O Nascimento Da Museologia Confluencias PDF
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MUSEU HISTÓRICO
NACIONAL
em debate (1922-2012)
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
M188
90 anos do Museu Histórico Nacional em debate / organização: Aline Montenegro
Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra – Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2014.
272 p. : il.; 22,5 cm. – (Livros do Museu Histórico Nacional)
As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores,
não refletindo necessariamente o pensamento do Museu Histórico Nacional.
É permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins não comerciais.
90 ANOS DO
MUSEU HISTÓRICO
NACIONAL
em debate (1922-2012)
Sumário
APRESENTAÇÃO O poder político vem do cano de uma arma
Adler Homero Fonseca de Castro
Apresentação página 109
Vera Lúcia Bottrel Tostes
página 7
MUSEUS E PATRIMÔNIO
Os museus e a modernização: o lugar dos
seminários internacionais do MHN A Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais
Aline Montenegro Magalhães e Rafael Zamorano Bezerra do estado da Bahia: do discurso à ação (1927-
página 10 1938)
Suely Moares Ceravolo
página 122
VISÕES SOBRE 1922
Um prelúdio pernambucano: a inspetoria de
O contexto historiográfico de criação do Museu
monumentos entre 1928 e 1930
Histórico Nacional: cientificidade e patriotismo
Rodrigo Cantarelli
na narrativa da história nacional
página 143
Angela de Castro Gomes
página 14
De objetos de notável valor a monumentos
históricos: a letra e a ação preservacionista da
O Rio e a Exposição do Centenário Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934-1937)
Ruth Levy Aline Montenegro Magalhães
página 31 página 157
Apresentação
Vera Lúcia Bottrel Tostes*
A
o completar noventa anos de existência, o Museu Histórico Nacional (MHN)
se vê inserido na dinâmica do mundo moderno, afinado com as demandas
do seu tempo. O desafio da produção e divulgação do passado em diferentes
suportes, como as exposições e as publicações, nos impulsiona a estabelecer
diálogos cada vez mais amplos e constantes com a sociedade, de um modo
geral, e as instituições de cultura, ensino e pesquisa, mais especificamente.
O Seminário Internacional é um dos principais espaços de realização desses diálogos. Com
edição anual, sempre em outubro, momento em que o MHN comemora seu aniversário de
inauguração, reúne professores, pesquisadores, técnicos, profissionais das mais diversas áreas do
conhecimento, estudantes e público geral para apresentação de trabalhos, debates e reflexões sobre
diversos assuntos, desde os ligados à história e à museologia até os mais específicos, relacionados a
alguma data comemorativa. O evento de 2012 não poderia deixar de ser dedicado aos noventa anos
de criação do MHN, por um longo tempo também chamado Casa do Brasil.
Realizado entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, o Seminário Internacional 90 anos do
Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012) não se dedicou apenas à análise da trajetória
institucional do museu. Conforme mostra a organização do livro e o programa do evento a que o
leitor terá acesso nesta publicação, houve a preocupação em abordar o momento histórico no qual
*
Museóloga. Diretora do Museu Histórico Nacional. Professora da Escola de Museolgia da Unirio.
2
Atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Em uma época em que diversos museus tornaram-se centenários, ou próximos disso, fala-se
muito sobre o papel a ser ocupado por essas instituições em um futuro próximo, marcado pelo
advento das tecnologias de informação e pelas crescentes demandas por uma democracia mais
participativa e plural, em termos sociais e étnicos. Comenta-se, especialmente, sobre a necessidade
de modernização das instituições museológicas, a fim de adaptarem-se à realidade contemporânea.
Nesse aspecto, duas imagens de modernização são recorrentes no campo museológico e vamos
chamá-las aqui, improvisadamente, de “modernização tecnológica” e de “modernização política”.
A “modernização tecnológica” pode ser pensada em dois aspectos. O primeiro diz respeito ao
acesso à informação, que se torna mais eficiente na medida em que a tecnologia melhora e agiliza
a produção e a recuperação de dados sobre o acervo museológico, a partir da indexação de temas
e de periodizações, das catalogações, dos inventários e dos demais dispositivos de controle da
ciência da informação. O segundo aspecto é o expográfico, em que exposições virtuais, recursos
multimídia, aplicativos para smartphones, monitores touch screen nos circuitos expositivos e
todas as inovações das primeiras décadas do século XXI são incorporados como recurso didático
e interativo a fim de atrair público e aproximar a linguagem museográfica às novas tecnologias de
informação e comunicação (TICs).
A sociedade contemporânea é marcada pela proliferação de dispositivos digitais, como jogos,
tablets, mobiles, entre outros. Neste contexto, os museus poderiam ser um contraponto a esse modelo
de sociedade: um lugar onde crianças e jovens pudessem desenvolver uma melhor noção do tempo
*
Historiadora e coordenadora da pesquisa no Museu Histórico Nacional. Doutora em História Social (PPGHIS/UFRJ). Professora na
Universidade Estácio de Sá e pesquisadora associada do PROARQ/UFRJ.
**
Historiador no Museu Histórico Nacional (MHN/Ibram). Doutor em História Social (PPGHIS/UFRJ).
ao conhecer objetos estranhos ao seu cotidiano, outrora tão úteis como os dispositivos digitais
atuais. O objeto antigo, nessa perspectiva, pode se tornar uma novidade, e os museus não devem ter
receio de serem locais de coisas velhas. É conhecida, no meio museológico, a história de um jovem
que, ao ver uma máquina de escrever, exclamou: “Nossa! Um computador que imprime ao mesmo
tempo em que digitamos!” O contato com artefatos de outros tempos suscita curiosidade, instiga
a imaginação e provoca questionamentos inocentes, como o do filho pequeno do historiador Marc
Bloch que arguiu o pai sobre a utilidade da História, questão que foi o mote para suas clássicas
reflexões sobre o ofício do historiador,1 ou as inquietações do personagem do filme do aclamado
diretor alemão Werner Herzog, sobre a história de Kaspar Hauser, um adolescente do século XIX
que cresceu num porão escuro sem nunca ter tido contato com outros homens, mas que ao ser
“civilizado” fazia questionamentos inocentes e inquietantes, improváveis de serem elaborados por
alguém enquadrado nos padrões de sociabilidade de sua época.2 Tais perguntas, passíveis de serem
provocadas por meio dos objetos nas exposições, levam a crer que o espetáculo da tecnologia por
si mesma não traz grandes avanços aos museus em termos expográficos.
A “modernização tecnológica” nos parece ser mais útil quando é usada como ferramenta para
a formulação de novas perguntas e para a ampliação do acesso à informação sobre o acervo, sua
divulgação pública e gratuita para pesquisa, assim como para a melhora da qualidade e da agilidade
nas consultas.
Outra imagem é a “modernização política” e diz respeito às transformações no uso político dos
museus, como espaços de consagração da memória e de produção de esquecimento. Trata-se de
discursos museográficos visando ao “resgate”, à celebração ou à rememoração das memórias que
foram oprimidas, esquecidas ou apagadas no jogo político da dominação, no qual a produção de
memórias é uma das principais estratégias de poder.
Os museus sempre tiveram um papel fundamental nas ideologias políticas, na construção das
identidades nacionais e no sentimento de pertencimento a uma história, sociedade, comunidade
ou nação. Os tradicionais museus nacionais, como o MHN, serviram durante anos como templo
da história-memória3 nacional, onde os grandes homens e suas realizações eram celebrados. A
história-memória construída nesses museus vincula-se às elites nacionais e aos seus interesses,
deixando grande parte da população e suas manifestações culturais fora do cânone estabelecido
pelas elites. É claramente um museu suscetível ao uso político e ideológico.
1
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
2
O ENIGMA de Kaspar Hauser [título em alemão: Jeder für sich und Gott gegen alle]. Direção Werner Herzog. Produção: Henning Von
Gierke. Intérpretes: Bruno Schleinstein, Walter Ladengast e outros. Roteiro: Werner Herzog, Jakob Wassermann. Alemanha: 1974. DVD.
3
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto história. Revista do programa de estudos de Pós-graduação
em História e do Departamento de História. São Paulo, n.10, p. 7-29, 1981.
A contraproposta a esse museu, que se revela em algumas ocasiões em processos que estamos
chamando aqui de “modernização política”, inverte o jogo, porém usa a mesma estratégia. Nele,
o elemento minoritário e historicamente excluído do cânone é representado em objetos díspares
e ordinários, que remetem ao homem comum, o chamado “povo”. Embora essas propostas
apresentem um caráter democratizante da memória, uma vez que incorporam segmentos
marginalizados da memória nacional, estão sujeitas às oscilações políticas, características do
revezamento de poder das democracias.
A construção de qualquer identidade pressupõe um processo de exclusão e inclusão. Os espaços
ideais para tais construções são as festas e feiras populares, práticas musicais e esportivas, rituais
religiosos etc., em suma, as manifestações culturais mais espontâneas e orgânicas e, portanto,
menos suscetíveis às influências políticas dos grupos de poder, como ocorre nas instituições
públicas de memória. Por isso, consideramos que os museus, principalmente os museus nacionais,
como o Museu Histórico Nacional ou o Museu Nacional de Belas Artes, deveriam se distanciar
das responsabilidades de serem os “representantes da diversidade cultural brasileira”, “guardiães
da memória nacional” ou os “representantes da nossa identidade”, como se afirma enfaticamente.
Em outras palavras, os museus devem se distanciar do papel de serem lugares de construção
de memória e identidade, para se tornarem espaços privilegiados para o estudo da construção e
transformação dos “lugares de memória” e das identidades nacionais. Assim, as funções básicas
de um museu (preservação, comunicação e pesquisa) , deveriam ser orientadas por objetivos
muito claros, baseadas em linhas de pesquisa, com suas escolhas divulgadas e problematizadas em
ações educativas, artigos acadêmicos publicados em periódicos etc. Assim, os museus atuariam na
promoção de um pensamento crítico sobre os processos de construção de identidade, memória e
esquecimento, cujo caminho seria orientado, de acordo com seu acervo, historicidade e público-
alvo, assumindo assim o caráter de laboratório da história,4 constituindo-se em locais de produção
e reflexão crítica, e não somente espaços de celebração e afirmação de identidades.
Claramente, o trabalho de pesquisa seria primordial. Não somente a pesquisa aplicada, voltada ao
levantamento de dados e à autenticação de acervo. Essa pesquisa é fundamental e necessária. Porém,
acreditamos que a pesquisa científica e acadêmica deveria ter um espaço estratégico na atividade
museológica. Apesar de várias ciências terem se desenvolvido nos museus, como a mineralogia, a
botânica, a antropologia, a arqueologia e a própria museologia, ao longo dos anos as pesquisas científica e
acadêmica foram esvaziadas da grande maioria dos museus, que aos poucos foram sendo deslegitimados
como lugares de produção de conhecimento, papel assumido atualmente por universidades, centros de
4
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e o conhecimento histórico.
Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 2, n. 1, p. 9-42, 1994 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
47141994000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19. mar. 2014.
pesquisa e museus ligados à área de ciência, tecnologia e inovação. Isso se estrutura no próprio
planejamento da gestão pública de vários museus federais, que, vinculados ao Ministério da Cultura,
não são enquadrados, tampouco reconhecidos, como instituições de ciência e tecnologia. Ao se
posicionarem apenas como instituições de representação de identidades, entretenimento e turismo, os
museus acabam por se tornar instituições mais políticas do que científicas, portanto mais suscetíveis
às disputas e às pressões por representação e memória, que se tornam aspectos limitadores nas
políticas de aquisição de acervo, nas pesquisas e nos projetos educativos e de exposição.
Assim, consideramos que o que chamamos aqui de “modernização tecnológica” e de
“modernização política” deveriam ser baseadas no fortalecimento da pesquisa aplicada, científica
e acadêmica, promovendo uma rede entre as atividades do chamado “tripé museológico”. Ou seja,
os museus deveriam ter linhas de pesquisa vinculadas às políticas de aquisição de acervos e aos
programas educativos e de exposições, tornando a instituição museológica uma interface entre
o conhecimento técnico, científico e escolar e a sociedade. Um museu nacional, por exemplo,
poderia, em vez, de se propor a representar o nacional, ser um espaço de reflexão e pesquisa sobre
as representações da nação ao longo dos anos, não pensando nelas como algo essencial, mas sim
como algo negociado, inventado, disputado e construído dia após dia. Linhas de pesquisa também
poderiam ser criadas a partir das características tipológicas e semânticas dos objetos em coleções,
atualizando os tradicionais estudos de cultura material, como a heráldica, a numismática e a
ourivesaria, disciplinas fundamentais à classificação e identificação de determinados artefatos. Isso
não implica o retorno à museologia tradicional, voltada ao estudo das coleções e dos objetos, mas
uma retomada de tais conhecimentos, buscando neles as técnicas necessárias a um trabalho mais
objetivo e mais bem embasado das coleções.
Esses processos de modernização deveriam incluir publicações científicas e de divulgação, no
formato de anais, revistas ou jornais, com avaliação científica baseadas em sistemas de arbitragem
por pares e indexadas nas bases nacionais e internacionais de divulgação científica. Esse trabalho de
produção e divulgação daria lastro ao caráter científico dos museus e aos estudos de suas coleções,
sendo as publicações umas das interfaces entre os museus, as universidades e os centros de pesquisa.
Portanto, o seminário internacional 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-
2012), e a publicação dos artigos relativos aos temas apresentados no evento, constituem espaços
nos quais as propostas de modernização baseadas em pesquisas científicas e acadêmicas se mostram
viáveis por possibilitarem a reunião de trabalhos especializados sobre as práticas preservacionistas
e museológicas a partir da celebração dos 90 anos de existência do MHN. Ou seja, a experiência
desse seminário mostra a viabilidade de se usar uma data comemorativa para promover a produção,
a troca e a divulgação do conhecimento.
Inicio agradecendo o honroso convite a mim dirigido pelo Museu Histórico Nacional (MHN),
em data tão significativa, atribuindo-o à admiração e ao carinho que tenho pela instituição, o que
espero ter demonstrado em eventos anteriores, sempre enriquecedores. Certamente, contrariando
as expectativas do público, inicio declarando que as reflexões que se seguirão querem ser modestas,
mas honestas. Por isso, não pretendo trazer nada de propriamente novo, e muito menos fazer
qualquer incursão sobre a história desse prestigioso museu, uma vez que estaria ensinando missa
ao vigário. Dessa forma, é bom começar explicando que tais considerações têm como ponto de
partida uma preliminar que precisa ficar clara para resguardar as escolhas da conferencista.
Essa preliminar diz respeito ao desafio contido em um convite para se falar sobre o ano de 1922,
uma vez que ele é considerado o momento de “início” da história do MHN. De fato, tal ano já se
consolidou em nossa memória histórica como uma data simbólica dos processos de transformação
pelos quais passava o Brasil, após três décadas de República. O ano de 1922 é, antes de tudo,
lembrado como o das comemorações do Centenário da Independência, que, para ser devidamente
assinalado, envolveu mais uma das grandes reformas urbanas que a capital federal vivenciou no
século XX. Desenhado o cenário, a grandiosidade do evento repercutiu em todo o país e também
no exterior como um marco da nacionalidade que afirmava sua grandeza econômica e cultural, e
não apenas suas belezas naturais. É a esse monumental acontecimento, e não por acaso, que estão
ligadas diversas iniciativas políticas – públicas e privadas – de teor memorial, como o retorno dos
restos mortais do imperador Pedro II, ainda em 1921; as grandes festas promovidas em São Paulo
em torno do Museu Paulista ou do Ypiranga, que assume sua face histórica; a própria criação do
*
Professora Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre e doutora pelo Iuperj. Pesquisadora 1A do CNPq.
Museu Histórico Nacional; e também a abertura do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora,
outra instituição voltada para a história pátria. Tudo isso, além de outras festividades ocorridas nos
estados, ainda pouco contempladas pelas pesquisas acadêmicas, ao contrário das aqui citadas.
Mas 1922 foi igualmente o ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, cujos
desdobramentos são duradouros e decisivos para a cultura brasileira, embora não tenham sido
tão imediatos. O movimento modernista, que foi plural e não só paulista, articulava-se a uma
série experimentações culturais, em especial vivenciadas no Rio de Janeiro, ainda que com outros
formatos e diapasão. Unindo essa multiplicidade de propostas modernizadoras e como uma questão
comum o desejo de transformar a sociedade e a cultura brasileiras mediante estratégias que podiam
ser: ou mais nacionalistas ou mais internacionalistas; ou mais ligadas às vanguardas estéticas da
época ou mais inclinadas a um diálogo com a tradição do país, o que evidenciava a variedade de
projetos modernistas existentes e sua competição por espaço no campo político e cultural.
Se não bastasse, 1922 foi também o ano da fundação do Partido Comunista do Brasil, o PCB,
que não tinha então nem organização nem condição de produzir maior impacto na vida política,
sendo lembrado, nessa enumeração, muito mais em função de uma visão teleológica de sua própria
história, ou talvez da história do anticomunismo no Brasil, ambas responsáveis por profundas
marcas na cultura política republicana do século XX. Ainda no campo político, o ano de 1922 e
os seguintes assinalaram a irrupção de inúmeros movimentos de propaganda nacionalista, bem
como de rebeldia política, civil e militar, entre os quais o maior destaque é o chamando movimento
tenentista, que teve papel central na eclosão da Revolução de 1930 e nos acontecimentos do imediato
pós-1930. Nesse caso, de modo amplo e geral, essas são mobilizações que criticam duramente a
face política da experiência Primeira República, cada vez mais considerada fracassada, não só em
sua prática (a violência nas eleições, o voto de cabresto, as fraudes no reconhecimento dos eleitos),
como principalmente em seus princípios, já que o liberalismo, cada vez mais identificado com o
federalismo, via-se atacado e desacreditado.
Além disso, a década de 1920 é assinalada pela organização da Associação Brasileira de
Educação (ABE), em 1924, que deu suporte institucional às ideias da Escola Nova, outro movimento
de caráter político-cultural que queria modernizar o país por meio de um instrumental sólido e
seguro: a educação de seu povo, a começar pela da “infância”. Os anos 1920 são igualmente os da
menos lembrada, porém não menos importante, reforma da Constituição, ocorrida em 1926, que
apontava para uma tendência de fortalecimento da União perante os estados, já que evidenciava a
realização de ajustes ao modelo de liberalismo e federalismo adotado pela Constituição de 1891.
A essa altura está absolutamente claro que seria uma temeridade e quase inutilidade insistir em um
tipo de exposição com tal objetivo, pela dimensão e pela profundidade que exigiria.
Assim, tal percurso foi realizado como preliminar para se chegar a uma observação de fundo.
A de que é no contexto dos anos 1920 – marcado por esse grande conjunto de eventos que luta pela
modernização do país e, ao mesmo tempo, vai realizando efetivamente essa modernização –, que a
Primeira República começa a “envelhecer”. Ou seja, quero destacar essa dupla direção do processo
de mudança político-social que se vivia, combinando projetos de modernização em vários campos
– política constitucional, movimentos sociais, artes plásticas, literatura, educação, ciência etc. – e,
não paradoxalmente, pela mesma razão, fortalecendo o diagnóstico de que a Primeira República
estava não só comprometida, precisando se reformar ou “se republicanizar”, como estava igualmente
ultrapassada em seus princípios e arquitetura. Por essa última avaliação, tornava-se uma república
indesejada, e, por tal motivo, outro modelo devia ser articulado e experimentado como seu reverso.
No caso, um modelo antiliberal e de teor crescentemente autoritário. Quer dizer, o que os anos
1920 trazem de distinto, considerando-se as críticas que a Primeira República vinha recebendo há
décadas, é que, para boa parte dos políticos e intelectuais, não se tratava mais de pensá-la na ótica
de um “horizonte de expectativas” liberal, capaz de se aperfeiçoar; mas sim de um novo horizonte
que se devia abrir, segundo os novos parâmetros que circulavam internacionalmente, dando a ver
outro tipo de futuro para os projetos de modernização do Brasil. Como se sabe, nesses momentos
da história, dependendo do futuro imaginado, os atores do presente que por ele lutam olham para
o passado com lentes diferentes, dependendo dos objetivos que querem alcançar, ou seja, do grau
e do tipo de mudanças que desejam implementar. Por isso, podem colocar-se como herdeiros de
suas tradições, respeitando e valorando seu legado; ou podem apresentar-se como uma ruptura,
como um ponto zero, que precisa se separar desse passado, até mesmo negando-o radicalmente, em
qualquer dimensão de positividade.
Foi nesse tempo de extrema riqueza de produção de ideias e da crença em sua realização,
foi nessa ambiência sociocultural que abrigava novas iniciativas de construção de futuros e de
passados que o MHN foi criado. Um tempo de possibilidades e de incertezas políticas, evidenciado
pelos embates que passam a recorrer às armas e não apenas às palavras. É certamente devido aos
avanços dessa perspectiva historiográfica, que acentua a ebulição e indeterminação dessa década,
valorando a experiência dos atores políticos, que os anos da Primeira República vêm passando
por uma espécie de revival. Dessa forma multiplicam-se o número de historiadores e cientistas
sociais que se dedicam a estudar seus diferentes aspectos, assinalando a riqueza do período. Nesse
amplo e novo conjunto de trabalhos, observa-se que a Primeira República tem sido retomada em
uma chave distinta daquela que a consagrou como uma república “velha”. Cada vez mais procura-
se desnaturalizar esse “adjetivo”, que data justamente dos anos 1920, consagrando-se no Estado
Novo. Nomear fatos, personagens etc. nada tem de ingênuo, comportando classificações repletas
de juízos de valor, como a antropologia de Levi Strauss e a história dos conceitos de Koselleck
nos advertem. Por isso, essa nova literatura destaca a historicidade desse vocabulário, as batalhas
de memória que ele evidencia, refletindo sobre as razões de sua duração e de seu deslizamento do
campo da luta político-ideológica dos anos 1920/1940 para os livros acadêmicos e escolares das
décadas de 1950 e seguintes. Para além do enfrentamento dessa questão, tais estudos investem no
universo de debates e de movimentos políticos, sociais e culturais então ocorridos para demonstrar a
riqueza de possibilidades que se abria aos múltiplos projetos existentes, apontando para a dimensão
da participação política e não mais se atendo apenas ao espaço da representação política, mesmo
considerando-se seus limites. Enfim, a Primeira República, com destaque os anos 1920, é um campo
fértil e aberto a pesquisas, não podendo ficar aprisionada pela expressão República Velha.
O que os trabalhos mais recentes também ressaltam é que havia entre eles, ao menos, um ponto
em comum. As circunstâncias eram as do pós-Primeira Guerra Mundial e Revolução Russa, como
fatos conhecidos e consumados. Naquela época, nenhum intelectual duvidava de que o mundo se
transformara radicalmente, e que nunca mais seria o mesmo. Os modelos políticos conhecidos
estavam abalados; os nacionalismos, alguns radicais e xenófobos, na ordem do dia; e as demandas
pela extensão de direitos políticos e sociais crescendo, e anunciando a realidade do que então se
chamava sociedade de massas. Os tempos eram de crise, e categorias como decadência e atraso
passavam a circular no vocabulário político internacional e nacional de modo intenso. Tempos
de crise são tempos de modernização nos quadros mentais e políticos de um país, praticamente
impelidos a imaginar projetos de futuro. Pelo mesmo motivo, tempos de crise são tempos de
incursões ao passado.
No caso do Brasil, vale lembrar que a virada do século XIX para o XX fora marcada pela abolição
da escravatura e pela instalação do regime republicano, que exigiram a criação (ou recriação) de
uma história e memória nacionais, segundo os parâmetros de uma cultura política republicana,
que tinha de investir em novos símbolos, rituais, festas e heróis nacionais para sua legitimação. A
Primeira República e os anos 1920, com as comemorações do Centenário da Independência, são,
assim, um período estratégico para a conformação de uma escrita da história no e do Brasil, bem
como para a delimitação do perfil do historiador, o que só poderia acontecer por meio de debates e
disputas sobre o que é e para que “serve” a História, como modo de conhecimento das sociedades.
Foi em razão dessa longa preliminar e das duas questões anteriormente mencionadas, que
minha opção foi fugir dos anos 1920 e me deslocar para as décadas anteriores, situando alguns
debates que demarcam uma história da história do Brasil e que, a meu ver, conectam-se diretamente
com o clima cultural e historiográfico de criação do MHN. Um museu que devia ser, por definição,
uma instituição cultural destinada a narrar a história da nação brasileira, e só poderia fazê-lo em
articulação com os parâmetros do que se entendia e praticava como saber disciplinar de sua época.
Assim, escolhi autores e textos que me propiciassem situar o que se dizia nesse campo de fronteiras
ainda tão fluidas sobre o status e o valor do conhecimento histórico, relacionando-o com a temática
da educação, em especial por meio de uma literatura voltada para um público mais amplo, no qual
se destacam as crianças. Começo, portanto, com uma questão central para os historiadores do fim
do século XIX e da primeira metade do XX: a da cientificidade e “utilidade” da História.1
1
Esse texto foi escrito para ser lido como uma conferência, beneficiando-se, em especial nessa parte, do livro: GOMES, A. C. A República,
a História e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009 (segunda impressão).
2
O texto está publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 69, v. 114, 1906, p. 193-285 (publicado em 1908). O
discurso de posse de Pedro Lessa está na RHIGB, t. 70, v. 116, 1907, p. 716-22 (publicado em 1908).
3
Trata-se de uma edição de 108 páginas, feita pela Tipografia da Casa Eclética, situada na Rua Direita, n. 6, em São Paulo, no ano de 1900,
o mesmo das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento. O opúsculo consultado por mim está na Biblioteca Nacional, e foi
dedicado, pelo autor, ao Dr. José Carlos Rodrigues, proprietário da coleção comprada por Benedito Ottoni. Contudo, não consegui consultar
o livro traduzido de Henry Thomas Buckle.
O século XIX era considerado, já no início do XX, como de grande importância intelectual,
tanto pelos avanços das ciências naturais como pelos avanços das ciências sociais e da história.
Essas últimas, inclusive, não mais poderiam ignorar os conhecimentos estabelecidos pelas
primeiras nem se abster de trabalhar com os métodos científicos da “observação e da comparação”,
dessa feita voltados para os “acontecimentos humanos”. Fica assim explícita a importância da
contribuição das ciências naturais, bem como seu impacto no compartilhamento de uma concepção
de ciência vigente no mundo europeu dos séculos XVI ao XIX, aproximadamente, que postula
que o mundo físico e também o social são regulados por leis ou, como aparece na nomenclatura
de Pedro Lessa, por “relações constantes”. Uma concepção de ciência, vale lembrar, presente em
diversos “cientificismos” que circulavam internacionalmente, e com os quais o “pensamento social
brasileiro”, ao menos até as décadas de 1920/1930, precisou dialogar continuamente, quer aderindo
a eles em alguns aspectos quer negando-os, mais ou menos radicalmente. Posto isso, é interessante
examinar os tipos de reflexões que Lessa tece sobre o que entende serem as relações da história
com as ciências sociais e, em especial, com a sociologia, considerada “a ciência social geral”,
capaz de construir “relações constantes”.7
Vê-se então que, para ele, a história deveria concentrar sua aspiração na tarefa de “conhecer
a sociedade”, o que só era possível trabalhando-se com duas séries de processos lógicos (os
indutivos e os dedutivos), examinando-se e comparando-se “fatos singulares”, mediante o uso de
“documentos”. Essa era, por excelência, a missão da história. O modo pelo qual se conectava com
as ciências sociais, também voltadas para o conhecimento das sociedades, era muito particular,
pois o ideal das ciências sociais era outro e bem distinto: produzir generalizações, investigando o
presente, não o passado. Buscando definir o que era a história, distinguindo-a da sociologia, Lessa
igualmente ressaltava que ela não devia ser confundida com a “filosofia da história”, já que esta
também buscava – embora de maneira distinta – estabelecer princípios gerais sobre as sociedades
no tempo. Ou seja, Pedro Lessa, desejando identificar e delimitar o que fazia a história, segundo
os “modernos parâmetros” científicos de seu tempo, que eram os da nascente escola metódica
francesa, nega cientificidade a esse tipo de “conhecimento do social”, na medida em que não lhe
seria possível estabelecer “leis” ou mesmo “relações constantes”. Dito de outra maneira, para
Lessa, como a história trabalhava com acontecimentos que não se repetiam, que eram complexos
e possuíam causas múltiplas, ela não permitia o traçado de generalizações e, nesse sentido preciso,
justamente para afirmar a necessidade de um método específico para a história, ele optava por
negar sua cientificidade, segundo o paradigma da época.
7
A sociologia se relacionaria com as ciências sociais especiais, como a antropologia e a economia, por exemplo, do mesmo modo que a
biologia se relacionava com a botânica e a zoologia, no caso das ciências naturais, segundo Pedro Lessa.
Certamente com tal conclusão, o ensaio de Pedro Lessa suscitou aplausos e discordâncias,
dentro e fora do IHGB, que perduraram durante a década de 1900. É o que se constata pelo discurso
de recepção, proferido por Clóvis Beviláqua, outro grande nome do Direito brasileiro, quando da
entrada de Lessa na ABL, exatamente em 1910.8 Nesse sentido, é importante remarcar que Beviláqua
também era sócio do IHGB, desde 1906, portanto quando Pedro Lessa foi aceito pela sociedade
de discurso que então reconhecia e consagrava aqueles que eram identificados como historiadores.
Nela, inclusive, ele percorre uma trajetória – sócio correspondente, honorário, benemérito –, até se
tornar, em 1943, grande sócio benemérito. Quem recebe Pedro Lessa, por conseguinte, é alguém
com atributos de mesmo tipo e de mesma e pública qualidade.
Fazendo o elogio ao jornalista, político e magistrado, caracterizado como possuidor de uma
posição “empirista” em relação ao Direito, Beviláqua reserva uma parte de sua saudação para
comentar as concepções de Lessa sobre a questão da cientificidade da história. Considerando
duas variáveis – o passar do tempo e o que entende como um “tom dubitativo” da conclusão do
ensaio de 1900 –, ele expressa sua crença de que Lessa pudesse ter alterado sua maneira de pensar,
reconsiderando sua recusa de cientificidade à história.
Em dez anos, as ideias, que se não petrificam na intransigência do sectarismo, podem sofrer
modificações, e vós fechastes o trabalho de então, como quem não considera o caso irrevogavelmente
julgado [...]. [...] Dissestes que “a História coleciona e dispõe, metodicamente, os materiais, em cuja
observação e comparação haurem suas induções ciências diversas. O método descritivo, aplicado
pelo historiador, é um excelente instrumento”, acrescentastes, “para a aquisição de verdades gerais
da Sociologia e seus ramos especiais”. [...] Este pensamento é justo [...]. Mas, se assim é, forçoso
se faz reconhecer que o historiador, para apanhar a verdadeira expressão dos fatos e a sua natural
filiação, tem de penetrar-lhes o âmago e descobrir as influências físicas, econômicas, étnicas,
morais e até individuais, de cujo concurso resultaram. Não será um simples narrador [...]. E nessa
tarefa, sem dúvida escabrosíssima, há os elementos de uma ciência, não de leis ou de noções, mas
de fenômenos, que se expõem metodicamente, coordenados, segundo a relação da casualidade.9
Está aí, muito claramente, o desejo de afirmar um caráter científico para a história em novos
parâmetros, que não eram mais o das “verdades gerais”, próprios às ciências sociais. Tal distinção,
contudo, não tornava o historiador um “simples narrador”, já que o rigor do “método descritivo”
que utilizava e a complexidade do objeto que enfrentava asseguravam à sua exposição metódica
dos fenômenos sociais “os elementos de uma ciência”. Beviláqua, certamente reverberando debates
8
Clóvis Bevilácqua (1859-1944) era cearense e foi autor do anteprojeto do Código Civil Brasileiro em 1901 a convite do presidente Epitácio
Pessoa. Atuou pouco na ABL, apesar de ter sido um de seus sócios fundadores, sendo seu discurso de recepção a Pedro Lessa considerado
sua maior peça oratória nessa Casa.
9
Discurso de recepção de Clóvis Beviláqua, proferido em 6 de setembro de 1910. Em ABL, sessão do acadêmico Clóvis Beviláqua http://
www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8389&sid=179, acesso em: 10/06/2012.
e demandas que eram travados em torno do estatuto científico da história como disciplina, fixava
sua especificidade, tanto em face das ciências sociais como da literatura, pois a escrita da história,
mesmo não produzindo leis, não era obra de ficção, ainda que recorresse à arte narrativa. Nesse
sentido, embora acompanhando as reflexões de Lessa, chegava a uma conclusão distinta: a de que
a história devia ser uma ciência.
No Brasil dos anos 1910, pode-se aventar que os princípios da escola metódica já fossem
mais conhecidos e compartilhados, o que absolutamente não implicava diminuição do prestígio de
diversos cientificismos de matriz sociológica. Algo bem perceptível quando da entrada de Oliveira
Vianna para o IHGB, em 1924. Credenciado pelo seu livro de estreia - Populações meridionais
do Brasil, de 1920 -, esse autor colaborara para o Dicionário Histórico, elaborado pelo IHGB na
passagem do Centenário da Independência, escrevendo o verbete sobre etnografia, e intitulando-o
“o tipo étnico brasileiro”. O que me interessa em particular, nesse caso, é ressaltar de que modo
um intelectual identificado com um modelo de ciência social “cientificista” está sendo recebido e
consagrado como historiador. Seu discurso de posse é valioso, pois nele faz apreciações sobre o
caráter científico da história, conectando-a com sua “utilidade” como saber ensinável.10 Nele, Vianna
defende uma argumentação que afirma o caráter científico da história, situando sua especificidade
e importância por sua vinculação com uma “missão pedagógica”. Seguindo seu vocabulário, a
história tinha um “valor pragmático” bem singular que as demais ciências sociais não possuíam, o
que era de extrema importância para os Estados nacionais.
Distintamente de Pedro Lessa, Oliveira Vianna postulava que a “nova” história podia ser
uma ciência, realizando generalizações, desde que adotasse procedimentos que garantissem a
neutralidade e a objetividade do conhecimento, características das “modernas” ciências sociais.
O sociólogo/historiador defendia, claramente, que, se a história desejasse alcançar o estatuto
de “ciência moderna”, precisava buscar uma forte associação com a sociologia. O trabalho
com os “testemunhos de arquivos”, como Viana dizia, precisava ser acrescido de “experiências
complementares”, trazidas pelas ciências sociais, para que a história se tornasse científica,
realmente. Uma proposta que, como se pode verificar, nem seguia as ponderações de Clóvis
Beviláqua nem agradava historiadores, então muito respeitados, como Capistrano de Abreu. Este
é incisivo em sua crítica à solução dada por Vianna à questão da cientificidade da história, quando,
em carta ao amigo Lúcio de Azevedo, escreve: “A impressão deixada por seu primeiro escrito sobre
as populações meridionais do Brasil é que conhece melhor Le Play que nossa terra.”11
10
Todas as referências são do discurso de posse Oliveira Vianna, Revista do IHGB, t. 96, v. 150, 1924.
11
ABREU, C. de. Correspondência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. Carta a João Lúcio de Azevedo, “São
Lourenço, 7 de maio” (colocada entre as cartas de 1926), v. 2, p. 355.
Contudo, essa demanda por cientificidade, segundo padrões sociológicos, não impediu que
Vianna reconhecesse na história uma “bela arte narrativa” e que, por isso, identificasse nessa
disciplina um “valor pragmático”, um teor educativo, muito especial e específico. Para Vianna,
a história não “servia” apenas a um círculo “limitado, privativo, circunscrito e especializado” de
pessoas, como a maioria das outras ciências sociais, inclusive a sociologia. Ela possuía um público
muito mais amplo e diversificado, e só o “encantava” por seu poder de “arte de ficção”, ou seja, de
narrativa literária. Na história, o estudo e a narrativa do passado não se faziam por mera curiosidade,
comparável à das viagens ou das memórias.
A história possuía um “alto valor pragmático” em duplo sentido. Em primeiro lugar, porque o
conhecimento do passado é uma maneira de corrigir concepções acerca do presente, produzindo
uma base segura para se projetar o futuro. No caso de países novos, como o Brasil, esse valor
era fundamental, pois nossa história, diferentemente da dos países velhos, não trazia “lições de
resignação”, mas sim “de entusiasmo”. Por isso a história interessa (e devia interessar) a todos os
homens, tendo como “utilidade prática” a criação de “um sentimento de patriotismo” e de uma
“consciência coletiva”, formados pela admiração despertada por um passado comum. Era pela
história, particularmente se servindo da arte de narrar, que se aumentava o respeito nutrido por
um povo por seus antepassados, e pelo patrimônio por eles legado, unindo-os através do tempo. A
história, aproximando o passado do presente, impulsionava o futuro, tornando-se “uma maravilhosa
escola de educação cívica”.
Mas não era essa a única utilidade da história “moderna”. Justamente por ela possibilitar, como
ciência objetiva, o conhecimento dos “elementos estruturais de um povo, as condições íntimas de
seu viver, as particularidades fundamentais da sua mentalidade, da sua sensibilidade”, tornava-se
essencial “à ação de todos que exercem uma função dirigente na sociedade, principalmente os
que têm o encargo de direção política”.12 Portanto, se a evolução de um povo tem condicionantes
fortíssimos, sendo “o papel reservado à ação da vontade consciente modestíssimo”, mais uma
razão para potenciar os efeitos dessa ação pela ciência, o que tornava o “culto ao passado” um
ponto de partida para a intervenção do homem na história.
Oliveira Vianna não poderia ser mais claro ao demarcar os objetivos patrióticos da história
em sua dimensão educativa, quer para o povo quer para as elites governantes. Portanto, em seu
discurso, ele está compatibilizando uma concepção de história científica, segundo o modelo das
novas ciências sociais, com uma concepção de história ensinável, cujo valor educativo e político,
chamado por ele de pragmático, deixa evidente a função cívico-patriótica da disciplina. Sua
narrativa não devia temer as artes da ficção, da boa literatura, já que era por meio da emoção
12
Ibidem, p. 450-1.
que se criava uma comunidade nacional, composta dos que estão vivos, dos que já morreram e
dos que ainda vão nascer, na fórmula conhecida do pensamento conservador. Por conseguinte, o
cientificismo sociologizante de Oliveira Vianna não o impedia, muito ao contrário, de defender a
importância do ensino da história, não só porque aí se radicava uma de suas especificidades como
ciência social, como porque era a História uma das principais encarregadas da educação cívica do
povo, isto é, da formação dos cidadãos e de seus dirigentes.
Acompanhando-se os discursos de Pedro Lessa, Clóvis Beviláqua e Oliveira Vianna é possível
ver como o debate sobre o estatuto de cientificidade da história era algo fundamental nas décadas
do início do século XX, e como ele não pode ser separado das preocupações sobre a importância
do conhecimento histórico para as sociedades “modernas”. Por isso, é fundamental atentar para
a confluência existente no IHGB no reconhecimento da “função educativa” da disciplina, o que
certamente já ocorria sob a Monarquia, mas ganhava contornos mais militantes com a República,
uma vez que o novo regime reconhece o “povo” como interlocutor e ator da história. Nesse sentido,
os autores, além de nos possibilitarem situar a diversidade de concepções de história que convivem
no IHGB no início do século XX, evidenciam que tanto os que se orientavam por uma matriz que
seguia, em tese, os procedimentos da escola metódica francesa, realizando uma escrita da história
como memória da nação, como os que se pautavam por modelos cientificistas, conhecendo e se
apropriando da literatura sociológica, confluíam ao afirmar o valor educativo da história como
matéria a ser ensinada a todos.
No caso dos que seguiam a matriz cientificista, apesar da diversidade que comporta, o que pode
causar estranheza é o fato de ela, mesmo postulando determinismos (é certo que em graus variados)
e valorizando os fenômenos naturais, objetivos e coletivos, defender uma “função pragmática” para
a disciplina. Vale então lembrar que o paradigma cientificista raramente era imune à ação humana,
pois se havia uma evolução da humanidade já traçada, seu ritmo ficava dependendo da intervenção
dos grandes e sábios homens. Portanto, como Oliveira Vianna ilustra tão bem, o valor educativo da
história era insubstituível quando a matéria era criar o amor à pátria, pelo conhecimento do passado,
pela criação de uma “mentalidade” comum. Uma convergência, de um lado surpreendente, mas de
outro compreensível, pois se pautava no que singularizava a história e a diferenciava das demais
ciências sociais.
Desse modo, no Brasil, como também ocorreu em outras experiências nacionais, houve
uma convivência entre concepções diferenciadas de história que se orientavam pelos mais
compartilhados paradigmas que dividiam e disputavam espaço durante toda a primeira metade do
século XX. Mas, como igualmente ocorreu em outras experiências nacionais, esses paradigmas
desembocavam em uma proposta de história ensinável interessada na construção de uma pátria
O período entre 1890 e 1920 pode assim ser considerado decisivo no que se refere ao
estabelecimento das bases de uma historiografia no Brasil, quer pelo reconhecimento de métodos
que caracterizam o ofício do historiador quer pela afirmação do “valor pragmático”, ou seja,
cívico-patriótico da história. Esse é, portanto, um período estratégico na profissionalização dos
praticantes da disciplina, o que se vinculou a preocupações com a rotinização de seus conteúdos
“eruditos/científicos”, tendo-se em vista alcançar um amplo e diversificado público, adulto e
infantil, por meio das mídias mais modernas, como os jornais, as revistas e os manuais escolares.
Não é casual, assim, que também entre 1890 e 1920 o Brasil tenha assistido à conformação
de uma literatura infantil, e que ela tenha se articulado fortemente aos projetos nacionalistas e
modernizadores então vigentes.
Ao longo dessas décadas, a educação foi entendida como um dos recursos mais poderosos para
se produzir transformações sociais profundas e duradouras no país, em especial quando voltada para
a “infância”, pois era nesse momento que os valores e as crenças dos futuros cidadãos republicanos
seriam “moldados”. O livro e a leitura, bem como um conjunto de práticas e equipamentos culturais
– como os museus, as exposições e as festas cívicas –, eram vetores estratégicos para o aprendizado
de um nacionalismo republicano, que devia se traduzir em uma escrita da história de teor cívico-
patriótico que narrava episódios, exaltava figuras históricas e divulgava costumes de grupos que
compunham a nação brasileira. Em 1890, apenas um ano após a proclamação da república, dois livros
são exemplares dessa tendência que somente faria crescer ao longo da primeira década do século
XX, ganhando o mercado editorial e conquistando novos autores, que escreviam para crianças ou
se preocupavam com as condições de seu aprendizado na escola e fora dela.13 Refiro-me ao famoso
13
Tenho total consciência das questões que cercam a difícil definição do que é literatura infantil e foram enfrentadas, por exemplo, pela
Comissão Nacional de Literatura Infantil do MES, em 1936. Entretanto, para os objetivos deste texto, estou aproximando o gênero literatura
infantil (aquele intencionalmente produzido para a criança, usando o critério da ficcionalidade) e os livros escolares, ou seja, os textos com
explícitos objetivos didáticos e programáticos, considerando a época, o que é distinto do que hoje são os “livros didáticos”. Entendo que,
entre 1890 e 1930, essas fronteiras eram fluidas, em especial quando se tratava de uma narrativa cívico-patriótica presente em manuais
escolares de educação cívica; em livros de história do Brasil para os ensinos primário e secundário; e em “livros de histórias” com elementos
maravilhosos e também intenções morais.
texto de José Veríssimo, cuja segunda e mais conhecida edição é de 1906, A educação nacional,
publicado pela editora Livraria Francisco Alves; e ao manual de Silvio Romero, prefaciado por João
Ribeiro, A história do Brasil ensinada pela biografia de seus heróis, da Livraria Alves e Cia.
Minha intenção, aqui, é destacar o vínculo efetivo que uma espécie de pedagogia da
nacionalidade estabelece com a construção de uma cultura política republicana, e como essa
nova cultura política necessitava “imaginar” um passado, com destaque para um passado
histórico nacional, que devia ser ensinado por meio de uma narrativa acessível que mobilizasse
meios capazes de agradar a um amplo público, em especial o infantil. A dimensão pedagógica e
patriótica dessa literatura era de grande importância, pois por intermédio dela eram conquistadas
a aprovação do Estado – quando os livros eram adotados nas escolas – e também a do mercado,
já que o público infantil despontava como um segmento consumidor de potencialidade. Com
tais estímulos, ocorreu a especialização de editores e também de autores de literatura infantil,
um gênero que devia apelar para a imaginação das crianças e transmitir valores morais,
adequando-se aos programas escolares, se visasse alcançar esse mercado específico. No campo
da literatura para crianças, seja nos “livros de literatura infantil” seja nos “livros escolares”
(que podiam se confundir em um só), a incorporação de figuras e episódios históricos, aliada à
construção de uma narrativa de moral cívico-patriótica, é uma constante.
Algo que pode ser observado facilmente, a partir de alguns títulos, entre inúmeros exemplos
que poderiam ser citados desde os anos 1890: Lições de História do Brasil, de 1895, do literato
e folclorista Basílio Magalhães; Porque me ufano de meu país, do conde Afonso Celso, sócio
do IHGB, de 1900; História do Brasil adaptada ao ensino primário e secundário, de João
Ribeiro, de 1900; Contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto, de 1904, e Pátria brasileira,
de 1909; Histórias de nossa terra, de Júlia Lopes de Almeida, de 1906; As nossas histórias, de
1907, e Os nossos brinquedos, sobre a temática do folclore, de Alexina de Magalhães Pinto,
de 1908; Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, de 1910; Minha terra, minha
gente, de Afrânio Peixoto, de 1915; A pátria brasileira, de Coelho Neto, de 1916; Nossa
pátria: narração dos fatos da História do Brasil, através de sua evolução com muitas gravuras
explicativas, de Rocha Pombo, de 1917; História do Brasil e Noções de História do Brasil, de
Osório Duque Estrada, autor da letra do Hino Nacional, de 1918; Contos da História do Brasil,
de Viriato Corrêa, de 1921, e A filha da floresta, de Tales de Andrade, também de 1921.
Todos esses livros, como os títulos deixam claro, podem ser classificados como manuais
cívico-patrióticos, um tipo de literatura muito valorizada e utilizada nas escolas de vários países
na primeira década do século XX. O patriotismo era, no vocabulário pedagógico e político da
época, a palavra/sentimento que fazia com que a história se aproximasse da educação, mas com sua
especificidade, que era a de trabalhar “através do tempo”. Entretanto, se para muitos educadores
a educação cívica não se confundia com a disciplina da história, ultrapassando-a, pois devia estar
presente no ensino de todas as disciplinas, cabia à história um lugar muito especial na produção de
um sentimento de amor à pátria, pois esse amor devia fundar-se fortemente no conhecimento e na
valorização de um passado comum. A pátria não devia ser confundida com o Estado, nem mesmo
com a nação e suas leis, em sua dimensão político-administrativa. A pátria era e devia ser entendida
e sentida como uma comunidade afetiva, como uma entidade suprema e sagrada, objeto do respeito
e do amor dos cidadãos, sobretudo dos cidadãos republicanos.
No entanto, como Patrícia Hansen vem observando em seus estudos sobre Olavo Bilac, “ao
contrário do que aparenta, a literatura cívico-patriótica da Primeira República não é um conjunto
de textos ideologicamente homogêneo. A análise de uma de suas principais características, o
ufanismo, presente em vários textos em maior ou menor grau, demonstra que não é sempre que
o orgulho exacerbado da pátria oblitera a consciência das deficiências nacionais.”14 Segundo a
autora, já haveria na Primeira República uma espécie de clivagem nessa literatura, havendo duas
orientações em convivência:
A primeira, excessivamente otimista, entendia que o futuro grandioso prospectado para o Brasil
seria uma consequência óbvia da “pujança virtual” associada à grandeza territorial e às riquezas
naturais do país. A outra, na qual se incluem os textos de Bilac, condicionava o futuro nacional a
uma completa transformação mental, moral e até física, do homem brasileiro. Nesta perspectiva, era
necessário executar uma ação de caráter pedagógico, que fizesse das crianças e jovens brasileiros,
homens cientes dos problemas e obstáculos ao progresso do país e capazes de superá-los pelo
adequado aproveitamento dos inegáveis recursos da terra pátria.15
É essa segunda variante que desejo destacar, porque acredito que ela era mais compartilhada
do que se imagina, tendo ganhado força no pós-1930 e permanecido vigente após 1945. Nessa
concepção, o orgulho exacerbado da pátria não era uma virtude, pois ele escondia os males ou
deficiências nacionais, além de minimizar e até ignorar os sentimentos de convivência pacífica
entre as nações, o que se tornou uma preocupação internacional após a Primeira Guerra Mundial,
voltando a estar na ordem do dia no contexto da Segunda Guerra.
Se a enumeração anterior foi longa e cansativa, ela cumpriu a tarefa de deixar evidente a
sistemática produção dessa literatura cívico-patriótica e a importância de seus autores, muitos dos
14
HANSEN, P. S. Bilac e a literatura infantil: civismo e ideologia nos primeiros livros para crianças brasileiras, um dos resultados do
Projeto de Pesquisa de Pós-Doutorado, Olavo Bilac, ideólogo do nacionalismo, financiado pela Faperj/Capes e desenvolvido no CPDOC/
FGV, 2010, mimeo.
15
Idem.
quais grandes nomes da literatura para adultos, em prosa e verso. Os editores são um capítulo à parte e
merecem reflexão cuidadosa, pois entre eles estão a Livraria Francisco Alves, a Livraria Castilho, de
grande sucesso no mercado de livros para crianças, além da Editora Melhoramentos, com particular
prestígio nos meios educacionais já nos anos 1920. Toda essa gama de atores do campo intelectual,
sejam editores sejam autores que se dedicam à tarefa de escrever para um público amplo, nesse caso
o público infantil, estão sendo aqui muito valorizados e entendidos como “mediadores culturais”.
Trata-se, contudo, de utilizar essa categoria em sentido forte e sem qualquer conotação negativa ou
pejorativa, afastando-se uma excessiva dicotomia entre a escrita dos historiadores “propriamente
ditos” (identificados com o espaço do IHGB e, no pós-1930, com o das universidades), e a desses
mediadores culturais. Eles costumam ser taxados como intelectuais “menores” pelo valor atribuído
à sua produção, quer em termos de conteúdo, que seria simples e mesmo simplista, na chave do
divertir e ensinar; quer por causa das mídias utilizadas, menos “nobres” que o livro, sendo efêmeras
em grande parte, como é o caso dos periódicos e dos manuais escolares.
Para reverter esse tipo de apreciação, muito consolidada, é bom ressaltar dois pontos. Em
primeiro lugar, tais vetores culturais têm sido tratados pela literatura que trabalha com história
do livro e da leitura e também com história de intelectuais como um dos meios mais seguros de
se acessar formas de representações coletivas do passado, sendo assim entendidos como “vetores
de memória”: como instrumentos estratégicos para se compreender a construção de memórias
históricas nacionais. Em segundo lugar, os avanços da profissionalização e institucionalização
da pesquisa histórica mantêm, no Brasil e no mundo, sólidas conexões com a preocupação da
divulgação desse tipo de saber, podendo ou não estar encarnada no mesmo indivíduo (historiador
e divulgador). Como diversos estudos de historiografia vêm assinalando, não há como se entender
o processo de institucionalização e consolidação da disciplina sem relacioná-lo com as múltiplas
estratégias de sua divulgação, em especial com aquelas voltadas para uma “pedagogia da
nacionalidade”, que envolveria também as instituições museais e as práticas festivas, sobretudo
as de teor cívico patriótico. Os vínculos entre essa escrita da história para um grande público
e os projetos políticos de Estados nacionais são por demais óbvios para serem ignorados, mas
nunca se deve considerar qualquer tipo de texto um mero instrumento de “manipulação político-
ideológica”, minimizando a dinâmica dos processos de recepção cultural, ou deixando de
considerar o grau de liberdade ou autoritarismo de governos, nessa área específica, em momentos
históricos determinados.
Os anos 1920, como se tem assinalado nos estudos de literatura infantil, são de inflexão nesse
gênero em razão do aparecimento dos trabalhos de Monteiro Lobato, considerado um marco na
renovação do que até então se escrevia para a infância. Sem absolutamente questionar o lugar
desse autor, o que me interessa nessa incursão que relaciona historiografia, ensino de história e
literatura para crianças é chamar a atenção para um dos pontos da crítica que Lobato desenvolve
sobre o que até então se praticava, visando, entre outros objetivos, valorizar sua própria produção.
Mas, ressalvo desde logo que ele não estava sozinho na elaboração de tais considerações, mas
muito bem acompanhado e há muito tempo. Uma constatação que, pelo menos, evidencia que
muitos literatos e educadores já vinham se dando conta das insuficiências dos livros destinados às
crianças, sobretudo ante a importância da leitura realizada nesse momento da vida, reconhecida
como decisiva por sua influência e duração.
Em artigo de 1921,16 Lobato faz um diagnóstico que aponta para o fato de as crianças
brasileiras aprenderem a ler na escola à força e em “livros horrorosos”, inclusive graficamente.
Além disso, neles a infância era apresentada ao que chamava de uma “pátria pedagógica”, em estilo
melodramático e ufanista que acabava por afastá-la da leitura e, acrescento eu seguindo a lógica
de Lobato, do desejado amor à pátria. Em sua linguagem “o didatismo cívico” da literatura infantil
existente acabava por “secar as crianças”, que ficavam apenas conhecendo um patriotismo “besta”
(Lobato gostava de usar esse adjetivo).
Vale lembrar que, nesse mesmo ano de 1921, Lobato publicava seu primeiro livro de literatura
infantil, Narizinho arrebitado, anunciado no catálogo de sua editora Revista do Brasil, em 1922,
como uma “obra fora dos moldes habituais e escrita de modo a interessar profundamente as
crianças, poupando trabalho aos professores e pais”. E finalizando: “Adapta-se para o uso das
escolas de São Paulo, da Paraíba e de outros estados”.17 Ou seja, ele anunciava um livro que
queria ser (e foi) inovador, mas também que se voltava para o mercado de livros escolares, o
que garantia circulação e bons rendimentos. Como os estudiosos de literatura infantil assinalam,
Lobato, de fato, inovou muito o repertório literário infantil, criando personagens de tipo novo e
cuidando da apresentação gráfica dos livros, até porque foi, durante um bom tempo, seu próprio
editor. Contudo, compreensivelmente, não rompeu inteiramente com as características da literatura
“cívico-patriótica” então produzida. Esta se vinculava, mais ou menos diretamente, ao mercado
escolar e aos objetivos nacionalistas da ação educativa – que podiam ser ufanistas ou não –, o que
evidentemente impunha “adaptações”, como ele mesmo explica na propaganda de Narizinho.
As críticas de Lobato à má qualidade gráfica do livro infantil/escolar e ao seu estilo enfadonho
nada tinham de novas, sendo conhecidas há muito, como o texto de José Veríssimo, A educação
nacional, já mencionado, evidencia muito bem. De todo modo, o que desejo ressaltar é que,
16
Estou citando artigo de Lobato de A onda verde, no qual é discutida a questão da formação de leitores, a partir de SOARES, G. P. Semear
horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil (1915-1954). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. p. 180-2.
17
SOARES, G. P. Op. cit., citação na p. 185.
inclusive Lobato, embora com recursos literários bem distintos dos autores do início do século XX,
também se inseriu nessa vertente de escritores que se dedicaram a explorar a dimensão histórica
ao se voltarem para o público infantil. Mesmo não caindo em um “patriotismo besta”, ele também
escreveu sobre fatos e personagens da história, tratando igualmente de folclore brasileiro.
Por fim e para concluir, insisto na riqueza desse contexto de debates, com inovações e críticas,
que envolvia o campo da história do Brasil, quer em seu locus mais erudito quer nas múltiplas
possibilidades de escrita que as mídias impressas ofereciam para se ganhar um público mais amplo
de leitores, divertindo-os e instruindo-os no amor à pátria. Foi nesse tempo que o MHN foi criado,
por determinação do então presidente Epitácio Pessoa, na ocasião das comemorações do Centenário
da Independência. Abrigado no Pavilhão das Grandes Indústrias da “Exposição Internacional de
1922”, o núcleo inicial do museu devia não apenas evocar os acontecimentos históricos do passado
nacional brasileiro, mas igualmente voltar-se para a instrução pública, vale dizer, buscar alcançar
um público de não iniciados. Um grande desafio, já que implicava construir uma linguagem museal
que articulasse os dois valores da disciplina da história tão propagados: o científico e o pragmático,
apelando para a razão e a emoção dos que o visitassem. Um desafio que ainda permanece e este
seminário procura, mais uma vez, enfrentar.
lavoura, à pesca, à indústria extrativa e fabril, ao transporte marítimo, fluvial, terrestre e aéreo, aos
serviços de comunicações telegráficas e postais, ao comércio, às ciências e às belas artes”.2
O programa determinava que a Exposição seria realizada no edifício do antigo Arsenal de
Guerra e em suas dependências, bem como em terrenos vizinhos, pertencentes ao Estado e ao
Município, que pudessem ser cedidos. Ali seriam construídos os pavilhões necessários e aproveitados
edifícios existentes que pudessem ser cedidos e adaptados convenientemente. As construções e as
adaptações deveriam ser projetadas por uma comissão de arquitetos, nomeada pelo governo, e,
depois de aprovadas por este, seriam contratadas mediante concorrência pública. Além disso, o
Programa previa também que uma área contígua à Exposição Nacional fosse reservada e cedida
aos governos e industriais estrangeiros que se propusessem a erguer, por conta própria, pavilhões
destinados a exibir seus produtos.
Além da Exposição, o programa previa uma série de realizações, como a inauguração de
monumentos e estátuas, a inauguração do Museu da Independência, que seria instalado em uma
parte do palácio da Quinta da Boa Vista, a cunhagem de medalhas, a emissão de um selo postal,
paradas militares, recepções, celebração de jogos olímpicos, festas infantis, ornamentação e
iluminação da cidade, concertos por bandas musicais em praças públicas, festejos populares, entre
outras. A execução do programa seria promovida e fiscalizada por uma Comissão Executiva, tendo
à frente o prefeito do Distrito Federal, Carlos Sampaio.
Em 4 de fevereiro de 1921, a Comissão Executiva começa a realizar uma série de reuniões,
em um total de 95 sessões, tendo sido a última realizada em 28 de julho de 1922. Nas primeiras
reuniões, ainda em fevereiro, foram traçados os planos de propaganda da Exposição e tomadas
providências relativas à desapropriação dos prédios e terrenos situados na área destinada ao evento.
Em seguida, foram discutidos e aprovados os croquis e planos com o arruamento da área e a
implantação dos pavilhões. O prefeito Carlos Sampaio ficou encarregado do preparo do terreno, da
fiscalização da obra e da execução de todos os projetos.
Após algumas modificações no plano original, a área ocupada pela Exposição acabou sendo a
que ia do Palácio Monroe, ao lado do qual foi colocada a Porta Principal, até a Ponta do Calabouço
e, deste, estendia-se até o Mercado Municipal. O Livro de ouro assim descreve o espaço:
Do velho Passeio Público, o lindo e histórico jardim, até a ponta do Calabouço e daí demandando,
após leve e graciosa curva, a esplanada do Mercado, estende-se a exposição por mais de dois mil
e quinhentos metros, que o visitante percorre entre deslumbrantes monumentos arquitetônicos. Na
sua primeira parte, inteiramente reta, constitui a Avenida das Nações, em que se alinham os palácios
2
PROGRAMA PARA A COMEMORAÇÃO DO CENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL. Rio de Janeiro: Ministério da
Justiça e Negócios Interiores, 1921.
das representações estrangeiras, e que será mais tarde um dos trechos mais famosos da nossa
incomparável urbs. Ao fim dessa avenida, marcando o ângulo da curvatura, levanta-se o torreão do
antigo forte do calabouço, transfigurado em portentosa obra de arte. Mais para além, feita a curva, e
consistindo já na segunda parte do certamen, abre-se a magnífica praça em torno da qual se erigem
os palácios brasileiros, mostruários majestosos de nossa riqueza e de nossa capacidade de trabalho.3
Foi aberto concurso entre arquitetos para uma Porta Monumental, que deveria ser em “estilo
colonial brasileiro”, concurso este vencido pelo arquiteto Morales de los Rios; entretanto, essa
porta acabou não sendo construída.
O projeto foi, então, substituído pelo da Porta Principal, de autoria de Edgar Vianna e Mario
Fertin, que foi edificada entre o jardim do Palácio Monroe e um terreno particular em frente. Na
outra extremidade da exposição foi construída a Porta Norte, de autoria de Raphael Galvão, que
dava entrada diretamente para a seção brasileira. Além dessas duas portas monumentais, existiam
outros pontos de acesso à área da Exposição: um portão para carros situado no começo da Av. das
Nações e dando para a Av. Beira-Mar; uma porta para pedestres entre os Pavilhões de Honra de
Portugal e da Bélgica; uma porta para carroças entre o Pavilhão das Pequenas Indústrias e o das
Indústrias Particulares; o desembarcadouro construído na antiga doca do Mercado, em frente ao
Pavilhão de Caça e Pesca, além de dez portas de serviço, dando todas, direta ou indiretamente, para
a Rua Santa Luzia.
Em junho de 1921, ficou resolvida a criação de uma seção na Praça Mauá, destinada às Grandes
Indústrias, devido à exiguidade de espaço na área da Exposição. Àquela altura, alguns países
estrangeiros já haviam confirmado sua participação e o espaço previsto inicialmente ia mostrando-
se insuficiente. Por conta, aliás, da adesão de vários países estrangeiros, seria alterada depois, pelo
Decreto no 15.509, de 22 de julho de 1922, a denominação da Exposição Nacional Comemorativa
do Centenário da Independência, que passou a ser denominada Exposição Internacional do
Centenário da Independência – Rio de Janeiro.
A Exposição compreendeu 16 seções: (1) Agricultura, (2) Indústria Pastoril, (3) Várias
Indústrias, (4) Comércio, (5) Economia Geral, (6) Economia Social, (7) Estatística, (8) Ensino,
(9) Transportes e Vias de Comunicação, (10) Serviços Públicos, (11) História e Geografia, (12)
Imprensa, (13) Esportes, (14) Arte Militar, (15) Belas Artes, (16) Higiene/Assistência, sendo as
seções subdivididas em grupos e classes.
O Órgão da Comissão Organizadora fez publicar uma revista mensal, em 18 números, intitulada
A Exposição de 1922, que acompanhou todo o desenrolar do evento, desde julho de 1922, quando
saiu o primeiro número. Nesse número, Pádua Rezende anunciava que “o Brasil ia comemorar o
3
LIVRO DE OURO. Op. cit. p. 303.
A preocupação com a imagem do Brasil e com sua situação perante os outros países, em
matéria de progresso e civilização, era recorrente nas argumentações sobre a exposição. Assim,
mostrar, portanto, por forma sumária, os resultados que alcançamos, nas várias esferas de nossa
atividade política, social e econômica, no decorrer destes últimos cem anos, deve constituir
presunção legítima dos dirigentes da atual exposição brasileira, não só para revelar o labor nacional,
mas precisamente, para documentar a nossa perfeita integração ao progresso geral das nações.
Apresentaremos ao mundo os frutos do nosso trabalho, num ciclo de cem anos.6
4
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 1, jul 1922. p. 1.
5
Ibid. p. 1-2.
6
Ibid. p. 2.
7
BRASIL CONTEMPORÂNEO. n. 73, 30 out. 1922.
corrente mês, da Exposição do Centenário, foi a confirmação venturosa desse destino”.8 Com a
ideia de que fazer tudo em cima da hora é uma característica do povo brasileiro, e que isso não
devia ser motivo de vergonha, o articulista descreve a surpreendente situação do dia da inauguração
com bastante ufanismo:
Quando os convidados bateram à porta e invadiram o edifício soberbo, os móveis estavam ainda
pelo meio dos salões, amontoados e cobertos de pó. Essa desordem suntuosa era, entretanto,
necessária. Ela define um povo, o gênio de uma raça, um aspecto de nossa civilização. (…) Aberta
sobre a Avenida Central, em frente ao Monroe, a porta monumental, concluída durante a noite,
espiava ainda a cidade e o mar com a surpresa dos gigantes recém-nascidos. Por onde passam,
agora, os visitantes, passavam há doze horas, os operários fatigados… (…) A Avenida das Nações
é ainda um túmulo. À direta de uma torre faiscante de luzes, a torre de andaimes em que se
trabalha dia e noite (…), aparecem as entranhas dos pavilhões estrangeiros, compostos de tábuas
nuas, de escadas esguias, de vigas entrecruzadas (…). Aberto ao povo, o recinto da Exposição era,
ainda, um campo em que se trabalhava. Dezenas de pavilhões estavam ainda nos alicerces (…).
