(LV) CONTOS DE N'NORI

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 92

Aml1car Glbral,

para que o anum/i no nos surplff1lda com a sua povoao grrua/mente


af idalgada Q custa do sllor dos qlle labutam incanSvelmCJle 110 caminho
agreste, pnra atravessar a ponte que gala a ramo entre o ser, o poder e o
saber.
Carlos-Edmilsoll
GravurQ qle serviu de base emiSSlo do primiro selo de correio da Guint-BiSSRII
3
*
N'Dji nori ^ n'cansa + estou cansado
5
NDICE
1)
. .
Noiba Nabo ........................................................................ 15
2)
~
Caadores de Lagartixas ........ ....... .......... ......................... 19
3) . Conto Vivido +++.e...e+......+++++++++++ . ........................... 30
4)

O Homem da Fauta +.++..e+e..e..e.ee....+ . ....................... 33
5)

rvore Seca ++++.++..+e+++.+.++++++++++............+.............+.. + 41
6)

Serenata ++++++ ++++++++++++~++e++++++++++++++++++++ ++ 43
7)

Recalcamentos ++++.++..+........++.++++.+.........+.......+.+ 47
8)
~
Mafingharaw? ..++ ++++++++++++++++++...e.++..+ee...+e.e..ee.e.... 80
6
Para a minha filha, Crs.
7
Recados
para
os meus herdeiros
8
Autor: Carlos-Edmilson M. Vieira
Patrocnio: Petromar, LDA
A"anjos grfcos: Jo de Barros Comunicaes LDA,
Paginao Electrnica: Feralldo Femira e Carlos Casimiro.
Imprsso: Novagrca, LDA
Editora: Edio do autor
Te: (336) 84 45 40 79
Fa: (331) 42 89 27 93
Tiragem: 500 exemplares
9
guisa do prefcio
N
a Guin-Bissau, tudo parece apontar para que sejamos invaria
velmente um pas cuja sina seja a eoiladessa '. Desde a mais remo
ta poca pr-colonial ao perodo da luta pela independncia e a
consolidao desta, a nossa prpria Histria foi imutavelemente a de epo
peica resistncia entrecortada com uma aparente reordenao que amide se
nos afigura como uma paz podre e simultaneamente como uma espcie de
antecmara de um novo rebolio que se avizinha, e assim sucessivamente.
A falncia de modelos ideolgicos, o consequente cepticismo no domnio
poltico por ele gerado, s deixou lugar para pulses arcazantes, primitivis
mo de conscincia. As perspectivas desenvolvimentistas at aqui ensaiadas,
no passaram elas prprias de uma folia mistificada a partir do imaginrio
colectivo que, de miragem em miragem, nos auto-impuzemos de forma
masoquista no exerccio da habitue gesto do impasse.
Neste frenesim perverso, no h espiritualidade que resista a eroso gera
cional dos valores culturais guineenses, por mais nobres que tenham sido e,
escusado ser dizer-se que da refrega que foi e a barafunda total dos para
digmas que corporizam e corporizaram a nossa gerao, ainda pode sobrar
tempo e serenidade necessrias para a reconstituio da espiritualidade
multiforme em que a nossa gerao se socializou, sob o signo da eoiladessa -
certo -, mas perfeitamente inserido na cadeia das contribuies dispares e
vrias que cumulativamente conformam quilo a que eufemisticamente
poderamos chamar de elhs nacional.
10
Na tentativa de nos revermos artisticamente pela escrita, ante a riqueza
do manancial cultural que foi a experincia da nossa gerao, porventura,
h-de nos faltar a perspiccia de um Gabriel Garcia Marques para descrever
at a minncia do pormenor as tergiversaes que a nossa rasca gerao
experimentou no dealbar dos tempos. Mesmo abstraindo-se da coiladessa
como marca primeira e eventualmente a mais marcante do nosso processo
de socializao, merc da sua forte conatao poltica, soobrar a esta gera
o a inadivel tarefa de perenizao diacrnica dos residuais toponmicos
que foram os nossos referenciais colectvos: cipes, classe de saltos, imprio,
floresta, mocidade portuguesa, Escola Tcnica, Bloco, Cobiana Djaz,
Juventude 71, Capas Negras, Liceu Honrio Barreto, PAIGC, PIDE, Caboir
7, Salo de Luxo, UDIB, Liceu Kwame N'Krumah, JAAC, grupos recreativos,
N'Kassa Kobra, Tenankoia, Chave de Ouro, Bairro d' Ajuda, Tchon de Papel,
Reno de N'Djaka, Praa, etc.
Tal exerccio, curiosamente, -nos apresentado por Noni: um colega gui
neense da dispora atento a evoluo do seu pas no obstante as condies
de ausncia fsica que lhe impe mais a condio de observador que obser
vado, procurando assim nos "Contos de N'Nori" perpetuar a sua e a vivn
cia da sua gerao, numa mescla temtica que oscila desde os contos infan
tis e estrias antropolgicas gnero queles que atravessam geraes, pre
passando pela crtca social duma cruel caminhada de experincia vivida e,
por isso, sentida e amide revivida pelos conterrneos: a euforia e a entrega
cmplice que devotamos aos ideais da luta de libertao nacional, o qual
imprimiu uma forte perserverana a nossa colectiva formao moral e
humana e nos transformou igualmente em testemunhos vivos do vil percur
so que degenerou na putrefaco, pelo processo da perservao e inverso
de valores dos nossos paradigmas geracionais.
Em escassos anos, a regra do jogo no apenas nos planos poltico e ideo-
u
lgico, mas mais fundamentalmente no ecnomico e no cultural, desapare
ceu e entramos numa nova fase de catstrofes morais. Salve-se quem puder,
cada um por si e Deus por ningum. Das posturas caractersticas de todas as
decadncias, ao individualismo como valor-refgio contra uma sociedade ao
mesmo tempo omnispresente e ausente, mquina insolidria por excelncia,
as opes, na nossa Guin, no so muitas. Alis, as duas - a omnipresena
e a ausncia - combinam-se perfeitamente.
Numa s expresso inserta em Contos de N'Nori ("Estou cansado de estar
cansado"), Noni sintetiza, porventura, o fervilhar colectivo do nosso desfa
lecimento numa sociedade que no obstante as mil esperanas, os m desa
pontamentos, sobrenada o princpio do prazer, o culto do sucesso de toda a
carreira, o xtase da violncia, os quais, no seu conjunto, foram descritos por
um autor j amadurecido e em plena posse dos seus recursos, atingindo no
raras vezes um profundo realismo que ajuda a entender, a sentir, o drama e
o impasse da Guin-Bissau que se prolonga at aos nossos dias.
Embora a obra v buscar at as suas origens a realidade deste temor naci
onal e, por outro lado, oferea "o amor" que figura como soluo eficiente e
talvez a nica para o problema a que se tenha alguma vez apresentado aos
guineenses. A medida do benefcio obtido ficar dada pela atitude de cada
qual perante os princpios expressos em "Contos de N'Nori". Porm, estes
no so outros seno as eteras lei da vida.
1
Pobreza e crioulo, no sentido estrito senso, mas podendo tambm signifcar,
nalguns contextos, a eocao do carcter sublime do guineense em resignar-se ao
sofimento com dignidade e valntia sofimento.
Bissau, Junho de 00
Leopoldo Amado
12
Posfcio
T
udo o que conhecemos da Literatura da Guin-Bissau (alis um
caso de Literatura Nacional ainda em emergncia) parece mani
festar-se de modo plausvel nestes "Contos de N'Nori" de Carlos-
Edmilson M. Vieira. Desde logo a sua temtica (ora citadina, ora rural), e
mais as abordagens ou incises que produz no tecido social sobre o qual
toma o relevo: da lenda aos costumes e tradies do povo, da crnica da
infncia as pginas laudatrias e aos caprichos do amor, da memria hist
rica do pais coloniado as suas vicissitudes sociais e polticas mais recentes.
Depois, a natureza e a expresso da sua linguagem: uma espcie de sintonia
entre a oralidade e os temas da tradio; por outro lado, as diversas experi
ncias de uma escrita mais ou menos adequada aos fins (neles se incluindo,
obviamente, a finalidade literria) e culminando no mais belo e elaborado
conto deste volume: "Mafingharaw?". Um texto que um libelo de acusa
o em concreto em abstrato, talvez a metfora potica e algo surrealista
dum pais em tempo de anarquia, violncia e dissoluo. A histria fiada e
em parte absurda de um homem de dois poderes que acaba afinal as mos
de uma "revolta do lixo" e de quem nele mexe e remexe a procura de uma
culpa que j contaminou tudo e todos em rededor.
Como acaba por suceder em todos os livro de contos, tambm neste se
toma patentes e mesmo inevitveis as pequenas desigualdades de tom e de
modo narrativo, e do mesmo modo nele se colocam os to falados problems
da coerncia estilstica e da unidade intera da obra. Mas mesmo no predo
minio desta linguagem oralizada existe um "estilo" e uma multiplicao de
vozes, a do autor e as dos seus narradores, e por imanncia tambm a do
escritor Carlos-Edmilson Vieria, que neste livro ergue a figura da palavra
13
contra o silncio de um pas literrio ainda por existir. O facto que estes
contos acabam por ser a propedutica narrativa de uma Literatura a haver, a
qual devem desde j chamar-se os nomes dos seus raros poetas conhecidos
(nomeadamente, os da guerra de libertacao nacional, congregados na anto
logia "Mantenhas para quem luta" e nas recolhas poticas de Mrio de
Andrade) - mas mais ainda tudo o que se desconhece de outros ficcionstas
guineenses que de certo apenas esperam a sua vez de falar, digo, de publi
car.
14
Joo de Melo
(Lisboa -
1
999)
NOIBANOBO
Y
r-Yr_ .. Yr certo, era um velho vivo que vivia numa tabanca
longe das grandes cidades, tinha como famlia e riqueza: uma filha
de quinze anos, um porco, uma vaca e uma cabra. Ei a famlia do
velho Pagode pai da Tagara.
Durante a poca das chuvas do ano passado morreu-lhe a mulher, vtima
da malria, mas ningum conseguia convencer o tio Pagode de que a mulher
morreu de uma doena natural, a sua verso a do ir e por isso insistiu em
dizer que ela morreu por o ter feito a cerimnia aps a morte do seu pai.
De tanto desgosto, decidiu mudar de tabanca, disse filha para pre
parar a bagagem, que na verdade, no era muita coisa.
Caminharam sete dias e sete noites, chegaram de manh muito cedo a
uma tabanca chamada N'Dul. Foram conduzidos casa do chefe da taban
ca, sentaram-se, serviram-lhes um cabaz de leite fresco com mandioca.
Depois de comer, o tio Pagode explicou o porqu da sua vinda com a sua
filha a N'Dul. O chefe da tabanca e os seus ancios, ficaram sentidos com a
triste histria dos caminhantes, resolveram oferecer-lhes guarida por um
tempo indeterminado.
Os dias, meses e meses, foram passando, pouco a pouco a pequena
famia foi-se integrando, construiram uma casota de adobe coberta de palha
e acabaram por fazer parte da populao de N'Dul.
A Tagara era muito bonita, esbelta com uma boca bem desenhada de lbi
os caudos, um nariz grande a condizer com os lbios e uns olhos bem pre
tos, sempre a brilhar. TInha umas tranas fininhas com missangas de vrios
coloridos, as suas pernas bem toreadas davam-lhe um ar de nobre em cima
de um cavalo branco.
15
Todos os mancebos de N'Dul tinham olho nela, mas ela, ciente da
sua beleza, falava, brincava com todos, mas sem dar muita confiana.
Passava a maior parte do seu tempo livre com o porco, a vaca e a cabra. No
fundo eram os seus melhores amigos.
Um belo dia, quando o sol j estava a cair, um jovem robusto, com apa-
rncia de boa sade, decidiu ir falar com o tio Pagode.
- Boa tarde, tio.
- Boa tarde, senta-te, o que que te traz por aqui?
. Tio, como vai a casa?
- Tudo bem, obrigado.
- A Tagara vai bem?
- Graas a Deus, se no tivesse essa filha, no sei o que seria de mim neste
Mundo.
- Tio, sabe ... vim c . . . como sabe, sou o melhor caador de N'Dul, n
gum me pode igualar nessa matria, pois como estava a dizer, j h muito
tempo que estava querendo vir falar consigo, mas infelizmente tenho estado
muito ocupado ... E tambm era preciso um pouco de coragem para tal, no
, mas tambm como j no aguento mais, decidi mesmo vir falar com o
homem grande, pois o mais velho sabe, um homem s morre uma vez! ..
- Vim c, porque quero casar com a sua filha Tagara, e tenho aqui uma
gazela para comear, e mais, prometo trazer todos os dias, mesma hora,
uma pea da minha caa para voc.
O tio Pagode refectiu ag segundos, ps uma mo na barba, coou a
cabea, olhou de soslaio para a gazela bem gorda, um sorriso floriu nos seus
lbios e respondeu, abanando a cabea:
- Est bem, meu filho, deixa ficar a care, depois vou mandar chamar-te
para assentanos o casamento.
16
Assim sucederam mais trs outros candidatos: um pescador que prome
teu peixe todos os dias, um agricultor que prometeu um balaio de arroz
todos dias e um pastor que prometeu um boi todos os meses.
-.
Tiveram a mesma resposta do tio Pagode, que s pensava na sua riqueza
que crescia dia aps dia. O tempo foi passando e toda a tabanca de N'Dul
vivia na expectativa do dia do casamento da Tagara.
Quando chegou o grande dia, a Tagara acordou de madrugada, viu o
velho sentado varanda com o seu manto vermelho, no mesmo stio onde o
tinha deixado no dia anterior, com os cotovelos em cima dos joelhos e as
mos debaixo do queixo, o olhar fixo no horizonte onde um sol timido emer
gia lentamente das nuvens.
Aflita perguntou ao pai o que que tinha, se estava doente *. O velho aba
nou a cabea da esquerda para a direita e vice-versa.
- Mas fala, pai! O que que se passa ?
- Minha filha querida, a tua beleza meteu-me numa afronta que no sei
como vou sair dela
- Conta-me, pai, talvez possa ajudar.
- No acredito, este assunto muito bicudo.
- Est bem, mas sempre partilhmos os nossos problemas.
- Sabes, j ests na idade de te casares e prometi a tua mo a quatro
homens, agora no sei qual deles deve ser teu marido, e o pior que j gas
tei quase tudo o que me deram.
- No te preocupes, vamos encontrar uma soluo.
Tagara chamou o porco, a vaca e a cabra, foram para o matagal perto da
tabanca e disse-lhes muito preocupada:
17
o meu pai tem u grande problema, ele fez isto, isto e ito. Explicou a
situao aos trs amigos que escutavam com muita ateno. Estes responde
ram:
- No h problemas, ns sabemos como resolver este assunto.
No dia D, toda a populao de N'Dul se juntou em frente casa do velho
Pagode: os quatro pretendentes na linha da frente, familiares, amigos e mui
tos curiosos. Parecia a festa da colheita de arroz, a maior de todas as festas
da tabanca.
Falavam todos ao mesmo tempo.
De repente apareceu o tio Pagode. Todos se calaram, e ainda maior foi o
silncio quando viram quatro meninas igualssimas. Por outras palavras,
quatro Tagaras que se alinharam atrs do tio Pagode.
Este levantou a cabea cheio de orgulho, fez um breve discurso de conse
lhos e recomendaes aos seus quatro genros, que partiram felizes cada u
com ua mulher.
por isso que hoje em dia, de todo o homem cuja mulher desarrumada
e mantm a casa sempre suja se diz: este casou-se com o PORCO;
Daquele cuja mulher est sempre a brigar: casou-se com a VACA e,
daquele cuja mulher leviana casou-se com a CABRA.
S um dos homens casou com a verdadeira Tagara.
A sorte nos reserva a mulher que merecemos.
18

