Livro História Da Arte Narrativas Coleções

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histria

da arte:
colees
arquivos
e narrativas

org.
ANA MARIA PIMENTA HOFFMANN
ANGELA BRANDO
FERNANDO GUZMN SCHIAPPACASSE
MACARENA CARROZA SOLAR

1
HISTRIA DA ARTE:
COLEES, ARQUIVOS E NARRATIVAS

Organizadores

ANA MARIA PIMENTA HOFFMANN


ANGELA BRANDO
FERNANDO GUZMN SCHIAPPACASSE
MACARENA CARROZA SOLAR
INSTITUIES ORGANIZADORAS DAS VIII JORNADAS DE HIST-
RIA DA ARTE COLEES, ARQUIVOS E NARRATIVAS:

COMIT CIENTFICO

Andr Tavares | Universidade Federal de So Paulo


Jens Michael Baumgarten | Universidade Federal de So Paulo
Fernando Guzmn | Universidad Adolfo Ibez, Chile
Paola Corti | Universidad Adolfo Ibnez, Chile
Giovanna Capitelli | Universit di Calabria, Itlia

COMIT ORGANIZADOR

Ana Maria Pimenta Hoffmann | Universidade Federal de So Paulo


Angela Brando | Universidade Federal de So Paulo
Elaine Dias | Universidade Federal de So Paulo
Isabel Margarita Mara Alvarado Perales | Museo Historico Nacional, Chile
Raquel Abella | Museo Historico Nacional, Chile
Macarena Carroza | Centro de Restauracin y Estudios Artsticos CREA
Marcela Drien | Universidad Adolfo Ibez, Chile

Apoio:
editora urutau ltda
rua inocncio de oliveira, 411
jardim do lago 12.914-570
bragana paulista-sp

Tel. [ 55 11] 94859 2426


[email protected]

www.editoraurutau.com.br

editores
ana elisa de arruda penteado
tiago fabris rendelli
wladimir vaz

Imagem da capa
Dados Internacionais de Catalogao na
Almeida Jnior (Itu, SP, 1850 - Piracicaba,
Publicao (CIP)19 SP, 1899)
A Pintura (alegoria), 1892 (det.) leo sobre tela, 250 x 125 cm
Nogueira, Andr.
Acervo damanifesto
N778m O Pinacoteca do/ Estado
lenitivo de So Paulo,
Andr Nogueira. Brasil. Transferncia Museu
-- Bragana
Paulista-SP
Paulista, 1947. : Editora Urutau, 2015. 208 p.;
14x19,5 cm
Crdito fotogrfico: Isabella Matheus
ISBN: 978-85-69433-00-2

NOTA
1. PoesiaDE ESCLARECIMENTO:
brasileira. 2. Poesia contempornea. 3. Literatura
brasileira. I. Nogueira, Andr, 1987-. II. Titulo.
A reviso dos textos e a autorizao para a publicao das imagens so de
responsabilidade exclusiva dos autores.CDD: B869.1
CDU: 82-1/9

Dados Internacionais de Catalogao


na Publicao (CIP)

Hoffmann, Ana Maria Pimenta; Brando,


Angela; Schiappacasse,Fernando Guzmn e Solar,
Macarena
Histria da arte: colees, arquivos e narrativas
/ vrios autores.Bragana Paulista-SP : Editora
Urutau, 2015. 584 p.;

ISBN: 978-85-69433-07-1

1. Histria. 2.Histria da arte. I. vrios autores. II.


Titulo.
Qualquer pessoa remotamente interessada na poltica da civilizao
saber que os museus so os repositrios dos artigos dos quais a Civilizao
Ocidental deriva a riqueza do seu conhecimento, que lhe permite dominar
o mundo. Da mesma forma, quando um colecionador autntico, de cujos
esforos dependem esses museus, rene seus primeiros objetos, quase nunca
se pergunta qual ser o destino final de seu tesouro. Quando os primeiros
objetos coletados chegaram s suas mos, os primeiros colecionadores
genunos que mais tarde viriam a expor, organizar e catalogar suas
colees (nos primeiros catlogos, que foram as primeiras enciclopdias)
nunca reconheciam o valor real desses artigos.

Orhan Pamuk. O museu da inocncia.


SUMRIO

13 | APRESENTAO

COLECIONISMOS

17 | DEL GUSTO PRIVADO A LA INSTITUCIONALIDAD ESTATAL.


LAS COLECCIONES PRIVADAS CHILENAS EN EL ESPACIO PBLICO
DEL MUSEO NACIONAL DE BELLAS ARTES

Juan Manuel Martinez Silva

33 | O COLECCIONADOR COMO NOVO PRNCIPE

Jos Alberto Gomes Machado

47 | JACOB BURCKHARDT E OS COLECIONADORES NO RENASCIMENTO


ITALIANO

Cssio Fernandes

61 | COLECIONISMOS: ENTRE JAPO E OCIDENTE.

Michiko Okano

73 | COLECCIONISMO Y SECULARIZACIN EN CHILE DURANTE


EL SIGLO XIX

Marcela Drien

83 | AS DESCONHECIDAS COLEES DE ANTONIO ALVES VILLARES DA


SILVA:ENGENHARIA E COLECIONISMO EM SO PAULO NA PRIMEIRA
METADE DO SCULOXX

Ana Paula Nascimento


COLEES E MUSEUS

101 | GESTA MEMORABLE DEL DESCUBRIMIENTO DE AMERICA?


DISCURSOS Y NARRATIVAS EN LA FUNDACIN DEL MUSEO DE
AMRICA DE MADRID

Luis Javier Cuesta Hernndez.

113 | O ACERVO DO MASP COMO POSSIBILIDADE DE ENSINO,


PESQUISA E ANLISE DE FORMAO DA COLEO.
PINTURAS ITALIANAS SCULOS XIII-XV

Flavia Galli Tatsch

123 | O MANEIRISMO E O BARROCO NA PINTURA RETRATSTICA DA


COLEO EVA KLABIN

Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho e Ruth Levy

143 | AUGUSTO DHALMAR Y LA COLECCIN DE ARTE CHILENO DEL


MUSEO DE BELLAS ARTES DE VALPARASO

Amalia Cross

159 | O LUGAR DAS COLEES MUSEOLGICAS NA DEFINIO DE UM


PATRIMNIO NO IPHAN

Eduardo Augusto Costa

173 | IMAGEN, MATERIA Y MEMORIA: UN ACERCAMIENTO A LA


COLECCIN DE ESTAMPITAS RELIGIOSAS DEL MUSEO
HISTRICO NACIONAL

Hugo Rueda
185 | COLEO DE DESENHOS DA PRINCESA ISABEL NO MUSEU
IMPERIAL DE PETRPOLIS E NO MUSEU MARIANO PROCPIO:
EXPRESSO DE UM SENTIMENTO RELIGIOSO.

Maraliz de Castro Vieira Christo


201 | A PROPSITO DA COLEO DO MUSEU NACIONAL DE BELAS
ARTES DO RIO DE JANEIRO: REFLEXES SOBRE A ESCULTURA
BRASILEIRA OITOCENTISTA

Alberto Martn Chilln

213 | VISCONTI NOS ACERVOS MUSEOLGICOS DO BRASIL

Mirian Nogueira Seraphin

231 | APONTAMENTOS SOBRE O GNERO DO RETRATO, O


COLECIONISMO E A PRESENA DE ARTISTAS ESTRANGEIROS
NAS EXPOSIES GERAIS DA ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS
ARTES BRASILEIRA

Elaine Dias

239 | CICCARELLI: PAISAGEM EM CONTRADIO

Valeria Esteves e Samuel Quiroga

259 | O COLECIONADOR PORTUGUS LUIZ FERNANDES E A DOAO


DE OBRAS PARA O ACERVO DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS
ARTES DO RIO DE JANEIRO.

Maria do Carmo Couto da Silva

269 | A IMPORTNCIA DE AGREMIAES ARTSTICAS E DO


COLECIONISMO DE PORTUGAL NA CONSTITUIO DA COLEO
DE ARTE PORTUGUESA DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES
DO RIO DE JANEIRO

Arthur Valle
281 | AS OBRAS ADQUIRIDAS PELA ESCOLA NACIONAL DE BELAS
ARTES NOS ANOS APS A REFORMA DE 1890, HOJE
PERTENCENTES AO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES

Camila Dazzi
293 | LA EXPOSICIN INTERNACIONAL DE BELLAS ARTES DE 1910:
LA FORMACIN DE UNA COLECCIN Y SU LEGADO

Carlos Ignacio Corso Laos

305 | UN CALEIDOSCOPIO DE RECUERDOS. APUNTES A PROPSITO


DE LOS LBUMES PERSONALES DEL MSICO ANBAL ARACENA
INFANTA (1881-1951).

Carmen Pea Fuenzalida

321 | PALOTES

Justo Pastor Mellado

EXPOSIES E NARRATIVAS

LECCIONES DE CIVILIZACIN: LA ILUSTRADA EXHIBICIN DE


337 |
LA PRIMERA MISA EN BRASILYLA FUNDACIN DE SANTIAGO

Patricia Herrera

355 | YOLANDA PENTEADO DA CAIPIRINHA DE LEME


ORGANIZAO DAS BIENAIS

Marcos Mantoan

365 | ALDEMIR MARTINS: O CANGAO, O JAGUNO E A IMAGEM DO


SERTO

Ana Hoffmann
377 | OS SALES NACIONAIS DE ARTE EM BELO HORIZONTE NA
DCADA DE 1980

Ana Luiza Teixeira Neves

ARQUIVOS E FONTES

393 | ITABIRISMO: APONTAMENTOS SOBRE O ACERVO DE CORNLIO


PENNA NO ARQUIVO-MUSEU DE LITERATURA BRASILEIRA/CASA
DE RUI BARBOSA

Andr Tavares

407 | ANACRONISMO NO USO DE FONTES HISTORIOGRFICAS NA


NATIONAL GALLERY DE LONDRES

Giordana Rocha Nassetti

415 | DO PECADO DA GULA AO DOUCEUR DE VIVRE: FONTES ESCRITAS


PARA UMA NATUREZA-MORTA

Angela Brando

431 | RELATOS SOBRE EL ARTE MODERNO EN LAS BIBLIOTECAS


ARGENTINAS. PISTAS HALLADAS EN EL ARCHIVO Y LA
BIBLIOTECA DE EDGARDO ANTONIO VIGO

Berenice Gustavino

449 | BIENAIS DE SO PAULO: ARQUIVO, MEMRIA E ESQUECIMENTO

Renata Zago
ARTE SACRA: NARRATIVAS E COLEES

449 | MECENAZGO DE MONSEOR EYZAGUIRRE Y LA REFORMA DEL


ARTE SAGRADO EN CHILE

Fernando Guzmn e Valentina Ripamonti

463 | DA APRESENTAO ICNICA REPRESENTAO HISTRICA DE


SO FRANCISCO DE ASSIS

Sintia Cunha

473 | LA PARROQUIA COMO ACERBO ARTSTICO RELIGIOSO. UN


CASO: LA SANTA CRUZ DE TINGUIRIRICA Y SU CRISTO
CRUCIFICADO

Maria Jos Castillo

489 | EL PRESTIGIO DE LOS ARTISTAS JESUITAS ALEMANES EN CHILE


Y EL SILENCIO FRENTE AL POSIBLE ORIGEN BRASILERO DE
ALGUNAS OBRAS. EL CASO DE LA ESCULTURA DE SAN JOS DE
LA COLECCIN MARN ESTVEZ

Marisol Richter e Fernando Guzmn

497 | ARTEFATOS RELIGOSOS SETECENTISTAS: REFLEXES A PARTIR


DE ACERVOS PAULISTAS

Silveli Maria de Toledo Russo

NARRATIVAS, HISTORIOGRAFIA E MEMRIA

511 | CONSTRUES BALTICAS: HISTORIOGRAFIA DO BAL NO


BRASIL E PERCEPES CONTEMPORNEAS

Rousejanny da Silva Ferreira


537 | O ARQUIVO MARTA ROSSETTI BATISTA: INDCIOS DE UM FAZER
HISTORIOGRFICO

Marina Cerchiaro, Roberta Valin e Morgana Viana

549 | NARRATIVA, CINE E HISTORIA

Yanet Aguilera

561 | O SEGREDO DOS SEUS OLHOS: CORES, TEXTURAS E


TESSITURAS DA MEMRIA

Marina Soler Jorge


APRESENTAO

A coletnea de textos que o leitor pode ver agora deslizar diante


dos olhos, intitulada Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas, o
resultado da seleo de trabalhos produzidos a partir de uma provocao
dirigida a diversos pesquisadores. Convidados a refletir sobre as colees
artsticas em suas diferentes concepes, dos tesouros medievais s cmaras
de maravilhas, do colecionismo privado aos acervos museolgicos, em
diferentes pocas e lugares; chamados refletir sobre os arquivos como
abrigos da trama de documentao e fontes escritas, na qual se enredam as
obras de arte, e sobre a escrita mesma da histria da arte, como narrativa
ou negao da narrativa, e os autores generosamente enviaram seus escritos
para apreciao.
A proposta de fundo, portanto, era discutir a disciplina da histria
da arte, a historiografia, o fazer e as tarefas do historiador da arte e das
instituies que abrigam o fenmeno artstico, sua materialidade e sua
textualidade. oportuno lembrar as palavras de Enrico Castelnuovo, sobre
a complexidade dos ofcios da histria da arte:

(...) existem vrios historiadores da arte que exercem funes


diferentes, trabalham nos museus, ocupam-se da tutela dos bens
artsticos num territrio particular, ensinam, so peritos cuja
competncia procurada pelos colecionadores, pelos marchands,
escrevem nos jornais, organizam exposies e assim por diante. Entre
eles pode haver diferenas, vrios modos de trabalhar, que se devem,
entre outras coisas, s tarefas que cada qual escolhe: existem os que
catalogam, os que acompanham um restauro, os que ensinam, os que
recolhem materiais para uma monografia sobre um artista, os que
trabalham numa editora, os que fazem crtica para jornal, e por a vai.
Pode acontecer que aquele que trabalha num museu ou numa rea
de administrao e tem um contato quotidiano, at mesmo fsico,
com as obras de arte, ironize a estreiteza do universitrio, estudioso
de gabinete, e que este por sua vez acuse o primeiro de empirismo ou

13
de carecer de uma problemtica de conjunto, mas trata-se de coisa
de pouca monta, e no de diferentes concepes da disciplina.1

O desejo, ao reunir os textos, era o de criar um dilogo em torno da


complexidade da histria da arte, a partir de algumas reas de especial
interesse comum: mecenato, colecionismo, museus, exposies, a arte e
os documentos escritos a ela relacionados, a produo historiogrfica e a
crtica de arte.
Sem disfarar a preferncia por trabalhos que atendessem compreenso
das obras, em algum aspecto de sua materialidade, buscou-se, neste livro,
reunir respostas trazidas pelos pesquisadores acerca das instituies, das
colees, colecionismos e colecionadores, dos museus, exposies e arquivos
relacionados s artes e de como se processa a transformao da imagem em
texto, ou, dito de outro modo: como a arte se acomoda na escrita, em forma
de documento, nos arquivos? Como a arte se faz escrita pelos caminhos da
biografia, da literatura, da crtica de arte, da historiografia? At que ponto
a produo de narrativas sobre a arte influenciou a atividade artstica e a
histria da arte ou a compreenso que delas se tem?
O material que aqui apresentamos em forma de livro faz parte, em
sua grande maioria, das apresentaes e debates ocorridos durante as
VIII Jornadas de Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas, na
Pinacoteca do Estado de So Paulo, no calor de novembro de 2015.
Sobre as Jornadas de Histria da Arte cabem algumas explicaes.
O Centro de Restauracin Crea, o Museo Histrico Nacional e a Universidad
Adolfo Ibnez, importantes instituies chilenas com sede em Santiago,
propuseram-se, desde 2003, a somar esforos para promover a pesquisa,
reflexo e difuso no mbito da Histria da Arte, fomentando, desde
ento, reunies de especialistas e publicao de textos especializados.
Como materializao deste propsito geral surgiram as Jornadas de Historia
del Arte, cujo principal objetivo vem sendo o de gerar uma instncia de
encontro e discusso para aqueles que se dedicam ao estudo da arte a partir
de diferentes disciplinas, recolhendo variadas contribuies em torno de
uma unidade temtica. A incorporao da Universidade Federal de So
Paulo como coorganizadora, desde as VII Jornadas de Histria del Arte em

1
CASTELNUOVO, Enrico. De que estamos falando quando falamos em histria da arte?
In Retrato e Sociedade na Arte Italiana. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 125.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

14
Valparaso, Chile, em 2014, permitiu consolidar o que havia sido realizado
at ento, projet-las internacionalmente e somar novos desafios.
Com um ritmo que at ento mantinha-se bianual, as instituies
envolvidas vinham convocando especialistas da Amrica e da Europa para
apresentar comunicaes cientficas e discutir em torno de um problema. As
ltimas Jornadas se realizaram no ano de 2012, em Valparaso, Chile, sob
o tema: Vnculos artsticos entre Itlia e Amrica e, em 2014, tambm em
Valparaso, com o tema: O Sistema das Artes. Em ambas oportunidades
se apresentaram comunicaes com a participao de especialistas da
Argentina, Brasil, Colmbia, Uruguai, Chile, Itlia, Inglaterra e Mxico. A
partir de 2015, as Jornadas passam a ser realizadas anualmente, alternando-
se como sedes do encontro as cidades de So Paulo e Valparaso. Em nossa
primeira edio brasileira das Jornadas de Histria da Arte, as apresentaes
que resultaram na publicao deste livro conta, igualmente, com textos
provenientes de diferentes pases de Amrica Latina.
O volume est dividido em seis grande temas entrelaados:
colecionismos; colees e museus; exposies e narrativas; arquivos e fontes;
arte sacra: narrativas e colees e, finalmente, narrativas, historiografia e
memria. Cada parte composta por uma seleo de textos interligados
pela mesma temtica. Colecionismos abre a publicao por apresentar de
modo mais geral a ideia e a concepo do que so as colees, como so ou
qual o destino das colees de objetos artsticos. A segunda parte Colees
e Museus discute, de forma mais especfica, a formao dos museus a
partir de colees privadas, os acervos dos museus e seus significados. O
tema Exposies e Narrativas rene textos que problematizam aspectos e
sentidos das exposies de arte, como forma de construo de narrativas e,
de que modo as obras ou as colees de arte assumem formas temporrias.
J o quarto grupo temtico, Arquivos e Fontes, traz reflexes sobre os
documentos escritos e suas possibilidades de arquivamento, das quais o
historiador da arte procura extrair suas narrativas. O quinto bloco aborda o
tema mais especfico Arte Sacra: narrativas e colees para tratar de como
as obras de arte religiosa estabeleceram formas peculiares de concepo
de narrativas, de mecenato e de apropriao por meio do colecionismo. A
coletnea encerra-se com um grupo de reflexes sobre as construes de
narrativas por meio da historiografia e do cinema.
Aqui leremos, finalmente, o resultado textual das VIII Jornadas de
Histria da Arte de So Paulo, de 2015 tanto daquilo que sonhamos

Apresentao

15
quanto do que foi de fato possvel realizar, o que nos faz, de uma forma ou
de outra, fortalecer o vnculo entre as instituies chilenas e o Programa de
Ps-Graduao em Histria da Arte, junto ao Departamento de Histria
da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade
Federal de So Paulo.

Guarulhos, novembro de 2015.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

16
colecionismo

Del gusto privado a la institucionalidad estatal.


Las colecciones privadas chilenas en el espacio pblico
del Museo Nacional de Bellas Artes.

Juan Manuel Martnez


Historiador del Arte
Curador e investigador independiente

Del gusto privado a la institucionalidad estatal. Las colecciones priva-


das chilenas en el espacio pblico del Museo Nacional de Bellas Artes.1

Los netsuke no pueden circular desprotegidos por un saln o un estu-


dio, se pierden, se caen, se ensucian, se astillan. Tienen que estar a recaudo,
de preferencia con otros bibelots. De aqu la importancia de las vitrinas. Y,
en mi viaje, haca los netsuke, esas cajas de cristal (vitrinas de Museos), me
empiezan a intrigar cada vez ms.
Las vitrinas existen para que veamos los objetos sin que podamos to-
carlos; enmarcan las cosas, las suspenden, tientan mediante la distancia.
Pero, al contrario que la caja de cristal del museo, la vitrina es para
ser abierta. Y el momento en que la puerta de cristal se abre, el ojo elige,
la mano se extiende y retira, en un momento de seduccin, de encuentro
elctrico entre esa mano y el objeto.2
De esta forma el escritor britnico Edmund de Waal, en su notable y
apasionante novela-ensayo La liebre con ojos de mbar, una herencia oculta
1
Esta presentacin indita es parte de una reflexin presentada por el autor, en el da In-
ternacional de los Museos, celebrado en el Museo Nacional de Bellas Artes el 16 de mayo
del 2014 y de algunos aspectos del proyecto de investigacin: Del gusto privado a la
institucionalidad estatal. La coleccin lvarez Urquieta en el espacio pblico del Museo
Nacional de Bellas Artes. apoyado por el Fondo de Apoyo a la Investigacin Patrimonial
de la Direccin de Bibliotecas, Archivos y Museos, en la versin del ao 2014, cuyo autor
es co-investigador. Se agradece el apoyo prestado por Marianne Wacquez, Investigadora
principal de dicho proyecto.
2
DE WAAL: pg..78.

17
explica el compulsivo deseo de un coleccionista por atesorar y poseer los
objetos que finalmente componen su coleccin.
No es una ancdota el comenzar citando esta experiencia, que expli-
ca la diferencia entre la vitrina o escaparate de un espacio privado, con la
vitrina o caja de vidrio exhibidor de un museo en un espacio pblico. La
historia ha demostrado que gran parte de las colecciones se han originado
en un espacio privado, las que posteriormente han transitado a uno pblico,
como un destino inherente de gran parte de las colecciones. Fue precisa-
mente al comienzo de la edad moderna, que en la esfera privada se asent
la nocin de la coleccin. La kunstkammer identificada muchas veces con el
polvoriento gabinete de curiosidades, donde los objetos y cada uno de ellos,
fue singularizado precisamente por su propia curiosidad.
Es la curiosidad, como gesto, la que ha movido a los coleccionistas a
poseer y atesorar objetos que representan belleza, poder, estatus o simple-
mente placer y deleite al contemplarlos.
La constitucin de las colecciones ha sido un proceso gradual. En pri-
mer lugar ligadas al poder real y religioso, donde sirvieron como expresin
de un dominio ulico terrenal o espiritual, convirtindose en una distincin
y marca social.
El ejercicio del coleccionar nos remite irremediablemente al pasado,
en este sentido el coleccionismo solo puede comenzar cuando el pasado
asume una forma coleccionable, definicin que se funda en la desarraigada
abstraccin del objeto respecto al pasado. Este desarraigo se explica, una
vez perdida la vida del objeto en su contexto original, pasando a sumir el
poder de un espectro, el objeto en una coleccin brilla por la mortandad del
pasado.3
Un punto de inflexin lo otorg la importancia del coleccionista y
como este construye la valoracin de su coleccin. Claramente es la curio-
sidad, como gesto, la que ha movido a los coleccionistas a poseer y atesorar
objetos que representan belleza, poder, estatus o simplemente placer y de-
leite al contemplarlos. Ya lo explica en detalle en la primera mitad del siglo
XX el filsofo alemn Walter Benjamin en su Ich packe meine Bibliorthek
aus (Desembalo mi biblioteca):

3
MALEUVRE: pg. 280.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

18
El ms profundo embeleso del coleccionista es el de incluir lo indi-
vidual en su crculo de poder, donde se queda inmvil mientras an
lo atraviesa el ltimo escalofro el escalofro de ser adquirido- .
Todo lo que se ha recordado y pensado, todo lo que se ha hecho
consciente, se convierte en zcalo, en marco, en plinto y en cerrojo de
su posesin. La poca, el paisaje, el oficio y el propietario de los que
procede se concentran, para el autntico coleccionista, en cada una
de sus posesiones para formar una enciclopedia mgica cuya esencia
es el destino de su objeto.4

En Occidente y con el desarrollo de las monarquas en la poca moder-


na, las colecciones en palacios cobraron un nuevo significado, estas sirvieron
como emblemas de los gobernantes y sustento no solo de sus riquezas o
poder temporal, sino de su conocimiento, sensibilidad y placer por la vida.
Un cambio fundamental lo dio la Revolucin Francesa y el comienzo
del ciclo de la fundacin de los grandes museos en Europa y posteriormen-
te en Amrica, abriendo las puertas de las colecciones al gran pblico.
El lugar ideal donde las colecciones se depositaron en la poca moder-
na fueron los museos. El museo proporciona un lugar del distanciamiento
entre el sujeto y el objeto. Por ello las obras de arte parecen en el museo
distante, alejadas, extraas, por sobre todo intocables. Es as que el museo
proporciona un ejemplo de un ojo contemplador en un mundo de objetos
inalterados por la presencia humana. 5
Ya en el siglo XIX, especialmente en Europa y los Estados Unidos de
Amrica, la importancia del coleccionista fue clave. En este sentido los mu-
seos fueron especialmente un vehculo de gran inters por parte del poder,
ya que sus colecciones se podan constituir como mundos simblicos que
facilitarn la comprensin de hombre y su medio, es as que:
Los museos satisfacan las necesidades de una historia y una mitologa
nacionales, sobre todo porque las piezas expuestas podan organizarse una
y otra vez para acomodarse a las ortodoxias dominantes.6
En este sentido el museo fue la va ms evidente y el mbito propicio,
donde se gener la transformacin de colecciones o museo privados en algo
pblico. El paso del propietario aristocrtico a la administracin profesional
4
Traducido y citado en BLOM: pg. 273.
5
MALEUVRE, Op. Cit.: pg. 210.
6
BLOM, Op. Cit.: pg. 148.

Juan Manuel Martnez

19
y, finalmente, a la propiedad estatal reflejaron un proceso que tuvo lugar en
toda Europa y tiene su correlato en el establecimiento del estado moderno:

Los museos eran empresas nacionales y tenan que desempear un


papel en la formacin y el perfeccionamiento del pas.7

En esto radica la importancia de los relatos que se generaron y se ge-


neran a partir de las colecciones de los museos, ya que no son solo el acopio
informe de objetos. Toda coleccin se debe a una cuidadosa seleccin cu-
yas motivaciones residen en visiones de mundo y evidentemente en gustos
personales permeados por el medio social especifico. Por esta razn en el
Museo; La nacin pas a ser la vestal legtima de la memoria y de las ruinas
del pasado.8
En el caso chileno el Museo estatal que se fund para conservar, educar
y difundir el arte nacional, fue el Museo Nacional de Bellas Artes. Creado
en 1880, en parte de las dependencias del nuevo edificio del Congreso Na-
cional en Santiago,9 Para su formacin el gobierno haba creado el Consejo
de Bellas Artes, institucin que organiz el Museo y la que se hizo cargo
de reunir obras artsticas en poder del estado chileno, como tambin de
adquirir las primeras piezas, conformando una primera coleccin de ciento
cuarenta obras.
Esto fue un punto de partida en la formacin de la coleccin del Mu-
seo Nacional de Bellas Artes. Su gestin inicial estuvo a cargo del escultor
Jos Miguel Blanco, apoyado por el coronel Marcos Maturana, este ltimo
un gran coleccionista de pintura, quienes preocupados por la dispersin del
patrimonio artstico chileno y con el apoyo del gobierno, lograron reunir las
primeras obras de artistas chilenos y extranjeros que permitieron inaugurar
el Museo Nacional de Pinturas el 18 de septiembre de 1880.
La creacin de un Museo estatal de arte, se debi entre otras aristas

7
BLOM, Op. Cit.: pg. 164.
8
MALEUVRE, Op. Cit: pg. 19.
9
El Palacio del Congreso Nacional se realiz basndose en los planos del arquitecto francs
Claude Franoise Brunet de Baines, contratado por el gobierno chileno en 1848. Brunet de
Baines falleci en 1855, asumiendo el encargo el Lucien Hnault en 1857. Solo en 1870 se
continuaron las obras, ahora bajo el arquitecto chileno Manuel Aldunate, pero quien finaliz
las obras fue el arquitecto italiano Eusebio Chelli, inaugurndose bajo la administracin del
Presidente Federico Errzuriz Zaartu el 1 de junio de 1876.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

20
a la instalacin de un mercado del arte, dinamizado por salones oficiales
y privados desde mediados de siglo. La elite nacional, compuesta de ricos
terratenientes y por una burguesa comercial en ascenso, requera del arte
como un elemento suntuario y de distincin social. Un ejemplo de ello nos
lo entrega en un texto irnico Vicente Grez:

Las habitaciones de M. Adolfo G. eran verdaderos museos de arte.


Las murallas estaban cubierta de pintura al leo, de buenos i malos
autores, las buenas eran copias, las malas orijinales; veanse tambin
acuarelas, spias, grabados, daguerrotipos, fotografas, dibujos a la-
pluma i al lpiz atribuidos a celebridades. Bronces que representaban
a Fausto, 10
Ante un viaje del hipottico personaje, se produjo la liquidacin de su
coleccin:

Los salones de M.Adolfo G. fueron abiertos al mundo elegante


i la venta principi. En un solo da las habitaciones quedaron va-
cas. Todo se vendi a precios fabulosamente bajos; fue aquello una
quemazn. Un Ticiano original, se compr en setecientos pesos, un
Rembrandt en quinientos, un cuadro de batalla de Horacio Vernet,
que tena el mrito de ser la tela ms pequea que haba pintado ese
artista, se vendi en ochocientos, i as sucesivamente. 11

Pero es sin duda Benjamn Vicua Mackenna, que en 1858, dio cuen-
ta de manera ms ntida la importancia de la pintura en el pas, desde una
mirada de la elite, la que determinaba los gustos, lo que se poda considerar
artstico, como tambin la funcionalidad del social del arte:

Pero es preciso tambin que el pueblo, los artesanos, los rotos, las
beatas, los chiquillos de la calle se inicien de algn modo en el mgi-
co atractivo que el arte posee. La Sociedad de Instruccin Primaria
abrir en breves sus salones por un precio nfimo, y entonces la mu-
chedumbre asistir por primera vez a un espectculo desconocido,
pero que herir vivamente sus sentidos y le dejar un recuerdo, me-
nos grato tal vez a su espritu que la luz de azufre de los voladores y
de los fuegos de plaza, pero que ser siempre una semilla civilizadora
arrojada en su inteligencia. Hemos observado que los peones y car-
10
GREZ: pgs..121-122
11
Ibid: pgs..121-122

Juan Manuel Martnez

21
gadores ocupados del acarreo de los cuadros, nicos hombres del
pueblo que hasta hoy han visitado la exposicin contemplaban con
singular encanto muchos de los ms bellos modelos de los salones.12

Fue precisamente la funcionalidad del arte lo que estuvo al centro de


variadas discusiones en el contexto de la fundacin de la repblica poste-
riormente a que Chile lograr su independencia del Imperio espaol. Si
bien para la elite, el arte era un consumo suntuario de distincin social, para
el pueblo deba ser un elemento de formacin y de cohesin social.
Con una naciente Repblica en estado de organizacin, se hizo nece-
sario que la educacin artstica fuera de carcter oficial por parte del Es-
tado. Este fue el contexto en que se gener la Academia de Pintura, creada
bajo el Gobierno de Manuel Bulnes en 1849, cuyo primer director fue el
pintor italiano Alessandro Ciccarelli. La formacin de la Academia de Pin-
tura y la accin formativa de los primeros maestros, Ciccarelli y Kirchbach,
signific la construccin de las bases de una institucionalidad instructiva
en lo artstico que marc a los pintores nacionales del siglo XIX. Sin duda,
la Academia fue la primera impulsora de la visualidad como un elemento
pedaggico.13
Este impulso de la Academia, produjo un importante acervo de obras
realizadas tanto por los artistas egresados, como por aquellos que obtenan
becas de perfeccionamiento en el exterior, cuyas obras deban ser enviadas a
los profesores de la Academia para que stos evaluaran su perfeccionamien-
to. Profesores europeos que enseaban un tipo de arte destinado a satisfacer
la demanda social de la burguesa o del poder poltico, lo que se acrecent
por un circuito del mercado del arte cuya finalidad era la satisfaccin del
coleccionista y del encargo privado, as como del estatal.14 En este proceso,
entre viajes al extranjero, benefactores particulares donaban copias y obras
originales al Estado, las que eran distribuidas en los edificios pblicos.
En la historia cultural de Chile el coleccionismo de arte, ha sido un pi-
lar fundamental en su desarrollo histrico. Este supera un tema de carcter
personal de un artista o un perodo determinado, convirtindose con el
tiempo en una memoria colectiva de una nacin, un elemento central de la

12
VICUA MACKENNA: pgs..430-431.
13
MARTNEZ: pg. 70.
14
MARTNEZ: pg. 69

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

22
historia de un arte nacional. Este proceso configura un sistema de las artes,
con comitentes y un mercado especifico. 15 Es precisamente que el coleccio-
nista de arte, se constituy en una pieza fundamental de este engranaje del
sistema de las artes en Chile en la segunda mitad del siglo XIX.
En el catlogo de la exposicin de pinturas de 1877, en el Palacio del
Congreso Nacional,16 las obras exhibidas en gran parte pertenecan a colec-
ciones de privados, constituyndose en una larga galera, que se ordenaba
en los diferentes salones del recin inaugurado palacio legislativo. La lista
de los coleccionistas era extensa, entre los cuales se encontraban nombres
como: Celerino Pereira, Jacinto Nuez, Enrique Cood, Carlos Antnez,
Santiago Garca Mieres, Ramn Balmaceda, Mara Ignacia Tocornal, Re-
caredo Ossa, Jos Toms Urmeneta, Vctor Aldunate Carrera, Gonzalo
Bulnes, Guillermo Ovalle, ngel Custodio Gallo, Eduvges Gonzlez de
Antnez, Augusto Orrego, Coronel Marcos Maturana, Manuel Amun-
tegui, Giovanni Mochi, Jos Miguel Vldes de la Carrera, Domingo Toro
Herrera, Enrique Sanfuentes, Emeterio Goyenechea, Eduardo Sve, dueo
de un Corot y del acaudalado Claudio Vicua, propietario de uno de los
palacios ms suntuosos y exticos de Santiago en ese entonces. La lista
continua y las obras exhibidas en esa ocasin representaban el gusto de la
poca, pintura de paisaje, bodegones, pintura de historia en sus diferentes
versiones; religiosa mitolgica y de hechos histricos, como tambin retra-
tos y copias.
Esta exhibicin y los salones, como las exhibiciones de arte en las ex-
posiciones internacionales, fueron el punto de partida en la formacin de
la coleccin del Museo Nacional de Bellas Artes. Patrimonio que fue in-
crementado con donaciones y compras a coleccionistas privados. Un paso
importante fue el traslad en 1887 del Museo Nacional de Pinturas al Par-
tenn de la Quinta Normal, tomando el nombre de Museo de Bellas Artes.
En 1885, la Sociedad Unin Artstica organizada por Pedro Lira
construyo el edificio de el Partenn, para celebrar exposiciones anuales, pos-
teriormente en 1887 el edificio fue comprado por el Gobierno de Chile, a
fin de instalar ah el museo de pinturas.
En diferentes ciclos, el Museo Nacional de Bellas Artes, comenz a
estructurar su coleccin en funcin de colecciones privadas, mediante do-

15
CORTES: pg. 199.
16
CATLOGO DE PINTURAS, 1877.

Juan Manuel Martnez

23
naciones, legados y compras. Esto correspondi a los objetivos del Museo;
el enriquecimiento del patrimonio nacional y el cumplimiento de un ob-
jetivo educativo. Lo que implicaba una construccin cultural por parte, en
este caso, del Estado y de los grupos dirigentes.
Con las celebraciones del Centenario de la Republica en 1910 y la
inauguracin del Palacio de Bellas Artes en el Parque Forestal, pinturas
y esculturas tuvieron finalmente un domicilio conocido y la coleccin se
ampli con la adquisicin de obras provenientes del extranjero, como de
donaciones y legados. Crecimiento que se verific posteriormente, con la
inclusin en el acervo del Museo de las colecciones: Wittgenstein, Santia-
go Ossa Armstrong e Ismael Valds, entre otras.

En este contexto es pertinente citar dos ejemplos de este fenmeno de


transito de colecciones entre la esfera privada a la pblica, en el ejercicio de
la integracin de una coleccin al Museo Nacional de Bellas Artes.
El 8 de julio de 1910, falleci Eusebio Lillo y Robles, quien fuera un
destacado poeta y por lo dems autor del Himno Nacional, dejando en
su testamento su coleccin de pintura al Museo Nacional de Bellas Artes:
(Fig. 1)
6 Encargo a mis albaceas que entreguen a la Biblioteca Nacional los
libros de mi pertenencia y al Museo de Bellas Artes mi galera de pinturas,
despus que don Vicente Reyes haya elegido los cuatro cuadros que fueren
de su agrado.
9 Nombro albacea y tenedor de mis bienes a don Vicente Reyes y en
segundo lugar a don Elas Lillo.17
Legado que no estuvo exento de polmica, ya que la Comisin de Be-
llas Artes no quiso recibir en su totalidad dicha coleccin, que contaba de
124 obras. El conflicto fue seguido por la prensa de la poca. El Mercurio
de Santiago inform que el 15 de diciembre de 1910, lo herederos pusie-
ron a disposicin del Museo la coleccin para su seleccin debido a que
el Museo estaba facultado legalmente para aceptar o rechazar donaciones.
Nuevamente, El Mercurio inform que el 28 de julio de 1911, el Museo
de Bellas Artes solo acept 15 obras, meses despus el 20 de noviembre

17
SILVA: pg.147.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

24
del mismo ao el peridico daba cuenta que haba aceptado otras 20 ms.18
Finalmente, en 1911 se recibi la totalidad de las obra, una parte de ella
fue exhibida y la otra almacenada o enviada a la Escuela de Bellas Artes.
En 1929, una parte de esta coleccin fue enviada a Talca, para formar parte
de la coleccin fundacional del Museo OHigginiano y Bellas Artes de la
ciudad.
Muchas de estas obras fueron compradas presumiblemente por Euse-
bio Lillo en Europa, y eran parte de su coleccin que posea en su casa de
la calle Chacabuco en Santiago, que se convirti en un centro de reunin
social e intelectual a comienzos del siglo XX. En un reportaje realizado en
1905 se describa de esta manera su casa: (Fig. 2)

Recorrimos todava otras salas todas llenas de telas valiosos, cuadros


de escuela holandesa, italianos de la escuela de Tipolo, franceses
modernos, espaoles discpulos de Fortuny y algunos chilenos, entre
los cuales recordamos La Perla del Mercader, obra maestra de
Valenzuela Puelma.19

Eusebio Lillo fue uno de los integrantes de la comisin que se cre en


1887 para la formacin del Museo de Bellas Artes en el Partenn. La elec-
cin de Lillo, se debi a que era de conocimiento pblico su aficin por el
arte y su quehacer como coleccionista que alimentaba su galera de pintura.
Tambin fue conocido en crculos sociales de Santiago, al asesorar a Luis
Cousio en el alhajamiento de su palacio en la calle Dieciocho. Segn
Ren Silva Castro, Lillo posea el gusto necesario para la formacin de
una galera pblica. La imagen patriarcal de Lillo trasuntaba en su gusto
de coleccionista, como se afirm en quizs una de sus ltimas entrevistas:
Y ponindose de pi nos gui a travs de aquella sala y de otras y otras,
en todas las cuales haba cuadros al leo, acuarelas, pasteles, un verdadero
museo formado por un amateur de un gusto esquisto, por un viajero refina-
do, por un artista con un sentimiento profundo del arte, de lo bello, de las
plcidas emociones que causan aquellas obras.20
El 18 de noviembre de 1929, el Museo de Bellas Artes pas a de-
18
Ibid: pg. 147.
19
SILVA VILDASOLA: 1905.
20
Ibid: 1905.

Juan Manuel Martnez

25
pender de la Direccin General de Bibliotecas, Archivos y Museos, lo que
hoy corresponde a la DIBAM. Al ao siguiente, en conmemoracin del
cincuentenario de la institucin, se realiz una exposicin extraordinaria de
arte chileno donde se mostr la coleccin Luis lvarez Urquieta.
lvarez Urquieta, naci en Valparaso 1877, fue educado en el Colegio
de San Ignacio, posteriormente trabajo en el Banco Hipotecario de Chile,
hasta su jubilacin como tesorero de la institucin. Fue un gran coleccio-
nista de arte, especializndose en pintura nacional, adems de historiador.
Miembro de la Academia Chilena de la Historia, public artculos sobre
la historia del arte en nuestro pas, entre los que se cuentan; La Pintura en
Chile durante el perodo colonial, adems de una serie de monografas sobre
los artistas Jos Gil de Castro, Monvoisin, Manuel Antonio Caro, Carlos
Wood y Charton entre otros. Tambin se dedic a la pintura, en especial el
paisaje de temtica urbana. Falleci en Santiago en 1945.
Richon-Brunet, escribi a fin de presentar esta coleccin en 1928:

DESDE AHORA PARA CONOCER TODA LA HISTORIA


Y TODA LA EVOLUCION DEL ARTE CHILENO, NO ES
SLO AL MUSEO DE BELLAS ARTES QUE HABR QUE
ACUDIR, SINO A LA GALERA ALVAREZ URQUIETA,
QUE MERECA SER NACIONALIZADA EN EL INTERS
NACIONAL Y PBLICO.

No solamente no falta nada en esta coleccin ya que estn representa-


dos por obras importantes todos los artistas chilenos o extranjeros radica-
dos en Chile y por lo tanto chilenizados, desde hace algo ms de un siglo,
sino que, en su mayor parte, dichas obras son de primer orden y verdadera-
mente hermosas, dentro de sus escuelas y pocas respectivas, produciendo
el conjunto de las salas una impresin de arte ms serio y elevado.21
Estas palabras y el movimiento que causo la muestra pblica en un
Museo estatal, motiv la compra de este corpus de 378 pinturas y dibujos,
por la suma de 350.000 pesos, cuyo coleccionista entreg personalmente el
21 de noviembre de 1939. La coleccin, si bien se integr a la coleccin del
Museo, no se pudo exhibir hasta que las salas ocupadas por las colecciones
del Museo Histrico Nacional no fueran entregadas, situacin que se hizo
efectiva en la dcada siguiente. Esta nueva coleccin, de pintura nacional,
21
LVAREZ, Op. Cit.:pg. 8.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

26
desplaz las colecciones que hasta esa fecha se mostraban, constituidas
bsicamente por los envos de los pensionados en el extranjero, pintura na-
cional y pintura europea, como adems de copias. Con la compra de esta
coleccin ingresaron obras, que actualmente se han convertido en pinturas
emblemticas en la coleccin del Museo, como es el caso del huaso y la
lavandera de Rugendas. (Fig. 3) No corrieron la misma suerte las colec-
ciones Cousio y especialmente el legado de Eusebio Lillo, los que fueron
disgregados. En cambio, la coleccin lvarez Urquieta, como conjunto, no
se diluyo al ingresar a la coleccin general del Museo, y esta ha estado en
trminos generales en un gran porcentaje dentro del Museo y en su exhibi-
cin permanente, la que se convirti en un referente en los estudios y en la
construccin de un relato de un Arte Nacional, en especial, el que construy
Antonio Romera. Una coleccin que entrego las bases para la construccin

de una historia del arte local, con la paradoja de ser una coleccin construi-
da no por el estado, sino por el gusto de un coleccionista.

Referencias bibliogrficas

LVAREZ U., L: La pintura en Chile: coleccin Luis lvarez Urquieta.


Imprenta La Ilustracin, Santiago de Chile. 1928
BLOM, PH.: El coleccionismo apasionado, una historia ntima. Anagra-
ma, Barcelona. 2013
CATLOGO DE LAS OBRAS EXHIBIDAS EN LA ESPOSICIN
DE PINTURA ORGANIZADA EN EL PALACIO DEL CON-
GRESO, SETIEMBRE 1877. Imprenta de la Repblica, Santiago de
Chile.1877
CORTES, G.: Apogeo y crisis del coleccionismo chileno: la coleccin de pintu-
ra de Pascual Baburizza, Varios autores: Arte y crisis en Iberoamri-
ca, Segundas Jornadas de Historia del Arte. RIL, Santiago de Chile.
2004, pgs. 199-206.
GREZ, V.:La Vida Santiaguina. Imprenta Gutemberg, Santiago de Chi-
le. 1879
MARTNEZ. J.M.: El Poder de la Imagen, 3 Miradas Arte en Chile.
Tomo I. Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago de Chile, 2014

Juan Manuel Martnez

27
MALEUVRE, D.:Memorias del Museo, Historia, tecnologa, arte.
CENDEAC, Murcia, 2012
SILVA CASTRO, R.: Eusebio Lillo (1826-1910). Editorial: Andrs Be-
llo, Santiago de Chile, 1964.
SILVA VILDASOLA, C.: Una entrevista con el respetable anciano, po-
ltico, periodista y poeta, autor de la Cancin Nacional en su retiro
de la calle Chacabuco. Con fotografas y bocetos tomados al natural.
Entrevista a Baldomero Lillo. Revista ZIg-Zag, Santiago de Chile, 17
septiembre de 1905.
VICUA MACKENNA, V: Una visita a la exposicin de pintura de
1858. Revista del Pacifico, Santiago de Chile, 1858
WAAL , E., de : La liebre con ojos de mbar. Una herencia oculta. Acan-
tilado, Barcelona, 2012

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

28
Figura 1
Fotografa de unos de los salones
de la casa de Eusebio Lillo en la calle Chacabuco,
Santiago de Chile, Revista Zig-Zag, 1905.

Juan Manuel Martnez

29
Figura 2
Alfredo Valenzuela Puelma
La perla del mercader o Marchand d esclaves,
1884.
leo sobre tela
215x138 cm.
Surdoc 2-36 Museo Nacional de Bellas Artes

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

30
Figura 3
Juan Mauricio Rugendas
El huaso y la lavandera,
1835.
leo sobre tela
30x23 cm.
Surdoc 2-15 Museo Nacional de Bellas Artes

Juan Manuel Martnez

31
colecionismo

O coleccionador
como novo prncipe

Jos Alberto Gomes Machado


Professor da Universidade de vora Portugal

Desde o Renascimento, o coleccionismo constitui uma das mais importan-


tes marcas de referncia da cultura ocidental. A acumulao de objectos ra-
ros, buscados pela sua beleza, pelo seu carcter excepcional ou at por outro
tipo de qualidades intrnsecas, de cariz mgico ou curativo, foi apangio de
ricos e poderosos que, desde cedo viram o potencial de quanto adquiriram
para a projeco da sua prpria imagem, fama e prestgio.
O Quattrocento e depois o Cinquecento propiciaram uma conjuntura
nica de fomento, produo e acumulao de obras de arte que instalou a
Itlia num pedestal nico, quer de modernidade (at ao sculo XVIII), quer
de patrimnio. Pequenos senhores, condottieri, tiranos locais ou banqueiros
recm enriquecidos cedo descobriram o imenso potencial da arte para a
consolidao do seu poder, para alm dos efeitos propagandsticos que a
sua posse permite.
Hbeis parvenus como os Sforza ou os Mdicis alcanam o poder e
tornam-se prncipes. Ainda hoje so lembrados, sobretudo, pela arte que
souberam promover, encomendar e reunir.
A chegada do Barroco, com o apogeu da monarquia absoluta vai ser
marcada por um coleccionismo de novo tipo. O sculo XVII ser a poca
de ouro do coleccionismo rgio. Filipe IV de Espanha, Carlos I de Ingla-
terra (coetneos e cunhados) e, na gerao seguinte, Lus XIV de Frana e
o arquiduque Leopoldo Guilherme de Habsburgo (primos um do outro e
sobrinhos dos anteriores) amassaro milhares de obras de arte, muitas das
quais sadas j de Itlia, num movimento que marca o incio do desfazer e
redistribuir das coleces renascentistas. este o caso da famosa coleco
dos Gonzaga, duques de Mntua, vendida em bloco a Carlos I Stuart e que
pouco tempo permaneceu em Londres, sendo dispersa, em grande parte,
aps a execuo do seu desditoso possuidor.

33
O sculo XVIII marcado pelo coleccionismo aristocrtico, por clara
emulao com os soberanos. o perodo do Grand Tour, em que jovens de
alta posio social e econmica deambulam pelo continente, com destaque
para a Itlia, onde contactam com um patrimnio artstico nico, onde se
fazem por vezes retractar junto de runas clssicas e de onde importam para
os seus pases de origem (nomeadamente a Inglaterra) numerosas escul-
turas, pinturas e objets de vertue. Aqui radicam as numerosas coleces da
nobreza britnica que, no seu conjunto, constituem, nesse perodo, a maior
acumulao de arte em mos privadas em toda a Europa.
A Revoluo Francesa e a era napolenica, que se lhe seguiu, promo-
veram uma deslocao macia de obras de arte, fruto de venda, espoliao
e saque, que abre uma nova poca, marcada por um duplo fenmeno: a
criao dos museus nacionais e a emergncia da burguesia como principal
detentora privada de bens artsticos. O primeiro marca a apropriao pbli-
ca do que eram essencialmente bens privados, de natureza dinstica ou aris-
tocrtica; o segundo marcar todo o sculo XIX e boa parte do sculo XX.
Na histria do coleccionismo, os setenta anos que medeiam entre 1870
e 1940 so uma poca de ouro, que assiste a um movimento de transfe-
rncia macia de obras de arte da Europa para os Estados Unidos, para
engrossar as coleces privadas de milionrios, industriais e banqueiros que
tomaro o lugar dos prncipes e aristocratas de outrora, a quem buscaram
imitar atravs da posse de objectos de prestgio, muitas vezes, os mesmos
objectos de prestgio. Esta identificao, consciente ou subliminar, o ful-
cro deste trabalho.
Robber Barons, Self Made Millionaires, cavalheiros de indstria, donos
de fbricas e ferrovias, senhores de fortunas fabulosas sofriam de um tre-
mendo complexo social de inferioridade, sobretudo no confronto com a ve-
lha Europa, com seus cdigos e hierarquias sedimentados na longa durao.
No salo de um velho chteau francs, no living room de um manor isabeli-
no, ou at no relativo relaxamento de um Spa ou Kurhaus da Europa central,
o dinheiro no supre as boas maneiras nem garante mais que uma aceitao
interesseira, seguida de um olhar condescendente ou um comentrio sar-
cstico pelas costas. Levou vrias geraes at o poder do dlar conseguir
transplantar e substituir os valores do velho continente. Nesse processo, a
arte desempenhou papel relevante. E o coleccionismo revelou ser o agente
mais eficaz de elevao social e branqueamento de razes tantas vezes obs-
curas, que s o dinheiro por si no permitia iludir. Alis, esse processo de

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

34
social climbing efectuava-se a dois nveis: interno, num movimento de oeste
para leste, desde a frgil San Francisco at alcanar New York e integrar os
famosos 400 da elite; e externo, culminando numa srie de espectaculares
casamentos transatlnticos, conduzindo uma larga srie de virginais herdei-
ras de fortunas americanas aos pncaros da aristocracia europeia, nomeada-
mente britnica. 1Para muitos desses multimilionrios parvenus, a posse de
uma coleco de arte constitua o meio seguro de alcanar respeitabilidade
em vida e imortalidade, rodeando-se de objectos que, pela sua antiguidade,
valor, beleza e provenincia ilustre, transpunham para os seus novos donos
algo da fragrncia secular de reis, prncipes e cardeais, que ilustraram com
seu nome tantas pginas da histria europeia. No faltam exemplos nume-
rosos dessa via to dispendiosa de alcanar sucesso nos meandros tortuosos
da vida social, em que ser rico no chega, s por si, para conferir admirao
e respeitabilidade.
justo, contudo, reconhecer em vrios dos protagonistas desse pro-
cesso, que iremos referir, um genuno gosto e at paixo pelos objectos de
arte que perseguiram e adquiriram, por vezes com grande esforo. As via-
gens constantes Europa, a visita sistemtica de museus e monumentos, a
frequncia de artistas e intelectuais contriburam poderosamente para esse
processo, que teve por consequncia a ltima grande florescncia do fe-
nmeno coleccionista em grandes dimenses, at emergncia actual dos
novos potentados rabes, russos e chineses.
Essas dcadas entre 1870 e 1940 esto balizadas simbolicamente pela
fundao dos dois primeiros e venerveis grandes museus dos EUA (Me-
tropolitan Museum of Art em New York e Boston Museum of Fine Arts)
e pelo aparecimento do ltimo dos grandes museus mundiais, a National
Gallery of Art em Washington (inaugurada em 1941). Todos estes (e mui-
tos outros, como o Philadelphia Museum of Art ou o Art Institute of Chi-
cago), nascidos do esprito filantrpico e da ambio social e capacidade
aquisitiva de numerosos prncipes mercadores, cujos nomes esto hoje
associados, muito mais arte que acumularam do que ao sucesso que al-
canaram nos seus negcios. Assim, recordamos hoje Henry Clay Frick
pelo seu maravilhoso museu privado na Fifth Avenue, a Frick Collection e

1
Sendo o exemplo mais notrio Consuelo Vanderbilt (1877-1964), duquesa de Marlborough
entre 1906 e 1921. Devia o seu pouco comum nome espanhol sua madrinha cubano-
americana, Consuelo Iznaga (1858-1909), ela mesma protagonista de enorme sensao e
escndalo na gerao anterior, ao desposar o futuro duque de Manchester.

