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Karen Giffin
Sarah Hawker Costa
GIFFIN, K., and COSTA, SH., orgs. Questes da sade reprodutiva [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 1999. 468 p. ISBN 85-85676-61-2. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.
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Questes
Sade
Reprodutiva
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EDITORA FIOCRUZ
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Karen Giffin
Sarah Hawker Costa
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Questes
Sade
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Todos os direitos desta edio reservados
FUNDAO OSWALDO CRUZ / EDITORA
ISBN: 85-85676-61-2
Projeto Grfico
Adriana Carvalho Peixoto da Cosia
Editorao Eletrnica
Adriana Carvalho Peixoto da Cosia e Anglica Mello
Capa
Adriana Carvalho Peixoto da Costa eAnglicaMello
Fotos de Capa
Jeremy Homer (Panos Pictures) e Alvaro Funcia (fotos cedidas pelos projetos Escolas Promo-
toras de Sade, 1997 e Gravidez e Infeco pelo H I V 1999 -CSE-GSF, em parceria
com a SDE/ENSP/FIOCRUZ, este ltimo com financiamento da Fundao Mac Arthur) e
Annual Report'95.
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Reviso
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Catalogao-na-fonte
Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica
Biblioteca Lincoln de Freitas Filho
Ana Cristina C. Vaz Reis - Nutricionista com especializao e mestrado em Sade Pbli-
ca. Assistente de pesquisa do Ncleo de Gnero e Sade da Escola Nacional de Sade
Pblica da Fundao Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).
Ana Flvia Pires Lucas D'Oliveira- Mdica sanitarista. Doutoranda em Medicina Pre-
ventiva/Universidade de So Paulo (USP). Coordenadora do Programa de Ateno
Mulher do Centro de Sade Escola Samuel Bransley Pessoa/Departamento de Medi-
cina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
Milena Piraccini Duchiade - Mdica. Mestre em Sade Pblica pela ENSP/FIOCRUZ. Pesqui-
sadora do Departamento de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos em Sade da
ENSP/FIOCRUZ
Apresentao 15
8. Laqueadura Tubria:
situao nacional, internacional e efeitos colaterais
Aurelio Molina 127
I V - SERVIOS DE SADE
Kami Giffin
Sarah Hawker Costa
PARTE I
Contexto
1
Para uma anlise do movimento de mulheres no Brasil, recomendo a leitura de ALVAREZ, S. Engedering
Democracy in Brazil, Princeton, New Jersey University Press, 1990. Para uma anlise mais especfica, sobre
mulheres e sade, ver PITANGUY, J .FeministPoliticsand Reproductive Rights, lhe cast of Brazil, In: SEN, G. & Snow, R. Fower and
Decision: the social control of Reproduction, Boston: Harvard University Press, 1994.
2
VerPITANGUY.J.MovimientosdeMujeres yPoliticasen Brasil.In: NJHOLT, G.; VARGAS, V & WIERINGA, S. TringulodePoder. Bogot, Ed.
Tercer Mundo, 1996, e FLACSO/CEPIA. Mujeres Latino Americanas en Cifras: Brasil. Santiago, Ed. Flacso, 1993.
estabelece articulaes com a oposio, visando a incluir alguns temas de sua agenda
na sua plataforma eleitoral para as eleies parlamentares de 1978, cujo resultado
marca o processo de abertura no Legislativo.
As tentativas de estabelecer conexes e alianas com a oposio - organizada na
frente partidria do MDB, em partidos clandestinos, ou no sistema pluripartidrio ps-
1978 - seguiam a dinmica derivada das duas coordenadas bsicas anteriormente
indicadas: a conjuntural e a temtica. Do ponto de vista da conjuntura, a maioria dos
partidos de oposio via o feminismo com certa desconfiana, particularmente porque
o movimento poderia representar uma ameaa 'unio das esquerdas', desviando-as
do inimigo principal, representado pelo Estado ditatorial. Do ponto de vista temtico,
algumas reivindicaes eram incorporadas, outras rejeitadas, sobretudo em funo de
seus efeitos nas alianas estratgicas dos partidos com alguns setores, dentre os quais
destacava-se a Igreja.
Deste modo, utilizando u m a terminologia religiosa, diramos que alguns temas -
como a violncia domstica - "chegaram antes ao cu", sendo incorporados ao discurso
poltico de ampla gama de setores. Outros ficaram em uma espcie de "limbo poltico",
onde costumam permanecer assuntos sem legitimidade suficiente para serem ouvi-
dos, como os relativos contracepo; outros, como o aborto e a sexualidade, permane-
ceram no "inferno", abrigo de temas tabus e malditos da sociedade.
Estas diferenas na incorporao social da agenda das mulheres no se circunscre-
vem ao Brasil. Na maior parte da Amrica Latina, a introduo no discurso poltico mais
amplo de questes temticas abordadas pelas feministas obedeceu, e ainda obedece, a
ritmos e alcances diversos.Pode-seanalisar sob esse ponto de vista o tema do aborto, por
exemplo. Em Cuba, o abortamento voluntrio legal; em diversos pases do continente,
a resistncia ao debate pblico sobre o abortamento tem sido ainda mais profunda do
que no Brasil. Na Argentina e no Chile, onde realizaram-se importantes avanos no
combate violncia domstica, a interrupo voluntria da gravidez , ainda hoje,
proibida e m qualquer circunstncia, mesmo em situaes de risco de vida da mulher.
Nos anos 80, cresce a influncia de feministas e m partidos da oposio brasileira,
notadamente o PMDB e o PT. C o m a realizao de eleies para governadores, em 82, e a
vitria da oposio em estados c o m o So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, so
criados os primeiros espaos governamentais, denominados conselhos, com o objetivo
de propor e implementar polticas pblicas com perspectiva de gnero. So implanta-
das, tambm, as primeiras Delegacias Especializadas no Atendimento s Mulheres Vti-
mas de Violncia (DEAMS).
C o m a redemocratizao dos pases do Cone Sul, observa-se fenmeno semelhante.
Estabelece-se o Servicio Nacional de la Mujer (SERNAM) no Chile, e Institutos de la Mujer
na Argentina e n o Uruguai. Recentemente, no Paraguai e na Bolvia tambm foram
institudos rgos semelhantes.
Cabe ressaltar que, ao instituir tais espaos, os governos latino-americanos atendem
no s a demandas dos movimentos de mulheres, mas tambm a recomendaes das
Naes Unidas. De fato, de 1975, A n o Internacional da Mulher, a 1985, ocasio da
Conferncia da Mulher em Nairbi, sucedem-se os apelos da Organizao das Naes
Unidas (ONU) para a criaodestate machineries que viabilizassem o desenvolvimento de
polticas pblicas para a promoo da mulher.
3
A trajetria brasileira
3
Gostaria de salientar que minha anlise sobre movimento de mulheres e polticas pblicas no Brasil
necessita da objetividade resultante de um distanciamento imparcial. Trata-se de narrar um processo
do qual fui c sou protagonista - como militante do feminismo, na dcada de 70; presidente do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, entre 86-89; e diretora de uma O N G , desde o incio dos
anos 90. Consciente deste fato, esforo-me, entretanto, para situar a lgica dos acontecimentos alm
de biografias.
A agenda feminista foi sustentada, at 1995, na esfera governamental, basicamente
pela atuao do Frum de Conselhos Estaduais da Mulher, que agiu c o m o instncia
principal de coordenao nacional. A partir de ento, o C N D M vem sendo reestruturado,
apesar de ainda no contar com dotao oramentria nem quadro tcnico-adminis-
trativo prprio. Outras instncias federais, como o Conselho de Populao e Desenvol-
vimento, foram institudas.
A sociedade civil dos anos 90 tem se caracterizado pela presena de ONGs, atuando
profissionalmente no desenvolvimento de programas ligados s agendas dos movi-
mentos sociais. Articulando-se cada vez mais em redes nacionais, regionais e interna-
cionais, tais organizaes tm tido presena marcante no cenrio internacional, parti-
cularmente em questes ligadas a meio ambiente, paz, sade, e direitos humanos,
sexuais e reprodutivos.
C o m relao s articulaes internacionais dos movimentos sociais e das O N G s ,
acreditamos ser possvel distinguir alguns momentos bsicos, a partir do contexto po-
ltico mais amplo. Entre os anos 60 e incio dos 70, a Amrica Latina, e particularmente
os pases do Cone Sul, se aproxima pela vivncia c o m u m de governos ditatoriais milita-
res. A perseguio poltica e a supresso de liberdades civis fundamentais do incio
migrao de intelectuais, polticos e opositores do regime autoritrio-que se deslocam,
principalmente, do Brasil para o Chile e para a Argentina - at que os golpes militares
ocorridos posteriormente nestes pases estabelecem u m novo fluxo migratrio em
direo Europa e a outros continentes.
Envolvidos basicamente em projetos de oposio aos regimes militares, estabele-
cem-se redes informais importantes de comunicao entre militantes polticos da
Amrica Latina. Para muitos deles, o exlio na Europa coincide com a sua sensibilizao
para questes ligadas aos direitos das mulheres e ao meio ambiente - ento de grande
relevncia no cenrio poltico daqueles pases. N o Brasil, a anistia de 1979 deu novo
impulso aos temas que os movimentos sociais j vinham abordando, especialmente os
relacionados ecologia e ao feminismo.
Durante os anos 80, a circulao regional e internacional do movimento de mulhe-
res tende a ser menos intensa, sobretudo porque, tanto no Brasil como em outros pases
do continente, enfrentava-se o desafio de conquistar e consolidar espaos no interior
do Estado, desenvolvendo polticas pblicas em meio a u m a das mais graves crises
econmicas j vivenciadas.
J os anos 90 coincidem com uma crescente internacionalizao dos movimentos
sociais e das ONGs, pelo uso intensivo dos novos meios de comunicao e da proliferao
de redes, fruns e articulaes estratgicas regionais e internacionais. Essa capacidade de
articulao e presso responde pelo surgimento de novos atores internacionais que, agin-
do na arena das Naes Unidas, alcanam expressiva visibilidade e conseguem levar suas
propostas para as conferncias internacionais da O N U organizadas nesta dcada.
Movimento de mulheres e sade reprodutiva no Brasil
Foge ao alcance deste texto recuperar o debate sobre populao no Brasil. Entretanto,
deve-se ressaltar que a histria do movimento feminista est profundamente ligada ao
debate sobre controle de populao c planejamento familiar. Trazendo para o cenrio
poltico temas ligados sade da mulher, reafirmando o direito de opo sobre a vida
reprodutiva e sexual c o m o valores centrais da cidadania feminina, e reivindicando
uma atitude do Estado coerente com estes princpios, as feministas criticavam as ten-
dncias pr ou antinatalistas calcadas e m preceitos religiosos, econmicos ou
geopolticos, ou em metas demogrficas.
Entre as militantes brasileiras, j em meados da dcada de 70, havia acordo quanto
ao fato de que questes relativas sexualidade e aos direitos reprodutivos - entre os
quais o de interromper voluntariamente a gravidez - eram no s centrais, mas
estruturantes da prpria tica feminista. A ordem de prioridade destes temas, no
entanto, no era consenso. Alguns grupos consideravam fundamental manter a aliana
com a Igreja e com setores da oposio avessos a tais temticas, ao passo que outros
no se propunham a abrir mo desses temas, que consideravam centrais na constru-
o da identidade poltica do feminismo. Como ilustrao, pode-se lembrar que, ao se
propor a realizar pesquisa sobre sexualidade feminina, em 1977, o CERES, grupo femi-
nista do Rio de Janeiro, vivenciou uma srie de debates c o m outras integrantes do
movimento sobre a propriedade de se tratar a temtica naquele momento. Posterior-
mente, a pesquisa deu teve como resultado o livro Espelho de Vnus, publicado pela edito-
ra Brasiliense em 1981.
Tais tenses tendem a diminuir medida que o processo de democratizao avana;
o campo de interlocutores aumenta; a Igreja perde importncia; propostas do feminis-
mo so incorporadas a plataformas de partidos e estabelecem-se parcerias com alguns
setores do Executivo.
Particularmente relevante foi a articulao entre a universidade, algumas feministas
e o Ministrio da Sade que veio a resultar no Programa de Assistncia Integral a Sade
da Mulher (PAISM) . Inspirado em princpios gerais da luta maior pela democratizao do
Pas e respeito s liberdades individuais e civis, o PAISM foi, tambm, influenciado pelos
movimentos sanitaristas e de sade pblica, especialmente na adoo de uma perspec-
tiva integral de sade. Divulgado em 1983, representava u m exemplo raro de colabora-
o entre Estado e sociedade civil, constituindo-se em uma das primeiras iniciativas
governamentais de incorporao de princpios feministas em polticas pblicas de sa-
de. No entanto, apesar de trazer uma perspectiva integral e compreensiva, c colocar o
planejamento familiar na tica da sade, o PAISM no trata do abortamento, nem mesmo
para fazer cumprir a legislao vigente.
Entre 1983 e 1987-quando o PAISM finalmente regulamentado pelo antigo INAMPS-,
cresce a participao do movimento de mulheres no espao pblico, e os vrios conse-
lhos da mulher incorporam a sade reprodutiva em seus programas de ao.
A luta do movimento de mulheres pela incluso desses princpios no discurso go-
vernamental e em amplos setores da sociedade se d em meio a profundas transforma-
es demogrficas, resultantes tanto da queda das taxas de mortalidade - caracterstica
das dcadas de 50 e 60 - quanto do acentuado declnio das taxas de fecundidade verifi-
cado a partir dos anos 70. As taxas de crescimento populacional decresceram de mais de
3% ao ano, entre 1950 e 1960, para 2,9% na dcada seguinte e 1,8% entre 1985 e 1990.
Nesta transio, refletiu-se mais o impacto das polticas populacionais vigentes de
facto no Pas do que os princpios feministas j incorporados em leis, normas e progra-
mas governamentais. Chama-se ateno para o descompasso entre discurso e realidade
que parece acompanhar a histria poltica e social do Pas. Exemplo claro a distncia
entre o discurso oficial sobre a regulao da fecundidade e as prticas vigentes neste
campo. Durante os anos 60 e incio dos 70, a posio oficial do Brasil tendia ao natalismo.
Influenciado pela Igreja Catlica, amparado nas elevadas taxas de crescimento do PIB
verificadas durante o 'milagre econmico', e em preocupaes militares geopolticas de
ocupao territorial, o governo descartava as posies neomalthusianas prevalentes em
pases do hemisfrio norte, ao mesmo tempo em que fazia "vista grossa" s entidades de
planejamento familiar que operavam no Pas.
De fato, j desde meados dos anos 60 essas organizaes vinham atuando no Brasil
para controlar o crescimento populacional. A medida que o modelo econmico de-
monstrava sinais de enfraquecimento, diminua o apoio governamental a posies
pr-natalistas, ao mesmo tempo em que as entidades privadas ampliavam seus progra-
mas, multiplicados com o auxlio de convnios municipais e estaduais. Entretanto, s
em 1977 o governo apresenta u m programa na rea de sade reprodutiva, o Programa
de Preveno de Gravidez de Alto Risco (PPGAR), seguido do Programa Nacional de Servi-
os Bsicos de Sade (PREVSADE), de 1980, que praticamente no 'saram do papel'.
O movimento feminista, reconhecendo o direito das mulheres de vivenciarem a
maternidade como opo - com acesso informao, contracepo segura e ao trata-
mento da infertilidade, ao pr-natal e ao parto em condies adequadas, bem como
interrupo voluntria da gravidez, ao tratamento s seqelas do abortamento provoca-
do, preveno do cncer mamrio e crvico-uterino - luta para que o Estado desenvol-
va aes propositivas em sade reprodutiva.
Parcela significativa deste movimento est consciente de que a resposta do governo
situao vigente n o Pas no poderia consistir apenas em aes de orientao
demogrfica. tica intervencionista e parcial das entidades privadas, seccionando o
tero como objeto de controle, caberia oferecer uma alternativa s mulheres que dese-
jassem regular sua fecundidade.
Diversos fatores respondem pelo significativo a u m e n t o da d e m a n d a por
contracepo no Pas. A acelerada urbanizao, responsvel pelo deslocamento da po-
pulao aos centros urbanos, intensifica-se nos anos 70. Paralelamente, a mdia repre-
senta papel cada vez mais relevante na difuso dos chamados valores da 'modernidade',
em que a famlia nuclear de dois filhos corresponde ao tipo ideal de organizao.
tambm neste perodo que cresce significativamente a participao da mulher no
mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que no h investimentos pblicos em uma
infra-estrutura de equipamentos sociais necessrios para maior socializao do cuida-
do das crianas. importante ressaltar que o movimento feminista sempre levantou as
'bandeiras' da creche e da pr-escola como pontos centrais em sua plataforma poltica.
Na dcada de 80, tanto o C N D M c o m o os conselhos estaduais instituem comisses
especficas para atuar nesta rea. Alm de produzir material educativo sobre creches e
pressionar diretamente os rgos da administrao federal a implementarem a lei de
creches, o C N D M realizou acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econ-
mico e Social (BNDES) que previa que, na avaliao de emprstimos solicitados por
empresas, essas deveriam comprovar o cumprimento da legislao referente a creches
para os filhos dos seus funcionrios, alm dos requisitos de praxe. O acordo conside-
rado uma iniciativa pioneira em polticas pblicas com perspectiva de gnero.
Elaborado desde 1983, o PAISM corria o risco de 'ficar no papel', seguindo o destino dos
programas anteriores. Sua regulamentao transforma-se, ento, em u m dos principais
objetivos do C N D M , agindo em consonncia com o movimento de mulheres. Dentre as
aes conjuntas desenvolvidas destaca-se a elaborao da "Carta das Mulheres Brasileiras
aos Constituintes" - redigida em reunio de mulheres no Congresso Nacional em 1986, e
distribuda em todo o pas e entregue ao deputado Ulysses Guimares em maro de
1987. Neste documento, endossavam-se duas premissas bsicas: a de que a sade era u m
direito de todos e dever do Estado, e de que a mulher tinha direito ateno a sua sade,
independentemente de seu papel de me. Lutava-se pela reafirmao dos princpios de
ateno integral em uma perspectiva compreensiva da sade da mulher. enfatizava-se,
ainda, sua oposio coero de entidades pblicas ou privadas, nacionais ou interna-
cionais, impondo ou negando o acesso aos meios de regulao da fecundidade.
No documento j esto contidos princpios bsicos que sustentariam a luta femi-
nista na dcada de 90 e seriam assegurados na Conferncia Internacional de Populao
e Desenvolvimento (CIPD) do Cairo em 1994: a afirmao de que a mulher tem o direito
de exercer uma autoridade sobre seu corpo, tomando decises sobre sua vida sexual e
reprodutiva, e de que o Estado tem o dever de fornecer os meios para que esta autorida-
de seja, de fato, exercida, ampliando, portanto, sua ao no campo da sade.
A trajetria da regulamentao do PAISM e de sua implementao (ainda em curso)
indicativa do peso relativo das questes referentes a sade e direitos reprodutivos na
agenda poltica do governo e no discurso da sociedade. A Igreja Catlica sempre acom-
panhouparipassu os desdobramentos do PAISM, interferindo, inclusive, em iniciativas do
prprio C N D M junto aos ministrios da Sade e da Previdncia Social. C o m o exemplo,
recorda-se o episdio da publicao de 5 milhes de exemplares de uma cartilha sobre
contracepo elaborada no mbito do PAISM. O C N D M havia negociado esta edio e sua
distribuio com o Ministrio da Previdncia, quando, por interferncia direta da Igreja
- que alegava que a cartilha mencionava o DIU, dispositivo considerado abortivo - o
Ministrio recuou de seu compromisso. Finalmente, depois de intensas presses do
movimento de mulheres e do C N D M , foi publicado u m nmero significativamente
menor do livreto.
O episdio revelador do campo de foras em se que se movem as aes governa-
mentais na rea da sade reprodutiva. Pode-se interpret-lo de duas maneiras: como
u m fracasso da fora poltica das mulheres diante da Igreja, e c o m o u m incidente
revelador da expresso que a agenda feminista j alcanara-j que, mesmo diante da
presso da Igreja, no foi possvel ao governo recuar totalmente, ignorando as deman-
das deste outro ator poltico no campo da sade e direitos reprodutivos.
Outros temas de sade reprodutiva que mobilizaram o movimento feminista na
dcada de 80 seriam a superviso da produo de mtodos hormonais de contracepo,
e a proibio da comercializao de produtos em fase de testes. O Norplant foi objeto de
debates e embates entre uma parcela do movimento feminista e profissionais da sade
ligados ao Population Council que desenvolviam u m projeto de experimentao com
este contraceptivo hormonal na Universidade de Campinas (UNICAMP). Tanto o C N D M
quanto o movimento de mulheres atuaram exigindo maior controle na experimenta-
o destas drogas, levando o Ministrio da Sade a cancelar a permisso para sua testagem.
Se este episdio demonstrou visibilidade e impacto sobre polticas pblicas aborda-
das por feministas, tomou evidente a necessidade do estabelecimento de mais canais
de comunicao com os profissionais da sade, especialmente os mdicos ginecolo-
gistas e obstetras. Este tipo de interlocuo viria a ser desenvolvido na dcada de 90
por diversas O N G s de mulheres. A Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informao, Ao
(CEPIA), por exemplo, tem atuado junto aos mdicos, em iniciativas que envolvem a
Associao dos Mdicos Residentes (AMERERJ) e o Conselho Regional de Medicina do Rio
de Janeiro (CREMERJ). Alm disso, desenvolve u m curso sobre medicina e cidadania na
Faculdade de Medicina da UFRJ, dentre outras atividades desenvolvidas por outras
organizaes e redes.
Ao longo do processo de democratizao do Pas, cresce a movimentao das organi-
zaes de sade no sentido de traar caminhos para a sade pblica. Em outubro de
1986, realiza-se, em Braslia, a Conferncia Nacional de Sade, que teria influncia
decisiva na formulao da sade como u m direito do cidado e u m dever do Estado,
posteriormente incorporado Constituio de 1988. Outro marco importante do en-
contro: pela primeira vez, a sade da mulher mereceu destaque em mesa especial.
Em 1987, o C N D M , com a estreita colaborao de movimentos de mulheres de todo
o Pas, organiza, juntamente com o Ministrio da Sade, a I Conferncia Nacional de
Sade da Mulher. O encontro reuniu aproximadamente 3 mil participantes em Braslia
e reafirmou os princpios da "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes" e as
diretrizes do PAISM. Merecem destaque outros dois pontos colocados em discusso na
Conferncia. O primeiro, avaliado c o m o avano considervel, foi a proposta de
descriminalizao do abortamento, u m problema de sade pblica que no havia sido
tratado pelo PAISM. O segundo referia-se ao abuso das esterilizaes, que j respondiam
por percentuais muito elevados (48%) dentre os recursos contraceptivos utilizados pelas
mulheres casadas ou unidas entre 15 e 49 anos de idade. O debate sobre a esterilizao
ocupar espao importante da agenda feminista nos anos 90, respondendo por tenses
internas no movimento e levando ao estabelecimento de articulaes diversas com
setores do Legislativo.
Com relao ao abortamento - tema ainda tabu e oculto -, cabe ressaltar que os anos
80 correspondem a u m m o m e n t o de visibilizao do tema. A partir de episdios de
flagrantes policiais e m clnicas clandestinas e da abertura de processos penais contra
mulheres e mdicos ocorridos no incio da dcada no Rio de Janeiro, o movimento
feminista traz luz a questo, ainda relegada aos pores do debate pblico. Escrevendo
para jornais, organizando mesas-redondas, visitando as mulheres que respondiam a
processos penais, as feministas conseguem incluir o abortamento voluntrio nas
temticas que integravam a agenda poltica do Pas nos anos 80.
Ao mesmo tempo, o C N D M pressionava os ministrios da Sade e da Previdncia
para fazer cumprir a lei, de forma a que atendessem s mulheres que solicitassem o
abortamento nos casos de estupro e risco de vida. Em mbito estadual, mulheres orga-
nizadas em grupos autnomos articulavam-se com parlamentares e conselhos estadu-
ais, apresentando projetos de regulamentao do atendimento ao aborto legal. No Rio de
Janeiro, por exemplo, a deputada Lcia Arruda, do PT, apresentou proposta inicialmente
aprovada pela Assemblia Legislativa e posteriormente revogada pelo governador do
Estado por influncia direta da Igreja. A regulamentao seria aprovada em 1987.
A articulao entre o movimento de mulheres, o C N D M , conselhos estaduais e o
Congresso Nacional alcanou seu auge durante o Congresso Constituinte. Em 1985, o
C N D M lana a campanha "Constituinte Pra Valer tem que ter Direitos da Mulher", que
percorre os estados colhendo reivindicaes e propostas que seriam incorporadas
"Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes".
Ao longo do processo constituinte, o C N D M enviou mais de 120 propostas e emen-
das substitutivas ao Congresso Nacional. Na rea da sade reprodutiva, cabem dois
destaques com relao atuao das mulheres. U m diz respeito ao artigo 226, pargrafo
a
7 da Constituio Federal, que situa o acesso ao planejamento familiar na esfera de
direitos, com a concomitante criao de deveres por parte do Estado. O outro se refere
ausncia, no texto constitucional, de uma proposio apresentada pela Igreja Cat-
lica e por setores evanglicos relativa defesa da vida desde a concepo. A possibilida-
de da incluso desta proposio e o terrvel retrocesso que representaria propiciaram
u m a articulao estratgica entre o C N D M e os movimentos de mulheres, que colhe-
ram as assinaturas necessrias para apresentar u m a e m e n d a p o p u l a r de
descriminalizao do abortamento. A emenda seria contraposta posio da Igreja,
fortalecendo indiretamente a posio do C N D M - que argumentava no ser o aborto
matria constitucional - posio triunfante aps longos embates, confrontos e dis-
cusses c o m setores conservadores.
A Constituio tambm incluiu, na tica da descentralizao, u m novo projeto
organizacional de atendimento sade, o Servio nico de Sade (SUS), que, em
princpio, viabilizaria a implementao do PAISM, atendendo s peculiaridades e necessi-
dades locais. Hoje, sente-se a necessidade de realizar estudos mais detalhados e pontuais,
recuperando a histria do PAISM nos diversos estados, com especial ateno aos princpios
de integralidade que o orientaram.
Em 1989, o C N D M lana a campanha nacional "Maternidade, Direito e Opo"
para avanar a implementao do PAISM e a discusso sobre abortamento, e organiza
reunio no Congresso Nacional em que, pela primeira vez, o movimento de mulhe-
res, parlamentares, mdicos, profissionais da sade, acadmicos e executores de po-
lticas pblicas discutem temticas cruciais da sade da mulher, c o m nfase especial
questo do aborto.
O contexto geral da poltica brasileira era, no entanto, cada vez mais conservador. No
mbito do Executivo federal, o Ministrio da Reforma Agrria havia sido desestruturado,
crescia a oposio parlamentar e popular ao governo Sarney, a crise econmica e infla-
cionria continuava a aprofundar-se - apesar dos sucessivos planos de estabilizao. As
relaes entre movimentos sociais e governo, ainda frgeis aps tantos anos de divrcio
entre Estado e sociedade civil, se viam ameaadas ou rompidas.
O C N D M , que mantinha laos com o movimento de mulheres rurais e trabalhara
com o Ministrio da Reforma Agrria na edio de u m livro documentando a violncia
contra mulheres e crianas no campo, sente o poder dos setores conservadores, rece-
bendo presses do Ministrio da Justia para que tal publicao no fosse divulgada.
C o m o apoio do ministro Marcos Freire, que viria a falecer pouco depois, o projeto ,
entretanto, levado adiante.
Outro m o m e n t o de confronto entre o C N D M e o Ministrio da Justia aconteceu
durante a comemorao oficial dos 100 anos de abolio da escravido. Na ocasio, o
C N D M foi diretamente admoestado pelo ministro da Justia pelo lanamento da cam-
panha "Mulher Negra, 100 Anos de Discriminao, 100 Anos de Afirmao" e pela orga-
nizao do "Tribunal Winnie Maneia" - que, apesar das presses contrrias de diversos
setores do Executivo, realizou-se em novembro de 1988.
Estes episdios, dentre outros, ilustram o quadro conjuntural que agudizou as pres-
ses contra o C N D M , por estar, tambm, levando adiante o debate pblico sobre o
aborto, outra temtica - se no mais maldita, ainda incmoda - a ser relegada ao limbo
poltico. Apesar das presses, o C N D M organiza, em julho de 1989, u m debate televisivo
com os candidatos presidncia da repblica, que respondem a perguntas especficas
enviadas por representantes de movimentos de mulheres e de conselhos estaduais e
municipais. Dentre as vrias perguntas, uma foi apresentada pelo C N D M e endereada
a todos os candidatos, e pedia seu posicionamento diante do tema aborto.
Foge aos propsitos deste artigo analisar a resposta de cada candidato. Ressalta-se
que aquele momento representou uma vitria das mulheres que, na sociedade civil ou
no governo, lutaram para trazer o tema a debate pblico. Tambm vale lembrar que a
temtica do aborto esteve praticamente ausente da discusso da sociedade nas eleies
presidenciais de 1994.
4
A Comisso organizadora deste encontro era formada pela Comisso de Cidadania e Reproduo,
Coletivo Feminista Sexualidade e Sade, SOS Corpo, Associao Brasileira de Estudos Populacionais e
Geleds, alm da CEPIA e do CFEMEA.
O encontro reuniu aproximadamente 550 participantes de todo o Pas. Alm de
debates e discusses temticas, redigiu-se e aprovou-se em plenrio a "Carta de Braslia",
contendo princpios norteadores e reivindicaes das mulheres brasileiras. Depois de
encaminhado a autoridades, o documento foi distribudo e divulgado entre as diversas
organizaes do Pas.
O segundo evento realizou-se no Rio de Janeiro, em janeiro de 94. Com o nome Sade
Reprodutiva e Justia: Conferncia Internacional de Sade da Mulher, reuniu aproxima-
damente 250 mulheres de 89 pases. Depois de cinco dias de discusso em plenrias e
grupos de trabalhos, redigiu-se uma declarao contendo princpios e propostas bsicas
consensuais ao movimento internacional de mulheres e sade reprodutiva. A reunio foi
organizada por um comit internacional e teve como secretarias a CEPIA e a IWCH.
O encontro teve repercusses positivas. Considerado a principal conferncia inter-
nacional preparatria feminista, fortaleceu as redes j existentes, agilizou canais de
interlocuo, permitiu que o movimento internacional listasse suas principais posi-
es e propostas nesta rea e, sobretudo, demonstrou aos demais interlocutores o poder
de mobilizao das mulheres.
A Conferncia de Beijing, em 1995, tambm ofereceu oportunidade importante
para que, em diversas partes do mundo, as mulheres se organizassem em redes e articu-
laes, participando em debates nacionais e internacionais, elaborando documentos e
estabelecendo interaes com governos.
Durante as Conferncias do Cairo e de Beijing, diversas articulaes internacionais de mu-
lheres trabalharam junto s delegaes oficiais, procurando introduzir princpios consensuais
do Movimento, nos planos de ao e declaraes dali resultantes. Dentre estas, cabe destacar a
atuao do Health, Empowerment, Rights and Accountability (HERA) e do WEDO.
No Brasil, durante o processo preparatrio de Beijing, estabeleceu-se uma articula-
o nacional de mulheres que organizou diversos encontros, debates e documentos.
Retomou-se a interlocuo do movimento de mulheres com o Itamaraty na preparao
do documento oficial e representantes de ONGs fizeram parte da delegao oficial do
Pas. C o m mais de 80 integrantes, a delegao brasileira era a maior da Amrica Latina e
uma das maiores entre todos os pases. No entanto, bastante heterognea, com pessoas
pouco familiarizadas com os temas debatidos, no agiu com a mesma rapidez do que
no Cairo - o que no impediu que o Brasil se alinhasse, mais uma vez, com os pontos
bsicos da agenda feminista.
Muito relevante foi a presena das brasileiras em Huariou, no frum paralelo das
ONGs, organizando mesas, participando de debates e tendo presena marcante nos
eventos latino-americanos e internacionais.
A Conferncia de Beijing no s reforou conquistas anteriores, como avanou c m
relao sade reprodutiva. U m exemplo: sobre o abortamento, o Plano de Ao incor-
porou o pargrafo 8.25 da Conferncia do C a i r o - q u e situa o aborto como questo de
sade pblica e conclama os governos a atenderem s mulheres que solicitem a inter-
rupo da gravidez nas circunstncias previstas em lei e a todas as mulheres c o m con-
seqncias de abortamento. Avanou, ainda, ao solicitar que os governos revejam as
punies sobre mulheres que se submetem ao abortamento voluntrio.
Sem pretender entrar e m anlises detalhadas dos resultados destas conferncias,
gostaramos de salientar seu impacto e m termos de ampliar o marco internacional de
direitos humanos e fornecer instrumentos que permitam legitimar e apoiar o trabalho
desenvolvido pelos movimentos e organizaes de mulheres n o plano nacional.
De u m a concepo ligada s liberdades e direitos civis tradicionais, caractersticos
da 'primeira gerao' de direitos humanos - calcada e m u m a conceituao de humani-
dade apoiada na figura abstrata do h o m e m - avanamos para a incluso dos direitos
sociais, habilitantes do exerccio de outros direitos e para os chamados direitos de
segunda e terceira gerao.
Tal avano v e m sendo feito a partir de dois movimentos aparentemente opostos,
mas, de fato, complementares: a especificao da esfera de direitos e a universalizao
de sua aplicao. Por especificao deve-se entender o distanciamento cada vez maior
da figura abstrata do h o m e m e a redefinio do conceito de humanidade a partir da
acentuao de diferenas por critrios de sexo, raa, etnia etc. que, ao longo dos sculos,
vm demarcando espaos de maior ou menor cidadania .
Ao m e s m o tempo e m que se especificam os sujeitos de direitos, tambm incluem-
se novas temticas na esfera destes direitos, c o m o a sade e a sade reprodutiva.
Na virada do sculo, as mulheres enfrentam desafios resultantes de seu prprio
avano. N o Brasil, coloca-se o desafio fundamental de fazer valer as leis j existentes e m
matria de sade e diretos reprodutivos - vrias organizaes tm trabalhado para isto,
com especial nfase ao cumprimento da legislao relativa ao abortamento legal. Abrem-
se, tambm, outros campos de atuao e reflexo, em que ainda tmida a presena das
mulheres, c o m o e m relao ao HIV/AIDS.
Paralelamente, as mulheres continuam a influenciar as polticas pblicas, ocupan-
do cargos em comisses e rgos governamentais, trabalhando e m conselhos e entida-
des ligadas a profissionais da sade, levando as discusses de Cairo e Beijing para espaos
acadmicos e hospitalares e tentando influir na formao mdica.
Ainda h muito por fazer neste percurso. Parafraseando u m trecho de Alice no Pas das
Maravilhas, "s vezes corremos para ficar no mesmo lugar". Recentes desdobramentos no
Congresso Nacional relativos ao abortamento e o veto j derrubado do Presidente da
Repblica a pargrafos fundamentais relativos regulamentao da esterilizao corro
5
Para uma anlise sobre novas formulaes de direitos humanos, ver Bobbio, . A Era dos Direitos, Rio
de Janeiro: Ed. C a m p u s , 1992. C o m relao ao papel das mulheres nesta reconceituao, vide
PITANGUY, J . From Mexico to Beijing, A New Paradigm, in Health and H u m a n Rights, Harvard School of Public
Health, v.I, n.4, p. 19.
boram esta imagem de u m enorme esforo para 'permanecer'. Entretanto, em uma
perspectiva histrica, deve-se reconhecer o imenso avano do movimento de mulheres
e seu desenvolvimento em termos da ampliao da cidadania da mulher e, mais espe-
cificamente, dos seus direitos na rea da reproduo.
C o m o dizia o poeta, "caminhante, no h caminho, caminho se faz ao andar...".
Referncias Bibliogrficas
FLACSO & CEPIA. Mujer en America Latina. Santiago do Chile: Flacso, 1993.
PITANGUY, J . Feminist politics and reproductive rights: the case of Brazil. In: SEN, G . & SNOVV,
R. Power and Decision: the social control of Reproduction. Boston: Harvard University Press, 1995.
PITANGUY, J. Movimiento de Mujeres y Polticas Publicas en Brasil. In: VARGAS, G . (Ed.). Tringulo
del Poder. Bogot: Ed. Tercer Mundo, 1996.
Primeiras palavras
1
Participaram das negociaes informais sobre o pargrafo: Unio Europia, cujo porta-voz era o ministro
holands, Estados Unidos, Ir, Marrocos, Egito, a regio africana, da qual o Senegal era porta-voz, o Caribe e
vrios pases latino-americanos. Evidentemente que a motivao destes atores era muito diversa. posio
da Unio Europia, especialmente Holanda, para assegurar a incluso de direitos sexuais na Plataforma estava
informada por um compromisso domstico com o movimento homossexual. Os pases africanos se
moviam a partir das agendas de erradicao do casamento infantil e da mutilao genital. Os pases
islmicos mais liberais lutaram por uma definio mais fraca para evitar reaes fundamentalistas na volta de
Beijing. O Caribe e alguns pases latino-americanos defendiam o pargrafo como princpio democrtico. Os
Estados Unidos mantiveram um 'baixo perfil' nas negociaes, em funo da presso republicana no Congresso.
O novo consenso hbrido, necessariamente frgil e no elimina tenses conceituais,
polticas e problemas de comunicao entre os atores e interesses que mobilizaram o
debate e legitimao destas definies. Em vrios contextos nacionais, as polticas de
sade reprodutiva que se implementam, ps-Cairo e Pequim, esto-se desenhando
como meras re-interpretaes semnticas, ou adequaes, das aes convencionais do
materno-infantil ou de planificao familiar. Esta orientao minimiza - quando no
o c u l t a - a perspectiva dos direitos reprodutivos. Observa-se, tambm, no plano das
instituies, que os termos 'sade' e 'reprodutivo' so mais facilmente aceitos do que
'direitos' e 'sexuais', que soam mais radicais e impertinentes.
Rance (1996), por exemplo, descreve como na Bolvia do perodo ps-Cairo, a inicia-
tiva da maternidade segura tende a excluir as mulheres em situao de aborto incom-
pleto. No que se refere sade sexual, as distores podem ser ainda mais problemti-
cas. Vance (1996) argumenta que a noo est sendo traduzida, nos Estados Unidos, por
setores conservadores como: "reproduo no casamento, abstinncia e limitaes no
acesso informao sobre sexualidade, homossexualidade, aborto."
Itinerrios tericos
2
C o m intensidades diferentes essa proposio pode ser identificada em Vance (1996), Flax (1992), Dowsett
(1996) e Petchesky. Petchesky sugere que essa armadilha deriva do economicismo ainda subjacente nos
esforos intelectuais do feminismo com relao a gnero e sexualidade. Essa conduso se v informada,
sobretudo, por uma avaliao crtica do discurso feminista no mundo em desenvolvimento. Dowsett,
por sua vez, atribui tal captura dos "corpos em sexualidade" e do "big-bang do prazer" s teorias ps-
estruturalistas. Sua elaborao sugere que o poder, a amplitude e a profundidade dos dispositivos de
controle da sexualidade no so to extensos como sugere Foucault. As duas vises no devem ser
tomadas como opostas, mas sim como percepes corretas mas que olham o "problema" a partir de
diferentes pontos de vista: o sul e o norte, o homossexualismo masculino, o feminismo.
corporais, imaginrios e afetivos do que chamamos sexualidade. Vance (1996) vai na
m e s m a direo, ao sugerir que a distino entre gnero e sexualidade necessria
c o m o estratgia para desconstruir a convergncia entre naturalizao (religiosa) e
biologizao (cientfica) dos gneros e da sexualidade.
Dowsett (1996) radicaliza, de forma peculiar, a proposta de diferenciao. Seu exer-
ccio toma c o m o ponto de partida jogo dos corpos' {bodyplay) e vira de cabea para
baixo a idia de construo social da sexualidade desenvolvida por Foucault (1982,
1984, 1985). A partir de estudos com homens que fazem sexo ocasional com outros
homens, prope que pensemos em uma construo sexual da sociabilidade. sugere
que - n o contexto dos corpos em jogo ertico - o gnero, c o m o representao dos
papis passivo e ativo, pode converter-se em banalidade. A idia implcita de que nos
encontros erticos as duas (ou mais pessoas) podem sempre, potencialmente, ser agen-
3
tes ativos e criativos na busca do prazer .
Tomando-se esses autores e autoras como referncia, parece cada vez mais urgente, na
era ps-Pequim, afastar-se da premissa segundo a qual "uma teoria da sexualidade poderia
derivar da teoria de gnero" (Rubin, 1984). A fuso conceptual entre gnero e sexualidade
toma muito problemtica nossas operaes tericas e polticas em relao aos direitos sexuais.
Contudo, no tarefa simples distinguir relaes de gnero, sexualidade e erotismo,
pois em todas as formaes socioculturais atuam sistemas de representao muito
coesos que ordenam gnero, reproduo e sexualidade em articulao com a economia
e o poder. Se nos fixarmos no exemplo da cultura ocidental, Costa (1996), em u m texto
brilhante, demonstra como o sistema metafsico pr-iluminista no enfatizava, como
se fez posteriormente, a diferena sexual entre homens e mulheres. Seu paradigma do
corpo era o masculino. O corpo das mulheres era representado como u m corpo mascu-
lino invertido e menos perfeito, no qual o pnis e os testculos estavam para dentro.
Costa demonstra como o modelo dos dois sexos (two sex model) -hoje hegemnico-, antes
de se conformar c o m o discurso cientfico, resultou de uma operao 'ideolgica' do
liberalismo iluminista, que visava a solucionar uma contradio de fundo:
A igualdade (iluminista) estava fundada na premissa de que todo indivduo era possui-
dorda mesma faculdade da Razo e de um mesmo corpo natural que a abrigava (...).
Marcar o corpo com a diferena dos sexos significou instaurar a desigualdade, a descon-
tinuidade, a oposio onde havia uma controversa e incmoda igualdade jurdico-poltica.
Essa acentuao da diferena sexual do corpo dos homens e das mulheres foi prece-
dida pela cristalizao de u m a determinada concepo de sexo. O sexo, tal c o m o
construdo pelos filsofos oitocentistas, uma fora vital que se faz mais presente e
3
A reflexo de Dowsett construda a partir das pesquisas com homens homossexuais em que o gnero
desempenha um papel distinto do que no contexto de outras relaes. Isso indica a necessidade de 're-
pensar-se' seu esquema quando estejamos elaborando ou investigando sobre a sexualidade entre ho-
mens e mulheres e mulheres e mulheres.
manifesta nas mulheres. Segundo Rousseau (In laqueur, citado por Costa): macho
(humano) somente macho em certos momentos. A fmea fmea toda a sua vida (...).
Tudo constantemente evoca a ela seu sexo". A partir da concebeu-se as mulheres como
estando mais habilitadas vida privada (e no para a vida pblica como os homens),
mais fracas e histricas, no em conseqncia de u m 'dficit da Razo', mas sim em
funo da excessiva impregnao sexual de seus corpos: "As mulheres seriam
identificadas por sua sexualidade e seu corpo, os homens pelo seu esprito e energia"
(Costa, 1996). Em etapas subseqentes seriam investigadas e mais bem elaboradas as
provas anatmicas (mdico-cicntficas) dessa diferenciao radical que persiste at hoje.
Ao 'modelo dos dois sexos' corresponderia a sexualidade 'monoltica' que foi objeto das
anlises de Foucault: a sexualidade monopolizada pelo casal. Nesse espao de intimidade, a
sexualidade guarda u m sentido procriativo dominante e desempenha u m papel crucial
como mediao entre os dois "opostos complementares" em que se haviam convertido
homens e mulheres. Trata-se, alm do mais, de uma representao da sexualidade que tem
como expresso mxima as formas e substncias do corpo feminino, o que justificaria, na
cultura ocidental moderna, o controle das manifestaes sexuais e erticas femininas. Tal
representao, sobretudo, ancora uma marcada ideologia da inverso sexual. O inverso
do "Homem" iluminista no seria a "Mulher", mas sim o homossexual, cujo "corpo de
homem ser o portador da sexualidade feminina que havia de serenada" (Costa, 1996).
Em funo da hegemonia desta construo sociocultural impossvel distinguir
sistemas de gnero, de sexualidade e de erotismo sem desconstruir os complexos ns
que os sustentam. U m a primeira estratgia nessa direo seria desdramatizar a diferen-
ciao sexual entre os gneros. tempo de acompanhar a postulao de Flax (1992),
quando afirma que as diferenas entre homens e mulheres so menos relevantes do
4
que sugerem as normas, representaes, smbolos e prticas dominantes . Tambm se
faz necessrio romper com as representaes monolticas da sexualidade e erotismo
intrnsecas ao 'modelo dos dois sexos': preciso alterar a linguagem do singular para o
plural, de sexualidade para sexualidades.
A idia de sexualidades mltiplas va de soi q u a n d o olhamos a realidade luz da
teorizao e da pesquisa que tm como foco as prticas homossexuais. Porm, a noo
de sexualidades plurais deve ser tambm explorada no campo das relaes heterossexuais,
o que permitiria descrever e analisar com mais preciso as prticas sexuais, o erotismo
e o prazer nas distintas etapas da vida humana: infncia, adolescncia, vida adulta,
terceira idade. Esta inflexo tambm pode enriquecer os estudos acerca dos sistemas de
gnero e sexualidade em outras formaes socioculturais, inclusive nos casos em que
se observam fuses ou sobreposies com o modelo ocidental.
4
A mesma perspectiva pode ser identificada nos trabalhos de outras autoras/autores, como por exemplo,
Badinter em um e o outro" ou Philippe Aries quando sugere que caminhemos para uma forma de
unissexualidade (citado em Histria da Vida Privada, v.5, 1996).
Desafios polticos
BARBIERI, de. Gender and population policies: some reflection. Reproductive Health Matters.
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COOK, R. Woman 's Health and Humans Rights. Genebra: World Health Organization, 1994.
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DOWSETT, G. Bodyplay: Corporeality in a Discursive Silence. In: Re-Conceiving Sexualities
- International Seminar on Gender, Sexuality and Sexual Health, 1996, Rio de Janeiro.
1
Os direitos individuais, em particular nas questes relativas famlia, tm sido historicamente busca-
dos pelas mulheres, particularmente por aquelas dos setores populares.
classes, sexo c raa/etnia. Nessa viso de m u n d o sobre famlia, sexualidade c reprodu-
o est presente a preocupao com a legitimao legal dos laos familiares; com a
transmisso de bens atravs da herana a ser recebida por herdeiros legtimos; com
padres de moralidade relativos sexualidade e reproduo.
Tomando-se como marco a proclamao da Repblica, podemos identificar, pelo
menos, duas grandes fases onde essa viso de mundo se atualiza: a primeira, a partir de
1917, c o m a entrada em vigor do Cdigo Civil. A segunda, a partir de 1977, c o m a
chamada Lei do Divrcio e completada em 1988 com a aprovao da nova Constituio
Federal. Essas fases apresentam nuances que tornam mais ou menos rgido o discurso
jurdico. No entanto, de modo geral, so coerentes com os processos sociais em curso e
a ideologia hegemnica de cada poca.
2
Ver o Estatuto Civil da Mulher Casada, de 1962.
Deve-se lembrar tambm que, at 1932, a mulher maior de 21 anos, mesmo solteira
e, portanto, com plena capacidade civil, no se constitua ainda cidad, sujeito de plenos
direitos, j que lhe era vedado o direito ao sufrgio universal. A cidadania, pensada em
uma lgica do indivduo, para as mulheres era mediada pela famlia, pelo coletivo privado.
Na realidade, as mulheres foram tratadas, pela razo iluminista, como categorias sociais
secundrias, dependentes de suas famlias de origem ou de seus rharidos, os chefes de
famlia (Rousseau, ao se dirigir s virtuosas cidads suas, explicitava que sua cidadania
se construa por meio de sua tarefa educadora dos homens, como mes e esposas).
Embora, em tese, o Cdigo Civil tambm fosse dirigido s camadas populares, no
encontrava ressonncia prtica em seu cotidiano, ao contrrio das legislaes penal e
trabalhista da dcada de 40. Para as classes populares - s quais no havia herana de
bens materiais a ser transmitida -, as relaes de concubinato e o controle sobre as
mulheres mostrava-se menos rgido. Dessa maneira, o Cdigo Civil pouco incidia sobre
o cotidiano de suas vidas. E, mesmo no se atualizando na vivncia das classes popula-
res, representa o discurso hegemnico sobre o exerccio 'normal' da sexualidade e
da reproduo e da constituio da famlia. Por este motivo, h u m a histria legal da
famlia no Brasil que pode ser contada tanto por seus efeitos sociais e polticos como
pelo seu efeito ideolgico.
Nessa primeira fase, poderamos dizer que o discurso legal sobre a famlia como locus
legtimo da reproduo extremamente reducionista. O modelo apresentado o da
famlia monogmica, patriarcal, nuclear. A famlia se desenvolvia sob a linhagem legal
do pai, o que consistia no reconhecimento dos filhos nascidos somente dentro do
casamento e nunca fora dele. O registro de filho nascido fora do casamento, para os
homens casados, s poderia ser feito por meio de ao judicial de investigao de pater-
nidade, e somente para habilitao em herana. Deve-se destacar que para a mulher era
vedada a ao de investigao de maternidade para reconhecimento de filho nascido
fora do casamento, mesmo para habilitao em herana. Esperava-se da mulher recato
e fidelidade absoluta quando casada e, quando solteira, a manuteno de sua virgindade
at o casamento legal. Somente em 1942 foi editada lei de reconhecimento - somente
de paternidade-de 'filhos ilegtimos', nascidos fora do casamento, continuando veda-
da a ao de investigao de maternidade.
Marcado pelo positivismo, o Cdigo Civil, com a redao de 1916, buscava padres
de normalidade que afastassem a famlia dos 'estados patolgicos'. Apesar de a ideologia
positivista refutar a influncia da Igreja Catlica nas questes do Estado no que se refere
famlia, espao coletivo privado, o modelo positivista pouco diferia da famlia crist,
catlica, pautada por padres do Cdigo Cannico.
A lei civil dedicou famlia todo u m captulo que regulava temas de vrias ordens,
como indicao de impedimentos absolutos e relativos para casar,- definio da idade
legal para o casamento diferenciada para homens e mulheres, dando a elas uma maior
prccocidade; definio das condies para a dissoluo da sociedade conjugai; autoriza-
o para transmisso do ptrio poder para o novo marido de mulher viva sobre os
filhos 'nascidos do leito anterior'; incluso como clusula de anulao de casamento a
constatao, pelo noivo, da no-virgindade da mulher. Com a preocupao de ser coe-
rente com o saber cientfico e de evitar "efeitos dos cruzamentos consangneos", den-
tro de uma lgica da higienizao da famlia, o Cdigo no apenas probe o incesto,
como define regras de relacionamento sexual entre parentes, incluindo a proibio de
casamento entre tios e sobrinhos (revogada em 1941). A preocupao com a 'higienizao
da famlia' foi reforada pela Constituio Federal de 1934.
