LIVRO - Lado B - Enrique Coimbra
LIVRO - Lado B - Enrique Coimbra
LIVRO - Lado B - Enrique Coimbra
— Primeira Temporada —
Ficha Catalográfica
Coimbra, Enrique
Lado B – Primeira Temporada / Enrique Coimbra. Rio de Janeiro,
2009.
101 páginas
O que é ser adolescente hoje em dia? Existem fases? Experiências que mudarão o rumo de
toda uma vida baseada em algo totalmente conhecido? O medo do desconhecido é normal? E
as mudanças de personalidade? Isso explica os rompimentos de amizades e o nascimento de
outras?
Ser adolescente é isso. E mais um pouco. A história dessa série de livros era uma
totalmente diferente da que é agora. Era para contar a história de um garoto tentando lidar
com o assédio de várias meninas e aprendendo que a maioria delas não valia nada. Mas
depois, convivendo com algumas pessoas, descobri que se eu mudasse o tema da história,
colocando problemas existenciais (envolvendo sexualidade) e dúvidas cotidianas, a história
ficaria muito mais interessante e útil.
Muitos dos fatos narrados realmente aconteceram, mas não comigo. Bem, alguns sim, mas
a maioria vem de amigos ou conhecidos que contaram suas vidas para mim, ou pequenas
situações que presenciei e ouvi por terceiros. Espero que, além de gerar boas horas de
diversão, esta obra lhe ajude a enxergar momentos da vida com mais clareza e objetividade e
para que você possa aprender que ser adolescente não é fácil e nunca será, não importando
quantas gerações passem. Temos problemas próprios e, às vezes, estamos sozinhos para
enfrentá-los.
Ser adolescente é achar em si mesmo a força para superar toda e qualquer dificuldade.
Enrique Coimbra
[email protected]
www.twitter.com/enriquecoimbra
www.enriquecoimbra.blogspot.com
*Versão definitiva. Você pode distribuir e espalhar essa obra, mas JAMAIS poderá vendê-
la! Todas as marcas citadas possuem seus próprios direitos, não sou proprietário de muitas
delas. Também é TOTALMENTE proibido modificar o conteúdo dessa obra. Caso
testemunhe algum tipo de ganho financeiro com esse livro, reporte-me o abuso.
Episódio Um
Piloto
E
lá estava eu, em um apartamento em Niterói com mais sete adolescentes, sendo
que duas meninas seminuas estavam se beijando descontroladamente na boca
enquanto três garotos totalmente cheirados gritavam e urravam de prazer como
cães atrás de cadelas no cio. Estávamos jogando Verdade ou Consequência com uma garrafa
de Campari que fizemos questão de esvaziar em nossas taças em pouquíssimos segundos. Eu
era o garotinho de cabelos ondulados e dourados, pele branca e olhos verdes que se tornavam
azuis na presença da luz solar. Eu era o que se chamava “projeto de galã de novela das oito”,
e pensar que em alguns dias atrás, uma semana, para ser mais exato, eu era apenas um ex-
estudante do primeiro ano do ensino médio. As pessoas mudam, não é isso o que dizem?
— Lílian para Éron! — alguém muito doidão gritou após outro alguém chapado girar a
garrafa. Eu nem prestei atenção em quem tinha gritado ou girado, pois ainda estava
maravilhado com o primeiro beijo lésbico que havia presenciado em meus simples quinze
anos de existência na face da Terra. Ah, eu sou Éron.
— Verdade ou Consequência, Éron? — perguntou Lílian, a mascote do grupo. Ela poderia
ser uma menininha boba e frequentadora puritana de uma igreja evangélica com seu corpo
pouco desenvolvido e seus negros olhos de santinha se não tivesse a alma mais suja e
pervertida pra uma menina...
Verdade ou consequência? Se fosse a qualquer outro momento da minha vida eu nem
estaria jogando essa perversão, mas naquele apartamento, naquela hora, eu queria mais é ver
o circo pegar fogo, mesmo que eu saísse queimado. É o preço a se pagar quando se quer
diversão cheia de luxúria.
— Consequência. — respondi, rezando para que ela me fizesse beijar Aline ou Aidée, as
duas meninas que estavam se beijando há pouco.
Lílian espremeu seus sacros e minúsculos olhos escuros e começou a pensar. Risadinhas
chapadas ecoavam pelo enorme quarto que estávamos, todos sentados em cima da cama king
size de lençóis brancos de seda que já estava todo respingado do vermelho Campari. As
paredes casca-de-ovo e os móveis brancos davam a sensação de uma sala contemporânea,
lugar perfeito para aqueles moderninhos que buscam sacanagem.
— Quero que você beije... o Jason! — ela gritou animada, rindo bêbada e batendo palma
como uma foca demente.
— Não vou fazer isso! — exclamei. O sorriso do meu rosto sumiu deixando lugar para que
uma expressão de raiva tomasse conta de minhas bochechas pálidas. Sim, eu queria colocar
fogo no circo, e me queimar até seria legal, mas me queimar e “sair torrado” são coisas
totalmente diferentes.
— Eu topo... se ele topar... — disse Jason. Você poderia se enganar com ele também:
carinha de bebê levemente queimada de Sol, esbelto, cabelos loiros também queimados de
Sol e olhos cor-de-mel. Acharia que ele era um surfistinha rico e comportado, mas, de todos,
ele parecia ser o mais safado, um daqueles que topam tudo por dinheiro... ou prazer.
— Eu já disse que não topo! — repeti irritado. Beijar um cara? Fora de cogitação! Eu era o
tipo de garoto que odiava gays, travestis e o cacete, literalmente. Numa época, por volta dos
treze anos, como eu era um garoto solitário e CDF, pensei em me tornar neonazista... aos
quinze eu não queria ser neonazista, mas ainda possuía o nojo e a repulsa a atos
homossexuais. — Nem tentem me obrigar.
— Se eu beijei a Aline, que mal vai ter se você beijar o Jason? — era Aidée, possuidora de
um corpo ao estilo modelo européia: alta, loira de cabelos compridos, branca, sem peito ou
bunda mas com uma barriga tão reta e corpo tão magro que qualquer mulher teria bulimia
para consegui-lo. Estava apenas de calcinha e sutiã pretos que nem tinham muito que tapar,
mas não deixavam de completar sua beleza padrão internacional.
— Problema seu se você beijou a Aline! Eu não vou beijar o Jason, pode ir mudando a
consequência!
As meninas suspiraram enquanto Roberto e Jones dividiam um cigarro de maconha.
— Ok, então, tipo, beija o peito da Aidée. — disse Lílian tentando parecer descolada.
Ótimo pra mim.
— Que peito? Ela nem tem isso. — brincou Aline para a risada de cada um e todos os
presentes ali, incluindo eu.
— Vaca! — lançou Aidée rindo e tomando goles de champagne da garrafa ao lado da
cama.
— Anda, beija! — pediu Lílian.
Aidée baixou o sutiã no lado esquerdo exibindo o mamilo do tamanho de um limão
pequeno, mas que não deixava de ser excitante. Me aproximei devagar e meus lábios tocaram
lentamente o seio dela enquanto os outros riam, uivavam e comemoravam. Para mim, aquilo
era uma conquista. Para os outros — excluindo Lílian, é claro —, aquilo era algo
completamente rotineiro em festinhas de apartamentos grandes, vazios e caros. Vida chata,
não?
— Aêêê! — comemorou Aline rindo depois de dar “um tapa” no cigarro dos rapazes. O
cheiro de maconha era horroroso e quase insuportável, mas Aline até que era suportável. Seu
cabelo azulado em corte chanel dava o contraste com sua pele meio acinzentada. Também
estava de calcinha e sutiã, só que os dela eram brancos com estampas de animaizinhos
coloridos.
— Roda, Éron! — gritou Roberto, o garoto mais malhado de todos nós. Não que ele fosse
um monstro, mas era o mais fortinho entre os garotos dali do grupo; o dono do apartamento
e o idiota que me levou àquela festa. Ele tinha músculos bem distribuídos em seus 1,78 de
altura, cabelos muito curtos e pretos, rosto quadrado e olhos cinza. Era do terceiro ano e
estudava no mesmo colégio que eu, Lílian e Aline, o Bertha Lutz. Ele fazia o maior sucesso lá
e era o garoto mais popular. Me chamou para o apartamento dele por se identificar comigo e
para me ensinar a “arte” de ser cobiçado. Vivia dizendo que, quando ele saísse do colégio, eu
tomaria o seu lugar e deveria estar preparado, pois era difícil demais. Vazio.
— Luisa para Aidée! — anunciei depois de rodar. Luisa era irmã de Jones e os dois tinham
traços, como pele e cabelo, muito parecidos.
Luisa era mediana, com longos cabelos pretos de brilho perolado e fios muito lisos e
uniformes, pele bronzeada, lábios rosados e finos, com olhos meigos e gentis. Meigos?
Gentis? Só fachada mesmo.
— Até que enfim essa porra caiu pra mim! — ela reclamou soltando um par de perdigotos
na garrafa. — Verdade ou Consequência?
— Conse-quênciaaa! — gritou Aidée animada e jogando as mãos para o alto, coçando a
virilha logo depois com a mão direita. E ela se depilava, isso era um fato.
— Eu quero que você pegue no pau do Jones!
— Ui! — Aidée exclamou — Com prazer!
Jones, o irmão de Luisa, possuía o mesmo tom de pele e cor de cabelo que os da irmã. A
diferença estava no corpo, pois ele era mais quadrado e seu cabelo era mais curto. Ele sorriu
com dentes branquíssimos e cheios de tesão. Aidée-fazendo-a-sexy, se aproximou dele e
pegou no “protagonista” com a mão inteira e toda vontade de que pôde reunir.
— Ai gente, chega de jogar essa porra. — disse Luisa — Quero cheirar um pouco.
— Ah, eu também! — concordou Aline — Quer experimentar, Lílian?
— Ah... pode ser, eu acho. — assentiu ela, tímida.
— Não quer, Hércules? — perguntou Luisa para mim.
— Não. E meu nome é Éron. Éron.
— Caretão, você. Vamos, tô louca já.
As três meninas saíram do quarto que fedia a alguma mistura horrenda de fumaça de
cigarro, maconha, Campari e champagne. Roberto e Jason estavam deitados na cama de
olhos e bocas abertos, como dois mongolóides, contemplando alguma coisa invisível no teto.
Jones e Aidée, após e pegação genital, estavam se pegando total, com um daqueles beijos que
suga até a alma da pessoa. E eu estava lá, ainda com a sensação de me sentir um forasteiro e
com um pouco de culpa por ter “traído” a única garota que já havia amado: Mirla.
“Tudo bem”, alguém iria dizer, “beijar o peito de uma garota que você conheceu há
apenas dez minutos nem é tanta traição assim...” Mas eu considerei traição sim, porque eu
odiaria que ela fizesse o mesmo num garoto qualquer... ou em uma garota. Aquela festa era
para ter sido a reunião de organização de outra festa que ia parar o verão no colégio: Verão
Explosivo. Tudo bem que o nome não era lá essas coisas, mas estar no comitê de organização
valia muito mais do que qualquer outra coisa que poderia ser feita no colégio para se
conseguir reconhecimento rapidamente. Se bem que, com apenas uma semana na escola, eu
já tinha conseguido bastante reconhecimento, ainda mais para um novato. Diziam que era
por causa da minha beleza, mas não tinha certeza se realmente era isso. Na verdade, eu não
sabia de mais nada. Roberto e Aline logo se aproximaram de mim quando comecei a ficar
popular, dando a desculpa de que eu merecia estar com eles, que eu era digno. Até parece.
Me levantei da cama devagar para que não sentissem meu afastamento e saí do quarto
para o comprido corredor com mais três portas de madeira. Uma dessas portas foi onde
entrei, do outro lado da parede: era o meu quarto... ou melhor, apenas um dos três quartos de
hóspedes do apartamento de Roberto. As paredes amarelas decoradas com pinturas abstratas,
cama e rack brancos e um computador preto deveriam dar uma sensação de aconchego, mas
eu não estava nem um pouco confortável por estar ali. Eu não estava confortável por estar
comigo mesmo. Nos dois primeiros dias de aula eu ainda era o Éron Brascher da nona série
que era zoado demais pelos garotos que invejavam a minha inteligência e era idiotamente
adorado em segredo pelas meninas que me achavam bonito. Mas aí, no terceiro dia, todos,
fossem meninos ou meninas, começaram a puxar assunto e tentavam manter contato.
Algumas pessoas compraram calças jeans do mesmo tipo das minhas e me pediam dicas para
manter a pele sem espinhas. Mas eu tinha espinhas, tudo bem que eram duas ou três, mas eu
tinha. Foi a partir daí que eu percebi quem eu poderia me tornar. Nunca mais o CDF e sim
um dos modelos de estilo e comportamento entre todos os garotos e garotas de personalidade
fraca. Acabei me vendendo, no quarto dia, às grifes nacionais e internacionais e foi quando
me uni a Roberto e Aline, mas eles não eram meus amigos. A única pessoa que eu realmente
pude chamar de amigo no colégio foi uma menina muito especial e única, a garota que se
tornou a minha melhor amiga logo na primeira semana: Helen Baptista.
Helen foi a primeira pessoa a falar comigo no Bertha, pedindo emprestado meu earphone
na aula de biologia. Eu emprestei, e depois nos vimos discutindo para saber se Franz
Ferdinand era melhor do que Cobra Starship, banda que ela adorava. A cada dia ficávamos
mais unidos, até o terceiro, quando comecei a andar com a dupla. Helen se tornou um pouco
agressiva com qualquer pessoa e se mostrava mais distante. Às vezes, quando eu ia para o
Bob’s — point de encontro dos “disputados” do outro lado da rua — com os dois e a
chamava, ela ficava uma fera, dizendo que preferia a morte a andar com favelados. Eu dizia
que andar com os dois nem era tão ruim assim e que a nossa amizade, por mais recente que
fosse, não ia ficar abalada, que eu não ia deixá-la por nenhum deles. Nunca. Ela não me deu
ouvidos e, na sexta, o dia em que chegamos ao apartamento, ela prometeu no colégio que
estaria melhor na segunda.
Já a história com a Mirla é menos complicada: nos conhecemos na quarta e ela acabou me
beijando. Eu nunca tinha dado em cima de uma menina, pois era muito tímido, mas nela eu
dei, mostrei que estava super afim, mas só não a beijei por falta de coragem mesmo. Ela era
do segundo ano, super excêntrica e meio louca. Tinha uma pequena má fama de piranha no
colégio para os poucos que a conheciam por nome, mas eu não liguei e, na quinta, a pedi em
namoro por acreditar que eu a amava. E eu sabia que a amava. Acho que ela foi o meu
primeiro amor. Ainda lembro do nosso primeiro beijo, sentados em um píer da praia de
Dourado: eu totalmente tímido e travado; ela aproximando aquela boca coberta com gloss de
cheiro e gosto de chocolate, o brilho de seus negros cabelos brilhando à luz do pôr-do-sol,
seus olhos caramelos se fechando... foi maravilhoso e, na época, inacreditável. Mágico.
Voltando à realidade, me sentei na ponta da cama de solteiro e contemplei o vazio da
parede. Era sexta-feira e eu precisava sobreviver — ou fazer com que os outros não
morressem de overdose, pelo menos — até o final de sábado, quando voltaríamos para casa.
Ah, sim, Dourado era uma cidade do estado do Rio de Janeiro, perto da cidade do Rio de
Janeiro. Uma praia pouco conhecida de apenas dois quilômetros, de mar calmo, cercada de
colinas repletas de lotes e condomínios residenciais que davam um ar especial para aquele
lugar. Tudo bem que era uma cidade beeem pequena, mas era extremamente linda. Olhando
das casas da colina, o pôr-do-sol deixava tudo dourado, daí o nome do lugar, eu achava. Em
Dourado tínhamos supermercados, lojas de roupas, delegacia, escolas e, principalmente, um
shopping chamado Solar, lugar de encontro de todas as maiores lojas e lanchonetes. Dourado
poderia ser o paraíso se não fossem as escolas, as boates gays e os velhos ricos em fase
terminal, que escolheram aquela linda cidade como uma escada para o céu. Ou para o
inferno. Lá tinha de tudo.
Eu tinha que manter todos vivos, por mais que estivessem cuspindo seus rins e pulmões
pela boca. E teria que tentar, ao menos, me divertir mais um pouco, afinal eu tinha que
exorcizar o CDF do meu corpo de uma vez por todas. Um Éron novo tinha que nascer.
Caretão, mas tinha que nascer. Me levantei da cama num pulo e voei para a sala. Música é
essencial para quem quer animar uma festa. Estava tocando Check Yes Juliet baixinho. Bem,
se o condomínio era de veraneio — ou seja, de férias de verão — e elas já tinham acabado,
que mal haveria se eu aumentasse o som? Com uma música melhor, é claro. Voltei para o
quarto e peguei meu celular que havia caído do meu bolso na cama. Conectei-o ao rádio via
Bluetooth e aumentei o volume para um nível considerável com a música Electric Feel,
tocada pela louca dupla MGMT. Voltei para o quarto onde jogamos e me deparei com
Roberto agarrado aos beijos com Jason na cama, os dois sem camisa e muito — mesmo —
excitados. No chão, Jones, também sem camisa, agarrava a bunda nua, branca e magrela de
Aidée, que também, por sinal, estava sem sutiã. Em qualquer outro momento da minha vida
eu iria gritar e bater nos viadinhos, mas naquele apartamento eu aprendi uma coisa extra.
Peguei o meu celular correndo e o desconectei do rádio, voltando para a porta do quarto sem
que eles percebessem e iniciei uma gravação. Não, não era uma gravação. Era a sextape dos
quatro. Aquilo poderia não ser útil naquele momento ou nos meus momentos de solidão,
mas eu tinha que possuir alguma garantia, caso alguém ali tentasse me trair no futuro.
Após quatro longos minutos e vinte segundos de pegação fora-da-lei ilimitada, Roberto
caiu na cama, ofegante, parecia dormir. Antes que Jason pudesse me perceber com seus olhos
embaçados de bagulho, voltei para a sala rindo. Rá, rá, quem iria mexer comigo?
— O que houve? — perguntou Aline de sutiã e saia super curta cor de rosa. Grande
avanço.
— Parece que aconteceu alguma coisa? — perguntei tentando fazer o meu sorriso de
vitória sumir do meu rosto.
— Você tá... — ela engoliu um arroto — tá todo risonho... — ela estava parada, mas seu
corpo queria cambalear.
— Sabe quando você se sente invencível?
— Sei sim. Fico assim quando cheiro. — ela sorriu — Puta merda, sou uma drogada. Vou
pro banho.
Ela foi até a mala rosa ao lado do sofá branco da enorme sala verde-abacate com uma TV
de plasma de quarenta e duas polegadas apoiada em um rack também branco repleto de CDs
e DVDs de filmes antigos. Ao lado da imensa porta de vidro que dava para a varanda externa
do apartamento, estava o super aparelho de som para dez CDs, com duas entradas USB e
conexão via Bluetooth. O lugar parecia ser ainda mais família com o tapete de pêlos
sintéticos verdes e altos no chão branco, entre a TV e o sofá.
Aline se inclinou empinando a pequenina bunda-de-minissaia-rosa e pegou uma toalha
salmão, uma regata verde decotada e um shorts branco que mais lembrava uma cueca.
— Vai ao banheiro? — ela perguntou após quase cair ao se erguer.
— Não. Pode ir. Qualquer coisa o pessoal vai no banheiro do quarto do casal.
— Ok... não quer tomar banho comigo? — ela perguntou tentando parecer sexy, mas
esqueceu que estava super cheirada.
— Você é uma drogada. — respondi segurando o riso.
— Tem razão. Vou pro banho. — ela disse parecendo não ter entendido a brincadeira.
Assisti seu corpo magro balançar até o banheiro no final do corredor, antes da cozinha.
Ainda estava digerindo o que tinha acontecido no quarto e a minha própria reação. Será que
eu sempre fui assim, mas não tive a oportunidade de demonstrar? Será que por ser tímido e
intimidado pelos outros eu “guardei” esse meu pior lado no fundo do meu peito? Eu não
podia e nem conseguia saber, mas eu tinha certeza que essa parte de mim se divertia e estava
doida para que Roberto pisasse logo na bola, para que eu tivesse um motivo para me fazer de
vítima e derrubá-lo, catando o lugar dele como dono do colégio. “Quer conhecer um
homem? Dê poder a ele.” Quer que reconheçam um perdedor? Publique um vídeo dele ao
estilo Brokeback Mountain, com um beijo gay nojento com um homem sem camisa numa
cama coberta com seda.
De repente, me despertando de meus pensamentos, o refrão da música Cath da banda
Death Cab For Cutie começou a tocar de meu celular.
— Oi, Helen. O que houve? — ela nunca poderia ligar para apenas bater papo, pois os
pais dela eram controladores demais. Sua mãe era uma dona-de-casa-idiota, daquele tipo que
obedece todas as ordens do marido cegamente. Já o pai era um monstro machista, que tratava
a esposa e a filha como lixo. Pelo que Helen me contava, ele era violento e insensível. Uma
vez, ele bateu em Helen com um cinto de couro porque ela havia conversado com uma
vizinha na porta de casa.
— Éron! — ela estava apavorada, com a voz ofegante e chorosa — Éron, por Deus você
atendeu!
— Helen, calma!
— Não dá, Éron! Eu preciso de ajuda!
— O que é que aconteceu? — perguntei quase ficando desesperado também. O que quer
que tenha acontecido parecia ser sério.
— Não dá tempo de explicar, você tem que me buscar.
— Helen, eu tô —
— Éron, tenho... — ela engoliu seco — Vou desligar! Por favor, passe aqui às cinco em
ponto! Nem mais cedo nem mais tarde! Te amo, por favor!
Ela desligou antes de me explicar o que realmente estava acontecendo, com um último
suspiro de choro. Olhei no celular e ainda eram duas e cinquenta. Se eu quisesse chegar a
Dourado em tempo, teria que sair dali imediatamente, naquela mesma hora. O problema
maior era que eu não poderia dirigir, por mais que eu soubesse. Aprendi com simuladores no
computador na época que fiquei viciado em carros. Corri para o quarto de Roberto e os
quatro estavam deitados: casal gay na cama e Aidée e Jones no chão.
— Acorda aí! — gritei enquanto batia palmas estrondosamente — Preciso de alguém que
possa dirigir!
— Cala a boca, porra! — gemeu Aidée me jogando a calça jeans que estava ao seu lado.
— Tá em condição de dirigir? — perguntei ignorando completamente a grosseria.
— Pareço em condição de dirigir?
— Vaca! — lancei — Esquece. — disse quando vi a chave do carro em cima da mesinha
de madeira ao lado da cama de casal.
Voei e peguei-a com toda vontade que pude reunir em mim, voltando correndo para a
sala, onde esbarrei em Lilian, que parecia mais um cadáver, parada no meio do caminho.
— Aonde você vai? — ela perguntou com a voz fraca, trêmula.
— Lugar nenhum. — menti.
— Saquei... — ela estava cheiradinha. Coitada.
— Não tenho tempo pra papo! Tenho que correr!
— Ué...
— Mudei de idéia, agora vou sair!
— E aonde você vai? — era Aline, secando o cabelo com a toalha e vestida com as roupas
que pegou na mala. Que banho rápido é esse? Isso se foi um banho...
— Não dá tempo de explicar.
— Por que esta com a chave do carro do Roberto na mão? Não pretende usar o carro
alugado, né?
— É muito importante! — justifiquei.
— Então vou contigo. Tenho dezoito, sei dirigir e estou bem menos doida.
— Não interessa, vem rápido! Temos que estar em Dourado às cinco em ponto!
— Ok, “vambora”.
Pegamos o elevador e descemos para o estacionamento. Avistamos o Citröen e partimos
às três e três.
— Éron — não sabia dizer se era paranóia minha, mas eu sentia que ela ainda estava com
voz de chapada. — , vê se os documentos do carro estão no porta-luvas.
— Estão. — respondi depois de verificar — Valeu por estar vindo comigo.
— E sem saber o motivo. — ela citou sem tirar os olhos da estrada.
Contei a ela sobre a ligação, mas não entrei em detalhes sobre a vida da Helen, pois era
uma coisa totalmente particular e que ela decidiu dividir apenas comigo.
O resto da viagem foi quieto e às quatro e cinquenta e oito estávamos estacionados na rua
onde Helen morava. Eu não sabia o número da casa dela, então tive que esperá-la na rua.
Não muito tempo depois, ela saiu da casa 505, olhando para todos os lados, meio que me
procurando. Saí do carro e acenei com as mãos para ela. Quando me viu, veio correndo
balançando seus compridos cabelos loiros por cima do corpo magro e branco, vestido apenas
com uma calça skinny, Havaianas brancas e uma camisa púrpura.
— Que bom! — ela exclamou se jogando em meus braços com toda força que pôde. —
Temos que ir rápido!
Olhei seu rosto quando nos soltamos e seus olhos castanhos estavam tão vermelhos
quanto seu pequenino nariz, indicando que havia chorado muito. Um sentimento forte de
raiva e sede de justiça tomou o meu corpo e minha mente. Só entenderia esse sentimento
quem tivesse que conviver com a dor de que alguém que você ama que é maltratado por pais
doentes e idiotas e você não pudesse fazer absolutamente nada para salvá-la, tendo que
suportar tudo num tipo de silêncio torturante, imaginando que ela deve se sentir muito, mas
muito pior.
— Vamos. Você está comigo agora.
Entramos no carro pelas portas traseiras, nos sentando abraçados.
— Nos leve até a M&D. — disse à Aline. — De lá, você pode voltar para o apartamento.
— Você vai voltar para lá? — ela perguntou com o carro já em movimento.
— Assim que eu puder.
Nos três minutos que levamos para chegar até a orla, Helen ficou calada, ofegante,
abraçada comigo com sua cabeça no meu peito. A pizzaria M&D era a maior da orla
comercial da praia de Dourado, com uma fachada toda de vidro meio verde com duas
enormes janelas também de vidro, uma de cada lado da porta giratória, tomando conta de
onde deveriam existir paredes para a rua. Descemos do carro e eu agradeci a Aline com um
movimento de cabeça. Entramos na gigante pizzaria de paredes vermelhas, temperatura
agradável e mesas de madeira cobertas com toalhas verdes. Logo, um atendente nos guiou até
uma mesa mais ao fundo, com duas cadeiras, onde nos sentamos.
— Uma maracanã, por favor, de mussarela. Só isso. — pedi antes que o garçom me desse
o menu.
O garçom confirmou o pedido com um aceno com a cabeça após anotar alguma coisa num
bloquinho e sair de cena. Dirigi meu olhar para Helen logo depois.
— Helen, o que houve?
— Eu não estou mais aguentando, Éron, não tô! — seu rosto ainda estava vermelho e um
pouco inchado por causa do choro. — Meus pais cara... eles estão me matando aos poucos!
Hoje eu cheguei um pouco mais tarde em casa após o colégio e minha mãe não parou de
gritar no meu ouvido e, depois, ainda disse que meu pai ia me dar uma surra... o que eu fiz
pra merecer isso? Não existe motivo pra eles fazerem isso comigo!
Seus olhos se encheram de lágrimas. Eu não estava no lugar dela, mas eu sentia a chama
de vida dela se apagando por dentro. Eu a sentia morrendo, ainda mais quando presenciei
aquele sentimento indescritível de dor e de eu me sentir totalmente inútil.
— Como você saiu de casa naquela hora?
— Minha mãe me deixou trancada para ir ao supermercado. Meu pai só vai chegar às sete,
então eu aproveitei.
— E o que você pretende fazer agora? — perguntei preocupado.
— Eu tava pensando em ficar na sua casa por alguns dias...
— Por mim tudo bem, mas é que —
— Éron, eles nunca iriam desconfiar! — ela soltou, se justificando. — Eles mal sabem que
você existe!
— Mas, Helen, isso é muito sério. Se seus pais descobrissem, iriam atacar os meus... e
acho que seu pai iria acabar totalmente contigo depois, porque ele ficaria mais irado ainda.
Você deveria... ei, tá chorando?
Me levantei da minha cadeira e abracei-a durante sua crise de choro silenciosa. Eu podia
sentir as suas lágrimas penetrando e molhando o tecido da minha camisa. Eu podia sentir sua
respiração acelerada e seu coração palpitando violentamente dentro de seu peito. Eu a sentia
segurar os soluços dolorosos e os gritos de desespero. Eu a admirava, de alguma forma, pois
eu achava surpreendente a maneira com que ela conseguia sobreviver a todo aquele inferno
calada.
— Você é a minha melhor amiga, Helen. — eu disse apertando-a em meus braços. — E
eu te amo demais. Você é a melhor pessoa que eu já conheci e é a única a quem me apeguei
com tanta vontade. Se eu disse o que disse agora é pro nosso bem... não sei como é passar por
isso sozinha em casa, sem ninguém pra te escutar, tenho certeza de que não é fácil, mas você
precisa aguentar mais.
Ela ainda chorava e aquilo era bizarramente transtornador, pois eu, como amigo e pessoa,
me sentia um lixo. Eu temia que ela atentasse contra a própria vida, pois ela não merecia
perder a dela por causa dos pais desgraçados e imbecis.
— Você precisa entrar no jogo deles, fingir que os obedece e, daqui a três anos, você vem
morar comigo, pois já estaremos com dezoito. Só aguenta mais um pouco. Estarei com você
nas manhãs, de segunda à sexta, excluindo feriados, te apoiando, te segurando e te amando.
Para sempre.
Ficamos abraçados por mais alguns minutos, quando a pizza chegou. Ela estava um pouco
mais calma, mas seus olhos molhados e inflamados traduziam todas as suas piores dores. Me
sentei em frente à ela e peguei um dos quadradinhos da pizza cortada e enfiei na boca. Ela
fez o mesmo e após engolir, me disse a frase que afetaria toda a minha vida:
— Pra sempre. Juntos, como apenas um. Sempre.
Por um segundo achei que choraria, mas não, eu sorri. Sorri de extrema felicidade,
animação e gratidão a alguma coisa do destino por tê-la colocado em meu caminho. Helen
Baptista era o nome da pessoa que mais amei, mais do que a minha própria família... mais do
que a mim mesmo. Eu acreditava que, uma hora, quando crescesse um pouco, seus pais
parariam de agir como soldados do Bush e entenderiam que aquele saco de porrada de boxe
tailandês era a filha deles. E a minha irmã de alma e coração.
Comemos a pizza num clima mais relaxado, com risadas sobre piadas sem nexo que eu
contava. Acabamos concordando de que ela deveria voltar para a “gaiola de espinhos” ou a
cruz, escolha o que convém. Pegamos um táxi na Avenida Marítima e, ao chegarmos à rua
dela, percebemos que, na porta de sua casa, havia um carro da polícia estacionado. Ela me
abraçou forte e desceu do carro sem dizer uma única palavra, indo na direção dos policiais,
que conversavam com uma mulher muito parecida com Helen. Saquei na hora que aquela
era sua mãe. Ao ver a expressão de raiva da mãe ao reparar em Helen, saí do carro e corri na
direção dela.
— Quem é você? — ela perguntou com o olhar mais feio e sofrido do mundo, pegando
Helen pelo braço sutilmente.
— Amigo da Helen. Éron. — respondi da mais simpática maneira que pude, mas sem
esconder a raiva que eu estava sentindo ao olhar a vadia.
— Tá envolvido como sumiço dela? — perguntou um dos policiais.
— Não. — disse Helen, tentando se impor. — E eu só sair pra respirar. Nem demorei
muito...
— Você entra. — disse a mãe dela severamente. — Já me envergonhou demais por hoje!
— Não discuta, Helen. — eu disse quando percebi que ela iria retrucar. Eu esperava do
fundo da minha alma que ela ao menos se lembrasse de nossa conversa e tentasse se manter
“dentro das regras”.
Helen me olhou e eu acenei com a cabeça, fazendo-a entrar em seguida.
— Obrigada, senhores. — a mãe dela agradeceu com um sorriso amarelo, esticando suas
olheiras negras — E você, vai embora.
— Eu só gostaria de —
— Você ouviu a moça? — indagou o policial — Vá embora.
Cerrando meus punhos com toda a raiva que contive, concordei com a cabeça de uma
forma feia e voltei para o táxi, preferindo evitar a discussão. Antes que eu engolisse o sapo
completamente, me vi a caminho de casa ao som de Still Around, da dupla 3oh!3, que
preenchia todo o espaço daquela noite vazia, solitária e conturbada. A volta para Niterói
teria que ser adiada e, a volta pra casa, complicada.
— Filho, o que faz aqui em casa hoje? — era minha mãe, que me recebeu na porta
balançando seus longos cachos negros pelo ombro branco coberto apenas por um vestidinho
de dormir feito de seda salmão. — Não ia pra casa de um amigo seu?
— E fui. — disse me dirigindo para o meu quarto — Mas eu tive que voltar pra resolver
um problema de uma amiga aqui.
— Que bom que chegou cedo, porque eu ia preparar o jantar apenas para mim e pro seu
pai...
— Tranquilo... já comi na rua. — respondi sentado na cama, jogando meu par de All Star
pretos no chão.
— Pizza?
— Arrã. — tirei a camisa pólo verde que estava por cima da camiseta branca.
— Só podia. — ela disse se aproximando da porta do quarto e se apoiando no portal. —
Vai dormir, então?
— Vou escovar os dentes. Tomo um banho amanhã.
Me levantei da cama e dei um beijo no rosto da minha mãe. Eu não tinha esse costume,
mas senti a necessidade de fazê-lo. Eu costumava reclamar bastante da falta que a minha mãe
fazia e, às vezes, a culpava por alguns problemas da minha vida. Reclamava de barriga cheia,
pois ela era muito melhor do que muitas outras mães por aí...
— Eu te amo, ok? — eu disse.
Ela, meio que sem entender, respondeu:
— Pra sempre, querido, pra sempre.
Episódio Dois
Elos
A
cabei não voltando para Niterói no resto do fim de semana por preguiça. Na
segunda-feira seguinte, Helen não apareceu no colégio. Nem no resto da semana.
Minha preocupação era totalmente evidente, mas não pude pensar nisso durante
todo o tempo, pois a organização da festa Verão Explosivo estava me ocupando mais do que
eu esperava. Decidir onde fazer a festa foi um dos tópicos mais debatidos e acabamos por
escolher o grandioso salão do condomínio de veraneio de um dos garotos do segundo ano, na
praia do Leblon. O cara estava se sentindo o máximo pelo simples fato de estar metido no
comitê e de terem escolhido a propriedade. Ok, eu me senti um pouco no começo, mas ele
era idiota demais...
Também, não era pra menos. Estávamos no topo da hierarquia colegial, e isso não tinha
preço. Até eu passei a me estranhar nas semanas seguintes. Não sei se era pelo fato de Helen
ter desaparecido ou se era pelo motivo da festa estar se aproximando. Ou até poderia ser o
carnaval. Sim, a festa profana estava se aproximando também e toda mudança de
personalidade poderia estar envolvida com isso. Eu sabia e sentia que estava menos acessível
a qualquer outra pessoa que não fosse minha namorada, minha melhor amiga (justamente as
duas meninas que se encontravam cada vez mais distantes de mim) ou as pessoas do comitê
(que só falavam comigo porque eu era “amigo” do Roberto). Essa mudança poderia ter sido
causada também pelo sucesso imediato. Roberto havia me dito que eu me sentiria mais
brilhante e especial, como se eu nunca tivesse pertencido ao mundo dos não-cobiçados e,
naturalmente, passei a sentir pena destes, mas ao invés de me manter mais receptivo e ajudá-
los, passei a ignorá-los completamente, afinal, quem precisaria de pessoas assim quando se
possui amigos conhecidos, uma namorada perfeita e uma melhor amiga notável?
— Você parece mais distante... — comentei com Helen na sexta-feira seguinte, antes da
semana de carnaval. Estávamos sentados num dos bancos de mármore branco ao lado do
jardim de rosas vermelhas mais bonito do colégio. Era intervalo e ela pouco falara e nem me
abraçara, coisa que fazíamos logo quando nos víamos, o que acontecia de manhã bem cedo.
Ela estava afastada e parecia tão dividida que eu já não conseguia saber o que ela tinha sem
ter que perguntar.
— Você acha? — ela estava se fazendo de sonsa. Eu sabia disso pelo seu timbre de voz e
pelo fato de ela nem ao menos me olhar nos olhos enquanto conversávamos.
— Qual é, você some por uma semana inteira e, quando aparece, mal fala comigo, senta
longe na aula de química e nem pra me contar o que houve...
— O que houve? Como se você não soubesse, ela gritou feito uma doente, meu pai
também. Ninguém me bateu nem nada, mas me proibiram de vir ao colégio, acham que a
culpa é sua agora... Mas de qualquer maneira eu não acho que estou me afastando, Éron. Já
parou pra se perguntar se é você quem está mudando?
— Não tenta dizer que sou eu, Helen. Você não pode ser injusta agora. Sabe que eu
deixaria de fazer o que eu faço aqui no colégio por você. O problema é que você não está
falando nada, nem com o que sente nem com o que vê. Você hoje nem me deu abertura...
— E pra que você precisa de abertura, Éron? — ela me olhou nos olhos. Estavam
vermelhos. A última semana deveria ter sido mais difícil do que as passadas — Eu tenho
escutado boatos, Éron, de que você tem maltratado as pessoas que antes você ao menos era
simpático.
— E o que eles têm a ver com a nossa relação? Eu não mudei com você!
— Mas você não precisa mais tanto de mim, Éron! Você agora tem sua namorada, seu
mundo!
— Que eu deixaria por você!
Ela se calou por alguns segundos olhando o chão cinza de pedrinhas que formavam
desenhos geométricos, como um quadro.
— Eu só... Eu só acho que você não pode mais precisar de mim. — ela disse com a voz
fraca.
— Será que está falando isso porque você acha que não precisa mais de mim? — indaguei
suspeitando de alguma coisa que ela sentia, mas que eu não conseguia entender.
— Eu só digo...
— Você não confia mais em mim, não é mesmo? Acha que só porque eu estou andando
com eles eu vou trair você alguma hora?
Essa pergunta... Como eu desejei que ela dissesse que eu estava enganado, que ainda
confiava em mim... Desejei que ela dissesse que era uma fase ruim e que a situação iria
melhorar com um abraço. Um abraço entre irmãos. Mas o que eu ouvi da boca dela passou a
mutilar a minha garganta todos os dias:
— Eu... — ela apertava as pernas com as mãos. — não consigo confiar em você.
Ao escutar a resposta, fiquei simplesmente parado, assistindo ao que parecia ser o fim de
alguma coisa entre nós, como se uma vela fosse apagada com um sopro diabolicamente frio e
cortante, deixando apenas a escuridão de um quarto novamente vazio e úmido, de um
coração já preenchido de tristeza. Como eu quis não acreditar no que eu estava ouvindo...
— Eu acho que precisamos de um tempo... — ela continuou. Por mais que eu tentasse me
convencer a entender aquilo, eu não sentia mais dor em suas palavras, pareciam mecânicas
— Pra nossa amizade se recuperar...
— Recuperar, Helen? — indaguei com muita surpresa — Nossa, o que houve? O que está
acontecendo que você não quer me contar? Estava tudo bem na semana retrasada! O que
aconteceu? Seus pais estão te pressionando pra ficar longe de mim?
— Chega, Éron! Você tem sua namorada... Eu tenho o meu. Você possui seus amigos e
deve se dedicar a essas pessoas agora.
Então juntei as peças e formei o desenho do quebra-cabeça. O motivo de estar me
deixando era um cara. Nem preciso dizer o quanto me senti traído.
— Então é isso, Helen, um namorado? É por isso que vai se afastar de mim? — perguntei,
contendo minhas lágrimas e minha raiva.
Ela suspirou a balançou a cabeça.
— Não vou mentir, Éron... Eu tô com ele tem um tempo já... Eu tentei fazer com que ele
gostasse de você antes de apresentá-lo, mas ele é muito ciumento...
— Você o conhece a mais tempo que me conhece?
— Não... Mas entenda, ele é especial —
— E EU?! EU NÃO SOU NADA?! — eu gritava. Ela estava me trocando por um
namorado! Quantas pessoas trocam o melhor amigo por um cara que conhecem num dia
qualquer?
— Foi, Éron, e ainda é... Mas não posso mais continuar com você se eu quiser mantê-lo...
— Se ele gosta de você, ele que se adapte!
— Esqueça, Éron! Tá decidido! — ela chorava — Desculpa!
Levei o punho cerrado à boca para que ela não tremesse de raiva. Meus olhos estavam
ardendo e eu os sentia encher de lágrimas, mas eu não queria chorar de forma alguma. Não
na frente dela.
— Então é isso? — perguntei me levantando olhando para o céu cinza tentando fazer
com que as lágrimas sumissem de meus olhos.