Jos Alberto Gomes Machado

35
no tanto pelas lutas que travou contra os sindicatos, no processo de acu-
mulao da sua enorme fortuna. E Andrew Mellon, ser lembrado sempre
como o fundador da NGA, mais do que como secretrio das Finanas de
sucessivas administraes americanas da dcada de 1920.
H. C. Frick (1849-1919) e A. Mellon (1855-1937), contemporneos
e amigos, contam-se entre os maiores coleccionadores dos tempos moder-
nos. Foram scios em importantes negcios.2 Viajaram juntos na Europa,
visitando museus. Formaram as respectivas coleces nas primeiras dca-
das do sculo XX, tendo perseguido e acumulado tesouros verdadeiramente
principescos.3 Tal como para tantos outros coleccionadores, a provenincia
das suas obras de arte transformou-se num elemento fundamental. Para
alm do valor esttico intrnseco dos quadros e esculturas, o facto de terem
antes integrado coleces prestigiosas foi um elemento fundamental para a
respectiva aquisio. O pedigree das peas alcanava o seu ponto mais alto
de excelncia quando podia ser reportado a algumas das mais fabulosas
coleces principescas e rgias do passado. Ter integrado a famosa colec-
o dos Gonzaga de Mntua, a de Carlos I de Inglaterra, que comprou a
anterior, ou a fabulosa coleco dos duques de Orlees, ramo mais novo da
famlia real de Frana ( a qual foi dispersa em blocos em Inglaterra nos anos
da Revoluo Francesa) formava o nec plus ultra da provenincia histrico-
-artstica.
Em 1930 e 1931, Andrew Mellon beneficiou do privilgio extraor-
dinrio de poder adquirir discretamente alguns tesouros do Hermitage,
provenientes da lendria coleco de Catarina II. Ele e o milionrio arm-
nio do petrleo Calouste Gulbenkian puderam adquirir para as respectivas
coleces quadros que ainda hoje fazem a glria do Museu Gulbenkian de
Lisboa4 e da National Gallery of Art de Washington, respectivamente.
Em Dezembro de 1936, Mellon escreveu ao presidente Franklin D.
Roosevelt, oferecendo nao a sua coleco de arte:
My dear Mr President: Over a period of many years I have been ac-
quiring important and rare paintings and sculpture with the idea that ulti-

2
Enquanto banqueiro, Mellon financiou vrios dos empreendimentos de Frick, relaciona-
dos sobretudo com a indstria carbonfera.
3
Dos 137 quadros legados Frick Collection pelo seu instituidor, apenas 10 foram adquiri-
dos antes de 1900. Cf. Timeline of Acquisitions in collections.frick.org
4
O Retrato de Velho e a Palas Atena de Rembrandt, bem como o Retrato de Hlne Four-
ment, mulher do artista, de Rubens.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

36
mately they would become the property of the people of the United States
() for the purpose of encouraging and developing the study of the fine
arts5.
A oferta foi aceite pelo Congresso dos Estados Unidos. Entre as 115
pinturas europeias legadas pelo fundador nova instituio, contavam-se
21 obras primas provenientes da coleco imperial russa, tais como a Ado-
rao dos Magos de Botticelli ou a Madonna da Casa de Alba de Rafael.
Sendo embora homens taciturnos, reclusivos e pouco demonstrativos,
os dois velhos amigos de Pittsburgh, Frick e Mellon, no podiam deixar de
ser particularmente sensveis ao facto de sobre eles recair o manto dos gran-
des coleccionadores rgios do passado, cujo af aquisitivo souberam emular
e de quem herdaram a posse de numerosas obras. Essa posse comum dos
mesmos objectos preciosos, com alguns sculos de permeio, permitia um
efeito de identificao retroactivo. Novos prncipes, os milionrios da fi-
nana, do carvo, do petrleo ou dos caminhos de ferro, buscavam os mes-
mos sinais de distino que ornaram os monarcas do passado. Objectos de
raridade e beleza que ornamentaram os paredes do Alcazar de Madrid, do
palcio de Whitehall ou do Hermitage czarista acharam-se de sbito em
apartamentos e manses de Washington ou New York, antes destas mes-
mas se transformarem em museus, ou de migrarem para o grande edifcio
em mrmore rosa do Tennessee, a National Gallery of Art.
Os prprios retratos rgios propiciavam o mximo dessa satisfao de
posse, sobretudo se assinados por grandes mestres. Joseph Duveen, o mais
extravagante e bem sucedido comerciante de arte das primeiras dcadas do
sculo XX, vendeu um Filipe II de Ticiano a Mary Emery, de Cincinnati
e um Filipe IV de Velzquez a Benjamin Altman de New York6. Henry
Clay Frick comprara o seu prprio Filipe IV de Velzquez firma Knoedler
em 1911. O retrato da rainha de Inglaterra Henriqueta Maria com o ano
Jeffrey Hudson foi vendido por Duveen ao magnata da imprensa William
Randolph Hearst (em quem se inspirou Orson Welles para criar Citizen
Kane) em 19287. Anos mais tarde, em 1952, o mesmo quadro8 foi vendido
por Knoedler Kress Foundation, instituda por Samuel Kress, sob cuja

5
In WALKER, 1995, p. 31.
6
No Cincinnati Art Museum e Metropolitan Museum of Art (NY) respectivamente.
7
Cf. LEVKOFF 2008.
8
Hoje na NGA de Washington.

Jos Alberto Gomes Machado

37
gide se formou a maior coleco de arte jamais formada nos EUA, hoje
dispersa pela National Gallery of Art e por numerosos museus, de Seattle
a Honolulu.
A ser verdade9, ocorreu mesmo em 1913 um duelo surdo por uma
obra de arte entre um monarca e um coleccionador milionrio. Nesse ano,
Duveen estaria disposto a pagar uma elevadssima quantia por uma tela de
Leonardo, a Madonna Benois, que se encontrava na coleco homnima de
So Petersburgo, com o intuito de vend-la a H.C. Frick. Nos termos da lei
russa, o prprio czar poderia exercer o direito de opo, adquirindo-a por
igual quantia, para integrar o Hermitage. Ao contrrio do que Duveen es-
perava, atendendo altssima quantia em causa, Nicolau II exerceu mesmo
o seu direito e o quadro ficou no grande museu russo.
Muito se pode especular sobre as motivaes psicolgicas e mecanis-
mos inconscientes por trs da paixo de coleccionar. A paixo da beleza, o
desejo de ascenso social, o impulso de acumular, a compensao de frus-
traes afectivas atravs da posse de objectos, a busca da imortalidade, a
identificao com grandes figuras do passado constituem decerto algumas
dessas razes. um dos casos mais notrios em que o ter prolonga e ro-
bustece o ser.
Para vrios coleccionadores, h uma real identificao com a poca dos
objectos que buscaram possuir e os personagens que a povoaram.
Anna Thompson Dodge (1871-1970), que formou uma importante
coleco de arte decorativa setecentista, legada em parte ao Detroit Institu-
te of Arts, fez-se retratar moda da poca que tanto amava, personificando
Mme de Pompadour, num quadro de Gerald Kelly10. Entre os objectos que
coleccionou, alguns haviam pertencido a Catarina a Grande (entre os quais
um famoso colar com 389 prolas orientais) e a Maria Antonieta.
Marjorie Merriweather Post (1887-1973), herdeira da General Foods
e que chegou a ser considerada a mulher mais rica da Amrica, formou uma
coleco fabulosa de arte de provenincia russa, que recheia ainda hoje a

9
O episdio narrado na biografia de Duveen por S. N. Behrman, de 1951, mas tratado na
mais recente e slida Duveen de Meryle Secrest (2005), omitindo a referncia a Frick.
10
Retrato de corpo inteiro documentado por fotografia na Detroit Historical Society com o
n 2014.002.076. O mesmo Kelly, pintor da moda entre a alta sociedade americana, pintara
antes o retrato pstumo de Henry Clay Frick na West Gallery da sua manso, de charuto
na mo e tendo por trs o retrato rgio de Velzquez antes referido (hoje no Frick Art &
Historical Center, Pittsburgh).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

38
sua casa de Hillwood (Washington DC), transformada em museu privado.
Para alm de alguns famosos ovos de Faberg, Post comprou numerosos
outros objectos de arte ligados aos Romanov. Legou Smithsonian Insti-
tution de Washington o diadema que Napoleo ofereceu a Maria Lusa.11
Mais perto de ns, Barbara Hutton (1912-1979), herdeira da fortuna
Woolworth, para alm de coleccionar maridos (7) e Canalettos (2, magnfi-
cos, legados NGA de Washington), ornou-se tambm de jias histricas,
como o colar de 53 prolas naturais que pertenceu a Maria Antonieta, ou
um conjunto de esmeraldas pertencentes celebrada gr-duquesa Vladimir,
tia do ltimo czar, as quais Barbara fez montar num diadema (!).
Nestes casos, tratando-se de jias, percebe-se mais facilmente o poder
de identificao que carregam, j que so objectos de uso (embora com
inestimvel valor econmico e histrico), que acabaram por ficar tambm
ligados s milionrias contemporneas, elas mesmas comparadas frequen-
temente a princesas, pelo estatuto conferido pelos milhes que herdaram e
delapidaram.
Uma noo de responsabilidade quase dinstica atravessa algumas fa-
mlias de coleccionadores, prolongando entre irmos, ou mais comummen-
te de pais para filhos, essa tarefa de legar posteridade um nome e uma
obra consolidados pela fama.
A Europa fornece, entre outros, dois exemplos especialmente notveis
desta transmisso vocacional familiar: um deu origem Wallace Collection
de Londres: o outro gerou o Museo Thyssen Bornemisza de Madrid.
A Wallace Collection constitui o paradigma do museu privado, mo-
delo inovador no tempo em que surgiu, tendo posteriormente servido de
inspirao para tantos outros, de Gulbenkian at Getty.
O quarto marqus de Hertford (1800-1870) herdou um punhado de
significativas obras de arte dos seus antepassados, que expandiu enorme-
mente ao longo de uma vida passada maioritariamente em Paris e marcada
pelo gosto pela arte francesa do perodo o rococ. Aproveitando a disperso
de importantes coleces na Paris do Segundo Imprio, adquiriu nume-
rosas obras primas, como O Cavaleiro que Ri de Frans Hals, a Dama do
Leque de Velzquez ou o retrato de Titus, de Rembrandt. Sendo solteiro e
sem herdeiros legtimos, optou por legar os seus imensos bens ao seu filho
natural Sir Richard Wallace (1818-1890), a quem nunca reconheceu. Este,
11
Cf. FABER 2012.

Jos Alberto Gomes Machado

39
usando o nome de solteira da me, dedicou o resto da sua vida a expandir e
completar as coleces paternas, que transferiu para Londres, na sequncia
das convulses da Comuna de Paris. Morreu sem concretizar o seu desejo
de legar nao inglesa os seus tesouros e dos seus antepassados. Seria a
sua viva francesa, Lady Wallace a p-lo em prtica, instituindo aquele
que ainda hoje um dos espaos museolgicos mais notveis de Londres,
recentemente valorizado por uma importante reforma e rearranjo interno.
No palacete de Manchester Square, apropriadamente chamado Hertford
House, podem ver-se muitos dos melhores exemplares que as artes decora-
tivas francesas produziram no sculo XVIII, a par de armaduras medievais
e quadros das grandes escolas de pintura desde o Renascimento at aos
alvores do Impressionismo. Por disposio testamentria da instituidora,
nada pode sair e nada pode ser acrescentado coleco.
Este sentido de responsabilidade familiar transmitido pelo sangue
pode ser encontrado tambm no caso dos bares Thyssen, que forjaram,
em duas geraes, ao longo do sculo XX, a mais importante coleco de
arte da Europa, a par da Royal Collection britnica. Magnatas do ao, de-
dicaram boa parte dos seus lucros milionrios adquirindo obras de arte. O
pai, baro Heinrich (1875-1947) adquiriu exclusivamente Old Masters da
maior qualidade, conseguindo pontualmente inverter a tendncia da trans-
ferncia de quadros da Europa para os Estados Unidos, ao repatriar vrias
obras importantes, na sequncia da crise econmica de 1929 e da grande
depresso que se lhe seguiu. O filho, baro Hans Heinrich (1921-2002)
expandiu grandemente a coleco paterna, alargando-a modernidade;
foi um dos primeiros coleccionadores europeus a comprar pintura norte
americana; fez-se retratar por Lucian Freud, tal como um prncipe da Re-
nascena se teria feito pintar por Ticiano; reagrupou a herana artstica
dispersa depois da morte do pai, resgatando numerosos quadros s irms
e acabou por legar posteridade o grosso da coleco familiar, ao vender,
em 1993, ao estado espanhol 775 quadros da mais alta qualidade. Os filhos
desavindos do grande coleccionador coexistem, melhor ou pior, no seio da
fundao que criou. No belo enquadramento do palcio que foi dos duques
de Villahermosa, os quadros do testemunho do gosto requintado de duas
geraes de verdadeiros e apaixonados conhecedores, que fizeram obra de
prncipes12.
Em sentido simtrico, pode referir-se um verdadeiro prncipe, assu-
12
Sobre a saga desta famlia, cf. RODRIGUEZ 1997 e LITCHFIELD 2006.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

40
mido como grande coleccionador, na esteira dos seus antepassados: Hans
Adam II, prncipe reinante de Liechtenstein (n. 1945), senhor de vasta
fortuna, tem-se dedicado a recuperar obras de arte, que o seu pai, Franz
Joseph II (1906-1989) foi forado a vender na sequncia da II Guerra
Mundial e da expropriao de parte das propriedades da famlia situadas
na Checoslovquia. Embora as principais perdas ento sofridas sejam ir-
recuperveis13, o actual prncipe tem expandido grandemente a coleco,
at h pouco exposta ao pblico em Viena, nos dois restaurados palcios
Liechtenstein. Presena marcante no quadro internacional do mercado de
arte, Hans Adam II pagou o preo mais alto at hoje alcanado por uma
pea de mobilirio, ao adquirir o famoso cabinet Badminton14, proveniente
da coleco dos duques de Beaufort, em 2004, num leilo da Christies, por
36 milhes de dlares.
curioso observar que, se alguns coleccionadores actuaram como
prncipes do passado na aquisio e ostentao de preciosas obras de arte,
nos nossos dias, um prncipe reinante, chefe de estado de um minscu-
lo territrio, grangeia enorme notoriedade ao actuar como coleccionador,
reagrupando e expandindo o patrimnio familiar. Talvez mais do que os
contratempos polticos do seu reinado, a histria venha a reter dele o facto
de ser um dos maiores coleccionadores europeus da viragem do milnio.
Passando agora aos Estados Unidos, vamos encontrar algumas dinas-
tias informais, em que o prestgio do nome e a paixo do coleccionismo
perdurou por duas geraes.
William (1819-1894) e Henry Walters (1848-1931), pai e filho, mag-
natas dos caminhos de ferro, dotaram Baltimore de um magnfico museu,
que leva o seu nome, onde podem ver-se as coleces acumuladas durante
dcadas, nomeadamente de antiguidades gregas e romanas, pintura e artes
decorativas, em boa parte procedentes directamente de Itlia15. Homens
discretos, receosos de que pudessem tornar-se pblicos os valores por eles
dispendidos em arte, afirmaram-se no seio da sua cidade (como tantos ou-

13
Entre os tesouros alienados contam-se o retrato de Ginevra de Benci de Leonardo, ad-
quirido pela National Gallery of Art de Washington e o Willem van Heythuyzen, um dos
melhores retratos de Frans Hals, cedido Alte Pinakothek de Munique.
14
Trata-se de um armrio de bano com incrustaes , na tcnica de pietra dura, celebrizada
pelos atelis gro-ducais de Florena entre os secs. XVI e XVIII.
15
Em 1902, Henry Walters adquiriu em bloco 1700 objectos de arte, entre vasos gregos,
bronzes e pinturas, a Marcello Massarenti, coleccionador romano.

Jos Alberto Gomes Machado

41
tros milionrios) precisamente pela coleco que reuniram16.
John Pierpont Morgan (1837-1913) foi o maior banqueiro do seu tem-
po, financiador das principais indstrias americanas. Reuniu uma coleco
gigantesca de todo o tipo de objectos artsticos, desde esmaltes de Limoges
e incunbulos preciosos at bronzes, cermicas e pinturas da Renascena.
Comprava indiscriminada e compulsivamente.17 Foi um dos grandes im-
pulsionadores do Metropolitan Museum of Art e do Wadsworth Athe-
neum de Hartford (Connecticut). A ambas estas instituies foi parar boa
parte das suas imensas coleces. Depois da sua morte, um grande nmero
de objectos seus foram dispersos em leilo, tornando-se um sinal de dis-
tino para coleccionadores posteriores possurem algo que pertencera ao
lendrio banqueiro. Seu filho John Pierpont Morgan Jr (1867-1943) pros-
seguiu o legado paterno nos negcios (foi um dos grandes financiadores
dos beligerantes da I Guerra Mundial) e fundou, para memria do seu pai,
um dos mais requintados museus de New York, a Pierpont Morgan Li-
brary, detentora do esplio de preciosidades bibliogrficas acumuladas pela
famlia, bem como de algumas pinturas flamengas e da Renascena italiana
de grande qualidade e daquela que uma das mais importantes coleces
de desenhos do mundo. Tal como no caso dos Walters de Baltimore, os
Morgan assumiram a responsabilidade de honrar a tradio dos antepassa-
dos atravs da disponibilizao para o pblico dos objectos acumulados em
to grande nmero.
Mais de um sculo decorrido, a JP Morgan ainda hoje uma das mais
notrias entidades bancrias dos EUA.
agora tempo de reencontrar os dois personagens com quem inici-
mos este percurso e ver de que modo a sua descendncia lhes perpetuou a
obra.
Quando Henry Clay Frick morreu, em 1919, legou o grosso da sua
coleco e a manso que a abriga, instituio intitulada The Frick Col-
lection. Este pequeno grande museu situado na Fifth Avenue passou a ser
gerido por um Board of Trustees dominado pela filha do magnata, Helen
Clay Frick (1888-1984) e que integrava, entre outros, John D. Rockefeller
(1839-1937), ele prprio um grande coleccionador oriundo de uma fam-

16
Sobre os Walters, cf. JOHNSTON 1999.
17
Uma caricatura publicada por ocasio da sua morte, mostra-o s portas do cu, diante de
Deus Pai, sentado em majestade. Apontando para o trono do Altssimo, Morgan diz Thats
a nice chair. How much?Cf. BEHRMAN 1972, p.74

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

42
lia de grandes magnatas, das mais ricas do mundo. Mulher determinada
e autoritria, nunca casou e dedicou toda a sua vida a perpetuar e gerir
a memria paterna, consubstanciada na preciosa coleco, que ela soube
expandir, propondo ao longo de dcadas a aquisio de numerosas outras
notveis obras de arte. Em ruptura com a sua prpria famlia, por ter sido
enormemente favorecida no testamento paterno, Helen criou a Frick Art
Reference Library, precioso repositrio de informao sobre arte e o uni-
verso das coleces nos tempos anteriores revoluo digital. Hoje a Frick
Collection alberga o Center for the History of Collecting, instituio pio-
neira de pesquisa destes temas. Durante dcadas, Helen e Rockefeller, que
viriam ambos a morrer com quase 100 anos, igualmente autoritrios e inca-
pazes de admitir contradio, travaram uma prolongada batalha em torno
da melhor forma de gerir a Frick Collection, que passou por aces judiciais
tempestuosas. Helen receava que Rockefeller se quisesse apossar do esprito
e do nome da instituio que seu pai legara e tentou, quanto pde, bloquear
a possibilidade ao seu adversrio de legar obras suas para a coleco. Tal
desiderato foi parcialmente alcanado. Ela no conseguiu, contudo, impedir
que, muitos anos depois da morte do odiado amigo do seu pai, viessem a in-
tegrar a Frick Collection dois magnficos bustos de Verrocchio e Francesco
Laurana, bem como a comovente Crucifixo de Piero della Francesca, como
legado pstumo de John D. Rockefeller18.
Andrew Mellon tem a distino de ter sido o homem que esteve na
origem da criao do ltimo dos grandes museus pblicos mundiais, a Na-
tional Gallery of Art de Washington. Os seus dois filhos, Ailsa Mellon
Bruce (1901-1969) e Paul Mellon (1907-1999) consagraram boa parte das
usas vidas a completar a misso paterna, servindo essa instituio, no seio
da qual desempenharam um papel nico19. A discreta Ailsa fora a grande
acompanhante do pai em Washington, durante os anos 1920, em que serviu
como ministro das Finanas de trs administraes republicanas sucessivas.
Em sua honra, veio mais tarde a fundar as Andrew Mellon Lectures in the

18
Cf. SANGER 1998. Esta biografia de Henry Clay Frick, escrita aps aturada pesquisa
pela sua bisneta Martha Frick Symington Sanger acaba por englobar igualmente a vida e
trabalhos de Helen. Apesar da riqueza informativa, uma obra excessivamente marcada
por uma interpretao psicolgica, segundo a qual, a morte da mulher teria sido o motor
determinante da actividade coleccionista do severo milionrio. De forma anloga, na gnese
da coleco coetnea de Isabella Stewart Gardner , em Boston, estaria a morte do seu filho
nico cf. THARP 1965.
19
Cf. WALKER 1995

Jos Alberto Gomes Machado

43
Fine Arts, em que cada ano um distinto acadmico convidado. Fora dos
olhares da imprensa, Ailsa financiou, pouco antes de morrer, a compra pela
NGA do mtico retrato de Ginevra de Benci, de Leonardo, por uma quantia
que no foi tornada pblica20. Legou, por fim, ao museu em testamento
a sua coleco de telas francesas impressionistas e ps-impressionistas de
grande qualidade e pequeno formato.
Da mesma forma que a irm, Paul Mellon sofreu o traumtico divrcio
dos pais. Co-herdeiro da fabulosa fortuna familiar, devotou a sua vida a
actividades filantrpicas. Da sua me inglesa, herdou uma paixo pela vida
rural aristocrtica, as caadas, a equitao e, em consequncia, a pintura
inglesa de temas desportivos. Foi o primeiro presidente do Board of Trustees
da NGA, qual viria a legar mais de 900 obras de arte ao longo de dca-
das21. Supervisionou (e financiou, em boa parte, juntamente com a irm)
a construo da East Wing, a expanso do venervel museu, com trao do
arquitecto I. Pei. Grande coleccionador, na esteira paterna, doou sua alma
mater, a universidade de Yale, a sua enorme coleco de arte britnica sete
e oitocentista, para albergar a qual encomendou a Louis Kahn um edifcio
de referncia. O Yale Center of British Art possui a maior aglomerao
de arte britnica fora do prprio Reino Unido. Habitando em Upperville,
Virgnia, omde veio a falecer, Paul Mellon serviu tambm como patrono do
Virginia Museum of Fine Arts, em Richmond, o qual foi tambm benefi-
ciado por numerosas doaes suas, em vida e pstumas. Muito atento vida
universitria, financiou vrios projectos em Cambridge (cujo Clare College
frequentara), e foi um dos promotores da fuso de institutos tecnolgicos,
de que resultou em 1967 a Carnegie Mellon University, em Pittsburgh,
cidade em que a famlia forjara a sua fortuna.
Mais ainda que o pai, Paul Mellon foi um verdadeiro prncipe da Re-
nascena, rodeado de beleza, que promoveu e adquiriu, com um estilo de
vida aristocrtico em que a fortuna se aliava distino e ao ethos do servio
pblico. Mais do que um simples herdeiro de seu pai, ele expandiu os seus
interesses, criou em Yale o seu prprio e nico museu, sem nunca deixar
de supervisionar o legado paterno no Mall em Washington. E assim como
seu pai no quisera (ao contrrio de Frick) que o seu nome ficasse ligado s

20
Ver nota 12 acima.
21
As ltimas das quais acabam de dar entrada, na sequncia da morte, com mais de 100
anos, em 2014, da sua viva, Rachel Lambert Mellon, que conservava ainda algumas a ttulo
vitalcio.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

44
obras de arte que coleccionou, antes preferindo subsumi-las num contexto
nacional, que pudesse ser apelativo para outros mecenas, tambm Paul no
quis ligar o nome explicitamente ao grande centro museolgico e de inves-
tigao que criou de raiz na sua universidade. A sua morte, no ano derra-
deiro de Novecentos, marca simbolicamente o fecho de um ciclo, marcado
pela grandeza e tambm pela generosidade.22

Art collecting has long been linked to power, whether in the form
of patronage or plunder. Popes, princes and monarchs alike sought
immortality by amassing masterpieces as a demonstration of their
enlightened identification with the finer things in life. () It was to
be expected therefore, that when the super-rich parvenu made it in
a big way, he would head for the art dealer.23

Esta citao pode bem ser enquadrada na perspectiva sobre o colec-


cionismo que nos apresentada por Susan Pearce, numa obra de indiscu-
tvel referncia, On Collecting24. Neste livro, que abre novas perspectivas
de abordagem sobre o fenmeno do coleccionismo, a autora refere os seus
aspectos poltico e potico. No primeiro, incluem-se noes como valor e
interesses; o segundo reporta-se a realidades, como espao, tempo e iden-
tidade.
Justamente as questes de identidade convocam o passado, na imagem
que dele faz o presente. O passado o tempo em que o presente pode esco-
lher as suas referncias, na esperana de poder leg-las ao futuro de modo
convincente. O grande objectivo perdurar. Para este tipo de colecciona-
dor, novo prncipe, porque detentor do novo poder, agora conferido pelo
dinheiro, a posse de objectos excepcionais, pela beleza, raridade e sobretudo
provenincia, a mais segura garantia de sobrevivncia. No topo da escala
social em vida e na crista da onda da memria, aps a morte.

22
Deve ainda referir-se a espantosa coleco reunda por Peter (1834-1915) e Joseph Widener
(1871-1943), pai e filho, milionrios de Filadlfia, na sua enorme manso de Lynnewood
Hall. Os seus Grecos, Van Dycks e Rembrandts, entre tantos outros tesouros de pintura,
escultura e artes decorativas, foram legados NGA de Washington, onde ombreiam com a
coleco fundadora de Mellon e com o legado posterior de Kress.
23
GREGORY 1993, p. 133.
24
PEARCE 1999.

Jos Alberto Gomes Machado

45
Bibliografia

BEHRMAN, S. N., Duveen, Hamish Hamilton, Londres, 1972 (2 ed).


CANNADINE, David, Mellon: An American Life, Allen Lane, Londres,
2006.
FABER, Toby, Os ovos de Faberg, Editora Record, Rio de Janeiro/So Pau-
lo, 2012.
GREGORY, Alexis, The Gilded Age: the Super-Rich of the Edwardian Era,
Cassell, Londres, 1993 (with a Foreword by John Kenneth Galbraith).
JOHNSTON, William R., William and Henry Walters, the reticent collectors,
Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1999.
LEVKOFF, Mary, Hearst the Collector, Harry Abrams, New York, 2008.
LITCHFIELD, David, The Thyssen Art Macabre, Quartet Books, Londres,
2006.
PEARCE, Susan, On Collecting: An investigation into collecting in the Euro-
pean tradition, Routledge, Londres/New York, 1999.
RODRIGUEZ, Conxa, Los Thyssen, por amor al arte, Ediciones BSA, Bar-
celona, 1997.
SANGER, Martha Frick Symington, Henry Clay Frick: Na Intimate Por-
trait, Abbeville Press, New York, 1998.
SECREST, Meryle, Duveen: A Life in Art, Alfred Knopf, New York, 2005.
STROUSE, Jean, Morgan: American Financier, Harper Collins, New York,
2000.
THARP, Louise Hall, Mrs. Jack, Isabella Stewart Gardner Museum, Bos-
ton, 1965.
WALKER, John, National Gallery of Art Washington, Harry Abrams, New
York, 1995.
colecionismo

Jacob Burckhardt
e os colecionadores no Renascimento italiano1

Cssio Fernandes

Professor do Departamento e do Programa


de Ps-Graduao de Histria da Arte
da Universidade Federal de So Paulo

O nome do historiador suo, Jacob Burckhardt (1818-1897), esteve, em


grande medida, ligado fortuna crtica de seu livro editado em 1860, Die
Kultur der Renaissance in Italien (A Cultura do Renascimento na Itlia).
O livro de Burckhardt trazia no ttulo uma identificao entre a Renascen-
a, concebida como poca histrica, e a histria da cultura, pensada como
gnero historiogrfico. A partir de ento, a noo do Renascimento encon-
trava um sentido adequado sobre o terreno da cultura, ao mesmo tempo
em que a imagem de Burckhardt se constitua como a do historiador que
concebera de modo definitivo um modelo histrico-cultural. Com a edio
de A Cultura do Renascimento na Itlia, ele apresentava uma sntese hist-
rico-cultural da poca, porm se desculpava de ao livro faltar uma parte. Na
primeira pgina da obra, Burckhardt afirmava:

Ns tnhamos primeiramente a inteno de preencher a maior lacu-


na deste livro com uma obra especial, consagrada Arte do Renas-
cimento; propsito que aqui pde ser realizado apenas em parte.2

Para ele, uma anlise do Renascimento italiano deveria conter um es-


tudo global da arte do perodo, tarefa que no conseguiu realizar no mo-
mento em que concebeu o volume de 1860. Porm, nos anos subseqentes,
com o intuito de finalizar seu projeto, concentra o estudo no campo da

1
Esta pesquisa conta com apoio do Edital Universal 2013/ CNPq.
2
BURCKHARDT, Jacob. Gesammelte Werke. Band III. Basel/Stuttgart: Schwabe & Co.,
1978, p. 1.

47
histria da arte. O primeiro fruto desse trabalho, e nico editado em vida,
a obra sobre a arquitetura italiana do Renascimento, publicada em 1867:
Geschichte der Renaissance in Italien (Histria do Renascimento na Itlia).
As primeiras linhas desse volume diziam o que segue: A arquitetura italia-
na, desde o despertar da cultura mais alta, substancialmente condicionada
pela mentalidade individual do comitente e do artista, que aqui se desen-
volve muito antes que em outros lugares.3 A partir de 1867, ainda que
tenha realizado outros trabalhos de flego, seu projeto de terminar a obra
sobre o Renascimento italiano com escritos dedicados arte do perodo
representava um compromisso ntimo.
O estudo sistemtico da histria da arte aprofunda-se para ele a partir
de 1874, quando cria e assume a ctedra de Histria da Arte na Universi-
dade de Basilia, ctedra que, aps 1893, com sua aposentadoria, ser ocu-
pada por seu ex-aluno, Heinrich Wlfflin. Paralelamente a isso, Burckhardt
continuara a percorrer a Itlia em longas estadias at a dcada de 1880, e a
reunir um vasto material a respeito da pintura no Renascimento. Era preci-
so terminar a redao do projeto iniciado com o livro de 1860, porm, um
problema o afligia: como integrar a arte ao mais amplo universo da cultura
renascentista? Como compreender a pintura italiana do Renascimento na
chave de seu estudo histrico-cultural sobre o perodo?
A primeira verso desse esforo metodolgico aparece no manuscrito
intitulado Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben4 (A pintura segundo o
contedo e as tarefas). O texto, conservado indito at 1992, foi original-
mente editado na Itlia como parte do indispensvel trabalho de Maurizio
Ghelardi, da Scuola Normale Superiore di Pisa, sobre os manuscritos de
Burckhardt. Ao texto, entretanto, Ghelardi deu o ttulo Pittura: i generi.5
provvel que o manuscrito tenha sido elaborado entre 1885 e o incio de
1893, com exceo do ltimo captulo da edio italiana (apenas nessa ver-
so ele aparece), sobre a pintura dos animais, concebido provavelmente em
1895.6 De todo modo, com esse texto, Burckhardt apresentava um estudo
3
BURCKHARDT, Jacob. Gesammelte Werke. Band II. Die Baukunst der Renaissance in
Italien. Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1978, p. 3.
4
BURCKHARDT, Jacob. Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben. In: BURCKHARDT,
Jacob. Die Kunst der Renaissance. Band 1. Mnchen; Basel: C.H. Beck; Schwabe, 2006, pp.
261-391.
5
Burckhardt, Jacob. LArte Italiana del Rinascimento. Volume II. Pittura: i generi. (A cura
de Maurizio Ghelardi.) Venezia: Marsilio Editori, 1992.
6
Sobre isso, ver: GHELARDI, Maurizio. Introduzione. Idem, pp.: XVIII-XIX.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

48
conjunto da pintura italiana do Renascimento, organizado de acordo com
o que chamou gneros. Mas no gneros preceptsticos, e sim gnero
(Gattung) concebido como funo de uma obra de arte em relao a um
determinado contexto histrico-cultural. Burckhardt, assim, organizava o
amplo universo pictrico renascentista basicamente a partir de dois ele-
mentos: a destinao e o contedo (ou tema) da obra. Desse modo, seu
escrito organizado em captulos (em gneros), tais como: Alegoria, A
pintura dos conventos, A pintura dos hospitais, Orbis terrarum (a pintu-
ra dos mapa-mundi), A pintura histrica profana, A pintura mitolgica,
entre outros. Em cada um desses captulos, ele observa a evoluo formal
das obras no arco histrico do Renascimento italiano. Essa perspectiva
permitia ao historiador indagar a obra de arte numa dupla considerao:
como forma autnoma e em relao a um determinado contexto histrico-
-cultural, ou seja, nos indissolveis e complementares aspectos do processo
criativo: o formal e o funcional.
De fato, Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben inaugurava sua abor-
dagem da pintura italiana do Renascimento, ao mesmo tempo em que dava
uma resposta ao problema com o qual ele se debatia h mais de duas dca-
das, ou seja, aquele da indagao da arte no mbito da histria da cultura.
Organizar a pintura italiana do Renascimento a partir dos temas e de sua
localizao original permitia-lhe primeiramente um dilogo com a dispo-
sio sobre a qual tinha construdo A Cultura do Renascimento na Itlia,
seguindo uma ordenao narrativa que unia sincronia e diacronia. Na es-
trutura geral do livro de 1860, ele seguiu um arco temporal mais ou menos
delimitado entre a vida de Dante e o Saque de Roma, e, no interior desses
limites, sua viso percorreu o desenvolvimento da poesia, da narrativa his-
toriogrfica, da biografia, da autobiografia, do desenvolvimento cientfico,
das descobertas martimas, da vida religiosa, das construes polticas, etc.
Sua idia era, com isso, apresentar a vida na Itlia do Renascimento tal
como se apresenta uma imagem, dando, portanto, ao leitor a noo de si-
multaneidade.
O manuscrito sobre os gneros da pintura seguia de perto essa or-
ganizao, apresentando agora a arte pictrica no centro da interpretao,
dividida, ela tambm, a partir do duplo critrio, sincrnico e diacrnico. A
inteno era dar vida a uma indagao que fosse estruturada com base nos
gneros pictricos considerados essenciais pelo autor. Tal abordagem per-
mite agora a Burckhardt demonstrar em que medida a anlise sincrnica

Cssio Fernandes

49
das formas pictricas pode ser exposta e explicada diacronicamente. Desse
modo, a pintura italiana do Renascimento interpretada com base num
registro duplo e complementar: de um lado, atravs de uma reconstruo
morfolgica que busca revelar as mudanas dos temas representados e as
tarefas que o artista tinha sido chamado a cumprir; por outro lado, atravs
das funes, dos meios e das capacidades que estavam presentes num dado
contexto cultural. Em geral, a pesquisa se prope a compreender a propor-
cionalidade entre contedo e funo, portanto, a iluminar a relao entre
forma e funcionalidade, e, ao mesmo tempo, sublinhar a complementarida-
de que tal ligao teve para o desenvolvimento artstico do Renascimento
italiano.
Entretanto, a organizao proposta em A pintura segundo o contedo e
as tarefas no seria a ltima verso dada pelo autor ao estudo da arte pic-
trica renascentista. De modo que, em seguida elaborao do manuscrito
sobre os gneros da pintura, Burckhardt retoma seu vasto material sobre
o tema, reordenando-o e aprofundando sua abordagem histrico-artstica.
A partir de 1893, ele retoma o material sobre a pintura do Renascimento
e concebe desta vez um grupo de manuscritos, agora sob uma nova orga-
nizao. O texto, agrupado entre os inmeros escritos deixados pelo autor,
toma a forma de livro postumamente, em 1898, num volume organizado
por Hans Trog sob o ttulo Beitrg zur Kunstgeschichte von Italien (Con-
tribuies Histria da Arte na Itlia). Trog, professor de histria da arte
em Zurique, tinha feito parte do grupo dos ltimos alunos de Burckhardt
e, debruado sobre a obra de seu antigo professor, reuniu num nico livro
trs manuscritos: O retbulo de altar (Das Altarbild), O retrato na pintu-
ra italiana (Das Portrit in der italienischen Malerei) e Os colecionadores
(Die Sammler).
Esses textos, elaborados entre maio de 1893 e os ltimos meses de
1896, documentaram o desfecho do projeto de Burckhardt de abraar,
numa viso de conjunto, a arte e a cultura do Renascimento na Itlia. Aqui,
ele encontra uma maneira de se aproximar efetivamente do mundo dos ar-
tistas. Ou seja, a abordagem apresentada por Burckhardt nos referidos ma-
nuscritos privilegiava o conhecimento material das obras de arte, a maneira
como tinham sido criadas, colecionadas e avaliadas. Burckhardt recusava
a explicao generalizada do fenmeno artstico e partia, ao contrrio, da
obra entendida como testemunho individualizado de um contexto hist-
rico-cultural. Alm do mais, os referidos manuscritos continham o teor

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

50
derradeiro de sua inteno de conceber a pintura italiana do Renascimento,
como ele prprio afirmou mais de uma vez, segundo os temas e as tarefas
(nach Gegenstnden und Aufgaben) e os meios e as capacidades (nach Mittel
und Krften). Burckhardt chegou mesmo a definir o seu papel no estudo
histrico-artstico a partir de uma frase, elaborada no crepsculo de sua
vida: Die Kunst nach Aufgaben, das ist mein Vermchtnis (A arte segundo
as tarefas, eis o meu legado). Com a frase, o historiador pretendeu revelar
exatamente o seu interesse em compreender a arte italiana do Renascimen-
to de acordo com a origem das comitncias e com seu papel na idealizao
das obras.
O volume intitulado Die Sammler (Os Colecionadores) importante
nesse aspecto. Aqui, logo no incio, Burckhardt afirma seu propsito no
livro:

O captulo de histria da arte italiana que aqui tem incio muito


mais amplo e importante do que se possa pensar. Por decnios, o
peso maior da produo artstica no tanto pela quantidade, quan-
to pelo significado interno devia comitncia e possesso priva-
das. [...] Assim, tudo o que era encomendado pela casa e oferecido
considerao prxima e atenta de numerosas famlias, reivindicava
uma execuo totalmente particular. De tal modo, formou-se pro-
gressivamente um gosto privado que exigia da arte propriamente
aquilo que a comitncia pblica no podia, nem queria garantir.7

Burckhardt, na verdade, trata o colecionismo, ou mais exatamente o


gosto privado do colecionador, como uma das tarefas que tornaram pos-
svel arte renascentista o aprofundamento de temticas devocionais e a
valorizao de novos temas profanos. O colecionismo no Renascimento
constitui, para Burckhardt, um dos motivos principais da deciso sobre os
contedos artsticos, chegando a interferir diretamente at mesmo em seu
aspecto formal. Ao indagar sobre a relao entre colecionismo e produo
artstica, Burckhardt pretende compreender sob quais aspectos uma obra de
arte pode ter sido determinada por sua destinao, ou ainda tocar aspectos
da evoluo de alguns temas e contedos artsticos.
De fato, nesse texto, Burckhardt atenta para a necessidade de pensar a
7
BURCKHARDT, Jacob. Beitrge zur Kunstgeschichte Von Italien: das Altarbild; das Por-
trt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke. Band 6. Mnchen; Basel: C.
H. Beck; Schwabe & Co., 2000, p. 291.

Cssio Fernandes

51
obra de arte no Renascimento como produto de um acordo entre comitente
e artista. Ele pretende sondar as peculiaridades do processo de realizao
das obras e os meandros da relao concreta no momento de sua idealiza-
o. Ainda que em alguns casos fosse difcil reconstituir esse processo, o
historiador, entretanto, fazia-se a pergunta e buscava respond-la. Vejamos
um exemplo. A corte de Urbino, na poca de Federico da Montefeltro,
tornara-se emblema para uma das teses centrais de A Cultura do Renasci-
mento na Itlia. No livro de 1860, Urbino apresentava-se como chave para
a compreenso de Burckhardt do Estado renascentista como obra de arte,
ou seja, como criao consciente, emanada da reflexo, que se impe sobre
um modo de viver que havia declinado. Nesse contexto, Federico descrito
como o soberano ideal, senhor de um Estado modelo, onde a pobreza ine-
xistia e tudo girava em torno de uma corte ordenada e virtuosa. Burckhardt
certamente tinha-se valido da biografia de Federico, que compunha o sig-
nificativo livro de Vespasiano da Bisticci, Vite degli uomini illustri del secolo
XV, uma das principais selees de biografias do Quattrocento florentino.
Vespasiano concedera a Federico da Montefeltro uma descrio de gran-
de efeito, e havia inspirado Burckhardt a descrev-lo, em 1860, como con-
dottiere, senhor de Estado, humanista, colecionador e comitente. Mais de
trinta anos depois, no volume sobre os colecionadores, Burckhardt retorna
figura do Duque, para indicar, em sua corte, um colecionismo artstico
ligado ao gosto pela pintura flamenga. Um colecionismo que revela, por
parte de Federico, um interesse pela construo da prpria imagem, tanto
por meio da retratstica, quanto atravs de sua atuao na reconstruo de
sua cidade, bem como na disposio de objetos de arte escolhidos como
emblema de seu carter. Da, Burckhardt fazia a pergunta: Mas, quem de-
cidia sobre o gnero da execuo? Em Urbino, era o Duque Federigo da
Montefeltro ou alguns artistas?8 Ampliada aos demais comitentes da arte
no Renascimento, esta era uma pergunta de fundo a percorrer o conjunto
do volume de Burckhardt sobre os colecionadores.
Na verdade, o historiador suo pretendia perceber, no processo cria-
tivo, no apenas os elementos concernentes biografia dos artistas ou aos
estilos individuais, mas era fundamental para ele compreender como a mu-
dana na forma era acompanhada de uma modificao anloga no gosto
dos comitentes e dos colecionadores. Foi importante para ele, nesse mo-
mento, a edio do livro de Eugne Mntz sobre as colees dos Medici no
8
Idem, p. 344.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

52
sculo XV.9 A leitura do livro de Mntz fizera com que Burckhardt, no final
de 1896, retomasse a redao do manuscrito sobre os colecionadores, que
ele considerava ter finalizado um ano antes. Os inventrios das colees dos
Medici confirmavam a importncia da ligao entre a tarefa ditada pelo
colecionador e o contedo de uma obra. Neste ponto conectavam-se os
elementos primordiais para Burckhardt perceber as caractersticas do pro-
cesso criativo na arte florentina do Renascimento, ou seja, relacionavam-se
colecionismo e comitncia como forma de expresso do gosto privado atu-
ando na realizao das obras.
Burckhardt percebera que as fontes principais de todas as colees ar-
tsticas na Itlia foram condicionadas, num primeiro momento, pelo ac-
mulo de quadros para devoo domstica, que, dispostos, sobretudo nas
casas abastadas, serviam de consolo e conforto. Ele afirma que tais obras
gozavam da devoo mais profunda e que, no incio, tratava-se de exempla-
res da pintura bizantina, que permaneciam na possesso das famlias por le-
gado. No inventrio de Cosimo de Medici, morto em 1464, encontram-se
doze pinturas bizantinas de representaes sacras, ornadas em ouro, prata,
pedras preciosas e mosaicos, provavelmente oriundas da Grcia, e certa-
mente para finalidade de devoo particular.
Entretanto, a partir do estudo do prprio inventrio dos Medici, Bur-
ckhardt percebe que por intermdio dessa famlia, no Quattrocento, nasce
em Florena um colecionismo originado no apenas do legado familiar,
mas tambm oriundo de aquisies e, no raro, sob encomenda. De modo
que, na Florena dos Medici, no sculo XV, unem-se, em torno da idia
da coleo privada, as tarefas de colecionador e comitente, e, em grande
medida, movidas pelo gosto da burguesia local pela pintura flamenga. Sur-
ge, assim, um progressivo interesse, em Florena, pela pintura de cavalete,
sobre tela ou sobre madeira, em comparao com a tradicional pintura a
fresco. Com esse processo, o historiador aprofunda sua compreenso da im-
portncia da arte flamenga no ambiente dos Medici, e no apenas do ponto
de vista da pintura, mas tambm da tapearia. Burckhardt havia concludo
que os flamengos tinham condicionado o desenvolvimento do primeiro co-
lecionismo italiano, em especial, pela capacidade realstica da pintura a leo
desenvolvida em Flandres, mas tambm pela facilidade de circulao dos
tecidos, dos tapetes e dos quadros flamengos de pequenas dimenses, fato
que antecede a circulao dos prprios artistas nrdicos na Itlia. Era este
9
MNTZ, E. Les collections des Mdicis au quinzime sicle. Paris, 1888.

Cssio Fernandes

53
um exemplo emblemtico do papel do gosto privado do comitente atuan-
do no desenvolvimento da prpria histria das formas artsticas, visto que
entre comitente e artista intensificava-se uma relao estreita e muito parti-
cular. A encomenda para coleo privada adquiria um carter especial, visto
que se tratava da produo de objetos pensados para uma colocao mais
ntima, no espao interno da casa e, muitas vezes, para compor conjuntos
dentro de uma coleo pessoal. Nesses casos, pensava Burckhardt, o papel
da comitncia tornava-se ainda mais importante e central na composio
da obra.
Deste modo, para Burckhardt, no ensaio sobre os colecionadores, o co-
mitente se torna o centro de um campo de relaes que une a produo da
arte com o universo que a circunda e que, portanto, atuante no prprio ato
criativo. Atravs da figura do comitente, ele busca a conexo do artista com
o fundo social, potico e humanstico do qual a obra de arte deriva, porm
sempre a partir de um contato individualizado, concreto, pesquisado caso
a caso. Atravs da figura do comitente, inserido em seu ambiente cultural,
era possvel tocar o que Burckhardt chamou gosto artstico, e, portanto,
passar da obra individual para a cultura artstica que a propiciou. Assim, era
possvel restituir o tecido social em que as obras tinham sido criadas; era
possvel, assim, inseri-las de novo em seu contexto, em seu espao, ou seja,
no concreto mundo dos artistas, delineando ainda as fases do desenvolvi-
mento estilstico renascentista a partir das relaes entre gosto privado e
gnero artstico.
Os escritos histrico-artsticos da fase final da vida de Jacob Burckhar-
dt, publicados, como dissemos, em 1898, encontraram imediata recepo
positiva nas investigaes que o estudioso hamburgus, Aby Warburg, re-
alizava nos primeiros lampejos do sculo XX. Entretanto, diferentemente
de Burckhardt, que lanava uma viso de conjunto sobre a arte e italiana
do Renascimento, Warburg preferia tocar os meandros da criao artstica
renascentista com estudos de caso, partindo de uma ou outra obra indivi-
dual para mergulhar no amplo ambiente cultural que a gerou. Em 1902, no
ensaio Arte do Retrato e Burguesia Florentina, texto que se inicia com um
prefcio em forma de dedicatria a Burckhardt, Warburg se utiliza de um
nico afresco para compreender o problema da relao entre cristianismo
medieval e paganismo antigo na Florena da segunda metade do sculo
XV. Como ele mesmo afirma, no ensaio de 1902:

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

54
Se dirigirmos toda a nossa ateno, munida tambm de auxlios da indaga-
o arquivstica e literria, sobre um afresco de Domenico Ghirlandaio na
Capela Sassetti de Santa Trinit em Florena, veremos diante de ns dire-
tamente, num ponto de vista totalmente pessoal, o fundo contemporneo
como potncia que exerce uma ao particular. [...] Ser necessrio, ento,
j que as deposies de testemunhos oculares so to dificilmente referveis,
solicitar ao pblico sua colaborao por assim dizer mediante prova indici-
ria (Indizienbeweis).10

De fato, o referido afresco representava, para Warburg, o sinal de um


problema encontrvel de modo difuso na arte e na cultura florentina da
poca. Em sua concretude, a obra de Ghirlandaio concentrava de modo
especfico a concepo de mundo que guiava a ao dos homens naquele
contexto cultural. Entretanto, a abordagem de Warburg colocava no centro
a relao entre comitente e artista. Como ele prprio afirma:

As foras motrizes de uma arte viva do retrato no devem ser pes-


quisadas exclusivamente no artista; necessrio ter presente que
entre retratista e retratado tem lugar um ntimo contato que numa
poca de um gosto especialmente refinado faz nascer entre os dois
uma esfera de relaes recprocas, de freio e de impulso.11

Aby Warburg retornaria ao tema das imagens mentais que deram for-
ma ao afresco de Ghirlandaio ao escrever, em 1907, o belo ensaio sobre Os
ltimos desejos de Francesco Sassetti, onde analisa o escrito testamentrio do
mercador florentino, o comitente do referido afresco da Igreja de Santa
Trinit. Warburg buscava, atravs desse documento nico (o testamento do
mercador), desvendar o significado da psicologia do homem laico culto do
primeiro Renascimento florentino.
No entanto, os ensaios burckhardtianos editados em 1898 tero ainda
importncia para Warburg no que diz respeito s relaes entre a pintura
flamenga e a arte italiana no sculo XV. certamente com base nos estu-
dos de Burckhardt sobre o colecionismo italiano que Warburg compe,
ainda em 1902, o ensaio que intitulou Arte flamenga e primeiro Renascimento
florentino. Burckhardt no havia tratado de modo unilateral o tema das
10
WARBURG, Aby. Bildniskunst und florentinisches Brgertum. In: WARBURG, Aby.
Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I. Leipzig; Berlin: B. G. Teubner, 1932, pp.
95-96.
11
Idem, p. 95.

Cssio Fernandes

55
relaes entre pintura flamenga e italiana. Ele acenou para as influncias
recprocas entre os dois centros artsticos, malgrado tenha percebido uma
direta relao entre a chegada das primeiras pinturas flamengas na Itlia e
o incio das colees, constitudas no apenas por legados hereditrios, mas
tambm por aquisies. Warburg, por sua vez, inicia o texto Arte flamenga
e primeiro Renascimento florentino com uma meno, em nota de rodap,
referida obra de Burckhardt, e as seguintes palavras no corpo do texto:

A evidente predileo pelos produtos nrdicos, que encontramos


nos amantes da arte italiana do primeiro Renascimento, no se de-
via, em seu incio, apenas compreenso das caractersticas ntimas
dos quadros flamengos. Ao contrrio, eram, em primeiro lugar, os
mritos exteriores da pintura nrdica que concederam a ela um cr-
culo de mecenas interessados.12

Segundo Warburg, Giovanni de Medici, filho de Cosimo, morto ainda


jovem, j se interessara e se empenhara em adquirir tapetes flamengos, que
inclua em sua coleo de manuscritos e moedas antigas. Ele teria feito fa-
bricar, em Bruges, um tapete representando o triunfo da morte e da glria
segundo a poesia de Petrarca e a partir de um desenho em carto da mo
de um artista italiano. Porm, o interesse dos italianos pela pintura flamen-
ga teria se intensificado ao longo do sculo XV, com a retratstica e com
quadro de tema religioso executado para devoo domstica. Para o rico
amante das artes que pretendesse um contato mais ntimo com a pintura
sacra do que aquele propiciado pela arte monumental florentina destinada
a amplos espaos, a pintura religiosa flamenga funcionava como pea de
devoo e, ao mesmo tempo, como objeto de coleo. E de um modo em
que o prprio comitente se tornasse o centro de ateno da composio,
visto que o objeto refletia o seu gosto pessoal e deveria se harmonizar com
o entorno para o qual sua localizao fora pensada. Era importante, ento,
para Warburg, perceber o papel desempenhado pelo gosto do colecionador
na concepo do quadro. Ele percebia que a expresso do artista flamengo
dialogava com o gosto artstico do comitente italiano. Este comitente, im-
pactado pelos meios de expresso da pintura flamenga aplicados sobre telas
de pequenas dimenses, solicitava ao pintor o tema desejado e certamente

12
WARBURG, Aby. Flandrische Kunst und florentinische Frhrenaissance. In:
WARBURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I, op. cit., p. 187.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

56
requeria alguns elementos compositivos e formais de seu agrado, e dessa
relao recproca nascia a obra de arte para culto privado.
O interesse de Warburg em compreender as imagens como smbolos
de circulaes, de migraes de homens e de idias, seu esforo em perfazer
os caminhos das conexes, dos encontros entre elementos distintos, sua
determinao em entender a fronteira como o prprio terreno da histria,
possibilitou-lhe perseguir as relaes entre colecionismo italiano e arte fla-
menga. Para ele, tinha sido resultado da mescla de elementos humanos que
se atraem por seu contrrio, o produto do encontro entre um mercador de
ventura de Lucca e um pintor nrdico, ambos prximos vida de corte do
Duque da Borgonha. Em suas prprias palavras:

O mercador de tecidos e o pintor se encontram interiormente no


ponto em que a objetividade soberana com que um geria o comrcio
de objetos de luxo em grandes distncias e o outro observava com
ateno e reproduzia o luxuriante jogo de cores deste mundo.13

Tratava-se do encontro que produziu, em 1435, o retrato do casal Ar-


nolfini, pintado por Jan van Eyck, ento pintor oficial do Duque Filipe, o
Bom, da Borgonha. O retrato, um testemunho ocular da intimidade do-
mstica do casal em sua residncia de Bruges, refletia, para Warburg, o fas-
cnio do mundo refinado toscano pelos meios de expressar o vivo, trazidos a
luz pela arte flamenga. Para Warburg, esta pintura um exemplo emblem-
tico da compreenso espontnea demonstrada pela burguesia toscana em
relao arte nrdica. Um gosto pela semelhana que encontra a expresso
retratstica flamenga. Assim, o estilo flamengo, em virtude de sua particular
e hbil combinao de ntima devoo e fidelidade realstica, oferecia ao co-
lecionador e comitente florentino o ideal e o modelo do retrato de doador.
No mesmo instante, diante do Juzo Final de Memling, Warburg
percebe que as pessoas representadas comeam a se destacar do fundo sacro
da igreja como personagens individuais. Sobre os dois comitentes, o casal
italiano Angelo Tani e Caterina Tanagli, representados de joelho ao lado do
trptico, na Igreja de Santa Maria, em Gdansk, afirma Warburg:

Enquanto as mos dos comitentes mantm ainda o habitual gesto


do homem que, esquecido de si mesmo, implora proteo do alto,
13
Idem, p. 189.

