos bem sucedidos."
com muito mais energia e ímpeto? - "Ouereis, dizei-me, circular por
aí perguntando uns aos outros o que se diz de novo? Que novidade
XVII maior haveria do que a dum homem da Macedônia desbaratando a
Grécia? Morreu Filipe? - Não, mas está doente, por Zeus! - Que
diferença faz isso para vós? pois, se algo lhe acontecer, logo vós fabri-
1. Vale a pena, caríssimo amigo, nesta altura, não deixar de
carels um outro Filipe." 34 Noutro passo, diz: "Naveguemos para-a
lado uma observação minha; serei extremamente conciso. As imagens, Macedônia. - Onde arribaremos? perguntará alguém. - A guerra
de certo modo, são aliadas naturais do sublime e acham nele, por sua mesma achará o ponto fraco dos negócios de Filipe." Dito em termos
vez, uma aliança maravilhosa. Onde e como? Di-lo-ei, É particular- singelos, o pensamento seria de todo frustrâneo, mas o teor inspirado,
mente suspeito o uso inescrupuloso de imagens; insinua a desconfian- a troca viva de perguntas e respostas e a réplica às suas próprias pa-
'ça duma cilada, maquinação, embuste, e isso quando o discurso é pro- lavras como se fossem de outrem, tornaram a passagem, graças às
nunciado diante dum juiz soberano, maxime ante tiranos, reis, impe- figuras, não só mais elevada, como também mais convincente.
radores, quantos exerçam poder supremo; quem um artista da pala- 2. De fato, o patético é mais empolgante quando não parece
vra procura embair com figuras de estilo, como a uma criança ingênua, " premeditado pelo orador e sim nascido do momento; orá; a pergunta
irrita-se logoe, tomando a falácia como afronta à sua pessoa, exaspera- feita a si próprio e a resposta simulam uma emoção espontânea. Dir-
-se às vezes em extremo e, mesmo quando domina os ímpetos, dispõe-se -se-ia que, assim como aqueles a quem outros dirigem a palavra se

33 Eurípides, Bacantes, 317. 34. Filípica r.

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Com essas figuras, o orador nada mais faz do que agir tal qual
alvoroçam para responder prontamente, com veemência e real since-
o agressor; ele vibra na mente dos juízes golpe sobre golpe. 3. Em
ridade, assim a figura de pergunta e resposta leva o ouvinte a pensar
seguida, à semelhança dos furacões, numa nova investida, diz: "quan-
que cada um dos lances, preparados com esmero, acaba de ser susci- do golpeia com os punhos, quando numa face, isso move, isso desa-
tado e proferido de improviso, e com isso o ilude. Ademais, visto como tina as pessoas não habituadas a sofrer ultrajes; ninguém, contando,
se considerou um dos exemplos mais sublimes este passo de Heró- poderia fazer sentir todo o horror dessa brutalidáde." Ele, portanto,
doto: "Se assim, .. (lacuna no ms.) conserva em toda parte a essência das epanáforas e assíndetos pela
variação continuada; assim, nele, a ordem é uma coisa desordenada e,
XIX ao invés, a desordem envolve certa ordem.

sem conexão, as palavras vão caindo e, por assim dizer, se XXI


derramam adiante, pouco faltando para se anteciparem ao próprio
orador. "E chocando uns contra os outros os escudos, .diz Xenofon- 1. Vamos, acrescenta, se queres, ..•.os conetivos, como fazem os
te,35 empurravam-se, lutavam, matavam, morriam." E Euríloco: 36 discípulos de Isócrates: 39 "Na verdade, não devemos esquecer que o
"Como mandaste, nobre Odisseu, atravessamos o carvalhal; na bai- agressor podia causar muitos danos: primeiramente, com a atitude,
xada, deparou-se-nos uma bela mansão construí da ... " Efetivamente, depois com o olhar e finalmente com a voz mesma." Verás como,
as frases, desligadas umas das outras, nem por isso menos fluentes, usando essa marcação seguida, até alisá-lo com os conetivos, cai sem
dão a impressão de alvoçoro, a um tempo peando e propelindo. Esse ferrão e depressa se apaga o pressuroso e áspero da emoção.
efeito, o Poeta obteve-o por meio do assíndeto. 2. Privaria da velocidade os atletas corredores quem os amar-
rasse uns nos outros; assim também a emoção ressente-se do emba-
XX raço dos conetivos e de outros acréscimos, porque perde a liberdade
de correr e a impressão de ter sido disparada duma catapulta.
1. Tem comumente a maior força emotiva a associação das figu-
ras num propósito comum, quando duas 01..1 três, como numa simo- XXII
ria, 37 colaboram na busca do vigor, da persuasão, da beleza, quais
os assíndetos entrelaçados com as anáforas e diatiposes 38 no discurso 1. Cumpre incluir na mesma categoria o hipérbato, figura pela
contra Mídias: "Muitos danos pode o agressor fazer com a atitude, qual a ordenação das palavras e pensàmentos é tirada da seqüência
com os olhos, com a voz, alguns dos quais a vítima não seria capaz regular; é, por assim dizer, o mais verdadeiro cunho duma emoção
de descrever a um terceiro." 2. Depois, para que o discurso não se violenta. As pessoas realmente encolerizadas, apavoradas, indignadas
detivesse no mesmo terreno (pois demorar-se é sinal de serenidade; ou arrebatadas ordinariamente pelos ciúmes ou por alguma outra
agitar-se, de emoção, pois esta é impulso e comoção da alma), logo paixão (pois as emoções são variadas e inúmeras, sem que se possa
ele saltou a outros assíndetos e epanáforas: "com a atitude, com o dizer quantas sejam), muitas vezes, iniciam um assunto, saltam para
olhar, com a voz, quando golpeia com insolência, quando como ini- outro, intercalam, de passagem, incisos descabidos, depois, numa vira-
migo, quando com os punhos, quando como a um escravo." volta, tornam ao primeiro e, completamente transtornadas, impelidas
como ao sopro dum repiquete em giros súbitos de cá para lá, mudam
35. Agesilau, n, 12. as palavras, mudam os pensamentos e, de todos os modos, em mil e
36. Odisséia, X, 251.
37. União dos sessenta atenienses mais ricos para acudirem a despesas 39. Contemporâneo de Platão, ensinava oratória. Entre seus· discípulos
extraordinárias do Estado. s~ contam grandes oradores gregos. Desenvolveu o estilo periódico e sua
38. Descrição viva em discurso. O exemplo é de Dernóstenes. linguagem era esmerada em extremo.