CAADORES DE LAGARTAS
I
E
spera a, p, j vamos. - Disse o Joo. - Despacha-te, sabes que j
passa das cinco horas e trinta minutos e o Pap ontem avisou-nos
que se chegasse casa antes de ns, ia bater-nos. - Retorquiu o Z.
- Est bem, est bem, t s u medricas do carago. - Resmungou o Joo
que limpando as mos no traseiro do calo, que levava um remendo de
outa cor no lugar do bolo.
O Joo e o Z so irmos do mesmo pai mas de mes diferentes. O
Joo mais velho, tem quinze anos, a me morreu ele ainda s tinha seis
anos. A me do Z, casada com o pai deles, tinha mais dois filhos e duas
filhas mais velhos e mesmo assim aceitou o Joo em casa como se fosse mais
u filho. A questo que se pe prende-se com a educao que o Joo traz de
casa da falecida me que era solteira. Como se diz vulgarmente, em casa
onde no h homem, o filho sai maricas ou malcriado. Este ltimo adjectivo
corresponde ao perfil do Joo, o que entrava em contradio com a famlia
do senhor Caetano e da dona Josefa, casal respeitado e respeitador de todos
no bairro. Catlicos praticantes, iam todos os domingos igreja, arrastando
com eles todos os herdeiros.
- Boa tarde.
- Boa tarde, j chegaste?
- J, j parei um pouco em casa do meu compadre Pedro, j sabes como
ele , quando comea a falar de futebol, tem que se lhe desligar o cabo, se no
o homem no se cala.
- Pois , ests por aqui a dizer isso, tambm no gostas menos.
Quer dizer ...
19
Fez uma pausa, tirou o chapu, sentou-se e pediu um copo de gua ... -
Uma coisa gostar outra coisa ser fantico. O meu compadre doente do
Benfica. No segredo para ningum que quando o Benfica perde um jogo,
l em casa dele entra tudo e todos em estado de alerta; por um sim por um
no bate nos filhos.
- Isso verdade, uma vez at a pobre da mulher apanhou. Com vergonha,
ela disse-nos no mercado que tinha batido com a cara na porta quando a lu
se foi.
- A propsito, o Joo e o Z j lancharam?
- Ainda bem que chegaste, nem fumo nem vento, est a escurecer e no
tomaram banho.
- O qu?
- Tal como ouviste, j no sei como falar com essas crianas, o Joo est
cada vez pior. Agora o Z anda na sua escola e os dois vo acabar por dar
comigo em louca.
- Eu no gosto de bater porque depois perco a cabea e acabo por mago
los, mas hoje vo ter o que h muito andam a pedir, no possvel continu
arem assim!
O Joo e o Z vinham descontrados pelo caminho com o resto da
miudagem do bairro. Tinham ido s mangas, escutavam o T contar como
que conseguiu dar a volta ao tio Camala.
Tio Camala um velho, tem um grande quintal cheio de mangueiras,
cego e mal consegue andar. Nesta poca das mangas, passa a maior parte do
seu tempo sentado debaixo delas com um monte de pedras ao seu lado e o
seu "LAMPARAM". Basta uma pessoa estranha entrar no quintal sem auto
rizao ele comea logo a bombardear com o lamparam. O pior que o tio
20
muito certeiro, aquilo pedras atrs de pedras, para a rapaziada, isso sem
pre foi um mistrio. Indagavam sempre: como que ele consegue nos ver?
- Deve ser feiticeiro, dizia um.
- No nada, disse o T, o que ele tem um sentido auditivo muito
desenvolvido, pois como perdeu a viso, desenvolveu a sua audio, ao
ponto de ultrapassar o normal nos seres humanos. O T o maior maroto de
toda a banda, convenceu o velho que podia trepar s mangueiras para apa
nhar as mangas maduras antes de serem comidas pelos morcegos. No fim, o
tio tirava quatro ou trs para lhe pagar o servio. O velho concordou com a
proposta, priori, honesta.
Mas o T, malandro como sempre, quando ia honrar o trato com o tio
Camala levava com ele o Romel. Este devia ficar fora do radar auditivo do
tio, do outro lado do quintal e, sobretudo, no se mexer muito de modo a
que o velho ceguinho no lhe farejasse a presena.
O T subia s mangueiras, uma a uma, cada vez que apanhava trs, dei
xava cair duas ao p do to e lanava uma para fora do quintal, onde o
Romel, que o melhor guarda-redes da equipa, tinha que fazer acrobacias
para apanh-Ia em pleno voo os ouvidos apuradssimos do tio Camala nada
apuravam. Finda a operao apanha mangas, o tio Camala graciava o T
com algumas mangas numa operao de diviso pouco proporcional, mas o
T pouco ligava porque depois ia ter com o Romel para dividirem equitati
vamente o fruto da sua operao.
- Ei, e se fssemos caar lagartixas - lanou O Joo.
- Genial, vamos ao campo de rdio a que tem uns bem grandes "cabe
as amarelas" aprontou-se o T a atiar a ideia. Todos seguiram com grande
21
entusiasmo, comearam a apanar pedras pelo caminho, chegaram ao terre
no de caa e viram muitas lagartixas debaixo do embandeiro. Os que lhes
interessavam eram machos, os famosos cabea amarela cor do sol. Esses
estavam sempre a abanar a cabea de cima para baixo e de baixo para cima.
Diz-se que com esse gesto insultavam os passantes e por isso que so sem
pre alvos de perseguio dos rapazes caadores de lagartixas.
- Vamos a eles - gritou o Joo.
- Vamos - responderam todos em forma de grito de guerra.
Comearam a metralhar as lagartixas. As pedras voavam em todos os
sentidos, de ua forma sincrnica. O ataque durou mais ou menos dois ou
trs minutos. Ao mesmo tempo que lanavam as pedras, os bravos caado
res corriam e gritavam em direco ao embandeiro. Os rpteis que conse
guiam escapar trepavam o embandeiro e iam procurar refgio nos pontos
mais altos da rvore para ficarem fora do alcance dos braos dos caadores.
- Apanhei u.
- No fui eu, acertei-lhe mesmo em cheio
- Espera, espera - disse o Z, temos c uma cabea amarela, ainda mexe o
rabo, est vivo ... est vivo_ .. - desatou a gritar.
- Ca, ca, va f u ora diso Jo #
. Boa ideia confirmou o Tefolo, . vou preparar o bisturi.
O bisturi um caco de garrafa partida naquele momento .
. Esperem por mim, vou buscar ua agulha em casa da minha tia, ela
22
mora aqui perto - disse o T.
- No preciso, tenho tudo no meu estojo de mdico. Ao dizer isso, o Joo
meteu a mo no bolso. Com muito jeito tirou uma caixa de fsforos, abriu-a,
dela tirou uma agulha j com um fio e pousou cuidadosamente a caixinha no
cho. Os outros seguraram a lagartixa pelas quatro patas, deitaram-na de
costas, ficando a barriga bem esticadinha, virada para o cu.
O T entregou o caco ao Joo. Este agachou-se por sua vez e fez-se um
silncio ritual. Comeou cuidadosamente a abrir o bichinho de cima para
baixo, deixando aparecer os seus rgos ao ar livre. O Joo levantou a cabe
a e disse aos outros:
- Olhem como bate o corao.
Tefolo completou: - deve estar com medo.
O Z acrescentou: - no, deve ter frio. Joo, chega-me a agulha. Agora
comigo. Pegou a agulha e coseu a barriga da lagartixa, sem estremecer, sob
o olhar admirado dos colegas.
- Bom, agora levem o doente para uma sombra.
Os outros executaram sem fazerem comentrios.
-

ptimo, agora afastem-se. Os outros obedeceram em silncio. Ele abriu


a breguilha do seu calo, olhou para a esquerda, para a direita e para trs,
tirou devagarinho o seu pipi e comeou a mijar em cima da cabea da lagar
tixa ...
Esta mexeu primeiro o rabo. O Z continuou a sua proeza, impvido e
sereno.
De repente a lagartixa mexeu a cabea duas vezes. O Z parou imediata
mente e disse aos outros que ela estava fora de perigo.
- Podemos ir embora - concluiu.
23
II
Tomaram todos o caminho de regresso base, as suas casas. No meio do
caminho o Joo exclamou:
- Ena p! Z, hoje o nosso velho vai matar-nos, j viste que horas so?
- Calma Joo, o importante no entrarmos em pnico. Vamos encontrar
uma explicao plausvel sem deixar a mnima hiptese ao pai de discordar.
- Agora, qual a desculpa hem ? Qual ?
- J te disse para teres calma, seno, no consigo reflectir.
Os outros ouviam com muita ateno mas sem comentrios, porque no
fundo estavam todos no mesmo saco. Esperavam que o Z pusesse a sua fr
til imaginao em aco.
Caminhavam todos cabisbaixos, de boca calada como se acompanhassem
uma procisso religiosa. Conforme se iam aproximando das suas casas,
maior era a presso de olhares e entreolhares de cumplicidade. O nico que
andava sem olhar para ningum, dando a impresso de ser guiado pelas
nuvens, era O Z.
De repente parou. Os outros pararam instntivamente, numa reaco em
cadeia.
O Z ps a mo esquerda frme na cintura, levou devagarinho a mo
direita boca e comeou a falar pausadamente:
- Escutem com muita ateno porque no vou repetir, vamos chegar com
ar triste e preocupado, e nada de galhofas, quando nos perguntarem o por
qu deste inabitual atraso. Vamos dizer que estivemos a estudar depois das
aulas, porque amanh temos uma prova decisiva que vai determinar em fun
o das notas obtidas, a escolha dos alunos que vo para o exame do fim do
ano lectivo.
24
Como na escola no h corte de energia elctrica, pedimos ao senhor
Armando (contnuo da escola) para nos deixar ficar debaixo do candeeiro da
entrada prncipal da escola. Instlamo-nos nos degraus da escada, e passa
dos alguns mnutos apareceu o Manei (o terror da escola): o mais velho da
turma, tem dezoito anos. Alguns dizem que ele j conheceu mulher e tudo.
Eu e ele nunca nos demos bem, sei que no pode comigo e eu no o posso
sentir nem com molho de sig em cima.
O Z tem doze anos mas faz-se passar por mais velho que a sua idade por
no se deixar pisar os calos. Nesse dia, durante o ntervalo das 16hOO s
16h30, o Manei quis tirar fora o lanche ao Z. Esse defendeu-se, fugn
do, e foi contar o ocorrido ao senhor Armando que, por sua vez, como
homem de bom zelo no exerccio das suas fnes de contno, foi ao ptio do
recreio buscar o ManeI.
Levou-o para a sala de castigos, obrigou-o a pr-se de joelhos em cima de
um monte de cascalhos, onde ficou durante toda a meia hora do ntervalo,
privado de usufruir desse tempo livre, e sob a vigilcia permanente do
senhor Armando que, sentado porta da sala, tinha u olho no Manei e
outro nos midos que corriam e saltavam no ptio da escola e todas as
direces, sem que nngum se atrevesse a olhar para o castigado.
O Z contnuou a expor a sua brilhante ideia, ilustrando com ges
tos os dizeres que espelhavam a forma como deveriam convencer os pais.
Seria assim:
Que, o Manei apareceu, mala viu quis-lhe bater para se vngar do casti
go que apanhou por causa da queixnha. O Manei parou, olhou bem para
ele, Z, e desatou-se a rir. O Manei ento disse:
- H, h-, ha ... apanhei o malandro, dou graas a Deus.
25
- Calma a, compadre, deixa o puto em paz, p, - tia avisado o Joo.
- Olha quem fala, queres defender o maninho, ?
- p, se tocares um dedo sequer nele, vais ter srios problemas comigo.
- Isso mesmo, faz muito tempo que eu queria ter uma conversa de homem
para homem contigo. Tu no s homem no s nada se no lutares comigo.
- Ok, mas aqui no, o senhor Armando no deve estar muito longe e eu
no quero ter problemas na escola por tua causa, se s "macho" vem comigo
at 'jonte de bas"
- E vamos dizer. .. - continuou o Z em plena exclamao ... - que fomos
todos juntos para a "fonte de bas". Quando chegmos, fizemos uma roda a
volta do Joo e do ManeI. E que eles fitavam-se como dois galos que tinham
sido lanados ao centro de um cerco para combaterem, como se faz na
Amrica Latina. Mediam as foras com o olhar, cada um tentava intimidar o
adversrio com o olhar de grande gladiador.
- Toca-me no peito, se tu s homem - comeava o Manei
- No, toca-me t .=. foste tu que me desafaste - respondia o Joo.
- Ests a falar muito, pareces uma mulher que no tem homem, Joo.
- J olhaste bem para a tua cara de lata? Acho que no tens espelho em
casa, o que tu tens uma lngua muito comprida, mais nada - contra-ataca
va o Joo.
- Ds-me vontade de rir - voltava o Manei ofensiva - tens o peito cheio
que nem o peru mas l dentro s tens vento.
- Acho que estamos a perder tempo - atava o Z.
- E tu cala-te, ningum te pediu a tua opinio, - resmungava o Manei a
fumegar de raiva. A pensar que tinha ficado privado do recreio por causa
desse fedelho atrevido e que agora ia ter que medir foras com o irmo numa
luta que, de certeza, no dia seguinte, toda a escola iria ficar a saber quem
26
'.
1
1
)
;
levou a melhor. Isso criaria um precedente e poderia pr a sua honra em
causa, eis o porqu da questo.
- Vou-vos tratar da sade, primeiro vou-te comer c, falava apontando o
dedo para o Joo e depois esse frango do teu irmo vai-me servir de sobre
mesa.
- Na boca isso fcil de se dizer, anda c, que vou-te mostrar com que
lenha que me aqueo.
Puseram-se em posio de boxe, comearam a andar roda, ora para
a esquerda, ora para a direita, imitando os boxistas no ringue. A assistncia
comearia a gritar: parte-lhe a cara Joo, isso mesmo, u ... vamos l ..
- Ii, ei o que isso?
Foi quando o Tefolo deu a alerta - Vem a o senhor Armando.
Apanharam as pastas precipitadamente e desataram a correr em direco da
casa.
o Z calou-se um minuto e de seguida perguntou: - perceberam
bem? ... Temos todos que contar a mesma histria, nada de falhano.
Os outros disseram que sim, salvo o Joo que interrogou:
- Mas assim o pai vai-me bater, ele proibiu-nos de lutar na rua.
- No chegaste a lutar - contrariou o RomeI.
- verdade, depois seria para me defender - rematou o Z.
- Sim, mas vai sobrar para m, quem corre o maior risco nesta histria
sou eu.
- Temos que sair dessa, Joo, a no ser que tenhas uma proposta melhor,
nesse caso somos todos ouvidos_
- Bom, bom, bom, desta vez, vou eu para a boca do lobo, feito bode expi
atrio -disse o Joo com uma pitada de ironia nos lbios.
27
Riramse todos, separaramse cada um em direco de sua respecti
va casa, os dois irmos entreolharamse e apertaram as mos em silncio.
Os dois irmos chegaram a casa apreensivos face reaco do pai,
esse j estava quase a entrar em pnico. Passeava de uma ponta outra da
varanda com as mos atrs das costas. De vez em quando metia a mo no
bolso enquanto agitava o cachimbo com a outra. Quanto e, estava senta
da ao lado da porta principal da casa a remendar algumas peas de roupa da
famlia, silenciosa mas atenta a todos os gestos do marido. Podiase ler no
seu rosto uma expresso de piedade e de medo ao mesmo tempo, formavam
um quadro digno de ser perpetuado por um pintor do sculo XVIIL
Esto a. Josefa' So eles.
Louvado seja o Senhor.
Boa noite pai, boa noite me.
Boa noite coisssima nenhuma, o que eu tenho para vocs que vai ser
uma boa noite, onde que andaram? Sabem que horas so? No tm pena
da vossa me? Uma pessoa fica preocupada a pensar no pior, sem saber o
que hde fazer e vocs chegam aqui com essa cara de santo que no enga
na ningum;
Calma Caetano, se no os deixas falar como que vamos saber O que
aconteceu.
Calma? Ainda me pedes calma 1 ... Pois ! Tu, Josefa, que andas a estra
gar estes marotos com os teus mimos.
Pai, vamos contar tudo ...
Calate Z, tu Joo s o mais velho, chega aqui minha beira.
Paizinho, ns no queriamos chegar tarde, mas ...
No queriam! Mas chegaram.
Sim, pap, como estava a dizer foi contra a minha vontade ...
28
Desembucha de uma vez, estas por a a tremer, isto cheirame a menti
ra.
Caetano, veio a me em defesa dos filhos, se no te acalmares vamos
passar a noite nestes berros.
Tu, mulher, no te metas, este assunto tem que ficar bem esclarecido
hoje.
O Z e o Joo trocaram o olhar cheios de medo, pois a coisa estava a
ficar feia, tinhaIn que mudar rapidaIente de estratgia. O melhor seria
implorar mea culpa, mea culpa. O Joo descriptou a mensagem do Z, come
ou a falar rapidamente pedindo desculpas a cada pausa: repetu toda a his
tria inventada pelo Z, da forma como interveio para defender o irmo mas
sem se esquecer de pr em relevo o facto de no ter chegado a lutar.
O pai ouviu com ateno, quando o Joo acabou o recital, olhou para o Z
e perguntou:
verdade, Z ?
Sim, pap, posso jurar pela minha sade.
Chega p'ra l essa boca, mas quem o pai desse tal ManeI, vou falar com
ele se no sabe educar os filhos, tenho duas falas para lhe dar.
29 .
CONO VIVIDO
E
ra uma tarde daquelas bem quentes, sem vento, o ar pesado, que
de vez em quando paira no cu luandense em que o cal fica sem
vontade de fazer coisa alguma, a no ser andar por a a passarinhar
pela cidade ou i se estender na areia morena da praia, dar alguns mergu
lhos na gua, alguns mergulhos visuais nos soutiens das donzelas que so
sempre vistosamente inferiores ao que lhes vai no interior. E se elas esto de
costas, mergulha-se a vista em duas abboras de care bem esculpidas onde
se v um fio l em cima, na altura da cintura, que vai rodear a cintura feito
um nsco.
E como bom cal de adopo, resolvo ir fazer uma visita a um amigo que
tem o escritrio no cimo de uma montanha.
Depois dos SALAMALEQUES todos, y, vai tudo fixe, o meu amigo per
guntou-me qual era a maka. Eu respondi que no tem mambo nenhum, s
passei mesmo para te dar um candando; a partir da desembarcmos numa
conversa desenfreada sobre as damas da nossa praa_
Aquele meu amigo ento, ele casado e bem respeitado no seio da fam
lia e das femmes tambm. Ento s pode comer fora de casa assim de eaeh
ehe, de vez em quando. Assim sendo, ontem ele tinha eangado uma mulata
daquelas ... passearam pela cidade, com boa msica no carro, o ar condicio
nado a estalar, tudo j para impressionar a mana.
Depois de tantas voltas, que tambm no so as quinhentas, vai
marginal, uma volta ilha, como o galo d a volta galinha quando a quer
galar, e depois resolve-se o problema. Mas o problema do meu amigo que
30
isso foi durante o dia, pois ele, como bom pai de fam

