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Questes da sade reprodutiva

Karen Giffin
Sarah Hawker Costa

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

GIFFIN, K., and COSTA, SH., orgs. Questes da sade reprodutiva [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 1999. 468 p. ISBN 85-85676-61-2. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non
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Questes
Sade
Reprodutiva
FUNDAO OSWALDOCRUZ

Presidente
Eloi de Souza Garcia

Vice-Presidente de Ambiente, Comunicao e Informao


Maria Ceclia de Souza Minayo

EDITORA FIOCRUZ

Coordenadora
Maria Ceclia de Souza Minayo

Conselho Editorial
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Carolina M. ri
Charles Pessanha
Hooman Momen
Jaime L. Benchimol
Jos da Rocha Carvalheiro
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Paulo Amarante
Paulo Gadelha
PauloMarchionBuss
Vanize Macdo
Zigman Brener

Coordenador Executivo
Joo Carlos Canossa P. Mendes
Karen Giffin
Sarah Hawker Costa
Organizadoras

Questes
Sade
Reprodutiva
Copyright 1999 dos autores
Todos os direitos desta edio reservados
FUNDAO OSWALDO CRUZ / EDITORA

ISBN: 85-85676-61-2

Projeto Grfico
Adriana Carvalho Peixoto da Cosia

Editorao Eletrnica
Adriana Carvalho Peixoto da Cosia e Anglica Mello

Capa
Adriana Carvalho Peixoto da Costa eAnglicaMello
Fotos de Capa
Jeremy Homer (Panos Pictures) e Alvaro Funcia (fotos cedidas pelos projetos Escolas Promo-
toras de Sade, 1997 e Gravidez e Infeco pelo H I V 1999 -CSE-GSF, em parceria
com a SDE/ENSP/FIOCRUZ, este ltimo com financiamento da Fundao Mac Arthur) e
Annual Report'95.
Copidesque e Preparao de Originais
Fernanda Veneu

Reviso
Patrcia Coelho

Catalogao-na-fonte
Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica
Biblioteca Lincoln de Freitas Filho

G457q Giffin, Karen (Org.)


Questes da sade reprodutiva. / Organizado por Karen Giffin
e Sarah Hawker Costa. - Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999.
468p., il., tab., graf.
1. Sade reprodutiva. 2. Indicadores de morbi-mortalidade.
I. Costa, Sarah Hawker (org.)
C D D - 2 0 . ed.-612.6
1999
Editora Fiocruz
Rua Leopoldo Bulhes, 1480, trreo-Manguinhos
21041 -210 - Rio de Janeiro - RJ
Tel: (21) 560-6608 ramal 5050
Fax: (21) 560-6608 ramal 2009
Autores

Ana Amlia Camarano - Demgrafa com doutorado em Estudos Populacionais pela


University of London. Coordenadora da rea de Estudos Populacionais do Instituto
de Pesquisa Econmica Aplicada da Presidncia da Repblica (IPEA). Editora da Revista
BrasileiradeEstudos Populacionais.

Ana Cristina C. Vaz Reis - Nutricionista com especializao e mestrado em Sade Pbli-
ca. Assistente de pesquisa do Ncleo de Gnero e Sade da Escola Nacional de Sade
Pblica da Fundao Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ).

Ana Flvia Pires Lucas D'Oliveira- Mdica sanitarista. Doutoranda em Medicina Pre-
ventiva/Universidade de So Paulo (USP). Coordenadora do Programa de Ateno
Mulher do Centro de Sade Escola Samuel Bransley Pessoa/Departamento de Medi-
cina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP

Ana Maria Costa - Mdica sanitarista especialista em Polticas Sociais e Sade da M u -


lher. Foi coordenadora da equipe que elaborou o PAISM e coordenadora nacional
deste Programa no mbito do Ministrio da Sade. Coordenadora do Ncleo de
Estudos de Sade Pblica da Universidade de Braslia (UnB).

Aurlio Molina -Mdico, especialista em Tocoginecologia, mestre em Ginecologia (UFRJ),


mestre e Ph.D em Planejamento Familiar pela University of Leeds (Inglaterra), Pro-
fessor Adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE), titular do Colgio Brasileiro
de Cirurgies. Coordenador do Mestrado em Ginecologia e Obstetrcia da Faculdade
de Cincias Mdicas da UPE.
Catherine . Lowndes - PhD. e m biologia molecular. Pesquisadora d o Groupe de
Recherche en Epidemiologic, Universit de Laval, Quebec, Canad, onde faz pes-
quisa sobre A I D S / D S T n o Brasil e na frica.

Clia Regina de Andrade - Assistente social. Mestranda e pesquisadora do Departamen-


to de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos em Sade (DEMQS) da ENSP/FIOCRUZ,
com trabalhos sobre epidemiologia cardiovascular e sade da mulher.

Diana do Prado Valladares - Sanitarista, mestre e m antropologia mdica. Gerente do


Programa de Sade da Mulher da Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro.

Dora Chor-Mdica. Doutora e m Sade Pblica pela Faculdade de Sade Pblica da U S P


Pesquisadora do Departamento de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos em Sade
(DEMQS) da ENSP/FIOCRUZ.

Eleonora D'Orsi-Mdica, pesquisadora do Ncleo de Gnero e Sade e doutoranda em


epidemiologia da ENSP/FIOCRUZ, com estudo sobre cesreas e qualidade da assistncia
ao parto.

Eleonora Menicucci de Oliveira - Sociloga. Ps-Doutorado na Clnica Del Lavoro Luigi


Derate da Universit Degli Studi di Milano. Professora Livre Docente e m sade
coletiva da Universidade Federal de So Paulo (UNiFESP)/Escola Paulista de Medicina.
Coordenadora do Centro de Estudos e m Sade Coletiva - UNIFESP/EPM. Pesquisadora
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnolgico,(CNPq) e da Fundao de
Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP). Diversas publicaes na rea do
Trabalho-Sade-Gnero.

Elisabeth Meloni Vieira-Mdica sanitarista, especialista e m Sade Pblica. Mestre em


Medicina Preventiva/USP, PhD e m Pesquisa Aplicada a Estudos Populacionais/
University of Exeter, Inglaterra. Docente da Faculdade de Medicina da USP de Ribei-
ro Preto.

Elza Berqu - Demgrafa, coordenadora da rea de Populao e Sociedade do Centro


Brasileiro de Anlise e Planejamento (CEBRAP) e do Programa de Sade Reprodutiva e
Sexualidade do /UNICAMP. Presidente da Comisso Nacional de Populao e De-
senvolvimento.

Esteia Maria Leo de A q u i n o - Professora adjunta do Instituto de Sade Coletiva da


Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA); coordenadora do Programa de Estudos
em Gnero, Mulher e Sade (MUSA/ISC/UFBA); coordenadora do Grupo de Trabalho
Gnero e Sade da Associao Brasileira de Ps-Graduao e m Sade Coletiva
(ABRASCO); integrante da Comisso lntersetorial de Sade da Mulher do Conselho
Nacional de Sade.
Ftima Oliveira-Mdica. Integrante da Comisso Nacional de tica c m Pesquisado
Ministrio da Sade (CONEP/MS), da coordenao nacional da Unio Brasileira de
Mulheres (UBM), do Conselho Diretor da Comisso de Cidadania e Reproduo e
da Rede Nacional Feminista de Sade e Direitos Reprodutivos. Conselheira do Con-
selho Municipal dos Direitos da Mulher-Belo Horizonte/MG.

Herton Ellery Arajo-Mestre c m Cincias Econmicas pela UnB. Tcnico em Planeja-


mento e Pesquisa da Coordenadoria de Estudos Populacionais do IPEA/Braslia.

Isabella G o m e s Carneiro - Mestre e m Cincias - Economia d o C o n s u m i d o r pela


University of Maryland - College Park, MD; Doutora em Demografia pela Universi-
dade Estadual de Campinas. Consultora/Assistente de Pesquisa do IPEA.

Jacqueline Pitanguy -Sociloga e cientista poltica. Fundadora e diretora da O N G


CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informao, Ao). Ex-presidente d o C o n -
selho Nacional dos Direitos da M u l h e r (1986-1989). Integrante d o Conselho
Consultivo do Allan G u t t m a c h e r Institute, d o Inter-American Dialogue e d o
H u m a n Rights Council. Integrante do Conselho Diretor da Comisso de Cida-
dania e Reproduo.

Kaiz Iwakami Beltro - Engenheiro mecnico. PhD em Estatstica pela Universidade de


Princeton, EUA. Superintendente da Escola Nacional de Cincias Estatsticas/Insti-
tuto Brasileiro de Geografia e Estatstica (ENCE/IBGE).

(Org.) Karen Giffin, PhD e m Sociologia pela University of Toronto; Ps-Doutorado do


Departamento de Antropologia, University of California, Berkeley. Professora e Pes-
quisadora Titular do Departamento de Cincias Sociais; coordenadora do Ncleo de
Gnero e Sade, ENSP/FIOCRUZ. Integrante da Comisso de Cidadania e Reproduo e
do Grupo de Trabalho Gnero e Sade da ABRASCO.

Ktia Silveira da Silva-Mdica epidemiologista, mestre em Sade Pblica. Integrante


do Comit de Preveno e Controle da Mortalidade Materna do Estado d o Rio de
Janeiro. Assessora da Direo do Instituto Fernandes Figueira/FiocRUZ.

Leila Linhares Barsted-Advogada, diretora da CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Infor-


mao, Ao). Editora da revista Estudos Eeminblas (UFRJ).

Lilia Blima Schraiber- Doutora e livre-docente em Medicina Preventiva pela USP


Professora Associada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de
Medicina da USP Especialista em Sade Pblica e Planejamento em Sade pela
FSP da USP Supervisora do Centro de Sade Escola Samuel B. Pessoa, pesquisado-
ra do CNPq, coordenao de pesquisa em violncia, gnero e direitos humanos.
Lilian Ftima Barbosa Marinho-Enfermeira, mestre em Sade Comunitria, pesqui-
sadora do Programa de Estudos em Gnero, Mulher e Sade (MUSA/ISC/UFBA); tcni-
ca da Fundao Nacional de Sade (FNS/MS).

Lynn D. Silver - Professora adjunta da Faculdade de Cincias da Sade e Centro de


Estudos Avanados e Multidisciplinares da Universidade de Braslia (UnB) e
Coordenadora de Pesquisa em Sade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consu-
midor (IDEC).

Margareth Arilha - Psicloga, ps-graduanda do Programa de Psicologia Social da


PUC-SE Pesquisadora e diretora da Estudos e Comunicao em Sexualidade e Re-
produo Humana (Ecos). Secretria-Executiva da Comisso de Cidadania e Repro-
duo. Integrante do Conselho Nacional de Sade.

Maria de Jesus Mendes da Fonseca - Estatstica. Mestre em Sade Pblica. Pesquisa-


dora do Departamento de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos em Sade da
ENSP/FIORUZ.

Milena Piraccini Duchiade - Mdica. Mestre em Sade Pblica pela ENSP/FIOCRUZ. Pesqui-
sadora do Departamento de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos em Sade da
ENSP/FIOCRUZ

Regina Helena Simes Barbosa - Psicloga, mestre e doutoranda em Sade Pblica.


Professora do Departamento de Medicina Preventiva e pesquisadora do Ncleo de
Estudos de Sade Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NESC/UFRJ) .
Desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extenso na rea de Gnero e Sade,
em especial no campo de preveno de DST/AIDS.

(Org.) Sarah Hawker Costa-Mestrado em demografia mdica da University of London,


D.Phil, em Sade Pblica, University of Oxford. Professora e Pesquisadora Titular do
Departamento de Epidemiologia e Mtodos Quantitativos (ENSP/FIOCRUZ). Assessora
de Programas na Fundao Ford no Brasil, na rea de Sade Reprodutiva.

Rosalina Jorge Koifman - Mdica, c o m mestrado e m Medicina Social. Diretora do


Departamento de Epidemiologia da Secretaria M u n i c i p a l de Sade do Rio de
Janeiro de 1981 a 1990. Pesquisadora titular no Departamento de Epidemiologia
da ENSP/FIOCRUZ, o n d e desenvolve atividades de e n s i n o e pesquisa e m
Epidemiologia do Cncer.

Sergio Koifman - Mdico com doutorado em Medicina Preventiva na USP Pesquisador


titular no Departamento de Epidemiologia ENSP/FIOCRUZ, participando de atividades
de ensino e pesquisa em Epidemiologia do Cncer.
Simone Grilo Diniz - Mdica sanitarista. Mestre e doutoranda em Medicina Preventiva
pela U S P Fundadora e integrante do Coletivo Feminista Sexualidade Sade. Traba-
lha com pesquisa, assistncia, capacitao e politicas pblicas em violncia, sade
reprodutiva e sexual.

Sonia Corra - Arquiteta com especializao em antropologia. Fundadora da O N G femi-


nista SOS-Corpo-Gnero-Cidadania. Integrante do Conselho Diretor da Comisso
de Cidadania e Reproduo e da Comisso Nacional dePopulaoe Desenvolvimen-
to. Coordenadora do projeto associado Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e
Econmicas - Development Alternative with Women for a New Era (IBASE-DAWN)
Iniciativa Gnero.

Suzana Kalckmann - Biloga, com especializao em Sade Pblica pela Faculdade de


Sade Pblica (USP), mestre em Epidemiologia pela Escola Paulista de Medicina
(UNIFESP). Pesquisadora do Ncleo de Investigao em Sade da Mulher e da Criana
do Instituto de Sade da Secretaria de Estado da Sade de SoPaulo.Integrante do
Grupo de Estudos sobre Sexualidade Masculina e Paternidade (GESMAP) . Coordenou o
primeiro estudo sobre o preservativo feminino no Brasil.

Thlia Velho Barreto de Arajo - Mdica. Mestre em Epidemiologia (LSHTM/ University


of London). Doutoranda em Sade Coletiva (ISC/UFBA) . Professora assistente do De-
partamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Pesquisadora visitante na Maternal and Child Epidemiology Unit, London School of
Hygiene and Tropical Medicine, University of London (1990).
Sumrio

Apresentao 15

PARTE 1 - HISTRIA, POLTICA, CONCEITOS

1. O Movimento Nacional e Internacional de Sade e Direitos Reprodutivos


Jacqueline Pitanguy 19

2. "Sade Reprodutiva", Gnero e Sexualidade:


legitimao e novas interrogaes
Sonia Corra 59

3. Famlia, Sexualidade e Reproduo no Direito Brasileiro


Leila Linhares Barsted 51

4. A Medicalizao do Corpo Feminino


Elisabeth Meloni Vieira 67

5. Corpo e Conhecimento na Sade Sexual:


uma viso sociolgica
Karen Giffin 79
PARTE II - CONTROLE DA FECUNDIDADE

6. Tendncias da Fecundidade Brasileira no Sculo X X :


uma viso regional
Ana Amlia Camarano, Herton Ellery Arajo & Isabella Gomes Carneiro 95

7. Ainda a Questo da Esterilizao Feminina no Brasil


Elza Berqu 113

8. Laqueadura Tubria:
situao nacional, internacional e efeitos colaterais
Aurelio Molina 127

9. Mtodos de Barreira Controlados pela Mulher


Suzana Kalckmann 147

10. Aborto Provocado:


a dimenso do problema e a transformao da prtica
Sarah Hawker Costa 165

PARTE III - MORBI-MORTALIDADE

11. Padres e Tendncias em Sade Reprodutiva no Brasil:


bases para uma anlise epidemiolgica
Estela Maria Leo de Aquino, Thlia Velho Barreto de Arajo &
Lilian Ftima Barbosa Marinho 187

12. A Mortalidade Materna no Brasil no Perodo de 1980 a 1995


Ktia Silveira da Silva, Eleonora D'Orsi, Catherine M . Lowndes &
Ana Cristina C. Vaz Reis 205

13. Incidncia e Mortalidade por Cncer em Mulheres Adultas no Brasil


Sergio Koifman &Rosalina Jorge Koifman 227

14. Doenas Sexualmente Transmissveis na Mulher


Catherine . Lowndes 255
15. AIDS e Sade Reprodutiva: novos desafios
Regina Helena Simes Barbosa 281

I V - SERVIOS DE SADE

16. Direito Sade ou Medicalizao da Mulher?


Implicaes para avaliao dos servios de sade para mulheres
Lynn D. Silver 299

17. Desenvolvimento e Implantao do PAISM no Brasil


Ana Maria Costa 319

18. Violncia de Gnero, Sade Reprodutiva e Servios


Ana Flvia Pires Lucas D'Oliveira & Lilia Blima Schraiber 337

19. Aes de Contracepo e Assistncia ao Parto:


a experincia do Rio de Janeiro
Diana do Prado Valladares 357

20. A Ateno Integral e a Caixa de Pandora:


notas sobre a experincia do Coletivo Feminista Sexualidade Sade
Simone Grilo Diniz 377

V - SADE REPRODUTIVA GRUPOS SOCIAIS

21. Condies de Sade de Funcionrios de Banco Estatal:


aspectos ligados reproduo
Dra Chor, Maria de Jesus Mendes da Fonseca, Milena Piraccini Duchiade,
Clia Regina de Andrade & Kaiz Iwakami Beltro 397

22. O Recorte Racial/tnico e a Sade Reprodutiva:


mulheres negras
Ftima Oliveira 419
23. O Drama da Mulher no M u n d o do Trabalho:
o ser e o estar
Eleonora Menicucci de Oliveira 439

24. Homens, Sade Reprodutiva e Gnero:


o desafio da incluso
Margareth Arilha 455
Apresentao

Concebemos este livro como demonstrao do esforo conjunto da Academia, ser-


vios e movimento sociais na luta pela sade. Nosso desejo foi produzir u m recurso
para a preparao de novos profissionais, u m volume em que se apresentasse uma viso
abrangente da realidade do nosso assunto, compondo u m quadro histrico-poltico-
conceitual da Sade Reprodutiva.
Embora autoras e autores no tenham sido orientados para reunir as questes da
sade reprodutiva sob u m a bandeira nica, isto aconteceu: os artigos tm c o m o fio
condutor a noo dasadeintegral, que veio a pblico no Brasil em 1983, com a formulao
de uma proposta oficial, o Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM), que
continua sendo uma utopia do movimento de mulheres e u m projeto coletivo que norteia
ampla participao, apesar dos tempos difceis da luta sanitria no Pais.
Nesta apresentao, desaconselhvel simplificar uma realidade feita tanto de idias
que avanam quanto de cifras de morbi-mortalidade que atestam a degradao da
sade. desnecessrio resumir os trabalhos que, juntos, descrevem fatos, analisam
conceitos, reportam experincias, levantam desafios e fazem sugestes, em uma clara
demonstrao da importncia e da vitalidade de nossa histria acumulada.

Kami Giffin
Sarah Hawker Costa
PARTE I

Histria, Poltica, Conceitos


O Movimento Nacional e Internacional de Sade
e Direitos Reprodutivos
Jacqueline Pitanguy

Contexto

A visibilidade da mulher na esfera pblica do cenrio internacional constitui u m


dos principais fenmenos polticos da segunda metade deste sculo. Isto deve-se tanto
a u m significativo aumento da presena feminina em partidos, parlamentos e cargos
executivos, quanto sua participao em diversas entidades da sociedade civil - movi-
mentos sociais, Organizaes No-Governamentais (ONGs), associaes de classe, sin-
dicatos etc.
Sobre a participao feminina nos parlamentos europeus, chama ateno a posio
de destaque que detm nos pases nrdicos, especialmente na Noruega, onde, desde a
dcada de 80, as mulheres ocupam mais de 30% das cadeiras do Legislativo. As recentes
eleies da Inglaterra e da Frana fortaleceram sua presena neste espao poltico. Na
Inglaterra, a participao feminina na Cmara dos Comuns dobrou; na Frana, as m u -
lheres preencheram 23% das vagas para candidatos e aumentaram significativamente
sua presena no parlamento e em cargos de primeiro escalo do Executivo.
Esta crescente presena das mulheres nos canais institucionais do poder no se
restringe nem Europa, nem ao ocidente. Nos Estados Unidos, apesar de ainda no
ultrapassarem 12% da representao no Congresso, entre os anos 80 e 90, elas mais do
que dobraram sua presena no Legislativo Federal. Em diversos pases da Amrica Latina
vem ocorrendo fenmeno semelhante, inclusive no Brasil, onde, apesar de ostentarem
ainda uma taxa muito baixa, alcanaram, na dcada de 90, sua maior participao no
Congresso Nacional - cerca de 8%.
C o m exceo dos pases rabes, onde a cultura afasta as mulheres da esfera pblica,
em diversos pases da Asia e da frica houve, nesta dcada, significativo aumento de sua
presena no Legislativo. Cabe assinalar que, nos que integravam o antigo bloco socialista
europeu, a participao da mulher nos parlamentos vem decaindo nos ltimos anos.
Se esta tendncia - a maior presena das mulheres nos legislativos - no conduz,
necessariamente, a plataformas comuns, uma vez que as agendas polticas tecem-se
sobretudo a partir de princpios e conjunturas partidrias, indicativa de u m fenme-
no talvez ainda mais importante - o de uma profunda mudana na percepo social do
papel da mulher na sociedade. Atribumos aos movimentos de mulheres, e particular-
mente ao feminismo, a responsabilidade principal por esta mudana.
A reivindicao, por estes movimentos, de u m espao prprio na dinmica do poder
suscita a necessidade de uma redefinio do conceito de atuao poltica. A anlise dos
significados e alcances desses movimentos deve incorporar novos instrumentos e indi-
cadores, na medida e m que se pretende interpretar u m tipo de ao poltica cuja base
organizacional se fundamenta, sobretudo, na solidariedade advinda da projeo polti-
ca de uma identidade coletiva.
Calcados basicamente no estabelecimento de agendas e plataformas comuns de luta
sem maiores entraves originados da dinmica poltico partidria local, tais movimen-
tos v m construindo alianas e tecendo estratgias nacionais e internacionais c o m
surpreendente agilidade. No pretendemos questionar a importncia do sistema parti-
drio, mas to-somente indicar que o prprio contedo de sua agenda poltica implica
possibilidades e limites diversos. N o entanto, salientamos o carter imprescindvel e
insubstituvel dos partidos polticos em qualquer projeto democrtico; e ressaltamos o
perigo em sobrevalorizar a capacidade das ONGs, especialmente na prestao de servi-
os, pois estas organizaes no podem - nem devem - substituir o Estado.
Assistimos, especialmente nos anos 90, a uma crescente globalizao dos movimen-
tos sociais, interligados pelos meios de comunicao e com idias em constante circula-
o por meio de redes, grupos e organizaes nacionais e internacionais. Discutem-se
propostas, reflexes, estratgias em inmeros seminrios, conferncias. Fruns e associ-
aes diversos so institudos para canalizar e sistematizar este fluxo constante de troca.

A Amrica Latina e o Brasil

O continente latino-americano tem compartilhado experincias econmicas e po-


lticas semelhantes. Nos anos 60, realizaram-se eleies presidenciais em diversos pa-
ses - Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Peru, Uruguai, Colmbia - alm do Mxico e alguns
pases da Amrica Central. A estas eleies sucederam-se golpes militares responsveis
pela instalao de regimes autoritrios que perduraram ao longo das dcadas seguintes.
Estes so tambm anos de resistncia e exlio e coincidem c o m o amadurecimento
do feminismo na Europa e Estados Unidos, onde despontou c o m o m o v i m e n t o de
grande visibilidade e impacto no final dos anos 60.
Na dcada de 80, diversos pases da Amrica Latina viveram profunda crise econ-
mica, refletida na taxa mdia negativa de crescimento (8,3%) observada na regio entre
1981 e 1989.
As trajetrias, n o continente, voltam a convergir na dcada de 80 e incio dos
anos 90, c o m a democratizao das instituies polticas, a hegemonia do modelo
neoliberal, a reforma do Estado, o avano da globalizao. Alguns pases lograram
controlar as elevadas taxas de inflao que caracterizaram os anos anteriores. Pou-
cos, c o m o o Chile, conseguiram manter elevados ndices de crescimento do Produ-
to Interno Bruto.
A dinmica do movimento de mulheres no continente tambm apresenta conver-
gncias e semelhanas, na medida e m que os parmetros bsicos de sua atuao se
inserem na lgica dos processos polticos e econmicos mais amplos.
N o final dos anos 70 e incio dos 80, c o m o surgimento de movimentos sociais na
esfera pblica dos diversos pases, a arena poltica latino-americana incorpora novos
atores e amplia sua agenda. Estas novas formas de organizao poltica cresceram, se
afirmaram fora dos marcos tradicionais dos partidos ou dos sindicatos e trouxeram
para o debate pblico temas referentes a sade e direitos reprodutivos, que, at ento,
no eram considerados 'prprios' desse espao.
Em praticamente todos os pases latino-americanos, as relaes de gnero tm
demarcado espaos normativos, existenciais e simblicos, calcados na excluso, na
hierarquia e na desigualdade do feminino frente ao masculino. Para as mulheres
organizadas e m movimentos, grupos e O N G s , a democracia no se refere apenas ao
exerccio da cidadania na esfera pblica, mas tambm s relaes na vida cotidiana,
n o trabalho, na famlia, na sade, na educao. O sloganDemocraciaen la plaza y en la casa,
das feministas chilenas, exemplifica bem esta proposta de requalificao do conceito
de democracia.
Em u m perodo de represso e violncia do Estado contra o Legislativo, a imprensa,
as organizaes civis e os sindicatos, o movimento de mulheres latino-americano traz
a questo de gnero para a esfera pblica, alargando as discusses sobre poder, cidada-
nia e desigualdade, que caracterizavam a agenda oposicionista.
No Brasil, durante seus primeiros anos de atuao poltica, o feminismo buscou
construir uma base organizacional apoiada em grupos autnomos e, ao mesmo tem-
po, expandir seu alcance levando suas propostas a organizaes de classe, sindicatos,
universidades. Neste perodo, o movimento enfrentava dois grandes desafios: alcan-
ar visibilidade c o m o u m novo ator poltico, e dar legitimidade sua plataforma de
maneira que esta fosse encampada por outros atores, c o m o os partidos e setores do
Executivo. O m o v i m e n t o feminista brasileiro destacou-se por sua visibilidade e
1
impacto, tendo sido u m dos primeiros a conquistar espaos governamentais .
Durante os processos de democratizao, que se estendem ao longo da dcada de
80 e incio dos anos 90, ocorrem as primeiras experincias de elaborao de polti-
cas pblicas com perspectiva de gnero, bem como o crescimento da presena da m u -
lher no Legislativo e e m cargos do Executivo. N o Brasil, a primeira deputada federal
foi eleita e m 1933. At 1990, apenas 82 mulheres tiveram assento n o Legislativo
federal, ao passo que 5.062 homens se elegeram. Mais da metade das mulheres (52)
foi eleita entre o final da dcada de 80 e incio dos anos 90, c o i n c i d i n d o c o m a
visibilidade das questes de gnero trazidas para o cenrio poltico do Pas pelo
feminismo. interessante recordar que, n o Brasil, o grande salto e m termos de
participao da m u l h e r n o Congresso Nacional ocorreu nas eleies de 1986. O
movimento de mulheres mostrava-se sumamente vigoroso e o Conselho Nacional
dos Direitos da M u l h e r e conselhos estaduais lanaram a campanha 'Constituinte
2
para valer tem que ter palavra de mulher .
A interlocuo do movimento de mulheres com outros atores polticos, como os
partidos, outros movimentos sociais, os sindicatos, a Igreja Catlica e entidades diversas
da sociedade civil - inclusive as voltadas para a defesa dos direitos humanos -, obedece,
via de regra, a duas coordenadas bsicas: o contexto poltico mais amplo e a temtica
especfica colocada pela agenda feminista.
No Brasil, durante os anos 70, independentemente da pauta em questo, era pratica-
mente inexistente a interlocuo com o Executivo, tanto em mbito federal quanto
estadual. De fato, o governo mantinha com o movimento de mulheres a mesma atitude
que caracterizava sua relao com a sociedade civil em geral: via com desconfiana e
considerava potencial ameaa ordem.
Neste perodo, entretanto, o movimento busca outros parceiros e alianas. Estabele-
ce articulaes importantes c o m a universidade - onde futuramente despontariam
diversos ncleos de estudos da mulher - e procura sensibilizar a imprensa para que
divulgue de forma menos preconceituosa e simplista a agenda feminista.
Com relao ao Legislativo, o movimento de mulheres tenta estabelecer uma pon-
te, enviando, em 1976, projeto de reformulao do Cdigo Civil no captulo da famlia,
para abolir a figura do h o m e m como chefe da sociedade conjugal. Ao mesmo tempo,

1
Para uma anlise do movimento de mulheres no Brasil, recomendo a leitura de ALVAREZ, S. Engedering
Democracy in Brazil, Princeton, New Jersey University Press, 1990. Para uma anlise mais especfica, sobre
mulheres e sade, ver PITANGUY, J .FeministPoliticsand Reproductive Rights, lhe cast of Brazil, In: SEN, G. & Snow, R. Fower and
Decision: the social control of Reproduction, Boston: Harvard University Press, 1994.
2
VerPITANGUY.J.MovimientosdeMujeres yPoliticasen Brasil.In: NJHOLT, G.; VARGAS, V & WIERINGA, S. TringulodePoder. Bogot, Ed.
Tercer Mundo, 1996, e FLACSO/CEPIA. Mujeres Latino Americanas en Cifras: Brasil. Santiago, Ed. Flacso, 1993.
estabelece articulaes com a oposio, visando a incluir alguns temas de sua agenda
na sua plataforma eleitoral para as eleies parlamentares de 1978, cujo resultado
marca o processo de abertura no Legislativo.
As tentativas de estabelecer conexes e alianas com a oposio - organizada na
frente partidria do MDB, em partidos clandestinos, ou no sistema pluripartidrio ps-
1978 - seguiam a dinmica derivada das duas coordenadas bsicas anteriormente
indicadas: a conjuntural e a temtica. Do ponto de vista da conjuntura, a maioria dos
partidos de oposio via o feminismo com certa desconfiana, particularmente porque
o movimento poderia representar uma ameaa 'unio das esquerdas', desviando-as
do inimigo principal, representado pelo Estado ditatorial. Do ponto de vista temtico,
algumas reivindicaes eram incorporadas, outras rejeitadas, sobretudo em funo de
seus efeitos nas alianas estratgicas dos partidos com alguns setores, dentre os quais
destacava-se a Igreja.
Deste modo, utilizando u m a terminologia religiosa, diramos que alguns temas -
como a violncia domstica - "chegaram antes ao cu", sendo incorporados ao discurso
poltico de ampla gama de setores. Outros ficaram em uma espcie de "limbo poltico",
onde costumam permanecer assuntos sem legitimidade suficiente para serem ouvi-
dos, como os relativos contracepo; outros, como o aborto e a sexualidade, permane-
ceram no "inferno", abrigo de temas tabus e malditos da sociedade.
Estas diferenas na incorporao social da agenda das mulheres no se circunscre-
vem ao Brasil. Na maior parte da Amrica Latina, a introduo no discurso poltico mais
amplo de questes temticas abordadas pelas feministas obedeceu, e ainda obedece, a
ritmos e alcances diversos.Pode-seanalisar sob esse ponto de vista o tema do aborto, por
exemplo. Em Cuba, o abortamento voluntrio legal; em diversos pases do continente,
a resistncia ao debate pblico sobre o abortamento tem sido ainda mais profunda do
que no Brasil. Na Argentina e no Chile, onde realizaram-se importantes avanos no
combate violncia domstica, a interrupo voluntria da gravidez , ainda hoje,
proibida e m qualquer circunstncia, mesmo em situaes de risco de vida da mulher.
Nos anos 80, cresce a influncia de feministas e m partidos da oposio brasileira,
notadamente o PMDB e o PT. C o m a realizao de eleies para governadores, em 82, e a
vitria da oposio em estados c o m o So Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, so
criados os primeiros espaos governamentais, denominados conselhos, com o objetivo
de propor e implementar polticas pblicas com perspectiva de gnero. So implanta-
das, tambm, as primeiras Delegacias Especializadas no Atendimento s Mulheres Vti-
mas de Violncia (DEAMS).
C o m a redemocratizao dos pases do Cone Sul, observa-se fenmeno semelhante.
Estabelece-se o Servicio Nacional de la Mujer (SERNAM) no Chile, e Institutos de la Mujer
na Argentina e n o Uruguai. Recentemente, no Paraguai e na Bolvia tambm foram
institudos rgos semelhantes.
Cabe ressaltar que, ao instituir tais espaos, os governos latino-americanos atendem
no s a demandas dos movimentos de mulheres, mas tambm a recomendaes das
Naes Unidas. De fato, de 1975, A n o Internacional da Mulher, a 1985, ocasio da
Conferncia da Mulher em Nairbi, sucedem-se os apelos da Organizao das Naes
Unidas (ONU) para a criaodestate machineries que viabilizassem o desenvolvimento de
polticas pblicas para a promoo da mulher.

3
A trajetria brasileira

No Brasil, o percurso de mulheres feministas para o interior do Estado no se fez


sem debates, desafios e temores. Tratava-se de "ocupar" espaos ainda marcados pela
herana de dcadas de autoritarismo, durante as quais os aparelhos de Estado foram
colocados a servio de governos militares. Tal debate foi particularmente intenso quan-
do um grupo de feministas articulou, em 1985, com o candidato da oposio presi-
dncia, Tancredo Neves, a criao, na esfera federal, do Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher (CNDM).
Podem-se distinguir trs tendncias bsicas no movimento de mulheres a este res-
peito. Uma integrada por aquelas que apiam a criao do Conselho e se propem a ter
um envolvimento direto na sua formulao c gesto. Outra - parcela significativa -,
apesar de apoiar a idia do estabelecimento deste c de outros conselhos, no se prope
a participar diretamente dos mesmos. Finalmente, um grupo de feministas se coloca
contra a instituio destes rgos, pelo perigo da cooptao e eventuais ameaas
autonomia do movimento.
De qualquer forma, possvel sugerir que especialmente a segunda metade dos anos
80 marca u m perodo fundamental de formulao e implantao de polticas pblicas
com perspectiva de gnero no Brasil.
Particularmente marcante foi a atuao, em parceria c o m o C N D M , de conse-
lhos estaduais e m u n i c i p a i s e do m o v i m e n t o de mulheres durante o processo
constitucional. A significativa maioria de propostas das mulheres foi includa na
Constituio de 1988.
A desarticulao do C N D M , em 1989, seguiram-se as eleies presidenciais (no
mesmo ano), e a concomitante desestru tu rao de setores importantes do aparelho
estatal, especialmente os ligados a educao c sade.

3
Gostaria de salientar que minha anlise sobre movimento de mulheres e polticas pblicas no Brasil
necessita da objetividade resultante de um distanciamento imparcial. Trata-se de narrar um processo
do qual fui c sou protagonista - como militante do feminismo, na dcada de 70; presidente do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, entre 86-89; e diretora de uma O N G , desde o incio dos
anos 90. Consciente deste fato, esforo-me, entretanto, para situar a lgica dos acontecimentos alm
de biografias.
A agenda feminista foi sustentada, at 1995, na esfera governamental, basicamente
pela atuao do Frum de Conselhos Estaduais da Mulher, que agiu c o m o instncia
principal de coordenao nacional. A partir de ento, o C N D M vem sendo reestruturado,
apesar de ainda no contar com dotao oramentria nem quadro tcnico-adminis-
trativo prprio. Outras instncias federais, como o Conselho de Populao e Desenvol-
vimento, foram institudas.
A sociedade civil dos anos 90 tem se caracterizado pela presena de ONGs, atuando
profissionalmente no desenvolvimento de programas ligados s agendas dos movi-
mentos sociais. Articulando-se cada vez mais em redes nacionais, regionais e interna-
cionais, tais organizaes tm tido presena marcante no cenrio internacional, parti-
cularmente em questes ligadas a meio ambiente, paz, sade, e direitos humanos,
sexuais e reprodutivos.
C o m relao s articulaes internacionais dos movimentos sociais e das O N G s ,
acreditamos ser possvel distinguir alguns momentos bsicos, a partir do contexto po-
ltico mais amplo. Entre os anos 60 e incio dos 70, a Amrica Latina, e particularmente
os pases do Cone Sul, se aproxima pela vivncia c o m u m de governos ditatoriais milita-
res. A perseguio poltica e a supresso de liberdades civis fundamentais do incio
migrao de intelectuais, polticos e opositores do regime autoritrio-que se deslocam,
principalmente, do Brasil para o Chile e para a Argentina - at que os golpes militares
ocorridos posteriormente nestes pases estabelecem u m novo fluxo migratrio em
direo Europa e a outros continentes.
Envolvidos basicamente em projetos de oposio aos regimes militares, estabele-
cem-se redes informais importantes de comunicao entre militantes polticos da
Amrica Latina. Para muitos deles, o exlio na Europa coincide com a sua sensibilizao
para questes ligadas aos direitos das mulheres e ao meio ambiente - ento de grande
relevncia no cenrio poltico daqueles pases. N o Brasil, a anistia de 1979 deu novo
impulso aos temas que os movimentos sociais j vinham abordando, especialmente os
relacionados ecologia e ao feminismo.
Durante os anos 80, a circulao regional e internacional do movimento de mulhe-
res tende a ser menos intensa, sobretudo porque, tanto no Brasil como em outros pases
do continente, enfrentava-se o desafio de conquistar e consolidar espaos no interior
do Estado, desenvolvendo polticas pblicas em meio a u m a das mais graves crises
econmicas j vivenciadas.
J os anos 90 coincidem com uma crescente internacionalizao dos movimentos
sociais e das ONGs, pelo uso intensivo dos novos meios de comunicao e da proliferao
de redes, fruns e articulaes estratgicas regionais e internacionais. Essa capacidade de
articulao e presso responde pelo surgimento de novos atores internacionais que, agin-
do na arena das Naes Unidas, alcanam expressiva visibilidade e conseguem levar suas
propostas para as conferncias internacionais da O N U organizadas nesta dcada.
Movimento de mulheres e sade reprodutiva no Brasil

Foge ao alcance deste texto recuperar o debate sobre populao no Brasil. Entretanto,
deve-se ressaltar que a histria do movimento feminista est profundamente ligada ao
debate sobre controle de populao c planejamento familiar. Trazendo para o cenrio
poltico temas ligados sade da mulher, reafirmando o direito de opo sobre a vida
reprodutiva e sexual c o m o valores centrais da cidadania feminina, e reivindicando
uma atitude do Estado coerente com estes princpios, as feministas criticavam as ten-
dncias pr ou antinatalistas calcadas e m preceitos religiosos, econmicos ou
geopolticos, ou em metas demogrficas.
Entre as militantes brasileiras, j em meados da dcada de 70, havia acordo quanto
ao fato de que questes relativas sexualidade e aos direitos reprodutivos - entre os
quais o de interromper voluntariamente a gravidez - eram no s centrais, mas
estruturantes da prpria tica feminista. A ordem de prioridade destes temas, no
entanto, no era consenso. Alguns grupos consideravam fundamental manter a aliana
com a Igreja e com setores da oposio avessos a tais temticas, ao passo que outros
no se propunham a abrir mo desses temas, que consideravam centrais na constru-
o da identidade poltica do feminismo. Como ilustrao, pode-se lembrar que, ao se
propor a realizar pesquisa sobre sexualidade feminina, em 1977, o CERES, grupo femi-
nista do Rio de Janeiro, vivenciou uma srie de debates c o m outras integrantes do
movimento sobre a propriedade de se tratar a temtica naquele momento. Posterior-
mente, a pesquisa deu teve como resultado o livro Espelho de Vnus, publicado pela edito-
ra Brasiliense em 1981.
Tais tenses tendem a diminuir medida que o processo de democratizao avana;
o campo de interlocutores aumenta; a Igreja perde importncia; propostas do feminis-
mo so incorporadas a plataformas de partidos e estabelecem-se parcerias com alguns
setores do Executivo.
Particularmente relevante foi a articulao entre a universidade, algumas feministas
e o Ministrio da Sade que veio a resultar no Programa de Assistncia Integral a Sade
da Mulher (PAISM) . Inspirado em princpios gerais da luta maior pela democratizao do
Pas e respeito s liberdades individuais e civis, o PAISM foi, tambm, influenciado pelos
movimentos sanitaristas e de sade pblica, especialmente na adoo de uma perspec-
tiva integral de sade. Divulgado em 1983, representava u m exemplo raro de colabora-
o entre Estado e sociedade civil, constituindo-se em uma das primeiras iniciativas
governamentais de incorporao de princpios feministas em polticas pblicas de sa-
de. No entanto, apesar de trazer uma perspectiva integral e compreensiva, c colocar o
planejamento familiar na tica da sade, o PAISM no trata do abortamento, nem mesmo
para fazer cumprir a legislao vigente.
Entre 1983 e 1987-quando o PAISM finalmente regulamentado pelo antigo INAMPS-,
cresce a participao do movimento de mulheres no espao pblico, e os vrios conse-
lhos da mulher incorporam a sade reprodutiva em seus programas de ao.
A luta do movimento de mulheres pela incluso desses princpios no discurso go-
vernamental e em amplos setores da sociedade se d em meio a profundas transforma-
es demogrficas, resultantes tanto da queda das taxas de mortalidade - caracterstica
das dcadas de 50 e 60 - quanto do acentuado declnio das taxas de fecundidade verifi-
cado a partir dos anos 70. As taxas de crescimento populacional decresceram de mais de
3% ao ano, entre 1950 e 1960, para 2,9% na dcada seguinte e 1,8% entre 1985 e 1990.
Nesta transio, refletiu-se mais o impacto das polticas populacionais vigentes de
facto no Pas do que os princpios feministas j incorporados em leis, normas e progra-
mas governamentais. Chama-se ateno para o descompasso entre discurso e realidade
que parece acompanhar a histria poltica e social do Pas. Exemplo claro a distncia
entre o discurso oficial sobre a regulao da fecundidade e as prticas vigentes neste
campo. Durante os anos 60 e incio dos 70, a posio oficial do Brasil tendia ao natalismo.
Influenciado pela Igreja Catlica, amparado nas elevadas taxas de crescimento do PIB
verificadas durante o 'milagre econmico', e em preocupaes militares geopolticas de
ocupao territorial, o governo descartava as posies neomalthusianas prevalentes em
pases do hemisfrio norte, ao mesmo tempo em que fazia "vista grossa" s entidades de
planejamento familiar que operavam no Pas.
De fato, j desde meados dos anos 60 essas organizaes vinham atuando no Brasil
para controlar o crescimento populacional. A medida que o modelo econmico de-
monstrava sinais de enfraquecimento, diminua o apoio governamental a posies
pr-natalistas, ao mesmo tempo em que as entidades privadas ampliavam seus progra-
mas, multiplicados com o auxlio de convnios municipais e estaduais. Entretanto, s
em 1977 o governo apresenta u m programa na rea de sade reprodutiva, o Programa
de Preveno de Gravidez de Alto Risco (PPGAR), seguido do Programa Nacional de Servi-
os Bsicos de Sade (PREVSADE), de 1980, que praticamente no 'saram do papel'.
O movimento feminista, reconhecendo o direito das mulheres de vivenciarem a
maternidade como opo - com acesso informao, contracepo segura e ao trata-
mento da infertilidade, ao pr-natal e ao parto em condies adequadas, bem como
interrupo voluntria da gravidez, ao tratamento s seqelas do abortamento provoca-
do, preveno do cncer mamrio e crvico-uterino - luta para que o Estado desenvol-
va aes propositivas em sade reprodutiva.
Parcela significativa deste movimento est consciente de que a resposta do governo
situao vigente n o Pas no poderia consistir apenas em aes de orientao
demogrfica. tica intervencionista e parcial das entidades privadas, seccionando o
tero como objeto de controle, caberia oferecer uma alternativa s mulheres que dese-
jassem regular sua fecundidade.
Diversos fatores respondem pelo significativo a u m e n t o da d e m a n d a por
contracepo no Pas. A acelerada urbanizao, responsvel pelo deslocamento da po-
pulao aos centros urbanos, intensifica-se nos anos 70. Paralelamente, a mdia repre-
senta papel cada vez mais relevante na difuso dos chamados valores da 'modernidade',
em que a famlia nuclear de dois filhos corresponde ao tipo ideal de organizao.
tambm neste perodo que cresce significativamente a participao da mulher no
mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que no h investimentos pblicos em uma
infra-estrutura de equipamentos sociais necessrios para maior socializao do cuida-
do das crianas. importante ressaltar que o movimento feminista sempre levantou as
'bandeiras' da creche e da pr-escola como pontos centrais em sua plataforma poltica.
Na dcada de 80, tanto o C N D M c o m o os conselhos estaduais instituem comisses
especficas para atuar nesta rea. Alm de produzir material educativo sobre creches e
pressionar diretamente os rgos da administrao federal a implementarem a lei de
creches, o C N D M realizou acordo com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econ-
mico e Social (BNDES) que previa que, na avaliao de emprstimos solicitados por
empresas, essas deveriam comprovar o cumprimento da legislao referente a creches
para os filhos dos seus funcionrios, alm dos requisitos de praxe. O acordo conside-
rado uma iniciativa pioneira em polticas pblicas com perspectiva de gnero.
Elaborado desde 1983, o PAISM corria o risco de 'ficar no papel', seguindo o destino dos
programas anteriores. Sua regulamentao transforma-se, ento, em u m dos principais
objetivos do C N D M , agindo em consonncia com o movimento de mulheres. Dentre as
aes conjuntas desenvolvidas destaca-se a elaborao da "Carta das Mulheres Brasileiras
aos Constituintes" - redigida em reunio de mulheres no Congresso Nacional em 1986, e
distribuda em todo o pas e entregue ao deputado Ulysses Guimares em maro de
1987. Neste documento, endossavam-se duas premissas bsicas: a de que a sade era u m
direito de todos e dever do Estado, e de que a mulher tinha direito ateno a sua sade,
independentemente de seu papel de me. Lutava-se pela reafirmao dos princpios de
ateno integral em uma perspectiva compreensiva da sade da mulher. enfatizava-se,
ainda, sua oposio coero de entidades pblicas ou privadas, nacionais ou interna-
cionais, impondo ou negando o acesso aos meios de regulao da fecundidade.
No documento j esto contidos princpios bsicos que sustentariam a luta femi-
nista na dcada de 90 e seriam assegurados na Conferncia Internacional de Populao
e Desenvolvimento (CIPD) do Cairo em 1994: a afirmao de que a mulher tem o direito
de exercer uma autoridade sobre seu corpo, tomando decises sobre sua vida sexual e
reprodutiva, e de que o Estado tem o dever de fornecer os meios para que esta autorida-
de seja, de fato, exercida, ampliando, portanto, sua ao no campo da sade.
A trajetria da regulamentao do PAISM e de sua implementao (ainda em curso)
indicativa do peso relativo das questes referentes a sade e direitos reprodutivos na
agenda poltica do governo e no discurso da sociedade. A Igreja Catlica sempre acom-
panhouparipassu os desdobramentos do PAISM, interferindo, inclusive, em iniciativas do
prprio C N D M junto aos ministrios da Sade e da Previdncia Social. C o m o exemplo,
recorda-se o episdio da publicao de 5 milhes de exemplares de uma cartilha sobre
contracepo elaborada no mbito do PAISM. O C N D M havia negociado esta edio e sua
distribuio com o Ministrio da Previdncia, quando, por interferncia direta da Igreja
- que alegava que a cartilha mencionava o DIU, dispositivo considerado abortivo - o
Ministrio recuou de seu compromisso. Finalmente, depois de intensas presses do
movimento de mulheres e do C N D M , foi publicado u m nmero significativamente
menor do livreto.
O episdio revelador do campo de foras em se que se movem as aes governa-
mentais na rea da sade reprodutiva. Pode-se interpret-lo de duas maneiras: como
u m fracasso da fora poltica das mulheres diante da Igreja, e c o m o u m incidente
revelador da expresso que a agenda feminista j alcanara-j que, mesmo diante da
presso da Igreja, no foi possvel ao governo recuar totalmente, ignorando as deman-
das deste outro ator poltico no campo da sade e direitos reprodutivos.
Outros temas de sade reprodutiva que mobilizaram o movimento feminista na
dcada de 80 seriam a superviso da produo de mtodos hormonais de contracepo,
e a proibio da comercializao de produtos em fase de testes. O Norplant foi objeto de
debates e embates entre uma parcela do movimento feminista e profissionais da sade
ligados ao Population Council que desenvolviam u m projeto de experimentao com
este contraceptivo hormonal na Universidade de Campinas (UNICAMP). Tanto o C N D M
quanto o movimento de mulheres atuaram exigindo maior controle na experimenta-
o destas drogas, levando o Ministrio da Sade a cancelar a permisso para sua testagem.
Se este episdio demonstrou visibilidade e impacto sobre polticas pblicas aborda-
das por feministas, tomou evidente a necessidade do estabelecimento de mais canais
de comunicao com os profissionais da sade, especialmente os mdicos ginecolo-
gistas e obstetras. Este tipo de interlocuo viria a ser desenvolvido na dcada de 90
por diversas O N G s de mulheres. A Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informao, Ao
(CEPIA), por exemplo, tem atuado junto aos mdicos, em iniciativas que envolvem a
Associao dos Mdicos Residentes (AMERERJ) e o Conselho Regional de Medicina do Rio
de Janeiro (CREMERJ). Alm disso, desenvolve u m curso sobre medicina e cidadania na
Faculdade de Medicina da UFRJ, dentre outras atividades desenvolvidas por outras
organizaes e redes.
Ao longo do processo de democratizao do Pas, cresce a movimentao das organi-
zaes de sade no sentido de traar caminhos para a sade pblica. Em outubro de
1986, realiza-se, em Braslia, a Conferncia Nacional de Sade, que teria influncia
decisiva na formulao da sade como u m direito do cidado e u m dever do Estado,
posteriormente incorporado Constituio de 1988. Outro marco importante do en-
contro: pela primeira vez, a sade da mulher mereceu destaque em mesa especial.
Em 1987, o C N D M , com a estreita colaborao de movimentos de mulheres de todo
o Pas, organiza, juntamente com o Ministrio da Sade, a I Conferncia Nacional de
Sade da Mulher. O encontro reuniu aproximadamente 3 mil participantes em Braslia
e reafirmou os princpios da "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes" e as
diretrizes do PAISM. Merecem destaque outros dois pontos colocados em discusso na
Conferncia. O primeiro, avaliado c o m o avano considervel, foi a proposta de
descriminalizao do abortamento, u m problema de sade pblica que no havia sido
tratado pelo PAISM. O segundo referia-se ao abuso das esterilizaes, que j respondiam
por percentuais muito elevados (48%) dentre os recursos contraceptivos utilizados pelas
mulheres casadas ou unidas entre 15 e 49 anos de idade. O debate sobre a esterilizao
ocupar espao importante da agenda feminista nos anos 90, respondendo por tenses
internas no movimento e levando ao estabelecimento de articulaes diversas com
setores do Legislativo.
Com relao ao abortamento - tema ainda tabu e oculto -, cabe ressaltar que os anos
80 correspondem a u m m o m e n t o de visibilizao do tema. A partir de episdios de
flagrantes policiais e m clnicas clandestinas e da abertura de processos penais contra
mulheres e mdicos ocorridos no incio da dcada no Rio de Janeiro, o movimento
feminista traz luz a questo, ainda relegada aos pores do debate pblico. Escrevendo
para jornais, organizando mesas-redondas, visitando as mulheres que respondiam a
processos penais, as feministas conseguem incluir o abortamento voluntrio nas
temticas que integravam a agenda poltica do Pas nos anos 80.
Ao mesmo tempo, o C N D M pressionava os ministrios da Sade e da Previdncia
para fazer cumprir a lei, de forma a que atendessem s mulheres que solicitassem o
abortamento nos casos de estupro e risco de vida. Em mbito estadual, mulheres orga-
nizadas em grupos autnomos articulavam-se com parlamentares e conselhos estadu-
ais, apresentando projetos de regulamentao do atendimento ao aborto legal. No Rio de
Janeiro, por exemplo, a deputada Lcia Arruda, do PT, apresentou proposta inicialmente
aprovada pela Assemblia Legislativa e posteriormente revogada pelo governador do
Estado por influncia direta da Igreja. A regulamentao seria aprovada em 1987.
A articulao entre o movimento de mulheres, o C N D M , conselhos estaduais e o
Congresso Nacional alcanou seu auge durante o Congresso Constituinte. Em 1985, o
C N D M lana a campanha "Constituinte Pra Valer tem que ter Direitos da Mulher", que
percorre os estados colhendo reivindicaes e propostas que seriam incorporadas
"Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes".
Ao longo do processo constituinte, o C N D M enviou mais de 120 propostas e emen-
das substitutivas ao Congresso Nacional. Na rea da sade reprodutiva, cabem dois
destaques com relao atuao das mulheres. U m diz respeito ao artigo 226, pargrafo
a
7 da Constituio Federal, que situa o acesso ao planejamento familiar na esfera de
direitos, com a concomitante criao de deveres por parte do Estado. O outro se refere
ausncia, no texto constitucional, de uma proposio apresentada pela Igreja Cat-
lica e por setores evanglicos relativa defesa da vida desde a concepo. A possibilida-
de da incluso desta proposio e o terrvel retrocesso que representaria propiciaram
u m a articulao estratgica entre o C N D M e os movimentos de mulheres, que colhe-
ram as assinaturas necessrias para apresentar u m a e m e n d a p o p u l a r de
descriminalizao do abortamento. A emenda seria contraposta posio da Igreja,
fortalecendo indiretamente a posio do C N D M - que argumentava no ser o aborto
matria constitucional - posio triunfante aps longos embates, confrontos e dis-
cusses c o m setores conservadores.
A Constituio tambm incluiu, na tica da descentralizao, u m novo projeto
organizacional de atendimento sade, o Servio nico de Sade (SUS), que, em
princpio, viabilizaria a implementao do PAISM, atendendo s peculiaridades e necessi-
dades locais. Hoje, sente-se a necessidade de realizar estudos mais detalhados e pontuais,
recuperando a histria do PAISM nos diversos estados, com especial ateno aos princpios
de integralidade que o orientaram.
Em 1989, o C N D M lana a campanha nacional "Maternidade, Direito e Opo"
para avanar a implementao do PAISM e a discusso sobre abortamento, e organiza
reunio no Congresso Nacional em que, pela primeira vez, o movimento de mulhe-
res, parlamentares, mdicos, profissionais da sade, acadmicos e executores de po-
lticas pblicas discutem temticas cruciais da sade da mulher, c o m nfase especial
questo do aborto.
O contexto geral da poltica brasileira era, no entanto, cada vez mais conservador. No
mbito do Executivo federal, o Ministrio da Reforma Agrria havia sido desestruturado,
crescia a oposio parlamentar e popular ao governo Sarney, a crise econmica e infla-
cionria continuava a aprofundar-se - apesar dos sucessivos planos de estabilizao. As
relaes entre movimentos sociais e governo, ainda frgeis aps tantos anos de divrcio
entre Estado e sociedade civil, se viam ameaadas ou rompidas.
O C N D M , que mantinha laos com o movimento de mulheres rurais e trabalhara
com o Ministrio da Reforma Agrria na edio de u m livro documentando a violncia
contra mulheres e crianas no campo, sente o poder dos setores conservadores, rece-
bendo presses do Ministrio da Justia para que tal publicao no fosse divulgada.
C o m o apoio do ministro Marcos Freire, que viria a falecer pouco depois, o projeto ,
entretanto, levado adiante.
Outro m o m e n t o de confronto entre o C N D M e o Ministrio da Justia aconteceu
durante a comemorao oficial dos 100 anos de abolio da escravido. Na ocasio, o
C N D M foi diretamente admoestado pelo ministro da Justia pelo lanamento da cam-
panha "Mulher Negra, 100 Anos de Discriminao, 100 Anos de Afirmao" e pela orga-
nizao do "Tribunal Winnie Maneia" - que, apesar das presses contrrias de diversos
setores do Executivo, realizou-se em novembro de 1988.
Estes episdios, dentre outros, ilustram o quadro conjuntural que agudizou as pres-
ses contra o C N D M , por estar, tambm, levando adiante o debate pblico sobre o
aborto, outra temtica - se no mais maldita, ainda incmoda - a ser relegada ao limbo
poltico. Apesar das presses, o C N D M organiza, em julho de 1989, u m debate televisivo
com os candidatos presidncia da repblica, que respondem a perguntas especficas
enviadas por representantes de movimentos de mulheres e de conselhos estaduais e
municipais. Dentre as vrias perguntas, uma foi apresentada pelo C N D M e endereada
a todos os candidatos, e pedia seu posicionamento diante do tema aborto.
Foge aos propsitos deste artigo analisar a resposta de cada candidato. Ressalta-se
que aquele momento representou uma vitria das mulheres que, na sociedade civil ou
no governo, lutaram para trazer o tema a debate pblico. Tambm vale lembrar que a
temtica do aborto esteve praticamente ausente da discusso da sociedade nas eleies
presidenciais de 1994.

Os anos 90 e a internacionalizao do movimento de mulheres

No Brasil, a experincia de elaborao de polticas pblicas com perspectiva de gne-


ro em articulao com o movimento de mulheres se v profundamente afetada com a
desestruturao do C N D M . O s conselhos estaduais, por meio do Frum de Conselhos,
mantm uma articulao nacional, mas o desenvolvimento de projetos na esfera fede-
ral praticamente interrompido durante os anos Collor, o governo Itamar e os primei-
ros anos do mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Na sociedade civil, cresce o nmero de O N G s e proliferam as redes que procuram
articular demandas e estratgias de ao e m torno de agendas c o m u n s que, muitas
vezes, ultrapassam as fronteiras nacionais.
No campo da sade reprodutiva, a principal rede atuante no Brasil a Rede Nacional
Feminista de Sade e Sexualidade e, no mbito da Amrica Latina e do Caribe, a Rede de
Sade das Mulheres Latino-Americanas e d o Caribe. Destacam-se ainda espaos
multidisciplinares c o m o a Comisso de Cidadania e Reproduo, sediada n o Brasil; o
CEDES, na Argentina; o Isis, n o Chile; e grupos com representao em diversos pases das
Amricas, c o m o o das Catlicas pelo Direito de Decidir, entre outros.
Desde as dcadas anteriores, j crescia no Pas o nmero de mulheres negras organi-
zadas em movimentos e ONGs voltadas para a questo da sade. Com relao s indge-
nas, a visibilidade e impacto de suas organizaes mais significativa em pases andinos
e na Amrica Central do que no cone sul, inclusive no Brasil.
Destacam-se, ainda, inmeras redes e grupos internacionais, sediados principal-
mente nos Estados Unidos e na Europa, mas tambm na frica e sia e interconectados
com diversas O N G s e movimentos dos diversos continentes.
U m a das principais caractersticas das atuais relaes entre movimentos de m u -
lheres e polticas de sade que, nesta dcada, passam por u m a espcie de
triangulao. O s princpios norteadores de polticas nacionais so tambm propos-
tos, discutidos e acordados em mbito global, a partir da interlocuo de grupos de
mulheres organizados internacionalmente c o m agncias das Naes Unidas, insti-
tuies de apoio multi e bilateral, organismos transnacionais e governos nacionais,
entre outros.
Recupera-se, aqui, de maneira breve, o papel desempenhado pelas mulheres no
mbito das Naes Unidas, por seus efeitos multiplicadores tanto na conceituao de
princpios internacionais de direitos humanos quanto no delineamento de polticas
pblicas. possvel distinguir duas direes que se entrecruzam e reforam mutua-
mente: a participao em conferncias especficas, e a presena de mulheres em confe-
rncias temticas diversas.
A Conferncia Internacional da Mulher, realizada na China, em 1995, insere-se em
u m processo que se estende ao longo das ltimas dcadas, traando u m c a m i n h o
iniciado no Mxico, em 1975, ocasio da I Conferncia Internacional da Mulher. Neste
percurso seguiram-se as conferncias de Copenhagen, em 1980, e a de Nairobi, em 85.
Nessas conferncias, mulheres de todo o mundo, trabalhando dentro de delegaes
oficiais o u e m fruns no-governamentais, levaram para o cenrio da O N U
questionamentos fundamentais da condio e da cidadania feminina. Dois documen-
tos so conseqncia particularmente importante deste percurso: a "Conveno para a
Eliminao de todas as Formas de Discriminao contra a Mulher", de 1979; e o "Plano
de Ao de Nairobi", de 1985 (Nairobi Forward Looking Strategies).
Nos anos 90, a O N U realizou cinco reunies temticas internacionais em que as
questes relativas a gnero, eqidade e direitos humanos foram reafirmadas e refora-
das mutuamente. Nas Conferncias de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92),
Direitos Humanos (Viena-93), Populao e Desenvolvimento (Cairo-94), e nas reunies
da Cpula Social (Copenhagen-95) e do Habitat (Istambul-96), as mulheres foram pro-
tagonistas no processo de alargamento da definio tradicional de direitos humanos
enunciado nas declaraes e planos de ao resultantes desses encontros.
A Conferncia Internacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento aconteceu no
Rio de Janeiro em 1992 e constitui u m marco. Pela primeira vez, ampliou-se o espao de
participao - c o m o observadores - das O N G s nas discusses governamentais e alar-
gou-se o espectro das credenciadas para assistirem a tal evento. Apesar de as Naes
Unidas ainda colocarem barreiras participao no-govemamental, abriu-se impor-
tante espao, alargado nas reunies posteriores.
Cabe destacar o papel relevante desempenhado pelas ONGs especficas de meio am-
biente ao longo do processo preparatrio da Rio-92. Organizadas em fruns nacionais,
regionais e internacionais, foram protagonistas na Conferncia.
Tambm o movimento de mulheres organizou-se, nacional e internacionalmente,
para desempenhar papel destacado na Conferncia, promovendo reunies preparatrias
e inmeros debates e eventos na "tenda planeta fmea". Participaram mulheres de di-
versos pases e evidenciaram-se algumas divergncias internas do movimento, particu-
larmente com relao a formas de abordagem ao binmio mulher-natureza, visto por
algumas a partir de u m a perspectiva mais histrica do que por outras, identificadas
com o ecofeminismo.
A Rio-92 inaugurou u m a aproximao maior entre sociedade civil e governos, e na
Agenda 21, da resultante, incorporaram-se contribuies importantes das ONGs.
Em 1993, realizou-se, em Viena, a Conferncia Internacional de Direitos Humanos.
A dificuldade em discutir o tema no cenrio das Naes Unidas ficou evidenciada pelo
fato de que 25 anos separavam esta da ltima conferncia organizada pela O N U sobre
Direitos Humanos, realizada em Teer, em 1968. importante lembrar que a lingua-
gem internacional de direitos h u m a n o s forjada na arena poltica da O N U , onde a
soberania, legislao e cultura nacionais, religies e desigualdades sociais desempe-
nham papel fundamental na definio das fronteiras e possibilidades do alcance desta
linguagem. A permanente tenso entre universal e particular - que permeia o cenrio
da O N U - particularmente aguda neste mbito.
Foi ampla, coordenada e exitosa a mobilizao feminina durante a preparao da
reunio de "Viena. Sob o lema "os direitos das mulheres so direitos humanos", lan-
ou-se vigorosa campanha internacional, colhendo milhares de assinaturas para que
as violaes contra os direitos das mulheres passassem a ser tratadas c o m o violaes
aos direitos humanos. Durante a Conferncia, organizou-se u m tribunal simblico.
Mulheres de todo o m u n d o narraram as violncias de que tinham sido vtimas e que,
apesar de representarem flagrante desrespeito sua cidadania e integridade pessoal,
no eram consideradas atentatrias aos direitos humanos nos tratados e convenes
da O N U . Dentre as principais conquistas das mulheres, destaca-se o reconhecimento
da violncia domstica c o m o u m a questo de direitos humanos.
Para efeito dos temas discutidos aqui, destaca-se como u m exemplo histrico do
poder de presso das mulheres, e de sua capacidade de organizao, a Conferncia
Internacional de Populao e Desenvolvimento (CIPD), realizada em 1994 no Cairo.
A reunio estabelece u m novo paradigma, deslocando as temticas de populao da
esfera demogrfica para a esfera de direitos, discutindo, de forma central, teses relativas
a sade e direitos reprodutivos e colocando oempowermentda mulher como u m valor e m
si mesmo e como varivel estratgica.
Mais do que em qualquer das conferncias anteriores, o Vaticano colocou-se como
adversrio das propostas da agenda feminista desde os encontros preparatrios at a
realizao da reunio. Diretamente apoiado por pases c o m o Argentina, Nicargua e
Honduras; timidamente contestado por outros, como Chile, Bolvia e Equador; e mais
explicitamente distanciado de pases como Brasil e Mxico, foi eficaz em impedir que
a Amrica Latina atuasse em bloco na discusso.
Desde a conferncia anterior de populao, realizada em 1984, no Mxico, o grupo G-77
- dos pases subdesenvolvidos - j no encontrava consenso em questes relativas a temticas
de sade reprodutiva, planejamento familiar, polticas populacionais... A impossibilidade de
agir como u m bloco nestas questes, tambm verificada no Cairo, evidencia a dificuldade
de estabelecer uma matriz de atuao conjunta que englobasse esses assuntos.
Durante o perodo de organizao para a Conferncia do Cairo, estabeleceu-se no
Brasil uma articulao bastante produtiva entre movimentos de mulheres e o governo,
representado pelo ltamaraty. Assim como a Rio-92 representou u m momento impor-
tante de abertura presena das ONGs como observadoras, Cairo avanou no sentido de
que inmeros pases - inclusive o Brasil - incorporassem representantes de O N G s a
suas delegaes, permitindo participao de forma mais direta nas discusses e deci-
ses tomadas n o mbito oficial. Dentre as organizaes internacionais de mulheres
ativas na preparao de conferncias internacionais cabe destacar o papel da Women
Environment Development Organization (WEDO), na Rio/92, e da International Women's
Health Coalition - Coligao Internacional pela Sade da Mulher (IWHC), para o Cairo.

Cairo: a importncia do Brasil

A delegao brasileira no Cairo atuou de forma bastante gil, eficiente e coordenada,


desempenhando papel reconhecidamente importante para fazer avanar questes de
sade e cidadania que j havamos incorporado em propostas constitucionais, legisla-
es e programas vigentes no Brasil. Com relao a esta conferncia, cabe ainda destacar
sua importncia c o m o momentum para a realizao de dois importantes eventos no Pas
que destacaram-se por sua magnitude e impacto.
O primeiro foi o Encontro Nacional Mulher e Populao, Nossos Direitos para Cai-
ro'94. Realizado em setembro de 1993, no Congresso Nacional, em Braslia, foi organi-
zado por uma comisso formada por sete organizaes nacionais, tendo o Centro Femi-
nista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) c o m o secretaria executiva local e a CEPIA c o m o
4
secretaria nacional . O evento propiciou a oportunidade de dar maior visibilidade a
questes de populao, pois, ao longo de sua preparao, foram divulgados inmeros
documentos e declaraes relativos a sade reprodutiva, gnero e populao.

4
A Comisso organizadora deste encontro era formada pela Comisso de Cidadania e Reproduo,
Coletivo Feminista Sexualidade e Sade, SOS Corpo, Associao Brasileira de Estudos Populacionais e
Geleds, alm da CEPIA e do CFEMEA.
O encontro reuniu aproximadamente 550 participantes de todo o Pas. Alm de
debates e discusses temticas, redigiu-se e aprovou-se em plenrio a "Carta de Braslia",
contendo princpios norteadores e reivindicaes das mulheres brasileiras. Depois de
encaminhado a autoridades, o documento foi distribudo e divulgado entre as diversas
organizaes do Pas.
O segundo evento realizou-se no Rio de Janeiro, em janeiro de 94. Com o nome Sade
Reprodutiva e Justia: Conferncia Internacional de Sade da Mulher, reuniu aproxima-
damente 250 mulheres de 89 pases. Depois de cinco dias de discusso em plenrias e
grupos de trabalhos, redigiu-se uma declarao contendo princpios e propostas bsicas
consensuais ao movimento internacional de mulheres e sade reprodutiva. A reunio foi
organizada por um comit internacional e teve como secretarias a CEPIA e a IWCH.
O encontro teve repercusses positivas. Considerado a principal conferncia inter-
nacional preparatria feminista, fortaleceu as redes j existentes, agilizou canais de
interlocuo, permitiu que o movimento internacional listasse suas principais posi-
es e propostas nesta rea e, sobretudo, demonstrou aos demais interlocutores o poder
de mobilizao das mulheres.
A Conferncia de Beijing, em 1995, tambm ofereceu oportunidade importante
para que, em diversas partes do mundo, as mulheres se organizassem em redes e articu-
laes, participando em debates nacionais e internacionais, elaborando documentos e
estabelecendo interaes com governos.
Durante as Conferncias do Cairo e de Beijing, diversas articulaes internacionais de mu-
lheres trabalharam junto s delegaes oficiais, procurando introduzir princpios consensuais
do Movimento, nos planos de ao e declaraes dali resultantes. Dentre estas, cabe destacar a
atuao do Health, Empowerment, Rights and Accountability (HERA) e do WEDO.
No Brasil, durante o processo preparatrio de Beijing, estabeleceu-se uma articula-
o nacional de mulheres que organizou diversos encontros, debates e documentos.
Retomou-se a interlocuo do movimento de mulheres com o Itamaraty na preparao
do documento oficial e representantes de ONGs fizeram parte da delegao oficial do
Pas. C o m mais de 80 integrantes, a delegao brasileira era a maior da Amrica Latina e
uma das maiores entre todos os pases. No entanto, bastante heterognea, com pessoas
pouco familiarizadas com os temas debatidos, no agiu com a mesma rapidez do que
no Cairo - o que no impediu que o Brasil se alinhasse, mais uma vez, com os pontos
bsicos da agenda feminista.
Muito relevante foi a presena das brasileiras em Huariou, no frum paralelo das
ONGs, organizando mesas, participando de debates e tendo presena marcante nos
eventos latino-americanos e internacionais.
A Conferncia de Beijing no s reforou conquistas anteriores, como avanou c m
relao sade reprodutiva. U m exemplo: sobre o abortamento, o Plano de Ao incor-
porou o pargrafo 8.25 da Conferncia do C a i r o - q u e situa o aborto como questo de
sade pblica e conclama os governos a atenderem s mulheres que solicitem a inter-
rupo da gravidez nas circunstncias previstas em lei e a todas as mulheres c o m con-
seqncias de abortamento. Avanou, ainda, ao solicitar que os governos revejam as
punies sobre mulheres que se submetem ao abortamento voluntrio.
Sem pretender entrar e m anlises detalhadas dos resultados destas conferncias,
gostaramos de salientar seu impacto e m termos de ampliar o marco internacional de
direitos humanos e fornecer instrumentos que permitam legitimar e apoiar o trabalho
desenvolvido pelos movimentos e organizaes de mulheres n o plano nacional.
De u m a concepo ligada s liberdades e direitos civis tradicionais, caractersticos
da 'primeira gerao' de direitos humanos - calcada e m u m a conceituao de humani-
dade apoiada na figura abstrata do h o m e m - avanamos para a incluso dos direitos
sociais, habilitantes do exerccio de outros direitos e para os chamados direitos de
segunda e terceira gerao.
Tal avano v e m sendo feito a partir de dois movimentos aparentemente opostos,
mas, de fato, complementares: a especificao da esfera de direitos e a universalizao
de sua aplicao. Por especificao deve-se entender o distanciamento cada vez maior
da figura abstrata do h o m e m e a redefinio do conceito de humanidade a partir da
acentuao de diferenas por critrios de sexo, raa, etnia etc. que, ao longo dos sculos,
vm demarcando espaos de maior ou menor cidadania .
Ao m e s m o tempo e m que se especificam os sujeitos de direitos, tambm incluem-
se novas temticas na esfera destes direitos, c o m o a sade e a sade reprodutiva.
Na virada do sculo, as mulheres enfrentam desafios resultantes de seu prprio
avano. N o Brasil, coloca-se o desafio fundamental de fazer valer as leis j existentes e m
matria de sade e diretos reprodutivos - vrias organizaes tm trabalhado para isto,
com especial nfase ao cumprimento da legislao relativa ao abortamento legal. Abrem-
se, tambm, outros campos de atuao e reflexo, em que ainda tmida a presena das
mulheres, c o m o e m relao ao HIV/AIDS.
Paralelamente, as mulheres continuam a influenciar as polticas pblicas, ocupan-
do cargos em comisses e rgos governamentais, trabalhando e m conselhos e entida-
des ligadas a profissionais da sade, levando as discusses de Cairo e Beijing para espaos
acadmicos e hospitalares e tentando influir na formao mdica.
Ainda h muito por fazer neste percurso. Parafraseando u m trecho de Alice no Pas das
Maravilhas, "s vezes corremos para ficar no mesmo lugar". Recentes desdobramentos no
Congresso Nacional relativos ao abortamento e o veto j derrubado do Presidente da
Repblica a pargrafos fundamentais relativos regulamentao da esterilizao corro

5
Para uma anlise sobre novas formulaes de direitos humanos, ver Bobbio, . A Era dos Direitos, Rio
de Janeiro: Ed. C a m p u s , 1992. C o m relao ao papel das mulheres nesta reconceituao, vide
PITANGUY, J . From Mexico to Beijing, A New Paradigm, in Health and H u m a n Rights, Harvard School of Public
Health, v.I, n.4, p. 19.
boram esta imagem de u m enorme esforo para 'permanecer'. Entretanto, em uma
perspectiva histrica, deve-se reconhecer o imenso avano do movimento de mulheres
e seu desenvolvimento em termos da ampliao da cidadania da mulher e, mais espe-
cificamente, dos seus direitos na rea da reproduo.
C o m o dizia o poeta, "caminhante, no h caminho, caminho se faz ao andar...".

Referncias Bibliogrficas

ALVAREZ, S. EngederingDemocracyin Brazil - women's movements in transition in Politics. Princeton: New


Jersey University Press, 1990.

FLACSO & CEPIA. Mujer en America Latina. Santiago do Chile: Flacso, 1993.

JELIN, E. & HERSHBERG, E. (Eds.) Constructing Democracy-human rights,citizenshipandsocietyin Latin


America. Boulder: Westview Press, 1996.

PITANGUY, J . Polticas Pblicas y Ciudadania. Isis International Ediciones de Mujeres, n 13.

PITANGUY, J . O n the Road to Cairo. Development n 1. Journal of Society for International


Development, 1994.

PITANGUY, J . Feminist politics and reproductive rights: the case of Brazil. In: SEN, G . & SNOVV,
R. Power and Decision: the social control of Reproduction. Boston: Harvard University Press, 1995.

PITANGUY, J. Movimiento de Mujeres y Polticas Publicas en Brasil. In: VARGAS, G . (Ed.). Tringulo
del Poder. Bogot: Ed. Tercer Mundo, 1996.

REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS, . 2 (2), 1994. RiodeJaneiro: Universidade Federal do Rio de


Janeiro.
2

"Sade Reprodutiva", Gnero e Sexualidade:


legitimao e novas interrogaes*
Sonia Corra

Primeiras palavras

Um modo de vida est envelhecendo. Essa transformao pode ser to radical -


porm igualmente to gradual - como foi a transio da sociedade medieval moder-
na. Esse estado de transio faz com que certas formas de pensamento sejam possveis
e necessrias, enquanto se excluem outras (...). (Flax, 1992)

Sade reprodutiva, gnero e sexualidade so termos que at pouco tempo circula-


vam quase exclusivamente no campo acadmico e entre os movimentos sociais, mas
hoje experimentam u m processo de legitimao. expresso disto sua incluso nos
programas de ao da Conferncia Internacional de Populao e Desenvolvimento
(CIPD), no Cairo, em 1994; da Cpula M u n d i a l de Desenvolvimento Social (CMDS),
em Copenhagen, 1995; e da IV Conferncia M u n d i a l sobre a M u l h e r ( C M M ) , e m
Pequim, 1995. Estes termos tm se tornado correntes em textos e anlises interna-
cionais, mas a absoro de seus significados pelos organismos polticos e as mentali-
dades continua heterognea nos contextos nacionais. Se vital seguir disseminando
estas definies, tambm fundamental precisar seus contedos, pois nesta nova
etapa de legitimao e vulgarizao tendem a ocorrer simplificaes e distores.
preciso, tambm, reconhecer que as articulaes tericas entre estas definies
so complexas. Continuamos debatendo se sade reprodutiva u m conceito, u m cam-
po, ou, simplesmente, u m recorte de investigao. Gnero u m a categoria firmada

*Apresentado no Seminrio do Programa de Sade Reprodutiva e Sociedade Colgio do Mxico em


novembro de 1996.
para a anlise das relaes sociais, porm, na prtica, tem inspirado aplicaes diferen-
ciadas e, eventualmente, contraditrias. O estatuto de 'sexualidade' ainda mais con-
trovertido, pois se aplica c o m base nos mais diversos enfoques: da concepo psicana-
ltica aos usos convencionais da sexologia. Nas atuais circunstncias de 'legitimao'
somos tentados a firmar e proteger estas definies, neutralizando as interrogaes que
se levantam e m relao a elas. A nosso ver, porm, necessrio manter esta instabilidade
e abertura conceituai.
Este artigo procura mapear esta revoluo semntica recente e identificar novos
olhares conceituais c o m relao a gnero e sexualidade. As reflexes que se seguem
esto organizadas e m dois blocos. No primeiro, examina-se o itinerrio de construo
de definies que se legitimaram recentemente, como que se desprendendo de sade
reprodutiva: sade sexual e direitos reprodutivos e sexuais. Na segunda seo, concen-
tra-se a ateno na teorizao sobre gnero e sexualidade. Examina-se a possibilidade/
necessidade de distino entre sistema de gnero e sistema de sexualidade e exploram-
se questes que se apresentam com relao a gnero e sexualidade.

De sade reprodutiva a direitos sexuais: desfazendo a indistino

O s recentes documentos internacionais - especialmente da CIPD e de Beijing -


legitimaram mais d o que 'sade reprodutiva'. Hoje esto consagradas as noes de
direitos reprodutivos, sade sexual e contedos relativos aos direitos sexuais. Essas
definies estavam como que protegidas sob o grande 'guarda-chuva' de sade reprodutiva.
Hoje possvel precisar o contedo de cada uma delas. Entretanto, esta nova etapa do
debate apresenta uma nova tendncia indistino: estas definies tm sido aplicadas
como se fossem intercambiveis. U m exemplo: o documento nacional brasileiro que se
prepara como Plano de Igualdade e Oportunidades inclua direitos reprodutivos na seo
sobre sade, mas no faz meno a eles na seo sobre direitos humanos.
U m a estratgia possvel para resgatar a singularidade de cada definio reconstruir
a trajetria de sua elaborao. Entre os anos de 80 e os 90, os esforos para legitimar
'sade reprodutiva' articularam as motivaes de distintos interesses e atores polticos.
Se a noo foi desenvolvida n o mbito das instituies vinculadas ao sistema interna-
cional de planificao familiar e, mais especialmente, da Organizao Mundial da Sa-
de (OMS), esforos similares tiveram lugar na esfera dos m o v i m e n t o s de mulheres.
O dilogo entre esses dois 'mundos' est na base do consenso que se legitimaria n o
Cairo, em 1994. Dois elementos principais possibilitaram o estabelecimento desta pon-
te: a crtica com relao s vertentes biomdicas, que dominavam (dominam) a pesqui-
sa sobre reproduo humana, e o questionamento dos argumentos lineares que justifica-
vam polticas de populao e programas verticais (e ineficazes) de planificao familiar.
Agenealogia do conceito de direitos reprodutivos se localiza, predominantemente,
em u m marco 'no-institucional'. Sua formulao se inicia na luta pelo direito ao
aborto e anticoncepo nos pases industrializados. Sua primeira instncia foi o con-
senso poltico de u m encontro feminista internacional, relativamente marginal aos
debates institucionais do perodo - Internacional Women' s Health Meeting, Amsterd,
1994 (ver Corra & Reichmann, 1994; Garca-Moreno & Claro, 1994). Nessa ocasio, se
produziu u m pacto, ainda que provisrio, entre feministas do norte e do sul, de que
essa era u m a terminologia adequada aos fins polticos do movimento.
Entre 1984 e sua consagrao no Cairo (1994), o conceito foi refinado em colaborao
com ativistas e pesquisadoras/es do c a m p o dos direitos humanos. U m a contribui-
o fundamental pode ser encontrada no esforo realizado por Freedman & Isaacs (1992)
ao identificar, em documentos histricos das Naes Unidas, definies cujos conte-
dos estariam virtualmente relacionados a 'direitos reprodutivos'. Cook (1994) outra
referncia fundamental. Suas anlises procuram articular as necessidades reprodutivas
das mulheres em termos de direito sade.
A o longo da ltima dcada, os movimentos de mulheres, nos vrios continentes,
continuaram debatendo os problemas derivados da aplicao da noo de direitos
reprodutivos e sua articulao c o m sade reprodutiva. So exemplos disso os debates
da Rede Internacional de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos, os esforos da Rede
Development Alternatives with Women for a New Era (DAWN) em relao ao Cairo e o
projeto International Reproductive Rights Research and Action Group (IRRRAG) . O vnculo
entre sade e direitos reprodutivos, em uma perspectiva que integra premissas de desen-
volvimento eqitativo e direitos humanos, ancorou o consenso entre os movimentos de
mulheres e foi elaborado no documento Declarao do Rio em u m encontro internacio-
nal realizado no Rio de Janeiro, em 1994, em preparao para a Conferncia do Cairo. E)ois
elementos foram cruciais nessa passagem: a premissa de indivisibilidade dos direitos
humanos e a noo de ' u m ambiente favorvel' para o exerccio destes direitos (condi-
es econmicas, sociais e polticas). Este consenso foi a alavanca poltica que possibi-
litou revisar, na CIPD, o paradigma neomalthusiano do debate sobre populao.
J o adjetivo 'sexual' eclodiu nos cenrios de politizao de sade e direitos
reprodutivos muito mais tarde. Ns, feministas, o 'agarramos' praticamente s portas
do Cairo. Segundo Fetchesky (1996), os direitos sexuais so "a criana mais jovem nos
debates internacionais sobre o significado e a prtica dos direitos humanos, em parti-
cular dos direitos h u m a n o s das mulheres". Durante o processo de preparao para a
CIPD, algumas delegaes oficiais (Noruega e Sucia, por exemplo) introduziram sade
sexual em alguns pargrafos do Programa de Ao. Porm, a incluso do termo 'direitos
sexuais' n o 7.3 da CIPD - e m que se definem os direitos reprodutivos - foi u m a
estratgia de negociao. A incluso de 'sexual' visava a radicalizar a linguagem para
reter os 'direitos reprodutivos' no texto final. Em setembro de 1994, a adoo de direitos
sexuais no foi experimentada c o m o 'derrota' pelas feministas, entre outras razes,
porque as que seguamos de perto as negociaes sabamos c o m o havia sido difcil
legitimar direitos reprodutivos.
Entretanto, u m pargrafo sobre direitos sexuais seria aprovado u m ano mais tarde
na Plataforma de Ao de Beijing. Em setembro de 1995, a grande controvrsia nas
negociaes se deu c m torno a explicitar-se ou no o termo 'direitos sexuais', que no
foi adotado no texto final. O 96, porm, delimita os contedos do que seriam esses
direitos, em u m marco que tem c o m o referncia principal as relaes heterossexuais.
Porm, se consideramos a pouca maturidade da elaborao conceituai sobre direitos
sexuais no campo feminista c a composio dos pases que negociaram o texto, este
1
resultado de algum modo extraordinrio :
Os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle sobre as ques-
tes relativas sexualidade, includa sua sade sexual e reprodutiva, a decidir livremen-
te a respeito dessas questes, sem verem-sc sujeitas coero, discriminao ou
violncia. As relaes sexuais e a reproduo, includo o respeito integridade da pes-
soa, exigem o respeito e o consentimento recprocos e a vontade de assumir conjunta-
mente a responsabilidade das conseqncias do comportamento sexual (Conselho ci-
nal dos Direitos da Mulher, Plataforma de Ao de Pequim, SeoC, 96).
Analogamente ao que se observou com relao a sade e direitos reprodutivos, o
desenvolvimento das noes de sade e direito sexual tem genealogias distintas: uma
que mais, outra menos institucional. Sade sexual foi tambm objeto de uma defini-
o da O M S motivada pelo reconhecimento da crise da pandemia de HIV-AIDS. Antes de
sua incorporao aos documentos de Cairo e Beijing, a definio operou (e continua
operando) como u m 'guarda-chuva' para pesquisas e aes no campo da sexualidade.
J a evoluo poltica e discursiva de "direitos sexuais" transcorreu sob a consigna de
mudanas polticas e culturais de corte radical nas sociedades mesmas. A noo foi
formulada em duas frentes: seria inevitvel que as reflexes feministas no mbito da
articulao entre sexualidade, reproduo e desigualdade entre os gneros - particular-
mente vigorosa nos Estados Unidos, Europa e Amrica Latina -conduzisse formula-
o dos direitos sexuais; e contabilizam-se os esforos conceituais e polticos dos movi-
mentos gay e lsbico, que se amplificaram enormemente na ltima dcada.

1
Participaram das negociaes informais sobre o pargrafo: Unio Europia, cujo porta-voz era o ministro
holands, Estados Unidos, Ir, Marrocos, Egito, a regio africana, da qual o Senegal era porta-voz, o Caribe e
vrios pases latino-americanos. Evidentemente que a motivao destes atores era muito diversa. posio
da Unio Europia, especialmente Holanda, para assegurar a incluso de direitos sexuais na Plataforma estava
informada por um compromisso domstico com o movimento homossexual. Os pases africanos se
moviam a partir das agendas de erradicao do casamento infantil e da mutilao genital. Os pases
islmicos mais liberais lutaram por uma definio mais fraca para evitar reaes fundamentalistas na volta de
Beijing. O Caribe e alguns pases latino-americanos defendiam o pargrafo como princpio democrtico. Os
Estados Unidos mantiveram um 'baixo perfil' nas negociaes, em funo da presso republicana no Congresso.
O novo consenso hbrido, necessariamente frgil e no elimina tenses conceituais,
polticas e problemas de comunicao entre os atores e interesses que mobilizaram o
debate e legitimao destas definies. Em vrios contextos nacionais, as polticas de
sade reprodutiva que se implementam, ps-Cairo e Pequim, esto-se desenhando
como meras re-interpretaes semnticas, ou adequaes, das aes convencionais do
materno-infantil ou de planificao familiar. Esta orientao minimiza - quando no
o c u l t a - a perspectiva dos direitos reprodutivos. Observa-se, tambm, no plano das
instituies, que os termos 'sade' e 'reprodutivo' so mais facilmente aceitos do que
'direitos' e 'sexuais', que soam mais radicais e impertinentes.
Rance (1996), por exemplo, descreve como na Bolvia do perodo ps-Cairo, a inicia-
tiva da maternidade segura tende a excluir as mulheres em situao de aborto incom-
pleto. No que se refere sade sexual, as distores podem ser ainda mais problemti-
cas. Vance (1996) argumenta que a noo est sendo traduzida, nos Estados Unidos, por
setores conservadores como: "reproduo no casamento, abstinncia e limitaes no
acesso informao sobre sexualidade, homossexualidade, aborto."

Gnero e sexualidade: fuso versus distino dos sistemas

U m a importante barreira em nosso esforo de compreender as relaes de gnero


a dificuldade de compreender a articulao entre sexo e gnero (Flax, 1992).
Na seo precedente buscou-se identificar alguns requisitos de discernimento
conceituai que se fazem necessrios, na era ps-Cairo e ps-Pequim, para qualificara
investigao e ao poltica que se desenvolvem a partir das definies de sade e direi-
tos sexuais e reprodutivos. Exploram-se, agora, os desafios conceituais que emergem
medida que se firma a definio de direitos sexuais.
Petchesky (1996) identifica uma tendncia nas campanhas internacionais sobre os
direitos das mulheres em enfatizar os horrores - como mutilao genital e o trfico de
meninas -, capitalizando a imagem das mulheres como vtimas no terreno da sexuali-
dade. Para a autora, a fora destes discursos faz com que no seja acidental, ou surpreen-
dente, que, em Beijing, "o espectro de corpos sexualizados anelando o prazer tenham
permanecido ocultados sob os debates". Embora a aprovao do 96 da Plataforma de
Ao de Beijing seja, de algum modo, extraordinria, penso, c o m o Petchesky, que as
dinmicas da negociao das Naes Unidas so insuficientes para explicar o que acon-
teceu c o m o prazer e c o m os corpos nos recentes debates internacionais.
As razes que podem explicar tal ocultao devem ser buscadas no "pano de fundo"
de teorias que fundem gnero e sexualidade. O contedo dessa seo foi originalmente
desenvolvido em outro artigo (Corra, 1996), no qual se exploram perspectivas avana-
das por Parker (1990) e Rubin (1984), propondo a distino entre os sistemas de gnero
e sexualidade. Nesta nova etapa de elaborao, foram incorporadas as reflexes de ou-
2
tras/os autoras e autores que orientam suas investigaes na mesma direo .

Itinerrios tericos

O campo em que se construram as definies de direitos sexuais e reprodutivos foi


influenciado, nos ltimos vinte anos, pelas teorias ps-estruturalistas (ps-modemas
ou construtivistas). O arsenal analtico da construo (e desconstruo) social - lingua-
gem, discurso, diferena - iriam fertilizar este debate. Foi nessa confluncia que se
engendrou a categoria "sistema de gnero" (Rubin, 1975). Tal como definido por Rubin
e aperfeioado por Barbieri (1993), sistema de gnero :
A totalidade dos arranjos atravs dos quais uma sodedade transforma a sexualidade
biolgica em atividades humanas e nas quais as necessidades humanas so tanto satis-
feitas quanto transformadas. 0 poder do gnero opera mais fortemente nas etapas
reprodutivas da vida quando os meios para o controle da sexualidade, reproduo e
acesso ao trabalho esto localizados e funcionam de modo mais claro e agudo.

Entretanto, em u m trabalho subseqente, Rubin (1994) refaria seus prprios per-


cursos tericos caminhando para conceituar a sexualidade como esfera autnoma na
qual se constroem e se transformam relaes pessoais, sociais, culturais e polticas.
A autora sustenta que "gnero e sexualidade constituem a base de duas arenas distintas
das prticas sociais". Isso significa reconhecer que a construo das identidades de
gnero, das normas e da assimetria das relaes entre h o m e n s e mulheres no
sobredeterminam, necessariamente, as manifestaes do desejo, as prticas erticas
das pessoas e as experincias do prazer.
Parker (1992), estudando prticas homossexuais masculinas na cultura brasileira,
utiliza u m esquema tripartite e m que se diferenciam e se articulam os sistemas de
gnero, da sexualidade e o ertico. Em sua formulao, o sistema da sexualidade no-
meia u m terreno normativo e m que se situam a doutrina religiosa, a perspectiva
biomdica e os demais dispositivos que reconfiguram continuamente as representa-
es sobre sexualidade. O sistema ertico designa a esfera em que se movem os jogos

2
C o m intensidades diferentes essa proposio pode ser identificada em Vance (1996), Flax (1992), Dowsett
(1996) e Petchesky. Petchesky sugere que essa armadilha deriva do economicismo ainda subjacente nos
esforos intelectuais do feminismo com relao a gnero e sexualidade. Essa conduso se v informada,
sobretudo, por uma avaliao crtica do discurso feminista no mundo em desenvolvimento. Dowsett,
por sua vez, atribui tal captura dos "corpos em sexualidade" e do "big-bang do prazer" s teorias ps-
estruturalistas. Sua elaborao sugere que o poder, a amplitude e a profundidade dos dispositivos de
controle da sexualidade no so to extensos como sugere Foucault. As duas vises no devem ser
tomadas como opostas, mas sim como percepes corretas mas que olham o "problema" a partir de
diferentes pontos de vista: o sul e o norte, o homossexualismo masculino, o feminismo.
corporais, imaginrios e afetivos do que chamamos sexualidade. Vance (1996) vai na
m e s m a direo, ao sugerir que a distino entre gnero e sexualidade necessria
c o m o estratgia para desconstruir a convergncia entre naturalizao (religiosa) e
biologizao (cientfica) dos gneros e da sexualidade.
Dowsett (1996) radicaliza, de forma peculiar, a proposta de diferenciao. Seu exer-
ccio toma c o m o ponto de partida jogo dos corpos' {bodyplay) e vira de cabea para
baixo a idia de construo social da sexualidade desenvolvida por Foucault (1982,
1984, 1985). A partir de estudos com homens que fazem sexo ocasional com outros
homens, prope que pensemos em uma construo sexual da sociabilidade. sugere
que - n o contexto dos corpos em jogo ertico - o gnero, c o m o representao dos
papis passivo e ativo, pode converter-se em banalidade. A idia implcita de que nos
encontros erticos as duas (ou mais pessoas) podem sempre, potencialmente, ser agen-
3
tes ativos e criativos na busca do prazer .
Tomando-se esses autores e autoras como referncia, parece cada vez mais urgente, na
era ps-Pequim, afastar-se da premissa segundo a qual "uma teoria da sexualidade poderia
derivar da teoria de gnero" (Rubin, 1984). A fuso conceptual entre gnero e sexualidade
toma muito problemtica nossas operaes tericas e polticas em relao aos direitos sexuais.
Contudo, no tarefa simples distinguir relaes de gnero, sexualidade e erotismo,
pois em todas as formaes socioculturais atuam sistemas de representao muito
coesos que ordenam gnero, reproduo e sexualidade em articulao com a economia
e o poder. Se nos fixarmos no exemplo da cultura ocidental, Costa (1996), em u m texto
brilhante, demonstra como o sistema metafsico pr-iluminista no enfatizava, como
se fez posteriormente, a diferena sexual entre homens e mulheres. Seu paradigma do
corpo era o masculino. O corpo das mulheres era representado como u m corpo mascu-
lino invertido e menos perfeito, no qual o pnis e os testculos estavam para dentro.
Costa demonstra como o modelo dos dois sexos (two sex model) -hoje hegemnico-, antes
de se conformar c o m o discurso cientfico, resultou de uma operao 'ideolgica' do
liberalismo iluminista, que visava a solucionar uma contradio de fundo:
A igualdade (iluminista) estava fundada na premissa de que todo indivduo era possui-
dorda mesma faculdade da Razo e de um mesmo corpo natural que a abrigava (...).
Marcar o corpo com a diferena dos sexos significou instaurar a desigualdade, a descon-
tinuidade, a oposio onde havia uma controversa e incmoda igualdade jurdico-poltica.

Essa acentuao da diferena sexual do corpo dos homens e das mulheres foi prece-
dida pela cristalizao de u m a determinada concepo de sexo. O sexo, tal c o m o
construdo pelos filsofos oitocentistas, uma fora vital que se faz mais presente e

3
A reflexo de Dowsett construda a partir das pesquisas com homens homossexuais em que o gnero
desempenha um papel distinto do que no contexto de outras relaes. Isso indica a necessidade de 're-
pensar-se' seu esquema quando estejamos elaborando ou investigando sobre a sexualidade entre ho-
mens e mulheres e mulheres e mulheres.
manifesta nas mulheres. Segundo Rousseau (In laqueur, citado por Costa): macho
(humano) somente macho em certos momentos. A fmea fmea toda a sua vida (...).
Tudo constantemente evoca a ela seu sexo". A partir da concebeu-se as mulheres como
estando mais habilitadas vida privada (e no para a vida pblica como os homens),
mais fracas e histricas, no em conseqncia de u m 'dficit da Razo', mas sim em
funo da excessiva impregnao sexual de seus corpos: "As mulheres seriam
identificadas por sua sexualidade e seu corpo, os homens pelo seu esprito e energia"
(Costa, 1996). Em etapas subseqentes seriam investigadas e mais bem elaboradas as
provas anatmicas (mdico-cicntficas) dessa diferenciao radical que persiste at hoje.
Ao 'modelo dos dois sexos' corresponderia a sexualidade 'monoltica' que foi objeto das
anlises de Foucault: a sexualidade monopolizada pelo casal. Nesse espao de intimidade, a
sexualidade guarda u m sentido procriativo dominante e desempenha u m papel crucial
como mediao entre os dois "opostos complementares" em que se haviam convertido
homens e mulheres. Trata-se, alm do mais, de uma representao da sexualidade que tem
como expresso mxima as formas e substncias do corpo feminino, o que justificaria, na
cultura ocidental moderna, o controle das manifestaes sexuais e erticas femininas. Tal
representao, sobretudo, ancora uma marcada ideologia da inverso sexual. O inverso
do "Homem" iluminista no seria a "Mulher", mas sim o homossexual, cujo "corpo de
homem ser o portador da sexualidade feminina que havia de serenada" (Costa, 1996).
Em funo da hegemonia desta construo sociocultural impossvel distinguir
sistemas de gnero, de sexualidade e de erotismo sem desconstruir os complexos ns
que os sustentam. U m a primeira estratgia nessa direo seria desdramatizar a diferen-
ciao sexual entre os gneros. tempo de acompanhar a postulao de Flax (1992),
quando afirma que as diferenas entre homens e mulheres so menos relevantes do
4
que sugerem as normas, representaes, smbolos e prticas dominantes . Tambm se
faz necessrio romper com as representaes monolticas da sexualidade e erotismo
intrnsecas ao 'modelo dos dois sexos': preciso alterar a linguagem do singular para o
plural, de sexualidade para sexualidades.
A idia de sexualidades mltiplas va de soi q u a n d o olhamos a realidade luz da
teorizao e da pesquisa que tm como foco as prticas homossexuais. Porm, a noo
de sexualidades plurais deve ser tambm explorada no campo das relaes heterossexuais,
o que permitiria descrever e analisar com mais preciso as prticas sexuais, o erotismo
e o prazer nas distintas etapas da vida humana: infncia, adolescncia, vida adulta,
terceira idade. Esta inflexo tambm pode enriquecer os estudos acerca dos sistemas de
gnero e sexualidade em outras formaes socioculturais, inclusive nos casos em que
se observam fuses ou sobreposies com o modelo ocidental.

4
A mesma perspectiva pode ser identificada nos trabalhos de outras autoras/autores, como por exemplo,
Badinter em um e o outro" ou Philippe Aries quando sugere que caminhemos para uma forma de
unissexualidade (citado em Histria da Vida Privada, v.5, 1996).
Desafios polticos

Em u m plano poltico, a desconstruo do 'modelo dos dois sexos' contribui para


a cristalizao da premissa da igualdade - poltica, jurdica, social e econmica entre
os gneros - persistentemente neutralizada pela hipervalorizao da diferenciao
sexual entre homens e mulheres. Tambm amplia as referncias conceituais no que
se refere 'desconstruo d o masculino'. Diante da insistente problematizao,
biologizao e medicalizao do feminino e dos "invertidos", o masculino (o H o m e m
do Iluminismo) continua sendo percebido e tratado c o m o u m fato fixo e imutvel.
Este congelamento dificulta o mapeamento dos impactos pessoais e sociais derivados
da construo social d o masculino. Desconstruir o modelo dos dois sexos implica
admitir que "homens e mulheres so prisioneiros de seus gneros. O fato de que os
homens sejam os tutores de uma totalidade social no nos autoriza a afirmar que eles
tambm no sejam submetidos s regras dos sistemas de gnero" (Flax, 1992), e que
tais regras tm sempre u m custo.
A distino entre os sistemas de gnero e sexualidade tambm imprescindvel para
sedimentar as premissas dos princpios de direitos sexuais, resgatando a perspectiva de
emancipao no terreno da sexualidade. Revigorar a idia de emancipao sexual no
significa u m retorno acrtico ao iderio da liberao sexual dos anos 60. Mas, c o m o
sugere Petchesky (1996), no debate desses anos o discurso feminista foi capturado por
novas espirais discursivas que terminaram por distanci-lo de u m elemento fundacional
do imaginrio poltico feminista: a busca da sexualidade prazerosa. Adistino entre
gnero e sexualidade u m passo crtico para identificar, aceitar e tornar visvel o
agenciamento sexual, o erotismo e o prazer das mulheres, que foram, de algum modo,
submergidos na lgica do poder e na dominao dos sistemas de gnero. Este caminho,
inclusive, pode prevenir o deslizamento de nossos discursos quanto vitimizao das
mulheres, facilmente capturada por estratgias moralizantes (Corra, 1996).
Este deslocamento, sobretudo, pode alimentar cristalizao discursiva e poltica
da noo de "justia ertica" formulada por Rubin (1984), que se deve aplicar tanto ao
domnio das relaes pessoais c o m o esfera pblica. Retomando as idias desenvol-
vidas sobre direitos reprodutivos (Corra & Petchesky, 1994; Corra & Reichmann,
1994), o pleno exerccio dos direitos sexuais exige u m 'ambiente favorvel', e m que
as prticas individuais sejam inspiradas pelo princpio de respeito integridade cor-
poral e vontade d o Outro' (da Outra'); em que as condies sociais, econmicas e
culturais conduzam igualdade entre os gneros, liberdade de orientao sexual e
no-discriminao; e m que as prticas sexuais individuais no estejam sujeitas a
coero moral ou legal.
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3

Famlia, Sexualidade e Reproduo


no Direito Brasileiro
Leila Linhares Barsted

Contexto: ambigidades e impasses

O objetivo deste captulo apresentar uma sntese de alguns impasses da legislao


brasileira sobre famlia, sexualidade e reproduo. Situamos esses impasses em u m
quadro mais abrangente - a prpria sociedade brasileira, com suas ambigidades entre
moderno e tradicional, pblico e privado, liberdade e autoritarismo, igualdades e dife-
renas, universalizao e particularizao e tantas outras.
Buscamos examinar esses impasses do ponto de vista ideolgico, com suas reper-
cusses legais, particularmente a partir da perspectiva dos direitos reprodutivos, noo
implicitamente declarada n o texto da constituio brasileira de 1988 por presso do
m o v i m e n t o feminista. Analisaremos alguns argumentos utilizados n a configura-
o do discurso jurdico sobre famlia, sexualidade e reproduo, na hiptese de que esse
discurso tenha incorporado os paradoxos da tese democrtica como u m todo.
Situando as temticas da famlia e da reproduo no quadro mais abrangente da cultura
poltica brasileira, comeamos por constatar que longa e frtil, na tradio das cincias
sociais de nosso pas, a discusso sobre as caractersticas autoritrias do Estado. Na dcada
de 80, com ofimda ditadura militar, desvendou-se e recuperou-se a perspectiva de que
esse autoritarismo no era u m elemento apenas constitutivo do Estado, mas, tambm,
parte da formao cultural brasileira, permeando toda a sociedade. Essa constatao, do
que parecia especfico civilizao ocidental nos trpicos, tem sido destacada na anlise
de sociedades complexas consideradas fundadoras dos princpios da modernidade
(Dumont, 1985) e estimuladora dos debates sobre os rumos da prpria modernidade.
No caso brasileiro, vrias caractersticas poderiam ser apontadas para o delineamen-
to de u m a cultura e de u m Estado autoritrios. Procuramos destacar, na anlise do
discurso legal sobre famlia, sexualidade e reproduo, c o m o as noes de direitos
individuais e direitos sociais tm sido metamorfoseadas para se tomarem compatveis
com o autoritarismo, refor-lo, ou, at mesmo, suaviz-lo.
De forma simplificada, poderamos dizer que, no Brasil, os direitos individuais fo-
ram entendidos, historicamente, como direitos das elites, e os direitos sociais, que so intro-
duzidos basicamente a partir da dcada de 30, como direitos dos pobres. Retirou-se das
camadas populares o direito individualidade, remetendo-as, necessariamente, para a
esfera do coletivo ou, muitas vezes, do corporativismo. No h indivduos, mas grupos.
Essa considerao pode ser exemplificada na legislao trabalhista das dcadas de 30 e
40, inspirada em modelos de sistemas capitalistas mais humanizados, de pases euro-
peus, onde os trabalhadores conquistaram mais direitos desde o sculo XIX, e no mode-
lo corporativista fascista, inspirado no CdigoDellavoroitaliano, da poca de Mussolini.
Nessa perspectiva, a configurao hbrida dos direitos sociais levou ao surgimento
de uma noo de cidadania intrinsecamente presa atividade laborai. O cidado era,
nas classes populares, o trabalhador possuidor de uma carteira de trabalho, partcipe
obrigatrio de uma corporao sindical e profissional. Essa cidadania, j caracterizada
como cidadania de segunda classe (Santos, 1979), deixava de lado e remetia para uma
cidadania de terceira classe os indivduos das camadas populares que no tivessem os
vnculos corporativos. Para eles, a legislao penal, elaborada em 1940 e em 1941, inspi-
rada no Cdigo Rocco- tambm da Itlia de Mussolini -, previa o crime de Vadiagem".
Esses eram os 'desviantes' de uma ordem que se pretendia reguladora do progresso, da
famlia e dos valores morais e que se delineia em u m a profuso legislativa a partir,
principalmente, da dcada de 30. O s discursos proferidos pelo presidente Vargas nesse
perodo (que se estende at 1945) eram dirigidos aos 'trabalhadores do Brasil' e grande
nfase era dada a sua atuao c o m o o 'pai dos pobres', em u m a comparao entre a
nao e a famlia, entidades constituintes de u m todo, sem margem para os desviantes,
fossem eles os desempregados-vadios, os comunistas, os integralistas ou os 'diferentes'
(de u m m o d o geral, vistos como portadores de ideologias 'exticas').
Estabelecendo paralelos, tanto o Estado como a famlia, pensada comocelulamater da
sociedade, no suportavam aqueles que no se adequassem s suas normas - os desviantes -
e organizavam-se de forma vertical e autoritria sob a gide do pai. Para as elites, a
cidadania no se relacionava, e no se relaciona at hoje, com a participao no m u n d o
do trabalho ou filiao entidades corporativas, mas existncia de capital e de s t a t u s
suficientes para eximir-se dos rigores da lei penal-destaca-se que os indivduos porta-
dores de diploma universitrio acusados de terem cometido crimes tm direito priso
especial enquanto aguardam julgamento. Seu principal instrumento de afirmao de
direitos o Cdigo Civil, posteriormente comentado.
Configuram-se, dessa maneira, trs nveis de cidadania (o que significa a total detur-
pao deste conceito, que pressupe a inexistncia de hierarquias): o cidado de pri-
meira classe, orientado pelos princpios do Cdigo Civil e merecedor de direitos indivi-
duais (entre eles, at 1988, os homens aparecem com mais direitos do que as mulheres,
e m particular n o que diz respeito famlia); o cidado de segunda classe, regido pela
Legislao Trabalhista, merecedor dos direitos sociais, inclusive o direito de rescindir o
contrato de trabalho de sua esposa sob o argumento de proteo da famlia; e o cidado
de terceira classe, sujeito s penalidades do Cdigo Penal - penas que tm conseqncias
especficas sobre o corpo feminino, c o m o o caso da criminalizao do aborto.
Deve-se destacar tambm que outros elementos surgiam para deturpar a constitui-
o de cidados: as prticas e a ideologia do favor, sintetizadas nas expresses "aos
amigos tudo, aos inimigos a lei", "quem tem padrinho no morre pago" ou "uma mo
lava a outra". A prtica d o favor e da pessoalidade das relaes acabava por apagar a
individualidade, m e s m o entre as elites, e reforava o pertencimento ao grupo (network)
dos amigos e dos afilhados como elemento fundamental na configurao de u m lugar
social. Longe de uma fidelidade res publica, as elites tomaram-se fiis aos seus grupos de
referncia. Evidentemente, esse padro enraizou-se na cultura brasileira e passou a ser
adotado tambm entre as camadas populares, reforando, inclusive, os esquemas
corporativistas.
Na realidade, os ideais democrticos de liberdade e igualdade, de existncia de cida-
dos sujeitos de direitos e obrigaes, constituam-se em mera declarao formal de
princpios, sem maior compromisso com a prtica efetiva dessa base legal. Esse fen-
meno, que no inveno brasileira (Duarte et al., 1993), encontra em nosso pas suas
peculiaridades. O s ideais democrticos esto presentes em todos os discursos da polti-
ca brasileira, inclusive nos provenientes dos setores autoritrios. Tm sido extrema-
mente operacionais, dando ao Estado e sociedade contornos de modernidade, ofus-
cando suas caractersticas hierarquizadoras e discriminatrias. Exemplo disso a de-
clarao, em todas as constituies da Repblica, desde 1891, da igualdade de direitos
entre os cidados e das formas democrticas de organizao do Estado. de se destacar,
tambm, que s a partir da Constituio de 1946 foi includo u m captulo referente aos
direitos sociais, bastante ampliado na Constituio de 1988. Nas constituies de 1891,
1934 e 1937 esto declarados os direitos e garantias individuais, sem referncia aos direi-
tos sociais. Tal omisso pode ser explicada: a questo social e as reivindicaes por
direitos trabalhistas, at a dcada de 30, eram consideradas casos de polcia, transgres-
ses inaceitveis pelo Estado e pelas elites dirigentes. Os desviantes eram no apenas os
Vadios', mas os trabalhadores, as classes consideradas perigosas.
curioso observar tambm que os setores crticos do autoritarismo do Estado te-
nham dedicado sua maior ateno anlise das legislaes penal e trabalhista e detido-
se muito pouco na discusso do Cdigo Civil brasileiro. Implicitamente, esses setores,
identificados com as causas populares, no consideravam o Cdigo Civil u m instru-
mento que pudesse beneficiar o cidado comum, independentemente de sua qualifi-
cao como trabalhador'. Esse Cdigo no foi objeto de anlises mais substanciais pelo
pensamento poltico brasileiro, deixando-se de discutir o lugar que os direitos indivi-
duais ocupam em nossa sociedade. Curiosamente, as feministas que vm propondo
mudanas na parte relativa ao direito de famlia do Cdigo Civil para retirar-lhe as
caractersticas discriminatrias entre homens e mulheres.
Essas consideraes iniciais sobre como germinaram, ou no, em solo brasileiro os
ideais da democracia, que simbiose se produziu sob o sol tropical entre cidadania e
'ideologia do favor', podem ser compreendidas analisando-se as inmeras inquietaes
da sociedade brasileira a partir da Repblica.
Nesse artigo, para atingir o objetivo delineado em seu incio, examinamos no s o
discurso jurdico do Legislativo e do Judicirio, mas, tambm, o de outros atores - como
o movimento feminista - sobre famlia, sexualidade e reproduo, procurando obser-
var e analisar como o debate sobre essas temticas est permeado pelas ambigidades
presentes nas discusses sobre a democracia no Brasil.
O direito brasileiro analisado como um dos discursos que normatizam as relaes
familiares, a sexualidade e a reproduo. Tal exerccio implica anlise de legislaes
diversas, em momentos distintos de nossa histria social.
O discurso jurdico brasileiro, considerado aqui no somente na sua face legislativa,
mas tambm na doutrina e na jurisprudncia sobre esses temas, no s trata de repres-
ses. Sobretudo, atua como elemento que reproduz e refora os modelos hegemnicos
que orientam e normatizam as relaes sociais.
importante destacar que no se pode pensar o direito abstrado das relaes de
poder entre as classes, os sexos e raas/etnia. O legislador e o jurista atuam de acordo
com as relaes de poder estabelecidas em cada contexto histrico, seja como u m freio
s transformaes sociais, em resposta a uma sociedade em mutao, ou, ainda, em
uma postura de vanguarda c o m o elemento propulsor de novos valores, de nova tica
social. Para criao de consenso, a instncia jurdica atua como mecanismo pedaggi-
co, socializando os agentes sociais, produzindo crenas e sentimentos comuns (Barsted,
1987). No entanto, o direito permite, tambm, a existncia de contradies e, at mes-
mo, aceita pretenses surgidas daqueles que no estejam no topo da hierarquia social.
A estrutura da famlia, a vivncia da sexualidade e da reproduo, tal como histori-
camente se apresentam no direito brasileiro, no so o simples reflexo da forma con-
creta de relacionamento social. So, antes, a codificao de uma viso de mundo marcada
por discursos hbridos que incorporam princpios igualitrios e no-igualitrios entre

1
Os direitos individuais, em particular nas questes relativas famlia, tm sido historicamente busca-
dos pelas mulheres, particularmente por aquelas dos setores populares.
classes, sexo c raa/etnia. Nessa viso de m u n d o sobre famlia, sexualidade c reprodu-
o est presente a preocupao com a legitimao legal dos laos familiares; com a
transmisso de bens atravs da herana a ser recebida por herdeiros legtimos; com
padres de moralidade relativos sexualidade e reproduo.
Tomando-se como marco a proclamao da Repblica, podemos identificar, pelo
menos, duas grandes fases onde essa viso de mundo se atualiza: a primeira, a partir de
1917, c o m a entrada em vigor do Cdigo Civil. A segunda, a partir de 1977, c o m a
chamada Lei do Divrcio e completada em 1988 com a aprovao da nova Constituio
Federal. Essas fases apresentam nuances que tornam mais ou menos rgido o discurso
jurdico. No entanto, de modo geral, so coerentes com os processos sociais em curso e
a ideologia hegemnica de cada poca.

Lei, famlia e reproduo: 1917-1977

O marco inicial desse perodo o Cdigo Civil, promulgado em 1916. Expresso do


Cdigo de Napoleo nos trpicos, constituiu-se em instrumento de afirmao da liber-
dade, do reinado do consentimento, do repdio coao, do respeito aos contratos c s
obrigaes da decorrentes. Por esse Cdigo, a cidadania configura-se a partir da capaci-
dade civil plena aos 21 anos, do gozo da razo e da liberdade para consentir e contratar.
o Cdigo Civil que mais explicita, em relao aos demais, o modelo jurdico da
famlia brasileira, calcada no modelo idealizado e vivido, cm certa medida, pelas famlias
da elite burguesa no Pas. Desde sua elaborao, ainda no final do sculo XIX, o Cdigo Civil
incorporou o discurso cientfico no que se refere importncia da higienizao da fam-
lia e o papel da mulher para concretizao desse aspecto (Aries, 1978; Donzelot, 1979). A
conformidade a este modelo que tornar as relaes entre os sexos legtimas ou no.
Deve-se reconhecer que o texto original, ao longo dos anos, sofreu inmeras alteraes,
particularmente a partir da dcadade70, em decorrncia tanto das novas relaes econ-
micas c sociais como da aodeatores diversos, dentre os quais o movimento feminista.
Apesar de reconhecer para homens e mulheres, brancos e negros, a partir dos 21 anos,
2
a igualdade quanto capacidade civil plena, o Cdigo apresentava, at 1962 , mensagens
diferenciadas, mesmo na elite, para homens e mulheres, se casados fossem. Reafirmando
as assimetrias de gnero, desenhava um modelo de mulher sempre necessitada de prote-
o masculina, seja do pai ou do marido. Assim, como por um passe de mgica, a mulher
maior de 21 anos, dotada formalmente de plena capacidade civil, perdia esse atributo ao
contrair matrimnio, ficando reduzida a uma capacidade relativa e necessitando de con-
sentimento do marido para a prtica de diversos atos da vida civil.