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uma voltas, mudam a ordem para fora do encadeamento natural; igual- tribuem para o ornamento e para toda sorte de sublime e de emoção.
mente, nos melhores escritores, graças aos hipérbatos, a imitação en- E que variedade e viveza dão às expressões as enálages de caso, tem-
contra seu modelo nos efeitos da natureza, pois a arte é acabada po, pessoa, número e gênero!
quando com esta se parece e, por sua vez, a natureza é bem suce- 2. Dentre as substituições de número, digo que dão beleza não
dida quando dissimula a arte em SeU seio. apenas aquelas que, sob a forma do singular, examinadas de perto se
Por exemplo, a fala de Dionísio da Focéia em .Heródoto: 40 "Re- revelam plurais no significado: "Logo, diz ele, uma multidão incon-
pousa no fio duma navalha, jônios, a sorte de sermos livres ou escra- tável espalhada na praia excIamava: Atum! atum!" Mais atenção, po-
vos, e escravos tratados como fugidos! Agora, pois, se quiserdes acei- rém, merece o fato de ser nalguns lugares mais imponente o plural
tar fadigas, vós tereis canseiras logo, mas sereis capazes de superar ~ e, graças à idéia de multidão do número, mais majestoso. 3. Assim
os vossos inimigos." 2. Aqui a ordenação seria: "[ônios, agora é oca- é a fala de Edipo em SófocIes: "Núpcias! Núpcias! vós me gerastes e,
sião de meter ombros ao trabalho, pois a nossa sorte repousa no fio depois de me haverdes gerado, lançastes outra vez a mesma semente
duma navalha." Mas ele transpôs jônios; partiu logo da idéia assus- e mostrastes à luz pais, irmãos, filhos, assassínio em família, noivas a
tadora; nem mesmo, a pressa, sob a pressão da ameaça presente, soli- um tempo mães e esposas, todas as vergonhas possíveis na espécie
citou em primeiro lugar a atenção dos ouvintes; depois, inverteu a humana!" 41 .
ordem dos pensamentos, pois antes de dizer que era preciso enfrentar
Toda essa enumeração vale por um único nome, Edipo, e, dou-
fadigas (pois para isso é que os queria exortar), primeiramente deu
tro lado, [ocasta: porém, dissolvido em plurais, o número pluralizou
as razões por que eram necessárias fadigas, dizendo "repousa no fio
duma navalha a nossa sorte", de modo que aparentasse proferir não também as desgraças.
frases preparadas, senão aquelas a que o constrangia a necessidade. Igual multiplicidade em "saíram Heitores e Sarpédones" e o
3. Ainda muito mais hábil é Tucídides em afastar umas das passo de Platão sobre os atenienses, que citamos alhures: 42 4. "Pois
outras, por meio de hipérbatos, idéias por natureza intimamente uni- nem Pélopes, nem Cadmos, nem Egitos, nem Dânaos, nem outros
das e inseparáveis. Demóstenes não é tão ousado quanto ele, mas, numerosos, nascidos bárbaros, coabitam conosco, mas nós mesmos,
dentre todos, é quem menos se farta do emprego dessa figura e, gregos, não mestiçados com bárbaros, habitamos ... " etc.
graças às inversões, dá impressão de veemência e ainda, por Zeus! Os fatos, naturalmente, ouvirno-los mais grandiloqüentes, com
de improvisar o discurso; além disso, arrasta os ouvintes ao perigo os nomes assim aglomerados. Contudo, esse artifício não deve ser
dos longos hipérbatos. 4. Amiúde, com efeito, deixado em suspenso usado noutras circunstâncias, senão apenas onde o assunto comporta
o pensamento começado a exprimir, entrementes, como se estivesse ufania, ou redundância, ou exagero, ou paixão, um ou mais desses
entulhando o vão com idéias roladas dalgum lugar de fora, numa
predicados, porquanto pendurar cincerros por todo o texto é demã-
ordem de outro gênero e esquisita, incute no ouvinte o receio duma siada afetação. .
completa desagregação do discurso, forçando-o a compartir, angus-
tiado, os seus riscos; depois, de surpresa, ao cabo de longo tempo,
profere, oportunamente, o termo desde muito procurado e causa, jus-
XXIV
tamente pela arriscada ousadia das inversões, uma impressão muito ".;'
mais profunda. Poupemos, porém, os exemplos; são tantos!
1. Às vezes, todavia, máxima elevação resulta, ao contrário, da
XXIII redução do plural ao singular: "Depois, todo o Peloponeso estava
" dividido" diz Demóstenes.f" "E quando Frínico encenou o drama
1. Outrossim, os chamados poliptotos, as acumulações, as me- .~
41. Rei Bdipo.
táboles e gradações, muito adequadas, corno sabes, ao debate, con-
42. Menéxeno, 245 d.
43. Oração da Coroa, 18.
40. VI, 11.
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Tomada de Mileto, o teatro caiu em prantos"; 44 reunir num só os XXVl1
elementos divididos aumenta no número a impressão dum corpo único.
2. Penso que a beleza das duas figuras tem a mesma causa; onde 1. Por vezes também, numa narração, subitamente arrebatado,
as pala/vras estão no singular mudá-Ias em plural causa emoção ines- o escritor toma o lugar da personagem mesma; uma imagem desse
perada;' onde elas estão no plural, unificá-Ias num termo singular de gênero é emoção explodindo: "Heitor em altos brados exortava os
sonância agradável surpreende pela transformação das coisas em seu traia nos a atacar os navios e abandonar os despojos sangrentos: "Se
oposto. eu vir alguém voluntariamente longe dos navios, cuidarei de sua morte
imediata"." 48 O Poeta, portanto, assumiu pessoalmente, como convi-
xxv nha, a narração, mas, de súbito, sem o declarar, atribuiu ao coman-
dante a ameaça abrupta; a passagem arrefeceria, se ele inserisse:
Quando representas como acontecendo no presente fatos ocor- "Heitor disse isto e mais aquilo", mas a transferência da palavra se
ridos no passado, farás do discurso não mais uma narrativa, mas um antecipa de repente a quem a fazia._
drama real. "Um soldado, diz Xenofonte." que tombara sob o cavalo 2. Por isso é que o uso dessa figura se dá quando o momento,
de Ciro e está sendo pisoteado, golpeia com a espada o ventre do tornado crítico, não admite uma demora do escritor, mas o constrange
animal; este cabriteia e deita Ciro em terra." Tucídides emprega essa a passar logo duma pessoa gramatical a outra, como em Hecateu: 49
figura amiúde. "Mas Ceix, considerando terrível a situação, prontamente mandou os
Heraclidas e descendentes deixar o país: "Pois não estou em condi-
XXVI
ções de vos socorrer. Assim, para não perecerdes vós próprios, nem
me causardes dano, retirai-vos para junto doutro povo."
1. Igualmente dramática a mudança de pessoa gramatical; mui-
tas vezes faz o ouvinte sentir-se às voltas com os perigos: "Dirias que 3. Demóstenes, falando contra Aristogíton, conferiu doutro mo-
descansados e indobráveis se defrontavam na guerra, tão impetuosa- do emoção e rapidez à mudança de pessoa: "E não se achará, diz ele,
mente combatiam" e Arato: "Naquele mês não te circundem ondas entre vós ninguém a quem assome bile e cólera diante das violências
do mar." desse infame sem pudor, que ... Tu, o mais impuro do mundo, tran-
Mais ou menos assim fala Heródoto: 46 2. "Zarparás de Elefan- cada tua liberdade de palavra, não por barras nem por portas, que
tina rio acima; chegarás então a uma planície rasa; atravessada essa alguém poderia entreabrir ... " Com o pensamento por completar, mu-
região, embarcarás noutro navio, navegarás dois dias e então chegarás da a frase de súbito e quase a reparte, por causa da cólera, entre duas
a uma cidade grande, chamada Méroe." Estás vendo, amigo, como, pessoas ("que ... Tu, o mais impuro"); então, desviando e parecendo
levando consigo tua alma, ele a conduz através dos lugares, mudando abandonar o discurso contra Aristogíton, na verdade, graças à emo-
a audição em visão? Todas essas figuras apoiadas na pessoa mesma ção, volta-o contra ele com muito mais veemência.
situam o ouvinte bem no centro das ações. 4. Igualmente Penélope: 50 "Arauto, a que recado te mandaram
3. Quando falas, não como a todos, mas como a um só, dizen- os fidalgos pretendentes? a dizer às servas do divinal Odisseu que
do: "Não saberias com qual dos dois exércitos lutava o filho de Ti- deixem as suas tarefas para lhes aprontar o seu festim? Oxalá tives-
deu",47 deixarás o ouvinte emocionado e ao mesmo tempo mais sem aqui agora o seu derradeiro e final banquete sem nunca me ha-
atento, cheio de interesse na luta, despertado pelas palavras dirigidas verem cortejado nem sequer conhecido! Aqui arranchados, esbanjais
à sua pessoa. demasiado sustento. .. Não ouvistes outrora, quando éreis crianças,
vossos pais contar que pessoa era Odisseu ... ?"
44. Herédoto, VI, 21. A peça de Frínico mostrava o sofrimento dos milésios
sob a crueldade persa.
48. Iliada, XV, 346.
45. Ciropedia, VII, 1, 37.
46. Ir, 29. 49. Historiador e geógrafo do século VI a. C., precursor de Heródoto.
47. Iliada, V, 85. 50. Odisséia, IV, 681.