lia, saa pouco noite,


e durante o dia dava as suas fugidas. Nesse dia, ele no tinha onde levar a
dama, e acabou por deixla em casa dela; e ns kwkw-kw ...
De repente toda a gente se calou como se estivssemos num cemitrio,
no, numa igreja, prefiro a igreja porque ali as pessoas ao menos esto todas
vivas, apesar do silncio de tmulo.
Ela entrou sem bater porta, eu estava sentado de costas viradas para a
porta, senti-me penetrado por um cheiro de pele fresca que nem a gua do
riacho de pedras. Arrepiado e teso me senti, rodei por cima de mim mesmo
para ver que coisa estranha penetrava as minhas entranhas.
Ouvi uma voz quente, vi-me frente a frente com ela ... esbelta, bonita, bem
talhada e elegantemente vestida. Olhei para a sua face, deparei-me com os
seus lbios grossos, carudos que nem a polpa de uma fruta madura, tal
como os lbios de uma virgem sem pelos.
Quis am-Ia, mam-Ia ali mesmo, mexer e senti-Ia remexer o corpo cola
do ao meu corpo, ali mesmo no gabinete do meu amigo, onde tinha outra
gente. Quis sugar-lhe o umbigo para a ouvir dar um gemido. O ar condicio
nado estava ligado mas eu continuei a sentir o calor a subir-me pela espinha
dorsal, feito uma cobra que desliza tronco acima de uma palmeira, roando
e coando a sua carapaa em toro do tronco firme e duro.
O meu sangue, sim, o meu sangue, sentia-o circular pelas veias, o meu
peito pareceu-me uma panela de presso que nem os meus dois orifcios
nasais conseguiam descomprimir.
31
j no aguentava mais, estendi as mos, sim as duas mos, para apalpar
as duas peras de bicos pretos que transluziam debaixo da blusa de cetim
transparente que cobria aquele busto imponente!. ..
E a, a... ca da cama!. .. acordei. .. afinal estava a sonhar'
32
ar
m
o HOMEM DA FLAUTA
O
sino da igreja tocou seis vezes, rasgando assim o silncio da
madrugada de cacimba do ms de Dezembro. Eram seis horas
da manh, as nuvens iam passando, formando imagens ilusio-
nistas no tecto do silncio que cobria a cidade.
As flores e as plantas verdes estavam todas vestidas de um manto hmi
do feito de pequenas bolhas de gua, mansamente deitadas sobre as folhas,
assim como por cima de todo o tapete verde feito de relvas estendido no jar
dim da igreja.
Antes no se ouvia nenhum barulho nem nada se mexia. A cidade pare
cia a imagem de u filme projectado num cr natural que foi abrupta e
voluntariamente parado no meio da sesso.
Depois das seis badaladas, um homem de meia idade, que dormia pesa
damente no banco da paragem do autocarro em frente a igreja, abriu auto
maticamente u olho, em seguida o outro, olhou para o cu, levou a mo
boca e bocejou. Passados dois minutos esfregou os olhos com as duas mos,
voltou a olhar para o cu como se procurasse algum ou alguma coisa, mas
em resposta sua inquirio s tinha a balada das nuvens silenciosas e sem
pressa; alis, semelhana dele mesmo, que tambm no tinha pressa, pois
vive na rua e no se lembra de ter fama ou no. Apalpou o bolso traseiro
das calas e constatou com muita satisfao que a sua flauta estava l, este
objecto a sua companheira inseparvel que o acompanhava dia e noite. Ao
confirmar a presena amiga, esboou um sorriso, levantou-se estava pronto
para comear u novo dia. Paralelamente, a cidade foi ganhando vida
33
pouco a pouco, ouvindo-se um barulho aqui, vendo-se uma ou mais pesso
as acol_ ..
Tirou a flauta da algibeira e comeou a tocar uma melodia suave que
subia ao cu pelos degraus de uma escada que s ele podia ver. Ouviu-se o
barulho de um autocarro que se aproximava da paragem, com sete ou doze
passageiros, mas, por os vidros irem embaciados, no se conseguia ver
quantas pessoas l am.
O motorista estacionou na paragem da igreja, apesar de no haver
nenhum utente que sasse ou entrasse, abriu a porta e buzinou duas vezes,
como fazia todos os dias.
O homem parou de tocar e cumprimentou: - Bom dia, senhor Joo
- Bom dia, tudo bem contigo?
Sem abrir a boca fez que sim com a cabea.
O motorista disse-lhe adeus com a mo, fechou a porta, abanou a cabea
e ps o mvel em andamento, soltando baixinho: - pobre diabo!
O homem levantou-se do banco da paragem, sacudiu a roupa amarfa
nhada que trazia vestida Deus sabe desde quando, carregou a sua mochila
s costas, dirigiu-se ao jardim da igreja, onde o jardineiro, que tinha acaba
do de chegar, estava a deseruolar a mangueira para comear a regar.
- Bom dia Pedro. - disse o homem.
- Bom dia. - respondeu o jardineiro acrescentando: - dormiste bem?
- Sob a graa do Senhor - respondeu o homem.
34
50-
Em seguida agachou-se, lavou a cara, lavou a boca, passou as duas mos
ue
molhadas pelos cabelos, trs vezes, sacudiu a cabea ps-se de p carregou
a sua mochila e disse tchau ao Pedro que lhe respondeu sem olhar para ele.
, o
Caminhou lentamente at avenida principal, virou esquerda,
'
duas ruas mais abaixo, tornou a virar esquerda, andou mais uns trezentos
'er
metros e virou direita, sempre com o seu passo descontrado de quem no
tinha ningum espera. Caminhou mais uns cem metros, entrou numa tasca
er
mal iluminada pela luz matinal, que entrava pelas janelas do estabelecimen-
S,
to.
- Bom dia Senhor Mrio, bom dia Dona Maria!
O Senhor Mrio, proprietrio da tasca, j conhecedor da voz, no se deu
ao trabalho de olhar, limitando-se a resmungar com uma voz indiferente: Se
queres comer, comea por varrer a sala, arrumar as mesas e depois dirige-te
ao quintal que a Maria dar-te- o pequeno almoo.
O homem pousou a mochila num canto da sala, foi buscar a vassoura e
;a
prontificou-se a executar as tarefas sem fazer nenhum comentrio. Mal aca
bou, foi ter com a Dona Maria que lhe deu de comer em silncio, disse obri
gado e sau.
,-
la
Em frente tasca existe uma escola primria; j eram 7h45m, e os alunos
,-
da primeira hora tinham comeado a chegar um a um. O homem atravessou
a rua, parou em frentz ao porto da escola, as crianas que j o conheciam
abeiraram-se todas dele, a pedir que tocasse a flauta.

s oito horas em ponto, uma professora veio ao porto, bateu as palmas


trs vezes e chamou:
- Meninos, so oito horas, vamos entrar ... so horas ...
35
o homem levantou-se, ps-se a caminho, sob gritos e acenos das crianas
que lhe pediam para no "faltar amanh." Sem olhar para trs foi tocando a
sua flauta pela estrada fora, gesto que fazia parte da sua rotina quotidiana.
Todos os santos dias fazia o mesmo percurso, parava nas mesmas capeli
nhas, sempre amvel e servil caracterizado pela sua mudez.
Chegou ao fim da rua que dava ao porto comercial, parou de tocar, tirou
do bolso um pedao de pano que j fora branco, mas que agora parecia cas
tanho. Embrulhou cuidadosamente a flauta e guardou-a no bolso das calas.
Em seguida foi sentar-se ao p de um velho de cabelos e barbas brancos,
que estava a pescar com uma vara de fabrico artesanal; Ao certo trata-se de
um pau seco, de mais ou menos um metro e vinte, onde atou um fio de
nylon, de aproximadamente trs metros, numa das extremidades e, na ponta
do fio, dois anzis comprados no mercado. Ao lado do velho pescador esta
va deitado um co zarolho, companheiro fiel e inseparvel do nosso pesca
dor de nome Victor. Junto aos seus ps, tinha uma caneca de leite condensa
do vazia, contendo minhocas que serviam de isco ao velho. Maravilhava-se
v-los neste espao, como se fossem figurantes de um quadro de natureza
morta.
o homem da flauta aproximou-se, e perguntou: - Est a morder?
- Nada ... Ontem sim, apanhei peixe que deu para comer e vender uma
parte, mas hoje a coisa est preta.
- No te preocupes, mais tarde a mar vai mudar e vais certamente apa
nhar mais peixe.
36
lS
Gostaria de acreditar.
a
- Vais ver, velho Victor, at ao meio dia se apanhas ou no peixe; eu que
a.
te digo, podes crer!
1-
o velho Victor riu-se e acrescentou : - v-se que de pescas no entendes
nada, quanto mais cedo formos pescar melhor , de manh cedo quando est
u
tudo calmo, porque ao meio dia com o barulho do porto os peixes fogem
;-
para o largo.
s.
- Vou falar com as ondas para te trazerem peixe.O Victor soltou uma gar-
;
,
galhada e disse : - tu s mesmo um doido varrido.
e
e
O homem da flauta calou-se com u olhar fixo, mergulhado a no
a
horizonte.
+
Quem sabe o que se passava na sua cabea ?.
Ao meio dia, ergueu-se, tirou do bolso a flauta, o velho Victor ouviu o
e
som da msica afastar-se em direco ao porto de canoas. Trata-se de um
a
pequeno embarcadouro reservado s pequenas embarcaes, na sua maioria
canoas de motor fora do bordo.
Esse local tambm era famoso pela sua feira, mercado onde se vende e se
1
troca peixe com outros gneros alimentcios de primeira necessidade, mas o
ponto culminante desse porto so as suas barracas-restaurantes onde os pes
cadores comiam, bebiam assim como muita gente que l ia exclusivamente
para saborear os pratos confeccionados pelas mulheres da terra que cozi
nhavam nas barracas. Todos os pratos eram confeccionados nos fogareiros
ou lareira feita de lenhas.
37
o homem da flauta dirigiu-se directamente barraca da tia Amlia, uma
mulher gorda, baixinha que se veste sempre de preto. Ela olhou para o
homem e disse : ainda bem que chegaste, vai-me lavar os pratos, por favor,
que estou muito atrasada. Hoje dormi com uma dor de cabea horrvel, tive
que ir ao hospital esta manh, cheguei mesmo h bocado, depois dou-te o
almoo.
Sem comentrios, o homem meteu as mos obra, lavando os pratos um
a um como um autmato. Essa tarefa parecia nunca mais acabar, conforme
as pessoas foram chegando, comiam, passavam-lhe o prato, ele lavava e
entregava tia Amlia, sem falar com ningum.
Quando terminou, comeu e bebeu uma grande caneca de gua fresca,
despediu-se e mais uma vez saiu carregando a sua sorte pela rua fora rumo
a um destino indefinido com o seu ar ausente, melanclico, entregue sua
sorte tocando msicas nunca antes conhecidas por ningum.
Pelo caminho teve o azar de se cruzar com um grupo de fuzileiros navais
do exrcito colonial portugus que saam da Marinha de Guerra para dar um
passeio pela cidade. Esses tinham a fama de serem muito malcriados, confu
sionistas. Sempre que saam dos seus aquartelamentos, tinham que aprontar
alguma antes de regressarem base.
Na cidade, toda a gente tinha medo deles, incluindo a prpria polcia
naval. Esse corpo do exrcito era composto essencialmente por delinquentes,
vagabundos, criminosos de guerra, que o govero portugus mandava de
castigo para a Guin.
38
la
Quando viram o homem da flauta, um deles meteu-se com ele :
o
lf,
H p ! ... oh t que fumas, empresta-me a tua flauta, p !
'e
o
O homem da flauta, que no era fumador, continuou o seu caminho sem
responder, com um aperto no estmago.
T
- s surdo ou qu, p!... - berrou o fuzileiro?
.e
e
- Anda c, oh bandido. - meteu-se um outro fuzileiro
- Pareces ser surdo, vamos ter que te limpar os tmpanos. - Agitou mais
"
um fuzileiro
o
a
- Vamos dar uma lio a esse co. - atou o cabo, que era O oficial do
grupo, com uma voz de comando.
s
Ao ver os fuzileiros aproximarem-se em passos de corrida, o homem da
] flauta desatou a correr como se tivesse o diabo atrs. Os fuzileiros corriam
atrs dele fazendo uma algazarra tal que todos os transeuntes paravam para
r contemplar a triste cena. Os fuzileiros gritavam, insultavam ameaando o
homem que corria desesperadamente. Ao atravessar a rua, foi de encontro a
l um carro que vinha em sentido contrrio, caiu pesadamente no asfalto e per
deu os sentdos.
Os fuzileiros pararam, O cabo gritou: - vamos embora. Viraram esquina
e desapareceram na confuso da cidade deixando abandonado o atropelado
39
estendido na estrada, banhado de sangue.
O homem da flauta foi conduzido ao servio de urgncia do hospital cen
tral de Bissau, perdia muito sangue. O mdico de planto segurou a sua mo
direita para lhe medir a pulsao, e perguntou-lhe :
- Como que o senhor se chama ?
Num esforo sobrehumano, abriu os olhos fixou o mdico e balbuciou: -
a primeira vez que algum me pergunta o meu nome ...
Com essas palavras, o homem da flauta fechou os olhos para sempre, a
cabea caiu para o lado esquerdo.
O homem da flauta, vulgo Kii Guingui-boca, era de Xime, pequena
povoao no sul da Guin, casado com duas mulheres e pai de seis filhos.
Um dia foi preso e trazido pela Pide para Bissau. Quando o soltaram, anos
mais tarde, tinha perdido a memria de famlia e j no podia conhecer nin
gum na cidade.
40
n-
10
a
1
RVORE SECA
C
onfessa que no sei se foi um espanto ou um sinal de alerta no dia
em que descobri que os seus cabelos embranqueciam, pois a rvo
re vigorosa e frondosa no tinha mais brotos nem flores novas.
Cogitando fui indagando o porqu de essa rvore maravilhosa que sem
pre contemplei durante toda a minha existncia, cheia de flores bonitas e
misteriosas, perfumadas e resplandescentes, ter parado assim de repente o
seu continuo prodgio ? *** Por mais que indagasse no conseguia desvendar
o mistrio e, preocupadssimo, acompanhava a extino dessa rvore que
cada vez que aparecia um broto novo, uma fora oculta o sugava, com uma
infatigvel crueldade.
E assim foram desaparecendo os brotos tenros, as flores mgicas, folha
aps folha, ptala aps ptala, ao longo do caminho que parecia uma mar
cha fnebre colectiva no tempo sem espao, o meu consolo foi me ter dado
conta que ramos muitos, os que ainda acompanhavam a rvore rumo a um
destino indefinido que no nos facilitava a tarefa de pleitear o nosso destino.
Alguns murmuravam o fim de uma era, outros sussurando a agonia de
um ideal, os mais ousados ainda falavam do estrangulamento econmico
por falta de leaders, mas ningum levantava a voz como se tivssemos medo
de quebrar o silncio de mrmore que pesava sobre ns!. ..
Dia aps dia, continuei o ritual de observar e de me deixar absorver pela
rvore que cada dia mais despojada ficava das suas folhas e flores que to
formosas foram, e pouco a pouco fomos predizendo que s restariam ramos
secos e nus ...
41
Por falar de nus, houve um tempo, nos tempos remotos que j l vo, em
que os nus de Cezane, Goya e Renoir escandalizaram toda a sociedade da
sua poca e hoje esses mesmos nus so adoros dos santurios da nossa soci
edade, e os ditos nobres da nossa era se debatem para os possuir na sua
coleco privada a preos que s a gorgeta dava para salvar muitas vidas
que lutam para no padecerem de misria.
Mas so coisas do nosso tempo onde vivemos com o esprito completa
mente nu de toda moral, sem folhas e sem flores, onde ningum se incomo
da com a sorte de ningum, salvo quando temos interesses em jogo, u jogo
que devia se chamar jugo, onde uns existem para marcar os pontos, outros
para encaixar os golpes e no meio restam os que batem palmas contando os
pontos marcados e encaixados por uns e outros, tudo isso se passa no cume
da minha, nossa rvore seca. frica.
42
n
a
l
a
s
)
SERENATA
N
uma noite de sbado, no como as outras, o cu estava prenhe de
estrelas que se esforavam para iluminar o breu que cobre as
ruas esburacadas da cidade meia adormecida.
Quanto a ns, aqui em baixo, j estvamos quase habituados a este siln
cio noctuo imposto sobre os passantes e os automveis que circulavam
pelas estradas onde os candeeiros j h muito tempo no faziam diferena
entre o cair da noite e o levantar do dia.
Dentro das casas o nmero das velas acesas fazia concorrncia ao nme
ro das estrelas no cu, salvo numa ou outra casa do nosso bairro onde as
lmpadas amarelas difundiam uma tmida claridade compassada pelo con
certo dos geradores dos moradores que no ousavam acender todas as luzes
para poupar o gerador.
Em casa do Marcelo, como bom cristo, o jantar servido ritualmente as
vinte horas em ponto. Como j passava das vinte, o Marcelo e a sua mulher
foram-se sentar varanda arrastando com eles os trs filhos que nem da
pobre televiso podiam tirar proveito.
Deixaram ua vela acesa na sala de jantar que tambm fazia ofcio de
sala de estar.
E como vinha sendo hbito nestas noites de calor e de corte de energia
elctrica, l vinha o vizinho Pedro, escoltado pela sua esposa, dois filhos e as
trs filhas. Ao subir as escadas com jeito e com os olhos fixos nos degraus
escuros lanou:
43
- Mantenhas nesta casa.
- Boa noite, compadre Pedro, est um calor de assar!
- Nem me fales Marcelo, sabes, tenho a impresso que quanto mais me
falam do calor, mais calor tenho.
- Pois , se calhar tens razo,
- Sabe, comadre! - exclamou a mulher do Marcelo - o meu marido ontem
teimava que nem uma mula, que ia dormir aqui na varanda porque l den
tro estava um fomo
- Credo, compadre Marcelo, nem pensar em dormir aqui fora. . . -
Respondeu a mulher do Pedro: - com todos esses malandros e caboclos que
d
"
an a por a!. ..*
- Obrigada, comadre Quintinha - resmungou a mulher do Marcelo - eu j
estou farta de lhe dizer que Bissau est cada vez mais perigoso, j ningum
sabe quem o policia e quem o bandido; isto aqui anda muito confuso,
muito confuso mesmo!
- H l'. . . h l! ... chega de conversa, mulheres. Armandinho vai buscar as
cervejas e tu Miguel chega-me a viola, sim filho?
E a, depois de uma, duas e trs goladas de cerveja bem gelada saidinha
da caixa trmica repleta de gelo e cervejas que tinham sido compradas no
fim da tarde de sexta-feira na loja franca.
O Marcelo, homem de bom gosto e de boa convivncia, pegou na sua
viola, tirou algumas notas . . . afinou o som, deu mais u golo da cervejinha,
fechou os olhos.
44
e
n
1
Todos se calaram, pois nesses momentos o Marcelo punha-se a narcisar
se recordando o seu tempo de mocidade, pois ; pouco ou nada faltava em
casa dos funcionrios pblicos e jamais havia cortes de luz ou de gua.
Nesses momentos ele sentia-se invadido de um sentimento de impotn
cia, por culpa de quem? Ou porqu? Nem ele mesmo sabia.
Abriu os olhos, deixou aparecer um sorriso mido e lanou para o seu
compadre Pedro:
- Como compadre? Vamos a isso?
- Vamos l Marcelo, que a noite ainda criana.
O Pedro tem uma beI
l
ssima voz e o Marcelo tirava sons excepcionais da
sua guitarra que custava a acreditar que ele nunca tinha andado na Escola
de Msica.
Como as suas serenatas j eram sobejamente conhecidas, os amigos iam
chegando aos poucos. Primeiro, eram os vizinhos, depois era um colega que
parava o seu carro em frente casa, depois era mais um que via o carro do
amigo e parava tambm, por vezes mesmo em cima do passeio.
A msica era suave, trepidante a tal ponto que no deixava ningum indi
ferente. Na volta, todos se punham a cantar e os mais inibidos a sussurar as
belssimas melodias das velhas canes de Z-Carlos. Bebia-se de tudo: cer
veja, vinho, cana, n'sunsun, whisky, etc...
45
Mas o mais impressionante nesta serenata da varanda que ganhava pro
pores de convvio do quintal, so as longas pausas da msica, em que toda
a gente se punha a esvaziar o saco. Falava-se de tudo e de todos, principal
mente da crise que vinha batendo porta de todos ns, menos dos novos
grados c do stio que pareciam ter pressa de amontoar fortunas, fruto do
suor alheio.
Quando o Marcelo comeava a tocar, tirando melodias simples e gracio
sas, todos se calavam nos primeiros minutos, at se podia ouvir o barulho da
escurido, passageiro do vento nocto, que lutava com a chama da vela,
resistente como ns, que teimvamos a manter um bago de calor humano
nesta vida de co.
E de repente, rompe-se o ventre desse silncio gritante, e ouvia-se a voz
magistral do Pedro que abraava o ar numa harmonia sIi geis, prpria aos
dignssimos djidils das nossas tabancas.
o Pedro cantava com a sua alma, uma voz que vinha das entranhas da
nossa Guin, e narrava as mais lindas histrias de amores do pobre que s
tem o amor para oferecer neste mundo de luta de poderes! ..
De podrido! ...
De dinheiro limpo e sujo!. ..
D b I e am lao ....
De inveja e vingana!. ..
Onde felizmente, a cano ainda rainha no corao das mulheres e dos
homens de serenata.
46
'0-
ia
11-
)s
lo
)
la
"
o
z
s
l

