TCC-Gabriela Machado Reais

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Universidade Federal de São Carlos

Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia

Departamento de Matemática

A construção dos números

Autora: Gabriela Maria Machado

Orientador: Luiz Hartmann

Disciplina: Trabalho de Conclusão do Curso

Curso: Licenciatura em Matemática

Professores Responsáveis: Karina Schiabel Silva


Sadao Massago
Vera Lúcia Carbone

São Carlos, 13 de Março de 2014.


A construção dos números

Autora: Gabriela Maria Machado

Orientador: Luiz Hartmann

Disciplina: Trabalho de Conclusão do Curso

Curso: Licenciatura em Matemática

Professores Responsáveis: Karina Schiabel Silva


Sadao Massago
Vera Lúcia Carbone

Instituição: Universidade Federal de São Carlos


Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia
Departamento de Matemática

São Carlos, 13 de Março de 2014.

Gabriela Maria Machado Luiz Hartmann (orientador)


(aluna)
À vida e ao amor.
Agradecimentos
Agradeço,

À minha família (minha mãe Maria José, meu pai Geraldo, meus irmãos, Cristina, Ricardo

e Arenildo e meu alhado Arthur), pela devoção e suporte desde sempre.

À XDani, por toda dedicação, companheirismo, paciência e estímulo que tornaram possível

esta realização.

Aos meus amados amigos, pela partilha de toda e qualquer emoção.

À todos os professores, pela contribuição à minha formação.

Em especial, ao Professor Hartmann, pela conança, oportunidade de aprendizado e exce-

lente forma de ndar meu curso e à Professora Liane, que muito contribuiu e ajudou durante

todo o trabalho.
Conteúdo

1 Considerações Iniciais 6
1.1 Relações de Equivalência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

2 Números Naturais 15
2.1 Axiomas de Peano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2.2 Adição de elementos de A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

2.3 Multiplicação dos Números Naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

2.4 Relação de ordem em N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

3 Números Inteiros 30
3.1 Relação de Equivalência em N×N . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

3.2 Adição de números inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

3.3 Multiplicação dos inteiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

3.4 Relação de Ordem em Z . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

3.5 Conjuntos enumeráveis e a Hipótese do Contínuo . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

4 Números Racionais 50
4.1 Construção dos números racionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

4.2 Operações em Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

4.3 Relação de Ordem em Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

5 Números Reais 64
5.1 Cortes de Dedekind . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

5.2 Relação de ordem em C . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

5.3 Operações em C . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

5.4 Representação decimal dos números reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

5.5 R não é enumerável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

6 Números Complexos 89
6.1 Construção dos complexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

6.2 C não é ordenável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

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Resumo
Apresentamos a construção dos conjuntos numéricos, com o enfoque voltado para o ensino

e formação de um educador com todo o rigor matemáco necessário. Foram desenvolvidas as

construções dos números inteiros, dos racionais, dos reais e dos complexos a partir do conjunto

dos números naturais, este introduzido através dos axiomas de Peano.


Introdução

A noção de número e suas generalizações estão intimamente ligadas à história da humani-

dade. E a própria vida está impregnada de matemática. Grande parte das comparações que

o homem formula, assim como gestos e atitudes cotidianas, aludem conscientemente ou não

a juízos aritméticos e propriedades geométricas. Sem esquecer que a ciência, a indústria e o

comércio nos colocam em permanente contato com o amplo mundo da matemática.

Em todas as épocas da evolução humana, mesmo nas mais atrasadas, encontra-se no homem

o sentido do número. Esta faculdade lhe permite reconhecer que algo muda em uma pequena

coleção (por exemplo, seus lhos, ou suas ovelhas) quando, sem seu conhecimento direto, um

objeto tenha sido retirado ou acrescentado.

O primeiro estudo esquemático dos números como abstração é comumente atribuído aos

lósofos gregos Pitágoras e Arquimedes. Entretanto, estudos independentes também ocorreram

por volta do mesmo período na Índia, China, e Mesoamérica.

Os números naturais e as frações têm sua origem das atividades de contagem e medida, o

que talvez tenha levado os membros da escola pitagórica a postularem que na natureza tudo

é número devido acreditarem que tudo podia ser contado, logo atribuído um número, e que a

qualquer medida também se poderia atribuir um número ou uma razão entre números.

Iniciamos o trabalho fazendo uma abordagem ao conceito de relação de equivalência, dado

que foi bastante usado no decorrer dos estudos. Para isto, introduzimos os conceitos de partes

de um conjunto, denição de par ordenado, produto cartesiano, denição de operação, assim

como conceito de relação.

Fizemos a formalização no conjunto dos naturais através dos Axiomas de Peano, conside-

rando o zero como um número natural. Assumimos que existe um conjunto satisfazendo tais

axiomas e fomalizamos todas as propriedade, demonstrando-as através dos Axiomas. Após

isto, denotamos este conjunto por N e chamamos de Naturais. O que zemos, foi formalizar e

demonstrar rigorosamente o que já sabíamos intuitivamente desde o Ensino Básico, seguindo a

construção consistente que foi desenvolvida no século XIX por Giuseppe Peano.

Richard Dedekind (1831-1916) estabeleceu uma relação de equivalência entre pares ordena-

dos de números naturais e fez referência da subtração como inversa da adição: a − b = c − d,


logo a + d = b + d. Dedekind demonstrou que esta relação é de equivalência, e que o conjunto

das classes de equivalência é o conjunto dos números inteiros. Na construção dos inteiros que

zemos neste trabalho, utilizamos esta construção, de forma que, denimos um inteiro como

uma classe de equivalência e o conjunto dos números inteiros como o conjunto dessas classes de

equivalência.

A construção dos racionais é feita a partir do mesmo raciocínio que os inteiros, utilizando o

3
conceito de relação de equivalência, mas esta construção se da de forma mais rápida do que a

dos inteiros, por ter muitas consequências diretas deste.

A construção dos números reais feita neste trabalho foi baseada na construção feita por

Dedekind, através dos chamados Corte de Dedekind, que considera o conjunto de todos os

cortes, denindo a adição e a multiplicação nele e, em seguida, mostrando que ele possui as

propriedades aritméticas de Q e mais uma propriedade que Q não possui, a chamada completude
dos reais.

Por m, mas não menos importante, a construção dos números complexos, que foram de-

nidos como pares ordenados de números reais e, a partir disto, foram provadas todas as propri-

edades aritméticas, mostrando que o conjunto dos números comeplexos possui uma estrutura

de corpo, assim como os reais e racionais, mas possuindo uma grande diferença dos anteriores,

pois não possui uma relação de ordem.

Estas construções provêm de estudos de matemáticos do século XIX e início do século XX

que foram em busca dos fundamentos da matemática acumulados até a época, principalmente

a partir de cálculo diferencial e integral de Newton e Leibniz, no século XVII.

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Capítulo 1

Considerações Iniciais
No decorrer deste trabalho lidaremos diretamente com o conceito de relação de equivalência,

por isso faremos uma abordagem tratando desta questão. Trabalharemos com conceitos prévios

e com a noção intuitiva de conjuntos durante todo o trabalho e, em particular neste capítulo,

trabalharemos intuitivamente com os conjunto numéricos e as propriedades básicas de suas

operações, lembrando que estudaremos o conceito rigoroso desses conjuntos numéricos nos

capítulos seguintes.

Utilizaremos, usualmente, N, Z, Q, R e C para representar os conjuntos dos números natu-

rais, inteiros, racionais, reais e complexos, respectivamente.

1.1 Relações de Equivalência

Denição 1.1.1. Dado um conjunto A qualquer, o conjunto das partes de A, ou conjunto

potência de A, denotado por P(A), é o conjunto cujos elementos são todos os subconjuntos de

A.

Seguem alguns exemplos:

Exemplo 1.1.2.
1. Se A = {a, b}, então P(A) = {∅, {a}, {b}, A};

2. Se A = {1, 2, 3}, então P(A) = {∅, {1}, {2}, {3}, {1, 2}, {1, 3}, {2, 3}, A};

3. Se A = ∅, então P(A) = {∅}, pois o ∅ é o único subconjunto de A;

4. Se A = P({1}), então A = {∅, {1}}, logo, P(A) = {∅, {∅}, {{1}}, A}.

Denição 1.1.3. A um conjunto


Seja não vazio com a, b ∈ A. Denimos o par ordenado (a, b)
como sendo o conjunto {{a}, {a, b}}.

Observação: (a, b) ⊂ P(A).

Desde o Ensino Fundamental consideramos um par ordenado como um par de objetos onde a

ordem tem importância. A denição acima formaliza matematicamente esta ideia intuitiva. O

teorema seguinte mostra que um par ordenado é exatamente o que idealizamos intuitivamente.

Teorema 1.1.4. Seja A um conjunto onde a, b, c, d ∈ A. Temos que:

6
(a, b) = (c, d) ⇔ a = c e b=d

Demonstração.

(⇐) Suponhamos a = c e b = d. Dessa forma, é claro que (a, b) = (c, d).


(⇒) Seja, agora, (a, b) = (c, d), isto é, {{a}, {a, b}} = {{c}, {c, d}}. Temos assim, dois casos:

• a = b.
Nesta situação(a, b) = (a, a) = {{a}, {a, a}} = {{a}, {a}} = {{a}}. Dessa forma,
{{a}} = {{c}, {c, d}}, ou seja, {c} = {a} e {c, d} = {a}. Assim, c = a e d = a.
Como a = b, obtemos a = c = b = d.

• a 6= b.
Por hipótese {{a}, {a, b}} = {{c}, {c, d}}. Se {a, b} = {c}, então, a = b = c, contradi-
zendo a hipótese a 6= b. Logo, {a, b} = {c, d}, o que acarreta c 6= d. Disso, concluímos

que {a} não pode ser igual a {c, d}, logo, {a} = {c}, ou seja, a = c. Já concluímos que

{a, b} = {c, d}, a 6= b, c 6= d, de onde segue que b = d.

Denição 1.1.5. Seja A um conjunto qualquer. Denimos o produto cartesiano de A por A,


denotado por A × A, como o conjunto de todos os pares ordenados compostos por elementos de

A, isto é, A × A = {(x, y) | x, y ∈ A}.

Seguem alguns exemplos:

Exemplo 1.1.6.
1. Se A = {a, b} então A × A = {(a, a), (b, b), (a, b), (b, a)}

2. Se A = ∅, então A×A=∅

3. Se A = {a1 , a2 , a3 , . . . , an }, tem n elementos, A×A possui n2 elementos, pois, tem-se n


possilidades para o primeiro elemento do par ordenado e n para o segundo.

Denição 1.1.7. Dados dois conjuntos A e B, se x ∈ A ey ∈ B , então x, y ∈ A ∪ B .


Denimos o produto cartesiano de A por B como sendo o conjunto A × B = {(x, y) | x ∈ A e

y ∈ B}.
Observação: (x, y) = {{x}, {x, y}} ⊂ P(A ∪ B), pois, como x, y ∈ A ∪ B , obviamente,

{x}, {x, y} ∈ P(A ∪ B)

A seguir temos alguns exemplos:

Exemplo 1.1.8.
1. Seja A = {x} e B = {y}. Temos que A × B = {(x, y)} = {{x}, {x, y}} e B × A =
{(y, x)} = {{y}, {y, x}}. Para que A × B = B × A, precisaríamos que {x} = {y}
ou {x} = {x, y}, ou seja, x = y . Como x e y são quaisquer, não podemos dizer que

A × B = B × A.

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2. Sejam A=∅ e B um conjunto qualquer. Suponhamos que exista (x, y) ∈ A × B . Por

denição de par ordenado, x ∈ A e y ∈ B , o que é uma contradição, pois, por hipótese,

A = ∅. Portanto, não existe (x, y) pertencente a A × B .

Denição 1.1.9. Dado um conjunto A não vazio, uma operação em A é uma função ∗ :
A × A −→ A. A imagem ∗((x, y)) de um par ordenado (x, y) pela função ∗ é usualmente

denotada por x ∗ y .

Levando em conta o nosso conceito intuitivo de conjuntos numéricos e de suas operações

aritméticas, podemos ver que, das quatro operações, apenas a soma e o produto são de fato

operações, no sentido da denição acima, no conjunto dos números naturais.

Denição 1.1.10. Uma relação binária R num conjunto A é qualquer subconjunto do produto

cartesiano A × A, isto é, R ⊂ A × A.

Exemplo 1.1.11. Se A = {a, b, c}, então R = {(a, a), (b, a), (c, b), (c, a)} é uma relação binária,
dado que é um subconjunto de

A × A = {(a, a), (a, b), (a, c), (b, a), (b, b), (b, c), (c, a), (c, b), (c, c)}.

No contexto deste trabalho, diremos que a está relacionado com b (escreve-se aRb) se R é

uma relação binária em A e se (a, b) ∈ R, isto é, (a, b) ∈ R ⇔ aRb. Uma relação binária será

chamada apenas de relação. No exemplo 1.1.11, temos bRa, mas não aRb.

Denição 1.1.12. Seja dado um conjunto A e uma relação R sobre ele. Diz-se que R é uma

relação de equivalência se possuir as seguintes propriedades:

1. Reexiva: aRa, para todo a ∈ A;

2. Simétrica: se a, b ∈ A, e aRb, então bRa;

3. Transitiva: para a, b, c ∈ A, se aRb e bRc, então aRc.

A relação R do exemplo 1.1.11 não é reexiva, pois, b∈A


(b, b) ∈
/ R, nem simétrica, dado
e

que bRa, mas não aRb. Entretanto, ela é transitiva (basta ver que cRb, bRa e cRa). Como não

satisfaz as três propriedades, ela não é uma relação de equivalência.

Exemplo 1.1.13. Seja A = {1, 2, 3} R = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (1, 2), (2, 1)} é uma relação de

equivalêcia, pois:

1. Vale a reexiva: 1, 2, 3 ∈ A, 1R1, 2R2 e 3R3;

2. Vale a simétrica: 1, 2 ∈ A, 1R2 e 2R1;

3. Vale a transitiva: 1, 2 ∈ A, 1R2, 2R1 e 1R1.

No exemplo seguinte será usada uma noção intuitiva de conjuntos numéricos e suas pro-

priedades aritméticas básicas, mas apenas a título de esclarecimento do conceito de relação de

equivalência. A construção dos conjuntos não dependerá deste exemplo.

Exemplo 1.1.14. Seja a, b ∈ Z coma 6= 0. Diremos que a divide b se existir c ∈ Z, tal que

b = ac. Escrevemos a|b para simbolizar que a divide b. Esta relação de divisibilidade em Z não

é uma relação de equivalência, pois, apesar de ser reexiva e transitiva, ela não é simétrica:

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1. Vale a reexiva: para todo a ∈ Z, a = ac com c = 1 ∈ Z, portanto aRa.

2. Não vale a simétrica: Se a, b ∈ Z e a divide b, temos que, b = ac1 para algum c1 ∈ Z. Se


b dividisse a, teríamos a = bc2 para algum c2 ∈ Z e assim, a = ac1 c2 ⇒ a = ac ⇒ c =
c1 c2 = 1, o que signica que c1 = c2 = 1, ou c1 = c2 = −1, o que leva a conclusão que só
vale a simétrica quando a = b ou a = −b, portanto, não vale a simétrica para quaisquer

a, b ∈ Z onde a divide b.

3. Vale a transitiva: Se a, b, c ∈ Z, a divide b e b divide d, temos b = ac1 e d = bc2 com

c1 , c2 ∈ Z, logo d = ac1 c2 ⇒ d = ac, com c = c1 c2 ∈ Z, logo, a divide d.

Exemplo 1.1.15. Seja A um conjunto. Temos que A × A = {(x, y) | x, y ∈ A} é uma relação

de equivalência em A. De fato,

1. Vale a reexiva: seja x ∈ A, claramente (x, x) ∈ A × A, portanto, xRx, para todo x ∈ A.

2. Vale a simétrica: sejam x, y ∈ A e xRy , ou seja, (x, y) ∈ A × A. Como x, y ∈ A, é

imediato que (y, x) ∈ A × A, logo, yRx.

3. Vale a transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz , ou seja, (x, y), (y, z) ∈ A × A, como

x, z ∈ A, (x, z) ∈ A × A, ou seja, xRz .

Exemplo 1.1.16. R = {(x, x) | x ∈ A} é uma relação de equivalência em A. Esta relação se

chama igualdade em A (ou identidade de A), e se denota por “ = ”. Logo (x, x) ∈ R para todo
x ∈ A, que escrevemos usalmente como x = x, ∀ x ∈ A. Mostremos que esta relação, de fato,
é de equivalência em A.

1. Reexiva: seja a∈A qualquer. Claramente (a, a) ∈ R, ou seja, a = a.

2. Simétrica: se a, b ∈ A e (a, b) ∈ R, temos que existe x ∈ A tal que (a, b) = (x, x), de onde

concluímos que a = b. Como (x, x) = (a, b) ∈ R e a = b, então (x, x) = (b, a) ∈ R;

3. Transitiva: se a, b, c ∈ A, (a, b) ∈ R e (b, c) ∈ R, procedendo como no item anterior,

obtemos que a = b e b = c, portanto, a = c. Logo, (a, c) ∈ R.

Exemplo 1.1.17. Qualquer relação de equivalência em A está compreendida entre os dois

exemplos anteriores, ou seja, “ = ” ⊂ R ⊂ A × A. De fato, seja A um conjunto e R uma


relação de equivalência qualquer sobre A. Obviamente R ⊂ A × A, por denição de relação.

Temos que “ = ” = {(x, x) | x ∈ A}. Tomemenos (x, x) ∈ “ = ” para um x pertencente a A

qualquer. Claramente, (x, x) ∈ R (pela propriedade reexiva, que nos garante que, para todo x

em A, xRx). Logo, “ = ” ⊂ R. Dessa forma “ = ” ⊂ R ⊂ A × A, como queríamos.

Denição 1.1.18. Sejam R uma relação de equivalência em A e a∈A um elemento xado

arbitrariamente. O conjunto a = {x ∈ A | xRa} chama-se classe de equivalência de a pela

relação R. Ou seja, a é o conjunto constituído dos elementos de A que se relacionam com a.

Exemplo 1.1.19. As classes de equivalência dadas pela relação R do exemplo 1.1.13 são 1=
{1, 2}, 2 = {2, 1} e 3 = {3}

Observe, neste exemplo, que 1 = 2, isso se deve ao fato de que 1R2. O seguinte teorema

mostra isso de forma generalizada.

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Teorema 1.1.20. Seja R uma relação de equivalência em um conjunto A e a, b elementos

quaisquer de A, então:

1. a ∈ a;

2. a = b ⇔ aRb;

3. a 6= b ⇔ a ∩ b = ∅

Demonstração.

1. a = {x ∈ A | xRa}. Como R é uma relação de equivalência, aRa (pela propriedade

reexiva), logo a ∈ a;

2. (⇒) a = b, onde a = {x ∈ A | xRa} e b = {y ∈ A | yRb}. Seja a ∈ a, de


Suponhamos

onde segue que, a ∈ b (pois por hipótese a = b). Logo, pela denição de b, aRb;

(⇐) Suponhamos agora aRb. Devemos mostrar que a = b, ou seja, a ⊂ b e b ⊂ a. Pois


bem:

• Seja a ∈ a. Como, por hipótese, aRb, temos que a ∈ b, logo, a ⊂ b;


• Seja b ∈ b. Por hipótese, aRb e como R é uma relação de equivalência, temos que

bRa e portanto b ∈ a. Logo b ⊂ a.

3. (⇒) Seja a 6= b, com a = {x ∈ A | xRa} e b = {y ∈ A | yRb}. Suponhamos que exista


c ∈ a ∩ b, ou seja, c ∈ a e c ∈ b. Sendo assim, cRa e cRb, que nos garante que aRb.
Assim, pelo item 2 deste teorema, concluímos que a = b, o que contradiz a nossa hipótese.

Portanto, não existe c qualquer na intersecção de a e b.

(⇐) Seja a ∩ b = ∅. Suponhamos a = b, que signica, pelo item 2 deste teorema, que
aRb, ou seja, a ∈ b. Claramente a ∈ a, sendo assim, a está em a e em b, o que contradiz
a hipótese de que a ∩ b = ∅. Portanto, a 6= b.

O teorema anterior nos fornece propriedades muito importantes. Ele nos fornece a ideia de

que todo elemento de uma classe de equivalência a tem a mesma classe de equivalência que a,
ou seja, a pode ser representado por x, para todo x ∈ a. Ele nos garante também que duas

classes de equivalência distintas são disjuntas.

Da mesma forma que já zemos anteriormente nesta sessão, o seguinte exemplo faz referência

aos números inteiros, mas ele serve apenas para clarear a ideia de classe de equivalência e não

inuenciará nas construções seguintes.

Exemplo 1.1.21. Sejam A=Z e R aRb quando o resto das divisões de a


a relação dada por:

e b por 2 forem iguais. Por exemplo, (5, 21) ∈ R, (6, 14) ∈ R, mas (5, 8) 6= R. Vamos vericar
se esta relação é de equivalência em Z:

1. Reexiva: seja x ∈ Z. A divisão x por 2 tem resto t e obviamente t = t, portanto, xRx,


para todo x ∈ Z;

2. Simétrica: sejam x, y ∈ Z e xRy , ou seja, x e y divididos por 2 têm o mesmo resto s,


logo yRx;

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3. Transitiva: sejam x, y, z ∈ Z, xRy e yRz . Dessa forma, x e y divididos por 2 possuem
o mesmo resto t, assim como y e z divididos por 2 possuem o mesmo resto s. Como y

dividido por 2 possui o resto t e também o resto s, concluímos que r = s e, portanto, o

resto da divisão de x e z por 2 é o mesmo, ou seja, xRz .

Usando esta relação de equivalência, temos os seguintes exemplos:

1 = {. . . , −3, −1, 1, 3, . . .} = 3 = 7 = −5

2 = {. . . , −4, −2, 0, 2, 4, . . .} = 0 = 4 = −2

Sabemos ainda que todo número inteiro é classicado como ímpar ou par, onde o par pode ser

escrito da forma a = 2n e o ímpar da forma a = 2n + 1. Sendo assim, quando dividimos um

número par por 2, obetemos a = 2n+0, ou seja, o resto da divisão é 0. Já quando dividimos um
número ímpar por 2, obtemos a = 2n + 1, ou seja, resto 1. Dessa forma, a divisão de qualquer

inteiro por 2 nos fornece restos 1 ou 0. Portanto, só existem duas classes de equivalência

distintas para esta relação de equivalência. Mais precisamente, tem-se a = 0 para a par e a = 1

para a ímpar.

Denição 1.1.22. Seja R uma relação de equivalência num conjunto A. O conjunto constituído

das classes de equivalência em A pela relação R é denotado por A/R e denominado conjunto

quociente de A por R. Assim, A/R = {a | a ∈ A}

Veja os exemplos que seguem:

Exemplo 1.1.23.
1. Se R é a relação do exemplo anterior, então A/R = {0, 1}

2. Se A = {1, 2, 3}, temos que,

A × A = {(1, 1), (1, 2), (1, 3), (2, 1), (2, 2), (2, 3), (3, 1), (3, 2), (3, 3)}.

1 = {x ∈ A | xR1} = {1, 2, 3}, 2 =


Dessa forma, temos as classes de equivalência

{y ∈ A | yR2} = {1, 2, 3} e 3 = {z ∈ A | zR3} = {1, 2, 3}, assim 1 = 2 = 3. Como


A/A×A = {a | a ∈ A}, então A/A×A = {1, 2, 3}, ou apenas A/A×A = {1} = {2} = {3}

3. Consideremos a relação de equivalência denotada por R = {(x, x) | x ∈ A}.


“ = ”, isto é,

Se A = {1, 2, 3}, então R = {(1, 1), (2, 2), (3, 3)} e, portanto, 1 = {x ∈ A | xR1} = {1},

2 = {y ∈ A | yR2} = {2} e 3 = {z ∈ A | zR3} = {3}, logo A/R = {a | a ∈ A} = {1, 2, 3}.

Exemplo 1.1.24. Seja ∼ uma relação em Z, denida como segue: x∼y quando os restos das

divisões de x e y por 3 forem iguais. Esta é uma relação de equivalência. Com efeito,

1. Reexiva: Claramente, para todo x ∈ Z, x ∼ x;

2. Simétrica: Sejam x, y ∈ Z e x ∼ y, ou seja, o resto das divisões de x e y por 3 é o mesmo,

logo, y ∼ x;

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3. Transitiva: Se x, y, z ∈ Z, x ∼ y e y ∼ z , temos que, o resto das divisões de x e y por 3 é
o mesmo, digamos t, e o resto das divisões de y e z por 3 é o mesmo, digamos s. Sendo

assim, o resto da divisão de y por 3 é dado por s e por t, logo s = t. Portanto, o resto

das divisões de x e z por 3 é o mesmo, o que siginica que x ∼ z , como queríamos.

O resto da divisão de um número x ∈ Z por 3, é sempre 0, 1, ou 2, portanto, as clas-


ses de equivalência são 0 = {. . . , −6, −3, 0, 3, 6, . . .}, 1 = {. . . , −7, −4, −1, 1, 4, 7, . . .} e 2 =

{. . . , −8, −5, −2, 2, 5, 8, . . .}. Sendo assim, temos que o conjunto quociente Z/ ∼ = {0, 1, 2}.

Exemplo 1.1.25. Seja A o conjunto de todas as pessoas e R a relação em A dada por: xRy
quando x for mãe de y. Esta relação não é de equivalência. De fato,

1. Não vale a reexiva: seja x∈A qualquer, x não pode ser mãe de x;

2. Não vale a simétrica: sejam x, y ∈ A e xRy , ou seja, x é mãe de y. Dessa forma, y não

é mãe de x;

3. Não vale a transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz . Assim, x é mãe de y e y é mãe de

z, isso signica que x é avó de z e não mãe.

Exemplo 1.1.26. Seja A o conjunto de todas as pessoas e R a relação em A dada por: xRy
quando x for irmão de y, ou quando x e y forem a mesma pessoa (diremos aqui que x e y
são irmãos quando são lhos biológicos dos mesmos pais). Esta é uma relação de equivalência,

pois:

1. Vale a reexiva: se x ∈ A, xRx pois, x e x são a mesma pessoa;

2. Vale a simétrica: sejam x, y ∈ A e xRy , ou seja, x é irmão de y, portanto y é irmão de

x, logo, yRx;

3. Vale a transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz . Como x é irmão de y e y é irmão de z,


claramente os três possuem os mesmo pais biológicos, portanto, x é irmão de z, ou seja,

xRz .

Observe que, se a relação fosse denida apenas como “xRy quando x for irmão de y”, não

teríamos uma relação de equivalência pois não valeria a reexiva (xRx).

Exemplo 1.1.27. Seja A um conjunto e A = A1 ∪ A2 ∪ A3 . . . ∪ An uma partição nita de A,


isto é, uma decomposição de A A que são
como união nita de uma família de subconjuntos de

dois a dois disjuntos e não vazios. Para x e y ∈ A, denimos a seguinte relação: xRy quando

x e y pertencem ao mesmo elemento da partição, isto é, xRy ⇔ existe i ∈ {1, . . . , n} tal que
x, y ∈ Ai . Esta é uma relação de equivalência. De fato,

1. Reexiva: se x ∈ A, claramente x ∈ Ai e assim, xRx;

2. Simétrica: se x, y ∈ A e xRy , temos que x, y ∈ Ai , portanto, yRx;

3. Transitiva: sejam x, y, z ∈ A, xRy e yRz . Dessa forma, x, y ∈ Ai e y, z ∈ Aj com


i, j ∈ {1, . . . , n}. Como y está em Ai e em Aj , e sabemos que os conjuntos são disjuntos
dois a dois, concluímos que i = j e portanto, x e z estão no mesmo conjunto Ai=j , logo,

xRz .

12
Observe que se os conjuntos não fossem disjuntos dois a dois, ou seja, Ai ∩ Aj 6= ∅, poderíamos

ter y na intersecção de Ai e Aj e assim não nos valeria a transitiva e, portanto, esta relação

não seria de equivalência.

Exemplo 1.1.28. Seja A = {1, 2, 3}. Já vimos que A × A, assim como “=” são relações de

equivalêcia em A. Vimos também que quaisquer outras relações de equivalência neste conjunto

estão entre essas duas. Seguem estas relações:

R1 = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (1, 2), (2, 1)};
R2 = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (1, 3), (3, 1)};
R3 = {(1, 1), (2, 2), (3, 3), (2, 3), (3, 2)}.

Exemplo 1.1.29. Sejam A = {x ∈ Z | −5 ≤ x ≤ 10} e R a relação sobre A denida por:


2 2
xRy ⇔ x = y . Vamos verifcar que R é uma relação de equivalência:

1. Reexiva: se x ∈ A, claramente x 2 = x2 , portanto, xRx;

2. Simétrica: se x, y ∈ A e xRy , temos que x2 = y 2 , portanto y 2 = x2 , ou seja, yRx;

3. Transitiva: se x, y, z ∈ A, xRy e yRz , então , x2 = y 2 e y2 = z2, logo, x2 = z 2 e assim

xRz .

