BYLAARDT Cid - A Insensatez Da Escritura
BYLAARDT Cid - A Insensatez Da Escritura
BYLAARDT Cid - A Insensatez Da Escritura
da escritura
ensaios de literatura
Presidente da República
Michel Miguel Elias Temer Lulia
Ministro da Educação
José Mendonça Bezerra Filho
Reitor
Prof. Henry de Holanda Campos
Vice-Reitor
Prof. Custódio Luís Silva de Almeida
Imprensa Universitária
Diretor
Joaquim Melo de Albuquerque
Conselho Editorial
Presidente
Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães
Conselheiros
Prof.ª Angela Maria R. Mota Gutiérrez
Prof. Ítalo Gurgel
Prof. José Edmar da Silva Ribeiro
Cid Ottoni Bylaardt
A insensatez
da escritura
ensaios de literatura
Fortaleza
2017
A insensatez da escritura: ensaios de literatura
Copyright © 2017 by Cid Ottoni Bylaardt
Coordenação editorial
Ivanaldo Maciel de Lima
Revisão de texto
Leidyanne Viana
Normalização bibliográfica
Marilzete Melo Nascimento
Programação visual
Sandro Vasconcellos / Thiago Nogueira
Diagramação
Sandro Vasconcellos
Capa
Lana Carolina
ISBN: 978-85-7485-305-5
À Capes
Ao CNPq
À Editora UFC
À Imprensa Universitária
SUMÁRIO
FEITIO ............................................................................................... 9
ARTE, VERDADE,
OLHARES
A OBRA DE ARTE COMO SER-CRIADO
considerações sobre Der Ursprung des
Kunstwerkes, de Martin Heidegger
não o que é dito sobre elas, suas identidades universais e seus sentidos
especificamente representados. A investigação fenomenológica busca,
assim, a essência do sujeito por meio da expressão das suas experiên-
cias internas; procura descobrir a determinação dos entes em seus
campos de manifestações, independentemente de posicionamentos pré-
vios (classificações, características, enunciados).
Em Der Ursprung des Kunstwerkes [A origem da obra de arte],
ensaio nascido de algumas conferências do autor, em 1936, e publicado
pela primeira vez em 1950, a pergunta que Heidegger faz é como se
mostra a obra de arte, seu modo de ser. Ela não se restringe a uma aná-
lise de propriedades. Trata-se de uma imersão no próprio horizonte de
constituição da obra, em seu campo de jogo. Heidegger (2010, p. 42)
afirma, então, que a obra de arte é uma coisa, situada entre o utensílio e
a mera coisa. Contudo, a obra de arte, além do caráter de coisa, possui
ainda “etwas anderes” [“algo outro”], que lhe confere a condição de
objeto artístico. Quando se relaciona a algo externo, manifestando
o outro, é alegoria, ou άλλο αγορεύει [allo agoreuei] (falar outro,
dizer outro); quando se reúne com algo de outro, é ainda símbolo, em
grego συμβάλλειν [symballein] (jogar com, trazer junto). Segundo o
filósofo, a abordagem da obra de arte há muito tempo se baseia nos
conceitos de alegoria e símbolo, que se apoiam no caráter coisal da
obra, que é o que o artista realmente produz em seu ofício. Ele pro-
põe-se, então, a encontrar a imediata e plena realidade vigente da obra
de arte, para encontrar nela a verdadeira arte: “Wir möchten die unmit-
telbare und volle Wirklichkeit des Kunstwerkes treffen; denn nur so
finden wir inihm auch die wirkliche Kunst” (p. 44) [“Nós queremos
alcançar a imediata e plena realidade vigente da obra de arte, pois so-
mente assim encontramos nela também a verdadeira arte” (p. 45)].1
A coisa (ou o caráter coisal da coisa, ou as interpretações da
coisidade da coisa) é conceituada habitualmente de três maneiras: 1)
como suporte de características; 2) como unidade de múltiplas sensa-
ções; 3) como matéria enformada (consistência, materialidade): “Die
1 Será utilizada neste artigo a tradução de Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo
da Silva (HEIDEGGER, 2010).
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 17
Die Unterscheidung Von Stoff und Form ist, und zwar in den
verschiendensten Spielarten, das Begriffsschema achlech-
thin für alle Kunsttheorie und Ästhetik. Diese unbestreitbare
Tatsache beweist aber weder daβ die Unterscheidung von Stoff
und Form hinreichend begründet ist, noch daβ sie ursprün-
glich in den Bereich der Kunst und des Kunstwerkes gehört.
(HEIDEGGER, 2010, p. 62).
[A distinção entre matéria e forma é, e na verdade nas mais
diferentes variedades, pura e simplesmente o esquema concei-
tual usado em todas as teorias de arte e da Estética. Este fato
incontestável não comprova nem que a distinção entre matéria e
forma esteja suficientemente fundada nem que ela pertença ori-
ginalmente ao âmbito da arte e da obra de arte (HEIDEGGER,
2010, p. 63)].
Fonte: https://givethemhell.wordpress.com/page/8/.
Fonte: http://www.idixa.net/Pixa/pagixa-0601151408.html.
ela, num rasgão. A terra é impelida para nada, ou está aí para nada:
“Die Erde ist das zu nichts gedrängte Mühelose-Unermüdlich” (p. 114)
[“A Terra é a que não sendo forçada a nada é sem esforço e infatigável”
(p. 115)], ou seja, enquanto o mundo tem objetivos a cumprir, finali-
dades a perseguir, a terra não vai para lugar nenhum, o que pode ser
entendido como aquele componente inutilitário fundamental da obra
de arte. A terra é o imperscrutável, o resistente às explicações, a que só
se ilumina em sua condição de insondável, de inexplorável. É a salva-
guarda da obra de arte: a obra se retira na terra, num fechamento que
não é “kein einförmiges, starres Verhangenbleiben, sondern es entfaltet
sich in eine unerschöpflicher Fülle einfacher Weisen und Gestalten”
(p. 116) [“nenhum permanecer encoberto, rígido e uniforme. Mas ele
se desdobra numa inesgotável abundância de modos simples e figuras”
(p. 117)]. A tinta do pintor não se gasta, só ilumina; a palavra do poeta
não se desvigora, de tal maneira que “das Wort erst wahrhaft ein Wort
wird und bleibt” (p. 118) [“a palavra se torne e permaneça verdadeira-
mente uma palavra” (p. 119)]. O achado é belo: eis a origem, a terra, o
componente não mundo da obra de arte, sua salvaguarda. Essas noções
tornaram-se caras à filosofia da arte pós-heideggeriana, com desdobra-
mentos no pensamento de Maurice Blanchot, Emmanuel Levinas,
Michel Foucault, Roland Barthes, Gilles Deleuze e Giorgio Agamben,
para citar alguns pensadores.
Quando se fala em dialética, pensa-se inicialmente na Grécia
clássica de Heráclito e Zenão de Eleia, principalmente, que eram pen-
sadores iconoclastas e perigosos, ligados à instabilidade das coisas, à
mudança permanente, ao devir, em oposição aos metafísicos, que aca-
baram por prevalecer por conveniência. Na idade moderna, a noção de
dialética está intimamente ligada ao pensamento de Hegel e aos seus
desdobramentos na metafísica ocidental (curiosamente, pode-se dizer
que na modernidade os dialéticos e os metafísicos se abraçam).
Consoante o pensamento de Hegel, os opostos tendem a conduzir a
uma síntese, identificada ao fim da história, à totalização do processo
civilizatório, o momento máximo do poder da negatividade: a Ação
Negativa do Homem. Esse seria o momento culminante do conheci-
mento humano, que pressupõe um Estado homogêneo e universal, sem
26 Estudos da Pós-Graduação
(“produz” a terra). Esse produzir ou elaborar, para ele, parece ser o fato
de que o mundo que o ser-aí humano ergue acolhe a terra, deixa a terra
ser terra: “Das Werk rückt und hält die Erde selbst in das Offene einer
Welt. Das Werk läβt die Erde eine Erde sein” (HEIDEGGER, 2010,
p. 114) [“A obra move e mantém a própria terra no aberto de um mundo.
A obra deixa a Terra ser uma Terra” (p. 118)].
A verdade é sempre histórica (está ligada às construções linguís-
ticas humanas), então, não há como padronizar a relação entre mundo e
terra. É um embate, sim, uma contenda. Uma frase chama a atenção:
“Die Welt trachtet in ihrem Aufruhen auf der Erde, diese zu überhöhen”
(HEIDEGGER, 2010, p. 120) [“O mundo aspira, no seu repousar sobre
a terra, a fazê-la sobressair” (p. 121)]. Esta é a tradução de Idalina
Azevedo e Manuel Antônio de Castro (HEIDEGGER, 2010), como
também a de Laura de Borba Moosburger (HEIDEGGER, 2007). A ter-
ceira edição em português consultada, traduzida por Maria da Conceição
Costa, dá a seguinte versão da frase: “O mundo aspira, no seu repousar
sobre a terra, a sobrepujá-la” (HEIDEGGER, 2010, p. 63). Os verbos
sobressair e sobrepujar em português parecem divergir, mas pode-se
pensar em algo como sobressair no sobrepujar, uma vez que, se a obra
elabora a terra ao erguer o mundo, e se isso se traduz em um embate, é
justo pensar que o sobrepujar, o sobressair ressoam a instabilidade da
relação entre mundo e terra, o que é reafirmado, parece-nos, pela frase
“Sie [die Welt] duldet als das Sichöffnende kein Verschlossenes”
(p. 120). Cotejemos as três traduções: “Ele [o mundo] não tolera, como
o que se abre, nenhum fechamento” (Azevedo e Castro); “Como aquilo
que se abre, ele nada tolera de fechado” (Costa); “Como aquele que se
abre, não tolera nenhum encerrado” (Moosberger). As três versões con-
vergem para a ideia de que o mundo, onde se realiza o aberto, a fenda,
não encerra nada, mantendo tudo em movimento.
A essência da obra de arte é, portanto, “das Sich-ins-Werk-Setzen
der Warheit” (HEIDEGGER, 2010, p. 120) [“pôr-se em obra da ver-
dade” (p. 121)] um acontecimento universal. Ele não está só nos sapatos
de Van Gogh, mas em toda obra de arte. Conforme o filósofo, é a lin-
guagem que nos deverá conduzir à descoberta da Verdade. Neste sen-
tido, toda a arte é poema, daí que são referenciadas a arte plástica, repre-
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 29
sentada pelos quadros dos sapatos, de Van Gogh, a literatura, nos poemas
de Hölderlin, ou, por exemplo, a arquitetura de um templo grego.
A expressão “Sich-ins-Werk-Setzen der Warheit” requer uma
consideração: não é a arte que põe em obra a verdade, mas a verdade é
que se põe em obra na arte. Em vez de partir do ser-aí humano para
pensar o que ocorre no aí, Heidegger vai ao próprio lugar do
acontecimento, o campo de mostração, que guarda suas instabilidades
internas. O ser-aí aparece, então, como dependente das articulações da
própria história, como história do ser, como história da diferença
ontológica e das figuras da diferença ontológica. Para Heidegger,
“Geschichte ist die Entrückung eines volkes in sein Aufgegebenes als
Einrückung in sein Migegebenes” (HEIDEGGER, 2010, p. 196)
[“História é o desabrochar de um ovo em sua tarefa histórica, enquanto
um adentrar no que lhe foi entre-doado para realizar” (p. 197)]. A
história é, portanto, o acontecimento ligado à ontologia do ser, e não um
discurso sobre coisas acontecidas. Assim, ele propõe uma nova forma
de abordar esses acontecimentos, independentes dos enunciados exis
tentes sobre a natureza das coisas, e, para tal, procura utilizar termos
que fogem às verdades estabelecidas e fixadas: clareira, abrigo,
encobrimento, desvelamento, linguagem, poesia, essência poética.
O acontecimento da arte se dá em seu campo fenomenológico; o
evento requisita o ser-aí humano para lhe dar voz: “A linguagem é a
morada do ser” (HEIDEGGER, 2008b, p. 326). Não é o homem quem
define o modo de ser de sua casa, mas o acontecimento do ser. Nesse
acontecimento, a arte é decisiva quando sua essência poética se revela.