— É. — ela respondeu em meio a lágrimas silenciosas.
— Espero que ele te faça feliz, pois no dia que vocês terminarem e você precisar de mim,
eu não estarei mais ao seu lado, Helen.
— Não vamos terminar, Éron. — ela respondeu seca e fria. — Com ele é pra sempre.
— Felicidades.
Caminhei lentamente até as escadas de mármore do colégio com minhas lágrimas rolando
suavemente pelo meu rosto vermelho. Incrível como o mundo pode mudar em apenas alguns
dias, com algumas palavras e alguns passos começam a te afastar de alguém que você ama. O
complicado, para mim, seria ter que aguentar a rotina diária de vê-la na sala de aula, cinco
horas por dia, e mal poder dizer um oi ou contar como foi o meu final de semana. Era o tipo
de dor que eu teria que me acostumar. Teria que superar, por bem ou por mal. No momento
que me afastei da Helen por causa do estranho namorado dela, queria correr e abraçar Mirla,
mas vê-la no colégio estava quase impossível. Mas eu a amava. Não o mesmo amor que eu
tinha pela Helen, mas amava. E se ela estava comigo, era porque, ao menos, me curtia. Teria
que entender que eu estava precisando dela urgentemente e ela, como minha namorada,
como eu faria por ela, teria que me ajudar.
— Então você não a viu hoje? — perguntei a um colega de turma dela.
— Não. Ela nem veio às primeiras aulas. Hoje é sexta, deve estar com preguiça, sei lá.
— Ok, só não fica tirando conclusões e esqueça que eu te perguntei alguma coisa, ou,
você sabe, eu te queimo no colégio. Se eu souber que você falou sobre nossa conversa pra
alguém, ta fodido.
— Calma, cara. Tranquilo, pode deixar.
E esqueça que, a partir de sábado, o carnaval teria início e, com ele, a semana inteira, de
segunda ao próximo domingo, seriam de puro feriado festivo torturante. O bom, pelo menos,
é que eu sofreria menos não vendo a Helen, mas ela estava na minha cabeça, me
assombrando. O que antes me animava e me fazia seguir em frente, se tornou a partir
daquele dia, a maior dor do mundo.
Mas o carnaval era algo a se pensar. Eu não tinha combinado nada com a Mirla por quase
não tê-la visto durante a semana. Sendo assim, eu não pretendia sair de casa pra farra sem
que a minha namorada soubesse. Não ficaria com outra menina em respeito à nossa
fidelidade e ao que eu sentia. Será que ela faria o mesmo por mim?
O resto da sexta-feira passei em casa. Vontade de ligar para a Mirla não faltava. Vontade
de fazer com que a Helen enxergasse que ela estava errada também não faltava. Como
alguém pode mudar dessa maneira? Na minha vida, aprendi que eu não posso conseguir uma
coisa boa sem perder uma coisa melhor ainda que já fazia parte de mim. Tudo tinha um
preço, muito alto, por sinal. Me perguntei, várias vezes, se aquilo tudo de me tornar popular
valia a pena, mas eu chegava a conclusão de que o que estava acontecendo, fosse entre eu e
Helen ou a Mirla, não era culpa totalmente minha. Os pensamentos e sentimentos dos outros
não podiam ser controlados, muito menos o ponto de vista deles para comigo.
— Você parece triste... — disse minha mãe enquanto enchia o meu copo com suco de
maracujá no café-da-manhã de sábado. Não tínhamos o costume de comer juntos porque ela
quase nunca estava em casa, mas naquele dia, acordamos praticamente juntos (eu mal
dormi), e aproveitamos a coincidência para comermos juntos.
— Problemas, mãe.
— Quais problemas um garoto de quinze anos que nem ao menos tem filhos poderia ter?
— Problemas que uma mulher de quarenta e dois anos não entenderia. — respondi
colocando um pedaço de pão francês sem manteiga na boca.
— Agora essa conversa de revolta adolescente? — ela perguntou rindo.
— Quem está revoltado é meu estômago.
— Você pode falar enquanto ele digere o pão. — ela lançou querendo puxar um assunto.
Por que não?
— Ok, tem uma regra essencial: tudo que eu disser jamais poderá ser repetido.
— Não será.
Suspirei após engolir o pão e tomar um gole do suco. Então comecei:
— Tipo, eu tenho uma... Não ria! — exclamei quando percebi um sorriso em seu rosto. —
Tenho uma namorada e, assim... o que eu falei sobre não rir?
Ela estava com um enorme sorriso amarelado por causa do cigarro e com o rosto rosado.
— É que você está crescendo. — ela disse. — Quem diria, você largando o videogame e
arranjando namoradas...
— Mãe, esquece, não dá pra falar isso com —
— Fala! Você já disse o mais importante mesmo...
Balancei a cabeça e decidi continuar. Eu mal a via mesmo, não me sentiria muito
envergonhado.
— Então, tenho uma namorada e meio que a gente não tem conversado durante essa
semana... eu sinto que ela está me evitando por causa dos meus novos amigos, talvez não
goste deles, só que eu não sei se deveria ligar pra ela... sei lá, pra não parecer que eu sou um
daqueles possessivos, loucos e ciumentos.
— Quer minha opinião?
— Você pode tentar.
Ela bebeu um gole no café.
— Acho que deveria ligar. Ela é sua namorada, você tem esse direito.
— E se ela me achar um porre?
— Então não merece ser a sua namorada.
Refleti sobre o que ela falou por alguns segundos e percebi que fazia sentido. Se
estávamos namorando, significava que ela tinha aceitado esse compromisso. Eu tinha o
direito e, caso ela discordasse, significaria que ela não nos levava a sério.
— É... Até que você falou algo de útil.
— É pra isso que servem as mães.
— Ah, e existe uma regra extra super especial que eu não te contei.
— Conte agora. — ela sorriu.
— Você deve esquecer tudo o que lhe falei, ou a mensagem se autodestruirá.
Ela riu com um pouco de sarcasmo.
— Sem chance.
— É, eu sabia... Mães são todas iguais mesmo.
Pisquei para ela e me levantei correndo para me trancar no quarto e pegar o meu celular.
Dane-se o horário (eram oito e vinte da manhã), mesmo se fosse acordá-la, pois eu queria
resolver o que estava pendente, confuso e um pouco enrolado.
— Alô? — atendeu uma mulher, mas não era a Mirla.
— Hmm... Tipo, quem tá falando? — perguntei confuso.
— É o Éron? — ela perguntou. — É a Aline, gostoso.
— Aline? O que você tá fazendo com o celular da Mirla?
— Ela... meio que assim, esqueceu aqui em casa.
— E desde quando ela e você são amigas? — eu estava surpreso.
— Não somos. É que eu dei uma festa sem querer e, quando vi, ela já estava aqui.
— Estranho... Quem a chamou pra sua festa, já que não foi você?
— Creio que foi o Roberto. Tipo, eles estão super juntos agora. Vocês terminaram?
— Como assim juntos?! — indaguei sentindo uma onda de raiva invadir minha maxila. —
O que eles fizeram?
— Epa... Pelo visto vocês não terminaram bem...
— Nós não terminamos! Ela me traiu com o Roberto?!
— É, Éron. Eles se pegaram mesmo, com vontade. Foi tenso, o negócio. O que tem de
camisinha usada no chão do quarto é assombroso...
Fiquei mudo ao telefone. Eu não sabia o que dizer, ou o que sentir, mas eu tinha certeza
da vergonha que surgiu em mim. Eles deveriam estar rindo às minhas custas sabe-se lá há
quanto tempo! Mais uma vez minha vida mudou ao descobrir esse fato, mas eu, com toda
certeza, não ficaria no chão por muito tempo.
— Éron, você tá aí? — Aline perguntou. Ela parecia estar se deliciando na minha desonra
— Agora você tá solteiro, então que tal a gente fazer alguma coisa? Devolva com a mesma
moeda, aproveite que eu to sozinha aqui e —
— Aline, por que você não deixa de ser uma vagabunda cheirada e cresce? Você tá
achando graça disso tudo, né?
— Éron!
— Pára! Chega! Acabou! De agora em diante, eu não quero ver tua cara! E se ver o
Roberto, diga que a hora dele tá marcada!
— Não desconta em mim! Tá pensando que —
Como uma onda, a raiva subiu pelo meu corpo e num movimento involuntário,
arremessei meu celular na parede e levei minhas mãos à cabeça, apertando-a com tanta força
que achei que meus dedos fossem quebrar. Então aquele era o fato, o motivo de mais
cinquenta por cento da minha vida ter mudado. Eu quis chorar, quis gritar, quis morrer.
Primeiro a Helen me troca por um indigente e depois a minha namorada, a garota que
firmou um namoro comigo, me troca pelo meu mais novo “amigo”. Parecia que eu estava
destinado a confiar nas pessoas erradas e a criar sentimentos em cima delas que nunca seriam
correspondidos a altura. Sempre dizem que um lado ama mais do que o outro... Desejei que
não fosse eu.
Me senti sozinho, largado, como era na escola primária, quando todos me ignoravam e eu
era apenas um mongolóide nerd que andava pra lá e pra cá com softwares e jogos pra
computador. A sensação era de traição por todos os lados, como se as pessoas que você mais
amasse tivessem te jogado numa ilha deserta, sozinho, sem roupa, comida ou abrigo. Quando
algo desse tipo acontece na sua vida, é como um tsunami, uma catástrofe, que te faz olhar
toda e qualquer pessoa com desconfiança, medo e tensão. Você se tranca, por medo de que
repitam o ato e que você acabe ferido, largado no chão, sangrando até a morte, da maneira
mais lenta e dolorosa que seu corpo puder perceber.
Eu poderia ter ido deitar na cama e iniciado uma sessão de choro, mas isso me
aproximaria do idiota que um dia eu fui. Eu tinha que inverter a situação a meu favor e parar
de pensar nas pessoas que um dia eu amei. Eu tinha que superá-las pra conseguir viver como
um cara normal, porque sem mim, elas estavam vivas, felizes. Eu não poderia ficar pra trás.
Deveria achar uma chave pra abrir a porta da liberdade emocional. E eu tinha.
Corri para o meu celular que estava no chão, rezando para que ainda funcionasse e sim,
estava perfeitamente funcional, apesar de uma pequena rachadura na borda inferior.
Conectei-o ao computador e me “loguei” num site de compartilhamento de vídeos mais
acessado. Sim, o vídeo. Ele seria a minha obra mais mortal. Seria o declínio do viado que me
traiu e que daria a minha ascensão. Não como um corno, mas como o novo rei do colégio.
Me vingando, eu aliviaria um pouco a minha ira e o sofrimento, eu acreditava.
Em poucos minutos, o vídeo já estava hospedado e pronto para ser divulgado. Alvo? Só
seria revelado na semana de aulas depois do carnaval. Não adiantaria nada jogar o vídeo na
internet sem que soubessem quem foi que o filmou. Quem foi que venceu o líder. Poderia
demorar, mas eu ia resolver a situação.
De uma forma ou de outra, eu poderia ter passado o final de semana chorando e
deprimido, mas não o fiz. Me enchi de tarefas em casa, como limpar meu armário de
bagunças, jogar roupas antigas fora e limpar o HD do PC. Eu sabia que se parasse pra pensar
na Helen eu ficaria mal. Sim, a traição da Mirla doeu demais, afinal ela havia sido a minha
primeira namorada, mas perder a Helen foi muito mais doloroso. Incomparavelmente mais
doloroso. Eu tentava enfiar na minha cabeça que tinha acabado, à força, mas percebi que essa
não seria a solução. O tempo ia curar as coisas. Ou piorá-las.
— Tenho uma novidade. — minha mãe disse alegremente ao telefone. Ela estava na
empresa, trabalhando, e eu estava em casa, jogando no Wii.
— É coisa boa e importante? Tô jogando Pokémon.
— Muito! Muito! Acho que pode ser a solução pra essa solidão que você se afundou desde
o final de semana.
— Mãe...
— Filho, já é quarta-feira de carnaval e na segunda você volta às aulas. Você deveria sair
um pouco, respirar...
Suspirei profundamente e decidi me abrir ao que ela ia me dizer. Ela não ia me contar
algo que fosse me fazer mal, então por que bancar o durão, chato e problemático filho
adolescente?
— Conte, então.
— Sabe quem vai ficar na nossa casa por uns dias?
— Ficar na nossa casa?! Como assim, mãe?! — a idéia de ter hóspedes em casa era
completamente desconfortante. Eu estava bem sozinho... Não estava?
— É! Adivinha! — nossa, ela estava realmente animada.
— Não sei... Sabrina Sato?
— Não, bobão! É o seu primo Hugo! Lembra? Aquele que foi pra Paris...
Não! Não! Não! Não o Hugo!
— O meu primo?! — eu estava em choque. Nossa, quando é pra uma coisa ruim
acontecer, ela nunca vem sozinha. Nunca é demais. Sempre vem um conjunto de coisas ruins
que te afogam num mar de negatividade infinito.
— Ééé! Não é o máximo isso?
— Quando ele chega? — perguntei desanimado. Conhecendo minha mãe, ela já devia ter
confirmado a vinda dele. Não tinha jeito.
— Amanhã de manhã, se tudo der certo.
— Não tem como ele ficar por lá não? — perguntei sem esperanças. Ele seria a última
pessoa que eu gostaria de ver naquele momento da minha vida.
— Por que isso? Tem algo que eu não sei nessa história?
— Não, não, deixa. A gente conversa mais tarde, eu tenho que derrotar um cara que está
cantando de galo com um Infernape. — que desculpa boba eu dei.
— Ok, ok, beijinhos!
Hugo... geralmente, os primos são pestes, ainda mais se forem menores que você. Mas o
Hugo ia além de uma peste. Ele era um vendaval destruidor de autoestima. Eu tinha apenas
nove anos e ele treze. Ele sempre foi muito mais alto do que eu, e por isso me tornei o alvo
central das piores brincadeiras de mau gosto que uma criança desgraçada e mimada poderia
possuir em seu arsenal mental de idiotices. Hugo era um mestre de estupidez. Quando íamos
para casa de parentes dos meus pais, Hugo sempre aprontava. Uma vez, me empurrou na
piscina em pleno inverno. Enquanto ele se mijava de tanto rir, eu tremia de frio. Quando nos
perguntaram o que tinha acontecido, ele disse que eu tinha escorregado na borda da piscina
e eu, burro e imbecil como era, concordei com a mentira.
Outra vez que ele me sacaneou legal: foi quando ele mijou nos meus tênis. Não,
felizmente eles não estavam, nos meus pés, mas o importante é que o desgraçado mijou
neles. Eu tinha vergonha de falar pros meus pais que eu era um saco de zoação do Hugo
porque eu já era um imbecil no colégio... Fui obrigado a molhar minhas meias com a urina
do meu querido primo filho de uma cadela velha... Não, ele não era um filho disso. Ele não
tinha pais. O meu tio, irmão da minha mãe, morreu junto com a esposa em um acidente de
carro, quando o deles bateu num caminhão, onde o motorista tinha cochilado ao volante.
Desde então, Hugo é órfão. Minha mãe quase o adotou para que vivesse com a gente (na
época ele deveria ter uns seis anos), mas a irmã dela, minha tia Laura, o adotou e o levou
para Paris, onde vivia. Achava que assim ele teria uma educação mais elaborada, aprenderia
outro idioma e se ocuparia em superar o passado. De todas as vezes que vi Hugo na infância
— que foram poucas, porém significativas — ele nunca me pareceu, ao menos, afetado por
tal evento. Sempre parecia agitado e extrovertido.
Minha mãe o adorava incondicionalmente, e chegou a dizer, em uma, época que Hugo
deveria ser um exemplo de comunicação que eu deveria seguir, já que eu era uma criança
introvertida e desconfiada do mundo. Mal sabia ela o demônio que aquele garoto era. Mas eu
estava disposto a dar um basta no Hugo, caso ele continuasse sendo o imbecil que era. Além
de eu não estar num clima pra brincadeiras, meu emocional ainda estava muito abalado pelos
fatos ocorridos e eu sentia que qualquer provocação poderia provocar uma batalha de titãs na
minha casa. Ou em qualquer outro lugar.
— MORRA INFERNAPE! — gritei após derrotar o Infernape do carinha com que eu
jogava Pokémon no Wii. Games, pra mim, estavam se tornando novamente meu porto-
seguro, porque eles não te trocam por namorados imbecilóides e muito menos te traem com
o cara mais retardado do colégio. Eram muito mais confiáveis. — Ah, que se dane! — disse
pra ninguém jogando o controle pra longe. — Que venha Hugo ou Ogro, to pronto pra
nocautear quem se meter na minha frente!
Minha mãe me acordou no dia seguinte às sete da manhã. Ela disse que entraria mais
tarde no trabalho para nos servir o café-da-manhã. Meu pai nem ao menos estava em casa,
pois já tinha ido ao aeroporto, no Rio. Minha mãe não me acordou porque me obrigava a ver
o meu primo, mas ela acreditava de toda alma que eu estava, ao menos, curioso para saber
como ele estava. Pra mim, ele poderia estar morto que a diferença ia ser a mesma. Uma
adição nula na minha vida.
Na mesa de café-da-manhã da cozinha, estendemos uma das toalhas mais bonitas da
minha mãe, uma branca com bordados dourados, meio asiática. Eu achava aquilo tudo meio
idiota e desnecessário, mas fazia tempo que eu não a via tão empolgada com alguma coisa.
— Mãe, ele não vai comer a toalha. — eu reclamei enquanto colocava a jarra de suco de
morango na mesa.
— Mas uma visão bela na mesa instiga a fome.
— Ele ta voltando de Paris, deve estar morrendo de fome e não precisaria de toda essa...
— Não inte —
Ela foi interrompida pelo som da porta rangendo ao ser aberta vagarosamente pelo meu
pai. “Ai não! Isso não está acontecendo!” eu pensava. Minha mãe largou os lenços de papel na
mesa e correu pra sala toda animada, quase pulando. Eu, com toda a animação que tinha, fui
caminhando lentamente, quase me arrastando pelo chão. Eu só pensava em tê-lo em casa,
sozinho, praticamente, tendo que “cuidar” dele durante aquele feriado de carnaval... minha
liberdade recém adquirida iria para o cu!
Com o brilho do Sol escondido entre nuvens cinza-metálicas entrando pela porta, só pude
ver a silhueta de minha mãe abraçando alguém alto, com mais ou menos 1,84m. Ela o
apertava e a medida que eu me aproximava, reparava que seus braços estavam fortes e
definidos, sobressaindo pela camisa de manga longa cinza e justa, que se alongava até a base
dos dedos, cheios de anéis pretos de aço. “Meu deus, ele é um daqueles caras que batem em
nerds”, eu zombava na minha mente. Eu acreditava que ele era aquele tipo “músculo-
musculo-cérebro-zero”. E não achava que poderia estar enganado. Quando minha mãe o
soltou, estiquei minha mão para um aperto, mas ele já me puxou para um abraço que quase
deslocou meu pescoço, me apertando forte. Confesso que fiquei surpreso e sem jeito, sem
saber o que fazer com as minhas mãos, que acabaram por ficar flutuando sobre suas costas.
Quando me soltou, nos encaramos e eu pude ver seu rosto pálido. Seus cabelos loiros
estavam muito lisos e claros, esparramando-se harmonicamente por sua cabeça, até caírem
por sobre sua testa. Seus olhos azuis eram muito mais claros que os meus, me lembrando da
pequena inveja que eu tinha quando éramos menores e as mulheres da família comparavam
nossos olhos. Ele sempre ganhou. Em meio a um sorriso branquíssimo de dentes super
corretos, ele lançou:
— Éron... Você cresceu! Tá diferente.
Sem saber o que responder, resolvi comprar um clichê, sem tentar ser simpático:
— Se surpreenderia se eu dissesse o mesmo?
Ele apenas riu. Meu pai, careca e gordo — que não parecia nada comigo, a não ser pelo
fato de ele já ter sido loiro um dia — levou as malas dele direto para o meu quarto, já que o
nosso quarto de hóspedes estava lotado de caixas velhas há milhares de anos. Cacete, meu
quarto! Minha privacidade, meu Wii, meu PC... Que merda, eu teria que dividir tudo com
ele. E, além de tudo, ele já era velho, tinha que ficar num hotel... Mas fazer o quê? A merda
tava feita.
Ele levou a última mala negra para o meu quarto, carregando-a com uma única mão. O
resto da bagagem foi deixada, pelo meu pai, num espaço ao lado do rack do computador. Me
joguei na cama e, com mais um abraço melento, minha mãe ficou dizendo pra que ele se
sentisse em casa, fechou a porta do meu quarto e foi preparar os pães de queijo especiais e
para o café. Como eu não estava ali pra ser simpático com o cara que não cansou de me
sacanear — e estava morrendo de sono — coloquei os fones de ouvido no celular e liguei o
music player em Can’t Stop Feeling — Fraz Ferdinand — beeem alto. Eu acho que ele
percebeu que eu ainda estava ressentido.
Ele ficou meio sem graça, olhando todo o meu quarto e vi sua boca se mexer, mas não
escutei palavra alguma:
— O que você disse? — perguntei retirando os fones do ouvido.
— A decoração é legal. — ela disse apontando para o teto listrado de preto e branco. —
Eu curto esse contraste.
Visível a tentativa de puxar algum assunto, mas eu não estava ali pra isso.
— É. — respondi recolocando os fones no ouvido e me afastando um pouco da ponta da
cama coberta com um edredom negro com ideogramas japoneses em branco. — Pode sentar.
Ele se sentou na ponta da cama e apoiou os cotovelos no joelho, admirando os pôsteres de
bandas como Death Cab, Maroon 5, Jay Vaquer — que não é uma banda — e South, colados
no meu armário preto e branco. Percebi que ele ia comentar alguma coisa, então abaixei o
volume da música.
— Me amarro em Death Cab. — ele disse, passando os olhos pelos pôsteres de adaptações
de HQs pro cinema do outro lado do armário — E Batman também.
— É.
— Cara, eu sei que eu fui um capeta na sua vida durante a infância, mas eu mudei. Eu
cresci. Você não pode ficar com raiva de mim a vida toda.
— E quem disse que eu tô com raiva? — retruquei como uma criança idiota.
— Parece ressentido. Sei lá, só saiba que eu mudei. Eu agora ouço South e Kaiser Chiefs,
ao invés de ficar mijando no sapato dos outros como um cachorro.
Fiz uma careta do tipo “e daí” e fechei meus olhos, ouvindo o som.
— Mas aquilo foi engraçado na época... — ela observou segurando uma risada.
— Engraçado pra você que não foi obrigado a andar com meias molhadas de xixi.
Engraçado porque não foi você que ficou tão puto a ponto de explodir, mas não podia falar
nada porque sabia que ninguém ia acreditar!
— Ok, não deveria ter dito isso. Mas, cara, se você me der uma abertura, vai ver que
podemos ser bons amigos.
Instintivamente fechei meus olhos e ergui o meu dedo médio para ele num sinal obsceno.
Ele riu também.
— Tá, desisto de tentar te convencer na conversa. Vou fazer na prática.
Meu dedo continuou erguido enquanto ele se levantava e se dirigia para fora do meu
quarto, fechando a porta atrás de si em silêncio. Quando saiu, abri meus olhos devagar para
ver se estava fingindo pra me pregar outra peça e me sentei na cama, retirando de meus
ouvidos os fones. Suspirei profundamente e comecei a me preparar emocionalmente para os
dias turbulentos com aquele demônio na minha casa.
Quando cheguei à cozinha após minha mãe me gritar para tomar o café-da-manhã, meu
pai estava sentado ao lado dela. Em frente, duas cadeiras: uma ocupada pelo Hugo e outra na
qual me sentei. Na mesa, o suco, guardanapos, um arranjo de rosas vermelhas e o especial
pão quente recheado de queijo derretido e presunto.
— O Hugo começou a contar como é viver em Paris. — disse a minha mãe quando eu
peguei o primeiro pão.
— É. Então, é diferente. Eu não me lembro muito como é o Brasil, em questão de
diversão, mas garanto que é melhor do que lá.
— É verdade que os franceses não tomam banho? — perguntou meu pai mastigando um
pão. Percebi que eu só os tinha visto pouquíssimas vezes durante o início do ano.
— Eles tomam, mas pouco. É que existe cota de água em alguns locais, além do frio. —
ele riu sarcasticamente. Eu percebi o sarcasmo, mas parece que ninguém mais sacou.
E eles ficaram falando de Paris. Eu preferi ficar quieto, tentando não ouvir o que falavam
enquanto eu comia pães. Só não saí da mesa pra não deixar minha mãe triste, mas de resto,
não fedeu nem cheirou. Quando terminamos o café, meu pai vestiu o paletó e foi direto pro
trabalho. Minha mãe voou pro banheiro para tomar um banho e me pediu que retirasse a
mesa. Ao Hugo, ela recomendou que fosse dormir. Fala sério! Eu que tinha que dormir!
— Eu te ajudo. — ele disse levando os pratos sujos de farelos e as facas para a pia.
— Não precisa. — eu respondi, tão áspero quanto a Lily Allen.
— Éron, cara, desculpa! É passado! Pas-sa-do!
— Não interessa, Hugo! Mas que merda!
No meu momento de drama e tédio, deixei que a jarra caísse da minha mão, se
espatifando no chão e espalhando vidro com suco por tudo quanto era lado, inclusive
sujando meus pés e chinelos.
— Tá vendo? É castigo. — ele disse pegando um paninho úmido na pia.
— Cacete, acho que tem vidro no meu chinelo...
— Não se mexa, deixa eu... — ele abaixou-se até meus pés e começou a limpá-los com o
pano. — Pronto.
Ainda sem entender muito bem o belo ato de gentileza, fiquei parado, com meus olhos
presos a ele, que se levantou e, me encarando, disse:
— Pronto, pode se mexer. — e exibiu um lago sorriso extra reflexivo.
— V-valeu... — eu agradeci me abaixando pra catar os vidros maiores com as mãos.
— Não. Não, Éron, deixa que eu cuido do vidro.
— Por que eu não posso cuidar do vidro? — perguntei irritado. Ele estava me tratando
como se eu fosse uma criança. Se era pra me provocar, eu não sabia, mas tinha muitas
suspeitas.
— Cara, você tá todo estabanado. Vai se cortar. — ele explicou já catando os cacos.
— Eu estou estabanado? Você convive comigo outros dias pra saber se eu sou ou não
estabanado? — perguntei pra perturbá-lo também, enquanto levava os copos até a pia para
lavá-los.
— Qual é, você ouve South, não pode ser estabanado. Eu não sou.
Ergui meu dedo médio mentalmente para ele. Eu não sabia o motivo, mas esse sinal
obsceno me fazia me sentir mais confortável ao enviá-lo para o Hugo. Após lavar a louça,
Hugo já tinha terminado de enxugar o suco do chão e aspirado os cacos menores como
aspirador de pó portátil que guardávamos embaixo da pia. Até que nisso ele era útil.
— Onde eu guardo a toalha? — ele perguntou se referindo a toalha de mesa que já
segurava dobrada na mão.
— Me dá aqui. — pedi secando as mãos e estendendo-as em seguida para ele. Após
estarem em minhas mãos, as coloquei no fundo do armário de toalhas de mesa da minha
mãe, ao lado da nossa gigante geladeira prateada. — Valeu pela ajuda.
— E agora, acredita em mim? Acha que eu mudei?
— Talvez. — respondi friamente, mas quase deixando um sorriso brotar em meus lábios
— Mas vai ter que trabalhar o material mais um pouco.
— Ou talvez você precise ser mais trabalhado pra enxergar o material melhor. Mas isso
não importa. Quero te mostrar que eu não tô aqui pra te atrapalhar ou infernizar. Eu estou
aqui pra recuperar o tempo perdido, refazer os laços com a família.
Sacudi a cabeça e suspirei:
— Tá... eu acho que entendo.
— Trégua, então? — ele perguntou estendendo a mão pra mim.
Antes de apertá-la, pensei nos prós e contras de fazê-lo, mas por que não dar essa chance
pro cara? Todo mundo merece uma segunda chance. Ok, nem todos. Helen e a piranha da
Mirla não mereciam. E não teriam.
— É. — apertei a mão dele, deixando meu sorriso aparecer — Temporariamente.
Episódio Três
Carnavalizando
A
o acordar no dia seguinte, percebi um colchão forrado no chão, vazio. Era a cama
improvisada do Hugo. Como eu dormi antes dele, não o vi arrumar a cama, mas
o fez sem me perturbar. Talvez eu tenha tomado a decisão certa de me colocar
em paz com ele. Mas, naquela manhã, acordei triste, lembrando da Helen. A falta dela estava
me magoando, por mais que eu me ocupasse com outras coisas. A gente não esquece uma
pessoa amada de um dia pro outro. Eu não tinha essa capacidade, como ela. Eu sabia que
qualquer coisa que acontecesse de errado naquele dia iria me fazer chorar, pois o meu
estômago ficava com uma sensação de vazio gelado, como quando a gente está prestes a
espirrar, mas o espirro não vem. Quando eu fico assim, sei que estou mais frágil, porém, pra
alguém sacar isso era difícil, pois eu não exteriorizava de uma forma aparente. Era muito
sutil.
Fui até a cadeira do meu computador e peguei o meu roupão vermelho. Eu não ia ficar
passeando em casa de pijama até me acostumar com a presença dele ali.
— Já acordou? — ele perguntou quando passei pela sala. Ele estava sentado usando uma
cueca box azul e uma regata branca, que deixava à mostra um peitoral bem malhado. Ele
parecia ter mais do que dezenove anos.
— Não. Eu to fazendo projeção astral. — respondi sério e rabugento, indo ao banheiro
pra escovar os meus dentes.
— Parece que alguém acordou de mau humor! — ele gritou para que eu ouvisse, mas
ficou sem resposta por alguns minutos, tempo necessário pra eu escovar os dentes.
— Eu não estou de mau humor. — afirmei quando eu já estava na cozinha me servindo
de um copo de iogurte de frutas roxas. — Já tomou café?
— Já. É uma da tarde, Éron.
— Que se dane o horário. — murmurei após tomar um gole do iogurte.
Com passos relaxados e firmes, ele se apoiou na pia, ao meu lado, enquanto eu lavava o
meu copo.
— Hoje é quinta de carnaval e você pretende fazer o quê?
— Ficar em casa, jogando alguma coisa. — guardei o iogurte na geladeira e voltei para
encará-lo.
— Então isso quer dizer que você não tem planos?
— Isso quer dizer que eu vou ficar em casa jogando alguma coisa.
Caminhei para a sala e ele me seguiu numa tentativa furtiva de me fazer sair de casa na
noite de quinta:
— Vamos jogar alguma coisa na rua. Seu pai me disse que a praia dá umas festas de
carnaval muito loucas. A gente pode tentar achar alguma tenda que não esteja tocando
pagode ou samba e ficar por lá. A gente bebe alguma coisa, pega alguém e todo mundo fica
feliz.
— Nossa, você é insistente, heim... — disse enquanto “zapeava” canais, sentado no sofá de
três lugares.
— Eu só quero sair pra conhecer as redondezas. Seus pais não chegam cedo hoje, então a
gente pode ficar até mais tarde na rua.
— Olha, eu não curto os estilos musicais que tocam no carnaval, não gosto de beber
porcaria tipo cerveja e não quero pegar ninguém. — parei. — Por muito tempo!
— Nossa... — ele ficou na minha frente, tampando a TV — Parece que você tomou um pé
na bunda de alguém... Mas isso nem vem ao caso. Só vamos sair!
— Hugo, dá licença?
— Cara, qual é, vamos sair! Eu vim da França pra estreitar meus laços com a minha
terra... Não vai te custar nada, eu pago tudo! Por favor!
— A questão não é a grana. É preguiça. E eu não pedi para que você viesse.
— Por favor.
Ele fez uma cara de cachorro-molhado-na-Avenida-Paulista que acabou por me
convencer. Admito, o cara tinha uma lábia afiada.
— Tá... — bufei, sacudindo a cabeça. — A gente sai às dez. Se não estiver pronto às dez
em ponto, pode esquecer, a gente fica em casa mesmo. Agora posso assistir TV?
Ele soltou um sorriso branco e saiu da minha frente. Fala sério.
Durante o resto do dia, passamos quase calados: nos falávamos quando a gente se
esbarrava pelo corredor ou quando a gente decidia o que comer (sempre entre miojo ou
lasanha de microondas). Ele nem era um cara ruim. Era beeem chato e bastante convincente,
mas ruim não. No final da tarde, resolvi me sentar na varanda do quarto dos meus pais, que
dava para mar. De lá, eu podia ver a floresta que descia colina abaixo e metade da cidade.
Logo, quando o Sol fosse se pôr, eu veria tudo dourado, uma visão impagável e insubstituível
que a natureza nos presenteou, mas que às vezes não valorizávamos como deveríamos.
Com uma xícara de chocolate quente, me sentei na cadeira de ferro da mesa da varanda.
As nuvens que taparam o Sol durante os últimos dias tinha finalmente ido embora. Não que
eu gostasse do Sol ardendo na minha cabeça, mas para aquele momento era essencial a visão
limpa do céu. E do Sol, que refletia majestoso sobre o mar.
— Te senti diferente hoje. — disse Hugo pegando outra cadeira de ferro e sentando-se ao
meu lado.
— É... Eu acho que acordei meio... — parei de falar quando lembrei com quem eu estava
falando.
— Meio...?
— Deixa pra lá. — tomei um gole do chocolate.
— Tem a ver com a pessoa que te deu um fora? — ele perguntou se lembrando da minha
atitude mais cedo.
— Talvez. Talvez nem tenha sido um fora.
— O que houve? Olha, sei que sou da família, mas pode falar. Prometo que nunca mais
repito.
Hesitei.
— Cara, até falo, mas não quero você se sentindo o íntimo depois, ok?
— Não vou. — ele sorriu.
Tomei mais um gole do chocolate e, olhando para o Sol brilhando sobre o mar, comecei:
— Eu tinha uma melhor amiga e uma namorada. Amava as duas. As duas me trocaram
por caras piores do que quaisquer outros no mundo.
— Tem muito tempo? — ele perguntou sério.
— Não.
— E você não está lidando bem com isso. — não foi uma pergunta.
— É. Não estou.
— Sei pelo que você tá passando. Senti coisa parecida no ano passado, mas desde lá eu não
consegui mais me amarrar a ninguém, sendo assim, não sofro mais por esse motivo.
— Pode ser... Mas sabe, eu acho injusto. Eu me dei completamente pra elas, me mostrei
presente, junto, e elas me deixaram na mão... Todas as promessas e palavras de carinho...
Tudo mentira?
Ele não respondeu. Ficamos em silêncio por vários minutos, olhando o Sol que começava
a se pôr, banhando com ouro toda a cidade e o mar. O céu, antes azulado, agora se tornava
rosado e as nuvens douradas.
— É lindo. — ele sussurrou.
Mas eu não conseguia responder, porque minhas lágrimas já rolavam pelo meu rosto. Eu
me lembrei de Helen e dos nossos bons momentos no colégio. Lembrei de como era bom tê-
la por perto, de poder senti-la ao meu lado, de poder dividir o fone de ouvido ao som de She
Will Be Loved... Tantas lembranças, tantas decepções... Tanta dor. Uma dor que apertava
minha garganta, arranhava meu peito e fazia meu estômago se contorcer. Um frio subia pela
minha espinha enquanto as lágrimas se chocavam como chão. E tudo que eu contive durante
a semana queria sair, ali, naquela hora.
— Éron, o que houve? — ele perguntou se levantando da cadeira e ficando de joelhos à
minha frente.
Eu queria responder. Eu queria mandá-lo por inferno e pedir para que me deixasse
sozinho, mas não consegui. Eu soluçava. Um soluço que doía profundamente, arrebentando
com meus pulmões. Mas me dei conta de que eu estava acolhido por Hugo, que enrolou seus
braços em mim, em um tipo de abraço que eu nunca tinha experimentado antes.
Estranhamente, gostei da sensação, de como me fez sentir seguro, aquecido. Meus braços em
seu peito se esticaram e fizeram com que nos afastássemos alguns centímetros, para que eu
pudesse me manter distante, mas me perdi em seus claríssimos olhos azuis, que naquela hora
estavam verdes por causa do contraste com o brilho dourado do Sol que sumia no horizonte
infinito do mar. Nenhuma palavra foi dita, nenhum som escutado. Os soluços tinham
desaparecido, mas as lagrimas ainda desciam de meus olhos e, aos poucos, meus olhos foram
se fechando, ao passo de que o hálito quente e confortavelmente estranho de Hugo invadia o
meu rosto. Foram questões de segundos para que nossos lábios se tocassem, num beijo úmido
e bizarro. Eu não sei dizer o que eu senti naquele momento, além do conforto, mas medo e
preconceito estavam longe. Eu não estava ali com o Hugo homem, mas com alguém. Alguém
que me fez me sentir em segurança quando nenhuma outra pessoa tentou. Alguém que me
estendeu um abraço quando todos viraram as costas para mim.
E ficamos assim por longos minutos, sem abrir os olhos, apenas nos sentindo.
— Hugo...
Eu tentei falar, mas ele calou minha boca com mais um beijo. Minhas mãos se apoiavam
em seu peito e as dele em meu rosto, deslizando e acariciando minhas orelhas.
— Hugo... não...
— O que foi, Éron? — ele perguntou me olhando profundamente. O Sol já havia sumido
e o céu estava quase totalmente escuro.
— Isso tá errado... Você é meu primo...
— Não, não estamos errados. — ele disse segurando meu rosto.
— Não...
Eu me levantei e levei as mãos ao rosto, me colocando de frente para a parede branca ao
lado das portas de vidro que davam para o quarto dos meus pais.
— Isso esta errado! — exclamei. — Meu deus... O que eu fiz?!
— Desculpa... Desculpa... Cara é normal, é o tipo de coisa que acontece sem querer...
Ninguém precisa saber disso, ok? Fica tranquilo.
Eu não respondi. Depois de “acordar” do beijo, me senti como quem cometeu um
homicídio, que vai contra tudo aquilo que acredita, se colocando numa posição de hipocrisia
sem igual. O pior é que ele era o meu primo. Como a gente esconde uma coisa dessas de nós
mesmos?
— Cara, esquece esse fato. Vamos fingir que ele nunca aconteceu, ok? Vamos... Pular essa
parte. — ele falava como se estivesse se justificando de ter feito uma coisa já planejada. Eu
sentia na voz dele. Mas, na época, eu achava que isso era incabível, porque ele não era uma
bicha... Pelo menos eu acreditava que não. E nem eu. Era inacreditável. E realmente,
esquecer, passar por cima, era a melhor coisa a se fazer, ao menos para mim. Pelo menos não
tinha ninguém gravando aquilo com um celular...
— Promete que vamos esquecer completamente o que aconteceu aqui? — eu perguntei
sem encará-lo e com a voz firme, tentando provar pra mim que eu continuava o mesmo. Mas
a verdade é que eu estava morrendo de vergonha, e olhar pra ele ia ser uma tarefa difícil, ao
menos no primeiro momento.
— Prometo. Eu já nem lembro mais o que aconteceu.
Estranho foi perceber a falta de sensibilidade em sua voz. Ele não parecia nem um pouco
abalado ou envergonhado. Ele estava tão normal e sádico como esteve durante o dia, e isso
me preocupava de uma maneira indefinida.
— Ok. — eu confirmei.
— Tá.
— Ok.
E saí da varanda a passos largos, diretamente para o meu quarto e tranquei a porta.
Encostei-me nela e escorreguei até o chão, olhando pro teto, sem saber ao menos o que
pensar. “Meu deus, o que tá acontecendo comigo? O que tá acontecendo com a minha vida?
Será que eu mereço tantos castigos?” perguntas como essas passeavam em frente aos meus
olhos. Minha cabeça gritava de agonia e medo, receio. Eu não chorava. Eu não tremia. Eu
apenas respirava. E assim fiquei durante boas horas, até que Hugo bateu na porta:
— Éron, você tá bem?
Pensei em não responder, mas ele ia ficar insistindo até que eu produzisse algum som.
— T-tô! — gaguejei.
— Posso entrar? — ele perguntou suavemente, dessa vez realmente parecendo receoso
com o que eu iria responder.
— N-não... Eu tô... Tô no Messenger.
— Tá... tipo, eu preciso de um par de roupas e minha mala está aí... Eu tenho que estar
pronto antes das dez, se lembra?
Soltei uma risadinha descrente para mim mesmo. Como ele tinha a ousadia de pensar que
eu ainda sairia naquele momento? Meu emocional já estava abalado e, depois do fato, foi
completamente obliterado.
— Eu não vou sair! — gritei do quarto tentando fazer com que ele entendesse o motivo.
— Mas eu vou! E seus pais ligaram e disseram que estão chegando! Parece que
conseguiram sair mais cedo...
Putz, que merda. O que eu disse que, quando uma merda vem, um monte vem logo atrás?