Outras temticas so normalizadas, como as relativas ao reconhecimento de direi-
tos diferenciados (na maioria no-igualitrios), entre os cnjuges na constncia do
casamento e na sua dissoluo, particularmente os relativos guarda dos filhos, dentre
outros. A presuno de cnjuge inocente na dissoluo do casamento assegurava
mulher casada o 'direito' de continuar mantendo o nome do marido, penso aliment-
cia e a guarda dos filhos. Por longa data, as decises dos tribunais brasileiros esperavam
da mulher 'desquitada' comportamento exemplar quanto ao recato sexual.
O Cdigo Civil em outros captulos tem inmeras disposies sobre famlia, sexua-
lidade e reproduo: a que reconhece o nascimento com vida como o incio da vida
civil; a que obriga a mulher viva a esperar 10 meses aps do bito do marido para
poder contrair novas npcias (para certificar a origem da prole); a que permite aos pais
deserdarem filha que no tenha comportamento 'honesto' (honestidade compreendi-
da como comportamento sexual adequado a uma mulher de 'famlia'), dentre outras.
Fazendo-se uma sntese do contedo da orientao do Cdigo Civil, podemos dizer que
o nico modelo legalmente assumido para a definio de famlia era o formado pelo casa-
mento perante autoridade judiciria, hierrquico entre marido e mulher, bem como entre
linhagem paterna e linhagem materna. Isso significa que a palavra do pai vale mais do que
a da me e que os avs paternos tm mais poderes do que os matemos. Aos homens cabe a
chefia da sociedade conjugal, a administrao dos bens do casal e dos bens particulares da
mulher- mesmo quando vigora o regime de separao total de bens-, a representao legal
da famlia, a deciso sobre fixao de domiclio e a autoridade mxima sobre os filhos.
Ainda pelo Cdigo Civil, com a redao de 1916, o marido era o "provedor" da manu-
teno da famlia, enquanto mulher cabia "velar" por sua direo moral. Alei reproduz
e refora os papis de gnero culturalmente atribudos a homens e mulheres. Essa
orientao, concebida a partir das famlias de elite, dirigida, tambm, s famlias das
classes populares, muitas das quais, na poca, nem sempre tinham os homens presen-
tes e eram sustentadas somente por mulheres.
Em grande medida, o Cdigo sofreu, em 1962, uma importante alterao atravs do
chamado Estatuto Civil da Mulher Casada. Pela redao, a mulher casada teria a mesma
capacidade civil do homem. No entanto, continua a ser considerada mera colaboradora
do marido na constncia do casamento e a manter u m papel secundrio no que tange
ao exerccio do ptrio poder e definio do domiclio conjugai. Essa lei aparentemente
criou outros benefcios para as mulheres, c o m o o instituto dos 'bens reservados da
mulher casada', definidos como os provenientes de sua profisso lucrativa e dos quais
podia dispor livremente sem passar pela administrao do marido. Por esse Estatuto, a
mulher viva que se casa em segundas npcias no perde o ptrio poder sobre os "filhos
do leito anterior"; presume-se que foi "autorizada pelo marido para a compra (...) a
crdito (...), para obter emprstimo (...)". No entanto, a possibilidade de eximir-se, por
intermdio de pacto nupcial, da obrigatoriedade de colocar seus rendimentos na ma-
nuteno da famlia e a presuno de 'autorizada pelo marido' define que o modelo de
famlia continuava sendo o das famlias da elite. Alm disso, sua base econmica conti-
nuava nas mos do marido, cujo papel de nico provedor no se alterava, bem como era
mantida a representao sobre a mulher, ainda uma 'colaboradora', embora lhe fosse
reconhecida a misso precpua e fundamental de moralizadora junto famlia.
Outros marcos importantes, nessa primeira fase, e que reafirmam os princpios da
legislao civil, foram o Cdigo Penal, de 1940, e a Consolidao das Leis do Trabalho
(CLT), de 1943.
O Cdigo Penal refora a importncia da famlia ao criar quatro captulos a seu
respeito. O primeiro trata dos crimes contra o casamento, punindo, dentre outros
comportamentos, a bigamia e o adultrio; o segundo trata dos "crimes contra o estado
de filiao" e pune comportamentos como o "parto suposto e outros fingimentos" e da
sonegao de estado de filiao, que implica em "deixarem asilo de expostos ou outra
instituio de assistncia filho prprio ou alheio, ocultando-lhe a filiao (...)". O tercei-
ro captulo trata dos "crimes contra a assistncia familiar", no qual se sobressai a puni-
o do comportamento de "abandono de famlia" que inclui os crimes de "abandono
material", "entrega de filho menor a pessoa inidnea" e "abandono intelectual". O quar-
to captulo trata dos "crimes contra o ptrio poder, tutela ou curatela" no intuito de dar
proteo penal aos menores de 18 anos ou queles legalmente interditados.
Houve inovaes, tambm, quanto punio do adultrio. N o Cdigo anterior,
ainda do final do sculo passado, o adultrio masculino s se configurava se o marido
tivesse ou mantivesse 'concubina', ao passo que para a mulher bastava u m a nica
infidelidade conjugal. Em 1940, o legislador considerou como adultrio a 'simples infi-
delidade', seja do marido ou da esposa, para configurar o adultrio (Hermann & Barsted,
1995). No entanto, apesar da mudana da lei, o adultrio masculino sempre foi visto
com mais complacncia no mbito do poder judicirio, que julgava com mais severida-
de o adultrio feminino. A preocupao com a legitimidade da prole e a viso de que as
mulheres honestas eram necessariamente castas reforava essa maior severidade. U m a
das conseqncias dessa concepo era a aceitao da tese da legtima defesa da honra
que absolve at hoje, e m muitos lugares do Pas, maridos que assassinaram esposas
consideradas adlteras (Hermann & Barsted, 1995). No caso do aborto, o Cdigo acatou
duas situaes como passveis de realizao legal: c m caso de risco de vida para a me e
em caso de gravidez resultante de estupro. Alm da piedade para com a vtima, explicitada
na exposio de motivos do Cdigo, o legislador tambm se preocupava com a legitimi-
dade e higienizao da prole, que no poderia ser assegurada caso essa fosse provenien-
te de u m estupro. Ainda em relao ao estupro, o Cdigo adota uma posio curiosa. Por
exemplo: pune o aborto como crime contra a vida e deixa de punir o estuprador que se
casar com sua vtima. O crime de estupro no considerado como u m crime contra a
pessoa e sim c o m o u m crime contra os 'costumes'. Por se tratar de u m crime de ao
privada, somente a vtima pode ou no denunci-lo. Tal lgica pode ser explicada porque
o legislador entendia que sendo u m crime que poderia afetar a 'honra' da vtima, deveria
ser mantido em segredo, e a honra poderia ser restituda se o culpado com ela se casasse.
O Cdigo prev, ainda, no que diz respeito famlia, que ocorra u m aumento de
pena nos crimes praticados contra "ascendente, descendente, irmo ou cnjuge" ou
com "abuso de autoridade ou prevalecendo-se (o agente) de relaes domsticas, de
coabitao ou de hospitalidade". Na realidade, como a famlia era culturalmente pensa-
da ainda c o m o espao da privacidade, a violncia domstica, em vez de ser u m crime
mais grave, acabou sendo tratada como u m no-crime.
Na lei penal h uma distino entre sujeito ativo e sujeito passivo. Na maioria dos
crimes, homens e mulheres podem ser ativos ou passivos, quer sejam autores ou vtimas,
respectivamente. N o entanto, o Cdigo define alguns crimes cujos sujeitos no so
indiferenciados. A mulher sempre explicitamente sujeito ativo nos crimes de infanticdio
e aborto e sujeito passivo dos crimes de estupro, rapto e seduo. Tambm sob o argumen-
to de proteo da famlia e de controle da sexualidade e da reproduo, o Cdigo Penal
reafirma o valor da "mulher honesta" e da virgindade ao punir a "posse sexual mediante
fraude", o rapto e a seduo somente se a vtima for 'mulher honesta' definida, evidente-
mente, segundo os padres de moralidade sexual que orientavam e ainda orientam, em
certa medida, a sociedade brasileira - se solteira, virgem; se casada, recatada.
Em complementao ao Cdigo Penal foi elaborada, em 1941, a Lei de Contraven-
es Penais, que dentre seus artigos previa punio para a propaganda e a fabricao de
mtodos anticoncepcionais e abortivos. Nova lei, de 1979, deixa de considerar contra-
veno a propaganda e o fabrico de mtodos anti-concepcionais.
Tambm na dcada de 40 foram elaboradas as legislaes trabalhista e previdenciria,
frutos tanto da presso do operariado como da ao paternalista do Estado autoritrio.
Nessa poca, houve uma verdadeira exaltao 'famlia brasileira', sempre presente nos
discursos de Vargas. Ao lado de inmeros direitos e obrigaes, essa legislao sinaliza o
incentivo procriao, com a instituio de novos direitos como o salrio-famlia, o
auxlio-maternidade e a licena-maternidade; medidas protetoras para as trabalhado-
ras gestantes e a obrigatoriedade de creches em empresas empregadoras de mulheres
em idade reprodutiva. Considerando a mulher n o m e s m o patamar dos menores, a
CLT, e m seu texto original, criou u m a srie de restries ao trabalho feminino - que
comearam a ser eliminadas nos anos 70 e foram definitivamente afastadas com a
Constituio Federal de 1988, que manteve apenas as restries relativas ao trabalho da
mulher gestante - e incluiu a possibilidade de o marido rescindir o contrato de trabalho
de sua mulher "quando a sua continuao for suscetvel de acarretar ameaas ao vncu-
los da famlia" - este dispositivo, pouco utilizado, tambm foi revogado em 1988.
Em trabalho anterior (Barsted, 1987), destacvamos que o discurso legal na rea do
trabalho no encontrou a mesma eficcia dos discursos dos Cdigos Civil e Penal. A
contradio entre moralidade burguesa, compatvel com as legislaes penal e civil, e a
racionalidade do sistema produtivo deu s regras de direito trabalhista em geral, e em
particular no que se refere s mulheres, uma quase ineficcia. Na realidade, a lei criada
com o intuito de compatibilizar a funo primordial da mulher - o cuidado com a
famlia-com uma funo produtiva na esfera do mercado mostrou-se, nesse sentido,
inoperante. As regras do direito do trabalho perdem a sua coerncia com os demais
Cdigos no que diz respeito famlia, sem, contudo, perder sua eficcia ideolgica no
que concerne viso de fragilidade feminina e funo primordial da mulher. O
trabalho feminino externo casa, na dcada de 40, era visto, para as mulheres de elite,
como u m desvirtuamento das 'habilidades domsticas e naturais femininas'; para inte-
grantes das classes populares, como instrumento 'moralizante', em contraposio aos
3
cortios, conforme as palavras de u m empresrio do incio do sculo . Nesse contexto,
a renda feminina continuava a ser representada pela sociedade como 'complementar'.
Por este motivo, as mulheres trabalhadores no mereceriam salrios maiores, apesar da
crescente necessidade dessa 'ajuda' nos oramentos familiares. Continuava imperando
para ricas e pobres a ideologia do h o m e m "provedor" e da mulher "colaboradora" e
esteio moral da famlia, mesmo que na vivncia das famlias das classes populares esses
papis de gnero no se configurassem.
Tambm a partir da dcada de 40, algumas modificaes podem ser observadas na
legislao, mas a ideologia sobre as relaes de gnero no sofre alteraes. A legislao
civil passou gradativamente a no discriminar direitos de filhos nascidos dentro ou fora
do casamento e, ao longo das duas dcadas seguintes, decises de tribunais e leis com-
plementares possibilitaram que seus benefcios fossem estendidos para mulheres que
viviam maritalmente sem que tivessem contrado casamento perante autoridade judi-
ciria. Nesse sentido, foi cunhada a expresso "direitos da companheira", em oposio
anterior estigmatizao da "concubina teda e manteda".
3
Ver a respeito depoimento de Jorge Street (PINHEIRO & HALL, 1981). Esses autores reuniram importantes
documentos histricos do perodo de 1 8 8 9 a 1 9 3 0 , sobre as condies de vida e trabalho da classe
operria brasileira.
Lei, famlia e reproduo: 1977-1997
Nesses ltimos vinte anos, em que pese ainda a fora da ideologia que orientou os
cdigos Civil e Penal, uma srie de mudanas legislativas possibilitou alteraes impor-
tantes na conformao da famlia e nos padres de sexualidade e reproduo, timida-
mente ensaiadas c o m o Estatuto Civil da Mulher Casada, de 1962.
Na dcada de 70, a adoo do divrcio, pela Lei 6.515, de 1977, alterou, em muito,
dispositivos do Cdigo Civil, apesar da forte oposio da Igreja Catlica. Deve-se ressaltar
que a lei s foi aprovada pelo fato de a votao ter sido por voto secreto. Introduziu-se,
por exemplo, no que concerne guarda dos filhos, a perspectiva de privilegiar o interes-
se dos filhos menores, em detrimento dos interesses pessoais de pai e me. Apesar disso,
na aplicao da lei, o Poder Judicirio manteve, muitas vezes, u m a viso moralizante
assimtrica n o que concerne a avaliao dos comportamentos dos ex-cnjuges, exer-
cendo uma presso maior sobre as mulheres. Nessa dcada, o aumento da insero das
mulheres no mercado de trabalho em muito ajudou mudana de percepo da m u -
lher c o m o mera colaboradora. Isso ocasionou a desobrigao legal do h o m e m e m
continuar sempre c o m o provedor da mulher. O intenso processo de urbanizao, a
introduo de contraceptivos desde a dcada de 60 - que dissociaram reproduo e
sexualidade-, a influncia das mensagens do movimento feminista, a importncia das
mensagens da mdia, dentre outros fatores, alteraram fortemente os padres de moralidade
sexual. Divorciados, os cnjuges ficavam como se solteiros fossem, podendo contrair ou
no novas npcias. No entanto, nos processos judiciais de separao ou divrcio, muitos
juizes esperavam que as mulheres exercessem sua sexualidade com 'recato' e discrio
para que mantivessem a guarda dos filhos (Pimentel, Giorgi & Piovesan, 1993).
4
Sobre os diversos projetos de legalizao do aborto nas dcadas de 70 e 80, ver BARSTED, 1992.
No campo da reproduo, o artigo 226, 7 da Constituio Federal declara que "funda-
do nos princpios da dignidade da pessoa h u m a n a e da paternidade responsvel, o
planejamento familiar livre deciso do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e cientficos para o exerccio desses direitos, vedada qualquer forma coer-
citiva por parte de instituies oficiais ou privadas".
De certa forma, as normas constitucionais e o debate sobre as questes relativas a
famlia, sexualidade e reproduo significam posies e presses diferenciadas sobre o
Estado, expressas por distintos atores sociais e com diferentes argumentos. O s avanos
nesse campo refletem as presses do movimento feminista e a forma como essas ques-
tes tm sido colocadas nos pases hegemnicos ocidentais e nas orientaes das diver-
sas conferncias internacionais em que esses temas tm sido discutidos. U m olhar
comparativo poderia nos apontar para o adiantado de nossa legislao em relao a
esses temas: antes da Conferncia do Cairo, em 1994, e de Beijing, em 1995, a legislao
brasileira reconhecia a igualdade entre homens e mulheres, incorporava a perspectiva
de sade no sentido de sua integralidade, inclusive no que se refere especificamente s
5
mulheres , reconhecia direitos reprodutivos, exceto no que se refere ao aborto, e novas
formas de famlia.
O debate sobre famlia, sexualidade e reproduo incluiu ainda, alm do contnuo
posicionamento das feministas, as presses de inmeros outros atores, como as agn-
cias pr-controle da natalidade, os militares, os religiosos, os mdicos e demais profis-
sionais da sade, juristas, acadmicos e mdia, dentre outros.
Esses temas amplamente debatidos ao longo das duas ltimas dcadas nem sempre
se atualizam nas decises doPoderJudicirio e na produo jurisprudencial. O reco-
nhecimento de direitos advindos da unio estvel, a partir de leis recentes da dcada de
90, ainda encontra decises discordantes quando do tratamento de casos concretos
pelo Fbder Judicirio. Da mesma forma, a regulamentao dos direitos reprodutivos, a
partir do 7 do artigo 226, tambm constituiu-se em processo demorado e tumultuado.
Depois de seis anos de tramitao no Congresso Nacional, o Projeto de Lei que regula-
mentava esse pargrafo do artigo 226 da Constituio foi finalmente aprovado com o
texto da Lei 6.295/95. No entanto, submetida apreciao presidencial para ser sancio-
nada, surpreendentemente teve vrios artigos vetados. Essa lei, apesar de incorrees
(fruto das negociaes necessrias para sua tramitao no Congresso) incorporou pro-
postas do movimento de mulheres. Esse movimento, aps o veto presidencial, caracte-
rizado c o m o u m "descuido" pelo governo, teve de manter ativa sua mobilizao para
conseguir, aps mais de u m ano, que o Congresso rejeitasse o veto e considerasse apro-
vado o texto integral da lei.
5
Deve-se mencionar que o texto original do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM)
de 1983.
Tambm na rea dos direitos reprodutivos e sexualidade, os projetos de lei sobre a
descriminalizao do aborto, ampliao de seus permissivos ou regulamentao do
exerccio do direito ao abortamento legal previsto no Cdigo Penal encontram uma
enorme dificuldade de caminhar para debate e aprovao - por fora, particularmente,
da ainda importante presso da Igreja Catlica sobre o Estado brasileiro no que se refere
sexualidade e reproduo. A partir da intensificao das novas tecnologias reprodutivas
e dos recursos de medicina fetal inicia-se o debate sobre a oportunidade ou no de
regulamentao dessa rea. At o momento, a nica regulamentao existente a que
probe o recurso chamada 'barriga de aluguel'.
A entrada das DST/AIDS no debate sobre sade permitiu que a sexualidade passasse a
ser discutida de forma mais explcita em toda a sociedade e obrigou que o repensar
sobre reproduo no se esgotasse no direito de ter ou no filhos. Portarias ministeriais,
especialmente do Ministrio da Sade, foram elaboradas para incluir o condom c o m o
preservativo indispensvel no apenas dentro da lgica da anticoncepo mas, particu-
larmente, na preveno da AIDS. Outras reas legislativas - que tradicionalmente no
tratavam da temtica - passaram a faz-lo. Destacam-se a legislao relativa a seguro-
sade, seguro de vida, legislao previdenciria e trabalhista e as obrigaes de respon-
sabilidade civil por contaminao via transfuso de sangue, dentre outras.
Ainda n o mbito da sexualidade fora dos padres tradicionais previstos pelo Cdigo
Civil, referncia deve ser feita apresentao, e posterior retirada de pauta, de projeto de
lei para o reconhecimento da unio civil entre pessoas do m e s m o sexo, tema que
motivou acalorados, e nem sempre adequados, debates entre os legisladores.
AConstituio revogou todos os dispositivos do captulo relativo famlia que implicam
na assimetria entre os cnjuges. No entanto, esto em vigor outros dispositivos da parte geral
ou da parte relativa sucesso que exprimem, ainda, discriminaes de gnero.
Apesar das alteraes sofridas em sua parte geral em 1984, o Cdigo Penal ainda
mantm intactos na sua parte especial (que define os crimes e as penas) dispositivos
que apresentam discriminaes de gnero no que se refere moral sexual. Essas discri-
minaes tm grande incidncia nas decises judiciais, em particular do Jri Popular,
nos chamados 'crimes passionais', em que as mulheres e homens ainda so avaliadas e
julgados c o m base nos esteretipos de gnero, fundamentados em uma moral sexual
anterior proclamao da Repblica.
Consideraes finais
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SANTOS, W G. dos. Cidadania e Justia: apoltica social na ordem brasikira. Rio de Janeiro: Ed. Campus,
1979.
4
A natureza feminina
At o final do sculo XIX, ainda se discutia nas Academias a quem competia a res-
ponsabilidade de cuidar dos partos. O Real Colgio do Mdicos de Londres chegou a
declarar oficialmente, nessa poca, que cuidar de partos no era mister digno de u m
mdico ou cirurgio - que deveriam restringir-se aos partos difceis e perigosos, a
aplicar o frceps e executar cesarianas (Santos Filho, 1947). Havia indignidade, q u e m
sabe at desonra, e m assumir u m trabalho que por tradio era considerado feminino.
Fernandes (1924:81) comenta que, pela obstetrcia ser considerada uma especialidade
'menor', para ela se dirigiam os incompetentes, e que, por isso, o mau desenvolvimento
da prtica provocava desastres: "Se se iniciassem u m dia os processos por crime de fr-
ceps, de pituitrina e de cureta, no sei quantos presdios seriam necessrios".
A pouca valorizao da obstetrcia dentro da prpria medicina relaciona-se
misoginia que Knibiehler & Fouquet (1983:257) identificam nas origens da medicina
moderna. De acordo com elas, o esteritipo da mulher mdica exige sua masculinizao:
"A perda da feminilidade seria o castigo reservado s audaciosas culpadas de se imiscuir
numa arte reservada aos homens".
O que certamente foi o caso de madame Durocher, uma das mais famosas parteiras
estrangeiras no Rio de Janeiro, que chegou ao Brasil em 1816 e diplomou-se no Curso
de Obstetrcia da Faculdade de Medicina em 1834. Segundo Santos Filho (1947:201):
"Ela exerceu sua profisso no Rio, merc de seu tipo masculinizado, de sua vestimenta
e de seus hbitos (andava sozinha por toda a cidade a qualquer hora do dia ou da noite)
ganhou a alcunha de mulher-homem".
Dela, se dizia: "Madame Durocher era u m tipo bizarro de criatura insexuada que
usava gravata, cartola e barbicha" (Santos Filho, 1947).
Apesar dos conflitos internos n o meio mdico e das resistncia das mulheres, o
parto transformou-se e m ato mdico. As mulheres puderam voltar a partejar, agora com o
novo status de mdicas. O acesso das mulheres ao ensino mdico no Brasil ocorre em 1889.
O saber que havia sido expropriado das parteiras resguarda-se, agora, na legitimidade de
uma cincia e de sua suposta neutralidade, que por meio do poder mdico poder exercer
o controle social sobre o gnero feminino, em que pese o fato de ser essa profisso, e em
particular essa especialidade, eminentemente masculina em nossa sociedade.
A medicalizao da anticoncepo
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5
Introduo
Pretendo, aqui, explorar relaes entre o ressurgimento do feminismo nos anos 60, a
transformao do paradigma cientfico (a crise da razo) e a definio de direitos sexuais.
Capra identifica, nesta mudana de paradigma, uma transformao profunda de
percepo nas sociedades ocidentais, apontando o feminismo como u m movimento
de "minorias criativas", entre outros que desafiam o velho paradigma (Capra, 1982:26).
Enquanto ele explica o engajamento das mulheres n o novo paradigma "holstico e
ecolgico" como funo de valores advindos da sua antiga identificao com a natureza,
discutirei suas atividades tericas/conceituais, argumentando que o feminismo est
1
re-inventando uma cincia no-binria como parte de uma ampla luta social pela re-
2
significao. M e s m o c o m contestaes internas, e em u m processo no-linear , est
superando o binarismo c o m u m novo paradigma de conhecimento que relacional e
dialtico, e que reconhece diferenas sem ser relativista.
Excludas das atividades cientficas (a no ser c o m o objeto da cincia binria), as
mulheres, quando entraram neste campo, fundiram sujeito e objeto em busca explcita
do autoconhecimento, objetivo at ento ausente na epistemologia cientfica (Code, 1991).
1
Marilyn Frye (1996) recupera o termo "dualismo", argumentando que "dualidades genunas... so plurais
e abertas, no representam uma totalizao...".
2
No estou argumentando que existe somente um feminismo, mas que as variadas vertentes compem um
campo de referncia para todas, apesar das suas "crises de identidade" (termo usado por Alcoff, 1988). Na minha
discusso, a nfase dada s idias provenientes da linha de teoria feminista s vezes denominada standpoint.
A sexualidade, u m dos primeiros assuntos a serem interrogados neste processo
tambm u m dos mais perigosos, dada sua importncia nas relaes homem/mulher
mais ntimas, onde o 'outro' pode tambm ser visto c o m o 'minha cara-metade'. Agora
colocada na agenda feminista c o m o direito, a definio da sade sexual no tem avan-
ado alm do abstrato, apesar do novo perigo da ADDS feminilizada, da prostituio infan-
til internacionalizada n o turismo sexual, da violncia sexual globalizada contra mulhe-
res e crianas etc.
Pretendo mostrar o lugar das experincias reprodutivas e sexuais femininas na
conformao d o n o v o paradigma, recuperando sua importncia n o desenvolvi-
m e n t o de u m a cincia da prxis e da tica. Argumentarei que preciso usar esta
cincia para reforar valores femininos na sexualidade. Seno, reproduziremos
u m a sexualidade conceituada n o velho paradigma e baseada na separao corpo/
mente, que est sendo representada c o m o (e transformada em) mercadoria na socie-
dade de c o n s u m o atual.
Nas palavras de Rosi Braidotti (1994:95):
o movimento de mulheres colocou na agenda questes srias com respeito s estrutu-
ras, os valores, e os fundamentos tericos do sistema que elas, e outras minorias, esto
sendo convidadas a integrar. A linha de frente deste questionamento tanto tico-
poltico como epistemolgico: qual o preo da 'integrao? Quais os valores que mu-
lheres feministas propem ao velho sistema? Quais representaes de si mesmas vo
opor quelas j estabelecidas?
Cincia e gnero
3
A discusso desta questo importante na histria das cincias sociais no ser recuperada aqui.
Tambm dialticas foram a contestao da perene identificao da mulher com
o biolgico/natural/corpo/emoo e a descoberta da sua condio de objeto de uma
cincia "androcntrica", que permitiu ao feminismo perceber a relao de duas vias
entre conhecedor e objeto conhecido. Isto : os homens, ao fazerem esta cincia,
(re)produzem a hierarquizao dos gneros; definindo "a outra", definem a si mes-
mos, (re)produzindo seu prprio poder. uma produo saber/poder baseada nes-
tas representaes diferenciadas, em que o sujeito e o conhecimento so m u t u a -
mente constitudos.
O feminismo confrontou esta cincia e a definio naturalizada da identidade
feminina c o m a anlise da sua prpria vivncia. Este movimento significa uma sub-
verso do modelo de conhecimento anterior em vrios nveis, iniciado com o objeti-
vo do autoconhecimento, da fuso de sujeito e objeto, mencionado anteriormente.
Ao contrrio do mtodo cientfico, o processo comeou com os grupos de reflexo
(consciousness-raising): e m vez do isolamento cognitivo do indivduo (ou da mente)
pensante, a formao de u m a coletividade c o m u m a prxis. Aqui, os insumos do
processo so as vidas cotidianas das participantes, especialmente suas prprias
vivncias corporais mais ntimas na rea da sexualidade/reproduo que tinham
sido silenciadas socialmente. Estas vivncias corporais - da menarca, menstruao,
sexualidade, contracepo, aborto, gestao e parto - serviram de parmetro de dife-
renciao aguda dos h o m e n s e, por isso m e s m o , facilitaram a auto-identificao
entre as mulheres, cujas diferenas sociais eram freqentemente grandes. A partir
disto, o processo de incluso da questo da mulher em muitas disciplinas acadmicas
subverteu a tendncia especializao e fragmentao que predomina na cincia
binria e promoveu uma conversa com muitas vozes e perspectivas, capaz de compor
uma viso nova, pluralista e multifacetada.
Desta forma, nasceram juntas a percepo da opresso e da possibilidade de trans-
formao: a partir da auto-identificao coletiva como "mulher", elaborao de u m a
crtica ao significado naturalizante/biologizante de "mulher". Esta crtica estabeleceu
"mulher" c o m o categoria poltica, com uma proposta de produo de conhecimento
em que o objeto a ser estudado (mulher) ao mesmo tempo deve ser re-significado.
Dos grupos de reflexo, surgiu u m grito de guerra: "o pessoal poltico!". Esta formu-
lao sintetiza u m questionamento do velho paradigma de conhecimento, cujos ml-
tiplos significados esto sendo elaborados ainda hoje (Frye, 1996). Nas palavras de Sandra
Harding (1986:251): "Nunca, nem nos nossos sonhos mais desvairados, imaginvamos
que teramos que reinventar tanto a cincia como a prpria teorizao, para entender
a experincia social de mulheres."
Podemos dizer que estes grupos viveram u m a experincia algo contraditria nos
termos das dicotomias: a partir da examinao de experincias vividas como altamente
subjetivas e individuais (inclusive corporais) a "construo social" de gnero foi per-
cebida. A subjetividade, que seria u m fenmeno individual, foi revelada como tambm
coletiva; e coletivamente caracterizada como sem poder, subordinada, ou desvalorizada,
mas, ao mesmo tempo, como tendo o potencial de transformar esta prpria definio.
Nesse processo, enquanto o conhecimento gerado a partir da reapropriao da
vivncia prpria o ponto de partida, h u m a relao no determinante entre estas
experincias e a "mulher" transformada/resignificada. Em uma formulao posterior:
"homem" e "mulher" so categorias ao mesmo tempo "vazias" (pois no tm contedo
fixo) e "transbordantes" (como todos os conceitos, em iluminando alguns aspectos da
realidade, escondem outros) (Scott, 1989). So criados com "contedos" variados atra-
vs da histria, mas nas suas variadas verses patriarcais, sempre c o m o criaes dos
homens (identidade na diversidade).
O conceito de "gnero", portanto, insiste analiticamente na importncia da relao,
do social e do poder, mas deixa em aberto o contedo emprico que historicamente
(re)elaborado - agora fora e dentro dos estudos de gnero. D o ponto de vista desse
processo, as categorias analticas da teoria feminista, como todos os conceitos, devem
ser vistas como produes situadas historicamente.
Os estudos de gnero procedem investigao de relaes mutuamente constitudas (ou
dialticas) entre os termos dobinarismo: se o pessoal poltico, ento, individual/social,
biolgico/social, subjetividade/objetividade, ideal/material, razo/emoo, pblico/privado,
produo/reproduo etc, so todos passveis de ser estudados como mutuamente constitu-
dos. O que o velho paradigma separou, o novo est relacionando-e de uma forma dialtica.
A reapropriao da prpria vivncia u m a rejeio do conhecimento objetivo do
velho paradigma, como produto e como processo. Desta maneira, o autoconhecimento
almejado tanto u m fenmeno coletivo como individual: "eu como mulher". Tanto o
sujeito como o objeto deste processo so coletivos, compostos a partir do auto-reconhe
cimento como "mulher" em ambos os nveis.
Foi esta praxis que levou ao aparecimento analtico posterior de "outras" mulheres
(lsbicas, negras, do terceiro m u n d o etc.) e necessidade/possibilidade de incorporao
destes outros pontos de vista n u m a elaborao continuada - de experincias "de m u -
lheres", no mbito que, todas concordam, ainda o feminismo (ou, mesmo, os femi
nismos: identidade na diversidade).
Esta identidade na diversidade foi, desde o incio, algo a ser re/construdo politica-
mente. C o m o abordado por Teresa de Lauretis (1994), este u m conhecimento pessoal,
ntimo, analtico e poltico:
o mtodo analtico e critico feminista () a prtica da autoconscientizao.Poisa compre-
enso da condio pessoal de ser mulher em termos sociais e polticos e a constante
reviso, reavaliao e reconceitualizao dessa condio vis--vis a compreenso que
outras mulheres tm das suas posies sociossexuais geram um modo de apreender a
realidade social como um todo que derivado da conscientizao de gnero (...).
Nas palavras da Donna Haraway (1994), "a experincia das mulheres" uma "fico"
(o contedo varia) e u m "fato poltico crucial" (ainda assim, permite a auto-identifica-
o e o engajamento n o feminismo).
O conhecimento no transcende, mas est enraizado em vivncias e interesses e no
m u n d o social.
emerge uma viso de fatos objetivos, abertos a mltiplas interpretaes, analisveis de
vrias perspectivas. Fatos podem mudar e evoluir em processos de interpretao e
crtica; ento 'realidade' aberta estruturao social (...) fatos (...) so tanto subjetivos
quanto objetivos. (Code, 1991:45)
Se, n o incio do processo, a maior parte das investigaes foi dedicada a esmiuar as
estruturas de subjugao e a falta de poder, isto foi historicamente necessrio para
poder perceb-las e desmascarar o sistema de sexo-gnero que foi criado e negado n o
velho paradigma. No era a mulher a "rainha do lar", espao ideologicamente
equacionado com a criao dos filhos e com os valores supostamente mais importantes
nas sociedades de tradio patriarcal? No foram elas, inclusive, vistas como smbolos
do amor e da moral? No eram "damas primeiro"?
A resposta feminista foi: sim e no! Abase da primeira ressignificao foi necessari-
amente u m a identificao e u m a recusa, tanto das fraquezas como dos poderes dados
pela ordem patriarcal. A luz do capitalismo ento em pleno vigor, ser "rainha do lar" j
no satisfazia.
Nos grupos de reflexo, as vivncias corporais especficas de mulheres na menarca,
na menstruao, na sexualidade, na gestao e parto, na contracepo e n o aborto
levaram o movimento ao consenso nas demandas para o controle do corpo por meio da
contracepo e do direito ao aborto legal (e, na sua formulao atual, para a sade sexual
e reprodutiva).
Em contraste, a temtica da legislao trabalhista especfica criou uma polmica e
representou u m dilema que ilustra bem o cerne de uma ambivalncia feminista com
respeito s especificidades do corpo feminino: reivindicar direitos especficos no traba-
lho poderia servir para aumentar a discriminao contra mulheres; ignorar as diferen-
as significaria escamotear uma desvantagem das mulheres perante as exigncias feitas
aos trabalhadores em geral.
O controle do corpo reivindicado tem, ento, mltiplos significados. Expressa uma
conscincia nova do corpo colonizado por outros - homens, corporao mdica, cien-
tistas, por exemplo - representantes da tradio de poder patriarcal. Explicita u m desejo
por uma igualdade na sexualidade separada da reproduo, livre da ameaa da gravidez
indesejada. Controlar a fecundidade , por outro lado, condio para u m a igualdade
maior na esfera profissional, em que o papel feminino na reproduo humana signifi-
ca interromper carreiras, diminuir o tempo e a energia disponvel para o trabalho
remunerado, enfim, significa concorrerem condies desiguais no mercado de traba-
lho, nestas sociedades organizadas conforme as exigncias da produo.
importante lembrar que a sada da subordinao era conceitualizada globalmente
na demanda feminista para igualdade nos termos dos valores de fato dominantes nestas
sociedades, todos localizados na esfera pblica: emprego, renda, escolaridade, profisso,
representao poltica. Seria necessrio (tanto ideolgica como materialmente) con-
quistar este espao, mesmo se no suficiente. Se as feministas brasileiras foram a esta
luta pblica "carregando consigo, escondidas, as razes no privado" (Oliveira, 1983), isto
ilustra u m a postura b e m mais geral que predominou n o incio do movimento: as
especificidades femininas vistas como "desvantagens", pois assim so na sociedade em
que a reproduo subordinada produo (Chahaud & Fougeyrollas-Schwebel, 1987)
e os valores dominantes so referidos esfera pblica.
Apesar da importncia das experincias corporais especficas na conformao das
identidades individuais e das subjetividades, que so percebidas como sendo tambm
sociais e coletivas, a especificidade do corpo feminino desvalorizada na teoria (no
conceito de gnero) e na rejeio da identidade de reprodutora.
Poderemos dizer que, neste processo, o feminismo reconheceu o corpo feminino
para dizer "no" a ele? N o isto o que se exige nas sociedades que subordinam a
reproduo produo, organizadas em funo do lucro e no da qualidade de vida
da populao? No este u m preo da integrao na esfera pblica deste sistema?
Aceitar a identificao do feminino c o m a esfera de reproduo (a mulher c o m o
me) e enfatizar os valores considerados femininos pela ordem vigente (as relaes
familiares e interpessoais, o cuidar do outro, a afetividade etc.) no seria aceitar o status
quo! D o ponto de vista dos valores patriarcais, sim. Mas do ponto de vista da organiza-
o material da sociedade capitalista/industrial, que caracterizada pelo processo de
individualizao da fora de trabalho e fragmentao das estruturas familiares, lutar
pela valorizao da esfera de reproduo representaria u m a verdadeira inverso da
ordem vigente.
O m o v i m e n t o de mulheres surgiu dentro deste processo histrico de radical re-
organizao das sociedades ocidentais. Enquanto os valores patriarcais so compatveis
c o m a importncia da famlia c o m o base organizadora da produo material e da re-
produo humana, o processo de industriabzao retira a produo da famlia, tornan-
do-a uma instituio dependente (Giffin, 1994). Isto provoca grandes transformaes,
tanto na base dos poderes masculinos (e femininos) anteriores, c o m o n o significado
dos corpos na produo material e na reproduo humana: a importncia da fora
fsica na produo, assim c o m o a importncia da gerao de filhos, so relativizadas
neste sistema, agora n o processo de globalizao.
Aprender a no perceber nossas emoes torna mais plausvel "o mito da investiga-
o desapaixonada" (Jaggar, 1989). neste sentido que toda epistemologia (teoria do
conhecimento) implica u m a ontologia (viso do ser conhecedor).
Embora este paradigma se presuma universal, o feminismo aponta que este ideal de
objetividade (e sua crise) - simblica e historicamente - referido ao masculino e, na
vida social, "reflete a auto-suficincia para a qual os meninos so preparados" (Code,
1991; ver tambm Bleier, 1984). No h como ignorar, porm, que esse estilo de subje-
tividade, individualista e impessoal, e os seus objetos de conhecimento tambm pode-
riam representar u m preo da integrao de mulheres nas atividades de produo do
conhecimento, sob o velho paradigma. Ao menos, coloca uma contradio para quem
valoriza as questes da reproduo, do cuidar e do amar. Haraway (1990) aponta que as
premissas de individualismo e auto-suficincia colapsam mais dramaticamente na
reproduo humana (ver tambm Schott, 1993).
Finalmente, e m terceiro lugar, a desvalorizao do corpo e das emoes nesta viso
do conhecimento generalizada para outros aspectos da vida nas sociedades onde este
paradigma dominante. Na sntese de Marilena Chau, a herana cartesiana "reprime o
corpo atravs da sua concepo do conhecimento". Recuperado no interior da ideologia
burguesa, como conjunto de processos fisiolgicos, o corpo coisificado, transformado
em mercadoria, na compra e venda de fora de trabalho e de sexo (Chau et al., 1981).
quais as implicaes para a sexualidade? Muriel Dimen (1989) refere-se "redu-
o do desejo" nas sociedades modernas, patriarcais e individualistas e ambivalncia
do relacionar-se (relatedness), que visto como "dependncia" neste contexto que valoriza
a autonomia e a impessoalidade. Ela pergunta:
Onde h (...) espao para a intimidade, para o conhecimento e expanso do eu que
alcanado atravs do conhecimento do outro? De que maneira so criadas expectativas
de prazer sensual, nesta economia que explora as pessoas e a natureza, ao mesmo
tempo em que promove o enriquecimento pessoal?
Maria Rita Kehl argumenta que o grito de desejo dos anos 60 foi assimilado pelo
capitalismo, em que o sexo elemento de adaptao sociedade de consumo. Nestas
sociedades, o corpo-mquina vigiado pela conscincia, e as defesas neurticas so
reforadas em u m sexo-teatro que "serve basicamente a u m empobrecimento afetivo
da relao sexual" (Chau et al., 1981; ver tambm Feuerstein, 1994). Ainda na tradio
de Marcuse, Ilene Philipson aponta que o capitalismo moderno moldou a sexualidade
e a idia de liberao sexual para seus prprios fins, e que a ideologia do playboy, que
promove o sexo sem compromisso afetivo, tem avanado desde os anos 50 (Philipson,
1984). Em vez de "relaes" sexuais, a sociedade de consumo promove "atos" sexuais
dirigidos a objetos sexuais (Mantega, 1979).
Do ponto de vista dos gneros, a tradio patriarcal identifica o masculino com a
razo, regulador e conhecedor da sexualidade feminina, que objeto deste conheci-
mento no paradigma binrio: "sexualidade e conhecimento esto n u m a dinmica re-
cproca de poder e legitimao mtua para os homens" (Breitenberg, 1993).
Apesar de assegurar o poder social, alguns custos da identificao masculina com esta
razo (binaria) so sugeridos por Victor Seidler. Sendo que as emoes so desvalorizadas
e identificadas com o feminino, ameaam a identidade de gnero masculina. Em funo
disto, os homens temem a intimidade, preferindo manter o autocontrole sobre as emo-
es, o que considerado, inclusive, como "maturidade moral". Neste cenrio, a sexuali-
dade para os homens "transformada em 'erformance' e separada da intimidade e do con
tato pessoal" (Seidler, 1987; para alguns dados atuais, ver Bozon, 1995).
Nesta tradio, a sexualidade feminina tem sido definida (pelos homens) "tanto em
oposio c o m o em relao masculina" (Lauretis, 1993). Vista historicamente como
passiva e voltada para a reproduo, no h concepo do desejo feminino; a sexualida
de feminina valorizada responde aos desejos de outros, no u m desejo ativo (Rubin,
1975; Holland et al., 1994; Haraway, 1994).
Nas palavras de Teresa de Lauretis (1994), a subjetividade feminina hoje emergente
se encontra en-gendrada em u m a relao com a sexualidade que absolutamente
irrepresentvel nos termos dos discursos hegemnicos sobre a sexualidade e sobre o
gnero. Sendo u m a viso de "outro lugar", u m "ponto cego" que no reconhecido
como representao.
J para Philipson (1984), onde o sexo impessoal visto como norma, o desejo sexual
de mulheres - que freqentemente caracterizado pela averso ao sexo impessoal e pela
necessidade de uma intimidade e de uma proximidade - visto como inadequado. U m a
anlise do "discurso ausente do desejo feminino" nos Estados Unidos conclui que este
discurso teria de ser baseado nos significados construdos socialmente pelas mulheres, e
teria de levar em conta a sua "conscincia dual", expresso da dialtica que existe entre
seus desejos e as definies dominantes do masculino e do feminino (Fine, 1988).
No paradigma binrio, incapaz de conceber uma integrao conscincia/corpo ou
razo/emoo, a sexualidade entendida c o m o fenmeno natural e biolgico que,
junto c o m as emoes, banida do plano descorporificado do conhecimento tido
como abstrato e universal.
N o ps-modernismo de Deleuze, Foucault, Derrida e Lyotard, o determinismo
discursivo- ver o corpo como apenas u m efeito de prticas discursivas de sujeitos des-
engendrados (Schott, 1993) - revelado c o m o perfeita imagem invertida do velho
paradigma (Haraway, 1988) e nova expresso do antigo hbito masculino de transfor-
mar mulheres em metfora (Braidotti, 1994).
Negando o gnero, ou seja, a histria da opresso e da resistncia poltica das mulhe-
res e a contribuio epistemolgica do feminismo para a redefinio da subjetividade e
da socialidade, estas teorias desconstroem o sujeito de tal maneira a "reposicionar a
subjetividade feminina dentro do sujeito masculino, seja l como for definida". (Lauretis,
1994). Nas palavras de Susan Bordo (1993), insistir na total indeterminao de signifi-
cados no m u n d o social representa, tambm, "uma fantasia de escapar da condio
situada da humanidade" (a fantasy ofescapefrom human locateddness).
Na teoria feminista, em contraste, o corpo visto como "interface entre o material e
o simblico" (Schott, 1993) e a sexualidade conceitualizada c o m o "fenmeno
relacionai", "um interface c o m o m u n d o e c o m outras pessoas e... densa zona de
interao" (Bleier, 1984), u m a forma de relao c o m o m u n d o que tanto corporal
como aprendida.
Nesse processo dialtico, emerge u m novo sujeito da significao, que insiste em
que processos corporais diferenciados por sexo so inevitavelmente significados em
todas as culturas (Grosz, 1993) e que o corpo no pode ser pensado, a no ser c o m o
masculino ou feminino (Krais, 1993). Este sujeito explora "as razes sensuais e emocio-
nais da cognio" (Schott, 1993) e o "potencial epistmico das emoes" Jaggar, 1989).
Nas palavras de Scheper-Hughes & Lock (1987):
as emoes envolvem tanto sentimentos, como orientaes cognitivas, moralidade
pblica, e ideologia cultural... prevem um importante 'elo perdido' capaz de relario-
nar corpo e mente, indivduo, sociedade, e corpo poltico ... so o catalisador que
transforma conhecimentos em compreenso humana...
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PARTE II
Controle da Fecundidade
6
Introduo
* Este trabalho integra o Projeto "Mudanas no Comportamento Reprodutivo das Mulheres Brasileiras ao
longo do Sculo XX: uma viso estadual", em andamento no Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
da Presidncia da Repblica (IPEA).
1
Para maior discusso sobre o assunto, consultar BONCAARTS (1978).
nascidas entre 1970-75. U m a vez que as informaes agregadas n o mbito nacional
mascaram importantes diferenas regionais, a anlise apresentada est desagregada
pelas cinco grandes regies. O s dados utilizados so provenientes dos censos
demogrficos de 1940 a 1991 e das Pesquisas Nacionais sobre Demografia e Sade
(PNDS) d e i 986 e 1996.
Alm desta introduo, o trabalho inclui quatro sees: tendncias das taxas de
fecundidade total das coortes sintticas; a fecundidade marital total e o impacto do
casamento e da anticoncepo nas taxas de fecundidade; mudanas n o padro de for-
mao de famlia; e sntese dos principais resultados.
2
Vide BRASS (1985), p. 69-70.
3
Por coorte, entende-se um grupo de mulheres nascidas em um mesmo qinqnio.
Apesar de a fecundidade ter experimentado uma queda bastante expressiva, esta
no foi m o n o t n i c a , e na intensidade foi variada. Podem-se observar, tambm,
acrscimos em algumas coortes. A fecundidade das cinco primeiras coortes apre-
sentou declnio, interrompido por u m aumento da fecundidade exibido pelas sexta
e n o n a coortes. A partir da, observou-se u m a queda acentuada nos nveis de
fecundidade, mas com intensidade diferenciada. A maior variao (reduo de 24,2%)
foi verificada entre as coortes nascidas entre 1945-50 e 1950-55.
As tendncias mostradas pelas estimativas do Brasil mascaram grandes variaes
regionais, c o m o se pode concluir analisando o Grfico 1. O declnio da fecundidade
observado entre as c i n c o primeiras coortes foi conseqncia da reduo da
fecundidade das mulheres das regies Norte, Sudeste e Sul. O que se verificou entre
as coortes nascidas n o m e s m o perodo e residentes nas regies Nordeste e Centro-
Oeste foi u m a u m e n t o da taxa de fecundidade, que resultou e m u m a interrupo
da queda da fecundidade da coorte 1900-05 para o Pas. As mulheres nascidas entre
os anos 20 e 40 apresentaram a fecundidade estvel, com uma leve tendncia ascen-
dente. O a u m e n t o foi mais intenso nas regies Norte e Nordeste.
O declnio observado a partir da coorte nascida em 1945-50 foi extensivo a todas
as reas, mas c o m ritmo diferenciado. Entre a primeira coorte, foi mais intenso nas
regies Sul, Sudeste e Centro-Ocste. Nas coortes seguintes, a queda foi mais intensa
nas regies Sul, Ccntro-Oeste e Norte. Por sua vez, as mulheres nordestinas experi-
mentaram u m a queda acelerada de sua fecundidade a partir da coorte nascida em
1950-1955. As maiores taxas de fecundidade so verificadas nesta regio; as menores,
no Sul e Sudeste. O s diferenciais relativos continuam elevados.
O declnio da fecundidade no foi homogneo nem entre as regies que c o m -
pem o Pas n e m entre os grupos etrios. N o Grfico 2, apresentam-se as taxas de
fecundidade das mulheres de 15 a 19 anos para os qinqnios compreendidos
entre 1975 e 1995. Observou-se este acrscimo em todas as regies, com exceo do
Centro-Oeste. Em quase todas as regies o maior crescimento foi verificado n o
ltimo q i n q n i o da dcada de 80. Isto s no ocorreu no Norte, onde o maior
incremento foi observado cinco anos antes.
Grafico 2 - Taxas de fecundidade das mulheres de 15 a 19 anos
Casamento
Aqui, analisa-se o impacto do casamento e da anticoncepo nas tendncias da
fecundidade. Inicia-se pelo efeito do casamento atravs da evoluo das taxas de
fecundidade total marital por perodos, utilizando-sc a metodologia de Frias & Oli-
veira (1981:82-84) para o clculo das taxas especficas de fecundidade. Elas foram
divididas pela proporo de mulheres casadas para obter as taxas de fecundidade
4
marital . As taxas so decenais c se referem mdia de filhos tidos ao final do
perodo reprodutivo por mulher casada. Elas m e d e m a fecundidade do perodo
1930-35 at 1990-1995 (Tabela 1).
4
Por mulheres casadas, compreendem-se tambm as solteiras com filhos, o que foi feito tentando captar
ao mximo as unies consensuais. Ressalta-se, no entanto, que a definio censitria de mulheres
casadas tem modificado ao longo do tempo, o que afeta o clculo das taxas de fecundidade maritais.
Tabela 1 Taxas de fecundidade marital total. Brasil e gran-
des regies 1930-1995
indica-se a proporo das taxas de fecundidade reduzida pelo no-casamento. Isto foi feito
comparativamente a uma taxa de fecundidade total de 15,3. O u seja, supondo uma taxa de
fecundidade mxima de 15,3, que seria observada caso todas as mulheres se casassem; se
n e n h u m a usasse mtodos anticoncepcionais e tampouco amamentasse, o ndice
mencionado mediria a proporo da taxa de fecundidade total que difere deste valor
pelo no-casamento.
considera todo o Pas. O efeito inibidor do no-casamento oscilou entre 55,7% e 60,8%
n o perodo estudado, o que significa uma queda no efeito inibidor de 44,5% para 39,2%
da fecundidade natural. Entre 1930-45 e 1940-5 5, evidencia-se u m a diminuio do
efeito inibidor de variaes n o casamento - denominado efeito nupeialidade - e da
fecundidade total. O u seja, mais mulheres se casaram, mas tiveram menos filhos. O
mesmo aconteceu entre 1960-65 e 1970-75. Se a nupcialidade no tivesse aumentado,
a queda da fecundidade total teria sido maior.