Exemplo 1.1.30. SejaA como no exemplo anterior e S uma relação denida por: xSy ⇔
existe k∈N tal que x = y2 + k.
2
Veriquemos agora a relação S:

1. Reexiva: seja x ∈ A. Existe k = 0 ∈ N, tal que que x2 = x 2 + k , portanto xSx;

2. Simétrica: sejam x, y ∈ A e xSy , ou seja, existe k1 ∈ N tal que x2 = y 2 + k 1 . Disso temos


2 2
que x ≥y . Consideremos dois casos:

• Seja x2 = y 2 . Neste caso, existe k2 = 0 ∈ N tal que y 2 = x2 + k2 , ou seja, yRx.


• Seja x2 > y 2 . Neste caso, é impossível que exista k2 ∈ N tal que y 2 = x2 + k2 , pois,
2 2 2 2
se isto acontecesse, teríamos y ≥x , que contradiz a hipótese de que x > y

Sendo assim, temos que a simétrica só vale quando x2 = y 2 . Como a propriedade deve

valer pra quaisquer x, y ∈ A, temos que a simétrica não é válida. O par ordenado (−5, −4)
é um exemplo que mostra que essa relação não é simétrica, pois (−5, −4) satisfaz a con-
2 2
dição da relação, ou seja, existe k∈N tal que (−5) = (−4) + k , porém, (−4, −5) não a

satisfaz.

3. Transitiva: se x, y, z ∈ A, xSy e k1 , k2 ∈ N, tais que x2 = y 2 + k1


ySz , temos que existem
2 2 2 2
e y = z + k2 . Subtituindo a segunda na primeira, obtemos x = z + k2 + k1 . Como

k1 , k2 ∈ N, claramente k1 + k2 = k ∈ N, assim, x2 = z 2 + k , logo xSz .

Com isso concluímos que apenas a simétrica não é válida, o que é suciente para que a relação

S não seja de equivalência.

Observemos que se a relação do exemplo anterior nos desse a condição com k ∈ Z no lugar
de k ∈ N, teríamos que a relação seria de equivalência. Com efeito, seja x, y ∈ A e xSy , ou seja,
2 2 2 2 2 2
existe k1 ∈ Z tal que x = y + k1 , e assim, y = x − k1 ⇒ y = x + k2 com k2 = −k1 ∈ Z.

Logo, yRx, como queríamos.

13
Exemplo 1.1.31. SejaA ainda como no exemplo 1.1.29 e T denida como segue: xT y ⇔
existe k∈Z tal que x − y − 3k = 0. Vamos vericar se T é uma relação de equivalência.

1. Reexiva: seja x ∈ A. Claramente x − x − 3k = 0 com k = 0 ∈ Z, ou seja, xT x;

2. Simétrica: sejam x, y ∈ A e xT y , ou seja, existe k1 ∈ Z, tal que x − y − 3k1 = 0, o que


implica que −x + y + 3k1 = 0 e disso obtemos y − x + 3k1 = 0, que pode ser escrito como

y − x − 3k2 = 0 com k1 = −k2 ∈ Z e, portanto, yT x;

3. Transitiva: se x, y, z ∈ A, xT y e yT z , temos que existem k1 , k2 ∈ Z tais que x−y−3k1 = 0


e y − z − 3k2 = 0. Isolando o y na segunda equação e substituindo na primeira obtemos

x − (z + 3k2 ) − 3k1 = 0 e assim, x − z − 3(k2 + k1 ) = 0, que signica x − z − 3k = 0, com


k = k1 + k2 ∈ Z, ou seja, xRz .

Portanto, a relação T é de equivalência em A.

14
Capítulo 2

Números Naturais
Desde os primórdios existe a necessidade de contagem e são exatamente os números naturais

que estão envolvidos com esta ideia de quantidade, que é considerada básica nos dias atuais.

Os números naturais tiveram suas origens nas palavras utilizadas para a contagem de objetos,

começando com o número um.

O primeiro grande avanço na abstração foi o uso de numerais para representar os números.

Isto permitiu o desenvolvimento de sistemas para o armazenamento de grandes números. Um

avanço muito posterior na abstração foi o desenvolvimento da ideia do zero com um número com

seu próprio numeral. Um dígito zero tem sido utilizado como notação de posição desde cerca de

700 a.C. pelos babilônicos, porém ele nunca foi utilizado como elemento nal. Os Olmecas e a

civilização maia utilizaram o zero com um número separado desde o século I AC, aparentemente

desenvolvido independentemente, porém seu uso não se difundiu na Mesoamérica. O conceito

da forma que ele é utilizado atualmente se originou com o matemático indiano Brahmagupta

em 628. Hoje temos este conceito de zero formalizado, poratanto, nossa construção foi feita

incluindo o zero como um número natural, porém, outros matemáticos, preferem seguir a

tradição antiga e excluir o zero dos números naturais.

Formalizaremos este conceito utilizando uma axiomática, método que, apesar de ser con-

siderado uma construção, na verdade, apenas assume a existência do conjunto dos naturais,

satisfazendo axiomas que caracterizam rigorosamente a ideia intuitiva. Em outras palavras,

assumiremos a existência do conjunto e mostraremos que ele obedece a tais axiomas.

Esta axiomatização foi dada por Giuseppe Peano, no nal do século XIX, e se apresenta

aqui de forma adaptada a simbologia matemática atual.

2.1 Axiomas de Peano

Durante a formação de um matemático, muito se ouve falar sobre o Princípio da Indução

Finita, que é, na verdade, um conceito menos intuitivo e imediato do que a ideia de que o

conjunto dos Naturais começa no 0 e prossegue de um em um.

Suponhamos que A seja um subconjunto dos números naturais, contendo o 3 e a propriedade


de que possui o sucessor natural de qualquer elemento seu, ou seja, se x ∈ A, então x + 1 ∈ A.

Dessa forma, A contém o 4, pois contém o 3 e, claramente, possui o 5, já que contém o 4, e

assim segue. Logo A contém {3, 4, 5, 6, . . .}. Se esse nesse conjunto tivesse como hipótese inicial

que o 0 está nele, no lugar do 3, teríamos que A é o conjunto dos naturais.

15
Os Axiomas de Peano apresentam a formalização rigorosa destas ideias intuitivas, utilizando

conceitos já conhecidos ou admitidos aqui, como segue:

Axioma 2.1.1 (AXIOMAS DE PEANO) . Existe um conjunto A e uma função s : A −→ A


vericando:

1. s é injetora;

2. Existe um elemento em A, que denotaremos por 0, e chamaremos de zero, que não está

na imagem de s, isto é, 0∈
/ Im(s).

3. Se um subconjunto X de A satiszer os subitens abaixo, então X = A:

(a) 0 ∈ X;
(b) Se k ∈ X, então s(k) ∈ X .

A função s é chamada função sucessor, de modo que, se x ∈ A, então s(x) é chamado


sucessor de x. Os axiomas anteriores nos dizem que cada x de A possui sucessor diferente e

expressam, ainda, o fato de que 0 não é sucessor de nenhum elemento de A.

Temos garantido que tal A é diferente de vazio, pelo segundo axioma de Peano. Como

0 ∈
/ Im(s) s(0) ∈ Im(s), concluímos que 0 6= s(0), e, portanto, A possui pelo menos dois
e

elementos: 0 e s(0). Da mesma forma, podemos observar que s(s(0)) é diferente de 0, pois

0 ∈/ Im(s), e diferente s(0), pois s é injetora, ou seja, s(0) 6= 0 ⇒ s(s(0)) 6= s(0). Assim,
A possui pelo menos três elementos: 0, s(0) e s(s(0)). Prosseguindo desta forma, concluímos
que s(s(s(0))) também está em A e é diferente de 0 (pois 0 ∈ / Im(s)), diferente de s(0) (0 6=
s(s(0)) ⇒ s(0) 6= s(s(s(0))), pois s é injetora) e diferente de s(s(0)) (s(0) 6= s(s(0)) ⇒ s(s(0)) 6=
s(s(s(0))), pois s é injetora). Agora temos que A possui pelo menos quatro elementos: 0, s(0),
s(s(0)) e s(s(s(0))).
Tomando estes sucessores de forma repetida, vemos que cada elemento novo é diferente dos

anteriores mencionados. Isto será provado rigorosamente neste capítulo. Prosseguindo assim,

consideramos A como um conjunto innito, que vamos denir formalmente a seguir.

Denição 2.1.2. Dado um conjunto X , dizemos que ele é innito se existir uma função injetora
f : A −→ X . Um conjunto é dito nito quando não é innito.

Em outras palavras, podemos dizer que X é innito quando possui um subconjunto Y em

bijeção com A, ou ainda, dizendo que este Y é equipotente a A. Uma outra denição de conjunto

innito, equivalente a esta, que existe devido a Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor (1845-

1918)(ele rompeu com o paradigma grego de que o todo é sempre maior do que qualquer uma

das suas partes próprias), é a seguinte: um conjunto diz-se innito quando existir uma bijeção

entre ele e um subconjunto próprio dele.

O terceiro axioma de Peano é conhecido como Princípio de Indução Finita e ele é utilizado

na demonstração de propriedades que dizem respeito aos números naturais. Veremos muitos

exemplos no decorrer deste capítulo.

Já o segundo axioma de Peano fala que 0 ∈


/ Im(s). O teorema a seguir nos diz quem é

Im(s).

16
Teorema 2.1.3. Se s : A −→ A é a função sucessor, então, tem-se:

1. s(n) 6= n, para todo n ∈ A, ou seja, nenhum número de A é sucessor de si mesmo;

2. Im(s) = A \ {0}, isto é, 0 é o único elemento de A que não é sucessor de nenhum outro

elemento de A.

Demonstração.

1. Consideremos um subconjunto B de A, constituído dos n∈A tais que s(n) 6= n, isto é

B = {n ∈ A | s(n) 6= n}. Vamos, através do princípio de indução nita, mostrar que

B = A, isto é, s(n) 6= n, para todo n ∈ A

(a) Pelo axioma 2 de Peano, temos que 0∈


/ Im(s), sendo assim, 0 6= s(0), e, portanto,

0 ∈ B;
(b) Seja k ∈ A, ou seja, k 6= s(k). Como, pelo axioma 1, s é injetora, obtemos que

s(k) 6= s(s(k)) e, portanto, s(k) ∈ B .

Assim, pelo princípio de indução nita, B = A.

2. Novamente usaremos indução nita. Seja B⊂A dado por B = {0} ∪ Im(s):

(a) Claramente, 0 ∈ B;
(b) Seja k ∈ B. Com isso s(k) ∈ Im(s) ⊂ B , daí, s(k) ∈ B .

Logo, B = A. Como 0∈
/ Im(s), concluímos que Im(s) = A \ {0}.

Todo elemento de A\{0} é sucessor de um único elemento de A, que se chama seu antecessor.

2.2 Adição de elementos de A

Vamos, agora, formalizar a operação que chamaremos de adição e representaremos por (+),
que é, na verdade, a operação que já conhecemos do ensino básico.

Denição 2.2.1. Dado m ∈ A, denimos recursivamente:


(
m + 0 = m,
m + s(n) = s(m + n).

Isto é, xadom, se p = 0, m + p = m e se p 6= 0, p = s(n) para algum n ∈ A, daí

m + p = m + s(n) = s(m + n).

Esta denição nos fornece o seguinte:

m + s(0) = s(m + 0) = s(m),

ou ainda,

m + s(s(0)) = s(m + s(0)) = s(s(m)),

17
e assim por diante. Esta é a idéia intuitiva que iremos formalizar a seguir utilizando o Princípio

da Indução, que mostra que m+n está denido para todos m, n ∈ A.

Proposição 2.2.2. A soma m+n está denida para todo par m, n de A.

Demonstração. De fato, vamos denir o conjunto Sm = {n ∈ A | m + n está denida}, para

cada m∈A xado arbitrariamente.

1. m+0 está denido, portanto, 0 ∈ Sm .

2. Seja k ∈ Sm , isto é, m+k está denido. Temos que m + s(k) = s(m + k) está denido,

logo s(k) ∈ Sm .

Logo, pelo axioma 3, Sm = A . Como m é arbitrário, Sm = A para todo m ∈ A. Sendo assim,


m+n está denida para todo par (m, n) de A × A, o que signica que a adição é, de fato, uma

operação em A.


Introduziremos agora a notação para os números naturais que é conhecida desde o ensino

básico.

Denição 2.2.3. Indica-se por 1 e lê-se um o elemento de A que é sucessor de 0, ou seja,

1 = s(0).

Proposição 2.2.4. Para todo m ∈ A, tem-se s(m) = m + 1 e s(m) = 1 + m. Portanto

m + 1 = 1 + m.

Demonstração. Provemos as duas igualdades:

• Temos que m + 1 = m + s(0) = s(m + 0) = s(m), ou seja, m + 1 = s(m);

• Consideremos agora o conjunto B = {m ∈ A | s(m) = 1 + m} e provemos por indução

que B = A:

1. Claramente 1 + 0 = 1 = s(0), sendo assim, s(0) = 1 + 0 e portanto, 0 ∈ B.


2. Seja, agora, m ∈ B , isto é, s(m) = 1 + m. Daí s(1 + m) = s(s(m)) e como s(1 + m) =
1 + s(m), obtemos que s(s(m)) = 1 + s(m) e, portanto, s(m) ∈ B .

Sendo assim, B = A.

Já temos as notações 0 e 1 = s(0). Vamos denir, agora, a continuação:

s(1) = 2 (dois), s(2) = 3 (três), s(3) = 4 (quatro), s(4) = 5 (cinco)

e assim sucessivamente. Esta é a notação indo-arábica de base dez para os elementos de A.


Dessa forma, A contém o seguinte conjunto:

{0, s(0), s(s(0)), s(s(s(0))), . . .} = {0, 1, 2, 3, . . .}.

18
O teorema seguinte mostra que os axiomas de Peano formalizam a ideia intuitiva do conjunto

dos números naturais, isto é, A não contém elementos além desses.

Teorema 2.2.5. A = {0, 1, 2, 3, . . .}


Demonstração. Seja N = {0, 1, 2, 3, . . .} subconjunto de A. Veriquemos por indução que

N = A:

1. Por construção 0 ∈ N;

2. Novamente por construção, N contém o sucessor de qualquer elemento contido nele, ou

seja, se n ∈ N, então s(n) ∈ N.

Logo, N = A.


Denição 2.2.6. Chamaremos este conjunto A de Conjunto do Números Naturais e denota-

remos, a partir daqui, por N.

Utilizando a notação anterior, temos as seguintes adições em N:

1. 1 + 1 = s(1) = 2;

2. 2 + 1 = s(2) = 3;

3. 3 + 1 = s(3) = 4;

4. 3 + 2 = 3 + s(1) = s(3 + 1) = s(4) = 5;

5. 0 + 2 = 0 + s(1) = s(0 + 1) = s(1 + 0) = s(1) = 2.

Denição 2.2.7. f : X −→ X e IdX a função identidade no conjunto X . Sendo assim,


Seja
0 n n−1
denimos f = IdX e, para n ≥ 1, f = f ◦ (f ). Chamamos a função f n de n-ésima iterada
de f , ou ainda, dizemos que f foi iterada n vezes.

Proposição 2.2.8. Se m n são naturais quaisquer, então


e vale a igualdade m + n = sn (m),
isto é, somar n a m é somar 1 a m iteradamente n vezes.

Demonstração. Seja Sm = {n ∈ N | m+n = sn (m)} para um m natural xado arbitrariamente.


Provemos por indução que Sm = N

1. s0 (m) = m = m + 0, portando 0 ∈ Sm ;

2. Seja k ∈ Sm , ou seja, m + k = sk (m). Temos ainda que m + s(k) = s(m + k), daí, pela
k k k k+1
hipótese, m + s(k) = s(s (m)) = s ◦ s (m). Por denição, s ◦ s (m) = s (m) = ss(k) (m),
s(k)
e assim, m + s(k) = s (m), logo, s(k) ∈ Sm .

Como m foi xado arbitrariamente, temos Sm = N para todo m ∈ N.




Exemplo 2.2.9. Segue um exemplo do que acabou de ser demonstrado:

5 + 3 = s3 (5) = s(s2 (5)) = s(s(s(5))) = s(s(6)) = s(7) = 8

19
Vamos enunciar e demonstrar agora uma proposição que será fundamental para a prova do

próximo teorema.

Proposição 2.2.10. Para todo m ∈ N, temos que m+0 = m = 0+m, isto é, m é um elemento
neutro da adição em N.
Demonstração. Por denição m+0 = m. Provemos agora que 0+m = m. De fato, consideremos

o conjunto A0 = {m ∈ N | 0 + m = m}.
1. Por denição 0 + 0 = 0, portanto 0 ∈ A0 ;

2. Suponhamos k ∈ A0 , isto é, 0 + k = k e provemos que s(k) ∈ A0 . Com efeito, 0 + s(k) =


s(0 + k) = s(k), ou seja, s(k) ∈ A0 .
Logo, por indução, concluímos que A0 = N.


O seguinte teorema mostra as propriedades da adição que são admitidas intuitivamente

desde a escola.

Teorema 2.2.11. Se m, n e p são números naturais arbitrários, temos que as seguintes ar-

mações são verdadeiras:

1. Propriedade associativa da adição: m + (n + p) = (m + n) + p.

2. Propriedade comutativa da adição: n + m = m + n.

3. Lei do cancelamento da adição: m + p = n + p ⇒ m = n.


Demonstração.

1. Para esta prova, consideremos o conjunto A(m,n) = {p ∈ N | m + (n + p) = (m + n) + p}


com m e n naturais xados arbitrariamente. Vamos aplicar indução sobre este conjunto.

(a) Temos que m + (n + 0) = m + n = (m + n) + 0, logo, 0 ∈ A(m,n) ;


(b) Suponhamos que k ∈ A(m,n) , isto é, m + (n + k) = (m + n) + k . Agora, provemos que

s(k) ∈ A(m,n) . De fato,


(m + n) + s(k) = s((m + n) + k), e por hipótese,
(m + n) + s(k) = s(m + (n + k)), daí,
(m + n) + s(k) = m + s(n + k), o que signica,
(m + n) + s(k) = m + (n + s(k)), logo, s(k) ∈ A(m,n) .

2. Para esta prova, consideremos o conjunto An = {m ∈ N | n + m = m + n}, com n xado

arbitrariamente e provemos que N = An .

(a) Temos, pela proposição 2.2.10, que n + 0 = 0 + n, portanto, 0 ∈ An ;


(b) Suponhamos que k ∈ An , ou seja, n + k = k + n, e provemos que s(k) ∈ An . De fato,

n + s(k) = s(n + k) = s(k + n) = (k + n) + 1,


daí, pelo primeiro item deste teorema,

n + s(k) = k + (n + 1), e pela proposição 2.2.4 obtemos


n + s(k) = k + (1 + n) = (k + 1) + n e assim,
n + s(k) = s(k) + n, o que signica que s(k) ∈ An .

20
Concluímos assim, por indução, que An = N.

3. Consideremos o conjunto A(m,n) = {p ∈ N | m + p = n + p ⇒ m = n}. Provemos agora

que A(m,n) = N.

(a) Temos que 0 ∈ A(m,n) , pois m + 0 = n + 0 ⇒ m = n, pela proposição 2.2.10;

(b) Suponhamos k ∈ A(m,n) , isto é, m + k = n + k ⇒ m = n. Temos que

m + s(k) = n + s(k) ⇒ s(m + k) = s(n + k)


⇒ (m + k) + 1 = (n + k) + 1
⇒ m + (1 + k) = n + (1 + k) pelos itens anteriores

⇒ (m + 1) + k = (n + 1) + k
⇒ s(m) + k = s(n) + k
⇒ s(m) = s(n) por hipótese

⇒ m+1=n+1⇒m=n

Logo, m + s(k) = n + s(k) ⇒ m = n, ou seja, s(k) ∈ A(m,n) .

Desta forma, concluímos que A(m,n) = N.

O teorema anterior deixa bem claro a importância da Indução Finita nas demonstrações. A

seguinte proposição é um complemento da proposição 2.2.10.

Proposição 2.2.12. Suponhamos que exista u∈N tal que m+u=m (ou u + m = m), para

todo m ∈ N. Então u = 0. Assim, 0 é o único elemento neutro para a operação de adição.

Demonstração. Temos 0=0+u=u para u como na hipótese.

2.3 Multiplicação dos Números Naturais

Assim como foi denida a adição, deniremos agora a operação que chamaremos de multi-

plicação:

Denição 2.3.1. Dado m ∈ A, denimos recursivamente:


(
m · 0 = 0,
m · (n + 1) = m · n + m.
Ou seja, xado m, se p = 0, m · p = 0 e se p 6= 0, p = n + 1, para algum n ∈ N, daí

m · p = m · (n + 1) = m · n + m.

Para designar m · n, usaremos a notação de justaposição mn. Será enunciado e provado, a

seguir, um teorema com as propriedades da multiplicação, mas antes disso, enunciaremos duas

proposições que serão úteis para a demonstração de tal teorema.

Proposição 2.3.2. Para todo m ∈ N, temos que 0 · m = 0.

21
Demonstração. Consideremos o conjunto S = {m ∈ N | 0 · m = 0} e utilizemos indução para

mostrar que S = N:

1. 0·0=0 por denição, portanto, 0 ∈ N;

2. Suponhamos que k está em S , ou seja, 0 · k = 0 e provemos que s(k) ∈ S . De fato,


0 · s(k) = 0(k + 1) = 0k + 0, por denição, e ainda, 0k + 0 = 0k = 0, por hipótese de
indução. Logo, 0 · s(k) = 0, ou seja, s(k) ∈ S

Dessa forma, concluímos que S = N.




Proposição 2.3.3. Sejam m, n ∈ N tais que m + n = 0. Então m = n = 0.

Demonstração. Suponhamos n 6= 0, isto é, n = s(n1 ) = n1 + 1, para algum n1 ∈ N. Sabemos


que 0 = m + n = m + (n1 + 1) = (m + n1 ) + 1 = s(m + n1 ), o que é um absurdo pois 0 não é

sucessor de nenhum elemento de N. Logo, n = 0, sendo assim, m+n = 0 ⇒ m+0 = 0 ⇒ m = 0,

como queríamos.

Teorema 2.3.4. Sejam m, n, p ∈ N, então são válidos os itens abaixo:

1. mn ∈ N, isto é, a multiplicação é uma operação em N;

2. Existe um elemento neutro multiplicativo: 1 · n = n · 1 = n;

3. Distributividade: m(n + p) = mn + mp e (m + n)p = mp + np;

4. Associatividade: m(np) = (mn)p;

5. mn = 0 ⇒ m = 0 ou n = 0;

6. Comutatividade: mn = nm

Demonstração.

1. Consideremos o conjunto Sm = {n ∈ N | mn está denido} para m∈N xado arbitra-

riamente.

(a) m·0=0 está denido, logo, 0 ∈ Sm ;


(b) Suponhamos k ∈ N e provemos que s(k) ∈ N. De fato, m·s(k) = m(k +1) = mk +m.
Por hipótese de indução mk está denido e, como visto na seção anterior, a soma

de quaisquer dois naturais também. Logo, m · s(k) = mk + m está denido, o que

signica que s(k) ∈ Sm .

Sendo assim, por indução Sm = N . Como m foi xado arbitrariamente, a igualdade vale

para qualquer m ∈ N.

2. Temos que n·1 = n(0+1), e por denição n(0+1) = n·0+n = n, logo, n·1 = n. Agora, para
mostrar que 1 · n = n para todo n ∈ N, consideremos o conjunto S = {n ∈ N | 1 · n = n},

e mostremos que N = S .

22
(a) Temos que 1 · 0 = 0, por denição, logo, 0 ∈ S;
(b) Suponhamos que k ∈ S, ou seja, 1 · k = k . Sabemos que 1 · (k + 1) = 1 · k + 1, daí,

por hipótese de indução, 1 · (k + 1) = k + 1. Portanto, k + 1 ∈ S .

Sendo assim, por indução S = N.

3. Sejam m, n naturais xados arbitrariamente e usemos indução sobre p. Seja Am,n = {p ∈


N | m(n + p) = mn + mp}.

(a) De fato, 0 ∈ Am,n pois m(n+0) = mn e mn+m·0 = mn, ou seja, m(n+0) = mn+m·0;
(b) Mostremos agora que, se k ∈ Am,n , isto é, m(n+k) = mn+mk , então (k +1) ∈ Am,n .
Com efeito, m(n + (k + 1)) = m((n + k) + 1) = m(n + k) + m = (mn + mk) + m =

mn + (mk + m) = mn + (m(k + 1)). Todas estas igualdades se justicam com base


em propriedades estabelecidas anteriormente. Sendo assim, (k + 1) ∈ Am,n .

Assim, concluímos, por indução, que Am,n = N.

4. Novamente, consideremos m, n ∈ N xados arbitrariamente e apliquemos indução sobre

p. Seja Sm,n = {p ∈ N | m(np) = (mn)p}:

(a) m(n · 0) = m · 0 = 0 e (mn) · 0 = 0, logo, m(n · 0) = (mn) · 0. Assim, 0 ∈ Sm,n ;


(b) Suponhamos que k ∈ Sm,n , isto é, m(nk) = (mn)k . Consideremos as seguintes
igualdades: m(n(k + 1)) = m(nk + n) = m(nk) + mn = (mn)k + mn = (mn)(k + 1).

Dessa forma, k + 1 ∈ Sm,n

Logo, Sm,n = N.

5. Sejamn = 0. Suponhamos n 6= 0. Então n = n1 + 1 para algum n1 em N. Assim,


mn = 0 ⇒ m(n1 + 1) = 0 ⇒ mn1 + m = 0, daí, pela proposição 2.3.3, mn1 = m = 0. Da
mesma forma, supondo m 6= 0, concluímos que n = 0. Como queríamos.

6. Suponhanhamos Sm = {n ∈ N | mn = nm}, para um m ∈ N xados arbitrariamente.

Mostremos que Sm = N:

(a) Por denição, m·0 = 0 e, pela proposição 2.3.2, 0 · m = 0, logo, m · 0 = 0 · m, isto é,

0 ∈ Sm ;
(b) Suponhamos k ∈ Sm , mk = km. Temos que m(k + 1) = mk + m = km + m,
ou seja,

por hipótese de indução, e ainda, km + m = (k + 1)m. Sendo assim, m(k + 1) =

(k + 1)m, que signica k + 1 ∈ Sm .

Logo, por indução, Sm = N. Como m é arbitrário, a igualdade vale para todo m em N.




Novamente pudemos perceber o quão é importante a existência do terceiro Axioma de Peano.

Completaremos agora esta parte, mostrando que o elemento neutro, visto no segundo item do

teorema anterior, é único.

Proposição 2.3.5. Se p∈N é tal que np = n (ou pn = n), para todo n ∈ N, então p = 1.
Demonstração. Para um tal p, 1 = 1p = p, como queríamos.

23
2.4 Relação de ordem em N

A ideia intuitiva que trazemos desde a escola, de que 0 é menor que 1, que é menor que

2 e assim sucessivamente, vem da relação de ordem que existe nos naturais, que nos permite

comparar os números deste conjunto, formalizando a ideia intuitiva.

Denição 2.4.1. Seja R uma relação binária em um conjunto não vazio A e x, y, z elementos

quaisquer de A. Dizemos que R é uma relação de ordem em A quando satisfaz as seguintes

condições:

1. Reexividade: xRx;

2. Antissimetria: se xRy e yRx, então x = y;

3. Transitividade: se xRy e yRz , então xRz .


Dizemos ainda que tal A, diferente de vazio e munido de uma relação R, é chamado de conjunto
ordenado.

Vamos denir agora uma relação de ordem em N através da operação adição, o que o torna

um conjunto ordenado.

Denição 2.4.2. Dados m, n ∈ N, dizemos que mRn se existir p∈N tal que n=m+p

Exemplo 2.4.3.
1. Temos que 2R7, pois 7 = 2 + 5;

2. 4R4, dado que 4 = 4 + 0.


Proposição 2.4.4. A relação R da denição 2.4.2 acima é uma relação de ordem em N
Demonstração. De fato, vejamos que valem as propriedades reexiva, antissimétrica e transi-

tiva:

1. Reexiva: dado m ∈ N, claramente m = m + p, para p = 0 ∈ N, logo, mRm;

2. Antissimétrica: sejam m, n ∈ N, mRn e nRm, isto é, existem p, q ∈ N, tais que n = m + p


e m = n + q . Substituindo a primeira igualdade na segunda, obtemos, m = (m + p) + q ⇒

m = m + (p + q), o que signica que p + q = 0, assim, pela proposição 2.3.3, p = q = 0,


logo, m = n;

3. Transitiva: Sejam l, m, n ∈ N, lRm e mRn, ou seja, existem p, q ∈ N tais quem = l+p


e n = m + q . Substituindo a primeira igualdade na segunda, obtemos, n = (l + p) + q , ou
ainda, n = l + (p + q). Temos que p + q = r ∈ N, portando, podemos reescrever a última

equação como segue: n = l + r . Sendo assim, concluímos que, lRn.