— O-ok...
Me levantei do chão gelado, sem ânimo algum, e destranquei a porta, indo me sentar na
cama logo depois, com meus olhos colados no chão.
— Pode entrar. — murmurei.
Ele entrou no meu quarto sem sorriso e foi direto à mala preta dele. Não vi qual roupa ele
pegou ou o quê ele pegou, mas eu tive a nítida impressão que ele iria se sentar do meu lado.
E não estava errado.
— Desculpa de novo.
— Tá tudo bem, Hugo, esquece. — respondi olhando para o chão e me afastando dele
suavemente.
— Então por que você nem ao menos me olha? Vergonha ou medo de não resistir?
Olhei pra ele surpreso. Como ele podia fazer uma piadinha tão sem graça num momento
tão impróprio para aquilo? É o tipo de sarcasmo infinito, essa coisa maldita que,
infelizmente, certas pessoas possuem. Tudo bem, eu tinha o meu, mas não o usava como um
idiota.
— Desculpa. Não deveria ter feito essa brincadeira. Mas é que eu não levei isso tão a
sério. Nem tem um motivo para levarmos. Aconteceu. Não simboliza nada. Simboliza?
— Não. — respondi.
Não, aquilo não deveria simbolizar nada. Se não deveria, por que eu estava tão ressentido?
Eu tinha que esquecer, passar uma borracha, afinal, aquilo nunca aconteceu.
— Ótimo. — ele se dirigiu pra porta e antes de sair, lançou. — Melhora o humor!
Fiz sinal de positivo como dedão, mas de saco cheio. Sem querer, repensei se deveria ou
não sair com ele pra passar um dia de carnaval em Dourado. Eu não tinha mais namorada ou
melhor amiga, então eu não tinha muito a perder. Digo deveria, porque eu estava confuso.
Tudo na minha cabeça era um caos e, quando meus pais chegassem, eu não sabia se ia
conseguir olhá-los sem me sentir sujo e culpado por ter feito o que fiz na casa deles, na
varanda deles. E com o meu primo...
Mais afundado na depressão do que um emo com herpes genital, coloquei pra tocar no PC
a música On A String, da banda Youth Group. Essa música era uma daquelas que ficavam em
uma lista negra, não podendo ser tocada durante o cotidiano, pois tinham o poder de me
destruir, de me deixar no chão, caído, acabado. Eu já estava caído e acabado, então não tinha
mais porque temer.
Quando escutei o barulho da porta se abrindo, não fui ver meus pais. É engraçado que,
quando a gente faz alguma coisa errada que ninguém sabe, nós achamos que todo mundo
sabe, e acabamos nos entregando, sem que ninguém precise nos culpar. A não ser nós
mesmos. Esse era o meu medo, me entregar. Entregar uma coisa surreal e estranha que tinha
acontecido com uma pessoa ainda mais estranha pra mim. Algo que eu fiz que foi contra
tudo que eu acreditava àquele respeito, algo que eu odiava com todas as minhas forças.
— Filho? — minha mãe chamou após bater na porta.
— Pode entrar! — gritei deitado na cama, enrolado no meu edredom oriental.
— Que que foi, tá com frio? — ela perguntou se sentando na ponta da cama. Meu
estômago revirou de culpa. Ela me olhava com os olhos mais serenos e bonitos que uma mãe
poderia ter, mas parecia estar me analisando, como se ela tivesse colocado câmeras na casa e
assistido a tudo através do computador da empresa.
— N-não, só cansado... — fingi um bocejo horroroso.
— Sei como resolver isso! Vou fazer um bolo de chocolate maravilhoso. Assim você
melhora e sai de casa um pouco.
— Sair de casa? Não, não vou.
— Não ia sair com o Hugo? — ela perguntou confusa. — Ele me disse que iam...
— Íamos... Mas é que eu cansei. Ele vai sozinho.
— Claro que não! — ela exclamou como se eu tivesse gritado um palavrão. — Ele não
pode ir sozinho! Ele veio da França, não vai conhecer os caminhos... E pode ser abusado...
— Mãe, estamos em Dourado! Não existem assaltos nem estupros aqui porque a maior
parte dos moradores tem o rabo cheio de dinheiro.
— Mesmo assim... Eu fico preocupada... — ela fez aquela voz de mãe triste e que precisa
de carinho.
— Nem tenta fazer chantagem emocional, não caio nessa.
— Não é chantagem... Eu prometi à Laura que o faria se acostumar com as redondezas...
— Então leve-o! — respondi me enrolando mais ainda no edredom.
— O problema é que eu não conheço as redondezas.
— E por que você acha que eu conheço? Eu só ando de táxi pra lá e pra cá...
Ela suspirou.
— Poxa, me faz só esse favor. Por mim, querido.
Seus olhos esmeralda me fitavam brilhantes. Não tive como não resistir e acabei cedendo
à pressão, afinal eu estava num dia fraco, com a personalidade abalada e o emocional em
cacos.
— Tá... Eu levo o chato.
Ela me deu um beijo na testa.
— Vou fazer um bolo rapidinho.
Logo após eu assentir com a cabeça, ela saiu do quarto. O mais engraçado de tudo é que,
quando só eu estou em casa, eu mal vejo meus pais. Justamente quando o Hugo aparece, eles
começam a chegar mais cedo e sair mais tarde. Se eu não fosse muito bem resolvido com a
minha solidão, acharia que eles me amavam bem menos do que amavam qualquer outra
pessoa pelo mundo. Vai ver eles só se acostumaram com a minha presença e pararam de
valorizar o quanto deveriam... Na verdade, nunca valorizaram demais.
Achei melhor me levantar da cama e tomar um bom banho pra sair com o chato. Já eram
nove e cinquenta e cinco quando terminei de me vestir com a minha camisa pólo preta sobre
a minha camisa de manga longa branca e meu jeans cinza, combinando com meu par de All
Star pretos. Não estava no clima de usar cores felizes.
— Decidiu ir comigo, ou só está arrumado pra passar a noite em casa jogando alguma
coisa?
— Vou com você, mas saiba que Star Wars no Wii ainda se mostra mais interessante. —
respondi passando por ele direto e indo pra cozinha. — Mãe, o bolo tá pronto?
— Não, filho. E não vai ficar a tempo. Pode ir com o seu primo, quando você chegar em
casa vai estar aqui em cima da mesa, prontinho e com cobertura granulada.
Lancei um sorriso torto de tristeza e, quando passei pela sala, esbarrei em meu pai, que
usava uma regata e um shorts azul que brilhava. Horroroso.
— Opa, pai! Que bom te encontrar, preciso encher minha carteira.
— Boa noite também! — ele disse pegando um jornal em cima do sofá ao lado de Hugo.
— Mals, mas é que minha mãe e o Hugo estão de complô pra eu sair, então eu preciso de
uns —
— Não, tio, eu vou pagar tudo. — era Hugo se intrometendo. — Fica tranquilo quanto a
isso.
— Ótimo. Vou ler no quarto.
E meu pai se afastou. Levantei meu dedo do meio para o Hugo enquanto ele ria de mim.
Ele sabia o que eu ia fazer: pedir dinheiro ao pai pra sair com o primo e não gastar nada desse
dinheiro. Depois, iria pedir para outra coisa e juntaria a esse que eu não gastei. Jogada que,
qualquer adolescente que se preze, sabe fazer.
— Vamos, sua mãe me deixou usar o carro. — ele disse abrindo a porta pra mim.
— Você estava na França! — exclamei enquanto passava pela porta aberta e andava na
direção da mini-garagem — Aqui é o Brasil. Lá o volante não é do outro lado?
— Os volantes? Eu moro na França, gênio. — ele abriu a porta do carro do carona pra que
eu entrasse. Eu estava tão entretido na discussão que nem ao menos percebi que ele estava
sendo gentil novamente.
— Eu tô falando do lado de onde a pessoa senta pra pilotar. Lá não é na direita?
— Não interessa. — nos sentamos e ele ligou o carro. — Carro é carro. São bons em todos
os lugares. Se puder pagar por eles, é claro.
Não continuei a discussão e ele retirou o carro da mini-garagem. Instrui a direção da
praia, onde estacionamos no píer 5, onde a segurança era mais forte. A praia estava lotada. As
luzes das lojas e restaurantes da orla brilhavam coloridas, iluminando as pessoas que por ali
passavam. Além do nosso Hilux, vários outros carros de luxo estacionavam numa enorme
área própria para carros.
— O pessoal aqui até que tem bom gosto... — ele observou enquanto descíamos do carro.
O som de marchas de carnaval moderninhas já estava me irritando.
— Mas a música... — murmurei.
O guiei para as áreas do píer 4, onde pessoas “menos agitadas” se encontravam. Estava
cheio. Pessoas de todos os tipos passeavam entre nós: brancos, negros, amarelos, azuis...
Azuis?
— Caraca, olha, Hugo! — gritei quando vi uma mulher seminua passando toda pintada de
azul e com cabelos laranjas. Provavelmente uma fã de HQs que tentou se vestir de Mística.
— O que é aquilo? — ele perguntou sem entender.
— Um projeto de Mística. — sim, eu babava enquanto ela sumia na multidão louca que
tomava a ciclovia da praia. — Esquece, vamos pra areia, tá muito cheio aqui.
— Vamos achar uma tenda de eletrônica! — ele pediu me segurando pelo braço.
— Provavelmente as tendas estão na areia. Relaxa, a praia só tem dois quilômetros.
E nós caminhamos sobre a areia clara, esbarrando em uma ou outra pessoa até chegarmos
numa tenda onde tocava música eletrônica. No momento, era David Guetta e Will.I.Am que
agitavam com I Wanna Go Crazy as loucas pessoas da tenda, que se sacudiam e jogavam a
cabeça com força.
— Tem certeza que quer ficar aqui? — perguntei com uma cara de nojo nítida.
— Não curte esse estilo de música? — ele me perguntou sorrindo enquanto caminhava à
minha frente. O segui.
— Não é a música. São as pessoas. Parece que estão sendo possuídas por alguma entidade
alienígena ninfomaníaca...
— Ah, pára! Vem dançar comigo!
Sem ter a chance de responder, ele me puxou pelo braço e nossos corpos se tocaram. Tão
próximos que pude sentir o calor do seu corpo sendo emitido na forma de vapor para o meu.
— Não. — eu murmurei olhando friamente pra ele. — Qual é o seu problema? —
indaguei enquanto soltava meu braço da forte mão dele — Você é viado ou o quê?
Rindo, ele retrucou:
— Está me ofendendo.
— É pra ofender, Hugo! Desde ontem que você tem mudado a minha rotina e agora você
tenta me abalar emocionalmente? Qual é a sua?
— Então eu te abalei?
— Não é isso que eu quero dizer... Não nesse sentido!
— Então vem aqui, olha nos meus olhos e me prova que não está nem um pouco
intrigado com essa nossa experiência.
Ele parou me olhando friamente. Seus olhos eram tão claros que, mesmo com a pouca luz
da tenda, me senti hipnotizado. Sim, ele me intrigava. Sim, eu estava interessado. E sim, era
irrevogável o fato de eu desejar beijá-lo mais uma vez. Não sabia como nem porque, mas eu
quis, desejei com todas as minhas forças, mesmo indo contra tudo que eu pensava. Tive
vontade de gritar, de fugir, de correr pro mar e me afogar, mas eu já estava cansado de ser o
covarde da história, de ser sempre o vazio, o sozinho. Fui abandonado por todas as pessoas
que amei, mas ele estava ali, ele sentia alguma coisa. Essa minha “mudança” de opinião pode
até parecer que foi rápida, mas não foi. Eu estava carente e precisava de alguém e, justamente
nos braços dele, foi onde eu me senti mais seguro naquela época da minha vida.
Tentei não encará-lo, porque eu sentia minhas expressões derretendo. Ele tinha esse
poder, podia causar isso, mas eu não consegui desgrudar meus olhos dos seus, por mais que
eu desejasse e não desejasse ao mesmo tempo.
— E então, curioso? — ele perguntou novamente ainda me encarando.
— Eu?! Claro que n —
E mais um beijo entre nós dois aconteceu, sem que ao menos nos abraçássemos. Como
algum tipo de magia, todos os pêlos do meu corpo se arrepiaram e o calor dele gerava em
mim calafrios doces. Cada vez que eu sentia o ar quente que saía de seu nariz bem no meu
rosto, mais eu deslizava meus lábios nos dele, eu me permiti sentir isso, eu quis.
Naquele segundo os meus confusos sentimentos se confundiram mais ainda. Era um
dilema insolúvel.
— Nossa, até que em fim você beijou com vontade. — ele disse sorrindo.
— Não diz uma coisa dessas...
Me sentia culpado, mas parte de mim estava realizada por beijá-lo. Eu não consegui
abraçá-lo pelo simples fato de eu estar com medo do que iria sentir na calça dele, se seria a
carteira ou a felicidade geral da nação. Por falar em felicidade, a minha não se ergueu. Essas
coisas só estavam confundindo ainda mais a minha cabeça. Eu ainda tinha nojo do corpo
dele, de tocá-lo, mas alguma coisa em mim gritava por isso, necessitava. A outra já dizia pra
evitar, porque, já que não havia tido erguimento de felicidade, não havia um motivo
concreto pra continuar com aquele jogo perigoso. Uma vez eu tinha lido que a excitação não
acontece apenas com o enrijecimento do órgão sexual masculino, e sim, pode acontecer de
muitas outras formas, como salivação, arrepios e vontade louca de passar a noite inteira
beijando alguém especial. Mas tudo ainda estava embaraçado, confuso, tenebroso... perigoso.
— Por que não cola comigo? — ele sugeriu aproximando seu corpo do meu.
— Não, não... — eu respondi me afastando e me soltando do laço dele. — Eu não me
sinto confortável.
— Ainda... — ele sussurrou.
“Eu escutei, imbecil”, era o que eu gostaria de ter respondido, mas não o fiz. Minha
cabeça girava, meu corpo tremia, a música fodia meus tímpanos e as pessoas pareciam apenas
pontos luminosos dançando em círculo. Eu não percebia a solução para esses meus
problemas sociais que, quando eu não me enturmava com a atmosfera, me ferrava com os
poucos que se enturmavam com a minha. Eu não sabia se eu era difícil de lidar ou se eu era
mais “avançado” do que o ritmo das outras pessoas, que por cansarem de mim, me largavam.
Não sabia. Não entendia.
— Tô indo dançar. — ele anunciou se metendo pra dentro da tenda sacudindo o corpo no
tempo da batida.
Preferi não fazer o cachorrinho e não o segui.
— Ah, que se dane! Se eu já estou aqui, vou me divertir um pouco!
E saí andando pra longe do som da tenda de música eletrônica, caminhando rapidamente
pela areia. A sensação das minhas pernas se enrijecendo por causa do esforço estava me
relaxando e foi quando eu achei, felizmente, uma tenda quase vazia tocando I Bet You Look
Good On The Dancefloor — Arctic Monkeys — num estilo mais remixado, mais remexido.
Um sorriso de criança feliz nasceu em meu rosto e pra lá eu corri. A tenda, ao invés de
branca como as outras, era negra e, na parede de fundo, onde estava o DJ e sua mesa,
imagens de capas de vários CDs de bandas de rock alternativo. As poucas pessoas que ali
dançavam ou apenas batiam o pé na areia, estavam vestidas com roupas mais leves e
coloridas, salvo por poucos outros que estavam de xadrez em cores mortas e meninas de
rabos-de-cavalo e vestidos listrados de verde-musgo e preto. Pareciam pertencer ao mesmo
grupo de amigos.
Eu estava sozinho, mas não liguei, me coloquei a dançar, junto dos outros que dançavam
dentro da tenda. O mar, a alguns metros atrás da gente, ou as músicas de outras tendas,
pareciam simplesmente não existir, pois era mágico achar um refúgio familiar no meio do
campo de batalha inimigo. Nunca gostei do carnaval por isso, por causa do samba, desfiles de
escolas, pessoas seminuas passeando em carros produzidos durante um ano inteiro e pessoas
que levavam o concurso dos desfiles a sério demais, perdendo tempo em casa ou na rua pra
assistir a tudo aquilo. Fala sério. Mas o lado bom era o fato de ser um feriado de uma semana
inteira, onde todos os problemas de todo mundo simplesmente sumia, menos os meus... Mas
eu poderia fazê-los sumir.
— Sozinho? — uma das meninas de rabo-de-cavalo me perguntou. Era meio baixinha, de
cabelos escuros e uma pele branquinha e frágil como porcelana fina. Geralmente essas
meninas alternativas eram assim, brancas que nem o cacete. Eu não podia falar nada, porque,
se bobear, eu ainda era mais branco do que ela.
— É... O meu acompanhante está na tenda de eletrônica. — respondi meio sem jeito.
— Teu acompanhante? Você é gay? — ela perguntou num triste tom de decepção.
— Não! Não! Meu acompanhante no sentido de ter me acompanhado... Eu não disse no
sentido de estarmos juntos e tal.
— Ah, ok! Então, quer se juntar à gente? — ela apontou para o grupo de pessoas com as
roupas de cores mortas. — um casal abraçado e mais duas meninas.
— Não quer dançar? — o grupo parecia tão parado que não estava tão afim de me juntar a
eles. Ainda mais com um casal. Velas? Não, obrigado, já me queimei demais pra um dia.
— Não quer se juntar ao grupo?
— Tipo, eles estão meio paradões, saca? Eu nem teria vindo pra cá hoje. Eu não quis vir,
mas já que eu tô aqui, por que não dançar?
Ela sorriu.
— Eu também não tô muito afim de ficar com eles, sabe? Por isso que eu vim aqui falar
contigo. Você tá todo animado, te vi realmente hipnotizado pelo som que tipo, pensei “cara,
vá lá e o chame pra ficar contigo”! — ela riu.
— Ficar contigo? — perguntei interessado. Ela era uma garota bonita, fazia o meu tipo:
magra, com bom estilo e atitude.
— Não, não! Eu falei em outro sentido... — ela ficou envergonhada.
— Não? Que pena... — lancei fazendo o joguinho da decepção.
— Por que, você quer... Ficar comigo? — eu a deixei sem graça, mas era assim que eu
gostava. Mirla nunca ficava sem graça. Sempre foi uma garota com muita atitude. Até
demais...
— Acho que é a dama que responde a essa pergunta. — me aproximei dela e peguei em
suas mãos. — Quer ficar comigo? — sorri.
Eu sabia que meu sorriso seria fatal. Eu sabia disso porque era o que acontecia no colégio.
Eu tinha esse poder, sem querer me gabar.
— Quero. — ela respondeu me olhando, mas não pôde por muito tempo, já que minha
boca tocou a dela logo depois que minhas mãos deslizaram pelo seu rosto e costas.
Eu senti sua nuca, seus lábios finos e o calor do interior da sua boca. Ela era morna. Nem
quente, nem fria. Era tentadora, mas não era aquele tipo de pessoa que você gostaria de ficar
direto. E o pior foi que eu nem ao menos fiquei excitado. O que me pregou mais uma dúvida
na cabeça. Ou melhor, a dúvida.
— O que foi? — ela perguntou parando o nosso beijo. Tínhamos andado para fora da
areia, numa pequena praça perto da área da ciclovia mais afastada dos sons. Outros casais se
beijavam por ali também, mas nós éramos os únicos ali sentados.
— Não, nada. — respondi passando a língua no lábio inferior. — Tá com frio?
— Não, valeu.
— Tem certeza que não foi nada?
— Tenho, tenho sim.
Passei a minha mão esquerda pela nuca dela e a olhei. Seus olhos tinham uma cor de
bronze, meio metálico. Fui aproximando minha boca da dela novamente, mas ela afastou o
rosto e murmurou:
— Você só me beijou até agora, desde a tenda até aqui. Não falou nada sobre nada, não
me perguntou nada e nem me deu a chance de fazê-lo...
— Desculpa. Sério, desculpa. Eu só tenho estado cheio de problemas e contratempos.
Resolver tudo isso está me deixando louco. Ainda mais quando eu não sei direito o que eu
quero da vida.
Ela me olhou por mais alguns segundos enquanto eu acariciava seu pescoço.
— Qual é o seu nome? — perguntei.
— Michele. Pra você ver como estamos hoje em dia. — ela riu. — Estamos ficando há
mais de meia-hora e só agora é que nos interessamos em saber os nossos nomes. Qual é o
seu?
— Éron. E eu acho que sei por que a gente se esquece de perguntar o nome. Estamos cada
vez mais sozinhos, procurando alguém pra nos fazer companhia e acabamos abafando as
curiosidades comuns do ser humano, como saber o nome ou como a pessoa vive. Nos
interessamos na vontade primária, que é saciar essa solidão.
— Filosofou.
— É...
Rimos um do outro e terminando nos beijando novamente por mais uns dez minutos,
quando eu parei ao sentir meu celular vibrando no bolso da calça.
— Um minutinho... — pedi retirando o celular do bolso e atendendo ao número de um
chip de celular antigo da minha mãe que eu nem sabia que existia mais. — Alô?
— Éron, seu demônio, onde você tá?
— Quem é? — perguntei achando a voz familiar, mas não sabendo distingui-la.
— Seu primo. Onde você tá?
— Eu estou ocupado.
— Ocupado onde ?
— Por que isso te interessa? — indaguei com raiva.
— Porque eu estou com fome e precisamos ir embora.
— Mas eu não quero ir —
— Éron, é sério. Agora.
O tom da voz dele não soou como uma ordem, mas um pedido de socorro. Resolvi
“acatar” o conselho.
— Onde você tá? — perguntei olhando pro mar, curvado.
— Me encontra agora em frente ao quiosque... Vale do Sol. Já estou aqui, te esperando e,
pelo amor de Deus, não demora.
— Ok.
Fechei o meu Samsung rachado e me levantei às pressas.
— Te explico no caminho, vamos indo pra tenda encontrar o teu grupo.
— Eles não devem estar mais lá. — ela disse se levantando também.
— E onde estão?
— Não faço a menor idéia. Por quê?
— Porque eu tenho que ir pra casa, acho que aconteceu alguma coisa.
— Pode deixar, eu os procuro pela praia. Pode ir.
— Claro que não! — eu exclamei como se ela tivesse me ofendido. — Vem, vamos
procurá-los juntos, mas eu preciso encontrar o cara que veio comigo. Depois disso eu vou
embora.
Comecei a andar segurando sua mão.
— Sério, Éron, não precisa.
— Eu sou um cavalheiro, eu dei a idéia de você sair de lá para ficarmos sozinhos, então eu
te levo de volta.
Ela não discutiu mais e me seguiu, acompanhando a velocidade de meus pés enquanto
desviávamos das centenas de pessoas que obstruíam a ciclovia. Alguns minutos depois
estávamos no quiosque e, a me ver, Hugo se aproximou rápido.
— Temos que ir embora agora. — ele parecia atento à movimentação de pessoas, mas não
transmitia desespero. Nem percebeu que eu estava acompanhado pela Michele.
— Não podemos ir agora, temos que achar os amigos dela. — eu disse trazendo-a para
meu lado.
— Não dá tempo, você tem que vir comigo!
— Por que, o que houve? — interroguei querendo entender o porquê de tanta pressa.
— Te conto em casa, vamos embora!
— Não! Eu já disse que não vou até achar os amigos dela!
— Éron, não precisa —
— Precisa sim! — eu a interrompi.
Hugo levou a mão ao topo da cabeça e suspirou com vontade.
— Ok, vamos rápido!
— Não interessa, vamos logo!
E nós três saímos andando apressados no meio da multidão fantasiada. O cheiro de
bebidas alcoólicas estava me sufocando.
— Éron, sinto informar, mas eu creio que eles estão na areia, perto do mar. Eu acho que
iriam para lá, caso a gente se separasse. — ela disse enquanto andávamos.
— Ok. — confirmei. — Hugo, temos que ir pra areia.
— Não, pela areia não rola!
— Hugo, pára de infantilidade e vamos logo!
O peguei pelo braço e o puxei para fora da multidão, levando-o para a areia.
— Qual lado, Michele?
— Vamos por aqui, Éron. — ela apontou para a direita e por lá seguimos por alguns
minutos.
— Ali! — ela exclamou ao vê-los sentados conversando na beira do mar.
Levei-a de volta ao grupo e ela me encarou.
— Você foi super gentil. Não estou acostumada com garotos assim.
— Nem eu estou acostumado a ser assim... Tenho sido um imbecil com as pessoas.
— Bom, você não é um imbecil, Éron.
Ela jogou seus braços por cima de meus ombros e me beijou delicadamente.
— Éron, temos que ir agora! — exclamou Hugo. — Sério, é agora!
Michele parou de me beijar:
— Eu estudo no Jeanette Cloves. Fica perto da orla, lá pros lados do píer 7. Se quiser me
ver, sei lá...
— Michele — comecei. —, eu adoraria ver você, mas eu não sei se iniciar alguma coisa
agora seria uma boa... Eu não acho que estou pronto pra criar laços com ninguém agora...
— Não, tudo bem, eu acho que entendo... — ela me lançou um sorriso torto e triste. —
Mas, caso um dia a situação mude... Sou Michele Surita.
— Éron Brascher. Estudo no Bertha Lutz.
— Cacete! — exclamou Hugo.
— O quê que é, seu chato? — interroguei encarando-o, mas ele olhava para a ciclovia.
— Eles estão vindo. Espero que saiba brigar.
— O quê?
Meus olhos miraram para a mesma direção que os dele, onde três caras grandes se
aproximavam. Deviam ter por volta de vinte e cinco anos e um deles era careca.
— O que você fez?! — perguntei entendo que aqueles três caras queriam a cabeça do
Hugo num balde.
— Explico outra hora. Já era mesmo...
Os homens se aproximaram de Hugo, tão perto que achei que iam beijá-lo.
— E aí, chega de ficar fugindo. — falou o careca. Ele era o menor dos três caras, até
mesmo menor que Hugo, mas o que não tinha de tamanho, tinha de gordura bem distribuída
que poderiam se passar por músculos para deficiente visuais.
— Se você quer, que assim seja, desde que seja justo, um contra um. — Hugo lançou sem
se intimidar pelo carequinha.
— Eu e você. — falou o careca.
— Hugo, cara, eu acho melhor você parar com isso. Sério. Estamos no carnaval, festa,
brincadei —
Antes que eu pudesse terminar minha frase, uma mão ultra pesada se chocou com a
minha nuca, me causando uma dor demoníaca. Caí na areia instantaneamente e o grito de
Michele pôde ser ouvido com certeza por mais pessoas do que nós todos ali, incluindo o
grupo dela que olhava a cena soltando risadinhas. Ela veio ao meu socorro e me puxou para
longe da briga, que já havia começado. Hugo socava a cabeça do careca com muita força,
enquanto o careca tentava derrubá-lo na areia.
Michele gritava para que eles parassem, mas pareciam tomados pela fúria. Hugo, em um
golpe magistral, levou seu joelho ao nariz do careca, derrubando-o no chão na hora,
despejando sangue como uma fonte japonesa. Os outros dois seguraram o careca pelos braços
e meio que rosnaram alguma coisa pro Hugo e, antes que pudessem começar outra briga,
vimos a polícia se aproximando. Boa parte da ciclovia via a briga de longe, parada. Alguns
homens sacudiam as mãos no ar, comemorando como se fosse um jogo de futebol ou luta de
galinhas.
— Vem, corre! — gritou Hugo me pegando pelo braço.
Corremos tão rapidamente que nem ao menos pude me despedir de Michele. Chegamos
ao carro, exaustos, e entramos nele como balas, partindo logo após. Hugo ria com como
sádico total e eu, ao vê-lo rindo, me deixei levar pela onda. Fomos para casa como dois
imbecilóides, rindo de um fato completamente sem graça e que nunca deveria ter
acontecido. Assim como outro.
Episódio Quatro
Verão Explosivo
E
então, qual era a sua com a garotinha? — Hugo perguntou logo assim que
acordou, se espreguiçando. Eu já estava acordado, com os dentes escovados
procurava alguma banda legal pra ouvir enquanto comia uma bisnaguinha.
— Bom dia pra você também. A minha com ela era simplesmente o fato de ela ser gata e
estarmos sozinhos numa noite de carnaval. Só isso. — ele bufou. Mordisquei mais um pedaço
da bisnaguinha e perguntei: — E qual era a sua com o careca? Nós nem tivemos tempo de
conversar ontem, já que você passou duzentos anos escovando os dentes...
— Ah... Na verdade eu sou inocente —
Ele parou de falar assim que comecei a rir ironicamente.
— Inocente? Então eu sou o coelho da páscoa menstruando verde! Qual é, da um tempo,
Romeu.
— Sério, eu estava dançando quando esbarrei nele sem querer. Acho que ele não gostou...
Ou gostou, então ficou todo estressadinho, querendo arranjar confusão. Eu fugi, é claro. Não
gosto de ficar de palhaçada em público.
— Não, você fugiu porque é um cagão.
— E quem derrubou quem no final das contas? — ele perguntou se levantando com um
sorriso de vitória escroto no rosto.
— Prefiro achar que foi um golpe de sorte. — respondi enquanto voltava a procurar
bandas.
— Mas não foi. — ele se aproximou da porta e, antes de sair, lançou com toda pompa que
pôde: — Foi habilidade, caro primo, habilidade.
Levantei meu dedo médio pra ele quando saiu pela porta. Na noite passada, com todos os
acontecimentos do dia, percebi que ele era o tipo de pessoa que ia me causar muitos
problemas. Não só com os meus próprios, mas com outras pessoas, que acabariam por me
atingir de certo.
E sem citar nossos beijos e sensações estranhas, passamos a sexta, o sábado e o domingo
em casa. Especialmente nos dois últimos dias, ele ficou com meus pais, livrando a minha
mente da pressão que ele causava ali. Pude navegar na internet, distribuir a sextape do
Roberto no site do colégio e escutar minhas músicas sem nenhum tipo de interrupção.
— Acordaaa! — meu celular gritou. Era o maldito toque do “Acorda”. —
ACOOOOORDAAAA!
Desliguei o toque com um suspiro de susto antes que o tom do grito aumentasse. Meus
olhos ainda estavam semicerrados quando vi no celular que eram seis da manhã de segunda-
feira. Existe coisa mais chata do que acordar às seis da manhã? Existe. É para onde você vai às
seis da manhã. Consegue adivinhar? E-S-C-O-L-A. Especialmente naquela segunda, eu
estava sem disposição nenhuma de ir para aquele pequeno inferno ou presídio de projetos de
playboys & vadias.
— Mas que merda é essa?! — perguntou Hugo de olhos fechados deitado na cama
provisória no chão do meu quarto, ao lado da minha.
— Desculpa, esqueci que você estava dormindo no meu quarto. — mentira, coloquei
aquele toque de propósito.
— Desliga essa merda e vai pro colégio, imbecil. — ele murmurou como um velho, se
virando para o outro lado da cama dele. Só pra encher e animar meu triste início de dia,
joguei nele meu travesseiro. Sutil, mas com grande significado se arremessado contra seu
primo retardado e estranho.
Como rotina de manhãs escolares, tomei um banho quente pouco demorado e vesti
minha calça preta, tamanho trinta e oito (que ainda caia da minha cintura se eu não usasse
cinto. Só não usava trinta e seis porque ficava colada demais, ou seja, gay demais), uma t-
shirt branca por baixo da camisa pólo do colégio com o monograma BL, de Bertha Luz,
envolto em um escudo, e meu par de All Star verde-escuros. Comi apenas um biscoito de
leite recheado com chocolate alpino, tomei um copo d’água e escovei meus dentes. Quarenta
minutos depois eu estava pronto e pegando o táxi para o colégio. Na verdade, seis e quarenta
era o horário que eu costumava sair de casa para encontrar Helen mais cedo no colégio, para
que tivéssemos tempo de papear, mas, já no caminho para o colégio, eu não via necessidade
alguma de estar cedo naquela prisão. Mas, por outro lado, seria bom, pois eu passaria o vídeo
gay de Roberto pelo celular para quem quisesse tê-lo. É claro que eu iria deixar bem claro
que havia sido eu o dono da idéia e do vídeo, pois assim ganharia respeito e o temor dos
alunos super influenciáveis que seguiam o velho aspirante a gay. Ok, meu currículo não
estava tão limpo assim (ou tão sujo), mas isso, nem ao menos, me fez pensar duas vezes antes
de passar, via Bluetooth, o vídeo do idiota para umas dez alunas, que logo repassaram para
outras colegas. E de qualquer forma, eu não era o cara que queria ser derrubado, então
minha história homossexual não precisaria entrar no plano.
Claro que todas estavam estarrecidas e chocadas, mas o que eu podia fazer? Ah, eu tinha a
resposta na boca: um sorriso. Eu podia sorrir, me divertir e ganhar o poder, ainda mais com o
Verão Explosivo chegando pra arrasar. Eu seria o novo anfitrião, depois que ele tivesse sido
expulso, já que a Aline não teria crédito demais como líder entre os meninos. Todos me
venerariam, pois eu seria aquele soldado braço direito que derrubou o rei de seu trono, se
coroando em seguida.
“Ele parece beijar mal...”. “Tão lindo e tão gay...”. “Qual o problema desses viados de hoje
em dia? Cara, seu eu fosse azarado por um macho, ia socar a cara dele. Roberto tá fora das
partidas de futebol do intercolegial.” Esses eram os tipos de comentários que eu escutava ao
subir as escadas de mármore. O ultimo e mais importante foi feito pelo capitão do time de
futebol do colégio, que estava escalando os jogadores para o intercolegial, o torneio entre os
colégios das redondezas, públicos e particulares. Eu nem sabia que Roberto tentara uma
vaga, mas fazer o quê...
“Parabéns, Éron!”. “Você é o cara!”. “Muito esperto de sua parte, cara!”. Esses eram
daqueles que me congratularam por tal feito. E, em vinte minutos, setenta por cento do
colégio já sabia quem realmente Roberto era, e quem eu realmente deveria ser. Aquela era a
minha ascensão. Nunca mais o CDF retardado e não-conhecido. Nunca mais intimidado. Eu
tinha nas mãos, naquele momento, o poder de intimidar, de colocar medo, de impor
respeito! Eu merecia!
E não demorou muito para que o personagem principal do show de horrores aparecesse.
Sem saber de nada, Roberto desceu do táxi com Aline, reluzente, com aquele sorriso
retardado de vencedor estampado na cara. Todos os olhares se voltaram para o cara, mas não
eram olhares de admiração. As pessoas iniciaram comentários baixinhos, quase sussurrados e
ele percebeu que algo estava acontecendo.
— VIADOO! — alguém do time de futebol do colégio gritou. Iniciando um coro de vaias
para Roberto, que, sem entender, gritou de volta:
— QUAL É O PROBLEMA DE VOCÊS?!
Risadas e mais vaias. Do topo da escada, eu o olhava. Eu não sorria, eu não demonstrava,
nem para mim mesmo, qualquer tipo de emoção. Eu só admirava o show e sentia o gosto do
topo na minha língua, me arrepiando, me excitando.
— VI-A-DO! VI-A-DO! VI-A-DO! — era o que os alunos gritavam em uníssono. Era alto
o suficiente pra ser escutado por quem quer que estivesse passando por ali, ou morasse por
ali.
Ele, em um ato de desespero, acredito eu, subiu as escadas, vindo em minha direção.
Aline vinha logo atrás, com a cara tão fechada quanto a dele. O coro continuava e logo ele
estava na minha frente.
— O QUE VOCÊ FEZ?!
— Justiça! — disse tão perto de seu rosto que pude sentir seu arrepio ao ser atingido pelo
ar de minha boca. Não que eu tivesse bafo, mas acho que o intimidei. — É o que se ganha
quando se pega a namorada de um amigo, idiota!
— COMO FEZ ISSO?! — ele deixou um perdigoto voar no meu rosto. Limpei com a
ponta do mindinho e passei na camisa dele.
— Pega o celular de alguém e olha. Ou passe no site do colégio, viadinho.
Ele ia falar mais alguma coisa, mas ouvimos um gigante grito de silêncio vindo dos alto-
falantes das paredes externas. Era a diretora, atrás de nós. Todos se calaram.
— Mas o que diabos está acontecendo aqui?! — ela perguntou com sua boca cinza no
microfone. Sua pele era morena e seu cabelo, preso em um coque medonho, parecia mais um
ovo.
Lancei um olhar a Roberto, como quem diz: “vai, conte tudo pra ela”. E ele entendeu.
— Não sei. — ele respondeu me olhando com muita fúria.
— PEÇO-LHES COM EDUCAÇÃO QUE CALEM SUAS BOCAS E SE DIRIJAM ÀS
SUAS SALAS! IMEDIATAMENTE! CASO EU TENHA QUE VOLTAR AQUI PARA MAIS
UMA REPRESÁLIA, NÃO POUPAREI ESFORÇOS PARA DESCOBRIR O ESTOPIM
DESSA CONFUSÃO E MANDÁ-LO DE VOLTA PARA CASA POR MUITO TEMPO! — ela
gritou para todos que ali estavam. Mulher poderosa, fez com que todos calassem a boca, e se
retirou sem dizer um tchau.
— Filho da puta. — ele murmurou pra mim.
— Chupador de pênis. — retruquei.
E ele se virou com Aline para a sala, provavelmente para se esconder. Enquanto todos os
alunos que passavam por mim na escada me davam tapinhas de respeito e alguns até
cumprimentavam com o olhar, senti que estava feito. Sabiam quem eu era. Sabiam que, a
partir daquela hora, eu seria o dono do colégio, o novo anfitrião da Verão Explosivo e ainda
o cara mais novo que já dominou algum lugar antes. Sim, eu era isso tudo.
Subi para a sala de aula, onde fui recebido com uma salva de palmas e sorrisos galinhosos
de meninas loucas-por-sexo-com-garotos-populares. Helen não apareceu no colégio, muito
menos Mirla, pelo menos não as vi naquele dia. Mas não me importava. Fui pra casa me
sentindo o dono do mundo ao som de Don’t Trust Me — 3oh!3. E realmente, ninguém
deveria confiar em mim. Não naquele dia. Ou semana. Ou ano.
— Nossa, que sorriso é esse? — perguntou Hugo na porta do meu quarto, enquanto eu,
sentado na cama, tirava os tênis.
— Vitória, Hugo. Vitória. — tirei a camisa do uniforme e me deitei de meias.
— Vitória de quê? — ele se sentou na cadeira do computador.
— E o que te interessa? Vai ver o que você estava vendo.
— Eu estava vendo um documentário muito legal sobre cavalos-marinhos.
— Foda-se. — respondi me virando para o lado da janela, contemplando os raios de sol
que entravam filtrados pelas cortinas brancas pesadas.
— Esse lugar é meio parado. Sem baladas, sem festas, sem curtição... que pena que o
carnaval passou.
Não, que bom que o carnaval passou.
— Você fala isso porque não possui em suas mãos uma baita festa que vai arrasar com o
verão dos adolescentes daqui. Eu serei o anfitrião da maior festa do verão, a Verão Explosivo.
E o melhor: nem um centavo saiu do meu bolso, porque um otário, o ex-anfitrião, deu o
mole de pagar tudo antes. E ele nem sabe que já perdeu o controle da festa.
— Festa? Quando e onde?
Me arrependi imediatamente de ter dito o que disse. É que num momento de orgulho,
você deixa seus feitos escaparem de sua língua sem o mínimo controle, é natural.
— Vai ser no sábado e você não precisa saber o lugar porque você não vai.
— E quem te disse isso? — senti que ele havia sentado na beira da cama, perto dos meus
pés.
— O dono da festa.
— Mas eu sou o cara que está saindo com o dono da festa.
— XIIIIIU! — eu chiei me colocando na posição de lótus num pulo. — Cala a merda da
boca, imbecil! E a gente não está saindo. Não saio com homens.
Ele sorriu, daquela maneira safada e sádica que eu odiava.
— Você não sai com homens. — ele se aproximou mais de mim. — Você sai com o
homem.
— Hugo, sério, cai fora. Cacete.
Ele pegou nos meu pés.
— Não.
Eu gostaria de resistir, e era o que eu deveria ter feito. Deveria ter chutado a bunda dele
na hora, mas não o fiz. Deixei me levar mais uma vez. Ele me hipnotizava, fazia meu
coração, me arrepiava... todas as minhas emoções mais fortes começaram a ferver com ele.
Nunca havia sentido aquilo com a Mirla ou quem quer que se fosse. E aos poucos ele foi
chegando mais perto, a ponto de que eu pude sentir o ar quente de sua respiração em meu
rosto. Mais um beijo. Suas mãos subiram de meus joelhos para a minha coxa. Logo estavam
tentando chegar a um lugar proibido.
— O que você tá fazendo? — indaguei pegando na mão e colocando-a longe da zona de
invasão sexual.
— O que eu estou fazendo? — ele retrucou com sarcasmo na voz. — Eu estou com você.
— Mas isso não quer dizer que você pode colocar sua mão em mim.
