TCC Priscila Machado
TCC Priscila Machado
TCC Priscila Machado
Pelotas
2013
PRISCILA EVELY MARINHO MACHADO
Pelotas
2013
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof Dr Renata Menasche (Orientadora)
______________________________________
Prof Dr Adriane Luisa Rodolpho
______________________________________
Prof. Dr. Mrtin Csar Tempass
Dedico a meu marido e filhos.
AGRADECIMENTOS
Tudo comea com um sonho, hoje vivo uma realidade, sendo necessria muita
determinao e esforo para chegar at aqui. Nada disso eu conseguiria sozinha. Minha terna
gratido a todos que de alguma forma contriburam para a realizao deste sonho.
Agradeo a Presena Divina constante em minha vida, dando-me orientao nas
diferentes etapas por qual passei para a realizao deste trabalho.
Agradeo a meus pais e irmos, pelo incentivo mesmo que distante, com palavras de
apoio e incentivo em momentos difceis.
A meu marido Edson, por todo carinho, dedicao, pela preocupao, zelo, por sua
presena em todos os momentos e por tornar minha vida cada dia mais feliz.
A meus filhos pelo apoio, carinho e compreenso nos momentos em que no pude
estar presente para a realizao deste trabalho.
A minha orientadora, professora Renata Menasche, por me apresentar a Antropologia
da Alimentao, por seu incentivo e suas orientaes. Por sua excelncia como professora e
profissional.
Aos professores que ministraram com dedicao as aulas.
Aos colegas de turma por todos os momentos que passamos juntos, na realizao de
trabalhos, no estudo para as avaliaes, pelo incentivo e companheirismo na busca do
sonhado objetivo de concluir este curso.
Aos colegas do projeto Saberes e Sabores da Colnia: patrimnio alimentar e
campesinato no Rio Grande do Sul, pela amizade e pelos momentos agradveis que
passamos no projeto.
Agradeo a minha sogra e cunhada pela ajuda no cuidado com meus filhos.
A todos os familiares pelo apoio e estmulo para enfrentar as barreiras da vida.
E a todos que, de uma forma ou de outra, colaboraram nesta trajetria, minha
gratido.
Nas montanhas de Sio, onde habita a salvao
H crianas ao redor, sempre a sorrir.
Preciosas todas so e procuram perfeio
O evangelho se esforando por cumprir.
Palavras-chave: alimentao; religio; identidade religiosa, Igreja de Jesus Cristo dos Santos
dos ltimos Dias.
LISTA DE FIGURAS
1 Introduo ........................................................................................................................ 10
1.1 O campo e o mtodo ......................................................................................................... 16
Referncias ............................................................................................................................ 61
10
1 INTRODUO
Atualmente, h a busca cada vez mais intensa por uma vida saudvel, para a qual a
alimentao se mostra fundamental. O alimentar-se uma necessidade fisiolgica vital e
comum a todos, sem a qual no h vida possvel. No entanto, as prticas alimentares no so
estritamente naturais, esto no campo da cultura, em que se encontram as criaes humanas,
simblicas, o que vai alm da utilizao dos alimentos pelo organismo, ou seja, nas prticas
alimentares que a natureza e a cultura se encontram, pois, se o homem necessita comer para
viver, ele sobrevive de maneira particular, culturalmente marcada. Claude Fischler mostra a
relao entre o comer e a nutrio do homem por seu imaginrio cheio de significados e
valores simblicos.
Comer: nada de mais vital, nada de to ntimo. ntimo o adjetivo que se impe:
em latim, intimus o superlativo de interior. Incorporando os alimentos, ns os
fazemos aceder ao auge da interioridade. [...] O vesturio, os cosmticos, esto
apenas em contato com o nosso corpo; os alimentos devem ultrapassar a barreira
oral, se introduzir em ns e tornar-se nossa substncia ntima. H ento, por
essncia, alguma gravidade ligada ao ato de incorporao: a alimentao o
domnio do apetite e do desejo gratificados, do prazer, mas tambm da desconfiana,
da incerteza e da ansiedade. (FISCHLER, 2001, p.7 apud MACIEL, 2001, p.145)
Na distino entre o que alimento e o que comida, Roberto DaMatta (1986, p. 56)
diz que a comida no apenas uma substncia alimentar, mas tambm um modo, um estilo
e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define no s aquilo que ingerido, como
tambm aquele que ingere. A cultura, alm de definir o que ou no comida, estabelece
prescries, restries do que se deve ou no comer e tambm indica o que considerado
forte ou fraco, bom ou ruim em uma cultura.
(...) o homem civilizado no come somente (e menos) por fome, para satisfazer uma
necessidade elementar do corpo, mas, tambm, (sobretudo) para transformar esta
ocasio em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte contedo
social e grande poder de comunicao: nos no nos sentamos mesa para comer
(...) mas para comer junto. (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p. 108)
11
Ns nos alimentamos todos os dias e o que comemos est baseado nos lugares em
que crescemos, com pessoas especficas com hbitos e crenas particulares. O ato de comer
essencial ao aprendizado social. Aprende-se desde cedo as restries, a reciprocidade, a
socializao, revelando a cultura na qual se est inserido. Os hbitos alimentares podem
mudar, mas a memria e o peso do primeiro aprendizado alimentar e algumas das formas
sociais aprendidas atravs dele permanecem (MINTZ, 2001, p. 32).
Talvez porque a comida e sua preparao fossem vistas como trabalho de mulher, e
a maioria dos antroplogos fossem homens, ou porque o estudo da comida fosse
considerado prosaico e pouco importante, comparado a outros, como a guerra, da
sucesso na chefia ou da magia e da religio. (MINTZ, 2001, p. 32)
Lvi-Strauss recorre lingustica para analisar a comida, evidenciando que, tal como
a linguagem, o ato de cozinhar comum a todas as sociedades humanas. O autor dedicou-se
aos estudos sobre a comida em diversos trabalhos, entre eles O Cru e o Cozido, publicado
originalmente em 1964, no qual refora a oposio entre natureza e cultura, por meio de um
tringulo culinrio formado pelo cru, cozido e podre. O cozimento seria a passagem da
natureza (em que est o cru) para a cultura (em que est o cozido), enquanto o podre seria a
1
Land, labour and diet in Northern Rhodesia (RICHARDS, 1939).
12
transformao natural de ambos. Para ele, cada sociedade ou grupo poderia ser compreendido
por meio desses trs estados.
Essa mesma perspectiva de passagem entre natureza e cultura tambm pode ser
notada nos trabalhos de Mary Douglas, como em Pureza e Perigo, de 1976, em que a autora
apresenta a alimentao cotidiana como um cdigo, a mensagem que a comida apresenta
dever ser encontrada no padro de relaes sociais.