J no perodo de 1940-45 a 1950-55, o efeito nupeialidade diminuiu e a fecundidade
marital aumentou. Isto sugere que as mulheres esto casando mais, o que resulta na anula-
o de parte d o efeito d o controle da fecundidade marital e no a u m e n t o da taxa de
fecundidade total. Na dcada de 70, a fecundidade caiu. Em parte, isso se deve a uma
diminuio no nmero de casamentos. No entanto, este efeito foi menor comparado
magnitude da queda da fecundidade. Isto mostra que outros fatores foram responsveis
pela queda da fecundidade observada nestes perodos.
As tendncias observadas nas cinco regies brasileiras no divergiram m u i t o da
mdia nacional. As variaes na fecundidade marital foram no m e s m o sentido e m
todas as regies, ou seja, decresceram entre 1930-1955, cresceram na dcada seguinte e
decresceram a partir da. As diferenas so observadas somente n o ritmo. Isto mostra
que a nupeialidade desempenhou u m papel importante nos diferenciais regionais de
fecundidade. E m esfera regional, as variaes e m C foram bem mais expressivas. Na
m
regio Norte, variou entre 42,6% e 63,1 %. Esta variao foi monotnica entre 1930-35 e
1970-75, explicando parte do aumento da fecundidade total observado n o perodo. A
partir da, tanto a nupeialidade quanto a fecundidade diminuram. O mesmo aconteceu
nas regies Norte e Centro-Oeste, com intensidades diferentes. Na regio Sul, observou-se
u m aumento quase monotnico nos valores de C , sugerindo que a queda da fecundidade
m
Anticoncepo
O s p r i m e i r o s d a d o s sobre a n t i c o n c e p o foram r e c o l h i d o s n o Pas e m
1986, pela Pesquisa de S a d e M a t e m o - i n f a n t i l e por u m s u p l e m e n t o espe-
cial da Pesquisa N a c i o n a l por A m o s t r a de D o m i c l i o s (PNAD). A s e g u n d a i n i -
ciativa foi a Pesquisa N a c i o n a l de Demografia e S a d e (PNDS), realizada c m
1996. N o Grfico 4, observa-se o u s o de a n t i c o n c e p c i o n a i s pelas m u l h e r e s
c a s a d a s p o r t i p o de m t o d o u s a d o n o m o m e n t o das p e s q u i s a s . E m 1986,
a p r o x i m a d a m e n t e 66% das m u l h e r e s a l g u m a vez u n i d a s (ou seus parceiros)
e s t a v a m u s a n d o a l g u m m t o d o . O n d i c e a l c a n o u 76,7% d e z a n o s m a i s
tarde. Esta taxa de prevalncia alta, se c o m p a r a d a de pases q u e j a t i n -
g i r a m b a i x o s n v e i s de f e c u n d i d a d e .
5
outro ndice proposto por COALE & TRUSSEL, que compara o nvel de fecundidade a um padro
considerado de fecundidadenatural, ou seja, ausncia de controle deliberado da fecundidade. As duas regies
que apresentaram altos valores de m revelam valores de acima de 1, ou seja, acima do nvel de
fecundidade considerado como natural.
Grfico 4 - Distribuio percentual das mulheres unidas por
mtodo anticoncepcional utilizado - Brasil 1986-96
0,65 --
0,6 -I 1 1 1 1
0-1 1-2 2-3 3-4 4-5+
Parturio
A l i n h a pontilhada mostra as taxas de progresso da primeira coorte de mulheres
(nascidas entre 1890 e 1900). A l i n h a forte contnua, para a ltima coorte, que englo-
ba as nascidas entre 1935-45. N o Grfico 5, revela-se u m a reduo nas taxas de pro-
gresso e u m a m u d a n a na forma da curva de cncava convexa, o q u e sugere a
existncia de controle da fecundidade por n m e r o de filhos j tidos. As mudanas
parecem comear na coorte que nasceu e m 1910-19, que apresentou u m aumento
na proporo de mulheres c o m u m filho q u e tiveram o segundo. A partir da, as
outras taxas declinaram c o m a parturio, mostrando u m comportamento influen-
ciado por esta. E m relao coorte anterior, para cada ordem de nascimento, as taxas
de progresso aumentaram, o que pode explicar o aumento da fecundidade verifica-
6
Neste
do n o caso,
finalno
dosforam
anosutilizados
40 e 50. os dados do Censo Demogrfico de 1991, pela dificuldade de process-los.
Mudanas n o comportamento reprodutivo causadas pelo nmero de filhos existen-
tes so ntidas a partir da coorte nascida e m 1920-29 e reforadas pela coorte seguinte. Elas
so traduzidas por uma reduo da proporo de mulheres que tiveramfilhosde parturio
mais elevada. Observou-se u m a reduo temporal nestas taxas, c o m exceo da relativa
ao primeiro filho. O aumento das taxas de progresso ao primeiro filho tanto pode estar
associado a variaes e m nupeialidade, esterilidade primria e nati-mortalidade, como
ser indicador de alguns erros na codificao dos dados censitrios anteriores a 1980.
Nos Grficos de 6 a 10, observam-se as taxas de progresso para as regies Sudeste,
Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Norte, respectivamente. A ordem escolhida visa a mos-
trar u m a seqncia de estgios de transio da fecundidade. Dois pontos so comuns
a todas as regies: a transformao da curva de cncava e m convexa e o aumento da
progresso ao primeiro filho, ou seja, o aumento da proporo de mulheres casadas que
se tornaram mes.
No Grfico 6, encontram-se as taxas de progresso da regio Sudeste, que apresen-
tou mudanas mais significativas. O formato da curva das trs primeiras coortes foi
cncavo, o que indica ausncia de controle por parturio, ou seja, no h indicaes
de que estas mulheres decidissem o seu comportamento reprodutivo pelo nmero de
filhos existentes. Verificou-se u m aumento da proporo de mulheres c o m u m filho
que tiveram o segundo, o que pode explicar o aumento da fecundidade observado n o
final dos anos 40 e incio dos 50.
0,7 -
0,65 --
0,6 -I I 1 1 1
0-1 1-2 2-3 3-4 4-5+
Parturio
Concluso
O trabalho mostrou a evoluo das taxas de fecundidade total de 17 coortes de
mulheres nascidas entre 1890 e 1975, para o Brasil e para todas as cinco grandes
regies. A fecundidade apresentou u m a tendncia generalizada de queda, principal-
mente a partir das mulheres nascidas entre 1940-45. No obstante, esta queda foi
intercalada por movimentos ascendentes, o que ocorreu e m todas as regies. Este
incremento foi mais evidente na fecundidade marital. Isto significa que o aumento
na taxa d e nupcialidade contribuiu para impedir maiores quedas na taxa de
fecundidade total.
Ao se analisarem as trajetrias da fecundidade das regies, comparadas trajetria
do Brasil, nota-se u m a grande variao regional, principalmente at a coorte nascida
em 1940-45. A partir desta, n o entanto, todas as regies apresentam fortes diminuies
na fecundidade e, nesta dcada, as variaes foram exclusivamente determinadas
pelo efeito dos fatores ligados anticoncepo, ao passo que o efeito nupcialidade
agiu em sentido contrrio queda da fecundidade. Apenas na dcada de 70 o efeito
nupcialidade contribuiu para a queda de fecundidade.
A queda da fecundidade foi acompanhada de uma mudana no padro de formao
de
filhos
famlia,
em mdia.
observando-se
Regionalmente,
u m a forte
estas tendncia
preferncias
preferncia
so diferenciadas:
por famlias
na regio
comSudes
dois
te, h indicaes de que o tamanho de famlia preferido a de u m filho; no Sul, a de dois
filhos; na Nordeste, a de trs filhos.
Para concluir, ressalta-se que a fecundidade da mulher brasileira j atingiu nveis
prximos aos de reposio, principalmente nas regies Sul e Sudeste. O efeito imediato
desse processo a reduo do crescimento populacional seguida de mudanas na dis-
tribuio etria n o sentido de u m envelhecimento.
Referncias Bibliogrficas
Introduo
(*) Inclui: abstinncia peridica ou total, tabela, coito interrompido, ducha, mtodos folclricos.
(**) Inclui: injetveis, diafragmas, capas cervicais e espermicidas.
Fonte: World Contraceptive Use 1994, Population Division - United Nations.
este ltimo j ultrapassando a mdia observada nas regies mais desenvolvidas (Tabela 1).
De acordo com os dados de 1996, estima-se que, do total de 39,993 milhes de mulhe-
res brasileiras na idade reprodutiva projetado para o ano 2000 (Camarano & Beltro,
1997), 30,675 milhes demandaro algum mtodo anticoncepcional.
Tentaremos atualizar o panorama nacional quanto ao uso de contraceptivos, dando
destaque esterilizao feminina que tambm no Pas, como veremos, encabea a lista
dos mtodos anticoncepcionais. Procuraremos caracterizar os padres e tendncias
desta prtica, buscando contribuir para uma maior compreenso das questes relacio-
nadas sade reprodutiva das mulheres brasileiras.
Notas:
(*) Inclui Norplant, injetveis e mtodos vaginais.
(**) Inclui tabela, billings e temperatura.
(***) Inclui todos os mtodos folclricos.
Fonte: PNAD-86; PNDS, 96.
(*) Inclui plula, DIU, injees, mtodos vaginais, condom, esterilizao feminina e vasectomia.
(**) Inclui somente reas urbanas.
Fonte: PNDS, 1996.
A esterilizao feminina
Dados recentes indicam que 40,1 % das mulheres brasileiras, unidas e em idade
reprodutiva, estavam esterilizadas em 1996. Este ndice variou de 29,0% no Sul a 59,5%
na Regio Centro-Oeste (Tabela 5). C o m exceo do Rio de Janeiro, pode-se dizer que a
esterilizao maior nas regies menos desenvolvidas do pas. J no h diferencial
marcante entre mulheres vivendo no campo ou nas cidades.
Os anos de escolaridade constituem um diferencial quanto ao recurso a essa prtica,
passando de 45,7%, para analfabetas, a 35,7%, para aquelas com 12 anos ou mais anos de
instruo a proporo de esterilizadas.
C o m o se pode observar na Tabela 5, o leque de alternativas contraceptivas fecha-se
cada vez mais, por conta do papel que a esterilizao feminina vem ocupando no
conjunto de mtodos. Esta prtica, que respondia, em 1986, por 49,5% dos mtodos
modernos, passou a concentrar 5 7,0% das usurias em 1996. Esta concentrao mais
acentuada nas regies Nordeste (70,5%), Norte (75,3%)eCentro-Oeste (73,5%).
1
Pelo Cdigo Penal Brasileiro, elaborado em 1940, Art. 129, 20. Inciso III, a esterilizao crime por ser
considerada uma leso corporal de natureza gravssima, quando resulta na perda ou inutilizao da
funo reprodutiva. Neste sentido, a pena correspondente de recluso de 2 a 8 anos.
2
Cap.VI - Da Responsabilidade Mdica, Art.52 - "A esterilizao condenada, podendo, entretanto, ser
praticada em casos excepcionais, quando houver precisa indicao, referendada por dois mdicos,
ouvidos em conferncia".
Tabela 7 possvel apreciar os altssimos ndices de esterilizao durante u m parto
cesreo, principalmente para o Rio de Janeiro, So Paulo e a Regio Sul. O Nordeste
chama a ateno, em especial, pelo menor ndice, o que nos leva a concordar com a
interpretao de que est sendo montado u m esquema de oferta dirigida esterilizao,
principalmente nas regies menos desenvolvidas (Perptuo, 1996). Tendo em conta as
altas taxas de esterilizao nestas regies, o no uso da cesrea c o m o locus cirrgico
para sua realizao pode vir a beneficiar as mulheres, reduzindo seus riscos associados
s cesreas.
A 'cultura' da esterilizao
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Laqueadura Tubria:
situao nacional, internacional e efeitos colaterais
Aurelio Molina
Introduo
Em 1981, Stepan calculou que pelo menos 260 milhes de casais em todo o m u n d o
haviam se submetido a algum tipo de esterilizao. Mais recentemente, autores como
Ross (1992) acreditam que a esterilizao (masculina e feminina) , atualmente, o meio
de controle da fertilidade mais utilizado e m todo o mundo.
Em relao esterilizao feminina, desconhece-se o nmero exato de mulheres
que se submeteram ligadura tubria e m todo o m u n d o . Para Bially (1994), seriam
mais de 100 milhes. Segundo Ross (1992), esse nmero chegaria aos 138 milhes.
Em pases do Terceiro M u n d o , existe uma clara tendncia em favor da esterilizao
como opo contraceptiva. Mauldin & Segal (1988) investigaram 35 dos 58 pases me-
nos desenvolvidos. Metade deles mostrou uma sensvel mudana no uso dos mtodos
ao longo do tempo. O padro mais comumente encontrado foi o de uma mudana de
u m mtodo reversvel para outro definitivo, quando este estava disponvel (Tabela 1).
Fonte: MAULDIN & SEGAL, 1988, Prevalence of Contraceptive Use: trends and issues.
(continua)
Fonte: Population Reference Bureau, 1998, 1998: Las Mujeres de Nuestro M u n d o .
Fonte: BERQU, . Esterilizao Feminina n o Brasil Hoje, 1989; Pesquisa Nacional sobre Demografia e
Sade, 1996, BEMFAM, 1997.
Outra deformao do uso da ligadura tubria entre ns se refere idade ao ser esteri-
lizada. E m 1986, a mdia quando da ligadura tubria era de 31,5 anos (Arruda, 1987).
Vieira (1994), e m 1992, encontrou u m ndice ainda mais baixo (27,5 anos), na regio
metropolitana de So Paulo. No entanto, Berqu (1986) mostra que muitas mulheres
foram esterilizadas nos seus 20 anos e algumas quando ainda eram adolescentes (Tabela 5).
Efeitos colaterais
(continua)
*AJT = ajustamento para possveis fatores de confuso principalmente prvio tipo de contracepo; =
utilizao de mtodos estatsticos de significncia; ns = no significante,- folw-up=follow-up; a=anos;
m=meses; OR=odds ratio.
Coorte retrospectivo (HENNEKENS, 1987) = coorte histrico (FLETCHER, 1988) = prospective histrico (MAUSNER,
1985), follow-up retrospectivo.
Coorte prospectivo (HENNEKENS, 1987) = coorte contemporneo (FLETCHER, 1988) = coorte = estudos de
follow up prospectivo = forward studies (ABRAMSON, 1990) = longitudinal.
As bases fisiopatolgicas para essas alteraes foram estudadas por vrios autores e
vm apontando alteraes na funo ovariana aps a laqueadura tubria, causadas
possivelmente por insuficincia vascular, congesto venosa, alteraes no sistema lin-
ftico e leses neuroendcrinas locais e m decorrncia de traumatismos n o meso-
salpinge, e m conjunto ou isoladamente (Quadros 2 e 3).
Quadro 2Bases hormonais das seqelas de longo prazo,
ligadura tubria. Literatura internacional
1966-1988
Concluses e sugestes
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WHO. Female Sterilization: aguidetoprovisionof services. Geneva: World Health Organization, 1992.
9
Apresentamos, aqui, uma sntese sobre a atuao dos mtodos de barreira controlados
pelas mulheres (diafragma e preservativo feminino) a partir dos resultados obtidos com os
estudos que realizamos sobre essas prticas contraceptivas. Esperamos contribuir, assim,
para a ampliao das discusses no campo da sade da mulher e dos direitos reprodutivos,
considerando-se que o uso de mtodos de barreira, atualmente, a nica possibilidade de
preveno ao HIV (alm da abstinncia e monogamia absolutas), e que ter controle sobre
seu uso pode ser uma forma de fortalecer as mulheres no terreno da sexualidade.
1
Um panorama da situao da epidemia de AIDS entre as mulher pode ser encontrado em Quebrando o Silncio:
mulheres e AIDS no Brasil. PARKER &GALVO, 1996.
Rosemberg et al. (1992) c h a m a m a ateno para a anlise de 5.681 consultas a
u m a clnica de doenas sexualmente transmissveis de Nova York, nas quais en-
c o n t r a r a m riscos s i g n i f i c a t i v a m e n t e m e n o r e s para a gonorria e para a
tricomonase entre as usurias de mtodos de barreira controlados por mulheres
(capa cervical e diafragma).
O uso de mtodos vaginais de barreira no tem sido estimulado e m pases do
Terceiro M u n d o , embora sejam de fcil entendimento para sua aplicao, reconhe-
cidos c o m o incuos sade (devido ausncia de efeitos sistmicos) e garantam
maior proteo quanto preveno de DST/AIDS. N O Brasil, a tendncia de aumento
na escolha do diafragma no se verificou, pois o acesso ao mtodo sempre foi limi-
tado e o n m e r o de suas usurias n u n c a chegou a ser significativo. Esse fato
reflexo das polticas internacionais, que nos ltimos trinta anos estimularam, prin-
cipalmente nos pases do Terceiro M u n d o , o desenvolvimento e a adoo de mto-
dos de longa durao e cujo controle 'independe' de suas usurias. O s mtodos que
se vinculam diretamente c o m a sexualidade e exigem mudanas comportamentais
- c o m o os de barreira - recebem poucos estmulos e so considerados ineficazes
pela c o m u n i d a d e cientfica, e m geral, por estarem sujeitos 'baixa capacidade
intelectiva' da nossa populao.
Atualmente, n o Brasil, 76,7% das mulheres e m unio, de 15 a 49 anos, utilizam
alguma prtica contraceptiva. O uso da plula e da esterilizao feminina correspondem
a 20,7% e 40,1%, respectivamente. O s mtodos vaginais (diafragma, espumas e vulos
espermicidas) so usados por apenas 0,1 %. Estes ltimos so desconhecidos por grande
parte da populao, como demonstraram os dados da pesquisa Demographic and Health
Surveys (DHS)/9, em que apenas 44,5% das mulheres entrevistadas (entre 15 e 49 anos)
afirmaram ter ouvido falar sobre esses mtodos, enquanto praticamente todas declara-
ram conhecer a plula (99,6%), o preservativo masculino (98,6%), a esterilizao femini-
na (94%) e os injetveis (84,3%) (DHS-BEMFAM, 1996).
Diafragma
2
Empresa paulistana que desenvolveu e comercializa o diafragma de silicone e espiral de metal tratado,
nos tamanhos 60 a 8 5 mm.
3
Estudo realizado entre agosto de 1989 a agosto de 1991, por equipe do NISMC, do Instituto de Sade,
SES/SP. Ver, para mais detalhes, LAGO et al, 1995.
ano, observou-se u m a taxa acumulada de descontinuidade de 74,3%, para a qual as
interrupes ocorridas at trs meses aps a escolha contriburam com 55%. As razes
alegadas foram de diferentes naturezas, mas, no total, predominaram as relacionadas
influncia dos parceiros e s dificuldades de manuseio. Alm disso, as mulheres que
procuraram outros servios e/ou farmcia foram desestimuladas a continuarem com
o mtodo. Diante desse panorama, concluiu-se que a atividade de planejamento fa-
miliar deveria ser redimensionada, aprofundando-se as aes educativas e/ou orien-
taes para as usurias de diafragma e atividades direcionadas aos parceiros, afimde
possibilitar maior retaguarda para a continuidade de uso.
Preservativo feminino
4
Estudo Multicntrico AIDSCAP, Women's Initiative, Family Health International.
Mtodos de Barreira Controlados pela Mulher
Nota:
(1) A taxa de efetividade de uso d o diafragma foi calculada c o m seguimento das usurias por meio de
visitas domiciliares. Este monitoramento contribuiu para que a proporo de falhas encontradas tenha
sido maior do que a dos outros estudos nacionais realizados nos servios. Adaptado de: Instituto de
Sade, 1988.
Q u a n d o se analisam os resultados sobre a segurana contraceptiva de u m mtodo,
fundamental que se tenham claros os critrios adotados para definir a populao
usuria, o que se entende por uso e por descontinuidade d o uso, e c o m o foram
calculadas as taxas de falhas. Isso parece bvio, mas nem sempre os artigos explicitam
esses dados. Encontram-se, e m vrios deles, comparaes, muitas vezes c o m vis
ideolgico, entre 'eficcia terica' e/ou 'uso perfeito' (que considera apenas as falhas
ocorridas entre aquelas que fizeram o uso consistente e adequado) e 'eficcia prtica'
ou 'efetividade' (que considera o total de usurias, independentemente da forma
c o m o se deu o uso). Outro aspecto importante o perodo considerado para o clculo
de falhas - no perodo inicial, especialmente nos primeiros seis meses, a proporo de
falhas , normalmente, maior do que nos perodos subseqentes.
Apenas para exemplificar, a eficcia terica da plula de 99,9%, fato sempre
citado q u a n d o se fala sobre sua segurana. N o entanto, alguns estudos a p o n t a m
taxas elevadas de ocorrncia de gravidez entre as usurias desse mtodo. Vale citar
aqui alguns dados: e m u m estudo realizado e m Fortaleza, 12% das mulheres hos-
pitalizadas ps-aborto usavam plula q u a n d o engravidaram (apud Giffin & Costa,
1 9 9 6 ) ; e m e s t u d o realizado na G r a n d e S o Paulo, das 5 1 m u l h e r e s q u e
engravidaram e m uso de m t o d o , 2 4 (47%) c o n s i d e r a m q u e a plula falhou
(Kalckmann, 1 9 9 5 ) ; e m recente pesquisa populacional realizada nacionalmente,
entre as razes alegadas para a interrupo da plula nos ltimos cinco anos, a
falha do m t o d o foi referida por 11,4% de suas usurias, similar falha atribuda
no m e s m o estudo ao condom masculino (11,7%) (DHS/BEMFAM, 1 9 9 6 ) . Tais resultados
demonstram que, apesar da alta 'eficcia terica', a plula falha, q u a n d o tomada
de forma inadequada e sem orientaes, ou seja, q u a n t o 'eficcia prtica', n o
cotidiano, sua segurana pode ser comprometida.
Os resultados obtidos por Farr et al. (1994), em u m estudo multicntrico realiza-
do nos Estados Unidos, M x i c o e Repblica Dominicana evidenciam a diferena
entre a 'efetividade' e a 'eficcia em uso perfeito' do preservativo feminino. A taxa
de gravidez e m uso desse mtodo foi de 12,4% entre as americanas e 2 2 , 2 % entre as
latinas, resultando u m a taxa de falha de 15% nos primeiros seis meses. Neste estudo,
no houve atividades de aconselhamento durante o seguimento. A eficcia em uso
perfeito (eficcia terica), definido c o m o o uso de preservativo feminino em todas
as relaes, foi de 2,6% entre as americanas e 9,5% entre as latinas, c o m u m a taxa de
falha de 4,3 por 1 0 0 mulheres, n o m e s m o perodo. Alm disso, importante procu-
rar maiores informaes sobre a populao estudada, antes de se fazerem generali-
zaes. O s achados de Farr, por exemplo, ao serem comparados, exigem c a u t e l a -
mais de 4 0 % das participantes usavam preservativo masculino antes de sua incluso
no estudo; mais de 90% das americanas e 50% das latinas usavam, pelo menos even-
tualmente, outros mtodos de barreira.
A diversidade de desenhos (estruturas de pesquisa) e a ausncia de informaes
sobre a metodologia adotada pelos estudos tornam muito difcil a comparao entre
eles, mas levam a concluir que a segurana do diafragma e do preservativo feminino
comparvel a de outros mtodos, desde que usados adequadamente. Atualmente, dian-
te do quadro epidemiolgico da AIDS e das demais DST, fundamental que qualquer
discusso sobre a segurana dos mtodos contraceptivos considere tambm sua capa-
5
cidade de proteo contra essas doenas .
6
"O Preservativo Feminino como Mtodo Controlado pelas Mulheres" o primeiro
estudo sobre o tema realizado no Brasil, visando a apresent-lo s mulheres; descrever
suas impresses de uso; identificar fatores que facilitam ou dificultam seu uso; avaliar
5
Para maior aprofundamento ver LAGO, 1996.
6
No Brasil, este estudo, conhecido como Projeto Beija-flor, foi realizado pelo Instituto de Sade, Mulher,
Criana, Cidadania e Sade (MCCS) e Associao Sade da Famlia, no perodo de fevereiro de 1996 a
janeiro de 1997, na cidade de So Paulo, sob a coordenao de Suzana Kalckmann.
como o mtodo interfere no processo de negociao sexual; sondar as opinies dos
parceiros; e verificar o papel das atividades educativas e de apoio contnuo de pares
na dinmica de uso.
Nesse estudo exploratrio, com abordagem quantitativa e qualitativa, as participan-
tes foram recrutadas em reunies realizadas em diversas regies do municpio de
So Paulo, muitas delas com o apoio de O N G s . Nessas reunies foram dadas explica-
es detalhadas sobre o estudo e sobre o preservativo feminino, alm de promove-
rem-se discusses sobre DST/AIDS, contracepo e fisiologia feminina. Na mesma oca-
sio, as participantes que preenchiam a ficha de recrutamento recebiam uma caixa de
7
preservativo feminino (Reality, com seis unidades ) e eram convidadas a voltar reu-
nio de deciso.
As reunies de deciso foram realizadas, em mdia, cerca de 20 dias aps o recruta-
8
mento. As participantes, aps ler, discutir e assinar o consentimento informado , deci-
diam se desejavam continuar no estudo. Os critrios de incluso eram, ento, revistos.
Nos casos afirmativos, uma entrevistadora treinada realizava a entrevista individual
inicial e fornecia uma agenda com as instrues de uso do mtodo, e a participante era
alocada em u m dos oito grupos formados, segundo faixa etria e nvel socioeconmico.
Cada grupo se reuniu quatro vezes (grupos focais inicial e final e duas sesses de apoio)
e as participantes responderam a uma entrevista individual final. Os critrios de elegi-
bilidade: ser sexualmente ativa; morar na Grande So Paulo; ter idade entre 18 e 40 anos;
no desejar ficar grvida nos seis meses subseqentes e concordar em participar das
atividades do estudo.
No total, 394 mulheres participaram das reunies de recrutamento, das quais 126
(32% das recrutadas) voltaram para as reunies de seleo, sendo que 11 delas no
obedeciam aos critrios de elegibilidade. Assim, 115 mulheres foram includas, respon-
deram entrevista inicial e foram alocadas em u m dos oito grupos formados. Destas, 12
(10%) no participaram de nenhuma atividade de grupo e foram consideradas como
perda. Foram includas 103 mulheres, com tempo mdio de observao de dois meses.
De acordo com a entrevista inicial, a mdia de idade foi de 29,6 anos ( 6,9). A mdia
de anos concludos de escolaridade foi de 10,4 anos ( 3,9) e 77,5% desenvolviam atividade
remunerada. A maioria (94,2%) tinha um parceiro auto-referido como principal, com
mdia de 8,1 relaes sexuais por ms; 77,7% tinham conhecimento bsico sobre AIDS;
80,6% referiram j ter conversado com seus parceiros sobre o assunto; 84,5% declararam
grande necessidade de se prevenir do H1V Chama a ateno a proporo de gravidez
anterior, em uso de prticas contraceptivas: 2 5% do total de mulheres. Os mtodos apon-
tados como responsveis por falha foram a plula (31,4%) e abstinncia peridica (22,8%).
7
Os preservativos foram doados pelo governo dos Estados Unidos - USAID.
8
Documento com todas as informaes sobre o preservativo feminino e o desenvolvimento do estudo.
A motivao alegada para entrarem no estudo foi o desejo de encontrar uma nova
alternativa contraceptiva e a curiosidade. De incio, poucas falaram sobre a necessidade
de se proteger contra as DST/AIDS (resposta espontnea no recrutamento).
De modo geral, a avaliao final das participantes foi positiva. 75% (72) referindo seu
uso ao final do estudo, das quais 33% (24) em uso exclusivo. Entre os atributos positivos
predominaram os referentes:
a ser confortvel (30,5%);
autonomia para as mulheres conferida pelo mtodo (27,4%);
proteo tanto contra a gravidez quanto contra as DST (22,1 %);
no-alterao da sensibilidade (20%);
a ser de fcil manuseio (16,8%).
e a consistir em uma alternativa ao preservativo masculino para prtica de sexo mais
seguro (14,7%).
Outro aspecto positivo apontado nas discusses em grupo foi o fato deste mtodo
facilitar a negociao de seu uso, por ser novidade e no ter, portanto, o mesmo signifi-
cado negativo do preservativo masculino.
De m o d o geral houve u m estranhamento inicial - o condom feminino foi considera-
do grande e desajeitado. No final, apenas 22,1% consideraram esse aspecto negativo. Nos
grupos ocorreram muitas discusses a esse respeito, com posies divergentes. Algu-
mas mulheres ponderaram que a interferncia na esttica comprometia a possibilida-
de de seu uso; outras consideraram esse aspecto algo supervel, que gradativamente
seria incorporado.
Outros atributos negativos foram: difcil manuseio (15,8%) e incmodo provocado
pelo anel externo (11,6%). Muitas mulheres (46%) tiveram dificuldades iniciais para a
colocao do preservativo. No entanto, 87,5% afirmaram que, a partir da terceira coloca-
o, passaram a manuse-lo com facilidade. Outros obstculos ao uso foram o desloca-
mento durante a relao (15,2%) e o excesso de lubrificante (11%).
A participao em grupos de apoio, com outras mulheres da mesma faixa etria e
nvel socioeconmico, mostrou-se fundamental para a superao das dificuldades ini-
ciais. Nessas discusses afloraram temas referentes dificuldade de negociao de uso
do mtodo com o parceiro.
Em sntese, a avaliao final demonstra que o preservativo feminino pode ser uma
alternativa para muitos casais, mas que, para sua utilizao de forma adequada e cont-
nua, necessrio propiciar espaos para a troca de informaes e experincias.
Concluses
Os mtodos femininos de barreira podem e devem ser uma escolha adequada para
determinados perfis de mulheres, tanto pela sua ao contraceptiva, quanto pela prote-
o que oferecem - no caso do preservativo feminino - em relao preveno das DST/
AIDS. Mais do que isso, deve-se propriamente destacar que o preservativo feminino
representa uma importante alternativa para a preveno na transmisso sexual do HIV
Contudo, alguns aspectos devem ser considerados. As mulheres que escolhem os mto-
dos femininos de barreira adotam prticas distintas dos padres culturalmente vigentes
no Brasil, centrados na alta eficcia da plula e da esterilizao feminina. Portanto, alm
das dificuldades individuais vividas para o enfrentamento de u m mtodo novo, elas
sofrem o nus de optarem por u m caminho contrrio ao da maioria, o que exige maior
convico para a continuidade de uso. Diante desse quadro, os servios de sade prove-
dores deveriam prestar uma ateno especial a essas mulheres, principalmente no pe-
rodo inicial de adaptao ao mtodo, u m momento crtico para a sua manuteno.
Apesar de esses mtodos conferirem maior autonomia s mulheres, a percepo dos
parceiros em relao a eles se mostrou fundamental para a continuidade de uso, indi-
cando que as barreiras vaginais sob controle feminino podem facilitar a negociao
sexual, mas no eliminam a necessidade de comunicao entre o casal.
Por fim, faz-se necessrio, mais do que concluir, explicitar alguns desafios, que
dependem essencialmente de vontade poltica. A expressiva maioria das mulheres bra-
sileiras depende dos servios pblicos para o atendimento sua sade.
C o m o compatibilizar a realidade atual dos servios pblicos a essa necessidade de
apoio e respostas imediatas geradas pelo uso dos mtodos de barreira? Que estratgias
podem ser adotadas para ampliar a divulgao desses mtodos e como garantir subsdi-
os para que possam ter continuidade?
Diante desses desafios, urgente que esforos sejam concentrados na ampliao do
nmero e da diversidade de estudos sobre os mtodos de barreira vaginal, seguros,
eficazes e cuja aceitabilidade pelos casais assegure a preveno da gravidez indesejada,
das DST e da AIDS.
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10
Aborto Provocado:
a dimenso do problema e a transformao da prtica
Sarah Hawker Costa
Introduo
Prtica do aborto
Parece claro que o m t o d o utilizado para induzir o aborto afeta tanto a exten-
so quanto o tipo de complicao. Pesquisas de 1984 em favelas do Rio de Janeiro
d e m o n s t r a m q u e a insero de sondas corresponde a apenas 12% de todos os
mtodos, mas foi relativamente mais perigosa; que 50% dos abortamentos induzi-
dos por este m t o d o resultaram e m complicaes, em comparao c o m os 2 7%
causados pela induo medicamentosa (por injees ou via oral). O uso de sondas
foi associado a u m a alta taxa de infeces e perfuraes uterinas (Martins et al.,
1991). Estudos hospitalares da dcada de 80 c o n f i r m a m a alta prevalncia dos
mtodos invasivos. E m 1981, n o Sul d o Brasil, ficou demonstrado que 52% das
mulheres induziram o aborto via insero de sonda e 4% pela insero de objetos
slidos (Boehs et al., 1983). Estudo de 1988 n o Nordeste (Welkovic; Costa & Leite,
1991) t a m b m revelou alta proporo de mulheres (69%) que induziram o aborto
por meio da insero de sonda.
Relatrios mais recentes informam que a prtica do aborto tem sofrido grandes
alteraes, e drogas com propriedades abortivas - principalmente o misoprostol (anlo-
go sinttico da prostaglandina E l ) - assumiram importante papel neste cenrio (Coe-
lho, 1991). Vendida c o m o n o m e Cytotec, a droga licenciada para o tratamento de
lceras gstricas e duodenais. Como todas as prostaglandinas, o misoprostol estimula a
atividade uterina tanto q u a n d o utilizado isoladamente ou em associao c o m a
mifepristona (RU 468), ou methrotrexate (Norman; Thong & Baird, 1992; Aubeny &
Baulieu, 1991; El-Rafaey et al., 1995). O uso indevido da droga foi relatado pela primeira
vez no Nordeste, em Fortaleza, Cear. Inqurito dos pronturios de uma maternidade
indicaram a citao do misoprostol em 12% dos casos de aborto induzido tratados na
cidade em 1988. At 1990, o percentual alcanou 70% (Barros, 1991). Em 1991, relat-
rios de vrias partes d o Pas confirmaram o amplo uso da droga c o m o u m abortive O
rpido a u m e n t o t a m b m foi detectado em Goinia, n o Centro-Oeste - a venda
misoprostol entre 1987 e 1989 triplicou, mantendo-se em u m padro estvel at 1991
(Viggiano et al., 1996).
Farmcias, mdicos, as mulheres e a mdia foram os responsveis pela disseminao
da informao sobre a droga. A pesquisa de 1991 nos hospitais do Rio de Janeiro revelou
que a maior parte das mulheres que usou o misoprostol (84%) tomou conhecimento do
medicamento por amigos, parentes ou colegas. Uma minoria - 10%-teve como fonte o
farmacutico. importante ressaltar que embora o misoprostol seja aprovado para o
tratamento de lceras gstricas em 60 pases, no Brasil foi reconhecido, primeiramente,
por seus efeitos abortivos (Barbosa & Arilha, 1993).
A publicao de informaes sobre o uso macio da droga, em particular pela imprensa,
nos primeiros meses de 1991, deu margem a um debate intenso sobre o assunto. Alguns
mdicos e grupos de mulheres sugeriram que a disponibilidade do Cytotec era benfica,
porque outros mtodos de induo ao aborto eram comparativamente mais perigosos.
Tambm argumentou-se que a morbidade relacionada aos abortamentos diminuiu desde
que a droga passou a ser utilizada. Do outro lado, instituies e grupos ligados vigilncia
sanitria defenderam a retirada do Cytotec do mercado, por estar sendo vendido somente
por seus efeitos colaterais - a induo do aborto. Ao mesmo tempo, relatos sobre efeitos
adversos resultantes da exposio pr-natal a altas doses do misoprostol tambm contri-
buram para o 'clima negativo' na poca (Schonhofer, 1991; Fonseca et al, 1993).
A controvrsia resultou c m uma intensa campanha contra o medicamento. Em
julho de 1991, o Ministrio da Sade alterou os regulamentos de comercializao do
medicamento, em u m a tentativa de restringir seu uso c o m o abortivo. Assim, o
misoprostol poderia ser vendido apenas c m farmcias que retm a receita mdica para
uso oficial. Em quatro estados (Minas Gerais, So Paulo, Rio de Janeiro e Cear) as
restries foram ainda mais severas (IDEC, 1997).
importante lembrar que a maior parte das informaes sobre o uso da droga se
origina em estudos hospitalares. Ressalta-se que os dados se referem s mulheres que
tomaram o medicamento e, depois, procuraram auxlio do hospital. Isto pode acarretar
uma viso muito distorcida da droga como um abortivo: no existem dados sobre as mu-
lheres que ingeriram o remdio e no procuraram o hospital; sobre as situaes em que o
aborto se concretizou sem complicaes aparentes; ou, ainda, sobre os casos em
que a gravidez teve continuidade.
O estudo do Rio, por exemplo, mostrou que mais da metade das mulheres com
aborto induzido (57%) relataram o uso da droga isolado ou em combinao c o m
outro mtodo. Outros 13% declararam o uso de medicamentos que no conseguiam
identificar pelo nome. Conclui-se que a utilizao poderia ser de aproximadamen-
te 70% (Tabela 6). Mtodos tradicionais (chs de ervas, sonda, exerccios e presso
abdominal) corresponderam a 18% de todos os mtodos reportados (Costa, 1993).
Tabela 6 Distruibuio de 803 mulheres com casos de abor-
to induzido com base no mtodo usado e enfermi-
dade causada
Fontes:
(1)
COSTA&VESSEY, 1 9 9 3 .
(2)
FONSECA et al., 1996.
(3)
VIGGIANO et al., 1996.
(4)
M O U N A et al., 1996.
Aborto e contracepo
Os motivos que levam as mulheres a se expor aos riscos de uma gravidez indesejada
e ao aborto tm sido objeto de muito interesse e especulao. Muitas das pesquisas
neste campo tm sido realizadas sem se enquadrarem a uma abordagem terica espe-
cfica. O s modelos utilizados enfatizam desde os fatores individuais - estado emocional
ou caractersticas de personalidade - at variantes situacionais e sociais (Luker, 1977;
Morrison, 1985; Beck & Davies, 1987).
No Brasil, investigaes sobre os motivos pelos quais as mulheres abortam - da
mesma maneira que outros problemas ligados sade - tm c o m o foco o papel dos
fatores externos e problemas fundamentais e imediatos, associados baixa renda e
falta de servios bsicos de sade e educao (Viel, 1975). E m grande parte destes
estudos, tm sido utilizados mtodos demogrficos e epidemiolgicos descritivos.
Milanesi (1975) descobriu razes econmicas c o m o m o t i v o principal para a
induo ao aborto, e m pesquisa realizada em So Paulo e m 1969 - o m e s m o foi
registrado duas dcadas depois por Martins et al. (1991) entre mulheres residentes em
favelas do Rio de Janeiro.
A natureza da relao da mulher com seu parceiro tambm tem sido destacada
como u m fator importante. A instabilidade da relao ou a falta de apoio emocional e
econmico por parte do companheiro ao tomar conhecimento da gravidez tm sido
mencionados pelas mulheres c o m o u m a das razes para abortar (Costa et a l , 1987;
Paiewonsky, 1993). Em 1991, no estudo do Rio, 39% das entrevistadas relataram que elas
ou os companheiros simplesmente no queriam u m filho naquele momento ou mais
filhos no futuro; e 27% falaram que no tinham condies econmicas para criar outro
filho. Mulheres no auge do perodo reprodutivo mais freqentemente citaram razes
econmicas ou o desejo de no ter mais filhos, sugerindo que suas preocupaes vari-
am de acordo com a etapa de sua vida reprodutiva.
Em u m a tentativa de conhecer as possveis associaes entre os fatores de risco
para o aborto i n d u z i d o , a pesquisa realizada nos hospitais pblicos d o Rio de
Janeiro comparou u m grupo de mulheres hospitalizadas aps a realizao de abor-
tos inseguros c o m u m grupo que decidiu levar a gravidez a termo, pareados se-
g u n d o idade e n m e r o de filhos tidos. U m a anlise multivariada revelou a situa-
o conjugal c o m o maior fator de risco independente para aborto induzido que
resultou em hospitalizao. O s dados sugerem que as mulheres que vivem sozi-
nhas tm u m a probabilidade cinco vezes maior de viver u m aborto induzido do
que as casadas. U m risco muito alto tambm foi associado condio de trabalho
da mulher. As que trabalhavam fora de casa tinham 3,5 vezes mais probabilidade
realizar u m aborto do que as donas de casa - ainda em relao a estas, as estudan-
tes apresentaram u m a probabilidade quatro vezes mais alta. O s resultados t a m -
bm sugerem que mulheres c o m histria de pelo menos u m aborto anterior tm
duas vezes maior probabilidade de serem hospitalizadas por u m aborto induzido
do q u e as q u e n o t m este histrico. Este a c h a d o est de acordo c o m outros
estudos q u e m o s t r a m q u e o risco de a b o r t a m e n t o repetido m a i o r d o q u e a
possibilidade de u m primeiro aborto (Tietze, 1978; Forrest & Henshaw, 1984).
A l m disso, a pesquisa d o Rio revelou que mulheres que experimentaram u m
intervalo m u i t o curto entre a gravidez anterior e a atual apresentavam u m risco
alto de hospitalizao por aborto induzido.
Tabela 8 Resultados obtidos por anlise multivariada de
diversos fatores de risco do aborto induzido
Comentrios finais
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Morbi-Mortalidade
11
Introduo
1
Na Conferncia Internacional sobre Populao c Desenvolvimento (Cairo, 1994) e na IV Conferncia
Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), estabeleceu-se que os direitos reprodutivos tm por base "o
reconhecimento do direito fundamental de todos os casais e indivduos a decidir livre e responsavel
mente o nmero de filhos e o intervalo entre eles, e a dispor da informao e dos meios para tal e o
direito de alcanar o nvel mais elevado de sade sexual e reprodutiva. Inclui tambm o direito a tomar
decises referentes reproduo sem sofrer discriminao, coaes nem violncia" (Themis, 1997:74).
a demarcao do incio do perodo de tempo a ser considerado, entre elas, a entrada
na adolescncia (Evans et al. apud Graham & Campbell, 1991), a ocorrncia da menarca
(Wingo, 1996), o comeo da vida sexual ou a conjugalidade (Evans et al. apud Graham
& Campbell, 1991). A construo de u m a definio operacional c o m base e m u m
intervalo de idade resultaria na excluso de agravos que, embora relacionados fun-
o reprodutiva da mulher, ocorreriam fora dos limites do perodo, a exemplo das
patologias associadas ao climatrio. Alm disso, a segmentao do ciclo vital tem sido
criticada por comprometer a viso de integralidade dos fenmenos da sade-doena
influenciando - inclusive de forma negativa - a organizao dos servios de sade
(Graham & Campbell, 1991).
Outro aspecto controverso quanto definio de morbidade reprodutiva diz respeito
sua relao com a 'morbidade materna' (decorrente direta ou indiretamente de gravi-
dez), a qual pode ser tratada como u m componente da primeira ou no. N o caso de
excluso, a morbidade reprodutiva , ento, reconhecida por sua ocorrncia no pero-
do reprodutivo, fora dos intervalos obsttricos. Dessa forma, a sade da mulher englo-
baria os dois componentes: a 'sade reprodutiva' e a 'sade materna' (Graham & Campbell,
1991), o que restringe muito a abrangncia do primeiro componente.
De qualquer modo, a sade/morbidade materna referida ausncia/presena de
agravos ou doenas ocorridas em u m intervalo de tempo delimitado entre a contracepo
e o trmino da gestao, independentemente de sua durao, em uma aproximao ao
conceito de 'mortalidade materna'. Apesar de este ltimo ser largamente consagrado e
utilizado, no que diz respeito ao perodo de tempo a ser considerado, h controvrsias
entre os autores (Fortney, 1995; Campbell & Graham, 1990). Em grande parte da litera-
tura, o seu trmino coincide c o m o do puerprio, ou seja, 42 dias aps o final da
gestao, e desse m o d o que a 9 Reviso da Classificao Internacional de Doenas
(CID) o define (OMS, 1978). Todavia, o reconhecimento de que u m nmero expressivo
desses bitos, agravos ou doenas poderiam ocorrer aps o tempo estabelecido (Walker
et a l , 1986; Turnbull et a l , 1986), levou proposio de u m prolongamento do perodo
a
a ser considerado. Em conseqncia, a CID, em sua 10 reviso, embora mantendo o
limite de 42 dias aps a gestao, incorporou uma nova categoria: a 'morbidade/morta-
lidade materna tardia', que corresponderia quela ocorrida no intervalo de tempo entre
42 dias e u m ano aps o fim da gravidez (Laurenti, 1994).
Q u a n t o 'morbidade reprodutiva', caberia ainda discutir a natureza dos proble-
mas de sade a serem considerados. O conceito diz respeito a todos os agravos
sade da mulher n o perodo reprodutivo, ou apenas s patologias e agravos direta
ou indiretamente relacionados funo reprodutiva? A incluso de todos os even-
tos mrbidos ocorridos n o perodo reprodutivo traria dificuldade e m estabelecer
limites entre os conceitos de 'morbidade reprodutiva' e 'morbidade da mulher',
nessa etapa da vida, e m contrapartida, excluindo os problemas relacionados re-
produo em outras fases. A demarcao do que considerar como morbidade reprodutiva
no clara. Consider-la c o m o "doenas que afetam o sistema reprodutivo, mesmo
no se constituindo necessariamente uma conseqncia da reproduo" (Fortney,
1995: 3) sugere limites restritos sua conceituao. Tornaria difcil reconhecer, como
parte do grupo, os agravos sade decorrentes da reproduo, cuja repercusso dar-
se-ia em outros rgos e sistemas, a exemplo de algumas doenas cardiovasculares,
para as quais o uso de contraceptivo hormonal constitui-se u m dos fatores de risco.
Este problema poderia ser contornado, adotando-se a definio proposta pela O M S
(1989:2) que abrange:
qualquer morbidade ou disfuno do trato reprodutivo, ou qualquer morbidade conse-
qente ao c o m p o r t a m e n t o reprodutivo, incluindo gravidez, aborto, parto ou compor-
tamento sexual, p o d e n d o incluir aquelas de natureza psicolgica.
1
Citam-se, entre outras, BRUMINI, 1982; Ministrio da Sade, 1991a e 1991b.
mulheres. U m dos principais resultados desse processo foi a inflexo nos debates em
torno da reproduo h u m a n a de sua perspectiva de controle demogrfico para o reco-
nhecimento, como direitos humanos inalienveis, dos direitos sexuais e reprodutivos, os
quais, at ento, encontravam-se abrigados na sade reprodutiva (Corra, 1996).
Embora apresentando distintos potenciais de legitimao, esses termos tm sido
usados freqentemente de m o d o intercambivel, c o m o ficou ilustrado anteriormen-
te nas definies adotadas por diferentes autores (Fatalla, 1988; Germain, 1987 apud
Graham & Campbell, 1991). Alm das imprecises semnticas, nos debates atuais,
persiste at m e s m o a dvida se a sade reprodutiva u m conceito, u m c a m p o ou
apenas u m recorte de investigao. Mais do que uma questo acadmica, como bem
afirma Corra (1996:2):
(...) crucial predsar o contedo e o sentido dessas novas definies, seno por outra
razo porque podem ocorrer simplificaes e distores no contexto de sua aplicao nas
polticas pblicas e legislaes.
Fica clara, portanto, a necessidade de se explicitar essas dificuldades, para super-las.
O conceito de sade reprodutiva que emergiu da Conferncia do Cairo a define como:
o estado de completo bem-estar fsico, mental e social, e no meramente a ausncia de
doena e enfermidade, em todas as questes relativas ao sistema reprodutivo e s suas
funes e processos. (Themis, 1997:23)
2
Entre outros, o l Encontro Nacional sobre Sade, Sexualidade e Aborto (1983), no Rio de Janeiro; o l
Encontro Nacional de Sade das Mulheres (1984), em Itapecirica da Serra; I Conferncia Nacional de
Sade e Direitos Reprodutivos (1986); Encontro Nacional Sade da Mulher: um direito a ser conquistado
(1989), em Braslia.
so sobre o processo sade e doena. Aplic-las nesse campo implica desnaturalizar
diferenas entre homens e mulheres, entre homens e homens, entre mulheres e mulhe-
res; e evidenciar hierarquias e subordinaes, buscando entender como estas se produzem
e se reproduzem, e, particularmente, como se articulam com as iniqidades em sade.
No Brasil, os elementos que compem a reflexo e a luta das mulheres pela sade
tm includo
o q u e s t i o n a m e n t o acerca do saber e do poder mdico; a emergncia d o discurso das
mulheres sobre suas experincias corporais; u m a crtica c o n t u n d e n t e situao atual
do servio de sade; alm do e m p e n h o e m exigir d o Estado u m a maior eficcia n o que
se refere ao funcionamento do sistema de sade. (vila, 1993)
No momento atual, construindo-se uma agenda para a virada do sculo, duas ques-
tes parecem especialmente estratgicas: a incorporao de gnero sade reprodutiva,
desconstruindo a imagem da mulher como reprodutora e o seu reverso de que repro-
duo nada tem a ver com os homens; e a repolitizao das necessidades de sade, com
a retomada da nfase na noo de integralidade da assistncia, c o m base em u m a
concepo holstica de sade.
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12
Introduo
Metodologia
A medida mais usual nos estudos sobre o tema a Razo de mortalidade materna,
obtida a partir do seguinte clculo:
Fonte de dados
O s bitos
O s dados referentes ao perodo 1979 a 1993 foram obtidos junto ao Subsistema
Nacional de Mortalidade - M S (SIM), que nos permitiu ter acesso s informaes
sobre a causa bsica de morte, municpio de residncia e idade.
O s nascidos-vivos
As estimativas do nmero de nascidos-vivos para o Brasil, regies geogrficas, esta-
dos e capitais foram obtidas junto Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica (IBGE). Em relao ao nmero de nascidos-vivos, o IBGE fornece publica-
es anualmente sob o ttulo "Estatsticas do Registro Civil" com os dados coletados
diretamente no registro civil. No entanto, existe u m a srie de entraves na legislao
pertinente, c o m o a no-gratuidade do registro, que contribuem para o sub-registro
existente. Ainda que estas restries existam, o Registro Civil a nica fonte de
nascimentos que permite a construo de sries histricas.