Cssio Fernandes

57
o olhar se volta, sonhador ou observador, em direo aos distantes
horizontes terrenos.14

Noutro caso, na chamada Pala Portinari de Hugo van der Goes, os


trs pastores tornaram-se modelo direto para os trs pastores italianos
da Adorao pintada por Domenico Ghirlandaio, em 1485, para ornar
a capela encomendada por Francesco Sassetti na Igreja de Santa Trinit,
em Florena. Para esta afirmao, Warburg certamente tinha o modelo da
interpretao de Burckhardt da pintura de Ghirlandaio, no volume sobre
O Retrato na Pintura Italiana do Renascimento. Ali, Burckhardt tinha, por
sua vez, citado o trecho da Geschichte der Malerei (Histria da Pintura),
de Wrmann e Woltmann, que dizia: seno pela tcnica, certamente pela
grandiosidade do realismo, Domenico [Ghirlandaio] possui uma afinidade
com a arte flamenga15
Tratava-se do retbulo que o mercador florentino Tommaso Portinari
tinha encomendado a Hugo van der Goes por volta de 1475, para a Igreja
de SantEgidio, no Hospital de Santa Maria Nuova, em Florena, e que
servia para Warburg como emblema da relao direta entre gosto do comi-
tente e execuo artstica. E mais do que isso, era um exemplo poderoso da
influncia da arte flamenga sobre aquela florentina, no primeiro Renasci-
mento. Certamente era este um contato de influncias recprocas.
Aby Warburg voltaria a este tema em 1905, numa conferncia intitu-
lada Intercmbios artsticos entre Norte e Sul no sculo XV. At 1907, quando
escreve o ensaio sobre Os ltimos desejos de Francesco Sassetti, este foi o foco
central de seus estudos. De todo modo, nos ltimos anos do sculo XIX,
Aby Warburg percebera o pioneirismo dos estudos de Burckhardt sobre
comitncia e colecionismo no Renascimento, e seu papel como fora mo-
triz da arte renascentista. Warburg tinha notado que o velho historiador
suo havia compreendido as peculiaridades do processo criativo da arte
na Renascena e a concretude de sua integrao na cultura da poca. War-
burg havia percebido que os escritos histrico-artsticos do final da vida de
Jacob Burckhardt abriam caminho para a interpretao do colecionismo e

14
Idem, p. 205.
15 WOLTMANN, A. e WRMANN, K. (org.). Geschichte der Malerei. Vol. III, Leip-
zig, 1882, p. 132. Citado por BURCKHARDT, Jacob. Beitrge zur Kunstgeschichte Von
Italien: das Altarbild; das Portrt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhardt Werke.
Op. cit., p. 215.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

58
da comitncia como elementos de compreenso da arte italiana no Renas-
cimento. De fato, os estudos pioneiros de Burckhardt apresentavam uma
abordagem que seria desenvolvida ao longo do sculo XX, e no apenas na
obra de Aby Warburg, mas em estudos importantes sobre o tema, tais como
os de Julius von Schlosser, de Martin Wackernagel, de Francis Haskell, de
Krzysztof Pomian. Mas os estudos de Burckhardt deixariam ainda uma
janela aberta em direo ao sculo XIX. Para citar apenas um exemplo,
vale ressaltar que alm do interesse pela edio dos derradeiros estudos de
Burckhardt em vrios idiomas nos ltimos anos, o recentssimo livro de
Salvatore Settis, editado na Itlia em 2010, tem o ttulo Artisti e commitenti
fra Quattro e Cinquecento16.

Bibliografia

BURCKHARDT, Jacob. LArte Italiana del Rinascimento. Volume II.


Pittura: i generi. (A cura de Maurizio Ghelardi.) Venezia: Marsilio
Editori, 1992.
BURCKHARDT, Jacob. Beitrge zur Kunstgeschichte Von Italien: das
Altarbild; das Portrt in der Malerei; die Sammler. In: Jacob Burckhar-
dt Werke. Band 6. Mnchen; Basel: C. H. Beck; Schwabe & Co., 2000.
BURCKHARDT, Jacob. Die Malerei nach Inhalt und Aufgaben. In:
BURCKHARDT, Jacob. Die Kunst der Renaissance. Band 1. Mn-
chen; Basel: C.H. Beck; Schwabe, 2006.
BURCKHARDT, Jacob. Gesammelte Werke. Band III. Basel/Stuttgart:
Schwabe & Co., 1978.
GHELARDI, Maurizio. Introduzione. BURCKHARDT, Jacob. LArte
Italiana del Rinascimento. Volume II. Pittura: i generi. (A cura de
Maurizio Ghelardi.) Venezia: Marsilio Editori, 1992.
MNTZ, E. Les collections des Mdicis au quinzime sicle. Paris, 1888.
SETTIS, Salvatore. Artisti e commitenti fra Quattro e Cinquecento. Torino:
Einaudi, 2010.
WARBURG, Aby. Bildniskunst und florentinisches Brgertum. In: WAR-
BURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band I. Lei-
pzig; Berlin: B. G. Teubner, 1932.
16
SETTIS, Salvatore. Artisti e commitenti fra Quattro e Cinquecento. Torino: Einaudi,
2010.

Cssio Fernandes

59
WARBURG, Aby. Flandrische Kunst und florentinische Frhrenaissance.
In: WARBURG, Aby. Die Erneuerung der Heidnischen Antike. Band
I, op. cit., p. 187.
WOLTMANN, A. e WRMANN, K. (org.). Geschichte der Malerei. Vol.
III, Leipzig, 1882.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

60
colecionismo

Colecionismos:
Entre Japo e Ocidente

Michiko Okano

Professora do Departamento e do Programa


de Ps-Graduao de Histria da Arte
da Universidade Federal de So Paulo

No mbito dos colecionismos da arte nipnica desenvolvidos entre o Japo


e o Ocidente, h dois particularmente interessantes, os quais sero tratados
adiante. Um deles foi o Japonismo, que ocorreu entre o final do sculo XIX
e o incio do XX, em Paris, Frana. Conduzido por interesses individuais
e privados, esse movimento caracterizou-se por uma paixo alimentada
pelo sentimento de descoberta do extico e teve a xilogravura ukiyo-e como
principal objeto de desejo.
O outro teve lugar no prprio Japo e foi organizado, sobretudo, por trs
americanos juntamente com um japons, basicamente na mesma poca do
movimento ocorrido no continente europeu. O objetivo que os animava era
completamente distinto daquele que se apresentava na iniciativa francesa,
pois, apesar de a aquisio das peas ser individual e privada, o grupo sediado
no territrio nipnico almejava a formao de uma coleo que pudesse
representar o Japo em uma instituio fora do pas. Em razo disso, esse
acervo foi, mais tarde, levado para os Estados Unidos, onde se tornou a
base dos acervos do Museu de Belas Artes de Boston. Os americanos que
participaram dessa empreitada viveram alguns anos no Japo e tiveram,
nesse perodo, a aprendizagem da arte japonesa com artistas e crticos de
renome, alm de contato direto com as obras artsticas.
O colecionismo o hbito de juntar coisas que possuem propriedades
ou caratersticas comuns, de forma seletiva e apaixonada, e compreende
o exerccio de ordenao desses objetos. Considerando as intenes e
concepes que orientaram esses dois modelos estudados, nosso objetivo
verificar como eles perfazem a sua coleo e pensar no significado de tais
procedimentos.

61
Caso da coleo do Japonismo

Sabemos que a coleo da arte japonesa no Ocidente se fez,


primeiramente, por alguns objetos que combinam a qualidade tcnica
artstica e a tradio do kogei1: o caso do charo (laca), no sculo XVII.
No final do sculo XIX e incio do XX, a xilogravura ukiyo-e encantou os
impressionistas, bem como, em menor grau, as sofisticadas e detalhadas
miniesculturas netsukes ou as guardas de espada japonesa tsuba, produtos da
era Edo (1603-1868) japonesa.
A era Edo caracterizou-se pelo fechamento dos portos s naes
estrangeiras, medida esta adotada pelo governo japons aps um perodo
de catequizao patrocinada pelos portugueses. Mesmo assim, a xilogravura
ukiyo-e atravessou os mares para o continente europeu.
Apesar do isolamento, os holandeses, que eram protestantes, tinham
uma especial permisso para entrar no Japo. Alm disso, todo o sistema
fechado parece mostrar uma brecha no seu funcionamento, o que pode
ser verificado pelo caso de Philipp Franz Von Siebold (1796-1866), um
mdico e botnico alemo, que viajou ao Japo a servio da Holanda, em
1823.
Apesar de os holandeses estarem restritos a permanecerem na
Ilha de Dejima2 e, portanto, proibidos de andar pelo territrio japons,
o caso de Siebold foi diferente. O fato de ser mdico fez que ele sasse
desse enclausuramento imposto pelo governo local e visitasse os senhores
feudais a fim de trat-los das enfermidades. Como recompensa ao trabalho
efetuado, recebia, em muitas ocasies, objetos de arte.
Durante a sua estada de seis anos, entre 1823 e 1829, teve um papel
importante no Japo: divulgou a cincia ocidental, foi introdutor da vacina
e da anatomia patolgica e, em 1824, chegou a ter uma escola de medicina
1
Kgei (l-se kguei) pode ser traduzido como artesanato, mas a autora prefere distinguir es-
ses dois termos porque os contextos culturais tornam as suas semnticas diferenciadas. Kgei,
no Japo, adquire o nvel de arte pelo seu refinamento tcnico e artstico e recebe equivalente
valorizao, comprovada pela existncia de artesos considerados Tesouros Nacionais Vivos
do Japo. Alis, um dos fatos importantes detectados pelos ocidentais na poca do Japonis-
mo foi justamente a falta de fronteira entre a arte e o artesanato.
2
Dejima, literalmente, ilha de fora, localiza-se na baa de Nagasaki, provncia de Kysh,
sul do Japo. Trata-se de uma ilha artificial que, inicialmente, era usada para confinar os
portugueses e, posteriormente, para os holandeses estabelecerem contatos comerciais com
os japoneses.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

62
em Nagasaki, denominada Narutaki-juku (Cfr. Kouwenhoven, 2000, p.24).
No entanto, o seu maior interesse foi o desenvolvimento de uma pesquisa
de fauna e flora, publicada, mais tarde, em Leiden, Holanda.
A partida de Siebold do Japo est associada ao naufrgio de um
dos seus navios e consequente descoberta do transporte, para a Europa,
de vrias obras japonesas, inclusive mapas. O fato de possuir mapas do
territrio japons fez que ele fosse acusado de espio russo e expulso do
pas. Atualmente, o Museu Siebold e o Museu Nacional de Etnologia,
localizados na cidade de Leiden, exibem os objetos etnogrficos e artsticos
que o mdico colecionou durante a sua estada no Japo.
Outro caso de brecha encontrado a entrada dos americanos no porto
de Dejima, em navios que portavam bandeiras holandesas, uma exceo
concedida na poca da Revoluo Francesa, quando os navios holandeses
deixaram de navegar rumo ao Japo. (Cfr. Tazawa, 2012, p. 26). Salem foi
um dos primeiros lugares estadunidenses que teve contato com o Japo,
formando, assim, a base do Peabody Essex Museum, que mais tarde seria
incrementada com outra leva de obras provenientes do Japo via Boston.
Associado a esse fato, verificou-se o borbulhar do interesse pela arte
japonesa em Salem e Boston, pela existncia de lojas que vendiam as obras
de arte e kgei japoneses. De fato, M. High (Cfr. 2012, p. 19 a 23) registra
a viagem, de Massachusetts ao Japo, j em junho de 1871, de Charles
Appleton Longfellow (1844-93), que l permaneceu durante vinte meses.
A Exposio Universal de Filadlfia realizada em 1876 foi tambm um
evento que muito influenciou os americanos na sua predileo por artigos
nipnicos.
Alis, essas exposies universais do final do sculo XIX foram capazes
de alimentar os olhares europeus para as artes chinesa e japonesa de modo
mais concreto, permitindo um contato direto com as obras de arte. H
um caso interessante da participao japonesa na Exposio Universal de
Londres em 1862, a qual revela a disseminao da arte japonesa para os
europeus por meio de uma coleo individual de um diplomata. Trata-se de
Rutherford Alcock (1809-1897), que esteve no Japo de 1859 a 1861 como
cnsul geral do Reino Unido, chegando, tambm, a publicar livros sobre
assuntos japoneses.
No entanto, o Japo comeou a participar oficialmente da Exposio
Universal em Paris, em 1867, um ano antes da abertura dos portos. Foi

Michiko Okano

63
nessa cidade que a influncia da arte japonesa se fez de modo mais intenso,
especialmente sobre os artistas impressionistas.
O designer e artista grfico francs Flix Bracquemond havia descoberto
o Manga3 de Katsushika Hokusai j em 1858, ainda com o isolamento
nipnico, e adquiriu-o no ano seguinte. No mesmo ano da abertura dos
portos japoneses, em 1868, Manet j pintava o seu amigo mile Zola,
quadro em que apresenta, no canto superior direito, a combinao de
uma xilogravura do Sharaku, de uma gravura em metal de Velsquez e da
reproduo da Olympia, do prprio Manet. Isso demonstra que os franceses
tinham acesso, de algum modo, arte japonesa, muito antes de o Japo abrir
as suas portas para o mundo.
Com a abertura do Japo ao Ocidente, seus produtos inundaram os
mercados europeus. Estabeleceramse vrias lojas dedicadas venda de
produtos do Extremo Oriente em Paris. A divulgao da arte japonesa,
no incio, aconteceu por meio de coleo de artistas, colecionadores e
marchands, dentro de um pequeno circuito. Eram realizadas pequenas
exposies, muitas vezes, na loja do marchand ou at num caf.
O marchand parisiense Samuel Bing (1838-1905) foi uma figura chave
nesse processo. Possua, no incio da dcada de 1880, a mais importante galeria
de arte japonesa em Paris, a Muse Japonais, na qual expunha vrios objetos
de procedncia japonesa como laca, tsuba e katagami (modelo de estncil
usado para tingimento), entre outros, e onde tambm realizava exposies.
A coleo de Van Gogh e de seu irmo Tho, a maioria adquirida de Bing,
somava mais de quatrocentas xilogravuras, que esto no atual acervo do
Museu Van Gogh de Amsterdam (Cfr. WICHMANN, 1981. p.9). Foi de
Bing tambm que Monet adquiriu a maior parte das mais de 230 estampas
que se encontram hoje no Museu Monet em Giverny (Cfr. MINGARRO,
2010, p. 305). Bing organizava, em Paris, um Diner Japonais todos os
meses, em que se reuniam, ao redor da mesa, os interessados em arte
japonesa, inclusive Hayashi, que, rico em conhecimentos artsticos at a
sua alma, fornecia informaes e explicaes com incansvel pacincia e
charmosa boa natureza. (COLLIN, 1913, s/p. T.N.)
Tadamasa Hayashi (1853-1906) chegou a Paris para trabalhar na
Exposio Universal de 1878 e instalou-se, posteriormente, na cidade, para
3
Manga uma coleo de 15 volumes de desenhos em xilogravura (preto, cinza e cor da
pele), do famoso artista Katsushika Hokusai, publicados a partir de 1814. Os temas incluem
fauna, flora, paisagem e cotidiano da vida do povo.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

64
vender os objetos de arte de seu pas. Colaborou com artistas e intelectuais
como Monet, Goncourt e Louis Gonse nas suas investigaes.
Apenas em 1890, o que era privado se tornou acessvel a um pblico
mais amplo, com a realizao de leiles das obras adquiridas pelos primeiros
colecionadores de japonismo.

Caso da coleo do Museu de Belas Artes de Boston

O Museum of Fine Arts of Boston (doravante MFAB), Museu de


Belas Artes de Boston, Massachusetts, foi inaugurado em 1876, quando
foi tambm realizada a Exposio Universal em Filadlfia, estado da
Pensilvnia. Tal simultaneidade de eventos permitiu um dilogo entre
ambos, no que dizia respeito aquisio, por parte do museu, de obras
pouco conhecidas pelos americanos. Certamente, a exposio das obras
de arte japonesas como artesanatos em metal, charo e porcelana atraiu
a ateno dos visitantes americanos e fez que o Japo viesse a ser, a seus
olhos, um pas produtor de refinadas obras artsticas. Tal interesse dos
estadunidenses deve ter sido tambm contaminado pela fascinao que os
europeus tiveram pelas xilogravuras ukiyo-e, como vimos anteriormente.
O museu teve como modelo o South Kensington Museum (atual
Victoria and Albert Museum), fundado em 1852, e teve uma concepo
ampla e receptiva, para a poca da constituio do seu acervo, pois havia,
at 1913, no novo prdio construdo na Huntington Avenue, uma coleo
que tratava, de modo equivalente, as obras gregas e japonesas. (Cfr.
NISHIMURA MORSE, 2012, p. 22). Atualmente, o museu possui mais
de cem mil peas de obras artsticas nipnicas.
Esse interesse dos Estados Unidos pelo Japo consolidou-se em virtude
das aes desenvolvidas por trs pessoas eruditas, com passagem pela
Universidade Harvard: o filsofo e historiador de arte, Ernest Francisco
Fenollosa (1853-1908); o mdico William Sturgis Bigelow (1850-1926) e o
zologo Edward Sylvester Morse (1838-1925). Os trs chegaram ao Japo
entre o final da dcada de 1870 e o incio de 1880 (Morse em 1877, Fenollosa
em 1878 e Bigelow em 1881), alguns anos aps a abertura do Japo, depois
do seu isolamento de mais de duzentos anos. Os trs, portanto, pisavam a
terra japonesa depois de um longo perodo de interrupo da conexo com o
Ocidente, exceto com os holandeses e num em que o Japo enfrentava uma

Michiko Okano

65
enorme mudana: a modernizao concomitante com a ocidentalizao e a
consequente depreciao dos valores tradicionais, inclusive da arte clssica
japonesa. Observa-se que a abertura do Japo iniciou-se, curiosamente,
pela negociao com os prprios americanos, pelos contatos realizado por
Commodore Matthew Calbraith Perry, a bordo de seus Black Ships em
1853 e 1854.
Imbudos de encantamento pela observao do diferente, cada um
deles cuidou de um campo da coleo de obras. Conforme Morse registrou
no seu dirio Japan day by day4, Fenollosa cuidaria da aquisio das pinturas,
Bigelow, das espadas, tsubas (guardas das espadas japonesas) e charo (laca
japonesa) e Morse, da cermica. Desse modo, Morse adquiriu uma coleo
de mais de cinco mil peas de cermica, que foi vendida, posteriormente,
para o MFAB em 1892 (Cfr. MORSE apud NISHIMURA MORSE,
2012, p. 15-16).
Em verdade, os trs chegaram ao Japo no momento certo para
adquirir as obras tradicionais, visto que, como os japoneses estavam com o
interesse voltado para o Ocidente, elas eram vendidas por uma bagatela. O
que se destaca o refinado senso esttico dos ocidentais na seleo dessas
obras, adquirido por um estudo aprofundado, sobremaneira, de Fenollosa.
Todavia, eles no apenas compraram uma quantidade enorme de peas
e levaram-nas para os Estados Unidos, mas tambm colaboraram para a
valorizao da arte tradicional japonesa ora realizando palestras, ora dando
apoio financeiro a artistas.
Morse foi o primeiro deles a chegar ao Japo, em 1877, para pesquisar
os braquepodos, quando foi convidado a dar aula de zoologia na
Universidade Imperial de Tquio. Foi o pioneiro no ensino da teoria de
Darwin no Japo, bem como nos estudos de antropologia e arqueologia
cientfica, com enfoque sobre os vasos de cermica da Era Jmon (13.000
a.C.-300 a.C.).
Fenollosa foi indicado por Morse a dar aula de filosofia e poltica
econmica na mesma universidade, em 1878. O seu encontro com
Okakura Kakuzo5, um dos seus alunos, teria sido fundamental para o
desenvolvimento do trabalho sobre a arte japonesa. Kakuzo converteu-se
4
O Japan day by day, o dirio de Edward Sylvester Morse, encontra-se, atualmente, arquivado
no Peabody Essex Museum, Salem, no Estado de Massachusetts.
5
Okakura Kakuzo muito conhecido como autor da publicao O livro do ch de 1906,
originalmente escrito em ingls, o que era muito raro na poca.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

66
num grande parceiro do pesquisador nas suas aes durante e depois da
estada em Tquio. Fenollosa permaneceu no Japo por 12 anos e contribuiu
muito para a valorizao da arte tradicional japonesa, realizando palestras,
numa fase em que os olhos dos japoneses estavam voltados para o Ocidente.
Foi incumbido, junto com Okakura, de fazer a lista do Tesouro Nacional
do Japo e tal fato fez com eles tivessem contato com as obras geralmente
inacessveis, guardadas em templos.
importante lembrar que as aquisies de obras artsticas por Fenollosa
no foram acertadas desde o incio, pois gosto refinado presente na coleo
foi se desenvolvendo aos poucos, aps contatos com Kano Eitoku Tatinobu,
com quem aprendeu sobre as pinturas chinesa e da escola Kano, da linhagem
dos samurais; com Sumiyoshi Hirokata, que lhe ensinou sobre a pintura
budista e da Escola Tosa, da linhagem da aristocracia. (Cfr. FENOLLOSA,
1912 p.158). O pesquisador norte-americano encantou-se com a cultura
japonesa, vindo a aprender a pintura japonesa nihonga6, e tornou-se budista,
recebendo o nome Teishin. Foi um dos primeiros estrangeiros a ser aceito
como integrante da linhagem da Escola Kano, recebendo o nome de Kano
Eitan Masanobu.
Fenollosa tentou buscar um nihonga (pintura japonesa) ideal, em que
houvesse um dilogo entre Ocidente e Japo, para o qual fundou, em 1884,
uma associao de arte denominada Kaigakai (Associao de Pintura)
que diferia do outro grupo existente, Rychikai, formado em 1879, que
conservava o estilo tradicional.
Um artista com o qual teve um contato prximo e que chegou a
comissionar foi Kano Hgai, cujas obras ele conheceu em 1882. Em uma
das obras dessa poca, Setsuzanbokeizu7 (Window landscape: a ravine), de
1883, que est no arquivo da Freer Gallery of Art em Washington, possvel
visualizar o amlgama entre a tcnica da perspectiva ocidental e o estilo
tradicional da pintura sansuiga (pintura de paisagem, literalmente pintura
de montanha e gua). Foi aos poucos que Fenollosa conseguiu conquistar
Hgai, torn-lo seu amigo, e convenc-lo a trabalhar na busca de um novo
nihonga.
6
Nihonga significa literalmente pintura japonesa e refere-se quelas obras que utilizam a
tcnica clssica nipnica, com tintas minerais e vegetais base de gua, pincel, tendo como
suporte o papel artesanal washi ou seda. Foi um termo que surgiu na Era Meiji (1868-1912)
para contrapor a yga (pintura ocidental).
7
Setsuzanbokeizu, literalmente, significa Pintura da montanha e neve ao entardecer, o que
foi traduzido para o ingls, na Freer Art Gallery, como mencionado no texto.

Michiko Okano

67
No livro Epochs of Chinese and Japanese art, de autoria de Fenollosa, no
prefcio escrito por sua segunda esposa, a escritora e poeta Mary Fenollosa,
encontra-se o registro do relacionamento dos dois: [...] o artista mais
inspirador e companheiro de trabalho foi Kano Hgai, j bem em sua idade
mediana, com um esprito esplndido e rebelde, e o ltimo dos verdadeiros
grandes artistas do velho Japo. (Fenollosa, 1921, p. XV-XVI, T.N.).
Fenollosa alm de incentivar os artistas, comprava as obras destes,
contando com a colaborao financeira do mdico americano Bigelow.
Foram tais atitudes que fizeram a pintura nihonga reaparecer renovada no
cenrio artstico, com a utilizao das tcnicas ocidentais de perspectiva e de
luz e sombra concomitantemente com procedimentos clssicos japoneses.
Verifica-se que, das nove pinturas de Hgai existentes no acervo do MFAB,
duas foram da coleo de Fenollosa e seis da de Bigelow. (Cfr. Inoue, 2012,
p.52)
Bigelow, aps se formar em medicina pela Universidade de Harvard,
foi estudar bacteriologia com Louis Pasteur em 1874, quando vivenciou o
japonismo esfuziante de Paris. Efetuou compras com o marchand Samuel
Bing e desenvolveu uma coleo de artigos em bronze e charo. Eram
objetos suficientes para fazer uma exposio, o que ocorreu aps a sua volta
cidade natal, em 1879, no MFAB de Boston. O evento foi considerado a
primeira exposio de arte japonesa nos Estados Unidos. (Cfr. M. HIGH,
2012, p.31)
Bigelow chegou ao Japo quatro anos depois de Fenollosa, em 1882,
para passar as frias, mas acabou permanecendo no pas por sete anos, at
1889. No incio da sua vida l, colecionou objetos de arte, sobremaneira
espada e charo, mas passou a expandir a sua coleo, incluindo a pintura,
a partir de 1882, provavelmente persuadido pelo seu amigo Fenollosa.
Todavia, diferente deste, que tinha uma formao clssica das escolas Kano
e Tosa, Bigelow tinha preferncia pela arte ukiyo-e, talvez influenciado pela
sua vivncia em Paris. Estudou budismo com o monge Sakurai Keitoku
Ajari no Templo Hmyin em Otsu, provncia de Shiga, por quem teve
muita considerao e afeto. De volta aos Estados Unidos, Bigelow fez
doao de cerca de quarenta mil objetos de arte para o MFAB.
Nada mais natural que o departamento oriental do MFAB tivesse
essas figuras com funes fundamentais em sua organizao. Fenollosa,
ao retornar s terras americanas, em 1890, tornou-se curador do recm-
estabelecido Departamento de Arte Oriental do Museu de Belas Artes de

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

68
Boston; Okakura, diretor da diviso de arte asitica, em 1910 e Bigelow,
diretor da instituio.
O plano j havia sido acalentado no Japo, visto que, j em 1886, Charles
Godard Weld comprou a coleo de pinturas japonesas de Fenollosa, que
a vendeu sob as condies de que as obras permanecessem no MFAB de
Boston e de que o nome dele fosse associado a elas. (Cfr. Fenollosa, 1921,
XVIII). De fato, as colees de Fenollosa e Bigelow atravessaram o oceano
e hoje ocupam espaos de importantes museus. A coleo de Bigelow,
inicialmente depositada no MFAB de Boston, foi doada para a mesma
instituio, em 1922.

Consideraes finais

O colecionismo da arte japonesa pesquisado nas duas localidades do


Ocidente apresenta contextos e objetivos distintos. O Japonismo refere-se
a uma coleo de um mundo desconhecido, alimentada pela fantasia do
extico.
A citao de Oscar Wilde ilustra bem o fato: O todo do Japo uma
pura inveno. No h um pas assim. No h pessoas assim. Se voc quer
ver um efeito do Japo, esteja na sua casa, imerso no trabalho de certos
artistas japoneses (WILDE, 1923, p. 53-54, T.N.).
No significa que fantasias de outros pases como China, ndia, Arbia
ou, mais tarde, Tahiti, Oceania e frica no tenham tido os seus lugares
no Ocidente, mas a fascinao pela arte japonesa foi a mais intensa, a mais
duradoura e a mais frutfera no universo da arte ocidental. Tal sucesso do
Japonismo deveu-se ao encontro do frtil terreno do impressionismo e
do ps-impressionismo, que buscavam uma arte para confirmar o estilo
artstico por eles proposto, que se contrapunha ao classicismo acadmico.
Camille Pissarro escreve ao seu filho Lucien, em fevereiro de 1893: A
exposio era fascinante. Hiroshige um maravilhoso artista impressionista
[...] esses artistas japoneses comprovam que o nosso modo de pensar
no estava errado. (PISARRO apud TAKASHINA, 1988. p.15, T.N.).
Verifica-se, assim, que colecionar arte japonesa na Europa era moda, era
paixo, era loucura como dizia Chesneau8, mas tambm um modo de ver e
pensar a arte.
8
Chesneau dizia que o Japonismo no mais uma moda, uma paixo, uma loucura.
(CHESNEAU, apud NAPIER, 2007, p.34)

Michiko Okano

69
No caso da coleo institucional, inicialmente guiados por um desejo
escpico, estavam os estudiosos obcecados por observar o novo, o diferente.
Entretanto, nenhum deles saiu de Boston com a ideia de realizar a coleo.
Foi no processo de conhecer o outro, o qual levou alguns anos, que
tiveram a ideia de form-la. Talvez tivessem, ao acumular os artefatos, um
desejo de satisfazer essa obsesso aps voltar aos Estados Unidos, conforme
explica M. Hight,

[...] a acumulao ou o consumo de artefatos, espcimes e


fotografias, so modos de um viajante/colecionador satisfazer a sua
obsesso quando voltar sua casa [...] mostr-los aos outros aps o
retorno sua terra de origem constitui, para esses colecionadores, a
validao da sua sofisticao cultural de ter viajado ao Japo. (M.
HIGHT,2011: p.10-11, T.N.).

O colecionismo desses americanos remeteria, portanto, noo de


memria (Cfr. Halbawachs, 1990), ou de nostalgia o objeto colecionado
permitiria evocar, reconstruir e reviver o tempo passado no Japo. Justamente
por esse motivo, os colecionadores, em geral, tendem a desenvolver um
sentimento de afetividade para com os objetos adquiridos. Todavia, no
caso estudado, esse desejo no permaneceu na esfera do privado e da
afetividade que se associa possesso dos objetos colecionados. Movidos
por um objetivo mais abrangente, os pesquisadores dedicaram-se a mostrar
o desconhecido Japo para o pblico americano, preparando o terreno para,
quem sabe, alimentar um novo Japonismo em Boston.
Se, conforme Bataille (Cfr. 1987), o hbito de colecionar tem um
sentido de permanncia, de exteriorizar a vivncia em objetos, pode-se
entender que os americanos observaram, discriminaram, ordenaram e
classificaram as peas artsticas encontradas com o objetivo de perpetuar a
experincia dos primeiros ocidentais a pisar no Japo aps o longo perodo
de isolamento do pas.
Constata-se, ento, que as primeiras colees japonesas no ocidente foi
gerada por dois tipos de colecionismo muito diferenciados. O colecionismo
americano foi marcado pela aspirao de perpetuar, por meio dos objetos, a
vida experimentada em meio cultura nipnica. Todavia, historicamente, o
caso da Frana mundialmente mais reconhecido pelo fato de ter os artistas
como colecionadores, o que proporcionou uma significativa produo de

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

70
novos signos na arte ocidental, inspirada pela coleo uma comunicao
plena desenvolvida por meio de um feliz encontro entre o emissor e o
receptor.

Bibliografia

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Michiko Okano

71
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Nova York: Doubleday, 1923.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

72
colecionismo

Coleccionismo y secularizacin
en Chile en el siglo XIX

Marcela Drien F.

Professora Universidade Adolfo Ibaez, Chile.

Durante la segunda mitad del siglo XIX, el desarrollo del coleccionismo de


arte jug un papel significativo en la formacin del gusto pblico en Chile.
Ante la ausencia de un Museo de Bellas Artes, el progresivo aumento en
la exhibicin de obras pertenecientes a coleccionistas privados ocup, en
gran medida, el rol formativo que debi haber asumido un museo nacional.
De este modo, las obras pertenecientes a colecciones privadas, provenientes
principalmente de Europa, se transformaron en medios privilegiados para
poner a las audiencias locales en contacto con las tendencias artsticas
europeas mientras sus propietarios comenzaron a adquirir prestigio
como modelos de gusto artstico. En este marco, las exposiciones de arte
en que estas obras se exhibieron se transformaron no slo en puntos de
convergencia entre lo pblico y lo privado, sino en verdaderas vitrinas en
que el gusto individual se transform en uno de los principales referentes
para modelar el gusto pblico.
Las exhibiciones visibilizaron la transformacin de nociones culturales
y artsticas en un espacio pblico local que comenzaba a adaptarse a una
cultura republicana. En el campo de las artes, uno de los aspectos que marc
con mayor claridad los cambios artsticos y culturales del perodo, fue el
lugar que ocupara la pintura religiosa. En efecto, imgenes cuyo carcter
religioso se haba vinculado a espacios pblicos de devocin durante la
colonia, se situaban ahora en el espacio secularizante de la exposicin en
que el valor esttico de la obra eclipsara su funcin devocional.
Aunque la descontextualizacin de pinturas religiosas no era una
fenmeno nuevo, pues en Europa resultaba habitual encontrar estas
obras en galeras para su comercializacin, en colecciones privadas o en

73
exhibiciones de arte1, en Chile el desplazamiento de la obra religiosa daba
cuenta de profundas transformaciones culturales. En la favorable actitud de
coleccionistas hacia obras europeas subyaca no slo un inters esttico, sino
la intencin de adoptar prcticas que buscaban por sobre todo alinearse
con un modelo cultural europeo y marcar un distanciamiento respecto del
pasado colonial.
La actitud de desdn que demostr la elite cultural respecto de la colonia
al llegar la dcada de 1850, se expres en gran medida en la ausencia de
pintura religiosa colonial en instancias expositivas y su sustitucin por obras
europeas de temtica religiosa -principalmente pintura barroca italiana,
espaola y flamenca- en torno a las cuales comenzaran a predominar
consideraciones relativas a las cualidades artsticas, procedencia y autora.
La favorable actitud de los coleccionistas frente a las obras europeas
y el rechazo de las obras coloniales se expres por primera vez en la
exposicin de pinturas organizada por la Sociedad de Instruccin Primaria
en 1856, que marc la primera aparicin pblica de obras pertenecientes a
colecciones privadas en el pas2. La Sociedad haba sido creada por un grupo
de jvenes liberales imbuidos de un espritu ilustrado que consideraba la
educacin como una de las mayores herramientas civilizatorias, pues la
ignorancia, afirmaban, era el mayor de los males de una sociedad, y deba
combatirse a toda costa para alcanzar el progreso de la nacin.3 Tal como
lo afirmaba uno de sus fundadores, Miguel Luis Amuntegui, la educacin
resultaba fundamental para lograr el desarrollo en todos los mbitos de la
vida nacional, incluyendo la industria, la literatura, la poltica, la religin, las
ciencias y las artes.4

1
REIST, I.: Sacred Art in the Profane New World of Nineteenth Century America. Gail
Feigenbaum y Sybille Ebert-Schifferer: Sacred Possessions: Collecting Italian Religious Art,
1500-1900. Los Angeles: Getty Publications, 2011.
2
La exposicin de 1856, se enmarc en un conjunto de actividades filantrpicas organiza-
das por la recientemente formada Sociedad de Instruccin Primaria para recaudar fondos
destinados al fomento de la educacin en los sectores populares. Segunda Resea. De los
trabajos de la Sociedad de Instruccin Primaria leda por uno de sus secretarios en la sesin
general y extraordinaria el 28 de Diciembre de 1856. Coleccin de documentos relativos a la
Sociedad de Instruccin Primaria de Santiago (Cuaderno Primero), Santiago, 1857, pg. 264.
3
Sobre el debate en torno a la educacin, que dio origen a la Sociedad de Instruccin
Primaria, vase EGAA, M. L.: La educacin primaria popular en el siglo XIX en Chile: una
prctica de poltica estatal, Santiago: LOM, 2000.
4
Cfr. Discurso pronunciado por don Miguel L. Amuntegui a la apertura de la Sociedad
de Instruccin Primaria. Coleccin de documentos: pg. 237.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

74
Fue precisamente el reconocimiento de la significancia cultural de las
artes y del rol civilizatorio de las exposiciones5, el que llev a la Sociedad a
organizar exposiciones de arte regularmente.6 Aunque para la exposicin de
1856 no se mencionan referencias directas al papel del arte en el desarrollo
de la nacin, en el contexto de la exposicin organizada por la Sociedad en
1858, las alusiones a su rol civilizatorio fueron explcitas. Benjamn Vicua
Mackenna, Secretario de la Sociedad de Instruccin Primaria, insista
en que la educacin del gusto era importante no solo para los crculos
refinados, sino tambin para la gente comn. Era preciso, afirmaba, que el
pueblo, los artesanos los rotos, las beatas, los chiquillos de la calle se iniciaran
de algn modo en el mjico atractivo del arte, pues este sera una semilla
civilizadora arrojada en su intelijencia.7 Las exposiciones, deca, permitan
a los visitantes comparar las obras y que, segn afirmaba, resultaba esencial
para la educacin del gusto8.
As, la exposicin de 1856, inaugurada en medio de la celebracin de
las fiestas patrias9, permitira mostrar el progreso econmico y cultural que
el pas haba alcanzado hasta entonces a travs de la exhibicin de ms

5
En este marco, el concepto de rituales civilizatorios (civilizing rituals) utilizado por
Carol Duncan para referirse a la experiencia del museo parece especialmente pertinente
para graficar los efectos transformadores atribuidos no slo al arte, sino a las prcticas ex-
hibitorias sobre sus respectivos pblicos durante el siglo XIX. DUNCAN, C.: Civilizing
Rituals. Inside the Public Art Museums, New York: Routledge, 2005, pg. 13. Sobre las exposi-
ciones de arte y la idea de civilizacin en el campo cultural y artstico chileno, vase BER-
ROS, P. et Al.: Del Taller a las Aulas. La institucin moderna del arte en Chile (1797-1910).
Santiago: LOM, 2009, pgs.157-169.
6
Sobre esta y las siguientes las exposiciones realizadas por la Sociedad de Instruccin Pri-
maria, vase RODRGUEZ VILLEGAS, H.: Exposiciones de Arte en Santiago 1843-
1887. Fundacin Mario Gngora: M. Formas de Sociabilidad en Chile, Editorial Vivaria,
Santiago 1992, pgs. 293-298; BERROS, P. et Al: Op. Cit: pgs. 160-166.
7
VICUA MACKENNA, B.: Una Visita a la Exposicion de Pinturas de 1858. Por uno de
los Comisionados de la Sociedad de Instruccin Primaria. Imprenta del Pas, Santiago 1858,
pg. 4. Este texto fue publicado tambin en la Revista del Pacfico, Tomo I, (Valparaso: Im-
prenta del Mercurio, 1858), lo que arroja luces sobre el grado de difusin que alcanz esta
exposicin y las ideas de Vicua Mackenna.
8
Ibidem.
9
La fecha elegida para la apertura de la exposicin, utilizada para la mayor parte de las
exposiciones realizadas durante el siglo XIX en el pas, demuestra el inters de los organi-
zadores por reafirmar el espritu republicano y cvico que haba animado la formacin de la
propia Sociedad de Instruccin Primaria y que caracterizara a las siguientes exposiciones
de la institucin.

Marcela Drien F.

75
de 140 pinturas, la mayor parte de las cuales perteneca a coleccionistas
privados.10
La muestra logr reunir 142 cuadros, el grupo de obras de arte ms
numeroso de pinturas jams exhibido en el pas. Tal como se anunciaba
en el diario El Mercurio, se trataba de la ms magnfica exposicin de
pintura11 en que todas las familias de la capital que tenan algn tesoro
de este arte se presentaron gustosas12. Ms an, el propio director de la
Academia de Pintura, Alejandro Ciccarelli, haba contribuido a destacar la
importancia de la muestra, tal como lo consignaba la prensa de la poca:
es sabido que dicha exposicin es la ms bella i variada coleccin de cuadros
que pudiera formarse no solo en Chile sino en la Amrica del Sud. Tal es
por lo menos la opinin del inteligente seor Cicarelli13.
Del conjunto de obras en exhibicin, 122 pertenecan a coleccionistas
privados entre los que se encontraban Marcial Gonzlez (1819-1887), que
present cincuenta y cinco pinturas; Diego Barros Arana (1830-1907),
propietario de veinte de las obras; Matas Cousio (1810-1863) dueo
de once obras; Ventura Blanco Encalada (1782-1856), que expuso ocho
pinturas y Rafael Larran Mox (1813-1892) y Monseor Jos Ignacio
Vctor Eyzaguirre (1817-1875), ambos con siete obras cada uno14. Otros
diez cuadros formaban parte de la Galera Nacional, cinco provenan de
la coleccin de la Academia de Pintura, y las cinco restantes pertenecan a
Ciccarelli15. Si bien la variedad de las obras constituy uno de los aspectos
10
An cuando las exhibicin de obras de arte no era poco frecuente en el pas, como se
aprecia en aquellas realizadas en la Academia de Pintura o en las Exposiciones Nacionales,
esta muestra fue la primera en exhibir obras mayoritariamente europeas. Vase Catlogo
de los cuadros que contiene la Exposicin de Bellas Artes de la Sociedad de Instruccin Primaria,
Imprenta del Ferrocarril, Santiago, 18 de septiembre de 1856.
11
El Mercurio, Viernes 12 de septiembre de 1856.
12
Resea (I). De los trabajo se la Sociedad de Instruccin Primaria leda por uno de sus
secretarios en la sesin general y extraordinaria el 17 de Septiembre de 1856. Coleccin de
documentos relativos a la Sociedad de Instruccin Primaria de Santiago (Cuaderno Primero),
Santiago, 1857, pg. 258.
13
El Ferrocarril, 25 de septiembre de 1856.
14
Catlogo de los cuadros...
15 Aunque la mayor parte de las obras en exhibicin perteneca a colecciones privadas, la
inclusin de pinturas de propiedad estatal puede explicarse por el hecho de que la exposicin
se realizara en la Academia de Pintura, presumiblemente por gestin de su director, quien
colabor en la organizacin de la exposicin y que posiblemente vio en esta muestra una
oportunidad para promover su propia gestin a cargo de la institucin. Si bien la organi-
zacin de la exposicin estuvo en manos de uno de los fundadores y Vicepresidente de la

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

76
relevantes de la exposicin, los gneros pictricos incluidos en ella resultan
especialmente reveladores no slo del gusto de los coleccionistas y del tipo
de obras en circulacin en el pas, sino de la mayoritaria presencia de la
pintura religiosa, de origen europeo. Al menos 40 de las obras en exhibicin
representaban temticas religiosas, mientras poco ms de 30 correspondan
a paisaje y 20 a retrato. Las obras restantes incluan pintura de gnero y
marinas. Slo dos ejemplos representaban a la escuela antigua de Quito,
aunque ninguna de estas dos obras, pertenecientes a Marcial Gonzlez,
corresponda a pinturas de temtica religiosa, sino mitolgica.16
La muestra no slo dej en evidencia el marcado predominio de
nociones estticas de influencia europea entre los propietarios de estas
obras y el distanciamiento respecto de modelos artsticos coloniales, sino
que enfatiz especficamente un aspecto de la obra religiosa, a saber, su
cualidad de obra de arte.
Sin embargo, la fuerte presencia de obras europeas en el espacio
pblico no signific la desaparicin de la pintura colonial, sino ms bien, su
privatizacin. El paulatino abandono de las nociones culturales y artsticas
que haban marcado el desarrollo del arte religioso durante la colonia, haba
comenzado a percibirse en la lenta, pero sostenida disminucin de encargos
de arte religioso visible ya a mediados del siglo XIX. 17 As, a pesar de esta
pervivencia del arte colonial a lo largo del siglo, su participacin en el
contexto de las exposiciones de arte, ser muy reducida. Este fenmeno se

Sociedad de Instruccin Primaria, Marcial Gonzlez, Ciccarelli haba ofrecido su colabo-


racin en esta tarea. Notablemente, la estrecha relacin entre ambos se expres no solo en
la colaboracin y participacin de Ciccarelli en la muestra, sino en el hecho de que siete de
las obras del artista italiano en exhibicin, pertenecan a la coleccin de Marcial Gonzlez.
De acuerdo al catlogo de la exposicin, las obras de Ciccarelli de propiedad de Gonzlez
eran: El Castillo del Huevo (efecto de luna); Vista del Valle de Santiago, efecto de sol tomado de
Pealoln; Dos vistas del Estrecho de Magallanes; Filctetes abandonado, hoy parte de la colec-
cin del Museo Nacional de Bellas Artes; Telmaco i Termosiris y La Venus de las Aguas. Ibid.
16
Segn el catlogo se trata de La infancia de Baco y Venus i los amores. Ibid.: pg. 9.
17
Hasta entonces, y tal como lo sealaba Amuntegui, el arte quiteo haba sido especial-
mente popular no slo en el mbito de las instituciones religiosas, sino tambin en el mbito
privado, debido a su bajo costo. AMUNATEGUI, M.L.: Apuntes sobre lo que han sido
las Bellas-Artes en Chile. Revista de Santiago, Tomo III, 1849, pgs. 44-45. Segn Alex-
andra Kennedy, la comercializacin de arte quiteo y su fuerte presencia en Chile durante
la primera mitad del siglo XIX y hasta 1870, se debi ms bien al asentamiento de artistas
quiteos en el pas. Sobre la circulacin de obras quiteas en Chile vase KENNEDY, A.:
Circuitos artsticos interregionales: De Quito a Chile. Siglos XVIII y XIX. Historia, Vol.
31, 1998, pgs. 87-111.

Marcela Drien F.

77
explica en parte por la apertura de nuevos mercados tras la Independencia,
que haba favorecido la circulacin de obras de arte y artistas en el pas.
Si bien el carcter secular de las exposiciones de arte contribuy
considerablemente a neutralizar la funcin devocional de la pintura religiosa,
la consideracin esttica de estas obras debe ser considerada tambin en el
marco del gradual proceso de secularizacin que se iniciara en el contexto
republicano.18
En este sentido, la exposicin de arte tuvo un rol central en la
definicin del carcter y la percepcin pblica de la obra religiosa. As, la
preocupacin por la dimensin esttica de la obra se expres a travs del
marcado inters por el dominio de las destrezas del artista. Ms an, la
exposicin pareci reforzar un argumento que Miguel Luis Amuntegui
tempranamente esgrima para explicar la inferioridad de la pintura colonial.
Segn Amuntegui, las debilidades del arte barroco colonial y especialmente
el quiteo se deba principalmente a las dificultades de los artistas para
ajustarse a los principios artsticos europeos:

Los Quiteos no saben combinar la luz i la sombra i por eso no producen


ningn efecto. Los individuos que colocan en sus lienzos parece que
estuvieran tendidos y no de pi; aquel que el pintor ha querido presentar a
lo ljos, en el fondo, el espectador lo percibe como quien dice codendose con
el que ocupa el primer trmino; en una palabra, no tienen perspectiva. I
qu decir del modo como dibujan? Salta a los ojos que no han aprendido.
No son figuras humanas, son monstruos los que delinean.19

El comentario de Amuntegui, expresado algunos aos antes de la


exposicin, omite consideraciones sobre la funcin religiosa de las imgenes
en favor de asuntos como el uso de la perspectiva y la falta de dominio del
dibujo, anticipando el criterio que guiara a los coleccionistas al momento de
seleccionar las pinturas para la exposicin, todas ellas de artistas europeos.
Junto a la calidad de las obras, el prestigio del pintor, especialmente
tratndose de grandes maestros, se transform en un aspecto determinante
en la valoracin pblica de estas pinturas. En este sentido la obra europea
18
Sobre el proceso de secularizacin en Chile durante el siglo XIX, el estudio de Sol Serrano
resulta especialmente relevante para comprender el lugar que ocupa la religin en el espacio
pblico y los cambios que las relaciones entre religin y poltica experimentan durante la
segunda mitad del siglo XIX. SERRANO, S.: Qu hacer con Dios en la Repblica? Poltica y
secularizacin en Chile (1845-1885). Santiago: Fondo de Cultura Econmica, 2008.
19
AMUNTEGUI, Op. Cit: pg. 44.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

78
marcaba tambin una diferencia sustancial respecto de la pintura colonial,
en que la autora no constitua una preocupacin.20
El nfasis en la importancia del artista se apreci tambin en el hecho
de que los comentarios sobre la exposicin de 1856, no reflejaran inters
alguno por la temtica de los cuadros, sino por el prestigio del artista,
que con frecuencia ira acompaado por la valoracin de las obras, que en
muchos casos se asumieron entusiastamente como originales:
La Academia de Pintura que dirije el seor Cicarelli est adornada con
ciento cuarenta cuadros, de lo mejor que se encuentra en Santiago. Hai
entre ellos dos orijinales de Rubens, uno de Murillo, dos de Ribera, uno
de Teniers, otros de Jos Vernet, otro de Rembrand, de Salvator Rosa, de
Crlos Marata, de Sasso Ferrata, de Monvoisin i muchos otros artistas de
un mrito distinguido i de gran celebridad.21

Aunque la muestra de 1856 incluy obras de temtica religiosa


como las de Ribera, Maratta y Rubens, ello respondi no al inters de
los coleccionistas en estos temas, sino ms bien al inters por poseer
obras de grandes maestros europeos. Posiblemente la nica excepcin en
este sentido fue Monseor Jos Ignacio Vctor Eyzaguirre quien logr
conciliar en su coleccin, ambos intereses, es decir, el tema religioso de
las obras y el origen europeo de los artistas, aunque su participacin en
esta exposicin sugiere una especial preocupacin por el aspecto esttico
de los cuadros. La preferencia de Monseor Eyzaguirre por exhibir obras
europeas -principalmente italianas- y no obras religiosas coloniales resulta
especialmente reveladora de la forma en que la influencia europea perme
incluso el mbito religioso, tendencia que se consolidara en el transcurso
del siglo.
Ante la gradual desaparicin pblica de la imagen de devocin colonial,
evidente ya para mediados del siglo XIX, resulta imposible negar que
mientras su lugar se reduca al mbito privado, el de la obra europea se haba
extendido ms all del mbito de devocin. Transformadas en objetos de
contemplacin esttica, las imgenes de santos y escenas bblicas surgidas de
los pinceles de reconocidos artistas europeos resultaban fundamentales para
dar cuenta del refinado gusto artstico de sus propietarios y del desarrollo
20
Tal como lo consigna Alejandra Kennedy, mientras en Europa el artista reciba especial
reconocimiento, en el contexto americano persista el anonimato. KENNEDY, Op. Cit:
pg. 95.
21
El Ferrocarril, 17 de septiembre de 1856.

Marcela Drien F.

79
cultural al que tanto aspiraba la elite chilena. En este proceso, seran los
coleccionistas los encargados de posicionar pblicamente estas obras como
referentes artsticos y culturales y las exposiciones de arte, constituiran su
principal plataforma.

BIBLIOGRAFA

_____Catlogo de los cuadros que contiene la Exposicin de Bellas Artes de la


Sociedad de Instruccin Primaria, Imprenta del Ferrocarril, Santiago, 18 de
septiembre de 1856.

_____Discurso pronunciado por don Miguel L. Amuntegui a la apertura


de la Sociedad de Instruccin Primaria. Coleccin de documentos relativos
a la Sociedad de Instruccin Primaria de Santiago (Cuaderno Primero).
Santiago, 1857.

_____Resea (I). De los trabajo se la Sociedad de Instruccin Primaria


leda por uno de sus secretarios en la sesin general y extraordinaria el 17
de Septiembre de 1856. Coleccin de documentos relativos a la Sociedad de
Instruccin Primaria de Santiago (Cuaderno Primero). Santiago, 1857.

_____Segunda Resea. De los trabajos de la Sociedad de Instruccin


Primaria leda por uno de sus secretarios en la sesin general y extraordinaria
el 28 de Diciembre de 1856 en Coleccin de documentos relativos a la Sociedad
de Instruccin Primaria de Santiago (Cuaderno Primero). Santiago, 1857.

AMUNTEGUI, Miguel Luis, Apuntes sobre lo que han sido las Bellas-
Artes en Chile. Revista de Santiago, Tomo III, 1849, pgs. 37-47.

BERROS, Pablo et Al. Del Taller a las Aulas. La institucin moderna del
arte en Chile (1797-1910). Santiago: LOM Ediciones, 2009.

DUNCAN, Carol, Civilizing Rituals. Inside the Public Art Museums, New
York: Routledge, 2005.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

80
EGAA, Mara Loreto, La educacin primaria popular en el siglo XIX en
Chile: una prctica de poltica estatal, Santiago: LOM, 2000.

KENNEDY, Alexandra, Circuitos artsticos interregionales: De Quito a


Chile. Siglos XVIII y XIX. Historia, Vol. 31, 1998, pgs. 87-111.

REIST, I.: Sacred Art in the Profane New World of Nineteenth


Century America. Gail Feigenbaum y Sybille Ebert-Schifferer: Sacred
Possessions: Collecting Italian Religious Art, 1500-1900. Los Angeles: Getty
Publications, 2011.

RODRGUEZ VILLEGAS, Hernn, Exposiciones de Arte en Santiago


1843-1887. Agulhon, Maurice. Formas de Sociabilidad en Chile, Editorial
Vivaria, Santiago 1992, pgs. 293-298.

SERRANO, Sol, Qu hacer con Dios en la Repblica? Poltica y secularizacin


en Chile (1845-1885), Fondo de Cultura Econmica, Santiago 2008.

VICUA MACKENNA, Benjamn, Una Visita a la Exposicion de Pinturas


de 1858. Por uno de los Comisionados de la Sociedad de Instruccin Primaria.
Imprenta del Pas, Santiago 1858.

Peridicos

El Ferrocarril, 17 de septiembre de 1856.


El Ferrocarril, 25 de septiembre de 1856.
El Mercurio, 12 de septiembre de 1856.

Marcela Drien F.

81
colecionismo

As desconhecidas colees de Antonio Alves Villares da Silva:


engenharia e colecionismo em So Paulo
na primeira metade do sculo XX

Ana Paula Nascimento

Pesquisador - Ps-Doutoramento Capes/PNPD.


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo
Departamento de Histria da Arquitetura e Esttica do Projeto

Definiu-se a coleo como


um conjunto de objetos expostos ao olhar.
Mas ao olhar de quem?
Krzysztof Pomian, Coleo

H sculos a humanidade coleciona objetos. Se at pelo menos no Renas-


cimento as grandes colees pertenciam apenas aos reis e prncipes, com a
ampliao da burguesia os conjuntos ordenados de peas se proliferam por
toda a Europa, especialmente a partir do sculo XVII, chegando s Amri-
cas. Todavia, o hbito de colecionar se difunde com maior vigor no sculo
XIX entre diversas camadas sociais. No Brasil, a partir do final do sculo
XIX que comeam a ser conhecidas algumas colees, a princpio no Rio
de Janeiro e, posteriormente, em So Paulo.
Mas por que algum passa a colecionar? Se para alguns uma coleo
uma tentativa de possuir um microcosmo do mundo, para outros pode
significar prestgio, riqueza e pertencimento dentro de determinado grupo.
Porm, apesar dos diferentes focos, todos os que se dedicam a esta atividade
sabem que so necessrios tempo, recursos e dedicao para localizar, esco-
lher, estudar, fruir, cuidar e, principalmente, manter os objetos.
Assim, colecionar exige foco, persistncia e organizao. H sempre as
fases de buscas, as aquisies para a reunio das peas to desejadas. Uma
coleo feita por gosto e seguindo sentimentos singulares que misturam
posse e prazer, representam sucesso e um orgulho muitas vezes dissimulado
em cada escolha. Egosmo, vaidade, compulso e uma vontade (por vezes

83
recolhida) de aprovao, distino e mrito permeiam e so constituivos do
ato de colecionar.
Um colecionador d valor aos objetos a partir de selees muitas ve-
zes subjetivas, conceitos de valores particulares, meios disponveis e poten-
cialidades do momento. A distino, iniciada na possibilidade de compra,
continua no acesso permitido apenas a grupo seleto. Ele busca, ao mesmo
tempo, assegurar a imortalidade para si mesmo e para a sua coleo. o
detentor de uma certa autoridade sobre a rea em que se dedica, pois cabe
a ele classificar, incluir, excluir e, sobretudo, eleger.