Logo, a relação R é de ordem em N, como queríamos.

Denição 2.4.5. Sejam m, n ∈ N e R a relação da denição 2.4.2 acima. Se mRn, diremos


que m é menor ou igual a n e passaremos a escrever m ≤ n no lugar de R, ou seja, m ≤ n

signicará mRn.

24
Seja(A, +) um grupo abeliano e ≤ uma relação de ordem em A que satisfaz a ≤ b ⇔
b = a + c para algum c ∈ A. Denotamos por A∗ = A \ {0}, B+ = {x ∈ B | x ≥ 0} e
B− = {x ∈ B | x ≤ 0}.
Seguem algumas variações desta notação:

• m≤n pode ser escrito como n ≥ m. Leremos n é maior ou igual a m;

• Se m ≤ n, mas m 6= n, escrevemos m<n e dizemos que m é menor que n;

• m<n pode ser escrito como n>m e leremos n é maior que m.

Proposição 2.4.6. Para todo n ∈ N∗ , 0 < n. Em particular, 0 < 1.

Demonstração. Devemos mostrar que existe p ∈ N tal que n = 0 + p (p 6= 0, pois, 0 ≤ n, mas


n 6= 0). De fato, como n 6= 0, dado que n ∈ N∗ , podemos dizer que, n = s(n1 ) = s(n1 ) + 0 =
0 + s(n1 ), para algum n1 ∈ N. Sendo assim, encontramos, n = 0 + p, com p = s(n1 ) ∈ N∗ , como
queríamos. Temos ainda que 1 = 0 + 1, portanto, 0 < 1.

Proposição 2.4.7. Para todo n ∈ N, s(n) > n.

Demonstração. Novamente, devemos mostrar que s(n) = n + p, com p 6= 0. De fato, temos que

s(n) = n + 1, claramente 1 6= 0, logo, s(n) > n.




Proposição 2.4.8 (Lei da Tricotomia dos Naturais). Para quaisquer m, n ∈ N temos que uma,
e somente uma, das relações seguintes ocorre:

1. m < n;

2. m = n;

3. m > n.

Demonstração. Vamos mostrar primeiro que duas delas não podem ocorrer simultanemante e

depois mostrar que obrigatoriamente uma delas deve ocorrer.

• Claramente, 1 e 2, não podem ocorrer simultanemante, pois, teríamos n = m+p com



p ∈ N e m = n, daí, subtituindo a segunda igualdade na primeira, obteríamos que,

m = m + p e disso, p = 0, o que é uma contradição, pois, p ∈ N∗ . Da mesma forma, 2 e 3

não podem ocorrer juntas. Suponhamos agora que 1 e 3 ocorram ao mesmo tempo, isto

é,n = m + p e m = n + q , com p, q ∈ N∗ . Substituindo a primeira igualdade na segunda,


obtemos, m = (m + p) + q ou ainda, m = m + (p + q), que nos remete a 0 = p + q . Pela

proposição 2.3.3, concluímos que p = q = 0, o que é uma contradição, pois p, q ∈ N .

• Mostremos esta parte por indução. Seja M = {x ∈ N | x = m ou x>m ou x < m}


com m sendo um natural qualquer.

1. Temos que 0 ∈ M, pois 0=m ou 0 6= m. Se 0 6= m, pela proposição 2.4.6, 0 < m.

25
2. Suponhamos agora que k ∈ M, isto é, k=m ou k>m ou k < m. Analisemos os

três casos:

(a) k = m ⇒ k + 1 = m + 1 ⇒ k + 1 > m ⇒ k + 1 ∈ M;
(b) k > m ⇒ k = m + p para p ∈ N∗ ⇒ k + 1 = (m + p) + 1 ⇒ k + 1 = m + (p + 1) ⇒
k + 1 > m ⇒ k + 1 ∈ M;
(c) k < m ⇒ m = k + p para p ∈ N∗ . Como p 6= 0, temos que p = p1 + 1 com p1 ∈ N.
Logo, m = k + p ⇒ m = k + (p1 + 1) ⇒ m = (k + 1) + p1 . Se p1 = 0 teremos

m = k + 1 e portanto, k + 1 ∈ M . Se p1 6= 0, então, k + 1 < m, logo, k + 1 ∈ M .


Sendo assim, conluímos que, se k ∈ M, então k + 1 ∈ M.

Logo, por indução, N = M.

A Proposição 2.4.8 anterior nos fornece o fato de que dois naturais são sempre compará-

veis pela relação de ordem acima denida. Chamamos uma relação de ordem que obedece a

tricotomia de relação de ordem total. Veja a seguir uma relação de ordem que não obedece a

tricotomia. Neste caso diremos que é uma relação de ordem parcial.

Exemplo 2.4.9. Sejam X um conjunto e R a relação de inclusão entre os elementos de P(X).


Esta é uma relação de ordem em, P(X), mas só é de ordem total quando X é vazio ou unitário.

De fato, seja X um conjunto qualquer. Vamos vericar primeiramente que esta é uma

relação de ordem:

1. Reexiva: seja Y um elemento qualquer de P(X). Como Y =Y, claramente, Y ⊂Y;

2. Antissimétrica: sejam Y e Z elementos de P(X), Y ⊂ Z e Z ⊂ Y. Disso já temos que

Y = Z;

3. Transitiva: sejam Y, Z e W elementos de P(X), Y ⊂ Z e Z ⊂ W. Obviamente, Y ⊂ W.

Concluímos, assim, que esta é uma relação de ordem. Precisamos agora vericar se é de ordem

total.

Consideremos primeiro X diferente de vazio e não unitário, por exemplo, X = {a, b}. Com
isso, P(X) = {∅, {a}, {b}, {a, b}}. Vemos facilmente que {a} * {b} e {b} * {a}, portanto,

não obedece a tricotomia. Concluímos então que esta é uma relação de ordem parcial em X

diferente de vazio e não unitário.

Suponhamos agora X = ∅ e assim, P(X) = {∅}. Esta é uma relação de ordem total, pois
o único subconjunto de P(X) é o conjunto vazio, e, obviamente, ∅ = ∅, além de ∅ não está

propropriamente contido em ∅.

Seja agora X um conjunto unitário qualquer, digamos X = {a}. Sabemos que P(X) =

{∅, {a}}. O vazio é subconjunto de qualquer conjunto, sendo assim, ∅ ⊂ {a} e ainda, {a} * ∅,
ou seja, satisfaz a tricotomia. Vericamos, assim, que a relação de inclusão é de ordem em

todo caso, mas é relação de ordem total apenas quando X é vazio ou unitário.

Teorema 2.4.10. Sejam a, b, c ∈ N. Valem os seguintes itens:

1. a ≤ b ⇔ a + c ≤ b + c;

26
2. a ≤ b ⇔ ac ≤ bc com c 6= 0;

Demonstração.

1. (⇒) a ≤ b ⇒ existe p ∈ N tal que b = a + p. Daí, b + c = (a + p) + c = (a + c) + p, logo

b + c ≥ a + c.

(⇐) a + c ≤ b + c ⇒ b + c = (a + c) + p para algum p ∈ N. Daí temos, b + c = (a + c) + p ⇒


b + c = (a + p) + c ⇒ b = a + p, logo a ≤ b.

2. (⇒) a ≤ b ⇒ b = a + q para algum q ∈ N. Suponhamos que bc < ac, ou seja,


ac = bc + p para algum p ∈ N∗ . Substituindo a primeira igualdade nesta última ob-
temos ac = (a + q)c + p ⇒ ac = ac + qc + p ⇒ 0 = qc + p, daí, pela proposição 2.3.2,

qc = p = 0, o que é uma contradição, pois p ∈ N∗ . Logo, ac ≤ bc, como queríamos.

(⇐) ac ≤ bc ⇒ bc = ac + p para algum p ∈ N. Suponhamos b < a, ou seja, a = b + q



para q ∈ N . Substituindo esta igualdade na anterior, obtemos, bc = (b + q)c + p ⇒ bc =

bc + qc + p ⇒ 0 = qc + p ⇒ 0 = qc = p, daí, pelo item 5 do teorema 2.3.4, obtemos que


q = 0 ou c = 0. Como c 6= 0, nos resta que, q = 0, o que é uma contradição, pois q ∈ N∗ .
Portanto, pela tricotomia, a ≤ b.

Note que o teorema anterior é válido com < no lugar de ≤ e a demostração segue da mesma
forma.

Teorema 2.4.11 (Lei do cancelamento da multiplicação) . Sejam a, b, c ∈ N, com c 6= 0, tais

que ac = bc, então a = b.

Demonstração. Suponhamos que a 6= b. Pela tricotomia devemos ter a < b ou b < a. Se a < b,
pelo teorema anterior, temos, ac < bc, contradizendo a hipótese de que ac = bc, da mesma

forma, b < a ⇒ bc < ac, também contradiz a hipótese. Logo, a = b.

Teorema 2.4.12. Sejam a, b ∈ N. Temos que a<b se, e somente se, a + 1 ≤ b.

Demonstração.

(⇒) a < b ⇒ b = a + p, com p ∈ N∗ , assim, podemos escrever p = s(p1 ) = p1 + 1, com p1 ∈ N .


Temos: b = a + p ⇒ b = a + (p1 + 1) ⇒ b = (a + 1) + p1 ⇒ b ≥ a + 1.

(⇐) a + 1 ≤ b ⇒ b = (a + 1) + p, p ∈ N ⇒ b = a + (p + 1) ⇒ b = a + s(p). Obviamente

s(p) ∈ N∗ , logo, b > a, como queríamos.




Concluímos da relação de ordem em N que, se a ∈ N, então, a < s(a), s(a) = a + 1.


pois

Dessa forma 0 < 1 < 2 < 3 < . . .. Notemos, ainda, que não existem naturais entre a e s(a),

para todo a ∈ N, pois a < r < a + 1 implicaria, pelo teorema anterior, que a + 1 ≤ r < a + 1,

ou seja, a + 1 < a + 1, o que não pode acontecer.

27
O próximo teorema aborda um conceito intuitivamente claro desde o Ensino Fundamental:

todo subconjunto não vazio de números naturais possui um menor elemento. Mas antes dele

introduziremos o conceito de menor elemento.

Denição 2.4.13. Dado um conjunto ordenado A, dizemos que a∈A é um menor elemento

de A se a≤x para todo x ∈ A.

Proposição 2.4.14. Se A é um conjunto ordenado que admite um menor elemento, então este

menor elemento é único e chamado de elemento mínimo de A e denotado por minA.

Demonstração. Sejam a1 e a2 menores elementos de A. Como a2 é um menor elemento de A,


temos que a2 ∈ A e ainda, como a1 ≤ x, ∀x ∈ A, temos que a1 ≤ a2 . Da mesma forma,
a1 ∈ A e a2 ≤ x, ∀x ∈ A, logo a2 ≤ a1 . Se a1 ≤ a2 e a2 ≤ a1 , pela antissimetria a1 = a2 ,

como queríamos.

De modo análogo ao que foi feito no teorema anterior, maxA é o maior elemento ou elemento
máximo de um conjunto ordenado.

Teorema 2.4.15 (Princípio da Boa Ordem). Todo subconjunto não vazio de números naturais

possui um menor elemento.

Demonstração. Seja S N e consideremos o conjunto M = {n ∈ N | n ≤


um tal subconjunto de

x, ∀x ∈ S}. Claro que 0 ∈ M . Como S 6= ∅, tomemos s ∈ S . Então s + 1 ∈ / M , pois s + 1


não é menor ou igual a s. Assim, M 6= N. Como 0 ∈ M e N 6= M , deve existir k ∈ M tal que

k+1∈ / M , caso contrário, pelo princípio de indução, M = N.


Armamos que este k é o menor elemento de S , isto é, k = minS .

Como k ∈ M , então k ≤ x, ∀x ∈ S . Só falta mostrar que k ∈ S . Suponhamos que k ∈ / S.


Então k < x, ∀x ∈ S . Pelo teorema anterior teríamos k + 1 ≤ x, ∀x ∈ S , o que signicaria que

k + 1 ∈ M , contradizendo a escolha de k .
Logo k ∈ S , como queríamos.

Vimos que o Princípio de Indução implica no Princípio da Boa Ordem. Estes dois princípios

são equivalentes. Neste caso assumimos o Princípio de Indução e provamos o da Boa Ordem, mas

poderíamos ter assumido o da Boa Ordem e demonstrado o outro como teorema, conseguindo

os mesmo resultados.

Proposição 2.4.16. Seja X um subconjunto de N satisfazendo os dois itens abaixo:

1. a ∈ X;

2. n ∈ X ⇒ n + 1 ∈ X.

Então, temos que {a, a + 1, a + 2, . . .} ⊂ X .

Demonstração. Queremos mostrar que se m∈N então a + m ∈ X, ou seja, queremos mostrar

que Y = {m ∈ N | a + m ∈ X} = N. Consideremos Y dessa forma e apliquemos indução sobre

ele:

28
1. 0∈Y pois a+0=a∈X por denição de X;

2. Suponhamos agora k ∈ Y e provemos que k + 1 ∈ Y . Se k ∈ Y , então a + k ∈ X , daí, por


denição de X , (a + k) + 1 ∈ X , ou ainda, a + (k + 1) ∈ X , o que signica que k + 1 ∈ Y .

Logo N=Y.


Proposição 2.4.17. Seja s : N −→ N a função sucessor. Para cada n ≥ 1, tem-se sn (0) 6=


sk (0), para todo k < n.

Demonstração. Seja X = {n ∈ N∗ | sn (0) 6= sk (0), ∀k < n}. Vamos mostrar, usando a



proposição anterior, que X = N :

1. 1 ∈ X, pois s1 (0) = s(0) = 1 6= 0 = s0 (0);

2. Seja n ∈ X, isto é,sn (0) 6= sk (0), para todo k < n. Apliquemos s a ambos os lados
n+1
dessa desigualdade, isto é, s (0) 6= sk+1 (0), para todo k < n. Podemos dizer que
sn+1 (0) 6= sl (0) para todo l de 1 até n. Temos ainda que, sn+1 (0) 6= 0 = s0 (0), daí
sn+1 (0) 6= s1 (0), para todo l < n + 1, o que diz que n + 1 ∈ X , como queríamos.

Sendo assim, por indução X = N∗ .




29
Capítulo 3

Números Inteiros
Por conta do rigor matemático, não é adequado seguir a ideia de número inteiro que é

introduzida na escola. Faremos aqui uma construção rigorosa com todas as demonstrações

precisas deste conjunto numérico, através das noções básicas de Teoria dos Conjuntos e de

relações de equivalência.

3.1 Relação de Equivalência em N×N

Deniremos aqui, um número inteiro como uma classe de equivalência dada por uma relação

de equivalência no conjunto N × N. Dessa forma, o conjunto Z dos inteiros será o conjunto

destas classes de equivalência. Em seguida, iremos denir duas operações em Z e mostrar que

Z possui uma cópia algébrica de N. Deniremos a operação subtração em Z e nalizaremos a

sua construção.

Comecemos então denindo esta relação em N×N e provando que é de equivalência:

Denição 3.1.1. (a, b), (c, d) ∈ N × N. Dizemos


Sejam que (a, b) está relacionado com (c, d)
quando a + d = b + c. Denotaremos por (a, b) ∼ (c, d).

Teorema 3.1.2. A relação descrita acima é de equivalência.

Demonstração.

1. Reexiva: Se (a, b) ∈ N × N, então a + b = b + a, por herança da comutativa em N, logo,

(a, b) ∼ (a, b).

2. Simétrica: Se (a, b), (c, d) ∈ N×N e (a, b) ∼ (c, d), então, a+d = b+c, e disso, c+b = d+a,
que signica, (c, d) ∼ (a, b).

3. Transitiva: (a, b), (c, d), (e, f ) ∈ N × N, (a, b) ∼ (c, d) e (c, d) ∼ (e, f ), temos que,
Se

a + d = b + c e c + f = d + e. Assim temos a + d + e = b + c + e e a + c + f = a + d + e,
daí,

b + c + e = a + c + f ⇒ b + e = a + f ⇒ a + f = b + e.

Logo, (a, b) ∼ (e, f ).

30
Pensando de forma intuitiva, por um momento, considerando a subtração de inteiros, no-

tamos que a+d = b+c é equivalente a a − b = c − d, isto é, dois pares ordenados são

equivalentes, segundo a denição acima, quando a diferença entre suas coordenadas, na mesma

ordem, coincidem.

Esta foi a forma encontrada pelos matemáticos do século XIX para iniciar a construção

do conjunto Z sem mencionar a subtração, mas trazendo a sua essência, tendo como ponto de

partida os naturais e suas operações.

Denotaremos por (a, b) a classe de equivalência do par ordenado (a, b) pela relação ∼, isto

é,

(a, b) = {(x, y) ∈ N × N | (x, y) ∼ (a, b)}.

Exemplo 3.1.3.
1. (3, 2) = {(2, 1), (3, 2), (4, 3), (5, 4), . . .};

2. (1, 7) = {(0, 6), (1, 7), (2, 8), (3, 9), . . .};

3. (5, 4) = {(2, 1), (3, 2), (4, 3), (5, 4), . . .}.

Podemos ver que (3, 2) = (5, 4).

Denição 3.1.4. O conjunto quociente N × N/ ∼ constituído pelas classes de equivalência

(a, b) será denota por Z e chamado de conjunto dos números inteiros. Assim, Z = N × N/ ∼=
{(a, b) | (a, b) ∈ N × N}.

3.2 Adição de números inteiros

Deniremos agora a operação (+) em Z que denominaremos por adição. Voltando à nossa

intuição, se (a, b) (a − b) e (c, d) expressa (c − d), a mate-


expressa, em essência, a diferença

mática elementar nos dá (a − b) + (c − d) = (a + c) − (b + d). Esta última expressão se traduz

em (a + c, b + d). Esta é a motivação para a denição formal de (a, b) + (c, d), que daremos a

seguir.

Denição 3.2.1. Sejam (a, b), (c, d) ∈ Z. A soma (a, b) + (c, d) é dada por (a + c, b + d).

Vamos mostrar a seguir que esta operação de adição está bem denida.

Teorema 3.2.2. Se (a, b) = (a0 , b0 ) e (c, d) = (c0 , d0 ), então, (a, b) + (c, d) = (a0 , b0 ) + (c0 , d0 ),
isto é, a adição de números inteiros está bem denida.

Demonstração. Como (a, b) = (a0 , b0 ), temos que, (a, b) ∼ (a0 , b0 ), ou seja,

a + b 0 = b + a0 (3.1)

Da mesma forma,

c + d 0 = d + c0 (3.2)

31
Temos, por denição, que (a, b) + (c, d) = (a + c, b + d) e (a0 , b0 ) + (c0 , d0 ) = (a0 + c0 , b0 + d0 ).
Devemos mostrar que (a + c, b + d) = (a0 + c0 , b0 + d0 ). De fato, somando os primeiros e segun-
dos membros de (3.1) e (3.2), na ordem dada, obtemos,

(a + b0 ) + (c + d0 ) = (b + a0 ) + (d + c0 ) ⇒ (a + c) + (b0 + d0 ) = (b + d) + (a0 + c0 ).

Portanto, (a + c, b + d) = (a0 + c0 , b0 + d0 ), como queríamos.

Teorema 3.2.3. A adição em Z é comutativa, associativa e tem (0, 0) como elemento neutro.

Demonstração.

1. Comutativa: Devemos mostrar que, dados (a, b) e (c, d) em Z, temos (a, b) + (c, d) =
(c, d) + (a, b). De fato, (a + b) + (c + d) = (a + c, b + d) = (c + a, d + b) = (c, d) + (a, b).

2. Associativa: Queremos mostrar que, dados (a, b), (c, d) e (e, f ) em Z, temos (a, b)+((c, d)+
(e, f )) = ((a, b) + (c, d)) + (e, f )

(a, b) + ((c, d) + (e, f )) = (a, b) + ((c + e, d + f ))


= (a + (c + e), b + (d + f ))
= ((a + c) + e, (b + d) + f )
= (a + c, b + d) + (e, f )
= ((a, b) + (c, d)) + (e, f )

3. Elemento Neutro: Dado (a, b) e (0, 0) em Z.

(a, b) + (0, 0) = (a + 0, b + 0) = (0 + a, 0 + b)
= (0, 0) + (a, b) = (a, b)

Teorema 3.2.4 (Cancelamento da Adição). Dados α, β, γ ∈ Z e α + β = γ + β, então α = γ.

Demonstração. Seja α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f ). Assim,

(a, b) + (c, d) = (e, f ) + (c, d) ⇒ (a + c, b + d) = (e + c, f + d)


⇒ (a + c) + (f + d) = (b + d) + (e + c)
⇒ a+f =b+e
⇒ (a, b) = (e, f )

Teorema 3.2.5. Vale a propriedade do elemento oposto: dado (a, b) ∈ Z, existe um único

(c, d) ∈ Z tal que (a, b) + (c, d) = (0, 0). Este (c, d) é o elemento (b, a).

32
Demonstração. Provaremos inicialmente a existência deste elemento oposto e, em seguida, a

sua unicidade.

Seja (a, b) ∈ Z. Tomemos (c, d) = (b, a) ∈ Z e assim,

(a, b) + (c, d) = (e, f ) ⇒ (a, b) + (b, a) = (e, f )


⇒ (a + b, b + a) = (e, f )
⇒ a+b+f =b+a+e
⇒ f +0=e+0
⇒ (f, e) = (0, 0)
⇒ (a, b) + (c, d) = (0, 0).

Sendo assim, existe um elemento (c, d) = (b, a) ∈ Z, tal que,(a, b) + (c, d) = (0, 0).
Suponhamos que existam dois elementos distintos desta forma, (c, d), (c0 , d0 ) ∈ Z, isto é,

(c, d) 6= (c0 , d0 ) ⇒ c + d0 6= d + c0 . (3.3)

Como ambos são opostos a (a, b), temos:

(a, b) + (c, d) = (0, 0) ⇒ (a + c, b + d) = (0, 0)


⇒ a+c=b+d (3.4)

(a, b) + (c0 , d0 ) = (0, 0) ⇒ (a + c0 , b + d0 ) = (0, 0)


⇒ a + c0 = b + d0 (3.5)

Somando o primeiro membro de (3.4) ao segundo de (3.5) e o primeiro de (3.5) com o segundo

de (3.4) obtemos:

a + c + b + d 0 = b + d + a + c0 ⇒ c + d 0 = d + c0 ,

o que contradiz (3.3). Portanto, (c, d) = (c0 , d0 ), com queríamos.

Denição 3.2.6. Dado α ∈ Z, o único β ∈ Z, tal que, α + β = (0, 0) chama-se simétrico de α


(ou oposto de α, ou inverso aditivo de α). Sua unicidade permite que o denotemos por −α.

Dessa forma, α + (−α) = (0, 0) e, como visto, −α = (b, a). A existência e unicidade de

oposto de um número inteiro permite que denamos uma terceira operação em Z, denominada

subtração.

Denição 3.2.7. A subtração em Z, denotada por (−), é a operação denida da seguinte

forma: se α, β ∈ Z, então α − β = α + (−β).

Assim, a subtração α−β é a soma de α com o oposto de β.

Proposição 3.2.8. Para α, β, γ ∈ Z , vale:

33
1. −(−α) = α;
2. −α + β = β − α;
3. α − (−β) = α + β ;
4. −α − β = −(α + β);
5. α − (β + γ) = α − β − γ ;
Demonstração.

1. Seja α = (a, b), então, −α = (b, a), e assim,

−(−α) = −(b, a) = (a, b) = α.

2. Seja α = (a, b) e β = (c, d). Claramente, −α = (b, a). Temos:

−α + β = (b, a) + (c, d) = (b + c, a + d)
= (c + b, d + a) = (c, d) + (b, a)
= β − α.

3. Seja α = (a, b) e β = (c, d), e assim, −α = (b, a) e −β = (d, c).

α − (−β) = (a, b) − (d, c)


= (a, b) + (c, d) = α + β.

4. Se α = (a, b) e β = (c, d), teremos, −α = (b, a) e −β = (d, c), e assim:

−α − β = (b, a) − (c, d) = (b, a) + (d, c)


= (b + d, a + c) = −(a + c, b + d)
= −((a, b) + (c, d)) = −(α + β).

5. Se α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f ), então, −α = (b, a), −β = (d, c) e −γ = (f, e) e

assim:

α − (β + γ) = (a, b) − ((c, d) + (e, f )) = (a, b) − (c + e, d + f )


= (a, b) + (d + f, c + e) = (a, b) + (d, c) + (f, e)
= α − β − γ.

3.3 Multiplicação dos inteiros

Deniremos a seguir outra operação em Z, a qual denotaremos por (·) e chamaremos de


produto. Pensando intuitivamente, se (a, b) nos expressa (a − b), (c, d) expressa (c − d) e

34
(a − b) · (c − d) = a · c + b · d − (a · d + b · c), temos a motivação para a seguinte denição.

Denição 3.3.1. Dados (a, b) e (c, d) em Z, denimos o produto (a, b) · (c, d) como sendo

(a · c + b · d, a · d + b · c).

Teorema 3.3.2. A multiplicação em Z está bem denida, isto é, se (a, b) = (a0 , b0 ) e (c, d) =
(c0 , d0 ), então, (a, b) · (c, d) = (a , b ) · (c0 , d0 ).
0 0

Demonstração. Seja (a, b) = (a0 , b0 ), isto é, a + b 0 = b + a0 , que nos fornece:

ca + cb0 = cb + ca0 (3.6)

da + b0 d = bd + a0 d. (3.7)

Somando as equações (3.6) e (3.7) obtemos

ac + bd + a0 d + b0 c = ad + bc + a0 c + b0 d
(ac + bd, ad + bc) = (a0 c + b0 d, a0 d + b0 c)
(a, b) · (c, d) = (a0 , b0 ) · (c, d). (3.8)

Do mesmo modo, (c, d) = (c0 , d0 ) ⇒ c + d0 = d + c0 , de onde obtemos:

a0 c + a0 d 0 = a0 d + a0 c 0 (3.9)

b0 c + b0 d 0 = b0 d + b0 c 0 . (3.10)

Novamente somando as equações (3.9) e (3.10) obtemos

a0 c + b0 d + a0 d0 + b0 c0 = a0 d + b0 c + a0 c0 + b0 d0
(a0 c + b0 d, a0 d + b0 c) = (a0 c0 + b0 d0 , a0 d0 + b0 c0 )
(a0 , b0 ) · (c, d) = (a0 , b0 ) · (c0 , d0 ). (3.11)

Dessa maneira, observando (3.8) e (3.11), obtemos que

(a, b) · (c, d) = (a0 , b0 ) · (c0 , d0 ),

como queríamos.

Teorema 3.3.3. A multiplicação em Z é comutativa, associativa, tem (1, 0) como neutro mul-

tiplicativo e é distributiva em relação a adição. Além disso, vale a propriedade do cancelamento

multiplicativo, isto é, se α, β, γ ∈ Z, com γ 6= (0, 0) e αγ = βγ , então α = β.

Demonstração.

35
1. Comutativa: Sejam α = (a, b) e β = (c, d) em Z. Temos,

αβ = (a, b) · (c, d) = (ac + bd, ad + bc) (3.12)

βα = (c, d) · (a, b) = (ca + db, cb + da). (3.13)

Podemos ver que (3.12) é igual a (3.13), isto é, (ac + bd, ad + bc) = (ca + db, cb + da), que
signica αβ = βα.

2. Associativa: Sejam α = (a, b), β = (c, d), γ = (e, f ) ∈ Z.

α(βγ) = (a, b) · ((c, d) · (e, f )) = (a, b) · (ce + df, cf + de)


= (a(ce + df ) + b(cf + de), a(cf + de) + b(ce + df ))
= (ace + adf + bcf + bde, acf + ade + bce + bdf ). (3.14)

(αβ)γ = ((a, b) · (c, d)) · (e, f ) = (ac + bd, ad + bc) · (e, f )


= ((ac + bd)e + (ad + bc)f, (ac + bd)f + (ad + bc)e)
= (ace + bde + adf + bcf, acf + bdf + ade + bce). (3.15)

Podemos ver que (3.14) é igual a (3.15), logo, α(βγ) = (αβ)γ .

3. Elemento Neutro: Sejam α = (a, b) e β = (1, 0) ∈ Z.

α · β = (a, b) · (1, 0)
= (a · 1 + b · 0, a · 0 + b · 1)
= (a, b) = α. (3.16)

4. Distributiva: Sejam α = (a, b), β = (c, d), γ = (e, f ) ∈ Z.

α(β + γ) = (a, b) · ((c, d) + (e, f )) = (a, b) · ((c + e, d + f ))


= (a(c + e) + b(d + f ), a(d + f ) + b(c + e))
= (ac + ae + bd + bf, ad + af + bc + be)
= (ac + bd, ad + bc) + (ae + bf, af + be)
= (a, b) · (c, d) + (a, b) · (e, f ) = αβ + αγ.

