Benedito Nunes - O Dorso Do Tigre - A Viagem
Benedito Nunes - O Dorso Do Tigre - A Viagem
Benedito Nunes - O Dorso Do Tigre - A Viagem
O dorso do tigre
editoraa34
A viagem
A viagem
167
lugar": a vida solta,
com
viver, algo indefinvel, seus perigos, que ainda
vazio algumas no se
vezes, outras aprende em geral, de maneira ostensiva ou encoberta, a linha
tanejos, mire veja: o cheio de sagaranasegue, que se apartam e se entrecruzam, para se uni-
serto inerantede caminhos
que se fazem no escuro, uma espera enorme." foras
produzindo, pela convergncia de causas mnimas, im-
ao longo de Espera remdepois,
badas, de viagem ligada sucessivas e demanudaa um efeito nico, que parece pr-ordenado
Riobaldo em Grande
a viagem, num previsveis,circunstanciais,
serto: veredas. priplo sem fim, e enc porumarazo
(logos) exterior aos atos humanos. As coisas e os ani-
tiplicam, de atos de amor Atravs de do encadeamento secreto
de causas, que imprime um
e dio, de maisparticipam
das formas naturais veredas que perigosque se a sucessos casuais, e que faz da necessidade um
guas e terras, penetram cunhode necessidade
percorre os espaos que animaise vegetais a multiplicao de acasos.
formam o espao produtosingularda
encaminhando, ora do mundo Bastariacitarmos, como ilustrao disso, "O burrinho pedrez"
curso, convergem todasdesencaminhando, as veredas, ilimitado. delega, no curso de uma viagem, ao manso e im-
no movimento da divergentesem ondea Providncia
de Ouros, a funo de salvar da enchente, que
viagem redonda seu prestvelburrinho Sete
volta da tropa, dois dentre os vaqueiros que
Existir e viajar se confundem. interceptao caminho de
A existncia de de
-se como viagem finda,
que precisa ser Riobaldo totaliza- conduziramuma boiada estao embarque. no ciclo da viagem
e a ao da Providncia se manifesta. custa
seu sentido. Unem-se, nessa relatada para que
se perceba queo destino se modifica
viagem, sob a forma as causas tecem e retecem os seus efeitos,
tes fios do Bem e do Mal,
que compem 0 de relato, o deinmeras circunstncias,
os diferen- atravs de movimentos de ida e volta. So encontros e
Vivendo de momento a emaranhado da agindosempre
momento, de lugar a
lugar, sem a existncia. desencontros,so equvocos aparentes, que um recuo no espao e no
so da linha temporal e
sinuosa que liga todos
os momentoscompreen- tempotransforma em certeza, ou em certezas que a distncia neutra-
lugares da existncia, s e todosos
percebemos sadas e
Mas a viagem redonda, a travessia entradas, idas e liza.Assim,Lalino Salatiel, de "A volta do marido prdigo", que no
berta do mundo e de ns mesmos,
das coisas que vindas. desejode ver outras paragens abandona a mulher, recupera-a, por
vivnciae desco-
nessa aprendizagem da meiode artimanhas, ao regressar da grande cidade. Essas tretas pro-
, a viagem-travessia que vida,emque duzemefeitosque, embora cmicos, resultam de um mecanismo de
brana, constitui o saldo impondervel se transvivena lem-
das aes, que a memria aese circunstncias,anlogo ao que gerou, em "O burrinho pe-
Imaginao juntas recriam. "Viver
no ) muito perigoso. e a drez",o trgico final antes mencionado.
que ainda no se sabe. Por que aprender
a
Por- A viagem coincide, s vezes, com a soluo prxima de um con-
mo." E diz Riobaldo ainda: "Eu atravesso viver que o vivermes- flitomoral e espiritual. Augusto Matraga retorna vida, seguindo a
as coisas e no meiodatra-
vessia no vejo s estava era entretido trajetriaincerta e indiferente de sua montaria de novo, um bur-
na ideia dos lugaresdesada rinhoque o leva ao reencontro com seu Joozinho Bem-Bem,graas
e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente
quer passar um rio a nado, ao qual, cumprindo o seu fadrio, a converso esperada se realiza.