Neste trabalho, foi utilizado o nmero de nascidos-vivos corrigidos para o registro
atrasado em at oito anos, fornecido pelo Departamento de Populao e Indicadores
Sociais (DEPIS) da IBGE. A partir desta metodologia, foi construda a srie de registros
tardios, entre 1974 e 1994. Para obteno do nmero de nascidos-vivos corrigido
para as regies metropolitanas foram utilizados os fatores de correo multiplicados
pelo total de nascidos-vivos e registrados n o ano, disponveis nas estatsticas do
Registro Civil. Para o clculo do nmero de nascidos-vivos corrigido segundo idade
da me, a distribuio etria proporcional dos nascidos e registrados n o ano do
Registro Civil foi aplicada ao total de nascidos-vivos corrigido, assumindo-se no
haver sub-registro diferenciado por idade materna.
Resultados
Fonte: MS/FIBGE.
Inicialmente buscaremos identificar c o m o se apresentam as regies d o Pas e m
relao aos nveis de mortalidade materna (Grfico 1).
20,00-
0,00 J , , . , r-^-i , . 1 . 1 1
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993
A regio Norte se destaca nesta anlise por possuir caractersticas bastante particula-
res e m relao tendncia do indicador. Em primeiro lugar, a nica regio onde se
observam, segundo os critrios descritos por Laurenti (1995), nveis muito altos do
indicador (116, 17 bitos maternos por 100.000 n.v.). Este fato se deu n o incio da
dcada de 80. Alm disso, apresenta tambm a maior variao mdia do indicador de
mortalidade materna do Pas, com reduo anual de cinco bitos maternos.
Em 1993, contrariando o esperado, constatou-se no Norte u m nvel mdio de mor-
talidade materna (47 bitos por 100.000 n.v.) inferior ao das regies Sudeste e Sul, mais
desenvolvidas. Q u a n d o se faz a anlise dos estados que a compem, constata-se uma
reduo das taxas de mortalidade materna - principalmente em Roraima e no Par, que
possuamos nveis mais elevados do Pas: 163,84 e 138,59, respectivamente.
Tambm cabe chamar ateno para o aspecto de a regio Nordeste, u m a das reas
mais carentes do Brasil, ser aquela de menores taxas de mortalidade materna (prximo
a 40 bitos por 100.000 n.v.) ao longo de todo o perodo estudado, com uma razo de
crescimento anual de -0,9 bitos matemos.Porm,nos estados da Bahia, Cear e Sergipe,
h registro de aumento da Razo a partir de 1989. No Rio Grande do Norte, a situao da
mortalidade materna permanece praticamente inalterada nestes 15 anos. Surpreende o
fato de este indicador na Paraba se encontrarem u m nvel considerado baixo, seme-
lhante ao de pases desenvolvidos, o que deve ser explicado pelo desconhecimento do
total de bitos matemos que efetivamente ocorrem.
Na regio Sudeste, embora tenha havido u m a tendncia de queda da Razo de
mortalidade materna, com u m a diminuio de u m bito materno ao ano durante o
perodo, este declnio se concentrou nos primeiros anos: em 1980, estima-se que te-
n h a m ocorrido 61.8 bitos maternos; em 1988, para cada 100.000 nascidos-vivos,
morriam 50 mes. Contudo, nos anos 90, no houve alterao significativa para as
mulheres em relao ao risco de morte materna. Se estratificamos este dados por esta-
dos, evidenciamos situaes diferenciadas. Enquanto no Rio de Janeiro este risco vem
aumentando, no Esprito Santo e Minas Gerais a Razo vem diminuindo e, em So
Paulo, se mantm relativamente constante.
Na regio Sul, ao analisarmos o perodo completo (apesar de o Rio Grande do Sul e o
Paran apresentarem uma tendncia de aumento das razes de mortalidade materna),
ainda prevalece u m a Razo de crescimento negativo de 0,1 bitos por 100.000 n.v. por
ano. Diferentemente das demais regies, esta apresenta, no perodo 1988 a 1993, u m
aumento contnuo da Razo de mortalidade materna, atingindo neste ltimo ano os
nveis de 13 anos atrs, colocando o Sul como a regio de maiores ndices - aproxima-
damente 59 mortes maternas por 100.000 n.v.
Na regio Centro-Oeste, a reduo foi mais acentuada (-1,9 mortes maternas/ano),
destacando-se o perodo ps-1988. A Razo variou entre 62 e 39,6 bitos matemos por
100.000 n.v. nos anos estudados. Dentro da regio, todos os estados tiveram reduzidas
suas taxas, destacando-se Gois, com Razo de 19,75 bitos maternos por 100.000 n.v.
em 1990.
Portanto, poderamos sugerir que a estabilidade alcanada pelo indicador em ter-
mos nacionais, na dcada de 90, fruto da diminuio da Razo de mortalidade mater-
na nas regies Norte e Centro-Oeste; da elevao da Razo na regio Sul; e da reduzida
alterao ocorrida nos nveis do Sudeste e Nordeste.
Em 1993, os maiores riscos para as mulheres situam-se em primeiro lugar no Sul,
seguido do Sudeste-o que seria u m paradoxo, se no fosse considerado o trabalho que
v e m sendo realizado nestas reas para melhorar a qualidade da informao sobre o
bito materno.
Se estratificarmos os nossos dados pelos estados e analisarmos a variao
percentual ocorrida entre 1980 e 1993, as reas com maiores descensos foram Gois
e Rondnia (Tabela 4).
Tabela 4 Variao percentual da razo de mortalidade ma-
terna entre os anos de 1980 a 1993
Discusso
Concluso
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675,1988.
Introduo
* O s autores agradecem a Catherine . Lowndes pela reviso do texto e sugestes; a Ana Cristina Gonalves Vaz
e Eleonora d'Orsi pela organizao dos dados de mortalidade no Brasil, e consulta ao SIA-SUS; e a Fundao
Ford, que financiou o projeto 950-0546 de anlise de dados sobre condies de sade da mulher no Brasil.
Este fenmeno particularmente notvel no caso da plula anticoncepcional: em uma
anlise objetiva, sem qualquer tentativa de introduzir juzo de valor, acredita-se que,
embora a plula no esteja associada diretamente maioria dos tumores reprodutivos,
seu consumo permitiu a ampliao da vida sexual da mulher, e com esta, as oportuni-
dades de infeco por agentes virais (herpesvirus, papillomavirus) associados ao cncer
de colo uterino e outros (vrus da hepatite e cncer de fgado).
No caso do cncer de mama, provavelmente o maior problema de sade pblica
associado ao cncer e m mulheres n o Brasil e em diversos outros pases industrializa-
dos, acredita-se que as modificaes associadas a mudanas na durao da vida
reprodutiva da mulher (menarca precoce, menopausa tardia, maior freqncia de ci-
clos hormonais decorrentes do menor nmero de gestaes) vm tendo u m importan-
te papel contributrio n o desenvolvimento deste tipo de cncer.
Acreditamos que ambos os exemplos revelam a dimenso de obstculos inerentes reso-
luo do problema do cncer na mulher adulta na atualidade. Alm de dependentes de avan-
os no conhecimento cientfico contemporneo, estes esto diretamente relacionados a u m
processo social mais amplo nas relaes produtivas que vem modificando a longo prazo o
padro de vida reprodutiva da mulher; e a caractersticas associadas, no plano individual,
esfera comportamental, freqentemente determinadas pela primeira condio.
Procuramos apresentar algumas das caractersticas da distribuio de algumas loca-
lizaes tumorals em mulheres adultas no Brasil, especificamente, cncer de mama, de
colo uterino, de outras localizaes uterinas e cncer de ovrio. Outras localizaes
tumorais em mulheres adultas no foram analisadas, uma vez que o interesse primrio
residia em caracterizar o problema do cncer na esfera da vida reprodutiva. O s padres
de distribuio da doena encontrados foram comparados entre algumas capitais no
Brasil e com a realidade observada em pases selecionados e, quando possvel, buscou-
se delimitar cenrios futuros para sua ocorrncia e controle no Pas.
Metodologia
Resultados
Apesar da menor incidncia de cncer de mama no Brasil que aquela observada em pases
europeus e na Amrica do Norte, a mortalidade por este tumor mais elevada em nosso
meio. Assim,PortoAlegre apresenta coeficientes de mortalidade por idade mais elevados do
que naqueles pases (Grfico 6), situao esta que se repete para outras capitais. Este fato
preocupante, pois uma anlise sobre a dinmica dos coeficientes de mortalidade por cncer
de mama ao longo de dcada de 80, tanto no perodo pr como no ps-menopausa, revela que
estes tem se mantido relativamente estveis, ou mesmo aumentado (Grficos 7 e 8).
Grfico 6 Mortalidade por cncer de mama segundo idade.
Brasil e outros pases 1988-1992
1000 ,
A anlise dos dados de mortalidade por cncer de colo uterino reiteram estas observa-
es quanto similaridade das curvas de mortalidade em cidades brasileiras (Grfico 12),
e seu distanciamento em relao s curvas de magnitude mais reduzida encontradas em
pases desenvolvidos (Grfico 13). Aevoluo da mortalidade por cncer de colo uterino ao
longo da dcada de 80 na faixa de 20-34 anos corrobora a gravidade da distribuio desta
doena, quer pela manuteno de nveis ainda muito elevados de mortalidade nas cida-
des nordestinas, quer por sua elevao em capitais das Regies Sul-Sudeste (Grfico 14).
Cncer de ovrio
Ao contrrio do observado nos Estados Unidos em outros pases industrializados onde
o cncer de ovrio ocupa a segunda maior causa de freqncia de tumores ginecolgicos,
ele tem representado ao redor de 3 a 5% dos casos novos de cncer em mulheres no Brasil,
seguindo em ordem decrescente de incidncia aos tumores de mama e colo uterino. Nos
Estados Unidos, a sobrevida aps cinco anos de diagnstico se situa ao redor de 41 % dos
casos, alcanando a cifra de 88% daqueles diagnosticados precocemente, o que mesmo
naquele pas somente ocorre com 23% dos diagnsticos desta neoplasia (Garfinkel, 1995).
Embora os mecanismos relacionados etiologia desta neoplasia sigam pouco iden-
tificados, acredita-se que os hormnios femininos possam ter u m papel importante na
etiologia da doena. Esta hiptese reforada pela observao de u m efeito protetor para
o desenvolvimento deste tumor proporcionado pela ocorrncia de gestaes mltiplas.
Mulheres expostas intensamente radiao ionizante - como as sobreviventes da bomba
atmica-tambm apresentaram riscos at duas vezes mais elevados de desenvolverem
cncer de ovrio. O s principais fatores de risco para o cncer de ovrio so, contudo, a
histria familiar desta neoplasia, com risco relativo superior a 17, e a nuliparidade, com
risco relativo de 4 (Morrow & Townsend, 1987).
A descrio na literatura cientfica de famlias com grande nmero de casos de
cncer de mama e/ou ovrio encontrou recentemente u m substrato no conhecimento
mediante a identificao de algumas mutaes no gene BRCA1, localizado no cromossoma
17 (Hall et al, 1990). U m a desta mutaes, a 185delAG, tem sido observada em freqn-
cia oito vezes maior em mulheres judias ashkmazi do que na populao geral, supondo-
se ser potencialmente capaz de explicar a agregao familiar de cncer de m a m a e
ovrio encontrada em algumas famlias daquela comunidade (Fitzgerald et a l , 1995).
A anlise dos dados de incidncia de cncer de ovrio ajustados por idade revela
coeficientes reduzidos nas cidades brasileiras estudadas, com exceo de Porto Alegre:
esta capital apresenta taxa aproximadamente duas vezes maior do que a de Campinas e
Belm, e relativamente similar quelas de Atlanta e de imigrantes askhenazi em Israel
(Grfico 15). Este padro novamente observado na comparao das curvas de incidn-
cia por faixa etria entre cidades brasileiras e naquelas em outros pases (Grfico 16).
Grfico 15 Incidncia de cncer de ovrio ajustada por idade
pela populao mundial, 1988-1992
ioo 1
1000 1
Concluses
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14
Introduo
* Agradeo a Francisco Incio Bastos (CICT/Ficouz) e Fbio Moherdaui ( M S , CN-DST/AIDS) pela leitura crtica
do texto e pelas correes lingsticas e sugestes teis quanto ao seu contedo; e a Fbio Moherdaui
pela proviso dos fluxogramas nacionais para o manejo sindrmico das D S T no Brasil.
de preveno das DST na mulher. As DST assintomticas so enfatizadas por constitu-
rem uma rea prioritria em termos do controle das DST na mulher. Concentraremos nossa
ateno mais especificamente nas DST que no a AIDS (tema j abordado especificamente
neste livro). Entretanto, sobretudo no contexto da sade pblica, existem inter-relaes,
como a interao entre as DSTe aAIDSe a preveno das DST/AIDS,que sero abordadas aqui.
O que so as D S T ?
Dixon-Mueller & Wasserheit (1991); BrunhamfcEmbree (1992); Sherris & Fox (1985); Wasserheit (1989); Holmes et al. (1996); Hughes (1994); Schulz et al. (1992); Meheus (1992).
Notas:
Infeces que podem ser endgenas ou transmitidas sexualmente.
A importncia relativa da transmisso sexual e parenteral varia em regies diferentes.
i As porcentagens em parnteses se referem probabilidade de complicaes em mulheres infectadas, e variam segundo os diferentes estudos,
w No estgio inicial da slfilis.
i Os danos ps-DIP aumentam com a idade da mulher, a gravidade da inflamao e a cada recorrncia de infeco.
Infeces do trato reprodutivo superior
Na ausncia de deteco precoce e tratamento apropriado durante a fase inicial,
algumas infeces d o trato reprodutivo inferior podem se espalhar para o trato
reprodutivo superior, podendo causar doena inflamatria plvica (DIP), ou seja, infec-
o do tero, das trompas de Falpio e/ou dos ovrios. Em pases desenvolvidos, aproxi-
madamente 10% de mulheres com infeco cervical por Chlamydia e 10-20% com infec-
o cervical por Neisseria desenvolvem infeces ascendentes (Wasserheit, 1989). Este
processo pode ocorrer espontaneamente, mas o risco de ele acontecer se amplia duran-
te procedimentos transcervicais como o parto, o aborto e a insero do DIU (dispositivo
intra-uterino).
Os microorganismos que mais freqentemente causam a DIP so a Chlamydia trachomatis
e a Neisseria gonorrhoeae (Quadro 1). As bactrias associadas vaginose bacteriana provavel-
mente agem c o m o co-fatores na infeco do trato reprodutivo superior, facilitando o
processo de disseminao das bactrias Chlamydia e Neisseria para o trato reprodutivo supe-
rior. O s sintomas da DIP so dor abdominal, febre, corrimento vaginal anormal e
sangramento irregular. Casos de DIP aguda no infreqentemente requerem internao
hospitalar. Entretanto, especialmente quando causada por Chlamydia, a DIP pode ser
assintomtica. Devido resposta imunolgica infeco, a DIP no-tratada, ou tratada
inadequadamente, seja ela sintomtica ou assintomtica, pode causar processos infla
matrios e cicatricials severos das trompas de Falpio e dos ovrios.
As D S T e o uso de anticoncepcionais
Epidemiologia global
Atualmente, as DST so o grupo mais c o m u m de doenas infecciosas notificadas na
maioria dos pases no m u n d o (De Schryver & Meheus, 1990). Alm da persistncia das
DST bacterianas clssicas (sfilis, gonorria, e cancro mole), durante as dcadas recentes
houve u m aumento na incidncia das DST 'de segunda gerao', incluindo a clamdia
e as DST virais como o HSV e o HPV Em grande parte dos pases industrializados, essas
'novas' DST se tornaram mais importantes do que as DST bacterianas clssicas; nos
pases em desenvolvimento, os dois grupos representam problemas de sade pblica
igualmente srios (De Schryver & Meheus, 1990). Entretanto, nos Estados Unidos, a
prevalncia de sfilis e gonorria tem aumentado dramaticamente entre certos grupos
populacionais em anos recentes, provavelmente em funo da pobreza e do consumo
de drogas (Aral e Holmes, 1991). O aumento na incidncia das DST que vem ocorrendo
em u m grande nmero de pases atribudo a fatores como mudanas no comporta-
mento sexual; ausncia de educao em sade; aumento da mobilidade geogrfica;
existncia de tabus sociais referentes s DST falta de reconhecimento do fato de que a
maioria destas doenas so tratveis; e o desenvolvimento de resistncia gnica aos
antibiticos por microorganismos causadores das DST (Passos & Fonseca, 1990).
A Organizao M u n d i a l da Sade (OMS) estimou que, em 1995, teriam ocorrido
333 milhes de casos de DST curveis no m u n d o (Tabela 1), dos quais 36 milhes na
Amrica Latina (WHO, 1995). Dois teros de todos os casos de DST ocorrem em pessoas
com idade inferior a 25 anos. Os dados de pases menos desenvolvidos so escassos, mas
as informaes disponveis sugerem que, em geral, as DST so mais comuns e mais
graves em pases em desenvolvimento (De Schryver & Meheus, 1990; Rowe, 1992), em
decorrncia da estrutura etria jovem; da pobreza; das ms condies de saneamento;
da falta e/ou m qualidade dos servios de sade pblica, e da prtica de autome
dicao c o m antibiticos. Freqentemente ineficaz devido prescrio errada, a
automedicao tambm contribui para aumentara taxa de resistncia gnica dos microorga-
nismos causadores destas infeces aos antibiticos (Gir et al., 1991; Magalhes, 1987).
bacteriana)
Fontes:
(1) (2) (3) (4) (5)
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( 1 5 ) (15)
Moherdaui et al. (1998); Lurie et al. (1995); Gonalves et al. (1984).
Notas:
*mulheres que fizeram o preventivo.
**Estudo multicntrico e m cinco centros de atendimento de casos de DST.
#mulheres c o m indicao clnica.
2
Ver captulo 20.
os conceitos de abordagem sindrmica das DST na mulher em suas clnicas de planeja-
mento familiar, no contexto da sensibilizao dos profissionais da sade quanto aos proble-
mas de DST do ponto de vista emocional e social, e da introduo de sesses de
aconselhamento individual e de grupo, incluindo, quando possvel, a participao dos par-
ceiros (Badiani et al., 1996; Costa ePetti,1997). Tais programas indicam a possibilidade da
introduo de servios para as DST mais efetivos, que visam a protegera mulher de infeco
na globalidade da sua vida, e no somente em termos de casos individuais de DST
Nestas situaes, alm da introduo da abordagem sindrmica para as DST, algu-
mas outras medidas de controle das DST assintomticas e seus efeitos secundrios
poderiam ser facilmente introduzidas desde j, e so justificveis diante das indicaes
existentes de uma elevada prevalncia de DST assintomticas nesta populao:
Concluses
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15
As vezes eu tenho que transar pra satisfazer a ele porque... tendo mulher dentro de casa... se eu no procurar
satisfazereleele vai procurar mulher na rua e a coisa que eu tenho o maior medo dessa doena, da AIDS.
No, quando eu toco[noassunto AIDS],eledesconversa.Diz: 'mulher boba, essa mulher s pensa em morrer,
s pensa em doena'...
Esse problema que eu t de infeco na urina dele e ele passa pra mim. por isso que eu as vezes falo pra ele:
usa camisinha. Mas ele no aceita.
Eu no converso leom o mando sobre sexo]. As vezes eu procuro conversar mas ele...'ah, vou sair um
pouquinho...'smprefuginh.Ertto, agora, sisti.
Sem camisinha, no tem. Hoje em dia eu jamais teria qualquer relao com qualquer outra pessoa sem
camisinha.[...]Eagora a AIDS, que no tem cura? eu sempre pensei muito: eu tenho meu filho, eu amo meu
filho e eu amo a mim. Ento, eu no vou morrer por causa de amor...
Essa falas so de mulheres pobres, casadas, com filhos, moradoras de uma comuni-
dade favelada da zona urbana do Rio de Janeiro (Simes Barbosa, 1993a). Elas expres-
sam a angstia, a perplexidade, o medo e a impotncia, mas tambm sua garra e cora-
gem no enfrentamento de u m duro cotidiano de vida em que as dificuldades de so-
brevivncia so muitas; as realizaes pessoais, poucas. A AIDS entra em suas vidas como mais
u m a preocupao, c o m o mais u m 'risco' que se acrescenta a tantos outros, alguns
mais imediatos e ameaadores. Estes depoimentos revelam desde o conformismo com
u m destino que parece previamente traado para as mulheres, suas contradies e
conflitos ao buscarem caminhos para lidar com temas to complexos quanto o amor, a
dependncia, a auto-estima, a fidelidade e o companheirismo-to arraigadas na cultu-
ra de gnero - at u m a consciente (e conquistada!) auto-estima, que no abre espao
para riscos que podem ser evitados, c o m o o caso do ltimo.
Fica claro que no se pode discutir a AIDS e seu enfrentamento sem compreender os
papis de gnero e todas as implicaes que esses tm nas relaes entre h o m e n s e
mulheres. A adoo de medidas preventivas, como o caso do preservativo, esbarra em
assuntos profundamente arraigados e sobre os quais ainda difcil dialogar, romper
barreiras (especialmente as emocionais), vencer medos, enfim, enfrentar abertamente
uma ameaa real vida de milhares, seno milhes, de homens, mulheres e crianas
em todo o m u n d o . Porm, importante ter clareza que a vulnerabilidade - tanto indi-
vidual quanto coletiva - ao vrus HIV varivel e depende de inmeros determinantes
sociais, econmicos, biolgicos e culturais. Desta forma, a vulnerabilidade feminina ao
HIV necessariamente remete s formas c o m o homens e mulheres se relacionam em
nossa sociedade, a dinmica de poder que perpassa tais relaes e o imaginrio coletivo
em relao aos papis de gnero - que, certamente, constituem importantes variveis
na conformao do atual perfil da epidemia (Pitanguy, 1995).
No campo das cincias da sade, a AIDS tem se mostrado u m campo frtil para o
(re)desvelamento das complexas relaes entre o biolgico e o social.
Para alm das interaes reconhecidamente produtivas e legitimadas entre as cin-
cias sociais e a medicina, coloca-se, mais do que nunca, a necessidade de se compreen-
der a doena tambm a partir de seu referencial social, cultural e poltico.
O enfrentamento da pandemia de AIDS e os conseqentes enfoques terico-
metodolgicos devem considerar que a distribuio de poder nas relaes entre
h o m e n s e mulheres na maioria das sociedades e, particularmente, os aspectos
vinculados s decises sobre os encontros sexuais entre uns e outras - alm da
a p a r e n t e m a i o r s u s c e t i b i l i d a d e das m u l h e r e s para a d q u i r i r a i n f e c o
heterossexualmente - constituem u m a dimenso complexa que provavelmente
continuar tendo efeitos decisivos na evoluo da epidemia em todas as naes e
grupos sociais (Cceres, 1995).
Neste campo, destaca-se a contribuio que a anlise de 'gnero' trouxe para a discus-
so da sexualidade nas ltimas dcadas, causando, segundo alguns(as) autores(as), u m
impacto revolucionrio, por meio da discusso e da crtica ao determinismo biolgico e
s conexes histricas entre a dominao masculina, a ideologia cientfica e o desenvol-
vimento ocidental da cincia e, em particular, da medicina (Vance, 1991).
Historicamente, a identidade feminina c a condio social da mulher estiveram
referidas a fatores biolgicos, caracterizando, com a ajuda da cincia, a chamada "infe-
rioridade biolgica da mulher" (Giffin, 1991). Com o surgimento da anlise feminista,
posteriormente incorporada discusso terica e acadmica pelo conceito de 'gnero',
a hegemonia das explicaes biolgicas foram sendo substitudas pela nfase na 'cons-
truo social da identidade feminina'. Dentro desta discusso, explicitado o papel
ideolgico da cincia que, via de regra, relegou a questo da mulher esfera do natural.
C o m o bem sintetiza Giffin (1991),
a tese 'mulher uma categoria biolgica' foi substituda pela anttese 'mulher uma
construo social' e, finalmente, pela sntese Os fatos biolgicos foram processados no
nvel do social, que inclui as atividades cientficas que, por sua vez, reforaram os
esteretipos tradicionais que enfatizam os fatores biolgicos'.
A s r e p r e s e n t a e s d e g n e r o n o c o n t e x t o d a e p i d e m i a d e AlDS:
'a doena deles nossa!!!'
1
Vulnerabilidade aqui compreendida como um conceito que avalia o risco de infeco para o HIV,
levando em conta o contexto socioeconmico e cultural dos indivduos e suas coletividades (MANN et al.,
1993). Tal conceito muito mais abrangente do que os anteriores - grupo de risco e, posteriormente,
comportamento de risco - pois considera que o risco que uma pessoa tem de se expor ao HIV , alm
de individual, coletivo e, alm de biolgico ou comportamental, cultural e poltico.
Com o passar do tempo, as mulheres constatam que os 'novos' mtodos no alteram
seu status c o m o cidads e trabalhadoras e trazem complicaes para sua sade. Alm
disso, o preservativo, o coito interrompido e a tabela - mtodos que pressupem a
participao masculina-foram isolados. C o m o surgimento da AIDS, as conseqncias
so visveis: os h o m e n s distantes das decises anticonceptivas; as mulheres,
'convencidas' sobre os benefcios dos novos mtodos.
Apesar de o preservativo feminino j estar sendo testado em vrios pases do mundo e
geralmente com boa aceitao pelas mulheres e seus parceiros, sabe-se que seu (alto) custo ser
problemtico para os pases pobres. Alm disso, pesquisas recentes revelam que, mesmo no
interferindo no prazer sexual das mulheres, a maioria dos motivos que estas apontaram para
gostar do preservativo feminino foram centrados na perspectiva masculina (Ray et al., 1995).
Atualmente, a alarmante opo das mulheres, especialmente as pobres, pela
laqueadura e outros mtodos irreversveis parece indicar que estas, n u m contexto de
opes limitadas, conforme Xavier et al., 1989: "pagam o preo das decises tomadas no
terreno da realidade objetiva: as precrias condies de vida, a oferta limitada de mto-
dos reversveis, a falta de assistncia adequada c a ausncia de solidariedade dos compa-
nheiros."
Os questionamentos que hoje so apresentados - e que representam u m desafio
urgente no s para os 'especialistas', mas para toda a sociedade so: como reintroduzir
o preservativo na vida sexual de homens e mulheres? C o m o superar e mudar u m a
histria que, c o m o se viu, tenta impor s mulheres u m discurso e u m conhecimento
que no levam e m conta suas reais necessidades, tanto biolgicas quanto afetivas e
sociais? C o m o trazer os homens para essa discusso de forma que estes assumam uma
participao responsvel e solidria no campo das decises sexuais?
A epidemiologia da A I D S e as mulheres
A maior parte dos homens, em diversas culturas ocidentais, considera o sexo com
preservativo desagradvel e desnecessrio, c tenta, de todas as maneiras, evit-lo. Para
muitas mulheres, o medo da infeco pelo HIV menor do que o medo de sugerirem
aos seus parceiros o uso de preservativos (Pearl, 1990). Alm disso, "as mulheres que
tentam introduzir o condom na relao so, freqentemente, percebidas como 'preparadas
demais' para o sexo, desconfiadas da infidelidade do parceiro, infiis ou mesmo infectadas
peloHIV"(Carovano,1991).
A maioria dos programas preventivos destinados s mulheres so dirigidos s trabalhado-
ras sexuais, vistas, conforme referido anteriormente, como "reservatrios de HlV que amea-
am a humanidade". Mais recentemente, novos programas tm sido criados para as mulhe-
res grvidas, o que reflete a preocupao com o crescente nmero de crianas infectadas.
As mulheres em idade reprodutiva so as mais negligenciadas: apesar de serem
relativamente mais bem informadas sobre sexualidade e planejamento familiar, e talvez
mais capazes de fazer escolhas mais maduras sobre seus comportamentos sexuais,
esto em risco crescente para a AIDS. Este o grupo que menos tem recebido ateno: so
as 'boas moas', representadas como assexuadas e que, s quando grvidas, so defron-
tadas com os riscos potenciais de estarem infectadas.
Ironicamente, apesar de serem mulheres em idade reprodutiva, o nico conselho
dado a elas que, ao se perceberem em risco, usem mtodos que evitam a concepo, o
que expe a contradio entre a preveno da doena e o papel reprodutivo da mulher.
Assim, as medidas de preveno que negam o papel reprodutivo da mulher vo ter u m
impacto limitado, bem como os mtodos que contradigam as normas de fertilidade das
sociedades. De acordo com Panos (1993):
O processo de tomada de decises sobre o uso do preservativo (e outros contraceptivos)
est relacionado a um conjunto de influncias sociais, econmicas e culturais que, alm
de muito complexo, sempre voltado para um reforo do perfil materno das mulheres.
Por fim, resta questionar e re-pensar o modelo de 'sexo seguro', surgido dos grupos
homossexuais americanos e que tem sido amplamente utilizado nas campanhas
educativas em AIDS, com forte apelo proteo do corpo e responsabilidade mtua,
alm da tentativa de erotiz-lo. Porm, sero essa estratgia e esse discurso adequados
para as mulheres? O que 'sexo seguro' para elas? A histria da sexualidade feminina
sempre remeteu para o 'sexo inseguro': o medo da gravidez indesejada, do aborto, do
estupro, do parto inseguro e em precrias condies etc. Alm disso, a temtica das DST
nunca esteve presente c o m o u m a preocupao, a no ser com as prostitutas. O s h o -
mens, nos seus papis sociais de 'protetores' da famlia e da prole, no se admitem como
'trasmissores de doenas' para a esposa/me.
Como, ento, se coloca a discusso do sexo seguro - que pressupe dilogo e confiana
mtuos - em uma cultura que no discute sexualidade, afeto e prazer; e em que o sexo
circunscrito ao m u n d o privado? Ser, alm disso, que oleitmotivdo sexo seguro - uso do
preservativo emtodosos encontros sexuais, independentemente do nmero de parcerias (e
que supe u m acordo tcito e silencioso sobre as inmeras parcerias) - o que desejam as
mulheres nas suas relaes afetivas/sexuais? Cremos que no. E m nossa pesquisa
com mulheres de baixa renda (Simes Barbosa, 1993a), constatamos que as entrevistadas,
embora associem em sua maioria o sexo seguro preveno de doenas, especialmente a
AIDS, O atribuem fidelidadedo companheiro.Porm,quase nenhuma confia nessa fidelidade:
"homem assim, impulsivo, no se controla".Poucasconseguem discutir com o companheiro.
A sada, para algumas mais temerosas, aconselhar o parceiro a usar a camisinha com as Outras'.
Porm, isso tem um custo emocional alto para as mulheres, como ilustra o seguinte depoimen-
to acerca da infidelidade do marido: "Eu preferia no saber Eu no quero, porque a verdade di
e eu tenho medo, ento. Eu no tenho estrutura suficiente pra suportar certas coisas."
Ser, ento, que devemos insistir no sexo seguro tal como est colocado? No seria
esse o momento de se investirem uma transformao mais profunda das relaes entre
os sexos? Devemos optar por uma linha mais 'pragmtica' de ao, ou investir nossos
esforos em transformaes e utopias? O discurso feminino aponta, nos parece, para o
segundo caminho. As mulheres continuam a desejar o amor-companheirismo, a des-
peito de todas as transformaes ocorridas em seu m u n d o produtivo-reprodutivo.
Todas essas indagaes nos apresentam o desafio de re-pensar no s as estratgias
preventivas, mas tambm a produo de conhecimentos sobre o m u n d o reprodutivo-
amoroso das mulheres que lhes proporcione maior visibilidade social.
Mais recentemente, vem-se colocando a necessidade - urgente e inadivel - de
incluso dos homens heterossexuais nas agendas de pesquisa e programas preventivos.
C o m o aponta u m a pesquisadora (Panos, 1993),
Para as m u l h e r e s , as m e n s a g e n s a t i n g e m apenas u m a m e t a d e d o casal. Q u a l q u e r
p r o p o s t a c o m o objetivo d e prevenir a t r a n s m i s s o h e t e r o s s e x u a l d o HIV d e v e
dirigir-se aos h o m e n s e s m u l h e r e s . Mas, na maioria das vezes, os h o m e n s heteros-
sexuais n o t m sido c o n s i d e r a d o s p b l i c o - a l v o . Eles p o d e m estar s e n d o c o n t e m -
p l a d o s p o r tabela, pelo fato d e serem parte de u m casal, o u , q u e m sabe, p o r q u e
t r a n s a m c o m prostitutas, m a s so p o u c a s as iniciativas q u e t e n t a m atingir os
h o m e n s d e u m a forma m a i s geral (...).
A epidemia de AIDS recoloca em pauta a longa e histrica luta das mulheres por seus
direitos reprodutivos. Afinal, quanto mais mulheres e m idade reprodutiva ficarem
infectadas e mais crianas desenvolverem AIDS, a procriao pode ficar sob u m controle
estatal ainda maior. Se todos praticarem o 'sexo seguro', no nascero mais bebs.
Ento, as mulheres podem ser o prximo - mas no o primeiro - grupo testado com-
pulsoriamente para o HIV c o m a presumvel separao entre as infectadas e n o -
infectadas (Simes Barbosa, 1993b).
No Brasil, como em outros pases, a maioria das mulheres est sendo diagnosticada-
muitas vezes compulsoriamente - para o HIV quando grvidas, ao procurarem assistn-
cia pr-natal. Como o teste anti-HIV vem sendo introduzido como rotina de pr-natal em
grande parte dos servios pblicos de sade, ao menos nos grandes centros urbanos, a
maioria recebe a notcia no meio de uma gravidez. Segundo pesquisa realizada em duas
maternidades pblicas do Rio de Janeiro, o nmero de gestantes que no sabiam que
estavam contaminadas cresceu 200% em trs anos (entre 1992 e 1995). Alm disso, o
percentual de gestantes infectadas passou de 0,9% para 2,7% no mesmo perodo (Jornal do
Brasil, 06/10/90). A maior parte dessas gestantes confirma o atual perfil de mulheres
infectadas: so mulheres casadas, monogmicas e sem noo de seu risco e de como
se contaminaram.
No Pas, j se Ouviram' falas neste sentido. Em 1993, o Ministrio da Sade anun-
ciou campanha para a 'preveno' da gravidez em mulheres infectadas. Posteriormente,
u m renomado mdico obstetra carioca, professor universitrio, se posicionou publica-
mente favorvel ao aborto obrigatrio para mulheres soropositivas. Posies como es-
sas, que podem parecer isoladas ou pessoais, expressam a viso de importantes segmen-
tos sociais, inclusive de formuladores de polticas pblicas.
Em relao ao sexo seguro, fundamental lembrar que gravidez e esterilizao no
protegem as mulheres de nenhum tipo de infeco: esses eventos importantes na vida
das mulheres sinalizam mudanas que requerem diferentes tipos de proteo e novas
maneiras de se pensar a segurana no sexo. A gravidez u m momento especialmente
vulnervel para as mulheres: h u m futuro beb a proteger, assim c o m o a prpria
mulher. A amamentao, por sua vez, tanto para as mulheres soropositivas como para
as que suspeitam ter o vrus (especialmente quando a mortalidade infantil elevada),
torna-se questo extremamente problemtica (Berer et al., 1995).
Muitas mulheres no se incluem na categoria das que procuram u m servio de plane-
jamento familiar ou matemo-infantil: so as esterilizadas; as que j passaram a menopausa;
ou as que no tm filhos. Os servios de preveno de cncer uterino poderiam ser o espao
para se abordar essas mulheres, mas so insuficientes na maioria dos pases pobres, sem
falar nas dificuldades de acesso aos servios, mesmo nos grandes centros urbanos.
Estas teses, relativamente pouco discutidas, somente emergiro se asDSTo HIV e a AIDS
forem inseridos na discusso da gravidez e da anticoncepo: para as mulheres - mas no
somente para elas - o conceito de segurana em relao s DSTe Aros, que significa a preven-
o de doenas que ameaam a vida, tambm relevante para a gravidez e a anticoncepo.
Somente quando todas essas questes estiverem juntas ser possvel comear a
compreender o significado de suas interconexes e o que deveria ser uma 'abordagem
integrada da sexualidade e da sade e os direitos reprodutivos'. Desta maneira,
crescentemente, as definies de sexo seguro se associam aos direitos, o que significa
colocar o debate no campo das lutas jurdica e poltica.
Mas no s. Praticar o sexo seguro, no por u m ms ou u m ano, mas por toda a vida,
muito mais difcil do que muita gente julga querer ou poder. A reside a complexidade
da questo que nos coloca o desafio de compreender como essas teses se configuram no
mbito das subjetividades e das culturas. H que se ressaltar que homens e mulheres, ao
longo de sua trajetria histrica, sempre aceitaram conviver com riscos, consciente-
mente ou no. Entre as mulheres na luta pelos direitos reprodutivos, houve u m enten-
dimento, nas ltimas dcadas, de que, quando elas controlarem sua fertilidade, tero
mais poder e direitos nos seus relacionamentos afetivos e sexuais. Hoje, constatamos
que o "buraco mais embaixo". O uso de conhecimentos sobre a anticoncepo certa-
mente permite maior controle sobre a fertilidade, mas isso no significa, necessariamen-
te, que as mulheres tenham controle sobre sua fertilidade ou sobre os outros aspectos de
suas relaes (Berer et al., 1995). Forem, indiscutvel que, quando o controle da fertilida-
de reduzido a informaes tcnicas e uso de mtodos, sem se discutirem a sexualidade
e as relaes de gnero, as mudanas so mais limitadas, e o poder menos ameaado
ou, at, no ameaado. Falar sobre sexoeameaador Educar os jovens para o sexo visto como
ameaador. Mudar as prticas sexuais c torn-las mais seguras percebido c o m o amea-
ador. ameaador para a autoridade masculina, parental, religiosa, enfim, para todos
aqueles que decidiram o que certo e o que errado para a sociedade como u m todo.
Ainda h muito que avanar. Tem havido sucessos, sem dvida, mas ainda h mui-
tos problemas e dificuldades. Quinze anos de epidemia u m tempo curto e valores e
crenas so muito profundos. Afinal,
Essas doenas (sexualmente transmissveis) sempre foram vistas como resultado de
uma sexualidade socialmente inaceitvel, de uma falncia moral do controle do indiv-
duo sobre seus impulsos e como uma punio pela transgresso de normas societais.
(Gostinetal,1995)
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de Janeiro: Vozes.
PARTE IV
Servios de Sade
16
Introduo
U m desafio inicial para a avaliao dos servios de sade 'para mulheres' ter clareza
sobre o objeto do qual estamos falando. Tradicionalmente, os servios de sade 'da
mulher' tm sido entendidos c o m o aqueles que atendem s necessidades de sade
relacionadas reproduo h u m a n a - atendimento pr-natal, ao parto e puerprio,
anticoncepo e, quando muito, deteco precoce de cncer nos rgos reprodutivos
ou tratamento de infertilidade. Esta abordagem, se ajudou a aumentar o acesso a estes
servios essenciais, tambm propiciou uma fragmentao no atendimento mulher,
cujos problemas de sade no se limitam aos rgos reprodutivos. A maioria dos conta-
tos das mulheres com o sistema de sade acontece por problemas agudos ou crnicos
de ordem no-reprodutiva. Esses contatos, geralmente, so Oportunidades perdidas'
para o atendimento s necessidades reprodutivas. Por outro lado, os servios de sade
'da mulher' mantm-se igualmente cegos quando deixam de apreciar as outras neces-
sidades da mulher como pessoa - problemas como hipertenso arterial, violncia do-
mstica ou o cncer. Pode-se argumentar que este problema no limitado a elas: a
organizao do sistema de sade como u m todo sofre de falta de integralidade tanto no
atendimento aos homens como s mulheres. No entanto, no atendimento a elas que
os servios de sade estabelecem estruturas c mecanismos especficos de parcializao
do cuidado, tornando esta falta de integralidade mais patente e suscetvel de crticas.
Quando se analisa o quadro de sade, detecta-se que, com a transio demogrfica e
epidemiolgica, h uma crescente carga de morbidade e mortalidade entre as mulheres
no relacionada reproduo (Figura 1). O Banco Mundial (1993) estimou que a porcen-
tagem de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (DALYS), devido aos problemas
de sade reprodutiva em mulheres de 15-44 anos, era de apenas 32% na Amrica Latina
(11% DST, 7% HIV e 14% materna) e 28% na sia, comparada com 60% na frica.
A expanso do acesso aos servios de sade, nos nveis primrio e hospitalar, tem
sido u m dos principais objetivos das reformas sanitrias das ltimas dcadas no Brasil
e n o m u n d o . Coerentemente c o m este objetivo, os indicadores de avaliao mais
utilizados diziam respeito a existncia de infra-estrutura fsica e h u m a n a e fre-
qncia de utilizao ou cobertura dos mesmos. O s dados de sucessivos inquritos
populacionais demonstram importante progresso na cobertura de servios bsicos de
sade reprodutiva e n o nmero de contatos da populao c o m o sistema de sade.
Em 1992, foram realizadas 13 milhes de internaes hospitalares pelo Sistema nico
de Sade (SUS) - mais de nove para cada 100 habitantes (Barros; Piola & Vianna, 1996).
Ressalte-se que os servios ambulatoriais so amplamente utilizados pela populao,
embora o nmero mdio de consultas por habitante ainda seja baixo. As mulheres so os
usurios mais freqentes dos ambulatrios. Pesquisa de demografia e sade, realizada em
1996 (Bemfam, 1997), documenta essas tendncias para a gravidez e parto.
D o processo de atendimento
Tecnologias e consumo
Novamente, o caso mais flagrante, citado no Brasil h mais de 2 5 anos (Mello, 1971),
do uso excessivo do parto cesariana. Este procedimento, to necessrio nas verdadei-
ras emergncias obsttricas, tornou-se objeto de lucro ou de convenincia para hospi-
tais e mdicos e smbolo de status social pela populao feminina, pese a evidncia dos
seus riscos maiores quando utilizado sem indicao obsttrica real. Enquanto u m m-
dico jamais pensaria em fazer uma apendicectomia apenas por solicitao (e qualquer
conselho de tica condenaria tal prtica invasiva e arriscada), no Brasil considerado
normal que a paciente ou o mdico escolham u m parto cesariana sem nenhuma indi-
cao. Seu uso como principal via de acesso a esterilizao cirrgica, quando h outros
mtodos tanto de anticoncepo como de esterilizao mais seguros, outro exemplo
no qual o sistema da ateno a sade no se importa em expor as mulheres desnecessa-
riamente ao risco de morte, infeco ou outras complicaes. N o campo cirrgico
ginecolgico, histerectomias e perineoplastias so outros exemplos de tecnologias que
fugiram a qualquer controle.
E m u m outro exemplo tragicmico, no fosse verdade, u m a clnica do Rio de
Janeiro faz, sem querer, u m a verdadeira caricatura da promoo da sade, promo-
vendo sua proposta para o atendimento preventivo mulher. A proposta envolve o
uso peridico de u m a imensa lista de testes desde ultra-som abdominal e cervical a
exames dermatolgicos completos. Embora cada teste tenha algum uso real na medi-
cina, o uso indiscriminado em mulheres saudveis levaria, sem dvida, a u m custo
elevado desnecessrio, alm de inmeros resultados falso-positivos e subseqentes
avaliaes c o m tecnologias e cirurgias igualmente desnecessrias para desmentir os
falso-positivos gerados. Esta comercializao da pseudo-promoo da sade da m u -
lher exemplificou a natureza mercantilizada do uso da tecnologia mdica e a perver-
sidade do acesso ao seu c o n s u m o . Em u m a cidade c o m o o Rio de Janeiro, na qual
milhares de mulheres c o m cncer de m a m a no conseguem deteco e tratamento
adequados, promove-se a mamografia para mulheres abastadas jovens. Demonstra
tambm a falta de preparao da classe mdica e da populao feminina para utilizar
estas tecnologias de forma apropriada.
No ltimo grupo, encontramos os produtos e servios que, embora sejam necess-
rios e teoricamente eficazes, chegam usuria de tal forma que sua utilidade real
esvanece. Por exemplo, em 1996 o IDEC, em conjunto com a Fundao Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ) avaliou 16 marcas de testes de gravidez para uso em urina, u m a tecnologia
simples de utilidade bvia. No entanto, a maioria se mostrou tecnologicamente obsoleta,
deixando de detectar a gravidez a partir do primeiro dia de atraso menstrual. Sete
produtos deixaram de cumprir c o m a sensibilidade que eles mesmos declaravam.
Outros produtos, vendidos por preos semelhantes, eram de boa qualidade. Havia testes
de boa e de m qualidade tanto para uso pela mulher em casa como para uso laboratorial.
Uma das marcas dava resultados falso-positivos. Esta falta de qualidade tem conseqn-
cias bvias. Das 25 mulheres entrevistadas, 11 tinham tido resultados falsos negativos
de testes de gravidez, atrasando seus cuidados pr-natais e potencialmente expondo o
feto a riscos. Em outros casos, exames falso-positivos podem levar mulheres a tentativas
de aborto sem sequer estarem grvidas. A falta de confiana nestes produtos leva mulhe-
res e mdicos a procurar testes de sangue mais caros e invasivos (Silver et al., 1996a).
Outro exemplo deste ltimo grupo so os preservativos masculinos, que hoje repre-
sentam (talvez junto com suas novas verses para uso feminino) o mtodo mais seguro
para preveno de transmisso do vrus da AIDS e outras doenas sexualmente
transmissveis. Tendo em vista esse papel essencial, o produto teria de chegar ao usurio
com u m a qualidade impecvel. No entanto, em 1996, o IDEC e a FIOCRUZ tambm avalia-
ram 20 marcas de preservativos masculinos no mercado brasileiro. Oito apresentaram
falhas nos ensaios relacionados segurana. O preo do produto (elevadssimo no
Brasil, entre 40 e 80 centavos por unidade) e o fato de ser distribudo nas farmcias ou
pelo sistema pblico no guardava relao com a qualidade (Silver et al., 1996b). Simul-
taneamente, com a finalidade de facilitar o comrcio entre pases, estava a ponto de ser
oficializada u m a nova norma para o Mercosul que reduzia as exigncias para o produ-
to. Estes resultados esto levando a uma rediscusso das normas vigentes e u m aprimo-
ramento do sistema de certificao de qualidade no Brasil, e mais recentemente, da
norma internacional da ISO. Ainda houve os casos recentes dos anticoncepcionais
Ciclo-21 e Microvlar, cujo uso foi associado gravidez e outros efeitos colaterais. N o
caso do Ciclo-21, somente aps u m longo perodo de denncias e investigaes alguns
lotes do produto finalmente foram retirados de circulao.
Estas situaes, como tantas outras, caracterizam novamente o que poderamos de-
nominar o 'consumo simblico ou fictcio de tecnologia mdica'. A fbrica produz o
produto, ou o profissional, o servio. O mdico prescreve. A consumidora o adquire, por
prescrio ou por automedicao. Gastam-se recursos. A utilizao traz algum resultado.
S que o resultado no aquilo que se esperava - muitas vezes implicando danos sade
e/ou gasto de recursos adicionais. O atual sistema de registro, inspeo e controle de
qualidade de produtos no Pas, bem como da qualidade da assistncia mdica tm se
demonstrado completamente ineficientes para efetivamente proteger contra este tipo de
problema. C o m a integrao econmica regional e o conseqente aumento dofluxode
produtos entre pases, bem c o m o o explosivo e desregulado crescimento do setor de
servios de sade com fins lucrativos, esta situao deve se agravar nos prximos anos.
A avaliao de tecnologias e de sua incorporao e uso pelo sistema de sade e pela
populao feminina constitui sem dvida outro dos principais desafios para a avaliao
da ateno sade da mulher.
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17
At o incio dos anos 80, a poltica governamental para a assistncia sade das
mulheres restringia-se ao ciclo gravdico-puerperal - o atendimento ao pr-natal, parto
e puerprio - preconizado pelo Programa de Sade Materno Infantil (PSMI), inspirado
nas recomendaes da Organizao Pan-Americana da Sade (OPAS), pautado pela estra-
tgia da interveno priorizada a grupos de risco ou situaes de vulnerabilidade. Dessa
forma, o PSMI foi criado no final dos anos 60 pela Diviso de Sade Matemo-Infantil da
Secretaria Nacional de Programas Especiais de Sade do Ministrio da Sade - (DINSAMI/
SNPES) e implementado pelas secretarias estaduais de Sade.
Ressalte-se que, quela poca, os programas de sade caracterizavam-se pela
verticalidade, ou seja, a partir da adoo de estratgias e recursos prprios - no mais das
vezes, sem articulaes entre as suas distintas propostas de implementao. O PSMI,
tipicamente direcionado ao cuidado de grupo populacional vulnervel, coexistia com
outros programas destinados ao controle de patologias, sem a conseqente e necessria
articulao entre as suas aes estratgicas.
Nessa ocasio, o conceito de verticalidade com centralizao do sistema foi prati-
cado na radicalidade, caracterizando-se pelo estabelecimento de metas operacionais
para os servios a partir de definies centrais formuladas pelo Ministrio da Sade,
sem qualquer relao c o m as necessidades identificadas por meio de avaliao da
epidemiologia local. Caracteriza-se, ainda, pela vinculao de recursos financeiros
especficos ao cumprimento destas metas. O que significa que os recursos j chega-
vam aos estados e municpios predestinados a determinado uso, no permitindo aos
gestores locais a programao de aes mais adequadas s reais necessidades de sade
de suas populaes.
Na prtica, o resultado desta filosofia foi a segmentao da assistncia sade e o
privilgio da realizao de determinadas intervenes, nem sempre as mais necessrias
s situaes reais de sade. Alm disso, os recursos humanos, tanto no mbito da coorde-
nao como no de execuo, recebiam freqentemente complementaes salariais prove-
nientes destes programas, criando u m evidente constrangimento para a gesto esta-
dual. Tais privilgios estruturam o verticalismo de mando direto da federao sobre os
estados e municpios, estimulando o clientelismo e dificultando a gesto do sistema.
Longe de se constituir em estratgia adequada na implementao do S U S , a
verticalidade programtica, caracterstica marcante da cultura sanitria em nosso pas,
ainda persiste. O exemplo emblemtico disso, embora no exclusivo, o Programa de
Controle das Doenas Sexualmente Transmissveis (DST) e da AIDS que surge e se
implementa com estas caractersticas. O pnico social diante da epidemia da AIDS per-
mitiu, no Ministrio da Sade, o recrudescimento da interveno vertical, na contra-
mo dos princpios da reformulao do modelo assistencial necessrio ao S U S - que
envolve a horizontalizao com base na epidemiologia local da programao de sade,
fundada nos princpios da integralidade e da eqidade.
Ressaltamos, ainda, que outros programas ministeriais, contemporneos ao PSMI,
mesmo oferecendo aes para a assistncia a problemas relacionados s mulheres, no
se articulavam entre si. Exemplificando: o controle de cncer crvico-uterino realizado
pelo Programa de Doenas Crnico-Degenerativas no articulava, na execuo, com o
PSMI no diagnstico do cncer ginecolgico naquelas oportunidades de contato das
mulheres com os servios nas atividades preconizadas para as atendidas no pr-natal.