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XXVIII pois, dizem, se ele proibisse a posse de rebanhos, falaria, é claro, em
riqueza ovina ou vacum.
1. Ninguém, creio, duvidaria que a perífrase contribui para o 2. Mas, caríssimo Terenciano, digressionando sobre o uso de
sublime. Com efeito, como, na música, o acompanhamento torna mais figuras com vistas ao sublime, discorreu-se bastante; todas elas confe-
agradável a melodia principal, assim a perífrase muitas vezes soa har- rem ao discurso mais patético e mais emoção; e do sublime faz parte
moniosamente com a expressão precisa e do acorde resulta grande o patético tanto quanto, do agradável, a pintura de caracteres.
beleza, sobretudo se nada ocorrer de empolado e dissonante, mas sim
uma mistura apreciável.
2. Uma prova cabal disso nos dá Platão no exórdio da Oração
xxx
Fúnebre: 51 "Na verdade, eles receberam de nós o tributo devido e, 1. Como, porém, no discurso, as mais das vezes o pensamento
assim galardoados, prosseguem a caminhada do destino, escoltados, e a linguagem se implicam mutuamente, prossigamos e examinemos
em comum, pela cidade e, em particular, pelos seus parentes." Por- mais se resta ainda por estudar algum item concernente ao estilo.
tanto, ele chama à morte caminhada do destino e às honrarias tradi- Discorrer sobre como a escolha dos vocábulos próprios e magní-
cionais tributadas uma escolta pública da pátria. Com essa linguagem, ficos maravilha e fascina os ouvintes e constitui a máxima preocupa-
enfatizou ele o pensamento moderadamente, ou, tomando uma expres- ção de todo orador e todo escritor, porque, florindo de per si, depara
são singela a fez musical, banhando-a com a melodia da perífrase aos discursos, como a esculturas belíssimas, a um tempo grandiosi-
como num acorde? dade e beleza, verniz clássico, peso, força, vigor e ainda certo brilho,
E Xenofonte: 52 3. "Considerais as fadigas como guias duma como se comunicasse aos fatos uma alma dotada de voz, receio seja
vida agradável; agasalhastes em vosso ânimo o tesouro mais belo e um supérfluo esclarecimento a quem já o sabe. Realmente, a beleza
condigno de guerreiros; o louvor vos causa mais alegria do que tudo das palavras é luz própria do pensamento.
na vida." Em vez de dizer "amais as fadigas", ele disse "considerais 2. Entretanto, a pompa do vocabulário nem sempre é vantajosa,
as fadigas como guias duma vida agradável" e desenvolveu o resto pois empregar em assuntos de pouca monta palavreado grandioso e
de maneira semelhante; com isso, envolveu o conceito grandioso num solene pareceria o mesmo que assentar uma grande máscara trágica
elogio. 4. E mais o passo inimitável de Heródoto: 53 "Aos citas que numa criancinha. Verdade é que na poesia. " (lacuna no ms.)
tinham depredado o templo a deusa enviou uma doença feminina."
XXXI
XXIX
1. .,. almo e fecundo este passo de Anacreonte: 54 "Já não me
importa a poldrinha da Trácia." Por igual razão, embora menos lou-
1. Mais, porém, que as outras figuras, é a perífrase coisa peri-
vável, esta frase de Teopompo 55 me parece, pela metáfora analógica,
gosa, quando empregada sem certa medida, pois logo degenera em muito expressiva; censurada por Cecílio não sei por que: "Filipe su-
fraqueza, tresandando a palanfrório espesso. Daí ter sido alvo de portava com incomum facilidade uma dieta de insultos." O termo
mofa o mesmo Platão (sempre extraordinário no emprego de figuras, vulgar é às vezes muito mais expressivo do que o requintado; colhido
embora por vezes fora de propósito), por dizer nas leis que "não se na linguagem comum, é compreendido prontamente e o que nos é
deve permitir fixe residência na cidade riqueza argêntea ou áurea", -, familiar já nos inspira mais confiança. Por isso, dito de quem suporta
-,
com ânimo e prazer, por ambição, a ignomínia sórdida, dieta de in-
51. Menéxeno, 236 d. sultos compreende-se com a máxima clareza.
52. Ciropedia, I, 5, 12.
53. I, 105. Aos atacados da moléstia, aplicavam os citas um nome 54. Poeta lírico do século VI a. C.
correspondente a hermafrodito. 55. Historiador e orador do século IV a. C.