O sentido essencial da linguagem é a poesia; a poesia é o mais origi-
nário dos ditos poéticos essenciais.
Como se articula o pôr-se-em-obra da verdade com a linguagem?
O ser se apropria do ser-aí e encontra sua morada, como um ser-aí his-
tórico. A linguagem é essa dupla apropriação, ou seja, o ser-aí é apro-
priado pelo ser e apropria-se de sua morada. Linguagem aqui não é
entendida como um sistema de comunicação. Na verdade, é a medida
de uma época, de uma história e se confunde com a palavra simples do
ser, a origem do ser e da linguagem. Há aí um ditado, um ditado poé-
tico: o ser dita ao ser-aí a medida de sua história. Essa medida é simul-
30 Estudos da Pós-Graduação
Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último cente-
nário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do
interior e este escriba o seguinte diálogo:
34 Estudos da Pós-Graduação
»Schwer verläβt
Was nahe dem Ursprung wohnet, den Ort.«
Die Wanderung, Bd. IV (Hellingrath), S. 167.
[Dificilmente abandona
O que mora na proximidade do originário, o lugar.
A Peregrinação, tomo IV (Hellingrath), p. 167]
homem da cidade, o próprio Van Gogh. Derrida, então, faz uma re-
flexão preciosa sobre essas verdades escriturais.
As epígrafes dizem; escutemo-las. A primeira delas é um verbete
de dicionário:
2 Tradução nossa: “PUNTURA (lat. punctura), sf. Syn. ant. de piqûre. Gráf. Pequena
lâmina de ferro que possui uma ponta e que serve para fixar sobre o tímpano a folha
a ser impressa. Furo que ela faz no papel. Sapataria e luvaria. Tamanho de um
sapato, de um par de luvas”.
3 Tradução nossa: “Eu lhes devo a verdade em pintura, e a direi a vocês”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 39
4 Tradução nossa: “Mas ela me é muito cara, a verdade, e procurar criar a verdade, enfim
eu creio, eu creio que prefiro ser um sapateiro a ser um músico com as cores”.
40 Estudos da Pós-Graduação
restituir ao quadro sua verdade: ele pertence não a uma camponesa, mas
a um homem da cidade, ao próprio Van Gogh. Para Derrida, Schapiro
comete o mesmo abuso que atribui a Heidegger, retirando de seu con-
texto filosófico as referências que este faz ao quadro, desconsiderando
o caminho do pensamento heideggeriano e submetendo as pinturas a
um saber acadêmico, uma expertise. Tanto para Heidegger quanto para
Schapiro, os sapatos constituem um par. Os dois estudiosos se esquecem
de que os sapatos estão abandonados, desenlaçados, desamarrados,
désœuvrés. Desengonçados, desemparelhados, destacados dos corpos
que andam, e destacados um do outro também. Dois não constituem
necessariamente um par. Se não são um par, são o suporte vazio de uma
ausência. Parecem andar, estão em movimento, embora não cheguem
jamais a um destino, não permitam uma conclusão, uma verdade. Não
dizem nada, apenas fazem dizer. Como obra, cumprem seu destino de
différance, seu eterno adiamento de sentido, sua sempre diferença.
Assim, são irredutíveis às restituições que tentam fazer deles Heidegger
e Schapiro, com a diferença de que Heidegger vai infinitamente mais
longe, ao fazê-los abrir um abismo de intranquilidade na terra.
Schapiro denuncia cientificamente uma projeção identificatória
de Heidegger, que anexa as botas à sua paisagem social, que se engana
a si mesmo: “They are grounded rather in his own social outlook with
its heavy pathos of the primordial and earthy” (SCHAPIRO, 1978,
p. 138).7 O historiador de arte esquece-se convenientemente de sua pró-
pria projeção. Eis a alucinação na pintura, seu fantasma. Entretanto,
indaga Derrida, o que é uma projeção, quais são seus limites, o que é
possível e o que não é possível projetar? Ela é uma adequação? Um
desvelamento? Se a verdade em pintura de Heidegger aparece nos sa-
patos pintados como aletheia, para Schapiro, aparecem como a verdade
de adequação, de representação fiel e mimética.
Talvez a alucinação de Heidegger seja atenuada pelo fato de que
a verdade em pintura de Van Gogh esteja ligada à terra, aos camponeses
7 Tradução nossa: “Eles se baseiam mais em sua própria perspectiva social com seu
pesado pathos do primordial e do terreno”.
44 Estudos da Pós-Graduação
8 Tradução nossa: “Quando eu digo que sou um pintor de camponeses, isto é assim
na realidade, e você vai ver melhor em seguida que este é o lugar onde eu me sinto
na minha comunidade”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 45
9 Tradução nossa: “Esses sapatos são uma alegoria da pintura, uma figura do
desligamento pictural. Eles dizem: nós somos a pintura em pintura. Ou então:
46 Estudos da Pós-Graduação
sobretudo não, uma vez mais, esse mise-en-abyme da pintura dentro da pintura
que bem se mostrou àquele excesso restituidor, àquela readequação representativa
a que ela ainda tendia. Não, não”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 47
12 Tradução nossa: “– Sim – o desligamento deve também ser entendido como uma
missão representativa a se vincular à sua origem emissora. Uma vinculação já
está, sempre, em vias de estreitar o desestruturado. Nesse sentido, os sapatos
fazem marcar (fazem caminhar, fazem mercado-de) o que traduziríamos pelo
enunciado seguinte: isto é um quadro, nós somos a pintura em pintura, isto é
delineado por seus traços, suas bordas, os laços dos sapatos vazios que nos
desligam do sujeito em pé. Desde então, esses traços em laços formam o ‘quadro’
da pintura que parecia enquadrá-los. Nós, os sapatos, nós somos maiores do que
o quadro e do que a assinatura incorporada. A pintura está dentro dos sapatos
que nós somos”.
13 Tradução nossa: “como o pequeno polegar ou o gato de botas”.
14 Tradução nossa: “compreende todos sem compreender e perverte todos os relatos
da parte ao todo”.
48 Estudos da Pós-Graduação
faz falta? Por que acrescentar algo à obra? Se algo falta, o que falta?
Qual é a lacuna? O que é essencial ou acessório em uma obra? O que é a
coisa em si? Onde o limite é ultrapassado?
As observações levantadas, os comentários feitos, as refle-
xões empreendidas levam Derrida a propor que a obra de Heidegger
comunica-se com a questão do fetichismo, que, para o pensador,
também se relaciona com as noções de apropriação, restituição, atri-
buição. Que é atribuir sapatos reais ao signatário de um quadro que
presumidamente faz uma representação daqueles sapatos? Os sa-
patos, suporte dos pés que andam, reaparecem como assunto de um
quadro, seu suporte enquadrado. E é esse duplo sujeito que
Heidegger e Schapiro querem restituir ao verdadeiro dono. A origem
da obra de arte dialoga com o fetichismo. Certamente por causa do
simbolismo dos sapatos, sua relação com o pênis. Derrida diz que
vai arriscar-se nessa seara, vai buscar munição em outros textos e
cita Marx, Nietzsche e Freud, particularmente este último, pela re-
lação da psicanálise com a ideia de fetiche, especialmente do fetiche
do sapato (como substituto do ausente falo feminino). Encena-se,
então, a terrível experiência: o menino vê a castração da mãe ele-
vando os olhos lentamente, desde o solo que seus pés pisam, de
baixo para cima. O sapato, substituto confortador, é uma prótese,
mas sempre como pênis de mulher. Destacável e reatável. Entretanto,
em outra obra de Freud, ele fala dos sapatos e das pantufas como
símbolos dos órgãos genitais femininos. Ferenczi também os associa
à vagina, embora considere essas associações variantes individuais.
Temos, então, um sapato ambíguo, que, conforme sua convexidade
ou concavidade, pode ser pênis ou vagina? Nos últimos textos de
Freud, a ênfase não é mais no fetichismo do falo materno, e, quando
fala a respeito, ele não diz que os sapatos substituem o que falta por
causa de sua forma, mas por causa de sua situação orientada (o mo-
vimento do olhar de baixo para cima). Em todo caso, o sapato passa
a ser para Freud tanto pênis quanto vagina. Derrida admite que o
símbolo bissexual permanece uma tendência irreprimível, arcaica,
que remonta à infância ignorante das diferenças entre os sexos, e
cita Freud: “Ajoutons ici que la plupart des symboles de rêve sont
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 49
15 Tradução nossa: “Acrescentemos que maior parte dos símbolos dos sonhos são
bissexuais e podem, segundo as circunstâncias, ser associados aos órgãos dos
dois sexos”.
50 Estudos da Pós-Graduação
entre ele e o Modernismo, por mais que tentemos traçar algumas linhas
gerais de distinção. Não se pode esquecer que todos os eventos intelec-
tuais retrorrelacionados situam-se num contexto de Pré-Modernismo ou
Modernismo; portanto, quando se fala em desconstrução do moderno
para se erigir o pós-moderno, é preciso não cair no risco de atribuir ao
Modernismo uma matéria sólida e homogênea que torne possível o es-
tabelecimento de antíteses e antagonismos que caracterizem a estética
pós-moderna. Assim, os traços que apresentaremos aqui como caracte-
rísticos do Pós-Modernismo situam-se numa perspectiva de desdobra-
mento, intensificação e diálogo com os similares modernistas.
Considerando ainda essas transformações, na literatura brasi-
leira, não se podem esquecer as diversas tentativas de fragmentação e
até de eliminação do verso a partir dos anos cinquenta do século XX.
Surgem, então, propostas as mais diversas, como o concretismo, o ne-
oconcretismo, o poema-processo, os popcretos, a poesia-práxis, com
seu caráter intersemiótico, multiassociativo. Após a década de oitenta
do século XX, a cibercultura propiciou também o aparecimento da es-
crita holográfica, do videoclipe, da poesia-hipertextual, do poema-
-fractal, da poesia intersignos etc. Todas elas têm em comum a ânsia de
libertar a poesia da tirania da página, do dirigismo infradestro.
A partir deste ponto, os poetas críticos vão falar, e, com eles,
vamos esboçar os traços de um novo olhar, um olhar muitas vezes es-
tranho, errante, indeterminado, porém bastante mais rico de possibili-
dades e de aventuras. São todos poetas brasileiros dessa incrível nova
poesia começante, fundante, contemporânea, pós-moderna, embora de
um pós-moderno que ainda não queira ser visto como uma ruptura de-
finitiva com o moderno, mas que intensifica alguns de seus traços, prin-
cipalmente aqueles ligados a uma busca de algo ainda não declarado, e
parece desprezar outros, relacionados a um projeto, a um caminho pre-
estabelecido. Em seu livro Cultura pós-moderna, Steven Connor (2004,
p. 87) sugere que “A narrativa do declínio ou substituição do Modernismo
é talvez menos clara, mas não menos abrangente, nos estudos literá-
rios”. Ele fornece uma possível razão para tal quadro: a ausência de
instituições ou movimentos que irradiem tendências ou normas críticas
e estéticas para a literatura, diferentemente do que ocorre na arquitetura
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 57
Antes do nome
A voz poética recusa as determinações da palavra, deseja-a “antes
do nome”, anterior ao ato de nomear, que a torna corriqueira pelo cos-
tume surrado de se colar o significado ao significante em busca de se-
gurança e repouso. O que ela busca nessa linguagem poética é o “esplên
dido caos” da palavra em estado de poesia, os “sítios escuros” que
fundam um novo reino, secundados por essa “incompreensível muleta”,
em que a errância e a determinação dos significantes e das relações
entre eles tornam a linguagem poética algo surpreendente, inesperado.
A poesia é da ordem do divino, não foi feita para o desenlace e a com-
preensão confortável. Quem vê Deus morre, morre quem entender a
poesia. Morre e mata-a quem pretender carregar a chave que se encaixa
na fechadura. Temos aí o oráculo, direções que se apontam mas que não
58 Estudos da Pós-Graduação
19 Tradução nossa: “Eu digo uma flor! Mas, na ausência em que a cito, pelo esqueci-
mento a que relego a imagem que ela me dá, no fundo dessa palavra pesada,
surgindo ela mesma como uma coisa desconhecida, convoco apaixonadamente a
obscuridade dessa flor, esse perfume que me invade e que não respiro, essa poeira
que me impregna mas que não vejo, essa cor que é vestígio e não luz”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 59
Elefante
ESTUPOR
Fonte: https://www2.uol.com.br/augustodecampos/clippoemas.htm.