O colecionismo em So Paulo na primeira metade do sculo XX

A figura do colecionador apaixonado surge na So Paulo do sculo XX


e sua existncia est diretamente ligada aos avanos econmicos alcanados
pela cidade. Como o ato de colecionar eminentemente urbano, junto com
o corpo de melhorias habitacionais, o hbito de possuir objetos seletos pas-
sou a existir em diversos segmentos.
Nas novas residncias, repletas de cmodos e com diviso hierrquica
e espacial extremamente delimitada, a sala ou grande salo era o espao da
consagrao social. Naqueles ambientes sociais os tesouros eram expostos
admirao: vitrines repletas de colees distintas competiam pela cap-
tura do olhar com xcaras, lbuns, medalhes, peas de bronze, quadros,
estatuetas e mveis. Esses ambientes, aos olhos de hoje, locais de acmulo,
tinham como principal inteno propiciar locais agradveis, aos moldes dos
padres de uma burguesia europeia.
Os engenheiros responsveis pela disseminao da arquitetura ecltica
na cidade, assim como vrios de seus clientes, tambm reservavam parte
de seu tempo e de seu dinheiro para a formao de conjuntos de obras
artsticas, podendo ser destacados: Francisco de Paula Ramos de Azevedo,
Tommaso G. Bezzi, Victor Dubugras, Jorge Krug, Samuel A. das Neves,
Domiziano Rossi, Ricardo Severo, Heribaldo Siciliano e Antonio Alves
Villares da Silva (AAVS).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

84
As colees AAVS

[...] Voltaria para a cidade... no, iria a So Paulo, fixar-se-ia a de


vez, compraria um terreno em um bairro aristocrtico, na rua Alegre,
em Santa Ifignia, no Ch, construiria um palacete elegante, gracio-
so, rendilhado, oriental, que sobressasse, que levasse de vencida
esses barraces de tijolos, esses monstrengos impossveis que por a
avultam, chatos, extravagantes, fazendeira, cosmopolita, sem hi-
giene, sem arquitetura, sem gosto. F-lo-ia sob a direo de Ramos
de Azevedo, tomaria como decoradores e ornamentistas Aurlio de
Figueiredo e Almeida Jnior.
Jlio Ribeiro, A carne

AAVS, ainda que no seja citado com frequncia na escassa bibliogra-
fia sobre o colecionismo paulistano da primeira metade do sculo XX, pos-
sui todas as caractersticas para ser enquadrado neste perfil. Se a fase inicial
de sua biografia em muito se difere da de outros colecionadores, fato que
a partir do seu trabalho passou a ter acesso a muitos bens e obras e assim
pde ser admitido em tal grupo seleto. Era origem pauprrima, filho de
imigrantes portugueses que ficou rfo ainda na infncia. Aos 12 anos foi
encaminhado para o Instituto Dona Ana Rosa (So Paulo). Em 1905 con-
clui os estudos ginasiais no tradicional Ginsio do Estado Culto Cincia,
em Campinas. Ingressa na Escola Politcnica em 1906. Conclui o curso em
1911, especializando-se no clculo de estruturas em concreto armado.
Recm-formado realiza diversos trabalhos antes de constituir a Sici-
liano e Silva, em parceria com Heribaldo Siciliano, engenheiro-arquiteto
igualmente formado pela Escola Politcnica (1903). A sociedade compre-
endeu o perodo de 1920 a 1940 e foi responsvel por obras parciais, proje-
tos e diversas construes.
Em 1921 casa-se com Jandyra da Fonseca Moraes Galvo; passam a
residir na alameda Itu, 78, em residncia construda pelo engenheiro no
ano anterior. Ainda que muito reservado, teve grande trnsito profissional
e poltico, pois foi amigo de Jlio Prestes, por exemplo. Aps a liquidao
da Siciliano & Silva, AAVS passou a administrar o slido patrimnio que
ergueu e dedicou-se com afinco s leituras e aos estudos clssicos.
Teria ele formado uma ou diversas colees? Sob a tica atual, aparen-
temente AAVS muito se empenhou para viver cercado por um mundo em
miniatura do que poderia ser considerado um padro de excelncia naquele

Ana Paula Nascimento

85
momento. O ponto de partida talvez tenha sido a construo de sua majes-
tosa residncia na alameda Itu. nessa casa que se d o cenrio para as suas
colees. Quando se observam as fotos da residncia, tem-se a impresso
que cada pequeno trecho da rea social estava ali disposio daqueles to
caros objetos, sendo ela a sntese destes vrios conjuntos.
Como muitas casas do perodo, nasceu pequena, sendo posteriormen-
te ampliada. Aqui novamente um paralelo com as colees: inicialmente
deveria contar com pouco livros, obras e pinturas. Parece que a casa passa
ento a ser projetada e vivida para dispor aquela imensa quantidade de pe-
as, pinturas e livros. Nas reas sociais no h, digamos, vazios. Ainda em
consonncia com as construes eclticas, a coleo se espalha parede aps
parede pelos aposentos: quadros so circundados pelos pratos e medalhes;
diversos armrios apresentam organizao impecvel de peas de pequenas
dimenses; vasos possuem lugares de destaque a partir da colocao em
mveis especiais.
Ao lado de suas atividades profissionais, AAVS teve uma grande ener-
gia para reunir livros, pinturas e uma grande profuso de porcelanas. Ele
no estava sozinho nesta empreitada: pelo que foi escolhido, pelo zelo como
tudo foi conservado, ntido o interesse de sua esposa, Jandyra. Ao folhear-
mos os catlogos de leiles que at hoje resistem na biblioteca que foi pre-
servada, podem ser notadas anotaes; ao mesmo tempo, Jandyra foi a prin-
cipal responsvel pela salvaguarda do conjunto: o catalogou em impecvel
caderno como os antigos livros de tombo dos museus e, igualmente,
cuidou dos objetos realizando a higienizao e organizao das peas. Da
mesma maneira, algumas das preferncias parecem de fato extremamen-
te femininas, como algumas das to delicadas xcaras chinesas da Famlia
Rosa ou o grande nmero de pinturas com mulheres lendo ou em outras
atividades, universo este muito distante do de um homem de negcios.
Uma das possveis formas de entender a coleo dividindo-a em trs
conjuntos principais: a biblioteca, as peas relacionados s artes decorativas
e as pinturas. difcil precisar quando os conjuntos passam a ser formados.
H indcios de que no princpio da dcada de 1920, AAVS j tinha grande
interesse por arte e realizava aquisies, dada a coleo de catlogos de lei-
les ou mesmo os guias de museus. Possivelmente fez muitas compras na
prpria cidade de So Paulo nos leiles supracitados, nas exposies locais
e ainda nas poucas casas especializadas, , no Rio de Janeiro, em viagens ao

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

86
exterior e at mesmo por intermdio de marchands, como o comerciante
Lus Assuno.

A biblioteca AAVS

De modo algum a aquisio de livros se resolve apenas com di-


nheiro ou apenas com o conhecimento de perito. Nem mesmo estes
dois fatores juntos bastam para o estabelecimento de um verdadeira
biblioteca, que sempre contm, ao mesmo tempo, o inescrutvel e o
inconfundvel.
Walter Benjamin, Desempacotando minha biblioteca

A vontade de reunir todo o conhecimento existente, eixo de criao


da Encyclopdie organizada por dAlembert e Diderot na segunda metade
do sculo XVII, move muitos dos colecionadores. Em determinadas sries,
eles querem reunir o maior conjunto de peas e, se possvel, as mais raras e
belas. Antonio Alves Villares da Silva no fugiu a essa regra
A biblioteca AAVS rene publicaes de diferentes reas: as relativas
ao exerccio profissional livros e tratados de engenharia e arquitetura,
compndios, revistas especializadas, relatrios de obras, entre outros; os li-
vros de literatura em diversas lnguas, notadamente o francs; e, por fim, as
publicaes relacionadas s artes. A biblioteca tem uma relao estreita com
a coleo artstica. Dessa maneira, parcela dos livros pode ter servido como
fonte de pesquisa bibliogrfica sobre a prpria coleo.
Do livros sobre artes h muitos tericos, vrios sobre museus no mun-
do e diversas monografias especialmente de artistas representados na cole-
o, alm de manuais dedicados especialmente prtica do colecionismo
e os inmeros livros sobre porcelanas. H ainda uma frao dedicada s
revistas especializadas em arte e colees artsticas. Contudo, a parte que
mais interessa aqui relaciona-se aos catlogos de leiles, sejam os genricos
organizados por casas especializadas ou de vendas de conjuntos artsticos
especficos. Entre as dcadas de 1920 e 1950 possivelmente o perodo em
que a coleo AAVS ganhou corpo foram profcuos os leiles de grandes
colees, pois h uma grande mudana nos membros das camadas abasta-
das.
Pelo material ainda disponvel, h indicaes de que AAVS frequentou
(e tambm comprou obras) da maioria dos grandes leiles realizados nas
cidades de So Paulo e do Rio de Janeiro. interessante notar que muitos

Ana Paula Nascimento

87
dos catlogos trazem anotados as peas adquiridas pelo prprio AAVS ou
mesmo por outros participantes. As publicaes compreendem as dcadas
de 1920 a 1950.

Porcelanas e afins

Sobre os consolos, sobre os dunquerques, em vitrinas, em armrios


de pau ferro rendilhado, em tagres, pelas paredes, por toda a parte
semearia porcelanas profusamente, prodigamente as da China com
o seu branco leitoso, de creme, com as suas cores alegres suavissima-
mente vividas, as do Japo, rubro e ouro, magnficas, provocadoras,
luxuosas, fascinantes; os grs de Satzuma, artsticos, trabalhos rabes
pelo estilo, europeus pela correo do desenho.
Jlio Ribeiro, A carne

Na coleo AAVS sobressaem as peas relacionadas s ditas artes de-


corativas, presentes em muitos leiles e mostras do perodo e, igualmente,
em diversas colees formadas naquela poca. Tais objetos, inicialmente
com inteno utilitria, mas feitos com procedimentos semelhantes aos da
arte e materiais preciosos, por sua raridade tambm so afastados da funo
original e tm suas caractersticas estticas enfatizadas.
O maior conjunto da coleo concentra-se nas porcelanas, louas e
faianas: so dezenas e dezenas de peas, como vasos de diversos tamanhos
e formas, potiches, travessas, pratos, medalhes, servios completos de jan-
tar e de ch, xcaras, jarras, canecas, bowls, fruteiras e molheiras. Muitas
so de origem europeia porcelanas e faianas inglesas, francesas, italianas,
alems, dinamarquesas, austracas, holandesas e portuguesas principal-
mente dos sculos XVIII e XIX. Todavia, o maior grupo e que talvez o
que apresente as peas mais significativas o das porcelanas orientais, no-
tadamente chinesa de gosto europeu e, em menor nmero, japonesa. H
peas que datam do sculo XV, mas a maior parte foi produzida nos sculos
XVII e XVIII. De algumas h exemplares semelhantes em alguns museus
como o Muse Grevin, Paris; Victoria and Albert Museum, Londres; ou no
Metropolitam Museum of Art, Nova York, o que colabora para legitimar
a coleo.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

88
A temtica principal recai sobre os diversos tipos de decoraes florais,
muitas peas das Famlias Rosa e Verde. H ainda as paisagens orientais em
grande nmero, cenas pastorais e mitolgicas, peas comemorativas e outro
grupo de louas brasonadas, to caras grande maioria dos colecionadores
brasileiros de porcelanas.
Outras peas relacionados s artes decorativas so as estatuetas, as pe-
as em bronze e mrmore, os relgios, as placas decorativas, as pratas, os
cristais, os faqueiros, os leques, as caixas, os candelabros etc.

Pinturas

Seguindo as normas das camadas sociais abastadas, a residncia de


AAVS apresenta toda uma hierarquia prpria para tais construes: possua
um grande nmero de cmodos, separao ntida entre as reas sociais, as
de uso cotidiano e as de servio. Ou seja, a parte para ser exibida, a na qual
de fato se vive e a que d apoio para as outras duas. As pinturas expostas
seguem de alguma maneira tal ordem, apesar de ser possvel notar algumas
transgresses, talvez por questes de gosto pessoal ou porque a coleo est
sempre em transformao: novas peas so adquiridas, algumas podem ser
doadas ou at mesmo vendidas.
De qualquer maneira, a maioria das obras estava distribuda nas re-
as sociais: no grande salo, na sala de jantar, no hall de entrada e na sala
do hall. Nos espaos de uso cotidiano tambm estavam dispostas algumas
pinturas, como nas salas de almoo e estar dirio, normalmente de autores
menos conhecidos e com dimenses menores. As partes da residncia emi-
nentemente masculinas igualmente tinham em suas paredes pinturas: na
biblioteca e na sala de bilhar, por exemplo.
Da mesma forma, a seleo das temticas segue padres pr-estabele-
cidos: a maioria das pinturas esto relacionadas com as paisagens sejam
cenas pastoris ou algumas poucas urbanas, pinturas de gnero, figuras, ma-
rinhas, pintura religiosa, nus (quase exclusivamente nas reas consideradas
masculinas da residncia) , temas literrios ou de batalha, retratos, flores
e apenas uma natureza-morta. No existem na coleo os to encontrados
retratos do patriarca e da matriarca, possivelmente por causa da origem
familiar do engenheiro.

Ana Paula Nascimento

89
Se forem relacionados os cmodos com os gneros teremos um melhor
entendimento da organizao espacial da coleo: na biblioteca, ao lado das
porcelanas, apenas figuras de contedo moralizante (mendigos). No salo
local aberto apenas para os grandes eventos sociais , marinha, pinturas
religiosas, as melhores pinturas de autores nacionais, paisagens, cenas de
gnero com mulheres recostadas ou lendo e figuras. Na sala de jantar, o
destaque recai sobre as cenas pastoris e, em seguida, as pinturas religiosas.
No hall de entrada predominam as paisagens, as cenas femininas e, excep-
cionalmente h um pastel de um nu uma exceo para os padres da po-
ca. Na sala do hall, cenas de interiores, um retrato de Napoleo Bonaparte
e algumas paisagens. Na sala de almoo dirio, a nica natureza-morta do
conjunto. Na saleta de estar dirio, figuras femininas e uma pintura de flo-
res. Na ala da casa reservada ao patriarca, como o hall e a escada para o
poro, a sala do cravo e a sala do bilhar, h obras de praticamente todos os
gneros colecionados. Tratam-se normalmente de trabalhos menores e au-
tores pouco conhecidos. No quarto do patriarca, outros nus, cena religiosa
e paisagens.
Como a maioria das colees do perodo, ou mesmo de dcadas ante-
riores, a escolha incide prioritariamente sobre estrangeiros, especialmente
italianos e franceses. Dos artistas brasileiros a preferncia se d para os
artistas que estudaram na Academia Imperial de Belas Artes ou na Escola
Nacional de Belas Artes com estudos complementares na Europa, princi-
palmente em Paris como Almeida Jnior, Rodolpho Amodo, Oscar Perei-
ra da Silva e Eliseu Visconti.

Nem s de presenas vivem as colees

Uma coleo tambm prev lacunas, atos falhos, vontades que no pu-
deram ser satisfeitas. De alguns leiles, to importantes como os supraci-
tados, no foram localizados materiais. Entre estes esquecidos, podem ser
citados o da venda da coleo de Jos Gonsalves (1937); o da coleo de
Antnio Carlos Simes da Silva (1957) e, principalmente, o da coleo de
Heribaldo Siciliano.
A coleo do scio de AAVS na Siciliano & Silva, Heribaldo Siciliano,
foi posta venda pela primeira vez em leilo no Rio de Janeiro em junho

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

90
de 1942. A coleo, semelhante a de AAVS, era constituda por pinturas,
bronzes, bibels, marfins, porcelanas, mveis, tapearias e outros objetos de
arte. No catlogo textos de Srgio Milliet e de Adolphe Stein e a reprodu-
o de uma fotografia de parte do grande salo do palacete do engenheiro,
em Higienpolis.
A coleo foi novamente leiloada em dezembro de 1943, fazendo as
obras parte da massa falida de Heribaldo Siciliano. Ao que tudo indica o
conjunto foi comprado pelo leiloeiro Giannini que realizou novo leilo em
junho de 1944 novamente na cidade do Rio de Janeiro.
Algumas das peas desta coleo possivelmente foram adquiridas por
AAVS em um dos trs eventos, pois pelas imagens disponveis possvel re-
conhecer peas semelhantes. Quais seriam os motivos para que tal catlogo
no fizesse parte de sua vasta biblioteca e que tais referncias no tenham
sido adicionadas aos controles da coleo?

Consideraes finais

Para cada colecionador, pode haver uma ou muitas histrias. Essa


uma das possveis sobre a coleo AAVS.
Antonio Alves Villares da Silva no foi herdeiro; proveniente de uma
famlia humilde, formou sua coleo a partir de recursos prprios, sejam
eles financeiros ou visuais. O convvio com outros engenheiros, a rpida
ascenso profissional, a insero em um novo crculo social e a influncia
de alguns parceiros de trabalho, como Ramos de Azevedo e, de maneira
mais prxima, Heribaldo Siciliano, podem ter contribudo em muitas das
preferncias. Da mesma maneira, o apoio e o entusiasmo irrestrito de sua
esposa fizeram com que o casal fossem detentor de uma grande e significa-
tiva coleo (ou colees).
O conjunto sintetizado em muito se assemelha a outros que se for-
maram na cidade de So Paulo principalmente a partir do incio do sculo
XX, possivelmente pelo fato desse grupo frequentar os mesmos locais, ter
destinos semelhantes nas viagens e mesmos referenciais esttico-visuais
prximos.
A coleo dinmica e modifica-se medida que cada pea entra ou
sai. Ela tambm definida pela srie, que apresenta o fio condutor unindo
o conjunto e revelando os interesses que determinaram sua reunio. As

Ana Paula Nascimento

91
obra esto ligadas umas s outras, sucessivamente, e todas remetem ao alvo
da ateno do colecionador. Assim sendo, a coleo pode ser o retrato que
AAVS traou de si, vale dizer, como ele gostaria de ser visto.

Bibliografia consultada

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Ana Paula Nascimento

93
Figura 1
AAVS e Jandyra da Fonseca Moraes Galvo
no dia do casamento,
1921
In: Antonio Alves Villares da Silva, Jandyra e Marina:
gente de So Paulo, s.p.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

94
Figura 2
A residncia na alameda Itu,
1921
In: Antonio Alves Villares da Silva, Jandyra e Marina:
gente de So Paulo, s.p.

Ana Paula Nascimento

95
Figura 3
Detalhe do interior da residncia,
dcada de 1930
In: Siciliano & Silva: engenheiros construtores, p. 208.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

96
Figura 4
Uma pequena parcela das porcelanas orientais da coleo AAVS,
dcada de 1920
1835.
In: Siciliano & Silva: engenheiros construtores, p. 208.

Ana Paula Nascimento

97
Figura 5
Almeida Jnior, A noiva,
1886.
Coleo particular
Reproduo fotogrfica: Isabella Matheus. Arquivo da A.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

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Figura 6
Vista interna do grande salo do palacete de Heribaldo Siciliano,
c. 1942
In: COLEO Dr. Heribaldo Siciliano, 1942, s.p.
Reproduo fotogrfica: Isabella Matheus. Arquivo da A.

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99
colees e museus

Gesta memorable deldescubrimiento de Amrica?


Discursos y narrativas en la fundacin del
Museo de Amrica de Madrid

Dr. Luis Javier Cuesta Hernndez

Director, Departamento de Arte,


Universidad Iberoamericana, Mxico.

LA FUNDACION DEL MUSEO, LA COLECCION Y EL EDIFICIO

Apenas dos aos despus del final de la Guerra Civil Espaola, el da


19 de abril del ao 1941, se publicaba en el Boletn Oficial del Estado
nm. 193, el Decreto de fundacin del Museo de Amrica en la ciudad de
Madrid, firmado por el Caudillo, el generalsimo Francisco Franco Baha-
monde.
Con las tal vez demasiado elogiosas palabras del periodista del diario
madrileo ABC, Barbern, en el nmero del 23 de julio de 1944, podemos
hacernos una idea de cuales eran las intenciones de la fundacin:

La encendida prosa del decreto fundacional del Museo de Amri-


ca, documento que para los anales de nuestra cultura se fecha el 19
de julio de 1941 [sic], tiene la ms esplendida realidad en la obra
misma del museo que acaba de inaugurarse en el ncleo del Museo
Arqueolgico Nacional. Catorce salas comprenden el mismo, como
anticipo de esa ejemplar instalacin que ha comenzado a erigirse a la
entrada de la Ciudad Universitaria, mbito de nueva hispanidad, en
donde, por feliz coincidencia, se podr sealar a nuestras juventudes
de hoy cuales fueron las empresas del ayer de Espaa. Admiramos
cuanto de obra misional y civilizadora en aquel pueblo milenario
realizamos1 (Barbern, 1944, 9).

1
La inflamada pluma del periodista trae a colacin incluso la frase del cronista Lpez de
Gmara: la mayor cosa despus de la Creacin del mundo, sacando la Encarnacin y Muerte
del que lo cre, es el descubrimiento de Indias.

101
Y es que, efectivamente, en ese decreto fundacional, entre otras perlas
de la retrica del primer franquismo y absolutamente en sintona con la
lnea ideolgica del momento, se deca:

consecuente con el patritico espritu que informa al glorioso movi-


miento nacional, el Estado ha de fomentar cuanto conduzca al co-
nocimiento de su pasado y muy especialmente a la gesta memorable
del descubrimiento y colonizacin de Amrica. Ha de estudiarse el
esplendido arte colonial suma amorosa de lo indgena y de lo hispa-
no y nuestra obra misional nica en el mundo. Patentizar la gesta del
descubrimiento y la obra misional [] dar memoria, en definitiva,
de la labor misionera y civilizadora del imperio espaol en Amrica
(Boletn Oficial del Estado, 1941, prembulo)

Claro, memoria dependiendo de quien est hablando porque la idea


del Museo de Amrica y, sobre todo, el origen de sus colecciones distaban
mucho de ser una idea recien gestada en las mentes de los jerarcas de la
cultura franquista. Es ms, sus antecedentes ms cercanos eran republica-
nos, concretamente, el Museo-Biblioteca de Indias de 1937 (recogiendo
as tanto el interes que desperto el intento de don Rafael Altamira de crear
una ctedra de estudios americanistas, como la sugerencia de crear dicho
museo americanista, emitida por la asamblea del Congreso Internacional
de Americanistas celebrado en la ciudad de Sevilla en 1935)

Con tales intenciones en octubre de 1937 con motivo de la celebra-


cion del Dia de la Raza, la Gaceta de la Republica publico un texto
cuyo contenido, en parte, es el siguiente: la gran lucha que sostiene
Espaa en defensa de los fundamentos mismos de su cultura, obliga
a su gobierno a velar por cuanto con esta se relaciona [] una de sus
vivas atenciones se proyecto hoy sobre el porvenir cultural america-
no, con el que lo espaol se encuentra profundamente unido []
el dia de la Fiesta de la Raza se conmemora la de aquel pueblo que
fue nuestro [] quiere el gobierno de la Repblica por una parte
ofrecer a la hermandad que fue nuestro [] quiere el gobierno de la
Repblica, por una parte ofrecer a la hermandad americana prueba
cierta del interes que el conocimiento no solo de cuanto en ella es de
estirpe hispana, sino de aquello otro que le es propio [] despierta
hoy en la nueva voluntad cultural espaola (Vargas Lugo, 1994, 4)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

102
y el Museo Arqueolgico de Indias de 1939, proyectos ambos trunca-
dos por la guerra y posterior derrota de la Repblica2. Si nos referimos a las
colecciones la cosa se hace an ms resbaladiza en cuanto a la definicin de
memoria ya que habra que llegar hasta el Real Gabinete de Historia Na-
tural fundado en 1771 por el rey Carlos III, o a la seccin de Etnografa del
Museo Arqueolgico Nacional3 fundado en 18654 para encontrar el origen
de buena parte de las piezas que integran la actual coleccin permanente.
Y es que como bien menciona Lus Daz Viana: todo museo () es
un relato. Nos est contando una historia. Se supone que la historia de una
nacin. Pero en realidad lo que probablemente cuenta es una o varias ideas
de nacin aplicadas a un caso concreto (Daz Viana, 2010, 78). Si tal es el
caso, qu historia nos cuenta/contaba/quera contar el Museo de Amrica
al tiempo de su fundacin?cuales eran su idea o sus ideas de nacin en ese
momento concreto?
En 1943 se encarg el proyecto de la nueva construccin del Museo a
los arquitectos Luis Moya y Luis Martnez Feduchi, empezndose la obra
el mismo ao y acabndose en 1954 (aunque la coleccin no se trasladara
hasta 1962 y la inauguracin oficial no se producira sino hasta tres aos
despus, en 1965).
El nuevo edificio, siguiendo la ideologa del decreto fundacional, y en
palabras de los propios arquitectos:

pretenda sugerir la idea de la labor misionera y civilizadora de Es-


paa en Amrica. Por esta razn se concibi en un estilo historicista
y neocolonial con un arco en la fachada, una torre que sugiere las de
las iglesias barrocas americanas y una disposicin conventual, a la
manera espaola del siglo XVII. Dicha disposicin se observa tanto
en las salas de exposicin, que giran en torno a un claustro central
ajardinado, como en el edificio anejo de servicios, que se estructura
alrededor de un patio hoy convertido en sala de lectura (Martinez
Feduchi, 1943, 413)
2
Cfr. Ramos, Luis y Concepcin Blasco. Gestacin del Museo de Amrica en Cuader-
nos prehispnicos, nm. 7. Seminario de americanistas de la universidad de Valladolid,
Valladolid: 1979. Los autores sugieren una lectura un poco diferente del transcurso de los
acontecimientos.
3
Noticia histrico-descriptiva del Museo Arqueolgico Nacional. Publicada siendo director
del mismo el excelentsimo seor don Antonio Gutirrez. Madrid: Imprenta de T. Fortanet,
1876.
4
Sala, Juan. Ojeada sobre la seccin etnogrfica del Museo Arqueolgico Nacional en
Museo espaol de antigedades. Tomo I. Madrid, 1872.

Luis Javier Cuesta Hernndez

103
No es extraa esta coherencia tipolgica ya que parece evidente que la
mejor manera de llamar a la memoria de una labor misionera y civilizadora
es mediante el recurso a una escenografa neocolonial, y eso nos lleva a otros
dos puntos complementarios.
Primero: el edificio no estaba en cualquier lugar, formaba parte del fa-
moso Madrid imperial o la cornisa imperial del Manzanares que en pa-
labras del arquitecto Pedro Muguruza en 1941, responde a la concepcin
de un escenario teatral consistente en situar sobre la cornisa del Manzana-
res los rganos supremos de la nacin, es decir, los edificios emblemticos
de la nueva sociedad (Muguruza, 1941, 19).
En el Plan de Ordenacin Urbana de Madrid (1941-1946) apareca
una singular propuesta: recuperar la silueta de ciudad imperial del Madrid
de los Austrias del siglo XVII en la cornisa del Manzanares. Este retro-
ceso en el tiempo era un soporte simblico al vaco histrico sobre el que
se asentaba el llamado Nuevo Orden de los regmenes fascistas. As, en
los altos de la Moncloa, se construyeron los edificios con estilo neoherre-
riano, inundados de torres y fachadas de granito y pizarra. En el solar de
la antigua crcel se levant el Ministerio del Aire diseado por Gutirrez
Soto, el Arco de Triunfo de M. Herrero y, finalmente, el Museo de Amrica
en la Ciudad Universitaria. Pensar que no hay un significado programtico
en esa disposicin parece francamente iluso.

EL FRANQUISMO Y LOS CONCEPTOS DE AMRICA Y PANHISPANIDAD

Por otro lado, como menciona Sofa Dieguez, la politica cultural del
franquismo hacia Iberoamrica sirvi como pantalla que ocultaba objeti-
vos que, muchas veces, rebasaban el marco meramente cultural para cubrir
otros campos de actividad diplomtica y adquirir mltiples ramificaciones
de la accin poltica (Diguez, 1992, 467).
El da 12 de octubre de 1943 (fiesta de la Hispanidad o Da de la Raza)
se inauguraron varios de los edificios reconstruidos tras la guerra en la ciu-
dad universitaria y se puso la primera piedra de la construccin del Museo
de Amrica. En el discurso pronunciado por el General Franco se hablaba
con profusin del tema de Amrica y Espaa:

La fiesta de hoy, aniversario del ms grande de los acontecimientos


de la Historia, nos impulsa a dirigirnos desde aqu, desde este centro
espiritual de cultura y de ciencia, a nuestros hermanos del otro lado

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

104
del mar. Ellos forman con nosotros la comunidad hispnica, estre-
chamente unida por los vnculos de la Religin (en mayusculas en el
original) y el idioma. Como prenda de esta nueva etapa de acerca-
miento cultural de Espaa y los pueblos americanos, quiere el estado
inaugurar hoy simblicamente el comienzo de la construccin del
Museo de Amrica (Franco, 1943, 11)5

Todo ello, unido a una muy particular idea de Espaa que la identifi-
caba con el catolicismo en su versin ms intransigente (que habra carac-
terizado presuntamente la historia del cristianismo en Espaa, simbolizada
en la Contrarreforma y el Concilio de Trento luz de Trento, martillo de
herejes), con una idea mitificada del Imperio espaol (como imposi-
cin benvola de las virtudes propias de una presuntamente existente raza
espaola, especialmente durante la conquista de Amrica y en una particu-
lar reconstruccin de la idea imperial de Carlos V) y con un concepto de
unidad nacional y territorial, tambin mitificado a partir de la monarqua
de los Reyes Catlicos o Monarqua catlica aparece reflejado, al menos en
nuestra opinin, en la declaracin programtica que estaba dando origen al
Museo de Amrica.
Podemos dar muchsimos ejemplos de esa particular visin de Amri-
ca en la Espaa franquista, pero quiza uno de los ms educativos sean los
que aparecen en libros escolares, como podemos ver en la Enciclopedia de
Antonio lvarez

La conquista de Amrica fue una empresa dura y heroica. En ella


se cubrieron de gloria numerosos espaoles, pero entre todos sobre-
salen dos: Hernn Corts y Pizarro. Con un puado de valientes, y
venciendo dificultades sin cuento, Hernn Corts conquist Mji-
co para Espaa y Pizarro el Per [] Pero si grande es la obra de
nuestros conquistadores, no lo es menos la de nuestros misioneros.
Con una paciencia y un espritu de sacrificio sin par en la Historia,
nuestros frailes ensearon a los indios a leer, escribir y rezar (lvarez,
1965, 209-210)

O en la Nueva Enciclopedia Escolar publicada por los Hijos de San-


tiago Rodrguez:

5
Franco, Francisco. Discurso pronunciado por S.E. el Jefe del Estado, Caudillo de Espaa
en la Ciudad Universitaria de Madrid, pag. 11. Octubre, 1943. Cit. en Dieguez, op.cit.p.468.

Luis Javier Cuesta Hernndez

105
Los Reyes, lejos de explotar las colonias como si fueran un negocio,
las consideraron como una parte del reino que haba que evangeli-
zar y civilizar. Ellos enviaron misioneros, ordenaron que se tratara
a los indios como a hermanos y no autorizaron su esclavitud. Los
misioneros, adems de la doctrina cristiana, ensearon a los indios
el cultivo de la tierra, la lectura, escritura y otros conocimientos. La
colonizacin espaola en Amrica fue una obra grandiosa. As lo
proclaman hoy veinte naciones de aquel Continente, a las que Es-
paa dio cuanto tena, que no era poco: fe catlica, idioma, cultura
(Hijos de Santiago Rodrguez, 1954, 664-665)

Por su parte la coleccin Temas Espaoles era una coleccin de fo-


lletos oficiales publicados entre 1952 y 1978 formada por 548 entregas, la
mayor parte de las cuales aparecieron en la dcada de los cincuentas, po-
ca en la que alcanz su mxima difusin y poda comprarse en todos los
quioscos de Espaa. Constituye un curioso conjunto documental de gran
inters ideolgico. Fue impulsada y editada por la propaganda del Estado
tras la guerra civil. En el nmero 102 se habla as del Museo de Amrica:
En 1941 se cre el Museo de Amrica. Este Museo expone con rigurosa
fidelidad cientfica la historia del descubrimiento, conquista y civilizacin
de Amrica, pero sobre todo, lo titnico de los trabajos misionales (Fez,
1954, 21)

CONCLUSIONES: LA CREACION DE UN (FALSO?) DISCURSO HISTO-


RICO

En el caso del que nos hemos querido ocupar hoy, creemos haber de-
mostrado de manera palpable la existencia de una gran tensin entre mu-
seo, coleccin, discurso y (falsa?) memoria. Parece evidente que el decreto
de creacin del Museo de 1941 asi como el edificio comenzado en 1943
alineaban el proyecto de Museo de Amrica con otros proyectos que, en los
primeros aos de la posguerra, trataron de configurar una cultura nacional,
que expresara el ideario de los vencedores de la guerra civil. Ese deseo de
encontrar una cultura nacional estuvo presente durante muchos aos en las
personalidades ms prominentes del Rgimen. Tal vez sean esas las histo-
rias y las ideas de nacin que contaba el Museo de Amrica, al menos en
su forma original.
El museo se habilit con un tono triunfal, y se construy un edificio
neocolonial exclusivamente para l. Esta concepcin vena, sin duda, y as

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

106
lo atestiguan los propios constructores, de ese cometido de compromiso
evangelizador de los espaoles en el continente americano.
Habra que decir, por otro lado, que el Museo nunca alcanz un gran
xito entre los madrileos. Qued reducido a escenario para celebrar los
Dias de la Raza cada 12 de octubre, recibir a las esposas de los embajadores
latinoamericanos o realizar eventos folklricos (se celebraban los das de
Argentina, de Per, de Ecuador)
A manera de eplogo optimista, sin embargo hay que recordar que en
1981 el Museo se cierra (durante 13 aos!), en vista de que en 1992 se
conmemoraba el Quinto Centenario y se deseaba redefinir completamente
desde el punto de vista museolgico todo el discurso (esa reestructuracin
tuvo su reflejo legislativo con un decreto reorganizador en 1994). En la
dcada de los noventa aparece los nuevos administradores, que van a inten-
tar superar todo el matiz triunfalista, colonialista y franquista; asi como el
paternalismo, la visin etnocntrica, el cristianismo, la lengua y la cultura
espaola, como imposicin cultural. Un grupo de antroplogos, arquelogo,
historiadores y comunicadores, entre los que destacan Paz Cabello, Salva-
dor Rovira, Aracely Snchez, Concepcin Garca (su actual directora) y
Flix Jimnez (actual subdirector) que crean la actual museografa, pero esa
ya sera historia de otro da

Bibliografa

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Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

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Figura 1
Luis Moya (Madrid 1904-1990).
Luis Martnez Feduchi (Madrid 1901-1975).
Fachada del Museo de Amrica. 1943. Madrid.
Fotografa Luis Javier Cuesta.

Luis Javier Cuesta Hernndez

109
Figura 2
Luis Moya (Madrid 1904-1990).
Luis Martnez Feduchi (Madrid 1901-1975).
Plano del Museo de Amrica. 1943. Madrid.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

110
Figura 3
Fernando Chueca Goitia (Madrid 1911-2004).
Dibujo de la cornisa imperial del Manzanares. ca. 1946.
Madrid.

Luis Javier Cuesta Hernndez

111
Figura 3
Annimo.
Portada del nmero 102 de Temas Espaoles
titulado Proyeccin exterior de Espaa. 1954. Madrid.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

112
colees e museus

O acervo do MASP como possibilidade de ensino,


pesquisa e anlise de formao da coleo.
Pinturas italianas sculas XIII-XV

Flavia Galli Tatsch

Professora do Departamento e do Programa


de Ps-Graduao em Histria da Arte
da Universidade Federal de So Paulo.

Introduo

A presente comunicao resultado de uma pesquisa que venho


realizando lentamente, cujo objetivo analisar parte da coleo do Museu
de Arte de So Paulo/Masp, mais precisamente as obras elaboradas na
Itlia entre os sculos XIII a XV. Dois so os motivos que me movem: o
primeiro tem a ver com o incentivo pesquisa e o ensino. O Departamento
de Histria da Arte da Universidade Federal de So Paulo conta, em sua
grade regular, com a disciplina especfica sobre arte medieval. Um de seus
desafios constantes o de despertar os interesses dos alunos para esse tipo
de arte, o outro driblar a dificuldade do contato direto dos medievalistas
com seus objetos de pesquisa. Como podemos incentivar a pesquisa se os
maiores acervos e as edificaes no se encontram ao nosso lado, na esquina
ou na praa central de nossas cidades? Ora, a vitalidade de qualquer estudo
acadmico est em sua capacidade de estabelecer conexes, independente
das dificuldades. Assim, propiciar o contato com as obras do acervo do
Masp o primeiro passo para diminuir essa distncia. Mas a inteno de
aproximao no se circunscreve somente a isso, como pretende abordar a
fortuna crtica das pinturas e analisar a prpria histria da histria da arte
do recorte temporal assinalado acima, estudando as revises das atribuies
de autoria em momentos posteriores entrada da obra no museu.
O segundo motivo que move a pesquisa, mas no menos importante,
o de compreender quais foram os critrios para a composio da coleo
do Masp, to rica e incomum no Brasil. E este aspecto que pretendo
abordar nesta comunicao: apontar para o incio da ligao entre o acervo

113
do museu e o colecionismo particular e como marchand de Pietro Maria
Bardi.
A histria da fundao do Masp bastante conhecida, mas gostaria de
retom-la, mesmo que de forma breve, para aqueles que dela nada sabem.
Dois personagens so fundamentais para compreend-la: Francisco de
Assis Chateaubriand Bandeira de Melo (1892-1968) e Pietro Maria Bardi
(1900-1999), este o maior idealizador do projeto do MASP.

Breve histrico da fundao do Masp

Paraibano, Assis Chateaubriand era diretor dos Dirios e Emissoras


Associados, uma organizao que compreendia uma rede de vinte e seis
jornais, cinco revistas, mais de uma dezena de estaes de rdio e uma de
televiso, resolveu lanar uma campanha para abrir uma galeria de artes
plsticas. Como explica seu bigrafo, a ideia da galeria, provavelmente, estava
influenciada pela nomenclatura das similares que vira nos Estados Unidos
e na Inglaterra. Chateaubriand pensava em preencher uma lacuna que,
para ele, precisava de sua interveno, substituindo as instituies pblicas
culturais brasileiras. Porm, ele no poderia enfrentar tal empreitada sozinho
e faltava conhecer algum que aceitasse o desafio e pudesse orient-lo. Foi o
que aconteceu em 1946, quando encontrou Pietro Maria Bardi.
Italiano, nascido em Brescia, jornalista e redator, auto-didata,
historiador da arte, colecionador e marchand, Bardi dedicou-se crtica
e ao mercado de arte, foi proprietrio de diversas galerias. Em junho de
1944, fundou em Roma, o Studio dArte Palma, um espao pensado para ir
para alm dos negcios e em que eram organizadas mostras de escultura e
pintura, promovidas conferncias e cursos de histria da arte. Alm disso,
o Studio tinha um laboratrio montado em que se podiam realizar percias,
exames cientficos nas obras e trabalhos de restauro.
Em 1946, Bardi desembarcou no Rio de Janeiro juntamente com a
esposa, Lina Bo Bardi (1914-1992), as colees de obras do Studio dArte
Palma bem como a sua particular, objetos diversos e uma enorme biblioteca.
A partir desse acervo, comeou a promover uma srie de mostras de arte,
sendo a primeira delas no Ministrio da Educao e Sade, no Rio de
Janeiro, conhecida como Exposio de Pintura Italiana Antiga do Sculo XIII
ao XVIII.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

114
A ideia inicial de Chateaubriand era criar o espao cultural no Rio
de Janeiro, ento capital do pas, mas acabou por se decidir por So Paulo,
cidade em que se encontrava o dinheiro do caf e da indstria, que a se
consolidava cada vez mais. A iniciativa do empresrio e de Bardi ocorria
em um momento em que a pauliceia contava com dois museus: o Museu
do Ipiranga e a Pinacoteca do Estado, fundados respectivamente em 1895
e 1905. Mesmo assim, a cidade carecia de grandes colees internacionais.
Em suas andanas para conhecer o cenrio artstico, Bardi se surpreendeu
por encontrar uma nica galeria, situada em uma travessa da rua Baro de
Itapetininga. Segundo ele, no Brasil, as condies eram precrias: nenhum
ensinamento de histria da arte nas escolas, falta total de livros didticos e
de publicaes em portugus sobre a histria da arte, nenhuma biblioteca
especializada. Em artigo publicado em 1954, escreveu que So Paulo
no contava com monumentos histricos, nem antigas obras de arte para
estudar.
Quando Bardi aqui chegou, os museus europeus repensavam seu papel
no esteio da retomada das atividades interrompidas pelo conflito mundial
que provocou, entre outras coisas, a necessidade de remanejar, com urgncia,
os acervos para preserv-los da pilhagem e dos bombardeios. Finda a guerra,
as reflexes sobre o retorno das obras levavam em considerao novas
formas de exposio que propiciassem outras maneiras de compreender e
apreciar as obras de arte, de forma a associar as atividades obra educativa,
oferecendo ao pblico, cada vez maior, um mundo democrtico, cheio
de cultura e saber. Atento e inserido nesse cenrio, Bardi tambm queria
atrair e construir um pblico de habitus, proporcionar um veculo de
informao constante sobre tudo o que est acontecendo no mundo da arte
e possibilitar que o acervo seja mantido em contnua realizao.
Oficialmente, a inaugurao do MASP aconteceu em 02 de outubro
1947, no primeiro andar da sede dos Dirios Associados ainda em construo
, na Rua Sete de Abril, 230, no centro. O espao inicial a ele destinado
tinha mil metros quadrados, em forma de H, dividido em quatro sees
repartidas por painis mveis, alterados segundo as exigncias que podiam
se apresentar: 1. sala para a pinacoteca; 2. sala para exposies didticas e de
histria da arte; que poderiam; 3. sala de exposies peridicas; 4. auditrio.

Flavia Galli Tatsch

115
Incio da formao do acervo de arte medieval

Um dos desafios propostos pelo programa acima exposto era a formao


da pinacoteca, que deveria ser montada de forma rpida e a partir de obras
suficientemente representativas de momentos diversos da histria da arte.
O incio da coleo se deu a partir de materiais reunidos usufruindo das
oportunidades que se apresentaram no ps-guerra especialmente em Nova
Iorque, ponto de partida do antigo: uma esttua egpcia da XX Dinastia;
alguns fragmentos de mrmore grego, objetos bizantinos; entre as [pinturas]
um afresco de Ottaviano Nelli e diversas pinturas de mestres menores
toscanos e umbros.
O ncleo principal da coleo do Masp foi constitudo em um
curto espao de tempo, entre os anos de 1946 e 1960. Para esta pesquisa,
interessam as obras relacionadas na tabela abaixo:

Autor Atribuio Obra Datao Entrada Procedncia Doador


anterior no anterior
acervo
Maestro del Virgem em c.1275 23/4/92 Coleo Pietro Maria
Bigallo Majestade com particular de Bardi
Menino e Dois Pietro Maria
anjos Bardi

Pintor Adeodato A Crucificao 1290 2/10/47 Studio dArte Drault


Annimo Orlandi e a Virgem -1305 Palma Ernanni
mbrio com o Menino
entre Anjos,
Santos e os
Smbolos dos
Evangelistas
Maestro di Bernardo Virgem com 1310 19/3/58 Wildenstein & Sem
San Martino Daddi Menino Jesus -1320 Co, NY indicao
alla Palma doador
Paolo Maestro del Adorao dos terceiro 1947 Coleo Pucci/ Pietro Maria
Serafini da Bambino Vispo Reis Magos quarto Bardi Bardi
Modena do
sculo
XIV
Ottaviano Madona com 1400 1947 Oratorio Cia Fabril
Nelli o Menino -1410 dellArte dei Juta Taubat
entre Santa Mercanti della (Mario
Madalena e Lana, Gubbio / Audr)
Santo Estvo Galeria em Nova
Protomrtir York

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

116

Maestro del Rossello di Madona com 1410 1947 Principe Fabrizio Moinho
1416 Jacopo Franchi o Menino -1415 Massimo, Roma Santista
no Trono e
Quatro Santos
Andrea So Jernimo 1448 1952 Wildenstein & Cmara
Mantegna Penitente no -51? Co, NY Municipal
Deserto de SP
Imitador Pseudo Pier Virgem com o 1460 2/10/47 Studio dArte Ind. Martins
de Lippi_ Francesco Menino, So -1470 Palma Ferreira
Pesellino Fiorentino Joo Batista
Criana e um
anjo
Jacopo del Jacopo del Virgem com o 1470 2/10/47 Studio dArte Ind. Martins
Sellaio? (ou Sellaio Menino Jesus -1480 Palma Ferreira
discpulo
annimode
Botticelli)
Biaggio Francesco Madona em c.1475 10/47 Studio dArte Mrio Audr
dAntonio Botticini Adorao do Palma
Tucci Menino Jesus e
um Anjo
Giovanni A Virgem com 1480 2/10/47 Wildenstein Walther
Bellini o Menino de -1490 Moreira
P, Abraando Salles
a Me
(Madonna
Willys)
Nicol di Ecce Homo. 1480 2/10/47 Studio dArte Dirios
Liberatore Cristo Morto -1500 Palma Associados
(Chamado no Sarcfago
LAlunno) como Vir
Dolorum:

preciso levar em conta uma conjuno de fatores para compreender


como se deu a seleo e aquisio dessas pinturas e a forma como foram
incorporadas ao acervo. Por ora, basta arrolar brevemente trs fatores:
o mercado de arte no imediato ps-guerra e na dcada de 1950; um
entusiasmo cvico-cultural da comunidade e muito especialmente de suas
elites scio-econmicas, no caso Assis Chateaubriand e os doadores do
MASP; e a atuao, de um profissional, Pietro Maria Bardi, dotado de
uma cultura histrico-artstica consolidada, alm de sensibilidade e

Flavia Galli Tatsch

117
experincia no que se refere ao potencial das obras a serem cooptadas no
mercado e/ou em colees privadas.
A questo do mercado de arte durante o conflito mundial,
no ps-guerra e na dcada de 1950 muito importante, no s para se
compreender a oferta e os valores praticados, como tambm a preferncia
do pblico comprador e a promoo dos marchands por determinado tipo
de obra. Creio que esse um fator fundamental para a anlise, porm no
h como aprofund-la aqui. O que no significa que tenha sido descartada
do horizonte dos trabalhos.
No momento, gostaria de tentar vislumbrar como a atuao de Bardi
e Chateaubriand influenciaram as estratgias de formao do acervo. Teria
sido constitudo a partir de estudos pr-estabelecidos ou foi fruto das
circunstncias que se apresentaram?
No nenhuma novidade que Chateaubriand lanou mo de mtodos
nada convencionais para convencer os milionrios a doarem o dinheiro. De
suas andanas pelos Estados Unidos e Europa, sabia da oportunidade que
o ps-guerra oferecia e era nos jantares promovidos para a elite brasileira
que angariava os fundos necessrios, pedindo pessoalmente a cada um dos
convidados. Entre as estratgias por ele empregadas, estava a de convencer
o(a) doador(a) a entregar uma determinada quantia em troca da contratao
de anncios em sua cadeia de imprensa. Porm, o pagamento desse
merchandising no ia para os Dirios Associados e, sim, diretamente para
a conta no banco do museu. Para envaidecer o(a) benfeitor(a), a primeira
festa vinha realizada aos ps da escada do avio que havia transportado a
obra, ou frente do navio, no prprio cais do porto junto aos estivadores.
Em seguida, outra comemorao promovia o evento, desta vez em trajes
de gala, que acabava sendo amplamente difundida nos jornais da rede e na
revista Cruzeiro uma das mais lidas poca.
Durante a visita a j mencionada Exposio de Pintura Italiana Antiga
do Sculo XIII ao XVIII, Chateaubriand comprou cinco telas, sendo que
cinco fazem parte da lista de obras acima: Adeodato Orlandi [atribuda
ao Pintor Annimo mbrio], Rossello di Jacopo Franchi [atribuda ao
Maestro de 1416], Nicolo Alunno, Jacopo del Sellaio, Francesco Botticini
[atribuda a Biaggio dAntonio Tucci]. Morais explica que por delicadeza,
Bardi ainda presenteara Chateaubriand com uma pintura sobre madeira,
a ento atribuda ao Maestro del Bambino Vispo [hoje considerada como
obra de Paolo Serafini da Modena]. A Crucificao e a Virgem do Pintor

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

118
Annimo mbrio foi doada ao museu em nome de Drault Ernanny de
Mello e Silva, empresrio, banqueiro e amigo de Chateaubriand, no valor
de Cr$ 800.000,00; e, a Madona e o menino no trono e quatro santos, do
Maestro del 1416, pelo Moinho Santista, no valor de Cr$ 1.500.000,00.
Nas pastas de documentao das pinturas, apreende-se que todas elas deram
entrada no acervo em dois de outubro de 1947, mesmo dia de inaugurao
do museu.
Os artigos de jornal trazem mais dados. Vejamos, por exemplo, dois
deles publicados no Dirio de So Paulo, um dos veculos de comunicao
do grupo de Chateaubriand. Em 1de maio de 1947, a matria informava
sobre a doao da Madona com Menino no Trono e Quatro Santos, de
Rossello di Jacopo Franchi [hoje Maestro del 1416], mencionando a
obra e sua ento atribuio pelo historiador da arte Bernard Berenson,
o proprietrio anterior ao Studio e, por fim, a compra: pelo diretor dos
Dirios Associados para o Museu de Arte que ser inaugurado no novo
prdio da rua Sete de Abril. Essa aquisio foi feita com uma das parcelas
de contribuio do Moinho Santista (...). J em 10 de agosto de 1947,
outro artigo discorria sobre o enriquecimento do patrimnio artstico do
Masp pela doao de Mrio Audr, diretor da Companhia Fabril de Juta
Taubat, do afresco de Ottaviano Nelli, Madona com o Menino entre Santa
Madalena e Santo Estevo Protomrtir. Alm de traar algumas linhas sobre
o pintor, destacava ser a pintura em questo uma obra de grande raridade,
pois pouco comum encontrar-se afrescos de grandes propores fora dos
templos. Os dois artigos revelam que a compra das pinturas se deu meses
antes da instituio oficial do museu. O mesmo ocorreu com outras que
ingressaram no acervo em 1947.
Nem todas as peas arroladas na tabela tiveram o mesmo destaque
por parte dos rgos dos Dirios Associados. Algumas foram muito mais
celebradas por Bardi, Chateaubriand e seus doadores, por exemplo, as
de Jacopo del Sellaio e Giovanni Bellini, que chegaram a circular nas
exposies promovidas pelo Masp em museus da Europa e Estados Unidos
nos anos 1953-1954. Talvez no exista um nico argumento que explique
tal fato. possvel que isso tenha ocorrido por conta de certa depreciao,
no Brasil, dos mestres toscanos e mbrios considerados menores como
se l no texto do catlogo da exposio realizada no Palazzo Reale em
Milo, entre novembro de 1954 e fevereiro de 1955. Pode ser, tambm,
que no se adequassem ao gosto dos doadores e do pblico contemporneo

Flavia Galli Tatsch

119
formao do Masp, mais receptveis a obras elaboradas em perodos
posteriores, como explica Bardi:

(...) A generosidade destas contribuies por parte dos nossos


doadores, possibilitou aumentar o acervo com obras especialmente
posteriores ao Setecentos. Sem eles no poderamos ter as cinquenta
obras primas do Impressionismo e as apreciveis sries dos
contemporneos, e entre outros, seis Modigliani (...).

Se no se enquadrava em uma questo de gosto por parte dos doadores


e do pblico, precisamos voltar questo da coleo de Bardi/Studio dArte
Palma o colecionismo e a formao do museu. Das doze obras arroladas
na tabela: nove deram entrada no acervo em 1947; uma em 1952; uma
em 1958; e, a ltima em 1992. Dessas doze: oito pertenciam ao acervo do
Studio dArte Palma ou do prprio Pietro Maria; trs adquiridas atravs do
marchand Wildenstein & CO, em Nova Iorque; e, uma oriunda de outras
colees.
No total, Bardi teria doado ou vendido nada menos que quatorze
pinturas de sua propriedade, dentre as trinta e seis obras anteriores ao
sculo XIX que compem o ncleo fundamental do museu no domnio de
pintura italiana. Segundo Marques:

quarenta por cento de nossa pinacoteca anterior ao sculo XIX


no foi portanto escolhida em virtude de uma qualquer estratgia
museolgica, mas em funo de uma oportuna circunstncia.
Contudo, seria ingnuo supor que tal circunstncia fosse desprovida
de significao intelectual, pois permanece a questo de saber porque

Bardi possua em seu acervo comercial exatamente estas e no outras


obras quaisquer.