RECALCAMENTOS
I
A
os doze dias do ms de Maio de 1981, bateram minha porta.
Olhei instintivamente para o relgio, indagando-me em silncio,
quem poderia ser aquela hora, sete horas da manh.
Ouvi algum chamar por mim ao mesmo tempo que tamborilava a porta
com as unhas dos quatro dedos da mo, f abrir sem pressa, mas logo de
seguida a minha adrenalina subiu em flecha ao dar com a cara da Bampi
com um bb ao colo, arvorando um sorriso muito timido. Afastei-me da
porta sem pronunciar uma palavra, ela entrou, com a cara empinada fitando
a criana que vinha dormindo um sono inocente.
Olhava para a me depois para a filha e, continuava de p junto porta
que permaneceu aberta, como um espeque com medo de movimentar ou de
falar para no desmoronar o vu de lgrimas que me cobria a retina.
Depois de alguns segundos de petrificao, acabei por fechar estupe
facta a porta e, acompanhei-as para a diviso principal do meu estdio, sito
no terceiro andar de um prdio sem elevador. Pelo seu ofegar entendi que
no foi fcil subir as escadas com o bb ao colo, apontei-lhe uma cadeira,
ela sentou-se, eu sentei-me na ponta da cama que ocupa um tero do peque
no apartamento deixando espao apenas para um grande guarda-fato embu
tido na parede, uma mesa que me serve de secretria quando escrevo, de
mesa de jantar quando como_ Tambm tenho uma cadeira e uma estante
feita de tbuas e tijolos, repleta de livros, um grande cadeiro de que a
Bampi tinha acabado de tomar posse, confortavelmente com o bb ao colo.
47
Acho que um anjo passou, senti-me a ser levado pelo meu pensamento
para uma enorme floresta azul, com rvores de grande porte, cujas folha
gens tapavam quase todo o cu manso, onde as nuvens danavam ao com
passo do vento que trazia umas notas de um balafon que s eu conseguia
ouvir naquele preciso momento_
A msica enfeitiava-me, vinha de-.muito longe como um chamamento
para me guiar, deixei-me levar por esta msica estranha, mas apaziguadora,
para o interior da floresta, a cada passo a msica soava cada vez mais forte.
De repente entrei numa clareira rodeada de palmeiras que, com as suas
folhas despenteadas pelo tempo, pareciam amazonas com tranas e missan
gas das cores do arco-ris. No centro da clareira havia uma palhota debaixo
de um enorme e velho poilo. Parecia que o imbondeiro fora plantado l por
um gemetro no centro da circunferncia das palmeiras.
Parei um instante, perplexo e hesitante mas a msica que saa da palhota
soava cada vez mais alto! De repente pus-me a correr para o interior que
rendo banhar-me naquela msica que jamais tinha ouvido na minha vida,
entrei num cubculo de trs metros quadrados de superfcie e dois metros
de altura, era exguo, mas senti-me apaziguado l dentro e por dentro de
mim. Tudo estava mergulhado numa escurido de breu, mas medida que
o tempo foi passando, fui-me habituando escurido, senti algum tocar-me
nas costas, virei-me de repente e tudo ficou claro tirando-me do meu trio de
quietude.
Voltei ao meu mundo, quero dizer realidade, estava sentado na ponta
da minha cama, com a Bamp ao meu lado e a criana que no entretanto
tinha acordado com o peso do silncio e estava a olhar para m com um
48
brilho de festinha nos olhos que s as crianas possuem, ela parecia muito
entretida a querer segurar os dedos dos dois ps com as suas duas mozi
nhas de anjo. Ns, eu e a Bamp, maravilhvamo-nos v-la deitada de costas
mexendo os ps e as mos no vazio.
A Bampi olhou para m com terura, e muito apreensiva, disse-me:
- Fiz-te uma fa muito bonita. Eu continuei a brincar com a bb, meten
do e tirando o meu anelar por entre as suas mos pequeninas, e ela tentava
segurar o meu dedo, agitando ao mesmo tempo as duas peras no ar como
uma r dentro da gua. Ela voltou a falar sem que eu olhasse para ela.
Preciso falar contigo mas no sei como, nem por onde comear.
Diz - respondi sem olhar para ela - no vs que a Yassine no tem medo
do meu dedo?
Olha, s t o pai da Yassine.
Incrdulo, contrariado e feliz ao mesmo tempo, fiquei sem saber o que
responder, pois o que acabei de ouvir soou-me como uma sentena lgica e
irrefragvel a que estamos espera faz muito tempo. Mas que no fundo no
sabemos se queremos ouvir.
Neste momento pensei num dos poemas de Carlos-Edmilson:
49
SER
Serei
sol e sombra
no ntimo do viver
e do pensar do ser
sem saber
o que saber? ..
Eram 730m da manh, O prdio esvaziava-se lentamente, as pessoas iam
para os seus afazeres sem a mnima ideia do que se poderia estar a passar no
apartamento nmero seis do terceiro andar. Levantei-me para abrir a janela
que d para a avenida principal com vista perdida, olhei para as rvores mal
cuidadas que ladeavam a estrada, que como uma serpente preta subia, para
o Benfica, passando pelo estdio nacional e ia desaguar na Praa do Imprio.
Depois de uma boa baforada do ar matnal, carregado de cacimbo, voltei
a sentar-me na ponta da cama ao lado da Bamp que tinha ido para junto da
filha. Fitei-a bem nos olhos e, perguntei-lhe, pontuando lentamente cada
palavra e pronunciando-as com um tom exaustivo nas slabas:
Falaste mal ou eu que ouvi mal?
O que ouviste a pura verdade - sussurrou baixando os olhos - sabes eu
gosto muito de t, amo-te como nunca cheguei a amar algum.
Tambm eu gosto muito de t.
Se fosse s por m, nunca te ia deixar.
- No acredito nos meus ouvidos, tenho a impresso que estou a ouvir
coisas a mais. Depois do que me fizeste? Ou ser que j no te lembras? Vou
te ajudar, deste-me corrida da tua casa, dizendo que estavas grvida mas
que o filho no era meu!..
50
- Por amor de Deus, acredita em m, no me compliques a vida mais do
que j est, sabes no foi fcil vir ter contigo, mas a prova do meu amor que
aqui estou eu, em tua casa, se no gostasse de ti, no teria vindo, depois de
tudo o que se passou entre ns. Podes crer-me, no h sol que se levante,
nem lua que se deite sem que eu pense em ti' . .
- Nesse caso, porqu? . Porque que me disseste naquele dia que o filho
que estavas esperar no era meu? . No, no, e no por mais que tente no
consigo compreender a tua reaco, dvamo-nos lindamente.
Parei um minuto para ganhar flego.
- A que se deve essa mudana to brusca? Hoje afirmas que a Yassine
minha filha, que me amas coro ningum me ama, mas no entanto assumis
te o teu compromisso com o outro a quem deste a mida para registar. Por
que carga de gua que fizeste isso? .
- Meu bem, no dia em que a minha me soube que eu estava espera do
bb, insultou-me tanto, que eu nem estava a reconhec-la, depois convocou
ura reunio de familia, com as minhas tias, meus tios, minhas primas e pri
mos.
Nesse dia tive vontade de morrer, comearam por dizer que eu no tinha
vergonha, como que namorava com uma criana, que eu era muito mais
velha do que tu e devia ter mais juzo e arranjar um homem mais srio que
me poderia garantir um futuro melhor.
Abri a boca para falar, e antes de acabar a minha frase, o meu tio que esta
va sentado ao meu lado deu-me uma tremenda bofetada que at vi todas as
estrelas do firmamento diante de m. Uma prima mais velha disse que
todas as minhas colegas de servio tinham marido, e que eu fui arranjar um
51
fedelho atrevido que no conhecia o seu lugar, alis ainda estavas no banco
do liceu, que tudo isso era uma vergonha e motivo para ser alvo da chacota
de toda a cidade.
Tinha tanta raiva de toda aquela gente, e tambm medo deles, mas
mesmo assim o meu amor por ti era maior que o meu medo, ento deixei
escapar um murmrio entre as lgrimas dizendo: que o mais importante
para mun era o nosso amor.
Exclamaram todos em unssono; t no sabes o que queres. Ameaaram
me tanto, que pensei que ia enlouquecer.
E aquilo durou semanas e semanas a fio, eram todas as sexta-feiras depois
do culto. At alguns dos meus colegas da igreja deixaram de falar comigo
semelhana das minhas primas e primos que j nem se sentavam ao meu
lado na igreja.
Eu estava to deprimida e sem amparo quando me proibiram de te ver.
Lembras-te que eu morava em casa da minha me e que o meu irmo mais
velho passou a vigiar todos os meus passos, no podia i a lado nenhum sem
ele, fora das horas do servio. E o cmulo que eu tive medo de te dizer a
verdade e, foi assim que comecei a confiar-me ao outro, porque trabalhva
mos juntos e, quando me via chorar no emprego, vinha sempre consolar-me,
at que comecei a desabafar com ele.
Vi lgrimas a rolarem no rosto da Bamp, li desespero e mgoa nos seus
olhos, como nunca vi na minha vida, entrei quase em pco por minha vez.
Quis consol-la, mas havia um controverso enorme dentro de m, pois,
uma parte do meu ente sofria e estava profundamente magoado, e a outra
parte amava-a e queria poup-la.
52
Estava a fazer um esforo incomensurvel para no chorar, ao ver as
gotas de amargura que caam dos olhos dela e, rolavam como os braos de
um rio numa noite chuvosa. O seu rosto retratava ura mgoa sumamente
impressionante para qualquer ser humano, era como se a expresso do seu
rosto fosse o retrato de todos os pecados dos Homens aqui em baixo na terra.
Todo o peso do tecto do pequeno apartamento parecia prestes a desabar
por cima da nossa cabea, o ar estava prenhe de sofrimentos profundamen
te estancados no mais ltimO de cada um de ns, o lico raio de sol que ilu
minava as nossas esperanas era o silncio gritante do bb, que parecia um
anjo da guarda entre dois drages que mal retinham o fogo que lhes roa por
dentro.
Ela olhou para ns, sorriu abrindo a boca desdentada por onde corriam
babas dos dois cantos da boca, pois ela continuava deitada de costas em
cima da cama, entre ns os dois. Esse sorriso fez-me bem, inclinei-me, bei
jei levemente a sua testa, com medo de ali deixar marcas. De seguida apa
nhei a chucha que estava cada ao seu lado e, pus-lhe na boca.
53
II
Foi numa festa do fim do ano, na altura eu era ainda estudante do Liceu
Kwame, filho de uma famia catlica praticante, amos todos os domingos
missa das dez horas com o meu pai, a minha me, as minhas irms e os meus
irmos. No meu liceu tinha um grupo de amigos, todos filhos de boa gente,
classe mdia na poca colonial, por trabalharem na Administrao Pblica,
como o meu pai, e que com a independncia beneHciaram de uma promo
o social implcita pela fora das circunstncias e a necessidade de garantr
a continuidade do bom funcionamento da Administrao Pblica.
o nosso grupo de rapaziada era sobejamente conhecido na praa de
Bissau, alis, muitos filhos, irmos, primos ou sobrinhos do novo elenco
goveramental do ps-independncia, vieram integrar-se ao nosso grupo no
liceu o que nos tomou mais cobiados. Os familiares destes ltimos passa
vam a vida a viajar no sei para onde, em misso de servio, mas nunca nin
gum viu o que que eles levavam, ainda menos o que que traziam.
Quanto a ns, os mancebos do Liceu Nacional, aguardvamos com muita
nsia o regresso dos nossos dirigentes, parentes dos nossos amigos, porque
tambm apanhvamos boleia dessas viagens, pois s vezes lembravam-se de
um ou de outro entre ns e traziam-nos um par de sapatos italianos ou por
tugueses, que eram uma relquia em Bissau, uma camisa, ou ento umas cal
as de ganga, que naquela altura era smbolo exterior de aparente bem
estar ..
Ns ramos uns dez rapazes no nosso grupo, muito coesos, com ares de
dandys da nossa gerao. s vezes chegvamos a formar um grupo de quin-
54
,
ze jovens ou mais, mas isso era quando se vinha juntar a ns um primo ou
um vizinho de um dos membros do grupo.
Naquela poca, havia uma concorrncia entre vrios grupos de rapazes e
de meninas tambm, no tocante a organizao de festas, era sempre um pri
vilgio ser convidado a esta ou quela festa, organizada por este ou aquele
grupo. Pois a importncia da festa dependia das pessoas que fossem convi
dadas e tambm da reputao do grupo organizador. E ns, o nosso grpo,
fazia parte dos que faziam brilhar uma festa. Tambm eram oportunidades
para cada um de ns exibir a ltima pea do trajo, ou o ltimo par de sapa
tos importado, que o pai, o iro,o tio ou o primo, membro do Govero,
tinha trazido do exterior do pas, aquando da ltima misso de servio.
Graas a essas insignificncias materiais que conquistvamos as mi
das, e eu N'Djaka, tnha dois amigos mais chegados no seio do grupo: O
N'Djimb e o Ocanti, estavam sempre a criticar-me, porque tinha muitas
namoradas, e de facto tinha muitas ao mesmo tempo. Ainda por cima algu
mas eram mais velhas do que eu, e isso tambm verdade porque eu sem
pre tive um fraco por mulheres mais velhas.
O N'Djimb e o Ocanti eram meus ctas pois andavam sempre a dar-me
lies de moral, mas faziam isso tantas vezes, que j no ligava muito s suas
observaes, porque acabei por denotar uma leve fibra de cimes nos seus
timbres quando tocavam no assunto dos meus namoros.
Como er hbito, cmo o t juto fet, eu N'Dib e
Ocanti. A festa era no Salo Nobre de um grupo desportivo, alugado pelo
Ministrio da Promoo Feminina, para enterrar o ano de 1977 e dar as boas
vindas ao ano de 1978.
55
Entrmos na festa depois da meia noite, porque eu tinha a obrigatorieda
de de ficar em casa at ao apito da sirene dos Bombeiros Voluntrios de
Bissau, a anunciar a partida do velho ano e a chegada de um Ano Novo que
sempre se quer prspero e cheio de felicidades, altura em que toda a famlia
se abraava, se dava beijinhos. Em nossa casa, isso era sagrado para os meus
pais, tnhamos que estar todos presentes meia noite na passagem do ano,
depois mandavam-nos tomar banho, para lavar todo o azar do ano que aca
bava, queria-se com este ritual secular, pelo que dizem, deixar escorrer ao
longo do nosso corpo a gua limpa para lavar as mgoas, a m sorte, os
maus olhados e, tudo quanto de mal nos tinha acontecido no ano passado, e
comear um ano novo limpo de corpo e de ala .
Quanto a esta ltima no posso fazer afirmaes categricas, mas quanto
ao meu corpo, sei que ficava bem limpinho, porque era o dia de estrear os
sapatos novos, quando fosse o caso, e roupa nova. Nos aos mais difceis,
punha a minha melhor roupa, mas iavadinha e bem passada pela minha
me, que o fazia coro mais ningum sabia fazer, aos meus olhos.
Entrmos na sala onde uma orquestra estava a tocar uma msica africa
na, j no me lembro se era cabo-verdiana, da Guine-Conak ou congole
sa, mas tenho a certeza que no era uma msica guineense. Fomos avanan
do pelo canto esquerdo do grande salo, cheio de pares que jubilavam na
pista com a msica deleitante; apercebi o resto da malta do nosso grupo no
fundo do ngulo esquerdo, fomo-nos juntar a eles, abraamo-nos uns aos
outr aprntando rpramente, com gande calor, o voo de Feli
Ano Novo, com palmadinhas exageradas nas costas.
Ficmos na conversa durante muito tempo, alguns colegas estavam
acompanhados, e outros como eu, no, porque preferi ir sozinho, com uma
56
,-
larga esperana de fazer uma nova conquista_ E, a uma dada altura exclamei,
e
p eu vim c para danar e no para falar, vou fazer uma ronda por a.
e
Afastei-me u metros dos meus amigos, quando deparei com uma cara
,
diferente das outras, mas muito diferente mesmo, fixei-a u minutos pro-
s
longados, e acabei por avanar com u passos hesitantes na sua direco_
4
Cheguei junto dela e fiz uma ligeira vnia com o tronco inclinado ao
)
mesmo tempo que estendia a mo esquerda, pondo a direita atrs das costas
e solicitei com a voz trmula e quase inaudvel: Concede-me esta dana? ..
Ela olhou para m, sem responder, pegou a minha mo que continuava
estendida e levantou-se. Fomos para o meio da sala que estava muito cheia,
o que obrigava as pessoas a danarem muito coladas umas as outras.
Segurei-a pela cintura com a minha mo direita, ela fez a mesma coisa
comigo com a sua mo esquerda , enquanto levantvamos sincronicamente
o meu brao esquerdo e ela o seu brao direito: as nossas mos uniram-se ao
mesmo tempo que senti o bater do seu corao encostado ao meu peito. Quis
conter a respirao com medo de a incomodar.
Ela era alta, com umas peras que nunca mais acabavam, bem constitu
da, pois no era magra nem era gorda, ela era simplesmente grande, como
eu com os meus 1,87m de altura, apenas ao contrrio dela eu era muito
magro. Danamos em silncio, no queria que a msica acabasse, assim fic
mos e danamos quatro msicas seguidas, uma passada angolana, duas
moras cabo-verdiana e um slow de Z-Carlos. Tudo isso em silncio, s os
nossos corpos que falavam uma linguagem que s um corao encostado
a um outro corao podia decifrar.
57
Todo o meu ser estava hirto de prazer, eu era uma pilha de nervos, as per
nas quase me tremiam, continuei a saborear aquele corpo colado ao meu,
senti o calor a subir-me pela espinha dorsal, e senti as formigas na cabea,
apertei mais o seu corpo para junto de m e ela deixou-se levar levezinha
nos meus braos, e nos meus passos ao compasso da melodia que nos emba
lava. Sem me dar conta fechei os olhos, deixei-me guiar por minha vez, pelos
meus instintos musicais e amorosos.
Quando a msica acabou, abri logo os olhos com vergonha de ela me sur
preender, afastmo-nos um do outro, acompanhei-a at ao lugar, disse-lhe
obrigado quase a fugir para o canto onde estavam os meus amigos, que no
se aperceberam de nada.
Belisquei o N'Djimb, ele olhou para mim surpreso e perguntou:
o que que foi, N'Djaka?
Olha, olha - respondi fazendo sinal com a cabea.
Olha o qu? Fala de uma vez.
Ests a ver aquela menina de vestido azul clarinho, ali, de p ao lado
daquela mesa do lado direito?
Qual menina?
No ests a ver, aquela de azulinho, olha agora, est a falar com a amiga
da saia preta e blusa vermelha ...
58
ler-
Ouauuu!..Ela manda uma carcaa!..
eu,
a,
p nosejas parvo, p, acabei de danar com ela e at agora ainda tenho
.Ia
os ps trmulos, tenho a certeza absoluta que est falar de mim com a amiga.
'a-
Pronto! L ests t, sempre apaixonado_
os
No! No, no nada disso, eu acho que a corrente passou entre mim e
ela
Deixa-te l de imaginaes, j olhaste bem para a senhora, no nada do
'r-
teu gabarito.
le
Mas olha, N'Dimb, podes no acreditar, eu nunca tnha sentido isso
10
antes, ao danar com uma menina, foi uma estranha sensao de paz e feli
cidade interior.
Nunca tinhas sentido o qu?
Tu ests a ser chato, j te disse que algo aconteceu entre ns os dois,
mesmo sem nos falarmos.
- Olha, rapaz, vamos at ao bar e vais ver que a tua miragem vai desapa
recer dessa cabecinha.
- Op!.. Um gajo no pode falar a srio contigo. - Persegui o meu amigo
falando sem parar, gesticulando com os braos, ao mesmo tempo que cami
nhvamos para o bar, tentando descrever aquilo que senti ao danar com
aquela moa.
Filho de Deus, parece que te caiu um raio na cabea.
No foi na cabea, foi no corao_
Pedimos duas cervejas, regressmos para junto do grupo dos amigos,
onde a conversa ia de vento em popa, em relao a todos os temas possveis
S9
e imaginrios. E eu continuei a olhar para aquela criatura divina furtiva
mente, sem prestar grande ateno conversa dos meus colegas. Sempre
que ela olhava na minha direco, os nossos olhos se cruzavam, eu baixava
os olhos e ela virava a cara automaticamente para outro lado.
Passado uma hora e meia nesse jogo de gato e rato dos olhares, no
aguentei, fui convid-la para uma nova dana, ela aceitou com um grande
sorriso como se j estivesse espera do convite com muita ansiedade.
Desta vez abramo-nos de corpo e alma ao danarmos, eu tinha os meus
dois braos a cinturar-lhe o corpo e ela tinha os seus dois membros superio
res em tomo do meu pescoo. Eu queria prolongar aquele momento at ao
infinito; danamos tanto, com tanto gosto, que j nem sabia quantas msicas
tinhamos danado sem repouso, salvo quando a orquestra acabava uma
msica para comear logo de seguida uma outra.
Foi num desses curtos espaos de tempo que aproveitei para lhe pergun
t como que se chamava, ela sorriu e respondeu Bamp. Danmos mais
uma msica, segui os seus passos at ao seu lugar, notando os olhares inqui
sitriais das pessoas que estavam mesma mesa com ela.
No fim da festa, fui ter com a Bamp e ofereci-me acompanh-la a casa,
ela respondeu-me educadamente que agradecia imenso o gesto, mas que
estava cansada e que, para alm disso, tinha vindo com a sua prima Amila e
o marido da prima, mas se quisesse, podia ir busc-la ao servio na prxima
segunda-feira, s dezoito horas.
Respondi que sim prontamente, sem me fazer de rogado_ Perguntei onde
que ela trabalhava. Ela respondeu que era funcionria do Banco Nacional.
60
'a- Olhei para ela, ela olhou para m dentro dos olhos, aproximmo-
're nos instintvamente e dei-lhe dois beijinhos hmidos na cara, distancimo-
va nos devagarinho como se tivssemos medo de nunca mais nos vermos.
Caminhei alguns passos , voltei a cabea para trs sem parar de andar, por
lO coincidncia ela tambm virou a cabea nesse preciso momento. Fiz um
le aceno com a mo, ela respondeu e, virou a cara para a frente, sempre a cami
nhar ao lado da Amila e do cunhado. Esses no se deram conta deste furti
vo gesto de comunicao, que para ns foi a prova de que tanto eu, como ela,
IS
j estvamos a pensar como que ia ser o nosso prximo encontro.
l-
o
O N'Dimb e o Ocanti estavam to entretidos a discutir qual das rapari-
s
gas que danava melhor a msica cubana, os pareceres diferiam no jeito de
a
sair e de entrar, tambm na leveza dos ps, assim como na rotao das ancas.
I
O Ocanti pretendia que as meninas da rua Bissilom eram melhores, sem
a ra hiptese de dvida, enquanto o N'Dimb jurava pela alma da
falecida me que, nenhuma mulher nesta cidade danava pachanga como a
meninas do Bairro de Tarali, alis, at porque elas so mais elegantes, e nin
gum no grupo delas era gorda e estavam sempre muito bem vestidas.
O Ocanti retorquiu, meio chateado, que o amigo estava redondamente
enganado, e esse estava a olhar para fteis detalhes de roupa, que isso a seu
ver no tinha a mima importncia: ao fie ao cabo, no se trata de u
desfile de modas, nem de um concurso de beleza.
O N'Dimb veio carga com u sorriso trocista no rosto, mostrando as
suas fortes maxilas onde brilhavam os seus dentes brancos e fortes, um
pouco para fora da boca, sob a tema luz dos escassos candeeiros das ruas
61
que se misturavam com o primeiro nascer do sol, daquela primeira madru
gada do primeiro dia do ano_ Olha, meu caro amigo, sabes muito bem que a
dana uma arte e, como tal um conjunto de um todo, por conseguinte a
roupa tambm conta numa dana, seja ela qual for, estou de acordo que no
tudo, alis, tu s o primeiro a dizer que no gostas de danar com a Djapuf,
porque ela tem um suor muito forte_
-Tudo bem! - Respondeu o Ocanti, - agora s no estou a ver qual o elo
de ligao entre vestir-se bem, ou no se vestir bem e, danar bem ou no
danar bem' Agora, o meu amigo vem para aqui com cada mistura de alhos
com bugalhos, que tenho uma certa dificuldade em seguir o seu raciocnio_
- No te faas de mau pagador, nem de inocente, sabes muito bem que a
dana uma combinao de vrios factores, que talvez analisados separa
damente, como ests a pretender, tem um outro valor. Agora, para se apre
eiar uma dana, em primeiro lugar temos a msica, depois O trajo, tal como
nas cerimnias tradicionais, onde o trajo tem que condizer com a cerimnia
em causa, do mesmo modo que para a pachanga, tambm deve-se estar bem
arreado e bem cheiroso para deslizar na pista, sabes que o cheirinho ajuda a
brilhar no deslize.
- Tu tomaste mas algumas pampas a mais, agora ests a armado em
advogado do diabo.
- Diabo s tu, mas s que ficaste com o rabo por dentro hoje, porque
nenhum peixe mordeu o teu isco.
AcolIpanhou a sua ltma palavra com uma leve palmada amigvel nas
costas do amigo, que trazia vestido uma camisa de algodo creme sujo, de
mangas compridas, um par de calas castanhas, um par de sapatos brancos
62
ru-
sem atacadores, que tinham sido bem engraxados na vspera, por no serem
. a
novos, e como toque final, tinha uma linda gravata verde com motivos ama-
e a
relados.
to
uf,
Quanto ao N'Djimb, estava vestido com uma camisa de setim, branca
,lo
imaculada, de mangas curtas, com um lao preto a condizer com as calas e
os sapatos pretos de fivelas.
o
Com essa de diabo com o rabo por dentro, o N'Daka, que at a no liga-
.os
va conversa dos colegas, apesar de caminhar no meio deles, pois ele s
o. tinha ouvidos para o seu sentimento, no aguentou e rebentou-se em garga
lhadas, abrindo os dois braos por cima do ombro de cada um deles.
'a-
Ele tambm vinha muito pomposo como era seu hbito, mesmo sem ser
'e-
dia de festa. Nesse dia, adorava-se com uma camisa verde-marinho de
la
linho, umas calas verde escuro de linho e um casaco caramelo tambm de
la
linho, mandava um lindo par de sapatos castanhos escuros de atacadores.
m
a