— É no seu, não dos outros.
— E não vai passar a ser seu.
Ele me deu mais um selinho.
— Por que não? Você gosta de mim, eu gosto de você, por que não?
— Tá difícil de entender? — perguntei me levantando.
— Por que não, Éron, só responde isso!
— Porque você é um homem, merda! Porque já é difícil o suficiente só te beijar! Porque
eu me sinto sujo perto dos meus pais! Porque eu me sinto um viado louco que daqui a pouco
vai estar vestido de mulher em clubes gays, fazendo performances estranhas e usando
maquiagem de aberração de filmes B!
— Isso só prova que você não gosta de mim... — ele soltou olhando pro colchão tentando
parecer uma alma sofrida.
— Isso só prova suas intenções comigo... — eu refleti. Era isso, eu era apenas um objeto
nas mãos dele. Eu era apenas uma experiência, apenas isso. Pelo que eu pude entender
naquela hora, ele me queria apenas pra servir como um brinquedo, talvez pra passar o tempo
enquanto ele estava no Brasil. — Não ache que eu sou um idiota de cair nesse tipo de
cobrança! Iguais a você, já vi mais de cem.
Ele riu e se levantou.
— Espero até a festa.
E saiu pela porta. Então poderia ser eu o objeto de diversão dele. Mas meio que era tarde,
pois algo em mim já estava acordado. Algo que nunca existiu para poder dormir, mas que
apareceu no momento que me senti totalmente entregue. Não tinha jeito.
Durante a semana de aulas, poucas foram as vezes que cruzei com Helen. Eu fingia não a
ver e sempre estampava um sorriso. O mesmo com Mirla. O Roberto eu exagerava muito
bem e fazia questão de soltar altas risadas, acompanhado daqueles que um dia puxaram o
saco dele. Mas eu me ferrei por um lado, pois tive que desembolsar quatrocentos reais pra
tapar alguns buracos na organização da festa (o que gerou comentários insanos dos meus
pais), mas tudo estava perfeito. Depois do Verão Explosivo eu reinaria exclusivo. A
menininha que andava com Aline (aquela versão estudante-primária-cheirada) a largou por
motivos óbvios e entrou para o meu grupo, se justando agora às outras duas meninas super
materialistas e vazias. Meu braço direito, até o termino da festa, era o dono do apartamento e
o que conseguiu o belo espaço: Matheus Sulferri. O salão ficava em um luxuoso condomínio
de veraneio de frente para a praia do Leblon. Sim, poderíamos fazer o barulho que
quiséssemos e iríamos. Depois da festa, ele iria rodar, é claro.
Na sexta-feira, no horário de saída, encontrei Roberto sentado em um dos horrorosos
bancos de madeira do pátio interno, conversando baixo com Aline. Ela parecia ser a sua
única companhia e todos os seus amigos (ou seja, homens) nem ao menos se aproximavam do
coitado. Medo de perderem o pênis pra alguém que gosta de mordê-los?
— Roberto. — saudei com um sorriso. Analisei que o sorriso que eu estava vestindo era o
mesmo sorriso horroroso de metidez e superioridade que ele usava e que eu tanto criticava.
Talvez fosse o ponto da hierarquia escolar que nos colocasse daquela maneira. Mas é aquilo,
ninguém consegue puxar de você aquilo que você não possui...
— Brascher. — ele devolveu tentando um sorriso de poder, mas não estava nem um
pouco poderoso quando vi suas covas laterais tremendo.
— Então, assim, por mais que tenhamos brigado, quero te dar isso. — entreguei um
convite alaranjado na mão dele, que seria o passaporte para a diversão da festa. O que tinha
de errado em humilhá-lo? Pelo menos ele teria um pouco de diversão com muitas meninas.
Ou meninos, caso fosse o caso. — Talvez você queira. Ah, e pode levar alguém.
— Por que está me dando isso? — ele perguntou, aceitando o convite e olhando-o
apressadamente.
— Bem, você organizou boa parte da festa, eu só precisei cobrir o seu posto. — em parte,
o que eu dizia era verdade. Ele havia feito o trabalho duro, deixando pra mim o mais legal: a
diversão! Mas a maior graça era de esfregar no rosto dele que eu é que tinha pisado nele com
o tênis sujo de merda, como a gente faz com as baratas.
— Mas isso não torna tudo bem de novo entre nós. — ele lançou.
— E quem disse que eu quero isso? — defendi com sarcasmo, que logo foi quebrado por
uma voz terrivelmente conhecida, que fez com que meus dentes batessem uns nos outros.
Rezei para que nenhum dos dois tivesse notado a tremida no meu maxilar.
— Éron, que bom que te encontrei!
— O que você está fazendo aqui, Hugo? — perguntei enquanto o observava apertar a mão
de Roberto e beijar o rosto de Aline, que se empinou toda, como a boa piranha que era.
Também, não era pra menos, pois Hugo era a encarnação de um deus da beleza. Talvez, se
fosse mais decente e respeitável, fosse o homem perfeito. Esses pensamentos me invadiam
contra minha vontade.
— Sou Hugo, primo do Éron. — ele se apresentou ao meu lado.
— Roberto e Aline. — indicou Roberto.
— Vim te levar pra casa, sua mãe me pediu. Ela já está lá.
— O cacete que eu vou ser levado pra casa por você. Vou de táxi.
— Para de ser teimoso, animal. Vem comigo.
— Não enche. — e levantei o dedo médio com vontade enquanto eu descia as escadas em
direção ao portão. Achei que ele fosse me seguir e falar aquelas coisas nojentas para que eu
finalmente fosse com ele, mas ele não o fez, o que me deixou preocupado. Eu não tinha
certeza se ele contaria alguma coisa ao Roberto, mas era de se suspeitar. O receio tomou
conta de minha mente até a noite, quando ele finalmente chegou.
— Onde você tava?! — sussurrei assim que ele abriu a porta, para que minha mãe não
ouvisse.
— E desde quando você se importa? — ele brincou, colocando a chave na mesa da
cozinha após me deixar na sala flutuando.
— Você não saiu com aquelas duas amebas, não é?
— Sai. E eles são até legais. Ah, e aquele Roberto é totalmente gay. — ele encheu um
copo com iogurte de frutas roxas que eu sempre tomava.
— Não interessa, só não fique junto deles.
— Por que isso te incomoda tanto? Você nem ao menos sai comigo, como pode me dizer
pra não sair com eles? Se você fizesse o trabalho que eles fizeram, me levando pra sair e
conhecer essa porra de lugar, eu não estaria chegando agora!
Suspirei profundamente e me acalmei.
— Ok, eu prometo sair mais com você, mas não saia mais com eles de novo.
— E quando vamos sair?
— Segunda. Prometo.
— Então o contrato só valerá a partir de segunda.
— Que porre você, heim!
E voltei para o meu quarto, irado, deixando pra escrever toda a minha raiva no Twitter.
Todos possuem uma forma de expressar sua raiva. Quando não se pode decapitar alguém,
fale mal dele em alguma página da internet.
E, finalmente, sábado chegou. Apesar de ser anfitrião, eu poderia chegar mais tarde,
afinal, por qual outro motivo eu teria seguidores e puxa-sacos? Vesti minha calça cáqui
xadrez, uma camisa de manga curta ouro-velho e, por cima, um coletinho azul marinho. Nos
pés, meu Converse azul-marinho. Nos bolsos, celular e dinheiro. Eu estava fatal, pronto para
fazer com que a minha primeira festa fosse uma explosão!
Saí de casa às dez da noite, para uma viagem de táxi de quase duas horas. Felizmente não
vi o Hugo e meus pais nem ao menos estavam em casa. Perfeito? Não, muito melhor do que
isso.
“Ele chegou!” “Como ele consegue ficar tão bonito vestindo tanta merda?” “Será que
trouxe drogas?”. Comentários e mais comentários ouvidos por mim pelas várias pessoas na
entrada do enorme salão salmão, fechado com pilastras brancas ao estilo grego e totalmente
decorado, num estilo havaiano, com tochas de verdade, fontes de água corrente na mesa,
muita comida (frutas, assados e doces) e muita, mas muita bebida mesmo. Pessoas vestidas
com roupas coloridas passeavam pra lá e pra cá, alguns com pares e outros sem, mas todos,
sem exceções, estavam segurando pelo menos (pelo menos) uma taça de alguma bebida.
Campari, vodca com Coca, tequila, Sex on The Beach e o incrível Lobo da Gruta. Os barmen
usavam calções azuis e batas abertas, laranjas. As garçonetes usavam saias amarelas
curtíssimas e calcinhas vermelhas, combinando com a camisa verde amarrada na frente.
Muitos outros se acabavam na pista, com cigarros, taças e mulheres, ao som de algum mix
eletrônico, tocado pelo DJ contratado.
— Parabéns, Éron! — me parabenizou Matheus. — Sua primeira festa, e parece que já o
faz há anos.
— Talento. — peguei uma taça de Campari com gelo feito com água de coco. — Talento.
— É verdade que você deu um convite ao Roberto? — ele perguntou com receio.
— Achei que deveria. Por que, alguma crítica?
— N-não, claro que não! — um silêncio fraco reinou e logo ele lançou. — Aproveite a sua
festa, anfitrião.
E passeei pelo salão lotado. Em alguns cantos, alguns fumavam o que parecia ser maconha
e eu pude jurar que vi pessoas mexendo no nariz como se tivessem cheirando alguma coisa.
Não que eu me importasse com isso, porque pra pessoas como eles, festa sem drogas não era
festa. Eu era bem diferente nesse aspecto. Mas o que me chamou mais atenção foi assistir a
entrada pobre de Roberto, que não passaria de um forasteiro se não estivesse com um alto
loiro. Sim, era o desgraçado do Hugo, vestido como um real galã de cinema. Não, ele era
mais do que um galã de cinema. Ele era o dono de uma aura estranhamente brilhante e,
assim como eu, todos naquele lugar viraram suas cabeças e olhos para a dupla o lixo e o luxo.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei pegando Hugo pelo braço e tentando
arrastá-lo para um canto para que pudéssemos conversar, mas ele era muito mais forte do
que eu, então não consegui movê-lo nem um dedo do lugar.
— Eu o convidei. — lançou Roberto com o sorriso de poder de volta nos lábios.
— Então está tentando me afrontar? Eu já fiz a caridade de te convidar e você ainda tenta
me sacanear? Quando é que vai aprender?
— Ele me contou a história, Éron. — se intrometeu Hugo, recebendo da garçonete uma
taça de Sex on The Beach com uma boa piscadela de vadia. — Você foi mau, apesar de ele ser
um babacão. Mas é aquilo, você se igualou a ele.
— E quem é você pra me dar lição de moral?
— Você sabe o que eu sou. — ele sorriu, o que me deixou com mais raiva ainda. — Você
vai me expulsar?
— Não. Você já tá aqui, não tenho mais motivos pra te colocar pra fora e nem acho que
você mereça tal humilhação.
Ele me olhou com olhos de surpresa ao ouvir o que eu disse.
— Tá bom, você merece, mas não vou fazê-lo. Que vocês dois se fodam.
E saí com a taça na mão, entornando tudo na boca de uma vez. Então Roberto achava que
poderia me atingir de alguma forma e ele queria isso, mas o que ele não entendia era que o
poder era meu. Ele não tinha nenhuma forma de jogar o povão contra mim, porque eu,
simplesmente, era o dono daquela festa, num super salão de luxo com tudo que adolescentes
precisam: drogas e privacidade.
— Conhece aquele cara com o Roberto? — Matheus e Lisandra me perguntaram.
— Conheço. — respondi tomando leves goles na minha quarta taça.
— Eles são, tipo assim, namorados? O Roberto assumiu de vez? — Matheus estava mais
curioso do que deveria.
— Não, não são namorados.
— Mas eles parecem estar juntos. E que estão tendo uma DR... — cuspiu Lisandra.
— DR? — indaguei.
— “Discussão de Relacionamento”. — ela completou.
— Eu sei o que significa DR, idiota, mas... Deixa. Onde eles estão?
— Atrás da pilastra, perto da saída dos fundos para a piscina. — Matheus estava achando
que eu iria expulsá-los. Talvez por medo de se soltar também e resolver se vestir de mulher.
Vai saber...
Após pegar uma quinta taça, fui para perto da pilastra, para tentar ouvir o que falavam,
mas era impossível por causa do som alto. Estavam discutindo alguma coisa, mas não estavam
brigando. “Meu deus, o que eu to fazendo?” pensei, achando ridículo meu próprio ato. Eu
meio que estava com ciúmes de um gigante loiro e isso era vergonhoso. Desisti de estar onde
estava e voltei para onde a festa realmente estava acontecendo: na pista de dança, decorada
com tapetes que piscavam luzes de neon e com paredes decoradas num estilo surfista sem
fumo.
Resolvi não beber mais uma taça quando a quinta acabou, após longos minutos. Mas me
arrependi seriamente:
— DJ, pára o som! — gritou Roberto ficando de pé em frente à mesa de mixagem.
Hugo se aproximou de mim e cochichou:
— Lá vem merda, deixa comigo.
Sem entender porcaria alguma, gritei de volta:
— Mas que palhaçada é essa?!
— Quero que todos me escutem agora! — gritou Roberto mais alto ainda, me ignorando,
porém riam dele, apenas. — É muito sério e vocês gostarão de saber!
— Tem algum envolvimento nessa idiotice? — perguntei ao Hugo.
— Infelizmente tenho.
— Como vocês sabem — começou Roberto —, eu fui discriminado por um ato não-
válido, pois estava bêbado. — burburinho e risadas ecoaram pelo salão, mas ele logo se
colocou para acalmar a multidão: — Mas o que eu tenho pra vocês hoje é uma informação
muito quente sobre Éron Brascher, nosso mais novo anfitrião.
Eu o observei calado, de braços cruzados, apenas esperando a tal acusação, se fosse uma.
— Sabem o homem que me acompanhou até aqui hoje? Ele se chama Hugo e é primo do
Éron.
— E o que isso te a ver, seu viado?! — alguém gritou.
— O que tem a ver é que, se eu sou viado, Éron também é, pois ele e Hugo já se pegaram!
Mais burburinho e mais risadas. Confesso que fiquei vermelho, mas ninguém parecia
acreditar, então acabei rindo também. Roberto, com o ódio na face, voltou a gritar:
— Hugo, diga a eles a verdade!
Olhei para Hugo com decepção. Ele havia contado nosso segredo que prometeu que seria
apenas meu e dele. Além de imbecil, sádico e idiota, Hugo também era desleal.
— Não existe verdade nisso, cara! — Hugo gritou.
Mais risadas. Já muito vermelho, Roberto gemeu:
— Como não é verdade?! Você mesmo me contou!
— Eu te sacaneei, idiota! Eu sabia que você não valia um centavo! Só dei a corda pra você
se enforcar!
Roberto parecia, pela primeira vez, sem palavra alguma na boca e isso incluía
xingamentos, ofensas e palavras de superioridade sem nexo.
— Tá vendo? — cutuquei. — É o que acontece quando se tenta mexer com uma pessoa
que havia sido caridosa com você. Eu tentei parecer legal, mas garotos como você não
passam de merda, que quando a gente pisa, sente mais pena do sapato.
— FILHO DA PUTA! — ele rugiu correndo na minha direção pra me acertar um soco no
rosto, que acabou passando por cima da minha cabeça, quando me agachei.
Para não ficar pra trás, aproveitei que estava abaixado na frente dele e deixei que meu
braço e meu punho cerrado impactassem com toda a força em seu estômago. Fazendo-o
recuar com as mãos na barriga. As pessoas torciam e gritavam o meu nome enquanto batiam
palmas ritmicamente.
— PAREM COM ESSA MERDA! — gritou Hugo segurando Roberto, mas o cara se soltou
dos braços fortes de Hugo com habilidade e me acertou um soco na bochecha direita,
fazendo meu rosto virar. Como um flash, ao olhar novamente para Roberto, vi apenas Hugo,
olhando para o chão com as mãos cerradas e o cabelo bagunçado. Roberto estava no chão,
segurando um nariz que sangrava demais.
— Lenços pra ele, por favor. — pedi à garçonete loira mais próxima.
Me abaixei ao lado de Roberto e o apoiei em minha perna, deixando-o com a cabeça
inclinada.
— Por que você tem que ser tão idiota, cara? — perguntei enquanto fazia com que o
sangue dele saísse pelo nariz e não descesse para a garganta, pois a deixaria irritada, e a dor
que isso causa é horrível. Experiências próprias com hemorragias nasais causadas por
alergias. Os olhos dele estavam fechados, inchados e vermelhos.
— Ele te bateu. — disse Hugo com um tom de justificativa. — E ia bater mais, eu tive que
detê-lo.
— Depois a gente conversa. — respondi pegando os lenços de papel e enfiando-os nas
narinas de Roberto. As pessoas ao nosso redor nos olhavam apreensivas, principalmente as
meninas. Alguns até riam da situação.
— Matheus! — gritei.
— Oi. — ele passou pelas pessoas como se fosse um cara muito importante — Me dá a
chave do seu apartamento? Vamos levá-lo pra lá até que ele possa ir pra casa...
— Não precisa pedir, sabe que já tem. — ele me entregou a chave — É o 19E.
— Me ajuda a levá-lo, Hugo? — pedi.
Sem dizer uma palavra, Hugo pegou Roberto nos braços, sem muito esforço, mesmo que
Roberto fosse forte e pesado (e o soco que levei doía até a alma).
— Gente, a festa continua! — gritei para a multidão. — Bebam, beijem e se divirtam! DJ,
é com você!
Quando o DJ soltou a música Let’s Make Out — Does It Offend You, Yeah? — saímos do
salão lotado, para fora dos olhares curiosos e subimos de elevador até o andar E. Logo o
número 19 estava na nossa frente.
— Entra. — eu disse enquanto segurava a porta de madeira do apartamento, dando de
cara para a sala marrom, com móveis claros, design arrojado e sofás beges. — Coloque-o no
chão, porque se ele ficar no sofá, vai sujar de sangue. A camisa dele está encharcada.
— Fica... — ele colocou Roberto no chão com mais esforço do que quando o tirou do
chão. — tranquilo.
Ele ficou me olhando sério. Eu adorava quando ele parecia ser alguém sério, menos
imbecil e mais adulto. Ele ficava charmoso. Sim, eu estava começando a me adaptar a idéia
de que eu poderia ficar com ele. Eu estava me deixando ser mais feliz, nem que isso fosse o
fato de eu me tornar um cara tão gay quanto o Roberto. E, mais uma vez, esses pensamentos
me pegaram de assalto.
— O que foi? — perguntei sem graça.
— Nada... Você está muito bonito hoje.
— Se você não se lembra, temos um semi-defunto aqui. Ele ainda pode ouvir.
— Mas não pode ver. E mesmo que pudesse, ninguém vai acreditar nele, ainda mais
depois do micasso que ele pagou lá embaixo.
Concordei com a cabeça e senti meu estômago se revoltar. Era como se algum bicho
muito gelado estivesse nele, se remexendo o tempo todo e querendo gritar. E não tinha nada
a ver com borboletas.
— O que foi? — ele perguntou.
— Nada.
— Eu estou bonito hoje? — ele brincou.
— Não. — uma pausa. — Você é um desgraçado de ter contado ao Roberto que nós nos
beijamos.
— Realmente quer discutir isso aqui? Alguém pode entrar. — ele estava tentando achar
uma fuga da conversa, mas eu tinha a chave que trancaria porta.
E o fiz.
— O que está fazendo? — ele perguntou.
— Agora podemos discutir isso. Por que o fez?
— Não sei... Quando você me largou no seu colégio, Roberto e a menina, a...
— Aline.
— Aline. Nós três fomos ao Bob’s e tomamos milk-shake... Depois saímos para conhecer
alguns lugares de Dourado. Quando a deixamos em casa meio que alguma coisa... — ele
parou e suspirou olhando para o teto marrom.
— Alguma coisa o quê?
— Eu meio que fiquei como Roberto e acabei soltando após ele ter me dito o que você
tinha feito e pelo quê.
— Vocês ficaram? — perguntei surpreso com um leve tom de ironia.
— Não dessa maneira que você está pensando.
— E de qual maneira?
— De uma que você não entenderia. Mas você se importa, por acaso? Você nega ficar
comigo por besteira e não quer que eu procure outra pessoa?
— Eu falei alguma coisa?! — indaguei com ironia.
— Demonstrou. Cara, se você não quiser mais nada, tranquilo, mas pra mim é difícil.
Me aproximei de Roberto e olhei seu rosto. Parecia estar dormindo de verdade. Enfim
desmaiado. Ainda olhando para Roberto, me sentei no sofá e, cansado de guardar apenas
para mim, disse coisas que eu jamais deveria ter dito:
— Eu quero, e meu problema está justamente aí. Sabe, eu sempre fiquei com meninas,
não muitas, mas eu tinha certeza de que eram meninas. E, depois como se fosse algum tipo
de droga, você apareceu, me conquistou e me fez sentir uma coisa que nenhuma menina
jamais conseguiu fazer com que eu sentisse. — suspirei. — E o problema é que eu gosto de
você e que eu realmente sinto ciúme. Não deveria, mas é isso que está acontecendo, então
não complica mais as coisas, pelo amor de deus.
Ele se sentou do meu lado, ainda sério e senti que seus olhos caminharam pelo meu rosto.
— Eu gosto de você, primo. — ele me disse.
— Simplesmente não parece. Parece que você joga comigo.
— Olha pra mim.
Suas mãos, ao mesmo tempo em que podiam ser pesadas e fortes, podiam ser suaves e
delicadas. Seus dedos levaram meu queixo ao encontro de sua boca. Com seus lábios, ele
deslizava pelo meu maxilar, pescoço e, finalmente, tocaram a minha boca. Devagar, mas
acelerando cada vez mais o ritmo de nosso beijo. Eu não me importava mais com a festa ou
se seria o dono do inferno, eu só queria aproveitá-lo e percebi que trocaria tudo por ele. É,
ele me pegou de jeito.
— Vem — ele disse se levantando e me puxando pelas mãos —, vamos pro quarto.
— Por que o quarto? — e por que meninos querem quartos? Conseguiu imaginar? Como
eu era ingênuo.
— Porque podemos ficar — ele me deu um selinho. — sozinhos.
— Ok, ok... ok.
Fomos para o quarto de mãos dadas. Na verdade, tentamos achar um quarto entre tantas
outras portas naquele enorme apartamento. Os pais do Matheus tinham um ótimo gosto para
decoração, pois tudo lá dentro parecia morto, mas ao mesmo tempo romântico e iluminador.
— Aqui. — disse Hugo me levando para um pequeno quarto, que logo deduzi que fosse
de empregada. Lá dentro, apenas uma pequena cama de solteiro e um criado-mudo
completavam o tom das paredes brancas.
Após fecharmos a porta, ele começou a me beijar, descendo da boca para o pescoço. Logo
me empurrou na cama e continuou a me beijar. Me senti desconfortável, porque sentir a
“felicidade” de um cara é meio frustrante. Aos poucos, ele parecia ficar cada vez mais
animalizado, quase que feroz. Os beijos se tornaram mordidinhas e seus dedos pressionavam
meus braços e minhas costas. Eu nem conseguia o beijar mais, pois ele ficava preso no meu
pescoço, tentando insistentemente em chegar ao meu colo por dentro da minha camisa.
— Hugo... A brincadeira tá passando dos limites.
Mas ele não parava. Com sua mão esquerda na minha nuca e a direita subindo pela minha
coxa, comecei a realmente ficar preocupado.
— Hugo, pára!
— Qual é o problema?! — ele perguntou meio com raiva.
— O problema é que você está passando dos limites!
— Passando dos limites?!
— Eu não estou pronto pra transar! Nem com uma mulher e muito menos com um
homem! Entenda isso! Não viaja!
— Mas é normal, casais fazem isso! — ele estava de pé, com as mãos na cabeça, que
coçavam o queixo depois que ele falava.
— EU SÓ TENHO QUINZE ANOS E NÓS NÃO SOMOS UM CASAL!
Ele ficou quieto e se sentou novamente, com a cabeça entre os braços, apoiados na coxa.
Ele parecia muito envergonhado, talvez pelo fato da ficha ter caído.
— Desculpa... — ele murmurou. — Desculpa. É que... Nossa, não sei o que dá em mim.
— Testosterona. — falei me aproximando dele. — Só pensa mais com a cabeça de cima.
Poxa, eu te curto, mas preciso de tempo e respeito.
— Você vai ter. Acredite em mim quando eu digo isso.
Seu tom de voz indicava que ele estava revoltado consigo mesmo, mas eu não conseguia
sentir muita sinceridade em suas palavras. Na verdade, eu quase nunca acreditava nele.
Sempre o vi com maus olhos, mas eu gostava disso. Era bizarro. Ele tinha alguma coisa que o
tornava irresistível, e eu acreditava que isso provinha do nosso primeiro beijo, a sensação, o
conforto.
— Vamos embora? Temos que levar o Roberto pra casa. — eu disse. — Vieram de quê?
— Com o carro da sua mãe. — ele respondeu ainda olhando pro chão.
— Não acredito que você colocou aquele excremento no carro da minha mãe. Sujou o
solo sagrado.
— Espero que isso não seja ciúme.
— E não é. Vambora.
Conseguimos acordar Roberto e lavar um pouco do sangue de seu rosto. Seus olhos já
estavam melhores, mas ele realmente parecia com sono. Eu me perguntava se o soco de
Hugo tinha sido tão forte a ponto de causar um dano permanente, mas eu nem me importava
tanto assim, pois Roberto merecia alguma sequela, como ficar paralítico ou com hemorróida.
Cruel da minha parte, admito.
Pedi para que o Hugo fosse com Roberto para o carro, pois eu iria me despedir do pessoal
que ficou na festa. E assim o fiz, recebendo aplausos da galera que ainda estava sóbria — ou
menos drogada. A festa tinha sido um sucesso, então.
— Tá em condições de ficar em casa? — perguntei a Roberto.
— Tô. — ele respondeu seco e frio. Ele tinha todo o direito de estar assim e preferi não
discutir. Mesmo após deixar Roberto em casa, a viagem de volta foi silenciosa e parecia sem
emoção. Hugo estava mais estranho do que o normal e eu estava implacavelmente
apaixonado por ele.
Episódio Cinco
Resoluções do Dia Seguinte
A
cordei no domingo com a fraca luz do sol penetrando no meu quarto pela cortina
branca, deixando-o com uma aparência medieval, natural. Olhei no celular e
ainda eram dez da manhã. Olhei para o lado e a cama de Hugo não mais existia,
como se ele nunca estivesse estado na minha casa. “Foi tudo um pesadelo...”, dizia para mim
mesmo com a mão no rosto e com os olhos cerrados. Desistindo de qualquer pensamento que
me levasse a levantar, relaxei de novo e tentei dormir mais uma vez. Meu quarto estava um
pouco frio por causa do ar-condicionado e a entrada fraca do Sol dava uma sensação de eu
estar deitado na cama de um hotel de algum país frio da Europa. Mas eu não estava.
— Tá acordado? — Hugo perguntou. Eu estava de costas para ele, olhando a minha janela
e mexendo os pés embaixo do edredom.
— Arrã.
— Eu estou indo embora.
Me virei de imediato e olhei pra ele, surpreso.
— Como assim indo embora?!
— É. Tenho que voltar.
— Ué, mas você não disse que queria estreitar os laços por aqui?
— Disse.
— E agora que estreitamos o laço você vai vazar assim, do nada? — me sentei na cama
encarando-o.
— Estreitamos, Éron? Você me impediu todas as vezes que iríamos estreitar alguma coisa.
— Não acredito que você tá indo embora por um motivo tão babaca desses...
— Eu já tinha planejado a minha viagem durante a semana e —
— Cai fora. — pedi, voltando a me deitar com os olhos vidrados nas cortinas cintilantes.
Ele não discutiu e saiu sem se despedir. Então tudo que ele queria comigo era sexo e
brincadeiras, mas eu não estava ali para aquilo. O mais estranho nele era a falta de
compromisso e de respeito que tinha comigo e com as pessoas, pois enquanto a gente se
pegava escondido, ele conseguia fingir perfeitamente para os meus pais uma coisa que ele
não era. Tudo bem que eu estava fazendo o mesmo, mas eu, ao menos, me sentia culpado,
sujo. Com ele isso não existia. Tentei segurar o choro, mas as lágrimas escorreram pelo meu
rosto em silêncio, para serem absorvidas pelo meu travesseiro. Mais uma decepção, mais uma
vez sozinho.
O resto do dia foi vazio no meu quarto gelado. Com meus pais em casa eu não tinha
muito que fazer, apenas aproveitei da presença da minha mãe para comer brownie. Mas o
que mais me surpreendeu naquela tarde foi um telefonema muito inesperado:
— Alô? — atendi ao número desconhecido. Uma esperança tola surgiu dentro de mim,
como se alguém tivesse lembrado meu nome, quando eu era o motivo de adoração — e ódio,
é claro — de quase todos os alunos do meu colégio e estava sem namorada, melhor amiga ou
peguete gay.
— Éron? É você?
— Nossa, Mirla, você nem lembra mais como era a minha voz? — alfinetei, sarcástico,
asfixiando toda a esperança que havia surgido, acusando-a de infantil.
— Desculpa. Podemos conversar? — ela estava com a voz mansa e, se eu não a
conhecesse como uma piranha, poderia se passar facilmente por uma puritana evangélica.
— Você pode tentar me convencer a conversar contigo de novo.
— Não nos falamos desde os fatos...
E ela tinha razão.
— Talvez a culpa tenha te acusado. — cuspi.
Desde a descoberta da traição não dirigimos nem uma palavra e nem havíamos nos visto
no colégio decentemente. De qualquer forma, ela era uma vadia e eu não tinha vontade
alguma de conversar com ela, mas talvez fosse bom escutar o que ela gostaria de falar para
que eu pudesse vomitar na cara dela tudo que se acumulou na minha garganta.
— Pode falar. — eu disse me sentando em frente ao computador desligado.
— Podemos nos ver?
— Não queria conversar? Agora quer me ver? Daqui a pouco vai querer transar comigo.
— Por que está sendo tão grosso? — ela perguntou mansa, porém revoltada, querendo se
colocar como a vítima da história. Só que, nessa história, as vítimas não existiam.
— Por quê?! Por quê?! Será que foi pelo fato de você ter me traído com um viadinho
escroto e nem ao menos ter me dado satisfação da sua vida enquanto estávamos ficando?!
Não vem se fazer de vítima, ok? Garotas como você eu mando logo pro cacete, e não tô afim
de te tirar de lá.
— Por favor, eu só quero falar com você pessoalmente! — ela estava com a voz trêmula e
chorosa, tentando me afetar de alguma maneira, pensava eu. Mas poderia ser verdadeiro,
honesto.
— O que nós temos pra falar?
— Tudo que não falamos desde a merda! Anda, por favor...
Silenciei por alguns segundos e deduzi que ela pediria pra voltar. Já que ela estava sozinha
e Roberto havia se tornado um simples qualquer-lixo, ela iria querer ficar comigo outra vez,
acreditando que tinha esse poder. Mas não tinha. Eu tinha o poder, tanto em cima dela como
em cima de qualquer outra menina do colégio e isso incluía as comprometidas. Ela estava
cobiçando o meu poder, mas tê-lo seria impossível.
— Me encontra no —
— Não — ela me interrompeu —, me encontre em frente ao Sunshine Hotel, às oito.
— O Sunshine fica do outro lado de Dourado, praticamente eu terei que andar toda a
cidade pra chegar lá.
— Por favor, você não vai se arrepender.
— Tá.
— Ok... — uma pausa — Valeu por essa chance.
— Não estou te dando chance nenhuma. Eu só irei escutar você. — e falar algumas coisas.
Desliguei sem me despedir e fui para a cozinha pegar mais um pedaço do brownie
gigante. Minha mãe estava lavando a louça. Ela fazia as tarefas domesticas quando estava em
casa porque eu nunca gostei das empregadas que ela contratava, pois todas — sem exceções
— eram evangélicas e ficavam cantarolando músicas horrorosas, falando sobre deus. Como
eu sempre fui ateu, achava uma falta de respeito elas cantarem na minha presença, então
minha mãe nunca mais contratou nenhuma. Ela nunca discutiu comigo sobre isso porque era
eu quem mais ficava em casa, então eu deveria me sentir bem estando no meu local sagrado.
Eles me respeitavam quanto a algumas opiniões.
— Como foi esse tempo com seu primo, Éron? — ela perguntou enquanto eu cortava uma
fatia do brownie de chocolate.
“Fui assediado, atacado, beijado, mordido e humilhado por esse babaca, super estranho.”
— Grande coisa... — foi tudo que consegui responder.
— Vocês brigaram?
“A todo momento, enquanto não estávamos nos beijando. Ah, não, até enquanto nos
beijávamos nós brigamos.”
— Não...
— Por que está tão calado?
“Porque o imbecil do Hugo foi embora pelo simples fato de eu não ter dado a ele o que ele
queria e porque eu não tenho mais motivo nenhum para estar feliz, saltitante ou falante.”
— Tô cansado. A festa tomou muita energia.
— Hugo me disse que vocês chegaram cedo ontem.
— É... — eu comi um pedacinho da fatia. — Não precisavam muito de mim lá. E se
ninguém me ligou até agora é porque devem estar com uma ressaca louca.
— Você bebeu?
“Bebi só Campari, mas eu senti que tinha alguma coisa além naquilo... Mas fica tranquila,
nem fiquei bêbado.”
— Só refrigerante.
— Esse é meu filho! — ela sorriu enquanto secava um prato.
“É, seu filho viado, solitário e mentiroso, que você deveria expulsar de casa à base de
porrada e, talvez, decepar algum membro. Não precisa me matar, só me deixe aleijado que eu
já me sentirei mais limpo.”
— Vou comer e sair.
— Aonde você vai?
— Me encontrar com uma... Eu vou sair!
— Namoradinha? — ela estava com aquele tom de voz tipo “eu sei o que vocês fizeram no
verão passado”.
— Namoradinha? Existe namoradona? Meu deus, mãe. Não usamos mais essas gírias
esquisitas. No máximo, se não formos namorados, usamos a expressão peguete, ficante e tal.
— Boa sorte, com o que quer que seja.
Acenei com a cabeça e saí do raio de visão dela, indo direto para o meu quarto, onde
terminei meu brownie e escolhi algumas roupas básicas, que coloquei após o meu banho com
o um óleo de maracujá trifásico muito cheiroso.
A viagem de táxi demorou quase sete minutos. Isso pra mim já era demais, ainda mais de
táxi. O Sunshine Hotel ficava quase na saída de Dourado, do lado oposto ao lado que eu
morava. Ele era enorme, com vários andares e super caro. Era, geralmente, o hotel onde as
estrelas do cinema (nacional e internacional) se hospedavam quando queriam escapar da
movimentação da cidade e ficar num lugar onde seriam pouco incomodadas pelos fotógrafos.
Eu nunca precisei me hospedar nele, mas a minha família poderia pagar por algumas noites.
Dinheiro jogado fora seria, mas a experiência contaria mais.
Ele lembrava muito o Copacabana Palace, só que numa versão mais moderna e menor,
com janelas de armação de madeira detalhadamente pintadas em amarelo, com uma porta
giratória de vidro esverdeado e com um tráfego de pessoas razoável, a maioria delas
empresário. Mirla estava embaixo da cobertura da porta giratória, ao lado de um daqueles
caras que levam o seu carro para o estacionamento. Estava usando um vestido laranja e verde
até os joelhos e sandálias hippies trançadinhas com raízes.
— Obrigado por vir. — ela agradeceu com um sorriso tímido. Quando percebeu que eu
não iria responder, continuou: — Vamos entrar, reservei uma mesa no Yellow.
Ela me guiou até o Yellow Bar, um mini-restaurante super luxuoso e requintado, com
todas as paredes decoradas com representações de grandes obras de Picasso pintadas
unicamente com vários tons de amarelo. O bar era extenso e os atendentes vestiam calças
pretas com coletes amarelo-ouro por cima das camisas sociais brancas. A mesa que ela havia
reservado ficava próxima da parede a oeste e estava coberta com uma toalha branca,
contrastando com a cor marrom da madeira pintada, e velas flutuantes boiavam em taças
bojudas.
— Pra que isso tudo? — perguntei, me sentando de frente a ela.
— Acho que você merece.
— Pára de ficar puxando meu saco. Você faz uma porrada de merdas e acha que um
jantarzinho iluminado por velas vai fazer tudo ficar bem?
— Eu só achei que —
— Presta atenção numa coisa — comecei. —, eu te agradeço, de coração, por todos os
bons momentos que tivemos e mais ainda por você ter me traído, sabe por quê? Porque
depois que você me traiu eu consegui me tornar alguém ali naquele colégio. Alguém que eu
nunca conseguiria ser se você não fosse tão piranha. Mas, ao mesmo tempo, a raiva que eu
sinto por você é tanta que, quando te olho, tenho vontade de vomitar na sua cara.
Ela ficou em silencio. Seus olhos se encheram de água, mas eu não estava nem um pouco
sentido. Eu queria mais é que ela chorasse, e muito. Ela merecia passar por isso, pois, se um
dia ela ficasse com alguém e namorasse sério, não repetiria o mesmo erro. Muito menos com
a mesma pessoa.
— Eu... Só queria dizer que me arrependi...
— Justamente quando Roberto perde o poder e quando eu saio ganhando? Nossa, que
coincidência, né?
— Você pode achar que é mentira, mas não é...
Ela parou de falar quando percebeu que o garçom estava se aproximando. Para confirmar
a falsidade de suas lágrimas, nem uma havia escorrido pelo seu rosto. Vadias serão sempre
vadias.
— Querem alguma coisa? — ele perguntou. Ele usava a mesma combinação de roupa que
os atendentes, mas a cor do colete era bordô.
— Eu... — olhei o menu da mesa rapidamente — Quero um Boom, por favor.
— Você não parece ter dezoito anos. — ele disse me olhando com um sorriso.
— Estamos em um hotel, não preciso ter dezoito anos. — respondi. Por mais que nunca
tivesse me hospedado no Sunshine antes, eu sabia que, geralmente, os hotéis não pediam a
identidade para vender bebidas alcoólicas. Boom era uma das bebidas alcoólicas mais fracas e
só tinha o nome forte porque a mistura era intensa e muito variada.
— É claro que não. — ele respondeu com um sorriso mais largo ainda. — E a senhorita?
— Nada.
Ele fez uma última confirmação com a cabeça e saiu em passos vagarosos para pegar o
pedido.
— Mirla, só me diz logo o que você tem pra dizer. Assim a gente acaba com essa merda de
conversa e cada um vai pra sua casa na boa.
— Eu queria te pedir desculpas pelo que eu fiz, nada mais.
— E por quê? É isso que eu não entendo! Por que agora?
— Porque eu estou indo embora.
Fiquei em silêncio, esperando que ela continuasse.
— Estou indo para São Paulo. Meu pai conseguiu uma promoção e a gente está indo
morar lá... Eu só não queria deixar nenhum buraco aqui.
— Você deixará mais que um buraco. Você destruiu um sentimento maravilhoso que eu
tinha por você. Eu achei que te amava e que você me amava também, mas não era amor, de
nenhum dos dois. — seus olhos se encheram de lágrimas novamente. — Cara, já parou pra
pensar nas merdas que a gente faz? Eu só tenho quinze anos, você só tem dezesseis e nós nos
deixamos levar por um bando de babacas de dezessete que nem se sustentam! Nós agimos
como eles agem e pensamos como eles pensam, deixamos nossas mentes vazias! Nós
deveríamos estar nos divertindo de outras formas, mas não! Grande parte de nós fuma,
cheira, fica louco no chão de boates e acha que está arrasando! Isso tá errado, e você deveria
pensar mais nisso.
Eu falei o que falei como se eu tivesse refletido muito sobre o assunto, mas a verdade é
que eu só passei a refletir depois de estar sentado ali, com ela. Percebi que eu havia me
deixado levar por uma disputa idiota e uma traição boba. A outra traição, a da Helen, era
muito mais pesada e dolorosa, mas mesmo assim eu nem tentei me vingar. A verdade é que a
minha personalidade estava sendo levada por falsos ideais de diversão e, nas vezes que eu
não me divertia, eram justamente as situações das quais eu não fazia parte, mas que
colocaram na minha cabeça que eu deveria fazer, que eu deveria ser como eles eram.
— Você parece ter crescido... — ela disse me olhando com os olhos marejados. — Não
sei, parece mais... Maduro.
Não falei mais nada. O garçom se aproximou com a minha taça bojuda decorada com um
canudinho colorido. Boom era multicolorida e meio cremosa, me lembrava milk-shake, na
textura, mas era mais mole e seu sabor, ao invés de doce, era mais cítrico. Eu já conhecia a
bebida porque eu sempre tomava quando viajava com meus pais pra Angra dos Reis e me
hospedava em hotéis legais. Eles nunca me proibiram de tomar alguma bebida alcoólica, mas
não apoiavam muito a idéia.