O que se achava concluído era, porem, já um documento material da nossa capacidade, do nosso
gênio, da nossa energia.9
Entretanto, tudo isso não ofuscou o espetáculo da inauguração, abrilhantada, aliás, pelo
sistema de iluminação, citado em todas as descrições da noite da abertura como atrativo muito
especial. O Relatório dos Trabalhos informa que o serviço de iluminação de toda a Exposição foi
contratado com o engenheiro eletricista inglês W. D’Arcy Ryan, organizador de serviço semelhante
na Exposição da Califórnia, em 1916.10 A instalação foi executada pela General Electric, com a
superintendência de um engenheiro dos laboratórios da empresa em Nova York, e com o auxílio do
engenheiro chefe eletricista da Comissão Organizadora, Roberto Marinho de Azevedo. Os serviços
foram executados em apenas sete meses, mas estavam “acima de qualquer elogio”, causando, no
dia da inauguração, “verdadeiro deslumbramento”.11
Outro destaque da inauguração da Exposição foi o serviço de radiotelefonia e telefone alto-
falante. O discurso inaugural do Presidente da República foi transmitido para as cidades de
Petrópolis, Niterói e São Paulo, bem como ouvido pelo povo, na praça em frente ao Palácio das
8
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 5, set. 1922.
9
Ibid. No período precedente à abertura da Exposição havia gente trabalhando dia e noite em todos os pavilhões. A folha de pagamento do
pessoal empregado na primeira quinzena de agosto de 1922 contava com 5.100 trabalhadores. E, em alguns momentos, somando também os
serviços contratados, não se ficou longe de 10.000 pessoas trabalhando no local.
10
RELATÓRIO DOS TRABALHOS: EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DO CENTENÁRIO 1922-1923. Ministério da Justiça e Negócios
Interiores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1926. 2 v. v. 1, p. 23.
11
Ibid. v. 2, p. 377.
Grandes Indústrias, pelo alto-falante. À noite, tanto nas cidades mencionadas quanto no recinto da
Exposição foi ouvida a ópera O Guarany, executada no Teatro Municipal, em noite de gala.
Outro capítulo à parte no universo da exposição foi aquele das festas. Uma comissão de
festas foi criada “tão logo verificada pelo Comissariado Geral a menor afluência de visitantes à
nossa grande feira internacional, e fiado aquele em que, nesta, poucos eram, ainda, os atrativos à
curiosidade popular”. A comissão estaria “encarregada da organização de divertimento público,
ao alcance de todos e a todos agradáveis, mercê das facilidades de ingresso e da variedade dos
programas de tais festejos.”12 Os trabalhos da comissão parecem ter logo dado frutos:
E, pois, iniciada com a maior eficácia os trabalhos da subcomissão de festas, acentuou-se,
imediatamente, o movimento da Exposição que, hoje em dia, cada vez mais, se impõe a visita dos
forasteiros, como de todo o elemento social carioca, que ali se distrai, quase diariamente, festejando
os países amigos, ou aplaudindo os artistas nacionais, ou, ainda, admirando o bom gosto do nosso
alto mundo elegante, em curso pela vasta e belíssima Avenida das Nações.13
Ao todo, no Relatório dos Trabalhos, são citadas mais de 200 solenidades e festas ocorridas
no período de 7 de setembro de 1922 a 24 de julho de 1923, organizadas tanto pela direção do
certâmen, quanto pelos comissariados estrangeiros. Foram inúmeros banquetes, festas, chás,
bailes, almoços, além da inauguração dos diversos pavilhões, sessões inaugurais dos Congressos,
visitas de autoridades e presidentes de Estados, solenidades e atividades variadas, realizadas
nos dias de homenagem a cada um dos países participantes, distribuição de brinquedos para
crianças em dias determinados, apresentação de filmes em cinemas gratuitos, colação de grau
de formandos de escolas superiores, festivais literários e musicais, passeata carnavalesca e de
carros alegóricos, bailes a fantasia, exposição de flores e frutas, touradas, corsos de carruagens,
corso de cães, apresentação das bandas do Exército, da Marinha, da Polícia Militar e do
Corpo de Bombeiros, espetáculos pirotécnicos diurnos e noturnos. Algumas comemorações
especiais, como a comemoração do Dia da Bandeira, a missa campal na véspera de Natal, a
“Festa Veneziana”, na enseada de Botafogo, ou a “Noite Sertaneja”, organizada pelo folclorista
Cornélio Pires, no palácio das Festas, ficaram igualmente registradas. Concertos ao ar livre
foram realizados todas as noites, nos meses de janeiro a junho, tendo apresentações também à
tarde, aos sábados e domingos.
Além de toda essa efervescência, havia, também, o Parque de Diversões. Apesar de ter sido
inaugurado somente em 22 de novembro de 1922, foi considerado “reduto incomparável da alegria
12
Ibid.
13
Ibid.
e da graça carioca”.14 Sua abertura fora “esperada com verdadeira sofreguidão pelos frequentadores
da nossa grande feira universal”, passando a ser “o ponto para onde afluem todos os que se desejam
divertir, em nossa urbs”, e estando para tal “sobejamente aparelhado para atender a todos os gostos
e, até mesmo, todas as exigências dos que procuram diversões inéditas”.15 O Brasil Contemporâneo
afirmava que,
dispostos a organizar um parque que em nada fosse inferior aos das mais adiantadas cidades dos
Estados Unidos e da Europa, os Srs. Fernandes Lopes e Cia tanto se esmeraram na construção
artística, que foi executado pelo competente engenheiro, Sr. Morales de los Rios, como também na
aquisição dos mais variados aparelhos modernos, europeus e americanos.16
14
BRASIL CONTEMPORÂNEO. n. 74, dez. 1922.
15
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 10-11, dez. 1922.
16
BRASIL CONTEMPORÂNEO. n. 74, dez. 1922.
17
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 2, ago. 1922. p. 19.
18
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 6-7, out .1922. A capacidade do estádio era de 40.000 pessoas.
Em março de 1922 foi aceita a proposta para o serviço de passeios aéreos sobre a Exposição, formulada por O. Hoover. Cf. RELATÓRIO
19
gratuita para as visitas às seções industriais da Praça Mauá, onde o público terá ocasião de conhecer
os mais modernos maquinismos e os melhores produtos fabris dos países representados no grande
certamen. No pavilhão americano da Av. das Nações, funcionará, diariamente, das 10h da manhã às
9h da noite, um cinematógrafo interessantíssimo e gratuito.20
Carolina Nabuco conta ainda que, apesar de muito ocupada escrevendo sobre a vida do pai,
Joaquim Nabuco, continuava “a reservar as horas da noite para visitar a Exposição, a exemplo do
que faziam os cariocas em geral”.23 A coluna A Exposição Mundana confirma esse hábito que os
cariocas incorporaram ao seu dia a dia:
Continua a Exposição a merecer as preferências da alta sociedade carioca, para as suas reuniões
de arte e elegância, em as quais não se sabe que mais admirar, se o bom gosto das festividades
artísticas levadas a efeito, naquele local, se a beleza e a graça das nossas encantadoras patrícias,
que, redoirando e perfumando, a um tempo, com seus encantos e ademanes, o esplendor do
meio ambiente, passeiam o recinto do nosso grande certamen internacional, enlevando o
espírito de quanto se quedam, maravilhados, em deliciosos êxtases, diante do Bello, nas suas
várias manifestações.24
20
BRASIL CONTEMPORÂNEO. n. 77, mar. 1923.
21
BRASIL CONTEMPORÂNEO. n. 78, mai. 1923. A revista oferece a descrição detalhada de vários deles.
22
NABUCO, Carolina. Oito décadas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 85.
23
Ibid. p. 85.
24
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 10-11, dez. 1922. A Exposição Mundana era uma espécie de coluna social desta revista que trazia a descrição
das principais festas e “badalações” ocorridas no mês.
A Exposição de Centenário contava também com uma seção dedicada às Belas Artes, e duas
grandes exposições foram realizadas no edifício da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA),
sua sede oficial, que para abrigá-las sofreu algumas reformas e adaptações. A Exposição de Arte
Retrospectiva apresentava coleções de móveis de várias épocas, pinturas de paisagens, costumes e
retratos, esculturas em mármore, bronze e gesso, gravuras de medalhas e camafeus, além de gravuras
e litografias. A Exposição de Arte Contemporânea veio substituir a Exposição Geral de Belas Artes
que, anualmente, era realizada no edifício da Escola, apresentando trabalhos nas seções de pintura,
escultura, arquitetura, gravuras de medalhas, gravuras e litografias e de artes aplicadas. Tomando
caráter internacional, ela foi acrescida das seções de Arte Belga e de Arte Portuguesa, tendo sido,
esta última, organizada por um comissariado português e realizada no pavilhão daquele país.
O Relatório dos Trabalhos traz uma lista de 80 edificações que foram utilizadas para a
Exposição, tanto as construídas especialmente para o evento quanto aquelas que surgiram de
reformas e adaptações. Apesar de a Exposição do Centenário ter sido um cenário privilegiado para
o neocolonial, notabilizando-se por várias construções que seguiram essa tendência, o ecletismo
tradicional ainda tinha forte presença e caracterizou muitos outros prédios do conjunto.
Assim, entre os pavilhões nacionais que foram construídos dentro da “moderna” tendência
neocolonial, podemos destacar a Porta Norte ou Colonial, de Raphael Galvão; o Palácio da Fiação,
de Morales de los Rios Filho, originalmente destinado à Viação e Agricultura; o Pavilhão de Caça
e Pesca, de Armando de Oliveira; e o Pavilhão das Pequenas Indústrias, de Nestor de Figueiredo.
Havia, ainda, o Palácio das Grandes Indústrias, que hoje abriga o Museu Histórico Nacional, e que
surgiu de uma adaptação realizada no conjunto do Antigo Arsenal de Guerra, da Casa do Trem e do
Forte do Calabouço pelos arquitetos Archimedes Memória e Francisque Cuchet.
Entre os pavilhões nacionais mais ligados ao ecletismo tradicional se destacavam a Porta
Principal, de Mario Fertin de Vasconcelos e Edgard Vianna; o Pavilhão do Distrito Federal ou
Administração, de Silvio Rebecchi; o Palácio dos Estados, de H. Pujol Junior, auxiliado por
Manuel Campelo; o Palácio das Festas de Archimedes Memória e Francisque Cuchet; o Parque
de Diversões, de Adolfo Morales de los Rios; o Pavilhão de Estatística, de Gastão Bahiana; o
Pavilhão da Música, de Nestor de Figueiredo; o Restaurante Oficial, de Andrade Lima e S. Martins
de Souza; o Pavilhão das Indústrias Matarazzo, de Ricardo Buffa e Alcides Ballariny; e o Pavilhão
da General Electric, de Archimedes Memória e Francisque Cuchet. O Pavilhão das Indústrias
Particulares, de autoria de Nestor de Figueiredo e Armando de Oliveira, era uma adaptação de
uma das alas do Mercado Municipal.
Entre os pavilhões estrangeiros no recinto da exposição estavam o da Argentina, o dos Estados
Unidos, o do Japão, o da França, o da Grã-Bretanha, o da Itália, o da Dinamarca, o do México,
Bom, mas a festa tinha que acabar… Seu término foi adiado ao máximo, mas era inevitável.
Pelo Decreto no 15.935, de 24 de janeiro de 1923, o prazo de funcionamento da Exposição havia
sido prorrogado de 31 de março para 2 de julho do mesmo ano. Havia sido um “ato do governo, (…)
que viera repercutir agradavelmente na opinião pública do país e entre os comissários estrangeiros
da Exposição”, uma vez que, quando tomada essa decisão, em fins de 1922, “diversos pavilhões
estrangeiros ainda estavam por se inaugurar”.28
No dia 28 de junho o ministro da Justiça e Negócios e sua esposa ofereceram um baile de
despedida aos delegados estrangeiros, realizado no Palácio das Festas, e no dia 30 do mesmo mês
ofereceram aos delegados dos Estados uma festa no terraço do Palácio dos Estados. No dia 2 de
julho foi considerada oficialmente encerrada a Exposição, mas, para atender a um grande número
de pessoas que desejavam ainda visitá-la, o recinto continuou franqueado ao público, mediante
pagamento de 1$, apesar de todos os palácios estarem fechados, com exceção do Pavilhão de
Portugal, que só cerrou suas portas em 31 de julho. A sessão solene de encerramento foi realizada
na noite de 24 de julho, no Palácio das Festas.
A Exposição foi visitada, de 7 de setembro de 1922 a 2 de julho de 1923, por 3.626.402, com
uma média diária de mais de 12 mil visitantes.29 O mês de janeiro foi o de maior frequência, com
514.388 visitantes, e o de fevereiro o de menor, com 197.859. Afora os dias de entrada gratuita,
como o da inauguração, o de Natal e o de Ano Novo, entre outros, foi o dia de 1o de julho o de
maior afluência, com 73.748 visitantes.30 O preço da entrada era de 1$, sendo que a partir de abril
de 1923 passou a custar $500. Nos dias de abertura e encerramento e quando houvesse fogos, era
de 2$ a 5$. Havia também como fazer assinaturas mensais. Os automóveis pagavam 10$, tendo o
valor sido depois reduzido para de 2$ a 5$.31
Encerrada a Exposição, foi logo iniciada a demolição de muitas construções. Era inevitável…
Como foi descrito eloquentemente no Livro de ouro,
esse conjunto deslumbrante de palácios, jardins, estátuas e pórticos da Exposição Internacional do
Centenário terá que ruir à ação das mesmas forças que o elevaram um surto admirável de energia
construtora. Erguido como um sonho, como um sonho desaparecerá o certamen glorioso. Mas, nem
todos os seus grandes monumentos se confundirão, em destroços, na poeira das demolições. Alguns
desses palácios ficarão como clara lembrança do que foi aquela festa maravilhosa da civilização.
28
A EXPOSIÇÃO DE 1922. n. 10-11, dez. 1922. De fato, grande parte dos pavilhões estrangeiros só foi inaugurada em fins de dezembro de
1922, como os norte-americanos e portugueses, ou já no início de 1923, como o argentino.
29
RELATÓRIO DOS TRABALHOS. v. 1, p. 41.
30
Ibid. p. 723-725.
31
Ibid. p. 708.
Incorporados para sempre ao esplendor da Urbs palpitante, serão eles para o futuro a memória viva,
uns, da alma cavalheiresca dos povos amigos que no-los ofertaram, outros da capacidade criadora
do homem brasileiro.32
Assim, foi iniciada de imediato a demolição dos pavilhões particulares, das portas Principal e
Norte, do Pavilhão das Pequenas Indústrias e do da Música e da Fachada do Mercado, que havia
sido adaptada para a Exposição. Os pavilhões estrangeiros da Praça Mauá também foram logo
demolidos, sendo que o brasileiro e o italiano eram apenas adaptações de armazéns externos do
cais do porto, tendo sido retiradas as fachadas, especialmente construídas para servir à Exposição.
Os edifícios nacionais, cuja construção era de caráter permanente, tiveram naquele momento a
seguinte destinação:33 no Palácio da Fiação ficaram instalados o Conselho Superior de Comércio,
a Associação Comercial, a Junta Comercial e a Câmara de Comércio Internacional e do Brasil;
o Pavilhão do Distrito Federal,34 depois de sofrer importante reforma, passou a ser sede do
Instituto Médico Legal; no Palácio dos Estados, a Secretaria de Estado de Agricultura, Indústria e
Comércio; no Palácio das Grandes Indústrias, a Revista do Supremo Tribunal Federal e o Museu
Histórico ocuparam as duas principais partes, sendo que a torre passou a ser observatório do
serviço meteorológico; no Palácio das Festas ficou funcionando o Serviço de Inspeção e Fomentos
Agrícolas; o edifício do Restaurante Oficial ficou com a Polícia Militar; o Pavilhão de Caça e Pesca
foi destinado a uma dependência do Corpo de Bombeiros; no Pavilhão da Estatística instalaram-se
vários serviços de Saúde do Porto; e o edifício principal do Parque de Diversões foi entregue ao
Ministério da Guerra para instalação de várias de suas repartições.
Os pavilhões estrangeiros doados ao Governo Brasileiro foram assim destinados: o da Noruega
foi ocupado pelo Patronato de Menores; o da Tchecoslováquia pela Rádio Sociedade e pela
Academia de Ciências; o do México pelo Conselho Nacional do Trabalho e pela Diretoria Geral da
Propriedade Industrial; o da Grã-Bretanha pelo Museu Comercial e Agrícola (em organização); e o
da Argentina pela Liga de Higiene Mental, pela Associação Brasileira de Medicina, pelo Instituto
Politécnico e pelo Instituto dos Docentes Militares.35 O Pavilhão de Honra da França foi doado à
Academia Brasileira de Letras. O Livro de ouro assim se refere à doação:
O admirável pavilhão da França seria um crime que desaparecesse. Obra de arte das mais puras
de quantas ornamentarão a formosa avenida à beira-mar no trecho ainda ocupado pelo certamen,
32
LIVRO DE OURO. Op. cit. p. 322.
33
Optamos por mencionar os usos registrados no Relatório dos Trabalhos. O Livro de ouro traz, em alguns casos, informações divergentes.
34
Esse pavilhão era de caráter provisório, mas acabou sendo mantido, chegando até os nossos dias.
35
O Livro de ouro previra inicialmente a desmontagem desse palácio e sua recondução para Buenos Aires, afirmando ser “de construção
transitória, não obstante o luxo de beleza com que foi erguido”. LIVRO DE OURO. Op. cit. p. 322.
foi um régio presente que nos fez o governo da França, confiando-o ao carinho da nossa mais alta
agremiação de homens de letras. A Academia Brasileira encontrará ali o ambiente de espiritualidade
que a sua nobre função exige”.36
O Pavilhão Japonês foi doado à Prefeitura do Distrito Federal e mantido por algum tempo
abrigando uma escola de aperfeiçoamento técnico. O Pavilhão Norte-Americano passou, como
fora previsto desde o início, a constituir a sede da Embaixada dos Estados Unidos. Continuavam
de posse do respectivo comissariado, à época do Relatório dos Trabalhos, os dois pavilhões de
Portugal, e de posse da Embaixada da Itália o pavilhão principal desse país.
Ao longo dos anos e das décadas seguintes, a grande maioria dessas construções foi
desaparecendo por completo. Os edifícios que ainda existem são o do Pavilhão do Distrito Federal,
hoje sede do Museu da Imagem e do Som; o do Pavilhão de Estatística, hoje Centro Cultural da
Saúde; o do Pavilhão de Honra da França, hoje sede da Academia Brasileira de Letras; o do Antigo
Arsenal de Guerra e da Casa do Trem, hoje sede do Museu Histórico Nacional; e o do Pavilhão das
Indústrias de Portugal, que foi reconstruído no Parque Eduardo VII, em Lisboa.
36
LIVRO DE OURO. Op. cit. p. 322.
37
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano I, v. 1, n. 3, dez. 1921. p. 95.
o que acima de tudo torna ingrata e infecunda, na nossa Capital, a profissão do arquiteto, é esta
praxe enraigada de executar por empreitada, entregue pelo menor preço, ao mestre de obra, o
projeto organizado por qualquer desenhista, a se intitularem os dois de arquitetos.38
A arquitetura carioca era muito criticada pela classe dos arquitetos naquele momento. A cidade
era vista como possuindo “aleijões tradicionais que enfeiam a nossa urbanização”.39 Se comparada
a outras capitais sul-americanas, e mesmo a São Paulo, a “capital da maior República” ficaria em
desvantagem, atrás mesmo das “cidades africanas levantadas por colonos franceses, belgas ou
ingleses, que apresentam arquitetura bem superior ao Rio”.40 Mesmo as iniciativas de Rodrigues
Alves e Pereira Passos eram consideradas, quase 20 anos depois, intervenções de embelezamento da
cidade, mas sem a devida preocupação com a qualidade da construção, “gastando rios de dinheiro
para edificar sem arte e sem proporção”.41
É diante dessa realidade que os arquitetos passam a considerar “necessário e imprescindível”
que se instaure um “movimento de reação bem orientada contra essa calamidade pública”.42 A
revista Architectura no Brasil43 assume um papel de destaque na campanha iniciada, sendo vista
como um órgão de defesa dos interesses dos arquitetos. Como articulistas da revista, os arquitetos
encontram um espaço privilegiado para abordar uma série de temas que revelam as preocupações, as
dificuldades e os desafios por eles enfrentados. Ela se tornou também porta-voz das duas entidades
de classe criadas em 1921, o Instituto Brasileiro de Arquitetos (IBA) e a Sociedade Central de
Arquitetos (SCA), entidades cuja criação revela muito claramente a necessidade de uma união de
forças entre esses profissionais que buscam sua posição na sociedade.
Os arquitetos estavam engajados na luta para que os projetos e a construção dos prédios fossem
obrigatoriamente a eles atribuídos. Acusações sistemáticas eram feitas ao governo e também a
particulares por “desconhecerem a verdadeira função do arquiteto”, a culpa maior recaindo sobre
as autoridades públicas, a quem caberia “o dever de chamar os artistas a dirigir os serviços de sua
especialidade”,44 bem como a responsabilidade de elaborar leis que garantissem a propriedade
artística do arquiteto.
38
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano I, n. 1, out. 1921. p. 4.
39
Ibid. p. 25.
40
Ibid. p. 19.
41
Ibid. p. 19.
42
Ibid. p. 152.
A revista Architectura no Brasil tinha M. Moura Brasil do Amaral como diretor proprietário e sua redação estava instalada no no 103 da
43
Avenida Rio Branco, 2o andar, sala 2. Teve seu primeiro número editado em outubro de 1921 e continuou a ser editada até 1926.
44
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano I, n. 1, out. 1921. p. 4.
De todo modo, apesar desse esforço classificatório, fica claro, também, que a denominação
não é o mais importante. É recorrente a ideia de que não importa como o estilo seria chamado,
mas sim que teria de ser algo novo. O neocolonial não era visto como um estilo que tivesse fim
em si mesmo, mas como uma busca de elementos essenciais para a formação de algo novo, não
importando assim como fosse chamado, mas sim a sua essência…
Se, de certo modo, essa consciência da transição aproxima o neocolonial do ecletismo –
lembremos aqui o pensamento de César Daly, de que o ecletismo não era outra coisa que “la
recherche et la préparation de l’avenir, accomplis au milieu des ruine du passé”,48 ou a afirmação
de Víctor Cousin, de que, mesmo que o ecletismo não criasse um estilo novo, seria útil para a
transição do historicismo para a arquitetura do futuro –,49 o neocolonial parece, entretanto, estar
mais convicto da concretização do novo.
Por outro lado, o neocolonial era, também, por vários arquitetos, associado ao modismo,
como mais uma possibilidade no elenco de estilos a serem adotados de acordo com a conveniência
do projeto ou o gosto do cliente. Essa ideia foi associada a uma certa futilidade, ou interesse
mercenário, como insinuou certa vez Lucio Costa em relação ao arquiteto Heitor de Mello. O
neocolonial, sem convicção, seria fútil e oportunista. Iria contra as implicações éticas que uma
escolha estilística podia e devia representar.
Parece então que, de fato, o neocolonial esteve ligado a duas vertentes distintas: de uma parte,
a busca por algo novo, afastado da cópia acrítica de modelos existentes, comprometido com a
autenticidade e a funcionalidade; de outro, amalgamado ao ecletismo, entendendo este como
sinônimo de “indiferentismo”. Na primeira vertente, a busca pelos “elementos essenciais” do colonial
como inspiração para a nova arquitetura - a adequação ao clima, a adaptação ao meio e à função,
a simplicidade, a sobriedade, a verdade, o essencial em detrimento do supérfluo -, vai apontar o
caminho do racionalismo. Na segunda vertente, é a última gota em um copo já transbordante.
Outra questão importante a ser abordada ainda dentro desse contexto é a relação dos
arquitetos com as construções do período colonial. Constata-se a preocupação da SCA com a
“defesa da arquitetura pátria”, tentando proteger prédios históricos que estivessem correndo risco,
defendendo a salvaguarda do patrimônio histórico ameaçado em cidades distantes no Brasil. Em
nota da SCA publicada na Architectura no Brasil de junho/julho de 1922, por exemplo, é possível
saber que “continuando sempre o seu programa de defesa dos monumentos nacionais de arte a
Sociedade resolveu, por proposta do Sr. A Morales de los Rios, Filho, enviar um ofício ao Sr.
48
“a busca e a preparação para o futuro, efetuada em meio às ruínas do passado”. DALY, César. Revue Générale de L’Architecture et des
Travaux Publics. Paris: Ducher et Cie, 1840-1887. v. 32. p. 126.
49
COLLINS, Peter. Los ideales de la arquitectura moderna; su evolución (1750-1950). Barcelona: Gustavo Gilli, 1970, 1998. p. 119.
Prefeito de Santo Ângelo, pedindo a sua intervenção a fim de evitar as depredações que estavam
sendo feitas na igreja de São Miguel.”50 Em outro momento interferem na limpeza que estava
sendo feita na fachada de lioz da igreja da Ordem do Carmo no Rio. A Comissão Executiva do
Centenário, por sua vez, resolveu “envidar todos os esforços” a fim de se salvarem da ruína os
edifícios de Ouro Preto.
Durante uma reunião do Comitê Nacional do II Congresso Pan-Americano de Arquitetos,
Morales de los Rios pede apoio para a iniciativa da Sociedade de reunir documentos fotográficos
dos monumentos arquitetônicos do século XVIII. Para tanto, a SCA já havia se dirigido
oficialmente aos governadores dos Estados nos quais existissem tais monumentos e Armando
de Oliveira sugere que o Comitê “se dirija às pessoas que têm demonstrado interesse pela arte
nacional e que residam nas proximidades desses monumentos, que auxiliem a ação do governo e
o esforço do Comitê para que o ensino de nossa documentação de arte tradicional seja digno do
valor dos nossos monumentos.”51
O parecer do IBA sobre o projeto para um restaurante envidraçado no Passeio Público é outro
documento que mostra haver, entre os arquitetos, consciência em relação à necessidade de defender
o patrimônio. Gastão Bahiana pondera que o terraço do jardim “com suas escadarias, balaustradas
e fonte dos jacarés, são primores do século XVIII, que nós brasileiros, orgulhosos de nossos
antepassados devemos respeitar com carinho e admirar com profunda veneração”. Mostrando a
importância de salvaguardar esse patrimônio, o arquiteto prossegue afirmando que “a nossa cultura
é bastante vasta para compreender o valor das tradições na formação de um povo”, para depois
concluir que “as relíquias só deverão ser transferidas ou demolidas em caso excepcional de defesa
pública, quer seja ele militar ou sanitária”.52 Também a proposta de projeto de um plano geral
para a cidade apresentada à prefeitura em 1923, pelo IBA, determinava que na planta cadastral da
cidade deveriam ser assinaladas “todas as construções cujo valor intrínseco, artístico e histórico
desaconselhe a demolição.”53
Ironicamente, quase nada é mencionado a respeito da demolição dos marcos da cidade no
Morro do Castelo, mas noticia-se uma “excursão arqueológica” ao morro promovida pela SCA.
Assim, “por ocasião desse passeio de estudos o Sr. professor A. Morales de los Rios fez a leitura
de um estudo histórico sobre a origem da cidade”, bem como “vários associados apanharam em
esboços a lápis os aspectos e detalhes de arquitetura existentes não somente na igreja como também
50
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano I, v. 2, n. 9-10, jun. e jul. 1922. p. 51.
51
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano II, v. 5 n. 22, jul. 1923. p. 110-111.
52
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano I, n. 1, out. 1921. p. 33.
53
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano II, v. 4, n. 21, jun. 1923. p. 67
em alguns edifícios isolados”. Havia a intenção de que esses esboços, junto com fotografias,
fossem publicados em volume especial, precedidos do estudo de Morales de los Rios e com a
“colaboração crítica e histórica na parte arquitetônica de vários associados”, iniciativa que a SCA
considerava “relevante serviço à arquitetura pátria fazendo justiça às obras de arte que são dignas
da nossa homenagem.”54
Talvez a maior ambiguidade do neocolonial esteja aí: no fato de sua defesa acontecer ao
mesmo tempo em que marcos iniciais da cidade colonial estavam sendo eliminados. Os interesses
imobiliários e de expansão da cidade sobrepujaram a tradição, com o desmonte do Morro do Castelo,
e a Exposição funcionou nesse contexto como a legitimação para tal intervenção. A figura de Carlos
Sampaio simboliza a controvérsia entre o desprezo pelo Castelo e o incentivo ao neocolonial na
arquitetura da Exposição, como se pudesse estar sendo oferecido algum tipo de compensação…
Assim, o colonial até devia existir, mas um colonial renovado, saneado. O desmonte do Castelo
passa a ser visto como um “mal necessário”.
Mas fica claro que a preocupação com a preservação do patrimônio histórico arquitetônico
já estava mais do que esboçada por esta geração. Atribuída geralmente aos modernistas, isto é, a
uma geração posterior, a defesa do patrimônio já fazia parte, sim, da consciência da geração de
arquitetos dos anos 1920.
O ano de 1922 foi um ano memorável para a cidade do Rio de Janeiro e a Exposição do
Centenário ocupa lugar de destaque como evento emblemático em muitos aspectos. Com relação
à arquitetura, revela-se um cenário privilegiado para a análise do momento de transição entre o
ecletismo e o modernismo na cidade, incluindo aí o movimento neocolonial.
54
ARCHITECTURA NO BRASIL. Ano I, v. 1, n. 2, nov. 1921. p. 82.
As paisagens têm história, sejam elas naturais ou culturais. A complexa trajetória de ocupação
dos espaços pelas sociedades humanas apresenta marcas, sinais, legados que possibilitam ao
observador arguto interpretar os processos históricos, em determinado recorte espacial e temporal.
Entretanto, no contexto das ações antrópicas sobre a paisagem, podemos ressaltar as transformações
radicais implantadas em certo espaço de tempo. Tais ações não alteram simplesmente a paisagem,
mas também os itinerários de circulação de bens e pessoas, e, principalmente, alteram as relações
humanas, redefinindo espaços e práticas.1 De acordo com Maurício Abreu:
A cidade é uma das aderências que ligam indivíduos, famílias e grupos sociais entre si. Uma
dessas resistências que não permitem que suas memórias fiquem perdidas no tempo, que lhes dão
ancoragem no espaço.2
em terras coloniais tropicais. Os colonizadores portugueses adotaram, em parte, a forma de vida dos
nativos e colonos, mantendo regionalmente suas vinculações com os cânones europeus, adaptando-
os ao Novo Mundo. Tais modalidades de relacionamento entre o homem e a natureza deixaram
vestígios, por vezes evidentes, por vezes, discretos, nas paisagens de Pindorama ou da terra brasilis.
Herdeiros de uma longa tradição medieval-renascentista, os colonizadores portugueses
transferiram para as regiões coloniais da América o costume da construção de redutos fortificados
em posições elevadas do terreno, adaptando-os às condições da terra, com o objetivo defensivo e
de observação das cercanias. Diante das hostilidades externas, os redutos fortificados foram pontos
de referência estratégicos para a implantação dos empreendimentos de conquista e exploração de
vastos territórios. Segundo o historiador Sérgio Buarque de Holanda, os portugueses procuraram
adaptar a lógica dos baluartes medievais às condições topográficas das áreas coloniais, resultando
em um tipo peculiar de urbanização, seguindo as linhas gerais do relevo, de acordo com as
características topográficas dominantes.3 Entretanto, mesmo com a adoção de tais preceitos de
adaptabilidade ao meio geográfico, ao lado dos progressivos desmatamentos, podemos enfatizar
que não foram poucas as intervenções no espaço colonial ‒ tais como drenagem de pântanos,
3
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 120.
realização de aterros, arrasamento de morros e desvio de cursos d’água ‒, definindo novos espaços
e alterando dinâmicas ambientais, com profundos impactos socioeconômicos. Sobre a aventura
colonial, diz Sérgio Buarque:
Nas formas de vida coletiva podem assinalar-se dois princípios que se combatem e regulam
diversamente as atividades dos homens. Esses dois princípios encarnam-se nos tipos do aventureiro
e do trabalhador. [...] Para uns, o objeto final, a mira de todo o esforço, o ponto de chegada,
assume relevância tão capital, que chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos, todos os
processos intermediários. Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore. [...] Esse tipo humano
ignora fronteiras.4
De acordo com Lewis Mumford, as cidades fortificadas desempenhavam não apenas funções
defensivas, mas também eram pontos de referência na paisagem, orientando o fluxo das atividades
produtivas.5 Lisboa, capital do Reino de Portugal, metrópole colonial, desenvolveu um modelo
de urbanização peculiar, ainda na Antiguidade, por meio da ocupação fortificada de suas colinas
à margem do estuário do Tejo, estabelecendo uma dicotomia entre a “acrópole” e a “ribeira”, ou
seja, entre a cidade alta, núcleo de exercício do poder político e religioso, e a cidade baixa, locus
por excelência das atividades mercantis. A mesma dualidade pode ser constatada em Salvador, na
Bahia, fundada em 1549, primeira capital do governo geral da colônia. Na cidade alta, os prédios
administrativos, o casario nobre, além das inúmeras edificações eclesiásticas; na cidade baixa, os
espaços da sociabilidade mercantil, diante da paisagem inebriante da Bahia de Todos os Santos.
Segundo a historiadora Laura de Melo e Souza, os pousos de viajantes e as fortificações
tiveram papel decisivo no povoamento da América portuguesa. No caso das feitorias e fortificações
litorâneas, além da função defensiva tradicional, podemos observar a sua importância como locais
de armazenagem de gêneros para exportação e, notadamente, como pontos de abastecimento de
embarcações, durante suas escalas nas travessias oceânicas.6 À medida que o império colonial
ultramarino lusitano se expandia em áreas da América, da África e pelo Oriente, foi intensificado o
fluxo de navegação para as Índias e no rumo das feitorias africanas, circunstância que resultou na
maior dinamização de pontos de apoio no litoral da terra brasilis, fornecendo água potável e víveres
para as frotas que demandavam Angola, Moçambique e os enclaves comerciais portugueses na
Índia e na China (Macau). Tais feitorias, baluartes fortificados, eram também o ponto de partida das
4
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 44
5
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 274.
6
SOUZA, Laura de Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: SOUZA,
Laura de Melo e (Org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004. p. 50-51.
expedições para o reconhecimento do sertão, além de atuar como via de escoamento das matérias-
primas extraídas, bem como da produção agrícola das regiões coloniais.
O Rio de Janeiro nasceu da necessidade premente de ocupação de um território estratégico,
disputado por franceses e portugueses, em meados do século XVI.7 Cidade-porto, situada no
interior da Baía de Guanabara, São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada em 1º de março de
1565, por Estácio de Sá, “sobrinho” do fidalgo Mem de Sá, então Governador-geral do Brasil.
O estabelecimento original, ainda precário, teve lugar em uma praia próxima à barra da baía
em questão, entre o penedo chamado Pão de Açúcar e o Morro Cara de Cão, área naturalmente
fortificada. O primeiro núcleo urbano foi provisório, com modestas edificações de pau-a-pique,
erguidas em meio aos combates entre portugueses e franceses. Os portugueses contavam com o
apoio dos índios Temiminó e os franceses haviam estabelecido uma aliança com os índios Tamoio.
Por motivos de ordem prática e de natureza estratégica, a cidade em pauta foi transferida,
em 1567, para um local mais seguro: o Morro do Descanso, mais tarde conhecido como Morro
do Castelo, mais para o interior da Baía de Guanabara.8 Após as vitórias portuguesas sobre os
franceses nos redutos de Paranapuan (Ilha do Governador) e no outeiro de Uruçumirim (Glória), a
França Antártica foi desarticulada, ocasionando a fuga dos franceses remanescentes para a região
de Cabo Frio. Dessa forma, era necessário estabelecer um núcleo urbano fortificado, definitivo,
para salvaguardar a soberania portuguesa sobre o território, bem como sobre as rotas marítimas.
O Morro do Descanso ou do Castelo, mais abrigado, menos exposto aos possíveis ataques de
esquadras inimigas que entrassem pela estreita barra da Baía de Guanabara, estava situado entre o
mar e extensas várzeas, terrenos alagadiços entrecortados por lagoas e pântanos. Dentre as razões
alegadas pelos portugueses para a escolha do referido sítio para a fixação da cidadela fortificada,
podemos ressaltar a posição estratégica do morro, tanto para a observação dos arredores, como
para a defesa do canal de acesso ao interior da baía.9 A existência de uma fonte de água potável
no alto do outeiro também foi fator determinante para a decisão de edificar a cidadela em tal
7
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. O Rio de Janeiro no século XVI. Edição original do 4º centenário de fundação da cidade do Rio de Janeiro
[1965]. Rio de Janeiro: Andrea Jacobson Editora, 2010. p. 65-66. A França Antártica, estabelecimento colonial francês situado desde 1555
na Ilha de Serigipe, na Baía de Guanabara, foi obra de Nicolas Durand de Villegagnon. Sobre a saga dos franceses na região ver: LÉRY, Jean
de. História de uma viagem feita à terra do Brasil, também chamada América [1578]. Coleção Franceses no Brasil (séculos XVI e XVII).
Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2009.
8
COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1965. p. 49. A questão da transferência do núcleo
urbano original – a chamada Vila Velha – das proximidades do Pão de Açúcar para o Morro do Descanso, mais interiorizado na Baía de
Guanabara foi o resultado de uma decisão estratégica: não seria seguro ter a cidadela tão próxima à barra, em virtude da possibilidade de
invasões estrangeiras e de ataques indígenas. Além do fator segurança, a Vila Velha sofria também com a falta de água potável. Do alto do
Morro do Descanso os portugueses avistariam mais facilmente os inimigos.
9
FERREZ, Gilberto. O Rio de Janeiro e a defesa de seu porto. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1972. p. 23-25.
das fortalezas da barra, invadiu a cidade e aquartelou parte de suas tropas no Morro do Castelo.
Segundo a tradição e com base nas memórias de Du Plessis-Parceau, oficial francês a serviço
de Duguay-Trouin, diante da chegada repentina dos franceses, os padres jesuítas teriam enviado
para a Europa um bergantim carregado de “ouro e outras riquezas”, temerosos dos saques e das
pilhagens que ocorriam na cidade ocupada. Após muitas negociações, os franceses deixaram o Rio
de Janeiro, após o pagamento de um vultoso resgate.13
Como dissemos anteriormente, a Companhia de Jesus foi uma instituição eclesiástica pioneira
na ocupação do território colonial do Rio de Janeiro, instalando seu colégio no Morro do Castelo em
1567. Entretanto, por motivos de ordem política, em 1759, os jesuítas foram expulsos de Portugal
e seus domínios por decreto do Marquês de Pombal, ministro do rei d. José I. Os bens da ordem
foram confiscados pela Coroa. Fazendas, engenhos, colégios, missões, casas térreas e sobrados,
dentre outros imóveis, foram confiscados à Companhia de Jesus e incorporados ao patrimônio
régio ou vendidos em leilão. O Colégio dos Jesuítas e a Igreja de Santo Ignácio, no Morro do
Castelo, foram arrestados por ordem da Metrópole.14
Em meados do século XVIII, a política pombalina se fez sentir de forma contundente na
América portuguesa. O Rio de Janeiro havia se convertido na principal cidade-porto dos domínios
portugueses do sul, principalmente em virtude da exploração aurífera na capitania de Minas Gerais.
Segundo Charles Boxer, até 1720 os carregamentos de ouro desciam dos sertões das Gerais em
tropas de mulas, pelo Caminho Velho, tendo como porto de escoamento a Vila de Nossa Senhora
dos Remédios de Paraty.15A partir de 1720, com a abertura do Caminho Novo, atravessando a Serra
dos Órgãos na direção das Minas Gerais, o Rio de Janeiro passou a ser um núcleo administrativo
mais estratégico ainda, ao lado de sua tradicional reputação mercantil. Além da questão das
minas, havia a necessidade de vigilância das “repartições do Sul”, nas fronteiras oscilantes com
os domínios castelhanos, em conjunto com as preocupações portuguesas com a garantia do acesso
ao estuário do Rio da Prata, via de penetração fundamental para a capitania de Mato Grosso, no
coração da América portuguesa.
Assim, em 1763 o Rio de Janeiro foi elevado à categoria de capital do Vice-Reino do Estado
do Brasil, substituindo Salvador, na Bahia, capital da colônia desde 1549. Antônio Gomes Freire de
Andrade, Conde de Bobadela, então Governador e Capitão-general do Rio de Janeiro desde 1733,
havia sido nomeado para o cargo de Vice-rei; entretanto, em virtude de seu falecimento em 1º de
13
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 123-125.
14
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 06-12.
15
BOXER, Charles Ralph. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. Trad. Nair de Lacerda. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 35-38.
janeiro de 1763, o cargo foi ocupado por uma Junta Governativa até a chegada do novo Vice-rei,
d. Antônio Álvares da Cunha, o Conde da Cunha, em 1764. Ao desembarcar no Rio de Janeiro, o
Conde da Cunha não se adaptou ao antigo Palácio dos Governadores, construído por Gomes Freire
em 1743, alegando que o prédio estava muito próximo do mar e em meio à balbúrdia da cidade.
O conde iniciou então a reforma no antigo Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo, com a
finalidade de convertê-lo em Paço dos Vice-Reis.
Entretanto, em 1768, o Vice-rei d. Antônio Rolim de Moura, o Conde de Azambuja, sucessor
do Conde da Cunha, passou a residir no antigo Palácio dos Governadores, à beira-mar, alegando
que o velho Colégio dos Jesuítas era de difícil acesso, insalubre por causa da umidade e que a
água potável não era suficiente para o abastecimento do local. Contudo, apesar das condições
desfavoráveis, instalou no mesmo ano, no referido prédio, o Hospital Militar.16
No decorrer da segunda metade do século XVIII, principalmente durante as gestões dos vice-
reis Marquês do Lavradio (1769-1779) e d. Luís de Vasconcelos e Sousa (1779-1790), vários aterros
foram executados na cidade do Rio de Janeiro, possibilitando a abertura de novas ruas na antiga
várzea compreendida entre os morros do Castelo, de São Bento, de Santo Antônio e da Conceição.
Datam justamente deste período as primeiras reflexões sobre a conveniência ou não da presença
de morros no coração da cidade. Um discurso que já começava a tomar corpo era o da aeração do
núcleo urbano, estratégia básica para combater o “ar pestilento” ou os “miasmas”, portadores de
doenças. Segundo tal posicionamento, os morros seriam considerados obstáculos à circulação do
ar no interior da cidade, resultando em uma insalubridade crônica do sítio em questão, permanente
foco de enfermidades, com destaque para as febres tropicais.
Em 1798, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro empreendeu um inquérito sobre a possibilidade
de demolição dos morros da área central da cidade. Três médicos portugueses responderam ao
referido inquérito (dentre eles Manoel Joaquim Marreiros), defendendo o arrasamento dos
morros, responsáveis, segundo eles, pela má circulação do ar e da permanência nas cercanias
das habitações dos temidos “miasmas pestíferos”.17 Ainda nesse contexto, podemos destacar os
trabalhos de José Maria Bomtempo (Memória sobre algumas enfermidades do Rio de Janeiro...)
e de d. José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, Bispo de Pernambuco e Procurador do Senado
da Câmara em Lisboa (Ensaio econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias).18 Ambos
os textos apresentavam argumentos favoráveis ao arrasamento dos morros como medida salutar
16
CAVALCANTI, Nireu. Op cit., 2004. p. 56.
17
CRULS, Gastão. Op. cit., 1995. p. 47.
18
BOMTEMPO, José Maria. Memória sobre algumas enfermidades do Rio de Janeiro e sobre o abuso geral e pernicioso efeito da aplicação
da preciosa casca peruviana ou quina. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1825. p. 67-68. COUTINHO, d. José Joaquim da Cunha
Azeredo. Ensaio econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1828. p. 43.
para a prevenção de epidemias, pois a remoção das colinas contribuiria para a melhor ventilação da
cidade, já comprimida entre o mar e formações montanhosas.
Com a instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, foi reeditado o debate sobre
o arrasamento ou a preservação dos morros da cidade. Durante o período joanino (1808-1821) a
cidade teve de se adaptar ao um notável crescimento demográfico, bem como sofreu obras pontuais
de embelezamento, com destaque para os projetos desenvolvidos por arquitetos e artistas plásticos
integrantes da Missão Artística francesa de 1816. Com a fundação da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro, em 1817, a polêmica sobre os morros ganhou projeção: de um lado os defensores
do desmonte dos morros, como medida sanitária; de outro, os que apregoavam as virtudes das
colinas, como elementos de composição paisagística e agentes reguladores da temperatura da
cidade, servindo de anteparo aos ventos marinhos, considerados nocivos.19
Por vezes, a natureza manifestava a sua cólera. Em 1811, em uma manhã de verão, a cidade foi
despertada por chuvas torrenciais, resultando em uma grande enxurrada, denominada popularmente
como “águas do monte”.20 A força das águas descendo as encostas dos morros causou prejuízos
materiais e inúmeras mortes. Os morros do Castelo e de Santo Antônio foram os mais atingidos na
ocasião, com desabamentos de grande porte, soterrando vários moradores.
O Morro do Castelo, em princípios do século XIX, já era uma região demograficamente
esvaziada. Com a transferência do Cabido da Sé da antiga Igreja de São Sebastião, em 1734, para a
Igreja de Santa Cruz dos Militares e daí, em 1737, para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, e após a expulsão da Companhia de Jesus, em 1759, a afluência de transeuntes e a
presença de moradores no referido morro declinou de década em década. No contexto oitocentista
o morro em questão era uma lembrança do passado colonial luso-brasileiro. Durante o período de
permanência da corte portuguesa (1808-1821) a cidade do Rio de Janeiro cresceu na direção do
interior, estendendo sua área urbana até o Campo de Santana (atual Praça da República) e ao Rossio
Pequeno (atual Praça Onze de Junho), também denominado Cidade Nova, em oposição à velha
cidadela colonial, silenciosa e decadente, reminiscência do passado quinhentista representado pelo
Morro do Castelo.21
Durante o processo de independência, desencadeado a partir do retorno da corte portuguesa
para Lisboa, em 1821, o Morro do Castelo foi palco de tensões entre o Príncipe Regente d. Pedro de
Alcântara (futuro Imperador d. Pedro I) e as tropas portuguesas, comandadas pelo General Avilez.
19
CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Uma ideia ilustrada de cidade: as transformações urbanas no Rio de Janeiro de d. João VI (1808-
1821). Rio de Janeiro: Odisseia, 2008. p. 54-55.
20
SANTOS, Núbia Melhem; NONATO, José Antônio (Orgs.). Era uma vez o Morro do Castelo. 2. ed. Rio de Janeiro: Iphan/Casa da Palavra,
2000. p. 32.
21
FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Documenta Histórica, 2011. v.3. p. 87.
Em 1822, o general lusitano aquartelou seus homens na Fortaleza de São Sebastião do Castelo e
ameaçou atirar contra a cidade do Rio de Janeiro caso o Príncipe Regente se recusasse a obedecer
às determinações das Cortes portuguesas. Após mobilizações de reação militar, comandadas pelo
Príncipe d. Pedro, Avilez transferiu-se com seus soldados para a região da Praia Grande (atual
Niterói), tendo embarcado em seguida para Portugal.22 O velho morro retornou ao silêncio secular,
quebrado apenas pelo som das andorinhas, dos sinos e dos pregões matutinos.
Nos primórdios do período regencial (1831-1840), mais precisamente em 1832, o antigo Colégio
dos Jesuítas passou a sediar a Escola Imperial de Medicina e o Hospital São Zacharias. Mais tarde,
em 1846, foi instalado no prédio o Imperial Observatório Astronômico, dividindo espaço com o
hospital em questão. No Morro do Castelo, em meados do século XIX, conviviam instituições
religiosas, hospitalares e científicas. Ao lado de tais agremiações, por entre becos e vielas, pequenos
artesãos, comerciantes e funcionários públicos estabeleceram suas moradias e oficinas. Na antiga
fortaleza colonial foi instalado, na ocasião, um telégrafo semafórico,23 responsável pela recepção e
transmissão de informações sobre navegação e a defesa da cidade.
Pouco antes do início do Segundo Reinado (1840-1889), foi reeditada a polêmica acerca do
arrasamento do Morro do Castelo, sendo assunto largamente debatido, inclusive nas sessões da
Câmara dos Deputados. Em 1838, os engenheiros Pedro Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer
solicitaram formalmente ao poder público a concessão de licença para o desmonte do morro,
conseguindo o apoio do recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
defensor da destruição, símbolo do passado colonial ibérico, em contraposição à ideia de identidade
nacional, cultivada no bojo dos esforços para a consolidação do Império do Brasil.24 Em 1841,
uma voz destoante no IHGB, em relação à controversa questão, foi a do historiador Francisco
Adolpho de Varnhagen, futuro Visconde de Porto Seguro, defensor da preservação do Morro do
Castelo, sugerindo sua transformação em passeio público arborizado. Varnhagen argumentava que
os símbolos coloniais existentes no morro deveriam ser incorporados, sob nova leitura, à lógica
imperial brasileira. O projeto de arrasamento do morro não foi levado adiante, na época, em virtude
de questões financeiras e obstruções de caráter burocrático.
Em meio a tantas polêmicas, a velha igreja quinhentista de São Sebastião, no alto do Morro
do Castelo, era objeto de atenção da opinião pública. Antiga catedral, erguida em 1583, a igreja
foi abandonada em 1734, após a transferência do Cabido da Sé para a Igreja de Nossa Senhora
22
SCHWARCZ, Lília Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002. p. 110-115.
23
COARACY, Vivaldo. Op.cit., 1965. p. 87.
24
KESSEL, Carlos. Op. cit., 2008. p. 49.
PALAZZOLO, Frei Jacinto de. Crônica dos capuchinhos do Rio de Janeiro. Edição do IV Centenário de fundação do Rio de Janeiro.
25
Esaú e Jacó.28 Cronista das ruas do Rio Antigo, Machado de Assis captou como poucos o
espírito de decadência reinante no Morro do Castelo durante a transição da ordem imperial para
a ordem republicana. Em virtude do processo de instalação de empreendimentos manufatureiros
e industriais (especialmente tecelagens, metalúrgicas e fábricas de alimentos) na área central da
cidade e adjacências, bem como da intensificação das atividades mercantis e de prestação de
serviços, contingentes populacionais cada vez maiores se deslocavam da zona rural para a área
urbana do Rio de Janeiro, em busca de melhores condições de subsistência.29 Cortiços e casas de
cômodos proliferaram pela região, além de ter se intensificado a ocupação de alguns morros ainda
pouco habitados, por populações de baixa renda, como os morros da Providência e do Livramento.
No Morro do Castelo, além de várias habitações coletivas, existia a Chácara da Floresta, um dos
maiores cortiços do Rio de Janeiro, com acesso pela Ladeira da Ajuda ou do Seminário.
Diante das péssimas condições médico-sanitárias existentes na cidade do Rio de Janeiro,
em fins do século XIX e princípios do século XX, bem como da necessidade de construção de
instalações portuárias modernas, com vistas ao atendimento das demandas crescentes de importação
e exportação, logo após a proclamação da República, em 1889, várias empresas nacionais e
estrangeiras postularam a obtenção de concessões de obras públicas. Dentre elas, podemos destacar
a Empresa Industrial Melhoramentos do Brasil, criada em 1890, por iniciativa dos engenheiros Paulo
de Frontin, Carlos Sampaio e Luís Rafael Vieira Souto.30 Um dos empreendimentos pretendidos
pela firma em questão foi o arrasamento do Morro do Castelo, cuja licença acabou sendo concedida
em novembro de 1890. Contudo, em virtude de ser o arrasamento uma obra de grande envergadura
e a referida empresa ter aberto várias frentes de ação, os trabalhos nem chegaram a ser iniciados,
em face da escassez de recursos financeiros.
Tais engenheiros, com destaque para Paulo de Frontin e Carlos Sampaio (ambos seriam mais
tarde prefeitos do Rio de Janeiro), defendiam a tese de que a presença de morros nas cercanias do
28
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Esaú e Jacó. 1. ed. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1904. p. 03. O trecho mencionado é o seguinte: “Era
a primeira vez que as duas iam ao Morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado da Rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro
que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá por os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade
inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu
clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo. Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o Morro do
Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o
desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência,
devagarzinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras
e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade.”
29
LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro: do capitalismo ao capital industrial. v.1. Rio de Janeiro: IBMEC, 1978. p.
96-101.
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical – a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século
30
centro da cidade não apenas prejudicava a circulação do ar, fator determinante, segundo o discurso
médico vigente na época, beneficiando a propagação de epidemias, como representava um obstáculo
à circulação de insumos e mercadorias, além de dificultar o trânsito de pessoas. Entretanto, a tese em
questão, inspirada nas reformas urbanas de Paris, comandadas pelo Barão George Eugène Haussmann
(1870), comportava também a perspectiva de controle social, visando retirar do centro da cidade a
população de baixa renda que habitava os cortiços e os morros dos arredores, transformando a face
da então capital da República de acordo com padrões estéticos europeus.31
Em 1902, por determinação do Presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves
(1848-1919), foi nomeado para ocupar a Prefeitura do Rio de Janeiro o engenheiro Francisco
Pereira Passos (1836-1913). Logo ao assumir o cargo, implementou uma série de reformas urbanas,
pautando os empreendimentos pelo discurso médico-sanitário, pela iniciativa de modernização das
vias de acesso ao porto, pela lógica do embelezamento urbanístico e pela estratégia do controle social.
Aterros, drenagem de áreas alagadiças, demolição de prédios coloniais e imperiais degradados,
muitos deles convertidos em casas de cômodos, além da abertura de avenidas e do alargamento
de ruas, foram algumas das providências tomadas pela equipe do prefeito “bota-abaixo”.32 Um
das obras mais significativas, verdadeiro símbolo das reformas urbanas do Rio de Janeiro, foi a
construção da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), inaugurada em 15 de novembro de
1905, rasgando o centro da cidade “de mar a mar”, ou seja, do Largo da Prainha (atual Praça Mauá)
ao aterro da Praia de Santa Luzia.
Durante as obras para a abertura da Avenida Central, centenas de prédios foram demolidos,
inclusive grandes armazéns, casas térreas e sobrados. Em 1904, quando os trabalhos atingiram
a etapa de alargamento das laterais da nova via, uma das encostas do Morro do Castelo teve
de ser parcialmente demolida, havendo a destruição da ladeira da Ajuda ou do Seminário,
passando o morro a ter como limite na região os fundos dos terrenos nos quais seriam erguidos
os prédios do Museu Nacional de Belas Artes (1908), da Biblioteca Nacional (1910) e do antigo
Supremo Tribunal Federal (1909), alinhados ao longo da grande avenida com ares parisienses. A
demolição da encosta ocorreu de forma lenta, pois os operários utilizavam pás e picaretas para
remover grandes quantidades de terra, quebrando pedras com marretas. O entulho era retirado
por centenas de carroças puxadas por mulas e por carroceiros de mão, conduzindo o material
para outros pontos da cidade.33
31
ROCHA, Oswaldo Porto. A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro (1870-1920). 2. ed. Rio de Janeiro: SEEC, 2001. p. 87.
32
BENCHIMOL, Jaime. Op. cit., 1992. p. 54-57. Francisco Pereira Passos (1836-1913), natural de São João do Príncipe (RJ), filho do Barão
de Mangaratiba, engenheiro com vasta experiência, exerceu o cargo de prefeito do Rio de Janeiro de dezembro de 1902 a novembro de 1906.
33
ROCHA, Oswaldo Porto. Op. cit., 2001. p. 92.
como um “quisto” de pobreza no coração da cidade renovada e como lembrança do passado colonial
que se desejava, quando não negar, minimizar. Assim sendo, observemos algumas ponderações de
escritores e jornalistas a favor e contra o arrasamento do Morro do Castelo, em artigos difundidos
em jornais cariocas de grande circulação na década de 1920, com destaque para o Correio da
Manhã e A Noite.
Em 09 de janeiro de 1920, foi publicado no Correio da Manhã o artigo “Luvas!”, do escritor
e jornalista José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), explicitando a sua posição contrária ao
desmonte do Morro do Castelo.41 Em primeiro lugar, o autor discorreu sobre as belezas naturais
do Rio de Janeiro, mencionando que o “Grande Almoxarifado de Belezas Naturais”, mantido pelo
Criador, teria sido generoso com a terra carioca, enfatizando a falta de sensibilidade dos moradores
da cidade para os encantos da natureza, talvez pela familiaridade de contato cotidiano com ela.
Para Lobato, a chamada “saturação de beleza” conduziria ao hábito de “olhar sem ver”. E o autor
paulista arrematava: “O Pão de Açúcar persiste. O Corcovado insiste. A Tijuca resiste. A Gávea
subsiste. O Morro do Castelo, o morro dos morros, o pai dos morros, deve resistir como nossa
acrópole carioca.”42 Refletindo sobre as ondas especulativas que se abatiam sobre o Rio de Janeiro,
resultando em acirradas disputas por áreas edificáveis no centro da cidade, Monteiro Lobato
profetizava: “Como pode ele [o Morro do Castelo] resistir a maré se suas credenciais – antiguidade,
beleza, pitoresco, historicidade – não são valores cotados na Bolsa?”43 O autor criticava abertamente
a especulação imobiliária desenfreada, responsável pela demolição de edificações históricas da
cidade e que, em associação com o poder público, buscava arrasar o “berço da cidade”, a “acrópole
carioca”, o venerando Morro do Castelo.
Em 12 de janeiro de 1920, o jornalista Eugênio da Silveira (1884-1951) publicou no Correio da
Manhã um artigo defendendo a preservação das relíquias coloniais, alusivas à fundação da cidade
do Rio de Janeiro, em seu sítio quinhentista original: o Morro do Castelo.44 Silveira apresentou
uma postura reformista, inspirando-se nos argumentos do ex-prefeito Sá Freire, ponderando sobre
a necessidade do resgate e da preservação do patrimônio histórico. Nessa perspectiva, o Morro
do Castelo deveria ser reurbanizado e revitalizado, com a demolição dos cortiços, a restauração
dos prédios históricos e a construção de um memorial em honra de Estácio de Sá, o fundador da
cidade, no topo do morro, cercado por terraços panorâmicos.45
41
LOBATO, José Bento Monteiro. Luvas! Correio da Manhã, 09 de janeiro de 1920.
42
LOBATO, José Bento Monteiro. Op.cit. Correio da Manhã, 09 de janeiro de 1920.
43
LOBATO, José Bento Monteiro. Op.cit. Correio da Manhã, 09 de janeiro de 1920.
44
SILVEIRA, Eugênio da. Opinião. Correio da Manhã, 12 de janeiro de 1920.
45
SILVEIRA, Eugênio da. Op.cit. Correio da Manhã, 12 de janeiro de 1920.
O Rio de Janeiro era, então, sob todos os aspectos, uma metrópole. Com mais de um milhão de
habitantes, contava [em 1920] com 4.415 automóveis e era cortada por 417 quilômetros de linhas de
bonde. Dispunha de 50 cinemas, 9 teatros, 20 circos móveis e lia 24 jornais diários – 14 matutinos
e 10 vespertinos – além de 20 revistas semanais e 17 mensais. O intenso movimento comercial
e financeiro era atendido por 44 bancos e 46 companhias de navegação. Nesta metrópole se
hospedariam, convidados em maio de 1919 pelo então chefe da delegação brasileira à Conferência
de Versalhes, Epitácio Pessoa, SS.MM. Alberto e Elizabeth da Bélgica.51
Em apoio aos objetivos do Prefeito Carlos Sampaio, o senador e jornalista Pedro da Costa
Rego (1889-1954), no artigo “Contra o automóvel e o macadame”, publicado no Correio da Manhã
em 30 de janeiro de 1921, se pronunciou favoravelmente ao arrasamento do Morro do Castelo,
alegando que “não se poderia parar o sol; não se poderia parar a História; não se poderia obliterar
o progresso”.57 No mesmo artigo, dirigindo-se ao prefeito, o senador enviava o seguinte recado:
Tenho para mim que o Castelo é dos morros cariocas o único sem uma beleza característica e, além
disso, é pequeno, barrento, como feito especialmente para ser demolido. Se Vossa Excelência o
derrubar de verdade, não terá privado o Rio de Janeiro de nenhuma obra de arte.58
Com a forma de um rim, voltando sua convexividade para a única entrada da nossa imensa baía e
com sua maior dimensão normal à direção dos ventos reinantes, esse monte agrava por este motivo
inconvenientemente precedentemente indicado e produzia, por seu aspecto inestético e asqueroso
uma má impressão no viajante que, ao entrar na esplêndida baía do Rio de Janeiro, tinha a mesma
sensação que se teria ao ver uma linda boca com o dente da frente cariado.59
Outro momento relevante, no âmbito dos rituais públicos de resignificação das relíquias
quinhentistas, foi a transferência dos restos mortais de Estácio de Sá, do marco de fundação da cidade
e da imagem original do padroeiro, São Sebastião, em procissão solene, realizada em 20 de janeiro
de 1922. Após o ofício religioso, o andor com a imagem do santo, além da urna contendo os restos
mortais do fundador e o marco de cantaria, com o brasão de armas do Reino de Portugal, seguiram em
cortejo pela ladeira do Carmo, descendo o morro histórico, seguindo pela Avenida Rio Branco e ruas
adjacentes, até a residência provisória dos frades capuchinhos, na Tijuca.63
Diante do visível atraso no cronograma das obras e da aproximação da data das comemorações
do centenário da Independência, em setembro de 1922, a Prefeitura do Rio de Janeiro estava diante
de um grave dilema. Até dezembro de 1921 apenas 10% do morro havia sido removido, de forma
lenta e ineficiente.64 Com o apoio do Governo Federal, a Prefeitura obteve um empréstimo no
exterior, no valor de 12 milhões de dólares, com o objetivo de viabilizar a conclusão das obras de
embelezamento da cidade para as comemorações do centenário, incluindo o ponto de honra do
Prefeito Carlos Sampaio: a demolição completa do Morro do Castelo.
Em fevereiro de 1922 a Prefeitura mudou de estratégia: contratou os serviços da companhia
do norte-americano Leonard Kennedy, substituindo a empresa concessionária anterior. A
nova companhia alterou completamente a metodologia de trabalho, agindo em duas frentes
simultaneamente: demolição dos prédios e arrasamento do morro com o uso de canhões de jatos
d’água do mar, sob pressão, carreando a lama e as pedras para os aterros da Glória e de Santa
Luzia, por meio de vagonetas sobre trilhos, impulsionadas por locomotivas.65 Ao mesmo tempo
que as obras de desmonte prosseguiam em ritmo acelerado, as obras de construção dos pavilhões
da Exposição do Centenário, também chamada de Exposição Universal do Rio de Janeiro,
ganhavam a dianteira. Tais pavilhões, erguidos em sua maioria em estilo eclético, ofereciam
enorme contraste em relação ao Morro do Castelo, ainda não completamente demolido, com suas
fantasmagóricas ruínas.
Inaugurada pelo Presidente da República Epitácio Pessoa (1865-1942), em 07 de setembro de
1922, a Exposição do Centenário da Independência do Brasil foi integrada por vários pavilhões,
a saber: Pavilhão das Festas, com sua imensa rotunda; das Grandes Indústrias; das Pequenas
Indústrias; de Caça e Pesca; do Distrito Federal; da Administração; da Estatística; além dos
pavilhões de diversos países, tais como França, Estados Unidos, Inglaterra, Noruega, México,
63
PALAZZOLO, Frei Jacinto de. Op. cit., p.191. A imagem quinhentista de São Sebastião, o jazigo com os restos mortais de Estácio de Sá e
o marco de fundação da cidade estão sob a guarda da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, na Igreja de São Sebastião, situada na Rua
Haddock Lobo, no bairro da Tijuca.