quela hora
d
a manh muito cedo, as ruas encontravam-se desertas,
caminhavamos no meio da estrada, porque os passeios estavam cheios de
buracos, sem nos preocuparmos com as raras pessoas que iamos cruzando
n pelo caminho. De uma vez em quando, passava um automvel; tambm nos
cruzvamos com grupinhos de mulheres que levavam balaios na cabea
te cheios de pes quentes, que elas tinham acabado de comprar numa das
padarias novas do centro da cidade. Acho que era naquela ali ao p da cate-
!s dral, que as pessoas chamavam padaria senegalesa. Eles faziam bons pes.
l
s
63
Comprmos alguns s senhoras e estavam bem quentnhos. As senhoras
compravam os pes para irem revender nos bairros populares: era assim que
muitas mes ajudavam os maridos a educar e sustentar os filhos.
Virei a cabea para a esquerda e disse: N'Djimb d s ao Ocanti
coro ela bonita.
Ela quem?
A Bamp!
Mas quem a Bamp?
Poxa, j no te lembras, aquela serpente com quem estava a danar, lem-
braste que ta mostrei na festa?
-
A sim! O nome dela Bamp?
- Sim, ela tem um nome muito giro, no ?
. Realmente u nome bonito, s no sei se vai ou no com a pessoa! .
Meteu-se o Ocanti na conversa.
-Pronto, j est o xico esperto com as suas manias de inquisies mal
intencionadas. Foi o N'Dimb quem falou para me defender .
-No ligues, eu sei que isso provocao, - falei nas calmas - e coro eu
no ligo s provocaes, s quero que t lhe expliques que ela uma dou
ra de mulher!
-Mas eu no disse que era feia ou bonita, porque no a vi, agora por amor
de Deus no vo comear o ano a embirrar com tudo que eu digo - defen
deu-se o Ocanti.
-Tudo bem, - acrescentou o N'Djimb, - diz-me s uma coisa, Ocanti,
sabes de onde advm o nome Bamp?
Ocanti aventurou-se a responder, meteu as duas mos nos bolsos e disse
que achava que era de origem balanta, mas que ao certo j no se lembrava
do significado, mas claro ele sabia, mas s que esquecera_
6
ras
Vim em socorro do meu amigo que j se estava a lanar num longo dis-
ue
curso para mascarar a sua ignorncia na matria, engajando-se num terreno
falso: a palavra Bamp de origem pepel e no balanta,como ele pretendeu,
nti
e significa "quer mas no obtm" ou seja e misli ma i colcha.
n-
- Sim senhor, - lanou o N'Djimb, - parabns, ests a fazer progressos,
N'Daka, para ser sincero nem eu sabia, s estava a crer meter-me com o
Ocanti, mas t saiste-nos c um par de ases, no Ocanti?
-
A sim! Mesmo eu que falo pepel fluentemente, no sabia, mas como
tinha vergonha de dizer que no conhecia o significado de Bamp na minha
lngua matera , estava a tentar dar-te a volta para me fazer de importante,
! -
mas aqui o apaixonado, deixou-nos cabisbaixos.
a
Parem l com isso, - resolvi cortar a conversa, porque seno ia ser alvo de
gozo at chegarmos a casa. - Ela tem mesmo algo de diferente das outras
u
meninas I se ouvissem a sua voz, to meiga, os seus olhos ... Parece que que-
1-
rem falar, a maneira como olhou para mim quando lhe perguntei o seu
nome ...
lr
1-
Larguei os ombros dos meus dois amigos, dei dois passos rpidos em
frente, virei para eles e comecei a caminhar de costas ao mesmo tempo que
"
explicava e gesticulava com os dois braos no ar, olhando fixamente para os
meus amigos que estavam muito intrigados com o meu entusiasmo e a
tamanha paixo que brilhava nos meus olhos, paixo por uma mulher que
e
s sabia o nome dela, onde trabalha e que me tinha marcado um encontro
a
para segunda-feira, quer dizer, dentro de trs dias, depois do horrio labo
ral normal dos funcionrios pblicos.
65
Mas para m, todos os detalhes eram sinais importantes de que aquela
era a mulher com que sempre sonhei, j me sentia feliz s de pensar nela,
imaginava os seus lbios carudos colados aos meus; s de pensar nisso j
tinha gua na boca, poder abraa-la com fora mas sem a sufocar, nem
machucar a minha jia, o meu tesouro ...
o N'Djimb e o Ocanti olhavam incrdulos para m, parecia-lhes que
eu estava a representar uma pea de teatro, faziam mmicas explicativas
para cada palavra de amor que tirava da boca, o meu ar era to convincen
te, que nenhum deles se aventurou a contrariar ou a fazer comentrios a pro
psito das grandes declaraes do meu corao, que visivelmente estava a
treinar-me para o grande dia do encontro na esquina do Banco Nacional.
66
tela
Ia,
III
)
j