— Era isso que você tinha para falar? — perguntei após tomar um pouco da Boom.
— Me perdoa?
— Não sou “deus”, não posso fazer isso. Mas te desculpo, só que isso não vai me fazer
querer ver a tua cara outra vez. Até acho maravilhoso você ir embora, assim evito um peso
no colégio. Se Helen e Roberto também sumissem, aí sim seria perfeito. — despejei
duramente.
Me levantei com a bebida na mão e, ao invés de tomar no canudo, virei tudo num único
gole direito da boca do copo, largando-o em cima da mesa com uma nota de vinte junto.
— Divirta-se em São Paulo. — lancei após virar as costas e caminhar para o ponto de táxi
mais próximo, onde o motorista abriu a porta para mim educadamente. Entrei no táxi — que
cheirava a lavanda. — e pedi que me levasse para casa.
No caminho, logo após fazer a curva que saía do hotel, reparei em um enorme outdoor
que dizia: “Clube 13 apresenta: A maior festa GLS de Dourado! Toda sexta, sábado e
domingo, às 23 horas!”. Estranhamente aquilo chamou a minha atenção. Quem sabe aquilo
que eu senti com Hugo não estivesse realmente dentro de outro cara?
Já no meu quarto, me joguei na cama exausto física e mentalmente. Por que eu me
interessava tanto em ser cobiçado no colégio? Só por que eu sofri durante anos como um
mané qualquer? Não poderia ser uma desculpa para eu tratar as pessoas como estava tratando
ultimamente. Eu me tornara exatamente aquilo que eu odiava em Roberto e nos demais
idiotas que o seguiam. Eu estava perdendo os meus princípios, aqueles que eu montei no ano
anterior, quando estava me preparando pra sair da nona série. Eu prometi a mim mesmo que,
um dia, eu ajudaria aqueles que eram zoados pelo simples fato de serem quietos e pouco
comunicativos, e de um desses, passei para um daqueles que eu odiava, um dos caras que
abusava do poder e tratava todo o restante como simples lixo.
Percebi que eu não poderia continuar agindo daquela maneira, porque aquele não era eu.
Eu não queria mais saber de festas privadas em apartamento apenas pra parecer cool ou de
agilizar festas para que todas as pessoas conhecessem o meu nome e o pronunciassem nove
vezes entre dez frases. Por que perder tempo criando festas se eu poderia ir a uma pronta? O
Clube 13 parecia ser o lugar ideal, onde eu procuraria aquilo que eu senti com Hugo. “Talvez
eu realmente seja gay...”, eu pensava deitado na cama olhando para o teto branco listrado de
preto. Poderia ser. Eu poderia gostar de homens, por mais que não me sentisse atraído por
qualquer um a não ser o meu primo, mas eu o beijei, e isso deveria significar alguma coisa na
minha vida ou na minha orientação sexual. Ele poderia ter me influenciado ou me libertado
de uma vida mais falsa do que nota de quinze.
— AAAAH! — gritei jogando meu travesseiro, que acabou por acertar o monitor LCD do
meu computador. Eu estava confuso, perdido e sozinho. Estava enjoado das minhas músicas
e filmes e queria escutar alguma coisa nova, então sintonizei em uma rádio qualquer,
justamente quando a música Runaway, do trio Yeah Yeah Yeahs!. Eu a tinha, mas ao escutar
no rádio, senti como se fosse nova.
Eu queria poder mentir para mim mesmo e dizer que não precisava mais dele ou que não
necessitava de mais ninguém, mas eu precisava. Eu queria me sentir seguro de novo, amado,
querido, mas não estava acontecendo. Nem eu mesmo conseguia me amar. Eu me achava
desprezível por estar sofrendo por uma mentirosa que me trocou pelo primeiro macaco que
viu e sofrendo por um cara que me iludiu e depois foi embora, como se nada tivesse valido a
pena ou que eu realmente não valesse nada. De certa maneira, eu gostaria que o avião dele
caísse, explodisse, mas por outro lado eu o queria comigo, agarrado naquela cama, sem sexo,
sem vulgaridade. Eu o queria por afeto, carinho e compaixão. O problema é que eu o queria.
— Eu posso achar alguém como ele! Eu sei que posso! — confirmei para mim mesmo
enquanto tentava reter as lagrimas de meus olhos. Eu estava frágil, chorando por qualquer
coisa e deixando a raiva me dominar a cada passo e isso não poderia mais acontecer, porque
eu era mais do que aquilo, eu tinha que ser mais que o sentimento. Eu tinha que mantê-lo
sob o meu controle. Eu tinha que deixar a minha beleza sair, provar para mim mesmo que eu
era sensual o suficiente para ter quantos Hugos ou Mirlas eu quisesse. E eu sabia pra onde ir.
Às onze e meia eu saí de casa vestindo uma camisa de manga longa de gola alta na cor
cinza, um jeans preto com riscos brancos bem fraquinhos e um colete preto e branco. Claro
que nos pés estava o meu par de All Star pretos.
— Pra onde, senhor? — perguntou o taxista.
— Clube 13, sabe onde fica? — respondi com convicção.
Senti um olhar de estranheza do taxista, como se ele soubesse exatamente o que eu iria
fazer naquele lugar — e o que poderiam fazer comigo lá.
— Sim, senhor.
Em sete minutos estávamos parados na rua oposta ao Clube. Paguei e desci do taxi com
toda a pompa que pude reunir em mim. Na bilheteria do outro lado da rua, muitos homens e
mulheres, de tipos variados, mas a maioria parecia estar entre os dezessete e vinte e cinco
anos. Homens altos, de cabelos curtos, compridos, negros, brancos, mulatos; mulheres altas,
baixas, femininas, másculas, de cabelos curtos, compridos, loiros, ruivos, laranjas e castanhos.
Confesso, me senti um pouco intimidado por estar ali sozinho, mas não era pra isso que esses
lugares serviam, para não estar sozinho?
— Queixo erguido, corpo reto. — eu dizia pra mim mesmo. — Você é bonito, pode fazer
isso.
E atravessei a estrada deserta até a bilheteria do Clube. O nervosismo foi aumentando
dentro de mim a cada passo, porque parecia que eu estava com uma melancia no pescoço,
pois as pessoas me olhavam e, devagar, iniciavam comentários. Quando me aproximei da
bilheteria e tirei a minha carteira Lacoste branca do bolso traseiro da calça, um cara, de
aproximadamente vinte anos, colocou a mão no meu ombro e me perguntou com um sorriso:
— Posso pagar pra você?
Como eu não achava que a gentileza poderia ser achada em lugares como aquele, achei
que tinha sido uma jogada de mau gosto com a palavra pagar. E fui um imbecil:
— Não, idiota.
Um grupo de garotos começou a vaiar o cara que eu dei o fora, pois pareciam estar
assistindo a tudo dali de perto. O homem ficou sem graça e voltou para o grupo, indo
comentar alguma coisa sobre mim. Paguei o meu ingresso e caminhei para a entrada do
Clube pelo tapete vermelho. Em frente à porta de vidros negros, dois seguranças estavam
parados: um recebendo os ingressos e outro revistando. Mais dois estavam dentro do hall de
entrada do lugar, apenas como seguranças mesmo. Um deles me olhou, desconfiado da
minha idade, acredito, porém, por mais que eu tivesse quinze anos, eu tinha um rosto de
homem mais velho, sem falar no meu tamanho. Eu aparentava ter uns dezessete anos,
felizmente, e o meu raciocínio também acompanhava esse ritmo.
— Divirta-se. — disse o segurança que destacou em dois o meu ingresso.
Ao passar pelo escuro hall com alguns casais de homens se agarrando e se beijando
compulsivamente, como se quisessem chupar a cara do outro, me deparei com um som tão
alto que achei que ia desmaiar. Luzes piscavam coloridas naquele lugar escuro e lotado de
pessoas. Homens extremamente bem vestidos passeavam de lá pra cá e eu esbarrava em
alguns por não conseguir focar a minha visão naquela piscação toda. Andei e andei até achar
o bar, no qual sentei aliviado e de olhos fechados. Eu estava tonto e com muita vontade de
vomitar. A batida eletrônica da musica parecia fazer com que meus tímpanos entrassem em
colapso, começando a esquentar e a quicar dentro da minha cabeça. Não me surpreenderia se
meus ouvidos sangrassem.
— Queral um coisa? — o barman malhadão e sem camisa perguntou. Eu não consegui
escutar direito o que ele tinha perguntado.
— O quê?!
— Queral um coisa?
— O QUÊ?! — gritei.
— QUER ALGUMA COISA? — ele berrou de volta.
— NÃO, VALEU!
Ele fez sinal de positivo com o dedão e ficou fazendo malabarismo com garrafas. Meu
deus, se eu ficasse lá por algumas horas, ficaria surdo, cego e zureta, mas preferi arriscar
alguma coisa. Eu tinha que ter foco. Foco no que eu estava procurando: um homem. E ali,
com toda certeza, tinha mais de cem. Bem mais.
Caminhando mais um pouco pela enorme boate, achei um cantinho com charmosos sofás
— um de frente para o outro — numa cor que parecia ser vinho, com acabamento em
madeira escura e a parede atrás parecia ser muito vermelha. Entre os sofás, uma mesinha de
vidro com várias taças e copos de bebidas coloridas. Nos sofás, homens sentados riam e
pareciam estar juntos, pelo menos a maioria.
Continuei meu caminho e cheguei à pista central de dança, perto do palco, onde o DJ
cabeludo e sem camisa comandava a mesa. O som estava bem mais alto ali, mas eu tinha que
seguir em frente. No meio da pista, um mini-palco negro com vários homens dançando, de
todos os tipos. Alguns sem camisa, outros com. Alguns dançando horrivelmente mal e outros
rebolando a bunda de uma maneira legal e totalmente vulgar. Senti alguém tocando meu
ombro e me virei. Um garoto de mais ou menos vinte e dois anos, de braços fortes, rosto
branco. Na mistura de luzes, o cabelo dele parecia ruivo e muito bem cuidado em algum tipo
de topete espetado, levemente penteado para cima com gel. Ele se aproximou do meu ouvido
e esticou a mão:
— CARA, MEU NOME É DANIEL, PRAZER.
Sem entender palavra nenhum, apertei a mão dele.
— TIPO, TÁ SOZINHO?
— O QUÊ?! — eu realmente estava um surdo virgem ali. Se houvesse um tiroteio lá
dentro, eu seria o primeiro a tomar chumbo na cabeça, porque nem isso eu iria escutar.
— TÁ COM ALGUÉM?
— NÃO!
— QUER FICAR COMIGO?
— O QUÊ? ESSA PORRA DE MÚSICA TÁ ME DEIXANDO SURDO!
— O QUÊ? — agora era ele.
— ESQUECE!
— QUER FICAR COMIGO?
— FICAR COM VOCÊ?
— É!
— PÔ, CARA, VALEU, MAS EU QUERO FICAR SOZINHO... — que desculpa
esfarrapada...
— OK, OK! DIVIRTA-SE AÍ, CARA!
— VALEU!
E ele se afastou de mim aos poucos, indo se perder em uma multidão infinita de pessoas.
Eu não queria ficar com um cara assim, logo de começo. Eu nem estava acostumado ainda
com a idéia de ter de beijar um homem que não fosse o Hugo, mas eu tinha que provar, tinha
que conseguir. Eu tinha que mostrar pra mim e pra ele que eu não precisava dele, que eu
poderia sentir o que eu senti com ele com qualquer outro cara. E eu estava usando desculpas.
O cheiro de cigarro estava insuportável e as pessoas rebolavam até o chão com latas de
cerveja na mão. Alguém derrubou alguma coisa grudenta no meu All Star e eu rezei para que
não fosse esperma.
— DESCULPA! — o garoto falou. Ele deveria ter uns dezessete anos e era muito bonito.
Não tão bonito quanto o ultimo cara que falou comigo, mas tinha uma beleza meio que
natural. Uma pele amarronzada, cabelos negros curtíssimos e olhos escuros penetrantes. O
que mais me chamou a atenção nele foram as costeletas, que acentuavam o seu nariz
perfeitamente quase inexistente.
— TUDO BEM!
— QUAL O SEU NOME?
Eu não sabia se respondia o meu nome real ou se inventava algum nome retardado pra
que nunca mais me achasse, muito menos no Google.
— ÉRON!
— SOU KEVIN!
— PRAZER! — me arrependi logo depois. Como eu não conhecia o mundo GLS de perto,
achava que todos os gays eram promíscuos e que fariam piadas sexuais com quaisquer
palavras que pudessem despertar um duplo sentido. Prazer e pagar eram dois exemplos.
Quando percebeu que eu estava incomodado com o som, ele me propôs:
— QUER IR PRA UM LUGAR MENOS BARULHENTO?
— NÃO QUERO IR EMBORA AGORA!
— NÃO É IR EMBORA, É IR PRA ONDE O SOM CHEGA MENOS!
— AH... OK, EU ACHO!
Ele me pegou pelo braço e me levou pra dentro da multidão, nos fazendo sair perto da
onde estavam os sofás e onde uma escada caracol escura se escondia nas trevas. Subimos os
degraus com cuidado — pelo menos eu, que tropecei duas vezes, mas por ter um ótimo
reflexo não caí — e nos sentamos em uns banquinhos naquilo que parecia ser o camarote.
Casais gays se atacavam, como sempre, mas ali existia um casal hétero, se pegando perto da
escada.
— Meu deus, héteros vêm aqui! — eu disse percebendo que o som realmente parecia mais
baixo. Conversar feito gente... Maravilha.
— Não acho que sejam héteros! — ele lançou analisando o casal. — São sim... Pensei que
ela pudesse ser um travesti!
— Travesti?! — indaguei com receio. De três coisas eu tinha medo: 1) grilos gigantes, 2)
bonecas de porcelana e 3) travestis. A maquiagem pesada e os olhos claros me assustavam pra
cacete, desde que eu me lembrava por gente. Eu tinha medo da Lady GaGa. — Tem travesti
aqui?!
— Poucos! São mais o que vêm pra fazer shows!
— Shows? Aqui tem shows?
— É a primeira vez que você vem a uma boate gay, não é?
Fiquei dividido entre dizer que sim e não. Se eu admitisse, passaria como uma criança e se
eu mentisse, eu seria uma criança.
— É...
— Fica tranquilo, não farei nada que você não queria. — ele começou. — Acho que eu
sou diferente da maioria dessas pessoas...
— Então por que vem? — perguntei curioso.
— Não gosto de estar sozinho. Aqui tenho amigos, conhecidos... E ainda tenho a
oportunidade de achar alguém pra dividir coisas da vida, até mesmo fora daqui.
— Estamos numa boate, você não vai achar uma pessoa assim...
E quem eu era pra falar alguma coisa?
— Eu não perco as esperanças... Espera aí, você já beijou algum cara na sua vida?
Mais uma vez fiquei dividido em admitir que beijei um primo ninfomaníaco ou mentir e
me fazer de Maria do Bairro.
— Já... Um primo. O primo.
— Primo... Foi complicado com ele?
— Foi. Como adivinhou?
— Primos são, geralmente, os primeiros... E o meu foi uma merda. Me fez acreditar que
gostava de mim, mas, na verdade, estava apenas me usando. Ele tinha namorada e uma vida
paralela ao que ele estava fazendo comigo... No final, eu me ferrei. Contigo foi difícil assim?
— Não. — menti. Achei que seria melhor não liberar muita informação assim, com
alguém que eu mal conhecia. — Terminamos bem e não vamos nos ver tão cedo.
— Sorte a sua...
O assunto morreu por alguns minutos, até que ele retomou com um sorriso que brilhava
azul por causa das luzes negras.
— Sua cabeça parou de rodar?
— Parou. — respondi, me dando conta de que a minha tontura e o enjôo haviam
desaparecido e o som parecia muito mais agradável.
— Quer dançar?
— Ah... Por que não?
Nos levantamos e descemos as escadas. Não ficamos tão perto do palco, mas o som
continuava alto o suficiente. De frente, um para o outro, dançamos pertinho, fazendo com
que a cada batida na música diminuísse a distancia entre nós. Eu senti que o beijo ia rolar,
mas fiquei com medo e muito nojo. Era estranho beijar outro cara que não fosse o Hugo, não
por sentir culpa, mas por me sentir tão gay que era inacreditável de pensar. Eu achava que,
em pouco tempo, estaria usando saias e rodando a baiana como uma pomba-gira louca no
meio do salão, mas não, não era bem assim que as coisas iam acontecer...
— Posso beijar você? — ele pediu, ao pé do meu ouvido. Pelo menos foi educado.
Demorei um pouco para responder e, ao invés de falar, peguei-o pela nuca e o puxei para
minha boca. Seu hálito cheirava à hortelã, e o beijo dele até que era legal.
Nos abraçamos após o beijo e ficamos nos sacudindo ao som da música, rapidamente. Eu
estava usando ele de alguma maneira? Era injusto o que eu estava fazendo? Mas todas as
pessoas que vão para baladas e festas pretendem usar outras pessoas... Por que só eu me
sentia culpado? Era como se eu não tivesse nascido como as outras pessoas, como se eu fosse
um forasteiro...
— Tenho que ir. — sussurrei no ouvido dele. O sussurro poderia ser considerado um grito
se não tivesse tanto barulho naquele lugar.
— Já?
— É. Valeu por tudo.
— Me dá seu telefone?
Dar ou não dar (o telefone)? Pelo menos para me sentir melhor comigo mesmo, eu
poderia dar o meu telefone. Eu já o tinha beijado, ter o meu telefone não seria grande coisa.
Mas ele poderia pegar esse ato como interpretação de que eu queria alguma coisa além...
Dane-se. Eu dei o telefone e o abracei mais uma vez, tentando achar o caminho de volta na
multidão. Percebi então que quase todas as pessoas me olhavam, e alguns ainda comentavam
com amigos enquanto outros sorriam bobamente. Eu sabia que olhavam para mim porque
esse tipo de coisa acontecia com regularidade, mas nunca tinha acontecido com tantas
pessoas de uma vez.
Eu já estava a alguns metros da saída quando alguém repousou a mão no meu ombro
esquerdo. Eu já estava de saco cheio de pessoas me tocando sem permissão, afinal, meu corpo
é o prêmio mais sagrado e importante pra mim. Me virei, pronto pra soltar uma rajada de
palavrões baixíssimos, mas toda a irritação foi contida quando vi um olhar angelical,
escondido por trás de um óculos quase-meia-lua. Com uma pele pálida, como se ele
trabalhasse num escritório durante trezentos e sessenta e cinco dias no ano. Seus cabelos
ondulados — como aqueles astros do rock alternativo que eu adorava — eram negros e
brilhantes, refletindo a luz multicolorida que piscava psicodelicamente no lugar.
— Já vai embora? — ele perguntou, chegando ao meu ouvido devagar.
— Vou. — respondi no ouvido dele, me colocando nas pontas dos pés. Ele era bem mais
alto do que eu, mas seu corpo magro era muito bonito, não deixando-o com aparência de
esqueleto. Podemos dizer que ele tinha uma gordura bem dividida na magreza.
— Mas você nem fez nada!
— E não vou fazer! — eu exclamei em defesa achando que, novamente, o assunto era
sexo.
— Por que não? Pra que ficar sozinho se você pode estar acompanhado?
— Porque quem eu quero que me acompanhe está do outro lado do mundo.
— Bem, eu posso não ser essa pessoa, mas eu acho que você é essa pessoa pra mim.
Uau, que cantada legal.
— Sério, é?
— Sério. Fica mais um pouco. Vamos tomar alguma coisa. Não vou te convidar pra dançar
porque eu sou horrível dançando, mas...
— Ok! Parece legal, vamos sim!
O segui até o bar, onde nos sentamos em um daqueles banquinhos individuais, altos e
redondos, que você pode rodar e rodar até ficar tonto. O legal desses banquinhos era que eles
possuíam luzes fortes no seu interior, então, quando sentamos neles, fazem com que nossas
bundas pareçam brilhar... Não sei o porquê, mas tudo naquele lugar me remetia a pensar as
coisas num duplo sentido, tipo, bunda brilhante. Que tenso.
Ele pediu um Cosmopolitan e eu uma latinha de Sprite. Quando os caras querem ficar
com alguém, eles pagam tudo, sabia? É, eu sabia disso porque eu gostava de pagar as coisas
para as meninas. Ele pagou a minha Sprite e eu, com um guardanapo, limpei a boca da
garrafa. Eu tinha medo daquelas bactérias que causavam vômito e diarréia, muito higiênico.
— POR QUE SPRITE? — ele perguntou tomando um gole do Cosmopolitan.
— EU SEMPRE GOSTEI DE SPRITE, MAS... EU TE CONTO QUANDO SAIRMOS
DAQUI! NÃO AGUENTO MAIS ESSE BARULHO!
— VAMOS! — ele virou toda a taça na boca e me pegou pelo braço, me levando
apressadamente para fora.
— Está frio aqui. — murmurei, apertando-me num abraço.
— Dourado é um lugar esquisito... é por isso que só venho de vez em quando. — ele
devolveu, enquanto caminhávamos para atravessar a estrada.
— Não mora aqui? — beberiquei a Sprite.
— Não. Sou da Tijuca.
— Nossa, muita coragem sair de lá pra vir pra uma boate aqui. — brinquei.
Atravessamos a estrada pouco movimentada e continuamos nossa caminhada para a praia.
— É verdade, lá tem uma porrada de boates, mas eu tenho uns amigos aqui, então eu
prefiro ficar com eles. Lá na Tijuca o pessoal é meio idiota, sei lá, não existe química.
— O que você faz da vida?
— Administração. Mas não é isso que eu quero pra minha vida... Eu gostaria de ser
cineasta, mas a família não apóia... Essas coisas. Acham que não é trabalho.
Eu ri.
— Desculpa, mas tipo, nossos pais às vezes são tão...
— Empata-foda?
— Exatamente!
Rimos mais um pouco e viramos em uma esquina antes da praia. A brisa do mar batia
gelada em meu rosto, dando a sensação de que o estava mutilando aos poucos. O chato de
morar perto da praia era que o dia poderia ser infernal, mas a noite sempre era fria.
— Tem um Habib’s 24 horas ali na frente, quer comer alguma coisa? — perguntou ele,
percebendo que meus dentes já batiam uns nos outros por causa do frio.
— Adoraria uma esfiha agora... E essa Sprite está fazendo com que eu não mais sinta os
meus dedos...
— Você não me contou a história da Sprite! — lembrou ele.
Avistamos o Habib’s na frente, enorme. O drive-thru já estava fechado, e dentro das
paredes de vidro, apenas duas mesas estavam ocupadas, respectivamente por dois casais.
— Vamos sentar que eu te conto. — sorri.
Nos sentamos em uma mesa do canto e nossas esfihas de queijo não demoraram a chegar,
quentinhas e deliciosas. Lá dentro, a temperatura estava agradável e as luzes pareciam deixar
o ambiente quente e alegre.
— É assim — comecei largando uma esfiha no guardanapo. —, sempre gostei de Sprite,
sempre. Mas aí, com a adolescência chegando e com a descoberta das bebidas alcoólicas,
meio que eu deixei de lado... Mas é um vicio antigo.
— O álcool ou o refrigerante?
— O refrigerante.
Rimos mais um pouco e comemos alguns pedaços de nossas esfihas.
— O que estava fazendo na boate? — ele parecia curioso. Eu não sabia definir o motivo,
mas as pessoas meio que se perguntavam a mesma coisa: “o que esse garoto faz aqui?”.
— O que você acha que eu estava fazendo? É meio idiota essa pergunta...
— Não, não, é que você não parece o tipo de pessoa que gosta de noitadas e tal. Eu só
achei que tivesse algum motivo maior por trás da sua ida. E você parecia... Sozinho...
— É, existe um motivo: eu não queria terminar a noite sozinho mais uma vez... Sabe, a
gente acha que encontra alguém que parece que vai nos valorizar mas, na verdade, só está te
causando decepções e mentindo descaradamente pra mudar totalmente a sua vida... Entende
o que eu digo?
— Acho que sim... Tipo, eu meio que estou namorando um cara... Não é bem um namoro,
mas é alguma coisa. O problema é que, no começo era tudo legal, mas agora a gente briga por
qualquer coisa, ele tem ciúme demais e eu me sinto atado a isso...
— Por que não terminar logo de uma vez? É melhor do que ficar agonizando.
— Não sei. — ele mordeu um pedaço de uma esfiha, mastigou e engoliu devagar. — Eu
meio que tenho medo de magoá-lo mais, sabe?
— Se você ficar pensando apenas nele, quem vai sair magoado é você.
— Eu nem estou magoado. Estou mais pra nauseado...
Comemos as últimas esfihas e eu tomei o restinho de Sprite da latinha.
— Qual é o seu nome mesmo? — perguntei, me tocando de que nem isso ele havia
perguntado.
— Dril. E o seu é...?
— Éron.
Engraçado como as pessoas que não perguntam nomes se tornam muito mais
interessantes do que as pessoas que possuem esse hábito. Talvez deva ser o fato da conversa
ficar descompromissada, se soltando mais e deixando que o papo se desenrole da maneira
mais legal possível. Ou talvez seja o mistério. Sabemos que os segredos das pessoas sempre
nos atraem mais do que qualquer outra coisa que seja exposta por ela.
— Desculpe, nem me toquei de perguntar teu nome... Só fiquei meio extasiado com o seu
olhar.
— Estávamos em uma balada, Dril, como conseguiu perceber o meu olhar? — essa
cantada dele fora horrível.
— Você não tem idéia, mas seus olhos se sobressaem muito no escuro. Eles parecem ficar
mais claros, quase brancos. Dá a impressão de que você é um vampiro, sei lá...
Eu ri um pouco e limpei a boca no guardanapo com a cara do gênio do Habib’s, o que me
fez rir mais ainda.
— Ok, foi meio escroto o que eu falei, pode rir.
— Eu não tô rindo de você. — eu disse, em meio as risadas. — Só do gênio.
— Tá, esqueça o gênio. Eu só queria dizer que foi legal te conhecer essa noite. Acho que
coisa melhor não poderia ter saído de lá. Eu pelo menos estou ganhando.
E parecia que eu também estava. Parecia que iríamos nos dar super bem, nem como
peguetes, mas como amigos, acima de tudo. Sorri agradecido.
— Acho que tenho que ir. — eu disse.
— Quer que eu te leve? — perguntou, mostrando a chave do carro.
— Não precisa. Pego um taxi na estrada. — coloquei os fones nos ouvidos.
— Não tem medo?
— Estamos em Dourado, onde o perigo existe apenas em boates gays, lugar que você
corre o risco de perder a virgindade de órgãos que você nem sabia que poderiam ser usados
no sexo.
Ele riu.
— Valeu, Dril. Por tudo. — ele assentiu com a cabeça e eu me dirigi para a saída, onde
não demorou muito e um táxi parou. Fui pra casa com a cabeça encostada no vidro gelado,
embaçando-o com o meu hálito ao som de Keane tocando The Frog Prince.
Episódio Seis
Eu Posso
E
ntão, a festa foi um arraso total. — me confessou Matheus, com a cara ainda
amassada de sono enquanto tomávamos milk-shake de chocolate extra-forte na
hora do intervalo, que havia sido a hora que eu tinha chegado ao colégio, pois o
sono e a falta de vontade de estudar não me deixaram levantar mais cedo. — Tenho que
dizer que você estreou bem, merece o meu respeito.
— Então só me respeitaria se eu fizesse da festa um sucesso? — ironizei.
— Claro que não. — ele ficou sem graça. — Só acho que você se mostrou um líder de
verdade. Você escolheu as pessoas para quais os convites seriam dados e acho que, se
compararmos ao Roberto, você é como ele, só que com um sucesso mais natural.
— Eu não acho que pareço com ele. — me defendi, como se o que ele tivesse dito fosse
um tipo de xingamento, o que para mim não deixava de ser.
— De onde aquele viado fica tirando aquelas histórias, tipo do cara loiro?
— Do rabo dele, creio. — tomei um super gole gelado do milk-shake.
— Mesmo assim, ele está desesperado. Ele nunca tinha sido passado pra trás antes... Mas
você teve motivo.
— Que motivo você acha que eu tive?
— Ah... Tipo, você sabe, a história da Mirla e ele na festa da Aline...
— Como você sabe dessa história? — indaguei desconfiado.
— Cara, todo o colégio sabe que você só fez o que fez por vingança pelo que aconteceu na
festa da Aline. E ninguém te julga por isso porque o Roberto já cansou de ficar com a
namorada de uma porrada de garotos do colégio. Você foi o primeiro a levantar a mão contra
ele, o que te fortaleceu bastante.
— Então eu não sou parecido com ele... — me defendi novamente.
— Eu falei que parecia no sentido de estar na frente, de liderar um grupo. Você tem esse
poder, cara. — ele tirou os cabelos castanho-avermelhados dos olhos com a ponta do dedo.
— E só tem quinze anos! Isso é o que mais marca. Você vai deixar um legado na escola.
Suspirei e tomei mais um gole do milk-shake.
— E se não for isso que eu quero? — retomei rapidamente quando percebei seu olhar de
crítica, do tipo “você cheirou uma bomba nuclear?” — Tipo, e se a gente não precisar dessa
coisa toda de ser popular e de disputar atenção? E se a gente só precisar mesmo de um grupo
de amigos leais?
— Tá maluco, Éron? Não existem amigos leais na Bertha e nem em lugar algum. O que
existe é a vontade de estar em foco, de ter quem você deseja e precisa quando quiser.
— Então você não é meu amigo? — perguntei, para testar sua sinceridade.
— Claro que sou — mentiroso idiota! Nunca falou comigo enquanto eu era um cara
normal no começo do ano! —, mas tipo, se você voltasse pro submundo eu seria obrigado a
me afastar de você. Você sabe como as coisas funcionam no nosso mundo.
— É... — tomei todo o resto de milk-shake do copo médio. — Eu sei bem como é.
A verdade é que eu estava cansando de estar naquilo tudo. Eu estava num ciclo idiota de
ganhos e perdas onde ganha aquele que mais destroçar outra pessoa ou quem mais grana e
criatividade tiver para boas festas e perversão. Se eu colocasse na ponta do lápis todos os
gastos que eu teria com festas até o meu terceiro ano, poderia comprar uma casa em Jader da
Rocha. Tá, exagero, mas eu poderia fazer alguma coisa de útil, como pagar a faculdade ou
comprar metade da Q-Vizu.
— Não diga pra mim quem você enjoou dessa vida, Éron. — murmurou ele como se
estivesse lendo meus pensamentos. — Você agora pode ter qualquer menina que quer e
deixar de lado aquela vaca da Mirla. Você pode fazer o que quiser naquele colégio, agora.
— Eu não quero qualquer menina e eu não vejo graça em ter que controlar todas aquelas
ovelhas... Ou melhor, tratar todas aquelas pessoas como ovelhas. Elas podem puxar meu saco,
mas no fundo me odeiam, e assim que tiverem a chance, me derrubarão. Você sabe disso,
porque eu sei que você faria o mesmo se fosse ganhar o crédito.
Suas bochechas bronzeadas coraram de vergonha, talvez, de excitação em pensar na idéia
da minha queda.
— Você não é Hitler, mas tem que saber que se o seu lugar é no topo, que seja. Saiba
comandar.
Preferi não discutir e tentei sugar um restinho de milk-shake do copo. Bob’s estava cheio
de adolescentes, pois era o ponto de encontro de todos aqueles que comandavam algum
grupinho dentro do colégio e eu, como soberano, comandava todos os líderes de todos os
grupos. No começo isso era legal, pois aumentava a minha autoestima, e na hora que a ficha
caiu e eu percebi que aquilo tudo não possuía utilidade alguma. Por que querer comandar ao
invés de me juntar a eles? Sei que se eu renegasse meu posto, alguém tomaria o lugar,
provavelmente Matheus, mas ele nem deveria saber disso, caso contrário me apoiaria na
desistência. Vai ver ele nem tinha dinheiro próprio suficiente pra bancar todas as festas. E
caso eu perdesse meu lugar para outra pessoa, eu me tornaria, sem querer uma ovelha nas
patas de um lobo cruel, afinal, para chegar onde cheguei, é na base da porrada.
— Vamos voltar pro colégio, o intervalo acabou. — ele disse levantando e levando os
nossos copos para a lixeira mais próxima. Peguei a minha mochila e entreguei a dele para ele
no caminho das escadas, antes de descermos. Ele até poderia ser meio panaca, mas não era
um cara certo pra se conversar. Era segunda-feira e tudo que eu poderia fazer era perder
tempo não fazendo nada.
— Alerta de ex-namorada. — ele me sacaneou se afastando quando Mirla estava se
aproximando de mim.
— Oi. — saudou, os olhos brilhando.
— Oi. — respondi grosseiramente, continuando o meu caminho pela escada de mármore
principal.
— Então, estou indo embora na sexta. — ela tentava acompanhar o ritmo de meus passos.
— E eu com isso?
— Pensei que a gente, podia, sei lá, fazer alguma coisa...
— Você é insistente mesmo, não é? — adentramos no pátio interno, seguindo para o
corredor do primeiro ano.
— Eu só não quero ficar mal.
— Cara, vou te pedir um favor — eu disse parando e olhando-a nos olhos —, me esquece!
Eu não estou afim de você e não quero que você fique correndo atrás de mim como uma
cadela!
— Eu acho que sei por que você foge de mim. Acho que ainda me ama. — ela deduziu
com um sorriso esperançoso e piranhudo.
— Você acha realmente que eu te amo? — perguntei decepcionado. Esperava que ela
fosse uma biscate racional.
— Acho sim.
— Se você respirasse sonhos ao invés de oxigênio, estaria morta. Não sonhe, Mirla.
Continuei o meu caminho pelo corredor do primeiro ano, onde ela não poderia entrar por
ser secundarista. Eu realmente não sentia mais nada por ela, mas admito que ainda estava
ressentido pelo que ela fez, afinal nós tivemos ótimos momentos juntos, ainda mais pelo fato
de ela ter sido a minha primeira namorada de verdade. E um ano mais velha.
— Já vi que a festa vai ser um assunto infinito. — lançou Helen se sentando na carteira ao
lado da qual eu havia me sentado. Eu nem a tinha visto entrar na sala de aula. Meu coração
acelerou.
— E? — curto e grosso, tirei da minha mochila o meu fichário preto com o desenho de
uma guitarra branca em alto-relevo. O professor ainda não havia entrado na sala, mas eu
poderia fazer de tudo para evitá-la, pois ela sim conseguia me ferir apenas com a presença.
— Sei lá, queria te dar os parabéns. — ela parecia sarcástica.
— Por quê? Terminou com o namorado? — zombei.
— Não, por você finalmente conseguir ser um imbecil chifrudo.
— Antes um imbecil chifrudo do que uma prostituta.
— Quem é prostituta aqui?
— Ao seu lugar, Helen, por favor. — pediu o professor Barbosa, entrando na sala com
alguns livros debaixo do braço.
Antes que ela sentasse, consegui fazer com que meu dedo médio se levantasse
ofensivamente para ela, que devolveu com uma língua estendida na boca fechada.
Uma hora e quarenta minutos depois, estávamos saindo de nossa sala para o grande pátio
interno. Quando Helen passou por mim, fingi não ver e sai de queixo erguido. Antes mesmo
que eu pudesse chegar às escadas de mármore para comprar alguns hambúrgueres no Bob’s
pra levar para casa, Matheus me chamou, ofegante:
— O que foi, cara? — perguntei achando que o que ele queria me falar era bastante
importante.
— Cara, o namorado da Helen está lá embaixo e, tipo assim, ele tá louco procurando por
você!
— Por quê? — indaguei surpreso. — Por que ele quer falar comigo?
— Não faço idéia, mas ele parece beeem estressado contigo! Se eu fosse você, eu ficaria
aqui em cima, pelo menos está dentro dos limites do colégio!
— E ele está...?
— Em frente ao Bob’s. Cara, ele é um muito bizarro!
— Eu não tenho medo dele. — lancei andando em direção à escadaria.
— Não é medo, é bom senso. — Matheus, pela primeira vez, estava demonstrando algum
tipo de preocupação com a minha imagem. Teatro ou realidade? No nosso mundinho, essas
coisas acabavam se misturando.
— Valeu, Matheus, mas não tô nem aí. Aliás, eu tô morrendo de vontade de conhecê-lo.
Matheus sacudiu a cabeça negativamente, sabendo que uma catástrofe poderia acontecer
ali. Enquanto eu descia as escadas, as pessoas me olhavam e comentavam, provavelmente já
sabendo o que me aguardava. Ao invés de ficar preocupado, desci de queixo erguido e com
um andar pomposo, como um rei deve fazer. Nessas horas a minha autoestima alta era a
minha melhor amiga, por mais que eu pudesse ser esmagado pelo namorado ciumento de
uma vaca louca.
— Eu acho melhor você subir. — alguém me avisou. Mas eu simplesmente fingi não
ouvir.
Quando passei pelo enorme portão azul, logo reparei em uma linda moto do outro lado da
rua, em frente ao Bob’s. Ao lado dela, Helen, escrota como sempre e um cara super alto,
cabelo raspado à maquina um e vestido com couro preto, como um motoqueiro. Ele era um
motoqueiro. Seu rosto era quadrado e moreno, e ele tinha uma expressão permanente de
“quero defecar, mas minha hemorróida arde”.
— Então você é o Éron. — ele disse após atravessar a rua e vir em minha direção, parando
à minha frente.
— E você, quem é? — ironizei.
— Aí, tô sabendo da sua com a Helen, tá ligado? Se continuar enchendo o saco da minha
mulher, eu vou partir a tua cara em três e —
— Cara — interrompi. —, por que não vai se foder?
Seu rosto inflamou. Pude vê-lo morder os próprios dentes e senti que seus punhos haviam
se fechado com força. Eu estava esperando um daqueles socos de destroçar dentes, mas isso
não aconteceu.
— Michel, deixa... Relaxa amor, esse garoto não é de nada. Não vale a pena.
Era Helen conversando com o Shrek versão punk rock. O cara não parecia mais calmo e
ainda me deu um cutucão no peito que doeu na minha alma:
— Te enxerga.
Assenti com um sorriso sarcástico até que ele e Helen subiram na moto e arrancaram em
alta e barulhenta velocidade, deixando para trás apenas um leve rastro de fumaça. As pessoas
voltaram a comentar, sussurrando pra lá e pra cá. Meu trabalho tinha sido feito, ou seja, não
caguei na hora que eu poderia me dar mal.
— Você é meio sem noção... — zombou Matheus, enquanto saíamos do Bob’s. Comprei
dois hambúrgueres para comer em casa.
— Não enche. Eu fiz o certo. Sabe que fiz.
— É... — ele mordiscou o hambúrguer. — Vai embora?
— Claro. Tem coisa melhor do que sentar em casa assistindo TV, comendo hambúrguer e
tomando Sprite?
— Tem.
— O que é então, rei do entretenimento?
— Transar, meu amigo. Te vejo amanhã.
E ele se afastou me deixando sem saber se ele era um babaca total ou apenas um tarado.
Quem era eu pra falar alguma coisa? Entrei no táxi e fui para casa, que é o melhor lugar para
se relaxar depois de uma semana completamente pirada na minha vida.
Na Sessão da Tarde, passava pela enésima vez o filme Dirty Dancing. Tudo bem, o filme
até que era legal, apesar das roupas bregas e do visual good badboy do Patrick Swayze. As
cenas mais legais eram as do laguinho, onde ele ensinava Baby a saltar. Tipo, quando eu iria
achar a minha Baby? Ok, pergunta brega mas, enquanto eu assistia, pensava nisso. Talvez
não fosse para eu achar a Baby, mas sim o professor de dança com pinta de galã, super
malhado e muito, muito suado. Era meio que deprimente e assustador saber que você já não
tem mais o que fazer durante um dia inteiro. Tudo parecia tão comum e normal que eu
desconfiava que a maré mansa ia continuar até o fim de semana. Mas por que não um pouco
de agitação? Onde achar? A resposta chegou ao som de The Thrills tocando no meu celular
enquanto o visor menor dele piscava com um número desconhecido.
— Éron. — eu disse ao abrir o celular e pendurá-lo no ouvido com o ombro, deixando as
mãos livres para que mergulhassem na vasilha de pipocas salgadas e voltassem para a minha
boca cheias.
— Ei, Éron! — o garoto saudou. A voz eu também não reconhecia.
— Quem é?
— Kevin.
Fiquei em silencio por alguns segundos tentando me lembrar de onde eu conhecia um
Kevin. Boate gay? Clube de tarados? Noite estranha? Ah, sim!
— Oi, Kevin! — saudei de volta. — Como vão as coisas?