Bardi no era um marchand qualquer, haja vista a experincia
acumulada na Itlia como galerista, alm de estar sempre em contato com
os maiores historiadores da arte, entre eles Leonello Venturi, Federico
Zeri, Roberto Longhi este ltimo responsvel por muitas expertises dos
quadros hoje no Masp. A meu ver, o acervo das obras dos sculos XIII a
XV pode ser considerado como uma herana no s das oportunidades que
se fizeram sentir no mercado de arte, como do gosto e das preferncias de
Pietro Maria; dele e de sua gerao.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

120
Analisar a vivncia de Bardi no que tange a histria da histria da
arte e a crtica de arte na Itlia na primeira metade do sculo XX pode
trazer uma srie de dados. Pietro Maria foi uma pessoa atuante no cenrio
artstico-poltico nos anos 1920-40, mas sua relao com o regime fascista
no tema desta comunicao. No entanto, quero chamar a ateno para
as mostras promovidas por Mussolini, consideradas um elemento central
da atividade cultural de seu regime, mais precisamente duas relativas arte
medieval: a Mostra della pittura riminese del Trecento, em 1935, que associava
o nascimento de uma escola regional a Giotto e a Mostra Giottesca, sobre
esse grande artista, em Florena dois anos depois. Ambas procuravam
valorizar as obras expostas, valorizadas como pintura italiana da origem.
Compreender o que a promoo dessas exposies representou
naquele momento e na dcada posterior o catlogo da Mostra Giottesca
foi publicado somente em 1943 para a arte italiana, para os estudos dos
especialistas em histria da arte dos sculos XIV-XV, para a mobilizao
do pblico e os jogos do mercado de arte, um dos prximos passos da
pesquisa que tambm se ocupar com o estudo das atividades do Studio
dArte Palma em seu breve histrico (1944-48).

Catlogos

Exposio de Pintura Italiana Antiga do Sculo XIII ao XVIII. Rio de


Janeiro: Ministrio de Educao e Sade, 1946. Rio de Janeiro 1946.
MUSEU DE ARTE DE SO PAULO, SP. Catlogo do Museu de Arte
de So Paulo Assis Chateaubriand. So Paulo: MASP, 1998.
PALAZZO REALE, Milo. Dipinti Del Museo dArte di San Paolo Del
Brasile: esposti al Palazzo Reale di Milano. Novembre 1954-Febbraio
1955. Milo: Edizione Del Milione, 1954.

Bibliografia

BARDI, P.M.
____. Lexperince didactique du Museu de Arte de So Paulo. Museum.
Museums and education. Les Muses et lenseignement. UNESCO. Paris,
Vol I (3-4), 1948. Pp. 138-141.

Flavia Galli Tatsch

121
____. The Museu de Arte, So Paulo. Museum. UNESCO. Paris, Vol VII
(4), 1954. Pp. 247-249.
____. The Arts in Brasil. A New Museum at So Paulo. Milo: Edizione
del Milione, 1956.
____. 40 Anos de MASP. So Paulo: Crefisul, 1986.
____. Histria do MASP. So Paulo: Empresa das Artes, 1992.
HENDY, P. Muses de peinture. Picture Galleries. Museum. Museums
since the war. Muses daprs-guerre. Unesco, Vol II (2), 1949. Pp.
39-45
MARQUES, L. Corpus da Arte Italiana em Colees Brasileiras, 1250-
1950. Vol. 1. A Arte italiana no Museu de Arte de So Paulo. So
Paulo: Museu de Arte de So Paulo: 1996.
MORAIS, F. Chat. O rei do Brasil. A vida de Assis Chateaubriand. So
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MORLEY, G. Les Muses et LUnesco. Museums and Unesco. Museum.
Museums since the war. Muses daprs-guerre. Unesco, Vol II (2),
1949. Pp.. 1-35.

TENTORI, F. P.M.Bardi. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

122
colees e museus

O Maneirismo e o Barroco na pintura retratstica


da Coleo Eva Klabin

Ruth Levy
Museloga da Fundao Eva Klabin

Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho


Professora do Curso de Especializao
em Histria da Arte e Arquitetura no Brasil - PUC- Rio

Introduo

A Pintura Retratstica, gnero artstico que se firmou na Europa


a partir da cultura humanista do Renascimento, expressa um desejo de
autoperpetuao do sujeito, atravs dos conceitos de verossimilhana real
(refere aparncia fisionmica do indivduo), subjetiva (alude ao seu carter
e personalidade) e hierrquica (corresponde sua insero na sociedade).
Nesse contexto, firmou-se tambm o retrato oficial que, para alm desses
conceitos de verossimilhana, propicia ao indivduo a autocelebrao de sua
imagem, pondo em evidncia seus sinais atributivos de poder e de privilgios
sociais, em correspondncia com a exaltao do seu carter pblico.
Este desejo do nome, esta privatizao do olhar estendeu-se, sobretudo,
aos encomendantes de arte, ou seja, s classes dominantes a nobreza, o
clero e a emergente burguesia. A nosso ver, nesse contexto que o renovar-
se da retratstica a partir do Renascimento at o advento da fotografia deve
ser entendido.
O Curso de Especializao em Histria da Arte e Arquitetura no
Brasil - Departamento de Histria - Pontifcia Universidade Catlica do
Rio de Janeiro, em convnio com a Fundao Eva Klabin, desenvolveu um
projeto no qual foi analisado o precioso acervo da Pintura Retratstica da
Fundao, uma expressiva coleo de onze obras estrangeiras. Olhar, sentir,
investigar e refletir ao vivo estas pinturas foi para ns, historiadores de
arte, uma experincia de particular interesse, uma vez que elas abrangem
um arco de tempo bem amplo do Maneirismo (meados do sculo XVI)
ao Romantismo (incios do XIX) de um modo geral, considerado pelos

123
estudiosos dentro do perodo ureo deste gnero de arte, cuja mudana de
enfoque dar-se- com o surgimento da fotografia.
O texto resultante da anlise de todo acervo representa uma sntese
de olhares. Um esforo coletivo de todos os pesquisadores, envolvidos
durante um ano nesta apaixonante tarefa e que esperamos, em breve,
ver publicado em seu todo. Infelizmente, devido exiguidade do tempo,
nesta comunicao mostraremos os retratos da Coleo Eva Klabin que se
inserem na cultura do Maneirismo e do Barroco.

A coleo do Sculo XVI Maneirismo

Em suas pertinentes observaes, o historiador e crtico de arte Giulio


Carlo Argan mostra que o germe do Maneirismo j se fazia presente
nos tempos considerados de glria do Renascimento, como pode ser
constatado nas obras finais de Rafael e, sobretudo, nas de Leonardo da
Vinci e Michelangelo.
Na verdade, todas as transformaes religiosas, polticas, cientficas e
artsticas verificadas ao longo do sculo XVI (como a descoberta da Amrica
e do sistema heliocntrico, a Reforma Protestante, o saque de Roma e a
Contrarreforma Catlica), foram o resultado do complicado processo
de descoberta de um novo homem, sujeito de sua prpria existncia e
intrprete dos mistrios do mundo. Neste contexto a ideia de soberania
e precariedade caminhavam lado a lado, pois ao exerccio de liberdade
intensamente saboreado pelo homem, ento proclamado Deus in terris ,
atrelava-se necessariamente a questo da conduta humana.
Em tempos de crtica a todos os dogmas e a todos os princpios
de autoridade, alguns artistas, sobretudo aqueles que se formaram nos
ambientes culturais dos grandes centros artsticos europeus Itlia, Frana,
Alemanha, Flandres e Inglaterra voltaram-se para o conhecimento do
sujeito, de suas inquietaes e responsabilidades diante da verdade no
mais revelada pelas Sagradas Escrituras ou pelo mundo material, mas
pela experincia da liberdade. A nsia suscitada por essa conscincia de si
consubstanciou-se na interpretao do fazer artstico e de seu atuar enquanto
tal para o fim ltimo da salvao espiritual . As doutrinas e os programas
artsticos nascidos dessa nova sensibilidade foram codificados por uma
teoria da arte que, ao tentar estabelecer a legitimidade terica da criao

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

124
artstica, recorreu metafsica, conferindo-a a validade transcendente de
uma representao espiritual.
A Fundao Eva Klabin possuiu trs excelentes representantes do
Maneirismo na arte da retratstica, procedentes de trs importantes centros
culturais europeus Frana, Inglaterra e Veneza.
Da Frana, destacamos o Retrato Masculino [fig.1], pintura a leo
sobre tela, no datada, atribuda a Franois Clouet (c.1520 -1572), artista
que viveu na corte dos Valois, poca de guerras civil e religiosa constantes,
mas tambm de intenso intercmbio cultural. Nesse ambiente fundou-se, na
Frana, a Escola de Fontainebleau, o grande centro maneirista internacional
da Europa, frequentado por renomados artistas, sobretudo oriundos da
Itlia, Flandres, Alemanha. O retrato representa um homem austero, em
meio corpo e na pose em trs quartos. A pintura, de pequeno porte, recebeu
um tratamento miniaturista de influncia flamenga: o trao detalhado e
a pincelada, minuciosa. A completa neutralidade do fundo e o vesturio,
escuro e pouco detalhado, de certo modo a confundir-se com ele, chamam
a ateno do espectador para figura do retratado. A luz incide sobre o seu
rosto, ressaltando as feies e, sobretudo, o olhar, distante e meditativo, a
anunciar que a personagem est voltada para os seus prprios pensamentos.
Assim, a fora da representao vai enfocar suas dimenses metafsica e
psicolgica, recurso largamente utilizado pelos pintores maneiristas. O
bigode e a barba seguem a moda criada por Francisco I. Pelo traje severo
boina sem ornatos, capa escura e camisa branca, sem bordado parece
tratar-se de um homem de saber, talvez um religioso, visto que, por mais
sria e sombria que tenha sido a indumentria do sculo XVI, a nobreza
sempre procurava destac-la com algum tipo de adorno.
Reforando a atribuio da obra a Clouet, sabe-se que este era um grande
desenhista e pintava seus retratos a partir de um croquis pr-estabelecido.
E que foi autor tambm de iluminuras, utilizadas em medalhes ou para
ornamentar encadernaes de livros destinados a importantes figuras da
corte como Henrique II e sua esposa Caterina de Medici. Esta tinha uma
particular predileo em ser retratada pelo artista.
Da Inglaterra, citamos o quadro Retrato de Lady Jane Grey [fig.2],
pintura a leo sobre madeira, datada de 1553, de autor ingls desconhecido.
considerado um exemplar do que de convencionou chamar de estilo
Tudor, que no sculo XVI sofreu grande influncia do mestre alemo

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

125
Hans Holbein, o moo (1497-1543) e do flamengo Hans
Eworth (c.1520/1574).
Jane Gray (1537-1554) foi protagonista de um dos momentos
mais decisivos na histria da sucesso do trono ingls. Sobrinha neta de
Henrique VIII, ela nasceu na mesma poca em que a terceira esposa do rei,
Jane Seymour, deu luz a Eduardo, Prncipe de Gales (1537-1553) e nico
filho varo do seu tio av, portanto, o futuro rei da Inglaterra. Jane viveu dos
nove aos doze anos sob a guarda de Katherine Parr (1512-1548), sexta e
ltima esposa de Henrique VIII, onde recebeu a mesma educao esmerada
dos seus primos, os meio-irmos Eduardo, Maria (filha mais velha de
Henrique, de seu casamento com Catarina de Arago) e Elizabeth Tudor
(filha de Henrique com Ana Bolena). De volta a sua famlia, no entanto
ela foi presena assdua na corte do ento rei Eduardo VI e nos palcios
de Maria Tudor (1516-1558), a primeira na linha de sucesso ao trono
e grande adversria da Reforma. Jane, protestante fervorosa, no entanto,
no se furtou a criticar os excessos do catolicismo e, em especial, o hbito
de idolatrar imagens de santos. Aos dezesseis anos, Jane casou-se com
Guildford Dudley, filho do Duque de Northumberland (1501-1553), tutor
de Eduardo e mentor intelectual do golpe que quase afastou da sucesso
real as princesas Maria e Elizabeth. Graas s manobras polticas do duque,
o rei, j muito doente e temendo que a coroa fosse parar nas mos dos
catlicos, alterou o testamento de seu pai nomeando a linhagem dos Grey
sua sucessora. Quatro dias aps a morte do jovem monarca, Jane, mesmo
contra sua vontade, foi proclamada rainha da Inglaterra. Maria Tudor, no
entanto, fazendo valer seus legtimos direitos de sucessora, levou apenas
nove dias para reverter a situao. Todos os envolvidos foram decapitados,
inclusive Lady Jane, que entrou para a histria como a rainha dos nove dias.
No lado superior esquerda do quadro em questo h a seguinte
inscrio: Jane Grey. Ano Dom. 1553. No direito: Aetatis 16. Seria retrato do
seu casamento? Trata-se de uma pintura a leo sobre madeira, representando
Lady Jane em meio corpo e em trs quartos, numa apreenso, pode-se dizer,
psicolgica da personagem. O foco concentra-se na figura da jovem dama,
iluminando-a totalmente em primeiro plano. O olhar altivo e circunspecto,
a testa ampla (obtida pela raiz raspada dos cabelos) e a postura empertigada
visam marcar a imagem com sinais de superioridade, caractersticos de
sua estirpe e da poca, comum aos retratos da nobreza. Tal postura era
tambm enfatizada na indumentria pelo uso do rufo (gola de pregas

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

126
largas e regulares), que mantinha a cabea erguida. Us-lo era um sinal
de privilgio aristocrtico, visto que impossibilitava qualquer atividade que
exigisse esforo fsico. Ainda que durante a primeira metade do sculo XVI,
a nobreza costumasse usar trajes de cores vivas, moda alem, os de Lady
Jane so de cores sbrias, o que denota um padro de gosto muito pessoal,
pois essa tendncia s se verificaria durante o reinado de Maria Tudor, que
seguiu o estilo usado pela corte de Felipe II, seu marido e rei da Espanha.
No quadro, a linha ainda define o traado, como no Renascimento, mas
j h indcios do claro/escuro, tcnica que seria largamente utilizada no
Barroco, perodo artstico e cultural que sucedeu ao Maneirismo: a luz,
alm de enfatizar sobremaneira o rosto, mostra o detalhamento do rufo, das
joias, bordados e peles do corpete, das mangas e das flores, alm da pedraria
do arco da cabea. Mas o resto do vesturio fica na penumbra e confunde-se
com o fundo.
Finalizando as principais obras maneiristas da FEK, citamos, de
Veneza um dos mais importantes centros artsticos da Europa no sculo
XVI o Retrato de Nicolaus Padavinus [fig.3], pintura leo sobre
tela, datada de 1589, atribuda ao mestre maneirista veneziano Jacobo
Robusti (1518-1594), alcunhado de Tintoretto (por ser filho de
um tintureiro), ou a seu filho Domenico Robusti (1560-1635).
Embora existam poucos dados sobre a biografia de Tintoretto, sabe-se
que, por ter demonstrado inclinao para as artes, ingressou no ateli de
Ticiano ainda bem jovem. No entanto, ali permaneceu por pouco tempo,
pois aos vinte anos j havia atingido a posio de mestre independente. Ao
contrrio de Ticiano, constantemente requisitado pelas cortes europeias,
Tintoretto viveu e trabalhou exclusivamente em Veneza, a servio de
instituies religiosas, confrarias laicas e dirigentes da Repblica. Ele foi um
dos maiores desenhistas venezianos de Quinhentos. O desenho, por sinal,
foi o instrumento primrio em sua equao esttica. Na tela, suas pinceladas
afirmam o poder avassalador da linha e da silhueta cursiva, prpria do
pensamento de um desenhista. Amante das formas em movimento e dos
contrastes luminosos, criou cenas cheias de figuras em atitude dramtica
e luz sobrenatural, como em O Milagre do Escravo, datado de 1548.
A rapidez de seu trao parece ultrapassar o prprio movimento que est
sendo descrito. Alm disso, costumava utilizar telas que possuam tramas
variadas, pouco se preocupando que as emendas ficassem visveis. Era uma
inveno original, que causava muito espanto entre seus contemporneos.

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

127
Ao contrrio da maioria dos pintores venezianos da poca, que utilizavam
uma preparao branca base de gesso, para dar luminosidade ao colorido,
Tintoretto foi o primeiro a usar uma preparao toda escura, influenciando
Caravaggio quarenta anos depois. Mas a escolha do meio adotado em
seus desenhos, como veculo para a pintura final, no entanto, era bem
conservadora giz preto, ocasionalmente realado com giz branco ou
guache. Apesar de muitos de seus esboos serem elaborados a partir de
miniaturas feitas de gesso, diante de modelos vivos, ele seguiu a prtica
renascentista de s utilizar os masculinos, mesmo para representaes
femininas.
No campo da retratstica, seu talento caracterizou-se por expressar
o sentimento do personagem em um dado momento de sua existncia.
Nicolau Padavinus foi retratado em 1589, segundo a inscrio do quadro,
ano em que foi eleito Secretrio do Conselho Secreto dos Dez, entidade
representada por importantes membros da alta aristocracia veneziana. Est
figurado em meio corpo e em trs quartos, em pose solene, aristocrtica. Seu
olhar penetrante e altivo, mas mantm distncia do espectador. A luz incide
enfaticamente no rosto do conselheiro, nos seus traos fisionmicos, como
que a transmitir sua dimenso psicolgica, provocando um distanciamento
do espectador. E tambm nas mos, que Tintoretto representava sempre
alongadas, finas, delicadas e frias, caracterizando a alta extirpe de seus
modelos. Jacopo costumava pintar elementos arquitetnicos, principalmente
colunas e arcos em suas telas. Nesta obra, parte do fuste de duas colunas de
base colossal, colocados lateralmente nos planos subsequentes ao retratado,
garantem um fundo perspectivado figurao, mas inserem o quadro na
impossibilidade de se divisar a totalidade do ambiente. Altura, largura e
profundidade s podem ser concebidas pela imaginao do espectador, uma
caraterstica do Maneirismo que se estender ao Barroco.
O retratado est vestido com a indumentria tpica da alta burguesia
veneziana da poca: porta uma espcie de sobretudo longo, preto, aberto,
com grandes cavas forradas de pele. Do gibo, espcie de casaco curto que
os homens vestiam por cima da camisa, s possvel ver as mangas. As
cores sbrias das roupas seguem a moda da corte espanhola, que ditava as
normas do bem vestir. Carrega na mo luvas de couro, como todo homem
elegante.
A historiadora de arte Paola Rossi atribui a autoria deste retrato ao
filho de Tintoretto, Domenico que, a partir de 1578, foi seu mais estreito

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

128
colaborador. Baseia-se numa certa indagao realista do retratado, recaindo
em detalhes de adornos, nas cores mais adensadas e na superfcie mais lisa.
A ser verdade, podemos pelo menos afirmar que este quadro ento contou
com a meticulosa verificao do pai, uma vez que mantm as caractersticas
avanadas de Jacopo, ou seja, as intersees entre luz e sombra, a pincelada
rpida e brusca, sem preocupao com o acabamento meticuloso, muitas
vezes deixando perceber arrependimentos. A demanda de retratos por parte
da elite veneziana era enorme e cerca de um tero de sua obra pictrica,
cerca de 150 telas, foi dedicada a este tipo de produo. J mais para o fim
da vida, Tintoretto entregava grande parte do seu trabalho a colaboradores
principalmente a Domenico, pois estava muito ocupado com a pintura do
quadro O Paraso, considerado o maior do mundo, para o Palcio dos
Doges, em Veneza. Nesta obra podemos ainda observar uma emenda na
parte inferior da tela que, como ressaltado anteriormente, era uma prtica
largamente adotada por Tintoretto e, certamente, tanto por seu ateli quanto
por seu filho. As inscries com o nome do retratado e a data da obra fazem
parte da plasticidade do quadro, como era de hbito nos retratos.

Sculo XVII Barroco

A arte que comeou a se delinear durante as ltimas dcadas do


sculo XVI se caracteriza, de um modo geral, pelo desejo de evocar estados
emocionais recorrendo de forma dramtica aos sentidos. Da sua linguagem
ser comumente associada a atributos tais como grandiosidade, sensualidade,
movimento, tenso e turbulncia emocional. Por se tratar do agir sobre
o nimo das pessoas, a arte barroca foi por muito tempo simplesmente
associada Contrarreforma catlica. Fato que, no entanto, no pode mais
ser sustentado, uma vez que a arte de Seiscentos apresenta uma grande
gama de fenmenos fortemente diferenciados, aos quais correspondem
diversos esquemas de representao da realidade. Ao lado de imagens de
santos em xtase, devemos considerar os banquetes exuberantes, naturezas
mortas graves e silenciosas, as paisagens de horizontes longnquos e cenas
de interior.
Momento de especializao das diversas reas do saber, em que tanto
a arte, quanto a poltica e a cincia se estabeleceram por meios prprios de
entender o mundo, a cultura barroca inaugurou a estrutura da sociedade

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

129
moderna, na qual o comportamento do homem passa a ser determinado
pela vida em sociedade.
Argan nos lembra que a nova forma de racionalidade barroca tendia
manifestao e exteriorizao. Nesse aspecto, a arte desfrutou de
uma posio privilegiada, uma vez que passou a traduzir em imagens
a multiplicidade dos fenmenos, que deveriam ser estabelecidos e
coordenados pelo esprito humano. Num contexto em que at mesmo a
f se tornara objeto de escolha, a arte, reagindo crise que ps em xeque o
valor absoluto e universal da forma renascentista, extrapolou os limites da
cincia, conferindo aos produtos da imaginao e dos sentidos um valor
incontestvel de realidade. O poder persuasivo da imagem barroca se
concentrou justamente na carga psicolgica que colocava em ao.
At o sculo XVII, a civilizao ocidental no havia conhecido tamanha
troca de experincias artsticas entre naes. Foi o sculo de ouro do Barroco
no apenas para Itlia (o seu maior centro), Espanha e Frana, mas tambm
na Repblica dos Pases Baixos Setentrionais, genericamente denominada
Holanda, da qual a FEK tem duas representaes significativas.
O realismo generalizado e o alto grau de especializao temtica,
caractersticos da pintura holandesa do perodo - como paisagens do campo,
vistas das cidades, marinhas, pinturas arquitetnicas, as naturezas-mortas,
pinturas de gnero e retratos no tm paralelo na histria da arte da poca.
Muito mais do que simples imitadores da natureza, seus mestres foram
verdadeiros poetas intimistas, sensveis beleza pictrica de tudo aquilo
que se apresentava ao olhar. A histria poltica, econmica e religiosa dessa
pequena Repblica em muito contribuiu para a consolidao da crena de
que o carter to prprio de sua escola artstica fosse produto da moral
calvinista. Na verdade, como muito bem observa Seymour Slive, embora
se possa admitir, como hiptese, que o gosto pelas coisas simples da vida
tenha relao com o esprito puritano, deve-se evitar quaisquer relaes de
causa e efeito, pois a diviso dos Pases Baixos entre holandeses e belgas foi
sobretudo o resultado de questes militares e geogrficas, no de diferenas
lingusticas e religiosas. Apesar da proibio livre manifestao dos cultos
catlicos e a consequente ocupao de suas Igrejas pelos reformados, as
provncias Unidas no se transformaram em nao protestante da noite
para o dia. A tolerncia religiosa parece ter sido uma tnica nesse pas
emergente, vale lembrar a acolhida dada aos judeus. Podemos detectar,
desde o final do sculo XVI, a influncia da linguagem maneirista

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

130
internacional, notadamente da Itlia, como mostra a obra de Cornelis
Van Haarleem Massacre dos Inocentes, datada de 1591. Em Amsterd,
maior centro urbano da Holanda, um grupo de artistas liderados por Pieter
Lastman (1583-1633) dedicou-se pintura narrativa, fazendo uso de temas
bblicos e mitolgicos. Assim como Lastman, alguns artistas de Utrecht,
que tambm estiveram na Itlia, foram responsveis pela aproximao da
pintura holandesa do estilo revolucionrio de Caravaggio. A importncia
alcanada pelo que se tornou a Escola de Utrecht pode ser medida pela
popularizao do uso do claro-escuro (iluminado por uma fonte artificial
frequentemente oculta) e dos temas picantes e alegres usados por aquele
mestre, que passaram a ser uma constante na arte seiscentista holandesa
como registra a Ceia festiva de van Honthorst, de c. 1619.
Assim, a influncia estrangeira foi se integrando ao gosto regional,
como o interesse pelo realismo e pela representao de cenas do cotidiano
chamadas pinturas de gnero. Contudo, preciso ressaltar que, nesse tipo
de pintura, muitas das vezes era veiculado um propsito moral, ilustrativo e
alegrico, caracterizado no Renascimento e que em Caravaggio, no entanto,
deixara de existir. Com efeito, muitas pinturas holandesas do perodo, ao
mostrar o exagero, tinham um propsito didtico e moralizante, como a
obra Alegres Companheiros, de Willwm Buytewch, de c.1617 inspirada
na parbola do Filho Prdigo.
Um dos maiores responsveis pela celebridade da pintura holandesa
foi Frans Hals (c.1582-1666). Aos vinte cinco anos de idade foi admitido
como mestre-pintor na guilda de So-Lucas em Haarlem. Especialista
em retratos e extremamente ousado, ele substituiu a convencional
formalidade que os caracterizava pela espontaneidade comum s pinturas
de gnero como, por exemplo, o retrato coletivo, no qual ele acentuou o
extravasamento emocional do retratado, deixando perceber a representao
fugaz dos movimentos de seus modelos. Esta questo atingiu o seu pice
na obra de Rembrandt (1606-1669). Nascido na cidade de Leiden,
o artista ali se estabeleceu como mestre independente em 1624, aps um
curto perodo de estudos com Pieter Lastman, em Amsterd. At o incio
da dcada seguinte no havia executado nenhum retrato de encomenda,
pois sua meta era se destacar na pintura narrativa do mesmo modo que seu
professor. No final de 1631 resolveu se mudar para Amsterd, j firmado
como grande gua-fortista e um dos artistas mais respeitados pelo seleto
grupo de humanistas holandeses. Nessa cidade, Rembrandt viveu seus anos

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

131
de glria. Casou-se em 1634, comprou a cidadania local, ingressou na
Guilda de So Lucas, tornou-se colecionador e marchand. Ali entrou em
contato com a monumentalidade e a intensidade dramtica barroca, graas
s gravuras feitas com base nas obras de Rubens, considerado, na poca, o
maior pintor dos Pases Baixos. Tal influncia se torna evidente, sobretudo,
em seus quadros bblicos e mitolgicos, como, por exemplo, a sua Descida
da cruz, de 1633 e a Descida da cruz, de Rubens. A famosa Lio de
Anatomia do Dr. Tulp, de 1632, est dentre as suas primeiras produes
como retratista profissional. Nela, o olhar do espectador, partindo do
cadver, foco da composio, conduzido s figuras que, em concentrao
dramtica, observam, de forma diferenciada, a dissecao de um antebrao
e a assombrosa relao existente entre os tendes e o movimento da mo e
dos dedos.
Desde o perodo de Leiden, em Rembrandt o hbito de se retratar
era uma constante. Se os autos-retratos do incio da carreira exibem
autoconfiana, os da fase seguinte demonstram seu interesse por poses
e gestos prprios de um cavalheiro. Com a maturidade, no entanto,
Rembrandt comeou a voltar-se para a esfera do esprito humano. No
Retrato de Jan Six, feito em 1654, e em seu Autorretrato, datado de
1667/8, observa-se que a representao da vida profissional ou da posio
social de seus modelos ou sua passou a assumir um carter inteiramente
secundrio diante do que lhes ia na alma. Em Amsterd, seu prestgio como
mestre e artista chegou ao pice. Dentre os discpulos dessa fase se encontra
Govaert Flinck (1615-1660), autor de um dos retratos pertencentes
Fundao Eva Klabin.
Govaert Flinck, nascido em Clves, regio da baixa Rennia, iniciou
seu aprendizado artstico junto ao pintor, marchand e pregador Lambert
Jaccobz que, alm de ter estado na Itlia, conhecia muito bem a obra de
Lastman e dos caravaggescos de Utrecht. Aps trs anos de estudo, Flinck
mudou-se para Amsterd em 1633, ingressando no ateli de Rembrandt,
onde permaneceu por um ano. Alguns de seus quadros foram vendidos
como autnticos Rembrandt. Obras suas mais antigas, como o Retrato de
homem, de 1637, chegaram a receber a assinatura falsificada de seu mestre.
Assim como Rembrandt, sua grande meta era ser pintor narrativo. Seu
afastamento do estilo do mestre, a partir da dcada de quarenta, coincidiu
com uma fase de grande popularidade pessoal e riqueza, tornando-se o
favorito dos crculos dirigentes de Amsterd. Em 1656, Flinck executou

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

132
uma enorme pintura narrativa e moralizante para a sala dos burgomestres
na nova prefeitura de Amsterd, intitulada Marco Crio Dentato recusa
os presentes dos embaixadores samnitas. O resultado do trabalho deve
ter influenciado a encomenda seguinte, a maior prova de seu prestgio:
a decorao das lunetas dos grandes corredores do prdio. Num claro
paralelo com acontecimentos da histria nacional, doze imensas telas
deveriam ilustrar a histria da luta entre os batavos e os romanos, assim
como dos personagens bblicos Sanso e Davi. No entanto, seu falecimento
prematuro, em 1660, fez com que a encomenda fosse, ento, distribuda
entre outros artistas, dentre os quais o prprio Rembrandt. A colossal tela
Conspirao de Cludio Civilus, de 1661/62, feita por este, no entanto,
parece no ter agradado, pois foi logo removida, dando lugar a uma pintura
executada por Jurgen Ovens, que se limitou a terminar a composio
que Flinck deixara inacabada.
O Retrato de Magistrado, pintado e assinado por Flinck em 1654
[fig.4], que faz parte do acervo da FEK, apresenta o personagem sentado
em posio de trs quartos, cujo olhar fita o espectador. O peso visual de
toda composio, feita de maneira a caracterizar o ambiente com o qual o
retratado mais se identificava, repousa na densidade corprea do modelo
em primeiro plano. Ao retrat-lo num interior fracamente iluminado,
rodeado por papis e por livros, os quais aparecem dispostos em estantes,
ao fundo, e espalhados sobre uma mesa em torno de um castial com a
vela apagada, Flinck parece fazer referncia iconografia tradicionalmente
ligada a um grupo de artistas de Leiden, que se especializou em naturezas-
mortas vanitas. Nessas obras, a representao de pilhas de livros bastante
manuseados, objetos exticos, instrumentos musicais, velas apagadas e
crnios, era prontamente lida como smbolos da vaidade humana e da
precariedade da vida.
No Retrato de Magistrado o pintor parece ter abandonado, pelo
menos em parte, a tcnica esmerada, privilegiando os valores tonais e de
cor no lugar da forma. A aparente falta de acabamento, especialmente nos
livros, ao fundo, e nos objetos em segundo plano, uma prova de que a
tcnica do inacabado havia se tornado parte do repertrio de processos
pictricos compartilhados entre artistas. Por outro lado, dentre os elementos
utilizados no quadro por Flinck para criar a iluso espacial est a tradicional
modulao entre luz e sombra, onde as formas iluminadas tendem a avanar
em direo do observador, enquanto os tons escuros tendem a recuar. Aqui,

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

133
a luminosidade da gola branca reflete-se no queixo, em parte da barbicha
e na bochecha do retratado. Na rea dos olhos, as plpebras iluminadas
desempenham a mesma tarefa, jogando luz na parte escura da cavidade
ocular. Especial ateno foi dada ao modo de passar as sensaes dos
objetos e dos diversos materiais. Os veludos, por exemplo, foram iluminados
nos seus contornos, as peas de estanho, mais azuladas do que as de prata.
O fato de nossa ateno voltar-se para a expresso e o gesto incisivo do
retratado, assim como para a cadeira estofada de veludo, o castial com
a vela apagada, e alguns papis, mostra como o artista era capaz de lidar,
de modo eficaz, com todo aquele procedimento tcnico. Muito embora o
retratado apresente um orgulho justificado de sua intelectualidade, ele no
segue a elegncia aristocrtica da poca, visvel, por exemplo, nos modelos
pintados por Van Dyck que encantaram uma parte considervel do pblico
holands a partir da dcada de quarenta. O magistrado veste uma espcie
de jaqueta folgada e de mangas largas, que se estreitam no punho. Usada
pela maioria dos holandeses, essas jaquetas no apresentam qualquer tipo
de adorno. A gola simples da camisa, branca e engomada, est presa ao
pescoo por um cordo terminado em borlas. Os punhos, confeccionados
com o mesmo tecido da gola, esto dobrados sobre as mangas da jaqueta. O
retratado porta um pequeno barrete, mas observa-se dentre os livros uma
forma cnica semelhante a um chapu. No canto superior esquerdo da tela
aparece um braso figurando um co preto correndo em campo amarelo,
identificado como sendo da famlia Cloeck. O personagem em questo
poderia ser o jurisconsulto Pieter Cloeck (Amsterd, 1585-1667), titular
de um dos maiores escritrios de advocacia em Amsterd em meados do
Seiscentos. Entre 1649 e 1667 foi raad (conselheiro) da municipalidade
de Amsterd e em 1654 foi efetivamente retratado por Flinck.
Assim como as pinturas de paisagens, as pinturas de gnero holandesas
seiscentistas converteram-se em admirao a partir da segunda metade
do sculo XIX, a ponto de, ao lado de Rembrandt, outros nomes, como
van Ruisdael (c. 1628-1682), Pieter Hooch (1629-?), Johanes Veermer
(1632-1675) e Gerard ter Borch (1617-1681) serem reconhecidos como
os maiores de seu tempo. Vinculados ao que se convencionou chamar de
Escola de Delft, Hooch e Veermer eternizaram o gosto holands por
cenas de interior, refletindo o modo de vida da Repblica recm fundada.
Gerard ter Borch tambm costuma ser relacionado Escola de Delft,
por ter se especializado nos mesmos temas e adotado artifcios compositivos

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

134
semelhantes. Ele autor de um dos retratos pertencentes ao acervo da
FEK. Nascido em Zwolle, norte da Holanda, teve em seu pai, Gerard ter
Borch, o velho (1582-1662), seu primeiro mestre. Em 1634, o jovem Ter
Borch tornou-se discpulo do paisagista Pieter de Moulyn (1595-1661),
em Haarlem. No ano seguinte, ingressou na Guilda de So Lucas local,
iniciando-se como pintor de cenas de caserna. Na mesma poca esteve em
Londres, onde trabalhou com seu tio, Robert van Voerst, gravador que fez
estampas para a iconografia de Van Dyck. Embora estivesse familiarizado
com os retratos aristocrticos ingleses, Ter Borch nunca adotou a altivez
popularizada por Van Dyck. Em 1640, deu incio a uma srie de viagens
pela Itlia, Espanha, Frana e sul dos Pases Baixos. Cinco anos depois,
juntou-se ao crculo de Adriaen Pauw, representante holands nas
negociaes que levaram assinatura do tratado de paz com a Espanha, na
cidade de Mnster, Westphalia. Este acontecimento tornou-se tema de seu
mais clebre quadro O juramento da ratificao do Tratado de Mnster
datado de 1648. O tema deste retrato coletivo, no qual esto representados
todos os participantes do evento, incluindo Ter Borch, bastante raro na
pintura holandesa, por se tratar de um evento contemporneo sem qualquer
paralelo com acontecimentos passados ou bblicos. Nessa mesma poca,
pintou inmeros pequenos retratos, de crianas e de homens, gnero que
daria continuidade aps se estabelecer em Deventer, no ano de 1654.
Apesar de suas inmeras viagens e possveis aprendizados, sua arte nunca se
afastou da tradio realstica holandesa, em especial o tratamento cuidadoso
dispensado iluminao e s texturas dos tecidos.
No Retrato de Homem, atribudo a Ter Borch [fig.5], que faz parte
do acervo da FEK, a primeira coisa que nos chama ateno, alm de seu
tamanho reduzido, a ausncia dos ambientes interiores comuns s pinturas
de gnero, sua especialidade. Com exceo do extraordinrio tratamento
dado s texturas, as relaes de composies mais amplas esto sacrificadas
em detrimento de um interesse maior, a sutileza psicolgica das relaes
pessoais. No Retrato de homem, da FEK, e outros executados por Ter
Borch, podemos observar a questo do fundo indefinido, constitudo por
uma linha diagonal, outra horizontal e uma vertical formada pelo corpo
do retratado. A evocao espacial, que nos remete caixa cbica projetiva,
caracterstica da pintura holandesa, se resolve dessa forma e tambm pela
modelao tradicional entre luz e sombra. Embora no haja qualquer
referncia origem da fonte luminosa, a luz dirigida provoca contrastes e

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

135
sombras acentuados, cujos limites com as reas iluminadas criam contornos
definidos, fazendo com que a figura sobressaia em primeiro plano. Segurando
displicentemente um par de luvas na mo direita, o retratado traja um
grande chapu preto e roupas confeccionadas com um tecido da mesma cor,
possivelmente o broadcloth, produzido apenas na Inglaterra e na Holanda.
Os sinais de elegncia podem ser vistos na gola de renda branca, privilgio
dos mais ricos, criada para substituir o rufo usado no sculo anterior. Da
mesma forma, os sapatos esto de acordo com a moda da poca, ponta
quadrada, salto alto e fivela, substituindo as botas, que no combinavam
com a modelagem francesa dos novos cales. Estes logo se adaptaram ao
gosto holands por roupas folgadas e bufantes. Muitas vezes, os forros eram
mais compridos, sendo necessrio o uso de fitas para amarr-los aos joelhos
ou logo abaixo, como o observado no modelo. Na Holanda era praxe o
uso da capa mais larga do que no resto da Europa. A do modelo segue tal
preceito, embora seu comprimento obedea aos padres de elegncia da
poca, indo at metade da coxa.
O quadro da Fundao Eva Klabin possivelmente uma rplica de
ateli do retrato de Jan Roever (1610-1661), burgomestre da cidade de
Deventer, existente na Kunsthalle de Hamburgo. Este tipo de retrato de
pequeno formato, representando a figura inteira de p, foi desenvolvido
por Ter Borch sobretudo no comeo da sua atividade em Deventer, por
volta de 1660. Hofstede de Groot e Gudlausson informam que uma rplica
autgrafa existia no mercado antiqurio em Viena na dcada de trinta do
sculo XX e possvel supor que seja a tela adquirida por Eva Klabin. Outra
rplica, de meia figura, encontra-se em Osnabruck. Sabe-se que o artista
holands costumava confiar aos seus colaboradores a preparao de cpias
inteiras ou parciais dos seus retratos s quais, depois o mestre pintava o
rosto. Entretanto, o estado de conservao da tela no permite afirmar com
certeza se o quadro da Fundao Eva Klabin foi executado no ateli do
pintor, ou se a sua realizao posterior.

Podemos dizer que, na Coleo da Pintura Retratstica da FEK, o


Maneirismo e o Barroco esto legitimamente representados por obras dos
mais importantes centros culturais da Europa nos sculos XVI e XVII a
Frana dos Valois, a Inglaterra dos Tudors, a Repblica Serenssima dos

Doges e a nascente Repblica dos Pases Baixos Setentrionais.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

136
Figura 1
Franois Clouet (1522-1572) atribuio
Retrato de Homem
Frana, 1560-1570
leo sobre madeira, 25,0 x 19,0 cm
.

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

137
Figura 2
Retrato de Lady Jane Grey
Autoria desconhecida
Inglaterra, 1553
leo sobre madeira, 24,0 x 25,0 cm
.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

138
Figura 3
Jacopo Robusti, dito Il Tintoretto (1518-1594)
Retrato de Nicolaus Padavinus
Veneza, Itlia, 1589
leo sobre tela, 116,0 x 88,5 cm.

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

139
Figura 4
Govaert Flinck (1615-1660)
Retrato de Homem
Holanda, 1654
leo sobre tela colada em madeira, 134,0 x 110,0 cm

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

140
Figura 5
Gerard ter Borch (1617-1681)
Retrato de Jan Roever, burgomestre de Deventer
Pases Baixos, 1641-1648
leo sobre tela, 62,0 x 48,0 cm

Ruth Levy & Anna Maria Fausto Monteiro de Carvalho

141
colees e museus

Augusto DHalmar
y la coleccin de arte chileno
del Museo de Bellas Artes de Valparaso

Amalia Cross Gantes


Investigadora / Profesora. Instituto de Arte
Pontificia Universidad Catlica de Valparaso

I. El museo

La primera noticia que conocemos sobre el proyecto de crear un Mu-


seo de Bellas Artes en Valparaso, data del mes de abril de 1941. En una
carta dirigida al Presidente de la Repblica, Pedro Aguirre Cerda, el alcalde
de Valparaso, Abelardo Contreras, y el entonces director del departamento
de cultura del municipio, Augusto DHalmar, exponen sus intensiones de
formar un museo municipal y de la importancia de ste para la regin. Los
autores de este documento escribieron:

Ha inspirado Valparaso reiteradamente a los ms grandes artistas


forasteros, como Sommerscales o chilenos como Juan Francisco
Gonzlez y obtuvo en un tiempo y tuvo prspero y reputado Teatro
Municipal que administr otro maestro nuestro de renombre y m-
rito: Alfredo Valenzuela Puelma, quien ech entonces las bases de
un Museo y de una Academia de Bellas Artes. El terremoto de 1906
vino a interrumpir estas actividades y de hecho las destruy, hasta
ahora en que un Presidente de Chile, propulsor de todos los progre-
sos y una Municipalidad portea descosa de secundaria y de no slo
servir sino enaltecer su comuna, deben volver a rehabilitarlas. Para lo
cual Valparaso, por intermedio de su Alcalde, Abelardo Contreras,
y de su conciudadano el escritor Augusto DHalmar, al cual otorg
la categora de Hijo ilustre suyo, se dirigen al seor Pedro Aguirre
Cerda, pidindole: la creacin y construccin de un local ad-hoc,
(...para) Un Museo de Bellas Artes, una sala de exposiciones y los
indispensables talleres y aulas de estudio para sus fines. Todo esto
dentro de las mesuradas proporciones y de la modestia del deco-
ro que deben acompaar las edificaciones de verdadera edificacin
cultural, a la vez idealistas y prcticas.

143
La creacin del Museo fue aprobada, en sesin extraordinaria, por el
concejo municipal el 21 de agosto de 1941, y se inaugur oficialmente el
27 de junio del ao siguiente, en un edificio de la calle Condell. En esa
ocasin, su primer director y administrador, Augusto DHalmar, ley un
discurso inaugural entorno a la palabra emocin. Como qued consignado
en la prensa, el escritor agreg que el no crea haber empleado jams esa
palabra, empero poda confesar que esta vez se senta realmente emocio-
nado al ver convertida en realidad una obra que constitua su ms grande
ambicin.
Augusto DHalmar (Valparaso, 1882 - Santiago, 1950) es recordado
como un importante escritor modernista y una figura crucial para el desa-
rrollo de los primeros movimientos artstico-literarios, de principios del
siglo XX en Chile. Pero pocos recuerdan su labor en la creacin y formacin
del MMBAV. En parte porque el mismo Museo, hasta hace poco, haba
estado en el olvido. Evidenciando el escaso conocimiento sobre las inicia-
tivas culturales llevadas a cabo por DHalmar en sus ltimos aos de vida,
en particular aquella que constituy su obra de mayor ambicin, el museo.
Desde 1941 DHalmar se encarg de conformar la coleccin del Mu-
seo, ubicarlo en la ciudad y dotarlo de inters pblico y social. En sus pri-
meros aos como director, se concentr en descolgar y reunir las obras que
eran propiedad del Municipio y que se encontraban repartidas por sus de-
pendencias, en promover la donacin de obras por parte de particulares
y artistas, y en gestionar la incorporacin de 130 pinturas que el Museo
Nacional de Bellas Artes de Santiago le cedi en calidad de prstamo, las
que permanecieron en el Museo hasta 1944, cuando un incendio amenaz
la seguridad de las obras y provoc el retiro del prstamo, marcando el ini-
cio de la crisis institucional. A dems organiz exposiciones temporales y
conferencias de artistas nacionales e internacionales, entre ellos, el espaol
Antonio Viladons, el mexicano David Alfaro Siqueiros y el chileno Carlos
Hermosilla.
Sin embargo, su gestin se vio interrumpida por desavenencias polti-
cas con las autoridades regionales de la poca, quienes criticaron su labor al
mismo tiempo que el Director critic el progresivo abandono y la falta de
apoyo haca el Museo. Por medio de una carta fechada el 27 de febrero de
1945, DHalmar present su renuncia al nuevo Alcalde de Valparaso, en
los siguientes trminos: Con esta fecha declino ante Us. con pena y alivio,
mi cargo en el Museo Municipal de Bellas Artes, creado por mi y conmigo

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

144
en Agosto de 1941, durante la Administracin Contreras, para ausentarme
definitivamente de aqu. Y agrega sobre su labor realizada: Los hombres
pasan, con sus malas o buenas pasiones; sus obras quedan, las buenas como
las malas y slo el tiempo las aquilata.
El Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaso, es uno de los pri-
meros y de los pocos museos de este tipo que se construye fuera de Santia-
go. Y no es casualidad que sea en Valparaso, ya que en esta ciudad a finales
del siglo XIX, y en paralelo a los primeros proyectos de museos que se con-
ceban desde la capital del pas, el artista Alfredo Valenzuela Puelma cre
el Museo de Pintura de Valparaso, compuesto por una coleccin de obras
que se exhiban al interior del Teatro Victoria, que funcion desde 1893
hasta 1906, cuando el edificio fue destruido por el terremoto que arruin
gran parte de la ciudad.
En Santiago desde 1880 se haba comenzado a conformar el Museo
Nacional de Bellas Artes, que en 1885 se instal en el edificio Partenn de
la Quinta Normal gracias a la gestin de la Unin Artstica encabezada por
el pintor Pedro Lira. Pedro Lira y Valenzuela Puelma representaron una
oposicin dentro de la escena artstica de la poca, y la rivalidad entre ellos
provoc que Valenzuela Puelma dejar la capital para formar el Museo de
Pinturas en Valparaso y con ello una escena artstica alternativa desde la
regin. En este sentido, la iniciativa de Valenzuela Puelma es excntrica, se
sale del centro, de la capital del pas que es el ncleo principal de desarrollo
artstico, y se perfila como un inslito antecedente al proponer el primer
museo de arte en regin, que fue la base para re-fundar el Museo de Val-
paraso en 1941.
Las obras que lograron sobrevivir del Museo de Pintura, y que eran
propiedad del Municipio, pasaron a formar parte de la coleccin del MM-
BAV. Entre ellas figuran dos obras del propio Valenzuela Puelma, un paisa-
je de Valparaso de Juan Mauricio Rugendas, un retrato de Juan Francisco
Gonzlez y un autorretrato de Manuel Thomson. A esta primera parte se
sumaron las obras provenientes de la donacin de Pascual Baburizza, un
importante empresario de origen croata, que coleccionaba pintura europea,
principalmente, del siglo XIX. De hecho, la constitucin legal del museo
fue detonada por las condiciones testamentarias que el Seor Baburizza
determin para su legado y reparticin de sus bienes. Un pie forzado que
apresur la consolidacin del proyecto, ya que haban otras ciudades inte-
resadas en adjudicarse su coleccin. A esto se sum un conjunto de obras

Amalia Cross Gantes

145
donadas por ciudadanos y artistas a modo de colaboracin con el proyecto,
especficamente, con su director. Y a partir de estos fondos DHalmar logr
configurar la coleccin fundacional del Museo.
De la totalidad de obras que componen actualmente la coleccin (390),
la mayora corresponden a pinturas. Entre ellas existe un porcentaje im-
portante realizadas por artistas chilenos o extranjeros cuyo tema es Chile,
particularmente, paisajes y escenas de Valparaso que se enmarcan en un
periodo temporal que va desde mediados del siglo XIX a mediados del XX.
Y resalta como un rasgo particular de la coleccin del Museo la presencia
de una gran cantidad de obras que representan a cabalidad un perodo es-
pecfico en la historia de la pintura chilena, precisamente, el periodo donde
se inscribe Augusto DHalmar como critico de arte.

II. La crtica de arte

Augusto DHalmar fue el seudnimo que en 1902 adopt Augusto


Thomson a la edad de 20 aos. Creci en Valparaso, y en 1898 se fue a
vivir a Santiago. En la capital se desenvolvi como escritor y promotor de
la escena artstica que conform la generacin del 900. En su casa, ubica-
da en el barrio Yungay, llev a cabo tertulias y discusiones sobre arte, que
fueron el ncleo para la formacin de la Colonia Tolstoiana y del grupo Los
Diez, los primeros movimientos artsticos de avanzada en nuestra historia
del arte (Fig.1).

Se reunan en la casa de DHalmar, intelectuales, artistas y escritores,


donde:

Desde las amplias paredes de la sala, cubierta de cuadros, grabados


y curiosidades artsticas, miraban con sus ojos inmviles, los rostros
venerables de artistas contemporneos (). Thomson posea el arte
de convertir su sala de trabajo en una especie de museo rancio y
lleno de colorido. Audaces armonizaciones de Juan Francisco Gon-
zlez, una gallarda cabecita del pintor Molina, saudosos paisajes de
Valenzuela Llanos, bosquejos de Valenzuela Puelma, alguna minia-
tura escultrica de Simn Gonzlez, formaban un conjunto que caa
sobre los circunstantes como un bao de colores que estimulaba y
tonificaba los nervios.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

146
En esta imagen, que construye el escritor Fernando Santivn, se des-
cribe la pequea coleccin de DHalmar con obras de artistas que podre-
mos encontrar, cuarenta aos despus, en las salas del Museo. Y es que
DHalmar desde muy temprano sinti una atraccin por coleccionar arte y
establecer relaciones con los artistas de su tiempo. Como lo recuerda el pro-
pio escritor en sus memorias, escritas en tercera persona y protagonizadas
por su otro heternimo Cristian Delande:

Mucho ms que entre los de su oficio, o sea, los llamados hombres


de letras bellas letras y letras bellacas: literatura y periodismo
cpole a Delande convivir con pintores y escultores. () As hemos
de pensar ms bien en cierta inclinacin natural de nuestro prota-
gonista hacia la Hermandad del Caballete, bien poco hermanable
por cierto, la Orden del desorden, quisquillosa, pendenciera y mal
avenida de los Caballeros del pincel y del cincel, artesanos y artistas,
que todo viene a ser uno en esta artesana del arte.

Entre ellos el autor nombra a Juan Francisco Gonzlez, su gran ami-


go y maestro, y a cuanto coetneo y conterrneo suyo pintarrajea tela o
borronea papel. Desde Helsby a Benito Rebolledo, pasando por Onofre
Jarpa, Pedro Lira, lvaro Casanova, Valenzuela Llanos, Valenzuela Puel-
ma, Ernesto Molina, Rafael Correa, Enrique Lynch, Pedro Reska, Agustn
Araya, Alfredo Melossi, Fosa Caldern y Arturo Gordon, los franceses La-
roche y Richon Brunet, el madrileo Santiago Pulgar, y los escultores: Ni-
canor Plaza, Jos Miguel Blanco y Virginio Arias, primero, y luego Simn
Gonzlez, Ernesto Concha y Canut de Bon.
Varios de estos artistas estn representados en la coleccin del Museo,
y constituye un inventario de los artistas que componen la escena de un
periodo inicial de la historia del arte chileno, en el cambio de siglo. Y todos
ellos fueron:

amigos inmejorables del joven escritor, dispensndole su con-


fianza y tratando cada uno de catequizarlo. Conciliar sus diversas y
contrapuestas tendencias no hubiera sido lable; sin embargo, lo fue
el que unnimemente le dieran beligerancia a sus crticas de arte, sin
creerlo intruso ni filisteo y considerndolo, en cierto modo, los unos
como un pen suyo y como un campen los otro.

Amalia Cross Gantes

147
El inters por el arte de su poca, junto a su oficio de escritor, provoc
en DHalmar la urgencia de dedicarse a la escritura sobre arte. Y lo hizo con
un tono renovado que dej a un lado el comentario relativo, para ser pione-
ro en el gnero de la crtica de arte moderna. En su escritura encontramos
progresivamente- un lenguaje analtico ante las obras, un estudio sobre
los artistas y una consideracin del contexto histrico donde se inscriben,
al mismo tiempo que se deja entrever una reflexin sobre la funcin de la
crtica y el rol que tiene el crtico de arte en la escena. Esto marc el paso
desde la literatura haca la escritura sobre arte e inaugur un gnero (y una
figura) que continuaron -con igual importancia para la historia del arte-
Juan Emar en los aos veinte y, desde mediados de la dcada del cincuenta,
el poeta Enrique Lihn.
DHalmar comenz a escribir en 1900 en la revista Instantneas de Luz
y sombra. Y retom sus crticas sobre arte a finales de la dcada del treinta,
como antesala a la creacin del museo. Sus textos son fuentes fundamen-
tales para la investigacin en historia del arte chileno, materiales de trabajo
elementales para el estudio de obras. Textos en los que sus impresiones y
anlisis dan cuenta de la recepcin del arte en un determinado contexto,
a travs de los cuales podemos documentar la produccin de los artistas y
reconstruir una parte de nuestra historia, en los albores de la modernidad
artstica.

III. Investigacin y escritura de historia

La investigacin se articula desde la figura de Augusto DHalmar,


como hilo conductor y motor de bsqueda, en dos lneas de trabajo que se
cruzan inevitablemente. La primera consiste en documentar la formacin
de la coleccin histrica del museo bajo la direccin de DHalmar. Y la se-
gunda propone aproximarse a las obras a travs de su pensamiento esttico
plasmado en sus textos crticos sobre arte.
La primera lnea tiene un sentido prctico que contribuye a la organi-
zacin del museo, pero tambin un sentido histrico que nos informa no
slo de la obra, su autor y la fecha de ingreso a la coleccin, si no de quienes
y con qu objetivo la hicieron llegar a ste. Como es el caso de la primera
obra, La boca del maule (1921) del pintor francs radicado en Chile, Ricardo
Richon Brunet (Fig.2). La obra fue donada al Museo en 1942 por sus ex
discpulos y admiradores; Carlos y Roberto Humeres Solar, el historiador

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

148
del arte Eugenio Pereira Salas, los pintores Ana Corts Jullian y Camilo
Mori, todos ellos figuras claves de la escena artstica del momento. Y como
seala DHalmar, en una carta de agradecimiento, esta donacin adquiere
un doble significado como primero y valioso aporte al museo en formacin:

por la alta calidad de los donantes y porque en su nota de ofre-


cimiento se sirven expresar que me la dirigen como testimonio de
afecto al artista y al amigo. Estoy seguro que tan noble ejemplo
servir de incentivo a otras generosas ofrendas y que, gracias a ellas,
este nuevo museo en Chile, en este puerto tan querido de todos los
chilenos, podr ser un sitio ms de esparcimiento para los espritus
selectos y, para el pueblo, otra escuela de cultura.