Cmara Cascudo, com Histria da Alimentao no Brasil (1983 [1963]). Ambos tratam o
tema a partir da construo de uma identidade nacional, em que a cozinha brasileira teria sido
obra de uma gnese hbrida portuguesa, africana e amerndia (Stols, 2006).
Essa experincia foi importante para mim, destacando essa rea como objetivo para
futuras anlises, sendo esse tema capaz de mostrar as relaes entre natureza e cultura, o
biolgico e o simblico, pois, como mostra Maciel (2001, p. 145), (...) ao se alimentar, o
homem cria prticas e atribui significados quilo que est incorporando a si mesmo, o que vai
alm da utilizao dos alimentos pelo organismo.
2
Os membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias so popularmente conhecidos como
mrmons. O nome mrmon se deve ao Livro de Mrmon (que tem esse nome por causa do profeta-historiador
que o resumiu, o qual chamado de Mrmon).
15
A partir dessa experincia, a escolha por membros da Igreja de Jesus Cristo dos
Santos dos ltimos Dias como grupo de estudo se mostrou pertinente para a compreenso dos
fenmenos sociais, com um olhar a partir das diferentes interpretaes de uma mesma regra e
sobre as escolhas alimentares.
Assim as mulheres nas famlias, se tornam as responsveis pela escolha e entrada dos
alimentos da famlia.
16
Sob essa perspectiva, a pesquisa com as mulheres santos dos ltimos dias se
mostraria mais interessante para a obteno de dados.
Escolhido o campo e o grupo, eu agora era uma pesquisadora oficial, digo oficial
porque pesquisador o termo usado pelos membros da Igreja de Jesus Cristo para se referir
queles que esto conhecendo a Igreja, geralmente levados pelos missionrios ou algum outro
membro da Igreja. Eu, como mencionado anteriormente, no fui uma pesquisadora da Igreja
nesse sentido, fui levada Igreja pelos meus pais desde meu nascimento, mas agora eu me
tornara uma pesquisadora.
Este trabalho est dividido em quatro captulos, sendo seguido pelas consideraes
finais. Aps a parte introdutria, ainda no primeiro captulo, apresentada a proposta da
pesquisa e a metodologia utilizada. No segundo captulo, apresentada a constituio da
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias, suas principais crenas, as regras
alimentares propostas para esta anlise e o papel das mulheres na Igreja. No terceiro captulo,
apresentado o campo da alimentao religiosa, os sacrifcios, as abstenes e as permisses
alimentares do grupo e a relao identitria que o cumprimento dessas regras mostra. No
quarto captulo, so abordadas as prticas dessas regras e as relaes de comensalidade do
grupo analisado.
17
Durante a pesquisa, mostrou-se claro que eu deveria manter uma maior ateno
quanto ao estudo de minha prpria sociedade. Nesse sentido, Velho (1987) coloca que as
familiaridades no so conhecimentos sobre suas vidas, seus hbitos, suas crenas e seus
valores.
No incio de minha ida a campo, algumas questes causavam certa estranheza por
parte de minhas interlocutoras. Por ser conhecida do grupo e pertencer Igreja, no conseguia
que elas me respondessem com naturalidade; muitas diziam: isso voc sabe!
Fazer a etnografia como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerncias, emendas suspeitas e
comentrios tendenciosos, escrito no com os sinais convencionais do som, mas
com exemplos transitrios de comportamento modelado. (GEERTZ 1989, p. 20)
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias uma comunidade religiosa
surgida no sculo XIX, de fundamentao crist e com caractersticas restauracionistas.
Sua histria comea com o que se pode chamar de Primeira Viso, que so
acontecimentos que levaram fundao da Igreja. Na primavera de 1820, um rapaz de 14
anos de idade chamado Joseph Smith teria ido a um pequeno bosque prximo a sua casa em
Palmyra, Nova Iorque, para orar e saber a qual igreja deveria filiar-se, j que havia grande
inquietao religiosa na poca e ele estava confuso. Em resposta sua orao, Deus, o Pai, e
Seu Filho, Jesus Cristo, apareceram-lhe, tal como seres celestiais tinham aparecido nos
tempos bblicos a profetas como Moiss e Paulo. Joseph foi informado de que a igreja que
Jesus Cristo havia estabelecido j no estava na Terra.
Joseph Smith foi, assim, escolhido por Deus para restaurar a Igreja de Jesus Cristo na
Terra. No decurso dos anos seguintes, Joseph foi visitado por outros mensageiros do cu. Ele
traduziu o Livro de Mrmon e recebeu autoridade para organizar a Igreja.
4
O nome completo A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias foi dado em 1838.
21
A Igreja tem a sede na cidade de Salt Lake, no Estado de Utah, agregando, at a data
de 31 de dezembro de 2011, uma sociedade mundial de perto de 15 milhes de membros,
sendo que desses 6,8 milhes residem fora dos Estados Unidos. a quarta maior religio nos
Estados Unidos5.
Seus membros eram colonos alemes e todas as pregaes eram realizadas neste
idioma. Em 1939, o presidente Getlio Vargas proibiu a realizao de reunies pblicas em
qualquer outro idioma que no fosse o portugus. Com a proibio do governo do uso do
idioma alemo em pblico, a igreja passou a usar oficialmente o idioma portugus. Com isso,
o Livro de Mrmon8 e outros materiais de apoio da Igreja foram traduzidos para a lngua
portuguesa, sendo que missionrios comearam a ensinar em portugus em 1940.
5
Os sites oficiais da igreja so www.lds.org/?lang=por&country=br e www.mormon.org. Neste ltimo se
encontra a informao de que o mormonismo a religio que mais cresce no mundo.
6
Disponvel em: http://www.historiadaigreja.org.br/images/stories/historia/resumohistorico.pdf
7
Disponvel em:http://www.historiadaigreja.org.br
8
O Livro de Mrmon, segundo os mrmons, a palavra de Deus, assim como a Bblia. Segundo os fiis, esse
livro relata a histria e os procedimentos de Deus com o povo que viveu nas Amricas aproximadamente entre
600 a.C. e 400 d.C. Foi traduzido para 93 diferentes lnguas e j teve mais de cem milhes de exemplares
publicados.
22
Se algum membro da igreja for questionado sobre suas crenas, uma das primeiras
respostas ser a que Joseph Smith deu em 1842, ao editor do jornal Chicago Democrat com
informaes sobre a Igreja. Foi enviada uma lista com treze valores fundamentais para a
Igreja, atualmente conhecida como Regras de F 9. Apesar de no ser um resumo de todas as
doutrinas, as Regras de F providenciam grande conhecimento da teologia que motiva as
aes dos membros da Igreja. No cabe explicar aqui detalhadamente todas as crenas, apenas
apresent-las de forma que se compreendam as motivaes de seus membros para ter
determinado estilo de vida.