— Esquisitas. — ele fez uma pausa como se estivesse esperando que eu perguntasse o
porquê. Quando sentiu que isso não aconteceria, continuou: — Desde ontem eu queria te
ligar pra gente fazer alguma coisa, mas eu achei melhor dar um tempinho antes...
— Bem, você esperou menos de vinte e quatro horas — brinquei. —, isso significa que a
vontade vence a mente.
— Dá no mesmo, de qualquer maneira. — ele parou outra vez. — Quer sair?
— Hoje? Numa segunda-feira?
— Arrã.
— Você não estuda?
— No período da manhã. Não tenho o que fazer nessa tarde, então...
— Aonde quer ir?
— Tipo, eu não moro em Dourado, então não sei muito bem o que escolher... Se você
escolhesse ficaria mais fácil. — que magnetismo errado que eu tinha, pois eu só atraia os
caras que não moravam na minha própria cidade. Por um lado até era bom, porque, quanto
mais distante o segredo, menos chance de ser revelado.
— Bem, tem um shopping legal aqui. — comecei, com aquele tom de voz do tipo “eu não
sei se é uma boa idéia, mas aceite-a porque tenho necessidades”. — E eu preciso comprar uns
pares de tênis novos, então... — sim, tênis eram as minhas necessidades.
— Qual o nome do shopping?
— Solar.
— Tudo a ver com o nome da cidade. — ele riu sozinho do outro lado da linha. — Te
vejo lá às...
— Sete? Em frente a Jeito Pra Coisa.
— Sete. Até mais tarde, então. Tchau.
Desliguei sem devolver a despedida. Era um costume que eu queria tomar como sagrado,
pois eu achava um saco toda aquela cerimônia de responder ao tchau. Gente, tchau é tchau,
acabou. Por falar em tchau, lembrei-me de que não havia pegado o telefone do Dril e nem
ele o meu. Justamente o cara mais legal da noite não se lembrou de pedir meu telefone. Os
melhores são mais difíceis de se conseguir. Mas, de qualquer forma, eu já estava esperando
que alguma coisa desse tipo acontecesse, então não fiquei muito triste. Não fiquei nem um
pouco triste. Talvez um pouco decepcionado.
Vestindo o meu antigo par vermelho de All Star, com uma camisa pólo preta Lacoste por
cima de uma camisa de manga longa azul-marinho, peguei o táxi. Cheguei lá um pouco mais
cedo do que havíamos combinado e aproveitei o tempo para entrar na Jeito Pra Coisa para
escolher o meu novo par de All Star. O que mais me chamou a atenção foi um cano médio de
xadrez vermelho, quase escocês. O segundo foi um num tom pastel com listras azuis bem
fraquinhas. O terceiro foi um Converse preto de sola e cadarços brancos. Com os três
empacotados e divididos em duas sacolas grandes, esbarrei com Kevin na porta, que me
olhava intrigado.
— Olá. — saudei, sorrindo levemente.
— Oi... Cara, que olhos lindos.
— Ah... — decepcionante quando a pessoa baba seu ovo demais, saca? — Obrigado, eu
acho...
— Quer comer?
— Já? Não quer conversar ou fazer alguma coisa mais interessante?
— Tipo o quê? Fazer compras? — ele brincou enquanto andávamos para o elevador
central do shopping.
— Vai dizer que você não gosta? — ele estava usando uma calça nitidamente Armani e
uma t-shirt preta com desenhos multicoloridos, como uma pintura. Se ele dissesse que não
gostava de fazer compras, estaria mentindo até os rins.
— É legal, mas não creio que seja coisa para duas pessoas fazerem.
— E o que duas pessoas devem fazer? — perguntei desafiando-o a falar alguma merda.
Sim, meus pensamentos eram negros e desrespeitosos, não goste de mim.
— Bem... — entramos no elevador e eu apertei o botão número três, para que fôssemos
para o terceiro piso, onde se localizava a praça de alimentação principal do Solar.
— Ok, não precisa responder.
Saímos do elevador em passos vagarosos. As bolsas estavam me incomodando, deveria ter
comprado os tênis antes de ir embora, bem antes. O legal de andar com as sacolas das lojas é
que algumas pessoas fofoqueiras ficam fitando pra tentar descobrir o que você comprou e,
pelo menos comigo, fazia com que os olhos delas se voltassem para mim logo depois. Será
que me usavam como base para terem idéias criativas de se vestirem? Se bem que eu era um
cara bem normal... Não, eu era um projeto vomitado, mal-acabado e mal-desenvolvido de
Seth Cohen.
— Quantos anos você tem, Kevin? — murmurei enquanto esperava sentado na mesa em
frente à Casa Mineira onde minha porção de pães de queijo estava sendo assada.
— Eu tenho dezessete. — ele deu uma garfada na fatia de bolo CubaLoca. — Você tem...
Dezessete... Dezoito?
Eu ri com muita vontade. Era bom parecer mais velho, pois eu tinha benefícios. Em casa,
eu tinha benefícios por ser um garoto de quinze anos. Na vida social, eu podia comprar
bebidas alcoólicas, entrar em clubes e boates e ainda por cima pegar o pessoal mais velho
fazendo-os acreditar que eu era mais velho também. Já com as meninas, eu as preferia mais
novas e menores do que eu. Mirla era mais velha e tinha poucos centímetros a menos que eu.
Era a minha exceção.
— Não se engasgue. — avisei enquanto ele mastigava o bolo. — Tenho quinze.
E aconteceu justamente o que eu tinha alertado que poderia acontecer: ele se engasgou.
Após tossir durante segundos e com os olhos cheios de água, ele me disse:
— Nossa, que pivete.
Eu apenas sorria. Kevin ainda recuperava a respiração e tomava goles e goles de Coca-
Cola quando minha porção chegou em uma pequena cestinha trançada à mão em palha.
Mordisquei um primeiro pãozinho, que estava bastante quente e o assoprei até que se
tornasse comestível.
— Então, por que me ligou? — lancei enquanto mastigava o pão.
— Está perguntando pelo que eu comentei em relação à sua idade?
— Não. Tô perguntando de uma maneira geral.
— Você quer saber além do óbvio?
— Qual é o óbvio para você?
— Sendo sincero, a primeira coisa que chama atenção em você é a sua beleza. Você é
excepcionalmente bonito e já deve ter escutado isso milhares de vezes — milhares de vezes
multiplicadas por bilhões de vezes. Sim, eu ouvia isso desde a minha época nerd, mas, na
época, eram mais as amigas adultas e idiotas da minha mãe. —, mas de principio é isso.
“Só que a sua beleza é estranhamente chamativa, porque você parece ter tantas coisas
escondidas por trás dos cabelos louros ou dos seus olhos claros. Você parece brilhar muito
mais do que qualquer outra pessoa e, acredite em mim, naquela boate as pessoas só tinham
olhos para você.”
— Me sinto lisonjeado. — falsa modéstia mode on. A verdade era que eu até gostava de
elogios, mas eu os odiava ao mesmo tempo. Parecia muito puxa-saquismo e babação, tipo
aqueles bregas que fazem serenatas de amor e dançam como drogados em tendas psy. Talvez
realmente estejam drogados... Mas isso nem vinha ao caso.
— É sincero, pelo menos...
— É.
Ele sorriu diabolicamente e cerrou um pouco os olhos.
— E você, por que aceitou o convite pra sair? — ele perguntou. Curioso, o cara. Estava
fazendo as perguntas certas, mas as respostas na minha cabeça eram totalmente incertas e
desfocadas.
— Talvez pelo tédio... Eu também não tinha mais o que fazer. E você, provavelmente,
tinha o que fazer, mas resolveu não fazer nada comigo. Conheço pessoas como você. —
pisquei irônico, colocando mais um pãozinho na boca.
— É...
Terminamos de comer em silêncio. Enquanto eu mastigava o meu último pão de queijo e
admirava um par de chinelos Calvin Klein ao longe, seus olhos me perfuravam, como se eu
fosse o bolo que ele tinha acabado de comer e desejasse repetir. Eu poderia me render à
tentação e fazer o que os dois estavam pensando em fazer, ou seja, nos pegarmos, mas eu me
odiava a cada vez que eu admitia isso na minha cabeça. Era como estar cometendo o maior
de todos os pecados e, por mais que eu não acreditasse no todo poderoso, eu achava que
alguns pecados, como a luxúria, eram coisas podres, de tão baixas. Então imagine como eu
imaginava a luxúria com um homem... E não estou falando de sexo.
— Tipo — comecei, respirando o ar como se fosse coragem. —, na saída E tem um ótimo
lugar... Assim, pra gente sentar.
— É legal? — o sorrisinho diabolicamente infantil na cara dele outra vez.
— É vazio. Não é desabitado, mas parece ser um bom lugar para a gente ficar, saca?
— Ficar no sentido de ficar?
“Puta merda!”, xinguei em minha mente, “Eu nunca escolho as palavras certas!”
— Ah, sei lá... — eu senti que tinha ficado vermelho. — Vamos só ficar lá, sentados...
Depois, se ficarmos, ficamos.
Ele riu abobado. E, antes que minha face explodisse em milhões de pedaço de tão
vermelha que deveria estar, me levantei sem encará-lo, fingindo olhar as brilhantes vitrines
das lojas.
A saída E fazia parte do caminho que levava ao estacionamento gigante do shopping, com
o chão montado com pedrinhas coloridas que formavam um enorme mosaico laranja, que eu
nunca tentei saber o que era, e com lindas flores em jardins atrás de bancos brancos de
cimento. A temperatura ali sempre era agradável, e o melhor era que pouquíssima gente
usava aquela saída, preferindo a saída F. Quando chegamos, havia apenas duas mulheres da
Animale sentadas em cima da barreira do canteiro mais alto, fumando cigarros.
— Por que virou gay? — perguntei assim que sentamos. Repentino e fulminante.
— Não virei gay. — ele cuspiu, como se estivesse falando de alguma coisa que eu deveria
saber. — Eu acho que nasci assim.
— Me conta, tipo, a sua primeira vez. — ele me olhou surpreso. — Tô falando de beijo.
Na boca.
Ele riu de novo.
— Eu acho que te falei, na boate, de um primo. — eu concordei. — Então, foi o meu
primeiro cara, mas mesmo antes de ficar com ele, eu já sentia vontade de beijar outros caras,
sabe? — “não”, respondi mentalmente. — Eu sabia que não era comum e, assim que meu
primo me fez sentir amado pela primeira vez e não julgado, ele foi embora. Tinha uma
namorada e disse que tudo que havia dito e feito deveria ficar pra sempre no mais absoluto
segredo. Eu só segui em frente. Simples.
— Simples? Parece o tipo de coisa difícil. — sobre primo mau-caráter eu sabia muito
bem. Era nota dez nessa matéria.
— Já passou por algo igual? Você me disse que tinha um primo também...
— É. Tinha. Pra mim ele meio que morreu. Mas foi ele quem me guiou pro mau
caminho...
— Mau caminho? Acho que o mau caminho estava sempre em você, mas ele te fez sentir
a segurança necessária pra se arriscar nele.
— Ele me fez sentir segurança sim. — eu admirava uma rosa iluminada pela luz do poste
negro e baixo perto do jardim oposto ao que estávamos sentados. A noite era ainda mais
bonito. — Mas foi só uma vez...
— E desde então você tenta buscar o que sentiu nele em outro homem?
— Também... Acho que sim.
O silêncio de alguns segundos foi quebrado quando a mão dele repousou na minha
sutilmente, como uma pena cai em uma folha de papel.
— Eu posso tentar? — ele perguntou me olhando nos olhos.
Eu não conseguia dizer uma única palavra de pronto. Na balada o clima era outro e meu
coração batia bem menos forte do que estava batendo ali, mas não por amor ou excitação e
sim por medo e nervosismo.
— Então pra que esperar você me dar a permissão?
Ele fechou os olhos se aproximou de mim. Meus olhos se fecharam também,
instintivamente. Nossos lábios se tocaram mais uma vez. O mesmo gosto de hortelã, como se
eu estivesse beijando um homem Trident. Quebrando o gelo como de costume, meu celular
vibrou no meu bolso na lateral frontal da calça.
— Ficou animadinho, é? — ele brincou e eu ri.
Desconhecido, dizia no visor do celular fechado. Qual era o problema das pessoas de
número bloqueado?
— Vou atender. — Kevin assentiu e eu “flipei” o celular. — Alô?
— Éron? — um homem. Mais um homem.
— Sou eu. Quem fala?
— Dril. Pós-balada ontem.
Claro que era o Dril. Acho que nem preciso expressar o quão surpreso fiquei ao receber
aquela ligação. Com uma voz máscula, elegante e seguro de um segredo que eu queria muito
desvendar:
— Caraca, como conseguiu meu número?
— Pode parecer perseguição de serial killer, mas você é muito fácil de achar. Na verdade,
eu comentei de você pra uma amiga e ela meio que conhece gente pra cacete. Aí ela acabou
descobrindo o seu número a partir de alguém do seu colégio, mas fica tranquilo porque ela
não daria com a língua nos dentes pra dizer o verdadeiro motivo de ela ter pegado o
número... E pra quem ela pegou.
— Medo de você agora. — eu sorria radiante, mesmo estando ao telefone.
— Não precisa. Então, eu estava pensando da gente sair na sexta-feira, o que acha?
— Maravilhoso! — estranhamente eu estava muitíssimo animado com a ligação e de
poder ouvir a voz dele outra vez. — Quando e onde?
— Então, eu me amarro na praia de Dourado, então o que você acha da gente, tipo, andar
por lá à tarde? — ele começou a rir sozinho e eu ri junto, mesmo sem que ele tivesse dito
algo engraçado.
— Quê que foi? — perguntei rindo.
— Eu não vou tomar banho e nem ficar sem camisa, porque sou muito branco, mas a
gente pode passear e tomar algo.
— Água de coco, com certeza. — fazia tempo que eu não tomava água de coco, por mais
que morasse a alguns quarteirões da praia. — Mas, tipo, ao invés de ser em Dourado, por que
não vamos para Copacabana?
— Copa? Por quê?
— Tomar água de coco na praia de Copacabana é clássico! Eu me amarro em Copa, cara, e
faz muito tempo que não vou...
— Por mim tudo bem. Só falei em Dourado porque é mais perto de você, mas Copacabana
pra mim está ótimo! Te vejo lá que horas?
— Em frente ao Copacabana Palace a gente se encontra às onze da manhã.
— Não vai ter aula?
— Terei, mas eu sou um vagabundo.
Rimos de novo. Por alguns momentos, esqueci que estava como Kevin ali e, quando me
toquei, me apressei logo para desligar sem que eu parecesse grosseiro ou desesperado:
— Ok, a gente se vê lá, então.
— Tá. Até mais.
— Até.
Recoloquei o celular no bolso e olhei para Kevin com o sorriso mais espontâneo do
mundo.
— Que sorriso lindo você tem. Quem quer que fosse ao telefone tem um poder incrível.
“É, tem sim”, pensei.
— Mas então — me levantei. —, vamos passar na Saraiva. Quero ver se chegou o livro de
colecionador sobre a história das HQs do Batman.
— Não quer ficar mais um pouco? — ele perguntou decepcionado. Eu não queria ficar
mais um pouco. Tudo bem, o Kevin me atraía, mas bem menos do que o Dril me atraía. É
claro que o Kevin não precisava saber disso.
— Eu tenho que chegar cedo em casa... Tenho aula amanhã, saca?
Ele concordou com a cabeça e se levantou, se oferecendo pra carregar uma das sacolas.
Como eu não tinha achado o livro que eu queria, fomos para nossas respectivas casas, nos
despedindo com um simples abraço que o deixou com olhos tristes e meio caídos. Seu sorriso
vívido parecia cafona e envergonhado. Senti um pouco de pena, daquele tipo que resfria todo
o fundo do seu estômago como uma onda trovejante. Coitado dele.
Cheguei em casa tão exausto emocionalmente que não tive nem paciência para tirar os
meus novos tênis de suas caixas, largando-os bem ao lado da porta, ainda dentro de suas
sacolas. Eram dez horas da noite quando jantei e tomei um banho quente maravilhosamente
rápido, que me deixou mais leve e limpo, me proporcionando um sono tranquilo e livre de
pesadelos. Quaisquer que fossem eles.
Sofri durante todo o resto da semana para que sexta-feira chegasse e depois de quase
entrar em choque, ela chegou. Às onze eu já estava em frente ao Copacabana Palace, usando
um shorts jeans branco, uma pólo azul e, nos pés, eu usava um par de Havaianas da mesma
cor da camisa. E, é claro, eu estava encharcado de protetor solar FPS 50. Era um requisito
mínimo para que eu sobrevivesse branco ao sol escaldante do Rio de Janeiro. Nos olhos, a
proteção essencial: óculos Aviator de aros negros, retos e grossos. Eu me sentia poderoso.
— Demorei? — perguntou Dril, me abraçando rapidamente. Cheguei a levar um susto,
pois eu estava encantado vendo o mar ao longe quando ele chegou de surpresa. Usava um
óculos quase-meia-lua, como o que tinha usado no domingo, mas os aros deste eram mais
opacos e suas lentes eram mais escuras. A t-shirt amarela não combinava muito com o shorts
comprido vermelho, mas ele estava super. E havia feito a barba.
— Imagina. — sorri daquela maneira espontânea que ele fazia acontecer.
— E então, vamos caminhar?
— Arrã.
Com os chinelos nas mãos e os pés tocando a areia quente, iniciamos a nossa caminhada
descompromissada. Para onde iríamos e o que faríamos eram incógnitas. Eu só tinha a
certeza de que a água de coco eu tomaria a qualquer custo, e achá-la em Copacabana não era
tarefa difícil, afinal estávamos em uma das melhores praias do Rio.
— Duas, moço? — perguntou o homem que empurrava o carrinho com coco.
— É. — respondeu Dril, pegando a carteira.
— Deixa que eu pago, Dril. — eu disse sacando a minha carteira mais rápido do que ele.
— Não, não. Eu pago.
— Pelo menos eu pago a minha. — ressaltei dando a nota pra ele. — Eu vou me sentir
melhor assim.
Ele titubeou antes de pegar a nota e pagar o carinha que abriu dois cocos e nos deu
pacotinhos com dois canudos lacrados.
— Por quê? — ele indagou tirando os canudinhos dele com a mão livre.
— Ah, educação, eu acho. — respondi, já tomando o meu. O saquinho eu coloquei no
bolso, porque eu tinha idéia, classe e educação suficientes para não jogar lixo no chão. E não,
o ato de eu ter pagado o meu coco nada tinha a ver com educação. Era orgulho mesmo,
porque eu me sentia cada vez mais afeminado diante de um cara, coisa que me dava nojo só
de pensar. Mas ele, ao mesmo tempo em que me despertava vontade de beijá-lo, me deixava
receoso sobre o sentimento de amizade — e só amizade — que já tínhamos despertado,
mesmo sem conversas profundas ou uma retrospectiva da vida de cada um. São poucas as
pessoas que conhecemos em certos lugares aparentemente inapropriados, mas que se tornam
grandes em nossas vidas pelo simples fato de serem quem são. Isso porque ainda nem tinha
dado tempo de nos conhecermos de verdade.
— Eu gosto de ser gentil, Éron, e pagar as coisas quando eu convido para sair é essencial.
Quando aceitar um convite, pense bem no que lhe falo.
— Ok, capitão. — brinquei.
Tomamos mais alguns goles de água de coco enquanto observávamos o mar azul com
ondas bem fracas. As pessoas as pulavam felizes e crianças nadavam alegres. Mulheres e
homens, casais e solteiros, andavam e corriam pela ciclovia, todos com aquela expressão de
alegria incrivelmente brasileira, bronzeados pela luz do sol que fazia com que seus sorrisos
cintilassem. Era mágico e inacreditavelmente surreal. Eu tinha esquecido completamente
como era aquele lugar.
— Quer se sentar, Éron?
— Vamos.
Nos sentamos na mesa de um dos quiosques próximos e continuamos tomando nossas
águas. O menu estava em cima da mesa com um peso de papel em forma de coco em cima,
para que não voasse com a brisa. Apoiei o coco na mesa e retirei meu óculos.
— Vai pedir alguma coisa? — ele perguntou, analisando o segundo menu.
— Sorvete de creme. — respondi levantando a mão para chamar o garçom.
Dril não pediu nada, mas eu pedi o sorvete com cobertura de morango, o que eu sempre
comia, mesmo em casa. Não que eu comesse sorvete demais, porque eu tinha lido em alguma
reportagem que o sorvete possui umas gorduras loucas que davam espinhas, tipo assim,
demais, e eu não queria ficar parecido com um porco-espinho. Jamais.
— Me conta mais sobre você. — pedi dando o último gole da água de coco.
— O que você quer saber, exatamente?
— Sei lá, tipo, o que você faz, se está na faculdade... Essas coisas.
— Bem — ele mexeu no óculos. —, eu estou estudando administração, tenho uma vida
estável e muito segura, pais meio loucos e que nunca apoiaram minhas idéias. Por mais que
eu esteja fazendo administração, eu sempre fui apaixonado por cinema e a minha vontade
era fazer isso profissionalmente. Bom, em geral eu gosto de qualquer tipo de arte.
— E por que seus pais deveriam apoiar ou te impedir? Você já parece ser independente e
poderia arranjar um emprego, dar o fora de casa.
— Você sabe quão difícil é conseguir um emprego? Eu não quero terminar trabalhando
no McDonalds, isso não.
— Você tem que começar em algum lugar, não é mesmo?
— Tá, mas não no McDonalds.
Enquanto ríamos, o garçom me trouxe o sorvete em uma tacinha azul. Abri o saquinho
onde estava a colherzinha de plástico e ataquei. E tem gente que prefere sexo.
— E você? Qual é a sua história de vida? — ele perguntou, limpando as lentes do óculos
com um guardanapo de papel.
— Eu tenho quinze anos e —
— Quinze?! — indagou ele, surpreso.
— Não parece, não é? — continuei, ignorando a surpresa dele. — Isso é ruim, porque
quando eu fizer trinta anos, vai parecer que eu tenho setenta. Tô ferrado.
— Nem acho... Mas cara, você é muito novo ainda.
— Odeio quando falam assim comigo. — lancei num tom intimidador apontando a colher
para ele, fazendo cara de mafioso cruel.
— Desculpa. — ele sorriu, me fazendo sorrir de volta. — É que, assim, eu achei que você
tivesse uns... Dezoito.
— Geralmente acham. — enfiei mais uma super colher de sorvete na boca. — Mas eu
acho que não dá pra perceber que eu tenho quinze porque eu não tenho cabeça de um garoto
de quinze... Não sei, mas eu acho que deixei de fazer coisas de quinze anos desde os sete.
— É verdade, você parece bem maduro. Mas continue.
— Então — lambi a colher e continuei. —, eu era hétero... Sou... Sei lá, sei que eu ficava
com meninas e sentia desejo por elas. Tudo bem, eu ainda posso até sentir, mas o que
aconteceu me deixou um pouco confuso. O motivo foi eu ter beijado meu primo... Imbecil.
— E então você já não sabe o que quer da vida.
— É.
— E espera achar o que você sentiu com ele em outro cara.
— É.
Quem ficou surpreso fui eu, pois ele e Kevin tinham deduzido a mesma coisa, deixando
no ar apenas duas hipóteses: ou eles eram seres superdotados de inteligência marciana ou
estava escrito na minha testa o que eu estava esperando achar... Ou perder.
— Mas isso não significa que eu esteja usando as pessoas — continuei rapidamente, antes
que ele pudesse achar que eu estava apenas ali pelo puro prazer sádico de tê-lo. —, eu só
quero sentir o que eu senti. E mesmo que eu não sinta, a amizade deve estar presente.
— Eu entendo. — ele ainda sorria. — Termine seu sorvete. Tenho que te levar a um
lugar.
Ansioso e sem conseguir fazer com que ele me contasse a qual lugar iríamos, comi o
sorvete tão rápido que minha garganta entrou na Era Glacial. Caminhamos a passos
apressados pela ciclovia até que um táxi parou ao nosso sinal. Seguimos por avenidas
movimentadas onde grandes carros de luxo competiam com carros dos anos noventa. O
contraste entre prédios chiques/grandes e lojas se chocava com a miséria de cultura e falta de
dinheiro de outras pessoas que por ali caminhavam. Talvez o Rio não fosse tão perfeito
assim. Ou melhor, talvez o mundo não fosse perfeito. Pessoas ainda morrem de fome e,
principalmente, de desgosto.
O táxi parou em frente a um pequeno prédio antigo e bem pintado, mas parecendo super
simples. Ele pagou a corrida e entramos pela porta vermelha de madeira, subindo por escadas
feitas de um tipo de pedra cinza que lembrava ardósia. Não parecia existir elevador naquele
prédio. Quando chegamos ao apartamento número 22, eu já nem sabia em qual andar
estávamos. Dril tirou a chave de dentro da carteira de couro e abriu a porta. “Ele vai me
estuprar!”, pensei sem querer.
— É simples, mas é super. — ele avisou abrindo a porta aos poucos.
Uma pequena sala com uma TV e as paredes de tijolos descascados propositalmente e sem
divisão para a cozinha amarela logo chamaram a minha atenção.
— É o meu loft. É aqui eu gosto de ficar.
— Você... Mora aqui? — tentei perguntar sem menosprezar o lugar, que parecia, para
mim, um museu moderno e bombardeado, com as tubulações aparentes e as paredes
manchadas. Tudo bem, poderia ser uma decoração de milhares de reais, mas não perdia o
toque “cela de presídio feminino.” — Não. Eu moro com os meus pais. Mas quando eu venho
pra Copacabana ou Ipanema, fico aqui nesse loft. Vai, senta.
Ele indicou um par de sofás cobertos com brim cor de vinho. Me sentei com medo de ter
poeira ou coisa assim, mas tudo estava perfeitamente limpo. O lugar só tinha a aparência de
sujo.
— Tem uma amiga minha vindo pra cá. Eu queria te apresentar a ela, se não tiver
problemas...
— Como você sabia que eu viria para cá? — parecia que ele já tinha planejado todos os
meus atos, o que me deixou um pouco desconfortável.
— Eu não sabia. Ela ia vir pra cá, de qualquer maneira. Já que você está aqui, vamos unir
o útil ao agradável.
Ele se sentou em um banco alto da bancada da cozinha olhando para o Sol, que entrava
pela janela alongada da sala, bem atrás de onde eu estava sentado.
— E você? — comecei. — Alguma decepção amorosa?
— Tirando aquela que eu te contei no domingo?
Eu tinha me esquecido da história do “tipo-namorado” dele. Pelo que pude entender, Dril
só estava com ele por medo de magoar o cara, mas de qualquer maneira, me desejar — e ele
estava desejando, com toda certeza — não era trair?
— Eu acho que você deveria terminar com ele logo, antes de, sei lá, tentar começar
alguma coisa com outra pessoa. Porque, se você não quer magoá-lo, vai fazê-lo. É uma coisa
necessária para que vocês dois se soltem, se desamarrem, e possam andar pra frente.
— Isso é mais complicado do que você pode entender. — ele disse olhando pro chão.
— Acredite, eu posso entender coisas que nem você pode, porque eu estou olhando toda a
situação de fora.
Ele permaneceu em silêncio e se levantou para pegar alguma coisa na geladeira.
— Quer beber alguma coisa?
— Não.
Minutos depois, ele se abaixou em frente à TV e pegou o que parecia ser uma caixa
grande, escondida embaixo do rack que a suportava.
— Qual filme vamos assistir? — ele levantou algumas opções de DVDs: — Resident Evil
Degeneration, Garota Infernal ou prefere qualquer outra porcaria?
— Ai, me deixa ver! — pulei para onde ele estava e me abaixei também para olhar os
filmes. Estávamos lado a lado, com nossos ombros se tocando. Tentei fazer com que
parecesse que eu não estava percebendo.
— Eu quero ver esse. — mostrei para ele a caixa de O Ilusionista.
— Já vi tantas vezes com o meu... Você sabe. — ele continuou mexendo na caixa, me
ignorando totalmente.
— Eu nunca vi.
— Você nunca viu O Ilusionista?
— Não.
— Meu deus, tá na hora.
Ele colocou as embalagens de DVDs na caixa e a guardou. Voltei para o sofá enquanto ele
colocava o filme no aparelho. Segundos depois, estávamos assistindo ao início do filme
juntos, no mesmo sofá de três lugares, naquela TV LCD de 32”.
Eu estava muito envergonhado por saber que uma hora um beijo ia acontecer. O
nervosismo quase me fez tremer, pois eu sentia que meu maxilar queria se debater e meu
estômago parecia congelado, assim como a minha espinha. A sensação até que era boa,
quando não era incômoda. Com meia hora de filme, a campainha tocou. Dril se levantou
devagar e foi atender. Ouvi a voz de uma mulher e de um homem, o qual Dril meio que foi
frio ao falar.
— O que ele está fazendo aqui? — ouvi Dril murmurar para a garota. Eu não podia ver
seus rostos pois a parede da cozinha, perto da porta, tampava a visão do ângulo que eu estava
sentado. E eu não ia sair do meu lugar para fofocar.
— Ele disse que estava tudo bem de vir —
— Eu achei que quisesse me ver... — interrompeu o cara.
— Estou com visita, então se comportem, pelo amor. — pediu Dril, quase que num tom
de ameaça.
— Quem é ele? — o cara que falara isso entrou de vez na sala, me encarando
diretamente. Com óculos retangulares, cabelo curto e um nariz extremamente grande para o
formato do rosto ele me olhava como se soubesse quem eu era. E eu deduzi quem ele era.
— Quem é você? — perguntou ele entrando na frente da TV.
Dril e a menina morena entraram na sala também. Dril veio para o meu lado, como se
estivesse querendo me defender de alguma coisa, talvez por eu ter quinze anos, mal sabendo
que o cara era quem precisava de defesa. Seguuura, peão!
— Por que está perguntando? Te devo alguma explicação?
Bem, se ele era o tipo-namorado do Dril, e ele já não o queria mais, a minha missão
naquela hora era separar de vez aquele casal. E me exibir um pouquinho.
— Eu sou o namorado do Dril! — ele explicou como se aquilo justificasse alguma coisa.
— Você me deve um monte de —
— Namorado do Dril? — interrompi com sarcasmo.
— Éron, pára. — me aconselhou Dril, mas eu ignorei totalmente.
— Eu acho que se você fosse namorado dele, ele não iria pra balada sozinho procurando
alguém pra se divertir. Se você fosse o namorado dele, você seria a diversão dele.
O rosto do tipo-namorado ficou tão vermelho que eu achei que ele estava enfartando ou
alguma coisa do tipo, mas era, simplesmente, ódio. Eu sentia que, a qualquer momento, ele ia
voar na minha cabeça e esmagá-la como se fosse uma latinha de Coca, mas ele não o fez, o
que só me deixou mais excitado em irritá-lo. Não que eu o fizesse de maldade, mas era
necessário para que o cara acordasse pra vida e esquecesse o Dril. Pelo sofrimento, a gente
aprende a superar as mais diversas situações e eu sabia disso porque eu sofri pra cacete
durante todos os anos de minha vida. Eu tinha que repassar o conhecimento.
— E eu acho que se você é o namorado dele — continuei percebendo que ele não ia
responder: —, eu não poderia fazer isso.
Peguei Dril pelo rosto devagar e o beijei com toda a vontade do mundo acumulada. Ok,
poderiam até julgar que o que eu fiz foi cruel, mas foi bom para os dois — pelo meu ponto de
vista — pois cada um poderia seguir o seu caminho sem ter que ficar se martirizando pelo
outro, o que é coisa de palhaço, pra ser sincero.
— FILHO-DA-PUTA! — gritou o tipo-namorado para Dril, super afetado. Mas nós não
paramos o beijo. Eu estava consciente do que estava acontecendo, mas parecia que Dril
estava num tipo de hipnose, porque o beijo dele continuava estável. No final das contas, Dril
não se importava realmente com o imbecil gritante.
— Dril, já chega! — era a garota.
Dril se afastou de mim devagar e olhou pra ela. Eu olhava para o garoto sem sorriso, mas
com aquela cara que diz “vá em frente, mude a sua vida. Esqueça o Dril.”
Pra mim, o cara deveria estar ao menos choroso, mas ele não expressava nada além da
raiva. Tudo bem, eu meio que fui radical, admito, mas um dia ele deveria me agradecer pelo
que eu fiz, quando estiver casado com um bilionário indiano super rico. Eu fui acreditando...
— Eu prometo que você vai se foder na minha mão, DESGRAÇADO! — ele apontava pra
mim com um dedo torto horrível.
— Ok, chega de falatório, porque eu acho que você e o Dril têm uns assuntos pra
resolverem, não é? — eu fui andando para a porta e, antes de sair, lancei: — Beijos para os
que ficam, especialmente o Dril.
E saí, batendo a porta atrás de mim. Do lado de fora eu podia ouvir os gritos do mané, mas
eu não estava nem aí, pois iriam se resolver, pelo menos. Eu só estava preocupado e ansioso
para tomar um banho na minha casa e deitar na minha cama, naquela linda tarde brilhante
de sexta.
Episódio Sete
Partindo Cedo
J á era segunda-feira. Eu tinha acabado de sair da sala de aula, correndo para o banheiro
em seguida, me trancando em uma cabine e chorando demasiadamente com o topo da
cabeça apoiado na porta. Meus soluços já não podiam ser contidos e minha tristeza era
totalmente visível. Eu não ligava para quem escutasse, porque eu não conseguia me focar em
mim mesmo. Minha cabeça girava e alguma coisa rebolava no meu estômago, me causando
um tipo de sentimento tão obscuro e doloroso que eu não saberia definir. Toda a tristeza
daquela segunda havia sido gerada pelo simples vislumbre de Helen. Eu comecei a me odiar
naquele instante porque eu já deveria ter superado a nossa amizade mal acabada, e eu
acreditava de corpo e alma que isso tinha acontecido, mas não, a dor estava lá. A falta estava
me atormentando, me cortando, me fazendo sangrar.
E o pior era saber que ela não estava sofrendo da mesma forma. Isso estava aparente no
rosto dela. Talvez pelo fato de ela ter alguém a quem ela pudesse se segurar quando
precisasse, ou então por não ter me perdido e, simplesmente, ter me substituído por outro
alguém, que poderia dar para ela alguma coisa que eu jamais tinha sonhado em dar. Mas eu
sabia que tudo que eu podia dar pra ela nunca seria achado em outra pessoa. Assim como eu
nunca acharia o que ela me deu. E isso me fez pensar no que o Hugo me deu. Ele era meu
melhor segredo e meu pior erro.
Eu já nem tinha idéia de quanto tempo fiquei trancado na cabine, mas tinha a certeza que
meu choro não pôde ser ouvido por ninguém além de mim. Eu tinha que admitir que eu
ainda pertencia a ela e que ela me fazia uma falta tão colossal que eu mal podia combater.
Em uma analogia, é como tentar esconder embaixo de um lençol o Everest. Você pode cobrir
a ponta para que ninguém a veja, mas o resto da montanha está onde sempre esteve, imóvel,
inquebrável e insubstituível.
Cheguei em casa cansado e me sentindo diferente. O amargo que estava na minha boca
foi adoçado quando Dril me ligou. De um jeitinho esquisito, ele ainda despertava em mim
uma sensação de boa companhia.
— Me desculpa por eu não ter ligado antes, é que eu só achei que você precisava de um
tempo... — disse ele.
Eu achei que ele é quem precisava de tempo.
— Não, tudo bem. — eu me deitei de bruços na minha cama após pegar uma revista que
falava sobre desenvolvimento sustentável. No ar, o som de Cobra Starship, que me lembrava
a Helen do início ao fim. — Resolveu as coisas com ele?
— Terminamos de vez. Também, depois do que nós fizemos, seria canalhice da minha
parte continuar alguma coisa. E eu estaria sendo um mentiroso de merda se o fizesse, porque
eu já não sinto nada mais por ele.
— E o que você sente agora? Sensação de liberdade?
— Não... Eu acho que estou apaixonado.
Opa! Indireta direta? Tudo que eu precisava. Eu já sabia que ele estava na minha, pois
caso não estivesse, não teria me beijado com tanta vontade como o fez no loft. O pior era que
eu estava sentindo uma certa animação por estar sendo paquerado pelo Dril, por mais que o
meu lado hétero não quisesse que isso acontecesse. Talvez ele fosse a cura para a Maldição de
Hugo. Ou o veneno para a minha final entrada no mundo GLS. Às vezes, na minha cabeça,
Dril me entediava, assim como qualquer pensamento com outro cara, coisa que eu
considerava “resultantemente” impossível. Mas não custaria nada tentar, não é?
— Paixões, pra mim, são complicadas... Falo como se eu tivesse vivido muitas.
— Normal...
Uma pausa silenciosa de ambos os lados. Eu queria acreditar que estava tudo bem com
ele, mas eu sabia que alguma coisa não estava bem, pois o que eu fiz foi maleficamente
calculado. E ele poderia estar pensando que eu o tinha usado para exibir poder ou que eu
simplesmente, com todo o carinho do mundo, queria ajudá-lo a “se livrar” do namorado para
que o meu caminho estivesse livre. Ou o dele.
— Aí, qual o nome do cara mesmo? — perguntei me dando conta de que não sabia o
nome do tipo-ex-namorado dele.
— Paulo. Por quê?
— Eu não sabia. Por isso.
Mais uma pequena pausa. Não estávamos para conversa, isso era claro. Talvez ele
estivesse um pouco sem graça ou eu que estava um pouco frio demais. Depois de ter chorado
no banheiro, eu senti que alguma coisa a mais em mim tinha mudado. Eu só não sabia me
explicar o que...
— Parece que nossos assuntos não estão aparecendo. — murmurou ele.
— Talvez seja o verdadeiro início das aulas. Essa semana pra mim já começou ruim... Eu
acho que vou precisar de um tempo pra decidir a minha vida.
— Tá falando isso em relação a —
— Não, não! — corri pra negar. — Não estou falando isso em relação a você! É que eu só
acho que um monte de coisa está bagunçado na minha cabeça, saca?
— Acho que faço idéia... A gente marca de sair de novo em alguns dias, então. O que
acha?
Eu precisava de tempo e ele sacou isso, mesmo que eu não tivesse deixado isso tão claro
quanto meus olhos.
— Acho legal.
— Ok. Um beijo?
— Talvez.
Rimos e eu desliguei. Antes de virar a página da revista que eu estava folheando, o celular
tocou mais uma vez. No visor preto e azul, o nome Kevin piscava fortemente. Estranho como
esses caras conseguiam ser tão coincidentes em me ligar. Parecia até coisa de série de TV...
— Oi, Kevin. — cumprimentei ao atender.
— Ei! Ocupado? — ele parecia feliz.
— Não, pode falar. — joguei a revista para longe da minha cama e rolei, para ficar
admirando o teto.
— Como foi o dia?
Ele não achava que eu iria contar realmente como foi o meu dia... Ou achava?
— Tipo, um saco total. Sabe como é, escola e tals.
— Sei bem, o meu é mais ou menos assim. Te liguei pra saber se você está livre no sábado
que vem...
Tudo bem que eu tinha dito ao Dril que eu ia ficar um tempo longe, mas isso não valia
para o Kevin. Além disso, eu precisava conhecê-lo também. Eu o havia beijado e isso já era
um motivo pra continuar com alguma coisa, mesmo a amizade. E a última opção parecia
mais interessante que a primeira.
— Não. — respondi. — Tenho alguma coisa marcada com você.
— Ótimo. Eu estarei indo para Dourado na sexta, pra casa de uma amiga minha, então a
gente tem sábado pra sair.
— Aonde iremos? — eu mexia nos dedos de meus pés esticados para o alto.
— A minha amiga disse que tem uma reserva florestal aí em Dourado. Achei que a gente
pudesse —
— Não, não, mato não! Vamos para o Solar mesmo e de lá a gente vê o que faz, tá legal?
— Por mim tudo bem, desde que você esteja lá.
Ele parecia ser o tipo de menino meloso e que se apaixona com um sopro e chora com
comercial de sabonete. Ele tinha um ar tão dependente das coisas e parecia ser tão
acomodado com certas decisões que eu duvidava do que ele queria comigo, se era amizade ou
namoro. Ah, vou parar de ser modesto, era namoro mesmo e eu tinha certeza.
— Ok... Então estarei lá às seis da tarde, em frente à Underground. Te vejo lá.
— Tá bom.
Desliguei e suspirei tão profundamente que achei que um pedaço do meu pulmão tinha
ido parar no meu joelho. O tédio e a indecisão na minha vida estavam me deixando
totalmente pirado e enjoado de qualquer outra coisa que acontecesse, como a escola, por
exemplo. Seria tão fácil se eu pudesse andar por lá sem ter que ver a Helen. E eu ficava me
martirizando por achar que eu nunca amei a Mirla de verdade, que eu usei a palavra amor à
toa. Eu estava começando a perceber o real poder desta pequena palavra que podia mover
montanhas. A analogia aparece novamente: se eu estivesse amando alguém, a montanha
Helen iria ser movida do meu coração para o meu vaso sanitário?