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2. Mais ou menos o mesmo se dá com este passo de Heródoto: 56 acrópole; o pescoço, um istmo construído entre ela e o peito; as vér-
"Cleômenes enlouquecido cortou com um punhal sua própria carne tebras, diz ele, foram assentadas à maneira de dobradiças; o prazer
em pedacinhos até, depois de fazer de si um picadinho, morrer" e é para os homens a isca do mal; a língua, pedra de toque do gosto; o
"Pites combateu a bordo até ficar totalmente trinchado't.P? Essas coração, nó das veias e fonte do sangue que circula vigorosamente;
expressões raiam pela vulgaridade, mas escapam ao vulgar graças à foi postado na sala da guarda; os condutos do corpo ele denomina
expressividade. '- desfiladeiros; "aos pulos do coração na expectativa dum perigo e no
despertar da cólera, pois que era ardente, os deuses deram um jeito,
XXXII diz ele, implantando a forma do pulmão, macia e sem sangue, de
interior poroso, espécie de estofado, para que, quando a cólera fer-
1. Quanto ao número de metáforas, Cecílio parece concordar vesse nele, ao saltar contra algo que amortecesse o choque, não se
com os outros que autorizam o alinhamento de duas ou no máximo magoasse". Ao quarto dos desejos ele chamou apartamento das mu-
três sobre o mesmo assunto. Demóstenes, ainda, é a regra neste par· lheres; ao da cólera, o dos homens; o baço, toalha das vísceras, que,
ticular; a do emprego, é a ocasião; quando as emoções se precipitam por isso, quando cheio das impurezas removidas, se avoluma, grande
torrenciais, arrastam consigo como inevitável a multidão delas. 2. I e malsão. "Depois disso, diz ele, os deuses cobriram de carne todos
"Homens impuros, diz ele', bajuladores, mutiladores da pátria, que I esses órgãos, opondo-a, como um forro de lã, aos perigos externos."
beberam a liberdade à saúde, primeiro, de Felipe e, agora, de Ale-
xandre, que medem a felicidade pelo estômago e pelo baixo-ventre e
'I Ele chamou ao sangue alimento da carne. "Para fins de nutrição, diz
ele, eles rasgaram canais pelo corpo todo, à semelhança dos regos dos
deitaram de catrâmbias a liberdade e a ausência de quaisquer amos, jardins, de sorte que pelo corpo, sulcado por toda parte, corressem os
privilégio que representava para os gregos de antanho a medida e a fluxo das veias como saídos dum arroio."· Quando chega o fim, diz
lei da felicidade." 58 Aqui a exaltação do orador contra os traidores ele, desatam-se, como amarras dum navio, os laços da alma e ela
obumbra a abundância dos tropas. sol ta-se, livre.
6. Esses e milhares de exemplos semelhantes se deparam em
3. Daí dizerem Aristóteles e Teofrasto que são suavizadores das
metáforas ousadas os como se, por assim dizer, se assim se deve dizer
( continuação; bastam os assinalados para mostrar a grandiosidade na-
e se é preciso falar com mais temeridade; a escusa, dizem, remedeia o tural das figuras, a contribuição das metáforas para o sublime e o
atrevimento. 4. Eu aceito essa explicação; não obstante, como disse quanto ganham com elas as passagens patéticas e as descritivas.
a propósito das figuras, repito que as emoções fortes em ocasião 7. Já é, todavia, evidente e escusado dizer que o uso das figu-
certa e o sublime genuíno constituem antídotos específicos da abun- ras, como de todos os demais ornamentos do estilo, conduz sempre ao
dância e ousadia das metáforas, porque eles, com a veemência de seu excesso. A isso se pegam os críticos para atassalhar especialmente a
movimento, são de natureza tal que arrebatem e levem adiante tudo Platão, alegando que muitas vezes um transporte báquico de elo-
mais, ou, melhor, exijam absolutamente como imprescindíveis as me- qüência o arrasta a metáforas desapoderadas e rudes, a alegorias
táforas ousadas e não deixem ao ouvinte folga para reparar no número bombásticas. "Não é, pois, fácil conceber, diz ele, deva uma cidade
delas, porque se contagiou do entusiasmo do orador. ser uma mistura como num canjirão, onde o vinho, ao ser derramado,
5. Aliás, no uso de lugares comuns e descrições, nada é tão ferve com fúria, mas, castigado por um outro deus sábio e associado
significativo como uma seqüência cerrada de tropas. Graças a eles, a à sua nobre companhia, proporciona uma bebida boa e moderada." 60
anatomia do corpo humano é pintada por Xenofonte magnificamente Chamar deus sábio à água, castigo à mistura, dizem, é de poeta de-
e, mais ainda, divinamente, por Platão.P? Este chama a cabeça uma veras nada sóbrio.
8. Deitando mão a falhas como essa é que Cecília, em seus es-
56. VI. 75. critos em louvor de Lísias, 61 teve a coragem de declará-Ia em tudo
57. VII, 181.
58. Oração da Coroa, 296. 60. Leis, VI, 773 c.
59. Timeu, 65 c e seguintes. 61. Logógrafo do século V a. C.

100 101
superior a Platão; usou de dois sentimentos prejudiciais à crítica; nhos, foi extraordinariamente feliz; quererias, por isso, ser antes Apo-
amando a Lísias mais que a si mesmo, ainda assim vota mais ódio lônio do que Homero?
a PIa tão do que amor a Lísias. Mas ele deixou-se dominar pela per- 2. E que dizer de Eratóstenes 64 na Erígone? Esse poemeto é
vicácia e, ao contrário do que ele imagina, os seus pontos de vista
irrepreensível de ponta a ponta. Será ele, por isso, poeta superior a
não gozam de aceitação geral; com efeito, ele coloca o orador, impe-
Arquíloco, que enxurrava muitos versos mal arrumados, e ao seu
cável e límpido, acima de Platão, carregado de falhas. Em verdade,
jorro de inspiração divina, que seria desprazível ter de sujeitar a nor-
não era nada assim, nem aproximadamente. mas? E na poesia lírica? Quererias ser antes um Baquílides 65 do que
um Píndaro? 66 E na tragédia, por Zeus! antes ser um Ion de Quios 67
do que um SófocIes? Realmente, os primeiros são impecáveis e nos
XXXIII
seus cinzelados tudo é belamente escrito, enquanto Píndaro e Sófo-
eles, embora às vezes pareçam tudo incendiar no seu arroubamento,
1. Sus, tomemos um escritor deveras límpido e irrepreensível. muitas vezes inesperadamente se apagam e se estatelam em quedas as
Não vale a pena submeter a um exame geral exatamente este ponto:
mais desastradas. E alguém em juízo perfeito, reunidas todas as obras
se, em poesia e prosa, devemos preferir uma grandeza com alguns
de 10n, trocaria por elas uma só tragédia, a de Édipo'l
defeitos, ou uma mediocridade correta, em tudo sã e impecável? E
também, por Zeus! se a preeminência na literatura cabe, por justiça,
às virtudes mais numerosas, ou às maiores? XXXIV
Perguntas próprias ao estudo do sublime, requerem solução a
qualquer preço. 2. Eu cá, no entanto, sei que as naturezas demasiado 1. Se o bom êxito se devesse julgar pelo número e não pela gran-
grandes são as menos estremes; a precisão em tudo acarreta o risco deza, em tudo se avantajaria Hiperides a Demóstenes. Ele varia mais
da mediania e nos grandes gênios, assim como na excessiva riqueza, ~ os tons, conta mais virtudes, atinge, pode-se dizer, quase o ápice em
alguma coisa se há de negligenciar; talvez seja também inevitável, tudo e é comparável ao competidor do pentatlo que em todas as dispu-
por jamais se exporem a perigos, nem aspirarem às alturas, perma- tas perdesse dos demais atletas, mas ganhasse dos amadores.
necerem comumente irrepreensíveis e mais seguras as naturezas hu- 2. Hiperides, realmente, além de imitar em tudo, fora o bom
mildes e medianas, e estarem as grandes, por causa da grandeza arranjo, as perfeições de Demóstenes, ainda abarcou as virtudes e lou-
mesma, sujeitas a cair. çanias de Lísias. Fala com simplicidade onde é preciso e não, como se
3. Aliás, tampouco ignoro que nós, naturalmente olhamos todas
as ações humanas antes pelo lado pior e que a lembrança dos erros
permanece indelével, enquanto a das belas ações cedo se escoa. 4. Eu
I