2
Ver o Estatuto Civil da Mulher Casada, de 1962.
Deve-se lembrar tambm que, at 1932, a mulher maior de 21 anos, mesmo solteira
e, portanto, com plena capacidade civil, no se constitua ainda cidad, sujeito de plenos
direitos, j que lhe era vedado o direito ao sufrgio universal. A cidadania, pensada em
uma lgica do indivduo, para as mulheres era mediada pela famlia, pelo coletivo privado.
Na realidade, as mulheres foram tratadas, pela razo iluminista, como categorias sociais
secundrias, dependentes de suas famlias de origem ou de seus rharidos, os chefes de
famlia (Rousseau, ao se dirigir s virtuosas cidads suas, explicitava que sua cidadania
se construa por meio de sua tarefa educadora dos homens, como mes e esposas).
Embora, em tese, o Cdigo Civil tambm fosse dirigido s camadas populares, no
encontrava ressonncia prtica em seu cotidiano, ao contrrio das legislaes penal e
trabalhista da dcada de 40. Para as classes populares - s quais no havia herana de
bens materiais a ser transmitida -, as relaes de concubinato e o controle sobre as
mulheres mostrava-se menos rgido. Dessa maneira, o Cdigo Civil pouco incidia sobre
o cotidiano de suas vidas. E, mesmo no se atualizando na vivncia das classes popula-
res, representa o discurso hegemnico sobre o exerccio 'normal' da sexualidade e
da reproduo e da constituio da famlia. Por este motivo, h u m a histria legal da
famlia no Brasil que pode ser contada tanto por seus efeitos sociais e polticos como
pelo seu efeito ideolgico.
Nessa primeira fase, poderamos dizer que o discurso legal sobre a famlia como locus
legtimo da reproduo extremamente reducionista. O modelo apresentado o da
famlia monogmica, patriarcal, nuclear. A famlia se desenvolvia sob a linhagem legal
do pai, o que consistia no reconhecimento dos filhos nascidos somente dentro do
casamento e nunca fora dele. O registro de filho nascido fora do casamento, para os
homens casados, s poderia ser feito por meio de ao judicial de investigao de pater-
nidade, e somente para habilitao em herana. Deve-se destacar que para a mulher era
vedada a ao de investigao de maternidade para reconhecimento de filho nascido
fora do casamento, mesmo para habilitao em herana. Esperava-se da mulher recato
e fidelidade absoluta quando casada e, quando solteira, a manuteno de sua virgindade
at o casamento legal. Somente em 1942 foi editada lei de reconhecimento - somente
de paternidade-de 'filhos ilegtimos', nascidos fora do casamento, continuando veda-
da a ao de investigao de maternidade.
Marcado pelo positivismo, o Cdigo Civil, com a redao de 1916, buscava padres
de normalidade que afastassem a famlia dos 'estados patolgicos'. Apesar de a ideologia
positivista refutar a influncia da Igreja Catlica nas questes do Estado no que se refere
famlia, espao coletivo privado, o modelo positivista pouco diferia da famlia crist,
catlica, pautada por padres do Cdigo Cannico.
A lei civil dedicou famlia todo u m captulo que regulava temas de vrias ordens,
como indicao de impedimentos absolutos e relativos para casar,- definio da idade
legal para o casamento diferenciada para homens e mulheres, dando a elas uma maior
prccocidade; definio das condies para a dissoluo da sociedade conjugai; autoriza-
o para transmisso do ptrio poder para o novo marido de mulher viva sobre os
filhos 'nascidos do leito anterior'; incluso como clusula de anulao de casamento a
constatao, pelo noivo, da no-virgindade da mulher. Com a preocupao de ser coe-
rente com o saber cientfico e de evitar "efeitos dos cruzamentos consangneos", den-
tro de uma lgica da higienizao da famlia, o Cdigo no apenas probe o incesto,
como define regras de relacionamento sexual entre parentes, incluindo a proibio de
casamento entre tios e sobrinhos (revogada em 1941). A preocupao com a 'higienizao
da famlia' foi reforada pela Constituio Federal de 1934.
Outras temticas so normalizadas, como as relativas ao reconhecimento de direi-
tos diferenciados (na maioria no-igualitrios), entre os cnjuges na constncia do
casamento e na sua dissoluo, particularmente os relativos guarda dos filhos, dentre
outros. A presuno de cnjuge inocente na dissoluo do casamento assegurava
mulher casada o 'direito' de continuar mantendo o nome do marido, penso aliment-
cia e a guarda dos filhos. Por longa data, as decises dos tribunais brasileiros esperavam
da mulher 'desquitada' comportamento exemplar quanto ao recato sexual.
O Cdigo Civil em outros captulos tem inmeras disposies sobre famlia, sexua-
lidade e reproduo: a que reconhece o nascimento com vida como o incio da vida
civil; a que obriga a mulher viva a esperar 10 meses aps do bito do marido para
poder contrair novas npcias (para certificar a origem da prole); a que permite aos pais
deserdarem filha que no tenha comportamento 'honesto' (honestidade compreendi-
da como comportamento sexual adequado a uma mulher de 'famlia'), dentre outras.
Fazendo-se uma sntese do contedo da orientao do Cdigo Civil, podemos dizer que
o nico modelo legalmente assumido para a definio de famlia era o formado pelo casa-
mento perante autoridade judiciria, hierrquico entre marido e mulher, bem como entre
linhagem paterna e linhagem materna. Isso significa que a palavra do pai vale mais do que
a da me e que os avs paternos tm mais poderes do que os matemos. Aos homens cabe a
chefia da sociedade conjugal, a administrao dos bens do casal e dos bens particulares da
mulher- mesmo quando vigora o regime de separao total de bens-, a representao legal
da famlia, a deciso sobre fixao de domiclio e a autoridade mxima sobre os filhos.
Ainda pelo Cdigo Civil, com a redao de 1916, o marido era o "provedor" da manu-
teno da famlia, enquanto mulher cabia "velar" por sua direo moral. Alei reproduz
e refora os papis de gnero culturalmente atribudos a homens e mulheres. Essa
orientao, concebida a partir das famlias de elite, dirigida, tambm, s famlias das
classes populares, muitas das quais, na poca, nem sempre tinham os homens presen-
tes e eram sustentadas somente por mulheres.
Em grande medida, o Cdigo sofreu, em 1962, uma importante alterao atravs do
chamado Estatuto Civil da Mulher Casada. Pela redao, a mulher casada teria a mesma
capacidade civil do homem. No entanto, continua a ser considerada mera colaboradora
do marido na constncia do casamento e a manter u m papel secundrio no que tange
ao exerccio do ptrio poder e definio do domiclio conjugai. Essa lei aparentemente
criou outros benefcios para as mulheres, c o m o o instituto dos 'bens reservados da
mulher casada', definidos como os provenientes de sua profisso lucrativa e dos quais
podia dispor livremente sem passar pela administrao do marido. Por esse Estatuto, a
mulher viva que se casa em segundas npcias no perde o ptrio poder sobre os "filhos
do leito anterior"; presume-se que foi "autorizada pelo marido para a compra (...) a
crdito (...), para obter emprstimo (...)". No entanto, a possibilidade de eximir-se, por
intermdio de pacto nupcial, da obrigatoriedade de colocar seus rendimentos na ma-
nuteno da famlia e a presuno de 'autorizada pelo marido' define que o modelo de
famlia continuava sendo o das famlias da elite. Alm disso, sua base econmica conti-
nuava nas mos do marido, cujo papel de nico provedor no se alterava, bem como era
mantida a representao sobre a mulher, ainda uma 'colaboradora', embora lhe fosse
reconhecida a misso precpua e fundamental de moralizadora junto famlia.
Outros marcos importantes, nessa primeira fase, e que reafirmam os princpios da
legislao civil, foram o Cdigo Penal, de 1940, e a Consolidao das Leis do Trabalho
(CLT), de 1943.
O Cdigo Penal refora a importncia da famlia ao criar quatro captulos a seu
respeito. O primeiro trata dos crimes contra o casamento, punindo, dentre outros
comportamentos, a bigamia e o adultrio; o segundo trata dos "crimes contra o estado
de filiao" e pune comportamentos como o "parto suposto e outros fingimentos" e da
sonegao de estado de filiao, que implica em "deixarem asilo de expostos ou outra
instituio de assistncia filho prprio ou alheio, ocultando-lhe a filiao (...)". O tercei-
ro captulo trata dos "crimes contra a assistncia familiar", no qual se sobressai a puni-
o do comportamento de "abandono de famlia" que inclui os crimes de "abandono
material", "entrega de filho menor a pessoa inidnea" e "abandono intelectual". O quar-
to captulo trata dos "crimes contra o ptrio poder, tutela ou curatela" no intuito de dar
proteo penal aos menores de 18 anos ou queles legalmente interditados.
Houve inovaes, tambm, quanto punio do adultrio. N o Cdigo anterior,
ainda do final do sculo passado, o adultrio masculino s se configurava se o marido
tivesse ou mantivesse 'concubina', ao passo que para a mulher bastava u m a nica
infidelidade conjugal. Em 1940, o legislador considerou como adultrio a 'simples infi-
delidade', seja do marido ou da esposa, para configurar o adultrio (Hermann & Barsted,
1995). No entanto, apesar da mudana da lei, o adultrio masculino sempre foi visto
com mais complacncia no mbito do poder judicirio, que julgava com mais severida-
de o adultrio feminino. A preocupao com a legitimidade da prole e a viso de que as
mulheres honestas eram necessariamente castas reforava essa maior severidade. U m a
das conseqncias dessa concepo era a aceitao da tese da legtima defesa da honra
que absolve at hoje, e m muitos lugares do Pas, maridos que assassinaram esposas
consideradas adlteras (Hermann & Barsted, 1995). No caso do aborto, o Cdigo acatou
duas situaes como passveis de realizao legal: c m caso de risco de vida para a me e
em caso de gravidez resultante de estupro. Alm da piedade para com a vtima, explicitada
na exposio de motivos do Cdigo, o legislador tambm se preocupava com a legitimi-
dade e higienizao da prole, que no poderia ser assegurada caso essa fosse provenien-
te de u m estupro. Ainda em relao ao estupro, o Cdigo adota uma posio curiosa. Por
exemplo: pune o aborto como crime contra a vida e deixa de punir o estuprador que se
casar com sua vtima. O crime de estupro no considerado como u m crime contra a
pessoa e sim c o m o u m crime contra os 'costumes'. Por se tratar de u m crime de ao
privada, somente a vtima pode ou no denunci-lo. Tal lgica pode ser explicada porque
o legislador entendia que sendo u m crime que poderia afetar a 'honra' da vtima, deveria
ser mantido em segredo, e a honra poderia ser restituda se o culpado com ela se casasse.
O Cdigo prev, ainda, no que diz respeito famlia, que ocorra u m aumento de
pena nos crimes praticados contra "ascendente, descendente, irmo ou cnjuge" ou
com "abuso de autoridade ou prevalecendo-se (o agente) de relaes domsticas, de
coabitao ou de hospitalidade". Na realidade, como a famlia era culturalmente pensa-
da ainda c o m o espao da privacidade, a violncia domstica, em vez de ser u m crime
mais grave, acabou sendo tratada como u m no-crime.
Na lei penal h uma distino entre sujeito ativo e sujeito passivo. Na maioria dos
crimes, homens e mulheres podem ser ativos ou passivos, quer sejam autores ou vtimas,
respectivamente. N o entanto, o Cdigo define alguns crimes cujos sujeitos no so
indiferenciados. A mulher sempre explicitamente sujeito ativo nos crimes de infanticdio
e aborto e sujeito passivo dos crimes de estupro, rapto e seduo. Tambm sob o argumen-
to de proteo da famlia e de controle da sexualidade e da reproduo, o Cdigo Penal
reafirma o valor da "mulher honesta" e da virgindade ao punir a "posse sexual mediante
fraude", o rapto e a seduo somente se a vtima for 'mulher honesta' definida, evidente-
mente, segundo os padres de moralidade sexual que orientavam e ainda orientam, em
certa medida, a sociedade brasileira - se solteira, virgem; se casada, recatada.
Em complementao ao Cdigo Penal foi elaborada, em 1941, a Lei de Contraven-
es Penais, que dentre seus artigos previa punio para a propaganda e a fabricao de
mtodos anticoncepcionais e abortivos. Nova lei, de 1979, deixa de considerar contra-
veno a propaganda e o fabrico de mtodos anti-concepcionais.
Tambm na dcada de 40 foram elaboradas as legislaes trabalhista e previdenciria,
frutos tanto da presso do operariado como da ao paternalista do Estado autoritrio.
Nessa poca, houve uma verdadeira exaltao 'famlia brasileira', sempre presente nos
discursos de Vargas. Ao lado de inmeros direitos e obrigaes, essa legislao sinaliza o
incentivo procriao, com a instituio de novos direitos como o salrio-famlia, o
auxlio-maternidade e a licena-maternidade; medidas protetoras para as trabalhado-
ras gestantes e a obrigatoriedade de creches em empresas empregadoras de mulheres
em idade reprodutiva. Considerando a mulher n o m e s m o patamar dos menores, a
CLT, e m seu texto original, criou u m a srie de restries ao trabalho feminino - que
comearam a ser eliminadas nos anos 70 e foram definitivamente afastadas com a
Constituio Federal de 1988, que manteve apenas as restries relativas ao trabalho da
mulher gestante - e incluiu a possibilidade de o marido rescindir o contrato de trabalho
de sua mulher "quando a sua continuao for suscetvel de acarretar ameaas ao vncu-
los da famlia" - este dispositivo, pouco utilizado, tambm foi revogado em 1988.
Em trabalho anterior (Barsted, 1987), destacvamos que o discurso legal na rea do
trabalho no encontrou a mesma eficcia dos discursos dos Cdigos Civil e Penal. A
contradio entre moralidade burguesa, compatvel com as legislaes penal e civil, e a
racionalidade do sistema produtivo deu s regras de direito trabalhista em geral, e em
particular no que se refere s mulheres, uma quase ineficcia. Na realidade, a lei criada
com o intuito de compatibilizar a funo primordial da mulher - o cuidado com a
famlia-com uma funo produtiva na esfera do mercado mostrou-se, nesse sentido,
inoperante. As regras do direito do trabalho perdem a sua coerncia com os demais
Cdigos no que diz respeito famlia, sem, contudo, perder sua eficcia ideolgica no
que concerne viso de fragilidade feminina e funo primordial da mulher. O
trabalho feminino externo casa, na dcada de 40, era visto, para as mulheres de elite,
como u m desvirtuamento das 'habilidades domsticas e naturais femininas'; para inte-
grantes das classes populares, como instrumento 'moralizante', em contraposio aos
3
cortios, conforme as palavras de u m empresrio do incio do sculo . Nesse contexto,
a renda feminina continuava a ser representada pela sociedade como 'complementar'.
Por este motivo, as mulheres trabalhadores no mereceriam salrios maiores, apesar da
crescente necessidade dessa 'ajuda' nos oramentos familiares. Continuava imperando
para ricas e pobres a ideologia do h o m e m "provedor" e da mulher "colaboradora" e
esteio moral da famlia, mesmo que na vivncia das famlias das classes populares esses
papis de gnero no se configurassem.
Tambm a partir da dcada de 40, algumas modificaes podem ser observadas na
legislao, mas a ideologia sobre as relaes de gnero no sofre alteraes. A legislao
civil passou gradativamente a no discriminar direitos de filhos nascidos dentro ou fora
do casamento e, ao longo das duas dcadas seguintes, decises de tribunais e leis com-
plementares possibilitaram que seus benefcios fossem estendidos para mulheres que
viviam maritalmente sem que tivessem contrado casamento perante autoridade judi-
ciria. Nesse sentido, foi cunhada a expresso "direitos da companheira", em oposio
anterior estigmatizao da "concubina teda e manteda".

3
Ver a respeito depoimento de Jorge Street (PINHEIRO & HALL, 1981). Esses autores reuniram importantes
documentos histricos do perodo de 1 8 8 9 a 1 9 3 0 , sobre as condies de vida e trabalho da classe
operria brasileira.
Lei, famlia e reproduo: 1977-1997

Nesses ltimos vinte anos, em que pese ainda a fora da ideologia que orientou os
cdigos Civil e Penal, uma srie de mudanas legislativas possibilitou alteraes impor-
tantes na conformao da famlia e nos padres de sexualidade e reproduo, timida-
mente ensaiadas c o m o Estatuto Civil da Mulher Casada, de 1962.
Na dcada de 70, a adoo do divrcio, pela Lei 6.515, de 1977, alterou, em muito,
dispositivos do Cdigo Civil, apesar da forte oposio da Igreja Catlica. Deve-se ressaltar
que a lei s foi aprovada pelo fato de a votao ter sido por voto secreto. Introduziu-se,
por exemplo, no que concerne guarda dos filhos, a perspectiva de privilegiar o interes-
se dos filhos menores, em detrimento dos interesses pessoais de pai e me. Apesar disso,
na aplicao da lei, o Poder Judicirio manteve, muitas vezes, u m a viso moralizante
assimtrica n o que concerne a avaliao dos comportamentos dos ex-cnjuges, exer-
cendo uma presso maior sobre as mulheres. Nessa dcada, o aumento da insero das
mulheres no mercado de trabalho em muito ajudou mudana de percepo da m u -
lher c o m o mera colaboradora. Isso ocasionou a desobrigao legal do h o m e m e m
continuar sempre c o m o provedor da mulher. O intenso processo de urbanizao, a
introduo de contraceptivos desde a dcada de 60 - que dissociaram reproduo e
sexualidade-, a influncia das mensagens do movimento feminista, a importncia das
mensagens da mdia, dentre outros fatores, alteraram fortemente os padres de moralidade
sexual. Divorciados, os cnjuges ficavam como se solteiros fossem, podendo contrair ou
no novas npcias. No entanto, nos processos judiciais de separao ou divrcio, muitos
juizes esperavam que as mulheres exercessem sua sexualidade com 'recato' e discrio
para que mantivessem a guarda dos filhos (Pimentel, Giorgi & Piovesan, 1993).

A partir da dcada de 70, em particular na dcada de 80, com a redemocratrizao do


Pas, as temticas da sexualidade e da reproduo passaram a ser discutidas com muita
regularidade no Congresso Nacional, envolvendo questes como controle da natalida-
de, polticas populacionais, planejamento familiar, assistncia sade materna, abor-
4
to e esterilizao e, mais recentemente, novas tecnologias reprodutivas.
A Constituio Federal de 1988 incorporou muitas das demandas do movimento de
mulheres. N o que se refere famlia, reconheceu a igualdade entre os cnjuges e as
novas modalidades de instituio familiar (como a formada pela unio estvel entre
h o m e m e mulher e pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descenden-
tes) e se comprometeu criao de mecanismos para "coibir a violncia no mbito de
suas relaes". Q u a n t o ao status dos filhos, a Constituio reconheceu que os filhos
"havidos ou no da relao do casamento", inclusive os adotivos, tero os mesmos
direitos e qualificaes e proibiu qualquer designao discriminatria relativas filiao.

4
Sobre os diversos projetos de legalizao do aborto nas dcadas de 70 e 80, ver BARSTED, 1992.
No campo da reproduo, o artigo 226, 7 da Constituio Federal declara que "funda-
do nos princpios da dignidade da pessoa h u m a n a e da paternidade responsvel, o
planejamento familiar livre deciso do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e cientficos para o exerccio desses direitos, vedada qualquer forma coer-
citiva por parte de instituies oficiais ou privadas".
De certa forma, as normas constitucionais e o debate sobre as questes relativas a
famlia, sexualidade e reproduo significam posies e presses diferenciadas sobre o
Estado, expressas por distintos atores sociais e com diferentes argumentos. O s avanos
nesse campo refletem as presses do movimento feminista e a forma como essas ques-
tes tm sido colocadas nos pases hegemnicos ocidentais e nas orientaes das diver-
sas conferncias internacionais em que esses temas tm sido discutidos. U m olhar
comparativo poderia nos apontar para o adiantado de nossa legislao em relao a
esses temas: antes da Conferncia do Cairo, em 1994, e de Beijing, em 1995, a legislao
brasileira reconhecia a igualdade entre homens e mulheres, incorporava a perspectiva
de sade no sentido de sua integralidade, inclusive no que se refere especificamente s
5
mulheres , reconhecia direitos reprodutivos, exceto no que se refere ao aborto, e novas
formas de famlia.
O debate sobre famlia, sexualidade e reproduo incluiu ainda, alm do contnuo
posicionamento das feministas, as presses de inmeros outros atores, como as agn-
cias pr-controle da natalidade, os militares, os religiosos, os mdicos e demais profis-
sionais da sade, juristas, acadmicos e mdia, dentre outros.
Esses temas amplamente debatidos ao longo das duas ltimas dcadas nem sempre
se atualizam nas decises doPoderJudicirio e na produo jurisprudencial. O reco-
nhecimento de direitos advindos da unio estvel, a partir de leis recentes da dcada de
90, ainda encontra decises discordantes quando do tratamento de casos concretos
pelo Fbder Judicirio. Da mesma forma, a regulamentao dos direitos reprodutivos, a
partir do 7 do artigo 226, tambm constituiu-se em processo demorado e tumultuado.
Depois de seis anos de tramitao no Congresso Nacional, o Projeto de Lei que regula-
mentava esse pargrafo do artigo 226 da Constituio foi finalmente aprovado com o
texto da Lei 6.295/95. No entanto, submetida apreciao presidencial para ser sancio-
nada, surpreendentemente teve vrios artigos vetados. Essa lei, apesar de incorrees
(fruto das negociaes necessrias para sua tramitao no Congresso) incorporou pro-
postas do movimento de mulheres. Esse movimento, aps o veto presidencial, caracte-
rizado c o m o u m "descuido" pelo governo, teve de manter ativa sua mobilizao para
conseguir, aps mais de u m ano, que o Congresso rejeitasse o veto e considerasse apro-
vado o texto integral da lei.

5
Deve-se mencionar que o texto original do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM)
de 1983.
Tambm na rea dos direitos reprodutivos e sexualidade, os projetos de lei sobre a
descriminalizao do aborto, ampliao de seus permissivos ou regulamentao do
exerccio do direito ao abortamento legal previsto no Cdigo Penal encontram uma
enorme dificuldade de caminhar para debate e aprovao - por fora, particularmente,
da ainda importante presso da Igreja Catlica sobre o Estado brasileiro no que se refere
sexualidade e reproduo. A partir da intensificao das novas tecnologias reprodutivas
e dos recursos de medicina fetal inicia-se o debate sobre a oportunidade ou no de
regulamentao dessa rea. At o momento, a nica regulamentao existente a que
probe o recurso chamada 'barriga de aluguel'.
A entrada das DST/AIDS no debate sobre sade permitiu que a sexualidade passasse a
ser discutida de forma mais explcita em toda a sociedade e obrigou que o repensar
sobre reproduo no se esgotasse no direito de ter ou no filhos. Portarias ministeriais,
especialmente do Ministrio da Sade, foram elaboradas para incluir o condom c o m o
preservativo indispensvel no apenas dentro da lgica da anticoncepo mas, particu-
larmente, na preveno da AIDS. Outras reas legislativas - que tradicionalmente no
tratavam da temtica - passaram a faz-lo. Destacam-se a legislao relativa a seguro-
sade, seguro de vida, legislao previdenciria e trabalhista e as obrigaes de respon-
sabilidade civil por contaminao via transfuso de sangue, dentre outras.
Ainda n o mbito da sexualidade fora dos padres tradicionais previstos pelo Cdigo
Civil, referncia deve ser feita apresentao, e posterior retirada de pauta, de projeto de
lei para o reconhecimento da unio civil entre pessoas do m e s m o sexo, tema que
motivou acalorados, e nem sempre adequados, debates entre os legisladores.
AConstituio revogou todos os dispositivos do captulo relativo famlia que implicam
na assimetria entre os cnjuges. No entanto, esto em vigor outros dispositivos da parte geral
ou da parte relativa sucesso que exprimem, ainda, discriminaes de gnero.
Apesar das alteraes sofridas em sua parte geral em 1984, o Cdigo Penal ainda
mantm intactos na sua parte especial (que define os crimes e as penas) dispositivos
que apresentam discriminaes de gnero no que se refere moral sexual. Essas discri-
minaes tm grande incidncia nas decises judiciais, em particular do Jri Popular,
nos chamados 'crimes passionais', em que as mulheres e homens ainda so avaliadas e
julgados c o m base nos esteretipos de gnero, fundamentados em uma moral sexual
anterior proclamao da Repblica.

Consideraes finais

A partir da Constituio de 1988, pode-se afirmar que consolidou-se no direito


brasileiro u m a nova perspectiva sobre famlia, sexualidade e reproduo, apesar das
incompletudes, limitaes e restries legais. Ainda seria precoce dizer que a mudana
legislativa sobre tais temas tenha impactado todo o aparato do Poder Judicirio e que as
decises tomadas nessa instncia no sejam mais influenciadas pela matriz ideolgica
do Cdigo Civil. H, claramente, uma tendncia da legislao em reconhecer a igualdade
e a eqidade entre homens e mulheres e a incorporar, de forma mais rpida ou mais
lenta, dispositivos menos preconceituosos no campo da sexualidade e da reproduo.
A rapidez desses processos muito tem a ver c o m as transformaes de ordem
macroestrutural da sociedade e com o desempenho e poder dos diferentes atores sociais
que tm influenciado a produo legislativa e jurisprudencial.
N o debate sobre famlia, sexualidade e reproduo, o movimento feminista tem
apresentando importantes contribuies aos parlamentares e influenciado nos avan-
os legislativos, destacando-se as preocupaes com a defesa de direitos sociais, coleti-
vos e individuais de homens e mulheres. Encontra-se includo nessa preocupao,
particularmente, o direito sade (inclusive sade reprodutiva) - particularmente das
mulheres pobres, que no caso do aborto, por exemplo, no podem recorrer s clnicas
particulares de boa qualidade, utilizadas, apesar de ilegais, por mulheres dos setores de
mdia e alta renda. O discurso feminista apresenta-se, dessa forma, compatibilizando o
ideal individual de liberdade com princpios de ordem social.
Nesse debate, a Igreja Catlica joga em u m papel de opositor importante s propostas
feministas. Para a Igreja, o que est em jogo nesse debate no a defesa dos direitos
individuais ou sociais, mas a defesa do dogma que refora a idia de u m padro nico
de famlia e de uma sexualidade limitada ao exerccio da reproduo. A reproduo, por
sua vez, deve se dar, preferencialmente, no mbito das relaes conjugais. Em nome
desses dogmas, a Igreja rejeita o aborto, por consider-lo u m crime contra a vida (posi-
o reforada pelo Cdigo Penal).
Outro ator que tem contribudo e influenciado esse debate, especialmente a partir do
incio da dcada de 90, o setor mdico. Na rea da reproduo, o Conselho Federal de
Medicina (CFM) e alguns conselhos regionais e associaes mdicas tm apresentado pro-
postas de ampliao dos permissivos legais para a realizao do abortamento no caso de
comprovada anomalia fetal grave. O argumento apresentado pelo CFM pode ser visto sob
dois ngulos. C o m o a defesa de u m direito individual e social da mulher ou do casal de
desejarem prole sadia; e a defesa do avano cientfico e da atuao de profissionais e clnicas
que j realizam esses abortos sem considerarem a prtica uma transgresso tica mdica.
O u seja, j existe no Brasil avanada tecnologia de deteco de anomalias fetais que fica
lanada ao campo da ilegalidade com a atual legislao sobre o aborto. Dessa forma, as
corporaes mdicas no necessariamente se juntam s feministas na defesa da legalizao
mais ampla do aborto, mas limitam-se defesa do chamado 'aborto piedoso' como aplica-
o do conhecimento cientfico aceito como tico por grande parte da comunidade mdica
e do aborto para preservara sade da mulher, tendncia incorporada pela Comisso instituda
pelo Poder Executivo para elaborar o texto do anteprojeto de Reforma do Cdigo Penal.
Essas diferentes posies e impasses que surgem no debate sobre famlia, sexualida-
de e reproduo so fundamentais na definio dos rumos que a legislao brasileira
vai tomar. Voltando ao nosso ponto inicial, esse debate aponta para a dificuldade de
articulao entre a defesa de direitos individuais e coletivos em uma sociedade marcada
por enormes discriminaes sociais, sexuais e raciais. revela uma tendncia autorit-
ria da sociedade e do Estado brasileiros em tentar resolver com a lei penal as questes
sociais ou os supostos desvios de conduta socialmente desejveis.
Na realidade, no Brasil, a articulao entre os direitos individuais e os direitos cole-
tivos tem se dado mais como uma oposio do que como uma complementariedade.
H uma forte tendncia histrica dos mais diversos setores da sociedade de considera-
rem as demandas por direitos individuais como uma demanda do liberalismo burgus.
nesse ponto que a luta do movimento feminista em torno do slogan "nosso corpo nos
pertence" foi considerada, por alguns setores progressistas, como pouca oportuna ou,
usando uma terminologia contempornea, como "politicamente incorreta", diante das
temticas consideradas sociais.
Dessa forma, longe de se complementarem como pilares bsicos da democracia,
direitos individuais e direitos coletivos foram se tornando quase conceitos antagnicos
para os setores progressistas preocupados com o carter excludente do Estado brasileiro
em relao s grandes massas empobrecidas da populao.
Analisar a contradio entre liberdade e represso, que tem caracterizado o debate
sobre famlia, sexualidade e reproduo noPas,implica, tambm, aprofundar a compreen-
so dos impasses da questo democrtica em uma cultura marcada por forte tendncia
autoritria e hierarquizante. Progressistas ou conservadores, os indivduos e os grupos
que debatem os temas da famlia, da sexualidade e da reproduo esto permeados pelas
ambigidades entre o tradicional e o moderno. Consensos e dissensos, na realidade, ex-
pressam as composies resultantes da convivncia de referncias culturais distintas.

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A Medicalizao do Corpo Feminino


Elisabeth Meloni Vieira

A tese da medicalizao da sociedade ocidental tem sido discutida por vrios


autores desde a dcada de 70. Illich (1975) foi provavelmente o mais famoso des-
tes autores. Medi-calizar significa o processo de transformar aspectos da vida
cotidiana e m objetos da medicina de forma a assegurar conformidade s normas
sociais (Miles, 1991).
Para tratar a condio do corpo feminino na medicina temos de resgatar sua di-
menso social, ou seja, a articulao que se estabelece entre condio orgnica femi-
nina e condio social de gnero. A medicalizao desse corpo particulariza-se nas
implicaes especficas da reproduo humana, relacionada por assim dizer sua
condio orgnica. Essa afirmao significa, sobretudo, a maneira especfica pela
qual o corpo feminino vem sendo tratado pela medicina a partir do momento em que
se transforma e m seu objeto de saber e prtica.
Foucauit (1982) analisa a natureza poltica da medicina na sociedade capitalista
como uma estratgia de controle social que comea com o controle do corpo. Discutin-
do a temtica da sexualidade que emerge c o m o u m objeto poltico nas sociedades
ocidentais no sculo XVII, ele questiona se o controle da sexualidade e reproduo no
teria implicaes sociais para assegurar o controle populacional; reproduzir a fora de
trabalho; reproduzir os modos que as relaes sociais so estabelecidas, de forma a
garantir que se tenha u m a sexualidade socialmente til e politicamente conservadora
(Foucauit, 1980a). neste contexto que olhamos para a medicalizao do corpo feminino,
entendendo-a como u m dispositivo social que relaciona questes polticas - como o
controle populacional - a o s cuidados individuais do corpo da mulher, normalizando,
regulando e administrando os aspectos da vida relacionados reproduo humana.

A natureza feminina

O processo histrico de medicalizao do corpo feminino passa, necessariamente,


pela idia de que existe uma natureza biolgica determinante e dominante da condio
feminina. justamente por meio dessa concepo que a medicina poder se apropriar
do corpo das mulheres.
A idia de natureza feminina baseia-se em fatos biolgicos que ocorrem no corpo da
mulher- a capacidade de gestar, parir e amamentar. Na medida em que essa determina-
o biolgica parece justificar plenamente as questes sociais que envolvem este corpo
que ela passa a ser dominante, como explicao legtima e nica sobre estes fenmenos.
Da decorrem idias sobre a maternidade, instinto maternal e diviso sexual do traba-
lho como atributos "naturais c essenciais" diviso de gnero na sociedade.
A natureza feminina faz parte do conjunto de concepes pelas quais a identidade
de gnero e suas implicaes so construdas na sociedade e na cultura. Para De Romani
(1982), tratara identidade de gnero de maneira a-histrica e atemporal tem c o m o
finalidade reafirmar o fixo, o imutvel, o eterno, o natural desta condio, estabelecen-
do um discurso que desloca a assimetria sexual do plano das relaes concretas para o plano
da natureza. Segundo a autora, a eficincia dessa ideologia consiste na introjeo desse
carter supostamente essencialista, a partir do qual so construdas verdades absolutas (por-
que 'naturais'), de forma que no seria possvel ultrapassar a condio natural de sexo.
Segundo Bonder (1984), a crena naturalista estabelece uma relao de causalidade
lgica entre o potencial biolgico da mulher de gerar filhos e o cuidado c criao das
crianas c o m o atividade feminina. A mstica maternal estabelece o potencial para a
maternidade como fato fundamental para a constituio da feminilidade e identidade
da mulher. A maternidade, ou melhor, a 'natureza maternal', seria, ento, u m fator
nuclear do qual decorreria uma srie de atributos de personalidade e conduta da m u -
Ihcr que lhe seriam 'naturais', negando-se persistentemente as intermediaes da cul-
tura neste mbito. As concepes que se constroem sobre a natureza feminina im-
pem, para o saber mdico, esforos considerveis para desenvolver o conhecimento
sobre as especificidades biolgicas da condio feminina, como pressuposto do movi-
mento maior de transformao social que ocorreu a partir do sculo XVIII, mudando a
relao da prtica mdica com o corpo feminino.
O nascimento da obstetrcia

A produo de idias mdicas sobre o corpo feminino no se fez de forma terica e


isolada da tomada deste corpo como objeto da prtica mdica. Por quase trs sculos, os
mdicos se prepararam para ocupar o lugar das parteiras e efetivamente transformar o
parto e m u m evento mdico. A medicalizao do corpo feminino se estabelece n o
sculo XIX, e m meio aos discursos de exaltao da maternidade. No entanto, esse pro-
cesso teve incio trezentos anos antes da institucionalizao do parto c o m o evento
hospitalar e do estabelecimento da obstetrcia como disciplina mdica.
Embora a antigidade grega clssica j tivesse registrado algum interesse mdico
nessa rea, ele se manteve sepultado durante sculos, at o Renascimento (Mello, 1983).
Por u m longo perodo, partejar foi u m a tradio exclusiva de mulheres. A partir do
sculo XVI, essa tradio comea a sofrer regulamentaes, governamentais ou da igre-
ja, submetendo as parteiras das cidades europias a exames prestados diante de comis-
ses municipais ou eclesisticas. O ponto fundamental dessa regulao relaciona-se
garantia d o estado emergente e da igreja de que no seriam realizados abortos e
infanticdios. Exigia-se da parteira examinada pelas comisses a profisso da f crist, o
saber batizar o recm-nato moribundo, e moral e reputao ilibadas. Essas regulamen-
taes coincidiram c o m o processo de perseguio das feiticeiras - entre elas, muitas
parteiras (Mello, 1983).
Vrios autores afirmam que neste processo houve a execuo de milhares de pesso-
as na Europa Ocidental - de 70 a 90%, mulheres -, principalmente entre 1563 e 1727
(Turner, 1987). Para Ehrenreich & English (1976), a caa s bruxas e a extino das
curandeiras e parteiras fazem parte da histria de excluso das mulheres da prtica
mdica c o m o estratgia do Estado e da Igreja para monopolizar o saber acerca da cura
das doenas, e legitim-lo por meio das universidades criadas no Renascimento. Ao tor-
nar-se uma profisso alicerada pela autoridade da linguagem tcnica e educao univer-
sitria, a medicina transformou-se em atividade reservada aos homens, j que nesta
poca apenas eles poderiam ter acesso educao. A situao das parteiras e curandeiras
ameaava o monoplio deste saber. Embora o caa s bruxas no tenha acabado c o m
parteiras e curandeiras, conseguiu transformar sua prtica em atividades suspeitas.
A regulamentao da prtica de partejar exigia que as parteiras chamassem cirurgies
para assisti-las. Esses profissionais controlavam o uso do frceps, mas a sua falta de
prtica e de conhecimento gerava situaes contraditrias. At 1750, as parteiras re-
presentavam o m e l h o r e m termos de conhecimento e prticas at ento existentes
(Shorter, 1982). Somente no sculo XVIII os estudantes de medicina passam a freqen-
tar as maternidades europias.
A competio entre mdicos e parteiras estendeu-se durante sculos. O s textos
mdicos instruindo parteiras caracterizavam-se pela stira e condenao sua igno-
rncia. Elas tambm publicaram suas experincias e enfrentaram contendas com m-
dicos (Mello, 1983). Embora muitas parteiras tenham ficado famosas - e eram, com
certeza, muito competentes - no chegaram a formar nenhuma corporao profissio-
nal, c o m o se entende hoje. Durante o sculo XVII, as parteiras tentaram vrias vezes
juntar-se ao Colgio do Fsicos, sem obter sucesso. Sem acesso ao conhecimento, s
universidades - subordinadas aos cirurgies e fsicos -, elas foram aos poucos tendo
usurpada sua hegemonia da prtica obsttrica (Mello, 1983). Com o advento do capita-
lismo industrial, a prtica mdica se consolidou c o m o exerccio monopolizado dos
mdicos e, assim, legitimado e reconhecido. Na segunda metade do sculo XVIII, j
havia se tomado prtica ter u m mdico assistindo ao parto na Inglaterra. Na competi-
o do mercado, que viria ento a se instalar, a prtica das parteiras foi, progressivamen-
te, colocada na marginalidade (Mello, 1983).
O desenvolvimento da obstetrcia c o m o conhecimento mdico foi u m a tarefa
rdua para mdicos e mulheres, j que houve muitos conflitos e dificuldades. A
etimologia da palavra Obstetrcia' - originada do latim obstetricum,significa "estar
diante de" (obs); "mrbido, ttrico" (tetricum) - expressa, e m si m e s m a , u m dos
aspectos que a apropriao dessa rea do saber trouxe para os mdicos da poca,
diante de situaes que tecnicamente no dominavam. At o sculo XVIII, o parto
foi vivido c o m o u m perigo de morte real, sendo a mortalidade materna bastante
elevada na Europa Ocidental.
A medicina necessitou de todo o sculo XIX para desenvolver tcnicas cirrgicas,
anestsicos e o uso da assepsia para efetivamente dominar esta prtica. O processo de
hospitalizao do parto foi fundamental para apropriao do saber nesta rea e para o
desenvolvimento do ensino mdico. Segundo Foucauit (1980b), foi a partir do sculo
XVIII que as instituies hospitalares incorporaram caractersticas diferentes daque-
las que at ento faziam delas u m abrigo para pobres, doentes e desvalidos.
At 1880, as salas cirrgicas no tinham assepsia. A bacteriologia foi fundamendal
para o desenvolvimento do hospital moderno e as medidas higinicas adotadas tive-
ram sucesso n o combate infeco puerperal. Em conseqncia dessa prtica, o
ndice de mortalidade diminuiu, contribuindo para a aceitao dos hospitais pela
sociedade (Rosen, 1980). Alm disso, a utilizao de anestsicos contribuiu para o
desenvolvimento das tcnicas cirrgicas obsttricas, que at ento apresentavam alta
mortalidade. Segundo Shorter (1982), n o sculo passado a palavra 'cesariana' era
sinnimo de sentena de morte.
A medicalizao intensa que sofre o corpo feminino no sculo XIX, quando aliada
ao discurso de exaltao da maternidade, compe u m processo que, segundo alguns
autores, teria mudado substancialmente a valorizao da vida feminina na sociedade
ocidental, na medida em que permitiu o desenvolvimento de tcnicas que aumenta-
ram a sobrevida materna. At ento, o parto teria sido vivido como um evento em que
o medo da morte ou a tortura do frceps no era apenas um mito (Shorter, 1982).
No Brasil, a assistncia ao parto, at o sculo XIX, desenvolvida por parteiras, tam-
bm conhecidas por aparadeiras ou comadres, j que era c o m u m torn-las madrinhas
dos filhos por elas partejados. Debret, em 1839, afirmou que m e s m o no sculo XIX
muito poucas parturientes ricas e nobres do Rio de Janeiro procuravam a assistncia de
um mdico, c ainda assim, "por ostentao ou em casos difceis" (Santos Filho, 1947).
Em 1809, ano seguinte formao dos cursos mdicos, as artes obsttricas comeam
a ser ministradas na Escola do Rio de Janeiro como conhecimento pertinente cadeira de
cirurgia. Em Salvador, entretanto, a disciplina passou a ser ministrada apenas em 1819
(Mott, 1988). Ressalta-se que o estudo das artes obsttricas permaneceu por dcadas como
um estudo terico, em que se utilizavam bonecos para simulao de situaes prticas.
Em 1832, as academias mdico-cirrgicas foram transformadas em faculdades de
medicina c iniciaram-se cursos de parteiras para mulheres, com durao de dois anos
(Mott, 1988). Apesar dessa reforma, as aulas continuavam precrias, e os cursos, rudi-
mentares. At o final do sculo XIX, muitos mdicos formavam-se sem jamais terem
visto u m parto ou procedido a um exame obsttrico: o parto continuou sendo atributo
de parteiras diplomadas ou prticas. O ensino prtico da obstetrcia encontrou vrias
dificuldades alm da falta de recursos e investimentos nas escolas mdicas. Entre elas, o
aspecto competitivo da prtica liberal e a resistncia das mulheres em usar hospitais e
enfrentar o olhar masculino. Luis lvares dos Santos, memorialista da Faculdade de
Medicina da Bahia, afirma que as mulheres da poca preferiam morrer de molstias do
tero a serem curadas por mdicos (Mott, 1988). As irms de caridade que atendiam s
parturientes eram proibidas, por regra, de olharem as partes pudendas, e o trabalho de
parto se fazia s escuras.
O ensino prtico da disciplina demorou muito a ser implantado nas escolas mdicas.
Data de 1911 o estgio na enfermaria de obstetrcia para estudantes da Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, apesar de o socorro obsttrico hospitalar ter sido institudo
em 1830 (Magalhes, 1922). O discurso mdico da metade do sculo XIX relativo
obstetrcia caracteriza-se pela defesa da hospitalizao do parto e da criao de mater-
nidades e ainda coloca em dvida a competncia das parteiras. Tal fato leva defesa
do ensino mdico e necessidade de domnio da obstetrcia diante da resistncia das
mulheres em utilizar os hospitais. Essa resistncia fundamentava-se na tradio
dos hospitais de serem abrigos para pobres, na moralidade da poca e nos perigos das
artes obsttricas rudimentares de ento.
As primeiras enfermarias obsttricas nos hospitais do Rio de Janeiro eram locais que
fundamentalmente serviam para abrigar mulheres sem condies de parir no domic-
lio, seguindo a tradio dos hospitais de abrigos aos pobres. Entretanto, mesmo antes
da fundao da primeira maternidade pblica no Rio de Janeiro, tem-se notcia de casas de
sade e pequenas maternidades particulares, montadas para atender clnica priva-
da, principalmente escravatura, j que os senhores cuidavam das escravas parturien-
tes, garantindo o capital representado por elas e seus filhos (Magalhes, 1922).
Alm das dificuldades tcnicas e da moralidade vigente poca, o desenvolvimento
da obstetrcia viveu conflitos na sua institucionalizao como disciplina mdica - entre
eles, a noo de que a prtica obsttrica seria u m a prtica menor dentro da prpria
medicina. Esse conflito estava provavelmente relacionado, entre outras razes, ao fato de
o partejar ter sido at ento uma prtica de mulheres. Paradoxalmente, por esse motivo, e
no af de controlar tal prtica, os mdicos eram contundentes e m relao s parteiras,
atacando-as e m seus discursos e submetendo-se s suas regulamentaes, transforman-
do-as de usurpadas e m usurpadoras. Azevedo (1847:1) exemplifica bem esta atitude:
o que diremos d 'essas mulheres, que envoltas em negras e nojentas mantilhas,
percorrem as ruas dessa populosa ddade, inculcando-se por desgraa nossa hbeis
parteiras, tendo estampado na frente de suas casas o sagrado smbolo da redeno, a
cruz, fazendo capacitar a muitos do povo crdulo, que possuem segredos transmitidos
pela Providncia capazes de tornar fcil o parto mais laborioso, quantas vezes essas
verdadeiras mercenrias lhe no querem impor leis?

At o final do sculo XIX, ainda se discutia nas Academias a quem competia a res-
ponsabilidade de cuidar dos partos. O Real Colgio do Mdicos de Londres chegou a
declarar oficialmente, nessa poca, que cuidar de partos no era mister digno de u m
mdico ou cirurgio - que deveriam restringir-se aos partos difceis e perigosos, a
aplicar o frceps e executar cesarianas (Santos Filho, 1947). Havia indignidade, q u e m
sabe at desonra, e m assumir u m trabalho que por tradio era considerado feminino.
Fernandes (1924:81) comenta que, pela obstetrcia ser considerada uma especialidade
'menor', para ela se dirigiam os incompetentes, e que, por isso, o mau desenvolvimento
da prtica provocava desastres: "Se se iniciassem u m dia os processos por crime de fr-
ceps, de pituitrina e de cureta, no sei quantos presdios seriam necessrios".
A pouca valorizao da obstetrcia dentro da prpria medicina relaciona-se
misoginia que Knibiehler & Fouquet (1983:257) identificam nas origens da medicina
moderna. De acordo com elas, o esteritipo da mulher mdica exige sua masculinizao:
"A perda da feminilidade seria o castigo reservado s audaciosas culpadas de se imiscuir
numa arte reservada aos homens".
O que certamente foi o caso de madame Durocher, uma das mais famosas parteiras
estrangeiras no Rio de Janeiro, que chegou ao Brasil em 1816 e diplomou-se no Curso
de Obstetrcia da Faculdade de Medicina em 1834. Segundo Santos Filho (1947:201):
"Ela exerceu sua profisso no Rio, merc de seu tipo masculinizado, de sua vestimenta
e de seus hbitos (andava sozinha por toda a cidade a qualquer hora do dia ou da noite)
ganhou a alcunha de mulher-homem".
Dela, se dizia: "Madame Durocher era u m tipo bizarro de criatura insexuada que
usava gravata, cartola e barbicha" (Santos Filho, 1947).
Apesar dos conflitos internos n o meio mdico e das resistncia das mulheres, o
parto transformou-se e m ato mdico. As mulheres puderam voltar a partejar, agora com o
novo status de mdicas. O acesso das mulheres ao ensino mdico no Brasil ocorre em 1889.
O saber que havia sido expropriado das parteiras resguarda-se, agora, na legitimidade de
uma cincia e de sua suposta neutralidade, que por meio do poder mdico poder exercer
o controle social sobre o gnero feminino, em que pese o fato de ser essa profisso, e em
particular essa especialidade, eminentemente masculina em nossa sociedade.

A assistncia mdica mulher

Se a medicalizao estende-se, ampliando a jurisdio da prtica mdica, incorpo-


rando novas teses ao campo de normatividade da medicina desde o sculo XIX, tambm
se amplia a assistncia mdica, atravs de servios que florescero no sculo X X .
Parece claro que essas duas dimenses da medicina so interconexas: em se ampliando
o campo de sua competncia, produzem-se progressivas presses por ampliao correlata
do acesso e do consumo dos servios de prtica mdica; e o consumo ampliado da assistn-
cia mdica possibilitar que a medicina tenha seu monoplio validado e os limites daquela
competncia sero continuadamente expandidos.Porisso, ao estabelecer o monoplio de
sua competncia acerca do feminino, deve-se ainda tratar das repercusses que tal jurisdi-
o trouxe no plano da produo e distribuio da assistncia mdica para as populaes.
Por meio de u m exame dessa natureza podem-se evidenciar tambm as questes e as
caractersticas que o movimento de expanso da produo e distribuio da assistncia m-
dica introduz na relao medirina-feminino social, participando da medicalizao deste.
O s servios, que at o sculo X X realizavam-se pela medicina privada na forma
liberal ou da filantropia, tero seu acesso ampliado, no reconhecimento da produo de
servios de assistncia mdica como demanda social. Isto se d c o m o surgimento de
u m a 'medicina pblica', que se produz pela interferncia do Estado na organizao
social dessa para normalizar sua produo face ao conjunto da populao. Essa 'medi-
cina pblica' expande-se com o desenvolvimento da assistncia sade coletiva, que se
traduz em prticas sanitrias e/ou servios e programas especficos de assistncia mdi-
ca, no interior da sade pblica; e na criao de servios, sobretudo do seguro social,
que visam exclusivamente permitir o consumo de uma assistncia individual no cui-
dado sade, c o m o a prtica da medicina liberal (Donnangelo & Pereira, 1979).
Em relao ao corpo feminino, depois da consolidao dos seus cuidados como rea
do conhecimento e da prtica mdica, a partir do sculo XIX, a sociedade vive a expan-
so da assistncia nessa rea, apoiada inicialmente pelas teses da higiene social.
A assistncia ao parto e ao pr-natal achava-se institucionalizada e bastante difundi-
da na Europa Ocidental no incio do sculo XX. Na Inglaterra, em 1911, u m movimento
propiciou apoio financeiro do governo para que as autoridades locais instalassem clni-
cas pr-natais; em 1927, existiam 600 dessas clnicas em funcionamento (Gomez, 1988).
Na Frana, Pinard liderou o movimento mdico para o cuidado pr-natal, cujo modelo
mdico nasceu na maternidade Baudelocque. Foi ele tambm que imprimiu pueri-
cultura prestgio e dinamismo, fundando o Instituto de Puericultura e i m p o n d o a
disciplina ao meio acadmico (Knibiehler & Fouquet, 1983).
A assistncia pr-natal nasce associada idia de puericultura 'intra-tero' e ao conceito
de sade matemo-infantil. Alguns autores referem-se exaltao da maternidade no dis-
curso mdico da poca e difuso da assistncia pr-natal e ao parto como relacionadas ao
despovoamento da Europa Ocidental nas duas primeiras dcadas do sculo X X (Knibiehler
& Fouquet, 1983). A medicalizao da maternidade surge baseada no esteretipo da 'nature-
za feminina', em uma poca em que ser me transforma-se de destino em dever patritico.
Mais tarde, o projeto de medicalizao do corpo feminino ser justificado pelas preocupa-
es eugnicas com a formao da sociedade (Knibiehler & Fouquet, 1983).
No Brasil, do ponto de vista do cuidado individual, a expanso dos servios de sade
relaciona-se a criao e ordenao dos servios mdicos na sociedade, que se inicia na
dcada de 30, c o m o se refere Donnangelo (1975). As origens do processo histrico que
cria no Brasil a Previdncia Social esto relacionadas s necessidades de preservao e
reatualizao da fora de trabalho, associada ao controle do fator trabalho nas relaes
entre produtividade do trabalhador e a formao do capital, mediada pelo Estado.
Do ponto de vista da sade coletiva, a ampliao da assistncia sade em relao ao corpo
feminino e seus problemas aconteceu a partir da expanso de servios e programas operados
pela rede de servios da sade pblica e que visavam sade matemo-infantil, mais tarde
conceituada nos textos de polticas pblicas de sade como ateno ao binmio me-filho
(Lima, 1989). A partir da dcada de 20, o grupo matemo-infantil seria alvo de aes sistema-
tizadas por parte do Estado. A preocupao com este segmento emerge com a necessidade de
controledapopulao trabalhadora, a partir da expanso cafeeira e do incio da industriali-
zao. Nesta poca, inserem-se no cenrio nacional a regulamentao da licena ges-
tante e purpera e a proibio do trabalho fabril para menores de 12 anos (Gomez, 1988).

A medicalizao da anticoncepo

A concepo de maternidade permanece praticamente intocada desde o sculo XIX,


j que a ateno mdica se justifica apenas em funo da capacidade reprodutiva da
mulher. At a dcada de 60, a viso da ateno mdica mulher por parte das polticas
pblicas privilegia o ciclo gravdico puerperal, justificando-se pela mortalidade infantil.
A partir de ento, h o renascimento da teoria que explica as altas taxas de mortalidade
e a baixa qualidade de vida pelo aumento populacional conseqente aos altos ndices de
natalidade. Tambm nos anos 60 as agncias internacionais comeam a investir maci-
amente no desenvolvimento da pesquisa de mtodos anticoncepcionais, principal-
mente a partir da divulgao de estatsticas alarmantes relativas ao crescimento
populacional no Terceiro Mundo. As idias veiculadas pelo movimento de birth control, do
final do sculo XIX, pelos neomalthusianos - durante longo tempo vistas como obsce-
nas, mantendo-se alijadas da medicina - ressurgem agora nas pesquisas mdicas nas
universidades, respaldadas pelo interesse cientfico (Barroso & Amado, 1988).
No Brasil, embora as polticas pblicas de sade continuem privilegiando o ciclo
gravdico puerperal, nessa mesma poca iro surgir as entidades que desenvolvem aes
de planejamento familiar visando basicamente a anticoncepo (Senna, 1988). Vale
ressaltar que nos anos 60 que se inicia o progressivo decrscimo nas taxas de
fecundidade da populao brasileira, relacionadas urbanizao e formao dos plos
industriais que alteraro significativamente o padro familiar em relao ao nmero de
filhos (Merrick &Berqu, 1983).
A disseminao de idias e prticas referentes ao desenvolvimento e necessidade
de tecnologia realizada pelas entidades de planejamento familiar e pelas escolas mdicas
foram fundamentais para consolidar e ampliar a medicalizao n o que se refere ao
controle da reproduo. So idias e prticas que, tomando o corpo feminino apenas do
ponto de vista de sua capacidade reprodutiva, na dualidade de 'ser me/no ser me', e
responsabilizando as mulheres exclusivamente pela prtica contraceptiva, transforma-
ram as expectativas femininas em relao vida reprodutiva. O u seja, a dor do parto deu
lugar a u m evento cirrgico, e a possibilidade de procriar ao desejo da esterilizao.
Neste mbito, observa-se o aumento progressivo das cesarianas n o Brasil. Entre 1970 e
1987, o ndice subiu de 15% para 31% (Ratner, 1996). Em 1992, o percentual no Estado
de So Paulo foi estimado em 53% (Fandes & Cecatti, 1993). Embora no tenha atingido
esta cifra, a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sade ( P N D S ) revela o ndice mdio
de 36,4% de cesarianas para todo o Brasil (BEMFAM - D H S , 1996), o mais alto do m u n -
do. Em 1986, 29% das mulheres brasileiras e m unio sexual estavam esterilizadas
(Oliveira & Simes, 1988); e m 1996, este ndice cresceu para 40% (BEMFAM-DHS, 1996).
Com exceo da regio Nordeste, as cirurgias cesarianas tm sido o principal acesso
para a maioria dos casos de esterilizao.
O modelo mdico para tratar dessa questo se constri, tambm, por ser uma prti-
ca que soube captar e oferecer resposta aos anseios sociais que se definiram a partir da
falta de alternativas para a resoluo dos problemas da rea.
A tecnologia mdica expande as promessas iniciais da medicalizao, comprome-
tendo-se com a resoluo de todos os problemas da sade. Sua utilizao ampliada,
contudo, ir produzir u m quadro contraditrio na situao da assistncia mdica e a
distribuio dos recursos: coloca a si prpria c o m o tecnologia eficaz e eficiente para
todos, mas incapaz de definir sob que limites essa promessa pode ser, de fato, c u m -
prida. Toma-se a mortalidade materna c o m o exemplo da contradio que se quer
apresentar: alm de ser considerada alta e subenumerada, o evento mais imediato
relacionado a esta, o parto, apresenta-se extremamente medicalizado, se levados em
conta os ndices de cesarianas - provavelmente, contribuindo para sua ocorrncia.
No caso da esterilizao feminina, sua associao com cesarianas desnecessrias aumenta
o risco de morbi-mortalidade materna devido a infeco puerperal, riscos cirrgicos e anest-
sicos, embolismo pulmonare complicaes nas gravidezes subseqentes (Fandes &Cecatti,
1993).Volochko(1996) afirma que poderia haver uma reduo de 28,5% na mortalidade
materna, caso as cesarianas desnecessrias no fossem realizadas. U m estudo realizado na
cidade de SoPaulo,em 1988, mostrou que u m tero da mortalidade materna por causas
obsttricas diretas decorria delas, realizadas com o objetivo da esterilizao (Volochko, 1992).
Em outros termos, trata-se do fato de que, no processo de medicalizao do femi-
nino social (o que de resto cabe medicalizao em geral), no se d a conscincia das
contradies inerentes prpria medicalizao. N o mbito da reproduo h u m a n a
criaram-se expectativas qualitativas e quantitativas que no so cumpridas nos mes-
mos termos, haja vista as insuficincias e limites da prtica mdica concreta. Alm do
mais, quando se elege a reproduo como o foco das questes femininas, opera-se na
medicalizao u m a reduo da problemtica do feminino social ao problema da
concepo, parto e contracepo. Deixa-se de se tratar e enfrentar, com igual ateno
e de forma articulada c o m a prpria reproduo, outros problemas referentes con-
dio feminina, que vo desde a sexualidade at a patologia do tero. Por exemplo: o
diagnstico precoce do cncer do aparelho reprodutor feminino, que aparece c o m o
terceira causa de morte para essa populao, insuficientemente realizado.
Observa-se, dessa forma, que o controle populacional, no Brasil, vem sendo realiza-
do efetivamente no mbito da prtica mdica pela medicalizao do corpo feminino e
pelo tipo especfico de assistncia mdica produzida- que emerge no mais como u m
ponto de poltica demogrfica, mas como problema para o qual so propostas resolu-
es cirrgicas ou ginecolgicas, reduzindo-o a questes tcnicas veiculadas por u m
modelo mdico. Isso possibilita que a sociedade organize seus contingentes
populacionais lanando m o d o predomnio tcnico-cientfico para administrar a
reproduo humana.
A medicalizao do planejamento familiar apenas u m dos aspectos desse processo
da vida reprodutiva da mulher. Esse fenmeno se expressa em termos de tecnologia, ao
invs de humanizao, educao e informao, substituindo u m programa que deve-
ria estar fornecendo escolhas e informaes. Configura-se c o m o u m a estratgia da
'modernidade', expressando a idia de que a tecnologia sempre oferece a melhor solu-
o (em termos de alta eficcia e bem-estar), baseado em u m modelo que no estabelece
como prioridade a sade e os direitos humanos.
De u m lado extremanente medicalizado. De outro, sem efetivo acesso universal aos
cuidados mdicos nas sociedades concretas. assim que se apresenta o corpo feminino,
produto de uma medicalizao que privilegia a reproduo, ou sua negao. Esse o prisma
fundamental pelo qual o corpo feminino vem sendo tratado. Isso no significa que outros
aspectos desse corpo no sejam passveis de medicalizao, de fato o so, como no caso da
Medicina esttica, que amplia cada vez mais sua competncia. Como afirma Illich (1975:59):
Todas as idades so medicalizadas tal como sexo, quociente intelectual ou cor da
pele. Desde que as mulheres do sculo XIX quiseram se afirmar, formou-se u m grupo
de ginecologistas: a prpria feminilidade transformou-se em sintoma de uma necessi-
dade mdica tratada por universitrios evidentemente do sexo masculino. Estar grvi-
da, parir, aleitar so outras tantas condies medicalizveis, como so a menopausa ou
a presena de u m tero que o especialista decide que demais.

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5

Corpo e Conhecimento na Sade Sexual:


uma viso sociolgica
Karen Giffin

Introduo

Pretendo, aqui, explorar relaes entre o ressurgimento do feminismo nos anos 60, a
transformao do paradigma cientfico (a crise da razo) e a definio de direitos sexuais.
Capra identifica, nesta mudana de paradigma, uma transformao profunda de
percepo nas sociedades ocidentais, apontando o feminismo como u m movimento
de "minorias criativas", entre outros que desafiam o velho paradigma (Capra, 1982:26).
Enquanto ele explica o engajamento das mulheres n o novo paradigma "holstico e
ecolgico" como funo de valores advindos da sua antiga identificao com a natureza,
discutirei suas atividades tericas/conceituais, argumentando que o feminismo est
1
re-inventando uma cincia no-binria como parte de uma ampla luta social pela re-
2
significao. M e s m o c o m contestaes internas, e em u m processo no-linear , est
superando o binarismo c o m u m novo paradigma de conhecimento que relacional e
dialtico, e que reconhece diferenas sem ser relativista.
Excludas das atividades cientficas (a no ser c o m o objeto da cincia binria), as
mulheres, quando entraram neste campo, fundiram sujeito e objeto em busca explcita
do autoconhecimento, objetivo at ento ausente na epistemologia cientfica (Code, 1991).

1
Marilyn Frye (1996) recupera o termo "dualismo", argumentando que "dualidades genunas... so plurais
e abertas, no representam uma totalizao...".
2
No estou argumentando que existe somente um feminismo, mas que as variadas vertentes compem um
campo de referncia para todas, apesar das suas "crises de identidade" (termo usado por Alcoff, 1988). Na minha
discusso, a nfase dada s idias provenientes da linha de teoria feminista s vezes denominada standpoint.
A sexualidade, u m dos primeiros assuntos a serem interrogados neste processo
tambm u m dos mais perigosos, dada sua importncia nas relaes homem/mulher
mais ntimas, onde o 'outro' pode tambm ser visto c o m o 'minha cara-metade'. Agora
colocada na agenda feminista c o m o direito, a definio da sade sexual no tem avan-
ado alm do abstrato, apesar do novo perigo da ADDS feminilizada, da prostituio infan-
til internacionalizada n o turismo sexual, da violncia sexual globalizada contra mulhe-
res e crianas etc.
Pretendo mostrar o lugar das experincias reprodutivas e sexuais femininas na
conformao d o n o v o paradigma, recuperando sua importncia n o desenvolvi-
m e n t o de u m a cincia da prxis e da tica. Argumentarei que preciso usar esta
cincia para reforar valores femininos na sexualidade. Seno, reproduziremos
u m a sexualidade conceituada n o velho paradigma e baseada na separao corpo/
mente, que est sendo representada c o m o (e transformada em) mercadoria na socie-
dade de c o n s u m o atual.
Nas palavras de Rosi Braidotti (1994:95):
o movimento de mulheres colocou na agenda questes srias com respeito s estrutu-
ras, os valores, e os fundamentos tericos do sistema que elas, e outras minorias, esto
sendo convidadas a integrar. A linha de frente deste questionamento tanto tico-
poltico como epistemolgico: qual o preo da 'integrao? Quais os valores que mu-
lheres feministas propem ao velho sistema? Quais representaes de si mesmas vo
opor quelas j estabelecidas?

Cincia e gnero

J no novidade apontar que condio essencial epistemologia e cincia at


ento dominante a ontologia cartesiana do sujeito cientfico que, capaz de superar
seus valores e sua condio corporificada, se separa do seu objeto. Este paradigma
binrio procede pela separao e hierarquizao no s de sujeito/objeto, subjetivida-
de/objetividade, mas, tambm, de mente/corpo, razo/emoo, ideal/material, cultu-
ral/natural, social/biolgico e homem/mulher, vistas c o m o categorias opostas e es-
tanques. Separando teoria/prtica e cincia/sociedade, separa tambm a cincia da
poltica, dos valores e da tica, almejando conhecimentos tidos c o m o objetivos, abs-
3
tratos e universais, produzidos e m u m espao fora da vida social n o r m a l .
Dialeticamente, o n d e mais avanou, acabou por produzir o incio da sua prpria
negao: na fsica quntica.

3
A discusso desta questo importante na histria das cincias sociais no ser recuperada aqui.
Tambm dialticas foram a contestao da perene identificao da mulher com
o biolgico/natural/corpo/emoo e a descoberta da sua condio de objeto de uma
cincia "androcntrica", que permitiu ao feminismo perceber a relao de duas vias
entre conhecedor e objeto conhecido. Isto : os homens, ao fazerem esta cincia,
(re)produzem a hierarquizao dos gneros; definindo "a outra", definem a si mes-
mos, (re)produzindo seu prprio poder. uma produo saber/poder baseada nes-
tas representaes diferenciadas, em que o sujeito e o conhecimento so m u t u a -
mente constitudos.
O feminismo confrontou esta cincia e a definio naturalizada da identidade
feminina c o m a anlise da sua prpria vivncia. Este movimento significa uma sub-
verso do modelo de conhecimento anterior em vrios nveis, iniciado com o objeti-
vo do autoconhecimento, da fuso de sujeito e objeto, mencionado anteriormente.
Ao contrrio do mtodo cientfico, o processo comeou com os grupos de reflexo
(consciousness-raising): e m vez do isolamento cognitivo do indivduo (ou da mente)
pensante, a formao de u m a coletividade c o m u m a prxis. Aqui, os insumos do
processo so as vidas cotidianas das participantes, especialmente suas prprias
vivncias corporais mais ntimas na rea da sexualidade/reproduo que tinham
sido silenciadas socialmente. Estas vivncias corporais - da menarca, menstruao,
sexualidade, contracepo, aborto, gestao e parto - serviram de parmetro de dife-
renciao aguda dos h o m e n s e, por isso m e s m o , facilitaram a auto-identificao
entre as mulheres, cujas diferenas sociais eram freqentemente grandes. A partir
disto, o processo de incluso da questo da mulher em muitas disciplinas acadmicas
subverteu a tendncia especializao e fragmentao que predomina na cincia
binria e promoveu uma conversa com muitas vozes e perspectivas, capaz de compor
uma viso nova, pluralista e multifacetada.
Desta forma, nasceram juntas a percepo da opresso e da possibilidade de trans-
formao: a partir da auto-identificao coletiva como "mulher", elaborao de u m a
crtica ao significado naturalizante/biologizante de "mulher". Esta crtica estabeleceu
"mulher" c o m o categoria poltica, com uma proposta de produo de conhecimento
em que o objeto a ser estudado (mulher) ao mesmo tempo deve ser re-significado.
Dos grupos de reflexo, surgiu u m grito de guerra: "o pessoal poltico!". Esta formu-
lao sintetiza u m questionamento do velho paradigma de conhecimento, cujos ml-
tiplos significados esto sendo elaborados ainda hoje (Frye, 1996). Nas palavras de Sandra
Harding (1986:251): "Nunca, nem nos nossos sonhos mais desvairados, imaginvamos
que teramos que reinventar tanto a cincia como a prpria teorizao, para entender
a experincia social de mulheres."
Podemos dizer que estes grupos viveram u m a experincia algo contraditria nos
termos das dicotomias: a partir da examinao de experincias vividas como altamente
subjetivas e individuais (inclusive corporais) a "construo social" de gnero foi per-
cebida. A subjetividade, que seria u m fenmeno individual, foi revelada como tambm
coletiva; e coletivamente caracterizada como sem poder, subordinada, ou desvalorizada,
mas, ao mesmo tempo, como tendo o potencial de transformar esta prpria definio.
Nesse processo, enquanto o conhecimento gerado a partir da reapropriao da
vivncia prpria o ponto de partida, h u m a relao no determinante entre estas
experincias e a "mulher" transformada/resignificada. Em uma formulao posterior:
"homem" e "mulher" so categorias ao mesmo tempo "vazias" (pois no tm contedo
fixo) e "transbordantes" (como todos os conceitos, em iluminando alguns aspectos da
realidade, escondem outros) (Scott, 1989). So criados com "contedos" variados atra-
vs da histria, mas nas suas variadas verses patriarcais, sempre c o m o criaes dos
homens (identidade na diversidade).
O conceito de "gnero", portanto, insiste analiticamente na importncia da relao,
do social e do poder, mas deixa em aberto o contedo emprico que historicamente
(re)elaborado - agora fora e dentro dos estudos de gnero. D o ponto de vista desse
processo, as categorias analticas da teoria feminista, como todos os conceitos, devem
ser vistas como produes situadas historicamente.
Os estudos de gnero procedem investigao de relaes mutuamente constitudas (ou
dialticas) entre os termos dobinarismo: se o pessoal poltico, ento, individual/social,
biolgico/social, subjetividade/objetividade, ideal/material, razo/emoo, pblico/privado,
produo/reproduo etc, so todos passveis de ser estudados como mutuamente constitu-
dos. O que o velho paradigma separou, o novo est relacionando-e de uma forma dialtica.
A reapropriao da prpria vivncia u m a rejeio do conhecimento objetivo do
velho paradigma, como produto e como processo. Desta maneira, o autoconhecimento
almejado tanto u m fenmeno coletivo como individual: "eu como mulher". Tanto o
sujeito como o objeto deste processo so coletivos, compostos a partir do auto-reconhe
cimento como "mulher" em ambos os nveis.
Foi esta praxis que levou ao aparecimento analtico posterior de "outras" mulheres
(lsbicas, negras, do terceiro m u n d o etc.) e necessidade/possibilidade de incorporao
destes outros pontos de vista n u m a elaborao continuada - de experincias "de m u -
lheres", no mbito que, todas concordam, ainda o feminismo (ou, mesmo, os femi
nismos: identidade na diversidade).
Esta identidade na diversidade foi, desde o incio, algo a ser re/construdo politica-
mente. C o m o abordado por Teresa de Lauretis (1994), este u m conhecimento pessoal,
ntimo, analtico e poltico:
o mtodo analtico e critico feminista () a prtica da autoconscientizao.Poisa compre-
enso da condio pessoal de ser mulher em termos sociais e polticos e a constante
reviso, reavaliao e reconceitualizao dessa condio vis--vis a compreenso que
outras mulheres tm das suas posies sociossexuais geram um modo de apreender a
realidade social como um todo que derivado da conscientizao de gnero (...).
Nas palavras da Donna Haraway (1994), "a experincia das mulheres" uma "fico"
(o contedo varia) e u m "fato poltico crucial" (ainda assim, permite a auto-identifica-
o e o engajamento n o feminismo).
O conhecimento no transcende, mas est enraizado em vivncias e interesses e no
m u n d o social.
emerge uma viso de fatos objetivos, abertos a mltiplas interpretaes, analisveis de
vrias perspectivas. Fatos podem mudar e evoluir em processos de interpretao e
crtica; ento 'realidade' aberta estruturao social (...) fatos (...) so tanto subjetivos
quanto objetivos. (Code, 1991:45)

importante observar que, ao m e s m o tempo e m que esta viso desconstri o


paradigma cientfico anterior, concluindo que a subjetividade uma parte integral do
conhecimento objetivo, tampouco coaduna c o m o relativismo do ps-modernismo
radical que no permite u m a tomada de posio tica (Lengermann & Niebrugge
Brantley, 1990). Isto, porque a subjetividade no feminismo coletiva e estruturada soci-
almente por meio de experincias de mulheres, sendo ao m e s m o tempo dedicada
transformao das estruturas de subordinao.
O s conhecimentos, assim c o m o as experincias, so parciais mas coletivos, situa-
dos pelas estruturas sociais (gnero, raa/etnia, classe etc.) que se entrecruzam nas
identidades individuais e coletivas das mulheres. No so nem abstratos e universais e
nem referidos a u m a subjetividade individual e/ou fragmentada.
Somente o processo histrico permitiu avanar para o delineamento desta perspec-
tiva, em que a subjetividade h u m a n a concebida c o m o propriedade emergente de
uma experincia historicizada, produto do engajamento contnuo na realidade social,
u m lugar de construo mtua de conhecimentos e de valores (Alcoff, 1988). Se esta
praxis feminista antecedeu sua prpria teorizao, como argumentado por Frye (1996),
isto apenas coerente c o m sua viso epistemolgica/ontolgica em que o conheci-
mento e o conhecedor se constrem mutuamente.
Imaginar, nos anos 90, que o sujeito do feminismo dos anos 60-70 era transparente
ou inocente u m a posio que desconhece sua prpria histria e as dificuldades envol-
vidas e m enfrentar esta complexidade e lutar para criar, de dentro das contradies da
ordem patriarcal/industrial/capitalista vigente, o que nela era irrepresentvel: a mulher
sujeito da significao (que significa, em vez de ser significada por outros).

Corpo e poder na sociedade capitalista

Se, n o incio do processo, a maior parte das investigaes foi dedicada a esmiuar as
estruturas de subjugao e a falta de poder, isto foi historicamente necessrio para
poder perceb-las e desmascarar o sistema de sexo-gnero que foi criado e negado n o
velho paradigma. No era a mulher a "rainha do lar", espao ideologicamente
equacionado com a criao dos filhos e com os valores supostamente mais importantes
nas sociedades de tradio patriarcal? No foram elas, inclusive, vistas como smbolos
do amor e da moral? No eram "damas primeiro"?
A resposta feminista foi: sim e no! Abase da primeira ressignificao foi necessari-
amente u m a identificao e u m a recusa, tanto das fraquezas como dos poderes dados
pela ordem patriarcal. A luz do capitalismo ento em pleno vigor, ser "rainha do lar" j
no satisfazia.
Nos grupos de reflexo, as vivncias corporais especficas de mulheres na menarca,
na menstruao, na sexualidade, na gestao e parto, na contracepo e n o aborto
levaram o movimento ao consenso nas demandas para o controle do corpo por meio da
contracepo e do direito ao aborto legal (e, na sua formulao atual, para a sade sexual
e reprodutiva).
Em contraste, a temtica da legislao trabalhista especfica criou uma polmica e
representou u m dilema que ilustra bem o cerne de uma ambivalncia feminista com
respeito s especificidades do corpo feminino: reivindicar direitos especficos no traba-
lho poderia servir para aumentar a discriminao contra mulheres; ignorar as diferen-
as significaria escamotear uma desvantagem das mulheres perante as exigncias feitas
aos trabalhadores em geral.
O controle do corpo reivindicado tem, ento, mltiplos significados. Expressa uma
conscincia nova do corpo colonizado por outros - homens, corporao mdica, cien-
tistas, por exemplo - representantes da tradio de poder patriarcal. Explicita u m desejo
por uma igualdade na sexualidade separada da reproduo, livre da ameaa da gravidez
indesejada. Controlar a fecundidade , por outro lado, condio para u m a igualdade
maior na esfera profissional, em que o papel feminino na reproduo humana signifi-
ca interromper carreiras, diminuir o tempo e a energia disponvel para o trabalho
remunerado, enfim, significa concorrerem condies desiguais no mercado de traba-
lho, nestas sociedades organizadas conforme as exigncias da produo.
importante lembrar que a sada da subordinao era conceitualizada globalmente
na demanda feminista para igualdade nos termos dos valores de fato dominantes nestas
sociedades, todos localizados na esfera pblica: emprego, renda, escolaridade, profisso,
representao poltica. Seria necessrio (tanto ideolgica como materialmente) con-
quistar este espao, mesmo se no suficiente. Se as feministas brasileiras foram a esta
luta pblica "carregando consigo, escondidas, as razes no privado" (Oliveira, 1983), isto
ilustra u m a postura b e m mais geral que predominou n o incio do movimento: as
especificidades femininas vistas como "desvantagens", pois assim so na sociedade em
que a reproduo subordinada produo (Chahaud & Fougeyrollas-Schwebel, 1987)
e os valores dominantes so referidos esfera pblica.
Apesar da importncia das experincias corporais especficas na conformao das
identidades individuais e das subjetividades, que so percebidas como sendo tambm
sociais e coletivas, a especificidade do corpo feminino desvalorizada na teoria (no
conceito de gnero) e na rejeio da identidade de reprodutora.
Poderemos dizer que, neste processo, o feminismo reconheceu o corpo feminino
para dizer "no" a ele? N o isto o que se exige nas sociedades que subordinam a
reproduo produo, organizadas em funo do lucro e no da qualidade de vida
da populao? No este u m preo da integrao na esfera pblica deste sistema?
Aceitar a identificao do feminino c o m a esfera de reproduo (a mulher c o m o
me) e enfatizar os valores considerados femininos pela ordem vigente (as relaes
familiares e interpessoais, o cuidar do outro, a afetividade etc.) no seria aceitar o status
quo! D o ponto de vista dos valores patriarcais, sim. Mas do ponto de vista da organiza-
o material da sociedade capitalista/industrial, que caracterizada pelo processo de
individualizao da fora de trabalho e fragmentao das estruturas familiares, lutar
pela valorizao da esfera de reproduo representaria u m a verdadeira inverso da
ordem vigente.
O m o v i m e n t o de mulheres surgiu dentro deste processo histrico de radical re-
organizao das sociedades ocidentais. Enquanto os valores patriarcais so compatveis
c o m a importncia da famlia c o m o base organizadora da produo material e da re-
produo humana, o processo de industriabzao retira a produo da famlia, tornan-
do-a uma instituio dependente (Giffin, 1994). Isto provoca grandes transformaes,
tanto na base dos poderes masculinos (e femininos) anteriores, c o m o n o significado
dos corpos na produo material e na reproduo humana: a importncia da fora
fsica na produo, assim c o m o a importncia da gerao de filhos, so relativizadas
neste sistema, agora n o processo de globalizao.

O(s) corpo (s) no(s) conhecimento (s)

A crise da razo conseqncia do privilgio dado, historicamente, ao puramente


conceituai ou mental, e m detrimento ao corporeal; isto ... a inabilidade dos conheci-
mentos ocidentais em conceber seus prprios processos de produo (material), pro-
cessos que simultaneamente so baseados em, e negam, o papel do corpo. (Grosz, 1993)
No paradigma dominante, a oposio dos termos binrios razo/emoo, mente/
corpo ou conscincia/corpo permitiu privilegiar a idia do "puramente mental" na pro-
duo do conhecimento. Entre as muitas conseqncias disto, trs devem ser destacadas.
Em primeiro lugar, a cincia considerada c o m o u m plano transcendente, abstra-
da da vivncia concreta de homens e mulheres, e, portanto, livre de valores e subjetivi-
dades. Tais conhecimentos, no sendo "localizveis", so "irresponsveis" e m termos
ticos (Haraway, 1988). E m contraste, os conhecimentos "situados" do feminismo
explicitam os seus interesses.
Em segundo lugar, os sujeitos humanos, neste modelo, so representados como essen-
cialmente solitrios, isolados e auto-suficientes (Code, 1991:52). Alm do individualismo:
a iluso objetivista torna a refletir uma imagem do eu (self) como autnomo: uma
imagem do indivduo 'para si prpria' (...). este investimento na impessoalidade (...)
que constitui a arrogncia particular (...) do homem moderno, e ao mesmo tempo
revela sua subjetividade peculiar. (Keller, In: Lengermann & Niebrugge-Brantley, 1990)

Aprender a no perceber nossas emoes torna mais plausvel "o mito da investiga-
o desapaixonada" (Jaggar, 1989). neste sentido que toda epistemologia (teoria do
conhecimento) implica u m a ontologia (viso do ser conhecedor).
Embora este paradigma se presuma universal, o feminismo aponta que este ideal de
objetividade (e sua crise) - simblica e historicamente - referido ao masculino e, na
vida social, "reflete a auto-suficincia para a qual os meninos so preparados" (Code,
1991; ver tambm Bleier, 1984). No h como ignorar, porm, que esse estilo de subje-
tividade, individualista e impessoal, e os seus objetos de conhecimento tambm pode-
riam representar u m preo da integrao de mulheres nas atividades de produo do
conhecimento, sob o velho paradigma. Ao menos, coloca uma contradio para quem
valoriza as questes da reproduo, do cuidar e do amar. Haraway (1990) aponta que as
premissas de individualismo e auto-suficincia colapsam mais dramaticamente na
reproduo humana (ver tambm Schott, 1993).
Finalmente, e m terceiro lugar, a desvalorizao do corpo e das emoes nesta viso
do conhecimento generalizada para outros aspectos da vida nas sociedades onde este
paradigma dominante. Na sntese de Marilena Chau, a herana cartesiana "reprime o
corpo atravs da sua concepo do conhecimento". Recuperado no interior da ideologia
burguesa, como conjunto de processos fisiolgicos, o corpo coisificado, transformado
em mercadoria, na compra e venda de fora de trabalho e de sexo (Chau et al., 1981).
quais as implicaes para a sexualidade? Muriel Dimen (1989) refere-se "redu-
o do desejo" nas sociedades modernas, patriarcais e individualistas e ambivalncia
do relacionar-se (relatedness), que visto como "dependncia" neste contexto que valoriza
a autonomia e a impessoalidade. Ela pergunta:
Onde h (...) espao para a intimidade, para o conhecimento e expanso do eu que
alcanado atravs do conhecimento do outro? De que maneira so criadas expectativas
de prazer sensual, nesta economia que explora as pessoas e a natureza, ao mesmo
tempo em que promove o enriquecimento pessoal?

Maria Rita Kehl argumenta que o grito de desejo dos anos 60 foi assimilado pelo
capitalismo, em que o sexo elemento de adaptao sociedade de consumo. Nestas
sociedades, o corpo-mquina vigiado pela conscincia, e as defesas neurticas so
reforadas em u m sexo-teatro que "serve basicamente a u m empobrecimento afetivo
da relao sexual" (Chau et al., 1981; ver tambm Feuerstein, 1994). Ainda na tradio
de Marcuse, Ilene Philipson aponta que o capitalismo moderno moldou a sexualidade
e a idia de liberao sexual para seus prprios fins, e que a ideologia do playboy, que
promove o sexo sem compromisso afetivo, tem avanado desde os anos 50 (Philipson,
1984). Em vez de "relaes" sexuais, a sociedade de consumo promove "atos" sexuais
dirigidos a objetos sexuais (Mantega, 1979).
Do ponto de vista dos gneros, a tradio patriarcal identifica o masculino com a
razo, regulador e conhecedor da sexualidade feminina, que objeto deste conheci-
mento no paradigma binrio: "sexualidade e conhecimento esto n u m a dinmica re-
cproca de poder e legitimao mtua para os homens" (Breitenberg, 1993).
Apesar de assegurar o poder social, alguns custos da identificao masculina com esta
razo (binaria) so sugeridos por Victor Seidler. Sendo que as emoes so desvalorizadas
e identificadas com o feminino, ameaam a identidade de gnero masculina. Em funo
disto, os homens temem a intimidade, preferindo manter o autocontrole sobre as emo-
es, o que considerado, inclusive, como "maturidade moral". Neste cenrio, a sexuali-
dade para os homens "transformada em 'erformance' e separada da intimidade e do con
tato pessoal" (Seidler, 1987; para alguns dados atuais, ver Bozon, 1995).
Nesta tradio, a sexualidade feminina tem sido definida (pelos homens) "tanto em
oposio c o m o em relao masculina" (Lauretis, 1993). Vista historicamente como
passiva e voltada para a reproduo, no h concepo do desejo feminino; a sexualida
de feminina valorizada responde aos desejos de outros, no u m desejo ativo (Rubin,
1975; Holland et al., 1994; Haraway, 1994).
Nas palavras de Teresa de Lauretis (1994), a subjetividade feminina hoje emergente
se encontra en-gendrada em u m a relao com a sexualidade que absolutamente
irrepresentvel nos termos dos discursos hegemnicos sobre a sexualidade e sobre o
gnero. Sendo u m a viso de "outro lugar", u m "ponto cego" que no reconhecido
como representao.
J para Philipson (1984), onde o sexo impessoal visto como norma, o desejo sexual
de mulheres - que freqentemente caracterizado pela averso ao sexo impessoal e pela
necessidade de uma intimidade e de uma proximidade - visto como inadequado. U m a
anlise do "discurso ausente do desejo feminino" nos Estados Unidos conclui que este
discurso teria de ser baseado nos significados construdos socialmente pelas mulheres, e
teria de levar em conta a sua "conscincia dual", expresso da dialtica que existe entre
seus desejos e as definies dominantes do masculino e do feminino (Fine, 1988).
No paradigma binrio, incapaz de conceber uma integrao conscincia/corpo ou
razo/emoo, a sexualidade entendida c o m o fenmeno natural e biolgico que,
junto c o m as emoes, banida do plano descorporificado do conhecimento tido
como abstrato e universal.
N o ps-modernismo de Deleuze, Foucault, Derrida e Lyotard, o determinismo
discursivo- ver o corpo como apenas u m efeito de prticas discursivas de sujeitos des-
engendrados (Schott, 1993) - revelado c o m o perfeita imagem invertida do velho
paradigma (Haraway, 1988) e nova expresso do antigo hbito masculino de transfor-
mar mulheres em metfora (Braidotti, 1994).
Negando o gnero, ou seja, a histria da opresso e da resistncia poltica das mulhe-
res e a contribuio epistemolgica do feminismo para a redefinio da subjetividade e
da socialidade, estas teorias desconstroem o sujeito de tal maneira a "reposicionar a
subjetividade feminina dentro do sujeito masculino, seja l como for definida". (Lauretis,
1994). Nas palavras de Susan Bordo (1993), insistir na total indeterminao de signifi-
cados no m u n d o social representa, tambm, "uma fantasia de escapar da condio
situada da humanidade" (a fantasy ofescapefrom human locateddness).
Na teoria feminista, em contraste, o corpo visto como "interface entre o material e
o simblico" (Schott, 1993) e a sexualidade conceitualizada c o m o "fenmeno
relacionai", "um interface c o m o m u n d o e c o m outras pessoas e... densa zona de
interao" (Bleier, 1984), u m a forma de relao c o m o m u n d o que tanto corporal
como aprendida.
Nesse processo dialtico, emerge u m novo sujeito da significao, que insiste em
que processos corporais diferenciados por sexo so inevitavelmente significados em
todas as culturas (Grosz, 1993) e que o corpo no pode ser pensado, a no ser c o m o
masculino ou feminino (Krais, 1993). Este sujeito explora "as razes sensuais e emocio-
nais da cognio" (Schott, 1993) e o "potencial epistmico das emoes" Jaggar, 1989).
Nas palavras de Scheper-Hughes & Lock (1987):
as emoes envolvem tanto sentimentos, como orientaes cognitivas, moralidade
pblica, e ideologia cultural... prevem um importante 'elo perdido' capaz de relario-
nar corpo e mente, indivduo, sociedade, e corpo poltico ... so o catalisador que
transforma conhecimentos em compreenso humana...

Estas conceitualizaes so instrumentos de conhecimento que refletem os signifi-


cados dados a experincias corporais de mulheres; dependem destas experincias para
dizer que os corpos e as emoes so importantes no conhecer e nos conhecimentos.
Recuperando o corpo no somente c o m o objeto conhecido, mas c o m o aspecto do
sujeito que sente, conhece, e age eticamente (Sobchack, 1995), re-coloca a cincia
como empreendimento necessariamente expressivo de valores, seja de forma oculta
(no velho paradigma), seja explicitamente (no paradigma emergente).
O que a sade sexual n o entender deste sujeito da significao, que percebe a
dialtica entre indivduo/coletivo, mente/corpo e razo/emoo?
Negando corpos, emoes, sentimentos e valores como fontes de conhecimento, o
paradigma binrio produz u m a fragmentao da prpria experincia e d o
autoconhecimento (Seidler, 1987). A linguagem dos direitos individuais e da autono-
mia, alm de abstrata e individualista, reflete os valores sexuais que esto sendo promo-
vidos na sociedade de consumo, em que os atos sexuais so referidos a objetos sexuais.
Na fragmentao produzida pelo espelho binrio, o masculino representado como
sexualmente ativo, mas incapaz de uma relao ntima; o feminino como voltado para
as relaes ntimas, mas no como sujeito sexual. A teoria feminista aponta a possibili-
dade de ambos serem sujeitos sexuais voltados para o autoconhecimento atravs do
conhecimento do outro, na relao sexual.
Ento, se a energia dita sexual a energia das relaes, o desejo esta necessidade, e o
contato sensual um meio direto material de comunicar, menos 'dividido', mais direto
que as palavras... se ento o corpo comporta um orgasmo de relaes, por que no
aspirar a gozarem todos os sentidos, de preferncia? (Rochefort, 1978)

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PARTE II

Controle da Fecundidade
6

Tendncias da Fecundidade Brasileira no Sculo XX


uma viso regional*
Ana Amlia Camarano, Herton Ellery Arajo & Isabella Gomes Carneiro

Introduo

Neste trabalho pretende-se analisar a evoluo da fecundidade na s cinco grandes


regies brasileiras ao longo do sculo X X e identificar alguns dos determinantes prxi-
mos que possam explicar as tendncias observadas. Por determinantes prximos, a
literatura considera os fatores que incidem diretamente nos nveis de fecundidade,
1
como casamento, anticoncepco, aborto e amamentao .
O esforo de analisar as tendncias histricas da fecundidade no Brasil esbarra na
escassez e na dificuldade de comparabilidade de informaes. A fonte tradicional de
mensurao dos nveis de fecundidade o Registro Civil. Esta fonte, at recentemente,
apresentava problemas de cobertura do fenmeno, tanto pelo no-registro como pelo
registro atrasado. Desta maneira, a maioria dos trabalhos sobre o tema baseia-se em
informaes censitrias. As primeiras perguntas sobre fecundidade foram introduzidas
no censo de 1940. Conseqentemente, pouco se conhece sobre as suas tendncias no
Brasil antes da dcada de 30.
A histria descrita aqui inicia-se com o comportamento reprodutivo das mulheres
nascidas entre 1890-95 - que viveram a maior parte da sua experincia reprodutiva na
segunda dcada deste sculo - e se encerra com a experincia reprodutiva de mulheres

* Este trabalho integra o Projeto "Mudanas no Comportamento Reprodutivo das Mulheres Brasileiras ao
longo do Sculo XX: uma viso estadual", em andamento no Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
da Presidncia da Repblica (IPEA).
1
Para maior discusso sobre o assunto, consultar BONCAARTS (1978).
nascidas entre 1970-75. U m a vez que as informaes agregadas n o mbito nacional
mascaram importantes diferenas regionais, a anlise apresentada est desagregada
pelas cinco grandes regies. O s dados utilizados so provenientes dos censos
demogrficos de 1940 a 1991 e das Pesquisas Nacionais sobre Demografia e Sade
(PNDS) d e i 986 e 1996.
Alm desta introduo, o trabalho inclui quatro sees: tendncias das taxas de
fecundidade total das coortes sintticas; a fecundidade marital total e o impacto do
casamento e da anticoncepo nas taxas de fecundidade; mudanas n o padro de for-
mao de famlia; e sntese dos principais resultados.

Tendncias temporais da fecundidade

Nesta seo analisa-se u m a srie histrica de taxas de fecundidade baseadas em


2
dados censitrios: as taxas das coortes sintticas, utilizando o mtodo de Brass . Elas se
referem s taxas de fecundidade total das coortes de mulheres nascidas nos qinqnios
3
compreendidos entre 1890 e 1975 e so apresentadas no Grfico 1. Para o Pas c o m o
um todo, a taxa de fecundidade total, ou seja, a mdia de filhos tidos por mulher ao final
da vida reprodutiva, passou de 6,2 entre as mulheres nascidas em 1890-95 para 2,5
entre as nascidas entre 1970 e 75.

Grfico 1 - Taxas de fecundidade das coortes sintticas: Brasil


7 T e Regies

2
Vide BRASS (1985), p. 69-70.
3
Por coorte, entende-se um grupo de mulheres nascidas em um mesmo qinqnio.
Apesar de a fecundidade ter experimentado uma queda bastante expressiva, esta
no foi m o n o t n i c a , e na intensidade foi variada. Podem-se observar, tambm,
acrscimos em algumas coortes. A fecundidade das cinco primeiras coortes apre-
sentou declnio, interrompido por u m aumento da fecundidade exibido pelas sexta
e n o n a coortes. A partir da, observou-se u m a queda acentuada nos nveis de
fecundidade, mas com intensidade diferenciada. A maior variao (reduo de 24,2%)
foi verificada entre as coortes nascidas entre 1945-50 e 1950-55.
As tendncias mostradas pelas estimativas do Brasil mascaram grandes variaes
regionais, c o m o se pode concluir analisando o Grfico 1. O declnio da fecundidade
observado entre as c i n c o primeiras coortes foi conseqncia da reduo da
fecundidade das mulheres das regies Norte, Sudeste e Sul. O que se verificou entre
as coortes nascidas n o m e s m o perodo e residentes nas regies Nordeste e Centro-
Oeste foi u m a u m e n t o da taxa de fecundidade, que resultou e m u m a interrupo
da queda da fecundidade da coorte 1900-05 para o Pas. As mulheres nascidas entre
os anos 20 e 40 apresentaram a fecundidade estvel, com uma leve tendncia ascen-
dente. O a u m e n t o foi mais intenso nas regies Norte e Nordeste.
O declnio observado a partir da coorte nascida em 1945-50 foi extensivo a todas
as reas, mas c o m ritmo diferenciado. Entre a primeira coorte, foi mais intenso nas
regies Sul, Sudeste e Centro-Ocste. Nas coortes seguintes, a queda foi mais intensa
nas regies Sul, Ccntro-Oeste e Norte. Por sua vez, as mulheres nordestinas experi-
mentaram u m a queda acelerada de sua fecundidade a partir da coorte nascida em
1950-1955. As maiores taxas de fecundidade so verificadas nesta regio; as menores,
no Sul e Sudeste. O s diferenciais relativos continuam elevados.
O declnio da fecundidade no foi homogneo nem entre as regies que c o m -
pem o Pas n e m entre os grupos etrios. N o Grfico 2, apresentam-se as taxas de
fecundidade das mulheres de 15 a 19 anos para os qinqnios compreendidos
entre 1975 e 1995. Observou-se este acrscimo em todas as regies, com exceo do
Centro-Oeste. Em quase todas as regies o maior crescimento foi verificado n o
ltimo q i n q n i o da dcada de 80. Isto s no ocorreu no Norte, onde o maior
incremento foi observado cinco anos antes.
Grafico 2 - Taxas de fecundidade das mulheres de 15 a 19 anos

Os determinantes prximos da fecundidade

Casamento
Aqui, analisa-se o impacto do casamento e da anticoncepo nas tendncias da
fecundidade. Inicia-se pelo efeito do casamento atravs da evoluo das taxas de
fecundidade total marital por perodos, utilizando-sc a metodologia de Frias & Oli-
veira (1981:82-84) para o clculo das taxas especficas de fecundidade. Elas foram
divididas pela proporo de mulheres casadas para obter as taxas de fecundidade
4
marital . As taxas so decenais c se referem mdia de filhos tidos ao final do
perodo reprodutivo por mulher casada. Elas m e d e m a fecundidade do perodo
1930-35 at 1990-1995 (Tabela 1).

4
Por mulheres casadas, compreendem-se tambm as solteiras com filhos, o que foi feito tentando captar
ao mximo as unies consensuais. Ressalta-se, no entanto, que a definio censitria de mulheres
casadas tem modificado ao longo do tempo, o que afeta o clculo das taxas de fecundidade maritais.
Tabela 1 Taxas de fecundidade marital total. Brasil e gran-
des regies 1930-1995

Fonte: IBGE, vrios censos demogrficos e PNDS, 1996.


1
Excludas as reas rurais.

A taxadefecundidade total marital do Brasil declinou de 11,2 filhos por mulher, e m


1930-55, para 4,2 no primeiro qinqnio da dcada de 90. Este decrscimo no foi
linear. Observou-se u m aumento, entre 1950-55 e 1960-65, de 9,6 para 10,7 filhos por
mulher. A tendncia geral compatvel c o m o comportamento da taxa de fecundidade
total mostrada no Grfico 1. Isto sugere que variaes nos nveis de fecundidade podem ser
afetadas pelo casamento, mas h outras variveis importantes intervindo n o processo.
Para avaliar o efeito de variaes no casamento, tambm chamado de 'nupcialidade' nas
tendncias da fecundidade, utilizou-se a metodologia proposta por Bongaarts (1978) para
calcular o ndice inibidor dono-casamento (C ) nas taxas de fecundidade total. Na Tabela2,
m

indica-se a proporo das taxas de fecundidade reduzida pelo no-casamento. Isto foi feito
comparativamente a uma taxa de fecundidade total de 15,3. O u seja, supondo uma taxa de
fecundidade mxima de 15,3, que seria observada caso todas as mulheres se casassem; se
n e n h u m a usasse mtodos anticoncepcionais e tampouco amamentasse, o ndice
mencionado mediria a proporo da taxa de fecundidade total que difere deste valor
pelo no-casamento.

Tabela 2 ndice inibidor do no-casamento (C ) %. Brasil m

e regies 1930-35 a 1990-95

Fonte: IBGE, vrios censos demogrficos e PNDS, 1996.


1
Excludas as reas rurais da Regio Norte.
As variaes e m C durante o perodo no foram m u i t o expressivas q u a n d o se
m

considera todo o Pas. O efeito inibidor do no-casamento oscilou entre 55,7% e 60,8%
n o perodo estudado, o que significa uma queda no efeito inibidor de 44,5% para 39,2%
da fecundidade natural. Entre 1930-45 e 1940-5 5, evidencia-se u m a diminuio do
efeito inibidor de variaes n o casamento - denominado efeito nupeialidade - e da
fecundidade total. O u seja, mais mulheres se casaram, mas tiveram menos filhos. O
mesmo aconteceu entre 1960-65 e 1970-75. Se a nupcialidade no tivesse aumentado,
a queda da fecundidade total teria sido maior.
J no perodo de 1940-45 a 1950-55, o efeito nupeialidade diminuiu e a fecundidade
marital aumentou. Isto sugere que as mulheres esto casando mais, o que resulta na anula-
o de parte d o efeito d o controle da fecundidade marital e no a u m e n t o da taxa de
fecundidade total. Na dcada de 70, a fecundidade caiu. Em parte, isso se deve a uma
diminuio no nmero de casamentos. No entanto, este efeito foi menor comparado
magnitude da queda da fecundidade. Isto mostra que outros fatores foram responsveis
pela queda da fecundidade observada nestes perodos.
As tendncias observadas nas cinco regies brasileiras no divergiram m u i t o da
mdia nacional. As variaes na fecundidade marital foram no m e s m o sentido e m
todas as regies, ou seja, decresceram entre 1930-1955, cresceram na dcada seguinte e
decresceram a partir da. As diferenas so observadas somente n o ritmo. Isto mostra
que a nupeialidade desempenhou u m papel importante nos diferenciais regionais de
fecundidade. E m esfera regional, as variaes e m C foram bem mais expressivas. Na
m

regio Norte, variou entre 42,6% e 63,1 %. Esta variao foi monotnica entre 1930-35 e
1970-75, explicando parte do aumento da fecundidade total observado n o perodo. A
partir da, tanto a nupeialidade quanto a fecundidade diminuram. O mesmo aconteceu
nas regies Norte e Centro-Oeste, com intensidades diferentes. Na regio Sul, observou-se
u m aumento quase monotnico nos valores de C , sugerindo que a queda da fecundidade
m

total deveu-se praticamente atuao de outros fatores que o no-casamento.

Controle deliberado da Fecundidade


Infelizmente, no h dados disponveis que permitam o clculo de uma srie histri-
ca sobre os outros determinantes prximos das taxas de fecundidade. U m a tentativa de
medir a existncia (ou no) de controle deliberado da fecundidade para o Pas e as cinco
regies no perodo 1930-85 feita no Grfico 3. Este apresenta estimativas do ndice m de
controle da fecundidade proposto por Coale & Trussel (1974) e que indica o grau em que
as mulheres encerram sua vida reprodutiva antes do final biolgico (menopausa), o que
assumido como indicao de controle voluntrio do processo reprodutivo. A queda da
fecundidade est claramente associada ao aumento de m. A tendncia apresentada pelo
Brasil a da existncia d e u m encerramento cada vez mais precoce da vida
reprodutiva, medido pelo crescimento de m, embora os anos 50 apresentem u m
declnio no ndice. Note-se que este foi o perodo em que se verificou u m aumento
das taxas de fecundidade.

N o Grfico 3, tambm se encontram as estimativas de m para as cinco grandes


regies. N o primeiro perodo considerado, dcada de 30, observou-se, c o m ex-
ceo da regio Centro-Oeste, u m a u m e n t o n o indicador e m todas as demais,
sendo que isto se deu c o m maior intensidade no Sudeste c Norte. Na dcada de
40, apenas o Sudeste e o Sul experimentaram u m a u m e n t o do controle delibe-
rado da fecundidade. O a u m e n t o da fecundidade verificado e m quase todas as
reas, n o final dos a n o s 40 e incio dos 50, parece ter sido resultado de u m a
reduo do ndice de controle da fecundidade. Isto pode ser observado em todas
as regies, e m b o r a m e n o s a c e n t u a d a m e n t e n o Nordeste e C e n t r o - O e s t e . Nos
anos 60, este ndice cresceu e m todas as reas. Esta tendncia se intensificou
nas dcadas de 70 e 80.
C o m exceo do Nordeste (onde foram encontrados valores para m inferiores a
0,25 a partir dos anos 40), observaram-se valores de m acima de 0,25. De acordo
c o m Coale & Trussel, este u m indicador da existncia de controle deliberado da
fecundidade. Curiosamente, foram as regies Norte e Centro-Oeste as que apre-
sentaram os maiores valores de m n o incio do perodo analisado. Este resultado
coerente c o m o fato de q u e se verifica, nas duas reas, as m e n o r e s taxas de
fecundidade total n o perodo. N o entanto, para o m e s m o perodo, os valores de
5
M indicavam nveis de fecundidade mais elevados do que o natural. Isto pode
ser e x p l i c a d o por p r o b l e m a s na d e f i n i o de m u l h e r e s casadas pelos vrios
censos c, t a m b m , indicar u m alto ndice de mortalidade m a s c u l i n a (e a c o n -
s e q e n t e viuvez, q u e levaria as m u l h e r e s a sc retirarem da vida reprodutiva
mais precocemente).
O controle deliberado da fecundidade exercido por meio de mtodos anti-
concepcionais e aborto. Amamentao e abstinncia sexual so consideradas pr-
ticas contraceptivas, mas no deliberadas. N o caso brasileiro, c o m o o perodo de
amamentao tem sido curto, esta varivel tem exercido u m efeito pequeno nos
nveis de fecundidade. E m relao ao aborto, cabe dizer q u e as estatsticas so
precrias, e a prtica d o aborto provocado u m a estratgia de controle da
fecundidade. A anlise que se segue restringe-se ao efeito do uso de anticoncepci-
onais nos nveis de fecundidade.

Anticoncepo
O s p r i m e i r o s d a d o s sobre a n t i c o n c e p o foram r e c o l h i d o s n o Pas e m
1986, pela Pesquisa de S a d e M a t e m o - i n f a n t i l e por u m s u p l e m e n t o espe-
cial da Pesquisa N a c i o n a l por A m o s t r a de D o m i c l i o s (PNAD). A s e g u n d a i n i -
ciativa foi a Pesquisa N a c i o n a l de Demografia e S a d e (PNDS), realizada c m
1996. N o Grfico 4, observa-se o u s o de a n t i c o n c e p c i o n a i s pelas m u l h e r e s
c a s a d a s p o r t i p o de m t o d o u s a d o n o m o m e n t o das p e s q u i s a s . E m 1986,
a p r o x i m a d a m e n t e 66% das m u l h e r e s a l g u m a vez u n i d a s (ou seus parceiros)
e s t a v a m u s a n d o a l g u m m t o d o . O n d i c e a l c a n o u 76,7% d e z a n o s m a i s
tarde. Esta taxa de prevalncia alta, se c o m p a r a d a de pases q u e j a t i n -
g i r a m b a i x o s n v e i s de f e c u n d i d a d e .

5
outro ndice proposto por COALE & TRUSSEL, que compara o nvel de fecundidade a um padro
considerado de fecundidadenatural, ou seja, ausncia de controle deliberado da fecundidade. As duas regies
que apresentaram altos valores de m revelam valores de acima de 1, ou seja, acima do nvel de
fecundidade considerado como natural.
Grfico 4 - Distribuio percentual das mulheres unidas por
mtodo anticoncepcional utilizado - Brasil 1986-96

A esterilizao foi o m t o d o preferido, seguido da plula. Mais expressivo do


que o a u m e n t o nas taxas de utilizao de mtodos foi o incremento observado
na proporo de mulheres unidas esterilizadas - de 2 7 % para 40,1 % entre as duas
pesquisas. O uso da plula d i m i n u i u n o perodo (este mtodo era usado por 25%
das m u l h e r e s casadas, e passou a ser u t i l i z a d o por 21%). O u t r o c r e s c i m e n t o
observado foi n o uso de mtodos que c o n t a m c o m a participao masculina, de
11,1% para 14,1 %. D e n t r o deste grupo, h o u v e u m i n c r e m e n t o da esterilizao
masculina e do uso d o condom e u m a reduo n o coito interrompido e abstinn-
cia peridica.
As diferenas regionais na proporo de usurias so grandes, o que explica
os diferenciais encontrados nas taxas de fecundidade (Tabela 5). A maior pro-
poro de usurias e m 1986 foi verificada n a regio Sul (74,4%). A menor, n o
Nordeste (52,9%). Dez anos depois, as maiores propores de usurias foram
observadas n o C e n t r o - O e s t e (84,5%). A m e n o r p r o p o r o c o n t i n u o u a ser
verificada n o Nordeste (68,2%) - o q u e equivale a dizer q u e a p r o x i m a d a m e n t e
32% das m u l h e r e s casadas n o faziam uso q u e q u a l q u e r m t o d o n o perodo
pesquisado nesta regio.
Tabela 3 Uso de mtodos anticoncepcionais pelas mulheres
alguma vez unidas, segundo as cinco regies (%)
- 1986/1996

Fonte: PNDS, 1986 e 1996.


Notas:
1
Includos coito interrompido, esterilizao masculina, abstinncia e condom.
2
Includa a regio Norte.
3
Excludas as reas rurais da regio Norte.

A composio dos mtodos utilizados tambm varia regionalmente. A esterilizao


foi o mtodo escolhido por mulheres de todas as regies e m 1986, c o m exceo das
residentes na regio Sul, que preferiram a plula. O acrscimo verificado nas taxas de
prevalncia se deveu ao aumento na proporo das mulheres esterilizadas observado em
todas as regies. Isto foi feito em detrimento do uso da plula, que s aumentou na regio
Centro-Oeste. Tanto em 1986 c o m o em 1996 a plula figurou como o mtodo preferido
apenas entre as mulheres da regio Sul. Mtodos que contavam com a participao mas-
culina tiveram o seu uso aumentado nas regies Sudeste, Sul e Centro-Oeste.

Padro de formao de famlia

As mudanas na fecundidade foram acompanhadas de alteraes n o padro de


formao de famlias. Estas so analisadas pelas taxas de progresso a u m a dada
parturio, ou seja, a u m a dada ordem de nascimento. As taxas de progresso indicam
a proporo de mulheres comnfilhos que tiveram pelo menos mais u m filho. Conside-
radas u m bom indicador da existncia (ou no)decontrole deliberado da fecundidade,
estas taxas medem se as famlias decidem o tamanho de sua prole tendo em conta o
nmero de filhos j existentes. Neste trabalho, as taxas de progresso foram calculadas
para as mulheres casadas, entre 50 e 5 9 anos, ou seja, aquelas que j completaram a sua
vida reprodutiva. Foram analisados dados dos censos demogrficos de 1950,1960,
6
1970 e da PNAD de 1995, que se referem s mulheres casadas nascidas e m 1890-1900
(CN1), 1900-10(CN2), 1910-20 (CN3), 1920-30 (CN4)e 1935-40 (CN5). N o Grfico 5,
observam-se as taxas de progresso para as mulheres do Brasil c o m o u m todo.

Grfico 5 - Taxas de progresso a uma dada parturio - Brasil


Mulheres de 50 a 59 anos

0,65 --

0,6 -I 1 1 1 1
0-1 1-2 2-3 3-4 4-5+
Parturio
A l i n h a pontilhada mostra as taxas de progresso da primeira coorte de mulheres
(nascidas entre 1890 e 1900). A l i n h a forte contnua, para a ltima coorte, que englo-
ba as nascidas entre 1935-45. N o Grfico 5, revela-se u m a reduo nas taxas de pro-
gresso e u m a m u d a n a na forma da curva de cncava convexa, o q u e sugere a
existncia de controle da fecundidade por n m e r o de filhos j tidos. As mudanas
parecem comear na coorte que nasceu e m 1910-19, que apresentou u m aumento
na proporo de mulheres c o m u m filho q u e tiveram o segundo. A partir da, as
outras taxas declinaram c o m a parturio, mostrando u m comportamento influen-
ciado por esta. E m relao coorte anterior, para cada ordem de nascimento, as taxas
de progresso aumentaram, o que pode explicar o aumento da fecundidade verifica-
6
Neste
do n o caso,
finalno
dosforam
anosutilizados
40 e 50. os dados do Censo Demogrfico de 1991, pela dificuldade de process-los.
Mudanas n o comportamento reprodutivo causadas pelo nmero de filhos existen-
tes so ntidas a partir da coorte nascida e m 1920-29 e reforadas pela coorte seguinte. Elas
so traduzidas por uma reduo da proporo de mulheres que tiveramfilhosde parturio
mais elevada. Observou-se u m a reduo temporal nestas taxas, c o m exceo da relativa
ao primeiro filho. O aumento das taxas de progresso ao primeiro filho tanto pode estar
associado a variaes e m nupeialidade, esterilidade primria e nati-mortalidade, como
ser indicador de alguns erros na codificao dos dados censitrios anteriores a 1980.
Nos Grficos de 6 a 10, observam-se as taxas de progresso para as regies Sudeste,
Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Norte, respectivamente. A ordem escolhida visa a mos-
trar u m a seqncia de estgios de transio da fecundidade. Dois pontos so comuns
a todas as regies: a transformao da curva de cncava e m convexa e o aumento da
progresso ao primeiro filho, ou seja, o aumento da proporo de mulheres casadas que
se tornaram mes.
No Grfico 6, encontram-se as taxas de progresso da regio Sudeste, que apresen-
tou mudanas mais significativas. O formato da curva das trs primeiras coortes foi
cncavo, o que indica ausncia de controle por parturio, ou seja, no h indicaes
de que estas mulheres decidissem o seu comportamento reprodutivo pelo nmero de
filhos existentes. Verificou-se u m aumento da proporo de mulheres c o m u m filho
que tiveram o segundo, o que pode explicar o aumento da fecundidade observado n o
final dos anos 40 e incio dos 50.

Grfico 6 - Taxa de progresso a uma dada parturio. Regio


Sudeste mulheres de 50 a 59 anos
Observa-se uma modificao no comportamento reprodutivo a partir da coorte
de mulheres nascidas em 1920-30, a CN4. Esta curva apresenta um comportamento
convexo, indicando a existncia de u m regime de fecundidade dependente da
parturio. C o m exceo da progresso para o primeiro filho, todas as taxas declina-
ram, decrscimo mais expressivo medida que a ordem de nascimento aumentava.
O efeito da parturio se fez sentir mais intensamente na progresso para o terceiro
filho, ou seja, as taxas diminuem medida que a parturio aumenta, sendo o efeito
mais expressivo o provocado pelo segundo filho. Foram relativamente poucas as
mulheres com dois filhos que tiveram o terceiro. A partir da, o efeito parturio
menos significativo-o grfico indica que, a partirdo terceiro, as mulheres continuam
a ter filhos. Isto, provavelmente, resultado de um 'efeito coorte'. Algumas mulheres
interrompem a vida reprodutiva com dois filhos, e as que tm o segundo filho pros-
seguem para parturies mais elevadas.
A ltima coorte, nascida quinze anos depois da anterior, mostrou uma reduo
expressiva em todas as taxas de progresso, com exceo da primeira. Neste caso, o
efeito parturio parece mais expressivo na progresso para o segundo filho, indi-
cando uma preferncia por famlias de apenas u m filho. As taxas de progresso
declinam com a ordem de nascimento, c o m o sugere a teoria clssica da transio
demogrfica. Q u a n t o maior o nmero de filhos, menor a probabilidade de a m u -
lher ter um filho adicional.
No Grfico 7, encontram-se as taxas de progresso para a regio-Sul. As duas
primeiras coortes apresentam u m comportamento muito semelhante ao observa-
do na regio Sudeste. As mudanas nesta rea comearam a se fazer sentir na tercei-
ra coorte, ou seja, entre as mulheres nascidas entre 1910-20. A partir da, as taxas de
progresso declinavam com o aumento da parturio e j se pode inferir uma certa
preferncia por famlias de dois filhos. A quarta coorte mostra u m a reduo nas
taxas a partir da progresso para o terceiro filho comparativamente terceira. Este
decrscimo muito mais expressivo comparando-se a quinta com a quarta coortes.
Observa-se u m a inflexo na taxa de progresso para o quarto filho, o que pode
indicar um efeito coorte, provocado pelas mulheres mais velhas. Nesta coorte, tam-
bm se observa u m aumento na proporo de mulheres que se tornaram mes.
Grfico - Taxa de progresso a uma dada parturio. Regio
Sul mulheres de 50 a 59 anos

O padro de formao de famlia das mulheres da regio Centro-Oeste est apresentado


n o Grfico 8. E m relao primeira coorte, a segunda e a terceira apresentaram u m leve
acrscimo na taxa de progresso para o primeiro filho e u m decrscimo nas progresses
para o terceiro e quarto filhos. Observa-se uma leve mudana de formato da curva na quarta
coorte, com uma reduo das taxas de progresso ao quarto filho. As mudanasficambem
evidentes na quinta coorte, onde se nota uma preferncia por famlias de trs filhos. Obser-
va-se tambm u m aumento na proporo de mulheres que se tomaram mes.

Grfico 8 - Xaxa de progresso a uma dada parturio. Regio


Centro-Oeste mulheres de 50 a 59 anos
No Nordeste, tem se observado u m aumento na proporo de mulheres casadas que
se tornaram mes (Grfico 9). Isto s no se verificou entre a coorte nascida e m 1910-
19, que apresentou u m aumento na proporo de mulheres c o m u m filho que tiveram
o segundo. Mudanas n o formato da curva, tal c o m o preconizadas pela teoria da tran-
sio demogrfica, comeam a ser indicadas pela coorte nascida e m 1920-29: observa-
se uma leve preferncia por famlias de dois filhos. A ltima coorte mostra u m aumento
da proporo de mulheres que tiveram filhos e u m a reduo na probabilidade de as que
tinham trs passarem a ter quatro filhos.

Grafico 9 - Taxa de progresso a uma dada parturico. Regio


Nordeste mulheres de 50 a 59 anos

N o Grfico 10, encontram-se as taxas de progresso por parturio para as mulhe-


res nortistas de 50 a 59 anos. Tambm se observa u m a u m e n t o na proporo de
mulheres que tiveram filhos, tendo sido este a u m e n t o progressivo n o tempo. M u -
danas n o formato da curva apareceram na quarta coorte, mas c o m sentido oposto ao
preconizado pela teoria da transio demogrfica. Aumentou a proporo de mulhe-
res c o m dois filhos q u e tiveram o terceiro. Por outro lado, a ltima coorte mostra
indicaes de u m a preferncia por famlias c o m dois filhos, tendo apresentado u m
aumento na proporo de mulheres casadas que tiveram o primeiro filho.
Grfico 10 - Taxa de progresso a uma dada parturio. Regio
Norte mulheres de 50 a 59 anos

0,7 -

0,65 --

0,6 -I I 1 1 1
0-1 1-2 2-3 3-4 4-5+
Parturio
Concluso
O trabalho mostrou a evoluo das taxas de fecundidade total de 17 coortes de
mulheres nascidas entre 1890 e 1975, para o Brasil e para todas as cinco grandes
regies. A fecundidade apresentou u m a tendncia generalizada de queda, principal-
mente a partir das mulheres nascidas entre 1940-45. No obstante, esta queda foi
intercalada por movimentos ascendentes, o que ocorreu e m todas as regies. Este
incremento foi mais evidente na fecundidade marital. Isto significa que o aumento
na taxa d e nupcialidade contribuiu para impedir maiores quedas na taxa de
fecundidade total.
Ao se analisarem as trajetrias da fecundidade das regies, comparadas trajetria
do Brasil, nota-se u m a grande variao regional, principalmente at a coorte nascida
em 1940-45. A partir desta, n o entanto, todas as regies apresentam fortes diminuies
na fecundidade e, nesta dcada, as variaes foram exclusivamente determinadas
pelo efeito dos fatores ligados anticoncepo, ao passo que o efeito nupcialidade
agiu em sentido contrrio queda da fecundidade. Apenas na dcada de 70 o efeito
nupcialidade contribuiu para a queda de fecundidade.
A queda da fecundidade foi acompanhada de uma mudana no padro de formao
de
filhos
famlia,
em mdia.
observando-se
Regionalmente,
u m a forte
estas tendncia
preferncias
preferncia
so diferenciadas:
por famlias
na regio
comSudes
dois
te, h indicaes de que o tamanho de famlia preferido a de u m filho; no Sul, a de dois
filhos; na Nordeste, a de trs filhos.
Para concluir, ressalta-se que a fecundidade da mulher brasileira j atingiu nveis
prximos aos de reposio, principalmente nas regies Sul e Sudeste. O efeito imediato
desse processo a reduo do crescimento populacional seguida de mudanas na dis-
tribuio etria n o sentido de u m envelhecimento.

Referncias Bibliogrficas

BONGAARTS, J. AFrameworkforanalysingtheproximatedeterminantsofFertility.Populationand Development


Review, 4(1):105-132,1978.
BRASS, W. P/F Synthesis and Parity Progression Ratios. In: CENTRE FOR POPULATION STUDIES. Advances in
Methods for Estimating Fertility and Mortality from Limited and Defective Data.
London: London School of Hygiene & Tropical Medicine, 1985, p. 69-74.

COALE, A. &TRUSSEL, J . Modeling Fertility Schedules: variations in the age structure of


childbearing in h u m a n populations. Population Index (40): 185-258,1974.