A terça-feira amanheceu escura, fria e chuvosa. Os raios do Sol mal conseguiam
ultrapassar as pesadas nuvens cinza-escuro e a leve brisa gélida me arrepiava. As juntas de
meus dedos e a ponta do meu nariz pareciam congelados, de tão frios. Quando estava na
porta de casa, pensei em não ir para o colégio, mas poderia não ser uma boa idéia ficar sem
fazer nada em casa. Eu não suportava usar guarda-chuva, pois quando ficava molhado eu não
sabia onde guardá-lo, então coloquei um casaco de capuz e corri para o táxi mais próximo.
Ao descer no colégio, haviam poucos alunos protegidos do lado de fora. Nos dias de chuva as
pessoas costumavam ficar dentro do pátio interno, onde era seco e menos gelado.
Subi a escadaria de mármore com o vento chicoteando meu rosto como a lâmina afiada da
faca de um açougueiro. Meus olhos, ressecados, ardiam e minha pele parecia feita de
porcelana barata. As pessoas me assistiam subir as escadas, acredito que admirando a minha
coragem de sair de casa sem luvas ou guarda-chuva. Matheus veio ao meu encontro logo
quando pisei no pátio:
— Sua popularidade está em alta, cara. — ele disse, apertando a minha mão como um
bom dia.
— E quando ela esteve em baixa? — perguntei, me arrependendo de tê-lo feito. Cada vez
que eu agia como um otário, como o infeliz do Roberto, me sentia um Roberto. Em todos os
aspectos.
— Sério, cara, a Mirla tá falando pra todo mundo que ama você e que você sabe que a
ama. Eu acho que ela está tentando ganhar alguma coisa por cima da sua imagem... Não, eu
tenho certeza.
— É, eu também tenho. — a verdade é que eu estava ficando irritado com toda aquela
situação. Ela foi uma vadia, eu fui um imbecil, o Roberto foi um puto-imbecil, mas já não
estava na hora de deixar pra lá? — Onde ela está?
— Perto da entrada do primeiro ano, conversando com um grupo de meninas, tipo as
babaquinhas que ainda babam o ovo dela. Sabe, aquelas meninas que só iremos pegar quando
estiverem no segundo ano e...
Eu já nem o ouvia mais e minhas pernas se mexeram por vontade própria. Eu ia colocar os
pingos nos Is e o ponto final do fim da frase. Nem que eu tivesse que humilhá-la para
mostrar, como exemplo a quem quer que fosse, que eu não estava ali para brincadeiras. Mais
uma vez.
— Bom dia, meninas. — saudei as meninas que estavam com Mirla. Quando me viu, ela
sorriu como quem dissesse “viram? Ele me ama e vai me amar pra sempre como o bom
babaca que é!”. Se enganou. — Mirla, quero falar com você em particular.
— O que quer que queira falar, Éron, pode falar na frente das minhas colegas.
Ok, eu sabia que ela ia fazer isso, então vamos ao que interessa.
— Então que todas fiquem sabendo agora — eu elevei um pouco a voz para que o resto
das pessoas no enorme pátio pudessem me ouvir: —, que eu não quero mais NADA com
você! Você é uma biscate barata que não se aguenta dentro da calcinha e sai correndo pra dar
pro primeiro mauricinho imbecil que aparece! Você era magnífica pra mim quando era fiel,
mas agora que já está mais rodada que pneu de carro de Fórmula 1, não te quero. Nem
pintada de ouro. Deixa de ser puta.
Ela me olhava chocada, totalmente surpresa com o que eu tinha acabado de dizer.
— E que sirva de exemplo pra todo mundo nessa merda de colégio! — continuei: — Aqui
se faz, aqui se paga — me virei pra ela bem de perto: — e eu só não coloquei uns juros,
porque o único sentimento que eu sinto por você é PENA! Ou seria NOJO? Cara, decisão
difícil.
Murmúrios e risadinhas percorreram o lugar.
— Divirta-se em São Paulo, piranha! Cuidado com AIDS!
Caminhei para onde estava o grupo de organizadores que eu participava, deixando-a para
trás. Matheus estava me olhando com a boca aberta e as meninas riam baixinho, umas para
as outras.
— Ela não vai falar merda tão cedo. — comentou Matheus.
— Nem ele. — respondi apontando para Roberto, que estava em um canto do pátio
sozinho, sentado em um dos bancos de mogno manualmente entalhados. Olhando-o daquela
maneira, quase me arrependi de todas as maldades que tinha feito pra ele. Mas talvez ele
merecesse o sofrimento, afinal foi ele quem começou a briga.
— Sabem se a Aline ainda fala com ele? — perguntei.
— Pelo que parece eles estão namorando. — comentou timidamente uma menina de
cabelos castanho-avermelhados. Eu não sabia seu nome porque era totalmente desnecessário.
— Descobriram um ao outro.
Então minhas maldades acabaram fazendo um bem... Esperava que ele realmente fosse
bom com ela, assim como ela fosse boa com ele. E ainda dizem que os opostos se atraem...
Roberto e Aline são dois filhos do capeta que combinam bastante.
— Bom pra eles... — piei para ninguém. Senti que alguém ia perguntar o que eu falei, mas
não o fizeram por medo de levar algum fora, repetindo a cena da Mirla.
A sineta gritou bem alto, rachando mais ainda os meus tímpanos já rachados pelo frio. Eu
nem lembrava qual seria a primeira aula, mas já sabia que seria um porre total. E não estava
errado. Era geografia e o assunto era a Segunda Guerra Mundial. Super importante, ok, mas
eu tinha coisas mais importantes para fazer na sala, como tentar não olhar a Helen, que
estava sentada a três carteiras à minha direita. Eu fingia que estava olhando para trás para
admirá-la mais uma vez. Estranho, triste, nostálgico e melancólico.
Se os professores também participassem do circulo social do colégio, seriam obrigados a
me obedecerem. Então eu os ordenaria que calassem a porra da boca e fossem arrumar o que
fazer de verdade. Principalmente o professor Cláudio de geografia: gordo, panaca, bigodudo
e que fedia a alho, cebola e carne de boi mal passada.
Assim que a sineta indicou o fim do sexto e último tempo de aula, corri para fora antes
que eu esbarrasse em Matheus ou nas meninas, pois não queria ir pro Bob’s pra ficar
vagabundeando e nem tinha cabeça pra isso. O resto da semana não foi diferente e eu me
sentia como um fugitivo, me escondendo daqueles que andavam comigo. Eu não queria
andar mais com ninguém além de mim mesmo e preferia estar na mesma sala de Helen não
falando com ninguém do que fingir que tudo estava bem e que eu a tinha superado por
completo. Eu estava cansado de ter a vontade de humilhar aqueles que eu julgava
merecedores e queria sumir, sair do colégio pra sempre e me mudar para o Alaska, onde
nunca me achariam. Lá eu não seria cobrado com festas ou grifes e não precisaria me
preocupar com solidão, pois eu estaria feliz com os animais do frio.
Depois de pegar uns trocados com o meu pouco falante pai, eu estava no shopping e,
nessa vez, Kevin estava adiantado e acompanhado de uma menina com fios de cabelo loiro
radiante. Ela sorria meigamente pra mim. Cumprimentei os dois com abraços.
— Ela é Adriele, a amiga que eu te falei. — explicou Kevin. — Ela já sabe quem você é.
— E como sei. — ela lançou rindo. — Ele só fala de você quando nos falamos.
— Não se falam muito? — perguntei enquanto começávamos a caminhar.
— Pouco. Mas o pouco não quer dizer que não sejamos amigos. É que a distância
dificultou um pouco as coisas.
— Onde você mora?
— Aqui, em Dourado. — ela respondeu. Seu cabelo batia até um pouco acima dos
cotovelos.
— E onde você estuda?
— No Santa Clara.
Santa Clara era um colégio só de meninas, geralmente garotas rebeldes ou lésbicas que os
pais mandavam para lá achando que iam torná-las mais... Femininas. Erraram feio, porque
pelo que eu sei, as meninas que lá chegam não tendem a se tornar femininas. Feministas,
talvez, mas femininas são raras.
— Você é lésbica? — indaguei na cara dura. Ela levantou a sobrancelha esquerda e abriu
um sorriso de surpresa.
— Não. Mas eu poderia ser.
Ela e Kevin riram de alguma piada conhecida apenas pelos dois. Me senti super fora de
contexto.
— Vamos comprar milk-shakes. — avisei.
— Sim, e tirar fotos! Trouxe a câmera hoje. — ela disse apontando a pequena bolsa branca
pendurada no cotovelo esquerdo.
Pedimos três médios de chocolate extra-forte no Bob’s e fomos para o cinema, ver quais
filmes estavam em cartaz. Nada que nos interessasse, mas Adriele estava tão animada
querendo ver um tal filme alemão de nome complicado que resolvemos satisfazer a vontade
dela, afinal, na cabeça dela e do Kevin ela ia ser o candelabro da noite. Olha o fogo!
— E eles falam puxando o “R”. — observou Kevin tentando colocar defeito para que
desistíssemos do filme. E ele fez isso durante os três primeiros minutos do filme.
— Se quer ir embora, rala caubói! — ela piou me fazendo rir super alto.
A minha risada contagiou os dois, e logo os três estavam aos berros e com falta de ar
numa sala quase vazia e fria. No momento que reparei na tela, um cara muito loiro, o
protagonista, estava chorando no banheiro do escritório, pela namorada que havia perdido
em alguma coisa que parecia ser um acidente — eu não sabia exatamente o porquê pois nem
tinha reparado na legenda. A cena me fez lembrar do dia que chorei no banheiro do colégio
e me fez acordar, porque eu poderia admitir pra mim mesmo que eu não tinha esquecido a
Helen, mas eu não ia morrer e nem tinha que parar a vida. Nem precisava ser o imbecil de
sempre com os retardados do colégio e poderia experimentar novas pessoas e sensações. Eu
tinha que me aceitar primeiro, em todos os sentidos, para que depois as pessoas pudessem me
aceitar. Se eu não sabia nem ao menos quem eu era, como alguém poderia me conhecer? Eu
tinha que me decidir primeiro, para depois tentar alguma coisa com alguém de qualquer
maneira. Mas eu podia adiantar um pouco as coisas...
— Por que, ao invés de ficar falando mal do filme, você não me beija? — desafiei Kevin
duvidando do que eu mesmo tinha dito. Mais um teste interno.
Nem precisei falar duas vezes e ele já me engoliu como se eu fosse uma pizza no deserto.
Sem romance, brincadeira, paquera ou respostas grosseiras para um menino que se sentia
demais. Ele era simples, emocional e meloso. Mas era interessante. “Mas não tão interessante
quanto o Dril”, eu respondia para mim mesmo enquanto o beijava de olhos fechados e
respiração normal. Depois de algumas vezes beijando homens, passei a perceber que o beijo é
a mesma coisa de um beijo heterossexual, a boca é a mesma coisa. O que mudava tudo seriam
as mãos nos pênis e a sarração louca, que não acontecia comigo porque eu era totalmente
careta e me respeitava. Além do nojo que eu tinha do corpo de outro homem...
— Éron... — ele sussurrou quando nossas bocas se afastaram alguns milímetros.
— O quê? — devolvi.
— Eu te amo.
Opa.
— Tipo... — me ajeitei na cadeira e o olhei de longe. — O quê?!
— Eu te amo. — ele repetiu como se a palavra não fosse nem um pouco importante.
O achei totalmente precipitado em ter dito que me amava, mas eu tinha sido um cara
assim há pouquíssimo tempo atrás. Tudo na minha vida, na verdade, estava acontecendo
rápido demais. Uma coisa em cima da outra — sem piadinhas.
— Cara, você tem idéia do que essa palavra significa? — indaguei passando as mãos no
rosto.
— Tenho. — eu o senti sem graça. Acho que ele esperava que a minha reação fosse outra,
tipo gritar e agarrá-lo, exclamando que eu também o amava. A verdade é que eu não amava
ninguém... Eu não sabia o que era amar, em primeiro lugar.
— Ai... Kevin... — eu não sabia o que dizer.
— Kevin, como você diz pra ele que o ama assim, numa sala de cinema?! — era Adriele,
se metendo na conversa. Se fosse a qualquer outra hora eu a acharia intrometida e sem noção
de respeito, mas eu gostei da atitude.
— E tem lugar pra falar isso? — ele rebateu, como se estivesse com toda razão.
— Claro! Olha a cara do Éron. — estava escuro e ela não estava vendo a minha cara, mas
eu acho que tentou fazer um dramazinho extra. — Ele está assustado. Não está?
— Ah... Tipo, um pouco. — eu não queria ser grosseiro com Kevin, mas não queria ser
muito mentiroso. Ou um, ou outro.
Ficamos em silêncio, que eu senti torturar o Kevin. Talvez fosse bom que torturasse,
porque assim ele aprenderia que certas palavras e frases não devem ser usadas comumente,
como “bom dia”.
Durante o resto do filme, Kevin ficou calado, ao contrário de Adriele e eu, que
comentávamos cada parte da triste história de amor alemã, onde o cara, no final, se casa com
um chinesa de rosto super redondo. Hiper estranho. Eu achei que fosse um filme de
comédia, porque eu e Adriele rimos demais, mas quando saímos e vimos o pôster do filme de
pertinho, indicava um drama. Dramalhão.
— Não acredito que aquela palhaçada toda era um drama. — comentei após mastigar uma
batata frita. Estávamos sentados em frente ao McDonald’s, lugar que eu odiava, mas que eles
adoravam. Kevin estava um pouco quieto, mas não expressava tristeza ou raiva.
— Sabe como são esses cineastas, não é? — Adriele justificou. — Eles acham que estão
arrasando quando, na verdade, estão só enchendo linguiça com uma coisa idiota e sem nexo.
Comemos mais batatas encharcadas de ketchup picante e ficamos olhando para a cara um
do outro, procurando o que fazer.
— Então — comecei puxando um assunto: —, você está ficando na casa dela...
— Arrã. — ele concordou sereno.
— Você está, tipo assim, sozinha em casa?
— Meus pais não estão, mas eu tenho uma irmã mais velha... Merdão. Por quê? Quer dar
uma festa? — chutou Adriele, marcando no gol.
— É. — afirmei com a voz fraca.
— Por que não fazemos a nossa festinha na rua? — as idéias dela pareciam mais anormais
do que as minhas próprias.
— Tipo...? — zombou Kevin.
— Vamos comprar bebidas e sentar em alguma rua, bebendo até cair.
Kevin e eu nos entreolhamos. Não era a idéia mais perfeita e responsável do mundo, mas
era uma coisa louca que poderia dar certo. Tem gente que se amarra em roubar, mesmo
podendo pagar e tem gente que curte pular de aviões. Talvez a adrenalina ou a animação
diferente que eu estava procurando poderia estar nessa experiência sem lei e totalmente
insana de uma menina.
— Eu acho que topo. — disse a ela. — E você, Kevin?
Ele balançava a cabeça sutilmente, com receio, pois essa era a intenção principal da
brincadeira, eu acreditava.
— Tá, vamos lá. — ele respondeu por fim.
— Ok, tem um depósito aqui no shopping, a gente pode passar lá e comprar... — me dei
conta de que o depósito apenas vendia bebidas alcoólicas para maiores de dezoito anos. —
Poxa, a merda é que eu não sou maior de idade... Alguém aqui é?
— Eu tenho. Na carteira de identidade. — ela tirou da bolsa uma carteira de identidade
comum. — Aqui eu tenho dezoito, certinho.
Depois eu fui entender que era uma identidade falsa. Logo minha boca se encheu d’água,
pois eu queria uma. Eu poderia tentar comprar as bebidas sozinho, pois eu até parecia mais
velho, só que eu achei melhor que fosse alguém que tivesse como provar, porque no
shopping podiam memorizar o meu rosto e nunca mais poderia comprar merda nenhuma no
depósito. Era melhor não arriscar.
Compramos uma garrafa de Martini e cubos de gelo feitos com água de coco. Saímos do
shopping. Já era noite e o ar gelado continuava ricocheteando no mar e em nossas faces, mas
a emoção de experimentar uma coisa diferente nos aquecia. Depois de andarmos por várias
ruas longe da praia, no sentamos em uma calçada de uma casa de veraneio, onde estava mais
escurinho. O chão estava frio e meus pêlos arrepiados, mas isso dava mais emoção. Eu quase
podia dizer que estava excitado.
— Não compramos copos... — observou Kevin.
— Cacete, é verdade! — exclamei. — E agora?
Adriele riu da nossa inocência e inexperiência.
— Meninos, aprendam. — ela pegou a garrafa da minha mão, tirou um cubinho de gelo
da caixinha térmica e enfiou-o na boca. — É assim que se faz.
Ela entornou boa parte do Martini na boca, gargarejando e engolindo de uma vez em
seguida. Ela limpou a boca com as costas da mão, como uma boa pinguça, e lançou:
— Nossa, que tesão. É a vez do Éron!
Claro que tinha que ser eu. Com um sorriso no rosto, coloquei o gelo na boca e entornei
um pouquinho de Martini. O sabor era espetacular.
— Só isso? Beba mais! — instigava Adriele.
Obedeci e entornei mais um montão de Martini na boca, tentando gargarejar — quase me
engasguei — e engolindo em seguida. O meu corpo já não estava mais frio e o gelo da boca
parecia arder em chamas congeladas. Psicodélico.
— Kevin, faça sua jogada. — sussurrei, passando a garrafa para ele.
Sem falar nada, deu quatro goles direto da garrafa, sem o gelo, e também limpou a boca
com as costas da mão.
— Nossa, que vontade de beber, heim... — comentou Adriele.
Ele riu e me encarou com olhos felizes. Ele tinha aquele ar de criança mimada e tosca de
bom coração.
— Quero mais um gole! — pedi. O gelo da minha boca derretia quando coloquei pra
dentro mais três goles. Meu corpo parecia diferente, eu quis dançar, me mexer, beijar...
— Que cara é essa, Éron? Tá com desejo de alguma coisa? — ironizou Adriele, pegando a
garrafa da minha mão, mas a voz dela estava meio que distante. Eu sabia que não estava
bêbado, mas a rapidez com a qual eu ingeri a bebida deve ter me alterado um pouco.
Não respondi e fiquei encarando Kevin enquanto Adriele bebia feito uma profissional dos
Alcoólicos Anônimos.
— Eu não entendo você, Éron. — reclamou Kevin. — Você me faz entender que está
afim de mim, mas ao mesmo tempo me faz pensar que eu te enjôo... Cara, o que você quer?
Nem eu mesmo sabia o que eu queria dele. Para inicio de conversa, eu queria sentir o que
eu senti com o Hugo, mas não senti com mais nenhum cara. Kevin era legalzinho e a
vontade de beijá-lo vinha e ia embora, mas a minha idéia de “ele é meloso” era totalmente
permanente. E eu odiava melação.
— Cara, eu gosto de te beijar de vez em quando. — soltei sem querer. Talvez fosse a
bebida me fazendo falar a verdade.
— Admite que está... — ele pegou a garrafa da mão de Adriele e bebeu três goles. Estava
quase acabando. — Me usando?
Tá, de certa maneira eu estava fazendo isso, mas era legal.
— Pode ser, eu acho. — soltei com um soluço.
Ele concordou com a cabeça e bebeu todo o resto da garrafa.
— Ah, viado! — gritou Adriele com raiva. Ela já estava mais pra lá do que pra cá.
E, violentamente, ele colocou a garrafa vazia de lado e me apertou em seus braços. Eu me
sentia fraco demais pra revidar e pesado demais pra falar alguma coisa e tudo que eu
consegui soltar foi um gemido de não. Ele me segurava com tanta força que achei que ia
partir meus braços, mas foi apenas para me beijar. Não foi o melhor beijo do mundo e eu
odiei a forma como me senti indefeso e feminino preso em seus braços “contra” a minha
vontade.
— Me... Sol... — eu tentava pedir, mas ele estava me sufocando com a sua boca. O cheiro
de hortelã tinha desaparecido e o que predominava era o cheiro ácido do álcool, o que me
deixou muito enjoado.
Consegui dar um chute nele, mesmo sentado, fazendo-o recuar. Tentei me levantar, pois
o vômito já estava chegando à garganta, mas não deu tempo: vomitei em cima do meu All
Star direito, meu tênis preferido. Adriele ria histericamente de toda a situação e Kevin me
olhava com cara de bunda. Meus olhos ardiam e na minha boca predominava o mal gosto de
álcool misturado com batata frita e alguma coisa marrom que poderia ser meu milk-shake.
Tudo que eu comi na noite foi descomido.
Se eu não estivesse tão estupidamente fraco, teria me levantado contra Kevin e lhe
desferido tantos socos quanto possível, mas tudo que eu fiz foi me levantar debilitadamente e
andar pela rua escura.
— Aonde você vai? — perguntou Kevin. Adriele ainda ria.
Não respondi e levantei meu dedo médio para ele pelas costas. Eu poderia ter vomitado
na Adriele, no Kevin, no muro da super casa atrás de nós ou em um elfo, mas vomitar no
meu All Star era falta de respeito demais, coisa capaz de acabar com o meu humor. O
restinho que ainda tinha.
Depois de descer do táxi cambaleando e quase ter esquecido de pagar o motorista, limpei
um pouquinho de vômito do meu tênis na grama, antes de entrar em casa. Eu não sabia que
horas eram e não estava nem aí, que se ferrasse tudo. A luz da cozinha estava apagada, então
foi por lá que entrei, dando a volta na casa pela garagem. O silêncio em casa era
predominante e o meu quarto era reconfortante. Tirei o meu par de tênis delicadamente e
com muito cuidado e levei-os para a lavanderia, onde passei uma água com sabão antes de
jogá-los no recipiente de sapatos sujos.
De volta ao meu quarto, tranquei a porta e tirei a camisa e o jeans, deixando-os jogados no
chão. Coloquei o meu pijama deitado na cama, com preguiça e falta de vontade, me
empoleirando no meu edredom logo depois. Tudo que eu queria era dormir e acordar como
se nada tivesse acontecido, como se a dor no meu estômago e o ardor da minha garganta
fossem apenas fruto de um pesadelo esquecível.
— Boa noite, Hugo. — lancei para o nada, já quase dormindo. Eu poderia não estar
consciente do que falei, mas o que eu sentia por ele poderia ser sentido em cada poro do meu
corpo, em cada osso, em cada célula e, principalmente, no meu coração.
Episódio Oito
Roqueiros Numa Suíte
D
urante várias semanas eu não atendi as ligações de Dril ou Kevin. Isso porque eu
já tinha tomado a decisão de que as soluções para os meus problemas não
estavam fora de mim e sim dentro de uma única pessoa em especial. Eu não
queria mais ferver nas festas da escola ou beber como um maluco em uma calçada qualquer.
Eu não queria mais ter um relacionamento certo com alguém porque eu percebi que eu
ainda era imaturo e não sabia definitivamente o que eu queria para o meu futuro. Eu tinha
que me entender, me achar pra depois buscar alguma coisa em alguém, pois se eu não
soubesse quem era, quem saberia me dizer isso?
Os dias de aula de março até junho foram torturantes, onde eu me pegava fugindo das
pessoas com as quais eu andava e evitando maiores contatos visuais com Roberto ou Helen.
Eu fiquei sabendo que Mirla já tinha se mudado e isso me deixou mais aliviado porque, de
certa forma, eu ainda me sentia culpado pelo que eu tinha dito a ela no dia em que ela
espalhou boatos sobre eu ainda gostar dela. Eu não ligava mais se eu ia voltar a falar com a
Helen, Kevin ou Dril. Aliás, para o Kevin, eu ligava menos ainda que o Dril. A diferença de
pensamento era altíssima e as formas como me faziam sentir sensações também.
E falando em sensações, as férias de inverno começariam já no mês seguinte, julho, onde
também aconteceria o meu aniversário de dezesseis anos, o que me deixava mais feliz,
mesmo dentro de uma bola de infelicidade, indecisão e confusão generalizados. Eu já tinha
decidido que, no dia do meu aniversário, eu iria para o Clube 13, mais pra dançar do que
para ficar com alguém. Mesmo que eu fosse assediado ou estuprado com os olhos dos outros,
eu queria me divertir, limpo de álcool e sozinho.
Por mais que tivesse passado semanas sozinho e saindo apenas para caminhar na praia ou
comprar roupas no shopping e na orla, eu não me senti solitário. Não estava me machucando
como fazia antes, porque eu estava meio que me acostumando a isso. Eu poderia ser até mais
feliz sozinho do que junto de pessoas que me causassem mais problemas. E eu só tinha
quinze anos, tinha que aproveitar todo o meu momento comigo mesmo e, comprar as roupas
que eu usaria no dia dos meus dezesseis anos, seria o melhor momento pra isso. Ok, super
gay e feminino, mas quem vai dizer que poder comprar não é bom?
Numa manhã de domingo, enquanto eu comprava CDs na music store da orla da praia,
meu celular tocou, estreando meu novo toque: Song for Sunshine — Belle and Sebastian.
Atendi sem verificar quem era ou o que era:
— Alô?
— Éron? — era uma menina de voz tranquila e gostosinha de escutar.
— Arrã. Quem é?
— Adriele, querido. Como está?
Adriele, amiga do Kevin. Armação dele?
— Eu tô bem... Tipo, tá ligando por que o Kevin pediu? — mandei diretamente.
— Não. Eu não falo com ele tem um tempo já. Como eu te disse, a distância dificulta.
Somos amigos, mas nem tão amigos assim.
— Ah sim. Então por que ligou?
Ela produziu um som como um zumbidinho, como se estivesse pensando o porquê de ter
ligado.
— Acho que porque eu achei você legal, saca?
— Acha?
— Acho.
— Que bom, então.
Talvez poderia ser o momento exato para que a convidasse para festejar comigo no Clube
13, no meu aniversário. Tudo bem, ia ser uma coisa só minha, mas não era uma regra a ser
seguida, como aquela coisa toda sobre pecado.
— Tipo, eu vou fazer dezesseis anos no dia dezoito de julho e vou comemorar sozinho
numa boate legal. Quer ir?
— Claro. Qual boate?
— Te falo quando estiver se aproximando. Seu número é esse mesmo?
— É. Pode me ligar.
— Tipo, só não fala nada pro Kevin porque —
— Não, fica tranquilo. — ela interrompeu. — Eu não vou falar nada pra ninguém. Fica
entre nós dois.
— Ok, confio em ti.
— Que bom. Já que me convidou, hoje vai ter show d’Os Estranhos, e eu queria saber se
você estaria afim de ir...
— Que gênero eles tocam? — perguntei. Até que um show poderia ser bom para quebrar
o gelo das últimas semanas.
— É um hard-rock com pop... Sei lá, hard-pop.
— Por mim tá ok. Onde vai ser?
— Vai ser no Iate Clube de Dourado. O show começa às dezessete, mas a gente pode ir
em cima da hora porque eu tenho um amigo que vai colocar a gente pra dentro, na área vip.
De graça.
Eu nem sabia que Dourado tinha um Iate Clube. O que mais a pequena cidade escondia
por entre suas ruas?
— Estarei lá! — confirmei com entusiasmo.
— Aproveite o dia, mané. Beijão.
Eu desliguei e sorri para mim mesmo. Naquela manhã, levei treze CDs, a maioria de
bandas pouquíssimo conhecidas, tipo Two Door Cinema Club. Preferia bandas pouco
conhecidas pra ouvir em casa, pois eram bandas pouco tocadas pela influencia da mídia pop.
Músicas mais comentadas eu também escutava, mais para saber cantar nas festas.
Quando cheguei em casa, minha mãe estava sentada de robe na poltrona da sala,
assistindo a programação esportiva e comendo Doritos. Quando não se tem mais o que fazer,
se faz isso.
— Que monotonia é essa? — perguntei, dando um beijo na bochecha dela.
— Ah, eu resolvi não fazer nada hoje. Chamei uma diarista pra dar uma geral aqui em
casa mais tarde e vou pedir comida chinesa pra gente à noite.
— Sinto te informar, mas não estarei em casa à noite. — eu avisei, sentado no braço da
poltrona abrindo os CDs para ver a arte.
— E onde estará?
— Em um show.
— Show de quê? — ela comeu mais um salgadinho.
— De uma banda de hard-rock com pop. Eu não conheço, mas minha acompanhante
conhece. E não, ela não é minha namorada ou prostituta.
— Amanhã tem aula, heim... — lembrou ela.
— Amanhã tem prova. Mas eu entro mais tarde e saio mais cedo, então tudo bem.
— Ah tá... Quais CDs comprou? — ela estava olhando de rabo de olho o que eu havia
comprado. Com certeza não conhecia nada dali.
— CDs de bandas que você não conhece e que não vai achar nada de mais.
— Quais bandas?
— The Thrills, The Reindeer Section… Eberg… Eberg nem é uma banda, mas tudo bem.
— Tem razão, não conheço nada.
Lancei uma cara de “te avisei” para o nada e fui para o meu quarto, para passar os CDs
para o computador e jogá-los na biblioteca do iTunes. Horas que voaram sem que eu tivesse
notado. Já às quatro da tarde, comecei a me arrumar, já que ela havia dito que não precisava
estar lá no horário super em ponto. Me vesti todo de preto, nem por ser uma banda de rock,
mas porque achei que ficaria neutro e chamaria menos atenção. Antes de sair, ainda
perguntei ao meu pai, que estava sentado na mesa da cozinha comendo bacon puro e lendo
uma revista de carros:
— E aí, pai, sabe onde fica o Iate Clube? Eu nem sabia que existia isso em Dourado...
— Não se lembra? — ele perguntou sem me olhar. — Um dos seus aniversários, de
quando a sua idade tinha apenas um digito, foi lá.
Ah, claro, por isso não me lembrava, pois todos os meus poucos aniversários foram
solitários, em enormes salões lotados de adultos, amigos dos meus pais e seus filho chatos e
fúteis. Tudo bem que eu não era o melhor garoto do mundo, mas o fútil deles nem era de
materialismo, mas sim de chatice.
— Não lembro, de qualquer forma...
— Por que quer saber?
— É que eu vou num show e nem sei onde fica o Iate Clube.
— Fala com o motorista do táxi. Ou prefere que eu te leve? — ele olhou pra mim, rindo,
como se tivesse me ofendido.
— Eu pergunto a ele. — disse eu, enquanto andava pra sala.
— Não quer dinheiro?
— Eu vou entrar de graça...
— Mas leva. Nunca é bom sair com dinheiro contado.
E com um beijo na cabeça careca do meu pai, peguei da mão dele a nota de cinquenta
novinha e cheirando a couro de carteira de boa qualidade. O motorista do táxi que eu peguei
sabia onde ficava o Iate Clube e me levou para lá em cinco minutos. O Clube ficava perto do
Sunshine Hotel, só que na beira da praia. Era enorme e parecia brilhar como ouro. No
estacionamento especial em frente ao Iate Clube, carros luxuosos estavam parados e pessoas
vestidas das mais diversas cores rondavam o lugar. Grupos de amigos unidos e uma fila que
saía de dentro do Clube para perto da calçada. A banda parecia ser conhecida. Paguei a
corrida e desci do táxi bem na fila, procurando pela Adriele que, quando me viu, veio me
dando um abraço apertado e beijando meu rosto duas vezes, uma em cada bochecha.
— Que bom que veio! — ela lançou, enquanto me levava pelo braço para dentro do
Clube. A porta de entrada era de vidro, como um hotel e dentro, um enorme hall decorado
com pinturas ilustradas com cores de ouro. À nossa direita, o bar e restaurante, pelo que
parecia, cheio de mesas de mogno decoradas com toalhas brancas de bordas douradas. Tudo
era muito dourado em Dourado.
Andamos por mais alguns metros onde a fila terminava em um salão fechado. Eu lembrei
do salão exatamente no momento que entramos por ele por uma porta VIP. O piso branco,
liso e brilhante estava coberto por um enorme tapete antiderrapante preto, as paredes
decoradas com pôsteres de bandas de rock antigas em preto & branco e, no final do salão, um
palco alto estava armado, totalmente negro.
— Eles se atrasaram, pelo que me disseram. — avisou Adriele enquanto nos
aproximávamos da área VIP, a parte reservada coladinha ao palco. Poucas pessoas estavam
ali e conseguimos uma ótima posição. O chato era o fato de eu nem ao menos conhecer a
banda.
— É uma banda de rock, é claro que ia atrasar. E, além disso, as pessoas ainda estão
entrando...
Mas, de surpresa, as luzes do salão se apagaram e os refletores lançaram feixes de luz
diretamente no palco, enquanto quatro homens se posicionavam em seus instrumentos:
baixo, guitarra, teclado, bateria e microfone. As meninas gritavam como loucas. Hora do
show.
— Maravilha! — ela gritou animada com pulinhos e algumas palmas.
— Parece que vai começar.
Com três toques de baquetas, a guitarra e a bateria irromperam com um hard-rock legal,
lembrando bastante a banda Jet, inclusive na música de abertura, que lembrava uma versão
“abrasileirada” de L'Esprit D'Escalier. Quando o vocalista começou a cantar como um bom
rock star, as meninas na pista comum gritaram como se fosse um show dos Beatles,
completamente loucas, excitadas e apaixonadas. Adriele pulava com um sorriso, enquanto eu
apenas batia o pé conforme as batidas da bateria.
— ÂNIMOOO! — ela gritou pra mim.
Eu tinha uma dificuldade pra me divertir em grupo e isso precisava ser superado. Poderia
ser até divertido me soltar, por mais que eu não conhecesse nenhuma música da banda.
Então, como um doente, iniciei meus pulos com a mão direita erguida fazendo os chifrinhos
do rock. O calor que estava nascendo naquele lugar estava me deixando elétrico e eu
consegui me divertir bastante durante os minutos que ainda tinha fôlego pra pular.
O vocalista tinha cabelos quase lisos e muito pretos e brilhantes, repicados pelo seu rosto
e esvoaçando para todos os lados. Ele cantava se segurando no pedestal do microfone e
fechando os olhos, como se estivesse com dores. No final da uma hora de show, as roupas
dele estavam encharcadas e seus cabelos pingavam, assim como os meus. A última música
tocada foi uma super balada animadíssima que fez todo o lotado salão sair do chão. O piso
tremia com o impacto dos corpos, gerando uma onda gostosa e excitante.
Quando a última corda da guitarra foi tocada, eles se separaram de seus instrumentos,
juntaram as mãos no proscênio e fizeram uma longa reverência aos fãs. Quando ergueram as
cabeças, o meus olhos e os do vocalista se encontraram por preciosos segundos, me fazendo
arrepiar. Eles saíram do palco por trás, por onde entraram, batendo palmas. As luzes se
acenderam e Adriele, com os cabelos ondulados pelo suor, me deu a seguinte notícia:
— Vamos pro camarim!
— Sério?!
— É! Vamos tirar fotos com eles e tals! Vai ser maravilhoso! Gostou do som, né? Eu sabia
que você ia gostar, achei a tua cara.
— Esqueça o som, vamos ver a banda!
Com uma corrida regada por risadas, fomos para fora do salão, onde ela me levou para
uma das suítes do Iate Clube. A recepção já sabia quem ela era, então tivemos passe livre
para prosseguirmos até a suíte da banda. Existe coisa mais legal do que ficar com uma banda
pouco conhecida em uma suíte? Existe.
— É a Adriele! — ela se identificou pelo interfone da porta. — É você, Thomas?
A porta se abriu de repente e um garoto muito feio abraçou Adriele. Ele tinha uma cabeça
desproporcional ao corpo, que era magro demais, mas as roupas eram de grifes internacionais
e ele tinha aquele jeito rico de ser, com manias de mão e movimentos de cabeça. Apertei a
mão estendida dele e entrei na pequena suíte, geralmente habitada por viajantes do mar e
turistas.
— Vem, pode sentar. — disse Thomas, sem nem ao menos perguntar o meu nome,
seguindo logo para o corredor. Eu também não disse, então era sinal de que os dois,
simplesmente, não se importavam.
Me sentei em um enorme sofá brilhante e dourado, em frente à uma mesinha de café
baixa de tampo de vidro laranja. Na parede à nossa frente, uma TV de 52 polegadas estava
presa como um lindo e moderno pôster, exibindo clipes da MTV. Ao meu lado, um homem
fumava alguma coisa que não era cigarro e muito menos maconha. Era mistura de alguma
coisa cheirosa com alguma coisa ilícita. O reconheci como o baterista, com os cabelos
cortados bem rentes à cabeça morena e os braços esculturais expostos pela regata azul. Ele só
olhava os clipes e curtia as músicas com uma boa cara de chapado.
— Éron! — chamou Adriele do corredor de paredes laranjas. O pessoal não enjoava do
tom verão do lugar? — Vem pra cá, o Lino e o Stef estão aqui no quarto!
— No quarto? — me perguntando se a suíte não era um quarto em si.
— Eles requisitam a sua presença.
— Vem Éron! — gritaram, supostamente, Lino e Stef em uníssono.
Eu continuei sentado decidindo se ia ou não, quando o baterista colocou a mão na minha
coxa direita e me disse naquele tom Bob Marley de voz:
— Ou você vai ou eles vêm aqui... — deu mais um trago.
— Não tenho escolha?
Ele fez que não com a cabeça e eu me levantei devagar, andando pelo corredor pintado de
laranja, decorado com pequeninos quadros de velas, ilhas e fotos de homens com peixes
gigantes. Nossa, que tosco.
A porta do quarto estava entreaberta e eu estava me cagando pra entrar de uma vez, então
resolvi bater, mas ao toque da minha mão, a porta se escancarou e, no quarto escuro,
iluminado apenas por duas luminárias gigantes, pude ver Adriele deitada em um divã com o
tecladista. Na cama, o vocalista e o guitarrista mastigavam Hershey’s assistindo reprises de
Veronica Mars.
— Pode entrar, cara. — disse Thomas, que mexia em papéis na mesa de canto, iluminado
por um pequenino abajur de luz amarelada.
— É, Éron — confirmou o guitarrista se virando para me olhar. —, pode entrar. Deita
aqui com a gente.
“Deitar com a gente?! O que eles são? Gays?”, eu pensava. Tudo bem que no meio do rock
o bissexualismo e o sexo livre regado de drogas eram coisas totalmente comuns para
acontecerem, mas presenciar uma coisa dessa era outra. A sensação era esquisita e um pouco
incômoda, como se eu fosse sujar toda a pureza deles. Mas... Que pureza mesmo?
O guitarrista d’Os Estranhos era super loiro, de olhos castanho-escuros, lábios pequenos e
rubros. Tanto o vocalista quanto o guitarrista eram bonitos, mas o melhor entre eles era o
tecladista, que possuía um lindo moicano vermelho e tatuagens monumentais por todos os
dois braços e pescoço. Adriele que tinha sorte.
Me sentei na ponta da cama king size poluída de farelos de pães e chocolate. Na mesinha
de cabeceira, latinhas de Coca e RedBull davam o toque “ALOCA” no lugar. Já que as
sensações que me deixavam mais desconfortável eram justamente as que faziam meu sangue
fluir, e aquele quarto de roqueiros estava me deixando desconfortável, significava que o meu
sangue estava chegando ao ponto de ebulição. Um vulcão prestes a ameaçar uma explosão,
mas que nunca despejava sua lava.
— Então, curte nossa música tem tempo? — perguntou o guitarrista. Eu estava sentado ao
lado dele, perto de suas pernas. Eles estavam com suas cabeças apoiadas nos travesseiros de
seda contemplando a TV LCD colada na parede à nossa frente. De todo o quarto branco,
aquela parede era a única pintada. De vermelho.
— Não. — fui honesto. — Foi a primeira vez que ouvi vocês. Eu nem sei o nome dos
integrantes da banda, ou seja, vocês...
— Stef sou eu — se apresentou o guitarrista. — e ele é o Lino. — ele apontou para o
vocalista, ao lado dele.
— Agora vem, deita aqui no meio da gente. O ar-condicionado está ligado e você vai
acabar com frio. — murmurou Lino, olhando a TV.
Eu nem havia sentido a mudança de temperatura da sala para o quarto, talvez fosse por
causa da sensação de estar com caras do rock. De qualquer maneira, acatei o chamado e me
deitei no meio dos dois sem tirar os tênis. Veronica Mars não era exatamente o que eu queria
ver. Muito menos MTV.
— Nunca fui fã de Veronica Mars. — lancei sem pensar.
— Por causa de pessoas como você que o seriado acabou. — sussurrou Stef, perto do meu
ouvido. É, era esse tipo de diversão que eu estava buscando.
— Prefiro alguma coisa mais terror, tipo Supernatural.
— E desde quando dois irmãos gostosos formam uma série de terror? — ironizou Lino.
— Desde o dia que pessoas como eu passaram a assistir.