La segunda lnea se centra en estudiar las obras por medio de la reco-


pilacin de textos escritos por DHalmar, donde se encuentran referencias
a las pinturas o a los artistas de la coleccin. Hasta el momento aquellos
casos a los que DHalmar dedic artculos en su seccin Los 21. Estu-
dios sobre artistas de la revista Instantneas de luz y sombra, entre 1900 y
1901. La mayora de ellos eran artistas que marcaron tendencia, y sobre los
cuales DHalmar defendi sus propuestas artsticas, muchas veces a contra
pelo del gusto de la poca. Casos paradigmticos, tanto por el enfoque que
propone el crtico como por la importancia de estos artistas al interior de
la coleccin del Museo, son Alfredo Valenzuela Puelma y Juan Francisco
Gonzlez, entre otros artistas que conformaron la generacin del 900 y que
para el historiador del arte Antonio Romera- son precisamente, maestros
de la pintura chilena.
En el tercer estudio sobre artistas, DHalmar aborda la obra de Alfredo
Valenzuela Puelma, para l un hombre excntrico y mortificado pero el
ms pintor de todos los artistas chilenos (Fig.3). En el texto se refiere a sus
obras presentadas en el ltimo Saln. Estas eran composiciones de temas
bblicos y alegoras osadas con personajes desnudos, las que fueron destro-
zadas por la critica, para DHalmar por la critica necia, fatua y parcial, esa
que sin comprender nada lo despedaza todo. Y para demostrar su indiscu-
tible talento como pintor, DHalmar describe sus logros en otro gnero de
pinturas menos polmico. En sus palabras:

Valenzuela Puelma ha hecho retratos admirables de vida y carcter;


acaso no existe en el Museo (MNBA) uno del pintor Mochi? no
conocis los de Enrique del Campo y de Somaraga? Nadie como

Amalia Cross Gantes

149
l ha sabido estampar en la tela el parecido perfecto unido al mo-
vimiento ms animado; l, como un dios, infunde el soplo de vida a
los inanimados personajes que surgen del pincel, les comunica calor
y la viveza que arde en su imaginacin, y de modelos muertos, slo
preocupados de pozzar y de parecer bien, hace artsticos retratos,
interesantes cabezas que hablan en la expresin y piensan en los ojos;
poderosos retratos muy humanos y muy espirituales, como si latiese
en ellos la existencia y palpitase vigorosamente la razn.

El Retrato de Enrique del Campo (Fig.4) fue realizado por Valenzuela


Puelma en 1894, y forma parte de la coleccin que se desprende del Museo
de Pintura de Valparaso que el mismo artista creo un ao antes de pintar
esta obra. En el cuadro aparece de medio cuerpo un hombre vestido con
traje y corbatn, sentado sobre una silla, apoyando sobre la mano izquierda
su cabeza inclinada. La pose melanclica del retratado similar a la de
DHalmar en la fotografa (Fig.1)- es acompaada haca el fondo por tres
obras, probablemente bocetos y pinturas adosadas a la pared del taller del
pintor, que es un fondo recurrente en sus retratos.
As como los retratos en la pintura de Valenzuela Puelma, la escritura
de DHalmar sobre artistas son estudios, retratos hablados o semblanzas,
que intentan dar con la identidad del pintor y su obra, por medio de la des-
cripcin de su personalidad, sus pensamientos y obsesiones, la eleccin de
temas y la preferencia de gneros, como tambin nos informa de su manera
de trabajo, de su taller y de los procedimientos artsticos que en el tienen
lugar.
En sus crticas, especficamente en las primeras que refieren al pintor
Juan Francisco Gonzlez, ocurre en su escritura una vinculacin formal, no
slo temtica, con la pintura a modo de cfrasis. La imagen que describe
sera el equivalente en palabras de una pintura. Lo que se debe al hecho que
Gonzlez contribuy activamente en su formacin de escritor, ocupando la
figura de maestro.
DHalmar sola acompaar a Gonzlez a paisajear (pintar al aire li-
bre) y sus paisajes fueron - precisamente- las obras preferidas del escritor.
Sabemos, a travs de una carta, que al instalarse en Valparaso a finales de la
dcada de 1930, DHalmar tena en su casa una coleccin de ocho pinturas
de este pintor. Y no sera errneo pensar que algunas hayan pasado a formar
parte del museo, como ejemplo de donacin de su propio director, consi-
derando que Gonzlez es el artista ms representado. En el Museo existen

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

150
catorce telas del pintor, y de ellas ocho son paisajes, de sus viajes a Europa,
Amrica y de sus recorridos por la zona central de Chile. Para DHalmar
una de las mayores pasiones de Gonzlez, eran ...las torres antiguas, los pe-
queos campanarios derruidos, las rejas coloniales, toda esa hermosura aus-
tera y artstica de otras edades ms sinceras y ms grandes. Y seala: Le he
visto preciosos apuntes de Lima y de Granada y de Sevilla y de Valencia,
los que se corresponden con algunas de las obras del Museo, entre ellas,
Otoo y casas viejas, Puente sobre el Rimac y San Francisco el grande (Fig. 5).
DHalmar supo ver que Gonzlez sera una figura clave en la historia
de la pintura chilena. Frente a la enseanza del arte acadmico de la poca,
de composiciones rgidas y temas clsicos, Gonzlez desarroll una pintura
de paisajes campestres y ciudades, donde el color es fuerte, pastoso y la
pincelada espontnea. Estableciendo los principios que articularon la reno-
vacin de la pintura chilena. Pero advierte tambin que:

Largo tiempo transcurrir antes que la pintura de Juan Francisco


Gonzlez sea comprendida y sea estimada entre nosotros. Las in-
novaciones padecen una difcil gestacin en sociedades retrogradas
y rutinarias. An no apreciamos a Tolstoy y a Zola o a Baudelaire y
a Verlaine; adems, Gonzlez, habiendo iluminado la pintura nacio-
nal, habiendo sembrado la simiente buena, no es tal vez el llamado
a cosechar el laurel del triunfo: los descubridores y los iniciadores
jams gozan de sus afanes, ello es para que los que vengan ms tar-
de, para los que encuentren el rumbo ya trazado. Acaso al atrevido
impresionista le quepa el triste y heroico papel de Claudio Lantier.

Con estas ideas e impresiones se desprende de los escritos de DHalmar


una lectura crtica y asertiva sobre la obra de los artistas. Sus pensamien-
tos y juicios sobre arte nos permiten aproximarnos a las obras y trazar un
relato que yace en la coleccin del Museo mediante la escritura del propio
DHalmar. A travs de sus textos podemos comprender con mayor profun-
didad las directrices que definen la coleccin y, al mismo tiempo, estudiar el
contexto de produccin y recepcin de las obras que la componen.
En sus textos hay referencias a obras que -de una forma u otra- termi-
naron colgadas en las paredes del MMBAV, haciendo real la existencia de
un museo que antes fue imaginado en su escritura. Tal vez en esto ltimo
radique lo ambicioso de su proyecto; la creacin de un museo como su obra
mxima de escritor. Ya que DHalmar construye, a partir de un contrapunto

Amalia Cross Gantes

151
entre arte y literatura, un relato que sera el guin de la coleccin. El que
todava debemos transcribir para la historia del arte chileno.
Por ltimo, es posible reflexionar sobre la historia de los museos en
Chile e inscribir el proyecto del MMBAV en un contexto poltico y cultural
ms amplio, que da luces de un proceso especfico del pas en la dcada del
cuarenta. Fue con los gobiernos radicales, especficamente con el primero
de ellos presidido por Pedro Aguirre Cerda, y su lema gobernar es educar,
que se dise e implement un programa substancial de educacin que
promovi la investigacin cientfica y el desarrollo cultural del pas. En este
sentido, la fundacin del MMBAV se enmarca en una serie de reformas e
iniciativas, estatales y gremiales, que buscaron responsabilizarse del campo
cultural del pas por medio de la creacin de museos y la puesta en valor de
su patrimonio artstico, con el objetivo de conocer y resguardar en ellos las
piezas con las que armamos nuestra historia.

Bibliografa

AA. VV. El Palacio Baburizza. Museo de Bellas Artes de Valparaso: res-


tauracin y habilitacin museogrfica. Turn: Compagnia Italiana di
Conservazione, 2007.
DHalmar, Augusto. Recuerdos olvidados. Santiago: Editorial Nascimiento,
1975.
Gorigoita, Ral. Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaso. Re-
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Loebell, Ricardo. Croquis de una crtica en albores del siglo por Augusto
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cin 1900 1950. Santiago: MNBA, 2000.
Romera, Antonio. Historia de la pintura chilena. Santiago: Editorial An-
drs Bello, 1976.
Santivn, Fernando. Memorias de un tolstoiano. Santiago: Editorial Univer-
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Thomson, Augusto. Los 21. Estudios sobre artistas por Augusto G.
Thomson. III Alfredo Valenzuela Puelma. Instantneas de luz y som-
bra, Ao II, n 57. Santiago, abril 1901.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

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Thomson, Augusto. Los 21. Estudios sobre artistas por Augusto G.
Thomson. VIII Juan Francisco Gonzlez. Instantneas de Luz y Som-
bra, Ao II, n 66. Santiago, junio 1901.
Zegers, Roberto. Juan Francisco Gonzlez. Santiago: Ediciones Ayer,
1981

Amalia Cross Gantes

153
Figura 1
Augusto DHalmar (1905).
Archivo fotogrfico del Archivo del Escritor.
Biblioteca Nacional.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

154
Figura 2
Richon Brunet, Boca del Maule (1921).
Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaso.

Amalia Cross Gantes

155
Figura 3
Portada seccin
Los 21. Estudios sobre artistas,
por Augusto G. Thomson
Revista Instantneas n57 ao 1901.
Caricatura del pintor Alfredo Valenzuela Puelma dibujado
por Santiago Pulgar.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

156
Figura 4
Alfredo Valenzuela Puelma,
Retrato de Enrique del Campo (1894).
Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaso.

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Figura 5
Alfredo Valenzuela Puelma,
Retrato de Enrique del Campo (1894).
Museo Municipal de Bellas Artes de Valparaso.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

158
colees e museus

O Lugar das colees museolgicas


na definio de um patrimnio no IPHAN

Eduardo Augusto Costa


Doutorando no IFCH Unicamp.
Professor da Escola da Cidade

O Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional IPHAN


guarda, em seu Arquivo Central, um conjunto de livros dedicados ao
registro dos documentos fotogrficos incorporadas a este instituto desde sua
fundao, no ano de 1937. Tratam-se de livros de suma importncia para o
reconhecimento do empenho dos servidores deste Instituto no apenas no
que se refere diretamente ao patrimnio tombado e reconhecido enquanto
referencial para a constituio de uma memria da cultura brasileira, mas,
especialmente, quanto s prticas, a um fazer cotidiano responsvel pela
definio de uma narrativa do patrimnio. Neste sentido, pode-se notar
um sensvel empenho na recolha de registros responsveis pela definio de
uma iconografia essencialmente vinculada aos processos de tombamento e
restauro dos bens patrimoniais.
O primeiro volume deste conjunto de livros intitulado Inventrio
traz um retrato bastante contundente da importncia dessa documentao
no processo cotidiano de organizao de uma feio original para o
patrimnio nacional. Para alm dos registros de cidades e bens passveis
de serem preservados, registra-se, ao longo de suas 200 pginas, dezenas
de documentos cartoriais e escritos, mas, especialmente iconogrficos
como mapas, telas, croquis, desenhos tcnicos e livres, retratando vistas,
fachadas e interiores de edifcios listados pelo seu interesse patrimonial.
Primeiramente, na sesso dedicada exclusivamente srie Personalidades1,
pode-se acompanhar de maneira clara o interesse e a dedicao que os
tcnicos do IPHAN tiveram ao solicitar aos mais variados fotgrafos
annimos e profissionais2 o registro de obras de arte, que representassem
1
Uma subdiviso da srie inventrio.
2
E aqui grandes nomes da fotografia brasileira, como Marcel Gautherot e Erich Hess,
tiveram um papel fundamental, na medida em que eram eles os capazes de produzir regis-
tros condizentes com a qualidade tcnica, a preciso, necessria para este tipo de registro.

159
elementos importantes para a cultura material brasileira. Nomes como
os de Almeida Jnior, Pedro Amrico, Benedito Calixto, Jean-Baptiste
Debret, Charles Landseer, Victor Meireles, Johann Moritz Rugendas e
Nicolas Antoine Taunay representam apenas uma breve amostra das quase
trs centenas de artistas representados nesse arquivo fotogrfico3.
A riqueza e importncia desta documentao pode tambm ser avaliada
pela significativa quantidade de documentos destinados a esta finalidade.
Tratam-se mais de mil e duzentos registros fotogrficos realizados apenas
na primeira dcada de funcionamento deste instituto e registrados no
Arquivo Central do IPHAN. Em termos quantitativos, equivale a dizer que,
de cada 25 fotografias arquivadas, uma era destinada ao registro de obras
de artes. Parece ainda importante notar que esta atividade perdurou por
toda a histria desta Instituio, conservando em seu arquivo, por exemplo,
fotografias de telas de Frans Post, realizadas, em 1942, pelo fotgrafo Kazis
Vosylius, e fotografias de arte plumria realizadas pelo fotgrafo Pedro
Lobo, em 19854.
A srie Personalidades do Livro de Registros de Fotografias parece dar
destaque inteno do IPHAN em constituir um repertrio iconogrfico
a partir da obra de artistas consagrados, organizando assim um referencial
visual da cultura brasileira. No entanto, essa finalidade aparece ainda
melhor definida quando associada diretamente s cidades e seus bens
imveis. Nota-se, por exemplo, a presena de desenhos de Hercules
Florence junto ao inventrio relativo s cidades de Campinas e Limeira,
no Estado de So Paulo; uma gravura de Johann Moritz Rugendas,
representando uma casa identificada como de Porto da Estrela, em Mag
no Rio de Janeiro; um painel de Henrique Bernardelli, identificado como
casa n97, da praia de Icara em Niteri, tambm no Rio de Janeiro; ou
uma pintura a leo de Frans Post, relativo a um engenho em Sirinham, no
Estado de Pernambuco. Outras tantas reprodues fotogrficas de obras
de arte executadas seja por annimos ou artistas consagrados no deixam
dvidas quanto a esta operao realizada pelo IPHAN, abrangendo todo o
territrio nacional. Muitas vezes identificadas apenas como gravura antiga,

3
Vale ainda destacar que, para alm dos artistas que tiveram uma atividade ligada de ma-
neira direta com a representao das cidades e dos bens histricos brasileiros, o Arquivo do
IPHAN tambm apresenta nomes como o de Caravaggio, De Chirico, Joan Mir, Goya,
Degas, Rafael e Renois, o que destaca no s o cuidado que o IPHAN teve em organizar um
referencial iconogrfico brasileiro, mas que, ainda, teve um olhar sensvel arte ocidental.
4
Livro de Registro de Fotografias.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

160
desenho antigo, documento, panoramas da cidade, reproduo de telas,
esta documentao parece indicar de maneira eloquente a inteno dos
servidores do IPHAN em associar os bens materiais com documentos
e colees de obras de arte, de posse de bibliotecas, arquivos e museus,
especialmente, pblicos e brasileiros, mas no exclusivamente.
A documentao fotogrfica dessas colees de documentos e obras
de arte expe, antes de mais nada, a singularidade destas instituies frente
formao e estabilidade de uma identidade para o patrimnio das
naes. Trata-se de algo que o IPHAN parece corroborar ao incorporar
reprodues destes documentos no processo de inventrio, especialmente
no que se refere ao patrimnio material e imvel. Organizada atravs da
documentao fotogrfica, a vinculao do bem material inventariado com
a iconografia pertencente s colees pblicas d ensejo singularidade
assumida por essas instituies na organizao e renovao das sociedades,
especialmente no decorrer do sculo XVIII. Sem deixar de atentar para
as bibliotecas e arquivos pblicos, os museus foram instrumentos chaves
para a regenerao das sociedades. Elas atuaram no sentido de organizar
uma memria de uma dada cultura, assumindo, portanto, um importante
lugar no jogo de poderes institucionais, como ocorrera de maneira latente
durante a Revoluo Francesa5.
Os interesses que regeram a organizao e criao de museus, bibliotecas
e arquivos, no caso brasileiro, sofreram alteraes no decorrer da histria
do pas. Se a viso cientfica aparece de maneira marcada no sculo XIX,
Schwarcz indica que h uma profunda transformao desta perspectiva, no
incio do sculo XX6. No entanto, especialmente no que se refere aos museus
brasileiros de histria, seja atravs de suas colees ou at mesmo de seus
espaos fsicos em si, como o caso do Museu Paulista, estas instituies
exerceram um papel importante na manuteno de uma representao
do imaginrio social. Seria este o Theatrum Memoriae, destacado pelo
historiador Ulpiano Bezerra de Meneses. O Museu, ao ordenar, registrar,
interpretar e organizar uma sntese cognitiva da apresentao visual,
exerceria, nas palavras do historiador, um notvel impacto pedaggico7.
5
CHAGAS, M. Museus: antropofagia da memria e do patrimnio. In: Revista do
Patrimnio, n31. Braslia: IPHAN, 2005. pp.15-25.
6
Idem.
7
MENESES, U. Do teatro da memria ao laboratrio da histria: a exposio museolgica
e o conhecimento histrico. In: Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Ser. V.2. p.9-42
jan./dez. 1994. p.10.

Eduardo Augusto Costa

161
Seriam, portanto, os museus os responsveis pela elaborao, manuteno
e projeo de uma segurana identitria, mantida atravs da inter-relao
de seus objetos, documentos e narrativas. Pela semelhana documental ou
mesmo iconogrfica entre os objetos, seria possvel manter uma estabilidade,
um ritmo cultura, reafirmando e garantindo uma dada ordem, que seria
responsvel pela manuteno de uma didtica e uma disciplina para a
cultura brasileira. Esta identidade, mantida tambm atravs da relao
entre estas instituies, parece ser elemento chave para o entendimento do
que levou o IPHAN a documentar estas telas, desenhos, mapas e tantos
outros documentos representativos para a cultura nacional.
O registro fotogrfico de determinados documentos e objetos de arte
espalhados por museus, bibliotecas e arquivos no territrio brasileiro, alm
de documentos sobre o Brasil e de posse de instituies internacionais,
parece indicar de maneira bastante contundente uma inteno deste
Instituto em estabelecer no s um referencial comum, mas um vnculo com
estas instituies, especialmente comprometidas com uma representao de
pas. Enquanto Instituto responsvel pelo patrimnio e pela herana da
cultura nacional, ao trazer para seu interior uma documentao autorizada
e reconhecida socialmente, ou, ao menos, identificada enquanto documento
iconogrfico de um passado autorizado do pas, o IPHAN ocupa-se de
uma representao arquivada sob a guarda de instituies nacionalmente
reconhecidas, o que viria a assegurar e validar um lugar para si, no cenrio
nacional. A incorporao de registros fotogrficos de importantes obras
de arte, reconhecidas como lugar de identidade de uma cultura nacional,
parece, portanto, servir ao IPHAN como meio de filiao cultura da nao.
Esta necessidade de projeo sobre a documentao da iconografia
brasileira aparece em diversos momentos atravs de discursos oficiais
e paralelos ao IPHAN. Uma das evidncias mais significativas foi o
tombamento, na primeira dcada de funcionamento deste Instituto,
de uma srie de colees museolgicas. Neste sentido, pode-se destacar
o tombamento, em Belm, da Coleo arqueolgica e etnogrfica do
Museu Paraense Emlio Goeldi, em 1940; em Pernambuco a Coleo
que constitui o Museu em Formao, anexo Biblioteca, atual Museu do
Estado de Pernambuco, em 1938; em Juiz de Fora MG as Colees
que constituem o Museu Mariano Procpio, em 1939; no Rio de Janeiro
o Museu de Magia Negra, em 1938, e a Coleo arqueolgica Balbino de
Freitas de Conchais do Litoral Sul (no Museu Nacional), em 1948; em

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

162
So Paulo as Colees arqueolgicas, etnogrficas, artsticas e histricas do
Museu Paulista (Ipiranga), em 1938; em Curitiba a Coleo etnogrfica,
arqueolgica e histrica e artstica do Museu Coronel David Carneiro,
em 1941, e a Coleo etnogrfica, arqueolgica, histrica e artstica do
Museu Paranaense, em 1938; em Porto Alegre a Coleo arqueolgica,
etnogrfica, histrica e artstica do Museu Jlio de Castilhos, em 1938; e,
finalmente, em Santa Maria RS a Coleo que constitui o Museu da
Unio dos Caixeiros Viajantes no Museu Vitor Bersani, em 19388. Vale
ainda notar que, dos Museus relacionados com documentos fotogrficos
incorporados ao Arquivo Fotogrfico, entre 1937 e 1948, pode-se indicar
uma srie de instituies9. Na Bahia: Museu de Arte Sacra de Salvador e
Museu do Estado da Bahia; em Piau: Museu Histrico; no Cear: Museu
do Bispo, Museu Histrico e Museu Rocha; em Pernambuco: Museu
Instituto Arqueolgico, Museu Regional e Pinacoteca do Estado; no Rio de
Janeiro: Museu Ruy Barbosa, Museu Nacional, Museu Nacional de Belas
Artes, Museu Histrico Nacional e Museu Imperial; no Esprito Santo:
Museu Capixaba; em Minas Gerais: Museu Arquiepiscopal, Museu Dom
Inocncio, Museu Histrico, Museu da Inconfidncia e Museu do Ouro;
no Paran Museu Dani Carneiro e Museu Revoluo Federalista; em Porto
Alegre: Museu das Misses e Museu Jlio de Castilhos.
Parece portanto claro que o trabalho desenvolvido pelos servidores do
IPHAN no se limitou exclusivamente ao tombamento dos bens imveis,
mas projetou-se, tambm, sobre colees e conjuntos documentais de
museus e instituies culturais. Esta atividade no minimiza a dedicao
e a importncia atribuda pelo IPHAN classificao dos bens imveis,
como a bibliografia especializada tem apontado e reforado, ao menos,
nas ltimas trs dcadas10. Por outro lado, este trabalho de tombamento
das colees e acervos, alm da sua documentao fotogrfica, parece sim
8
LIMA, F; MELHEM, M.; POPE, Z. (Orgs.). Bens mveis e imveis inscritos nos Livros
do Tombo do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional: 1938-2009. Rio de
Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2009.
9
No h como precisar a data de incorporao de cada um destes documentos ao
arquivo, uma vez que a anotao sistemtica passou a ser realizada apenas a partir
de 1948. Destaca-se, portanto, que estes documentos foram incorporados entre
1937 e 1948.
10
RUBINO, S. As fachadas da histria: os antecedentes, a criao e os trabalhos do Servio
do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, 1937-1968. Dissertao de Mestrado:
IFCH- Unicamp, 1991; ANDRADE, A. Um Estado Completo que pode jamais ter exis-
tido. Tese (Doutorado). FAU-USP, 1993.

Eduardo Augusto Costa

163
destacar um vis duplo, onde ao mesmo tempo em que a documentao
guarda caractersticas especialmente importantes para a cultura brasileira,
no que se refere a sua natureza documental, ela tambm informa e qualifica
os bens imveis, no que se refere as suas caractersticas visuais. Neste
sentido, atravs dos documentos preservados no Arquivo do IPHAN, de
seus processos de tombamentos e dos prprios relatos dos servidores, pode-
se acompanhar o lugar ocupado pelas colees pertencentes s instituies
brasileiras e estrangeiras na definio de uma visualidade para o patrimnio
nacional.
Um dos casos mais eloquentes a este respeito pode ser acompanhado
atravs da Revista do Patrimnio. No ano de 1984, dedica-se o vigsimo
volume desta revista ao tema A restaurao do Pao Imperial e o futuro da Praa
XV no Rio11, reforando a importncia deste debate, especialmente num
momento de reestruturao da revista, aps longo perodo sem ser editada.
Alm do cuidado em tratar da Praa XV, o centro do debate encontra-se
nas questes suscitadas ao IPHAN, em decorrncia das escolhas tomadas
ao longo do processo de restauro do Pao Imperial. Entre os aspectos
importantes desse servio, deve-se destacar o fato de que este seria um dos
grandes restauros executados pelo IPHAN, aps longo perodo de reduzida
atividade, fruto atrofia suscitada pelo Regime Militar. Mas no simbolismo
desta edificao que residiria a particularidade atribuda ao bem, j que
atrelada dezenas de importantes passagens da histria do pas, alm de
uma importante e vasta srie de registros iconogrficos produzidos ao longo
de mais de trs sculos.
neste sentido que Glauco Campello, superintendente da regional do
IPHAN, no Rio de Janeiro e coordenador do restauro do Pao, apresenta,
em artigo de sua autoria, um conjunto de 8 documentos iconogrficos
produzidos por Richard Bate, Thomas Ender, Karl Wilhelm von Theremin,
Moreau & Buvelot e Marc Ferrez. Alm da capa da Revista, que traz
impresso o fabuloso Leque comemorativo da parada naval e militar no largo
do Pao, impresso em cores, outros artigos tambm publicadas neste volume
da Revista do Patrimnio apresentaram documentos iconografias, estes
realizadas por Henry Chamberlain, Leandro Joaquim e William John
Burchell. Para alm de uma investigao in loco no stio da edificao, a
iconografia parece ter sido a documentao de maior valia para as resolues
tomadas no decorrer do restauro do Pao. Segundo Cyro Corra Lyra,

11
Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. n20. Braslia: IPHAN, 1984.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

164
arquiteto que participou do processo, a pesquisa de restauro foi facilitada
pela existncia de considervel iconografia do exterior do palcio, j identificada
e analisada pelo historiador Gilberto Ferrez.12.
A importncia da participao de Ferrez, no processo de restauro
do Pao, notria at mesmo na fala de Campello, que considerava a
documentao iconogrfica incompleta para a compreenso de todos os
diferentes momentos da trajetria do edifcio13. Vale notar, no entanto,
que esta avaliao parece carregada de inteno, na medida em que a
narrativa apresentada pelo autor atribui maior valor s escolhas e anlises
das tcnicas construtivas realizadas in loco pelo prprio arquiteto, relegando,
assim, segundo plano o trabalho de Gilberto Ferrez. Tratava-se, portanto,
da defesa de uma linha de projeto, j que muito contestada, como indicado
pela arquiteta Lia Motta14. Ainda, certo que, diante da complexidade
dos tempos histricos superpostos no decorrer da trajetria desse edifcio,
que passara por diversas reformas e transformaes, seria muito difcil
encontrar documentao capaz de bem retratar todas as etapas desse
processo em perfeio de detalhes, como intencionado por Campello.
Por outro lado, pode-se identificar com facilidade o reconhecimento da
documentao iconogrfica no processo de restauro do edifcio, alm da
importncia da participao de Ferrez na tomada de decises, para o que
viria a ser realizado pelo IPHAN. O prprio Campello destaca o papel
deste historiador, juntamente ao do arquiteto Jos de Souza Reis, que, como
conselheiros do IPHAN, opinaram de sada pela recomposio da volumetria
correspondente ao perodo colonial15. A participao de Ferrez e a opo
pelo uso da documentao iconogrfica no processo de restauro do Pao
parecem, por fim, destacados numa outra publicao dedicada histria do
edifcio e a sua trajetria iconogrfica.
Editado pelo SPHAN/Pr-Memria e pela Secretaria da Cultura,
Gilberto Ferrez organiza o livro intitulado O Pao da Cidade do Rio

12
LYRA, C. O novo Pao: uma obra para debates. In: Revista do Patrimnio. N20. Op.
Cit. p.152.
13
CAMPELLO, G. A restaurao do Pao: revendo 240 anos de transformaes. In: Re-
vista do Patrimnio. N20. Op. Cit. p.139.
14
Entrevista concedida ao autor em 11 de dezembro de 2013.
15
Idem. p.143.

Eduardo Augusto Costa

165
de Janeiro16. Composto por 60 ilustraes, entre desenhos, mapas,
litogravuras, aquarelas, pinturas, e fotografias, o livro parece adquirir uma
certa independncia, j que funciona como uma espcie de exaustivo
inventrio iconogrfico do Pao. Cyro Lyra, responsvel pelo texto de
Apresentao do livro, logo deixa claro que a iconografia apresentada teria
servido como pedras angulares do trabalho de restaurao arquitetnica.17.
Neste sentido, reveladora a sntese realizada por Lyra ao descrever alguns
destes documentos, frente s tomadas de decises no processo de restauro.
A passagem longa, mas esclarecedora:

Os desenhos de Thomas Ender, William John Burchell e Theremin [Fig.1],


notadamente as fachadas retratadas por Ender e a viso panormica do
Rio de Janeiro, de Burchell, foram argumentos bsicos para a deciso que
levou demolio de grande parte do pavimento superior. Ao contrrio da
maioria dos desenhos do Pao, as aquarelas notveis do pintor austraco
[Fig.2; Fig.3] captaram com preciso a fora das fachadas principais
do prdio poca de D. Joo VI. Fora esta que resultava mais das
qualidades da composio arquitetnica do que de atributos prprios
aos edifcios palacianos (...) inexistentes no nosso palcio. Os desenhos
de Ender tiveram o efeito de convencimento que outros trabalhos no
produziram. Debret, por exemplo, cujas ilustraes so muito mais
difundidas, ao retratar o Pao, falta verdade, modificando propores
e detalhes arquitetnicos, talvez por estar mais interessado na captao
do espao urbano do largo do Pao do que propriamente nos edifcios
que o circundam. Entretanto, se as imagens transmitidas por Ender
convenceram os restauradores, j no foram suficientes para justificar
racionalmente uma reconstituio. Foi atravs dos desenhos realizados
pelo ingls Burchell [Fig.4], do alto do morro do Castelo, que se tornou
possvel redescobrir (...) a volumetria do monumento, de um ngulo (...)
essencial para o trabalho de restaurao.18

O Arquivo Fotogrfico do IPHAN parece ser uma instituio


imprescindvel para que se possa refazer o elo estabelecido entre este
Instituto e as instituies museolgicas. A restaurao do Pao Imperial,
assim como uma srie de outros restauros realizados, deixa clara que

16
O registro da Biblioteca Nacional indica o ano de 1984. Apesar de haver grafado no livro
uma outra data, a de 1985, a primeira ser considerada. FERREZ, G. O Pao da Cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundao Nacional Pr-Memria, 1984.
17
Idem. p.7
18
Ibidem. p.7

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

166
a iconografia foi documento necessrio justificativa e autorizao
da interveno na materialidade do bem, resultando em demolies e
reconstituies. Finalmente, parece clara que a iconografia foi elemento
fundamental para que se pudesse reconectar o tectnico a uma visualidade
institucionalizada por museus e instituies nacionais e internacionais.
Vale notar que estes procedimentos, ao se associarem a um conjunto de
instituies dedicadas formao de uma cultura para a nao, compem
algo estruturante e formador do prprio engenho cultural, organizado
ao longo do sculo XX no Brasil. a destreza com que estes restauros
se apropriam da iconogrfica brasileira que torna o patrimnio material,
em especial a arquitetura, parte indissocivel da cultura brasileira, j que
associada s colees museolgicas nacionais e internacionais relativas
cultura brasileira. Atravs da perspiccia de se associar a uma visualidade, os
servidores do IPHAN parecem ter tomado de assalto uma cultura ou, quem
sabe, contribudo radicalmente para a formao de uma cultura moderna
brasileira, talvez, a prpria tradio moderna. Cultura que se d a partir do
vnculo entre as colees de determinadas instituies com a materialidade
do patrimnio histrico tombado, restaurado e preservado em seu Arquivo
Fotogrfico.

Referncias bibliogrficas

ANDRADE, A. Um Estado Completo que pode jamais ter existido. Tese


(Doutorado). FAU-USP, 1993.
CAMPELLO, G. A restaurao do Pao: revendo 240 anos de
transformaes. In: Revista do Patrimnio. N20. Op. Cit. p.139.
CHAGAS, M. Museus: antropofagia da memria e do patrimnio. In:
Revista do Patrimnio, n31. Braslia: IPHAN, 2005. pp.15-25.
FERREZ, G. O Pao da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Fundao Nacional Pr-Memria, 1984.
LIMA, F; MELHEM, M.; POPE, Z. (Orgs.). Bens mveis e imveis
inscritos nos Livros do Tombo do Instituto do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional: 1938-2009. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC,
2009.

Eduardo Augusto Costa

167
LYRA, C. O novo Pao: uma obra para debates. In: Revista do Patrimnio.
N20. Op. Cit. p.152.
MENESES, U. Do teatro da memria ao laboratrio da histria: a exposio
museolgica e o conhecimento histrico. In: Anais do Museu Paulista.
So Paulo. N. Ser. V.2. p.9-42 jan./dez. 1994. p.10.
Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. n20. Braslia: IPHAN,
1984.
RUBINO, S. As fachadas da histria: os antecedentes, a criao e os
trabalhos do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,
1937-1968. Dissertao de Mestrado: IFCH- Unicamp, 1991.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

168
Figura 1
O Pao da Cidade tomado da rampa, 1818.
Desenho original de Theremin foi litografado por Loeillot
e colorido a mo.
Coleo Gilberto Ferrez.

Eduardo Augusto Costa

169
Figura 2
Haupteingang in den koenigl. Pallast.
1.Koemigl. Hof Capelle
2.Capella dos Terceiros
3.Der Molo
(Entrada principal no Pao Real. 1. Real Capela da Corte
2. Capela dos Terceiros 3. O Cais.
Lpis aquarelado 390 x 527mm Thomas Ender).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

170
Figura 3
Ansicht des koenigl. Pallastes mit der Hauptwache 1.
Fort SoSebastiao. 2 Telegraph
(Vista do Real Palcio com a guarda princial.
1. Forte de So Sebastio 2. Telgrafos.
Lpis aquarelado 372x525mm Thomas Ender)

Eduardo Augusto Costa

171
Figura 4
Uma das pranchas do grande panorama de 360 graus
executado do alto do morro do Castelo, em 1825,
por William John Burchell a lpis e aquarela.
Coleo Biblioteca de Johannesburg frica do Sul

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

172
colees e museus

Imagen, materia y memoria:


un acercamiento a la coleccin
de estampitas religiosas del Museo Histrico Nacional

Hugo Rueda Ramrez


Licenciado en Historia y Magister en Estudios Latinoamericanos
por la Universidad de Chile. Asesor de Colecciones
del Museo Histrico Nacional, Dibam.
www.museohistoriconacional.cl

Las estampitas del Museo Histrico Nacional

La Coleccin de Libros y Documentos del Museo Histrico Nacio-


nal de Chile custodia un conjunto de tarjetas conmemorativas asociadas a
prcticas rituales propias del catolicismo. Se trata de un amplio repertorio
compuesto por alrededor de 130 representantes que, a manera documental,
atestiguan mediante una imagen la celebracin de un rito particular: bau-
tismos, primeras comunin, matrimonios, congregaciones y ordenaciones,
entre otras, son contenidas material y visualmente por un soporte conocido
tradicional y popularmente como estampita.
Comprendidas como materialidades condensadoras y al mismo tiem-
po, evocadoras- de un rito, las estampitas catlicas provienen de una larga
tradicin europea que es posible rastrear desde los grabados religiosos del
siglo XVI, contexto en el que pertenecan al mbito de las devociones pri-
vadas1. Legitimadas institucionalmente por el episcopado durante el Con-
cilio de Trento en 15632, las imgenes sagradas adquirirn un valor nico
como agentes estratgicos de una pedagoga de la evangelizacin de carc-
ter visual. En ese contexto, las estampitas se inscriben como elementos cla-
1
Cfr: Laugerud, Henning y Skinnebach, Laura Katrine (eds)., Instruments of Devotion. The
Practices and Objects of Religious Piety from the Late Middle Ages to the 20th Century. Aarhus,
Aarhus University Press, 2007.
2
Sobre el asunto, Trento decreta que Se saca mucho fruto de todas las sagradas imgenes,
no slo porque recuerdan al pueblo los beneficios y dones que Cristo les ha concedido, sino
tambin porque se exponen a los ojos de los fieles los saludables ejemplos de los santos, y los
milagros que Dios ha obrado por ellos. (Sesin XXV: La invocacin, veneracin y reliquias
de los santos y de las sagradas imgenes.)

173
ve entre el repertorio configurador de un imaginario visual sobre lo sagrado.
Sin embargo, la importancia documental, esttica, social y simblica
que este tipo de imgenes ofrece ha sido histricamente relegada a un lugar
secundario. Recin hacia 1932 el historiador del arte alemn Aby Warburg
en su obra El Renacimiento del Paganismo: Aportaciones a la historia cultural
del Renacimiento Europeo3 apunta la necesidad de enfocarse en las estam-
pitas para abrir nuevos campos de investigacin sobre las imgenes y su
relevancia para la cultura popular. En particular, Warburg se detiene en la
idea de que este tipo de soportes poseen una vida ponderada por Dios en
tanto presentan un carcter vivo y activo que no se reduce a un sentido ni-
camente iconogrfico o lingstico, sino ms bien a uno mayor que transita
entre la construccin de sentido de campos visuales y sociales.
Desde ese lugar, y acogiendo la hoy primitiva propuesta del autor ger-
mano, comprendemos la estampita como soporte cargado de signos que,
desplegados en contextos particulares, es capaz de ejecutar una accin y
funcionar como elemento constructor de sentido. La pregunta de esta po-
nencia se relaciona, entonces, con los trnsitos, distancias, y espacios en que
la estampita conmemorativa es capaz de configurar una red que, mediante
usos y recepciones especficas, establece diversos sistemas de representa-
ciones: desde un uso local y familiar enmarcado en el rito que permiti su
emergencia, a uno distinto de carcter global y patrimonial, enmarcado por
su ingreso a las colecciones del Museo.

La estampita: presentar, representar, crear

Dentro de la tradicin iconogrfica cristiano-catlica, existe una usan-


za segn la cual la copia de una imagen perpeta su valor sagrado y muchas
veces milagroso. El antroplogo alemn Hans Belting ha estudiado cmo
en la iconografa cristiana oriental este principio se aplica, donde se consi-
dera como el primer cono religioso la impresin del rostro de Jesucristo en
el pauelo de Vernica4, y de all descienden las imgenes conocidas como
3
Warburg, Aby. El Renacimiento Del Paganismo: Aportaciones a La Historia Cultural Del
Renacimiento Europeo. Madrid, Alianza, 2005. Especialmente ver el captulo 4: Acerca de
las imprese amorose en las ms antiguas estampas florentinas (1905), pp. 135-146.
4
Esta leyenda tiene pormenores histrico-polticos que no viene al caso desarrollar en
el contexto de esta ponencia; sin embargo, cabe destacar que la Iglesia Ortodoxa actual
sostiene la leyenda opuesta, en la que Cristo enva como regalo a un rey su rostro impreso

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

174
no hechas por mano humana5. La copia de una imagen sagrada tiene un gran
valor simblico, y esta prctica se replicar con respecto a ciertas obras del
arte europeo que sern impresas en grabados para el uso popular6.
En este sentido, no pretendemos una comprensin de la estampita
desde una dimensin ontolgica (no nos preguntamos por la veracidad de
la figura religiosa representada); sino ms bien lo hacemos desde una de
carcter cultural. Nos interesa su lugar en la construccin de imaginarios
sobre lo sagrado, los significados de su representacin, y los re-significados
a los que sta puede ser sometida. Nuestra propuesta apunta, entonces, a
descifrar las distintas significaciones y usos que la estampita es capaz de
representar.
Anclada en la significacin quizs ms obvia del concepto el re-pre-
sentar es volver a presentar, es la sustitucin de un cuerpo ausente por una
imagen parecida-, la estampita representa tanto una imagen sagrada como
la conmemoracin y el recuerdo de un rito. Asumimos, citando a Roger
Chartier, que toda representacin se presenta representando algo7, y en este
caso, la estampitas lo hacen de aquello conmemorado que, materializado,
configura una memoria. Sin embargo, es importante establecer la diferencia
entre aquello que el soporte representa y aquello que presenta, entendiendo
a ambas nociones como conceptos operativos distintos.
El historiador del arte britnico Norman Bryson trabaja esta dicotoma
reparando en la distincin conceptual del binomio, pues mientras el repre-
sentar implica una mmesis la repeticin de aquello que ocurri-, una rea-
lidad conocida; lo presentado es aquello que ocurre nica y exclusivamente
dentro de la composicin. Bryson sostiene que la doctrina de la mimesis
describe la representacin como un proceso de correspondencia perceptual
por el que la imagen trata de igualarse (imagen y semejanza), con distintos
grados de xito, a una realidad previa y plenamente constituida8. Acogien-

en un pauelo.
5
O imgenes acheiropoieticas, segn la transliteracin del griego. Cfr. Freedberg, David. El
Poder de las Imgenes. Estudios Sobre La Historia Y Teora de La Respuesta. Madrid, Ctedra,
2009.
6
Cfr. Belting, Hans. Imagen Y Culto. Una Historia de La Imagen Anterior a La Era Del Arte.
Barcelona, Akal, 2009.
7
Chartier, Roger. Entre poder y placer. Cultura escrita y literatura en la edad moderna. Madrid,
Ctedra, 2000. p. 76.
8
Bryson, Norman. Visin y pintura: la lgica de la mirada. Madrid, Alianza, 1991. p. 54.

Hugo Rueda Ramrez

175
do su propuesta, sostenemos que las estampitas son capaces de representar
un rito a travs de la presentacin de una materialidad de caractersticas
visuales asociadas a un imaginario sobre lo sagrado.
Es lo que sucede, por ejemplo, con la estampita conmemorativa de la
Primera Comunin de Mara Avendao [fig. 1]. Siguiendo la lgica pro-
puesta, el soporte material acoge la representacin del rito, anclada en una
materialidad que presenta una imagen visual sagrada: el relato bblico en el
que Mara y Jos huyen a Egipto junto a Cristo nio tras la amenaza del
emperador Herodes9. En este caso, la representacin es de carcter evoca-
tivo: rememora mediante el soporte aquel 28 de enero de 1923 en que la
pequea Mara tom el sacramento en que recibi el cuerpo de Cristo.
Entendiendo el concepto de mmesis como un sistema de represen-
tacin basado en la fundamentacin y la correspondencia, proponemos el
carcter mimtico no solo de la estampita que conmemora la comunin de
Mara Avendao, sino de todo el conjunto en tanto categora. La mimesis
sera, bajo este anlisis, una propiedad de las estampitas pues stas tienen
por principal objetivo generar una relacin de representacin evocativa que
pone el acento en la sustitucin de una prctica ausente el rito-, transfor-
mndola en presencia constante e infinita.
Utilizando referencias a la iconografa sagrada, las estampitas son
capaces de contener un discurso que transita entre elementos activos en
constante accin. Denotando un recorrido de traduccin y transmisin de
signos, las estampitas establecen profundas conexiones entre imagen e ima-
ginario, formando parte del repertorio de agentes constructores de sentido
en quienes las consumen, a saber principalmente, el espacio social catlico
y romano.
Como ha sido sealado, las estampitas se inscriben en un recorrido de
larga tradicin iconogrfica. Sin embargo, la especificidad de su formato es
identificable en trminos masivos hacia finales del siglo XIX gracias a la
produccin artesanal en serie que se inici en los talleres del barrio circun-
dante a la iglesia Saint-Sulpice en Pars, Francia. De hecho, la estampita del
bautizo de Mara Avendao indica claramente su lugar de produccin: la
imprenta parisina Bouasse-Jeune, uno de los talleres ms importantes en lo
referente a manufactura de imgenes sagradas y materialidades de devocin
decimonnica.

9
Cfr. Mt. 2:13-15

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

176
El taller Bouasse-Jeune entr al mercado de las tarjetas religiosas en
1867 como competencia directa de la compaa Bouasse-Lebel, tambin
parisina y creada hacia mediados de siglo10. Ambos talleres permanecieron
por aos a la cabeza de la industria productora de imgenes sagradas, co-
nocidas entonces por su delicado y prolijo trabajo primero manual y luego
industrial mediante el uso de innovadoras tecnologas de impresin como
la cromolitografa, tcnica que permita la creacin de imgenes a partir
de la superposicin de varios bloques de piedra o madera sobre papel. La
tcnica, adems, permita un trabajo manual en la creacin de los detalles
finales de la imagen en construccin, los que se ven reflejados en la proliji-
dad de ciertos elementos como el sobredorado de las tarjetas.
Sin embargo, para efectos de esta ponencia resulta clave la pregunta
por el traslado de la prctica al espacio latinoamericano, y particularmen-
te al chileno. Observando en detalle el acervo de estampitas que custodia
el Museo Histrico Nacional, identificamos varios representantes de estas
tarjetas religiosas fabricadas en los talleres parisinos que, exportadas al te-
rritorio nacional, sirvieron como materialidad conmemorativa del rito al
que apelan; tal como sucede en la ya citada estampita de Mara Avendao,
producida en Paris, pero conmemorativa de un sacramento celebrado en
Chile.
Es en este punto donde proponemos, a manera de hiptesis, que el
conjunto de estampitas custodiada por el Museo Histrico Nacional es una
muestra del resultado de un sistema de produccin en serie que masific
y homogeniz un imaginario especfico sobre lo sagrado, permitiendo la
democratizacin del acceso a imgenes religiosas de bajo costo y de carc-
ter transportable. Como parte de los resultados de los procesos tcnicos
propios de la industria impresora durante el siglo XIX, las estampitas re-
sultan tanto material como visualmente- portadoras de un signo enrai-
zado en la relacin entre imagen y texto que configurarn un imaginario
social y democrtico sobre la visualidad cristiana. En este punto, acogemos
la propuesta del historiador del arte norteamericano David Morgan quien
sostiene que slo porque una imagen sea producida en masa no significa
que debe ser recibida como un producto de poca o ninguna significancia

10
Cfr. University of Dayton. Bouasse-Lebel and Bouasse-Jeune holy cards collection. University
of Dalton Website [online] < http://ead.ohiolink.edu/xtf-ead/view?docId=ead/ODaU0048.
xml;query=;brand=default>

Hugo Rueda Ramrez

177
local11; muy por el contrario, nuestra propuesta apunta a relevar la impor-
tancia del formato en la construccin social de un amplio imaginario sobre
lo divino.

Del culto familiar al patrimonial

El hecho de que el conjunto de estampitas aqu trabajadas pertenezcan


hoy al acervo del Museo Histrico Nacional nos obliga a detenernos en
otro punto: el trnsito producido desde su uso local y familiar, hacia uno
otro, distinto, determinado por su transformacin en objeto patrimonial,
parte de las colecciones de un museo. En ese sentido, es importante des-
tacar que estos objetos fueron producidos con la intencin de circular en
un espacio reducido: el mbito domstico. En su gnesis, las estampitas
forman parte de un tipo de culto particular fuertemente asociado a los re-
cuerdos de familia; es decir, configuran una memoria especfica y particular
restringida al ambiente de lo privado.
Las estampitas, limitadas a un espacio primigenio de circulacin -a
saber, el familiar-, evocan un uso especfico asociado a un tipo de religiosi-
dad domstica practicada en y desde aquel espacio. Es, entonces, en el lugar
ntimo donde las estampitas adquieren las propiedades que le otorgan sen-
tido a su materialidad; y viceversa, es en ese mismo espacio donde aquella
materialidad configura el sentido de su uso.
Otra de las caractersticas de la estampita inscrita en un sistema de
circulacin y uso familiar es aquella que se asocia a un nivel de cercana con
sus receptores/consumidores: las estampitas son objetos producidos para
mantenerse cerca del cuerpo, su formato permite gran portabilidad y tien-
den a reproducir imgenes sagradas y oraciones. En ese sentido, este tipo
de soporte no est hecho para su exhibicin, muy por el contrario, lo est
para ser custodiado a manera de tesoro ntimo, personal y privado. Dentro
de este campo, es de nuestro particular inters lo que se ha descrito como
experiencia hptica, es decir, aquella en la que prima el tacto de la imagen
por sobre la visualidad. La antroploga britnica Frances King sostiene que
los objetos se deben considerar desde su piel, enfatizando su carcter cor-
poral:

Morgan, David. Visual Piety: A History and Theory of Popular Religious Images. Berkeley,
11

University of California Press, 1998. p.134. (la traduccin es nuestra)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

178
Esta nocin de piel del objeto, una analoga muy corporal, nos hace
ms fcil el aprehender el significado de la teora de la visin hptica
para el estudio de artefactos materiales de la cultura popular, porque
() se aleja de la idea de las imgenes como objetos visuales y se
concentra en considerar las muchas otras formas en que interactua-
mos con los objetos de nuestro entorno. Nosotros los tocamos, pero
ellos tambin nos tocan.12

Es lo que sucede, por ejemplo, con la estampita conmemorativa del


bautismo de Alfonso Leopoldo Duhart Pea [fig. 2], de 1955. En ella el
soporte ofrece claros indicios de un acercamiento donde conviven lo tctil y
lo visual: la pequea imagen de un angelical nio enmarcada en sobredora-
do se posiciona sobre una materialidad cuyos pliegues invitan al roce entre
cuerpo y materia. En el soporte conviven, adems, otros formatos: la ima-
gen del infante, el papel que recepciona el texto, la cinta que lo decora, y una
pequesima medalla en la que, a partir de relieves, se presenta un querubn.
A pesar de sus evidentes variables asociadas a una dimensin sacra, este
tipo de tarjetas religiosas nos permiten corroborar la idea aqu propuesta, a
saber, que las estampitas son capaces de perpetuar una memoria particular
asociada al espacio de lo ntimo.
Es en este punto donde develamos la doble propiedad de las estam-
pitas, hoy parte del acervo de nuestro museo: por un lado son portadoras
de signos que evocan una memoria personal, y por otro urden una relacin
en la que aquella memoria adquiere una connotacin patrimonial en tanto
tema social. Adhiriendo a los postulados de la historiadora chilena Olaya
Sanfuentes entendemos que la dimensin privada de esta relacin es im-
portante, pero la consideramos como una experiencia base y anterior a la de
la dimensin pblica13.
Las estampitas hoy parte de la Coleccin de Libros y Documentos
del Museo Histrico Nacional, re inscritas en un espacio distinto al de su
gnesis, han sido sometidas a un proceso de resignificacin en el que su
condicin primera, ntima y familiar, es resemantizada hacia una segunda,
de carcter pblico y patrimonial.
12
King, Francis. Material Religion and Popular Culture. Abingdon, Routledge, 2009. p. 39.
(la traduccin es nuestra)
13
Sanfuentes, Olaya Por qu recordar? Algunas reflexiones acerca de la relacin entre
memoria y patrimonio. En: Marsal, Daniela (comp) Hecho en Chile. Reflexiones en torno al
patrimonio cultural. Santiago, Andros, 2012. p. 58

Hugo Rueda Ramrez

179
Bajo este postulado se inscriben todas las tarjetas conmemorativas que
componen el conjunto aqu trabajado. Sin embargo, nos detendremos a ma-
nera de ejemplo en la que conmemora la bendicin del rgano de la Iglesia
de San Vicente de Paul en 1908 [fig. 3]. En trminos iconogrficos, el so-
porte presenta la representacin del cliz y la hostia consagrada junto a dos
ngeles custodios y la leyenda Viva Jess sacramentado Viva y de todos sea ala-
bado; mientras en su reverso el texto recuerda el rito solemne que permiti
su emergencia y circulacin. Lo que nos interesa de esta estampita, en tanto
representativa de todo el conjunto, es que es capaz de soportar en su for-
mato la resignificacin de una memoria, pues transita desde una local (los
feligreses de la Iglesia) a una global, ya que en tanto objeto perteneciente al
Museo forma parte de aquel conjunto que configura un patrimonio global.
De esta manera, concluimos el carcter mnemotcnico de las estampi-
tas hoy parte de nuestro museo en tanto sus posibilidades de lectura no se
agotan ni se restringen a la idea del recuerdo, sino que son ms bien capaces
de prolongar evocaciones de una memoria distinta y de carcter social y
comunitario, es decir, una memoria patrimonial.
La nocin de patrimonio implica la elaboracin de una red de elemen-
tos sgnicos que registran y perpetun una memoria comnmente asociada
a lo monumental. Sin embargo, uno de los objetivos de esta ponencia ha
sido validar la respuesta a la pregunta por el cmo las estampitas son ca-
paces de rebasar esa dimensin, haciendo de aquello que alguna vez perte-
neci al espacio de lo ntimo y lo cotidiano, sea tambin materia capaz de
transformarse en parte de una memoria amplia y simblica anclada entre
un repertorio de agentes elaboradores de una identidad. Es ah donde re-
levamos el carcter dinmico de la memoria, y las estampitas como uno de
los tantos elementos constitutivos de aquel dinamismo.
Las estampitas donadas al Museo Histrico Nacional registran una
voluntad de ser no solo reconocidas, sino tambin perpetuadas. En esa
dimensin, concebimos su formato como uno apto de dar cuenta de los
fenmenos inmateriales y rituales que permitieron su produccin, recep-
cin, circulacin y usos. En esta ltima dimensin, aceptando su lugar como
objetos componentes del acervo total de un museo de carcter histrico,
su reconocimiento implica tambin su instalacin en los procesos de cons-
truccin de una memoria colectiva. He ah, entonces, nuestro inters en
presentarlas como materialidades constitutivas de la misma.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

180
Bibliografa

Belting, Hans. Imagen y Culto. Una Historia de la Imagen anterior a la era del
Arte. Barcelona, Akal, 2009.
Bryson, Norman. Visin y pintura: la lgica de la mirada. Madrid, Alianza,
1991.
-----------. Volver a mirar: cuatro ensayos sobre la pintura de naturalezas
muertas. Madrid, Alianza, 2009.
Chartier, Roger. Entre poder y placer. Cultura escrita y literatura en la edad
moderna. Madrid, Ctedra, 2000.
Freedberg, David. El Poder de las Imgenes. Estudios sobre la historia y teora
de la respuesta. Madrid, Ctedra, 2009.
King, Francis. Material Religion and Popular Culture. Abingdon, Routledge,
2009.
Laugerud, Henning y Skinnebach, Laura Katrine (eds). Instruments of De-
votion. The Practices and Objects of Religious Piety from the Late Middle
Ages to the 20th Century. Aarhus, Aarhus University Press, 2007.
Morgan, David. Visual Piety: A History and Theory of Popular Religious Ima-
ges. Berkeley, University of California Press, 1998.
Sanfuentes, Olaya Por qu recordar? Algunas reflexiones acerca de la
relacin entre memoria y patrimonio. En: Marsal, Daniela (comp)
Hecho en Chile. Reflexiones en torno al patrimonio cultural. Santiago, An-
dros, 2012.
Warburg, Aby. El Renacimiento Del Paganismo: Aportaciones a la Historia
Cultural del Renacimiento europeo. Madrid, Alianza, 2005.