e passa; mas vai dar na outra banda e num ponto
muito maisembai- As linhas do Fado, que no processo da viagem se desenrolam,
xo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver
nem no muito maisflexveisdo que o fatum da tragdia grega, tambm podem cru-
perigoso?" S no final da narrativa, quando Riobaldo conseguefixar
zar-sedevido interveno inopinada e casual de terceiros. Exterio ri-
o perfil completo de sua existncia relembrada, que a travessiase za-senovamente, por intermdio desses agentes interpostos, o influxo
apresenta nitidamente: "O que existe homem humano. Travessia". daquelarazo ou Providncia, muito prxima, pelo que tem de im-
O motivo da viagem, que assim transparece na estrutura,na te- pessoale objetiva, da pronoia dos estoicos. Temos, ainda em Sagara-
mtica e nas intenes morais, filosficas e religiosas de Grandeser- na, dois exemplosde tais encontros transversaisou oblquos: "Due-
to: veredas, j est latente na forma dos sucessos,conflitos,aconte- Io" e "Minha gente",
cimentos trgicos ou cmicos, que servem de matria s novelasde Na primeira novela, h dois contendores que jamais podem en-
Sagarana. Misto de acaso e necessidade, a ao dos personagensde contrar-se.Cassiano Gomes quer vingana, Turbio Todo foge do vin-
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O dorso do tigre
A viagem
168
gador. Mas por uma via transversa
a
a CassianoGomes, seu casual benfeitorgratido do capiau
naqueles espaos do rio, de meio a meio,
j depois de morto, atinge 0 desafeto, Jururhinho de se permanecer
inveno
no dela no saltar nunca mais." O polo
Todo, sem nada mais que temer, momento dentroda canoa, para
voltava, tranquilo em que ' sempre renncia vida, em que a viagem, no espao in-
reinstalar-se no seu stio, de h muito opostodessaestranha
rpido e inesperado aqui quanto em abandonado. O desenlace guas, dentro de um tempo que se repete, fecha-se
definidoe vazio das
"Minha gente". o assomo de vitalidade prenncio da morte do
autocorreo das circunstncias, o
amor equivocado como por sobresi mesma, patro", que, D. Quixote "em maluca velhi-
meu
-narrador pela prima, Maria Irma, do personagem. velhode "Taranto
para pelejar a esmo, em ritmo de farsa, parodian-
Fazenda, amiga da outra, e a quemtransfere-se eventual ce",ganhao mundo,
esse amor parecia visitanteda rasgos dos Roldes e pares de Carlos Magno.
destinado, enquanto o de Maria Irma doantigose gloriosos
se fixa num rapaz, desdesempre Os espaos que se entreabrem,
na obra de Guimares Rosa, so
O motivo da viagem , no processo vindode Serto e existncia fundem-se na
ces de um jogo de xadrez, que se
da narrativa,
absorvido pelos modalidadesde travessia humana.
recomeada viagem que forma, deforma
desenrola
sentando uma espcie de reconfigurao ao longo da trama, figurada viagem, sempre
as coisas lei do tempo e da causali-
paralelo. O equvoco conduz simblica do enredo, e transformae que, submetendo
descoberta do amor a ele dade,tudo repe afinal nos seus justos lugares.
No h, porm, ness
rvel. Trocam-se as posies dos legtimoe perdu-
agentes, como no jogo concepoda vida humana, resqucios de fatalismo. O Destino, resul-
posio das pedras. Os lances do de
acaso decidem a partida,xadreza tantede aes diversas que se conjugam, no tem a eficcia de uma
gum perde e que ningum ganha.