64
SANTOS, Núbia Melhem; NONATO, José Antônio (Orgs.). Op.cit., 2000, p. 72.
65
KESSEL, Carlos. Op.cit., 2001. p. 87.
Argentina, Japão, Portugal, dentre outros.66 A referida exposição foi palco da primeira transmissão
radiofônica no Brasil, aos cuidados do cientista Edgard Roquette-Pinto (1884-1954). Em outubro
de 1922 o Pavilhão das Grandes Indústrias passou a abrigar o Museu Histórico Nacional, instituição
idealizada pelo historiador Gustavo Barroso (1888-1959).67
Durante o período de duração da Exposição do Centenário, de setembro de 1922 a julho de
1923, as obras de arrasamento do Morro do Castelo foram praticamente suspensas. O mandato do
Prefeito Carlos Sampaio foi concluído em 15 de novembro de 1922, em meio à polêmica sobre
a demolição do Hospital São Zacharias e do antigo complexo jesuítico. Um dos documentos
iconográficos mais completos sobre o referido desmonte foi elaborado por Augusto Cesar Malta de
Campos (1864-1957), fotógrafo da Prefeitura do Rio de Janeiro, durante várias visitas ao morro,
entre 1921 e 1922.68 Dotado de grande sensibilidade histórica e de senso de oportunidade, Malta
buscou captar os “últimos momentos” de existência do histórico morro.
O que restou do Morro do Castelo foi sendo demolido aos poucos, ao longo da década de 1920,
durante os mandatos dos prefeitos Alaor Prata (1922-1926) e Prado Júnior (1926-1930). Em seu
lugar, abriu-se a Esplanada do Castelo, com seu traçado urbanístico planejado em ruas e avenidas
ortogonais, sob a inspiração do urbanista Alfred Hubert Donat Agache (1875-1959). O Aeroporto
Santos Dumont, inaugurado em 1936, foi construído sobre um aterro efetuado com toneladas de
escombros e terra da colina que viu a cidade nascer. Um dos últimos vestígios do morro ainda
pode ser observado nos dias de hoje: o que restou da ladeira da Misericórdia, nas imediações da
Praça Marechal Âncora, cercanias da Santa Casa de Misericórdia e da Igreja de Nossa Senhora do
Bonsucesso, templo que, aliás, herdou os três retábulos e um púlpito, ricamente ornamentados, da
Igreja de Santo Ignácio, quando de sua demolição.69
A saga do Morro do Castelo é hoje apenas uma lembrança. Uma ausência no coração da cidade.
Entretanto, a sua importância histórica e paisagística ficaram patentes nos debates pela imprensa do
Rio de Janeiro, durante as duas primeiras décadas do século XX. De “berço da cidade” a “obstáculo
ao progresso”, o antigo Morro do Descanso, convertido pela tradição popular em Morro do Castelo,
66
TURAZZI, Maria Inez. A euforia do progresso e a imposição da ordem. Rio de Janeiro/COPPE; São Paulo/Marco Zero, 1989. p. 103.
CHAGAS, Mario de Souza. A imaginação museal: memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de Janeiro:
67
MinC/Ibram, 2009. p. 12-15.TURAZZI, Maria Inez. A euforia do progresso e a imposição da ordem. Rio de Janeiro / COPPE; São Paulo /
Marco Zero, 1989. p. 103.
68
ERMAKOFF, George. Augusto Malta e o Rio de Janeiro (1903-1936). Apresentação de Maria Inez Turazzi. Rio de Janeiro: George
Ermakoff Casa Editorial, 2009.
69
ALVIM, Sandra. Arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro: plantas, fachadas e volumes. Rio de Janeiro: UFRJ/Iphan/Prefeitura do
Rio de Janeiro, 1999. p. 112-114. Alaor Prata Leme Soares (1882-1964), natural de Uberaba (MG), exerceu o cargo de Prefeito do Rio de
Janeiro entre novembro de 1922 e novembro de 1926. Antônio da Silva Prado Júnior (1880-1955), natural de São Paulo, exerceu o cargo de
Prefeito do Rio de Janeiro entre novembro de 1926 e outubro de 1930.
Completam-se agora nove décadas desde que, em 12 de outubro de 1922, o presidente Epitácio
Pessoa, acompanhado de uma comitiva de autoridades de alto coturno, apresentou-se no venerável e
então recém-reformado prédio do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro para proceder à cerimônia de
inauguração de uma nova repartição federal – o Museu Histórico Nacional (MHN). A inauguração
do museu era um dos eventos que, na então capital federal, ao longo daquele ano e do ano seguinte
compuseram a grande e variada “Exposição Comemorativa do Centenário da Independência”. A
direção da nova repartição, cuja função seria combater o “descaso pelo passado”, foi entregue a um
jovem erudito com pouco mais de 30 anos e boas relações políticas, originário do estado do Ceará.
Chamava-se Gustavo Dodt Barroso e, apesar da pouca idade, já havia se distinguido tanto em sua
terra natal quanto na capital como combativo jornalista voltado para assuntos políticos, funcionário
público, folclorista dedicado às coisas de sua região e escritor de temas variados. Era autor, até
aquele momento, de sete livros.
Noventa anos passados e diversas direções – e governos, legítimos ou não – depois, o MHN
tornou-se uma das principais instituições de memória brasileiras. De um ponto de vista estritamente
científico, consolidou-se como centro de estudos de cultura material, documentação e conservação
de acervos museológicos, voltado à identificação, recolhimento, análise e interpretação de objetos-
documentos gerados pela dinâmica da sociedade brasileira e preservados em suas coleções.
*
O conteúdo deste artigo tem como base algumas observações feitas durante a palestra “90 anos de histórias na Casa do Brasil”, realizada
em 1o de outubro de 2012, como parte do Seminário Internacional “90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012)”, bem
como duas ou três ideias surgidas durante conversas com Aline Montenegro Magalhães, pesquisadora sênior no Museu Histórico Nacional.
**
Doutor em História. Pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Além do trabalho científico que desenvolve, não pode deixar ser apontado que, no diapasão
das diversas épocas, o museu sempre foi – e talvez seja essa a principal dentre suas funções –
destacada instituição de prestação de serviço público, cujas atividades buscam, sobretudo, a
educação cívica. Depois de se examinar em retrospectiva essa trajetória, pode-se dizer sem maiores
dúvidas que o MHN, suas direções e equipes colheram os acertos e cometeram os erros dos tempos
que atravessaram.
Este artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é comemorar os 90 anos que se passaram
desde a fundação do MHN. Instituições dão certo ou errado em função daqueles que as fizeram
e fazem. Assim, também é meu objetivo homenagear seu fundador e todos que, ao longo dessas
nove décadas, passaram por suas salas e deixaram algo de si no imponente prédio, nos objetos e
nas atividades que têm, durante todo esse tempo, feito do museu o que ele é. A todos, no passado e
no presente, feliz aniversário!
O segundo objetivo é mais específico. Uma das características que atualmente distinguem o
MHN nos panoramas museal e acadêmico de nosso país é a preocupação que as equipes, desde
algumas décadas, têm tido em fazer da instituição seu primeiro objeto de estudo. Atualmente,
tais estudos possibilitam entender, com certa precisão, a dinâmica – ou as diversas dinâmicas
– que durante sua existência o impulsionaram até seus diversos presentes. No caso, tomarei um
momento já afastado no tempo – virada do século XIX até meados do século passado – e tentarei
examinar, ainda que de modo reconhecidamente superficial, as características que condicionaram
a instituição, seu projeto e implantação e, por extensão, seus acervos e suas ações museais. O
objetivo é propor a existência de uma lógica subjacente à instituição, estruturando essas ações.
Como se poderá notar ao longo das próximas páginas, esse trabalho é quase uma obra de
“patchwork”, pois recupera diversos outros que já foram feitos sobre o museu e sobre temas
correlativos e não faz mais que organizá-los.
Um “objetivo relacionado”, mais ambicioso por voltar-se para o futuro, subjaz aos
apresentados antes: levantar algumas indicações para a pesquisa sobre a constituição do museu e
do campo museal em nosso país, enfatizando os museus de história. Imagino que tais objetivos
possam seguir na linha da proposição feita anos atrás por Ulpiano Meneses, e que talvez valha
recordar agora:
No museu, principalmente no museu histórico que superou a função de repositório e dispensador de
paradigmas visuais, a inteligibilidade que a História produzir será sempre provisória e incompleta,
destinada a ser refeita. Daí, porém, sua fertilidade.1
1
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento
histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo, N. Ser. v. 2 p. 9-42 jan./dez. 1994. p. 41.
Parto do pressuposto de que o MHN, ao longo das últimas décadas, superou a tal função
identificada por Meneses e, por isso mesmo, a postulação do grande teórico brasileiro assume, neste
artigo, quase o porte de um princípio. A “inteligibilidade”2 pode apenas ser “provisória”, pois o exame
da história e da dinâmica dos museus, seja lá qual for o museu, tem de ser periódico, reaberto à luz
de conhecimentos que são produzidos em instâncias externas à instituição. Esse aspecto ficará bem
claro mais adiante. Ainda assim, tal “inteligibilidade” é e será sempre “incompleta”, pois o universo
de fontes ao qual recorre em primeiro lugar – o acervo – é igualmente incompleto: não pode parar
de se ampliar e depende das políticas de aquisição e de documentação, também ligadas a fatores
externos e nem sempre bem compreendidos. Desse modo, a “superação pelos museus da função
de repositório e dispensador de paradigmas visuais” exige operações contínuas de levantamento de
informações e, sobretudo, criação de sentido. Por conseguinte, exige a clara consciência de que as
narrativas lá criadas não são unívocas e disputam a hegemonia com outras narrativas.
Trata-se de “fazer história” nos museus – minha proposta, para mim e para meus colegas,
no presente e no futuro. Mas, como exposto antes, “histórias” nos museus são muitas. Para
começar, como estabelece renomada estudiosa da dinâmica dos museus e de suas potencialidades,
os historiadores em geral, e os historiadores de museus em particular, contam histórias que são
“narrativas de nós sobre nós mesmos”, e os museus retêm e difundem tais histórias, embora seja
agora bem entendido o caráter de narrativas construídas que essas histórias têm. E quanto mais as
entendemos, mais temos de reconhecer que não há uma narrativa fácil ou sólida, mas muitas delas,
todas complexas e tênues. E plurais, contraditórias, mas variadas, e aí mora a riqueza delas.3
Desnecessário acrescentar que essas narrativas são construídas por sobre a base do acervo, e
que todas as construções de significação – que o jargão da área convencionou chamar “tratamento
técnico” – são extraídas do exame levado a cabo, de modo ininterrupto, dos objetos que o compõem.
Tais ações, que constituem ações de análise e interpretação – por conseguinte, criação de sentido –,
abrem e embasam o “universo de possibilidades” em que os museus se constituem.
Depois de tudo isso posto não será preciso dizer que sou daqueles que continuam a considerar
o museu produto de uma demanda social que se expressa e é atendida nas atividades institucionais.
Essas atividades se tornam possíveis a partir do campo fértil que são as ações museais que, de
2
No caso, o autor parece referir-se à possibilidade de o museu ser “racionalmente compreendido” como “objeto”, ou seja, uma entidade,
fato, coisa, realidade ou propriedade passível de ser conformada pelo conhecimento objetivo. Isto significa ser apreendido pelo intelecto,
para além de, meramente, pelos sentidos e pelas emoções. Tal tipo de conhecimento deve ser passível de verificação, ou seja, de ser
calculado, conformado e descrito, de modo a ser objetivo e impessoal. A construção do “conhecimento objetivo” é baseada na possibilidade
de verificação de um objeto qualquer, ou a disponibilidade ou posse de uma técnica semelhante. Uma técnica de verificação é qualquer
procedimento que possibilite a descrição, o cálculo ou a previsão controlável de um objeto. (Sobre o assunto, cf. MORA, José Ferrater.
Dicionário de Filosofia Abreviado. Lisboa: Ed. D. Quixote, 2. ed., 1978. Verbete “Inteligível”).
3
Cf. KAVANAGH, Gaynor (ed.). Making Histories in Museums. London: New York: Leicester University Press, 1. ed., 1996. p. xiii.
modo sistemático e contínuo, constituem o acervo. Discordâncias com relação a tal formulação
sei que existem, mas acho que Ulpiano Meneses as resolveu, pelo menos “cautelarmente” no
artigo que já citei:
[...] existe mula sem cabeça? Existe e pode até mesmo vistosamente soltar fogo pelas ventas. No
entanto, se o papel de mula tiver ainda utilidade, é duvidoso que, sem cabeça, a mula possa executá-
lo a contento. E se o papel de mula for importante para a sociedade, com a mula sem cabeça alguma
coisa ficaria faltando.4
Trabalhar com o acervo, sublinhar o lugar do acervo como uma das fontes de sentido dos
museus certamente não resolve todos os problemas dessas instituições, mas pode funcionar como
poderosa mandinga para afastar as assombrações que tanto perturbam nosso conturbado cotidiano.
O movimento dos museus começou cedo em nosso país, em linhas gerais acompanhando
o movimento mundial dos museus. Mas aqui, tal movimento por vezes é bem mais lento que
o observado nos países centrais. Embora ninguém tenha ainda se dado ao trabalho de construir
uma periodização dele,5 pode-se dizer com certeza que já tínhamos um pequeno “gabinete de
curiosidades” no final do século XVIII; museus e políticas de acervos temos desde o início do
século XIX, quando foi criado o Museu Nacional. Entretanto, nossa condição de colônia e, depois
de 1822, de nação periférica fez com que as instituições museais autóctones tivessem porte e caráter
de miniaturas daquelas existentes em lugares como Inglaterra, França e EUA.
Adiante tentarei, de modo um tanto canhestro, relacionar algumas questões que dizem respeito
ao que costumo chamar de “história do movimento dos museus”, sempre com vistas a apontar e situar
o Brasil nesse movimento. Algumas das questões que pretendo discutir correspondem a situações
que, em 1922, já tinham, na Europa, pelo menos um século de trajetória, daí o título desta seção.
4
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Do teatro da memória... Op. cit. p. 12.
5
Para não ser injusto, devo citar a historiadora dos museus brasileiros Maria Margaret Lopes. Esta propõe, com base em um conceito
desenvolvido pelo norte americano Laurence Vail Coleman, que os “... marcos temporais considerados permitem precisar uma possível
periodização para a História dos Museus no Brasil, a ser ainda aprofundada. Ao primeiro período da museologia no Brasil, que se estende
da instalação do Museu Real no Rio de Janeiro, em 1818, até a criação do Museu Histórico Nacional, em 1922, propomos que se amplie seu
entendimento, identificando o que identificamos como o período dos museus do Império luso-brasileiro”. (LOPES, Maria Margaret. O Brasil
descobre a pesquisa científica: Os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Ed. Hucitec, 1999. p. 323-327). Conforme a
própria autora admite, a proposta é bastante rudimentar e não chega a ultrapassar a criação do Museu Histórico Nacional. Precisa realmente
ser aperfeiçoada.
Na segunda metade do século XIX os museus na Europa e nos EUA já eram projetados como
agências de formação da cidadania, com a missão de participar da educação das massas por meio
de suas exposições.6 Essa transformação iniciou-se no século XVIII, ao longo do qual o conceito de
“público” surgiu da decadência das antigas formas monárquicas. Desde o final dos anos 1700, e ao
longo do século XIX, nos países em que o capitalismo e o regime liberal se tornaram dominantes,
o aperfeiçoamento do corpo de cidadãos tornou-se um problema de estado, que gerou inúmeras
proposições e experimentos. Como decorrência dessa problemática surgiu uma ampla gama de
“novas tecnologias culturais”,7 estritamente próximas das práticas liberais que, na segunda metade
dos anos 1800, estavam totalmente implantadas e eram politicamente dominantes nos centros
capitalistas desenvolvidos. Nesse novo contexto, coleções principescas e acervos de museus de
ciências, tratados como bens privados foram tornadas públicos e passaram a ser meios objetivos
dessa nova tarefa. Os objetos passam a ser encarados como entes representacionais, capazes de
representar seus contextos e as pessoas que lhes deram origem.
Na Europa e na América do Norte esses experimentos avançavam em estreita articulação
com a ambiência liberal. Como esse processo se dava no Brasil? Por aqui, as práticas liberais
e seus desdobramentos ressoavam como “ideias fora do lugar”.8 Quer dizer, o Brasil se dizia,
desde a Constituição de 1824, uma formação política e econômica liberal, voltada para o lucro
e integrada ao comércio internacional. Por sinal, o pequeno museu brasileiro existia em função
da dinamização da participação nacional nesse concerto, pelo menos era o que dizia o decreto
de criação.9 É certo que o museu criado em 1818 estava, naquele momento, sintonizado com
6
Em língua inglesa, são inúmeros os textos disponíveis sobre a formação e os objetivos dos museus públicos na Europa e nos EUA, ao
longo dos séculos XIX e XX. Particularmente estimulante é o de Bennett (BENNETT, Tony. The Birth of the Museum: History, theory,
politics. London: New York: Routledge, 1995. p. 34-44), do qual já merecíamos a tradução para nosso português; também esclarecedores
são os artigos de Susan Pearce e do casal Léontine Meijer-van Mensch e Peter van Mensch em recente obra coletiva (PETTERSSON,
Susanna; HAGEDORN-SAUPE, Monika; JYRKKIÖ, Teijamari; WEIJ, Astrid [(Org).]. Encouraging Collections Mobility: A way foward
for Museums in Europe. Berlim: Institut für Museumsforschung, Staatliche Museen zu Berlin, 2010. Disponível em: <http://www.lending-
for-europe.eu/fileadmin/CM/public/handbook/Encouraging_Collections_Mobility_A4.pdf>).
7
O conceito é amplamente utilizado em língua inglesa. Cf. (por ex.) BENNETT, Tony. The Birth of the Museum… Op. cit. cap. 2; BOLIN,
Goran. Visions of Europe. Cultural technologies of Nations-state. International Journal of Cultural Studies. London & New Delhi, June
2006 v. 9, n. 2, p. 189-206.
8
Refiro-me ao título da parte I do livro de Roberto Schwarcz. Trata-se de leitura longa e exaustiva, mas indispensável para o tema que
desenvolvo agora e pode explicar alguns dos equívocos cometidos, em minha opinião, pelos historiadores da ciência ao abordar certas
questões afeitas aos museus na segunda metade do século XIX. Cf. SCHWARCZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: Forma literária e
processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Liv. Duas Cidades, 1977.
9
“Querendo propagar os conhecimentos e estudos das Ciências naturais no Reino do Brasil, que encerra em si milhares de objetos dignos
de observação e exame, e que podem ser empregados em benefício do Comércio, da Indústria e das Artes que muito desejo favorecer, como
grandes mananciais de riqueza. Hei por bem que nesta Corte se estabeleça um Museu Real...” (Decreto real de 6 de junho de 1818, mandando
criar um Museu Real, apud NETTO, Ladislau de Souza Melo e. Investigações históricas e científicas sobre o Museu Real e Nacional. Rio
de Janeiro: Instituto Philomático, 1870. p.17).
muitos de seus congêneres europeus – sua função seria propagar as ciências naturais no reino
do Brasil. Na prática, o futuro mostraria coisa diferente.
Estávamos aquém da realidade a que esta [a economia política] se refere; éramos antes um fato
moral, “impolítico e abominável”. Grande degradação, considerando-se que a ciência eram as
Luzes, o Progresso, a Humanidade, etc. Para as artes, Nabuco expressa um sentimento comparável,
quando protesta contra o assunto escravo no teatro de Alencar: “Se isso ofende o estrangeiro, como
não humilha o brasileiro!”. Outros autores naturalmente fizeram o raciocínio inverso. Uma vez que
não se referem à nossa realidade, ciência econômica e demais ideologias liberais é que são, elas
sim, abomináveis, impolíticas e estrangeiras, além de vulneráveis.10
A farsa, no Brasil monárquico (ou “comédia ideológica”, como se refere o texto), seria montada
a partir da introdução de uma ideologia referente a uma ordem burguesa totalmente formada,
que, em contato com o regime escravista, viu comprometidos seus aspectos de universalidade
e impessoalidade da lei como reguladora das relações entre homens livres. No caso europeu,
as práticas sociais e políticas corresponderiam, no sentido ideológico, à realidade vivida. No
Brasil escravista, a realidade do trabalho tinha como instrumento de mediação a violência. Já os
homens livres – também esses categorizados conforme a posição que ocupavam na hierarquia da
sociedade, estabeleciam relações mediadas pelo compadrio no campo e pelo favor nos centros
urbanos. É interessante pensar que parte desses homens livres fazia parte, junto com escravos
e ex-escravos, das “multidões de desordeiros”, que, no Brasil, eram vistos não como “caso de
museu”, mas como “caso de polícia”.
Nas sociedades liberais consolidadas, desde a primeira metade do século XIX, exposições
nacionais e internacionais e, pouco depois, os museus experimentavam o papel inovador de
reordenar o espaço urbano e civilizar as multidões que passaram a habitá-lo – ou seja, a função de
equipamentos de instrução pública. Os museus já haviam começado a deixar de ser instituições
voltadas tão somente para a ordenação do mundo, no sentido enciclopédico manifestado um século
antes. As coleções passam a fazer parte de um “complexo exibicionário”, curioso nome atribuído
por Bennett a um conjunto de elementos conceituais e técnicos que “ordenam objetos para inspeção
pública e ordenam o público para ser inspecionado”.11 Por volta do último quartel do século XIX,
essa tendência já se mostrava dominante, mesmo nos museus de ciências – ou talvez principalmente
nesses: em 1890, o naturalista inglês Sir William Henry Flower (então diretor do já importantíssimo
Museu Britânico de História Natural), tendo estudado proposições norte-americanas em torno das
Idem. p. 11. A citação de Nabuco foi recolhida por Schwarcz em COUTINHO, Afrânio (Org.). A polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro:
10
etiquetas como instrumentos de educação, “vai adiante em descrever o processo através do qual,
idealmente, o arranjo da parte do museu destinada à instrução pública poderia ser alcançado”.12
Segundo Flower, as exposições destinadas ao público deveriam ser orientadas pela produção
científica, mas ter certa autonomia com relação a esta. No dizer desse cientista, tratava-se de uma
“Nova Ideia de Museu”.
Também nesse período começa a surgir uma nova proposta para os museus de história que
abria uma bifurcação com relação às propostas colecionistas dos antiquários. Nos EUA, George
Brown Goode, renomado naturalista e importante reformador, atuante no Smithsonian United
States National Museum desde a Exposição de 1876 até sua morte, em 1896, buscou encontrar
sistemas taxionômicos que dessem conta de objetos da vida cotidiana. Na Grã-Bretanha, algumas
instituições locais entravam decididamente na contramão do “modelo vitoriano” de museu de
história. É dessa época o interesse crescente, observável tanto na ilha quanto em outros lugares
da Europa, por objetos não muito antigos, que dificilmente estariam presentes nas coleções dos
museus tradicionais. Tal interesse era, em grande medida, tributário dos estudos de folclore, e certos
museus, nas últimas décadas do século, foram fortemente orientados por essa tendência,13 o que
implicava romper a linha conceitual que separava as “coisas da história” das “coisas do folclore”.
Diante desse panorama efervescente, resta saber como, no Brasil, em seguida à proclamação
da República as instituições museais existentes no país, certamente não tão grandes nem tão
ativas quanto as da Grã-Bretanha ou dos EUA, planejariam mostrar o progresso e ensinar aos
cidadãos como viver em uma sociedade progressista. É possível que a questão se colocasse,
entre nós, em termos inversos à proposição do historiador de museus francês Dominique Poulot:
“o modelo republicano de museu”. Na França, tal modelo tinha uma tradição consolidada que
remontava à Revolução,14 coisa que no Brasil não existia nem em sombra.
Entretanto, o advento do regime republicano significou uma guinada, de fato um tanto forçada,
para todas as instituições públicas então em funcionamento. O país passou a ter um corpo de
cidadãos e era preciso prestar maior atenção nele. Nos museus se observa uma tentativa de instituir
atividades públicas: cursos voltados para a vulgarização das ciências naturais e visitação em todos
os dias da semana, exceto aos domingos. É possível especular se essa guinada poderia ter coincidido
com a chegada, no Brasil, das ideias da “Escola Nova”.15
12
BENNETT, Tony. The birth of the museum… Op. cit. p. 42.
Como por exemplo, Artur Hazelius, que, na Suécia, abriu a tendência na Escandinávia, a partir de 1873; na Grã-Bretanha, entre os anos
13
1910 e 1940, Peate, em Gales, Grant, na Escócia e Cubbon, na Ilha de Man, e Kirk, na Inglaterra. (Sobre o assunto, cf. KAVANAGH,
Gaynor. History curatorship. Washington DC: Smithsonian, 1990. p. 16-36.
Cf. POULOT, Dominique. O modelo republicano de museu e sua tradição. In: BORGES, Maria Eliza Linhares (Org.). Inovações, coleções,
14
Deve-se observar que tal movimento, introduzido entre nós primeiramente por Rui Barbosa,
surgiu no último quartel do século XIX, a partir das concepções do filósofo norte-americano John
Dewey. Segundo este, a educação é o único meio realmente eficaz para a construção de uma
sociedade democrática. Dewey postulava que dois elementos poderiam ser tomados como critérios
de orientação para a democracia: mais numerosos e variados pontos de participação no interesse
comum, como também maior confiança para reconhecer que os interesses são fatores da regulação
e direção sociais (primeiro); (segundo) cooperação voluntária entre grupos sociais, antes isolados,
mudança de hábitos sociais e contínua readaptação e ajuste dos grupos às novas situações criadas
pelos vários intercâmbios.
Nada mais republicano e liberal, e é perfeitamente possível distinguir o papel que os museus
poderiam exercer na busca desses ideais. Como especifica o historiador de museus Bennett,
observa-se, na segunda metade dos anos 1800, a mudança de eixo que corresponde à “ideia
do museu moderno”, de Brown Goode. Essas ideias foram decorrentes da experiência desse
reformador, ao longo de 20 anos, no Smithsonian Institution. Em 1895 ele a sistematizou em um
livro intitulado The principles of museum administration, e este logo se tornou uma espécie de
“bíblia do museu moderno”. Brown Goode deu um nome e organizou, nos EUA, a ampla tendência
que se observava nos dois lados do Atlântico Norte. Tal tendência pode ser encontrada subjacente
às proposições de inúmeros reformadores culturais vitorianos. Citemos dois: Sir Henry Cole e
John Ruskin. Ambos viam nos museus instrumentos de disciplinarição das classes trabalhadoras.
“O Museu certamente o conduzirá [o trabalhador] à sabedoria e à gentileza, e ao Céu, enquanto
o outro [o bar] o levará à brutalidade e à perdição”.16 Cole, autor dessa máxima, acreditava na
capacidade dos museus de transformar em uma ordem de cidadãos a populaça indisciplinada e
desorganizada. É claro que esse trabalho seria feito juntamente com diversas outras instituições,
dotadas todas de uma bateria das novas tecnologias culturais elaboradas para tais funções: praças
e parques públicos reorganizados, bibliotecas, salas de leitura, salas de concertos. Ruskin,17
crítico cultural, vitoriano até a raiz dos cabelos, buscava nas artes mecânicas uma dignidade que
Escola Nova, LDB e disputa entre escola pública e escola privada. HISTEDBR On-line, Campinas, n. 22, p. 131-149, jun. 2006. Disponível
em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/22/art10_22.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2013.
16
Sir Henry Cole, Fifty years of public service of Sir Henry Cole, K.C.B. apud BENNETT, Tony. The birth... Op. cit. p. 21.
17
Ruskin foi um dos mais influentes pensadores do período vitoriano. Poeta, escritor, polemista, crítico de arte e crítico social, alguns
de seus princípios como teórico da arquitetura influenciaram fortemente a forma da arquitetura britânica dos meados do século XIX.
Como crítico social, declarava-se ativista do progresso, embora considerasse a inovação artística como “inconsistente” e as inovações
materiais e sociais como responsáveis por retrocesso moral e estético. Atacou de modo tenaz o que considerava os piores aspectos da
industrialização, ou seja, o abastardamento do trabalho do homem comum, que só poderia ser recuperado pela educação pelas artes e
para as artes. (cf. Britannica Online. Verbete “John Ruskin”. Disponível em: <http://www.britannica.com/EBchecked/topic/513091/
John-Ruskin>. Acesso em: 23 fev. 2013.
a industrialização lhes teria roubado. Defendia que um dos meios de recuperar tal dignidade seria
promover o acesso da classe trabalhadora aos museus, onde esse “homem comum”, o trabalhador,
iria se reencontrar com suas habilidades.
Nos dois lados do Atlântico Norte, esses quatro reformadores (e muitos outros – a lista
resumida tomaria bem umas duas páginas deste texto) anteviam as instituições museais como
unidades integrantes de uma rede de alta cultura, promovida pelos estados como ferramenta
para o exercício do poder, “que pode ser usada para regular o campo do comportamento social
dotando os indivíduos com novas capacidades de automonitoramento e autorregulação, que o
campo da cultura e as formas liberais de governo, muito caracteristicamente, interrelacionam”.18
Tais capacidades e os equipamentos que as implementariam seriam articuladas por um sistema
de educação público e universal. Essa rede viria a disputar, não em total vantagem, na segunda
metade do século XIX, a atenção das multidões com as formas de recreação popular herdadas dos
séculos anteriores, tumultuárias por excelência: espetáculos de variedades e de esquisitices, feiras
e trupes de artistas de rua.
Um ponto a observar: tanto nos EUA quanto na Grã-Bretanha dos anos 1800, as modernas
técnicas museais surgiam e se aplicavam a museus de ciências naturais. Nos museus de história
ainda prevaleciam as regras das sociedades antiquárias:19 os objetos a colecionar deveriam ser
aqueles recobertos pela dignidade da “pátina das eras”, conforme dizia Ruskin.20 As “regras
antiquárias”, vigentes particularmente nos países anglófonos, ordenavam o modelo vitoriano de
museu e determinavam que espécie de artefatos poderiam inspirar os visitantes.
Mesmo no Brasil, essas “regras antiquárias” funcionam como um tipo de filtro, por exemplo,
para a Seção de Numismática, Arqueologia, Costumes das Nações Antigas e Modernas do
Museu Nacional. Dirigida a partir dos anos 1850 por Araújo Porto-Alegre, o grande pensador
do romantismo brasileiro e, posteriormente, por seu genro, o conhecido pintor romântico Pedro
Américo, aparentemente, a referida seção recolhia objetos seguindo regras copiadas de alguma
associação de antiquários europeia.
18
BENNETT, Tony. The birth... Op. cit. p. 20.
19
“Retornemos à biblioteca. Existem lá muito poucos objetos de curiosidade ou antiguidade nas coleções. Este é o gosto correto. Uma
biblioteca deveria conter nada mais que livros, moedas, estatuária e imagens Eu admito, agora e sempre, a admissão de antiguidades,
mas é absurdo acumular velhas escrivaninhas e cadeiras, e coisas como casacos velhos e chapéus e sapatos de salto alto. A verdadeira
história dessas coisas é mostrada pela pintura. E quando se recebe coisas assim, logo haverá alguém tentando nos enganar com o ‘Escudo
de Aquiles’. Eu tenho desencorajado tais envios para a Sala de Antiquários por essa razão.” (Baldwin, Christopher Columbus. Diary of
Christopher Columbus Baldwin, librarian of the American Antiquarian society 1829-1835 [1901]. p. 224. Disponível em: <http:\\archive.
org/details/diaryofchristoph00bald>. Acesso em: 19 fev. 2013.
RUSKIN, John. The Seven Lamps of Architecture (1849), apud LOWENTHAL, David. The Past is a Foreign Country. Cambridge & New
20
[...] estátuas de Napoleão e da Caridade [...] uma coleção de bustos em gesso e outra de medalhas
representando os grandes homens contemporâneos e com as máscaras de Dante, Tasso, Evaristo
Ferreira da Veiga, José Bonifácio, Antônio Carlos e José Maurício, sendo devida a aquisição [...] ao
diretor da mencionada Seção, que generosamente as oferecera.21
O Museu Imperial e Nacional se pretendia uma instituição de ciência, e ainda que tivesse
dificuldade em enxergar “ciência” nos objetos históricos, estes cumpriam lá uma função – ou,
digamos, duas: representar a magnanimidade do imperador-erudito e representar a erudição da
própria instituição (no caso, o “diretor que generosamente as oferecera”). Além, evidentemente, de
apontar os pais da pátria que as esculturas retratavam. Voltemos ao museu:
Por D. João foram oferecidos... 2 armários octaedros, contendo 80 modelos de oficinas das profissões
mais usadas no fim do século passado, mandados fazer no tempo de D. Maria I para instrução do
príncipe D. José; um vaso de prata dourado, coroado por um belo coral, representando a batalha de
Constantino; 2 chaves; um pé de mármore com alparcata grega; uma arma de fogo marchetada de
marfim, da Idade Média e uma bela coleção de quadros a óleo”.22
O redator do texto, Ladislau Netto, naturalista que viria a tornar-se importante funcionário da
burocracia imperial, faz questão de honrar o criador do Museu listando os objetos por ele doados,
ainda que esses objetos não guardassem relação com as ciências naturais. Destes, na atualidade,
os que não desapareceram estão distribuídos entre outras instituições museais – inclusive o Museu
Histórico Nacional. Um deles, por sinal, é hoje em dia uma dos mais significativos documentos
guardados aqui: a tal “arma de fogo da idade média”.
Trata-se de um rifle (arma de cano raiado) de caça, de luxo, fabricado na Europa Central,
provavelmente na segunda metade do século XV. Tem características tecnológicas extremamente
interessantes, inclusive o estilo do raiamento, que indica um dos primeiros sistemas do gênero
experimentados. Os aspectos técnicos são de interesse de especialistas. Do leigo, chamam a atenção
os detalhes exteriores: uma profusão de inserções decorativas em marfim (“marcheteria”, no jargão
técnico), mostrando, em detalhes minuciosos, cenas militares e de caçada. Essa característica torna
o objeto utilitário uma verdadeira joia sem lhe prejudicar a funcionalidade.
Neste ponto, cabe uma advertência: vale a pena começar a abordar qualquer acervo de museu
pelo lado da materialidade. O antropólogo Daniel Miller, um dos mais prolíficos e estimulantes
autores em atividade, lidando com questões relativas à cultura material, afirmou, certa vez, que a
“instância da materialidade [...] continua sendo uma força propulsora por detrás das tentativas da
21
NETTO, Ladislau de Souza Melo e. Investigações históricas e científicas... Op. cit. p. 45.
22
Id. p. 22.
humanidade em transformar o mundo de acordo com as próprias crenças sobre como ele deveria
ser”.23 Ou seja, tornar uma arma uma joia é uma maneira de ver o mundo. É o que distingue as
posses de um rei daquelas dos comuns mortais – a coisa não apenas funciona, mas é luxuosa até a
ostentação. Indica outra coisa, para além de sua funcionalidade. É também o que distingue objetos
de museu daqueles que circulam pelo mundo.
Mas o problema não é a materialidade. Nos objetos reunidos durante o tempo de existência do
Império do Brasil, quando da passagem para o regime republicano, continuaria o mesmo (por sinal,
vale lembrar, continua até hoje...). Se o projeto que os articulava não servia mais, na virada do
século XIX, seria o caso de perguntar se a República possuía um projeto “republicano” de museu.
O historiador de museus Poulot, sobre a questão, aplicada aos primórdios da República francesa,
afirma o seguinte:
O monumento regenerado é aquele que, retirado do passado, pode ser usado em seu desfavor no
futuro, mostrando que os valores presentes são eternos, mas que eram anteriormente combatidos
pelos vilões. [...] As obras que passaram despercebidas, ou esquecidas, vítimas de diversos
complôs, revelam um talento desconhecido ou sufocado; requerem imediatamente a atenção
dos republicanos.24
Embora o texto se remeta à França, a discussão também era candente em nosso país, na virada,
digamos, “republicana” do século. Os positivistas buscam uma nova história nacional em um país,
na opinião deles, sem monumentos ou de monumentos inservíveis. Talvez, no caso, a “atenção
republicana” tivesse de se voltar para a criação de monumentos que atuassem em “desfavor” daqueles
já existentes. Nessa direção, três exemplos (dentre outros) poderiam ser examinados: o projeto de
construção, a partir de 1891, da cidade de Belo Horizonte, destinada a ser a capital moderna de
Minas Gerais, em desfavor de Ouro Preto, a capital barroca da antiga província; a construção
da figura de Tiradentes, como uma espécie de “protomártir” da formação nacional brasileira em
desfavor da figura do imperador D. Pedro I. Neste sentido, o exame dos acervos museais por certo
ofereceria pistas interessantes, como, por exemplo, o quadro “O último baile do Império”, tela
monumental de autoria do pintor academicista Aurélio de Figueiredo. Pintado em 1891, apresenta
uma espécie de “inventário” da elite política da monarquia (todos fielmente representados na tela)
e uma “resenha” dos acontecimentos políticos do período. A tela está atualmente exposta no MHN.
Já o Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo Horizonte, foi formado como uma espécie de crônica
da construção da nova capital mineira.
23
MILLER, Daniel. Materiality: an introduction. In: MILLER, Daniel (Ed.). Materiality. London: Duke University Press, 2005. p. 2.
24
POULOT, Dominique. O modelo republicano de museu... Op. cit. p. 16.
Por outro lado, tanto a “regeneração” quanto a formação de novos monumentos são
operações de “fetichização de objetos”,25 termo recorrente nas ciências sociais. Designa o
objeto de um culto considerado intrinsecamente potente ou válido devido às suas associações
simbólicas e rituais, sem que seja levada em conta sua função objetiva. Esse termo é usado
principalmente pela antropologia cultural em relação à análise da religião primitiva,26 mas,
para sermos justos, não apenas as “populações da África Ocidental” (dentre outras) atribuem
“poder sobrenatural” a objetos inanimados. Segundo Meneses, nos museus, “fetiche” é o objeto
sacralizado, aquele no qual é depositada uma problemática que não está nele. Segundo este
autor, o objeto fetichizado se insere...
[...] numa dimensão de fenômenos históricos ou sociais [que] tem de ser entendida como
deslocamento de atributos do nível das relações entre sujeitos, apresentando-os como derivados
dos objetos, autonomamente, portanto “naturalmente”.27
25
A discussão do fetiche e seus diversos conceitos é longa e exaustiva. Por outro lado, diria que é importantíssima no que tange à discussão
sobre a constituição dos acervos museais, no passado e no presente, bem como para um entendimento aprofundado das atividades
desenvolvidas pelos museus. Sugiro, para quem estiver interessado numa profundidade maior do que a possível neste texto, uma dissertação
de mestrado, um livro e um artigo. A dissertação: PIRES, Rogério Brittes Wanderley. O conceito antropológico de fetiche: Objetos africanos,
olhares europeus. Rio de Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2009; o livro: WOODWARD, Ian. Understanding Material Culture. London: Sage
Publications, 2007 (em especial a parte 2); o artigo: MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Op. cit. p. 26-27.
26
“[...] fetiche denota inicialmente certos objetos vistos como dotados de poder sobrenatural por populações da África ocidental (posteriormente
também objetos de outros povos vistos como similares). Fetichismo seria a doutrina ou culto mais geral baseada em um suposto modo de
pensamento daqueles que atribuem poder sobrenatural (e também agência e intencionalidade) a objetos inanimados. Conceitos de grande
importância em teorias do século XVIII ao início do XX, eles caíram em desuso por volta da segunda década do século passado por serem
considerados ao mesmo tempo etnocêntricos (fruto de um mal-entendido colonialista) e muito amplos (apontavam para coisas demais,
tudo vagamente relacionado ao sobrenatural na África ocidental era chamado de fetiche).” PIRES, Rogério Brittes Wanderley. O conceito
antropológico de fetiche. Op. cit. p. 2.
27
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Do teatro da memória... Op. cit. p. 26.
“confinem” mas “exponham”,28 o que é posto em exposição traduz uma tendência daqueles
museus em se organizarem como “mundos à parte”, com temporalidade própria, relacionada
tanto com um passado imemorial como com um futuro inalcançável.29
Pode-se, então, pensar em um amplo processo de “refetichização” dos acervos existentes. Uma
versão autóctone do “museu republicano” teria de se plantar não só sobre acervos reinventados,
mas sobre a reinvenção da própria instituição. É possível pensar se essa reinvenção não foi feita
buscando monumentos que desfavorecessem os existentes. O Império do Brasil tinha passado seus
67 anos de existência povoando suas duas principais instituições de memória com restos materiais
das mais diversas espécies. Na virada entre os séculos, o exercício antiquário de colecionar tinha,
para além de repensado, ser refeito. Mas cabe dizer: trata-se de uma ação política.
Observemos os “restos” que possivelmente angustiavam os eruditos daquele momento – é
perfeitamente possível, visto que tais “restos” ainda se encontram em exposição hoje em dia. Tanto
o Museu Nacional, a grande instituição científica brasileira dos anos 1800 quanto o IHGB, o grande
lugar de memória do Império do Brasil, tinham se empenhado em recolher restos. Específica em
cada caso, a abordagem, em ambos, não se aproximava daquela dita por Poulot, “republicana” – ao
contrário, o único passado que parecia inspirar as duas instituições era aquele onde se plantavam
as raízes do Império, capaz de sublinhar a magnanimidade do Imperador. Mas o fato é que os esses
restos constituíam uma “massa crítica” que poderia povoar um novo tipo de museu, destinado a
reescrever a história, reconfigurar as imagens públicas de modo a elaborar um novo imaginário
nacional e uma mentalidade coletiva inédita.
Ou seja, reconfigurar as políticas de memória. Podemos entender por “políticas da memória”
as maneiras como indivíduos, grupos sociais ou estados lançam mão da memória e de seus
desdobramentos com o objetivo de fortalecer identidades e implementar interesses específicos.
Nos museus brasileiros, como em qualquer outro país, as políticas da memória relacionam-se
com a dinâmica da sociedade: o processo de desenvolvimento, a implementação de interesses dos
indivíduos e dos grupos sociais. Evidentemente os museus não são a única agência responsável
28
“Os museus podiam ter objetos fechados dentro de suas paredes, mas no século XIX viram suas portas se abrirem para o público em geral –
testemunhas cuja presença era essencial para a demonstração de poder, tanto quanto tinham sido antes, no século XVIII, diante do espetáculo
de punição.” BENNETT, Tony. The birth... Op. cit. p. 59.
A proposição é do autor francês Bernard Deloche. DELOCHE, Bernard. Museologia e instituições museológicas como agentes ativos da
29
mudança: passado, presente, futuro. In: Cadernos Museológicos Rio de Janeiro: Brasília, set.-dez. 1989, n. 2, 55-59. p. 55.
pela implementação de tais políticas – poderíamos também mencionar, só por exemplo, as ações de
construção de monumentos públicos e a consagração de recortes da paisagem. Em última análise,
tais políticas, como a memória sobre a qual atuam, têm como função “não preservar o passado,
mas adaptá-lo de modo a enriquecer e manipular o presente. Longe de conservar as experiências do
passado no presente, a memória nos ajuda a entendê-lo”.30 Nos museus, essas políticas de memória
orientam a política institucional, a começar pela “política de aquisição”. Esta forma universos de
objetos “que se autenticam por si”,31 mas que também são a pista que conduz a “museus-fetiches”.
As exposições do “museu-fetiche” não se reconhecem como narrativas sobre uma sociedade, mas
o quadro exato de uma dada sociedade, em um presente que se pretende absoluto.
No entanto, cabe sublinhar: mesmo fetichizado, o museu - e aqui nos referimos a qualquer
museu - está “enraizado na vida”, na vida política das sociedades. Sua primeira função é estabelecida
por um projeto de hegemonia que visa, em última instância, tornar visível a memória, colocá-la
em uma espécie de palco. Neste se representa e se fixa não só o ato que estabelece a comunidade
politicamente organizada, mas tudo quanto se pretende para esta, dali para o futuro. Justifica-se,
nesse momento, que seja utilizada a expressão “memória para o futuro”.32 Essa “memória” planta-
se em exposições-monumentos dedicadas por um dado presente a um dado futuro.
Futuro que apenas pode ser pensado como ressignificação perene. Neste sentido, é interessante
observar como o novo regime inscreve seus signos sobre os antigos. O monumento a Tiradentes, em
Ouro Preto, é uma dessas inscrições.33 Que faz sentido: o projeto republicano implica a invenção de
novos tipos de instituições públicas, dentre as quais monumentos e museus. A praça pública torna-se
lugar de comemoração organizada e responsável, da qual os cidadãos devem tomar posse, de modo
responsável. Espaços públicos e monumentos são incorporados às novas tecnologias culturais.
30
LOWENTHAL, David. The past... Op. cit. p. 210.
31
A expressão foi emprestada por uma das conservadoras do Museu Histórico Nacional, a senhora Nair de Morais Carvalho, sobre o “sabre
de honra do barão da Vitória”, em artigo publicado nos Anais do Museu Histórico Nacional. Cf. CARVALHO, Nair de Morais. O Barão da
Vitória no Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 3, p. 221-238, 1942.
32
De fato a expressão é mais uma vez, de Bernard Deloche. DELOCHE, Bernard. Museologia e instituições museológicas... Op. cit. p. 55.
33
Durante a primeira metade do século XIX, tanto Tiradentes quanto os outros inconfidentes eram pouco mencionados pela historiografia
oficial. Após a Independência, em 1822 a Família Real brasileira era descendente direta da dinastia de Bragança, que havia condenado os
conjurados. A praça principal de Ouro Preto, então chamada “da Independência”, tornou-se lugar de memória da Inconfidência em 1867,
com o lançamento da pedra fundamental de um monumento aos inconfidentes. O artefato, uma pequena coluna em granito, ficou conhecido
como “Coluna Saldanha Marinho”, devido ao idealizador, conselheiro Joaquim Saldanha Marinho, presidente da província de Minas Gerais
entre 1865 e 1867. Em 1891, elegeu-se senador na primeira legislatura da República brasileira. Naquele ano a primeira Constituição Mineira
republicana colocou em seu texto a determinação de se construir um novo monumento à Inconfidência, destinado a comemorar, em 1892,
o centenário da execução de Tiradentes. Atrasos no processo de realização da obra postergaram o ato para 21 de abril de 1894. O partido
do monumento, uma alta coluna encimada pela estátua do “protomártir”, foi escolhido em concurso público. É de autoria do artista italiano
Virgilio Cestari e apresenta a figura de Tiradentes “preparado para o suplício”, claramente calcada na imagem icônica de Jesus Cristo.
A utilização de prédios ligados ao Antigo Regime relaciona-se, na França, com essa tomada
de posse. Nesse ponto, cabe observar que o modelo brasileiro aproxima-se do francês e mantém
distância do anglófono (a distinção entre os dois modelos é feita pelo já citado Poulot34), visto
que, por um lado, observa-se a desapropriação de prédios e coleções, e, na Inglaterra e nos EUA,
coleções são compradas pelo Estado para serem instaladas em prédios construídos para tanto. No
Brasil, não se pode falar exatamente em “desapropriação”, visto que os prédios mobilizados para
a instalação de museus já eram próprios do Estado. A iniciativa das autoridades republicanas os
destinou a uma nova função, visto que, originalmente, cumpriam outras. Foi o caso do Arsenal
de Guerra do Rio de Janeiro, prédio de fortes ligações com o regime monárquico. Por ocasião da
“Exposição do Centenário”, foi totalmente reformado para o evento, de modo a parecer, a um só
tempo, “moderno” e “histórico”, conforme as indicações do então atualíssimo “estilo neocolonial”.
É este um estilo arquitetônico que “encontrou sua justificativa na ânsia de buscar nas formas
construtivas tradicionais do Brasil, uma arquitetura que pudesse ser definida como genuinamente
autóctone”.35 Nada mais adequado: tratava-se de uma arquitetura relativamente nova (seu manifesto
era de 1914), mas que via no passado colonial brasileiro a fonte da tradição histórica e artística
nacional. Segundo o historiador da arquitetura Kessel,
[...] tenta combinar o culto à tradição e a especificidade da cultura brasileira. É um exemplo de
luta não só por posições institucionais no aparelho de Estado, mas também pela apropriação
do passado artístico e cultural como capital teórico que justifica e legitima essas posições. Ao
evocar a tradição como lugar autorizado para afirmar o real ‘espírito nacional’, o neocolonial
apropria-se da relação entre passado e presente para justificar uma intervenção concreta na vida
social: a iniciativa da construção de escolas, residências, prédios públicos e igrejas segundo um
cânone estético que visa à regeneração do espírito da nação, de uma sociedade considerada em
vias de decadência.36
Ou seja: um estilo que poderia tornar o prédio um “manifesto material” dos objetivos
pretendidos com o evento. Um olhar para o passado e para o futuro, que se cruzam, em um lugar
bem determinado. Afinal, 1922 é o ano em que a República se reconcilia com o Império derrubado
e busca recuperar uma tradição que havia sido esquecida.
Em um momento de crise – e 1922 era o momento de uma crise –, indo mais além que a
“Exposição Comemorativa”, inaugura-se o modelo autóctone de museu republicano. Instituição-
chave não apenas por expressar o ideal republicano (a posse coletiva dos bens públicos), como por
34
Cf. POULOT, Dominique. O modelo republicano de museu... Op. cit. p. 18.
35
KESSEL, Carlos. Estilo, discurso, poder: Arquitetura Neocolonial no Brasil. História Social, Campinas, n. 6, p. 65-94, 1999.
36
Id. p. 69.
instruir os cidadãos nesses ideais. Instalado em um prédio preparado para convocar o passado em
socorro de um presente que se estilhaçava, o museu se coloca, física e simbolicamente, no meio
da “dicotomia entre tradição e modernidade que envolvia os projetos de construção simbólica da
nação durante as comemorações do centenário”.37
atividades científicas e técnicas lá desenvolvidas. Diria mais: ainda hoje, os técnicos que exercem
suas atividades profissionais no museu, e cuja formação, inserção e trânsito no campo museal
são agora totalmente diversos do que Barroso considerava adequado, frequentemente se veem em
atrito com os restos da visão de mundo que o orientou e a sua equipe. Esses atritos – que, é fato,
vão se tornando, com o passar do tempo, raros – se manifestam à medida que, de modo nem tão
surpreendente, o “programa barroseano” ainda subjaz ao acervo. A partir da pesquisa científica é
possível recuperá-lo e decifrá-lo. De certa maneira, foi essa a aventura e a jornada empreendida
pelos profissionais que uns 30 anos atrás “repovoaram” a instituição: ultrapassar o “programa
barroseano”, ao mesmo tempo que implantavam e intitucionalizavam um novo programa, bem
como as práticas e rotinas técnicas ajustadas a ele.
E o que vem a ser o “programa barroseano”? Suspeito que seja o programa dos museus
públicos adaptado ao contexto brasileiro. O que Barroso teria percebido, na virada entre os anos
1800 e 1900, em meio as ainda intensas “dores do parto” da federação à brasileira, foi que os
objetos legados pelo passado poderiam apelar diretamente aos sentimentos de seus visitantes. São
muito conhecidos dois artigos de Barroso em que este, ainda sob o pseudônimo de “João do Norte”,
inseriu-se no debate que, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século passado,
era um dos que atravessava a elite intelectual brasileira: a necessidade da conservação do passado
nacional. Um desses artigos, o mais antigo, afirmava a necessidade da criação de um “museu
militar”.40 Nesse artigo, Barroso advertia para o fato de que as relíquias militares do país se estavam
perdendo em função do descaso oficial. No segundo, publicado cerca de um ano depois, o cronista
introduziu o conceito de “culto da saudade”. No primeiro texto, reclama da possível perda de
objetos como também reclamavam outros eruditos para a perda de documentos, só que avançando
em um ponto: atribuía aos objetos a qualidade de relíquias; no segundo, atribuía à cultura política
republicana o descaso pelas tradições e pelos heróis, o que incapacitaria o povo a buscar energias
no passado, descaso que resultaria no empobrecimento espiritual. O “culto da saudade”, enfim,
“... impõe uma atitude em relação ao passado, trata-se de uma busca por torná-lo vivo no presente
de forma que sua experiência se coloque na textura da vida contemporânea”.41
40
Os artigos, ambos publicados pela primeira vez como matérias no diário Jornal do Commercio (no qual Barroso era redator), são,
respectivamente, O museu militar (29 de setembro de 1911) e O culto da saudade (22 de dezembro de 1912). Posteriormente, foram ambos
reeditados em um livro intitulado Ideias e palavras (Rio de Janeiro, 1917). Em 1942, os dois artigos são resenhados por Adolfo Dumans,
conservador que também ocupava o cargo de secretário de Gabinete do MHN, em um artigo intitulado “A ideia da criação do Museu
Histórico Nacional”. Cf. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 3, p. 383-394, 1942.
CERQUEIRA, Erika Morais. Cultuando a saudade: O conceito de história em Gustavo Barroso. Anais – XIV Encontro Regional da ANPUH-
41
RIO - Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, ANPUH-RIO, 2010. Anais eletrônicos do XIV Encontro Regional da Associação Nacional dos
Professores e Pesquisadores Universitários de História – Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 19 a 23 de julho de 2010. Disponível em: <http://
www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276713531_ARQUIVO_ErikaMoraisCerqueira.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2013.
Esses dois textos colocaram Barroso no lugar de um dos mais importantes ativistas da memória
brasileira, e lhe garantiram uma posição destacada na origem da segunda fase do movimento dos
museus no Brasil. Mas, de fato, ele não foi nem o único nem sequer o primeiro erudito a postular a
necessidade da criação de um museu de caráter histórico no país. Primeiro, porque tais museus já
existiam: o Museu Nacional, embora de caráter enciclopédico e voltado para as ciências naturais,
tinha uma grande “área de história” (embora não com este nome); os Institutos Históricos e
Geográficos, a começar pelo “brasileiro”, instalado na capital, tinham também suas exposições de
história;42 o museu pedagógico da Escola Nacional de Belas Artes, em 1938 transformado em Museu
Nacional de Belas Artes, reunia vasta coleção da chamada “pintura histórica”, cujos itens eram
produzidos dentro das regras da boa história positivista. Enfim: nessas instituições e em dezenas de
outras estavam preservados (ainda que, na totalidade dos casos, em péssimo estado de conservação)
dezenas de milhares de objetos que se remetiam ao passado, aos fatos e aos personagens que,
segundo a elite letrada, eram os fundadores da nacionalidade brasileira. Segundo, porque desde
o final do século XIX acontecia intenso debate sobre qual o caráter que deveriam ter o “museu de
história” a ser criado.
Tal debate estava embebido parte na questão das exposições, que o século XX havia
herdado do anterior, e parte na questão da educação pública. As exposições do século XX, que
mostravam a tendência de se tornarem espetáculos que transformavam a cidade em um enorme
palco para a fruição do público,43 já apresentavam questões ligadas a preservação e difusão
da história. A Exposição Nacional de 1908, comemorativa do centenário da Abertura dos
Portos, indicava claramente esse objetivo, na medida em que “os organizadores selecionaram,
visando adornar as paredes dos pavilhões e nomear as ruas da ‘cidade mostruário’, datas que
remetessem a momentos de destacada transição política na história do Brasil”.44 Além disso,
a exposição apresentava uma série de mostras “de história”, dentro dos mesmos pressupostos
42
O Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional possuíam coleções de história, formadas por objetos tridimensionais, retratos, moedas e
medalhas; o Museu Nacional possuía “objetos históricos”, muitos deles doados pelos imperadores brasileiros; pequenos museus de história
funcionavam em instituições como o Colégio Militar e a Academia Nacional de Medicina. Entretanto, esses pequenos museus eram pouco
mais do que ajuntamentos de objetos, sem nenhuma técnica de exposição ou preocupação com o público. Uma boa descrição de museu
do século XIX encontra-se no volume da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para 1843. Com admirável sinceridade, o
autor, Manuel Duarte Moreira de Azevedo, então primeiro secretário da instituição, descreve o “museu” e suas preciosidades. Começa por
dizer que não havia, por deficiência das instalações, uma sede fixa; fala de objetos espalhados pelo chão e “expostos em armários fechados”
(provavelmente referia-se algum tipo de vitrine). Além disso, não se refere a visitantes, apenas dizendo que certos objetos são de agrado
geral. (Cf. BITTENCOURT, José Neves. Cada coisa em seu lugar – ensaio de interpretação de um museu história. Anais do Museu Paulista.
São Paulo. N. Sér. v. 8/9. p. 151-174 (2000-2001). p. 156.
43
Para uma abordagem dessa discussão, cf. BENNETT, Tony. The birth of the museum… Op. cit., Cap. 2 - The exhibitionary complex.
ELKIN, Noah C. 1922 – O encontro do efêmero com a permanência. Anais do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico
44
que, anos mais tarde, orientariam a formação do MHN. Ou seja: Barroso não estava sozinho
no debate. Não era uma voz pregando no deserto, conforme, anos mais tarde, ele e seus áulicos
tentaram fazer parecer.
Mas se não estava sozinho no debate, por outro lado apresentava um projeto consistente de
recolhimento de objetos, ou do modo como dizia, de “relíquias”, que parecia faltar aos outros
envolvidos.45 O museu proposto por Barroso para abrigar tais “relíquias” pode ser considerado
uma espécie de híbrido entre os “museus nacionais” descritos pelos dois Mensch, como “longe dos
ideais enciclopédicos”,46 e o museu vitoriano, paradigma do museu de história do século XIX, tanto
na Grã-Bretanha quanto nos EUA. Esse “museu híbrido” se pretende um monumento ao Estado
nacional que o celebrasse como uma ordem, vitoriosa por subjugar adversários externos e internos.
Nessa construção, o Estado é gerado por uma elite fortemente associada às tradições europeias e
militares. A reprodução do Estado, que implica a continuação da hegemonia de extratos da classe
dominante, dentre outros aspectos, apela ao culto a tal tradição. A consistência do projeto proposto
por Barroso se baseia no fato de se remeter a um “programa”, cujas diretrizes encontram-se no
“culto da saudade”. Parece tratar-se de uma proposta, objetivando romper com o esquecimento
da história e da tradição nacionais e, consequentemente, com o empobrecimento espiritual da
população. Invocando forte apelo às emoções, a evocação do passado implica a necessidade de
salvá-lo do esquecimento e lhe dá uma função – afinal, a saudade, em principio, é um sentimento
que convida outros.
Tal ação, entretanto, não pode ser conduzida sem estar associada à conservação dos itens
materiais do passado, centralizados e preservados em locais específicos. Esses conjuntos de
objetos-relíquias são o aspecto visível de “... uma herança que se herda e se transmite, podendo
ser compreendida como um presente recebido dos ancestrais, do qual não se pode desfazer ou
devolver...”.47 O texto citado traz um importante dado: a materialidade dessa herança. O apelo às
emoções, que solda o indivíduo a seu grupo, tem por suporte a materialidade, elo entre passado,
perdido e presente, vivido; a materialidade é indicativo das qualidades que destacaram os indivíduos.
É o cerne, o âmago do projeto. Este gera um programa, ou seja, um conjunto de ações articuladas
que conduzem a um dado objetivo. Esse objetivo é o que deveria ser buscado. No caso do MHN de
Barroso, em primeiro lugar, armas. O Catálogo Geral do Museu Histórico Nacional, publicação
de 1924, primeiro documento público sobre a então novíssima repartição, relaciona 2.496 itens
45
Cf. ELKIN, Noah C. 1922 – o encontro... Op. cit. p. 126-128. Elkin sugere que o projeto de “Museu Histórico” apresentado em 1918 pelo
IHGB seria diverso do de Barroso por centrar sua proposta principalmente sobre a exposição de documentos escritos, imagens e autógrafos
(assinaturas de personagens históricos).
46
MEIJER-VAN MENSCH, Léontine; MENSCH, Peter van. From disciplinary control. Op. cit. p. 36.
47
CERQUEIRA, Erika Morais. Cultuando a saudade... Op. cit.
em exposição, dos quais pelo menos um terço eram armas ou objetos com alguma espécie de
origem militar.48 Não é estranho: o recolhimento executado por Barroso, que começou pouco antes
da instalação do museu, avançou primeiro sobre o acervo que tinha sido abandonado no prédio
do Arsenal de Guerra, onde haviam funcionado dois museus do Exército, de duração efêmera: o
“Museu Militar”49 e o “Museu de Artilharia” (este um museu pedagógico destinado à instrução
técnica de oficiais e praças). O próprio prédio em que se instalou a instituição estava fortemente
imbricado na tradição militar do país: o Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro, “um dos mais antigos
e históricos do Rio de Janeiro”, segundo a abertura do “Catálogo”. Ou seja, a materialidade é
fetichizada, exatamente nos termos sugeridos por Meneses. Indicativos de um passado notável, os
objetos, no entender de Barroso, merecem um altar, a ser erigido em um templo civil – por sinal,
aspiração maior dos republicanos, desde o século anterior. Mas a adoração só pode ser feita por
intermédio da materialidade da relíquia. Parece que tal ideia está por trás da proposta, de 1911:
“Patriótica e nobre seria a fundação dum Museu Militar. Queiram os numes que tal ideia, um dia
se realize, para que tenhamos onde depor nossos troféus como os gregos outrora os depunham nas
métopas de mármore e granito dos templos da Acaia”.50
Objetos históricos, objetos sagrados. Relíquias que apontavam para a ligação entre fatos e
personagens relevantes. A representação de tais fatos, no MHN, mostrava um país no qual “elites
tradicionais e aristocráticas formariam um grupo coeso e forte, destinado ‘naturalmente’ ao topo
da pirâmide social e à condução do processo ‘civilizatório’”.51 O historiador da imagem Paulo
Knauss refere-se ao cotidiano das elites (seu artigo discute coleções particulares no final do século
XIX, exatamente a época que abordo), no qual a “prática de colecionar” era sinal de distinção e o
conhecimento de arte tinha uma densidade bem superior àquela vigente nos limites da arte oficial.52
Não sei dizer se Barroso colecionou alguma coisa, mas o fato é que ele tinha em vista trazer o
público aos limites de tais práticas, em um espaço tornado público pela prática republicana. Abrindo
ao público a grande arte acadêmica (as pinturas históricas e os retratos feitos, em sua totalidade,
por pintores egressos da Academia Imperial/Escola Nacional de Belas Artes ou chancelados pela
48
Cf. BRASIL. Museu Histórico Nacional. Catálogo geral (1a seção – Arqueologia e História). Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1924. 46 p.
Trata-se de documento a meu ver não tão explorado quanto deveria ser.
49
O Museu Militar funcionou, a partir de 1865, no prédio do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Em 1902, quando o Arsenal foi transferido
para a ponta do Caju, o Exército não pareceu se incomodar em transferir o acervo, talvez porque os objetos, em sua totalidade, remetiam-se
ao período monárquico, época abominada pelos oficiais de formação positivista. (cf. BITTENCOURT, José Neves. Um museu de história
do século passado. Observações sobre a estrutura e o acervo do Museu Militar do Arsenal de Guerra. Anais do Museu Histórico Nacional.
Rio de Janeiro. v. 29, p. 211-245. 1997.)
50
BARROSO, Gustavo. O Museu Militar. In: Ideias e palavras. Rio de Janeiro: Leite, Ribeiro & Maurílio, 1917. p.
51
KNAUSS, Paulo. O cavalete e a paleta: arte e prática de colecionar no Brasil. Anais MHN. Rio de Janeiro. v. 33, 23-44. p. 142.
52
Id. p. 30.
instituição), bem como a cultura material não apenas das elites, mas também aquela gerada pelos
grandes fatos do passado, Barroso pretendia “ensinar civismo”. Talvez isso explique sua desatenção
para com os recursos expográficos. Talvez ele imaginasse – e de certo modo estaria correto – que
as grandes telas produzidas pela pintura histórica, postas diante dos visitantes, funcionariam quase
como “dioramas”,53 recurso expositivo desde o século anterior extremamente popular no mundo
desenvolvido. Ou talvez não fizesse diferença: sua proposta de museu e o programa correspondente
situavam-se no limite entre o museu vitoriano e a “nova ideia de museu”, ou seja, o museu público.