9
As Regras de F so parte das escrituras dos santos dos ltimos dias, sendo encontradas na pgina 70 de
Doutrina e Convnios. Elas explicam os princpios bsicos da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos
Dias.
10
O livro de Doutrina e Convnios foi publicado pela primeira vez em 1835. uma seleo das revelaes e
outros escritos inspirados dados por intermdio de Joseph Smith (1805-1844) e seus sucessores, como
presidentes da Igreja (Disponvel em: igrejamormon.net).
11
A Prola de Grande Valor recebeu esse nome de uma das parbolas de Jesus. Contm diversos tipos de
documentos, abrangendo brevemente a histria sacra desde o incio da organizao da igreja at o incio do
sculo XIX (disponvel em: igrejamormon.net).
23
as razes por que Deus criou o mundo, a natureza e o propsito da vida na Terra e o que o
futuro reserva na prxima vida.
Segundo a crena dos santos dos ltimos dias, Joseph Smith foi um profeta chamado
por Deus para restaurar Seu evangelho. Quando Joseph Smith foi tragicamente assassinado
em Carthage, Illinois, em 1844, a liderana da Igreja restaurada foi transmitida a Brigham
Young, que era o apstolo 12 snior na poca. A sucesso de profetas continua at os dias hoje.
O atual profeta e presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias Thomas
S. Monson.
[O] profeta o Presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias. Ele
tem direito revelao para toda a Igreja. Possui as chaves do reino, o que quer
dizer que tem a autoridade para dirigir toda a Igreja e todo o reino de Deus na Terra.
(Princpios do Evangelho, 2009, p. 41)
12
Os Apstolos so considerados testemunhas especiais de Jesus Cristo, e o segundo corpo governante da
Igreja. Os mrmons acreditam que esse grupo idntico, em organizao e autoridade, ao grupo com o mesmo
nome que foi organizado pelo prprio Salvador, quando Ele estava na Terra. Na poca atual, os primeiros
membros dos Doze foram ordenados no dia 14 de fevereiro de 1835 por Joseph Smith.
24
13
Segundo presidente da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias.
14
Tem-se por convnio um pacto entre Deus e o homem.
15
Segundo o livro Princpios do Evangelho, nas reunies realizadas na casa de Joseph, depois do desjejum, a
primeira coisa que faziam era acender cachimbos e, enquanto fumavam, cuspiam por toda a sala. E assim que o
cachimbo lhes saa da boca, comeavam a mascar um enorme pedao de fumo, costume dos homens da poca.
Muitas vezes, quando Joseph entrava na sala para passar instrues, era envolto por uma nuvem de fumaa. Isso,
juntamente com as queixas de sua esposa que tinha de limpar um piso to imundo, levou-o a refletir sobre o
assunto e consultar o Senhor quanto prtica do fumo. O resultado foi o recebimento da revelao a respeito da
Palavra de Sabedoria.
25
2 Para ser enviada como saudao; no como mandamento ou coero, mas como
revelao e palavra de sabedoria, manifestando a ordem e a vontade de Deus quanto
salvao fsica de todos os santos nos ltimos dias
3 Dada como princpio com promessa, adaptada capacidade dos fracos e do mais
fraco de todos os santos, que so ou podem ser chamados santos.
4 Eis que, em verdade, assim vos diz o Senhor: Devido a maldades e desgnios que
existem e viro a existir no corao de homens conspiradores nos ltimos dias, eu
vos adverti e previno-vos, dando-vos esta palavra de sabedoria por revelao
5 Eis que no bom nem aceitvel aos olhos de vosso Pai que algum entre vs
tome vinho ou bebida forte, exceto quando vos reunis para oferecer vossos
sacramentos perante ele.
6 E eis que deve ser vinho, sim, avinho puro de uva da videira, de vossa prpria
fabricao.
7 E tambm bebidas fortes no so para o ventre, mas para lavar vosso corpo.
8 E tambm tabaco no para o corpo nem para o ventre e no bom para o
homem, mas uma erva para machucaduras e todo gado doente, a qual se deve usar
com discernimento e habilidade.
9 E tambm bebidas quentes no so para o corpo nem para o ventre.
10 E tambm em verdade vos digo: Todas as ervas salutares indicou Deus para a
constituio, natureza e uso do homem
11 Toda erva em sua estao e toda fruta em sua estao; todas essas para serem
usadas com prudncia e ao de graas.
12 Sim, tambm a carne de animais e a das aves do ar, eu, o Senhor, indiquei para
uso do homem, com gratido; contudo, devem ser usadas moderadamente;
13 Agrada-me que no sejam usadas a no ser no inverno ou em tempos de frio ou
de fome.
14 Todos os gros so indicados para uso do homem e dos animais, para ser o esteio
da vida, no s para o homem, mas tambm para os animais do campo e as aves do
cu e todos os animais selvagens que correm ou rastejam na terra;
15 E estes fez Deus para uso do homem apenas em pocas de escassez ou fome
excessiva.
16 Todos os gros so bons para alimento do homem, como tambm o fruto da
videira; aquilo que produz fruto, seja na terra ou acima da terra
17 Contudo, o trigo para o homem e o milho para o boi e a aveia para o cavalo e o
centeio para as aves e os porcos e para todos os animais do campo; e a cevada para
todos os animais teis e para bebidas suaves, como tambm outros gros.
(Doutrina e Convnios 89:1-17)
Atualmente o vinho no consumido, tendo sido substitudo pela gua mesmo nos
rituais eucarsticos. So consideradas bebidas fortes aquelas com qualquer teor alcolico,
sendo o lcool empregado somente como antissptico ou para o uso medicinal, assim como o
tabaco. Tem-se por bebidas quentes o ch preto e o caf, uma vez que, como a lei no foi
especfica quanto s bebidas quentes, em 1842 Joseph Smith declarou referir-se ao uso do ch
preto e do caf.
Para os santos dos ltimos dias, as prticas esto associadas a uma noo de
reciprocidade, ou seja, correspondente ao cumprimento de uma determinada regra, h uma
troca ou bno especfica, como mostrado no livro de Doutrina e Convnios.
21 E quando recebemos uma bno de Deus, por obedincia lei na qual ela se
baseia. (Doutrina e Convnios 130:20-21)
3 Dada como princpio com promessa, adaptada capacidade dos fracos e do mais
fraco de todos os santos, que so ou podem ser chamados santos.
