Platão e o Conhecimento Inato

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

Plato e o

Conhecimento Inato
22 DE AGOSTO DE 2015

Segundo Plato, conhecer recordar verdades que j


existem em ns teoria que pode ser atestada sempre que
nos deixamos guiar pela voz do inconsciente.

Aprender descobrir aquilo que voc j sabe. Fazer


demonstrar que voc o sabe. Ensinar lembrar aos outros
que eles sabem tanto quanto voc.
Essa mxima, extrada do livro Iluses, de Richard Bach,
sintetiza o inatismo de Plato, doutrina filosfica segundo a
qual aprendemos devido a um processo natural de
descobertas, capaz de desentranhar conhecimentos
racionais e idias verdadeiras que se encontram, a priori,
latentes, guardados em nosso mundo interior.

Plato nasceu em 428-7 a.C., na cidade-estado de Atenas,


onde viveu a poca de seu apogeu poltico. Por volta dos
40 anos, o mais importante discpulo de Scrates fundou
sua Academia, dirigindo-a at o fim de seus dias, em 348-7
a.C. Um de seus clebres pupilos foi Aristteles, que aos 18
anos ingressou na Academia, bebendo da fonte platnica
durante as ltimas duas dcadas de vida de seu mestre. A
Academia estenderia seu funcionamento por 900 anos, at
hoje a mais longa existncia registrada na histria das
instituies educacionais do Ocidente.

Nascido em bero abastado, numa famlia que detinha


importantes relacionamentos polticos, Plato, aps cumprir
o servio militar, pde aventurar-se pela Magna Grcia.
Alm de conhecer Euclides em Megara e estudar a
matemtica de Teodoro em Cirene, estendeu viagem ao
Egito, inspirado pelos passos esotricos de Pitgoras. Ao
retornar a Atenas, j tendo escolhido o caminho da ascese
espiritual, dedicou-se poesia, ao teatro e leitura dos
textos clssicos. Aproximou-se dos filsofos e, aos 25 anos,
conheceu Scrates. Acercou-se dele intensamente e com
profunda admirao, permitindo que em seu esprito se
processasse uma revoluo completa ao longo dos trs
anos seguintes, os quais antecederam a condenao de
Scrates morte por cicuta.

Plato recebeu notvel influncia dos grandes pensadores


de sua poca e soube sintetizar magistralmente suas
doutrinas num sistema prprio de compreenso do homem
e do universo. De Pitgoras herdou, por exemplo, a
vocao para a pedagogia, o amor pela matemtica e pela
msica, assim como o carter transcendente de sua teoria
das idias e os alicerces rficos de sua filosofia, caso da
crena na imortalidade da alma, na metempsicose (teoria
que aceita a passagem da alma de um corpo para o outro)
e na existncia do outro mundo.

De Herclito aceitou a idia de que tudo mudana nesta


vida, ao menos neste mundo sensvel em que vivemos,
cercados de iluses e aparncias da verdade, onde nada
permanente. De Parmnides assimilou a crena numa
realidade perene e atemporal. Plato situou essa realidade
em seu mundo inteligvel, distinto deste, compreendendo
que, para alm das realidades ilusrias, a alma (o ser)
una, imutvel e permanente.
De Scrates absorveu o costume de refletir sobre o homem
e seus problemas ticos, e apreendeu uma conduta
impecvel. Dele ainda recebeu a maiutica (arte de dar
luz a verdade por meio de seguidas perguntas), instrumento
valioso para a tese do inatismo. Tal teoria, de que todo
conhecimento reminiscncia, assumiu melhores
passagens em dois de seus 29 livros: Fdon e Mnon.
Neste ltimo dilogo, Scrates, personagem central do livro,
interpela um jovem escravo sem estudos e se pe a fazer-
lhe perguntas de crescente complexidade sobre geometria.
Por meio de questes precisas, o filsofo extrai respostas
claras do rapaz, que consegue espontaneamente resolver
um clculo de rea, razoavelmente difcil para algum
ignorante. Ou seja, conforme Scrates vai dialogando com
o escravo no sentido de faz-lo raciocinar corretamente, as
verdades matemticas vo surgindo na sua mente. Tanto
no Fdon quanto no Mnon, chega-se concluso de que
o conhecimento da alma provm de existncias anteriores.

Na Repblica (Livro X), Plato procura fundamentar a teoria


da reminiscncia por meio da alegoria de Er, um pastor da
Panflia que, morto em batalha, aps dez dias encontrado
com seu corpo intacto entre centenas de cadveres
putrefatos. Levado para casa a fim de que se cumprissem
os ritos funerrios, j estendido sobre a pira de cremao,
no dcimo segundo dia aps sua morte, Er acorda, levanta-
se e pe-se a narrar o que viu no alm. O pastor havia
estado entre os juzes que separavam as almas boas das
ruins, dando-lhes as sentenas conforme haviam vivido
seus dias encarnados.