diz de Demóstenes, tudo de enfiada e num só tom; a característica dos
costumes tem nele o tempero da doçura ou da acidez; não têm conta
seus asteísmos, seus motejos ricos de urbanidade, sua fidalguia, seu-
mesmo já registrei não poucas falhas de Homero e dos outros maiores fácil manejo da 'ironia, seus sarcasmos, no estilo dos famosos áticos,68
escritores; os defeitos não me proporcionaram o mínimo prazer; con- nem soezes nem de mau gosto, mas bem aplicados, suas zombarias bem
tudo, não os considero faltas voluntárias de bom gosto, senão lapsos dirigidas, sua comicidade abundante, seu aguilhão provido de galhofa
casuais, produto inadvertido de incúria da genialidade; ainda assim, certeira,' seu inimitável encanto em todos esses dons e seus excelentes
penso, embora as maiores perfeições não mantenham o seu nível em
toda parte, devem receber sempre o voto para o primeiro prêmio, se 64. Poeta e polígrafo do século IIl a. C.
por nenhum outro motivo, pela sua própria elevação. 65. Poeta do século V a. C.
Na verdade, Apolônio, 62 nas Argonâuticas, é um poeta impecá- 66. Poeta do século V a. C., autor principalmente de epinícios eelebrando
·tJ.tletas.
vel e Teócrito 63 Tía poesia pastoral, salvo em poucos assuntos estra-
67. Poeta do século V a. C., autor de tragédias e ditirambos.
68. Famosa lista de oradores áticos, elaborada na antigtiidade: Andócides,
62. Apolônio de Rodes, poeta épico do século 111 a. C. Antifonte. Demóstenes. Dinarco. Esquines, Hiperides. Iseu , Isócrates. Licurgo
63. Poeta do século IV a. C., a quem Vergílio imitou nas Eclogas. e Lísias.

102 103
dores em extremo denodados; desde logo implantou em nossa alma
dotes naturais, quer para mover a piedade, quer para narrativas pro
um ínvencível amor a tudo que é eternamente grandioso e, em con-
fusas e para fugir do assunto na fluidez dum clímax e voltar com ex.
trema flexibilidade, como, por certo, na passagem, antes poética, a fronto conosco, mais divino.
respeito de Latona, dum lado, e, doutro, na Oração Fúnebre, de magni- 3. Por isso, como objeto de contemplação e de pensamento, ao
ficência que não sei se algum outro lograria. '- arrojo humano não basta nem mesmo o mundo todo; as idéias não
3. Demóstenes, porém, sai-se mal nas etopéias, nem é profuso, raro transpõem os limites do que nos cerca; quem circulasse os olhos
nada tem de fluido, nem de ostentoso, nem participa em geral de todas pela vida e visse quanto mais espaço ocupa em tudo o extraordinário,
as qualidades acabadas de referir. Por isso, quando se violenta para o grande, o belo, logo saberá para que fim nascemos.
ser divertido e espirituoso, suscita mais risota do que risadas; quando 4. Daí, guiados por certa tendência natural, por Zeus! não admi-
deseja chegar perto de ser gracioso, então mais longe fica de O ser. raríamos os pequenos riachos, ainda que límpidos e úteis, mas o Nilo,
Se se aventurasse a escrever o pequeno discurso em defesa de Frine, ou o Danúbio ou o Reno, e muito mais o Oceano; tampouco este lume-
contra Atenógenes, ainda maior realce daria a Híperides. zinho acendido por nós, que preserva pura a sua luz, nos assombra
4. Não obstante, penso, as belas qualidades de um, ainda que mais do que as chamas celestes, embora estas se obscureçam muitas
numerosas, carecem de grandeza e não afetam corações [eiunos, dei- vezes; nem o consideramos mais digno de admiração do que as cra-
xando calmo o ouvinte - pois ninguém sente medo quando lê Hipe- teras do Etna, cujas erupções lançam das profundezas penhascos,
rides - ao passo que o outro colhe na sua extraordinária genialidade cômoros inteiros, e por vezes derramam rios daquele fogo nascido das
e conduz à mais alta perfeição estas qualidades: intensidade do estilo entranhas da terra e só seu. 5. Com base em tudo isso, podemos
sublime, emoções vivas, redundância, presença de espírito, rapidez onde concluir que as coisas úteis ou apenas necessárias ao homem são en-
cabe, veemência e vigor inatingíveis a outros; visto isso, após sorver contradiças, mas o que suscita admiração é sempre o raro.
em massa esses poderosos dons divinos (que não é justo charnã-Ios
humanos), graças a eles, com os belos recursos que tem, sempre vence
a todos e, para remédio dos que lhe faltam, como que fulmina e des- XXXVI
lumbra com seus trovões e relâmpagos os oradores de todos os tem-
pos; mais fácil seria abrir os olhos à queda dum raio do que mano
tê-Ias fitos em suas contínuas explosões de paixão. 1. Com respeito, portanto, aos lances de genialidade literária,
nos quais a grandeza não chega a passar das raias do necessário e do
útil, convém a esta altura levantar esta conclusão: os escritores desse
xxxv nível, embora muito longe de impecáveis, situam-se todos acima da
condição dos mortais; o emprego de suas outras qualidades denuncia
1. No tocante a Platão, porém, existe, como eu dizia, ainda neles a condição humana, mas o sublime os ergue quase à magnitude
outra diferença. Lísias lhe é muito inferior não apenas na grandeza divina. A ausência de faltas exime' de censura; a grandeza granjeia,
das boas qualidades, como também no seu número; ganha dele nos a mais, a admiração.
defeitos mais do que perde nos méritos.
2. Que mais é preciso dizer? Cada um daqueles homens muitas
2. Que sabiam afinal aqueles sernideuses, que almejavam os vezes, com um único lance sublime e perfeito, redime todas as suas
maiores méritos literários, mas desdenhavam da exatidão. nos porme- faltas e, o mais importante, colhidas as de Homero, Demóstenes, Pla-
nores? Além de muita outra coisa, que a natureza não considerou o tão e outros dos maiores escritores e reunidas todas, verificar-se-é que
homem um animal humilde e mesquinho, mas, como se nos convo-
representam parte muito pequena, melhor, menos que mínima das
casse para uma grande panegíria, 69 trouxe-nos para a vida e para o
perfeições notadas em tudo naqueles heróis. Essa a. razão por que
universo a fim de sermos espectadores de tudo que ela é e competi-
todas as idades, todas as gerações, que a inveja não poderia tachar de
loucura, pressurosas lhes conferiram o galardão da vitória, que preser-
69. Festa, ou assembléia, que reunia grande massa popular.