Desta maneira que se constata que o mesmo grupo populacional figura como 'alvo' de
vrios programas governamentais que so implementados isolados e verticalmente.
Desta forma, a mesma mulher, para acessar os cuidados para sua sade, deve buscar, em
momentos distintos, equipes e pronturios tambm distintos - o que, no mnimo,
irracional pelo ponto de vista da gerncia e, para as mulheres, dificulta o acesso, ao
mesmo tempo em que afasta o servio do projeto da assistncia integral.
Importante salientar que, freqentemente, tanto no campo da promoo, da pre-
veno ou da recuperao, muitas aes propostas e realizadas pelos diversos progra-
mas eram coincidentes ou paralelas. O planejamento das aes oferecidas era realizado
de forma isolada e o desempenho de cada atividade avaliado per se sem qualquer aborda-
gem da eficincia e eficcia para a sade do grupo atendido. Desta forma, freqentemente,
os programas verticais sobrecarregavam estados e municpios c o m u m a burocracia
inconseqente e intil, resultando em baixo impacto nos indicadores de sade.
Na prtica, o significado desta situao de segmentao dos programas de sade
reflete a ausncia de uma viso integral de sade e do indivduo (no caso em anlise, s
mulheres), ao mesmo tempo consagrando a tendncia da especializao nas profisses
mdicas. A adoo destas lgicas na organizao dos servios compromete resultados de
impacto sobre a sade da populao atendida. Nas estruturas gestoras do Ministrio da
Sade e das secretarias estaduais era evidente a ausncia de integrao das equipes
responsveis pelos distintos programas. De modo geral, tais setores esto pautados por
uma abordagem restrita a partir de enfoque embaado sobre os verdadeiros problemas
de sade - institucionais e epidemiolgicos - a serem enfrentados. Por outro lado, suas
estratgias de interveno, baseadas em normas e parmetros ministeriais rgidos, ga-
rantiam o desempenho a partir dos objetivos dos programas, raramente coincidentes s
necessidades dos servios e populaes atendidas.
Para os servios, esta situao manifesta-se na irracionalidade e no paralelismo das
aes de sade oferecidas populao. Isto se expressa nas formas de sua organizao,
distribuio da oferta de atividades, equipe e horrios de atendimento, entre outras. As
vtimas deste processo, sem dvida, so os usurios dos servios, que recebem uma
assistncia compartimentada, desqualificada e, no mais das vezes, ineficaz. Em linhas
gerais, foi muito baixo o impacto epidemiolgico destes programas, exceo daqueles
voltados ao controle das doenas infecciosas, prevenveis por imunizao.
No que diz respeito especificamente temtica reprodutiva e ao controle da
fecundidade, a dcada de 70 assistiu a u m amplo e vigoroso debate sobre as polticas
demogrficas, polarizadas entre os pr e os anticontrolistas. Isto repercutiu, imobili-
zando as tmidas e equivocadas iniciativas do Ministrio da Sade sobre a incorporao
de aes de planejamento familiar no PSMI. A revitalizao do debate sobre a temtica
da populao se deu pelo alarde em torno da exploso demogrfica. O crescimento
demogrfico - a princpio apresentado c o m o causa de desenvolvimento - posterior-
mente passa a ser responsabilizado pela degradao ambiental. N o entanto, agora, a
distncia histrica destes argumentos j permite constatar que os problemas de desen-
volvimento ou do meio ambiente no esto resolvidos, apesar da grande reduo das
atuais taxas de crescimento populacional e da fecundidade.
C o m o referncia setorial para anlise das condies que possibilitaram a formula-
o do PAISM, O processo da reforma sanitria, pano de fundo para as inovaes da sade
no Brasil, encontrava-se em plena gestao nos anos 70 e 80. A partir da, desenvolve-se
u m conjunto de conceitos e princpios capazes de conferir ao sistema de sade eficcia
e qualidade, com impacto nos indicadores de sade do Pas. Entre estes, o princpio da
integralidade, que entende a assistncia organizada e voltada para o indivduo na sua
singularidade e totalidade holstica, envolvendo ainda a implementao de polticas
intersetoriais. Nos aspectos especficos da poltica de assistncia sade, preconiza a
oferta de aes sincronizadas de promoo, proteo e recuperao, ampliando, assim,
o ento vigente conceito de sade.
Mesmo com o ambicioso objetivo de reverter os graves coeficientes de mortalidade
infantil e materna por intermdio da assistncia mdico-sanitria, o PSMI focalizava
como objeto de suas aes o binmio 'me-filho', em que me estavam reservadas
aes de assistncia ao pr-natal, ao parto e ao puerprio. Timidamente, vez por outra,
nas reformulaes anuais rotineiramente realizadas do PSMI, eram agregadas orienta-
es para a oferta de aes referentes ao controle da fecundidade. Estas, n o entanto,
surgiam sob os conceitos de espaamentos de gestao, planejamento familiar ou de
paternidade responsvel. A poca, o Ministrio da Sade esteve sistematicamente recua-
do diante do debate social realizado sobre as polticas demogrficas - o qual no propi-
ciou uma situao de consenso que permitisse ao Ministrio agir no campo reprodutivo,
salvo nos aspectos da promoo da natalidade.
Sobre isto vale a pena refletir u m pouco mais, tendo c o m o pressuposto que esse
tema atraiu, e ainda hoje atrai, divergncias localizadas n o campo ideolgico, moral,
religioso e tico e sua discusso desenha u m complexo mosaico.
Contando histria
Mais adiante, o NSSM-200 define algumas estratgias que foram desenvolvidas mais
tarde em nosso pas. Ao lado da ndia, Bangladesh,Paquisto,Nigria, Mxico, Indonsia,
Filipinas, Tailndia, Egito, Turquia, Etipia e Colmbia, o Brasil figurava como prioridade.
Coincidentemente, no Brasil dos anos 7 0 (poca marcada pelo endurecimento da
ditadura militar), refora-se entre os militares o discurso da segurana nacional ameaada
pelo grande contingente de pobres e famlias numerosas, 'presas fceis' para a propa-
ganda de idias subversivas (Fonseca Sobrinho, 1992). Ressalte-se, ainda, o recrudesci
mento de idias eugnicas expressas, por exemplo, na declarao do general Valdir
Vasconcelos sobre a condio de sub-raa de brasileiros que no atingiam as condies
fsicas e de sade exigidas para o ingresso no servio militar, indicando, segundo ele, a
premncia de controlar nascimentos desta 'subespcie'.
A sbita radicalizao do discurso dos militares em relao temtica da populao,
no incio da dcada de 80, talvez tenha sido o toque necessrio para provocar a conforma-
o do cenrio que resultou na formulao do PAISM, incluindo novos atores no processo.
U m espao aberto pelo Ministrio da Sade, pelo ento secretrio-geral Mozart de Abreu
e Lima, permitiu que tcnicos do setor de reconhecida posio crtica situao vigente
e professores universitrios, especialmente da Universidade de Campinas (UNICAMP), for-
mulassem uma proposta preliminar de programa. Na seqncia, esta proposta foi ampla-
mente debatida na comunidade de sade, no movimento da reforma sanitria e ainda
com militantes do incipiente movimento feminista que se estruturava poca no Pas.
Desta forma, a criao do PAISM neutraliza as polarizaes e inclui uma prtica de discusso
com o grupo populacional objeto da poltica, ou seja, as mulheres - at ento, alheias
discusso. assim, ento, que o PAISM passa a ser u m assunto de mulheres (Costa, 1996).
Desde a dcada de 60, inspiradas no feminismo internacional e no clima da liberda-
de sexual conferida pela plula contraceptiva, as mulheres brasileiras vinham proces-
sando a ruptura c o m o clssico e exclusivo papel social que lhes era atribudo desde
sempre: a maternidade e a profisso de dona de casa. Gradativamente, crescia o com
parecimento feminino no mercado de trabalho e aumentava o nmero das que in-
gressavam nas universidades, construindo uma cultura de cidadania feminina. Nesse
contexto, elas passam a demandar pelo controle da fecundidade, com claras aspira-
es por vivncias sexuais desvinculadas da procriao. N o entanto, os servios de
sade ainda no estavam habilitados ao atendimento destas necessidades, restrito
apenas aos servios - de baixa cobertura e de qualidade duvidosa - oferecidos pelas
instituies do tipo BEMFAM ou CPAIMC.
no contexto desta conjuntura que surge o novo discurso, costurado no tecido dos
direitos e talhado na segurana da sade e na autonomia das mulheres e dos casais na
definio do tamanho de suas proles. Em 1983, o Ministrio da Sade, na figura do
ento ministro Valdir Arcoverde, anuncia o PAISM em depoimento para Comisso Parla-
mentar Mista de Inqurito (CPI) que investigava o crescimento populacional no Con-
gresso Nacional. O programa deveria ser desenvolvido pela rede pblica e conveniada de
sade e alicerado nas programaes locais, ajustando-se s necessidades e especificidades
epidemiolgicas e s prioridades de cada municpio e sua base populacional.
A moldura que permitiu esta formulao programtica foram a reforma sanitria e
os princpios do SUS, e sua anunciao como bases para uma ao programtica faz do
PAISM O primeiro e talvez ainda nico programa de sade adequado aos princpios da
descentralizao, recusando as estratgias verticalizadoras nas suas bases conceituais e
doutrinrias. Isto no significa que as prticas utilizadas em sua implementao te-
n h a m sido inovadoras, ou que tenham rompido com a cultura dos programas verticais.
Ao contrrio, o prprio Ministrio da Sade ainda no processou suas novas funes
requeridas pelo SUS e continua, ainda hoje, agindo de forma centralizada e desarticulada.
O PAISM constitui-se de u m conjunto de diretrizes e princpios destinados a orientar
toda a assistncia oferecida s mulheres das distintas faixas etrias, etnias ou classes
sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente detectveis - incluindo as demandas
especficas do processo reprodutivo. Compreende, ainda, todo o conjunto de patologias e
situaes que envolvam o controle do risco sade e ao bem-estar da populao feminina.
Desta forma, as orientaes e diretrizes do programa devem estar voltadas transver-
salmente s distintas reas de organizao da assistncia no mbito das instituies do
sistema de sade. Isto significa a adoo destes princpios e orientaes para todo atendi-
mento oferecido s mulheres pela rede de sade, incluindo as situaes de emergncia,
internao hospitalar, aes de sade mental, ateno clnica, cirrgica, ou mesmo nas
especificidades ligadas sade da mulher trabalhadora. Assim sendo, o PAISM exige aes
e estratgias harmonizadas a partir das distintas reas e setores das instituies do SUS.
As suas linhas estratgicas de interveno explicitam e aperfeioam o conceito da
integralidade por meio da oferta de aes educativas, promocionais, preventivas, de
diagnstico e de recuperao da sade. O destaque conferido s aes educativas obje-
tiva intervir nas relaes de poder das mulheres tanto com os servios de sade como
nas demais situaes relacionais assimtricas para as mulheres. Esta estratgia tem por
inteno estimular nas mulheres mudanas em relao ao autocuidado e apropriao
de seus corpos e controle de sua sade.
A incluso das aes de planejamento familiar ou de controle da fecundidade no PAISM
no pode significar qualquer priorizao destas aes e m detrimento de outras,
identificadas no diagnstico epidemiolgico. Este princpio capaz de permitir uma inter-
veno efetiva na sade de uma forma geral e, em particular, nos aspectos da reproduo.
O controle da fecundidade n o deve acrescentar n e n h u m risco sade das
mulheres. Isto deve ser garantido a partir da abordagem integral, d o acompanha-
mento clnico e ginecolgico, tanto na indicao c o m o n o seguimento do uso de
mtodos contraceptivos.
O avano deste conceito de poltica de sade integral para as mulheres coloca o
Brasil em u m a situao privilegiada internacionalmente. As conquistas recentes sobre
os direitos reprodutivos - inscritas nos documentos que emergiram das conferncias
do Cairo (Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento, 1994) e de
Beijing (Conferncia sobre a Mulher, 1995) - que recomendam a oferta de programas de
sade sexual e reprodutiva aos homens e mulheres no deveria limitar as polticas
brasileiras mas sim amparar os avanos conceituais j institucionalizados aqui.
Reconhecendo no mbito internacional o grande avano contido nestas recomen-
daes, necessrio alertar que, no caso brasileiro, no so aceitveis recuos em relao
ao aspecto do conceito da integralidade assistencial. Estes documentos internacionais
devem ser usados no reforo e na consolidao da prtica desta poltica. O argumento
da incluso do h o m e m nas aes de sade reprodutiva, supostamente tido como novi-
dade, est implicitamente contemplado nos princpios do PAISM e, explicitamente, nas
diretrizes que orientam a integralidade assistencial preconizada para todos os indiv-
duos atendidos pelo SUS.
1
Sade Reprodutiva, u m conceito e m negociao
1
A ntegra do Plano de Ao do Cairo encontrada em LASSONDE, 1997.
na importncia do desenvolvimento, ao passo que os industrializados sustentavam
que, sem o planejamento familiar e a conseqente queda de fecundidade, as economias
dos pases do Sul no avanariam.
Na Conferncia do Mxico (1984) organizada uma petio de grande parte dos
pases em desenvolvimento, buscando junto comunidade internacional ajuda tcni-
ca e financeira para a implementao de programas de controle da natalidade. Atribuiu-
se grande importncia ao crescimento populacional, relacionando-o situao de de-
senvolvimento. Para surpresa geral, os Estados Unidos, naquele momento, assumem
outro discurso, diferente do anteriormente explicitado. Afirmam que o crescimento
demogrfico evento de efeito neutro no desenvolvimento e que as verdadeiras causas
de subdesenvolvimento estavam relacionadas excessiva centralizao de suas econo-
mias, que impunha presses artificiais ao mercado. Claro que esta argumentao estava
dirigida especialmente aos pases socialistas e comunistas, e sua base estava fundamen-
tada na idia de que possvel adaptar-se ao crescimento demogrfico medida que os
mercados funcionem bem.
Desta forma, os Estados Unidos seguem defendendo as suas idias sobre o desenvol-
vimento, mas a reduo do crescimento demogrfico j no constitui condio para
alcan-lo. Substituindo a orientao de reduzir a fecundidade e o crescimento
demogrfico, passam a preconizar a liberdade dos intercmbios comerciais, o esprito
empresarial, a ajuda internacional e a diversificao da fontes de investimento.
Na Conferncia do Cairo, os debates assumem u m a lgica distinta. A reunio
marcada pela discusso sobre a desigualdade entre os sexos, a luta contra a pobreza, as
reivindicaes dos movimentos religiosos e a busca de identidade cultural.
Assim, de forma geral, identifica-se que, em que cada conferncia, prevalecem cor-
tes ideolgicos distintos, desenhando, de forma reduzida, os formatos: e m Bucareste
evidencia-se o debate Norte/Sul; no Mxico exibe as diferenas entre Leste/Oeste; no
Cairo, debate-se a polarizao entre os defensores de sociedades laicas e os de concep-
es teocrticas ou fundamentalistas. a que se evidencia a oposio entre os que
defendem os direitos sexuais no campo da reproduo e da sexualidade e aqueles que
consideram que os estados tm o papel de restringir estes direitos em nome de valores
culturais e religiosos.
Estas posies antagnicas e polarizadas imprimem profundidade aos valores sociais
e morais na discusso da temtica da vida, da sexualidade e da morte em busca de u m
consenso internacional. Este debate, sem dvida, foi em parte provocado e sustentado
pela forte presena do movimento feminista, que jamais havia alcanado tanto prest-
gio nas negociaes internacionais.
Salienta-se que este prestgio deve-se s alianas que o movimento feminista esta-
beleceu, em especial com o chamado Grupo Populao -bastante experiente em nego-
ciaes similares anteriores, com o prprio governo norte-americano (ator determinante
nas negociaes). O movimento feminista ainda contou com o expressivo trabalho da
secretria-geral da conferncia, que ofereceu apoio pessoal temtica de interesse para
as mulheres (Lassonde, 1997).
O GrupoPopulao u m movimento de origem americana que tem objetivos inter-
nacionais. Ele aglutina representantes do meio acadmico, governamental, das ONGs e
dos meios de comunicao. Na Conferncia do Meio Ambiente (1992), o Rio de Janeiro
comea uma relao deste grupo com as feministas. Primeiro, uma relao de conflito;
depois, de aproximao, baseada na discusso sobre o desenvolvimento sustentvel e a
dimenso demogrfica. Aposio das feministas firme sobre a no-incluso da temtica
populao em uma conferncia sobre o meio ambiente, j que isso impediria o avano
social das mulheres. Segundo Louise Lassonde, o argumento de que era necessria a
implementao do planejamento familiar-defendida pelo GrupoPopulao-eravisto
c o m o u m a acusao de que o ventre feminino era o responsvel pela degradao
ambiental. O que estava posto, na verdade, era o ressurgimento do debate sobre o livre
arbtrio das mulheres nas decises reprodutivas contra a interveno estatal no contro-
le dos nascimentos, desta vez tendo c o m o contraponto o argumento ecolgico-
preservacionista defendido pelo Grupo.
Importante lembrar ainda que, naquela ocasio, c o m o objetivo de neutralizar a
influncia do Grupo Populao, o movimento feminista se apoia no Vaticano na defesa
de uma plataforma c o m u m para limitar a presena do planejamento familiar na Agen-
da 21, resultante da conferncia. O governo americano tambm d apoio a esse acordo
ttico, avaliando as devidas compensaes decorrentes da ausncia da temtica
demogrfica na Agenda 21 e o fortalecimento de pautas sobre modelos de produo e de
consumo, sobre os quais os Estados Unidos mantiveram-se firmes nas negociaes de
preservao do American way of life.
Aps a Conferncia do Rio houve muitas mudanas nas relaes entre os grupos de
atuao no cenrio internacional, configurando as alianas que chegaram ao Cairo.
Logo no incio da fase de preparao para o Cairo, a aproximao entre as feministas e
o GrupoPopulaobuscava u m acordo c o m u m , que permitisse a conciliao de inte-
resses dos dois grupos e o conseqente fortalecimento de suas posies na confern-
cia. De u m a forma geral, o Grupo Populao abandona a nfase em relao ao plane-
jamento familiar, ao adotar a prioridade das feministas: a defesa dos direitos, da sade
e da posio social das mulheres. D o consenso surge a noo de sade reprodutiva a
partir da adotada pelos dois grupos (Lassonde, 1997). Este consenso seria ampliado nos
acordos firmados nesta conferncia, contabilizando, sem dvida, grandes avanos para
os grupos envolvidos.
No entanto, a criao do conceito de sade reprodutiva - ainda que vitorioso do
ponto de vista da poltica internacional - no d conta das mltiplas dimenses e com-
plexidades da sade. Isto j fica explcito no Programa de Ao emanado pela prpria
conferncia, ao definir que "sade reprodutiva refere-se ao estado de bem-estar fsico,
mental e social das pessoas relacionados ao aparelho genital e seu funcionamento". Se a
definio da sade adotada pela O N U j era passvel de limitaes conceituais, fica
realmente complicada quando o mesmo conceito aplicado ao aparelho genital que o
reduz ainda mais.
Do ponto de vista operacional, realizar programas ou projetos de assistncia sade
reprodutiva sem uma concomitante abordagem integral pode incorrerem importan-
tes riscos para as mulheres. Isso acontece medida que fatores e situaes relacionados
a outros aparelhos ou funes de u m indivduo tm relao direta com as tecnologias
usadas nas prticas da abordagem reprodutiva. Isto remete necessidade de u m debate
tico para a garantia das reais prioridades dos grupos e dos indivduos e, principalmen-
te, no controle da iatrogenia mdica.
A insistncia nesta discusso decorre do fato de que, nos tempos ps-Cairo e ps-
Beijing, ativistas feministas apegam-se aos acordos decorrentes destas conferncias para
formular demandas por programas de sade sexual e reprodutiva descontextualizadas
dos princpios da integralidade. importante delimitar os riscos disso decorrentes,
pois, nos anos 70, quando a sociedade brasileira recusou programas verticais de plane
jamento familiar, j discutia sobre a impropriedade desta abordagem focalizada apenas
nos aspectos da reproduo.
A assistncia integral, tal como entendida no mbito do movimento feminista bra-
sileiro, constitui-se em u m patrimnio inegocivel de discusses e de experincias
prticas consubstanciadas no PAISM que deve constituir a referncia conceituai e estra-
tgica em sade para a implementao das aes de sade reprodutiva.
Para as feministas brasileiras, c m especial aquelas que so tambm profissionais da
sade - que trilharam u m longo percurso na luta pela sade e direitos reprodutivos das
mulheres, agregando suas experincias profissionais como gestoras -, fica o desafio de
implementar, na prtica da sade, as conquistas polticas decorrentes dos diversos espa-
os de luta e de ao pblica das mulheres. S no vale jogar o beb com a gua do banho.
Diante do exposto, verifica-se que, no plano dos conceitos e das polticas para a
sade das mulheres, o PAISM satisfaz inteiramente. No entanto, so necessrios ajustes e
adequaes, de modo a abarcar a dinmica e complexa realidade epidemiolgica- de
que a AIDS e as doenas cardiovasculares entre mulheres constituem dois grandes exem-
plos desafiadores de estratgias do sistema de sade.
O grande dilema a sua implementao, configurada em u m perturbado cenrio
macropoltico e setorial de franca e permanente ameaa consolidao do SUS. Assim
que, apesar de mais de uma dcada de sua formulao, ainda preocupante o nvel de
sade evidenciado pelos indicadores epidemiolgicos, bem como a grande insatisfao
das usurias dos servios de sade (Costa, 1992).
A realidade da sade da populao feminina brasileira demonstra que, apesar de
bem formuladas, as polticas no tm sido implementadas. A afirmativa pode ser com-
provada tomando-se alguns dos indicadores de sade reprodutiva c o m o exemplo. A
mortalidade materna, oficialmente registrada em 114,2 bitos por 100.000 nascidos-
vivos para o ano de 1991, situa o Brasil entre os pases de alto risco para os direitos
reprodutivos, especialmente no exerccio daquela funo mais valorizada socialmente
para a mulher: a maternidade (a ttulo de curiosidade, ressalta-se que esta taxa 25
vezes maior do que a canadense).
Os ndices muito elevados de esterilizao cirrgica de mulheres - como identifica-
do na Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD)/IBGE (1986) - encontram-se em
franco processo de crescimento, o que ficou evidenciado pela Pesquisa Nacional sobre
Demografia e Sade (BEMFAM/DHS, 1996). Entre as usurias de contracepo unidas, 40,1%
esto esterilizadas. Em 1986, a PNAD/IBGE registrou uma taxa de 27%. O ritmo galopante da
esterilizao como mtodo de alternativa contraceptiva evidencia a consolidao de uma
cultura reprodutiva construda mediante bases perversas em relao ao universo e s
modalidades de escolhas. Mesmo reconhecendo o direito ao mtodo definitivo cirrgico,
fica a indagao sobre as condies nas quais esta escolha se processa.
Estas duas situaes - mortalidade materna e esterilizaes cirrgicas - relacionam-
se diretamente ao uso abusivo das cesarianas n o Pas. Embora a alta incidncia de
cesreas seja sobejamente conhecida, ainda no existem mecanismos eficientes para o
seu controle c regulao. Esta situao submete mulheres e recm-nascidos a riscos
desnecessrios e continua sem merecer qualquer ateno especial dos poderes pblicos
para o seu controle.
Referncias Bibliogrficas
Introduo
Para considerarmos a violncia nas relaes de gnero como questo implicada nas
prticas de sade, antes de mais nada tomaremos os problemas concernentes aos servi-
os no apenas em funo dos cuidados ou orientaes objetivamente produzidos, mas
ao modo interativo de faz-lo, privilegiando nessa abordagem os sujeitos ali presentes.
Este tem sido o ponto de vista mais atual tambm nos estudos do campo do planeja-
mento em sade (Gallo, 1995; Rivera, 1995) e do trabalho em sade (Schraiber, 1995,
1997; Peduzzi, 1998), o que leva a ultrapassar o usual enfoque da produo assistencial
como problemtica da organizao e da gerncia dos servios. Tais enfoques privilegia-
ram u m olhar mais estrutural acerca dos servios, gerando a compreenso das prticas
e da qualidade dos cuidados como conseqncia da estrutura de sua organizao pro-
dutiva. Sem negar a importncia da organizao, buscaremos valoriz-la sob outro
olhar. Os servios ganham abordagem processual e passam a ser vistos como dinmica
de relaes interativas, que se do entre profissionais e entre estes e os usurios, no
momento em que se encontram todos dispostos em exerccio (aplicao/mtua troca)
dos conhecimentos cientficos, tcnicos e prticos de uns, e das informaes cientfi-
cas adquiridas e saberes prticos de outros.
* Agradecemos a Silvia Salvan Strake, Maria Flvia Pallerosi D'Alessandro e Gisele Magalhes Lanferini, pelo
trabalho de campo, e s profissionais de enfermagem do setor de adultos do CSE Samuel B. Pessoa pela
colaborao.
Com relao aos servios, assim, temos dois tipos de problemas que, vistos pela din-
mica interativa, estamos tratando em conjunto: de u m lado, a organizao da produo e
arquitetura dos trabalhos, tal como usualmente pensamos os programas de sade, por
exemplo; e de outro, as aes de interveno tcnica, que so processos de trabalho reali-
zadores daquela organizao e, nisto, articuladores das necessidades e demandas em
sade, dos saberes e das tcnicas, a fim de alcanarem determinados resultados, o que
tambm faz parte dos programas de sade. E, para darmos conta de nossa pretenso
epistemolgica, trataremos a dimenso organizativa como problemtica interiorizada no
plano tcnico, abordando as relaes dos usurios com o servio por meio das relaes
que estabelecem com seus profissionais no transcorrer das intervenes tcnicas.
nesse sentido que uma crtica qualidade assistencial a demandas que so trazidas
pelas mulheres - em particular, neste caso, relativamente a questes de violncia de
gnero - em nossa abordagem vai alm da dimenso mais estrutural da assistncia, para
se preocupar com a interao entre indivduos, que se d pela ao tcnica, recortando
a prpria organizao pelo plano das relaes entre os profissionais e os usurios dos
servios. desta perspectiva que deriva a possibilidade de pensarmos os servios no
por sua coerncia estrutural, mas por elementos de seu movimento e mudana.
De igual modo, na interveno tcnica, se o processo de trabalho tomado como
ao estruturada pela organizao dos servios em suas determinaes tcnico-sociais
relativas aos objetivos e resultados pressupostos para a interveno, ser pelo exame das
relaes de seu agente (os profissionais da sade) com o processo da interveno - e
notadamente da perspectiva do uso concreto do saber na aplicao tcnica no cotidiano
dos servios - que buscaremos no s apreender as transformaes dos conhecimentos
e a criatividade de sujeito trabalhador, mas a prpria interatividade (mtuas trocas) dos
saberes mdicos ou tcnico-cientficos com os saberes prticos. Tais perspectivas que,
para ns, m e s m o focando a problemtica do ponto de vista dos servios, revelaro a
interao entre os sujeitos presentes ao ato tcnico.
Essas interaes sero abordadas pelos dilogos que se do no interior do ato tcnico
entre os profissionais e os usurios em relao. Assim, nos aproximaremos das interaes
pelas falas e suas trocas dialgicas ocorridas no transcorrer daquele ato, que simulta-
neamente produo e consumo do servio. Tm-se, nesse sentido, perpassando o jogo
interativo, questes da ordem da produo da prtica tcnica, tanto quanto as da reali-
zao do consumo, que implicam, por exemplo, acesso aos servios e s tecnologias,
recepo, possibilidades de uso reiterado ou continuidades assistenciais, entre outras.
Estas se cruzam com questes, por exemplo, da realizao, por parte dos usurios, de
respostas s suas necessidades e satisfao quanto aos servios; por parte dos profissio-
nais, da realizao do exerccio de boas prticas, definindo os os padres que se usam e
com os quais se trabalha, o que definir o m o d o pelo qual se estabelecero relaes
dadas. Dentre as ordens de questes destacamos: relaes entre profissionais e seus
saberes; entre profissionais e suas condies de trabalho; entre usurios e suas
experincias privadas; entre usurios e o servio organizado para dadas ofertas de
produo assistencial; entre usurios e suas expectativas frente ao servio, tanto de
uso, quanto de resoluo de problemas - interpretados estes c o m o necessidades de
sade. A medicalizao do social, a coisificao do doente c o m o objeto da interven-
o tcnica e do trabalho, a elitizao de profissionais e os interesses corporativos,
entre outras, sero, pois, problemticas dos servios e sua organizao produtiva,
com base neste olhar.
Assim sendo, este texto busca se aproximar dos profissionais, usurios, saberes,
tecnologias e organizao/resoluo dos servios, por meio da tomada especfica do
dilogo que se estabelece no interior da assistncia mdico-sanitria, entre mulheres
que demandam ateno referida sade reprodutiva e profissionais que as assistem.
Partindo teoricamente da noo de que o jogo das falas representa a interatividade
entre estes diferentes sujeitos sociais, e ademais, partindo da contribuio
1
habermasiana da aproximao do trabalho como tambm interao , buscaremos,
no contexto especfico de servio de sade, captar de que m o d o esses sujeitos, ao
produzirem distintas falas, valendo-se de seus saberes, suas experincias de vida e
suas situaes institucionais, colocam-se quanto ao feminino na relao de gnero e
algumas de suas questes mais relevantes na interface com a sade: o corpo, a mater-
nidade e a sexualidade.
Entenderemos que este 'colocar-se' encontra-se em u m contexto de uma ao sem-
pre estratgica - que a do trabalho - pois u m dado resultado buscado nesta ao, a
qual, por outro lado, expressa tambm formas interativas, que nisto podem polarizar-se
entre u m agir estratgico ou comunicativo quanto essa interao, transformando as
trocas dialgicas e m instrumentais e coisificadoras dos sujeitos, ou no. E, neste caso,
sero espaos de emancipaes e fortalecimentos de cada qual como sujeito - situao
esta que entenderemos como de 'empoderamento' da intersubjetividade, ou de comu-
nicao: o oposto da violncia.
interessante destacar que a interatividade neste estudo ancora-se em uma situa
o singular e instigante: a relao mulheres-mulheres, pois boa parte dos profissionais
da sade so, igualmente, mulheres. Estas, no entanto, so sujeitos tambm reprodutores
de uma ordem e poder de grande dominncia na sociedade, o poder mdico. Situam-
se, por isto, n o centro de u m a tenso ou conflito mpar c o m o sujeitos: realizar, no
cotidiano, plos distintos e contraditrios de identidades. No vamos, porm, nos ater
ao exame da situao das mulheres-profissionais. Interessa-nos, antes, a prpria relao.
1
Inspira-nos o quadro referencial c a metodologia usados por AYRES (1995) para examinar do ponto de vista
hermenutico as narrativas que constam dos discursos produzidos na criao do conceito de risco em
epidemiologia como saber e prtica de sade. Para um aprofundamento da abordagem do trabalho em
sade como interao ver, ainda, SCHRAIBER (1997a; 1997b) e PEDUZZI (1998).
Esta mostrar, c o m o dissemos, as potencialidades do referencial de gnero para
o estudo dos servios, trazendo questes que no podem ser vistas ou refletidas
por o u t r o olhar seno este. Sua grande v a n t a g e m ser permitir pensar novas
tecnologias assis-tenciais para aprimorar a perspectiva emancipatria pretendida
pelo m o v i m e n t o social e pelas proposies tcnico-cientficas que sustentam o
2
Programa de Ateno Integral Sade da M u l h e r (PAISM) . Q u e r e m o s mostrar a
fecundidade cientfica, tecnolgica e tico-poltica da articulao dessa perspecti-
va de gnero c o m o estudo das prticas e dos servios c o m o temtica tradicional
do c a m p o da sade coletiva.
A l m disso, por m e i o d o c o n t e x t o interativo que apreendemos m e l h o r o
mencionado conflito identitrio, iluminando, em especial, a tradicional questo
da medicalizao e da elitizao dos profissionais da sade diante da populao,
mostrando situaes em que a tenso de identidade pode vir a assumir caracters-
ticas de u m verdadeiro conflito moral (Schraiber, 1997). A resoluo deste confli-
to pender, ou no, para u m posicionamento eticamente perfilado c o m a busca
de emancipao de gnero. A opo, a nosso ver, est na dependncia da prpria
construo existente de prtica assistencial e de organizao de servio. Afirma-
mos que nossos dados mostram que esta ocorrncia - e m que a opo se d pela
difcil escolha de u m a identificao de sujeito c o m a c o n d i o mais 'frgil' ou
socialmente dominada c o m o a de sujeito feminino (mulher) - est relacionada s
finalidades de u m a assistncia 'integral', voltada para a emancipao feminina, tal
c o m o e m parte 'obriga' (porque torna u m a exigncia tecnolgica, prtica) a pr-
pria estruturao do PAISM.
Por fim, o fato de t o m a r m o s a interao usurias-profissionais baseia-se na
constatao de q u e o imperativo de optar tica e politicamente d-se aqui e m
situao por vezes extremamente dramtica: a violncia. neste c a m p o do trgi-
co, q u a n d o o poder radicalizado c o m o barbrie, que observamos o conflito que
se estabelece, g a n h a n d o a necessidade de optar, por parte das mulheres. A opo
realiza-se nas mais diversas direes: mulheres da tradio; mulheres da m u d a n -
a; mulheres do feminismo; mulheres do 'masculinizado' poder profissional.
Este trabalho est inserido em uma pesquisa maior: Violncia e Gnero nas Prticas
de Sade, utilizando, como base emprica, as aes concretamente desenvolvidas na
assistncia Sade da Mulher, tal como produzida cotidianamente no Centro de Sade
2
Este Programa existe nacionalmente h 13 anos e tem c o m o caracterstica ter sido formulado e
implantado com a participao do movimento de mulheres. Baseia-se em referenciais epidemiolgicos,
com nfase na ateno primria e nas atividades educativas. Verd'O L I V E I R A , 1996; COSTA, 1992; CORRA, 1993.
3
Escola Samuel B. Pessoa . Este Centro u m servio pblico de ateno primria, situado
no municpio de So Paulo e n o qual, h pelo menos 10 anos, esto implantadas as
diversas aes do PAISM.
A escolha do PAISM como ponto de partida deve-se ao fato de ser u m programa que
pretendeu tecnologicamente explorar questes de gnero, entre as quais, atualmente,
inclumos a violncia. Estudando esta proposta assistencial (d'Oliveira, 1996) constata-
mos que sua dimenso educativa que particularmente se constituiu como capaz de
conter tcnicas que facilitassem a emergncia das questes de violncia.
Nossa reflexo se baseia n o registro das falas produzidas nas atividades que, no
mencionado servio, formam o conjunto de trabalhos em grupo para a contracepo;
controle de cncer ginecolgico e doenas sexualmente transmissveis (DST); e re-
cepo do programa, cujo tema so as necessidades de sade das mulheres em geral.
Em trabalho anterior (d'Oliveira & Schraiber, 1997), analisamos as situaes de vio-
lncia que emergiram nessas atividades, valendo-nos de categorias formuladas em
torno do eixo analtico 'comunicabilidade', adotado para examinar a relao: neces-
sidades apresentadas velas usurias-resposta desenvolvida pelo servio. Este eixo foi tomado como
a sntese de trs dimenses possveis da comunicao: a expresso da violncia
pela usuria e sua apresentao c o m o problema; o acolhimento pelo profissional,
dispondo-se em situao dialgica e acatando o problema como demanda; e a proposio
de alguma ao pelo profissional, buscando intervir ou resolvera situao de violncia
como responsabilidade do servio. A individualizao desses momentos para fins anal-
ticos da temtica comunicacional traz inegveis vantagens, distinguindo disposies
profissionais de fato diversas nas aes em sade: ouvir, acolher e tecnicamente inter-
vir. Tendo por base essas diferentes disposies quanto comunicao, tentaremos discu-
tir de que m o d o elas correspondem tambm, a partir do dilogo, a ticas interativas
distintas e produo de sentidos diversos para o feminino e suas questes.
O material emprico composto pela observao de 16 grupos realizados de maro
a agosto de 1995, contabilizando 115 mulheres observadas. O s grupos foram observa-
dos diretamente, com registro em caderno de campo, gravados e transcritos. A maioria
dos grupos (11) foi coordenada por auxiliares de enfermagem, sendo cinco coordena
3
Neste texto apenas trataremos da relao usurios-servio neste recorte da interao discursiva com os
profissionais, valendo-nos dos dados da observao direta e participante da assistncia produzida em
atividades grupais. A pesquisa em seu todo, que se desenvolve desde 1994 com apoio da Fundao Ford
e CNPq, busca conhecer a articulao entre necessidades de sade e uso/consumo de servio, nas
situaes de violncia de gnero, valendo-se de diversas aproximaes e tcnicas de coleta de dados. Por
isso, possvel que, ao extrairmos um segmento, deixemos de dar ao leitor o conjunto das questes
implicadas nas prticas de sade, quando a demanda do servio relativa violncia. Cremos ter
selecionado em especial os aspectos capazes de explorar o trabalho em sade e a organizao dos
servios como interlocutor privilegiado. Nosso intuito o de destacar a importncia desse interlocutor
para os estudos de gnero e de violncia.
dos por u m a mdica e u m a psicloga. As usurias tm de 14 a 53 anos, distribudas
prioritariamente na faixa dos 14 a 30 (69,1 %). Quanto ao estado conjugal, 72,9% moram
com o companheiro, somando-se a categoria de casados e unio consensual. A grande
maioria estudou at a quarta srie primria, trabalha c o m o empregada domstica,
faxineira ou dona de casa e vive em favelas. As oito profissionais observadas tm entre
34 e 50 anos de idade, sendo 75% casadas. Em termos de escolaridade, uma tem primei-
ro grau completo; quatro, segundo grau completo; trs, nvel superior completo. Em
sua maioria (sete, das oito), as profissionais moram no mesmo bairro das usurias ou
em bairro ainda mais perifrico, mas todas em estrato de renda superior ao das usurias.
Ilustramos nossa reflexo com as falas registradas no material coletado, apresenta-
das em itlico.
4
Isto significa que a assimetria na relao ser comunicativamente buscada, e no estrategicamente, isto
, ser buscada em trocas de argumentos nas quais ambos os sujeitos vo se colocando de acordo
(concordes) com a assimetria, tal qual, por exemplo, em decises compartilhadas de interveno
mdica - satisfeitas, claro, as exigncias de enunciao das falas dentro da perspectiva do agir
comunicativo (HABERMAS, 1989). Para aprofundar essa questo no trabalho em sade, ver, quanto relao
mdico-paciente SCHRAIBER (1997b) e quanto ao trabalho em equipe multiprofissional PEDUZZI (1998),
Buscamos aqui este movimento de ciso e reunificao, o que mostraremos quando
'mulheres cuidam de mulheres' e 'mulheres falam dos homens', como os dois segmentos
a seguir, enquanto que as situaes de violncia que examinaremos sero analisadas na
ltima parte do texto, em 'mulheres e violncia: o trgico na situao de gnero'.
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A idia do "masculino" quer fazer referncia, claro, posio de poder da autoridade desta fala, uma vez
investida cientificamente. Apesar de estarmos ora trabalhando na polaridade masculino-feminino
como metfora soberania de um dos sujeitos na relao dominante-subordinado, nem estamos
identificando todos os homens mecanicamente a poderes soberanos, nem pretendemos reduzir o
feminino (e todas as mulheres) inexorvel condio de subordinao, bem ao gosto de certa vitimizao
da condio de mulher. A fora retrica, neste caso, d-se apenas como contraste dos termos.
estritamente o biomdico, situao em que o servio, quando ouve e acolhe o problema
- o que no c o m u m -, no oferece qualquer soluo nesse plano do m u n d o da vida.
Por outro lado, quando o modelo busca escapar do reducionismo biolgico (como o
caso do pretendido pelo PAISM e pela instituio estudada), o m u n d o da vida parece
tambm no conseguir penetrar as relaes que se do no servio - j que as profissio-
nais parecem buscar u m tipo idealizado de sujeito to pouco relacionai que na resolu-
o fornecida pelo servio exige atos e comportamentos jamais pretendidos pelas
usurias, porque significam atos de subverso total do que valorizam e querem para si
como mulheres em relao com seus parceiros. Assim, h dificuldades muito concretas
a proposta resolutiva oferecida pela instituio e pelo PAISM, paradoxalmente quando h
uma tentativa de responder por parte do servio.
As profissionais da sade fazem u m discurso acerca do corpo que estimula insisten-
temente o autoconhecimento. As mulheres devem conhecer e tocar suas mamas, e
oferecido u m espelho no exame de Papanicolau para verem seu colo do tero. Conhecer
e tocar o colo tambm necessrio para o uso do diafragma, e estimulado para o
controle do DIU pela paciente. Alm da anatomia, ensinada tambm a fisiologia do
aparelho reprodutivo feminino, c o m nfase no perodo frtil e n o m u c o ovulatrio,
que tambm deve ser percebido. Chama a ateno na fala das agentes o uso constante de
diminutivos e simplificaes, infantilizando o discurso com expresses como: bichi-
nho, furinho, coisinha, asinha e outras parecidas. Tambm percebemos que diversas
vezes o convite a se conhecer transforma-se em prescrio:
Vocs lembram que a gente examinou as mamas. Todo mundo examinou as mamas depois em casa? Eu no. No
faleipratodas que era pra fazeristo em casa? (tom de bronca). No falei que era vocs mesmas que tinham
que cuidar do corpo de vocs?
Uma parte das usurias discorda frontalmente da idia de se olhar ou se tocar. So
mulheres que tm nojo, expressam repugnncia, acham o corpo feio, ficam surpresas,
no querem nem pensar nisto: "Mulher s bonita de p". Outras, a minoria, entusias-
mam-se com as novas possibilidades colocadas, ou j as conhecem e querem se aperfei-
oar. De maneira geral, h u m a certa desconfiana para com a oferta da oportunidade
de cada u m 'ser o seu prprio mdico'. Esse papel no visto n e m c o m o parte da
experincia feminina, nem c o m o parte da experincia de 'leigos' da medicina. A recu-
sa, neste caso, pode ser vista c o m o resultado dessa soma, mas, de qualquer forma,
distancia a mulher-profissional que a oferece. O convite a olhar e tocar o prprio corpo
parece suspeito, por pretender passar a responsabilidade de escolher o certo e o errado,
o normal e o patolgico, para as mos do prprio examinado. Impossvel deixar de ver
nisso a cumplicidade complementar necessria to aceita relao assimtrica com as
profissionais. Estas, por sua vez, incorporam o dever emancipao nos moldes to
tcnicos, c o m o o faz o prprio PAISM (d'Oliveira, 1996). isto pode levar, m u i t o
freqentemente, ao tratamento estratgico das dimenses comunicativas na interao,
u m a vez que a emancipao e a liberdade decisria das mulheres usurias, que as
profissionais pretendem inserir como u m valor a ser exaltado, torna-se quase uma
ordem tcnica do servio (tal como "seja livre!"). preciso cuidado no sentido de no se
resvalar na anlise para falcias de cunho demaggico: no se pode ignorar a diferena
de saberes - o da experincia cientfica e o da experincia da vida. Alerta-se to somente
(o que politicamente no pouco), para a quase imperceptvel (do ponto de vista cultu-
ral) transposio da autoridade tcnica em autoridade moral, impedindo o exerccio de
escolhas pelo sujeito 'dominado'. Isto sem dvida torna complexa a proposio tica do
PAISM e difcil seu exerccio prtico; contudo, no desqualifica a investida poltica de
tentar o encontro da tcnica com a tica da emancipao.
Em relao aos mtodos contraceptivos, as mulheres reclamam com veemncia da
insegurana e efeitos colaterais dos mtodos disponveis. Percebem a plula (ACO) como
causadora de inmeros males, inclusive u m a 'massa' que se acumula no tero da
mulher, necessitando de curetagem; o DIU como causador de hemorragia, dor nas
pernas e cncer; e o diafragma como objeto artificial, extremamente esquisito e traba-
lhoso. A eficcia do DIU e do diafragma tambm muito questionada. Alm disto, as
mulheres dizem que "tabela no funciona, camisinha os homens no usam", nem
vasectomia, e at a laqueadura, nica opo mais segura, "pode desfazer". As mulheres
parecem bem insatisfeitas e inseguras com as possibilidades de escolha disponveis. As
queixas relativas aos mtodos so incisivas, fazendo com que as usurias desafiem as
profissionais quando estas tentam contest-las. Chegamos a ouvir relatos de mulheres
que afirmavam ter "visto a massa de plulas em u m exame de ultra-som", ou de afirma-
rem conhecerem mulheres que "retiraram vrias cartelas de plulas em curetagens".
As profissionais, por seu lado, ciosas de seu saber, enfrentam o questionamento.
Mas o fazem menos pelo dilogo entre diferentes concepes femininas acerca do
planejamento reprodutivo e do corpo - para o que trabalham positivamente as
distintas imagens do recurso de contracepo disponvel, mantendo a identidade
de mulher - e mais pela desqualificao do saber prtico diante do cientfico. Per-
mitem alguma expresso das concepes das usurias, mas depois tm longas falas
acerca de anatomia e fisiologia do aparelho reprodutor feminino. Buscam desfazer
o que c h a m a m 'mitos' ou 'fantasias' que obstaculizam o caminho da compreenso
da verdade antomo-fisiolgica (ainda que bem simplificada, dadas as condies da
cena de encontro entre elas). Defendem, em maior ou menor grau, a eficcia e a
segurana de todos os mtodos, especialmente do DIU. So estimulados tambm o
condom e o diafragma. Pouco dizem sobre o que elas prprias usam, como experincia
de vida com estes mtodos, e tambm pouco tematizam as diversas experincias das
usurias c o m a contracepo de forma positiva, tratando esta experincia c o m o
contexto formador' dos tais mitos.
O grande desafio das profissionais n o grupo convencer as mulheres de que
possvel controlar a capacidade reprodutiva por meio de recomendaes tcnicas. En-
frentam u m a verdadeira oposio de saberes e buscam nunca igualar-se n o saber da
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vida, mantendo-se como tcnicas antes de mais nada . U m a das mulheres reclamava
de uma gravidez indesejada, quando outra, buscando consol-la, afirmava que "gravi-
dez nunca vem na hora certa". Mas a enfermagem que chama a possibilidade do poder
feminino, por meio de seu poder de tcnico: 'Acho que a palavra nunca muito grande.
Eu j vi. Eu trabalho n u m local que eu tenho contato com grvida, direto! Tem gravidez
planejada...". Experincia feminina transmuta-se em poder... ganha maior valor de ver-
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dade e de ensinamento moral .
H, no entanto, uma sensao de batalha perdida. Mesmo as profissionais, apesar da
veemncia da fala, parecem perceber que a desconfiana com a efetividade dos mto-
dos e o medo dos efeitos danosos sade tm base em uma experincia muito concre-
ta, que est na relao com os homens. Esta sim - problemtica assumidamente com-
partilhada por todas as mulheres presentes na cena - passa muito longe da sala de
grupos do Centro de Sade e das informaes tcnicas, tal como colocado por u m a
usuria de escolaridade superior:
Eu, quando fiquei menstruada,fui ao ginecologista, eu sei todociclofisiolgicoenem por isso deixei de ficar
grvida. No uma questo cultural, uma questo de tudo o que acontece, da falta de apoio da mulher. Sei toda
a parte glandular, parte hormonal, mesmo assim... Acho que as mulheres que no tm informao ficam se
culpando o tempo todo de no ter a informao de tudo, fisiolgica, anatmica, eu fui pro brejo (rindo). Porque
no assim, no problema s delas. um problema de todas as mulheres de todos os nveis.
A tentativa de tornar as mulheres mais autnomas encontra-se obstaculizada pelo
simples fato de que a autonomia no pode ser concedida, nem depende apenas de u m
conjunto de informaes. Se estas informaes e este estmulo podem ser responsveis
por ganhos efetivos para as mulheres, tambm podem instaurar u m a nova norma,
quase impossvel de ser atingida: a mulher independente, que controla a reproduo,
tem prazer, conversa com o marido e tem os mesmos direitos do homem. A dificuldade
das profissionais encontra-se na resistncia de grande parte das usurias ao modelo de
identidade feminina e relaes de gnero proposto pelo PAISM. A O mesmo tempo, h uma
segunda dificuldade: c o m o identificar-se com o feminino se a posio institucional
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Esta dificuldade que as mulheres profissionais tm de, ao mesmo tempo, identificarem-se com o grupo
de usurias e suas questes e defenderem pontos de vistas da instituio, no jogo das diferenas, acirra-
se nas situaes de grupo e na disposio de aes educativas do tipo dialgicas ou comunicacionais.
Veja-se interessante estudo sobre esta mesma situao de conflito quando em atividade de educao
em sala de espera, em Rodrigues et al., 1996.
VICTORA (1995), estudando mulheres de classes populares em Porto Alegre, mostra que as idias de gravidez
7
prevista e desejada so muito diversas entre si, adquirindo cada uma sentidos distintos para mulheres
e profissionais da sade.
proporciona u m a relao assimtrica, e m que o poder e o saber esto polarizados na
profissional, que de u m lugar no-identificado c o m o igual ao feminino prope u m
novo feminino? possvel, do 'alto deste poder', conceder poder para as mulheres?
Parece-nos que no se pode ordenar a algum que seja livre ou exigir que tenha poder...
mesmo quando se pode instigar emancipao pelo reconhecimento e discusso das
condies de subordinao e violncia.
Os homens foram objeto freqente das falas nos grupos, em grande parte das vezes
negativas. Houve tambm algumas referncias positivas, mas sempre ao 'meu homem',
o parceiro atual. Q u a n d o falam dos homens em geral, usurias e profissionais falam de
um s personagem: "machista, ignorante, retrgrado, h o m e m das cavernas". A recla-
mao geral: "homem que nem tatu, no pode ver buraco", "homem feito de pau".
Usurias e profissionais concordam: alm de no se preocupar com contracepo e no
assumir os filhos, os h o m e n s no se preocupam c o m a transmisso de D S T / A I D S e
querem determinar as ocasies e formas de exerccio da sexualidade.
Os dois grupos divergem, entretanto, nas estratgias para enfrentar esta situao. As
profissionais propem como soluo de mudana o dilogo, a conversa entre o casal. O
entendimento e respeito mtuo, buscados por intermdio da conversa poderiam resol-
ver os obstculos que todas julgam encontrar nas relaes com os homens no campo
das escolhas reprodutivas e sexuais, com o que parece concordar apenas uma frao
minoritria das usurias. A maioria delas no parece acreditar na possibilidade de u m
dilogo e, entre as mulheres usurias, as posies se dividem mais uma vez. U m a parte
delas no concorda que as coisas devam mudar. Querem o mesmo, de novo!