66 Estudos da Pós-Graduação
Cada um dos versos aparece com uma cor berrante: verde, ver-
melho, rosa-choque, azul-piscina, roxo, amarelo e laranja, respectiva-
mente. Ao clique do mouse, o quadro se torna todo negro novamente, e,
a um novo clique, aparece o primeiro verso, à medida que se arrasta a
mãozinha que serve de apontador do mouse. Note-se que o verso vai
aparecendo, mas não seguindo a mãozinha, e sim em direções diver-
gentes do traçado que se dá ao apontador. Assim por diante, a cada
clique e a cada arrasto, aparece novo verso e nova cor. No verso final, a
expressão “do lugar” fica agarrada à mãozinha, e o leitor só se desven-
cilha dela com um novo clique. Aí aparecem novamente todos os versos
superpostos e sendo falados por vozes masculinas também superpostas,
como uma estranha récita coral de orações polifônicas. O efeito é muito
bonito, e o poema é bastante instigante. O título é emblemático dessa
atitude contemporânea, dessa impossibilidade de sair do lugar, ou seja,
de não perceber na lógica racional nenhum suporte para a fixação de
verdades, que ficam dando voltas num quadrado negro, como os signos
em rotação de Octavio Paz, sem saber direito o que buscam e sem pos-
sibilidade de encontrar respostas.
O desdobramento dessa misologia é acentuado pelo poema de
Arnaldo Antunes, feroz contestador da linguagem da razão, da metafí-
sica iluminista:
Contra:
Contra a água
(ANTUNES, 1993, p. 16).
(2000, p.15):
O U?
Cobra que muda de pele. E se embrulha em duas
vogais para fazer a travessia do rio a vau. Vadear.
O U
Sob o signo de PROTEU vencerás.
Quem é esse Proteu intrometido texto a dentro pra
vadiar?
BANCO DE DADOS:
Proteu: mitologia grega: deus marinho
recebera de seu pai, Posêidon, o dom da profecia e
a capacidade de se metamorfosear, o poder de
variar de forma, a seu bel prazer.
Digitações
tumada: “Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm
mais os sentidos que o trouxeram até aqui” (CARVALHO, 2002, p. 7).
Essa voz parece dialogar de alguma maneira com a pergunta e a resposta
enunciadas por Maurice Blanchot no capítulo “Conhecimento do desco-
nhecido”, de A conversa infinita: “Que é um filósofo? É alguém que tem
medo” (BLANCHOT, 1969, p. 70, tradução nossa). Antigamente, di-
zia-se que um filósofo é um homem que se espanta. Blanchot reformula
a resposta, atribuindo-lhe o medo, a angústia de se defrontar com o não
conhecível que demanda o conhecimento. No procedimento do conhecer,
em geral, o sujeito se apropria do objeto e reduz o desconhecido ao co-
nhecido. Essa é uma forma segura de pensamento e discurso, coerentes
com a metafísica ocidental. Não obstante, nosso objeto pode, em muitos
casos, situar-se fora de nossos limites. Temos, então, com o objeto, uma
relação de não poder, e talvez só o poeta, alvo de desconfiança do filó-
sofo, possa exercer o desejo de conhecer o não conhecível. Não como
necessidade, carência a ser suprida; não como amor, que pressupõe a
união; mas como desejo, o que não pode ser satisfeito, o que permanece
inacessível e exterior. Como disse René Char (apud BLANCHOT, 1969,
p. 76, tradução nossa): “O poema é o amor realizado do desejo que per-
manece desejo”. Assim, a atitude do filósofo diante do desconhecido ou
da impossibilidade é o medo, diferente da disposição do poeta. Algo se-
melhante ocorre com as declarações iniciais do engenheiro de Carolina,
que parecem sugerir um confronto com o não conhecível.
Jacques Derrida (1967) retoma a discussão que envolve o ser hu-
mano e o conhecimento, bem como suas implicações sobre os conceitos
de verdade, no texto A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciên-
cias humanas, e fala de uma ruptura e um redobramento na história do
conceito de estrutura. Na episteme ocidental, esse conceito se sustenta
em um centro, que lhe confere coerência e equilíbrio e, sobretudo, li-
mita o jogo da estrutura, estabelecendo os sentidos da metafísica oci-
dental que se pretendem inquestionáveis. O centro é, ao mesmo tempo,
coerente e paradoxal, uma vez que se situa tanto dentro quanto fora da
estrutura. Os fundamentos que norteiam os movimentos da estrutura em
seu centro – e que provêm do centro da totalidade, que se situa fora da
estrutura – conduzem o pensamento a uma ilusão provocada pela natu-
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 75
“Isto é para quando você vier” (CARVALHO, 2002, p. 7). Pelas indica-
ções de Lévi-Strauss, poderíamos atribuir a atividade de bricoleur ao
jornalista, aquele que precisa compor uma verdade com fatos verda-
deiros, que giram em torno de um centro fixo interno controlado pelos
conceitos externos. Todo esse levantamento realizado pelo jornalista
acaba produzindo um discurso que contém a crítica de si mesmo, em
sua percepção, em um dado momento, de que toda referência se esvaiu,
a origem se perdeu, a archie absoluta se relativiza e se dilui irremedia-
velmente. Assim, o bricoleur também se torna um engenheiro, e o dis-
curso do jornalista em busca da verdade perde o fundamento, o prin-
cípio, para se tornar simplesmente ficção. Afinal, o bricoleur age
também como engenheiro, ambos se confundem no texto do romance.
O romance só se declara romance nas últimas páginas. Até então,
o gênero romance aparecia aqui e ali como justificativa para as ações do
jornalista, para que sua investigação não levasse outrem a inferir que ele
estaria brincando com coisas sérias. Isto ocorre, por exemplo, quando a
antropóloga supôs que ele ia escrever um romance, e ele aquiesceu, ou,
quando da visita à tribo Krahô, em busca de depoimentos, ele justifica
para um desconfiado indígena que sua investigação não passava de uma
brincadeira a que os não índios denominavam romance:
Nessa hora, me lembrei sem mais nem menos de ter visto uma
vez, num desses programas de televisão sobre as antigas civi-
lizações, que os Nazca do deserto do Peru cortavam as línguas
dos mortos e as amarravam num saquinho para que nunca mais
atormentassem os vivos. Virei para o outro lado e, contrariando
a minha natureza, tentei dormir, nem que fosse só para calar os
mortos (CARVALHO, 2002, p. 158).
Cortar as línguas dos mortos é fazê-los calar, para não incomo-
darem os vivos, para não trazerem seu testemunho aonde não há mais
lugar para eles, é dormir para penetrar na noite da literatura, onde os
mortos são menos mortos, e os discursos se cruzam e entrecruzam sem
necessidade de afirmação ou sustentação de um centro. O bricoleur e o
engenheiro se unem, as interpretações se dispersam, jogando com a
afirmação nietzschiana, ignorante da origem, “a afirmação alegre do
jogo do mundo e da inocência do devir, a afirmação de um mundo de
signos sem erro, sem verdade, sem origem, oferecido a uma interpre-
tação ativa” (DERRIDA, 1967, p. 427, tradução nossa). Sem a verdade
do jornalismo, sem a verdade do romance policial (ou não), sem com-
promisso com o devir, apenas um texto ficcional.
Parte II
DOSSIÊ LOBO
ANTUNES
O DESEJO QUE PERMANECE DESEJO
O mito de Orfeu na ficção de Lobo Antunes
20 Tradução nossa: “não somente como a centelha que alumia a extrema tensão, mas
como o ponto brilhante que escapou dessa espera, o acaso feliz da despreocupação”.
94 Estudos da Pós-Graduação
Paulo, descobre perplexo, pela voz que lhe fala, que ele também não é
nada: “não tens carne, só dentes, só os buracos dos olhos e os dentes,
abertos na admiração das caveiras” (p. 392). O romance, o relato, assim,
vai-se construir sobre o vazio, em sua linguagem ignorante das corres-
pondências do mundo das tarefas. Destituído das realidades e das veri-
ficações, Paulo segue em sua busca, em seu relato sobre seres inexis-
tentes, construindo imagens sobre o vazio, na fabulação infinita do
romance, da história sem futuro, sem conclusão, sem desenlace.
O mesmo estranho interlocutor que o exorta a perseguir sua
busca previne-o de que ela não tem futuro, que ela não pode dar em
nada, mas esse Orfeu extraordinário tem que sucumbir ao olhar e deixar
que a obra se perca nos infernos, sem porvir, sem objetivo. Paulo con-
tinua respondendo ao impossível declarado e explicitado, não há como
evitar; não há, por conseguinte, conclusão nem solução, mas a espera
impaciente do desconhecido continua.
Esse é o encontro de Paulo, o encontro com a escrita que o per-
sonagem, atormentado e sofrido, tenta engendrar na ociosidade de sua
cabeça que não realiza tarefas no mundo, no jogo desordenado do
pensamento que só pode contar, mesmo assim precariamente, com o
acaso, na vertigem do espaçamento em que o desconhecido se faz
presente pela palavra plural fragmentária. A escrita é a expressão do
desejo impossível de Paulo, que se reveste de plumas, lantejoulas e
uma loira cabeleira postiça, máscaras desse encontro produzido pelo
acaso e pela espera.
O escritor blanchotiano é movido pelo desejo de silenciar o mur-
múrio do mundo, por um processo de metamorfose do discurso, provo-
cada pelo chamado da obra àquele que escreve, tal qual o apelo de
Eurídice pelo olhar de Orfeu. Daí surge o tempo suspenso da obra, o
outro tempo, o tempo por vir do canto também por vir, povoado por
seres imaginários e imagens errantes.
Em Boa tarde às coisas aqui em baixo, percebe-se um escritor
que se deixa perder pela exigência da arte, assim como Eurídice se
perde pela extravagência sem lei do olhar de Orfeu. No romance, ence-
nado no teatro insensato de uma guerra absurda, tudo é exorbitante, não
há fronteiras nem possibilidades para os personagens e suas ações.
98 Estudos da Pós-Graduação
21 Tradução nossa: “Edifica-se à maneira do dia, mas existe sob a terra, e o que se
eleva se afunda, o que se ergue soçobra”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 99
guém que tenha autoridade para lhe dizer: “– Fecha este livro como
quiseres” (p. 605). Seria a solução para o fim da narrativa, “terminava-o
aqui, com pétalas amarelas descendo na sombra” (p. 605). Não obs-
tante, a permissão não vem, e a escritora continua a buscar o desfecho e
chega a iludir-se sobre a descoberta: “(ora aqui está o fecho do livro, a
tal palavra confusa, não há dúvida, encontrei-a, estou a aproximar-me
dela)” (p. 606). As dúvidas e incertezas persistem: “(a minha voz, aju-
dem-me, dirigindo-se a quem?)” (p. 608). Exausta em sua tentativa de
concluir o romance, a personagem anseia pela intercessão de alguém:
22 Tradução nossa: “O sonho relaciona-se com a região onde reina a pura semelhança.
Tudo nele é semelhante, cada figura nele é uma outra, é semelhante a uma outra,
e ainda a uma outra, e esta a uma outra. Procura-se o modelo original, quer-se ser
remetido a um ponto de partida, a uma revelação inicial, mas nada disso existe: o
sonho é o semelhante que remete eternamente ao semelhante”.
104 Estudos da Pós-Graduação
23 Tradução nossa: “A escritura fragmentária seria o próprio risco. Ela não remete a
uma teoria, não dá lugar a uma prática que seria definida pela interrupção.
Interrompida, ela prossegue. Interrogando-se, não se arroga a questão, mas a
suspende (sem mantê-la) em não resposta. Se pretende ter seu tempo apenas
quando o todo – ao menos idealmente – se tiver realizado, é então que esse tempo
nunca é seguro, ausência de tempo em um sentido não privativo, anterior a todo
passado-presente, e posterior a qualquer possibilidade de uma presença por vir”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 111
24 Tradução nossa: “Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai:
centro não fixo, mas que se desloca pela pressão do livro e das circunstâncias de
sua composição. Centro fixo também, que se desloca, se é verdadeiro,
permanecendo o mesmo e tornando-se sempre mais central, mais dissimulado,
mais incerto e mais imperioso”.