Hugo Rueda Ramrez

181
Figura 1
Estampita de recuerdo de la Primera
Comunin de Mara Avendao celebrada en
1923.
Impresin y tinta sobre papel,
10.9 x 6 cm.
Paris, Ca. 1923.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

182
Figura 2
Estampita de recuerdo del bautismo de
Alfonso Leopoldo Duhart Pea celebrado
en 1955.
Impresin y tinta sobre papel y cartn.
10.2 x 8.6 cm. [Santiago], 1955.

Hugo Rueda Ramrez

183
Figura 3
Estampita de recuerdo de la bendicin del rgano
de la Iglesia San Vicente de Paul celebrado en
1908.
Impresin sobre papel. 11.2 x 6.5 cm.
[Santiago] 1908.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

184
colees e museus

Coleo de desenhos da Princesa Isabel


no Museu Imperial de Petrpolis e no Museu Mariano Procpio:
expresso de um sentimento religioso1

Maraliz de Castro Vieira Christo


Professora Associada Universidade Federal de Juiz de Fora

Ao ser estudada a construo da memria do Imprio Brasileiro, atravs da


cultura material, duas instituies se complementam: o Museu Imperial,
criado em 1940, com esse fim especfico, e o Museu Mariano Procpio,
fundado em 1921, por Alfredo Ferreira Lage para abrigar sua coleo, com-
posta em grande parte por objetos oriundos dos palcios imperiais. Dentre
os dois vastos acervos, nos fixaremos aos desenhos realizados pela Princesa
Isabel. So meros exerccios de cpia, cuja temtica muito nos revela sobre
a prpria Princesa.

O professor da Princesa: Jos Mariano de Almeida

A Princesa Isabel recebera formao tanto clssica quanto cientfica,


dedicando-se quase quinze horas dirias ao estudo do grego, latim, alemo,
italiano, francs, ingls, literatura, filosofia, mitologia, histria universal,
histria de Portugal, do Brasil, da Frana, da Inglaterra, histria antiga,
medieval, moderna, eclesistica, retrica, lgebra, geometria, cosmografia,
fsica, qumica, economia poltica, geografia, geologia, mineralogia, astro-
nomia, botnica, zoologia, desenho, pintura, piano e catecismo. As disci-
plinas eram organizadas em funo de uma escala prescrita pelo prprio
Imperador de acordo com o dia da semana.2

1
Para a elaborao do presente texto, contamos com a ajuda dos colegas: Elaine Dias, Robert
Daibert Jr. e Samuel Mendes Vieira.
2
Ricardo Martim. A educao das Princesas. IHGB. Coleo Leo Teixeira. Lata 755. Pasta
51. Cit. por DAIBERT JR., Robert. Princesa Isabel (1846-1921):A poltica do corao
entre o trono e o altar. Rio de Janeiro, 2007 (Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Histria Social, UFRJ).

185
Em documento de 1862, observa-se o planejamento das atividades
das princesas, incluindo os horrios estabelecidos para aulas de desenho:
segundas e quartas-feiras, entre meio-dia e duas da tarde, bem como aos
sbados, entre oito e nove e quinze da manh3. Perfaziam, portanto, 5 horas
por semana, em meio a uma jornada de estudos estafante.
Nesse perodo, Mariano Jos de Almeida (?-1877-8)4era professor
de desenho de suas Altezas Imperiais, as Princesas Isabel e Leopoldina.
Mariano , hoje, artista desconhecido, ignorado pela maioria dos dicion-
rios brasileiros. Esteve matriculado na Academia Imperial de Belas Artes
(AIBA), entre 1843 e 1850, sendo aluno de Flix Taunay; destacando-se
no desenho e na pintura histrica5. Na dcada de 1850, seu nome aparece
como professor do Liceu de Artes e Ofcios, criado pela Sociedade Propa-
gadora das Belas Artes do Rio de Janeiro, em 18566. possvel que Flix
Taunay, antigo professor de francs e desenho de Pedro II, agora professor
de francs de suas filhas, tenha indicado seu ex-aluno da AIBA para mestre
de desenho de suas altezas, atividade qual Mariano Jos de Almeida se
dedicou de 01 de agosto de 18607 a 15 de dezembro de 18648. Entretanto,
a Princesa prosseguiu seu estudo de desenho, segundo Maria de Ftima
Moraes Argon, com Victor Meirelles, entre 1865 e 18679.

3
LACOMBE, Loureno L. A educao das princesas. Anurio do Museu Imperial, v.7,
1946, p. 255-257
4
Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro - 1844 a 1885.
5
Correspondncias de Flix mile Taunay para o Ministro e Secretrio de Estado dos
Negcios do Imprio, datadas de 07 de junho de 1845 (UFRJ-P47/ s/n-s/n), 08 de setembro
de 1845 (UFRJ P48/395-395) e 29 de junho de 1849 (UFRJ-P48/394-394). Certificado
datado de 30 de outubro de 1863 (UFRJ-015/ s/n-s/n).
6
MORAES, Frederico de. Cronologia das artes plsticas no Rio de Janeiro: da misso arts-
tica francesa gerao 90.Topbooks, 1995, p.82-83
7
Nomeaco de Mariano Jos de Almeida a Mestre de Desenho de S.A. Imperiais. 1-8-
1860. (1 doc. 4 ans. 5 fls.) Publicaes do Arquivo Nacional - Volumes 39-40 - Pgina 63,
Officinas Graphicas do Arquivo Nacional, 1957.
8
Anurio do Museu Imperial, Volume 7, 1946. A data indicada pelo Anurio refere-se ao
trmino do contrato em decorrncia do casamento de D. Leopoldina, mas as aulas de D.
Isabel encerraram-se dois meses antes, quando esta se casou.
9
ARGON, Maria de Ftima Moraes, O mestre de pintura da princesa regente. TURAZZI,
Maria Inez, Victor Meirelles, novas leituras. Florianpolis, SC: Museu Victor Meirelles/
IBRAM/MinC; So Paulo: Studio Nobel, 2009, p. 107.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

186
Os desenhos

O ensino de desenho dos prncipes no diferia do ministrado aos alu-


nos da Academia Imperial de Belas Artes, cujo incio se dava pela cpia.
Os desenhos de D. Pedro II e de suas irms, existentes no Museu Mariano
Procpio e no Museu Imperial, confirmam o mtodo, a exemplo de alguns
exerccios de expresso realizados por D. Pedro II10, tendo como base a
conhecida obra de Charles Le Brun (1619-1690)11.
Emoldurado e fixado parede de uma das salas do Museu Mariano
Procpio, encontra-se um desenho destacando o busto de uma jovem, com
a cabea levemente inclinada, coberta por tecido, o colo adornado por cru-
cifixo, pendente do pescoo, e por pequena flor, presa ao decote da veste
clara12. A legenda o apresenta como de autoria da Princesa, intitulado sim-
plesmente retrato, datado de 13 de outubro de 1863 (Fig. 1).
No mesmo perodo em que a Princesa Isabel iniciou os estudos com
Mariano Jos de Almeida, o francs Bernard-Romain Julien (1802-1871)
organizou um curso elementar de desenho por meio de estampas litogra-
fadas. Publicao destinada inicialmente ao ensino nas escolas pblicas da
Frana, circulou amplamente nas academias e atelis, precedendo ao famo-
so Le Cours de dessin, de Bargue-Grme. Julien foi aluno de Antoine-Jean
Gros e dedicou-se pintura histrica e a retratos, tornando-se, contudo,
conhecido como litgrafo, cuja tcnica exps no Salon de Paris de 1833 a
1850.
H, no acervo do Museu D. Joo VI (EBA-UFRJ), trinta e trs es-
tampas produzidas por Bernard-Romain Julien; dentre elas identificamos a
que motivou o desenho realizado pela Princesa Isabel, pertencente ao Mu-
seu Mariano Procpio (Fig. 2)13. O desenho cpia espelhada da estampa
Rosto de mulher, do Cours lmentaire, n 160, litografada por Julien e
10
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-292 e MI-336, Desenhos a lpis, Assinados D.
Pedro 2.
11
Les expressions des passions de lme, reprsentes en plusieurs testes graves daprs les
dessins de feu. M. Le Brun.
12
Princesa Isabel, Retrato, 15 de outubro de 1863. Desenho, tcnica mista, papel, crayon,
grafite e lpis de cor, 42 x 52 cm., Museu Mariano Procpio.
13
Nosso primeiro contato com essa gravura foi a partir da comunicao de pesquisa de
Ftima Alfredo, O estudo da representao humana e a cincia da forma, apresentada no
III Seminrio do Museu D. Joo VI, ver para crer: viso, tcnica e interpretao na Aca-
demia, em 2012.

Maraliz de Castro Vieira Christo

187
impressa por Franois Delarue, em Paris, produzida a partir de uma obra de
Constant Joseph Brochart (1816-1899), ainda no identificada14.
possvel perceber pontos de contato entre D. Isabel e a jovem lito-
grafada: os olhos claros e os cabelos cacheados, aparentemente loiros. Mais:
a expresso religiosa advinda do semblante sereno, da cabea coberta e do
crucifixo pendente do pescoo15.
O desenho do Museu Mariano Procpio ganha sentido quando o
aproximamos da coleo de desenhos de autoria da Princesa Isabel, exis-
tente no Museu Imperial16.
Constitui-se de aproximadamente 40 desenhos, oriundos da coleo
de D. Tereza Cristina, abrangendo um perodo de dez anos, entre 1857 e
1867, concentrando-se o maior nmero entre 1863 e 1865. So exerccios
de cpia, aparentando certa habilidade. H dois estudos tpicos de partes do
corpo: um, apresenta ps calando sandlias antigas, outro, um brao, cuja
mo segura uma lapiseira17. As cpias, segundo os originais identificados,
demonstram estarem espelhadas, em processo similar ao desenho do Mu-
seu Mariano Procpio, e serem, em alguns casos, recorte da obra original,
a exemplo da cpia18 da Madonna della Seggiola, de Rafael Sanzio19, que
excluiu a imagem de So Joo Batista. A cronologia dos desenhos revela a
volta a alguns exerccios, talvez visando verificar o avano tcnico, como
o caso dos desenhos de uma jovem com folhas no cabelo, datados de 12 de
novembro de 1860 e 23 de fevereiro de 186320, ou de uma mulher de perfil,
com vu, datados de 19 de outubro de 1863 e 24 de junho de 186421.
14
Representou jovens, por vezes delicadamente sensuais, com tronco quase de perfil a dire-
cionar levemente o rosto inclinado ao expectador, como se v na obra Portrait of a girl, with
a pot (http://www.1st-art-gallery.com/Constant-Joseph-Brochart/Portrait-Of-A-Girl,-
-With-A-Pot.html) . Imagem igualmente prxima estampada por Julien, pelo fato de sua
personagem portar um crucifixo ao pescoo.
15
Particularmente sobre esse desenho ver: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira, Exerccios
de desenho no acervo do Museu Mariano Procpio: ser ou no ser a Princesa Isabel? Co-
municao apresentada no V Seminrio do Museu D. Joo VI, realizado em agosto de 2014.
16
Agradecemos ao Museu Imperial, particularmente a Maria de Ftima Moraes Argon a
possibilidade de estudarmos esses desenhos.
17
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MIII-55 e MI-252.
18
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-254.
19
Madonna della Seggiola (Sedia), 1514, leo s/madeira, dimetro 71 cm., Galleria Palatina
(Palazzo Pitti), Florence.
20
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-270 e MI.
21
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-255 e MI-256.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

188
Quanto temtica, em menor nmero, existem estudos de flores, ani-
mais e paisagens, alguns buscando o domnio das cores pela aquarela. Den-
tre as paisagens, a predileo recai sobre a arquitetura europeia, a exemplo
do Chateau de Chillon22, conhecido castelo suo, que ser, uma dcada
aps, representado em uma srie de pinturas por Gustave Courbet (1819-
1877). Como caso isolado, existe na coleo uma aquarela enfocando a pai-
sagem tropical, uma marinha com bananeira23.
Observa-se quanto ao humano, o predomnio da figura feminina e
cenas familiares envolvendo crianas. So meigos rostos infantis, como o
copiado24 de outra litografia de Julien, agora aprs Mme. Brune25; crianas
abraando animais ou brincando, a exemplo de Hue! dada26, que Jules Gay
esclarece pertencer o original a uma coleo de cenas infantis, Les Mig-
nardises, desenhadas por Desandr, Beaumont e March, litografadas por
Regnier, Bettannier e Morlon27. H mes envolvendo os filhos carinho-
samente, seguindo o exemplo da madona de Rafael, ou ensinando-lhes a
rezar, como se v em Linnocent en prire28. Dois desenhos expem a figura
paterna: uma, beijada pelo filho, Bonjour, Petit Pre29, outra, sentada, susten-
tando delicadamente um beb ao colo30. As narrativas fluem em ambiente
rural e simples, onde os afetos, a vida familiar e religiosa so valorizados.
Um desenho em particular chama a ateno. Apresenta duas jovens:
uma, a tocar piano, outra, debruada sobre o instrumento31. Ambas olham
para a direita, mas apenas veem uma parede forrada por papel estampado
com elementos fitomorfos. A atitude das jovens passa a ser compreens-
vel, quando se coteja com o original. Trata-se do quadro em que Isidore
Pils (1813-1875) representou Rouget de lIsle cantando pela primeira vez

22
Museu Imperial, Arquivo Histrico.
23
Museu Imperial, Arquivo Histrico.
24
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-253 e MI-259.
25
Etude aux deux crayons, n60
26
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-272.
27
GAY, Jules, Iconographie des estampes a sujets galants et des portraits de femmes clbres
par leur beaut. Genve: Chez J. Gay et fils, diteurs, 1868, p.602.
28
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-272.
29
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-261.
30
Museu Imperial, Arquivo Histrico.
31
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-251.

Maraliz de Castro Vieira Christo

189
a Marseillaise32. No quadro, as jovens, situadas na extrema esquerda, olham
Rouget de lIsle no centro, a entoar para um atento grupo do lado oposto,
observando-se um biombo com elementos fitomorfos ao fundo. Princesa
Isabel no interessou o contedo histrico do quadro, destacando apenas os
personagens femininos. Para realizar a cpia, curiosamente, a Princesa no
inverteu a imagem. Talvez por no copiar uma estampa de estudos, mas a
que decorava a casa, trazida pelo Conde dEu do palcio de So Cristovo,
onde a encontrara, como anotar Andr Rebouas em seu Dirio:

14 de janeiro [1867] Convidou-me [o conde dEu] para assistir


ao seu sarau (...) Na sala de estudo da Princesa Imperial, onde se
tomou ch, notamos, entre retratos da Famlia Imperial, o clebre
quadro de Rouget de Lisle, improvisando a Marselhesa em Estras-
burgo. O Conde dEu disse ser entusiasta da Marselhesa, que prefere
fria cano En partant pour la Syrie, da Rainha Hortncia; que
tinha achado esta gravura no Palcio de So Cristvo e que no lhe
tomava a responsabilidade.33

O recorte realizado na cpia revela o interesse pela figura feminina,


isolando as jovens de cena mais complexa, compositiva e ideologicamente,
assim como o fez ao desenhar apenas o menino34, presente no extremo in-
ferior direito, do quadro de Jean-Baptista Greuze, Les oeufs casss35.
Difcil mensurar a representatividade da coleo do Museu Imperial
em relao totalidade da produo artstica da Princesa Isabel. Entretanto,
percebe-se ntida coerncia quanto temtica figurativa.
As obras originais copiadas expem a felicidade da vida familiar em
harmonia. Desde o final do sculo XVIII, avolumam-se as representaes
da me boa e feliz e do pai amoroso, sem refletirem, porm, a realidade
social; tampouco ideais comumente aceitos. Manifestam o novo conceito
de famlia desejado pelo iluminismo, contrapondo-se concepo tradi-

32
Isidore Pils. Rouget de lIsle chantant la premire fois la Marseillaise lHtel de la Ville
de Strasbourg au chez Dietrich, 1849. Muse Historique de la Ville de Strasbourg.
33
REBOUAS, Andr, Dirio e notas autobiogrficas, p. 144. Apud. LACOMBE, Lou-
reno Luiz, Isabel, a Princesa Redentora. Petrpolis: Instituto Histrico de Petrpolis, 1989,
p. 162.
34
Museu Imperial, Arquivo Histrico, MI-266.
Jean-Baptista Greuze, Les Oeufs casses, 1756, leo s/tela, 73 x 94 cm., New York, The
35

Metropolitan Museum of Art.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

190
cional, mediante a qual o casamento significava apenas a descendncia, a
manuteno de propriedades e privilgios. As relaes entre os esposos,
pais e filhos eram frias e distantes, baseadas na autoridade. No se buscava
amor e afeto, apenas venerao e obedincia. A novidade residia no fato de
serem pais e mes conscientes e muito felizes de se verem simplesmente
pais e mes, esposos e esposasl36. Artistas como Greuze e Fragonard, ou o
menos conhecido tienne Aubry, divulgaram em suas telas a nova famlia
ambicionada pelo iluminismo37.
Se as obras copiadas falam da famlia feliz, o que nos diz a Princesa
Isabel sobre seus prprios sentimentos, ao escolh-las?
O primeiro desenho data de 13 de setembro de 1857 e mostra uma bo-
neca sentada numa cadeira, tema apropriado a uma menina de onze anos.
Em 03 de novembro de 1862, encontra-se a primeira representao de uma
famlia, Bonjour, Petit Pre, onde o campons pausa o trabalho para receber,
sorridente, o alimento da esposa e o beijo carinhoso da filha pequena. A
Princesa estava com dezesseis anos e D. Pedro II intensificava as extensas
negociaes com membros de dinastias europeias para o seu casamento.
Em 15 de outubro de 1864, a Princesa se casou com Gaston dOrlans, o
Conde dEu, que conhecera dois meses antes. Era em tudo um casamento
tradicional, um negcio de Estado visando a continuidade da dinastia. En-
tretanto, desde que o conhecera, a Princesa se declarara apaixonada. Rode-
rick Barman, em biografia sobre a Princesa Isabel, pesquisando-lhe a cor-
respondncia pessoal, defende a tese de ter sido a Princesa mais preparada
para ser me e esposa que imperatriz. Sobre o casamento escreveu:

A lua-de-mel em Petrpolis inaugurou uma coisa que s se pode
definir como uma devoo apaixonada e para a vida toda. Nada na
educao da princesa lhe ensinara a igualar o matrimnio ao amor
romntico. O imperador, secundado pela condessa de Barral, decer-
to incentivou a filha a ver no conde dEu um prncipe encantado,
no uma mercadoria. No estranha ento que, depois de casada, D.
36
DUCAN, Carol, Madres felices y otras nuevas ideas en el arte francs del siglo XVIII.
In: REIMAN, Karen Cordero e SENZ, Inda (org.) Crtica feminista en la teora e Historia
del Arte. Mxico DF: Universidad Iberoamericana, 2007, p. 197-218.
37
Ver como exemplo as obras: Jean-Baptiste Greuze, La mre bien aime, 1765, leo s/
tela, 99 x 131 cm., Madrid, Collection Laborde; Jean-Honor Fragonard, Le berceau de
la famille heureuse, c. 1770, Paris, Coleo Arthur Veil-Picard; tienne Aubry, LAmour
paternel, 1775, Birmingham, Barber Institute of Fine Arts.

Maraliz de Castro Vieira Christo

191
Isabel tenha se apaixonado perdidamente pelo marido. Notvel foi
a facilidade e a rapidez com que aprendeu a adornar o matrimnio
com os conceitos e a linguagem do amor romntico. Convenceu-se a
si mesma de que, desde o comeo, aquela fora uma verdadeira unio
de coraes, na qual ela exercera a escolha38.

O autor, consultando-lhe apenas a correspondncia, afirma que Nada


na educao da princesa lhe ensinara a igualar o matrimnio ao amor romnti-
co. Entretanto, os desenhos permitem-nos atenuar essa afirmao.
Os desenhos da Princesa, no Museu Imperial, atestam sua identifica-
o com o modelo de famlia baseado na harmonia, na aceitao feliz dos
papeis de esposa e me, que vinha sendo construdo desde o final do sculo
XVIII. Sua religiosidade igualmente corrobora tal aproximao.
O sentimento religioso conservador e exacerbado, manifesto pela Prin-
cesa Isabel, foi apontado pelo movimento republicano como um dos em-
pecilhos para o Terceiro Reinado. Robert Daibert Jr, ao analisar a presena
de uma religiosidade catlica na identidade e nas prticas de D. Isabel,
sintetiza: Como catlica fiel, suas crenas orientavam coerentemente sua conduta.
Pelo menos era assim que ela se auto definia e se apresentava.39 O mesmo autor,
ao indagar sobre as possveis origens de sua forte religiosidade, nos fala da
relao desde a infncia com religiosos; dos exerccios de ortografia e cali-
grafia realizados, quando menina, a partir da cpia de textos de contedo
religioso; das redaes, em que a Princesa valorizava os governantes devo-
tados ao exerccio da caridade, ou apresentava o catolicismo como portador
de uma verdade universal, soluo para os erros do mundo moderno; das
cartas escritas para a me, D. Teresa Cristina, em que relata o cotidiano de
suas prticas devocionais.40

38
BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil. Gnero e poder no sculo XIX. Editora
UNESP, 2005, p.95. (Grifos nossos)
39
DAIBERT JR., Robert. Princesa Isabel (1846-1921):A poltica do corao entre o trono
e o altar. Rio de Janeiro, 2007 (Tese de doutorado, Histria Social, UFRJ), p. 44.
40
DAIBERT JR., idem., p. 101-102.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

192
Desenho e pintura na vida da Princesa

As aulas com Mariano Jos de Almeida terminaram ao casar-se a


Princesa Isabel com o Conde dEu. Entretanto, o gosto pelo desenho e pela
pintura permaneceu.
Em viagem Inglaterra, em 1865, ainda em lua-de-mel, a princesa
teve aulas de pintura com o italiano Domenico Morelli (1826-1901), pro-
fessor de Marguerite dOrlans, sua nova cunhada, e fez inmeras visitas
a galerias de arte e a museus41. De volta ao Rio de Janeiro, estudou com
Victor Meirelles at 1867.
Diversos eram os destinos das cpias produzidas. Algumas foram utili-
zadas na decorao do Pao Isabel, sua residncia em Laranjeiras42. Francis-
co Marques dos Santos, em trabalho relativo ao leilo dos bens encontrados
no Pao de So Cristovo, aps o banimento da famlia imperial, publicado
no Anurio do Museu Imperial, em 1940, informa sobre a existncia de c-
pias da Princesa na residncia de seu pai. Descrevendo os objetos presentes
em cada cmodo, o autor apresenta a sala anterior de D. Teresa Cristina:

Na ante-sala estavam dois quadros a leo representando, no tama-


nho natural, D. Pedro e Dona Tereza, em 1844. Junto destacava-se
outro: pequena cpia do Enterramento de Cristo, feito pela Prin-
cesa Isabel, alis, tima desenhista e pintora, discpula de Mariano
Jos de Almeida e que, na Exposio da Academia de Belas Artes,
em 1867, apresentara, sem que o soubessem os visitantes, trs belos
quadros a leo.

Consultando o catlogo da Exposio Geral de Belas Artes de 1867,


verifica-se que, sob a referncia Sem nome de autor, foram expostos trs tra-
balhos enviados pela Princesa Isabel:

0120/015 Paisagem da Esccia. Propriedade: Sua Majestade Impe-


rial (exposto por Sua Alteza Imperial Dona Isabel)
0121/015 Ces de caa. Propriedade: Sua Majestade Imperial (expos-
to por Sua Alteza Imperial Dona Isabel)
41
Carta de D. Isabel a D. Teresa Cristina, sem local, 21/09/1870.Arquivo Gro Par (XLI-
4-13), citado por BARMAN, op.cit., p. 104, e ARGON, op. cit., p.106.
42
BARMAN, op. cit., p.123.

Maraliz de Castro Vieira Christo

193
0122/015 O acordar. Propriedade: Sua Alteza Real o Conde dEu
(exposto por Sua Alteza Imperial Dona Isabel)43.

Lendo outra carta da Princesa ao pai, datada de 14 de junho de 1867,


a autoria das obras enviadas s EGBA confirma-se:

Veio c hoje o Victor Meirelles para nos convidar a ir s Bellas


Artes e me pedir que expusesse algumas das minhas pinturas, este
ano havendo muitas de amadores. Se Papai no acha isso m eu lhe
pediria que mandasse pelo portador desta carta os ces de caa e a
paisagem escocesa que lhe fiz. Uma vez que se expe alguma coisa
melhor expor uma coisa bem feita, e feita s pela pessoa.44

Alm de confirmar a autoria das obras, a carta revela-nos partir o con-


vite do pintor da Academia Imperial de Belas Artes, Victor Meirelles, nes-
se momento professor da Princesa. Igualmente, mostra-nos a participao
feminina nas EGBA, na classe das amadoras, e a preocupao da Princesa
com a imagem pblica, ao perguntar ao pai sobre a convenincia de expor
seus trabalhos. Demonstra ateno com a qualidade das pinturas e sua ex-
clusiva autoria, embora ainda sejam um exerccio de cpia.
Embora no tenhamos a resposta do Imperador solicitao da filha,
o fato desta ter exposto as obras como de sua propriedade, mas annimas,
permite depreender a resposta, em parte negativa, e o desejo de manter as
habilidades artsticas da Princesa Imperial restritas ao mundo domstico.
A Academia Imperial de Belas Artes acolheu os trabalhos da Princesa
Isabel nas EGBA apenas como um sinal de respeito: O extremo respeito e
acatamento que deve e consagra a Comisso a Sua Alteza Imperial a Sra. D.

43
LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposies Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional
de Belas Artes. Perodo Monrquico. Catlogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de
Janeiro: Edies Pinakotheke, 1990, p. 207-8.
44
Carta da Princesa Isabel ao Imperador D. Pedro II. Rio de Janeiro, 14 de junho de 1867.
Arquivo do Gro-Par. Correspondncia Ativa de Dona Isabel Cristina, Princesa Imperial
e Condessa dEu. Pasta XL, item 2. Aput. DAIBERT JR., Robert. Isabel, a Redentora de
escravos: uma histria da Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). Bauru, SP:
EDUC, 2004, p. 91-92.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

194
Isabel, tambm no permitem analisar os quadros nmeros 120 e 121, nem o
desenho nmero 122, executados e expostos por Sua Alteza Imperial45.
A princesa realizava cpias e se orgulhava de exp-las no mbito pri-
vado, no Pao Isabel, em Laranjeiras, ou na residncia dos pais, o Palcio
de S. Cristovo, como tambm mostrava-as em eventos beneficentes46 ou,
anonimamente, no maior evento de artes do pas, as exposies promovidas
pela Academia Imperial de Belas Arte.

Consideraes finais

Os desenhos nos revelam a educao refinada da elite feminina da


poca, o gosto da Princesa pelas artes plsticas e como elas se inseriram em
sua vida pessoal, ocupando-lhe o tempo, decorando-lhe a casa e servindo
para presentear amigos muito prximos, como a Baronesa de So Joaquim,
possuidora do desenho exposto no Museu Mariano Procpio.
So cpias e, como tais, no expressam a criatividade da Princesa Isa-
bel. Entretanto, nos permitem indagar sobre as escolhas, sobre a temtica
privilegiada e seu significado. Quem selecionou as estampas a serem co-
piadas, seu professor ou ela mesma? Copiar estampas era uma forma de
serem transmitidos valores Princesa, a exemplo dos textos que copiara,
quando menina, durante os exerccios de ortografia e caligrafia? Elegia D.
Isabel as estampas de acordo com a prpria viso de mundo, tendo em vista
que a temtica a acompanhou para alm do perodo de aprendizagem com
Jos Mariano de Almeida? Difcil saber, mas tendemos a aceitar que os
desenhos manifestam uma forma de pensar, plasmada anteriormente. Seja
como for, os desenhos valorizam a harmonia familiar, os papis a desempe-
nhar como esposa e me, coadunados perfeitamente religiosidade, que a
norteou ao longo da vida.

45
Livro 4 de Atas da Academia Imperial de Belas Artes, p. 85 v. Sesso de 03/07/1867.
Museu D. Joo VI. Pesquisa devida ao Prof. Donato de Melo Jnior. Cit. por LACOMBE,
Loureno Luiz, Isabel, a Princesa Redentora. Petrpolis: Instituto Histrico de Petrpolis,
1989, p. 163.
46
Carta de D. Isabel a D. Teresa Cristina, sem local, 17/12/1870. Arquivo Gro Par (XLI-
3-15). Cit. por ARGON, op. cit., p.106.

Maraliz de Castro Vieira Christo

195
Bibliografia e fontes

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro - 1844 a


1885.
ARGON, Maria de Ftima Moraes, O mestre de pintura da princesa
regente. In: TURAZZI, Maria Inez, Victor Meirelles, novas leituras.
Florianpolis, SC: Museu Victor Meirelles/IBRAM/MinC; So
Paulo: Studio Nobel, 2009.
BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil. Gnero e poder no sculo
XIX. Editora UNESP, 2005,
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira, Exerccios de desenho no acervo
do Museu Mariano Procpio: ser ou no ser a Princesa Isabel? Co-
municao apresentada no V Seminrio do Museu D. Joo VI, reali-
zado em agosto de 2014.
Correspondncias de Flix mile Taunay para o Ministro e Secretrio de
Estado dos Negcios do Imprio, datadas de 07 de junho de 1845
(UFRJ-P47/ s/n-s/n), 08 de setembro de 1845 (UFRJ P48/395-395)
e 29 de junho de 1849 (UFRJ-P48/394-394). Certificado datado de
30 de outubro de 1863 (UFRJ-015/ s/n-s/n).
DAIBERT JR., Robert. Isabel, a Redentora de escravos: uma histria da
Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). Bauru, SP:
EDUC, 2004.
DAIBERT JR., Robert. Princesa Isabel (1846-1921):A poltica do corao
entre o trono e o altar. Rio de Janeiro, 2007 (Tese de doutorado, Hist-
ria Social, UFRJ).
DUCAN, Carol, Madres felices y otras nuevas ideas en el arte francs del
siglo XVIII. In: REIMAN, Karen Cordero e SENZ, Inda (org.)
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dad Iberoamericana, 2007, p. 197-218.
GAY, Jules, Iconographie des estampes a sujets galants et des portraits de fem-
mes clbres par leur beaut. Genve: Chez J. Gay et fils, diteurs, 1868.
LACOMBE, Loureno L. A educao das princesas. Anurio do Museu
Imperial, v.7, 1946, p. 255-257.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

196
LACOMBE, Loureno Luiz, Isabel, a Princesa Redentora. Petrpolis: Ins-
tituto Histrico de Petrpolis, 1989.
Les expressions des passions de lme, reprsentes en plusieurs testes gra-
ves daprs les dessins de feu. M. Le Brun.
LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposies Gerais da Academia Imperial e da
Escola Nacional de Belas Artes. Perodo Monrquico. Catlogo de artis-
tas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Edies Pinakotheke,
1990.
MORAES, Frederico de. Cronologia das artes plsticas no Rio de Janeiro: da
misso artstica francesa gerao 90.Topbooks, 1995.
Nomeaco de Mariano Jos de Almeida a Mestre de Desenho de S.A.
Imperiais. 1-8-1860. (1 doc. 4 ans. 5 fls.) Publicaes do Arquivo Na-
cional - Volumes 39-40 - Pgina 63, Officinas Graphicas do Arquivo
Nacional, 1957.

Maraliz de Castro Vieira Christo

197
Figura 1
Princesa Isabel (1846-1921),
Retrato, 15 de outubro de 1863.
Desenho, tcnica
mista, papel, crayon, grafite e lpis de cor, 42 x 52 cm. MMP

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

198
Figura 2
Cours elmentaire, n 160.
Estampa litografada por Julien
e impressa por Franois Delarue,
em Paris, aprs Brochart.

Maraliz de Castro Vieira Christo

199
Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

200
colees e museus

A propsito da coleo
do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro:
Reflexes sobre a escultura brasileira oitocentista

Alberto Martn Chilln


Doutorando no programa de ps-graduao em Artes, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Bolsista de pesquisa do PNAP, Fundao Biblioteca Nacional.

Como bem afirma o catlogo do acervo do Museu Nacional de Belas Ar-


tes, a configurao da coleo de escultura do sculo XIX no resultou de
uma politica artstica governamental ou da prpria Academia, originadora
do ncleo artstico fundador da coleo, nem de uma srie de aquisies
programadas ou relativas aos desejos museolgicos e expositivos da insti-
tuio, mas de obras acumuladas no incio do ensino oficial da arte, com os
acrscimos eventuais, institucionais na sua maioria, e particulares, situao
nunca modificada desde o incio do sculo XIX at hoje1.
A coleo do Museu Nacional de Belas Artes pode ser considerada
como a mais importante coleo de escultura imperial brasileira, ainda que
poucas de suas peas possam ser exibidas. Sem dvida a maior coleo do
pas, originada no centro artstico mais importante do Imprio, a Academia
Imperial de Belas Artes, tem muito a dizer sobre o perodo, os artistas, as
polticas culturais, o mecenato e outros mltiplos aspectos. Assim, nesta
comunicao pretendemos realizar uma aproximao dita coleo alm
de tratar de entend-la como um documento excepcional sobre a escultura
brasileira imperial, desde sua origem na Academia Imperial de Belas Artes,
depois Escola Nacional de Belas Artes, que anos depois, em 1937, sofrer
uma diviso para formar duas colees: a do Museu dom Joo VI e a do
Museu Nacional de Belas Artes.
Em um primeiro momento, ainda na Academia de Belas Artes, pode-
mos falar do labor colecionador do acaso e do tempo, um pequeno agru-
pamento de peas criadas por professores e alunos, deixadas no prdio por

1
LUSTOSA, H (coord.). Acervo Museu Nacional de Belas Artes. So Paulo: Museu de Belas
Artes, 2002, pg. 96.

201
razes desconhecidas2. De acordo com o catlogo descritivo das obras de
pintura e escultura de 18933, sob a presidncia do escultor Rodolpho Ber-
nardelli, somente constam sete esculturas, todas elas de Bernardelli, e um
busto original de Antinoo, o que resulta estranho, pois, ainda que a Acade-
mia no se caracterizou por um forte interesse colecionador, seria impens-
vel considerar que, at a chegada de Bernardelli, a instituio apenas guar-
dasse uma escultura, aspecto este reforado na leitura do catlogo de 19234,
no qual so registradas 65 esculturas e 56 moldagens em gesso. Destas pe-
as, numa reviso dos catlogos da Academia, podemos rastrear a presena
de algumas dos irmos Marc e Zphyrin Ferrez, como, por exemplo uma
escultura em terracota representando Amrica com seus atributos, situada no
vestbulo5; de Marc Ferrez, o Busto de dom Pedro I, o Busto da baronesa de
Sorocaba e dois Medalhes em gesso com os retratos de Martim Francisco Ribeiro
e Carlos de Andrada Machado; e somente de autoria de Zphyrin Ferrez, os
modelos em cera sobre placa de loua para as Medalhas da Academia, com
a imagem do imperador, e o Busto de D. Pedro II, 1846, fundida em bronze
em Paris por Peulv. Outras obras de professores da Academia apareciam
nas colees, como as de Francisco Manoel Chaves Pinheiro ou Honorato
Manoel de Lima: o primeiro com uma figura de Jos Bonifcio e a esttua
equestre do Imperador dom Pedro II na rendio de Uruguaiana, doada em
1870 pelo escultor; e o segundo com um Busto de Domingos Jose Gonalves de
Magalhaes. Outros escultores professores tambm doaram suas obras, como
a Herma de homem, de Jos da Silva, 1858. Alm das obras dos professores,
existem outras de grandes escultores no ligados Academia, como o Rele-
vo de Jos Clemente Pereira, de Ferdinand Pettrich e a imponente efigie em
mrmore de Dom Pedro I, 1828, obra em mrmore de Francesco Benaglia.
Outras obras chegaram Academia atravs dos envios ou encomendas aos
seus pensionistas, dos que somente trs viajaram na modalidade de escul-
tura: Francisco Eldio Pnfiro, que no aparece representado na coleo,
pelo menos a exibida, Cndido Caetano Almeida Reis, com seu envio de
primeiro ano, O Paraba, 1866, e Rodolfo Bernardelli, com suas obras A

2
LUSTOSA, Op. Cit: pg. 98.
3
Catlogo explicativo das obras expostas nas galerias da Escola Nacional de Bellas Artes.
Rio de Janeiro: Escola Nacional de Belas Artes, 1893.
4
Catlogo geral das galerias de pintura e de esculptura da Escola Nacional de Bellas Artes.
Rio de Janeiro, O Norte, 1923
5
LUSTOSA, Op. Cit: pg. 98

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

202
Faceira, 1880, Vnus Calipigia, 1882, Vnus de Mdicis, 1885, e Cristo e a
adltera, 1884.
Tambm Manuel de Arajo Porto-Alegre, em 1857, solicitou ao go-
verno a compra de 20 esttuas e vrias moldagens em gesso com fins did-
ticos. Esta preocupao pela compra de moldagens em gesso ser contnua
e constituir uma coleo escultrica muito mais estruturada, respondendo
a uma ideologia e necessidades bsicas num estabelecimento acadmico, o
aprendizado dos modelos clssicos e renascentistas. Assim, uma das pri-
meiras compras da Academia seria precisamente a coleo de gessos de
Marc Ferrez, trazida junto com ele da Europa, e que foi adquirida pelo
mesmo preo que o escultor pagou, em pequenas quotas mensais extradas
do reduzido oramento para despesas midas. O diretor julgou indispen-
svel fazer a compra da nova coleo de gessos que se v exposta na Classe
de Escultura, entre os quais contam-se: o Gladiador inteiro, o tronco do
Laocoonte, e muitos bustos formosos6.
J em 1859, o diretor Tomaz Gomes dos Santos assinala a importncia
dos modelos para diversas aulas da Academia, importncia e necessidade
reconhecida tambm pelo Governo, e solicita novos modlos de gsso an-
tigo; pois que os que possui a Academia, alm de serem poucos, esto muito
estragados pela poeira, pela humidade e pelo uso7, modelos que deveriam
vir de Paris. No ano de 1860, entraram na Academia Laocoonte e seus filhos,
Antinoo do Capitlio, Amazona e Adonis, restaurados pelo escultor Quirino
Antonio Vieira8.
Em 1866 chegou uma nova coleo de esttuas em gesso, moldagens
de obras clssicas, que foi muito criticada por Chaves Pinheiro, que afirma
que so obras moldadas sobre cpias infelizes de originais antigos; outras,
vazadas em frmas j cansadas, gastas, e que apresentam defeitos9.
Uma parte dos gessos hoje existentes no Museu provm de uma do-
ao pessoal do imperador, que Chaves Pinheiro restaurou em 1877. No
momento, no sabemos se todas as peas provenientes de Paris que che-
garam em 1877, um dos grupos mais numerosos que entraram na coleo,
seriam todas uma doao do imperador, ou s uma parte delas. J em 1878,
6
GALVO, A. Notas sobre as moldagens em gsso da ENBA da UB. Peas preciosas da
coleo escolar. Arquivos da escola de Belas artes, 1957, pg. 128.
7
Ibid: pg. 129.
8
Ibid: pg. 130.
9
Ibid: pg. 130.

Alberto Martn Chilln

203
Chaves Pinheiro restaurou outras obras como O centauro e o amor, o Fauno
tocando flauta, a Esttua de Antnoo, a Esttua do Discbolo, a Venus de Milo,
a Diana caadora, Os lutadores, e o Apolo sauroctono, entre outros. A prpria
imperatriz tambm doaria, em 20 de julho de 1880, a nica pea clssica
original da coleo, o Busto de Antnoo com atributos de Baco, encontrado nas
escavaes perto de Roma.
As doaes foram uma das principais fontes de entrada de peas. Uma
das maiores doaes para as colees de escultura foi a do pintor Henrique
Bernardelli, quem doou quase 300 obras do seu irmo, Rodolpho Bernar-
delli, dentre elas 14 esttuas, 56 estatuetas, 31 bustos, 17 medalhes, 32 re-
levos, alm de maquetes, telas e desenhos10, que constituem o maior volume
na coleo. Posteriormente, em 1951, foram doadas duas obras de Chaves
Pinheiro por Elio Pederneiras, a Alegoria do Imprio Brasileiro e Ceres e, em
1985, foi doado, por uma descendente do escultor Jos Berna, o busto em
mrmore de Zacarias de Goes e Vasconcelos.
Da mesma forma, obras de Almeida Reis chegaram ao Museu por do-
ao. O positivista Generino dos Santos, guardio da obra do escultor aps
sua morte, no seu testamento, manda fundir em bronze Dante ao voltar do
exlio e Alma Penada11, hoje na Galeria do sculo XIX, e as doa Escola
Nacional de Belas Artes em 193312. Alm dessas obras, doaria todas as
obras do escultor conservadas por ele, dentre elas dois modelos de caboclos
em madeira, os fragmentos dO Crime ou Expiao.
De grande importncia para a coleo foi a grande Exposio de arte
contempornea e retrospectiva, que teve lugar no dia 13 de novembro de
192213, numa poca de recuperao da arte imperial, quando algumas peas
foram fundidas em bronze como O Paraba, de Almeida Reis, ou Santo Es-
tevo e Martyrio de S. Sebastio, de Rodolpho Bernardelli,14 conservadas em
gesso at esse momento. Nesta exposio figuraram tambm vrias obras
de Correia Lima e a Maquete do monumento a dom Pedro I, de Louis Ro-
chet, adquirida em 1882. Posteriormente, em 2009, foi adquirido o Busto

10
Galeria Irmaos Bernardelli. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes. [194-].
11
SANTOS, G, R. dos. O estaturio brasileiro C. C. Almeida Reis, vol. VII do Esplio
literrio de Generino dos Santos: Humaniadas: o mundo, a humanidade, o homem. Rio de
Janeiro: Editor Typ. do Jornal do commercio, 1938, pg. 197.
12
SANTOS, Op. Cit: pg. 50.
13
O Paiz, 15 de novembro de 1922.
14
O Paiz, 5 de maro de 1921.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

204
de Marc Ferrez em gesso, modelo do realizado em mrmore por Honorato
Manoel de Lima, conservado no Museu dom Joo VI.
Precisamente Honorato Manoel de Lima, professor de escultura de
ornatos da Academia, e especialmente este retrato do seu mestre Marc
Ferrez, assinalado como o primeiro escultor brasileiro por seu domnio do
mrmore, foi o protagonista de um dos primeiros textos sobre escultura:
um texto publicado na Illustrao Brasileira em 185415, O novo estaturio,
obra de Manuel de Araujo Porto-Alegre, quem pretende criar um texto
fundador em vrio sentidos. O desejo de outorgar o ttulo de primeiro es-
cultor brasileiro foi uma constante na genealogia da escultura imperial e foi
outorgado em vrias ocasies, ao mestre Valentim, a Ferdinand Pettrich, a
Honorato Manoel de Lima, a Almeida Reis e a Rodolfo Bernardelli.
Muitas outras vezes foram nomeados os primeiros escultores, dignos
desse nome, em terras brasileiras. Sobre Almeida Reis, em 1870, lia-se na
imprensa da poca: Se at agora no tinhamos um digno representante
na estatuaria, podemos de hoje em diante affirmar que encontramos um
homem16. O carter renovador e moderno ser um fato decisivo na hora de
nomear o primeiro escultor brasileiro. Assim, do mesmo modo que Hono-
rato Manoel de Lima se destacava por seu domnio da nova tcnica, Almei-
da se destacava por seu carter, segundo a crtica, antiacadmico e moderno,
destacado especialmente na sua obra prima, O Paraba, 1866.
O mesmo aconteceria anos depois com o jovem Rodolpho Bernardelli,
considerado como o verdadeiro renovador da escultura brasileira, apresen-
tado como inovador, um artista livre das prescries e das normas acadmi-
cas17, que se constituiu como um ponto de inflexo, um ponto de ruptura,
o iniciador de uma nova escola. Igualmente ao Busto de Marc Ferrez e aO
Paraba, Cristo e a mulher adltera inaugurou uma nova era para a escultura
no Brazil, j que at esse momento s haviam existido reprodues de mo-
delos clssicos, seguindo a arte grega18.
O academismo ou classicismo ser o elo condutor do desenvolvimento
da escultura carioca, fosse destacando ou atacando os preceitos clssicos. E
precisamente esse conceito nos leva ao que tradicionalmente se considera
15
Illustrao Brasileira, julho de 1854, pp. 139-141.
16
MORAES FILHO, M. A Reforma, 18 de maro de 1870.
17
DAZZI, C. O moderno no Brasil ao final do sculo 19. Revista de Histria da Arte e
Arqueologia, v. 11, 2012, pg. 91.
18
O Paiz, 21 de novembro de 1885.

Alberto Martn Chilln

205
como um ponto chave na arte brasileira, a criao de um ensino regrado
e a Academia de Belas Artes sob os moldes europeus, com a chegada da
conhecida como Misso Francesa, em 1816, que grande parte da historio-
grafia considerou como uma espcie de incio da arte brasileira. Este incio
se reflete tambm na lgica expositiva da coleo, que quase comea com as
obras da Misso, excetuando as poucas talhas religiosas em madeira adqui-
ridas a finais do sculo XX. A preocupao pela escultura brasileira anterior
Misso Francesa foi inaugurada por Manoel de Araujo Porto-Alegre, a
grande figura na formao da arte nacional, quem, apenas dois anos depois
do Novo estaturio, dentro da Iconographia brasileira, pensada como uma s-
rie de imagens junto com apontamentos biogrficos com a inteno de criar
um pensamento nacional, comeada em 1852, dedicou um texto ao Mestre
Valentim, na revista do Instituto Histrico Brasileiro. Araujo resgata a fi-
gura de Valentim de Fonseca e Silva, representante da arte borromnica,
cuja recuperao teria sido impossvel apenas 15 anos atrs sem desafiar os
animos daquelles que seguiram a escola chamada clssica19. Assim, Araujo
se ocupa de reclamar o lugar do mestre Valentim, junto com outro artistas
cariocas, na histria da escultura brasileira, na procura de uma arte auten-
ticamente nacional, destacando, em contraposio, a escassa ateno que
Araujo dedica aos integrantes da Misso Francesa.
A construo do nacional e o denominado projeto civilizatrio, in-
timamente ligados, so uma das principais ideias que aparecem no estudo
da arte e da escultura brasileira. J desde seus inicios, a Academia foi uma
ferramenta de civilizao e progresso. Nesta preocupao do Imprio as
artes tero um papel fundamental, por ser fonte de riqueza, j que as Belas
Artes eram o influxo de todas as industrias, as bases de toda a perfeio
manufactureira20, e seriam as geradoras da indstria, por sua vez gerado-
ra do comrcio. O mais importante defensor desse projeto, que procurava
equiparar o Brasil com os pases civilizados, seria o prprio imperador, em-
penhado na reforma intelectual. Este desejo ser de extrema importncia
no estudo da escultura imperial, uma vez que orientar o rumo da escultura
quase at finais do Imprio, e dele se derivaro vrios problemas e traos
definidores desta arte.

19
PORTO-ALEGRE, M. Iconographia Brazileira. Revista do Instituto histrico e Geo-
graphico do Brazil, tomo XIX, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1856, pp. 369-370.
20
O Brazil Artstico, 1857, pp. 17-18.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

206
Em um primeiro momento, a Misso Francesa foi uma resposta a esta
necessidade, criando a Academia de Belas Artes. No entanto, este primeiro
perodo se caracteriza por um carter mais efmero, como bem assinala
Porto-Alegre, para quem esta poca produziu vrios trabalhos plsticos
que havio figurado nas festas nacionaes, porm estes fructos de uma pom-
pa transitoria no havio deixado nada de permanente, nem fixado sobre o
solo um pensamento nobre e duravel como os trabalhos da actualidade21.
Estes trabalhos da atualidade aos que se refere o autor faziam parte de um
projeto ou iniciativa22 desenvolvida entre a dcada de 40 e de 60 para erigir
uma srie de monumentos, inspirados em grande parte por ele mesmo, com
o apoio poltico de Jos Clemente Pereira, e que se iniciou com a chegada
do escultor alemo Ferdinand Pettrich.
Neste projeto, o labor do escultor seria fundamental, pois seria o es-
taturio quem demonstra ao mundo intelligente o estado moral do povo
para quem elle trabalha; se opera para immortalisar o heroismo, ou outra
virtude social, a sua obra magnifca o paiz em que elle est, exorna o solo
em que se mostra, e ensina na praa publica o culto de todos os dotes da
moral eterna23. O estaturio se converte num historiador, o historiador do
passante, do peregrino e do povo e a sua obra domina o pedestal em que
repousa, extorna o nicho em que se eleva, ennobrece os typanos que anima,
e sagra os altares em que colloca as suas magestosas representaes24. As
estatuas individualisam as grandes virtudes, e os escriptos as generalisam e
perpetuam25.
Uma vez realizadas as obras de Pettrich na Santa Casa da Misericr-
dia, destacveis por inaugurar uma nova poca na arte e na civilizao, era
necessrio dar um passo a mais, logrando erigir o primeiro monumento
pblico, j que o vento que lava a estatua do here na praa publica, leva
em si aos confins do imprio um fluido regenerador, um principio vital mais
amplo, mais universal do que aquelle que respiramos no ar do interior de
um edificio, como o da santa casa, ou do hospicio Pedro II, onde em breve
21
PORTO-ALEGRE, M. O Novo estaturio. Illustrao Brasileira, julho de 1854, pp. 139-
141.
22
MIGLIACCIO, L. A escultura monumental no Brasil do sculo XIX. A criao de uma
iconografia brasileira e as suas relaes com a arte internacional. Anais do XXIII Colquio
do Comit Brasileiro de Histria da Arte, 2003, pg. 240.
23
PORTO-ALEGRE, 1854, O novo estaturio, Op. Cit: pg. 353.
24
Ibid: pg. 353.
25
Ibid: pg. 353.

Alberto Martn Chilln

207
se collocar em marmore o resumo historico do provedor Jos Clemente
Pereira26. A esttua equestre de dom Pedro I era a primeira pagina solem-
ne que a cidade e provincia do Rio de Janeiro offerecem para a edificao
do futuro, e testemunho de gratido nacional27. O escultor se converte no
traductor da gratido nacional, o ostentor da gloria, o que perpetua a me-
moria do homem, e o que o immortalisa28.
Este projeto civilizatrio derivar em vrias questes relevantes para
a escultura. A necessidade de produzir e dominar os materiais nobres da
escultura, mrmore e bronze, dominar grande parte das preocupaes ar-
tsticas e polticas, levando o governo a importar escultores estrangeiros,
o que provocar uma reao nacional em defesa dos artistas, materiais e in-
dstria local, uma tenso que dominar grande parte da cronologia impe-
rial. Araujo Porto-Alegre destaca esta importncia, assinalando como, at
a chegada de Ferdinand Pettrich, o cetro da estaturia no estava no Brasil,
j que todas as obras coloniais e do primeiro reinado vieram do estrangeiro,
e o pas contava com poucas obras em mrmore, trazidas pelos esforos
individuais do imperador, com a falta de um gosto e de um mercado local.
Neste momento, segundo Araujo, comearam as primeiras negociaes
entre Carrara e o Brasil, entre a arte americana e a Italia; principou esse
commercio de marmores, que na estatistica das naes civilisadas demons-
tra o grau de perfeio da esculptura e da industria, e que hoje denota um
seguro estado de civilisao29. No toa o grau mais elevado da produo
escultrica seria o de estaturio, o homem do mrmore e do bronze, o que
motivaria que muitos dos estaturios fossem chamados do exterior, como o
caso de Luigi Giudice, outro importante escultor oitocentista, encarregado
junto com outros trs artistas genoveses de localizar e explorar os recursos
nacionais de mrmore e que acabar realizando outras obras escultricas,
diante do fracasso do projeto. Tambm Leon Despres de Cluny, francs,
Camillo Formilli e Jos Berna, italianos, ou Blas Crespo Garcia, espanhol,

26
PORTO-ALEGRE, 1856, Op. Cit: pg. 352.
27
Ibid: p. 352.
28
PORTO-ALEGRE, 1856, Op. Cit: pg. 352
29
PORTO-ALEGRE. M. Apontamentos sobre os meios prticos de desenvolver o gosto e
a necessidade das Belas Artes no Rio de Janeiro, feitos por ordem de Sua Magestade Impe-
rial o senhor dom Pedro II, imperador do Brasil, pg. 33. In: MELLO JNIOR, D. Manuel
de Arajo Porto-alegre e a Reforma da Academia Imperial das Belas Artes em 1855: a
Reforma Pedreira. Revista Crtica de Arte, n.4, 1981, pp. 139-140.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

208
se assentaram durante maior ou menor tempo em terras cariocas por conta
do domnio do mrmore.
Esta hegemonia provocaria uma forte resposta nacional, que se sentia
especialmente desprotegida frente s encomendas estrangeiras, que j assi-
nala Porto-Alegre, quando apresenta o novo estaturio Honorato Manoel
de Lima, que, uma vez alcanada a destreza no material, s esperava as en-
comendas dos brasileiros. Uma situao na qual o prprio Govrno manda
vir da Europa esttuas e outros objetos para ornar os jardins e edifcios p-
blicos; os monumentos nacionais so arrematados por artistas estrangeiros
e executados na Europa30, como o monumento a dom Pedro I, fundido na
Frana por Rochet, da mesma forma que o monumento a Jos Bonifacio,
anos depois. Como parte desse projeto nacional, estava a necessidade de
construir uma imagem, mas feita por nacionais, e solucionar a situao na
qual a maior parte dos nossos jovens conhecem mais as riquezas e as tra-
dies alheias do que as proprias; conhecem mais os individuos estranhos
do que os nacionaes31.
A modo de concluso, podemos dizer que a coleo de escultura do
Museu Nacional de Belas Artes supe um documento excepcional para
entender o panorama escultrico do sculo XIX, ainda mais levando-se
em considerao a escassa conservao das criaes oitocentistas, em sua
maioria realizadas em gesso, que, pela fragilidade do material somado ao
desinteresse para a sua conservao e o escasso mercado, fez com que as
peas conservadas no fossem muitas, e raramente obras de grande porte
e grupos. A coleo, formada em origem pelas obras da antiga Academia
Imperial, sem uma lgica colecionadora definida, foi sendo complemen-
tada com a recuperao posterior da arte imperial, fundindo em bronze
vrias peas e resgatando muitas outras que se encontravam disseminadas
pela cidade, para posteriormente incluir algumas peas anteriores Misso
Francesa, estabelecendo um percurso expositivo desde a arte colonial at a
figura de Bernardelli, que cria um ponto de inflexo na produo escultri-
ca, dando passo galeria de arte brasileira moderna e contempornea.
A compreenso da coleo e da escultura resultaria impossvel sem
entender algumas das preocupaes da poca, que tentamos ilustrar aqui,
como o projeto civilizatrio e suas repercusses artsticas, com as iniciativas
30
AZEVEDO, M. O Rio de Janeiro. Sua histria, monumentos, homens notveis, usos e
curiosidades. Rio de Janeiro: Garnier, 1877, pg. 198.
31
PORTO-ALEGRE, Op. Cit: p. 352.