5. Cancelamento Multiplicativo: sejam α = (a, b), β = (c, d), γ = (e, f ) ∈ Z, com (e, f ) 6=
(0, 0) tais que αγ = βγ , isto é,

(ae + bf, af + be) = (ce + df, cf + de)

que equivale a

ae + bf + cf + de = af + be + ce + df

36
e disso,

e(a + d) + f (b + c) = e(b + c) + f (a + d).

Como (e, f ) 6= (0, 0), temos que e + 0 6= f + 0 ⇒ e 6= f . Suponhamos e > f (ou


f > e), ou seja, e = f + p, com p ∈ N∗ . Com isso, desenvolvendo os dois membros de
cada igualdade teremos:

(f + p)(a + d) + f (b + c) = (f + p)(b + c) + f (a + d)
⇒ f a + f d + pa + pd + f b + f c = f b + f c + pb + pc + f a + f d
⇒ pa + pd = pb + pc ⇒ p(a + d) = p(b + c)
⇒ a + d = b + c ⇒ (a, b) = (c, d) ⇒ α = β.

Proposição 3.3.4. Se α, β ∈ Z e αβ = (0, 0), então, α = (0, 0) ou β = (0, 0).

Demonstração. Seja α = (a, b) e β = (c, d).

αβ = (0, 0) ⇒ (a, b) · (c, d) = (0, 0)


⇒ (ac + bd, ad + bc) = (0, 0)
⇒ ac + bd + 0 = ad + bc + 0
⇒ ac + bd = ad + bc. (3.17)

Suponhamos (a, b) 6= (0, 0), isto é a 6= b. Dessa forma a>b (ou b > a), e assim, a = b + p, com

p∈N . Substituindo esta igualdade em (3.17) obtemos:

(b + p)c + bd = (b + p)d + bc ⇒ bc + pc + bd = bd + pd + bc
⇒ pc = pd.

Como p ∈ N∗ , podemos usar a lei do cancelamento, e concluir que c = d, o que signica que
(c, d) = (0, 0). Analogamente, se supormos que (c, d) 6= (0, 0), concluiremos que (a, b) = (0, 0).


Proposição 3.3.5. Se α, β ∈ Z, temos:

1. (−α)β = −αβ = α(−β);

2. (−α)(−β) = αβ .

Demonstração.

1. Seja α = (a, b) e β = (c, d) e assim, −α = (b, a) e −β = (d, c). Dessa forma,

(−α)β = (b, a) · (c, d)


= (bc + ad, bd + ac) (3.18)

37
−αβ = −(a, b) · (c, d)
= −(bd + ac, bc + ad)
= (bc + ad, bd + ac) (3.19)

α(−β) = (a, b) · (d, c)


= (ad + bc, ac + db) (3.20)

Claramente, (3.18), (3.19) e (3.20) são iguais, isto é, (−α)β = −αβ = α(−β).

2. Consideremos os mesmos α e β do item anterior:

(−α)(−β) = (b, a) · (d, c) = (bd + ac, bc + ad)


= (a, b) · (c, d) = αβ

Proposição 3.3.6. Dados α, β, γ ∈ Z, é válida a propriedade distributiva da multiplicação em

relação a subtração, isto é, α(β − γ) = αβ − αγ .

Demonstração.

α(β − γ) = α(β + (−γ))


= αβ + α(−γ).

Assim, pelo item 1 da Proposição 3.3.5, α(β − γ) = αβ − αγ , como queríamos.

3.4 Relação de Ordem em Z

Façamos, como em N, uma comparação dos elementos de Z através de uma relação de ordem.

Denição 3.4.1. Dados os inteiros (a, b) e (c, d), escrevemos (a, b) ≤ (c, d), quando a+d ≤
b + c.

Proposição 3.4.2. A relação denida anteriormente está bem denida, isto é, se (a, b) =
(a0 , b0 ), (c, d) = (c0 , d0 ) e (a, b) ≤ (c, d), então, (a0 , b0 ) ≤ (c0 , d0 ).

Demonstração.

(a, b) = (a0 , b0 ) ⇒ a + b0 = b + a0 . (3.21)

(c, d) = (c0 , d0 ) ⇒ c + d0 = d + c0 . (3.22)

38
(a, b) ≤ (c, d) ⇒ a + d ≤ b + c
⇒ a + b0 + d ≤ b + b0 + c
⇒ a + b0 + d + d0 ≤ b + b0 + c + d0 . (3.23)

Subtituindo (3.21) e (3.22) em (3.23), obtemos

b + a0 + d + d0 ≤ b + b0 + d + c0 ⇒ a0 + d0 ≤ b0 + c0
⇒ (a0 , b0 ) ≤ (c0 , d0 ).

Teorema 3.4.3. A relação ≤ denida acima é uma relação de ordem em Z, ou seja, é reexiva,
antissimétrica e transitiva.

Demonstração.

1. Reexiva: Seja α = (a, b) ∈ Z. Claramente, (a, b) ≤ (a, b), pois, (a, b) = (a, b).

2. Antissimétrica: Sejam α, β ∈ Z, α ≤ β e β ≤ α. Consideremos α = (a, b) e β = (c, d) e

assim,

α ≤ β
(a, b) ≤ (c, d)
a+d ≤ b+c

β ≤ α
(c, d) ≤ (a, b)
c + b ≤ d + a.

Pela tricotomia dos naturais, obtemos que, a + d = b + c, isto é, (a, b) = (c, d).

3. Transitiva: Sejam α, β, γ ∈ Z, α ≤ β e β ≤ γ , com α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f ).


Destas desigualdades obtemos a + d ≤ b + c e c + f ≤ d + e. Sendo assim, existem
p, q ∈ N tais que,

a+d+p=b+c
e

c + f + q = d + e.

Somando os primeiros e segundos membros das duas igualdades, na ordem dada, obtemos

a+d+p+c+f +q = b+c+d+e
a+f +p+q = b+e

Como p + q ∈ N, concluímos que, a + f ≤ b + e, ou seja, (a, b) ≤ (e, f ), como queríamos.

39


Teorema 3.4.4. A relação ≤ é compatível com as operações em Z, isto é,

1. α ≤ β ⇒ α + γ ≤ β + γ;

2. α≤β e γ ≥ (0, 0) ⇒ αγ ≤ βγ ;

3. Apenas uma das situações seguintes ocorre: α = (0, 0) ou α < (0, 0) ou α > (0, 0).
Demonstração.

1. Tomemos α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f ) em Z. Assim,

(a, b) ≤ (c, d) ⇒ a + d ≤ b + c
⇒ a+e+d+f ≤b+f +c+e
⇒ (a + e, b + f ) ≤ (c + e, d + f )
⇒ (a, b) + (e, f ) ≤ (c, d) + (e, f )
⇒ α + γ ≤ β + γ.

Como queríamos.

2. Sejam α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f ). Dessa forma obtemos, a + d ≤ b + c e e ≥ f .


Sendo assim, existem p, q ∈ N, tais que, b + c = a + d + p e e = f + q . Temos que,

b + c = a + d + p ⇒ be + ce = ae + de + pe, (3.24)

b + c = a + d + p ⇒ bf + cf = af + df + pf (3.25)

e = f + q ⇒ pe = pf + pq. (3.26)

Somando o segundo membro da igualdade (3.24) com o primeiro da igualdade (3.25) e o

primeiro membro de (3.24) com o segundo de (3.25), obtemos,

ae + de + pe + bf + cf = be + ce + af + df + pf.

Substituindo (3.26) nesta última igualdade, obtemos

ae + de + pf + pq + bf + cf = be + ce + af + df + pf
ae + de + bf + cf + pq = be + ce + af + df
ae + de + bf + cf ≤ be + ce + af + df
(ae + bf, af + be) ≤ (ce + df, cf + de)
(a, b) · (e, f ) ≤ (c, d) · (e, f )
αγ ≤ βγ.

40
3. Suponhamos α > (0, 0) e α < (0, 0) simultaneamente, com α = (a, b).

(a, b) > (0, 0) ⇒ a > b


e

(a, b) < (0, 0) ⇒ a < b,

o que é um absurdo pela tricotomia dos naturais. Suponhamos agora α = (0, 0) e α < (0, 0)
(ou α > (0, 0)) simultaneamente.

(a, b) < (0, 0) ⇒ a < b


e

(a, b) = (0, 0) ⇒ a = b,

o que novamente é um absurdo, pela tricotomia dos naturais. Como queríamos.

O seguinte teorema mostra que Z é não só ordenado, como também, totalmente ordenado,

isto é, a relação ≤ é de ordem total em Z.

Teorema 3.4.5 (Tricotomia dos Inteiros) . Para α, β, γ ∈ Z, uma e apenas uma das situações

seguintes ocorre: α=β ou α<β ou β < α.

Demonstração. Suponhamos α<β e β<α simultaneamente:

α < β ⇒ (a, b) < (c, d) ⇒ a + d < b + c


β < α ⇒ (c, d) < (a, b) ⇒ c + b < d + a,
absurdo pela tricotomia dos naturais. Da mesma forma, suponhamos α < β (ou β < α) e

α=β simultaneamente:

α < β ⇒ (a, b) < (c, d) ⇒ a + d < b + c


α = β ⇒ (a, b) = (c, d) ⇒ a + d = b + c
Absurdo pela tricotomia dos naturais. Além disto, novamente pela tricotomia dos naturais,

necessariamente uma das seguintes ocorre:

a + d < b + c, b + c < a + d, a + d = b + c.

Isto signica que uma das seguintes deve ocorrer

(a, b) < (c, d), (c, d) < (a, b), (a, b) = (c, d).

Teorema 3.4.6. Para α, β ∈ Z, α ≤ β e γ < (0, 0), temos que αγ ≥ βγ .

Demonstração. Sejam α = (a, b), β = (c, d) e γ = (e, f ). Temos que,

(e, f ) < (0, 0) ⇒ e < f ⇒ (0, 0) < (f, e).

41
Daí, como α ≤ β, pelo item 2 do Teorema 3.4.4

(a, b) · (f, e) ≤ (c, d) · (f, e) ⇒ (af + be, ae + bf ) ≤ (cf + de, ce + df )


⇒ af + be + ce + df ≤ ae + bf + cf + de
⇒ (ce + df, cf + de) ≤ (ae + bf, af + be)
⇒ (c, d) · (e, f ) ≤ (a, b) · (c, d)
⇒ βγ ≤ αγ.

Denição 3.4.7. Dado (a, b) ∈ Z, dizemos que:

1. (a, b) é positivo quando (a, b) > (0, 0);

2. (a, b) é não negativo quando (a, b) ≥ (0, 0);

3. (a, b) é negativo quando (a, b) < (0, 0);

4. (a, b) é não positivo quando (a, b) ≤ (0, 0);

Observemos que se (a, b) > (0, 0) então a > b, e assim, existe m ∈ N∗ tal que b + m = a, que

equivale (a, b) = (m, 0). Analogamente, se (a, b) < (0, 0), existe m ∈ N , tal que a + m = b e

dessa forma, (a, b) = (0, m). Dessa forma, temos que Z = {(0, m) | m ∈ N }∪{(0, 0)}∪{(m, 0) |

m ∈ N∗ }, onde esta união é disjunta. Além disso,

Z∗− = {(0, m) | m ∈ N∗ }, Z− = {(0, m) | m ∈ N∗ } ∪ {(0, 0)}


Z∗+ = {(m, 0) | m ∈ N∗ }, Z+ = {(m, 0) | m ∈ N∗ } ∪ {(0, 0)}

Observemos que Z+ está em bijeção com N, o que mostra que Z+ é uma cópia algébrica de N
em Z, como o seguinte teorema traduz.

Teorema 3.4.8. Seja f : N −→ Z dada por f (m) = (m, 0). Então f é injetora e valem as

seguintes propriedades:

1. f (m + n) = f (m) + f (n);

2. f (mn) = f (m)f (n);

3. Se m ≤ n, então f (m) ≤ f (n);

Demonstração. Provemos inicialmente que f é injetora. De fato,

f (m) = f (n) ⇒ (m, 0) = (n, 0) ⇒ m + 0 = 0 + n ⇒ m = n.

Provemos agora os três itens. Sejam m, n ∈ N.

1. f (m + n) = (m + n, 0) = (m, 0) + (n, 0) = f (m) + f (n);

2. f (mn, 0) = (mn, 0) = (m, 0) · (n, 0) = f (m)f (n);

3. Se m ≤ n, temos que, (m, 0) ≤ (n, 0), ou seja, f (m) ≤ f (n).

42


O teorema acima nos garante que f é um homomorsmo injetor, ou seja, um monomorsmo.

Dessa forma, o conjunto f (N) = Z+ , tem a mesma estrutura algébrica que N. Por exemplo,
2 + 3 = 5, corresponde, via f , a (2, 0) + (3, 0) = (5, 0). Do mesmo modo, 2.3 = 6, corresponde,
via f , a (2, 0) · (3, 0) = (6, 0). A relação 2 ≤ 3 se preserva, via f , como (2, 0) ≤ (3, 0),

conrmando a ideia de que a ordem em Z é uma extensão da ordem em N. Dizemos que N é

um subconjunto de Z.

A função f descrita acima, chama-se imersão de N em Z, o que mostra, pela Denição 2.1.2,

que Z é innito, dado que f é injetora.

Notemos que, se m ∈ N, o simétrico de (m, 0) é (0, m), logo, se identicarmos (m, 0) com

m através de f , obtemos −m = −(m, 0) = (0, m). Dessa forma, identicando N com Z+ , via
f , obtemos o que será denido a seguir.
Denição 3.4.9. Denimos o conjunto dos inteiros como

Z = {−m | m ∈ N∗ } ∪ {0} ∪ N∗ = {. . . , −m, . . . , −2, −1, 0, 1, 2, . . . , m, . . .}.


Usaremos, a partir de agora, esta identicação e, então, consideraremos N como um sub-

conjunto de Z. Assim podemos obter

a − b = (a, 0) − (b, 0) = (a, 0) + (−(b, 0)) = (a, 0) + (0, b) = (a, b)


conforme nossas motivações intuitivas feitas anteriormente. Dessa forma, sendo x um inteiro

qualquer, podemos identicar −x por (−1) · x, pois, sendo x = (a, b),


(−1) · x = (0, 1) · (a, b) = (b, a) = −(a, b) = −x
Teorema 3.4.10. Se x, y ∈ Z temos:

1. Se x>0 e y > 0, então xy > 0;

2. Se x<0 e y < 0, então xy > 0;

3. Se x<0 e y > 0, então xy < 0.


Demonstração.

1. Como x e y são elementos positivos de Z, podemos identica-los por x = (x, 0) e y = (y, 0).
Dessa forma, xy = (x, 0) · (y, 0) = (xy, 0). Sabemos que (xy, 0) > (0, 0), portanto, xy > 0.

2. Pelo Teorema 3.4.6, x < 0 ⇒ −x > 0 e y < 0 ⇒ −y > 0, sendo assim,

−x = (−x, 0) ⇒ x = −(−x, 0) = (0, −x)


e

−y = (−y, 0) ⇒ y = −(−y, 0) = (0, −y).

Temos:

xy = (0, −x) · (0, −y)


= ((−x)(−y), 0) (3.27)

Sabemos que ((−x)(−y), 0) > (0, 0), portanto, xy > 0.

43
3. Pelo Teorema 3.4.6, x < 0 ⇒ −x > 0, sendo assim,

−x = (−x, 0) ⇒ x = −(−x, 0) = (0, −x).

Temos:

xy = (0, −x) · (y, 0)


= (0, (−x)y). (3.28)

Sabemos que, (0, (−x)y) < (0, 0), portanto, xy < 0.

Denição 3.4.11. Seja X um subconjunto não vazio de Z. Dizemos que X é limitado inferi-

ormente se existe α∈Z tal que α ≤ x, para todo x ∈ X. Tal α chama-se cota inferior de X.
Dizemos que X é limitado superiormente se existir β ∈ Z tal que x≤β para todo x ∈ X. Tal

β é chamado cota superior de X.

Exemplo 3.4.12. Claramente 0≤x para todo x ∈ N ⊂ Z, logo, 0 é cota inferior de N. Da

mesma forma, −1 e qualquer inteiro negativo também o é.

Teorema 3.4.13. N não admite cota superior em Z.


Demonstração. Devemos mostrar que, para todo β ∈ Z, existe x ∈ N, tal que β < x. Seja

β ∈ Z:

• Se β < 0, basta tomar qualquer x∈N que já obtemos β < x;

• Se β = 0, basta tomar x = 1 ∈ N, daí, β < x;

• Se β > 0, então, β ∈ N, portanto, s(β) ∈ N. Sabemos que β < s(β), isto é, β < β + 1.
Sendo assim, para todo β > 0 em Z, existe x = β + 1 ∈ N, tal que β < x.

Teorema 3.4.14 (Princípio da Boa Ordem). Seja X⊂Z não vazio e limitado inferiormente.

Então X possui elemento mínimo.

Demonstração. Seja α uma cota inferior de X , isto é, α ≤ x para todo x ∈ X . Consideremos


X = {x − α | x ∈ X}. Claramente, X 0 ⊂ N (identicado com Z+ ) e, pelo Princípio da Boa
0

0 0 0 0 0
Ordem em N, o conjunto X possui elemento mínimo , digamos, m . Assim, m ∈ X e m ≤ y
0 0 0 0 0
para todo y ∈ X . Como m ∈ X , m = m−α, para algum m ∈ X . Armamos que m = m +α

é elemento mínimo de X . Só falta vericar que m ≤ x para todo x ∈ X , mas isso equivale a

m − α ≤ x − α para todo x ∈ X , ou ainda, m0 ≤ x − α, que é verdade, pela denição de m0 ≤ y .


Logo, m é o mínimo de X .

Corolário 3.4.15. Seja x∈Z tal que 0 < x ≤ 1. Então x = 1.

44
Demonstração. Seja A = {y ∈ Z | 0 < y ≤ 1}. Temos que A 6= ∅, dado que 1 ∈ A, e A
é limitado inferiormente por 0. Pelo Princípio da Boa Ordem, A possui elemento mínimo,
2
digamos, m. Suponhamos m < 1. Sendo assim, 0 < m < 1, logo, 0 < m < m < 1, o que
2
signica que m ∈ A e é menor do que m, contradizendo a minimalidade de m. Portanto,

m = 1. Como 1 é o máximo e o mínimo de A, temos que, A = {1}.




Corolário 3.4.16. Sejam n, x ∈ Z tais que n < x ≤ n + 1. Então x = n + 1.

Demonstração. Seja A = {x ∈ Z | n < x ≤ n + 1, n ∈ Z}. Temos que A 6= ∅ (pois n + 1 ∈ A),


e A é limitado inferiormente por n. Pelo Princípio da Boa Ordem, A possui elemento mínimo,

digamos, m. Como m ∈ A, temos que n < m ≤ n + 1, de onde segue que 0 < m − n ≤ 1. Como

m, n ∈ Z, m − n ∈ Z, assim, pelo Corolário 3.4.15, m − n = 1, ou seja, m = n + 1.




Vamos agora denir o conceito de módulo ou valor absoluto de um número inteiro.

Denição 3.4.17. Seja x ∈ Z. Denimos o valor absoluto de x (ou módulo de x), denotado

por |x|, como sendo:


(
x, se x ≥ 0,
|x| =
−x, se x < 0.

Exemplo 3.4.18.
1. | − 3| = |3| = 3;

2. |0| = 0.

Proposição 3.4.19. Para todo x ∈ Z, temos que:

1. |x| ≥ 0;

2. |x| = 0 ⇔ x = 0.

Demonstração.

1. Provemos que |x| ≥ 0, para todo x ∈ Z.

• Se x > 0, por denição, |x| = x, logo, |x| > 0;


• Se x < 0, por denição, |x| = −x, e ainda, pelo Teorema 3.4.6, −x > 0. Portanto,

|x| > 0;
• Se x = 0, temos que |x| = x = 0.

Assim, para todo x ∈ Z, temos |x| ≥ 0.

2. (⇒) Seja |x| = 0.

• Se x > 0, então |x| = x = 0. Contradição pela tricotomia;

• Se x < 0, então |x| = −x = 0, isto é, x = 0. Novamente, contradição pela tricotomia.

45
Portanto, x = 0, como queríamos.

(⇐) Seja x = 0. Logo, |x| = x = 0.

Proposição 3.4.20. Para todo x, y ∈ Z, temos que |xy| = |x||y|.

Demonstração. Consideremos em casos.

• Se x > 0 e y > 0, temos, pelo Teorema 3.4.10, xy > 0, e assim, por denição de módulo,
|xy| = xy . Pela mesma denição, |x| = x e |y| = y , logo, |x||y| = xy . Portanto,
|x||y| = |xy|.

• Se x < 0 e y < 0, pelo Teorema 3.4.10, xy > 0, e assim, |xy| = xy . Temos que,
x < 0 ⇒ |x| = −x e y < 0 ⇒ |y| = −y , sendo assim, pelo item 2 da Proposição 3.3.5,
|x||y| = (−x)(−y) = xy . Logo, |xy| = |x||y|.

• Se x<0 y > 0 (ou x > 0 e y < 0), pelo Teorema 3.4.10, xy < 0, isto é, |xy| = −xy .
e

Temos que, x < 0 ⇒ |x| = −x e y > 0 ⇒ |y| = y , sendo assim, |x||y| = (−x)(y) =
−xy . Logo, |xy| = |x||y|.

• Se x = 0 e y é qualquer (ou y = 0 e x qualquer), temos xy = 0, logo, |xy| = 0. Como

|x| = 0 , claramente, |x||y| = 0 · |y| = 0. Portanto, |xy| = |x||y|.

Dessa forma, concluímos que, |xy| = |x||y|, para todos x, y ∈ Z.




Proposição 3.4.21. Para n ∈ N∗ , tem-se:

|x| = n ⇔ x = n ou x = −n.

Demonstração. (⇒) Seja |x| = n.

• Se x > 0, |x| = x. Sendo assim, x = n.

• Se x < 0, |x| = −x. Logo, −x = n, isto é, x = −n.

(⇐) Seja x=n ou x = −n.

• Se x = n, então, |x| = |n|. Como n ∈ N∗ , obviamente, n > 0, logo, |n| = n, ou seja,

|x| = n.

• Se x = −n, então |x| = | − n|. Como n > 0, pelo Teorema 3.4.6, −n < 0, sendo assim,

por denição de módulo, | − n| = −(−n) = n. Logo, |x| = n.

Denição 3.4.22. Um elemento x∈Z diz-se inversível se existe y∈Z tal que xy = 1.

Proposição 3.4.23. Os únicos elementos inversíveis de Z são 1 e −1.

46
Demonstração. Seja x ∈ Z inversível e y ∈ Z, tal que, xy = 1. Sendo assim, |xy| = |x||y| = 1.
Como |x| ≥ 0, |y| ≥ 0 e |x||y| = 1, segue que |x| > 0 e |y| > 0, que signica, |x| ≥ 1 e |y| ≥ 1.

Multiplicando esta última desigualdade por |x|, em ambos os membros, obtemos, |x||y| ≥ |x|.

Sendo assim, 1 = |x||y| ≥ |x| ≥ 1, o que nos garante |x| = 1. Daí, pela Proposição 3.4.21, x = 1

ou x = −1, como queríamos.

3.5 Conjuntos enumeráveis e a Hipótese do Contínuo

Vimos que a função f : N −→ Z, dada por f (m) = (m, 0), é injetora. Outro exemplo
de função injetora que vai de N em Z, pode ser dada por, f (m) = (0, m), ou ainda, f (m) =

(m + 1, 0). Vejamos a seguir, uma função que exibe uma bijeção entre N e Z, apresentando

uma outra demonstração de que Z é innito.

Exemplo 3.5.1. A função σ : Z −→ N é denida como segue:


(
2n − 1, se n > 0,
σ(n) =
−2n, se n ≤ 0.
Esta função é bijetora, como veremos adiante.

Denição 3.5.2. Seja A um conjunto qualquer. Se existe uma bijeção entre A e N, dizemos

que A é enumerável. Dizemos ainda que qualquer bijeção de N em um conjunto enumerável A


chama-se uma enumeração para A, segundo a qual o primeiro elemento de A é a imagem do

1, o segundo é a imagem do 2, e assim por diante (a imagem do 0 é o zero-ésimo elemento de

A).

Dessa forma, o Exemplo 3.5.1 nos diz que Z é enumerável e a inversa da bijeção σ é uma

enumeração para Z.

Exemplo 3.5.3. Sendo σ a função do Exemplo 3.5.1, a enumeração σ −1 : N −→ Z é dada

por:
 n+1
 , se n for ímpar,
−1
σ (n) = 2
−n
 , se n for par.
2
Dessa forma temos:

−8
1. σ −1 (8) = = −4, isto é, o oitavo elemento de Z é −4.
2
4
2. σ −1 (3) = = 2, ou seja, o terceiro elemento de Z é 2.
2
Podemos ver que σ −1 ◦ σ : Z −→ Z, e ainda,

(2n − 1) + 1 2n
σ −1 (σ(n)) = σ −1 (2n − 1) = = =n
2 2
ou

−(−2n) 2n
σ −1 (σ(n)) = σ −1 (−2n) = = = n.
2 2

47
Do mesmo modo, σ ◦ σ −1 : N −→ N, e ainda,
 
−1 n+1 n+1
σ(σ (n)) = σ =2· −1=n+1−1=n
2 2
ou
 
−1 −n −n
σ(σ (n)) = σ = −2 · = n.
2 2
Como σ −1 ◦ σ = Id e σ ◦ σ −1 = Id, ca claro que σ é inversível, e portanto, bijetora.

Os estudos de Cantor, além de terem rompido com o paradigma grego de que  o todo

é sempre maior do que qualquer uma das suas partes próprias , ainda generalizaram para

conjuntos innitos o fato conhecido para conjuntos nitos de que o número de elementos de

um conjunto é sempre menor do que o número de elementos das partes desse conjunto. Vamos

denotar o número de elementos de um conjunto nito X por η(X)

Proposição 3.5.4. Se η(X) = n, então η(P(X)) = 2n

Demonstração. Seja A = {n ∈ N|η(X) = n ⇒ η(P(X)) = 2n }.

1. 0 ∈ A, pois, se η(X) = 0, temos que X = ∅, sendo assim, P(X) = {∅}, isto é, η(P(X)) =
20 = 1.

2. Suponhamos que n ∈ A e provemos que n + 1 ∈ A, isto é, temos η(X) = n ⇒ η(P(X)) =


n
2 . Se temos η(X) = n + 1, por hipótese, η(P(X)) = 2n+1 , como queríamos.

Desta forma, por indução, A = N. Portanto, se η(X) = n, então η(P(X)) = 2n , para todo

n ∈ N.


Cantor generalizou para conjuntos innitos a ideia contida na proposição anterior, como

demonstraremos no último teorema deste capítulo. Intuitivamente, o tipo de innito de P(X)


é estritamente maior do que o tipo de innito de X. Expressamos este fato dizendo que a

cardinalidade de P(X) é maior do que a cardinalidade de X . Continuando com esse raciocínio,

obtemos η(P(X)) < η(P(P(X))).


Tomando partes de conjuntos das partes sucessivamente, chegamos aos conjuntos innitos

de Cantor. Ele tornou estas questões rigorosas matematicamente através da sua aritmética

transnita. Consideremos agora a cadeia crescente de cardinalidades

η(N) < η(P(N)) < η(P(P(N))) < . . .

Esta cadeia começa com a cardinalidade de N. A Denição 2.1.2, nos diz que um conjunto X
é innito quando existe uma função injetora que vai de N em X . Claramente, o conjunto X,
com menor cardinalidade, que permite esta injeção é o próprio N, sendo assim, a cardinalidade
de N pode ser considerada a menor innita.

Mostraremos adiante que η(R) > η(N), além disso, veremos que η(R) = η(P(N)), ou seja,

R e P(N) são equipotentes. Esta desigualdade é um caso particular do que vimos no parágrafo

anterior. A suposição de que não há cardinalidades intermediárias entre a de N e a de P(N),


trata-se da Hipótese do Contínuo.

48
Chama-se Hipótese Generalizada do Contínuo a suposição de que não há cardinalidades

intermediárias entre duas consecutivas da cadeia acima. O matemático austríaco naturalizado

americano Kurt Godel (1906-1978) provou que a Hipótese Generalizada do Contínuo não é

contraditória com outros axiomas da Teoria dos Conjuntos, ou seja, não obtemos contradições

extras na matemática ao adicionar a Hipótese Generalizada do Contínuo aos demais axiomas

da Teoria dos Conjuntos.

Dessa forma, assumindo a Hipótese do Contínuo, concluímos que entre R e N não são obtidas
cardinalidades distintas das desses dois conjuntos, ou seja, qualquer subconjunto de R, ou é

equipotente a N, ou é equipotente a R.
Demonstraremos agora a generalização feita por Cantor.

Teorema 3.5.5. Seja X um conjunto não vazio qualquer. Nenhuma função f : X −→ P(X)
pode ser sobrejetora.

Demonstração. Para cada x ∈ X , f (x) é um subconjunto de X . Seja A = {x ∈ X|x ∈ / f (x)}.