Mas o resultado, que quenin- foraexterior e independente. o desenho completo da trajetria da
casais, segundo a ordem de suas arruma
afinidades eletivas, revela-nos os vida,o diagrama do movimento da existncia no tempo, cujo processo
sorte tem a secreta racionalidade que quea deavanoe recuo, por meio de atos e gestos, de que se originam efei-
Aristteles descreveuemsua
Fsica: o encontro de mltiplas sries
causais que independemumas tos imprevisveis,materializa-se nos tpicos da travessia, que abun-
das outras e convergem para o mesmo
ponto. damem Grande serto: veredas: as passagens difceis, os nvios cami-
Corpo de baile no est menos do que nhos,terras prazenteiras e inspitas, o lugar paradisaco onde vivia
Sagarana vinculadoa essa
concepo do destino itinerante, que se Otaclia(o Paracatu), a encruzilhada do Pacto, o deserto Liso do Sus-
constri ou com lancesalea-
trios de jogo ou com os circunlquios de suaro,a indignciado Sucruiu e o grande encontro com os herm-
uma fortuna andeja.No genesno Paredo.
poema de Miguilim, "Campos gerais", a vida
nova comeaparao O Destino , em vez de fator produtivo, o resultado de foras
Menino quando a histria acaba e ele parte em
viagem pelo mundo. opostas,conflitantes --as de Deus, mansas e constantes, as do Demo,
Igualmente a unio espiritual do moo e da velha, do vaqueiroLlio
com D. Rosalina, em "A estria de Llio e Lina" completa-senape- bruscase agressivas.Mas essas foras divididas s aparentemente so
antagnicas.Viver muito perigoso, porque no h clara delimitao
regrinao por eles iniciada no fim do conto. E ainda umaespcie entreelas.Apenas se pode saber que "Deus definitivamente e o De-
de peregrinao mas no plano do amor carnal, que reacendea paixo mo o contrrio dele". A existncia humana, imersa no jogo equvoco
de Soropita por Doralda ("Do-Lalalo"), ao sabor das recordaes, dessesdois poderes, um dos quais, o do Demo, sempre inferior ao
que mais se avivam quanto mais Soropita se aproxima, ao cabode de Deus,participa de uma trama, que de certo modo a transcende, e
uma viagem costumeira, da mulher distante. que,no entanto, a sua atividade temporal ajuda a desenvolver.
H tambm, a par de muitos priplos, andanas, partidase Che essa atividade temporal da existncia, fulcro da poiesis origi-
gadas, de Primeiras estrias, a peregrinao sem horizontes, antecipa- nria,que constitui, na obra de Guimares Rosa, o ltimo horizonte
o da morte, e voluntria provao. Assim, vemos no conto "A tercei* simblicoda viagem. V-se, ento, que o significado final desse moti-
ra margem do rio", a peregrinao soturna, tresloucada, rio acimario vo afasta-seda ideia crist
do homo viator, segundo o qual o homem
abaixo, do homem que vaga, deriva, no barco onde passeiaa sua apenastransitaria no mundo, que
no corresponde nem sua origem
loucura solitria. "Ele no tinha ido a nenhuma parte. Sexecutava a nem ao seu verdadeiro
destino.
tigre A viagem
do 171
170 O dorso
Para Guimares Rosa, no h, de um lado,
tro, 0 homem que 0 atravessa. Alm de 0
viajante, o mundo, e, de
objeto e sujeito da travessia, em cujo homem a ou.
processo 0 via
mundo se Grivo
poiesis originria, dessa atividade
e
mediante a
criadora, que nunca
Aviagemdo
da e soberana como no ato de nomeao to da
se opera a fundao do ser pela palavra, das coisas, a profun-
de que fala partir do qual
Mas foi somente em Heidegger.
a nu o motivo da travessia, focalizando-a que Guimares
direta e Rosa
tema. A viagem passa a constituir, nesse expressamente ps
"Cara-de-Bronze",uma das seis narrativas de Corpo de baile,
vra e da Criao Potica. Eis o sentido conto, a demandada obra de Joo Guimares Rosa. que nesse
to, 0 Grivo, que sai mundo afora, a
da estria deste ocupaumlugar parte na
procurar, para 0 seu Arieldo conto,a princpio
denominado de poema, o motivo da viagem, sob
-de-Bronze, "0 quem das coisas", e que patro cara. presente, de Sagarana a Primeiras estrias, converte-se
co bem, viagem da viagem": 0 relato
lhes traz, na volta, vriasformas
como narrativa, a ela impondo uma estrutura polimrfica,
potico do que viu, emtemadiretoda
ouviue comelementoslricos e dramticos, em funo dos quais variam o
tempointernoda estria e a amplitude da mimese. O tempo varia do
passadoao presente e se fixa na intemporalidade prpria dos mitos.
