Moda e Cultura Popular
Moda e Cultura Popular
Moda e Cultura Popular
Resumo: O presente artigo procura observar a relação da moda com a cultura popular,
através do artesanato, vivificada pelo estilista Ronaldo Fraga, em suas criações. Desse
modo, busca compreender a força instauradora da moda como fenômeno cultural, capaz,
inclusive, de gerar transformação social, associando inovação e tradição, ao explorar o
entrelaçamento entre saberes artesanais e poéticas contemporâneas.
Palavras chaves: Moda; Cultura Popular; Inovação; Tradição
Introdução
Apesar de Ronaldo Fraga insistir que prefere batalhar para a moda ser
compreendida como cultura, a sua criação está repleta de artisticidade. Portanto, ao
revisitar esse livro que traz fortes ícones da cultura brasileira como Guimarães Rosa,
Cândido Portinari e Lupicínio Rodrigues, o presente trabalho interroga sobre a força
cultural da moda, enquanto agente revelador e constituidor de memórias e de
1
Professora
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e do Programa
Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura/UFBA).
E-mail: [email protected]
pertencimentos sociais. Assim, uma questão se impõe: como podemos compreender a
força instauradora da moda como fenômeno cultural, capaz, inclusive, de gerar
transformação social. Inspirado pelas imagens sugestivas desse estilista, o presente
trabalho pretende compreender o entrelaçamento entre a moda e a cultura, sobretudo, a
cultura popular, em que inovação e tradição se alimentam, através de práticas artesanais
e poéticas contemporâneas.
também com outras formas de manifestação da vida e da natureza. Nesse sentido a
moda comparece como um forte fenômeno cultural. Como já citamos, curioso sobre as
interações e as formas sociais, Simmel (2005) vai destacar a oposição entre a vida e as
formas, através da ideia de uma “tragédia da cultura”. Para ele a vida transcende-se e
aliena-se nas formas culturais que ela mesma cria. O impulso anímico das forças vitais
ao objetivar-se, cristaliza-se a afasta-se, por vezes, do movimento inicial que a gerou, o
que provoca um certo olhar pessimista do autor. Mas ao mesmo tempo, ao desenvolver
uma concepção dinâmica de cultura como Bildung, Simmel aponta para a possibilidade
de formação e transformação do indivíduo através do desenvolvimento e realização de
si pela assimilação de conteúdos culturais. Ao descrever a capacidade que o indivíduo
tem de realizar obras, produtos culturais, destaca, ainda, um fator extremamente
interessante: o fato de que as obras vão conter certos sentidos que extrapolam os que o
próprio criador lhes atribuiu. Como destaca esta passagem:
Como já foi observado por Georg Simmel, as vestimentas, o estilo pelo qual o
homem se expressa, acaba sendo percebido na sua modificação processual através da
roupa e da moda. A vestimenta e a moda como expressões de uma subjetividade numa
objetividade, exibem adesões e pertencimentos. Nessa dinâmica, a moda tem a
capacidade de exibir um princípio típico das formas de vida de um modo geral: um
interesse em estabelecer um acordo entre o geral e o específico; assumindo um
compromisso entre a dedicação à totalidade social e a imposição da própria
individualidade. No seu movimento que transita entre imitação e distinção, “a moda
consegue constituir um círculo – no qual o efeito de pertencimento se manifesta como
causa e efeito seus – quanto na determinacão com a qual ela o isola de outros círculos”
(2005, p. 167). A sua atração manifesta-se, reitera Simmel,
brasileira. Desse modo, acaba por constituir artefatos híbridos, para usar uma expressão
de Peter Burke, em que referências de determinadas culturas populares se fazem
presentes, mas também aspectos da cultura em que o próprio estilista encontra-se
inserido, num mix de tradição e inovação. Um aspecto, inclusive, ressaltado por Burke:
“nos artefatos híbridos é possível perceber características de inovação, efeitos
equivalentes e assimilações e uma total recusa à imitação pura e simples” (BURKE,
2006, p. 27-28).