Primeira segunda-feira do ms de Janeiro, o trio do Liceu parecia uma
em
passarela de modas: as alunas estavam trajadas de roupas novas e os rapa
zes tambm no se faziam de rogados, era como se a festa do Natal e do fim
do Ano continuasse no Liceu Nacional, isso ia durar uma semana, seme-
'ue
Ihana dos outros anos.
'as
m-
O Ocanti e o N'Djimb olhavam furtivamente para o relgio, ao mesmo
:0-
tempo que apreciavam o vai e vem no corredor, algumas pessoas estavam
I a
paradas em frente das portas das suas respectivas salas de aulas, eram gru
pos de cinco ou sete pessoas, a maioria j estava dentro das salas espera do
professor. A campainha tinha acabado de tocar, mas at ento ningum
ainda me tinha visto. O professor devia estar a chegar de um momento a
outro.
O Ocanti sempre mais agitado, disse para O N'Djimb: - Mas onde E que
se meteu o N'Djaka, ele que nunca falta as aulas?!
-
O N'D
j
imb rematou, e
logo hoje no primeiro dia de aulas, depois das frias, no nada bonito, isto
falta de disciplina.
Ocanti filho de um Combatente da Liberdade da Ptria, nasceu na zona
libertada antes da independncia, foi aluno da Escola Piloto, onde lhe foi
inculcada uma grande noo de disciplina colectiva, um respeito e solidari
edade entre os condiscpulos, sobretudo um grande esprito de camarada
gem.
67
Lembro-me uma vez, ele contou-me uma histria que me marcou muito,
eu que nasci na cidade de Bissau, era uma coisa jamais imaginvel. Disse-me
que na Escola Piloto todos tnham uma venerao pelo Amcar Cabral, que
tambm fazia tudo por tudo para ser admirado e amado pelas crianas. Foi
ele quem criou a Escola Piloto durante a Luta de Libertao Nacional, isso
foi em 1965, na sequncia do Congresso de Cassac, em 1964.
No decorrer deste histrico congresso do PAIGC, Cabral fixou coro
objectivo a educao dos pioneiros, com vista a superar a falta de quadros
nas fleiras do Partido, entre outros objectivos, e a partir da o ensino passou
a ser um dos principais motores da mquina do Partido, logo a seguir s
Foras Armadas Revolucionrias do Povo (F).
Cabral dizia que a Luta s podia ir avante com muita disciplina entre os
camaradas dirigentes do Partido e nas fileiras das FARP, mas que tambm
no se devia esquecer que as crianas que so os herdeiros naturais e leg
timos da nossa luta, foi assim que escreveu a palavra de ordem que todos
afeiomos: As crianas da nossa terra so as fores da nossa luta.
E coro estava a dizer, a histria que o Ocanti me contou assim: Cada fim
de ano lectivo, fazia-se uma seleco de pioneiros mais disciplinados e com
melhor aproveitamento escolar para uma visita de estudo e formao mili
tante num dos paises dos seus sonhos, URSS oU Cuba. Um dia chegou a vez
do Ocanti ser contemplado com ura visita URSS, ele contou-me que pas
sou dois dias sem dormir quando lhe foi anunciada a deciso, e quando che
gou o dia da partida, pensou que estava a sonhar, nunca tinha visto um avio
de perto, no seu subconsciente tinha uma verdadeira averso aos avies que
eram ura terrvel mquina de matar, isso porque tinha sempre presente na
68
ito, alma os bombardeamentos dos avles dos colonialistas portugueses que lar-
me gavam bombas napalms, que causavam muitas baixas aos Combatentes da
jue Liberdade da Ptria e a populao civil, incluindo crianas e mulheres.
Foi
5S0 Foi ento com o corao nas mos que ele caminhou silenciosamente para
o grande pssaro de ferro, seguindo as pegadas dos camaradas que marcha
vam em fla indiana sua frente. Estavam todos vestidos de fardas novas
no dos pioneiros, com um leno amarelo no pescoo, mas a parte da histria do
:os Ocanti que me surprendeu mais foi que, uma vez postos l na URS , foram
ou acolhidos por uma fanarra dos pequenos soldados vermelhos, depois foram
s encaminhados para u grande autocarro verde caqui, com uma estrela ver
melha pintada na porta da frente.
os Levaram-nos para u Centro de Acolhimento especialmente construido
m para receber os pequenos camaradas aficanos vindos da

ica onde luta-


;
- vam pela liberdade. As camaratas tinham cinquenta beliches em cada com-
)S partimento. Depois de estarem instalados, viram chegar mais e mais auto
carros com crianas de diferentes nacionalidades. As refeies tambm se
faziam em enormes refeitrios. Depois de um jantar leve, foram todos para
n a cama, sem dvida por causa do cansao da viagem.
n
1-
z
;-
*
-
)
I I
De manh cedo foram acordados pelo toque de um clarim que berrava
pelo altifalante colocado em cima da grande porta da camarata, dois minu
tos depois ouvia-se a Interacional Socialista no corredor que levava aos
lavabos, e l iam todos mal acordados, alguns ainda meio adormecidos, para
a casa de banho com as toalhas nos ombros.
69
E uma vez em frente do lavatrio, o Ocanh se deu conta que com a emo
o da viagem, esqueceu-se da sua escova de dentes em Bok. Mas ainda
nem tinha acabado de pensar como que ia sair dessa, que um camarada
pioneiro da US , que tinha ocupado a cama ao lado da sua na vspera lhe
estendia a sua escova de dentes ainda molhada, com um sorriso natural no
rosto.
Por isso, entende-se hoje esta grande preocupao do Ocanti em relao a
pontualidade e a disciplina. O N'Djimb que no foi aluno da Escola Piloto
como eu, mas tambm no fiava para trs em termos de solidariedade e dis
ciplina na escola, pois ele ficou rfo muito novo, acho que j nem se lembra
da cara do pai, a nica coisa que sabe que ainda era criana quando um dia,
na madrugada do ms de Agosto, bateram violentamente porta da casa
onde morava com os pais; a casa s tinha um quarto com uma cama grande
onde dormiam a sua me e o seu pai, ele tinha um colcho individual que
punha no cho para dormir.
Nessa madrugada, quando bateram porta, o pai deu um salto da cama,
correu para apanhar as calas que estavam no cabide ao lado da porta, enfi
ou-as pressa e, antes de poder vestir a camisa, ouviu uma voz a mandar
abrir a porta, ameaando arromb-la se no a abrissem imediatamente.
A me levantou-se da cama, amarrou um pano por cima do peito que
cobriu todo O seu corpo at aos calcanhares, foi ela quem, mal abriu a porta,
foi empurrada bruscamente e sem modos para o meio do quarto por dois
indivduos de raa branca, dois outros da mesma cor entraram, cada um
deles segurou o pai dele por um brao e arrastaram-no para fora da casa.
70
r
no-
Nesse momento, o N'Djimb comeou a chamar pela me que chorava
Ida
devagarinho, ela segurou a mo do filho, foram para a varanda, viram um
Ida
indivduo de raa negra, sentado ao lado do condutor de um Land Rover
lhe
verde, cr de azeitona, que tinha o motor em marcha.
no
Os quatro homens empurravam o pai dele, abriram a porta do traseiro do
Land Rover, enfiaram-no l para dentro sem acomodao, entraram no carro
J a
que arrancou deixando para trs o olhar surpreso do seu pai ao reconhecer
ltO
o indivduo que ia ao lado do motorista do carro da PIDE.
I-
!Ta
Foi essa a ltima vez que N'Djimb viu o pai, como tinha cinco anos de
la,
idade quando isso aconteceu, nem consegue lembrar da cara do seu pai, ape-
sa
sar da fotografia a preto e branco que a sua me guardava preciosamente em
:e
cima da cmoda que oramentava a sala-quarto da sua habitao.
ue
.a,
f-
ar
a,
1
A me, mulher corajosa e trabalhadora, que tinha recebido uma educao
religiosa no Colgio das Madres da Estrada de Br, continuou fiel ao marido
dado por desaparecido, com uma vaga nuvem de esperana na alma, em
como um milagre podia fazer com que ele ainda estivesse vivo. Todos os
santos dias obrigava o N'Djimb a rezar juntamente com ela duas vezes, de
manh ao acordar e a noite antes de dormir. Ajoelhavam-se em frente da
fotografia, com um tero na mo e uma bblia aberta em cima da cmoda
para pedir a Deus que lhes desse o po de cada dia e poupasse a vida do seu
marido.
Para a subsistncia, a me de N'Djimb confeccionava pastis de baca
lhau, doces de mancarra que dava ao N'Djimb para ir vender na varanda
da tabera do Ti-Pidro, todos os dias de manh at ao meio dia, hora em que
71
N'Djimb voltava a casa para almoar E logo depois do almoo ele lavava
os pratos e a me punha-o a caminho da escola, enquanto ela se sentava
sua mquina de costura.
Foi assim que o N'Djimb fez toda a sua instruo primria, acordando
de manh muito cedo para ajudar nas lidas da casa. Varrer o cho, lavar os
pratos, tomar o pequeno almoo, ir vender as guloseimas feitas pela me e a
tarde ir para a escola, enquanto a me costurava infatigavelmente blusas,
saias e vestidos encomendados pelas meninas e senhoras de todas as idades.
A senhora sua me tinha a reputao de ser uma excelente costureira, ela
aprendeu a arte de bordados e costura com as freiras da Estrada de Br onde
foi criada. Para mais era muito asseada, cumpridora da sua palavra, o que a
diferenciava das outras costureiras que diziam hoje, depois diziam amanh,
por vezes mesmo, chegavam a perder o tecido da cliente.
Foi dessa educao honrada, foada no suor e rigor, respeitando os com
promissos, que N'Djimb tirava toda a sua fora de carcter, a sua obcecao
para as regras de boa conduta, assim como esse fogo latente de vencer na
vida. Por isso mesmo, no brincava com os seus estudos, convicto de que era
a melhor forma de testemunhar a sua gratido e de compensar a sua me.
o Ocanti e o N'Djimb trocaram um olhar cmplice, o Ocanti exclamou:
Vau!.. N'Djimb ests a ver o que eu estou a ver? O N'Dimb abriu a boca,
o seu largo sorriso encheu-lhe o rosto, enquanto dizia que sim com a cabea,
sem pronunciar uma palavra. Todos os colegas da tura correram porta
para saber o motivo desse grito do Ocanti, as midas desataram-se a rir sor
rateiramente, escondendo a cara.
7
'a
Olhei para o Ocanti e o N'Dimb e disse-lhes: - o que que foi? Nunca

me viram? Querem a minha fotografia ou qu? __
Ningum respondeu, pois eu estava a chegar atrasado, tambm sabia que
o
no foi por causa disso que o Ocanti provocou todo aquele escndalo porta
,
da sala, ainda por cima eu j vinha muito nervoso_ No estava zangado com
a
os amigos mas deixava transparecer u nervosismo que no escapava a nin-
"
gum. Com efeito, admito que estava exageradamente elegante para um dia
"
de aulas.
Trazia uns sapatos de verz a brilhar, um par de calas cinzentas e uma
camisa azul escuro com botes de punho e um par de culos escuros. Tinha
ido ao barbeiro, o que me dava um ar aprilino.
Nisso vinha a chegar o professor, sem que o Ocanti me pudesse respon
der, mas o N'Djimb vivo como ele , aproximou-se do Ocanti e sussurrou
lhe aos ouvidos: -Eh p, no te lembras que o nosso camarada tem um
encontro hoje ao fim da tarde com aquela menina da festa?
O Ocanti puxou a manga da camisa do N'Djimb e perguntou-lhe: - Qual
mida?
O outro respondeu seco: - p, a Bamp!

oohl l!, - suspirou o Ocanti.