FRIAS, L.A.M. & OLIVEIRA, J . C . Nveis, tendncias e diferenciais de fecundidade no Brasil a


partir da dcada de 1930. Revista Brasileira Estudos Populacionais, 8(1/2):72-119. Campinas:
Associao Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), 1991.
7

Ainda a Questo da Esterilizao Feminina


no Brasil
Elza Berqu

Introduo

Segundo projees das Naes Unidas, o mundo em desenvolvimento abrigar 2,458


bilhes de mulheres n o ano 2000, das quais 1,255 bilhes, ou seja, 51%, estaro e m
idade reprodutiva (15-49 anos) (United Nations, 1996).
O cenrio contraceptivo na virada do sculo refletir principalmente o desejo
de regulao da fecundidade, a disponibilidade de mtodos contraceptives e o
acesso aos meios de evitar u m a concepo, que prevalecero dentre esses bilhes
de mulheres na idade reprodutiva que faro parte das populaes d o c h a m a d o
Terceiro M u n d o .
Os ltimos dados mundiais disponveis sobre uso de anticoncepcionais mostram
5 7% de usurios correntes de algum mtodo (Tabela 1). Como se v, esta proporo varia
de 72% a 54%, quando se passa das regies mais desenvolvidas para aquelas em desenvol-
vimento. Tambm os nveis de preferncia e/ou de disponibilidade so diversos e m
relao aos vrios mtodos.
C o m base nestas mdias, pode-se prever que haver 678 milhes de usurias de
algum mtodo anticoncepcional, dos quais 36%, isto , 244 milhes, sero mulheres
esterilizadas. Isto significa que, do total de mulheres unidas e na idade reprodutiva, 20%
j tero posto fim ao processo reprodutivo.
Tabela 1 P r o p o r o de uso corrente de m t o d o s
contraceptivos entre mulheres unidas, em idade
reprodutiva 1994

(*) Inclui: abstinncia peridica ou total, tabela, coito interrompido, ducha, mtodos folclricos.
(**) Inclui: injetveis, diafragmas, capas cervicais e espermicidas.
Fonte: World Contraceptive Use 1994, Population Division - United Nations.

No Brasil, o nvel de uso de contraceptivos vem se mantendo em patamares elevados eascendtolimz,p70%1986r1996)-

este ltimo j ultrapassando a mdia observada nas regies mais desenvolvidas (Tabela 1).
De acordo com os dados de 1996, estima-se que, do total de 39,993 milhes de mulhe-
res brasileiras na idade reprodutiva projetado para o ano 2000 (Camarano & Beltro,
1997), 30,675 milhes demandaro algum mtodo anticoncepcional.
Tentaremos atualizar o panorama nacional quanto ao uso de contraceptivos, dando
destaque esterilizao feminina que tambm no Pas, como veremos, encabea a lista
dos mtodos anticoncepcionais. Procuraremos caracterizar os padres e tendncias
desta prtica, buscando contribuir para uma maior compreenso das questes relacio-
nadas sade reprodutiva das mulheres brasileiras.

O cenrio da contracepo no Brasil

NoPasregistra-se elevada proporo de uso de mtodos contraceptivos, isto , 76,7%


das mulheres e m idade reprodutiva e unidas so usurias de algum mtodo (Tabela 2).
O elevado ndice de uso atual de mtodos anticoncepcionais por mulheres unidas
toma-se ainda mais eloqente quando se toma e m considerao que dentre as no-
usurias encontram-se mulheres que no podem mais conceber - e m funo da me
nopausa, de histerectomias ou, ainda, por infertilidade decorrente de outras causas. De
acordo c o m a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sade (PNDS) de 1996, 23,3% das
mulheres unidas de 15 a 49 anos no estavam usando n e n h u m mtodo para evitar
uma concepo. Deste total, 16,4% declararam-se menopausadas ou histerectomizadas.
Incluindo-se as que declararam ter dificuldades para engravidar, este percentual chega
a 30,5%. O u seja, seria de todo fundamental que as propores de uso fossem calculadas
apenas para mulheres aptas a conceber, o que via de regra no o caso dos dados
disponveis das diversas pesquisas.
Concentrou-se ainda mais, nos ltimos dez anos, o uso noPasdos chamados mto-
dos modernos. Das usurias (incluindo tambm mtodos usados pelos parceiros), 89,7%
recorreram a eles e m 1986, percentual que cresceu para 91,7% em 1996 (Tabela 2). Pouco
se alterou, entretanto, a posio relativa dos mtodos usados no total de mulheres unidas.
A esterilizao feminina, no topo da lista, seguida pela plula, e esta pelo condom, caracteri-
zou 1986 e 1996. A exceo foi a vasectomia, mais freqente do que o DIU em 1996.

Tabela 2 Proporo de uso atual de mtodos contraceptivos


entre mulheres atualmente unidas. Brasil

Notas:
(*) Inclui Norplant, injetveis e mtodos vaginais.
(**) Inclui tabela, billings e temperatura.
(***) Inclui todos os mtodos folclricos.
Fonte: PNAD-86; PNDS, 96.

Q u a n t o aos nveis de preferncia, a esterilizao feminina ganhou mais adeptas,


crescendo de 31,1 % a 40,1 % n o perodo considerado. Ganharam tambm o condom e a
vasectomia. Em contraposio, a plula teve aceitao declinante no mesmo perodo.
Dentre os mtodos tradicionais, enquanto a abstinncia peridica perdeu na prefe-
rncia, o recurso ao coito interrompido cresceu de 1,7% para 3,1%. Na Tabela 2 demons-
tra-se tambm que, dentre usurias de algum mtodo, a esterilizao feminina respon-
de por mais de 50%. Dez anos antes, o ndice era 44,4%.
Interessante observar t a m b m c o m o se c o m p o r t a m as m u l h e r e s m a i s jovens, e m
especial as n o - u n i d a s , m a s s e x u a l m e n t e ativas, u m a vez q u e parte daquelas e m u n i o
estaro c o n s i d e r a n d o a possibilidade d e ter filhos. A o se analisarem os d a d o s da Tabela 3,
percebe-se q u e , para as n o - u n i d a s , a proporo de u s o de a l g u m m t o d o corresponde
a 66%, 83,5% e 79,4%, n o s grupos etrios 1 5 - 1 9 , 2 0 - 2 4 e 2 5 - 2 9 a n o s , respectivamente,
valores s e m p r e superiores aos correspondentes, pela o r d e m , para as m u l h e r e s unidas.
A l m d e elevadas, e m especial a partir dos 2 0 anos, as freqncias de u s o atual referem-
se a m t o d o s m o d e r n o s . O u s o da plula p r e d o m i n a entre as jovens, sejam u n i d a s o u
no. J o recurso a o condom trs vezes mais freqente entre as n o - u n i d a s , e m b o r a seu
u s o seja c o n s i d e r a d o a i n d a p o u c o expressivo, q u a n d o se l e v a m e m c o n t a os riscos d o
I V C o m o se sabe, desde o incio dos a n o s 9 0 a epidemia de AIDS t e m se e x p a n d i d o entre
m u l h e r e s e, s e g u n d o a UNVMDS (The J o i n t U n i t e d N a t i o n s P r o g r a m m e o n HIV/AIDS), 40%
das n o v a s infeces q u e ocorrem n o m u n d o a t i n g e m o sexo f e m i n i n o , c o m p r o m e t e n -
do p r e p o n d e r a n t e m e n t e aquelas na f a i x a d o s 15 aos 2 5 anos.

Tabela 3 Uso atual de contraceptivos para mulheres unidas


e sexualmente ativas no-unidas, segundo a idade.
Brasil - 1996

Entre as u n i d a s , d e 2 0 a 24 a n o s , a esterilizao j representa 11,4% n o rol d o s


contraceptivos, freqncia esta d e 2% dentre as no-unidas. N a faixa etria seguinte, dos 25
aos 29 anos, as propores se igualam, independentemente de a m u l h e r estarou n o unida.
Ressalte-se q u e n o estar u n i d a n o m o m e n t o d a entrevista n o significa n u n c a
ter e s t a d o u n i d a , o u seja, esta categoria p o d e a b r a n g e r solteiras, s e p a r a d a s , d i v o r -
c i a d a s o u a t v i v a s . D a p o r q u e a e s t e r i l i z a o p o d e ter o c o r r i d o d u r a n t e u m a
u n i o j desfeita.
O u t r o a s p e c t o n o p a n o r a m a c o n t r a c e p t i v o n o Pas o g e n e r a l i z a d o u s o d e m t o -
d o s e m t o d a s as regies, v a r i a n d o d e 68,2% n o N o r d e s t e a 84,5% n o C e n t r o - O e s t e
(Tabela 4). Esta variao de 16,3 p o n t o s percentuais reduz-se bastante q u a n d o se observa
a proporo de usurias que optam por mtodos modernos. Com efeito, de apenas 5,4
pontos percentuais esta diferena, estando as propores sempre acima de 90%. M e s m o
nas reas rurais, o recurso aos mtodos modernos chega a 88,4%.
Do ngulo dos diferenciais por anos de estudo, observa-se que so as mulheres com
maior escolaridade, 11 %, e as analfabetas, 12%, as que mais recorrem aos meios tradicio-
nais de evitar u m a gravidez, certamente pormotivos diversos. As primeiras, por dispo
rem de maiores informaes; as segundas, por no disporem nem de informaes nem
de recursos para a compra de anticoncepcionais ou para pagar cirurgias contraceptivas.
Olhando o rol de mtodos tradicionais de que lanaram m o estas mulheres, verifi-
ca-se que a tabela, billings ou temperatura foram os preferidos das mais escolarizadas,
predominando o coito interrompido entre as analfabetas.

Tabela 4 Uso atual de mtodos modernos* de anticoncepo


entre mulheres unidas, para algumas caractersticas
selecionadas. Brasil 1996

(*) Inclui plula, DIU, injees, mtodos vaginais, condom, esterilizao feminina e vasectomia.
(**) Inclui somente reas urbanas.
Fonte: PNDS, 1996.
A esterilizao feminina

Dados recentes indicam que 40,1 % das mulheres brasileiras, unidas e em idade
reprodutiva, estavam esterilizadas em 1996. Este ndice variou de 29,0% no Sul a 59,5%
na Regio Centro-Oeste (Tabela 5). C o m exceo do Rio de Janeiro, pode-se dizer que a
esterilizao maior nas regies menos desenvolvidas do pas. J no h diferencial
marcante entre mulheres vivendo no campo ou nas cidades.
Os anos de escolaridade constituem um diferencial quanto ao recurso a essa prtica,
passando de 45,7%, para analfabetas, a 35,7%, para aquelas com 12 anos ou mais anos de
instruo a proporo de esterilizadas.
C o m o se pode observar na Tabela 5, o leque de alternativas contraceptivas fecha-se
cada vez mais, por conta do papel que a esterilizao feminina vem ocupando no
conjunto de mtodos. Esta prtica, que respondia, em 1986, por 49,5% dos mtodos
modernos, passou a concentrar 5 7,0% das usurias em 1996. Esta concentrao mais
acentuada nas regies Nordeste (70,5%), Norte (75,3%)eCentro-Oeste (73,5%).

Tabela 5 Esterilizao feminina entre mulheres unidas,


segundo algumas caractersticas. Brasil 1996

Fonte: PNDS, 1996.


impressionante a situao das mulheres analfabetas, em geral as mais pobres, para
as quais o recurso esterilizao representa praticamente toda a possibilidade de uso de
mtodos modernos.
A esterilizao acontece cada vez mais cedo na vida das mulheres. A PNDS de 1996
revela que a idade mediana esterilizao foi igual a 28,9 anos, o que significa que as
mulheres esto recorrendo a esta prtica mais cedo do que h dez anos, quando este
indicador foi de 31,4 anos. Verifica-se, observando os dados contidos na Tabela 6,
que u m a quinta parte do total de mulheres j estava esterilizada, em 1996, antes dos
25 anos, perfazendo c o m o grupo etrio seguinte 57,1%, ou seja, referem-se a esterili-
zaes recentes.

Tabela 6 Distribuio percentual das mulheres esterilizadas,


segundo a idade poca da cirurgia. Brasil 1996

Fonte: PNDS, 1996.

Em trabalhos anteriores j chamamos a ateno para o abuso dos partos cesreos n o


Pas e demonstramos a alta e peculiar associao entre cesrea e esterilizao (Berqu,
1993). Da mesma forma, diversos autores (Barros et al., 1991; Fandes & Cecatti, 1991)
vm tambm denunciando esta situao de alta prevalncia de parto cirrgico para
abrigar u m a contracepo cirrgica, visto que esta ltima ainda no permitida por
1 2
ferir o Cdigo Penal Brasileiro e o Cdigo de tica Mdica .
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclio (PNAD)-9 vm mostrar que
58,8% das esterilizaes foram realizadas durante uma cesrea; 15,1%, logo depois do
parto vaginal; e 2 5,9% em outra ocasio, por laparoscopia ou por mini-laparotomia. Na

1
Pelo Cdigo Penal Brasileiro, elaborado em 1940, Art. 129, 20. Inciso III, a esterilizao crime por ser
considerada uma leso corporal de natureza gravssima, quando resulta na perda ou inutilizao da
funo reprodutiva. Neste sentido, a pena correspondente de recluso de 2 a 8 anos.
2
Cap.VI - Da Responsabilidade Mdica, Art.52 - "A esterilizao condenada, podendo, entretanto, ser
praticada em casos excepcionais, quando houver precisa indicao, referendada por dois mdicos,
ouvidos em conferncia".
Tabela 7 possvel apreciar os altssimos ndices de esterilizao durante u m parto
cesreo, principalmente para o Rio de Janeiro, So Paulo e a Regio Sul. O Nordeste
chama a ateno, em especial, pelo menor ndice, o que nos leva a concordar com a
interpretao de que est sendo montado u m esquema de oferta dirigida esterilizao,
principalmente nas regies menos desenvolvidas (Perptuo, 1996). Tendo em conta as
altas taxas de esterilizao nestas regies, o no uso da cesrea c o m o locus cirrgico
para sua realizao pode vir a beneficiar as mulheres, reduzindo seus riscos associados
s cesreas.

Tabela 7 Distribuio percentual das esterilizaes por ocor-


rncia durante um parto cesreo ou fora do parto, se-
gundo regies e situaes do domiclio. Brasil 1996

Por dispor de informaes sobre anticoncepo em quatro pontos temporais, 1980,


1986, 1991 e 1996, o Nordeste permite uma anlise da tendncia dos ndices de esterilizao.
Em 1986, 53% das nordestinas unidas, em idade reprodutiva eram usurias de al-
gum mtodo e 25% estavam esterilizadas. Dentre as usurias, esta prtica representava
47%. Em 1996, a proporo de uso subiu para 68% (Tabela 4) e 44% estavam esterilizadas.
Dentre estas, 64% das usurias j haviam encerrado o processo reprodutivo.
Para uma anlise mais aprofundada sobre esterilizao no Nordeste, conta-se com
um estudo comparativo entre 1980 e 1991 (Perptuo, 1996). Os dados de 1980 referem-
se Pesquisa sobre Sade Materno-lnfantil (PSMIPF/80) que cobriu Rio Grande do
Norte, Paraba, Pernambuco e Bahia. Com ofimde manter a comparabilidade, a autora
trabalhou tambm com as quatro unidades da Federao na PNDS-91 - que, c o m o se
recorda, cobriu todo o Nordeste.
De acordo c o m os dados apresentados na Tabela 8, e m 1980, a esterilizao era
marcadamente maior nas reas urbanas, entre as mulheres com maior escolaridade, c
nas famlias com mais recursos. Onze anos mais tarde, ainda se mantm estes dife
renciais, mas so muito menos marcados do que no perodo anterior. Foi exatamente nas
reas rurais, nos contextos mais pobres e entre mulheres c o m menor escolaridade
onde se deram os maiores aumentos relativos nas taxas de esterilizao. C o m o diz
Perptuo (1996): "Em 1991, o aumento do recurso cirurgia uma tendncia da qual
participam todas as mulheres. A esterilizao estendeu-se a todas as camadas."
Salienta-se, tambm, que a idade esterilizao caiu de 31,0 anos, em 1980, para
28,2 anos, em 1991.

Tabela 8 Taxas de esterilizao (/o) entre mulheres de 15-


44 anos, que tiveram filhos nos 5 anos anteriores
pesquisa, segundo caractersticas selecionadas

Fonte: PNDS, 1996.

Embora ainda elevadas, as propores de esterilizaes realizadas durante uma cesrea


foram-se reduzindo no perodo. De fato, de 65, 1%, e m 1980, passou a 59,8%em 1991,
continuando a declinar e m 1996, para atingir 43,2% (Tabela 7).
Em trabalhos anteriores (Morell, 1994; Berqu, 1996) em que se buscou comparar as taxas
de esterilizao entre mulheres brancas e negras, no se encontraram diferenas. Referiam-se
a So Paulo, em 1986 e 1992. Trabalhando com a PNAD-86, Morell (1994) encontrou, para o
estado, taxas de 2 7,9% e 22,2%, para brancas e negras, respectivamente. Estas taxas passaram a
30,5% c 18,7%, respectivamente, na Grande SoPaulo.A Tabela 9 contrasta estes ndices, segun-
do anos de escolaridade da mulher, mostrando, em primeiro lugar, que a esterilizao
decrescia c o m o aumento da instruo, tanto para mulheres brancas c o m o para as ne-
gras. Em segundo lugar, que as taxas foram sempre superiores para as mulheres brancas.
Tabela 9 Prevalncia de uso de mtodos anticoncepcionais
por escolaridade e cor. Mulheres unidas de 1 5 -
49 anos. Grande So Paulo 1996

Fonte: MORELL, I994.

Usando dados da Pesquisa sobre Sade Reprodutiva da Mulher Negra, conduzida no


municpio de So Paulo, e m 1992, Berqu (1996) tampouco encontrou diferena esta-
tstica entre as taxas de esterilizao para mulheres brancas e negras, considerando
extratos de renda e diferentes nveis de instruo.
A PNDS-96 permite atualizar a situao da esterilizao por cor, para todo o Pas.
Analisando-se os dados contidos na Tabela 10, percebe-se que u m pouco mais elevado
para as brancas o uso de algum mtodo, embora para as negras os mtodos modernos
representem 92,8% do totaldeuso, proporo ligeiramente maior do que a correspon-
dente para as brancas, u m a vez que estas incluem, mais do que aquelas, os mtodos
tradicionais e m seu repertrio contraceptive Se o leque de alternativas para regular a
concepo fechou-se nos ltimos anos, c o m o j salientado anteriormente, no h d-
vida de que foi para as mulheres negras onde esta concentrao foi mais acentuada.
Basta notar que a esterilizao e a plula (61,1%) respondem por 88,9% dos mtodos
modernos, enquanto que para as brancas, e m conjunto, estes dois mtodos (60,8%)
correspondem a 84,0% dos modernos.

Tabela 10 Proporo de uso atual de mtodos contraceptivos


entre mulheres atualmente unidas, por cor. Brasil,
PNDS-1996

Q u a n t o esterilizao, foi maior para as mulheres negras, tanto n o campo c o m o


nas cidades (Tabela 11). Esta superioridade no se verificou e m todas as regies ou
unidades da Federao, como Rio de Janeiro, Sul e Nordeste.

Tabela 11 Esterilizao feminina entre mulheres unidas, de


15-49 anos, por cor, segundo algumas caracters-
ticas. Brasil 1996
Procurando analisar u m a eventual correlao entre anos de estudos atingidos
pelas mulheres e a prevalncia de esterilizao, verifica-se que, para as mulheres
brancas, a prtica da esterilizao d i m i n u i sistematicamente q u a n d o aumenta o
nvel de instruo (Tabela 12). preciso n o perder de vista q u e este recurso
contraceptivo c o m e o u nas camadas mais altas, atingindo aos poucos as classes
populares e j c o m e a a perder a preferncia das primeiras. Para as mulheres ne-
gras, esta correlao negativa ocorre s at a categoria 5 a 8 anos de estudo. N o grupo
c o m o maior nvel, isto , c o m 9 ou mais anos de instruo, d-se o contrrio, ou
seja, cresce a proporo de esterilizadas.

Tabela. 12-Proporo de mulheres de 15-49 anos esteriliza-


das, por cor, segundo anos de estudo e situao
de domiclio. Brasil 1996

Outro ponto a salientar que para as mulheres c o m menores recursos educacio-


nais, brancas e negras no diferem quanto prtica de esterilizao. dentre as que tm
maior nvel educacional que as negras apresentam taxas mais elevadas de esterilizao
do que as brancas.

A 'cultura' da esterilizao

O recurso esterilizao segue seu curso c o m o se j fizesse parte de u m processo


natural que leva todos os anos coortes de mulheres na idade reprodutiva a encerrarem
definitivamente sua capacidade reprodutiva.
As dificuldades q u e ainda enfrentam os servios pblicos de sade para ofe-
recerem u m conjunto de mtodos contraceptivos acabam por colocar as m u l h e -
res diante de u m a perigosa encruzilhada: ou ser esterilizada, ou provocar aborto
(ainda clandestino e, portanto, pouco seguro), ou prosseguir c o m u m a gravidez
indesejada.
Da as altas taxas de anticoncepo cirrgica, realizadas por ocasio do ltimo parto,
via cesrea (Tabela 7), testemunha da cumplicidade mdico-paciente.
Na Pesquisa So Paulo - 1992, u m tero das mulheres declararam que engravidaram
pensando e m se submeter esterilizao durante u m a cesrea. Alguns elementos
colhidos nesta mesma pesquisa levam a pensar em u m processo de difuso da esteri-
lizao entre mulheres, de me para filha, de irm para irm, de amiga para amiga,
isto , uma verdadeira 'cultura' de regulao da capacidade reprodutiva, por interm-
dio de u m a prtica definitiva. De fato, Berqu (l 996) encontrou que 52% das j este-
rilizadas eram filhas ou irms de esterilizadas, refletindo u m a propagao familiar
inter e intrageracional.
Por outro lado, os elevados percentuais de mulheres que se dizem satisfeitas com a
esterilizao, por volta de 80% (Vieira & Ford, 1996) em diversas pesquisas realizadas no
Pas, representam u m efeito-demonstrao para outras mulheres.
Evocando a segurana do mtodo, ou o no ter mais que se preocupar com o uso de
outros meios ou por j terem o nmero desejado de filhos, estas mulheres acabam por
influenciar outras no entorno de suas vidas cotidianas. Acaba, assim, pesando pouco os
relatos sobre arrependimento aps u m a esterilizao (Vieira & Ford, 1996), porque so
vistos como u m problema da outra, o qual no acontecer com ela.
O s quase dois teros de mulheres esterilizadas que declararam que aconselhari-
a m outras mulheres a recorrerem esta prtica, juntamente com o desejo expresso
por 40% das mulheres jovens de a ela recorrerem futuramente reforam a interpre-
tao de que a difuso vinda d o passado e intensificada n o presente continuar
avanando no futuro.
Esta rede familiar e social envolvida neste processo permeia geraes, raas e todos os
setores sociais. Dela faz parte tambm a cumplicidade mdica. Seu vigor poder ser ate-
nuado quando recursos de sade reprodutiva disponveis, livres de discriminao, per-
mitirem que escolhas informadas dem s mulheres possibilidade de exercerem seus
direitos sexuais e reprodutivos.
Questes da Sade Reprodutiva

Referncias Bibliogrficas
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PERPTUO, I. H.O. U m a dcada de esterilizao feminina no Nordeste. In: Encontro Nacio-


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So feulo, Brazil. International Family Planning Perspectives, 22(1), Mar. 1996.
8

Laqueadura Tubria:
situao nacional, internacional e efeitos colaterais
Aurelio Molina

Introduo

A esterilizao feminina um procedimento mdico (cirrgico, qumico ou radioativo)


que termina com a possibilidade de fertilizao, por intermdio de alteraes anatmicas
ou funcionais em qualquer parte do sistema reprodutivo da mulher.
A tcnica mais c o m u m de esterilizao a laqueadura tubria, ou esterilizao
tubria, que envolve o bloqueio das trompas de Falpio. Este bloqueio geralmente
conseguido pela ocluso das tubas com ligaduras (pontos), clips, anis ou eletrocoagulao.
Nos ltimos 35 anos, principalmente nos anos 70 e 80, houve u m acentuado aumen-
to, em mbito mundial, do uso da esterilizao como forma de controle da fertilidade. No
Brasil, a esterilizao emergiu como a forma de contracepo mais usada entre as mulhe-
res em unio, apesar de proibida pelas leis federais e pelo Cdigo de tica Mdica.
Nesse captulo, de maneira sumria, discutiremos alguns aspectos relacionados com
a laqueadura tubria, basicamente a nica forma de esterilizao feminina usada no
Brasil, fazendo u m breve histrico dessa cirurgia e contextualizando-a nos planos in-
ternacional e nacional. Tambm abordaremos brevemente os possveis determinantes
e os efeitos colaterais mais comumente associados a esta tcnica contraceptiva, dis-
cutindo as bases hormonais e mecanismosfisiopatolgicos,alm das possveis conseqncias
de longo prazo para a sade da mulher. No fim, apresentamos uma nova tcnica cirr-
gica que pode diminuir esses efeitos indesejados, e que tambm torna mais fcil a
reverso da ligadura, quando solicitada.
Breve histrico da laqueadura tubria

A esterilizao tubria uma operao relativamente nova. C o m o mtodo de con-


trole da fertilidade, , e m verdade, u m a tcnica do sculo X X . Entretanto, suas ori-
gens esto n o sculo XIX, mais precisamente e m 1809, quando Haighton realizou
experimentos seccionando as tubas de coelhas. E m seres h u m a n o s , Blundell, e m
Londres, e m 1823, considerado pelos ingleses o pioneiro da ligadura tubria
(Pai, 1974). Entretanto, c o m o no h publicao especfica na literatura mdica pro-
v a n d o tal fato, outros autores, principalmente americanos, consideram que foi
Lungren (1881), nos Estados Unidos, o primeiro a realizar uma ligadura tubria. Sua
experincia descrita c o m o u m a esterilizao tubria e m que foram utilizados fios
de seda para amarrar as tubas de u m a paciente que j tinha realizado duas opera-
es cesarianas (Siegler, 1980).
No incio do sculo X X , a esterilizao cirrgica passou a ser praticada mais rotinei-
ramente, mas basicamente por razes eugnicas, tais c o m o retardo mental severo.
Somente a partir de 1930, c o m os avanos da clnica cirrgica e c o m o advento das
sulfonamidas e da penicilina, o uso desta operao comeou a ser ampliado. Entretan-
to, sua histria continuou ligada ao Movimento Eugnico at que, c o m os abusos do
nazismo, a prtica passou a ser questionada e foi temporariamente abandonada
(Potts & Diggory, 1983).
O 'renascimento' desse procedimento cirrgico ocorreu nos anos 60, q u a n d o
houve u m grande interesse pela esterilizao voluntria, principalmente por ques-
tes populacionais, mas, tambm, devido introduo de novas tecnologias, c o m o
a laparoscopia, b e m c o m o de tcnicas mais simples (minilaparotomias) e mais efe-
tivas. A partir dos anos 70, essa tcnica cirrgica se s e d i m e n t o u c o m o prtica
contraceptiva, chegando dcada de 90 c o m o a forma de contracepo mais usada
mundialmente (WHO, 1992).

A laqueadura no plano internacional e no Brasil

Em 1981, Stepan calculou que pelo menos 260 milhes de casais em todo o m u n d o
haviam se submetido a algum tipo de esterilizao. Mais recentemente, autores como
Ross (1992) acreditam que a esterilizao (masculina e feminina) , atualmente, o meio
de controle da fertilidade mais utilizado e m todo o mundo.
Em relao esterilizao feminina, desconhece-se o nmero exato de mulheres
que se submeteram ligadura tubria e m todo o m u n d o . Para Bially (1994), seriam
mais de 100 milhes. Segundo Ross (1992), esse nmero chegaria aos 138 milhes.
Em pases do Terceiro M u n d o , existe uma clara tendncia em favor da esterilizao
como opo contraceptiva. Mauldin & Segal (1988) investigaram 35 dos 58 pases me-
nos desenvolvidos. Metade deles mostrou uma sensvel mudana no uso dos mtodos
ao longo do tempo. O padro mais comumente encontrado foi o de uma mudana de
u m mtodo reversvel para outro definitivo, quando este estava disponvel (Tabela 1).

Tabela 1 Tendncias na prevalncia da esterilizao entre


usurios de mtodos contraceptivos. Pases me-
nos desenvolvidos 1975-1987

Fonte: MAULDIN & SEGAL, 1988, Prevalence of Contraceptive Use: trends and issues.

Este fenmeno no ocorreu somente nos pases do Terceiro M u n d o . Nos Estados


Unidos, o nmero de esterilizaes tambm cresceu. Em 1977, Hulka, da Associao
para a Esterilizao Voluntria, estimou que mais de oito milhes de homens e mulhe-
res na Amrica do Norte tinham sido esterilizados cirurgicamente. Doze anos depois,
Pratt (1989) considerou que a esterilizao cirrgica tinha se tornado a prtica
contraceptiva mais c o m u m entre homens e mulheres casados.
Ainda com relao s mulheres americanas, Bacharach, em 1984, j afirmava que,
nas duas dcadas anteriores, teria havido mudanas substanciais nas prticas
contraceptivas, particularmente u m importante aumento n o uso da plula e da esteri-
lizao, ao passo que o uso dos mtodos mais tradicionais, tais como o condom, tabela e
diafragma tinha declinado. Rutkow, em 1986, foi outro autor que no s reafirmava
que a ligadura tubria estava entre os procedimentos cirrgicos mais c o m u n s nos
Estados Unidos como tambm inclua a histerectomia.
Em 1992, Ross estimou que, mundialmente, 20,1% de todos os casais casados e m
idade reprodutiva tinham optado por esterilizao, dos quais 15,7% seriam mulhe-
res e 4,4% homens. Esses nmeros seriam maiores nos pases e m desenvolvimento,
com percentuais de 22,3% de mulheres e 11,4% de homens. Especificamente em relao
esterilizao feminina, os dados levantados por esse autor mostram que o percentual de
mulheres esterilizadas no Terceiro M u n d o era duas vezes maior do que nos pases desen-
volvidos (17,8% e 7,6%, respectivamente) (Tabela 2).

Tabela 2 Percentual de mulheres casadas com idade entre 15-


49 anos usando algum mtodo contraceptivo, por
mtodo e grau de desenvolvimento dos pases, 1990

Fonte: Ross, J.A., 1992. Sterilization: past, present, future.

O s ltimos dados do Population Reference Bureau (1998) oferecem u m a viso geral


sobre o uso de contraceptivos na Amrica Latina. C o m o podemos observar na Tabela 3,
e m 10 dos 15 pases c o m dados disponveis, a esterilizao feminina j a prtica
contraceptiva mais utilizada entre as mulheres casadas.

Tabela 3 Percentual de uso de contraceptivos e mtodo


mais utilizado, mulheres casadas. Amrica Latina

(continua)
Fonte: Population Reference Bureau, 1998, 1998: Las Mujeres de Nuestro M u n d o .

No Brasil, os ltimos 30 anos mostraram um aumento ainda mais marcante da prevalncia


da esterilizao feminina, basicamente a laqueadura tubria, tomando-a, hoje, a prtica
contraceptiva mais utilizada. Ainda que o nmero total de mulheres brasileiras esterilizadas
seja incerto, estima-se que girasse em torno dos 5 milhes, em 198 (BEMFAM, 1987) e, possi-
velmente, tenha atingido a marca de pelo menos 9,5 milhes em 1997 (UNFPA, 1994).
Esses nmeros so realmente impressionantes. U m a pesquisa realizada c m 1986
pelo IBGE mostrou que 44,4% das mulheres brasileiras que usavam algum mtodo
contraceptivo tinham optado pela esterilizao. Esses dados geraram fortes protestos da
sociedade civil organizada, do movimento de mulheres e de organizaes ligadas aos
direitos humanos, culminando com o estabelecimento de Comisses Parlamentares de
Inqurito no Congresso Nacional e em nvel dos estados.
Apesar de toda a polmica e debates ocorridos no incio da dcada de 90, nova
pesquisa nacional realizada em 1996 (BEMFAM, 1997) mostrou u m agravamento dessa
distoro, havendo u m aumento da prevalncia da esterilizao feminina (Tabela 4).

Tabela 4 Percentual de mulheres casadas com idade entre


15-49 anos, usando algum mtodo contraceptivo,
por mtodo. Brasil - 1986 e 1996

Fonte: BERQU, . Esterilizao Feminina n o Brasil Hoje, 1989; Pesquisa Nacional sobre Demografia e
Sade, 1996, BEMFAM, 1997.
Outra deformao do uso da ligadura tubria entre ns se refere idade ao ser esteri-
lizada. E m 1986, a mdia quando da ligadura tubria era de 31,5 anos (Arruda, 1987).
Vieira (1994), e m 1992, encontrou u m ndice ainda mais baixo (27,5 anos), na regio
metropolitana de So Paulo. No entanto, Berqu (1986) mostra que muitas mulheres
foram esterilizadas nos seus 20 anos e algumas quando ainda eram adolescentes (Tabela 5).

Tabela 5 Idade quando da esterilizao. Freqncia por


grupo etrio. Brasil 1986

Fonte: BERQU, . I Seminrio sobre Esterilizao Feminina e Masculina, 1986.

Determinantes da laqueadura tubria

Os determinantes da laqueadura tubria em nosso meio podem ser colocados em


quatro grandes grupos: Estruturais Internacionais, Estruturais Nacionais, Socioculturais
e Pessoais, formando u m modelo terico diagramtico (Figura 1) que ajuda a compre-
enso da complexidade e das inter-relaes desses determinantes em mbito nacional.

Figura 1 Modelo terico diagramtico dos determinantes


da escolha da ligadura tubria. Brasil
C o m o o estudo aprofundado desse tema no o objetivo deste texto, citaremos
apenas alguns dos determinantes que compem cada grupo e que esto envolvidos n o
complexo processo de escolha da laqueadura tubria, processo que tambm envolve os
princpios da teoria de escolha racional, alm dos modelos de escolha contraceptiva e
aspectos especficos relacionados deciso individual.
O s fatores estruturais internacionais seriam aqueles que, por meio de polticas
populacionais, organizaes governamentais e no-govemamentais, exerceriam u m a
forte influncia e m favor da escolha da laqueadura tubria como forma de contracepo.
So os fatores pob'ticos e econmicos internacionais, alm dos neomalthusianos e suas
teorias catastrficas, e m que o crescimento populacional nos pases do Terceiro M u n d o
sempre apontado c o m o a causa dos problemas ambientais mundiais.
Ainda nesse grupo, e no menos importante, podemos incluir o M o v i m e n t o de
Controle da Natalidade e o Movimento Eugnico (racismo internacional), que, desde o
incio da sua histria, advogaram a esterilizao feminina, inclusive compulsoriamente.
Entre as causas demogrficas internacionais devemos considerar que o problema
populacional vivido pela China, regio subasitica (ndia e Bangladesh) e Nigria serviu
para generalizaes no cientficas do mito da exploso populacional e da necessidade
de medidas contraceptivas coercitivas urgentes, principalmente as esterilizaes e m
massa. So, tambm, parte desse grupo de fatores as correntes migratrias de pases de
Terceiro M u n d o para os pases desenvolvidos, que foram responsabilizadas pelo agrava-
mento de tenses sociais, colocando lado a lado trabalhadores de baixa renda e u m a
elite racista, na reivindicao de leis de imigrao mais duras e de programas de contro-
le populacional nos pases do Terceiro M u n d o .
U m outro grupo de determinantes, denominados por ns fatores tecnolgicos e m
nvel internacional, so aqueles relacionados tanto ausncia de investimentos e avan-
os na contracepo masculina quanto, ao contrrio, melhoria das tcnicas e aborda-
gens cirrgicas de laqueadura tubria (laparoscopias, minilaparotomias) que influen-
ciaram fortemente para a alta prevalncia da esterilizao feminina.
C o m relao aos fatores estruturais brasileiros, pode-se afirmar que a ausncia de
claras polticas populacionais e a falta de u m a poltica de planejamento familiar de-
ram espao para que poucas, mas poderosas O N G s , associando-se, muitas vezes, a
governos estaduais e municipais, no s realizassem, mas, principalmente, treinas-
sem e oferecessem material cirrgico - inclusive laparoscopes - para laqueaduras
e m todo o Pas.
M u i t o s polticos profissionais praticaram troca de votos por laqueadura, e m -
bora a l g u n s se d e f e n d a m , a f i r m a n d o q u e apenas d a v a m u m a resposta a u m a
d e m a n d a reprimida. Entretanto, a maioria assume, claramente, u m a postura
controlista, pois acreditavam estar ajudando a resolver, c o m tal prtica, proble-
m a s socioeconmicos.
A importante migrao interna de reas mais desfavorecidas para as mais ricas,
principalmente para as das regies metropolitanas, e a rpida urbanizao que aconte-
ceu n o Pas podem ser classificados c o m o determinantes demogrficos, pois colabora-
ram para a sensao de u m a exploso demogrfica e da necessidade de u m controle
populacional por parte significante da sociedade brasileira.
Ainda dentro desse grande grupo de fatores estruturais nacionais, determinantes
econmicos, c o m o os baixos salrios dos mdicos, que viam na laqueadura tubria
u m a oportunidade de u m honorrio extra, ajudam a explicar a alta prevalncia da
tcnica. A misria e m que vive parcela significativa da populao tambm levou as m u -
lheres a optarem por essa cirurgia, vista por muitas como u m a sada para tal situao.
O s fatores educacionais (inadequado currculo mdico, treinamento mdico falho
e desvirtuado, baixo nvel educacional da populao, crise universitria, ausncia ou
desinformao sobre planejamento familiar e a ausncia de educao sexual nas
escolas) e os relativos sade, c o m o o desconhecimento dos efeitos colaterais da
ligadura, a convenincia, as prticas inadequadas e os preconceitos por parte dos
profissionais da sade, poderiam ser citados c o m o exemplos de fatores estruturais
brasileiros. Tambm se incluem nesse grupo, sendo considerados co-fatores da alta
incidncia da laqueadura tubria no Brasil: o financiamento insuficiente do sistema
de sade; a baixa qualidade dos servios oferecidos nas unidades de sade; a alta
incidncia de cesarianas; a dificuldade de acesso aos servios de planejamento fami-
liar; a falta de opes contraceptivas, incluindo a masculina; as polticas de sade
equivocadas - c o m o a no implantao de programas de planejamento familiar-; a
falta de investimento na aquisio ou produo de mtodos no permanentes; e a no
legalizao do aborto.
C o m o exemplos de fatores socioculturais, citaramos a mudana do status da m u -
lher dentro da sociedade brasileira, principalmente sua importante presena no mer-
cado de trabalho; o papel da mdia; os estmulos coercitivos em locais de trabalho; e o
machismo, que sedimentou entre os homens a idia de que contracepo era assun-
to apenas das mulheres. Ainda dentro desse grupo, importante lembrar a
medicalizao dos problemas sociais, em que o planejamento familiar foi Vendido'
para a sociedade c o m o instrumento de soluo de problemas sociais, e no como u m
direito reprodutivo. Ressaltamos, ainda, a ausncia de suporte para as mulheres tra-
balhadoras - c o m o as creches - e as crenas, mitos e desinformaes que diminu-
ram o uso de outras opes contraceptivas.
Por ltimo, relacionamos a opo pela laqueadura tubria a fatores que foram
agrupados c o m o de 'carter pessoal'. Nesse grupo, salientam-se os fatores ligados
informao - ou falta de - c o m o o desconhecimento, por parte da populao, dos
efeitos colaterais da ligao; e aqueles relacionados contracepo, mais especifica-
mente, os efeitos colaterais dos outros mtodos contraceptivos, o desconhecimento
de outros mtodos - o que leva a u m baixo uso e baixa aderncia maioria deles -
alm da praticabilidade, custos e eficcia de cada mtodo, e da contra-indicao de
outros mtodos ou de u m a nova gestao. O nmero e as complicaes relaciona-
dos c o m gestaes e partos anteriores podem t a m b m estar relacionados c o m a
escolha da laqueadura, assim c o m o aspectos envolvidos c o m as relaes maritais,
c o m o estabilidade e intercomunicao. Aspectos demogrficos - tamanho familiar
ideal, idade e sexo dos filhos, assim c o m o a idade individual t a m b m p o d e m ser
includos nesse grupo.

Efeitos colaterais

Em funo da alta prevalncia da esterilizao feminina na populao brasileira, qual-


quer efeito colateral desse mtodo pode ter u m impacto considervel na sade da popu-
lao. Vrios estudos, nos ltimos 50 anos, foram conduzidos para avaliar as possveis
seqelas da esterilizao. As anormalidades mais comumente descritas como associadas
ligadura tubria so as alteraes menstruais; maior incidncia de histerectomias; dores
plvicas; alteraes na libido, no ato sexual, emocionais, e no relacionamento do casal;
doenas funcionais da mama, cncer da mama, dores lombares e alteraes na lactao.
Entretanto, muitos desses estudos so criticados por falhas metodolgicas e re-
sultados conflitantes c o m outras pesquisas.
O grupo de alteraes mais bem estudadas o daquelas concernentes s alteraes
menstruais e ao aumento da incidncia de histerectomias. Muitos desses trabalhos
apresentam problemas metodolgicos, como ausncia de grupo-controle, ou grupo-
controle inadequado; pequeno tamanho amostrai; falta de ajustamento quanto ida-
de e ao tipo de mtodo contraceptivo anterior (principalmente a plula); alm de potenciais
vcios de seleo, de lembrana(recallbias), de observao e de follow-up.Tambm preci-
so ressaltar q u e e m m u i t o s estudos comparativos no foram usados testes de
significncia estatstica.
Existem, tambm, na literatura - principalmente at a dcada de 8 0 - trabalhos que
no demonstram aumento na incidncia de alteraes menstruais nas pacientes esterili-
zadas, o u a atribuem, principalmente, parada d o uso de contraceptivos orais
(Chamberlain, 1976; Bhiwandiwala, 1983,-Rulin, 1985).Porm,em muitos desses traba-
lhos, o perodo defollow-upfoi inferior a dois anos (Rubistein, 1979; DeStefano, 1983).
Em outros estudos revisados, apesar de encontrarmos u m a incidncia importante
de alteraes menstruais (Jensen, 195 7; Lu, 1967; Stergachis, 1990), ou u m a diferena
significativa entre os grupos (Rulin, 1993), os autores concluam de forma diversa,
revelando, pelo menos, u m vis de autor.
O resultado de u m a reviso bibliogrfica para trabalhos c o m achados positivos para
alteraes menstruais e a u m e n t o de histerectomias relacionadas c o m a laqueadura
tubria apresentado n o Quadro 1.
importante afirmar que a qualidade dos trabalhos dos ltimos oito anos refora a
possibilidade de u m a associao causal entre a laqueadura tubria e alteraes mens-
truais e aumento do risco de futuras histerectomias, principalmente aps cinco anos
da cirurgia e e m pacientes mais jovens.

Quadro 1 Trabalhos com achados positivos para alteraes


menstruais e aumento de histerectomias associa-
das laqueadura tubria

(continua)
*AJT = ajustamento para possveis fatores de confuso principalmente prvio tipo de contracepo; =
utilizao de mtodos estatsticos de significncia; ns = no significante,- folw-up=follow-up; a=anos;
m=meses; OR=odds ratio.
Coorte retrospectivo (HENNEKENS, 1987) = coorte histrico (FLETCHER, 1988) = prospective histrico (MAUSNER,
1985), follow-up retrospectivo.
Coorte prospectivo (HENNEKENS, 1987) = coorte contemporneo (FLETCHER, 1988) = coorte = estudos de
follow up prospectivo = forward studies (ABRAMSON, 1990) = longitudinal.

As bases fisiopatolgicas para essas alteraes foram estudadas por vrios autores e
vm apontando alteraes na funo ovariana aps a laqueadura tubria, causadas
possivelmente por insuficincia vascular, congesto venosa, alteraes no sistema lin-
ftico e leses neuroendcrinas locais e m decorrncia de traumatismos n o meso-
salpinge, e m conjunto ou isoladamente (Quadros 2 e 3).
Quadro 2Bases hormonais das seqelas de longo prazo,
ligadura tubria. Literatura internacional
1966-1988

Quadro 3 Hipteses postuladas para os efeitos de longo prazo,


ligadura tubria. Literatura internacional 1966-1988
Essas evidncias nos do sustentao para u m a base terica que indica, em termos
de longo prazo, riscos de alteraes psquicas, menopausa precoce e/ou sintomas
climatricos, a u m e n t o da osteoporose, a u m e n t o d o risco de doenas d o aparelho
cardiovascular e aumento de cnceres hormnio-dependentes, que merecem estudos
epidemiolgicos especficos (Figura 2).
Considerando o nmero de brasileiras, em sua maioria saudveis (mesmo levando
e m conta as possveis crticas metodolgicas em alguns dos artigos revisados), que vm
sendo submetidas esterilizao tubria, qualquer desses efeitos de longo prazo pode
ter u m importante impacto na sade da populao feminina, alm de u m custo econ-
mico adicional n o sistema de prestao de servios.

Figura 2 Modelo diagramtico dos riscos tericos de m-


dio e longo prazos da laqueadura tubria

C o m base nesses achados e n o modelo terico, alm do crescente nmero de m u -


lheres que se arrependem e vm solicitando a reverso da laqueadura tubria, desenvol-
vemos u m a nova tcnica de laqueadura, que mais fcil de ser realizada e que agride
menos o tecido tubrio e o mesosalpinge - rea por onde passa parte da vascularizao
e inervao ovariana. Alm disso, esta tcnica facilita a recanalizao cirrgica das trom-
pas, possibilitando maior sucesso em termos de futuras gestaes e uma menor chance
de gravidez ectpica tubria, complicao associada s reverses.
Esta cirurgia, denominada Molina e Costa, consiste e m bloquear as trompas de
Falpio por meio de quatro ligaduras (pontos) ao nvel do istmo (parte mais estreita da
trompa) e u m a m n i m a exciso de segmento de trompa, preservando a vitalidade do
mesosalpinge. Aps a apreenso da tuba com uma pina de Allis ou Kelly, duas ligaduras,
com fio absorvvel, so realizadas de cada lado da pina, em uma distncia de cerca de
0,5 a 1,0 c m entre as mesmas, seguidas de uma exciso do segmento da trompa entre
esses pontos e m forma deVsem atingir o mesosalpinge. O s dois orifcios do oviduto
que ficaram expostos c o m a exciso so tambm ligados comfioabsorvvel.

Concluses e sugestes

A prevalncia da laqueadura tubria no Brasil, que aumentou de 7,1 %, e m 1975, para


49,2%, em 1996, revela uma distoro do planejamento familiar entre ns. Esses nme-
ros reforam a idia de que a luta pela implantao de u m programa de assistncia
integral sade da mulher, c o m o o PAISM, continua atual e importantssima dentro da
tica dos direitos reprodutivos.
Com relao aos determinantes da laqueadura, importante que se tenha em mente
que u m a enorme gama de fatores esto interconectados e m u m complexo relaciona-
mento. As classificaes apresentadas nesse texto so apenas uma tentativa de simplifi-
cao e de didatismo de u m a complexa realidade, podendo esses determinantes ser
agrupados de forma diferente da que apresentamos aqui. Entretanto, apesar dessas
dificuldades, este modelo a primeira tentativa na literatura de se relacionar, siste-
matizar e integrar todos os possveis macro e micro determinantes da ligadura
tubria na realidade brasileira, e pode servir c o m o u m instrumento para a compre-
e n s o e t r a n s f o r m a o dessa inaceitvel realidade. O grande n m e r o de
determinantes refora a viso de que, para a reverso da distoro da alta prevalncia
da esterilizao feminina entre ns, se faz necessria uma estratgia integrada que atue
em vrios setores da sociedade.
tambm importante alertar pesquisadores, profissionais da sade e a populao
feminina sobre os riscos tericos a que esto expostas as pacientes submetidas
laqueadura tubria, para que sua deciso quanto ao uso dessa forma de contracepo
cirrgica seja a mais bem esclarecida possvel.
Principalmente n o contexto brasileiro - em que a contracepo feita sem o ofere-
cimento de exames de preveno, superviso e acompanhamento, e a populao femi-
nina vem sendo esterilizada e m u m a faixa etria bastante jovem - se faz necessrio o
financiamento de futuras pesquisas para o esclarecimento das implicaes dessa cirur-
gia na sade feminina. A plausibilidade do modelo terico apresentado neste texto
refora que o m e s m o deva ser usado c o m o ponto inicial para futuras pesquisas.
Sugerimos que essas informaes cientficas devam constar do consentimento livre e
informado para todas as pacientes desejosas de serem submetidas laqueadura tubria,
bem como fazer parte dos manuais de planejamento familiar do Ministrio da Sade.
Finalizando, c m relao cirurgia de Molina e Costa, parece-nos que a melhor
opo dentro do atual estgio de conhecimento dos efeitos colaterais da laqueadura
tubria e do nveldearrependimento, constatado em diversas pesquisas, entre as mu-
lheres que se submeteram esterilizao tubria.

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9

Mtodos de Barreira Controlados pela Mulher


Suzana Kalckmann

Apresentamos, aqui, uma sntese sobre a atuao dos mtodos de barreira controlados
pelas mulheres (diafragma e preservativo feminino) a partir dos resultados obtidos com os
estudos que realizamos sobre essas prticas contraceptivas. Esperamos contribuir, assim,
para a ampliao das discusses no campo da sade da mulher e dos direitos reprodutivos,
considerando-se que o uso de mtodos de barreira, atualmente, a nica possibilidade de
preveno ao HIV (alm da abstinncia e monogamia absolutas), e que ter controle sobre
seu uso pode ser uma forma de fortalecer as mulheres no terreno da sexualidade.

Breve histrico sobre os mtodos de barreira

As mulheres sempre buscaram prticas que lhes possibilitassem o controle sobre o


nmero de filhos e a poca em que desejavam t-los. Ao longo da histria, encontramos
relatos sobre a adoo de grande diversidade de prticas contraceptivas, entre as quais
predominam as barreiras femininas. C o m o exemplos, citamos o uso de tampes
intravaginais - de folhas mascadas ou de pasta composta de goma, mel, excrementos de
crocodilo, entre outros -, registrado em papiros egpcios datados dos sculos XVIII e XVI
a.C. Na Grcia antiga, as mulheres usavam tampes de confeco caseira c o m cido
tnico (Bruce & Schearer, 1979). Em Atenas, por volta de 500 a.C, eram utilizados un
gentos base de chumbo. Entre chinesas da dinastia Hia, sudanesas e maias, h regis-
tros do uso de rolhas de argila. No Japo antigo, prostitutas introduziam esponjas do
mar, polpa de rom ou figos, macerados de variadas folhas e pelculas de bambu embe
bidas em leo para evitar a gravidez (Rousselle, 1984; Population Reports, 1985).
Em 1838, Frederick Adolphe Wilde criou o capuz cervical de ltex, precursor moder-
n o do diafragma, a partir de u m molde de cera do colo do tero. H registros mais
antigos indicando o uso de muitos outros similares, produzidos com diferentes mate-
riais, c o m o marfim, prata, ouro, borracha etc. O diafragma, ou pessrio de Messinga,
foi descrito pela primeira vez em 1880 pelo mdico alemo Hasse, tendo sido bastante
difundido na Holanda e na Alemanha no final do sculo XIX (Population Reports, 1985).
O diafragma e o capuz cervical ganharam maior popularidade quando Margareth Sanger
os levou para os Estados Unidos, em 1920.
Os movimentos sociais que atuavam em sindicatos, especialmente socialistas e
anarquistas, estimularam a criao de clnicas de planejamento familiar, destacando-se
nesse perodo a atuao de Emma Goldmann, que contribuiu ativamente para a divul-
gao e a ampliao d o uso do diafragma e do capuz cervical entre as trabalhadoras
(Bandler, 1990). Nos Estados Unidos e na Europa, no comeo do sculo, apesar de os dados
sobre o uso do diafragma no serem sistemticos e nem sempre separados dos referentes
ao capuz cervical, existem indcios de que seu uso chegou a atingir nmeros significati-
vos da populao.
Durante a primeira metade do sculo XX, os diafragmas e condons foram os anti-
concepcionais mais usados nos EUA. Em 1955, o diafragma era o mtodo de escolha de
25%dos casais brancos, casados, que praticavam anticoncepo (fbpulation Reports, 1985).
Porm, a partir da dcada de 0, com a entrada em cena dos anticoncepcionais orais e dos
dispositivos intra-uterinos, a sua prevalncia foi decrescendo de forma inversamente
proporcional (Instituto de Sade, 1988). Nas duas ltimas dcadas, entretanto, diversos
estudos vm demonstrando que esses mtodos, considerados modernos e de alta eficcia,
apesar de adequados e eficazes para determinados casais, podem ser contra-indicados
para outros e, portanto, no esgotam as necessidades universais de contracepo.
A divulgao dessas informaes, aliada s idias bsicas dos movimentos feminista
e ecolgico, na dcada de 70, provocou a retomada do uso do diafragma em vrios pases
do Primeiro M u n d o . Essa busca por novas prticas contraceptivas vem sendo norteada
pelo desejo das mulheres de ampliar seu autoconhecimento, tornando-as mais aut-
nomas n o controle da prpria fertilidade e na busca de menor risco para a sade.
Alm disso, o surgimento da AIDS, nos anos 80, e o seu crescimento alarmante entre
as mulheres - principalmente pela transmisso sexual-trouxeram novos elementos
s pesquisas em contracepo, explicitando a necessidade de avaliao dos mtodos,
no apenas pela sua capacidade de prevenir gravidez indesejada, mas, tambm, por
1
serem capazes de evitar as doenas sexualmente transmissveis, inclusive AIDS . Essa
realidade conduziu ao resgate e reavaliao dos antigos mtodos de barreira, c o m o
o diafragma, e ao desenvolvimento de novos, c o m o o preservativo feminino.

1
Um panorama da situao da epidemia de AIDS entre as mulher pode ser encontrado em Quebrando o Silncio:
mulheres e AIDS no Brasil. PARKER &GALVO, 1996.
Rosemberg et al. (1992) c h a m a m a ateno para a anlise de 5.681 consultas a
u m a clnica de doenas sexualmente transmissveis de Nova York, nas quais en-
c o n t r a r a m riscos s i g n i f i c a t i v a m e n t e m e n o r e s para a gonorria e para a
tricomonase entre as usurias de mtodos de barreira controlados por mulheres
(capa cervical e diafragma).
O uso de mtodos vaginais de barreira no tem sido estimulado e m pases do
Terceiro M u n d o , embora sejam de fcil entendimento para sua aplicao, reconhe-
cidos c o m o incuos sade (devido ausncia de efeitos sistmicos) e garantam
maior proteo quanto preveno de DST/AIDS. N O Brasil, a tendncia de aumento
na escolha do diafragma no se verificou, pois o acesso ao mtodo sempre foi limi-
tado e o n m e r o de suas usurias n u n c a chegou a ser significativo. Esse fato
reflexo das polticas internacionais, que nos ltimos trinta anos estimularam, prin-
cipalmente nos pases do Terceiro M u n d o , o desenvolvimento e a adoo de mto-
dos de longa durao e cujo controle 'independe' de suas usurias. O s mtodos que
se vinculam diretamente c o m a sexualidade e exigem mudanas comportamentais
- c o m o os de barreira - recebem poucos estmulos e so considerados ineficazes
pela c o m u n i d a d e cientfica, e m geral, por estarem sujeitos 'baixa capacidade
intelectiva' da nossa populao.
Atualmente, n o Brasil, 76,7% das mulheres e m unio, de 15 a 49 anos, utilizam
alguma prtica contraceptiva. O uso da plula e da esterilizao feminina correspondem
a 20,7% e 40,1%, respectivamente. O s mtodos vaginais (diafragma, espumas e vulos
espermicidas) so usados por apenas 0,1 %. Estes ltimos so desconhecidos por grande
parte da populao, como demonstraram os dados da pesquisa Demographic and Health
Surveys (DHS)/9, em que apenas 44,5% das mulheres entrevistadas (entre 15 e 49 anos)
afirmaram ter ouvido falar sobre esses mtodos, enquanto praticamente todas declara-
ram conhecer a plula (99,6%), o preservativo masculino (98,6%), a esterilizao femini-
na (94%) e os injetveis (84,3%) (DHS-BEMFAM, 1996).

Diafragma

O diafragma u m artefato c n c a v o de borracha ou de silicone c o m bordas


flexveis que, c o l o c a d o adequadamente, recobre o colo do tero, ajustando-se
entre a parede posterior da vagina e a curvatura atrs do pbis. A o recobrir o colo
do tero, forma u m a barreira mecnica, impedindo a passagem dos espermatozides
para o interior do tero (Figura 1).
Figura 1 Colocao e posio adequada do diafragma

Fonte: Population Reports, 1985.

Atualmente, este mtodo produzido em vrios tamanhos padronizados, que variam


de 50 a 105 m m de dimetro, possibilitando seu ajuste s diferentes mulheres. O tama-
n h o adequado aquele cuja medida corresponde distncia que vai da curvatura
do osso pbico at o fundo d o saco-posterior da vagina e no incomode a usuria
(Tatum &Connell, 1981; Population Reports, 1985).
Apesar de algumas divergncias, na maioria dos estudos recomenda-se que o dia-
fragma seja utilizado em associao a u m espermicida, que deve ser colocado em sua
borda (Tatum & Connell, 1981; S E S / S R 1986). O s espermicidas so agentes qumicos
que tomam os espermatozides inativos. Atualmente, os mais utilizados so surfactantes,
que destroem a membrana celular do espermatozide. O mais popular o Nonoxynol 9 (N9),
que, alm de seu efeito espermicida, tem se mostrado ativo in vitro contra vrios agentes
causadores de DST incluindo gonococos, Treponema pallidum, Trichomonas vaginalis, vrus do
herpes simples tipo 2, hepatite B, citomegalovrus e o HIV. Persistem dvidas quanto
concentrao mnima necessria de N9 no produto para que o nvel adequado de ao
no meio vaginal seja mantido com segurana, pois altas concentraes podem provocar
leses na mucosa, o que aumentaria o risco para o HTV (Edelman & Thompson, 1982;
Population Reports, 1985; Rosemberg et al., 1992). Os espermicidas encontram-se dis-
ponveis sob a forma de espumas, gel, cremes, esponjas e filmes. No Brasil, sua disponi-
bilidade restrita. O Nonoxynol 9 est presente em u m creme produzido pela Fundao
para o Remdio Popular (cuja fabricao foi interrompida) e em u m creme importado,
que vem sendo comercializado h pouco tempo (Lago, 1996). Algumas farmcias de
manipulao preparam o produto.
Para a maioria das usurias, o uso do diafragma associado ao espermicida no causa
efeitos colaterais srios, tomando-o indicado para muitas mulheres que no podem
usar outros mtodos em funo de contra-indicaes ou riscos. N o entanto, algumas
situaes devem ser identificadas e consideradas durante a sua prescrio, tais como:
mulheres que nunca tiveram relao sexual; anomalias anatmicas da vagina, do colo
ou do tero, como prolapso uterino; grandes colpocistoceles ou colpo-retoceles; fistulas
genitais; retroverso uterina; septos vaginais etc.; infeces no tratadas do tero ou da
vagina; n o primeiro ms ps-aborto; alergia borracha ou aos espermicidas; nas seis
primeiras semanas ps-parto (segundo alguns autores, nos trs primeiros meses); e nos
casos de infeces urinrias crnicas e de repetio (Population Reports, 1985; SES/SP?
1986; Hatcher et al, 1988). Atualmente, Ferreira (apud Arajo, 1993) est desenvolvendo o
monitoramento do uso do diafragma sem espermicida e uso contnuo (com a recomen-
dao de que o diafragma seja retirado uma vez ao dia, durante o banho, e recolocado), o
que, segundo o autor, elimina as dificuldades de mtodo coito-dependente (aquele que
exige colocao antes ou no momento da relao), garantindo, portanto, maior eficcia.
No Brasil, o conhecimento e o acesso ao diafragma sempre foram muito limitados,
restringindo-se a alguns servios especiais e a Organizaes No-Governamentais (ONGs)
feministas. Apenas a partir de 1988 foi iniciada a produo nacional de diafragmas, pela
2
Semina . Conseqentemente, h poucas informaes sobre sua aceitao e seu uso.
Contudo, os raros estudos evidenciam que muitas mulheres optam pelo mtodo, quan-
do o conhecem e tm acesso a ele nos servios (Arajo et al., 1993). No estudo longitu-
3
dinal Aceitabilidade do diafragma entre usurias de Servios Pblicos de So Paulo ,
realizado em cinco servios pblicos de sade, o diafragma foi escolhido por 10,3% das
2.044 mulheres que optaram por algum mtodo no perodo (Lago et al., 1995). A maio-
ria das mulheres que o escolheram referiu experincia contraceptiva anterior negativa,
principalmente c o m queixas de efeitos colaterais (77,4% relataram problemas com o
uso da plula) e falhas (26,3% referiram gravidez indesejada com uso de algum mtodo).
Informaes coerentes com a 'preocupao com a sade', que levaram 40% das mulhe-
res ao diafragma. Outras 30% chegaram a ele por excluso das outras possibilidades. A
maioria (68,8%) diz que aprendeu, sem problemas, o manuseio do mtodo durante o
treinamento inicial no centro de sade; 31,4% afirmaram ter dificuldades para apren-
der e/ou entender as orientaes recebidas (Kalckmann et al., 1997a).
Embora a maioria tenha referido muitas vantagens na utilizao do diafragma -
especialmente relacionadas ausncia de efeitos colaterais - as dificuldades e os aspec-
tos negativos levaram muitas ao abandono do mtodo. No seguimento do primeiro

2
Empresa paulistana que desenvolveu e comercializa o diafragma de silicone e espiral de metal tratado,
nos tamanhos 60 a 8 5 mm.
3
Estudo realizado entre agosto de 1989 a agosto de 1991, por equipe do NISMC, do Instituto de Sade,
SES/SP. Ver, para mais detalhes, LAGO et al, 1995.
ano, observou-se u m a taxa acumulada de descontinuidade de 74,3%, para a qual as
interrupes ocorridas at trs meses aps a escolha contriburam com 55%. As razes
alegadas foram de diferentes naturezas, mas, no total, predominaram as relacionadas
influncia dos parceiros e s dificuldades de manuseio. Alm disso, as mulheres que
procuraram outros servios e/ou farmcia foram desestimuladas a continuarem com
o mtodo. Diante desse panorama, concluiu-se que a atividade de planejamento fa-
miliar deveria ser redimensionada, aprofundando-se as aes educativas e/ou orien-
taes para as usurias de diafragma e atividades direcionadas aos parceiros, afimde
possibilitar maior retaguarda para a continuidade de uso.

Preservativo feminino

Averso moderna do preservativo feminino foi colocada n o mercado suo com o


nome de Femidom e m 1992. Atualmente, comercializado em vrios outros pases da
Europa e nos Estados Unidos, onde o Food and Drug Administration (FDA), rgo do
governo norte-americano responsvel pela fiscalizao de medicamentos e alimentos
aprovou sua comercializao em 1993, com o nome Reality, aps a realizao de u m
estudo controlado (Farr et al., 1994). Segundo o FDA, o seu tempo de validade de 60
meses aps a fabricao (WHO/HRP 1997).
No Brasil, o Ministrio de Sade autorizou a sua comercializao e m dezembro de
1997, tambm sob a marca comercial Reality. Antes deste perodo, seu uso foi limitado
4
aos estudos que estavam sendo desenvolvidos para avaliar sua aceitao n o Pas
(Kalckmann et al., 1997b).
O preservativo feminino u m tubo de poliuretano fino, resistente, transparente e
pr-lubrificado, com cerca de 16 c m de comprimento por 7,8 c m de largura. Tem dois
anis flexveis, t a m b m de poliuretano. U m deles fica solto dentro do tubo e serve
para ajudar na colocao e fixao do preservativo junto ao colo uterino. O outro anel
forma a bainha externa do preservativo que, quando colocado, cobre parte da vulva
(Figura 2). Deve ser usado u m a nica vez. O poliuretano resiste mais do que o ltex s
condies pouco favorveis de armazenamento, especialmente ao calor e ao uso simul-
tneo c o m lubrificantes.

4
Estudo Multicntrico AIDSCAP, Women's Initiative, Family Health International.
Mtodos de Barreira Controlados pela Mulher

Figura 2 Preservativo feminino, colocao e retirada

Fonte: Instrues de uso Reality, Lab. Chartex, 1996.

O preservativo feminino apresenta vantagem adicional e m relao ao diafrag-


ma, pois, ao recobrir totalmente a vagina, confere proteo contra as DST, inclusive
AIDS. Estudos in vitro confirmaram que ele consiste e m u m a barreira fsica a micror-
ganismos causadores de DST Voeller et al. (1991) demonstraram que o poliuretano
u s a d o i m p e r m e v e l a gases, l q u i d o s e m i c r o r g a n i s m o s ( i n c l u i n d o o
citomegalovrus, vrus da herpes, vrus da hepatite e HIV).
U m estudo objetivando comparar a presena de trauma vaginal ou vulvar e
m u d a n a s na flora vaginal aps o uso de preservativo f e m i n i n o e diafragma foi
desenvolvido por Soperet al. (1991) e avaliou 30 mulheres. No foram detectados
t r a u m a e m u d a n a c o m o u s o d o preservativo; c o m o diafragma, n o e n t a n t o ,
verificou-se m u d a n a n a flora vaginal. E m outro estudo, Soper et al. (1993),
mediram a taxa de reinfeco por Trichomonas vaginalis em 54 mulheres que usaram
o preservativo f e m i n i n o e e m outras 50 que foram grupo controle. Entre as m u -
lheres que usaram o preservativo e m todas as relaes, n e n h u m a foi infectada, ao
passo que 14% das mulheres do grupo de controle e das que usaram o preservativo
de forma irregular se infectaram.
At o momento, foram realizados estudos de aceitabilidade do condom feminino em
vrios pases, com diferentes metodologias e populaes, que, apesar da diversidade,
mostram a interferncia de fatores sociais, econmicos e culturais na aceitao e no
uso deste mtodo.
Ford & M a t h i e (1993), e m estudo c o m 214 usurias de 17 clnicas de planeja-
m e n t o familiar da Gr-Bretanha, relatam que 53% o consideraram neutro, e 39%
b o m aps trs meses de uso. Muitas mulheres tiveram dificuldade para persuadir o
parceiro a us-lo. Jenkins et al. (1995) entrevistaram 224 mulheres. Cinqenta e
sete por cento preferem o preservativo feminino ao masculino e 40% so indiferen-
tes. Segundo Bounds et al. (1992), a partir de u m estudo na Gr-Bretanha, 71% das
106 mulheres que experimentaram relataram dificuldades para a sua colocao -
todas moravam c o m seus parceiros. Em Camares, Monny-Lob et al. (apud W H O ,
1997) analisaram a aceitao do preservativo feminino por 40 profissionais do sexo,
verificando que 63% preferiram o preservativo feminino ao masculino, 16% o mas-
culino e 21% eram indiferentes.
As opinies sobre o preservativo feminino so bastante diversificadas. U m a mesma
caracterstica considerada positiva por determinada mulher e/ou casal e negativa por
outro. Para algumas mulheres, por exemplo, a lubrificao do preservativo feminino
facilita a penetrao, melhorando a relao; para outras, h excesso de lubrificao, o
que interfere de forma negativa ou impede a relao. Apesar das diferenas, a maioria
dos estudos aponta como caractersticas positivas:

conferir maior autonomia mulher;


propiciar e/ou facilitar a comunicao sobre preveno de gravidez e DST;
no provocar efeitos colaterais;
no interromper a relao, pois pode ser colocado previamente;
no alterar a sensibilidade;
propiciar maior tempo no ps-coito.

Os aspectos negativos apontados so:

incmodo provocado pelo anel externo;


reduo do prazer sexual;
interferncia na esttica;
deslocamento durante a relao;
resistncia por parte do parceiro.
O fato de o condom feminino 'retomar' mulher a responsabilidade da contracepo
e da preveno foi apontado como positivo por algumas mulheres e casais; para outros,
como negativo.
Entre as restries a esse mtodo destaca-se o seu alto custo (cerca de U$2,50, trs
vezes o valor do preservativo masculino, nos Estados Unidos), o que u m obstculo
importante para sua massificao, principalmente nos pases pobres. Existem iniciati-
vas para avaliar sua reutilizao, embora os riscos associados provavelmente no justi-
fiquem a economia (WHO/HRP, 1997).

As barreiras intravaginais so seguras?

C o m o se pode observar pelo Quadro l , as taxas de falha dos mtodos de barreira


feminino variam muito e refletem a diversidade de metodologia e populaes, mas se
referem principalmente forma como so usados. H que se considerar que a ideologia
que perpassa os servios provedores interfere diretamente na segurana e na eficcia
dos mtodos, no apenas pela regularidade de sua oferta, c o m o tambm pela forma
c o m o so apresentados e pela qualidade das orientaes que fornecem populao.
Destaque-se que, alm da motivao do casal, so necessrias solues rpidas para
eventuais problemas que possam surgir durante a fase de adaptao.

Quadro 1 Alguns resultados de estudos sobre eficcia de


mtodos de barreira intravaginais

Nota:
(1) A taxa de efetividade de uso d o diafragma foi calculada c o m seguimento das usurias por meio de
visitas domiciliares. Este monitoramento contribuiu para que a proporo de falhas encontradas tenha
sido maior do que a dos outros estudos nacionais realizados nos servios. Adaptado de: Instituto de
Sade, 1988.
Q u a n d o se analisam os resultados sobre a segurana contraceptiva de u m mtodo,
fundamental que se tenham claros os critrios adotados para definir a populao
usuria, o que se entende por uso e por descontinuidade d o uso, e c o m o foram
calculadas as taxas de falhas. Isso parece bvio, mas nem sempre os artigos explicitam
esses dados. Encontram-se, e m vrios deles, comparaes, muitas vezes c o m vis
ideolgico, entre 'eficcia terica' e/ou 'uso perfeito' (que considera apenas as falhas
ocorridas entre aquelas que fizeram o uso consistente e adequado) e 'eficcia prtica'
ou 'efetividade' (que considera o total de usurias, independentemente da forma
c o m o se deu o uso). Outro aspecto importante o perodo considerado para o clculo
de falhas - no perodo inicial, especialmente nos primeiros seis meses, a proporo de
falhas , normalmente, maior do que nos perodos subseqentes.
Apenas para exemplificar, a eficcia terica da plula de 99,9%, fato sempre
citado q u a n d o se fala sobre sua segurana. N o entanto, alguns estudos a p o n t a m
taxas elevadas de ocorrncia de gravidez entre as usurias desse mtodo. Vale citar
aqui alguns dados: e m u m estudo realizado e m Fortaleza, 12% das mulheres hos-
pitalizadas ps-aborto usavam plula q u a n d o engravidaram (apud Giffin & Costa,
1 9 9 6 ) ; e m e s t u d o realizado na G r a n d e S o Paulo, das 5 1 m u l h e r e s q u e
engravidaram e m uso de m t o d o , 2 4 (47%) c o n s i d e r a m q u e a plula falhou
(Kalckmann, 1 9 9 5 ) ; e m recente pesquisa populacional realizada nacionalmente,
entre as razes alegadas para a interrupo da plula nos ltimos cinco anos, a
falha do m t o d o foi referida por 11,4% de suas usurias, similar falha atribuda
no m e s m o estudo ao condom masculino (11,7%) (DHS/BEMFAM, 1 9 9 6 ) . Tais resultados
demonstram que, apesar da alta 'eficcia terica', a plula falha, q u a n d o tomada
de forma inadequada e sem orientaes, ou seja, q u a n t o 'eficcia prtica', n o
cotidiano, sua segurana pode ser comprometida.
Os resultados obtidos por Farr et al. (1994), em u m estudo multicntrico realiza-
do nos Estados Unidos, M x i c o e Repblica Dominicana evidenciam a diferena
entre a 'efetividade' e a 'eficcia em uso perfeito' do preservativo feminino. A taxa
de gravidez e m uso desse mtodo foi de 12,4% entre as americanas e 2 2 , 2 % entre as
latinas, resultando u m a taxa de falha de 15% nos primeiros seis meses. Neste estudo,
no houve atividades de aconselhamento durante o seguimento. A eficcia em uso
perfeito (eficcia terica), definido c o m o o uso de preservativo feminino em todas
as relaes, foi de 2,6% entre as americanas e 9,5% entre as latinas, c o m u m a taxa de
falha de 4,3 por 1 0 0 mulheres, n o m e s m o perodo. Alm disso, importante procu-
rar maiores informaes sobre a populao estudada, antes de se fazerem generali-
zaes. O s achados de Farr, por exemplo, ao serem comparados, exigem c a u t e l a -
mais de 4 0 % das participantes usavam preservativo masculino antes de sua incluso
no estudo; mais de 90% das americanas e 50% das latinas usavam, pelo menos even-
tualmente, outros mtodos de barreira.
A diversidade de desenhos (estruturas de pesquisa) e a ausncia de informaes
sobre a metodologia adotada pelos estudos tornam muito difcil a comparao entre
eles, mas levam a concluir que a segurana do diafragma e do preservativo feminino
comparvel a de outros mtodos, desde que usados adequadamente. Atualmente, dian-
te do quadro epidemiolgico da AIDS e das demais DST, fundamental que qualquer
discusso sobre a segurana dos mtodos contraceptivos considere tambm sua capa-
5
cidade de proteo contra essas doenas .

Quadro 2 Eficcia contraceptiva durante o primeiro ano de uso

Fonte: Adaptado de W H O . The female condom, 1997, verso preliminar.


Notas:
Considera-se o total de mulheres que se dizem em uso do mtodo, independente da adequao ou no desse uso.
Considera-se apenas as mulheres que referem uso adequado do mtodo.

Primeiras experincias com preservativo feminino no Brasil

6
"O Preservativo Feminino como Mtodo Controlado pelas Mulheres" o primeiro
estudo sobre o tema realizado no Brasil, visando a apresent-lo s mulheres; descrever
suas impresses de uso; identificar fatores que facilitam ou dificultam seu uso; avaliar

5
Para maior aprofundamento ver LAGO, 1996.
6
No Brasil, este estudo, conhecido como Projeto Beija-flor, foi realizado pelo Instituto de Sade, Mulher,
Criana, Cidadania e Sade (MCCS) e Associao Sade da Famlia, no perodo de fevereiro de 1996 a
janeiro de 1997, na cidade de So Paulo, sob a coordenao de Suzana Kalckmann.
como o mtodo interfere no processo de negociao sexual; sondar as opinies dos
parceiros; e verificar o papel das atividades educativas e de apoio contnuo de pares
na dinmica de uso.
Nesse estudo exploratrio, com abordagem quantitativa e qualitativa, as participan-
tes foram recrutadas em reunies realizadas em diversas regies do municpio de
So Paulo, muitas delas com o apoio de O N G s . Nessas reunies foram dadas explica-
es detalhadas sobre o estudo e sobre o preservativo feminino, alm de promove-
rem-se discusses sobre DST/AIDS, contracepo e fisiologia feminina. Na mesma oca-
sio, as participantes que preenchiam a ficha de recrutamento recebiam uma caixa de
7
preservativo feminino (Reality, com seis unidades ) e eram convidadas a voltar reu-
nio de deciso.
As reunies de deciso foram realizadas, em mdia, cerca de 20 dias aps o recruta-
8
mento. As participantes, aps ler, discutir e assinar o consentimento informado , deci-
diam se desejavam continuar no estudo. Os critrios de incluso eram, ento, revistos.
Nos casos afirmativos, uma entrevistadora treinada realizava a entrevista individual
inicial e fornecia uma agenda com as instrues de uso do mtodo, e a participante era
alocada em u m dos oito grupos formados, segundo faixa etria e nvel socioeconmico.
Cada grupo se reuniu quatro vezes (grupos focais inicial e final e duas sesses de apoio)
e as participantes responderam a uma entrevista individual final. Os critrios de elegi-
bilidade: ser sexualmente ativa; morar na Grande So Paulo; ter idade entre 18 e 40 anos;
no desejar ficar grvida nos seis meses subseqentes e concordar em participar das
atividades do estudo.
No total, 394 mulheres participaram das reunies de recrutamento, das quais 126
(32% das recrutadas) voltaram para as reunies de seleo, sendo que 11 delas no
obedeciam aos critrios de elegibilidade. Assim, 115 mulheres foram includas, respon-
deram entrevista inicial e foram alocadas em u m dos oito grupos formados. Destas, 12
(10%) no participaram de nenhuma atividade de grupo e foram consideradas como
perda. Foram includas 103 mulheres, com tempo mdio de observao de dois meses.

De acordo com a entrevista inicial, a mdia de idade foi de 29,6 anos ( 6,9). A mdia

de anos concludos de escolaridade foi de 10,4 anos ( 3,9) e 77,5% desenvolviam atividade
remunerada. A maioria (94,2%) tinha um parceiro auto-referido como principal, com
mdia de 8,1 relaes sexuais por ms; 77,7% tinham conhecimento bsico sobre AIDS;
80,6% referiram j ter conversado com seus parceiros sobre o assunto; 84,5% declararam
grande necessidade de se prevenir do H1V Chama a ateno a proporo de gravidez
anterior, em uso de prticas contraceptivas: 2 5% do total de mulheres. Os mtodos apon-
tados como responsveis por falha foram a plula (31,4%) e abstinncia peridica (22,8%).

7
Os preservativos foram doados pelo governo dos Estados Unidos - USAID.
8
Documento com todas as informaes sobre o preservativo feminino e o desenvolvimento do estudo.
A motivao alegada para entrarem no estudo foi o desejo de encontrar uma nova
alternativa contraceptiva e a curiosidade. De incio, poucas falaram sobre a necessidade
de se proteger contra as DST/AIDS (resposta espontnea no recrutamento).
De modo geral, a avaliao final das participantes foi positiva. 75% (72) referindo seu
uso ao final do estudo, das quais 33% (24) em uso exclusivo. Entre os atributos positivos
predominaram os referentes:
a ser confortvel (30,5%);
autonomia para as mulheres conferida pelo mtodo (27,4%);
proteo tanto contra a gravidez quanto contra as DST (22,1 %);
no-alterao da sensibilidade (20%);
a ser de fcil manuseio (16,8%).
e a consistir em uma alternativa ao preservativo masculino para prtica de sexo mais
seguro (14,7%).

Outro aspecto positivo apontado nas discusses em grupo foi o fato deste mtodo
facilitar a negociao de seu uso, por ser novidade e no ter, portanto, o mesmo signifi-
cado negativo do preservativo masculino.
De m o d o geral houve u m estranhamento inicial - o condom feminino foi considera-
do grande e desajeitado. No final, apenas 22,1% consideraram esse aspecto negativo. Nos
grupos ocorreram muitas discusses a esse respeito, com posies divergentes. Algu-
mas mulheres ponderaram que a interferncia na esttica comprometia a possibilida-
de de seu uso; outras consideraram esse aspecto algo supervel, que gradativamente
seria incorporado.
Outros atributos negativos foram: difcil manuseio (15,8%) e incmodo provocado
pelo anel externo (11,6%). Muitas mulheres (46%) tiveram dificuldades iniciais para a
colocao do preservativo. No entanto, 87,5% afirmaram que, a partir da terceira coloca-
o, passaram a manuse-lo com facilidade. Outros obstculos ao uso foram o desloca-
mento durante a relao (15,2%) e o excesso de lubrificante (11%).
A participao em grupos de apoio, com outras mulheres da mesma faixa etria e
nvel socioeconmico, mostrou-se fundamental para a superao das dificuldades ini-
ciais. Nessas discusses afloraram temas referentes dificuldade de negociao de uso
do mtodo com o parceiro.
Em sntese, a avaliao final demonstra que o preservativo feminino pode ser uma
alternativa para muitos casais, mas que, para sua utilizao de forma adequada e cont-
nua, necessrio propiciar espaos para a troca de informaes e experincias.
Concluses

Os mtodos femininos de barreira podem e devem ser uma escolha adequada para
determinados perfis de mulheres, tanto pela sua ao contraceptiva, quanto pela prote-
o que oferecem - no caso do preservativo feminino - em relao preveno das DST/
AIDS. Mais do que isso, deve-se propriamente destacar que o preservativo feminino
representa uma importante alternativa para a preveno na transmisso sexual do HIV
Contudo, alguns aspectos devem ser considerados. As mulheres que escolhem os mto-
dos femininos de barreira adotam prticas distintas dos padres culturalmente vigentes
no Brasil, centrados na alta eficcia da plula e da esterilizao feminina. Portanto, alm
das dificuldades individuais vividas para o enfrentamento de u m mtodo novo, elas
sofrem o nus de optarem por u m caminho contrrio ao da maioria, o que exige maior
convico para a continuidade de uso. Diante desse quadro, os servios de sade prove-
dores deveriam prestar uma ateno especial a essas mulheres, principalmente no pe-
rodo inicial de adaptao ao mtodo, u m momento crtico para a sua manuteno.
Apesar de esses mtodos conferirem maior autonomia s mulheres, a percepo dos
parceiros em relao a eles se mostrou fundamental para a continuidade de uso, indi-
cando que as barreiras vaginais sob controle feminino podem facilitar a negociao
sexual, mas no eliminam a necessidade de comunicao entre o casal.
Por fim, faz-se necessrio, mais do que concluir, explicitar alguns desafios, que
dependem essencialmente de vontade poltica. A expressiva maioria das mulheres bra-
sileiras depende dos servios pblicos para o atendimento sua sade.
C o m o compatibilizar a realidade atual dos servios pblicos a essa necessidade de
apoio e respostas imediatas geradas pelo uso dos mtodos de barreira? Que estratgias
podem ser adotadas para ampliar a divulgao desses mtodos e como garantir subsdi-
os para que possam ter continuidade?
Diante desses desafios, urgente que esforos sejam concentrados na ampliao do
nmero e da diversidade de estudos sobre os mtodos de barreira vaginal, seguros,
eficazes e cuja aceitabilidade pelos casais assegure a preveno da gravidez indesejada,
das DST e da AIDS.

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10

Aborto Provocado:
a dimenso do problema e a transformao da prtica
Sarah Hawker Costa

Introduo

Nas ltimas dcadas, a maioria dos pases do m u n d o tem apresentado a tendncia


de liberalizar as leis de aborto, ao passo que o Brasil continua a restringir severamente a
interrupo voluntria da gravidez. O principal efeito destas medidas legais restritivas
no a reduo da prtica do aborto, e sim a exacerbao das desigualdades
socioeconmicas que permeiam nossa sociedade. Em grande parte do Pas - especial-
mente nas grandes cidades - mulheres com recursos financeiros tm acesso a servios
relativamente seguros e modernos. Em contraposio, as pobres so foradas a recorrer
a abortos realizados sob condies anti-higinicas por pessoas no treinadas ou obriga-
das, elas mesmas, a pratic-lo. Estas prticas inseguras - muitas vezes desencadeadas
por diversos meios, progressivamente mais perigosos-causam complicaes que re-
sultam em u m a proporo substancial das admisses ginecolgicas em hospitais e
constituem uma das principais causas da mortalidade materna.
Neste captulo, analisa-se o aborto provocado no Pas e apresenta-se u m panorama que
procura discutir seus determinantes e os impactos causados sade da mulher pobre pela
prtica insegura do abortamento. Recorre-se a dados de estatsticas governamentais, pes-
quisas de base populacional e estudos hospitalares com pacientes em abortamento - mais
especificamente, focaliza-se em pesquisa realizada no Rio de Janeiro, em 1991 (tambm
denominada, neste artigo, como o 'estudo' ou 'pesquisa' do Rio). Utilizando uma combina-
o de mtodos quantitativos e qualitativos, foram entrevistadas na poca 1.608 mulheres
admitidas em sete hospitais da rede pblica com diagnsticos relacionados ao abortamento.
A dimenso do problema

As limitaes metodolgicas para a conduo de pesquisas sobre o aborto induzido


em u m contexto em que a prtica ilegal so bastante conhecidas (Population Council,
1989; Barreto, 1992). O sub-registro e a classificao errnea so freqentes e devem-se
ao receio da mulher em admitir o ato ilegal; relutncia dos profissionais da sade em
registrar corretamente o evento nos pronturios hospitalares, por causa das sanes
legais aplicveis; ou, ainda, soma das duas hipteses.
Mesmo assim, inquritos populacionais documentam uma alta prevalncia do aborto
ilegal. A proporo de entrevistadas que admitem u m ou mais abortos varia entre 9% e
24%, de acordo com pesquisas do final dos anos 60 e incio dos 70 (Rodrigues et a l , 1981;
Rodrigues; Morris & Janowitz, 1984). A incidncia de gravidezes terminando em aborto
foi de 6% em So Paulo e m 1965 e de 11%, em 1978 (Milanesi, 975; Nakamura et al.,
i 980). U m a taxa mais alta foi reportada e m favelas do Rio de Janeiro, e m 1984:2 3% de
todas as gravidezes resultaram e m aborto induzido, c o m o n m e r o mdio de
abortamentos da ordem de 2,1 % por mulher (Martins et al., 1991). Estudo semelhante,
feito e m 1988 c o m 3.764 mulheres residentes na rea metropolitana do Rio de Janeiro
registrou que 22% das gravidezes ocorridas nos 12 meses antecedentes pesquisa resul-
taram e m aborto - 52% deles provocados (Oliveira &Jourdan, 1989). Em u m trabalho
em cinco favelas de Belo Horizonte (MG), 30% das mulheres declararam haver provoca-
do u m aborto (Silva, 1984).
Em pesquisas dos anos 90, constatou-se que u m nmero relativamente grande de
mulheres a cada ano experimenta abortos repetidos. O estudo nos hospitais do Rio
revelou que 26% de mulheres haviam provocado pelo menos u m aborto anteriormente;
12% tiveram pelo menos trs. Ao se re-entrevistar uma subamostra destas mulheres seis
meses depois, detectou-se que 12% estavam grvidas e 3% haviam realizado outro aborto
induzido n o perodo (Costa, 1995). Em estudo semelhante conduzido em Fortaleza,
Cear, verificou-se u m ndice de 22% de mulheres internadas com histrico de aborto
anterior (Misago, 1994).
Alm de informaes sobre abortamentos efetivamente realizados, alguns estudos
ressaltam que as tentativas tambm so em numerosas. No Rio de Janeiro, e m 1991,
entre o grupo de parturientes entrevistadas, 18% relataram tentativas malsucedidas de
abortar (Costa, 1995).
A despeito de algumas imperfeies, encontram-se disponveis desde 1991 estatsti-
cas oficiais compiladas pelo Ministrio da Previdncia sobre as admisses nos servios
circunscritos ao servio pblico no Pas, incluindo os servios privados contratados
pelo antigo Instituto Nacional de Assistncia Mdica e Previdncia Social (INAMPS). A
Tabela 1 mostra que u m total de 241.945 mulheres c o m diagnstico relacionado ao
aborto foram tratadas e m 1997 pela rede pblica no Brasil. O s dados tambm sugerem
a existncia de u m decrscimo sistemtico n o nmero de mulheres que procuram
hospitais por complicaes relacionadas ao aborto e m todas as regies brasileiras, c o m
u m declnio total da ordem de 20% e m anos recentes.

Tabela 1 Internaes por diagnoses relacionadas ao abortamento


(CIE) 630-639) por regio e ano de internao

Fonte: Ministrio da Sade/ Fundao Nacional da Sade/Centro Nacional de Epidemiologia.

C o m o as informaes hospitalares so colhidas considerando o aborto ilegal, normal-


mente no apresentam distino entre abortos induzidos e espontneos. Pelos registros
oficiais, menos de 1 % dos atendimentos traz a classificao 'aborto induzido' (Tabela 2).

Tabela 2 Nmero de internaes por abortamento em hospi-


tais pblicos do Brasil 1997, por tipo de aborto

Fonte: Ministrio da Sade/ Fundao Nacional da Sade/Centro Nacional de Epidemiologia.

Antes de qualquer ajustamento, o nmero de mulheres admitidas e m hospitais


pblicos c o m diagnstico relacionado ao aborto representava aproximadamente 0,8%
da populao feminina de 15 - 49 anos de idade e m 1993, diminuindo para 0,6% e m
1996, c o m taxas mais altas observadas nas regies Norte e Nordeste - 0,8 e 0,6%; e 1,1 %
e 0,8%, respectivamente (Tabela 3).
Tabela 3 Taxas de internao por abortamento, por regio
e ano*

Fonte: Ministrio da Sade/ Fundao Nacional da Sade/Centro Nacional de Epidemiologia.


Nota:
(*) C o m base no nmero de internaes por abortamento (CID 630-639) dividido pela populao feminina
da faixa etria de 15-49 anos.

Taxas significativamente mais altas de hospitalizao por diagnsticos ligados ao


aborto so encontradas entre mulheres nas faixas etrias dos 15 aos i 9 e dos 20 aos 29
anos, se comparadas s mulheres c o m mais de 30 anos. Isto se justifica pela alta inci-
dncia de esterilizao feminina que atinge a populao feminina desta faixa etria (em
especial c o m mais de 40 anos), eliminando os riscos de engravidar.
Como se mostra na Tabela 4, o percentual de internao para mulheres entre 20 e 29 anos
na Regio Nordeste em 1996 era de 1,3%, sendo que em dois Estados, Bahia e Sergipe, o ndice
alcanou 1,9% (Tabela 4). Na Regio Norte, o estado do Acre apresentou taxas ainda superiores:
para o grupo entre 15 e 19 anos, era de 1,5%; e de 2,1 % para as mulheres entre 20 e 2 9 anos.
Diante da ausncia de dados similares para o setor privado de sade- financiado diretamente
pelo consumidor-estes nmeros devem subestimar a extenso e seriedade do problema.

Fonte: Ministrio da Sade/ Fundao Nacional da Sade/Centro Nacional de Epidemiologia.


Nota:
(*) C o m base no nmero de internaes por diagnoses ligadas ao aborto (CID 630-639) classificao
realizada pela populao feminina do mesmo grupo etrio.
Dados sobre admisses hospitalares no setor pblico tambm indicam que mulheres
com complicaes de abortamento constituem uma proporo substancial de todas as pacien-
tes obsttricas.Porexemplo, no Estado do Rio de Janeiro, admisses por abortamento foram
responsveis por 14% de todos os procedimentos obsttricos (partos normais e cesarianas e
admisses por abortamento) em 1995; e 16% na rea metropolitana do Rio de Janeiro.
importante enfatizar que estes nmeros fornecem apenas u m painel fragmenta-
do da situao, porque os dados sobre admisses por abortamento, partos e outros
procedimentos obsttricos n o setor privado no esto disponveis e inexistem estudos
para avaliar a cobertura e a qualidade dos dados oficiais. Ressalta-se tambm que os
estudos hospitalares, cuja cobertura limitada, podem apresentar uma viso distorcida
e no representativa do universo.
Na ausncia de fontes mais adequadas, pesquisadores do Instituto Alan Guttmacher
(AGI) tm tentado estimar o nmero de abortos induzidos n o Pas, tendo c o m o base
informaes sobre internaes hospitalares fornecidas pelo DATASUS. Depois de separar
os abortos induzidos dos espontneos, os investigadores multiplicam o nmero de
abortamentos induzidos segundo proporo estimada destes casos que requerem
internao. O nmero ajustado tambm por classificao errnea e subenumerao.
C o m base nesta metodologia, o nmero de abortos induzidos n o Brasil e m 1991 foi de
1.443.350, correspondendo a u m a taxa anual de 3,7 abortamentos por 100 mulheres
entre 15 e 49 anos; e segundo os autores, 31% de todas as gravidezes resultaram e m
aborto por ano (AGI, 1994; Singh & Wulf, 1994).
Singh & Sedgh (1997), analisando admisses hospitalares entre o fim da dcada
de 70 e incio dos 90, detectaram tanto o incremento nos ndices de aborto quanto
d o uso de m t o d o s contraceptivos e m vrias regies do Pas n o perodo. O u t r a
concluso a de que o aborto corresponde a aproximadamente 13% do declnio da
fertilidade ao longo das duas ltimas dcadas.
Em u m a tentativa mais recente de estimar o nmero total de abortamentos no
Brasil, Corra & Freitas (1997) tomaram c o m o base de informao o nmero de
curetagens ps-aborto realizadas nos hospitais pblicos, aplicando u m fator de correo
moderado (uma para cada 3,5 abortos) para os anos de 1994-1996. Os nmeros obtidos
foram 921.100,811.700 e 728.100, respectivamente. Embora possivelmente subestimando
o nmero de abortos induzidos - por ter sido usado o nmero de curetagens, em vez do
nmero de internaes por abortamento - este trabalho indica que o nmero de inter-
rupes voluntrias da gravidez decresceu sistematicamente no perodo.
Os dados do DATASUS (Brasil, MS/FNS, 1992) sobre internaes por abortamento tam-
bm nos permitem estimar os custos destes tratamentos para o Estado. Costa (1995)
calculou que os hospitais pblicos do Rio gastaram em mdia US$ 485,00 por paciente
para tratar as 23.753 mulheres internadas por complicaes de abortamentos, u m total
de US$ 11.42 5.000) em 1991; e que o custo de uma curetagem no setor pblico era de
US$ 184,00 - valor b e m inferior ao custo do tratamento para uma internao mdia de
2,1 dias. Ampliando-se os clculos, conclui-se que a quantia seria suficiente para o
Estado garantira realizao de 62.600 abortos seguros (91 % dos 68,649 abortos estima-
dos para o estado do Rio de Janeiro n o ano de 1991). O estudo mostrou ainda que, ao
reduzir o custo de aborto para o valor cobrado pelas clnicas privadas citadas pelas
mulheres na pesquisa - US$ 120 e m mdia - seria possvel ao governo oferecer aborto
seguro para todas as mulheres que procuraram o recurso e garantir-lhes US$ 37 para o
planejamento familiar. O u seja: a proviso de servios de aborto seguros e contraceptivos
de qualidade no se limita a u m a questo meramente financeira. Trata-se de u m pro-
blema profundamente enraizado, e m que se sobressai a discriminao social e cultural.
Os atestados de bito confirmam a magnitude do problema. As mortes relacionadas
c o m o aborto corresponderam a 11 % da mortalidade materna n o Brasil entre 1991 e
1993. Dados sugerem que esta proporo tem decrescido desde a dcada de 80 (Tabela 5).
Cabe lembrar que o grupo de causas especficas d e n o m i n a d o 'aborto' inclui mole
hidatiforme, gravidez ectpica, e os abortos espontneos, induzidos e no-especficos,
e que representa a quinta causa mais freqente de morte materna no Pas. O percentual
variou entre 8,7 (1980) e 5,2 (1993) bitos matemos para cada 100 mil nascidos-vivos.
Em 1993, os abortos induzido e no-especificado corresponderam metade dos bitos
matemos deste grupo. A maioria das regies e estados segue este padro. N o entanto,
existem situaes muito particulares, e m que o aborto assume u m papel mais relevan-
te. Investigao conduzida pela Vigilncia Epidemiolgica da Secretaria de Sade n o
Recife e m 1994 e 1995 constatou ser a primeira causa de bitos matemos na cidade, ao
lado de outras causas diretas. E m Salvador, a partir de informaes de pronturios,
laudos do Instituto Mdico Legal (IML) e entrevistas apontou-se o aborto c o m o a prin-
cipal causa de morte materna, correspondendo a 3 7% de todos os bitos. Naquela capi-
tal, o coeficiente especfico por aborto foi de 5 2,8 por mil nascidos-vivos. U m alto ndice
foi detectado antes dos 20 anos de idade (Massachs, 1995).

Tabela 5 Mortalidade materna no Brasil. 1979-1993

Fonte: Ministrio da Sade/ Fundao Nacional da Sade/Centro Nacional de Epidemiologia.


Complicaes no-fatais do aborto so at mais difceis de serem medidas do que a
mortalidade, mas so muito mais comuns. Abase de dados DATASUS indica que 86% das
241.945 admisses em 1996 decorrentes de abortamentos foram tratadas porcuretagem
(CID 630-639) - o quarto procedimento mdico ou cirrgico mais freqente em todo o Pas.
U m a anlise mais aprofundada da morbidade a partir dessas informaes no possvel.

Prtica do aborto

Parece claro que o m t o d o utilizado para induzir o aborto afeta tanto a exten-
so quanto o tipo de complicao. Pesquisas de 1984 em favelas do Rio de Janeiro
d e m o n s t r a m q u e a insero de sondas corresponde a apenas 12% de todos os
mtodos, mas foi relativamente mais perigosa; que 50% dos abortamentos induzi-
dos por este m t o d o resultaram e m complicaes, em comparao c o m os 2 7%
causados pela induo medicamentosa (por injees ou via oral). O uso de sondas
foi associado a u m a alta taxa de infeces e perfuraes uterinas (Martins et al.,
1991). Estudos hospitalares da dcada de 80 c o n f i r m a m a alta prevalncia dos
mtodos invasivos. E m 1981, n o Sul d o Brasil, ficou demonstrado que 52% das
mulheres induziram o aborto via insero de sonda e 4% pela insero de objetos
slidos (Boehs et al., 1983). Estudo de 1988 n o Nordeste (Welkovic; Costa & Leite,
1991) t a m b m revelou alta proporo de mulheres (69%) que induziram o aborto
por meio da insero de sonda.
Relatrios mais recentes informam que a prtica do aborto tem sofrido grandes
alteraes, e drogas com propriedades abortivas - principalmente o misoprostol (anlo-
go sinttico da prostaglandina E l ) - assumiram importante papel neste cenrio (Coe-
lho, 1991). Vendida c o m o n o m e Cytotec, a droga licenciada para o tratamento de
lceras gstricas e duodenais. Como todas as prostaglandinas, o misoprostol estimula a
atividade uterina tanto q u a n d o utilizado isoladamente ou em associao c o m a
mifepristona (RU 468), ou methrotrexate (Norman; Thong & Baird, 1992; Aubeny &
Baulieu, 1991; El-Rafaey et al., 1995). O uso indevido da droga foi relatado pela primeira
vez no Nordeste, em Fortaleza, Cear. Inqurito dos pronturios de uma maternidade
indicaram a citao do misoprostol em 12% dos casos de aborto induzido tratados na
cidade em 1988. At 1990, o percentual alcanou 70% (Barros, 1991). Em 1991, relat-
rios de vrias partes d o Pas confirmaram o amplo uso da droga c o m o u m abortive O
rpido a u m e n t o t a m b m foi detectado em Goinia, n o Centro-Oeste - a venda
misoprostol entre 1987 e 1989 triplicou, mantendo-se em u m padro estvel at 1991
(Viggiano et al., 1996).
Farmcias, mdicos, as mulheres e a mdia foram os responsveis pela disseminao
da informao sobre a droga. A pesquisa de 1991 nos hospitais do Rio de Janeiro revelou
que a maior parte das mulheres que usou o misoprostol (84%) tomou conhecimento do
medicamento por amigos, parentes ou colegas. Uma minoria - 10%-teve como fonte o
farmacutico. importante ressaltar que embora o misoprostol seja aprovado para o
tratamento de lceras gstricas em 60 pases, no Brasil foi reconhecido, primeiramente,
por seus efeitos abortivos (Barbosa & Arilha, 1993).
A publicao de informaes sobre o uso macio da droga, em particular pela imprensa,
nos primeiros meses de 1991, deu margem a um debate intenso sobre o assunto. Alguns
mdicos e grupos de mulheres sugeriram que a disponibilidade do Cytotec era benfica,
porque outros mtodos de induo ao aborto eram comparativamente mais perigosos.
Tambm argumentou-se que a morbidade relacionada aos abortamentos diminuiu desde
que a droga passou a ser utilizada. Do outro lado, instituies e grupos ligados vigilncia
sanitria defenderam a retirada do Cytotec do mercado, por estar sendo vendido somente
por seus efeitos colaterais - a induo do aborto. Ao mesmo tempo, relatos sobre efeitos
adversos resultantes da exposio pr-natal a altas doses do misoprostol tambm contri-
buram para o 'clima negativo' na poca (Schonhofer, 1991; Fonseca et al, 1993).
A controvrsia resultou c m uma intensa campanha contra o medicamento. Em
julho de 1991, o Ministrio da Sade alterou os regulamentos de comercializao do
medicamento, em u m a tentativa de restringir seu uso c o m o abortivo. Assim, o
misoprostol poderia ser vendido apenas c m farmcias que retm a receita mdica para
uso oficial. Em quatro estados (Minas Gerais, So Paulo, Rio de Janeiro e Cear) as
restries foram ainda mais severas (IDEC, 1997).
importante lembrar que a maior parte das informaes sobre o uso da droga se
origina em estudos hospitalares. Ressalta-se que os dados se referem s mulheres que
tomaram o medicamento e, depois, procuraram auxlio do hospital. Isto pode acarretar
uma viso muito distorcida da droga como um abortivo: no existem dados sobre as mu-
lheres que ingeriram o remdio e no procuraram o hospital; sobre as situaes em que o
aborto se concretizou sem complicaes aparentes; ou, ainda, sobre os casos em
que a gravidez teve continuidade.
O estudo do Rio, por exemplo, mostrou que mais da metade das mulheres com
aborto induzido (57%) relataram o uso da droga isolado ou em combinao c o m
outro mtodo. Outros 13% declararam o uso de medicamentos que no conseguiam
identificar pelo nome. Conclui-se que a utilizao poderia ser de aproximadamen-
te 70% (Tabela 6). Mtodos tradicionais (chs de ervas, sonda, exerccios e presso
abdominal) corresponderam a 18% de todos os mtodos reportados (Costa, 1993).
Tabela 6 Distruibuio de 803 mulheres com casos de abor-
to induzido com base no mtodo usado e enfermi-
dade causada

Fonte: COSTA, I995.

N o de estranhar que 70% das mulheres t e n h a m obtido o m e d i c a m e n t o e m


farmcias. Calcula-se que a metade delas foi aconselhada sobre as doses e recebeu
instrues para procurar auxlio mdico apenas depois de o sangramento ter in-
cio. O m i s o p r o s t o l foi l e m b r a d o por ser m u i t o mais barato d o q u e as clnicas
clandestinas (mdia de U S $ 6 o comprimido, versus US$ 144). Ao responder sobre a
razo da escolha, 28% apontaram a droga c o m o o m t o d o mais acessvel; 14%, o
mais seguro; e 13%, o mais barato. Para 25%, o misoprostol era o n i c o m t o d o
conhecido. U m a pequena proporo (11%) j tinha usado a droga c o m o abortivo
anteriormente. E m contraste, 71 % das usurias de clnicas relataram ter escolhido
o mtodo por ser mais seguro. A sonda foi considerada pela maioria das usurias
o mais barato dos mtodos, mas pouco seguro.
Apesar das vantagens apontadas - que motivaram a escolha - a maioria das mulhe-
res entrevistadas n o Rio informou que o Cytotec no era o m t o d o preferido para
induzir o aborto. Muitas delas falaram que a experincia c o m o misoprostol foi negati-
va, por causa das dores que sentiram e da necessidade de cuidados mdicos e de u m a
curetagem. Elas declararam desconhecer o processo fsico desencadeado pelo medica-
mento e o tempo necessrio para o incio do aborto. Se no encontrassem dificuldades
financeiras e outros obstculos (como a legislao), 77% das mulheres teriam realizado
o aborto c o m u m mdico - neste caso, a segurana foi citada por 87% (Costa, 1995).
Resultados similares foram obtidos e m estudo qualitativo realizado e m So Paulo, n o
mesmo perodo (Barbosa & Arilha, 1993).
A despeito dos esforos do governo para limitar o uso do misoprostol, estudos em
Fortaleza, Goinia e Recife (Fonseca et al., 1996; Viggiano et al., 1996; e Molina et al.,
1996) entre 1992 e 1996, indicam que entre 49% e 89% das mulheres hospitalizadas
aps tentativas de aborto induzido reportaram o uso da droga (Tabela 7).

Tabela 7 Uso do misoprostol entre mulheres hospitalizadas


devido ao aborto induzido em quatro cidades
brasileiras. 1991-1996

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M e s m o c o m a nova regulamentao, a farmcia continuou sendo a principal fonte


de acesso droga. Pesquisa e m 194 farmcias de 41 bairros do Recife, Pernambuco, e m
1996, revela que e m 26% dos estabelecimentos visitados, o misoprostol foi comprado
sem receita mdica e que nas farmcias menores o acesso foi facilitado (Molina et al.,
1997). Alm disso, comprovou que o custo do medicamento tem aumentado. Aproxi-
madamente metade das entrevistadas pagou entre US$ 30 e US$ 40, por quatro compri-
midos - pelo menos cinco vezes mais caro do que e m 1991 (Costa, 1995).
Mudanas na prtica de uso da droga tambm tm sido relatadas. O estudo do Rio
detectou doses de u m a 64 comprimidos (200 a 16.000 microgramas) - sendo a dose
mdia de 4 comprimidos. A mesma fonte revela que 65% das usurias tomaram o rem-
dio via oral; 29% fizeram uso oral e intravaginal; e 6% apenas vaginal (Costa & Vessey, 1993).
Trabalhos realizados entre 1992 e 1996 indicam que uma proporo significativamente
maior de mulheres induziu o aborto com quatro comprimidos administrados simulta-
neamente via oral e intravaginal em Fortaleza, Goinia e Recife (Tabela 7). O conceito de
que a via de administrao vaginal mais eficiente para a evacuao do contedo uterino
tambm est estabelecido em estudos clnicos (Bugalho et al., 1994).
Apesar dos riscos potenciais de automedicao em grande escala, dados indicam
que as complicaes por abortamento so significativamente menos severas entre as
mulheres que usaram o misoprostol do que entre as usurias de sonda ou outros
mtodos invasivos. O estudo nos hospitais pblicos do Rio mostrou que 19% das m u -
lheres que usaram misoprostol se apresentavam com sangramento intenso; 20% com
sinais clnicos de infeco; i % necessitava de transfuso de sangue; e 85% foram tratadas
com curetagem (Tabela 8). Propores mais altas (p<0.0005) do grupo que relatou o uso
da sonda se apresentavam com sinais de infeco, necessitavam de sangue ou tinham
leses fsicas (Costa & Vessey, 1993). Trs mortes foram registrados pelo estudo entre
provveis usurias do misoprostol: duas por assepsia; uma por ruptura do tero.
Os estudos mais recentes tambm relatam taxas de complicaes menores entre as
usurias do misoprostol. O ndice de infeco nas pesquisas de Fortaleza e Recife foi, confor-
me a Tabela 7, respectivamente de 9% e 15%, mais baixo do que o percentual verificado no
Rio. Isto possivelmente reflete o maior conhecimento do mtodo por parte da populao e
dos profissionais da sade responsveis pelos pacientes. Estes nmeros contrastam drama-
ticamente com os encontrados na Regio Nordeste em 1988 (portanto, antes da dissemina-
o do uso do misoprostol). Foram entrevistadas 494 mulheres - 33% estavam infectadas;
41 % tiveram sangramento intenso; 12% receberam transfuso; e 21 % apresentavam leses
fsicas (todas decorrncias do uso elevado de mtodos invasivos de induo ao aborto).
Argumenta-se que, embora as complicaes decorrentes do uso do misoprostol
possam ser menos severas, o uso amplo do medicamento pode ter causado u m aumen-
to no nmero de admisses relacionadas ao abortamento e curetagens (Coelho et al.,
1993). A falta de dados confiveis, no entanto, torna impossvel avaliar se o aumento foi
verificado nos hospitais estudados no Rio de Janeiro. Mas na pesquisa de Goinia para
o perodo de 1987-1991 no foi encontrada qualquer associao entre o incremento na
venda do misoprostol e admisses hospitalares (Viggiano et al., 1996).
A pesquisa do Rio sugere que o uso do misoprostol diminuiu depois das alteraes
na legislao; e que aumentou o nmero de medicamentos no-identificados e inje-
es. Detectou-se tambm u m aumento proporcional no uso de ch de ervas e sonda.
Ainda que estes dados no forneam um quadro completo da situao, tendem a apoiar a idia
de que o misoprostol pode ter substitudo alguns dos mtodos mais perigosos de aborto e
que o controle do medicamento poderia resultar no incremento da incidncia de compli-
caes severas. Em Campinas, observaram-se u m pequeno-mas significativo-aumento
no ndice de complicaes depois das restries governamentais sobre a venda do Cytotec e
u m aumento triplicado do nmero de mortes maternas no mesmo perodo (Gabiatti, 1994).
Das l .608 pacientes entrevistadas n o Rio sobre o ltimo aborto ou tentativa de
abortamento, 96 relataram a utilizao do medicamento. Do total, 13(14%) disseram
que a droga falhou e 83 (87%) declararam sucesso ou sangramento. Quase metade (44
ou 46%) recebeu tratamento hospitalar; enquanto 38 (40%) tiveram de evacuar o tero.
Isto sugere que o misoprostol induz o aborto completo e m quase metade das mulheres
que dele fazem uso. Ressalta-se que necessrio ter cautela ao se compararem os resul-
tados obtidos e m estudos hospitalares aos provenientes de ensaios clnicos, e m virtude
das bvias diferenas na estrutura das investigaes. N o entanto, o nvel de sucesso
coincidente c o m o verificado e m dois outros estudos (Coelho et al., 1993; Crenin &
Vittinghoff, 1994). Duas investigaes sobre o uso intravaginal do misoprostol para
induo ao aborto no primeiro trimestre de gravidez indicaram taxas de aborto com-
pleto de 34% e 43%. Esta proporo cresceu quando os autores resolveram aumentar o
perodo entre a administrao do medicamento e a realizao das curetagens (Bugalho
et al., 1996; Carbonnel et a l , 1997). Torna-se conveniente enfatizar que muitas brasilei-
ras usam o medicamento para induzir o sangramento, facilitando o acesso curetagem
nos hospitais pblicos. Muitas mulheres que se automedicam com o misoprostol pos-
sivelmente procuram o hospital nas primeiras horas, ou assim que o sangramento se
inicia. M e s m o na ausncia de interveno mdica, uma proporo desconhecida destas
mulheres poderia experimentar o processo completo de abortamento.

Aborto e contracepo

No Brasil, a prevalncia contraceptiva em si no nem u m bom indicador do acesso


feminino s informaes e servios de planejamento familiar, nem u m estimador efi-
caz da preveno de aborto. Pesquisas nacionais de 1986 demonstraram que 95% das
mulheres conheciam a plula e a laqueadura tubria; aproximadamente 70% das casa-
das do Sul e 50% do Nordeste utilizavam algum tipo de mtodo contraceptivo - uma
taxa de prevalncia comparvel de muitos pases desenvolvidos (Arruda et al., 1987;
Oliveira & Simes, 1989). O s mesmos estudos expuseram que a esterilizao e a plula
correspondem por pelo menos 80% de todos os mtodos de contracepo utilizados. Dez
anos depois, revelou-se em uma pesquisa que o uso de mtodos contraceptivos cresceu;
que a dependncia da plula e a esterilizao feminina se mantiveram; e que o uso de
outros mtodos modernos de contracepo permanecia limitado (Bemfam, 1996).
Em relao s pesquisas locais, dados indicam que mais de 90% das usurias da
plula compraram os medicamentos em farmcias - a maioria sem receita mdica,
mesmo devendo ser utilizados sob orientao mdica - o que pode causar problemas: a
automedicao faz c o m que aproximadamente u m quarto das usurias no usem a
plula corretamente, e uma significativa proporo utiliza-se do mtodo mesmo quan-
do contra-indicado (Costa et a l , 1990).
Neste contexto, evidente que muitas mulheres levariam a termo u m a gravidez
indesejada, diante da necessidade de optar por lev-la at o final ou no. Nmeros do
estudo realizado no Rio de Janeiro em 1991 demonstram que 37% das mulheres hospi-
talizadas em conseqncia de u m aborto inseguro utilizavam algum mtodo
contraceptivo no ms anterior ao da gravidez; aproximadamente trs quartos utiliza-
vam u m mtodo moderno (60% via oral; 10% injetveis; e 4% preservativo); e 2 5% usavam
mtodos tradicionais (tabela ou coito interrompido).
Tambm evidenciam que o uso da contracepo cresceu com a idade: mulheres
mais velhas tinham uma probabilidade maior de estar usando mtodos menos efetivos,
o que provavelmente reflete a oferta limitada de mtodos contraceptivos destinados a
elas. Perguntadas sobre a razo de engravidarem apesar de estarem-se utilizando da
contracepo, 33% no tinham idia; mais da metade (55%) atribuiu o fato a falhas ou uso
incorreto do mtodo; e apenas 4% disseram no saber fazer o uso correto do mtodo
escolhido. Enquanto o estudo demonstrou u m alto ndice de no-aderncia prescrio
para todos os grupos de idade, mulheres com menos de 19 anos aparentemente encon-
travam maior dificuldade do que as dos outros grupos etrios. Inesperadamente, entre-
tanto, mais da metade das mulheres que disseram no saber utilizar corretamente o
mtodo tinham 30 anos ou mais. Entre aquelas que fizeram uso da contracepo no
passado, 46% citaram 'medo dos efeitos colaterais' ou 'problemas ligados sade' como as
razes principais de no terem usado qualquer mtodo na ocasio desta gravidez. Entre as
que nunca usaram contracepo, quase u m quarto (24%) relatou a falta de conhecimento
(a maioria com menos de 25 anos) ou acesso a servios de contracepo (Costa, 1995).
Embora se imagine que o uso incorreto ou inconsistente seja alto entre o grupo de
mulheres que engravidaram usando a plula, este fenmeno no se restringe aos pacientes
de abortamento. Pesquisa realizada entre mulheres de baixa renda no Rio de Janeiro revelou
que 23% das usurias de plulas utilizavam o mtodo incorretamente-em dias alternados
ou somente depois do ato sexual. A maioria delas sabia como tomar o medicamento, mas
optou por no seguirs instrues por vrias razes, como evitar os efeitos colaterais ou
reduzir o seu custo. O mesmo estudo revelou que 21 % das entrevistadas com histrico de
aborto induzido faziam uso da contracepo quando engravidaram (Costa et al., 1990).
interessante observar que pesquisa realizada no Reino Unido com mulheres que
abortaram demonstrou que mais de u m tero fazia uso da contracepo no ms em
que conceberam (Griffiths, 1990; Duncan et al., 1990) - uma proporo muito seme
lhante verificada n o Rio de Janeiro. Em contraposio, quase a metade das mulheres
que procuraram os servios de abortamento usava o preservativo como forma usual de
contracepo e menos de 2% utilizava-se de medicamentos via oral.
Pesquisas recentes tornam explcita a relao entre 'ter informao' sobre os
mtodos e o seu uso correto e consistente. Measham (1976), comparando usurias
que compraram medicamentos em farmcias ou outros locais que no os servios
de planejamento familiar quelas que receberam as plulas de mdicos, descobriu
que os efeitos colaterais eram duas vezes mais altos entre o grupo que se automedicou
do que entre o que obteve a contracepo por meio do mdico. O m e s m o estudo
demonstrou que a escassez de pontos de referncia para acompanhamento mdico
impossibilitou a quase dois teros das que se automedicavam a procura de auxlio
diante d o surgimento de problemas. Estas mulheres, inevitavelmente, viveram ta-
xas de descontinuidade mais elevadas do que as usurias dos servios mdicos.
Potter et al. (1988), tambm estudando a adeso de usurias contracepo oral e as
caractersticas de distribuio do sistema, descobriram que a m qualidade de in-
formao por parte dos profissionais da sade estava associada c o m altos ndices de
descontinuidade nos primeiros meses a partir da aceitao do uso do mtodo. A m
qualidade d o c o n h e c i m e n t o sobre o uso correto e os riscos e benefcios da
contracepo pode no apenas ocasionar o abandono d o mtodo, mas t a m b m
deter o seu uso definitivamente.