E estivera entre almas de sbios, heris, antepassados e


amigos. Os juzes o haviam escolhido para que, vendo e
ouvindo tudo o que ali se passava, pudesse retornar Terra
e contar aos homens o destino que nos reserva o alm. Er
aprende que as almas renascem indefinidamente para
purificar-se de seus erros passados at que no mais
precisem reencarnar, quando ento passam a residir na
eternidade. Compreende ainda que a morte, mero intervalo
entre as existncias terrenas, o perodo em que as almas
podem contemplar o conhecimento verdadeiro e ao menos
vislumbrar o mundo perfeito das idias, proposto pela teoria
de Plato. Antes de regressarem nova encarnao,
porm, cabe s almas escolherem o que desejam
experimentar entre uma infinidade de sortes ou modelos de
vida, que lhes so apresentados por Lquesis, uma das trs
deusas do destino. H vidas de rei, de guerreiro, de artista,
de escravo etc., todas disposio para que sejam
tomadas conforme as necessidades compensatrias do
futuro aprendizado.
As almas devem ainda escolher seu prximo sexo e local
de nascimento, e se querem retornar feito mineral, vegetal,
animal ou ser humano. Em seu caminho de volta, porm,
elas atravessam vasta plancie desrtica, sob calor
abrasador, que as fora beber das guas de Leth
(esquecimento em grego), o rio da despreocupao.
Quanto mais bebem, mais esquecem suas vidas anteriores,
at que sejam encaminhadas ao local escolhido para o
novo nascimento.

Plato se vale dessa metfora (que at hoje influencia o


kardecismo, o rosacrucionismo e vrias outras correntes
religiosas) para explicar como o conhecimento pode
preexistir de modo latente em nossas almas, fadados que
estamos a viver esquecidos de nosso carter divino e das
verdades puras contempladas.

Concordamos, porm, com Bertrand Russel (1872-1970),


que diz que o argumento platnico de nada vale se aplicado
ao conhecimento emprico. O rapaz escravo no saberia
recordar nem mesmo com ajuda da induo de Scrates
quando se deu, por exemplo, a construo das pirmides,
ou o cerco Tria. Contra a teoria da reminiscncia,
considere-se ainda qualquer descoberta no campo
cientfico, como a disseminao de doenas por meio de
microorganismos atestada pelas experincias de Pasteur.
Um completo ignorante dificilmente chegaria a essas
concluses se levado a pensar no problema pelo mtodo
de perguntas e respostas.

Somente o conhecimento que se denomina apriorstico,


inato como as intuies lgicas e matemticas -, que
pode existir dentro de ns sem qualquer prvia experincia.
De fato, o conhecimento a priori o nico que Plato
admite como verdadeiro, alm das revelaes msticas s
quais nossas almas esto sempre sujeitas.

Independentemente da crena na reencarnao professada


pelo filsofo, podemos indagar: de onde teria vindo o saber
do escravo se este no tivesse nascido j dotado dos
princpios da racionalidade? O inatismo de Plato aqui se
atesta: conhecer recordar a verdade que j trazemos em
ns, inerente ao aparato racional e intuitivo de que somos
desde o nascimento dotados. Nesse sentido, aprender
mesmo descobrir o que j sabemos.

Aos defensores do inatismo, como vimos, contrapem-se


os empiristas, que afirmam que a verdade e a razo s
podem ser adquiridas por meio da experincia. O
empirismo entende a razo como uma folha em branco,
ou uma tbua rasa, sobre a qual vo sendo gravadas as
experincias de vida que agregam contedo a nosso saber.
Freud, por exemplo, enxergava dessa forma nosso mundo
inconsciente. A essa viso reducionista da psicanlise
contraps-se Jung, para quem o inconsciente no
somente dinmico, mas dotado de autonomia prpria,
estando ligado fonte original do saber inconsciente
universal. Sendo assim, ele capaz de nos antecipar
verdades que em tempo oportuno se tornaro conscientes,
ou de nos levar a passar por experincias significativas,
necessrias nossa evoluo pessoal, que Jung chamou
de sincronicidades. Portanto, no que se refere sua
maneira de compreender o psiquismo, poderamos dizer
que a psicologia analtica de natureza iminentemente
platnica, j que valoriza as percepes intuitivas em
detrimento do saber estritamente racional.

Cumpre lembrar que a histria das descobertas (mesmo as


cientficas) est repleta de casos assim. O qumico Friedrich
Kekul, por exemplo, adormeceu em frente de sua lareira,
sonhou com uma serpente que mordia o prprio rabo e
despertou com a exata noo de que o anel de benzeno
tinha estrutura espacial hexagonal fechada em si mesma, o
que lhe resolveu um problema que o atormentava havia
anos. Famosa tambm a histria do fsico Isaac Newton,
que teria derivado a equao da gravitao universal num
insight que lhe ocorreu ao observar a queda de mas
maduras no pomar de Woolsthorpe, onde ele costumava
passar suas tardes orando e meditando. Mozart tambm
contou com humor que os temas de suas peas eram-lhe
antecipados em sonho, sempre mais sublimes do que ele
conseguia compor depois!

Gnios iluminados parte, nossa vida cotidiana acha-se


igualmente tomada de exemplos de descobertas
espontneas pessoais. Basta conferir nossa histria
biogrfica, ou mesmo perguntar aos amigos sobre isso. No
resta dvida: sempre que nos deixamos levar pelas vozes
do inconsciente, descobrimos coisas novas, encontramos
verdades escondidas, percebemos virtudes e potenciais a
serem trabalhados. Admitindo primeiramente nossa virtual
ignorncia, e buscando intuitivamente por nossos
caminhos, estamos exercitando a nobre arte que une a
filosofia ao misticismo em favor do autoconhecimento.
Importa, sobretudo, abrir nossos canais s lies dos
verdadeiros mestres que habitam esferas transcendentes
de nossa realidade interior. Conhecermo-nos a ns mesmos
, pois, nossa humilde obrigao, s assim descobriremos
os segredos dos deuses e dos homens. Ao menos o que
nos quer ensinar a grande mxima, que repercute a nos
lembrar que ningum melhor por saber muito, seno que
aprendemos descobrindo que sabemos tanto quanto os
outros um quase nada diante dos mistrios realmente
imponderveis.

Você também pode gostar