Assim, ao se tratar das estratgias de relao com a participao das mulheres e, a
partir disto, definir positivamente o que ser mulher nesta relao com os homens, o
feminino plural. Desta feita... tambm do lado das usurias:
"a gente j foi criadanaquilo,j tem aquela experincia de velho, ento, no tem como a gente mudar mais". "Eu
j penso diferente. Eu acho que nada como um dia atrs do outro..."
Ao que o servio argumenta:
Voc novperspectiva nenhuma? De mudana? Ou voc no quer mudar, ouvocacha que melhorficar nessa,
porque a no vai se comprometer? 0 que voc acha disso: que melhorficar nessa ou...?
Outra parte das usurias no concorda com a atual falta de direitos das mulheres.
Prope c o m o estratgia de mudana a ruptura de relaes desfavorveis sempre que
possvel. Para estas mulheres, o dilogo no parece uma soluo vivel.
Concordarem matria de homens e discordar das estratgias femininas tambm
o que ocorre quando o assunto a maternidade (tratada pelos servios como o nmero
de filhos e o seu controle racional, com a diviso dos encargos contraceptivos). As
profissionais concordam com as usurias em relao no-participao masculina no
que se refere sade reprodutiva. Todos os grupos de contracepo observados comea-
ram com a proposta do servio de discutir a necessidade dessa participao. Mas, como
os homens no o freqentam, este papel tem que ser feito por cada mulher, que deve
mudar 'seu h o m e m ' . Certamente muitas mulheres vo se sentir indefesas com este
encargo adicional. C o m o aumentar o poderem uma relao marcada por desigualda-
des estruturais somente com a vontade individual? Algumas delas declararam preferir
outra estratgia: j que os homens no querem "assumir", elas recusam a aceitar que
eles reconheam a paternidade ou ajudem financeiramente, para no dar a eles "ne-
n h u m direito" sobre os filhos.
Em relao sexualidade, profissionais e usurias concordam que a mulher tem
direito ao prazer, e que o respeito fundamental para este prazer. Concordam tambm
c o m a idia de que os homens, principalmente os maridos, no aceitam uma recusa
quando querem sexo: "Homem, quando ele quer, ele quer". Mas, enquanto o servio
chega a considerar "dar-se s para satisfazer a ele" literalmente uma violncia, algumas
mulheres defendem que "servir a ele" pode ser necessrio... para que ele no arranje outra.
O tema da Outra' crtico, revelando cises e rearranjos entre casadas e solteiras
(potenciais 'outras'), que se combinam diferentemente com as profissionais. O mais
complexo a atuao destas, em fato flagrado relativamente difcil situao de 'sexo
seguro'... Dois cdigos encontraram-se em disputa. U m o necessrio uso da camisi-
nha sempre que h troca de parceiros, ou quando seu parceiro faz trocas (h outras/
outros). O outro o cdigo milenar da no-publicidade da situao de trocas (chama-
das de infidelidades), para alm da aceitao desta situao apenas como algo masculi-
no. No se pode falar dessa possibilidade na negociao. Diante das dificuldades relata-
das, as profissionais encontram-se em u m impasse. Concordam e vivenciam as dificul-
dades de negociar o condom, mas tm o dever profissional de recomendar seu uso. Face ao
impasse, a estratgia relativizar a regra tcnica mais geral, 'usar condom em todas as
relaes', revertendo-a na frmula: 'usar camisinha em relaes eventuais ou quando
pular a cerca'. C o m o este 'pular a cerca' fato que no pode ser reconhecido, a estratgia
da relativizao da norma tcnica revela-se como 'capitulao' - que pode ser perigosa
em relao aos rumos de preveno da epidemia entre mulheres casadas, j que estas
vivem relaes de poder de extrema desigualdade, sem poderem lanar mo de dilogo
e confiana de relaes simtricas. Sem eficcia tcnica, mas resoluo aparentemente
tcnica com total amparo da moral vigente, a adaptao da regra corresponde essenci-
almente a uma atitude conformista e, s ocultas, reconhecedora do problema principal,
que permanece 'no abordado': a relao com os homens. Da a razo de que as dificul
dades relatadas pelas mulheres - "com eles no tem dilogo" -quase no encontrarem
espao de expresso, sendo, de fato, evitadas.
O caso do tratamento das DST u m exemplo de como esta situao pode ser difcil
para os servios de sade. A paciente tem corrimento recorrente e o dilogo c o m a
enfermagem como segue:
"Isso aqui eu levo ( e x a m e ) ? " ; " No, isso fica. Voc queria levar? (silncio) Voc melhorou do corrimento
ou continua?". "Continua". "Ento, agora ele precisa tratar, s voc no adianta, t." "E pra segurar ele? No
adianta!" ( p a u s a ) "Ah, ainda no marquei no seu cartozinho." "Queria fazer uma consulta de...que eu t
sentindo umas dores de cabea sabe, no sei se sinusite."
Foram muitas horas com dor... mas a dor ... nunca senti tanta dor na minha vida... No hospital me
maltrataram l embaixo, as enfermeiras: 'Cala a boca, na hora de darfoibom, nol'Voc t com tanta dor que voc
vai responder o qu?Jt doendo. Elas tratam a gente como se no fosse nada. Acho que se nessa hora elas dessem
uma palavra de carinho, de amor, mas no... j amenizava. A culpa no da gente...
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Sobre o conflito moral em situaes de trabalho para os profissionais em sade veja-se SCHRAIBER, 1997a.
sexual; em relao ao espao pblico, foi relatado u m estupro e diversos registros acerca
de violncia institucional. Estas situaes foram identificadas ao se falar de homens
e sexualidade (quatro grupos) e sobre episdios de uso de servios de sade, especi-
almente em relao ao parto (trs grupos). U m aspecto interessante foi a emergn-
cia de mais de u m caso naqueles grupos em que havia u m a situao de violncia
relatada. c o m o se u m relato propiciasse outros, em 'bola de neve'.
As reclamaes dos servios de sade so dirigidas principalmente aos maus tratos
recebidos n o atendimento ao parto (dois grupos). Muitos foram cometidos por profis-
sionais mulheres. As profissionais do CSE solidarizaram-se com as usurias e propuse-
ram a resistncia: reclamar a fala recomendada.
Nestas relaes instituio hospitalar versus usurias, entretanto, parece no haver
menor possibilidade de negociao. Em uma cidade como So Paulo, buscar assistncia
mdica hospitalar em caso de parto quase compulsrio, exceto para u m a pequena
parcela com acesso a opes de outro tipo. Compelidas a buscar assistncia, as mulheres
encontram uma brutalidade a que, dizem, melhor "suportar calada ao invs de gritar,
reagir ou dar escndalo e correr o risco de represlia". "E se eu reclamo e fazem u m corte
maior, de propsito, s pra infeccionar e eu morrer?"
Independentemente de sua ocorrncia, a possibilidade desta imagem eloqente
para demonstrar o estado das relaes entre instituies de sade e usurias. Encurra-
ladas em seu campo de opes, a resistncia pode lhes custar bem caro.
Deus me defendal!Acho que se eu parisse de novo, um lugar que eu no ia era o hospital. Eles cortam, depois
vm com aquela agulha aplicar (ri). Uma vem com anestesia para aplicar eu digo: 0 que"?.' Voc no vai aplicar
injeo nenhuma aqui no! No mandei vocs me cortarem! eu tinha filho no era preciso isso!,'Ah,ento
fica abertona a!'. Eu digo: Deixa! No meu? fui me embora. A me colocaram na cama assim toda aberta,
no tinha colocado um ponto. Depois comeou a hemorragia. Chegou a doutora, queria aplicar, eu digo:
No!, 'Ento vai de sanque frio mesmo!',eudigo:Tudobem'.Ai me costuraram a sangue frio,mas eu nodeixei
me aplicar a anestesia.
Chama ateno a falta absurda de dilogo e acolhimento desta mulher que experi-
mentava pela primeira vez rotinas hospitalares. Tambm notamos que a relativa identi-
dade de gnero e solidariedade, que aparece n o contexto do PAISM, contrasta com a
insensibilidade de gnero demonstrada pela doutora neste relato.
interessante notar que as profissionais do Centro de Sade, apesar de acolherem estes relatos e solidarizarem-
se com as usurias, estimulando o dilogo e a reao, no tm soluo tcnica a propor. Em conseqncia,
parecem ficar um pouco incomodadas com as crticas, acabando por sempre cortar a discusso e mudar de
assunto, sem fazer a tradicional 'fala final', como fazem em todos os outros temas. Dizem apenas'difcil nossa
vida, no?''e voltam ao tema discutido anteriormente.
J a violncia sexual acolhida por profissionais e usurias, contando com a solida-
riedade de todas. As mulheres que relataram violncia domstica no se colocaram
como vtimas, afirmando-se como sujeitos interagindo em situaes extremamente
difceis, em que a mnima reao pode ser punida fisicamente:
"No que ele me batia, a gente se pegava"o meu foitipodeum estupro, mas ele no era assim to violento. T certo
que depois ele me batia, porque eu ficava de cara fechada para mostrar que no estava satisfeita com aquilo."
Diante do trgico, todas parecem se unir:
Eu tinha um trauma comigo. Quando eu era pequena,tinhanove anos, um co l do norte pegou eu, e carregou
para o mato, s que como eu era pequena, ele no consegui nada. A como eu tava vendo que eu no tava agentando
aquela situao que ele queria, a eu meti uma mordida no brao dele e sa At nas minhas pernas tem uma marca de
unha de gato.Vocsabe o que unha de gato, n? , eu sai correndo nos matos (comea a chorar).
O grupo fica tocado e as outras usurias tentam alternativas de resoluo:
"E se ela passasse num psiclogo, acho que melhoria a situao dela", "Sabe, eupasseinum psiclogo na gravidez
dela porque eu no aceitava minha gravidez, eu sou separada. Eu no aceitava, eu passei na psicloga, e inclusive
me ajudou bastante, tanto ela quanto o mdico foram excelentes pessoas comigo. Me ajudou bastante."
A coordenadora do grupo concorda c o m o 'encaminhamento' proposto pelas
usurias:
Ento, depois a gente pode conversar um pouquinho mais sobre uso, elasderamuma sugesto, o que voc acha
disto? Seria legal? Uma ajuda de um professional mais especializado, para te ajudar. Junto com voc, te ajudar a
superar um pouco disto. Voc gostaria de ter prazer, um relacionamentosexual legal porque isso te incomoda pelo
que voc nos mostrou aqui hoje.
Profissionais e usurias foram unnimes no acolhimento e na sugesto de inter-
veno. A possibilidade de solidariedade e da discusso das causas destas situaes - "as
mulheres ficam em relaes violentas por medo", disseram neste grupo duas mulheres
que haviam sado de relaes violentas - assim como a afirmao categrica do direito
da mulher ao respeito e o seu imperativo para a possibilidade de ter prazer foram o tema
da primeira metade deste grupo, quando se discutiu sexualidade e violncia. A outra
metade foi tomada pela discusso dos mtodos contraceptivos, tema principal da ativi-
dade. O tema da violncia foi trazido pelas prprias usurias, que insistiram em discutir
o prazer sexual no grupo de contracepo. Em contrapartida, a coordenadora do grupo
abriu espao para a discusso, acolhendo a demanda apresentada. Porm, este acolhi-
mento no se mostra suficiente para resolver adequadamente as situaes expressas.
significativa a cena que segue: em u m grupo de controle de cncer ginecolgico,
em que se fornece o resultado do exame de controle, uma das mulheres fica tonta no
decorrer da atividade, deita-se e assiste a tudo deitada, sem falar nada. Ao final, depois de
dispensar as outras usurias, a profissional conversa com ela. Neste momento, ela conta
que tem "mania de limpeza" e que o marido "bate nela". Ao ouvir isto, a profissional
tenta encaminh-la sade mental. A mulher resiste: j foi diversas vezes, no gostou,
acha que no adianta conversar. Sem resoluo para o caso, a profissional d alguns
conselhos e dedica-se a convencera mulher a aceitar o encaminhamento. Nesta tentati-
va, ela bloqueia a escuta e encerra o dilogo. Parece que, no conseguindo responder de
modo satisfatrio demanda da paciente, sua angstia por ter algo a oferecer acaba por
impedir a continuidade do trabalho de acolhimento que vinha sendo feito. Tambm
parece ter sido mais difcil a situao de consulta individual, j que o grupo, que tinha ido
embora, no ouviu e no pde amparar solidariamente a mulher. Este amparo do grupo
aparece como identidade de gnero: "eu tambm j passei por isso... e sa" - a identidade de
seus pares, usurias facilita a ausncia de resoluo imediata por parte do servio.
Em termos gerais, as situaes de violncia, apesar de no terem muitas opes de
resoluo, parecem mobilizar bastante os grupos. Impressiona tambm o contraste
destas situaes com o restante da orientao tcnica, que busca a autonomia sexual e
reprodutiva das mulheres. c o m o se todas as explicaes sobre o corpo e o discurso
acerca da paternidade responsvel e do direito da mulher ao prazer cassem por terra,
diante de uma realidade muito cruel. Ao mesmo tempo, a possibilidade da emergncia,
acolhimento e tentativa de resoluo destas situaes tambm uma mostra da possibi-
lidade de relaes mais simtricas no interior dos servios. Por isso mesmo, ser a partir
destas relaes, que, a nosso ver, deveremos re-trabalhar os programas assistenciais, ex-
plorando as distintas concepes do feminino e de seus caminhos; os diferentes saberes
em jogo; e as diversas estratgias de luta e acomodao no sentido de encontrar alternati-
vas mais eficazes para o trabalho. No se trata de negar a diversidade, mas de reconhecer-
mos o movimento de ciso-reunificao de u m feminino em transformao, como o
aqui retratado, para que as relaes possam ser compreendidas e direcionadas para for-
mas interativas de maiores possibilidades dialgicas. O dilogo, que s pode dar-se na
separao da autoridade tcnica em relao moral, evitando que a primeira se transmute
na segunda, continua sendo, em nosso ponto de vista, o modo de se evitar qualquer forma
de violncia. Afinal, a violncia tem na linguagem e comunicao o seu Outro.
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Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
9
Introduo
* A experincia aqui relatada fruto de um esforo coletivo. Todos os profissionais que trabalham na ponta
so fundamentais para um atendimento de qualidade. Seria impossvel nome-los. Da equipe de nvel
central, sob o risco de omitir injustamente nomes de companheiros e companheiras, gostaria de citar:
Carla Brasil, Cristina Boaretto, Elisabeth Cavalcante, Giselle Israel, Jane Q. Monteiro, Jean Ruffier, Katia
Ratto de Lima, Luis Claudio Fraga, Maria Auxiliadora Gomes, Maysa L. Gomes e Teresa Costa. Contamos
sempre com a colaborao de: Ana Maria Castro, Ins Rugani, Juraci Ghiaroni, Marcos Dias, Maria Ins
Nogueira, Rosa Domingues, Sandra Lobo e Viviane Castello Branco. Respondem pelo ESPAO M U L H E R : Monique
Miranda (Coordenadora), Louise Mara da Silva, Luiza Cromack, Regina Celia Brando e Tania Silva.
Nunca demais lembrar que o PAISM foi criado em 1983, com base em uma realidade
epidemiolgica e norteado por princpios democrticos e feministas. As idias ali colocadas
questionavam a relao autoritria profissional de sade-cliente, insistiam na importncia
das prticas educativas, apontavam para a necessidade de hierarquizao dos servios, re-
pudiavam polticas demogrficas, enfatizavam a importncia de uma viso mais integral da
mulher. De uma forma bastante geral, podemos dizer que as questes permanecem atuais.
Cumpre-me aqui a tarefa de relatar a experincia da Secretaria Municipal de Sade
do Rio de Janeiro (SMS/RJ), especificamente nas reas de contracepo e parto, dentro
da proposta geral de implantao do PAISM. u m processo que est em pleno curso e que
pretende, ao longo do tempo, propiciar clientela feminina uma ateno de qualidade
em todas as trs grandes reas do PAISM: clnico-ginecolgica, pr-natal e parto.
No estamos ss nesta caminhada. Outras tentativas tm acontecido e certamente
h municpios que, neste momento, enfrentam este desafio. Apesar de no termos
canais de articulao estruturados, ao longo destes anos o intercmbio tem sido poss-
vel por meio de relaes pessoais ou de encontros (de variados tipos) do movimento
feminista e de seminrios, simpsios, congressos da rea da sade ou de outras afins.
Esta forma de aprendizagem tem sido muito estimulante, transformando nossa expe-
rincia especfica, fortalecendo nossa convico de que somos parte de u m movimento
maior, de u m esforo coletivo de construo de u m modelo de ateno mulher que
tenha como base o respeito aos seus direitos de cidadania.
Em uma sociedade em que estes esto garantidos na Constituio Federal mas so
desrespeitados nos pequenos atos do cotidiano, imenso o desafio do PAISM. A pergunta
que nos aflige a cada momento : como garantir populao feminina u m atendimen-
to digno e de qualidade, quando a estrutura dos servios pblicos de sade e parte
significativa dos profissionais esto impregnadas de autoritarismo e preconceito. No
se trata apenas de deciso poltica. Esta fundamental, mas s teremos resultados
satisfatrios se aqueles que esto 'na ponta', isto , aqueles responsveis pelo atendi-
mento direto populao (do funcionrio da recepo ao diretor de uma unidade de
sade, por exemplo) passarem por algum processo de reflexo que questione sua pr-
pria atuao e, a partir da, transformem sua prtica.
Foi com esta clareza e uma enorme dose de otimismo que, em 1991, no incio da
gesto do Dr. Ronaldo Gazolla na Secretaria Municipal de Sade e sob a coordenao da
Dra. Cristina Boaretto, u m grupo de profissionais fez u m diagnstico inicial das aes
at ento desenvolvidas pela SMS/RJ (deste grupo faziam parte mulheres profissionais
da sade que j desenvolviam, h algum tempo, propostas de trabalho que incorpora-
vam, dentre outras, prticas educativas com vis feminista e tcnicas de psicodrama).
Este primeiro retrato indicava que, apesar de atuarmos em vrias reas (preveno
e controle de cncer crvico-uterino, pr-natal, parto e puerprio), a cobertura era
insatisfatria e a qualidade do atendimento, em boa parte das unidades, questionvel.
As condies de trabalho tampouco eram boas: muitas unidades ambulatoriais esta-
vam em condies precrias e algumas maternidades no s necessitavam reformas na
sua estrutura fsica, como conviviam com graves problemas de equipamento (alguns
inexistentes, outros ultrapassados ou, ainda, fora de uso por falta de manuteno). Para
agravar o quadro, tnhamos tambm dificuldades na rea gerencial, dificultando ainda
mais o b o m funcionamento dos servios. E, por fim, uma questo sempre presente:
baixos salrios. Assim, cada u m (a) atuava da forma que lhe parecia mais conveniente e/
ou correta, pois no havia diretrizes de atuao. Isto levava a u m resultado
freqentemente desastroso, em que u m atendimento de qualidade era prestado de
forma aleatria, e a satisfao do(a) usurio(a) dependia da 'sorte' de encontrar um(a)
profissional mais 'interessado (a)'.
Era preciso, ento, traar uma estratgia que recuperasse a auto-estima do (a) profis-
sional, melhorando, ao mesmo tempo, a qualidade da assistncia, aumentando as reas
de atuao do PAISM e a cobertura das aes. C o m o pano de fundo para tudo isto era
necessria uma poltica de recursos humanos que acenasse com uma melhoria salarial
alm de recuperao predial, garantindo condies dignas de trabalho.
Dentre as vrias aes que no eram realizadas na rede pblica municipal, encontra-
va-se a contracepo. Este fato, associado ocorrncia de elevadas taxas de esterilizao
feminina no Brasil e na cidade do Rio de Janeiro, carncia de servios pblicos de
contracepo e a uma reivindicao j antiga das mulheres, determinaram que assums-
semos como prioridade a implantao de u m servio que garantisse populao femini-
na acesso aos mtodos anticoncepcionais com acompanhamento adequado. Como parte
deste compromisso, a Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro (SMS /RJ) conside-
rava c o m o sua obrigao o fornecimento dos insumos. No queramos depender de
Organizaes No-Governamentais (ONGs) de cunho e histria controlistas.
Como, ento, iniciar este processo?
Algumas premissas estavam claras: as prticas educativas deveriam ser, necessaria-
mente, parte integrante de todo atendimento; o trabalho de grupo seria o locus privilegi-
ado destas prticas educativas; como os(as) profissionais de sade, na sua imensa maio-
ria, no tinham experincia nesta rea, eles(as) deveriam ter a oportunidade de partici-
par de algum tipo de 'treinamento'; 'acesso a mtodo' implicaria em acompanhamento
clnico-ginecogico e nunca em simples distribuio de anticoncepcionais.
Pensamos ento em organizar um grande seminrio, convidando representantes de
todas as 72 unidades ambulatoriais da cidade para apresentarmos nossas idias, propi-
ciar a estes(as) profissionais a oportunidade de vivenciar algumas prticas educativas, e
tambm de ouvir algumas experincias de trabalho que se desenvolviam a partir das
idias preconizadas pelo PAISM. Naquele momento, o municpio de Niteri apresentava
proposta semelhante. Desta forma, o seminrio Sade e Reproduocontracepo e
direitos de cidadania foi realizado em parceria, em agosto de 1991, no Instituto Brasilei-
ro de Administrao Municipal (IBAM), n o Rio de Janeiro. Foi u m acontecimento at
ento indito na SMS/RJ. Durante trs dias, 300 profissionais da sade das diversas
reas (medicina, enfermagem, sade mental, servio social e nutrio) participaram de
oficinas de vivncia (a metodologia utilizada era a do movimento feminista), trocaram
idias e experincias, tiveram prazer no trabalho. Para coordenar as oficinas, alm dos(as)
profissionais dos prprios quadros das duas secretarias, foram convidadas feministas
que j trabalhavam nesta linha em outros espaos. Poucas vezes, no estado do Rio de
Janeiro, o movimento feminista havia contribudo de forma to intensa, em u m nico
momento, para o servio pblico.
1
A tese de doutorado de Auta de Souza (1996) refere-se a estes e outros aspectos das aes de contracepo
na rede pblica municipal do Rio de Janeiro.
Tabela 1 Uso de mtodos anticoncepcionais por nmero de
mulheres atendidas em 71 unidades da Secretaria
Municipal de Sade do Rio de Janeiro 1992-1997
1
O envio desses insumos foi feito de forma inconstante ao longo dos anos. Em determinado momento,
o Ministrio da Sade comunicou que no mais se responsabilizaria pelo fornecimento dos mtodos.
No entanto, alguns continuaram chegando ao Centro de Treinamento, ainda que de forma irregular.
O "ESPAO MULHER"
Prximos desafios
2
Luis Fernando Verssimo, ao se reportar ao assassinato do ndio Patax Galdino Jesus dos Santos, dizia:
"Vivemos entre exemplos dirios de desprezo pelo pobre e de autodesprezo do pobre. Temos uma
histria de desprezo, uma cultura de desprezo, um desprezo atvico e institucional. Nossos sistemas de
sade e penitencirio so formas organizadas de desprezo pblico." (Jornal do Brasil, 23/04/97).
Para a SMS/RJ, este diagnstico passou a ser o norteador na definio de prioridades
para a rea perinatal: propunha-se a abertura ou reativao de leitos pblicos maternos
e neonatais a partir de u m a distribuio proporcional populao de cada rea
3
Programtica (A.P) e a correspondentes nveis de complexidade (baixo, mdio e alto
risco). Esta proposta apresentava algumas limitaes, especialmente por tratar de leitos
na sua maioria j existentes e cuja distribuio no havia seguido necessariamente
critrio populacional. Tnhamos, por exemplo, mais leitos obsttricos e neonatais do
que o necessrio para o total de gestantes residentes na A.P. 1 (centro da cidade) o que, no
entanto, no significava ociosidade, uma vez que a peregrinao das gestantes de outras
reas da cidade e, inclusive, de outros municpios, acabava levando sobrecarga das
unidades desta rea. A distribuio de leitos por nveis de complexidade tambm refle-
tia a ausncia de u m planejamento global. Alm disso, a reabertura de leitos pblicos
estaduais e federais, fator fundamental para a soluo destes problemas, estava obvia-
4
mente fora do alcance da SMS/RJ .
Por outro lado, embora a existncia de leitos e m quantidade suficiente seja pr-
condio para a realizao de u m atendimento de qualidade, este resultado de u m a
complexa trama de fatores.
Ciente das dificuldades enfrentadas pelas gestantes em conseguirem parir com dig-
nidade, a SMS/RJ desenvolve, desde 1993, uma proposta que pretende oferecer m u -
lher a possibilidade de vivenciar c o m segurana e prazer este momento crucial de sua
sexualidade.
A primeira etapa foi a reabertura da antiga maternidade do hospital Raphael de Paula
Souza, do Ministrio da Sade, situada em Jacarepagu, bairro da Zona Oeste da cidade,
onde no havia u m nico leito obsttrico pblico. Esta maternidade havia sido desativada
dois anos antes por carncia de recursos humanos. Foi precisamente a que a equipe da
Superintendncia de Sade Coletiva identificou a possibilidade de implantar u m servio
que se diferenciasse dos demais na forma de atender a mulher e a criana. Preconizvamos:
3
A SMS/RJ dividiu o municpio, para fins de planejamento e implantao de servios, em 10 reas
Programticas que englobam uma ou mais regies administrativas.
4
Em 1993, a SMS/RJ tinha sob sua responsabilidade direta a gerncia de quatro maternidades: Instituto
Municipal da Mulher Fernando Magalhes, Maternidade Herculano Pinheiro (mais tarde denominada
Unidade Integrada de Sade Herculano Pinheiro) e as maternidades dos hospitais Miguel Couto e
Paulino Werneck. O Ministrio da Sade respondia por seis, a Secretaria Estadual de Sade por quatro e
existiam trs maternidades ligadas a hospitais universitrios.
u m ambiente agradvel e acolhedor em toda a maternidade;
o direito da mulher de optar por u m (a) acompanhante durante o pr-parto e o parto;
o estmulo deambulao;
u m espao adequado para banho, com uso de u m banquinho para aquelas que dese-
jassem relaxar sob u m a ducha fria ou morna;
a utilizao de u m a banheira para as mulheres que desejassem relaxar durante o
trabalho de parto;
u m cuidadoso acompanhamento do trabalho de parto, respeitando as necessidades
fsicas e emocionais da parturiente;
a possibilidade de a mulher escolher em qual posio gostaria de parir (deitada,
verticalizada, recostada);
u m a assistncia ao trabalho de parto e parto com o m n i m o de interveno possvel,
em que cada procedimento fosse tecnicamente justificado;
u m a participao efetiva da enfermagem obsttrica no pr-parto e no parto;
u m a equipe integrada (auxiliar de enfermagem, enfermeira, obstetra, pediatra),
comprometida com u m a assistncia que priorizasse a clientela e no os interesses
do grupo ou a rotina;
o compromisso da equipe em estimular, ainda na sala de parto, o aleitamento materno
e a formao do vnculo me-filho(a);
o manuseio do recm-nato da forma mais suave possvel, evitando procedimentos
desnecessrios;
a presena do beb ao lado da me de forma ininterrupta, a partir do nascimento,
anulando o perodo de Observao' em berrio especfico;
a presena do pai, sem restries, durante todo o tempo de internao (utilizou-se o
slogan "Pai no visita");
o alojamento conjunto em enfermarias agradveis e acolhedoras;
u m trabalho 'leito a leito' c o m relao ao aleitamento materno, n o s para tirar
dvidas, estimular a formao do vnculo, ensinar como amamentar, mas, tambm,
dar suporte emocional em momento to delicado para a mulher e o beb.
Para aquelas pessoas que tm alguma experincia nesta rea, a leitura da 'lista' ante-
rior permite imaginar imediatamente o nvel de resistncia encontrado. Esta proposta,
na realidade, significava (e continua significando) uma reviravolta em u m modelo de
assistncia que prioriza o servio; que freqentemente utiliza procedimentos desne-
cessrios ou mesmo prejudiciais para a mulher e a criana (OMS, 1996); que se baseia
em u m a estrutura hierrquica em que o poder mdico ocupa o topo da pirmide e no
qual a mulher deve se adaptar ao que cada unidade estabelea como rotina, indepen-
dentemente das suas necessidades.
Conscientes d o que nos esperava, optamos por uma estratgia de sensibilizao,
acreditando que, c o m tcnicas de oficina de vivncia, apresentao e discusso de
dados e experincias de outros lugares, seria possvel 'conquistar' alguns profissionais
que atuariam, ao longo do tempo, como estimuladores de uma mudana profunda.
Sabamos que nossa proposta era inovadora dentro da SMS/RJ, mas insistamos com os
profissionais que, na verdade, no trazamos nada de muito novo. Desde a dcada de 60,
os trabalhos pioneiros de Caldeyro-Barcia, Moyses e Cludio Paciornick e Galba Arajo
apontavam para as vantagens do parto vertical, para me e beb (Sabatino; D u n n &
Caldeyro-Barcia, 1992). Em 1985, a Organizao Mundial de Sade recomendava uma
assistncia nos mesmos moldes que s agora estamos propondo (OMS, 1966). As
pesquisas de Hugo Sabatino, em Campinas, s vieram reforar estas posies (Saba-
tino; D u n n & Caldeyro-Bacia, 1992). N o Rio de Janeiro, na Maternidade Praa X V o
dr. Fernando Estelita Lins estimulou o parto vertical durante muitos anos. Abelssima
ao cotidiana das doutoras Esther Vilela e Lvia Carneiro e m Ceres, Gois, nos da-
vam a certeza de que era possvel atender c o m competncia e u m a enorme dose de
h u m a n i s m o (Ncleo de Sade da Mulher, 1993). O trabalho pioneiro e profunda-
mente questionador de Michel Odent (1984) tambm era fonte de inspirao para
a equipe da S M S / R J . O modelo assistencial de alguns pases desenvolvidos, c o m o
Holanda, Inglaterra e Alemanha, h muito j colocava a ateno ao parto normal nas
mos da midwife, parteira c o m formao especfica, geralmente e m u m curso de
quatro anos; ao mdico compete assumir os partos em que ocorre alguma compli-
cao. Tambm nestes pases pressuposto que este u m m o m e n t o extremamente
importante na vida da mulher, m o m e n t o de grande intensidade emocional, que
exige da equipe que a est a c o m p a n h a n d o no s competncia c o m o respeito s
5
suas necessidades .
Foi assim que n o primeiro semestre de 1994 elaboramos uma programao para
todos(as) aqueles(as) que iriam trabalhar na maternidade. M o n t a m o s u m a srie de
oficinas de vivncia e organizamos u m seminrio para o qual convidamos profissio-
nais que tinham experincia dentro da proposta que queramos implementar. Esti-
m u l a m o s , ainda, u m a intensa discusso e m torno da enfermagem obsttrica, vi-
sando a propiciar a atuao desta n o pr-parto e na sala de parto. Paralelamente,
definimos as m u d a n a s na rea fsica da unidade que, c o m a reforma, passou a
oferecer s clientes u m a rea individualizada para o pr-parto (permitindo maior
privacidade e a presena de acompanhante), u m espao para deambulao, u m a
banheira prpria para trabalho de parto e parto e u m mdulo obsttrico para parto
vertical. Tudo isto e mais todo o resto da unidade pintado e m cores agradveis,
5
Os artigos de DOMINGUES (1996), UMBERLINO (1996) e SILVA ( 1 9 9 6 ) mais tarde possibilitaram um conhecimento
mais detalhado destas realidades.
criando u m espao mais acolhedor. O berrio e o centro cirrgico tambm rece-
beram o tratamento adequado, dentro dos parmetros de u m a maternidade que
no era de risco.
Em j u n h o de 1994, (re)inauguramos a Maternidade Leila Diniz c o m 33 leitos
obsttricos. Hoje, com 65 leitos maternos e 15 leitos intensivos neonatais, ela apre-
senta as seguintes caractersticas:
a incorporao do(a) acompanhante no pr-parto e na sala de parto (para parto nor-
mal) tem garantido a parturiente u m apoio fundamental;
o parto vertical representa 5% do total de partos normais;
a enfermagem atua na sala de parto, apesar de o nmero de enfermeiras obsttricas
estar aqum do desejado. Alm disso, as enfermeiras no s so as grandes respons-
veis pelo estmulo ao parto vertical, como algumas delas j treinaram profissionais
mdicos (as) na arte de acompanhar a mulher nesta forma de parir;
a presena do pai nas enfermarias e na UTI neonatal, a qualquer hora, no sofre mais
questionamentos importantes;
h u m trabalho consistente de incentivo ao aleitamento materno, inclusive nos casos
das crianas que esto no berrio (Vaitsman, 1997);
a atuao especial de uma mdica de sade pblica permitiu a criao de instrumen-
tos de registro que integram viso epidemiolgica u m olhar mais sensvel para as
questes da mulher;
a direo da unidade vem implantando diferentes instrumentos para avaliao da
interveno obsttrica (para entender de que maneira esta vem acontecendo e como
atuar a partir deste conhecimento), e para anlise de dados de produtividade, morta-
lidade materna e perinatal e perfil da assistncia (Dias, 1996). Alguns destes instru-
mentos passaram a ser utilizados nas outras maternidades do municpio.
U m a avaliao bastante resumida diria que a experincia destes quatro anos tem
apontado no s para novos caminhos como para os limites e dificuldades impostos
pela realidade institucional (o ponto mais contundente foi a carncia de anestesiologistas,
cujo nmero insuficiente trouxe graves transtornos durante u m perodo bastante lon-
go) e pela atuao dos nossos profissionais. Nesse tempo, confirmamos a hiptese de
que mudanas na forma de atender a mulher e a criana so possveis, ao m e s m o
tempo em que aprendemos a exercitar a pacincia. U m conhecimento maior do pro-
cesso vivenciado pelos (as) profissionais da Maternidade Leila Diniz a partir das propos-
tas da SMS/RJ o contedo da dissertao de mestrado de Katia Ratto de Lima (1997).
Desdobramentos
6
Esta uma rea geogrfica que conta com o maior nmero de gestantes do municpio, aproximada-
mente 20.000.
tncia presena do(a) acompanhante, principalmente por parte dos(as) profissionais
7
mdicos(as); apesar de a Cmara Tcnica de Obstetrcia ter redefinido rotinas basea-
das em evidncias cientficas (por exemplo, tricotomia e enterclise s sero feitas por
indicao precisa, assim c o m o o uso de ocitcicos), boa parte do corpo clnico ainda
no as incorporou; a participao efetiva da enfermagem tem enfrentado muitos
questionamentos por parte dos(as) mdicos(as), mas o respaldo legal e u m insistente
trabalho de discusso vm tomando possvel avanar nesta rea da assistncia.
No caso do Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhes, as obras tambm
incorporaram estas idias e apresentaram algumas inovaes muito interessantes,
como o caso do pr-parto. A prpria equipe da maternidade props que se substitu-
ssem os dois ambientes - pr-parto e sala de parto - por u m nico onde, e m boxes
individualizados, as parturientes vivenciassem o trabalho de parto e o parto evitando,
entre outras coisas, o desconforto da locomoo para a sala de parto. Para tal, foi
necessrio comprar camas importadas de alto custo, que propiciam conforto e per-
mitem a adoo de diversas posies de parir. Durante boa parte da obra, todas as
chefias da maternidade se reuniram de forma sistemtica para aprofundar a discus-
so em t o m o do novo modelo assistencial proposto. No foi tarefa simples, sobretudo
porque o I. . M . Fernando Magalhes a principal maternidade de risco da rede
pblica municipal, o que significa adequar condies de atendimento altamente
sofisticadas e freqentemente muito invasivas a propostas que enfatizam os menores
ndices de interveno possveis.
Tambm nesta maternidade as propostas ainda no foram totalmente incorporadas
por todos os plantes, principalmente as que se referem ao () acompanhante e aos
procedimentos de rotina obsttrica. A atuao da enfermagem obsttrica no sofre
muitos questionamentos porque esta uma unidade em que este tipo de assistncia j
se desenvolve h 10 anos.
Alm destas duas unidades hospitalares, outras duas maternidades passaram por
algum tipo de reforma nos ltimos cinco anos. A maternidade do Hospital Municipal
Miguel Couto no pde fazer modificaes profundas em virtude de limitaes de
espao, mas melhorou consideravelmente seu aspecto fsico. A Maternidade Alexander
Fleming havia iniciado obras importantes antes de ser municipalizada e j vivenciava
u m esforo de melhorar sua qualidade. Foi a primeira maternidade pblica no munic-
pio do Rio de Janeiro a ser credenciada, em 1996, como Amiga da Criana e de receber
o selo de Maternidade Segura (ambos so atestados de qualidade emitidos a partir de
avaliaes cuidadosas do Fundo das Naes Unidas para a Infncia - UNICEF -, do Minis-
trio da Sade e da Secretaria Estadual de Sade).
7
A Cmara Tcnica de Obstetrcia formada pelas chefias de obstetrcia e enfermagem das oito mater-
nidades municipais.
C o m o dito anteriormente, em 1998 a Maternidade Alexander Fleming recebeu en-
fermeiras (os) para atuao no pr-parto e parto. Apesar de algumas dificuldades inici-
ais, estes (as) profissionais integraram-se gradualmente aos plantes, e hoje j esto
podendo trabalhar com mais autonomia. A questo do(a) acompanhante tambm est
sendo resolvida de maneira gradual.
Ainda em 1998, a Maternidade da Praa X V reformou parte do seu centro obsttrico,
criando u m espao de pr-parto individualizado, podendo assim receber acompanhante.
Na verdade, esta unidade j permitia acompanhante para as gestantes adolescentes e para
as mulheres que haviam sido submetidas cesariana. Esta reforma serviu para ampliar
esta possibilidade e no encontrou maiores resistncias por parte dos(as) profissionais.
No incio de 1999, a Maternidade Carmela Dutra passou a permitir a presena de
uma pessoa do sexo feminino nas salas de pr-parto. Esta limitao deve-se ao fato do
ambiente no oferecer as condies mnimas de privacidade.
Perspectivas
Hoje, em seis das oito maternidades do municpio do Rio de Janeiro, existe a opor-
tunidade de haver uma pessoa ao lado da parturiente. Como, no entanto, esta presena
no se d de forma homognea, o esforo agora no sentido de que isto acontea em
todos os plantes, de todas as unidades, sem restries de sexo.
A atuao da enfermagem obsttrica outro desafio que ainda precisa ser vencido.
Atualmente, contamos com este tipo de assistncia em quatro maternidades, e tambm
aqui necessitamos continuar investindo. necessrio consolidar o trabalho iniciado e
expandi-lo para as outras unidades municipais.
A mudana nas rotinas obsttricas objetivo a ser alcanado a mdio/longo prazo,
pois implica questionar prticas mdicas arraigadas, em transformar contedos da
prpria formao acadmica. Ser preciso u m trabalho constante de atualizao dos
conhecimentos cientficos e discusses aprofundadas com as equipes.
O s prximos trs anos sero cruciais para as propostas ora e m implantao nas
unidades municipais. Resultados maternos e neonatais sero indicadores fundamen-
8
tais de avaliao, acoplados a outras formas de anlise da qualidade do servio .
Se o setor pblico (e sempre b o m lembrar que este abrange tambm as esferas
estadual e federal) se prope a efetivamente resolver a ateno ao parto e ao nascimento,
necessrio, antes de qualquer outra coisa, que oferea leitos obsttricos e neonatais
B
Ateno pr-natal, mortalidade materna e neonatal so alguns aspectos do gerar, parir e nascer que no
foram abordados aqui por falta de espao. So, porm, alvo de nossas preocupaes: a melhoria da
qualidade da assistncia ao pr-natal j um dos objetivos da SMS/RJ para os prximos trs anos, assim
como a preveno, o controle e a diminuio da mortalidade materna e neonatal.
em quantidade suficiente e dentro de u m sistema hierarquizado com relao a risco
materno e fetal. Se, alm da oferta de leitos, este mesmo setor pblico pretende garantir
uma assistncia de qualidade mulher e criana, diminuindo de forma efetiva os ndices
de morbi-mortalidade materna e neonatal, necessrio modificar o modelo assistencial
vigente, revendo a prtica mdica e da enfermagem, recolocando a mulher no centro do
processo, diminuindo ao mximo os procedimentos intervencionistas desnecessrios.
Nada disto de fcil execuo: a deciso poltica, para ter algum efeito real, pressu-
pe razoveis nveis de investimentos tanto em obras e equipamentos como em recur-
sos humanos. Na rea de pessoal, no basta contratar em nmero suficiente. preciso
transformar este(a) profissional-e isto, como se tentou demonstrar aqui, desafio para
ser enfrentado ao longo de vrios anos. Acreditamos que a experincia do municpio do
Rio de Janeiro aponta caminhos e sinaliza para a possibilidade de mudanas.
Referncias Bibliogrficas
1
O conceito de ateno integral sade, incorporado e enriquecido pelas feministas brasileiras, passou
a ser um dos motores de uma poderosa mudana na concepo das aes de sade em seu papel na
transformao social, cujo alcance ainda est por ser totalmente avaliado. Os conceitos mais recentes
de sade reprodutiva e sexual, desenvolvidos no contexto da luta poltica das mulheres por direitos
reprodutivos, em especial na preparao das conferncias de Cairo e de Pequim, ainda que se constitu-
am grandes avanos com relao s concepes mais estreitas e biologicistas que freqentemente
orientam os servios de sade da mulher, ao nosso entender, no superam nem substituem, e sim
complementam a noo mais ampla de integralidade da assistncia.
2
experincia europia, sobretudo pelo Dispensam s Femmes, de Genebra , o mtodo utili-
zado desde a capacitao das primeiras trabalhadoras, foi o da crtica ao modelo mdico
da gineco-obstetrcia. Nosso modelo vem propondo uma 'medicina suave' - dos trata-
mentos naturais e menos agressivos - e de preocupao com o conhecimento do corpo
como u m dos elementos centrais para a sade. A mulher/usuria percebida como um
indivduo, o "sujeito da ao de sade, capaz de entender, decidir e cuidar do prprio
corpo e da prpria vida" (CFSS, 1994-96). Neste contexto, o trabalho com contracepo
priorizou a ampliao da autonomia das mulheres diante dos mdicos e parceiros; o
conhecimento; e a 'amizade' com o prprio corpo.
Este foco, ao re-descrever de maneira crtica e 'expandida' s dimenses biolgicas,
permitiu o 'descolamento' do modelo do binmio me(potencial)-filhos e foi muito
til na problematizao das prioridades da interveno e na redescrio dos problemas
e abordagens a serem priorizadas. Apesar dos grandes avanos que o modelo propiciou
na experincia do Coletivo com o atendimento s usurias, ele foi-se mostrando insu-
ficiente na compreenso dos vnculos entre a sade e as relaes sociais daquela m u -
lher concreta. Apesar da dimenso relacionai de sua vida estar sempre presente no
trabalho, esteve virtualmente ausente nos primeiros pronturios (anamneses) do servi-
o, que continham pouca (ou nenhuma) informao sobre as parcerias afetivas e sexuais,
estado civil, relaes de trabalho ou raa - ainda que algumas destas informaes constas-
sem de uma ficha social que no acompanhava a anamnese. A participao masculina era
estimulada no discurso, mas mostrou-se regular apenas na ateno pr-natal.
Apesar destes limites da abordagem, o Coletivo, por ser u m servio feminista, rece-
beu, identificou, atendeu e referiu u m enorme leque de problemas de sade ligados s
relaes de gnero, para alm do que o modelo de trabalho estava preparado para lidar.
Entre eles, situaes de coero sexual, estupro, incesto, problemas no cuidado com os
filhos, vrias formas de sofrimento emocional, problemas na relao com servios de
sade, gravidez indesejada, desrespeito aos direitos trabalhistas e discriminao racial e
por preferncia sexual. Alm das necessidades prticas e imediatas (por exemplo: como
resolver u m problema de contracepo ou uma infeco vaginal), outras necessidades
foram surgindo, tomando necessria a busca das respostas possveis (como a criao de
grupos de reflexo, atendimento em sade mental e o trabalho de referncia/contra-
referncia a outros servios e recursos). Estes temas, problematizados direta ou indire-
tamente como questes de sade pelas usurias, foram-se incorporando prtica e se
transformando formal ou informalmente em problemas/diagnsticos (embora, no in-
cio, de maneira pouco sistemtica e tendo o registro subestimado diante dos diagns-
ticos e condutas 'de sade' imediatamente referidas a este biolgico 'expandido'). A
2
As linhas bsicas do trabalho do Dispensaire, que inspirou vrias outras experincias similares, podem ser
apreciadas na recente traduo para o portugus do livro Ginecologia Natural para Mulheres, de Rina Nissin.
questo que se coloca desde ento a complexa tarefa de manter u m a postura crtica,
u m questionamento constante diante da definio da problemtica a ser tratada, man-
tendo o contedo radical d o feminismo de que a mudana nas condies de sade
sempre incluir a luta pela mudana nas relaes sociais (Barroso, 1989).
3
A discusso destes enfoques tem sido sistematizada em alguns encontros temticos produzidos pelo
movimento, em especial no Relatrio do Seminrio de Prticas Educativas na Implantao do PAISM,
CFSS, 1996, So Paulo.
do servio seja identificada a partir da incorporao de elementos que favoream a
assistncia sade integral e elevem o poder das mulheres sobre suas vidas, exigindo,
portanto, o manejo de questes psicolgicas e sociais (CFSS, i 996). A qualidade da
ateno da perspectiva de gnero considerada a partir de uma viso de integralidade da
sade reprodutiva, inscrita nos marcos ticos dos direitos humanos e, em particular,
dos direitos sexuais e reprodutivos (Matamala, 1995).
A partir da Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (CIPD)/
Cairo, estes conceitos passam a se inscrever no desenho das aes, demandando dos
servios de sade reprodutiva uma reviso do seu modelo de trabalho para adequar-se
a este novo enfoque. Quando nos referimos ao modelo de trabalho, consideramos que
o objeto das prticas de sade construdo historicamente, "no havendo nada, rigoro-
samente nada, que seja sempre, por si mesmo, parte ou substrato de uma necessidade
de sade 'geral'" (Mendes Gonalves, 1992:44). Repensar o trabalho em sade exige que
o repensemos como modelo, na consistncia prtica entre as finalidades, os objetos de
trabalho, instrumentos e a ao dos agentes. Assim, a incorporao de marcos polticos
para a ao de sade pode propiciar a experimentao de novos modelos como 'utopias
produtivas', servindo como "balizas para a anlise de situaes concretas e para a desco-
berta das possibilidades objetivas de introduo de mudanas nessas situaes orienta-
das para ele, que ento ir, se chegar a ser, se efetivando como modelo real, certamente
diferente do projeto que ter orientado seus comeos" (Mendes Gonalves, 1992:46).
Neste contexto de ao e reflexo, iniciamos u m conjunto de experimentaes na
formulao das finalidades, dos instrumentos e dos resultados das aes de sade
reprodutiva e sexual. Este conjunto se traduz em modelos experimentais de consulta
individual/histria clnica/anamnese, assim como no sistema de informao do servi-
o - em que dados c o m o renda, raa, escolaridade, preferncia sexual, procedncia,
entre outros, possam ser teis na compreenso das dimenses sociais da sade e na
construo de respostas aos problemas apontados.
Estas reflexes sobre a definio do problema so tambm influenciadas pelas dis-
cusses trazidas por trs experincias recentes desenvolvidas no CFSS em parceria com
outras instituies. A primeira a pesquisa realizada pela equipe brasileira do IRRRAG
(International Reproductive Rights Research Action Group; em portugus, Grupo de
Pesquisa e Ao Internacional em Direitos Reprodutivos). Ao analisar as intensas m u -
danas na vida reprodutiva das mulheres nas ltimas dcadas, esta pesquisa indica que
o contato das mulheres com matrizes discursivas que reconheam e reafirmem seus
direitos tem uma importncia central na busca ativa de solues concretas para os seus
problemas. A afirmao do carter coletivo dos problemas e da legitimidade do senti-
mento de injustia das mulheres (diante de situaes de opresso em qualquer esfera
da vida - em particular no mbito reprodutivo e sexual), propicia uma redescrio da
experincia vivida. Neste estudo, a resistncia ao que considerado injusto , muitas
vezes, percebida como transgresso, a ser vivida em silncio sob o risco de represlias,
deixando as mulheres especialmente isoladas e vulnerveis. A direo da mudana
que a resistncia possa ser assumida em seu carter coletivo; no apenas c o m o uma
argumentao individual, oposta ao coletivo, mas uma relativa a u m novo grupo de
referncia, propiciando uma recriao de padres de relacionamento social (IRRRAG, 1996).
C o m base nesta experincia (e a partir do marco da indivisibilidade dos direitos
reprodutivos como direitos simultaneamente individuais e sociais) acrescentamos ao
modelo de trabalho e anamnese questes relativas informao, percepo e acesso
aos direitos; capacidade de buscar ajuda; ao sentimento de injustia diante de situa-
es reconhecidas como violentas, entre outros. Tambm ajustamos alguns dos insights
da pesquisa anamnese como 'indicadores experimentais' e iniciamos a organizao
da referncia a outros servios e instituies que lidam com os problemas detectados.
A segunda experincia foi a da incorporao de rotina de questes sobre violncia e
coero sexual na anamnese - o que resultou em u m projeto mais amplo de capacitao,
referncia e investigao sobre violncia de gnero e aes de sade, em parceria com o
Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de
4
So Paulo (FMUSP) . Este projeto nos levou a testar conjuntos de perguntas que pudes-
sem facilitar, para a usuria, a conversa e a ateno sobre o tema, assim como a identi-
ficao de situaes agudas, propondo a referncia interna ao servio e para outras
instituies. Ao mesmo tempo, o componente 'capacitao' ampliou a discusso com o
conjunto da equipe sobre gnero e sade, em especial as relaes entre a situao
violenta e a sade reprodutiva e sexual, partindo da evidncia de que mulheres que
experimentam tais situaes freqentemente tm mais dificuldade em cuidar de sua
prpria sade. Nestes termos, entendemos o momento agudo da violncia (a agresso
propriamente dita) no c o m o o objeto de trabalho em si, mas como u m indicador de
uma especial vulnerabilidade a u m amplo conjunto de questes de sade. Mais uma
vez, se impuseram ao trabalho a dimenso relacionai da situao violenta e a dificulda-
de de lidar com os parceiros - problema para o qual ainda buscamos solues para alm
da organizao da referncia e contra-referncia para servios que lidam com homens.