Determinantes do aborto induzido

Os motivos que levam as mulheres a se expor aos riscos de uma gravidez indesejada
e ao aborto tm sido objeto de muito interesse e especulao. Muitas das pesquisas
neste campo tm sido realizadas sem se enquadrarem a uma abordagem terica espe-
cfica. O s modelos utilizados enfatizam desde os fatores individuais - estado emocional
ou caractersticas de personalidade - at variantes situacionais e sociais (Luker, 1977;
Morrison, 1985; Beck & Davies, 1987).
No Brasil, investigaes sobre os motivos pelos quais as mulheres abortam - da
mesma maneira que outros problemas ligados sade - tm c o m o foco o papel dos
fatores externos e problemas fundamentais e imediatos, associados baixa renda e
falta de servios bsicos de sade e educao (Viel, 1975). E m grande parte destes
estudos, tm sido utilizados mtodos demogrficos e epidemiolgicos descritivos.
Milanesi (1975) descobriu razes econmicas c o m o m o t i v o principal para a
induo ao aborto, e m pesquisa realizada em So Paulo e m 1969 - o m e s m o foi
registrado duas dcadas depois por Martins et al. (1991) entre mulheres residentes em
favelas do Rio de Janeiro.
A natureza da relao da mulher com seu parceiro tambm tem sido destacada
como u m fator importante. A instabilidade da relao ou a falta de apoio emocional e
econmico por parte do companheiro ao tomar conhecimento da gravidez tm sido
mencionados pelas mulheres c o m o u m a das razes para abortar (Costa et a l , 1987;
Paiewonsky, 1993). Em 1991, no estudo do Rio, 39% das entrevistadas relataram que elas
ou os companheiros simplesmente no queriam u m filho naquele momento ou mais
filhos no futuro; e 27% falaram que no tinham condies econmicas para criar outro
filho. Mulheres no auge do perodo reprodutivo mais freqentemente citaram razes
econmicas ou o desejo de no ter mais filhos, sugerindo que suas preocupaes vari-
am de acordo com a etapa de sua vida reprodutiva.
Em u m a tentativa de conhecer as possveis associaes entre os fatores de risco
para o aborto i n d u z i d o , a pesquisa realizada nos hospitais pblicos d o Rio de
Janeiro comparou u m grupo de mulheres hospitalizadas aps a realizao de abor-
tos inseguros c o m u m grupo que decidiu levar a gravidez a termo, pareados se-
g u n d o idade e n m e r o de filhos tidos. U m a anlise multivariada revelou a situa-
o conjugal c o m o maior fator de risco independente para aborto induzido que
resultou em hospitalizao. O s dados sugerem que as mulheres que vivem sozi-
nhas tm u m a probabilidade cinco vezes maior de viver u m aborto induzido do
que as casadas. U m risco muito alto tambm foi associado condio de trabalho
da mulher. As que trabalhavam fora de casa tinham 3,5 vezes mais probabilidade
realizar u m aborto do que as donas de casa - ainda em relao a estas, as estudan-
tes apresentaram u m a probabilidade quatro vezes mais alta. O s resultados t a m -
bm sugerem que mulheres c o m histria de pelo menos u m aborto anterior tm
duas vezes maior probabilidade de serem hospitalizadas por u m aborto induzido
do q u e as q u e n o t m este histrico. Este a c h a d o est de acordo c o m outros
estudos q u e m o s t r a m q u e o risco de a b o r t a m e n t o repetido m a i o r d o q u e a
possibilidade de u m primeiro aborto (Tietze, 1978; Forrest & Henshaw, 1984).
A l m disso, a pesquisa d o Rio revelou que mulheres que experimentaram u m
intervalo m u i t o curto entre a gravidez anterior e a atual apresentavam u m risco
alto de hospitalizao por aborto induzido.
Tabela 8 Resultados obtidos por anlise multivariada de
diversos fatores de risco do aborto induzido

Fonte: COSTA, 1995.

Enquanto os casos e controles foram muito similares a respeito da idade de incio do


primeiro uso da contracepo, outras variveis relacionadas prtica contraceptiva
encontraram-se associadas ao risco de aborto induzido, c o m o alguma experincia c o m
a contracepo e o nmero de mtodos utilizados.Pode-seargumentar que o risco mais
baixo observado entre mulheres que nunca fizeram uso de qualquer mtodo estava
relacionado ao seu desejo de engravidar. E m outras pesquisas, constata-se que na pro-
poro e m que aumentam a motivao da mulher em regular sua fecundidade e o uso
de contraceptivos as taxas de aborto tambm podem aumentar, pelo menos temporari-
amente (Requena, 1968; Singh & Sedgh, 1997). O elevado risco de aborto induzido,
observado n o estudo do Rio, medida que as mulheres usaram mais mtodos
contraceptivos tende a confirmar esta teoria. Mais importante, nestes dados, a suges-
to de que o aborto no era utilizado c o m o forma de contracepo, mas c o m o ltimo
recurso para as mulheres que tentavam evitar a gravidez. Alm disso, a maioria de casos
e controles estudados usaram contracepo oral como seu primeiro mtodo (84% e 87%,
respectivamente); e que pela escolha de mtodos eficazes reversveis ser to limitada no
Pas, mulheres que no podem usar, ou decidem no usar a plula so obrigadas a
utilizar mtodos menos eficazes, c o m o tabela e coito interrompido. As tentativas de
regular a fecundidade com mtodos que no a plula inevitavelmente resultam em altos
ndices de falhas e exposio aumentada para a gravidez indesejada e o aborto.

Comentrios finais

No Brasil (e maior parte da Amrica Latina), o aborto uma questo extremamente


delicada e controversa. Ao m e s m o tempo em que o ndice exato de abortamentos
desconhecido, evidente que u m grande nmero de mulheres e m todo o Pas so
hospitalizadas a cada ano e m funo de complicaes de procedimentos abortivos
inseguros. Pesquisas sugerem que o nmero de internaes hospitalares deles decor-
rentes tem aumentado desde o final da dcada de 70 at o incio dos anos 90, quando
comeou a decrescer. Seja c o m o for, preciso cuidado ao se analisar estas tendncias. O
nmero de mulheres que necessitam de cuidados mdicos representa u m a proporo
desconhecida d o universo total que induz o aborto. Tambm pequeno o conheci-
mento sobre as mulheres que induzem o abortamento e no recebem qualquer aten-
o mdica, porque no necessitam, por no terem acesso aos servios de sade, ou por
morrerem antes de receb-la.
As alteraes dos mtodos de induo ao aborto ocorridas nos ltimos anos - e, em
particular, o uso intensivo da prostaglandina misoprostol em todo o Brasil a partir do
final dos anos 80 - ocasionaram mudanas tanto na incidncia quanto n o tipo de
complicaes. M u i t o embora o misoprostol no seja muito eficaz na induo de u m
aborto completo quando utilizado isoladamente-ou, mais importante, seadose, e a forma
de administrao no forem apropriadas -, muitas mulheres fazem uso da droga apenas
para induzir o incio do sangramento e facilitar seu acesso aos servios de sade para a
realizao de uma curetagem. Dados tambm sugerem que a automedicao gerou u m
amplo espectro de prticas no incio da 'epidemia' mas, com o decorrer do tempo, aparen-
temente, tanto as usurias quanto os balconistas das farmcias e profissionais da sade
adquiriram mais experincia em relao ao mtodo abortivo, possibilitando sua melhor
administrao e conduo de tratamento. Concomitantemente, possvel supor que as
mulheres no solicitaram auxlio to cedo ou to freqentemente aps o uso da droga.
A despeito dos riscos potenciais associados a u m ensaio no-controlado desta di-
menso, estudos hospitalares indicam que complicaes por aborto provocado so
significativamente menos severas em mulheres que usaram o misoprostol comparadas
a usurias de mtodos invasivos. Isto pode reduzir o custo do tratamento destas compli-
caes e, a longo prazo, a morbidade relacionada ao aborto - ainda que a maioria das
mulheres admitidas nos hospitais continue a ser submetida evacuao do tero e,
como conseqncia, estejam expostas a riscos associados a este procedimento.
A experincia brasileira com aborto mais uma lembrana sobre como as mulhe-
res, ao enfrentar uma gravidez indesejada, so levadas ao aborto ilegal, independente-
mente dos riscos a sua sade. Ela aponta a necessidade urgente de se dirigir a questo
crtica do comportamento de fecundidade das mulheres para u m a abordagem mais
ampla de sade e direitos reprodutivos. Nos ltimos anos, pouca ateno vem sendo
dada sade do povo brasileiro. A falha dos servios pblicos em responder aos cuida-
dos mdicos mais bsicos criou u m vcuo que vem sendo preenchido em parte pelo
setor privado. Ao se apoiarem uma estrutura no-mdica para solucionar os problemas
em regular sua fecundidade, as mulheres tm progressivamente obtido acesso aos
modernos avanos tecnolgicos referentes contracepo e, mais recentemente, abor-
to mdico, fora de u m programa integral de sade. Iniciativas de utilizar a contracepo
sob estas condies desfavorveis esto associadas a altos ndices de inconsistncia e
incorreo no uso dos mtodos anticoncepcionais. Diante das barreiras enfrentadas
para o controle da fecundidade de maneira efetiva e segura, as mulheres se encontram,
freqentemente, presas a u m ciclo trgico que repete a gravidez indesejada e o aborto.
Paradoxalmente, o desejo intenso demonstrado pelas mulheres brasileiras de regular
sua fertilidade tem forado sua exposio aos riscos de uma gravidez ou aborto.
A melhoria da contracepo pode auxiliar muito a reduo do nvel de gravidez
indesejada. Porm, muitos fatores sociais, culturais e econmicos conspiram para difi-
cultar a deciso de adotar a contracepo e seu uso efetivo. Especialmente para as m u -
lheres pobres. O s papis e responsabilidades das mulheres esto mudando: a vida em
grandes cidades brasileiras freqentemente precria, e a estabilidade econmica cada
vez mais elusiva em tempos de globalizao. Muitos dos constrangimentos sobre a
mulher somente podero ser removidos a partir de u m a mudana fundamental da
ordem econmica e social.
Independentemente destas mudanas, formuladores de polticas e gestores pbli-
cos poderiam implementar medidas que teriam u m maior impacto sobre a habilidade
das mulheres para planejar melhor suas gravidezes. Melhorias na disponibilidade e
qualidade de informao e os servios de contracepo nos hospitais pblicos so pas-
sos que devem ser dados imediatamente. No entanto, reavaliar a legislao que mantm
medidas punitivas contra as mulheres que se submetem ao aborto e os mdicos que os
praticam essencial. Convm ressaltar que estas duas iniciativas foram recomendaes
aprovadas pelo governo brasileiro durante a Conferncia sobrePopulaoe Desenvolvi-
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PARTE III

Morbi-Mortalidade
11

Padres e Tendndas em Sade Reprodutiva no Brasil:


bases para uma anlise epidemiolgica
Estela Maria Leo de Aquino, Thlia Velho Barreto de Arajo &
Lilian Ftima Barbosa Marinho

Introduo

Nas ltimas dcadas, o Brasil vem passando por profundas transformaes


demogrficas e epidemiolgicas. Do ponto de vista da sade reprodutiva, nos anos 80,
dois fatos foram particularmente marcantes: a drstica mudana no padro de procria-
o e o aparecimento da AIDS.
O primeiro envolveu u m a reduo da taxa de fecundidade de 4,5 filhos por
mulher, e m 1980, para 2,5, em 1991 (IBGE, 1994). Essa queda acentuada e vertigi-
nosa se deu por meio do uso generalizado de mtodos efetivos de controle da pro-
criao - c o m a plula e a esterilizao cirrgica sendo os mais usados (Berqu,
1993) - bem, c o m o pelo recurso ao aborto, muitas vezes c o m o mtodo habitual
(Allan Guttmacher Institute, 1994). importante destacar que a queda da fecundidade
no ocorreu igualmente em todas as faixas etrias, sendo observado o incremento
de gestaes em adolescentes, inclusive as menores de 15 anos (Simes & Oliveira,
1988; Brasil, 1989; BEMFAM/DHS, 1997).
Q u a n t o ao surgimento da AIDS, O primeiro caso detectado n o Brasil foi em u m
h o m e m , e m 1980; apenas trs anos depois, foi notificado o primeiro caso em u m a
mulher, quando j registravam-se 31 homens na mesma condio (Castilho et al.,
1992). Desde ento, a notificao de AIDS em mulheres vem aumentando de m o d o
acelerado, chegando-se, em 1991, a u m a relao de menos de cinco h o m e n s para
cada mulher. Apesar de algumas controvrsias, existe u m consenso de que a relao
heterossexual o m o d o de transmisso mais importante para a feminizao da
epidemia n o Pas (Brasil, 1997). Alm de grande desinformao, para muitas m u -
lheres, o medo de se infectar menor do que o medo de comprometer seu relacio-
n a m e n t o c o m o parceiro ao admitir a possibilidade de relaes extraconjugais
(Barbosa, 1993).
Articulando-se os dois fatos marcantes da dcada, conforma-se u m quadro de sade
em que ganham relevncia os aspectos relacionados sexualidade e aos efeitos da
contracepo, em substituio queles relativos concepo, gravidez e ao parto- que
constituram a preocupao da maioria dos estudos epidemiolgicos at bem recente-
mente (Aquino et al., 1995).Poroutro lado, questes como a gravidez na adolescncia e o
crescimento da AIDS em mulheres impem a necessidade de se estudar o papel dos parcei-
ros masculinos para uma adequada compreenso do problema. A magnitude e a relevn-
cia desses problemas e a velocidade das transformaes no padro epidemiolgico, no
Brasil, tm justificado a realizao de inmeras pesquisas sobre o tema, com uma influn-
cia cada vez maior das contribuies feministas, especialmente aquelas advindas das
cincias humanas. C o m o resultado, constata-se uma mudana qualitativa nos estudos,
que buscam compreender aspectos ligados sexualidade no contexto de relaes de
gnero desiguais e hierrquicas, em que as mulheres ocupam o plo dominado. Essas
novas abordagens vm, pouco a pouco, substituindo o tradicionalmente hegemnico
enfoque materno-infantil, marcado pelo interesse primordial pela sade das crianas
(Aquino et al, 1995).
Apesar da sensvel mudana na produo cientfica, especialmente na dcada de 90,
a incorporao das teorias de gnero no campo da sade, em particular na Epidemiologia,
ainda se faz de modo incipiente, com forte concentrao regional (Aquino et al, 1995).
insuficincia de estudos sobre o tema alia-se o fato de que os dados secundrios so limita-
dos e de qualidade muitas vezes questionvel, especialmente em algumas regies do Pas.
Embora produzidos em grande quantidade, em u m aparente paradoxo, so subutilizados,
o que diminui a possibilidade de que sejam aperfeioados. Essa subutilizao pode ser
atribuda, em parte, a dificuldades de acesso aos bancos de dados, a problemas de
compatibilizao dos dados de diferentes fontes e a outros, inerentes ao sistema de
informaes em sade (Moraes et a l , 1994); outra parte da subutilizao, provavelmen-
te, decorre da falta de capacitao de potenciais usurios/as - especialmente os que se
encontram fora do mbito acadmico - para a anlise espacial e temporal de dados
agregados, de m o d o a identificar e monitorar tendncias nos padres de sade
reprodutiva no Brasil.
Neste artigo, pretendemos sistematizar e discutir conceitos que tm embasado a
anlise epidemiolgica e m sade reprodutiva, apresentando as principais fontes de
informao disponveis no Pas, levantando questes e apontando caminhos na refle-
xo sobre o tema.
Padres e Tendncias em Sade Reprodutiva no Brasil

Sade/morbidade reprodutiva: revendo conceitos


A reproduo h u m a n a , as doenas associadas reproduo biolgica e as
suas repercusses sobre a sade de h o m e n s e mulheres tm sido objeto de estu-
do de diversas reas d o c o n h e c i m e n t o . Na demografia, por exemplo, enfatiza-se
o e s t u d o da f e c u n d i d a d e e o seu i m p a c t o sobre a d i n m i c a p o p u l a c i o n a l . E m
posio diametralmente oposta, a medicina, por m e i o de suas disciplinas clni-
cas, e m especial a g i n e c o l o g i a e a obstetrcia, geradora de u m o u t r o tipo de
saber, c e n t r a d o n o i n d i v d u o e c o m base n a f i s i o p a t o l o g i a dos processos
reprodutivos.
N o plano internacional, o aporte da epidemiologia na sade reprodutiva data
de u m perodo relativamente recente, estando os estudos, de m o d o geral, relacio-
nados investigao d o risco de patologias especficas associado ao uso de m -
todos contraceptivos (Wingo et al., 1996). N o propsito de c o n s t r u o de u m
saber e p i d e m i o l g i c o nessa temtica, tem-se d e l i m i t a d o u m n o v o c a m p o , a
c h a m a d a ' e p i d e m i o l o g i a reprodutiva', conceituada c o m o a aplicao de c o n -
ceitos e m t o d o s originados naquela disciplina ao "estudo de temas relativos
f o r m a de elevar a o m x i m o a sade reprodutiva d o h o m e m e da m u l h e r "
(Wingo et al., 1996:1).
U m dos aspectos de fundamental importncia para consolidao dessa nova rea de
pesquisa consiste na necessidade de explicitar u m conceito de sade reprodutiva que
permita sua delimitao como campo de investigao cientfica. Na literatura especializa-
da, registra-se a existncia de variadas definies, com ampla difuso em u m perodo
recente. No entanto, por sua recorrncia, dois elementos parecem nucle-las: o primei-
ro consiste na equiparao da sade reprodutiva ausncia de enfermidade associada
ao processo de reproduo biolgica; o segundo refere-se ao enfoque privilegiado (quan-
do no exclusivo) na figura da mulher.
Nas mltiplas definies presentes na literatura, evidencia-se u m a grande
variabilidade na amplitude das formulaes empregadas ao tratar do tema.Porexem-
plo, e m m a n u a l da Organizao M u n d i a l da Sade (OMS) sobre "epidemiologia
aplicada sade reprodutiva", transparece a nfase nos aspectos funcionais biolgi-
cos, delimitados ao perodo reprodutivo de diferentes dimenses e m h o m e n s e
mulheres, ao definir-se que:
a sade reprodutiva humana comea com o crescimento e desenvolvimento se-
xual que se manifesta na puberdade, prossegue durante toda a vida do homem e
termina com a menopausa na mulher. Sobre a sade reprodutiva influem a
fecundidade e as decises relacionadas com a atividade sexual, a gravidez e a
anticoncepo. (Wingo et al, 1996:1)
Em outras duas definies, expressam-se a autodeterminao e o poder, remetendo
a concepo de sade reprodutiva para o campo dos direitos de cidadania, mas confun-
1
dindo-se com o conceito de direitos reprodutivos . Assim, para Fathalla (apud Graham
& Campbell, 1991: 6), sade reprodutiva significa que:
as pessoas teriam capacidade de reproduzir, bem como de regular sua fertilidade,
mediante o conhecimento mais pleno possvel das conseqncias pessoais e sociais de
sua deciso, tendo acesso aos meios necessrios para implement-la; que as mulheres
sejam capazes de vivenciar a gravidez e o parto em segurana; e que o resultado da
gravidez seja a sobrevivncia da me e da criana em situao de bem-estar. Alm disso,
os casais deveriam ser capazes de ter relaes sexuais livres do medo de uma gravidez
no desejada e de contrair doenas.
Da m e s m a forma, para Germain (apud Graham & Campbell, 1991: 6), sade
reprodutiva implicaria em conferir s mulheres o poder de:
regular sua prpria fertilidade de maneira segura e eficaz, concebendo um filho quando
desejassem, interrompendo gestaes no desejadas, e levando termo aquelas deseja-
das de permanecer livre de doenas, seqelas, medo, dor ou morte associada reprodu-
o e sexualidade; de ter e criar filhos saudveis.

Aliada ausncia de u m conceito unvoco de sade reprodutiva, percebe-se, entre


os autores, uma dificuldade de estabelecer uma distino clara entre este e os de 'sade
materna' e 'sade da mulher' (Graham & Campbell, 1991; Fortney, 1995). A partir da
sistematizao das pesquisas de base populacional sobre sade reprodutiva, publicadas
entre 1980 e 1995, Fortney (1995) ilustra essas inconsistncias conceituais ao evidenciar
que, entre essas, seis relacionavam-se apenas morbidade obsttrica; uma somente s
patologias ginecolgicas; duas incluam os dois tipos de enfermidade; e outras duas, as
enfermidades ginecolgicas e aquelas relacionadas ao uso de contraceptivos. Alguns
desses estudos englobavam ainda outros tipos de doenas que, por sua natureza, pode-
riam ser classificadas como no-reprodutivas.
Diante da necessidade de operacionalizar o conceito, a sade/morbidade
reprodutiva tem sido comumente relacionada ao chamado 'perodo reprodutivo' das
mulheres, considerado c o m o o que se estende de 15 a 49 anos de idade. Mais recen-
temente, este perodo tem sido redefinido para 10 a 44 anos de idade, para permitir
acompanhar a tendncia ao incio precoce da vida sexual e de reduo no nmero de
filhos. Ainda nessa perspectiva, outras alternativas de recorte tm sido propostas para

1
Na Conferncia Internacional sobre Populao c Desenvolvimento (Cairo, 1994) e na IV Conferncia
Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), estabeleceu-se que os direitos reprodutivos tm por base "o
reconhecimento do direito fundamental de todos os casais e indivduos a decidir livre e responsavel
mente o nmero de filhos e o intervalo entre eles, e a dispor da informao e dos meios para tal e o
direito de alcanar o nvel mais elevado de sade sexual e reprodutiva. Inclui tambm o direito a tomar
decises referentes reproduo sem sofrer discriminao, coaes nem violncia" (Themis, 1997:74).
a demarcao do incio do perodo de tempo a ser considerado, entre elas, a entrada
na adolescncia (Evans et al. apud Graham & Campbell, 1991), a ocorrncia da menarca
(Wingo, 1996), o comeo da vida sexual ou a conjugalidade (Evans et al. apud Graham
& Campbell, 1991). A construo de u m a definio operacional c o m base e m u m
intervalo de idade resultaria na excluso de agravos que, embora relacionados fun-
o reprodutiva da mulher, ocorreriam fora dos limites do perodo, a exemplo das
patologias associadas ao climatrio. Alm disso, a segmentao do ciclo vital tem sido
criticada por comprometer a viso de integralidade dos fenmenos da sade-doena
influenciando - inclusive de forma negativa - a organizao dos servios de sade
(Graham & Campbell, 1991).
Outro aspecto controverso quanto definio de morbidade reprodutiva diz respeito
sua relao com a 'morbidade materna' (decorrente direta ou indiretamente de gravi-
dez), a qual pode ser tratada como u m componente da primeira ou no. N o caso de
excluso, a morbidade reprodutiva , ento, reconhecida por sua ocorrncia no pero-
do reprodutivo, fora dos intervalos obsttricos. Dessa forma, a sade da mulher englo-
baria os dois componentes: a 'sade reprodutiva' e a 'sade materna' (Graham & Campbell,
1991), o que restringe muito a abrangncia do primeiro componente.
De qualquer modo, a sade/morbidade materna referida ausncia/presena de
agravos ou doenas ocorridas em u m intervalo de tempo delimitado entre a contracepo
e o trmino da gestao, independentemente de sua durao, em uma aproximao ao
conceito de 'mortalidade materna'. Apesar de este ltimo ser largamente consagrado e
utilizado, no que diz respeito ao perodo de tempo a ser considerado, h controvrsias
entre os autores (Fortney, 1995; Campbell & Graham, 1990). Em grande parte da litera-
tura, o seu trmino coincide c o m o do puerprio, ou seja, 42 dias aps o final da
gestao, e desse m o d o que a 9 Reviso da Classificao Internacional de Doenas
(CID) o define (OMS, 1978). Todavia, o reconhecimento de que u m nmero expressivo
desses bitos, agravos ou doenas poderiam ocorrer aps o tempo estabelecido (Walker
et a l , 1986; Turnbull et a l , 1986), levou proposio de u m prolongamento do perodo
a
a ser considerado. Em conseqncia, a CID, em sua 10 reviso, embora mantendo o
limite de 42 dias aps a gestao, incorporou uma nova categoria: a 'morbidade/morta-
lidade materna tardia', que corresponderia quela ocorrida no intervalo de tempo entre
42 dias e u m ano aps o fim da gravidez (Laurenti, 1994).
Q u a n t o 'morbidade reprodutiva', caberia ainda discutir a natureza dos proble-
mas de sade a serem considerados. O conceito diz respeito a todos os agravos
sade da mulher n o perodo reprodutivo, ou apenas s patologias e agravos direta
ou indiretamente relacionados funo reprodutiva? A incluso de todos os even-
tos mrbidos ocorridos n o perodo reprodutivo traria dificuldade e m estabelecer
limites entre os conceitos de 'morbidade reprodutiva' e 'morbidade da mulher',
nessa etapa da vida, e m contrapartida, excluindo os problemas relacionados re-
produo em outras fases. A demarcao do que considerar como morbidade reprodutiva
no clara. Consider-la c o m o "doenas que afetam o sistema reprodutivo, mesmo
no se constituindo necessariamente uma conseqncia da reproduo" (Fortney,
1995: 3) sugere limites restritos sua conceituao. Tornaria difcil reconhecer, como
parte do grupo, os agravos sade decorrentes da reproduo, cuja repercusso dar-
se-ia em outros rgos e sistemas, a exemplo de algumas doenas cardiovasculares,
para as quais o uso de contraceptivo hormonal constitui-se u m dos fatores de risco.
Este problema poderia ser contornado, adotando-se a definio proposta pela O M S
(1989:2) que abrange:
qualquer morbidade ou disfuno do trato reprodutivo, ou qualquer morbidade conse-
qente ao c o m p o r t a m e n t o reprodutivo, incluindo gravidez, aborto, parto ou compor-
tamento sexual, p o d e n d o incluir aquelas de natureza psicolgica.

No entanto, persistiria nessa, assim como na anterior, a impossibilidade de tratar de


casos de violncia - englobando homicdios, agresses e suicdios em mulheres grvi-
das - ou envolvendo questes relacionadas sexualidade e reproduo. Esse ltimo
ponto tem sido posto em discusso no contexto da definio de morte materna a partir
de estudos que documentam a ocorrncia de casos concretos, ainda que ressaltando as
dificuldades envolvidas no estabelecimento de nexos causais entre a situao de violn-
cia e a gravidez (Fauveau & Blanchet, 1989; Compte, 1996).
No sentido de superar as dificuldades discutidas anteriormente, tendo como refe-
rncia a proposta do grupo tcnico reunido pela O M S (WHO, 1989), Fortney (1995)
apresentou u m sistema de classificao a partir do qual a morbidade reprodutiva
categorizada em trs grandes grupos:

Morbidade Obsttrica (ou materna): consiste na conseqente gravidez ou ao parto


ou, ainda, a resultante de tratamento recebido no decorrer da gravidez ou do parto
(Fortney, 1995). Em uma dimenso aparentemente conflitante, a morbidade obsttri-
ca tempo definida, referindo-se s condies que ocorrem at 42 dias ou 12 meses
a a
aps o parto (respectivamente, como na 9 e na 10 Reviso da CID). Todavia, inclui
problemas que ultrapassam o puerprio, como o prolapso uterino ps-parto prolon-
gado. Tradicionalmente, subdividida em quatro categorias:
Morbidade Obsttrica Direta: surgida em conseqncia gravidez ou ao parto; que
no ocorreria se a mulher no estivesse grvida. Citam-se como exemplos hemorragias,
septicemias puerperais, desordens hipertensivas da gravidez, partos distcicos e con-
seqncias do aborto, incluindo-se, tambm, condies resultantes do tratamento de
problemas obsttricos, como infeco ps-cesrea;
Morbidade Obsttrica Indireta: no resultante de gravidez, mas agravada a partir de
sua ocorrncia (malria, tuberculose, hipertenso crnica, hepatite, doena reumti
ca do corao, cncer de mama);
Distrbios Psicolgicos: associados ao resultado de gravidez ou a alteraes hormonais
conseqentes gestao (como depresso, psicose puerperal).
Morbidade No-Obsttrica: agravos acidentais ou incidentals (suicdios e violncia)
ocorridos durante a gravidez, o parto ou o puerprio.
Morbidade Ginecolgica: problemas do sistema reprodutivo no resultantes de gravi-
dez ou parto, ou em conseqncias destes problemas ou de seu tratamento. A catego-
ria abrange trs subgrupos:
Morbidade Ginecolgica Direta: inclui doenas sexualmente transmissveis (DST) e
outras infeces do trato reprodutivo e suas seqelas; neoplasias do sistema reprodutivo;
distrbios endcrinos associados disfuno menstrual e infertilidade; malformaes
congnitas ou danos da genitalia feminina (decorrentes de violncia sexual ou de
trauma acidental); disfunes sexuais; distrbios associados menopausa; infertilidade
primria ou secundria; outros problemas ginecolgicos (endometriose, processos
inflamatrios plvicos no decorrentes de DST);
Morbidade Ginecolgica Indireta: refere-se a problemas resultantes de prticas tera-
puticas modernas ou tradicionais, tais c o m o fistulas conseqentes terapia por
radioterapia d o cncer de colo uterino ou mutilao da genitlia feminina conse-
qente a preceitos religiosos ou culturais;
Distrbios Psicolgicos: resultantes de trauma ginecolgico ou sexual e de alteraes
hormonais (dispareunia, depresso associada infertilidade, DST ou AIDS).
Morbidade Contraceptiva: compreende os danos sade decorrentes do uso de
contraceptivos, incluindo efeitos locais (irritaes, reaes alrgicas, sangramentos e
infeces) e sistmicos (entre outros, a carcinogenicidade e os impactos sobre os
sistemas cardiovascular e hormonal).
Segundo a tipologia de Fortney (1995), haveria, ainda, a possibilidade da incluso de
u m quarto grupo: o de Morbidade Sexual, o qual, rigorosamente, superpe-se ao de
morbidade ginecolgica.
Essa proposta reflete o esforo de ampliao e percepo da morbidade reprodutiva,
podendo abranger aspectos referentes sade mental e sexualidade, entre outros,
ainda que persista o enfoque exclusivo na mulher. Contudo, as contradies presentes
em outras definies so, novamente, evidenciadas quando se comparam o conceito e
o sistema de classificao propostos, este ltimo apresentando limites b e m mais
abrangentes do que o primeiro (Fortney, 1995).
Em estudos epidemiolgicos, a produo de informao pressupe a sumarizao
de dados sob a forma de indicadores, os quais esto estritamente condicionados pelo
conceito de sade/morbidade reprodutiva adotado. Exemplificando: no manual da O M S
(Wingo et al., 1996), os indicadores propostos referem-se, exclusivamente, fecundidade,
mortalidade materna e mortalidade infantil, refletindo o enfoque matemo-infantil
e o carter restrito do conceito adotado. Em contrapartida, a constituio de medidas a
partir do sistema de classificao proposto por Fortney (1995), pela maior abrangncia
conceitual implcita, resultar em uma maior diversidade dos indicadores, ainda que
limitados morbidade e no sade reprodutiva.
Entretanto, alm dos condicionantes de ordem conceituai, a operacionalizao de
indicadores de sade/morbidade reprodutiva, para uma anlise epidemiolgica a partir
de dados rotineiros, depende, tambm, do tipo de dado disponvel, sendo importante,
portanto, conhecer as fontes de informao existentes no Pas quanto abrangncia,
periodicidade, disponibilidade de acesso, em suma, quanto aos seus limites e suas
potencialidades.

Bases de dados de interesse em sade reprodutiva

No Brasil, encontram-se disponveis grandes bases de dados de abrangncia nacio-


nal. As de interesse mais imediato em sade reprodutiva, sistematizadas nos quadros
1 e 2, podem ser apresentadas em dois subconjuntos.
O primeiro refere-se quelas de carter demogrfico (Quadro 1), relativas di-
nmica populacional, cujos dados so produzidos pelo IBGE por intermdio de Cen-
sos demogrficos decenais e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD),
de realizao anual, nos perodos intercensitrios. Alm de u m questionrio bsico
com perguntas sobre caractersticas demogrficas, as relativas a habitao, mo-de-
obra, rendimento e instruo, a PNAD inclui, c o m periodicidade varivel, outros
temas, c o m o a s a d e - q u e constituiu bloco suplementar e m 1981 e e m 1986. O
primeiro, embora mais abrangente, teve problemas metodolgicos srios, ocasio-
n a n d o u m alto grau de subestimao das taxas de prevalncia de problemas e de
utilizao de servios de sade (Aquino et al., 1992). Alm dessas duas fontes regu-
lares, destaca-se a realizao, em 1989, da Pesquisa Nacional sobre Sade e Nutrio
e, em 1996, da Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sade (PNDS), esta de particu-
lar interesse para a Sade Reprodutiva.
O segundo conjunto de bases de dados nacionais integra o sistema de informao
do Sistema nico de Sade (SUS), que tem cobertura de cerca de 75% da populao
(Mendes, 1995), sendo de particular interesse o Subsistema de Informao de Morta-
lidade (SIM), o Subsistema de Informao de Nascidos-Vivos (SINASC), OS Subsistemas
de Informaes Hospitalares (SIH-SUS) e Ambulatoriais (SIA-SUS) (quadro 2).
Quadro 1 Fontes de dados nacionais segundo caractersticas
principais (IBGE)
Quadro 2 Fontes de dados nacionais segundo caractersticas
principais (Ministrio da Sade)
O s dados de mortalidade, que referem-se a u m evento nico e inequvoco, alm
disso, so originados a partir da declarao de bito, cujo carter legal de registro possi-
bilitaria u m a ampla cobertura e uma maior confiabilidade da informao. Entretanto,
estima-se que, e m todo o Pas, exista elevado nvel de sub-regstro, ainda que no se
disponha de uma adequada avaliao sobre a magnitude do problema (CENEPI/FNS, 1997).
Segundo o Ministrio da Sade, uma proporo grande de municpios no conta c o m
informao regular sobre mortalidade e, exceto nas regies Sul e Sudeste do Pas, o SIM
apresenta u m alto percentual de bitos sem causa definida, particularmente n o Norte e
no Nordeste (Tabela 1), o que limita a comparabilidade dos indicadores. Isso tem levado
recomendao de que o clculo de taxas de mortalidade restrinja-se s capitais, onde
o sub-registro pouco expressivo e a proporo de causas mal definidas no ultrapassa
5% do total de bitos (Paula et al, 1994). Para os demais locais, deve-se priorizar a utiliza-
o de propores, para contornar os problemas intrnsecos construo de taxas c o m
dados de qualidade duvidosa ou sabidamente ruim.
Cabe destacar que os problemas mencionados afetam diferentemente os grupos de
causas de bitos, sendo particularmente relevantes entre as complicaes da gravidez,
do parto e d o puerprio. Segundo vrios estudos nacionais e internacionais (Puffer &
Griffith, 1968; Hgberg, 1986; Ferreira &Ceneviva, 1986; Viana, 1992), as causas mater-
nas so as mais mal declaradas nos atestados de bito, mesmo nas regies que possuem
boa qualidade das estatsticas vitais.

Tabela 1 Fidedignidade da informao sobre mortalidade.


Brasil e Grandes Regies 1994

Fonte: CENEPI/FNS, 1997.

A morbidade tem abordagem ainda mais complexa do que a mortalidade, em decor-


rncia de dificuldades intrnsecas anlise de eventos que podem ocorrer vrias vezes
em u m m e s m o indivduo, apresentando distintos graus de severidade. Alm disso, os
bancos de dados existentes n o SUS derivam da utilizao de servios de sade, apresen-
tando cobertura populacional mais restrita, porque nem todos os problemas de sade
resultam na procura de assistncia, e n e m toda demanda satisfeita e m condies de
dificuldades de acesso aos servios de sade; e limita-se aos quadros de maior gravidade,
expressos pelas causas de internao hospitalar (SIH-SUS), j que, de fato, o sistema de
informaes ambulatoriais (SIA-SUS) no engloba o registro da enfermidade, que m o -
tivou a busca do servio de sade, mas apenas os procedimentos realizados.
importante ressaltar que a enfermidade hospitalar reflete, ainda, a definio de
prioridades quanto alocao de recursos (que se traduz n o nmeros de leitos hospita-
lares), tanto n o que diz respeito aos problemas de sade, quanto s especialidades m-
dicas. Essas peculiaridades devem ser consideradas ao se elaborar perfis de morbidade,
especialmente c o m a realizao de estudos comparativos.
Parao estudo de enfermidades especficas, dispe-se, tambm, dos produzidos
pelo Subsistema de Agravos de Notificao (SINAM), destacando-se neste caso as
doenas sexualmente transmissveis e a AIDS. Historicamente, essa base de dados
tem sido criticada quanto subnotificao dos casos, especialmente considerando-
se problemas de sade amplamente estigmatizados.
Tambm podem ser mencionados o Registro Nacional de Patologia Tumoral, de base
laboratorial, e os Registros de Cncer de Base Populacional. Estes ltimos permitem o
clculo de taxas de incidncia, mas limitam-se a alguns municpios d o Pas - entre os
quais alguns tm sofrido grande descontinuidade de sua ao. Alm de publicaes
1
especficas , o Instituto Nacional do Cncer (INCa/MS), lanou, em 1997, "Estimativas
da Incidncia e Mortalidade por Cncer n o Brasil", disponvel tambm em C D - R O M .
Merece ser comentado que as bases de dados nacionais ainda apresentam proble-
mas de compatibilizao, existindo mais dificuldade quanto maior o nvel de desagre-
gao geogrfica. De todo modo, so fontes de informao valiosas e ainda pouco explo-
radas, especialmente quanto ao tema e m questo.

Sade reprodutiva e o movimento de mulheres: notas finais

Nas duas ltimas dcadas, a noo de sade reprodutiva desenvolveu-se de modo


amplo em espaos institucionais, que envolveram fundamentalmente a O M S e setores
ligados ao sistema internacional de planejamento familiar (Corra, 1996).
Em fruns internacionais da dcada de 90, particularmente na Conferncia Inter-
nacional de fbpulao e Desenvolvimento (CIPD), de 1994, no Cairo, e na IV Conferncia
Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz (em 1995, em Beijing), a noo de sade
reprodutiva esteve na base das negociaes que propiciaram a construo de u m consen-
so entre a vertente institucional e os movimentos sociais, destacando-se o movimento de

1
Citam-se, entre outras, BRUMINI, 1982; Ministrio da Sade, 1991a e 1991b.
mulheres. U m dos principais resultados desse processo foi a inflexo nos debates em
torno da reproduo h u m a n a de sua perspectiva de controle demogrfico para o reco-
nhecimento, como direitos humanos inalienveis, dos direitos sexuais e reprodutivos, os
quais, at ento, encontravam-se abrigados na sade reprodutiva (Corra, 1996).
Embora apresentando distintos potenciais de legitimao, esses termos tm sido
usados freqentemente de m o d o intercambivel, c o m o ficou ilustrado anteriormen-
te nas definies adotadas por diferentes autores (Fatalla, 1988; Germain, 1987 apud
Graham & Campbell, 1991). Alm das imprecises semnticas, nos debates atuais,
persiste at m e s m o a dvida se a sade reprodutiva u m conceito, u m c a m p o ou
apenas u m recorte de investigao. Mais do que uma questo acadmica, como bem
afirma Corra (1996:2):
(...) crucial predsar o contedo e o sentido dessas novas definies, seno por outra
razo porque podem ocorrer simplificaes e distores no contexto de sua aplicao nas
polticas pblicas e legislaes.
Fica clara, portanto, a necessidade de se explicitar essas dificuldades, para super-las.
O conceito de sade reprodutiva que emergiu da Conferncia do Cairo a define como:
o estado de completo bem-estar fsico, mental e social, e no meramente a ausncia de
doena e enfermidade, em todas as questes relativas ao sistema reprodutivo e s suas
funes e processos. (Themis, 1997:23)

A definio inspira-se n o conceito de sade da O M S (1981), que traduziu a preo-


cupao de projetar o reconhecimento do estado de sade e seus determinantes para
alm dos processos biolgicos e de alcanar u m grau de generalidade que pudesse
englobar diferentes contextos culturais, socioeconmicos e polticos. N o entanto, a
forma genrica c o m o estabelecido o que poderia ser u m estado perfeito de sade
imprime ao conceito u m nvel de abstrao que o torna quase metafsico, difcil de
operacionalizar ou, ainda, de ser atingido, tanto individualmente quanto por coleti-
vos humanos.
Em outra perspectiva crtica definio de sade da O M S , Camargo Jr. (1995)
questiona a mera justaposio de discursos (da biologia, da psicologia e da sociologia)
como possibilidade de superar a fragmentao inerente ao desenvolvimento discipli-
nar moderno. Alm disso, ressalta-se o fato de que, na perspectiva hegemnica, os
termos 'psico' e 'social' no passam de referncias genricas subordinadas ao prima-
do do discurso biolgico.
Prosseguindo a anlise de seu sucedneo, as dificuldades identificadas na primeira
parte do conceito no so contornadas pela especificao pretendida a partir da refern-
cia ao processo de reproduo. Ao contrrio, ocorre seu confinamento nos limites dos
processos biolgicos, ao qualificar o estado de bem-estar "em todas as questes relativas
ao sistema reprodutivo e a suas funes e processos".
Embora reconhecendo a importncia das declaraes do Cairo e de Beijing (Themis,
1997) c o m o instrumentos polticos nas lutas das mulheres, no plano internacional o
contedo de suas definies deve ser retraduzido luz das especificidades locais e
conjunturais, especialmente considerando-se sua aplicao em distintos setores das
polticas pblicas.
No mbito da sade, o discurso hegemonico trata a reproduo e a sexualidade exclusi-
vamente em sua dimenso biolgica, naturalizando as diferenas entre homens e mulhe-
res e reiterando o essencialismo na figura da mulher me, reprodutora biolgica e provedo-
ra de cuidados prole e famlia. O saber mdico contemporneo classifica como doenas
eventosfisiolgicos,como a menstruao e o climatrio; como desvios, as escolhas sexuais
distintas da unio heterossexual para a procriao; como objetos de medidas de preveno,
a gravidez 'precoce' e a 'tardia', em u m fenmeno de biologizao do social (vila, 1996).
Em conseqncia, nesse campo em particular, a utilizao de termos c o m o 'sexual' e
'reprodutivo' vem carregada de valores intrinsecamente conservadores, "biologizando' outros
termos aos quais estejam agregados, como 'sade sexual' e 'sade reprodutiva'.
Esta reflexo particularmente relevante ao se tratar da formulao e
operacionalizao de propostas de polticas e programas de ateno sade, pois corre-
se o risco de aprisionar o debate sobre sade e direitos reprodutivos nos marcos estritos
da ginecologia e obstetrcia, tendo os mdicos como principais interlocutores.
A sade tem ocupado lugar central nas lutas das mulheres brasileiras nos ltimos
2
vinte anos. Durante a dcada de 80, ocorreram inmeros encontros sobre o tema
promovidos pelo movimento feminista, cujas proposies tiveram contribuio ineg-
vel na definio de polticas sociais do interesse das mulheres, destacando-se a formu-
lao do Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM), em 1983. Isto se deu
em meio ao processo mais amplo de redemocratizao do Pas e, particularmente, de
democratizao da sade, consubstanciado no artigo 196 da Constituio Federal de
1988, que define sade como direito de cidadania e dever do Estado.
Embora no seja pretenso deste artigo aprofundar essa questo, entre as reflexes
finais, cabe ser apontada a necessidade de retomada de uma articulao das lutas das
mulheres pela sade c o m os demais movimentos sociais que, atualmente, buscam
defender as conquistas formais obtidas e implementar polticas pblicas de sade com
caractersticas de eqidade, universalidade e justia social.
As contribuies do feminismo no campo da sade no se esgotam nas reflexes
sobre o corpo, a reproduo e a sexualidade. As teorias de gnero podem ampliar o
debate sobre eqidade, enriquecendo as conceituaes de sade e a prpria compreen

2
Entre outros, o l Encontro Nacional sobre Sade, Sexualidade e Aborto (1983), no Rio de Janeiro; o l
Encontro Nacional de Sade das Mulheres (1984), em Itapecirica da Serra; I Conferncia Nacional de
Sade e Direitos Reprodutivos (1986); Encontro Nacional Sade da Mulher: um direito a ser conquistado
(1989), em Braslia.
so sobre o processo sade e doena. Aplic-las nesse campo implica desnaturalizar
diferenas entre homens e mulheres, entre homens e homens, entre mulheres e mulhe-
res; e evidenciar hierarquias e subordinaes, buscando entender como estas se produzem
e se reproduzem, e, particularmente, como se articulam com as iniqidades em sade.
No Brasil, os elementos que compem a reflexo e a luta das mulheres pela sade
tm includo
o q u e s t i o n a m e n t o acerca do saber e do poder mdico; a emergncia d o discurso das
mulheres sobre suas experincias corporais; u m a crtica c o n t u n d e n t e situao atual
do servio de sade; alm do e m p e n h o e m exigir d o Estado u m a maior eficcia n o que
se refere ao funcionamento do sistema de sade. (vila, 1993)

No momento atual, construindo-se uma agenda para a virada do sculo, duas ques-
tes parecem especialmente estratgicas: a incorporao de gnero sade reprodutiva,
desconstruindo a imagem da mulher como reprodutora e o seu reverso de que repro-
duo nada tem a ver com os homens; e a repolitizao das necessidades de sade, com
a retomada da nfase na noo de integralidade da assistncia, c o m base em u m a
concepo holstica de sade.

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12

A Mortalidade Materna no Brasil


no Perodo de 1980 a 1993
Ktia Silveira da Silva, Catherine . Lowndes, Eleonora D 'Orsi
&Ana Cristina. C. Vaz Reis

Introduo

O bito de uma mulher em decorrncia de causa associada maternidade hoje u m


fato considerado inaceitvel, principalmente se levarmos em conta que, com o conheci-
mento mdico disponvel, a grande maioria destas mortes poderia ser evitada. A sua ocor-
rncia representa o final da linha de uma rede complexa de eventos - que abrangem desde
determinantes mais gerais, como o nvel de concentrao de renda e o desenvolvimento de
polticas sociais, at os mais especficos, como a percepo da mulher de sua prpria sade
e o acesso aos servios de assistncia mdica de qualidade tanto para as grvidas e purperas
quanto para aquelas mulheres que desejam o controle de sua fecundidade.
Em estimativas mais recentes, a Organizao Mundial de Sade (OMS) avalia que
ocorram aproximadamente 585 mil bitos maternos por ano no mundo - 99% localiza-
dos em pases do Terceiro M u n d o (Weekly Epidemiological Record, 1996). Considera-se que, no
passado, o nvel da mortalidade materna estava subestimado - sem, contudo, ter havido
mudanas na distribuio geogrfica dos bitos. Embora as medidas para reduo da
mortalidade materna j sejam conhecidas, pode-se dizer que no houve avanos nos
ltimos anos (Abouzahr, 1996).
Na comparao de taxas de mortalidade materna entre diferentes pases, constata-se
que, nos pases em desenvolvimento, as mulheres no ciclo gravdico-puerperal apre-
sentam risco de morrer por causa materna at 2 5 vezes maior do que nos pases
desenvolvidos (Armstrong & Royston, 1989), (Tabela 1).
Xabela 1 Razo de mortalidade materna 1991-1993

Fonte: World Health Statistic Annual, 1 9 9 4 .


Nota: * W A L R A V E , 1 9 9 4

As diferenas existentes entre nveis de mortalidade materna dos pases so reflexo


das grandes desigualdades nas condies polticas, econmicas e sociais. Estas desigual-
dades se reproduzem dentro dos prprios pases. Sabe-se que o Brasil apresenta no seu
interior situaes bastantes diferenciadas: enquanto u m a parcela pequena da popula-
o usufrui de elevado padro de vida, existem bolses de pobreza semelhantes aos dos
pases da frica e sia. Duchiade (1995) identificou, n o artigo "Populao Brasileira:
retrato e m movimento", a existncia de mltiplas realidades que compem os vrios
brasis. Apresentar este quadro sobre o aspecto especfico da mortalidade materna uma
contribuio para o conhecimento do nosso pas.
O objetivo deste captulo descrever a tendncia e as causas especficas da mortali-
dade materna n o Brasil, e m suas regies e estados, de 1980 a 1993. Este estudo permite
conhecer, e m parte, que etapas do processo reprodutivo feminino podem ser modifica-
das, definindo reas prioritrias nos Programas de Sade, reduzindo o nvel das taxas de
mortalidade materna e repercutindo positivamente n o quadro de sade da mulher.
No Plano de Ao para Reduo da Mortalidade Materna (1995), o Ministrio da
Sade (MS) refere q u e o Brasil o q u i n t o pas de maior Razo de mortalidade
materna na Amrica Latina, estimada e m 134.7 bitos para 100.000 nascidos-vivos
para o ano de 1988.Odocumento afirma que: "98% destas mortes seriam evitadas se
as mulheres tivessem condies dignas de vida e ateno sade, especialmente pre-
natal realizado c o m qualidade, assim c o m o b o m servio de parto e ps-parto" (Brasil.
Ministrio da Sade, 1995).
Ser adotado o conceito de bito materno recomendado pela O M S , que considera
como morte materna (OMS, 1978):
a morte de u m a m u l h e r durante a gestao o u dentro de u m perodo de 4 2 dias aps
o t r m i n o da gravidez, i n d e p e n d e n t e da durao ou localizao da gravidez, devido a
qualquer causa relacionada c o m , ou agravada pela gravidez, porm no devido a causas
acidentais ou incidentals.
Esta definio corresponde s causas de bito descritas no captulo XI da Classifica-
o Internacional de Doenas (IX Reviso): complicaes da gravidez, do parto e do
puerprio.
Os principais aspectos a serem analisados so: estimativas do indicador de mortali-
dade materna para o Brasil e macrorregies para o ano de 1992; a evoluo da Razo de
mortalidade materna n o Brasil e regies e estados durante o perodo de 1979 a 1993; e
a Razo de mortalidade especfica n o Brasil para os principais grupos de causas mater-
nas n o perodo de 1979 a 1993.

Metodologia

A medida mais usual nos estudos sobre o tema a Razo de mortalidade materna,
obtida a partir do seguinte clculo:

nmero de bitos maternos


Razo de Mortalidade = x 100.000
Materna* nmero de nascidos-vivos (n.v.)

(*para u m dado perodo e regio geogrfica)

C o m o u m indicador de sade, possibilita avaliar a qualidade da assistncia mdica


prestada s mulheres durante a gravidez, o parto e o puerprio. Porm, a sua anlise em
diferentes perodos e lugares permite afirmar que ele ultrapassa os limites de u m sim-
ples indicador de sade, tornando-se uma medida das condies socioeconmicas.

Fonte de dados

As informaes sobre o nmero de bitos maternos e de nascidos-vivos so a base


para construo do indicador Razo de mortalidade materna.

O s bitos
O s dados referentes ao perodo 1979 a 1993 foram obtidos junto ao Subsistema
Nacional de Mortalidade - M S (SIM), que nos permitiu ter acesso s informaes
sobre a causa bsica de morte, municpio de residncia e idade.
O s nascidos-vivos
As estimativas do nmero de nascidos-vivos para o Brasil, regies geogrficas, esta-
dos e capitais foram obtidas junto Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatstica (IBGE). Em relao ao nmero de nascidos-vivos, o IBGE fornece publica-
es anualmente sob o ttulo "Estatsticas do Registro Civil" com os dados coletados
diretamente no registro civil. No entanto, existe u m a srie de entraves na legislao
pertinente, c o m o a no-gratuidade do registro, que contribuem para o sub-registro
existente. Ainda que estas restries existam, o Registro Civil a nica fonte de
nascimentos que permite a construo de sries histricas.
Neste trabalho, foi utilizado o nmero de nascidos-vivos corrigidos para o registro
atrasado em at oito anos, fornecido pelo Departamento de Populao e Indicadores
Sociais (DEPIS) da IBGE. A partir desta metodologia, foi construda a srie de registros
tardios, entre 1974 e 1994. Para obteno do nmero de nascidos-vivos corrigido
para as regies metropolitanas foram utilizados os fatores de correo multiplicados
pelo total de nascidos-vivos e registrados n o ano, disponveis nas estatsticas do
Registro Civil. Para o clculo do nmero de nascidos-vivos corrigido segundo idade
da me, a distribuio etria proporcional dos nascidos e registrados n o ano do
Registro Civil foi aplicada ao total de nascidos-vivos corrigido, assumindo-se no
haver sub-registro diferenciado por idade materna.

Razo de mortalidade materna


A morte materna u m evento relativamente raro. Por isto, a sua razo fica sujeita a
grandes oscilaes, quando estratificamos em reas menores ou em causas maternas
especficas. Optamos, portanto, por calcular a mdia mvel de cinco anos, somando
os bitos matemos de dois anos anteriores com os do ano de interesse e os de dois
anos posteriores, dividindo pela soma dos seus respectivos nascidos-vivos, para suavi-
zar esta instabilidade do indicador (Neter; Wasserman & Whithmore, 1993).
A taxa de variao anual dos nveis de mortalidade materna foi calculada atravs de
regresso linear simples para u m a anlise inicial da tendncia do indicador n o
perodo estudado para se identificar uma variao mdia - embora se saiba que esta
tendncia se modifica ao longo do perodo estudado (Morettin &Toloi, 1987).

A qualidade dos dados


bastante discutida a qualidade das informaes relacionadas aos bitos maternos
e aos nascidos-vivos. Da decorre a preocupao de que os resultados possam estar
distorcidos por algum vis, comprometendo a validade dos resultados do estudo. A
principal distoro se atribui ao nmero de bitos - porm, mesmo que estas razes
estejam subestimadas, j refletem uma realidade bastante dramtica.

Na anlise da mortalidade materna, deve-se considerar que, alm deste sub-registro


de bitos que atinge todas as causas, existe u m a subenumerao especfica da causa
materna, j evidenciada em estudos nacionais e internacionais.
Tendo conhecimento do sub-registro geral dos bitos e subenumerao de bitos
maternos, optamos por estimar Razo de mortalidade materna esperada n o ano de
1992, para que se pudesse ter u m a dimenso da real magnitude d o problema. O
clculo para esta estimativa seguiu a metodologia proposta por Becker e aplicada por
Siqueira et al. (1984) para o ano de 1980. A metodologia consiste em, para cada regio,
estimar o n m e r o de bitos, caso todos os municpios informassem regularmente.
Deste total estimado, calcula-se o nmero de bitos matemos esperados, considerando
a proporo destes e m relao ao total de causas definidas.
Alm disso, para melhor compreenso do perfil das causas maternas, considerou-se
importante detalhar, e m alguns anos da srie estudada, a estrutura destes grupos mais
gerais: aborto, hemorragias, toxemias, complicaes puerperais e outras causas obst-
tricas diretas e indiretas.

Quadro 1 Converso das causas de morte do X I captulo do


Cdigo Internacional de Doenas

Fonte: CID.9Reviso; 1993, OPS.


* DPP - Descolamento prematuro de placenta, PP- Placenta prvia.

Resultados

A qualidade do sistema de informao de bitos


N o trabalho "Mortalidade Materna n o Brasil-1980", segundo dados oficiais, a Razo
de mortalidade associada ao ciclo gravdico-puerperal foi de 70 bitos para 100.000 n.v.
N o entanto, ao se levar e m conta o sub-registro de bitos, esta Razo aumentaria para
1.54.3/100.000 (Siqueira, 1984).
Para o ano de 1992, o S I M refere que ocorreram n o Brasil 1.528 bitos femininos por
"complicaes da gravidez, do parto e do puerprio". Ao considerarmos os diferentes
nveis de sub-registro de bitos para as regies geogrficas - estimando u m total de
mortes c o m o se todos os municpios informassem regularmente e no houvesse cau-
sas mal definidas - teramos u m registro de 2.577 mortes maternas (Tabela 2).

Tabela 2 Sub-registro de bitos (%), nmero de bitos maternos


observados e esperados no Brasil e Regies 1992

Fonte: Estatstica de Mortalidade, 1992, M S .


Nota: * Considerando apenas o sub-registro de bitos e o percentual sobre as causas mal definidas,
porm sem levarem conta a subenumerao do bito materno.

A Razo de mortalidade materna - que inicialmente era de 46 bitos maternos -


cresceria para 77.5 bitos matemos para cada 100.000 crianas que nascem vivas. Ao
compararmos estas taxas estimadas para o ano de 1980 e 1992, observamos uma redu-
o de 50% da mortalidade materna.
Esta discusso sobre a qualidade do sistema de informao fundamental para uma
viso crtica dos dados que sero analisados a seguir.
A Razo de mortalidade materna duplicaria, atingindo nveis muito elevados (prxi-
mos a 174 bitos matemos por 100.000) se, alm do sub-registro, fosse tambm corrigida
a subenumerao c o m os fatores diferenciados de correo sugeridos pelo Ministrio
da Sade: 2,04 vezes (regio Sul); 2,24 vezes (Sudeste); e 3 vezes para demais regies
(Brasil, Ministrio da Sade, 1995). C o m base nisto, podemos ter u m a aproximao
maior do risco a que efetivamente se expem as mulheres nas diferentes regies. C o m
estes fatores de correo, este indicador se toma mais coerente c o m outros indicadores
existentes sobre condies de vida e de assistncia mdica. Desta forma, as regies Sul
e Sudeste passam a ser aquelas de menor mortalidade materna; e Norte e Nordeste
o c u p a m o lugar de maior risco, c o m u m a magnitude que corresponde a u m bito
materno para cada 340 crianas que nascem vivas.
Embora estas correes paream u m artificio matemtico, elas decorrem da experin-
cia acumulada nesta rea por meio de estudos que comparam diversas fontes de infor-
maes (realizados por profissionais que buscam a melhoria da qualidade dos dados e
a reduo da mortalidade materna).

A tendncia da mortalidade materna n o Brasil


A anlise da Razo oficial de mortalidade materna no Brasil revela u m a reduo do
risco (com a ocorrncia de-1,2 bitos maternos poranoj, mas os nveis se mantm
elevados durante todo o perodo compreendido entre os anos de 1980 e 1993. Seria
possvel identificar uma tendncia de reduo contnua desta Razo apenas entre os
anos de 1980 e 1986, quando a mortalidade materna variou entre 66,04 e 50,05 por
100.000 crianas nascidas vivas. Porm, a partir de 1987, percebe-se uma mudana
nesta tendncia, com a Razo se mantendo estvel em torno de 47 mortes maternas por
100.000 n.v. (Tabela 3).

Tabela 3 Taxa de mortalidade materna e mdia mvel


(Mm) de 5/5 anos, Brasil - 1979 a 1993

Fonte: MS/FIBGE.
Inicialmente buscaremos identificar c o m o se apresentam as regies d o Pas e m
relao aos nveis de mortalidade materna (Grfico 1).

Grfico 1 Razo de mortalidade materna (mdia mvel de 5

20,00-

0,00 J , , . , r-^-i , . 1 . 1 1
1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993
A regio Norte se destaca nesta anlise por possuir caractersticas bastante particula-
res e m relao tendncia do indicador. Em primeiro lugar, a nica regio onde se
observam, segundo os critrios descritos por Laurenti (1995), nveis muito altos do
indicador (116, 17 bitos maternos por 100.000 n.v.). Este fato se deu n o incio da
dcada de 80. Alm disso, apresenta tambm a maior variao mdia do indicador de
mortalidade materna do Pas, com reduo anual de cinco bitos maternos.
Em 1993, contrariando o esperado, constatou-se no Norte u m nvel mdio de mor-
talidade materna (47 bitos por 100.000 n.v.) inferior ao das regies Sudeste e Sul, mais
desenvolvidas. Q u a n d o se faz a anlise dos estados que a compem, constata-se uma
reduo das taxas de mortalidade materna - principalmente em Roraima e no Par, que
possuamos nveis mais elevados do Pas: 163,84 e 138,59, respectivamente.
Tambm cabe chamar ateno para o aspecto de a regio Nordeste, u m a das reas
mais carentes do Brasil, ser aquela de menores taxas de mortalidade materna (prximo
a 40 bitos por 100.000 n.v.) ao longo de todo o perodo estudado, com uma razo de
crescimento anual de -0,9 bitos matemos.Porm,nos estados da Bahia, Cear e Sergipe,
h registro de aumento da Razo a partir de 1989. No Rio Grande do Norte, a situao da
mortalidade materna permanece praticamente inalterada nestes 15 anos. Surpreende o
fato de este indicador na Paraba se encontrarem u m nvel considerado baixo, seme-
lhante ao de pases desenvolvidos, o que deve ser explicado pelo desconhecimento do
total de bitos matemos que efetivamente ocorrem.
Na regio Sudeste, embora tenha havido u m a tendncia de queda da Razo de
mortalidade materna, com u m a diminuio de u m bito materno ao ano durante o
perodo, este declnio se concentrou nos primeiros anos: em 1980, estima-se que te-
n h a m ocorrido 61.8 bitos maternos; em 1988, para cada 100.000 nascidos-vivos,
morriam 50 mes. Contudo, nos anos 90, no houve alterao significativa para as
mulheres em relao ao risco de morte materna. Se estratificamos este dados por esta-
dos, evidenciamos situaes diferenciadas. Enquanto no Rio de Janeiro este risco vem
aumentando, no Esprito Santo e Minas Gerais a Razo vem diminuindo e, em So
Paulo, se mantm relativamente constante.
Na regio Sul, ao analisarmos o perodo completo (apesar de o Rio Grande do Sul e o
Paran apresentarem uma tendncia de aumento das razes de mortalidade materna),
ainda prevalece u m a Razo de crescimento negativo de 0,1 bitos por 100.000 n.v. por
ano. Diferentemente das demais regies, esta apresenta, no perodo 1988 a 1993, u m
aumento contnuo da Razo de mortalidade materna, atingindo neste ltimo ano os
nveis de 13 anos atrs, colocando o Sul como a regio de maiores ndices - aproxima-
damente 59 mortes maternas por 100.000 n.v.
Na regio Centro-Oeste, a reduo foi mais acentuada (-1,9 mortes maternas/ano),
destacando-se o perodo ps-1988. A Razo variou entre 62 e 39,6 bitos matemos por
100.000 n.v. nos anos estudados. Dentro da regio, todos os estados tiveram reduzidas
suas taxas, destacando-se Gois, com Razo de 19,75 bitos maternos por 100.000 n.v.
em 1990.
Portanto, poderamos sugerir que a estabilidade alcanada pelo indicador em ter-
mos nacionais, na dcada de 90, fruto da diminuio da Razo de mortalidade mater-
na nas regies Norte e Centro-Oeste; da elevao da Razo na regio Sul; e da reduzida
alterao ocorrida nos nveis do Sudeste e Nordeste.
Em 1993, os maiores riscos para as mulheres situam-se em primeiro lugar no Sul,
seguido do Sudeste-o que seria u m paradoxo, se no fosse considerado o trabalho que
v e m sendo realizado nestas reas para melhorar a qualidade da informao sobre o
bito materno.
Se estratificarmos os nossos dados pelos estados e analisarmos a variao
percentual ocorrida entre 1980 e 1993, as reas com maiores descensos foram Gois
e Rondnia (Tabela 4).
Tabela 4 Variao percentual da razo de mortalidade ma-
terna entre os anos de 1980 a 1993

C o m exceo de alguns estados, identifica-se u m a tendncia generalizada de re-


duo do nvel de mortalidade materna, embora tenha sido observada alguma eleva-
o a partir de certo m o m e n t o da srie estudada, principalmente aps o ano de 1988.
Alm de evidenciarem ndices bastantes altos, algumas reas indicam u m a tendncia
de elevao das taxas a partir da segunda metade da dcada de 80; e os estados d o
Paran e Rio de Janeiro aparecem c o m os maiores riscos (Grfico 2).
Grfico 2 Taxa de mortalidade materna segundo estado de
residncia 1993

Laurenti (1994) tambm refere u m aumento de 6% da mortalidade na cidade de So


Paulo neste m e s m o perodo. Entre os Estados com pior desempenho estavam Paran,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso.

Anlise das causas especficas de mortalidade materna


Na anlise das causas especficas de mortalidade materna constata-se que, embora
tenha havido u m declnio das taxas, durante estes anos no houve alteraes significa-
tivas no padro de causas de mortalidade materna, quando se estuda os dados agregados
nacionalmente (Grfico 3).
Grfico 3 Mdia mvel de 5 em 5 anos da taxa de mortalidade
materna por subgrupos de causas. Brasil 1979-1993

Observa-se que as maiores taxas so atribudas s toxemias, seguidas das outras


causas diretas, hemorragias, complicaes do puerprio, abortos e das causas indiretas.
Chamam ateno o aumento gradativo das taxas de mortalidade materna pelas causas
indiretas e o risco de u m a mulher gestante ou purpera vir a morrer por esta causa,
atualmente trs vezes maior do que nos anos iniciais.
As toxemias foram as principais causas em todos os anos descritos (Grfico 4).

Grfico 4 Mortalidade proporcional por subgrupos de cau-


sas maternas Brasil 1993
Apesar do declnio ocorrido na Razo especfica de mortalidade por toxemias - de
17,84 mortes para 13,02 mortes por 100.000 crianas que nascem vivas -, q u a n d o
calculamos a Razo das taxas de mortalidade materna entre 1980 e 1993 identifica-
mos que, passados 15 anos, o risco de morte materna por esta causa em 1980 apenas
1,35 vezes maior d o que n o ano mais recente da srie. Alm disso, mais da metade
destes casos so atribudos a eclampsia e esta realidade se repete ainda hoje. Em ter-
mos proporcionais, observa-se tambm pouca mudana na sua importncia em rela-
o s outras causas de bito materno, m a n t e n d o u m percentual de aproximada-
mente 28% n o perodo.
A segunda principal causa de morte materna foi a denominada "outras causas dire-
tas", c o m u m a Razo de 9,35 bitos para cada 100.000 n.v. (1993). Destas, 29%
correspondem s complicaes do trabalho de parto; e 22% so ocasionadas pelo traba-
lho de parto obstrudo. Embora o risco de morrer por esta causa j tenha sido maior
(12,61 e m 1980), houve u m reduo bastante limitada (1,3 vezes).
Neste perodo, as hemorragias constituram a terceira causa de morte, c o m u m a
Razo de 7,47/100.000 n.v. (1993). Deste grupo, as hemorragias pr-parto apresentaram
u m percentual de 64% e as ps-parto de 3%.
N o ano de 1993, a quarta causa de morte foram as complicaes puerperais, c o m
uma Razo de 7,02 bitos matemos para 100.000n. e u m percentual de 14% do total de
mortes maternas. Destacaram-se, neste caso, as infeces puerperais, que atingiram
metade das mulheres que tiveram u m ps-parto complicado.
Ressalta-se que o grupo de causas especficas denominado "aborto" inclui a mola
hidatiforme, a gravidez ectpica, os abortos espontneos e induzidos e os no-especifi-
cados. O aborto representa a quinta causa mais freqente de morte materna n o Pas,
c o m u m a Razo que variou de 8.73 (1980) a 5.18(1993) bitos para cada 100.000 crian-
as nascidas vivas. E m 1993, os abortos induzido e no-especificado corresponderam
metade das mortes deste grupo.
De todas as causas maternas, estas duas ltimas - aborto e hemorragia, c o m u m a
razo de taxas igual a 1,7 -, e as Complicaes Puerperais, c o m u m a razo de 1,6, se
destacaram por apresentar os maiores declnios quando se relacionam os anos de 1980
e 1993. Portanto, conclumos que a reduo ocorrida nestas trs causas deram a maior
contribuio para a diminuio da Razo de mortalidade materna ocorrida no Brasil ao
longo destes anos.

A distribuio etria dos bitos maternos


O s riscos relacionados s vrias faixas etrias no Brasil so descritos por u m a curva
tipo J e so comuns s diversas reas geogrficas analisadas, apesar de corresponderem
a magnitudes diferenciadas (Grfico 5).
Grfico 5 Taxas de mortalidade materna segundo faixas etrias
da me. Brasil - mdias de 79, 80, 81 e 91, 92, 93

Observa-se maior mortalidade nas idades extremas, isto , abaixo de 15 anos e


acima de 35 anos - o risco vai aumentando gradativamente, medida que aumenta a
idade. Duas caractersticas se destacam: u m grande nmero de estados c o m bitos
maternos acima de 50 anos (com nveis de mortalidade que atingem at 1.700 e 2.200
por 100.000 n.v.) - como em Mato Grosso no segundo e primeiro trinios estudados; e
u m aumento da mortalidade materna na faixa etria entre 10-15 anos e m todos os
estados da regio Sudeste, com exceo do Rio de Janeiro (embora, neste grupo, a Razo
de mortalidade materna do Rio de Janeiro seja uma das mais elevadas da regio, c o m
200 bitos para cada 100.000 crianas que nascem vivas).

Discusso

A qualidade dos dados do Subsistema de Informao de Mortalidade compromete


uma anlise mais aprofundada da tendncia da Razo de mortalidade materna no Brasil
n o perodo de 1979 a 1993. Estudos de investigao de bitos de mulheres em idade
frtil realizados e m So Paulo, Paran e Recife demonstraram uma subenumerao que
variou entre 50 e 56% (Albuquerque, 1997; Braga, 1992; Laurenti, 1990). Este fenme-
no tambm observado nos pases do Primeiro Mundo. Atrash (1995) identificou que havia
algum nvel de subenumerao na maioria dos pases desenvolvidos. Na Holanda,
havia u m desconhecimento de 26% das mortes maternas (Schuitemaker, 1997), ao
passo que nos Estados Unidos estima-se que, apesar do esforo de valorizar as vrias
fontes de informao, este percentual esteja prximo de 50% (Berg, 1995).
Isto acontece porque parte dos bitos femininos decorrentes de causas relacionadas
gravidez, ao parto e ao puerprio permanece desconhecida das estatsticas oficiais, por ser
registrada tendo como causa bsica afeces pertencentes a outros captulos da CID: doen-
as do aparelho circulatrio, septicemia, pelviperitonite, anemia ecoagulao intravascular
disseminada (Schuitemaker, 1997; Albuquerque, 1997). Acredita-se que, quanto mais grave
a situao, maior o nvel de subenumerao (Allen, 1991; Bouvier-Colle, 1991).
O s dados oficiais, ainda que subestimados, demonstram que o nvel da mortalidade
materna n o Brasil se aproxime do nvel de pases desenvolvidos registrados h 40 anos
(Hogberg & Wall, 1986).
Embora tenha havido importantes mudanas no padro reprodutivo na ltima
dcada, com aumento do nmero de mulheres esterilizadas; maior proporo de uso
de prticas contraceptivas; declnio da fecundidade - principalmente no Nordeste e
reas mais pobres, onde provavelmente as mulheres apresentam u m risco maior para a
mortalidade materna (BEMFAM, 1997) -, o impacto destes fatores no pode ser considera-
do significativo.
A partir de 1988, foram realizados no Pas seminrios regionais, promovidos pelo
Ministrio da Sade, para aprofundar o conhecimento sobre a mortalidade materna e
incentivar a criao dos comits de preveno entre os profissionais da sade ligados a
esta rea. O principal saldo desta mobilizao nacional foi certamente o surgimento dos
comits de Preveno da Mortalidade Materna em So Paulo e Rio de Janeiro (1988),
Paran (1989), Cear (1992) e Distrito Federal (1993).
provvel que estes trabalhos estejam causando, principalmente, u m impacto so-
bre a qualidade da informao, descobrindo novos bitos a partir de investigao. Isto
explica, em parte, a tendncia de aumento da mortalidade materna para reas como Rio
de Janeiro, So Paulo e kran, e o fato de termos as regies Sul e Sudeste c o m os mais
elevados nveis de mortalidade do Pas. Tambm se sabe que a dcada de 80 se caracteriza
pelo empobrecimento da populao brasileira, principalmente da urbana (CEPAL, 1990).
Alm disso, houve reduo dos gastos pblicos federais em reas sociais, particular-
mente na sade.
reconhecida, por diversos autores nacionais e internacionais, a relao existente
entre a pobreza e as altas taxas de mortalidade, proporcionando grandes diferenciais
entre os pases desenvolvidos e subdesenvolvidos (Ozumba, 1988; Royston & Armstrong,
1991, Starrs, 1987; Pinto &: Ribeiro, 1991). Por isto, acreditamos que, ao corrigir o sub-
registro, aplicando os fatores de correo propostos pelo Ministrio da Sade, nossas
estimativas nos permitem uma aproximao do risco efetivo de mortalidade materna
nas diferentes regies do Pas.
Segundo dados do documento "Sntese de indicadores de pesquisa bsica PNAD (Pes-
quisa Nacional de Amostra por Domiclios) de 1981 a 1989-IBGE", a regio Nordeste tem
cerca de 58% de sua populao economicamente ativa recebendo, no mximo, u m
salrio mnimo. Ao relacionarmos as rendas mdias feminina e masculina em algumas
regies metropolitanas, entre 1976-1986, observamos que a mulher recebe, em mdia,
aproximadamente metade do salrio do homem (FLACSO, 1993). Diante destes fatos, fica
difcil admitir que a Razo de mortalidade das regies Norte e Nordeste seja to baixa -
como por exemplo na Paraba, com a menor mortalidade (dados oficiais), colocando-se
em u m nvel prximo ao de alguns pases desenvolvidos.
Q u a n t o ao perfil de causas de mortalidade materna, o Brasil se caracteriza por
elevadas taxas de toxemias, outras causas diretas, hemorragias, c o m p l i c a o
puerperal e abortos. Este perfil bastante diferenciado d o encontrado e m pases
desenvolvidos. Ao longo d o tempo, estas causas foram reduzidas e hoje predomi-
n a m a embolia obsttrica e as causas indiretas, consideradas mais difceis de serem
evitadas (Sachs, 1986; Rochat, 1988). Q u a n d o so desenvolvidas estratgias para se
identificarem as causas maternas, seja por investigao de bitos e de pronturios
hospitalares, seja por utilizao de informaes a partir dos nascimentos, percebe-
se que a subenumerao dos bitos varia de acordo c o m a causa de morte, sendo
maior para o aborto e as causas indiretas (Albuquerque, 1997; Bouvier-Colle, 1991).
Laguardia (1990) revela, em levantamento hospitalar realizado no Rio de Janeiro, u m a
tendncia de aumento da mortalidade materna por aborto entre 1978 e 1987. Compte
(1995) realizou estudo a partir de bitos femininos ocorridos em 1993 e m Salvador e
encontrou c o m o causa principal de morte materna o aborto (26%). Outros estudos
nacionais (Paran e So Paulo), embora t e n h a m apontado para u m importante
sub-registro desta causa, ainda tiveram as toxemias c o m o a causa mais impor-
tante de morte materna.
importante salientar o surgimento da AIDS c o m o u m a causa indireta de morte
materna, na medida em que sua incidncia tem sido cada vez maior em mulheres de
idade frtil (Berg, 1996).
O conhecimento mdico necessrio para prevenir o bito materno j se encontra
desenvolvido: medicamentos para controle dos nveis tensionais; antibiticos para con-
trole de infeco; transfuso sangnea para o controle das hemorragias; tcnicas cirr-
gicas seguras para a cesariana; terapia intensiva no tratamento de choque; e mtodos
contraceptivos para aquelas mulheres que no desejam ou no podem engravidar.
Para anlise destas causas especficas, tambm devemos levar em conta o acesso aos
servios de sade e a qualidade de assistncia mdica oferecida.
Caberia discutir se estas mulheres tm acesso ao servios de sade. Segundo dados
da Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sade (PNDS)/1996, a cobertura do pr-natal
em mbito nacional era de 74% em 1986 e, em 1996, de 85% do total de gestantes. Refere
que destes nascimentos, nos ltimos cinco anos, 48% tiveram mais de sete consultas e
66% das gestantes procuraram assistncia no primeiro trimestre da gravidez. Na regio
Nordeste ainda existe uma parcela importante da populao (aproximadamente 2 5%)
que no usufrui dos benefcios que poderiam ter da assistncia pr-natal-na regio
Sul, este percentual no chega a 10%.
O momento da consulta pr-natal u m espao privilegiado para preveno e con-
trole da hipertenso arterial associada gravidez, que se caracteriza por ser fator de risco
para eclampsia e outras complicaes. Se fato que a cobertura se encontra to alta,
pertinente questionar a qualidade da assistncia prestada a estas mulheres e afirmar
que este pr-natal realizado est longe de cumprir o seu papel na sade pblica. Caso
isto ocorresse, poderia registrar u m impacto significativo na tendncia de mortalidade,
principalmente por toxemias e, desta forma, evitar milhares de mortes femininas.
Ao se considerarem as condies de assistncia ao parto no Brasil, identifica-se
tambm u m aumento da proporo de partos hospitalares quando so comparados os
resultados da PNDS-1996 aos encontrados em 1986. Constata-se que 95% dos nasci-
mentos vivos da populao urbana ocorrem em ambiente hospitalar e este percentual
diminui para 78% quando se trata de populao rural (BEMFAM, 1996).
As complicaes do trabalho de parto e do parto e o trabalho de parto obstrudo
foram, para o ano de 1993, as principais causas entre as outras causas diretas. Estes fatos
no parecem compatveis com o ndice de parto hospitalar e de cesarianas (36%) reali-
zadas no Brasil nas ltimas dcadas.
Parte destas cesreas surge para atender a demanda de u m grande nmero de liga-
es tubrias que visam a esterilizao definitiva. A esterilizao feminina, ao ter como
via de acesso preferencial o parto cesreo, contribuiu para que u m grande nmero de
cirurgias fosse realizado sem indicao obsttrica precisa. Este procedimento certa-
mente contribui para a elevao do risco de morte materna devido a complicaes
como infeco e hemorragias. Ao mesmo tempo, se convive com situaes em que a
realizao da cesariana seria indicada, mas a escolha acaba recaindo sobre o parto
normal (Carvalho, 1993).
Cecatti & Fandes (1991) alertam sobre o risco maior de infeco puerperal aps a
cesrea quando comparado com o parto normal e para a importncia das condies de
assepsia e antissepsia durante o parto. Este aspecto deve ser enfatizado quando se discu-
te a qualidade da assistncia hospitalar ao parto em todo o Pas.
As hemorragias se sobressaram como terceira causa de mortalidade materna no
Brasil, apresentando uma tendncia de declnio de suas taxas no perodo de 1979 a 1990,
embora muitas matemidades no tenham disponibilidade de transfuso sangnea.
Neste estudo da mortalidade materna no Pas, ficou evidenciada a importncia do
grupo denominado aborto, apontando para a necessidade de u m estudo especfico
sobre o aborto induzido e o no-especificado (considerando-se que este procedimento
ilegal e, portanto, de maior subenumerao, tornando mais dramtico este quadro).
Esta situao pode estar revelando condies de vida muito adversas para estas mulhe-
res. Entretanto, quando analisada a tendncia da mortalidade materna por aborto em
mbito nacional, observa-se uma reduo de suas taxas.
Durante m u i t o tempo pouca ateno foi dada morte materna, talvez porque,
pcnsando-se em termos de nmeros absolutos, toma-se difcil dimensionar a extenso
do problema. M a s a partir do m o m e n t o e m que se realizaram estudos sobre a
epidemiologia da mortalidade materna e as suas repercusses sociais, pode-se reconhe-
cer a existncia de u m a situao dramtica, at ento silenciosa.

Concluso

O s estudos de mortalidade materna c o m base em estatsticas oficiais, principal-


mente os de mbito nacional, so limitados por uma srie de aspectos metodolgicos e
trazem uma importante questo: at que ponto vlida a utilizao destas informaes
de qualidade discutvel?
O caminho para dar validade aos sistemas de informao existentes - sejam eles de
mortalidade ou de nascimento - analisar os dados e critic-los, contribuindo para o
seu aprimoramento.
Para anlise da mortalidade materna foi necessrio sistematizar u m conjunto de da-
dos de bitos e de estimativas de nascidos-vivos, o que pode ter gerado diferentes tipos
de erros. Porm, estes erros, de uma maneira geral, tendem a subestimar o nmero real de
mortes maternas, o que toma de maior gravidade o quadro da sade feminina.
Consideramos que estes dados, aps terem sido trabalhados a partir dos indicadores
para sries temporais e para diferentes reas geogrficas, tenham contribudo para
revelar u m diagnstico de sade consistente e sugerir medidas para melhorar o quadro
de sade da populao.
Conclumos, tambm, que a situao da mortalidade materna pouco estudada; e
enfatizamos a necessidade da realizao de investigaes dos bitos de mulheres em
idade frtil para u m conhecimento mais apurado da magnitude, distribuio das cau-
sas especficas e dos fatores de risco da morte materna, assim como o desenvolvimento
de estudos localizados em hospitais e maternidades. Desta forma, poderemos analisar
mais profundamente o efeito de variveis c o m o renda, educao, paridade, tipo de
parto e qualidade da assistncia na mortalidade materna. Salientamos que por trs desta
mortalidade existe uma morbidade que no vem sendo analisada.
Tambm acreditamos ser de suma importncia a criao de comits de Preveno
da Mortalidade Materna. A partir da, ser possvel identificar melhor as "causas mater-
a
nas tardias" (que ocorrem entre 43 dias e u m ano aps o parto), c o m o sugere a 10
Reviso da CID.
Apesar de compreender a existncia do bito materno dentro de u m contexto com-
plexo, em que se interrelacionam fatores polticos, econmicos, sociais e biolgicos, vale
afirmar que, quando falamos deste bito, estamos fazendo referncia a u m grupo espec-
fico de mulheres: o de baixa renda. Assim, consideramos que a maioria destas mortes
poderia ter sido prevenida basicamente com uma assistncia adequada ao pr-natal, ao
parto e ao puerprio, como apontam os estudos em que a evitabilidade analisada.

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13

Incidncia e Mortalidade por Cncer


em Mulheres Adultas no Brasil*
Sergio Koifman & Rosalina Jorge Koifman

Introduo

O cncer se caracteriza c o m o u m processo n o qual desaparece progressivamen-


te a relao entre forma e funo das clulas e, conseqentemente, a viabilidade
metablica dos tecidos, necessria preservao da vida. Embora verificado e m
outros seres vivos e registrado de diversas maneiras na histria humana, o cncer
c o m o fenmeno de sade pblica - atingindo contigentes populacionais cada vez
maiores - relativamente recente. C o m as modificaes ambientais originadas e
aceleradas desde a Revoluo Industrial, diversificaram-se as oportunidades de ex-
posio c o n t n u a a diversos agentes q u m i c o s , fsicos e biolgicos (pesticidas,
solventes, asbestos, radiao ionizante, aflatoxina, vrus diversos etc.) associados ao
desenvolvimento tumoral.
Do ponto de vista comportamental, as modificaes na esfera da vida reprodutiva
(nmero de gestaes, idade de inicio da vida reprodutiva, durao do aleitamento
materno, prtica de abortamento, ampliao do nmero de parceiros sexuais, entre
outros) decorrentes tanto da insero da mulher na esfera do trabalho produtivo como
da introduo de consumo de medicamentos de natureza hormonal (entre os quais a
plula anticoncepcional se destaca) vm acarretando transformaes biolgicas direta
ou indiretamente associadas ao desenvolvimento de tumores em mulheres adultas.

* O s autores agradecem a Catherine . Lowndes pela reviso do texto e sugestes; a Ana Cristina Gonalves Vaz
e Eleonora d'Orsi pela organizao dos dados de mortalidade no Brasil, e consulta ao SIA-SUS; e a Fundao
Ford, que financiou o projeto 950-0546 de anlise de dados sobre condies de sade da mulher no Brasil.
Este fenmeno particularmente notvel no caso da plula anticoncepcional: em uma
anlise objetiva, sem qualquer tentativa de introduzir juzo de valor, acredita-se que,
embora a plula no esteja associada diretamente maioria dos tumores reprodutivos,
seu consumo permitiu a ampliao da vida sexual da mulher, e com esta, as oportuni-
dades de infeco por agentes virais (herpesvirus, papillomavirus) associados ao cncer
de colo uterino e outros (vrus da hepatite e cncer de fgado).
No caso do cncer de mama, provavelmente o maior problema de sade pblica
associado ao cncer e m mulheres n o Brasil e em diversos outros pases industrializa-
dos, acredita-se que as modificaes associadas a mudanas na durao da vida
reprodutiva da mulher (menarca precoce, menopausa tardia, maior freqncia de ci-
clos hormonais decorrentes do menor nmero de gestaes) vm tendo u m importan-
te papel contributrio n o desenvolvimento deste tipo de cncer.
Acreditamos que ambos os exemplos revelam a dimenso de obstculos inerentes reso-
luo do problema do cncer na mulher adulta na atualidade. Alm de dependentes de avan-
os no conhecimento cientfico contemporneo, estes esto diretamente relacionados a u m
processo social mais amplo nas relaes produtivas que vem modificando a longo prazo o
padro de vida reprodutiva da mulher; e a caractersticas associadas, no plano individual,
esfera comportamental, freqentemente determinadas pela primeira condio.
Procuramos apresentar algumas das caractersticas da distribuio de algumas loca-
lizaes tumorals em mulheres adultas no Brasil, especificamente, cncer de mama, de
colo uterino, de outras localizaes uterinas e cncer de ovrio. Outras localizaes
tumorais em mulheres adultas no foram analisadas, uma vez que o interesse primrio
residia em caracterizar o problema do cncer na esfera da vida reprodutiva. O s padres
de distribuio da doena encontrados foram comparados entre algumas capitais no
Brasil e com a realidade observada em pases selecionados e, quando possvel, buscou-
se delimitar cenrios futuros para sua ocorrncia e controle no Pas.

Metodologia

Realizou-se o levantamento e posterior comparao dos coeficientes de incidncia


e de mortalidade por tumores reprodutivos em cidades brasileiras e pases selecionados:
a a
cncer feminino de m a m a (9 CID 174), cncer de colo uterino (9 CID 180-0), corpo
a a a
uterino (9 CID 182), tero no especificado (9 CID 179) e ovrio e anexos (9 CID 183),
a
alm da incidncia de cncer em todas as localizaes em mulheres (9 CID 140-239).
O s coeficientes mdios de incidncia por idade em mulheres adultas foram obti-
dos a partir dos relatrios dos Registros Brasileiros de Cncer de Base Populacional exis-
tentes nas cidades de Porto Alegre (1990-91), Campinas (1991-92), Goinia (1990-91),
Belm (1988-89) e Fortaleza (dados disponveis apenas para 1985), compilados pela
Coordenao do Programa de Polticas de Controle do Cncer (Pro-Onco) do Instituto
Nacional do Cncer (Ministrio da Sade, 1995). Dados similares foram obtidos para
Cali, Colmbia (1982-86); mulheres brancas de Atlanta, Estados Unidos (1983-87);
mulheres nativas no Hava (183-87); Miyagi, no Japo (1983-87); Sucia (1983-87); e
populao de imigrantesaskhenazi(originria dos Estados Unidos e Europa Oriental) em
Israel (1983-87) (Parkin et al., 1992). Estes coeficientes (incidncia mdia no perodo)
foram analisados por faixas etrias mediante ajustamento por idade com a populao
mundial (Segi, 1960) conforme procedimento rotineiro em estudos descritivos de cncer.
Nas comparaes com diferentes pases, adotou se o procedimento de incluir as cidades
brasileiras apresentando os coeficientes de maior e menor magnitude para a distribui-
o epidemiolgica analisada.
Os registros de cncer de base populacional no Pas acompanham o surgimento de
casos novos de cncer em sua regio de cobertura por intermdio da confirmao da
residncia do caso. Todos os casos de neoplasia maligna, incluindo carcinoma insitu,so
registrados, agrupando-se desta maneira o conjunto de casos de cncer com diagnsti-
co confirmado. As informaes so coletadas por busca ativa de casos em hospitais da
rede pblica e privada, de centros de referncia para o tratamento de cncer, servios de
diagnstico e por intermdio dos dados do sistema de mortalidade dos estados e muni-
cpios no pas (Ministrio da Sade, 1985).
U m dos obstculos para a realizao de comparaes entre indicadores de sade
c o m o aquelas aqui realizadas reside na qualidade existente n o processo de obten-
o dos dados necessrios para a determinao dos coeficientes. Esta avaliao,
tambm adotada pelos Registros de Cncer de Base Populacional no Brasil, est basea-
da na construo de indicadores de cobertura e de preciso das informaes
coletadas.
So adotados c o m o indicadores de cobertura o percentual de casos de cncer
identificados e x c l u s i v a m e n t e pelo atestado de bito (quanto m e n o r for este
percentual, melhor a qualidade do registro) e a razo mortalidade/incidncia de
tumores e m u m dado perodo de tempo (sendo esperada que a mortalidade apre-
sente magnitude inferior a incidncia na maioria das localizaes tumorals). O s
indicadores de preciso adotados so o percentual de casos de cncer c o m verifica-
o histolgica (sendo desejvel que este seja superior a 75%) e o percentual reduzi-
do de casos c o m idade ignorada (Ministrio da Sade, 1995). Na Tabela 1, apresenta-
se a magnitude de alguns destes indicadores observados nos registros de cncer de
base populacional n o Brasil.
Tabela 1 Indicadores da qualidade dos dados dos registros de
cncer de base populacional no Brasil (1985-92)

Fonte: Ministrio da Sade, 1995.

C o m base nestes indicadores, a Agncia Internacional de Pesquisa de Cncer da


Organizao Mundial de Sade (IARC/WHO) realiza avaliaes peridicas sobre a quali-
dade dos registros de cncer de base populacional existentes nos diferentes pases. Em
sua ltima publicao (WHO, 1992), apenas os registros dePortoAlegre e Goinia foram
includos c o m o atendendo aos critrios de avaliao da entidade. O s dados dos demais
centros foram, n o entando, mantidos neste trabalho para ilustrarem a diversidade regi-
onal da distribuio de cncer e m mulheres adultas n o Pas, mesmo considerando-se a
reserva necessria na elaborao de concluses.
O s coeficientes de mortalidade por cncer e m mulheres segundo faixa etria nas
localizaes anteriormente mencionadas foram determinados a partir do Sistema Na-
cional de Mortalidade d o Ministrio da Sade para as cidades (regies metropolitanas
no includas) de Fbrto Alegre, Curitiba, So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salva-
dor, Recife, Fortaleza e Belm. Coeficientes similares de mortalidade por cncer foram
obtidos para o Mxico, Estados Unidos, Sucia, Israel e Japo (WHO, 1993). No caso das
capitais brasileiras, realizaram-se, ainda, comparaes das distribuies etrias entre os
coeficientes mdios de mortalidade nos perodos 1980-82 e 1992-93, para descrever
suas modificaes ao longo deste perodo.
Em relao confiabilidade dos indicadores de mortalidade, existem evidncias de
que a m e s m a seja elevada. Durante a estruturao da Classificao Internacional de
Doenas (CID), a Organizao M u n d i a l de Sade (OMS) criou u m subcomit de
Oncologia c o m o objetivo de elaborar normas mais explcitas de notificao das decla-
raes de bito por cncer. Posteriormente foi realizado u m teste c o m codificadores de
diferentes pases, tendo-se observado u m a concordncia de 75% na codificao de
u m conjunto de declaraes de bito por neoplasias c o m o emprego das novas regras
(Percy & Dollman, 1978). Conforme mencionado por Monteiro (1995), o mesmo con
a
j u n t o de declaraes de bito foi retestado na preparao da 10 CID, tendo os
codificadores brasileiros apresentado u m nvel de discordncia do padro escolhido
(norte-americano) da ordem de 8,6%, considerado reduzido e m comparao com os
nveis de discordncia verificados em outros pases, variando de 6 a 16% (Percy, 1989;
Percy & Muir, 1989); Mais recentemente, estudo realizado no Rio de Janeiro confirmou
a observao anterior sobre a qualidade dos registros de mortalidade por cncer naquela
cidade, observando-se u m nvel de concordncia de 90% (kappa de 0.89) entre as codificaes
independentes de uma amostra de 394 declaraes de bito por neoplasias (Monteiro, 1995).
Desta maneira, acreditamos que, pelas caractersticas de evoluo clnica dos casos
de cncer, sobretudo as neoplasias da esfera reprodutiva da mulher, elevada a probabi-
lidade que a mesma seja diagnosticada como tal, j que a paciente vivendo em capitais
de Estados no Pas seria eventualmente hospitalizada pelo menos em uma oportunida-
de durante sua evoluo. Assim, tomando e m conta as devidas cautelas inerentes
utilizao destes indicadores (sobretudo quanto a subnotificao e qualidade do diag-
nstico dos dados coletados), consideramos tambm aceitvel a utilizao dos coefici-
entes de mortalidade para a realizao de comparaes nos diferentes grandes centros
urbanos analisados.

Resultados

Cncer em todas as localizaes


A magnitude da incidncia de cncer em mulheres para todas as localizaes, uma
vez controladas as diferenas na distribuio por idade de diferentes localidades (taxas
de incidncia ajustados por idade), permite-nos avaliar a magnitude alcanada por este
conjunto de doenas e m distintas sociedades. No Brasil este indicador desigual entre
as cidades analisadas, sendo a menor aquela observada e m Belm (taxa ajustada por
idade de 15 6,5/100.000 mulheres) e a mais elevada aquela verificada em Porto Alegre -
236,3/100.000 (Grfico 1). Comparativamente com coeficientes similares de outras
localidades, Porto Alegre aproxima-se de pases com taxas de incidncia de cncer mui-
to elevadas, Belm c o m aqueles apresentando taxas reduzidas, e as demais cidades
posicionadas e m u m patamar intermedirio (Grfico 2). Este padro de distribuio
tambm constatado ao analisarmos a distribuio dos coeficientes de incidncia de
neoplasias desagrupados por faixas etrias. Quando comparadas as taxas de incidncia
de cncer na faixa etria de 35 a 64 anos entre diversos registros nacionais da doena,
Porto Alegre apresenta, na verdade, u m dos coeficientes mais elevados do mundo: 484,7/
100.000 (Parkin et al., 1992).
Grfico 1 Incidncia de cncer em mulheres ajustada por
idade, todas localizaes Brasil 1988-1992

Grfico 2 Incidncia de cncer em mulheres ajustada por


idade, todas localizaes 1988-1992
Cncer de m a m a
O cncer de m a m a atualmente a localizao tumoral de maior incidncia e m
mulheres vivendo nas regies Sul e Sudeste do Pas, ocupando o segundo lugar, aps o
cncer de colo uterino, nas regies Centro-Oeste, Norte e Nordeste. M e s m o entre estas,
se observa u m processo de transio c o m o em Fortaleza, onde o cncer de m a m a j
ocupava em 1985 o primeiro lugar de incidncia. Em 1991 -92, ele representou 19% dos
casos novos de cncer em mulheres nas cidades de Fbrto Alegre e Campinas (Ministrio
da Sade, 1995), sendo estimada a ocorrncia de 32.695 casos novos de cncer femini-
no de m a m a no Brasil e m 1998, equivalentes a 23,3% de todos os casos novos de cncer
esperados em mulheres no Pas durante este mesmo ano (Ministrio da Sade, 1998).
Este processo de elevao acelerada da incidncia do cncer de m a m a torna o
Brasil, assim c o m o outros pases latino-americanos e asiticos vivenciando proces-
so similar, locais privilegiados de estudo da dinmica desta doena por no terem
ainda alcanado os nveis elevados de incidncia observados na Europa e Amrica
d o Norte (Kelsey, 1993). N o Grfico 3, apresenta-se a magnitude de nossos coeficien-
tes de incidncia comparados c o m aqueles de outros pases, podendo se observar
que Porto Alegre apresenta o maior dos coeficientes de incidncia ajustados por
idade observados em cidades brasileiras, e similar ao verificado na Sucia e entre os
imigrantes ashkenazi em Israel. J em Belm, o coeficiente padronizado de incidncia
aproxima-se daquele observado em pases de baixa incidncia como o Japo. Quando
se analisam os coeficientes de incidncia por idade nas diferentes cidades brasileiras,
este padro de hetereogeneidade regional (Fbrto Alegre com incidncia relativamen-
te elevada de cncer de mama, Belm c o m incidncia reduzida e Fortaleza, Campi-
nas e Goinia c o m coeficientes intermedirios) tambm verificado (Grfico 4),
sendo ressaltado por intermdio de comparaes c o m outros pases (Grfico 5).

Grfico 3 Incidncia de cncer de mama ajustada por ida-


de, populao mundial 1988-1992
Grfico 4 Incidncia de cncer de mama segundo idade.
Brasil - 1988-1992

Grfico 5 Incidncia de cncer de mama por idade. Pases


selecionados 1988-1992

Apesar da menor incidncia de cncer de mama no Brasil que aquela observada em pases
europeus e na Amrica do Norte, a mortalidade por este tumor mais elevada em nosso
meio. Assim,PortoAlegre apresenta coeficientes de mortalidade por idade mais elevados do
que naqueles pases (Grfico 6), situao esta que se repete para outras capitais. Este fato
preocupante, pois uma anlise sobre a dinmica dos coeficientes de mortalidade por cncer
de mama ao longo de dcada de 80, tanto no perodo pr como no ps-menopausa, revela que
estes tem se mantido relativamente estveis, ou mesmo aumentado (Grficos 7 e 8).
Grfico 6 Mortalidade por cncer de mama segundo idade.
Brasil e outros pases 1988-1992

1000 ,

Grfico 7 Mortalidade por cncer de mama, mulheres 35-


49 anos. Brasil - 198S-1992
Grfico 8 Mortalidade por cncer de mama, mulheres 50-
64 anos. Brasil - 1988-1992

Desta maneira, frente a uma conjuntura de transio para a elevao da incidncia


de cncer de m a m a no Pas (Koifman, 1995), a manuteno de coeficientes elevados de
mortalidade pode estar revelando as dificuldades assistenciais atuais para exercer o
controle sobre o tratamento precoce da doena, e consequentemente, sobre a qualidade
de vida e sobrevida das pacientes. Tais atividades voltadas para o diagnstico em fases
iniciais da doena, c o m o mediante a realizao do auto-exame, de mamografias peri-
dicas e do controle de famlias de alto risco para cncer de m a m a e ovrio (Howard,
1987; McWhorter & Eyre, 1990) so ainda precariamente desenvolvidas no Pas. A ttulo
de exemplo, foi autorizada pelo Sistema nico de Sade (SUS) a realizao mdia
mensal de aproximadamente 4 mil mamografias na cidade do Rio de Janeiro em 1994
(SIA-SUS), o que representaria uma cobertura ao redor de 10% da oferta necessria para
cobrir a populao de mulheres de 50 a 69 anos naquele municpio com a realizao de
u m a mamografia anual, conforme recomendao da American Cancer Society
(Henderson, 1995). Diante da impossibilidade de preveno do cncer de m a m a luz
dos conhecimentos cientficos atuais, a deteco precoce consiste na nica possibilida-
de de se exercer alguma interveno eficaz sobre as mulheres afetadas (Seidman et al.,
1987; Miller, 1993). M e s m o assim, os tumores mamrios detectados pelo auto-exame
geralmente j apresentam dimetros da ordem de 2 cm, sendo desejvel sua identifica
o em estgios preliminares, o que s alcanvel atualmente por intermdio dos
exames de radioimagem especficos. Nestas condies de diagnstico precoce, a
sobrevida de cinco anos aps a identificao de leses iniciais em mulheres com cncer
de mama pode alcanar a magnitude de 91% (Garfinkel, 1995).
No Brasil, entretanto, a realidade preocupante na medida em que mltiplas condi-
es de risco associadas com o desenvolvimento do cncer de m a m a esto sendo
crescentemente introduzidas em nossa sociedade. A acentuada queda da natalidade, a
reduo da idade da menarca decorrente da melhoria do estado nutricional da popula-
o, o retardo na idade de incio da primeira gestao, a ampliao da prevalncia de
nulparas bem como de gestantes engravidando aps os 35 anos de idade, a utilizao de
anticoncepcionais orais durante longos perodos de tempo antes da primeira gestao,
o encurtamento ou mesmo abolio do aleitamento materno so, todas elas, condies
da vida reprodutiva da mulher possivelmente implicadas na gnese desta neoplasia
(White, 1987; Stadel et a l , 1988; Miller e t a l , 1989).
Se a estas condies acrescentamos a presena crescente de gordura de origem
animal na dieta de crianas e adolescentes, a exposio desnecessria a radiao ionizante
nas mesmas faixas etrias - como por exemplo, em decorrncia da realizao dispen-
svel de fluoroscopias (abreugrafias) por motivos diversos - a elevao do consumo
de bebidas alcolicas em adolescentes e mulheres adultas, b e m c o m o a exposio
crescente a substncias qumicas em nossa sociedade, tais como pesticidas e tinturas
de cabelo, veremos que coexistem oportunidades de exposio a diversos agentes
tambm supostamente envolvidos na estimulao do processo de desenvolvimento
do cncer de mama (Willet, 1989; G a m m o n & John, 1993; Kelsey & Horn, 1993).
Neste contexto, a adoo de programas de divulgao das caractersticas de evoluo
da doena, de deteco precoce bem c o m o acompanhamento clnico e radiolgico
peridico dos grupos de risco (mulheres com antecedentes familiares de casos mlti-
plos de cncer de mama e ovrio, alm das mulheres com mais de 50 anos na populao
geral) se torna necessria para enfrentar a dinmica atual do cncer de m a m a como
problema crescente de sade pblica em nossa sociedade.

Cncer de colo uterino


Acredita-se que o cncer de colo uterino se desenvolve a partir de processos irritativos
de ao contnua sobre aquele rgo, como aqueles desencadeados por certos agentes
virais como o papillomavrus, facilitados pela ao hormonal dos anticonceptivos orais
e do fumo. Desta maneira, a precocidade no incio da vida sexual da mulher, assim
como o nmero de parceiros e a paridade elevada, parecem atuar como indicadores de
grupos de risco mais elevado para o desenvolvimento do cncer de colo uterino. Por
outro lado, u m tumor raramente observado em mulheres nulparas ou sexualmente
inativas (Morrow &Townsend, 1987; Syrjanen 1987; Averette & Nguyen, 1995).
Embora o conjunto de m e c a n i s m o s envolvidos n o processo de evoluo da
doena n o seja ainda c o n h e c i d o e m detalhe, algumas etapas antecedentes o
so. Assim, mediante a realizao de u m exame laboratorial pouco custoso (tes-
te de Papanicolau), so obtidas amostras de clulas da regio d o colo, o q u e
permite a identificao quer de displasias, quer do c h a m a d o carcinoma in situ,
ou seja, o cncer e m sua forma localizada e restrita ao colo do tero, q u a n d o
possvel sua extirpao cirrgica e a cura. Caso tal no ocorra, o tumor se expan-
de para o estgio de carcinoma invasivo c no-controlvel. C o m o a incidncia
d o c a r c i n o m a in situ p r e d o m i n a n t e e m m u l h e r e s m e n o r e s de 35 anos, e o
cncer invasivo e m mulheres de maior idade, se acredita q u e haja u m a lento
processo de evoluo para os estgios mais avanados da doena. Desta maneira,
d o p o n t o de vista cientfico, o controle d o cncer de c o l o uterino i n v a s i v o
factvel e m termos populacionais por intermdio do rastreamento peridico de
alteraes citopatolgicas realizadas c o m o teste de Papanicolau e m mulheres
e m idade reprodutiva. A s s i m , a sobrevida aps c i n c o anos d o diagnstico do
carcinoma de colo uterino in situ pode alcanar a cifra ao redor de 100% dos casos
(Garfinkel, 1995).
N o Brasil, entretanto, a distribuio epidemiolgica deste tumor, tanto quanto
a sua incidncia e mortalidade, revela nveis de ambos indicadores considerados
dos mais elevados n o m u n d o , tendo contribudo c o m 17% de todos os bitos por
cncer em mulheres de Belm (1989); 13% em Fortaleza (1985); 12,5% em Goinia
(1991); 10% e m C a m p i n a s (1992); e 7% em Porto Alegre durante 1991 (Ministrio
da Sade, 1995). Estimava-se, para 1998, o surgimento de 21.725 casos novos de
cncer de c o l o uterino n o Brasil, representando 15,4 % da totalidade de casos
novos de neoplasias em mulheres no Pas (Ministrio da Sade, 1998). A anlise da
distribuio dos coeficientes de incidncia de cncer de colo uterino ajustados
por idade em cidades brasileiras e outras localidades (Grfico 9) revela que Belm
e Goinia apresentam coeficientes oito a dez vezes mais elevados do que aquele
verificado nos imigrantes ashkenazi em Israel. A comparao dos coeficientes de
incidncia por faixa etria em cidades brasileiras (Grfico 10) revela diferenas de
pequena magnitude, sendo Campinas e Porto Alegre aquelas que apresentam me-
nor incidncia da doena a partir dos 30 anos. Este fato realado c o m as compa-
raes de curvas similares c o m outras Regies (Grfico 11), verificando-se u m a
certa tendncia polarizao das curvas, com Atlanta, Japo e Israel e m u m grupo,
e as de Cali, Campinas e Belm em outro de nveis mais elevados.
Grafico 9 Incidncia de cncer de colo de tero ajustada
por idade pela populao mundial 1988-1992

Grfico 10Incidncia de cncer de colo uterino por idade,


Brasil-1988-1992
Grfico 11 Incidncia de cncer de colo uterino por idade,
1988-1992

A anlise dos dados de mortalidade por cncer de colo uterino reiteram estas observa-
es quanto similaridade das curvas de mortalidade em cidades brasileiras (Grfico 12),
e seu distanciamento em relao s curvas de magnitude mais reduzida encontradas em
pases desenvolvidos (Grfico 13). Aevoluo da mortalidade por cncer de colo uterino ao
longo da dcada de 80 na faixa de 20-34 anos corrobora a gravidade da distribuio desta
doena, quer pela manuteno de nveis ainda muito elevados de mortalidade nas cida-
des nordestinas, quer por sua elevao em capitais das Regies Sul-Sudeste (Grfico 14).

Grfico 12ortalidade por cncer de colo uterino segundo


idade. Brasil - 1988-1992
Grfico 13 Mortalidade por cncer de colo uterino segundo
idade. Brasil e outros pases 1988-1992

Grfico 14 Mortalidade por cncer de colo uterino, mulheres


20-34 anos. Brasil - 1988-1992
Em seu conjunto, estes dados podem ser considerados preocupantes uma vez que, ao
contrrio do cncer de mama, para o qual a cincia no conta ainda com tecnologia dispon-
vel para preveno, as leses que antecedem o pleno desenvolvimento do cncer de colo
uterino so, na grande maioria dos casos, plausveis de serem detectadas preliminarmente
ao surgimento da doena por intermdio de uma tcnica de custos reduzidos e com eficcia
internacionalmente constatada. Desta maneira, os obstculos para a superao do problema
do cncer de colo uterino no Brasil so, na perspectiva da sade pblica, u m problema gerencial
quanto organizao dos servios de sade e no uma questo de obstculos cientficos.

Cncer de ovrio
Ao contrrio do observado nos Estados Unidos em outros pases industrializados onde
o cncer de ovrio ocupa a segunda maior causa de freqncia de tumores ginecolgicos,
ele tem representado ao redor de 3 a 5% dos casos novos de cncer em mulheres no Brasil,
seguindo em ordem decrescente de incidncia aos tumores de mama e colo uterino. Nos
Estados Unidos, a sobrevida aps cinco anos de diagnstico se situa ao redor de 41 % dos
casos, alcanando a cifra de 88% daqueles diagnosticados precocemente, o que mesmo
naquele pas somente ocorre com 23% dos diagnsticos desta neoplasia (Garfinkel, 1995).
Embora os mecanismos relacionados etiologia desta neoplasia sigam pouco iden-
tificados, acredita-se que os hormnios femininos possam ter u m papel importante na
etiologia da doena. Esta hiptese reforada pela observao de u m efeito protetor para
o desenvolvimento deste tumor proporcionado pela ocorrncia de gestaes mltiplas.
Mulheres expostas intensamente radiao ionizante - como as sobreviventes da bomba
atmica-tambm apresentaram riscos at duas vezes mais elevados de desenvolverem
cncer de ovrio. O s principais fatores de risco para o cncer de ovrio so, contudo, a
histria familiar desta neoplasia, com risco relativo superior a 17, e a nuliparidade, com
risco relativo de 4 (Morrow & Townsend, 1987).
A descrio na literatura cientfica de famlias com grande nmero de casos de
cncer de mama e/ou ovrio encontrou recentemente u m substrato no conhecimento
mediante a identificao de algumas mutaes no gene BRCA1, localizado no cromossoma
17 (Hall et al, 1990). U m a desta mutaes, a 185delAG, tem sido observada em freqn-
cia oito vezes maior em mulheres judias ashkmazi do que na populao geral, supondo-
se ser potencialmente capaz de explicar a agregao familiar de cncer de m a m a e
ovrio encontrada em algumas famlias daquela comunidade (Fitzgerald et a l , 1995).
A anlise dos dados de incidncia de cncer de ovrio ajustados por idade revela
coeficientes reduzidos nas cidades brasileiras estudadas, com exceo de Porto Alegre:
esta capital apresenta taxa aproximadamente duas vezes maior do que a de Campinas e
Belm, e relativamente similar quelas de Atlanta e de imigrantes askhenazi em Israel
(Grfico 15). Este padro novamente observado na comparao das curvas de incidn-
cia por faixa etria entre cidades brasileiras e naquelas em outros pases (Grfico 16).
Grfico 15 Incidncia de cncer de ovrio ajustada por idade
pela populao mundial, 1988-1992

Grfico 16 Incidncia de cncer de ovrio por idade, 1988-


1992
A mortalidade por cncer de ovrio segundo faixa etria em diferentes cidades brasileiras
revela u m padro homogneo, sobretudo a partir dos 45 anos, e crescente com a idade (Gr-
fico 17). Ao longo da dcada de 80, as taxas de mortalidade em capitais brasileiras se mantive-
ram relativamente estveis e elevadas (Grfico 18), dada a alta letalidade deste tumor mesmo
em pases desenvolvidos, no se dispondo atualmente de medidas para sua preveno.

Grfico 17Mortalidade por cncer de ovrio segundo idade.


B r a s i l - 1988-1992

ioo 1

Grfico 18Mortalidade por cncer de ovrio, mulheres 50-


64 anos, Brasil, 1988-1992.
Cncer de corpo e outras localizaes uterinas no-especificadas
A maior parte dos tumores do corpo uterino originada a partir do endomtrio,
a camada interna c o m caractersticas proliferativas durante os perodos entre ciclos
menstruais. Estes tumores so mais freqentemente observados aps a menopau
sa, estando relacionados a vrios dos mesmos fatores de risco associados ao cncer
de m a m a (paridade reduzida, obesidade, menarca precoce, menopausa tardia), to-
dos relacionados a metabolismo de hormnios estrgenos n o organismo. Outros
fatores de risco mencionados na literatura so hipertenso arterial, diabetes, ciclos
menstruais irregulares, anovulao crnica e exposio plvica radiao ionizante
(Parazzini et al., 1991; Park et al., 1992). A associao entre tumores de endomtrio
e a prtica de reposio hormonal aps a menopausa v e m sendo estudada h duas
dcadas, sendo sua adoo atualmente decidida e m funo de u m a anlise indivi-
dualizada de benefcios (proteo contra a doena isqumica do corao, doena de
Alzheimer e a osteoporose n o perodo ps-menopausa) versus desvantagens, sobre-
tudo, e m relao ao cncer de endomtrio. A sobrevida de cinco anos aps o diag-
nstico de 83% para o conjunto de casos, elevando-se para 94% nos casos localiza-
dos do tumor (Garfinkel, 1995).
O diagnstico de 5.685 casos novos de cncer do corpo uterino esperado n o
Brasil em 1998, representando 4,0 % do total de casos novos de cncer previstos de
virem a ser diagnosticados e m mulheres durante o m e s m o a n o (Ministrio da
Sade, 1998). C o m p a r a t i v a m e n t e c o m outros pases, as taxas de incidncia de
cncer do corpo uterino ajustadas por idade no Brasil so mais reduzidas, estando
Belm e Porto Alegre c o m coeficientes aproximadamente trs vezes menores do
que aqueles observados e m Atlanta e n o Hava (Grfico 19). A m e s m a observao
pode ser constatada na anlise das curvas de incidncia de cncer de corpo uterino
segundo idade entre diferentes localidades (Grfico 20), sendo os coeficientes de
incidncia da doena n o Brasil m u i t o similares (Grfico 21). A mortalidade por
cncer de corpo uterino n o perodo ps-menopausa tem se mantido relativamen-
te estvel n o Brasil durante a dcada de 80, c o m exceo de Curitiba, Recife e Porto
Alegre, onde importantes redues foram observadas (Grfico 22). Entretanto, a
magnitude dos coeficientes de mortalidade por este tumor segundo idade se m a n -
tm e m nveis mais elevados do que aqueles verificados em outros pases indus-
trializados (Grfico 23).
Grafico 19Incidncia de cncer do corpo uterino ajustada
por idade pela populao mundial, 1988-1992

Grfico 20Incidncia de cncer de corpo uterino por idade,


1988-1992
Grfico 21 Incidncia de cncer do corpo uterino por idade.
Brasil - 1988-1992

Grfico 22Mortalidade por cncer do corpo uterino, mulhe-


res 50-64 anos. Brasil - 1988-1992
Grfico 23fVIortalidade por cncer de corpo uterino segundo
idade. Brasil e outros pases 1988-1992

1000 1

Concluses

Do ponto de vista de sade pblica, a ocorrncia de neoplasias em mulheres durante


a vida adulta no Brasil apresenta hoje trs grandes desafios, com caractersticas de distri-
buio e obstculos distintos a serem superados.
Em funo da velocidade de sua crescente expanso em perodos recentes, o cncer
de m a m a , na atualidade, motivo de forte preocupao, para o qual as medidas dispo-
nveis de controle se limitam ao diagnstico precoce, e no preveno. Na realidade
nacional, a maior parte dos casos se apresenta aos servios de sade em estgio avana-
do da doena, quando as medidas adotadas so pouco eficazes. A divulgao das carac-
tersticas de desenvolvimento da doena e a ampliao da cobertura dos servios, reali-
zando mamografias - usualmente no operando em sua plena capacidade conforme
internacionalmente recomendado, o que barateia custos e eleva a qualidade tcnica do
diagnstico -so as respostas hoje possveis para a deteco precoce da doena, e com
esta, aumentar as chances de cura, elevao da sobrevida e melhora da qualidade de vida
das mulheres afetadas.
O segundo desafio consiste no monitoramento da distribuio d o cncer de colo
uterino, tumor para o qual no existem obstculos cientficos para a preveno da
maioria dos casos, e subseqente controle da doena. Programas de rastreamento
peridico d a doena e m mulheres adultas por intermdio da citopatologia
(Papanicolau) vm sendo adotados de forma eficaz em vrios pases, dado seus baixos
custos e elevada resolutividade. O Brasil detm atualmente as maiores taxas de inci-
dncia da doena, e a reverso deste quadro baseia-se na reorganizao de servios de
sade n o Pas.
Finalmente, embora no abordado ao longo deste trabalho, no deve ser esquecida a
crescente exposio a agentes cancergenos, sobretudo de natureza qumica (como
pesticidas, asbestos, cloreto de vinila, entre outros), mas tambm fsicos (radiao
ionizante e no-ionizante) e biolgicos, decorrentes da insero da mulher na ativida-
de produtiva. Tal como j observado e m outros pases, este fenmeno responsvel pela
introduo de u m novo perfil de cncer ocupacional em mulheres adultas (decorrente
da exposio direta a agentes carcinognicos) b e m como de natureza ambiental - este
afetando a populao geral em conjunto. Ambos podero ser, entretanto, atenuados de
forma considervel graas limitao da exposio a tais fatores de risco, evitando,
desta maneira, a reproduo do m e s m o fenmeno j ocorrido c o m as populaes de
outros pases industrializados.

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14

Doenas Sexualmente Transmissveis na Mulher*


Catherine . Lowndes

Introduo

As doenas sexualmente transmissveis (DST), antigamente conhecidas como


doenas venreas, so infeces extremamente comuns que, a curto prazo, causam dor
e sofrimento. Podem ter conseqncias secundrias severas, muitas vezes irreversveis,
que prejudicam de uma forma desproporcionada a sade reprodutiva e o bem-estar da
mulher. Em pases em desenvolvimento, as DST constituem a segunda causa da perda
de anos de vida saudvel em mulheres em idade reprodutiva, aps a morbidade e mor-
talidade maternas (World Development Report, 1993).
A preveno e o controle destas infeces, freqentemente curveis, representam
oportunidades nicas de melhorar a sade reprodutiva da mulher. Entretanto, no Brasil
e em muitos outros pases, somente com o advento do vrus da imunodeficincia
humana (HIV) e da AIDS (a sndrome de imunodeficincia adquirida) que o controle das
DST tem sido considerado prioritrio.
Descreveremos as variedades e as caractersticas clnicas das DST, alm de suas con-
seqncias para a sade reprodutiva da mulher e para a sade do feto e do recm-
nascido. Em seguida, so apresentados dados epidemiolgicos sobre a magnitude do
problema n o Brasil e n o m u n d o . Por ltimo, apresentamos u m a discusso sobre a
preveno e o controle destas infeces, que ressalta reas prioritrias para programas

* Agradeo a Francisco Incio Bastos (CICT/Ficouz) e Fbio Moherdaui ( M S , CN-DST/AIDS) pela leitura crtica
do texto e pelas correes lingsticas e sugestes teis quanto ao seu contedo; e a Fbio Moherdaui
pela proviso dos fluxogramas nacionais para o manejo sindrmico das D S T no Brasil.
de preveno das DST na mulher. As DST assintomticas so enfatizadas por constitu-
rem uma rea prioritria em termos do controle das DST na mulher. Concentraremos nossa
ateno mais especificamente nas DST que no a AIDS (tema j abordado especificamente
neste livro). Entretanto, sobretudo no contexto da sade pblica, existem inter-relaes,
como a interao entre as DSTe aAIDSe a preveno das DST/AIDS,que sero abordadas aqui.