Vamos mostrar que A ∈ / Im(f ). Suponhamos que A ∈ Im(f ), isto é, que existe a ∈ X tal que
f (a) = A. Dessa forma, ou a ∈ A ou a ∈ X \ A. Se a ∈ A, pela denição de A, devemos
ter a ∈
/ f (a). Mas f (a) = A, logo, contradição. Se a ∈ X \ A, devemos ter a ∈ f (a), o que
também é contradição, pois f (a) = A. Portanto, A ∈ / Im(f ), isto é, a Im(f ) é diferente do seu
contradomínio, ou seja, f não pode ser sobrejetora.

49
Capítulo 4

Números Racionais
No contexto do Ensino Básico, um número racional é apresentado como a razão entre dois

inteiros, onde razão signica divisão. Aqui deniremos razão e divisão a partir do conjunto dos

inteiros e suas propriedades já demonstradas. Utilizaremos o conceito de relação de equivalência

a partir dos inteiros, do mesmo modo que o utilizamos para denir um número inteiro a partir

dos naturais.

4.1 Construção dos números racionais

Consideremos o conjunto Z × Z∗ = {(a, b) | a ∈ Z e b ∈ Z∗ }.

Denição 4.1.1. Sejam a∈Z e b ∈ Z∗ . A relação ∼ é dada por (a, b) ∼ (c, d) quando ad = bc

Teorema 4.1.2. A relação ∼ denida acima é de equivalência.

Demonstração.

1. Reexiva: Temos que, se a∈Z e b ∈ Z∗ , ab = ba, portanto (a, b) ∼ (a, b).

2. Simétrica: Se a, c ∈ Z, b, d ∈ Z∗ e (a, b) ∼ (c, d), então, ad = bc, ou ainda, cb = da, isto é,

(c, d) ∼ (a, b).

3. Se a, c, e ∈ Z, b, d, f ∈ Z∗ , (a, b) ∼ (c, d) e (c, d) ∼ (e, f ), temos:

ad = bc ⇒ adf = bcf

cf = de ⇒ bcf = bde

Dessa forma, adf = bde, como d 6= 0, af = be, que signica, (a, b) ∼ (e, f ).

Consideremos, por um momento, nossas noções intuitivas de números racionais. Temos que,
a c
ad = bc ⇔ = , ou seja, se as divisões de a por b e c por d coincidem, podemos dizer que
b d
(a, b) ∼ (c, d),

Exemplo 4.1.3.
1. (3, 6) ∼ (1, 2) ∼ (−6, −12);

50
2. (−35, 5) ∼ (−7, 1) ∼ (14, −2).
a
Denição 4.1.4. Dado (a, b) ∈ Z × Z∗ , denotamos por (a sobre b) a classe de equivalência
b
do par (a, b) pela relação ∼ acima. Assim,
a
= {(x, y) ∈ Z × Z∗ | (x, y) ∼ (a, b)}
b
3
Exemplo 4.1.5. = {(x, y) ∈ Z × Z∗ | (x, y) ∼ (3, 6)} = {(x, y) ∈ Z × Z∗ | 6x = 3y}.
6
3 3 3
Com isso, (1, 2) ∈ , (−6, −12) ∈ e (1, 3) ∈
/ .
6 6 6
Teorema 4.1.6 (Propriedade Fundamental das Frações). Se (a, b) e (c, d) são elementos de
a c
Z × Z∗ , então = se, e somente se, ad = bc.
b d
Demonstração. Pelo item 2 do Teorema 1.1.20, temos:
a c
= ⇔ (a, b) ∼ (c, d) ⇔ ad = bc,
b d
como queríamos.

Denição 4.1.7. Denotamos por Q, e denominamos por conjunto dos números racionais, o

conjunto quociente de Z × Z∗ pela relação de equivalência ∼, isto é,


na o
∗ ∗
Q = (Z × Z )/ ∼= |a∈Z e b∈Z .
b

4.2 Operações em Q
a c
Denição 4.2.1. Sejam e números racionais, isto é, elementos de Q. Denimos operações
b d
chamadas de adição e de multiplicação, respectivamente, por:

a c ad + bc a c ac
+ = e · = .
b d bd b d bd
a c ac
Denotaremos · por .
b d bd
Exemplo 4.2.2.
2 4 2·6+3·4 24 4
1. + = = = ;
3 6 3·6 18 3
2 4 2·4 8 4
2. · = = = .
3 6 3·6 18 9
a a0 c c0
Teorema 4.2.3. As operações em Q estão bem denidas, isto é, se = 0 e = 0, então,
0 0 0 0
b b d d
a c a c a c a c
+ = 0 + 0 e · = 0 · 0.
b d b d b d b d
0 0 0 0
Demonstração. Por hipótese, ab = ba e cd = dc . Temos:
0
a c ad + bc a c0 a0 d 0 + b 0 c 0
+ = + = e .
b d bd b0 d0 b0 d0
0 0 0 0 0 0
Queremos provar que as duas somas são iguais, ou seja, que (ad + bc)b d = (a d + b c )bd, isto
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
é, adb d + bcb d = a d bd + b c bd, ou ainda, (ab )(dd ) + (cd )(bb ) = (a b)(dd ) + (bb )(c d), o que
0 0 0 0
é fato, pois, ab = ba e cd = dc . Temos também:

51
a c ac a0 c 0 a0 c 0
· = e · = .
b d bd b0 d 0 b0 d 0
ac a0 c 0
Da mesma forma, queremos provar que = 0 0, isto é, acb0 d0 = bda0 c0 , ou, (ab0 )(cd0 ) =
bd bd
(dc0 )(a0 b), que é verdadeiro, pela hipótese acima.

Teorema 4.2.4. O conjunto Q, munido das operações acima, adição e multiplicação, tem as
0 1
propriedades algébricas de Z onde o elemento neutro aditivo é e o neutro multiplicativo é .
1 1
a 0 c a c 1
Além disso, dado um racional 6= , existe em Q tal que · = , isto é, todo elemento
b 1 d b d 1
não nulo de Q possui inverso multiplicativo.

a c e
Demonstração. Sejam r, s, t ∈ Q com r= , s = e t= :
b d f
1. Comutativa da Adição:

a c ad + bc
r+s = + =
b d bd
bc + da c a
= = +
db d b
= s + r.

2. Associativa da Adição:

a c e ad + bc e
(r + s) + t = + + = +
b d f bd f
(adf + bcf ) + bde adf + (bcf + bde)
= =
bdf bdf
 
a cf + de a c e
= + = + +
b df b d f
= r + (s + t).

3. Elemento Neutro da Adição:

0 a 0 a·1+0·b a
r+ = + = = = r.
1 b 1 b·1 b

4. Elemento simétrico (ou oposto):

0 −a
Existe r0 tal que r + r0 = . Seja r0 = ,
1 b
a −a ab + (−ab) 0 0
r + r0 = + = = = .
b b bb bb 1

5. Comutativa da Multiplicação:

ac ac ca ca
rs = = = = = sr.
bd bd db db

52
6. Associativa da Multiplicação:

 a c  e  ac  e ace
(rs)t = = =
bd f bd f bdf
   
a ce a ce
= = = r(st).
b df b df

7. Elemento Neutro da Multiplicação:

1 a1 a·1 a
r· = = = = r.
1 b1 b·1 b

8. Elemento Inverso:
0 1 b
Se r 6= , existe r00 tal que rr00 = . Seja r00 = :
1 1 a
ab ab ab ab
rr00 = = = =
ba ba ab ab
11
= pelo item anterior
11
1
= .
1

9. Distributiva da Multiplicação em relação a Adição:

   
a c e a cf + de a(cf + de)
r(s + t) = + = =
b d f b df b(df )
acf + ade f ac + dae b f ac + dae b(f ac + dae)
= = = =
bdf dbf b dbf b(dbf )
bf ac + bdae ac ae ac ae
= = + = + = rs + rt.
bdbf bd bf bd bf

Proposição 4.2.5 (Cancelamento Aditivo e Multiplicativo) . Sejam r, s, t ∈ Q. Então, valem

os itens abaixo:

1. s + r = t + r ⇔ s = t;
0
2. Para r 6= , sr = tr ⇔ s = t.
1
Demonstração.

a c e
1. Sejam s= , t = e r= :
b d f

a e c e af + be cf + de
s+r =t+r ⇔ + = + ⇔ =
b f d f bf df
⇔ (af + be)(df ) = (cf + de)(bf ) ⇔ af df + bedf = cf bf + debf
⇔ f (af d + bed) = f (cf b + deb) ⇔ af d + bed = cf b + deb
a c
⇔ af d = cf b ⇔ ad = cb ⇔ = ⇔ s = t.
b d

53
a c e 0
2. Sejam s= , t = e r= 6= :
b d f 1
ae ce ae ce
sr = tr ⇔ = ⇔ = ⇔ (ae)(df ) = (ce)(bf )
bf df bf df
a c
⇔ ad = cb ⇔ = ⇔ s = t.
b d

Proposição 4.2.6. Os elementos r0 e r00 são únicos e denotam-se por −r e r−1 , chamados de

simétrico e inverso de r, respectivamente.

0
Demonstração. Suponhamos que u0 seja também um simétrico de r. Assim, u0 + r = e
1
0
r0 + r = , dessa forma, u0 + r = r0 + r, daí, pelo item 1 da Proposição 4.2.5, u0 = r 0 .
1
1 1
Suponhamos agora que u00 seja também um inverso de r. u00 r = e r00 r = , dessa
Assim,
1 1
0
forma, u00 r = r00 r, daí, pelo item 2 da Proposição 4.2.5,
00 00
u = r (r 6= para possuir inverso).
1


Denição 4.2.7. A subtração em Q, denotada por (−), é a operação denida da seguinte

forma: se r, s ∈ Q, então:

s − r = s + (−r).

Assim, a subtração s−r nada mais é do que a soma de s com o simétrico de r.

Proposição 4.2.8. Se r, s ∈ Q, então:

1. (−r)s = −rs = r(−s);

2. (−r)(−s) = rs.

Demonstração.

1.

 a c ac
(−r)s = − = − = −rs
b d bd
ca  c a
−rs = − = − = (−s)r = r(−s).
db d b

2.

 a  c 
(−r)(−s) = − −
b d
a c  a c
= − − =− − pelo item anterior
b d b d
ac   ac ac
= − − =− − = pelo item 2 da Proposição 3.3.5
bd bd bd
ac
= = rs.
bd

54
Proposição 4.2.9. Vale a distributiva da multiplicação em relação à subtração: r(s − t) =
rs − rt.
a c e
Demonstração. Sejam r= , s = e t= :
b d f
    
a c e a c e
r(s − t) = − = + −
b d f b d f
   
ac a e ac ae
= + − = + −
bd b f bd bf
ac ae
= − = rs − rt.
bd bf


−a a a −a
Proposição 4.2.10. Para (a, b) ∈ Z × Z∗ , temos que: = =− =− .
b −b b −b
Demonstração. Para (a, b) ∈ Z × Z∗ , herdando as propriedades dos inteiros temos:

(−a)(−b) = ab = −(a)(−b) = −(−a)(b),


que nos dá respectivamente:

−a a a −a
= =− =− .
b −b b −b

a
Segundo esta Proposição 4.2.10, se ∈ Q, então b pode ser tomado positivo. Este fato será
b
utilizado para denir a relação de ordem em Q a seguir.

4.3 Relação de Ordem em Q


a c a c
Denição 4.3.1. Sejam e número racionais com b, d > 0. Escrevemos ≤ quando
b d b d
a c
ad ≤ bc e dizemos que é menor ou igual a
b d
Os símbolos ≥, > e <, denem-se de forma análoga à que que zemos para a relação de

ordem em N.
Teorema 4.3.2. A relação ≤ está bem denida e é uma relação de ordem em Q.
Demonstração. Vamos mostrar inicialmente que a relação está bem denida.
a a0 a c
Seja = 0 , isto é, ab0 = a0 b. Temos que ≤ ⇒ ad ≤ bc, e, como b0 > 0, obtemos
b b b d
ab0 d ≤ bcb0 , daí, pela igualdade acima, a0 bd ≤ bcb0 , de onde concluímos que a0 d 0
≤ cb , ou seja,
0
a c
≤ .
b0 d
c c0
Do mesmo modo, como = 0 ⇒ cd0 = dc0 ,
d d
a0 c 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 a0 c0
≤ ⇒ a d ≤ cb ⇒ a dd ≤ cb d ⇒ a dd ≤ c db ⇒ a d ≤ c b ⇒ ≤ .
b0 d b0 d0
a c a0 c a0 c a0 c0 a c a0 c0
Logo, como ≤ ⇒ 0 ≤ e ≤ ⇒ 0 ≤ 0, concluímos que ≤ ⇒ 0 ≤ 0.
b d b d b0 d b d b d b d
Provemos, agora, que esta é uma relação de ordem:

55
a a a a a
1. Reexiva: se ∈ Q, claramente, = , isto é, ≤ ;
b b b b b
a c a c c a
2. Simétrica: se , ∈ Q, ≤ e ≤ , temos que ad ≤ bc e cb ≤ ad, daí, pela tricotomia
b d b d d b
a c
dos inteiros, obtemos, ad = bc, isto é = ;
b d
a c e a c c e
3. Transitiva: se , , ∈ Q, ≤ e ≤ , temos ad ≤ bc e cf ≤ ed. Multiplicando
b d f b d d f
f na primeira e b na segunda desigualdade (podemos fazer isto, pois, b, d > 0), obtemos
adf ≤ bcf e bcf ≤ bed, daí, pela transitividade dos inteiros, obtemos, adf ≤ bed, ou ainda,
a e
af ≤ be (d > 0), que signica, ≤ .
b f


Proposição 4.3.3. Se r, s, t ∈ Q, são válidos os itens seguintes:

1. r ≤ s ⇔ r + t ≤ s + t;
0
2. Se r≤s e t≥ , então rt ≤ st;
1
0
3. Se r≤s e t≤ , então rt ≥ st.
1
a c e
Demonstração. Sejam r= e s= e t= :
b d f
1.

a c
≤ ⇔ da ≤ bc ⇔ daf ≤ bcf pois f >0
b d
⇔ daf + dbe ≤ bcf + dbe por propriedade dos inteiros

⇔ d(af + be) ≤ b(cf + de) ⇔ df (af + be) ≤ bf (cf + de)


af + be cf + de a e c e
⇔ ≤ ⇔ + ≤ + .
bf df b f d f

e 0 e 0
2. Como t= e t≥ , temos ≥ ⇒ e ≥ 0. Assim:
f 1 f 1
a c
≤ ⇒ ad ≤ cb
b d
⇒ aedf ≤ cebf pois e ≥ 0 e f >0
ae ce ae ce
⇒ ≤ ⇒ ≤ .
bf df bf df

e 0 e 0
3. Como t= e t≤ , temos ≤ ⇒ e ≤ 0. Assim:
f 1 f 1
a c
≤ ⇒ ad ≤ cb ⇒ adf ≤ cbf pois f > 0
b d
⇒ aedf ≥ cebf pois e ≤ 0
ae ce ae ce
⇒ ≥ ⇒ ≥ .
bf df bf df

56
Como em Z, temos aqui:

na o na o
Q∗ = | (a, b) ∈ Z∗ × Z∗+ , Q∗+ = | (a, b) ∈ Z∗+ × Z∗+ ,
b b
na na  
o o 0
Q∗− = | (a, b) ∈ Z∗− × Z∗+ , Q− = | (a, b) ∈ Z∗− × Z∗+ ∪ ,
b b 1
na    
o 0 0
Q+ = | (a, b) ∈ Z∗+ × Z∗+ ∪ e Q= Q∗− ∪ ∪ Q∗+ .
b 1 1
Teorema 4.3.4 (Tricotomia em Q). Dados r, s ∈ Q, uma, e apenas uma, das situações seguin-

tes ocorre: ou r = s,
r < s, ou s < r.
ou
a c
Demonstração. Seja r = e s = com b, d > 0. Pela tricotomia em Z, ou ad = bc, caso em
b d
que ocorre r = s, ou ad < bc, caso em que ocorre r < s, ou bc < ad, caso em que ocorre s < r .

Além disso, só uma delas pode ocorrer.

Vamos ver agora a função imersão de Z em Q, a mesma que falamos, de N em Z, na

contrução dos inteiros.


n
Teorema 4.3.5. A função i : Z −→ Q, denida por i(n) = é injetora. Além disso, ela
1
preserva as operações e a relação de ordem de Z em Q no seguinte sentido:

1. i(m + n) = i(m) + i(n);

2. i(mn) = i(m)i(n);

3. Se m ≤ n, então i(m) ≤ i(n).


m n
Demonstração. Provemos inicialmente que f é injetora. Se i(m) = i(n), temos que = ,
1 1
isto é, m · 1 = n · 1, ou ainda, m = n, logo, i(m) = i(n) ⇒ m = n, portanto, i é injetora.

m+n 1·m+m·1 m n
1. i(m + n) = = = + = i(m) + i(n);
1 1·1 1 1
mn m·n mn
2. i(mn) = = = = i(m)i(n);
1 1·1 1 1
m n
3. m≤n⇒m·1≤n·1⇒ ≤ ⇒ i(m) ≤ i(n).
1 1

nn o
Novamente temos um homomorsmo injetor, de modo que, o conjunto i(Z) = |n∈Z
1
é uma cópia algébrica de Z em Q. Como existe uma cópia algébrica de N em Z, essa imersão

de Z em Q mostra que Q é innito.

Faremos agora uma série de demonstrações para conseguirmos chegar ao teorema que garante

que Q é enumerável. Antes de enunciar a próxima proposição, devemos lembrar que:

X \ (∪n∈N An ) = ∩n∈N (X \ An ) (4.1)

X \ (∩n∈N An ) = ∪n∈N (X \ An ). (4.2)

57
Estes resultados estão demonstrados em [9].

Lema 4.3.6. Todo subconjunto innito de N é enumerável.

Demonstração. Seja X um subconjunto innito de N. Pelo Princípio da Boa Ordem, X possui

menor elemento, digamos x0 . Como X Y0 = X \ {x0 } é não vazio.


é innito, o conjunto

Seja agora x1 o menor elemento de Y0 . Como X é innito, o conjunto Y1 = X \ {x0 , x1 } é

não vazio. Obtidos x0 , x1 , x2 , . . . , xn (n ∈ N) dessa forma acima, obtemos xn+1 como sendo o

menor elemento de Yn = X \ {x0 , x1 , x2 , . . . , xn }. A existência do menor elemento xn+1 se deve

novamente ao Princípio da Boa Ordem, dado que Yn é não vazio para todo natural n (pois X

é innito).

Temos de (4.3) que X \ (∪n∈N An ) = ∩n∈N (X \ An ) = ∩n∈N Yn , onde, neste caso, An =


{x0 , x1 , x2 , . . . , xn }.
Se existisse x ∈ X \ (∪n∈N An ), esse x também seria elemento de ∩n∈N Yn e, como tal, deveria

ser maior do que x0 , por estar em Y0 , deveria ser maior do que x1 por estar em Y1 e, assim

sucessivamente, x deveria ser maior do que xn para todo n ∈ N. Dessa forma, o conjunto

innito ∪n∈N An = {x0 , x1 , x2 , . . . , xn , . . .} estaria contido no conjunto nito {1, 2, 3, . . . , x}, o

que é um absurdo. Portanto, não existe x ∈ X \ (∪n∈N An ), isto é, X \ (∪n∈N An ) = ∅, ou ainda,

X = ∪n∈N An = {x0 } ∪ {x0 , x1 } ∪ {x0 , x1 , x2 } ∪ . . . = {x0 , x1 , x2 , . . . , xn , . . .}, o que signica que


X é enumerável.


Enunciaremos um resultado bastante interessante que pode ser demonstrado com as propri-

edades de Z, prova esta que pode ser encontrada em [7], ele é chamado Teorema Fundamental

da Aritmética: todo número natural maior que 1 pode ser expresso como produto de números

primos. Além disso, essa fatoração é única, a menos da ordem dos fatores.

a
Lema 4.3.7. Todo número racional positivo (a, b > 0), pode ser escrito, de modo único,
b
m
como uma fração irredutível, isto é, na forma , onde m e n são primos entre si, ou seja, não
n
possuem fatores primos em comum.

Demonstração. Seja km uma decomposição de a e kn


b, onde k é o
uma decomposição de
a km a m
produto de todos os fatores primos comuns a a e a b. Sendo assim, = , daí, = ,
b kn 0 b n
m m
onde m e n são primos entre si, portanto, é uma fração irredutível. Seja uma fração
n n0
m
irredutível igual a :
n
m0 m
0
= ⇒ m0 n = mn0 .
n n
Pela unicidade da decomposição em fatores primos, m0 deve conter os fatores primos de m e
0 0 0
vice-versa e n deve conter os fatores primos de n e vice-versa ((pois m e n são primos entre
0 0
si, assim como m e n), logo, m =m e n = n.


Proposição 4.3.8. Q∗+ é enumerável.

58
Demonstração. Consideremos os números racionais escritos na forma irredutível,
 0  como no lema
m m m

anterior. Seja f : Q+ −→ N dada por f = 2m · 3n . Se f =f 0
m n
, então, 2 · 3 =
n n n
0 0
2m · 3n , daí, pelo Teorema Fundamental da Aritmética e pela a unicidade da representação
m 0 0
de frações na forma irredutível, dada pela proposição acima, 2 = 2m e 3n = 3n , ou seja,
0
m m
m = m0 e n = n0 , que nos garante que, = 0 . Logo, f é injetora e tem como imagem
n n
um subconjunto innito de N, que é, pelo Lema 4.3.6, enumerável. Daí segue o que queríamos

provar.

Proposição 4.3.9. A união de dois conjuntos enumeráveis é enumerável. Além disso, a união

de uma família nita de conjuntos enumeráveis é enumerável.

Demonstração. Sejam A e B dois conjuntos enumeráveis. Claramente, ou A∩B = ∅ ou

A ∩ B 6= ∅.
Suponhamos primeiro que A ∩ B = ∅:
ComoA é enumerável, existe f1 : A −→ Nbijetora. Temos que existe também uma função

g1 : N −→ Np (onde Np são os números naturais pares), dada por g1 (n) = 2n para todo n ∈ N.
Como para todo 2n existe n, tal que g(n) = 2n e 2n = 2m ⇔ n = m, esta função é bijetora,

sendo assim, podemos ter h1 = g1 ◦ f1 : A −→ Np , dada por h1 (x) = 2f (x), bijetora. Do mesmo

modo, como B é enumerável, existe f2 : B −→ N bijetora e também g2 : N −→ Ni (onde Ni

são os números naturais ímpares), dada por g2 (n) = 2n + 1 para todo n ∈ N, que é claramente

bijetora. Desta forma, obtemos h2 = g2 ◦ f2 : B −→ Ni , dada por h2 (x) = 2f2 (x) + 1, bijetora.

Sendo assim, f : (A ∪ B) −→ (Np ∪ Ni ), dada por


(
h1 (x) se x ∈ A,
f (x) =
h2 (x) se x ∈ B.

é bijetora. Como A ∩ B = ∅, f está bem denida e, como Np ∪ Ni = N, A ∪ B é enumerável.


Seja agora, A ∩ B 6= ∅:

Seja C = A \ B , um conjunto tal que A ∪ B = C ∪ B . Temos B ∩ C = ∅ por construção,

portanto, pelo que já foi demonstrado acima, C ∪ B é enumerável, logo, A ∪ B também o é.


S
Sejam agora A1 , A2 , . . . , An conjuntos enumeráveis. Precisamos provar que k∈{1,2,...,n} Ak
é enumerável. Provemos por indução nita. Já sabemos que se n = 2 isto é verdade, então
S S
suponhamos que k∈{1,2,...,n−1} Ak é enumerável e provemos que k∈{1,2,...,n} Ak também é. De
S S
fato, como k∈{1,2,...,n−1} Ak é enumerável e An também, obviamente, k∈{1,2,...,n−1} Ak ∪ An é
enumerável, como queríamos.

Proposição 4.3.10. A união de um conjunto nito com um conjunto enumerável é enumerável.


Demonstração. Seja X um conjunto enumerável, isto é, existe g : N −→ X , bijetora. Seja
também Y = {y1 , y2 , . . . , yn } com n ∈ N um conjunto nito qualquer. Temos que, ou X ∩Y = ∅

ou X ∩ Y 6= ∅.

Suponhamos primeiro que X ∩ Y = ∅:

Assim, podemos ter f : N −→ X ∪ Y dada como segue:

59
(
yk se 1 ≤ k ≤ n,
f (k) =
g(k − n) se (n + 1) ≤ k.
Esta função está bem denida, pois X ∩Y = ∅ e, claramente, é bijetora, portanto, X ∪Y é

enumerável.

Seja agora, X ∩ Y 6= ∅:
Seja C = X \ Y , um conjunto tal que X ∪ Y = C ∪ Y . Temos Y ∩ C = ∅ por construção,
portanto, pelo que já foi demonstrado acima, C ∪ Y é enumerável, logo, X ∪ Y tmabém é.

Teorema 4.3.11. Q é enumerável.


Demonstração. Se escrevermos Q como Q∗− ∪ {0} ∪ Q∗+ , pelas Proposições 4.3.9 e 4.3.10 con-

cluímos diretamente que Q é enumerável.

O conjunto dos números racionais está munido das duas operações, adição e multiplicação,

estudadas no decorrer deste capítulo, além da subtração e divisão, que são denidas a partir

das duas primeira e simbolizadas por (−) e :, respectivamente. A subtração já foi denida
anteriormente como: se r, s ∈ Q, r − s = r + (−s). Já a divisão, é dada da seguinte forma:

Denição 4.3.12. Sejam r, s ∈ Q com s 6= 0. Dizemos que r dividido por s é dado por

r : s = r · s−1 .

Olhando a denição exatada de operação, podemos ver que, a divisão não é uma operação

em Q, dado que o seu domínio é Q × Q∗ e não Q × Q.


a b a
Proposição 4.3.13. Se a, b ∈ Z, com b 6= 0, então : = .
1 1 b
a b a 1 a·1 a
Demonstração. Pela Denição 4.3.12, : = · = = .
1 1 1 b 1·b b


Dessa forma, identicando Z com sua cópia algébrica i(Z) em Q, a igualdade da proposição
a
acima se escreve a:b= .
b
a c c 0 a c ad
Proposição 4.3.14. Se , ∈ Q, com 6= , então : = .
b d d 1 b d bc
a c a d ad
Demonstração. : = · = .
b d b c bc

a
b a c
É usual, nos textos elementares de matemática, adotar-se a notação c para : , exten-
d
b d
dendo a notação da proposição anterior.

Proposição 4.3.15. Admitindo a identicação de Z com i(Z), para r, s racionais arbitrários,

valem:

1. Se rs = 0, então s=0 ou r = 0;

60
2. Se r>0 e s > 0, então rs > 0;

3. Se r>0 e s < 0, então rs < 0;

4. Se r<0 e s < 0, então rs > 0;

5. Se r > 0, então r−1 > 0;

6. Se r < s, então r < (r + s) · 2−1 < s;


a c
Demonstração. Sejam r= e s= .
b d
c
1. Suponhamos 6= 0, ou seja, c 6= 0:
d
ac ac
= = 0 ⇒ ac = 0 ⇒ a = 0,
bd bd
a a c
portanto, = 0. Da mesma forma, supondo 6= 0, concluímos que = 0, como
b b d
queríamos;

a c ac
2. >0⇒a>0 e > 0 ⇒ c > 0, sendo assim, ac > 0, logo > 0;
b d bd
a c ac
3. >0⇒a>0 e < 0 ⇒ c < 0, sendo assim, ac < 0, logo < 0;
b d bd
a c ac
4. <0⇒a<0 e < 0 ⇒ c < 0, sendo assim, ac > 0, logo > 0;
b d bd
a b
5. > 0 ⇒ a > 0. Temos que b > 0, por convenção, sendo assim, > 0, isto é, r−1 > 0;
b a
6. Se r < s, temos que, 2r < r + s e r + s < 2s,
2r < r + s < 2s daí, e assim,

a a c c a −1 a
 c c
2· < + <2· ⇒ <2 + < ,
b b d d b b d d

isto é, r < 2−1 (r + s) < s.

Teorema 4.3.16. Q não é bem ordenado.


Demonstração. Devemos provar que existem subconjuntos de Q nãon vazios, limitadosoinferior-
a a
mente, mas que não possuem elemento mínimo. De fato, seja X = ∈ Q | 2−1 < .
b b
−1
Temos que X é limitado inferiormente por 2 e X 6= ∅, dado que 1 ∈ X . Suponhamos que
c c a a
X possua um elemento mínimo, digamos . Sendo assim ≤ para todo ∈ X . Como 2−1
d d b b
−1 c
é limitante inferior de X , 2 < , daí, pelo item 6 da Proposição 4.3.15:
d
−1 c −1

−1 c  −1 c
2 < ⇒2 < 2 + 2 < ,
d d d

−1 c   c  c
assim, 2 + 2−1 ∈ X e 2−1 + 2−1 < , o que é uma contradição com a minima-
d d d
c
lidade de . Logo, X não possui elemento mínimo.
d


61
Acabamos de ver que Q não é um conjunto bem ordenado como Z, porém, ele possui, além

de todas as propriedades aritméticas de Z, a propriedade de que todo elemento não nulo possui
inverso.