A incluso destas questes na consulta se fundam no apenas na crena de que todos os
seres humamos tm o direito a estar livres da violncia e da coero, mas, tambm, que
os servios de sade so u m recurso privilegiado para lidar com este problema.
A terceira experincia tem sido a reviso dos procedimentos de contracepo e de
infeces vaginais a partir da pandemia de AIDS, que resultou no projeto Cuidando do
Prazer, apoiado pela Fundao Levi- Strauss. Este trabalho nos levou a u m esforo adicional
para lidar com as contradies entre nossa prioridade no trabalho c o m o diafragma
4
Estas reflexes esto contidas nos relatrios do "Projeto de Capacitao e Desenvolvimento de Tecnologia
para a Ateno a Mulheres em Situao de Violncia nos Servios de Sade", apoiado pela Fundao Ford.
vaginal- mtodo que amplia a autonomia da mulher em relao sua reproduo, mas no
necessariamente em termos da proteo contra as doenas sexualmente transmissveis
(DST) e AIDS. Apesarde existirem evidncias considerveis sobre o papel protetor do diafrag-
ma diante de certas D S T - provavelmente mais relacionadas consistncia do uso do que
com as caractersticas desta barreira - a camisinha, at prova em contrrio, o mtodo que
melhor propicia, simultaneamente, a preveno deD S T / A I D Se de gravidez indesejada. O
trabalho com o diafragma, especialmente em u m pas onde o aborto ilegal, arriscado e
caro, se centrou, muito justificadamente, na sua eficcia contraceptiva, associada a menos
riscos sade e ao conhecimento do prprio corpo, tendo alcanado resultados muito
positivos nestes aspectos. Mas o contexto da relao sexual e o papel do parceiro, a promo-
o da comunicao e da partilha de responsabilidades no terreno afetivo, reprodutivo e
sexual podiam ser menos problematizados do que no caso do uso da camisinha. Assim,
buscamos incluir na consulta e na anamnese questes que pudessem facilitar para as
usurias a discusso sobre o direito ao cuidado e ao prazer, avaliando aquilo que no decor-
rer do trabalho passamos a chamar, provisoriamente, de Vulnerabilidade sexual e
reprodutiva', para orientar a busca de respostas possveis na superao desta vulnerabilidade.
Neste contexto de re-descrio dos problemas e possveis respostas, organizamos,
com parceiros, dois encontros temticos sobre procedimentos e duas sesses de brainstorm
sobre os conceitos, para a sistematizao de problemas. Nestas ocasies, pudemos dis-
cutir e trocar experincias sobre o tema e apresentar os primeiros resultados tabulados
5
no sistema de informao .
A discusso que enfrentamos nos levou a considerar os limites da quantificao-
mesmo que assumidamente experimental - destes eventos de sade; a nossa ansiedade
cartesiana por 'prescries'; e as dificuldades na escuta da usuria, apresentada por esta
"ansiedade prescritiva". Mesmo correndo todos estes riscos, no decorrer deste processo
partimos para uma reformulao dos 'instrumentos' de trabalho na consulta - a ficha
clnica e os roteiros de procedimentos. Novas questes foram incorporadas ao atendi-
mento (como verses revistas da pesquisa de rotina de situaes de violncia domsti-
ca, sexual e institucional e u m a especial ateno avaliao da vulnerabilidade das
mulheres s D S T e AIDS). Ambas denotaram u m impacto importante na mudana dos
procedimentos de rotina. Em todas as consultas (especialmente nas de contracepo)
foram incorporadas informaes sobre preveno de DST/AIDS, com nfase no uso de
mtodos de barreira (em especial da camisinha) e no desenvolvimento de habilidades
de negociao com parceiros nos casos que o demandassem.
5
Estes foram sobre "Contracepo em tempos de A I D S " , "Infeces vaginais em tempos de A I D S " ,
"Operacionalizando o conceito de gnero nas aes de sade" e " Para pensar o conceito de vulnerabilidade
em sade reprodutiva e sexual", com a participao de parceiros e convidados, como o Centro de Sade
Escola do Butant/ FMUSP, Centro de Sade Escola da Barra Funda, Instituto de Sade, NEPAIDS, Casa Lilith,
Casa da Mulher do Graja , CEMICAMP e CRT/ A I D S .
Em termos quantitativos, realizamos, entre 1994e 1996, 2.944 consultas ginecolgi
cas; 469 psicolgicas, incluindo os casos de ateno s mulheres em situao de violncia;
28 atendimentos em nutrio; e 414 consultas de pr-natal, alm de dezenas de sesses de
grupos de reflexo sobre diversos temas. O perfil das pacientes atendidas pelo Coletivo
descrito posteriormente e selecionamos, tambm, informaes constantes do novo m o -
delo de ficha clnica (anamnese) do CFSS. Os dados se referem a uma amostra de u m ms
de consultas no final de 1995 utilizada para a experimentao do banco de dados.
Na interpretao destes dados, importante considerar que as caractersticas de
nossas usurias no corresponde ao perfil da populao e m geral: o prprio fato de
buscar u m servio desta natureza j constitui u m vis da amostra. Acreditamos que
nossas usurias formam u m grupo representativo- so mulheres que 'mais resistem
do que se a c o m o d a m ' e m relao s experincias sexuais e reprodutivas, refletindo,
assim, certos movimentos de mudana, referentes construo de alternativas sexuais
e reprodutivas mais empowered, mais assertivas e autnomas. As informaes refletem o
vis das perguntas que definimos como importantes. Desta forma, possvel, por exem-
plo, que a prevalncia da violncia aparea com ndices to elevados simplesmente
porque perguntamos a todas as usurias a este respeito; ou que haja u m vis relativo a
uma maior confiana da usuria na instituio, que permite que mais mulheres se
sintam mais vontade para responder afirmativamente sobre situaes de ilegalidade,
como a prtica do aborto e o uso de drogas.
Nos ltimos anos, registramos uma tendncia ao 'empobrecimento' da demanda,
refletida na queda da renda mensal per capita das nossas usurias. Em 1994, a porcen-
tagem de mulheres com renda de at trs salrios mnimos era de 60%; em 1995, au-
mentou para 63%; em 1996, subiu para 73%. Do total da demanda de 1996, 59% declara-
ram renda pessoal de at u m salrio mnimo. Acreditamos que este empobrecimento se
deva mais a mudanas na nossa demanda, ainda que de fato haja u m empobrecimento
da populao em geral.
A cor destas mulheres, autodefinida, em 1994: 54,5%brancas; 17,5% pardas; 10,1%
negras; e 2,7% orientais; 15,2% no definiram sua cor. Com relao idade, 22,9% tm at
20 anos; 35,4%, entre 21 e 30; 27,1%, entre 31 e 40; e 14,6%, mais de 40 anos. Mais de
3/4 (78%) tm trabalho remunerado (dados de 1994 a 96).
No que se refere a sade e estilo de vida, 40,4% das usurias disseram ter boa sade,
vindo ao servio para informao e preveno; 51,1 % se consideraram 'mais ou menos'
saudveis; e apenas 8,5% se declararam com m sade. Mais da metade (55,3%) declarou
'boa alimentao'. U m dado que chama a ateno: 40,9% das mulheres tinham queixas
relativas ao sono. U m pouco menos da metade (48,9%) pratica exerccios fsicos regular-
mente; 42,8% so fumantes; 21,7% declararam tomar bebidas alcolicas regularmente; e
42,6% usavam ou fizeram uso de drogas ilegais, especialmente maconha. Os problemas
de sade relacionados ao trabalho foram referidos por 30% das usurias.
Em termos do uso de mtodos contraceptivos, opo de 84% das usurias, notamos
uma tendncia clara e significativa. Entre 1991 e 1994, a camisinha era usada por 14%
das usurias; o diafragma, por 61%; a plula por 16%; os outros mtodos somavam ape-
nas 9%. A partir de 1995, houve u m grande aumento do uso da camisinha (tambm
estimulado pelo nosso servio), alcanando, hoje, 38,5%; o uso do diafragma caiu para
25%, o da plula, para 9,4%. Ainda que o uso de mtodos de barreira tenha se mantido
muito alto (63,5%) - sobretudo se comparado com a populao g e r a l - h u m a clara
tendncia ao aumento do uso da camisinha em detrimento do uso do diafragma, j que
as evidncias sugerem que o condom seria mais seguro na preveno das DST/ AIDS, apesar
de estar menos "sob o controle" da mulher. Entre 1991 e 1994, a laqueadura era o
mtodo de cerca de 4% das usurias. No perodo mais recente, a taxa chegou a 13%,
refletindo, talvez de maneira tardia, o aumento da prevalncia deste mtodo, que na
populao geral atinge aproximadamente 45% das mulheres que usam contracepo.
Outro dado surpreendente que 78% das usurias referem pelo menos u m aborto. Isto
pode refletir tanto o Vis' de uma demanda altamente selecionada, como u m grau de
sinceridade maior nas respostas por se tratar de u m servio feminista.
As questes experimentais includas na nova anamnese se mostraram muito
instigantes. U m dado que nos chama a ateno que 63% no se consideravam expos-
tas ao risco de contrair a AIDS - perguntadas sobre se tomavam alguma medida de pre-
veno, a resposta majoritria foi "no se consideram expostas aorisco"ou "consideram
que se previnem" porque tm u m nico parceiro (o que evidencia uma flagrante con-
tradio - na nossa demanda de mulheres supostamente mais assertivas - com a reali-
dade epidemiolgica, pois a maioria das mulheres contaminadas no municpio de So
Paulo tem parceiro fixo e monogmica). Entre as usurias do CFSS, 26,1% declaravam
j ter tido alguma DST 20,5% disseram jamais conversar com seus parceiros sobre sua
vida sexual; e 43,5% relataram no estar satisfeitas, ou estarem mais ou menos insatis-
feitas c o m sua vida sexual. Outro dado relevante que 38,3% afirmaram j ter tido
relaes sexuais contra a sua vontade (por coero sexual, como nos casos de evitar
desentendimentos com o parceiro, at situaes de estupro, registrado em 12,3% do
total dos casos). A violncia fsica foi declarada por 30,4% das usurias. O s agressores
foram, na maioria das vezes, os parceiros, mas tambm foram mencionados os pais e
estranhos na rua. Das que sofreram violncia fsica ou sexual, 28,6% jamais haviam
conversado sobre o fato com algum antes da consulta no Coletivo. Apenas uma mulher
procurou u m servio de sade por este motivo. U m a das questes mais relevantes
surgidas neste percurso foi a da violncia na relao com servios de sade e a necessi-
dade do desenvolvimento de alternativas na negociao das usurias com os servios. As
principais questes trazidas foram: primeiro, a invisibilidade das questes de violncia
nos servios, ou como os servios 'filtram' o social das questes biolgicas, de forma a
desconsiderar a violncia e suas repercusses na vida e na sade das mulheres; em
segundo lugar, c o m o as instituies promovem e perpetram a violncia de gnero
atravs de sua suposta neutralidade, sobretudo atravs do desrespeito ao direito das m u -
lheres sua condio de pessoa, assim c o m o na sistemtica violao do direito das
mulheres sua integridade corporal, o que se processa por meio de procedimentos
invasivos, inteis e arriscados, mais centrados nos interesses corporativos e institucionais
do que nas necessidades das mulheres (Diniz, 1997).
O trabalho relativo violncia de gnero tem sido consideravelmente ampliado com
a formao de u m a rede de referncia de dezenas de servios n o m u n i c p i o e pela
publicao de mil exemplares, j esgotados, de u m Guia de Servios.
6
A abertura para estes novos temas,foicomo abrir uma 'caixa dePandora' ,exigindo u m
complexo conjunto de transformaes no atendimento, como novas demandas de forma-
o; mudanas no modelo de consulta e nos procedimentos de rotina; necessidade de
contratao de novas trabalhadoras; a organizao de sistemas geis de referncia a outros
servios; grande necessidade de atualizao e produo de conhecimento; avaliao do
trabalho; superviso; consultoria; e suporte psicolgico para as trabalhadoras, entre outros.
Nesta rea, nos encontramos em plena 'crise de crescimento, motivada pela incor-
porao de novos temas ao trabalho e a conseqente expanso da demanda de usurias.
Encontramos muito sucesso e vrias frustraes: temos u m 'empobrecimento' da de-
manda e uma reduo de sua capacidade de pagar pelos servios, mesmo a preos bem
reduzidos. Isto vem contribuindo para uma diminuio da capacidade institucional de
financiamento desta rea, apesar dos constantes esforos de suplementar financeira-
mente o atendimento com novos projetos.
Este quadro se agrava rapidamente com a retirada do investimento pblico para as
polticas de sade e c o m a falncia - no caso dos servios do municpio de So Paulo, da
destruio-do Sistema nico de Sade (SUS). Esta situao faz c o m que os servios,
esvaziados de profissionais e recursos, tenham de encaminhar muito dos casos que
poderiam ser atendidos pelos servios pblicos, caso estes funcionassem. Felizmente
encontramos n o servio pblico algumas 'ilhas' de resistncia com as quais estabelece-
mos excelentes parcerias, como, por exemplo, o Centro de Referncia e Treinamento de
6
A Caixa de Pandora um mito que se presta a vrias interpretaes. Na verso mais corrente, Pandora,
um dos nomes da deusa-me grega Rhea, teria se tornado um equivalente, na antigidade clssica, da
Eva da cultura judaico-crist, ou seja, a mulher curiosa que por sua desobedincia condena a humani-
dade a todos os males, ao abrir uma caixa (ou um vaso) onde estes males esto guardados; no fundo do
vaso, resta a esperana. Numa interpretao menos misgina do mito, Pandora (literalmente a doadora
de todas as coisas), teria apenas reconhecido os problemas e as solues, sendo culpabilizada por
explicitar a complexidade dos fatos humanos (WALKER, 1981).
AIDS (CRT), o Centro de Sade-Escola do Butant, da USP e a Casa Eliane de Grammont. A
ampliao de nossa capacidade de estabelecer parcerias um dos saltos de qualidade do
trabalho, tanto com relao ao atendimento com os servios citados, como nas ativida-
des de formao, com grupos de mulheres e instituies de ensino e pesquisa.
As atividades de assistncia so apenas uma parcela do trabalho de promoo da
assistncia integral, pois u m dos maiores esforos do Coletivo tem sido o de influir na
construo de polticas pblicas. C o m relao s atividades externas, o grande cresci-
mento do Coletivo em termos de reconhecimento institucional, nacional e internacio-
nal, pode ser atestado pela participao nas principais instncias do movimento de mu-
lheres e na interlocuo permanente com instituies como Secretarias de Sade, Minis-
trio da Sade e agncias do sistema Naes Unidas. O papel do Coletivo na proposio de
polticas pblicas tambm se expressa na participao nos Comits de Mortalidade Mater-
na e na solicitao de consultoria sobre organizao de servios que nos feita.
C o m o decorrncia de uma experincia bem-sucedida, o crescimento da demanda
de trabalho e de responsabilidades no foi acompanhado de um aumento equivalente da
capacidade instituicional de gerenciar e ampliar os recursos. Trata-se, ento, de uma saud-
vel 'crise de crescimento', pois reconhecemos que, como mostra Natalie Lebrum, em estudo
sobre o funcionamento de Organizaes No-Governamentais (ONGs) feministas em
So Paulo, sua estrutura despreparada para o crescimento. Em parte, este problema se
deve herana 'radical' de horizontalidade e autogesto - que orientaram o trabalho desde
o incio - implicando em grandes dificuldade para o ajuste de u m modelo autogestionrio
s novas necessidades gerenciais de planejamento de uma O N G 'em crescimento'.
Manter u m servio no-governamental desta natureza um desafio gerencial ainda por
resolver. No que se refere s lies mais importantes aprendidas a partir de nossa experin-
cia, citamos a conscincia da necessidade de um planejamento estratgico situacional que
viabilize o crescimento da instituio, preserve seus princpios polticos e garanta mais
segurana e satisfao para suas trabalhadoras. Este um ponto central, porque nos encon-
tramos com uma enorme sobrecarga de trabalho, com evidentes prejuzos para nossa pr-
pria sade e bem-estar. Alm disso, mesmo sendo u m grupo que trabalha com sade e
direitos reprodutivos, a crescente defasagem entre trabalho previsto e oramento institucional
implica que as trabalhadoras no tenham garantidos, em termos oramentrios, qualquer
seguro de sade ou direitos reprodutivos bsicos, como a licena-matemidade.
Com base na experincia, nos nossos objetivos de longo prazo e nos recursos disponveis,
nossas metas para os prximos anos so: a ampliao da capacidade institucional de responder
s novas demandas - e de mobilizar recursos humanos e materiais necessrios para estefim;e
o registro e sistematizao global da nossa experincia e reflexo na rea de ateno integral
sade da mulher, incluindo as novas questes incorporadas, com a finalidade de divulgar
mais amplamente o nosso trabalho - que, em nossa avaliao, tem se mostrado muito frtil
na inspirao de outras iniciativas na promoo da sade e dos direitos das mulheres.
Referncias Bibliogrficas
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MUJERES POR LOS DERECHOS REPRODUCTIVOS. Elegimos Vivir. Amsterdam: Boletin Especial de la
Campana contra la Mortalidad Materna, 1989.
BARROSO, C. Mortalidade Materna: uma questo poltica. In: Quando aPacienteeMulher. Braslia:
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 1989.
INTERNATIONAL REPRODUCTIVE RIGHTS RESEARCH ACTION GROUP (IRRRAG). Not Like Our Mother. Relatrio de
Pesquisa. Equipe do Brasil. Recife, 1996 (Mimeo.).
LEBON, . Thelaborofloveandbread: profissionalizated and volunteer activism in the So Paulo women's health
movement, 1998. PhD Dissertation. University of Florida.
MATAMALA, M . Hay que Fortalecer la Condicin de las Mujeres en Equidad con los Hombres.
Dossier sobre calidad de la atencin. In: Revista Mujer Salud mar-abr/1995, Red de Salud
de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe.
MENDES GONALVES, R. . Prticas de Sade: processo de trabalho e necessidades. In: Edies
CEFOR, n 1. So Paulo: 1992.
Modelo de Fluxograma
Anexo 2 Enviar para S/SSC/CPS
Gerncia de Programas
de Sade da Mulher
Informe abaixo a existncia de usurias que compareceram para reinsero de DIU ou reposio de diafragma.
RESPONSVEL: Mat.:
Anexo 3
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Atendimento Integral Sade
Gerncia de Programas de Sade da Mulher
UNIDADE: : AP:
MS ANO-199
GRUPO N INCIO: _ _ _ _ / I
FINAL: / /
Assinatura do responsvel:
Mat
Anexo 4 Enviar para S/SSC/CPS
Gerncia de Programas
de Sade da Mulher
UNIDADE: Ap: M S
ANO -199
Assinatura do responsvel:
Mat
Anexo 5
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Ateno Integral Sade
Gerncias de Programas de Sade da Mulher e do Adolescente
PROGRAMAO
a
1 MDULO - Vivncia/Discusses Tericas
. Abertura / PAISM 05/05 (manh) .Adolescncia 15/05 (manh)
.Gnero/Sexualidade 05/05 (tarde) . Mortalidade Materna 15/05 (tarde)
. Sexualidade/Climatrio 08/05 (manh) . Seminrio:Mtodos Contraceptivos 19/05 (manh)
.DST 08/05 (tarde) . Seminrio:Mtodos Contraceptivos 19/05 (tarde)
. Mulher e AIDS 12/05 (manh) . Servio de Contracepo 22/05 (manh)
. Aborto 12/05 (tarde) . Prticas Educativas 22/05 (tarde)
OBS.:0 profissional de sade que faltar no primeiro dia do curso ter sua inscrio automaticamente cancelada
a
2 MODULO - Estgio Supervisionado nos Grupos de Contracepo
Participao nos grupos de contracepo desenvolvidos em algumas unidades da rede municipal,
identificadas como campo de estgio.
Carga horria prevista: 1 turno por semana, durante 3 a 6 semanas de acordo c o m a programao
das unidades de estgio.
Carga horria total - Estgio supervisionado mais 1 turno para avaliao e encerramento.
a
3 MDULO - Estgio Supervisionado em Ambulatrio de Ginecologia (exclusivamente
para mdicos)
Treinamento e m ambulatrio de contracepo com o objetivo de desenvolver todos os procedimen-
tos tcnicos necessrios para uma consulta contraceptiva.
Carga horria prevista: 1 a 2 turnos por semana, em um total de aproximadamente 8 turnos, a serem
definidos de acordo c o m a disponibilidade do treinando e da unidade campo de estgio.
INSCRIES
Para profissionais da Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro
- Contactar a Direo da Unidade
Para profissionais de sade de outras Instituies e/ou Municpios
- Contactar a Secretaria Estadual de Sade - Coordenao do Programa de Assistncia Integral
Sade da Mulher, Criana e Adolescente. (PAISMCA)
PARTE V
Introduo
* Agradecemos aos funcionrios do Banco do Brasil que compuseram o Grupo de Trabalho CASSI (Caixa de
Assistncia dos Funcionrios do Banco do Brasil) - Pesquisas Epidemiolgicas e Grupo da Terceira Idade:
Eneida Favre, Heitor Rodrigues de Assis Filho, Gisele da Silva Fernandes, Rosngela Ftima de Oliveira
Machado, Carlos Henrique da Conceio Santos, Renato Rademaker Grunewald.
estudo prioritrio das camadas populares, que compem a maioria da populao. As-
sim tem sido nos ltimos anos, no apenas na sade pblica, mas nas demais reas
ligadas s cincias humanas.
Entre os extremos de abundncia e desperdcio, ou escassez e misria, sobrevivem,
como podem, as camadas mdias. Embora pequenas do ponto de vista percentual, repre-
sentam contigente populacional considervel, por sua magnitude. Apesar de heterogneas
do ponto de vista socioeconmico, constituem, provavelmente, a face mais visvel da
sociedade brasileira, por serem compostas de elementos que, em sua maioria, consegui-
ram ter acesso a u m grau de instruo mais elevado e por tentarem se manter no mercado
formal de trabalho. Incluem desde o pequeno funcionrio pblico, com pouca ou ne-
nhuma qualificao, at a professora primria, o profissional universitrio, o pequeno
comerciante, o bancrio, o vendedor de automveis ou o corretor de seguros. a parcela
da populao que aparece nas novelas, l jornais, consome no s bens durveis, mas
tambm medicamentos ou lazer, e que, de certo modo, formadora de opinio. Em funo
de todas essas condies, comeam a ser divulgados hoje, no Pas, estudos a seu respeito.
Investigaes de tendncias que surgem no seio da classe mdia podem ajudar a
compreender comportamentos que, paulatinamente, vo se disseminar para as cama-
das populares u m pouco mais tarde. Assim ocorreu, por exemplo, no caso da substitui-
o do leite materno pelo leite em p, na dcada de 50, quando ficou evidente o papel de
'arauto' representado pelas mulheres de classe mdia, rapidamente imitadas pelas par-
celas mais pobres. interessante notar que, nesse episdio, as mulheres de classe mdia
tambm foram as precursoras do comportamento inverso, j que voltaram a adotar a
amamentao natural, mais de duas dcadas depois, propagandeando seu retorno nos
meios de comunicao.
Nesse contexto, insere-se o interesse em estudar u m grupo relativamente homog-
neo, tal qual o das bancrias, funcionrias de u m banco estatal. Estas podem ser consi-
deradas como 'grupo-sentinela', ou seja, como grupo que anuncia o que est ocorrendo
ou pode vir a ocorrer e m breve em outros segmentos sociais. Tal abordagem visa a
detectar problemas ou anunciar tendncias que seriam muito difceis de demonstrar
para o conjunto da populao, sobretudo em uma poca em que escasseiam as verbas
para pesquisas de base populacional em u m pas do tamanho do Brasil. De fato, nos
pases desenvolvidos, descobriu-se, h muito tempo, a vantagem da realizao de pes-
quisas em grupos menores - como os empregados de uma empresa ou os associados de
u m seguro-sade - no apenas por causa dos custos relativamente mais baixos e
operacionalizao mais fcil, mas, principalmente, e m funo da maior adeso por
parte dos entrevistados, o que favorece a validade das informaes.
Embora pesquisas sobre fecundidade e anticoncepo venham sendo realizadas no
Brasil, as oportunidades de estudar com mais detalhes os estratos urbanos de renda
mdia do pas so mais raras (Duchiade, 1996). Partindo destas premissas, apresenta-
mos resultados de amplo estudo sobre as condies de sade dos funcionrios de u m
banco estatal que trabalham no estado do Rio de Janeiro. Alm dos dados especficos
sobre prticas de anticoncepo, objeto principal desta publicao, outras informaes
sero fornecidas com o objetivo de caracterizar a populao estudada do ponto de vista
social, demogrfico e, tambm, o uso de servios de sade e prticas de preveno.
As questes relacionadas reproduo (desde a sexualidade, at as enfermidades espe-
cficas e sua preveno) acompanham as mulheres ao longo de toda a sua existncia. A
gravidez no planejada - talvez a mais duradoura dentre todas as preocupaes femini-
nas, na esfera reprodutiva - tem sido fonte de preocupao e ansiedade femininas nas
mais diversas sociedades. Prticas de anticoncepo tradicionais vm sendo substitudas
por outras, mais modernas, mas o mtodo ideal-eficaz, reversvel e sem efeitos indesej-
veis - ainda no est disponvel. A esterilizao voluntria, que no constitui, de fato, uma
forma de regular a fertilidade - e sim de extingui-la - o mtodo mais utilizado para o
planejamento familiar em todo o mundo (Church & Geller, 1990). Acrescente participa-
o feminina no mercado de trabalho, o padro de famlias pequenas e, tambm, a oferta
de servios que realizam a laqueadura, aliados falta de disponibilidade de outros mto-
dos seguros e situao ilegal do aborto so apontados como determinantes da ampla
utilizao da esterilizao (Vieira & Ford, 1996; Duchiade, 1995; Giffin, 1992; 1994).
No Brasil, a situao ainda mais surpreendente, no s pela proporo de mulheres
esterilizadas, mas por todo o contexto que cerca o procedimento: grande parte realiza a
laqueadura at os 30 anos, a interveno no oficial (pois no registrada em prontu-
rios mdicos) e, muitas vezes, requer pagamento especfico, complementando proce-
dimentos gratuitos (cesreas realizadas em hospitais pblicos). Apesar de todas essas
irregularidades, a esterilizao parece tomar-se cada vez mais a nica soluo confivel
-embora radical, porque irreversvel-para as mulheres que no desejam mais ter filhos
(embora muitas acreditem que o procedimento possa ser revertido).
Recente pesquisa nacional estimou que 40,1% das brasileiras unidas, que usam
mtodos anticoncepcionais, optaram pela esterilizao. Em 1986, essa proporo era de
26,9% (BEMFAM / DHS, 1996). Assim, o incremento de 17% no uso desses mtodos "decor-
reu quase exclusivamente do aumento da esterilizao, uma vez que a plula e os mto-
dos tradicionais apresentaram reduo de seus percentuais". A idade avanada e o gran-
de nmero de filhos no justificam a freqncia da laqueadura. Aligadura passou a ser
realizada mais cedo, j que a idade mediana do procedimento caiu de 31,4 anos na
pesquisa de 1986 para 28,9, dez anos depois. O nmero de filhos tambm no parece
ser uma justificativa plausvel para a laqueadura: 42,6% das mulheres em unio, com
dois filhos, j se encontravam esterilizadas.
A esterilizao voluntria, da forma como que vem sendo praticada no Brasil, cons-
titui mais u m indicador da distncia entre a realidade das prticas de anticoncepo e
o ideal justo e h u m a n o do que vem sendo definido como 'sade sexual e reprodutiva':
em primeiro lugar, que a populao tenha capacidade de ter filhos, bem como de regu-
lar sua fertilidade de forma segura e efetiva; significa que o resultado da gravidez no
somente desejado, mas tambm que deve ser bem sucedido, em termos do bem-estar
da me e da criana, incluindo o pleno desenvolvimento de seu potencial; significa que
os casais possam compreender e desfrutar de sua sexualidade, livres do medo de uma
gravidez indesejada ou de contrair enfermidades, e tambm livres da condenao social
que tem acompanhado a sexualidade h muito tempo (Barzellato, 1996).
Caractersticas sociodemogrficas
U m a breve descrio das caractersticas sociodemogrficas ser fornecida inicial-
mente, de modo a permitir uma compreenso melhor do grupo estudado e para facili-
tar comparaes c o m o conjunto da populao brasileira.
Trata-se de u m grupo de adultos jovens, cuja mdia de idade foi de 38,27 anos para
as mulheres, e de 37,13 para os homens. A idade mediana foi de 39,02 e 38,25 para
mulheres e homens, respectivamente. Para o conjunto da populao, a mxima foi de
59,20; a mnima, de 21,30 anos. Na prtica, as diferenas so poucas. Alm disso, apro-
ximadamente 60% dos funcionrios encontrava-se entre 35 e 45 anos (Tabela 1).
Nota:
Total de respostas (n) = 2.415
Enquanto o salrio mdio foi maior entre os homens - R$1.126,13-do que entre as
mulheres - R$ 909,27 - a renda familiar per capita mdia foi ligeiramente superior para
as mulheres-R$ 660,00-comparada masculina-R$ 627,00. Este resultado sugere que
as bancrias s o m a m seus salrios renda familiar, o que provavelmente no acontece
c o m muitos dos homens, que sustentam sozinhos suas famlias.
Alm do nvel de renda, a escolaridade tambm revela a diferenciao desse grupo
profissional e m relao populao e m geral: 85,5% dos funcionrios chegou a ingres-
sar na universidade (Tabela 2). Maior proporo de mulheres (64,1%) concluiu curso
superior - a taxa masculina foi de 45,7%. Este grau de instruo justificado pelo crit-
rio de seleo de seus funcionrios, que passou a exigir pelo menos o segundo grau
completo nos ltimos concursos.
Tabela 2 Escolaridade segundo sexo
Notas:
Total de respostas (n) = 2415 (Total)
Total de respostas (n) = 1391 (Homens)
Total de respostas (n) = 1024 (Mulheres)
O b s . : Mais alto grau atingido.
Notas:
Total de respostas (n) = 2.415
Casados ou unidos consensualmente
Notas:
Total de respostas (n) = 78 homens
Total de respostas (n) = 120 mulheres
A alta freqncia de parto operatrio pode ser confirmada pelo nmero de partos
cesreos declarados -76,8% das mulheres que tiveram filhos referiram pelo menos u m a
cesrea-e pelo percentual de cesarianas realizadas no primeiro parto: 64%. Este percentual
torna-se ainda mais surpreendente ao avaliarmos suas principais razes (Grfico 1):
apenas 37% deles so classificados como indicaes mdicas formais, passveis de indi-
cao cirrgica: sofrimento fetal (10,8%); posio dobeb (13,4%); indicao mdica por
doena (7,6%); emergncia com complicaes (4,0%) e parto gemelar (1,1%). As alegaes
de "falta de passagem", "trabalho longo", "passou da data", "idade", "mdico achou me-
lhor", "medo da dor", "no queria cortar o perneo" e "o mdico s fazia cesarianas" (sic)
constituram 63% e so de difcil avaliao objetiva.
Grfico 1 Motivos de realizao de cesrea no primeiro parto.
Funcionrias de banco estatal
Nota:
Total de respostas (n) = 426
Notas:
Total de respostas (n) = 1014
Pergunta: "Voc sabe fazer auto-exame de palpao dos seios para preveno do cncer de mama?"
Por outro lado, mais de 2/3 das funcionrias (6 7,9%) j realizaram pelo menos uma
vez a mamografia, solicitada n o exame peridico de sade - realizado anualmente -
para mulheres c o m 40 anos ou mais. M e s m o considerando esta rotina, esta propor-
o nos parece elevada - mais da metade das funcionrias tinha menos de 40 anos
(Tabela 1). A observao dos motivos pelos quais a mamografia foi feita (Grfico 4)
aparentemente refora esta hiptese: menos de 20% aconteceram por indicao m-
dica, devido a algum problema. S e m menosprezar a importncia da mamografia,
particularmente para as mulheres mais velhas, o uso de exames complementares
complexos pode estar sendo abusivo, c o m o acontece e m outros campos da prtica
mdica, substituindo ou complementando, quase que obrigatoriamente, a inspeo
clnica criteriosa.
Grfico 4 Motivos da realizao de mamografia.
Funcionrias de banco estatal
Histria reprodutiva
A maior parte das funcionrias - aproximadamente 80% - j engravidou pelo menos
uma vez (Tabela 5). Dentre essas, 59,7% engravidaram duas ou trs vezes. Somente2,9%
apontaram mais de cinco gestaes. Note-se que a distribuio do nmero de gravide-
zes muito concentrada, com mediana e moda coincidentes - iguais a dois (apenas
duas gravidezes) - chegando mdia de 2,3 gestaes.
Como era esperado entre mulheres urbanas, com alto nvel de escolaridade, a maioria
das funcionrias teve poucos filhos - u m ou dois - e apenas 20,5% trs filhos ou mais -
mximo de cinco (Tabela 5). Considere-se tambm que 2 9,4% relataram nunca ter tido
filhos. Isto torna possvel confirmar a opo por famlias pouco numerosas, caracters-
tica desse estrato social. Salienta-se ainda que o percentual de mulheres sem nenhum
filho (29,4%) superior ao de mulheres que nunca engravidaram (17,6%), sugerindo a
existncia de abortos espontneos ou provocados. Embora os dados da Tabela 5 no
discriminem os filhos nascidos vivos dos natimortos, o percentual informado de
natimortalidade foi muito baixo (0,9%), tomando dispensvel, portanto, a excluso dos
natimortos.
Notas:
(1)
Incluindo as que nunca engravidaram.
(2)
Excluindo as que nunca engravidaram.
(3)
Incluindo as que nunca tiveram filhos.
(4)
Excluindo as que nunca tiveram filhos.
* Mesmo aquelas gestaes que no resultaram em nascimento vivo.
**Nde filhos, tanto nascidos vivos quanto natimortos.
(1)
Total de respostas (n) = 981 para
(2)
Total de respostas (n) = 801 para
(3)
Total de respostas (n) = 1.022 para
(4)
Total de respostas (n) = 721 para
Considerando-se o conjunto das trabalhadoras, o nmero mdio de filhos foi infe-
rior a dois (Tabela ). De acordo c o m o esperado, esta mdia aumenta de acordo c o m a
idade das mulheres, mas possvel suspeitar que as mais jovens tenham comporta-
mento distinto das mais velhas (um efeito de coorte), optando por u m nmero menor
de filhos. Isto, porque nenhuma das funcionrias com menos de 35 anos tinha mais de
trs filhos, q u a n d o se sabe que o pico da fecundidade, n o Brasil, ocorre entre 25 e 29
anos (Simes & Oliveira, 1988). Embora possamos admitir que as mais jovens ainda
no tiveram todos os filhos desejados, a alta freqncia de laqueadura tubria entre elas
enfraquece esta hiptese, como veremos posteriormente.
Anticoncepo
C o m o j apontavam os nveis baixos de fecundidade das funcionrias do banco, o
controle da concepo elevado. Se forem includas as mulheres que realizaram
laqueadura de trompas e aquelas cujos companheiros so vasectomizados, 74,8% do
total usam algum mtodo anticoncepcional (Tabela 7). Este ndice semelhante ao
estimado, recentemente, para o conjunto das mulheres brasileiras 'unidas' (76,7%). No
entanto, b e m superior estimativa para o conjunto da populao feminina, sem
considerar o estado conjugal, que de 55,4% (BEMFAM/DHS, 1996). Exceo feita a
laqueadura e vasectomia - por no serem considerados estritamente mtodos
anticonceptivos - 36% das funcionrias utilizam algum mtodo.
Tabela 7 Utilizao de mtodos de anticoncepo
Notas:
Total de respostas (n) = 969 mulheres
Excludas as mulheres com laqueadura ou com companheiro vasectomizado.
Includas as que sofreram laqueadura ou tm companheiro vasectomizado.
1
Ver tambm prevalncas especficas por dependncia, no Anexo 1.
Grfico 6 Mtodos utilizados para evitar gravidez.
Funcionrias de banco estatal
Notas:
Total de respostas (n) = 752
O nmero suficiente de filhos foi o motivo declarado por cerca de 80% das funcio-
nrias para a laqueadura, ao passo que ter realizado duas ou mais cesarianas aparece em
segundo lugar, para 36,5% (Grfico 7). Entre os outros motivos citados pelas bancrias,
destaca-se que os problemas financeiros foram declarados por aproximadamente 10%
das mulheres esterilizadas. A maior parte das funcionrias (63,7%) declarou mais de u m
motivo: a maioria optou pela combinao entre "nmero suficiente de filhos" e "muitas
cesreas". Confirma-se, assim, a associao entre a prtica de cesarianas e de laqueadura,
j apontada e m outros estudos. Entre mulheres norte-americanas, por exemplo, de-
monstrou-se que aquelas submetidas a partos cesreos apresentaram probabilidade
duas vezes maior de sofrer esterilizao simultnea ps-parto d o que mulheres que
tiveram partos por via vaginal (Placek, 1981). N o caso das bancrias, entre as que j
tiveram pelo menos u m parto cesreo, 68,8% ligaram as trompas, ao passo que 45,5%
entre as que nunca tiveram parto operatrio optaram pela esterilizao. J que a maio-
ria das mulheres teve n o m x i m o dois filhos, podemos supor que, por ocasio do
segundo parto, boa parte delas'optou'pela cesariana como via de acesso para a laqueadura.
A pequena proporo de funcionrias esterilizadas sem cesariana (14,1%) revela que a
ligadura por laparoscopia pouco utilizada pelas bancrias.
Grfico "7 Distribuio dos motivos que levaram
laqueadura. Funcionrias de banco estatal
Nota: 0
Total de respostas (n) = 325
A o investigar os motivos para a realizao da laqueadura mais detalhadamente,
observamos que cerca de 64% das funcionrias tinham u m ou dois filhos na poca e m
que a realizaram (Tabela 8). Alm disso, eram bastante jovens (o ndice de opo pela
ligadura antes dos 30 anos atingiu 41 %) (Tabela 9); e 79% tinham n o m x i m o 34 anos ao
optar pela esterilizao. Assim, devemos interpretar que "nmero suficiente de filhos"
significou dois filhos - na grande maioria dos casos - e que "muitas cesreas" (tambm
duas, n o m x i m o , para a grande maioria) de fato no parecem justificar esta deciso
radical, indicada para multiparas idosas (acima de 35 anos) ou mulheres c o m grave
risco gestacional, de acordo c o m a prtica mdica criteriosa.
Notas:
Total de respostas (n) = 483
* Mulheres que fizeram laqueadura tubria.
Tabela 9 Idade na ligadura de trompas
Nota:
Total de respostas (n) = 319
Aborto
Referncias Bibliogrficas
PLACEK, J.; TAFFEL, S.N. & SMITH, J.C. Postpartum sterilization in cesarean section and non-
cesarean section delivery: United States, 1970-1975. American ]ournal ofPublicHealth, 71(11):
1258- 1261, 1981.
REZENDE, J . &MONTEIRO, C. A. B.ObstetriciaFundamental. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1976.
630p.
SIMES, C.
C. S. & OLIVEIRA, LA.P. ASituaodaFecundidade:det rminantesgeraisecaractersticasdatransiorecente.Perfilestatstico de crianas e mes no Brasil. Rio de Jane
de Geografia e Estatstica (IBGE), 1988. 64p.
VIEIRA, . M . & FORD, N. J . The provision of female sterilization in So Paulo, Brazil: a study
among low income women. Social Science and Medicine, 42 (10): 142 7-1432.
Anexo 1
Prevalncia de ligadura de trompas entre as bancrias com vida sexual ativa que no
estavam utilizando outros mtodos anticonceptivos por tipo de dependncia
Notas:
n = 619
* Agncias localizadas em cidades grandes, mdias ou pequenas.
Obs.: Nas agncias pequenas todos os funcionrios preencheram o questionrio.
22
Introduo
* Este captulo possui tantas co-autorias que sinto-me impossibilitada de enumer-las, por medo de, ao
esquecer algum nome, cometer injustias. Minha gratido a todas as pessoas que participaram de todos
os momentos e ocasies em que tive o privilgio de pensar, repensar e discutir este assunto e contar
com inmeras contribuies. Agradeo pelas crticas, sugestes, discusses sem fim e sobretudo pela
solidariedade, s professoras Elza Berqu e Eliane Azevedo; s bolsistas do Programa Sade Reprodutiva
da Mulher Negra Magda, Raquel, Dida e Vera; e ao Grupo de Estudos sobre a Sade da Populao Negra/
Sindicato dos Mdicos do Estado de So Paulo: Lurdinha, Gilka, Hegles, Tito e Joo Elias.
de componentes comprovadamente polignicos - nas quais o recorte racial/tnico pa-
rece ser importante, c o m o diabetes tipo II, miomas uterinos e hipertenso arterial. Anali-
samos, ao mesmo tempo, como a varivel classe social ao lado do recorte racial/tnico parece
determinante no prognstico desfavorvel em praticamente todas as enfermidades femi-
ninas, e m especial nos casos de cncer uterino e de mama; e no acesso aos servios
pblicos de sade, particularmente na contracepo, pr-natal e preveno do cncer.
Consideraes gerais
Embora este captulo no pretenda discutir tais conceitos, no podemos nos furtar
a tecer ligeiras consideraes sobre eles, pois o que se diz que raas humanas so, na
verdade, variaes sobre o mesmo tema: Homo sapiens. Raa, como termo, encerra sem-
pre u m significado biolgico, embora no possua o fatalismo gentico de sexo e no
seja uma categoria biolgica. A inexistncia de raas humanas uma verdade cientfica
das biocincias contemporneas. As pesquisas da gentica demonstram que a espcie
h u m a n a (Homo sapiens) u m a s; e que, dentro da espcie, a variabilidade gentica im
pe, c o m o padro de normalidade da natureza, a realidade de que cada ser h u m a n o
geneticamente nico. Geneticamente no existem raas humanas. O s saberes da gen-
tica molecular dizem que, considerando-se o DNA como o material hereditrio e o gene
como unidade de anlise biolgica, impossvel dizer se estas estruturas pertencem a
uma pessoa negra, branca ou amarela. Isso o bvio, pois o gene carrega possibilidades
de caracteres, e no os caracteres. O conceito dito 'cientfico' de raa foi construdo pela
ideologia racista - e a palavra 'raa' e o contedo histrico deste conceito referem-se a
algo que no existe.
Quanto a etnia e vocbulos correlatos (tnico, etnicidade, grupo tnico), as polmi-
cas tambm so inmeras. So palavras pouco utilizadas fora dos meios acadmicos
brasileiros. Existem resistncias a seu emprego. Para muitas pessoas, 'etnia' uma ter-
minologia que serve para escamotear e encobrir o racismo. c o m o se, ao se usar a
palavra 'etnia', a ideologia racista deixasse de existir. Etnia uma palavra e, tambm, u m
conceito, que incorpora a condio biolgica humana sem as gradaes de superiori-
dade e inferioridade-hierarquizao inerente 'raa dos racistas' - ao m e s m o tempo
em que agrega os ambientes fsico e cultural, em todas as suas dimenses.
As classificaes raciais existem desde Linneu (1738) e nos utilizamos delas nos estu-
dos - embora no haja uma classificao racial 'precisa' e todas sejam arbitrrias e partam
da semelhana fenotpica ou genotpica em humanos. Em todas as tentativas de classifi-
cao racial, o 'quesito cor' (corda pele) aparece como caracterstica bsica, como critrio
em si, ou ainda por conta da regio geogrfica nas quais as pessoas moram.
1
Borges-Osrio et al. (1993) informam que: "A freqncia de gmeos monozigticos mostra pouca
freqncia entre as populaes, sendo 1/300 nascimentos (3-4/1.000 nascimentos), independentemente da
raa e outros fatores (...) A freqncia de gmeos dizigticos, por sua vez, bastante varivel, sendo
influenciada por diversos fatores como: raa: a freqncia maior em negrides (16-20/1.000 nascimentos),
mdia nos caucasides (6-10/1.000 nascimentos) e menor nos orientais (2-4/1.000 nascimentos); idade
materna: a freqncia de gmeos dizigticos aumenta com a idade ate ao redor de 37 anos, quando cai
bruscamente (a causa o aumento de FSH - gonadotrofina - com a idade, o que pode aumentar a tendncia
poliovulao); gentipo: h uma predisposio gentica para a poliovulao, relacionada com os altos
nveis de FSH; tamanho da irmandade: (aumento com a paridade); tratamento hormonal; controle de
natalidade; aberraes cromossmicas: a freqncia de nascimentos gemelares mais alta em famlias com
indivduos aneuplides (sndrome de Down, sndrome de Turner, por exemplo)". Beiguelman (1994) diz sobre
a freqncia de partos gemelares: "A incidncia de gmeos nas populaes humanas mostra grandes varia-
es, com valores que vo de 5,9 por mil recm-nascidos vivos no Japo, at 52 por mil nascimentos na
Nigria". Tais variaes dependem da freqncia varivel de nascimentos dizigticos, pois a de monozigticos
constante (em torno de 3-4/100). Prossegue Beiguelman: nascimento de dizigticos depende eviden-
temente, da ocorrncia de poliovulao, a qual, por sua vez, depende do nvel do hormnio folculo
estimulante (FSH) que mais alto em mulheres negrides e est relacionado ao tamanho da hipfise, cujo
peso mximo atingido aos 40 anos de idade, e, obviamente, fecundidade".
negras - fazendo c o m que seja u m a das causas mais apontadas para a prtica de
histerectomia e m negras e m vrios pases); e a hipertenso arterial, que, segundo Zago
(1994), " mais freqente e mais grave e m negros que e m brancos, pelo menos nos
Estados Unidos. Desenvolve-se mais precocemente e a mortalidade principalmente
devida a derrame, muito mais do que doena coronariana".
Reviso bibliogrfica feita por Souza (1995) enfatiza, n o Brasil, os trabalhos desen-
volvidos no /UNICAMP por Berqu, Bercovich e Tamburo/Cunha; e por Morell e Silva
(1989). Na rea de aleitamento materno, dados interessantes so encontrados e m Ra
(1990) e Mota (1990). As pesquisas citadas constituem referncias indispensveis para
o estudo da sade da populao negra brasileira.
Merecem destaque as concluses do D o c u m e n t o Final da Mesa Redonda sobre a
Sade da Populao Negra (Ministrio da Sade, 1996):
A populao negra brasileira muito particular do ponto de vista gentico. No
corresponde a nenhuma outra populao de qualquer parte do mundo (...) Os dados
histricos so bem conhecidos; estudos demonstram que essas diferenas, quanto a
seus aspectos biolgicos, persistem at hoje (...). Como conseqncia, a populao
negra brasileira nica do ponto de vista gentico. Da perspectiva mdica, isso significa
que o conhecimento a respeito de todos os aspectos biolgicos ligados s etnias negras,
incluindo as doenas, podem ter no Brasil caractersticas prprias; particularmente as
doenas podem ter comportamentos diversos daqueles observados, quer na frica,
quer em outros pases da Amrica ou da Europa (...). At hoje os estudos que analisam
as populaes afro-brasileiras so muito escassos (...).
Diabetes tipo II
Atualmente sabemos que sob o rtulo de diabetes esto agrupadas vrias doenas
crnicas, de fundo gentico multifatorial. A sndrome diabtica compreende: diabetes
tipo I (infanto-juvenil/insulino-dependente-DMID), prevalente em brancos; diabetes
tipo II (ou adulta/no-insulino-dependente - DMNID), que prevalece em negros; e os
tipos caracterizados pelo aparecimento ocasional, diabetes gestacional, e diabetes se-
cundria a vrias doenas. Encontramos, ainda, duas situaes definidas c o m o de
'risco potencial diabetes': tolerncia glicose diminuda e a anormalidade potencial da
tolerncia glicose (Dombrand et al., 1990).
Miomas
O s m i o m a s so os tumores uterinos mais c o m u n s - atingem 20% das mulheres
entre a primeira menstruao e a menopausa. Em geral so 'silenciosos'; no apresen-
tam sintomas; so benignos (menos de 1% se toma maligno); tm crescimento lento; e
a maioria diminui de tamanho, naturalmente, aps a menopausa.
A pesquisa de Souza (1995) demonstra a alta incidncia e reincidncia de miomas
em mulheres negras brasileiras, e revela que a proporo de histerectomias nas negras
foi quase cinco vezes superior s brancas. A literatura mdica norte-americana afirma
que a prevalncia de miomas em negras cinco vezes maior do que em brancas e duas
vezes superior em brancas judias do leste europeu do que nas demais mulheres brancas
(Lauersen & Whitney, 1990).
Hipertenso arterial
Estima-se que de 10 a 20% das pessoas adultas sejam hipertensas. A hipertenso
arterial a principal causa de insuficincia cardaca e renal; de morte sbita; e est
ligada, direta ou indiretamente, a 12 a 14% das causas de todas as mortes no Brasil.
Estudos da dcada de 60, realizados pelos pesquisadores japoneses Okamoto e Aoki
com ratos de linhagem SHR(spontaneoushipertensiverats/ratoscom hipertenso espontnea -
que desenvolvem hipertenso arterial semelhante humana entre trs ou quatro meses
de vida), demonstraram que uma alterao gentica pode ser responsvel pela hiperten-
so arterial essencial e que, como no caso de humanos, os ratos no nascem hipertensos,
mas desenvolvem a hipertenso ao atingirem certa maturidade (Krieger & Krieger, 1994).
Em geral, a presso arterial mais alta nos homens e prevalente em negros de ambos
os sexos.
Na populao negra, aparece mais cedo, mais grave e tende a ser mais complicada.
"Na faixa de idade entre 19 e 76 anos, ocorre em 9-16% nos indivduos de raa branca e
22-30% na raa negra" (Penna, s. d.). A hipertenso duas vezes mais incidente em
diabticos do que na populao em geral. Segundo Arajo (1994):
Os dados da Secretaria Municipal de Sade de So Paulo, que se referem demanda do
Sistema de Sade, pesquisados atravs de queixa da populao, revelam que na parcela da
populao negra atendida com queixa de doenas cardiovasculares, a hipertenso alcana
nas mulheres negras um ndice de 9,2% superior ao apresentado pelas pardas e brancas.