Amimeseora se circunscreve a uma poro da vida comum, do coti-
diano,ora est em contato com os largos domnios do maravilhoso.
Tematizaodo motivo da viagem, estrutura polimrfica, hori-
zontemtico-lendrio,so, pois, os aspectos marcantes que fazem des-
secontouma composio exemplar, verdadeira sntese da concepo
domundode Guimares Rosa, onde certas possibilidades extremas de
suatcnica de ficcionista se concretizam.
A viagemapresenta-se em "Cara-de-Bronze" como Demanda da
Palavrae da Criao potica. Ela comea no Urubuquaqu, de onde,
porordemde SegisbertoJeia, o Cara-de-Bronze, senhor daquelas ter-
rasde muito gado, velho e doente, aposentado num quarto de casa-
-grande,parte um de seus vaqueiros para trazer-lhe os nomes das coi-
sas.Essevaqueiro, vitorioso nos torneios organizados por Segisberto
Jeia, o Grivo, que aparece, menino ainda, pobre e humilhado, em
"CamposGerais". Os assuntos dos torneios que, por gosto, Cara-de-
-Bronzeordenava, eram, no dizer dos seus vaqueiros, "mariposices"
e "bobeias":assim,por exemplo, mudar os nomes dos lugares, bati-
zaraquelessem nome, perceber qualidades raras, de esquiva defini-
1
Na primeirae na segunda edio de Corpo de baile, "Cara-de-Bronze"
figuracomo poema. J
na terceira aparece entre os contos, ao lado de "O recado
do morro", formando
este
o volume No Urubuquaqu, no Pinhm, compulsado para
trabalho.
tigre Aviagemdo
172 O dorso do Grivo 173
e das
atmosfera medieval das cortes, dos jogos
meio de um jogo especial, com tudo a romances de cavalaria, atmos-
so, ou arrancar, por Hnisso e vassalos, nos
nem rende, mas d prazer e palavras sol suseranos
jogo que nem diverte contentamento entre
Cara-de-Bronze chamava
sutis aspectos da Natureza. algunsde os
homensmais destros nessas prticas de "imaginamento", um corte
um Abel, um Grivo toman-
narte, um Jos Uua, um Nor, e Porque uma pequena comuns do cotidiano, no
por que de tudo nessa vida", e acreditasse qui. congrega desempenhamtarefas entre os cavaleiros
sessesaber go em menti. campo, que S
"imaginamentos".
ras, "mesmo sabendo que mentira ", pedia-lhes, para efeitode nos exercciosde incompreensvel para os de fora.
E
templao, os nomes de coisas desimportantes: doparte noo da Demanda, Segisberto Jeia, reencarnao
h
demanda do Santo Gral, aquilo de que neces-
SArosao das roseiras. O ensol do sol nas pedrase comoemA Artur, envia um outro a buscar
sertanejado rei Enquanto, naquele romance,
folhas. O coqueiro coqueirando. As sombras do vermelho de seu reinado. em
sitaparaa
felicidade
cavaleiros, quem parte, ficando o rei Artur
no branqueado do azul. A baba do boi da aranha. O quea Galaaz, o melhor
dos
Rosa o mais perfeito dos
homens
gente havia de ver se fosse galopando em garupa de ema. na estriade Guimares e de origem obscu-
Luaral. As estrelas. Urubus e as nuvens em alto vento: quan-
camelot, vitorioso em todas as provas,
Cara-de-Bronze, do Gral da Palavra, que h
do elas remam em voo. O virar, vazio por si, dos lugares.