18 E todos os santos que se lembrarem de guardar e fazer estas coisas, obedecendo
aos mandamentos, recebero sade para o umbigo e medula para os ossos;
19 E encontraro sabedoria e grandes tesouros de conhecimento, sim, tesouros
ocultos;
20 E correro e no se cansaro; e caminharo e no desfalecero.
21 E eu, o Senhor, fao-lhes uma promessa de que o anjo destruidor passar por
eles, como os filhos de Israel, e no os matar. Amm. (Doutrina e Convnios
89:3,18-21)
Nesse sentido, nem uma regra, permisso ou absteno para os santos dos ltimos
dias somente espiritual ou somente material: as duas coisas esto relacionadas, o corpo
fsico so permite receber a orientao do Esprito de Deus. Portanto, alm das bnos fsicas
de boa sade, correr e no se cansar, caminhar e no desfalecer, h promessa de tesouros
ocultos, que a sabedoria ou discernimento e conhecimento dados pelo Esprito Santo, que
os manter em ordem com Deus para que prosperem.
16
Captulo do livro Pureza e Perigo, publicado originalmente em 1966.
27
Santos dos ltimos Dias, que esto ligados ao poder sacerdotal17, elas servem como
professoras, missionrias, participam tambm em atividades nos templos e em outras posies
consideradas de liderana dentro da igreja como: a organizao das Moas, a Primria e a
Sociedade de Socorro. As mulheres santos dos ltimos dias conduzem tambm reunies,
planejam e organizam acontecimentos da igreja e participam de outros servios da Igreja em
conjunto com os portadores do sacerdcio.
As mulheres da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias com mais de 18
anos pertencem Sociedade de Socorro e servem nessa organizao. A Sociedade de Socorro,
fundada em 17 de maro de 1842, uma das maiores e mais antigas organizaes de mulheres
no mundo, sendo constituda no Estado americano de Illinois, onde foi entregue o
requerimento para sua abertura com sua constituio. Tem como tema a caridade nunca
falha. No livro Filhas em Meu Reino, narrada a histria da organizao da Sociedade de
Socorro; e o seu principal objetivo que o de realizar obras de caridade, ajudar a corrigir os
problemas morais e fortalecer as virtudes da comunidade.
Na atualidade, o debate sobre igualdade de papis faz com que muitas vezes as
mulheres mrmons sejam vistas como oprimidas, mesmo que elas estejam inseridas no
mercado de trabalho, realizando diversas outras atividades que anteriormente seriam
17
O sacerdcio, para os mrmons, o poder de Deus para agir em seu nome na Terra. Esse sacerdcio
conferido somente aos homens.
18
As reunies dominicais na Igreja duram cerca de trs horas, sendo a primeira hora de reunies separadas para
homens, mulheres e crianas; na segunda hora so realizadas aulas sobre doutrinas da Igreja, quando os
membros so agrupados por tempo de converso, enquanto que na terceira hora realizada a Reunio
Sacramental, em que todos participam.
28
3 ALIMENTAO E RELIGIO
Conforme Carneiro (2003), a histria de muitos alimentos est ligada histria das
religies: o nctar e a ambrosia foram roubados para os homens por Tntalo, enquanto que
Prometeu deu o fogo aos homens, fornecendo, assim, alimentos sagrados e meios para seu
cozimento, segundo as tradies mitolgicas gregas. O mesmo acontece com a mitologia
judaico-crist, em que a comensalidade se realiza entre, os homens e os animais, e uma
interdio alimentar, a proibio de um fruto, e seu no cumprimento teriam feito com que o
homem passasse a alimentar-se com o suor de seu rosto.
A alimentao do povo judeu era bastante seletiva e vista como uma distino
cultural, separando-os de outros povos atravs da exigncia de que os animais a serem
comidos fossem apenas aqueles que respeitassem o lugar que lhes foi fixado no plano da
Criao (CARNEIRO, 2003, p. 115), no seguindo regras nutritivas, mas essencialmente
uma regra religiosa.
J para a antroploga britnica Mary Douglas (1976), para alm das razes de ordem
prtica, para serem compreendidos, os tabus religiosos devem ser analisados a partir de sua
dimenso simblica, porque todas as sociedades classificam e, ao faz-lo, definem o lugar
apropriado das pessoas e das coisas, devendo as crenas, ideias, emoes ser consideradas no
separadamente das circunstncias sociais, mas integradas ao contexto em que so geradas.
emana, corre at o Orix e volta para quem o ofertou, estabelecendo vnculos entre a pessoa e
o Orix.
Cabe ter presente que, segundo Mauss e Hubert (2005), a funo social do sacrifcio
religioso, por meio da prtica de certos rituais, consiste em manter contato com o divino,
constituindo-se em um tipo de consagrao, de passagem de um mundo comum para um
mundo religioso, do profano para o sagrado, causando efeitos no sacrificante. Em todo o
sacrifcio, ensinam os autores citados, h um ato de abnegao, pois o sacrificante se priva e
doa, mas, se ele se sacrifica dando alguma coisa de si, ele no se doa, ele se reserva
prudentemente. Porque se ele se d, isso em parte para receber. O sacrifcio se apresenta,
ento, sob um duplo aspecto. um ato til e uma obrigao.
19
Ensinamento dado por Joseph Smith, restaurador da Igreja e citado no Guia para o estudo das Escrituras, no
Livro de Mrmon.
20
Abster-se voluntariamente de comer ou beber, com o propsito de chegar mais perto de Deus e invocar suas
bnos diferenciando-se de um jejum mdico. Para a realizao do jejum, necessrio que a pessoa esteja
fisicamente apta.
32
duas refeies para a assistncia a pobres e necessitados 21. O jejum serviria como uma
maneira de fortalecimento espiritual, uma forma de obter a bno desejada. Segundo
Carneiro (2003), o jejum percebido como uma maneira de domar a si, uma forma de
controlar os apetites e paixes.
4 Eis que, em verdade, assim vos diz o Senhor: Devido maldades e desgnios que
existem e viro a existir no corao de homens conspiradores nos ltimos dias, eu
vos adverti e previno-vos, dando-vos esta palavra de sabedoria por revelao.
(Doutrina e Convnios 89:4)
21
Esta doao conhecida como oferta de jejum.
33
5 Eis que no bom nem aceitvel aos olhos de vosso Pai que algum entre vs
tome vinho ou bebida forte, exceto quando vos reunis para oferecer vossos
sacramentos perante ele.
6 E eis que deve ser vinho, sim, vinho puro de uva da videira, de vossa prpria
fabricao.
7 E tambm bebidas fortes no so para o ventre, mas para lavar vosso corpo.
9 E tambm bebidas quentes no so para o corpo nem para o ventre. (Doutrina e
Convnios 89: 5-7, 9).
Porque eis que vos digo que no importa o que se come ou o que se bebe ao
participar do sacramento, se o fizerdes com os olhos fitos na minha glria
lembrando perante o Pai o meu corpo, que foi sacrificado por vs, e o meu sangue
que foi derramado para a remisso de vossos pecados. (Doutrina e Convnios 27:2)
Tal como proposto por Flandrin e Montanari (1996), no caso aqui estudado, em que a
gua substitui o vinho, temos que quando o alimento usado no ritual modificado, o mesmo
passa a ter o significado e simbolismo do anterior, incorporando suas qualidades e valores e
tornando-se capaz de transmiti-las.