Stef riu alto, como um bom rockstar e concordou:
— Exatamente, Lino.
— Mas eu ainda prefiro os garotinhos loiros que nunca ouviram a banda e preferem
assistir seriados de homens gostosos.
— Nossa, que tarado! — grunhiu Stef, rindo de novo. — Mas eu prefiro garotos assim
também, então eu acho que ele tem o direito de escolher.
— Ei! — me meti. — Vocês acham que eu sou gay?! — brinquei.
— Se ferrou, Éron, porque eu já contei a eles que você gosta de salsicha. — era Adriele,
que deixou de beijar o gostoso do tecladista pra se meter no meu assunto.
Levantei meu dedo médio pra ela e, por milagre, não tive que encarar o rosto dos dois
caras que estavam meio que me disputando, porque os dois estavam vidrados na TV. Nossa,
que poder, Kristen Bell.
— Então, tipo, eu tenho que escolher entre vocês dois? — perguntei. Não tinha como ser
um mal-entendido, porque os dois haviam sido bastante diretos.
— É, eu acho. — respondeu Lino. Eles pareciam não estar nem aí pra nada, mas isso até
que era legal neles, pois fazia com que eu me sentisse um cara comum e não uma aberração
loira super bonita.
Entre os dois, o mais bonito em disparada era o Stef, mas Lino tinha seu certo charme de
vocalista-que-canta-sentindo-a-música-percorrer-o-corpo. Porém, se eu tivesse que medi-los
pelo talento, Stef tinha uma habilidade perfeita pra colocar a guitarra pra gritar feito uma
piranha barata tendo a melhor relação da vida. Os dois eram bons demais.
— Posso pegar, tipo assim, os dois? — indaguei.
Adriele soltou uma risada demoníaca que ecoou, com toda certeza, por boa parte do Iate
Clube.
— E eu achando que eles dois é que eram os tarados da história. — zombou ela.
O quarto irrompeu em risadas e foi se calando aos poucos, quando os dois perceberam que
eu estava falando sério. Thomas saiu do quarto carregando uns papéis, parecendo nem
escutar o que estávamos falando.
— Então um só não é o bastante pra você? — perguntou o tecladista. Adriele estava em
cima dele, com seus cabelos abertos escorrendo ao lado do rosto.
— É que, tipo, os dois têm características tão únicas que eu achei que seria legal... E,
apesar do que vocês podem estar pensando, eu nunca fiz isso na vida.
Surpresos, Stef e Lino se entreolharam. É, eles deviam estar achando que eu era um
cafetão-louco-pega-geral.
— Você é virgem? — perguntou Lino, se virando na cama pra me encarar de frente. Seus
olhos estavam um pouco vermelhos e seu hálito tinha um delicioso cheiro de chocolate ao
leite Hershey’s, quase me fazendo babar na cama.
Eu corei de vontade rir, não de vergonha.
— Sou.
Uma chuva de exclamações de “não acredito!” molhou todo o quarto. Stef ria como um
pivete idiota que achava graça da Playboy do irmão mais velho e Lino olhava chocado para o
tecladista.
— Sério, gente. Eu comecei a ficar com garotos há pouco tempo e, com as meninas, nunca
rolou nada além de beijos e mãozinhas bobas. Só isso.
Eles continuavam com a cara de surpresa e, pra fazer um drama básico, lancei:
— E então, vão ficar com essas caras de bunda ou vão me beijar logo? Eu não tenho a
noite —
Fui interrompido com o puxão que Stef me deu, fazendo com que eu caísse em cima dele.
Não demorou muito e sua boca já estava na minha. Ele tinha um beijo doce e um pouco
gelado, que me fez arrepiar. Suas mãos acariciavam lentamente meus braços que suportavam
o meu corpo em cima do dele.
O beijo foi interrompido pelos lábios de Lino, que habilidosamente penetraram no meu
beijo com Stef, ou seja, ele conseguiu beijar os dois ao mesmo tempo e tirar a minha boca da
do Stef. Apoiado nos joelhos e em cima da barriga do Stef, beijei a boca de chocolate do Lino
mais fervorosamente. Ele tinha um jeito mais agressivo no beijo, aumentando o meu ritmo e
velocidade. Como eu havia especulado, Stef era melhor, mas beijar os dois caras era uma
sensação nova que ia entrar para a minha coleção.
Sim, eu me sentia um michê beijando aquelas pessoas do mesmo sexo que o meu ao
mesmo tempo, mas era divertido. Era tão descolado fazer aquilo que me agradava. Mas o
protagonista, que deveria subir e decidir qual orientação sexual eu deveria “seguir”, não
funcionou, ou seja, eu ainda tinha dúvidas se eu realmente era homossexual ou bissexual,
pelo menos.
— Nossa, vocês são, tipo assim, muito putos. — lançou Adriele, se sentando na cama.
Parei de beijar Lino para ver o que o tecladista ia fazer com a garota, mas a minha surpresa
foi ver o que ele ia fazer com Lino.
— Cara, eu to ficando com ele. — lancei enquanto o tecladista beijava o Lino.
— Então vem ficar. — disse o tecladista. — Na verdade, venham os três. Vamos
experimentar essas coisas gays que vocês fazem.
Olhei Adriele, que sorria — é claro — e Stef que parecia tão surpreso quanto eu.
— Topo se você topar. — lançou Stef, percebendo a minha expressão de “e aí?”.
— Eu já vou, beijos. — advertiu Adriele, colando a boca na dos dois.
Tomando coragem e com a sensação de frio na barriga congelando o meu corpo, peguei
Stef pela gola da camisa e o puxei para a minha boca. Segundos depois, as nossas se juntaram
às deles, em um beijo quíntuplo. Tomara que exista vaga no inferno pra todo mundo...
— Cacete, gente! — exclamou Thomas entrando no quarto. — Vocês nem me chamam?
Com risadas, todos nós nos afastamos antes que Thomas se juntasse ao beijo, o que seria
totalmente nojento, pois ele tinha pêlos enormes no nariz e o bigode que ameaçava crescer
parecia formado por pentelhos. E parece que todo mundo sentiu a mesma repulsa que eu,
não que sejamos maus, mas estávamos apenas poupando-nos de um mal-estar maior.
— Sério, eu acho que tenho que ir embora. — eu disse para Lino e Stef quando o meu
celular avisou que já era uma da manhã. Estávamos deitados na cama, agarrados. Ter os dois
me fazia me sentir tão poderoso e protegido que eu poderia deixar de lado toda a minha
obsessão por buscar o sentimento que senti com o meu primo idiota. Mas eles eram estrelas
do rock. Eles tinham que fazer turnês e conheceriam milhares de outras pessoas pelo Brasil a
fora. Se não o mundo a fora. — Eu tenho aula amanhã de manhã. Vida de escola... Bem que
eu gostaria de sair numa turnê pelo Brasil, saca? Ficar livre da responsabilidade de ter que ir
ao colégio e encarar o pessoal imbecil de lá.
— Nunca gostei do colégio. — confessou Lino.
— Por isso largou na quinta série. — zombou Stef.
— Vá se foder. — xingou Lino. — Mas, tipo, você poderia sair com a gente pelas turnês.
— Não, não posso... Tenho uma vida chata pra cuidar.
Lino suspirou e se ajeitou na cama.
— Você é quem sabe...
Me levantei da cama, escapando dos beijos de Stef e interrompi a pegação de Adriele.
— Temos que ir.
Ela concordou e deu um beijo de despedida no tecladista.
— Ah, e qual o seu nome? — perguntei a ele.
— Jonathan.
Assenti com a cabeça e dei um ultimo aceno de despedida pro pessoal da banda. Aquela
foi a melhor noite com a banda e seria a única durante toda a minha vida, pois coisas assim
não acontecessem duas vezes. Ainda mais com cinco pessoas ao mesmo tempo.
Passando pela sala, nos despedimos de Thomas e do baterista, que já não fumava nada,
mas parecia estar dormindo de olhos abertos, completamente louco. Saímos do Iate Clube e
pegamos o primeiro táxi que vimos. Demos o endereço dela e de lá iríamos para a minha
casa.
— Gostou da noite? — ela perguntou, vermelha de alegria, se aconchegando no banco
traseiro de couro do táxi.
— Amei. Foi tipo, a noite mais legal dos últimos tempos!
— Sabia que você ia gostar do fervo. Isso significa que a gente não vai perder contato?
— De jeito nenhum. Você tem o meu número eu tenho o seu. Não precisamos mais ficar
distantes. Mas eu pretendo dar uma pausa pra comemorar o meu aniversário no Clube, então
a gente só vai se ver lá. Sabe, é tipo um retiro espiritual...
— Saquei. — ela riu. — Esperarei ansiosamente.
O táxi parou, após alguns poucos minutos, numa rua perto do final da estrada que saía de
Dourado. Ela morava na ponta oposta à minha. Dei um boa noite para ela e pedi para que o
motorista me levasse para casa, onde eu iria passar os meus dias de descanso e escola até a
semana do meu aniversário, que também marcariam o início das férias de inverno, as férias
de julho.
E existe coisa melhor do que fazer aniversário bem na época das férias? Imagina só,
ganhar presente, dinheiro e ainda não precisar estudar! Muito, muito bom!
Episódio Nove
Dois Mais Um é Igual a Zero
N
as duas semanas que antecederam o meu aniversário eu tive as provas no colégio,
nas quais fui extremamente bem, ou seja, era um sinal significativo de que eu
poderia entrar de férias na semana seguinte. E assim o fiz. Era sexta-feira, dia
dezessete, quando liguei para Adriele apenas pra confirmar a curtição da noite seguinte e
onde isso aconteceria. E foi só pra confirmar mesmo, pois aquele dia que antecedia o meu dia
seria apenas meu, pois eu recebi de meus pais uma ótima quantia para comprar as roupas que
eu iria usar e o que mais eu quisesse. Geralmente eles me davam dinheiro como presente de
aniversário, o que era um alívio e uma preocupação, pois demonstrava que eles não
conheciam meu gosto a fundo e muito menos do que eu realmente precisava.
Passei a tarde comprando calças e tênis no Solar, inclusive as que eu passaria a usar no
segundo semestre. A dor de encarar a Helen eu já não conhecia, pois era um sentimento tão
mutável quanto ela própria. Mas de uma maneira geral, as férias me trouxeram tranquilidade
e paz de mente. Inclusive com o cinto Diesel super maravilhoso que eu comprei e que usaria
no dia seguinte, na boate.
Parecia que, com o meu aniversário, eu estava deixando para trás a infantilidade e
conquistando a maturidade de uma adolescência mais louca e menos poluída por pessoas que
me incomodavam. Tá, o Hugo e a trupe idiota do colégio me incomodavam, mas Dril e
Kevin apenas me confundiam. E eu nem ao menos havia recebido ligações deles, e é claro
que eu nem liguei. Talvez fosse melhor pra todo mundo que nos mantivéssemos afastados,
pois assim eu evitaria magoar alguém ou acabar me magoando, como sempre acontecia.
À noite, jantei com meus pais na mesa da cozinha e a comida era justamente a que eu
deveria escolher, por ser meu aniversário: pizza.
— E as namoradas? — perguntou meu pai tentando puxar algum assunto interessante.
Será que ele teria um ataque cardíaco ou engasgaria se eu dissesse que, além das namoradas,
eu pudesse ter um namorado? Por mais impossível que isso parecia ser pra mim...
— Nenhuma. — respondi olhando a fatia e mastigando um pedaço.
— Ele terminou faz um tempo. — se intrometeu a minha mãe, meio que jogando na cara
do meu pai que ela sabia tudo sobre mim e que nós conversávamos, o que era um fato raro,
porém mais comum do que conversar apenas com meu pai. Eu, geralmente, só falava com ele
pra pedir dinheiro e ele falava comigo apenas pra encher o saco sobre carros e notícias
imbecis da televisão. — Era uma tal de Evelyn, não é?
— É, mãe. — concordei. Já ouviram aquela expressão “não bata palma para maluco
dançar”?
— Ele gostava dela. — ela acrescentou, antes de enfiar um minúsculo pedaço de sua fatia
na boca.
— E o que aconteceu sobre o nunca repetir? — ela se tocou.
— Mas ele é seu pai, querido, precisa saber dessas coisas.
— É. — confirmou ele. — Precisamos conversar mais, Éron. Só falamos de dinheiro e
notícias imbecis da televisão... — Não falei?
Eu poderia ter dito a ele que eu sempre estava em casa e que quem estava fora sempre era
ele. Tudo bem, ele tinha que trabalhar, mas nos dias que ficava em casa, ficava sentado com
aquela bunda gorda no sofá ou na cama, lendo um jornal de linguajar pesado e coçando a
pança gorda e a cabeça careca. Eu queria ter dito que ele não estava nem um pouco presente
na minha alma e que o meu amor por ele era meio que obrigatório, porque ele estava
totalmente fora da minha rotina e não se importava nem um pouco. Só não falei essas coisas,
porque eu já tinha cansado de pedir e entregar a mão pra ele, querendo mais apoio e carinho,
mais companhia, mas ele a rebateu, ele não ligou e eu já não queria mais ligar também. Então
sabe o que se faz quando você não está afim de jogar um monte de verdade na cara de
alguém?
— Tá. — seja cínico, comendo uma pizza deliciosa.
Uma breve pausa silenciosa.
— Vai comemorar o aniversário aonde mesmo? — perguntou minha mãe, pela milésima
vez.
— Na casa de uma amiga. — menti, é claro. — Ela e uns amigos vão organizar uma festa
pra mim. Vai ser legal.
“Na verdade, mãe, eu vou para uma boate GLS pra ver se pego alguém, porque eu estou
me sentindo estranho desde que o seu sobrinho favorito me beijou na varanda do seu quarto!
Mate-o por mim?”, era isso que passou pela minha cabeça. Era chato mentir para os meus
próprios pais, mas eu não tinha outra escolha. Ou tinha, mas preferia a mais fácil e segura.
Após comermos, desejei uma boa noite a eles e escovei meus brancos dentes. No meu
quarto, o meu computador ligado tocava Never Bloom Again, da banda The Perishers e,
segundos depois de me deitar na cama, adormeci.
A luz do Sol entrava por uma fenda entre a cortina branca e a janela, aquecendo meu
rosto. Meu quarto estava brilhante e meus olhos ressecados. Permaneci deitado por vários
minutos a mais, aproveitando a gostosa luz solar que ardia lentamente em minhas pálidas
bochechas. O computador ligado tocava baixinho alguma música da banda South. Não era a
primeira vez que eu deixava meu computador ligado durante a noite inteira, pois, na época
que era mais viciado em Star Wars, o deixei baixando os três primeiros episódios do filme
durante a madrugada. Valeu super a pena.
Vesti meu robe azul e saí do quarto. Meus pais não estavam na sala ou na cozinha, sinal
de que ainda estavam dormindo.
— Cara, acordei cedo... — comentei sozinho quando me dei conta de que o relógio da
cozinha marcava oito horas.
Sem ter mais o que fazer de útil, assei pães “dormidos” para que ficassem quentes e
crocantes e os comi com muita manteiga, queijo e presunto, acompanhado de um suco de
maracujá super doce, do jeito que eu gostava. Após comer, escovei meus dentes e tomei um
banho quente bem rápido. Naquela manhã, parecia que tudo que eu tinha vivido não passava
de um sonho esquisito, pois eu me sentia mais leve e sem problemas. O Sol entrava por toda
a minha casa e o reflexo dos vidros transformavam a luz em leques com as sete cores do arco-
íris.
As coisas pareciam mais claras e limpas e a temperatura estava agradável, nem quente ou
frio. Meus olhos brilhavam intensamente, mais vivos. Minha pele estava perfeita e livre de
espinhas. Meu sorriso parecia mais branco e alegre e, principalmente, minha alma estava
livre de fantasmas do passado, aqueles que costumavam me atormentar, inclusive minhas
próprias memórias de erros e consequências.
Desliguei meu computador e me sentei na cadeira de rodinhas. Eu tinha perdido a minha
melhor amiga, que se tornou a melhor em tão pouco tempo, mas me dando chance de
conhecê-la a fundo. Perdi uma namorada vadia, que me traiu com o cara que se dizia meu
amigo. Ganhei um primo. Ganhei o beijo de um primo. Ganhei um lado homossexual. Perdi
o meu primo. Ganhei mais alguns homens, incluindo estrelas do rock e, no final, perdi tudo.
Ou deixei tudo... O problema seria eu? Talvez a vida que eu estava vivendo não pertencesse a
mim e sim a um momento simples que eu vivi e que deveria ficar lá, guardado naquele baú
chamado lembranças.
Ah, e era o meu aniversário! Eu estava esperançoso, pois apesar de estar sozinho, aquela
menina, Adriele, parecia ser uma garota super legal. Parecia não, ela era super. Festejar os
meus dezesseis anos de vida com ela em uma boate de néon com homens e mulheres loucos
ia ser maravilhoso e totalmente psicodélico. Era uma droga que gerava alucinações especiais
e divertidas. Cara, dezesseis anos!
— Tá acordado? — perguntou minha mãe do outro lado da porta. Será que se eu estivesse
dormindo eu diria não?
— Estou, pode entrar.
Ela abriu a porta devagar e me abraçou logo depois.
— Parabéns, querido.
Minha mãe tinha o costume de me parabenizar de manhã, mas meu pai sempre deixava
para a noite... Ou para o dia seguinte. No ano anterior, meu aniversário caiu numa sexta-
feira, então ele pôde usar a desculpa do trabalho. Mas no sábado, por mais que ele ainda
trabalhasse, largava mais cedo e ia confraternizar — ou seja, beber feito um gambá — com os
amigos da empresa. Amigos?
— Valeu, mãe. De verdade.
— Seu pai ainda está dormindo, sabe que hoje ele entra mais tarde e...
— É, eu sei, fica tranquila.
— Mas ele vai falar com você. — ela parecia preocupada, achando que eu me importava
com o fato de receber ou não parabéns dele. Na verdade, aniversário deveria ser
comemorado apenas se você, ao envelhecer, ficasse mais bonito e nada caduco.
— Ok, mãe, sabe que eu não tenho problema com o fato de ele falar ou não. Eu entendo o
lado de vocês.
Ela sorriu.
— Que bom, querido. Bom, agora eu tenho que dar um jeito no almoço. Vai sair que
horas?
Eu só me encontraria com Adriele às onze, em frente ao Clube 13, mas eu precisava
respirar o ar daquele lindo dia, então eu ia dar uma passada na praia e respirar no píer.
— Acho que eu saio daqui às seis da noite, para a praia. De lá eu vou pra casa da minha
amiga.
Ela me deu um beijo na testa e saiu com um sorriso. Ela nunca havia sido uma mãe
presente na minha vida e, ultimamente, ela se tornou um pouco mais parceira. Eu só não
podia me iludir, porque ela era assim mesmo, podendo me largar novamente a qualquer
momento.
Meu pai saiu de casa ao meio-dia sem nem ao menos passar no meu quarto para perguntar
se eu estava vivo. Às quatro, tomei um banho e vesti um jeans branco com uma t-shirt com a
estampa verde “I’ts Nice to be Nice” e saí de casa. Nos pés, como sempre, um par de All Star,
dessa vez verdes, para combinar com a estampa.
Desci do táxi na praia e caminhei pela orla cheia de pessoas, fossem bonitas ou feias. Elas
pareciam felizes e animadas, mais do que o normal e o Sol, por mais que estivéssemos no
Brasil, estava mais fraco e agradável. Talvez pelo fato do inverno estar se aproximando, pois
chegaria em três dias. O fato de tudo estar mais bonito poderia estar saindo de mim também,
pois era o meu aniversário e a minha visão poderia estar positiva, limpa e em uma altíssima
resolução. Eu estava em um daqueles dias que você vê raios de sol saindo da bunda das
pessoas.
Me sentei no píer 3, observando o calmo mar ir e vir. Mais ao fundo, no horizonte, navios
passeavam vagarosamente e a brisa fria beijava o meu rosto e os fios de meu cabelo. Fechei
meus olhos e me senti naquela cena do filme Titanic, quando Jack faz com que Rose se sinta
voando. Eu estava voando. Sem Jack e sem Rose. Minha mente não estava parada no rosto de
ninguém a não ser eu. Eu só tinha que pensar em mim, no que eu queria da minha vida
daquele dia em diante. Eu queria mais calma e que as coisas rolassem mais devagar, mas ao
mesmo tempo eu queria animação e diversão ilimitada. Eu queria não ter que aturar nunca
mais pessoas retardadas que ficavam no meu ouvido. Eu queria largar as responsabilidades da
escola, incluindo as festas. Eu queria voar de verdade.
Do píer, eu vi o Sol se pôr e a noite cair. Ali eu observei como os pássaros se retiram para
ficar em seus ninhos, longe do frio e acolhendo seus preciosos filhotes. Eles também tinham
que sair pra sustentar sua família, mas sempre tinham tempo pra dar um “beijo” em seus
filhos e demonstrar carinho. Tudo bem que, quando chega a hora do vôo, os pais deixam seus
filhos se arriscarem, mas eu acreditava que sim, eles tinham alguma ligação emocional com
seus entes queridos. Não podia ser apenas instinto.
Quando constatei que eram oito e meia da noite, fui comer uma pizza na M&D, minha
pizzaria preferida. Eu vivia à base de pizza. Às dez eu voltei para o píer e fiquei olhando o
mar escuro com uma latinha de refrigerante na mão. E o tempo passou como se nem ao
menos existisse, afinal, era o meu aniversário. O resto da família costumava ligar à noite,
horário que geralmente eu ficava em casa, no passado. Mas, no presente momento, eu estava
começando a nova fase da minha vida, onde eu me tornei um adolescente de verdade, louco
pra aproveitar a vida e radicalizar. Que surpresa eles teriam quando soubessem que eu não
passaria a noite em casa...
— Desculpa o atraso. — eu disse quando desci do táxi, bem em frente à Adriele. — Eu
estava admirando o mar à noite.
— Acabei de chegar também e nós estamos no horário quase certo.
Olhei no celular e eram onze e quinze. Paguei o motorista do táxi e, com Adriele,
atravessei a rua em direção ao Clube 13, que já estava com a bilheteria lotada.
— Ah, e parabéns!
— Valeu. — olhamos para a fila enorme. — Vou ver se alguém compra o ingresso pra
gente.
— Du-vi-do. Esse pessoal é merda, saca? Gays costumam se achar no topo do mundo.
— Está me desafiando? — perguntei intrigado.
— Talvez. Tenta lá.
Ela foi para o final da fila e eu fui para o começo. O terceiro cara da fila era até bonitinho,
então ia ser mais fácil de fingir um flerte.
— Ei, tudo bem? — perguntei.
— Tudo. — ele sorriu, ou seja, é o primeiro sinal de que a minha aparência agradou.
— Então, compra dois ingressos pra mim? Claro que eu vou te dar o dinheiro. É só pra eu
deixar uma amiga com cara de panaca.
— Nem precisa dar a grana, meu. Eu pago pra ti.
— Não, sério. — peguei o dinheiro da minha carteira e estendi.
— Eu já disse que pago.
Era por essa teimosia chata que eu achava as pessoas enjoativas e idiotas. Eu não queria
alguém que puxasse meu saco, mas também não queria alguém que me obedecesse. Ele
poderia aceitar meu dinheiro após eu não aceitar a sua proposta de pagar. Ele poderia fazer
menos drama. O quê? Eu fazendo drama? Claro que não.
— Tipo, ou você pega o meu dinheiro ou peço à outra pessoa. — ameacei.
— Eu pago com o seu dinheiro! — disse o gordinho loiro atrás da gente.
— Fica na sua, cara. — lancei — E aí, é pegar ou largar.
Ele me olhou com cara de menino que diz “seu manipulador” e pegou o dinheiro da
minha mão. Quando os outros dois compraram os ingressos e ele me entregou os meus, ele
perguntou:
— Qual é o seu nome?
Como eu não estava afim de ficar com ele naquela noite, sumindo pra sempre da vida
dele, respondi:
— Haroldo.
Pisquei para ele e fui até o final da fila, acenando os ingressos para Adriele, que abriu a
boca e arregalou os olhos.
— Não acredito! — ela pegou o ingresso na mão e me acompanhou até a entrada do
Clube.
— Pode acreditar. Eu falei que ia conseguir.
— E foi ele que pagou pra você?
Pra zoar um pouquinho, por que não mentir?
— É claro. — soltei com aquele ar de que era muito óbvio.
O segurança destacou nossos ingressos e nos colocou a pulseirinha rosa. O segundo
segurança nos revistou e analisou nossas caras risonhas. Entramos, finalmente, naquele
mundo de luzes de neon em cores vivas piscando, de pessoas de todos os tipos e de passe
livre para qualquer tipo de diversão que quiséssemos ter. O limite era a palavra não. Ou
sim...
A batida empolgante da música berrava em nossos ouvidos e a vontade de sair dançando
no meio de todo mundo era tangível. A peguei pelo braço e a levei para mais perto do palco.
Todos os olhos se voltaram para a gente. Perto do palco o som era muito mais alto e a viagem
que se faz na música também, pois era como estivéssemos drogados, só que sem drogas. Era
só música. Remexíamos nossos quadris e tórax conforme a música batia e nossos corpos
arderam em chamas. Eu sentia cada gotícula do suor lutando para escapar pelos meus poros.
E os homens já se aproximavam de mim, eu sentia o calor que emanavam. Eu fingia não
ligar para tudo aquilo, mas eu ligava. Percebi que gostava de aparecer para que essas pessoas
me admirassem, ainda mais naquele dia, no meu dia. Um deles tocou meu ombro. Me virei
de súbito, sabe, pra fazer aquele efeito do cabelo girando com a cabeça e quase caí pra trás de
susto, pois o homem era Dril, parado, sorrindo. Cutuquei Adriele como se eu tivesse visto o
fantasma de Michael Jackson.
Ele apontou para fora da área do palco, o que literalmente era o sinal para que o seguisse.
Tentei puxar Adriele, mas ela, com sinais com as mãos, me mandou ir na frente. Reparei
também que um cara olhava pra ela. Noite dos héteros numa boate gay?
— O que você está fazendo aqui? — perguntei perto do ouvido dele quando chegamos ao
bar, mais afastado do som.
— O que você está fazendo aqui? Eu achei que estivesse naquela onda de hippie altista.
— Só porque eu deixei de atender suas ligações por algumas semanas?
— Então foi de propósito?
Desviei meu olhar para o grupo de meninas super gatas que passou. Uma delas, morena de
cabelos encaracolados, me olhou com vontade. Oba!
— Foi. Desculpa, eu tenho que acertar umas coisas ali e —
Enquanto eu ia saindo pra perseguir a menina, ele me pegou firme pelo braço, me
puxando para um beijo. E a história se repetia: encontrando o cara na boate e tendo um beijo
espumando adrenalina e calor. É claro que o calor que eu estava sentindo não era aquele que
afetava uma única e certa área na parte inferior no corpo.
— Mas que MERDA é essa?! — exclamou alguém atrás de nós enquanto nos beijávamos.
Abri meus olhos e me soltei do abraço de Dril num salto. Era o Kevin com a maior cara de
mongol que eu já havia visto na vida, segurando duas tacinhas de Martini com alguma gosma
vermelha. E a história se repetia...
— Como assim “que merda é essa?” Quem você pensa que é pra falar assim com a gente?
— lançou Dril, tomando a dianteira sem deixar de ser elegante.
— Eu não estava falando com você. É com ele. — Kevin apontou pra mim com o dedo
mindinho que estava livre de segurar a taça.
— Você o conhece, Éron?
— Conheço. — não menti, até porque eu não via nada de especial de estar ali me
agarrando com o Dril. E eu não me importava do Kevin ficar com raiva. Antes raivoso do
que magoado, porque eu não ia aguentar vê-lo de coração partido por minha causa. O
problema era o tipo “supermeloso” dele.
— Porque estava o beijando? — indagou Kevin, surpreso pelo fato de eu estar ficando
com outra pessoa.
— Porque ele me agarrou.
— Agora eu te agarrei? Peraí! O que esse garoto é seu? Tá namorando ele? — Dril estava
com aquela expressão “merda, não tô entendendo nada” no rosto.
— Ele não é nada meu!
— Achei que estivéssemos ficando! — lançou Kevin. Ele mexia tanto as mãos que as taças
já estavam quase vazias de tanto Martini que ele derramara no chão.
— Tá ficando com ele? — Dril me perguntou.
— Não! Eu não estou ficando com ele!
— Caraca, gente, o que ta pegando? — era Adriele — Meu deus, Kevin, o que você está
fazendo aqui?
— Eu quero saber porque o meu ficante estava beijando outro cara!
— Ei, eu não sou o seu ficante!
— Você estava ficando com ele? — era Dril, tão confuso quanto todo mundo.
— Não, cacete, já disse! Explica pra eles, Adriele.
— Ela não tem que explicar nada, porque você me beijou, não a ela! — Kevin parecia à
beira de uma síncope.
— E daí que ele te beijou? — interveio Dril. — Ele acabou de me beijar também! Se
significasse alguma coisa, eu seria o marido dele, então!
— CACETE GENTE, DÁ PRA PARAR COM O ATAQUE DE CU?! — gritei para os dois,
me metendo entre eles.
— Sabe qual a impressão que eu tiro disso tudo? É a impressão de que você estava nos
usando durante todo o tempo! Sabe, simplesmente parece que você não está nem aí! Mas
você vai ter que escolher, cara!
Dril cuspiu essas palavras como se eu fosse obrigado a manter algum tipo de
relacionamento sério com algum dos dois. A verdade era que, se eu tivesse que escolher
entre um dos dois, eu estaria escolhendo um namorado, uma responsabilidade que eu nem ao
menos estava preparado pra pegar. Dril era elegante e inteligente, enquanto Kevin era
emocional e parecia tão... Ingênuo. Talvez idiota.
— Então é isso? Eu tenho que escolher?!
— É, Éron! Chega de ficar brincando com os sentimentos dos outros assim! Nós temos
sentimentos e eu realmente gosto de você... Eu te amo. — era o Kevin, é claro, fazendo um
discurso em tom bebê-chorão.
— Escolha, Éron. — Dril me olhava sem saber quem eu escolheria, mas o problema era
que eu mesmo não sabia quem eu queria... Na verdade, eu sabia quem eu não queria, e nem
falo isso num mal sentido.
— Aí, querem saber de uma coisa? — comecei. — Escolho ficar sozinho!
Kevin, Dril e Adriele demonstraram surpresa total em suas faces.
— Como assim?! Você brinca com a gente e depois descarta? — Kevin sempre era mais
dramático.
— É isso, então? — Dril já era mais maduro. A diferença de mentalidade era enorme.
— Boa, Éron. — Adriele apoiou.
— Sério, eu não posso escolher entre os dois, não é assim que isso funciona. E, de
qualquer forma, seria injusto. Assim todo mundo sai perdendo. — expliquei.
— Arrasou, piranha! — me disse um garoto super afeminado, batendo no meu ombro. —
A onda é ficar solteiro, mas nunca sozinho!
Eu estava sem graça, porque o assunto era importante e as pessoas o estavam tratando
como se fosse a escolha de uma cueca. Não era assim que eu planejava as coisas. Ou melhor,
eu não planejava nada.
— Me desculpem, mas já que eu decidi, vou me retirar. Foi bom, sério mesmo.
Virei, pegando Adriele pelo braço com o coração um pouco sentido, mas era uma coisa
curável com uma dança. Enquanto atravessávamos a multidão para tentar chegar ao meio do
Clube, a mesma mão afeminada tocou meu ombro e a boca do cara se aproximou de meu
ouvido.
— NÃO FUJA, GATO! VEM, TEM UM PESSOAL LEGAL PRA VOCÊ FICAR JUNTO!
— NÃO QUERO FICAR COM NINGUÉM ESSA NOITE! — eu estava sendo sincero.
— VAMOS BATER PAPO! VEM, VOCÊ NÃO TEM MAIS NADA PRA PERDER!
Olhei para Adriele e ela retribuiu com um sorriso de “sim, vamos!”. Concordei com o cara
e o segui até o camarote VIP, subindo as escadas desviando do pessoal que se agarrava nos
degraus. Cuidado com a mão!
— Sentem aí! — falou o cara, nos mostrando o comprido sofá vinho acabado em madeira,
onde mais três garotos super distintos estavam sentados. Eu não reparei neles, porque
naquela noite eu não queria reparar em mais nenhum homem.
— Meu nome é Christian, queridos. — ele se apresentou depois que eu e Adriele nos
sentamos. — Vocês são...?
— Éron e Adriele. Valeu pelo convite...
— Ah, que nada! — ele balançava a mão como se fosse feita de mola e pelúcia, quase
como uma perua sem noção. — É que eu organizo a Noite do Rei e, sei lá, acho que você tem
potencial pra ganhar a Coroa...
— Heim? — perguntou Adriele, sem captar nada, assim como eu.
— Ah, a Noite do Rei é a noite onde um Rei é escolhido aqui no Clube. Existem algumas
regras, mas ele é escolhido. E eu sou o organizador, te chamei porque, caso queira participar,
é só me ligar que eu te informarei direitinho.
Ele tirou o celular do bolso e digitou um número, me entregando o aparelho em seguida,
para que eu anotasse. Anotei o número o mais rápido que pude. De alguma maneira, ele me
assustava, mas ele era super engraçado só em ser ele.
Eu me sentia um pouco mais culpado do que deveria e aquela noite já não estava me
agradando mais. Ao contrário do que eu tinha pensado, o sentimento de culpa não ia ser
curado com uma dança. Não existem curas para sentimentos, sejam eles quais forem. De
qualquer forma, continuamos sentados, tomando bebida de graça e conversando sobre coisas
da vida. Chris falava mais sobre ele do que qualquer outra coisa, mas eu não me senti
irritado, porque ele tinha certo carisma. Adriele estava mais animada do que todo mundo,
perguntando e debatendo com o cara. Os outros, sentados, me olhavam disfarçadamente,
mas eu conseguia encará-los no momento exato em que eles o faziam, achando que eu estava
olhando para outro lado ou outra coisa. Mas nem eram tão importantes assim.
— Eu vou indo pra casa, Adriele. Te ligo amanhã.
— Aaah, já vai? Tão cedo...
— Desculpa, Chris, mas é que hoje foi difícil. Te ligo, caso eu queira ser o Rei.
Dei um beijo no rosto de Adriele e um aperto de mão em cada um dos homens, inclusive
Chris, por mais que este tivesse trejeitos de uma mulher cheirada.
Desci as escadas rapidamente e tentei me esgueirar pelos cantos, para evitar os olhares das
pessoas, mas era impossível, pois eles pareciam sentir o meu cheiro, ver o meu calor, como o
Predador. Eu poderia ter medo e eu deveria, mas que se ferrasse, eu só queria deitar e
descansar. Já não era mais o meu dia porque havia passado da meia-noite, mas eram as
minhas férias que estavam na esquina, me esperando pra me encher de tédio e infelicidade.
Quando a gente quer demais, acabamos sem nada. Mas quando aceitamos um sem que
seja nossa vontade, estamos sem nada da mesma forma...
Episódio Dez
Férias no Alaska
E
ntão vai ser difícil a gente sair durante as férias, já que você vai viajar. — eu
resmunguei no telefone. Era Adriele. Tinha acabado de me contar como havia
sido a madrugada rindo das histórias homossexuais do Chris e a viagem relâmpago
que faria à Fernando de Noronha com a família.
— Imagine o meu tédio. Sair com os meus pais já é uma tortura, imagina então viajar com
eles... Vou morrer, eu acho.
— Não mais do que eu. Eu não tenho mais ninguém com pra conversar... E nem sei se
estou com muita vontade sabe? Depois que as férias acabarem, as cargas de aula na Bertha
Lutz vão dobrar e dizem que tipo, não sobra tempo nem pra tossir.
— Eu fiquei sabendo disso, por isso nem fui pro seu colégio. Primeiro ano lá é uma
merda! Ah! Conhece uma Helen? É uma amiga minha, ela estuda na Bertha também!
Quando a gente acha que todo o lixo já foi jogado no ventilador e que tudo está atolado,
alguém vem e libera ainda mais. A Helen parecia uma daquelas ervas loucas que se agarram
nos personagens de HQs e animes. Ela era exatamente isso. Ela se metia até mesmo em
pessoas que estavam super distantes dela, acabando por ser citada na minha vida
novamente...
— Conheci... Ela foi minha... Melhor amiga.
— Ai meu deus! Você é o Éron Brascher que brigou com ela?
— Eu briguei com ela? Ela é quem me trocou por um imbecil de moto!
— Pelo que eu sei, você foi ciumento e terminou a amizade com ela porque não aceitou a
felicidade dela com o cara. Isso é o que eu sei da boca dela.
Como se desse pra confiar em palavras de víboras.
— Não foi assim que aconteceu, acho melhor você perguntar pra ela o que realmente
rolou. Tivemos uma amizade maravilhosa, mas rápida. Assim da maneira que a amizade
começou, em poucos dias, a amizade acabou.
— Não precisamos mais tocar nesse assunto. Eu só fiquei meio surpresa, sabe? Justamente
a gente foi se cruzar...
— É, quando temos que nos cruzar com alguém, acontece o que aconteceu ontem, de
uma forma inesperada.
Uma pausa indicou que não tínhamos mais assuntos para falar. Com a viagem dela, eu
ficaria sem ter com quem sair. Não que estivéssemos nos tornando os melhores amigos do
mundo, mas eu gostava da companhia dela. E eu até sentia alguma coisa, tipo gostar de que
ela fosse amiga da Helen, pois isso me manteria, ao mesmo tempo, perto e distante.
— Então a gente se fala um dia. — eu disse.
— É. Foi legal ficar com você esse tempo.
— E vai ser melhor ainda.
— Tchau, Éron.
Desliguei o telefone e me sentei na varanda do quarto dos meus pais. Eles não estavam em
casa, provavelmente fazendo compras, então aquela linda paisagem, do mar e do Sol, era
apenas minha. Naquela mesma cadeira, o meu primeiro beijo com Hugo tinha acontecido e
naquela mesma casa tudo terminou. Durante os seis meses do ano, passei por uma amizade
poderosa com uma menina que conheci em apenas três dias, subi no topo da hierarquia da
escola, me tornando o mais cobiçado dos alunos, organizei a minha primeira festa com
pessoal do colégio, me tornei um bissexual nem tão sexual assim, perdi uma namorada, perdi
falsos amigos, perdi a vergonha, ganhei novos tipos de experiências e ainda os meus dezesseis
anos. Talvez fosse momento de eu parar pra pensar um pouco sobre o que poderia acontecer
no futuro, depois que o segundo semestre começasse. Digo depois do semestre porque, na
Bertha Lutz, esses cinco meses seguintes pós-férias, eram lotados de trabalhos preparatórios,
inclusive para o vestibular, que só aconteceria dali a dois anos.
Não que eu pensasse em fazer alguma coisa na faculdade, mas ficar em casa aturando os
meus pais — que quase nunca estavam em casa — não era o meu melhor objetivo de vida.
Mal sobraria tempo pra sair e eu não estava com saco pra isso, de qualquer maneira. Eu tinha
que parar um pouco e relaxar. Tentar resgatar alguma coisa boa do nerd solitário que um dia
eu fui e tentar mesclá-lo com o novo superboy que tinha nascido. Tentar começar uma vida
nova, me jogando em coisas da rotina que poderiam fazer com que o tempo passasse voando
e, principalmente, fingir que Helen não existia, passando por ela como se nem ao menos
fosse sólida, como um fantasma, daqueles que ninguém pode ver, a não ser vagabundos que
gostam de bater em fantasmas e fazer com que eles se afastem dos melhores amigos. Ou do
melhor amigo.
Tudo bem, eu não era o exemplo de melhor pessoa, mas eu tinha certeza de que eu era
melhor do que o imbecil que ela escolheu. Dizem que, para uma garota de quinze anos, o
primeiro amor é o melhor amor. De uma maneira similar, isso se aplicava para garotos
também, pois eu sentia isso na pele, por mais que negasse pra mim mesmo. Era claro que a
queda pelo Hugo não era uma queda. Estava mais para um buraco negro, onde eu caia e caia,
sem nunca ser segurado ou tocado pelo solo. A chama que ele acendeu ainda estava no meu
coração, queimando... Eu só não a sentia conscientemente.
Bem, as minhas férias seriam como férias no Alaska: longe de tudo e de todos, jogado em
um buraco frio com um computador, livros, músicas e filmes de ficção-científica, kung-fu e
anime. Talvez o nerd nunca tivesse morrido... Até o fim do próximo semestre.
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Livros
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Título: Lado B - Primeira Temporada
Assunto: Livro de drama adolescente que conta a história de um
personagem descobrindo que viver é mais difícil do que estar morto.
Autor: Enrique Coimbra
Palavras-chave: drama, livro, bestseller
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Data de criação: 20/4/2009 13:58:00
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Última gravação: 5/3/2010 18:54:00
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