Por outro lado, é possível pensar que Barroso, enquanto aperfeiçoava e tocava seu projeto de
museu público abrasileirado, procurava não incomodar as autoridades às quais estava subordinado,
e que nunca chegaram a mostrar grande interesse em investir fortemente em museus – acredito
que esta seja a explicação também plausível para que ele nunca tenha falado em incorporar painéis
fotográficos, filmes ou outros recursos às suas exposições. Embora investimentos governamentais
fossem feitos esporadicamente (em pelo menos duas oportunidades, observam-se grandes reformas
no prédio da Ponta do Calabouço), durante o longo período no qual dirigiu o museu, Barroso
parece ter preferido investir nas relações que mantinha com membros da elite econômica e
política. Alguns desses personagens se mostraram dispostos a “investir” no MHN, por meio de
“grandes doações”, que, entre 1922 e 1950, chegaram a multiplicar por três o acervo institucional.54
Entretanto, “pequenas doações” eram também tratadas com grande respeito pelo diretor do museu.
Observadas em conjunto, “grandes” e “pequenas” doações passavam por uma série de filtros,
que todos os conservadores pareciam dominar, e que constituíam uma “política de aquisição”
rigorosamente formulada, embora nunca sistematizada ou documentada. Tal política indicava o
que seria incorporado ao acervo e, com menos frequência, o que seria recusado.
Essas práticas refletiam uma rígida separação entre “coisas da história” e “coisas do folclore”
ou, como Barroso dizia, da “demopsicologia”. Tal separação foi formulada conceitualmente em
artigo publicado nos Anais do Museu Histórico Nacional de 1942, em que postulava a criação
de um “museu ergológico”. Esse museu, separado rigidamente do MHN, trataria da “parte da
vida popular que envolve valores úteis ou artes de utilidade: cozinha, ofícios manuais, profissões
53
Embora também tenha outros significados, essa palavra é geralmente usada para referir cenas em escala real que utilizam animais
empalhados e plantas reais conservadas por extração de umidade, reproduzindo ambientes “exóticos”. Esse tipo de recurso expográfico
foi criado em 1889 por Akeley, um naturalista e escultor que recriou, no Museu Americano de História Natural, os ambientes de diversos
animais típicos da América do Norte. (Cf. QUINN, Stephen Christopher. Windows on Nature: The Great Habitat Dioramas of the American
Museum of Natural History. New York: Abrams Books, 2006).
54
A expressão é de Antônio Pimentel Winz, conservador lotado no MHN entre 1957 e 1977, que em 1962 escreveu a primeira grande história
institucional do museu. Refere-se às relações estabelecidas por Barroso tanto com membros da elite da capital federal quanto com o próprio
governo. cf. WINZ, Antônio P. História da casa do trem. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/Museu Histórico Nacional, 1962. p. 459.
rústicas, etc.”55 Esse programa, subjacente à política de aquisição e mesmo à orientação científica
do MHN, separava a formação e o controle do estado – ou seja, a política – do trabalho – ou seja,
a economia política. De certo modo, as ideias continuavam fora do lugar. O MHN representaria
uma modernidade à brasileira, um museu público reformado para funcionar no Brasil, para o
povo brasileiro.
A instituição que Barroso concebeu e Pessoa criou reflete uma dada visão de mundo, e foi
essa que condicionou fortemente as práticas museais adotadas pela instituição e por seu quadro
técnico ao longo de pelo menos seis décadas, até pelo menos meados dos anos 1980. Também
condicionou não apenas o modelo de museu histórico vigente no Brasil neste período, como a
formação dos profissionais de museus durante pelo menos 40 anos. Talvez uma das qualidades
embutidas no projeto fosse exatamente o fato de que centralizava o recolhimento e a conservação
das “relíquias da pátria brasileira”, ao mesmo tempo que o organizava. Tais relíquias, por outro
lado, foram concentradas em um novo tipo de museu, que finalmente entrou no Brasil, ainda que
com sete décadas (para sermos lenientes...) de atraso: o museu público. Um museu “associado à
emergência de um espaço público no final do século XVIII, isto é, ao ideal de uma discussão sobre
um interesse comum, do qual ele é um instrumento ao mesmo tempo patriótico e pedagógico”.56
O “programa barroseano” parece ter “pegado” por ser uma proposta ao mesmo tempo republicana
e voltada à recuperação e mobilização da energia latente do passado. Para além, Barroso soube
enraizar seu projeto institucional na “vida política” da sociedade. Esse “enraizamento” apoiou-se
em diversas bases, algumas das quais não diziam respeito diretamente às práticas que resultavam
do programa de que falamos, mas se remetiam à política praticada ao durante o primeiro governo
de Getúlio Vargas.
Por outro lado, o projeto parece ter mesmo o problema já observado por diversos estudiosos,
formulado por Deloche como “tendência para o isolamento e a acumulação desordenada”. Com
efeito, o brasilianista Williams, em texto sobre a criação do patrimônio histórico no primeiro regime
Vargas,57 fala em um bazar, um imenso bazar em que as antiguidades da pátria eram reunidas
55
BARROSO, Gustavo. Museu ergológico brasileiro. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 3, 1942, 435-448. p. 437
56
POULOT, Dominique. O modelo republicano de museu... Op. cit. p. 22.
57
A expressão é de Daryle Williams, que a utiliza em um artigo sobre o Museu Histórico Nacional publicado em 1997. Cf. WILLIAMS,
Daryle. Sobre patronos, heróis e visitantes: O Museu Histórico Nacional, 1930-1960. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro.
v. 29, 141-183, 1997. p.142.
58
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O museu e o problema do conhecimento. In: Brasil, Fundação Casa de Rui Barbosa. Anais do IV
Seminário sobre Museus Casa: Pesquisa e Documentação. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. (19-48). p. 19.
59
Poulot, Dominique. O modelo republicano de museu... Op. cit. p. 23.
O artigo “De fortaleza ao maior museu de história brasileiro”, publicado na edição dos
Anais comemorativa dos 80 anos da Instituição, retrata a trajetória do Museu desde o século
XVII como sede do Forte de Santiago e Arsenal Real até 2002. Ao final, o texto aponta as
*
Museóloga, mestre em história pela USP. Diretora do Museu Histórico Nacional e professora da Escola de Museologia da Unirio.
propostas para o futuro, como a implantação de “novos projetos, para atender a crescente
demanda da sociedade”.1
Os novos projetos, na década seguinte, nortearam as metas e as ações da instituição. Como
primeiro passo, formou-se um grupo constituído por técnicos do próprio quadro funcional,
dando início a um período de intensos trabalhos. Essa equipe modificou-se com os anos, e, até a
sua conclusão, em 2010, todos os funcionários estiveram envolvidos na execução dos projetos,
“Modernização do Museu I” e “Modernização do Museu II”.
Nesta edição, quando se celebram os 90 anos de existência do Museu Histórico Nacional
(MHN), é imprescindível registrar a memória de uma década de restauração que recuperou e
preservou a edificação histórica, a coleção e deu uma leitura contemporânea à historiografia e
à museografia das exposições de longa duração. De igual relevância é contextualizá-la em uma
trajetória de nove décadas de trabalhos de conservação e restauração do conjunto arquitetônico que
garantiram sua permanência e seu aperfeiçoamento como instituição museológica.
Presta-se, igualmente, uma homenagem a todos os funcionários que acreditaram no projeto,
envolveram-se e realizaram a transformação do museu até então conhecido como “fechado para
obras” – apesar de nunca ter estado fechado – em uma instituição moderna. Esse foi um grande
desafio realizado com o museu aberto e em pleno funcionamento.
O início
Desde a decisão dos governos municipal e federal de conservar a edificação de origem militar
e transformá-la no Grande Palácio das Indústrias, no âmbito da Exposição Comemorativa do
Centenário da Independência, em 1922, o complexo arquitetônico composto do Forte de Santiago,
da Casa do Trem e do Arsenal de Guerra passou por grande reforma.2 As fachadas ganharam
decoração arquitetônica neocolonial, tendo sido anexados novos pavimentos, pátios internos,
colunatas, muxarabis, azulejos e telhas de cerâmica, convertendo-o em um monumento ao estilo
neocolonial que iria influenciar outras construções na cidade do Rio de Janeiro e no restante do
Brasil. Essa reforma, todavia, descaracterizou a arquitetura original.
1
TOSTES, Vera Lucia Bottrel. Museu Histórico Nacional, 80 anos. De Fortaleza ao maior museu de história brasileiro. Anais do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 34, p. 153-166, 2002, p. 163.
2
A mudança do Arsenal para a Ponta do Caju transformou o bairro da Misericórdia – e o Morro do Castelo – em local violento e decadente,
conhecido como bairro infecto. A Comissão Executiva do Centenário decide eleger o edifício do antigo Arsenal de Guerra e suas dependências
e os terrenos circunvizinhos como local para montagem do Pavilhão das Indústrias, preservando-o da demolição. Para mais detalhes, ver:
TOSTES, Vera Lucia Bottrel. Museu Histórico Nacional, Op. cit.
Após o término da exposição, parte das novas instalações foi demolida para dar lugar ao aterro
que abrigaria uma avenida e a construção do atual aeroporto Santos Dumont. Nesse momento,
ocorreu a criação do museu que, inicialmente, ocupou duas pequenas galerias, na Casa do Trem. O
restante foi utilizado pelo Ministério da Agricultura, cuja sede localizava-se ao lado, além de outras
repartições públicas.
A necessidade de ampliar a instituição exigiu, entre os anos de 1938/1939 e 1940, que se
reformulasse o espaço com a construção de um terceiro pavimento. O pátio interno recebeu a cobertura
de uma laje entre o primeiro e o segundo andares, passando a servir para experimentos agrícolas.
Após a transferência da capital do país para Brasília, em 1961, o Ministério da Agricultura
retirou-se e todos os espaços foram destinados ao museu. As salas passaram por reformas para
abrigar galerias expositivas, setores bibliográficos, arquivísticos, laboratórios de restauração e
operacionais. Na laje foi criado um jardim lembrando o pátio original da Exposição de 1922. Sua
existência, ao longo das décadas seguintes, favoreceu a ocorrência de infiltrações e a deterioração
do andar térreo.
Entre 1967 e 1969, com a transferência das demais repartições que ainda funcionavam em
algumas dependências, o MHN fechou as portas para promover uma grande reforma. Foram
realizadas a revisão geral do telhado, dos pisos e da pintura externa do pátio principal, a substituição
total das claraboias sobre o Salão das Carruagens, a construção de novos banheiros, além da
construção de cisterna e de uma caixa d’água no Beco dos Tambores.3 Essas obras e reparos deram
continuidade ao processo de adequação do conjunto arquitetônico às suas funções de museu e
lançaram condições para uma nova organização da instituição museológica. Um novo circuito
expositivo foi organizado de modo cronológico e inaugurado em 1969, sob a direção do comandante
Léo Fonseca e Silva. Foram criados os departamentos de Arquivo Histórico e Biblioteca, e ocuparam
o terceiro andar, ao passo que as salas de exposição passavam para o segundo.4
A tentativa do tombamento tanto do prédio como da coleção levou o diretor, professor Gerardo
Brito Raposo da Câmara, a dar início à retirada dos elementos decorativos neocoloniais da fachada
principal, uma vez que o Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) não aceitava
a indicação de tombamento e justificava seu parecer apoiado no fato de a construção ter perdido
sua característica original.5
3
Cf.: MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de Atividades do Museu Histórico Nacional enviado para o Ministério da Educação e
Cultura, 1967, p. 8. Arquivo Institucional.
4
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de Atividades do Museu Histórico Nacional enviado para o Ministério da Educação e
Cultura, 1969, p. 1 e 5. Arquivo Institucional.
5
Após longos anos de tentativas para que o Iphan tombasse a edificação e a coleção do MHN, o Conselho do Iphan aprovou o tombamento
em 19 de abril de 2001. Além da relatoria do prof. Arno Wehling, foram responsáveis pelo conteúdo que baseou a defesa a museóloga
Glaúcia Cortes Abreu e o historiador Adler Homero Fonseca de Castro.
Apesar das crescentes dificuldades pelas quais passava a instituição, no início dos anos
1980, criou-se uma nova Reserva Técnica nas galerias térreas onde funcionava o antigo Curso
de Museu. A nova Reserva Técnica, além de constituir um projeto pioneiro no Brasil, contribuiu
para a preservação da coleção, bastante comprometida. Iniciou-se a reforma do piso do Pátio da
Minerva e de um novo auditório – que nunca foi concluído. As demais galerias foram adaptadas
para exposições e, com isso, ampliou-se o circuito expositivo que ainda permanecia fechado.
O final da década foi marcado pelo início da restauração da Casa do Trem,6 mediante convênio
assinado com o Consulado Geral da Alemanha, no Rio de Janeiro, em 1989, durante a gestão da
profa. Solange de Sampaio Godoy. Realizaram-se as obras estruturais, salvando da ruína completa
a edificação que abrigou o primeiro arsenal brasileiro, no século XVIII.
Durante a gestão da profa. Heloísa Magalhães Ducan, no mesmo ano, as dificuldades financeiras
por que passava o país naquele momento contribuíram para a interrupção da restauração da Casa
do Trem, apesar dos esforços da Profa Ecyla C. Brandão, a restauração foi concluída somente em
1998/1999, já na gestão da profa. Vera Lucia Bottrel Tostes, após uma década de paralisação.
Foram recuperadas as estruturas, criados novos acessos, e a fachada principal recebeu o traçado
e o frontão originais. O término das obras possibilitou, em 2001, a remontagem da exposição
numismática e o retorno da coleção ao espaço que tradicionalmente a abrigou. Foi fundamental
para a conclusão do projeto o patrocínio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) por meio do projeto de incentivo fiscal e da Associação dos Amigos do Museu
Histórico Nacional (AAMHN).
6
O prédio que abrigou o primeiro arsenal brasileiro, erigido em 1762 a mando de Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela, estava
destinado à guarda dos armamentos (os trens de artilharia) das tropas portuguesas para reforçar a defesa da cidade, ameaçada por corsários
vindos em busca do ouro proveniente de Minas Gerais. O Arsenal ficou conhecido popularmente como Casa do Trem.
Na primeira metade da década de 1990, durante a gestão da profa. Ecyla Castanheira Brandão,
foram realizadas intervenções nas galerias do térreo, que passaram a abrigar a exposição Expansão
Ordem e Defesa, implantadas após o término da restauração da pintura de Vítor Meireles, Combate
Naval do Riachuelo, com o apoio da Petrobras S.A. e da AAMHN.7
A gestão da profa. Vera Tostes, iniciada em 1994, traçou metas visando modernizar os espaços
para melhor atender às demandas técnicas e sociais. A prioridade foi “a preservação das coleções e
o resgate dos espaços do conjunto arquitetônico que constituem o museu, interna e externamente”.8
As metas estabelecidas foram perseguidas e alcançadas:
• o resgate e a modernização das galerias de exposição;
• a ampliação das áreas de tratamento de acervo – com ênfase na reserva técnica e nos
laboratórios –, e de acesso ao público;
• a implantação das exposições de longa duração da numismática e da história nacional, além
de outras voltadas para a preservação das coleções, como a de meios de transporte terrestre;
• a conservação e a restauração da coleção;
• o processamento informativo;
• a retomada e ampliação da produção científica;
• a difusão da informação;
• a ampliação e diversificação das ações sociais e educativas.
9
Todas as metas previstas tiveram por objetivo a conservação e a restauração, bem como a
ampliação e a diversificação do público. Essas metas nortearam a trajetória do MHN na década de
noventa do século XX.
edifício, nos pontos de suas amarrações, estão todas fendidas”.10 Outra área comprometida era o
espaço abaixo do jardim do primeiro piso, infiltrado de umidade e de proliferação de fungos, o que
inviabilizava sua utilização e colocava em risco a importante coleção das carruagens e os acervos
ali guardados. Novas áreas foram projetadas para ampliação da cisterna, dos serviços gerais, além
de saídas adicionais nas laterais e novos estacionamentos.
Durante a realização das etapas, por muitas vezes os trabalhos foram suspensos para estudo de
situações emergenciais, como a descoberta de fiação ativa dentro de paredes que não era tocada há
40 anos. Encontrar a trajetória da fiação elétrica até seu ponto final, ou de canos que retinham água
estagnada há décadas, por vezes, atrasava o andamento em até 30 dias. Foi surpreendente, também,
verificar o estado de desgaste das estruturas em ferro que sustentavam o terceiro pavimento e que
poderiam ceder a qualquer momento. Procurar novas soluções, como a colocação de “sapatas
metálicas” e novos suportes, conduzia a estudos de engenharia e de orçamentos complementares.
Paralelamente, iniciou-se o projeto de restauração das carruagens e do acervo localizado onde
seria um auditório.
A descoberta de um arco e uma forja nas proximidades das galerias do primeiro piso contribuiu
para ampliar a aeração e iluminação do prisma entre as edificações dos séculos XVIII e XIX.
Ao mesmo tempo, resgatava-se a memória da construção no período que abrigou cavalariças do
exército, no século XIX. À medida que a restauração avançava, foi possível perceber o piso original
das galerias nas quais estão instaladas as carruagens. Coincidência extraordinária: enquanto o
10
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Pasta 1939. Arquivo Institucional.
grupo discutia como seria o piso para tornar mais real a amostra das viaturas e os calçamentos da
época, operários descobriam o piso de pedra do século XVIII. A descoberta possibilitou que os
veículos hoje se encontrem dentro do ambiente de época. Esses exemplos são alguns dos muitos
que a cada dia surpreendiam, mas que não representaram o desânimo de concluir as metas.
Ao término de cada etapa, o novo espaço era aberto ao público mesmo sem a conclusão dos
demais, o que facilitou a manutenção do museu em funcionamento. Para o público, foi preparado
um impresso que explicava os possíveis desconfortos e mostrava as futuras soluções.
Após três anos, esse conjunto de obras civis patrimoniais estava concluído, marcando de
modo significativo o processo de modernização e devolvendo ao público áreas antes inacessíveis
e degradadas. Novo espaço de reserva possibilitou melhor acesso aos itens que precisavam de
restauração e melhor conservação. O acervo das carruagens foi completamente restaurado e
exposto nas galerias denominada “Do Móvel ao Automóvel” e colocado sobre piso original do
século XVIII. A monumental escultura em gesso de D. Pedro II, já restaurada, foi transportada para
a entrada entre as escadas rolantes. UMA VITÓRIA!
Estátua equestre de d. Pedro II no Hall das Escadas Rolantes. Mais acesso aos circuitos
de exposição inaugurado em 2004. Foto: Lau Torquato
A última grande montagem datava de 1989 e fora estruturada em módulos. Ocupava espaços
limitados a quatro galerias, as únicas disponíveis até então. Apesar de não ser abrangente no que
tange aos temas da história nacional, conservou uma atualização de conteúdo durante 20 anos em
que permaneceu aberta à visitação. Ao longo desses anos foi possível observar que o tratamento
expositivo desenvolvido em módulos conceituais não permitia uma linguagem linear, o que muitas
vezes confundia o público,12 ao mesmo tempo em que não oferecia uma circularidade confortável
ao visitante, uma vez que as narrativas sobre a história do Brasil estavam distribuídas esparsamente
entre o primeiro e o segundo andares.
Com essa experiência acumulada, a nova equipe decidiu adotar um circuito expositivo linear
ocupando as galerias do segundo andar. Ao longo desse circuito, ora a abordagem é cronológica,
com diálogos de temporalidade que trazem determinados temas até a contemporaneidade, ora é
temática. O marco inicial foi mostrar os aspectos arqueológicos brasileiros de seus habitantes. Pela
primeira vez museu dedica-se uma galeria aos índios antes e depois do contato com os europeus.
A trajetória histórica da nação até os dias atuais, ilustrada com a coleção do museu, ainda trata da
presença negra enfatizando sua influência na formação sociocultural brasileira.
12
Segundo comentários dos visitantes apontados nas sugestões deixadas na recepção do Museu Histórico Nacional (MHN).
Conclusão
Ao longo de uma década foram muitos os desafios, entretanto maiores foram as vitórias. Ao
concluir o registro dessa memória, cabe salientar a participação dos funcionários que confiaram nos
projetos e se entregaram de corpo e alma à sua realização.
O MHN termina uma etapa e chega ao 90o aniversário comprovando que é capaz de se repensar
e se renovar. Há dez anos escrevia em seus anais: “A sua capacidade de adequação e de inovação
[do MHN] tem sido uma constante, desde a sua criação, quando ocupava apenas duas salas no
cenário da Exposição de 1922, até os dias atuais, com 9.000 m² de área expositiva”.13
Os novos tempos, neste novo século – o XXI – estimulam o pensar da nova década que levará
ao centenário do museu. O horizonte futuro aponta na direção não somente de novas tecnologias,
mas igualmente para a necessidade de ampliação dos espaços físicos. Gestões já se iniciam com o
propósito de agregar terreno lateral para a construção de um anexo que permitirá a transferência
dos setores administrativos, da biblioteca e do arquivo para que a edificação histórica possa abrigar
somente galerias de exposições permanentes e temporárias, desenvolver conceito inovador de
reservas técnicas e ampliar os serviços educativos com a implantação de tecnologia de ponta.
Ao final de uma década e início de outra com uma equipe em processo de renovação, o
futuro promete novos desafios, mas, sem dúvida, também novas importantes vitórias que sempre
caracterizaram o MHN.
A todos que nos últimos dez anos estiveram ao lado da diretoria da instituição, resta mais uma
vez agradecer e reforçar os laços da equipe que, unida, hoje celebra a vitória de perseverar, superar-
se e de acreditar no futuro.
13
TOSTES, Vera Lucia Bottrel. Museu Histórico Nacional, 80 anos. Op. cit. p. 163.
O título deste artigo é uma citação de Mao Tsé-Tung, o líder da China comunista entre 1949
e 1976, e reflete uma posição que já é bem conhecida e repetida na política e na diplomacia:
independentemente da justiça dos argumentos, uma das formas que os líderes encaravam a maneira
de se obter e manter o poder político era – e infelizmente, ainda é – por meio do poder das armas.
Como escreveu Maquiavel:
As principais bases de cada estado, novos assim como antigos, ou compostos, são boas leis e boas
armas; e como não há boas leis onde o estado não é bem armado, segue-se que onde eles são bem
armados têm boas leis.1
Seguindo essa linha de raciocínio, o Museu Histórico Nacional não podia deixar de acumular
ao longo dos anos uma grande coleção de armas, pois elas eram vistas como uma representação
do poder político, simbolizando contextos que já foram tratados em outros artigos destes Anais.2
De fato, uma pesquisa no arquivo virtual dos Anais do Museu, localizou nada menos que 97
referências à palavra troféus na sua base de dados; a palavra se referindo, entre outras coisas, às
armas capturadas ao inimigo em campo de batalha. Portanto, não deveria ser uma novidade tratar
como uma das coleções mais “visitadas” do MHN, seus canhões, reunidos em uma área específica
e determinada do prédio da instituição, o Pátio Epitácio Pessoa.
*
Historiador, pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e coautor do livro Armas: ferramentas da paz
e da guerra.
1
MACHIAVELLI, Nicoló. The Prince. Chicago: The University of Chicago Press, 1952. p. 18.
2
Por exemplo, há o texto de autoria do abaixo-assinado “Do troféu de guerra ao copo de geleia”. (Anais do Museu Histórico Nacional n° 27,
1997) e o de José Neves Bittencourt, “Um museu de história do século passado, observações sob a estrutura e o acervo do Museu Militar do
Arsenal de Guerra, 1865-1902”. Anais do Museu Histórico Nacional n° 29, 1997.
catástrofes, guerras ou até esportes radicais, como corridas de carros. Até o gosto por filmes de
aventura pode ser um sinal de que as pessoas se interessam pela expectativa de ver um ato violento.
No entanto, somente isso não explicaria o porquê da própria existência da coleção e suas origens.
E o conhecimento dessa origem é um indício de como a questão dos fatos militares foi tratada ao
longo dos anos.
De início quais seriam as razões da fascinação pelos canhões? Isso não é um problema simples
nem recente. Na verdade, pode-se dizer que é parte da natureza humana: desde antes dos registros
históricos, o homem se envolve em conflitos e, até muito recentemente, a atividade bélica tinha um
aspecto vital na vida das pessoas. Mesmo hoje em dia, quando há o ideal – ainda não atingido, mas
por todos almejado – de uma paz universal, a questão militar não é algo que possa ser ignorado,
pois afeta a vida de todos, mesmo quando isso não seja muito perceptível. Por exemplo: em 1838,
o orçamento do governo paraguaio dedicado a questões de defesa era nada menos que 94,5% do
total de gastos governamentais.3 Ou seja, praticamente tudo o que o governo de lá arrecadava era
voltado para a questão militar. No mesmo ano, o Brasil também dedicava uma boa parcela de seu
orçamento para a defesa, correspondendo a 36,5% dos gastos do governo.4 E isso não é um aspecto
que se restringe a um passado longínquo: em 1960, o orçamento do governo norte-americano
dedicava 47% de suas despesas à área de defesa – 9% de tudo o que a população norte-americana
gastou naquele ano!5 Considerando que esses valores são referentes a momentos que os respectivos
países não estavam envolvidos em conflitos externos, fica claro que, independentemente da vontade
de paz das pessoas, a questão militar é algo com que temos de conviver, mesmo em tempos de paz.
Obviamente, o problema da relevância dos assuntos militares no governo não é recente, o
crescimento dos gastos governamentais com a questão da defesa, que também obviamente implica
fortes impactos em toda a sociedade, pode ser associada à própria existência do estado moderno.
Sobre isso, há, por exemplo, a tese sobre a “Revolução Militar”, na qual se faz uma relação direta
entre a formação dos autuais países e assuntos ligados a táticas surgidas no século XVI.6 Segundo
o autor da proposta a necessidade de se manter em pé de guerra grandes exércitos teria forçado ao
surgimento de uma máquina burocrática – os modernos governos – para que os monarcas pudessem
arrecadar o suficiente para se pagar os soldados.
3
WHITE, Richard Alan. Paraguay’s Autonomous Revolution: 1810-1840. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1978. p. 208.
4
CARREIRA, Liberato de Castro. História financeira e orçamentária do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1980. v. 1, p. 255.
5
For Your Eyes Only. Strategy and Tactics Magazine, n. 55, March/April, 1976. p. 23.
6
Cf. ROBERTS, Michael. The Military Revolution, 1560-1660. In: ROGERS, Clifford J. The Military Revolution Debate: Readings on the
Military Transformation of Early Modern Europe. Oxford: Westview Press, 1995. p. 13-35.
Na verdade, mesmo quando vemos a tradicional divisão dos períodos históricos, a guerra
aparece com relevância: o marco mais usado no Brasil para descrever o fim da Idade Média e o início
da Idade Moderna é a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1452 – um evento de natureza
militar, no qual os grandes canhões, a arma da “modernidade”, tiveram um papel fundamental na
destruição das muralhas da cidade, construídas dentro dos padrões medievais.
E o exemplo de Constantinopla é apenas um dentre todo um conjunto de eventos que foram
marcados pela ação dos exércitos e, mais importante para este artigo, pelo uso da artilharia: os
antigos castelos medievais tinham muralhas altas para não serem facilmente escalados, e, para
reduzir seu custo, a largura dos muros não era muito espessa. Isso não era um problema marcante
na época em que as máquinas de assédio eram as catapultas e os aríetes – era muito difícil romper
um muro de pedra. Contudo, o canhão mudou essa situação, pois seu projétil, vindo em uma
velocidade muito alta, quebrava com facilidade a alvenaria dos muros em suas bases, facilitando
a queda.
Na Guerra dos 100 Anos (1337-1453), apesar de todas as vitórias inglesas sobre a cavalaria
medieval, que resultaram na ocupação de uma grande parte da França, a partir do momento que a
posse de canhões se tornou comum, a guerra mudou, pois os exércitos franceses foram capazes de
destruir as bases da ocupação de seu país, reconquistando em apenas quatro anos tudo o que tinham
perdido ao longo de mais de um século de conflito – com a artilharia, uma das bases do sistema
político e econômico do feudalismo, os castelos, deixaram de ser eficientes. Esse foi um evento
de fundamental importância, não só em termos bélicos, mas também em termos sociais: um dos
motivos da transformação social que ocorreu no final da Idade Média e início da Idade Moderna
foi, justamente, o declínio do poder dos senhores feudais e o surgimento de estados centralizados,
governados por monarcas, no sentido estrito da palavra: mono (um) e archa (governante). Ou seja,
ao contrário do esquema anterior, em que o rei era apenas um dos senhores feudais de um país, o
primeiro entre pares, ele passava a ser o único governante legítimo e com real poder, pois era o
detentor do único poder militar efetivo.
A transformação na estrutura de governo já mencionada não ocorreu de forma instantânea,
foi unilateral, já que era possível a uma família nobre construir lentamente um castelo que
era praticamente inexpugnável, mas comprar um número razoável de canhões era muito mais
complexo, por sua fabricação implicar grandes despesas, que tinham de ser pagas de forma
praticamente instantânea, empregando uma mão de obra altamente especializada. Ademais, os
canhões eram produtos muito caros por causa do custo da matéria-prima e por não poderem ser
fabricados em série: cada boca de fogo era feita usando-se o método da cera perdida, em que
o molde onde o objeto era fundido tinha de ser destruído durante o seu uso. A implicação era
que, se um nobre podia comprar um ou dois canhões, ele certamente não teria condições de ad-
quirir um grande número deles, como os reis, que dispunham de mecanismos mais aperfeiçoados
de financiamento.
Naturalmente, a transição para uma força militar totalmente estatal não foi um processo
instantâneo, apesar de ter-se dado de forma relativamente rápida, tendo em vista as centenas de anos
de duração da Idade Média, durante a qual os aspectos do controle pela nobreza dos modos de fazer
a guerra dominaram. Deve-se dizer que o Museu Histórico Nacional tem em suas coleções objetos
que podem ilustrar a não linearidade dessa mudança, como pode ser exemplificado pelos canhões
feitos para navios corsários ou mercantes – um dos troféus de guerra do Pátio dos Canhões é uma
peça holandesa, fundida para a Companhia das Índias Ocidentais em 1629, um objeto relevante
para ilustrar determinado momento da história do Brasil, mas que não é ligado a um governo e
sim a uma empresa privada. Apesar da sua posição como companhia de comércio, ela conduziu
a guerra contra Portugal no Brasil entre os anos de 1624 a 1654. Outro canhão, cuja história é
lamentavelmente ignorada, foi fundido por um artesão alemão com a inscrição em português: “A
Deus peço seu favor [para] nas batalhas que tiver sair vencedor”, seguido da data de 1631. O
fundador do museu, Gustavo Barroso, teceu a hipótese de que se tratava de um canhão feito para
“[...] um navio de armadores judeus-portugueses que, de 1631 a 1654, fizeram o comércio do Brasil
a sombra da bandeira da Companhia das Índias Ocidentais, armados em guerra contra os piratas
europeus e barbáricos”.7
Apesar de isso ser uma conjectura, já que, como dissemos, trata-se de um objeto cuja história
é efetivamente desconhecida, o argumento de Barroso parece ser consistente, não podendo ser
descartado de imediato – certamente esse objeto não foi feito para um governo, pois não tem o
brasão real e sim o que parece ter sido um escudo de um nobre, que foi raspado, fato bastante
interessante, pois alguém tomou a iniciativa de “apagar” o sinal de que aquele objeto não pertencia
a rei ou a governo algum. Mesmo com a resistência cultural de segmentos da sociedade em aceitar
que os governos estavam estabelecendo um monopólio do uso da violência legítima, é fato que
apenas as entidades que controlassem o aparato fiscal capaz de levantar recursos para equipar
e manter forças armadas de porte tiveram condições de manter sua autonomia política, face ao
poder de outras entidades. Isso é bem visível durante os processos em que o número de unidades
políticas autônomas, os países independentes, foi reduzido de milhares para menos de duzentos
hoje em dia, assim como ocorreu na Europa, que veio a controlar praticamente todo o mundo no
século XIX.
7
BARROS, Sigrid Porto de. Armas que documentam a guerra holandesa. Anais do Museu Histórico Nacional. v. 10, 1949. Rio de Janeiro:
SEDEGRA, 1959. p. 31-32. Apud BARROSO, Gustavo. Catálogo comentado da exposição do Museu Histórico Nacional aos pavilhões do
“Mundo Português” e do “Brasil Independente” (1940). p. 30.
Tudo isso ajuda a explicar porque os canhões adquiriram, de fato, uma grande importância
no esquema militar, sendo o equipamento mais caro e complexo usado nos exércitos de terra dos
séculos XVI ao XIX. Mas sua importância não pode ser medida apenas em fatores estritamente
concretos e objetivos, pois a dimensão psicológica que os objetos tinham não pode ser relevada,
tendo sido criado todo um sistema de mitos sobre os canhões.
Uma característica dessa mitologia, ainda relativa ao monopólio da violência legítima pelo
estado, é a resistência das pessoas a esse processo, como se observa nos Estados Unidos, onde a
própria constituição autoriza o porte de arma entre os civis, os quais possuem até mesmo armas
de alcance militar, como fuzis e armas automáticas. Mesmo no Brasil, onde há longa tradição de
restrições à posse de armas por civis, em 2005, quando foi feito o plebiscito sobre o comércio de
armas e munições, praticamente dois terços da população votou contra a proibição total à venda
desses produtos – em dois estados, a votação contrária superou 85% dos votos. Essa rejeição não se
deve a um problema prático, concreto, pois não há uma necessidade real de as pessoas possuírem
armas – é uma questão psicológica, de medos e receios sobre a redução de direitos.
Mesmo tendo em vista as restrições que as sociedades colocam a uma total proibição da posse
de armas, uma coisa é tomada como certa em todos os países do mundo onde existe um estado
organizado: canhões capazes de funcionar são de propriedade exclusiva dos governos, que não
desejam dar meios de destruição de maior escala à população geral. Daí se entende perfeitamente
que os canhões franceses fabricados no reinado de Luís XIV, de 1661 até 1776, tivessem a
inscrição Ultima Ratio Regis – “a última palavra dos reis”, já que as peças de artilharia, além de
serem importantes em combate (quando efetivamente representavam a “última palavra”) eram um
monopólio dos reis.
A partir dessa ideia era apenas um pequeno passo para que os canhões fossem vistos como
uma representação do próprio rei e, por extensão, do país ao qual governavam. Isso era facilitado
pelo fato de a mentalidade do período pós-renascimento ser influenciada pelas ideias artísticas do
Barroco, de forma que praticamente tudo o que era feito naquela época era muito decorado, e os
canhões não eram exceção: tornaram-se verdadeiras obras de arte, aumentando ainda mais o valor
material e simbólico dos objetos.
Esse papel de representação do estado assumido pelos canhões pode ser visto nas peças
portuguesas e brasileiras existentes no acervo do MHN, incluindo os canhões fabricados em
outros países da Europa para o uso de Portugal, além de objetos de grande apuro artístico, como
os fabricados por Jacomo Rocca, artesão de Gênova, fartamente decorados e com detalhes que
lembram esculturas, a ponto de poderem ser considerados como tal (um fragmento de um dos
canhões de Rocca, em forma de cabeça de guerreiro, foi incorporado às coleções do Museu
Histórico como se fosse uma escultura). Esse papel artístico também se observa na presença dos
brasões, sempre em posição de destaque nos canhões. Com esses brasões, um museu pode basear
sua exposição sobre um processo histórico, como é o caso de um canhão português, fundido na
Inglaterra, que tem não só o brasão real português, mas também o do marquês de Pombal.
Segundo a lenda, um canhão como o de Pombal teria sido feito por um artesão português
enviado para a Inglaterra pelo próprio marquês para aprender as técnicas de fundição inglesas,
já que Portugal, no século XVIII, tinha perdido a tradição de fabricante de bons canhões, se
tornando um importador de material de artilharia. Independentemente da veracidade da lenda,
os brasões permitem trabalhar com a ideia da decadência das indústrias portuguesas, a ponto de
necessitarem importar materiais que antes tinham sido feitos no país, por outro lado, é notável
a importância da Inglaterra como fornecedora de bens manufaturados. Mais importante, a
presença do brasão do todo-poderoso ministro confirma sua importância na política portuguesa:
certamente, Pombal não tinha seu exército particular, mas conseguiu associar sua figura a do
próprio rei. E isso de forma indelével e perene, com a simples aplicação de seu brasão no corpo
de um canhão.
Voltando ao tópico texto, os dois fatores delineados anteriormente, a eficácia real dos canhões
como armas no campo de batalha e os valores simbólicos associados a eles, resultaram que as peças
de artilharia se encaixassem bem em uma prática que vinha da antiguidade e que persiste até os
dias de hoje: a coleta, guarda e exibição de material capturado de inimigos com fins de celebrar a
vitória de um estado ou sistema político sobre outro. Esses objetos eram transformados em troféus,
coletados pelos governos tal como um clube de futebol faz até hoje, apesar de aquele “jogo” entre
as nações ser muito mais mortal.
Do ponto de vista da coleção de canhões do Museu Histórico Nacional, é importante frisar
que muito antes de existirem museus militares ou de qualquer outro tipo, os governos guardavam
cuidadosamente em seus arsenais os canhões capturados como símbolos políticos. A coleção
de armas da Royal Armouries, da Inglaterra, é um dos maiores museus de armas do mundo,
reúne canhões estrangeiros desde o século XV, sendo interessante notar que o estabelecimento,
originalmente um arsenal, recebia visitantes, cobrando entradas desde o século XVI.8
Por outro lado, deve-se mencionar que se a manutenção dos troféus era um dos objetivos
dos governos, seu retorno também era uma preocupação. Não por causa de seu valor monetário
ou bélico, mas como uma forma de “apagar uma desonra” resultante de uma derrota no campo
de batalha. Um exemplo disso pode ser visto no caso de 1814, quando o diretor do Invalides, o
8
Para uma história da coleção da Armouries, ver: BLACKMORE, H. L. The Armouries of the Tower of London, I Ordnance. London, Her
Majesty’s Stationary Office, 1976.
hospital de inválidos militares em Paris, onde os troféus eram depositados, queimou as bandeiras
preservadas no hospital para que não fossem recuperadas pelos inimigos.
Aqui no Brasil também houve a coleta de canhões nos arsenais e, depois, nos museus militares,
chegando-se ao ponto de até instituições civis o fazerem. O Instituto Histórico e Geográfico do
Pará tem uma pequena coleção de canhões, incluindo um capturado em Caiena. Mas o uso de
coleções de bocas de fogo como símbolos vai além de seu uso como elemento de lembrança das
vitórias militares. A estátua do General Osório, militar de grande reputação na Guerra do Paraguai,
foi feita com o bronze de troféus de guerra paraguaios capturados no campo de Batalha. A estátua
do proclamador da República Marechal Deodoro, localizada na Praça Paris (RJ), também foi feita
com o bronze de canhões – curiosamente, o Museu Histórico Nacional cedeu quatro peças de seu
acervo para isso, trocando-os pelas bocas de fogo que tinham sido originalmente destinadas a
serem destruídas, consideradas como de maior valor histórico.
Outro exemplo no Brasil foi o caso dos canhões capturados dos holandeses quando de sua
rendição em 1654: um dos itens da paz com a Holanda, assinada em 1663, foi a exigência dos
holandeses pela devolução desses canhões, dezenas deles tendo sido enviados de Recife para
a Europa,9 de forma que esses canhões são raros no Brasil agora. A devolução certamente não
se devia a um possível uso militar das peças de artilharia, muitas delas de qualidade inferior, já
bastante antigas e até obsoletas no ano da paz. Também a Holanda não estava envolvida em um
conflito no momento. Assim como não era um problema monetário, já que outra exigência da paz
foi o pagamento de uma pesada indenização por parte de Portugal. A tudo isso deve ser somado
o fato de que as bocas de fogo não pertenciam originalmente ao governo holandês, apesar de o
governo tê-las reinvidicado, eram, na verdade, propriedade de uma empresa privada, a Companhia
das Índias Ocidentais, de forma que a hipótese que nos parece evidente é que os holandeses não
queriam que troféus ficassem nas mãos dos lusitanos.
O desejo de obter e manter troféus explica porque o Museu Naval e o Museu do Exército,
criados na década de 1860 e cujos acervos dariam origem à coleção de canhões do Museu Histórico
Nacional, coletaram diversas peças. Hoje em dia, o MHN tem canhões das seguintes origens:
9
O arquivo ultramarino contém 24 documentos que enviam conhecimentos de carga de canhões de Recife para Lisboa. Ver, por exemplo,
carta do almoxarife da Fazenda Real da capitania de Pernambuco, Gregório Cardoso de Vasconcelos, ao rei [D. Afonso VI], sobre o envio
do conhecimento das peças de artilharia remetidas para o reino pela nau de guerra Santa Ana, da qual foi mestre José Alves Pinhão Verde.
Recife, 15 de março de 1663. Mss. Arquivo Ultramarino.
França 2
Itália 4
Paraguai 3
Holanda 4
Ignorado 4
Espanha 6
Brasil 11
Inglaterra 16
Portugal 16
Não se pode dizer que todos os objetos da tabela anterior tenham sido recolhidos como
troféus, pois o histórico de todos eles não é conhecido: alguns foram feitos por outros países para
Portugal, outros foram comprados pelo governo imperial, nos dois casos se destacando a Inglaterra,
tradicional fornecedora de material bélico, tanto para Portugal, como para o Brasil. Evidentemente,
as peças feitas em Portugal e no Brasil não podem ser consideradas como troféus, pelo menos no
sentido clássico da palavra, mas para o antigo museu, elas, estando associadas a vitórias militares
ou ao “passado glorioso” da nação, certamente assumiam um significado muito semelhante. Pode
ser esse o caso das bocas de fogo usadas pelo Exército Brasileiro na guerra do Paraguai ou o
pequeno canhão da flotilha de João das Botas, herói da guerra de Independência, que era levado em
procissões cívicas na Bahia antes de ser incorporado ao acervo do Museu.
De qualquer forma, a probabilidade de as outras peças estrangeiras terem sido preservadas
como marco da memória de um estado nacional idealizado, vencedor, se aproxima da certeza, ainda
mais quando consideramos que o próprio museu trabalhou ativamente para criar essa impressão.
É o caso de um grande canhão francês, do reinado de Luís XIV, que estava na fortaleza de Santa
Cruz até 1901.10 Não há informações sobre o objeto, a documentação original do Exército apenas
mencionando que teria “valor histórico” – o que certamente era verdade, justificando sua inclusão
no Museu de Artilharia. Contudo, o primeiro diretor do MHN, Gustavo Barroso, indo muito além,
10
OFÍCIO nº 2020 do Intendente Geral, General de Brigada Antônio Vicente Ribeiro Guimarães ao Diretor do Arsenal de Guerra, Cel.
João Cândido Jacques, mandando recolher ao Arsenal de Guerra um canhão de bronze com a efígie de Luiz XIV que foi reputado de valor
histórico. 5 de julho de 1901. Mss. Arquivo Nacional.
conjecturava que era um troféu, capturado na invasão francesa ao Rio de Janeiro, em 1710.11
Isso apesar dessa hipótese ser altamente improvável devido às gigantescas dimensões do objeto,
adequadas apenas ao uso em navios, o que não foi o caso da derrota de Duclerc, uma invasão por
terra. De qualquer forma, para o diretor do museu, era importante criar uma associação entre os
objetos expostos e um fato militar de importância, mesmo se essa associação não fosse confirmada.
Tudo isso explica porque o museu antigo coletava troféus de guerra, já que com isso estaria
inserido em uma postura social em que se julgava ser necessário criar uma identidade nacional
baseada em um forte nacionalismo, a visão de uma nação se sobrepondo a outra. Só que em
termos sociais e, como consequência, de história e museologia, a situação mudou. Em função
da experiência traumática da Segunda Guerra Mundial, causada em grande parte pelo discurso
extremamente chauvinista das potências nazifascistas, a visão de uma supremacia nacional passou
a ser contestada em quase todo mundo. No Brasil, essa posição crítica foi a que dominou as
ciências sociais e, portanto, a proposta das antigas exposições do Museu Histórico Nacional foi
considerada inadequada. O resultado foi uma mudança gradual na abordagem do museu quanto
aos aspectos históricos.
Um sinal disso está no que não pode ser visto hoje no acervo do Museu Histórico Nacional: os
canhões da Segunda Guerra Mundial. O exército, ao voltar da Itália em 1945, trouxe certo número
de bocas de fogo usadas pelos alemães e italianos, capturadas no campo de batalha – 26 desses
canhões foram dados ao Museu, justamente na ideia de se incorporarem à coleção de troféus já
existente. Hoje, no entanto, nenhum deles está em exposição. De fato, apenas um ficou no Museu,
mas está em uma Reserva Técnica. Os outros foram enviados para o Museu da República no final
da década de 1960, que por sua vez os devolveu ao Exército na década de 1970.
O caso dos canhões capturados aos nazistas mostra de forma inequívoca como a visão das
ciências sociais mudou: objetos que antes eram vistos como de importância fundamental para a
formação de um museu de história passaram a ser desprezados e, literalmente, descartados. Isso,
por si, não seria um problema, pois mudanças na forma como o MHN trabalha com a história
são visíveis em quase todas as áreas de suas exposições. Atualmente se dá mais importância ao
cotidiano do que aos “grandes personagens”; a uma história mais recente, em oposição à visão
anterior, de buscar enaltecer as “raízes da nação”; se procura abordar mais os processos históricos
que os “fatos marcantes”, e assim por diante.
Do ponto de vista do Brasil, contudo, problemas internos agravaram a questão da posse de
troféus: com um passado relativamente recente ligado a uma ditadura militar, houve toda uma
11
BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da história do Brasil: o mistério da morte de Duclerc. O Cruzeiro, Rio de Janeiro. p. 20-24,
23/07/1949.
postura acadêmica contrária à defesa dos valores tradicionais das forças armadas. Praticamente
tudo que o Exército tinha feito passou a ser questionado de forma muito crítica, muitas vezes sem
uma postura objetiva: se vinha de uma atividade militar, seria apontado como algo ruim. A isso
se juntava o mito do “brasileiro cordial”, que tentava passar a ideia de que o país não era uma
nação que se envolvesse em guerras de agressão – tal informação é falsa e até os dias atuais não
foi corrigida na forma de pensar da população. Não que a pouca importância que se dava aos
assuntos do passado militar fosse um problema de data recente, como já apontado em um artigo
dos Anais de 1947, em que se menciona campanhas políticas anteriores de devolução de troféus
de guerra.12 Na linha da criação do mito do “brasileiro cordial”, o próprio governo da ditadura
militar devolveu troféus de guerra ao Paraguai em duas ocasiões distintas, nos governos Geisel
(1971) e Figueiredo (1980).13
Mas então fica a pergunta: se havia a proposta museológica e histórica de mudança de
abordagem com relação aos troféus, por que, de todas as áreas do Museu Histórico Nacional, o
Pátio dos Canhões se manteve praticamente imutável desde 1940? Isso parece ser particularmente
estranho, considerando que nesses setenta anos o Museu passou por diversas reformulações de
grande porte, com profundas mudanças até na arquitetura do prédio. Uma explicação óbvia é o
problema do próprio material exposto, de grandes dimensões e peso, difícil de ser rearranjado.
De fato, quando o autor deste artigo trabalhou no museu, se chegou a discutir uma nova proposta
museográfica para o pátio, sem que houvesse uma remoção de objetos, mas apenas o rearranjo dos
mesmos de forma mais lógica do que a atual, inexistente. Só que até isso foi inviável, devido aos
enormes custos envolvidos.
Entretanto, se os custos com uma grande mudança na organização espacial dos objetos não
eram possíveis de serem arcados, pode-se dizer que houve uma alteração radical na proposta
conceitual da exposição. Como já descrito, não é mais aceitável o extremo nacionalismo, no
qual as exposições dos museus eram montadas objetivando demonstrar a superioridade de
um estado sobre outro.14 Dessa forma, apesar do arranjo dos objetos não ter se alterado, o
uso que era feito deles mudou. Atualmente, os objetos são simplesmente descritos por meio
de informações mais básicas, como no caso do canhão El Cristiano, o troféu de guerra mais
conhecido do país, capturado aos paraguaios em 1868. Sua legenda atual informa apenas que se
12
DUMANS, Adolpho. A ideia da criação do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1947. p. 98.
13
Sobre esse assunto, ver: FERNANDES, Lia Peres. Guerra contra a memória. A devolução de peças do acervo do Museu Histórico
Nacional. In: Anais do Museu Histórico. v. XVII. 2010.
14
Para uma discussão dessa visão, ver: Museus e representações da nação no pós-colonialismo: reflexões sobre os passados construídos no
Museu Histórico Nacional. MAGALHÃES, Aline Montenegro. TOSTES, Vera Bottrel Lúcia. A democratização da memória: a função social
dos museus ibero-americanos. CHAGAS, Mário de Souza et alii. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008.
15
Disponível em: <http://www.ecsbdefesa.com.br/fts/Blindados%20Rodas%20II.pdf>. Acesso em: jan. 2013.
16
Disponível em: <http://www.dod.mil/pubs/foi/Personnel_and_Personnel_Readiness/Personnel/444.pdf>. Acesso em: jan. 2013. Deve-se
notar, contudo, que a tomada de troféus particulares por soldados norte-americanos no Iraque e no Afeganistão foi proibida. Nas palavras
do porta voz do comando central, capitão Bruce Frame: “Nós não fomos para o Iraque ou o Afeganistão para conquistá-los, mas para
liberá-los [...] Levar coisas desses países envia a mensagem errada.” Disponível em: <http://www.militaryphotos.net/forums/archive/index.
php/t-4404.html>. Acesso em: jan. 2013. Tradução nossa.
O que não se discutiu na época foi que a própria solicitação era uma reificação, a transformação
em uma coisa concreta, do que era apenas a ideia abstrata – e muito controversa –, de que haveria
uma superioridade de um país sobre outro. Afinal, a guerra aconteceu, é um fato histórico, a
devolução de um objeto não vai apagar essa história ou modificá-la, como era proposto. O que se
pretendia com o pedido de devolução do vice-presidente Franco era aceitar uma visão positivista e
determinista, de que há apenas uma história a que, no caso, seria a do Paraguai como vítima. Deve-
se dizer que, de certa forma, a atual exposição do Pátio dos Canhões, procurando ser “neutra”, dá
suporte a esse ponto de vista, já que a construção historiográfica de que o Paraguai foi uma vítima
é dominante no país por causa da bibliografia produzida no período da ditadura, que assumiu
um papel hegemônico nas escolas, o que só atualmente está senda revista. Quando o museu não
estabelece uma postura crítica ante os fatos, se aceita como correta a posição de que os paraguaios
seriam vítimas históricas de uma injustiça a ser reparada.
Mas seria essa posição a única ou a correta? Uma visão histórica, igualmente válida, apontaria
que o governo ditatorial do Paraguai foi o responsável pela guerra, iniciando as hostilidades com
a invasão do Mato Grosso e da Argentina, cometendo atrocidades nos territórios ocupados e
provocando uma guerra que custou milhares de vidas brasileiras, argentinas e paraguaias.
Quem estaria certo nessa questão? Aceitar que um lado está com a “razão”, não importa
qual seja, é aceitar como correta a visão de que um troféu, de fato, representa a supremacia de
um país ou a ideia política sobre outro. Seria o mesmo que dizer que a museologia da década de
1940 é a correta, que o “relógio” das propostas museológicas e históricas deveria ser parado ou
até retroceder.
Do ponto de vista do autor destas linhas, voltando ao título deste artigo, a posição é que o
poder político não deveria vir do cano de uma arma – ou pelo menos da manipulação das ideias
em torno de um antigo canhão –, mas sim da reflexão sobre a sociedade e seu passado. Isso não
se obtém “apagando” o passado, e sim discutindo-o. Poderíamos dizer que a atual exposição no
Pátio dos Canhões, sendo neutra, não faz isso, mas o potencial para a discussão está lá, podendo
ser usado a qualquer momento. E, nesses termos, a proposta do museu sobre uma exposição
“neutra” se ajusta bem ao espaço, que, como já foi mencionado, é de uma exposição permanente.
Posições e visões sobre a história mudam e essas mudanças podem ser abordadas com o uso de
recursos museográficos. Para este autor não é necessário nem desejável tomar nenhuma medida
irreversível para isso.
Pretendo aqui salientar com base em fontes documentais referenciadas ao longo do texto a
formação da Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais em 1927, depois Inspetoria de Museu
e Monumentos (1938) do Estado da Bahia apresentando o que pretendeu e realizou para agir contra
a destruição de bens imóveis e a evasão de bens móveis considerados significativos para a história
e memória histórica desse estado e do Brasil.4
Ocorre que essa inspetoria baiana não despontou ao acaso e não foi o único órgão público
voltado para os cuidados com a preservação de bens imóveis e barreira para estancar o problema
da evasão de bens móveis que escorregavam pelas mãos de comerciantes de antiguidades para fora
da Bahia e do país. A partir do Arquivo Público do Estado da Bahia (criado em 1890), que de 1915
a 1931 esteve a cargo do historiador Francisco Borges de Barros, acabou se formando um conjunto
de anexos - células estaduais de preservação patrimonial -, agrupando o Museu do Estado da
Bahia (1918), a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais (1927) e a Pinacoteca (1931). Pode-
se dizer que os trabalhos de cuidados com o patrimônio ficaram interligados e centralizados no
que competia ao Estado.5 Borges de Barros, membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
(IGHB),6 comungando com os objetivos de construir a história pátria e enaltecer os feitos de heróis
baianos, foi o primeiro a ocupar o cargo de Inspetor com reconhecido envolvimento.
Passar da coleta de documentos - função do arquivo desde o Segundo Império - para o
colecionismo de objetos que deu origem ao museu estadual à criação dessa Inspetoria para cuidar
de monumentos e resguardar objetos e obras de arte em tempos republicanos e, depois, durante
Minc-Iphan, 2005. PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos anos
1920 no Brasil. Textos para concurso de livre-docência. Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto; FAU/USP, 2005. p.
28-42; MALHANO, Clara E. S. M. de Barros. Da materialização à legitimação do passado: a monumentalidade como metáfora do estado
(1920-1945). Rio de Janeiro: Lucerna/Faperj, 2002. p. 80-87. Especificamente sobre a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais de
Pernambuco, consultar RODRIGUES, Rodrigo J. Cantarelli. Contra a conspiração da ignorância contra a maldade. A Inspetoria Estadual de
Monumentos Nacionais e o Museu Histórico e de Arte Antiga do Estado de Pernambuco. Dissertação. Unirio/MAST, 2012. Disponível em:
<http://www.unirio.br/cch/ppg-pmus/dissertacoes/dissertacao_Rodrigo%20Cantarelli.pdf>. Acesso em: 14 jan. 2012; e sobre a Inspetoria
de Monumentos Nacionais MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias... Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos
Nacionais (1934-1937). Dissertação. PPG História. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. UFRJ, 2004. Disponível em: <http://www1.
capes.gov.br/teses/pt/2004_mest_ufrj_aline_montenegro_magalhaes.pdf>. Acesso em: 14 out. 2012.
4
Segundo Maria Lucia B. Pinheiro, a questão da evasão de bens mobilizou de modo mais contundente a opinião pública do país nos anos de
1920 do que o interesse pela arte e pela arquitetura brasileiras. Cf.: PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, modernismo e preservação
do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. p. 249.
5
Sobre o Museu do Estado da Bahia, ver CERAVOLO, Suely Moraes. O museu do Estado da Bahia, entre ideais e realidades (1918 a 1959).
Anais do Museu Paulista. São Paulo jan./jun. v. 19, n. 1, p. 189-246, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
47142011000100007&script=sci_arttext>. Acesso em: 12 dez. 2011.
6
Francisco Borges de Barros, bacharel em Direito, foi autor de obras sobre a história da Bahia (Borges de Barros – 1882-1935. Perfis
Acadêmicos. A Tarde, 24/02/1968); atuou também como chefe de gabinete do governador José Joaquim Seabra (nos quadriênios 1912-1916
e 1920-1924).
o Estado Novo, instituir a Pinacoteca remete ao passo a passo das providências para amealhar
um acervo documental e de cultura material na Bahia. Remete inclusive aos diferentes trânsitos
políticos pelos quais passou o país, reverberando sobre o cultural com vistas a perfilar, de distintas
maneiras, a identidade nacional. A Bahia esteve plenamente integrada nesse processo.
Construir a história da nação e a regional recortada de acordo com interesses da elite local
relacionando ambas a símbolos identitários foi um dos fios que ajudou a tecer o patrimônio no estado
baiano.7 Em tal conjuntura foi significativo o papel do IGHB, instituído em 1894.8 O ideário que
emanou, entrelaçado à missão avocada com o objetivo de participar do processo de modernização
e elevar o padrão civilizatório da Bahia9 (o que incluiu o debate sobre raças e imigração), serviu
como polo de aglutinação da elite intelectual articulada à política cujos membros associados, não
poucos, tinham cargos ou conexões na estrutura administrativa do estado.10 O repertório para uma
história regional assentado em valores locais a ser transmitido para as gerações futuras foi sendo
ali alimentado e, dali, semeado.
Tomando como ponto de partida o IGHB, associação privada, operando como foco de irradiação
de ideias e de ações cujos associados estavam atentos aos problemas e temas em discussão que
tocavam a nação brasileira desde o início do período republicano à centralização política em
Vargas, convido-os a acompanhar discursos e relatos até o momento encontrados sobre a Inspetoria
Estadual de Monumentos Nacionais na Bahia instalada na malha administrativa para a proteção do
patrimônio arquitetônico, histórico e artístico.11
7
Sobre questões de identidade e regionalismo, ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
Recife: FNJ, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001.
8
A gênese da construção da memória e história no Brasil relacionada à formação do estado nacional encontra esteio nos institutos históricos
e geográficos a exemplo do IHGB (1838). Cf.: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Esses institutos foram inclusive ponto inicial para a formação de coleções ou museus
regionais por motivos identitários, antes do surgimento do SPHAN. Cf.: VIANA, Hélder do Nascimento. Os usos do popular: coleções,
museus e identidades, na Bahia e em Pernambuco, do início do século à década de 1950. Tese. FFLCH, USP, São Paulo, 2002. Sobre a
política de patrimônio antes do SPHAN, consultar FERNANDES, José Ricardo Oriá. Muito antes do SPHAN: a política de patrimônio
histórico no Brasil (1838-1937), 2010. Disponível em: <http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/2010/09/23/comunicacoes-
individuais-artigos-em-pdf/>. Acesso em: 10 ago. 2012.
9
A missão do IGHB ficou estabelecida no estatuto de 1894 (Estatutos do Instituto Geographico e Historico da Bahia. RGHB, 1998, n. 1. p.
37-58).
Sobre o IGHB, ver ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. Algazarra nas ruas. Comemorações da Independência na Bahia (1889-1923).
10
Campinas: Editora Unicamp/Centro de Pesquisas em História Social da Cultura, 1999; SILVA, Aldo José Morais. Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia. Origem e estratégias de consolidação institucional (1894-1930). Tese. PPG em História, FFCH/UFBA, 2006. Disponível
em: <http://www.ppgh.ufba.br/IMG/pdf/Instituto_Geografico_e_Historico_da_Bahia.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2012.
11
A Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais do Estado da Bahia é objeto de estudo do GP – Observatório da Museologia Baiana
(Departamento de Museologia/FFCH/UFBA/CNPq). Apoio PIBIC/UFBA/CNPq e Fapesb. Bolsistas Catia Braga Moreira de Pinho, de
2010-2011; Lorene Oliveira Prado dos Santos, 2012.
Sob o título Protecção dos monumentos públicos e objectos históricos, a revista do IGHB
publicou em 1918 – um ano difícil para a Bahia -,15 a proposta de W. Pinho para constituir, dentro
do instituto, a Comissão dos Monumentos e das Artes; um libelo contra o reformismo que não
12
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
13
Sobre a modernização da cidade do Salvador consultar LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se... Ideais de civilização
e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização urbana. Salvador, 1912-1916. Dissertação. PPG História/FFCH/UFBA, 1996;
FONSECA, Raimundo N. da Silva. Fazendo fita: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador (1897-1930). Salvador: EDUFBA,
2002. Sobre as disputas políticas, ver SARMENTO, Silvia Noronha. A raposa e a águia. J. J. SEABRA e Rui Barbosa na Política Baiana da
Primeira República. Dissertação. PPG Historia/FFCH/UFBA, 2009. Disponível em: <www.ppgh.ufba.br/IMG/.../silvia_noronha_sarmento_
dissertacao.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2012.
14
Jose Wanderley de Araújo Pinho nasceu em março de 1890 na cidade de Santo Amaro. Pela linha materna foi neto do Barão de Cotegipe
do Partido Conservador do Império. Formou-se bacharel em Direito na Faculdade de Direito da Bahia em 1910; deputado federal de 1924
a 1930; idealizador das comemorações do IV Centenário da Fundação da Cidade do Salvador (1949). Publicou 23 volumes de documentos
e monografia sobre a cidade do Salvador. Lecionou a cadeira de História do Brasil na sua passagem pela Faculdade de Filosofia da UFBA;
membro da Academia de Letras da Bahia, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Faleceu em 7 de outubro de 1969. Notas Biográficas. In: ARAÚJO, José Wanderley de. Coletânea de textos históricos. Apresentação de
Consuelo Pondé de Sena. Salvador: Artes Gráficas, 1990: s/n.
15
Em 1918, o estado da Bahia vivia clima de insatisfação política, crise financeira, carestia e pobreza e assolada pela “gripe espanhola”. Cf.:
SOUZA, Christiane Maria Cruz de. A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Historia, Ciência, Saúde-Manguinhos.
Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100005>.
Acesso em: 11 jun. 2012.
respeitava o passado segundo o historiador Paulo Silva.16 A proposta compunha-se de duas partes:
uma para formar a comissão e a outra para elaborar um inventário de bens imóveis e móveis.
De passagem faço o seguinte comentário: no período entre 1916 e 1918 já corria a ideia de
criação de um museu por parte do governo do Estado da Bahia para abrigar exemplares considerados
relíquias ou troféus concernentes ao patrimônio histórico regional e do Brasil.17 Há certa sincronia
entre o discurso de W. Pinho no IGHB e a criação do museu oficial, indicando, além da proximidade
do instituto com a instância política, um movimento em direção à salvaguarda patrimonial. Foi W.
Pinho que décadas adiante, em 1930, elaborou projeto de lei para proteger os bens nacionais cuja
ação seria levada a cabo por uma Inspetoria de Defesa do Patrimônio Histórico-Artístico Nacional,
apoiada por congêneres estaduais.18 Como se sabe, o projeto não foi apresentado ao Congresso
Nacional desmantelado pelas disputas políticas e econômicas que tomavam o país conduzido a
partir de então (e até 1945) por Getúlio Vargas.
Voltando à comissão: seria formada por 11 agremiados com tarefas estipuladas por um
programa de atuação que deveria apresentar resultados como relatórios anuais e elaborar inventário.
O inventário (ou catálogo) deveria ser ilustrado por fotografias, desenhos e descrições constando
os seguintes dados: época, histórico, situação, estilo, vida anedoctica [sic], valor e indicação dos
proprietários. Pelo inventário ficariam registrados os bens imóveis e móveis como monumentos,
edifícios públicos, templos, edifícios religiosos e “alfaias, retabulos, entalhaduras, esculpturas
religiosas ou profanas; jóias, faianças, porcelanas, baixelas, mobiliario de todos os estylos;
colecções particulares de tudo o que tiver algum merito artístico ou algum valor histórico”.19
Outra incumbência da comissão era a de conter a destruição decorrente do tempo ou imputada
pelos homens, protegendo por todos os meios os monumentos públicos, os edifícios particulares de
valor artístico ou histórico e os objetos de arte de “qualquer espécie” que, como se lê na descrição
mencionada, não se referia, entretanto, a qualquer tipo de objeto, mas a alguns escolhidos por certa
qualidade distintiva.