25 Utilizamos aqui o termo “escritura” no sentido que lhe atribui Leyla Perrone-Moisés
em sua edição comentada de Aula, de Roland Barthes (BARTHES, 2002, p. 74-79).
A écriture barthesiana substitui a literatura no sentido reprodutivo, representativo,
personalizado. Escritura, portanto, será utilizado aqui no sentido de texto, literatura
produtiva, apresentativa, impessoal. O termo escrita será utilizado preferencial
mente como o ato de escrever, ou como oposição a fala.
112 Estudos da Pós-Graduação
romance, dois versos instigantes das redondilhas: “Bem são rios estas
águas, / com que banho este papel” (CAMÕES, 2005, p. 106, versos
51-52), em que a voz poética camoniana associa a escritura às águas de
um rio a rolar.
Nesse romance, as noções de impossibilidade e silêncio estão
coligadas à configuração aquosa: o personagem-narrador busca insis-
tentemente a nascente do rio Mondego, que lhe havia sido mostrado
pelo pai quando criança. Ela se torna, assim, a nascente da memória, a
nascente da escritura, a fala singular da linguagem poética, que pre-
serva o encanto original. Talvez seja essa a busca da arte, da poesia, sua
negatividade essencial: a verdade originária indefinida e indefinível, a
busca do momento não contaminado em que a linguagem está diante do
artista para se fazer poesia. Muitos dos pensadores da literatura, da po-
esia, como Heidegger, Blanchot, Foucault, Barthes, Agamben, compar-
tilham essa noção.
Evidentemente, não se encontra a nascente, mas é preciso sempre
buscá-la, ainda que em sonhos, como aconselha a voz do avô do perso-
nagem de Sôbolos rios que vão: “talvez sonhes com a nascente do
Mondego e caminhes juntamente com o rio numa névoa de luz”
(ANTUNES, 2010, p. 20). O deslizar da escritura faz contraponto com
o deslizar do Mondego, às vezes trôpego, indiscernível como a me-
mória, “difícil de distinguir no nevoeiro do Mondego” (p. 26), às vezes
confiante: “vou com os rios mãe” (p. 82). Ele vai, a escrita vai, em seu
contínuo incessante, sem que se possa atar as pontas da fabulação, sem
que se ache nem a nascente nem a foz, nem o nascimento nem a morte.
Num certo momento, o que deveria ser a foz se anuncia com a chegada
ao mar, mas é exatamente onde poderia haver a conclusão é que as pos-
sibilidades se abrem desmesuradamente, quando o personagem entoa a
canção infantil que “a mãe cantava diante da máquina de costura e ele
a acompanhá-la na enfermaria, recordava uns versos, não recordava ou-
tros” (p. 169), a canção da “barca bela que se vai deitar ao mar” (p.
169). Assim como a foz incerta, a canção não tem desfecho: “quem quer
ver a barca bela e o resto dos versos perdido” (p. 196). Assim, tanto a
barca bela quanto a escritura desembocam no mar, calando-se ambas
em seu belo silêncio infinito que nada esclarece.
114 Estudos da Pós-Graduação
26 Tradução nossa: “o canto de Orfeu, a linguagem que não rechaça o inferno, mas
penetra nele, fala ao nível do abismo e assim lhe dá voz, propiciando acordo ao
que é sem acordo”.
116 Estudos da Pós-Graduação
ficção, que se veste como se fosse uma espécie de ser, que recebe um
nome, narra uma história e uma semelhança com o mundo real. E er-
gue-se de seus próprios restos, edifica-se de suas próprias ruínas.
O assunto do romance e seus desdobramentos possibilitariam a
construção de uma narrativa que se levantasse de forma digna e ine-
quívoca a respeito de questões políticas e sociais polêmicas, como a
crueldade do poder, a arbitrariedade de seus atos, a noção de superio-
ridade e inferioridade entre os seres humanos. Isso faria do autor um
homem honesto, aquele que escreve as verdades que sua civilização
precisa ouvir. As vozes de Comissão das lágrimas poderiam ter exi-
bido toda sua probidade, mas preferiram embaralhar as verdades que
obtiveram, optando por não lhes dar um fim, uma conclusão apro-
priada. O autor não permitiu que sua honesta consciência o transfor-
masse em um honesto medíocre, que certamente agradaria em cheio
aos leitores. Segundo Blanchot, “l’œuvre de fiction n’a rien à voir
avec l’honêteté: elle triche et n’existe qu’en trichant” (BLANCHOT,
2003a, p. 189).27 O romance mora na mentira: se ela o salva, deita a
perder a tese, e vice-versa.
A ficção de Lobo Antunes é, portanto, sob o ponto de vista da
negatividade, sem acordo, amoral, aética, apolítica, assimétrica em sua
essência, apesar da presença de uma forma pretensamente ordenadora
da escritura. A hostilidade à forma romanesca tradicional, à ordenação
civilizada da escrita, é franca. A escritura revela a fascinação do primi-
tivo, do intuitivo, do sensual: Eros e Tânatos, primitivos e violentos,
alternam-se e superpõem-se, nascimento e morte emaranhados, sem so-
lução. A ênfase é no vitalismo em detrimento do racionalismo, o fluxo
contínuo da existência dos seres ficcionais estabelece uma série de re-
lações que não se baseiam em princípios constantes e absolutos, depen-
dentes de um centro, mas desarticuladas e independentes, que não con-
duzem a conclusões.
27 Tradução nossa: “a obra de ficção não tem nada a ver com a honestidade: ela
trapaceia, e só existe trapaceando”.
A ESCRITA INSENSATA
Uma leitura de O manual dos inquisidores,
de António Lobo Antunes
28 Para Rancière (1995), a letra sem pai sofre a dupla crítica de ser, ao mesmo tempo,
muda e excessivamente falante. Calada porque está livre da voz, do enunciador
que legitima seu conteúdo. Por isso, mesmo ela se torna falante demais: sem “pai”
que a proteja, ela vai rolar pelo mundo, sendo utilizada por quaisquer emissores
em quaisquer situações e para quaisquer receptores.
29 Tradução nossa: “um monstro bem-educado e muito treinado”.
30 Tradução nossa: “segurança discreta de suas convenções”.
31 Tradução nossa: “a riqueza de seu conteúdo humanista”.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 119
com João, que havia ido a Odivelas em busca da mãe que o abandonara
quando pequeno. Mais uma vez, revelam-se os bastidores da escrita: a
personagem Lina dirige-se ao escritor, que ouve o seu relato, tenta se-
duzi-lo com um convite para um fim de semana em uma “estalagen-
zinha no norte” (p. 163) e lhe propõe ditar farto material para um ro-
mance sobre advogados depois que ele terminar este livro.
A epígrafe da terceira parte fala “da existência dos anjos” (p. 170),
os inocentes bastardos, incompreendidos ou simplesmente vítimas de
uma relação, como Paula, o filho de Paula, o bobo Romeu, a filha da
jeitosa. Os três relatos têm a voz de Paula, que vivia com a mulher que
a adotou. Ela é reconhecida pelo pai, e todos na cidadezinha a reve-
renciam por ser filha do ministro, passando a desprezá-la quando o
político cai em desgraça. Em seu terceiro relato, a personagem de-
nuncia a presença do escritor a ouvir sua história para escrever um
livro: “espere aí espere aí enganei-me não era o que eu queria dizer
não escreva isso” (p. 230); “penso que não sei mas não tenho a certeza
ou pronto está bem escreva no seu livro que sei e não merece a pena
falar [...]” (p. 239).
Os comentaristas são a madrinha de Paula, o bobo Romeu e
César. Alice, a madrinha, fala dos vinte e seis anos de sua vida passada
em Angola e da adoção de Paula em seu retorno. Romeu, filho bobo do
louco Januário, é vizinho de Paula, trabalha no mesmo escritório que
ela. Ele comenta sua vida próxima a Paula, seus delírios em que vê as
caravelas da época das grandes navegações. César é o chofer de táxi
que seduziu Paula. Seu comentário está impregnado de impressões
amargas da surra que levou dos homens do ministro por ter desencami-
nhado sua filha. Ele se dirige diretamente ao escritor, chamando-o
doutor, e declara logo que não vai ler os papéis contendo os relatos de
Paula: “o que a Paula contou não me diz respeito nem me interessa,
escusa de mexer na pasta, de mostrar esses papéis que tenho mais que
fazer e não vou lê-los, ou bem que me acredita ou bem que não me
acredita e já vai cheio de sorte de eu falar consigo” (p. 243).
“Os dois sapatos descalços no êxtase” (p. 253), da epígrafe da
quarta parte, remetem aos sapatos abandonados por Isabel na casa do
ministro, posteriormente usados por Milá, a quem o ministro aluga
126 Estudos da Pós-Graduação
para substituir a esposa que o deixou, por ter ela alguma semelhança
com a ex-mulher.
Milá é a titular dos relatos dessa parte. Ela é a que vai com qual-
quer um e se torna amásia do ministro, com aprovação da mãe. Milá
cumpre o papel de representar Isabel e quase chega a imaginar que
gosta do ministro, embora sinta na relação um gosto ruim de coisa
velha. No terceiro relato, ela é interlocutora do escritor. Ela não se
lembra exatamente há quanto tempo ocorreram os fatos narrados,
quinze, vinte, vinte e cinco ou trinta anos. O escritor parece sugerir que
foram trinta, a personagem concorda: “[...] sejam trinta anos, não vamos
discutir, não os contei [...]” (p. 300). Aqui ela conta como rompeu com
o ministro, reencenando a partida de Isabel, dupla tristeza do velho.
No primeiro comentário, dona Dores vê em Milá a boneca morta
a entregar-se ao ministro velhote. O comentário seguinte é de Leandro,
o porteiro do prédio onde moram Milá e a mãe. Ele as detesta mas tem
que aturá-las por causa do ministro. Leandro refere o abandono da casa
pelas duas quando Milá rompe com o ministro. Tomás, o ex-chofer do
ministro, também faz seu comentário à história que está sendo escrita.
O escritor viaja em busca dos personagens que de alguma forma parti-
ciparam da trama, para inquiri-los em seus domicílios sobre Salazar,
Estado Novo, ministro e namorada de ministro. Um deles é Tomás, o
ex-chofer do ministro, que também faz seu comentário à história que
está sendo escrita, espantado por ter sido descoberto, ele que nem se-
quer tem seu nome na lista dos telefones. O personagem, de certa forma,
tenta não obedecer ao autor, propondo-lhe que fiquem ambos em si-
lêncio, “para gozarmos a tarde”, pois “não há utilidade em desenterrar
o passado” (p. 315). A fala de Tomás enseja uma reflexão sobre a inuti-
lidade ou, mais além, sobre a perturbação da literatura, escrita que com-
promete a tranquilidade das pessoas. O melhor é esquecer a literatura,
esquecer os problemas, microfones, películas, dossiês:
caiu em desgraça e depois foi reabilitado pelo ministro, que lhe levou a
filha e se casou com ela. Isabel gosta e não gosta, sente e não sente,
mais personagem do que gente, a cumprir um papel no teatro do texto
maçador com o ministro, e o teatro de ser amante de Pedro.
Ecce liber, o volume impersonificado (BLANCHOT, 1998, p.
303), sem um pai que lhe dê voz e autoridade, um conglomerado de
corpos que não se salvam, corpos e vozes que se debatem entre legiti-
mação e deslegitimação, em caricaturas grotescas, em hipérboles cruéis
de elementos estereotipados, em relações instáveis entre as palavras e as
coisas. A ausência de um condutor da narrativa implica também a inexis-
tência de um mestre de saber que possa veicular algum ensinamento que
se faça filosofia. A crise da autoridade narrativa permite que os corpos se
apresentem construindo um discurso de destruição, fragmentação, inso-
lubilidade, de desastre iminente, de desordenação das posições do fa-
lante e do discurso, do pai enunciador e da letra filhote. O tecido de que
se faz a escrita é a justaposição de falas e fatos anarquicamente acumu-
lados, razão e desrazão se sucedendo na confusão de planos temporais,
em que sucumbe o sujeito falante, compondo um patchwork molecular
no qual há uma violenta força de atração e repulsão entre suas molé-
culas, dispersão de sentidos que não suprime a unidade interna.