Para os santos dos ltimos dias, a palavra sacramento refere-se ordenana de tomar
o po e a gua em memria do sacrifcio expiatrio de Cristo. O po partido
representa o corpo quebrantado; a gua utilizada para representar o sangue que
Jesus derramou para expiar nossos pecados. (Guia para o Estudo das Escrituras, p.
188)
34
22
A pscoa judaica chamada de Pessach, em comemorao travessia do Mar Vermelho, quando o povo
liderado por Moiss passou da escravido, no Egito, liberdade, na Terra Prometida. A cerimnia conhecida
como Santa Ceia, relatada nos evangelhos, teria acontecido no perodo de comemorao do Pessach. A Pscoa
Crist celebra a ressurreio de Cristo. As duas celebraes receberam o mesmo nome por representarem
passagens.
23
So, usualmente, rapazes a partir de 18 anos e moas com mais de 19 anos, enviados para pregar o evangelho
de Jesus Cristo em todas as partes do mundo tambm comum casais missionrios de mais idade decidirem
servir. Eles servem por aproximadamente dois anos e so responsveis por ensinar as primeiras lies queles
que querem conhecer a igreja.
24
Aulas ministradas para as pessoas que esto conhecendo a igreja. So ensinamentos bsicos sobre as principais
crenas dos santos dos ltimos dias.
35
dessas normas necessrio. Ela foi batizada e hoje transmite a seus filhos os mesmos
ensinamentos.
Carneiro (2003) observa que o caf e o ch preto eram usados como drogas e assim
denominados, assim como Mintz (1985, p. 180) chamou-os de alimentos-drogas, devido
sua ao estimulante.
25
Como mostra no Manual do Seminrio Mrmon, p. 209.
36
Slvia, uma de minhas interlocutoras da Ala Fernando Osrio, ao contar como foi
para ela fazer esta substituio, me convida para tomar uma cevadinha passada na hora,
sabendo que tambm fao uso da mesma. Quando conheceu a igreja, os missionrios
presentearam sua famlia com um pacote de cevada, explicando como ela deveria fazer. Mas
para ela a bebida no trazia uma boa lembrana, pois sua tia preparava uma mistura de
caramelo, cevada e outros ingredientes que para ela parecia uma gua suja, dando a
impresso de algo ruim. Um dia criou coragem e preparou a cevada, como se estivesse
passando o prprio caf. Em sua velha cafeteira, o cheiro parecia bom, a aparncia era igual
do caf e o gosto foi melhor ainda. Passado este primeiro momento, a cevada assumiria o
lugar que o caf sempre tivera em sua sociabilidade. No entanto, no incio, suas visitas,
principalmente os parentes, no aceitavam tomar cevada. Atualmente, alguns de seus parentes
aceitam naturalmente. Quando vai visitar algum parente, ela leva cevada, mas no so todos
os parentes que aceitam que ela leve, alguns se sentem ofendidos.
Outra questo mencionada por ela e por outras interlocutoras que, quando dizem
que no tomam caf, o primeiro substituto oferecido o ch, na maioria das vezes ch preto,
cujo uso tambm desaconselhado pela igreja.
principalmente na Inglaterra. Seu uso atingiu todas as classes, mas principalmente a classe
trabalhadora. Na sia, mais especificamente no Japo, o ch assume um papel sagrado e
ritualizado. Na Turquia, chegou a ser considerado bebida nacional. No ocidente, segundo
Carneiro (2003, p.94), o ch contribuiu para a construo social da identidade de gnero,
identificando as mulheres, em oposio ao caf de reputao masculina.
Todos os gros so indicados para uso do homem e dos animais, para ser o esteio da
vida, no s para o homem, mas tambm para os animais do campo e as aves do cu
e todos os animais selvagens que correm ou rastejam na terra. (Doutrina e
Convnios 89: 14)
A soja um gro da mesma famlia do feijo (leguminosa), muito conhecida pelo uso
domstico em forma de leo. Segundo Ana, membro da igreja h mais de vinte anos, conta
que muito antes da soja virar moda, a igreja j incentivava seu uso, na Sociedade de
Socorro26. Nas aulas de aprimoramento pessoal27, Ana pde aprender a fazer leite e po com o
farelo da oleaginosa. Mesmo aprendendo aquelas coisas, tudo lhe parecia estranho. Fazer a
troca significava trocar algo que ela j conhecia, por algo desconhecido e, segundo ela, com
um gosto diferente, a aparncia podia ser quase igual, mas no era a mesma coisa.
Para Montanari (2008) o gosto pode ser visto de duas maneiras: como sensao da
lngua e do palato e como saber, ou seja, uma escolha anterior ao ato de comer. O gosto uma
realidade coletiva e comunicada, conhecimento que contribui para definir valores da
26
A Sociedade de Socorro uma organizao de mulheres, fundada em 1942, pelo lder da igreja Joseph Smith,
por John Taylor e Willard Richard, quando se declarou que a igreja no estaria organizada se as mulheres no
fossem tambm organizadas. Ela tem como propsito aumentar a f, a retido pessoal, fortalecer a famlia e o
lar, buscar e ajudar os necessitados.
27
So reunies em que as mulheres aprendem tcnicas de artesanato, culinria, armazenamento de alimentos e
outras atividades para uso pessoal, familiar e para ajudar necessitados.
38
sociedade qual a pessoa pertence. Ele no pode ser considerado como algo esttico, aquilo
que bom para comer hoje, processo cultural que pode passar por transformaes por
inmeras variveis de ordem social. No caso de minha interlocutora, o gosto diferente no
trazia as mesmas representaes que o leite com gosto conhecido trazia.
Mas, segundo Maciel (2001, p. 148), o alimento estranho, pode representar atrao, perigo,
curiosidade, apelo novidade, repugnncia, averso, medo, uma serie de fatores que esto
presentes no imaginrio relacionado ao ato alimentar. No caso de Ana, a curiosidade e a
inteno em cumprir com a Palavra de Sabedoria a fez realizar a troca. Essa mudana causou
estranheza e curiosidade entre parentes e amigos, principalmente entre os no mrmons, pois
havia a desconfiana sobre a eficcia da soja. Ana conta, orgulhosa, como criou seus filhos
com leite de soja e derivados, e como hoje eles so adultos fortes e saudveis.