É interessante observar o destino derradeiro dos bens móveis: um museu de arte colonial
a ser instalado em edifício também colonial. Nele o recolhido seria guardado, ordenado,
classificado, estudado e exposto, além de promover ações - diríamos hoje culturais -, como
16
W. Pinho foi historiador de gênero biográfico e visão de passado inalterável. SILVA, Paulo Santos. Âncoras da tradição. Luta política,
intelectuais e construção do discurso histórico na Bahia (1930-1949). 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2011.
17
CERAVOLO, op. cit. p. 196-197.
18
Anexo IV: Projeto do Deputado José Wanderley de Araújo Pinho em Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma
trajetória. Iphan, 1980. p. 46-53. Disponível em: <portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=531>. Acesso em: 09 jun. 2012.
19
Protecção dos monumentos públicos e objectos históricos...; RGHB: 1918. p. 196.
Ramalho prezava os monumentos como elementos importantes para a história particular de cada
povo traduzindo a ação intelectual e política de uma sociedade. Convinha, do mesmo modo,
cuidar e alimentar as tradições como saída e, simultaneamente, reação contra o “aniquilamento da
physionomia historico-nacional” advindo do nacionalismo paralisante, do progresso que levava ao
cosmopolitismo, das mudanças trazidas pelas facilidades nas comunicações e transportes nivelando
costumes (problemas semelhantes atribuídos hoje à globalização). E, indo além em seus receios,
para fazer frente ao convívio com os costumes trazidos pelos imigrantes que poderiam “arrancar
a alma e a consciencia”. Se estava à beira de um precipício e de um dilema terrível; palavras do
ilustre orador.25
Tal dramaticidade não está distante da ênfase discursiva pautada na retórica da perda identificada
por José Reginaldo Santos Gonçalves nas chamadas fase heroica e moderna do SPHAN anos
depois.26 Traço que, como sugere a comunicação de W. Pinho, já tinha raízes anteriores assimiladas
e repassadas de um contexto a outro com algumas adaptações.
A perda anunciada por W. Pinho via-se insuflada por certa nostalgia do passado reposicionando-o
historicamente e representado pelo patrimônio edificado - compreenda-se o colonial - na mira do
reformismo urbano que começava a acontecer na cidade de Salvador para bem de uns (a elite) e
marginalização de outros (os pobres, negros e mulatos). Contudo, uma perda relativizada quando
o assunto era a evasão dos objetos históricos e artísticos, fortemente criticada pelo escoamento de
bens que saiam da Bahia, particularmente do Recôncavo baiano (como da cidade de Santo Amaro)
por intermédio de “delapidadores”, entretanto, favorável à atitude de colecionadores que haviam
retido determinados bens móveis na Bahia ou no Rio de Janeiro.27
Mesmo não se confirmando se a comissão foi formada e realizou as tarefas propostas, o
posicionamento de W. Pinho, personalidade de elite, influente, político e reconhecido como
historiador, não deve ter passado despercebido. Deve-se considerar que seu discurso emanava de
25
Protecção dos monumentos públicos... RGHB, 1918. p. 195.
26
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. Os discursos do Patrimônio Cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/
Iphan, 2002.
27
W. Pinho cita Góes Calmon (Bahia), Fernando Guerra Duval (no Rio de Janeiro) e Adalberto Guerra Duval (ministro brasileiro na
Holanda). (Proteção dos monumentos públicos... RGHB, 1918. P. 194). Maria Lucia Bressan Pinheiro assinala o papel dos colecionadores
nesse período (PINHEIRO, Op. cit., 2005; 2011). (PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, modernismo e preservação do
patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011). De acordo com
José Antonio do Prado Valladares (diretor do Museu do Estado da Bahia – 1938-1959), Góes Calmon (governador da Bahia de 1924 a 1928)
herdou o gosto ao colecionismo do tio Inocencio Marques de Araujo Calmon. O Estado adquiriu sua coleção particular e o solar em que
habitou em 1943, transferindo para lá o Museu do Estado em 1945. No Guia do Visitante, José Valladares viu a necessidade de explicar as
sobreposições dos adornos arquitetônicos de períodos e lugares diferentes coletados por Góes Calmon (VALLADARES, José. O edifício.
Guia do Visitante. Válido de julho de 1946 a junho de 1947. Salvador, Bahia, Brasil: Divisão de Imprensa e Turismo do Departamento
Estadual de Informações: 2-3).
um agente social recoberto por autoridade e a partir de um lugar – o IGHB – identificado aos
interesses regionais, reconhecido socialmente e igualmente investido de autoridade. Um discurso
performativo na concepção bourdiana do termo instituindo e indicando ao ouvinte (aqui os
associados constituindo-se em um grupo de poder social, cultural e político) uma dada percepção
de mundo que, uma vez revelada, tende a se voltar para a ação.28 Nesse caso, tanto a intenção de
insuflar a percepção do valor do patrimônio histórico e artístico como a persuasão para protegê-lo.
Uma demonstração da continuidade dos mesmos argumentos discursivos pode ser lida nas
justificativas para a criação do Museu do Estado da Bahia, bem como da Inspetoria Estadual
de Monumentos Nacionais e da Pinacoteca, equiparando destruição, evasão e dispersão à
perda patrimonial.
A essa altura é preciso considerar que a cidade de Salvador já vivia remodelações urbanas.
Como aponta Rinaldo Leite, tais reformas estavam atreladas ao ideário de civilização, implicando
transformações materiais, estruturais, sociais e culturais.29 Nada deveria impedir o progresso e a
civilização segundo o lema de cunho haussmanniano, pautado no positivismo30 e liderado pelo
governador José Joaquim Seabra (J. J. Seabra) e seus seguidores nos dois mandatos que exerceu
(1912 a 1916; 1920 a 1924). As atitudes de J. J. Seabra levantaram discussões sobre discussões: foi
bem quisto por uns, odiado por outros.31 Rasgou avenidas, ampliou ruas, construiu calçadas, tratou
da infraestrutura para higiene, cuidou da área do porto e do comércio, criou parques e demoliu
monumentos e igrejas. Ou seja, o discurso de W. Pinho não foi emitido em um vazio. Dentro
mesmo do IGHB se ouviram comunicações inflamadas sobre o tema das demolições levando
os associados a se reunirem num protesto registrado em abaixo-assinado contra a derrubada da
igreja da Sé (construída por Tomé de Souza).32 Coincidência ou não, o interesse em preservar
o patrimônio pelo que representava para a história da Bahia levou o governador Góes Calmon,
também membro do IGHB, a convidar Afonso d’Escranogle Taunay, confrade pelo instituto
paulista, historiador e diretor do Museu Paulista, para uma visita em agosto de 1927 à cidade no
28
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998.
29
LEITE, op. cit., 1996.
30
FLEXOR, Maria Helena. O. J. J. Seabra e a reforma urbana de Salvador (Bahia-Brasil). 49o ICA – Congresso Internacional de Americanistas.
Simpósio Urb 3: Questões urbanas: história e políticas públicas. Quito (Equador) de 7 a 11 de julho de 1997. Disponível em: <http://www.
naya.org.ar/congresos/contenido/49CAI/Flexor.htm>. Acesso em: 03 jul. 2012.
31
Ver SARMENTO, Silvia Noronha. A Raposa e a Águia. J. J. SEABRA e Rui Barbosa na Política Baiana da Primeira República. Dissertação.
PPG Historia/FFCH/UFBA, 2009. Disponível em: <www.ppgh.ufba.br/IMG/.../silvia_noronha_sarmento_dissertacao.pdf>. Acesso em: 28
jul. 2012.
32
PERES, Fernando da Rocha. Apresentação. In: Protesto contra a demolição da Sé, 1928. Salvador: Centro de Estudos Baianos da
Universidade Federal da Bahia, Publicação 127, 1987.
mesmo mês e ano em que estava sendo regulamentada a inspetoria. Na oportunidade A. Taunay
não tocou na criação da inspetoria, mas falou aos agremiados do IGHB sobre a relevância da Bahia
como lugar de nascimento do Brasil e a relevância de suas obras de arte e de monumentos.33 Toda
essa movimentação em nada resultou: a igreja da Sé acabou por vir ao chão em 1933.
Como tudo indica, no decorrer de mais uma década adiante após o discurso de W. Pinho nem
a “picareta”, nem o comércio ou despacho de antiguidades para fora do país ou para as mãos de
colecionadores ou ainda compradores interessados34 deixaram de acontecer em território baiano e
na cidade de Salvador em metamorfose.
Se a conservação das edificações e dos monumentos corria perigo perante as mudanças
urbanas e as intervenções agressivas ou destrutivas de bens imóveis que só em 1927 vai encontrar
respaldo oficial com a criação da Inspetoria, foi diferente para com os objetos históricos e os de
arte. Como assinalado, graças ao trabalho de Francisco Borges de Barros, que pôs mãos à obra – a
notar, esforços reconhecidos por governantes35 -, foi sendo reunido um conjunto de documentos
coletados pelos municípios para o Arquivo e um acervo de cultura material (além de amostras
e espécimes) gerando o Museu do Estado e, depois, agrupando obras espalhadas para formar a
Pinacoteca. A justificativa para implantá-los era similar às proposições propagadas por W. Pinho
ou, talvez, nelas tenham se inspirado principalmente no aspecto de conter a evasão e no que aqueles
bens tinham de importância e representatividade para a história e arte da Bahia.
Dando-se crédito à versão dos fatos apresentada para a criação da inspetoria por Borges de
Barros, nos quais ele mesmo surge como protagonista ter-se-ia a seguinte sequência: o momento
do afloramento, o do entusiasmo, o da ação e o da criação.
Para Borges de Barros, a criação da inspetoria se deu na rota do interesse que, após a
instalação do regime republicano, os intelectuais e amigos da então chamada arte retrospectiva
(ou antiga) passaram a conferir aos monumentos, ao mobiliário de vários estilos e à cerâmica
antiga.36 O surgimento da ideia de formar a inspetoria se deveu ao contato com o historiador
Mario Mélo do Instituto Arqueológico de Pernambuco, ocorrido em 1921, oportunidade em que
lhe foi apresentado o projeto de lei do deputado pernambucano Luiz Cedro.37 Daí teria aflorado o
33
O Dr. Affonso de E. Taunay..., RGHB, v. 54, 1928. p. 341-370.
34
Merece comentário a frequência de anúncios sobre leilões em jornais soteropolitanos divulgando a venda de móveis e de obras de “arte
antiga” como em A Tarde, de 9 a 20 de abril de 1927.
35
A exemplo da citação que faz o governador Dr. Francisco Marques de Góes Calmon na Assembleia Legislativa em 1926. (Mensagem. 2a
reunião ordinária, 18a Legislatura, 7 de abril de 1926).
36
II Parte. Inspetoria dos Monumentos. Extracto do Relatorio de 1930 (Annaes do Archivo Publico da Bahia, 1931. p. 555-557).
37
Mario Mélo liderou o instituto pernambucano; manteve amizade com F. Borges de Barros. Luiz Cedro foi deputado estadual de 1920 a
1921 e deputado federal de 1921 a 1923 (RODRIGUES, op. cit., 2012).
entusiasmo que o levou à tentativa de conduzir o assunto diretamente ao governo. Foi impedido
pelas agitações políticas ocorridas entre 1921 e 1923 na Bahia.38
Uma segunda chance surgiu na gestão seguinte, a de Francisco Marques de Góes Calmon
(1923), que, como assinalado antes, era também agremiado ao IGHB. Góes Calmon teria lhe
enviado exemplar do jornal Le Temps com notícia sobre lei de proteção a objetos de arte e
“medidas contra a exportação de moveis coloniaes e conservação de monumentos” exortando à
ação: criar a Sociedade de Protecção das Bellas Artes. Uma ideia com certa semelhança com a da
comissão sugerida por W. Pinho e que, ao que parece, também não vingou. A sociedade ficaria
vinculada ao Arquivo e ao Museu do Estado,39 com o objetivo de evitar a dispersão das obras de
arte (religiosa e a profana). Mais uma vez foi citado o problema de evasão de peças autênticas e
genuínas (mobiliário; cerâmica; arte religiosa) do Recôncavo baiano que estariam encontrando
guarida em museus no estrangeiro.40
Não há provas de que tal sociedade tenha se constituído.41 De todo modo, o problema da
evasão de bens móveis era preocupação contínua a ponto de se tornar novamente argumento para
reagrupar, em 1931, o conjunto de pinturas conhecido como Coleção Jonathas Abott tido como
núcleo inicial da Pinacoteca do Estado.42
Efetivamente, apesar das tentativas de Borges de Barros, o projeto de lei para a criação
da Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais foi apresentado à Câmara dos Deputados
Estaduais pelo também historiador Pedro Calmon, considerado especialista no assunto.43 No
dizer de Borges de Barros, estava aberto um novo horizonte para a proteção do patrimônio
artístico da Bahia.
38
Possivelmente Borges de Barros se refere às disputas políticas envolvendo o então governador J. J. Seabra, eleito para segunda gestão
de 1920 a 1924, ano em que assume Francisco Marques de Góes Calmon, levando jovens formados na Bahia ou no Rio de Janeiro para
a administração pública, a exemplo de Anísio Spínola Teixeira (TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. 11. ed. Salvador:
EDUFBA, 2008, p. 348-353.)
39
Inspetoria dos Monumentos. Extracto... Annais do Archivo Público, 1931. p. 556.
40
Borges de Barros refere-se a “museus argentinos” (Inspetoria dos Monumentos. Extracto... Annaes do Archivo... 1931. p. 556).
41
Apesar das buscas realizadas em arquivos soteropolitanos, não se encontrou até o momento confirmação sobre a criação dessa sociedade.
42
Coleção de pinturas formada pelo médico inglês Jonathas Abott, radicado em Salvador, professor da Faculdade de Medicina, composta por
telas de pintores europeus e baianos, adquirida pelo Estado em 1871.
43
Lei no 2032, sancionada em 8 de agosto de 1927, regulamentada pelo Decreto no 5339 em 6 de dezembro. (Inspetoria dos Monumentos.
Extracto... Annaes do Archivo... 1931. p. 557). Afonso Arinos de Melo Franco se refere a Pedro Calmon como “autêntico fidalgo brasileiro”
(FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Pedro Calmon um dos grandes da nossa geração. In: Prefácio. CALMON, Pedro. Miguel Calmon uma
grande vida. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória, 1983: xiii-xiv. p. xiii). Trabalhando no Museu
Histórico Nacional, sobrinho e afilhado de Miguel Calmon, auxiliou sua viúva e tia, Alice da Porciúncula Calmon Du Pin e Almeida, a doar
ao museu, então sob a direção de Gustavo Barroso, uma preciosa coleção de objetos (ABREU, Regina. A fabricação do imortal. Memória,
história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Lapa/Rocco, 1996).
Chama a atenção ao se acompanhar os documentos que, um mês antes de a lei ter sido
aprovada, portanto em julho (dia 10), Frei Pedro Thomaz Margallo, associado ao IGHB, tenha
feito comunicação tocando na questão do direito de propriedade de obras de arte em mãos de
particulares pedindo moderação ao Estado. Aqui se tem indício provável que o conteúdo da lei já
estava circulando “à boca pequena” entre os sócios do instituto e para além dele.
Margallo saiu em defesa da necessidade de restaurações de edificações religiosas (a dos
Franciscanos, em particular o Convento do Carmo e a Capela da Ordem Terceira em Cachoeira; a
Sacristia do Carmo na cidade do Salvador) ornadas em estilo barroco. Com o cuidado de apresentá-
las como monumentos históricos e artísticos a todos pertencentes e não só como patrimônio da
Igreja, pede cautela ao Estado a fim de evitar abusos que poderiam desanimar os proprietários de
bens imóveis, que, no lugar da desapropriação, deveriam ser ajudados com verbas para atender às
necessidades de restauração e isenção de impostos alfandegários para importar materiais. Chega a
recomendar que o IGHB fosse encarregado diretamente pelo Estado para formar uma comissão de
artistas e críticos capazes de avaliar as condições de conservação das obras, evitando a destruição.44
A comunicação de Frei Margallo deixa entrever a razoável possibilidade de que o debate sobre
a necessidade de preservação do patrimônio não arrefeceu ao longo do tempo desde o discurso de
W. Pinho, assim como o envolvimento do IGHB e a mediação de seus associados com o governo.
Por todos os meios a seu alcance, o Governo da Bahia se esforçará por fazer conservar no melhor
estado, todos os monumentos históricos existentes no Estado, utilizando para isso as autorizações
e as facilidades determinadas em leis federaes e estaduaes, e no especial interesse em resguardar,
para edificação e o gozo das gerações futuras e presentes, relíquias que attestem o grao de
desenvolvimento do Brasil nas suas differentes phases e [que] testemunharam as grandes scenas da
História Patria.46
Em uma perspectiva evolucionista, o que era considerado relíquia faria vínculo com a história,
transmutando o regional em nacional ainda que, pelo texto do regulamento, tenha sido criada a
categoria “monumentos artísticos”, imbricando a arte à história em uma mescla de valores a incluir
obras coloniais desde que inventariadas pelo interesse artístico e notável significação histórica (nos
fazendo lembrar o valor excepcional referido no Decreto-Lei no 25, de 30 de novembro de 1937,
organizando a proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional).47 Geograficamente, essas
obras estariam localizadas no Recôncavo baiano (capital; municípios de Santo Amaro, Cachoeira,
Jaguaripe, Maragogipe e Nazaré); a noroeste do estado (Jacobina e Minas do Rio de Contas); na
ilha de Itaparica (Baia de Todos os Santos); e ao norte (Villa de São Francisco, depois São Francisco
do Conde). No cômputo geral das obras a serem protegidas incluíam-se as pertencentes ou sob a
guarda do arcebispado baiano, e os chamados campos históricos (edificações subterrâneas ou de
superfície localizadas em qualquer município da Bahia) para os quais fosse atribuída relevância
histórica ou artística.
Para dar conta das regras que passaram a conduzir a proteção do patrimônio pontuamos outros
aspectos previstos que, a partir de então, tornaram-se responsabilidade e dever do Estado e do social.
Para os indivíduos tornou-se obrigação comunicar e assinalar a localização dos monumentos
servindo-se da autoridade municipal ou judiciária para informar a inspetoria que, uma vez notificada,
tomaria as providencias necessárias “conforme a urgência”.48 Atos de vandalismo, destruição ou
descaracterização de qualquer categoria de monumento ficavam sujeitos a penalidades, na forma
de multas, com produto revertido em benefício da conservação.49
Um ponto sensível a gerar debates, a exemplo da fala de Frei Margallo no IGHB, referia-se
ao total poder do governo para executar a desapropriação do monumento e respectivo entorno
46
Regulamento da Inspectoria Estadoal dos Monumentos Nacionais. Decreto no. 5.339, de 6 de dezembro de 1927 (Diário Oficial do Estado
da Bahia, 10 de dezembro de 1927. p. 1.354).
47
O decreto que organiza a proteção do patrimônio e artístico nacional pode ser lido em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
del0025.htm. Acesso em: 10 ago. 2012.
48
Titulo I; Capitulo I; Art. VII. Regulamento da Inspectoria Estadoal dos Monumentos Nacionais (Diário Oficial – 10 de dezembro de 1927.
p. 1354).
49
Sobre as penalidades Titulo I, Capitulo III, artigos de XIV a XVIII (Diário Oficial Regulamento... idem. p. 1354-1355).
50
Titulo I; Capitulo II; respectivamente Arts. VIII, IX, X, XI e XIII (Diário Oficial. Regulamento... idem. p. 1354).
51
Objectos de Arte (Titulo II; Capitulo IV, respectivamente, Arts. XXIII, XXII, XXVI e XXI. Regulamento... Diário Oficial, idem. p. 1355).
52
Titulo II; Capitulo IV, artigos de XIX a XXX. (Regulamento... Diário Oficial, idem. p. 1355-1356).
Respectivamente, Capitulo III, Art. XVIII; Titulo II, Capitulo IV, Do Sub-Inspector de 1a Classe. Art. XXXIII, a). (Regulamento... Diário
53
Antes mesmo da aprovação das normas regulamentares, Borges de Barros relata que
estabelecera classes para categorizar os monumentos baianos em: (a) monumentos religiosos; (b)
monumentos de arte profana; (c) campos históricos; (d) subterrâneos; (e) monumentos e estátuas; e
(f) fortalezas coloniais. Para cada uma delas há uma lista e indicação do local onde se encontravam
na capital e no interior (nos distritos e arraiais).56
55
Do Pessoal da Inspectoria dos Monumentos Nacionaes - Arts. XXXI a XXXVI (Titulo II; Capitulo IV) (Regulamento... Idem. p. 1355-1356).
56
As informações sobre o Cadastro de Monumentos e as que se seguem constam da II Parte – Extracto do Relatorio de 1930. Diretor do
Archivo Publico e Inspetor dos Monumentos F. Borges de Barros, publicado em Annaes do Archivo... 1931. p. 557-564. Faz-se a observação
que na obra citada Archeologia e História, de autoria Francisco Borges de Barros, publicada um ano após a aprovação da inspetoria baiana,
há várias descrições das edificações, fortes, igrejas, capelas e conventos localizados na capital ou no estado da Bahia.
57
Sobre o meteorito de Bendegó, ver SILVA, Sabrina Damasceno. O pedaço de outro mundo que caiu na terra: as formações discursivas
acerca do meteorito de Bendegó do Museu Nacional. Dissertação. PPG Museologia e Patrimônio. Unirio, 2010. Disponível em http://www.
unirio.br/cch/ppg-pmus/dissertacoes/Dissertacao_Sabrina_damasceno_silva.pdf. Acesso em: 04 fev. 2012).
e edifícios, incorporou “as collocadas pelo Instituto Histórico, em vários prédios antigos,
portadores de renome, por feitos patrióticos [...]”.58
Seguindo a trilha dos eventos e heróis, a inspetoria ia inaugurando pilares da história nos
municípios: em Santo Amaro e em Jaguaripe para rememorar os cidadãos que lutaram pela
independência; em Feira de Santana para enaltecer a luta de Maria Quitéria, heroína baiana; e em
Cachoeira para Anna Nery pelos feitos na Guerra do Paraguai.59 Não deixa de ser interessante que,
nesse círculo de heróis de guerra tenha entrado – por sinal encabeçando a lista – o local da primeira
feira de gado na Bahia (antiga Feira de Capuame, depois Feira Velha)60 referente à vida de tropeiros
e, também, à conquista e demarcação do território baiano que se diz da vida de tropeiros diz, talvez
mais da conquista do território baiano desde as sesmarias.
Um empreendimento noticiado em jornais contando com a participação de Borges de Barros,
mesmo que não subvencionado pela inspetoria, mas representando-a e ao Museu do Estado, foi a
construção e inauguração do Monumento aos Heróis Cachoeiranos ou Estátua da Liberdade em 1930.
Custeado por uma comissão patriótica, da qual ele mesmo passou a integrar,61 o monumento descrito
em palavras laudatórias como “complemento” da história nacional, uma peça histórica, um ato de
gratidão e justiça à história de Cachoeira e do Brasil, homenagem e pagamento de dívida aos heróis
de 1822, foi apresentado à cidade com muitas festividades cívicas e religiosas bastante comentadas.62
Todavia, os planos de Borges de Barros aí não terminavam. Pode-se considerar, aplicando a
concepção de imaginação museal cunhada por Mario Chagas,63 que seus planos patrimonialistas
eram movidos por uma visão mais ampla, açambarcando a importância da iconografia encontrada
nas igrejas e mosteiros da capital ou do interior e a das pinturas, bem como dos painéis de azulejos
58
Extrato... Inspetoria dos Monumentos, Annaes do Archivo Publico..., idem: 563 e 562.
59
Outros marcos e obeliscos: em Santo Amaro para relembrar os santamarenses tombados na guerra da independência; em Jaguaripe pelo
mesmo motivo; na igreja de Caroba (Irará); na ilha de São Gonçalo (localidade denominada Funil) em São Sebastião das Cabeceiras do
Passé; em Nazaré; em Montenegro antigo município de Abrantes (Extrato .... Inspetoria dos Monumentos, Annaes do Archivo Publico...,
idem. p. 563 a 565; 569-571).
60
A região chamada Capuame serviu de arsenal de armas e quartel durante as guerras da Independência da Bahia. Em 1928, Feira Velha passou
a se chamar Dias d’Avila, homenageando Francisco Dias de Ávila graças à sugestão de Borges de Barros e decreto apresentado a Câmara por
Pedro Calmon (MOREIRA, V. Deocleciano. Caminhos históricos da Feira de Santana: origens e secularidades. Projeto Memória da Feira
Livre de Feira de Santana. Primeira fase. Texto 6. Disponível em: <http://www2.uefs.br/sitientibus/pdf/10/comunicacoes.pdf>. Acesso em: 11
jun. 2012.
61
Foram membros dessa Comissão: Coronel Cunegundes Barreto (prefeito), Augusto de Azevedo Luz (escritor), Antonio Pimentel de Sá
(comerciante) e outros cachoeranos (Dr. Prisco Paraiso; Coronel Epiphano José de Souza, Mario Gomes dos Santos; Coronel João Severino
da Luz Netto) (Extrato .... Inspetoria dos Monumentos, Annais do Archivo Público, idem. p. 574 e 573-579).
62
A exemplo de subsequentes noticias publicadas no jornal A Ordem, da cidade de Cachoeira nos dias 1º,4, 8, 15 e 22 de outubro de 1930.
63
CHAGAS, Mario. A “imaginação museal”. Museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Rio de
Janeiro: MinC/IBRAM, 2009.
instalados em edificações religiosas ou não. Foi a percepção do valor da iconografia um dos motivos
que o fez sugerir e obter apoio do governo para reagrupar a já citada Coleção Jonathas Abott,
instituir a Pinacoteca e conseguir espaço próprio (o Solar Pacífico Pereira) para sua instalação junto
com o Museu do Estado. Além disso, tinha em mente a criação de mais um museu, o de arte militar
e sertaneja, a ser instalado nas ruínas do Castelo Garcia d’Ávila, e, também, um “jardim colonial”.
Idealizou instalar o jardim no terreno fronteiriço ao Solar Aguiar64 (que acolheria também o Museu
do Estado até então nas mesmas dependências do Arquivo Público, projeto que não se concretizou)
formado por antiguidades retiradas do centro da cidade em razão do “progresso da epoca [que]
vae julgando indesejáveis nos pontos onde se vão levantando arranha-céus”.65 Preservar o antigo
ameaçado pelo moderno, preservar o passado para o futuro teria sido seu lema e ideal de trabalho.
Em 1930, alegando que o governo do Estado não tinha condições de custear as despesas de um
museu como deveria ser, foi alterada a denominação de Museu da Bahia (antes Museu do Estado)
para Arquivo Público e Inspetoria de Monumentos, fazendo submergir a denominação ‘museu’
mesmo que temporariamente. A manutenção da designação “inspetoria”, segundo a justificativa
apresentada, pautou-se na serventia que vinha prestando serviços para reprimir a “dispersão da
Bahia do seu precioso patrimonio de arte antiga”. Todavia, a inspetoria foi mantida como anexo
do Arquivo.66
A inspetoria tinha a seu encargo, de acordo com o regulamento, duas tarefas principais: cuidar
das condições de conservação, proteger e vigiar os monumentos históricos, que, como se viu,
estavam dispersos geograficamente por determinadas áreas do Estado, e executar o serviço de
inspeção, ficando subentendido no documento normativo o local em que seria realizado - pelos
relatórios posteriores sabe-se que na Alfândega. Têm-se algumas notícias sobre essas inspeções
por meio de relatórios publicados nos Anais do Arquivo Público e de outros que se encontram
atualmente nos arquivos do Museu de Arte da Bahia, antes Museu do Estado.
Em 1930, Borges de Barros relata que, ao inspecionar e aquilatar o valor de obras de arte
jesuíticas na Quinta do Collegio (depois Hospital dos Lázaros67) na cidade de Salvador, sítio inscrito
64
O solar ou palacete Aguiar, situava-se no bairro do Canela e, segundo F. Borges de Barros pertencia à época ao governo federal (BARROS,
F. Borges de. Archeologia e história. Bahia: Imprensa Oficial, 1928. p. 185).
65
Assumptos conexos. Extrato .... Inspetoria dos Monumentos, Annais do Archivo Público, idem. p. 565-569.
66
Decreto no.7.150, de 24 de dezembro de 1930 (Extrato .... Annaes do Archivo Público..., idem. p. 586).
O Hospital dos Lázaros ou “Casa dos Leprosos” (entre 1784 a 1938); nos anos de 1960 sofreu reformas, e na década de 1980 passou a ser
67
na categoria campo histórico, ali encontrou obras que foram incluídas na seção arqueológica
da inspetoria, o que nos indica que os limites entre o arquivo, a inspetoria e o museu foram se
entrelaçando uns aos outros, uma vez que, a inspetoria não era composta por seções mas o museu
sim.68 Encontrou nesse local uma bacia de cantaria lavrada do século XVIII, um marco de pedra que
delimitava as terras dos jesuítas, uma fonte de pedra e cal decorada com azulejos e um aqueduto.
Na ocasião verificou o abandono do sítio histórico, e, como o lugar estava arrendado pelo governo,
deixou recado aos superiores, registrado em relatório, relembrando a existência das normas de
proteção: “Certamente, o governo, de accordo com o Regulamento da Inspetoria de Monumentos,
não mais arrendará esse trecho [...]”.69
Em 1937, Alfredo Vieira Pimentel, sucessor de Borges de Barros na direção do Arquivo
Público, reafirma a continuidade do compromisso, pelos trabalhos da Inspetoria, em evitar a
dispersão do patrimônio artístico da Bahia. Nesse registro há alguns números indicando também
a natureza das inspeções:
... De Março a Dezembro foram fiscalizados 829 volumes de moveis, constantes de 60 despachos
aduaneiros. Em 17 de maio, o funcionário Sr. Virgilio Bandeira sustou o embarque de uma série de
moveis coloniaes legítimos, até que fossem os mesmos avaliados pela Inspectoria, a fim de serem
cobrados os devidos impostos [...].70
O embargo se refere a “peças de verdadeira arte mobiliária antiga” e foi sustado, uma vez
que o embarcador, um tal senhor Mendel Wolf Enhorn, desistiu da remessa dos móveis para o Rio
de Janeiro em razão da taxa de 300% prevista pela lei. Pimentel comenta que, mesmo o imposto
sendo proibitivo e considerado àquela altura irregular de acordo com a Constituição Federal, era
necessário: era preciso cumprir as normas regulamentares sem abrandá-lo, afirma esse inspetor.
Informa também que tomara a iniciativa de evitar o embarque de obras de arte pela via férrea,
passando a exigir a licença prevista pela inspetoria.71
Em 1938, com a transferência, por decreto (no 10.744, de 16 de maio), da Inspetoria, do
Museu e da Pinacoteca da subordinação da Secretaria do Interior e Justiça para a Secretaria de
Educação e Saúde, a tríade fica reunida sob a denominação Inspetoria do Museu e Monumentos.
68
CERAVOLO, op.cit.
69
Maravilhosas obras d’arte jesuítica encontradas no Leprosario D. Rodrigo. Extrato .., Annaes do Archivo Público.., idem. p. 579-581.
70
Inspectoria dos Monumentos. Relatorio apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Secretario do Interior e Justiça. Annaes do Archivo Publico da
Bahia. Sob a direção de Alfredo Vieira Pimentel. Vol.XXV. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1937. p. 378-379.
71
Alfredo Vieira Pimentel não informa a data da Constituição Federal, provavelmente a de 1934 e ao artigo 189 (parágrafo único). Em nota
de pé de página informa que analisando o artigo 8º. (letra f, inciso I) já havia recomendado ao governo que proibisse totalmente a saída de
objetos de arte antiga baiana (Inspectoria de Monumentos. Relatorio apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Secretario do Interior e Justiça. Annaes
do Archivo Publico, 1937. p. 378-379)
O ano de 1927, conforme destacado, foi um correr de meses movimentados para as questões
de preservação do patrimônio de bens imóveis e móveis na Bahia O pesquisador Eugênio de Ávila
Lins demonstra detectou pela verdadeira arqueologia de fontes primárias que realizou com vistas
72
Correspondências: Guiomar Florence/Inspetora para o Secretario de Educação e Saúde, 15 de setembro de 1938; José Valladares/Inspetora
para o Secretario de Educação e Saúde, 26 de abril de 1939. (Pasta Correspondências Expedidas – Anos de 1935 a 1939)(Arquivo MAB/
Salvador/BA).
73
CERAVOLO, Suely Moraes. O Museu do Estado da Bahia, entre ideais e realidades (1918 a 1959). Anais do Museu Paulista, vol.
19, no.1, São Paulo Jan./June 2011: 189-246. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-47142011000100007&script=sci_
arttext. Acesso em: 12.12.2011.
74
Godofredo Filho teria feito parte da equipe de especialistas em “arte, restauração, história, arquitetura e engenharia” dirigida por Rodrigo
Melo F. de Andrade mesmo antes de ver seu nome oficializado como “delegado regional do 2º. Distrito do Sphan”, incluindo a Bahia e
Sergipe (DUARTE, Zeny; FARIAS, Lúcio. O espólio inconmensurável de Godofredo Filho: resgate da memória e estudo arquivístico.
Salvador: ICI, 2005). A informação de que a Bahia e Sergipe formavam um distrito se encontra, por exemplo, em Rodrigo e o SPHAN:
coletânea de textos sobre o patrimônio cultural. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. p. 31.
75 Fiscalização à exportação de moveis; Relatório de Atividades da Inspetoria de Museu e Monumentos durante o ano de 1943. Em 1944, o
trabalho de inspeção era feito com a Diretoria de Rendas. (Relatórios, Arquivo MAB/ Salvador/BA).
76
Ávila Lins refere-se ao seguinte documento: Mensagem apresentada pelo Governador Francisco Marques Góes Calmon, Governador
do Estado da Bahia, à Assembléia Legislativa por ocasião da abertura da 21a Reunião Ordinária na 181 Legislatura em 1926. Bahia,
Imprensa Oficial do Estado, 1916, p. 274 (cf. nota 38, p. 111) (LINS, Eugênio d’Ávila. A preservação no Brasil: a busca de uma identidade.
Dissertação. Mestrado de Arquitetura e Urbanismo. Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1989. p. 101-103).
77
(grifo do autor) (PERES, Nota Retroativa, op.cit.: s/no).
78
De acordo com Ana Vaz Milheiro o movimento português inspirou-se na questão patrimonialista, assunto aprofundado no século XIX
na Europa Cf.: MILHEIRO, Ana Vaz. A construção do Brasil. Relações com a cultura arquitectônica portuguesa. Portugal: Faculdade de
Arquitetura da Universidade do Porto, 2005.
79
BOURDIEU, op.cit.
80
Foram pesquisados, até o momento, pela bolsista Lorene O. Prado dos Santos (PIBIC/UFBA), os jornais: A Tarde, O Democrata, Diário
de Noticias e Diário da Bahia (Salvador/BA), e A Ordem (Cachoeira/BA) das décadas de 1910 a 1930.
Introdução
Tal qual foi apresentado, o projeto foi votado e aprovado, e no dia 28 de agosto daquele mesmo
ano, por intermédio da Lei no 1918, o Congresso Estadual autorizou o Governador Estácio Coimbra
a criar a Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais de Pernambuco instituída, de fato, por
meio do Ato 240, publicado em 8 de fevereiro de 1929 no Diário Oficial do Estado.
2
FERNANDES, Anníbal. Relatório da Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais: apresentado a 28 de abril de 1928 ao Sr. Secretário
da Justiça e Negócios Interiores. Recife: Imprensa Oficial, 1929. 62p. p. 29.
3
Um dos artigos assinados por Freyre e publicado no Livro do Nordeste.
4
Esposa de Anníbal Fernandes e irmã do pintor Vicente do Rego Monteiro.
Abandonada há algum tempo, a casa era tida como uma construção do primeiro século da
ocupação portuguesa. Megahype foi considerada um caso excepcional, representante único de
uma tipologia arquitetônica extinta, mas o que a vai fazer entrar, definitivamente, para a história
da arquitetura brasileira foi a sua destruição.
Poucos dias após a assinatura da lei, o proprietário do engenho, João Lopes de Siqueira
Santos, num rasgo retardatário de senhor feudal5 e temeroso dos prejuízos que poderiam lhe
causar a iniciativa de transformar a sua propriedade privada em um Monumento Nacional, mandou
dinamitar o edifício. A iniciativa intempestiva do proprietário, embora tenha tido pouca repercussão
na imprensa local6 nos dias que se seguiram à destruição, levou o presidente do Senado estadual,
Júlio Bello, a publicar um artigo intitulado Quem botou abaixo Megahype,7 no qual ele defendeu a
índole e a boa-fé de Siqueira Santos, argumentando que quem botou abaixo Megahype foi (sic) a
Usina e a ânsia de riqueza rápida.
É muito fácil acusar as transformações que a usina estava causando na zona canavieira
pernambucana pela destruição da casa grande, uma vez que muitos engenhos já haviam
desaparecido ou estavam em processo de ruína. De fato, as usinas, que se firmaram no estado como
uma nova força econômica e política a partir do século XIX, na ânsia de riqueza rápida, foram
responsáveis pela destruição ou descaracterização de muito da arquitetura rural pernambucana.
Entretanto, Megahype não ruiu pelo abandono, ou pela vontade de se instalar uma usina em suas
terras, mas sim pela pura intencionalidade do seu proprietário em por abaixo a edificação. No artigo
d’A Província, Júlio Bello tentou, na realidade, disfarçar o puro medo que a aristocracia canavieira
tinha da interferência do governo na propriedade privada.
A demolição de Megahype repercutiu nacionalmente tanto na imprensa, como mostra a notícia
do O Jornal,8 do Rio de Janeiro, reproduzida n’A Província de 28 de setembro de 1928, como
no imaginário coletivo daqueles que, nos anos seguintes lutaram pela preservação do patrimônio
construído no país, fazendo com que essa destruição deixasse uma marca positiva no processo
de consolidação da preservação do patrimônio no Brasil. Em 1930, quando o deputado baiano
José Wanderley de Araújo Pinho apresentou outro projeto para criação de um serviço nacional
de defesa do patrimônio, pela primeira vez, nos projetos que buscaram a criação de um serviço
federal de proteção do patrimônio brasileiro, o questionamento acerca do reconhecimento de
valores patrimoniais aparece. E, mais importante, que independentemente de qualquer justificativa
5
SAIA, Luís. Residências rurais no Brasil colônia. Tese de livre-docência. São Paulo, 1958. p. 59.
6
Apenas A Província e o Diário de Pernambuco comentaram o ocorrido.
7
BELLO, Júlio. Quem botou abaixo Megahype. A Província. Recife, 22 set. 1928.
8
Que nesse momento era dirigido por Rodrigo Mello Franco de Andrade.
apresentada, este não suspenderia a inscrição do bem enquanto se discutiria se ele detém ou não
os valores para tal condição. O tratamento do bem que se pretende tombar como se de fato ele
já o tivesse sido a fim de resguardar o objeto de preservação de qualquer descaracterização que
pudesse subtrair os seus valores para ser tombado, ou seja, o tombamento prévio, termo como ficou
conhecido esse instrumento anos depois, se tornou uma importante ferramenta de proteção quando
o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) começou a atuar pelo país.
dos Amigos do Museu de Pernambuco, marcou a primeira vez que, no Brasil, pensou-se em uma
instituição com o fim de auxiliar os trabalhos desenvolvidos por um museu.
Poucos dias depois de criadas as instituições, no dia 13 do mesmo mês, Estácio Coimbra
exonera Anníbal Fernandes do cargo de redator-chefe do Diário do Estado, que foi extinto para que
ele assumisse o de Inspetor de Monumentos e Diretor do Museu. Na notícia d’A Província11 que
informa as nomeações para a instituição recém-criada, tem destaque o papel que Anníbal assumiu
ao longo dos anos pela causa preservacionista, e as campanhas que ele “empenhou sozinho, numa
época em que a indiferença pelo assunto era completa”.12 Anníbal Fernandes permaneceu no cargo
até os acontecimentos de outubro de 1930, no entanto, em alguns momentos, precisou ausentar-
se em virtude do seu mandato legislativo, sendo substituído, temporariamente, pelo chefe da 3a
Secção de Instrução Pública Francisco Borges Castelo Branco.13 Mesmo afastado oficialmente,
Anníbal não deixou de acompanhar as ações da inspetoria.
Logo que foi criada, a primeira ação da inspetoria foi evitar a demolição do que restava do
conjunto arquitetônico carmelita em Olinda. O prefeito do município àquela época, Humberto
Gondim, queria levar adiante antigos planos de reformar o bairro do Carmo, com a abertura de novas
vias e a construção de um parque que implicariam a demolição das ruínas do convento e da própria
igreja do Carmo. O primeiro ofício emitido pela inspetoria trata exatamente de uma resposta ao
prefeito olindense defendendo a manutenção do templo. Anníbal explica os objetivos da instituição
e argumenta que a igreja é um dos edifícios mais antigos da cidade,14 defendendo os seus valores
artísticos, que chegaram a ser elogiados pelo arquiteto Ricardo Severo. O inspetor chega a comparar
a iniciativa de destruição do templo com o que aconteceu no Recife na década anterior em relação
ao Corpo Santo. O prefeito, acatando a determinação da inspetoria, decidiu manter a edificação.
Dando seguimento ao trabalho de inventário de monumentos que já havia iniciado no ano
anterior, assim que assumiu o cargo Anníbal Fernandes partiu em busca de edifícios que pudessem
ser colocados sob a guarda do Estado, recebendo o título de Monumentos Nacionais. Iniciando
as buscas pelo litoral sul, o inspetor viajou pelo estado tomando nota dos edifícios de interesse
histórico que, porventura, existissem nas cidades visitadas. Ele contou ainda com a ajuda de
alguns prefeitos locais, como os de Sirinhaém, do Cabo e de Igarassu, aos quais foram solicitadas
informações a respeito de monumentos existentes nessas cidades.15
11
Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais. A Província. Recife, 14 fev. 1929.
12
Embora não esteja assinado, possivelmente, esse artigo foi escrito pelo próprio Anníbal Fernandes, uma vez que era o redator-chefe do jornal.
13
O afastamento de Anníbal se deu em três momentos: de 17 de junho a 18 de setembro de 1929, de 6 a 22 de março e de 3 de abril a 2 de
agosto de 1930.
14
A igreja foi a primeira construção carmelita no Brasil.
15
Respectivamente, os ofícios 17, 18 e 19, de 23 de abril de 1929.
Embora não tenha sido encontrado nenhum documento explícito com a listagem de quais
seriam os edifícios e os lugares selecionados por Anníbal para receber a chancela de Monumento
Nacional, pela análise dos relatórios, ofícios e notícias publicadas nos jornais da época, é possível
refazer essa listagem. A respeito desses bens escolhidos, constam tanto construções arquitetônicas
quanto aquilo que foi chamado de Campos Históricos,16 que seriam os locais, em geral praças e
largos, onde teriam se passado acontecimentos importantes relacionados com a história do país ou
do estado. Em ambos os casos, esses bens foram dotados de valores, ou seja, transformaram-se em
Monumentos Históricos, segundo a conceituação de Françoise Choay.17
Espalhados por dez municípios, a tipologia desses monumentos não diferia muito entre si.
O Recife, naturalmente, predominou na listagem final, totalizando 53% dos bens identificados,
seguido por Olinda, com 22% do total, e Igarassu, com 8%. Na documentação consultada aparecem
com frequência outros edifícios que haviam sido descaracterizados, como a Sé de Olinda, sendo
ressaltadas apenas características relacionadas àquilo que havia sido perdido e, portanto, não foram
incluídos na listagem final. Contudo, a primeira informação importante a se destacar a partir da
listagem dos monumentos selecionados pela inspetoria é a completa ausência da arquitetura civil na
listagem elaborada por Fernandes. Por sua vez, a arquitetura religiosa foi intensamente valorizada,
totalizando 73% dos monumentos selecionados.18 Anníbal explicou a que se deve isso.
[...] como nossa história se confunde em grande parte com a da igreja, tivemos naturalmente que
enumerar maior número de edifícios religiosos do que civis, que quase não existem, e algumas
fortalezas, ligadas a fatos indiscutíveis do nosso passado.19
que ficou pronto em 1882. Inspirada livremente na basílica renascentista de San Giorgio Maggiore
de Veneza, projetada em 1566 por Andrea Palladio, a nova igreja destacava-se do contexto urbano
pela sua monumentalidade e singularidade da enorme cúpula do transepto e das torres sineiras altas
e delgadas. Embora estivessem buscando preservar edificações de um passado distante, a igreja da
Penha, que naquele momento era uma dos edifícios eclesiásticos mais novos na cidade, fazia parte
desse passado pelas suas qualidades artísticas. Ou seria por ser mais um exemplar de arquitetura
religiosa que se destacava na paisagem do Recife? O inspetor de monumentos não buscava uma
unidade artística nos edifícios que selecionou como monumentos nacionais, algumas vezes, por
apenas possuir algumas imagens por ele consideradas interessantes, como a igreja do Livramento
em Igarassu, ou um painel de azulejos portugueses, como os do Palácio Episcopal de Olinda, já
resultavam na inclusão do edifício na listagem de bens sob a guarda da inspetoria.25 No primeiro
relatório, Anníbal ressaltou que esses monumentos não deveriam ser, necessariamente, grandes e
elaborados, mas sim, estar revestidos de significações históricas, e isso faz com que o critério para
inclusão das igrejas seja bastante diverso.
A maleabilidade dessa listagem era tamanha que até mesmo a igreja da Soledade, inicialmente
excluída da seleção por não representar “como arte ou monumento histórico grande coisa”,26 foi
incluída após a publicação de um plano neogótico de remodelação do templo no Jornal Pequeno.27
Diante da ameaça de ter sua característica singela, de linhas modestíssimas, mais parecendo uma
capelinha de engenho,28 alterada por uma reforma neogótica, estética abominada por aqueles que,
naquele momento, buscavam preservar qualquer traço colonial ainda remanescente na cidade.
Ou seja, a igreja, que a princípio não foi considerada detentora de valores preserváveis, passou a
possuí-los no momento em que se tentou remodelá-la, inventando-se novos valores para o edifício,
que agora estava sob os cuidados da inspetoria.29
Ações desse tipo nos dão a impressão de que todos os bens eclesiásticos, independentemente
da data de sua construção, poderiam ser incluídos na listagem caso sofressem qualquer ameaça de
descaraterização. Percebe-se nos documentos e nas notícias de jornais consultados a associação
direta entre monumento histórico e construção religiosa. Essa arquitetura era o objeto principal de
25
De algum modo estamos aqui desmerecendo os valores artísticos ou históricos dos bens mencionados, estamos apenas relatando aqueles
valores que foram considerados por Anníbal Fernandes.
26
RABELO, Sylvio. A remodelação da Igreja da Soledade. A Província. Recife, 10 ago. 1930.
27
Matriz da Soledade: vão ser iniciados os trabalhos de sua remodelação. Jornal Pequeno. Recife, 05 ago. 1930.
28
RABELO, Sylvio. A remodelação da Igreja da Soledade. A Província. Recife, 10 ago. 1930.
29
Ofício 162.
preservação. Segundo Anníbal, “as nossas igrejas estão intimamente ligadas à nossa história”,30
e é por esse motivo que a quase totalidade dos monumentos selecionados são exemplares de
arquitetura religiosa, vinculados majoritariamente aos séculos XVII e XVIII.
Elegeu-se nesse momento uma história presa a lugares e a tempos, o período colonial foi visto
como uma fase notável, que havia entrado em decadência no século XIX, e os olhos se voltaram
para as reminiscências desse passado de ouro. O passado escolhido era um passado elitista, que
até refletia as insurgências contra o domínio do colonizar europeu, discurso mais exaltado pelo
Instituto Arqueológico do que pela Inspetoria, mas que, no entanto, apagava uma memória de
outras resistências, como, por exemplo, os quilombos, e até mesmo da escravidão. A justificativa
para a escolha de tantas igrejas, além dos critérios artísticos, de originalidade e autenticidade
dessa arquitetura, não se deu em nome da religião propriamente dita, mas em nome da
sociedade que, supostamente, estaria refletida ali. Para Diane Barthel, o sentimento preservacionista
das pessoas envolvidas nessas ações é um reflexo dos seus interesses de classe, e essas pessoas eram,
na realidade, membros de uma elite dominante, católica e com estreitos laços com a aristocracia
açucareira, quando não eram eles próprios usineiros e produtores rurais. O que chega ser de certo
modo controverso, pois, se por um lado se queria elevar a grandiosidade do passado açucareiro do
estado, por outro, a escolha dos monumentos apaga parte dessa história, uma vez que não se buscou
preservar nenhum engenho. A arte religiosa foi o foco do ato de se recontar o passado.
Paralelamente ao trabalho de identificação e inventário, Anníbal Fernandes solicitou, orientou
e fiscalizou a realização de diversas obras em edifícios históricos escolhidos para ficar sob a
guarda da inspetoria, como os realizados na capela de São Mateus, do engenho Massangana, e
nos conventos franciscanos de Igarassu e de Olinda, no entanto, a mais importante delas foi a
restauração da igreja da Madre Deus, no Recife.
Construída pelos religiosos da Congregação do Oratório, da ordem de São Felipe Néri, a igreja
da Madre Deus foi a principal casa da ordem em Pernambuco e “dotou a cidade do Recife com um
dos mais notáveis monumentos de arte religiosa”.31 O templo fazia parte de um conjunto composto
ainda por um convento, que teve suas obras iniciadas no final do século XVII. O edifício é composto
por uma grande nave central, decorada por seis altares e ladeada por corredores que dão acesso aos
púlpitos e às tribunas. A capela-mor é inteiramente revestida por uma combinação de talha pintada
e dourada em estilo Dom João V, e na sacristia, localizada na parte posterior do altar, está “um dos
30
FERNANDES, Anníbal. A conservação das nossas velhas igrejas. A Província. Recife, 28 mar. 1929
31
JÚNIOR, Augusto de Lima. A congregação do Oratório e suas igrejas em Pernambuco. Revista do SPHAN, v.9. Rio de Janeiro, 1945. p.
331-346.
mais suntuosos lavabos portugueses existentes no Brasil”.32 A fachada, até o princípio do século
XX, apresentava apenas a torre do lado da epístola, um frontão com óculo central e recortado por
volutas, portas e janelas de vergas retas, encimadas por frontões interrompidos e enquadradas por
pilastras adossadas. Para Germain Bazin,33 o templo possui uma unidade de estilo que vai desde a
capela-mor até a torre da fachada.
Em 1930, ao longo do mês de março e em meio às notícias dos bailes de carnaval no Recife,
foi publicado em diversos jornais locais o edital para o Concurso de projeto para restauração da
igreja da Madre de Deus.34 No edital, datado de 28 de fevereiro daquele mesmo ano, além de
estar indicado o prazo final para entrega dos projetos, dia 31 daquele mês de março, estão as
recomendações pormenorizadas dos parâmetros a serem seguidos para a entrega do projeto: forma
de apresentação das plantas-baixas, o número de cortes e elevações de fachadas que deveriam
constar, escala, tipo do papel, tamanho das pranchas, dentre outras exigências. Entretanto, não
consta nenhum esclarecimento daquilo que se estava entendendo por restauração.
Possivelmente, não se tratava das restaurações inteligentes, entendidas por Anníbal Fernandes,
visto que ele relatou suas preocupações em relação ao concurso através do ofício 101, de 12 de
março de 1930, quando solicitou que o secretário interviesse junto ao então arcebispo no intuito
de se respeitar a lei e, consequentemente, o caráter primitivo do templo em apreço. O que, de fato,
aconteceu. Após o final do concurso, com a vitória do projeto de autoria da empresa Brandão e
Magalhães, este sofreu a apreciação de uma comissão para julgar a sua adequação em respeito às
características primitivas do templo. O projeto foi por fim aprovado com algumas ressalvas, no
entanto, ele
[...] respeita em todos os seus detalhes a arquitetura da igreja. Conclui a sua fachada, construindo a
torre que lhe falta, absolutamente igual a que hoje existe, desbasta toda a cantaria, que atualmente
desaparece sob grossa camada de tinta e constrói as fachadas laterais, que certamente por espírito
de economia com o tempo não foram feitas.35 (grifos nossos)
lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento”,36 ou seja,
Viollet-le-Duc não se contentava apenas em reconstituir, hipoteticamente um estado original, ele
buscava construir aquilo que teria sido executado se, quando o edifício foi feito, seus construtores
detivessem todos os conhecimentos e experiências de sua própria época, o que seria, de certo
modo, uma reformulação ideal do edifício existente.
Quando analisamos as situações antes e depois da igreja, percebemos claramente que no
projeto estavam profundamente enraizadas as ideias de Viollet-le-Duc, ou seja, de “colocar o
edifício num estado completo que pode não ter existido nunca”. Foram alteradas partes originais e
feitas reconstituições de grande extensão, especialmente nas fachadas laterais, inclusive a fachada
principal foi concluída com a construção da torre faltante. A intenção de Anníbal com a restauração
inteligente da igreja da Madre Deus foi reformular o edifício para uma situação ideal, não concluída
no momento em que ele foi feito originalmente, tal qual Viollet-le-Duc acreditava.
Os trabalhos desenvolvidos por Anníbal seguiram até outubro de 1930, quando os fatos
que se sucederam a partir de então causaram uma grande mudança no percurso político do país,
refletindo-se em Pernambuco e, naturalmente, nas ações da Inspetoria de Monumentos. As
antigas lideranças políticas, que idealizaram a criação do órgão, foram perseguidas e tiveram
que fugir, abandonando seus cargos públicos na maioria dos casos. O também jornalista Mário
Melo assumiu o cargo de Inspetor de Monumentos e deu novos rumos a instituição, que já estava
fadada à extinção.
Considerações finais
imóvel em uma lista de bens preserváveis apareceram pela primeira vez em 1930, no projeto de
criação de uma Inspetoria Nacional de Monumentos, elaborado pelo deputado baiano Wanderley
de Araújo Pinho, já como o fruto da perda da casa-grande de Megahype.
Outra importante questão diz respeito à lista de edifícios que representavam Pernambuco
perante a nação elaborada por Anníbal Fernandes, caracterizada pela presença maciça da arquitetura
religiosa, conjunto que era completado pela inclusão de algumas fortificações, relacionadas à
vitória do colonizador na região. A causa mais possível para o completo esquecimento da
arquitetura civil e da rural, provavelmente, foi uma resposta à questão da demolição de Megahype.
O trauma foi tamanho, que, possivelmente, querendo evitar qualquer outro do tipo, o inspetor
achou melhor excluir os bens privados dessa listagem, com exceção, naturalmente, daqueles
pertencentes ao clero. Tal atitude deixou uma marca profunda até mesmo na atuação do SPHAN
em Pernambuco, que, desde o princípio, privilegiou o tombamento de bens relacionados à
arquitetura religiosa.
Paralelamente ao trabalho de identificação de monumentos, a inspetoria ainda realizou um
inventário fotográfico de alguns edifícios localizados no Recife, bem como solicitou, orientou e
fiscalizou a realização de diversas obras em edifícios históricos considerados naquele momento
como monumentos nacionais. Dessas obras, aquela que teve a maior importância foi a restauração
da igreja da Madre Deus, a primeira do estado e, possivelmente, do país, onde foram adotados
princípios clássicos da teoria da restauração. Esses princípios, estreitamente relacionados às ideias
do francês Viollet-le-Duc, foram os mesmos que, de certa forma, nortearam as restaurações que
aconteceram em Pernambucano nos anos que se seguiram a instalação do SPHAN, e até mesmo
adotadas pelo órgão em todo país até meados dos anos 1980, quando vários edifícios foram refeitos,
completados ou colocados “num estado completo que pode não ter existido nunca”. No Brasil,
exemplos de restaurações desse tipo não faltam, como as que foram feitas no convento do Carmo,
no Rio de Janeiro, ou na igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em Cuiabá.
As ações de Anníbal se tornaram conhecidas e reconhecidas nacionalmente. O jornal A
Província, que havia se tornado uma máquina de apoio ao governo de Estácio Coimbra, republicou
diversos artigos elogiosos às ações da inspetoria, bem como publicou comentários e comentou as
visitas de diversos intelectuais ligados à causa preservacionista relacionadas às ações da inspetoria,
como Mário de Andrade, em 16 de fevereiro de 1929, e Gustavo Barroso, nos dias 16 e 27 de abril
daquele mesmo ano. O conhecimento das ações em Pernambuco, possivelmente, animou Barroso
a fazer uma inspetoria no Museu Histórico Nacional anos depois. Anníbal soube propagar as suas
ações tanto em âmbito nacional quanto internacional com a publicação dos relatórios com as
atividades desenvolvidas, como mostram os ofícios recebidos pela inspetoria do Arquivo Nacional
e do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, e o elogio às ações do inspetor feito pelo jornal
parisiense Paris-Soir, reproduzida n’A Província em 19 de outubro de 1929, além de comentários
de Roquete Pinto e Afonso de Taunay.
As duas instituições foram um ato governamental de invenção de tradições defendidas no
contexto do regionalismo. Os bens selecionados por Anníbal, sejam eles objetos ou monumentos
históricos, tinham uma vocação de encarnar uma identidade, e, do seu ponto de vista, representavam
Pernambuco nacionalmente. Ao inventar um passado pra Pernambuco, Anníbal agia como o
narrador de Walter Benjamim, quando ele afirma que “ele é livre para interpretar a história como
quiser”.37 O Pernambuco inventado era o da aristocracia canavieira, católica, livre de problemas e
desigualdades e enraizada com profundos ideais de liberdade.
O trabalho pioneiro desenvolvido naquele momento, no entanto, não chegou a ser de todo
esquecido. As iniciativas da inspetoria repercutiram anos mais tarde, quando, em 1938, teve início
a política de tombamentos do SPHAN, ajudando a mostrar o que havia no estado para se preservar.
Para Silvana Rubino, nesse período, o SPHAN realizou o melhor trabalho exatamente nos locais
que já tinham uma tradição de se guardar tradições,38 como Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
As ações da Inspetoria de Monumentos de Pernambuco provam que o SPHAN não foi tirado
literalmente do nada, como certa vez afirmou Carlos Drummond de Andrade.
37
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 203.
RUBINO, Silvana. As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
38
Duas sugestões, Sr. Ministro, cabem aqui, como propostas que tenho a honra de fazer, tanto para
maior eficiência administrativa, como para a consecução dos fins culturais da nossa instituição,
eminentemente educacional. Uma é referente ao “Curso de Museus” [...]. A outra proposta é a de
uma Inspetoria de Monumentos.
Sentimos hoje necessidade de um serviço federal, que fiscalize, promova os meios de conservação,
resguarde e inventarie os monumentos tradicionais que, espalhados pelo país, atestam a nossa
educação nacional e a progressiva civilização do Brasil. [...] Essa Inspetoria, caso V. Ex. conviesse
na sua criação sem ônus para os cofres da nação, poderia ser exercida pelo Diretor do Museu
Histórico, sem gratificação especial, e logo regulamentada, de modo a armar-se com as atribuições
necessárias para um entendimento direto com as administrações dos Estados, as instituições
particulares, ou centros de turismo etc. A importância desta matéria, o seu alcance nacional, os
cuidados que lhe dão nos países mais cultos, os governos que têm complexos órgãos de proteção
das relíquias arquitetônicas do passado, dispensam outros argumentos em favor da ideia, que
submeto ao elevado julgamento de V. Ex.1
*
Este trabalho contou com a valiosa colaboração dos amigos Henrique de Vasconcelos Cruz e Rafael Zamorano Bezerra a quem agradeço
imensamente. Contou também com a ajuda da Beatriz de Oliveira, a quem também sou grata por um levantamento feito quando
participou, como aluna de história da UFF, da Oficina de pesquisa em instituições de guarda de acervo coordenada por mim no Museu
Histórico Nacional entre maio e agosto de 2012.
**
Historiadora. Doutora e mestre em História Social. É historiadora no Museu Histórico Nacional, onde atua na área de pesquisa e
editoração, professora de História na Universidade Estácio de Sá e pesquisadora associada do PROARQ/UFRJ. É autora do livro
Culto da saudade na Casa do Brasil: Gustavo Barroso e o Museu Histórico Nacional (1922-1959). Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.
1
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de atividades. 1931, p. 14. Arquivo Institucional do MHN. Série ASDG1.
Essas palavras são de Rodolfo Garcia, diretor do Museu Histórico Nacional (MHN) durante
o período de 10 de dezembro de 1930 a 14 de novembro de 1932, e estão presentes no Relatório
de Atividades da instituição encaminhado ao Ministério da Educação e Saúde (MES), em 1931.
Enquanto o Curso de Museus já estava previsto no regulamento institucional desde o ano de sua
criação, em 1922,2 a Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN) aparece pela primeira vez como
uma possível atribuição do MHN.
Dois anos depois, a proposta de criação de um órgão preservacionista no MHN volta a
ocupar as páginas do Relatório Institucional. Dessa vez pela pena de Gustavo Barroso, primeiro
diretor do MHN que, após afastado por dois anos, tempo em que Garcia assumiu o cargo, a ele
foi reconduzido:3
Devo [...] insistir na necessidade que reconheço presente, de regular o Governo a defesa do
Patrimônio Histórico e artístico do País [...]. Enquanto não tivermos uma organização administrativa
acauteladora daquele patrimônio, e em harmonia com uma legislação adequada, meios de prevenção
contra os assaltos que constantemente sofrem os monumentos históricos do Brasil, mal protegidos
pelos poderes locais dos Estados e municípios, continuaremos a assistir a devastação da nossa
riqueza tradicional e a mutilação de gloriosos vestígios do nosso passado [...]. No Brasil, não
me parece aconselhável a criação de um organismo especial para tal função: o Museu Histórico
Nacional, sem ônus para os cofres federais poderia realizar aquela tarefa com a atribuição que por
decreto se lhe conferisse de Inspetoria de Monumentos Nacionais [...].4
As sugestões de Garcia e Barroso para a criação de uma repartição responsável pela preservação
dos monumentos estão em harmonia com uma preocupação dos intelectuais da época com a proteção
dos vestígios do passado nacional que circulava na imprensa e impressos especializados desde a
década de 1910. A exemplo dos apelos do próprio Barroso veiculados no Jornal do Commercio,
em 1912,5 de Alceu Amoroso Lima publicados na Revista do Brasil, em 1916,6 e de José Marianno
Filho, presentes no artigo “O patrimônio artístico da nação”, de 1929,7 entre outros.
2
Cf.: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Museu Histórico Nacional: Legislação. Serviço de documentação. Folheto no 46. 1946,
decreto no 15.596, de 2 de agosto de 1922. VI – Curso Técnico. p. 15.
3
Ficou afastado apenas no período de 8 dezembro de 1930 a 18 novembro de 1932 em função dos desdobramentos políticos da Revolução de
1930, por ter participado da campanha de Júlio Prestes nas eleições. Após sua recondução ao cargo, Gustavo Barroso permaneceu na direção
do MHN até sua morte, em 3 de dezembro de 1959.
4
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de atividades. 1933, p. 2. Arquivo Institucional do MHN. Série ASDG1.
5
BARROSO, Gustavo. O Culto da saudade. Jornal do Commercio. 22/12/1912.
6
LIMA, Alceu Amoroso. Pelo passado nacional. Revista do Brasil, São Paulo, n. 9, v. 3, p. 1-15, set. 1916.
7
MARIANNO FILHO, José. O patrimônio artístico da nação. Apud KESSEL, Carlos. Arquitetura Neocolonial no Brasil: entre o pastiche e
a modernidade. Rio de Janeiro: Jauá Editora, 2008. p. 219.
Vale lembrar que naquele período algumas providências em prol da preservação do patrimônio
já haviam sido tomadas. Algumas bem-sucedidas, outras não. No segundo caso, estava a elaboração
de alguns projetos de lei com as mesmas finalidades, mas que não chegaram a ser votados, como
os dos de autoria de Alberto Childe, voltado para a proteção do patrimônio arqueológico, em 1920,
do deputado federal pernambucano Luís Cedro, em 1923, do deputado federal por Minas Gerais
Augusto de Lima, em 1924, este específico para proibir a “saída de obras de arte retrospectiva do
país”8 e do deputado baiano Wanderley de Araújo Pinho, de 1930. Em relação ao primeiro, estavam
em pleno funcionamento as Inspetorias de Monumentos Estaduais da Bahia, criada em 19279, e
de a Pernambuco, desde 1928.10 O próprio Gustavo Barroso já havia atuado como consultor nos
trabalhos de restauração de monumentos da cidade de Ouro Preto, entre 1928 e 1930, contratado
diretamente por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, então presidente do Estado de Minas. Essas
experiências não apenas demonstram o quanto o tema estava em questão, pressionando o poder
público a tomar providências, como apontam para as disputas no campo por quem deveria tomar
a frente do processo de preservação do patrimônio nacional, não apenas em âmbito federal, mas
também nas esferas estaduais, quiçá municipais.