104
tOs
n'-

vam intocável até hoje e provavehnente assim permanecerá "enquanto exórdio, ele insere estas palavras: "Ademais, a eloqüência tem o
correrem os rios e verdejarem as altas árvores". 70 grande condão de rebaixar o que é grande e revestir de grandeza °
3. Entre muitas respostas a quem escreveu que o Colosso Errado
que é pequeno, conferir aspecto de novidade a casos passados e de °
não é superior ao Lanceiro de Policleto,71 fácil é a de que, sob o antigüidade a sucessos recentes." - "Portanto, Isócrates, dirá alguém,
. ponto de vista de arte, admira-se a maior exatidão; sob o das obras da pretendes por essa forma interverter os merecimentos de lacedemônios
Ii natureza, a grandiosidade, e que da natureza recebeu o homem o dom e atenienses?" pois o elogio da oratória quase constituiu uma adver-
I de falar; requer-se nas estátuas a semelhança com o homem; na elo- tência prévia aos ouvintes para não se fiarem dele próprio.
I qüência, a superação das faculdades humanas. 3. Como dissemos das figuras acima, talvez as melhores hipér-
!
i 4. Não obstante - pois que esta recomendação nos leva de boles sejam as que não deixam perceber que são hipérboles. Isso
L volta ao início do tratado - como, na maioria dos casos, a impeca- acontece quando, sob o domínio de viva emoção, elas se ajustam à
I
bilidade se deve à correção da arte, enquanto o sublime, embora não grandeza duma situação, como faz Tucídides falando dos que pere-
11
li
mantenha tom uniforme, é fruto da genialidade, convém, em tudo, ciam na Sicília: "Os siracusanos, diz ele, desceram e chacinaram so-
i: pedir à arte que ajude a natureza, pois talvez consista a perfeição bretudo quem se achava no rio e logo se corrompeu a água; nem por
,li numa aliança estreita de ambas. isso deixaram de bebê-Ia cheia de sangue e lodo; a maioria ainda a
11 Essas as soluções que incumbe dar às questões propostas; mas disputava de armas na mão." 72 Sangue e lodo serem bebidos e ainda
..
li
regale-se cada qual com o que é de seu gosto. disputados em luta armada, fazem-no crível a força da emoção e as
circunstâncias.
"I

.i: I XXXVII 4. Ocorre o mesmo com Heródoto na descrição da batalha das


Termópilas: 73 "Ali, diz ele, defenderam-se com espadas (aqueles den-
I;,

Das metáforas se avizinham - pois que lá temos de voltar - as tre eles que ainda as tinham), com os punhos, com os dentes, até
comparações e imagens, que só diferem em. .. (lacuna no ms.) serem sepultados pelos bárbaros." Perguntarás aqui como se luta
com os dentes contra homens armados e como é possível ser sepul-
tado sob armas de arremesso. Não obstante, o estilo induz a crer, por
XXXVIII não parecer ter sido introduzida a cena por amor da hipérbole, mas
ter a hipérbole nascido logicamente da cena.
1. '" também as deste tipo: "salvo se trazem o cérebro cal- S. Com efeito, como não me canso de dizer, solução e remédio
cado nos calcanhares." Por isso, é necessário saber até onde estender
universal das ousadias de linguagem são os atos e emoções próximos
os limites em cada caso; algumas vezes, levada longe demais, a hipér-
bole perece e, alongados além da conta, artifícios desse gênero se do êxtase; por isso é que, embora as expressões cômicas resvalem
afrouxam, chegam até a converter-se no sentido oposto. para o inacreditável, a graça as torna críveis: "possuía um terreno
não maior do que uma carta (lacônica)." 74 O riso, com efeito, é
2. Isócrates, por exemplo, pela ambição de tudo amplificar no uma emoção de prazer. As hipérboles, assim como aumentam, tam-
discurso, caiu, não sei como, numa infantilidade. Propõe-se o seu bém diminuem, pois o exagero serve aos dois propósitos e a chacota
discurso Panegirico a demonstrar que a cidade de Atenas supera a
é de certo modo uma amplificação da pequenez.
Lacedemônia em bons serviços prestados aos gregos, mas, logo no
" 72. VII, 84. "
70. PIa tão, Fedro, 264 c.
73. VII, 225.
71. O Colosso é provavelmente a estátua erguida na entrada do porto
de Rodes em 280 a. C., uma das sete maravilhas do mundo antigo. O Lanceiro 74. Provável fragmento de comédia de Menandro. Os espartanos, habi-
de Policleto (século V a. C.) era considerado uma estátua modelo, de proporções tante~ da Lacônia, eram tidos como gente de pouco falar. Daí o sentido de
l acômco.
perfeitas.
107
106
Muda, como quiseres, de seu lugar "t00"to "to t\J1}q>~0'\-L(1.WO''ltEp \JÉcpoç
XXXIX É'ltOL'l1O'E "t()Y "tO"t'E XLVO\J\JO\J 'lt(1.pEÀ.9dv ou, por Zeus! suprime apenas
uma sílaba, É'ltOL-r]O'E'lt(1.pEÀ.9d\J wç \JÉq>oç e saberás quanto a harmonia
combina com o sublime; o próprio grupo WO''ltEp vÉq>oç se apoiou no
1. Das partes que contribuem para o sublime, expostas no iní-
ritmo longo inicial, escandido em quatro tempos; suprimida uma única
cio, excelente amigo, resta-nos ainda a quinta, a colocação mesma
sílaba, wç vÉq>o,>, imediatamente, com esse corte, estás mutilando a
da~-palavras em determinada ordem. A seu respeito expus suficiente-
grandiosidade; 5. se, ao invés, alongares 'ltá.pEÀ.9dv É'ltOL'l1O'E\J WO''ltEpEt
mente em dois tratados todas as conclusões a meu alcance; para os
vÉq>oç, não se muda o significado, mas a cadência já é outra, porque,
fins do presente estudo, cabe-me apenas acrescentar que a harmonia
com a extensão dos termos extremos, se desarticula e afrouxa a con-
não é para os homens unicamente um recurso natural de persuasão e
prazer, mas também um maravilhoso instrumento de grandiloqüência cisão do sublime.
e emoção.
XL
2. Não é verdade que a flauta inspira nos ouvintes certas emo-
ções, deixa-os como fora de si, possuídos do frenesi dos coribantes e, 1. Um dos meios que mais concorrem para a grandiosidade do
dando ao ritmo determinada cadência, obriga o ouvinte, até um total-
discurso, como dos corpos, é a conjugação dos membros; qualquer
mente ignorante de música, a ritmar os passos e ajustá-los à melodia?
deles, separado de outro, nada tem de notável, mas todos em con-
E, por Zeus os sons da cítara, de per si sem nenhum sentido, pela
junto formam um organismo perfeito; igualmente, as expressões gran-
modulação dos tons, pelo dedilhado concordante e pela fusão dos
diosas, apartadas umas das outras e dispersas, levam consigo, descon-
acordes, não deparam, como sabes, um maravilhoso encantamento?
juntado, o sublime; formadas num s6 corpo pela associação e, mais,
3. (Se bem que aí temos imagens e imitações espúrias da persuasão
presas pelo vínculo da harmonia, tornam-se sonorosas graças ao tor-
e não, como eu dizia, operações genuínas da natureza humana.)
neio; dir-se-ia que, nos períodos, a grandiosidade é a soma das cotas-
Então, ao nosso ver, o arranjo, que é certa harmonia da lingua- -partes do grupo.
gem, privilégio natural do homem, atingindo a alma mesma e não 2. Na verdade, assaz demonstramos que muitos prosadores e
apenas os ouvidos, move espécies variadas de palavras, pensamentos, poetas, sem serem dotados pela natureza para o sublime, quiçá até
ações, belezas, musicalidades - coisas essas que conosco nascem e
desprovidos de grandeza, ainda assim, empregando em geral um vo-
crescem; do mesmo passo, pela combinação e múltiplas formas de cabulário corrente e popular, que nada trazia de singular, simples-
seus próprios sons, transmite à alma dos circunstantes a emoção mente pelo arranjo e harmonização desse material, lograram impor-
existente no orador, fazendo os ouvintes comparti-Ias e, pela gradação tância, distinção e ares de nobreza, como, entre muitos outros, Fi-
dos termos, edifica o sublime; não é certo que por esses mesmos listo, 76 Aristófanes em alguns passos, e Eurípides, na maioria.
meios, ao mesmo tempo nos fascina e infalivelmente nos dispõe para
o majestoso, o valioso, o sublime e tudo que encerra em si, dominan- 3. Após a chacina dos filhos, Heracles diz: "Estou atulhado de
infortúnios, sem lugar para mais." 77 Termos fortemente populares,
do totalmente a nossa inteligência?
mas, por se ajustarem à ficção, tornaram-se sublimes; se os dispuse-
Mas, conquanto pareça insensatez levantar dúvidas sobre pontos res doutra maneira, verás claro que Eurípides é poeta mais na com-
em que há tão geral concordância (a experiência, com efeito, é ga- posição do que no pensamento. 4. A respeito de Dirce arrastada
rantia suficiente) 4. parece, ao menos, sublime e deveras é maravi- pelo touro: "Onde quer que se lhe asava, ele girava e arrastava de
lhosa uma idéia expressa por Demóstenes em seguida à leitura do seu envolta mulher, fragas, carvalhos, mudando sempre de rumo." 78 A
decreto: "Esse decreto fez passar como uma nuvem o perigo que na concepção é nobre, mas cresceu de vigor por não estar a harmonia
ocasião rondava a cidade"; 75 o conceito se impôs aos ouvidos não
menos pela harmonia do que pelo pensamento mesmo, pois foi vazado
76. Historiador do século IV a. C.
inteiro em ritmos datílicos, os' mais nobres e produtivos de grandeza,
razão por que compõem o verso heróico, o mais belo que conhecemos. 77. Eurípides, Hércules Furioso, 1245.
78. Da Antíope, tragédia que não S~ preservou.
75. Oração da Coroa, 188. 109