Todos os alunos na sala se viraram para ele, o professor exigiu silncio
dizendo as frias j acabaram.
73
I
o sol declinava a sua luminosidade sobre a cidade, o N'Djaka vinha a
descer a avenida principal em direco ao Banco Nacional, empurrado pela
pujana de um amor nascente, germinado numa paixo imprevisvel. De
longe viu a silhueta da Bamp vestida de umas calas verdes e uma blusa
exageradamente larga, da mesma cor das calas e um par de sapatos casta
nhos, iguais sua carteira. Ela estava entretida a falar com a Amila e mais
duas colegas de servio. Ao chegar junto delas, calaram-se todas, ele cum
primentou a Bamp com dois beijos e ela apresentou a sua prima, Amila e as
duas outras colegas.
o N'Djaka disse Ara que j a tinha visto na festa do fim do ano, ela
ficou um pouco embaraada por no ter reconhecido o amigo da prima, l
tando-se a responder: que sim que era verdade.
A Bamp olhou para ele e disse-lhe: - Vamos? - Ele respondeu logo,
vamos. Despediram-se das amigas, tomaram a direco do porto, sempre a
descer a avenida, e no a subir, que era a direco da casa da Bap!, as cole
gas acharam estranho, entreolharam-se sem fazer comentrios.
Estavam a caminhar lado a lado sem pressa, chegaram ao jardim do
porto, O N'Djaka perguntou a Bamp como que tinha sido o seu dia, ela r
pondeu que muito bem, embora o tempo parecesse mais longo (hoje). Ela
perguntou-lhe por sua vez qual era o seu signo. - Caranguejo - respondeu
lhe.
74
r
A Bamp disse-lhe: - Olha, eu sou Aqurio. Ele exclamou: - Dizem que o
caranguejo d-se muito bem com todos os signos da gua. - Oxal, - mur-
a murou Bamp.
la Assim loram lalando de cinema, de poesia, at chegarem a um banco do
le jardim ladeado de muitas flores e sentaram-se, tinha a vista estendida sobre
'a o mar, licaram com os olhos pregados no horizonte a lalar das suas vidas e
,-
projectos. A Bampf j trabalhava h muitos anos no Banco Nacional, mas
's agora o sonho dela era partir dessa cidade, estava cansada dessa monotonia
1-
da vida que lhe era imposta por esta sociedade, queria conhecer outros mun-
s dos, outras civilizaes. Ela vivia em casa da sua me com a sua irm mais
velha que tinha dois lilhos, de um casamento que loi um autntico liasco.
Tambm vivia l em casa o irmo mais velho, que nunca lez nada na vida, a
I no ser embebedar-se e correr atrs das saias de umas mulheres duvidosas,
sempre que lhe aranjavam um emprego, ele conseguia encontrar maneira de
ser despedido.
Quanto ao pai, abandonou muito cedo o lar, vivia agora com uma outra
mulher, com quem no parava de lazer lilhos. A Bamp parou de lalar, olhou
para o N'Djaka que bebia as suas palavras, disse-lhe: - Estou a encher-te o
saco com os meus problemas no ? - No, nada disso, - apressou-se a res
ponder o N'Daka; Est bem, agora laIa-me de ti, eu j lalei muito.
- Olha, eu no gosto muito de lalar de mim, mas pelo que acabei de ouvir,
temos uma coisa em comum, gosto muito de viajar mas tambm no tenho
meios para tal, mas como adoro ler, vou-me refugiando nos meus livros que
me permitem viajar sem sair de casa, deves experimentar, hs-de ver que
labuloso viajar atravs da leitura.
75
Colocou uma mo em cima do joelho da Bamp, ela olhou para ele, ele
sorriu para ela com um ar afvel, ficaram assim u minutos como se esti
vessem petrifcados, depois ele debruou-se sobre ela e beijou-lhe os lbios
suavemente. Ela fechou os olhos colocou as suas duas mos na nuca dele,
fez-lhe uma ligeira presso obrigando-o a baixar-se em harmonia com a sua
cabea, beijou-o longamente sem abrir os olhos, ao mesmo tempo que os
seus corpos se aproximavam cada vez mais um do outro.
Abriram os olhos, pararam de se beijar e /icaram abraados durante
muito tempo olhando para o mar cujo bater da gua nas rochas parecia o
rufar de vrios tambores anunciando a nascena de um amor profundo que
patenteava os seus olhares mergulhados no mar, quais dois seres descobrin
do o amor pela primeira vez.
A noitinha veio bater porta do mar acordando os dois namorados,
deram conta que estava a fazer-se tarde, ela levantou-se, ele levantou-se,
encostou-se a ela e enlaou-lhe a cintura. Assim foram caminhando. Ao
aproximarem-se da casa da Bamp, ela disse-lhe que era melhor no lev-la
a casa, ainda era muito cedo e no sabia como que a sua me havia de rea
gir. Pararam a uns duzentos metros da casa, encostados um ao outro, bei
jando-se com muito ardor e terura, o N'Djaka olhou para os seus olhos e
disse-lhe:
Diz-me que sempre sers minha?
Amo-te, meu tonto!
Est bem, mas promete-me que sers s mina por toda a vida.
Juro que sempre hei-de amar este louco que tenho nos meus braos, que
me d a maior sensao de bem estar interior que jamais senti.
76
e Assim est bem, j posso ir tranquilo, a lua testemunha de que sou o
homem mais feliz do planeta.
; renho que ir, meu bem - disse ela, com uma lgrima de alegria no canto
do olho
Um dia - disse teramente o N'Djaka que se apercebeu da lgrima - o teu
olhar h-de brilhar no altar da Catedral, ao meu lado.
semelhana do dia anterior, fui buscar a Bamp sada do servio,
mesma hora, no mesmo local e, ela l estava com as suas amigas. Os dias e
os meses foram passando e religiosamente continuava a ir esquina do
Banco Nacional, s vezes chegava mais cedo, s vezes mais tarde, mas ia
todos os santos dias ao encontro que norteava as nossas vidas, que houves
se chuva, fizesse sol, frio ou calor, ela estava sempre a sorrir quando me via
chegar.
Na cidade viam-nos sempre juntos, isso era motivo para se falar do nosso
namoro, por ela ser mais velha do que eu, tinha um emprego estvel e eu
ainda estava a acabar o 7" ano do Liceu, mas tambm dava aulas, o que me
conferia uma certa autonomia.
O nosso amor era to sincero e natural que nos tommos verdadeiros
amigos, a nossa paixo parecia um conto de fadas, no ligvamos puto ao
que as outras pessoas diziam de ns. Eu sentia-me to bem com ela que
esqueci todas as outras namoradas que tinha: agora s tinha alma e corao
para a Bamp.
Quanto Bamp
l
, eu pensava que ningum podia se sentir mais amada do
que ela: irradiava de felicidade, quando fazamos amor, ela confessava-me
77
prazeres que s nos sonhos existem, repetia-me vezes sem conta que queria
mais, s vezes eu sentia-me entontecido com tanto calor do seu amor.
Na rua, queria sempre estar abraada a m, dizia que era para mostrar
a toda a gente que no tinha complexos em assumir o nosso relacionamen
to. No havia festa a que eu fosse sem ela ou que ela fosse sem mim. Muitas
vezes, depois de uma festa amos ao porto, sentvamos no nosso banco do
amor, pois assim o baptizmos, o banco que nos viu trocar o primeiro beijo,
que testemunhou o parto do nosso amor, ficvamos a olhar para o mar, tes
temunha dos nossos sonhos, depois acompanhava-a a sua casa, a me dela
j me conhecia. Aos fins-de-semana jantvamos juntos, e se no tivssemos
programa, amos ao cinema ou ficvamos sentados na varanda da sua casa
a falar e a ver as estrelas at de madrugada.
Aos domingos eu ia igreja sozinho, como ela era protestante ia ao culto
s sextas-feiras .
Agora que estou a falar da religio, vem-me mente que era a nica coisa
que no fazamos juntos, era i igreja. A religio era a nica coisa que no
partilhvamos, mas mesmo assim o nosso amor era to grande, que super
vamos essa diferena com muita naturalidade, de forma que nunca causou
nenhum transtoro nossa relao. Lembro-me que uma vez fu esperar por
ela salda da sua igreja. Estou lembrado desse dia, porque a partir dessa
data a Bamp comeou a ter uns comportamentos nunca antes conhecidos
por mim, pareceu-me que ela estava a mudar pouco a pouco, j no me pare
cia to feliz quanto antes, cheguei a comentar esta preocupao com o
N'Djimb e o Ocanti, eles eram da opino que alguma coisa de grave podia
estar a passar-se, o melhor era eu ter uma conversa sria com ela .
78
I Assim tentei fazer. As minhas vrias tentativas para estabelecer o dilogo
revelaram-se infrutferas, ela falava muito pouco agora, a maior parte das
vezes limitava-se a dizer sim ou no, o que no me facilitava a tarefa; ela
continuava a afirmar que estava tudo bem entre ns e, eu fui apercebendo
dia, aps dia, que algo de estranho estava a passar-se.
noite, quando me despedia dela, abraava-me com fora e eu sentia o
bater do seu corao que me parecia anormal, ela agarrava-se a m, como
se o amanh no fosse existir.
Contando esta histria, lembro-me do romance de Ferando Da Costa, O
Vivo, ao falar dos desencontros nos amores ele escreveu que: " Todos temos
uma ilha de amores. Para a merecer damos a volta ao sonho, construmos nas para
gens desembarcadas imitaes dos lugares de origens, que fecundam com f, e retor
namos."
No que me toca, no sou o que sonhei ser, mas continuo viajando pela
paixo, esperando merecer o meu sonho desaguado no porto de Bissau, em
frente ao nosso banco do amor.
79
MAFlNGHARAW? ..
I
T
udo lazia crer que aquele dia no ia ser como os dias precedentes.
O senhor Obopol-camba-mar acordou com o p esquerdo, estava
naqueles dias em que uma pessoa se levanta da cama com uma
insustentvel sensao de tristeza prolundamente naufragada na alma.
Sentimo-nos triste sem saber concretamente o porqu dessa nebulosa preo
cupao, todo o nosso olhar interior paira sobre uma nuvem cinzenta que
um cock/ail de: apreensibilidade, raiva, pena, Irustrao e indelinio do
rumo da vida.
Dirigiu-se casa de banho, barbeou-se, tomou banho de gua Iria, pegou
nas calas preta que estava pendurada num prego de vinte, pregado para o
eleito do lado interior da porta da casa de banho, loi para o quarto, abriu a
porta do guarda-lato e escolheu uma camisa branca bem engomada, de
mangas compridas com dois botIes na extremidade .
Encaminhou-se para a cozinha para tomar o desjejum. Ligou O rdio, ao
mesmo tempo que se sentava pequena mesa de metal, igual quelas que se
vem nas esplanadas dos cals, com uma taa de cal preto sem acar. De
lacto, todos os dias ao acordar, o senhor Obopol-camba-mar, ia directa
mente cozinha, abria a porta direita do arrio branco lixado parede, por
cima da pia de lavar loias, tirava um bocal de tampa preta, apanhava cui
dadosamente um liltro do pacote dos liltros, deitava gua Iria da toreira na
mquina de cal, depois abria o hocal que contm uma colher de plstico
80
para apanhar caf, deitava duas colheres no filtro introduzido na mquina,
voltava a tapar o bocal, coloca-o no seu lugar dentro do armrio da cozinha,
tirava uma chvena e um pires que colocava em cima da mesa da cozinha,
ligava a mquina do caf antes de ir para o banheiro, para que o aroma do
caf pudesse ajud-lo a despertar.
Assim se gabava no Ministrio das Fossas, onde era Director do Gabinete
do senhor Doutor Ministro do importantssimo Minstrio das Fossas.
Nesse dia, a rdio berrava uma msica estranha, que parecia vir de outras
ondas diferentes da habitual matutina que costumavam passar, todos os dias
antes do primeiro joral da manh, e que ele ouvia religiosamente todos os
santos dias s seis horas de manh. Mas hoje estavam a dar um som ininter
rupto de latas e canecas vazias a chocalharem com garrafas vazias, ritimado
pelo chilrear do vento que parecia furioso.
o senhor Obopol-caba-mar interompeu, a meio, o gesto do brao
esquerdo que levava a taa do caf fumegante boca, apurou os ouvidos, ao
mesmo tempo que tentava sintonizar o seu pequeno rdio a pilhas, com a
mo direita. Mas a msica continuava a martelar-lhe os timpanos sem alte
rao do som que permanecia muito alto, nem mudana de sintonizao.
Poisou a chvena do caf que libertava um fumo transparente e agradvel,
segurou o rdio com as duas mos, virou-o e revirou-o, mexeu nos botes da
frequncia, tudo isso foi em vo, o volume do rdio continuava muito alto e
a difundir a mesma msica! Indagou-se: - ser que vamos ouvir mais uma
nova ladainha dos chefes?
81
Poisou o rdio com muita cautela em cima da mesa. Sem despregar os
olhos da marca redonda do pequeno altifalante que se desenhava no rdio,
ps as duas mos na cintura, recuou dois passos, voltou a avanar, pegou no
caf e deu dois goles, sempre com os olhos suspeitosos pregados no rdio.
De repente a msica parou, ouviu-se uma voz grossa e rouca que parecia
ler um comunicado oficial.
As paredes do estmago apertaram-se-lhe enquanto ouvia a voz que
anunciava: por razes de segurana e ordem pblica - dizia a voz do locutor
- foi tido como sumamente conveniente que todos os cidados devem ficar
hoje em casa com as portas e as janelas fechadas, at nova ordem. Qualquer
indivduo, seja ele de sexo masculino ou feminino, maior e vacinado ou
menor e emancipado, que se aventurar a no cumprir esta ordem, ser puni
do pela ordem mxima da nossa revolta com a pena mxima da Nao.
Isto! - Continuou a voz grossa e rouca ironicamente autoritria da rdio,
isto uma revolta do lixo para pr cobro aos longos anos de irresponsabili
dade e traio de todos quantos pactuaram com os que dirigem esta cidade.
Lembramos aos cidados que os revoltosos foram, ao longo destes anos,
depositrios residuais de um tempo recentemente passado, onde testemu
nharam a decadncia irreprimvel da cidade, que foi ficando sem luz nas
ruas , num vai e vem de energia elctrica e de gua potvel nas casas da mai
oria da populao que no tem gerador individual; as estradas cheias de
buracos por tudo quanto bairro, incluindo em frente ao Ministrio das
Estradas; alguns pontos da cidade pareciam um depsito interacional de
lixos, deixados ao Deus dar, ao mesmo tempo que alguns cidados, eleitos
82
pela Obra da Santa Brbara, adoravam-se sem vergonha com enormes jee
pes 4X4 japoneses ltimo grito, onde andavam sempre com os vidros fecha
dos por causa do ar condicionado, mas tambm para se isolarem do resto
dos automobilistas que so cidados comuns.
Pois os novos ricos, que no ganharam totoloto e nem herdaram nenhu
ma fortuna familiar, tomaram-se indiferentes e insensveis aos olhares de
repugnao dos transeuntes que viviam fazendo acrobacias para se alimen
tarem e para circularem a p entre restos de passeios e estradas esburacadas,
coalhadas de automveis de luxo, de mndongueiros, de toca-tocas, de chapas
cem e de Somadas-n-bai_
O senhor Obopol-camba-mar levantou-se, abeirou-se da janela da sala
com uma vontade irreprim