O que so as D S T ?

So infeces transmitidas obrigatria, freqente ou eventualmente pelo contato


sexual. Elas compreendem u m a variedade de infeces bacterianas, virticas e
protozorias (Quadro 1).

Infeces do trato reprodutivo inferior


Geralmente, u m a infeco por u m a DST comea pela colonizao do trato
reprodutivo inferior (genitlia externa, vagina e colo uterino). As DST causadas por
bactrias e protozorios geralmente produzem lceras e outras leses genitais, infec-
es vaginais (vulvovaginite), ou infeces do colo uterino (cervicite) (Quadro 1). O s
sintomas das infeces vaginais e cervicais so parcialmente coincidentes e incluem
secrees anormais vaginais (malcheirosas o u no) e/ou cervicais (cervicite
mucopurulenta), acompanhadas por inflamao, dor e irritao dos rgos genitais,
ardor durante a mico, dor durante o ato sexual e dor plvica. Apesar de curveis de
modo geral, estas infeces so freqentemente assintomticas (sobretudo as cervicais),
ou tm fases assintomticas (como a sfilis), o que pode dificultar sua deteco.
As DST virais incluem o HSV-2 (lceras e vesculas dolorosas) e o HPV (verrugas
genitais) (Quadro 1). Geralmente, no so curveis, mas os sintomas das infeces pelo
HPV e HSV-2 so, ao menos, controlveis. Em geral, tendem a produzir sintomas mais
complexos do que as demais DST incluindo uma variedade de efeitos sistmicos.
A maioria das infeces do trato reprodutivo (ITRs) so DST mas incluem tambm as
infeces endgenas causadas pelo crescimento exagerado de microorganismos normal-
mente presentes no trato reprodutivo inferior (por exemplo, a vaginose bacteriana e a
candidase vulvovaginal). Entretanto, uma vez que estas infeces se estabelecem, podem,
em u m m o m e n t o subseqente, ser transmitidas sexualmente. Existem evidncias de
que estas infeces sejam tambm associadas com morbidade secundria (Quadro 1).
Alm de causar ITRs, os agentes sexualmente transmitidos tambm podem causar
doenas sistmicas, c o m o sfilis, AIDS, hepatite, e mesmo a morte (Wasserheit, 1989;
Grimes, 1986). Muitas DST tambm afetam a boca, o reto e o trato urinrio. As infec-
es por DST podem se tornar latentes, ou seja, a infeco permanece n o corpo, mas
sem manifestaes bvias.
Quadro 1Ncxoorganisrnos causadores das DST mais importantes e seus efeitos de curto e longo prazo na mulher

Dixon-Mueller & Wasserheit (1991); BrunhamfcEmbree (1992); Sherris & Fox (1985); Wasserheit (1989); Holmes et al. (1996); Hughes (1994); Schulz et al. (1992); Meheus (1992).
Notas:
Infeces que podem ser endgenas ou transmitidas sexualmente.
A importncia relativa da transmisso sexual e parenteral varia em regies diferentes.
i As porcentagens em parnteses se referem probabilidade de complicaes em mulheres infectadas, e variam segundo os diferentes estudos,
w No estgio inicial da slfilis.
i Os danos ps-DIP aumentam com a idade da mulher, a gravidade da inflamao e a cada recorrncia de infeco.
Infeces do trato reprodutivo superior
Na ausncia de deteco precoce e tratamento apropriado durante a fase inicial,
algumas infeces d o trato reprodutivo inferior podem se espalhar para o trato
reprodutivo superior, podendo causar doena inflamatria plvica (DIP), ou seja, infec-
o do tero, das trompas de Falpio e/ou dos ovrios. Em pases desenvolvidos, aproxi-
madamente 10% de mulheres com infeco cervical por Chlamydia e 10-20% com infec-
o cervical por Neisseria desenvolvem infeces ascendentes (Wasserheit, 1989). Este
processo pode ocorrer espontaneamente, mas o risco de ele acontecer se amplia duran-
te procedimentos transcervicais como o parto, o aborto e a insero do DIU (dispositivo
intra-uterino).
Os microorganismos que mais freqentemente causam a DIP so a Chlamydia trachomatis
e a Neisseria gonorrhoeae (Quadro 1). As bactrias associadas vaginose bacteriana provavel-
mente agem c o m o co-fatores na infeco do trato reprodutivo superior, facilitando o
processo de disseminao das bactrias Chlamydia e Neisseria para o trato reprodutivo supe-
rior. O s sintomas da DIP so dor abdominal, febre, corrimento vaginal anormal e
sangramento irregular. Casos de DIP aguda no infreqentemente requerem internao
hospitalar. Entretanto, especialmente quando causada por Chlamydia, a DIP pode ser
assintomtica. Devido resposta imunolgica infeco, a DIP no-tratada, ou tratada
inadequadamente, seja ela sintomtica ou assintomtica, pode causar processos infla
matrios e cicatricials severos das trompas de Falpio e dos ovrios.

Conseqncias secundrias (de longo prazo) das D S T na mulher


Complicaes da DIP
As complicaes freqentes e geralmente irreversveis da DIP esto entre os mais
srios problemas de sade reprodutiva da mulher. Devido cicatrizao ps-inflamat
ria progressiva causada pela infeco plvica, resultando em obstruo total ou parcial
das trompas de Falpio, a DIP pode resultar em dor abdominal crnica, infertilidade,
gravidez ectpica e infeco recorrente (Quadro 1).

Complicaes durante a gravidez e para o recm-nascido


As infeces por certas DST durante a gravidez podem ter efeitos adversos sobre o
desenvolvimento do feto, incluindo baixo peso ao nascer, prematuridade, aborto es-
pontneo e morte fetal (Quadro 1). Na me, podem causar endometrite ps-parto.
Alm dos efeitos sobre o desenvolvimento do feto, as infeces congnitas por DST
podem t a m b m ser transmitidas diretamente ao feto durante o parto (Quadro 1).
Vrias DST incluindo a sfilis, a herpes genital e o HIV podem, tambm, causar morte
neonatal/infantil.
Cncer cervical
O cncer do colo do tero u m problema relevante de sade pblica no m u n d o
inteiro, sendo este neoplasma o segundo mais c o m u m entre as mulheres dos pases
desenvolvidos e o mais c o m u m em muitos pases em desenvolvimento. Pelo menos
500 mil casos ocorrem por ano - 75% em pases em desenvolvimento (Meheus, 1992),
onde o cncer cervical , freqentemente, a primeira causa de morte feminina por
1
cncer (ver Koifman & Koifman) . Evidncias epidemiolgicas e biolgicas sugerem
que o cncer do colo do tero geralmente resulta de uma infeco sexualmente trans-
mitida, e indicam que a infeco por alguns subtipos de HPV (sobretudo as cepas 16 e
18) est fortemente associada ao desenvolvimento do cncer cervical (Meheus, 1992).
Se a prevalncia de infeces assintomticas por HPV alta (17% em mulheres no Brasil
- M u o z et a l , 1996), somente u m a pequena proporo das mulheres infectadas por
HPV desenvolve cncer cervical.

As D S T e o uso de anticoncepcionais

Alm de seus efeitos contraceptivos, alguns mtodos anticoncepcionais reduzem a


probabilidade de se contrair DST ao passo que outros podem aument-la.
O preservativo masculino de ltex (camisinha, condom) , atualmente, o nico mto-
do que comprovadamente oferece u m alto grau de proteo contra a infeco pelo HIV
e outras DST (Lamptey e Goodridge, 1996). O s espermicidas (como o nonoxynol-9)
oferecem a melhor perspectiva em termos de u m mtodo eficaz de proteo contra a
infeco pelo HIV e demais DST controlado pela mulher. O desenvolvimento e a
disponibilizao de u m mtodo de proteo seguro e eficaz, que possa ser utilizado pela
mulher sem a colaborao nem o conhecimento do parceiro, da maior urgncia (Elias
& Heise, 1994). Embora os estudos clnicos demostrem que os espermicidas oferecem
proteo contra a infeco por certas DST (Niruthisard, Roddy & Chutivongse, 1992),
ainda no est bem estabelecido se existe ou no u m efeito protetor contra a infeco
pelo HIV (Roddy et a l , 1998; Hira et al., 1997). O preservativo feminino (Musaba et a l ,
1998; Bounds, 1997) u m a outra opo controlada pela mulher que vem ganhando
popularidade, embora as evidncias quanto sua eficcia protetora com relao s
infeces pelas DST e pelo HIV in vivo sejam ainda limitadas.
O uso do DIU aumenta o risco de desenvolvimento de DIP Este risco adicional de DIP
parece se dever, pelo menos em parte, s DST. De forma global, as usurias do DIU tm
u m risco aproximadamente 2-4 vezes maior de desenvolver DIP, se comparadas s
mulheres que no utilizam mtodos anticoncepcionais (Trieman et al., 1995). Este

Captulo 13 deste livro.


risco se concentra em grande parte n o primeiro ms aps a insero do DIU (Farley et
al., 1992), e se deve transferncia de microorganismos causadores de DST (especifica-
menteChlamydia,Neisseria e bactrias associadas vaginose bacteriana) presentes na vagi-
na e/ou no colo do tero para a cavidade uterina, durante o processo de insero do DIU. Em
momentos posteriores, somente as mulheres expostas s DST aps a insero do DIU tm
um risco persistentemente ampliado de desenvolver a DIP (Trieman et al., 1995). Devido ao
risco aumentado de desenvolver a DIP logo aps o processo de insero do DIU, extrema-
mente importante detectar e tratar DST como a clamdia e a gonorria antes de inseri-lo.

O tamanho do problema: epidemiologia das D S T

As DST esto entre os agravos sade mais c o m u n s . O n m e r o de patgenos


microbianos identificados como causadores destas infeces e a morbidade atribuvel
sDSTse comparada causada por outras doenas infecciosas, tm aumentado de uma
forma contnua ao longo do sculo XX. Anlises recentes mostram que asDSTconside-
radas como u m conjunto, esto entre as cinco principais causas de anos de vida saud-
vel perdidos nos pases em desenvolvimento. O impacto maior nas mulheres e nas
crianas: em mulheres em idade reprodutiva (15-45 anos), a morbidadee a mortalida-
de secundrias s DST (no incluindo o HIV) so menores apenas do que as devidas s
causas maternas (World Development Report, 1993).

Epidemiologia global
Atualmente, as DST so o grupo mais c o m u m de doenas infecciosas notificadas na
maioria dos pases no m u n d o (De Schryver & Meheus, 1990). Alm da persistncia das
DST bacterianas clssicas (sfilis, gonorria, e cancro mole), durante as dcadas recentes
houve u m aumento na incidncia das DST 'de segunda gerao', incluindo a clamdia
e as DST virais como o HSV e o HPV Em grande parte dos pases industrializados, essas
'novas' DST se tornaram mais importantes do que as DST bacterianas clssicas; nos
pases em desenvolvimento, os dois grupos representam problemas de sade pblica
igualmente srios (De Schryver & Meheus, 1990). Entretanto, nos Estados Unidos, a
prevalncia de sfilis e gonorria tem aumentado dramaticamente entre certos grupos
populacionais em anos recentes, provavelmente em funo da pobreza e do consumo
de drogas (Aral e Holmes, 1991). O aumento na incidncia das DST que vem ocorrendo
em u m grande nmero de pases atribudo a fatores como mudanas no comporta-
mento sexual; ausncia de educao em sade; aumento da mobilidade geogrfica;
existncia de tabus sociais referentes s DST falta de reconhecimento do fato de que a
maioria destas doenas so tratveis; e o desenvolvimento de resistncia gnica aos
antibiticos por microorganismos causadores das DST (Passos & Fonseca, 1990).
A Organizao M u n d i a l da Sade (OMS) estimou que, em 1995, teriam ocorrido
333 milhes de casos de DST curveis no m u n d o (Tabela 1), dos quais 36 milhes na
Amrica Latina (WHO, 1995). Dois teros de todos os casos de DST ocorrem em pessoas
com idade inferior a 25 anos. Os dados de pases menos desenvolvidos so escassos, mas
as informaes disponveis sugerem que, em geral, as DST so mais comuns e mais
graves em pases em desenvolvimento (De Schryver & Meheus, 1990; Rowe, 1992), em
decorrncia da estrutura etria jovem; da pobreza; das ms condies de saneamento;
da falta e/ou m qualidade dos servios de sade pblica, e da prtica de autome
dicao c o m antibiticos. Freqentemente ineficaz devido prescrio errada, a
automedicao tambm contribui para aumentara taxa de resistncia gnica dos microorga-
nismos causadores destas infeces aos antibiticos (Gir et al., 1991; Magalhes, 1987).

Tabela 1 Incidncia global das D S T

Fontes: Rowe (1992); W H O (1995).

Epidemiologia das D S T no Brasil


N o Brasil, existem poucas informaes concretas sobre a magnitude do proble-
m a das DST Segundo publicao do Ministrio de Sade (MS), tanto a inexistncia
de informaes confiveis sobre a extenso do problema q u a n t o a falta de u m a
poltica nacional de controle impossibilitavam uma avaliao epidemiolgica des-
sas doenas (MS, 1993). O sistema oficial de notificao de casos de DST do M i n i s -
trio da Sade recebeu, entre 1987 e 1996, registro de 474.862 casos (MS, 1996).
Estima-se que o nmero real de episdios de DST estaria entre 3.5 e 4 milhes por ano
n o Brasil (Moherdaui et a l , 1997). Alm da falta de priorizao das DST c o m o u m
problema relevante de sade pblica, outros fatores contribuem para o problema de
baixa notificao de casos de DST n o Pas. Entre eles incluem-se a alta incidncia de
DST assintomticas na mulher, a prtica freqente de automedicao c o m relao
s DST (Gir et al., 1991) e a ausncia de u m sistema de notificao que compreenda
o sistema de sade privado.
Na ausncia de dados nacionais confiveis sobre a incidncia (taxa/nmero de
casos novos) de DST, u m a outra fonte de informaes - que permite ao menos u m a
caracterizao parcial da situao das DST no Brasil - so os estudos de prevalncia
(taxa/nmero de pessoas infectadas) em grupos especficos da populao. U m a pu-
blicao recente apresentou u m resumo de estudos desta natureza, realizadosem
clientes que procuram assistncia em clinicas especializadas ou em grupos espec-
ficos da populao (Fandes & Tanaka, 1992). difcil interpretar os resultados da
maioria dos estudos desta natureza n o Brasil, devido a problemas metodolgicos
c o m o a m definio das populaes sob estudo e o uso de mtodos diagnsticos
inadequados (especialmente para a clamdia), alm do t a m a n h o m u i t o reduzido
das amostras.
Outra fonte de informaes so os dados referentes a casos de DST tratados em
servios de dermatologia sanitria. Eles fornecem informaes sobre a ocorrncia pro-
porcional de DST sintomticas e sugerem que condiloma, sfilis, uretrite gonoccica e
uretrite no-gonoccica so as DST mais importantes entre os homens (Boletin Informativo
dela Unin, 1995). A faixa etria mais atingida pelas DST no Brasil a de 15-30 anos
(Passos & Fonseca, 1990).
Na Tabela 2, apresentam-se alguns estudos selecionados de prevalncia das DST em
mulheres brasileiras. Estes dados indicam que:

a prevalncia de infeces por DST alta n o Brasil, m e s m o e m populaes


assintomticas e indivduos de baixo risco;
as taxas so mais altas em populaes de alto risco (por exemplo, prostitutas e pacien-
tes que procuram atendimento em clnicas de DST);
as taxas de sorologia positiva para a sfilis so elevadas. Apesar de a sfilis ser u m a
condio de preveno fcil e barata, a falta de deteco e tratamento de u m nmero
grande de casos de sfilis e m gestantes continua no Brasil, resultando em u m a taxa
inaceitvel de sfilis congnita (Gomes et a l , 1996);
infeces cervicais assintomticas na mulher (clamdia e gonorria) so muito fre-
qentes no Brasil.
Tabela 2 Prevalncia de algumas D S T / I T R S em mulheres
no Brasil

bacteriana)

Fontes:
(1) (2) (3) (4) (5)
Lowndes et al. (1996); Raddi et al. (1993); Lowndes (1995); Vaz et al. (1990); Cunha et al. (1983);
(6) (7) (8) (9) (10)
d e Andrade etal. (1989); Guinsberget al. (1993); Tellini etal. (1996); C u n h a etal. (1988);
(11) (12) (13) (14)
Guerreiro et al. (1987); Aleixo Neto et al. (1994); Brum & Brum (1984); Amaral et al. (1995);
( 1 5 ) (15)
Moherdaui et al. (1998); Lurie et al. (1995); Gonalves et al. (1984).
Notas:
*mulheres que fizeram o preventivo.
**Estudo multicntrico e m cinco centros de atendimento de casos de DST.
#mulheres c o m indicao clnica.

Chlamydia trachomatis e infeces cervicais as sintomticas


A clamdia a DST bacteriana mais c o m u m em pases desenvolvidos. Nos Estados
Unidos, estima-se que 3-5 milhes de casos novos de clamdia ocorram anualmente
(McGregor, 1989; Weinstock, Dean & Bolan, 1994) e que a prevalncia de infeco de
5-10% em mulheres de idade frtil. Alm do sofrimento, da dor e da morbi-mortalidade
causados pela infeco, o custo econmico da clamdia enorme, sendo estimado em
U$ 3,5 bilhes por ano no pas, a maioria destes custos resultantes de efeitos secundrios
de infeces no-tratadas em sua fase inicial (Washington et al., 1986).
A natureza freqentemente assintomtica das infeces primrias (colonizao
do trato reprodutivo inferior) por Chlamydia e Neisseria dificulta sua deteco, j que a
maioria das mulheres infectadas no apresenta sintomas. A nica maneira de deteco
destas infeces portanto por meio de screening de mulheres assintomticas, usando-
se testes diagnsticos especficos. Estudos recentes comprovam que a identificao e
o tratamento de infeces por Chlamydia em mulheres sob risco para esta infeco
podem reduzir a incidncia de DIP (Scholes et al., 1996). Entretanto, os testes diagns-
ticos atualmente disponveis para Chlamydia so tecnicamente difceis e/ou muito ca-
ros - apesar de o tratamento ser fcil e barato.
O s poucos estudos disponveis no Brasil indicam uma prevalncia elevada de in-
feco por Chlamydia e m mulheres (Tabela 2). De acordo com estudos realizados em
outros pases, a prevalncia de clamdia especialmente alta em mulheres jovens: em
u m estudo realizado no Rio de Janeiro, a taxa de infeco na faixa etria de 14-24 anos
foi 11.2% e m mulheres no-grvidas e 16.8% em grvidas (Lowndes, Domingues &
Cintra, 1996). O fato de at 80% de casos de clamdia serem assintomticos em mulhe-
res (Weinstock, Dean & Bolan, 1994), em combinao com o custo elevado e a conse-
qente ausncia de mtodos diagnsticos laboratoriais adequados nos servios de
sade pblica indica que muitas infeces por Chlamydia no vm sendo detectadas
atualmente no Pas. Neste contexto, importante ressaltar que o 'preventivo' (teste
utilizado para detectar a displasia cervical em esfregaos corados pelo mtodo de
Papanicolaou) - nico teste laboratorial hoje disponvel na maioria dos centros de
sade pblicos para diagnstico de DST - ineficaz na deteco das infeces por
Chlamydia (Arroyo et al., 1989).
Esta situao tem implicaes srias para a sade reprodutiva da mulher, dados os
efeitos secundrios das infeces por Chlamydia no-tratadas (Quadro 1). O risco de ocor-
rncia desses efeitos secundrios seria mais elevado no Brasil em conseqncia da alta
freqncia de abortos ilegais (em sua maioria de baixa qualidade), e da prtica de inser-
o do DIU sem acesso ao diagnstico laboratorial para clamdia. O mesmo problema
existe e m termos de infeces por Neisseria na mulher: a prevalncia desta infeco
mais baixa, embora tambm importante no Pas (Tabela 2). O s mtodos eficazes para o
diagnstico desta infeco em mulheres assintomticas no esto igualmente dispon-
veis nos servios de sade.
A interao das DST com o H I V

A presena de infeces por outras DST aumenta o risco de transmisso e de infec-


o pelo HIV Estudos epidemiolgicos na frica, Europa e nos Estados Unidos sugerem
que h u m risco aproximadamente quatro vezes maior de infeco pelo HIV na presen-
a de lceras genitais, c o m o as causadas pela sfilis e pelo cancro mole; e u m risco
significativamente aumentado, porm menor, q u a n d o da presena de DST c o m o
gonorria, clamdia e tricomonase, que provocam acumulaes locais de linfcitos e
macrfagos no trato genital (Wasserheit, 1992; WHO, 1995). Fatores biolgicos respon-
sveis pelo a u m e n t o do risco de transmisso de HIV na presena de DST incluem a
ruptura da barreira epitelial normal por ulcerao ou microulcerao genital e a acu-
mulao de clulas suscetveis ao, ou infectadas pelo HIV em secrees vaginais e smen
(WHO, 1995; Kreiss et al., 1994).
Recentemente, u m estudo comunitrio randomizado na Africa demonstrou que o
diagnstico e o tratamento rpidos e adequados de pessoas com sintomas deDSTbase-
ados na abordagem sindrmica, se mostrarem associados a u m a reduo de 42% na
incidncia de novas infeces pelo HIV (Grosskurth et al., 1995). Esta reduo ocorreu
sem mudanas concorrentes do comportamento sexual, como o uso do preservativo.
Estes resultados indicam que o controle clnico das DST, especialmente e m situaes
onde as mudanas comportamentais podem ser de difcil obteno, constitui uma das
maneiras mais eficazes de reduzir a incidncia de HIV a curto prazo.

Aspectos de sade pblica: preveno e controle das D S T na


mulher

Preveno e controle das DST: o. desafio


Todas as DST so prevenveis e muitas so, tambm, curveis. A preveno e o con-
trole das DST so prioridades por duas razes:

representam u m a oportunidade nica para melhorar a sade reprodutiva da mulher,


reduzindo as conseqncias srias e freqentemente irreversveis dasDSTreduzin-
do, tambm, os altos custos hospitalares de tratamento da DIP e outros efeitos secun-
drios das DST
as DST aumentam o risco de transmisso de infeco pelo HIV J foi demonstrado que
programas de controle das DST podem contribuir para uma diminuio na incidn-
cia de novas infeces pelo vrus.
Apesar da falta de informaes sobre a magnitude do problema de DST na populao
brasileira, os dados apresentados anteriormente neste captulo indicam que as DST so
extremamente comuns no Brasil, mesmo cm populaes assintomticas e mulheres de
baixo risco. As informaes disponveis indicam a necessidade urgente de uma melhoria
dos programas de controle de DST no Pas.

DST e gnero: o contexto


Fatores biolgicos, socioculturais e assistenciais, alm do efeito combinado deles,
fazem com que a mulher seja mais vulnervel do que o h o m e m quanto possibilidade
de contrair DST e sofrer seus efeitos secundrios, biolgicos e sociais (Quadro 2).
Biologicamente, as mulheres so mais suscetveis infeco pelas DST, pelo maior
risco biolgico de transmisso (por ato sexual) das DST (inclusive do HIV) do h o m e m
para a mulher (Dixon-Mueller & Wasserheit, 1991). Alm disso, sendo as DST na mulher
em grande medida assintomticas, elas tm menor probabilidade de procurar assistn-
cia mdica e de ter uma infeco diagnosticada. Isso faz com que corram mais risco de
sofrer conseqncias biolgicas deDSTigualmente mais graves nas mulheres.
Estes riscos biolgicos so agravados por uma srie de fatores socioculturais e fatores
associados aos servios de sade e assistncia mdica (Quadro 2). A subordinao
econmica, sociocultural, fsica e sexual da mulher faz com que elas tenham pou-
cos recursos para controlar sua exposio s DST/HIV devido falta de poder de
barganha nas relaes sexuais e conseqente dificuldade de exigir u m comporta-
mento sexual responsvel e seguro do seu parceiro (Lowndes & Giffin, 1995; World
Development Report 1993; Dixon-Mueller & Wasserheit, 1991). Ao m e s m o tempo,
elas no tm c o m o recorrer a mtodos de preveno de infeco sobre os quais
tenham controle.
U m a srie de outros fatores diminui a probabilidade da mulher procurar tratamen-
to para DST, incluindo a aceitao de sintomas de DST (corrimento vaginal, dor no
baixo ventre etc.) c o m o normais condio feminina (Fandes & Tanaka, 1992); o
estigma social que associa as DST promiscuidade e prostituio na mulher; c a
prtica c o m u m de automedicao das DST pelo homem.
N o mbito dos servios de sade, as longas demoras para consultas e obten-
o de resultados de testes laboratoriais (quando realizados), combinadas falta
de medicamentos e de insumos, dificultam a obteno de atendimento e trata-
m e n t o adequados para as DST. Alm disso, a falta de mtodos diagnsticos apro-
priados para as DST - sobretudo para as assintomticas - , associada falta de
conscincia q u a n t o alta prevalncia e ao risco de efeitos secundrios das DST
assintomticas, reduz ainda mais a possibilidade de a mulher ser diagnosticada
e tratada adequadamente.
M e s m o conseguindo atendimento, as mulheres c o m DST ou seus sintomas
freqentemente no recebem informaes claras e apoio prtico ou emocional por
parte dos profissionais da sade. Isto parece resultar, pelo menos em parte, da situao
sensvel em que o mdico se encontra perante as normas sociais quanto sexualidade
e infidelidade masculina n o Brasil (Giffin & Lowndes, 1999). Isto gera u m a conse-
qente dificuldade para o profissional da sade em termos de dizer claramente m u -
lher que ela tem u m a infeco transmitida sexualmente. O uso c o m u m de termos
como 'inflamao' e 'ferida n o tero' permite que o mdico e a mulher possam falar
da sua condio clnica sem mencionar as palavras DST O mdico, em uma tentativa de
proteger tanto a mulher quanto a ele mesmo de situaes emocionais e sociais difceis,
acaba por no explicar claramente paciente que ela possa ter u m a DST. Isto em u m a
situao em que a mulher freqentemente possui poucas - se algumas - informaes
corretas sobre as causas e as conseqncias das DST. O fato de nem todas as ITRs serem
DST na mulher, tendo o corrimento vaginal, por vezes, causas no-infecciosas, e m
combinao c o m o uso de mtodos diagnsticos inespecficos para as DST, torna a
situao ainda menos clara e mais confusa para a mulher.
Ao mesmo tempo, nos casos em que h medicamentos disponveis nos servios, e
quando este tratamento oferecido, a conduta mais freqente parece ser mandar u m
remdio para o parceiro pela mulher. A falta de u m apoio mdico nesta situao a deixa
vulnervel possibilidade de ser culpada pela infeco e, conseqentemente, enfrentar
rejeio, vergonha e culpa. M e s m o nos casos em que a mulher desconfia da infideli-
dade do marido e acredita que foi infectada por ele, ela sai da consulta mdica sem
elementos que a apoiem. Nesta situao, a probabilidade de o parceiro tomar tratamen-
to reduzida.
O efeito combinado destes fatores biolgicos e socioculturais e de fatores associados
assistncia mdica determina, muito provavelmente, a no-resoluo de muitos ca-
sos de DST na mulher, deixando-a sob risco de desenvolver efeitos secundrios srios e
sem meios de se proteger contra a reinfeco e as infeces futuras.
A discusso precedente demostra as dificuldades com que a mulher se depara em
termos de se proteger contra a exposio s DST/HIV Freqentemente, ela no pode
reduzir o nmero de parceiros sexuais, porque sua exposio depende, de fato, do
nmero de parceiros sexuais do seu parceiro. Alm disso, ela no tem o poder de nego-
ciar o uso do preservativo masculino, nem o acesso a mtodos de preveno de infeco
controlados por ela. A mulher , ento, simultaneamente, vulnervel infeco e impe-
dida de se proteger. Finalmente, nos servios de sade, ela no recebe nem u m manejo
adequado das DST, nem apoio prtico ou emocional quanto informao e ao trata-
mento de seu parceiro ou proteo contra futuras infeces. Nesta situao, o risco de
contrair u m a infeco por HIV seria ampliado, tanto em termos do comportamento
sexual do seu parceiro, quanto da associao biolgica das DST com a infeco pelo HIV
Quadro 2 DST e gnero: fatores que influenciam a vulnerabilidade da mulher a infeco
Diagnstico sindrmico: a soluo?
Estimulado pela necessidade de melhorar o manejo das DST n o Brasil, e em u m
esforo de reduzir a incidncia de infeces pelo HIV n o Pas, o Ministrio de Sade
recentemente introduziu, em alguns centros de sade do Brasil, a Teraputica Padroni-
zada Combinada, t a m b m denominada abordagem sindrmica ou diagnstico
sindrmico das DST (WHO, 1993; Vuylsteke & Meheus, 1996). O seu objetivo , em uma
nica consulta, prover avaliao teraputica das DST e aconselhamento adequado ao
paciente (MS, 1993a). A abordagem sindrmica baseada na deteco de uma sndrome
composta de sintomas e sinais associados a u m nmero de agentes etiolgicos de DST
bem-definidos. A abordagem utiliza fluxogramas clnicos (Figura 1) - normas simples e
padronizadas, adaptadas s condies locais, para guiar o processo de deciso mdica -
para as sndromes mais c o m u n s de corrimento uretral, lcera genital e corrimento
vaginal/dor plvica (Moherdaui et al., 1998). O tratamento preconizado para cada uma
das sndromes visa a agir contra todos os possveis agentes etiolgicos que possam
caus-las (por exemplo, o corrimento uretral no h o m e m tratado com medicamentos
contra Neisseria e (Mamydia). Os fluxogramas podem ter vrios nveis de sofisticao, de-
pendendo dos recursos disponveis em cada situao. Em caso de corrimento vaginal, o
tratamento pode visar todas as possveis causas (trcomonase, candidase e vaginose
bacteriana), sem que seja necessria investigao. Ou, estando disponvel u m especulo
.e/ou u m microscpio, algum grau de diagnstico mais especfico pode ser obtido.
Distinguindo-se o corrimento vaginal causado por trcomonase daquele causado por
candidase, possibilita-se u m tratamento mais especfico (Figura 1). Apesar de resultar
na prescrio de medicamentos desnecessrios, a abordagem sindrmica pode ser efi-
caz em uma situao em que h poucos recursos disponveis, e em que seja impossvel
identificar as etiologias especficas de sintomas das DST. Alm disso, j que o diagnstico
e tratamento so feitos a partir de sintomas e sinais, o atendimento ao paciente e a
prescrio de medicamentos para ele e para todos seus contatos sexuais podem ser
realizados em uma nica consulta. Isto extremamente importante para a interrupo
da cadeia de transmisso das DST.

As avaliaes de u m m o d o geral mostram que a abordagem sindrmica detecta e


trata corretamente aproximadamente 75% de DST sintomticas. Estudo do Ministrio
da Sade realizado e m cinco clnicas de DST n o Brasil concluiu que a abordagem
sindrmica resulta no tratamento adequado de u m nmero consideravelmente maior
de pacientes d o que tratamento baseado somente na impresso clnica do mdico
(Moherdaui et al., 1998). Entretanto, apesar do objetivo da introduo da abordagem
sindrmica ser a melhoria de atendimento s DST de u m a forma global - incluindo
educao para a preveno futura e notificao/tratamento de parceiros -, uma avalia-
o recente d o manejo de casos de DST e m So Paulo e Rio de Janeiro indica que,
mesmo c o m a introduo de mtodos de deteco e tratamento de DST mais eficazes,
outros problemas estruturais, tais c o m o aqueles detalhados anteriormente neste
captulo, ainda persistem (D'Angelo et al., 1996). Nesta avaliao de 162 pacientes
entrevistados aps atendimento para sintomas de DST, o tratamento sindrmico
preconizado foi feito e m 50% dos h o m e n s e 2,6% das mulheres; as informaes
sobre a necessidade de tratamento dos parceiros foram relatadas por 90% dos h o -
mens e 34% das mulheres; a orientao sobre o benefcio do uso de preservativos foi
descrita por 80% dos homens e 28% das mulheres e apenas 10% das mulheres recebe-
ram orientao quanto ao uso do preservativo. Este estudo mostra diferenas gran-
des entre o tratamento e a orientao preventiva oferecidos a homens e mulheres:
a maioria absoluta delas no compreendeu o diagnstico do mdico, no foi medi-
cada adequadamente, no foi orientada em termos de informao e tratamento do
parceiro, no levou medicamentos para o parceiro e no recebeu orientao quan-
to ao uso de preservativo.
A introduo de mtodos mais eficazes de abordagem clnica de DST no ser em si
eficaz no controle das DST nas mulheres caso elas continuem sem acesso a informa-
es, medicamentos e apoio prtico e emocional necessrios para informar e tratar
seu(s) parceiro(s) e para se proteger da reinfeco. Alm disso, mesmo com a existncia
de servios de sade para DST mais eficazes, a facilidade com que os antibiticos so
adquiridos e m farmcias possibilita que homens com DST ainda possam obter trata-
mento desta maneira. A disponibilidade desta alternativa para o h o m e m significa que a
mulher, freqentemente assintomtica ou com sintomas considerados normais, fica
sem diagnstico e tratamento.
Figura 1 Exemplo de um fluxograma para manejo de mulheres com queixa de corrimento
vaginal e/ou desconforto ou dor plvica

Fonte: Adaptado de MOHERDAUI et al., 1998.


Figura 2 Exemplo de um fluxograma para manejo de mulheres com queixa de corrimento
vaginal baseado nos fatores de risco para cervicites propostos pela OMS

Fonte: Adaptado de MOHERDAUI et al., 1998.


Diagnstico sindrmico e DST assintomticas na mulher

A introduo da abordagem sindrmica justificada como uma medida de controle


de DST sintomticas. Se bem implementada, com a disponibilizao de medicamentos
e de apoio prtico e emocional adequado, possvel que ela represente um avano no
manejo clnico das DST sintomticas no Brasil. Muitas mulheres, entretanto, com in-
feces por DST como sfilis, herpes e HPV no apresentam quaisquer sintomas. Ressal-
ta-se que a grande maioria de infeces cervicais (at 80% das infeces por Chlamydia, e
50% das infeces por Neisseria) assintomtica na mulher. Estas infeces cervicais esto
entre as mais srias DST em termos de efeitos secundrios. Os dados disponveis indi-
cam que a prevalncia das infeces por Chlamydia na mulher elevada no Pas, mesmo
em populaes consideradas de baixo risco (Tabela 2). A abordagem sindrmica, que ,
por definio, desenhada para a deteco c o tratamento de DST em pessoas que apre-
sentam sintomas, no pode ser eficaz nos muitos casos em que, devido ausncia de
sintomas, a mulher no chega a procurar assistncia mdica.
Devido a esta situao, e ao fato de que o alto custo de testes diagnsticos para
infeces cervicais impossibilita sua realizao em pases com poucos recursos, vrios
estudos foram realizados e m u m a tentativa de se definir "marcadores de risco",
por exemplo, idade e comportamento sexual, que estariam associados a infeces por
Chlamydias Neisseria (WHO, 1995a; Vuylsteke & Meheus, 1996). Em u m contexto em que
no h recursos para realizar testes diagnsticos especficos, estes marcadores de risco
poderiam ser utilizados para identificar mulheres que tm uma probabilidade amplia-
da de apresentarem u m a infeco cervical assintomtica. Estas mulheres poderiam,
ento, ser selecionadas para a realizao de testes laboratoriais especficos (se existirem
recursos) ou tratadas para as infeces cervicais de uma maneira profiltica.
H duas situaes em que este tipo de abordagem pode ser aplicado: em mulheres
que procuram atendimento por causa de sintomas de infeces vaginais (corrimento
vaginal etc.), e que no apresentam sintomas bvios de infeco cervical (Figura 2); e em
mulheres assintomticas, por exemplo, aquelas que procuram atendimento ginecol
gico ou pr-natal. Quanto s que apresentam sintomas de infeces vaginais, estudos
no Brasil e em outros pases mostram que a eficincia de deteco de infeces cervicais
nestas mulheres aumentada adicionando-se ao fluxograma este tipo de avaliao de
risco (Figura 2; Moherdaui et al., 1998). Anlises em outros pases mostram, igualmen-
te, que a avaliao de risco pode, tambm, detectar certa proporo de infeces cervicais
em mulheres assintomticas (Braddick et al., 1990; Vuylsteke et al, 1993). Entretanto, a
especificidade de u m a abordagem desta natureza geralmente baixa, resultando no
tratamento desnecessrio de muitas mulheres que tm os marcadores de risco, mas
que, de fato, no tm infeces cervicais (Ryan & Holmes, 1995). Naquelas com infec-
es vaginais sintomticas, que receberiam tratamento para as DST de qualquer forma,
esta abordagem se justifica na ausncia de recursos para os testes diagnsticos
laboratoriais. Entretanto, dada abaixa especificidade da avaliao de risco, o tratamento
profiltico das infeces cervicais com base nesta abordagem e m mulheres que no
tm sintomas de DST bastante mais complicado, u m a vez que os medicamentos
deveriam tambm ser tomados pelo parceiro, o que poderia causar problemas emocio-
nais e sociais srios para o casal.
Evidentemente, h uma necessidade urgente de desenvolvimento de testes diagns-
ticos simples e baratos para as infeces cervicais assintomticas. Cabe observar que,
hoje, no Brasil, no existe uma poltica definida quanto deteco de infeces cervicais
1
assintomticas na mulher, apesar de sua alta prevalncia e de seus graves efeitos secun
drios sobre sua sade reprodutiva. Isto, alm do risco aumentado de transmisso de
HIV associado s DST, mesmo assintomticas.

A importncia de servios integrados de sade reprodutiva

A discusso anterior ressalta duas reas prioritrias para o aprimoramento d o ma-


nejo das DST na mulher: a necessidade de meios eficazes de deteco das infeces
cervicais em mulheres assintomticas; e a abordagem dos problemas mais globais rela-
cionados ao contexto sociocultural da mulher e DST
Neste contexto, a necessidade de integrao do atendimento s DST nos servios de
ginecologia, planejamento familiar, pr-natal e sade materno-infantil. clara. Servios
de diagnstico e tratamento das DST esto logicamente relacionados a atendimentos
desta natureza: ambos tm acesso mesma clientela - mulheres sexualmente ativas - e
requerem profissionais da sade com habilidades similares, incluindo a de comunicar
sobre questes sensveis de sexualidade. Salienta-se que as mulheres grvidas so alvos
especialmente importantes para os programas de controle de DST, diante da alta
prevalncia de DST nesta populao, incluindo a clamdia e a sfilis; e dos graves efeitos
de DST sobre a sade do feto e do recm-nascido.
As mulheres que demandam este tipo de atendimento so alvos ideais para a introduo
de programas de controle de DST mais globais, sendo estes a nica maneira prtica de se
alcanar e sensibilizar mulheres assintomticas, ou que no percebem que os sintomas que
elas tm possam estar relacionados a uma DST Clnicas desta natureza so tambm lugares
ideais para campanhas de educao e sensibilizao em termos de DST/HIV em geral.
Existem hoje alguns exemplos de servios mais integrados e centrados na mulher,
2
incluindo o Coletivo Feminista Sexualidade Sade, em So Paulo (ver Diniz ), e a Asso-
ciao Brasileira de Bem-Estar Familiar no Brasil (BEMFAM) . Esta ltima vem introduzindo

2
Ver captulo 20.
os conceitos de abordagem sindrmica das DST na mulher em suas clnicas de planeja-
mento familiar, no contexto da sensibilizao dos profissionais da sade quanto aos proble-
mas de DST do ponto de vista emocional e social, e da introduo de sesses de
aconselhamento individual e de grupo, incluindo, quando possvel, a participao dos par-
ceiros (Badiani et al., 1996; Costa ePetti,1997). Tais programas indicam a possibilidade da
introduo de servios para as DST mais efetivos, que visam a protegera mulher de infeco
na globalidade da sua vida, e no somente em termos de casos individuais de DST
Nestas situaes, alm da introduo da abordagem sindrmica para as DST, algu-
mas outras medidas de controle das DST assintomticas e seus efeitos secundrios
poderiam ser facilmente introduzidas desde j, e so justificveis diante das indicaes
existentes de uma elevada prevalncia de DST assintomticas nesta populao:

tratamento profiltico das infeces cervicais (clamdia e gonorria) antes da insero


do DIU. A administrao de tratamento profiltico antibacteriano imediatamente antes
da insero do DIU pode diminuir o risco de desenvolver uma DIP subseqente;
recomendaes a mulheres que praticam o aborto induzido de procederem ao trata-
mento profiltico (enfatizando a necessidade do autocuidado, alm dos procedimen-
tos realizados pelos profissionais da sade) para as infeces cervicais antes da realiza-
o do aborto;
a introduo de 'avaliao de risco' para as infeces cervicais em mulheres com corri-
mento vaginal (conforme recomendado pelas normas do M S , Moherdaui et a l , 1998).

Entretanto, estas solues so parciais e imperfeitas. Sobretudo necessrio se ter


em mente que a abordagem sindrmica no adequada para a deteco e o manejo
das DST assintomticas na mulher. Conseqentemente, necessria a introduo de
u m a poltica de deteco e tratamento destas DST, para diminuir a incidncia de
efeitos secundrios e o risco aumentado de infeco pelo HIV Isto requer o investi-
m e n t o de recursos n o screening de mulheres assintomticas, especialmente jovens e
grvidas, que se encontram sob maior risco de ter infeces cervicais e de sofrer seus
efeitos secundrios.

Concluses

A existncia da AIDS estimulou a introduo de programas de controle e preveno


das DST mais eficazes. Embora a introduo da abordagem sindrmica e do manejo
mais eficaz de DST sintomticas possam contribuir para o controle de DST, e, possivel-
mente, para a diminuio da incidncia de infeces pelo HIV no Brasil, importante
ressaltar que isto no representa u m a soluo e m termos da sade reprodutiva da
mulher. U m a abordagem diferenciada se faz necessria, de modo a diminuir a incidn-
cia e os efeitos secundrios das DST na mulher, sobretudo naquelas consideradas de
baixo risco para as DST. Isto requer a introduo de uma poltica quanto deteco de
infeces cervicais em mulheres assintomticas, dentro de uma abordagem mais glo-
bal dos problemas relacionados ao contexto sociocultural da mulher e das DST
De forma global, existem duas necessidades urgentes em termos de desenvolvi-
mento de meios eficazes de controle das DST/HIV na mulher: o desenvolvimento de
testes diagnsticos simples e baratos para a deteco de infeces cervicais
assintomticas, e, sobretudo, o desenvolvimento de u m mtodo seguro, controlado
pela mulher, que oferea proteo contra a infeco por HIV e outras DST O baixo
nvel de investimento nestas reas e a conseqente demora na disponibilizao de
meios eficazes refletem a falta de priorizao da sade da mulher, no somente n o
Brasil, mas em todo o mundo.

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15

AIDS e Sade Reprodutiva:


novos desafios
Regina Helena Simes Barbosa

As vezes eu tenho que transar pra satisfazer a ele porque... tendo mulher dentro de casa... se eu no procurar
satisfazereleele vai procurar mulher na rua e a coisa que eu tenho o maior medo dessa doena, da AIDS.

No, quando eu toco[noassunto AIDS],eledesconversa.Diz: 'mulher boba, essa mulher s pensa em morrer,
s pensa em doena'...
Esse problema que eu t de infeco na urina dele e ele passa pra mim. por isso que eu as vezes falo pra ele:
usa camisinha. Mas ele no aceita.

Eu no converso leom o mando sobre sexo]. As vezes eu procuro conversar mas ele...'ah, vou sair um
pouquinho...'smprefuginh.Ertto, agora, sisti.
Sem camisinha, no tem. Hoje em dia eu jamais teria qualquer relao com qualquer outra pessoa sem
camisinha.[...]Eagora a AIDS, que no tem cura? eu sempre pensei muito: eu tenho meu filho, eu amo meu
filho e eu amo a mim. Ento, eu no vou morrer por causa de amor...
Essa falas so de mulheres pobres, casadas, com filhos, moradoras de uma comuni-
dade favelada da zona urbana do Rio de Janeiro (Simes Barbosa, 1993a). Elas expres-
sam a angstia, a perplexidade, o medo e a impotncia, mas tambm sua garra e cora-
gem no enfrentamento de u m duro cotidiano de vida em que as dificuldades de so-
brevivncia so muitas; as realizaes pessoais, poucas. A AIDS entra em suas vidas como mais
u m a preocupao, c o m o mais u m 'risco' que se acrescenta a tantos outros, alguns
mais imediatos e ameaadores. Estes depoimentos revelam desde o conformismo com
u m destino que parece previamente traado para as mulheres, suas contradies e
conflitos ao buscarem caminhos para lidar com temas to complexos quanto o amor, a
dependncia, a auto-estima, a fidelidade e o companheirismo-to arraigadas na cultu-
ra de gnero - at u m a consciente (e conquistada!) auto-estima, que no abre espao
para riscos que podem ser evitados, c o m o o caso do ltimo.
Fica claro que no se pode discutir a AIDS e seu enfrentamento sem compreender os
papis de gnero e todas as implicaes que esses tm nas relaes entre h o m e n s e
mulheres. A adoo de medidas preventivas, como o caso do preservativo, esbarra em
assuntos profundamente arraigados e sobre os quais ainda difcil dialogar, romper
barreiras (especialmente as emocionais), vencer medos, enfim, enfrentar abertamente
uma ameaa real vida de milhares, seno milhes, de homens, mulheres e crianas
em todo o m u n d o . Porm, importante ter clareza que a vulnerabilidade - tanto indi-
vidual quanto coletiva - ao vrus HIV varivel e depende de inmeros determinantes
sociais, econmicos, biolgicos e culturais. Desta forma, a vulnerabilidade feminina ao
HIV necessariamente remete s formas c o m o homens e mulheres se relacionam em
nossa sociedade, a dinmica de poder que perpassa tais relaes e o imaginrio coletivo
em relao aos papis de gnero - que, certamente, constituem importantes variveis
na conformao do atual perfil da epidemia (Pitanguy, 1995).

As abordagens tericas da A i d s e o dilema biolgico X social

No campo das cincias da sade, a AIDS tem se mostrado u m campo frtil para o
(re)desvelamento das complexas relaes entre o biolgico e o social.
Para alm das interaes reconhecidamente produtivas e legitimadas entre as cin-
cias sociais e a medicina, coloca-se, mais do que nunca, a necessidade de se compreen-
der a doena tambm a partir de seu referencial social, cultural e poltico.
O enfrentamento da pandemia de AIDS e os conseqentes enfoques terico-
metodolgicos devem considerar que a distribuio de poder nas relaes entre
h o m e n s e mulheres na maioria das sociedades e, particularmente, os aspectos
vinculados s decises sobre os encontros sexuais entre uns e outras - alm da
a p a r e n t e m a i o r s u s c e t i b i l i d a d e das m u l h e r e s para a d q u i r i r a i n f e c o
heterossexualmente - constituem u m a dimenso complexa que provavelmente
continuar tendo efeitos decisivos na evoluo da epidemia em todas as naes e
grupos sociais (Cceres, 1995).
Neste campo, destaca-se a contribuio que a anlise de 'gnero' trouxe para a discus-
so da sexualidade nas ltimas dcadas, causando, segundo alguns(as) autores(as), u m
impacto revolucionrio, por meio da discusso e da crtica ao determinismo biolgico e
s conexes histricas entre a dominao masculina, a ideologia cientfica e o desenvol-
vimento ocidental da cincia e, em particular, da medicina (Vance, 1991).
Historicamente, a identidade feminina c a condio social da mulher estiveram
referidas a fatores biolgicos, caracterizando, com a ajuda da cincia, a chamada "infe-
rioridade biolgica da mulher" (Giffin, 1991). Com o surgimento da anlise feminista,
posteriormente incorporada discusso terica e acadmica pelo conceito de 'gnero',
a hegemonia das explicaes biolgicas foram sendo substitudas pela nfase na 'cons-
truo social da identidade feminina'. Dentro desta discusso, explicitado o papel
ideolgico da cincia que, via de regra, relegou a questo da mulher esfera do natural.
C o m o bem sintetiza Giffin (1991),
a tese 'mulher uma categoria biolgica' foi substituda pela anttese 'mulher uma
construo social' e, finalmente, pela sntese Os fatos biolgicos foram processados no
nvel do social, que inclui as atividades cientficas que, por sua vez, reforaram os
esteretipos tradicionais que enfatizam os fatores biolgicos'.

As tentativas de se historicizar a sexualidade produziram u m corpo de trabalho inova-


dor para historiadores, antroplogos, socilogos e psiclogos, que passaram a desenvolver
conversaes interdisciplinares incomuns at ento. O pressuposto de que a realidade
uma construo social parte do princpio de que atos fsicos podem ter diferentes signifi-
cados sociais e subjetivos, dependendo de como so definidos e compreendidos em dife-
rentes culturas e perodos histricos. Assim, as construes sociais no s influenciam a
subjetividade individual como organizam e conferem sentido experincia sexual cole-
tiva por meio do impacto das identidades sexuais, ideologias e regulaes (Vance, 1991).
Com o surgimento da epidemia de AIDS, antigos dicotomias/dualismos ressurgem e,
com eles, as tentativas de se. retomarem anlises reducionistas, biologicistas e/ou
comportamentalistas. Muito do conhecimento produzido sobre a AIDS compreende a
sexualidade como uma funo fisiolgica derivada de u m corpo supostamente univer-
sal, ignorando seus aspectos culturais, polticos e histricos. Resultam desta abordagem
pesquisas mais preocupadas em quantificar comportamentos do que em explorar sig-
nificados, confundindo ato sexual com identidade sexual e tratando categorias como
'heterossexualidade' c o m o no-problemticas. Alm do perigo de se repatologizar o
sexo, c o m o n o sculo XIX e incio do X X , q u a n d o a discusso pblica do sexo era
motivada e circunscrita pelos discursos das doenas venreas, da prostituio e
masturbao, o que abriu as portas para uma crescente interveno governamental a
partir da medicina e dos servios de sade (Vance, 1991).
Apesar dessas tendncias, o cenrio da AIDS permanece complexo e contraditrio:
muitas investigaes esbarram na discrepncia entre as ideologias sobre a sexualidade
e as experincias concretas, o que obriga os cientistas a reverem seus modelos.
Muito embora o movimento organizado das mulheres, no Brasil, tenha resistido a
incorporar a temtica da AIDS sua agenda (Barbosa, 1996), mais recentemente a categoria
'gnero' vem sendo gradativamente reconhecida e incorporada nos estudos sobre AIDS, o que
(re)abre novas e promissoras abordagens terico-metodolgicas (Simes Barbosa, 1995).
As cincias sociais, por intermdio das suas categorias explicativas da complexidade
do social, aliadas ao conceito de gnero, tm - e continuaro tendo - u m papel funda-
mental na explicitao de todas as questes apontadas, cruciais para determos essa
epidemia que coloca em risco geraes inteiras de vidas humanas jovens.

A s r e p r e s e n t a e s d e g n e r o n o c o n t e x t o d a e p i d e m i a d e AlDS:
'a doena deles nossa!!!'

Nos ltimos anos, os meios de comunicao vm anunciando, de forma alar-


mista, a crescente infeco de mulheres pelo vrus HIV M a i s precisamente e m
1992, durante a VIII Conferncia Internacional de AIDS, realizada em Amsterdam, o
m u n d o t o m o u conhecimento do risco que as mulheres corriam: "mulheres esto
em risco para a AIDS!, alertam cientistas" (Jornal do Brasil, 19/07/92). De l para c, a
situao se agravou.
Recentemente, o ltimo relatrio do Programa das Naes Unidas para a AIDS nova-
mente alertou para o explosivo agravamento da infeco em mulheres e crianas,
especialmente na Amrica Latina e Caribe. Em So Paulo, entre 1993 e 1994, o nme-
ro de casos se estabilizou entre homens e se multiplicou por cinco entre as mulheres
(JornaldoBrasil, 29/11/96). Mais recentemente, as autoridades de sade brasileiras fize-
ram u m n o v o alerta: "Ministrio alerta mulheres sobre AIDS", c h a m a n d o a aten-
o para o fato de q u e crescem os casos de m u l h e r e s infectadas nas relaes
heterossexuais (Jornal do Brasil, 8/3/97).
Pesquisas recentes mostram que, ao contrrio do que preconceituosamente se su-
punha, so principalmente as mulheres casadas ou com u m nico parceiro as que
mais esto sendo atingidas pela AIDS. Esse perfil feminino da sndrome revela claramente
que as questes de gnero esto presentes desde o incio na determinao e na repre-
sentao da epidemia, mas somente agora se tomam explcitas.
O que houve com uma epidemia que, desde o aparecimento dos primeiros casos,
no incio dos anos 80, foi associada a homens homossexuais e chamada de 'peste gay'?
A construo social e cientfica da AIDS, fortemente marcada por representaes de clas-
se, raa e gnero, deu margem a interpretaes preconceituosas e equivocadas, que
muito dificultaram - e dificultam - as estratgias de enfrentamento. Inclusive, e princi-
palmente, a falsa sensao de que, desta vez, as mulheres estavam excludas. C o m o
afirma Ramos (1992),
preconceitos, estigmas e discriminaes podem aumentar quando massacres lingsticos
do tipo 'a AIDS no discrimina sexo, raa ou cor' so acionados ali onde negros, hispni-
cos e mulheres esto sendo massacrados pelo vrus.
Ao se refletir sobre o impacto e a gravidade do vrus HIV para a populao feminina,
deve-se, necessariamente, considerar os determinantes sociais, econmicos, culturais
1
e de sade que agravam a Vulnerabilidade' das mulheres, especialmente n o atual
contexto mundial, em que as desigualdades econmicas e sociais se aprofundam. Nos
pases pobres, porm, a situao mais grave, na medida em que a insuficincia, ou mesmo
ausncia de polticas sociais compensatrias, agravam a situao de vida das parcelas da
populao que j vivem n o limiar da pobreza. Nesse contexto, a situao da populao
feminina desvantajosa. Alguns dados ajudam a compor u m quadro dessa situao.
Nos Estados Unidos, u m dos pases mais prsperos do m u n d o , dois e m cada trs
adultos que viviam abaixo do nvel de pobreza e m 1983 eram mulheres. Esse fenmeno
- c h a m a d o de 'feminizao da pobreza' - ocorre tanto nos pases ricos quanto nos
pobres, especialmente na ltima dcada, quando o desemprego aumentou considera-
velmente em quase todo o m u n d o (Panos, 1993). N o cenrio da AIDS, assiste-se no s
'pauperizao' da epidemia, como sua feminizao', pois o vrus HIV, como se sabe, se
dissemina mais rapidamente entre os setores sociais de menor poder na sociedade.
Com relao questo reprodutiva, os dados so dramticos e revelam uma situao
preocupante para as mulheres. No Brasil, a idade mdia das mulheres esterilizadas caiu
de 34 para 29 anos (pesquisa realizada pelo IPEA/BENFAM, publicada parcialmente no Jornal
do Brasil, 29/11/96). Entre as mulheres casadas, 40% esto esterilizadas; entre todas as
mulheres que usam mtodos anticonceptivos, apenas 4,4% adotam o preservativo, o
que mostra a pouca tradio de seu uso na cultura brasileira. A opo pela esterilizao,
especialmente em idade to precoce, pode ser u m indicador das dificuldades que as
mulheres tm na negociao de mtodos anticonceptivos que pressupem uma maior
participao masculina (Goldstein, 1992). Alm disso, 51% das jovens entre 15 e 19 anos
que no freqentam a escola j tm filhos. Esse alarmante ndice revela a ausncia de
educao sexual para os jovens e a falta de acesso de significativas parcelas da populao
s informaes contraceptivas e servios de planejamento familiar.
v i d a reprodutiva das mulheres retrata a histria de sua opresso. As plulas de
vinte anos atrs foram, inicialmente, libertadoras da sexualidade feminina. Alguns
anos depois, tornaram-se problemticas: alm das conseqncias adversas para a
sade das mulheres, os homens afastaram-se definitivamente da responsabilidade
pela anticoncepo. Hoje, alguns anos depois das primeiras laqueaduras, j circula
u m a fala que desmonta a magia deste m t o d o radical e irreversvel: o arrependi-
mento, a melancolia pela gestao que no pode mais ocorrer, queixas vagas que
retornam aos consultrios e estudos que revelam novos dados sobre efeitos colaterais.

1
Vulnerabilidade aqui compreendida como um conceito que avalia o risco de infeco para o HIV,
levando em conta o contexto socioeconmico e cultural dos indivduos e suas coletividades (MANN et al.,
1993). Tal conceito muito mais abrangente do que os anteriores - grupo de risco e, posteriormente,
comportamento de risco - pois considera que o risco que uma pessoa tem de se expor ao HIV , alm
de individual, coletivo e, alm de biolgico ou comportamental, cultural e poltico.
Com o passar do tempo, as mulheres constatam que os 'novos' mtodos no alteram
seu status c o m o cidads e trabalhadoras e trazem complicaes para sua sade. Alm
disso, o preservativo, o coito interrompido e a tabela - mtodos que pressupem a
participao masculina-foram isolados. C o m o surgimento da AIDS, as conseqncias
so visveis: os h o m e n s distantes das decises anticonceptivas; as mulheres,
'convencidas' sobre os benefcios dos novos mtodos.
Apesar de o preservativo feminino j estar sendo testado em vrios pases do mundo e
geralmente com boa aceitao pelas mulheres e seus parceiros, sabe-se que seu (alto) custo ser
problemtico para os pases pobres. Alm disso, pesquisas recentes revelam que, mesmo no
interferindo no prazer sexual das mulheres, a maioria dos motivos que estas apontaram para
gostar do preservativo feminino foram centrados na perspectiva masculina (Ray et al., 1995).
Atualmente, a alarmante opo das mulheres, especialmente as pobres, pela
laqueadura e outros mtodos irreversveis parece indicar que estas, n u m contexto de
opes limitadas, conforme Xavier et al., 1989: "pagam o preo das decises tomadas no
terreno da realidade objetiva: as precrias condies de vida, a oferta limitada de mto-
dos reversveis, a falta de assistncia adequada c a ausncia de solidariedade dos compa-
nheiros."
Os questionamentos que hoje so apresentados - e que representam u m desafio
urgente no s para os 'especialistas', mas para toda a sociedade so: como reintroduzir
o preservativo na vida sexual de homens e mulheres? C o m o superar e mudar u m a
histria que, c o m o se viu, tenta impor s mulheres u m discurso e u m conhecimento
que no levam e m conta suas reais necessidades, tanto biolgicas quanto afetivas e
sociais? C o m o trazer os homens para essa discusso de forma que estes assumam uma
participao responsvel e solidria no campo das decises sexuais?

A epidemiologia da A I D S e as mulheres

As estimativas da Organizao Mundial de Sade (OMS) indicam que dos 10 a 14


milhes de pessoas infectadas pelo HIV no mundo um tero de mulheres (OPS, 1990) que
contraram o vrus em relaes sexuais. A O M S prev que, at o ano 2000, 75 a 80% das
infeces pelo HIV tero ocorrido pela via das relaes heterossexuais e que 13 milhes de
mulheres estaro infectadas. Destas, 4 milhes devero estar mortas (Panos, 1993).
No Brasil, a relao homem/mulher vem mudando drasticamente nos ltimos anos.
Em 1985, era de 35:1; em 92,4:1; e, em 96,3:1 (MS, 1996). A transmisso heterossexual
vem assumindo importncia cada vez maior para a populao feminina, sendo respon-
svel, n o perodo 1993/1994, por 54,2% dos casos notificados (Barbosa et a l , 1996).
A AIDS j a principal causa de morte entre mulheres de 20 a 34 anos e m So Paulo.
Segundo estimativas, existiam, em 1994, aproximadamente 420 mil pessoas infectadas
pelo HIV sendo 60 mil mulheres (Barbosa et al., 1996). Se levarmos em conta que o
ndice de subnotificaes no Brasil elevado, possvel que o quadro seja mais grave
do que se pensa e conhece.
Em So Paulo, 45% das infectadas tm u m nico parceiro. O perfil ocupacional das
mulheres infectadas, tanto em So Paulo quanto no Rio de Janeiro, revela que so as
donas de casa e as empregadas domsticas as que mais vm sendo atingidas pelo vrus
HIV (Barbosa et al., 1996; Matida, 1994). Alm disso, registra-se u m a acentuada queda
no nmero de casos entre mulheres com nvel superior de escolaridade e, inversamen-
te, ascenso dos casos entre as de baixa. Longe de ser uma doena de mulheres 'proms-
cuas', ou das trabalhadoras sexuais, a AIDS, hoje, se configura como u m problema da
populao feminina em geral e, particularmente, das mulheres mais pobres, com me-
nor acesso s informaes e servios e menor poder para tomar decises, especialmente
as relacionadas ao sexo.
Mesmo com as evidncias acumuladas de que a transmisso do HIV podia ser hete-
rossexual- sempre foi esse o padro de transmisso no continente africano - os discur-
sos cientfico e social continuaram, at o final da dcada de 80, a representar as mulhe-
res como excludas da epidemia. Quando as evidncias da AIDS em mulheres aumenta-
ram (ironicamente, 'descobriu-se' o grande contingente de mulheres notificadas na
rubrica 'outros'), as especulaes as associaram s prostitutas, usurias de drogas
injetveis e mulheres do Terceiro Mundo. As prostitutas seriam os 'reservatrios de HIV'
que ameaariam a sociedade e, paradoxalmente, as mulheres com u m nico parceiro,
monogmicas e em idade reprodutiva, foram excludas do risco. Com a constatao-
tardia - de que este contingente de mulheres estava sendo crescentemente atingido,
passaram a representar uma ameaa para as crianas, que poderiam nascer infectadas.
C o m o aponta Carovano (1991),
Tanto 'mes' como 'putas' so definies baseadas em seus relacionamentos
com outros, o que reflete as necessidades de homens e crianas, deixando mar-
gem para que as mulheres sejam tratadas ou como uma 'preocupao' ou como
uma'ameaa' para os outros.

A construo cientfica de u m modelo de epidemia que ignorou desde o princpio


seus determinantes sociais e culturais teve e tem srias conseqncias nas estratgias
de enfrentamento. At hoje, pouca ateno e recursos tm sido destinados preveno,
pesquisa e tratamentos voltados para as mulheres. O s cientistas constatam que elas
esto morrendo cada vez mais, apesar dos avanos no tratamento da doena. O tempo
de sobrevivncia das mulheres com AIDS menor do que o dos homens; nelas, a doena
mais letal. U m a das hipteses trazidas tona a demora na procura de servios
mdicos Jornal do Brasil, 8/5/97). A situao das mulheres, especialmente n o Terceiro
Mundo, grave, pois, como afirma Panos (1993).
ainda hoje, no incio dos anos 90, as opes das mulheres - sobretudo aquelas relacio-
nadas s posturas sexuais - esto sujeitas a coeres poderosas e profundamente
enraizadas. A conscincia do perigo que o vrus representa para a sociedade como um
todo leva agora o foco das atenes para as limitaes sofridas pelas mulheres no
espao de suas relaes sociais.

A vulnerabilidade feminina diante do HIV

A vulnerabilidade feminina ao HIV/AIDS envolve fatores biolgicos - que adquirem


especificidades n o corpo feminino - e relaes sociais, que determinam, em ltima
instncia, o poder das mulheres no s para se proteger da infeco c o m o para influir
nas decises polticas que envolvem a destinao de recursos para pesquisas relaciona-
das a sintomas, tratamentos e vacinas. Como bem apontam Galvo & Parker (1996):
A vulnerabilidade das mulheres frente ao HIV/AIDS e o impacto da epidemia nas suas
vidas tm sido colocados como uma questo secundria - cercada, quase sempre, pelo
silncio e descaso tradicionalmente associados com a sexualidade e a sade femininas.

Biologicamente, as mulheres esto sujeitas a doenas especficas de rgos genitais,


c o m o doena plvica, endometriose, tumor uterino, cncer cervical; outras, a u m a
incidncia maior de algumas doenas (infeco do trato urinrio, cncer de m a m a e
infeco por papilomavrus) e o sofrimento de srias conseqncias decorrentes de
problemas comuns, c o m o gonorria e clamydia, por exemplo. As mulheres, de u m a
forma geral, morrem muito de complicaes associadas gravidez e doenas dos rgos
reprodutivos. Se, no campo das Doenas Sexualmente Transmissveis (DST), sabe-se
que existem especificidades entre homens e mulheres, inclusive na apresentao de
sintomas, verifica-se, ainda, que as informaes sobre a infecco pelo HIV nas mulhe-
res no so suficientes. Pode-se supor tambm que o aborto, prtica criminalizada e
clandestina e que u m indicador de insegurana n o controle da fecundidade, aumenta
as chances de infeco pelo HIV das mulheres, tendo em vista as condies precrias em
que so realizados nos pases latino-americanos.
Alm disso, as queixas freqentemente relacionadas ao H I V - c o m o cansao, perda de
peso, apetite e outras - so interpretadas, pelos mdicos e pelas prprias mulheres, como
de origem psicossomtica e/ou relacionadas ao stress, e no ao H I V (Denenberg, 1990).
Os poucos estudos realizados com mulheres apontam que o risco de se infectarem
em relaes sexuais desprotegidas maior que do que o dos homens, provavelmente
em funo da conformao anatmica de seu aparelho genital (Panos, 1993).
No campo das pesquisas relacionadas a tratamentos e drogas, as mulheres tm sido
discriminadas. Em 1989, o Laboratrio Burrougs-Wellcome admitiu que o AZT causava
cncer nos rgos genitais de ratas (Banzhaf et a l , 1990). Alm disso, as mulheres foram
mantidas parte de muitas pesquisas c o m drogas teraputicas, devido aos elevados
custos financeiros envolvidos n o potencial risco fetal de muitas drogas. Isto impede
melhores estudos - no s os relacionados com os cnceres ginecolgicos prprios da
infeco pelo HIV como das funes endocrinolgicas, do ciclo menstrual, dos mto-
dos anticonceptivos e outros.
Portanto, a rpida disseminao da epidemia de HIV/AIDS entre as mulheres brasilei-
ras no pode ser dissociada da falta de responsabilidade que perpassa o desenvolvimen-
to de programas integrados de ateno sade da mulher no Brasil.
A luta empreendida pelas mulheres organizadas, nas ltimas dcadas, para a implan-
tao de servios de sade integrados e que abranjam a integralidade de sua sade, espe-
cialmente as questes relacionadas sade reprodutiva (de maneira a atender de forma
mais efetiva os problemas associados desigualdade social e econmica e generalizada
negao dos direitos reprodutivos e sexuais), resultou, em 1983, na criao do PAISM.
Porm, como atesta Costa (1992), a qualidade dos servios de sade disponveis para as
mulheres no Brasil, no sistema de sade pblica, vem decaindo com o passar dos anos -
como ocorre com a qualidade dos servios de sade pblica em geral. Alm disso, uma
necessria integrao entre as atividades de preveno da AIDS e os servios de sade
da mulher tem sido permanentemente sacrificada, na medida em que os programas
de sade da mulher que de fato existem vm deixando de incorporar a AIDS como ponto
significante, ao passo que os programas de preveno de AIDS continuam a se voltar predo-
minantemente para a sexualidade masculina ou para as prostitutas.
Enfim, toda a discusso que envolve a Vulnerabilidade' das mulheres infeco pelo
HIV implica na compreenso das relaes de poder entre os sexos, que levam as mulhe-
res a aceitarem, nem sempre passivamente, o destino para elas traado.

A preveno e o sexo seguro para as mulheres: seguro?

O que p o d e m fazer as mulheres para se proteger da infeco pelo HIV se nossa


cultura confere aos h o m e n s o poder - quase absoluto - sobre as decises sexuais?
Podem as mulheres impor aos h o m e n s o uso do preservativo? Ser realista esperar
que os h o m e n s v e n h a m a assumir suas reponsabilidades e se disponham a experi-
mentar prticas que lhes paream contrrias ao seu prazer e sua prpria 'natureza',
como o sexo no-penetrativo? Poder a fidelidade conjugal deixar de ser u m precei-
to religioso e jurdico em culturas e m que a representao da masculinidade pressu-
pe inmeras parcerias?
Q u a n t o menos poder de barganha tem a mulher, mais difcil , para ela, evitar os
riscos. A o insistir n o uso da camisinha, ou apenas pedir aos seus parceiros que a
usem, muitas receiam estarem colocando e m risco sua relao - o que pode signi
ficar no s a perda de status e segurana emocional, mas, principalmente, o suporte
econmico necessrio sua sobrevivncia. Muitas mulheres com filhos dependen-
tes esto e m situao ainda mais vulnervel. C o m o afirma Panos (1995),
o comportamento humano est enraizado nos fatores sociais e econmicos da vida de
um indivduo. Ainda hoje, no incio dos anos 90, as opes das mulheres - sobretudo
aquelas relacionadas a posturas sexuais - esto sujeitas a coeres poderosas e profunda-
mente enraizadas.

A maior parte dos homens, em diversas culturas ocidentais, considera o sexo com
preservativo desagradvel e desnecessrio, c tenta, de todas as maneiras, evit-lo. Para
muitas mulheres, o medo da infeco pelo HIV menor do que o medo de sugerirem
aos seus parceiros o uso de preservativos (Pearl, 1990). Alm disso, "as mulheres que
tentam introduzir o condom na relao so, freqentemente, percebidas como 'preparadas
demais' para o sexo, desconfiadas da infidelidade do parceiro, infiis ou mesmo infectadas
peloHIV"(Carovano,1991).
A maioria dos programas preventivos destinados s mulheres so dirigidos s trabalhado-
ras sexuais, vistas, conforme referido anteriormente, como "reservatrios de HlV que amea-
am a humanidade". Mais recentemente, novos programas tm sido criados para as mulhe-
res grvidas, o que reflete a preocupao com o crescente nmero de crianas infectadas.
As mulheres em idade reprodutiva so as mais negligenciadas: apesar de serem
relativamente mais bem informadas sobre sexualidade e planejamento familiar, e talvez
mais capazes de fazer escolhas mais maduras sobre seus comportamentos sexuais,
esto em risco crescente para a AIDS. Este o grupo que menos tem recebido ateno: so
as 'boas moas', representadas como assexuadas e que, s quando grvidas, so defron-
tadas com os riscos potenciais de estarem infectadas.
Ironicamente, apesar de serem mulheres em idade reprodutiva, o nico conselho
dado a elas que, ao se perceberem em risco, usem mtodos que evitam a concepo, o
que expe a contradio entre a preveno da doena e o papel reprodutivo da mulher.
Assim, as medidas de preveno que negam o papel reprodutivo da mulher vo ter u m
impacto limitado, bem como os mtodos que contradigam as normas de fertilidade das
sociedades. De acordo com Panos (1993):
O processo de tomada de decises sobre o uso do preservativo (e outros contraceptivos)
est relacionado a um conjunto de influncias sociais, econmicas e culturais que, alm
de muito complexo, sempre voltado para um reforo do perfil materno das mulheres.

Os programas de preveno AIDS dirigidos s mulheres devem ser desenvolvidos em


um contexto de compreenso das barreiras sociais e econmicas que resultam na falta
de poder que caracteriza as mulheres afetadas pela AIDS. Alm disso, devem contar com
a participao das mulheres-alvo na definio de todos os estgios das polticas e progra-
mas que esto sendo desenvolvidos pois, como adverte Berer (Panos, 1993),
as escolhas e prioridades das mulheres precisam encontrar eco junto aos responsveis
pelas polticas pblicas. Se as mulheres no falam nem agem no sentido de se fortalece
rem(...) nossos interesses sero esquecidos ou sero submetidos aos interesses do homens.

Por fim, resta questionar e re-pensar o modelo de 'sexo seguro', surgido dos grupos
homossexuais americanos e que tem sido amplamente utilizado nas campanhas
educativas em AIDS, com forte apelo proteo do corpo e responsabilidade mtua,
alm da tentativa de erotiz-lo. Porm, sero essa estratgia e esse discurso adequados
para as mulheres? O que 'sexo seguro' para elas? A histria da sexualidade feminina
sempre remeteu para o 'sexo inseguro': o medo da gravidez indesejada, do aborto, do
estupro, do parto inseguro e em precrias condies etc. Alm disso, a temtica das DST
nunca esteve presente c o m o u m a preocupao, a no ser com as prostitutas. O s h o -
mens, nos seus papis sociais de 'protetores' da famlia e da prole, no se admitem como
'trasmissores de doenas' para a esposa/me.
Como, ento, se coloca a discusso do sexo seguro - que pressupe dilogo e confiana
mtuos - em uma cultura que no discute sexualidade, afeto e prazer; e em que o sexo
circunscrito ao m u n d o privado? Ser, alm disso, que oleitmotivdo sexo seguro - uso do
preservativo emtodosos encontros sexuais, independentemente do nmero de parcerias (e
que supe u m acordo tcito e silencioso sobre as inmeras parcerias) - o que desejam as
mulheres nas suas relaes afetivas/sexuais? Cremos que no. E m nossa pesquisa
com mulheres de baixa renda (Simes Barbosa, 1993a), constatamos que as entrevistadas,
embora associem em sua maioria o sexo seguro preveno de doenas, especialmente a
AIDS, O atribuem fidelidadedo companheiro.Porm,quase nenhuma confia nessa fidelidade:
"homem assim, impulsivo, no se controla".Poucasconseguem discutir com o companheiro.
A sada, para algumas mais temerosas, aconselhar o parceiro a usar a camisinha com as Outras'.
Porm, isso tem um custo emocional alto para as mulheres, como ilustra o seguinte depoimen-
to acerca da infidelidade do marido: "Eu preferia no saber Eu no quero, porque a verdade di
e eu tenho medo, ento. Eu no tenho estrutura suficiente pra suportar certas coisas."
Ser, ento, que devemos insistir no sexo seguro tal como est colocado? No seria
esse o momento de se investirem uma transformao mais profunda das relaes entre
os sexos? Devemos optar por uma linha mais 'pragmtica' de ao, ou investir nossos
esforos em transformaes e utopias? O discurso feminino aponta, nos parece, para o
segundo caminho. As mulheres continuam a desejar o amor-companheirismo, a des-
peito de todas as transformaes ocorridas em seu m u n d o produtivo-reprodutivo.
Todas essas indagaes nos apresentam o desafio de re-pensar no s as estratgias
preventivas, mas tambm a produo de conhecimentos sobre o m u n d o reprodutivo-
amoroso das mulheres que lhes proporcione maior visibilidade social.
Mais recentemente, vem-se colocando a necessidade - urgente e inadivel - de
incluso dos homens heterossexuais nas agendas de pesquisa e programas preventivos.
C o m o aponta u m a pesquisadora (Panos, 1993),
Para as m u l h e r e s , as m e n s a g e n s a t i n g e m apenas u m a m e t a d e d o casal. Q u a l q u e r
p r o p o s t a c o m o objetivo d e prevenir a t r a n s m i s s o h e t e r o s s e x u a l d o HIV d e v e
dirigir-se aos h o m e n s e s m u l h e r e s . Mas, na maioria das vezes, os h o m e n s heteros-
sexuais n o t m sido c o n s i d e r a d o s p b l i c o - a l v o . Eles p o d e m estar s e n d o c o n t e m -
p l a d o s p o r tabela, pelo fato d e serem parte de u m casal, o u , q u e m sabe, p o r q u e
t r a n s a m c o m prostitutas, m a s so p o u c a s as iniciativas q u e t e n t a m atingir os
h o m e n s d e u m a forma m a i s geral (...).

Constata-se, hoje, u m a crescente preocupao de pesquisadores e profissionais da


sade que atuam n o campo da sade reprodutiva com essa temtica. E, tambm, uma
d e m a n d a aos servios de sade - ainda incipiente e desorganizada - de h o m e n s
interessados e m discutir assuntos referentes a sade e papis sexuais. Alguns autores
apontam para u m a 'crise da masculinidade' (Nolasco, 1993). possvel supor que
sim, na medida e m que o prprio processo de transformaes econmicas e produ-
tivas e m curso est gerando profunda insegurana, especialmente n o que se refere
vinculao ao emprego. Isto, certamente, est tendo - e ter - repercusses n o hist-
rico papel masculino do 'provedor familiar' (Giffin, 1994). Cabe, portanto, u m inves-
timento e m pesquisas e programas que potencializem e transformem essas questes
na direodemudanas qualitativas nas relaes entre os sexos.

As mulheres e a luta pelos direitos reprodutivos no contexto


da epidemia de AIDS

A epidemia de AIDS recoloca em pauta a longa e histrica luta das mulheres por seus
direitos reprodutivos. Afinal, quanto mais mulheres e m idade reprodutiva ficarem
infectadas e mais crianas desenvolverem AIDS, a procriao pode ficar sob u m controle
estatal ainda maior. Se todos praticarem o 'sexo seguro', no nascero mais bebs.
Ento, as mulheres podem ser o prximo - mas no o primeiro - grupo testado com-
pulsoriamente para o HIV c o m a presumvel separao entre as infectadas e n o -
infectadas (Simes Barbosa, 1993b).
No Brasil, como em outros pases, a maioria das mulheres est sendo diagnosticada-
muitas vezes compulsoriamente - para o HIV quando grvidas, ao procurarem assistn-
cia pr-natal. Como o teste anti-HIV vem sendo introduzido como rotina de pr-natal em
grande parte dos servios pblicos de sade, ao menos nos grandes centros urbanos, a
maioria recebe a notcia no meio de uma gravidez. Segundo pesquisa realizada em duas
maternidades pblicas do Rio de Janeiro, o nmero de gestantes que no sabiam que
estavam contaminadas cresceu 200% em trs anos (entre 1992 e 1995). Alm disso, o
percentual de gestantes infectadas passou de 0,9% para 2,7% no mesmo perodo (Jornal do
Brasil, 06/10/90). A maior parte dessas gestantes confirma o atual perfil de mulheres
infectadas: so mulheres casadas, monogmicas e sem noo de seu risco e de como
se contaminaram.
No Pas, j se Ouviram' falas neste sentido. Em 1993, o Ministrio da Sade anun-
ciou campanha para a 'preveno' da gravidez em mulheres infectadas. Posteriormente,
u m renomado mdico obstetra carioca, professor universitrio, se posicionou publica-
mente favorvel ao aborto obrigatrio para mulheres soropositivas. Posies como es-
sas, que podem parecer isoladas ou pessoais, expressam a viso de importantes segmen-
tos sociais, inclusive de formuladores de polticas pblicas.
Em relao ao sexo seguro, fundamental lembrar que gravidez e esterilizao no
protegem as mulheres de nenhum tipo de infeco: esses eventos importantes na vida
das mulheres sinalizam mudanas que requerem diferentes tipos de proteo e novas
maneiras de se pensar a segurana no sexo. A gravidez u m momento especialmente
vulnervel para as mulheres: h u m futuro beb a proteger, assim c o m o a prpria
mulher. A amamentao, por sua vez, tanto para as mulheres soropositivas como para
as que suspeitam ter o vrus (especialmente quando a mortalidade infantil elevada),
torna-se questo extremamente problemtica (Berer et al., 1995).
Muitas mulheres no se incluem na categoria das que procuram u m servio de plane-
jamento familiar ou matemo-infantil: so as esterilizadas; as que j passaram a menopausa;
ou as que no tm filhos. Os servios de preveno de cncer uterino poderiam ser o espao
para se abordar essas mulheres, mas so insuficientes na maioria dos pases pobres, sem
falar nas dificuldades de acesso aos servios, mesmo nos grandes centros urbanos.
Estas teses, relativamente pouco discutidas, somente emergiro se asDSTo HIV e a AIDS
forem inseridos na discusso da gravidez e da anticoncepo: para as mulheres - mas no
somente para elas - o conceito de segurana em relao s DSTe Aros, que significa a preven-
o de doenas que ameaam a vida, tambm relevante para a gravidez e a anticoncepo.
Somente quando todas essas questes estiverem juntas ser possvel comear a
compreender o significado de suas interconexes e o que deveria ser uma 'abordagem
integrada da sexualidade e da sade e os direitos reprodutivos'. Desta maneira,
crescentemente, as definies de sexo seguro se associam aos direitos, o que significa
colocar o debate no campo das lutas jurdica e poltica.
Mas no s. Praticar o sexo seguro, no por u m ms ou u m ano, mas por toda a vida,
muito mais difcil do que muita gente julga querer ou poder. A reside a complexidade
da questo que nos coloca o desafio de compreender como essas teses se configuram no
mbito das subjetividades e das culturas. H que se ressaltar que homens e mulheres, ao
longo de sua trajetria histrica, sempre aceitaram conviver com riscos, consciente-
mente ou no. Entre as mulheres na luta pelos direitos reprodutivos, houve u m enten-
dimento, nas ltimas dcadas, de que, quando elas controlarem sua fertilidade, tero
mais poder e direitos nos seus relacionamentos afetivos e sexuais. Hoje, constatamos
que o "buraco mais embaixo". O uso de conhecimentos sobre a anticoncepo certa-
mente permite maior controle sobre a fertilidade, mas isso no significa, necessariamen-
te, que as mulheres tenham controle sobre sua fertilidade ou sobre os outros aspectos de
suas relaes (Berer et al., 1995). Forem, indiscutvel que, quando o controle da fertilida-
de reduzido a informaes tcnicas e uso de mtodos, sem se discutirem a sexualidade
e as relaes de gnero, as mudanas so mais limitadas, e o poder menos ameaado
ou, at, no ameaado. Falar sobre sexoeameaador Educar os jovens para o sexo visto como
ameaador. Mudar as prticas sexuais c torn-las mais seguras percebido c o m o amea-
ador. ameaador para a autoridade masculina, parental, religiosa, enfim, para todos
aqueles que decidiram o que certo e o que errado para a sociedade como u m todo.
Ainda h muito que avanar. Tem havido sucessos, sem dvida, mas ainda h mui-
tos problemas e dificuldades. Quinze anos de epidemia u m tempo curto e valores e
crenas so muito profundos. Afinal,
Essas doenas (sexualmente transmissveis) sempre foram vistas como resultado de
uma sexualidade socialmente inaceitvel, de uma falncia moral do controle do indiv-
duo sobre seus impulsos e como uma punio pela transgresso de normas societais.
(Gostinetal,1995)

Enfim, a epidemia de AIDS toca em aspectos essenciais da vida humana: a sexualida-


de, a moral, as relaes de gnero, as relaes de poder, as relaes c o m a vida e com a
morte. Sem que se trabalhem todas essas temticas ser impossvel sensibilizar para as
mudanas que o controle da epidemia exige.
Se ns, mulheres, fomos capazes de enfrentar e criar alternativas para a preveno
do cncer, para a contracepo, para a gravidez e o aborto, tambm podemos e devemos
nos tomar conhecedoras dos problemas que a AIDS est - e estar cada vez mais - trazen-
do. Somente assim se poder enfrent-la e criar as respostas necessrias nossa auto-
proteo. Esse mais u m desafio que temos de enfrentar. Possivelmente no o ltimo.
Certamente, u m dos mais graves nossa sade e nossas vidas.

Referncias Bibliogrficas

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PARTE IV

Servios de Sade
16

Direito Sade ou Medicalizao da Mulher?


Implicaes para a avaliao dos servios de
sade para mulheres
Lynn D. Silver

Introduo

Existem duas grandes vertentes de preocupaes tico-polticas na construo da


sade pblica hoje em dia. A primeira visa a aumentar a eqidade e qualidade de vida,
garantindo o direito de todo cidado sade e implica tanto na construo de condi-
es de vida que promovam a sade como na universalizao do acesso a servios de
sade de boa qualidade (Brasil, 1988). A segunda vertente chama a ateno para os
perigos de tornar a sade u m mero objeto de consumo, que comercializa e medi
caliza a vida e a sexualidade das pessoas, expondo-as a riscos e custos desnecessrios
e d i m i n u i n d o sua autonomia e integridade (Illich, 1976; Barros, 1991).
Pese a estas preocupaes as tendncias recentes de organizao dos sistemas de sade
e as polticas fomentadas em diversos pases, de promover a privatizao - com fins
lucrativos - dos sistemas de sade, contexto no qual tende a florescer a mercantilizao
da sade. Esta tendncia persiste, pese as pesquisas que demostram a maior eficincia
de sistemas pblicos ou gerenciados no interesse pblico, ainda quando se prestam
servios por meio de organizaes de direito privado. Ainda h uma longa histria de
polticas que tornam a sade e a vida reprodutiva objetos de metas demogrficas e
econmicas aos quais os direitos individuais so subordinados.
Talvez seja no campo da sade da mulher que estas preocupaes potencialmente
contraditrias tm sido expressas com mais nitidez. Neste trabalho, refletimos sobre as
implicaes destas inquietudes para a avaliao dos servios e tecnologias de sade que
se denominam 'para mulheres'.
A 'sade da mulher' e o conceito de integralidade

U m desafio inicial para a avaliao dos servios de sade 'para mulheres' ter clareza
sobre o objeto do qual estamos falando. Tradicionalmente, os servios de sade 'da
mulher' tm sido entendidos c o m o aqueles que atendem s necessidades de sade
relacionadas reproduo h u m a n a - atendimento pr-natal, ao parto e puerprio,
anticoncepo e, quando muito, deteco precoce de cncer nos rgos reprodutivos
ou tratamento de infertilidade. Esta abordagem, se ajudou a aumentar o acesso a estes
servios essenciais, tambm propiciou uma fragmentao no atendimento mulher,
cujos problemas de sade no se limitam aos rgos reprodutivos. A maioria dos conta-
tos das mulheres com o sistema de sade acontece por problemas agudos ou crnicos
de ordem no-reprodutiva. Esses contatos, geralmente, so Oportunidades perdidas'
para o atendimento s necessidades reprodutivas. Por outro lado, os servios de sade
'da mulher' mantm-se igualmente cegos quando deixam de apreciar as outras neces-
sidades da mulher como pessoa - problemas como hipertenso arterial, violncia do-
mstica ou o cncer. Pode-se argumentar que este problema no limitado a elas: a
organizao do sistema de sade como u m todo sofre de falta de integralidade tanto no
atendimento aos homens como s mulheres. No entanto, no atendimento a elas que
os servios de sade estabelecem estruturas c mecanismos especficos de parcializao
do cuidado, tornando esta falta de integralidade mais patente e suscetvel de crticas.
Quando se analisa o quadro de sade, detecta-se que, com a transio demogrfica e
epidemiolgica, h uma crescente carga de morbidade e mortalidade entre as mulheres
no relacionada reproduo (Figura 1). O Banco Mundial (1993) estimou que a porcen-
tagem de anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (DALYS), devido aos problemas
de sade reprodutiva em mulheres de 15-44 anos, era de apenas 32% na Amrica Latina
(11% DST, 7% HIV e 14% materna) e 28% na sia, comparada com 60% na frica.

Figura 1 - Distribuio da carga de doena em mulheres de


15-44 anos, ajustados por incapacidade ( D a l y s ) ,
em pases demograficamente em desenvolvimento
- 1 9 9 0
N o Brasil, os padres de mortalidade indicam claramente novos desafios para o
atendimento mulher, embora a ateno ao ciclo gravdico puerperal ainda seja a
primeira causa de internao hospitalar (Tabela1). O quadro de mortalidade anterior-
mente apresentado demonstra o quanto esto-se modificando as necessidades de sa-
de da mulher brasileira. Em 1992, as doenas cardiovasculares mataram 70 vezes mais
do que a gravidez e o parto. As chamadas 'causas externas'- que incluem acidentes e
violncia - nove vezes mais. O u seja, embora as taxas de mortalidade materna no Brasil
permaneam escandalosamente altas, h problemas ainda muito mais graves que pre-
cisam ser resolvidos.
O programa de Ateno Integral Sade da Mulher (PAISM) adotou u m a atitude
revolucionria ao enfocar a sade da mulher de forma integral, fugindo da tradicional
abordagem limitada sade reprodutiva. N o entanto, tm-se enfrentado enormes
dificuldades para implantar, efetivamente, a integralidade dentro de u m sistema de
sade que tende a seguir u m modelo de especializao na clnica e verticalidade dos
programas. Alm disso, sua organizao e financiamento precrios no tm permi-
tido u m desempenho satisfatrio tanto no atendimento s necessidades bsicas n o
ciclo gravdico-puerperal, quanto no atendimento a outros problemas de sade.
Portanto, o primeiro desafio para a avaliao de servios de sade para m u -
lheres - e u s a m o s o termo 'para' mulheres, i n c l u i n d o o c o n j u n t o de servios
prestados mulher, sejam ou n o assim rotulados - consiste e m apreciar se esto
atendendo, nas aes de promoo, preveno e recuperao, todo o elenco de proble-
mas de sade que afetam a mulher e se conseguem integrar essa oferta ao mbito de
atendimento individual ao ser humano.
Q u a n t o avaliao do contedo dos servios e m si, a tradicional trilogia proposta
por Avedis Donabediam como objeto de anlise para apreciar servios de sade mantm
sua relevncia. Consiste e m estudar as "estruturas" - fsicas e de recursos humanos e
materiais, que possam permitir a prestao de servios; os "processos"-interaes que
efetivamente acontecem entre prestadores c usurios, em relao a algum modelo
normativo, seja do campo das cincias mdicas ou no da tica; e, por ltimo, os "resul-
tados" - mudanas no estado de sade atribuveis a assistncia recebida, sejam elas de
ordem fsica, fisiolgica ou psicolgica.
Tabela 1 bitos em mulheres brasileiras maiores de 15 anos de idade em 1980 e 1992 e
internaes hospitalares em novembro de 1995, por grandes grupos de causas

Fonte: Brasil. Ministrio da Sade, 1995, 1996.


O acesso da mulher aos servios de sade

A expanso do acesso aos servios de sade, nos nveis primrio e hospitalar, tem
sido u m dos principais objetivos das reformas sanitrias das ltimas dcadas no Brasil
e n o m u n d o . Coerentemente c o m este objetivo, os indicadores de avaliao mais
utilizados diziam respeito a existncia de infra-estrutura fsica e h u m a n a e fre-
qncia de utilizao ou cobertura dos mesmos. O s dados de sucessivos inquritos
populacionais demonstram importante progresso na cobertura de servios bsicos de
sade reprodutiva e n o nmero de contatos da populao c o m o sistema de sade.
Em 1992, foram realizadas 13 milhes de internaes hospitalares pelo Sistema nico
de Sade (SUS) - mais de nove para cada 100 habitantes (Barros; Piola & Vianna, 1996).
Ressalte-se que os servios ambulatoriais so amplamente utilizados pela populao,
embora o nmero mdio de consultas por habitante ainda seja baixo. As mulheres so os
usurios mais freqentes dos ambulatrios. Pesquisa de demografia e sade, realizada em
1996 (Bemfam, 1997), documenta essas tendncias para a gravidez e parto.

Tabela 2 Distribuio dos nascidos-vivos nos ltimos cinco


anos por cobertura de servios durante a gravi-
dez. Brasil 1996

Fonte: BEMFAM, 1997.

N o c a m p o de acesso ao planejamento familiar, a m e s m a pesquisa considerou


q u e a necessidade insatisfeita de a n t i c o n c e p o - definida c o m o o n m e r o de
mulheres sexualmente ativas que no fazem uso de contraceptivos e no desejam
ter mais filhos - era de apenas 5,3%. A fonte mais c o m u m de mtodos modernos de
anticoncepo a farmcia, que atende a 35,7% das usurias (que inclui o abastecimen-
to de 88% das usurias de plula e 94% das de injees). Em seguida, surgem o hospital
pblico, c o m 27,5%, e o conveniado, c o m 12,4%. O s centros e postosdesade pblicos
eram a fonte de anticoncepo para apenas 3,1 %. O SUS no pode se eximir de respon-
sabilidade n o uso excessivo de esterilizao feminina, porque o ndice de cirurgias reali
zadas por ele era de 70,9% - 48,9% em hospitais pblicos e 22% em hospitais conveniados.
O u seja, tanto e m planejamento familiar quanto n o atendimento gravidez e ao
parto, a cobertura maior positiva, embora mtodos e procedimentos importantes
para a qualidade das aes sejam esquecidos. Mas, e m contrapartida, o aumento da
cobertura d e procedimentos c o m o a cesariana indica principalmente maior
medicalizao do parto normal e risco de iatrognese. A opo pela esterilizao reflete
em parte a falta de acesso a outros mtodos contraceptivos.
De m o d o geral, quase toda a populao feminina faz algum uso de internao hos-
pitalar e contatos ambulatoriais, com atendimento predominantemente realizado por
mdicos - embora, dependendo da regio do Pas, ainda haja graves problemas de acesso
(arquetipicamente representados pela peregrinao das grvidas procura de uma vaga
para dar luz, ou pelas filas nos ambulatrios e hospitais).
Estes indicadores sugerem que, embora os problemas de acesso persistam, o enfoque
futuro de avaliao precisa incorporar, cada vez mais, os aspectos da qualidade n o
processo de assistncia. Precisamos indagar se esse ato de assistncia contabilizado e
pago c o m os parcos recursos da sade de fato contribuiu para a sade da m u l h e r
usuria d o sistema, ou representou apenas o que poderamos chamar de u m ato de
c o n s u m o simblico' - consultas e internaes desnecessrias, ou de qualidade to
precria que e m pouco ou nada contribuem para a sade. Diversas pesquisas realizadas
nos ltimos anos no Brasil tendem a apoiar a segunda hiptese.

D o processo de atendimento

no interior desse atendimento que se constatam graves problemas de qualidade.


Scochi (1996), avaliando a expanso da rede bsica em Maring, Paran (uma das reas
relativamente prsperas do Pas), entre 1983-1993, documentou graves distores no
contedo do atendimento, pese a existncia de uma boa infra-estrutura sanitria. En-
tre 76 parturientes entrevistadas, 64 (84%) fizeram parto cesrea, 38 marcados c o m
an tecedncia - u m a prtica que aumenta o risco de prematuridade iatrognica. Des-
tas, 20 (15 delas com idade inferior a 30 anos) realizaram laqueadura tubria durante
a cesrea. Embora todas tenham feito pr-natal, apenas 36 foram vacinadas contra o
ttano. Quarenta e oito tiveram o tipo sangneo e fator RL registrados no pronturio
hospitalar; nove, o registro da sorologia de lues. Trinta e trs porcento das parturien-
tes relataram nunca ter feito u m exame de Papanicolau (preventivo) para diagnstico
de cncer d o colo uterino. U m nico nascido morto era u m a criana c o m Sndrome
de Down, filho de me c o m 43 anos. Ela s no fez laqueadura no parto - uma cesari-
ana - porque no dispunha dos R$ 400,00 cobrados 'por fora' para o procedimento no
hospital privado.
Carvalho (1993), analisando o atendimento perinatal dispensado antes de 519 bi-
tos neonatais e a 388 crianas sobreviventes, no Rio de Janeiro em 1986 e i 987, detec-
tou padres semelhantes de falhas. Em apenas metade dos casos o hospital registrava os
exames de pr-natal. Houve u m elevado ndice de cesreas para laqueadura tubria-
23% dos bitos e 33% dos sobreviventes, com 31% das cesreas marcadas com antece-
dncia para os bitos e 53% para os sobreviventes. Identificaram-se nascimentos pre-
maturos iatrognicos por esta causa, cinco dos quais levaram ao bito. Coexistindo
com o uso excessivo da cesrea, documentaram-se casos de bitos neonatais, em que a
cirurgia era indicada e no foi realizada, ou demorou demais. Em 40% dos nascimentos
estudados no foi registrado monitoramento dos batimentos cardacos fetais.
A taxa de cesreas nacional de 36% (BEMFAM, 1997), a mais alta do m u n d o . Nos
partos financiados pelo setor pblico, este ndice cai ligeiramente para 32%, sendo
que existem mais de trezentos hospitais com taxas de cesreas que superam 68%. As
taxas dos estados brasileiros variam entre 50% (Mato Grosso do Sul) e 9% no Amap
(Silver & Holanda, 1996).
O tratamento das doenas crnicas no estudo em Maring foi u m pouco melhor,
embora a tendncia da amostra fosse de captar pacientes com problemas mais graves.
Scochi entrevistou 59 pessoas hospitalizadas (64% eram mulheres). Quase todas esta-
vam em tratamento medicamentoso antes da internao. A maioria relatou ter recebi-
do orientao sobre dieta, mas no sobre exerccios fsicos. As dificuldades de acesso
aos medicamentos eram claras - mais da metade os obteve em farmcias particulares.
A avaliao dos pronturios ambulatoriais demostrou que grande parte estava sem
registros bsicos: dos 29 pronturios recuperados, 17 tinham u m diagnstico; 13, u m
exame fsico; 10, uma histria clnica; 12, registro de peso; 4, registro de altura; e23, de
presso arterial. Apesar disso, a freqncia de utilizao dos servios ambulatoriais era
muito alta: dos 59 pacientes, 29 compareceram at cinco vezes ao ano; 8 receberam entre
seis e dez consultas; e 15 confirmaram freqncia superior a duas por ms. Uma paciente
teve nada menos do que 50 consultas mdicas no curso de 1995. Da concluir-se que o
aparato assistencial medicaliza a vida do paciente, fazendo-o passar parte significativa do
seu tempo em estabelecimentos de sade. No entanto, no lhe proporciona os elementos
que possam oferecer-lhe maior autonomia, como garantia de medicamentos e orienta-
o para atividade fsica. Ao mesmo tempo, essa excessiva concentrao em torno de
poucos usurios torna os servios menos acessveis aos demais.
Esta situao em Maring parece caracterizar as distores que podem surgir n o
contexto da expanso do direito sade dentro do u m sistema que faz u m uso
iatrognico e inapropriado das tecnologias mdicas disponveis. Houve, sem dvida,
u m aumento da disponibilidade de servios mdicos. No entanto, os procedimentos
bsicos e custo-efetivos, tais como deteco de sfilis congnita ou sensibilizao a Rh,
ou orientao de hipertensos para exerccio fsico, no esto sendo postos em prtica,
ao mesmo tempo em que procedimentos agressivos e geradores de iatrogenese, como
cesarianas sem indicao mdica e esterilizao em mulheres jovens, so empregados
em escala macia. Na medida em que o atendimento sade da mulher olha cada vez
mais para as doenas crnicas que hoje lhe acometem, qual ser o modelo de ateno
adotado? U m a escravizao de poucas aos servios de sade acompanhada da excluso
de muitas? O u uma busca para manter as mulheres autnomas e ativas, pelo uso da
educao e de tecnologias apropriadas?

Medindo os resultados da assistncia mulher

Donabedian (1984) define resultados da ateno mdica como mudanas no estado


de sade atual e futuro atribuveis assistncia anterior. O estudo da evoluo dos
indicadores de sade da mulher no Brasil leva a uma mistura de satisfao e amargura.
Satisfao, porque, sem dvida, constatam-se tendncias histricas de declnio de
mortalidade materna e outras causas evitveis. Amargura, porque os nveis atuais ainda
esto m u i t o aqum daqueles de outros pases c o m graus de desenvolvimento
socioeconmico semelhantes - demostrando, mais uma vez, que o preo das enormes
ineqidades da sociedade brasileira pago anualmente em vidas humanas. Ainda existe
muita dvida sobre que parcela dessa melhoria pode ser atribuda assistncia mdica. A
acentuada reduo da prevalncia de m nutrio materna (BEMFAM, 1997), a elevao pau-
latina do nvel de educao e do acesso a gua, esgoto e moradia, alm da reduo da
fertilidade sem dvida contriburam de forma importante para o aumento da expecta-
tiva de vida feminina e para a reduo da mortalidade materna constatada nos ltimos
anos. A existncia de altos ndices de morte por doenas consideradas 'sentinelas'
(Rutstein et a l , 1976) como cncer do colo uterino, morte materna e hipertenso suge-
rem a existncia de graves falhas de resolutividade na rede de servios de sade (Scochi,
1996). Mesmo a expanso da rede de servios municipais e da oferta de profissionais no
vem garantindo u m melhor resultado para as mulheres e seus filhos. A pesquisa de Scochi
em Maring documentou flutuaes e at aumentos na freqncia de mortalidade ma-
terna e sfilis congnita entre 1983 e 1993, ao mesmo tempo em que verificou o aumento
considervel da infra-estrutura sanitria pblica e privada no municpio.
C o m a m u d a n a do enfoque controlista para u m foco centrado nos direitos
reprodutivos e sexuais, vm surgindo novas propostas de indicadores de resultados
para o atendimento sade reprodutiva. U m exemplo interessante a proposta de se
trocarem os antigos indicadores do sucesso ou fracasso de programas de populao
(como queda de fertilidade e aceitao de uso de anticoncepcionais) pelo chamado
'ndice de HARI' (Helping Individuals to Achieve their Reproductive Intentions - e m
portugus, Apoiando os Indivduos para Alcanar suas Intenes Reprodutivas). Este
ndice mede a proporo de usurias que alcanam suas intenes reprodutivas no
perodo de observao, seja a de ter filhos, a de evitar, ou a de espaar nascimentos. U m a
proposta de ndice modificada incorpora, ainda, a medio da proporo de mulheres
que sofrem de morbidade na tentativa de alcanar suas intenes reprodutivas.
Exemplificando: o ndice modificado de HARI seria de 100 menos a proporo de mulhe-
res que tm uma gravidez no-planejada ou no-desejada, ou que padecem de morbidade
significativa relacionada reproduo durante o perodo de observao. Desta forma, o
indicador muda uma perspectiva centrada em metas externas para u m centrado nos
desejos do cliente. O modelo atual ainda no incorpora o problema da infertilidade
adequadamente Gain & Bruce, 1994).
Com o aumento do enfoque no cliente, a realizao de pesquisa sobre a satisfao da
populao tambm vem sendo trabalhada com maior freqncia, embora ainda pouco
em relao especfica com a sade da mulher. Sousa (1996), estudando um municpio
do interior de Minas Gerais em processo de consolidao da rede pblica - em u m dos
poucos estudos de satisfao com base populacional-demonstrou que as mulheres so
usurias mais exigentes, alm de mais freqentes. Embora o nvel geral de satisfao
fosse alto, 75% das mulheres versus 60% dos homens manifestaram insatisfao com
algum elemento do atendimento e apontaram numerosas reas para melhoria. Moura
(1997), estudando a satisfao de usurias de uma maternidade do Rio de Janeiro,
documentou tanto os sentimentos de satisfao e gratido pelo bom atendimento como
a revolta com as dificuldades de acesso, demora, ou atendimento inadequado em ou-
tros momentos e servios. Os estudos de satisfao e viso do usurio demonstram-se
mais interessantes e teis para melhoria de qualidade na medida em que fogem de
medidas nicas e sintticas de satisfao para captar qualitativamente (ou por meio de
observaes mais complexas) as percepes da populao.

Avaliao como ferramenta para transformao

A grande limitao da abordagem donabediana de avaliao de servios de sade


que ela se limita a isso m e s m o - a avaliar. No entanto, o ato de avaliar idealmente
inserido dentro de u m processo de gesto que visa a transformar os servios, melhoran-
do sua qualidade. Para isso acontecer, a forma como se realiza uma avaliao da maior
importncia. Nas ltimas dcadas, tem surgido uma srie de propostas, desenvolvidas
por Deming (1990), Juran & Gryna (1991) elshikawa (1993), entre outros, geralmente
reunidas sob as denominaes de 'gesto' ou 'controle de qualidade total', cuja idia-
fora a de u m a gesto centrada no aperfeioamento contnuo do atendimento s
necessidades do cliente. Estas propostas no sero discutidas aqui, mas constituem
referncias obrigatrias para quem trabalha com avaliao.
A necessidade de introduzir o que Nogueira (1994) chama de "problematizao
pedaggica da qualidade" na equipe de sade aparece claramente no campo do atendi-
mento sade da mulher. Ratto (1997) avaliou o esforo de trs anos para 'humanizar'
o atendimento obsttrico e conseguir que a equipe de uma maternidade pblica do Rio
de Janeiro despertasse para resolver os problemas de qualidade. Ela documenta com
sensibilidade o modesto progresso alcanado e as enormes dificuldades para transfor-
mar a viso dos profissionais da sade sobre o que constitui a qualidade do atendimen-
to mulher e modificar os comportamentos adquiridos ao longo da vida particular e
profissional. Embora tenha identificado avanos, como a aceitao do acompanhante
na rotina do servio, a pesquisa detectou a permanncia de prticas obsttricas prescri-
tas e agressivas, como manobras de Kristellrr e atitudes agressivas com as parturientes
entre muitos profissionais. Demonstrou, tambm, a necessidade de uma orientao
contnua e de envolvimento maior da equipe com o projeto institucional; de condies
de infra-estrutura mais adequadas; e de liderana constante para efetivar as almejadas
transformaes.
O u seja, a experincia demonstra que necessrio no apenas ter boas intenes e
um programa normativamente correto para atender bem a mulher. preciso desenvol-
ver, cada vez mais, a capacidade de gerenciar os servios e de formar profissionais da
sade orientadas a u m a assistncia integral e humana, com eqidade, e sem o uso
abusivo de tecnologias mdicas. Nesse contexto, a avaliao se toma uma entre as vrias
ferramentas indispensveis para alcanar esta transformao.
Alm de ser u m subsdio para a gerncia, a avaliao fornece uma basedeinforma-
o indispensvel para o exerccio efetivo do controle social sobre o sistema de sade.
Sem acesso s informaes, o controle social tende a se converter em u m exerccio
estril. O movimento de gnero precisa utilizar cada vez mais as informaes dispon-
veis de pesquisas e dos prprios registros do sistema de sade para lutar pela melhoria
do atendimento mulher. Hoje em dia, por exemplo, existem dados facilmente dispo-
nveis sobre o atendimento de quase todos os hospitais do Pas, que retratam, com
clareza cristalina, sucessos e desvios no atendimento mulher. No entanto, estas infor-
maes so pouco utilizadas, seja pelos gestores do sistema, seja para o controle social.

Tecnologias e consumo

Alguns entendem que aplicao do termo 'consumo' ao campo da sade representa,


em si, uma mercantilizao das relaes. Em contraposio, receber servios de sade
ou tecnologias , sem dvida, u m ato de 'consumo', sem se constituir esse fato u m
comentrio sobre sua natureza econmica. A produo e consumo desses servios ou
tecnologias podem estar regidos, em maior ou menor grau, pelas regras de mercado ou
pelos interesses sanitrios. No Brasil, embora existam numerosas tecnologias de ex-
traordinria importncia e benefcio social-que possibilitaram a melhoria da sade
da mulher e a possibilidade de planejar a vida reprodutiva - a oferta e utilizao de
tecnologias mdicas m u i t o mais regida pelos interesses de mercado do que por
qualquer viso de interesse sanitrio. Contribuem para esta situao a fraca capacida-
de de regulamentao do Estado; a organizao ainda insuficiente da sociedade civil
para se contrapor hegemonia de fabricantes e prestadores de servios; e os vcios da
formao de profissionais de sade, que, na maioria das faculdades, produzem, anu-
almente, novas geraes de profissionais c o m u m a baixa capacidade crtica para a
incorporao e uso de tecnologias em sade.
Falando das 'sociedades de consumo' e da nsia de produzir que as caracteriza,
Galbraith (1968), citado por Rios (1997) observa:
0 indivduo serve ao sistema industrial, no para abastec-lo com a poupana e o
capital deles resultante; ele o serve pelo consumo de seus produtos. Em nenhum outro
assunto, religioso, poltico ou moral, est a comunidade to elaborada, perita e
dispendiosamente instruda. Especificamente, de modo paralelo produo de bens,
so feitos esforos enrgicos e no menos importantes para garantir seu uso. Estes
esforos enfatizam a sade, a beleza, a aceitao social, o sucesso sexual - a felicidade
em resumo - que resultaro da posse e do uso de um determinado produto (...). Por sua
vez, inevitavelmente, este fato afeta os valores sociais (...).

Rios (1997) complementa, citando novamente Galbraith (1972:159) e outros autores:


Se essa construo observa valores humansticos e ticos, como a no 'coisificao' do
homem, a no violao de valores ambientais, a no discriminao social pelos "estilos
de vida" que so criados, ou a no fomentao do desperdcio e do descartvel, outra
histria, ou no se pe em questo. (...) se produzir preciso, a absoro de toda a
produo pelo consumo constitui necessidade imperiosa para este sistema produtivo.
nem importa muito o que seja produzida, se "gomma, whiskey, carne infetta, amori
carnali ou tabaco," como lembrado por Guido Alpa (1977). O sistema fabricar as
necessidades dos seres humanos a que chamamos consumidores. Afinal, desde quando
'uma sociedade se torna cada vez mais afluente, as necessidades so cada vez mais
criadas pelo processo em que so satisfeitas'.

A anlise do perfil de algumas tecnologias para sade reprodutiva no Brasil tende a


confirmar essa viso da relao de foras. lniciando-se antes do nascimento e estenden-
do-se at a velhice e a morte, a mulher objeto permanente de promoo de consumo
de bens e servios que afirmam visar a promoo da sua sade, beleza, sexualidade e
felicidade geral (Barros, 1991). Quando analisamos essa oferta utilizando os instrumen-
tos do campo da avaliao tecnolgica, percebemos que, alm de u m conjunto de
tecnologias verdadeiramente teis, a mulher , tambm, alvo predileto da venda do
equivalente moderno dacarneinfetta a que Guido Alpa se refere.
Existem vrias situaes. A primeira dos produtos e servios tcnica e moral-
mente podres, para os quais no h evidncia de eficcia e segurana, e que oferecem
riscos s mulheres sem oferecer os benefcios correspondentes. O segundo grupo
composto pelos produtos ou servios que, embora ofeream benefcios reais para
algum grupo de mulheres, so promovidos de forma a expor grande n m e r o de
usurias a riscos desnecessrios. O terceiro grupo formado pelos produtos ou servi-
os que, embora seguros e eficazes q u a n d o produzidos de forma apropriada, so
oferecidos n o mercado c o m u m nvel de qualidade to precrio que sua utilidade
hipottica convertida em novos riscos.
No primeiro grupo, h inmeros exemplos no mercado brasileiro. Recentemente,
a Sociedade Brasileira de Vigilncia de Medicamentos e o Instituto Brasileiro de Defe-
sa do Consumidor (IDEC) analisaram 101 anti-infectivos ginecolgicos disponveis no
mercado brasileiro para atendero grave problema das doenas sexualmente trans-
mitidas e outras infees vaginais. Destes, 49 foram considerados associaes
medicamentosas irracionais, em flagrante violao da normatizao tcnica existen-
te no Pas (Silver & Pizzo, 1996). Em alguns, utilizavam-se substncias cujo uso inter-
no desaconselhado mundialmente. O uso macio destes produtos oferece riscos
desnecessrios e, e m muitos casos, deixa a mulher sem adequado tratamento do
seu problema.
No segundo grupo, encontramos tratamentos como a reposio hormonal na me
nopausa, ou os novos medicamentos para osteoporose (que embora eficazes em deter-
minados grupos de mulheres de alto risco de fraturas por osteoporose, esto sendo
promovidos de forma macia para uso no perodo aps a menopausa em mulheres
saudveis). A menopausa e a anticoncepo oral so particularmente visadas, pois po-
dem levar ao consumo de produtos medicamentosos durante dcadas. Mtodos mec-
nicos c o m o diafragmas, dispositivos intra-uterinos ou capuz cervical, que oferecem
pouco lucro, so pouco utilizados no Brasil. No campo dos produtos hormonais, cons-
tatamos, por exemplo, que entre os anticoncepcionais orais mais vendidos no Brasil
encontram-se os base de desogestrel ou gestodene- produtos cujo uso associado a
uma elevada incidncia de problemas trombticos identificados em pesquisas da Orga-
nizao Mundial da Sade (OMS) e que sofreram restries pelos governos da Alema-
nha e Noruega (OMS, 1995a/b; Carnalletal., 1995). O gestodene, por exemplo, nunca
foi registrado pelo governo americano. Ainda est sendo pesquisado se estes produtos
tm outros benefcios cardiovasculares que justifiquem o maior risco a eventos
trombticos. Estes produtos, no entanto, so promovidos como tendo menor risco
cardiovascular, e no alertam quanto ao problema de trombose.
Esta tentativa de medicalizar a vida da mulher altamente lucrativa e gerou uma
literatura cientfica importante e enviesada, que precisa ser avaliada com olhos crticos.
Segundo a publicao do mercado farmacutico INPHARMA (1997):
Com um valor de US$ 8,5 bilhes, o mercado de produtos endcrinos compreende 6%
do mercado farmacutico mundial. Vendas so maiores para os agentes endcrinos
utilizados para tratar condies crnicas como diabetes e menopausa. (...) O produto
de reposio hormonal ps-menopausa, Premarina (Rm)(American Home Products),
atingiu vendas mundiais de US$749 milhes em 1993; foi o produto endcrino mais
prescrito nos USA em termos de volume. As vendas previstas para o ano 2002 (...) de
Premarin (...) so de US$1250 milhes (...). O crescimento do mercado de osteoporose
deve acontecer seguindo a aprovao de bifosfonatos para esta condio em mercados
maiores (...). O mercado de reposio hormonal deve aumentar at o ano 2000, moti-
vado pelas mudanas na percepo da menopausa.