Nessa perspectiva, percebemos que as solicitações das direções do MHN caíam em terreno
já cultivado e, certamente, bebiam nessas fontes.11 Entretanto, não somente em âmbito nacional,
afinavam-se também com a prerrogativa de movimentos internacionais que, desde a década
de 1920, após a experiência da Primeira Guerra Mundial, passaram a reunir vários países em
Conferências para pensar e definir acordos sobre ações voltadas para a manutenção da paz e
a proteção dos monumentos em tempos de perigo. Foi assim na V Conferência Internacional
Americana, realizada em 1923, em Santiago do Chile, seguida pela VI, que aconteceu em Havana,
8
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Brasil: monumentos históricos e arqueológicos. Cidade do México: Instituto Pan-americano de
Geografia e História. Comission de História, 1952. p. 23
9
Cf.: CERAVOLO, Suely. Criando um passado e musealizando um patrimônio: o Museu do Estado da Bahia (1918-1959). Anais do
o XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Disponível em: <http://www.snh2011.anpuh.org/resources/
anais/14/1300532884_ARQUIVO_MATERIALIZACAOPATRIMONIOANPUHSP2011.pdf>. acesso em: 10 dez. 2012.
10
Cf.: RODRIGUES, Rodrigo José Cantarelli. Contra a conspiração da ignorância com a maldade. A Inspetoria Estadual dos Monumentos
Nacionais e o Museu Histórico e de Arte Antiga do Estado de Pernambuco. Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) –
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; MAST, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://ppg-pmus.mast.br/dissertacoes/
dissertacao_Rodrigo%20Cantarelli.pdf:. Último acesso em: 30 dez. 2012.
11
Vale citar que no Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional há duas fotografias doadas por Pedro Calmon, autor do projeto de lei
que criou a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais da Bahia, em 1927, e também conservador do Museu Histórico Nacional. Ambas
retratam edificações de Salvador. Uma é do Forte de Mont Serrat e tem uma inscrição à caneta no verso: “O forte de Mont Serrat que vai ser
restaurado pelo Governo do Estado, fotografia de 1925 [...] oferta de Pedro Calmon”. A outra é de uma casa colonial e tem escrito em seu
verso: “Cidade de Salvador na Ponta de Mont Serrat – A primeira casa construída data do ano de 1619. Fotografia de 1927. A mais velha
construção civil conhecida no país. Casa de fazenda na Ponta de Mont Serrat, na Bahia, edificada em 1619. [...] oferta de Pedro Calmon”.
em 1928, e pela VII, ocorrida em Montevidéu, em 1933. Nesta foram propostas medidas de
proteção aos bens culturais, formalizadas no Pacto de Röerich, assinado por 20 países, entre os
quais o Brasil, no dia 15 de abril de 1935, em cerimônia de encerramento presidida pelo presidente
Franklin Roosevelt na Casa Branca.12
No cenário europeu, aconteceu a Conferência Internacional para estudo dos métodos científicos
aplicados ao exame e à conservação das obras de arte, em Roma, em 1930. Nesse evento, reuniram-
se especialistas de diversos países para debaterem as melhores técnicas de preservação de pinturas
e esculturas. No ano seguinte, em Atenas, foi realizada a Conferência Internacional de Proteção e
Conservação dos Monumentos de Arte e História. Como a de Roma, a conferência foi organizada
pelo Escritório Internacional de Museus, mas dedicou-se à exposição dos princípios gerais e das
doutrinas concernentes à salvaguarda dos monumentos, visando a um consenso mundial.13
Não se pode esquecer que havia também uma pressão externa vinda da Comissão Internacional
dos Monumentos Históricos, criada em 1933, junto ao Escritório Internacional de Museus, um
departamento do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI) sediado na França, na
qual Gustavo Barroso passou a atuar a partir de junho de 1934, indicado como representante do
Brasil pelo Ministro da Educação e Saúde, Washington Pires.14 Mesmo antes de sua nomeação,
Barroso vinha emitindo pareceres sobre os projetos de cooperação internacional para a proteção do
patrimônio histórico e artístico das nações participantes do IICI. Assim procedeu em 24 de janeiro
de 1934, quando o tema em discussão era o repatriamento de objetos de interesse histórico, artístico
ou científico que tivessem saído do país de modo ilícito. Foi favorável que o Brasil apoiasse o
projeto, pois este seria interessante para o país, visto a necessidade de uma legislação específica
para proteger o patrimônio nacional.15
Antes da participação do Brasil na assinatura do Pacto de Röerich – que acabou acontecendo
com a representação de Oswaldo Aranha, Embaixador do Brasil nos Estados Unidos, no
ano seguinte – Barroso comentava sobre a importância de ter o país entre os signatários do
documento, certamente emitindo parecer favorável sobre o assunto, solicitado pelo MES.
12
Cf. Pacto Röerich. Disponível em: <http://www.roerich.org.br/>. Acesso em: 30 dez. 2012.
13
OFFICIE INTERNATIONAL DES MUSÉES. La conservation des monuments d’Art & d’Histoire. Paris, 1933.
14
Cf.: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA. Ofício 242 De: Washington Pires (Ministro do MES) para: Gustavo
Barroso (Diretor do MHN). Comissão Internacional dos Monumentos Históricos. 4/6/1934. Série Correspondências Recebidas do Arquivo
Institucional do Museu Histórico Nacional, ASDG2.
15
BARROSO, Gustavo. Parecer “C.L. 20/6/1933 XXII Annexe – Société des Nations: - ORGANISATION DE COOPERATION
INTELLECTUELLE – Projet de Convention Internationale et Le Repatriement des objets d’ interet artistique, historique ou scientifique,
perdus ou volés, ou ayant donne lieu a une alienation ou e portation illicite”. Enviado ao Diretor Geral do Expediente do Ministério da
Educação e Saúde Pública. Série Correspondências Enviadas do Arquivo Institucional do Museu Histórico Nacional. ASDG2.
Reforçava seu argumento alegando a urgência de uma legislação interna que regulamentasse os
serviços de preservação dos monumentos. Em seus termos:
Sendo o referido Pacto [Röerich] obra da diplomacia americana, sendo obra de verdadeiro espírito
de amor às coisas da Humanidade, o Brasil pela sua tradição de cordialidade, de pacifismo, de
dedicação às boas causas, não pode ficar alheio ao mesmo, devendo apressar-se em dar-lhe a sua
assinatura. [...] A proteção do tesouro cultural brasileiro, segundo o texto do Pacto, implica a
necessidade duma legislação interna que assegure o respeito a esse tesouro; como também a
organização do catálogo das relíquias e monumentos, dependentes daquela lei. Esta Diretoria, por
solicitação vossa, já se manifestou favoravelmente quanto à lei em questão. Agora, coerentemente,
se manifesta a favor da coparticipação do Brasil no Pacto Roerich.16
Embora a iniciativa de definir o que fosse Monumento Nacional continuasse nas mãos do
Governo Federal, ao organizar um catálogo com os edifícios de considerado valor, a Inspetoria
participaria da definição do que deveria ser valorado como patrimônio, ampliando assim seu raio
de ação. Entretanto, não expõe os critérios para catalogar os imóveis. Ou seja, chamando para
si a responsabilidade de selecionar edificações e sugerir que fossem classificadas monumentos
nacionais, a IMN previa uma ação compartilhada com o Governo Federal.
Quanto à legislação sobre a proteção do patrimônio nacional, que ficaria a cargo dos estados,
o museu lideraria uma uniformização. Parecia haver uma expectativa de manter o funcionamento
de Inspetorias Estaduais existentes, como as da Bahia e Pernambuco e criar similares nas demais
unidades federativas, para serem orquestradas pela instituição sediada no MHN.
20
Id. Ibid. p. 28.
21
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA. Ofício n. 1.903. De: Heitor de Farias. Para Gustavo Barroso.
29/5/1934. Arquivo Institucional do Museu Histórico Nacional. Série Correspondências Enviadas. ASDG2. [Grifos nossos]
22
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Museu Histórico Nacional: Legislação. Serviço de documentação. Folheto n. 46. 1946, p. 28.
do novo órgão, que antes não apareciam em nenhum momento. Essa mudança parecia estar
em sintonia com os interesses de Barroso em capitalizar para o MHN uma projeção em âmbito
nacional no que tange não apenas ao comércio de antiguidades, mas à obtenção de maior prestígio
e controle sobre as coleções públicas e particulares, uma vez que, conforme estabelecia o artigo 80,
“as pessoas e corporações que possuírem objetos e relíquias artísticas ou históricas são obrigadas a
fornecer a relação dos mesmos ao Museu Histórico Nacional e não poderão negociá-los sem prévia
consulta a este, que terá preferência”.27 Dessa maneira, a legislação abria uma brecha para o MHN
aumentar o seu acervo, o que poderia acontecer também segundo o que estava previsto no Artigo
76: “Os objetos apreendidos por infração destes dispositivos passarão a fazer parte do patrimônio
nacional, no Museu Histórico Nacional”.28 Esses artigos certamente foram inspirados nos que
abordam o mesmo tema no projeto de Wanderley Pinho, porém, no documento elaborado pelo
deputado baiano, estava prevista uma ação conjunta com as repartições congêneres dos estados da
federação que, aqui foram ignoradas.29
O MHN, por intermédio de seu diretor e representantes, passaria a ter o monopólio da valoração
e da autenticação dos objetos a serem catalogados e comercializados. Afinal, somente ao museu
caberia a autoridade para autenticar os objetos artísticos históricos que lhe fossem apresentados,
mediante requerimento das partes interessadas e de acordo com a tabela de peritagem anexa ao
regulamento. Conforme o Artigo 82, “Os negociantes de antiguidades e obras de arte de qualquer
natureza ficam obrigados a um registro especial no Museu Histórico Nacional ou nas repartições
estaduais que o representem, não podendo vender objetos que não devidamente autenticados.
Este é o segundo artigo em que há uma divisão de atribuição com as “repartições estaduais”. Já
o Artigo 74 voltava a centralizar as ações quando tratava da exportação de objetos ao determinar
que essa operação “só será permitida mediante autorização do diretor geral do Museu Histórico
27
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Museu Histórico Nacional: Legislação. Serviço de documentação. Folheto n. 46. 1946, p.
42. [Grifo nosso].
28
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Museu Histórico Nacional: Legislação. Serviço de documentação. Folheto n. 46. 1946, p.
42. [Grifos nossos]
29
Cf.: Projeto do Deputado José Wanderley de Araújo Pinho. Apud BRASIL, Ministério da Educação e Cultura (Org.). Proteção e
revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Rio de Janeiro: Sphan/Fundação Pró-Memória, 1980. p. 49. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=531>. Acesso em: 22 dez. 2012. Para um estudo comparativo mais detalhado entre
o regulamento da IMN do MHN e os projetos elaborados anteriormente, v. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias... um
estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais. (Dissertação de Mestrado) Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2004. p. 67-79. Ver também
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940).
Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. p. 152-159. A autora sublinha que o projeto de Pinho – que certamente esteve na base do projeto enviado pelo
MES para parecer de Barroso e, consequentemente, fundamentou o regimento da IMN –, bem como o de Luiz Cedro (1923) e o de Augusto
de Lima Júnior (1924) foram inspirados na legislação francesa de 1913, que também é citada nas justificativas do Ministro nas considerações
que acompanham o pedido de parecer a Barroso. [Grifos nossos]
Nacional, ou de seus representantes, depois de paga, na repartição, taxa especial de 300$00 sobre
o valor dado pela avaliação feita no Museu”.30
Quanto à elaboração de catálogo, consta no Artigo 73 da versão final a atribuição do Museu
Histórico Nacional de organizar também um catálogo “tanto quanto possível completo, dos objetos
histórico-artísticos de notável valor existentes no país, no qual os particulares poderão requerer a
inclusão dos de sua propriedade, o que será deferido após exame, identificação e notificação”.31
Enquanto a IMN não tinha autonomia para declarar “edificações” como monumentos nacionais,
podendo apenas propor para o Governo Federal sua classificação, quando se tratava de “objetos”
a determinação era outra. Não apenas impunha que fossem fornecidas informações sobre objetos
históricos e artísticos, como deixava entendido que os colecionadores teriam suas obras mais
valorizadas a partir do momento em que estas constarem no catálogo do MHN, afinal estariam
registradas em um instrumento específico de preservação após passarem pelo crivo de uma
autoridade especializada.
A partir de uma política pública voltada para a preservação dos monumentos e, mais
especificamente, para controle do comércio de antiguidades, estava em jogo o acúmulo de capital
simbólico32 para o MHN e seu diretor no que tange à liderança de uma rede nacional de agentes
relacionados à construção de uma ideia de nação por um lado e, por outro, de colecionadores e
negociantes de antiguidades, fortalecendo a instituição e podendo trazer ganhos para seu acervo,
além do seu reconhecimento como referência para autenticar, avaliar e valorar objetos históricos
e artísticos. Percebe-se o investimento de Barroso para conquistar uma centralidade no campo de
produção do passado nacional no seio do Estado. Desse modo, a lei funcionava como uma espécie
de poder coercitivo para fazer valer sua autoridade.
Segundo Rafael Zamorano Bezerra, em seu estudo sobre os dispositivos de valoração dos
objetos históricos no MHN, “autoridade e poder não devem ser confundidos”. Enquanto o segundo
relaciona-se com a “capacidade de fazer, ter permissão ou estar habilitado para fazer algo”, a
primeira “vem de auctoritas e significa ser gerador de qualquer coisa ou alguém, fonte ou origem,
autor ou artífice”.33 Baseando-se nas reflexões de Hanah Arendt sobre Platão, Bezerra infere que
uma forma de autoridade é o “conhecimento especializado [que] infunde confiança, de modo que
30
Id. Ibid. [Grifo nosso].
31
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Museu Histórico Nacional: Legislação. Serviço de documentação. Folheto n. 46. 1946, p.
42. [Grifo nosso].
32
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p. 107-114.
33
BEZERRA, Rafael Zamorano. Autoridade e função de autor na valoração de objetos históricos. O caso das traves da forca de Tiradentes.
In: BEZERRA, Rafael Zamorano; MAGALHÃES, Aline Montenegro. Museus nacionais e os desafios do contemporâneo. Rio de Janeiro:
Museu Histórico Nacional, p. 222-242, 2011. p. 226-227.
nem a força nem a persuasão são necessárias para obter a aceitação dos homens”.34 No caso em
questão, Barroso e seus representantes, enfim o MHN, estão sob uma jurisdição que os favorecia,
dotando-os de poder para construir essa confiança em relação ao conhecimento especializado que
possuíam, junto ao campo da produção do passado, visando à invenção da nação como um projeto
de Estado, do Estado varguista. Tratava-se de uma nomeação por parte do Estado que os colocava
em uma “situação de autoridade”,35 que ainda se fortalecia com a existência do Curso de Museus,
um lugar voltado para a produção e a disseminação desse tipo de autoridade especializada.
Não estava em jogo uma capitalização no sentido econômico para a instituição, haja vista
que o artigo sobre as fontes de recursos da Inspetoria foi retirado e previa valores maiores do que
os aprovados como pagamento de taxas, multas e honorários sobre autenticação e peritagem no
regulamento final. Segundo a minuta, a Inspetoria estava prevista para se manter com os créditos
concedidos pelo governo para atendimento das despesas básicas, mas também com recursos
oriundos das multas de 10 a 100% aplicadas conforme estipular o Regulamento aos proprietários
de imóveis que desrespeitarem as determinações do regulamento; da taxa de exportação de 300%
sobre objetos de valor histórico e artístico, cuja guia tenha emitido, serviço sobre o qual teria
monopólio e mais os valores obtidos por meio dos serviços de registros, peritagem, certidões etc.36
Dois dias após aprovado o novo regulamento do MHN com a criação da IMN, foi promulgada
a Constituição Federal, que trata do assunto pela primeira vez. Foram dedicados dois artigos ao
tema da preservação do patrimônio. O de número 10 estabelecia que “compete concorrentemente à
União e aos Estados: [entre outras medidas] III – proteger as belezas naturais e os monumentos de
valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte”. Já o artigo 148 determinava:
“Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências,
das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio
artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual”.37
Assim, amparado legalmente, Gustavo Barroso iniciou as atividades da IMN. Uma das
primeiras medidas tomadas foi a formação de um documentário iconográfico com imagens das
cidades consideradas históricas por ainda preservarem remanescentes arquitetônicos dos tempos
coloniais. Foram desenhos e aquarelas produzidos por Alfredo Norfini em viagens na década de
34
Id. Ibid. p. 227.
35
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas... Op. cit. p. 113.
36
SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE PÚBLICA. Ofício n. 1. 903 De: Heitor de Farias. Para Gustavo Barroso.
29/5/1934. Arquivo Permanente do Museu Histórico Nacional. Série Correspondências Enviadas. ASDG2.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16
37
de julho de 1934). Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 14 jun. 2012.
1920 e comprados pelo museu em 1934,38 bem como encomenda de pinturas aos artistas José
Washt Rodrigues e Hans Nobauer, que se dedicaram exclusivamente à reprodução de monumentos
das cidades mineiras visadas para os trabalhos do novo órgão, especialmente, Ouro Preto.39 A
coleção Norfini foi publicada no sétimo volume dos Anais do MHN, com comentários de Gustavo
Barroso.40 Todas as obras foram compradas com dotação do MHN para aquisição de objetos
históricos. Ou seja, embora relacionadas com as atividades da IMN, não foram adquiridas com
recursos específicos deste departamento.
No relatório institucional de 1934, foi solicitada verba ao Ministério alegando a criação da
terceira seção para o MHN, que se denominaria “Patrimônio Histórico”, afinal tratava-se de um
setor de “projeção nacional, não se limitava ao Rio de Janeiro. Obrigava a viagens, fiscalização local,
locomoção urgente e incessante dos funcionários comissionados”.41 Continua seu relato informando
sobre a previsão de aplicar a verba destinada à restauração de Ouro Preto no ano seguinte.
Já no relatório de atividades de 1935 é comentada a aplicação da verba recebida de 100:000$000
(cem contos de réis) nas obras de restauração de monumentos de Ouro Preto, sob a responsabilidade
do Engenheiro Epaminondas de Macedo. As intervenções da IMN iniciaram em dezembro daquele
ano e, para informar sobre a nomeação de Epaminondas de Macedo, engenheiro do Ministério da
Viação que trabalhava nos Correios da cidade e fora cedido para atuar no novo órgão, o jornal A
Voz de Ouro Preto publicou uma notícia no dia 29/12/1935. Dizia que Macedo havia sido nomeado
representante da IMN em Ouro Preto e reproduzia o regulamento da Inspetoria.42
Ainda no relatório de 1935, Barroso faz uma longa explicação sobre seu papel diante das
ações da IMN:
Devo acentuar, relativamente a Ouro Preto, que a ação pessoal dessa diretoria foi decisiva para
que ainda nos últimos meses do ano passado muito se fizesse, em reparos urgentes e completos, nas
preciosas igrejas do Carmo, de Antônio Dias e em todos os chafarizes antigos e nas velhas pontes da
cidade, tudo quanto era indicado pelo estudo de semi-ruína dos principais imóveis ali localizados.
38
Cf. Processo 14/34. Divisão de Controle do Acervo. Museu Histórico Nacional.
39
Para um estudo mais aprofundado sobre a aquisição da coleção de imagens sobre as cidades “históricas” brasileiras pelo Museu Histórico
Nacional, após a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais, v. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias... um
estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais. (Dissertação de Mestrado) Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2004. p. 93-99.
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Documentário Iconográfico de cidades e monumentos do Brasil. Anais do Museu Histórico Nacional,
40
Monumentos Nacionais.
Conhecedor há longos anos de Ouro Preto, tendo em administrações passadas contribuído com
desinteressado e profícuo esforço, para que fossem atacadas as obras indispensáveis no sentido
da preservação de tais riquezas artísticas, que pereceriam sem um imediato socorro, me senti
animado de partida satisfação ao concluir as providências acima aludidas. Por minha designação,
superintende aos mesmos trabalhos em Ouro Preto o engenheiro Epaminondas de Macedo, que
em relatórios semanais traz esta diretoria a par do desenvolvimento de suas atividades segundo as
minhas determinações.43
As palavras de Barroso demonstram sua centralidade e autoridade frente aos trabalhos da IMN.
Entretanto, contrastam um pouco com a documentação relativa ao departamento. A correspondência
de Epaminondas de Macedo no período de julho a agosto foi trocada com Angyone Costa, um
funcionário do MHN que representava Barroso no Rio de Janeiro, quando este se ausentava,
especialmente em 1935 em função das campanhas integralistas. É o que se nota em sua coleção
de recortes de jornais, na biblioteca do MHN: notícias sobre sua cruzada verde Brasil a fora44 e
silêncio em relação à Inspetoria.
Quando soube que Barroso esteve em Minas mas não passou por Ouro Preto, o prefeito desta
cidade, João Veloso, emitiu uma carta um tanto desapontado com a demora da visita de Barroso
para resolver assuntos da preservação dos monumentos ouropretanos. Assim escreveu ele:
Prezado amigo Dr. Gustavo Barroso, Minhas atenciosas saudações. Esperei que o Dr. passasse por
aqui antes de regressar para o Rio pois o Sr. já me havia prometido vir brevemente a Ouro Preto para
estudar as condições de conservação dos nossos monumentos artísticos. Lamento profundamente
que assim não tenha sido e estou certo de que motivos imperiosos o impediram de o fazer [...]. Agora
não sei quando terei a ventura de vê-lo aqui “integralizando” os nossos monumentos artísticos e
nossas alterosas montanhas.45
O relatório de atividades de 1936 inicia com a informação de que Barroso se manteve à frente
do MHN e da Inspetoria de Monumentos. Mesmo sendo a segunda um departamento do primeiro,
43
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de atividades de 1935. Arquivo Institucional do MHN. Série ASDG1. p. 1-2 [grifo
nosso]. É nesse documento que Barroso reivindica, por “direito” o título de Casa do Brasil para o Museu Histórico Nacional, por ser
“único museu histórico federal e na sua dinâmica como estabelecimento universitário de aperfeiçoamento dos estudos conexos com a
história nacional”. p. 10.
44
Para os períodos citados, v. especialmente os cadernos GB20-25, Biblioteca do Museu Histórico Nacional.
45
Carta de João Veloso a Gustavo Barroso, Ouro Preto, 13 de junho de 1935. (Coleção Gustavo Barroso. Série II – correspondências, GBcrp
08. Arquivo Institucional, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro). É nesta carta que João Veloso recomenda Epaminondas de Macedo a
Gustavo Barroso para ser o responsável das obras em Ouro Preto. Este documento foi reproduzido no volume 5 dos Anais do MHN, que traz
um dossiê sobre a Inspetoria no sentido de lembrar suas realizações, em 1955. Nessa versão, a palavra “integralizando” foi substituída por
“entre”. Cf.: Documentário da ação do Museu Histórico Nacional na defesa do patrimônio tradicional do Brasil. Anais do Museu Histórico
Nacional. v. 5 (1944), Rio de Janeiro, 1955, p. 20.
parece ser tratada como um órgão à parte. Acumulando essas funções, seu diretor realizou viagens
de inspeção de monumentos a Ouro Preto, Mariana, Tiradentes e São João Del Rey. Informa
também que a IMN aplicou a verba de 50:000$000 (cinquenta contos de réis), destinada pela
lei orçamentária, na conservação e restauração de obras antigas em Ouro Preto, sendo a reforma
completa de duas igrejas, duas pontes e cinco chafarizes; a restauração parcial de dois templos e o
planejamento do conserto do teto da Matriz de N. Sra. Das Dores.46
No ano seguinte, a IMN desapareceu do relatório institucional. Sabe-se que até o final de
1937 a repartição ainda realizou trabalhos em outros monumentos da cidade de Ouro Preto. Pela
listagem publicada por Adolpho Dumans no livro A ideia da criação do Museu Histórico Nacional
contam-se o total de 33 monumentos, entre restauração total, parcial e realização de projeto.47 Pelos
relatórios enviados por Epaminondas de Macedo, chegaram a receber os cuidados da Inspetoria 20
edificações, entre templos, pontes e chafarizes.48
Nesse mesmo ano, a IMN foi substituída pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), que projetado e articulado pelo Ministro Gustavo Capanema, já vinha
funcionando em caráter experimental desde abril de 1936, a partir do Anteprojeto de Mário de
Andrade e chefiado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, que assumira definitivamente a direção
do Serviço após sua criação pela lei no 378, de 13 de janeiro de 1937, no âmbito da reforma do
Ministério da Educação e Saúde, e pelo decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937, que organizou
a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.49 Barroso não teve nenhuma participação
nesse processo e, o que ocorreu foi um esvaziamento da IMN que, nesse ano contou apenas com
mais 50:000$000 (cinquenta contos de réis) para suas atividades. Epaminondas de Macedo escrevia
em seu relatório de 25 de julho de 1937: “por conta da dotação deste ano pouco teremos ainda que
fazer [...] Dentro de um mês irei ao Rio prestar-lhe contas minuciosas de tudo”.50
O que chama a atenção, ao analisarmos a atuação da IMN, é o silêncio em relação à fiscalização
e ao controle sobre o comércio de antiguidades e em torno do registro dos objetos, principal tônica
46
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de atividades de 1936. Arquivo Institucional do Museu Histórico Nacional, série ASDG1.
p. 1-3.
47
DUMANS, Adolpho. A ideia da criação do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica, 1947. p. 54-58.
48
Os relatórios originais enviados por Epaminondas de Macedo podem ser encontrados na pasta Inspetoria de Monumentos Nacionais.
Arquivo Institucional do Museu Histórico Nacional. Foram reproduzidos no volume 5 dos Anais do MHN (op. cit.). p. 125-166.
49
Sobre o assunto, cf.: ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Brasil: monumentos históricos e arqueológicos. Cidade do México: Instituto
Pan-americano de Geografia e História. Comission de História, 1952. p. 54-60; CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese
das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. Especialmente as páginas 124-
142.
50
Relatório em 25/07/1937. Apud Documentário da ação do Museu Histórico Nacional na defesa do Patrimônio Tradicional do Brasil (op.
cit.). p. 166.
do seu regulamento. No período de funcionamento da Inspetoria não houve aumento das coleções
do Museu com objetos apreendidos por infração dos dispositivos do regulamento, nem pelo direito
que o MHN tinha de preferência na compra de antiguidades a serem negociadas. Os relatórios
não mencionam nenhuma ação de fiscalização, peritagem nem de autenticação de objetos de
colecionadores ou negociantes, tampouco o trabalho de elaboração de catálogos, seja de objetos ou
de “edifícios de assinalado valor e interesse artístico-histórico existente no país”, neste caso para
propor ao Governo Federal o título de Monumentos Nacionais.51 A rotina do MHN não parece ter
sofrido alteração em função das atribuições que lhe foram conferidas no regulamento de 1934.
O que se percebe é que a IMN atuou na área em que seu regulamento menos a amparava,
deixando de lado as ações às quais sua legislação mais se dedicou e que estariam mais afinadas
com as atividades concernentes a um museu, podendo, inclusive aumentar seu prestígio, reforçar
sua autoridade no campo do conhecimento sobre antiguidades etc.
O que se pode inferir sobre a inoperância da Inspetoria junto ao comércio de antiguidades
e na valoração e autenticação de objetos no sentido de classificá-los como patrimônio é que o
regulamento do MHN foi insuficiente para promover uma mudança no habitus52 dos agentes que
lidavam com as artes e as antiguidades, bem como com a própria produção do passado nacional
a partir de seus vestígios de “notável valor”. Por mais que o documento parecesse frágil em seus
dispositivos, como alegou Rodrigo Melo Franco de Andrade em sua “História da legislação
destinada à proteção dos monumentos e obras de valor histórico, artístico e arqueológico no país”53,
e a Inspetoria tivesse funcionado por pouco tempo, essas razões não justificam a inoperância da
IMN nesse campo. Assim como a constatação de que por parte da instituição não houve novas
contratações e aumento de verbas significativas que pudesse efetivar a fiscalização devida e as
novas atribuições, o que poderia ter levado a não inclusão das tarefas estabelecidas em regimento
na rotina laboral dos funcionários.
A justificativa mais plausível e aceita é a de que o capital político de Gustavo Barroso não
tenha sido suficiente para fazer do MHN uma peça fundamental da engrenagem que movia o
mercado das artes e antiguidades e as redes de colecionadores no Brasil, o que era esperado
a partir do regulamento. Afinal, quando Barroso solicitou ao MES que interviesse no projeto
que havia sido enviado para seu parecer, pediu para sugerir outras ideias, preocupado também
com as “opiniões dos interessados na parte que se refere aos proprietários de objetos históricos
e artísticos”. Não conseguiu promover o reconhecimento do MHN/IMN nesse campo como
51
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Legislação (op. cit.). p. 28.
52
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2 ed. Porto Alegre: Zouk, 2011.
53
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Brasil... Op. cit. p. 99-53
autoridade para determinar o que era e o que não era autêntico, “de notável valor”. De fato, havia
outras autoridades já reconhecidas que exerciam o mesmo papel fora da esfera do Estado. Esses
agentes, embora se relacionassem com o MHN, negociando, doando peças e trocando saberes,
a ele não se submeteram para solicitar registro ou autenticidade de seus objetos, a exemplo de
antiquários como Francisco Marques dos Santos e Leone Ossovigi, bem como colecionadores
particulares como Guilherme Guinle.
A presença da Inspetoria em Ouro Preto pode ser vista como o investimento em outra via para
angariar projeção e reconhecimento para o MHN, ampliando seu raio de atuação e autoridade. A
cidade mineira estava no centro das atenções dos intelectuais que, desde a década de 1910, vinham
clamando pela sua proteção, em parte por ter sido palco da Inconfidência Mineira, acontecimento
recuperado pela República com a heroicização de Tiradentes,54 em parte por manter suas
edificações ainda a salvo das obras de modernização que transformaram grandes centros urbanos,
especialmente, os do litoral.55
Entre finais de 1921 e início de 1922, em comemoração ao centenário da Independência
membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro promoveram uma campanha de preservação
dos monumentos de Ouro Preto que tinham relação com a Inconfidência Mineira; a iniciativa,
levada a cabo por Jonathas Serrano, resultou apenas na instalação de uma placa em homenagem
a Tiradentes, no local onde ficava sua casa. Em 1924, Ouro Preto recebeu a visita da “Caravana
modernista”, que apresentava o Brasil ao francês Blaise Cendrars, e a partir de então se tornou uma
das principais referências de brasilidade para o grupo. Em 1933, Ouro Preto foi a primeira cidade
do Brasil a receber o título de Monumento Nacional, o que foi dado pelo decreto no 22.928 de 12
de julho, assinado por Getúlio Vargas. Os Governos do Estado de Minas e do Município de Ouro
Preto já haviam empreendido reformas dos monumentos da cidade. No primeiro caso, contando
com Barroso à frente, entre 1928 e 1930.
Nessa perspectiva, iniciar as atividades da Inspetoria com as reformas de Ouro Preto seria uma
iniciativa pioneira na esfera federal, bem como um caminho para atrair a atenção de diferentes
grupos e autoridades para o MHN, que contava em agir na preservação de outros centros urbanos,
começando por Minas.
Enfim, desde o primeiro ano de funcionamento da repartição nada se tratou a respeito do
comércio de antiguidades e da catalogação de objetos artísticos e históricos. Todos os esforços
foram empregados na restauração e conservação de monumentos ouropretanos. Vide a compra e
encomenda de iconografias de Ouro Preto e outras “cidades históricas”.
54
CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
55
Sobre o assunto, v. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando Relíquias... (op. cit.). p. 84-93.
Teria sido esse descompasso entre a letra e a ação um dos motivos da falência da Inspetoria?
Segundo Márcia Chuva, a justificativa para o fim da IMN estaria na “vertente tradicionalista
de Barroso [que] não detinha capital político suficiente no contexto em que [a preservação
do patrimônio] foi tornada hegemônica pelo grupo de Capanema”,56 mesmo Barroso tendo
mantido seu prestígio na direção do MHN, onde acabou por conquistar autoridade no campo
da museologia e manter um diálogo direto com o Presidente Vargas que contribuía, às vezes,
pessoalmente para o desenvolvimento do museu, para o aumento de suas coleções e para o
reconhecimento da sua autoridade.57
Assim, percebemos na Inspetoria um capítulo da trajetória do MHN no jogo das políticas
públicas levadas a cabo no Estado varguista para uma nova construção da nação a partir do
seu passado. Foi possível analisar e inferir como o museu participou da história das definições
do que deveria e não deveria ser considerado patrimônio tradicional do Brasil e como atuou a
partir dessas (in)definições, imprimindo uma narrativa sobre a história do Brasil a partir do que
foi selecionado para ser preservado em Ouro Preto, mas não conseguindo ter ingerência sobre
o mercado das artes e antiguidades, tampouco dos objetos de coleções particulares.
56
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória... (op. cit.). p. 134.
57
Id., Ibid. v. também WILLIAMS, Daryle. Sobre patronos, heróis e visitantes. O Museu Histórico Nacional, 1930-1960. Anais do Museu
Histórico Nacional, v. 29, p. 141-186, 1997, e MAGALHÃES, Aline Montenegro. Troféus da guerra perdida: um estudo sobre a escrita
de si de Gustavo Barroso. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2009. Especialmente o capítulo 3 “Tensões e negociações no
governo Vargas”. p. 140-199.
* Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora adjunta do curso de Museologia da Escola de Ciência da
Informação/UFMG, uma das coordenadoras do grupo de pesquisa Observatório de Museu da UFMG.
1
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria do pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.).
Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 21-29.
2
REY, Alain. Lexicographie du patrimoine. In: ROUSSO, Henry (Coord.). Le regard de l´histoire. L´émergence et l´évolucion de la notion
de patrimoine au cours du XXe siècle em France. Actes des Entretiens du patrimoine. Paris: Fayad, 2001. p. 27.
De lugar destinado a guarnecer as coleções metropolitanas – função que coubera à Casa dos
Pássaros –, com o Museu Real o Brasil se tornava ponto de reunião dessas coleções, subvertendo a
lógica de periferia colecionada pelo centro, para se tornar polo colecionador. Dessa maneira, esvaziava-
se o sentido do colecionamento colonial, prática iniciada tardiamente em Portugal com as viagens
filosóficas aos territórios ultramarinos, a partir da década de 1780. Destinadas ao reconhecimento do
vasto reino e à coleta de objetos endereçados particularmente ao Real Museu de História Natural,
ao Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa, e aos gabinetes da Universidade de Coimbra, as viagens
cumpriam, a um só tempo, propósitos científicos e administrativos, promovendo o conhecimento
dos produtos da natureza, assim como de sua utilidade para o comércio e para a indústria.
Embora arrojada, a iniciativa de criação do Museu Real permaneceu por longo período mais
como uma promessa do que uma realização concreta, a exemplo de outros estabelecimentos
3
A respeito das articulações no museu entre imagens e imaginário, ver HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Semiótica e museu. Estudos de
Museologia. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Iphan, 1994. p. 9-10; e FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Cidade: imagem e imaginário.
In: SOUZA, Célia Ferraz de; PESAVENTO, Sandra Jatahy. Imagens urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 1997. p. 194-197.
4
MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. São Paulo: Editora
Senac/São Paulo, 2000. p. 199-238.
5
JOÃO VI, Príncipe Regente e Rei de Portugal, Brasil e Algarves. Decreto de Criação do Museu Real [manuscrito]. Rio de Janeiro,
6/6/1818. [Coleção Arquivo Histórico do Museu Nacional.] Disponível em: <www.minerva.ufrj.br/ imagens/603447.ipg>.
culturais criados por D. João VI no Brasil. Sem recursos financeiros e longe de cumprir o propósito
de propagar o conhecimento, o museu só veio a ganhar projeção décadas mais tarde, a partir dos
anos de 1870, quando foi reestruturado e teve implementado um programa que assegurou seu
ingresso no universo dos museus científicos. De fato, o museu se constituiu lentamente, como
lentamente a nação brasileira foi sendo gestada, no rastro das transformações experimentadas
com a independência. Firmar a autonomia da nação significava também construir uma ideia de
Brasil, ingrediente indispensável ao processo de emancipação. Uma ideia abstrata que ganhava
materialidade nas coleções museológicas representativas dos bens da nação brasileira.
Dois outros museus de história natural, como se sabe, também se destacaram na virada do
século XIX para o século XX: o Paulista, inaugurado em 1894, e o Paraense de História Natural
e Etnografia, mais tarde Paraense Emílio Goeldi, criado em 1866 e reinaugurado em 1891. No
rastro da Guerra do Paraguai, surgiram ainda museus militares, como o do Exército, em 1864; e o
da Marinha, em 1868. Mas a despeito da temática histórico-militar de ambos os museus, foram os
museus de história natural que participaram, nesse momento, mais diretamente da construção da
representatividade da nação.6
Embora surgidos ou reinaugurados já sob o regime republicano, tanto o Paulista quanto o
Paraense eram museus tributários da imagem da nação desenhada no império. Herdavam muito da
visão de que os tesouros do Brasil estavam verdadeiramente em sua natureza tropical. Concorriam,
assim, para firmar a ideia de que natureza equivalia à matéria-prima de uma nacionalidade
imaginada sem as máculas da história e da civilização, sem a memória de fatos ou de personagens.
Inventariando as riquezas da jovem nação, os museus, com suas pretensões enciclopédicas,
colecionavam, exibiam e convertiam em objetos da ciência e da simbologia nacional “a natureza
e os naturais” – esses últimos compreendendo especialmente a população indígena, vista como
elemento integrado à paisagem natural.7
Vale notar que era, sobretudo, o termo riqueza e não exatamente patrimônio que, nesse
momento, designava o legado da nação brasileira. A incidência da ideia de monumento correlata à
de patrimônio, como condutor de valores associados a uma memória, coincide com o momento em
que a sociedade brasileira passou a perceber a si mesma numa perspectiva do tempo, convocando a
6
Sobre a relação dos museus no Brasil com as ciências e o debate da nacionalidade na segunda metade do século XIX, ver: SCHWARCZ,
Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras,
1993. p. 67-98. Sobre os museus militares, ver CHAGAS, Mário. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica em Mário
de Andrade. Chapecó: Argos, 2006. p. 43-44.
7
Sobre a construção da nacionalidade alicerçada na paisagem natural e nos indígenas durante o período imperial, ver: SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Estado sem nação: a criação de uma memória oficial no Brasil do Segundo Reinado In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do estado-
nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 351-391; CARVALHO, José Murilo de. Brasil: nações imaginadas. In: _____. Pontos
e bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p. 233-268.
história como fiadora do seu presente. A ideia de patrimônio emerge, então, como elemento de
presentificação do passado, como uma forma possível, dentre outras, como destaca Guimarães,
de produção de visualização do passado.8
Assim como as noções de monumento e patrimônio sucedem a de riqueza, a história, como
componente da nacionalidade, ingressa tardiamente no horizonte dos museus brasileiros, em
detrimento da imagem da nação como paisagem. Precisamente a criação do Museu Histórico
Nacional (MHN), por ocasião das comemorações do centenário da independência, em 1922,
constituiu em uma iniciativa emblemática na qual se rompeu com a tradição enciclopédica dos
museus brasileiros em favor da consagração do passado da pátria.9
O surgimento do MHN, de fato, fazia eco ao pensamento de uma elite letrada, preocupada
em dotar o país de instituições consagradas à memória patriótica. Para intelectuais da geração de
1870, como José Veríssimo, a inexistência de instituições com esse perfil no país comprometia a
educação da população brasileira, que:
[...] nada encontrou que impressionando os seus sentidos lhe falasse da pátria e a seu modo fosse
também um fator da sua educação. Não há museus, não há monumentos, não há festas nacionais.
O que freqüentou a escola onde lha fizeram conhecer e amar, desadorando a leitura e o estudo, não
procurou fazer-se a si próprio uma educação patriótica.10
A formação de cidadãos aptos a serem incorporados à vida republicana era questão sobre a
qual intelectuais se debruçaram, especialmente nas primeiras décadas após a queda da monarquia.
Não obstante a República ter seguido rumos divergentes de suas expectativas – tendo em vista ter
se delineado sob uma lógica excludente e conservadora – o pensamento republicano permaneceu
fiel aos seus ideais reformistas, desafiado pela questão da construção e da viabilidade de uma nação
mestiça, recém-saída da escravidão.11
Em face das possibilidades de formação de um corpo de cidadãos republicanos, não surpreende
que a visão da pátria como paisagem predominantemente natural, tenha cedido lugar ao esforço de
sua representação como uma comunidade de destino comum. Essa nova perspectiva não somente
8
Sobre o papel do patrimônio de estabelecer a mediação com o passado, ver: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Vendo o passado:
representação e escrita da história. Anais do Museu Paulista, v.5, n.2, jul-dez 2007. p. 17.
9
ABREU, Regina. Memória. Síndrome de museus? MUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIRO/COORDENAÇÃO DE FOLCLORE
E CULTURA POPULAR. Museu em perspectiva. Rio de Janeiro: Funarte, 1996. (Série Encontros e Estudos, 2). p.55.
10
VERÍSSIMO, José. A educação nacional. Porto Alegre: Novas Perspectivas, 1986. p. 47.
DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes literários da República: história e identidade no Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo
11
conferia uma dimensão histórica à nacionalidade, até então circunscrita ao território natural,12
como impunha a tarefa de educar cidadãos compatíveis com uma nação civilizada, animando-lhes
o sentimento patriótico e o desejo de uma vida em comum.
Outra passagem da obra A educação nacional, de José Veríssimo, associa a herança material
ao exercício da recordação de uma memória coletiva:
Os monumentos, os museus, as coleções arqueológicas e históricas, essas construções que os nossos
antepassados com tanta propriedade chamaram memória, são outras tantas maneiras de recordação
do passado, de ensino histórico, portanto, e, em última análise, nacional.13
12
A associação da nação à natureza exuberante é imagem que persiste no tempo, a despeito do imaginário nacional ter se valido de outras
figuras ao longo da vida republicana brasileira. Com relação à sobrevivência até os dias atuais da imagem da nação como natureza, ver:
CARVALHO, José Murilo de. Nação imaginária: memória, mitos e heróis. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do estado-nação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 395-418.
13
Veríssimo, José. Op. cit. p. 101.
14
BARROSO, Gustavo, apud DUMANS, Adolpho. A idéia de criação do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional.
Rio de Janeiro, v. 29, 1997. p. 14-16.
15
BARROSO, Gustavo. O culto da saudade. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 29, 1997. p. 34.
Tradições, recordação, educação patriótica, amor pela nossa história, lições patrióticas legadas
pelo passado: todas essas expressões denotam uma concepção de patrimônio identificado com a
ideia de monumento em sua acepção primeira, ou seja, de vestígio que faz lembrar, que permite
mergulhar no passado e revivê-lo. Ainda que possam existir divergências entre a concepção
museológica de Barroso e aquela apresentada pelo projeto encomendado pelo IHGB, em ambas
o museu aparece como guardião de um patrimônio que é convocado para a tarefa de instituir uma
pedagogia do cidadão, de persuadir e fomentar o sentimento de pertencimento à pátria. E talvez, por
isso mesmo, o patrimônio seja delineado numa perspectiva eminentemente afetiva, que se dirige,
sobretudo, à sensibilidade. Manifestação de uma relação com o tempo que se afigura nostálgica, o
patrimônio é concebido como recurso que alimenta o desejo de volta ao passado.
Outra concepção de patrimônio, no entanto, está sendo gestada, nesse momento, tecida no rastro
da busca de uma cultura brasileira genuína. Destaca-se, como uma das primeiras manifestações
dessa outra perspectiva, os artigos de Mário de Andrade que integram a série A arte religiosa no
Brasil, publicada na Revista do Brasil, sobretudo, aqueles que são resultados de sua primeira viagem
às cidades históricas de Minas Gerais, em 1919. Subjaz nesses escritos uma ideia de patrimônio
balizada pelo conhecimento de história da arte do poeta, e cujo valor reside, principalmente, na
constatação da existência do gênio artístico brasileiro. É o que se vê em sua análise da arquitetura
barroca em Minas:
O Barroco também procede assim, com a circunstância pejorativa de ser nele a própria decoração
que determina o estilo. Ora, na arquitetura religiosa de Minas a orientação barroca – que é o amor
da linha curva, dos elementos contorcidos e inesperados – passa da decoração para o próprio plano
do edifício. Aí os elementos decorativos não residem só na decoração posterior, mas também no
risco e na projeção das fachadas, no perfil das colunas, na forma das naves.
Com esse caráter assume a proporção de um verdadeiro estilo, equiparando-se, sob o ponto de
vista histórico, ao egípcio, ao grego, ao gótico. E é para nós um motivo de orgulho bem fundado
que isso tenha dado no Brasil.17
Projeto n. 1A-1918 apud ELKIN, Noah Charles. 1922: o encontro do efêmero com a permanência; as exposições (inter)nacionais, os
16
museus e as origens do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 29, 1997. p. 127.
17
ANDRADE, Mário. Arte religiosa brasileira. São Paulo: Experimento: Giodarno: Bauer, 1993. p. 80.
18
Sobre a requalificação do conceito de monumento no mundo moderno, cf.: CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Tradução de
Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001.
19
CHOAY, Françoise. Op. cit. p. 141-142.
20
CHOAY, Françoise. Op. cit. p. 126-132.
regime monárquico para o republicano ensejou, de fato, o surgimento de uma nova percepção da
historicidade da nação, de uma consciência da existência de um patrimônio comum, assim como os
primeiros ensaios de construção de conhecimento específico sobre esse legado.
Relatos de viagens e artigos produzidos nesse período sobre cidades e monumentos de
Minas Gerais documentam esse movimento gradativo de construção do valor do patrimônio.
São percepções particularmente desiguais e diversas que sintetizam mudanças substanciais de
sensibilidade que se operaram na sociedade brasileira em um curto intervalo de tempo. Entre o
final do século XIX e a década de 1920 do século seguinte, por exemplo, o barroco e a arte colonial
são reabilitados, saindo do limbo para ganharem um lugar de excelência na simbologia da nação.
Talvez o caso mais emblemático seja Ouro Preto. Em 1891, durante a elaboração da Constituição
do Estado de Minas Gerais, que se seguiu à implantação da República, a mudança da capital,
sediada em Ouro Preto, foi um dos principais temas que ocupou os debates dos congressistas.
Parlamentares adeptos da transferência expressavam um verdadeiro desprezo por Ouro Preto.
Criticavam o traçado urbano irregular, as ruas estreitas adaptadas à “natureza ingrata”, a “topografia
detestável”, assim como o gosto barroco, com seu excesso de ornamentos e edifícios “imperfeitos,
malacabados [sic] e de péssimo gosto”.21 Mudancistas defendiam a todo custo a necessidade de se
desfazer do anacronismo do gosto colonial:
A estética moderna já não admitiria as amaneiradas formas de um Churriguera, cujo estilo barroco,
constrangido e caprichoso se alastrou, durante anos, pela Espanha, por Portugal, no Brasil e,
sobretudo, no Estado de Minas [...] 22
Desdenhada por defensores da mudança da capital, Ouro Preto se tornaria, poucos anos mais
tarde, uma referência para intelectuais que descobriam a arquitetura genuína brasileira, dentre os
quais os adeptos do movimento neocolonial. Em breve, a cidade seria laureada pelo Decreto no
22.928, de 12 de julho de 1933, que a erigiu a Monumento Nacional, o primeiro reconhecido na
esfera federal.
Impressões da obra artística do Santuário de Congonhas também atestam a mudança de
sensibilidade ocorrida no período. Em 1912, o escritor João do Rio, em viagem àquela cidade,
manifestava sua aversão aos profetas esculpidos por Aleijadinho:
Dentro da elipse há um terraço com outras quatro estátuas que representam Jonas, Daniel, Ozéas e
Joel. As estátuas são detestáveis, olhando o povaréu com olhar zangado por cima de um nariz enorme.23
21
CALDEIRA, Aristides Godofredo. Pronunciamento. Anais do Congresso Constituinte do Estado de Minas Gerais. 4 maio 1891. p. 98.
22
CAMARATE, Alfredo. Revista do Arquivo Público Mineiro, 1985. p. 132.
23
RIO. João do. Dias de milagre. In: Os dias passam. Porto, 1912. p. 128.
Poucos anos depois, Mário de Andrade referia-se ao escultor como “único artista brasileiro que
eu considero genial, em toda a eficácia do termo”.24 E sobre Congonhas disse:
Aí levantam-se os doze profetas de pedra, já bastante danificados pela populaça que ocorre
anualmente às festas do Santuário; aí vivem as 74 figuras de madeira, tamanho natural, representando
os passos da Paixão. Congonhas do Campo é o maior museu de escultura que existe no Brasil.25
A visão positiva do legado do passado alimentava e ao mesmo tempo era alimentada por
atitudes em favor da proteção desse patrimônio. Vários gestos, especialmente nos anos de 1920,
são expressivos desse processo: o movimento neocolonial, encabeçado por Ricardo Severo e
José Mariano Filho que estimula os estudos da arquitetura colonial; as viagens, patrocinadas por
José Mariano Filho, de estudantes do Rio a Minas Gerais pela da Sociedade Brasileira de Belas
Artes; as excursões, promovidas pelo professor Alexandre Albuquerque, de alunos da Escola
Politécnica de São Paulo também às cidades coloniais mineiras; a publicação em 1923, por d.
Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, de uma circular aos bispos do Brasil intitulada “A
defesa do Patrimônio Artístico das Igrejas”; conferências e artigos de prestigiosos intelectuais
sobre o tema do patrimônio, e, é claro, a viagem emblemática dos modernistas paulistas a Minas
Gerais em 1924.26
Ressoando a crescente consciência preservacionista, também na década de 1920 foram
elaborados alguns projetos de leis; iniciativas que, no entanto, não obtiveram êxito em sua aprovação.
Em 1920, encarregado pelo prof. Bruno Lobo, presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes,
o prof. Alberto Childe, conservador de antiguidades clássicas do Museu Nacional, elaborou um
projeto de lei de proteção do patrimônio nacional que se limitava aos bens arqueológicos, prevendo
até mesmo desapropriações. No ensejo das comemorações do Centenário da Independência, em
1923, o deputado pernambucano Luiz Cedro apresentou à Câmara de Deputados o projeto de lei de
criação da Inspetoria dos Monumentos Históricos dos Estados Unidos do Brasil, contemplando a
proteção de bens arquitetônicos. Em 1924, um novo projeto de lei, de autoria do deputado mineiro
Augusto de Lima, tinha o objetivo de impedir a evasão de obras de arte do país. No ano seguinte,
em 1925, o Governador de Minas Gerais, Mello Viana, designou uma comissão para tratar da
questão, tendo Jair Lins como relator, o qual elabora um esboço de projeto de lei. Em 1930, José
24
ANDRADE, Mário de. Op. cit. p. 83.
25
ANDRADE, Mário de. Op. cit. p. 86.
26
Sobre as iniciativas de preservação do patrimônio nos anos de 1920, ver: PINHEIRO, Maria Lucia Bressen. A história da arquitetura
brasileira e a preservação do patrimônio cultural. Revista CPC, São Paulo, v.1, n.1. p. 41-74, nov. 2005/abr. 2006; e PINHEIRO, Maria
Lucia Bressen. Neocolonial, modernismo e preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011.
Wanderley de Araújo Pinho, deputado baiano, apresentava novo projeto de proteção ao patrimônio.
Além dessas proposições legislativas, dois estados se anteciparam em relação à esfera federal,
organizando serviços de proteção ao patrimônio nesse período. Em 1927 e 1928 eram criadas,
respectivamente na Bahia e em Pernambuco, inspetorias estaduais de monumentos nacionais. A
primeira, na Bahia, era anexa à Diretoria do Arquivo Público e Museu Nacional, e a de Pernambuco
foi criada juntamente com um museu.
Todas essas iniciativas prepararam o terreno para o surgimento do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937. Não apenas favoreciam a circulação de ideais
sobre o patrimônio entre a elite intelectual e no meio político, como também constituíram uma
espécie de ensaio de práticas preservacionistas. O próprio Rodrigo Melo Franco de Andrade
reconhecia a contribuição dessas primeiras iniciativas, sobretudo, dos textos legislativos, para
criação do SPHAN. Em ofício que encaminhou a proposta de lei de criação do serviço ao Ministro
Capanema, além do anteprojeto elaborado por Mário de Andrade, declarou ter buscado subsídios
também em projetos de lei anteriores, de autoria do mineiro Jair Lins e do baiano Wanderlei Pinho,
e se servido da “legislação estrangeira, sobretudo, a francesa e a mexicana”.27
Se, numa perspectiva histórica, os museus tornaram-se espaços exclusivos de guarda dos bens
representativos da cultura e da natureza, compreendidos como riquezas da nação, à medida que
se delineavam os contornos da noção de monumento, as fronteiras do patrimônio se ampliaram,
alcançando horizontes para além das coleções tradicionalmente protegidas pelas instituições
museológicas.28 A despeito disso, no entanto, pode-se dizer que até a criação do SPHAN os
museus figuraram como instâncias reconhecidamente de convergência do pensamento e das
práticas preservacionistas. Nota-se, por exemplo, que as iniciativas legais da década de 1920,
além de preverem a criação de museus, delegavam às instituições museológicas a incumbência de
implementar as medidas de preservação do patrimônio, inclusive de bens arquitetônicos.29
Com esses precedentes, parece compreensível, portanto, que a Inspetoria dos Monumentos
Nacionais tenha sido criada no interior do Museu Histórico Nacional, pelo regulamento daquela
instituição, aprovado em 1934. Até 1937, quando foi extinta, a inspetoria funcionou sob o amparo
do MHN, sendo administrada pelo próprio diretor do Museu, Gustavo Barroso.
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. Brasil: monumentos históricos e arqueológicos. México: Instituto Panamericano de Geografia e
27
História; Instituto Nacional de Antropologia e Historia de México, 1952. (Monumentos Históricos e Arqueológicos III). p. 55-56.
28
Da proposta de proteção centrada nos bens arqueológicos, formulada por Alberto Childe, à preservação dos bens móveis e imóveis do
projeto do Deputado José Wanderley de Araújo Pinho, fica evidente esse processo de delineamento do patrimônio a ser salvaguardado. Ver os
textos dos projetos em anexos de: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil:
uma trajetória. Brasília: MEC/SPHAN, Fundação Pró-Memória, 1980.
Ver em particular o projeto de lei formulado por Jair Silva e a lei de criação da Inspetoria dos Monumentos Nacionais de Pernambuco em:
29
30
A respeito da atuação desse órgão e os pressupostos que guiaram as restaurações em Ouro Preto, ver: MAGALHÃES, Aline Montenegro.
Entre o museu e a cidade: um estudo sobre a Inspetoria dos Monumentos Nacionais (1934-1937). In: I ENCONTRO NACIONAL DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO. Rio de Janeiro, 29 de novembro
a 03 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.anparq.org.br/dvd-enanparq/simposios/59/59-748-1-SP.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2011.
31
Idem. p. 19.
32
Palestra proferida na Escola Nacional de Engenharia, em 27 de setembro de 1939 e publicada na Revista Municipal de Engenharia, v. VI,
n. 5, set. 1939. ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. Rodrigo e o SPHAN. Terezinha Marinho (Org.). Rio de Janeiro: Ministério da Cultura:
Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. p. 54.
33
CULTURA/MEC. ano 2, n. 7, janeiro 1968. ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. Rodrigo e o SPHAN. Terezinha Marinho (Org.). Rio
de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Nacional Pró-Memória, 1987. p. 72.
34
A respeito do recorte arquitetônico do patrimônio e a noção de civilização brasileira, ver: JULIÃO, Letícia. Enredos museais e intrigas da
nacionalidade: museus e identidade nacional no Brasil [manuscrito]. Tese (Doutorado). Belo Horizonte: UFMG/ FAFICH/Departamento
de História, 2008.
Dos apontamentos feitos até aqui, mais que conclusões, despontam questões que merecem
estudos futuros. Ao longo das décadas que se seguiram à criação do Serviço do Patrimônio, os
museus brasileiros obviamente desenvolveram diferentes plataformas museológicas e serviram a
diferentes propósitos para além dos modelos conformados pelo MHN ou pelos museus SPHAN.
Mas, ainda que tenham demonstrado grande capacidade de se reinventarem, vale refletir em que
medida os museus tiveram suas potencialidades de alguma forma tolhidas por terem sido mantidos
em uma posição marginal no processo de proteção do patrimônio. Merece também indagar até
que ponto o SPHAN, sempre cioso de sua tarefa de construção de uma consciência e de um
conhecimento do patrimônio e determinado a romper com a tradição preservacionista inaugurada
pela Inspetoria de Monumentos Nacionais, no seio do MHN, não teria criado um fosso entre o
campo museal e o patrimonial.
De outra parte, convém assinalar que pensar nos primórdios da preservação do patrimônio
requer, antes de tudo, construir a história da ideia de patrimônio no Brasil. Isso implica voltar-
se para experiências muito anteriores à criação do SPHAN que institucionaliza uma política
preservacionista no país, nos anos de 1930, remontando, inclusive, às práticas colecionistas mais
remotas e ao surgimento de museus. É uma história que deve estar atenta também ao uso do
próprio termo patrimônio, antes mesmo do momento em que se tornou corrente e adquiriu o seu
significado contemporâneo. Conceber o patrimônio como uma categoria de pensamento significa
compreendê-lo como importante indicador da forma como a sociedade brasileira construiu a ideia
de sua existência, materializada na existência de um legado comum.
* Professora Adjunta do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Pesquisadora do Núcleo de Documentação, História e Memória da Unirio. Doutora em História Social pela Universidade
Federal Fluminense. Realiza pesquisas sobre Preservação do Patrimônio Cultural e Turismo em Sítios Urbanos preservados. Atuou
como pesquisadora em projetos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e como Consultora da Unesco/ Recém-
doutora para o Programa de Especialização em Patrimônio do Iphan. E-mail: [email protected].
1
Optamos por chamar de Iphan a agência federal de preservação, criada como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN) em 1937. Em 2 de janeiro de 1946, o Decreto-lei 8534 transformou o SPHAN em diretoria. A agência responsável pelo patrimônio
histórico e artístico brasileiro passou então a chamar-se DPHAN. Em 27 de julho de 1970, o Decreto no 66.967 transformou a DPHAN em
Instituto – Iphan. Em 26 de novembro de 1979, o Congresso Nacional aprovou a Lei no 6.757, criando a Fundação Nacional Pró-Memória,
que se tornou um órgão operacional do Iphan. Um resumo cronológico com as principais transformações sofridas por essa agência pode ser
encontrado na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 22, 1987. p. 34.
Uma década atrás, no ano de 1923, inicava-se a organização da atividades turísticas no Brasil com
a criação da Sociedade Brasileira de Turismo, associação empresarial voltada para o desenvolvimento
do setor, e que três anos mais tarde, através de parcerias com agências internacionais, daria origem
ao Touring Club do Brasil, voltado ao estímulo ao turismo rodoviário. Outros indícios da crescente
importância do setor foi a fundação da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, dez anos depois
e a organização, em 1953, da Associação Brasileira de Agentes de Viagens.
Após o Decreto no 23.103, de 19 de agosto de 1933, que viabilizou a concessão de férias aos
trabalhadores urbanos e de medidas de incentivos às viagens como a abertura de colônias de férias
com hospedagens a baixo custo, o ato de viajar de férias com a família e hospedar-se em pousadas
e hotéis tornou-se, aos poucos, um novo hábito. Tal atividade, no entanto, restringia-se a alguns
poucos balneários atendidos por serviços de transportes coletivos, uma vez que a grande indústria
automobilística e as políticas de construção das grandes rodovias nacionais ainda não dominavam o
cenário nacional. O estímulo ao pequeno turismo rodoviário vinha, principalmente, de organizações
como o Touring Club do Brasil que coordenava periodicamente viagens automobilísticas a destinos
ainda pouco conhecidos.
A criação do Iphan em 1937 centralizou e deu novo impulso às atividades de preservação do
patrimônio cultural. As ações de salvaguarda implementadas durante a gestão de Rodrigo Mello
Franco de Andrade (1937 a 1967) são analisadas por autores como Maria Cecília Londres e Márcia
Chuva2 como fundamentais para a estruturação de uma política pública federal de patrimônio no
Brasil. Nesse momento, os sítios urbanos patrimonializados, em geral, ainda possuíam acesso
precários e, apesar de já contarem com a proteção da agência federal, ainda não faziam parte dos
circuitos turísticos brasileiros.
Buscando compreender algumas das visões sobre a atividade turística, gestadas no interior do
Iphan durante as três primeiras décadas de sua atuação, nossa análise concentrou-se na cidade de
Ouro Preto, um dos maiores símbolos das políticas públicas de preservação que ocorreram ao longo
de mais de 70 anos no Brasil. Até o tombamento de seu conjunto urbano em 1938 não havia um
projeto turístico organizado nessa cidade. As primeiras menções legais a tentativas de organização do
turismo no Estado de Minas Gerais referiam-se ao turismo de estâncias hidrominerais, diretamente
relacionado a partir da década de 1930 com a construção de grandes hotéis com cassinos, até a
proibição dessa atividade no ano de 1946.
2
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil
(anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009; Cecília Londres. O patrimônio em processo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.
3
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos: Mário de Andrade e a concepção de Inventário. São Paulo, 2002.
Tese. (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2002. p. 45.
4
Ibidem. p. 74.
5
Cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Ouro Preto entre antigos e modernos: a disputa em torno do patrimônio histórico e artístico
nacional durante as décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, vol. 33, p. 189-208, 2003.
6
OURO PRETO. Decreto 13, de 19 de setembro de 1931. Apud ANDRIOLLO, Arley. Ouro Preto, 1897-1973 a construção de uma cidade
turística. São Paulo, 1999. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Pós-graduação em Estruturas Ambientais
Urbanas. São Paulo: USP, 1999.
Apenas três meses antes da elevação de Ouro Preto a monumento nacional em julho de 1933,
o Touring Club organizou uma excursão de trem à cidade, partindo da Central do Brasil, por
ocasião da Semana Santa, o que se repetiu nos anos seguintes.7
Embora as políticas preservacionistas na cidade não tenham tido como impulso inicial o
desenvolvimento turístico, mas sim a preservação de determinadas tradições ora associadas à nação
ora classificadas como mineiras, o potencial turístico dos antigos conjuntos urbanos não passava
despercebido para os que tiveram atuação nas práticas de salvaguarda do patrimônio brasileiro.
O turismo em antigas cidades europeias, ruínas, museus e outras instituições do gênero naquele
momento servia de estímulo a tal reflexão e práticas como a criação de museus em conjuntos
urbanos patrimonializados, casos do Museu das Missões em Santo Ângelo em 1940, do Museu
do Ouro em Sabará em 1945, do Museu do Diamante em Diamantina em 1954 e do Museu da
Inconfidência em Ouro Preto em 1938.
Após a criação do Iphan e o tombamento de Ouro Preto, em 1938, sucessivas obras de
restauração dos bens imóveis dessa cidade foram executadas por essa instituição que, além de
conservar – ou em alguns casos criar – a unidade estilística colonial em suas construções, buscava
projetá-la nacionalmente.
Cabe destacar nesse mesmo ano o envolvimento de funcionários da instituição na construção
de um hotel em Ouro Preto, com o objetivo de incentivar o turismo na região, já que as pensões e
os hotéis da cidade dispunham de apenas 82 leitos, segundo dados da arrecadação da cidade. Lúcio
Costa,8 chefe da Divisão de Estudos e Tombamentos entre 1937 e 1972, defendia que a construção de
um “hotel moderno” tornaria ainda mais viva a “sensação de passado” vivenciada por seus visitantes.