U m a em cada dez mulheres que engravidam pela primeira vez tem hipertenso. A
doena durante a gestao e a morte materna por toxemia gravdica (eclmpsia/hiper
tenso) so as principais causas de mortalidade materna n o Brasil. Tal situao nos
obriga a analisar a cobertura e a qualidade da assistncia pr-natal, ocasio privilegiada
para a descoberta d o risco gestacional. Estimativas nacionais indicam que 50% das
mulheres de baixa renda no recebem a cobertura pr-natal necessria. Levantamentos
da Secretaria Municipal de Sade de So Paulo, aps a implantao do quesito cor,
revelam que as negras tm menor acesso ao pr-natal. Quando o fazem, comeam em
geral mais tarde do que as brancas.
Martins et al. (1994), ao analisarem dados coletados pelo Comit de Mortalidade
Materna d o Paran, e m 1993 - onde o quesito cor foi preenchido de acordo c o m a
classificao d o IBGE, mas no atendeu ao critrio da autoclassificao, pois q u e m
designou a cor foi o(a) investigador(a) ou o(a) profissional de sade que atendeu a
cliente-, constataram que 26,36%dos bitos ocorreram em mulheres negras (90% situadas
na faixa de renda familiar de at dois salrios mnimos; e 85% com at quatro anos de
estudo). Esta pesquisa, entre outras concluses, evidenciou que a principal causa de morta-
lidade materna naquele estado em 1993 foi a Doena Hipertensiva Especfica da Gravidez/
Eclmpsia (DHEG). O resultado no difere de outros estudos realizados no restante do Pas. A
novidade consiste em ter trazido tona dois fatos importantes: 50% dos bitos de mulheres
negras ocorreram por eclampsia e 26,36% da totalidade dos bitos foram de mulheres ne-
gras. Estes so dados relevantes, pois, conforme a Pesquisa Nacional de Amostra de Domiclio
(PNAD) de 1989, O percentual da populao negra noParan de apenas 23,73%. Temos, ento,
duas evidncias: a DHEG atingiu mais as mulheres negras do que as brancas e a mortalidade
materna geral nas negras foi maior do que nos demais grupos raciais.
Anemia falciforme
As anemias hereditrias so as doenas genticas mais comuns da humanidade. A
anemia falciforme, por sua vez, uma anemia hereditria e constitui-se na doena
gentica mais c o m u m da populao negra em todo o mundo. Resulta de uma mutao
na molcula de hemoglobina que altera a sua estrutura pela substituio do aminocido
2
'cido glutmico' pela 'valina', o que confere hemoglobina S, quando desoxigenada,
a capacidade de se agregar, formando fibras de hemoglobina S que deformam a hemcia,
conferindo-lhe o aspecto de meia lua ou de foice (o que d origem ao n o m e anemia
falciforme). A doena tambm conhecida c o m o 'drepanocitose' ou 'siclemia' (do
ingls sickling, falciforme; derivado de sickee, foice; siclemia).
Exemplo clssico da seleo natural de Darwin/Wallace, a anemia falciforme surgiu
na frica, e m zonas endmicas de malria, chegando ao Brasil e a toda a Amrica via
trfico de escravos. Trata-se de uma resposta da natureza, que preservou a espcie hu-
mana no habitat malrico - pois pessoas com anemia falciforme no desenvolvem aquela
doena. A explicao de tal fenmeno que o Plasmodium consome oxignio em grande
quantidade e, na medida em que solicita mais oxignio, a hemcia assume a forma de
foice. Ao adquirir esta forma, destruda pelos leuccitos, o que destri, tambm, os
parasitas da malria. Afirma-se que mesmo o(a) portador(a) do trao falciforme no
adquire a malria pelo fato de possuir parte de suas hemcias c o m hemoglobina S
(cerca de 22 a 45% da hemoglobina total). Estas, nas condies de desoxigenao impos-
tas pelo Plasmodium, sofrem falcizao - condio letal para o parasita.
As mutaes gnicas na hemoglobina so originrias de focos geogrficos distintos,
todos de zonas endmicas de malria, que determinam diferentes tipos de
hemoglobinopatias hereditrias. Existem quatro focos africanos definidores da anemia
falciforme: o da regio do Senegal; do Benin; de Camares; e o foco do grupo tnico
2
Hemoglobina A ou HbA: hemoglobina normal; Hemoglobina S ou HbS: hemoglobina siclmica ou
falciforme.
3
Banto . O foco de hemoglobinopatias hereditrias da sia origina as anemias here-
ditrias denominadas talassemias ou anemia do Mediterrneo - cuja alterao ocorre
na sntese da hemoglobina - e que incide sobre populaes da Sardenha (Itlia,
Chipre e Grcia); e orientais, sobretudo na Tailndia, Laos, Camboja, Malsia, algu-
4
mas regies da ndia e sudeste da C h i n a . Na ndia tambm existem sndromes
falciformes (Zago, 1996).
Variedades da doena
A anemia falciforme uma descoberta da Velha gentica' (ou 'gentica clssica'). Foi
a primeira doena molecular humana a ser descoberta (pelo mdico James Herrick, em
1910, Chicago, no sangue de u m estudante de medicina negro nascido nas Antilhas).
Por meio de tcnicas de DNA, a anemia falciforme classificada, conforme o foco
original, em cinco tipos: Senegal (de mdia gravidade); Benin (de pouca gravidade);
Banto (o mais grave); e Camares e rabe-indiano (ambos de forma clnica dita 'benig-
na'). No Brasil, predomina a do tipo Banto (70%). A explicao elementar: a prevalncia
deste grupo tnico na formao de nossa populao. Apenas 1 % dos diagnsticos em
nosso pas do tipo Senegal.
As duas principais formas clnicas da sndrome falciforme so: doena falciforme
ou anemia falciforme - pessoa com dois genes para anemia falciforme, u m originrio
da me e outro do pai (HbS/HbS); e trao falciforme - pessoa c o m u m gene para a
doena, herdado ou do pai ou da me (HbS/HbA).
Outras formas clnicas de anemia hereditria integram o rol das sndromes
falciformes ou doenas das clulas falciformes, conceitualmente explicadas pela pre-
sena de dois genes anormais para a hemoglobina, sendo u m deles u m gene para
hemoglobina S. Isto quer dizer que so sndromes resultantes da associao da clula
3
Banto - so povos da regio da Repblica Centro Africana e povoam sobretudo a frica do Sul, Ruanda,
Moambique, Botswana, Congo e Angola. Benin - originrios da Costa Oeste da frica: Benim, Gana,
Nigria, Togo e Costa do Marfim. Senegal - do Senegal, Serra Leoa e Gmbia.
4
Talassemia (do grego: lhalassa: mar; e hemos: sangue). Tambm conhecida por anemia de Cooley, ou
mediterrnea, por causa da alta incidncia em pessoas da regio do Mediterrneo: turcos, gregos e
italianos. As taxas de incidncias so altas tambm na ndia e Oriente Mdio. Atualmente, cura-se a
doena com enxerto de medula ssea logo aps o nascimento. O defeito gentico que origina a
talassemia em geral no ocorre na estrutura da hemoglobina (como na anemia falciforme), mas sim na
sntese das cadeias de globina. Por esta razo, o enxerto 'funciona', curando a doena. As talassemias
consistem em mutaes na sntese das cadeias da globina (alfa ou beta), e classificam-se em alfa-
talassemias e beta-talassemias, de acordo com o local da mutao. As sndromes talassmicas so
constitudas pelas alfa e beta-talassemias, alm da delta-beta-talassemias e talassemias interativas.
Alfa-talassemias ocorrem populaes asiticas e negrides e as beta-talassemias no Mediterrneo,
ndia, Oriente Mdio, regies malricas da frica e pases que receberam migrantes de tais regies.
falciforme c o m outras mutaes da hemoglobina (uma vez que existem centenas de
hemoglobinopatias estruturais e dezenas de hemoglobinopatias de alterao de sntese
5
da hemoglobina).
No Brasil, as s n d r o m e s falciformes mais c o m u n s so a associao da
hemoglobinopatia S c o m a hemoglobinopatia C, resultando na doena SC e a associa-
o da hemoglobinopatia S c o m talassemia, S-talassemia - ST. Tambm freqente a
associao de hemoglobinopatia C com talassemia, C-talassemia - CT Pessoas com ane-
mia falciforme apresentam maior suscetibilidade s infeces fatais, especialmente na
primeira infncia, e podem at morrer, se no recebem cuidados adequados.
A sintomatologia da anemia falciforme varivel. No entanto, o que chama mais
ateno a anemia hemoltica crnica, ocasionada pelas crises freqentes de falcizao
-devidas a "aglomeraes de clulas falciformes, obstruo vasculare infartos dolorosos
em vrios tecidos c o m o ossos, bao, pulmes" (Borgcs-Osrio et a l , 1993).
Existem controvrsias sobre a morbidade do trao falciforme. Sabemos que po-
dem ocorrer complicaes (s vezes letais) durante anestesia geral, infeco grave,
esforo fsico excessivo, desidratao, vo em avies sem pressurizao, em episdios
de acidose... M u i t o s autores fazem referncias associao de trao falciforme a
doenas steo-articulares, renais (hipostenria, hematuria), cardacas (alteraes
eletrocardiogrficas, sobrecarga do ventrculo esquerdo) e neurolgicas (Ramalho,
1978). Tambm no devem ser esquecidos os chamados 'riscos reprodutivos' (Teixeira,
1993) e m casamento entre duas pessoas heterozigotas; e as conseqncias de trans-
fuses de sangue que contenha hemoglobina S, c o m o reao hemoltica, morte em
exsangneo-transfuso (Silva, 1995).
Incidncia
5
Hemoglobina S - mutao resultante da substituio do aminocido cido glutmico pela valina na cadeia
beta da globina. Ocorrncia: frica Equatorial e pases que receberam escravos destas regies;
Mediterrnio e ndia. Hemoglobina C - mutao resultante da substituio do aminocido cido glutmico
pela Usina na cadeia beta da globina. Ocorre nas mesmas regies da HbS e frica Equatorial.
De acordo c o m Zago (1996), estimativas d o m e s m o ano atestam que nascem n o
Brasil, anualmente, de 700 a mil pessoas c o m doenas falciformes, e que devem exis-
tir a p r o x i m a d a m e n t e oito m i l pessoas falcmicas (com dois genes para anemia
falciforme) e, pelo m e n o s , dois milhes de portadores de u m gene da doena. A
prevalncia de heterozigotos (portadores de u m gene) de 2% na populao geral e
salta para 6-12% entre negros.
6
Etiologia do abortamento espontneo: 50%-60% - anomalias do embrio; 15% - afeces maternas:
trauma, infeces, deficincia diettica, diabetes; hipotiroidismo e malformaes anatmicas; 25%-35%
- causa indeterminada. (PENNA, s/d).
7
Decreto do Ministrio da Sade, de maro de 1996, dispe sobre a padronizao de informaes sobre
raa e cor dos cidados brasileiros e estrangeiros residentes no pas. Art. 3. O s documentos civis e
militares que tero a incluso obrigatria do quesito raa/cor, com seus desdobramentos so: declara-
o de nascido-vivo; certido de nascimento; carteira de identificao civil e militar; autorizao de
internao hospitalar (AIH); pronturio mdico; certido de casamento; certido de reservista; ttulo
eleitoral; boletim de ocorrncia policial; declarao de bito; certido de bito". Extrado do Relatrio
de Atuao do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorizao da Populao Negra (GTI).
Pessoas falcmicas - em qualquer idade - so suscetveis s infeces. Em geral, esta
a sua causa mortis. As mulheres falcmicas podem ser acometidas por infeces variadas
no perodo gravdico, sobretudo pielonefrites e pneumonias, o que poder aumentar
substancialmente o nmero de mortes por septicemia. A mortalidade materna, entre
elas, parece ser maior do que entre as no-portadoras (Zago, 1994).
Diferentes estudos, no Brasil e no exterior, demonstram sobejamente que o desen-
volvimento pndero-estatural, a maturao sexual e a sade sexual e reprodutiva de
pessoas portadoras de anemia falciforme sofrem interferncias significativas, confor-
me a gravidade das manifestaes clnicas da doena. Destacam, ainda, que nos h o -
mens as crises de falcizao duradouras e freqentes podem causar priapismo, condi-
o que poder resultar em impotncia sexual temporria ou definitiva.
Hutz & Salzano (1981), em pesquisa com 209 mulheres falcmicas da cidade do Rio
de Janeiro, concluram que em termos de nmero mdio de filhos nascidos-vivos elas
apresentavam desvantagem reprodutiva em relao s no-portadoras, pois
117 (56%) encontravam-se no perodo reprodutivo, apenas 21 tinham tido pelo menos 1
filho vivo. A mdia de filhos vivos foi de (1,7 mais ou menos), o que demonstra um grau
de subfertilidade ao observado em outras populaes. Verificou-se nesta amostra uma
taxa de perda fetal de 48%, devido principalmente aos abortos espontneos que foi de
31%. O nmero mdio de filhos nascidos vivos das mulheres falcmicas que tm mais de
40 anos de apenas 0,, enquanto que na populao geral de 3,4 filhos.
Anlise de Berqu (1995) considera que, embora Hutz e Salzano tenham trabalhado
com u m a amostra de sobreviventes e a expectativa de vida da falcmica mais baixa,
estes achados registram a necessidade de pesquisas de tipo follow-up.
A discriminao contra as mulheres na cincia e nos servios de sade tem sido
muito pesquisada nos ltimos anos e est documentada o bastante para que no haja
mais dvida quanto a esta realidade (Keller, 1991). No entanto, pelo menos no Brasil, a
discriminao racial nos servios de sade precisa ser mais estudada. Fala-se muito na
sua existncia, e, embora existam muitas evidncias de que realmente acontea, no h
'provas documentais'.
Para atender condignamente mulher negra na rea de sade reprodutiva neces-
srio que profissionais da sade e instituies de pesquisa e prestadoras de servios
conheam, d o m i n e m e t e n h a m c o m o da mais alta relevncia as condies e
especificidades por ela vivenciadas - inclusive a desigualdade perante a morte, como to
bem chama a ateno Cunha (1995):
No caso de mortalidade adulta feminina constatou-se que a probabilidade de sobre-
viver de mulheres entre 25 e 75 anos, classificadas como brancas, so sistematicamente
maiores do que a das mulheres negras (...). Em menores nveis de mortalidade adulta
feminina, maiores perdas so constatadas entre as mulheres negras.
Eis u m indicador de alerta!
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ZAGO, M . A. Quadro mundial das enfermidades e doenas consideradas genticas. Cader-
nos de Pesquisa CEBRAP (2): 3-14, 1994.
Introduo
1
Segundo Dejours, "as condies de trabalho, influenciam o corpo dos trabalhadores, enquanto a
organizao social do trabalho, faz recair o peso sobre a sade ou funcionamento mental".
2
O que discutimos aqui sobre a relao do trabalho com a vida sexual e reprodutiva das trabalhadoras
e assalariadas faz parte da tese de Livre Docncia apresentada ao Departamento de Prticas em Sade
Pblica da Faculdade de Sade Pblica da USP em novembro de 1996.
A vida reprodutiva e o trabalho
Existem amplas bibliografias nacional e internacional (com as quais concordo) que con-
sideram o trabalho domstico no pago como um trabalho-apesar de no produzir bens e
servios vendveis no mercado. No entanto, deve ser analisado como um conjunto de proces-
sos de trabalho combinados que se articulam com o processo de produo e o subsidiam.
esclarecedor da discriminao de gnero apontar o trabalho domstico sem remunera-
o como trabalho, mesmo porque sabe-se que o impacto sobre a sade provoca morbidades
semelhantes entre as trabalhadoras que esto no mercado de trabalho e as que no esto.
Se considerarmos trabalho como caracterstica capaz de transformar permanente-
mente o meio ambiente e a si mesmo, percebemos que a sua diviso e dos poderes
sociais e polticos vividos por homens e mulheres, ao longo do desenvolvimento das
sociedades, dentro e fora da casa, foram e so invenes culturais.
De maneira recorrente e variada, as formas de diviso social do trabalho excluem e
discriminam a mulher, tendo por base seus atributos biolgicos, como os relacionados
ao ciclo vital: menstruao, gestao, parto e puerprio, amamentao, climatrio e
menopausa. N o caso especfico da gestao, parto e amamentao, consideramos tais
eventos como trabalho-ampliando, assim, o significado desta categoria sempre associa-
da a u m a fora que tem valor de troca, sendo vendida no mercado de trabalho.
Dentro desta tica, trata-se de u m trabalho que despende energia, exige u m a espe-
cializao, comporta a transformao do corpo e das condies sociais, exige a coope-
rao e a atividade de u m a mulher para levar a termo.
Pensar a mulher como trabalhadora pens-la na sua integralidade, como sujeito da
produo e da reproduo. A assimetria necessria e relativa aos direitos e s condies de
trabalho dos homens e mulheres no pode ser considerada neutra. As mais diversas formas
concretas de existncia (muitas vezes consideradas invisveis) e das representaes de trabalho
e sade incluem formas de adoecer e morrer que s podem ser compreendidas se levadas em
considerao as relaes de gnero, sempre suscetveis s transformaes culturais.
As palavras das trabalhadoras que participaram dos nossos dois estudos indicam que
a escolha da maternidade u m fator "obstaculizante" para a carreira; e que no suficiente
estar garantida por leis - j que nos dois pases existem legislaes que "protegem e
3
tutelam" os direitos da mulher-me no local do trabalho. A lei italiana Tutela della matemit
3
A lei italiana 1.204, de 30 de dezembro de 1971, sobre a "Metadellalavoratricemadre", inclui trabalhadoras do servio
pblico e privado, agrcolas e em algumas normativas as trabalhadoras a domiclio e aos servios familiares.
Uniformizou a licena maternidade (parto, puerprio e aleitamento) e depois do parto, por doena da
criana. Durante seis meses a mulher tem garantido o salrio integral, que vai gradativamente diminuindo,
at completar um ano de licena. A lei brasileira 8.213/91 da Previdncia Social est contida no Art. 7 da
Constituio Federal de 1988: - licena gestante sem prejuzo do emprego e do salrio, com a durao de
120 dias; Art. 120 - os planos de Previdncia; alm de incorporar a reivindicao do movimento feminista da
o
Licena Paternidade no Art. 7- inciso XIX - com as seguintes disposies transitrias : Art. 10, 1 - at que
o
a lei venha disciplinar o disposto no Art. 7 inciso XIX, o prazo de licena-paternidade de cinco dias.
hei luoghi di lavoro e os servios sanitrios asseguram os exames diagnsticos para
assistncia gravidez e ao parto gratuito. Segundo Pizzini (1996), esta lei parece ser
u m a das melhores do continente europeu, tanto que, h no muito tempo, discu-
tiu-se sobre a necessidade de algumas limitaes em seu contedo, para adequ-la
ao protocolo da Comunidade Europia. N o entanto, u m a forte mobilizao de pro-
4
testo das mulheres italianas barrou a tentativa . A legislao brasileira referente
mulher-me no local do trabalho encontra-se ameaada pelas reformas neoliberais
q u e objetivam o ajuste fiscal, mas o que queremos apontar c o m o discusso a
semelhana dos pressupostos que sustentam as duas leis: a noo de tutelagem e
proteo. Isto nos remete ao uso d o conceito "proteger e tutelar", que pressupe
u m a relao assimtrica, e m que o 'Outro ou a Outra' considerado/a incapaz de
decidir pela sua prpria vida.
C o m o afirma Todorov (1993), uma relao no de alteridade, mas de dominao e
opresso, e m que as singularidades das identidades construdas subjetiva e objetiva-
mente no tm lugar. Ambas as leis no garantem direitos de cidadania; ao contrrio,
reforam a linguagem patriarcal e biologicista da gravidez como doena e da mulher
c o m o cidad voltada para a maternidade. Aqui o uso da linguagem de gnero pode
explicitar a diferena entre tutelar/proteger e garantir direitos. Algumas das narrativas
so exemplares sobre este aspecto.
As mulheres no fazem carreira porque existe um esteretipo masculinosegundoo qual as mulheres antes ou
depois de entrarem no mercado de trabalho engravidam. (Trabalhadora da rea da sade de Milo).
4
Os princpios fundamentais desta Lei: 1) proibio desde o incio da gravidez e por 7 meses depois do
parto de efetuar trabalhos considerados perigosos, fatigosos ou insalubres (elencados na lei, ou solici-
tados pela gestante) - a trabalhadora pode solicitar a ausncia do trabalho noturno por este perodo; 2)
a ausncia obrigatria do trabalho pode ser antecipada se a mulher apresentar alguma morbidade ou
periculosidade para a gravidez e retribuda com 80% do salrio; 3) a licena obrigatria do trabalho
prevista por 2 meses antes e 3 meses depois do parto, com 80% do salrio - previsto tambm para
trabalhadoras sem contrato fixo de trabalho; 4) no fim da licena obrigatria, a trabalhadora pode
ainda pedir para se ausentar do trabalho por seis meses, at o primeiro ano do filho, com 30% do
salrio. Tambm existe o direito de reduo do horrio de trabalho por duas horas ao dia sobre as 40
horas semanais at o primeiro ano da criana para a amamentao; no fim do terceiro ano de idade da
criana. A me tem o direito de se licenciar do trabalho quando o filho adoecer, apresentando um
atestado mdico; 5) prevista a proibio de demisso da trabalhadora desde o incio da gravidez at
a criana completar um ano, exceto nos casos de trmico da empresa ou de culpa grave da trabalhado-
ra. Outra lei, n 903, de 9-12-77, prev a ausncia facultativa do pai ao trabalho ou a reduo do horrio
para que possa tambm cuidar da criana.
C o m o apontaram Hirata (1988, 1993) e Kergoat (1988, 1993) em u m dilogo com
Dejours (1988, 1993), a construo da masculinidade e feminilidade n o trabalho est
diretamente ligada diviso social de sexo, que d s atividades desempenhadas pelos
homens a representao do perigo e s desempenhadas pelas mulheres, a da fragilidade
(unicamente por causa de sua capacidade reprodutiva).
A abordagem de gnero provoca, em primeiro lugar, uma ruptura radical com as
explicaes que recolocam a questo da sade apenas nos determinantes biolgicos e
sociais; e m segundo lugar, aponta para a afirmao de que a dimenso sexual das rela-
es trabalho e sade so construes culturais e sociais; e, em terceiro lugar, indica o
reconhecimento de que estas relaes repousam sobre u m a hierarquia e sobre u m a
formadepoder entre os sexos, fundadas na diviso sexual do trabalho, que constituem
u m dos pilares das relaes sociais de sexo (Kergoat, 1992).
A formao da subjetividade feminina que se configura a partir de u m aprendizado
de "menor valor" - e que nega esta condio como uma estratgia defensiva - conside-
rada por diversos estudos como u m obstculo s aes polticas mais organizadas entre
mulheres no sentido da atenuao da feminilidade como campo de conquista de novos
direitos n o interior do m u n d o do trabalho.
Nesse caminho, reforamos a idia de Dejours (1988) referente sobrecarga psqui-
ca das mulheres, c o m o a primeira diferena decorrente da responsabilidade do traba-
lho domstico, porque interpela de maneira diferente os homens e as mulheres e cria
uma discriminao entre as mulheres que tm filhos e as que no os tm.
A maioria dos relatos nos remete a trs consideraes: a escolha entre trabalho e
maternidade se coloca entre o que Dejours (1988) chamou de 'riscos residuais', porque
so quase sempre as mulheres que tm de buscar solues para dar conta da sobrecarga
de trabalho imposta pelas diferentes jornadas; esta escolha, tambm se situa entre os
'riscos supostos', isto , supe que a mulher-me deve ter garantidos seus direitos como
trabalhadora pelas Leis de Tutela e de Proteo, mas, na verdade, em nenhum dos casos,
este risco controlado e assumido pelas empresas ou pelo Estado; e finalmente, recupe-
ramos o conceito de autodeterminao como iderio da autonomia e do exerccio da
plena cidadania: qualidade de vida implica em educao, moradia, saneamento, em-
prego, salrio, sade, bem estar social, sexualidade sem restries, lazer, tica e dignida-
de na vida e na morte.
A representao da maternidade para essas trabalhadoras marcada pelo conflito
entre o desejo de ser me e o sentimento de que esto cometendo u m crime, pelo qual
so penalizadas. Elas sabem que no existe neutralidade na relao empresa e materni-
dade (do ponto de vista da 'eficcia da produo').
A afirmao de uma trabalhadora milanesa expressa o significado desta indignao:
"somente se forem fortes as mulheres conseguem se fazer ouvir, enquanto os homens,
mesmos sendo medocres, so ouvidos (...)".
Outra, com expresses de revolta contra a representao social da mulher-me no
mercado de trabalho c o m o improdutiva, nos conta: "as mulheres no fazem carreira
porque existe u m esteretipo masculino segundo o qual elas, antes ou depois de entra-
rem no mercado de trabalho, tm filhos, por isto no se pode confiar nelas (...)".
Estas falas nos remetem clivagem da diviso sexual c o m o u m a ineqidade de
gnero - e lembramos aqui a definio de Scott (1988) para 'gnero': "que as conseqn-
cias da hierarquia de poder vo para alm do espao domstico, como no m u n d o do
trabalho (...)." As narrativas tambm nos indicam a dimenso cultural e social dos pro-
cessos destrutivos que formam as vivncias depressivas das mulheres - que muitas
vezes no conseguem romper com as primeiras experincias de submisso que acon-
tecem na infncia, c o m o analisaram Hirata (1988) e Kergoat (1993).
A 'conscincia' da discriminao sexual pode levar ao estado de liminaridade, isto ,
a mulher sabe da discriminao, limitando-se a constat-la, como nos disse uma das
italianas entrevistadas: "a situao no muda, obstante a solicitao de elimin-la (...)".
Esta construo cultural do significado da submisso da mulher nos remete s constru-
es diferenciadas dos medos, prazeres, culpa e vergonha. O medo da perda do empre-
go, para a mulher, est relacionado sobrevivncia, perda do nico espao de liberda-
de e de socializao fora do ambiente familiar. O emprego, para muitas mulheres,
assume o significado de estratgias defensivas contra a cotidianiedade da opresso do-
mstica e sexual.
Outra operria nos conta que o problema da menopausa pode ser acentuado pelas
condies de trabalho,
mas se busca no dramatiz-lo entre as companheiras de trabalho com as quais eu converso muito. Seguramente
a presso do trabalho mais forte,principalmenteporque na minha seo as mulheres s vezes so levadas a ficarem
sempre de p sem conversar com ningum (...).
Referncias Bibliogrficas
Introduo
* Agradeo a Silvani Arruda e Rosana Gregori pelas leituras crticas e sugestes feitas a este texto, bem como
pelo entusiasmo cotidiano com que tm abraado; ao lado de Jos Roberto Simonetti, a pesquisa que
originou este artigo.
pectiva de incluso explcita das palavras 'homens/masculino' em textos que estariam
tratando de temas associados tradicionalmente s problemticas 'femininas'. Isso pode
ser observado, especialmente, nos captulos 7 e 8 do documento final da CIPD, relacio-
nados ao c a m p o da sade reprodutiva e direitos reprodutivos. Isso ocorreu c o m o
conseqncia do processo de discusso preliminar Conferncia, quando ficou paten-
te que a transformao nos indicadores de sade das mulheres s poderia ser concreti-
zada na medida em que a populao masculina - jovem e adulta - tambm modificasse
seus padres de comportamento, por exemplo, em relao transmisso das doenas
sexualmente transmissveis - em especial a AIDS - e ao uso de contraceptivos.
Paralelamente ao processo desenvolvido por meio da CIPD - que foi movido especi-
almente pela organizao e mobilizao internacional feminista; pela participao do
establishment que opera sobre as questes populacionais; governos; e agncias de coopera-
o internacional do sistema O N U - , crescia, sobretudo na Europa, Canad e Estados
Unidos, a organizao de grupos de homens reunidos para pensar suas vidas diante das
mudanas que as mulheres tm provocado no interior de suas relaes afetivas e sexuais.
Ao mesmo tempo, crescia o nmero de ncleos de estudos sobre 'masculinidades' nas
universidades americanas, canadenses e europias e o movimento gay- indicando a
urgncia de produzir conhecimento sobre o universo dos homens homossexuais, so-
bretudo diante da problemtica da AIDS.
Houve, portanto, uma convergncia de situaes. Ao mesmo tempo em que cresci-
am as reas de estudo sobre masculinidades (Kimmell, 1992), desenvolvia-se uma refle-
xo internacional sobre o papel dos homens na busca da melhoria dos indicadores de
sade para as mulheres, incrementada pela construo de u m cenrio em que eles
tambm comeam a ser vistos como cidados com necessidades e direitos na esfera da
vida sexual e reprodutiva.
Esse processo acabou tendo alguns reflexos no Brasil, como o surgimento de terapeutas
1
especializados no trabalho com homens , e a crescente tendncia em desenvolver estu-
dos com o pblico masculino, ainda que muitos deles tenham se concretizado no con-
2
texto de trabalho com AIDS . Esse cenrio indica transformaes. Deve-se lembrar que, na
dcada de 80, ocorreram poucas e isoladas iniciativas de incluso de homens - tanto
como objeto de produo terica, quanto objeto de projetos de assistncia ou interven-
o. Desse perodo, destaca-se u m seminrio realizado pelo Conselho Estadual da Condi-
o Feminina (CECF) de So Paulo, em 1984, montado a partir de grupos de discusso
1
Destaque-se aqui o papel de terapeutas como Scrates Nolasco no Rio de Janeiro e Luiz Cushnir em So
Paulo.
2
Deve-se destacar o Ncleo de Estudos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado pela Dra.
Ondina Fachel Leal, muito provavelmente um dos primeiros a pensar "masculinidades" no Brasil, o
Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, desenvolveu tambm importan-
tes trabalhos de pesquisa sobre sexualidade e gnero, estimulados sobretudo pelo Dr. Richard Parker.
desenvolvidos com homens reconhecidamente 'cmplices' em relao a chamada 'ques-
to das mulheres' e 'sensveis' a ela. Muitos eram parceiros de feministas. No caso do
atendimento populao masculina em servios, existiram relacionados ao planejamen-
to familiar, em grandes empresas e voltados especialmente para a realizao de vasectomias
(CECF, 1986). Foram reduzidos os trabalhos de interveno e m sexualidade e sade
3
reprodutiva dirigidos a homens adultos jovens, quadro que se modifica na dcada de 90 .
No caso da produo acadmica - alm de poucos -, os estudos realizados na dcada
de 80 e incio dos anos 90 apontaram muito mais para o campo da sexualidade do que
para o campo da reproduo (Leal et al., 1995). Para conhecer u m pouco mais a vinculao
Homem/Reproduo, a pesquisa descrita a seguir foi proposta.
Homens e a reproduo
3
Destaca-se o trabalho desenvolvido por Ecos, G T P O S e NEPAIDS que sempre incorporaram adolescentes de
ambos os sexos em seus trabalhos de educao sexual.
Apesar de serem geneticamente igualmente participantes, homens e mulheres no
tm igualdade de participao no processo reprodutivo em termos do volume de traba-
lho corporal que a reproduo acarreta para cada u m dos sexos. No obstante, uma
representao grfica do processo reprodutivo, circulante no sculo XVII (Demarest &
Sciarra, s/d), mostra como, naquele perodo, considerava-se o h o m e m como agente
produtor do feto - introduzido no corpo feminino j praticamente formado, apenas
esperando para ser desenvolvido. Essa concepo indica u m estgio do conhecimento
cientfico que deixa marcas no imaginrio social at os dias atuais: bastante c o m u m
ouvir-se, ainda hoje, histrias e m que os homens so descritos como 'agricultores que
espalham a semente na terra'. Concomitantemente, de maneira curiosa, a reproduo
vista como 'algo' do universo feminino.
Figueroa Perea (1996) busca ampliar o conceito de reproduo, trabalhando-o na
perspectiva de relao. Considera como muito relevante a distino entre aparelho, com-
portamento e processos reprodutivos. Observa que, se considerado o equilbrio da parti-
cipao entre mulheres e homens na reproduo em funo do grau em que a biologia de
cada u m solicitada a participar, seria razovel seguir trabalhando, sobretudo, com as
mulheres. Ao mesmo tempo, afirma que se a reproduo for pensada em u m espao de
relao - e esta a sua perspectiva -, o comportamento e o processo reprodutivo estaro
referenciados a u m a viso dinmica de encontros e desencontros, atravs da qual ser
mais fcil fazer referncia s dimenses psicolgicas e sociais da reproduo.
As transformaes conceituais em torno do universo da reproduo esto aconte-
cendo luz do que Frykman (1996) indica no textoTheTransformationofMasculinityinthe20th
Century Culture. Esse autor reforou o argumento da existncia da diversidade daquilo que
hoje se pode chamar de 'masculinidade' - construda, segundo ele, sobretudo em tomo
do que se convencionou considerar como home. Chama de home, ou 'lar', a 'arena' na qual
novas definies do que feminino e masculino estariam em construo. Nesses m o -
mentos de transio, c o m o pensar o significado da reproduo, dos processos
reprodutivos, para determinados grupos de homens?
U m dos possveis caminhos identificar, conhecer e analisar os comportamentos
sexuais e reprodutivos masculinos, e entendera relao que as pessoas do sexo masculino
- sobretudo com comportamentos predominantemente heterossexuais - estabelecem
com sua perspectiva diante da reproduo. At que ponto o corpo masculino est repre-
sentado para homens e mulheres como u m corpo que tem significados semelhantes no
mbito da reproduo? Teria a fertilidade u m sentido diferente para cada u m dos sexos?
nesse universo conceituai que a pesquisa vem sendo realizada. Os elementos aqui
destacados so preliminares, tendo sido construdos a partir de falas de homens que
participaram de grupos focais e de respostas a u m questionrio aplicado a trabalhadores
da indstria metalrgica. O grupo focal u m a tcnica de pesquisa qualitativa que
permite captar elementos da cultura, valores, atitudes e comportamentos das pessoas
cujo perfil se pretende analisar. Por meio desta tcnica, podem-se obter idias e concep-
es compartilhadas sobre temas previamente determinados e introduzidos na discus-
so, por intermdio de roteiro especfico. Quanto mais homogneo o perfil dos compo-
nentes dos grupos, maior a confiabilidade dos dados obtidos. O trabalho ainda prev a
realizao de entrevistas individuais com homens adultos jovens, escolhidos dentre os
participantes dos grupos focais, para maior aprofundamento.
A pesquisa iniciou-se com pr-testes e survey, realizado em empresa metalrgica da
cidade de So Paulo. Foram abordados 84 funcionrios. Destes, 18 faziam parte do setor
administrativo - caracterizados como sendo dos estratos B-C - e 66 da produo. Mais
do que u m instrumento de pesquisa, o survey tinha por objetivo identificar necessidades
dos funcionrios no campo da informao em educao para a sexualidade e orienta-
o para a sade reprodutiva/Alguns dos assuntos escolhidos para o levantamento
foram: grau de conhecimento dos funcionrios da empresa sobre fertilidade feminina
e masculina; mecanismos femininos e masculinos de reproduo; conhecimento e
uso de mtodos anticoncepcionais; doenas sexualmente transmissveis/AIDS; violncia
sexual e experincias em torno do aborto.
fora os funcionrios da produo, dada a impossibilidade de auto-aplicao do ques-
tionrio, o ato de preenchimento dos mesmos por pesquisadores (do sexo feminino e
masculino) acabou se transformando em u m processo de interao em que estabelece-
ram-se ricos dilogos sobre os temas propostos pelas questes, no havendo distino
entre as impresses obtidas pelo pesquisador e pela pesquisadora. Considerando a tota-
lidade dos funcionrios que responderam o questionrio, aproximadamente 14% ti-
nham at 20 anos; 17%, entre 20 e 24; 26%, de 25 a 34; 29% de 35 a 44; e 14% mais do que
45 anos. Dentre os funcionrios da produo, 35% eram casados; 62%, solteiros (a maioria
situada na faixa etria de 2 5 a 44 anos).
No geral, os entrevistados da produo demonstraram muito interesse em ter mais
informaes, considerando no ser suficiente o que j sabem no campo da sexualidade
e sade reprodutiva. A maioria deles tem possui 1 grau incompleto e demonstram ter
poucos conhecimentos sobre mtodos contraceptivos. Dentre os que so casados, a
maior parte usa a plula anticoncepcional ou so vasectomizados. O s solteiros usam a
camisinha (ou n e n h u m mtodo anticoncepcional). C h a m a a ateno a relevncia
do coito interrompido c o m o alternativa anticoncepcional, sobretudo entre os h o -
mens casados. Observou-se entre este grupo, tambm, a preocupao c o m o i m -
pacto da contracepo e do parto/cesariana sobre a sade da mulher. As respostas sobre
contracepo evidenciaram u m discurso c o m u m a todos: preferia-se a vasectomia a
outras medidas contraceptivas, por diminuir os problemas de sade para as mulheres.
C o m o j citamos anteriormente, alm do questionrio foram realizados grupos
focais. Dentre os 11 grupos realizados, trs foram feitos entre funcionrios do setor
administrativo da empresa e outros oito organizados por intermdio de empresa de
recrutamento. Todos os grupos foram constitudos com homens dos estratos B-C, sen-
do focalizadas, basicamente, trs faixas etrias: 20 a 24; 25 a 34; e 35 a 44 anos. Todos os
grupos das faixas etrias foram compostos por homens solteiros e casados, com filhos e
sem filhos. Foram obedecidos alguns critrios: todos os homens casados deveriam estar
envolvidos em primeiros casamentos, e suas esposas deveriam trabalhar fora de casa.
Com relao aos dados colhidos entre os grupos focais, possvel apreender algumas
questes bastante relevantes. U m a delas foi o fato de no existir definio homognea
sobre o que significa ser homem, indicando diversidade de padres de masculinidades
que esto sendo vivenciados. Trata-se de u m padro em transformao, que coloca
dificuldades para os homens precisarem seu prprio papel de gnero. Tambm chama
ateno o fato de que mesmo quando a responsabilidade pelo cotidiano compartilha-
da - diviso de tarefas domsticas e financeira dos gastos que o casal/famlia possui - o
h o m e m ainda se sente responsvel pela manuteno da autoridade moral familiar, de
acordo c o m o que afirma Sarty (1996) para a populao dos estratos mais baixos da
sociedade. O s homens entrevistados conseguem flexibilizar a relevncia dos recursos
financeiros que obtm c o m seu trabalho - at porque as dificuldades impostas pelo
mercado exigem que compartilhem a renda familiar com as parceiras - porm, preci-
sam reafirmar que sua a 'responsabilidade' pelas decises de conduo da famlia.
Algumas citaes dos homens nos grupos retratam essa perspectiva:
Estamos dividindo as despesas, os sentimentos, tudo isso, sem dvida, mas sempre o homem vai ser o chefe da
casa. Ele acaba sempredando(...)no as decises (...) pois essas cabem aos dois de comum acordo. Mas ele tem
sempre um conceito de estar, assim, sei l (...) comandando a casa,entende?...Eu j fui sustentado por ela durante
3 ou 4 meses, e ela entrava com a parte financeira, s que as decises a tomar a gente sempre discutia juntos...
Acho que a prpria mulher acaba colocando ele alifrente. A deciso final ou algo assimtipoem que ficou em
dvida, ela fala: T, resolve voc!' (D., 21 anos., casado, c/ filho)
Tem muitas coisas que, s vezes, a mulher no tem a coragem de chegarese impor, ou seja, o homem j sabe
que quando ele chegar ele vai ter um pouco mais de cabea de assumir as coisas que tm que ser feitas, certo?
(C, 24 anos, casado, s/ filhos)
O s dados preliminares obtidos na investigao indicam que para os homens dos
estratos B-C a preocupao com a reproduo - relevante para a construo de u m a
identidade moral masculina - se constri no contexto social, e no na relao com seu
prprio corpo. A vida reprodutiva de u m h o m e m no diz respeito, portanto, relao
direta que estabelece com sua sade reprodutiva. De maneira completamente diversa
do que ocorre com as mulheres, a reproduo, para os homens, no diz respeito a u m
processo de intimidade e de interao com seu prprio corpo. No haveria uma espcie
de conscincia reprodutiva, representada como uma experincia corporal que cria e
desenvolve marcas no imaginrio masculino no decorrer de sua adolescncia e incio
da vida adulta.
Rosane Souza (1994), em sua tese de doutoradoPaternidadeemTransformao,mostra que
a paternidade no to bvia quanto a maternidade. O adolescente no perde sangue
todos os meses, de modo a, mesmo que de modo fugaz, saber-se potencialmente genitor.
Ainda que ejacule, associa-o ao prazer, e no a u m potencial criativo. O trabalho salienta
que as meninas podem se perceber como potenciais geradoras de bebs, ao passo que os
meninos poucas evidncias tm de si mesmos como potenciais geradores de bebs, isto
, 'pais'. Souza cita Neubauer (1989) que, ao trabalhar o textoOPequeno Hans, de Freud,
comenta criticamente que ele no foi informado de seu potencial criativo, assim como
os m e n i n o s e os adolescentes no tm esta informao na sua perspectiva
desenvolvimentista. O mesmo autor afirma que h u m grande contraste entre os rituais
de passagem estruturados pela sociedade para os adolescentes do sexo masculino e do
sexo feminino; e levanta como hiptese que a obviedade e a repetitividade da menstru-
ao j atestariam o poder gerador das mulheres. Em contraposio, as ejaculaes
aconteceriam no universo privado masculino, e de forma alguma permitiriam antever
a possibilidade procriativa nele contida.
No entanto, possvel encontrar nos dados de nossa pesquisa uma condensao de
significados feita entre potncia, fertilidade e sexualidade, que indica pistas relevantes para
u m longo caminho de ensino e interveno entre os grupos populacionais masculinos.
Essa concepo da sexualidade masculina, cujo sentido (tanto para homens quanto para
as mulheres) estaria voltado para a conquista, para as relaes sem limite e para o prazer
quase selvagem - como to bem mostram os estudos de Vilela & Barbosa (1996) - de certa
forma traria implicaes para o tipo de interesse cognitivo que rapazes e garotas tm apre-
sentado quando inseridos em contexto de educao para a sexualidade e sade reprodutiva.
Paiva (1996) encontrou nos rapazes u m grande interesse pelo 'corpo sexual do/a outro/a';
nas garotas, u m interesse pelo corpo reprodutivo, mais do que no corpo sexual/ertico.
Esses dados so reforados pelo material obtido por Costa (1996) na pesquisa A Face
Masculina do Planejamento Familiar, realizada entre operrios da construo civil do
Cear. O projeto foi desenvolvido com 250 trabalhadores, em sua maioria de origem
rural e de baixa escolaridade. Aproximadamente 42% dos homens entrevistados tinham
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de 20 a 29 anos; e 38%, entre 30 e 39. Da totalidade dos entrevistados, 66% tinham l grau
incompleto; e 16% nunca haviam estudado. Cerca de 86% dos entrevistados eram casa-
dos. C h a m a ateno o fato de 52% no saberem como a mulher engravida; 5 7% no
sabem quando o corpo do h o m e m capaz de engravidar u m a mulher - porm, 55%
sabem dizer quando a mulher capaz de engravidar.
De certa forma, tais resultados confirmam os dados encontrados em pesquisa de
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opinio pblica realizada pela Comisso de Cidadania e Reproduo (CCR), por meio
do Instituto Data-Folha (1995). Foram entrevistadas 1.964 pessoas, maiores de 16 anos,
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A Comisso de Cidadania e Reproduo uma organizao da sociedade civil, de carter nacional e que rene
pessoas e instituies que defendem direitos sexuais e direitos reprodutivos da populao brasileira.
de ambos os sexos, e m So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foram sur-
preendentes os resultados pergunta: "Todos os meses a mulher tem u m perodo
frtil e pode engravidar. Pelo que voc sabe, durante quantos dias por ms o h o m e m
frtil?" Erraram 66% das mulheres e 52% dos homens. Acertaram a resposta 32% do
total dos entrevistados. Cinqenta e nove porcento disseram que no sabiam res-
ponder, e 9% erraram. Entre os homens, o ndice de acerto foi de 38%, contra 26% das
mulheres. O s mais jovens tiveram u m a freqncia maior de erros e, dentre estes,
foi o grupo de mulheres entre 16 e 2 5 anos o que mais surpreendeu: 76% erraram
ou disseram no saber a resposta. De maneira geral, quanto maior a escolaridade,
maior o ndice de acertos. M e s m o assim, apenas 30% das mulheres c o m segundo
grau completo e 62% c o m grau superior acertaram, ao passo que entre os homens os
ndices encontrados foram 47% e 75%, respectivamente. interessante observar que
23% dos h o m e n s c o m curso superior no souberam responder. Entre as mulheres,
o ndice chega a 34%.
A vida sexual dos h o m e n s e, portanto, tambm sua sade sexual apresentada
entre os participantes c o m o algo muito simples, cuja centralidade reside no funcio-
namento do pnis, isto , em sua ereo. O s homens consideram que, diferentemen-
te do que ocorre c o m as mulheres, no haveria tanto o que aprender sobre o funcio-
namento de seus corpos. Esto voltados para o mecanismo da ereo, caracterizado
por u m funcionamento externo. Movidos por esse tipo de lgica, os entrevistados encon-
tram uma facilidade muito maior para discorrer sobre o funcionamento do corpo femi-
nino - voltados que esto para a conquista sexual e amorosa - e, tambm, por estarem
dirigidos para a sade das mulheres na perspectiva da solidariedade. No discurso dos
homens participantes da pesquisa possvel identificar uma noo no to claramente
explicitada, mas evidente, de que as mulheres merecem ateno e cuidado, porque so
'complexas' e devem ser conquistadas. Assim, corpo e psiquismo femininos so repre-
sentados em oposio aos masculinos ('simples') e dos quais, por prudncia, devem se
afastar. Fica presente, sempre, o fantasma de ser identificado como homossexual.
O homem, nesse aspecto, j meio relaxado,n?Acho que pelo nosso rgo genital no ser, assim, to complexo,
to minucioso como o da muther, geralmente, o homem s vai conhecer uma doena sexual quando ele pega uma
gonorria, etc. A ele vai atrs! ( C , 24 anos, casado, s/ filhos)
Ah.' Acho que eucabuleiessa aula (...).Porque,vejabem, voc chegar numa auladecinciasonde o professor
vai explicar o rgo reprodutor masculino... dose, n?. (N., 21 anos, casado, s/ filhos)
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Esta passagem parece coincidir com o casamento, embora no seja necessariamente associada a ele.
Pode estar vinculada a uma relao em que de alguma forma esteja definido um certo compromisso
afetivo e sexual. Agradeo a Regina Maria Barbosa por este comentrio.
filhos por a', inerentes a 'qualquer homem'. O s homens viveriam, ento, u m dilema
entre a busca de u m a identidade pessoal e a necessidade de se submeter a u m a cultura
masculina impessoal, aceita por outros homens. De u m lado, estariam o m u n d o mas-
culino e uma sexualidade exercida de forma marginal, compartilhada pelos homens,
mas no socialmente aceita. De outro, a sexualidade exercida dentro do espao doms-
tico, de certa forma submissa ao 'desejo de fecundidade das mulheres', que teria como
produto os filhos. A mulher teria dentro do casamento, portanto, u m papel moralizador
da sexualidade masculina. Ao mesmo tempo que eles 'roubam sua sexualidade', elas a
tornam socialmente aceita, e a singularizam. Neste contexto, a contracepo dentro da
famlia torna-se u m a contradio: so os filhos que do visibilidade 'sexualidade
personificada e moralizada'.
De qualquer maneira, parece haver diferenas entre homens e mulheres sobre o
que mais interessante em relao aos processos reprodutivos. Mulheres desejam o
filho; homens desejam a famlia. A idia/desejo/vontade/aspirao de ser pai viria com a
maturidade e com o casamento e no determina o filho, ao contrrio do que parece
ocorrer com as mulheres. Para muitas delas, a legitimidade de sua feminilidade ainda se
d pelo filho, ao passo que a legitimidade da masculinidade se fundamenta na famlia.
Segundo Nolasco (1993), muitos homens tm filhos como se estivessem cumprindo
mais uma etapa de suas vidas, reafirmando sua virilidade ou esclarecendo dvidas sobre
sua identidade sexual. Ter sucesso financeiro e ter a inteno de ser bom pai e u m bom
marido seriam elementos bsicos, que definiriam para u m h o m e m o caminho rumo
paternidade, condio esta que raramente se definiria a partir de necessidades internas.
Desse ponto de vista, bastante curiosa a posio masculina sobre o aborto. Mesmo
considerando que so as mulheres que, em ltima instncia, definem o que ir ocorrer
em seus corpos, os homens entrevistados parecem considerar que suas palavras tm
muito poder e podem direcionar a atitude das mulheres, inclusive em relao deciso
de abortar. No entanto, entre os participantes da pesquisa, h uma explicitao de que
o h o m e m que incentiva a mulher a abortar poderia estar se eximindo da responsabili-
dade reprodutiva e, portanto, eximindo-se da sua obrigao de se comportar c o m o
'homem'. Conforme Victora (1982), os meninos so socializados para buscarem na rua
o sustento para a casa. Esse menino que, para tomar-se u m homem, dever tomar-se
pai e provedor, precisa pois, ter u m filho e assumi-lo, para ver consagrada sua posio de
h o m e m adulto. Jardim (1995) afirma que a masculinidade algo que deve ser compro-
vado continuamente por meio de diferentes estratgias e os filhos apareceriam como
u m dos elementos que 'provam' que o h o m e m foi ativo na vida. 'Fazer filhos' seria uma
capacidade de todo homem, mas sustentar e prover de respeito seria u m passo impor-
tante na obteno de status mais elevado entre os pares. Surge, ento, o conflito. Incenti-
var o aborto seria uma manifestao possvel, quando o homem ainda no se identifica
como 'homem pleno de responsabilidades'. Essa percepo explica os dados encontra-
dos na pesquisa de opinio pblica e m que os homens declaram que devem tentar
influir sobre a deciso das mulheres de abortar. (CCR, 1995).
Nos grupos focais, essas idias so explicitadas:
Ai que ns voltamos ali para oinciodanossa conversa,'oque ser homem', certo? Acho que o cara que foge
de uma realidade dessas, pr mim, no homem!Acho que hoje emdiavoc tem que ser homem para assumir o
que vocfaz!(L, 33 anos, casado, c/ filhos)
mais fcil ele induzir ela a faz-lo. difcil o cara chegar e dizer: Ah, va ser bonitinho, que lega e tal.
(., 25 anos, casado, s/ filhos)
E outra coisa, porincrvelque parea. Mas quando pinta o negcio do aborto, sempre o cara que vai atrs,
o cara que leva a mulher, o cara que est do lado, companheiro. Duas horas depois, ele pe no nibus e diz:
Vai com Deus,filha!A maioria das vezes assim. (R., 32 anos, casado, s/ filhos)
Consideraes finais
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Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: Calligraphic 810 BT
American Garamond BT
Fapel: Plen Bold 70g/m (miolo)
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