Novamente, o caso mais flagrante, citado no Brasil h mais de 2 5 anos (Mello, 1971),
do uso excessivo do parto cesariana. Este procedimento, to necessrio nas verdadei-
ras emergncias obsttricas, tornou-se objeto de lucro ou de convenincia para hospi-
tais e mdicos e smbolo de status social pela populao feminina, pese a evidncia dos
seus riscos maiores quando utilizado sem indicao obsttrica real. Enquanto u m m-
dico jamais pensaria em fazer uma apendicectomia apenas por solicitao (e qualquer
conselho de tica condenaria tal prtica invasiva e arriscada), no Brasil considerado
normal que a paciente ou o mdico escolham u m parto cesariana sem nenhuma indi-
cao. Seu uso como principal via de acesso a esterilizao cirrgica, quando h outros
mtodos tanto de anticoncepo como de esterilizao mais seguros, outro exemplo
no qual o sistema da ateno a sade no se importa em expor as mulheres desnecessa-
riamente ao risco de morte, infeco ou outras complicaes. N o campo cirrgico
ginecolgico, histerectomias e perineoplastias so outros exemplos de tecnologias que
fugiram a qualquer controle.
E m u m outro exemplo tragicmico, no fosse verdade, u m a clnica do Rio de
Janeiro faz, sem querer, u m a verdadeira caricatura da promoo da sade, promo-
vendo sua proposta para o atendimento preventivo mulher. A proposta envolve o
uso peridico de u m a imensa lista de testes desde ultra-som abdominal e cervical a
exames dermatolgicos completos. Embora cada teste tenha algum uso real na medi-
cina, o uso indiscriminado em mulheres saudveis levaria, sem dvida, a u m custo
elevado desnecessrio, alm de inmeros resultados falso-positivos e subseqentes
avaliaes c o m tecnologias e cirurgias igualmente desnecessrias para desmentir os
falso-positivos gerados. Esta comercializao da pseudo-promoo da sade da m u -
lher exemplificou a natureza mercantilizada do uso da tecnologia mdica e a perver-
sidade do acesso ao seu c o n s u m o . Em u m a cidade c o m o o Rio de Janeiro, na qual
milhares de mulheres c o m cncer de m a m a no conseguem deteco e tratamento
adequados, promove-se a mamografia para mulheres abastadas jovens. Demonstra
tambm a falta de preparao da classe mdica e da populao feminina para utilizar
estas tecnologias de forma apropriada.
No ltimo grupo, encontramos os produtos e servios que, embora sejam necess-
rios e teoricamente eficazes, chegam usuria de tal forma que sua utilidade real
esvanece. Por exemplo, em 1996 o IDEC, em conjunto com a Fundao Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ) avaliou 16 marcas de testes de gravidez para uso em urina, u m a tecnologia
simples de utilidade bvia. No entanto, a maioria se mostrou tecnologicamente obsoleta,
deixando de detectar a gravidez a partir do primeiro dia de atraso menstrual. Sete
produtos deixaram de cumprir c o m a sensibilidade que eles mesmos declaravam.
Outros produtos, vendidos por preos semelhantes, eram de boa qualidade. Havia testes
de boa e de m qualidade tanto para uso pela mulher em casa como para uso laboratorial.
Uma das marcas dava resultados falso-positivos. Esta falta de qualidade tem conseqn-
cias bvias. Das 25 mulheres entrevistadas, 11 tinham tido resultados falsos negativos
de testes de gravidez, atrasando seus cuidados pr-natais e potencialmente expondo o
feto a riscos. Em outros casos, exames falso-positivos podem levar mulheres a tentativas
de aborto sem sequer estarem grvidas. A falta de confiana nestes produtos leva mulhe-
res e mdicos a procurar testes de sangue mais caros e invasivos (Silver et al., 1996a).
Outro exemplo deste ltimo grupo so os preservativos masculinos, que hoje repre-
sentam (talvez junto com suas novas verses para uso feminino) o mtodo mais seguro
para preveno de transmisso do vrus da AIDS e outras doenas sexualmente
transmissveis. Tendo em vista esse papel essencial, o produto teria de chegar ao usurio
com u m a qualidade impecvel. No entanto, em 1996, o IDEC e a FIOCRUZ tambm avalia-
ram 20 marcas de preservativos masculinos no mercado brasileiro. Oito apresentaram
falhas nos ensaios relacionados segurana. O preo do produto (elevadssimo no
Brasil, entre 40 e 80 centavos por unidade) e o fato de ser distribudo nas farmcias ou
pelo sistema pblico no guardava relao com a qualidade (Silver et al., 1996b). Simul-
taneamente, com a finalidade de facilitar o comrcio entre pases, estava a ponto de ser
oficializada u m a nova norma para o Mercosul que reduzia as exigncias para o produ-
to. Estes resultados esto levando a uma rediscusso das normas vigentes e u m aprimo-
ramento do sistema de certificao de qualidade no Brasil, e mais recentemente, da
norma internacional da ISO. Ainda houve os casos recentes dos anticoncepcionais
Ciclo-21 e Microvlar, cujo uso foi associado gravidez e outros efeitos colaterais. N o
caso do Ciclo-21, somente aps u m longo perodo de denncias e investigaes alguns
lotes do produto finalmente foram retirados de circulao.
Estas situaes, como tantas outras, caracterizam novamente o que poderamos de-
nominar o 'consumo simblico ou fictcio de tecnologia mdica'. A fbrica produz o
produto, ou o profissional, o servio. O mdico prescreve. A consumidora o adquire, por
prescrio ou por automedicao. Gastam-se recursos. A utilizao traz algum resultado.
S que o resultado no aquilo que se esperava - muitas vezes implicando danos sade
e/ou gasto de recursos adicionais. O atual sistema de registro, inspeo e controle de
qualidade de produtos no Pas, bem como da qualidade da assistncia mdica tm se
demonstrado completamente ineficientes para efetivamente proteger contra este tipo de
problema. C o m a integrao econmica regional e o conseqente aumento dofluxode
produtos entre pases, bem c o m o o explosivo e desregulado crescimento do setor de
servios de sade com fins lucrativos, esta situao deve se agravar nos prximos anos.
A avaliao de tecnologias e de sua incorporao e uso pelo sistema de sade e pela
populao feminina constitui sem dvida outro dos principais desafios para a avaliao
da ateno sade da mulher.

D o s critrios ticos para avaliao de servios e tecnologias

Tradicionalmente, na medicina e na avaliao de tecnologias, algumas caracters-


ticas vm sendo procuradas para identificar aquilo que constitui "boa qualidade" em
sade. Donabedian (1990), sinteticamente, descreveu estas caractersticas c o m o os
"sete pilares da qualidade". Estes incluem a eficcia (e a efetividade), a eficincia, a
eqidade, a aceitabilidade ao usurio, a otimizao do uso de recursos sociais e a
legitimidade frente aos valores sociais.
Corra & Petchesky (1994), e m u m a reflexo sobre as propostas de direitos
reprodutivos e sexuais, propem quatro princpios para constituir as bases ticas dos
mesmos. O primeiro o respeito integridade corporal, entendido como o direito de
segurana e controle sobre seu prprio corpo. Integridade corporal inclui tanto
o direito da mulher de no ser alienada de sua capacidade sexual e reprodutiva (por
exemplo, pelo sexo ou casamento forado, (...) negao de acesso a anticoncepo,
esterilizao sem consentimento informado (...) como tambm da integridade de sua
pessoa fsica (por exemplo, liberdade de violncia sexual, do encarceramento domsti-
co, de mtodos anticoncepcionais inseguros, de gravidez indesejada, ou fertilidade
forada, e de intervenes mdica indesejadas). Esta integridade implica no somente
na proteo contra abusos negativos, como nos direitos afirmativos de desfrutar o
pleno potencial do seu corpo para sade, procriao e sexualidade.

Para estas autoras, a integridade "implica tambm na integralidade, em tratar o cor-


po e suas necessidades como uma unidade, e no como colcha de retalhos de funes
mecnicas ou fragmentadas".
O segundo princpio tico por elas citado de respeito pessoa:
Escutar a mulher a chave para honrar sua personalidade moral e jurdica - ou seja,
seu direito autodeterminao. Isso implica em trat-las como atores principais e
tomadores de deciso em assuntos de reproduo e sexualidade. (...) Respeito pessoa
significa que prestadores devem 'levar a srio' os desejos e experincias da mulher. (...)
No caso de anticoncepo significa 'levar a srio' reclamaes sobre efeitos colaterais
(...) e em oferecer um leque completo de opes (...). (Corra & Petchesky, 1994)
No mbito do desenvolvimento de polticas, tratar as mulheres como pessoas sig-
nifica, tambm, garantir a representao e participao de entidades de mulheres nos
foros decisrios.
O terceiro princpio colocado pelas autoras o da igualdade, aplicando-se tanto na
rea de igualdade nas relaes entre homens e mulheres (divises de gnero) c o m o
entre mulheres, por condies como classe social, idade, nacionalidade ou etnicidade
que as dividem. Neste sentido, difere pouco do princpio da eqidade tradicionalmente
empregado na avaliao dos servios de sade. O quarto princpio das autoras de
respeito diversidade-s diferenas entre as mulheres em valores, culturas, desejos
reprodutivos, religio, orientao sexual, condio familiar ou mdica. Defendem a
aplicao universal dos direitos reprodutivos, mas reconhecem que o significado des-
ses direitos variam em diferentes contextos sociais.
Estes princpios propostos para direitos reprodutivos e sexuais tm u m a clara
aplicabilidade mais ampla para sade da mulher em geral. O respeito integridade
corporal, pessoa e diversidade, bem como eqidade, so princpios to relevantes
para os problemas no- reprodutivos como para os reprodutivos e sociais. Eles ainda so
estreitamente relacionados com os princpios mais gerais da biotica de autonomia e
de beneficncia. Existem, de certa forma, duas interpretaes da palavra autonomia. A
mais c o m u m na biotica advm da sua raiz grega: a capacidade de governar a si mesmo,
segundo Pellegrino (1990):
Emana da capacidade dos seres humanos de pensar, sentir, e emitir juzos sobre
aquilo que consideram bom. (...) Entretanto, o processo decisrio autnomo pode ser
obstaculizado por fatos externos como a coero, o engano fsico ou emocional ou a
privao de informao indispensvel.

J nos escritos de Ivan Illich (1976), o conceito de autonomia no se limita a escolha


informada, mas intimamente relacionado capacidade de auto-cuidado do indiv-
duo e da comunidade:
A idia de sade-como-liberdade deve restringir a produo total de servios de
sade dentre limites sub-iatrognicos que maximizam a sinergia entre modos
autnomos e heteronmos de produo de sade. Em sociedades democrticos tais
limitaes provavelmente so inatingveis sem garantias de eqidade (...). Crescente e
irreparvel dano acompanha a expanso industrial em todos os setores. Na Medicina
aparece como iatrognese. Iatrognese clnica quando dor, doena e morte resul-
tam da ateno mdica; social quando polticas de sade reforam uma organiza-
o industrial que gera a ausncia de sade; cultural e simblica quando comporta-
mentos medicamente promovidos e deluses restringem a autonomia vital das pes-
soas, minando sua capacidade de crescer, cuidar uns aos outros e envelhecer, ou
quando a interveno mdica paralisa as respostas pessoais a dor, incapacidade, an-
gstia ou morte.
Como ser a apreciao da legitimidade social que Donabedian (1990) propaga como
caracterstica da qualidade da ateno? Ela depende da incorporao de u m ou outro
conjunto de valores ticos e sociais referentes medicina - entre eles os que constituem
autonomia e beneficncia. Hoje, na sociedade brasileira, existem defensores de valores
muito distintos. Alguns valorizam o acesso universal sade, mas no querem ne-
n h u m a restrio ao poder da corporao mdica ou do complexo mdico-industrial
de definir o que b o m para a populao. J outras defendem a eqidade e o acesso
universal sade, mas qualificam esse acesso buscando limitar o iatrognese e pro-
curando formas de ateno que mantenham a integridade e autonomia das pessoas.
O u seja, procuram efetivar o direito sade sem estabelecer o acesso universal
iatrognese. U m terceiro grupo descarta de vez os princpios de eqidade to valoriza-
dos na carta constitucional e declara o Sistema nico de Sade u m fracasso, visando
a estabelecer u m livre mercado da sade - o usurio que se cuide. A construo (e
conseqente avaliao da ateno sade da mulher) inevitavelmente precisar se
pautar, alm de nos critrios tcnicos tradicionais, em u m a escolha de princpios e
valores orientadores.

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17

Desenvolvimento e Implementao do PAISM


no Brasil
Ana Maria Costa

Comentam-se, aqui, aspectos conjunturais que permitiram o desenvolvimento do


Programa de Assistncia Integral Sade da Mulher (PAISM) pelo Ministrio da Sade.
Faz-se necessrio destacar que o fato de a autora ter sido personagem deste processo teve
seu peso e fica explcito na forma testemunhai pela qual, muitas vezes, as informaes
so apresentadas.
Ao analisar o processo de implementao do PAISM sero pontuados alguns impasses e
desafios, especialmente nos aspectos relativos implantao do Sistema nico de Sade
(SUS). mister assinalar que a possibilidade efetiva de existncia do PAISM, com a conseqen-
te melhora nos indicadores de sade da populao feminina, est condicionada aos avanos
rumo consolidao do SUS. Isto implica na restruturao do modelo assistencial de sade,
processo que envolve situaes muito complexas a serem efetuadas no mbito das trs
esferas de governo - federal, estadual e municipal. Entre as ferramentas a serem utilizadas,
prioritria a criao de instrumentos de gesto e de regulao para o sistema de sade,
aliados ao redirecionamento da lgica assistencial com o efetivo exerccio do controle social.

D o materno infantilismo assistncia integral sade das


mulheres: antecedentes

At o incio dos anos 80, a poltica governamental para a assistncia sade das
mulheres restringia-se ao ciclo gravdico-puerperal - o atendimento ao pr-natal, parto
e puerprio - preconizado pelo Programa de Sade Materno Infantil (PSMI), inspirado
nas recomendaes da Organizao Pan-Americana da Sade (OPAS), pautado pela estra-
tgia da interveno priorizada a grupos de risco ou situaes de vulnerabilidade. Dessa
forma, o PSMI foi criado no final dos anos 60 pela Diviso de Sade Matemo-Infantil da
Secretaria Nacional de Programas Especiais de Sade do Ministrio da Sade - (DINSAMI/
SNPES) e implementado pelas secretarias estaduais de Sade.
Ressalte-se que, quela poca, os programas de sade caracterizavam-se pela
verticalidade, ou seja, a partir da adoo de estratgias e recursos prprios - no mais das
vezes, sem articulaes entre as suas distintas propostas de implementao. O PSMI,
tipicamente direcionado ao cuidado de grupo populacional vulnervel, coexistia com
outros programas destinados ao controle de patologias, sem a conseqente e necessria
articulao entre as suas aes estratgicas.
Nessa ocasio, o conceito de verticalidade com centralizao do sistema foi prati-
cado na radicalidade, caracterizando-se pelo estabelecimento de metas operacionais
para os servios a partir de definies centrais formuladas pelo Ministrio da Sade,
sem qualquer relao c o m as necessidades identificadas por meio de avaliao da
epidemiologia local. Caracteriza-se, ainda, pela vinculao de recursos financeiros
especficos ao cumprimento destas metas. O que significa que os recursos j chega-
vam aos estados e municpios predestinados a determinado uso, no permitindo aos
gestores locais a programao de aes mais adequadas s reais necessidades de sade
de suas populaes.
Na prtica, o resultado desta filosofia foi a segmentao da assistncia sade e o
privilgio da realizao de determinadas intervenes, nem sempre as mais necessrias
s situaes reais de sade. Alm disso, os recursos humanos, tanto no mbito da coorde-
nao como no de execuo, recebiam freqentemente complementaes salariais prove-
nientes destes programas, criando u m evidente constrangimento para a gesto esta-
dual. Tais privilgios estruturam o verticalismo de mando direto da federao sobre os
estados e municpios, estimulando o clientelismo e dificultando a gesto do sistema.
Longe de se constituir em estratgia adequada na implementao do S U S , a
verticalidade programtica, caracterstica marcante da cultura sanitria em nosso pas,
ainda persiste. O exemplo emblemtico disso, embora no exclusivo, o Programa de
Controle das Doenas Sexualmente Transmissveis (DST) e da AIDS que surge e se
implementa com estas caractersticas. O pnico social diante da epidemia da AIDS per-
mitiu, no Ministrio da Sade, o recrudescimento da interveno vertical, na contra-
mo dos princpios da reformulao do modelo assistencial necessrio ao S U S - que
envolve a horizontalizao com base na epidemiologia local da programao de sade,
fundada nos princpios da integralidade e da eqidade.
Ressaltamos, ainda, que outros programas ministeriais, contemporneos ao PSMI,
mesmo oferecendo aes para a assistncia a problemas relacionados s mulheres, no
se articulavam entre si. Exemplificando: o controle de cncer crvico-uterino realizado
pelo Programa de Doenas Crnico-Degenerativas no articulava, na execuo, com o
PSMI no diagnstico do cncer ginecolgico naquelas oportunidades de contato das
mulheres com os servios nas atividades preconizadas para as atendidas no pr-natal.
Desta maneira que se constata que o mesmo grupo populacional figura como 'alvo' de
vrios programas governamentais que so implementados isolados e verticalmente.
Desta forma, a mesma mulher, para acessar os cuidados para sua sade, deve buscar, em
momentos distintos, equipes e pronturios tambm distintos - o que, no mnimo,
irracional pelo ponto de vista da gerncia e, para as mulheres, dificulta o acesso, ao
mesmo tempo em que afasta o servio do projeto da assistncia integral.
Importante salientar que, freqentemente, tanto no campo da promoo, da pre-
veno ou da recuperao, muitas aes propostas e realizadas pelos diversos progra-
mas eram coincidentes ou paralelas. O planejamento das aes oferecidas era realizado
de forma isolada e o desempenho de cada atividade avaliado per se sem qualquer aborda-
gem da eficincia e eficcia para a sade do grupo atendido. Desta forma, freqentemente,
os programas verticais sobrecarregavam estados e municpios c o m u m a burocracia
inconseqente e intil, resultando em baixo impacto nos indicadores de sade.
Na prtica, o significado desta situao de segmentao dos programas de sade
reflete a ausncia de uma viso integral de sade e do indivduo (no caso em anlise, s
mulheres), ao mesmo tempo consagrando a tendncia da especializao nas profisses
mdicas. A adoo destas lgicas na organizao dos servios compromete resultados de
impacto sobre a sade da populao atendida. Nas estruturas gestoras do Ministrio da
Sade e das secretarias estaduais era evidente a ausncia de integrao das equipes
responsveis pelos distintos programas. De modo geral, tais setores esto pautados por
uma abordagem restrita a partir de enfoque embaado sobre os verdadeiros problemas
de sade - institucionais e epidemiolgicos - a serem enfrentados. Por outro lado, suas
estratgias de interveno, baseadas em normas e parmetros ministeriais rgidos, ga-
rantiam o desempenho a partir dos objetivos dos programas, raramente coincidentes s
necessidades dos servios e populaes atendidas.
Para os servios, esta situao manifesta-se na irracionalidade e no paralelismo das
aes de sade oferecidas populao. Isto se expressa nas formas de sua organizao,
distribuio da oferta de atividades, equipe e horrios de atendimento, entre outras. As
vtimas deste processo, sem dvida, so os usurios dos servios, que recebem uma
assistncia compartimentada, desqualificada e, no mais das vezes, ineficaz. Em linhas
gerais, foi muito baixo o impacto epidemiolgico destes programas, exceo daqueles
voltados ao controle das doenas infecciosas, prevenveis por imunizao.
No que diz respeito especificamente temtica reprodutiva e ao controle da
fecundidade, a dcada de 70 assistiu a u m amplo e vigoroso debate sobre as polticas
demogrficas, polarizadas entre os pr e os anticontrolistas. Isto repercutiu, imobili-
zando as tmidas e equivocadas iniciativas do Ministrio da Sade sobre a incorporao
de aes de planejamento familiar no PSMI. A revitalizao do debate sobre a temtica
da populao se deu pelo alarde em torno da exploso demogrfica. O crescimento
demogrfico - a princpio apresentado c o m o causa de desenvolvimento - posterior-
mente passa a ser responsabilizado pela degradao ambiental. N o entanto, agora, a
distncia histrica destes argumentos j permite constatar que os problemas de desen-
volvimento ou do meio ambiente no esto resolvidos, apesar da grande reduo das
atuais taxas de crescimento populacional e da fecundidade.
C o m o referncia setorial para anlise das condies que possibilitaram a formula-
o do PAISM, O processo da reforma sanitria, pano de fundo para as inovaes da sade
no Brasil, encontrava-se em plena gestao nos anos 70 e 80. A partir da, desenvolve-se
u m conjunto de conceitos e princpios capazes de conferir ao sistema de sade eficcia
e qualidade, com impacto nos indicadores de sade do Pas. Entre estes, o princpio da
integralidade, que entende a assistncia organizada e voltada para o indivduo na sua
singularidade e totalidade holstica, envolvendo ainda a implementao de polticas
intersetoriais. Nos aspectos especficos da poltica de assistncia sade, preconiza a
oferta de aes sincronizadas de promoo, proteo e recuperao, ampliando, assim,
o ento vigente conceito de sade.
Mesmo com o ambicioso objetivo de reverter os graves coeficientes de mortalidade
infantil e materna por intermdio da assistncia mdico-sanitria, o PSMI focalizava
como objeto de suas aes o binmio 'me-filho', em que me estavam reservadas
aes de assistncia ao pr-natal, ao parto e ao puerprio. Timidamente, vez por outra,
nas reformulaes anuais rotineiramente realizadas do PSMI, eram agregadas orienta-
es para a oferta de aes referentes ao controle da fecundidade. Estas, n o entanto,
surgiam sob os conceitos de espaamentos de gestao, planejamento familiar ou de
paternidade responsvel. A poca, o Ministrio da Sade esteve sistematicamente recua-
do diante do debate social realizado sobre as polticas demogrficas - o qual no propi-
ciou uma situao de consenso que permitisse ao Ministrio agir no campo reprodutivo,
salvo nos aspectos da promoo da natalidade.
Sobre isto vale a pena refletir u m pouco mais, tendo c o m o pressuposto que esse
tema atraiu, e ainda hoje atrai, divergncias localizadas n o campo ideolgico, moral,
religioso e tico e sua discusso desenha u m complexo mosaico.

Contando histria

Embora difuso, o discurso do planejamento familiar j se expressava nos primrdios


do Brasil colonial, perpassando do Imprio ao incio da Repblica, marcado por uma
dissimulada tendncia ou u m sentimento natalista, agregado idia do aperfeioa-
mento e da melhoria da raa brasileira (Fonseca Sobrinho, 1992).
No perodo colonial, a Igreja foi a instituio que construiu, quase com exclusivida-
de, o iderio social que se pretendia: portugus e cristo. O sucesso deste projeto envol-
veu estratgias tanto no plano do discurso cotidiano normativo como, ainda, decises
em que as mulheres eram impedidas de assumir outro papel que no aquele determi-
nado pela vida familiar (Priori, 1993).
Desta forma, a Igreja promoveu a mentalidade androcntrica j to presente naque-
les tempos, incentivando as mulheres obedincia e servido aos homens, incluindo a
procriao de tantos filhos quantos Deus ou a natureza determinassem. A posse, pela
herana, ficou garantida a partir da descendncia controlada e se consolidou o estabe-
lecimento da sociedade familiar.
De forma particular e decisiva, a Igreja teve como grande aliada a medicina. Mdicos
e padres tinham acesso intimidade das mulheres, mesmo que com objetivos distin-
tos: um, voltado ao cuidado com a alma; o outro, com o corpo. Ambas as prticas eram
marcadas por u m a violenta interveno nas vidas privadas e, no caso da medicina,
ainda reforada por meio da normatizao prescritiva sobre o corpo feminino.
Foi resultado desta poca a elaborao de u m a imagem regular da feminilidade, o
que adequava-se aos interesses da Igreja. Para esta, a prtica do sexo somente deveria
servir procriao. Todas as marcas do desejo carnal e de animalidade do ato sexual
deveriam ser 'apagadas' pela concepo.
As penas da vida conjugal, assim como os sofrimentos decorrentes do parto, eram
vistos como oportunidades 'purificadoras', redentoras do pecado, para a ressurreio.
Deste modo, relegavam-se maldio as mulheres infecundas, incapazes de reverter
com a pureza da gravidez a dimenso pecaminosa do coito.
Do Brasil colnia ao incio da Repblica verifica-se ainda que, implicitamente, uma
tendncia natalista se expressa a partir da criao do salrio-famlia e do auxlio-natali-
dade. No desenvolvimentismo ps-guerra, explicita-se mais nitidamente, por parte do
Estado de Getlio, uma tendncia pr-natalista.
Enquanto isso, no cenrio internacional, so retomadas as teses do reverendo Thomas
Robert Malthus (1766-1834), que alertava sobre os perigos da superpopulao em de-
corrncia do no correspondente crescimento da produo de alimentos. A despeito do
carter moralista e repressor da sexualidade, explcito nas teses malthusianas, apenas o
aspecto da desproporcionalidade quantitativa entre os dois fenmenos - crescimento
demogrfico e disponibilidade de alimentos - tomado como referncia para a discus-
so do planejamento familiar.
O outro aspecto em que vrios preconizadores do planejamento familiar se funda-
mentam o da eugenia ou do aperfeioamento da espcie humana, a partir de seleo
das raas. O que se destaca neste caso como princpio a existncia de distintas hierar-
quias qualitativas da raa humana.
No ano de 1952, Margaret Sanger criou, c o m sede em Londres, a International
Planned Parenthood Federation (1PPF), que contava com o apoio financeiro de diversas
instituies interessadas em planejamento familiar, visando ao controle demogrfico-
portanto, restritivo s liberdades de procriao das mulheres ou dos casais. O IPPF pas-
sar, nos anos 60, a financiar entidades e outras instituies que realizavam o planeja-
mento familiar no Brasil.
Identifica-se, justamente neste perodo, o surgimento da polmica entre as polticas
de controle demogrfico e as anticontrolistas. A partir da Revoluo Cubana, so refor-
ados o pensamento e a doutrina controlista no Brasil (Fonseca Sobrinho, 1992). Na-
quela poca, os Estados Unidos formularam uma poltica de ajuda aos pases latino-
americanos, cuja condio para obteno de ajuda econmica era a adoo, por parte
do pas solicitante, de estratgias voltadas reduo do crescimento demogrfico.
A argumentao favorvel ao controle demogrfico sustentava que o crescimento
econmico e o prprio desenvolvimento s seriam possveis com intervenes dirigidas
reduo do ritmo do crescimento demogrfico. Movimentos sociais, partidos polti-
cos clandestinos e outros setores da sociedade progressista indignaram-se com os prin-
cpios defendidos pelos controlistas, ainda mobilizados no debate sobre o avano impe
rialista, na extenso do territrio nacional, na baixa densidade demogrfica e na neces-
sidade de sua ocupao como estratgia de autonomia nacional.
A este debate comparecia, naturalmente, a Igreja, com o seu conjunto de razes de
ordem moral e religiosa, vinculando sexo procriao. Essa posio ser relativamente
flexibilizada no final dos anos 70, quando a Igreja passa a admitir u m 'certo controle' da
fecundidade, desde que o mtodo utilizado fosse a abstinncia peridica da prtica de
sexo. Esta prtica foi denominada pela prpria Igreja como 'mtodo natural' e represen-
tou u m importante avano na modificao das hermticas idias consagradas no Con-
cilio de Trento, do sculo XVII.
Tendo perdurado por longo tempo, diversas nuances podem ser identificadas nas
ideologias envolvidas. No campo das polticas pblicas, revezavam-se estratgias para a
adoo de prticas, m e s m o que veladas, para o controle da fecundidade. Todos esses
movimentos fizeram com que, em meados dos anos 70, o Ministrio da Sade incor-
porasse a paternidade responsvel ao PSMI. Em 1977, tambm no contexto do PSMI, foi
elaborado o Programa de Preveno da Gravidez de Alto Risco (PPGAR), que previa a
oferta de contracepo s mulheres com risco gestacional.
O PPGAR teve imediata reao contrria da sociedade, principalmente do movimen-
to de sade e imprensa 'nanica', de forte expresso na poca. A iniciativa do ministrio
foi entendida c o m o estratgia voltada ao controle demogrfico, j que os chamados
critrios de risco encaminhavam u m controle de nascimentos entre as populaes
pobre e negra.
Para a elaborao do PPGAR, o Ministrio da Sade mobilizou diversos professores de
universidades brasileiras envolvidos com a temtica de sade reprodutiva. O recuo
deste programa, diante das reaes sociais que culminaram com o seu arquivamento,
resultou em problemas polticos entre esse grupo de mdicos - professores das cadeiras
de gineco-obstetrcia - e o ministrio. Essa situao somente se reverteria tempos de-
pois, no processo de negociao que possibilitou a poltica atual da assistncia integral.
A fragilidade poltica com que, poca, o Ministrio da Sade enfrentou esta situa-
o permitiu a criao de u m vcuo institucional, favorecendo o surgimento e o cres-
cimento de outras instituies que brindavam aes de planejamento familiar s m u -
lheres. Dentre estas, a Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil (BEMFAM) e o Centro
de Pesquisas de Assistncia Integrada Mulher e Criana (CPAIMC) foram as de maior
relevncia (Costa, 1996).
A BEMFAM foi criada em novembro de 1965 como uma entidade privada sem fins lucrati-
vos, com sede no Rio de Janeiro, mas com intervenes em quase todo o territrio nacio-
nal. Financiada por capital internacional e filiada ao IPPF; tinha como estratgia o treina-
mento de profissionais da sade para a prtica do planejamento familiar e a prestao
direta de assistncia exclusiva em aes contraceptivas, por meio de unidades prprias ou
conveniadas com prefeituras, sindicatos, secretarias de sade e universidades.
No caso do CPAIMC, o financiamento para as suas atividades no Brasil provinha
fundamentalmente das instituies vinculadas ao sistema USAID (United States Agency
for International Development) - pela Family Planning International Assistance (FPIA),
Pathfinder Foundation e outras. Sua estratgia, no entanto, foi mais agressiva e eficaz na
criao e consolidao de u m a 'cultura' contraceptiva e intervencionista entre os pro-
fissionais da sade, especialmente os mdicos. Para tanto, financiou treinamentos de
profissionais vinculados ao ensino da medicina, da enfermagem e de outras reas afins,
alm de sustentar - treinando-os, doando o equipamento e subsidiando as suas ativida-
des - u m a verdadeira rede de mdicos que realizavam esterilizaes cirrgicas por
meio da tcnica de laparoscopia.
O CPAIMC foi ainda distribuidor de material contraceptivo para diversas outras ins-
tituies congneres, importando insumos a partir do uso de sua prerrogativa para
iseno de impostos de importao, em virtude dos benefcios conferidos pelo ttulo de
'utilidade pblica, sem fins lucrativos', conferido pelo governo brasileiro.
A ideologia do controle da natalidade, largamente disseminada no chamado Terceiro
M u n d o e, no caso especial, n o Brasil, teve tambm sua origem nos interesses norte-
americanos, que vislumbravam ameaas a seus projetos econmicos e polticos na
'exploso demogrfica' do planeta. Isto ficou explicitado a partir da divulgao do docu-
mento oficial "Implicaes do crescimento da populao mundial para a segurana e os
interesses dos EUA', de 10 de dezembro de 1974 e s divulgado no Brasil e m 1989,
codificado como NSSM-200.
Este documento foi assinado pelo Sr. Henry Kissinger e dirigido aos secretrios de
estado americanos. Nele, so discutidos aspectos econmicos, polticos e ecolgicos
relacionados - e supostamente - ameaados pelo alardeado crescimento demogrfico.
Contm a seguinte citao:
O principal fator que est influindo na necessidade de matrias-primas no-agrcolas
o nvel de atividade industrial, regional e mundial. Por exemplo, os EUA, c o m 6% da
populao mundial, consomem aproximadamente u m tero dos recursos mundiais (...).
(Brasil. Congresso Nacional, 1993)

Mais adiante, o NSSM-200 define algumas estratgias que foram desenvolvidas mais
tarde em nosso pas. Ao lado da ndia, Bangladesh,Paquisto,Nigria, Mxico, Indonsia,
Filipinas, Tailndia, Egito, Turquia, Etipia e Colmbia, o Brasil figurava como prioridade.
Coincidentemente, no Brasil dos anos 7 0 (poca marcada pelo endurecimento da
ditadura militar), refora-se entre os militares o discurso da segurana nacional ameaada
pelo grande contingente de pobres e famlias numerosas, 'presas fceis' para a propa-
ganda de idias subversivas (Fonseca Sobrinho, 1992). Ressalte-se, ainda, o recrudesci
mento de idias eugnicas expressas, por exemplo, na declarao do general Valdir
Vasconcelos sobre a condio de sub-raa de brasileiros que no atingiam as condies
fsicas e de sade exigidas para o ingresso no servio militar, indicando, segundo ele, a
premncia de controlar nascimentos desta 'subespcie'.
A sbita radicalizao do discurso dos militares em relao temtica da populao,
no incio da dcada de 80, talvez tenha sido o toque necessrio para provocar a conforma-
o do cenrio que resultou na formulao do PAISM, incluindo novos atores no processo.
U m espao aberto pelo Ministrio da Sade, pelo ento secretrio-geral Mozart de Abreu
e Lima, permitiu que tcnicos do setor de reconhecida posio crtica situao vigente
e professores universitrios, especialmente da Universidade de Campinas (UNICAMP), for-
mulassem uma proposta preliminar de programa. Na seqncia, esta proposta foi ampla-
mente debatida na comunidade de sade, no movimento da reforma sanitria e ainda
com militantes do incipiente movimento feminista que se estruturava poca no Pas.
Desta forma, a criao do PAISM neutraliza as polarizaes e inclui uma prtica de discusso
com o grupo populacional objeto da poltica, ou seja, as mulheres - at ento, alheias
discusso. assim, ento, que o PAISM passa a ser u m assunto de mulheres (Costa, 1996).
Desde a dcada de 60, inspiradas no feminismo internacional e no clima da liberda-
de sexual conferida pela plula contraceptiva, as mulheres brasileiras vinham proces-
sando a ruptura c o m o clssico e exclusivo papel social que lhes era atribudo desde
sempre: a maternidade e a profisso de dona de casa. Gradativamente, crescia o com
parecimento feminino no mercado de trabalho e aumentava o nmero das que in-
gressavam nas universidades, construindo uma cultura de cidadania feminina. Nesse
contexto, elas passam a demandar pelo controle da fecundidade, com claras aspira-
es por vivncias sexuais desvinculadas da procriao. N o entanto, os servios de
sade ainda no estavam habilitados ao atendimento destas necessidades, restrito
apenas aos servios - de baixa cobertura e de qualidade duvidosa - oferecidos pelas
instituies do tipo BEMFAM ou CPAIMC.

P A I S M : O desafio da construo do novo

no contexto desta conjuntura que surge o novo discurso, costurado no tecido dos
direitos e talhado na segurana da sade e na autonomia das mulheres e dos casais na
definio do tamanho de suas proles. Em 1983, o Ministrio da Sade, na figura do
ento ministro Valdir Arcoverde, anuncia o PAISM em depoimento para Comisso Parla-
mentar Mista de Inqurito (CPI) que investigava o crescimento populacional no Con-
gresso Nacional. O programa deveria ser desenvolvido pela rede pblica e conveniada de
sade e alicerado nas programaes locais, ajustando-se s necessidades e especificidades
epidemiolgicas e s prioridades de cada municpio e sua base populacional.
A moldura que permitiu esta formulao programtica foram a reforma sanitria e
os princpios do SUS, e sua anunciao como bases para uma ao programtica faz do
PAISM O primeiro e talvez ainda nico programa de sade adequado aos princpios da
descentralizao, recusando as estratgias verticalizadoras nas suas bases conceituais e
doutrinrias. Isto no significa que as prticas utilizadas em sua implementao te-
n h a m sido inovadoras, ou que tenham rompido com a cultura dos programas verticais.
Ao contrrio, o prprio Ministrio da Sade ainda no processou suas novas funes
requeridas pelo SUS e continua, ainda hoje, agindo de forma centralizada e desarticulada.
O PAISM constitui-se de u m conjunto de diretrizes e princpios destinados a orientar
toda a assistncia oferecida s mulheres das distintas faixas etrias, etnias ou classes
sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente detectveis - incluindo as demandas
especficas do processo reprodutivo. Compreende, ainda, todo o conjunto de patologias e
situaes que envolvam o controle do risco sade e ao bem-estar da populao feminina.
Desta forma, as orientaes e diretrizes do programa devem estar voltadas transver-
salmente s distintas reas de organizao da assistncia no mbito das instituies do
sistema de sade. Isto significa a adoo destes princpios e orientaes para todo atendi-
mento oferecido s mulheres pela rede de sade, incluindo as situaes de emergncia,
internao hospitalar, aes de sade mental, ateno clnica, cirrgica, ou mesmo nas
especificidades ligadas sade da mulher trabalhadora. Assim sendo, o PAISM exige aes
e estratgias harmonizadas a partir das distintas reas e setores das instituies do SUS.
As suas linhas estratgicas de interveno explicitam e aperfeioam o conceito da
integralidade por meio da oferta de aes educativas, promocionais, preventivas, de
diagnstico e de recuperao da sade. O destaque conferido s aes educativas obje-
tiva intervir nas relaes de poder das mulheres tanto com os servios de sade como
nas demais situaes relacionais assimtricas para as mulheres. Esta estratgia tem por
inteno estimular nas mulheres mudanas em relao ao autocuidado e apropriao
de seus corpos e controle de sua sade.
A incluso das aes de planejamento familiar ou de controle da fecundidade no PAISM
no pode significar qualquer priorizao destas aes e m detrimento de outras,
identificadas no diagnstico epidemiolgico. Este princpio capaz de permitir uma inter-
veno efetiva na sade de uma forma geral e, em particular, nos aspectos da reproduo.
O controle da fecundidade n o deve acrescentar n e n h u m risco sade das
mulheres. Isto deve ser garantido a partir da abordagem integral, d o acompanha-
mento clnico e ginecolgico, tanto na indicao c o m o n o seguimento do uso de
mtodos contraceptivos.
O avano deste conceito de poltica de sade integral para as mulheres coloca o
Brasil em u m a situao privilegiada internacionalmente. As conquistas recentes sobre
os direitos reprodutivos - inscritas nos documentos que emergiram das conferncias
do Cairo (Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento, 1994) e de
Beijing (Conferncia sobre a Mulher, 1995) - que recomendam a oferta de programas de
sade sexual e reprodutiva aos homens e mulheres no deveria limitar as polticas
brasileiras mas sim amparar os avanos conceituais j institucionalizados aqui.
Reconhecendo no mbito internacional o grande avano contido nestas recomen-
daes, necessrio alertar que, no caso brasileiro, no so aceitveis recuos em relao
ao aspecto do conceito da integralidade assistencial. Estes documentos internacionais
devem ser usados no reforo e na consolidao da prtica desta poltica. O argumento
da incluso do h o m e m nas aes de sade reprodutiva, supostamente tido como novi-
dade, est implicitamente contemplado nos princpios do PAISM e, explicitamente, nas
diretrizes que orientam a integralidade assistencial preconizada para todos os indiv-
duos atendidos pelo SUS.

1
Sade Reprodutiva, u m conceito e m negociao

Torna-se necessrio discutir as origens e circunstncias dos debates polticos que


culminaram na formulao do conceito de sade reprodutiva no mbito das Confern-
cias do Sistema Organizao das Naes Unidas (ONU).
A Conferncia de Bucareste, em 1974, teve como grande tema a nova ordem econ-
mica mundial e a discusso sobre a reduo de fecundidade c o m o favorecedora do
desenvolvimento (antagonizada pelos defensores da posio inversa, ou seja, o desen-
volvimento como responsvel pela reduo da fecundidade). O s pases do Sul insistiam

1
A ntegra do Plano de Ao do Cairo encontrada em LASSONDE, 1997.
na importncia do desenvolvimento, ao passo que os industrializados sustentavam
que, sem o planejamento familiar e a conseqente queda de fecundidade, as economias
dos pases do Sul no avanariam.
Na Conferncia do Mxico (1984) organizada uma petio de grande parte dos
pases em desenvolvimento, buscando junto comunidade internacional ajuda tcni-
ca e financeira para a implementao de programas de controle da natalidade. Atribuiu-
se grande importncia ao crescimento populacional, relacionando-o situao de de-
senvolvimento. Para surpresa geral, os Estados Unidos, naquele momento, assumem
outro discurso, diferente do anteriormente explicitado. Afirmam que o crescimento
demogrfico evento de efeito neutro no desenvolvimento e que as verdadeiras causas
de subdesenvolvimento estavam relacionadas excessiva centralizao de suas econo-
mias, que impunha presses artificiais ao mercado. Claro que esta argumentao estava
dirigida especialmente aos pases socialistas e comunistas, e sua base estava fundamen-
tada na idia de que possvel adaptar-se ao crescimento demogrfico medida que os
mercados funcionem bem.
Desta forma, os Estados Unidos seguem defendendo as suas idias sobre o desenvol-
vimento, mas a reduo do crescimento demogrfico j no constitui condio para
alcan-lo. Substituindo a orientao de reduzir a fecundidade e o crescimento
demogrfico, passam a preconizar a liberdade dos intercmbios comerciais, o esprito
empresarial, a ajuda internacional e a diversificao da fontes de investimento.
Na Conferncia do Cairo, os debates assumem u m a lgica distinta. A reunio
marcada pela discusso sobre a desigualdade entre os sexos, a luta contra a pobreza, as
reivindicaes dos movimentos religiosos e a busca de identidade cultural.
Assim, de forma geral, identifica-se que, em que cada conferncia, prevalecem cor-
tes ideolgicos distintos, desenhando, de forma reduzida, os formatos: e m Bucareste
evidencia-se o debate Norte/Sul; no Mxico exibe as diferenas entre Leste/Oeste; no
Cairo, debate-se a polarizao entre os defensores de sociedades laicas e os de concep-
es teocrticas ou fundamentalistas. a que se evidencia a oposio entre os que
defendem os direitos sexuais no campo da reproduo e da sexualidade e aqueles que
consideram que os estados tm o papel de restringir estes direitos em nome de valores
culturais e religiosos.
Estas posies antagnicas e polarizadas imprimem profundidade aos valores sociais
e morais na discusso da temtica da vida, da sexualidade e da morte em busca de u m
consenso internacional. Este debate, sem dvida, foi em parte provocado e sustentado
pela forte presena do movimento feminista, que jamais havia alcanado tanto prest-
gio nas negociaes internacionais.
Salienta-se que este prestgio deve-se s alianas que o movimento feminista esta-
beleceu, em especial com o chamado Grupo Populao -bastante experiente em nego-
ciaes similares anteriores, com o prprio governo norte-americano (ator determinante
nas negociaes). O movimento feminista ainda contou com o expressivo trabalho da
secretria-geral da conferncia, que ofereceu apoio pessoal temtica de interesse para
as mulheres (Lassonde, 1997).
O GrupoPopulao u m movimento de origem americana que tem objetivos inter-
nacionais. Ele aglutina representantes do meio acadmico, governamental, das ONGs e
dos meios de comunicao. Na Conferncia do Meio Ambiente (1992), o Rio de Janeiro
comea uma relao deste grupo com as feministas. Primeiro, uma relao de conflito;
depois, de aproximao, baseada na discusso sobre o desenvolvimento sustentvel e a
dimenso demogrfica. Aposio das feministas firme sobre a no-incluso da temtica
populao em uma conferncia sobre o meio ambiente, j que isso impediria o avano
social das mulheres. Segundo Louise Lassonde, o argumento de que era necessria a
implementao do planejamento familiar-defendida pelo GrupoPopulao-eravisto
c o m o u m a acusao de que o ventre feminino era o responsvel pela degradao
ambiental. O que estava posto, na verdade, era o ressurgimento do debate sobre o livre
arbtrio das mulheres nas decises reprodutivas contra a interveno estatal no contro-
le dos nascimentos, desta vez tendo c o m o contraponto o argumento ecolgico-
preservacionista defendido pelo Grupo.
Importante lembrar ainda que, naquela ocasio, c o m o objetivo de neutralizar a
influncia do Grupo Populao, o movimento feminista se apoia no Vaticano na defesa
de uma plataforma c o m u m para limitar a presena do planejamento familiar na Agen-
da 21, resultante da conferncia. O governo americano tambm d apoio a esse acordo
ttico, avaliando as devidas compensaes decorrentes da ausncia da temtica
demogrfica na Agenda 21 e o fortalecimento de pautas sobre modelos de produo e de
consumo, sobre os quais os Estados Unidos mantiveram-se firmes nas negociaes de
preservao do American way of life.
Aps a Conferncia do Rio houve muitas mudanas nas relaes entre os grupos de
atuao no cenrio internacional, configurando as alianas que chegaram ao Cairo.
Logo no incio da fase de preparao para o Cairo, a aproximao entre as feministas e
o GrupoPopulaobuscava u m acordo c o m u m , que permitisse a conciliao de inte-
resses dos dois grupos e o conseqente fortalecimento de suas posies na confern-
cia. De u m a forma geral, o Grupo Populao abandona a nfase em relao ao plane-
jamento familiar, ao adotar a prioridade das feministas: a defesa dos direitos, da sade
e da posio social das mulheres. D o consenso surge a noo de sade reprodutiva a
partir da adotada pelos dois grupos (Lassonde, 1997). Este consenso seria ampliado nos
acordos firmados nesta conferncia, contabilizando, sem dvida, grandes avanos para
os grupos envolvidos.
No entanto, a criao do conceito de sade reprodutiva - ainda que vitorioso do
ponto de vista da poltica internacional - no d conta das mltiplas dimenses e com-
plexidades da sade. Isto j fica explcito no Programa de Ao emanado pela prpria
conferncia, ao definir que "sade reprodutiva refere-se ao estado de bem-estar fsico,
mental e social das pessoas relacionados ao aparelho genital e seu funcionamento". Se a
definio da sade adotada pela O N U j era passvel de limitaes conceituais, fica
realmente complicada quando o mesmo conceito aplicado ao aparelho genital que o
reduz ainda mais.
Do ponto de vista operacional, realizar programas ou projetos de assistncia sade
reprodutiva sem uma concomitante abordagem integral pode incorrerem importan-
tes riscos para as mulheres. Isso acontece medida que fatores e situaes relacionados
a outros aparelhos ou funes de u m indivduo tm relao direta com as tecnologias
usadas nas prticas da abordagem reprodutiva. Isto remete necessidade de u m debate
tico para a garantia das reais prioridades dos grupos e dos indivduos e, principalmen-
te, no controle da iatrogenia mdica.
A insistncia nesta discusso decorre do fato de que, nos tempos ps-Cairo e ps-
Beijing, ativistas feministas apegam-se aos acordos decorrentes destas conferncias para
formular demandas por programas de sade sexual e reprodutiva descontextualizadas
dos princpios da integralidade. importante delimitar os riscos disso decorrentes,
pois, nos anos 70, quando a sociedade brasileira recusou programas verticais de plane
jamento familiar, j discutia sobre a impropriedade desta abordagem focalizada apenas
nos aspectos da reproduo.
A assistncia integral, tal como entendida no mbito do movimento feminista bra-
sileiro, constitui-se em u m patrimnio inegocivel de discusses e de experincias
prticas consubstanciadas no PAISM que deve constituir a referncia conceituai e estra-
tgica em sade para a implementao das aes de sade reprodutiva.
Para as feministas brasileiras, c m especial aquelas que so tambm profissionais da
sade - que trilharam u m longo percurso na luta pela sade e direitos reprodutivos das
mulheres, agregando suas experincias profissionais como gestoras -, fica o desafio de
implementar, na prtica da sade, as conquistas polticas decorrentes dos diversos espa-
os de luta e de ao pblica das mulheres. S no vale jogar o beb com a gua do banho.
Diante do exposto, verifica-se que, no plano dos conceitos e das polticas para a
sade das mulheres, o PAISM satisfaz inteiramente. No entanto, so necessrios ajustes e
adequaes, de modo a abarcar a dinmica e complexa realidade epidemiolgica- de
que a AIDS e as doenas cardiovasculares entre mulheres constituem dois grandes exem-
plos desafiadores de estratgias do sistema de sade.
O grande dilema a sua implementao, configurada em u m perturbado cenrio
macropoltico e setorial de franca e permanente ameaa consolidao do SUS. Assim
que, apesar de mais de uma dcada de sua formulao, ainda preocupante o nvel de
sade evidenciado pelos indicadores epidemiolgicos, bem como a grande insatisfao
das usurias dos servios de sade (Costa, 1992).
A realidade da sade da populao feminina brasileira demonstra que, apesar de
bem formuladas, as polticas no tm sido implementadas. A afirmativa pode ser com-
provada tomando-se alguns dos indicadores de sade reprodutiva c o m o exemplo. A
mortalidade materna, oficialmente registrada em 114,2 bitos por 100.000 nascidos-
vivos para o ano de 1991, situa o Brasil entre os pases de alto risco para os direitos
reprodutivos, especialmente no exerccio daquela funo mais valorizada socialmente
para a mulher: a maternidade (a ttulo de curiosidade, ressalta-se que esta taxa 25
vezes maior do que a canadense).
Os ndices muito elevados de esterilizao cirrgica de mulheres - como identifica-
do na Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD)/IBGE (1986) - encontram-se em
franco processo de crescimento, o que ficou evidenciado pela Pesquisa Nacional sobre
Demografia e Sade (BEMFAM/DHS, 1996). Entre as usurias de contracepo unidas, 40,1%
esto esterilizadas. Em 1986, a PNAD/IBGE registrou uma taxa de 27%. O ritmo galopante da
esterilizao como mtodo de alternativa contraceptiva evidencia a consolidao de uma
cultura reprodutiva construda mediante bases perversas em relao ao universo e s
modalidades de escolhas. Mesmo reconhecendo o direito ao mtodo definitivo cirrgico,
fica a indagao sobre as condies nas quais esta escolha se processa.
Estas duas situaes - mortalidade materna e esterilizaes cirrgicas - relacionam-
se diretamente ao uso abusivo das cesarianas n o Pas. Embora a alta incidncia de
cesreas seja sobejamente conhecida, ainda no existem mecanismos eficientes para o
seu controle c regulao. Esta situao submete mulheres e recm-nascidos a riscos
desnecessrios e continua sem merecer qualquer ateno especial dos poderes pblicos
para o seu controle.

A poltica setorial da sade S U S como base de sustenta-


o para o P A I S M

Em 1988, a Assemblia Nacional Constituinte aprovou a nova Constituio brasilei-


ra. Pela primeira vez foi includa, n o texto constitucional, u m a seo sobre a sade
(inspirada n o debate que vinha acontecendo no Pas, contextualizado c o m o reforma
sanitria). A sade est inserida n o contexto d o Sistema de Seguridade Social, u m
conjunto de polticas e aes dirigidas proteo social da populao, c o m u m finan-
ciamento c o m u m . Alm do financiamento da Seguridade Social, a sade tem ainda
outras fontes complementares provenientes dos estados, municpios e da prpria
Unio. Para a regulamentao e operacionalizao dos princpios constitucionais, foi
elaborada a Lei Orgnica da Sade, que organizou e definiu o funcionamento do SUS
(Rodriguez, 1994).
O artigo 198, inciso III da Constituio Federal determina que
as aes e servios de sade integram uma rede regionalizada e hierarquizada e consti-
tuem um Sistema nico, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descen-
tralizao com direo nica; II - atendimento integral, com prioridade para as ativida-
des preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais; III - participao da comunidade.

O s princpios e diretrizes para o SUS definem-se na universalidade, na eqidade e na


integralidade. Isto significa que as aes devem se dirigir ao conjunto da populao brasi-
leira de forma eqitativa e integral - portanto, com qualidade que garanta a resolubilidade
dos agravos individuais ou coletivos sade. A estratgia principal a da descentralizao
municipalizada, com o exerccio do controle social e participao da comunidade.
As Conferncias de Sade representam de modo ideal o momento adequado para
articular internamente as diversas competncias sanitrias atribudas a determinado
nvel de governo e, externamente, estas com as demais polticas que interessam sade.
O s conselhos, de carter permanente e deliberativo, so rgos colegiados, integrados
por representantes do governo, dos prestadores de servio, dos profissionais da sade e
dos usurios. Devem atuar na formulao de estratgias e no controle da execuo da
poltica de sade (Dallari, 1994).
At o presente, o sistema de sade da maioria dos municpios ainda no realizou
todas as transformaes necessrias para sua adequao aos mandamentos constitu-
cionais e da Lei Orgnica da Sade. Para isso, necessrio se mudar a lgica segundo a
qual o sistema vem operando, melhorando a qualidade do atendimento e os resultados
das aes executadas. O SUS ainda no o que est sendo praticado, mas o que deve ser
construdo (Barros, 1994).
u m fenmeno surpreendente a mobilizao social em tomo do processo de cons-
truo do SUS. Isto fica claramente explcito na realizao das conferncias de sade,
embora seja u m processo permanente quando visto na prtica do controle social reali-
zada pelos conselhos de sade municipais ou estaduais.
De fato, a realidade de inmeras experincias locais tem revelado uma criatividade
imensa, demonstrando que desde que haja deciso poltica e vontade, m e s m o com
condies financeiras mnimas, muito pode e j tem sido feito no rumo das mudanas
do modelo assistencial e na produtividade de recursos. No entanto, deliberadamente ou
no, processa-se u m a ferrenha crtica ao SUS, com decretao de sua falncia. Nisto,
especialmente, a mdia tem contribudo sobremaneira, sempre informando a popula-
o de forma parcial, sem nunca explicar os fatos vinculando-os s suas verdadeiras
questes e causas.
Assim, sacrifica-se a lgica doutrinria do SUS em detrimento da permanente dis-
puta de hegemonia com outras concepes de organizao setorial e com as tentativas
de preservao de interesses mercantis propiciados e garantidos pelo modelo vigente.
A sonegao do repasse sade dos recursos financeiros provenientes do Fundo da
Seguridade Social, aliada ao processo de 'reforma administrativa' (pautado pelo enfra-
quecimento do setor pblico) e s dificuldades para o repasse direto dos recursos finan-
ceiros aos municpios constituem u m conjunto de estratgias perversas que, na prti-
ca, tm impedido a consolidao do SUS.
O PAISM deve ser entendido, ento, como a poltica para a assistncia s mulheres no
contexto do SUS. Sua implementao resulta, em ltima instncia, na qualificao
desta assistncia e na melhoria dos nveis de sade da populao feminina, consolidan-
do a sade como direito de cidadania para as mulheres. Assim, as experincias positivas
relacionadas sua implementao devem ser amplamente divulgadas como prticas
exemplares para outros municpios e localidades.
Os movimentos sociais, em especial o de mulheres, clssico demandante da im-
plantao do PAISM, devem ocupar as instncias institucionais do controle social da
sade (conselhos de sade, conferncias etc), consolidando alianas com os demais
setores da luta pela sade. Esta proposta fundamenta-se no fato de que, apesar da exis-
tncia de garantias legais e formais tanto para o SUS como para o PAISM, sua consolidao
e implantao plena processo a ser construdo cotidianamente nas instituies do
SUS dos diversos nveis, o que provavelmente s ser assegurado com u m a prtica
eficaz de controle e de presso dos movimentos sociais.

Referncias Bibliogrficas

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Popular e Controle Social no SUS: textos tcnicos para conselheiros. Braslia: IEC, 7-17,1994.
18

Volncia de Gnero, Sade Reprodutiva e


Servios*
Ana Flvia Pires Lucas D'Oliveira & Lilia Blima Schraiber

Introduo

Para considerarmos a violncia nas relaes de gnero como questo implicada nas
prticas de sade, antes de mais nada tomaremos os problemas concernentes aos servi-
os no apenas em funo dos cuidados ou orientaes objetivamente produzidos, mas
ao modo interativo de faz-lo, privilegiando nessa abordagem os sujeitos ali presentes.
Este tem sido o ponto de vista mais atual tambm nos estudos do campo do planeja-
mento em sade (Gallo, 1995; Rivera, 1995) e do trabalho em sade (Schraiber, 1995,
1997; Peduzzi, 1998), o que leva a ultrapassar o usual enfoque da produo assistencial
como problemtica da organizao e da gerncia dos servios. Tais enfoques privilegia-
ram u m olhar mais estrutural acerca dos servios, gerando a compreenso das prticas
e da qualidade dos cuidados como conseqncia da estrutura de sua organizao pro-
dutiva. Sem negar a importncia da organizao, buscaremos valoriz-la sob outro
olhar. Os servios ganham abordagem processual e passam a ser vistos como dinmica
de relaes interativas, que se do entre profissionais e entre estes e os usurios, no
momento em que se encontram todos dispostos em exerccio (aplicao/mtua troca)
dos conhecimentos cientficos, tcnicos e prticos de uns, e das informaes cientfi-
cas adquiridas e saberes prticos de outros.

* Agradecemos a Silvia Salvan Strake, Maria Flvia Pallerosi D'Alessandro e Gisele Magalhes Lanferini, pelo
trabalho de campo, e s profissionais de enfermagem do setor de adultos do CSE Samuel B. Pessoa pela
colaborao.
Com relao aos servios, assim, temos dois tipos de problemas que, vistos pela din-
mica interativa, estamos tratando em conjunto: de u m lado, a organizao da produo e
arquitetura dos trabalhos, tal como usualmente pensamos os programas de sade, por
exemplo; e de outro, as aes de interveno tcnica, que so processos de trabalho reali-
zadores daquela organizao e, nisto, articuladores das necessidades e demandas em
sade, dos saberes e das tcnicas, a fim de alcanarem determinados resultados, o que
tambm faz parte dos programas de sade. E, para darmos conta de nossa pretenso
epistemolgica, trataremos a dimenso organizativa como problemtica interiorizada no
plano tcnico, abordando as relaes dos usurios com o servio por meio das relaes
que estabelecem com seus profissionais no transcorrer das intervenes tcnicas.
nesse sentido que uma crtica qualidade assistencial a demandas que so trazidas
pelas mulheres - em particular, neste caso, relativamente a questes de violncia de
gnero - em nossa abordagem vai alm da dimenso mais estrutural da assistncia, para
se preocupar com a interao entre indivduos, que se d pela ao tcnica, recortando
a prpria organizao pelo plano das relaes entre os profissionais e os usurios dos
servios. desta perspectiva que deriva a possibilidade de pensarmos os servios no
por sua coerncia estrutural, mas por elementos de seu movimento e mudana.
De igual modo, na interveno tcnica, se o processo de trabalho tomado como
ao estruturada pela organizao dos servios em suas determinaes tcnico-sociais
relativas aos objetivos e resultados pressupostos para a interveno, ser pelo exame das
relaes de seu agente (os profissionais da sade) com o processo da interveno - e
notadamente da perspectiva do uso concreto do saber na aplicao tcnica no cotidiano
dos servios - que buscaremos no s apreender as transformaes dos conhecimentos
e a criatividade de sujeito trabalhador, mas a prpria interatividade (mtuas trocas) dos
saberes mdicos ou tcnico-cientficos com os saberes prticos. Tais perspectivas que,
para ns, m e s m o focando a problemtica do ponto de vista dos servios, revelaro a
interao entre os sujeitos presentes ao ato tcnico.
Essas interaes sero abordadas pelos dilogos que se do no interior do ato tcnico
entre os profissionais e os usurios em relao. Assim, nos aproximaremos das interaes
pelas falas e suas trocas dialgicas ocorridas no transcorrer daquele ato, que simulta-
neamente produo e consumo do servio. Tm-se, nesse sentido, perpassando o jogo
interativo, questes da ordem da produo da prtica tcnica, tanto quanto as da reali-
zao do consumo, que implicam, por exemplo, acesso aos servios e s tecnologias,
recepo, possibilidades de uso reiterado ou continuidades assistenciais, entre outras.
Estas se cruzam com questes, por exemplo, da realizao, por parte dos usurios, de
respostas s suas necessidades e satisfao quanto aos servios; por parte dos profissio-
nais, da realizao do exerccio de boas prticas, definindo os os padres que se usam e
com os quais se trabalha, o que definir o m o d o pelo qual se estabelecero relaes
dadas. Dentre as ordens de questes destacamos: relaes entre profissionais e seus
saberes; entre profissionais e suas condies de trabalho; entre usurios e suas
experincias privadas; entre usurios e o servio organizado para dadas ofertas de
produo assistencial; entre usurios e suas expectativas frente ao servio, tanto de
uso, quanto de resoluo de problemas - interpretados estes c o m o necessidades de
sade. A medicalizao do social, a coisificao do doente c o m o objeto da interven-
o tcnica e do trabalho, a elitizao de profissionais e os interesses corporativos,
entre outras, sero, pois, problemticas dos servios e sua organizao produtiva,
com base neste olhar.
Assim sendo, este texto busca se aproximar dos profissionais, usurios, saberes,
tecnologias e organizao/resoluo dos servios, por meio da tomada especfica do
dilogo que se estabelece no interior da assistncia mdico-sanitria, entre mulheres
que demandam ateno referida sade reprodutiva e profissionais que as assistem.
Partindo teoricamente da noo de que o jogo das falas representa a interatividade
entre estes diferentes sujeitos sociais, e ademais, partindo da contribuio
1
habermasiana da aproximao do trabalho como tambm interao , buscaremos,
no contexto especfico de servio de sade, captar de que m o d o esses sujeitos, ao
produzirem distintas falas, valendo-se de seus saberes, suas experincias de vida e
suas situaes institucionais, colocam-se quanto ao feminino na relao de gnero e
algumas de suas questes mais relevantes na interface com a sade: o corpo, a mater-
nidade e a sexualidade.
Entenderemos que este 'colocar-se' encontra-se em u m contexto de uma ao sem-
pre estratgica - que a do trabalho - pois u m dado resultado buscado nesta ao, a
qual, por outro lado, expressa tambm formas interativas, que nisto podem polarizar-se
entre u m agir estratgico ou comunicativo quanto essa interao, transformando as
trocas dialgicas e m instrumentais e coisificadoras dos sujeitos, ou no. E, neste caso,
sero espaos de emancipaes e fortalecimentos de cada qual como sujeito - situao
esta que entenderemos como de 'empoderamento' da intersubjetividade, ou de comu-
nicao: o oposto da violncia.
interessante destacar que a interatividade neste estudo ancora-se em uma situa
o singular e instigante: a relao mulheres-mulheres, pois boa parte dos profissionais
da sade so, igualmente, mulheres. Estas, no entanto, so sujeitos tambm reprodutores
de uma ordem e poder de grande dominncia na sociedade, o poder mdico. Situam-
se, por isto, n o centro de u m a tenso ou conflito mpar c o m o sujeitos: realizar, no
cotidiano, plos distintos e contraditrios de identidades. No vamos, porm, nos ater
ao exame da situao das mulheres-profissionais. Interessa-nos, antes, a prpria relao.

1
Inspira-nos o quadro referencial c a metodologia usados por AYRES (1995) para examinar do ponto de vista
hermenutico as narrativas que constam dos discursos produzidos na criao do conceito de risco em
epidemiologia como saber e prtica de sade. Para um aprofundamento da abordagem do trabalho em
sade como interao ver, ainda, SCHRAIBER (1997a; 1997b) e PEDUZZI (1998).
Esta mostrar, c o m o dissemos, as potencialidades do referencial de gnero para
o estudo dos servios, trazendo questes que no podem ser vistas ou refletidas
por o u t r o olhar seno este. Sua grande v a n t a g e m ser permitir pensar novas
tecnologias assis-tenciais para aprimorar a perspectiva emancipatria pretendida
pelo m o v i m e n t o social e pelas proposies tcnico-cientficas que sustentam o
2
Programa de Ateno Integral Sade da M u l h e r (PAISM) . Q u e r e m o s mostrar a
fecundidade cientfica, tecnolgica e tico-poltica da articulao dessa perspecti-
va de gnero c o m o estudo das prticas e dos servios c o m o temtica tradicional
do c a m p o da sade coletiva.
A l m disso, por m e i o d o c o n t e x t o interativo que apreendemos m e l h o r o
mencionado conflito identitrio, iluminando, em especial, a tradicional questo
da medicalizao e da elitizao dos profissionais da sade diante da populao,
mostrando situaes em que a tenso de identidade pode vir a assumir caracters-
ticas de u m verdadeiro conflito moral (Schraiber, 1997). A resoluo deste confli-
to pender, ou no, para u m posicionamento eticamente perfilado c o m a busca
de emancipao de gnero. A opo, a nosso ver, est na dependncia da prpria
construo existente de prtica assistencial e de organizao de servio. Afirma-
mos que nossos dados mostram que esta ocorrncia - e m que a opo se d pela
difcil escolha de u m a identificao de sujeito c o m a c o n d i o mais 'frgil' ou
socialmente dominada c o m o a de sujeito feminino (mulher) - est relacionada s
finalidades de u m a assistncia 'integral', voltada para a emancipao feminina, tal
c o m o e m parte 'obriga' (porque torna u m a exigncia tecnolgica, prtica) a pr-
pria estruturao do PAISM.
Por fim, o fato de t o m a r m o s a interao usurias-profissionais baseia-se na
constatao de q u e o imperativo de optar tica e politicamente d-se aqui e m
situao por vezes extremamente dramtica: a violncia. neste c a m p o do trgi-
co, q u a n d o o poder radicalizado c o m o barbrie, que observamos o conflito que
se estabelece, g a n h a n d o a necessidade de optar, por parte das mulheres. A opo
realiza-se nas mais diversas direes: mulheres da tradio; mulheres da m u d a n -
a; mulheres do feminismo; mulheres do 'masculinizado' poder profissional.
Este trabalho est inserido em uma pesquisa maior: Violncia e Gnero nas Prticas
de Sade, utilizando, como base emprica, as aes concretamente desenvolvidas na
assistncia Sade da Mulher, tal como produzida cotidianamente no Centro de Sade

2
Este Programa existe nacionalmente h 13 anos e tem c o m o caracterstica ter sido formulado e
implantado com a participao do movimento de mulheres. Baseia-se em referenciais epidemiolgicos,
com nfase na ateno primria e nas atividades educativas. Verd'O L I V E I R A , 1996; COSTA, 1992; CORRA, 1993.
3
Escola Samuel B. Pessoa . Este Centro u m servio pblico de ateno primria, situado
no municpio de So Paulo e n o qual, h pelo menos 10 anos, esto implantadas as
diversas aes do PAISM.
A escolha do PAISM como ponto de partida deve-se ao fato de ser u m programa que
pretendeu tecnologicamente explorar questes de gnero, entre as quais, atualmente,
inclumos a violncia. Estudando esta proposta assistencial (d'Oliveira, 1996) constata-
mos que sua dimenso educativa que particularmente se constituiu como capaz de
conter tcnicas que facilitassem a emergncia das questes de violncia.
Nossa reflexo se baseia n o registro das falas produzidas nas atividades que, no
mencionado servio, formam o conjunto de trabalhos em grupo para a contracepo;
controle de cncer ginecolgico e doenas sexualmente transmissveis (DST); e re-
cepo do programa, cujo tema so as necessidades de sade das mulheres em geral.
Em trabalho anterior (d'Oliveira & Schraiber, 1997), analisamos as situaes de vio-
lncia que emergiram nessas atividades, valendo-nos de categorias formuladas em
torno do eixo analtico 'comunicabilidade', adotado para examinar a relao: neces-
sidades apresentadas velas usurias-resposta desenvolvida pelo servio. Este eixo foi tomado como
a sntese de trs dimenses possveis da comunicao: a expresso da violncia
pela usuria e sua apresentao c o m o problema; o acolhimento pelo profissional,
dispondo-se em situao dialgica e acatando o problema como demanda; e a proposio
de alguma ao pelo profissional, buscando intervir ou resolvera situao de violncia
como responsabilidade do servio. A individualizao desses momentos para fins anal-
ticos da temtica comunicacional traz inegveis vantagens, distinguindo disposies
profissionais de fato diversas nas aes em sade: ouvir, acolher e tecnicamente inter-
vir. Tendo por base essas diferentes disposies quanto comunicao, tentaremos discu-
tir de que m o d o elas correspondem tambm, a partir do dilogo, a ticas interativas
distintas e produo de sentidos diversos para o feminino e suas questes.
O material emprico composto pela observao de 16 grupos realizados de maro
a agosto de 1995, contabilizando 115 mulheres observadas. O s grupos foram observa-
dos diretamente, com registro em caderno de campo, gravados e transcritos. A maioria
dos grupos (11) foi coordenada por auxiliares de enfermagem, sendo cinco coordena

3
Neste texto apenas trataremos da relao usurios-servio neste recorte da interao discursiva com os
profissionais, valendo-nos dos dados da observao direta e participante da assistncia produzida em
atividades grupais. A pesquisa em seu todo, que se desenvolve desde 1994 com apoio da Fundao Ford
e CNPq, busca conhecer a articulao entre necessidades de sade e uso/consumo de servio, nas
situaes de violncia de gnero, valendo-se de diversas aproximaes e tcnicas de coleta de dados. Por
isso, possvel que, ao extrairmos um segmento, deixemos de dar ao leitor o conjunto das questes
implicadas nas prticas de sade, quando a demanda do servio relativa violncia. Cremos ter
selecionado em especial os aspectos capazes de explorar o trabalho em sade e a organizao dos
servios como interlocutor privilegiado. Nosso intuito o de destacar a importncia desse interlocutor
para os estudos de gnero e de violncia.
dos por u m a mdica e u m a psicloga. As usurias tm de 14 a 53 anos, distribudas
prioritariamente na faixa dos 14 a 30 (69,1 %). Quanto ao estado conjugal, 72,9% moram
com o companheiro, somando-se a categoria de casados e unio consensual. A grande
maioria estudou at a quarta srie primria, trabalha c o m o empregada domstica,
faxineira ou dona de casa e vive em favelas. As oito profissionais observadas tm entre
34 e 50 anos de idade, sendo 75% casadas. Em termos de escolaridade, uma tem primei-
ro grau completo; quatro, segundo grau completo; trs, nvel superior completo. Em
sua maioria (sete, das oito), as profissionais moram no mesmo bairro das usurias ou
em bairro ainda mais perifrico, mas todas em estrato de renda superior ao das usurias.
Ilustramos nossa reflexo com as falas registradas no material coletado, apresenta-
das em itlico.

Violncia, poder e sade

Nos ltimos anos, u m conjunto de publicaes vem comprovando a associao da


violncia nas relaes de gnero a u m a maior ocorrncia de diversos problemas de
sade fsica, reprodutiva e mental, atestando sua alta prevalncia e mostrando u m uso
mais freqente dos servios de sade por parte destas mulheres. Estes trabalhos concluem
tambm que a violncia nas relaes de gnero no investigada nem contabilizada
nos diagnsticos realizados, e propem o incentivo busca ativa e interveno sobre o
problema pelos profissionais da sade (McCouley, 1995; Heise, 1994; Stark, 1991).
Perceber a violncia pode melhorar a eficcia das aes de sade j tradicionais no
campo da sade reprodutiva, atingindo especialmente as mulheres que fazem u m uso
freqente do servio por problemas recorrentes. Alm disto, trabalhar a violncia pro-
cura colocar e m discusso u m sofrimento que vai muito alm das patologias a ele
associadas. No buscamos encontrar algum percentual de ocorrncia ou prevalncia de
violncia nas relaes de gnero. Existem inmeras investigaes que constatam sua
magnitude em diversos pases e mostram como este tema ignorado nos diagnsticos
e registros mdicos. Nosso objetivo detectar as formas de surgimento espontneo do
problema e a maneira c o m o ele j est sendo 'trabalhado' nos servios de sade.
Por este motivo, nosso primeiro desafio consiste em delimitar Violncia' entre as
situaes relatadas. Ao adotarmos o referencial de relaes de gnero para esta anlise,
observamos que, muitas vezes, questes de gnero e violncia so convergentes e trata-
das como u m a mesma definio conceituai. Para ns, as razes da violncia nas relaes
de gnero encontram-se nas prprias relaes de gnero. Mas a violncia u m aspecto
extremamente perverso destas, j que corresponde anulao da relao entre dois
sujeitos e a reduo de u m dos plos da relao a simples objeto. A relao de poder pode
ser assimtrica, ser exercida por uns sobre outros, agir sobre o campo de aes do outro
4
(Foucault, 1995), mas precisa deste outro 'como u m sujeito . A violncia comea quan-
do potencialmente aniquilada esta 'intransitividade de liberdade' que existe no cerne
de cada relao de poder e u m dos lados toma-se u m corpo inerte, sem possibilidades de
reao. Outros estudiosos da violncia (Arendt, 1994; Costa, 1986; Chau, 1984; Habermas,
1984) concordam que esta situao a coisificao do Outro em uma relao de poder,
ainda que com abordagens diversas.
Da perspectiva dialgica, podemos nos valer de Ricoeur (1995:60), para quem a violn-
cia o Outro da linguagem: "a violncia tem seu sentido no seu outro: a linguagem.
reciprocamente. A fala, a discusso, a racionalidade adquirem, tambm para elas, a sua
unidade de sentido no fato de serem u m empreendimento de reduo da violncia".
Na anlise do material, percebemos como estes dois planos - relaes de poder e
violncia - esto intimamente entrelaados, interessando-nos discutir exatamente a
possibilidade de reao, dilogo e de produo de alternativas pelo sujeito dominado.
Isto porque estaremos nos valendo da noo de que a violncia no apenas u m exces-
so de poder, mas uma situao outra, em que as relaes so negadas e no h jogos de
poder pelo simples fato de que u m dos sujeitos da relao est Vazio de poder'. Apoiadas
em Arendt (1994), entenderemos poder como o positivo exerccio da vontade de sujeito
e sua capacidade de julgar e optar, exercendo tomadas de decises. Destitudo de qual-
quer empoderamento nesse sentido, o indivduo coisificado estar em situao de
violncia e sua expresso fenomnica a situao de ruptura comunicacional e
interativa: situao de no-linguagem.
Ser com base na noo de poder e explorando exatamente uma relao de poder
peculiar que analisaremos nosso material sobre violncia. Privilegiamos uma relao de
poder entre mulheres: as usurias e as profissionais do servio observado. Trata-se
contudo de relao peculiar pelo menos por duas razes. Primeiro, pelo fato de distin-
guir desiguais no interior do mesmo gnero; e, segundo, porque esta desigualdade no
permanente, mas , em contnuo, ao mesmo tempo desfeita e refeita.
Notamos que, quando falam sobre os homens, as mulheres observadas tendem a u m s
coletivo: perante este Outro - os homens - se identificam a um mesmo feminino que estranha
um Outro. Mas quando se trata de afirmar o feminino, exercerem a si mesmas como mulhe-
res sujeitos-sociais, fazem dividir o Feminino (coletivo) e estranham-se entre si, dividindo-se
em mulheres profissionais e mulheres usurias, com discursos por vezes bem distintos.

4
Isto significa que a assimetria na relao ser comunicativamente buscada, e no estrategicamente, isto
, ser buscada em trocas de argumentos nas quais ambos os sujeitos vo se colocando de acordo
(concordes) com a assimetria, tal qual, por exemplo, em decises compartilhadas de interveno
mdica - satisfeitas, claro, as exigncias de enunciao das falas dentro da perspectiva do agir
comunicativo (HABERMAS, 1989). Para aprofundar essa questo no trabalho em sade, ver, quanto relao
mdico-paciente SCHRAIBER (1997b) e quanto ao trabalho em equipe multiprofissional PEDUZZI (1998),
Buscamos aqui este movimento de ciso e reunificao, o que mostraremos quando
'mulheres cuidam de mulheres' e 'mulheres falam dos homens', como os dois segmentos
a seguir, enquanto que as situaes de violncia que examinaremos sero analisadas na
ltima parte do texto, em 'mulheres e violncia: o trgico na situao de gnero'.

Mulheres cuidam de mulheres

H u m a diferena fundamental neste universo. De u m lado, esto mulheres 'da


instituio', que falam u m discurso legitimado socialmente, mulheres competentes
publicamente, que falam a 'verdade' cientfica (Chau, 1993); de outro, esto as usurias,
as que 'no sabem' e, por isso, buscam respostas para seus problemas com quem 'sabe'.
Relao em princpio assimtrica quanto ao conhecimento, mas que no necessaria-
mente assim deva ser quanto competncia tico-poltica sobre o que se fala e a interao
no dilogo. Por outro lado, apesar de possurem situaes socioeconmicas diversas, o
que nem sempre ocorre, estas mulheres compartilham 'prticas de gnero': comparti-
l h a m de alguma maneira a experincia de ser mulher na cidade de So Paulo. E m
sntese, estas profissionais podem ser vistas c o m o u m 'duplo', isto , femininas por
situao de gnero e 'masculinas' por condio tecnolgica, reproduzindo na enferma-
5
gem o poder mdico . Mas este poder tensionado internamente pela prpria proposta
do PAISM (d'Oliveira, 1996).
De u m a maneira geral, percebemos que o discurso das agentes da instituio
realmente ancorado n o PAISM. A S falas institucionais estimulam o conhecimento do
corpo, o direito ao prazer e a participao masculina na contracepo. O dilogo
instigado como estratgia para a conquista destes objetivos. Entretanto, o dilogo inter-
no ao grupo nem sempre flui. A fala institucional tem mais peso, mais tempo, coordena
o grupo, dando e retirando a palavra. H u m estmulo perceptvel para a expresso das
usurias, mas a instituio acaba sempre c o m a palavra final, em falas mais longas.
As usurias resistem, concordam, defendem, silenciam, desafiam, contrapem,
questionam. Ao falarem de sua educao, sua relao com o corpo, suas negociaes
com os homens e sua interao com os servios de sade, elas falam, no estreito espao
que encontram, de u m m u n d o da vida que no se 'encaixa' exatamente nos modelos
que o servio pode incorporar. Isto ocorre por falta, reducionismo, quando o modelo

5
A idia do "masculino" quer fazer referncia, claro, posio de poder da autoridade desta fala, uma vez
investida cientificamente. Apesar de estarmos ora trabalhando na polaridade masculino-feminino
como metfora soberania de um dos sujeitos na relao dominante-subordinado, nem estamos
identificando todos os homens mecanicamente a poderes soberanos, nem pretendemos reduzir o
feminino (e todas as mulheres) inexorvel condio de subordinao, bem ao gosto de certa vitimizao
da condio de mulher. A fora retrica, neste caso, d-se apenas como contraste dos termos.
estritamente o biomdico, situao em que o servio, quando ouve e acolhe o problema
- o que no c o m u m -, no oferece qualquer soluo nesse plano do m u n d o da vida.
Por outro lado, quando o modelo busca escapar do reducionismo biolgico (como o
caso do pretendido pelo PAISM e pela instituio estudada), o m u n d o da vida parece
tambm no conseguir penetrar as relaes que se do no servio - j que as profissio-
nais parecem buscar u m tipo idealizado de sujeito to pouco relacionai que na resolu-
o fornecida pelo servio exige atos e comportamentos jamais pretendidos pelas
usurias, porque significam atos de subverso total do que valorizam e querem para si
como mulheres em relao com seus parceiros. Assim, h dificuldades muito concretas
a proposta resolutiva oferecida pela instituio e pelo PAISM, paradoxalmente quando h
uma tentativa de responder por parte do servio.
As profissionais da sade fazem u m discurso acerca do corpo que estimula insisten-
temente o autoconhecimento. As mulheres devem conhecer e tocar suas mamas, e
oferecido u m espelho no exame de Papanicolau para verem seu colo do tero. Conhecer
e tocar o colo tambm necessrio para o uso do diafragma, e estimulado para o
controle do DIU pela paciente. Alm da anatomia, ensinada tambm a fisiologia do
aparelho reprodutivo feminino, c o m nfase no perodo frtil e n o m u c o ovulatrio,
que tambm deve ser percebido. Chama a ateno na fala das agentes o uso constante de
diminutivos e simplificaes, infantilizando o discurso com expresses como: bichi-
nho, furinho, coisinha, asinha e outras parecidas. Tambm percebemos que diversas
vezes o convite a se conhecer transforma-se em prescrio:
Vocs lembram que a gente examinou as mamas. Todo mundo examinou as mamas depois em casa? Eu no. No
faleipratodas que era pra fazeristo em casa? (tom de bronca). No falei que era vocs mesmas que tinham
que cuidar do corpo de vocs?
Uma parte das usurias discorda frontalmente da idia de se olhar ou se tocar. So
mulheres que tm nojo, expressam repugnncia, acham o corpo feio, ficam surpresas,
no querem nem pensar nisto: "Mulher s bonita de p". Outras, a minoria, entusias-
mam-se com as novas possibilidades colocadas, ou j as conhecem e querem se aperfei-
oar. De maneira geral, h u m a certa desconfiana para com a oferta da oportunidade
de cada u m 'ser o seu prprio mdico'. Esse papel no visto n e m c o m o parte da
experincia feminina, nem c o m o parte da experincia de 'leigos' da medicina. A recu-
sa, neste caso, pode ser vista c o m o resultado dessa soma, mas, de qualquer forma,
distancia a mulher-profissional que a oferece. O convite a olhar e tocar o prprio corpo
parece suspeito, por pretender passar a responsabilidade de escolher o certo e o errado,
o normal e o patolgico, para as mos do prprio examinado. Impossvel deixar de ver
nisso a cumplicidade complementar necessria to aceita relao assimtrica com as
profissionais. Estas, por sua vez, incorporam o dever emancipao nos moldes to
tcnicos, c o m o o faz o prprio PAISM (d'Oliveira, 1996). isto pode levar, m u i t o
freqentemente, ao tratamento estratgico das dimenses comunicativas na interao,
u m a vez que a emancipao e a liberdade decisria das mulheres usurias, que as
profissionais pretendem inserir como u m valor a ser exaltado, torna-se quase uma
ordem tcnica do servio (tal como "seja livre!"). preciso cuidado no sentido de no se
resvalar na anlise para falcias de cunho demaggico: no se pode ignorar a diferena
de saberes - o da experincia cientfica e o da experincia da vida. Alerta-se to somente
(o que politicamente no pouco), para a quase imperceptvel (do ponto de vista cultu-
ral) transposio da autoridade tcnica em autoridade moral, impedindo o exerccio de
escolhas pelo sujeito 'dominado'. Isto sem dvida torna complexa a proposio tica do
PAISM e difcil seu exerccio prtico; contudo, no desqualifica a investida poltica de
tentar o encontro da tcnica com a tica da emancipao.
Em relao aos mtodos contraceptivos, as mulheres reclamam com veemncia da
insegurana e efeitos colaterais dos mtodos disponveis. Percebem a plula (ACO) como
causadora de inmeros males, inclusive u m a 'massa' que se acumula no tero da
mulher, necessitando de curetagem; o DIU como causador de hemorragia, dor nas
pernas e cncer; e o diafragma como objeto artificial, extremamente esquisito e traba-
lhoso. A eficcia do DIU e do diafragma tambm muito questionada. Alm disto, as
mulheres dizem que "tabela no funciona, camisinha os homens no usam", nem
vasectomia, e at a laqueadura, nica opo mais segura, "pode desfazer". As mulheres
parecem bem insatisfeitas e inseguras com as possibilidades de escolha disponveis. As
queixas relativas aos mtodos so incisivas, fazendo com que as usurias desafiem as
profissionais quando estas tentam contest-las. Chegamos a ouvir relatos de mulheres
que afirmavam ter "visto a massa de plulas em u m exame de ultra-som", ou de afirma-
rem conhecerem mulheres que "retiraram vrias cartelas de plulas em curetagens".
As profissionais, por seu lado, ciosas de seu saber, enfrentam o questionamento.
Mas o fazem menos pelo dilogo entre diferentes concepes femininas acerca do
planejamento reprodutivo e do corpo - para o que trabalham positivamente as
distintas imagens do recurso de contracepo disponvel, mantendo a identidade
de mulher - e mais pela desqualificao do saber prtico diante do cientfico. Per-
mitem alguma expresso das concepes das usurias, mas depois tm longas falas
acerca de anatomia e fisiologia do aparelho reprodutor feminino. Buscam desfazer
o que c h a m a m 'mitos' ou 'fantasias' que obstaculizam o caminho da compreenso
da verdade antomo-fisiolgica (ainda que bem simplificada, dadas as condies da
cena de encontro entre elas). Defendem, em maior ou menor grau, a eficcia e a
segurana de todos os mtodos, especialmente do DIU. So estimulados tambm o
condom e o diafragma. Pouco dizem sobre o que elas prprias usam, como experincia
de vida com estes mtodos, e tambm pouco tematizam as diversas experincias das
usurias c o m a contracepo de forma positiva, tratando esta experincia c o m o
contexto formador' dos tais mitos.
O grande desafio das profissionais n o grupo convencer as mulheres de que
possvel controlar a capacidade reprodutiva por meio de recomendaes tcnicas. En-
frentam u m a verdadeira oposio de saberes e buscam nunca igualar-se n o saber da
6
vida, mantendo-se como tcnicas antes de mais nada . U m a das mulheres reclamava
de uma gravidez indesejada, quando outra, buscando consol-la, afirmava que "gravi-
dez nunca vem na hora certa". Mas a enfermagem que chama a possibilidade do poder
feminino, por meio de seu poder de tcnico: 'Acho que a palavra nunca muito grande.
Eu j vi. Eu trabalho n u m local que eu tenho contato com grvida, direto! Tem gravidez
planejada...". Experincia feminina transmuta-se em poder... ganha maior valor de ver-
7
dade e de ensinamento moral .
H, no entanto, uma sensao de batalha perdida. Mesmo as profissionais, apesar da
veemncia da fala, parecem perceber que a desconfiana com a efetividade dos mto-
dos e o medo dos efeitos danosos sade tm base em uma experincia muito concre-
ta, que est na relao com os homens. Esta sim - problemtica assumidamente com-
partilhada por todas as mulheres presentes na cena - passa muito longe da sala de
grupos do Centro de Sade e das informaes tcnicas, tal como colocado por u m a
usuria de escolaridade superior:
Eu, quando fiquei menstruada,fui ao ginecologista, eu sei todociclofisiolgicoenem por isso deixei de ficar
grvida. No uma questo cultural, uma questo de tudo o que acontece, da falta de apoio da mulher. Sei toda
a parte glandular, parte hormonal, mesmo assim... Acho que as mulheres que no tm informao ficam se
culpando o tempo todo de no ter a informao de tudo, fisiolgica, anatmica, eu fui pro brejo (rindo). Porque
no assim, no problema s delas. um problema de todas as mulheres de todos os nveis.
A tentativa de tornar as mulheres mais autnomas encontra-se obstaculizada pelo
simples fato de que a autonomia no pode ser concedida, nem depende apenas de u m
conjunto de informaes. Se estas informaes e este estmulo podem ser responsveis
por ganhos efetivos para as mulheres, tambm podem instaurar u m a nova norma,
quase impossvel de ser atingida: a mulher independente, que controla a reproduo,
tem prazer, conversa com o marido e tem os mesmos direitos do homem. A dificuldade
das profissionais encontra-se na resistncia de grande parte das usurias ao modelo de
identidade feminina e relaes de gnero proposto pelo PAISM. A O mesmo tempo, h uma
segunda dificuldade: c o m o identificar-se com o feminino se a posio institucional

6
Esta dificuldade que as mulheres profissionais tm de, ao mesmo tempo, identificarem-se com o grupo
de usurias e suas questes e defenderem pontos de vistas da instituio, no jogo das diferenas, acirra-
se nas situaes de grupo e na disposio de aes educativas do tipo dialgicas ou comunicacionais.
Veja-se interessante estudo sobre esta mesma situao de conflito quando em atividade de educao
em sala de espera, em Rodrigues et al., 1996.
VICTORA (1995), estudando mulheres de classes populares em Porto Alegre, mostra que as idias de gravidez
7

prevista e desejada so muito diversas entre si, adquirindo cada uma sentidos distintos para mulheres
e profissionais da sade.
proporciona u m a relao assimtrica, e m que o poder e o saber esto polarizados na
profissional, que de u m lugar no-identificado c o m o igual ao feminino prope u m
novo feminino? possvel, do 'alto deste poder', conceder poder para as mulheres?
Parece-nos que no se pode ordenar a algum que seja livre ou exigir que tenha poder...
mesmo quando se pode instigar emancipao pelo reconhecimento e discusso das
condies de subordinao e violncia.

Mulheres falam dos homens

Os homens foram objeto freqente das falas nos grupos, em grande parte das vezes
negativas. Houve tambm algumas referncias positivas, mas sempre ao 'meu homem',
o parceiro atual. Q u a n d o falam dos homens em geral, usurias e profissionais falam de
um s personagem: "machista, ignorante, retrgrado, h o m e m das cavernas". A recla-
mao geral: "homem que nem tatu, no pode ver buraco", "homem feito de pau".
Usurias e profissionais concordam: alm de no se preocupar com contracepo e no
assumir os filhos, os h o m e n s no se preocupam c o m a transmisso de D S T / A I D S e
querem determinar as ocasies e formas de exerccio da sexualidade.
Os dois grupos divergem, entretanto, nas estratgias para enfrentar esta situao. As
profissionais propem como soluo de mudana o dilogo, a conversa entre o casal. O
entendimento e respeito mtuo, buscados por intermdio da conversa poderiam resol-
ver os obstculos que todas julgam encontrar nas relaes com os homens no campo
das escolhas reprodutivas e sexuais, com o que parece concordar apenas uma frao
minoritria das usurias. A maioria delas no parece acreditar na possibilidade de u m
dilogo e, entre as mulheres usurias, as posies se dividem mais uma vez. U m a parte
delas no concorda que as coisas devam mudar. Querem o mesmo, de novo!
Assim, ao se tratar das estratgias de relao com a participao das mulheres e, a
partir disto, definir positivamente o que ser mulher nesta relao com os homens, o
feminino plural. Desta feita... tambm do lado das usurias:
"a gente j foi criadanaquilo,j tem aquela experincia de velho, ento, no tem como a gente mudar mais". "Eu
j penso diferente. Eu acho que nada como um dia atrs do outro..."
Ao que o servio argumenta:
Voc novperspectiva nenhuma? De mudana? Ou voc no quer mudar, ouvocacha que melhorficar nessa,
porque a no vai se comprometer? 0 que voc acha disso: que melhorficar nessa ou...?
Outra parte das usurias no concorda com a atual falta de direitos das mulheres.
Prope c o m o estratgia de mudana a ruptura de relaes desfavorveis sempre que
possvel. Para estas mulheres, o dilogo no parece uma soluo vivel.
Concordarem matria de homens e discordar das estratgias femininas tambm
o que ocorre quando o assunto a maternidade (tratada pelos servios como o nmero
de filhos e o seu controle racional, com a diviso dos encargos contraceptivos). As
profissionais concordam com as usurias em relao no-participao masculina no
que se refere sade reprodutiva. Todos os grupos de contracepo observados comea-
ram com a proposta do servio de discutir a necessidade dessa participao. Mas, como
os homens no o freqentam, este papel tem que ser feito por cada mulher, que deve
mudar 'seu h o m e m ' . Certamente muitas mulheres vo se sentir indefesas com este
encargo adicional. C o m o aumentar o poderem uma relao marcada por desigualda-
des estruturais somente com a vontade individual? Algumas delas declararam preferir
outra estratgia: j que os homens no querem "assumir", elas recusam a aceitar que
eles reconheam a paternidade ou ajudem financeiramente, para no dar a eles "ne-
n h u m direito" sobre os filhos.
Em relao sexualidade, profissionais e usurias concordam que a mulher tem
direito ao prazer, e que o respeito fundamental para este prazer. Concordam tambm
c o m a idia de que os homens, principalmente os maridos, no aceitam uma recusa
quando querem sexo: "Homem, quando ele quer, ele quer". Mas, enquanto o servio
chega a considerar "dar-se s para satisfazer a ele" literalmente uma violncia, algumas
mulheres defendem que "servir a ele" pode ser necessrio... para que ele no arranje outra.
O tema da Outra' crtico, revelando cises e rearranjos entre casadas e solteiras
(potenciais 'outras'), que se combinam diferentemente com as profissionais. O mais
complexo a atuao destas, em fato flagrado relativamente difcil situao de 'sexo
seguro'... Dois cdigos encontraram-se em disputa. U m o necessrio uso da camisi-
nha sempre que h troca de parceiros, ou quando seu parceiro faz trocas (h outras/
outros). O outro o cdigo milenar da no-publicidade da situao de trocas (chama-
das de infidelidades), para alm da aceitao desta situao apenas como algo masculi-
no. No se pode falar dessa possibilidade na negociao. Diante das dificuldades relata-
das, as profissionais encontram-se em u m impasse. Concordam e vivenciam as dificul-
dades de negociar o condom, mas tm o dever profissional de recomendar seu uso. Face ao
impasse, a estratgia relativizar a regra tcnica mais geral, 'usar condom em todas as
relaes', revertendo-a na frmula: 'usar camisinha em relaes eventuais ou quando
pular a cerca'. C o m o este 'pular a cerca' fato que no pode ser reconhecido, a estratgia
da relativizao da norma tcnica revela-se como 'capitulao' - que pode ser perigosa
em relao aos rumos de preveno da epidemia entre mulheres casadas, j que estas
vivem relaes de poder de extrema desigualdade, sem poderem lanar mo de dilogo
e confiana de relaes simtricas. Sem eficcia tcnica, mas resoluo aparentemente
tcnica com total amparo da moral vigente, a adaptao da regra corresponde essenci-
almente a uma atitude conformista e, s ocultas, reconhecedora do problema principal,
que permanece 'no abordado': a relao com os homens. Da a razo de que as dificul
dades relatadas pelas mulheres - "com eles no tem dilogo" -quase no encontrarem
espao de expresso, sendo, de fato, evitadas.
O caso do tratamento das DST u m exemplo de como esta situao pode ser difcil
para os servios de sade. A paciente tem corrimento recorrente e o dilogo c o m a
enfermagem como segue:
"Isso aqui eu levo ( e x a m e ) ? " ; " No, isso fica. Voc queria levar? (silncio) Voc melhorou do corrimento
ou continua?". "Continua". "Ento, agora ele precisa tratar, s voc no adianta, t." "E pra segurar ele? No
adianta!" ( p a u s a ) "Ah, ainda no marquei no seu cartozinho." "Queria fazer uma consulta de...que eu t
sentindo umas dores de cabea sabe, no sei se sinusite."

Este exemplo tem srias conseqncias para a proposta tcnico-poltica do PAISM.


As profissionais limitam-se a fazer o apelo ao dilogo - obstaculizado n o interior da
prpria instituio e m relao s dificuldades encontradas para a negociao sexual
e seus empecilhos. Acabam por no enfrentar os obstculos s suas aes, mudando
de assunto.
Porque no enfrentam esse problema principal? Essa parece ser a grande questo,
em suas situaes de 'duplo': as profissionais tambm precisam manter-se como sujei-
tos tcnicos; querem apoiar as mulheres por meio dessa tcnica e, porfim,comparti-
lham, na maioria das vezes, os mesmo cdigos e valores morais. So, pois, situaes de
conflito de deveres, e m que no podem apelar a qualquer saber exterior quele m o -
8
mento da vida - nem o tcnico-cientfico, nem o prtico. Impasse moral , cuja resolu-
o parece apenas ser enfrentada nas situaes dramticas da violncia.

Situaes de violncia: o trgico na condio de gnero

Foram muitas horas com dor... mas a dor ... nunca senti tanta dor na minha vida... No hospital me
maltrataram l embaixo, as enfermeiras: 'Cala a boca, na hora de darfoibom, nol'Voc t com tanta dor que voc
vai responder o qu?Jt doendo. Elas tratam a gente como se no fosse nada. Acho que se nessa hora elas dessem
uma palavra de carinho, de amor, mas no... j amenizava. A culpa no da gente...

Buscamos na anlise distinguir situaes de violncia em que o sujeito estivesse total-


mente anulado e, ao mesmo tempo, reconhecer as resistncias e exerccios de poder que
formam esses contextos que propiciam o surgimento da violncia. C o m o as atividades
no foram planejadas para estimular ativamente o relato de violncia, nos surpreendemos
com a freqncia de situaes espontaneamente apresentadas (sete, em 16 grupos). As
situaes que foram consideradas violncia em seu sentido mais estrito emergiram sob
diversas formas. Em relao ao espao domstico, houve relatos de violncia fsica e

8
Sobre o conflito moral em situaes de trabalho para os profissionais em sade veja-se SCHRAIBER, 1997a.
sexual; em relao ao espao pblico, foi relatado u m estupro e diversos registros acerca
de violncia institucional. Estas situaes foram identificadas ao se falar de homens
e sexualidade (quatro grupos) e sobre episdios de uso de servios de sade, especi-
almente em relao ao parto (trs grupos). U m aspecto interessante foi a emergn-
cia de mais de u m caso naqueles grupos em que havia u m a situao de violncia
relatada. c o m o se u m relato propiciasse outros, em 'bola de neve'.
As reclamaes dos servios de sade so dirigidas principalmente aos maus tratos
recebidos n o atendimento ao parto (dois grupos). Muitos foram cometidos por profis-
sionais mulheres. As profissionais do CSE solidarizaram-se com as usurias e propuse-
ram a resistncia: reclamar a fala recomendada.
Nestas relaes instituio hospitalar versus usurias, entretanto, parece no haver
menor possibilidade de negociao. Em uma cidade como So Paulo, buscar assistncia
mdica hospitalar em caso de parto quase compulsrio, exceto para u m a pequena
parcela com acesso a opes de outro tipo. Compelidas a buscar assistncia, as mulheres
encontram uma brutalidade a que, dizem, melhor "suportar calada ao invs de gritar,
reagir ou dar escndalo e correr o risco de represlia". "E se eu reclamo e fazem u m corte
maior, de propsito, s pra infeccionar e eu morrer?"
Independentemente de sua ocorrncia, a possibilidade desta imagem eloqente
para demonstrar o estado das relaes entre instituies de sade e usurias. Encurra-
ladas em seu campo de opes, a resistncia pode lhes custar bem caro.
Deus me defendal!Acho que se eu parisse de novo, um lugar que eu no ia era o hospital. Eles cortam, depois
vm com aquela agulha aplicar (ri). Uma vem com anestesia para aplicar eu digo: 0 que"?.' Voc no vai aplicar
injeo nenhuma aqui no! No mandei vocs me cortarem! eu tinha filho no era preciso isso!,'Ah,ento
fica abertona a!'. Eu digo: Deixa! No meu? fui me embora. A me colocaram na cama assim toda aberta,
no tinha colocado um ponto. Depois comeou a hemorragia. Chegou a doutora, queria aplicar, eu digo:
No!, 'Ento vai de sanque frio mesmo!',eudigo:Tudobem'.Ai me costuraram a sangue frio,mas eu nodeixei
me aplicar a anestesia.
Chama ateno a falta absurda de dilogo e acolhimento desta mulher que experi-
mentava pela primeira vez rotinas hospitalares. Tambm notamos que a relativa identi-
dade de gnero e solidariedade, que aparece n o contexto do PAISM, contrasta com a
insensibilidade de gnero demonstrada pela doutora neste relato.
interessante notar que as profissionais do Centro de Sade, apesar de acolherem estes relatos e solidarizarem-
se com as usurias, estimulando o dilogo e a reao, no tm soluo tcnica a propor. Em conseqncia,
parecem ficar um pouco incomodadas com as crticas, acabando por sempre cortar a discusso e mudar de
assunto, sem fazer a tradicional 'fala final', como fazem em todos os outros temas. Dizem apenas'difcil nossa
vida, no?''e voltam ao tema discutido anteriormente.
J a violncia sexual acolhida por profissionais e usurias, contando com a solida-
riedade de todas. As mulheres que relataram violncia domstica no se colocaram
como vtimas, afirmando-se como sujeitos interagindo em situaes extremamente
difceis, em que a mnima reao pode ser punida fisicamente:
"No que ele me batia, a gente se pegava"o meu foitipodeum estupro, mas ele no era assim to violento. T certo
que depois ele me batia, porque eu ficava de cara fechada para mostrar que no estava satisfeita com aquilo."
Diante do trgico, todas parecem se unir:
Eu tinha um trauma comigo. Quando eu era pequena,tinhanove anos, um co l do norte pegou eu, e carregou
para o mato, s que como eu era pequena, ele no consegui nada. A como eu tava vendo que eu no tava agentando
aquela situao que ele queria, a eu meti uma mordida no brao dele e sa At nas minhas pernas tem uma marca de
unha de gato.Vocsabe o que unha de gato, n? , eu sai correndo nos matos (comea a chorar).
O grupo fica tocado e as outras usurias tentam alternativas de resoluo:
"E se ela passasse num psiclogo, acho que melhoria a situao dela", "Sabe, eupasseinum psiclogo na gravidez
dela porque eu no aceitava minha gravidez, eu sou separada. Eu no aceitava, eu passei na psicloga, e inclusive
me ajudou bastante, tanto ela quanto o mdico foram excelentes pessoas comigo. Me ajudou bastante."
A coordenadora do grupo concorda c o m o 'encaminhamento' proposto pelas
usurias:
Ento, depois a gente pode conversar um pouquinho mais sobre uso, elasderamuma sugesto, o que voc acha
disto? Seria legal? Uma ajuda de um professional mais especializado, para te ajudar. Junto com voc, te ajudar a
superar um pouco disto. Voc gostaria de ter prazer, um relacionamentosexual legal porque isso te incomoda pelo
que voc nos mostrou aqui hoje.
Profissionais e usurias foram unnimes no acolhimento e na sugesto de inter-
veno. A possibilidade de solidariedade e da discusso das causas destas situaes - "as
mulheres ficam em relaes violentas por medo", disseram neste grupo duas mulheres
que haviam sado de relaes violentas - assim como a afirmao categrica do direito
da mulher ao respeito e o seu imperativo para a possibilidade de ter prazer foram o tema
da primeira metade deste grupo, quando se discutiu sexualidade e violncia. A outra
metade foi tomada pela discusso dos mtodos contraceptivos, tema principal da ativi-
dade. O tema da violncia foi trazido pelas prprias usurias, que insistiram em discutir
o prazer sexual no grupo de contracepo. Em contrapartida, a coordenadora do grupo
abriu espao para a discusso, acolhendo a demanda apresentada. Porm, este acolhi-
mento no se mostra suficiente para resolver adequadamente as situaes expressas.
significativa a cena que segue: em u m grupo de controle de cncer ginecolgico,
em que se fornece o resultado do exame de controle, uma das mulheres fica tonta no
decorrer da atividade, deita-se e assiste a tudo deitada, sem falar nada. Ao final, depois de
dispensar as outras usurias, a profissional conversa com ela. Neste momento, ela conta
que tem "mania de limpeza" e que o marido "bate nela". Ao ouvir isto, a profissional
tenta encaminh-la sade mental. A mulher resiste: j foi diversas vezes, no gostou,
acha que no adianta conversar. Sem resoluo para o caso, a profissional d alguns
conselhos e dedica-se a convencera mulher a aceitar o encaminhamento. Nesta tentati-
va, ela bloqueia a escuta e encerra o dilogo. Parece que, no conseguindo responder de
modo satisfatrio demanda da paciente, sua angstia por ter algo a oferecer acaba por
impedir a continuidade do trabalho de acolhimento que vinha sendo feito. Tambm
parece ter sido mais difcil a situao de consulta individual, j que o grupo, que tinha ido
embora, no ouviu e no pde amparar solidariamente a mulher. Este amparo do grupo
aparece como identidade de gnero: "eu tambm j passei por isso... e sa" - a identidade de
seus pares, usurias facilita a ausncia de resoluo imediata por parte do servio.
Em termos gerais, as situaes de violncia, apesar de no terem muitas opes de
resoluo, parecem mobilizar bastante os grupos. Impressiona tambm o contraste
destas situaes com o restante da orientao tcnica, que busca a autonomia sexual e
reprodutiva das mulheres. c o m o se todas as explicaes sobre o corpo e o discurso
acerca da paternidade responsvel e do direito da mulher ao prazer cassem por terra,
diante de uma realidade muito cruel. Ao mesmo tempo, a possibilidade da emergncia,
acolhimento e tentativa de resoluo destas situaes tambm uma mostra da possibi-
lidade de relaes mais simtricas no interior dos servios. Por isso mesmo, ser a partir
destas relaes, que, a nosso ver, deveremos re-trabalhar os programas assistenciais, ex-
plorando as distintas concepes do feminino e de seus caminhos; os diferentes saberes
em jogo; e as diversas estratgias de luta e acomodao no sentido de encontrar alternati-
vas mais eficazes para o trabalho. No se trata de negar a diversidade, mas de reconhecer-
mos o movimento de ciso-reunificao de u m feminino em transformao, como o
aqui retratado, para que as relaes possam ser compreendidas e direcionadas para for-
mas interativas de maiores possibilidades dialgicas. O dilogo, que s pode dar-se na
separao da autoridade tcnica em relao moral, evitando que a primeira se transmute
na segunda, continua sendo, em nosso ponto de vista, o modo de se evitar qualquer forma
de violncia. Afinal, a violncia tem na linguagem e comunicao o seu Outro.

Referncias Bibliogrficas

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a
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9

Aes de Contracepo e Assistncia ao Parto:


a experincia do Rio de Janeiro*
Diana do Prado Valladares

No ser o poeta de um mundo caduco


Tambm nocantareio mundofuturo.
Estou preso vida e olhomeus companheiros.
Esto tacitumos, mas nutrem grandes esperanas
Entreeles,considero a enorme realidade.
O presente to grande, no nos afastemos.
No nos afastemos muito, vamos e mos dadas. (...)
Carlos D r u m m o n d de Andrade

Introduo

Para aquelas pessoas que trabalham diretamente c o m outros seres h u m a n o s , as


palavras de D r u m m o n d calam fundo, dando-nos a medida do desafio e da beleza desta
tarefa. Da porque, ao tentarmos traduzirem aes as propostas do Programa de Assis-
tncia Integral Sade da M u l h e r (PAISM), do Ministrio da Sade (1984), u m a das
maiores dificuldades enfrentadas compreender que, em cada ato, o outro u m a
pessoa em toda a sua integralidade e complexidade.

* A experincia aqui relatada fruto de um esforo coletivo. Todos os profissionais que trabalham na ponta
so fundamentais para um atendimento de qualidade. Seria impossvel nome-los. Da equipe de nvel
central, sob o risco de omitir injustamente nomes de companheiros e companheiras, gostaria de citar:
Carla Brasil, Cristina Boaretto, Elisabeth Cavalcante, Giselle Israel, Jane Q. Monteiro, Jean Ruffier, Katia
Ratto de Lima, Luis Claudio Fraga, Maria Auxiliadora Gomes, Maysa L. Gomes e Teresa Costa. Contamos
sempre com a colaborao de: Ana Maria Castro, Ins Rugani, Juraci Ghiaroni, Marcos Dias, Maria Ins
Nogueira, Rosa Domingues, Sandra Lobo e Viviane Castello Branco. Respondem pelo ESPAO M U L H E R : Monique
Miranda (Coordenadora), Louise Mara da Silva, Luiza Cromack, Regina Celia Brando e Tania Silva.
Nunca demais lembrar que o PAISM foi criado em 1983, com base em uma realidade
epidemiolgica e norteado por princpios democrticos e feministas. As idias ali colocadas
questionavam a relao autoritria profissional de sade-cliente, insistiam na importncia
das prticas educativas, apontavam para a necessidade de hierarquizao dos servios, re-
pudiavam polticas demogrficas, enfatizavam a importncia de uma viso mais integral da
mulher. De uma forma bastante geral, podemos dizer que as questes permanecem atuais.
Cumpre-me aqui a tarefa de relatar a experincia da Secretaria Municipal de Sade
do Rio de Janeiro (SMS/RJ), especificamente nas reas de contracepo e parto, dentro
da proposta geral de implantao do PAISM. u m processo que est em pleno curso e que
pretende, ao longo do tempo, propiciar clientela feminina uma ateno de qualidade
em todas as trs grandes reas do PAISM: clnico-ginecolgica, pr-natal e parto.
No estamos ss nesta caminhada. Outras tentativas tm acontecido e certamente
h municpios que, neste momento, enfrentam este desafio. Apesar de no termos
canais de articulao estruturados, ao longo destes anos o intercmbio tem sido poss-
vel por meio de relaes pessoais ou de encontros (de variados tipos) do movimento
feminista e de seminrios, simpsios, congressos da rea da sade ou de outras afins.
Esta forma de aprendizagem tem sido muito estimulante, transformando nossa expe-
rincia especfica, fortalecendo nossa convico de que somos parte de u m movimento
maior, de u m esforo coletivo de construo de u m modelo de ateno mulher que
tenha como base o respeito aos seus direitos de cidadania.
Em uma sociedade em que estes esto garantidos na Constituio Federal mas so
desrespeitados nos pequenos atos do cotidiano, imenso o desafio do PAISM. A pergunta
que nos aflige a cada momento : como garantir populao feminina u m atendimen-
to digno e de qualidade, quando a estrutura dos servios pblicos de sade e parte
significativa dos profissionais esto impregnadas de autoritarismo e preconceito. No
se trata apenas de deciso poltica. Esta fundamental, mas s teremos resultados
satisfatrios se aqueles que esto 'na ponta', isto , aqueles responsveis pelo atendi-
mento direto populao (do funcionrio da recepo ao diretor de uma unidade de
sade, por exemplo) passarem por algum processo de reflexo que questione sua pr-
pria atuao e, a partir da, transformem sua prtica.
Foi com esta clareza e uma enorme dose de otimismo que, em 1991, no incio da
gesto do Dr. Ronaldo Gazolla na Secretaria Municipal de Sade e sob a coordenao da
Dra. Cristina Boaretto, u m grupo de profissionais fez u m diagnstico inicial das aes
at ento desenvolvidas pela SMS/RJ (deste grupo faziam parte mulheres profissionais
da sade que j desenvolviam, h algum tempo, propostas de trabalho que incorpora-
vam, dentre outras, prticas educativas com vis feminista e tcnicas de psicodrama).
Este primeiro retrato indicava que, apesar de atuarmos em vrias reas (preveno
e controle de cncer crvico-uterino, pr-natal, parto e puerprio), a cobertura era
insatisfatria e a qualidade do atendimento, em boa parte das unidades, questionvel.
As condies de trabalho tampouco eram boas: muitas unidades ambulatoriais esta-
vam em condies precrias e algumas maternidades no s necessitavam reformas na
sua estrutura fsica, como conviviam com graves problemas de equipamento (alguns
inexistentes, outros ultrapassados ou, ainda, fora de uso por falta de manuteno). Para
agravar o quadro, tnhamos tambm dificuldades na rea gerencial, dificultando ainda
mais o b o m funcionamento dos servios. E, por fim, uma questo sempre presente:
baixos salrios. Assim, cada u m (a) atuava da forma que lhe parecia mais conveniente e/
ou correta, pois no havia diretrizes de atuao. Isto levava a u m resultado
freqentemente desastroso, em que u m atendimento de qualidade era prestado de
forma aleatria, e a satisfao do(a) usurio(a) dependia da 'sorte' de encontrar um(a)
profissional mais 'interessado (a)'.
Era preciso, ento, traar uma estratgia que recuperasse a auto-estima do (a) profis-
sional, melhorando, ao mesmo tempo, a qualidade da assistncia, aumentando as reas
de atuao do PAISM e a cobertura das aes. C o m o pano de fundo para tudo isto era
necessria uma poltica de recursos humanos que acenasse com uma melhoria salarial
alm de recuperao predial, garantindo condies dignas de trabalho.

Contracepo na rede pblica municipal do Rio de Janeiro

Dentre as vrias aes que no eram realizadas na rede pblica municipal, encontra-
va-se a contracepo. Este fato, associado ocorrncia de elevadas taxas de esterilizao
feminina no Brasil e na cidade do Rio de Janeiro, carncia de servios pblicos de
contracepo e a uma reivindicao j antiga das mulheres, determinaram que assums-
semos como prioridade a implantao de u m servio que garantisse populao femini-
na acesso aos mtodos anticoncepcionais com acompanhamento adequado. Como parte
deste compromisso, a Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro (SMS /RJ) conside-
rava c o m o sua obrigao o fornecimento dos insumos. No queramos depender de
Organizaes No-Governamentais (ONGs) de cunho e histria controlistas.
Como, ento, iniciar este processo?
Algumas premissas estavam claras: as prticas educativas deveriam ser, necessaria-
mente, parte integrante de todo atendimento; o trabalho de grupo seria o locus privilegi-
ado destas prticas educativas; como os(as) profissionais de sade, na sua imensa maio-
ria, no tinham experincia nesta rea, eles(as) deveriam ter a oportunidade de partici-
par de algum tipo de 'treinamento'; 'acesso a mtodo' implicaria em acompanhamento
clnico-ginecogico e nunca em simples distribuio de anticoncepcionais.
Pensamos ento em organizar um grande seminrio, convidando representantes de
todas as 72 unidades ambulatoriais da cidade para apresentarmos nossas idias, propi-
ciar a estes(as) profissionais a oportunidade de vivenciar algumas prticas educativas, e
tambm de ouvir algumas experincias de trabalho que se desenvolviam a partir das
idias preconizadas pelo PAISM. Naquele momento, o municpio de Niteri apresentava
proposta semelhante. Desta forma, o seminrio Sade e Reproduocontracepo e
direitos de cidadania foi realizado em parceria, em agosto de 1991, no Instituto Brasilei-
ro de Administrao Municipal (IBAM), n o Rio de Janeiro. Foi u m acontecimento at
ento indito na SMS/RJ. Durante trs dias, 300 profissionais da sade das diversas
reas (medicina, enfermagem, sade mental, servio social e nutrio) participaram de
oficinas de vivncia (a metodologia utilizada era a do movimento feminista), trocaram
idias e experincias, tiveram prazer no trabalho. Para coordenar as oficinas, alm dos(as)
profissionais dos prprios quadros das duas secretarias, foram convidadas feministas
que j trabalhavam nesta linha em outros espaos. Poucas vezes, no estado do Rio de
Janeiro, o movimento feminista havia contribudo de forma to intensa, em u m nico
momento, para o servio pblico.

A implantao das aes de contracepo

A partir deste seminrio, iniciou-se o processo de implantao das aes de


contracepo q u e segue at hoje o m e s m o fluxo: formao de u m a equipe
multidisciplinar na unidade de sade, que elabora a proposta (que deve incluir, pelo
menos, os contedos a serem trabalhados n o grupo e fluxo de atendimento); esta
enviada para a Gerncia dos Programas de Sade da M u l h e r que, aps avaliao,
rene-se c o m a equipe, tira dvidas, sugere modificaes, discute a proposta d o
PAISM e apresenta todos os impressos necessrios para o desenvolvimento do traba-
lho. Deste m o m e n t o e m diante, a unidade de sade est autorizada a iniciar o
trabalho, que ter obrigatoriamente duas vertentes: atendimento individual e tra-
balho de grupo.
O fluxo estabelecido para as mulheres que solicitam mtodos anticoncepcionais
apresenta variaes. Em linhas gerais, podemos dizer que cada cliente vista pelo menos
duas vezes pelo(a) ginecologista (consulta pr e ps-grupo), participa de u m gru-
po, tem ao menos uma citologia colhida (caso no tenha feito este exame recentemen-
te) e, a partir da adoo do mtodo, passa a ser acompanhada periodicamente (Anexo 1).
Para a realizao dos trabalhos de grupo nas unidades, a SMS/RJ fornece, de imediato,
o material didtico bsico: uma plvis de acrlico com os rgos em tamanho natural; u m
lbum seriado de papel (enviado pelo Ministrio da Sade); dois bonecos de cartolina que
vm em diversos 'pedaos' para serem montados (uma boneca foi elaborada por equipe
da Secretaria Estadual de Sade de So Paulo na dcada de 80 e reimpressa em 1997,
juntamente com a impresso de u m boneco, pela instituio Associao Sade da Fam
lia); folhetos dos mtodos anticoncepcionais (adaptados dos produzidos pelo Ministrio
da Sade); u m conjunto com diversas fitas de vdeo que abordam questes relativas a
sexualidade, gnero,DSTAIDS, gestao, parto e puerprio, contracepo e adolescncia; e
um conjunto de mtodos que serviro para manuseio no trabalho de grupo.
Os insumos contraceptivos fornecidos pela SMS/RJ so: anticoncepcional hormonal
oral, DIU, preservativo, diafragma e gelia espermicida. A SMS/RJ tem se responsabiliza-
do pela compra rotineira dos mtodos, excetuando-se o DIU, cujos quantitativos envia-
dos pelo Ministrio da Sade tm sido suficientes para o consumo.
As equipes locais responsveis pelo trabalho educativo so formadas por profissio-
nais de diversas categorias, destacando-se enfermagem e servio social. A menor parti-
cipao de mdicos(as) deve-se no s a u m a maior dificuldade/resistncia destes(as)
em desenvolver o trabalho educativo (a formao universitria reconhecidamente
muito limitada neste aspecto, alm de freqentemente incorporar preconceitos ou
ignorar questes relativas sade e direitos reprodutivos) como por presso de deman-
da (s vezes difcil para o gestor local 'liberar' u m mdico para u m turno de trabalho
educativo quando isto significa de 12 a 14 atendimentos individuais a menos).
O nmero de profissionais que desenvolvem as prticas educativas em cada unida-
de varia de acordo com a existncia desta ou daquela categoria profissional (nem todas
as unidades contam c o m assistentes sociais e/ou profissionais de sade mental, por
exemplo), do interesse, da disponibilidade de tempo (um outro exemplo: uma unidade
pode ter u m a enfermeira comprometida c o m a proposta, mas c o m o ela a nica
profissional de enfermagem, suas mltiplas obrigaes no lhe permitem implantar as
aes de contracepo). Estas dificuldades de recursos humanos no se restringem ao
Programa da Mulher e sua soluo no ocorrer isoladamente.
A maioria das unidades trabalha com trs reunies por grupo, contando este com
u m a mdia de 10 participantes. O s contedos mais freqentemente abordados so:
fisiologia do aparelho reprodutor masculino e feminino, mtodos anticoncepcionais,
sexualidade. As questes relacionadas AIDS ainda no foram incorporadas de forma
sistemtica, mas identificamos u m processo de gradual incorporao do tema. As dis-
cusses acerca das relaes de gnero acontecem em algumas unidades.
A metodologia e as prticas educativas adotadas apresentam variedade. H grupos
em que a coordenao atua sempre com dinmicas participativas, estimulando a fala
das mulheres, construindo naquele momento conhecimentos coletivos, articulando
questes gerais com as vivncias de cada participante. Em outros lugares, a coorde-
nao tende a transmitir conhecimentos de u m a forma mais tradicional, ainda que
garantindo s mulheres algum espao de participao e reflexo. certo que em
alguns outros o grupo visto c o m o u m conjunto de mulheres que 'precisam' de
informaes e estas lhes so transmitidas em palestras - ou seja, u m a pessoa fala e as
outras 'aprendem'.
Temos a firme convico de que, sem as prticas educativas em grupo, sem a possi-
bilidade de ter acesso informao de maneira menos formal, e m u m a linguagem mais
prxima, de poder refletir sobre sua sexualidade, sua realidade cotidiana, de esclarecer
dvidas, de trocar experincias, a mulher no ter as condies mnimas para fazer
u m a escolha de forma u m pouco mais autnoma.
A autonomia, u m dos objetivos destas aes de contracepo (e do PAISM c o m o u m
todo) de difcil avaliao. Permanecem em aberto as perguntas: O trabalho educativo
tem efetivamente resultado e m u m a possibilidade maior de escolha? A relao profissi-
onal de sade-usuria transformou-se, deixando de ser autoritria? A opo por este ou
aquele mtodo passou a estar nas mos da cliente e no mais na daquele(a) que 'sabe o
1
que melhor para a mulher'?
U m a caracterstica desta estrutura de atendimento foi a criao de impressos
especficos onde so anotadas informaes relativas aos grupos, adoo de mto-
dos anticoncepcionais por faixa etria e u m cuidadoso controle dos insumos. O s
impressos utilizados tm c o m o objetivo garantir informaes mnimas para a pr-
pria equipe (servindo de base para auto-avaliao do trabalho e permitindo acesso
rpido aos dados da populao atendida) e propiciar Gerncia dos Programas de
Sade da M u l h e r condies de conhecer o universo, planejar aes, calcular neces-
sidades de insumos, discutir individualmente c o m as unidades o trabalho executa-
do (Anexos de 2a 5). Esta organizao, bastante detalhada, apesar de enfrentar algu-
mas resistncias, tem dado excelentes frutos: muitos profissionais hoje compreen-
dem que a qualidade do atendimento implica tambm organizao e planejamen-
to; outros apropriaram-se da idia de que na sade pblica o trabalho educativo e m
grupo deve andarparipassu com o atendimento individual; h os que hoje sabem que
n e n h u m ( a ) profissional, por mais c o m p e t e n t e q u e seja, consegue dar conta
sozinho(a) de u m a 'ateno integral' e, portanto, a perspectiva multidisciplinar a
possibilidade de responder melhor ao desafio da integralidade; apesar das dificulda-
des salariais, tem sido possvel estimular a auto-estima.
O s dados coletados rotineiramente ao longo destes seis anos apontam para u m a
distribuio de uso de mtodos que nos parece bastante interessante (Tabela 1):

1
A tese de doutorado de Auta de Souza (1996) refere-se a estes e outros aspectos das aes de contracepo
na rede pblica municipal do Rio de Janeiro.
Tabela 1 Uso de mtodos anticoncepcionais por nmero de
mulheres atendidas em 71 unidades da Secretaria
Municipal de Sade do Rio de Janeiro 1992-1997

Fonte: Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro, S/SSC/CPS/GPM.