As vozes não sabem o que dizem, são ao mesmo tempo mudas,
faladeiras e mentirosas, porque não têm um pai que as organize, que as
censure, são vozes pertencentes a corpos abjetos e imorais, que não
contam com uma tradição, um saber que as proteja, e, por isso mesmo,
não sabem transmitir nenhum saber que lhes dê sentido à existência,
que estabeleça algum tipo de compromisso com a representação da ver-
dade. O esvaziamento de sentido torna-as infinitas, ausentes no tempo,
dos miseráveis aos poderosos, aliás, todos miseráveis, e, em vista disso,
todos poderosos em seu discurso, num universo desmedido, de existên-
cias imensuráveis, que deitam à vala comum toda sua violência, per-
versão, hipocrisia, ganância, manipulação, desprezo, demência, co-
vardia, mediocridade, submissão etc.
Quem são os inquisidores e quem é ou quem são os acusados?
Num primeiro plano, destacam-se o grande inquisidor, que se coloca de-
fronte de cada uma das vozes, e o grande acusado, o personagem-senhor-
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 129
O autor
A forma
A criação literária
33 A entrevista do autor deste texto com o escritor Lobo Antunes foi realizada em
novembro de 2005, em Lisboa, Portugal.
144 Estudos da Pós-Graduação
sileiras e brinca dizendo que os escritores do Brasil não devem ter muito
tempo para escrever, considerando os atrativos do sexo oposto. Sobre
futebol, ele lembra a magia do Ronaldinho – compara seu futebol a um
poema – e lamenta o fim de Garrincha, um grande artista que morreu
pobre, bêbado e esquecido. Lobo Antunes cita Paulo Mendes Campos,
que dizia que Garrincha era tão inteligente que não sabia nem falar, não
precisava desse tipo de comunicação. Fala meio decepcionado sobre o
futebol português e declara-se torcedor do Benfica, clube do qual já foi
adepto ardoroso, mas afirma que hoje não sofre mais pelo futebol, feliz-
mente. Pergunta-me pelo meu time no Brasil, falo que sou Atlético
Mineiro. “Sofres por ele?”, ele pergunta. Eu digo que ser atleticano é
um negócio meio complicado e desconverso. Ele volta a falar que o
futebol português está muito ruim, que os melhores jogadores estão
todos indo embora, e os atletas importados geralmente são medíocres.
Eu digo que no Brasil a situação é parecida, quase ninguém de nossa
seleção joga no país. Ele concorda, com uma ressalva: “Pois, mas vocês
brasileiros fazem grandes craques a todo momento”.
Despedimo-nos, afinal. Ele diz que gostou de nossa conversa e
pede, possivelmente por cortesia, que eu lhe mande cópia da tese
quando ficar pronta.
Enfim, o que tem o escritor a dizer de sua própria obra? Ademais,
que tem a dizer sobre sua obra um escritor que afirma que não a leu?
Segundo Maurice Blanchot, um escritor enquanto escritor não pode ler
sua obra. Esse noli me legere impede que ele possa também falar sobre
ela. Independentemente da questão de tomar suas declarações como
sinceras ou não, a fala do escritor acrescenta realmente pouco à leitura
da obra. Algumas delas podem ser consideradas inclusive contraditó-
rias, como sua aparente tomada de partido da concepção cabralina de
escrita como determinação e, de outro lado, a afirmação de que seus
melhores romances foram escritos como que à deriva, a escrita assu-
mindo sua própria direção à revelia da vontade do artista. Acresça-se a
isso a declaração aparentemente descompromissada, mas profunda-
mente significativa, de que seus romances anteriores a O esplendor de
Portugal não deveriam ter sido publicados. Essa atitude é uma forma de
recusa à literatura planejada.
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 151
ITINERÁRIOS DE
POESIA
A DESTERRITORIALIZAÇÃO DO LIRISMO NA
POESIA DE PAULO HENRIQUES BRITTO
Itinerário de Macau, de Paulo Henriques Britto
bela bela
mais que bela
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 165
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
(GULLAR, 1999, p. 219).
166 Estudos da Pós-Graduação
A viagem da vida
Claro claro
Mais que claro
raro
(GULLAR, 1999, p. 233).
Vagão e se deixa levar, sem rumo e sem destino: “lá vai o trem com o
menino”. Longa é a viagem, parece que não tem fim, o trem passa por
Perizes, Rosário, Vale-Quem-Tem, Quelru, Pirapemas, Itapicuru, e são
inúmeros os animais que o menino vê pelo caminho: “bois, siriemas,
jaçanã, pato e inhambu”.
O trem imita o poema de Manuel Bandeira, cujo café com pão
não tinha manteiga; este é desprovido de bolacha. O nome da cidade-
zinha Vale-Quem-Tem é desdobrado em uma advertência que talvez na
época não fosse significativa para o menino, e que está relacionada à
posse da terra:
nada
vale
nada
vale
quem
não
tem
nada
no
170 Estudos da Pós-Graduação
v
a
l
e
TCHIBUM!!!
(GULLAR, 1999, p. 233).
Muitos
muitos dias há num dia só
(GULLAR, 1999, p. 234).
mesmo “um dia preto”, enlaçado a outros dias “como anéis de fumaça”,
na lembrança de tempos e fatos “que os anos não trazem mais”, como
dissera Casimiro de Abreu mais de cem anos antes de Gullar.
Já por aí se vê
que a noite não é a mesma
172 Estudos da Pós-Graduação
Exceto se encontra
pousado
um pássaro azul e vermelho
– a brisa entortando-lhe as penas feito
um leque feito
o cocar de um guerreiro
que nele se transformara
para continuar habitando aqueles matos.
(GULLAR, 1999, p. 248-249).
se tivesse fugido
com um branco
ao menos ia poder casar
(GULLAR, 1999, p. 251).
só os guerreiros conhecem
só eles a entendem quando o vento
(numa lembrança)
sopra-a nas árvores de São Luís
(GULLAR, 1999, p. 254).
O pai
se alguém chegasse lá
por volta das 3 da tarde (hora
de pouco movimento) – ele meio debruçado
no balcão lendo X-9 –
veria que tudo estava parado
na mesma imobilidade branca
(GULLAR, 1999, p. 254).
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
Na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na da Aurora adormeço
(GULLAR, 1999, p. 262-263).
(e os canários,
nem-seu-souza: improvisam
em sua flauta de prata)
(GULLAR, 1999, p. 263).
178 Estudos da Pós-Graduação
Bizuza e as velocidades
Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lençóis lavados e passados
a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna
(GULLAR, 1999, p. 265).
As vozes
refa mais ingrata), ou pediam que o poeta escrevesse uma letra especial
para uma determinada música que ia ser composta.
Para ele, sempre foi um prazer ser musicado, bem como ser tra-
duzido e ser fotografado. “Criancice? Deus me conserve as minhas
criancices! Talvez neste gosto, como nos outros dois, o que há seja o
desejo de me conhecer melhor, sair fora de mim para me olhar como
puro objeto” (BANDEIRA, 1984, p. 86).
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– “A grande arte é como
Lavor de joalheiro”
(BANDEIRA, 1993, p. 80).
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: –“Meu cancioneiro
É bem martelado”
(BANDEIRA, 1993, p. 80).
que o livro Poesias de Bandeira fosse editado, sete anos depois do epi-
sódio da semana de arte.
Em seu livro Libertinagem, considerado o mais modernista de
todos, Manuel Bandeira rendeu um tributo aos alegres companheiros da
época, de alguma forma ligados ao movimento. Embora não se consi-
derasse modernista de carteirinha, teve vários poemas publicados na
seção “Mês modernista” do jornal A noite, o que lhe rendeu o primeiro
dinheiro ganho com literatura. É deste livro o famoso “Vou-me embora
pra Pasárgada”, segundo o autor, o poema de mais longa gestação de
toda a sua obra.
A escrita da morte
Acidente
frimento ou morte”. Que acidente terá sido esse que a voz poética nos
traz? O acidente, ou a contingência, é composto de duas imagens essen-
ciais, produzidas pela apreensão de breves momentos que se trans-
formam em poesia: a quebra do púcaro e o balbucio do vento entre os
galhos das árvores.
O púcaro é um “pequeno recipiente, com asa, usado para retirar
líquido de recipientes maiores” (HOUAISS, 2009, não paginado). É,
portanto, um utensílio, que desempenha uma função útil em nosso dia
a dia. Esse utensílio quebra-se contra uma laje, isto é, uma superfície
dura e lisa. Mais: o púcaro é feito de uma matéria nobre, “fino cristal
vibrante”. A quebra do púcaro produz sua inutilização como instru-
mento útil, assim como a palavra, que só se torna poesia quando deixa
de ter valor de uso. Após a quebra dessa satisfação das necessidades
humanas, o púcaro torna-se um amontoado de “avelórios feridos”. Os
avelórios são cacos, pedacinhos de vidro, ou ninharias, bagatelas. O
acidente transformou o utensílio em um monte de vidrinhos irregulares
sem utilidade.
Esses caquinhos nos remetem a um dizer de Mário Quintana:
“Os espelhos partidos têm muito mais luas” (QUINTANA, 2001, p. 9).
A frase de Quintana dialoga com a escritura, a poesia, e associa a quebra
do espelho ao despedaçamento da função representativa da linguagem,
isto é, ao partir-se, o espelho não é mais capaz de reproduzir a imagem
que se lhe antepõe; agora, as imagens são inúmeras e multifacetadas.
Assim como o espelho fragmentado de Mário Quintana não se
presta mais a funções utilitárias, o púcaro quebrado de Henriqueta perde
seu valor de uso, certamente para inaugurar novas possibilidades.
Pode-se, a partir de agora, estabelecer uma relação mais próxima entre
as imagens do poema e a linguagem: no momento em que as palavras da
língua perdem sua função utilitária, elas se tornam “avelórios feridos”,
fragmentos que não servem mais para compor a lógica ditada pela razão.
É curioso observar ainda a semelhança fonética entre “avelório”
e a conhecida palavra “velório”; é impossível ler uma sem associá-la à
outra. A sugestão evidente aí é de perda, de sofrimento. Além dessa
conotação, exerce importante função o adjetivo “feridos”, que insinua
lesão na integridade de um ser.
196 Estudos da Pós-Graduação
As figurações da morte
dom, uma oferta, uma joia, esse cubo de cristal da lembrança é a aresta
que limita, que estanca, que aprisiona.
Bater de pálpebras,
dúbio
laço tênue, desenlace
segundo as nuanças
do arco-íris.
Ai, pássaro!
Ai, amor encontrado e perdido!
vem puro ao mundo e mal sabe o que o espera no seio desse espaço
ameaçador. Essa flor apenas sonha vagamente o perigo que advirá de
sua existência.
Um destratado poético
fazer o máximo do mínimo, o poeta deve estar atento aos menores de-
talhes da língua. A poesia não apresenta um caminho fácil de transitar,
a escrita é infinita; assim como a vida, percorre estradas turbulentas.
O momento da criação é encenado em “Adminimistério”: como
administrar o pequeno mistério da inspiração que visita o poeta em seu
sono da meia-noite? Insetos visitam a folha branca, como se palavras
fossem. Ou são mesmo, a julgar pelas “nuvens de equívocos” ou
“enxames de monólogos” presentes em “Iceberg”, uma paradoxal pedra
de gelo reduzida ao mínimo necessário, “um piscar de espírito”, que
poesia não tem que ficar explicando as coisas. “One-way poetry”, como
definiu uma vez Leminski, completando: “poesia-curtiu-cabou”. É a
tendência à síntese buscada pelo autor: “A única razão de ser da poesia
é o antidiscurso. Poesia, num certo sentido, é o torto do discurso. O
discurso torto” (LEMINSKI, 2011, p. 133).