108
precipitada nem levada como numa rodagem, mas estearem-se as pa- gares para a matéria; talvez estas: "estando o mar a ferver", onde
lavras umas nas outras, apoiando-se nas pausas, em seu avanço para SEo-ó:,o-1]S' rouba grande parte do sublime com sua malsoante sibila-
uma grandiosidade firme. ção; 80 mas ele diz: "O vento cansou-se" e "um fim desagradável"
esperava os náufragos agarrados a destroços. Por ser termo vulgar,
XLI cansar-se não tem grandeza, e desagradável, inadequado a tamanha
desgraça.
1. Nada empobrece tanto os passos sublimes como um ritmo 2. De igual modo Teopompo, após descrever genialmente a ex-
de discurso partido e agitado, como os pirríquios, os troqueus, os pedição do rei da Pérsia ao Egito, desmoralizou a passagem toda
dicoreus.F'' que descambarn numa dança declarada; logo todo o ca- usando uns vocábulos chochos: "Que cidade ou que povo da Ásia
denciado se revela rebuscado, afetado, vazio de emoção, superficial, deixou de mandar embaixadas ao rei? Que produto da terra, que obra
por causa da uniformidade. de arte, bela ou preciosa, não lhe foi entregue de presente? Não havia
numerosas tapeçarias de alto preço e mantos, de púrpura uns, borda-
2. Pior que tudo isso, assim como as pequenas árias distraem
dos outros, brancos outros, numerosas tendas de ouro aparelhadas de
da letra os ouvintes, forçando-os a concentrar a atenção na música, todo o necessário, numerosas túnicas e leitos magníficos? E, mais,
assim a prosa cadenciada incute nos ouvintes, não a emoção do dis-
prata cinzelada, ouro lavrado, taças e canjirões, dos quais se podiam
curso, mas a do ritmo, de sorte que, às vezes, conhecendo de antemão
ver uns incrustados de pedraria; outros lavrados com perfeição e ri-
os devidos remates das frases, eles marcam com os pés o compasso
queza. Além disso, incontáveis milhares de armas, quer gregas, quer
para os oradores e, antecipando-se, acompanham-nos cadenciadamente
bárbaras, multidão inumerável de animais de carga, bem como víti-
como num bailado . mas engordadas para o abate; muitos medimnos 81 de especiaria, mui-
3. Igualmente inadequado à grandiosidade é um estilo por de- tos odres, sacos, folhas de papiros e todas as outras utilidades; tão
mais cerrado e fragmentado em palavrinhas de poucas sílabas, como . grande quantidade de carne salgada de animais de toda espécie, que
que ensamblado com fileiras de pregos nos malhetes. dela se faziam montões tamanhos que as pessoas que vinham imagina-
vam, de longe, tratar-se de morros, ou cômoros contíguos."

XLII 3. Ele escapa duma linguagem mais elevada para outra mais
baixa, quando devia, ao contrário, alçar-se; mas, misturando à descri-
ção admirável de todo o aparelhamento os odres, as especiarias, os
Enfraquece igualmente o sublime o excessivo retalhamento das
sacos, compôs um quadro de cozinha. Com efeito, assim como se,
frases; reduzida a dimensões curtas demais, a grandeza mutila-se. Não
naquele mesmo fasto, entre canjirões de ouro e pedrarias, pratas cin-
se entenda aqui uma condensação desnecessária, mas sim tudo que é
zeladas, tendas de ouro maciço e taças, alguém viesse depositar ele.,.
decididamente curto e retalhado: o retalhar mutila o pensamento, ao
permeio õdres e sacos, o resultado impressionaria mal, assim também
passo que a concisão o leva diretamente ao alvo. Evidentemente, ao
vocábulos dessa natureza em sua linguagem, alinhados fora de propó-
invés, a prolixidez é sem vida, por não ter propósito o alongamento,
sito, faltam ao decoro e como que deixam manchas.
4. Bem podia ele abordar a matéria em termos genéricos, não s6
XLIII a respeito do amontoado do que ele chama cõmoros, mas também das
restantes provisões, mudando as palavras e aludindo a "camelos e
1. Também o vocabulário trivial é terrível deformador do su- multidão de alimárias carregadas de todos os gêneros para o luxo e
blime. Em Heródoto, quanto à concepção, a tempestade está descrita " prazeres da mesa", ou falando em "montões de toda espécie de grãos
divinamente, mas, por Zeus! encerra algumas palavras demasiado vul- e dos artigos que importam à culinária e ao passadio deleitoso", ou,

79. Pés métricos: pirríquio, duas sílabas breves; troqueu, uma longa 80. Lê-se: dzessásses.
seguida duma breve; dicoreu, união de dois troqueus. 81. Medida de aproximadamente 52 litros.