Esta distribuio nos leva a algumas reflexes:


quando apresentada a vrias alternativas, a populao no se restringe a apenas uma
ou duas opes, mas escolhe de forma bastante diversificada, refletindo b e m a
heterogeneidade de situaes vividas;
esta variedade de escolhas em boa parte fruto do trabalho educativo, que est permitindo
s mulheres espao para absorver informaes e refletir sobre suas questes individuais;
em relao ao preservativo: apesar de os grupos serem abertos participao masculi-
na, o nmero de homens que comparecem m n i m o e, por isso, u m percentual de
21,4% do uso de camisinha significa que a maior parte destes usurios optou por este
mtodo 'atravs' de suas esposas, companheiras ou namoradas;
no que diz respeito ao diafragma: u m percentual de 7,5% de usurias u m a grande
vitria, especialmente quando sabemos das resistncias dos(as) profissionais em rela-
o a este mtodo. Ousamos dizer que a mulher que adota u m diafragma conseguiu
vencer vrios obstculos: o seu desconhecimento; as suas prprias dificuldades em
optar por u m mtodo pouco falado e pouco utilizado; a eventual resistncia do com-
panheiro; algumas vezes, a 'desconfiana' dos(as) prprios(as) coordenadores(as) do
grupo com relao ao diafragma; ou, ainda, o possvel desestmulo do(a) mdico(a) n o
m o m e n t o da consulta individual ps-grupo. Adicione-se a tudo isto o fato de que o
uso d o diafragma pressupe u m a intimidade c o m o prprio corpo qual muitas
mulheres no esto acostumadas;
e m relao ao percentual de mtodos naturais: nossa hiptese mais forte a de
que, aliada convico de muitos(as) profissionais da baixa eficcia destes m -
todos, encontra-se u m a desconfiana da prpria populao ( bastante c o m u m
que haja n o grupo pelo m e n o s u m a m u l h e r que afirme conhecer algum c o m
q u e m o m t o d o 'falhou');
finalmente, pensamos nos 53,0% de mulheres que adotaram a plula. Tendo em vista
ser este mtodo amplamente conhecido, de fcil acesso e de alta eficcia, esta percen
tagem deve ser considerada baixa.

Esta variedade na escolha dos mtodos no se d de forma homognea em toda a


rede, excetuando-se a opo pela plula, que est sempre em primeiro lugar. Q u a n d o
olhamos as unidades de sade individualmente, s vezes possvel identificar 'prefe-
rncias' que, a nosso ver, refletem opinies/posies seja da coordenao do grupo, seja
do(a) profissional que atende no consultrio. Exemplificando: h unidades em que a
escolha inicial das usurias bastante variada, mas boa parte delas acaba adotando o
DIU. Nas unidades em que h regularmente mulheres escolhendo diafragma, identifi-
camos equipes mais comprometidas com os mtodos de barreira (no raro que nestes
locais tambm o uso do preservativo seja significativo).
Ao longo destes anos temos procurado conhecer trabalhos semelhantes em outras
cidades do Pas com o intuito de melhor avaliar nosso desempenho e trocar experinci-
as. Infelizmente, no conseguimos obter estas informaes. Parece-nos que na maioria
das cidades onde o setor pblico assumiu esta responsabilidade os dados no esto
disponveis (pelo menos na forma que nos permitisse alguma comparao).
Paralelamente implantao das aes de contracepo na rede bsica, a SMS/RJ
criou u m centro de treinamento, fruto de uma proposta apresentada pelo Ministrio da
Sade durante o Seminrio Sade e Direitos Reprodutivos, em 1991.
Naquela oportunidade, foi destacada a importncia de se criar u m plo de treina-
mento para as aes tcnicas e educativas na rea de sade da mulher. Observou-se
tambm a necessidade de u m a capacitao que utilizasse uma metodologia de traba-
lho com base n o desenvolvimento de prticas educativas e que comportasse espao
para a escuta e expresso da mulher. Esta proposta era parte de u m a poltica do Minis-
trio da Sade, que se comprometia a fornecer equipamento e instrumental m n i m o
necessrio para o funcionamento de u m consultrio ginecolgico, material educativo
(folhetos, lbum seriado) e mtodos anticoncepcionais (um tipo de anticoncepcional
1
oral, alguns nmeros de diafragma, gelia espermicida, preservativo e D I U ) . A
contrapartida do municpio seria espao fsico, recursos humanos e tudo o mais que
se fizesse necessrio.

1
O envio desses insumos foi feito de forma inconstante ao longo dos anos. Em determinado momento,
o Ministrio da Sade comunicou que no mais se responsabilizaria pelo fornecimento dos mtodos.
No entanto, alguns continuaram chegando ao Centro de Treinamento, ainda que de forma irregular.
O "ESPAO MULHER"

Em dezembro de 1992, inauguramos o Centro de Treinamento em Ateno Integral


Sade da M u l h e r - ESPAO MULHER, que passou a funcionar no Centro Municipal de
Sade Milton Fontes Magaro, situado na Zona Norte da cidade.
Levamos algum tempo para definir onde seria este centro de treinamento e compor
u m a equipe inicial mnima. Esta demora deveu-se a diversos fatores: dificuldade de
identificarmos uma unidade de sade que j tivesse pelo menos alguns profissionais
no s trabalhando com prticas educativas, mas, tambm, com u m perfil 'didtico'
especfico para a nossa proposta (no tnhamos condio de contar c o m n e n h u m
recurso h u m a n o fora dos quadros da prpria Secretaria). 0(a) profissional mais difcil
de ser encontrado(a) foi o(a) gineco-obstetra, uma vez que muito raro (pelo menos na
rede municipal do Rio de Janeiro) ter algum nesta especialidade que alie competncia,
uma viso da ateno mulher dentro do que preconizado pelo PAISM e a capacidade de
ensinar. Havia o aspecto da localizao geogrfica da unidade, pois era importante que
estivesse e m algum bairro c o m acesso relativamente fcil para a maioria dos(as)
funcionrios(as). U m espao fsico adequado foi outro desafio: era necessrio garantir
um lugar apropriado e acolhedor (por exemplo, uma sala em que fosse possvel reunir
20 pessoas de maneira informal) para o desenvolvimento dos trabalhos de grupo - e isto
no era fcil, pois a arquitetura tradicional para unidades ambulatoriais no inclua a
dimenso das prticas educativas como componente do atendimento. Para finalizar,
tnhamos de encontrar u m a gerncia local que considerasse a criao deste Centro
como u m avano na ateno mulher, compreendendo que ser u m espao de treina-
mento era algo positivo, que s beneficiaria sua unidade e a populao por ela atendida.
A equipe bsica inicial compunha-se de u m a gineco-obstetra, duas enfermeiras e
duas assistentes sociais. Alm deste 'ncleo', contvamos com duas psiclogas, u m a
assistente social e uma auxiliar de enfermagem, que atuavam nos grupos de contracepo
e na organizao do atendimento individual no consultrio.
O Espao Mulher iniciou suas atividades de treinamento em 1993.0 pblico-alvo
era (e permanece sendo) composto de profissionais da rede pblica de sade, mas no
necessariamente apenas da SMS/RJ. Nosso Centro de Treinamento de mbito estadual,
recebendo alunos(as) de outras instituies pblicas que funcionam na cidade do Rio
de Janeiro e de outros municpios.
Ainda que o principal objetivo fosse capacitar para o trabalho educativo na rea da
contracepo, a equipe nunca ministrou seus cursos com u m a perspectiva limitada
apenas a esta questo. At porque trabalhar assim teria sido negar a proposta de uma
ateno integral mulher. O contedo dos cursos tem sofrido modificaes ao longo
destes anos, refletindo u m aprimoramento da coordenao e a incorporao de novos
temas. C o m o exemplo, podemos citar o fato de que a temtica "Mulher e AIDS" foi mere-
cendo u m a ateno cada vez mais especial; Adolescncia" e "Mortalidade Materna"
tambm foram incorporadas de forma mais especfica. interessante lembrar que os
cursos destinam-se a profissionais que esto atuando em servio, no sendo nossa
proposta oferecer n e n h u m tipo de formao acadmica (Anexo 6).
At 1998, haviam sido ministrados 14 cursos regulares para profissionais de nvel
superior e trs para profissionais de nvel mdio. Houve uma distribuio bastante
variada entre as diversas categorias profissionais: 86 enfermeiras(os), 57 auxiliares de
enfermagem, 47 assistentes sociais, 37 gineco-obstetras e 14 psiclogos (as).
Ao longo dos anos, o Espao Mulher diversificou bastante suas atividades, tendo
inclusive produzido u m vdeo sobre trabalho educativo c o m mulheres. Atualmente,
alm dos cursos, coordena atividades do prprio Programa da Mulher e de outras insti-
tuies pblicas (especialmente oficinas de vivncia), participa da elaborao de proje-
tos, presta assessoria a outros programas, colabora em pesquisas, supervisiona aes de
contracepo nas unidades. Em funo desta mudana de perfil, o Centro de Treina-
mento desvinculou-se do C M S Milton Fontes Magaro, passando a estar ligado direta-
mente ao nvel central da SMS/RJ. s suas atividades de capacitao o Espao Mulher
adicionou a co-coordenao da proposta mais recente do Programa da Mulher na rea
materno-infantil- a implantao da consulta de enfermagem de pr-natal e da assis-
tncia da enfermagem obsttrica no pr-parto e e m sala de parto na rede municipal.
A avaliao do desempenho do Espao Mulher nos permite afirmar que a estratgia
de criao de u m centro de treinamento foi acertada, ainda que tambm aqui tenha-
mos carncia de recursos humanos: a equipe hoje existente no consegue responder a
todas as demandas, alm de reivindicar a incorporao de profissionais das reas de
Sade Mental e Servio Social.

Prximos desafios

Aps seis anos de implantao das aes de contracepo, fortalecemos a convico


de que possvel atender com qualidade na rede pblica.
No entanto, muitas questes e insatisfaes permanecem: ainda estamos longe de
ter uma rede que, na sua maioria, compreenda que atender com qualidade obrigao
e no benesse; muitos profissionais da sade, especialmente os(as) mdicos(as), se
consideram profissionais liberais e tm dificuldade de aceitar o fato de que u m a
secretaria municipal de Sade (seja ela onde for) u m a instituio e, c o m o tal, tem
normas prprias que devem ser seguidas; vrios so aqueles que insistem e m con-
siderar a populao usuria do servio pblico c o m o de segunda ou terceira catego-
ria e, por isso, a tratam de forma discriminatria, caracterizando u m a violncia
2
institucional ; muitos continuam sem entender que as questes de gnero perpas-
sam todo tipo de atendimento a mulher; a grande mobilidade (horizontal e vertical)
dentro da prpria S M S / R J leva a interrupes do trabalho que c o m p r o m e t e m a
qualidade e a cobertura das aes; apesar de estarmos sempre enfatizando que a
contracepo no u m a ao isolada, e sim parte do atendimento clnico-ginecol
gico, h u m a tendncia dos servios de se organizarem em turnos especficos para
a contracepo.
A cobertura das aes necessita de ampliao, o que significa incorporar mais recur-
sos humanos para o trabalho educativo e para o atendimento clnico (assistentes soci-
ais, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, mdicos). Na crise porque passa o servio
pblico neste pas, aumento de quadros sempre u m problema de difcil soluo e, por
isso, esta , certamente, uma das maiores dificuldades a serem superadas.
A qualificao dos profissionais hoje existentes tambm u m grande desafio. Neste
aspecto, a atuao do Espao Mulher tende a ser cada vez maior, inclusive com a pro-
posta de treinar, de forma mais constante, os(as) profissionais que atuam diretamente
com a ateno ao parto.

Ateno ao parto e ao nascimento

Em 1993, a Coordenao de Ateno Integral Sade, que abrange, entre outros, os


programas da Criana, do Adolescente e da Mulher, visitou todas as maternidades pbli-
cas na cidade do Rio de Janeiro (com exceo das militares), classificando-as segundo o
nvel de complexidade. Deste trabalho resultou u m documento que tinha por objetivo
apresentar uma proposta de recuperao, ampliao e qualificao da assistncia obst-
trica no municpio do Rio de Janeiro. Este diagnstico apontava para:
u m a reduo dos leitos obsttricos pblicos devido, principalmente, m e n o r partici-
pao das instituies federais e estaduais n o v o l u m e de internaes obsttricas. Tal fato
t e m d e t e r m i n a d o u m a sobrecarga dos servios pblicos municipais, maior utilizao
de servios contratados pelo S U S (alguns de qualidade questionvel) e u m a verdadeira
peregrinao de gestantes e recm-natos e m busca de assistncia adequada. Esta situa-
o t e m se refletido nos indicadores de sade q u e m o s t r a m taxas elevadas d e
natimortalidade, mortalidade materna, e u m grande percentual de bitos infantis
causados por afeces perinatais. (Secretaria Municipal da Sade, 1994)

2
Luis Fernando Verssimo, ao se reportar ao assassinato do ndio Patax Galdino Jesus dos Santos, dizia:
"Vivemos entre exemplos dirios de desprezo pelo pobre e de autodesprezo do pobre. Temos uma
histria de desprezo, uma cultura de desprezo, um desprezo atvico e institucional. Nossos sistemas de
sade e penitencirio so formas organizadas de desprezo pblico." (Jornal do Brasil, 23/04/97).
Para a SMS/RJ, este diagnstico passou a ser o norteador na definio de prioridades
para a rea perinatal: propunha-se a abertura ou reativao de leitos pblicos maternos
e neonatais a partir de u m a distribuio proporcional populao de cada rea
3
Programtica (A.P) e a correspondentes nveis de complexidade (baixo, mdio e alto
risco). Esta proposta apresentava algumas limitaes, especialmente por tratar de leitos
na sua maioria j existentes e cuja distribuio no havia seguido necessariamente
critrio populacional. Tnhamos, por exemplo, mais leitos obsttricos e neonatais do
que o necessrio para o total de gestantes residentes na A.P. 1 (centro da cidade) o que, no
entanto, no significava ociosidade, uma vez que a peregrinao das gestantes de outras
reas da cidade e, inclusive, de outros municpios, acabava levando sobrecarga das
unidades desta rea. A distribuio de leitos por nveis de complexidade tambm refle-
tia a ausncia de u m planejamento global. Alm disso, a reabertura de leitos pblicos
estaduais e federais, fator fundamental para a soluo destes problemas, estava obvia-
4
mente fora do alcance da SMS/RJ .
Por outro lado, embora a existncia de leitos e m quantidade suficiente seja pr-
condio para a realizao de u m atendimento de qualidade, este resultado de u m a
complexa trama de fatores.

A Maternidade Leila Diniz

Ciente das dificuldades enfrentadas pelas gestantes em conseguirem parir com dig-
nidade, a SMS/RJ desenvolve, desde 1993, uma proposta que pretende oferecer m u -
lher a possibilidade de vivenciar c o m segurana e prazer este momento crucial de sua
sexualidade.
A primeira etapa foi a reabertura da antiga maternidade do hospital Raphael de Paula
Souza, do Ministrio da Sade, situada em Jacarepagu, bairro da Zona Oeste da cidade,
onde no havia u m nico leito obsttrico pblico. Esta maternidade havia sido desativada
dois anos antes por carncia de recursos humanos. Foi precisamente a que a equipe da
Superintendncia de Sade Coletiva identificou a possibilidade de implantar u m servio
que se diferenciasse dos demais na forma de atender a mulher e a criana. Preconizvamos:

3
A SMS/RJ dividiu o municpio, para fins de planejamento e implantao de servios, em 10 reas
Programticas que englobam uma ou mais regies administrativas.
4
Em 1993, a SMS/RJ tinha sob sua responsabilidade direta a gerncia de quatro maternidades: Instituto
Municipal da Mulher Fernando Magalhes, Maternidade Herculano Pinheiro (mais tarde denominada
Unidade Integrada de Sade Herculano Pinheiro) e as maternidades dos hospitais Miguel Couto e
Paulino Werneck. O Ministrio da Sade respondia por seis, a Secretaria Estadual de Sade por quatro e
existiam trs maternidades ligadas a hospitais universitrios.
u m ambiente agradvel e acolhedor em toda a maternidade;
o direito da mulher de optar por u m (a) acompanhante durante o pr-parto e o parto;
o estmulo deambulao;
u m espao adequado para banho, com uso de u m banquinho para aquelas que dese-
jassem relaxar sob u m a ducha fria ou morna;
a utilizao de u m a banheira para as mulheres que desejassem relaxar durante o
trabalho de parto;
u m cuidadoso acompanhamento do trabalho de parto, respeitando as necessidades
fsicas e emocionais da parturiente;
a possibilidade de a mulher escolher em qual posio gostaria de parir (deitada,
verticalizada, recostada);
u m a assistncia ao trabalho de parto e parto com o m n i m o de interveno possvel,
em que cada procedimento fosse tecnicamente justificado;
u m a participao efetiva da enfermagem obsttrica no pr-parto e no parto;
u m a equipe integrada (auxiliar de enfermagem, enfermeira, obstetra, pediatra),
comprometida com u m a assistncia que priorizasse a clientela e no os interesses
do grupo ou a rotina;
o compromisso da equipe em estimular, ainda na sala de parto, o aleitamento materno
e a formao do vnculo me-filho(a);
o manuseio do recm-nato da forma mais suave possvel, evitando procedimentos
desnecessrios;
a presena do beb ao lado da me de forma ininterrupta, a partir do nascimento,
anulando o perodo de Observao' em berrio especfico;
a presena do pai, sem restries, durante todo o tempo de internao (utilizou-se o
slogan "Pai no visita");
o alojamento conjunto em enfermarias agradveis e acolhedoras;
u m trabalho 'leito a leito' c o m relao ao aleitamento materno, n o s para tirar
dvidas, estimular a formao do vnculo, ensinar como amamentar, mas, tambm,
dar suporte emocional em momento to delicado para a mulher e o beb.
Para aquelas pessoas que tm alguma experincia nesta rea, a leitura da 'lista' ante-
rior permite imaginar imediatamente o nvel de resistncia encontrado. Esta proposta,
na realidade, significava (e continua significando) uma reviravolta em u m modelo de
assistncia que prioriza o servio; que freqentemente utiliza procedimentos desne-
cessrios ou mesmo prejudiciais para a mulher e a criana (OMS, 1996); que se baseia
em u m a estrutura hierrquica em que o poder mdico ocupa o topo da pirmide e no
qual a mulher deve se adaptar ao que cada unidade estabelea como rotina, indepen-
dentemente das suas necessidades.
Conscientes d o que nos esperava, optamos por uma estratgia de sensibilizao,
acreditando que, c o m tcnicas de oficina de vivncia, apresentao e discusso de
dados e experincias de outros lugares, seria possvel 'conquistar' alguns profissionais
que atuariam, ao longo do tempo, como estimuladores de uma mudana profunda.
Sabamos que nossa proposta era inovadora dentro da SMS/RJ, mas insistamos com os
profissionais que, na verdade, no trazamos nada de muito novo. Desde a dcada de 60,
os trabalhos pioneiros de Caldeyro-Barcia, Moyses e Cludio Paciornick e Galba Arajo
apontavam para as vantagens do parto vertical, para me e beb (Sabatino; D u n n &
Caldeyro-Barcia, 1992). Em 1985, a Organizao Mundial de Sade recomendava uma
assistncia nos mesmos moldes que s agora estamos propondo (OMS, 1966). As
pesquisas de Hugo Sabatino, em Campinas, s vieram reforar estas posies (Saba-
tino; D u n n & Caldeyro-Bacia, 1992). N o Rio de Janeiro, na Maternidade Praa X V o
dr. Fernando Estelita Lins estimulou o parto vertical durante muitos anos. Abelssima
ao cotidiana das doutoras Esther Vilela e Lvia Carneiro e m Ceres, Gois, nos da-
vam a certeza de que era possvel atender c o m competncia e u m a enorme dose de
h u m a n i s m o (Ncleo de Sade da Mulher, 1993). O trabalho pioneiro e profunda-
mente questionador de Michel Odent (1984) tambm era fonte de inspirao para
a equipe da S M S / R J . O modelo assistencial de alguns pases desenvolvidos, c o m o
Holanda, Inglaterra e Alemanha, h muito j colocava a ateno ao parto normal nas
mos da midwife, parteira c o m formao especfica, geralmente e m u m curso de
quatro anos; ao mdico compete assumir os partos em que ocorre alguma compli-
cao. Tambm nestes pases pressuposto que este u m m o m e n t o extremamente
importante na vida da mulher, m o m e n t o de grande intensidade emocional, que
exige da equipe que a est a c o m p a n h a n d o no s competncia c o m o respeito s
5
suas necessidades .
Foi assim que n o primeiro semestre de 1994 elaboramos uma programao para
todos(as) aqueles(as) que iriam trabalhar na maternidade. M o n t a m o s u m a srie de
oficinas de vivncia e organizamos u m seminrio para o qual convidamos profissio-
nais que tinham experincia dentro da proposta que queramos implementar. Esti-
m u l a m o s , ainda, u m a intensa discusso e m torno da enfermagem obsttrica, vi-
sando a propiciar a atuao desta n o pr-parto e na sala de parto. Paralelamente,
definimos as m u d a n a s na rea fsica da unidade que, c o m a reforma, passou a
oferecer s clientes u m a rea individualizada para o pr-parto (permitindo maior
privacidade e a presena de acompanhante), u m espao para deambulao, u m a
banheira prpria para trabalho de parto e parto e u m mdulo obsttrico para parto
vertical. Tudo isto e mais todo o resto da unidade pintado e m cores agradveis,

5
Os artigos de DOMINGUES (1996), UMBERLINO (1996) e SILVA ( 1 9 9 6 ) mais tarde possibilitaram um conhecimento
mais detalhado destas realidades.
criando u m espao mais acolhedor. O berrio e o centro cirrgico tambm rece-
beram o tratamento adequado, dentro dos parmetros de u m a maternidade que
no era de risco.
Em j u n h o de 1994, (re)inauguramos a Maternidade Leila Diniz c o m 33 leitos
obsttricos. Hoje, com 65 leitos maternos e 15 leitos intensivos neonatais, ela apre-
senta as seguintes caractersticas:
a incorporao do(a) acompanhante no pr-parto e na sala de parto (para parto nor-
mal) tem garantido a parturiente u m apoio fundamental;
o parto vertical representa 5% do total de partos normais;
a enfermagem atua na sala de parto, apesar de o nmero de enfermeiras obsttricas
estar aqum do desejado. Alm disso, as enfermeiras no s so as grandes respons-
veis pelo estmulo ao parto vertical, como algumas delas j treinaram profissionais
mdicos (as) na arte de acompanhar a mulher nesta forma de parir;
a presena do pai nas enfermarias e na UTI neonatal, a qualquer hora, no sofre mais
questionamentos importantes;
h u m trabalho consistente de incentivo ao aleitamento materno, inclusive nos casos
das crianas que esto no berrio (Vaitsman, 1997);
a atuao especial de uma mdica de sade pblica permitiu a criao de instrumen-
tos de registro que integram viso epidemiolgica u m olhar mais sensvel para as
questes da mulher;
a direo da unidade vem implantando diferentes instrumentos para avaliao da
interveno obsttrica (para entender de que maneira esta vem acontecendo e como
atuar a partir deste conhecimento), e para anlise de dados de produtividade, morta-
lidade materna e perinatal e perfil da assistncia (Dias, 1996). Alguns destes instru-
mentos passaram a ser utilizados nas outras maternidades do municpio.
U m a avaliao bastante resumida diria que a experincia destes quatro anos tem
apontado no s para novos caminhos como para os limites e dificuldades impostos
pela realidade institucional (o ponto mais contundente foi a carncia de anestesiologistas,
cujo nmero insuficiente trouxe graves transtornos durante u m perodo bastante lon-
go) e pela atuao dos nossos profissionais. Nesse tempo, confirmamos a hiptese de
que mudanas na forma de atender a mulher e a criana so possveis, ao m e s m o
tempo em que aprendemos a exercitar a pacincia. U m conhecimento maior do pro-
cesso vivenciado pelos (as) profissionais da Maternidade Leila Diniz a partir das propos-
tas da SMS/RJ o contedo da dissertao de mestrado de Katia Ratto de Lima (1997).
Desdobramentos

U m dos resultados mais importantes desta experincia foi o processo de expanso


deste modelo para outras maternidades da rede municipal. No alcanamos ainda as
metas propostas, mas no h dvidas de que avanamos bastante. Ao longo do tempo,
resistncias e preconceitos vm sendo superados, em ritmo mais lento do que o deseja-
do, mas de forma consistente.
Em 1995, a SMS/RJ absorveu trs grandes maternidades do Ministrio da Sade,
dentro do processo de municipalizao (maternidades Alexander Fleming, Carmela
Dutra e Praa XV). Assim, contamos hoje com oito unidades, localizadas em diferentes
reas da cidade e c o m nveis diferenciados de complexidade.
Nos ltimos cinco anos, duas maternidades foram reinauguradas, sendo uma de
baixo risco (U.I.S. Herculano Pinheiro) e outra de alto risco (Instituto Municipal da
Mulher Fernando Magalhes). Foram obras de grande porte, que exigiram o fechamen-
to provisrio destas unidades. Do ponto de vista arquitetnico e de equipamento elas
so diferentes, mas foram reformadas partindo dos princpios de humanizao e de
respeito aos direitos de cidadania pelos quais nos pautamos desde a proposta da Mater-
nidade Leila Diniz.
Assim, na U.I.S. Herculano Pinheiro o pr-parto individualizado; o centro obsttri-
co inclui u m a sala para relaxamento e uma banheira; construiu-se u m solrio; dentro
da maternidade h uma sala para reunies com a clientela; houve u m cuidadoso trata-
mento cromtico em todos os espaos; toda a unidade climatizada (o que no u m
luxo, considerando tratar-se de uma das regies mais quentes da cidade).
Em 1998, foram lotadas enfermeiras obsttricas em todos os plantes, com a funo de
acompanhar o pr-parto e assistir os partos normais. Esta lotao parte da proposta de
implantao do novo modelo assistencial na rede e incluiu a Maternidade Alexander Fleming,
alm de tambm institucionalizar a consulta de enfermagem de pr-natal em toda a rede
6
ambulatorial da rea Programtica 3.3 . Para poder concretizar esta proposta, a SMS/RJ vem
contando com a inestimvel colaborao da Faculdade de Enfermagem da Universidade do
Estado do Rio de aneiro (UERJ), que assumiu a responsabilidade pela reciclagem e formao
de enfermeiras obsttricas e pelo treinamento em servio, juntamente com o Espao M u -
lher e com enfermeiras obsttricas dos quadros da prpria secretaria.
A reforma da planta fsica da U . I. S Herculano Pinheiro foi fundamental, mas obvia-
mente no garantiu por si s u m atendimento digno e de qualidade. O grande desafio
do momento a implantao de novas rotinas, que representam, em grande parte, as
mudanas propostas. As dificuldades so variadas: existe ainda uma considervel resis

6
Esta uma rea geogrfica que conta com o maior nmero de gestantes do municpio, aproximada-
mente 20.000.
tncia presena do(a) acompanhante, principalmente por parte dos(as) profissionais
7
mdicos(as); apesar de a Cmara Tcnica de Obstetrcia ter redefinido rotinas basea-
das em evidncias cientficas (por exemplo, tricotomia e enterclise s sero feitas por
indicao precisa, assim c o m o o uso de ocitcicos), boa parte do corpo clnico ainda
no as incorporou; a participao efetiva da enfermagem tem enfrentado muitos
questionamentos por parte dos(as) mdicos(as), mas o respaldo legal e u m insistente
trabalho de discusso vm tomando possvel avanar nesta rea da assistncia.
No caso do Instituto Municipal da Mulher Fernando Magalhes, as obras tambm
incorporaram estas idias e apresentaram algumas inovaes muito interessantes,
como o caso do pr-parto. A prpria equipe da maternidade props que se substitu-
ssem os dois ambientes - pr-parto e sala de parto - por u m nico onde, e m boxes
individualizados, as parturientes vivenciassem o trabalho de parto e o parto evitando,
entre outras coisas, o desconforto da locomoo para a sala de parto. Para tal, foi
necessrio comprar camas importadas de alto custo, que propiciam conforto e per-
mitem a adoo de diversas posies de parir. Durante boa parte da obra, todas as
chefias da maternidade se reuniram de forma sistemtica para aprofundar a discus-
so em t o m o do novo modelo assistencial proposto. No foi tarefa simples, sobretudo
porque o I. . M . Fernando Magalhes a principal maternidade de risco da rede
pblica municipal, o que significa adequar condies de atendimento altamente
sofisticadas e freqentemente muito invasivas a propostas que enfatizam os menores
ndices de interveno possveis.
Tambm nesta maternidade as propostas ainda no foram totalmente incorporadas
por todos os plantes, principalmente as que se referem ao () acompanhante e aos
procedimentos de rotina obsttrica. A atuao da enfermagem obsttrica no sofre
muitos questionamentos porque esta uma unidade em que este tipo de assistncia j
se desenvolve h 10 anos.
Alm destas duas unidades hospitalares, outras duas maternidades passaram por
algum tipo de reforma nos ltimos cinco anos. A maternidade do Hospital Municipal
Miguel Couto no pde fazer modificaes profundas em virtude de limitaes de
espao, mas melhorou consideravelmente seu aspecto fsico. A Maternidade Alexander
Fleming havia iniciado obras importantes antes de ser municipalizada e j vivenciava
u m esforo de melhorar sua qualidade. Foi a primeira maternidade pblica no munic-
pio do Rio de Janeiro a ser credenciada, em 1996, como Amiga da Criana e de receber
o selo de Maternidade Segura (ambos so atestados de qualidade emitidos a partir de
avaliaes cuidadosas do Fundo das Naes Unidas para a Infncia - UNICEF -, do Minis-
trio da Sade e da Secretaria Estadual de Sade).

7
A Cmara Tcnica de Obstetrcia formada pelas chefias de obstetrcia e enfermagem das oito mater-
nidades municipais.
C o m o dito anteriormente, em 1998 a Maternidade Alexander Fleming recebeu en-
fermeiras (os) para atuao no pr-parto e parto. Apesar de algumas dificuldades inici-
ais, estes (as) profissionais integraram-se gradualmente aos plantes, e hoje j esto
podendo trabalhar com mais autonomia. A questo do(a) acompanhante tambm est
sendo resolvida de maneira gradual.
Ainda em 1998, a Maternidade da Praa X V reformou parte do seu centro obsttrico,
criando u m espao de pr-parto individualizado, podendo assim receber acompanhante.
Na verdade, esta unidade j permitia acompanhante para as gestantes adolescentes e para
as mulheres que haviam sido submetidas cesariana. Esta reforma serviu para ampliar
esta possibilidade e no encontrou maiores resistncias por parte dos(as) profissionais.
No incio de 1999, a Maternidade Carmela Dutra passou a permitir a presena de
uma pessoa do sexo feminino nas salas de pr-parto. Esta limitao deve-se ao fato do
ambiente no oferecer as condies mnimas de privacidade.

Perspectivas

Hoje, em seis das oito maternidades do municpio do Rio de Janeiro, existe a opor-
tunidade de haver uma pessoa ao lado da parturiente. Como, no entanto, esta presena
no se d de forma homognea, o esforo agora no sentido de que isto acontea em
todos os plantes, de todas as unidades, sem restries de sexo.
A atuao da enfermagem obsttrica outro desafio que ainda precisa ser vencido.
Atualmente, contamos com este tipo de assistncia em quatro maternidades, e tambm
aqui necessitamos continuar investindo. necessrio consolidar o trabalho iniciado e
expandi-lo para as outras unidades municipais.
A mudana nas rotinas obsttricas objetivo a ser alcanado a mdio/longo prazo,
pois implica questionar prticas mdicas arraigadas, em transformar contedos da
prpria formao acadmica. Ser preciso u m trabalho constante de atualizao dos
conhecimentos cientficos e discusses aprofundadas com as equipes.
O s prximos trs anos sero cruciais para as propostas ora e m implantao nas
unidades municipais. Resultados maternos e neonatais sero indicadores fundamen-
8
tais de avaliao, acoplados a outras formas de anlise da qualidade do servio .
Se o setor pblico (e sempre b o m lembrar que este abrange tambm as esferas
estadual e federal) se prope a efetivamente resolver a ateno ao parto e ao nascimento,
necessrio, antes de qualquer outra coisa, que oferea leitos obsttricos e neonatais

B
Ateno pr-natal, mortalidade materna e neonatal so alguns aspectos do gerar, parir e nascer que no
foram abordados aqui por falta de espao. So, porm, alvo de nossas preocupaes: a melhoria da
qualidade da assistncia ao pr-natal j um dos objetivos da SMS/RJ para os prximos trs anos, assim
como a preveno, o controle e a diminuio da mortalidade materna e neonatal.
em quantidade suficiente e dentro de u m sistema hierarquizado com relao a risco
materno e fetal. Se, alm da oferta de leitos, este mesmo setor pblico pretende garantir
uma assistncia de qualidade mulher e criana, diminuindo de forma efetiva os ndices
de morbi-mortalidade materna e neonatal, necessrio modificar o modelo assistencial
vigente, revendo a prtica mdica e da enfermagem, recolocando a mulher no centro do
processo, diminuindo ao mximo os procedimentos intervencionistas desnecessrios.
Nada disto de fcil execuo: a deciso poltica, para ter algum efeito real, pressu-
pe razoveis nveis de investimentos tanto em obras e equipamentos como em recur-
sos humanos. Na rea de pessoal, no basta contratar em nmero suficiente. preciso
transformar este(a) profissional-e isto, como se tentou demonstrar aqui, desafio para
ser enfrentado ao longo de vrios anos. Acreditamos que a experincia do municpio do
Rio de Janeiro aponta caminhos e sinaliza para a possibilidade de mudanas.

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20
A Ateno Integral e a Caixa de Pandora:
notas sobre a experincia do Coletivo Feminista
Sexualidade Sade
Simone Grilo Diniz

O movimento de mulheres e o conceito de ateno integral

O movimento internacional de mulheres, nas ltimas dcadas, tem dedicado espe-


cial ateno s questes do corpo e da sade - dimenses polticas centrais na luta pelo
reconhecimento de sua condio de cidads e sujeitos ticos, capazes de decidir sobre
suas prprias vidas. No Brasil, o movimento tem desempenhado u m papel fundamen-
tal na crtica dos modelos de ateno sade e na proposio de alternativas, demons-
trado na formulao e luta pela implementao do Programa de Ateno Integral
Sade da Mulher (PAISM) .
A inspirao poltica deste programa, expressa pelo movimento no Encontro Nacio-
nal de Sade da Mulher em 1984 pela Carta de Itapecerica, parte da afirmao crtica de
que "o conceito que caracteriza as aes de sade convencionais centra suas explica-
es e prticas n o indivduo e na doena, enfatizando uma dimenso biolgica e i m -
pessoal, sem histria e sem o conceito social do problema" pe em xeque a reduo das
mulheres ao seu papel na reproduo, a alienao dos servios diante da realidade
concreta da vida das mulheres, "refletindo o carter tecnocrtico, desumanizante e
machista do nosso sistema sociopoltico, econmico e de sade"; e prope que a sade
seja imaginada como "algo dinmico e indivisvel, que leva em conta as caractersticas
individuais d o ser h u m a n o , interagindo c o m as caractersticas sociais, sexuais e de
classe qual pertence" (Labra, 1989). O conceito de integralidade proposto reivindicava
a ateno para todas as fases da vida da mulher e s dimenses sociais e psicolgicas da
sade, e incorporava os conceitos de ao programtica da epidemiologia, assim como as
1
idias feministas sobre a assistncia ao que viria a ser chamada sade sexual e reprodutiva .
A demanda de que o Estado, por meio de suas polticas sociais - em especial as da sade -
incorporasse as reivindicaes e perspectivas das mulheres, foi a frente de trabalho central
escolhida pelo movimento (vila, 1993). Nesta direo, muitas foram as ocasies em que
as prprias integrantes, muitas das quais oriundas da rea de sade, como profissionais e/
ou ativistas, assumissem cargos pblicos.
Este modelo foi fundamental no questionamento da prtica mdica convencio-
nal e no i m p u l s i o n a m e n t o de u m a reflexo crtica sobre o papel dos servios de
sade na manuteno da subordinao das mulheres, assim c o m o na viabilizao
concreta de alternativas mais positivas nas esfera reprodutiva e sexual para as
usurias. Mais do que isto, este modelo teve u m a grande influncia na inspirao
de outras experincias, na formulao de polticas pblicas, na formao de recur-
sos h u m a n o s e na articulao poltica do movimento de mulheres (Arajo & Diniz,
1989). A entrada e a considervel multiplicao de quadros feministas na rede p-
blica de servios resultou em u m nmero importante de experincias bem-sucedi
das, sobretudo quando houve vontade poltica e sensibilidade de gnero no mbito
local das aes de sade.
Estas experincias tiveram u m papel fundamental na constituio de uma 'cultura'
sobre a sade da mulher no discurso dos servios de sade pblica, apesar dos grandes
limites enfrentados. Mais do que suas reivindicaes ao Estado - contidas neste progra-
ma - e baseado na demanda por democracia social e pelo direito assistncia sade, o
movimento buscou, a partir da crtica ao modelo estabelecido, construir alternativas
para a experimentao de novos modelos de ateno em servios conduzidos pelas
feministas, onde "pudssemos passar da teoria prtica, mostrando que possvel
construir uma ateno sade que considere a mulher como u m ser humano" (CFSS,
1986). Neste texto, partilhamos algumas reflexes sobre os limites, possibilidades e
impasses de u m a experincia feminista no-governamental na construo de u m a
ateno sade a partir desta perspectiva.
No Brasil, o Coletivo Feminista Sexualidade Sade (CFSS) desenvolve, desde 1985,
u m trabalho de ateno primria sade da mulher com esta perspectiva feminista e
humanizada, tendo atendido, desde ento, mais de quatro mil mulheres. Inspirado pela

1
O conceito de ateno integral sade, incorporado e enriquecido pelas feministas brasileiras, passou
a ser um dos motores de uma poderosa mudana na concepo das aes de sade em seu papel na
transformao social, cujo alcance ainda est por ser totalmente avaliado. Os conceitos mais recentes
de sade reprodutiva e sexual, desenvolvidos no contexto da luta poltica das mulheres por direitos
reprodutivos, em especial na preparao das conferncias de Cairo e de Pequim, ainda que se constitu-
am grandes avanos com relao s concepes mais estreitas e biologicistas que freqentemente
orientam os servios de sade da mulher, ao nosso entender, no superam nem substituem, e sim
complementam a noo mais ampla de integralidade da assistncia.
2
experincia europia, sobretudo pelo Dispensam s Femmes, de Genebra , o mtodo utili-
zado desde a capacitao das primeiras trabalhadoras, foi o da crtica ao modelo mdico
da gineco-obstetrcia. Nosso modelo vem propondo uma 'medicina suave' - dos trata-
mentos naturais e menos agressivos - e de preocupao com o conhecimento do corpo
como u m dos elementos centrais para a sade. A mulher/usuria percebida como um
indivduo, o "sujeito da ao de sade, capaz de entender, decidir e cuidar do prprio
corpo e da prpria vida" (CFSS, 1994-96). Neste contexto, o trabalho com contracepo
priorizou a ampliao da autonomia das mulheres diante dos mdicos e parceiros; o
conhecimento; e a 'amizade' com o prprio corpo.
Este foco, ao re-descrever de maneira crtica e 'expandida' s dimenses biolgicas,
permitiu o 'descolamento' do modelo do binmio me(potencial)-filhos e foi muito
til na problematizao das prioridades da interveno e na redescrio dos problemas
e abordagens a serem priorizadas. Apesar dos grandes avanos que o modelo propiciou
na experincia do Coletivo com o atendimento s usurias, ele foi-se mostrando insu-
ficiente na compreenso dos vnculos entre a sade e as relaes sociais daquela m u -
lher concreta. Apesar da dimenso relacionai de sua vida estar sempre presente no
trabalho, esteve virtualmente ausente nos primeiros pronturios (anamneses) do servi-
o, que continham pouca (ou nenhuma) informao sobre as parcerias afetivas e sexuais,
estado civil, relaes de trabalho ou raa - ainda que algumas destas informaes constas-
sem de uma ficha social que no acompanhava a anamnese. A participao masculina era
estimulada no discurso, mas mostrou-se regular apenas na ateno pr-natal.
Apesar destes limites da abordagem, o Coletivo, por ser u m servio feminista, rece-
beu, identificou, atendeu e referiu u m enorme leque de problemas de sade ligados s
relaes de gnero, para alm do que o modelo de trabalho estava preparado para lidar.
Entre eles, situaes de coero sexual, estupro, incesto, problemas no cuidado com os
filhos, vrias formas de sofrimento emocional, problemas na relao com servios de
sade, gravidez indesejada, desrespeito aos direitos trabalhistas e discriminao racial e
por preferncia sexual. Alm das necessidades prticas e imediatas (por exemplo: como
resolver u m problema de contracepo ou uma infeco vaginal), outras necessidades
foram surgindo, tomando necessria a busca das respostas possveis (como a criao de
grupos de reflexo, atendimento em sade mental e o trabalho de referncia/contra-
referncia a outros servios e recursos). Estes temas, problematizados direta ou indire-
tamente como questes de sade pelas usurias, foram-se incorporando prtica e se
transformando formal ou informalmente em problemas/diagnsticos (embora, no in-
cio, de maneira pouco sistemtica e tendo o registro subestimado diante dos diagns-
ticos e condutas 'de sade' imediatamente referidas a este biolgico 'expandido'). A
2
As linhas bsicas do trabalho do Dispensaire, que inspirou vrias outras experincias similares, podem ser
apreciadas na recente traduo para o portugus do livro Ginecologia Natural para Mulheres, de Rina Nissin.
questo que se coloca desde ento a complexa tarefa de manter u m a postura crtica,
u m questionamento constante diante da definio da problemtica a ser tratada, man-
tendo o contedo radical d o feminismo de que a mudana nas condies de sade
sempre incluir a luta pela mudana nas relaes sociais (Barroso, 1989).

Problematizando o problema: as questes de sade da mu-


lher da perspectiva das mulheres

Estas mudanas no modelo de trabalho foram alimentadas no decorrer da dcada de


80 por duas frentes: pelo esforo em avanar na produo de conhecimento e funda-
mentar a interveno, representado pela incorporao dos conceitos de relaes de
gnero e de direitos reprodutivos; e pela agenda do movimento de sade das mulheres,
que passa a incluir, de maneira menos ou mais enftica, as questes da violncia d o -
mstica e sexual e da AIDS. Estas duas questes j se apresentam de maneira diferenciada,
por remeterem imediatamente s relaes sociais de gnero, para alm da 'traduo'
meramente biolgica que possam chegar a ter nos servios.
Tanto o conceito de relaes de gnero - vindo das feministas na academia e sendo
incorporado pelo movimento - quanto o de direitos reprodutivos, nascido do movi-
m e n t o internacional de sade das mulheres, tm motivado u m a frtil discusso
conceituai e m diversos campos de conhecimento. Nas aes de sade, o conceito de
gnero tem recebido renovada ateno a partir das formulaes sobre qualidade da
ateno a partir da perspectiva das usurias (Gomez-Gomez, 1993). Estes trabalhos, pen-
sados principalmente para a avaliao de servios dirigidos populao geral, mostram
que os sintomas das mulheres so levados menos a srio do que os dos homens; que elas
recebem menos informao; esperam mais tempo; tm menos alternativas de trata-
mento; recebem menor seguimento; e, alm disso, os profissionais e servios reforam
relaes de gnero que prejudicam a sade da mulher, ao invs de promover a autono-
mia e fortalec-la em seu meio social (Pittman & Hartigan, 1995). O CFSS tem participa-
3
do ativamente do processo de redefinio destes enfoques , sendo u m interlocutor
constante de organismos internacionais e formuladores de polticas pblicas, receben-
do uma demanda crescente de consultoria sobre o tema.
Os novos enfoques procuram inscrever novos problemas e superar a avaliao quan-
titativa dos servios de sade, c o m base na produtividade dos servios e centrada nas
dimenses biolgicas. A partir do movimento, surgem as propostas de que a qualidade

3
A discusso destes enfoques tem sido sistematizada em alguns encontros temticos produzidos pelo
movimento, em especial no Relatrio do Seminrio de Prticas Educativas na Implantao do PAISM,
CFSS, 1996, So Paulo.
do servio seja identificada a partir da incorporao de elementos que favoream a
assistncia sade integral e elevem o poder das mulheres sobre suas vidas, exigindo,
portanto, o manejo de questes psicolgicas e sociais (CFSS, i 996). A qualidade da
ateno da perspectiva de gnero considerada a partir de uma viso de integralidade da
sade reprodutiva, inscrita nos marcos ticos dos direitos humanos e, em particular,
dos direitos sexuais e reprodutivos (Matamala, 1995).
A partir da Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (CIPD)/
Cairo, estes conceitos passam a se inscrever no desenho das aes, demandando dos
servios de sade reprodutiva uma reviso do seu modelo de trabalho para adequar-se
a este novo enfoque. Quando nos referimos ao modelo de trabalho, consideramos que
o objeto das prticas de sade construdo historicamente, "no havendo nada, rigoro-
samente nada, que seja sempre, por si mesmo, parte ou substrato de uma necessidade
de sade 'geral'" (Mendes Gonalves, 1992:44). Repensar o trabalho em sade exige que
o repensemos como modelo, na consistncia prtica entre as finalidades, os objetos de
trabalho, instrumentos e a ao dos agentes. Assim, a incorporao de marcos polticos
para a ao de sade pode propiciar a experimentao de novos modelos como 'utopias
produtivas', servindo como "balizas para a anlise de situaes concretas e para a desco-
berta das possibilidades objetivas de introduo de mudanas nessas situaes orienta-
das para ele, que ento ir, se chegar a ser, se efetivando como modelo real, certamente
diferente do projeto que ter orientado seus comeos" (Mendes Gonalves, 1992:46).
Neste contexto de ao e reflexo, iniciamos u m conjunto de experimentaes na
formulao das finalidades, dos instrumentos e dos resultados das aes de sade
reprodutiva e sexual. Este conjunto se traduz em modelos experimentais de consulta
individual/histria clnica/anamnese, assim como no sistema de informao do servi-
o - em que dados c o m o renda, raa, escolaridade, preferncia sexual, procedncia,
entre outros, possam ser teis na compreenso das dimenses sociais da sade e na
construo de respostas aos problemas apontados.
Estas reflexes sobre a definio do problema so tambm influenciadas pelas dis-
cusses trazidas por trs experincias recentes desenvolvidas no CFSS em parceria com
outras instituies. A primeira a pesquisa realizada pela equipe brasileira do IRRRAG
(International Reproductive Rights Research Action Group; em portugus, Grupo de
Pesquisa e Ao Internacional em Direitos Reprodutivos). Ao analisar as intensas m u -
danas na vida reprodutiva das mulheres nas ltimas dcadas, esta pesquisa indica que
o contato das mulheres com matrizes discursivas que reconheam e reafirmem seus
direitos tem uma importncia central na busca ativa de solues concretas para os seus
problemas. A afirmao do carter coletivo dos problemas e da legitimidade do senti-
mento de injustia das mulheres (diante de situaes de opresso em qualquer esfera
da vida - em particular no mbito reprodutivo e sexual), propicia uma redescrio da
experincia vivida. Neste estudo, a resistncia ao que considerado injusto , muitas
vezes, percebida como transgresso, a ser vivida em silncio sob o risco de represlias,
deixando as mulheres especialmente isoladas e vulnerveis. A direo da mudana
que a resistncia possa ser assumida em seu carter coletivo; no apenas c o m o uma
argumentao individual, oposta ao coletivo, mas uma relativa a u m novo grupo de
referncia, propiciando uma recriao de padres de relacionamento social (IRRRAG, 1996).
C o m base nesta experincia (e a partir do marco da indivisibilidade dos direitos
reprodutivos como direitos simultaneamente individuais e sociais) acrescentamos ao
modelo de trabalho e anamnese questes relativas informao, percepo e acesso
aos direitos; capacidade de buscar ajuda; ao sentimento de injustia diante de situa-
es reconhecidas como violentas, entre outros. Tambm ajustamos alguns dos insights
da pesquisa anamnese como 'indicadores experimentais' e iniciamos a organizao
da referncia a outros servios e instituies que lidam com os problemas detectados.
A segunda experincia foi a da incorporao de rotina de questes sobre violncia e
coero sexual na anamnese - o que resultou em u m projeto mais amplo de capacitao,
referncia e investigao sobre violncia de gnero e aes de sade, em parceria com o
Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de
4
So Paulo (FMUSP) . Este projeto nos levou a testar conjuntos de perguntas que pudes-
sem facilitar, para a usuria, a conversa e a ateno sobre o tema, assim como a identi-
ficao de situaes agudas, propondo a referncia interna ao servio e para outras
instituies. Ao mesmo tempo, o componente 'capacitao' ampliou a discusso com o
conjunto da equipe sobre gnero e sade, em especial as relaes entre a situao
violenta e a sade reprodutiva e sexual, partindo da evidncia de que mulheres que
experimentam tais situaes freqentemente tm mais dificuldade em cuidar de sua
prpria sade. Nestes termos, entendemos o momento agudo da violncia (a agresso
propriamente dita) no c o m o o objeto de trabalho em si, mas como u m indicador de
uma especial vulnerabilidade a u m amplo conjunto de questes de sade. Mais uma
vez, se impuseram ao trabalho a dimenso relacionai da situao violenta e a dificulda-
de de lidar com os parceiros - problema para o qual ainda buscamos solues para alm
da organizao da referncia e contra-referncia para servios que lidam com homens.
A incluso destas questes na consulta se fundam no apenas na crena de que todos os
seres humamos tm o direito a estar livres da violncia e da coero, mas, tambm, que
os servios de sade so u m recurso privilegiado para lidar com este problema.
A terceira experincia tem sido a reviso dos procedimentos de contracepo e de
infeces vaginais a partir da pandemia de AIDS, que resultou no projeto Cuidando do
Prazer, apoiado pela Fundao Levi- Strauss. Este trabalho nos levou a u m esforo adicional
para lidar com as contradies entre nossa prioridade no trabalho c o m o diafragma

4
Estas reflexes esto contidas nos relatrios do "Projeto de Capacitao e Desenvolvimento de Tecnologia
para a Ateno a Mulheres em Situao de Violncia nos Servios de Sade", apoiado pela Fundao Ford.
vaginal- mtodo que amplia a autonomia da mulher em relao sua reproduo, mas no
necessariamente em termos da proteo contra as doenas sexualmente transmissveis
(DST) e AIDS. Apesarde existirem evidncias considerveis sobre o papel protetor do diafrag-
ma diante de certas D S T - provavelmente mais relacionadas consistncia do uso do que
com as caractersticas desta barreira - a camisinha, at prova em contrrio, o mtodo que
melhor propicia, simultaneamente, a preveno deD S T / A I D Se de gravidez indesejada. O
trabalho com o diafragma, especialmente em u m pas onde o aborto ilegal, arriscado e
caro, se centrou, muito justificadamente, na sua eficcia contraceptiva, associada a menos
riscos sade e ao conhecimento do prprio corpo, tendo alcanado resultados muito
positivos nestes aspectos. Mas o contexto da relao sexual e o papel do parceiro, a promo-
o da comunicao e da partilha de responsabilidades no terreno afetivo, reprodutivo e
sexual podiam ser menos problematizados do que no caso do uso da camisinha. Assim,
buscamos incluir na consulta e na anamnese questes que pudessem facilitar para as
usurias a discusso sobre o direito ao cuidado e ao prazer, avaliando aquilo que no decor-
rer do trabalho passamos a chamar, provisoriamente, de Vulnerabilidade sexual e
reprodutiva', para orientar a busca de respostas possveis na superao desta vulnerabilidade.
Neste contexto de re-descrio dos problemas e possveis respostas, organizamos,
com parceiros, dois encontros temticos sobre procedimentos e duas sesses de brainstorm
sobre os conceitos, para a sistematizao de problemas. Nestas ocasies, pudemos dis-
cutir e trocar experincias sobre o tema e apresentar os primeiros resultados tabulados
5
no sistema de informao .
A discusso que enfrentamos nos levou a considerar os limites da quantificao-
mesmo que assumidamente experimental - destes eventos de sade; a nossa ansiedade
cartesiana por 'prescries'; e as dificuldades na escuta da usuria, apresentada por esta
"ansiedade prescritiva". Mesmo correndo todos estes riscos, no decorrer deste processo
partimos para uma reformulao dos 'instrumentos' de trabalho na consulta - a ficha
clnica e os roteiros de procedimentos. Novas questes foram incorporadas ao atendi-
mento (como verses revistas da pesquisa de rotina de situaes de violncia domsti-
ca, sexual e institucional e u m a especial ateno avaliao da vulnerabilidade das
mulheres s D S T e AIDS). Ambas denotaram u m impacto importante na mudana dos
procedimentos de rotina. Em todas as consultas (especialmente nas de contracepo)
foram incorporadas informaes sobre preveno de DST/AIDS, com nfase no uso de
mtodos de barreira (em especial da camisinha) e no desenvolvimento de habilidades
de negociao com parceiros nos casos que o demandassem.

5
Estes foram sobre "Contracepo em tempos de A I D S " , "Infeces vaginais em tempos de A I D S " ,
"Operacionalizando o conceito de gnero nas aes de sade" e " Para pensar o conceito de vulnerabilidade
em sade reprodutiva e sexual", com a participao de parceiros e convidados, como o Centro de Sade
Escola do Butant/ FMUSP, Centro de Sade Escola da Barra Funda, Instituto de Sade, NEPAIDS, Casa Lilith,
Casa da Mulher do Graja , CEMICAMP e CRT/ A I D S .
Em termos quantitativos, realizamos, entre 1994e 1996, 2.944 consultas ginecolgi
cas; 469 psicolgicas, incluindo os casos de ateno s mulheres em situao de violncia;
28 atendimentos em nutrio; e 414 consultas de pr-natal, alm de dezenas de sesses de
grupos de reflexo sobre diversos temas. O perfil das pacientes atendidas pelo Coletivo
descrito posteriormente e selecionamos, tambm, informaes constantes do novo m o -
delo de ficha clnica (anamnese) do CFSS. Os dados se referem a uma amostra de u m ms
de consultas no final de 1995 utilizada para a experimentao do banco de dados.
Na interpretao destes dados, importante considerar que as caractersticas de
nossas usurias no corresponde ao perfil da populao e m geral: o prprio fato de
buscar u m servio desta natureza j constitui u m vis da amostra. Acreditamos que
nossas usurias formam u m grupo representativo- so mulheres que 'mais resistem
do que se a c o m o d a m ' e m relao s experincias sexuais e reprodutivas, refletindo,
assim, certos movimentos de mudana, referentes construo de alternativas sexuais
e reprodutivas mais empowered, mais assertivas e autnomas. As informaes refletem o
vis das perguntas que definimos como importantes. Desta forma, possvel, por exem-
plo, que a prevalncia da violncia aparea com ndices to elevados simplesmente
porque perguntamos a todas as usurias a este respeito; ou que haja u m vis relativo a
uma maior confiana da usuria na instituio, que permite que mais mulheres se
sintam mais vontade para responder afirmativamente sobre situaes de ilegalidade,
como a prtica do aborto e o uso de drogas.
Nos ltimos anos, registramos uma tendncia ao 'empobrecimento' da demanda,
refletida na queda da renda mensal per capita das nossas usurias. Em 1994, a porcen-
tagem de mulheres com renda de at trs salrios mnimos era de 60%; em 1995, au-
mentou para 63%; em 1996, subiu para 73%. Do total da demanda de 1996, 59% declara-
ram renda pessoal de at u m salrio mnimo. Acreditamos que este empobrecimento se
deva mais a mudanas na nossa demanda, ainda que de fato haja u m empobrecimento
da populao em geral.
A cor destas mulheres, autodefinida, em 1994: 54,5%brancas; 17,5% pardas; 10,1%
negras; e 2,7% orientais; 15,2% no definiram sua cor. Com relao idade, 22,9% tm at
20 anos; 35,4%, entre 21 e 30; 27,1%, entre 31 e 40; e 14,6%, mais de 40 anos. Mais de
3/4 (78%) tm trabalho remunerado (dados de 1994 a 96).
No que se refere a sade e estilo de vida, 40,4% das usurias disseram ter boa sade,
vindo ao servio para informao e preveno; 51,1 % se consideraram 'mais ou menos'
saudveis; e apenas 8,5% se declararam com m sade. Mais da metade (55,3%) declarou
'boa alimentao'. U m dado que chama a ateno: 40,9% das mulheres tinham queixas
relativas ao sono. U m pouco menos da metade (48,9%) pratica exerccios fsicos regular-
mente; 42,8% so fumantes; 21,7% declararam tomar bebidas alcolicas regularmente; e
42,6% usavam ou fizeram uso de drogas ilegais, especialmente maconha. Os problemas
de sade relacionados ao trabalho foram referidos por 30% das usurias.
Em termos do uso de mtodos contraceptivos, opo de 84% das usurias, notamos
uma tendncia clara e significativa. Entre 1991 e 1994, a camisinha era usada por 14%
das usurias; o diafragma, por 61%; a plula por 16%; os outros mtodos somavam ape-
nas 9%. A partir de 1995, houve u m grande aumento do uso da camisinha (tambm
estimulado pelo nosso servio), alcanando, hoje, 38,5%; o uso do diafragma caiu para
25%, o da plula, para 9,4%. Ainda que o uso de mtodos de barreira tenha se mantido
muito alto (63,5%) - sobretudo se comparado com a populao g e r a l - h u m a clara
tendncia ao aumento do uso da camisinha em detrimento do uso do diafragma, j que
as evidncias sugerem que o condom seria mais seguro na preveno das DST/ AIDS, apesar
de estar menos "sob o controle" da mulher. Entre 1991 e 1994, a laqueadura era o
mtodo de cerca de 4% das usurias. No perodo mais recente, a taxa chegou a 13%,
refletindo, talvez de maneira tardia, o aumento da prevalncia deste mtodo, que na
populao geral atinge aproximadamente 45% das mulheres que usam contracepo.
Outro dado surpreendente que 78% das usurias referem pelo menos u m aborto. Isto
pode refletir tanto o Vis' de uma demanda altamente selecionada, como u m grau de
sinceridade maior nas respostas por se tratar de u m servio feminista.
As questes experimentais includas na nova anamnese se mostraram muito
instigantes. U m dado que nos chama a ateno que 63% no se consideravam expos-
tas ao risco de contrair a AIDS - perguntadas sobre se tomavam alguma medida de pre-
veno, a resposta majoritria foi "no se consideram expostas aorisco"ou "consideram
que se previnem" porque tm u m nico parceiro (o que evidencia uma flagrante con-
tradio - na nossa demanda de mulheres supostamente mais assertivas - com a reali-
dade epidemiolgica, pois a maioria das mulheres contaminadas no municpio de So
Paulo tem parceiro fixo e monogmica). Entre as usurias do CFSS, 26,1% declaravam
j ter tido alguma DST 20,5% disseram jamais conversar com seus parceiros sobre sua
vida sexual; e 43,5% relataram no estar satisfeitas, ou estarem mais ou menos insatis-
feitas c o m sua vida sexual. Outro dado relevante que 38,3% afirmaram j ter tido
relaes sexuais contra a sua vontade (por coero sexual, como nos casos de evitar
desentendimentos com o parceiro, at situaes de estupro, registrado em 12,3% do
total dos casos). A violncia fsica foi declarada por 30,4% das usurias. O s agressores
foram, na maioria das vezes, os parceiros, mas tambm foram mencionados os pais e
estranhos na rua. Das que sofreram violncia fsica ou sexual, 28,6% jamais haviam
conversado sobre o fato com algum antes da consulta no Coletivo. Apenas uma mulher
procurou u m servio de sade por este motivo. U m a das questes mais relevantes
surgidas neste percurso foi a da violncia na relao com servios de sade e a necessi-
dade do desenvolvimento de alternativas na negociao das usurias com os servios. As
principais questes trazidas foram: primeiro, a invisibilidade das questes de violncia
nos servios, ou como os servios 'filtram' o social das questes biolgicas, de forma a
desconsiderar a violncia e suas repercusses na vida e na sade das mulheres; em
segundo lugar, c o m o as instituies promovem e perpetram a violncia de gnero
atravs de sua suposta neutralidade, sobretudo atravs do desrespeito ao direito das m u -
lheres sua condio de pessoa, assim c o m o na sistemtica violao do direito das
mulheres sua integridade corporal, o que se processa por meio de procedimentos
invasivos, inteis e arriscados, mais centrados nos interesses corporativos e institucionais
do que nas necessidades das mulheres (Diniz, 1997).
O trabalho relativo violncia de gnero tem sido consideravelmente ampliado com
a formao de u m a rede de referncia de dezenas de servios n o m u n i c p i o e pela
publicao de mil exemplares, j esgotados, de u m Guia de Servios.

Novos problemas e a caixa de Pandora: questes para os servios

6
A abertura para estes novos temas,foicomo abrir uma 'caixa dePandora' ,exigindo u m
complexo conjunto de transformaes no atendimento, como novas demandas de forma-
o; mudanas no modelo de consulta e nos procedimentos de rotina; necessidade de
contratao de novas trabalhadoras; a organizao de sistemas geis de referncia a outros
servios; grande necessidade de atualizao e produo de conhecimento; avaliao do
trabalho; superviso; consultoria; e suporte psicolgico para as trabalhadoras, entre outros.
Nesta rea, nos encontramos em plena 'crise de crescimento, motivada pela incor-
porao de novos temas ao trabalho e a conseqente expanso da demanda de usurias.
Encontramos muito sucesso e vrias frustraes: temos u m 'empobrecimento' da de-
manda e uma reduo de sua capacidade de pagar pelos servios, mesmo a preos bem
reduzidos. Isto vem contribuindo para uma diminuio da capacidade institucional de
financiamento desta rea, apesar dos constantes esforos de suplementar financeira-
mente o atendimento com novos projetos.
Este quadro se agrava rapidamente com a retirada do investimento pblico para as
polticas de sade e c o m a falncia - no caso dos servios do municpio de So Paulo, da
destruio-do Sistema nico de Sade (SUS). Esta situao faz c o m que os servios,
esvaziados de profissionais e recursos, tenham de encaminhar muito dos casos que
poderiam ser atendidos pelos servios pblicos, caso estes funcionassem. Felizmente
encontramos n o servio pblico algumas 'ilhas' de resistncia com as quais estabelece-
mos excelentes parcerias, como, por exemplo, o Centro de Referncia e Treinamento de

6
A Caixa de Pandora um mito que se presta a vrias interpretaes. Na verso mais corrente, Pandora,
um dos nomes da deusa-me grega Rhea, teria se tornado um equivalente, na antigidade clssica, da
Eva da cultura judaico-crist, ou seja, a mulher curiosa que por sua desobedincia condena a humani-
dade a todos os males, ao abrir uma caixa (ou um vaso) onde estes males esto guardados; no fundo do
vaso, resta a esperana. Numa interpretao menos misgina do mito, Pandora (literalmente a doadora
de todas as coisas), teria apenas reconhecido os problemas e as solues, sendo culpabilizada por
explicitar a complexidade dos fatos humanos (WALKER, 1981).
AIDS (CRT), o Centro de Sade-Escola do Butant, da USP e a Casa Eliane de Grammont. A
ampliao de nossa capacidade de estabelecer parcerias um dos saltos de qualidade do
trabalho, tanto com relao ao atendimento com os servios citados, como nas ativida-
des de formao, com grupos de mulheres e instituies de ensino e pesquisa.
As atividades de assistncia so apenas uma parcela do trabalho de promoo da
assistncia integral, pois u m dos maiores esforos do Coletivo tem sido o de influir na
construo de polticas pblicas. C o m relao s atividades externas, o grande cresci-
mento do Coletivo em termos de reconhecimento institucional, nacional e internacio-
nal, pode ser atestado pela participao nas principais instncias do movimento de mu-
lheres e na interlocuo permanente com instituies como Secretarias de Sade, Minis-
trio da Sade e agncias do sistema Naes Unidas. O papel do Coletivo na proposio de
polticas pblicas tambm se expressa na participao nos Comits de Mortalidade Mater-
na e na solicitao de consultoria sobre organizao de servios que nos feita.
C o m o decorrncia de uma experincia bem-sucedida, o crescimento da demanda
de trabalho e de responsabilidades no foi acompanhado de um aumento equivalente da
capacidade instituicional de gerenciar e ampliar os recursos. Trata-se, ento, de uma saud-
vel 'crise de crescimento', pois reconhecemos que, como mostra Natalie Lebrum, em estudo
sobre o funcionamento de Organizaes No-Governamentais (ONGs) feministas em
So Paulo, sua estrutura despreparada para o crescimento. Em parte, este problema se
deve herana 'radical' de horizontalidade e autogesto - que orientaram o trabalho desde
o incio - implicando em grandes dificuldade para o ajuste de u m modelo autogestionrio
s novas necessidades gerenciais de planejamento de uma O N G 'em crescimento'.
Manter u m servio no-governamental desta natureza um desafio gerencial ainda por
resolver. No que se refere s lies mais importantes aprendidas a partir de nossa experin-
cia, citamos a conscincia da necessidade de um planejamento estratgico situacional que
viabilize o crescimento da instituio, preserve seus princpios polticos e garanta mais
segurana e satisfao para suas trabalhadoras. Este um ponto central, porque nos encon-
tramos com uma enorme sobrecarga de trabalho, com evidentes prejuzos para nossa pr-
pria sade e bem-estar. Alm disso, mesmo sendo u m grupo que trabalha com sade e
direitos reprodutivos, a crescente defasagem entre trabalho previsto e oramento institucional
implica que as trabalhadoras no tenham garantidos, em termos oramentrios, qualquer
seguro de sade ou direitos reprodutivos bsicos, como a licena-matemidade.
Com base na experincia, nos nossos objetivos de longo prazo e nos recursos disponveis,
nossas metas para os prximos anos so: a ampliao da capacidade institucional de responder
s novas demandas - e de mobilizar recursos humanos e materiais necessrios para estefim;e
o registro e sistematizao global da nossa experincia e reflexo na rea de ateno integral
sade da mulher, incluindo as novas questes incorporadas, com a finalidade de divulgar
mais amplamente o nosso trabalho - que, em nossa avaliao, tem se mostrado muito frtil
na inspirao de outras iniciativas na promoo da sade e dos direitos das mulheres.
Referncias Bibliogrficas

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MUJERES POR LOS DERECHOS REPRODUCTIVOS. Elegimos Vivir. Amsterdam: Boletin Especial de la
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WALKER, . TheWoman'sEncyclopediaofMithsandSecrets.San Francisco: Harper & Row, Publishers, 1983.


Anexo 1
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Atendimento Integral Sade
Gerncia de Programas de Sade da Mulher

Modelo de Fluxograma
Anexo 2 Enviar para S/SSC/CPS
Gerncia de Programas
de Sade da Mulher

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro


Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Atendimento Integral Sade
Gerncia de Programas de Sade da Mulher

(1 )Tabela; muco; temperatura; associao de mtodos naturais; mtodo(s) natural(is) + espermicida


(2) Preservativo; preservativo + mtodos naturais; preservativo + espermicida
(3) Diafragma; diafragma + preservativo; diafragma + mtodos naturais
Ateno: Quando a adoo de mtodo for "Diafragma e Preservativo'' no esquecer de colocar no quadro corres-
pondente ao do diafragma.

Informe abaixo a existncia de usurias que compareceram para reinsero de DIU ou reposio de diafragma.

RESPONSVEL: Mat.:
Anexo 3
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Atendimento Integral Sade
Gerncia de Programas de Sade da Mulher

Registro de Clientes do Servio de Contracepo

UNIDADE: : AP:
MS ANO-199
GRUPO N INCIO: _ _ _ _ / I
FINAL: / /

Assinatura do responsvel:
Mat
Anexo 4 Enviar para S/SSC/CPS
Gerncia de Programas
de Sade da Mulher

Enviar para S/SSC/CPS


Gerncia de Programas
de Sade da Mulher
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Atendimento Integral Sade
Gerncia de Programas de Sade da Mulher
Controle de Estoque de Contraceptivos

UNIDADE: Ap: M S
ANO -199

Assinatura do responsvel:
Mat
Anexo 5
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Ateno Integral Sade
Gerncias de Programas de Sade da Mulher e do Adolescente

Unidade: Ap: Mes Ano - 199

Informaes sobre as Adolescentes que Adotaram


Mtodos Anticoncepcionais
(Importante completar todos os itens)
Anexo 6
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
Secretaria Municipal de Sade
Superintendncia de Sade Coletiva
Coordenao de Programas de Atendimento Integral Sade
Gerncia de Programas de Sade da Mulher

1l Curso do PAISM - Contracepo

Incio: 05 de maio de 1997


a a
Dias e Horrios: 2 e 5 das 8:30 s 17 horas
Carga Horria: 96 h (1, 2 e 3 mdulos)
72 h ( 1 e 2 mdulos)
Local e Endereo: Fundao Joo Goulart
a
Av. Pres. Vargas, 914 - 4 andar / sala 4
Coordenao: Centro de Treinamento em Ateno Integral Sade da Mulher-EsPAo-MuLHER.

PROGRAMAO
a
1 MDULO - Vivncia/Discusses Tericas
. Abertura / PAISM 05/05 (manh) .Adolescncia 15/05 (manh)
.Gnero/Sexualidade 05/05 (tarde) . Mortalidade Materna 15/05 (tarde)
. Sexualidade/Climatrio 08/05 (manh) . Seminrio:Mtodos Contraceptivos 19/05 (manh)
.DST 08/05 (tarde) . Seminrio:Mtodos Contraceptivos 19/05 (tarde)
. Mulher e AIDS 12/05 (manh) . Servio de Contracepo 22/05 (manh)
. Aborto 12/05 (tarde) . Prticas Educativas 22/05 (tarde)
OBS.:0 profissional de sade que faltar no primeiro dia do curso ter sua inscrio automaticamente cancelada

a
2 MODULO - Estgio Supervisionado nos Grupos de Contracepo
Participao nos grupos de contracepo desenvolvidos em algumas unidades da rede municipal,
identificadas como campo de estgio.
Carga horria prevista: 1 turno por semana, durante 3 a 6 semanas de acordo c o m a programao
das unidades de estgio.
Carga horria total - Estgio supervisionado mais 1 turno para avaliao e encerramento.

a
3 MDULO - Estgio Supervisionado em Ambulatrio de Ginecologia (exclusivamente
para mdicos)
Treinamento e m ambulatrio de contracepo com o objetivo de desenvolver todos os procedimen-
tos tcnicos necessrios para uma consulta contraceptiva.
Carga horria prevista: 1 a 2 turnos por semana, em um total de aproximadamente 8 turnos, a serem
definidos de acordo c o m a disponibilidade do treinando e da unidade campo de estgio.

INSCRIES
Para profissionais da Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro
- Contactar a Direo da Unidade
Para profissionais de sade de outras Instituies e/ou Municpios
- Contactar a Secretaria Estadual de Sade - Coordenao do Programa de Assistncia Integral
Sade da Mulher, Criana e Adolescente. (PAISMCA)
PARTE V

Sade Reprodutiva e Grupos Sociais


21

Condies de Sade deFuncionriosde Banco Estatal:


aspectos ligados reproduo*
Dra Chor, Maria de Jesus Mendes da Fonseca, Milena Piraccini Duchiade, Clia Regina de
Andrade & Kaiz Iwakami Beltro

Introduo

Nos ltimos 50 anos, o Brasil sofreu profundas transformaes, passando de u m


pas essencialmente agrrio a uma sociedade urbana moderna, com u m grande par-
que industrial e u m vasto setor de servios. O modelo econmico adotado, entretan-
to, levou a u m a das mais perversas estruturas de distribuio de renda do mundo,
extremamente concentrada, s superada em termos de desigualdade por pases como
o Kuwait ou Botswana (Banco Mundial, 1993). possvel identificar, portanto, u m
mosaico de situaes distintas, que vo desde ilhas de prosperidade semelhantes aos
nichos mais ricos dos pases desenvolvidos, at comunidades que sobrevivem n o
quase completo abandono, tanto no interior de grandes metrpoles, quanto isoladas
no interior do Pas.
O padro brasileiro tornou-se to peculiar que, recentemente, analistas econmi-
cos internacionais passaram a utilizar o conceito de 'brasilificao' como sinnimo do
processo "no qual os ricos ficam cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres, e
a classe mdia tende progressivamente a desaparecer". Nesse contexto, compreende-se
facilmente que grande parcela dos cientistas sociais tenha voltado suas lentes para o

* Agradecemos aos funcionrios do Banco do Brasil que compuseram o Grupo de Trabalho CASSI (Caixa de
Assistncia dos Funcionrios do Banco do Brasil) - Pesquisas Epidemiolgicas e Grupo da Terceira Idade:
Eneida Favre, Heitor Rodrigues de Assis Filho, Gisele da Silva Fernandes, Rosngela Ftima de Oliveira
Machado, Carlos Henrique da Conceio Santos, Renato Rademaker Grunewald.
estudo prioritrio das camadas populares, que compem a maioria da populao. As-
sim tem sido nos ltimos anos, no apenas na sade pblica, mas nas demais reas
ligadas s cincias humanas.
Entre os extremos de abundncia e desperdcio, ou escassez e misria, sobrevivem,
como podem, as camadas mdias. Embora pequenas do ponto de vista percentual, repre-
sentam contigente populacional considervel, por sua magnitude. Apesar de heterogneas
do ponto de vista socioeconmico, constituem, provavelmente, a face mais visvel da
sociedade brasileira, por serem compostas de elementos que, em sua maioria, consegui-
ram ter acesso a u m grau de instruo mais elevado e por tentarem se manter no mercado
formal de trabalho. Incluem desde o pequeno funcionrio pblico, com pouca ou ne-
nhuma qualificao, at a professora primria, o profissional universitrio, o pequeno
comerciante, o bancrio, o vendedor de automveis ou o corretor de seguros. a parcela
da populao que aparece nas novelas, l jornais, consome no s bens durveis, mas
tambm medicamentos ou lazer, e que, de certo modo, formadora de opinio. Em funo
de todas essas condies, comeam a ser divulgados hoje, no Pas, estudos a seu respeito.
Investigaes de tendncias que surgem no seio da classe mdia podem ajudar a
compreender comportamentos que, paulatinamente, vo se disseminar para as cama-
das populares u m pouco mais tarde. Assim ocorreu, por exemplo, no caso da substitui-
o do leite materno pelo leite em p, na dcada de 50, quando ficou evidente o papel de
'arauto' representado pelas mulheres de classe mdia, rapidamente imitadas pelas par-
celas mais pobres. interessante notar que, nesse episdio, as mulheres de classe mdia
tambm foram as precursoras do comportamento inverso, j que voltaram a adotar a
amamentao natural, mais de duas dcadas depois, propagandeando seu retorno nos
meios de comunicao.
Nesse contexto, insere-se o interesse em estudar u m grupo relativamente homog-
neo, tal qual o das bancrias, funcionrias de u m banco estatal. Estas podem ser consi-
deradas como 'grupo-sentinela', ou seja, como grupo que anuncia o que est ocorrendo
ou pode vir a ocorrer e m breve em outros segmentos sociais. Tal abordagem visa a
detectar problemas ou anunciar tendncias que seriam muito difceis de demonstrar
para o conjunto da populao, sobretudo em uma poca em que escasseiam as verbas
para pesquisas de base populacional em u m pas do tamanho do Brasil. De fato, nos
pases desenvolvidos, descobriu-se, h muito tempo, a vantagem da realizao de pes-
quisas em grupos menores - como os empregados de uma empresa ou os associados de
u m seguro-sade - no apenas por causa dos custos relativamente mais baixos e
operacionalizao mais fcil, mas, principalmente, e m funo da maior adeso por
parte dos entrevistados, o que favorece a validade das informaes.
Embora pesquisas sobre fecundidade e anticoncepo venham sendo realizadas no
Brasil, as oportunidades de estudar com mais detalhes os estratos urbanos de renda
mdia do pas so mais raras (Duchiade, 1996). Partindo destas premissas, apresenta-
mos resultados de amplo estudo sobre as condies de sade dos funcionrios de u m
banco estatal que trabalham no estado do Rio de Janeiro. Alm dos dados especficos
sobre prticas de anticoncepo, objeto principal desta publicao, outras informaes
sero fornecidas com o objetivo de caracterizar a populao estudada do ponto de vista
social, demogrfico e, tambm, o uso de servios de sade e prticas de preveno.
As questes relacionadas reproduo (desde a sexualidade, at as enfermidades espe-
cficas e sua preveno) acompanham as mulheres ao longo de toda a sua existncia. A
gravidez no planejada - talvez a mais duradoura dentre todas as preocupaes femini-
nas, na esfera reprodutiva - tem sido fonte de preocupao e ansiedade femininas nas
mais diversas sociedades. Prticas de anticoncepo tradicionais vm sendo substitudas
por outras, mais modernas, mas o mtodo ideal-eficaz, reversvel e sem efeitos indesej-
veis - ainda no est disponvel. A esterilizao voluntria, que no constitui, de fato, uma
forma de regular a fertilidade - e sim de extingui-la - o mtodo mais utilizado para o
planejamento familiar em todo o mundo (Church & Geller, 1990). Acrescente participa-
o feminina no mercado de trabalho, o padro de famlias pequenas e, tambm, a oferta
de servios que realizam a laqueadura, aliados falta de disponibilidade de outros mto-
dos seguros e situao ilegal do aborto so apontados como determinantes da ampla
utilizao da esterilizao (Vieira & Ford, 1996; Duchiade, 1995; Giffin, 1992; 1994).
No Brasil, a situao ainda mais surpreendente, no s pela proporo de mulheres
esterilizadas, mas por todo o contexto que cerca o procedimento: grande parte realiza a
laqueadura at os 30 anos, a interveno no oficial (pois no registrada em prontu-
rios mdicos) e, muitas vezes, requer pagamento especfico, complementando proce-
dimentos gratuitos (cesreas realizadas em hospitais pblicos). Apesar de todas essas
irregularidades, a esterilizao parece tomar-se cada vez mais a nica soluo confivel
-embora radical, porque irreversvel-para as mulheres que no desejam mais ter filhos
(embora muitas acreditem que o procedimento possa ser revertido).
Recente pesquisa nacional estimou que 40,1% das brasileiras unidas, que usam
mtodos anticoncepcionais, optaram pela esterilizao. Em 1986, essa proporo era de
26,9% (BEMFAM / DHS, 1996). Assim, o incremento de 17% no uso desses mtodos "decor-
reu quase exclusivamente do aumento da esterilizao, uma vez que a plula e os mto-
dos tradicionais apresentaram reduo de seus percentuais". A idade avanada e o gran-
de nmero de filhos no justificam a freqncia da laqueadura. Aligadura passou a ser
realizada mais cedo, j que a idade mediana do procedimento caiu de 31,4 anos na
pesquisa de 1986 para 28,9, dez anos depois. O nmero de filhos tambm no parece
ser uma justificativa plausvel para a laqueadura: 42,6% das mulheres em unio, com
dois filhos, j se encontravam esterilizadas.
A esterilizao voluntria, da forma como que vem sendo praticada no Brasil, cons-
titui mais u m indicador da distncia entre a realidade das prticas de anticoncepo e
o ideal justo e h u m a n o do que vem sendo definido como 'sade sexual e reprodutiva':
em primeiro lugar, que a populao tenha capacidade de ter filhos, bem como de regu-
lar sua fertilidade de forma segura e efetiva; significa que o resultado da gravidez no
somente desejado, mas tambm que deve ser bem sucedido, em termos do bem-estar
da me e da criana, incluindo o pleno desenvolvimento de seu potencial; significa que
os casais possam compreender e desfrutar de sua sexualidade, livres do medo de uma
gravidez indesejada ou de contrair enfermidades, e tambm livres da condenao social
que tem acompanhado a sexualidade h muito tempo (Barzellato, 1996).

O estudo das condies de sade de bancrios

Com o objetivo de reformular os servios de assistncia sade oferecidos pela Caixa de


Assistncia dos Funcionrios, o estudo das condies de sade de seus associados, em que se
incluiu a sade reprodutiva, foi realizado entre agosto e dezembro de 1994. A populao-
alvo foram as carreiras administrativa (bancrios propriamente ditos) e tcnica (mdicos,
advogados). Foi excluda a carreira de apoio (contnuos), por contar com poucos funcion-
rios (est em extino) e pela dificuldade que apresentaram, nos estudos-piloto, de preen-
cher o questionrio. U m a amostra probabilstica de 2.415 bancrios -1.024 mulheres -,
estratificada de acordo com os trs tipos de dependncias do banco (agncias, centros de
processamento, servios e informaes - CESEC - e direo geral), foi sorteada para preen-
cher questionrio auto-respondido no ambiente de trabalho. No caso das agncias loca-
lizadas em cidades de grande e mdio porte, uma amostra por conglomerado em dois
estgios foi aplicada, enquanto nas cidades pequenas, todos os funcionrios preencheram
o questionrio (censo). Nos dois outros tipos de dependncias (CESEC e direo geral), utili-
zou-se amostragem aleatria simples. Em funo das diferentes fraes amostrais, as esti-
mativas para o conjunto da amostra foram ponderadas por fator de expanso especfico.
Alm do questionrio geral, respondido por homens e mulheres, as funcionrias
preencheram formulrio especfico, voltado para tpicos como histria reprodutiva,
anticoncepo e preveno de neoplasias. Salienta-se que a adeso do funcionalismo
pesquisa foi excelente, com menos de 5% de recusa ao preenchimento do questionrio.
O fato de ter sido patrocinada pela Caixa de Assistncia dos funcionrios e a expectativa
de que seus resultados revertam em seu benefcio constituram fatores importantes
para tal ndice de adeso. Alm disso, a identificao voluntria e a garantia de sigilo
contriburam para a fidedignidade das respostas, cuja validade sugerida pelas infor-
maes obtidas a partir de questes sensveis - como consumo de bebidas alcolicas e
abortos - compatveis com a literatura. Detalhes metodolgicos e intervalos de confian-
a sero fornecidos apenas para as variveis principais, j que a apresentao dos resul-
tados para cada u m dos estratos estaria fora do espao disponvel para este captulo.
Informaes complementares podero ser obtidas em outra publicao (Beltro, 1996).
Condies de Sade de Funcionrios de Banco Estatal

Caractersticas sociodemogrficas
U m a breve descrio das caractersticas sociodemogrficas ser fornecida inicial-
mente, de modo a permitir uma compreenso melhor do grupo estudado e para facili-
tar comparaes c o m o conjunto da populao brasileira.
Trata-se de u m grupo de adultos jovens, cuja mdia de idade foi de 38,27 anos para
as mulheres, e de 37,13 para os homens. A idade mediana foi de 39,02 e 38,25 para
mulheres e homens, respectivamente. Para o conjunto da populao, a mxima foi de
59,20; a mnima, de 21,30 anos. Na prtica, as diferenas so poucas. Alm disso, apro-
ximadamente 60% dos funcionrios encontrava-se entre 35 e 45 anos (Tabela 1).

Tabela 1 Distribuio etria por sexo

Nota:
Total de respostas (n) = 2.415

Enquanto o salrio mdio foi maior entre os homens - R$1.126,13-do que entre as
mulheres - R$ 909,27 - a renda familiar per capita mdia foi ligeiramente superior para
as mulheres-R$ 660,00-comparada masculina-R$ 627,00. Este resultado sugere que
as bancrias s o m a m seus salrios renda familiar, o que provavelmente no acontece
c o m muitos dos homens, que sustentam sozinhos suas famlias.
Alm do nvel de renda, a escolaridade tambm revela a diferenciao desse grupo
profissional e m relao populao e m geral: 85,5% dos funcionrios chegou a ingres-
sar na universidade (Tabela 2). Maior proporo de mulheres (64,1%) concluiu curso
superior - a taxa masculina foi de 45,7%. Este grau de instruo justificado pelo crit-
rio de seleo de seus funcionrios, que passou a exigir pelo menos o segundo grau
completo nos ltimos concursos.
Tabela 2 Escolaridade segundo sexo

Notas:
Total de respostas (n) = 2415 (Total)
Total de respostas (n) = 1391 (Homens)
Total de respostas (n) = 1024 (Mulheres)
O b s . : Mais alto grau atingido.

A maior parte da populao encontrava-se casada. No entanto, o percentual de m u -


lheres ss, por separao ou viuvez (18,7%), foi superior a registrada entre os homens -
7,3% (Tabela 3).

Tabela 3 Situao conjugai segundo sexo

Notas:
Total de respostas (n) = 2.415
Casados ou unidos consensualmente

Utilizao de servios de sade

O estudo da utilizao de servios de sade desta populao revela a realidade de u m


grupo populacional com amplo acesso a servios credenciados e restituio integral
ou parcial dos gastos com sade. Assim, por exemplo, 21,4% dos funcionrios haviam
sido internados (considerando-se como internao a permanncia em clnica ou hos-
pital, mesmo que por algumas horas) por motivos clnicos ou cirrgicos nos 12 meses
anteriores aplicao do questionrio. Entre os funcionrios que passaram por alguma
internao, nota-se ntida diferena entre os sexos, j que mais da metade das mulheres
foi submetida a pelo menos u m a interveno cirrgica (52,8%), o que ocorreu c o m
apenas u m tero dos homens (32,1 %).
A avaliao das especialidades mdico-cirrgicas envolvidas na cirurgia mais recen-
te do ltimo ano confirma marcada diferenciao entre os sexos (Tabela 4), j que duas
das principais especialidades envolvidas nas cirurgias femininas esto relacionadas ao
aparelho reprodutivo: ginecologia e obstetrcia. Estas corresponderam a 46,9% das cirurgias,
enquanto a ortopedia aparece em primeiro lugar para os homens, com quase u m quarto
do total. Vale notar que as cesarianas estavam explicitamente referidas como sinnimo de
obstetrcia', e foram informadas isoladamente por 17,3% das mulheres (Tabela 4).

Tabela 4 Especialidades mdico-cinirgicas envolvidas na


cirurgia mais recente dos ltimos 1 2 meses

Notas:
Total de respostas (n) = 78 homens
Total de respostas (n) = 120 mulheres

A alta freqncia de parto operatrio pode ser confirmada pelo nmero de partos
cesreos declarados -76,8% das mulheres que tiveram filhos referiram pelo menos u m a
cesrea-e pelo percentual de cesarianas realizadas no primeiro parto: 64%. Este percentual
torna-se ainda mais surpreendente ao avaliarmos suas principais razes (Grfico 1):
apenas 37% deles so classificados como indicaes mdicas formais, passveis de indi-
cao cirrgica: sofrimento fetal (10,8%); posio dobeb (13,4%); indicao mdica por
doena (7,6%); emergncia com complicaes (4,0%) e parto gemelar (1,1%). As alegaes
de "falta de passagem", "trabalho longo", "passou da data", "idade", "mdico achou me-
lhor", "medo da dor", "no queria cortar o perneo" e "o mdico s fazia cesarianas" (sic)
constituram 63% e so de difcil avaliao objetiva.
Grfico 1 Motivos de realizao de cesrea no primeiro parto.
Funcionrias de banco estatal

Nota:
Total de respostas (n) = 426

A avaliao da prtica de cesreas de acordo c o m a idade das bancrias sugere u m


gradiente decrescente c o m o aumento da idade. Considerando-se apenas as mulheres
que tiveram filhos, 83,8% das funcionrias at os 35 anos fizeram pelo menos u m a
cesariana. Esta proporo de 75,7% n o grupo de 35 a 44 anos e de 68,0% acima dos 45.
Ressaltamos que a tendncia inversa seria esperada, j que, c o m o aumento da idade, a
probabilidade de u m maior nmero de partos - e entre eles, as cesreas - deveria au-
mentar. Ainda que u m estudo longitudinal fosse necessrio para confirmar a hiptese,
possvel supor que a prtica de partos operatrios esteja se tornando ainda mais fre-
qente entre as mulheres mais jovens, quando comparadas s geraes mais idosas,
quase c o m o u m a escolha de rotina, passando o parto normal condio de exceo. A
associao deste 'hbito' c o m a prtica de laqueadura tubria, j apontada por outros
autores (Barros, 1991), ser comentada posteriormente.
Preveno de neoplasias ginecolgicas

O u t r a caracterstica q u e diferencia as funcionrias d o B a n c o d o Brasil d o c o n j u n t o


das m u l h e r e s brasileiras refere-se aos p r o c e d i m e n t o s e n v o l v i d o s n a preveno de c n
ceres ginecolgicos. O cncer d e m a m a a principal enfermidade de origem neoplsica
a afetar as m u l h e r e s q u e trabalham n o b a n c o , d e acordo c o m estudo sobre a mortalida-
d e d o s f u n c i o n r i o s d a q u e l a instituio n o perodo c o m p r e e n d i d o entre 1940 e 1990
(Beltro & D u c h i a d e , 1992). Este resultado c o m p a t v e l c o m o q u e v e m ocorrendo entre
as m u l h e r e s das c a m a d a s m d i a s urbanas n o Pas e e m outros pases, nas quais o cncer
de m a m a c o n s t i t u i a neoplasia m a i s freqente (Ministrio da S a d e , 1991).
A g r a n d e m a i o r i a das f u n c i o n r i a s foi e x a m i n a d a p o r m d i c o n o l t i m o a n o , e n -
q u a n t o 26,3% realizou o e x a m e h mais t e m p o (Grfico 2). A p e n a s 1,1% declarou n u n c a
ter realizado e x a m e d e m a m a s , s e n d o e m sua maioria funcionrias jovens, c o m idade
entre 20 e 29 a n o s .

Grfico 2 Ultimo exame de mamas realizado por mdico.


Funcionrias de banco estatal

Realidade diversa e n c o n t r a m o s e m relao a o a u t o - e x a m e das m a m a s . E m b o r a a


g r a n d e m a i o r i a das entrevistadas (88,3%) a f i r m e saber c o m o se faz a a u t o - p a l p a o ,
apenas 38,5% t m esta prtica (Grfico 3). O a u t o - e x a m e revelou-se u m a prtica regular
d e p o u c o m a i s d e 1/3 das bancrias, o q u e d e m o n s t r a q u e at m e s m o e m u m g r u p o
a l t a m e n t e diferenciado e m t e r m o s s o c i o e c o n m i c o s este h b i t o n o foi incorporado.
Grfico 3 Prtica de auto-exame de mamas. Funcionrias de
banco estatal

Notas:
Total de respostas (n) = 1014
Pergunta: "Voc sabe fazer auto-exame de palpao dos seios para preveno do cncer de mama?"

Por outro lado, mais de 2/3 das funcionrias (6 7,9%) j realizaram pelo menos uma
vez a mamografia, solicitada n o exame peridico de sade - realizado anualmente -
para mulheres c o m 40 anos ou mais. M e s m o considerando esta rotina, esta propor-
o nos parece elevada - mais da metade das funcionrias tinha menos de 40 anos
(Tabela 1). A observao dos motivos pelos quais a mamografia foi feita (Grfico 4)
aparentemente refora esta hiptese: menos de 20% aconteceram por indicao m-
dica, devido a algum problema. S e m menosprezar a importncia da mamografia,
particularmente para as mulheres mais velhas, o uso de exames complementares
complexos pode estar sendo abusivo, c o m o acontece e m outros campos da prtica
mdica, substituindo ou complementando, quase que obrigatoriamente, a inspeo
clnica criteriosa.
Grfico 4 Motivos da realizao de mamografia.
Funcionrias de banco estatal

Total de respostas () = 726

Porfim,a realizao do Papanicolau, para preveno do cncer crvico-uterino, est


implantada na rotina de screening das funcionrias do banco: 91,0% das funcionrias
relataram o exame nos ltimos dois anos (Grfico 5). Trata-se de percentual bastante
satisfatrio, muito diferente da realidade da maior parte das mulheres brasileiras.

Grfico 5 Ultimo exame para preveno de cncer crvico-


uterino. Funcionrias de banco estatal

Total de respostas (n) = 1.003


Questes da Sade Reprodutiva

Histria reprodutiva
A maior parte das funcionrias - aproximadamente 80% - j engravidou pelo menos
uma vez (Tabela 5). Dentre essas, 59,7% engravidaram duas ou trs vezes. Somente2,9%
apontaram mais de cinco gestaes. Note-se que a distribuio do nmero de gravide-
zes muito concentrada, com mediana e moda coincidentes - iguais a dois (apenas
duas gravidezes) - chegando mdia de 2,3 gestaes.
Como era esperado entre mulheres urbanas, com alto nvel de escolaridade, a maioria
das funcionrias teve poucos filhos - u m ou dois - e apenas 20,5% trs filhos ou mais -
mximo de cinco (Tabela 5). Considere-se tambm que 2 9,4% relataram nunca ter tido
filhos. Isto torna possvel confirmar a opo por famlias pouco numerosas, caracters-
tica desse estrato social. Salienta-se ainda que o percentual de mulheres sem nenhum
filho (29,4%) superior ao de mulheres que nunca engravidaram (17,6%), sugerindo a
existncia de abortos espontneos ou provocados. Embora os dados da Tabela 5 no
discriminem os filhos nascidos vivos dos natimortos, o percentual informado de
natimortalidade foi muito baixo (0,9%), tomando dispensvel, portanto, a excluso dos
natimortos.

Tabela 5 Nmero de gestaes* e de filhos**

Notas:
(1)
Incluindo as que nunca engravidaram.
(2)
Excluindo as que nunca engravidaram.
(3)
Incluindo as que nunca tiveram filhos.
(4)
Excluindo as que nunca tiveram filhos.
* Mesmo aquelas gestaes que no resultaram em nascimento vivo.
**Nde filhos, tanto nascidos vivos quanto natimortos.
(1)
Total de respostas (n) = 981 para
(2)
Total de respostas (n) = 801 para
(3)
Total de respostas (n) = 1.022 para
(4)
Total de respostas (n) = 721 para
Considerando-se o conjunto das trabalhadoras, o nmero mdio de filhos foi infe-
rior a dois (Tabela ). De acordo c o m o esperado, esta mdia aumenta de acordo c o m a
idade das mulheres, mas possvel suspeitar que as mais jovens tenham comporta-
mento distinto das mais velhas (um efeito de coorte), optando por u m nmero menor
de filhos. Isto, porque nenhuma das funcionrias com menos de 35 anos tinha mais de
trs filhos, q u a n d o se sabe que o pico da fecundidade, n o Brasil, ocorre entre 25 e 29
anos (Simes & Oliveira, 1988). Embora possamos admitir que as mais jovens ainda
no tiveram todos os filhos desejados, a alta freqncia de laqueadura tubria entre elas
enfraquece esta hiptese, como veremos posteriormente.

Tabela 6 Estatsticas-resumo do nmero de filhos por mu-


lher*, segundo grupo etrio

Notas: Total de respostas = 707


* Excludas as que nunca engravidaram.
Obs.: Coeficiente de variao = desvio-padro dividido pela mdia, vezes 100.

Anticoncepo
C o m o j apontavam os nveis baixos de fecundidade das funcionrias do banco, o
controle da concepo elevado. Se forem includas as mulheres que realizaram
laqueadura de trompas e aquelas cujos companheiros so vasectomizados, 74,8% do
total usam algum mtodo anticoncepcional (Tabela 7). Este ndice semelhante ao
estimado, recentemente, para o conjunto das mulheres brasileiras 'unidas' (76,7%). No
entanto, b e m superior estimativa para o conjunto da populao feminina, sem
considerar o estado conjugal, que de 55,4% (BEMFAM/DHS, 1996). Exceo feita a
laqueadura e vasectomia - por no serem considerados estritamente mtodos
anticonceptivos - 36% das funcionrias utilizam algum mtodo.
Tabela 7 Utilizao de mtodos de anticoncepo

Notas:
Total de respostas (n) = 969 mulheres
Excludas as mulheres com laqueadura ou com companheiro vasectomizado.
Includas as que sofreram laqueadura ou tm companheiro vasectomizado.

Ao investigarmos os mtodos utilizados, diversos resultados surpreenderam: a alta


prevalncia de laqueaduras tubrias, c o m 44,1 % de todas as mulheres que evitam filhos
1
(Grfico 6) ; a freqncia de utilizao da 'tabela' (18,1%), por tratar-se de procedimento
tradicional, e que considerado pouco eficaz; o uso dos preservativos, declarado por
13,5%; e, finalmente, e m quarta posio, a plula, c o m 11,7%.
Vale destacar que mtodos modernos, de eficcia reconhecida, c o m o o D I U e o
diafragma, so relativamente pouco utilizados - 7,6% e 6,3%, respectivamente-e que
apenas 0,7% das funcionrias que evitam filhos declararam que seus parceiros so
vasectomizados. Esta pequena proporo tampouco era esperada, j que considera-se
que a prevalncia de esterilizao masculina cresce c o m o aumento da escolaridade
(BEMFAM/DHS, 1996).

Comparando-se os resultados relativos s prticas de anticoncepo das bancrias


com o conjunto das mulheres do Pas, observamos que aquelas se assemelham s esti-
mativas da parcela de brasileiras unidas e m funo da faixa etria e do estado conjugai
(mais da metade das bancrias encontrava-se casada). Assim, a proporo de mulheres
que evitam filhos semelhante: 74,8%, entre as bancrias; e 76,7% e m nvel nacional
(BEMFAM / D H S , 1996). A mesma proporcionalidade verificada e m relao parcela de
mulheres esterilizadas entre as que evitam filhos: 40,1 %, na populao geral; e 44,1 %
entre as bancrias. Ressalta-se tambm que, enquanto a plula o segundo mtodo mais
freqente entre o conjunto das brasileiras, as bancrias a utilizam menos, dando prefe-
rncia a mtodos tradicionais c o m o a 'tabela'.

1
Ver tambm prevalncas especficas por dependncia, no Anexo 1.
Grfico 6 Mtodos utilizados para evitar gravidez.
Funcionrias de banco estatal

Notas:
Total de respostas (n) = 752

O nmero suficiente de filhos foi o motivo declarado por cerca de 80% das funcio-
nrias para a laqueadura, ao passo que ter realizado duas ou mais cesarianas aparece em
segundo lugar, para 36,5% (Grfico 7). Entre os outros motivos citados pelas bancrias,
destaca-se que os problemas financeiros foram declarados por aproximadamente 10%
das mulheres esterilizadas. A maior parte das funcionrias (63,7%) declarou mais de u m
motivo: a maioria optou pela combinao entre "nmero suficiente de filhos" e "muitas
cesreas". Confirma-se, assim, a associao entre a prtica de cesarianas e de laqueadura,
j apontada e m outros estudos. Entre mulheres norte-americanas, por exemplo, de-
monstrou-se que aquelas submetidas a partos cesreos apresentaram probabilidade
duas vezes maior de sofrer esterilizao simultnea ps-parto d o que mulheres que
tiveram partos por via vaginal (Placek, 1981). N o caso das bancrias, entre as que j
tiveram pelo menos u m parto cesreo, 68,8% ligaram as trompas, ao passo que 45,5%
entre as que nunca tiveram parto operatrio optaram pela esterilizao. J que a maio-
ria das mulheres teve n o m x i m o dois filhos, podemos supor que, por ocasio do
segundo parto, boa parte delas'optou'pela cesariana como via de acesso para a laqueadura.
A pequena proporo de funcionrias esterilizadas sem cesariana (14,1%) revela que a
ligadura por laparoscopia pouco utilizada pelas bancrias.
Grfico "7 Distribuio dos motivos que levaram
laqueadura. Funcionrias de banco estatal

Nota: 0
Total de respostas (n) = 325
A o investigar os motivos para a realizao da laqueadura mais detalhadamente,
observamos que cerca de 64% das funcionrias tinham u m ou dois filhos na poca e m
que a realizaram (Tabela 8). Alm disso, eram bastante jovens (o ndice de opo pela
ligadura antes dos 30 anos atingiu 41 %) (Tabela 9); e 79% tinham n o m x i m o 34 anos ao
optar pela esterilizao. Assim, devemos interpretar que "nmero suficiente de filhos"
significou dois filhos - na grande maioria dos casos - e que "muitas cesreas" (tambm
duas, n o m x i m o , para a grande maioria) de fato no parecem justificar esta deciso
radical, indicada para multiparas idosas (acima de 35 anos) ou mulheres c o m grave
risco gestacional, de acordo c o m a prtica mdica criteriosa.

Tabela 8 Mulheres esterilizadas* segundo nmero de filhos

Ligadura de trompas N m e r o d e f i l h o s (%)

Notas:
Total de respostas (n) = 483
* Mulheres que fizeram laqueadura tubria.
Tabela 9 Idade na ligadura de trompas

Nota:
Total de respostas (n) = 319

Aborto

Considerando-se todo o constrangimento que o tema envolve, por motivos religio-


sos, legais ou morais, e tambm em funo da pesquisa no ter sido desenhada com este
objetivo especfico, optamos por no fazer distino entre abortos provocados ou es-
pontneos. O tpico foi abordado pela pergunta "alguma de suas gestaes resultou em
aborto espontneo ou provocado?" Entre as funcionrias que engravidaram alguma
vez, 50,2% responderam afirmativamente, o que corresponde a uma ocorrncia bastan-
te c o m u m neste grupo populacional. Embora saiba-se que entre 10 e 15% das gestaes
podem ser interrompidas espontaneamente - devido a malformaes congnitas, alte-
raes de implantao do embrio ou problemas de sade da me (Rezende, 1976) -
no provvel u m percentual to elevado de abortos inevitveis em u m grupo com as
caractersticas sociais descritas. Assim, razovel supor que a maior parte destes
abortamentos tenha sido, de fato, provocado, considerando-se ainda que o percentual
pode estar subestimado, por dificuldade de declarao ou, at, pelo no-desejo das
mulheres em recordar o evento.
De toda forma, trata-se de u m nmero muito expressivo, se considerarmos que
este u m grupo diferenciado de mulheres, c o m acesso praticamente irrestrito a
todos os mtodos contraceptivos disponveis n o mercado. A prtica do aborto parece
se justificar no somente pela falta de informao ou de acesso anticoncepo, mas
tambm pela falha dos mtodos disponveis aliada ambigidade relacionada ma-
ternidade, to c o m u m na sociedade moderna. Estes resultados mais u m a vez confir-
m a m a freqncia da prtica d o aborto, fato sabido mas n o reconhecido - que
nenhuma mulher deseja conscientemente - mas ao qual acaba recorrendo em algum
momento da vida.
Comentrios finais

Sc inegvel o avano que a disseminao de mtodos contraceptivos representou


para a maior liberdade da mulher no que tange sua entrada n o mercado de trabalho,
constatamos, tambm, que esta liberdade vem se expressando no Brasil sobretudo pela
opo de 'no ter filhos', ao invs de 'ter o nmero desejado de filhos'.
No podemos deixar de estranhar o tipo de regulao da concepo em vigor entre
as funcionrias do banco (teoricamente no esperado, pois o predomnio das ligaduras
tubrias se aproxima daquele vigente na mdia da populao feminina do Pas, que no
tem, em muitos casos, emprego, o nvel de escolaridade ou o amplo acesso tecnologia
e servios de sade das bancrias). Apesar do perfil diferenciado deste grupo, que
comparvel ao de mulheres de pases desenvolvidos, as funcionrias preferem, em sua
grande maioria, a ligadura de trompas, e no mtodos reversveis, disponveis para elas.
Assim, a necessidade (e desejo?) de abolir para sempre gestaes indesejadas parece
igualar as mulheres brasileiras, que, ainda jovens e, em geral, c o m u m ou dois filhos,
esto optando pela esterilizao.
O s motivos alegados no parecem explicar esta preferncia to acentuada pela
laqueadura. Afinal, se uma funcionria do banco tem o nmero de filhos que considera
suficiente, ou se j fez duas cesreas, e mesmo que no tolere a plula, da no decorre
obrigatoriamente que a nica (ou principal) alternativa deva ser a laqueadura. A esfera
de motivaes que determina, de fato, tal deciso parece ser outra - e , embora no tenha
constitudo objeto de investigao deste trabalho, merece ser comentada. Dentre estas,
vale comentar que a gerao de mulheres que tm hoje entre 30 e 35 anos de idade -
quando a maior parte daquelas que evitam filhos j se encontra esterilizada - no co-
nheceram, em sua vida adulta, perodos prolongados de crescimento econmico, quan-
do a ausncia duradoura de crises econmicas e polticas possibilita o florescimento da
esperana em u m futuro melhor para o Pas. Ao investigar, na mesma pesquisa, o nvel
de satisfao dos funcionrios com suas condies devida e trabalho, constatamos que
aproximadamente 95% das mulheres estavam insatisfeitas com o "estado da lei e da
ordem" e com os "padres morais e valores do Pas". Em relao ao banco, entre 18 itens,
"as perspectivas de ascenso" apresentou o ndice mais alto de insatisfao, depois do
nvel salarial. Isso nos leva a supor que este o pano de fundo da 'opo' pela esterilizao
precoce, que aproxima as funcionrias do Banco do Brasil (antes considerado u m b o m
emprego, seguro para toda a vida) do conjunto das brasileiras: a ausncia de esperana
em u m futuro melhor para o Brasil, do ponto de vista moral ou econmico. Fazendo
parte desse quadro, as condies de vida, no dia-a-dia das grandes cidades, tornaram-se
mais difceis nas ltimas dcadas, com o crescimento da violncia e deteriorao dos
servios de educao e sade pblicos.
A partir desse cenrio comum, o peso dos motivos que parecem justificar a deciso
da laqueadura pode variar para os diferentes grupos sociais, segundo a disponibilidade
de mtodos reversveis - que, no caso das bancrias, ampla - e da qualidade da infor-
mao fornecida pelos mdicos a respeito das conseqncias 'conhecidas' da esteriliza-
o sobre o corpo ou sobre a imagem que a mulher tem de seu corpo. N o caso das
bancrias, podemos supor que as falhas dos mtodos, o desconforto que geram (ou seus
efeitos colaterais), aliados s restries legais e morais ao aborto, contribuem para a
proporo exagerada de mulheres jovens esterilizadas. Note-se que esta proporo es-
panta ainda mais por se tratar de u m a deciso 'para sempre', tomada em tempos de
instabilidade das relaes conjugais, quando u m novo casamento ou outro filho po-
dem fazer parte do futuro de qualquer mulher.
Embora tenhamos analisado esta populao por meio de u m estudo transversal,
'congelando' u m instante no t e m p o - e , portanto, sem a perspectiva de u m perodo
mais longo - a reverso desses padres reprodutivos pouco provvel, sobretudo se
lembrarmos que a mdia de idade das bancrias beira os 40 anos e considerarmos a
preferncia pelas laqueaduras. De fato, os resultados aqui apresentados no so uma
peculiaridade das bancrias, mas confirmam o que foi encontrado em estudos nacio-
nais recentes: a preferncia pela laqueadura no uma caracterstica das camadas m-
dias, ela est ocorrendo no Brasil de modo generalizado. Cabe a u m conjunto de discipli-
nas a discusso e divulgao desta tendncia, pois o tamanho da famlia - que, aparen-
temente, decidido intimamente por cada casal-depende, tambm, do contexto social
mais amplo. Em ambas as esferas, pblica ou privada, as determinaes so mltiplas e
muitas delas sequer explcitas ou conscientes.

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Anexo 1
Prevalncia de ligadura de trompas entre as bancrias com vida sexual ativa que no
estavam utilizando outros mtodos anticonceptivos por tipo de dependncia

Notas:
n = 619
* Agncias localizadas em cidades grandes, mdias ou pequenas.
Obs.: Nas agncias pequenas todos os funcionrios preencheram o questionrio.
22

O Recorte Racial/tnico e a Sade Reprodutiva:


mulheres negras*
Ftima Oliveira

Introduo

Cresce a compreenso nos meios cientficos de que as imagens epidemiolgicas


necessitam incorporar a interpenetrao das variveis sexo/gnero, raa/etnia e classe
social para retratar a realidade c o m maior fidelidade. Esta trade deve ser analisada
considerando-se a vivncia do racismo e as condies sociais e materiais nas quais a
pessoa vive, alm de ressaltar que a condio biolgica no mais ou menos importan-
te, apenas indispensvel quando tratamos do ser humano. Estamos, pois, diante de u m
desafio: a necessidade da elaborao de u m novo paradigma capaz de explicar o que a
'cincia normal' do nosso tempo no tem conseguido.
Neste ensaio especulativo, abordamos a importncia do 'quesito cor' como dado de
identificao pessoal nos servios de sade. Isto, por tratar-se de u m indicador/pista
fundamental para o entendimento de agravantes ou atenuantes de doenas, possibili-
tando diagnsticos mais precisos e precoces e ateno adequada - sobretudo no caso de
doenas denominadas "raciais/tnicas", que concorrem para aumentar a morbi-mor
talidade das mulheres em idade reprodutiva. Entre elas, a anemia falciforme e doenas

* Este captulo possui tantas co-autorias que sinto-me impossibilitada de enumer-las, por medo de, ao
esquecer algum nome, cometer injustias. Minha gratido a todas as pessoas que participaram de todos
os momentos e ocasies em que tive o privilgio de pensar, repensar e discutir este assunto e contar
com inmeras contribuies. Agradeo pelas crticas, sugestes, discusses sem fim e sobretudo pela
solidariedade, s professoras Elza Berqu e Eliane Azevedo; s bolsistas do Programa Sade Reprodutiva
da Mulher Negra Magda, Raquel, Dida e Vera; e ao Grupo de Estudos sobre a Sade da Populao Negra/
Sindicato dos Mdicos do Estado de So Paulo: Lurdinha, Gilka, Hegles, Tito e Joo Elias.
de componentes comprovadamente polignicos - nas quais o recorte racial/tnico pa-
rece ser importante, c o m o diabetes tipo II, miomas uterinos e hipertenso arterial. Anali-
samos, ao mesmo tempo, como a varivel classe social ao lado do recorte racial/tnico parece
determinante no prognstico desfavorvel em praticamente todas as enfermidades femi-
ninas, e m especial nos casos de cncer uterino e de mama; e no acesso aos servios
pblicos de sade, particularmente na contracepo, pr-natal e preveno do cncer.

Consideraes gerais

Os estudos contemporneos sobre a sade da populao negra brasileira tm como


referncia obrigatria os trabalhos pioneiros de Elza Berqu et al., na rea de demografia,
realizados pelo Ncleo de Estudos da Populao da Universidade Estadual de Campinas
(NEPO/UNICAMP). A delimitao das pesquisas no campo da sade reprodutiva tem como
marco o ano de 1991, a partir da criao do Programa Sade Reprodutiva da Mulher
Negra (PSRMN) pela rea de Populao e Sociedade do Centro Brasileiro de Anlise e
Planejamento (CEBRAP) - coordenada por Berqu - que realiza pesquisas e prepara estu-
dantes negras na rea de sade reprodutiva da populao negra.
Existem dados comprobatrios de que algumas doenas surgem c o m mais fre-
qncia - ou quase exclusividade - em negros, brancos e amarelos, ou, ainda, e m
alguns grupos tnicos, c o m o ciganos, judeus, entre outros. Tal constatao indica a
possibilidade de catalogao de algumas doenas c o m o 'raciais' ou 'tnicas'. A anemia
falciforme u m exemplo. Originria da frica, prevalece em negros - o que nos permite
afirmar que u m a 'doena racial'. Anlises de DNA revelam vrios tipos de anemia
falciforme. Trs so oriundos de focos denominados 'geogrficos' - Benin, Senegal,
Camares - cujos grupos populacionais so diferenciados (inclusive culturalmente); e
u m coincide c o m u m grupo tnico (Banto).

Afinal, o que raa e o que etnia?

Embora este captulo no pretenda discutir tais conceitos, no podemos nos furtar
a tecer ligeiras consideraes sobre eles, pois o que se diz que raas humanas so, na
verdade, variaes sobre o mesmo tema: Homo sapiens. Raa, como termo, encerra sem-
pre u m significado biolgico, embora no possua o fatalismo gentico de sexo e no
seja uma categoria biolgica. A inexistncia de raas humanas uma verdade cientfica
das biocincias contemporneas. As pesquisas da gentica demonstram que a espcie
h u m a n a (Homo sapiens) u m a s; e que, dentro da espcie, a variabilidade gentica im
pe, c o m o padro de normalidade da natureza, a realidade de que cada ser h u m a n o
geneticamente nico. Geneticamente no existem raas humanas. O s saberes da gen-
tica molecular dizem que, considerando-se o DNA como o material hereditrio e o gene
como unidade de anlise biolgica, impossvel dizer se estas estruturas pertencem a
uma pessoa negra, branca ou amarela. Isso o bvio, pois o gene carrega possibilidades
de caracteres, e no os caracteres. O conceito dito 'cientfico' de raa foi construdo pela
ideologia racista - e a palavra 'raa' e o contedo histrico deste conceito referem-se a
algo que no existe.
Quanto a etnia e vocbulos correlatos (tnico, etnicidade, grupo tnico), as polmi-
cas tambm so inmeras. So palavras pouco utilizadas fora dos meios acadmicos
brasileiros. Existem resistncias a seu emprego. Para muitas pessoas, 'etnia' uma ter-
minologia que serve para escamotear e encobrir o racismo. c o m o se, ao se usar a
palavra 'etnia', a ideologia racista deixasse de existir. Etnia uma palavra e, tambm, u m
conceito, que incorpora a condio biolgica humana sem as gradaes de superiori-
dade e inferioridade-hierarquizao inerente 'raa dos racistas' - ao m e s m o tempo
em que agrega os ambientes fsico e cultural, em todas as suas dimenses.
As classificaes raciais existem desde Linneu (1738) e nos utilizamos delas nos estu-
dos - embora no haja uma classificao racial 'precisa' e todas sejam arbitrrias e partam
da semelhana fenotpica ou genotpica em humanos. Em todas as tentativas de classifi-
cao racial, o 'quesito cor' (corda pele) aparece como caracterstica bsica, como critrio
em si, ou ainda por conta da regio geogrfica nas quais as pessoas moram.