Esses não deveriam ser enganados com uma “imitação perfeita”, referindo-se aqui ao projeto de hotel
neocolonial de autoria de Carlos Leão, que deixou de ser realizado em detrimento do projeto de Oscar
Niemeyer.9 O olhar do turista já era uma preocupação crescente entre os gestores do patrimônio.
Conforme podemos observar em correspondências do Iphan, o envolvimento dessa instituição com
esse hotel não ficou restrito à sua construção. Uma década após sua construção, o então administrador
do grande Hotel pedia a Sylvio de Vasconcellos (então Chefe do 3o Distrito do Iphan) uma “costumeira
interferência junto às autoridades competentes para obtermos o abastecimento de água, sem a qual
seremos forçados a fechar o hotel por não termos outro meio de atender aos serviços principais.”10
7
O Estado de São Paulo, 13/04/1933 apud. ANDRIOLO, A. Op. cit. p. 83.
8
MOTTA, Lia. O SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. n.
22, 1987. (1987).
9
CARTA de Lúcio Costa endereçada a Rodrigo Mello Franco de Andrade sobre o Grande Hotel de 1939. Arquivo Noronha Santos. Inventário
Grande Hotel (Ouro Preto). Caixa 248. Pasta 696. Ibidem.
10
TELEGRAMA de Manuel Rias (administrador do Grande Hotel) a Sylvio de Vasconcelos. Nov. 1948. Arquivo da 13a Superintendência do Iphan.
11
BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967.
12
Ibidem.
13
MOTTA, Lia. A SPHAN em Ouro Preto: uma história de conceitos e critérios. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio
de Janeiro, n.22, 1987, p.108-122.
14
Entre estas, encontramos a crônica de Rachel de Queiroz no Jornal do Brasil em 01/05/1946 e a de Vinícius de Moraes no jornal Última
Hora em 28/04/1952.
15
Relatório de Planos de Obras de Ouro Preto, 1955. mimeo. Arquivo 13a Superintendência do Iphan.
Considerações finais
Nos últimos anos da década de 1960 a expansão mundial do turismo gerou grandes reflexos
para o campo da preservação. Naquele momento, muitos dos intelectuais presentes no interior
das agências de salvaguarda e mesmo nas recém-criadas agências de promoção do turismo
passaram a defender sistematicamente a ideia de que o desenvolvimento turístico nos conjuntos
urbanos seria a principal alternativa capaz de gerar os recursos necessários para a manutenção
e conservação dos bens móveis, imóveis e conjuntos urbanos que integravam os patrimônios
culturais nacionais. Tal argumento fortaleceu-se principalmente em países como o Brasil, nos
quais os financiamentos estatais mostravam-se insuficientes para a manutenção da integralidade
do patrimônio cultural nacional.
O desenvolvimento de projetos turísticos em sítios urbanos preservados foi incentivado com a
solicitação da vinda das missões da Unesco a partir do ano de 1966, as quais tinham como principal
objetivo avaliar o potencial turístico de cidades brasileiras que já contavam com sítios históricos
tombados, como Ouro Preto, São Luís, Alcântara, Paraty e Salvador.20
A alternativa do “turismo cultural” aparecia como solução para os problemas relativos à
preservação do patrimônio cultural brasileiro, conforme relatório da Unesco.21 A conservação
dos bens culturais brasileiros, até então subsidiada pelo governo, deveria, de acordo com
essa influente agência internacional, integrar os projetos de desenvolvimento nacional,22 e,
dentre eles, o turismo, com altos índices de crescimento anuais, destacava-se como um setor
extremamente promissor. Mesmo com uma breve advertência de que o turismo de massa
poderia contribuir para a degradação dos bens culturais brasileiros,23 o sedutor argumento
de que essa atividade poderia financiar as urgentes obras de restauração dos bens imóveis e
conjuntos urbanos patrimônio culturais nacionais, captando recursos da iniciativa privada e não
somente do Estado, foi amplamente utilizado ao longo das 128 páginas do relatório da Unesco
de 1968, segundo o qual essa era uma tendência entre os países europeus mais desenvolvidos.
Nesse novo contexto, os bens deveriam ser preservados também por serem atrativos turísticos
e, consequentemente, capacitavam-se novos agentes sociais aptos a defini-los, geri-los e
desenvolver novas formas de salvaguarda.
20
Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília, MEC-Iphan Pró-Memória, 1980. p. 32-33.
21
Unesco. Protection et mise em valeur du patrimoine culturel brésilien dans le cadre du développement par M. Parent. Paris: mars,
1968. mimeo.
22
Ibidem. p. 1.
23
Unesco. Protection et mise em valeur du patrimoine culturel brésilien dans le cadre du développement par M. Parent. Op. cit.
Eric Hobsbawm1
Na epígrafe, uma homenagem ao grande historiador do século XX, Eric Hobsbawm, falecido
em 1º de outubro de 2012. Tenho me dedicado a refletir, em diferentes contextos, sobre o ofício do
historiador no campo do patrimônio e, ainda que não trate diretamente desse assunto neste artigo,
ele estará presente de várias formas. Qual é o papel social, hoje, do historiador, do antropólogo, do
museólogo que atua no campo do patrimônio? Alertada por Hobsbawm, espero dar algumas pistas
para possíveis respostas a essa pergunta.
* Graduada em História, com doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (1998), é professora adjunta do Departamento
de História da Unirio desde 2009. Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Unirio. Foi pesquisadora do Iphan de 1985
a 2009, onde trabalhou com estudos de tombamento, inventários de sítios urbanos e de patrimônio imaterial. Suas pesquisas tratam das
políticas de preservação do patrimônio cultural, das relações entre intelectuais e estado no campo da cultura e dos debates contemporâneos
acerca da repatriação de bens culturais. Dentre suas publicações, destaca-se o livro Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas
de preservação do patrimônio cultural no Brasil (UFRJ, 2009).
1
HOBSBAWM, Eric. Etnia e nacionalismo na Europa de hoje. In: BALAKRISHNAN, Gopal. (Org.) Um mapa da questão nacional. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 271.
nacional, uma identidade nacional, um patrimônio nacional – e também instituir a diferença entre
os nacionais. É de 1913 a legislação francesa de patrimônio cultural para proteger aquilo que, ao
longo do século XIX, foi forjado como a nação francesa. Ao mesmo tempo, a França – por meio
do Estado e de grandes empresários – apresentava o Outro para os franceses: nesse momento, o
Outro estava fora do nacional. Processo civilizatório europeu que se impõe sobre Ásia, África
e América Latina, as fantásticas exposições universais ocorreram em diversos lugares, desde
fins do século XIX até pelo menos a década de 1930. As grandes exposições universais, que
materializavam os signos dos novos tempos, foram também associadas a comemorações de
fatos relevantes da história moderna dos países anfitriões. Elas tornavam-se campos de disputas
pacíficas na concorrência internacional.
Em novembro de 2011, cerca de um século depois, foi inaugurada no Museu do Quai Branly,
em Paris, a exposição “A invenção do selvagem”.2 Também em Paris aparecem retratadas inúmeras
exposições desse tipo. O texto de apresentação da exposição dizia:
À partir du 15e siecle et avec le grandes exploration, lês Europennes vont être peu à peu confrontes
a l’Autre ‹‹exotiques››, un regarde oú se mêle curiosité, étrangeté et anilamité. [...] Quelques soit
l’Autre, l’effect reste le même: um sentiment de curiosité face a ces indivudus étranges, si différents,
si exotiques. Le exhibition n’est pás encore un genre. Nous sommes au temps des prémices.3
Num primeiro plano, o Outro nessa exposição era o selvagem retratado de inúmeras formas,
algumas bastante grotescas. Observando mais detidamente, contudo, suponho que o Outro ali
retratado são os próprios franceses, falando de si mesmos. Nessa perspectiva, o que está sendo
exibido nessa exposição é o comportamento dos franceses, a forma como os franceses olharam
para esses mundos descobertos. Seria esse um processo complexo de reconstrução de identidades?
O exercício de estranharem-se a si mesmos deve fazer parte dessa reconstrução, provocando
surpresas, colocando-se frente a frente com seu passado, tão presente ao ser exposto: “Como
éramos bárbaros!”
Sem dúvida, o pensamento racista e preconceituoso das primeiras décadas do século XX
tornou-se marginal na atualidade. Contudo, é possível identificar traços desse pensamento
ainda hoje em diversos espaços culturais. Se analisarmos nossas práticas de preservação
cultural em uma perspectiva da História ou da Antropologia do colonialismo, deveríamos nos
perguntar, ao visitar muitos de nossos museus, se estamos hoje tão distantes daquele francês
retratado na exposição.
2
L’Invention du Sauvage: Exhibitions. Exposition 29/11/11-03/06/2012. Essa não seria a primeira exposição com a mesma finalidade
inaugurada em Paris. O destaque aqui se deve muito mais à persistência e atualidade do tema do que por sua originalidade.
3
Citação extraída do painel de abertura da exposição.
A pujança da temática patrimonial e das identidades, pelo menos desde os anos 2000,
evidencia que os estados nacionais ainda são o centro de uma ordem mundial estabelecida
e dominante, tendo em vista que ainda são eles os principais formuladores das políticas de
patrimônio. Mas é fato que tais políticas têm se voltado para a temática das identidades
plurais remetidas à questão nacional e têm apresentado novos desafios. O foco sobre a escolha
daquilo que deve compor o acervo dos museus tem sido deslocado para uma reflexão sobre
os novos atores com legitimidade para atribuir valor, diante do excesso de memórias em
busca de reconhecimento. Em determinadas situações concretas em museus etnográficos,4
esses atores tem sido capazes de reivindicar como seu um patrimônio que compõe os acervos
desses museus, mas é exposto, em geral, de modo desconectado com o presente, como peças
de um passado esquecido. Essas são novas formas de lidar com acervos constituídos em
contexto colonial; são estratégias que restabelecem vínculos entre esses acervos e grupos
sociais da atualidade.
É partindo dessa reflexão sobre as relações entre entidades nacionais e grupos obscurecidos no
interior delas que gostaria de pontuar alguns aspectos relacionados a valores de patrimônio em jogo
nas práticas museológicas de acervos de bens relacionados a grupos tradicionais ou não ocidentais.
Para dar sequência a essas reflexões, vamos considerar, como uma nova perspectiva, a existência
de vínculos entre objetos que constituem coleções e as coletividades herdeiras de tradições que, por
meio delas, continuam vivas e que tem relações com tais objetos.
A preservação do patrimônio cultural, desde suas origens no século XIX, constituiu-se
como essencial para que fossem consagradas identidades que confirmaram as fronteiras
nacionais, como vimos anteriormente. Contudo, com o avanço dos processos de descolonização,
em algumas situações, aquilo que era apresentado e experimentado como herança nacional para
cidadãos de uma entidade política poderia, da mesma forma, representar um “patrimônio no
exílio” para os de outra entidade.
Por isso mesmo, as práticas de patrimonialização e musealização que constituíram identidades
nacionais dominantes podem, hoje, instrumentalizar grupos de identidade, deslocando-os da
invisibilidade e das margens de exclusão para integrá-los nas redes sociais, como estratégias de
inclusão social e afirmação de identidades. Tais grupos podem ser nações soterradas no interior de
estados nacionais, como grupos étnicos, nações indígenas e comunidades de imigrantes, contidas
em territórios nacionais.
4
Cf.: CLIFFORD, James. Museologia e contra-história: viagens pela costa noroeste dos Estados Unidos. In: ABREU, Regina; CHAGAS,
Mário. (Orgs.) Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
Em países cuja independência foi conquistada mais recentemente, como o caso de Angola,5 essa
questão se torna mais complexa. Parte das coleções que compõem o acervo do Museu Nacional de
Antropologia de Luanda6 foi reunida a partir das expedições portuguesas ao interior do território
colonial, realizadas desde fins do século XIX e início do século XX, momento da expansão colonialista
em que Portugal pretendia unir Angola a Moçambique.7 Esse passado, materializado nas expressivas
coleções do museu, nacionalizadas com a independência, é exposto de modo estetizado ou pelo
seu valor histórico relacionado a um dos dezoito grupos étnicos reconhecidos pela Constituição
de Angola como constituintes da nação. Tais peças são assim apresentadas como vestígios de um
passado esquecido,8 especialmente em função do desconhecimento acerca do trajeto dessas peças e
da história de constituição dessas coleções. Como enxergar essas peças sem colocar em evidência
as controvérsias, os limites e as ambiguidades que podem envolver a constituição dessas coleções?
Seriam as peças do Museu de Luanda passíveis de repatriação na atualidade, para os herdeiros dos
grupos nativos de onde foram retiradas? Seria possível a identificação dos legítimos herdeiros dessas
peças? Seria possível que grupos tradicionais do território angolano reivindicassem peças como
suas, identificando-as com seus familiares? Quais os sujeitos da atribuição de valor e que valores
foram, são e/ou serão atribuídos a essas peças no museu? O conhecimento desses processos levaria a
uma aproximação em relação a esse passado, vindo a se tornar, possivelmente, um passado sensível.
O antropólogo estadunidense James Clifford, também preocupado com o fato de os objetos
não ocidentais expostos em museus etnográficos se referirem a uma tradição que continua viva,
perguntava por que determinados objetos desse tipo acabam ficando nos museus de Belas Artes,
graças a uma valorização estética, e outros, nas coleções de Antropologia, aos quais o valor
atribuído foi o histórico.
Para ele, em ambos os casos – priorizando-se quer o valor estético quer o valor histórico – os
resultados são incompletos, pois apresentar um objeto como arte é subestimar seu valor, papel
5
A independência de Angola foi conquistada em 1975, quando as forças armadas portuguesas que ainda permaneciam no território
regressaram a Portugal. O país recém-criado mergulhou logo em seguida em uma guerra civil que perdurou por décadas, encerrando-
se somente em 2003. Sobre o processo de independência angolano, v. BITTENCOURT, Marcelo. Dos jornais às armas: trajectórias da
contestação angolana. 1. ed. Lisboa: Vega, 1999.
6
Em 2006 e 2009, tive a oportunidade de participar, como representante do Iphan, da Missão de Cooperação Internacional Brasil-Angola,
visando o fortalecimento da gestão do patrimônio cultural de Angola, organizada pelo Ministério da Cultura. Ao visitar o Museu Nacional de
Antropologia de Luanda, fiquei impressionada com a riqueza do seu acervo etnográfico. Uma série de questões passou a me ocupar e fiquei
me perguntando como jamais havia imaginado aquela realidade.
7
Cf.: SOAREA, Mariza; LIMA, Rachel Corrêa. A africana do Museu Nacional: história e museologia. Agostini, Camila. (Org.) Da
escravidão – abordagens da cultura material da escravidão e seu legado. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
8
A exposição do Museu Nacional de Antropologia de Luanda, que visitamos em 2006, apresentava um enquadramento abstrato dessas
peças, que eram remetidas a grupos étnicos que parecem distantes no tempo e no espaço, vinculados a um passado remoto e inatingível.
ou função para um grupo em uma história local e dissolver as relações familiares que podem
estar nele contidas.9 Do mesmo modo, colocar tais objetos em uma narrativa sintética da História
confere a eles as características da história da maioria, completa, acabada, sem oposição.10 Para
superar esse impasse,11 Clifford sugere que se invista em uma investigação histórica que leve a
conhecer o percurso dos objetos a ponto de alcançar a sua individualidade – a quem pertenceram,
em que cerimônia foram utilizados etc. Obviamente, não se trata de tarefa fácil, tendo em vista
a grandeza das vastas coleções etnográficas e antropológicas dos museus construídos dentro da
lógica colonial. Contudo, trata-se de um movimento ainda não dominante, que tem conquistado
pesquisadores e instituições.
Nessa mesma perspectiva, o antropólogo João Pacheco de Oliveira aposta na mudança de
paradigmas como único caminho para que uma nova prática museológica se instaure.12 Essa
mudança requer dos pesquisadores – historiadores, antropólogos e museólogos – o exercício de
uma historicização radical e profunda, que reconstitui os jogos de força e as lutas por classificações
para compreensão de cada uma dessas peças que compõem os acervos dos museus etnográficos,
escapando assim do enquadramento desse material museológico como peças do passado, para
sempre rompidas com o presente, distantes no tempo e no espaço. Para Oliveira, um processo
investigativo dessa dimensão quer desvendar as muitas histórias esquecidas e silenciadas, bem
como explicitar a individualidade dos personagens e a multiplicidade de suas orientações.
Estaria aí uma pista para o novo papel do Estado?
A historicização radical proposta por Oliveira deve combinar etnografia (com os grupos
relacionados aos objetos) e pesquisa histórica sobre a vida desses objetos, e pode ultrapassar o
limitado valor estético atribuído a eles e “promover o resgate da polifonia, dando voz aos membros
dessas coletividades, que em geral são apenas observadas pelo público e traduzidas pelos etnólogos”.13
Como vimos, avançar por esses novos caminhos exige rupturas teóricas, mudanças de
paradigmas e novas posturas políticas, como rota para uma nova prática museológica. Para James
Clifford e João Pacheco de Oliveira, os museus têm um lugar central nessa nova perspectiva,
9
CLIFFORD, James. Museologia e contra-história: viagens pela costa noroeste dos Estados Unidos. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário.
(Orgs.) Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 288.
10
Id. Ibid. p. 270.
11
Conforme apontado por Clifford: “o tratamento de artefatos como obra de arte é uma das maneiras correntes, das mais eficazes, para fazer
passar de uma cultura a outra um sentimento de qualidade, de significado, de importância” (p. 270). E, ainda segundo o autor, não podemos
esquecer que “[...] a instituição de uma arte tribal é, atualmente, uma importante fonte de poder indígena e de renda” (p. 270 – nota 10).
12
OLIVEIRA, João Pacheco de. O retrato de um menino Bororo: narrativas sobre o destino dos índios e o horizonte político dos museus,
séculos XIX e XXI. Revista Tempo, n.23/2007.
13
Id. Ibid. p. 97.
junto aos grupos que sofreram processos de desculturação violenta, ações contra seus valores,
suas tecnologias e seus conhecimentos, podendo se tornar um grande aliado. Isso seria possível
não somente porque os museus detêm a posse desses acervos, mas, principalmente, porque detêm
algo ainda mais valioso: legitimidade para oferecer novas narrativas, autoridade de fala e, com ela,
poder de superar a invisibilidade e o preconceito com que tais coletividades são tratadas em outros
contextos sociais e políticos em que estão inseridas e são obrigadas a conviver.
Refletindo sobre essas relações coloniais e os valores de patrimônio postos em cena a partir
das opções museológicas e museográficas que se expressam nas exposições dos museus, vamos
analisar brevemente um caso singular da trajetória da preservação do patrimônio no Brasil, que foi
consagrado e reconhecido pelo Museu das Missões.
O olhar estetizante que configurou as práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil,
com o predomínio de um valor estético-estilístico representado pelo barroco colonial, também
orientou certa política museológica que se esboçou dentro do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – SPHAN, nos anos 1930 e 1940, de criação de museus monográficos.14 Essa
política se apresentava, naquele contexto, como alternativa às grandes exposições dos museus
nacionais, por se propor a lançar um olhar sobre um cotidiano não visitado nos grandes museus como
o Museu Histórico Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes ou o Museu Nacional da Quinta da
Boa Vista. São exemplos de museus criados com o novo perfil, o Museu da Inconfidência de Ouro
Preto e o Museu do Ouro de Sabará,15 com o aproveitamento de prédios coloniais, cuja história tinha
vinculação com a temática definida para o museu. No primeiro caso, a sede se instalou na antiga Casa
de Câmara e Cadeia de Ouro Preto, edifício doado à União pelo Estado de Minas Gerais. Quanto ao
Museu do Ouro, foi instalado na antiga Casa da Intendência do Ouro, onde foram reunidos objetos
da cata, pesagem e quintagem do ouro e peças miniaturas reproduzindo antigos processos extrativos.
Segundo Letícia Julião,16 menos ambiciosos que os grandes museus nacionais, os chamados museus
regionais operaram uma virada silenciosa na cultura museológica até então instituída.
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural (1930-1940). Rio de Janeiro:
14
UFRJ, 2009.
15
Respectivamente, pelo Decreto-lei nº 965, de 1938, e pelo Decreto-lei nº 748, de 1945. In: BRASIL. Legislação Brasileira de proteção aos
bens culturais. Rio de Janeiro: MEC/DPHAN, 1967.
16
JULIÃO, Letícia. O SPHAN e a cultura museológica no Brasil. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 22, nº 43, janeiro-junho de
2009, p. 141-161.
O museu que deu origem a essa linha de ação institucional foi o Museu das Missões em São
Miguel, no Rio Grande do Sul. O arquiteto Lucio Costa,17 a pedido do diretor do SPHAN, Rodrigo
Melo Franco de Andrade, viajou para São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, a fim de
averiguar o estado que estavam as ruínas das antigas missões jesuíticas. Ao retornar, o arquiteto
propôs, além dos trabalhos de contenção e recuperação arquitetônicas, a constituição de um pequeno
museu, para “dar ao visitante uma impressão tanto quanto possível aproximada do que foram as
Missões.”18 A museóloga Lígia Martins Costa, que trabalhou no Iphan desde os anos 1950, lado
a lado com Lucio Costa ao longo de décadas, afirmou que, para Rodrigo M. F. de Andrade, tais
recomendações haviam sido decisivas, vindo o museu a se tornar um “padrão ideal para os museus
regionais monográficos que [o SPHAN] iria organizar”.19
O Museu das Missões20 foi instalado em uma construção projetada para esse fim por Lucio
Costa, reconstituindo uma das seções dos antigos alpendrados que formavam a Praça do Povo de
São Miguel. A obra foi executada pelo SPHAN, dirigida pelo arquiteto Lucas Meyerhofer. Seu
acervo foi constituído basicamente de artefatos dos jesuítas nas Missões e de peças produzidas
pelos indígenas reduzidos, encontrados na região.
Quantas perguntas podem surgir ao imaginarmos um museu das Missões Jesuíticas no sul do
Brasil? Deveria ser lembrada ou esquecida a chamada “guerra guaranítica”, 21 que levou à dizimação
de cerca de 1500 índios guaranis reduzidos nas missões, que resistiram às mudanças impostas pelo
Tratado de Madri, em relação às terras por eles ocupadas, ocorrida em meados do século XVIII?
17
O arquiteto modernista Lucio Costa foi funcionário do SPHAN desde essa missão, permanecendo no órgão até o final dos anos 1970,
quando se aposentou.
18
Relatório de Lucio Costa, datado de 20/12/1937, a respeito de sua viagem à região dos Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul,
primeiro trabalho realizado pelo arquiteto para o SPHAN, por solicitação de Rodrigo M. F. de Andrade (Reproduzido em Pessôa, 1999).
19
COSTA, Lygia Martins. O pensamento de Rodrigo na criação dos museus do SPHAN. Ideólogos do patrimônio. Rio de Janeiro: IBPC,
1991. p. 121.
20
Criado em 1940, pelo Decreto-lei nº 2077, com a finalidade de reunir e conservar as obras de arte ou de valor histórico relacionadas com os
Sete Povos das Missões Orientais. In: BRASIL. Legislação Brasileira de Proteção aos Bens Culturais. Rio de Janeiro: MEC/DPHAN, 1967.
O tombamento das ruínas da Igreja de São Miguel, em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, data de 1938 (Processo 141-T-38 – Arquivo
Central do Iphan). Em 05/12/83, as ruínas foram inscritas na Lista do Patrimônio Mundial Cultural e Natural da Unesco.
21
Sobre os índios guaranis v. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os guarani: índios do sul – religião, resistência e adaptação. Estudos
avançados, v. 4, n. 10, 1990, p. 53-90. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v4n10/v4n10a04.pdf>. Acesso em: 16 fev. 2013.
A guerra guaranítica foi um violento confronto entre índios guaranis e soldados portugueses e espanhóis ocorrido no sul do Brasil em meados
do século XVIII após a assinatura do Tratado de Madri entre Portugal e Espanha sobre os limites coloniais fronteiriços na América do Sul.
A luta começou quando os indígenas foram obrigados a abandonar suas terras e seguir para o outro lado do rio Uruguai. Os índios tiveram
apoio de jesuítas, o que reforçou o desgaste que a Companhia de Jesus sofria frente a Portugal, que temia a imensa autonomia da Companhia
em terras sob seu governo. Em 1759, a Companhia de Jesus foi expulsa de Portugal e suas colônias, tendo os jesuítas se retirado da região
das Missões, dilacerada pela guerra, com a morte de cerca de 1500 índios.
Nos anos 1930, a obra jesuítica no Brasil foi protegida como patrimônio histórico e artístico
da nação, reconhecida como um dos pilares da nacionalidade.22 Pode-se pensar esse evento, como
tratou Benedict Anderson,23 como “antigos fratricídios”, guerras ocorridas em tempos remotos e
que precisam ser lembradas para dar profundidade histórica à nação. Insanidade destruidora com
a qual a nação seria obrigada a conviver – antigos fatos seriam relembrados como uma história
própria e familiar, como “reafirmação do fratricídio”. Mas o que se vê expresso no museu não é a
história dos indígenas reduzidos e depois dizimados com a guerra, portanto a guerra e a dizimação
dos índios tampouco podem ser lembradas como algo a ser superado.
Do que, propriamente, fala o Museu das Missões?
Para Lucio Costa, era necessária a recuperação da “ambiência”, com a consolidação das ruínas
de São Miguel. A construção de um museu teria uma função educativa:
Aliás, para que os visitantes ‒ geralmente pouco ou mal informados, “compreendam” melhor
a significação das ruínas, sintam que já houve vida dentro delas [...] parece-me indispensável a
organização de uma série de esquemas e mapas, além da planta de São Miguel, acompanhados
de legendas que expliquem de maneira resumida, porém clara e precisa, a história em verdade
extraordinária das Missões, e como eram as casas, a organização dos trabalhos nas estâncias e
oficinas, as escolas de ler e de música, as festas e os lazeres ‒ a vida social da comunidade, em
suma. Com datas e nomes, mas tudo disposto de forma atraente e objetiva, tendo-se sempre em
vista o alcance popular.24
não foram poucos os que vieram juntamente com italianos e espanhóis, trazendo com eles aquele
renascimento retardatário e impregnado ainda de gosto gótico e até mesmo românico, que durante
tanto tempo se manteve ali, lado a lado com o desenvolvimento da escola erudita e latina;[...]. Este
[o elemento nativo], vencida a primeira fase de rebeldia, deixou-se moldar com docilidade pela
vontade poderosa do jesuíta.25
O Museu das Missões ficou sob a responsabilidade do Iphan desde a sua criação até 2009,
quando foi transferido para o Instituto Brasileiro de Museus ‒ Ibram.26 O acervo que compõe as
coleções do Museu foi tratado pelo Iphan, ao longo de todo esse período, pela perspectiva estética,
como um acervo artístico.27 Contudo, vale destacar que ele é composto basicamente de peças de
cunho religioso – denominadas de imaginária missioneira ‒ achadas e recolhidas na região, em
sua maioria produzidas pelos índios reduzidos e pelas populações ali residentes, posteriormente ao
período missioneiro. Nesse sentido, trata-se de um acervo condizente com um museu etnográfico,
ainda que jamais tratado sob essa perspectiva.
Ao longo de décadas, a preservação das ruínas foi a grande prioridade do órgão, preocupado
com sua estabilização e com as condições para sua visitação.
A inauguração da atual exposição dos Museus das Missões se deu em 1985 e manteve a
perspectiva estetizante da experiência daqueles indígenas nas missões, dada em sua fundação,
com acervo e tratamento relativamente inalterado, bem aos moldes das ideias originais que
levaram à criação do museu, com foco na obra civilizadora jesuítica, valorizada pelo seu papel
na definição das fronteiras do sul do país e, desse modo, partícipe do processo de construção
da nação brasileira. Essa visão, de caráter fortemente colonial, bastante disseminada pela
historiografia brasileira tradicional e compartilhada pelos intelectuais fundadores do Iphan que
projetaram a criação do museu nos anos 1930, tem sido revista há alguns anos. Novas perspectivas
historiográficas, na atualidade, apontam para a permanente negociação que caracterizou as
relações entre índios e jesuítas e na qual se baseou a vida nas missões. Essas relações visavam
tanto ao projeto católico civilizador dos jesuítas quanto à contingência da escassez da mão
25 Id. Ibidem.
26 O Instituto Brasileiro de Museus ‒ Ibram foi criado por meio da Lei no 11.906, de 20 de janeiro de 2009, como autarquia federal vinculada
ao Ministério da Cultura, responsável pela coordenação da Política Nacional de Museus (PNM).
27 Os “remanescentes do povo e ruínas da Igreja de São Miguel, inclusive a área da antiga praça fronteira, e a edificação do Museu das Missões,
em São Miguel das Missões” foram inscritos no Livro do Tombo das Belas Artes (Processo n. 141-T-1938 – Arquivo Central do Iphan).
Concluindo, a gestão do patrimônio cultural e sua sustentabilidade – temática que pauta a agenda
institucional e está na ordem do dia nos fóruns de patrimônio – encontrará caminhos promissores se
conseguir se aproximar das reflexões sobre o valor de patrimônio e os novos paradigmas.
Falar em mudanças da prática e de paradigmas envolve todos que atuam no campo do
patrimônio. Para que seja possível, efetivamente, intervir nas políticas públicas, é necessário refletir
sobre e transformar nossas práticas profissionais e políticas, muitas vezes ainda comprometidas
com a manutenção de valores de patrimônio que reproduzem narrativas colonizadoras. Nesse
sentido, alguns passos devem ser dados nesse processo de mudança, e evitar a essencialização do
patrimônio talvez seja o mais significativo deles. O patrimônio é fruto de classificações e disputas
históricas e, portanto, não existe em si, não há uma essência a ser buscada. Por isso mesmo, é
preciso uma vigília permanente para que não se reproduza uma busca ilusória pela “autenticidade”,
que marcou tão fortemente as práticas de colecionismo aos moldes do antiquariado que inspiraram
a maioria dos museus no Brasil. O Museu Histórico Nacional foi, nessa perspectiva, matriz da
perspectiva museológica barroseana intensamente reproduzida, da qual se desvencilha lentamente
na atualidade. Também as práticas de proteção ao patrimônio histórico e artístico no Brasil foram
fundadas na crença da autenticidade e permanece atual a luta pela desmistificação dessa ideia.
Vimos, portanto, que as investigações a serem empreendidas nessa seara devem ser marcadas
pelo esforço de contextualização dos objetos museológicos, dos bens e práticas patrimonializados
e também dos comportamentos de todos os envolvidos – os agentes dos museus, os indivíduos
relacionados aos objetos, o público etc. Espera-se, desse modo, evitar a busca do excepcional e o
risco do tratamento de grupos tradicionais como exótico, ao escapar da pura estetização do outro,
fornecendo, ao contrário, os elementos para que o público que frequenta o museu possa distinguir
falas, perceber contradições e identificar posições diferentes que se expressam no processo
histórico. Para isso, os grupos herdeiros desse passado e desse legado devem ser chamados a
falar sobre as peças e sua história, garantindo-lhes um lugar legítimo para se expressar no museu.
Muitas vezes, as conexões com o próprio passado foram rompidas e, nesses casos, o museu
pode ser um importante canal para restabelecer laços e conexões, e romper o silêncio imposto, o
esquecimento histórico.
33
Id. Ibid. P. 156-7.
Escapamos, enfim, desafiados por esse novo paradigma pensado para o museu e, de modo mais
amplo, para o campo do patrimônio, de uma perspectiva nostálgica sobre o passado, que remete
a mitos e situações imaginárias acerca dos povos e das relações históricas vivenciadas em cada
contexto, em processos de dominação colonial fantasiados de processos civilizadores. Para isso,
é preciso suportar contradições, tensões e incertezas do devir histórico e de suas interpretações,
elas também históricas, sem apresentar no museu ou em outras estratégias de estabelecimento de
versões legítimas sobre o passado chaves históricas coerentes e narrativas apaziguadoras para o
público que o visita ou que consome o patrimônio.
Para David Lowenthal,34 os objetos materiais como patrimônio no museu, na rua ou na cidade
são referência de identidade para grupos sociais, como elos que garantem continuidade à existência
humana. Eles têm papel fundamental na nossa realidade, por estabelecer uma ligação com o passado
necessária ao bem-estar que advém da experiência do pertencimento, dos compromissos que são
entrelaçados com o grupo e se processam na escala local.
Essa experiência é difícil de ser imaginada quando remetida à ideia de humanidade – fria,
abstrata, global. Essa tensão local/global atravessa os debates acerca da patrimonialização e em
diversas situações impõe reflexões importantes sobre a legitimidade do “dever de memória” e sobre
a seleção dos vestígios que devem ser conservados como herança. Mas a solução para esses dilemas
não é simplesmente incluir tudo e qualquer bem que represente identidades de diversos grupos, como
um somatório sem fim. A ampliação da noção de patrimônio cultural, fruto de lutas políticas travadas
nos anos 1970-1980 foi fundamental para os avanços alcançados no sentido da democratização das
políticas de patrimônio e museus. Em respeito a essas conquistas, impõe-se hoje um olhar reflexivo
sobre esses processos que tem tido dificuldades em responder às clássicas perguntas sobre o que
deve ser incluído na categoria de patrimônio cultural, afinal, tendo em vista que a inclusão infinita de
bens culturais nessa categoria não pode resolver os históricos problemas de exclusão, preconceitos,
silêncios e apagamentos de memória. Talvez se trate, então, de reformularmos a pergunta.
Hoje, há inúmeras formas de patrimonialização. E as agências do poder público voltadas para
as políticas públicas de patrimônio não detêm mais o monopólio dessa ação, ainda que detenham
legitimidade. Por isso mesmo, o tombamento se mantém como uma chancela importante – ainda sob
o controle monopolizado do Estado –, mas não exclusiva, sendo uma dentre várias outras formas
de atribuição de valor de patrimônio. A função das agências públicas de preservação do patrimônio
cultural, incluindo-se aí os museus, não deve estar pautada pela orientação da patrimonialização
e musealização ilimitada de bens. O fundamental seria que tais agências se distinguissem por sua
função social.
34
LOWENTHAL, David. Como conhecermos o passado. Projeto história: trabalhos da memória. São Paulo: PUC, n. 17, 1989.
Para isso, um passo importante seria estabelecer linhas de financiamento, bem como
programas públicos indutores de pesquisas e ações voltadas para uma historicização radical dos
objetos musealizados com sua contextualização processual, que garantiriam, tal como proposto
por João Pacheco de Oliveira (2007), a inteligibilidade dos herdeiros das tradições vivas contidas
nos objetos ou mesmo dos herdeiros que simbolicamente se apresentam e reconstituem suas
identidades partidas, perdidas ou dilaceradas por processos contínuos de apagamentos. Essa
contextualização não pretende “presentificar” o presente ou retornar a um passado para sempre
perdido, mas sim contribuir com a descolonização dos museus e do próprio patrimônio, passos
fundamentais para a construção de autonomia política e cidadania de todos aqueles que constituem
a sociedade brasileira.
Algumas das ideias e diretrizes que delimitaram as ações de modernização físico-espacial das
cidades e a promoção, no ambiente urbano, dos processos educativos aliados a práticas sociais
solidárias são os assuntos enfocados neste artigo. Para tanto, encontra-se aqui estabelecida uma
articulação entre arquitetura, museologia e patrimônio, categorias básicas para os estudos da
cultura e do urbano.
Essa articulação foi elaborada em sequência cronológica e abrange as décadas de 1960 e 1970.
Às leituras e às interpretações de textos produzidos por críticos e estudiosos foram agregados
comentários sobre recomendações emanadas de reuniões dos organismos internacionais que atuam
no campo preservacionista.
De início, observa-se que, desde os 1960, as transformações no desenho das cidades e as
soluções urbanísticas aceitas universalmente passaram a ser questionadas. Em face dos padrões
espaciais fragmentados e dos aspectos socioculturais reconhecidamente multifacetados, a oposição
moderno-funcionalista no trato do urbano encontrava-se fragilizada, o que levou arquitetos e
urbanistas a dispensarem as linguagens técnicas e manualísticas modernistas.
Desse modo, no final da década de 1960, as repercussões dos movimentos estudantis contrários
às políticas locais e internacionais repressoras foram eficazes em alguns países do Ocidente, contri-
buindo também para a expansão da crise dos paradigmas e a derrubada dos modelos estabelecidos.
Por outro lado, verifica-se que a década de 1970 é, de maneira geral, o tempo em que a
importância dos aspectos urbanísticos e patrimoniais das cidades foi acentuada. Tal consideração
* Arquiteta. Professora Associada da UFRJ. Doutora em Planejamento Urbano e Regional e em Museologia. Diretora de Cultura do Instituto
de Arquitetos do Brasil.
Especial atenção às novas leis, à reestruturação do setor cultural público, aos recursos mate-
riais e ao turismo constituíram as bases do Compromisso de Salvador, elaborado no II Encontro de
Governadores, em 1971. Na ocasião, dentre as recomendações que trataram das condições finan-
ceiras das instituições de cultura, encontra-se a que estabelece a aplicação dos recursos públicos
estaduais e municipais, provenientes de fundos então criados, a museus, bibliotecas e arquivos.
A formação de corpo de fiscais na área de comércio de bens móveis de valor cultural também foi
uma das diretrizes registradas no texto de Salvador. Para as ações de fiscalização, foi recomendado
o “aproveitamento remunerado de estudantes de Arquitetura, Museologia e Arte”.2
Com vistas a garantir a participação de profissionais de nível universitário em museus de
cidades do interior, a criação de curso complementar de Estudos Brasileiros e Museologia no então
denominado 2o grau da estrutura pública de ensino foi também objeto da vigésima recomendação
do Compromisso de Salvador.
Denota-se que essa diretriz incluía a intenção de implantar novos museus no país e de melhorar
as condições de funcionamento e acesso aos então existentes. Nesse sentido, sugeria-se, em menção
explicitada na vigésima quarta recomendação, a criação do Museu do Mate na cidade de Campo
Largo, no Paraná.
Desataca-se que o conceito de “museu integral” foi então concebido de modo interdisciplinar
para abranger a ação de musealização levada a efeito em acordo com a noção de território. Na
sequência, os termos “museus comunitários” e “ecomuseus” tornaram-se sinônimos e absorveram
a noção de museu integral, designando os tipos de instituições existentes no meio urbano, cujas
atividades são voltadas para comunidades locais, para as quais se destinam ações específicas.4
Observa-se ainda que a pauta da reunião em que foi produzida a Declaração de Santiago configurou
com precisão as tarefas de fundamentar, organizar e proclamar disposições sobre as quais seria
desenvolvido o papel novo e decisivo dos museus nas décadas finais do século XX.
Tal configuração reforçaria a importância política e os sentidos da educação patrimonial nas
instituições museológicas. Desse modo, os programas educativos aí desenvolvidos deveriam
ser voltados à formação da consciência crítica e operativa, a qual transformaria e erradicaria as
injustiças sociais que, reconhecidamente, geraram tanto os problemas globais quanto as dificuldades
cotidianas da vida moderna.
Segundo o documento de Santiago, as ações de promoção do patrimônio deveriam integrar
história e historicidade, ligando o passado ao presente de maneira dinâmica. Nessa perspectiva,
recomendava-se: “os museus deverão organizar exposições especiais ilustrando os problemas
do desenvolvimento urbano contemporâneo.”5 No que diz respeito à relação, em que poderia ser
associada a Nova Museologia no sentido da importância devida às cidades, em Santiago recomendou-
se também que “com a ajuda dos grandes museus, deverão ser organizadas exposições, e criados
museus em bairros e nas zonas rurais, para informar os habitantes das vantagens e inconvenientes
da vida nas grandes cidades”.6
Observa-se que há divergências entre as opiniões de reconhecidos estudiosos sobre a integração
das recomendações da Nova Museologia no Brasil. Alguns autores reportam-se ao final da década
de 1970 e outros à de 1980.7
4
Idem, p. 146-147.
5
Icom. (1972). Mesa-redonda de Santiago do Chile. Tradução Marcelo M. Araújo e Cristina Bruno. Disponível em: <http://www.museologia-
portugal.net/index>. Acesso em: 5 set. 2011.
6
Idem, 1972.
7
Nesse sentido, ver a amplitude do conceito de museu integral e ecomuseu, conforme estabelecido na década de 1970 na Carta de Santiago
(Icom, 1972), e o reconhecimento da nova museologia na Declaração de Quebec – Princípios de Base de uma Nova Museologia. (1984,
Tradução Mário Moutinho. Disponível em: <http://www.museologia-portugal.net/index>. Acesso em: 25 mar. 2010); em Primo, Judite
(2007, Documentos básicos de Museologia: principais conceitos. Cadernos de Sociomuseologia, n. 28. Lisboa, ULHT, p. 117-133, p.
125); SANTOS, Myriam Sepúlveda dos; CHAGAS, Mário (2002, A vida social e política dos objetos de um museu. In: Anais do Museu
Histórico Nacional, v. 34. p. 195-220, p. 205); e em Bittencourt (2003, Uma experiência em processo. In: BITTENCOURT, José Neves;
BENCHETRIT, Sarah Facha; TOSTES, Vera Lúcia Bottrel (Orgs.). História representada: o dilema dos museus (p. 7-18). Rio de Janeiro,
MHN, p. 13.
estudos para a promoção das pesquisas sobre a cultura do continente foram referências destacadas
nessa Resolução, elaborada em seminário interamericano com a parceria do governo dominicano
com a Organização dos Estados Americanos.13
E, com relação à museologia, importa também registrar o 1o Encontro Nacional de Dirigentes
de Museus, reunião que ocorreu no Recife em 1976, na qual foram estabelecidos os subsídios para
a implantação de uma política museológica brasileira.
No Peru, em 1977, a Carta de Machu Picchu celebrou os 45 anos da Carta de Atenas de 1933.
Observa-se que o texto elaborado em Machu Picchu se refere de modo comparativo à reunião
de Atenas, estabelecendo contrapontos, atualizando os conceitos e revendo os padrões para o
planejamento das cidades até então tratados.
Nessa perspectiva, quando o texto de 1977 registra que “a identidade e o caráter de uma cidade
são dados não só por sua estrutura física, mas também por suas características sociológicas”,14
expressa a diferença notável entre as duas cidades, Atenas e Machu Picchu, e marca o contraste das
duas temporalidades em que tais documentos foram criados.
Pois, para os arquitetos reunidos no Peru,
Atenas se ergueu como o braço da civilização ocidental; Machu Picchu simboliza a contribuição
cultural independente de outro mundo. Atenas representou a racionalidade, personificada por
Aristóteles e Platão. Machu Pichu representa tudo o que não envolve a mentalidade global
iluminística e tudo o que não é classificável por sua lógica.15
Durante as últimas décadas, para a arquitetura contemporânea, o problema principal não é mais o
jogo visual de volumes puros, mas a criação de espaços sociais para neles se viver. A ênfase não
está mais no continente, mas no conteúdo, não na embalagem isolada, por mais bela e sofisticada
que seja, mas na continuidade da textura urbana.17
Quanto às tarefas de conservação dos espaços urbanos implicadas aos novos planos, os
arquitetos afirmaram ali que, nesses casos, deveria ser considerada a integração dessas tarefas “ao
processo vivo de desenvolvimento urbano”. Esse procedimento, afirmaram, era o “único meio”
com o qual seria possibilitado o financiamento das operações conservacionistas.18
Além disso, a renovação e a utilização dos recursos naturais deveriam evitar o esgotamento
desses bens e assegurar a duração dos produtos, impedindo, assim, o uso predatório das tecnologias
e processos industriais.
Contudo, apesar de o “cínico ecletismo”,19 linguagem formal preponderante em 1977,
ser considerado já obsoleto, as conquistas da década de 1930 permaneciam válidas. Assim, a
dinamicidade da relação espaço-tempo articulava não apenas o espaço físico, mas os valores sociais.
A cidade adquiria a condição de “lugar” onde, com a concorrência proativa dos usuários,
seriam enfatizados o papel e a criação dos arquitetos. Articulava-se, desse modo, o princípio
da contiguidade físico-espacial e os edifícios e o tecido construído conformariam o continuum
sociológico e histórico das cidades.
A década de 1970 também inaugurou a crise da modernidade da arquitetura brasileira conforme
configurada por modernistas e conservacionistas da geração heroica. No entanto, a partir da segunda
metade de 1970, a liberdade editorial dos organismos de classe e periódicos de arquitetura permitiu
publicar sem restrição depoimentos e diferentes soluções formais.
17
Idem, 2004, p. 243.
18
Idem, 2004, p. 241.
19
GUIMARAENS, Cêça. Modernização em museus: Museu Histórico Nacional e Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, Brasil).
Tese de Doutoramento, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa. Orientador: Professor Doutor Mário Caneva
Moutinho. 2012.
edificado do Rio, os exemplos mais evidentes são as monumentais estruturas voltadas para as
atividades burocráticas do setor bancário privado e do governo que foram erguidas ao lado do
Museu Nacional de Belas Artes e no largo da Carioca.
Entretanto, a crítica à cidade das torres do urbanismo modernista não contribuiu para a
preservação do ambiente natural da baixada da Barra da Tijuca e Jacarepaguá. No entanto, foi
inovadora, apesar de nesse caso reproduzir ideias geradas no exterior, as quais preconizavam o
respeito às preexistências com a inserção de arquiteturas adequadas aos lugares e às ambiências.
Para complementar a análise das recomendações e movimentos preservacionistas, que, conforme
visto até aqui, destacaram os aspectos sociais e multiplicaram-se e, portanto, replicaram-se também
na ação de proteção patrimonial efetuada no campo museológico, ainda caberia observar que
A Mesa-redonda de Santiago do Chile (1972) e a Declaração de Quebec (1984) são marcos da
virada teórica e prática no campo da museologia. O conceito de ”museu integral” ou “integrado”,
que emerge da reunião de Santiago concebe a instituição como lugar de prática social, como
instrumento de desenvolvimento local e de valorização da memória daqueles que vinham sendo
esquecidos nos processos de construção dos grandes museus.22
SANTOS, Myriam Sepúlveda dos; CHAGAS, Mário. A vida social e política dos objetos de um museu. In: Anais do Museu Histórico
22
* Graduação em Museologia (Unirio); graduação em Pintura (EBA/UFRJ); mestrado em História da Arte e doutorado em Artes Visuais
(PPGAV/EBA/UFRJ). Professor do Departamento de Estudos e Processos Museológicos (DEPM) e do Programa de Pós-Graduação em
Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS – Unirio/Mast).
O conceito do curso
A primeira reforma3 que ocorreu no curso foi feita pouco mais de dois anos após sua criação,
em 1934, por meio do decreto que aprovou o novo regulamento do Museu Histórico Nacional. Em
relação à matrícula, foi mantida a mesma exigência de conclusão do ensino secundário.
[...] certificado de aprovação nos exames da 5ª série do curso secundário prestado em estabelecimento
oficial ou equiparado, ou diploma de formatura de qualquer escola superior, escola normal ou
instituto de educação, instituto técnico, faculdade de letras, etc.4
1
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 mar. 1932. Decreto nº 21.129, de 07-03-1932.
2
Idem.
3
As reformas mais antigas constam nos regimentos aprovados por decretos presidenciais. As reformas mais recentes estão na documentação
interna da universidade, geralmente na forma de um projeto pedagógico. As reformas produzem mudanças na matriz curricular que
normalmente é implantada no ano seguinte.
4
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 mai. 1938. Decreto-lei nº 421, de 11-05-1938.
De certa forma, essa dúvida sobre a natureza do curso deveria pairar pelo fato de ainda
não haver, na época, uma legislação claramente definida relativa ao ensino superior. Em 1938,
exatamente cinco anos depois da criação do Curso de Museus, o Presidente Getúlio Vargas expediu
um Decreto-lei com o objetivo de regular os estabelecimentos de ensino superior. Naturalmente, esse
decreto contemplava o Curso de Museus que, mesmo funcionando numa instituição museológica,
estava sujeito à legislação que regia todas as entidades de ensino. Na verdade, o Decreto-lei insere-
se numa série de medidas promovidas pelo presidente, no período imediato à instauração do Estado
Novo, visando sanear, organizar e dar nova dinâmica à máquina administrativa estatal. O Decreto
definia uma série de requisitos para o funcionamento de instituições de ensino, determinando até
mesmo penalidades para as que não cumprissem as exigências, e apresentava uma conceituação de
curso superior:
[...] são considerados cursos superiores àqueles que, pela sua natureza, exijam, como condição de
matrícula, preparação secundária, comprovada, no mínimo, pela apresentação do certificado de
conclusão de curso secundário fundamental5 (grifos nossos).
A primeira grande reforma do Curso de Museus foi realizada em 1944, doze anos após sua
criação, sendo aprovado um novo Regimento, que promoveu mudanças significativas, as quais
serão abordadas oportunamente. Em relação à matrícula, permanece a exigência de conclusão
do curso secundário: “O candidato à matrícula no Curso de Museus deverá ter curso secundário
completo (ginasial e colegial)” (grifos nossos).6
Essa mesma reforma instituiu o exame vestibular quando o número de candidatos ultrapassasse
o número de vagas e estabeleceu a prova de duas línguas estrangeiras, sendo mantido assim até o
início da década de 1970, quando o ingresso ao curso passa a ser feito pela Fundação Cesgranrio.
Mas vejamos o que diz o Decreto que instituiu o vestibular:
Quando o número de candidatos à matrícula for superior ao das vagas, será feito exame vestibular
compreendendo: História Geral, História do Brasil, Geografia do Brasil, Língua Estrangeira, a
escolher duas dentre as seguintes: Francês, Inglês, Alemão e Italiano.7
Passados mais de quinze anos da criação do Curso de Museus e mesmo sendo exigida a formação
secundária para matrícula, ainda persistiam dúvidas em relação à sua natureza, provavelmente pelo
fato de o curso funcionar num museu e não numa instituição de ensino. Em 1948, o diretor Gustavo
5
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 25 jul. 1934. Decreto nº 24.735, de 14-07-1934.
6
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 jul. 1944. Regimento do Curso de Museus. Decreto
nº 16.078, de 13-07-1944.
7
Idem.
Barroso8 fez uma consulta formal ao então Ministério da Educação e Saúde (MES) relativa a essa
questão. Certamente foi uma consulta proposital, visando obter um parecer que eximisse todas as
dúvidas. A questão foi analisada pelo Conselho Nacional de Educação, que, ao responder, reportou-
se exatamente ao Decreto-lei de 1938, ainda vigente, e que serviu de base legal para o parecer
emitido em outubro de 1948, cuja conclusão sentenciou:
Para os efeitos desta lei (1938) são considerados cursos superiores àqueles que, pela sua natureza,
exijam como condição de matrícula preparação secundária comprovada [...] verifica-se, pois, que
o Curso de Museus é de nível superior. [...] O conceito do Curso de Museus é matéria que não
padece de dúvidas, tão clara é a lei9 (grifos nossos).
Para efeito de registro, os diplomas eram encaminhados pela direção do Museu à Diretoria
do Ensino Superior do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, criado por Getúlio
Vargas em 1930 e, depois, com o Estado Novo, transformado em Ministério da Educação e Saúde,
e novamente modificado para Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1953, com a criação do
Ministério da Saúde. Em 1951, para conferir ao curso um caráter universitário, reforçando o caráter
de curso superior que sempre tivera, mas conservando-o na estrutura do MHN, o diretor Gustavo
Barroso articulou-se com o então reitor da Universidade do Brasil, Pedro Calmon10, que conferiu
Mandato Universitário ao Curso de Museus, por meio de acordo firmado em 12 de julho de 1951.
O curso manteve sua autonomia, mas os diplomas passaram a ser registrados na Universidade do
Brasil, pondo fim aos questionamentos relativos à sua natureza de nível superior.
Vale lembrar que, à época da regulamentação da profissão de museólogo, ocorrida em 1984,
quando foram instituídos o Conselho Federal de Museologia (Cofem) e os conselhos regionais,
ex-alunas do antigo Curso de Museus, como Lygia Martins Costa, Dulce Ludolf e Maria Augusta
Machado da Silva, diplomadas respectivamente em 1939, 1941 e 1947, ou seja, antes do Mandato
Universitário, requereram e obtiveram o registro profissional. Isso porque elas estavam em
conformidade com a lei que regulamentou a profissão e admitia o título de Museólogo aos portadores
de diploma de curso superior, bacharelado ou licenciatura. Esse requisito está explicitado logo no
início do artigo 2:
O exercício da profissão de Museólogo é privativo: I – dos diplomados em Bacharelado ou
Licenciatura Plena em Museologia, por cursos ou escolas reconhecidas pelo Ministério da Educação
e Cultura.11
8
Gustavo Barroso (1888-1959). Advogado, jornalista, político e escritor. Idealizador e primeiro diretor do MHN.
9
Parecer 455/948 – CNE, de 14-10-1948.
10
Antigo professor da disciplina História da Civilização Brasileira do Curso de Museus.
11
Lei nº 7.287, de 18-12-1984. Dispõe sobre a regulamentação da profissão de museólogo.
Finalmente, em 1977, após dois anos de discussões e negociações, o Curso de Museus foi
absorvido pela Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro (Fefierj),
criada oito anos antes como Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara
12
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 jul. 1966. Regimento do Curso de Museus. Decreto
nº 58.800, de 13-07-1966.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 7 fev. 1975. Regimento e Currículo do Curso de
13
Por outro lado, percebe-se que a ideia de capacitação não era centrada unicamente nos
“oficiais” do MHN, pois havia também a preocupação em estender a formação técnica a funcionários
de outros museus, inclusive dos estados. “Será facultada matrícula [...] a funcionários dos museus
localizados nos Estados da União que desejarem fazer o curso a título de aperfeiçoamento”.19
16
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 jul. 1966. Regimento do Curso de Museus. Decreto
nº 58.800, de 13-07-1966.
17
Antigo funcionário das repartições públicas federais imediatamente inferior aos chefes de seção e superior aos amanuenses.
18
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 mar. 1932. Decreto nº 21.129, de 07-03-1932.
19
Idem.
O já citado Decreto de 1934, ao tratar dos objetivos, apresenta uma discreta ampliação do
alcance do curso, ainda que atrelado aos objetivos culturais do MHN: “Manterá o Museu Histórico
um Curso destinado ao ensino das matérias que interessam aos seus objetivos culturais.” A diferença
entre um curso “destinado ao ensino das matérias que interessam à instituição” (1932) para um
curso “destinado ao ensino das matérias que interessam aos seus objetivos culturais” (1934), ou
seja, objetivos do MHN, é bastante sutil, mas muito reveladora, uma vez que o ensino das matérias
está associado diretamente às coleções, ao passo que os objetivos culturais transmitem a ideia de
compromisso na relação da instituição com o público.
Na Reforma de 1944, a proposta de ampliar a formação aparece de maneira mais incisiva.
Pela primeira vez nos Decretos relativos ao Curso aparece o termo conservador de museus e esse
profissional não é associado unicamente ao MHN, mas a museus históricos, artísticos e “instituições
análogas”, provável alusão a casas históricas como a de Rui Barbosa, criada em 1930, e a museus
de igrejas, fortalezas e outros monumentos. Essa proposta de ampliação sintoniza-se ao próprio
crescimento dos museus federais no início da década de 1940: Museu Imperial de Petrópolis (1940),
Museu das Missões (1940), Museu Histórico Abílio Barreto, de Belo Horizonte (1943) e Museu
da Inconfidência, de Ouro Preto (1944). Outra disposição da Reforma de 1944, relacionada a uma
“abertura” do curso, refere-se à criação do aluno ouvinte; na verdade, uma oficialização, uma vez
que desde a primeira turma já havia de fato a figura do ouvinte. “Além das matrículas comuns [...]
poderão ser concedidas matrículas em uma ou mais disciplinas avulsas, podendo também ser feita
inscrição de alunos ouvintes”.20
No entanto, o que mais contribuiu não só para a ampliação do público do curso, sobretudo para
disseminar a formação em museus para os estados, foi a figura do bolsista, também já utilizada
informalmente desde 1942, mas que foi oficializada com a Reforma de 1944, persistindo até o final
da década de 1960.
[...] poderão ser concedidas, anualmente, bolsas de estudos para o curso, destinadas a candidatos
residentes fora do Distrito Federal e da capital do Estado do Rio de Janeiro e escolhidos de
preferência entre servidores estaduais e municipais com exercício em museus.21
20
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 15 jul. 1944. Regimento do Curso de Museus. Decreto
nº 16.078, de 13-07-1944.
21
Idem.
No que se refere ao profissional que irá formar, há uma duplicidade: o termo conservador de
museus continua a ser utilizado, como consta nas finalidades, entretanto, surge pela primeira vez
nos decretos o termo museólogo, como pode ser constatado no artigo 3º: “Os alunos que concluírem
o Curso de Museus receberão diploma de museólogos”23 (grifos nossos).
A década de 1970 foi decisiva para o Curso de Museus e ficou caracterizada por uma série de
mudanças que visavam à atualização e assimilação de novos modelos conceituais. Inicialmente,
podemos constatar que essas mudanças foram favorecidas pelo próprio contexto do final dos
anos 1960 e do início dos anos 1970, tanto internacionalmente quanto no Brasil, marcado
pelos movimentos libertários, liderados pelos jovens que se insurgiam contra as instituições
estabelecidas e o sistema como um todo, clamando pela democracia e pelos direitos civis, pela
liberação feminina, pela liberdade sexual, pela aceitação e pelo respeito às diferenças raciais e
religiosas. No Brasil, as manifestações estudantis se transformaram em importantes agentes de
mobilização política e social ao canalizar as insatisfações dos jovens e denunciar as arbitrariedades
da repressão. A Passeata dos 100 mil, organizada pelo movimento estudantil em 1968, mobilizou
milhares de pessoas, sobretudo líderes de estudantes, professores, políticos, artistas, músicos e
intelectuais em protesto contra o Regime Militar.
Outro aspecto a ser considerado refere-se às políticas públicas de Cultura desenvolvidas
nos anos 1970, que anunciaram uma nova visibilidade para as questões do patrimônio. Essas
transformações correspondem, em grande parte, à atuação do arquiteto Renato Soeiro24 como
presidente do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional DPHAN, transformado
por ele em Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Algumas das iniciativas
de Soeiro no sentido de reorganizar o Iphan referem-se à implantação de diretorias técnicas e
regionais, à criação do Programa das Cidades Históricas, em parceria com o MEC, que ampliou os
recursos destinados ao patrimônio, bem como à preocupação em formar uma rede de instituições
culturais em todo o país, coordenada pelo Iphan. Essa última proposta contou também com o
22
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 jul. 1966. Regimento do Curso de Museus. Decreto
nº. 58.800, de 13-07-1966.
23
Idem.
24
Renato de Azevedo Duarte Soeiro, arquiteto e presidente do Iphan de 1967 a 1979.
Essa mudança de termos, Curso de Museus para Curso de Museologia reflete uma complexa
transformação filosófica e conceitual que certamente está relacionada também aos influxos da Mesa
Redonda de Santiago de 1972 e a todo o seu ideário de museu integral e inclusão social. De uma
maneira simplista, podemos dizer que o Curso de Museus concentrava-se no estudo das coleções
do MHN – identificação, classificação, catalogação, conservação, exposição etc. –, ao passo que
o Curso de Museologia passou a enfatizar o estudo das questões da própria Museologia: museu
27
Criada em 1963 e transformada em Associação Brasileira de Museologia em 1979.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 07 fev. 1975. Regimento e Currículo do Curso de
28
integral, museus e processos de representação, função social, integração com o público etc. Essas
questões, discutidas ao longo da década de 1970 no Curso de Museus do MHN, não se arrefecem
e seriam a tônica do Curso de Museologia integrado a uma estrutura universitária na transição para
a década de 1980 e ao longo dos anos 1990 e 2000.
As transformações curriculares
30
A primeira coordenadora do Curso foi a Profª. Nair de Moraes Carvalho, vice-diretora do MHN, formada pelo Curso de Museus em 1936;
sua gestão compreendeu o período de 1944 a 1967.
Consonante com esta lei, os estabelecimentos de ensino superior, inclusive cursos isolados,
como o Curso de Museus, dependeriam das decisões do CFE.
As frequentes reformas ocorridas no Curso de Museus nos anos 1970 tiveram como suporte
legal o Parecer CFE/MEC nº 971/69, de 5 de dezembro de 1969, que estabeleceu eixos temáticos
como Museologia, Museografia e Comunicação Museológica, numa nova perspectiva teórica e
prática de estudo da Museologia, privilegiando a relação com o público, bem como a Resolução do
CFE nº 14, de 27 de fevereiro de 1970, determinando os mínimos de conteúdo e duração a serem
observados na organização dos cursos de Museologia. Com base nessas normas, foram implantadas
sucessivas adaptações à matriz de 1967.
Outro aspecto favorável às mudanças curriculares consistiu numa espécie de transição de
gerações de professores. Dos professores que sucederam aos professores pioneiros, alguns haviam
se aposentado, como o Prof. Félix de Mariz (1964) e o Prof. Oswaldo Mello Braga (1969); ou
estavam em vias de se aposentar: Umberto Peregrino, em 1970; Iolanda Portugal, em 1973; Gerardo
de Carvalho, Jenny Dreyfus e Ruy Campello, em 1975; Octavia Oliveira Santos, em 1976; Anna
Barrafatto e Nair de Moraes Carvalho, em 1977; e Diógenes Guerra, em 1978. Por outro lado,
paralelamente a essas aposentadorias, novas lideranças estavam emergindo e sucedendo àqueles
professores. Nas disciplinas de Arte: Ecyla Castanheira Brandão (1964), Sonia Gomes Pereira
(1968) e Gilda Marina Almeida Lopes (1969); nas disciplinas de História: Solange Sampaio Godoy
(1968); nas Técnicas de Museus: Therezinha de Moraes Sarmento (1968) e Vera Lúcia Bottrel
Tostes (1969); nas disciplinas de Antropologia: Maria Gabriela Pantigoso (1969); e nas disciplinas
de Museologia: Tereza Cristina Moletta Scheiner (1972) e depois Celma Tereza Franco (1976) e
Maria de Lourdes Naylor Rocha (1976). No entanto, exatamente na década de 1970, sobretudo na
primeira metade, as mudanças conceituais e estruturais se chocaram com uma série de dificuldades
provenientes da falta de recursos, principalmente para a contratação de novos professores, e isso
num momento em que mais se precisava de verbas para renovação e ampliação do quadro docente.
As mudanças conceituais que ocorreram nesse período exigiam um quadro de professores muito
maior do que o das décadas anteriores, não apenas por causa da ampliação do rol de disciplinas,
mas também porque as novas disciplinas exigiam profissionais de outras áreas de conhecimento.
Ao longo da década de 1970, o Curso de Museus passou por oito reformulações curriculares:
1970, 1971, 1972, 1973, 1974, 1975, 1976 e 1978. As cinco primeiras foram em caráter experimental
e serviram de base para a matriz de 1975, ponto culminante de todo esse processo de reformas e
que realmente apresentou propostas concretas e bem definidas consolidadas, finalmente, na matriz
de 1978. De início, podemos constatar que essas reformulações refletem toda a complexidade de
um movimentado momento de transição: a transição de ideias acionadas por um contexto histórico
mas também uma contradição terminológica na denominação das disciplinas Técnica de Museus
I e II, provavelmente correspondendo a estudos de Museografia e, no terceiro ano, uma disciplina
totalmente solta Museologia: Museografia. Essa mesma tendência persiste na matriz de 1973,
Técnica de Museus I e II e Museografia I e II. Nesse ano, adotou-se o sistema de créditos e retomou-
se definitivamente a estrutura por períodos encetada em 1970. Na matriz seguinte, 1974, há alguns
progressos: desaparece a denominação Técnica de Museus e são criadas as disciplinas Museografia
I, II, III e IV, e mantida, no sexto e último período, a disciplina Museologia: Museografia.
Finalmente, na matriz curricular implantada em 1975 percebe-se um grande avanço. Para se
adequar à reforma universitária, o curso passou a ser oferecido em quatro anos e estruturado em oito
períodos. Certamente, o fato de a duração do curso ter sido ampliada para mais um ano, associado
ao amadurecimento que adveio de cinco matrizes consecutivas, ou seja, aumento de carga horária e
experiência prática, propiciou o desenvolvimento de uma matriz com um corpo de disciplinas muito
mais coerente com as novas propostas, sobretudo em relação aos eixos de Museologia e Museografia.