Da mesma forma, o impulso que leva o poeta a escrever não pode
ser explicado. Há tentativas: porque ele precisa, porque ele está embria-
gado (tonto, mesmo, ele que morreu de hepatite etílica), porque o dia
amanhece.... Afinal, não existe explicação. “Tem que ter por quê?”.
Em “Diversonagens suspersas” (LEMINSKI, 2013, p. 220), o
poeta fala sobre ser poeta. O princípio da superposição de palavras se
realiza aqui como amálgama de diversas-personagens-suspensas-dis-
persas, que confirma também o princípio da dispersão, da divergência.
O poeta está perdido “no exato lugar onde está”, e seu verso também
ainda não pode ser localizado, ele está:
ouvir é ver se se se se se
ou se me lhe te sigo?
Se tudo existe
para acabar num livro,
214 Estudos da Pós-Graduação
se tudo enigma
a alma de quem ama.
O poeta leitor, por sua vez, tem que aprender a “ler pelo não”
(LEMINSKI, 2013, p. 223), tentar ler o que não é apenas óbvio, o au-
sente, o silencioso. O leitor que conseguir “desler, tresler, contraler” vai
ser premiado com a América procurando as Índias, vai ver o dentro fora
e o fora dentro, vai encontrar tudo aquilo que não esperava onde era
impossível encontrar.
Ler, ensina o poeta em “m, de memória” (LEMINSKI, 2013,
p. 226), não passa de uma lenda, já que as obras são um acúmulo de
histórias inúteis. O saber é um bem inútil em “objeto sujeito” (p. 229).
Sabedoria é não saber nada que valha a pena (pasárgada, xanadu, shan-
grilá, ou a chave de um poema).
Por sua vez, “poesia: 1970” (LEMINSKI, 2013, p. 230) é poe
sia marginal, aquela em que um rabisco já é um clássico. Sobre a
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 215
poesia marginal, o poeta declarou certa vez: “a poesia dos anos 70, ou
‘marginal’, é ótima: ela registra bobagens tão insignificantes que ne-
nhuma prosa se dignaria recolher para as eternidades da memória. A
poesia dos anos 70 é uma antropofagia” (LEMINSKI, 2011, p. 61). A
voz poética despreza quem defende a poesia de impulso, de impro-
viso, mas garante que continua a cometê-la.
Já “despropósito geral” (LEMINSKI, 2013, p. 225) é o despropósito
de escrever obras-primas, como resultado de uma estranha luta e muito
abuso, quando na verdade sua poesia é eco de toda a escrita do mundo.
Em “um metro de grito (máquinas líquidas)” (p. 191), Leminski
metaforiza o comércio poético perguntando: “quanto me dão / por mi-
nhas ideias?” A recepção da poesia é algo enganosa, “coisas que eu
vendo a metro / eles me compram aos quilos”, afinal para que serve a
arte, para que se consomem filmes, livros, discos? Diante da postura
dos intelectuais brasileiros de defesa comiserada da poesia, que, se-
gundo eles, é injustiçada pelo grande público, que não a consome,
Leminski dizia que poesia não é feita para vender: “Poesia é um ato de
amor entre o poeta e a linguagem”. Daí a ideia de grito associada à po-
esia, que aparece em “Um metro de grito”, “O par que me parece”,
“Passe a expressão” e “Distâncias mínimas”: o desabafo, o orgasmo, o
produto dessa relação de amor.
Essa relação de amor chega a ser adoração, como em “anch’io
son pittore” (p. 200), em que o eu lírico refere-se à postura de Fra
Angelico, pintor italiano do século XV, que se ajoelhava diante de suas
pinturas religiosas, como se fosse pecado não se curvar diante de tão
magnífica criação: “orava como se a obra / fosse de deus não do
homem”. Ao declarar-se também “pittore”, a voz poética confessa sua
adoração pela obra poética, obra divina.
Poesia pode ser arte sublime, mas também pode traduzir-se em
“Rimas da moda”, cada tempo com seu verso característico: na década
de 1930, as rimas singelas de amor puro e o sofrimento amoroso; nos
anos 60, a poesia em defesa de uma sociedade mais justa; nos anos 80, a
liberação sexual na sedução amorosa.
Esse império dos signos em dispersão é o mundo das palavras em
“nomes a menos” (LEMINSKI, 2013, p. 193). Nome não é coisa, é o que
216 Estudos da Pós-Graduação
resta das coisas quando elas passam. E todas passam, só os nomes ficam,
a palavra é mais resistente do que a coisa nomeada. E a “alma” do signo
não tem nome e não é coisa, nome e coisa são coisas que doem dentro do
nome, “que não tem nome que conte / nem coisa pra se contar” (p. 193).
A dispersão das palavras e expressões na folha branca retorna em
“sortes e cortes” (LEMINSKI, 2013, p. 204), em que uma tesoura deforma
a folha, que contém uma magia diabólica, “claro oculto entre as clari-
dades”, uma sensação de vazio que dá saudade. Em “sujeito indireto” (p.
205), o poeta declara que sua luta com as palavras poderia ser amenizada
se ele pudesse atingir a perfeição ainda no projeto. Seu desejo era vislum-
brar a arte perfeita antes de começar a obra, mas isso é impossível.
E assim continuam a desfilar os flashes poéticos com seus re-
cados. Em “como pode?” (p. 212): a poesia de hoje é diferente da de
ontem, tudo muda, provoca uma sensação de estranhamento; em “rosa
rilke raimundo correa” (p. 213): o trabalho poético tenta transformar
sensações em palavras; em “o atraso pontual” (p. 215): a inspiração é
um “impuro espírito” (p. 214), ao mesmo tempo arquiteto e vampiro,
racional e sobrenatural, a poesia existe na ausência do tempo e do es-
paço no encontro do tempo e do espaço, a essência da solidão do poeta
e de sua poesia; em “segundo consta” (p. 216): o poeta rejeita o projeto
de felicidade que a sociedade lhe propõe e, ao acabar o mundo, ele será
reconstruído segundo a ótica poética, com exceção talvez do amor:
será possível sua recriação? Alguém se lembra de como ele era antes?
Leminskietações amorosas
Poesia-curtiu-cabou
Vejamos um deles:
rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?
(LEMINSKI, 2013, p. 236).
Eterno soneto
Tempestade de sentimentos
Coração dilacerado
todo seu mal, que o faz viver a doce loucura do amor – amor tirano,
cruel, desgraçado, desventurado.
Bucolismo pouco convencional
Se a natureza é parte integrante das convenções árcades, como é
que ela deve comportar-se nesse cenário de desilusão amorosa? A natu-
reza árcade reflete a simplicidade dos costumes campesinos, um ideal de
vida marcado pelo equilíbrio, pela confiança no homem, pela ausência
de conflitos. Vimos que os poemas de amor de Cláudio Manuel não tra-
duzem nada parecido com vida simples e em equilíbrio; ao contrário,
revelam um amante atormentado pela não correspondência amorosa.
Nos sonetos de amor de Cláudio Manuel, a natureza não é apenas
cenário. Ela é a tempestade que metaforiza o tormento da alma do eu
lírico; ela é a confidente que compartilha com o poeta sua desilusão
amorosa e guarda para sempre seus segredos de amor; ela é a dureza das
pedras, apenas superada pela crueldade da amada; ela é o penhasco que,
como o coração do poeta, não consegue fugir do Amor tirano; ela é o
céu, o gado, os pastores, a relva, o rio, a montanha, os troncos, os pe-
nedos, que formam juntos um bem barroco, locus horrendus de sofri-
mento e desesperança:
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! Foi você que roubou.
Ah! Foi você que roubou
(LIMA, 1997, p. 11).
E bumbas!
E cucas: ô ô!
E bantos: ê ê!
Aqui não há cangas, nem troncos, nem banzos!
Aqui é Zumbi!
(LIMA, 1997, p. 13).
Poemas comentados
rentemente. Embora tenha o charme que a Sinhá não tem, a negra Fulô
é quem satisfaz os caprichos da patroa, é quem apanha de chicote por
um crime julgado à sua revelia, é quem se entrega ao patrão – uma
ladra, segundo a senhora, mas a ladra tem escolha? Ou se submete ou se
submete, é a opção da negra, figura idealizada, bonita e sensual, con-
forme a lembrança da voz poética.
Sêo Vigário me case logo com a Zefa! [...] quero quebrar banqueiro,
saber suas partes, quero saber mandingas, quero dente de ouro, quero
tirar botija, quero ser um cantador”.
O primeiro pedido está relacionado ao desejo sexual: “dormir
com a Zefa” aparece antes de “casar com a Zefa”, e a presença do vi-
gário, representante de Deus que vai abençoar a união, ocorre em ter-
ceiro lugar: dormir/acasalar/casar.
Ganhar no jogo do bicho não basta: “quero quebrar banqueiro”.
Interessa é ficar rico com o jogo, “é tirar botija”, enriquecer, desenterrar
tesouro. Tanta riqueza tem dois objetivos principais: um é impressionar
a amada Zefa, e o outro é não precisar trabalhar, “que eu também sou
brasileiro!”. Brasileiro, profissão vagabundo, o estereótipo negativo da
força de trabalho nacional.
Riqueza e amor não satisfazem ao eu lírico. É preciso entender
das artes do diabo, “saber suas sabedorias”, certamente para não de-
pender dele em momentos de precisão.
Dominar a arte de cantar completa a felicidade do homem. Cantar
é poder dizer à amada Zefa as coisas mais sensuais com arte elevada.
“Por Deus, que eu quero, capeta, pé-de-pato!”. O diabo é quem
deve providenciar a satisfação dos desejos do eu lírico, mas o avalista é
Deus, é Ele quem garante a sinceridade da expressão dos desejos.
E “Tome galinha preta!” para atender a tantos pedidos. Espera-se
que o diabo seja um ardoroso fã de galinhas pretas devidamente acom-
panhadas por enxofre na botija.
índia Paraguaçu, a qual levou à Europa para ser batizada na corte fran-
cesa de Henrique II pela própria Catarina de Médicis.
O poema Caramuru, em si, tem mais valor histórico do que lite-
rário. Os índios aí retratados parecem-se bem mais com cidadãos euro-
peus do que com selvagens brasileiros; a história não apresenta uni-
dade, e a estrutura e a linguagem são praticamente cópia – de
competência duvidosa – de Os Lusíadas, de Camões. A natureza brasi-
leira serve como pano de fundo para a movimentação de europeus, ves-
tidos de índios ou não.
Jorge de Lima parece ter-se incomodado com o poema de Santa
Rita Durão, como se fora um discípulo de Oswald de Andrade do
Manifesto antropófago (1928), a ponto de dedicar-lhe o poema do
presente comentário, em que a voz poética critica a pobre e artificial
natureza descrita em Caramuru, tão pouco brasileira que nem se pre-
ocupa com nossa mortalidade infantil, e, consequentemente, não se
enfeita com os anjinhos “pra glória de Deus!”.
O nome Durão certamente poderia representar algo genuina-
mente nacional, como um caboclo pachola. O caboclo é um mestiço
bem brasileiro, cruzamento de branco com índia, e o adjetivo pachola
indica um indivíduo orgulhoso, vaidoso, cheio de si. Esse indivíduo se
encaixaria perfeitamente como trabalhador no ambiente dos engenhos
de cana nordestinos (bagaceira) ou como herói (Caramuru) na agitada
atividade do cangaço, Robin Hood da caatinga. Tudo bem Brasil.
A segunda estrofe inicia-se com a conjunção mas, palavra de
valor opositivo, advertindo o leitor de que o cenário pintado na estrofe
anterior é hipotético. Daqui para a frente, a voz poética faz uma análise
de tudo o que a paisagem da obra de Santa Rita Durão não tem de brasi-
leiro, privilegiando a vegetação. O Brasil de Caramuru é um país falsi-
ficado, idealizado, mais europeu do que sul-americano, não tem sertão,
nem sul, nem norte, ou seja, nada de Brasil. Daí em diante, o eu lírico
desfia uma série de elementos da flora brasileira que o Caramuru não
tem. A natureza de Durão é como essas frutas de cera, sem vida nem
autenticidade, sua religião não tem os mesmos encantos que a nossa.
A idealização épica de Santa Rita Durão não contempla nem
mesmo nossos graves problemas de mortalidade infantil. Os manezi-
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 243
São Jorge é santo cavaleiro, que luta contra dragões e salva vir-
gens em perigo. No imaginário popular, ele defende os cristãos das ten-
tações, principalmente do demônio.