A soja antigamente no como hoje que a gente vai ao mercado e encontra extrato,
leite em caixinha, suco com soja, vrios tamanhos de soja texturizada e at petisco
de soja. Hoje ela boa pra tudo, mas, antigamente eu e outras irms que colocamos
em prtica os ensinamentos no ramos bem vistas pelas outras pessoas. Hoje
posso falar e dou meu testemunho de que mesmo que as pessoas achem estranho,
um dia elas vo saber que o que aprendemos na Palavra de Sabedoria bom, como
a soja, por isso buscamos formas de usar o que o Senhor nos deu. (Ana)
3.2 Palavra de sabedoria como identidade dos santos dos ltimos dias
Para os santos dos ltimos dias, o corpo fsico considerado uma das maiores
bnos de Deus. Ele sagrado e considerado o templo de Deus, como diz, na Bblia, em sua
carta aos Corntios28, o Apstolo Paulo. Sendo o corpo um templo, ele receptculo do
esprito e, para que o esprito possa habitar nele, necessrio que seja puro. Para que o corpo
seja considerado puro, o cumprimento da Palavra de Sabedoria fundamental.
Vale lembrar, sobre o assunto, que Garine (1987) mostra que, estabelecida uma
relao entre alimentao e sade fsica, as sociedades concedem aos alimentos uma eficcia
mgico-medicinal.
O cumprimento da lei de sade faz com que os santos dos ltimos dias sejam
reconhecidos por no fazerem uso de alguns alimentos, restringir o emprego de alguns outros
28
No sabeis que vs sois o templo de Deus e que o Esprito de Deus habita em vs? Se algum destruir o
templo de Deus, Deus o destruir: porque o templo de Deus, que sois vs, santo. (I Corntios 3: 16-17).
39
Cada grupo social possui seus valores, seu estilo de vida e um registro alimentcio
que contribui para ilustr-lo. Em funo de critrios muito variados, cada grupo
realiza uma seleo entre numerosos recursos que lhe so oferecidos. (GARINE,
1987, p. 7)
Dize-me o que comes e te direi qual Deus tu adoras, sob qual latitude vives, de qual
cultura nascestes e em qual grupo social te incluis. A leitura da cozinha uma
fabulosa viagem na conscincia que as sociedades tm delas mesmas, na viso que
elas tm de sua identidade. (BASSI, 1995, p. 10 apud MACIEL, 2005, p. 50)
Paula, uma de minhas entrevistadas do grupo open chat, tinha 13 anos quando, em
1997, foi morar com uma tia que era membro da igreja. Naquele mesmo ano, ela prpria se
tornaria membro, portanto praticante da lei de sade mrmon. Paula relata ter passado por
diversas situaes em que foi ridicularizada por seguir as normas alimentares. Alguns colegas
de escola achavam impossvel ir a um aniversrio e no tomar um copo de cerveja ou uma
taa de vinho e a tratavam com desprezo pelo do fato de ela cuidar quais alimentos se permite
ingerir. Esta diferenciao fez com que a moa se afastasse desses colegas e procurasse
pessoas com o mesmo estilo de vida que o seu, que compreendessem suas motivaes para,
assim, evitando esse tipo de conflito, pudesse seguir praticando os ensinamentos que havia
aprendido.
Mas, como indicado por Menasche (2011, p. 7), nem sempre traos distintivos so
vistos de maneira negativa: as diferenas podem converter-se em valor positivo.
O marido de Vnia estava buscando uma melhor colocao profissional e, para isso,
terminava seus estudos. Uma revista destinada ao mundo dos negcios trouxe um artigo
30
descrevendo o jeito mrmon de fazer negcios , colocando suas prticas como um ponto
positivo para a contratao de membros da igreja, mencionando principalmente as regras
alimentares, que fariam com que seus membros no tenham vcios, e tenham uma boa
sade. O patro do marido de Vnia tomou conhecimento da reportagem e o chamou para
uma conversa, dizendo que queria confirmar se ele mrmon e se segue o descrito pela
29
Mitt Romney um empresrio e poltico norte-americano, tendo concorrido pelo Partido Republicano
presidncia dos Estados Unidos, na eleio de 2012. membro de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
ltimos Dias desde 1966 e serviu como missionrio na Frana.
30
Revista Isto dinheiro, Editora Trs. Artigo intitulado O jeito mrmon de fazer negcios, escrito por
Rodrigo Caetano, em edio do ms de agosto de 2012.
41
revista. Sem saber o que tinha sado na revista, o funcionrio respondeu que seguia os
princpios mrmons. Com isso, o marido de Vnia obteve melhor colocao na empresa.
Nesse caso, as prticas alimentares, que foram vistas anteriormente como ponto
negativo e discriminatrio, passaram a ter um valor positivo na identidade dos indivduos do
grupo.
Ser uma pessoa pura est entre os objetivos dos membros da Igreja de Jesus Cristo.
As abstenes, permisses e restries da Palavra de Sabedoria so uma forma de manter o
corpo puro para que o Esprito de Deus possa estar com ele.
Nos dois grupos de mulheres analisados, uma frase chamou ateno: evitar a
aparncia do mal. Essa frase est presente na primeira epstola do Apstolo Paulo aos
Tessalonicenses (I Tessalonicenses 5: 22). Nessa epstola, o apstolo menciona alguns
preceitos bsicos a serem seguidos por aqueles que acreditaram em suas palavras. Esse um
conselho dado tambm pela liderana da Igreja de Jesus Cristo, para que seus membros se
conservem puros.
Nas abstenes, o no uso de bebidas fortes, ou seja, bebidas alcolicas uma das
regras mais conhecidas.
Nesse contexto, o consumo de cerveja sem lcool, por exemplo, vem crescendo e se
tornando cada vez mais popular. Mas, para alguns membros da Igreja de Jesus Cristo, o uso
desse tipo de bebida seria moralmente equivalente a tomar uma cerveja normal, como
explica Rita, uma de minhas interlocutoras do grupo Open Chat. Para ela, estar em uma festa
43
ou em bar tomando cerveja sem lcool no diferente porque as pessoas no seriam capazes
de diferenciar se o que ela bebe com ou sem lcool.
Uns amigos meus, que tambm so membros da Igreja, foram a minha casa, para
um jantar em que eu comemoraria meu aniversrio, levando com eles uma garrafa
de vinho sem lcool. Eles sabiam que era sem lcool, mas os outros vizinhos no.
Imaginem o que pensaram dos mrmons que no podem beber, com uma garrafa de
vinho na mo. Da se evitar a aparncia do mal.(Rita)
Segundo Douglas (1976, p. 81), no existe uma religio que seja completamente
interna, sem sinais exteriores: tanto na sociedade como na religio, sua manifestao externa
condio de existncia. Essa exteriorizao da religio pode ser vista atravs dos atos de seus
praticantes, neste caso associados a hbitos alimentares. Desse modo, alguns comportamentos
que no seriam julgados repreensveis so tidos como poluidores e perigosos. Assim, atos
errados causariam a ideia de poluio.