Em 2008-2009, o estilista elaborou uma coleção inspirada em traços identitários
da cultura ribeirinha, acionando e ressignificando lendas, símbolos, imaginários e
modos de vida do povo do rio; além de questionar a transposição do Rio São Francisco.
A coleção foi apresentada na São Paulo Fashion Week-SPFW em junho de 2008. Tendo
como uma das suas referências de pesquisa o livro de José Antônio de Souza (2005),
Ronaldo Fraga mergulha nas águas do rio, nas suas histórias, evocando memórias que
vão se revelar, pouco a pouco, através dos bordados elaborados pela família Matizes
Dumont de Pirapora: lendas da mãe d’água, carrancas, embarcações são revividas nas
peças de roupas que ganham contornos a partir da rica relação artista/artesão.
Fonte: Dissertação de mestrado A Identidade Cultural na Moda: Coleção São Francisco criada por
Ronaldo Fraga, de Roberta Carvalho.
com sua singularidade, reunindo este material num livro intitulado “O TURISTA
APRENDIZ”, de onde Ronaldo Fraga terá a inspiração para sua coleção.
Fonte: Caderno de Roupas, Memórias e Croquis. 2 edição. Belo Horizonte: Cobogó, 2015.
Outra questão relevante é o destaque para a função social da arte que deixando
de evocar o ritualismo, passa a ser também objeto de ação política. E essa característica
está duplamente presente na coleção São Francisco. Questiona claramente as questões
ambientais envolvidas na transposição do Rio São Francisco, bem como a reverberação
social de tal procedimento, afetando diretamente a vida das populações ribeirinhas.
Considerações finais
Desse modo, Fraga revela o elo entre techné e inventividade, entre artesão e
designer, unidos pela força da plasticidade de suas formas. Tradição e inovação se
constituem enquanto elementos da potência criadora desse artista da roupa que vai, de
algum modo, responder questões impostas pela sua época, pelo seu momento histórico,
além de antecipar, em alguns casos, mudanças de perspectivas possíveis, acenando com
alternativas para novos modos de existência. Contribui, assim, para a compreensão cada
vez mais profunda do aspecto cultural presente na moda, capaz de nos fazer reconhecer
e conhecer esse tanto de brasis que permeiam a nossa identidade. Bem como nos
transporta para outros mundos possíveis, nos proporcionando experiências estéticas.
Através da sua inserção numa cultura, sempre nos revela aspectos desta mesma
cultura, como é capaz de tencionar transformações na mesma, e desse modo, também
em cada um de nós. Assim, ao explorar o universo de uma cultura popular, ressignifica-
a, atualiza-a e a mantém viva em nossas vidas. Como já mencionamos em outro
momento, “a moda não só dá conta de uma certa estruturação simbólica e imaginária de
uma determinada cultura. (...) A aparência corporal aparece (...) sim como fonte e aposta
fundamental na dinâmica da socialização e da constituição identitária” (2013, p. 27).
designer Jum Nakao (“A carta”, verão 2000/01), seja o compositor gaúcho Lupicínio
Rodrigues (“Quantas noites não durmo”, inverno de 2004)”. Ao que acrescenta:
Referências
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de Viviane
Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC, 2002.
DE CARLI, Ana; BATTISTEL, Michele; LAIN, Isabel; RÜCKER, Úrsula. Design e artesanato:
novidade e tradição, um diálogo possível. In: Redige– Revista de Design, Inovação e Gestão
Estratégica. v. 2, n. 2, 2011.
FRAGA, Ronaldo. Entrevista concedida a Revista TRIP (por Lia Hama), disponível em
http://revistatrip.uol.com.br/trip/rio-de-arte. Acesso em: 17 nov., 2010.
SIMMEL, Georg. Sociologie: Étude sur les formes de la socialisation. Traduit par
Lilyane Deroche-Gurcel et Sibylle Muller. Paris: Presses Universitaires de France,
1999.
SIMMEL, Georg. Filosofia da moda e outros escritos. Tradução de Artur Morão.
Lisboa: Edições Texto & Grafia Lta, 2008.