Denição 4.3.17. Sejam (K, +, ·) um conjunto munido de duas operações. Dizemos que K é

um corpo, se:

1. + e · são associativas;

2. + e · possuem elementos neutros distintos;

3. + possui elemento simétrico e · elemento inverso, para todo elemento distinto do neutro

da adição;

4. + e · são comutativas;

5. · é distributiva em relação a +.

E ainda, se este corpo tiver uma relação de ordem compatível com suas operações, ele é

chamado de corpo ordenado.

Um exemplo de tal corpo ordenado é Q. Vejamos a seguir uma propriedade de corpos

ordenados em geral.

Proposição 4.3.18. Seja K um corpo ordenado, cujo elemento neutro de + é representado


2
por 0 e a relação de ordem é denotada por ≤. Então 0≤x para todo x ∈ K.

Demonstração. Se x < 0, temos que x2 > 0, se x = 0, então x2 = 0 e, se x > 0, temos que


2 2
x > 0, logo, para todo x ∈ K , x ≥ 0.

Teorema 4.3.19. Q não possui elemento máximo e nem mínimo.


m
Demonstração. Suponhamos que exista um elemento máximo em Q, digamos, mx = , isto é,
n
a m a m m+n m m+n
≤ para todo ∈ Q. +1 =
Claramente, ∈ Q, além disso, < , o que
b n b n n n n
contradiz a maximalidade de mx , portanto Q não possui um elemento máximo. Procedendo da

mesma forma, obtemos que Q não possui um elemento mínimo.

Já vimos que um conjunto X ⊂ Q diz-se limitado superiormente quando existe algum b ∈ Q


tal que x≤b para todo x ∈ X . Neste caso, diz-se que b é uma cota superior de X . Vejamos,
partir disso a seguinte denição:

Denição 4.3.20. Seja X ⊂ Q limitado superiormente e não vazio. Um número b ∈ Q, chama-


se o supremo do conjunto X quando é a menor das cotas superiores de X , isto é, quando é
a cota superior mínima de X . Em outras palavras, b é o supremo de X quando cumpre as
seguintes condições:

1. Para todo x ∈ X, tem-se x ≤ b;

2. Se c∈Q é tal que x≤c para todo x∈X então b ≤ c;

62
Escrevemos b = sup X para indicar que b é o supremo do conjunto X. O ínmo de um

conjunto é dado analogamente, sendo a maior das cotas inferiores (cota inferior máxima de X)
e, escreve-se a = inf X , quando a é o ínmo do conjunto X.

Temos que, se existe o supremo b de X, então este supremo é único. De fato, suponhamos

que existam dois supremos b2 . Dessa forma, x ≤ b1 para todo x ∈ X e, se c ∈ Q tal que
b1 e

x ≤ c para todo x ∈ X , então b1 ≤ c. Analogamente x ≤ b2 para todo x ∈ X e, se c ∈ Q tal


que x ≤ c para todo x ∈ X , então b2 ≤ c. Daí, como b1 , b2 ∈ Q, então b1 ≤ b2 e b2 ≤ b1 , logo

b1 = b2 .

Denição 4.3.21. Seja K um corpo ordenado. Dizemos que K é arquimediano se, dados

a, b ∈ K , existe n∈N tal que n · a > b;

Teorema 4.3.22.
1. O conjunto N⊂Q não é limitado superiormente;
 
1
2. O ínmo do conjunto X= | n ∈ N∗ é igual a 0;
n
3. Q é um corpo arquimediano.

Demonstração.

a a
1. Suponhamos que exista ∈Q ≥ n para todo n ∈ N. Como, por convenção,
tal que
b b
a
b > 0, temos que a, b ∈ Z∗+ , isto ∗
é, a, b ∈ N . Dessa forma, b ≥ 1 e, assim, a ≥ .
b
a ∗ a
Se a > , como a ∈ N , encontramos uma contradição com o fato de que é um limitante
b b
superior de N em Q.
a a ∗
Se a = , então a + 1 > a = e, como a ∈ N ⇒ a + 1 ∈ N, encontramos uma
b b
a
contradição com o fato de que é um limitante superior de N em Q. Logo, N não é
b
limitado superiormente em Q;

2. Claramente, 0 é uma cota inferior de X. Basta então provar que nenhum c > 0 é cota
1 1
inferior de X. Dado c > 0, existe, pelo item 1, um número natural n > , daí, < c,
c n
como queríamos;

b
3. Dados a, b ∈ Q, usamos 1 para obter n∈N tal que n> . Então, n · a > b.
a


As três propriedade acima são equivalentes. Vale ressaltar que estas propriedades são válidas

desta mesma forma, não só para Q, mas também para todo corpo ordenado.

63
Capítulo 5

Números Reais
Os números reais foram construídos de duas formas diferentes, a partir dos racionais. Uma

delas foi por Classes de Equivalência de Sequência de Cauchy e foi dada por Cantor. A outra

foi através dos Cortes de Dedekind. Faremos aqui, esta última, que foi apresentada por Julius

Wilhelm Richard Dedekind, inspirado na Teoria das Proporções de Eudoxo.

Quando se fala deste conjunto no contexto escolar, diz-se que nem todos os pontos da reta

correspodem a números racionais, sendo que a esses pontos correspondem a números chamados

irracionais. Geralmente isto é introduzido exemplicando a diagonal do quadrado de lado 1.


Neste mesmo contexto, admite-se que a representação decimal dos números racionais é

sempre periódica e toda representação decimal periódica representa um número racional. Sendo

assim, deni-se número irracional como sendo aqueles que possuem representação decimal não

periódica. Dessa forma, chama-se conjunto dos números reais aquele constituído pelos racionais

e irracionais.

Estas são formas nas quais os números reais são abordados na matemática escolar, entre-

tanto, faremos aqui uma construção rigorosa deste conjunto a partir dos números racionais com

suas propriedades, assim como foi feito nos conjuntos anteriores.

Vamos, inicialmente, denir a noção de corte de Dedekind, considerar o conjunto de todos os

cortes, denir a adição e multiplicação nele e, em seguida, mostrar que ele possui as propriedades

aritméticas de Q e mais uma propriedade que Q não possui. Chamaremos este conjunto de

cortes de conjunto dos números reais, que será denotador por R.

5.1 Cortes de Dedekind

Denição 5.1.1. Um conjunto α de números racionais diz-se um corte se satiszer as seguintes


condições:

1. α 6= ∅ e α 6= Q;

2. Se r∈α e s < r (s racional) então s ∈ α;

3. Em α não existe elemento máximo.


 
3
Exemplo 5.1.2. O conjunto A= x∈Q|x< é um corte:
5
1. A 6= ∅, pois 0∈A e A 6= Q, pois 1∈Q e 1∈
/ A;

64
3 3
2. Seja r∈A e s < r, assim, s<r< , logo s< , isto é, s ∈ A;
5 5
3. Suponhamos que exista uma máximo em A, digamos m. Sendo assim,
 r ≤ m para todo
3 3 −1 3
r ∈ A. Sabemos que m< , portanto, pela Proposição 4.3.15, m< m+ 2 < ,o
5 5 5
que contradiz a maximalidade de m. Logo, A não possui máximo.

Portanto, A é um corte.
 
3
Exemplo 5.1.3. O conjunto B= x∈Q|x> não é um corte:
5
1. B 6= ∅, pois 1∈B e B 6= Q, pois 0∈Q e 0∈
/ B;

2. Seja r∈B e s < r. Tomemos r=1 e s = 0, assim, s < r, entretanto, s∈


/ B.

Logo, B não é um corte.


 
3
Exemplo 5.1.4. O conjunto C= x∈Q|x≤ não é um corte:
5
1. C 6= ∅, pois, 0∈C e C 6= Q pois 1∈Q e 1∈
/ C;
3 3
2. Seja r∈C e s < r, assim, s<r≤ , logo s< , isto é, s ∈ C;
5 5
3 3
3. Temos que x≤ para todo x ∈ C. Sendo assim, podemos ver que m= , é o máximo
5 5
deste conjunto, por denição de máximo.

Portanto, C não é um corte.


 
8
Exemplo 5.1.5. O conjunto D = x ∈ Q | −3 < x < não é um corte:
5
1. D 6= ∅, pois, 0∈D e D 6= Q pois 2∈Q e 2∈
/ D;
8
2. Seja −3 < r < e s < r. Tomemos s = −4 e r = 0. Assim, s < r, entretanto, s∈
/ D.
5
Logo, D não é um corte.

Exemplo 5.1.6. E = Q \ {0} não é um corte.


1. E 6= ∅, pois, 1∈E e E 6= Q pois 0∈Q e 0∈
/ E;

2. Seja r∈E e s < r. Tomemos s=0 e r = 1. Assim, s < r, entretanto, s∈


/ E.

Sendo assim, E não é um corte.


 
3
Exemplo 5.1.7. F = 1, 4,
5
1. F 6= ∅, pois, 1∈F e F 6= Q pois 0∈Q e 0∈
/ F;

2. Seja r∈F e s < r. Tomemos s=0 e r = 1. Assim, s < r, entretanto, s∈


/ F.

Portanto, F não é um corte.

65
Proposição 5.1.8. Sejam α um corte e r ∈ Q. Então, r é cota superior de α se, e somente

se, r ∈ Q \ α.

Demonstração. (⇒) Se r é uma cota superior de α, então x ≤ r, para todox ∈ α, entretanto,


pelo item 3 da denição de corte, α não possui elemento máximo, portanto r não está em α,

r ∈ Q \ α.
isto é,

(⇐) Seja r ∈ Q \ α e s ∈ α. Temos que, ou r ≥ s, ou r < s. Se o segundo caso ocorre, pelo

item 2 da denição de corte, r ∈ α, o que é uma contradição com a hipótese, logo, r ≥ s, isto

é, r é uma cota superior de α.




Proposição 5.1.9. Se r∈Q e α = {x ∈ Q | x < r} então α é um corte e r é a menor cota

superior de α.

Demonstração.

1. α 6= ∅, pois x=r−1∈α e α 6= Q pois r∈Q e r∈


/ α;

2. Sejam s∈α e t < s. Assim, t < s < r, logo t < r, ou seja, t ∈ α;

3. Suponhamos que exista s∈α


x ≤ s para todo x ∈ α. Como s ∈ α, então s < r,
tal que
−1
daí, s < (s + r)2 < r. Como (s + r)2−1 ∈ Q e (s + r)2−1 < r, então (s + r)2−1 ∈ α,
o que contradiz a maximalidade de s, portanto, α não possui um elemento máximo.

Seja s∈Q uma cota superior de s < r, o que implica que s ∈ α, assim s
α. Suponhamos que

é um elemento máximo de α, contradizendo o fato de α ser corte. Logo, r ≤ s para toda cota

superior s de α, ou seja, r é a menor cota superior de α.

Denição 5.1.10. Os cortes do tipo da proposição anterior são chamados cortes racionais e

se representam por r∗ .

Proposição 5.1.11. Todo corte que possui cota superior mínima é racional.

Demonstração. Seja α r, isto é, x ≤ r para todo x ∈ α.


um corte com cota superior mínima

Temos que r ∈ / α pois, caso contrário, r seria máximo de α, o que não pode acontecer, por
denição de corte, sendo assim x < r para todo x ∈ α. Como r é a mínima das cotas superiores

de α, temos que, qualquer s ∈ Q, tal que s < r , não é cota superior de α, isto é, pertence a α.

Logo, se r ∈ Q é cota superior mínima de α, então α = {x ∈ Q | x < r} , ou seja, α é racional.

Faremos a seguir um exemplo importante para concluir a próxima demonstração.

Exemplo 5.1.12. A equação x2 = 2 não tem solução em Q. De fato, só precisamos mostrar

que o número x o qual é solução desta equação não é um número racional. Suponhamos por

absurdo que seja.


a a
Se tal x é racional então ele tem forma com a ∈ Z, b ∈ Z e b 6= 0, isto é, x= , a ∈ Z,
b b
b ∈ Z∗ e ainda podemos admitir, sem perda de generalidade, que m.d.c : (a, b) = 1. Elevando
a a2
ao quadrado ambos os membros da equação x= , obtemos 2 = 2 , ou seja, a2 = 2b2 . Isto
b b

66
implica que a2 é par, daí, podemos armar que a também é par (quadrado de um número par

é um número par e o quadrado de um núumero ímpar é um número ímpar). Vamos indicar a

por a = 2m.
2 2 2 2 2 2 2
Agora, a = 2b ⇒ (2m) = 2b ⇒ 2m = b . Isto signca que b é par, novamente,

podemos armar que b também é par. Concluímos que a é par e b é par, logo, o m.d.c(a, b) = 2,

o que é uma contradição, uma vez que o m.d.c(a, b) = 1. Portanto, x ∈


/ Q.

Teorema 5.1.13. Seja α = {x ∈ Q | x ≤ 0} ∪ {x ∈ Q | x2 < 2}. Então α é um corte que não

é racional.

Demonstração.

1. α 6= ∅ pois 0∈α e α 6= Q pois 2∈Q e 2∈


/ α.

2. Sejam r∈α e s ∈ Q, s < r.

• Se s≤0 então s ∈ α;
• Se s>0 e s < r, então s2 < r2 < 2, isto é, s ∈ α;

3. Para cada r ∈ α é possível encontrar um racional s ∈ α tal que r < s. De fato, suponhamos

que r ∈ α, logo r2 < 2.

• Se r ≤ 0, então s=1∈α e r < s;


2 − r2
• Se r > 0 e r2 < 2, tomemos h ∈ Q, 0 < h < 1 e h < (existe h nessas condições,
2r + 1
pois Q é arquimediano). Seja s = r + h, logo s ∈ Q, s > r .
Temos s2 = r2 + h2 + 2rh = r2 + (h + 2r)h. Como 0 < h < 1 , s2 < r2 + (1 + 2r)h,
2 − r2 2 2 2
daí, como h < , s < r + (2 − r ) = 2. Portanto, s ∈ α e r < s.
2r + 1
Sendo assim, α não possui um elemento máximo.

Disto temos que α é um corte.

Veriquemos agora queα não possui cota superior mínima. Os racionais que não pertencem
a α são os positivos que têm quadrado maior ou igual a 2, e sabemos que não existe racional

cujo quadrado é igual a 2, pelo Exemplo 5.1.12. Sendo assim, q é uma cota superior de α se

q > 0 e q ∈ Q tal que q 2 > 2. Mostraremos que, para cada cota superior p, encontraremos
2
outra cota superior q tal que q < p. De fato, seja p uma cota superior, isto é p ∈ Q e p > 2.
2
p −2
Seja q = p − . Dessa forma, 0 < q < p e
2p
2 2
p2 − 2 p2 − 2 p2 − 2
   
2 2
q = p − 2p + =2+ > 2.
2p 2p 2p

Portanto, q<p e q 2 > 2, como queríamos.

Teorema 5.1.14. Seja α um corte. Se p∈α e q∈


/ α, então p < q.

67
Demonstração. Uma vez que p e q são números racionais e a relação de ordem usual em Q é

uma ordem total podemos armar que p=q ou p<q ou p > q.


Se p = q, então q ∈ α, o que contradiz a hipótese. Se p ∈ α e q<p segue da condição 2

da denição de corte que q ∈ α, mas isto contradiz, novamente, nossa hipótese. Portanto, nos

resta que q > p.




Desta forma, os elementos de um corte α serão, daqui por diante, chamados números infe-

riores de α, enquanto que os racionais que não estão em α serão chamados números superiores

de α.
Denotaremos, a partir daqui, por C o conjunto de todos os cortes.

5.2 Relação de ordem em C

Inicialmente, deniremos em C uma relação de ordem.

Denição 5.2.1. Sejam α, β ∈ C . Dizemos que α é menor do que β e escrevemos α < β


quando β \ α 6= ∅. Em outras palavras, α<β se existe um racional p tal que p∈β e p∈
/ α.

Exemplo 5.2.2.
 ∗  ∗
4 4
1. 5∗ > , pois 1 ∈ 5∗ \ ;
5 5
1
2. 1∗ > 0∗ pois ∈ 1∗ \ 0∗ ;
2
1
3. (−1)∗ < 0∗ , ∗ ∗
pois − ∈ 0 \ (−1) ;
2
18
4. Se α = {x ∈ Q+ | x2 < 2} ∪ Q∗− , então α < 2∗ , pois ∈ 2∗ \ α.
10
Denição 5.2.3. Seα ∈ C e α > 0∗ , α chama-se corte positivo. Se α < 0∗ , é chamado de

corte negativo. Se α ≥ 0∗ , α é não negativo e se α ≤ 0∗ , ele chama-se corte não positivo.

Proposição 5.2.4. Para α, β ∈ C , valem as equivalências:

1. α<β⇔α⊂β e α 6= β ;

2. α ≤ β ⇔ α ⊂ β.

Demonstração.

1. (⇒) α < β ⇒ existe p ∈ β tal que p ∈ / α. Claramente α 6= β . Suponhamos que


α * β , isto é, existe p ∈ α tal que p ∈
/ β , o que é uma contradição, pois por denição, se
isto ocorre, então β < α. Logo α ⊂ β .

(⇐) Se α ⊂ β e α 6= β , então existe p em β tal que p não está em α, ou seja, α < β ;

2. (⇒) α ≤ β ⇒ α < β ou α = β . Se α < β , pelo item anterior α ⊂ β . Se α = β,


obviamente α ⊂ β .

(⇐) α ⊂ β implica, pelo item anterior, que α < β , ou seja, α ≤ β .

68


Teorema 5.2.5 (Tricotomia) . Sejam α, β ∈ C , então uma e somente uma das possibilidades

a seguir ocorre:

α=β ou α<β ou β < α.

Demonstração. Se α = β, temos por denição de igualdade de conjuntos que, α ⊂ β, daí pelo

item 2 da Proposição 5.2.4,α ≤ β . Se α < β , obteríamos uma contradição, pois, pelo item 1
desta mesma proposição teríamos, α 6= β . Portanto, a igualdade α = β , exclui as outras duas

possibilidades. Temos ainda que, α < β ou β < α excluem α = β , pelo item 1 da Proposição

5.2.4. Veriquemos agora que as posibilidades α < β e β < α se excluem mutuamente. Para

isto, suponhamos que α < β e β < α ocorrem ao mesmo tempo.

(
α < β ⇒ α ⊂ β e α 6= β,
β < α ⇒ β ⊂ α e β 6= α.

Dessa forma temos α ⊂ β, β ⊂ α e α 6= β , o que é um absurdo, por denição de igualdade de

conjunto.

Devemos mostrar ainda que uma das três deve ocorrer. Temos que α=β ou α 6= β . Se
α=β não há o que provar. Se α 6= β , então α \ β 6= ∅ ou β \ α 6= ∅. No primeiro caso, β < α

e, no segundo caso, α < β, por denição.

Teorema 5.2.6. A relação ≤ é uma relação de ordem em C.

Demonstração.

1. Reexiva: Seja α ∈ C. Obviamente α = α, portanto, α ≤ α;

2. Antissimétrica: Sejam α, β ∈ C , α ≤ β e β ≤ α. Pela tricotomia, α = β;

3. Transitiva: Sejam α, β, γ ∈ C , α ≤ β e β ≤ γ.
(
α ≤ β ⇒ α ⊂ β,
β ≤ γ ⇒ β ⊂ γ.

Temos que a inclusão de conjuntos é transitiva, portanto, α⊂β e β ⊂γ implicam que

α ⊂ γ, daí α ≤ γ.

5.3 Operações em C

Iniciaremos esta seção enunciando um teorema fundamental para a denição da operação

de soma nos cortes.

Teorema 5.3.1. Sejam α, β ∈ C . Se γ = {r + s | r ∈ α e s ∈ β}, então γ ∈ C.

Demonstração. Devemos mostrar que γ ∈ C , isto é, provar que satisfaz as três considições para
ser um corte:

69
1. Como α 6= ∅ e β 6= ∅, claramente γ 6= ∅. Sejam t ∈ Q \ α e u ∈ Q \ β . Sendo assim, t > r
para todo r ∈ α e u > s para todo s ∈ β , daí, t + u > r + s, para todo r ∈ α e para todo

s ∈ β . Sendo assim, t + u ∈ / γ , logo γ 6= Q.

2. Sejam r ∈ γ e s ∈ Q com s < r. Como r ∈ γ , temos que r = p + q com p ∈ α e q ∈ β , daí,


s < p + q . Sendo assim, podemos tomar q 0 < q (como β é corte, q 0 ∈ β ) tal que s = p + q 0 ,
portanto, s ∈ γ .

3. Devemos mostrar que γ não possui elemento máximo, isto é, para todo r ∈ γ , existe s ∈ γ
tal que r < s. De fato, temos que r = p + q com p ∈ α e q ∈ β . Como existe p0 ∈ α tal
que p < p0 , o racional s = p0 + q ∈ γ e é maior do que r.

Denição 5.3.2. Denotamos por α+β e chamamos soma de α e β, o corte γ do teorema

anterior, isto é,

α + β = {r + s | r ∈ α e s ∈ β}.

Teorema 5.3.3. A adição em C é comutativa, associativa e tem 0∗ como elemento neutro.

Demonstração.

1. Comutativa: sejam α, β ∈ C . Devemos mostrar que α + β = β + α. De fato, tomemos


r + s ∈ α + β tal que r ∈ α e s ∈ β . Já vimos que a comutativa é válida em Q, portanto,
r+s = s+r. Sabemos que s+r ∈ β +α com s ∈ β e r ∈ α, sendo assim, r+s ∈ β +α. Daí,
α + β ⊂ β + α. Da mesma forma podemos concluir que β + α ⊂ α + β , logo, α + β = β + α.

2. Associativa: sejam α, β, γ ∈ C . Devemos mostrar que α + (β + γ) = (α + β) + γ . De fato,


tomemos r + (s + t) ∈ α + (β + γ) tal que r ∈ α, s ∈ β e t ∈ γ . Já vimos que a associativa é

válida em Q, portanto, r + (s + t) = (r + s) + t. Sabemos que (r + s) + t ∈ (α + β) + γ com

r ∈ α, s ∈ β e t ∈ γ , sendo assim, r+(s+t) ∈ (α+β)+γ . Daí, α+(β +γ) ⊂ (α+β)+γ . Da


mesma forma, podemos concluir que, (α+β)+γ ⊂ α+(β+γ), logo, α+(β+γ) = (α+β)+γ .

3. Elemento Neutro da Adição: devemos mostrar que α + 0∗ = α. Seja r = p + q ∈ α + 0∗


∗ ∗
com p ∈ α e q ∈ 0 , isto é, q < 0. Assim, r < p, portanto, r ∈ α. Logo, α + 0 ⊂ α.

Tomemos agora r ∈ α e s ∈ α, tal que r < s. Podemos expressar r como r = s + (r − s),


∗ ∗ ∗
onde r − s < 0 e, portanto, (r − s) ∈ 0 . Logo, r ∈ α + 0 e assim, α ⊂ α + 0 , de onde

segue que, α = α + 0 .

Lema 5.3.4. Sejam α∈C e r ∈ Q∗+ . Então existem números racionais p e q tais que p ∈ α,
q∈
/ α, q não é cota superior mínima de α e q − p = r.

Demonstração. Tomemos s arbitrário em α e consideremos a sequência sn = s + nr para

n = 0, 1, 2, . . .. Seja A = {n ∈ N | sn ∈ α}. Temos que:

• A ⊂ N, por denição de A;

• A 6= ∅, pois 0 ∈ A;

70
• A é nito, por consequência das condições 2 e 3 para α ser corte.

Portanto podemos armar que o conjunto A assume um máximo m. Isto acarreta que sm ∈ α
e sm+1 ∈
/ α.
Se s + (m + 1)r não for cota superior mínima de α, devemos tomar p = s + mr e q =
s + (m + 1)r, daí, q − p = r. Se s + (m + 1)r for cota superior mínima de α, devemos tomar
r r
p = s + mr + e q = s + (m + 1)r + , daí, q − p = r.
2 2


Teorema 5.3.5. Dado α um corte, existe um único corte β tal que α + β = 0∗ . Como nos

casos dos inteiros e racionais, tal β denota-se por −α e se chama simétrico (ou oposto) de α.
0
Demonstração. Provemos inicialmente a unicidade. Suponhamos que α + β = α + β = 0∗ :
0 0 0 0
β = β + 0∗ = β + (α + β) = (β + α) + β = 0∗ + β = β.

Provemos agora a existência e um corte β que satisfaça α + β = 0∗ . O primeiro passo é

tomar um β e mostrar que é corte. Seja

β = {p ∈ Q | −p ∈
/α e −p não é cota superior mínima de α}.

1. (a) Para mostrar que β 6= ∅, consideremos dois casos:

• α não possui cota superior mínima:

Como α é um corte, então α 6= Q e potanto, existe q ∈ Q tal que q ∈


/ α. Assim,

basta tomar p = −q ∈ Q e −p = q ∈/ α. Logo p ∈ β e portanto β 6= ∅.


• α possui cota superior mínima m:
Como m é cota superior mínima de α, m ∈/ α (se m ∈ α, m seria máximo de α, o
que contradiz a denição de corte) e com isso, m + 1 ∈
/ α. Seja p = −m − 1 ∈ Q
e −p = m + 1 ∈/ α e, além disso, −p = m + 1 6= m. Portanto p ∈ β e β 6= ∅.
(b) Para mostrar que β 6= Q, consideremos novamente dois casos:

• α não possui cota superior mínima:

Como α é corte, então α 6= ∅ e portanto existe r ∈ α (daí r ∈ Q). Tomemos


p = −r ∈ Q e, portanto, −p = r ∈ α. Logo p ∈/ β e p ∈ Q, isto é, β 6= Q.
• α possui cota superior mínima m:
Como m é cota superior mínima de α, então m−1 ∈ α (caso contra¯io, m−1
seria uma cota superior de α menor do quem, contradizendo a minimalidade de
m). Seja p = −m + 1 ∈ Q e −p = m − 1 ∈ α. Portanto, p ∈
/ β e p ∈ Q, isto é,
β 6= Q.

2. seja p ∈ β e q ∈ Q tal que q < p. Queremos mostrar que q ∈ β . Como p ∈ β , temos que

−p ∈
/ α e −p não é cota superior mínima de α. Como q < p, então

−p < −q (5.1)

daí, −q ∈
/α (visto que −p ∈
/ α). Temos também que −q não é cota superior mínima de

α (pois caso contrário, sabendo que −p ∈


/ α, ou seja, é uma cota superior de α, teríamos

71
−q ≤ −p, contradizendo (5.1)). Como q ∈ Q, −q ∈
/α e −q não é cota superior mínima

de α, concluímos que q ∈ β .

3. Seja p ∈ β, queremos mostrar que existe q∈β tal que p < q. Dividiremos em dois casos.

• α não possui cota superior mínima:

Como −p ∈
/α eα não possui cota superior mínima, então existe uma cota superior
q de α (isto é, q∈
/ α), tal que q < −p. Assim, −q ∈ β e p < −q , logo β não possui
máximo.

• α m:
possui cota superior mínima
−m + p
Seja r = ∈ Q. Como p ∈ β , temos que −p ∈/ α, ou seja, é uma cota superior
2
de α, mas não é cota superior mínima de α, portanto, m < −p, daí, p < −m. Sendo

assim,
−m + p −m p p p
r= = + > + = p.
2 2 2 2 2
Por outro lado,
m−p m p m m
−r =
= − > + = m,
2 2 2 2 2
portanto, −r 6= m. Como −r > m, então −r ∈ / α. Finalmente, como r ∈ Q, −r ∈ /α
e −r não é cota superior mínima de α, temos que r ∈ β e p < r , logo, β não possui

máximo.

Para nalizar, basta mostra que α + β = 0∗ . Para isso, mostremos que α + β ⊂ 0∗ e 0∗ ⊂ α + β .

• Seja q + r ∈ α + β com q ∈ α e r ∈ β (r ∈ Q, −r ∈ / α e −r não é cota superior mínima

de / α, então, q < −r, daí, q + r < 0, isto é, q + r ∈ 0∗ .


α). Como q ∈ α e −r ∈

• p ∈ 0∗ ⇒ p ∈ Q e p < 0 (−p > 0). Sejam r ∈ α e r0 ∈ / α (r0 não sendo cota superior
0 0
mínima de α), tais que r − r = −p (Lema 5.3.4). Segue que p = r + (−r ), com r ∈ α e

−r0 ∈ β , ou seja, p ∈ α + β .

Portanto, α + β = 0∗ , como queríamos.

Denição 5.3.6. Denimos a subtração em C por α − β = α + (−β), para todo α, β ∈ C .

Proposição 5.3.7. Se α ∈ C, então α = −(−α).

Demonstração. Já vimos que oposto de α é −α, portanto,

α + (−α) = α − α = −α + α = 0∗ .

Por outro lado, sabemos que o oposto de (−α) é −(−α), logo

(−α) + (−(−α)) = −α + (−(−α)) = 0∗ .