A aparncia dos atos tambm seria perigosa, por servir como motivao para aes
no recomendveis. Assim, evitar a aparncia do mal faria com que a pessoa no casse em
tentao, sendo que a atitude contrria poderia desencadear todo um processo que a levaria
a ser enredada pelo mal, segundo Clia, da Ala Fernando Osrio, em Pelotas.
Para evitar a aparncia do mal melhor evitar qualquer coisa que ponha em
dvida sua observncia do mandamento. No fao uso de qualquer um desses
produtos, nem mesmo uso vinho ou outras bebidas alcolicas no feitio de alguns
pratos ou bolos. Quanto mais longe passar da inteno do pecado, melhor. (Flavia)
A alimentao a luta contra a fome e nem sempre essa luta tem sido vitoriosa para a
humanidade (CARNEIRO, 2003). O crescimento demogrfico e sua localizao, a mudana
nas sensibilidades, so fatores que contribuem para a capacidade de se produzir alimentos,
levando a humanidade a perodos de fartura e de escassez.
44
Seguindo esse princpio de tempos de fartura e tempo de escassez, cabe aqui colocar
uma das crenas e mrmon, a do armazenamento de alimentos, roupas e outros artigos
necessrios. Alm dos motivos econmicos, os profetas mrmons ensinam que a preparao
das famlias para tempos difceis importante, e um mandamento de Deus, que vem de
45
Alguns acham que essa prtica est relacionada com a crena do Apocalipse, como
se o armazenamento de alimentos dos mrmons fosse para se prepararem para uma
desgraa iminente ou o fim do mundo. Acho que alguns veem dessa maneira, mas
para mim, simplesmente algo prtico alm de me proporcionar paz de esprito por
estar cumprindo com o que foi pedido. (Bete)
Em uma das aulas, Bete era responsvel por ensinar as tcnicas de como conservar
pepino, cebola e outros legumes, tendo ela prtica por ter trabalhado em uma fabrica de
conservas. Foi ensinado desde a esterilizao dos vidros, escolha e colocao dos legumes,
preparao da salmoura, fechamento e cozimento final, para que se torne uma conserva que,
segundo ela, duraria anos. Foram feitos uma grande quantidade de vidros de conserva:
segundo Bete, cada irm da Sociedade de Socorro ganharia um vidro, para incentivar o
armazenamento.
Em uma conversa mais pessoal, Bete diz saber que muitas pessoas, por estarem em
uma boa fase, vo deixando para depois para fazer o armazenamento. Outras, ainda, no tm
condies de comprar algo a mais no ms. Seu papel, como lder da Sociedade de Socorro da
Ala, cumprir o que o profeta pede.
Em outra aula, foi pedido que as mulheres que fossem participar levassem uma
garrafa pet pequena, pois seria feito algo muito importante. Ao comear a aula, Ana mostra
um cartaz do grupo humanitrio da Igreja chamado Mos que Ajudam. Neste cartaz mostrava
que o objetivo do programa era que os membros realizassem oficinas de armazenamento de
arroz e feijo e depois distribussem para a comunidade o que fora armazenado. Este
programa foi muito divulgado nas mdias e fez com que muitas pessoas conhecessem os
mrmons por esta prtica. Algumas irms j tinham visto algumas reportagens em telejornais,
e se mostraram entusiasmadas. As tcnicas ensinadas por Bete e Mrcia foram
surpreendentemente simples. Dentro de uma garrafa limpa, coloca-se arroz ou feijo,
intercalando com dentes de alho at o seu preenchimento, fecha-se a garrafa normalmente e
pronto. Segundo Mrcia, o arroz dura no mnimo dois anos.
nascimento de sua filha, eles se mudaram para uma casa maior; para sua surpresa, quando foi
realizar a mudana, os carregadores e vizinhos que a ajudavam se espantaram com a
quantidade de garrafas com comida e gua que ela guardava. Segundo ela, aquela situao
estranha foi uma tima oportunidade para explicar o propsito do armazenamento.
Disse a eles que no fazia aquilo porque achava que o mundo ia acabar, mas que
fui ensinada na Igreja a armazenar para o caso de uma necessidade e que acima de
tudo, este conselho tinha vindo de um profeta de Deus. (Mrcia)
4 PRATICANDO A PALAVRA
Isso faz com as pessoas tenham interpretaes diferentes em alguns pontos da lei de
sade. Para conhecer essas diferentes interpretaes, necessrio compreender o contexto em
que elas se apresentam. Alm das diferentes interpretaes, h tambm diferenciaes, por ser
a Palavra de Sabedora considerada tambm uma lei pessoal.
Um ponto importante que, apesar de ser uma regra para todos os membros da
Igreja, caracterizando o grupo, a Palavra de Sabedoria tambm individual. Como?
De acordo com minhas interlocutoras, nem tudo o que faz mal para Maria faz mal
para Ana. Nesse ponto, alimentos que, ainda que permitidos, no faam bem sade fsica
de uma pessoa, passam a fazer parte das proscries individuais. De acordo com Mintz
(2001):
Ela em parte individual, alm das coisas bsicas, como caf, fumo, lcool, existem
pessoas que no podem comer alguma coisa de forma alguma porque passa mal,
ento essa substncia termina fazendo parte da palavra de sabedoria dessa pessoa,
j que faz mal, evitar, ou melhor, nem usar. (Marta)
O Senhor nos deu um mandamento titulando o que no serve para todos como o
exemplo a bebida alcolica, mas pode se considerar algo no individual, eu, por
exemplo, no posso comer salsicha, tenho alergia, ento uma palavra de
sabedoria individual. (Rose)
uma lei para usar com sabedoria e tornar nosso corpo mais saudvel, h
proibies claras como o ch, o caf, as bebidas alcolicas e o fumo, mas qualquer
outra coisa que no esteja nesta lista e claramente lhe faa mal seria uma
desobedincia a essa lei. o caso das drogas ilcitas, elas no esto alistadas em
D&C, mas so claramente destrutivas. (Solange).
52
Esse princpio serve para restries quando h um problema de sade, como, por
exemplo, se uma pessoa diabtica, os alimentos restringidos a ela por um mdico passam a
constar como abstenes na Palavra de Sabedoria. Se causa mal a seu corpo, faz mal para seu
esprito. A parte individual da Palavra de Sabedoria um pacto entre a pessoa e Deus,
cabendo a ela a observncia.
Acho que nenhum bispo vai lhe perguntar se voc comeu um bombom de caf pra
renovar sua recomendao para o templo, mas a pessoa sabe o que faz. O Senhor
sabe e olha para o corao. (Ftima)
Como diz DaMatta (1987, p. 22), cada sociedade define o que comida. E essa
definio permite exprimir e destacar identidades, que podem ser nacionais, regionais ou
locais. Os membros da Igreja de Jesus Cristo esto presentes em quase todo o mundo, sendo
notrio que cada pas ou regio tem identidades culinrias especficas. Assim, as diferenas na
interpretao do que compe as abstenes da Palavra de Sabedoria passam por essa
identidade regional. Um exemplo disso o uso do chimarro por membros que residem no
Rio Grande do Sul.