O poema é uma evocação da infância, em que santos protegem as
pessoas de perigos conhecidos e as abençoam. Existem, porém, os pe-
rigos próprios da infância, como pular sobre enormes vasilhas de me-
lado fervente, atravessar rios de correnteza forte, surpreender-se com
repentinas profundezas nos banhos de rio. Esses não fazem parte da
rotina dos adultos, e não há santos específicos que os afastem. Só resta
o anjo da guarda, anônimo, porém competente, que precisa apenas se
nomear para merecer um poema exclusivo.
Estão presentes nesse poema os elementos mais caros da obra de
Jorge de Lima dessa fase: religiosidade, regionalismo e infância.
O primitivismo de Oswald
O livro de poemas Pau-Brasil, de 1925, é precedido do “Manifesto
da Poesia Pau-Brasil”, publicado no Correio da Manhã, em 18 de
março de 1924.
250 Estudos da Pós-Graduação
Roteiro de Pau-Brasil
“História do Brasil”
com “suas vergonhas tão altas e tão saradinhas” são lançadas a uma
estação de trem paulista do início do século XX, eliminando as grandes
diferenças étnicas entre a nudez das índias inocentes e o pudor das ga-
rotas da burguesia que se exibem numa estação de trem.
Pero de Magalhães Gândavo (ANDRADE, 2000, p. 71-73) é um
cronista português do século XVI que registrou suas impressões sobre
a terra brasileira em duas obras principais: Tratado da terra do Brasil
no qual se contém a informação das cousas que há nestas partes e
História da província de Santa Cruz que vulgarmente chamamos Brasil.
Oswald dialoga com o historiador mantendo a grafia arcaica do texto
original, com a intenção de preservar tanto o primitivismo da situação
quanto a visão europeia sobre nossa terra.
O poeta recorre a Gândavo para reafirmar o acolhimento afe-
tuoso da terra aos que nela chegam, a beleza de seu formato, que lembra
uma harpa, instrumento que produz melodia suave e harmonia agra-
dável, a pureza do ar e a abundância das águas, a riqueza que não deixa
a ninguém no desamparo, as frutas, os animais, enfim, a descrição do
paraíso. Não se pode esquecer a menção ao nosso primeiro produto de
exportação, símbolo da proposta de Oswald: “Também há muito pao-
brasil / nestas capitanias” (ANDRADE, 2000, p. 72).
É importante observar que todos os textos reaproveitados por
Oswald sofrem um processo de deslocamento, de atualização, sendo
retirados de seu contexto de origem para também fazerem uma viagem
espaçotemporal por esse Brasil contraditório, o que é confirmado pelos
próprios títulos dos poemas.
Os títulos indicam uma atualização ou uma transposição dessa
terra edênica ao momento da enunciação, com a utilização de nomes
técnicos para aspecto poéticos, como “Corografia” (p. 71) (estudo ou
descrição geográfica de um país, região, província ou município),
“Salubridade” (p. 71) (conjunto das condições propícias à saúde pú-
blica), “Sistema hidrográfico” (conjunto das águas correntes ou está-
veis duma região) e “Natureza morta” (gênero de pintura em que se
representam coisas ou seres inanimados).
Clemente Foulon, o capuchinho francês Claude D’Abbeville
(ANDRADE, 2000, p. 74), esteve no Maranhão em 1612. Publicou,
254 Estudos da Pós-Graduação
“Poemas da colonização”
Grudaram nele
O pilão tombou
Ele tropeçou
E caiu
Montaram nele
“São Martinho”
A vida de fazenda é retomada nessa parte; não o espaço escra-
vista da seção anterior, mas a fazenda moderna, iluminada pela mesma
lua desde os tempos do descobrimento. O Brasil agora é cortado pelas
estradas de ferro, e a moeda de valor é o café, que é o símbolo da pu-
jança paulista, o carro-chefe de sua prosperidade, o orgulho do fazen-
deiro que “olha os seus 800 000 pés coroados”.
A prosperidade, entretanto, permite que se retome a vida bucó-
lica no pomar antigo, as crendices, as tragédias passionais, as cantigas
de violas (“O violeiro”, quadrinha de versos heptassílabos), a festa do
churrasco e do chimarrão. Os tempos antigos, retratados na decadência
do ex-escravo, o “Pai negro”, cedem lugar a tempos mais modernos,
lembrados na presença da escola rural, nas leis de registro obrigatório
das crianças e na indústria que nasce no rastro da opulência do café:
Os fornos entroncados
Dão o gusa e a escória
A refinação planta barras
E lá embaixo os operários
Forjam as primeiras lascas de aço
(ANDRADE, 2000, p. 95).
“rp 1”
O título misterioso pode ser as iniciais de rio Paraíba, ou de re-
flexão poética, ou de roteiro de poesia. Rio Paraíba porque os poemas
dessa parte parecem reconstituir uma viagem de São Paulo ao Rio de
Janeiro, de trem, cujo espaço predominante é o vale do rio Paraíba.
Reflexão poética pela revelação que o poeta tem por meio de seu filho:
“Carnaval”
“Postes da Light”
No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
“Lóide Brasileiro”
A estética do reaproveitamento
algum sonho, na infância ou na juventude, por que não lutar a vida in-
teira para chegar a realizá-lo, no todo ou em parte?” (MOISÉS, 1986,
não paginado).34
Sobre a poesia, Paes declara:
– A poesia, vamos dizer assim, está tão dentro da gente que faz
parte dos nossos músculos, de nosso sangue, com uma van-
tagem: os músculos, com a idade, vão-se tornando mais flácidos,
de modo que a poesia, nesse momento, pode até exercer uma
ação compensatória. Principalmente se você cuidou, durante a
vida, de manter um pouquinho do menino e do jovem, que você
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 267
As prosas e as odes
até o final da linha, por oposição ao verso, que volta quando completo.
Tradicionalmente, a palavra prosa está, portanto, ligada à forma como se
dispõem as palavras no papel. Nessa acepção, muitas das peças que com-
põem a primeira parte de Prosas seguidas de odes mínimas não podem
ser chamadas propriamente de prosa. Dos vinte textos da primeira parte,
apenas seis estão escritos da maneira como se chama convencionalmente
prosa (“J. V.”, “Dona Zizinha”, “Um empregado”, “Loucos”, “A casa”,
“Iniciação”, “Reencontro” e “Sobre o fim da História”).
Por que, pois, a denominação de prosas para esses textos?
Devemos, então, ampliar a significação da palavra prosa. Pode-se en-
tendê-la como algo que é vulgar, ou trivial, material ou quotidiano, des-
provido de poesia. Popularmente, a palavra tem também a conotação de
astúcia, manha, lábia, conversa fiada. Que prosa é essa do José? Mesmo
nas peças em que o verso predomina, sente-se o tom intimista, a con-
versa “fiada”, as considerações sobre a vida, as lembranças dos tempos
idos, das pessoas que passaram. Podemos considerar essa prosa, por-
tanto, no sentido da conversa de porta de venda, da prosa interiorana e
interiorizada, do bate-papo a meia voz sobre acontecimentos passados.
A ode é uma composição poética do gênero lírico que tem sua
origem na poesia clássica grega, em que a palavra “ode” significa
“canção”, donde se conclui que a ode era, inicialmente, uma compo-
sição destinada a ser cantada. Caracterizava-se pela linguagem elevada
e pelas temáticas sublimes. Apresentava uma grande variedade de
ritmos, mas a chamada ode pindárica é a mais cultivada pela literatura
ocidental e tem uma forma mais ou menos padronizada: é constituída
de três estâncias: a estrofe, a antístrofe e o epodo. Quanto à temática,
há as odes cívicas, que exaltam homens e acontecimentos públicos; as
pastoris, que têm motivos ligados à vida bucólica; as amorosas, bá-
quicas ou anacreônticas, que cantam as alegrias da vida amorosa e das
experiências sensuais; e as odes privadas, ligadas à vida particular,
com considerações de ordem filosófica ou moral, geralmente desti-
nadas a amigos e familiares.
As odes mínimas de José Paulo Paes escapam à forma e à te-
mática clássica, a começar pelos assuntos prosaicos: perna, bengala,
óculos, tinta de escrever, garrafa, televisão, shopping center, fósforo,
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 269
Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
274 Estudos da Pós-Graduação
além do retrato
(PAES, 1992, p. 23).
“J. V.” (PAES, 1992, p. 25). Esse texto é o primeiro que se pode
realmente chamar de prosa na concepção tradicional do termo. Ele é
constituído de onze parágrafos de uma prosa em que predomina a nar-
rativa, e a figura central é o avô do poeta, cujas iniciais formam o título
do texto.
A primeira imagem do personagem apresenta-o com os cabelos
encanecidos (esbranquiçados), atendendo seus fregueses na livraria,
vestido de maneira bastante informal.
Após a morte do avô, o poeta o “revê” pela memória na cidade
onde o velho nasceu, Guimarães, no Minho, em Portugal. Ele é apresen-
tado, então, como o “último escudeiro de Afonso Henriques que partia a
combater os mouros”. Afonso Henriques (1110-1185), nascido também
em Guimarães, é considerado o primeiro rei português, aquele que esta-
beleceu a nação portuguesa, ao derrotar os mouros na Península Ibérica.
O avô foi convocado para o exército de Floriano Peixoto, mas
desertou durante o cerco da Lapa (Paraná), na revolução de 1893,
quando revoltosos enfrentaram as tropas florianistas. O fato de ser sau-
doso da monarquia integra a lógica de ele ter abandonado o exército dos
republicanos. Um parêntese, em seguida, é aberto para um comentário
a respeito do boato que havido chegado a Taquaritinga (São Paulo),
onde morava o avô, sobre a restauração da monarquia.
A livraria do avô era ponto de encontro de notáveis – “a par de
figuras menos notáveis” – de Taquaritinga, assim como a farmácia de
seu Juca. Um dos personagens mencionados é o seu Lincoln, de quem
a avó do poeta não gostava, não se sabia por quê. O assunto principal
das conversas na livraria era a política, cujo fogo era mantido aceso
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 275
Oswald foi fecundo, porque eu achei, com ele, que era preciso
retomar certas linhas do modernismo de 22. Uma delas era jus-
tamente esse humor meio esculhambativo, gozador. Foi o que
tentei fazer num longo poema, Novas cartas chilenas, inicial-
mente publicado na revista Brasiliense, em 1954, e só mais tarde
em livro, nos meus Poemas reunidos, de 1961. Aí eu tentava
reabilitar o poema-piada modernista, partindo não só de Oswald
mas de Murilo Mendes, o Murilo Mendes da História do Brasil,
um livro esquecido, parece que renegado pelo próprio autor, mas
que eu considero muito importante, um livro cheio de brilho,
onde está em gérmen o Murilo surrealista. Essas Novas cartas
chilenas constituem uma espécie de revisão da história do Brasil,
desde a Descoberta até os tempos de então, início dos anos 50,
quando ainda vivíamos os últimos resquícios do tenentismo.
Uma tentativa de desmistificação da história, feita sob o signo
da poesia. O que procuro é assinalar o ridículo das classes domi-
nantes e tento trazer para primeiro plano a luta dos que buscam
um lugar ao sol. Essa revisão, portanto, privilegia aqueles raros
momentos revolucionários que me parecem o sal desta insossa
história do Brasil oficial (MOISÉS, 1986, não paginado).
Pernas
Para que vos quero?
.................
Pernas?
Basta uma
O tom de aceitação dessa tragédia pessoal é veiculado inicial-
mente por meio do chiste, envolvendo a frase feita “Pernas, pra que te
quero?”, pergunta que foge aos preceitos da gramática do padrão culto
da língua e que serve para comunicar uma situação de fuga, de desis-
tência. O poeta corrige o dito e eleva o tom para a segunda do plural,
sugerindo o rompimento da intimidade pelo distanciamento daquela
que parte.
A segunda parte contém cenas do hospital onde seria feita a ci-
rurgia, local onde tudo é detestavelmente grandioso (“camas imensas”,
“uma cidade que não dorme”, “vozes barrocas”, “grande sertão”).