Sabemos também que o oposto de um corte é único, sendo assim, α = −(−α).




72
Teorema 5.3.8 (Compatibilidade da relação de ordem com a adição) . Sejam α, β, γ ∈ C tais

que α ≤ β. Então α + γ ≤ β + γ.
Demonstração. α ≤ β ⇔ α ⊂ β . Seja t ∈ α + γ , isto é, t = r + s com r ∈ α e s ∈ γ . Como
α ⊂ β, então r ∈ β , e t = r + s ∈ β + γ , ou seja, α + γ ⊂ β + γ . Portanto, α + γ ≤ β + γ .


Teorema 5.3.9. Sejam α e β cortes tais que α ≥ 0∗ , β ≥ 0∗ . Seja γ = {p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈


Q | q = rs, onde r ∈ α, s ∈ β, r ≥ 0, s ≥ 0}. Então γ é um corte.
Demonstração.

1. p = −1 ∈ γ , portanto 6 ∅. Temos ainda que,


γ=
(
α 6= Q ⇒ ∃p0 ∈ Q tal que p0 ∈/ α,
β 6= Q ⇒ ∃q0 ∈ Q tal que q0 ∈
/ β.

Logo, p0 q0 ∈ Q. Mostremos que p0 q0 ∈ / γ . Suponhamos que p0 q0 ∈ γ , isto é, existem


p ∈ α, q ∈ β , p ≥ 0 e q ≥ 0 tal que p0 q0 = pq . Não podemos ter p0 ≤ p (pois teríamos
p0 ∈ α), nem q0 ≤ q (pois teríamos q0 ∈ β ). Assim, p < p0 e q < q0 , daí, pq < p0 q0 , o que
é uma contradição com p0 q0 = pq . Portanto, p0 q0 ∈
/ γ e, assim, γ 6= Q.

2. Sejam r∈γ s < r. Devemos mostrar que s ∈ γ . De fato, se s < 0, s ∈ γ . Suponhamos


e

s ≥ 0 e, portanto r > 0. Como r ∈ γ , existem p ∈ α e q ∈ β , tais que r = pq , com p ≥ 0

e q ≥ 0.
s
Como r > 0, segue que p>0 e q > 0. (s ≥ 0, p > 0 ⇒ t ≥ 0). Se q ≤ t,
Seja t=
p
teríamos pq ≤ pt, isto é, r ≤ s, o que é um absurdo, pois, s < r . Logo, devemos ter t < q

e, como q ∈ β , então t ∈ β . Assim, como s = pt, p ∈ α, t ∈ β , p > 0 e t ≥ 0, então s ∈ γ .

3. Seja r ∈ γ e mostremos que existe s ∈ γ tal que r < s. De fato, se r < 0, basta tomar
r
s = < 0, daí s > r. Suponhamos r ≥ 0. Neste caso, r ∈ γ signica que r = pq , com
2
p ∈ α, q ∈ β , p ≥ 0 e q ≥ 0. Existem t ∈ α e u ∈ β tais que p < t e q < u (pois α e β não
possuem máximo). Logo, r = pq < tu. Tomando s = tu, temos s ∈ γ (pois s = tu com

t ∈ α, u ∈ β , t > 0 e u > 0) e s > r . Portanto, γ não tem máximo.




Denição 5.3.10. Denotamos por αβ e chamamos produto de α e β o corte γ do teorema

anterior, isto é,

αβ = {p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈ Q | q = rs, onde r ∈ α, s ∈ β, r ≥ 0, s ≥ 0}.

Para denir produto de cortes que contêm fatores negativos, começamos com noção de valor

absoluto de um corte.

Denição 5.3.11. A cada corte α associamos um corte |α| que chamamos valor absoluto de

α, denido por (
α se α ≥ 0∗ ,
|α| =
−α se α < 0∗ .

73
Proposição 5.3.12. Se α < 0∗ , então −α > 0∗ .

Demonstração. Sabemos que α < 0∗ q∈


se, e somente se, existe q ∈ 0∗
/ α, e podemos tal que

admitir, sem perda de generalidade que q não é cota superior mínima de α. Como q ∈ 0 , então

q < 0. Tomemos r = −q , que nos fornece r > 0. Nesta condições, vemos que r ∈ −α (por
denição de corte oposto, pois −r = q , q ∈
/ α e q não é cota superior mínima de α) e r > 0,
/ 0 , o que nos garante que −α > 0∗ .
isto é, r ∈

Proposição 5.3.13. Para qualquer α ∈ C, tem-se:

1. |α| ≥ 0∗ ;

2. |α| = 0∗ ⇔ α = 0∗ .

Demonstração.

1. Se α ≥ 0∗ , então |α| = α ≥ 0∗ , daí, |α| ≥ 0∗ .


Se α < 0∗ , então |α| = −α e ainda, −α > 0∗ (pela Proposição 5.3.12), assim, |α| > 0∗ .

2. (⇒) Seja |α| = 0∗ .


Se α > 0∗ então |α| = α > 0∗ , contradição, pois, por hipótese, |α| = 0∗ .
Se α < 0∗ , pela Proposição 5.3.12, −α > 0∗ e, por denição, |α| = −α > 0∗ , novamente

contradição.

Logo, pela tricotomia, α = 0∗ .


(⇐) Seja α = 0∗ .
α = 0∗ ⇒ |α| = α = 0∗ .

Podemos agora completar a denição de multiplicação.

Denição 5.3.14. Sejam α, β cortes. Denimos:




 −(|α||β|) se α < 0
 e β ≥ 0∗ ,
αβ = −(|α||β|) se α ≥ 0∗ e β < 0∗ ,
|α||β| se α < 0∗ β < 0∗ .

e

Teorema 5.3.15. Sejam α, β, γ ∈ C . Valem:

1. Comutativa: αβ = βα;

2. Associativa: (αβ)γ = α(βγ);

3. Elemento Neutro 1∗ : α · 1∗ = α.

Demonstração. Suponhamos que α, β, γ ≥ 0∗ .

74
1. Seja r ∈ αβ . Se r < 0, então r ∈ βα, por denição de produto. Suponhamos r ≥ 0.
Então r = pq , p ∈ α, q ∈ β , p ≥ 0 e q ≥ 0. Portanto r = pq = qp, q ∈ β , p ∈ α, q ≥ 0 e

p ≥ 0, isto é, r ∈ βα. Logo αβ ⊂ βα. Desse modo, analogamente r ∈ βα ⇒ r ∈ αβ , isto


é, βα ⊂ αβ , o que nos garante que αβ = βα.

2. Esta propriedade tem demonstração análoga a anterior, se dando imediatamente pela

associativa dos racionais, isto é,

(αβ)γ = {p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈ Q | q = (rs)t, r ∈ α, s ∈ β, t ∈ γ, r ≥ 0, s ≥ 0, t ≥ 0} =


{p ∈ Q | p < 0} ∪ {q ∈ Q | q = r(st), r ∈ α, s ∈ β, t ∈ γ, r ≥ 0, s ≥ 0, t ≥ 0} = α(βγ)

3. Seja r ∈ α · 1∗ r < 0. Se α = 0∗ , r < 0, então r ∈ 0∗ = α, portanto r ∈ α. Se α > 0∗ ,


e

temos que / 0∗ , daí p ≥ 0. Dessa forma, r < 0 ≤ p, logo r ∈ α.


existe p ∈ α tal que p ∈

Suponhamos agora r ≥ 0 e r ∈ α · 1∗ , assim, r = pq com p ∈ α, q ∈ 1∗ , p ≥ 0 e q ≥ 0.



Como q ∈ 1 , temos que, q < 1, daí pq < p · 1, isto é, r = pq < p. Como p ∈ α, r = pq < p

e α é corte, então r ∈ α, logo, α · 1 ⊂ α.

Por outro lado, seja r ∈ α. Se r < 0 então r ∈ α, por denição de produto. Suponhamos
r
r ≥ 0. Tomemos p ∈ α tal que 0 ≤ r ≤ p (pois α não tem máximo). Se q = então
p
0 ≤ q < 1 e portanto q ∈ 1∗ . Concluímos que, como r = pq , p ∈ α, q ∈ 1∗ , p > 0, q ≥ 0,
∗ ∗ ∗
então r ∈ α · 1 . Portanto α ⊂ α · 1 . Logo α = α · 1

Os outros casos (α < 0∗ e β ≥ 0∗ , α ≥ 0∗


β < 0∗ , α < 0∗ e β < 0∗ ) são consequências da
e
∗ ∗
parte já demonstrada, por exemplo, a comutativa, quando α < 0 e β ≥ 0 : αβ = −(|α||β|) =

−(|β||α|) = βα, por denição de módulo, pelo que foi demonstrado anteriormente (|α| ≥ 0 e
|β| ≥ 0) e por denição de produto.


Teorema 5.3.16. Seja α ∈ C com α > 0∗ . O conjunto β = {p ∈ Q | p ≤ 0 ou p−1 ∈


/
−1
α e existe q∈
/α tal que q < p } é corte.

Demonstração.

1. 0 ∈ β , portanto β 6= ∅. Seja p ∈ α tal que p > 0 (este p existe pois, como α > 0∗ existe
q ∈ Q, q ∈ α e q ∈ / 0∗ , isto é, q ≥ 0. Devemos provar agora que p−1 ∈ / β . De fato, se
−1 −1 −1
p ∈ β , então teríamos que (p ) = p ∈ / α, isto é, p ∈
/ α, o que é contradição, pois
−1
p ∈ α. Logo, p ∈ / β , ou seja, β 6= Q;

2. Seja p∈β q ∈ Q com q < p. Devemos mostrar que q ∈ β . Se q ≤ 0, então q ∈ β , pela


e

denição de β . Suponhamos então q > 0. Assim, temos 0 < q < p. Daí, como p, q ∈ Q+
−1
e q < p, pelas propriedades dos racionais, p < q −1 . Como p−1 ∈
/ α, segue que q −1 ∈
/ α.
−1 −1 −1 −1 −1
Assim, p ∈
/ α, q ∈ / α, p < q , o que signica que q não é cota superior mínima
de α, logo q ∈ β .

3. Seja p ∈ β.
Mostraremos que existe q∈β tal que p < q.
Sem perda de generalidade, vamos supor p > 0. Como p ∈ β e p > 0, então p−1 ∈/ αe
r + p−1
existe r∈
/α tal que r < p−1 . Tomemos s =
−1
. Assim temos r < s < p . Tomando
2

75
q = s−1 temos q = s−1 > p > 0, portanto, q > 0. De fato, q −1 = s ∈ / α (pois s>r e

r∈/ α), q −1 = s > r e r ∈


/ α, logo q ∈ β , isto é, β não possui máximo.

Denição 5.3.17. Seja α um corte tal que α 6= 0∗ . Se α > 0∗ , então o corte β do teorema
anterior é denotado por α−1 e chamado de inverso de α. Se α < 0∗ , então denimos o inverso
de α como α−1 = −|α|−1 .

Teorema 5.3.18. Seja α um corte tal que α 6= 0∗ . Então αα−1 = 1∗ . Além disso, o inverso

de α é único.

Demonstração. Consideremos dois casos, α > 0∗ e α < 0∗ .

• α > 0∗ :
Seja r ∈ αα−1 . Se r ≤ 0, então r ∈ 1∗ . Suponhamos r > 0. Como r ∈ αα−1 existem
s ∈ α, p ∈ α−1 tal que r = sp, s ≥ 0, p ≥ 0. Como r > 0, devemos ter s > 0 e p > 0.
−1
Como p ∈ α e p > 0, existe q ∈ / α tal que q < p−1 . Como s ∈ α e q ∈ / α, então s < q .
−1 −1 −1 −1
De q < p , temos p < q , daí, sp < sq . Portanto, como s < q , temos que sq < 1, e
−1 ∗
assim, r = sp < sq < 1, daí r ∈ 1 .
Reciprocamente, seja r ∈ 1∗ , isto é, r < 1. Se r < 0, então r ∈ αα−1 , por denição de
−1 −1
produto. Se r = 0, temos r = p · 0, ponde p ∈ α, 0 ∈ α e p > 0, logo r ∈ αα .

Suponhamos agora, 0 < r < 1. Seja s ∈ α com s > 0. Seja n o maior natural que
−1 n n
satisfaz s (r ) ∈ / α (este n existe, pois, r−1 > 1 e se s (r−1 ) ∈ α para todo n ∈ N,
−1 n−1
teríamos α = Q, o que é uma contradição, pois α é corte). Tomemos p1 = s (r ) ∈α
−1 n
e t = s (r ) ∈/ α. Seja p ∈ α tal que p1 < p (α não possui máximo). Tomemos
q = t−1 p−1 p1 , isto é, q −1 = tpp−1
1 . Assim, podemos ter

p1 < p ⇒ p1 p−1 −1 −1 −1 −1
1 < pp1 ⇒ 1 < pp1 ⇒ t < tpp1 ⇒ t < q .

Assim, como / α, q −1 ∈
t∈ /α e q −1 não é a menor cota superior de α. Temos ainda,

q = t−1 p−1 p1 ⇒ pq = pt−1 p−1 p1 ⇒ pq = t−1 p1


n −1 n−1
⇒ pq = s r−1 s r−1
⇒ pq = s−1 rn sr−n+1 ⇒ pq = r.

Desta forma, p ∈ α e, como q −1 ∈


/ α e existe t ∈
/ α tal que t < q −1 , então, q ∈ α−1 .
Portanto r ∈ αα−1 .
Assim, concluímos que, se α > 0∗ , então αα−1 = 1∗ .

• α < 0∗ :
Se α < 0∗ , por denição,α−1 = −|α|−1 . Sabemos que |α|−1 > 0∗ (pelo item 1 da
−1
Proposição 5.3.13), e disso, −|α| < 0∗ (pela Proposição 5.3.12), isto é, α−1 < 0∗ . Daí,
−1
por denição de produto, αα = |α||α−1 | = |α|| − |α|−1 | = | = |α||α|−1 = 1∗ .

76
Provemos agora a unicidade de α−1 . Suponhamos que existam α1−1 e α2−1 , tais que αα1−1 = 1∗
e αα2−1 = 1∗ . Assim,

α1−1 = α1−1 · 1∗ = α1−1 αα2−1 = α1−1 α α2−1 = 1∗ · α2−1 = α2−1 .


 

Teorema 5.3.19 (Distributividade) . Se α, β, γ ∈ C , então α(β + γ) = αβ + αγ .

Demonstração. Demonstraremos apenas o caso em que α > 0∗ , β > 0∗ e γ > 0∗ .


Mostremos inicialmente que α(β + γ) ⊂ αβ + αγ . De fato,

α(β + γ) = {q ∈ Q | q < 0} ∪ {p ∈ Q | p = rs onde r ∈ α, s ∈ (β + γ), r ≥ 0, s ≥ 0} .

Dessa forma, se x ∈ α(β + γ), então, ou x ∈ 0∗ ou x = rs com r ∈ α, s ∈ (β + γ), r ≥ 0 e s ≥ 0.


∗ x x x
Se x ∈ 0 , então ∈ 0∗ e + = x, que signica que x ∈ αβ + αγ .
2 2 2
Se x = rs com r ∈ α, s ∈ (β + γ), r ≥ 0 e s ≥ 0, então s = q + p onde q ∈ β , p ∈ γ , q ≥ 0

e p ≥ 0. Portanto, x = rs = r(q + p) = rq + rp, logo x ∈ αβ + αγ . Assim, concluímos que

α(β + γ) ⊂ αβ + αγ .
Mostremos agora que αβ + αγ ⊂ α(β + γ). Com efeito,

αβ + αγ = {t ∈ Q | t = ps + pq onde ps ∈ αβ, pq ∈ αγ} .

Seja u ∈ αβ + αγ , isto é, u = ps + pq , com ps ∈ αβ, pq ∈ αγ .

• ps ∈ αβ ⇒ ps < 0 ou p∈α e s∈β com p≥0 e s ≥ 0;

• pq ∈ αγ ⇒ pq < 0 ou p∈α e q∈γ com p≥0 e q ≥ 0.

Desta forma, temos quatro casos:

1. Suponhamos ps < 0 e pq < 0. Claramente, u ∈ α(β + γ) pois u = ps + pq < 0;

2. Suponhamos ps < 0 e p ∈ α e q ∈ γ com p ≥ 0 e q ≥ 0. Como ps < 0 e p ≥ 0, então


s < 0, daí, se −s > q , então s + q < 0 e, portanto, u = ps + pq = p(s + q) < 0. Se −s ≤ q ,
então s + q ≥ 0 e, como p ≥ 0, temos u = p(s + q) ∈ α(β + γ), pois p ∈ α e s + q ∈ β + γ

com p ≥ 0 e s + q ≥ 0;

3. Supondo p ∈ α e s ∈ β com p ≥ 0 e s ≥ 0 e pq < 0, podemos obter, analogamente ao caso


anterior que u = ps + pq ∈ α(β + γ);

4. Suponhamos que p ∈ α, s ∈ β e q ∈ γ , com p ≥ 0, s ≥ 0 e q ≥ 0. Dessa forma,


u = ps + pq = p(s + q), onde p ∈ α e s + q ∈ β + γ , com p ≥ 0 e s + q ≥ 0, logo
u ∈ α(β + γ).

Provamos, então, que existe a dupla inclusão entre αβ + αγ e α(β + γ), isto é, αβ + αγ =
α(β + γ). 

Teorema 5.3.20. Para α, β ∈ C , temos (−α)β = α(−β) = −(αβ) e (−α)(−β) = αβ .

77
Demonstração. De fato, temos,

(−α)β + αβ = (−α + α)β = 0∗ · β = 0∗ . (5.2)

Isso signica que (−α)β = −(αβ), pois, como já foi provado, o oposto de um corte é único.

Temos também,

α(−β) + αβ = α(−β + β) = α · 0∗ = 0∗ . (5.3)

Do mesmo modo, α(−β) = −(αβ).


Temos ainda,

(−α)(−β) = −(α(−β)) por (5.2)


= −(−(αβ)) por (5.3)
= αβ pela Proposição 5.3.7.

Teorema 5.3.21 (Compatibilidade da relação de ordem com a multiplicação) . Se α ≤ β e



γ≥0 , então, αγ ≤ βγ .

Demonstração. Como α ≤ β, 0∗ = α + (−α) ≤ β + (−α), portanto,


pelo Teorema 5.3.8,

β + (−α) ≥ 0∗ . Além disso, como γ ≥ 0∗ , temos (β + (−α))γ ≥ 0∗ , por denição de produdo



de cortes. Daí, βγ + (−α)γ ≥ 0 e, novamente pelo Teorema 5.3.8, βγ ≥ αγ , isto é, αγ ≤ βγ .

Proposição 5.3.22. Seja α um corte qualquer, então α · 0∗ = 0∗ .

Demonstração. Temos, α·0∗ = α(0∗ +0∗ ) = α·0∗ +α·0∗ , daí, α·0∗ −α·0∗ = α·0∗ +α·0∗ −α·0∗ ,
portanto, 0∗ = α · 0∗ , como queríamos.

Proposição 5.3.23. Sejam α e β cortes. Nesta condição, αβ = 0∗ se e somente se α = 0∗ ou



β=0 .

Demonstração. Se α = 0∗ ou β = 0∗ , temos que αβ = 0∗ , pelo resultado anterior.

Seja, agora, αβ = 0∗ . Suponhamos α 6= 0 ∗


, isto é, existe γ ∈ C, tal que αγ = 1∗ . Dessa

forma,

β = β · 1∗ = β(αγ) = (αβ)γ = 0∗ γ = 0∗ .

Reciprocamente, se supormos que β 6= 0∗ , concluiremos que α = 0∗ .




Temos, então, C munido de duas operações e uma relação de ordem, de forma que C é

um corpo ordenado. Em particular, dene-se também a divisão em C e adota-se a notação


α
de fração , como nos racionais. Vejamos a seguir, uma aplicação injetora de Q em C, assim
β
como foi feito em Z e em Q.

78
Teorema 5.3.24. A aplicação j : Q −→ C , dada por j(r) = r∗ é injetora e preserva adição,

multiplicação e ordem, isto é, os seguintes itens são válidos:

1. j(p) + j(q) = j(p + q), ou seja, p∗ + q ∗ = (p + q)∗ ;

2. j(p)j(q) = j(pq), isto é, p∗ q ∗ = (pq)∗ ;

3. j(p) < j(q) se e somente se p < q, ou ainda, p∗ < q ∗ se, e somente se p < q;

4. j(p) = j(q) se e somente se p = q, ou seja, p∗ = q ∗ se, e somente se, p = q.

Demonstração.

1. Seja t ∈ p∗ + q ∗ , isto é, t = r + s com r ∈ p∗ e s ∈ q ∗ , ou ainda, r<p e s < q. Dessa



forma, t = r + s < p + q , ou seja, t = r + s ∈ (p + q) .

h h
Seja, agora, u ∈ (p + q)∗ , isto é, u < p + q . Sejam h = p + q − u, s = p − e t = q − .
∗ ∗ ∗
2∗ 2
Dessa forma, s < p e t < q , ou seja, s ∈ p e t ∈ q . Logo u = s + t ∈ p + q .

2. Provaremos apenas para o caso p > 0 e q > 0, os outros casos podem ser provados de

forma análoga.

Se r ∈ p∗ q ∗ , então, ou r < 0 ou r = st, com p>s≥0 e q > t ≥ 0, de modo que, ou r<0



ou r = st < pq e assim, r ∈ (pq) .

Seja r ∈ (pq)∗ , então podemos armar que ou r < 0 ou 0 ≤ r < pq . Se r < 0, claramente
r ∈ p∗ q ∗ , pela denição de corte positivos. Se 0 ≤ r < pq então existem p1 ∈ Q e q1 ∈ Q
∗ ∗
tais que 0 < p1 < p, 0 < q1 < q e, ainda, r < p1 q1 < pq . É evidente que p1 ∈ p , q1 ∈ q ,

p1 q1 ∈ p∗ q ∗ e assim, r ∈ p∗ q ∗ .

3. Se p < q, então p ∈ q∗. Como / p∗ ,


p∈ concluímos que p∗ < q ∗ .
Analogamente, se p∗ < q ∗ , existe um racional r tal que r ∈ q∗ e / p∗ ,
r∈ isto é, r<q e

r ≥ p. Logo p ≤ r < q , ou seja, p < q .

4. Se p = q, obviamente p∗ = q ∗ .
Suponhamos p∗ = q ∗ . Como p ∈/ p∗ , segue que p ∈
/ q ∗ , logo p ≥ q . Por outro lado, como

/ q∗,
q∈ segue / p∗ , então p ≤ q . Com isso, pela tricotomia, p = q .
que q ∈

Mais uma vez obtivemos uma cópia algébrica de um conjunto em outro, isto é, um homo-

morsmo injetor. Desta vez, j(Q) é uma cópia de Q em C , sendo j(Q) precisamente o conjunto
dos cortes racionais. O Teorema 5.1.13 mostra que existem cortes não racionais em C . Assim,

C \ j(Q) 6= ∅.
Notemos ainda que o corpo ordenado dos números racionais é isomorfo (bijetor, preserva

a soma, o produto e a ordem) ao corpo ordenado de todos os cortes racionais (C ) o que nos

permite identicar o corte racional r∗ como o número racional r. Naturalmente r∗ não é, de

modo algum, o mesmo número racional, mas as propriedades que interessam (aritméticas e

ordem) são as mesmas nos dois corpos ordenados.

Proposição 5.3.25. Se α ∈ C, temos que r∈α se, e somente se, r ∗ < α.

79
Demonstração. Se r ∈ α, como r∈/ r∗ , então r∗ < α. Reciprocamente, se r ∗ < α, existe s ∈ α,
tal que / r∗ .
s∈ Temos então, s ≥ r e s ∈ α, logo, r ∈ α.


Teorema 5.3.26. Se α, β ∈ C e α < β, então existe um corte racional r∗ tal que α < r∗ < β .

Demonstração. Do fato que α < β , podemos armar que existe um número racional s ∈ β , tal
que s ∈/ α. Uma vez que s ∈ β , segue da defnição de corte que existe um racional r tal que
s < r e ainda r ∈ β , o que implica r∗ < β , pelo resultado anterior.
∗ ∗ ∗ ∗
Segue do item 3 do Teorema 5.3.24 que, s < r , portanto, α ≤ s < r (como s ∈ / α, pela
∗ ∗
Proposição anterior, s ≥ α) e assim, chegamos a conclusão que, α < r < β .

Denição 5.3.27. O conjunto C dos cortes será, a partir de agora, denominado de conjunto

dos números reais e denotado por R. Os cortes racionais serão identicados, via injeção j, com

os números racionais. Todo corte que não for racional será denominado número irracional.

A identicação j(Q) com Q nos permite escrever Q ⊂ R. O conjunto R\Q representa o

conjunto dos números irracionais.

A seguir vamos enunciar e demonstrar a principal propriedade que difere o conjunto dos

números racionais do conjunto dos números reais. Essa propriedade é conhecida como Teorema

de Dedekind.

Teorema 5.3.28 (Dedekind) . Sejam A e B subconjuntos de R tais que:

1. R = A ∪ B;

2. A ∩ B = ∅;

3. A 6= ∅ e B 6= ∅;

4. se α∈A e β ∈ B, então α < β.

Nestas condições, existe um, e apenas um, número real γ tal que α ≤ γ ≤ β, para todo α∈A
e para todo β ∈ B.

Demonstração. Provemos inicialmente a unicidade:

Suponhamos que existam dois números distintos γ1 e γ2 ,


γ1 < γ2 (ou γ2 < γ1 , sem com

perda de generalidade) nas condições do enunciado. Consideremos γ3 tal que γ1 < γ3 < γ2 ,

que existe, como foi provado no Teorema 5.3.26. Temos que γ2 ≤ β , para todo β ∈ B , dessa

forma, se γ3 ∈ B , teríamos γ2 ≤ γ3 , o que não pode acontecer, pois γ1 < γ3 < γ2 , portanto,

como R = A ∪ B , temos que γ3 ∈ A. Analogamente, de γ1 < γ3 , obtemos γ3 ∈ B . Resulta

então γ3 ∈ A ∩ B , uma contradição. Portanto não podemos ter γ1 e γ2 distintos nas condições

do enunciado.

Provemos agora a existência:

Seja γ = {r ∈ Q | r ∈ α, para algum α ∈ A}. Devemos mostrar que γ é um corte.

1. Como A 6= ∅, obviamente γ 6= ∅. Para mostra que γ 6= Q, tomemos β ∈ B . Seja s ∈ β


um racional. Como α ⊂ β , para todo α ∈ A, então, s ∈
/ α, para todo α ∈ A, de onde
resulta s∈
/ γ;

80
2. Seja r∈γ e s < r. Temos que r∈α para algum α∈A e, como s < r, então s ∈ α, de

onde segue que s ∈ γ ;

3. Temos que r∈α para algum α∈A e, como α é um corte, existe s>r em α, logo s ∈ γ;

Dessa forma, γ é um número real e temos que α≤γ para todo α ∈ A, pois, pela denição

de γ, sabemos que α ⊂ γ, para todo α ∈ A.


Falta mostrar apenas que γ ≤ β
β ∈ B . Suponhamos que exista β ∈ B com
para todo

β < γ . Com isso, existe um racional r ∈ γ , tal que r ∈


/ β . Como r ∈ γ , então r pertence a
algum α ∈ A e, não sendo elemento de β , obtemos β < α, contradizendo a última hipótese do

teorema. Logo, γ ≤ β para todo β ∈ B .

Exemplo 5.3.29. Consideremos os seguintes subconjuntos de Q:

A = x ∈ Q+ | x2 < 2 ∪ Q∗− B = x ∈ Q + | x2 > 2 .


 
e

Podemos ver que A e B satisfazem as hipóteses do teorema anterior, com Q em lugar de R,


mas que não existe r ∈ Q satisfazendo s ≤ r para todo s ∈ A e r ≤ t para todo t ∈ B . Notemos

que, este exemplo nos diz, informalmente, que em R não há lacunas, mas em Q, há. Por esta

razão, dizemos que R possui a propriedade da completude ou que R é completo.

Corolário 5.3.30. Nas condições do Teorema 5.3.28, ou existe em A um número máximo, ou,

em B, um número mínimo.

Demonstração. Seja γ como no teorema anterior. Então, pela primeira hipótese, γ está em A
ou γ está em B e, em apenas um desses conjuntos, pela segunda hipótese. Se γ ∈ A, então ele
é elemento máximo de A. Se γ ∈ B, então, ele é elemento mínimo de B.


Observemos que, se o conjunto A do Teorema 5.3.28 não contiver γ, então ele é um corte

em R, no sentido da denição de corte em Q apresentada. A diferença entre ambas a situações

é que em Q não se tem necessariamente, como no Teorema 5.3.28 para os números reais, um

elemento como γ. Essas lacunas é que geram os cortes irracionais. Como tais lacunas não

ocorrem em R, então cortes em R não geram elementos novos.