111
110
ainda, se queria a todo custo uma menção assim explícita, "todas as porém, escravo nenhum é; a razão é que a falta de liberdade de pa-
guloseimas da copa e da cozinha". [avra efervesce imediatamente e ele sente-se, como um preso, acostu-
mado aos murros no rosto. 5. Metade do valor, segundo Homero,
5. No estilo sublime não devemos descambar para vocabulário
tira-lha o dia da escravidão. Se, pois, é de crer, ao que ouço dizer,
sórdido e repugnante, a não ser constrangidos por necessidade abso-
que as caixas em que são criados os pigmeus, chamados anãos, não
luta, 'mas conviria usar expressões à altura do assunto e imitar a'-na-
só impedem o crescimento dos encerrados nelas, mas também lesam
tureza, que, ao moldar o homem, não dispôs em nossa face as partes
o corpo com os laços que os prendem, assim toda servidão, mesmo a
vergonhosas, nem as excreções de todo o corpo, mas ocultou-as quanto
mais justa, poderia ser declarada caixa e cadeia pública da alma."
pôde e, segundo Xenoíonte, desviou para o mais longe possível os
canais delas para de maneira alguma macular a beleza do conjunto 6. Eu, porém, respondi: "É fácil, caríssimo amigo, e próprio do
da figura. homem sempre dizer mal do seu tempo. Vê lá, no entanto, talvez não
seja a paz do mundo habitado o que corrompe as grandes naturezas,
6. Bem, mas não é premente enumerar especificamente os de-
senão muito mais essa guerra sem fim que domina os nossos desejos
feitos que desmerecem; uma vez indicados os fatores que enobrecem
e sublimam os discursos, é claro que os contrários os
tornarão as
e, por Zeus! além dela, as paixõea que assediam a vida atual e ·a
devastam. de alto a baixo. O amor das riquezas, com efeito, mal insa-
mais das vezes baixos e desairosos.
ciável de que todos hoje padecemos, e o amor dos gozos nos escravizam
ou, melhor, pode-se dizer, arrastam de corpo e alma a um abismo; o
XLIV amor do dinheiro é urna doença que empequenece; o dos prazeres,
a mais ignóbil de todas. 7. Por mais que reflita, não consigo desco-
brir como, adorando, ou, para dizer a pura verdade, endeusando uma
1. Resta, contudo, caríssimo Terenciano, esclarecer uma ques- riqueza ilimitada, seria possível não contrairmos os seus males con-
tão que, em atenção ao teu amor à cultura, não hesitarei em acres- gênitos, que nos assaltam a alma. Com efeito, unida à riqueza desme-
centar; essa precisamente me propôs recentemente um filósofo. "Ma-
dida e desregrada, dizem, uma suntuosidade a acompanha, marcha
ravilha-me, disse ele, a mim como a muitos outros, a razão por que, com ela a passos iguais e, pelas portas que ela vai abrindo, com ela
neste nosso tempo, se nos deparam talentos extremamente persuasivos invade as cidades e casas e com ela passa a morar. Conforme os sá-
e aptos à vida pública, argutos e versáteis, férteis principalmente em bios, ambas, com o tempo, nidificam na nossa vida e dispostas à pro-
amenidades literárias, mas não mais os sublimes e geniais, a não ser criação, geram a cobiça, o orgulho, a luxúria; não é uma prole sua
esporádicos, tão grande escassez mundial de oradores afeta a nossa espúria, mas sim absolutamente legítima. Se a gente deixa esses re-
vida. 2. Por Zeusl prosseguiu, temos de acreditar, como se murmura bentos da riqueza atingir a idade adulta, logo dão à luz nas almas a
por aí, que unicamente com a democracia, a grande nutriz de gênios, uns tiranos inexoráveis, a insolência, o desregramento, a impudência.
por assim dizer, pulularam os grandes literatos e com ela morreram? 8. É fatal que assim aconteça, que os homens não mais volvam os
A liberdade, dizem, tem o dom de alimentar os pensamentos e espe- olhos para o alto, já não façam conta alguma da sua reputação, mas
ranças dos gênios e ao mesmo tempo de expandir a tendência a mú- nessa evolução se complete aos poucos a ruína de sua vida, se esvae-
tuas rivalidades e à competição pela primazia. 3. Ademais, graças aos çam e estiolern os valores espirituais, sem mais despertar emulações,
prêmios prometidos nas repúblicas, os superiores dotes intelectuais quando se volte a admiração para as partes mortais e se negligencie
dos oradores exercitados se afiam e como que esmerilam e, como é o crescimento das imortais. 9. Numa causa justa e bela, já não será
natural, somam, na liberdade, os seus esplendores ao lustre dos ne- juiz livre e são alguém peitado para dar sentença, pois, é inevitável,
gócios. Hoje em dia, porém, acrescentou, parece que desde a infân- ao venal só se afigura belo e justo o seu interesse pessoal; quando
cia nos educam para uma escravidão; só falta enfaixarem-nos, desde passam a árbitros da vida inteira de cada um de nós os subornos, a
os mais tenros pensamentos, nos mesmos costumes e cogitações; por caça à morte de outros homens, as emboscadas aos testamentos; quan-
não termos provado da mais bela e fecunda fonte da facúndia, refi- do cada um de nós, escravo da cupidez, vende a alma para comprar
ro-me à liberdade, não passamos de bajuladores geniais. 4. Por isso, todos os proveitos, acaso, nessa imensa e ruinosa podridão da vida,
afirmava ele, as outras faculdades podem ocorrer a criados, orador, nos parece restar ainda, livre e incorruptível, um juiz do. que é gran-

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de possuir mais? 10. Bem, a indivíduos tais como somos nós, obe-
decer a um senhor talvez seja melhor do que ser livres, porquanto
nossos apetites, inteiramente às soltas, como feras libertadas duma
jaula contra as pessoas próximas, alargariam com' os seus males o
mundo habitado. 11. Em síntese, dizia eu, o que arruína a índole da
presente geração é a indiferença em que todos, com poucas exceções,
passamos a vida sem nenhum esforço nem iniciativa que não tenha
em mira louvores e prazeres, jamais uma utilidade digna de emulação
e apreço." ,

12. O melhor é deixar isso à mercê do acaso e passar aos pon-


tos imediatos; trata-se daquelas emoções a respeito das quais prometi,
de começo, escrever uma memória especial, por constituírem uma
parte do estilo em geral e do sublime em particular, como nos. , .
(perdeu-se o restante do ms.)

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