As mudanças de conceito podem ser percebidas nas novas denominações das disciplinas. O
exemplo mais marcante refere-se naturalmente à disciplina Técnica de Museus, que constituía
o cerne do curso e foi desmembrada em várias outras disciplinas, correspondendo basicamente à
teoria e à prática museológicas, cujos conteúdos foram definidos e tenderam a orientar as matrizes
das próximas décadas: Museologia I, II, III, IV, V e VII35; e Museografia I, II, III e IV. Pela primeira
vez foi instituída a exposição curricular, que passou a coincidir com as disciplinas Museologia VII
e Museografia IV, ambas no sétimo período. O estágio curricular foi institucionalizado por meio
de um componente curricular oferecido no oitavo período e dividido em módulos: Técnicas de
Registro Museológico, Conservação-Restauração de Bens Culturais, Administração e Dinâmica de
Museus e Pesquisa Museológica, esse último, precursor da ideia de monografia de final de curso.
Foram suprimidas definitivamente as habilitações em Museus Históricos e Artísticos e o curso
passou a oferecer uma formação geral em Museologia. As disciplinas de formação geral também
foram reformuladas. História da Arquitetura, História da Escultura e História da Pintura deixaram
de ser estudadas isoladamente, sendo substituídas pelas disciplinas História da Arte e História da
Arte Brasileira. Artes Menores perdeu essa classificação depreciativa e passou a ser denominada
Artes Decorativas. A disciplina Etnografia transformou-se em várias disciplinas de Antropologia,
denominação que transmite uma ideia mais ampla de estudo do homem. Nessa ocasião, a Profª.
Anna Barrafatto elaborou um minucioso estudo sobre todos os currículos anteriores, a Relação dos
currículos adotados de 1932 a 1975, levantando todas as disciplinas e relacionado-as às matrizes
35
Falta a Museologia VI, provavelmente porque, por um equívoco, a numeração das disciplinas coincidiu com os períodos de oferecimento.
Esse problema foi sanado na matriz seguinte, com a criação da disciplina Museologia VI, no sexto período.
vigentes. Esse levantamento, além de consistir num importante registro histórico e oferecer uma
compreensão de como as disciplinas evoluíram, serviu de base não somente para as reformulações
dos anos 1970, mas também para as reformas dos anos 1980 e 1990.
A matriz de 1976 consolidou e fez uma pequena correção no eixo de Museologia, acrescentando
a disciplina Museologia VI, no sexto período, aumentando para onze o número de disciplinas dessa
área. A próxima matriz, de 1978, ofereceu as mesmas disciplinas de Museologia e Museografia,
alterando somente os períodos de oferecimento, mas mantendo a exposição curricular no sétimo
período. As disciplinas técnicas passaram a ser optativas e a grande mudança refere-se à introdução
da Monografia como componente curricular, oferecido no oitavo período, paralelamente ao estágio
curricular. Foi a matriz de 1978 que vigorou na primeira metade da década de 1980, coincidindo
com a transferência efetiva do Curso de Museologia para a universidade, e isso por motivos
institucionais e funcionais: a Fefierj transformou-se em Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio),
em junho de 1979 e, em agosto, o curso foi transferido do MHN para o novo prédio do Centro de
Ciências Humanas (CCH), no bairro da Urca.
Integrado à estrutura universitária e diante das dificuldades inerentes à realidade das
universidades públicas brasileiras, o Curso de Museologia persiste com suas propostas e
reivindicações, inclusive de espaços para exposições e laboratórios, com o objetivo de tornar a
formação em Museologia não somente mais prática, mas, principalmente, mais científica. Para dar
suporte às exposições curriculares foi criado o Laboratório de Desenvolvimento de Exposições
(Ladex), projeto pioneiro, idealizado e organizado por Tereza Scheiner, Celma Franco e Maria de
Lourdes Naylor Rocha. Seu funcionamento, ainda que informal, remonta aos primeiros anos da
década de 1980.
Em 1986, foi instituída a departamentalização no âmbito do CCH, e as disciplinas dos vários
cursos passaram a ser alocadas em departamentos, sendo criado o Departamento de Estudos e
Processos Museológicos (DEPM) para atender diretamente ao Curso de Museologia. Nessa mesma
época, foram feitas várias alterações curriculares em denominações, cargas horárias e períodos de
oferecimento de disciplinas, conservando-se basicamente a matriz de 1978. A exposição curricular
continuou a ser oferecida no sétimo período por meio das disciplinas concomitantes Museologia IV
e Museografia IV, cujas cargas horárias foram ampliadas. O estágio curricular e a monografia foram
oferecidos igualmente no oitavo período. Foi criada uma disciplina propedêutica especialmente
para a Museologia, a disciplina Introdução à Teoria Museológica, mantida até a atualidade com o
nome Introdução à Museologia. Os conteúdos de preservação e conservação foram remanejados
das disciplinas Museografia II e Museologia III para Preservação de Bens Culturais I e II. Outro
projeto pioneiro da década de 1980 e que está muito ligado às reformas daquela década, foi o Núcleo
A reforma curricular de 1996, implantada em 1997, foi a primeira a ser feita a partir de um
projeto específico com análise de currículos anteriores e de perfis profissionais, metodologia,
fundamentação teórica, revisão de literatura e definições de marcos referenciais. Foi criado um eixo
de Comunicação, por meio das disciplinas Comunicação em Museus I, II, e III, para dar suporte à
exposição curricular, mantida no sétimo período e viabilizada pelas disciplinas Museografia IV e
36
SCHEINER, Tereza C. M.; PANTIGOSO, Maria Gabriella. Projeto de Reformulação Curricular. Escola de Museologia/CCH/ Unirio,
1995-1996. p. 2
37
Idem, p.2.
Comunicação em Museus III. A disciplina Pesquisa Museológica: Monografia passou a ter como
requisito a disciplina Metodologia da Pesquisa Aplicada à Museologia, específica para a elaboração
do projeto de monografia final. As disciplinas Introdução à Ciência da Informação e Representação
e Análise da Informação, além de sintonizarem as teorias da documentação e da comunicação com
os pressupostos da Ciência da Informação e sinalizarem os pontos de convergência e divergência
de arquivos, bibliotecas e museus, trouxeram novas perspectivas para a capacitação profissional
em relação às novas tecnologias. Em síntese, esse currículo representou um importante marco no
contexto das transformações curriculares na medida em que possibilitou uma formação compatível
com os novos sistemas de pensamento, além de consolidar a Museologia como campo disciplinar
e enfatizar a interdisciplinaridade, inclusive com a área da Ciência da Informação e das Ciências
Sociais, com a implantação de novas disciplinas: Filosofia, Epistemologia e Sociologia Geral.
Pela primeira vez foram criadas disciplinas regulares de ciências como Paleontologia, Ecologia
e Biogeografia, essa última já oferecida na matriz experimental de 1970, mas sem continuidade.
No início dos anos 2000, outro contexto histórico influiu na implementação de uma política
cultural específica de museus, provocando uma modificação radical, num espaço de tempo
muito curto, do quadro da formação em Museologia no Brasil. Isso ocorreu com as mudanças
provocadas com a ascensão do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), que trouxe novas
perspectivas para a Educação e a Cultura. O Ministério da Cultura desenvolveu um amplo projeto
de apoio aos museus e, em 2003, foi criado no Iphan o Departamento de Museus (Demu), atual
Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), para tratar especificamente das questões dos museus. Uma
das primeiras iniciativas do Demu foi pôr em prática uma Política Nacional de Museus (PNM),
apresentando programas para gestão do campo museológico, inclusive formação e capacitação
de Recursos Humanos. Consonante com isso, o Demu investiu no oferecimento de oficinas, na
captação de recursos para a atualização técnica dos museus e incentivou a criação de cursos de
Museologia em vários estados do país. Essas propostas convergiram para o Programa de Apoio a
Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni),38 lançado em 2007, que
incentivou o crescimento das universidades federais e possibilitou o investimento em construções
e reformas de prédios, contratação de docentes e aquisição de equipamentos. Com isso, novas
graduações em Museologia foram criadas em vários estados e num curto espaço de tempo o
quadro dos cursos de Museologia passou de dois para quinze, rompendo a hegemonia dos cursos
de Museologia da Unirio e da UFBA.
Por outro lado, passados quase dez anos da implantação da matriz de 1997, fizeram-se
necessárias tanto uma avaliação quanto uma reformulação, mesmo porque seu projeto era anterior
38
Decreto nº 6.096, de 24-04-2007.
às Diretrizes Curriculares Nacionais.39 Além disso, novos impactos haviam ocorrido no campo
da Museologia, decorrentes, sobretudo, de sua crescente consolidação como campo disciplinar,
provocando também uma alteração significativa do papel dos museus na sociedade contemporânea.
Essas transformações acenaram para novas perspectivas na atuação do museólogo, levando os
cursos ligados à formação a considerarem as necessidades demandadas pelo novo mercado
de trabalho. Essa realidade sintoniza-se com as orientações curriculares do próprio Ministério
da Educação, que recomendam aos cursos de graduação “preparar o futuro graduando para
enfrentar os desafios das rápidas transformações da sociedade, do mercado de trabalho e das
condições de exercício profissional”.40
Entre julho e outubro de 2006, foi elaborado um Projeto de Reformulação Curricular do Curso
de Museologia, sendo definido um novo projeto político-pedagógico desenvolvido a partir das
discussões e propostas de professores, alunos e profissionais formados pela Escola de Museologia.
A nova matriz curricular foi implantada no primeiro período de 2008 e procurou atender às
reivindicações de professores e estudantes, tendo como objetivo principal diminuir a evasão por
meio das seguintes estratégias: flexibilizar o currículo e oferecer disciplinas de Museologia logo
no primeiro período, como Introdução à Museologia,e Museologia, Patrimônio e Memória, essa
última criada para dar subsídios teóricos e preparar os graduandos para as disciplinas do campo da
Museologia e também para um possível ingresso no mestrado em Museologia e Patrimônio.41 Outra
proposta importante, também reivindicada pelos alunos, referiu-se à busca de um equilíbrio maior
entre teoria e prática, tendo sido criada a disciplina Informação e Documentação Museológica
II, essencialmente voltada para as práticas documentais, bem como as disciplinas Museologia e
Preservação III e IV, com conteúdos práticos da área da conservação. Essas propostas convergiram
para a criação do Núcleo de Memória da Museologia no Brasil (Nummus), implantado em 2005 e
cujas coleções passaram a ser utilizadas como material didático nas aulas práticas das disciplinas
de documentação e conservação.
No decorrer de dois anos e meio de vigência dessa nova matriz curricular, algumas questões
foram levantadas por professores e alunos no sentido de serem promovidas algumas modificações
pontuais em relação a algumas disciplinas, aliás, nas propostas da Reforma de 2006 já constava
uma reavaliação desde os primeiros anos visando identificar e sanar possíveis problemas relativos
a disciplinas, cargas horárias, créditos etc. Esse fato sintonizou-se com a adoção, pela Unirio, do
Reuni, sendo elaborado, em abril de 2010, um projeto de alteração curricular à matriz implantada
39
Orientação para as Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduação. Parecer CNE/MEC nº. 776/97, de 03-12-1997.
40
Idem.
41
Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio, projeto da Profª. Tereza Scheiner, implantado em 2006.
em 2008 com duas propostas básicas: flexibilização do turno integral e implantação do turno da
noite no primeiro semestre de 2011. Com isso, foram ampliadas aos alunos as possibilidades,
não apenas de cursar, mas de efetivamente concluir o curso, cumprindo, acima de tudo, uma
das principais finalidades da universidade que é o compromisso social. Um dos princípios que
orientaram essa reforma é o atual perfil dos alunos, cada vez mais dependentes do próprio trabalho
para poder manter os estudos. O oferecimento do Curso de Museologia somente no horário
integral tem criado uma série de obstáculos aos discentes que precisam conciliar o curso com
o horário de trabalho. Esse fato tem sido um dos maiores motivos de evasão, uma vez que dos
cem ingressantes, somente cerca de 35% chegam a se graduar. Dentre os abandonos, os 65%
restantes são constituídos por alunos que deixam o curso, muitos dos quais solicitam transferência
para cursos noturnos. Sendo assim, essa alteração curricular visa oferecer maiores chances de
flexibilização curricular tanto ao atual aluno do curso integral quanto ao aluno do curso noturno.
Outro aspecto a ser considerado é que, com o “aquecimento” da área dos museus, as opções de
estágios ampliaram-se consideravelmente e, na atualidade, são poucos os alunos que não possuem
bolsa de estágio ou pesquisa. Sendo assim, mesmo aos alunos do curso integral, torna-se às vezes
difícil conciliar o estágio com os horários das aulas.
Em resumo, o processo de institucionalização do antigo Curso de Museus do MHN, atual Escola
de Museologia da Unirio, foi marcado por mudanças conceituais e funcionais associadas a contextos
históricos específicos e a determinadas correntes de pensamento que tiveram o seu momento de
maior embate na década de 1970, verdadeiro marco das transformações conceituais e curriculares
que ainda fundamentam o campo da Museologia contemporânea. A história desses enfrentamentos
e dessas transformações no Curso de Museus confunde-se com a própria história da Museologia e
dos museus no Brasil, uma vez que o curso constituiu um marco pioneiro e referencial não somente
da formação em Museologia, mas também do desenvolvimento das políticas de patrimônio, da
construção da Museologia como campo disciplinar e da profissionalização do museólogo no país.
O termo “museologia” foi introduzido no Brasil com o Curso de Museus, criado em 1932 no
Museu Histórico Nacional (MHN), na cidade do Rio de Janeiro. Implementado durante a gestão
de Rodolfo Augusto de Amorim Garcia (1873-1949),1 e posteriormente estimulado por Gustavo
Dodt Barroso (1888-1959),2 em sua gestão no MHN, o curso foi criado a partir de duas principais
confluências. A primeira delas, endógena do contexto brasileiro, se relaciona à demanda por
profissionais para atuarem no próprio MHN, o que foi apontada desde a sua criação em 1922; e
a segunda, exógena, baseada nas ideias e correntes de pensamento sobre os museus disseminadas
principalmente pelo Office International des Musées (OIM),3 a partir dos anos 1920.
* Professor de Teoria Museológica na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Doutor em Antropologia pela Universidade
Federal Fluminense – UFF. Atualmente coordena o Curso de Museologia Integral da Unirio e é vice-presidente do Comitê Internacional de
Museologia – ICOFOM do ICOM.
** Museóloga na Universidade Federal de Alfenas – Unifal/MG. Mestre e doutoranda em Museologia e Patrimônio na Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Atualmente é diretora do Museu da Memória e Patrimônio da Unifal/MG.
*** Museólogo na Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ, em Recife, Pernambuco. Bacharel em Museologia e mestrando em Museologia e
Patrimônio na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Foi presidente do Fórum dos Museus de Pernambuco entre 2011 e 2013.
1
Advogado, escritor, linguista e historiador, Garcia foi diretor do Museu Histórico Nacional entre dezembro de 1930 e novembro de 1932,
quando assumiu a direção da Biblioteca Nacional.
2
Escritor, político e jornalista, um dos intelectuais mais atuantes da vertente regionalista e nacionalista das primeiras décadas do século XX
no Brasil. Foi diretor do MHN, primeiramente de 1922 a 1930, e entre 1932 e 1959.
3
Escritório Internacional de Museus, em português. A ideia de se criar o OIM é lançada, em 1925, pelo historiador da arte Henri Focillon,
como um estabelecimento de ligação entre todos os museus do mundo, uma organização de intercâmbios e congregações, tendo como
uma de suas funções sistematizar as informações sobre os museus do mundo inteiro. MAIRESSE, François. L’album de famille. Museum
International, n.197, v. 50, Paris, Unesco, 1998. p. 25.
O termo “museologia” vem sendo percebido nas pesquisas históricas atuais7 como o
indicador da existência de um campo de estudos específico, organizado em torno de certos
atores e com objetivos particulares. Do ponto de vista da presente investigação, o campo da
4
SÁ, Ivan Coelho. História e memória do Curso de Museologia: do MHN à Unirio. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,
v.39, p.10-42, 2007. p. 11.
5
Os cursos estão espalhados pelas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Norte e Nordeste, estando todos ligados a universidades brasileiras,
em sua maioria, federais.
6
No Brasil, o termo “Museologia” apresenta uma peculiaridade: em grande parte dos documentos e publicações ele é encontrado em letra maiúscula.
Hoje, tal uso reflete a necessidade de alguns autores e profissionais de enfatizar a possível existência do campo da Museologia no país.
7
MAIRESSE, François & DESVALLÉES, André. Muséologie. In: DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire
encyclopédique de muséologie. Paris: Armand Colin, 2011.
museologia existe não somente no contexto europeu – onde possivelmente teve início – mas
nos diversos contextos do mundo em que esse termo se aplica, como é o caso do Brasil.
Originário da Europa, mais particularmente da Alemanha, o termo – Museologie, no alemão;
e muséologie, no francês – se desenvolveu, fosse qual fosse o seu sentido, acompanhando as
transformações dos museus, que ganhariam ênfase, sobretudo a partir da segunda metade do
século XIX, e mais intensamente no período entreguerras. No Brasil, essa palavra seria introduzida
por meio da sua apropriação a partir de algumas publicações internacionais – particularmente as
francesas – e pelos professores do Curso de Museus do Rio de Janeiro.
É no início do século XX que o vocábulo Museologie apareceria pela primeira vez ligado
à administração de museus, notadamente nos contextos da Alemanha e da França. No entanto,
muséographie – que vinha sendo usado nas últimas duas décadas do século anterior significando
explicitamente “a descrição do conteúdo dos museus”8 – passa a ser usado para se referir ao corpus
de conhecimento teórico e prático ligado aos museus. Logo, uma transformação lancinante se dá
no seio da École du Louvre, onde, a partir do período entreguerras, o termo seria adotado com
sentido mais amplo; e o programa das conferências, ricas em conteúdos aplicados, viria a colocar a
museografia no ranking das disciplinas necessárias para o bom funcionamento de um museu.
Durante o entreguerras, a Europa colonialista ainda buscava impor ideias e pontos de vistas
culturais sobre o restante do mundo. Em agosto de 1925, foi criado o Institut International de
Coopération Intellectuelle (IICI),9 destinado a facilitar a aproximação entre os povos e a promover
acordos duráveis. Inspirado por esse instituto e vinculado à Société des Nations (SDN)10 foi
oficializado, em 1926, o Office International des Musées (OIM), como a primeira tentativa de se
criar uma entidade internacional que reunisse os museus do mundo e seus profissionais.11 Nesse
período, por meio de sua principal publicação, a revista Mouseion,12 de circulação mundial, o OIM
iria tratar dos temas mais importantes para os museus da época.
A revista Mouseion, lançada na França em 1927, foi responsável por consagrar a palavra
muséographie como se referindo à descrição da organização, do papel social e da formação
8
MAIRESSE, François. Muséographie. In: DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire encyclopédique de muséologie.
Paris: Armand Colin, 2011. p. 323.
9
Instituto internacional de cooperação intelectual, criado em Paris, em 1924, sob a tutela do governo francês.
10
Sociedade das Nações ou Liga das Nações, instituída pelo tratado de Versalhes, em 1919.
CRUZ, Henrique de Vasconcelos. Era uma vez, há 60 anos atrás...: O Brasil e a criação do Conselho Internacional de Museus (Monografia).
11
histórica dos museus, mas, sobretudo, enfatizando o seu sentido ligado a métodos precisos de
exposição, conservação ou de difusão utilizados.13 Logo, em 1928, foram instauradas no Louvre as
conferências técnicas de Muséographie14 sobre “a organização, a vida, o papel social, a formação
histórica dos museus franceses”, além de tratar dos museus da Bélgica, da Espanha e dos Estados
Unidos. Em 1934, a revista Informations Mensuelles, também pertencente ao OIM, anunciou a
criação do Curso de Museus no Rio de Janeiro, evidenciando a formação ligada a uma demanda
profissional existente no seio dessa instituição.15 Na revista Mouseion, em 1939, foram divulgadas
as primeiras disciplinas de Muséographie (que no Brasil ainda eram intituladas Técnica de Museus)
oferecidas no Rio de Janeiro.16
O fim da Segunda Guerra e a criação do International Council of Museums, o ICOM (1946),17
marcam o início de uma nova revolução no campo dos museus. Até esse período, apenas os museus
de arte, de história e de folclore estavam inscritos no campo de competências do OIM – os museus
de ciências seriam, naquele momento, integrados nesse vasto campo. No domínio desses museus, o
termo que prevalecia era “museologia”, uma vez que a utilização de “museografia” como descrição
de museu parecia incongruente. Os termos museografia e museologia são, assim, por certo tempo,
utilizados simultaneamente com contornos bastante vagos.
Desse modo, a utilização do termo “museologia” na Europa, em paralelo à utilização de outros
termos como “museografia”, inauguraria o que Bourdieu chamou de um mercado linguístico,18
em que determinados valores e conceitos seriam disseminados. Pouco a pouco, esse mercado
linguístico iria se difundir em outras realidades, gerando mercados paralelos em que o sentido
das palavras poderia variar de acordo com a lógica específica de cada um desses contextos e nos
13
MAIRESSE, François. Muséographie. In: DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire encyclopédique de muséologie.
Paris: Armand Colin, 2011. p. 323.
14
Bulletin des Musées de France, mois de Septembre, consacré à l’École [mês de setembro, consagrado à Escola], ano 1, n. 9, 1929.
15
Informations diverses [Informações diversas]. Informations Mensuelles, Paris, ago./set. 1934. p. 18-19.
16
L’enseignement de la muséographie à Rio de Janeiro. Mouseion: supplément, Paris, junho 1939, p. 11.
17
Conselho Internacional de Museus. Após a Segunda Guerra Mundial, o mapa do mundo – e o mapa das ideias do mundo – se tornou
menos eurocêntrico, e esse foi o momento de criação do ICOM (a partir da estrutura e dos princípios traçados pelo OIM, que o antecedeu).
A revista Mouseion daria origem à Museum International, ampliando sua área de interesse. Mesmo que os principais países a contribuir
com a publicação ainda fossem aqueles já mencionados. Houve então a primazia dos autores anglófonos, sobretudo os norte-americanos,
sobre os franceses e italianos. O inglês, paralelamente ao francês, seria adotado como língua oficial. Outros países passaram a se impor
sobre a cena internacional, entre eles, o México, o Brasil, a Índia e o Canadá. As temáticas abordadas também se modificaram, deixando
de ter a conservação como tema principal e passando a privilegiar textos sobre atividades educativas e exposições, além da pesquisa
e da formação profissional. MAIRESSE, François. L’album de famille. Museum International, n. 197, v.50, Paris, Unesco, 1998. p.
28-29.
18
BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 2009. p. 14.
diferentes mercados. Neles, a existência social das palavras, isto é, a sua aplicação nas situações,
estava em constante negociação, constituindo campos de disputas variados, como o que se formou
no Brasil a partir da década de 1930.
O contexto histórico brasileiro das décadas de 1930 e 1940 foi marcado por diversos embates
políticos advindos de um período de crise da hegemonia das classes dirigentes até a retomada da
supremacia política da elite burocrática. Esse foi o momento em que se acentuou a concorrência no
interior do campo intelectual19 e entre as instituições culturais do país. A importância da afirmação de
um Estado forte se expressou, então, por meio de transformações decisivas que alcançaram o plano
cultural, acelerando a criação de novos cursos superiores, a expansão da rede de instituições culturais
públicas e o surto editorial.20 Para as esferas governamentais, instituições como o MHN funcionavam
como instrumentos de status, poder e ufanismo de um país que se “inventava”,21 ao mesmo tempo
que se “inventariava”22 um patrimônio nacional aos moldes do patrimônio europeu. Sendo assim, os
dois fatos interligados nessa instituição, da criação do MHN e da implantação posterior de um Curso
Técnico de Museus, refletiam uma cadeia de estratégias nacionalistas na área cultural.23
O Curso de Museus foi criado pelo Decreto nº 21.129, de 7 de março de 1932, destinado ao
ensino das matérias que interessavam ao MHN. A finalidade desse curso era a mesma proposta pelo
curso técnico de 1922: o aproveitamento de seus egressos na carreira de oficial.24 As disciplinas
escolhidas para fazer parte do currículo também estavam presentes no curso técnico pensado
anteriormente, com exceção da Técnica de Museus, que foi ministrada a partir de 1933. Sobre essa
disciplina, ministrada por Gustavo Barroso, pouco se sabe de seu conteúdo nos primeiros anos. Em
entrevista concedida ao Diário de Notícias, em abril de 1934, o professor de Arqueologia do curso,
Angyone Costa, descreve tal conteúdo:
19
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 79.
20
Ibidem, p. 77.
21
SÁ, Ivan Coelho. História e memória do Curso de Museologia: do MHN à Unirio. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,
v.39, p.10-42, 2007. p. 12.
22
THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales: Europe XVIIIe-XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2001, passim.
23
SÁ, Op. cit., p. 14.
24
Segundo o regulamento, foram criados no MHN os cargos de Diretor, Chefe de Seção, 1º Oficial, 2º Oficial, 3º Oficial, Datilógrafo,
Porteiro, Ajudante de Porteiro, Guarda, Servente e Secretário, que seria um 2º Oficial com gratificação. BRASIL. Coleção das leis da
República dos Estados Unidos do Brasil de 1922. v. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923. p.72-74; 82-85.
Ao dr. Gustavo Barroso devemos a organização magnífica por ele dada à cadeira complexa que
lhe coube lecionar: Técnica de Museus, matéria inteiramente nova no Brasil. Senhor de uma
larga cultura, o ilustre escritor não teve dificuldades em redigir seu admirável programa agora em
completa evidência, diante da publicação do livro “Musées”, primeiro da coletânea “Les Cahiers
de la République des Léttres des Sciences et des Arts de Paris”, onde as maiores autoridades na
matéria demonstram que o ponto de vista escolhido aqui é o melhor.25
O número da revista Les Cahiers de la République des Léttres des Sciences et des Arts,26
de Paris, consultado por Barroso para a formulação da cadeira “Técnica de Museus”, tratava de
questões centrais para o campo dos museus no início da década de 1930, apresentando “concepções
museográficas” diversas e contemplando temas contemporâneos como a função da “educação
social”, a “utilização científica das coleções” e o papel dos museus nacionais como “instrumentos
de propaganda”.27
Nessa mesma época se iniciava a divulgação sistemática no Brasil das atividades do OIM,
por intermédio de Eliseu Montarroyos (1875-1940), representante brasileiro do IICI, ao qual o
OIM estava vinculado.28 No ano de 1934 foi criada no âmbito do MHN, sob a direção de Gustavo
Barroso, a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, primeira instância reguladora de políticas do
patrimônio cultural – de abrangência federal – o que o levou a ser indicado, no mesmo ano, o
representante brasileiro na Commission Internationale des Monuments Historiques,29 do OIM.
Na segunda metade da década 1930 e início da década seguinte, houve a intensificação das
trocas de conhecimento entre o Brasil e o exterior por meio da utilização sistemática da revista
Mouseion por Barroso, no Curso de Museus. As correspondências administrativas30 do MHN nesse
período comprovam tal movimento de atualização de um pensamento brasileiro sobre os museus
25
A expansão da cultura brasileira. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22 abr. 1934, p. 1; 8.
26
A publicação, organizada por Pierre Berthelot, G. Brunon Guardia e Georges Hilaire, teve um inquérito internacional sobre a reforma
das galerias (museus) públicas organizado por George Wildenstein e textos de profissionais – iniciantes e renomados – dos seguintes
países: França, Holanda, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Espanha e União Soviética. Entre os autores, destaca-se a
presença de Henri Verne, Henri Focillon, Georges Henri Rivière, Salomon Reinach, Ralph Clifton Smith, Francesco Pellati, Alvarez de
Sotomayor e Théodore Schmit. BERTHELOT, Pierre et al. (Org.) Musées. Les Cahiers de la République des Léttres des Sciences et des
Arts, Paris, n.13, 1931.
27
D’ESPEZEL, Pierre & HILAIRE, Georges. Avant-propos. Musées. Les Cahiers de la République des Léttres des Sciences et des Arts,
Paris, n.13, 1931. p.5-12.
28
Cooperação Internacional dos Museus. Diário da Manhã, Rio de Janeiro, 14 jan. 1933.
29
O representante do Brasil na Comissão Internacional dos Monumentos Históricos. A Noite, Rio de Janeiro, 9 jun. 1934.
30
Ver, por exemplo, Ofício do Serviço de Cooperação Intelectual do Ministério das Relações Exteriores ao Diretor do MHN, em 7 de
dezembro de 1936; Ofício do Diretor do Museu Histórico Nacional ao Chefe do Serviço de Cooperação Intelectual do Ministério das
Relações Exteriores, em 15 de dezembro de 1936. Museu Histórico Nacional, Divisão de Controle do Patrimônio, processo n.11/36,
documento n. 11.
a partir das experiências internacionais. Pode-se inferir que um mercado linguístico internacional
ligado aos museus se configurava, tendo o Brasil como uma de suas extensões.
Na década de 1930, desenvolvendo-se em paralelo a outros cursos, como o da École du
Louvre,31 o curso brasileiro era composto de uma maioria de cadeiras especificamente voltadas
para o estudo dos tipos de coleções presentes no MHN. Todavia, das disciplinas criadas em 1932, a
Técnica em Museus, idealizada e ministrada por Barroso, era inédita no continente sul-americano.
No contexto internacional de circulação de ideias, naquele momento, as noções de ciência e de
trabalho prático em museus estavam completamente atreladas e indissociáveis em um mesmo termo.
O termo muséographie, nessa época, era o que aparecia de maneira predominante em relação à
muséologie em publicações francesas e internacionais, como na revista Mouseion e em Les Cahiers
de la République des Léttres des Sciences et des Arts, número 13, já mencionados. Uma breve análise
da terminologia usada no Brasil na década de 1930 e de bibliografias e conteúdos disciplinares do
Curso de Museus atesta um diálogo com esse pensamento. No entanto, os primeiros anos do Curso
de Museus revelaram uma “confusão terminológica” que não era exclusiva do Brasil, uma vez que,
como já mencionado, confusões sobre os termos “museologia” e “museografia” eram recorrentes,
mesmo na Europa.
O primeiro documento oficial encontrado no qual foi mencionado o termo Museulogia é o
relatório das atividades do MHN no ano de 1934, enviado por Gustavo Barroso ao Ministro da
Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, em 10 de janeiro de 1935. Nesse relatório, o então
Curso de Museus aparecia referido como “Curso de Museulogia”.32
Os problemas com o uso dos termos seriam mais tarde observados em matérias veiculadas
a periódicos brasileiros e estrangeiros, divulgando as atividades do curso, e, logo, o vocábulo
museologia passaria a ser escrito com o “o”. Um exemplo do uso do termo “museologia”, para
divulgação do curso e de suas matrículas, aparece no Diário de Notícias, de março de 1936:
31
Organizava-se estruturalmente de acordo com o modelo que surgiu na França no século XIX, principalmente com a École de Chartres
para a formação de arquivistas-paleógrafos, criada em 1821, que sistematizou conhecimentos eruditos na forma de “ciências auxiliares da
História” e “antiquariado”. Esse ensino sistemático na França seria aplicado à diversos cursos, sendo o curso da École du Louvre apenas
um deles. Sobre o momento da criação dessa escola, diria Henri Verne: “On en venait ainsi, logiquement, à concevoir le plan d’une école
spéciale des musées, fonctionnant dans un musée et dont le programme serait conforme à l’organisation même des musées, mais varierait
et se développerait avec cette organisation.” [“Assim, chega-se a conceber o plano de uma escola especial de museus, funcionando em um
museu e cujo programa seria de acordo com a organização mesma dos museus, todavia ela iria variar e se desenvolver com essa organização”
(tradução nossa).] VERNE, Henri. L´École du Louvre de 1882 à 1932. In: VERNE, Henri; POTTIER, Edmond; MERLIN, Alfred et al.
L’École du Louvre. 1882-1932. Paris: Bibliothèque de l’École du Louvre, 1932. p. 3.
32
BARROSO, Gustavo. Relatório do diretor do Museu Histórico Nacional ao ministro da Educação e Saúde Pública sobre as atividades de
1934, em 10 de janeiro de 1935. Museu Histórico Nacional, Arquivo Administrativo, AS/DG1. Grifo nosso.
Já se acham abertas as matrículas para o Curso de Museus, que funciona no Museu Histórico
Nacional.
O Curso de Museologia, que funciona desde 1932, já diplomou duas turmas de alunos e alguns
deles tem sido indicados para a organização de novos museus criados nos Estados.
O corpo docente do Curso de Museus é constituído dos professores Gustavo Barroso, Pedro
Calmon, Menezes de Oliva, Angyone Costa e Edgar Romero, que ensinam, respectivamente, as
seguintes disciplinas: Museologia, História da Civilização Brasileira, História da Arte brasileira,
Arqueologia Brasileira, Numismática Geral e do Brasil (grifo nosso).33
Com o objetivo de sistematizar a utilização dos termos e dos conteúdos das disciplinas
ministradas, Barroso organizou a sua Introdução à Técnica de Museus, publicada em dois volumes,
em 1946-1947,35 que resume tanto os conteúdos das disciplinas quanto as linhas gerais do curso
que ministrava. Essa obra apresenta a sua interpretação para os termos museologia e museografia:
33
Museu Histórico Nacional. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 20 mar. 1936, p.2.
34
“O ensino da museografia no Rio de Janeiro
A museografia é proferida no Museu Histórico Nacional sob a forma de cursos visando a um objetivo duplo: formar conservadores de museus e
suprir [alguns] conhecimentos especiais que, atualmente, não são ensinados no Brasil em outros institutos ou universidades do país.
O número de ouvintes ou estudantes é crescente. Os principais cursos tratam da História da Civilização Brasileira (prof. Pedro Calmon);
Arqueologia Brasileira (prof. Angyone Costa); Numismática e Sigilografia (prof. Edgar Romero); Museografia (Sr. Gustavo Barroso);
História da Arte Brasileira (Dr. Joaquim Menezes de Oliva).” L’enseignement de la muséographie à Rio de Janeiro. Mouseion: supplément,
Paris, jun. 1939, p.11.
35
BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus, 2v. Rio de Janeiro: Olímpica, 1946-1947. Houve uma segunda edição publicada
entre 1951 e 1953.
Chama-se Museologia o estudo científico de tudo o que se refere aos Museus, no sentido de organizá-
los, arrumá-los, conservá-los, dirigi-los, classificar e restaurar os seus objetos. O termo é recente
e resulta dos trabalhos técnicos realizados nos últimos decênios sobre a matéria. A Museologia
abarca âmbito mais vasto do que a Museografia, que dela faz parte, pois é natural que a simples
descrição dos Museus se enquadre nas fronteiras da Ciência dos Museus. Museólogo, portanto, é o
técnico ou entendido em Museus (grifo nosso).36
dois para três anos e uma seleção por meio de vestibular. Com a criação do cargo de coordenador,
diretamente subordinado ao diretor do MHN, o curso passa a ter uma administração própria.42
Aqui sustentaremos que, segundo pesquisa nos documentos da época, quanto mais o curso
conquistava uma independência do MHN que o abrigava e estabelecia os primeiros laços
com o universo acadêmico brasileiro, mais o termo “museologia” era enfatizado e preterido,
primeiro na documentação interna do próprio curso e depois na legislação específica para essa
área de atuação.
Pouco a pouco, um campo com definições mais ou menos claras se delineava, tendo como
centro o Curso de Museus – ao qual reportagens de jornal já iriam se referir como “Curso de
Museologia” (ou “Curso de Museulogia”) como na que foi publicada em O Jornal, em 3 de março
de 1945, em que se via, ainda, o termo “museulogistas”43 para se referir aos profissionais de museus
e estudiosos da área – que até então estariam necessariamente ligados a algum museu em particular.
A partir dos anos 1940, os alunos das primeiras turmas do curso começam a publicar textos
ligados a questões do recém-legitimado campo dos museus, da museografia ou de técnicas em
museus. Entre eles, destacaram-se as obras de Regina Real, Mário Barata e Regina Liberalli, a
qual discutiu predominantemente técnicas de restauração de pintura a partir das publicações do
OIM.44 Até esse momento, a revista Mouseion, principal fonte desses estudos, tinha abordado
predominantemente temas técnicos – Mairesse aponta que um terço das revistas tratavam de temas
ligados à conservação ou restauração.45 No entanto, temas contemporâneos como o papel social
dos museus nas sociedades, a educação, a função da pesquisa, da aquisição e da comunicação
também eram abordados.
Nas décadas de 1940 e 1950, os formandos das primeiras turmas começam a assumir a
docência do curso, substituindo os antigos professores, o que constituiria, para Ivan Coelho de
Sá, a “primeira geração” de uma museologia não mais autodidata.46 Entre os grandes nomes de
A professora Nair de Moraes Carvalho tornou-se a primeira coordenadora, função que manteria por 23 anos, até 1967. SÁ, Ivan Coelho
42
de; SIQUEIRA, Graciele Karine. Curso de Museus – MHN, 1932-1978: alunos, graduandos e atuação profissional. Rio de Janeiro: Unirio,
2007. p. 38-39.
O Jornal, Rio de Janeiro, 3 mar. 1945. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Núcleo de Memória da Museologia no Brasil,
43
ex-alunos que ocuparam cargos na docência destacam-se Nair de Moraes Carvalho (Escultura),
Yolanda Marcondes Portugal (Numismática), Octavia de Castro Corrêa (Técnica de Museus) e
Mário Barata (Artes Menores).
Por meio de um convênio firmado em 12 de julho de 1951 entre o Museu Histórico Nacional
e a Universidade do Brasil – que mais tarde se transformaria em Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) –, Gustavo Barroso iria obter um Mandato Universitário dessa universidade
para o curso. Vale apontar que Pedro Calmon, um dos professores fundadores do curso, era então
reitor da Universidade do Brasil.47 Nesse momento, o Curso de Museus alcançou o nível de curso
superior, mas ainda se mantinha atrelado institucional e financeiramente ao MHN. Os diplomas e
certificados, entretanto, antes registrados na Diretoria do Ensino Superior, passam a ser emitidos
pela Universidade do Brasil.
Esse processo de mudanças na afiliação do curso, que progressivamente deixaria o MHN para
se ligar a uma universidade, é marcado pelo processo concomitante de uma mudança terminológica
crucial no próprio nome do curso, importante para a compreensão de como e quando se deu a
constituição de um campo da Museologia no Brasil. Com essa mudança estatutária e jurídica,
temos o primeiro indício da formação de um campo acadêmico ao qual o termo “museologia” faria
referência – lembrando que o discurso jurídico é também um discurso criador, “que faz existir
aquilo que ele enuncia”.48
Nessa mesma década, acontecia no Rio de Janeiro, entre 7 e 30 de setembro de 1958, um
estágio oficial organizado pela Unesco, pelo ICOM e por autoridades e especialistas do Brasil,
sobre o tema Função Educativa dos Museus. Como resultado dos debates ocorridos nessa ocasião,
Georges Henri Rivière, então diretor do ICOM, propôs a definição de Museologia como “a
ciência que tem como fim o estudo da missão e organização do museu”, e Museografia como “o
conjunto de técnicas em relação com a Museologia”.49 O Seminário Regional da Unesco, sob a
coordenação de Rivière, envolveu a participação de diversos brasileiros, entre eles, uma maioria
de conservadores de museus, com a formação profissional obtida no curso do MHN. A partir dos
conteúdos específicos de aspectos teórico-práticos dos museus que eram ministrados na disciplina
Técnica de Museus, esses conservadores contribuíram para a discussão terminológica e ajudaram
a estabelecer essa nova interpretação aos termos “museologia” e “museografia”. A definição
47
Ibidem, p.30.
48
BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 2009. p. 17.
49
No seu relatório sobre o evento, publicado em 1960, Rivière apresenta as definições fundamentais dos três termos para o entendimento
das conclusões do seminário, a saber, “museu”, “museologia” e “museografia”. A primeira, retirada dos estatutos do Icom em vigor; as duas
últimas, baseadas nos debates ocorridos nas sessões do seminário. RIVIÉRE, Georges-Henri. Stage regional d’études de l’Unesco sur le role
éducatif des musées (Rio de Janeiro, 7-30 septembre 1958). Paris: Unesco, 1960.
redigida por Rivière, que marca a chegada quase oficial do termo muséologie na língua francesa,
consagra igualmente a separação entre uma via prática (a museografia) e seus aspectos teóricos (a
museologia).50 A separação conceitual entre museologia e museografia ainda estava longe de ser
clara e seria aprofundada nos anos seguintes.
Até o final da década de 1960 e início da década seguinte desenvolveram-se tentativas de se
oficializar no país o uso do termo “Museologia” na nomenclatura do antigo Curso de Museus.
Em 1968, o então diretor do MHN, Léo Fonseca e Silva, empenhou-se em mudar a denominação
do Curso de Museus para Faculdade de Museologia, tendo encaminhado a proposta à Câmara de
Planejamento do Conselho Federal de Educação. A câmara pronunciou-se contrária ao projeto de
mudança de nome, justificando a necessidade de o curso estar vinculado a uma universidade, e
não a uma instituição cultural. Foi então providenciado pelo próprio Fonseca e Silva o anteprojeto
de uma Escola Superior de Museologia, que seria apresentado em 1970 ao Conselho Federativo
da recém-criada Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara – FEFIEG.51
Como observa Sá, apesar de o projeto não ter sido concretizado naquele momento, informalmente
o curso assumiu a nova denominação, que aparece nas carteirinhas estudantis e em outros
documentos da época.52
Em 6 de dezembro de 1974, o Conselho Federal de Educação aprovou um novo Regimento
do Curso de Museus, homologado pelo Ministro da Educação e Cultura em 29 de janeiro de 1975.
Esse Regimento apresentava uma concepção mais ampla e engajada dos museus e priorizava a
formação em Museologia. Segundo os novos objetivos do curso, ele buscava:
a) formar profissionais e especialistas de Museologia; b) realizar, desenvolver e incentivar a
pesquisa no campo da Museologia; c) aprimorar processos, métodos e técnicas relativas aos
problemas de Museus, e divulgar seus resultados; d) contribuir, pelos meios ao seu alcance,
50
MAIRESSE, François & DESVALLÉES, André. Muséologie. In: DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire
encyclopédique de muséologie. Paris: Armand Colin, 2011. p. 352.
51
Federação criada pelo Decreto-lei no 773, de 20 de agosto de 1969, que propiciou a integração de instituições tradicionais, como
a Escola Central de Nutrição, a Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, o Conservatório Nacional de Teatro (atual Escola de Teatro),
o Instituto Villa-Lobos, a Fundação Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro e o Curso de Biblioteconomia da Biblioteca
Nacional. Com a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975, a Fefieg passou a denominar-se Federação das Escolas
Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro – Fefierj. Dois anos mais tarde, foram incorporados à Fefierj o Curso Permanente de
Arquivo (do Arquivo Nacional) e o Curso de Museus (do Museu Histórico Nacional). Em 5 de junho de 1979, pela Lei nº 6.555, a Fefierj
foi institucionalizada com o nome de Universidade do Rio de Janeiro – Unirio. Em 24 de outubro de 2003, a Lei nº 10.750 alterou o nome
da universidade para Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, mas a sigla foi mantida como Unirio. Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. “História”. Disponível em: <www.unirio.br/institucional/historia>. Acesso em: 19 out. 2013.
52
SÁ, Ivan Coelho. História e memória do Curso de Museologia: do MHN à Unirio. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro,
v. 39, p. 10-42, 2007. p. 31.
inclusive em articulação com entidades nacionais e internacionais, para o estudo dos problemas
da Museologia, tendo em vista a dinâmica do desenvolvimento do país; e) estender o ensino e a
pesquisa à comunidade, mediante cursos ou serviços especiais [...] (grifos nossos).53
Desde então, uma perspectiva mais conceitual do estudo de museus se viu refletida
nas novas denominações das disciplinas. O exemplo que aqui mais nos interessa refere-se
à Técnica de Museus, que constituía o cerne do curso e é, então, desmembrada em várias
disciplinas de Museologia e Museografia (separadas sistematicamente), correspondendo à
teoria e à prática museológicas. Tereza Scheiner, professora do curso desde início da década de
1970, seria a principal responsável, naquele momento, por reformular e ampliar as disciplinas
que estruturaram a formação em Museologia até o presente,54 tanto no Curso de Museologia da
Unirio, como no Curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e em outros
cursos que seriam criados seguindo esse modelo teórico-prático.
Não parece ser por acaso o fato de, desde 1958, na ocasião do estágio da Unesco no Rio de
Janeiro, Rivière ter se referido à categoria profissional do museólogo (muséologue) atribuindo-
lhe a função de estabelecer o projeto e assegurar a execução dos programas desenvolvidos pelos
conservadores (conservateurs) a serem realizados por museógrafos (muséographes).55 Esse
contexto, que atribuiu à museologia aspectos teóricos dignos do ensino na universidade, levaria
à utilização do termo como um qualitativo geral, isto é, “museológico”, que, no contexto francês,
é mais facilmente substituído por muséal para qualificar o que trata do museu. Hoje, o uso do
qualitativo museológico é muito mais corrente no Brasil, onde foi estabelecida uma lei, em
1984,56 que criou a função de “museólogo” e, em seguida, um Conselho Federal de Museologia
para oficializar a existência dos profissionais que passavam a exercer a função que, na França, é
exercida por conservateurs.57
Considerando que um campo pode ser entendido como “uma rede ou configuração de relações
objetivas entre posições”,58 pode-se falar, nesse sentido, que os agentes antecederam o campo dito
53
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 07 fev. 1975. Regimento e Currículo do Curso de Museus. Parecer nº
4127/74, CFE/MEC, de 6 dez. 1974. Grifos nossos. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Núcleo de Memória da Museologia
no Brasil. Coleção Escola de Museologia.
54
SÁ, Op. cit., p. 35.
55
MAIRESSE, François & DESVALLÉES, André. Muséologie. In: DESVALLÉES, André & MAIRESSE, François. Dictionnaire
encyclopédique de muséologie. Paris: Armand Colin, 2011. p. 352.
56
BRASIL. Lei no 7.287, de 18 de dezembro de 1984. Regulamenta a Profissão de Museólogo. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/L7287.htm>. Acesso em: 30 nov. 2013.
57
MAIRESSE & DESVALLÉES, Op. cit., p. 352.
58
BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. p. 134.
“museológico” no Brasil, uma vez que foi a formação de profissionais com essa titulação que
levou à definição de posições – profissionais, acadêmicas, políticas. É, portanto, quando já se tinha
museólogos formados (ainda que eles não recebessem essa nomenclatura) que passa a existir uma
“Museologia” como campo independente para além do universo do Curso de Museus – onde ela
existiu como um campo de estudos e pesquisas em primeiro lugar. Hoje, não é museólogo no Brasil
quem não tem a formação em um curso universitário, e por isso a mesma lógica permanece.
Como se viu, temos o início de uma inflação do uso dos termos “museologia” e “museológico”
no país que perdura até o presente, e denota, de maneira clara e mais ou menos precisa, a existência
de um campo da Museologia e dos atores que o defenderiam a partir de então.
Se os anos 1930 foram marcados pela introdução, no Brasil, dos termos “museografia” e
“museologia”, cunhados no cenário museal europeu e indefinidos até aquele momento, os anos
1970 e 1980 marcaram o início de um processo de reapropriação desses mesmos termos – e
particularmente do vocábulo “museologia” –, que adquirem, cada vez mais ao longo das últimas
décadas do século XX, um sentido próprio no universo “museológico” brasileiro.
Um segundo Curso de Museologia (assim denominado desde sua concepção inicial) seria
criado no país em 1970, em Salvador, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), vinculado ao
Departamento de História dessa universidade,59 rompendo com a primazia do Curso de Museus
do Rio de Janeiro. Em maio de 1977, na gestão de Diógenes Vianna Guerra (1977-1985), o
Curso de Museus do MHN foi incorporado à Federação das Escolas Federais Isoladas do Rio
de Janeiro (FEFIERJ). Não demoraria para que o curso, que passava a se chamar oficialmente
Curso de Museologia, fosse transferido para o novo prédio do Centro de Ciências Humanas do
que se tornaria, em 1979, a Universidade do Rio de Janeiro (Unirio). Esse foi um passo decisivo
para a separação entre o curso e o MHN: “[...] saindo da tutela de um lugar de memória para
o campo de produção crítica do conhecimento, o universitário, o curso ganhava novo status e
novas possibilidades de renovação.”60 Finalmente, a partir da década de 1990, e, sobretudo,
na primeira década do século XXI, o cenário brasileiro seria povoado por uma série de novos
59
Sobre a criação do curso de Museologia na UFBA ver COSTA, Heloisa Helena F. G. Formação em Museologia – o caso da Bahia. Anais
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v.41, p.239-253, 2009.
60
MAGALHÃES, Aline Montenegro. O que se deve saber para escrever história nos museus? Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro, v. 34, p. 127-128, 2002, p. 128.
61
A abertura desses cursos, a partir de meados da década de 2000, se dá por dois fatores fundamentais: 1) a criação, em 2003, do Departamento
de Museus e Centros Culturais – Demu (atual Instituto Brasileiro de Museus – Ibram, desde 2009), que incentivou a criação de novos cursos
e o fortalecimento dos já existentes; e 2) a implantação da Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – Reuni, programa do
Ministério da Educação – MEC para a expansão das universidades federais no Brasil, colocado em prática entre os anos de 2003 e 2012.
62
BRASIL. Conselho Federal de Educação. Currículo mínimo de museologia. Parecer no 971/69, de 5 dez. 1969; Resolução no 14, de 27 fev.
1970. Este currículo mínimo foi alterado pelo Ministério da Educação em 2001.
63
GUARNIERI, Waldisa Rússio C. Formação profissional. In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (coord.). Waldisa Rússio Camargo
Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, v. 1, 2010, p. 228.
Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), o curso de especialização em Museologia era
beneficiado com sua estrutura e forma pedagógicas e, principalmente, com a interdisciplinaridade
como método.64 Ao justificar tal curso, Rússio Guarnieri65 afirma que, considerando o fato de
que o estudo dos museus e da Museologia exige um caráter interdisciplinar, só parece “viável e
exequível em nível pós-graduado quando os estudantes já possuem domínio de uma disciplina, na
qual estão ‘formados’”.66 No entanto, o curso perduraria até 1992, sem a concretização efetiva do
mestrado em Museologia, graças a uma reformulação da estrutura interna da FESP, que passaria
a se organizar em institutos, deixando de priorizar abordagens interdisciplinares e relegando a
Museologia defendida por Rússio Guarnieri ao segundo plano.
No Rio de Janeiro, Tereza Scheiner seria a principal teórica a pensar e aprofundar algumas
das ideias disseminadas pelo ICOFOM, desenvolvendo um campo de estudos próprio para pensar
a face fenomenológica dos museus.67 Scheiner contempla uma ontologia do museal e propõe
modelos variados do fenômeno “Museu”. Essa perspectiva marcaria a sua atuação como professora
do Curso de Museologia da Unirio, e se faria presente na reformulação do currículo desse mesmo
curso por meio da reforma proposta por ela, em 1995, quando ocupava o cargo de diretora da
Escola de Museologia naquela universidade.
A década de 1990 foi marcada pela intensificação, no Brasil, da produção teórica sob a
influência do ICOFOM,68 consagrando um campo da teoria museológica no país que se traduziu
em projetos teórico-pedagógicos nos cursos universitários. O desenvolvimento de dissertações e
teses na área, bem como a produção articulada com profissionais estrangeiros, elevou a produção
Id. Formação do museólogo: por que em nível de pós-graduação? In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Coord.). Waldisa Rússio Camargo
64
Guarnieri: textos e contextos de uma trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, v.1, 2010, p. 234.
65
A referência ao nome dessa autora, em diferentes trabalhos e inclusive pela própria autora, é feita como Waldisa Rússio, Waldisa Guarnieri
ou Waldisa Rússio Camargo Guarnieri. Neste trabalho privilegiamos o sobrenome mais conhecido (Rússio) somado ao último sobrenome
(Guarnieri), conforme ABNT.
66
GUARNIERI, Op. cit., p. 234.
67
SCHEINER, T. C. Apolo e Dionísio no templo das musas. Museu: gênese, ideia e representações na cultura ocidental. 1998. Dissertação
(Mestrado em comunicação) – Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura. Universidade Federal do Rio de Janeiro/ECO, Rio
de Janeiro, 1998, passim.
68
Essa influência aparece em pelo menos três publicações periódicas. Entre os anos de 1989 e 1990, a museóloga Maria de Lourdes Parreiras
Horta coordenou três volumes do periódico Cadernos Museológicos publicados pela Fundação Nacional Pró-Memória, com uma coletânea
de textos selecionados a partir das publicações do ICOFOM, particularmente os ICOFOM Study Series, traduzidos pela primeira vez para o
português nessa ocasião. Nesses três volumes estavam textos de autores como Desvallées, Sofka, Van Mensch, Sola e Rússio Guarnieri. Cf.
Cadernos Museológicos, Rio de Janeiro, n.1, 2 e 3, 1989-1990. Em São Paulo, professores do Instituto de Museologia da FESP, liderados
por Waldisa Rússio Guarnieri, publicaram o periódico Revista de Museologia, que teve apenas um número, lançado em 1989. Cf. Revista de
Museologia, São Paulo, ano 1, n.1, 1989. Entre 1989 e 1992, foi editada a revista Ciência em Museus, pelo Museu Paraense Emílio Goeldi,
onde foram publicados textos sob influência de publicações do ICOFOM. Cf. Ciência em Museus, Belém, v.1-4, 1989-1992.
dos teóricos brasileiros ao nível de excelência. Em 2001, o Ministério da Educação criou um novo
currículo mínimo para os cursos de Museologia do país, grandemente influenciado pelo curso
da Unirio. Nesse documento, entre as competências previstas para os formandos dos cursos está
“compreender o Museu como fenômeno que se expressa sob diferentes formas, consoante sistemas
de pensamento e códigos sociais”.69
Com efeito, o crescimento acadêmico da Museologia no país viria com a realização
do doutoramento da maioria dos professores dos cursos do Rio de Janeiro e da Bahia, que se
concretizaria, em grande parte, até a primeira década do século XXI. Com a ausência do mestrado
e do doutorado em Museologia até meados dessa década, esses professores tiveram de optar pela
formação em áreas afins, permeando os conteúdos museológicos com a História, a Ciência da
Informação, a Educação, a Sociologia, a Antropologia e a Comunicação. Essa multiplicidade
disciplinar, ao mesmo tempo que permitiria interfaces diversas com tais áreas do saber – algumas
já mais ou menos consolidadas no cenário epistêmico brasileiro –, iria gerar, nos anos seguintes,
uma confusão dialógica e uma dificuldade de autonomia inerente à nossa área no contexto
acadêmico brasileiro. Ao se comprometer com diversos outros campos do saber e estabelecer
parcerias que levariam à criação dos primeiros cursos de pós-graduação em Museologia, esses
mesmos profissionais especializados em áreas afins iriam tornar a Museologia subsidiária a outras
ciências, ainda em vias de se legitimar como tal. Essa abertura a influências diversas faria da
Museologia uma ciência reconhecida, mas colocaria em questão, nos anos seguintes, a conquista
de sua autonomia. Ao abrir a recém-criada disciplina para um diálogo plural com os mais diversos
campos de interesses, os cursos brasileiros instauravam um verdadeiro campo de disputas dentro
de uma área cujos limites ainda eram imprecisos.
Como demonstram as reformas recentes que aconteceram nos dois cursos mais antigos do
país ‒ o do Rio de Janeiro, em 2010, e o da Bahia, em 2007 ‒, os limites da Museologia brasileira
ainda não foram bem traçados e os cursos ainda apresentam uma estrutura fragmentária. Vê-se,
por exemplo, a inclusão de diversas disciplinas ligadas notadamente a outras áreas do saber, e
logo de caráter interdisciplinar, como as disciplinas de Gestão ou as de Sociomuseologia. Tal
estrutura é o reflexo dos diversos embates entre os docentes que defendem uma formação mais
teórica e aqueles que acreditam na necessidade do ensino da Museologia aplicada às coleções e
às práticas museográficas.
Com o desenvolvimento de uma terminologia que separou, ao longo dos últimos cinquenta
anos, a Museologia da Museografia no Brasil, um dos principais desafios do presente tem sido
69
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CES 492/2001, Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, 9 de jul. 2001. p. 50.
unir as duas partes de uma mesma disciplina na produção de um discurso coerente sobre o campo,
o que se reflete na formulação dos currículos dos diversos cursos que já existem no país. Mais
recentemente, com a criação dos programas de pós-graduação stricto sensu em Museologia – o
primeiro no Rio de Janeiro (2006), o segundo em São Paulo (2012) e os dois mais recentes na
Bahia (2013) e no Piauí (2013) – a Museologia busca se tornar um campo de pesquisa autônomo,
lançando mão das próprias correntes e linhas de pensamento que marcam o início de uma nova era.
Oficialmente reconhecida no Brasil como uma ciência social aplicada,70 ou apenas como uma
ciência humana em construção, segundo alguns teóricos do campo, a Museologia não pode deixar
de ser pensada de acordo com os contextos em que são formulados os discursos nos quais esse
termo se insere. Como uma ciência social ou humana, ela não pode escapar a todas as formas
de dominação que a linguística e os seus conceitos exercem ainda sobre essas ciências71 – ao
configurarem as operações de construção dos seus objetos e por serem responsáveis pela circulação
dos seus conceitos fundamentais.
Todavia, ainda que a aceitação do termo indique a existência de uma Museologia no
Brasil, podemos considerar a presença de várias correntes museológicas que tornam a nossa
Museologia constantemente jovem porque ainda em vias de desabrochar por completo como
uma só Museologia integrada e facilmente aceita no quadro epistêmico brasileiro. Se existe,
com efeito, uma Museologia, ela está balizada pelas diversas questões e contextualizações
próprias do Brasil e de cada uma das regiões em que se pensa e se faz a Museologia no território
nacional, seguindo os parâmetros e as recomendações que foram cunhados inicialmente com
base no curso do Rio de Janeiro. Hoje. esse é apenas um dos quinze cursos existentes nas mais
variadas regiões do país.
Desde 2008, a proliferação dos cursos de Museologia fez surgir uma rede de professores
e pesquisadores de Museologia no Brasil, e começou-se a discutir os parâmetros dessa disciplina
e sua formação efetivamente em âmbito nacional. Se, por muito tempo, a Museologia brasileira
foi marcada por dicotomias e contrastes do pensamento museológico no Rio de Janeiro e em
São Paulo (como se veem refletidos nos pensamentos de Rússio Guarnieri e Scheiner, que
não foram rivais, mas colegas de ICOFOM), hoje um cenário muito mais complexo de ideias
múltiplas se apresenta.
70
Segundo os critérios de classificação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).
71
BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 2009. p. 13.
72
CARRAZZONI, Maria Elisa. Estágio de Museologia na França. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v.19, p. 176-197,
1968; SCHEINER, Tereza Cristina. Museologia e patrimônio: interfaces disciplinares entre a França e o Brasil. Ciência & Trópicos, Recife,
v.33, n.2, p. 313-334, 2009; SÁ, Ivan Coelho de. Formação em museologia no Brasil: a contribuição da Unirio e as recentes transformações.
In: BARJA, Wagner. Gestão museológica: questões teóricas e práticas. Brasília: Câmara dos Deputados, 2013, p. 123-129.
73
Não identificamos, na presente pesquisa, nenhuma fonte direta que ligue o Curso de Museus à École du Louvre no período da criação do
curso brasileiro.
Seminário Internacional
90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012)
Dias 1, 2 e 3 de outubro de 2012
Anualmente, o Museu Histórico Nacional (MHN), com o apoio do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e
em parceria com universidades, instituições culturais e de pesquisa, do Brasil e do exterior, realiza em outubro,
mês de sua criação, um seminário internacional abordando variados temas da história e das ciências sociais. Em
2012, em comemoração aos seus 90 anos de existência, o MHN dedica o evento à reflexão e ao debate sobre sua
trajetória de nove décadas, período em que se tornou referência em diversas áreas do campo museal, com destaque
para o ensino da museologia.
Criado em 1932, o Curso de Museus do MHN deu origem à atual Escola de Museologia da Unirio, a primeira da
América Latina, que este ano comemora 80 anos de existência e é nossa parceira na realização deste seminário.
O MHN foi, ainda, pioneiro na política de preservação do patrimônio nacional com a Inspetoria de Monumentos
Nacionais, atuante como um de seus departamentos entre 1934 e 1937.
1o de outubro
9h – Inscrições gratuitas e credenciamento no local. Cesar Ornellas – Instituto Superior La Salle do Rio de Janeiro
Coordenadora: Eliane Vieira – MHN
9h30min – Sessão de abertura
José do Nascimento Júnior – Presidente do Ibram
14h – Conferência: “90 anos em histórias na ‘Casa
Vera Lúcia Bottrel Tostes – Diretora do MHN
do Brasil’”
Ivan Coelho de Sá – Diretor da Escola de Museologia da
Conferencista: José Neves Bittencourt – Iphan – BH/Ufop
Unirio.
Debatedora: Angela Cunha da Motta Telles – Unesa
10h – Conferência de abertura: “Olhares sobre o
15h – Mesa-redonda: “90 anos de narrativas no
Brasil de 1922”
MHN: coleções, publicações e exposições”
Conferencista: Angela de Castro Gomes – CPDOC/FGV
Adler Homero Fonseca de Castro – Iphan
Debatedora: Carina Martins Costa – Uerj
Roberto de Magalhães Veiga – PUC-RIO
Cícero Antonio Fonseca de Almeida – Ibram
11h – Mesa-redonda: “Visões sobre o Rio de Janeiro
Coordenadora: Sarah Fassa Benchetrit – MHN
de 1922”
Marieta de Moraes Ferreira – UFRJ
Ruth Levy – Fundação Eva Klabin
Local do evento:
Dias 1, 2 e 3 (Conferências e Mesas Redondas da manhã):
Museu Histórico Nacional
Praça Marechal Âncora, s/n.
Próximo à Praça XV – Centro
20021-200 – Rio de Janeiro – RJ
Este livro, 90 anos do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012), foi composto e impresso para o Museu Histórico Nacional na
ImpressoArt Editora Gráfica Ltda., em Curitiba, com tipologias Times New Roman e Futura.
A
o completar noventa anos de existência, o Museu Histórico Nacional (MHN) se
vê inserido na dinâmica do mundo moderno, afinado com as demandas do seu
tempo. O desafio da produção e divulgação do passado em diferentes suportes,
como as exposições e as publicações, nos impulsiona a estabelecer diálogos cada
vez mais amplos e constantes com a sociedade, de um modo geral, e as instituições de cultura,
ensino e pesquisa, mais especificamente.
O Seminário Internacional é um dos principais espaços de realização desses diálogos.
Com edição anual, sempre em outubro, momento em que o MHN comemora seu aniversário
de inauguração, reúne professores, pesquisadores, técnicos, profissionais das mais diversas
áreas do conhecimento, estudantes e público geral para apresentação de trabalhos, debates
e reflexões sobre diversos assuntos, desde os ligados à história e à museologia até os mais
específicos, relacionados a alguma data comemorativa. O evento de 2012 não poderia deixar
de ser dedicado aos noventa anos de criação do MHN, por um longo tempo também chamado
Casa do Brasil.
Realizado entre os dias 1 e 3 de outubro de 2012, o Seminário Internacional 90 anos
do Museu Histórico Nacional em debate (1922-2012) não se dedicou apenas à análise da
trajetória institucional do museu. Conforme mostra a organização do livro e o programa do
evento a que o leitor terá acesso nesta publicação, houve a preocupação em abordar o
momento histórico no qual o MHN foi criado, as iniciativas que antecederam e sucederam à
sua criação em ações pioneiras, como a preservação do patrimônio – com a Inspetoria de
Monumentos Nacionais, entre 1934 e 1937 –, bem como as que significaram uma continuidade
de iniciativas pioneiras do MHN – como a Escola de Museologia da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (Unirio), oriunda do Curso de Museus criado no MHN em 1932.”