de
Galaaz, quem sai na demanda ponto de con-
como
completar a existncia do Patro. Outro
A brotao das coisas. A narrao de festa de rico e de ho- derenovare a doena de Cara-de-Bronze.
ras pobrezinhas alegres em casa de gente pobre...". com os romances do ciclo do Gral objetivo da busca res-
da Demanda do Gral, o
tato
Em algumas verses e extremamen-
O Grivo era o de melhor fala, aquele que sabia "jogar nosares devolver a juventude do Rei, enfermo
taurara sadee
um monto de palavras, moedal", Foi ele o escolhido para ir busca te idoso, alcanado em "Cara-de-Bronze"
do "quem das coisas" Maso nico bem, finalmente relato das
volta, ao mandante do feito, o
Quando a ao do conto principia, os vaqueiros trabalham,sob queo Grivoentrega,na transforma-
durante o percurso: a Viagem
o sol e a chuva, na apartao do gado. Conversam sobre o Grivo,que coisasvistase imaginadas potica, que abriu os espaos do
j voltara, fazendo suposies acerca do real objetivo da viagempor daempalavras,smula da atividade
mundo natural e humano.
ele empreendida. Aguardam que ele prprio venha narrar-lhes o que sertoe os converteuna profuso do
travessia por entre coisas que
viu e o que trouxe. O cozinheiro de boiada Massacongo afirmaque Aviagemdo Grivo realiza-se como
rvores, confor-
uma Noiva chegou, trazida pelo Grivo. Mas nada se sabe, a no ser vosendonomeadas, uma a uma, detalhadamente aos
as de alto porte
que a viagem terminara. mesuasespcies,grandes e humildes desde viventes"
arbustos, cips, ervas, capins, todos os verdes
carrapichos,
todas as qualidades de aves,
Um vaqueiro tinha chegado, de torna-viagem, pssaros,seusvoos, gritos e hbitos, e
encon-
se passarinhocantador; mamferos errantes, por acaso
inclusive
De uma viagem quase uma expedio, sem prazos, no
'fi
e manchas de
Serto os bois trados,rpteise batrquios, insetos, manchas de sol
precisava bem aonde, to extenso o Alto nuvens,Essarelao bblica, maneira do Gnese e do Deuteronmio,
e
nessesvastos. Tudo comum e reles dito, entre garfada abrangetambmlugares e gentes homens pelas suas profisses,
estava ala
garfada, O vaqueiro chamado Grivo. Agora, ele mulheresvelhasa rezar, cafuas, fazendas e fazendolas, o descomer da
seus
moando no quarto, com o Patro, maneira de relatar
quarto,
acontecidos. 1.-10 fazendeiro patro no saa do umas
erupo,
nem recebia os visitantes, porque tinha uma Segundojessie L. Weston, From Ritual to Romance, Cambridge, Cam-
feridasfeias brotadas no rosto. Seria lepra?" bridgeUniversityPress, 1920; 2a ed.: Garden City, Doubleday, 1957.
A viagem do Grivo
O dorso do tigre 177
realidade ambiental. Mas nem essa realid
ade
maravilhoso, que se infiltra por vrios pontos, dominante, que ele se distancia de todos os gestos, excla-
em vrios E pela Viagem aboios, incidentes, desejos, pequenas neces-
conversas,gritos,
A passagem do plano da realidade concreta acompanham a atividade coletiva, matria da comdia
-se por gradaes insensveis, de cortes rpidos ao sidades,que dilog os dos vaqueiros, comentando a aventura do Gri-
no tronco da faz. nos
trutura geral, grandes expressa compreender.
no podem
mticos e pequenos momentos lricos. Nos vo,que recua, pois, condio de essencial liberdade gozada
dramticos,entrechos
um dos dra O Grivo
togrfico, a ao, com picos, a que Hegel se referiu. a liberdade prpria das
gens, trazida para 0 presente;o narrador, ento, os seus pelosheris ainda no sujeitas s condies do mundo civil, e
dependncia dos dilogos e das marcaes
persona.