No início dessa parte, o poeta utiliza alguns procedimentos ver-
bais e visuais desenvolvidos pela poesia concreta, principalmente com
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 285
Desço
que subo
desço que
subo
camas
imensas.
No ambiente do hospital, o poeta tem seus pesadelos e corre
(sem perna) pelos caminhos da memória, ouvindo os sons – “vozes
barrocas”, grandiosas e ininteligíveis – que pairam sobre o ar como
“painas sufocantes”. Embora morto, o pé é o “amigo sem corpo que
zomba dos amantes / a rolar na relva”.
Ainda nessa parte, em determinado momento, a disposição grá-
fica das letras sugere a leveza da paina flutuando no ar:
não
não
N Ã O !
A terceira cena mostra o poeta amparado pela mulher amada,
Dora, como se fosse um bebê recém-nascido, necessitado de proteção.
A esposa faz o papel de mãe, de filha e de mulher para ele; nela, buscou
consolação para a tragédia:
286 Estudos da Pós-Graduação
Aqui estou,
Dora, no teu colo,
nu
como no princípio de tudo.
Me pega
me embala
me protege.
esquerda direita
esquerda direita
direita
direita
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 287
O forno
do pão
a luz
na escuridão
a pira
da paixão
a bomba
da revolução.
As propriedades do fósforo atendem, portanto, às necessidades
vitais do homem: a comida, a luz (a inteligência), os sentimentos e os
atos revolucionários. O poeta lança, então, a pergunta:
o brilho de superfície
a profundidade mentirosa
o existir apenas
no reflexo alheio.
Condena-se no homem o que sobeja como qualidade no espelho:
a importância da aparência, da superfície, a falsa profundidade (cul-
tural, humana), a propriedade de refletir a imagem alheia, isto é, o fato
de que só fazemos sucesso a partir das apreciações alheias.
O espelho, entretanto, permite-nos o conhecimento de nós
mesmos, por meio do “infinito corredor de espelhos”. A reflexão infi-
nita conduzirá, porém, ao nada.
emocionante. O que não existe é o que será inventado, daí uma didática
própria para esse fim, “Uma didática da invenção”.
Nessa primeira parte, o poeta disseca o fazer poético, que de-
manda uma transformação profunda no olhar de mundo daquele que
pretende fazer ou sentir poesia. É preciso desinventar a maneira tra-
dicional de ler as coisas e subverter a linguagem, opor, contrapor,
inverter, distorcer.
Há muitas maneiras de inventar o mundo. Uma delas é o que está
prescrito na seção I da primeira parte: é “apalpar as intimidades do
mundo”, ou seja, viver intensamente as coisas mais íntimas que nos
cercam, ultrapassar o superficial na leitura das coisas, inventar, e, para
tanto, é mister ouvir os ensinamentos da natureza, e aprender com ela é
desaprender o conhecimento dos homens. É saber, por exemplo, que o
amanhecer é um espetáculo excessivamente fantástico para ser reve-
lado por um instrumento prosaico como a faca, que não conseguirá re-
velar a beleza do amanhecer; é necessário um “abridor de amanhecer”
(BARROS, 1998, p. 97), que poucas pessoas especiais possuem, como
Bernardo (seção XII da 3ª parte).
Desaprender o mundo existido é assimilar o mundo inventado, a
ternura dos jacintos contra a secura dos lagartos, o modo de morrer do
dia e/ou das violetas (elas também constituem um mistério das intimi-
dades do mundo: conhecer seu preparo da morte é desvendar enigmas
de vida profunda), as tarjas de proibição da borboleta necrófila, o ser
(des)humano que se musicaliza em fagote, a revelação de que o peixe
não é mudo, e que a noite tem várias faces com diferentes comporta-
mentos. Esse saber profundo, para o poeta, constitui um desaprendi-
zado. Só quem consegue desaprender o mundo das condições será
capaz de apreender a beleza do mistério das coisas.
Esse desaprendizado passa pela desinvenção daquilo que já está
sedimentado em nossa cultura. Os objetos em geral possuem alguma
utilidade que lhes tolhe a beleza. É necessário despi-los de sua função
para se atingir sua beleza, como é o caso do pente, que, de tanto não
pentear, pode chegar a ser uma bela flor, ou até uma gravanha (Graveto
com aranha? Gravanço com piranha? Gravata com banha? As possibi-
lidades são inumeráveis e fantásticas), elemento impensável se não se
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 297
Os deslimites da palavra
vras conduz à síntese, ao vazio, que, por sua vez, carrega-se de signifi-
cações na medida em que ele se aproxima do estado de pedra, da imo-
bilidade natural dos seres brutos. O que está longe do canoeiro é a razão,
o senso comum, a rotina dos homens; será toda essa carga cultural algo
realmente digno, ilustre, brilhante? Ou a beleza reside exatamente no
estado bruto das coisas, sem sofisticações culturais?
O clima predominante no sexto fragmento é de delírio, de pe-
daços de pensamentos entremeados de silêncios, representados pelas
linhas pontilhadas. O poeta-canoeiro reflete sobre a situação do mundo
à sua volta e sobre sua própria situação, sua relação íntima com os ani-
mais, o trabalho com a linguagem, “(Tirei as tripas de uma palavra?)”
(BARROS, 1998, p. 43). Seria isso retirar de forma violenta o que as
palavras têm em si, um processo de purificação daquilo que a palavra
tem de escatológico? Teria ele o poder de encantar as palavras, “facul-
dade pra dementes?”. Em meio às suas reflexões delirantes, o canoeiro
nota que as horas passadas são incontáveis, o tempo tornou-se imensu-
rável, mas já há indícios de que as águas se acalmam.
O PRIMEIRO DIA termina com mais reflexões sobre ele mesmo
e suas relações com as palavras, com o mundo e com os animais. Os
nomes não são essenciais para o locutor, as imagens são suficientes para
ele se apoderar das coisas. Como ser primitivo, ele não usa aparelhos
nem alavancas para se relacionar com o mundo. Como ser bruto, ele se
julga falante demais, o que demonstra alguma carência da necessária
ignorância para se conhecer a essência das coisas, e por isso ele pede
desculpas, porque a vanglória não faz parte de seu estilo. Sua fala diri-
ge-se aos seres primitivos; ele não sabe agir como ser humano nem para
morrer, não pensa, não considera, não cogita, mas não consegue ser
mais mundo do que o céu e do que a água.
Começa o SEGUNDO DIA. As palavras do canoeiro contem-
plam toda a natureza, sem esquecer os mais miúdos elementos, como as
moscas, que não são suprimidas pela linguagem poética. O eu lírico faz
uso da palavra escrita, mas não quer perder o tom de oralidade, o som,
o canto da língua falada e dos sons da natureza, que povoam os versos.
A palavra gramatical não sensibiliza o poeta, que só consegue poetizar
o que a natureza lhe apresenta, o pouco que se constrói do nada. O poeta
302 Estudos da Pós-Graduação
milar a paz que a natureza inspira. O primeiro texto do terceiro dia re-
sume o período da manhã.
O segundo texto já descreve o transcorrer da tarde. Sua esperança
se deposita nas aves, em seus ninhos cheios de revelações. O poeta se
pergunta se sua fala, instrumento cultural, não seria também um instru-
mento de desnaturização dos pássaros à sua volta, e pede uma fala
úmida de rã, uma maneira de enxergar as coisas sem forma, que sejam
expressas por sussurros.
A sensação de isolamento se acentua na terceira parte, não se
ouve nem o ladrar dos cães de madrugada, o tudo está cheio de nada. A
paisagem é o eterno, com o passado que ecoa e o futuro que cheira; as
memórias do poeta recuam a milênio, ao princípio das águas: “Seria o
areal de um mar extinto / Este lugar onde se encostam cágados?”
(BARROS, 1998, p. 65). Os sentidos de Apuleio e o tempo se interpe-
netram. A presença do limo e da andorinha benta denunciam novamente
a proximidade de terra. O poeta beato reverencia o santo pássaro.
O outono é a época em que as águas baixam no Pantanal, o que
está difícil de acontecer nessa enchente descomunal. Ao final de sua jor-
nada, Apuleio, ao mesmo tempo em que se sente “decompor”, percebe a
proximidade do fim das águas em sinais como o “ovo de anu atrás do
outono”, as açucenas, o cágado. A grandeza da natureza diminui o
homem: “As coisas me ampliaram para menos” (BARROS, 1998, p. 67).
Na noite do TERCEIRO DIA, os silêncios da lua e dos pássaros
são assustadores. Esse é o terceiro momento, em sua peregrinação, em
que o canoeiro eleva a voz acima do seu tom regular, constante. No
primeiro, o poeta expressa seu êxtase diante da solidão (2.3); no se-
gundo, celebra a presença de um martim-pescador “varado de abril”, no
meio do outono (2.4); nesse momento (3.5), ele se maravilha com o si-
lêncio da noite: “– eu escuto esse escândalo!”. Os sentidos se misturam
em Apuleio. O canoeiro vive de vento e de água, ele mais se desali-
menta do que se alimenta: “Descomo sem opulências...”. O mesmo
verso “Desculpe a delicadeza” aparece no terceiro texto do PRIMEIRO
DIA, quando ele fala da grandeza daquela terra primitiva, da época em
que ele lá chegou. Em ambos os casos, o poeta parece se desculpar pelo
uso da hipérbole, ou do ilogismo.
304 Estudos da Pós-Graduação
Mundo pequeno
“Auto-retrato falado”
E arremata:
“No meu morrer tem uma dor de árvore” (BARROS, 1998, p. 103).
Esse verso sintetiza o espantoso universo das relações do homem com a
natureza. A poesia de Manoel de Barros já foi chamada de “ecológica”,
“telúrica”, “primitiva”. Esse último epíteto é o que mais agrada o poeta,
conforme afirmou em uns versos do livro Retrato do artista quando
coisa: “Um dia me chamaram de primitivo: / eu tive um êxtase”
(BARROS, 2007, p. 71).
ÍNDICE ONOMÁSTICO
A
AGAMBEN, Giorgio. 25, 49, 54, 62, 108, 113
ANDRADE, Carlos Drummond de. 64, 80, 146, 193, 221
ANDRADE, Oswald de. 189, 242, 249, 251-262, 278-280, 287
ANTUNES, António Lobo. 107, 108, 113, 117, 129, 135-138, 143, 144
B
BANDEIRA, Manuel. 165, 169, 181-184, 188-192, 249
BARROS, Manoel de. 60-62, 146, 293-296, 299, 305-310, 312, 313
BARTHES, Roland. 25, 54, 108, 111, 113
BENJAMIN, Walter. 76, 118
BILAC, Olavo. 167, 185, 186, 190, 221
BLANCHOT, Maurice. 25, 55, 58, 72, 74, 76, 83, 91-93, 96, 98, 103,
107, 108, 110, 111, 113, 115, 116, 118, 119, 128, 136, 138-140,
147, 150
BRITTO, Paulo Henriques 155, 156, 158-161
C
COMPAGNON, Antoine. 117
COSTA, Cláudio Manuel da. 221-223, 225-227
D
DELEUZE, Gilles. 25, 54, 60, 108
DERRIDA, Jacques. 20, 21, 37-40, 42-52, 54, 74-78, 80, 83-87, 10
316 Estudos da Pós-Graduação
F
FOUCAULT, Michel. 25, 54, 108, 112, 113, 119
G
GULLAR, Ferreira. 163, 167-179
H
HEIDEGGER, Martin. 15-35, 37, 39, 42-45, 48, 50, 51, 61, 62, 72,
75, 108, 113
L
LEVINAS, Emmanuel. 25, 58, 107, 108
LEMINSKI, Paulo. 64, 209-220
LIMA, Jorge de. 221, 231-248
LISBOA, Henriqueta. 64, 193, 194, 197-207
M
MELO NETO, João Cabral de. 145
MELVILLE, Herman. 80
PAZ, Octavio. 66
PLATÃO. 77
R
RANCIÈRE, Jacques. 118, 131
A INSENSATEZ DA ESCRITURA: ensaios de literatura 317
S
SEIXO, Maria Alzira. 135
V
VALÉRY, Paul. 186
BIBLIOGRAFIA