A condio e a predisposio biolgica humana

Considerar a predisposio biolgica no o mesmo que compreender que somente


a condio biolgica com a qual algum nasce define tudo o que este algum ser biol-
gica (fatalismo gentico) e socialmente. No entanto, essencial que faamos uma reflexo
elementar, mas necessria. Se isolarmos o ser h u m a n o da sua condio biolgica, com
certeza, no estaremos nos referindo ao 'ser humano', pois somos 'seres biolgicos'. Se o
isolarmos da sua cultura (hbitos e costumes), e considerarmos apenas a condio biol-
gica, no estaremos tratando d o ser humano, mas de u m outro animal, j que o 'ser
humano' 'Homo' pela condio biolgica e 'sapiens' pelas interferncias culturais.
No momento, considera-se a existncia de uma base gentica que predispe para
doenas c o m o diabetes, febre reumtica, crie dentria e hipertenso arterial, dentre
outras. As pessoas predispostas podero desenvolver ou no tais doenas, dependendo de
como se der a interao destas com as condies de vida (favorveis ou desfavorveis).
Algumas predisposies biolgicas aparecem mais em alguns grupos raciais ou tnicos.
O isolamento geogrfico e/ou social, relativo ou absoluto, dos agrupamentos humanos
em u m dado momento de suas histrias, por largos perodos, criou situaes que s permi-
tiram a troca de genes no interior do prprio grupo. Hoje, o isolamento geogrfico quase
inexistente, mas persistem os mecanismos sociais de barragens - que, sob a forma de
isolamento cultural, racial/tnico, religioso ou econmico-dificultam a mestiagem.

O 'quesito cor' e alguns indicadores da varivel raa/etnia

No Brasil, a classificao adotada atualmente a da Fundao Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatstica (IBGE), que coleta a cor da pele ('quesito cor') c o m o dado que
permite a identificao racial a partir da autoclassificao - a pessoa entrevistada
quem 'escolhe' qual a sua cor dentre cinco itens: preta, parda, branca, amarela e indge-
na. A juno da populao preta com a populao parda que possibilita a definio da
populao negra. A 'cor' amarela identifica povos de origem asitica. Quanto aos ind-
genas, esto circunscritas diferentes etnias. Apesar de haver muitos prs e contras nesta
metodologia, ela de muita utilidade. O 'quesito cor' u m dado necessrio para o
estudo da sade da populao negra em nosso pas.
Alguns sinais, condies e doenas aparecem com mais freqncia em u m grupo
populacional racial ou tnico do que em outros. C o m o exemplo, podem ser citados a
mancha monglica (mancha arroxeada que aparece na regio dorsal/ndegas de crian-
as negras, orientais e indgenas); a gemelaridade, mais freqente na raa negra (os
percentuais mdios so de 1/79 para mulheres negras; 1/100 mulheres brancas e 1/155
1
orientais) ; os miomas (vrias pesquisas demonstraram alta incidncia em mulheres

1
Borges-Osrio et al. (1993) informam que: "A freqncia de gmeos monozigticos mostra pouca
freqncia entre as populaes, sendo 1/300 nascimentos (3-4/1.000 nascimentos), independentemente da
raa e outros fatores (...) A freqncia de gmeos dizigticos, por sua vez, bastante varivel, sendo
influenciada por diversos fatores como: raa: a freqncia maior em negrides (16-20/1.000 nascimentos),
mdia nos caucasides (6-10/1.000 nascimentos) e menor nos orientais (2-4/1.000 nascimentos); idade
materna: a freqncia de gmeos dizigticos aumenta com a idade ate ao redor de 37 anos, quando cai
bruscamente (a causa o aumento de FSH - gonadotrofina - com a idade, o que pode aumentar a tendncia
poliovulao); gentipo: h uma predisposio gentica para a poliovulao, relacionada com os altos
nveis de FSH; tamanho da irmandade: (aumento com a paridade); tratamento hormonal; controle de
natalidade; aberraes cromossmicas: a freqncia de nascimentos gemelares mais alta em famlias com
indivduos aneuplides (sndrome de Down, sndrome de Turner, por exemplo)". Beiguelman (1994) diz sobre
a freqncia de partos gemelares: "A incidncia de gmeos nas populaes humanas mostra grandes varia-
es, com valores que vo de 5,9 por mil recm-nascidos vivos no Japo, at 52 por mil nascimentos na
Nigria". Tais variaes dependem da freqncia varivel de nascimentos dizigticos, pois a de monozigticos
constante (em torno de 3-4/100). Prossegue Beiguelman: nascimento de dizigticos depende eviden-
temente, da ocorrncia de poliovulao, a qual, por sua vez, depende do nvel do hormnio folculo
estimulante (FSH) que mais alto em mulheres negrides e est relacionado ao tamanho da hipfise, cujo
peso mximo atingido aos 40 anos de idade, e, obviamente, fecundidade".
negras - fazendo c o m que seja u m a das causas mais apontadas para a prtica de
histerectomia e m negras e m vrios pases); e a hipertenso arterial, que, segundo Zago
(1994), " mais freqente e mais grave e m negros que e m brancos, pelo menos nos
Estados Unidos. Desenvolve-se mais precocemente e a mortalidade principalmente
devida a derrame, muito mais do que doena coronariana".

O conceito de doenas raciais/tnicas. U m novo paradigma?

do reconhecimento da condio e da predisposio biolgica que deriva o conceito


de doenas raciais/tnicas - assim denominadas as doenas que aparecem mais ou so
exclusivas de determinados grupos raciais/tnicos (negros, brancos, amarelos, judeus,
ciganos, entre outros) e e m mestios 'recentes' de tais grupos. Podemos falar tambm em
caractersticas raciais/tnicas, quando nos referimos s condies biolgicas que ocor-
rem mais e m u m grupo populacional delimitado por raa/etnia ou nacionalidade.
O conceito de doenas raciais/tnicas tem gerado polmicas acirradas... e
apaixonantes. o m n i m o que poderia se esperar quando da construo de u m novo
paradigma terico, segundo a acepo kunhiana (Kuhn, 1970). Mas no podemos es-
quecer que o conhecimento emprico, ou a verdade cientfica do ' m o m e n t o ' - e m
particular no tocante s biocincias - possui a singularidade de ser efmero e relativo
(Martins, 1995). oportuno revisitar o 'atributo da refutabilidade de Popper' e a supera-
o da 'cincia realizada e m perodos de normalidade' pelas 'revolues cientficas'
(Kuhn, 1970) para compreender a razo de algumas verdades cientficas, ou at 'modis-
mos cientficos' (que na maioria das vezes necessitam de fundamentao cientfica) de
alguns perodos histricos serem substitudos por outros. A ttulo de ilustrao: doenas
como a tuberculose, raquitismo, febre reumtica, pelagra (deficincia de niacina) j fo-
ram consideradas genticas, hereditrias etc. inclusive como exclusividades raciais/tni-
cas, parte da compreenso de interao com as condies materiais e sociais de vida.

A interao das variveis 'classe', 'sexo/gnero' e 'raa/etnia'


na manuteno da sade e produo das doenas

Os atuais modelos explicativos de sanidade e enfermidade avalizados pela comuni-


dade cientfica so limitados e parciais e revelam-se insuficientes:

modelo gentico, m u i t o e m 'moda', tenta ser o nico e verdadeiro c a m i n h o que


responder e desvendar todos os mistrios da vida, ao reduzir o destino das pessoas ao
que portam os seus genes, pois deles depende a forma como as protenas das pessoas
so produzidas;
modelo econmico, que 'reduz' o destino das pessoas s condies econmicas nas quais
elas vivem, de maneira que essa explicao s considera a produo social das doenas;
modelo ambientalista, que 'reduz' o destino das pessoas s condies do ambiente em
que vivem, isto , o meio ambiente o determinante da sade e da doena;
modelo ecolgico, que 'reduz' o destino das pessoas ao estilo devida que elas adotam, ou
seja, a relao delas com o ambiente o determinante para a sanidade e a enfermidade;
modelo ou Viso' holstica, que baseia-se em uma compreenso integral, de interao
entre a condio biolgica do ser humano somada ao meio ambiente fsico, cultural e
social. Apesar da abrangncia e da viso de integralidade, algumas correntes do holismo
s vezes no compreendem que a desestabilizao de uma destas variveis pode ser
suficiente para desencadear ou determinar o processo de doena (por exemplo, em
determinadas circuntncias, basta u m problema em u m gene, ou par de genes, para que
haja uma doena, caso da anemia falciforme). O u seja, entendem que o 'todo' - a viso
de conjunto, a interdependncia - sempre sobrepuja as partes (Oliveira, 1997).

Precisamos de novos e mais completos modelos para explicar o processo sade/


doena, que considerem a condio biolgica; as opresses de gnero e racial/tnica; e
as condies e locais onde as pessoas vivam. Necessitamos de u m novo paradigma, cujo
alicerce o entendimento de que as doenas raciais/tnicas encontram-se no interior
da compreenso da interpenetrao de 'classe', 'sexo/gnero' e 'raa/etnia'. Aqui, a filo-
sofia poder elucidar muitas coisas. A memria histrica prdiga em explicitar que
u m novo paradigma no se estabelece sem que, de posse de novos dados, nos disponha
mos a 'filosofar e filosofar' sobre eles.

A sade da populao negra versus eugenia

O s estudos sobre a condio biolgica e a sade da populao negra, no mundo,


aparecem entrelaados, de alguma forma, eugenia. Para compreender tal fenmeno,
necessitamos 'beber na fonte' da experincia histrica ocorrida nos Estados Unidos e
Alemanha. Em territrio norte-americano, as leis que determinavam a esterilizao de
"retardados, insanos, sifilticos, alcolatras, epilpticos e criminosos" e a Lei de Imigra-
o, de 1924, constituam uma proposta de higienizao da raa daquela sociedade. Na
Alemanha - na poca o maior centro da cincia mundial - a eugenia se desenvolveu,
desde o comeo do sculo XX, sob o nome de Higiene Racial. O grande destaque acon-
teceu em 1913, quando Eugene Fischer, professor da Universidade de Freiburg, publi-
cou u m grande clssico da eugenia; Os Bastardos de Rehoboth e o Problema do Abastardamento do Ser
Humano, em cujas pginas explicita as bases ditas 'cientficas' para a proibio de casa-
mentos entre pessoas de raas diferentes. Outro clssico A Cincia da Hereditariedade Humana
e Higiene Racial, de Erwin Baur, Fritz Lenz e Eugene Fischer. A obra, lida por Hitler na priso
de Landsberg em 1923, foi admitida, em depoimento do ditador, como fonte de apren-
dizado para a corporificao da tese de que a raa ariana seria pura e superior.
U m a contribuio terica importante para os racistas foi o livro 0 Crime, suas Causas e
Remdios, de Cesare Lombroso (1836-1909), criador da antropologia criminal e da tese da
hereditariedade do comportamento criminal: a biotipologia do criminoso nato e
irrecupervel (determinismo gentico para o crime). Outra obra fundamental para a
eugenia foi Ensaio sobre a Desigualdade das Raas Humanas (18 5 3), do Conde Joseph-Arthur de
Gobineau (1816-1882), francs que atuou como diplomata no Brasil.
Breve reviso em bibliografia brasileira evidencia que os discursos de escravagistas e
abolicionistas estavam impregnados da perspectiva evolucionista, derivada do
darwinismo social: sua maior esperana consistia em 'redimir' o povo brasileiro por via
do embranquecimento e do fim da mestiagem (Skidmore, 1987; Schwarcz, 1993).
Tais idias foram desenvolvidas por mdicos e advogados nos principais centros
culturais da poca: Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. As opinies eugenistas, na
Bahia, fundem-se ao desenvolvimento da medicina legal, coordenado pelo mdico e
socilogo maranhense Nina Rodrigues (1862-1906). No Rio, o movimento surgiu como
uma decorrncia 'natural' das idias higienistas, contando com o apoio de renomados
mdicos, destacando-se os psiquiatras. Miguel Couto (1865-1934) foi u m entusiasta de
primeira hora desse movimento. Em Recife, com o apoio de advogados e de professores
da Faculdade de Direito, nasceu outro plo. Clebres figuras dos mundos literrio e
jurdico e das cincias sociais e biolgicas concordavam que a mestiagem levava
'degenerao da raa' e era u m entrave ao desenvolvimento do Pas (Schwarcz, 1993).
O modelo higienista adotado aqui, tal como o europeu, baseava-se na moralidade
sanitria e em u m a proposta de educao em sade alicerada n o 'patrulhamento
sanitrio' dos 'desregrados' por meio de uma poltica de sade disciplinadora das con-
dies de vida - sobretudo da moradia - dos pobres nos centros urbanos (Bizzo, 1994;
Marques, 1994). A 'cincia eugnica' e a moralidade higienista consolidaram-se nos
meios universitrios brasileiros pelos trabalhos de Erasmo Braga, Horcio de Carvalho e
Joo Ribeiro (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro). Alexandre Tepedino, em 1914,
e Clodoaldo de Magalhes Avelino, em 1924 apresentaram, respectivamente, as teses
Eugenia e Eugenia e Casamento Faculdade de Medicina da Bahia.
Em 1923, foi fundada a Liga Brasileira de Higiene M e n t a l (LBHM) n o Rio de
Janeiro, pelo psiquiatra Gustavo Riedel. Estes profissionais estavam convencidos de
que a degradao moral e social dos povos advinha dos vcios, da ociosidade e da
miscigenao racial. Isto explica por que os psiquiatras passaram a cuidar da higie-
ne do povo e a ter c o m o centro de seu trabalho a preocupao com a 'constituio
tnica do povo brasileiro'. Cabe ressaltar o c u n h o racista de u m a articulao higie-
nista/eugenista estabelecida entre a Liga Pr-Saneamento (fundada e m 1917, em
So Paulo) c a Sociedade Eugnica de So Paulo (fundada em 15 de janeiro de 1918),
cuja 'preocupao higienizadora' estava apoiada no trip saneamento-eugenia-civi-
lizao c o m o condio indispensvel para construir uma nao desenvolvida e livre
de 'raas inferiores' (Marques, 1994).
Em 1929, o mdico Renato Kelh (fundador da Sociedade Eugnica de So Paulo
e da Comisso Brasileira de Eugenia, Rio, 1931), n o Boletim Eugenia, divulgava os feitos
eugnicos nos pases ricos; condenava a mestiagem por consider-la u m a degene-
rao das melhores raas e se posicionava contra os casamentos inter-raciais (Oli-
veira, 1995).
Os estudos sobre a sade da populao negra n o Brasil, at meados da dcada de
60, no existem fora da preocupao de extermnio de uma 'raa impura e inferior'.
Costa (1989), e m pesquisa realizada sobre a sade dos negros na poca da escravido,
concluiu que as altas taxas de morbidade e de mortalidade daquela populao devia-
se precariedade de suas condies de vida. Sem dvida, apesar da seriedade, do
brilhantismo e do resgate de dados que constituem uma grande contribuio terica,
esta u m a viso e m que s se consideram as relaes sociais de produo (classe). O
estudo, ao abordara medicina popular dos negros, demonstra, ainda, que aquela
populao (exceo feita aos saberes africanos) no tinha a q u e m recorrer para o
tratamento de suas doenas.
Os dados obtidos por Costa constituem-se e m informao reveladora de u m a
situao importante: a medicina brasileira no tem muita experincia em sade da
populao negra, pois somente h aproximadamente 50 anos dedica-se a cuidar dos
negros doentes. At hoje, o acesso destas pessoas aos servios mdicos de boa qualida-
de dificultado; alm disso, as pesquisas c o m recorte racial so escassas. Deve-se
reconhecer que, se n o levarmos e m considerao as repercusses da vivncia
estressante do racismo - ainda que 'cordial', 'sutil', ou 'camuflado'... - na sade fsica
e mental das pessoas, no resgataremos a incomensurvel dvida da medicina oci-
dental para com povos/etnias discriminadas.

Estudos atuais sobre a sade da populao negra

Reviso bibliogrfica feita por Souza (1995) enfatiza, n o Brasil, os trabalhos desen-
volvidos no /UNICAMP por Berqu, Bercovich e Tamburo/Cunha; e por Morell e Silva
(1989). Na rea de aleitamento materno, dados interessantes so encontrados e m Ra
(1990) e Mota (1990). As pesquisas citadas constituem referncias indispensveis para
o estudo da sade da populao negra brasileira.
Merecem destaque as concluses do D o c u m e n t o Final da Mesa Redonda sobre a
Sade da Populao Negra (Ministrio da Sade, 1996):
A populao negra brasileira muito particular do ponto de vista gentico. No
corresponde a nenhuma outra populao de qualquer parte do mundo (...) Os dados
histricos so bem conhecidos; estudos demonstram que essas diferenas, quanto a
seus aspectos biolgicos, persistem at hoje (...). Como conseqncia, a populao
negra brasileira nica do ponto de vista gentico. Da perspectiva mdica, isso significa
que o conhecimento a respeito de todos os aspectos biolgicos ligados s etnias negras,
incluindo as doenas, podem ter no Brasil caractersticas prprias; particularmente as
doenas podem ter comportamentos diversos daqueles observados, quer na frica,
quer em outros pases da Amrica ou da Europa (...). At hoje os estudos que analisam
as populaes afro-brasileiras so muito escassos (...).

Neste d o c u m e n t o , publicou-se u m quadro, proposto por Zago (1996) sobre as


nosologias das populaes afro-brasileiras;

Quadro 1 Nosologias das populaes afro-brasileiras

Fonte: ZAGO, 1996.


Vrios pases tm realizado estudos sobre a sade da populao negra, em especial
sobre anemia falciforme- inegavelmente, os Estados Unidos so o pas que mais tem
produzido neste setor, conforme vrias citaes neste captulo.

Principais doenas com interfaces definidas com a sade


reprodutiva da mulher negra

Diabetes tipo II, miomas, hipertenso arterial e anemia falciforme so doenas


nas quais os dados empricos so suficientes para demonstrar o recorte racial/tni-
co relativo populao negra. Neste captulo, a abordagem sobre anemia falciforme
ser mais detalhada pelo fato de a doena ter sido objeto de elaborao, em outubro
de 1996, de u m trabalho especfico por parte do Ministrio da Sade, o Programa de
Anemia Falciforme. Alm disso, constitui u m problema de sade pblica que no
tem recebido a merecida ateno por parte de governantes, profissionais da sade e
do aparelho formador da rea - ao contrrio de outras doenas (mesmo quando os
profissionais no reconhecem o recorte racial/tnico, mas acabam por saber lidar
c o m elas), o que acontece c o m a anemia falciforme quase u m total desconheci-
mento - o que tem impedido e/ou dificultado o diagnstico e a aplicao do trata-
mento adequado.

Diabetes tipo II
Atualmente sabemos que sob o rtulo de diabetes esto agrupadas vrias doenas
crnicas, de fundo gentico multifatorial. A sndrome diabtica compreende: diabetes
tipo I (infanto-juvenil/insulino-dependente-DMID), prevalente em brancos; diabetes
tipo II (ou adulta/no-insulino-dependente - DMNID), que prevalece em negros; e os
tipos caracterizados pelo aparecimento ocasional, diabetes gestacional, e diabetes se-
cundria a vrias doenas. Encontramos, ainda, duas situaes definidas c o m o de
'risco potencial diabetes': tolerncia glicose diminuda e a anormalidade potencial da
tolerncia glicose (Dombrand et al., 1990).

Miomas
O s m i o m a s so os tumores uterinos mais c o m u n s - atingem 20% das mulheres
entre a primeira menstruao e a menopausa. Em geral so 'silenciosos'; no apresen-
tam sintomas; so benignos (menos de 1% se toma maligno); tm crescimento lento; e
a maioria diminui de tamanho, naturalmente, aps a menopausa.
A pesquisa de Souza (1995) demonstra a alta incidncia e reincidncia de miomas
em mulheres negras brasileiras, e revela que a proporo de histerectomias nas negras
foi quase cinco vezes superior s brancas. A literatura mdica norte-americana afirma
que a prevalncia de miomas em negras cinco vezes maior do que em brancas e duas
vezes superior em brancas judias do leste europeu do que nas demais mulheres brancas
(Lauersen & Whitney, 1990).

Hipertenso arterial
Estima-se que de 10 a 20% das pessoas adultas sejam hipertensas. A hipertenso
arterial a principal causa de insuficincia cardaca e renal; de morte sbita; e est
ligada, direta ou indiretamente, a 12 a 14% das causas de todas as mortes no Brasil.
Estudos da dcada de 60, realizados pelos pesquisadores japoneses Okamoto e Aoki
com ratos de linhagem SHR(spontaneoushipertensiverats/ratoscom hipertenso espontnea -
que desenvolvem hipertenso arterial semelhante humana entre trs ou quatro meses
de vida), demonstraram que uma alterao gentica pode ser responsvel pela hiperten-
so arterial essencial e que, como no caso de humanos, os ratos no nascem hipertensos,
mas desenvolvem a hipertenso ao atingirem certa maturidade (Krieger & Krieger, 1994).
Em geral, a presso arterial mais alta nos homens e prevalente em negros de ambos
os sexos.
Na populao negra, aparece mais cedo, mais grave e tende a ser mais complicada.
"Na faixa de idade entre 19 e 76 anos, ocorre em 9-16% nos indivduos de raa branca e
22-30% na raa negra" (Penna, s. d.). A hipertenso duas vezes mais incidente em
diabticos do que na populao em geral. Segundo Arajo (1994):
Os dados da Secretaria Municipal de Sade de So Paulo, que se referem demanda do
Sistema de Sade, pesquisados atravs de queixa da populao, revelam que na parcela da
populao negra atendida com queixa de doenas cardiovasculares, a hipertenso alcana
nas mulheres negras um ndice de 9,2% superior ao apresentado pelas pardas e brancas.
U m a em cada dez mulheres que engravidam pela primeira vez tem hipertenso. A
doena durante a gestao e a morte materna por toxemia gravdica (eclmpsia/hiper
tenso) so as principais causas de mortalidade materna n o Brasil. Tal situao nos
obriga a analisar a cobertura e a qualidade da assistncia pr-natal, ocasio privilegiada
para a descoberta d o risco gestacional. Estimativas nacionais indicam que 50% das
mulheres de baixa renda no recebem a cobertura pr-natal necessria. Levantamentos
da Secretaria Municipal de Sade de So Paulo, aps a implantao do quesito cor,
revelam que as negras tm menor acesso ao pr-natal. Quando o fazem, comeam em
geral mais tarde do que as brancas.
Martins et al. (1994), ao analisarem dados coletados pelo Comit de Mortalidade
Materna d o Paran, e m 1993 - onde o quesito cor foi preenchido de acordo c o m a
classificao d o IBGE, mas no atendeu ao critrio da autoclassificao, pois q u e m
designou a cor foi o(a) investigador(a) ou o(a) profissional de sade que atendeu a
cliente-, constataram que 26,36%dos bitos ocorreram em mulheres negras (90% situadas
na faixa de renda familiar de at dois salrios mnimos; e 85% com at quatro anos de
estudo). Esta pesquisa, entre outras concluses, evidenciou que a principal causa de morta-
lidade materna naquele estado em 1993 foi a Doena Hipertensiva Especfica da Gravidez/
Eclmpsia (DHEG). O resultado no difere de outros estudos realizados no restante do Pas. A
novidade consiste em ter trazido tona dois fatos importantes: 50% dos bitos de mulheres
negras ocorreram por eclampsia e 26,36% da totalidade dos bitos foram de mulheres ne-
gras. Estes so dados relevantes, pois, conforme a Pesquisa Nacional de Amostra de Domiclio
(PNAD) de 1989, O percentual da populao negra noParan de apenas 23,73%. Temos, ento,
duas evidncias: a DHEG atingiu mais as mulheres negras do que as brancas e a mortalidade
materna geral nas negras foi maior do que nos demais grupos raciais.

Anemia falciforme
As anemias hereditrias so as doenas genticas mais comuns da humanidade. A
anemia falciforme, por sua vez, uma anemia hereditria e constitui-se na doena
gentica mais c o m u m da populao negra em todo o mundo. Resulta de uma mutao
na molcula de hemoglobina que altera a sua estrutura pela substituio do aminocido
2
'cido glutmico' pela 'valina', o que confere hemoglobina S, quando desoxigenada,
a capacidade de se agregar, formando fibras de hemoglobina S que deformam a hemcia,
conferindo-lhe o aspecto de meia lua ou de foice (o que d origem ao n o m e anemia
falciforme). A doena tambm conhecida c o m o 'drepanocitose' ou 'siclemia' (do
ingls sickling, falciforme; derivado de sickee, foice; siclemia).
Exemplo clssico da seleo natural de Darwin/Wallace, a anemia falciforme surgiu
na frica, e m zonas endmicas de malria, chegando ao Brasil e a toda a Amrica via
trfico de escravos. Trata-se de uma resposta da natureza, que preservou a espcie hu-
mana no habitat malrico - pois pessoas com anemia falciforme no desenvolvem aquela
doena. A explicao de tal fenmeno que o Plasmodium consome oxignio em grande
quantidade e, na medida em que solicita mais oxignio, a hemcia assume a forma de
foice. Ao adquirir esta forma, destruda pelos leuccitos, o que destri, tambm, os
parasitas da malria. Afirma-se que mesmo o(a) portador(a) do trao falciforme no
adquire a malria pelo fato de possuir parte de suas hemcias c o m hemoglobina S
(cerca de 22 a 45% da hemoglobina total). Estas, nas condies de desoxigenao impos-
tas pelo Plasmodium, sofrem falcizao - condio letal para o parasita.
As mutaes gnicas na hemoglobina so originrias de focos geogrficos distintos,
todos de zonas endmicas de malria, que determinam diferentes tipos de
hemoglobinopatias hereditrias. Existem quatro focos africanos definidores da anemia
falciforme: o da regio do Senegal; do Benin; de Camares; e o foco do grupo tnico

2
Hemoglobina A ou HbA: hemoglobina normal; Hemoglobina S ou HbS: hemoglobina siclmica ou
falciforme.
3
Banto . O foco de hemoglobinopatias hereditrias da sia origina as anemias here-
ditrias denominadas talassemias ou anemia do Mediterrneo - cuja alterao ocorre
na sntese da hemoglobina - e que incide sobre populaes da Sardenha (Itlia,
Chipre e Grcia); e orientais, sobretudo na Tailndia, Laos, Camboja, Malsia, algu-
4
mas regies da ndia e sudeste da C h i n a . Na ndia tambm existem sndromes
falciformes (Zago, 1996).

Variedades da doena

A anemia falciforme uma descoberta da Velha gentica' (ou 'gentica clssica'). Foi
a primeira doena molecular humana a ser descoberta (pelo mdico James Herrick, em
1910, Chicago, no sangue de u m estudante de medicina negro nascido nas Antilhas).
Por meio de tcnicas de DNA, a anemia falciforme classificada, conforme o foco
original, em cinco tipos: Senegal (de mdia gravidade); Benin (de pouca gravidade);
Banto (o mais grave); e Camares e rabe-indiano (ambos de forma clnica dita 'benig-
na'). No Brasil, predomina a do tipo Banto (70%). A explicao elementar: a prevalncia
deste grupo tnico na formao de nossa populao. Apenas 1 % dos diagnsticos em
nosso pas do tipo Senegal.
As duas principais formas clnicas da sndrome falciforme so: doena falciforme
ou anemia falciforme - pessoa com dois genes para anemia falciforme, u m originrio
da me e outro do pai (HbS/HbS); e trao falciforme - pessoa c o m u m gene para a
doena, herdado ou do pai ou da me (HbS/HbA).
Outras formas clnicas de anemia hereditria integram o rol das sndromes
falciformes ou doenas das clulas falciformes, conceitualmente explicadas pela pre-
sena de dois genes anormais para a hemoglobina, sendo u m deles u m gene para
hemoglobina S. Isto quer dizer que so sndromes resultantes da associao da clula

3
Banto - so povos da regio da Repblica Centro Africana e povoam sobretudo a frica do Sul, Ruanda,
Moambique, Botswana, Congo e Angola. Benin - originrios da Costa Oeste da frica: Benim, Gana,
Nigria, Togo e Costa do Marfim. Senegal - do Senegal, Serra Leoa e Gmbia.
4
Talassemia (do grego: lhalassa: mar; e hemos: sangue). Tambm conhecida por anemia de Cooley, ou
mediterrnea, por causa da alta incidncia em pessoas da regio do Mediterrneo: turcos, gregos e
italianos. As taxas de incidncias so altas tambm na ndia e Oriente Mdio. Atualmente, cura-se a
doena com enxerto de medula ssea logo aps o nascimento. O defeito gentico que origina a
talassemia em geral no ocorre na estrutura da hemoglobina (como na anemia falciforme), mas sim na
sntese das cadeias de globina. Por esta razo, o enxerto 'funciona', curando a doena. As talassemias
consistem em mutaes na sntese das cadeias da globina (alfa ou beta), e classificam-se em alfa-
talassemias e beta-talassemias, de acordo com o local da mutao. As sndromes talassmicas so
constitudas pelas alfa e beta-talassemias, alm da delta-beta-talassemias e talassemias interativas.
Alfa-talassemias ocorrem populaes asiticas e negrides e as beta-talassemias no Mediterrneo,
ndia, Oriente Mdio, regies malricas da frica e pases que receberam migrantes de tais regies.
falciforme c o m outras mutaes da hemoglobina (uma vez que existem centenas de
hemoglobinopatias estruturais e dezenas de hemoglobinopatias de alterao de sntese
5
da hemoglobina).
No Brasil, as s n d r o m e s falciformes mais c o m u n s so a associao da
hemoglobinopatia S c o m a hemoglobinopatia C, resultando na doena SC e a associa-
o da hemoglobinopatia S c o m talassemia, S-talassemia - ST. Tambm freqente a
associao de hemoglobinopatia C com talassemia, C-talassemia - CT Pessoas com ane-
mia falciforme apresentam maior suscetibilidade s infeces fatais, especialmente na
primeira infncia, e podem at morrer, se no recebem cuidados adequados.
A sintomatologia da anemia falciforme varivel. No entanto, o que chama mais
ateno a anemia hemoltica crnica, ocasionada pelas crises freqentes de falcizao
-devidas a "aglomeraes de clulas falciformes, obstruo vasculare infartos dolorosos
em vrios tecidos c o m o ossos, bao, pulmes" (Borgcs-Osrio et a l , 1993).
Existem controvrsias sobre a morbidade do trao falciforme. Sabemos que po-
dem ocorrer complicaes (s vezes letais) durante anestesia geral, infeco grave,
esforo fsico excessivo, desidratao, vo em avies sem pressurizao, em episdios
de acidose... M u i t o s autores fazem referncias associao de trao falciforme a
doenas steo-articulares, renais (hipostenria, hematuria), cardacas (alteraes
eletrocardiogrficas, sobrecarga do ventrculo esquerdo) e neurolgicas (Ramalho,
1978). Tambm no devem ser esquecidos os chamados 'riscos reprodutivos' (Teixeira,
1993) e m casamento entre duas pessoas heterozigotas; e as conseqncias de trans-
fuses de sangue que contenha hemoglobina S, c o m o reao hemoltica, morte em
exsangneo-transfuso (Silva, 1995).

Incidncia

Estimativa citada por Wilkie (1994) diz que, segundo a Organizao M u n d i a l da


Sade (OMS), em 1983 havia no m u n d o 242 milhes de portadores de u m a cpia de
u m gene para anemia falciforme ou talassemia; que nascem na frica aproximada-
mente 100 mil crianas falcmicas/ano; nos EUA, 1.500/ano (1 para cada 400 negros);
no Caribe, 700/ano e no Reino Unido, 140/ano; no Brasil, aproximadamente 2.500/ano.
Ou seja, u m em cada mil nascidos -vivos. Em cada mil nascidos-vivos, 30 so portado-
res do trao falciforme. Triagens de gestantes no pr-natal demostraram que, em cada
mil, 30 so portadoras do trao falcmico.

5
Hemoglobina S - mutao resultante da substituio do aminocido cido glutmico pela valina na cadeia
beta da globina. Ocorrncia: frica Equatorial e pases que receberam escravos destas regies;
Mediterrnio e ndia. Hemoglobina C - mutao resultante da substituio do aminocido cido glutmico
pela Usina na cadeia beta da globina. Ocorre nas mesmas regies da HbS e frica Equatorial.
De acordo c o m Zago (1996), estimativas d o m e s m o ano atestam que nascem n o
Brasil, anualmente, de 700 a mil pessoas c o m doenas falciformes, e que devem exis-
tir a p r o x i m a d a m e n t e oito m i l pessoas falcmicas (com dois genes para anemia
falciforme) e, pelo m e n o s , dois milhes de portadores de u m gene da doena. A
prevalncia de heterozigotos (portadores de u m gene) de 2% na populao geral e
salta para 6-12% entre negros.

Pontuando algumas constataes, concluses, sadas e


impasses

Embora no t e n h a m sido abordados aqui assuntos importantes para a sade


reprodutiva das mulheres em geral, c o m o a anticoncepo, as Doenas Sexualmente
Transmissveis e a infertilidade, consideramos necessrio alertar a respeito da
anticoncepo em mulheres hipertensas, diabticas, falcmicas e com miomas, pois
existem muitas dvidas e controvrsias sobre o uso de mtodos hormonais e do DIU
nestas condies. O que parece mais prudente do ponto de vista cientfico e tico que,
na dvida, tais pessoas no devam ser submetidas ao uso de mtodo sobre o qual paire
qualquer dvida de risco para a sua sade e a sua vida.
O abortamento espontneo freqente entre mulheres portadoras de diabetes,
6
miomas submucosos e anemia falciforme . O mesmo acontece com a prematuridade
dos partos. A perda fetal decorrente da anemia falciforme varia de 24% a 50% nos Estados
Unidos; 48% no Brasil; 30% na Jamaica e 31 % na Nigria.
A mortalidade materna, em nosso Pas, tem c o m o a principal causa a toxemia,
u m a decorrncia de hipertenso arterial na gravidez (Costa, 1992). Se as mulheres
negras so mais propensas a esta doena, muito provvel, portanto, que sejam as
mais acometidas por toxemia e as que mais morram tendo c o m o causa subjacente
a hipertenso arterial na gravidez. C o m o os atestados de bito, at 1996, no trazi-
7
am o 'quesito cor' , no podemos comprovar tal hiptese com base em dados ante-
riores quele ano.

6
Etiologia do abortamento espontneo: 50%-60% - anomalias do embrio; 15% - afeces maternas:
trauma, infeces, deficincia diettica, diabetes; hipotiroidismo e malformaes anatmicas; 25%-35%
- causa indeterminada. (PENNA, s/d).
7
Decreto do Ministrio da Sade, de maro de 1996, dispe sobre a padronizao de informaes sobre
raa e cor dos cidados brasileiros e estrangeiros residentes no pas. Art. 3. O s documentos civis e
militares que tero a incluso obrigatria do quesito raa/cor, com seus desdobramentos so: declara-
o de nascido-vivo; certido de nascimento; carteira de identificao civil e militar; autorizao de
internao hospitalar (AIH); pronturio mdico; certido de casamento; certido de reservista; ttulo
eleitoral; boletim de ocorrncia policial; declarao de bito; certido de bito". Extrado do Relatrio
de Atuao do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorizao da Populao Negra (GTI).
Pessoas falcmicas - em qualquer idade - so suscetveis s infeces. Em geral, esta
a sua causa mortis. As mulheres falcmicas podem ser acometidas por infeces variadas
no perodo gravdico, sobretudo pielonefrites e pneumonias, o que poder aumentar
substancialmente o nmero de mortes por septicemia. A mortalidade materna, entre
elas, parece ser maior do que entre as no-portadoras (Zago, 1994).
Diferentes estudos, no Brasil e no exterior, demonstram sobejamente que o desen-
volvimento pndero-estatural, a maturao sexual e a sade sexual e reprodutiva de
pessoas portadoras de anemia falciforme sofrem interferncias significativas, confor-
me a gravidade das manifestaes clnicas da doena. Destacam, ainda, que nos h o -
mens as crises de falcizao duradouras e freqentes podem causar priapismo, condi-
o que poder resultar em impotncia sexual temporria ou definitiva.
Hutz & Salzano (1981), em pesquisa com 209 mulheres falcmicas da cidade do Rio
de Janeiro, concluram que em termos de nmero mdio de filhos nascidos-vivos elas
apresentavam desvantagem reprodutiva em relao s no-portadoras, pois
117 (56%) encontravam-se no perodo reprodutivo, apenas 21 tinham tido pelo menos 1
filho vivo. A mdia de filhos vivos foi de (1,7 mais ou menos), o que demonstra um grau
de subfertilidade ao observado em outras populaes. Verificou-se nesta amostra uma
taxa de perda fetal de 48%, devido principalmente aos abortos espontneos que foi de
31%. O nmero mdio de filhos nascidos vivos das mulheres falcmicas que tm mais de
40 anos de apenas 0,, enquanto que na populao geral de 3,4 filhos.

Anlise de Berqu (1995) considera que, embora Hutz e Salzano tenham trabalhado
com u m a amostra de sobreviventes e a expectativa de vida da falcmica mais baixa,
estes achados registram a necessidade de pesquisas de tipo follow-up.
A discriminao contra as mulheres na cincia e nos servios de sade tem sido
muito pesquisada nos ltimos anos e est documentada o bastante para que no haja
mais dvida quanto a esta realidade (Keller, 1991). No entanto, pelo menos no Brasil, a
discriminao racial nos servios de sade precisa ser mais estudada. Fala-se muito na
sua existncia, e, embora existam muitas evidncias de que realmente acontea, no h
'provas documentais'.
Para atender condignamente mulher negra na rea de sade reprodutiva neces-
srio que profissionais da sade e instituies de pesquisa e prestadoras de servios
conheam, d o m i n e m e t e n h a m c o m o da mais alta relevncia as condies e
especificidades por ela vivenciadas - inclusive a desigualdade perante a morte, como to
bem chama a ateno Cunha (1995):
No caso de mortalidade adulta feminina constatou-se que a probabilidade de sobre-
viver de mulheres entre 25 e 75 anos, classificadas como brancas, so sistematicamente
maiores do que a das mulheres negras (...). Em menores nveis de mortalidade adulta
feminina, maiores perdas so constatadas entre as mulheres negras.
Eis u m indicador de alerta!

Em geral, credita-se a morbidade e a mortalidade alta e precoce entre os negros no


Brasil apenas s pssimas condies de vida. Esta viso, hegemnica entre profissionais
da sade, u m a abstrao, pois prescinde da anlise da condio humana como tam-
b m u m fato biolgico - e, c o m o tal, regido tambm por leis biolgicas. O u seja, a
postura simplista e economicista de que negros padecem mais e precocemente de
algumas doenas e de que morrem mais e antes do tempo' to-somente porque so
pobres parcial e insustentvel. Em diferentes estudos, demonstrou-se que ser pobre e
negra determina prognstico desfavorvel em quase todas as enfermidades, a comear
pela dificuldade de acesso aos servios de sade. Faltam pesquisas no Brasil sobre o papel
desempenhado pela anemia falciforme na morbi-mortalidade infantil e adulta e pelos
miomas, hipertenso e diabetes no abortamento, taxa de natimortos e infertilidade.
Para mudar o cenrio da ausncia de diagnstico, e conseqentemente da falta de
dados e da alta taxa de morbi-mortalidade, urge sensibilizar clnicos(as), pediatras, gi
necologistas e obstetras (estamos falando de profissionais comuns, do atendimento
bsico e cotidiano da medicina, nada de superespecialistas) e o aparelho formador na
rea de sade (sobretudo medicina e enfermagem) para a essencialidade da compreen-
so da singularidade do "recorte racial/tnico" para o ensino, a pesquisa biomdica e a
prtica da medicina.
O s impasses dizem respeito definio de projetos para o futuro, aos rumos que
imprimiremos ao debate e luta para que, efetivamente, tenhamos no Brasil servios
pblicos de sade de boa qualidade para todas as pessoas. Fora de u m modelo assistencial
que tenha c o m o pilares a justia, a eqidade e o acesso universal, qualquer poltica
pblica de sade, de cincia e de tecnologia que pretenda conferir maiores oportunida-
des de vida com dignidade e autonomia para populaes tradicionalmente alijadas dos
direitos de cidadania social e poltica ser inviabilizada.

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23

O Drama da Mulher no Mundo do Trabalho:


o ser e o estar
Eleonora Menicucci de Oliveira

Introduo

Este trabalho parte de u m a reflexo elaborada a partir de duas pesquisas reali-


zadas em So Paulo (Brasil) e em Milo (Itlia) com trabalhadoras assalariadas, nos
anos de 1992, 1994 e 1995. Os estudos tiveram por objetivo-a partir da perspectiva
internacional comparada - apontar as convergncias e diferenas entre as realida-
des dos dois pases, no que diz respeito aos impactos das condies e da organizao
1
social e sexual do trabalho (Dejours, 1988) na vida sexual e reprodutiva das traba-
lhadoras.
No Brasil, foram entrevistadas 66 mulheres, de diferentes categorias profissionais.
2
Na Itlia, 102, de cinco categorias .

1
Segundo Dejours, "as condies de trabalho, influenciam o corpo dos trabalhadores, enquanto a
organizao social do trabalho, faz recair o peso sobre a sade ou funcionamento mental".
2
O que discutimos aqui sobre a relao do trabalho com a vida sexual e reprodutiva das trabalhadoras
e assalariadas faz parte da tese de Livre Docncia apresentada ao Departamento de Prticas em Sade
Pblica da Faculdade de Sade Pblica da USP em novembro de 1996.
A vida reprodutiva e o trabalho

Existem amplas bibliografias nacional e internacional (com as quais concordo) que con-
sideram o trabalho domstico no pago como um trabalho-apesar de no produzir bens e
servios vendveis no mercado. No entanto, deve ser analisado como um conjunto de proces-
sos de trabalho combinados que se articulam com o processo de produo e o subsidiam.
esclarecedor da discriminao de gnero apontar o trabalho domstico sem remunera-
o como trabalho, mesmo porque sabe-se que o impacto sobre a sade provoca morbidades
semelhantes entre as trabalhadoras que esto no mercado de trabalho e as que no esto.
Se considerarmos trabalho como caracterstica capaz de transformar permanente-
mente o meio ambiente e a si mesmo, percebemos que a sua diviso e dos poderes
sociais e polticos vividos por homens e mulheres, ao longo do desenvolvimento das
sociedades, dentro e fora da casa, foram e so invenes culturais.
De maneira recorrente e variada, as formas de diviso social do trabalho excluem e
discriminam a mulher, tendo por base seus atributos biolgicos, como os relacionados
ao ciclo vital: menstruao, gestao, parto e puerprio, amamentao, climatrio e
menopausa. N o caso especfico da gestao, parto e amamentao, consideramos tais
eventos como trabalho-ampliando, assim, o significado desta categoria sempre associa-
da a u m a fora que tem valor de troca, sendo vendida no mercado de trabalho.
Dentro desta tica, trata-se de u m trabalho que despende energia, exige u m a espe-
cializao, comporta a transformao do corpo e das condies sociais, exige a coope-
rao e a atividade de u m a mulher para levar a termo.
Pensar a mulher como trabalhadora pens-la na sua integralidade, como sujeito da
produo e da reproduo. A assimetria necessria e relativa aos direitos e s condies de
trabalho dos homens e mulheres no pode ser considerada neutra. As mais diversas formas
concretas de existncia (muitas vezes consideradas invisveis) e das representaes de trabalho
e sade incluem formas de adoecer e morrer que s podem ser compreendidas se levadas em
considerao as relaes de gnero, sempre suscetveis s transformaes culturais.
As palavras das trabalhadoras que participaram dos nossos dois estudos indicam que
a escolha da maternidade u m fator "obstaculizante" para a carreira; e que no suficiente
estar garantida por leis - j que nos dois pases existem legislaes que "protegem e
3
tutelam" os direitos da mulher-me no local do trabalho. A lei italiana Tutela della matemit

3
A lei italiana 1.204, de 30 de dezembro de 1971, sobre a "Metadellalavoratricemadre", inclui trabalhadoras do servio
pblico e privado, agrcolas e em algumas normativas as trabalhadoras a domiclio e aos servios familiares.
Uniformizou a licena maternidade (parto, puerprio e aleitamento) e depois do parto, por doena da
criana. Durante seis meses a mulher tem garantido o salrio integral, que vai gradativamente diminuindo,
at completar um ano de licena. A lei brasileira 8.213/91 da Previdncia Social est contida no Art. 7 da
Constituio Federal de 1988: - licena gestante sem prejuzo do emprego e do salrio, com a durao de
120 dias; Art. 120 - os planos de Previdncia; alm de incorporar a reivindicao do movimento feminista da
o
Licena Paternidade no Art. 7- inciso XIX - com as seguintes disposies transitrias : Art. 10, 1 - at que
o
a lei venha disciplinar o disposto no Art. 7 inciso XIX, o prazo de licena-paternidade de cinco dias.
hei luoghi di lavoro e os servios sanitrios asseguram os exames diagnsticos para
assistncia gravidez e ao parto gratuito. Segundo Pizzini (1996), esta lei parece ser
u m a das melhores do continente europeu, tanto que, h no muito tempo, discu-
tiu-se sobre a necessidade de algumas limitaes em seu contedo, para adequ-la
ao protocolo da Comunidade Europia. N o entanto, u m a forte mobilizao de pro-
4
testo das mulheres italianas barrou a tentativa . A legislao brasileira referente
mulher-me no local do trabalho encontra-se ameaada pelas reformas neoliberais
q u e objetivam o ajuste fiscal, mas o que queremos apontar c o m o discusso a
semelhana dos pressupostos que sustentam as duas leis: a noo de tutelagem e
proteo. Isto nos remete ao uso d o conceito "proteger e tutelar", que pressupe
u m a relao assimtrica, e m que o 'Outro ou a Outra' considerado/a incapaz de
decidir pela sua prpria vida.
C o m o afirma Todorov (1993), uma relao no de alteridade, mas de dominao e
opresso, e m que as singularidades das identidades construdas subjetiva e objetiva-
mente no tm lugar. Ambas as leis no garantem direitos de cidadania; ao contrrio,
reforam a linguagem patriarcal e biologicista da gravidez como doena e da mulher
c o m o cidad voltada para a maternidade. Aqui o uso da linguagem de gnero pode
explicitar a diferena entre tutelar/proteger e garantir direitos. Algumas das narrativas
so exemplares sobre este aspecto.
As mulheres no fazem carreira porque existe um esteretipo masculinosegundoo qual as mulheres antes ou
depois de entrarem no mercado de trabalho engravidam. (Trabalhadora da rea da sade de Milo).

Assim, a linguagem de gnero refora a cultura de que a maternidade estrutura


negativamente o acesso das mulheres carreira n o mercado de trabalho e
estruturante na discriminao diferenciada entre as mulheres que tm e as que no
tm filhos - "os patres no confiam nas que tm filhos" (trabalhadora brasileira do
setor metalrgico).

4
Os princpios fundamentais desta Lei: 1) proibio desde o incio da gravidez e por 7 meses depois do
parto de efetuar trabalhos considerados perigosos, fatigosos ou insalubres (elencados na lei, ou solici-
tados pela gestante) - a trabalhadora pode solicitar a ausncia do trabalho noturno por este perodo; 2)
a ausncia obrigatria do trabalho pode ser antecipada se a mulher apresentar alguma morbidade ou
periculosidade para a gravidez e retribuda com 80% do salrio; 3) a licena obrigatria do trabalho
prevista por 2 meses antes e 3 meses depois do parto, com 80% do salrio - previsto tambm para
trabalhadoras sem contrato fixo de trabalho; 4) no fim da licena obrigatria, a trabalhadora pode
ainda pedir para se ausentar do trabalho por seis meses, at o primeiro ano do filho, com 30% do
salrio. Tambm existe o direito de reduo do horrio de trabalho por duas horas ao dia sobre as 40
horas semanais at o primeiro ano da criana para a amamentao; no fim do terceiro ano de idade da
criana. A me tem o direito de se licenciar do trabalho quando o filho adoecer, apresentando um
atestado mdico; 5) prevista a proibio de demisso da trabalhadora desde o incio da gravidez at
a criana completar um ano, exceto nos casos de trmico da empresa ou de culpa grave da trabalhado-
ra. Outra lei, n 903, de 9-12-77, prev a ausncia facultativa do pai ao trabalho ou a reduo do horrio
para que possa tambm cuidar da criana.
C o m o apontaram Hirata (1988, 1993) e Kergoat (1988, 1993) em u m dilogo com
Dejours (1988, 1993), a construo da masculinidade e feminilidade n o trabalho est
diretamente ligada diviso social de sexo, que d s atividades desempenhadas pelos
homens a representao do perigo e s desempenhadas pelas mulheres, a da fragilidade
(unicamente por causa de sua capacidade reprodutiva).
A abordagem de gnero provoca, em primeiro lugar, uma ruptura radical com as
explicaes que recolocam a questo da sade apenas nos determinantes biolgicos e
sociais; e m segundo lugar, aponta para a afirmao de que a dimenso sexual das rela-
es trabalho e sade so construes culturais e sociais; e, em terceiro lugar, indica o
reconhecimento de que estas relaes repousam sobre u m a hierarquia e sobre u m a
formadepoder entre os sexos, fundadas na diviso sexual do trabalho, que constituem
u m dos pilares das relaes sociais de sexo (Kergoat, 1992).
A formao da subjetividade feminina que se configura a partir de u m aprendizado
de "menor valor" - e que nega esta condio como uma estratgia defensiva - conside-
rada por diversos estudos como u m obstculo s aes polticas mais organizadas entre
mulheres no sentido da atenuao da feminilidade como campo de conquista de novos
direitos n o interior do m u n d o do trabalho.
Nesse caminho, reforamos a idia de Dejours (1988) referente sobrecarga psqui-
ca das mulheres, c o m o a primeira diferena decorrente da responsabilidade do traba-
lho domstico, porque interpela de maneira diferente os homens e as mulheres e cria
uma discriminao entre as mulheres que tm filhos e as que no os tm.

A vergonha de estar grvida, sentimento de ambivalncia e


de indignidade

A vivncia das mulheres em relao maternidade e sexualidade tem sido marcada


pelo signo da negatividade, construdo na trade vergonha, medo e culpa.
Em nossas pesquisas, dos 49% de mulheres milanesas que responderam negativa-
mente sobre a relao da vida reprodutiva c o m o trabalho, a grande maioria no tem
filhos ou eles j so maiores e independentes. No entanto, as diversas maneiras usadas
para relatar que a maternidade interfere no trabalho reforam nossa tese da clivagem de
gnero no m u n d o do trabalho - sobretudo, porque a categorizao de gnero continua
sendo desconhecida pela maioria dos estudos e as mulheres desconsideradas c o m o
sujeito estruturante das relaes sociais de produo e da organizao social do traba-
lho. Das 53 (52,6%) trabalhadoras italianas com filhos, 48 (90,5%) tm u m ou dois filhos;
e somente cinco (9,5%) tm at trs. Para ns, isto significa a confirmao da baixa taxa
de natalidade naquele pas: 0,4%. O s filhos, na maioria, tm mais de 10 anos.
Das 66 sindicalistas brasileiras, 40% tm mais de 3 filhos; 60% no tm. O alto ndice
de mulheres sem filhos em nosso pas pode ser explicado pelo fato de as sindicalistas
serem, em sua maioria, jovens e terem a militncia poltica sindical como prioritria
maternidade.
U m dado que aponta para uma diferenciao entre os dois pases do ponto de vista
cultural e social e m relao maternidade refere-se ao tipo de parto: do total de 102
milanesas, 52,% tiveram filhos (64,2%fizeram parto normale35,8%, cesariana). Entre as
66 brasileiras, das 48,6% que tiveram filhos, 44,4% fizeram cesrea e 55,6% tiveram parto
normal. O que nos c h a m a ateno o fato de que entre as mulheres que fizeram
cesrea, 68,8% consideraram o fato normal.
Das sindicalistas que participaram da pesquisa no Brasil e que fazem uso de algum
contraceptivo, 41 (55,5% do total) repetem o comportamento contraceptivo da maioria
das mulheres brasileiras: 21%, plula; 19%, esterilizao; 7,5%, abstinncia sexual; 3,5%,
mtodo billings e camisinha; 3,0% tm maridos e/ou companheiros vasectomizados e
1,5%, optou pelo mtodo injetvel. As mulheres que fizeram a esterilizao alegaram
como motivo o medo de engravidar, o alto nmero de filhos, o fato de trabalharem fora
de casa, a falta de escolha contraceptiva e problemas financeiros.
No Brasil, 40,1 % das mulheres esto esterilizadas, segundo dados da Pesquisa Nacio-
nal sobre Demografia e Sade da Sociedade do Bem Estar Familiar (BEMFAM) em 800 muni-
cpios(Folhade S. Paulo, out./1996). No entanto, importante ressaltar que, embora os servi-
os de Ateno Integral Sade da Mulher estejam involuindo em todo o Pas, as mulheres
adquiriram a conscincia da sobrecarga da maternidade - em uma sociedade onde as
relaes de gnero estruturam as prticas sociais. Dessa maneira, pode-se concluir que o
perfil contraceptivo no apresentou diferenas significativas no Pas em relao aos dados
de 1986, quando 22% das mulheres utilizavam plula e 29% estavam esterilizadas.
Entre as trabalhadoras milanesas que fazem uso de algum contraceptivo (77, ou
75,5% do total) observamos o seguinte comportamento quanto prtica contraceptiva:
30% usam a plula; 25%, o mtodobillingsou tabelinha; 12%, o coito interrompido; 13%, o
DIU; 8%, camisinha; 4% optaram pela esterilizao.
O fato de 3 5,1 % das mulheres milanesas que participaram da pesquisa estarem na faixa
entre dois a trs anos de uso do mtodo contraceptivo, seguidas por 19,3% na faixa entre
quatro a cinco anos, demonstra que elas, alm de mudarem de mtodo contraceptivo em
perodos mais curtos, no utilizam mtodos invasivos ao corpo. Este quadro representa a
realidade da contracepo entre as mulheres italianas, confirmada por Pizzini (1996):
nos anos 90 nasceram na regio da Lombardia, norte da Itlia, 74.705 crianas e foram
realizados 24.682 interrupes voluntrias da gravidez. A taxa de natalidade nesta regio
0,5% entre mulheres em idade reprodutiva, sendo a mais baixa do pas e inclusive entre
outros pases europeus. A diminuio da natalidade se acentua entre as jovens de 20 a 29
anos e estacionou entre as mulheres na faixa de 30 a 39 anos.
Segundo a autora, muitos so os fatores que influenciam neste comportamento,
destacando-se o aumento da escolaridade das mulheres e sua entrada macia no mer-
cado de trabalho.
No que se refere contracepo, salta aos olhos u m a diferenciao na cultura
contraceptiva. O s dados mostram que no Brasil ela medicalizada e invasiva, ao contr-
rio da Itlia. Cremos que estas diferenas podem ser compreendidas por diversos ngulos,
como a clandestinidade do aborto e a involuo das aes de sade da mulher, decorrente
do descaso com que os governos tm lidado com as polticas pblicas de sade.
Alegalizao do aborto na Itlia na dcada 70 mudou qualitativamente o quadro da
sade da mulher naquele pas, provocando uma mudana no perfil epidemiolgico da
morbi-mortalidade feminina, embora no que se refira mentalidade dos profissionais
da sade esta ainda continue bastante conservadora. Sob forte presso da Igreja Catlica,
as foras progressistas - entre elas as organizaes de mulheres - vm enfrentando
situaes que podem ameaar as conquistas de 20 anos atrs, uma vez que, no sul da
Itlia, onde a populao mais carente, os servios de sade no tm oferecido assistn-
cia de qualidade s mulheres, principalmente nos casos de abortamento, quando os
mdicos alegam objeo de conscincia e se recusam a faz-lo.
Do total das trabalhadoras milanesas, 71,7% responderam que so submetidas a controle
(grifo nosso) de sade durante o perodo da gravidez; 28,3% responderam negativamente.
O cuidar do corpo, para a maioria das trabalhadoras dos dois pases (60%), significa
apenas a preveno do cncer do colo uterino. Essas mulheres declararam ter ido ao
ginecologista em u m perodo que variou de dois meses a u m ano, somente para realizar
o exame de Papanicolau. Entre as milanesas que disseram no fazer esse teste c o m
regularidade, a maior freqncia foi encontrada entre as profissionais da sade (17%).
Este resultado preocupante: mostrou-nos uma tendncia destas mulheres a negligen-
ciar a preveno da sade e o cuidado com o corpo. Este comportamento pode estar relacio-
nado com o fato de estarem envolvidas, cotidianamente, com a sade-doena do/a outro/a e,
muitas vezes, viverem em condies de completa insalubridade no local de trabalho.
na relao entre maternidade e trabalho que as relaes de gnero se evidenciam,
uma vez que so estruturantes da participao da mulher no mundo do trabalho assala-
riado. Se as mulheres, na dcada de 70, entraram em massa para o mercado de trabalho,
certo que a grande maioria delas no conseguiu ocupar postos de chefia, ascender na
carreira e receber salrios iguais aos dos homens - mesmo quando mais qualificadas e
ocupam funes semelhantes. Dados da Fundao Sistema Estadual de Anlise de Dados/
SP - SEADE -(1996) indicam que as mulheres recebem 60% a menos do que os homens.
A nova organizao social do trabalho nas sociedades ditas 'modernas e globalizadas'
renomeia a diviso sexual, a partir de dispositivos estratgicos (que controlam por meio
da 'naturalizao' da maternidade a circulao das mulheres na hierarquia dos postos
de trabalho). o que nos diz uma trabalhadora sindicalista de Milo:
o stressdevidoao trabalhodiantedovdeo terminal e tambm a dupla jornada de trabalho incidem na minha vida
reprodutiva e na diminuio do desejo sexual. Ultimamente, muitas muheres tm solicitado o part-time. No futuro,
penso que teremos uma reduo dohorriopara melhorar a qualidade de vida.

A discusso do part-time tem assumido propores significativas com o avano das


polticas neoliberais. Ressaltamos que estes projetos polticos se baseiam na lgica do
mercado, e m detrimento das polticas sociais que garantem a qualidade de vida das
pessoas e, sobretudo, das mulheres, que so as mais penalizadas, por arcarem com a
dupla jornada de trabalho (Hirata, 1996).
na subjetividade feminina que est enraizado o sentimento construdo social e
culturalmente de que a responsabilidade pela maternidade, alm de ser compartilhada na
maioria dos casos s com as avs, 'incapacita' as mulheres para o desempenho das tarefas
fora de casa. Sentem-se humilhadas e sem n e n h u m esquema individual ou coletivo de
suporte que as ajudem a decidir entre a maternidade e o trabalho, quando so coloca-
das diante de situaes de conflito que se assemelham ao drama da "escolha de Sofia".
Se usamos a tcnica de complementao de frases ditas por elas, confirmamos
nossa anlise:
tenho um filho eamamenteipor 3 meses quando j trabalhava. Vivi muito mal o retorno ao trabalho, pois me senti
colocada em uma posiomenosqualificada que aquela ocupada antes da gravidez. Deixava a filha com a av (...).

Q u a n d o a opo por no ter filhos influenciada pelo trabalho: "trabalho no setor


agro-alimentar, sou muito ocupada, por isso no tenho filhos. Hoje gostaria de t-los,
mas muito difcil ter filhos e trabalhar (...)"; u m a das trabalhadoras metalrgicas nos
conta, analisando sua deciso: "eu no tenho filho, porque quem tem filho tem mais
dificuldades de trabalhar por causa dos turnos e deve por fora deixar os filhos com
qualquerum (...)".
Dois relatos nos trazem de volta o drama vivido pelas mulheres na relao entre a
maternidade e o trabalho, isto , o drama de no conseguirem resolver a fronteira
entre o espao pblico do m u n d o do trabalho e o espao privado do m u n d o doms-
tico (ressalte-se que socialmente, para as mulheres, no existe separao entre eles,
uma vez que elas esto submetidas a dispositivos de controle que operam na esfera da
subjetividade e obstaculizam o exerccio de sua autodeterminao): "(...) As mulheres
que trabalham e querem ter filhos no so compreendidas; no se percebem as exi-
gncias de u m a mulher que quer trabalhar e ter filhos (...)", nos conta u m a trabalha-
dora metalrgica de Milo.
" u m problema de tempo", afirma a trabalhadora da sade, pois ela acredita que
"conseguindo maior flexibilidade no horrio a fim de permitir a mulher poder estar
com os filhos quando necessrio", a discriminao sexual pode diminuir.
Esta afirmao, se indica uma vontade de potncia das mulheres em transformar as
relaes hierrquicas de poder entre os sexos, buscando a eqidade de direitos, tam-
bm demonstra, a nosso ver, que a flexibilidade de horrio pode servir como libi para
u m maior desemprego das mulheres ou sujeio salrios mais baixos e funes
mais desqualificadas. Este libi sustentado no discurso discriminatrio de que a ma-
ternidade impede a produtividade das mulheres. Neste caso, salutar lembrar a impor-
tncia que as mudanas de mentalidades exerce nas transformaes das relaes de
classe, gnero e raa.
Exemplar da discriminao que sofrem as mulheres-mes o relato de uma traba-
lhadora da sade italiana:
no tenho filhos porque no posso t-los, mas no uma escolha minha. Era conscientedeque se tivessefilhosseria
reduzido o meu empenho no trabalho, por causa dos diversos problemas que tm as mulheres mes. Para quem
retorna ao trabalho dificl manter o duplo papeldeme e trabalhadora, precisa, porfora,sacrificarum ou outro
e isto tambm porque as mulheres tendem a dar sempre mais importncia ao privado, a famlia e esto sempre
dispostas asacrificaro trabalho pela serenidade da famlia (...).

A maioria dos relatos nos remete a trs consideraes: a escolha entre trabalho e
maternidade se coloca entre o que Dejours (1988) chamou de 'riscos residuais', porque
so quase sempre as mulheres que tm de buscar solues para dar conta da sobrecarga
de trabalho imposta pelas diferentes jornadas; esta escolha, tambm se situa entre os
'riscos supostos', isto , supe que a mulher-me deve ter garantidos seus direitos como
trabalhadora pelas Leis de Tutela e de Proteo, mas, na verdade, em nenhum dos casos,
este risco controlado e assumido pelas empresas ou pelo Estado; e finalmente, recupe-
ramos o conceito de autodeterminao como iderio da autonomia e do exerccio da
plena cidadania: qualidade de vida implica em educao, moradia, saneamento, em-
prego, salrio, sade, bem estar social, sexualidade sem restries, lazer, tica e dignida-
de na vida e na morte.
A representao da maternidade para essas trabalhadoras marcada pelo conflito
entre o desejo de ser me e o sentimento de que esto cometendo u m crime, pelo qual
so penalizadas. Elas sabem que no existe neutralidade na relao empresa e materni-
dade (do ponto de vista da 'eficcia da produo').
A afirmao de uma trabalhadora milanesa expressa o significado desta indignao:
"somente se forem fortes as mulheres conseguem se fazer ouvir, enquanto os homens,
mesmos sendo medocres, so ouvidos (...)".
Outra, com expresses de revolta contra a representao social da mulher-me no
mercado de trabalho c o m o improdutiva, nos conta: "as mulheres no fazem carreira
porque existe u m esteretipo masculino segundo o qual elas, antes ou depois de entra-
rem no mercado de trabalho, tm filhos, por isto no se pode confiar nelas (...)".
Estas falas nos remetem clivagem da diviso sexual c o m o u m a ineqidade de
gnero - e lembramos aqui a definio de Scott (1988) para 'gnero': "que as conseqn-
cias da hierarquia de poder vo para alm do espao domstico, como no m u n d o do
trabalho (...)." As narrativas tambm nos indicam a dimenso cultural e social dos pro-
cessos destrutivos que formam as vivncias depressivas das mulheres - que muitas
vezes no conseguem romper com as primeiras experincias de submisso que acon-
tecem na infncia, c o m o analisaram Hirata (1988) e Kergoat (1993).
A 'conscincia' da discriminao sexual pode levar ao estado de liminaridade, isto ,
a mulher sabe da discriminao, limitando-se a constat-la, como nos disse uma das
italianas entrevistadas: "a situao no muda, obstante a solicitao de elimin-la (...)".
Esta construo cultural do significado da submisso da mulher nos remete s constru-
es diferenciadas dos medos, prazeres, culpa e vergonha. O medo da perda do empre-
go, para a mulher, est relacionado sobrevivncia, perda do nico espao de liberda-
de e de socializao fora do ambiente familiar. O emprego, para muitas mulheres,
assume o significado de estratgias defensivas contra a cotidianiedade da opresso do-
mstica e sexual.

Trabalho, corpo e sexualidade: uma mediao a ser feita

Se procurarmos resgatar as respostas, verificamos que a percepo que as trabalha-


doras tm do corpo est relacionada a u m modelo binrio do corpo produtivo e esttico.
Este modelo se contrape a uma imagem que revela as representaes sociais da sade
ao corpo reprodutivo/doente: 85% das trabalhadoras brasileiras e 83% das milanesas
responderam que gostam do corpo; as respostas negativas atingiram, respectivamente
8% e 17%. No responderam questo 9% das brasileiras.
Para as m u l h e r e s ligadas rea de servios, c o m o as bancrias, cuidar d o
corpo faz parte de u m a preocupao c o m a esttica e o psicolgico: "me c u i d o
superficialmente, sou gorda, bebo e f u m o demais"; outra fala desloca o cuidado
d o corpo para a d i m e n s o d o "cuidar-se psicologicamente para agentar o tran-
co", c o m o u m dos processos protetores contra o desencadeamento de sintomas
relacionados c o m o sofrimento patognico, isto , a transformao de vivncias
depressivas e m doena.
Entre as trabalhadoras rurais, apenas uma respondeu que no gosta de seu cor-
po. A concepo do corpo c o m o produtivo fica evidente quando u m a delas afirma:
"meu corpo m i n h a ferramenta e sobrevivncia". Outras trabalhadoras rurais c o m -
pletam a relao: "meu corpo m e d prazer, mas clandestinamente"; "no gosto de
meu corpo, sou desajeitada". O corpo, c o m o ferramenta, o instrumento de traba-
lho mais precioso e produtivo que essas mulheres possuem. A relao c o m o traba-
lho, para a l g u m a s , u m a relao de prazer, na m e d i d a e m que n o m u n d o do
trabalho q u e elas se percebem c o m o sujeito c o m auto-estima, e m u m a relao
circular de poder entre diferentes atores sociais.
A dimenso do corpo essencialmente ligada capacidade reprodutiva apareceu jun-
to da maioria das trabalhadoras milanesas. Entre as brasileiras, junto s metalrgicas
(uma delas afirmou que "gosto de meu corpo no pela esttica, mas pela biologia que
possibilita a maternidade e me d u m prazer de ser me").
A tica das relaes de gnero permite pensar na questo da igualdade e diferena
entre os sexos, apontando para eqidade de direitos entre mulheres e homens, uma vez
que as mulheres tm especificidades que as diferenciam dos homens. Trata-se, assim,
de preservar a diferena entre os sexos, introduzindo uma outra cultura de trabalho a
partir das mulheres.
Sabemos que a incorporao da noo da diferena como u m direito individual e
coletivo pode transformar as desigualdades existentes nas relaes sociais de sexo no
trabalho, rompendo com a argumentao tradicional e essencialista que explica a dife-
rena de carreira masculina e feminina pela maternidade, e que repousa no 'privilgio
dos valores domsticos' para a mulher.
A construo do tempo, para elas, relaciona-se dupla jornada de trabalho, ou me-
lhor, jornada extensiva de trabalho - que comea e m casa, passa pelo m u n d o do
trabalho e vai terminar novamente em casa. uma construo que inexoravelmente
passa pela sexualidade, isto , o tempo da sexualidade corre simultaneamente ao tempo
da rigidez das tarefas.
Algumas falas comuns entre as trabalhadoras dos dois pases indicam e reforam
essa interpretao: "bem, eu no tenho tempo nem para sonhar" (rural brasileira); "a
sexualidade fica em segundo plano pela militncia e pela dupla jornada de trabalho" (diri-
gente sindical brasileira); "a falta de tempo, o cansao interferem tanto na militncia
como no trabalho e o companheiro no entende" (dirigente sindical italiana).
As mulheres rurais brasileiras foram unnimes em afirmar que vivem a sexualidade
de forma escondida e clandestina e que esta uma vivncia muito complexa. Algumas
falas exprimem uma tenso na vivncia da sexualidade "vivo bem, normal c clandestina".
Isto reafirma a dimenso da sexualidade como u m ponto nodal de tenso na vida das
mulheres, que vivenciam esses conflitos de maneira bastante solitria - porm, como u m
espao de liberdade. Dessa maneira, possvel compreender o processo de construo
social do corpo feminino, como u m corpo silenciado e marcado.
A vivncia da sexualidade "como u m momento liberatrio, com muitos problemas
cotidianos" basicamente se referia a carga da dupla jornada de trabalho e aos ritmos das
tarefas que desenvolve e "ao mesmo tempo a confirmao de uma forte e intensa liga-
o com o companheiro sem necessidade de muita conversa".
Entre os 71 % de trabalhadoras milanesas que responderam questo, 31 % afirma-
ram que o trabalho influencia na vida sexual e 40%, que no influencia. Faremos u m
exerccio de interpretao a partir das falas, buscando reconhecer n o sentido
desconstrucionista de Bachelard (1996) e no mbito do gnero como uma relao de
poder que transcende as relaes da esfera domstica e estruturam as mltiplas redes de
relaes sociais, em dois sentidos. Um, quando o trabalho funciona como suporte para
melhorar a qualidade de vida sexual; o outro, quando atua como processo destrutivo da
vida sexual. Entre as mulheres que afirmaram ter problemas, 34% alegaram ausncia de
desejo sexual e menor freqncia de relaes sexuais; 8% disseram que, por causa do
trabalho, as relaes sexuais so extremamente breves.
Na busca de qualificar nossas informaes, usamos trechos das narrativas que nos
contam sobre a vivncia sexual. Entre as sindicalistas milanesas o que sobressai so
referncias aos processos destrutivos do trabalho sobre a vida sexual:"... o trabalho
incide sobre a menstruao, quando estou tensa sofro mais, quando estou de frias no
tenho as dores na coluna, pernas e abdome durante a menstruao
No trecho a seguir, a relao com o lazer evidencia os processos estressantes que as
condies de trabalho provocam:
o trabalho repetitivo e o stress de quem trabalha no Hospital repercute na vida sexual quando retomo casa a
noite, estou cansada e ainda devo fazer comida, passar as roupas, por isto, depois tenho sono e no tenho vontade
de fazer amor. Tenho dores de coluna porque estou sempre sentada e tambm o ar condicionado me faz mal. Quando
fico nervosa por causa do trabalho, a menstruao fica muito irregular.

Nesta vivncia, a trabalhadora j interpreta e indica que a dupla jornada de trabalho


a carga penosa que as mulheres sofrem durante toda a vida; mostra que a sexualidade
no u m apndice na vida das pessoas, ou u m boto, como em u m a mquina, que
basta ser acionado para que o desejo emerja: "falta sempre tempo para o sexo, infeliz-
mente apagada, neste perodo vivo mal"; "satisfatria, quando no estou muito cansada
e estressada", nos disse uma trabalhadora da indstria alimentcia.
Alguns processos atuam como protetores nas situaes de sofrimento mental. Den-
tre eles, destacamos a desconstruo da identidade feminina, marcada pela violncia da
excluso e do silncio imposto, em identidade autodeterminada. Esta transformao de
identidade representa para as mulheres a recuperao do saber e do controle sobre o
corpo, permitindo-lhes assumir atitudes que podem ser caracterizadas c o m o
transformadoras das prticas sociais e do exerccio de cidadania - o que pode ser ilus-
trado por estas narrativas:
"penso que se algum vive o trabalho como restrio ou um peso, lgico que ele toma muito estressant
(...)"; "se para o prazer estou sempre disposta, mesmo que sobrem s as noites e ofinaldasemana (...)".
Indica, tambm, u m a abertura psicolgica ao prazer e ao encontro c o m o outro:
"tento viver de forma mais honesta, me reconhecendo e transformando". Estes depoi-
mentos reforam nosso pressuposto de que o conhecimento do corpo a base para a
construo da autodeterminao das mulheres: "depende do momento, seja mental-
mente ou fisicamente, ora tranqilamente, mas no passado tive problemas porque no
conhecia meu corpo". Continuando na mesma linha, "ainda estou a descobri-la", nos
disse outra trabalhadora.
O trabalho influencia na vida sexual. As narrativas indicam que desencadeia u m
aumento da tenso pr-menstrual e irregularidades no ciclo menstrual, sobretudo pelo
excesso de trabalho, por presso da chefia e da prpria organizao da produo. Cansao,
ansiedade, tenso, ritmo das tarefas e presso da chefia tambm foram apontados como
desencadeantes das vivncias de sofrimento mental no trabalho:
s vezes no lenho desdjo sexual por causadocansao, mas procuro no deixar que o trabalho me estresse tanto.
Os riscos maiores no meu trabalho como operria de produo metalrgica esto relacionados com os ltimos da
produo que descontrolam meuritmobiolgicoda menstruao [...).

Outra operria nos conta que o problema da menopausa pode ser acentuado pelas
condies de trabalho,
mas se busca no dramatiz-lo entre as companheiras de trabalho com as quais eu converso muito. Seguramente
a presso do trabalho mais forte,principalmenteporque na minha seo as mulheres s vezes so levadas a ficarem
sempre de p sem conversar com ningum (...).

Este depoimento, ao ser interpretado, aponta para questes no mbito da constru-


o de estratgias de resistncia - conversar entre as colegas sobre os problemas que as
afligem (e que so considerados menos importantes para o mundo masculino), permi-
tem romper com o silncio imposto s mulheres pelas relaes de poder entre os gne-
ros. o que Molyneux (1985) chamou de interesses prticos das mulheres, ao constru-
rem em espaos moleculares e localizados, resistncias singulares de sobrevivncia.
Outro ponto a denncia das condies de trabalho das mulheres - ficar de p sem
conversar com ningum, constituindo a representao da 'solido da fbrica'. Se falar
sobre a menstruao j uma coisa bastante complicada e eivada de preconceitos, o que
dir falar sobre a menopausa? Significa quebrar o mito da juventude e o tabu do enve-
lhecimento, em u m m u n d o onde a populao est envelhecendo e a taxa de mulheres
velhas chefes de famlia se aproxima dos 79,9%, ao passo que a dos homens gira em
tornode 72,8%(FolhadeS. Paulo, 10/7/1996).
Entre as trabalhadoras milanesas da rea da sade, encontramos referncia explcita
relao do trabalho com a vida sexual "a minha vida sexual menos ativa quando
trabalho, porque retorno casa cansada, porque u m trabalho pesado para as mulhe-
res". Surpreende, nesta narrativa, a avaliao do trabalho como uma sobrecarga para as
mulheres. Isto nos permite inferir que elas prprias consideram que devam fazer traba-
lhos mais leves - levando-nos, assim, a concordar, em parte, com Dejours (1988), quan-
do faz a anlise da representao social do trabalho masculino, afirmando que, quanto
mais perigoso, mais viril e mais prazeroso.
U m aspecto interessante a ressaltar nas falas das dirigentes sindicais brasileiras a
relao com a militncia, que passa a ter u m significado de sofrimento e dever, quando
deparada c o m a sexualidade:"... a sexualidade fica em segundo plano por causa da
militncia e da dupla jornada de trabalho... ". como se, entre as duas atividades, no
existisse possibilidade de conciliao: "s o sindicato interfere na minha vida procriativa";
"sim, a falta de tempo interfere na vida sexual". A militncia como u m dos inmeros
dispositivos de controle e de normatizao - "por causa das atividades de militncia,
tenho dificuldade de sentir prazer" - exercido mesmo que subliminarmente na sexu-
alidade das sindicalistas: "o trabalho e a militncia interferem na minha vida sexual";
ou, ainda, as viagens em funo da militncia "interferem na vida sexual, porque viajo
muito pela poltica".
U m a narrativa de uma dirigente sindical milanesa nos chamou ateno pelo signi-
ficado de poder que expressa em relao diviso sexual enraizada, tambm, na
militncia: "interfere, tanto a militncia quanto o trabalho, e o companheiro no en-
tende, exige".
O significado da sexualidade dependente do parceiro foi expressa c o m mais fre-
qncia entre as milanesas. "de modo satisfatrio, mais em relao a capacidade intui-
tiva do parceiro"; "bem, porque vivo u m a relao fixa (...)." A vivncia da sexualidade
com pouca fantasia, por sua vez, expressou-se como uma das dificuldades para articu-
lao da militncia e da vida sexual: "com pouca fantasia, porque os companheiros de
sindicato so difceis (...)".
interessante notar que as condies de trabalho n o sindicato desencadeiam
sintomas de sofrimento que interferem na renncia do exerccio da sexualidade,
c o m o nos conta u m a trabalhadora:"... na minha sexualidade, porque vivo sempre
ansiosa e tensa pela presso do trabalho s i n d i c a l E m contrapartida, se est rela-
xada, ou e m frias, "com disponibilidade para a fantasia e r o m a n t i s m o (...)", a
sexualidade lhe traz prazer. O u , ainda, quando transferida de funo, m e s m o no
sindicato, "com serenidade, se depois tiver m u d a d o de funes n o ofcio, o desejo
diminui (...)".

Algumas reflexes finais

A abordagem comparativa neste estudo no tratou de realidades iguais, pois as pes-


quisas foram realizadas em pocas diferentes e com populaes de trabalhadoras de
distintas categorias profissionais em diferentes pases. Essa postura metodolgica res-
ponde problemtica relacionai dos fenmenos com os quais trabalhamos, nos possi-
bilitando abordar, em u m mesmo plano de anlise, dois nveis de realidades: na esfera
internacional, a lgica da diviso sexual no trabalho permitiu compreender como as
relaes sociais de trabalho redesenham os lugares dos homens e das mulheres na
vivncia da sociedade global. Desta maneira ressaltamos as convergncias entre as duas
realidades estudadas:
as precariedades das Leis de Tutela e Proteo mulher-me no local de trabalho, que
no garantem o pleno exerccio do direito ao trabalho das mulheres que optam por ter
filhos e por amamentar;
a dupla jornada de trabalho das mulheres, que torna precrias as condies de vida, de
realizao do prazer e da sexualidade;
a ausncia de informao sobre os fatores de risco e sobre as pesquisas desenvolvidas
nas diferentes reas;
a precarizao do trabalho das mulheres, agravada com a internacionalizao-que impe
redues da jornada de trabalho comoopart-timeeaflexibilizaoflexibilizaodo emprego, entre outros.
na esfera local, em relao com a dimenso globalizante, ressaltamos aquilo que o
estudo apontou como diferenas: a contracepo. Na Itlia, onde a taxa de natalidade
de 0,5%, as mulheres j conquistaram direitos que lhes possibilitaram o uso de mtodos
menos invasivos sade e ao corpo.
Ao discutir as condies e a organizao social e sexual do trabalho sob a tica das
relaes de gnero na perspectiva internacional comparada, este estudo:
apontou a urgncia de uma reflexo sobre a dimenso da tica vivida no cotidiano das trabalha-
doras (Oliveira, 1996), como princpio que informa o respeito aos direitos ao trabalho, s
condies de vida e sade, informao sobre os riscos e o conhecimento cientifico nas
negociaes individuais e coletivas e na construo da solidariedade individual e coletiva;
redefine e amplia o leque de necessidades consideradas bsicas para a melhoria da
qualidade de vida da mulheres no trabalho e fora dele, introduzindo a dimenso da
subjetividade, do prazer e da sexualidade.
No que se refere solidariedade coletiva, observamos que, quando uma trabalhado-
ra apresenta sintomas de doena, nenhuma delas se interessa - ao contrrio, se afastam,
por u m a imposio quase que oculta das chefias, expressa em diferentes formas de
controle. As trabalhadoras se afastam daquela que apresenta algum sintoma de doena,
em uma demonstrao clara de medo de contgio - que, no imaginrio coletivo, repre-
senta a possibilidade da perda do emprego.
Neste sentido, a vivncia com as/os trabalhadoras/es nos permite apontar outras
formas de apoio e solidariedade por eles buscadas, na medida em que expressam u m
cansao e u m a total desesperana em relao ao Estado, s empresas e, alguns casos, at
em relao aos sindicatos. por isto que os grupos de discusso no local de trabalho
funcionam como estratgias criativas de defesas individuais e coletivas.
Finalmente, salientamos quatro relaes, com base nesta pesquisa e vivncia com o
universo dos trabalhadores e trabalhadoras: a primeira a da dignidade da vida no
mundo do trabalho e no mundo da casa, restabelecendo, assim, os direitos reprodutivos
e sexuais como direitos de cidadania - portanto, u m exerccio de qualificao de todas as
atividades invisveis que as mulheres desenvolvem. Asegunda (que deve estarem conexo
direta com a primeira) a incluso das mulheres no mundo dos direitos como sujeitos com
autonomia para decidirem sobre seus prprios caminhos, sabendo que 'decidir' implica
em informaes para poder escolher. A terceira a ruptura no mundo do trabalho e em casa
com o estado de heteronomia em que as mulheres tm sido colocadas; e, finalmente, a
quarta a qualificao do trabalho domstico como trabalho que vai interferir positiva ou
negativamente na relao das mulheres com o contedo das tarefas desenvolvidas e, funda-
mentalmente, na insatisfao que elas tm com o trabalho fora de casa.
Como escreve Dejours (1988), " do contato forado com uma tarefa desinteressante que
nasce uma imagem de indignidade". Caminhando junto com a reflexo de Hirata (1988) e
Kergoat (1993), essas tarefas so sexualmente construdas e distribudas, produzindo ima-
gens de indignidade marcadas e clivadas pelas relaes de poder entre os gneros.

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Homens, Sade Reprodutiva e Gnero:


o desafio da incluso*
Margareth Arilha

A preocupao com a populao masculina vem crescendo no Brasil, especialmente


entre os formuladores de polticas que dedicam-se nacional e internacionalmente ao
campo da sade reprodutiva. Isso tem ocorrido em conseqncia da constatao da
insuficincia dos resultados obtidos em torno da sade reprodutiva das mulheres e da
identificao do 'homem' como sujeito de necessidades especficas nesse campo. Esse
contexto tem sido crescentemente reforado pela produo de conhecimentos tericos
e de metodologias de interveno, que vem sendo desenvolvido por Organizaes No-
Govemamentais (ONGs) e em trabalhos acadmicos no campo da sexualidade, da sade
reprodutiva, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.
Este captulo tem como objetivo apontar idias que surgem a partir do desenvolvi-
mento de u m a pesquisa: papel da reproduo na construo da masculinidade",
situando-o c o m o conseqncia desse processo histrico que caracteriza-se por pro-
duzir u m olhar mais focalizado para a problemtica masculina.

Introduo

As conferncias internacionais da dcada de 90, realizadas pela Organizao das


Naes Unidas (ONU) - especialmente a Conferncia Internacional dePopulaoe De-
senvolvimento do Cairo (CIPD), de 1994 - contriburam para o florescimento da pers

* Agradeo a Silvani Arruda e Rosana Gregori pelas leituras crticas e sugestes feitas a este texto, bem como
pelo entusiasmo cotidiano com que tm abraado; ao lado de Jos Roberto Simonetti, a pesquisa que
originou este artigo.
pectiva de incluso explcita das palavras 'homens/masculino' em textos que estariam
tratando de temas associados tradicionalmente s problemticas 'femininas'. Isso pode
ser observado, especialmente, nos captulos 7 e 8 do documento final da CIPD, relacio-
nados ao c a m p o da sade reprodutiva e direitos reprodutivos. Isso ocorreu c o m o
conseqncia do processo de discusso preliminar Conferncia, quando ficou paten-
te que a transformao nos indicadores de sade das mulheres s poderia ser concreti-
zada na medida em que a populao masculina - jovem e adulta - tambm modificasse
seus padres de comportamento, por exemplo, em relao transmisso das doenas
sexualmente transmissveis - em especial a AIDS - e ao uso de contraceptivos.
Paralelamente ao processo desenvolvido por meio da CIPD - que foi movido especi-
almente pela organizao e mobilizao internacional feminista; pela participao do
establishment que opera sobre as questes populacionais; governos; e agncias de coopera-
o internacional do sistema O N U - , crescia, sobretudo na Europa, Canad e Estados
Unidos, a organizao de grupos de homens reunidos para pensar suas vidas diante das
mudanas que as mulheres tm provocado no interior de suas relaes afetivas e sexuais.
Ao mesmo tempo, crescia o nmero de ncleos de estudos sobre 'masculinidades' nas
universidades americanas, canadenses e europias e o movimento gay- indicando a
urgncia de produzir conhecimento sobre o universo dos homens homossexuais, so-
bretudo diante da problemtica da AIDS.
Houve, portanto, uma convergncia de situaes. Ao mesmo tempo em que cresci-
am as reas de estudo sobre masculinidades (Kimmell, 1992), desenvolvia-se uma refle-
xo internacional sobre o papel dos homens na busca da melhoria dos indicadores de
sade para as mulheres, incrementada pela construo de u m cenrio em que eles
tambm comeam a ser vistos como cidados com necessidades e direitos na esfera da
vida sexual e reprodutiva.
Esse processo acabou tendo alguns reflexos no Brasil, como o surgimento de terapeutas
1
especializados no trabalho com homens , e a crescente tendncia em desenvolver estu-
dos com o pblico masculino, ainda que muitos deles tenham se concretizado no con-
2
texto de trabalho com AIDS . Esse cenrio indica transformaes. Deve-se lembrar que, na
dcada de 80, ocorreram poucas e isoladas iniciativas de incluso de homens - tanto
como objeto de produo terica, quanto objeto de projetos de assistncia ou interven-
o. Desse perodo, destaca-se u m seminrio realizado pelo Conselho Estadual da Condi-
o Feminina (CECF) de So Paulo, em 1984, montado a partir de grupos de discusso

1
Destaque-se aqui o papel de terapeutas como Scrates Nolasco no Rio de Janeiro e Luiz Cushnir em So
Paulo.
2
Deve-se destacar o Ncleo de Estudos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado pela Dra.
Ondina Fachel Leal, muito provavelmente um dos primeiros a pensar "masculinidades" no Brasil, o
Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, desenvolveu tambm importan-
tes trabalhos de pesquisa sobre sexualidade e gnero, estimulados sobretudo pelo Dr. Richard Parker.
desenvolvidos com homens reconhecidamente 'cmplices' em relao a chamada 'ques-
to das mulheres' e 'sensveis' a ela. Muitos eram parceiros de feministas. No caso do
atendimento populao masculina em servios, existiram relacionados ao planejamen-
to familiar, em grandes empresas e voltados especialmente para a realizao de vasectomias
(CECF, 1986). Foram reduzidos os trabalhos de interveno e m sexualidade e sade
3
reprodutiva dirigidos a homens adultos jovens, quadro que se modifica na dcada de 90 .
No caso da produo acadmica - alm de poucos -, os estudos realizados na dcada
de 80 e incio dos anos 90 apontaram muito mais para o campo da sexualidade do que
para o campo da reproduo (Leal et al., 1995). Para conhecer u m pouco mais a vinculao
Homem/Reproduo, a pesquisa descrita a seguir foi proposta.

Homens e a reproduo

A O N G Ecos (Estudos e Comunicao e m Sexualidade e Reproduo Humana) de-


senvolve u m a pesquisa que investiga o papel da reproduo na construo da(s)
masculinidade(s). Tendo o construcionismo social como perspectiva epistemolgica, e
operando no campo da Psicologia Social, parte-se das seguintes questes:

at que ponto os homens consideram o seu corpo como u m corpo reprodutivo?


quais so, atualmente, as atitudes e os comportamentos sexuais e reprodutivos que
homens adultos possuem e praticam por meio do seu corpo (sexual/reprodutivo)
antes e depois do casamento?
quais as implicaes desses resultados para a vivncia da paternidade?

No caso especfico da sade reprodutiva, torna-se relevante pensar se e c o m o o


campo da reproduo est presente no imaginrio masculino. Q u a l seria o conjunto
de repertrios produzido sobre o tema 'homens e reproduo? Q u e impacto tm esses
repertrios sobre a imagem de necessidades de sade que esse grupo populacional
formula para si? Se a reproduo aprendida e apreendida pela maior parte das pessoas
c o m o u m processo biolgico que se concretiza essencialmente e m u m corpo do sexo
feminino, como provocar novas linguagens no universo das mentalidades de mulheres
e de homens acerca da reproduo? Seria possvel valorizar menos a gestao e mais a
concepo, apontando para uma posio compartilhada, em termos de significados, de
mulheres e homens diante da reproduo biolgica da vida? C o m o lidar com o fato de
que o corpo feminino que desenvolve o trabalho da reproduo? Afinal, de quem o
papel mais relevante no processo da reproduo biolgica?

3
Destaca-se o trabalho desenvolvido por Ecos, G T P O S e NEPAIDS que sempre incorporaram adolescentes de
ambos os sexos em seus trabalhos de educao sexual.
Apesar de serem geneticamente igualmente participantes, homens e mulheres no
tm igualdade de participao no processo reprodutivo em termos do volume de traba-
lho corporal que a reproduo acarreta para cada u m dos sexos. No obstante, uma
representao grfica do processo reprodutivo, circulante no sculo XVII (Demarest &
Sciarra, s/d), mostra como, naquele perodo, considerava-se o h o m e m como agente
produtor do feto - introduzido no corpo feminino j praticamente formado, apenas
esperando para ser desenvolvido. Essa concepo indica u m estgio do conhecimento
cientfico que deixa marcas no imaginrio social at os dias atuais: bastante c o m u m
ouvir-se, ainda hoje, histrias e m que os homens so descritos como 'agricultores que
espalham a semente na terra'. Concomitantemente, de maneira curiosa, a reproduo
vista como 'algo' do universo feminino.
Figueroa Perea (1996) busca ampliar o conceito de reproduo, trabalhando-o na
perspectiva de relao. Considera como muito relevante a distino entre aparelho, com-
portamento e processos reprodutivos. Observa que, se considerado o equilbrio da parti-
cipao entre mulheres e homens na reproduo em funo do grau em que a biologia de
cada u m solicitada a participar, seria razovel seguir trabalhando, sobretudo, com as
mulheres. Ao mesmo tempo, afirma que se a reproduo for pensada em u m espao de
relao - e esta a sua perspectiva -, o comportamento e o processo reprodutivo estaro
referenciados a u m a viso dinmica de encontros e desencontros, atravs da qual ser
mais fcil fazer referncia s dimenses psicolgicas e sociais da reproduo.
As transformaes conceituais em torno do universo da reproduo esto aconte-
cendo luz do que Frykman (1996) indica no textoTheTransformationofMasculinityinthe20th
Century Culture. Esse autor reforou o argumento da existncia da diversidade daquilo que
hoje se pode chamar de 'masculinidade' - construda, segundo ele, sobretudo em tomo
do que se convencionou considerar como home. Chama de home, ou 'lar', a 'arena' na qual
novas definies do que feminino e masculino estariam em construo. Nesses m o -
mentos de transio, c o m o pensar o significado da reproduo, dos processos
reprodutivos, para determinados grupos de homens?
U m dos possveis caminhos identificar, conhecer e analisar os comportamentos
sexuais e reprodutivos masculinos, e entendera relao que as pessoas do sexo masculino
- sobretudo com comportamentos predominantemente heterossexuais - estabelecem
com sua perspectiva diante da reproduo. At que ponto o corpo masculino est repre-
sentado para homens e mulheres como u m corpo que tem significados semelhantes no
mbito da reproduo? Teria a fertilidade u m sentido diferente para cada u m dos sexos?
nesse universo conceituai que a pesquisa vem sendo realizada. Os elementos aqui
destacados so preliminares, tendo sido construdos a partir de falas de homens que
participaram de grupos focais e de respostas a u m questionrio aplicado a trabalhadores
da indstria metalrgica. O grupo focal u m a tcnica de pesquisa qualitativa que
permite captar elementos da cultura, valores, atitudes e comportamentos das pessoas
cujo perfil se pretende analisar. Por meio desta tcnica, podem-se obter idias e concep-
es compartilhadas sobre temas previamente determinados e introduzidos na discus-
so, por intermdio de roteiro especfico. Quanto mais homogneo o perfil dos compo-
nentes dos grupos, maior a confiabilidade dos dados obtidos. O trabalho ainda prev a
realizao de entrevistas individuais com homens adultos jovens, escolhidos dentre os
participantes dos grupos focais, para maior aprofundamento.
A pesquisa iniciou-se com pr-testes e survey, realizado em empresa metalrgica da
cidade de So Paulo. Foram abordados 84 funcionrios. Destes, 18 faziam parte do setor
administrativo - caracterizados como sendo dos estratos B-C - e 66 da produo. Mais
do que u m instrumento de pesquisa, o survey tinha por objetivo identificar necessidades
dos funcionrios no campo da informao em educao para a sexualidade e orienta-
o para a sade reprodutiva/Alguns dos assuntos escolhidos para o levantamento
foram: grau de conhecimento dos funcionrios da empresa sobre fertilidade feminina
e masculina; mecanismos femininos e masculinos de reproduo; conhecimento e
uso de mtodos anticoncepcionais; doenas sexualmente transmissveis/AIDS; violncia
sexual e experincias em torno do aborto.
fora os funcionrios da produo, dada a impossibilidade de auto-aplicao do ques-
tionrio, o ato de preenchimento dos mesmos por pesquisadores (do sexo feminino e
masculino) acabou se transformando em u m processo de interao em que estabelece-
ram-se ricos dilogos sobre os temas propostos pelas questes, no havendo distino
entre as impresses obtidas pelo pesquisador e pela pesquisadora. Considerando a tota-
lidade dos funcionrios que responderam o questionrio, aproximadamente 14% ti-
nham at 20 anos; 17%, entre 20 e 24; 26%, de 25 a 34; 29% de 35 a 44; e 14% mais do que
45 anos. Dentre os funcionrios da produo, 35% eram casados; 62%, solteiros (a maioria
situada na faixa etria de 2 5 a 44 anos).
No geral, os entrevistados da produo demonstraram muito interesse em ter mais
informaes, considerando no ser suficiente o que j sabem no campo da sexualidade
e sade reprodutiva. A maioria deles tem possui 1 grau incompleto e demonstram ter
poucos conhecimentos sobre mtodos contraceptivos. Dentre os que so casados, a
maior parte usa a plula anticoncepcional ou so vasectomizados. O s solteiros usam a
camisinha (ou n e n h u m mtodo anticoncepcional). C h a m a a ateno a relevncia
do coito interrompido c o m o alternativa anticoncepcional, sobretudo entre os h o -
mens casados. Observou-se entre este grupo, tambm, a preocupao c o m o i m -
pacto da contracepo e do parto/cesariana sobre a sade da mulher. As respostas sobre
contracepo evidenciaram u m discurso c o m u m a todos: preferia-se a vasectomia a
outras medidas contraceptivas, por diminuir os problemas de sade para as mulheres.
C o m o j citamos anteriormente, alm do questionrio foram realizados grupos
focais. Dentre os 11 grupos realizados, trs foram feitos entre funcionrios do setor
administrativo da empresa e outros oito organizados por intermdio de empresa de
recrutamento. Todos os grupos foram constitudos com homens dos estratos B-C, sen-
do focalizadas, basicamente, trs faixas etrias: 20 a 24; 25 a 34; e 35 a 44 anos. Todos os
grupos das faixas etrias foram compostos por homens solteiros e casados, com filhos e
sem filhos. Foram obedecidos alguns critrios: todos os homens casados deveriam estar
envolvidos em primeiros casamentos, e suas esposas deveriam trabalhar fora de casa.
Com relao aos dados colhidos entre os grupos focais, possvel apreender algumas
questes bastante relevantes. U m a delas foi o fato de no existir definio homognea
sobre o que significa ser homem, indicando diversidade de padres de masculinidades
que esto sendo vivenciados. Trata-se de u m padro em transformao, que coloca
dificuldades para os homens precisarem seu prprio papel de gnero. Tambm chama
ateno o fato de que mesmo quando a responsabilidade pelo cotidiano compartilha-
da - diviso de tarefas domsticas e financeira dos gastos que o casal/famlia possui - o
h o m e m ainda se sente responsvel pela manuteno da autoridade moral familiar, de
acordo c o m o que afirma Sarty (1996) para a populao dos estratos mais baixos da
sociedade. O s homens entrevistados conseguem flexibilizar a relevncia dos recursos
financeiros que obtm c o m seu trabalho - at porque as dificuldades impostas pelo
mercado exigem que compartilhem a renda familiar com as parceiras - porm, preci-
sam reafirmar que sua a 'responsabilidade' pelas decises de conduo da famlia.
Algumas citaes dos homens nos grupos retratam essa perspectiva:
Estamos dividindo as despesas, os sentimentos, tudo isso, sem dvida, mas sempre o homem vai ser o chefe da
casa. Ele acaba sempredando(...)no as decises (...) pois essas cabem aos dois de comum acordo. Mas ele tem
sempre um conceito de estar, assim, sei l (...) comandando a casa,entende?...Eu j fui sustentado por ela durante
3 ou 4 meses, e ela entrava com a parte financeira, s que as decises a tomar a gente sempre discutia juntos...
Acho que a prpria mulher acaba colocando ele alifrente. A deciso final ou algo assimtipoem que ficou em
dvida, ela fala: T, resolve voc!' (D., 21 anos., casado, c/ filho)

Tem muitas coisas que, s vezes, a mulher no tem a coragem de chegarese impor, ou seja, o homem j sabe
que quando ele chegar ele vai ter um pouco mais de cabea de assumir as coisas que tm que ser feitas, certo?
(C, 24 anos, casado, s/ filhos)
O s dados preliminares obtidos na investigao indicam que para os homens dos
estratos B-C a preocupao com a reproduo - relevante para a construo de u m a
identidade moral masculina - se constri no contexto social, e no na relao com seu
prprio corpo. A vida reprodutiva de u m h o m e m no diz respeito, portanto, relao
direta que estabelece com sua sade reprodutiva. De maneira completamente diversa
do que ocorre com as mulheres, a reproduo, para os homens, no diz respeito a u m
processo de intimidade e de interao com seu prprio corpo. No haveria uma espcie
de conscincia reprodutiva, representada como uma experincia corporal que cria e
desenvolve marcas no imaginrio masculino no decorrer de sua adolescncia e incio
da vida adulta.
Rosane Souza (1994), em sua tese de doutoradoPaternidadeemTransformao,mostra que
a paternidade no to bvia quanto a maternidade. O adolescente no perde sangue
todos os meses, de modo a, mesmo que de modo fugaz, saber-se potencialmente genitor.
Ainda que ejacule, associa-o ao prazer, e no a u m potencial criativo. O trabalho salienta
que as meninas podem se perceber como potenciais geradoras de bebs, ao passo que os
meninos poucas evidncias tm de si mesmos como potenciais geradores de bebs, isto
, 'pais'. Souza cita Neubauer (1989) que, ao trabalhar o textoOPequeno Hans, de Freud,
comenta criticamente que ele no foi informado de seu potencial criativo, assim como
os m e n i n o s e os adolescentes no tm esta informao na sua perspectiva
desenvolvimentista. O mesmo autor afirma que h u m grande contraste entre os rituais
de passagem estruturados pela sociedade para os adolescentes do sexo masculino e do
sexo feminino; e levanta como hiptese que a obviedade e a repetitividade da menstru-
ao j atestariam o poder gerador das mulheres. Em contraposio, as ejaculaes
aconteceriam no universo privado masculino, e de forma alguma permitiriam antever
a possibilidade procriativa nele contida.
No entanto, possvel encontrar nos dados de nossa pesquisa uma condensao de
significados feita entre potncia, fertilidade e sexualidade, que indica pistas relevantes para
u m longo caminho de ensino e interveno entre os grupos populacionais masculinos.
Essa concepo da sexualidade masculina, cujo sentido (tanto para homens quanto para
as mulheres) estaria voltado para a conquista, para as relaes sem limite e para o prazer
quase selvagem - como to bem mostram os estudos de Vilela & Barbosa (1996) - de certa
forma traria implicaes para o tipo de interesse cognitivo que rapazes e garotas tm apre-
sentado quando inseridos em contexto de educao para a sexualidade e sade reprodutiva.
Paiva (1996) encontrou nos rapazes u m grande interesse pelo 'corpo sexual do/a outro/a';
nas garotas, u m interesse pelo corpo reprodutivo, mais do que no corpo sexual/ertico.
Esses dados so reforados pelo material obtido por Costa (1996) na pesquisa A Face
Masculina do Planejamento Familiar, realizada entre operrios da construo civil do
Cear. O projeto foi desenvolvido com 250 trabalhadores, em sua maioria de origem
rural e de baixa escolaridade. Aproximadamente 42% dos homens entrevistados tinham
fi
de 20 a 29 anos; e 38%, entre 30 e 39. Da totalidade dos entrevistados, 66% tinham l grau
incompleto; e 16% nunca haviam estudado. Cerca de 86% dos entrevistados eram casa-
dos. C h a m a ateno o fato de 52% no saberem como a mulher engravida; 5 7% no
sabem quando o corpo do h o m e m capaz de engravidar u m a mulher - porm, 55%
sabem dizer quando a mulher capaz de engravidar.
De certa forma, tais resultados confirmam os dados encontrados em pesquisa de
4
opinio pblica realizada pela Comisso de Cidadania e Reproduo (CCR), por meio
do Instituto Data-Folha (1995). Foram entrevistadas 1.964 pessoas, maiores de 16 anos,
4
A Comisso de Cidadania e Reproduo uma organizao da sociedade civil, de carter nacional e que rene
pessoas e instituies que defendem direitos sexuais e direitos reprodutivos da populao brasileira.
de ambos os sexos, e m So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foram sur-
preendentes os resultados pergunta: "Todos os meses a mulher tem u m perodo
frtil e pode engravidar. Pelo que voc sabe, durante quantos dias por ms o h o m e m
frtil?" Erraram 66% das mulheres e 52% dos homens. Acertaram a resposta 32% do
total dos entrevistados. Cinqenta e nove porcento disseram que no sabiam res-
ponder, e 9% erraram. Entre os homens, o ndice de acerto foi de 38%, contra 26% das
mulheres. O s mais jovens tiveram u m a freqncia maior de erros e, dentre estes,
foi o grupo de mulheres entre 16 e 2 5 anos o que mais surpreendeu: 76% erraram
ou disseram no saber a resposta. De maneira geral, quanto maior a escolaridade,
maior o ndice de acertos. M e s m o assim, apenas 30% das mulheres c o m segundo
grau completo e 62% c o m grau superior acertaram, ao passo que entre os homens os
ndices encontrados foram 47% e 75%, respectivamente. interessante observar que
23% dos h o m e n s c o m curso superior no souberam responder. Entre as mulheres,
o ndice chega a 34%.
A vida sexual dos h o m e n s e, portanto, tambm sua sade sexual apresentada
entre os participantes c o m o algo muito simples, cuja centralidade reside no funcio-
namento do pnis, isto , em sua ereo. O s homens consideram que, diferentemen-
te do que ocorre c o m as mulheres, no haveria tanto o que aprender sobre o funcio-
namento de seus corpos. Esto voltados para o mecanismo da ereo, caracterizado
por u m funcionamento externo. Movidos por esse tipo de lgica, os entrevistados encon-
tram uma facilidade muito maior para discorrer sobre o funcionamento do corpo femi-
nino - voltados que esto para a conquista sexual e amorosa - e, tambm, por estarem
dirigidos para a sade das mulheres na perspectiva da solidariedade. No discurso dos
homens participantes da pesquisa possvel identificar uma noo no to claramente
explicitada, mas evidente, de que as mulheres merecem ateno e cuidado, porque so
'complexas' e devem ser conquistadas. Assim, corpo e psiquismo femininos so repre-
sentados em oposio aos masculinos ('simples') e dos quais, por prudncia, devem se
afastar. Fica presente, sempre, o fantasma de ser identificado como homossexual.
O homem, nesse aspecto, j meio relaxado,n?Acho que pelo nosso rgo genital no ser, assim, to complexo,
to minucioso como o da muther, geralmente, o homem s vai conhecer uma doena sexual quando ele pega uma
gonorria, etc. A ele vai atrs! ( C , 24 anos, casado, s/ filhos)
Ah.' Acho que eucabuleiessa aula (...).Porque,vejabem, voc chegar numa auladecinciasonde o professor
vai explicar o rgo reprodutor masculino... dose, n?. (N., 21 anos, casado, s/ filhos)

Essas questes e as que sero apresentadas a seguir tm implicaes para iniciar u m


processo de reflexo sobre c o m o poderiam ser desenvolvidas as polticas pblicas no
campo da educao para a sade reprodutiva e sexualidade.
No campo das decises sobre a vida reprodutiva, os homens entrevistados indica-
ram que as mulheres so aquelas que efetivamente "coordenam os processos
reprodutivos". Acreditam serem elas que agenciam os processos que efetivamente acon
tecem basicamente e m seus corpos. O s homens sentem que, muitas vezes, acabam
sendo obrigados a modificar o rumo de suas vidas porque aceitaram a liderana femi-
nina no processo reprodutivo - e esta, com freqncia, acaba desembocando em algo
que no desejavam: ser pai. Mas, diante da realidade, vem-se obrigados a reafirmar u m
aspecto que parece imutvel, mesmo quando se pensa em diferentes masculinidades:
'assumir responsabilidades'. Este processo de assumir responsabilidades que determi-
nar o 'grau de seriedade de u m homem'. Assumir u m filho pode determinar a passa-
gem de uma vida de "zoeira e irresponsabilidade, aprendizagem, molecagem" para uma
de compromissos, perda de amizades, perda ou limitao da vivncia da sexualidade
c o m o uma sexualidade do prazer, sem limites. O casamento apareceria, para os h o -
5
mens, como 'instncia reguladora' do comportamento sexual e reprodutivo . A idia/
inteno de ser pai, diferentemente do que julgam acontecer com as mulheres, viria
com a maturidade, com o casamento. Se o filho aparece antes do casamento, parece ser
claro que ele vem antes da Vontade de ser pai'. Os homens que participaram da pesquisa
indicam que quando so 'vitimados' por esse processo de liderana reprodutiva das
mulheres, que lhes acarreta paternidade prematura, vo se tornando, a posteriori, mais
eficientes no controle da fertilidade. Isso poder determinar maior preocupao com o
uso de contraceptivos, em especial do condom.
Minha mulher dizia que no gostava de criana e tal e no queria ter, e eu que sempre insistia, falava que
um dia iramos ter etc. At que um dia ela resolveu pr na cabea efaz um filho sem me consultar (...).
(F., 23 anos, casado, c/ filhos)
Tentando desnudar u m pouco mais este universo das relaes entre mulheres e
homens e seus processos reprodutivos, Villa (1996) realizou u m estudo com homens de
baixa renda na cidade de Buenos Aires. Nele, possvel perceber a complexidade da
dinmica de construo das representaes masculinas sobre fecundidade e
contracepo. So explorados os significados que a fecundidade adquire para os h o -
mens na constituio e organizao da famlia, bem como se constituem as represen-
taes sobre a contracepo no espao domstico. Geralmente contraditrios e
conflituosos, os significados so bastante diversos quando se trata de pensar a sexuali-
dade no universo da famlia ou fora dela. Segundo os resultados do autor, o desejo de
fecundidade da mulher toma-se, ao mesmo tempo, u m desafio e uma ameaa. Desafio,
porque a fecundidade feminina que toma a sexualidade masculina socialmente acei-
ta e personifica sua vivncia sexual; ameaa, porque o afasta do m u n d o de seus pares,
que lhe confere a identidade de gnero, relacionada a u m a sexualidade impessoal,
inserida na cultura masculina compartilhada. Tal sexualidade teria como produto 'os

5
Esta passagem parece coincidir com o casamento, embora no seja necessariamente associada a ele.
Pode estar vinculada a uma relao em que de alguma forma esteja definido um certo compromisso
afetivo e sexual. Agradeo a Regina Maria Barbosa por este comentrio.
filhos por a', inerentes a 'qualquer homem'. O s homens viveriam, ento, u m dilema
entre a busca de u m a identidade pessoal e a necessidade de se submeter a u m a cultura
masculina impessoal, aceita por outros homens. De u m lado, estariam o m u n d o mas-
culino e uma sexualidade exercida de forma marginal, compartilhada pelos homens,
mas no socialmente aceita. De outro, a sexualidade exercida dentro do espao doms-
tico, de certa forma submissa ao 'desejo de fecundidade das mulheres', que teria como
produto os filhos. A mulher teria dentro do casamento, portanto, u m papel moralizador
da sexualidade masculina. Ao mesmo tempo que eles 'roubam sua sexualidade', elas a
tornam socialmente aceita, e a singularizam. Neste contexto, a contracepo dentro da
famlia torna-se u m a contradio: so os filhos que do visibilidade 'sexualidade
personificada e moralizada'.
De qualquer maneira, parece haver diferenas entre homens e mulheres sobre o
que mais interessante em relao aos processos reprodutivos. Mulheres desejam o
filho; homens desejam a famlia. A idia/desejo/vontade/aspirao de ser pai viria com a
maturidade e com o casamento e no determina o filho, ao contrrio do que parece
ocorrer com as mulheres. Para muitas delas, a legitimidade de sua feminilidade ainda se
d pelo filho, ao passo que a legitimidade da masculinidade se fundamenta na famlia.
Segundo Nolasco (1993), muitos homens tm filhos como se estivessem cumprindo
mais uma etapa de suas vidas, reafirmando sua virilidade ou esclarecendo dvidas sobre
sua identidade sexual. Ter sucesso financeiro e ter a inteno de ser bom pai e u m bom
marido seriam elementos bsicos, que definiriam para u m h o m e m o caminho rumo
paternidade, condio esta que raramente se definiria a partir de necessidades internas.
Desse ponto de vista, bastante curiosa a posio masculina sobre o aborto. Mesmo
considerando que so as mulheres que, em ltima instncia, definem o que ir ocorrer
em seus corpos, os homens entrevistados parecem considerar que suas palavras tm
muito poder e podem direcionar a atitude das mulheres, inclusive em relao deciso
de abortar. No entanto, entre os participantes da pesquisa, h uma explicitao de que
o h o m e m que incentiva a mulher a abortar poderia estar se eximindo da responsabili-
dade reprodutiva e, portanto, eximindo-se da sua obrigao de se comportar c o m o
'homem'. Conforme Victora (1982), os meninos so socializados para buscarem na rua
o sustento para a casa. Esse menino que, para tomar-se u m homem, dever tomar-se
pai e provedor, precisa pois, ter u m filho e assumi-lo, para ver consagrada sua posio de
h o m e m adulto. Jardim (1995) afirma que a masculinidade algo que deve ser compro-
vado continuamente por meio de diferentes estratgias e os filhos apareceriam como
u m dos elementos que 'provam' que o h o m e m foi ativo na vida. 'Fazer filhos' seria uma
capacidade de todo homem, mas sustentar e prover de respeito seria u m passo impor-
tante na obteno de status mais elevado entre os pares. Surge, ento, o conflito. Incenti-
var o aborto seria uma manifestao possvel, quando o homem ainda no se identifica
como 'homem pleno de responsabilidades'. Essa percepo explica os dados encontra-
dos na pesquisa de opinio pblica e m que os homens declaram que devem tentar
influir sobre a deciso das mulheres de abortar. (CCR, 1995).
Nos grupos focais, essas idias so explicitadas:
Ai que ns voltamos ali para oinciodanossa conversa,'oque ser homem', certo? Acho que o cara que foge
de uma realidade dessas, pr mim, no homem!Acho que hoje emdiavoc tem que ser homem para assumir o
que vocfaz!(L, 33 anos, casado, c/ filhos)
mais fcil ele induzir ela a faz-lo. difcil o cara chegar e dizer: Ah, va ser bonitinho, que lega e tal.
(., 25 anos, casado, s/ filhos)

E outra coisa, porincrvelque parea. Mas quando pinta o negcio do aborto, sempre o cara que vai atrs,
o cara que leva a mulher, o cara que est do lado, companheiro. Duas horas depois, ele pe no nibus e diz:
Vai com Deus,filha!A maioria das vezes assim. (R., 32 anos, casado, s/ filhos)

Consideraes finais

Os dados obtidos nessa pesquisa indicam que, no campo da sexualidade e da sade


reprodutiva, no ser possvel a permanncia da focalizao nas mulheres como objeto
exclusivo do debate terico e poltico. No se trata, com isso, de esquecer que a anlise
das relaes subjetivas e intersubjetivas deve considerar as hierarquias de gnero, mas,
sim, de tentar promover u m a compreenso relacionai mais substantiva. N o caso do
Brasil, mudanas nas polticas macroeconmicas, que tm provocado alteraes no
mercado de trabalho c o m conseqncias importantes para os homens, como baixos
salrios (ou at m e s m o desemprego), so fatores adicionais que reforam a indicao
de que h necessidade de maior compreenso dos possveis novos significados das
relaes entre homens e mulheres (Giffin, 1994). A incluso dos homens no deve ser
feita apenas c o m o ponto de apoio para a promoo do bem-estar das mulheres.
Continuar insistindo no discurso de que os homens no esto preenchendo ade-
quadamente seus papis e nem desempenhando tudo o que deles se espera no permi-
tir aproximar mulheres e homens para u m processo de reconstruo de processos
sociais e mentalidades (Barker et a l , 1996).
O quadro apresentado aqui nos coloca em posio que exigir certa ousadia. N o
caso d o Brasil, trazer os homens para a cena da sade e dos direitos reprodutivos de
maneira mais substantiva supe desafios n o campo da conceituao e ao poltica e,
tambm, na esfera da formulao, desenvolvimento e avaliao de polticas pblicas.
Alguns profissionais da sade, que operam junto aos servios de sade pblica, tm alertado
para o fato de que seria mais fcil continuar a estimular os homens a serem colaboradores
dos processos de sade das parceiras. Ser isso o desejvel? Homens, de todas as faixas
etrias, no deveriam tambm se tomar sujeitos de direitos no campo dos direitos sexuais
e reprodutivos? O que isto significaria concretamente? Que mudanas na formulao das
polticas deveriam ser desenvolvidas? necessrio que estes temas e debates sejam enfren-
tados, at porque, a partir dos dados obtidos nesta pesquisa, percebe-se que a reproduo-
e sua ligao com a sade - parece ser u m universo bastante distante dos homens, cujo
reflexo nas demandas no campo da sade reprodutiva dever ser diretamente estimulado.
U m a lio j foi claramente aprendida a partir desta pesquisa: os dados remetem
para a necessidade de se pensarem estratgias informativas diferenciadas para cada u m
dos sexos, u m a vez que as motivaes sexuais - o sentido que mulheres e homens
parecem daro corpo sexual e reprodutivo so diferenciados. H, portanto, u m campo
enorme de interveno diferenciada em educao para a sexualidade e sade reprodutiva
para homens e para mulheres.
Pode-se afirmar, tambm, a necessidade premente de desmistificar, entre os h o -
mens, a concepo de que o corpo masculino simples, mecnico e que, por isso, no
precisa ser conhecido ou estudado. Tambm relevante reverter a lgica de que se deva
conhecer o funcionamento corporal apenas para conquistas amorosas. Deve-se conhec-
lo para poder cuidar, tratar, e viver com mais qualidade e dignidade.
Outro aspecto bastante relevante (e que u m estmulo para a ao) o fato de que
homens condensam, simbolicamente, o sentido de fertilidade, potncia/ereo do pe-
nis e sexualidade. Desfazer esse emaranhado torna-se necessrio e urgente para que
novos processos cognitivos, comportamentais e afetivo-sexuais possam se desenvolver.
Esse processo de produo contnua de conhecimento terico e de metodologias de
interveno dever ser desenvolvido pelo conjunto de O N G s que hoje j operam no
campo da sexualidade e sade reprodutiva, sendo que o papel das universidades ser
extremamente significativo.

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