desaparece pocasprimitivas, tempo depois, no ambiente idealizado da poe-
teatrais, nain muito
breves. As partes lricas so as trovas do violeiro, ora longas quereaparece, do Grivo com a Natureza so idlicas. Quando
relaes
lar do Cara-de-Bronze, pago para cantar e tocar, menestrel siaidlica.As
sua empreitada, ingressa novamente no crculo do tra-
sa, louvando o Buriti, o Boi e a Moa. como umno alpendreda eleretornade narrar, durante os que-fazeres de uma apartao de
balho,maspara
musical, as Trovas interferem nos outros momentos, Essa narrativa uma interrupo do traba-
picose gado,as suasaventuras.
ticos, fazendo com que o tempo passado dos primeiros cotidiano e dando um outro sentido comdia
lho,neutralizandoo
do tempo Presente dos segundos. Essa aproximao se aproxime dosvaqueiros.Por outro
lado, os enxertos lricos, relativos ao Buriti,
potico da narrativa, criando condies para que se reforao clima aoBoie Moa ou Noiva,
emprestam dialogao o ritmo de pas-
produzao a louvao da Moa, o descante da
-tempo" do mito. toril.Paracompletar esse quadro,
O efeito total, resultante das mltiplas interaes
quese Noivade to longetrazida, introduzem, no conjunto assim formado,
cessam no desenvolvimento da estria, comumente populares,
alcanadopelas o tom dos romanceiros
epopeias mticas e pelos relatos sagrados, a
impresso da intempora- H dilogos,como o que a seguir reproduzimos, que so en-
lidade de tudo o que se passa. Torna-se a Viagem, em trechosdramticos autnomos.
"Cara-de-Bron-
ze", como o tempo para Plato, a imagem moventedo que
eterno "O Vaqueiro Abel. O Grivo, ele era rico de muitos
As variaes do tempo e da mimese em "Cara-de-Bronze",
den- sofrimentos sofridos passados, uai.
tro de uma estrutura polimrfica, da qual participam elementos
nar- O Vaqueiro Jos Uua. O Velho ensinou.
rativos, dramticos e lricos, produzem a impressode intemporali-
O Vaqueiro Mainarte. O que o Grivo forte dizia:
dade dos relatos mitopoticos. O real e o lendrio, o passadoe opre-
sente, as coisas vistas e as imaginadas, a se entrelaame seharmo- Derer, serra minha!
nizam numa diversidade de planos e de intenes que imprimem ao
conto as diferentes nuanas da epopeia, do auto pastoril, do romancei- Moimeichgo. S isso? S?
ro e da comdia. O VaqueiroMainarte. Pois s. Derer, serra mi-
Como nas epopeias antigas, a empresa do Grivo umaaoao nha...
mesmo tempo valorosa e livre, levada a bom termo, coma fortaleza, O VaqueiroTadeu. A bem, ele agora voltou, ele
a deciso e o desembarao dos heris sobranceiros das Sagas,Esse est ai, de oxal. A gente vai saber as coisas todas
plano da ao nobre, valorosa e gratuita, que visa apenas contem-
plao do mundo, est separado daquele outro, do trabalhocotidia A marcaoteatral que vem, logo aps, entre parnteses "(Au-
e comuns
no dos vaqueiros, que corresponde ao das aes vulgares osva-
mentaa monotonia da conversa, de vez em quando interrompida para
Dentre o comentriode incidentes na apartao.)"
prprias da comdia, na acepo aristotlica do termo. aVla-
define a unidade e a
autonomiadessemomento dramtico, prolongado ainda nos peque-
sua ocupao
queiros o Grivo o nico que no trabalha. A
A viagem do Grivo
O dorso do 179
nos e rpidos dilogos, em notas de p de
incidentes, mas em contraponto com as pgina, que vazado no estilo ca-
tratam outro corpo tipogrfico,
no corpo grfico princtpal do texto: "Buriti modas do o do Ulisses, de Joyce (a conversa
de Dedalus-
me disse ade dotde depois no solilquio de Bloom).
nio qu,s me dar" etc. Finalmente, para s us,/c ' esta, cozinha,prolongada
exame, a autude restaurada, econsiderarmos Grivo pde ver? com que pessoas de
a narrao afora muitas, o O joo-correia. As trs-
A ana.sorte. O joo-curto.