vel de sair rua, mas o medo ainda era maior


que essa vontade, pelo que se limitou a olhar para a janela e foi com muita
apreenso que obedeceu s ordens dadas pelo comunicado, fechando a jane
la, enquanto dava um golpe de vista para a porta que continuava encerrada
desde a noite anterior
Foi ao telefone, levantou o auscultador e deu conta que no tinha nenhum
sinal. Mesmo assim tentou marcar um nmero, sem resultado, no funcio
nava, de um gesto automtico carregou no interruptor da luz, nada, voltou
a carregar para cima e para baixo, nada. Fez-se silncio no escuro, sentiu-se
isolado sem telefone, sem luz, sozinho com o seu pequeno transistor a pilhas
que continuava a intercalar mensagens e a mesma msica inferal.
83
Ento, comeou a sussurrar no escuro: Meu Deus, se ao menos tivesse a
possibilidade de falar com o meu compadre! Nem ouso imaginar como que
est o meu afilhado, ooh senhor que afronta!.. E a minha comadre que sem
pre foi fraca de esprito? . Deve estar feita maluca a tentar ligar para m.
Estou mesmo a ver o meu compadre a tentar convenc-la de que no tem
linha e, ela continuar a discar no escuro, enquanto diz ao meu compadre
para acender uma vela, porque ela no consegue telefonar assim, mas eu c
sei que ela conhece o meu nmero de telefone de cor e salteado.
A propsito, talvez seja melhor para m, acender tambm uma vela,
pelo menos a chama da vela vai me fazer companhia. Pois claro eles no
interditaram o uso da luz da vela ...
Levantou-se, dirigiu-se cmoda que se encontrava ao lado da porta da
entrada principal da casa, junto ao cabide de p alto, onde estava pendura
do um chapu de feltro, um par de guarda chuvas e ua gabardine amare
lo queimado. Estendeu as duas mos para apalpar no escuro, sentiu a pre
sena de um objecto na ponta dos dedos da mo direita, que reconheceu
como sendo o pires onde costuma deixar uma vela e ua caixa de fsforos,
cautela, para fazer face aos cortes frequentes e repetidos da energia elc
trica que assolam o pas. Confrmou que se tratava bem da vela, juntando a
mo esquerda a volta da vela. De repente parou a de p com as duas mos
segurando o recipiente que continha a vela e os fsforos.
Pensou: Mas se no momento de acender a vela, pegar o fogo casa? .
Nesta escurido, sem telefone e sem gua, o que vai ser de mim? . No, no
nada prudente andar aqui a raspar fsforos. Mas ..= O meus compadres? .
84
I
Rogo a Deus que no acendam a vela. - Ao dizer isso caminhava pela casa,
levando a vela apagada consigo, colada ao seu umbigo nu, porque tinha a
camisa completamente desabotoada. Voltou ao seu lugar junto ao rdio,
havia no ar um no sei que de foras malfazejas.
Sentou-se mesa, ps as duas mos debaixo do queixo e iniciou uma via
gem interior, vendo o filme da sua vida em retrospectiva. Isso j era de espe
rar. - Disse em voz alta para consigo, como se estivesse a falar para os seus
botes - j l vo muitos anos desde que a cidade tinha disparado numa
mutao rpida e incontrolada: eram gentes que vinham do interior do pas,
fugindo misria e.ao esquecimento do poder central, na esperana de con
seguirem um emprego ou de fazerem algum negcio, at se falava de estran
geiros que tinham fugido guerra ou, e , da pobreza que ceifava a nossa sub
regio.
Todos ns vivamos a transformao com muita inquietao e raiva dos
goverantes, que pareciam cmplices cegos e surdos, mas com muita sade
na boca. Falava-se que nos bairros perifricos, havia bandos organizados
que faziam assaltos mo armada, violavam senhoras e crianas e, at j
andavam a dar tiros aos infortunados, se tentassem defender-se, ou tentas
sem proteger os seus escassos bens materiais. Ele tinha sepultado estas lem
branas nas profundezas da sua memria, por o terem marcado tanto, mas
hoje viu-se a exum-Ias com arrepios nas costas.
verdade que a gente do povo j tinha comeado a desconfiar dos des
mandos repetidos de alguns dirigentes que ficavam impunes, diziam tam
bm que havia responsveis que sabiam muito mais do que pretendiam,
acerca da corrupo e da sujeira que se vinham alastrando pela cidade.
Tambm no deixa de ser verdade que os dizeres da boca do povo no
podem constituir uma prova irrefutvel da corrupo crescente, mas ela
um elemento importante e muito srio para suspeio.
85
o senhor Obopol-camba-mar ficou horas a fio nessa posio em profun
da meditao, a passar e a repassar em revista as diferentes facetas das suas
vidas nesta cidade.
Ele que nasceu no interior do pas, veio para a cidade com a revoluo
que acabou com a colonizao. Catlico no praticante, aplicado no trabalho,
ocupou altos cargos administrativos durante a era colonial, ao mesmo tempo
que desempenhava um papel relevante na luta clandestina contra o colonia
lismo, arriscando vrias vezes a sua prpria vida e a dos demais membros
da sua famlia, em prol da Luta.
Essa experincia conferiu-lhe uma ampla viso do funcionamento dos
servios pblicos.
Nos primeiros anos da independncia, veio para a capital onde assumiu
vrias pastas no aparelho do Estado: Foi responsvel da Informao e
Propaganda do Partido no Ministrio dos Antigos Combatentes, Director da
Secretaria Geral do Ministrio dos Negcios Estrangeiros, Chefe do Gabinete
do Secretrio-Geral do Partido, Presidente da Cmara Municipal, por ltimo
ocupou o cargo de Ministro da Informao.
Um dia, durante o Conselho de Ministros, desaprovou uma proposta do
Partido que se prendia com a censura dos jorais privados. No dia seguinte,
executando o seu ritual matutino de fazer caf e ouvir o prieiro boletim
informativo da Rdio Nacional, s seis horas de manh, ouviu a leitura de
um decreto do Governo que o destitua do cargo de ministro, nomeando o
seu melhor amigo para o cargo que ele vinha ocupando com muito zelo e
sentido de justia.
86
;
Curiosamente a notcia no o surpreendeu. Na verdade, aquando da
sua nomeao para esse posto, tambm soube que era ministro atravs da
mesma Rdio Nacional, sem nenhuma consulta prvia. Alis, como diz o
velho ditado guineense, a prola que apanhares numa sala de baile, numa
sala de baile a hs-de perder.
o senhor Obopol-camba-mar, levantou-se preguiosamente, abeirou-se
mais uma vez da janela, colou o rosto s persianas de madeira, pintadas de
verde, que se mantiveram fechadas, espreitou pelas frestas e viu a rua cheia
de lixos. Era uma verdadeira mexerufada de lixos com vida que andavam,
saltitavam, alguns at voavam na boleia da poeira e do vento que tambm
manifestavam o seu descontentamento, dando um apoio total e incondicio
nal aos revoltosos, e fazendo um barulho de alm-trevas.
o ar estava carregado de uma poeira acastanhada, os lixos estavam a par
tir tudo que encontravam pela frente, partiam carros estacionados na rua,
alguns deixados no meio da estrada, com sinais de que os ocupantes os
abandonaram precipitadamente, partiam vidros das montras, arrancavam
rvores, batiam ferozmente nas janelas e nas portas de todas as casas, grita-
.
J ' I
J
I
J
I
vam em urussono: ustla ... ustla. .. ustla ...
Apavorado o senhor Obopolcamba-mar voltou para a sua pequena
mesa de metal da cozinha arrastando os ps pesadamente, deixou cair o
corpo numa das trs cadeiras da cozinha, fixou os olhos no posto do rdio
transistor e apurou os ouvidos despertando todos os seus sentidos. A rdio
anunciava agora as reivindicaes dos lixos. Eles estavam fartos de coabita
rem na cidade com as pessoas humanas, pelo que reclamavam um trata
mento adequado e com todo o respeito que devido aos lixos, para o bem
da sade pblica dos moradores desta cidade.
87
Uma brisa entrou sorrateiramente por debaixo da porta, invadiu a sala
chegou cozinha e espairou no ar um perfume nauseabundo que o estonte
ou. O senhor Obopol-camba-mar passou a mo direita pela cara molhada
de suor ' 0, ao mesmo tempo que segurava a cabea com a mo esquerda.
Foi invadido de pavor ao lembrar o rebolio que tinha acabado de ver :
fora, lembrou-se do fedor dos lixos que vinha asfixiar a cidade, j de uns lar
gos anos para c, como se fosse um aviso, mas que ningum nada fez para
remediar a situao. Agora ele estava estremunhado entre a fico e a reali
dade com um amargo sentimento de que ele tambm fora cmplice, por
omisso, desta revolta do lixo.
88
II
Dois dias e duas noites passaram-se sem que o senhor Obopol-camba
mar pudesse pregar o olho, passou os dias e as noites dentro da casa. Na
( madrugada da terceira noite foi sacudido pelo bater da porta, batiam insis
tentemente de uma maneira insuportvel. Assustado, no quis abrir, agora
parecia ter mais pessoas a baterem sua porta e acabaram por arromb-la,
causando um grande estrondo que se ouviu por cima de todo o alvoroo que
vinha da rua. A porta ficou suspensa por uma s dobradia por onde baloi
ava, languidamente, no escuro.
Os lixos entraram aos empurres, queriam todos passar de uma vez pela
porta enquanto outros escancaravam as janelas para entrarem: havia lixos de
todas as raas, pretos, brancos, mulatos e at alguns com cara de estrangei
ros. Faziam muito barulho, era um autntico pandemnio. O senhor
Obopol estava to apavorado que ficou de p no meio de todo aquele rebo
lio sem dizer uma palavra, como se estivesse petrificado.
Estavam a saquear a sua casa debaixo da sua barba sem que ele pudesse
salvar alguma coisa: Viraram tudo de avesso, levavam tudo quanto era pos
svel ser levado: viu um lixo a levar a geleira pelas costas, um outro a ta
portar a televiso na cabea, levavam tudo, entraram no seu quarto de dor
mir puxaram as gavetas da banquinha de cabeceira, esvaziaram-nas todas,
levaram a cama, o colcho, sapatos, relgios, fatos, at a roupa interior, aqui
lo era uma autntca razia, nada foi poupado e espetavam facas nos objectos
que no podiam transportar cabea ou s costas.
89
Os que estavam na cozinha levaram as trs cadeiras, a mesa de metal.
Quando pegaram na sua mquina de caf, deu um grito desesperado, saltou
em direco ao seu rdio, segurou-o com as duas mos e apertou-o contra o
peito. Isto ningum me tira, a no ser que me tirem a vida.
O lixo que tinha a de chefiar o grupo, deu-lhe voz de priso sem alegar
o motivo, contentando em gritar-lhe na cara que eram ordens do senhor
doutor procurador geral dos lixos. Sau rua algemado segurando com as
duas mos algemadas o rdio encostado ao seu peito, que continuava a ber
rar a mesma msica medonha do outro mundo, intercalada com as mensa
gens do Conselho Superior da Revoluo.
O senhor Obopol foi arrastando os ps, calados com um par de chine
las de banho, com a camisa desabotoada, pediu um cigarro e u lixo enfiou
lhe na boca uma beata do cigarro que estava a fumar. Assim foram cami
nhando todos a p, no meio da estrada rumo esquadra.
Quando chegaram esquadra, O lixo que chefiava o grupo que o prendeu,
disse ao lixo oficial do dia, que o pusessem no sul. O senhor Obopol
camba-mar pensou que lhe fossem mandar para O sul do pais.
Mas afinal O sul em questo eram umas celas de isolamento onde no
entrava a luz do dia, com u lavatrio, uma toreira onde no saa gua e
que tambm servia de pia, no tinha nem cama, nem colcho, nem cadeira e
nem mesa, o prisoneiro comia e dormia no cho de cimento hmido, passa
va todo O dia e toda a noite no escuro, porque nem lmpada elctrica tinham
as celas do sul.
90
I.
Passaram-se trs meses sem que ningum viesse falar com ele, enfiavam-
1
lhe um prato de aluminio por debaixo da porta da cela uma vez por dia. A
)
nica companhi a que tinha era o seu rdio que funcionava vinte e quatro
horas sobre vinte e quatro horas, como se ele tivesse medo do escuro, mas
infelizmente a rdio calou-se ao fim de uma semana, ficou sem pilhas.
Um dia, ele j nem sabia que dia era, vieram busc-lo s duas da manh,
levaram-no pelos corredores iluminados com umas lmpadas amareladas
que lhe queimavam os olhos e o deixavam completamente cego.
Foi introduzido numa sala e comeou a vislumbrar trs silhuetas dos
senhores lixos, um estava sentado a uma secretria com uma mquina de
escrever frente, um ao seu lado, foi aquele que abriu a porta e um terceiro
que estava de p junto janela, esse era alto e muito magro, tinha uma ch
vena de caf na mo e um cigarro aceso no canto da boca, estava uma cadei
ra no meio da sala.
o que estava a fumar olhou para ele de soslaio, com ar de desprezo no
rosto e disse-lhe sem tirar o cigarro da boca: - Faa O favor de se sentar - indi
cou com os dedos, amarelados pela nicotina, a cadeira do centro.
Comearam a fazer-lhe vrias perguntas que ele no compreendia nada,
e antes de poder responder faziam-lhe uma nova pergunta. Finalmente ele
percebeu que lhe perguntavam o que qu
e
fez durante o seu mandato como
Presidente da Cmara Municipal.
91
Abriu a boca para falar, mas estava to faco que s conseguiu balbuciar
umas palavras apenas audveis. O lixo-policia que estava ao seu lado enfiou
lhe um tremendo soco no meio do rosto, ele caiu da cadeira, a sangrar pelo
nariz. O magricelas de cigarro e caf baixou-se estendendo-lhe a mo como
se fosse para o ajudar a levantar-se do cho e ele segurou inocentemente a
mo que lhe foi estendida. Nisto o mesmo que lhe segurava a mo deu-le
um violento pontap no estmago, o senhor Obopol encolheu-se todo e
ficou na posio fetal de uma criana dentro da barriga da me.
O lixo-policia voltou a dar-lhe um pontap na pontada, que lhe partiu
duas costelas.
O outro que lhe tinha dado o soco no rosto voci/erou:
- Levanta-te, x cabro de merda, senta-te! No, pe-te de p!
O senhor Obopol soergueu-se com muitas difculdades, perguntando O
que que lhe estava a acontecer, ficou de p a tremer de raiva, de dor e de
medo ao mesmo tempo. Puseram os dois ps laterais da cadeira em cima dos
ps descalos do senhor Obopol e o do caf sentou-se pesadamente na
cadeira. O senhor Obopol deu um berro de animal ferido, mas o lixo-poli
cia nem se mexeu, continuou sentado na cadeira em cia dos ps descalos
do prisoneiro e continuou a interrog-lo. O coitado j nem compreenda o
sentido das palavras. O policia-lixo armado em boxista de meia tjela acen
deu um cigarro e voltou a apag-lo no peito do prisoneiro, este gritou de dor
e disse que estava cansado, queria deitar-se no cho. Calaram-lhe logo a
boca com uma bofetada.
92
I
o senhor Obopol transpirava e tremia, de ps descalos com o outro sen
tado de peras cruzadas em cima da cadeira a fumar e a sorver o caf nas
calmas, enquanto o seu colega se entretinha a acender e a apagar o cigarro
na barriga e no peito do pobre senhor Obopol que no parava de repetir
que estava cansado e que j no aguentava mais. Os seus olhos estavam
completamente inundados, a sua boca tremia de cada vez que falava, conti
nuava a no compreender o que que se estava a passar com ele.
A contorcer-se de dores e com falhas de sangue a sairem-lhe pela boca,
dizia com constrangimento: - Estou cansado de dizer que estou cansado ...
estou cansado de estar cansado. - Repetiu vrias vezes com uma voz desfa
lecida, sentindo toda a sua alma a apear-se do corpo.
A tortura continuou at por volta das seis horas da manh, enquanto l
fora a revoluo dos lixos prosseguia a sua marcha inferal: partiam carros
alheios, pilhavam lojas, saquevam as residncias das pessoas acusadas de
cumplicidade.
Faziam tanto barulho que ningum podia ouvir os gritos do senhor
Obopol-camba-rar que contnuava a ser humilhado e acusado de ser o
nico culpado do estado de delapidao da cidade.
O lixo-polcia, que at agora tinha permanecido sentado secretria em
frente da mquina de escrever, sem nada escrever e sem dizer nada durante
todo o interrogatrio, levantou-se, aproximou-se lentamente do arguido,
tirou do bolso uma pistola makarof de fabrico sovitico, meteu a bala na
cmara fazendo muito barulho, encostou a boca do cano cabea do sehor
Obopol-camba-mar e sussurrou-lhe lentamente e devagarinho ao ouvido: -
93
Agora vais poder descansar para sempre - e carregou no gatilho, o tiro fez
u estrondo que ecoou dentro do pequeno gabinete da esquadra_
O senhor Obopol ao cair, antes de tocar o cho gritou-lhes:
MAFINGHARAW? . (porque que me esto a matar? .. )
94
r
Poeta, autor-compositor, Carlos-Edmilson
Marques Vieira (Noni), nasceu em Bissau a
15 de Julho de 1%0. Findos os seus estudos
liceais, trabalha no Centro de Documentao
e Informao ( C.D.I.) do Liceu Nacional de
Bissau e publica os seus primeiros poemas em
portugus no jornal do mesmo liceu
"BANTABA", em 19.
Apresenta-se pela primeira vez ao pblico em
191 , declamando seus poemas em crioulo, sua
I ngua materna, no salo do IJI Congresso em
Bissau, acompanhado do seu amigo Jos
Manuel Forbes (Z-Manel) uma das grandes
figuras da msica guineense.
Em 19, parte para a Frana para continuar
o seus estudos, onde obtm dois Diplomas de estudos superiores: D.E.S.S. el Droir el Prati
que des Afaires Internationales el, UI 3Q Cycle el Refarions lntemat;onales Contemporaines.
E 19, publica a sua primeira obra literria em Paris. Um livro de poemas em bilingue,
portugus-francs intitulado UM CABAZ DE AMORES IUNE CORBEILLE
D'AMOURS. Actualmente Carlos-Edmilson Diplomata de carreira.
PETROMAR
INSTITUTO CAMES
CENTRO CULTURAL PORTUGUES
GUINE_BISSAU

Você também pode gostar