Antes de apresentar o próximo resultado, devemos retomar o conceito de supremo. As de-

nições de supremo e ínmo, dadas para o conjunto dos racionais, são equivalentes no conjunto

dos reais. Por exemplo, se A é um subconjunto de R, limitado superiormente, e existe um cota


superior de A, digamos s, que seja mínima, então, s diz-se supremo de A. O ínmo é dado

analogamente.

Teorema 5.3.31. Se X⊂R é um conjunto não vazio e limitado superiormente, então existe

sup X .

Demonstração. Sejam A = {α ∈ R | α < x, para algum x ∈ X} e B = R \ A, isto é, Aéo


conjunto constituído precisamente pelos números reais que não são cotas superiores de X eB
é o conjunto constituído pelas cotas superiores de X.
Vamos vericar que A e B satisfazem as condições do Teorema 5.3.28.

81
As duas primerias condições são obviamente válidas.

Veriquemos a terceira. Temos que, como X 6= ∅,


x ∈ X , e assim, qualquer α < x
existe

pertence a A, ou seja, A 6= ∅. Como X é limitado superiormente, B 6= ∅.

Para vericar a útima condição do teorema, sejam, α ∈ A e β ∈ B . Assim, existe x ∈ X tal

que α < x. Como x ≤ β , obtemos α < β .

Dessa forma, vericamos que A e B satisfazem as codições do Teorema 5.3.28, logo, pelo

Corolário 5.3.30, ou A possui máximo, ou B possui mínimo. Devemos mostrar que A não possui
0
máximo. De fato, tomemos α arbitrário em A. Existe x ∈ X tal que α < x. Consideremos α
0 0 0
tal que α < α < x. Como α < x, então α ∈ A e é maior do que α, ou seja, nenhum elemento

de A é maior do que os demais, ou seja, A não possui máximo. Sendo assim, obrigatoriamente

B possui mínimo, isto é, X possui supremo.




Essa propriedade válida paraR não se verica em Q, isto é, não é verdade que todo subcon-
junto de números racionais não vazio e limitado superiormente em Q sempre admita supremo
2
em Q. Por exemplo, o conjunto A = {x ∈ Q+ | x < 2} não possui supremo racional, mas tem

supremo, se considerado como subconjunto de R.

O resultado seguinte mostra que R, assim como Q, é um corpo arquimediano.

Teorema 5.3.32. O conjunto N dos naturais é ilimitado em R.

Demonstração. Se N ⊂ R fosse limitado superiormente, existiria α = sup N, pelo Teorema


5.3.31. Dessa forma, α ≥ n, para todo n ∈ N. Como n + 1 ∈ N, para todo n ∈ N, então

n + 1 ≤ α para todo n ∈ N, de onde obtemos n ≤ α − 1 para todo n ∈ N, daí, concluímos que


α − 1 é uma cota superior para n ∈ N, o que é uma contradição, pois α − 1 < α e α é a cota
superior mínima.

Vamos, a seguir, denir potência de base real e expoente inteiro.

Denição 5.3.33. Seja a ∈ R e n ∈ N . Denimos a potência an , recursivamente, como

sendo:
(
1, se n = 0,
an = n−1
a·a , se n > 1.

Finalmente, se a 6= 0, denimos:
n
a−n = a−1 .

Proposição 5.3.34. Se a e b são reais e n, m inteiros positivos, então são válidos:

1. (ab)n = an · bn ;

2. an am = an+m ;

3. (an )m = amn .

82
Demonstração. Faremos a prova apenas do primeiro item, dado que as outras se dão do mesmo

modo. Provemos por indução nita:

Se n = 0, por denição (ab)0 = 1 e a0 · b0 = 1 · 1 = 1, logo(ab)0 = a0 · b0 .


Suponhamos, agora, que a igualdade seja válida para n = k e provemos que é verdadeira

para n = k + 1.
Hipótese de Indução: (ab)k = ak · bk .
Por denição, (ab)k+1 = (ab)(ab)k+1−1 = (ab)(ab)k , daí, por hipótese de indução,

(ab)k+1 = (ab)ak bk . (5.4)

Novamente por denição,

ak+1 bk+1 = aak+1−1 bbk+1−1 = aak bbk = (ab)ak bk . (5.5)

Assim, por (5.4) e (5.5), concluímos que (ab)k+1 = ak+1 bk+1 . Logo, por indução a igualdade é

válida.

Estas propriedades são válidas, ainda, para m, n ∈ Z, e a prova é simples, basta notarmos
n
que, se m < 0, então m = −n para algum n em N, daí, am = a−n = (a−1 ) e, assim, voltamos
aos itens do teorema anterior. Vale ressaltar que, para expontes negativos, a base deve ser não

nula.

Teorema 5.3.35. Seja a um real positivo e n > 0 natural. Existe um único número real positivo
n
que é solução da equação x = a.

Demonstração. A prova deste teorema depende fundamentalmente da completude de R. Ela

está feita com bastante rigor em [3] e não será feita aqui.

Denição 5.3.36. Dado um número real positivo a, o único número real positivo que é solução
da equação xn = a, estabelecido pelo teorema anterior, chama-se raiz n-ésima de a e é denotado
√ 1
por n
a, ou por a n . A raiz n-ésima de a permite
 1 que se dena expoente racional do seguinte
m m
−m
modo: se m e n são inteiros positivos, a n = a n e, como para expoentes inteiros, a n =
m
(a−1 ) n .

Proposição 5.3.37. Se a e b são reais positivos, n inteiro positivo e r, s racionais positivos,

temos que:

1 1 1
1. (ab) n = a n b n ;

2. ar as = ar+s ;

3. (ar )s = ars ;

4. (ab)r = ar br .

83
Demonstração. Novamente provaremos o primeiro item, os seguintes decorrem do mesmo modo,

através de manipulações algébricas com o uso das propriedades já demonstradas.

Sejam a e b reais positivos e n ∈ N∗ . Se temos αn = a e β n = b, então, por denição,


1 1
existem as seguintes soluções reais: α = a n e β=b n. Dessa forma,

ab = αn β n = (αβ)n ,
1 1 1 1
assim, por denição, αβ = (ab) n , daí, a n b n = αβ = (ab) n , como queríamos.

Mostramos anteriormente que qualquer subconjunto de R limitado superiormente possui

supremo, o seguinte teorema mostra um resultado análogo se tratando de ínmo.

Teorema 5.3.38. Todo subconjunto não vazio de números reais, limitado inferiormente, possui
ínmo.

Demonstração. Seja X ⊂ R limitado inferiormente e consideremos o conjunto −X = {−x ∈


R | x ∈ X}. Claramente −X ⊂ R. Como X é limitado inferiormente, dizemos que existe M
tal que M ≤ x para todo x ∈ X . Disso temos que −M ≥ −x para todo −x ∈ −X , isto é, −X

é limitado superiomente, logo, −X possui supremo, digamos c = sup (−X). Vamos mostrar

que −c = inf X . De fato, c ≥ −x para todo −x ∈ −X , ou ainda, −c ≤ x para todo x ∈ X .

Dessa forma −c é uma cota inferior de X . Suponhamos que exista d tal que −c < d ≤ x para

todo x ∈ X . De d ≤ x para todo x ∈ X , temos −d ≥ −x para todo −x ∈ −X , isto é, −d

é cota superior de −X , porém, temos que −c < d ⇒ c > −d, o que é uma contradição, pois

c é supremo de −X . Logo, −c é a maior das cotas inferiores de X , isto é, −c = inf X , como


queríamos.

5.4 Representação decimal dos números reais

Sendo conhecida a representação dos inteiros na base dez, faremos o estudo da representação

decimal dos números reais. Para isto, demonstraremos um resultado a respeito da representação

decimal dos números reais não negativos menores do que 1, a partir do qual a representação

decimal dos demais números reais será automática, com auxílio de um resultado anterior.

Proposição 5.4.1. Dado um número real não negativo α, existe um número natural máximo

que é menor ou igual a α. Além disso 0 ≤ α − n0 < 1.


Demonstração. Seja dado α ∈ R+ . A = {n ∈ N | n ≤ α}. Devemos
Consideremos o conjuntos

mostrar que A possui um elemento máximo. De fato, seja B = {p ∈ N | p > α}. Claramente

B ⊂ N e, ainda, B 6= ∅, pois, como vimos no Teorema 5.3.32, N é ilimitado em R. Com isso,


pelo Princípio da Boa Ordem, B possui um elemento mínimo, digamos p0 . Dessa forma, p0 ≤ p

para todo p ∈ B . Sendo assim, α < p0 ≤ p para todo p ∈ B . Desse modo, p0 − 1 ∈


/ B , isto é,
p0 − 1 ≤ α, logo, p0 − 1 ∈ A.
Armamos que p0 − 1 é o máximo de A, ou seja, p0 − 1 ≥ n para todo n ∈ A. Com efeito,

suponhamos p0 − 1 < n para algum n ∈ A, daí, p0 − 1 < n ≤ α, ou ainda, p0 ≤ n ≤ α, o que é

uma contradição, pois p0 > α.

84
Tendo que n0 é o máximo de A, claramente n0 ≤ α < n0 + 1, donde 0 ≤ α − n0 < 1.


Teorema 5.4.2 (Representação decimal dos números reais) .


1. A cada número real α, não negativo e menor do que 1, corresponde uma única sequência

de dígitos (nk )k∈N∗ , satisfazendo :

(a) 0 ≤ nk ≤ 9, para todo k ∈ N∗ ;


(b) (nk )k∈N∗ não possui innitos dígitos consecutivos iguais a 9;
n1 n2 nk
(c) denindo, para cada k ∈ N∗ , Sk como a soma + 2 +... + k, α será supremo

10 10 10
do conjunto S = {Sk | k ∈ N }.

2. Reciprocamente, a cada sequência de dígitos (nk )k∈N∗ , satisfazendo 1a e 1b acima, e de-

nindo Sk como em 1c, corresponde um único número real α, não negativo e menor do que

1, que é o supremo do conjunto limitado superiormente S = {Sk | k ∈ N∗ }.

Demonstração. A demonstração deste resultado é um tanto trabalhosa, mas decorre de resul-

tados já demonstrados aqui e está feita em [3].

Denição 5.4.3.
1. Dado um número real α, com 0 ≤ α < 1, seja (nk )k∈N∗ a sequência de dígitos corres-

pondentes a α, sem innitos noves consecutivos, construída na primeira parte do teorema

acima. A representação decimal de α se dene como sendo a expressão 0, n1 n2 n3 n4 . . ..


Se nk 6= 0 e nl = 0, para todo l > k,
convenciona-se representar 0, n1 n2 n3 n4 . . . por
0, n1 n2 n3 n4 . . . nk , que será dita representação decimal nita de α.

2. Se α ≥ 1, seja n0 o maior natural que é menor ou igual a α, dado na Proposição 5.4.1.


Seja 0, n1 n2 n3 n4 . . . nk . . . a representção decimal de α − n0 denida em 1. Denimos a

representação decimal de α como sendo a expressão n0 , n1 n2 n3 n4 . . . nk . . ..

3. Se α < 0, denimos sua representação decimal como sendo −r, onde r é a representação

decimal de −α.

Já sabemos que as representações decimais não consideram, então, expressões com innitos

noves consecutivos, entretanto, podemos atribuir a elas um signicado similar ao das expressões

sem innitos noves consecutivos. Consideremos a expressão 0, 9999 . . .. Estendendo o que vimos
para representações sem innitos noves sucessivos, o número real α a ela associado deve ser o
∗ 9 9 9
supremo do conjunto S = {Sk | k ∈ N }, onde Sk = + 2 + . . . + k , . . ., que converge
10 10 10
para 1 (fato que está bem demonstrado em [4]).

Por outro lado, a representação decimal de 1 é, pela denição acima, 1, 00000 . . ., que con-

vencionamos representar pelo próprio 1. Dessa forma, considerando expressões com innitos

noves consecutivos como representações decimais, tem-se como resultado que elas representam

também números reais com representação decimal nita e, reciprocamente, qualquer represen-

tação decimal nita, diferente do 0, tem uma representação decimal innita com innitos noves
consecutivos nos termos acima.

85
Exemplo 5.4.4. 2, 79999 . . . também representa o número 2, 8. De
A representação decimal

fato, neste caso, n0 = 2 e o número real α − n0 deve ser o supremo do conjunto S = {Sk | k ∈
7 9 9 9 9
N∗ }, onde Sk = + 2 +. . .+ k , . . .. Analogamente ao que foi visto acima, 2 +. . .+ k , . . .
10 10 10 10 10
converge para 0, 1, daí, Sk converge para 0, 8, ou seja, a representação deste α, segundo a

denição anterior é 2, 8. Do mesmo modo, a representação decimal com innitos noves de

0, 47 é representada por 0, 469999 . . ..


Deste modo, estamos apontando para o fato de que representações decimais nitas ou perió-

dicas correspondem a números racionais. De fato, seja α = 0, a1 a2 . . . an um número real com


n
representação decimal nita. Multiplicando por 10 em ambos os lados da igualdade obtemos,

a1 a2 . . . an
10n α = a1 a2 . . . an ⇒ α = ,
10n
o que nos garante que α é um número racional.

Do mesmo modo, seja α = 0, a1 a2 . . . an a1 a2 . . . an . . . um número real com representação


n
decimal periódica (n ≥ 1). Multiplicando por 10 em ambos os lados desta igualdade obtemos

10n α = a1 a2 . . . an , a1 a2 . . . an . . . a1 a2 . . . an . . .. Subtraindo os lados destas duas igualdades, na


ordem dada, obtemos

a1 a2 . . . an
10n α − α = a1 a2 . . . an ⇒ (10n − 1)α = a1 a2 . . . an ⇒ α = ,
10n − 1
o que nos garante que α é um racional.

Reciprocamete, pode-se provar que todo número racional possui representação decimal nita

ou periódica ([3] é uma referência para uma demonstração rigorosa deste fato).

5.5 R não é enumerável

A representação decimal dos números reais feita acima, permite que mostremos que R não

é enumerável. Mas, antes disso, precisamos de dois resultados.

Proposição 5.5.1. Todo subconjunto innito de um conjunto enumerável é enumerável.

Demonstração. Seja X um conjunto enumerável e Y um subconjunto innito de X . Como X


é enumerável, existe f : X −→ N bijetora. Dessa forma, tomemos f |Y : Y −→ N, com isso,

f (Y ) ⊂ N, daí, pelo Lema 4.3.6, f (Y ) é enumerável, isto é, existe g : f (Y ) −→ N bijetora.


Sabendo que g e f |Y são bijetoras, obtemos que g ◦ f |Y : Y −→ N é bijetora, portanto Y é

enumerável, como queríamos.

Lema 5.5.2. O intervalo I = ]0, 1[ não é enumerável.

Demonstração. Devemos mostrar que, qualquer que seja a enumeração estabelecida para ele-

mentos de I, sempre existirá um elemento de I não considerado na dada enumeração, isto é,

qualquer subconjunto enumerável de I é diferente de I, de onde obteremos que I não pode ser

enumerável.

De fato, seja I0 um conjunto enumerável constituído de elementos de I que, portanto, pode


0
ser escrito na forma I = {x0 , x1 , x2 , . . .}, onde, para cada n ∈ N, xn representa a imagem de n

86
por um certa bijeção de N em I 0 . Vamos representar cada elemento de I0 pela sua representção

decimal dada acima, sem innitos noves consecutivos:

x0 = 0, x00 x01 x02 . . .


x1 = 0, x10 x11 x12 . . .
x2 = 0, x20 x21 x22 . . .
.
.
.

xk = 0, xk0 xk1 xk2 . . .


.
.
.

Vamos construir um número real x ∈ I , diferente de todos os elementos de I 0 através da


seguinte representação decimal: 0, a0 a1 a2 . . ., onde, para cada n ∈ N, o dígito decimal an dessa

representação é diferente de 9, de 0 e do dígito decimal xnn da representação de xn . Pela bijeção

estabelecida acima, a representação decimal 0, a0 a1 a2 a3 . . . corresponde a um único número real


0
de I que é diferente de todos os elementos de I , como queríamos. Este argumento se deve a

Cantor e se chama método diagonal de Cantor, por conta da disposição de matriz innita em

que foram coloados os elementos de I0 acima.

Teorema 5.5.3. O conjunto dos números reais é não enumerável.

Demonstração. Pelo Lema 5.5.2, o subconjunto I de R é não enumerável, logo, pela Proposição
5.5.1, R não pode ser numerável.

O importante Teorema de Schroder-Bernstein pode ser encontrado com mais detalhes em

[9] e diz que:

Teorema 5.5.4 (Schroder-Bernstein). Se A e B são conjuntos e existem sobrejeções f : A −→


B e g : B −→ A, então AeB são equipotentes, isto é, existe uma bijeção entre esses conjuntos.

Pode-se obter a mesma conclusão se considerarmos f e g funções injetoras em vez de so-

brejetoras. Este resultado é bastante importante e será usado na prova da proposição que

segue.

Proposição 5.5.5. Os conjuntos R e P(N) são equipotentes.

Demonstração. Vamos mostrar que existem duas funções injetoras ϕ : R −→ P(Q) e f :


P(N) −→ R. Como Q é enumerável, temos que existe uma bijeção entre N e Q, isto é, eles

são equipotentes e, assim, os conjuntos P(Q) e P(N) também são, isto é, existe uma bijeção

ψ : P(Q) −→ P(N). A função g = ψ ◦ ϕ : R −→ P(N) será, portanto, injetora. Das

injetividades de f e g , concluímos, pelo Teorema de Schroder-Bernstein, que R e P(N) são

equipotentes. Precisamos, então, apenas denir ϕ e f e mostrar que são injetora.


Denimos ϕ : R −→ P(Q) como segue: cada a ∈ R, ϕ(a) = {x ∈ Q | x < a}. Para mostrar

que ϕ é injetora, sejam a e b reais distintos, digamos a < b, sem perda de generalidade. Pelo

5.3.26, existe a < r < b com r racional. Como r < b, então r ∈ ϕ(b) e, ainda, como a < r ,

temos que r ∈ / ϕ(a), logo ϕ(a) 6= ϕ(b). Concluímos assim que ϕ é injetora.
Para denirmos f : P(N) −→ R, seja A ∈ P(N) e consideremos a função XA : N −→ {0, 1},

dada por

87
(
1, se n ∈ A,
XA (n) =
0, se n ∈ N \ A.
Com o auxílio dessa função, denimos f (A) como sendo o número real cuja representação
decimal será 0, XA (0)XA (1)XA (2)XA (3) . . .. Para mostrar que f é injetora, seja A 6= B , isto

é, existe n0 ∈ A tal que n0 ∈ / B (ou n0 ∈ B tal que n0 ∈ / A). Dessa forma XA (n0 ) = 1 e
XB (n0 ) = 0, daí, podemos ver que

f (A) = 0, XA (0)XA (1) . . . XA (n0 ) . . . = 0, XA (0)XA (1) . . . 1 . . .

f (B) = 0, XB (0)XB (1) . . . XB (n0 ) . . . = 0, XB (0)XB (1) . . . 0 . . .

o que signica que f (A) 6= f (B). Logo, f é injetora.

88
Capítulo 6

Números Complexos
Os números complexos são ensinados no Ensino Médio como expressões do tipo a + bi, onde
2
a, b ∈ R e i é a unidade imaginária, com a propriedade de que i = −1. Dessa forma, pode-se

manipular tais expressões como expressões algébricas reais, sob a condição de que i2 = −1. O

que faremos agora é justicar a origem desta unidade imaginária com rigor matemático.

6.1 Construção dos complexos

Relembremos, por um momento, como lidávamos com números complexos no ensino básico:

Dois números, a + bi e c + di, são iguais apenas quando a=c e b = d, o que nos lembra a

igualdade entre os pares coordenados (a, b) e (c, d). Temos também, que,

(a + bi) + (c + di) = (a + c) + (b + d)i

e que,

(a + bi) · (c + di) = (ac − bd) + (ad + bc)i.

Admitindo um número complexo como um par ordenado, podemos denir formalmente as

operações de adição e multiplicação como segue.

Denição 6.1.1. Consideremos o conjunto R × R = R2 . Se (a, b), (c, d) ∈ R2 , denimos a

adição e a multiplicação da seguinte forma, respectivamente:

(a, b) + (c, d) = (a + c, b + d) e (a, b) · (c, d) = (ac − bd, ad + bc).

O conjunto R2 , munido dessas operações, será chamado conjunto dos números complexos e

denotado por C, onde cada par ordenado é chamado de número complexo.

Teorema 6.1.2. As operações em C têm as seguintes propriedades: a adição e a multiplica-

ção são comutativas, associativas e têm elemento neutro: (0, 0) para a adição e (1, 0) para a
multiplicação. Além disso, dado (a, b) ∈ C, seu simétrico existe,
 −(a, b),
 que é (−a, −b) e, se
a −b
(a, b) 6= (0, 0), seu inverso existe, (a, b)−1 , que é , 2 . Finalmente, a multiplica-
a + b a + b2
2 2
ção é distributiva em relação à adição.

Demonstração. Sejam (a, b), (c, d), (e, f ) ∈ C.

89
1. Comutatividade da adição:

(a, b) + (c, d) = (a + c, b + d) = (c + a, d + b) = (c, d) + (a, b);

2. Associatividade da adição:

(a, b) + ((c, d) + (e, f )) = (a, b) + ((c + e, d + f )) = (a + (c + e), b + (d + f ))


= ((a + c) + e, (b + d) + f ) = ((a + c, b + d)) + (e, f )
= ((a, b) + (c, d)) + (e, f );

3. Elemento Neutro da adição: (0, 0) ∈ C.

(a, b) + (0, 0) = (a + 0, b + 0) = (a, b);

4. Comutatividade da multiplicação:

(a, b) · (c, d) = (ac − bd, ad + bc) = (ca − db, cb + da) = (c, d) · (a, b);

5. Associatividade da multiplicação:

(a, b) · ((c, d) · (e, f )) = (a, b) · ((ce − df, cf + de))


= (a(ce − df ) − b(cf + de), a(cf + de) + b(ce − df ))
= (ace − adf − bcf − bde, acf + ade + bce − bdf )
= ((ac − bd)e − (ad + bc)f, (ac − bd)f + (ad + bc)e)
= (ac − bd, ad + bc) · (e, f )
= ((a, b)(c, d)) · (e, f ).

6. Elemento Neutro da multiplicação (1, 0) ∈ C:

(a, b) · (1, 0) = (a · 1 − b · 0, a · 0 + b · 1) = (a, b);

7. Simétrico de (a, b): (−a, −b) ∈ C.

(a, b) + (−a, −b) = (a + (−a), b + (−b)) = (0, 0).

O simétrico de (a, b) será denotado por −(a, b);


 
a −b
8. Inverso de (a, b) 6= (0, 0): , 2 ∈ C.
a + b a + b2
2 2

a2 b2
   
a −b −ab ab
(a, b) · , 2 = + , 2 + 2 = (1, 0).
a + b a + b2
2 2 2
a +b 2 2 2
a +b a +b 2 a + b2

O inverso de (a, b) 6= (0, 0) será denotado por (a, b)−1 ;

90
9. Distributividade da multiplicação em relação a adição:

(a, b) · ((c, d) + (e, f )) = (a, b) · (c + e, d + f )


= (a(c + e) − b(d + f ), a(d + f ) + b(c + e))
= (ac + ae − bd − bf, ad + af + bc + be)
= (ac − bd + ae − bf, ad + bc + af + be)
= (ac − bd, ad + bc) + (ae − bf, af + be)
= (a, b) · (c, d) + (a, b) · (e, f ).

Assim como zemos em todos os conjuntos anteriores, vamos imergir R em C através de

uma função injetora que preserva as operações de adição de multiplicação, mostrando que existe

uma cópia algébrica de R em C. Observemos inicialmente que um número complexo arbitrário

(a, b) pode ser escrito como (a, b) = (a, 0) + (b, 0)(0, 1).

Teorema 6.1.3. Seja k : R → C, dada por k(x) = (x, 0). Temos que, k é injetora e preserva
as operações de adição e multiplicação, isto é, k(x + y) = k(x) + k(y) e k(xy) = k(x)k(y).

Demonstração. Provemos que k é injetora. De fato, se k(x) = k(y), então, (x, 0) = (y, 0), que

signica, x = y, logo k é injetora. Temos ainda que,

k(x + y) = (x + y, 0) = (x, 0) + (y, 0) = k(x) + k(y)

k(xy) = (xy, 0) = (x, 0) · (y, 0) = k(x)k(y).

Desta forma, k(R) é uma cópia algébrica de R em C, o que nos permite identicar R com
k(R) e considerar R ⊂ C. Admitindo esta identicação e adotando o símbolo i para o número
complexo (0, 1), a expressão mensionada acima, (a, b) = (a, 0) + (b, 0)(0, 1), pode ser escrita

como a + bi, como é ensinada no Ensino Médio.

Notemos que i2 = (0, 1)2 = (−1, 0), que pode ser identicado por −1. Temos que, os
números complexos escritos da forma a + bi, com b 6= 0, chamam-se números imaginários, e,

se além disso, a = 0, obtemos os imaginários puros. Tal denominação provém do fato que

os complexos demoraram a ser aceitos como números, dessa forma, o termo imaginários tem

sentido contraposto a reais.

Teorema 6.1.4. C não é enumerável.

Demonstração. Vimos que R ⊂ C. Pela Proposição 5.5.1, se C fosse enumerável, R também

deveria ser, o que contradiz o que já mostramos. Portanto C não é enumerável.

91
6.2 C não é ordenável

Vistas as propriedades aritméticas de C (Teorema 6.1.2), verica-se que são as mesmas

que as de R e Q, sendo assim, podemos dizer que C é um corpo. Entretanto, vimos que os

elementos, tanto de R quanto de Q mantêm uma relação de ordem, o que não ocorre em C,
isto é, intuitivamente falando, não temos como dizer se 3 é maior ou menor do que 3i, por

exemplo. Dessa forma, como R e Q são dotados de uma relação de ordem compatível com as

suas operações, eles são ambos ordenados.

Vamos provar a seguir que C é um corpo não ordenável, isto é, mostraremos que é impossível
dotar C de uma relação de ordem compatível com as suas operações aritméticas. No entanto,

C possui uma propriedade algébrica que R e Q não têm, o Teorema Fundamental da Álgebra,

cuja demonstração foi a tese de doutorado de Johann Carl Friedrich Gauss (1777 -1855). Tal

teorema arma que todo polinômio não constante com coecientes complexos admite uma raiz

em C (argumentos elementares da prova deste teorema podem ser encontrados em [8]).

Teorema 6.2.1. C não é um corpo ordenável.


Demonstração. Como C é um corpo, se C fosse ordenado, teríamos que x2 ≥ 0 para todo x ∈ C
2
(pela Proposição 4.3.18), entretanto, como i ∈ C e sabendo que i = −1 < 0, encontramos uma

contradição, o que mostra que C não é um corpo ordenável.

Podemos notar que Z não é um corpo, pois seus únicos elementos inversíveis são 1 e −1.
No entanto, Z possui todas as outras propriedades de corpo, além de uma relação que satisfaz

o Princípio da Boa Ordem, sendo assim, Z diz-se um domínio de integridade bem ordenado,

enquanto N não possui nem a propriedade do elemento simétrico. Diante de todas estas cons-

truções, o gráco abaixo representa as imersões próprias de N em Z, de Z em Q, de Q em R e

de R em C.

•2

•(2,0) •(0,2)

•2/1 •-2/1 •2/5

•(2/1)* •(-2/1)* •(2/5)* 2

•(2,0) •(-2,0) •( 2 ,0) •i


•(2/5,0)

Figura 6.1: Diagrama de Imersões Próprias

Após todas estas contruções, podemos nos perguntar se os conjuntos numéricos param por

aí, isto é, se existem conjuntos nos quais C pode ser imerso propriamente. Na verdade, fazendo
2 2
R ×R como foi feito na contrução dos complexos, podemos obter o anel dos quatérnios de

92
Hamilton, que perde a estrutura de corpo, pois a comutativa da multiplicação deixa de ser

válida. Esta estrutura foi desenvolvida no século XIX pelo irlandês William Rowan Hamilton.

C pode ser imerso propriamente no anel dos quatérnios.

Os quatérnios, podem ainda ser imersos nos octônios (O), estes contruídos sobre R4 × R4 ,
no qual a multiplicação não é mais associativa. Esse processo de imersão em conjuntos maiores

pode prosseguir innitamente através da construção de Cayley-Dickson. Porém, o Teorema de

Frobenius, provado por Ferdinand Georg Frobenius (1848-1917), em 1877, caracteriza a álgebra

de divisão associativa de dimensão nita sobre os números reais. De acordo com o teorema,

cada tal álgebra é isomorfa a um dos seguintes: R (números reais), C (números complexos), H
(Quatérnios).

Estas álgebras têm dimensões 1, 2 e 4, respectivamente. Esse teorema está intimamente

relacionado com o teorema de Hurwitz (Adolf Hurwitz (1859-1919)) , que arma que as únicas

álgebras de divisão normalizadas ao longo os números reais são R, C, H, e O. Para mais

infomações, pode-se consultar [10].

93
Bibliograa
a
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