O narrador, entretanto, quebra esse Eque eletopou? a cada per.
obietivismo,
estria para refleur sobre o seu desenvolvimento: inter
ferindo e com grande nmero de variantes,
tia gun a nomenclaturaregional,
"Narrar o Grivo s por metades? Para deixar bem clara a natureza do processo, rela-
juros o segredo dos lugares, de certas Tem ele de e vegetais. das questes propostas ao Grivo:
sigo o segredo seu; tem. Carece. E coisas? Guardar r a a maioria
difcil de se
rastro to longo. Para o descobrir, no letrear carrapichinhos que querem
haver E os carrapichos, os
possveis
. Seguindo-se da gente? [...l E os arbustos, as plantinhas,
vir na roupa
dessa rvore 1...1" a graa ervas? [...l E os capins, os capins bonitos,
os cips,as e os cavalos pastam? Dos verdes
Dando a entender o que o Grivo que os boizinhos por chuva e sol, pelejando no seu luga-
silenciou,
contar aos outros, a interferncia reflexiva do 0 que ele viventes,cada um, aves do cu e de passarinhim
qualidades de
tema do conto. um jogo irnico da estria autor pe Pode rim? Outras
com 0 seu prova 0
sentido que pia e canta"
"Eu sei que esta narrao muito, indagaes com o das que
muito ruim Compare-seo estilo catequtico dessas
se contar e se ouvir, dificulto sa; difcil:
como burro para LeopoldBloomformula:
"Sozinho, que sentiu Bloom? O frio do espa-
noso. Alguns dela no vo gostar, quereriam no are- de graus abaixo do ponto de congelamento ou
sa a um final. Mas -tambm a gente vive chegar depres- ointerstelar,milhares
de Farenheit, centgrado ou de Raumur: as admo-
espreitando e querendo que chegue o termo
sempre somente o zeroabsoluto
incipientes da aurora prxima 1...1"."Que objetos homotticos,
da Ilies
que saem logo por um fim, nunca chegam morte?Os no consolo da lareira? [...l". "Que con-
ao Riachodo outrosqueo castial,estavam
Vento. Eles, no animo ningum nesse [...l". "Que outros objetos relativos a
engano; essespo- tinhaabertaa primeira gaveta?
dem, e melhor, dar volta para trs." Rudolph Bloom havia na segunda gaveta? [...1".3 No caso de Ulisses,
porm,a sofisticao, tanto nas perguntas como nas respostas, ex-
O sentido da estria foge ao narrador; ela se teriorizaa volumosa estratificao social, cultural e filosfica na vida
completar
inde- que o romance retrata,
pendentemente dele, nos horizontes longnquos e vagos, ondea interiordos indivduos, analisa e parodia. Mais
do Grivo se projeta miticamente: "Esta estria se segue viagem simplese maisdireto do que o questionrio joyceano, o de Guimares
olhandomais
longe. Mais longe do que o fim; mais perto". Rosa,na estriado Grivo, adequado ao serto, meio rudimentar,
H dois outros recursos, a que particularmente se deve nourbano,e ao sertanejo, com seus dotes de poeta ingnuo; mas
o proces- possui,tanto quanto o outro, significado e alcance csmicos. A aber-
so de projeo mitopotica, a partir da experincia sensvel,que
ainda turado espao,o conhecimento do mundo, a apario de coisas com
mais singulariza a estrutura de "Cara-de-Bronze": o interrogatriodo
Grivo e o uso, comum ensastica, de glosas, notas e citaesmargi- seusnomes,que nasceme tomam forma, durante a viagem-narrao,
nais, que complementam, enriquecem e autentificam o texto.
3James Joyce, Ulisses, traduo
O inqurito, rememorativo e minucioso, que figuraemapndi- de Antnio Houaiss, Rio de Janeiro, Civi-
lizaoBrasileira, 1966.