A bebida chegou a ser proibida pela Igreja Catlica por sua associao com os
ndios, mas a proibio no vingou, por seu consumo se j ento muito difundido. Na regio
das misses, a igreja passou a ser uma das principais produtoras de erva-mate, utilizada como
moeda nos primeiros tempos.
reforando os laos atravs de uma participao em que implica o uso da mesma cuia e da
mesma bomba, em uma partilha (MACIEL, 2007, p. 45).
Entre as mulheres da Ala Fernando Osrio, o chimarro est presente como uma
forma de sociabilidade entre elas. Um exemplo dessa sociabilidade foi percebido em uma
atividade semanal denominada Tarde da Amizade, na qual elas se encontram para realizar
atividades como tric, croch e costura, tendo como finalidade a doao para necessitados do
que confeccionado pelas mulheres. Enquanto participava dessas atividades, pude observar
que uma irm ficava responsvel por trazer o chimarro, enquanto outras traziam biscoitos,
para que fossem compartilhados.
O chimarro pode ainda ser considerado como uma forma de negociao entre os
santos dos ltimos dias e outras pessoas que no seguem as mesmas regras alimentares. Elisa,
uma de minhas interlocutoras, contou que, depois que conheceu a Igreja, suas vizinhas
ficavam sem jeito de convid-la para o tradicional cafezinho, como era costume entre elas,
causando inicialmente certo distanciamento. Buscando manter a proximidade entre elas, o
chimarro se mostrou fundamental. Elisa resolveu convidar suas vizinhas para ir sua casa
para tomar um chimarro, reforando, assim, os laos de sociabilidade.
O ato alimentar, como j visto, universal. Simmel (2004) afirma que esse ato
egosta, na medida em que restrito ao indivduo, j que o que se come no pode ser comido
por outro. Comer acompanhado, porm, coloca o indivduo no grupo, o ato de comer
constitutivo de relaes sociais. A satisfao da mais individual das necessidades torna-se um
meio de criar um grupo, por meio da refeio.
Nessas duas atividades, pde-se observar que as mulheres participantes estavam mais
integradas ao grupo. A comensalidade, como mostra Maciel (2001, p. 150), transforma o ato
alimentar em um acontecimento social. O comer juntos um momento em que h um
reforo na coeso do grupo, partilhando sensaes.
57
As festas juninas foram trazidas para o Brasil pelos colonizadores portugueses, que
adaptaram os festejos do solstcio de vero europeu 31 aos festejos para alguns dos principais
santos catlicos: So Joo, So Pedro e So Paulo. Ao chegarem ao Brasil, tradio
coincidiu com a realizao de rituais com cantos, rezas e muita fartura de comida, em
agradecimento pelas colheitas e coletas e como reforo dos laos de parentesco. Segundo
Rangel (2008), essas coincidncias fizeram com que os festejos juninos tivessem grande
importncia na cultura brasileira. Outro ponto importante a ressaltar a sociabilidade
caracterstica desse festejo. Ainda segundo o autor citado, do perodo colonial at meados do
sculo XX, a maioria da populao brasileira vivia em zonas rurais (at 1950, 70% da populao
brasileira vivia na zona rural; hoje, mais de 70% vive nas cidades), em grupos familiares, e os
festejos eram importantes para a manuteno dos laos de vizinhana e parentesco, por meio
do compadrio. Havia duas formas de formalizar o compadrio: por intermdio do batismo e,
especialmente entre os homens, por meio da fogueira de So Joo.
As comidas tpicas dessa festa foram sendo adaptadas de acordo com a alimentao
regional. So comuns alimentos base de milho, amendoim e batata doce. Em algumas
regies, usa-se tambm a mandioca e o pinho. As bebidas tpicas so o quento ou o vinho
quente.
31
No livro O Ramo de Ouro, James Frazer mostra, a partir de suas pesquisas, a origem das festas do solstcio de
vero para os povos europeus.
58
Ainda em relao festa junina na Igreja, ficou acertado que os homens fariam a
arrumao das barracas; os jovens ficariam responsveis pela decorao e a msica, enquanto
que as mulheres fariam a comida e a bebida para a festa. As mulheres se dividiram em grupos
para organizar a preparao da alimentao. Algumas fariam bolos, outras canjica de milho e
outras se ofereceram para fazer amendoim doce e pipoca. Trariam tudo pronto de casa, menos
a pipoca e as bebidas, que seriam preparadas ali. Outras coisas, como doce de batata-doce,
doce de abbora, bananada e rapadura de amendoim seriam compradas prontas.
No dia da festa, Marta e Tereza chegaram antes para preparar o quento 32, que,
adaptado Palavra de Sabedoria, no poderia conter vinho ou qualquer outra bebida alcolica.
Marta mostrou os ingredientes que trouxe para o preparo: suco de uva, gengibre, cravo, canela
e acar. Ela ento colocou todos os ingredientes em uma grande panela e deixou ferver em
fogo baixo at a hora da festa.
32
No Rio Grande do Sul, o quento, tem como base o vinho, bebida que em outras regies do Brasil conhecida
como vinho quente.
59
5 CONSIDERAES FINAIS
Para os membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias, a comida
est relacionada com as noes de pureza e poluio, como podemos analisar a partir da
abordagem proposta por Mary Douglas (1976), que entende que a compreenso das escolhas
alimentares s pode ocorrer em vista de uma disposio sistemtica de ideias:
(...) qualquer interpretao fragmentria das regras de poluio de uma outra cultura
est destinada a falhar. Pois o nico modo no qual as ideias de poluio fazem
sentido em referncia a uma estrutura total de pensamento. (DOUGLAS, 1976,
p.57)
A percepo, para o grupo estudado, do corpo como sendo o templo do Deus, traz a
noo de pureza corporal. As regras alimentares contidas na Palavra de Sabedoria trariam ao
corpo a pureza necessria para que ele possa ter a companhia do Esprito de Deus. Assim, de
acordo com o que foi mostrado ao longo do trabalho, h uma relao entre o alimento
ingerido e o estado da pessoa que o ingere. Desse modo, a ingesto de certos alimentos faria
com que o corpo se tornasse impuro, portanto, em perigo.
nas atividades e nas festas realizadas pelas mulheres santos dos ltimos dias que se
pode observar que a comida objeto de socializao e coeso do grupo. Nesses momentos, os
60
REFERNCIAS
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A Bblia Sagrada
Princpios do Evangelho