Alberto Martn Chilln

209
de Manuel de Araujo Porto-Alegre, e sua reflexo, sobre a escultura e seus
artfices e seu papel para a sociedade e para a nova nao, que marcaria a
escultura. So importantes as necessidades imperiais para, alm de civilizar,
criar uma imagem e uma conscincia nacional coletiva, na qual a escultura
teve um papel principal, e como esta necessidade definiu a escultura por
sua necessidade de mo-de-obra qualificada que dominasse os materiais
nobres, criando una situao paradoxal: a criao de uma imagem nacional
com materiais e escultores estrangeiros, que provocou amplas reaes em
defesa, justamente, do nacional.

Bibliografia

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notveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro: Garnier, 1877.
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por ordem de Sua Magestade Imperial o senhor dom Pedro II, impe-
rador do Brasil, pg. 33. In: MELLO JNIOR, D. Manuel de Arajo
Porto-alegre e a Reforma da Academia Imperial das Belas Artes em
1855: a Reforma Pedreira. Revista Crtica de Arte, n.4, 1981.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

210
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O Brazil Artstico, 1857.
O Paiz, 15 de novembro de 1922.
O Paiz, 5 de maro de 1921.

Alberto Martn Chilln

211
Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

212
colees e museus

Visconti nos acervos museolgicos


do Brasil

Mirian Nogueira Seraphim


Pesquisadora. Comit Brasileiro de Histria da Arte

Brasileiro por escolha, o pintor nascido na Itlia, Eliseo dAngelo Visconti


(1866-1944), tem obras suas conservadas em diversos acervos pblicos,
espalhados por pelo menos dez estados brasileiros e mais o Distrito Federal.
Embora ainda no tenha recebido a justa homenagem de um museu dedicado
exclusivamente ao seu trabalho, nem alcanado uma representatividade
altura do seu talento, pode-se dizer que o acervo pblico de Visconti
bastante caracterstico dos diversos problemas, infelizmente encontrados
na maioria desses acervos, especialmente nos museolgicos. O maior acervo
pblico de Visconti de longe o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA),
no Rio de Janeiro, que conta com 26 pinturas a leo, incluindo algumas de
suas obras-primas, alm de onze trabalhos em outras tcnicas. tambm
neste museu que se encontra a maioria dos casos significativos de situaes
problemticas, algumas remontando quase aos primrdios da instituio.

O acervo do Museu Nacional de Belas Artes foi inicialmente


constitudo pelo conjunto de obras trazidas pela Misso Artstica
Francesa em 1816 e pelos quadros particulares da Famlia Real
portuguesa que vieram para o Brasil entre 1808 e 1821. A essas
obras se juntaram aquelas produzidas por professores e alunos da
Academia Imperial de Belas Artes, inaugurada em 1826.

Este conjunto de obras constituir primeiramente o acervo da


Pinacoteca da Academia, que ser herdado pela Escola Nacional de
Belas Artes (ENBA), quando instituda em 1890, ento com seu volume
ampliado atravs de aquisies e doaes dos trabalhos que se destacavam
nas exposies de belas artes, iniciadas em 1829, e pelos concursos de
prmio de viagem, a partir de 1845. Visconti participou da ltima exposio
organizada pela Academia, em final de maro de 1890, depois de seis anos
de interrupo.

213
O catlogo da mostra de 1890 apresenta as 131 pinturas a leo
expostas pela primeira vez ao grande pblico, dentre as quais, seis
eram de Visconti, que apresentou ainda, na seo seguinte, um
retrato a crayon. Das pinturas a leo de Visconti, o catlogo destaca
a primeira, Ladeira do Monte Alegre (paisagem), como quadro
premiado com a medalha de ouro no ltimo concurso escolar.

Aluno da Academia desde 1885, e antes do Liceu de Artes e Ofcios,


desde 1882, Visconti destacou-se logo cedo, recebendo sucessivas medalhas
dos diversos cursos que frequentou. Apoiados nas informaes de Alfredo
Galvo em 1958, vrios autores apontam uma medalha de ouro recebida
por Visconti pela tela Mamoeiro, em 1891. Ora, essas medalhas concedidas
pela Academia, destacavam, no incio de cada ano, os melhores trabalhos
realizados no ano letivo anterior. Como a pintura Mamoeiro datada de
1889, certamente no poderia receber esse prmio dois anos depois. Ento,
existe a possibilidade desta pintura ter recebido sua medalha em 1890, sendo
a mesma Ladeira do Monte Alegre, registrada no catlogo na exposio de
1891, uma vez que Mamoeiro representa um terreno em aclive.
De qualquer forma, Mamoeiro foi a primeira pintura de Visconti a
fazer parte do acervo da Pinacoteca da Academia, pois a nica que consta
do Catalogo Explicativo das Obras Expostas nas Galerias da Escola Nacional
de Bellas Artes, editado em 1893. Neste catlogo, a pintura de Visconti
identificada com o ttulo genrico, Paisagem, mas no resta dvida que se
trata de Mamoeiro, pois as dimenses registradas coincidem com as desta
obra.
A Pinacoteca da Academia/Escola teve a maior parte de seu acervo
oriundo das suas prprias atividades didticas: exerccios de alunos, envios
de pensionistas, cpias de obras dos mestres mais importantes da tradio
europeia, material didtico usado nos atelis e obras vencedoras de diversos
concursos. Excetuando-se o material didtico, Visconti contribuiu com
obras suas de cada um desses segmentos. A grande coleo da Pinacoteca
da Escola foi desmembrada em 1937, da seguinte forma:

A maior parte e tambm a que foi considerada na poca mais


nobre passou a constituir o recm-criado Museu Nacional de Belas
Artes. A outra parte, em geral de carter mais didtico, continuou
nas salas de aulas e nos atelis da ENBA. As duas instituies, no

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

214
entanto, ocupavam o mesmo prdio: O MNBA a parte da frente,
voltada para a Avenida Rio Branco, e a ENBA a parte posterior.

interessante ressaltar que aquela primeira obra de Visconti a ser


incorporada ao acervo da Pinacoteca, pintura realizada quando ele ainda era
aluno da Academia, foi considerada nobre, uma vez que passou a integrar
o acervo do MNBA. No entanto, vrias obras suas ficaram no acervo da
Escola, o qual s foi reunido para sua melhor conservao, em 1979, com
a criao do Museu D. Joo VI. Ali se encontram de Visconti vrias de
suas academias pintadas e enviadas como obrigao de pensionista, dos
primeiros anos de seu estgio em Paris.
E tambm, a academia masculina que foi executada durante o primeiro
concurso de Prmio de Viagem ao Exterior do perodo republicano, em
1892. curioso notar que, apesar do Museu D. Joo VI guardar toda a
documentao do concurso, inclusive os registros dos pseudnimos usados
pelos candidatos, no se encontra em seu acervo, nem do MNBA, a pintura
de Visconti realizada na ltima etapa do concurso, com o tema sorteado A
Apario dos trs anjos a Abrao. Como obra do vencedor do concurso, era
de se esperar que passasse a fazer parte da Pinacoteca da Escola. Tampouco
se encontrou, em qualquer outro acervo, uma pintura de Visconti com esse
tema, ficando assim, por enquanto, contada entre suas obras desaparecidas.
No entanto, mesmo quatro de suas academias desenhadas, e uma
pintada, Dorso de mulher (1895), tambm envios de pensionista dos
primeiros anos, passou a fazer parte do acervo do MNBA. Assim como
as composies que Visconti enviava para figurar nas Exposies Gerais
de Belas Artes (EGBA), que voltaram a ser anuais, aps outra interrupo
desde aquela de 1890, reiniciando sua contagem, e sendo considerada a de
1894, como a 1 EGBA.
o caso da pintura representando duas meninas nuas numa cama
um tema ousado e inusitado para o final do sculo XIX, tratado pelo artista
com sensibilidade e sem afronta. No catlogo da Exposio Individual que
Visconti organizou em 1901, na ENBA, para mostrar sua produo do
tempo de pensionista na Europa, essa pintura aparece com o ttulo As duas
irms, e a especificao Trabalho de pensionista. Esta expresso sugere que
ela foi, desde ento, incorporada Pinacoteca da Escola, como as demais
assim designadas no catlogo. Outra pintura intitulada No vero aparece
com a especificao: Pertence ao Estado Salon de 1894.

Mirian Nogueira Seraphim

215
Logo aps a mudana do acervo da Pinacoteca da ENBA para as
galerias e o novo pavimento construdos em 1922, no prdio projetado
por Moralles de los Rios, na Avenida Central, onde a Escola funcionava
desde 1908, foi editado, em 1923, o Catlogo Geral das Galerias de Pintura
e de Escultura da ENBA. Neste catlogo, a pintura das duas meninas foi
registrada apenas como Estudo de nu, o que pode ser verificado pelas
dimenses apontadas; e aquela com o ttulo No vero apresenta as dimenses
0,65 x 0,81, que correspondem que hoje conhecemos como Menina com
ventarola (1893). Em algum momento depois desta publicao, essas duas
pinturas tiveram seus ttulos trocados. Isto ocorreu, provavelmente, porque
as qualidades observadas por tantos comentaristas na pintura das duas
meninas composio bem elaborada; escoro admirvel; ngulo singular;
leveza do colorido; sutileza da cena; jogo dos contrastes; profundidade das
expresses e sensualidade inquietante no se conformaram designao
to redutora que lhe foi dada.
J no catlogo da grande Exposio Retrospectiva de Visconti,
organizada no MNBA em 1949, No vero (1894) traz a designao (as duas
irms) e est registrada com as dimenses da pintura das duas meninas; e
a outra, aparece como Estudo de nu (menina com ventarola), e as dimenses
correspondentes. Esta ltima, que representa a menina nua sobre a mesma
cama, havia recebido a medalha de 2 classe na 1 EGBA, em 1894, e um
pouco antes participado do Salon de Paris com o ttulo En t; fatos que
foram, por muito tempo, computados para a pintura das duas meninas.
A troca dos ttulos s foi percebida muito recentemente, a partir de uma
pequena descrio da tela medalhada: uma menina nua, abanando-se
com uma ventarola, encontrada em um artigo publicado na ocasio da 1
EGBA.
Embora no restem dvidas sobre a troca de ttulos, fica difcil restituir a
cada obra seu ttulo original, uma vez que elas j foram bastante reproduzidas
e comentadas com aqueles registrados no MNBA. Por outro lado,
mantendo-se os ttulos como esto, permanece ainda a confuso histrica
das trajetrias iniciais de cada uma. interessante notar que a primeira
mudana significativa de ttulo ocorreu num momento de transferncia
e registro do acervo, em 1923, quando a pintura antes designada As duas
irms, passou a ser chamada apenas Estudo de nu, o que certamente gerou
a troca, que deve ter ocorrido aps a instituio do MNBA, e a diviso do
acervo da Pinacoteca da ENBA.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

216
Ainda dentre as obras enviadas por Visconti durante seu pensionato,
existe uma que um caso bastante triste. Trata-se da cpia da pintura
de Velazquez, A rendio de Breda (1634/35), que Visconti realizou por
determinao de seus antigos professores na ENBA, para o seu terceiro ano
de estgio. Embora a contragosto o que se depreende da correspondncia
trocada entre o pintor e Rodopho Bernardelli, durante o ano de 1895
Visconti se desincumbiu da obrigao de forma excelente, como testemunha
seu filho Tobias, num depoimento escrito em 1992:

Como pensionista do Estado, s tinha a obrigao de fazer uma


cpia em tamanho reduzido. Tal cpia perfeita e com as dimenses
do original ficou exposta na entrada da antiga Escola Nacional de
Belas Artes, na Avenida Rio Branco, por mais de sessenta anos.
Quando foram retir-la [...] o fizeram sem o devido cuidado, e a tela
apodrecida partiu-se em muitos fragmentos.

Em 1938, foi publicado num jornal carioca um artigo sobre as reformas


que aconteciam no prdio do recm-institudo MNBA. Ilustrava o artigo
uma foto da cpia de Visconti j danificada, e a informao: Helios
Seelinger mostra, com profunda demonstrao de tristeza, o rombo que
de mais de dois palmos. A legenda da foto diz que a tela estava sendo
reconstituda, no entanto, ela permanece at hoje espera de socorro, em
algum recanto do MNBA.
H no acervo deste museu mais trs pinturas de Visconti, criadas
ainda no mesmo perodo de estgio na Europa, que foram incorporadas
em ocasies diferentes. No registro de Oradas (1899), que conquistou uma
medalha de prata na Exposio Universal de Paris em 1900, consta apenas
transferncia, Escola Nacional de Belas Artes, 1937, como se observa em
tantas outras obras. Recompensa de So Sebastio (1898) fora finalmente
comprada em 1938 portanto, para reforar o acervo do museu recm-
criado muitos anos depois de uma campanha acirrada feita por Adalberto
Mattos pelas pginas da revista Ilustrao Brasileira, dizendo ser ela obra
que o governo tinha por dever adquirir, mas que continua no atelier do
pintor, porque os que nos dirigem absolutamente no sabem distinguir o
joio do trigo. No entanto, Giovent (1898), considerada a obra-prima por
excelncia de Visconti, j to celebrada que dispensa comentrios, teve que
esperar a benevolncia de seu proprietrio, E. G. Fontes, que entendeu a

Mirian Nogueira Seraphim

217
importncia de socializar a sua fruio, doando-a ao MNBA, em janeiro
de 1941.
Ao longo dos anos, vrias outras pinturas de Visconti de grande
importncia, passaram a integrar o acervo da Pinacoteca da Escola atravs
de diversos procedimentos, como a aquisio de obras destacadas em
Exposies Gerais, sem que isso ficasse registrado nos arquivos. Ocorreu
em, pelo menos, dois anos consecutivos, primeiramente com a Igreja de
Santa Teresa, apresentada ao pblico na 34 EGBA, em 1927, e adquirida
naquela ocasio, como consta do catlogo na exposio do ano seguinte;
fato que se repete com A caminho da escola, exposta em 1928, na 35 EGBA.
Entretanto, no o que acontece com o Retrato de Gonzaga Duque (1908-
10). Nas resenhas sobre a 19 EGBA, de 1912, esse retrato foi sempre
destacado, e um jornal anuncia que uma proposta de aquisio desta
pintura havia sido entregue ao ministro da Justia. Apesar da importncia
do retratado e do fato de ele ter falecido um ano antes, a pintura no
foi adquirida nessa ocasio. No catlogo da Exposio Retrospectiva,
comemorativa do Centenrio da Independncia, em 1922, a pintura
aparece com o complemento (pert. Exma. viva Gonzaga Duque). Pelos
registros do MNBA, ela foi transferida da Pinacoteca da ENBA, em 1937,
sem nenhuma outra informao.
Algumas doaes aparecem catalogadas no MNBA. Uma delas, feita
pelo prprio Visconti, j no final de sua carreira: pintado e doado em 1943,
o Retrato de Manoel Ccero Peregrino da Silva, que foi entre outras coisas
Diretor Geral da Biblioteca Nacional (1900-1924), Reitor da Universidade
do Rio de Janeiro (1926-30), e Presidente do IHGB (1938-39). Aps a
grande Retrospectiva de Eliseu Visconti, realizada em novembro de 1949,
foi feita por sua famlia, a doao do Autorretrato ao ar livre (1943), a pedido
de Regina M. Real, uma das conservadoras do MNBA quela poca. Apesar
de celebrada, a doao feita ainda em 1923, do Retrato da escultora Nicolina
Vaz de Assis (1905) no consta dos registros do museu. Porm, segundo
informa a revista Illustrao Brasileira, ao lado da reproduo da pintura,
de pgina inteira e em tricromia, ela foi ofertada por seu proprietrio Jos
Marianno Filho, Pinacoteca da ENBA.
Mais emblemtico de situaes irregulares que ocorrem nos acervos
museolgicos, o caso da pintura Revoada de pombos, que segundo os
registros do MNBA, foi comprada de Ceclia Ferreira de Oliveira Fontes,

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

218
sem indicao da data. A pintura foi considerada por Antonio Bento,
durante sua exposio na Retrospectiva de 1949,

um quadro moderno na fatura, como nos seus valores plsticos. E


certamente pintura pura, podendo a composio ser assinada pelo
mais ortodoxo dos abstratos. apenas um jgo de cores da maior
pureza. S um grande pintor seria capaz de fazer sse quadro.

Em virtude dessas suas caractersticas to apreciadas, no catlogo da


Retrospectiva de 1949, que foi organizado cronologicamente, essa pintura
foi colocada em penltimo lugar entre os leos, considerada uma das
ltimas realizaes da carreira de Visconti. No entanto, no confronto com
outras obras catalogadas do mestre, revelou-se muito provavelmente um dos
vrios estudos para uma composio maior, Pombos do meu ateli, datada de
1927; e aparece numa foto do ateli de Visconti, publicada em O Jornal, de
1926. Porm, o fato mais inslito relacionado a ela, que se encontra ainda
hoje no Palcio da Alvorada, em Braslia, na parte restrita da residncia
presidencial, para onde foi levada, segundo a etiqueta do MNBA em seu
verso, para uma exposio pelo perodo de dois anos, por um convnio de
fevereiro de 1991.
Outro importante acervo museolgico brasileiro a Pinacoteca do
Estado de So Paulo (PESP). Ela guarda poucas obras de Visconti, apenas
seis pinturas a leo, mas duas delas so tambm bastante representativas
dos percalos que ocorrem s obras de arte nas casas que as abrigam. O caso
mais simples o de um ttulo inadequado. Um longo comentrio, de uma
obra que raramente chama a ateno dos crticos, apesar de constantemente
exposta na Pinacoteca, mostra-se muito interessante por abordar, de forma
bem diferente, o tema do nu adolescente viscontiano:

Estranhamente intitulada Dorso de mulher, esta obra mereceria


ttulo mais correto de Retrato de moa de dorso nu. De fato, trata-
se de uma menina, como mostram o rosto amuado numa expresso
entediada, os ombros estreitos e modesto volume dos seios. [...]
Tratado numa escala cromtica extremamente restrita, este estudo
de nu , ao mesmo tempo, tradicional pelo estilo e pela composio,
e ousado pelo realismo cru, quase provocante. [...]
O sentimento de mal estar que emana desta obra comprova a fora
de penetrao psicolgica de Visconti e de seu precursor desprezo

Mirian Nogueira Seraphim

219
pelo Belo, um dos cnones mais constantes na pintura acadmica.
Pela explorao profunda do real, ele revela o que est aqum e alm
de um rosto.

O autor faz notar aquilo que se mostra uma constante na obra do


mestre a conciliao do tradicional com o ousado. Ele tambm observa,
muito acertadamente, o equvoco do nome dado pintura, porm sugere
outro ttulo ainda inadequado. A correo do ttulo foi novamente sugerida
h pouco mais de dez anos, porm o museu exigia para isso uma fonte
que indicasse seu ttulo original, alegando que aquele registrado constava
do documento de doao da obra. Para no fugir muito ao seu registro no
acervo da PESP, e ao mesmo tempo corrigir o equvoco, essa pintura foi
apresentada com o ttulo Torso de mulher, quando participou da exposio
Erotica os sentidos na arte, no CCBB de So Paulo e do Rio de Janeiro,
em 2005 e 2006, respectivamente. Com a recente mudana na direo da
Pinacoteca, um ttulo bastante apropriado foi finalmente adotado para ela:
Torso de menina.
A PESP tambm tem em seu acervo uma obra-prima de Visconti: a
pintura Maternidade (1906) sempre aclamada por suas qualidades plsticas.
O efeito uma harmonia melodiosa, sinfonia de cores verdes, azuis e rosas.
[...] As zonas de luz e sombra se alternam e se integram pelas infiltraes
dos raios de sol, num jogo sutil de captao atmosfrica. Sua entrada
no acervo, porm, ainda guarda algum mistrio. No ano 2000, constava
na legenda ao lado da pintura em exposio permanente, transferida do
Museu Paulista. No entanto, essa informao s verdadeira para outra
pintura de Visconti daquele acervo: A Providncia guia Cabral (1899). Esta
consta, com o ttulo Cabral, de um documento datado de 19 de fevereiro
de 1948, no qual o diretor da PESP recebia do diretor do Museu Paulista,
dez pinturas ali relacionadas, que por se tratarem de obras de intersse
mais prpriamente artstico do que histrico e documental, passam, nesta
data, a serem transferidos do Museu Paulista, para a Pinacoteca do Estado.
Da lista de obras deste recibo no consta a Maternidade, no entanto, ainda
na publicao de 2009, Arte brasileira na Pinacoteca do Estado de So Paulo,
no Histrico das obras, encontra-se para esta pintura de Visconti uma
informao contraditria: Transferido do Museu Paulista, entrou para o
acervo por ocasio da regulamentao da Pinacoteca, em 1911.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

220
Entre 1905 e 1911, ano em que a Pinacoteca passa a ter uma
regulamentao jurdica, so incorporadas ao acervo 33 pinturas,
sempre por iniciativa do Governo do Estado. A procedncia em
muitos casos, ainda controvertida, pois uma parte dos documentos
originais desse perodo se perdeu.

Certamente tambm no que se refere pintura Maternidade. A grande


composio foi exposta no Salon de Paris, em 1906, como Maternit, e
apresentada no Brasil, na 15 EGBA, em 1908, ocasio em que foi destacada
em vrias resenhas. Depois de participar da Exposicin Internacional de Bellas
Artes, que em setembro de 1910 inaugurava o prdio do Museo Nacional
de Bellas Artes, em Santiago do Chile, a pintura foi apresentada ao pblico
paulista no Liceu de Artes e Ofcios de So Paulo, na 1 Exposio Brasileira
de Belas Artes, inaugurada em 24 de dezembro de 1911. No dia 12 de janeiro,
comeava uma campanha em favor da aquisio de Maternidade, tendo sido
publicado no jornal O Estado de S. Paulo:

Sabemos que havia tambm a inteno de comprar a grande e


esplendida tela de Eliseu Visconti Maternidade, que um dos
mais fortes de todos os quadros expostos. O preo marcado no
catalogo, porm, era de 6:000$000. O governo estava disposto a dar
apenas 5:000$000. Mas o artista no cedeu e a compra no se fez.

O artigo referia-se a um documento assinado por Amadeu Amaral,


e datado de 31 de dezembro de 1911, que consultava o pintor se o preo
pedido pela pintura seis contos de ris no poderia ser modificado, pois
queriam que ela ficasse em So Paulo, mas havia dificuldades por questo
de verba. O mesmo articulista, ainda no dia 19, insistia:

Segundo ouvimos, algumas senhoras da nossa alta sociedade pensam


em adquirir, por subscripo, a esplendida tla Maternidade do sr.
Elyseu Visconti para offerecel-a a um dos nossos estabelecimentos
de caridade. [...]
Em compensao temos uma Pinacotheca do Estado, solenne
instituio cujo maior merito consiste em possuir um nome sonoro
e sugestivo...

Mirian Nogueira Seraphim

221
Aps esta severa crtica administrao cultural do governo paulista, o
cronista encerra sua campanha. Acompanhando-se as prximas edies do
jornal, encontram-se apenas, no incio do ms de fevereiro, notas sobre o
encerramento da exposio e nenhuma nova meno tela de Visconti. Um
ano mais tarde, um artigo sobre a PESP, que traz vrias reprodues e a lista
completa do seu acervo, j registra a presena de Maternidade. No se sabe a
data exata da compra, nem se o governo pagou o preo pedido pelo artista,
se este decidiu conceder o desconto ou se algum benfeitor a comprou e
doou Pinacoteca. Mas certamente sua entrada no acervo se deu em 1912,
como agora consta do site do museu.
Para encerrar, dentre tantos outros casos, destaca-se o de um pequeno
museu onde ocorreu o fato mais grave relacionado a uma obra de Visconti.
Na dcada de 1960, Assis Chateaubriand lanou a Campanha Nacional
dos Museus Regionais, projeto que pretendia criar museus regionais, de
alto valor artstico, em vrios pontos do pas, e contava com a assessoria
de Pietro Maria Bardi e Max Lowenstein. Porm, apenas cinco foram
implantados, dentre eles o Museu de Arte Contempornea de Pernambuco,
que tem sede em Olinda, no prdio da antiga e nica deteno eclesistica
do Brasil. Havia em seu acervo um autorretrato inacabado de Visconti,
datado de 1901, que participou da Retrospectiva de 1949, quando ento
pertencia coleo de Otto Sachs. O Autorretrato foi reproduzido no
catlogo do museu, editado em 1982 pela FUNARTE, fazendo parte da
Coleo Museus Brasileiros. No entanto, no final da dcada de 1980, esta
pintura foi roubada do museu, e nunca mais recuperada, embora tivessem
sidos feitos boletim de ocorrncia e artigos na imprensa sobre o caso. O
mais curioso que, depois disso, ela aparece novamente reproduzida num
catlogo editado em 1993 Visconti; Bonadei no qual o autorretrato
apontado como de coleo particular do Rio de Janeiro.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

222
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

ARAUJO, M. M.; NASCIMENTO, A.P. & BARROS, R. T. 100 anos de


Pinacoteca A formao de um acervo. So Paulo: Pinacoteca/ Centro
Cultural FIESP, 2005.
BAECHLER, D. E. Pintura Acadmica Obras primas de uma coleo
paulista 1860-1920. So Paulo: Imprensa Oficial, 1982, 3 V.
BENTO, A. A Retrospectiva de Visconti (As Artes), Diario Carioca, Rio
de Janeiro, 20 nov. 1949, p. 6.
DUPRAT, C. Pinacoteca do Estado de So Paulo. Rio de Janeiro: Mediafashion,
2009.
GALVO, A. Alunos Premiados da Academia Imperial de Belas-Artes. Rio de
Janeiro: ENBA, 1958.
MATTOS, A. Illustrao Brasileira, Rio de Janeiro, Ano 8, n 1, set 1920.
________. As nossas trichromias. Illustrao Brasileira, Ano IV, n 32, abr.
1923.
MOURA, Y. Coleo D. Joo VI Museu Nacional de Belas Artes. Rio de
Janeiro: MNBA, 2008.
PALHARES, T. H. P. (Org.), Arte Brasileira na Pinacoteca do Estado de So
Paulo. So Paulo: Cosac Naify/ Imprensa Oficial/ Pinacoteca, 2009.
PEREIRA, S. G. O novo Museu D. Joo VI. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA,
2008.
SALA, D. As origens histricas. In: Acervo Museu Nacional de Belas Artes.
So Paulo: Banco Santos, 2002, p. 18-27.
SERAPHIM, M. N. Eliseu Visconti e a construo da cultura artstica
de So Paulo. Revista de Histria da Arte e Arqueologia. Campinas,
IFCH/Unicamp, 2005, p. 109-124.
________ 1890 o primeiro ano da Repblica agita o meio artstico
brasileiro e marca a carreira de Eliseu Visconti. In: CAVALCANTI,
A.M.T.; DAZZI C. & VALLE, A. (Org.) Oitocentos: Arte brasileira
do Imprio Primeira Repblica. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ/
DezenoveVinte, 2008, p. 257-272.

Mirian Nogueira Seraphim

223
VISCONTI, T. S. (Org.) Eliseu Visconti: A arte em movimento. Rio de
Janeiro: Hlos, 2012.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

224
Figura 3
ELISEU VISCONTI.
Mamoeiro, 1889.
leo sobre tela; 92 cm x 73 cm;
Rio de Janeiro, MNBA.
Foto: Photo Sintese, 2011.

Mirian Nogueira Seraphim

225
Figura 2
ELISEU VISCONTI.
As duas irms ou No vero, 1894.
leo sobre tela; 58,9 cm x 80,4 cm
Rio de Janeiro, MNBA.
Foto: Photo Sintese, 2011.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

226
Figura 3
ELISEU VISCONTI.
No vero ou Menina com ventarola, 1893.
leo sobre tela; 65,1 cm x 81 cm.
Rio de Janeiro, MNBA.
Foto: Photo Sintese, 2011.

Mirian Nogueira Seraphim

227
Figura 4
ELISEU VISCONTI.
Revoada de pombos, c. 1926.
leo sobre tela; 73 cm x 50 cm;
Rio de Janeiro, MNBA.
Foto: Mirian Seraphim, 2007.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

228
Figura 5
ELISEU VISCONTI.
Torso de menina. s.d.
leo sobre tela; 76 cm x 63 cm;
So Paulo, PESP.
Foto: Isabella Mateus, 2011.

Mirian Nogueira Seraphim

229
Figura 6
ELISEU VISCONTI.
Maternidade, 1906.
leo sobre tela; 165 cm x 200 cm;
So Paulo, PESP.
Foto: Isabella Mateus, 2011.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

230
colees e museus

Apontamentos sobre o gnero do retrato, o colecionismo


e a presena de artistas estrangeiros nas
Exposies Gerais da Academia Imperial de Belas Artes brasileira

Elaine Dias
Professora do Departamento e do Programa
de Ps-Graduao de Histria da Arte,
Universidade Federal de So Paulo.

Ao analisarmos os catlogos das Exposies Gerais da Academia Im-


perial de Belas Artes, seja folheando suas publicaes individuais, reali-
zadas a cada ano em que a mostra ocorria, ou a compilao dirigida por
Carlos Maciel Levy e editada em 19901, nota-se de modo imediato que o
gnero do retrato foi aquele que ganhou mais espao entre os anos de 1840
e 1884. Levy menciona o nmero de 991 retratos em meio a 3.315 obras
em sua totalidade.
Entre 1840, data da abertura das chamadas Exposies Gerais de Be-
las Artes, e 1884, ano da ltima exposio realizada no perodo imperial,
artistas nacionais e estrangeiros expuseram esse grande nmero de retratos,
dispostos nos catlogos com suas devidas titulaes, indicados por seus au-
tores e numeraes ou nomeados apenas como retratos. Chama a ateno,
desta forma, a quantidade exibida. Este nmero mostrava telas variadas,
destacando-se retratos de Estado, em particular aqueles realizados para D.
Pedro II, os retratos de governantes anteriores, como D. Pedro I e d. Leo-
poldina, os retratos de homens ilustres do Imprio, retratos de figuras ilus-
tres do ambiente internacional e igualmente de civis da sociedade carioca,
entre outros. Ao lado destas informaes, em alguns retratos aparecia outra
de especial relevncia para o nosso contexto social e artstico no sculo XIX
brasileiro. Algumas obras pertenciam a particulares e eram expostas na dita
mostra, contendo no catlogo, ao lado do nome do artista e do ttulo, o
nome completo do proprietrio.
As questes que se levantam com esta prtica que perdura em todo o
perodo imperial apenas se iniciam aqui. Elas dizem tambm respeito a fa-
1
MACIEL LEVY, 1990.

231
tores fundamentais para a compreenso das engrenagens que impulsionam
o mundo das artes no Rio de Janeiro, capital do Imprio de D. Pedro II, as-
sim como o entendimento dos fatores relativos circulao de modelos ar-
tsticos, de artistas que passaram pelo Brasil de maneira temporria ou per-
manente, de suas prticas em meio sociedade, da consequente afirmao
de um determinado gnero ao lado dos artistas brasileiros. Nesse sentido,
igualmente fundamental entender como se articulavam as encomendas de
retratos na esfera pblica e privada e a respectiva insero do artista estran-
geiro no sistema artstico brasileiro, assim como uma forma de sustento ao
artista, incluindo-se tambm aqui o brasileiro; a divulgao de seu trabalho
na imprensa da poca e a recepo do pblico no contexto das exposies
gerais, a divulgao do retrato e o papel da crtica de arte na anlise das
obras; a recepo destes artistas na Academia Imperial de Belas Artes,
sua anlise das obras e as premiaes; e a formao destes estrangeiros fora
do Brasil, suas referncias artsticas e os modelos de retratstica utilizados
para fins especficos, alm da comparao ao gnero do retrato nos Sales
parisienses, local central de exposio de artistas franceses e estrangeiros na
Europa. Alm disso, atrai tambm a insero nas exposies de cpias de
pintura realizadas pelos artistas, seja de retratos de pintores j consagrados
na histria da arte, ou retratos realizados por outros artistas brasileiros ou
estrangeiros, igualmente divulgados nas exposies gerais. Por ltimo, con-
vm destacar que a abordagem a este gnero inclui diferentes suportes e
tcnicas, entre os quais a estaturia - em especial os bustos - e a fotografia,
embora a pintura constitua o maior nmero.
Todas estas questes levantadas acima esto inseridas, assim, em um
projeto de pesquisa que tem como objetivo o estudo da presena de artistas
estrangeiros nas Exposies Gerais da Academia Imperial de Belas Artes,
especificamente no mbito da retratstica. Embora a pesquisa esteja ainda
em sua fase inicial, gostaria, assim, de realizar alguns apontamentos sobre
estas questes neste encontro.

Um gnero em destaque no Brasil

Sabemos o quanto este gnero ocupou um lugar de destaque no Brasil


desde o sculo XVIII. Jean-Baptiste Debret conta-nos sobre esta prtica no

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

232
perodo colonial, em sua Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil2 . O retrato
aparecia de forma contundente nos conventos, mosteiros, santas casas e
irmandades de lugares como Rio de Janeiro e Salvador3, representando os
principais doadores e aqueles ligados hierarquia do clero, homenageados
em vida ou aps a morte para que sua memria e virtude permanecessem
no local de suas benfeitorias. Em sua maioria, eram retratos simples pin-
tados de corpo inteiro, geralmente com uma pequena paisagem ao fundo
ou exibindo algum documento que indicasse seus atos naqueles locais. O
exemplo moral enchia assim as paredes de instituies pblicas, levados
como modelo para novos benfeitores, para as tradicionais famlias e aos
fiis daquelas ordens especficas. Com o passar do tempo, os trajes foram
se sofisticando e os atributos ganhando mais espao, mas a pose austera e
firme continuava a mesma.
Aos poucos, sobretudo com a chegada da corte portuguesa ao Brasil,
em 1808, o gnero comea a se deslocar da esfera religiosa e invadir o m-
bito poltico e social, revelando artistas como Leandro Joaquim4, Jos Le-
andro de Carvalho5, Simplcio Rodrigues de S, Franciso Pedro do Amaral,
Manuel Dias de Oliveira, que realizavam retratos para os membros da Fa-
mlia Real. Eventos como a sagrao de d. Joo VI em 1818, o casamento
de Pedro I e Leopoldina de Habsburgo, alm das figuras importantes da
nobreza luso-brasileira, davam novos elementos para os artistas praticarem
o gnero, decorando as instituies pblicas com a efgie dos novos gover-
nantes6. Nesse contexto, os estrangeiros comeam a ocupar certo espao.
Os Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay iro se inserir neste
campo de modo contundente desde sua chegada em 1816, pois sobressair-
-se neste gnero na corte portuguesa, significava certamente obter privi-
lgios como artista. Debret ir, desta forma, realizar alguns retratos para
o Rei d. Joo VI, tanto em corpo inteiro quanto em meio corpo, em trajes
majestticos ou militares7. Taunay, em sua aproximao Rainha, como j
2
DEBRET, 1975.
3
Levy, 1945: 251.
4
Entre eles, o Retrato de D. Luis de Vasconcelos e Souza, 1790c, hoje conservado no Museu
Histrico Nacional do Rio de Janeiro.
5
Realizou o O Retrato de D. Maria I conservado tambm no Museu Histrico Nacional.
Este , possivelmente, o primeiro retrato da famlia real portuguesa produzido no Brasil no
ano de sua chegada, 1808.
6
MIGLIACCIO, 2000.
7
DIAS, 2006.

Elaine Dias

233
destacou Lilia Schwarcz8 em seus estudos sobre o artista, realiza os retratos
de D. Carlota, das filhas da princesa e igualmente de seu neto, tornando
clara a sua posio em meio ao turbulento casamento entre os Bragana e
os Bourbon9.
Ao lado dos eventos polticos da primeira metade do sculo XIX, de
suma importncia fundao e desenvolvimento da Academia, que no
s teve um corpo de professores que trabalham para a criao da memria
visual brasileira, mas levou sociedade um corpo de artistas que ocuparo
este gnero, principal meio de sustento no campo das artes no Rio de Ja-
neiro do sculo XIX. Jos Correia de Lima, professor de pintura de histria
da Academia, substituto de Debret aps seu retorno Frana em 1831,
foi um dos principais artistas a realizar uma srie de retratos de D. Pedro
II em suas diferentes idades, os quais foram distribudos pelas reparties
pblicas das provncias brasileiras. Alm dos chamados retratos de Estado,
Correia de Lima tambm pintou retratos de membros da sociedade, que
antes ou depois de estar na casa de seus comanditrios, foram dispostos nas
Exposies Gerais de Belas Artes. August Mller, professor substituto de
pintura de paisagem, foi tambm um dos grandes artistas do retrato. Seu
Mestre de uma sumaca foi exposto pela primeira vez em 1840, e esteve tam-
bm presente na ltima exposio, em 1884. Revelava a coragem do mestre
de uma sumaca, Manoel Correia dos Santos, heri solitrio de uma fragata
em Santa Catarina, cuja efgie servia de exemplo de bravura sociedade.
Muitos foram os artistas brasileiros que expuseram retratos nas Expo-
sies Gerais de Belas Artes, levando o gnero ao grau mximo das expo-
sies. Entre eles, destacam-se as obras realizadas por Joachim da Rocha
Fragoso, retratista oficial do Conde dEu, alguns artistas j formados na
Academia, como Poluceno Pereira da Silva Manoel, onde se v claramente
uma forma de sustento, entre vrios outros em igual situao, e tambm os
mais ilustres, entre eles Pedro Amrico e Vitor Meirelles, pintores de hist-
ria que tambm mantiveram presena constante como artista do gnero do
retrato. Vitor Meirelles foi um dos grandes retratistas do perodo imperial
no campo da pintura e, naquele da escultura, Francisco Chaves Pinheiro e
Rodolfo Bernardelli ocuparam tambm lugares importantes tanto na re-
tratstica oficial do Imperador quanto na execuo de bustos e esttuas de
figuras ilustres do perodo.
8
SCHWARCZ, 2008.
9
DIAS, 2011.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

234
Alm dos brasileiros, os estrangeiros ocuparam tambm espao consi-
dervel, como veremos adiante.

Os artistas estrangeiros na Exposies Gerais

O levantamento inicial dos artistas estrangeiros presentes nas Exposi-


es Gerais foi feito, primeiramente, por meio do primeiro volume publica-
do por Carlos Maciel Levy em 1990, que diz respeito ao perodo de nossa
abordagem, isto , entre 1840 e 1884, com alguns intervalos em decorrn-
cias de fatos polticos ou de questes acadmicas. Em uma segunda etapa
futura sero contempladas as chamadas Notcias ou Catlogos das exposi-
es gerais em sua forma original - conservados nos arquivos da Escola de
Belas Artes da UFRJ, no Museu Nacional de Belas Artes e na Biblioteca
Nacional, conforme destaca Maciel Levy10 - verificando informaes que
podem ter sido suprimidas do catlogo, seja por repetio ou por espao.
de especial importncia ainda o artigo publicado por Donato Mello J-
nior nos Anais do Congresso de Histria do Segundo Reinado, na Revista
do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, editado em 1984, que traa
uma anlise aguada dos gneros expostos no perodo e da histria mesma
das exposies no perodo imperial.
Os dados recuperados nos levaram aos seguintes nmeros, ainda que
iniciais. Foram 26 exposies realizadas no perodo, verificando-se a pre-
sena de 72 artistas estrangeiros. Dentre estes, 44 so os artistas que apre-
sentaram obras com ou sem ttulo nas Exposies Gerais. certo, porm,
que o nmero corresponde a artistas cujas obras esto identificadas com
ttulos nos catlogos das exposies. Os artistas cujas obras so apenas
identificados como Retrato ou com iniciais dos nomes dos retratados so
28. Isto nos impede, em princpio, de analisarmos as representaes e sua
recepo, entre outros fatores, embora nos permita verificar a sua insero
no sistema artstico do Rio de Janeiro. Tambm se destaca que os 44 artistas
que apresentaram obras com ttulos nos catlogos participaram tambm
com obras sem ttulos ou com iniciais em outras exposies, o que am-
plia sua participao efetiva nas mostras brasileiras, sem contar ainda telas
de outros gneros apresentados, que fogem do escopo desta pesquisa. Eles
eram, em sua maioria, franceses, alemes, italianos e portugueses, realizan-

10
MACIEL LEVY, 1990.

Elaine Dias

235
do retratos para a famlia imperial e para o pblico em geral. Nesta seleo,
destacam-se os franceses Claude Joseph Barandier, Franois-Ren More-
aux e Auguste Petit, os alemes Ferdinand Krumholtz e Leopoldo Heck,
e o portugus Antonio Alves do Vale de Souza Pinto, entre muitos outros.
Nesta pesquisa que acaba de iniciar-se, gostaria de destacar finalmente,
para esta comunicao, um elemento interessante dentro do sistema
artstico. Trata-se da presena de proprietrios das telas de artistas
estrangeiros emprestadas Academia para as exposies gerais. Seus nomes
apareciam nos catlogos das exposies ao lado do nome dos artistas e das
obras. O primeiro um quadro de Ary Scheffer intitulado Retrato de sua
alteza real a Princesa de Joinville, de propriedade de D. Maria Antonia de
V. M. Da F, assim mencionado e exposto em 1844; uma tela de Claude
Joseph Barandier, Retrato de sua Majestade a Imperatriz, de propriedade
de dona Leopoldina de Werna Gusmo, exposto em 1848; uma pintura
de Bartolomeu Ramenghi, dito Bagnacavallo, intitulado Marquesa de la
Rovera, e de Domenico Zampieri, dito Domenichino, um retrato de Cardeal
Agucchi, ambos de propriedade do Comendador Souza Ribeiro, expostos
em 1859; duas telas de Rigaud intituladas Retrato de Greuze e Retrato de
um prncipe da igreja, de propriedade de J. G. Le Gros, exibidos tambm
em 1859; e algumas telas pertencentes Sua Majestade o Imperador, assim
denominadas, um retrato de sua Alteza o Prncipe Imperial, de Claude
Joseph Barandier; um Retrato de sua Alteza Real Senhora dona Francisca,
Princesa de Joinville, de Franois Meuret, expostos em 1844; um Retrato
de sua Alteza Senhora Princesa dona Isabel e um Retrato de sua Alteza a
Senhora Princesa dona Leopoldina, tambm de Claude Joseph Barandier,
exibidos em 1848; um retrato de V. Feckout intitulado Lord Wellington
em Waterloo, exposto em 1849; um quadro de Otto Grashoff, Retrato de
Fernando Magalhes, presente na mostra de 1859; e por ltimo o Retrato
de Ana de Lagrange na Opera Norma, de Louis Auguste Moreaux, de
propriedade da Academia Imperial de Belas Artes, oferecido por Andr
Pereira de Lima, assim denominado, exposto em 1860.
A coleo de artes do Imperador algo mais comum dentro da
Academia Imperial de Belas Artes. Antes dele, a famlia Real j havia
levado suas obras para formarem a coleo acadmica. D. Pedro II foi
um frequentador assduo das exposies, comparecendo nas aberturas,
comprando obras expostas e igualmente financiando viagens de artistas.
O emprstimo de obras para serem expostas servia no s para o incentivo

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

236
ao prprio emprstimo pela parte de outros, mas tambm para divulgar
sociedade os retratos da famlia imperial, confirmando o poder da corte de
d. Pedro II.
Os demais proprietrios, todos ainda em fase de pesquisa nas colees
e na imprensa da poca, mostravam nas exposies obras de outros gneros,
apresentando ao pblico uma coleo variada. A prtica do emprstimo
evidenciada nos catlogos mostrava no s a circulao destes artistas
estrangeiros e sua presena nas colees brasileiras, mas um exemplo a ser
dado sociedade, que podia igualmente iniciar suas colees comprando
obras expostas da Academia, desenvolvendo o mercado, incentivando o
gosto privado e garantindo o sustento aos artistas.
A pesquisa sobre os artistas estrangeiros que expunham suas obras
na Academia est apenas em sua fase inicial, e so muitos os caminhos
metodolgicos e as fontes documentais e visuais para entender o processo
de circulao de artistas, modelos e o desenvolvimento do gosto pblico e
privado no Brasil.

Bibliografia

Catlogo Memria Compartilhada: retratos na coleo do Museu


Histrico Nacional in Anais do Museu Histrico Nacional, RJ, volume
especial, tomo 35, 2003.
Debret, J.-B. Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil. So Paulo,
Braslia, Martins, INL. 1975.
DIAS, E. A representao da Realeza no Brasil: uma anlise dos retratos
de D. Joo VI e D. Pedro I, de Jean-Baptiste Debret in Anais do Museu
Paulista, So Paulo, v. 14, n.1, p. 243-261, 2006.
DIAS, E. Os Retratos de Maria Isabel e Maria Francisca de Bragana, de
Nicolas Antoine Taunay in Anais do Museu Paulista, v. 19, p. 11-43,
2011.
LEVY, H. Retratos coloniais in Revista do Servio do Patrimnio Histrico
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Maciel Levy, C., R.. Exposies gerais da Academia Imperial e da
Escola Nacional de Belas Artes, Perodo Monrquico. RJ, Ed. Pi-
nakotheke. 1990.

Elaine Dias

237
MIGLIACCIO, L. Sculo XIX. Catlogo Mostra do Redescobrimento
Brasil + 500. So Paulo: Fundao Bienal. 2000.
SCHWARCZ, L. O Sol do Brasil. Nicolas-Antoine Taunay e as
desventuras dos artistas franceses na corte de D. Joo. So Paulo, Cia
das Letras. 2008.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

238
colees e museus

Ciccarelli: paisagem em contradio

Valria Lima
Professora do Curso de Histria,
da Faculdade de Cincias Humanas da Universidade Metodista
de Piracicaba, So Paulo, Brasil.

Samuel Quiroga
Professor do Departamento de Artes,
da Facultad de Artes y Humanidades da
Universidad Catlica de Temuco, Chile.

Alessandro Ciccarelli (c. 1810, Npoles 1879, Santiago), com uma


produo presente em colees privadas e pblicas, o ponto de partida
adotado nesta comunicao para abordar acontecimentos do campo das
artes visuais da segunda metade do sculo XIX, no Brasil e no Chile. Este
artista controverso, menosprezado por durssimas crticas e protagonista
de conhecidas polmicas, foi causa de vrias disputas entre aqueles que o
apoiavam e os que o criticavam. A presena de sua obra em diversas colees
e publicaes que evidenciam o reconhecimento de seu trabalho motivam-
nos a colocar em discusso narrativas e peculiaridades em torno de sua
figura, a partir de vrios estudos apresentados em Jornadas anteriores1.
Alm disso, e de forma particular, pretendemos reavaliar sua produo
paisagstica e sua aparentemente paradoxal negao do ensino do gnero

1
Uma em 2006: Alegra L., Juan. Cicarelli y la construccin del discurso artstico chileno.
Martnez, Juan Manuel (ed.). Arte americano: contextos y formas de ver. Terceras jornadas de
Historia del Arte. Santiago: Rill editores, 2006. 167 - 176. E quatro em 2012: Guzmn,
Fernando y Juan Manuel Martnez (Editores). Vnculos artsticos entre Italia y Amrica.
Silencio historiogrfico. VI Jornadas de historia del Arte. Valparaso, 1 a 3 de agosto del 2012:
Lima, Valria. Da Itlia ao Continente Americano: Alessandro Cicarelli entre Brasil e
Chile. (pg.185 195). Zamorano Pedro. El discurso de Alejandro Cicarelli con motivo de
la fundacin de la Academia de Pintura: claves de un modelo esttico de raigambre clsica.
(pg.197 205). Richter, Marisol y Cynthia Valdivieso. La presencia del pintor italiano
Alejandro Cicarelli (ca. 1810 - 1879) en la Academia de Pintura en Chile: sus actividades
directivas. (pg.207 217). Y, De la Maza, Josefina. Duelo de pinceles: Ernesto Charton
y Alejandro Cicarelli. (pg.219 228).

239
no ambiente acadmico, considerando exposies2 que incluram quadros
do pintor.
Para alm de sua experincia no continente americano, esta comunicao
aponta urgncias no sentido de retomar de forma mais aprofundada as
relaes entre sua trajetria no Brasil e no Chile e sua formao europeia,
mais especificamente, sua produo no mbito napolitano da primeira
metade do sculo XIX. Se sua relao com a Corte dos Bourbon pode
colaborar para explicar a familiaridade com a famlia real brasileira e
com a dinmica artstica em um ambiente monrquico, sua experincia
acadmica italiana oferece pistas compreenso do modelo imposto
Academia de Pintura chilena, razo de sua vinda para o pas, em 1848,
no bojo dos programas reformistas republicanos levados a cabo durante
o governo de Manuel Bulnes. Ademais, foi em torno de sua atuao na
instituio acadmica que se produziram as j citadas polmicas e crticas
que envolveram o pintor napolitano, que se inventou diretor de academia
em 1849, momento da inaugurao da Academia de Pintura de Santiago.
Sua produo pictrica e os desdobramentos de sua gesto acadmica
alimentam a histria e a crtica de arte chilenas, indiciando um importante
captulo da cultura artstica local, com reflexos nos mundos da arte3 latino-
americanos, cujas idiossincrasias seguem demandando estudos para que o
fenmeno da circulao e atuao de artistas estrangeiros no continente
seja compreendido em toda a sua complexidade.
No Brasil, por motivaes bvias, a produo do pintor bem menos
numerosa do que aquela que se verifica no Chile, assim como a crtica que
se realizou ao seu trabalho. Residente na capital do Imprio entre 1843 e
1848, o pintor manteve um vnculo com a Corte e com a sociedade letrada
da poca que, at hoje, permanece em relativa obscuridade e desperta a
curiosidade dos estudiosos da cultura artstica brasileira. Tendo inaugurado
sua apario no meio artstico local com a participao na Exposio Geral
2
A incluso da obra Vista de Santiago desde Pealoln, exibida tanto em Territorios de Estado.
Paisaje y cartografa. Chile, siglo XIX, realizada no Museo Nacional de Bellas Artes de
Santiago, curada por Roberto Amigo, por ocasio da primeira Trienal de Chile, em 2009;
como em Puro Chile. Paisaje y Territorio, realizada no Centro Cultural La Moneda, curada
por Daniela Berger, Gloria Corts e Juan Manuel Martnez, em 2014. E da pintura rbol
seco, na mostra Centenario. Coleccin Museo Nacional de Bellas Artes 1910 2010, em 2010.
3
O termo mundo da arte aqui empregado no sentido que lhe conferido por Howard
Becker, em Los Mundos del Arte, 2008. O socilogo destaca, nesta obra, o aspecto coletivo da
criao artstica e focaliza a complexidade das redes sociais envolvidas no trabalho artstico,
para alm dos juzos estticos que lhes possam ser atribudos.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

240
de Belas Artes de 18434, logo aps sua chegada ao pas, o artista deixa poucas
obras de seu perodo brasileiro, destacando-se uma nica pintura histrica,
uma paisagem e alguns retratos de controversa qualidade5. Ainda assim,
sua curta permanncia e limitada produo sugerem instigantes reflexes a
partir da anlise de sua insero no contexto histrico e artstico da poca.
Tal investigao, porm, ressente-se da falta de documentos suficientes
para a identificao de sua real insero neste meio, com raras excees.
Alguns poucos documentos nos acervos do Arquivo Nacional do Rio de
Janeiro, do Museu Dom Joo VI e do Museu Nacional de Belas Artes
desta mesma cidade, escassas informaes museolgicas das instituies
que possuem obras do artista, bem como esparsas notcias na imprensa,
resumem a lista de fontes disponveis sobre o pintor no Rio de Janeiro.
Compndios e estudos sobre histria da arte brasileira concentram-se sobre
algumas de suas obras, nomeadamente a vista do Rio de Janeiro e a tela do
casamento dos monarcas, silenciando sobre aspectos mais reveladores de seu
desempenho na Corte carioca. A presente comunicao inicia, assim, um
esforo conjunto no sentido de recuperar a trajetria do artista napolitano,
a fim de problematizar a narrativa histrica e a crtica sobre os mundos da
arte latino-americana do sculo XIX.
No Brasil, Ciccarelli ocupa um lugar entre os pintores da Corte
imperial6, meio com o qual estaria j familiarizado, considerando sua
4
Nesta ocasio, expe Revista no Campo de Marte, uma cena histrica napolitana, exemplar
de sua produo italiana (cfr. Pereira Salas, 1992, pg.63), dois retratos e uma cena de gnero
intitulada Reunio de pescadores e mulheres cantando arieta napolitana ao luar. Sobre a mostra,
cfr. Mello Jr., Donato, As Exposies Gerais da Academia de Belas Artes no Segundo Reinado.
5
Casamento por procurao de S. M. Dona Teresa Cristina, 1846, o/t, 1,94 x 2,64 m, Museu
Imperial de Petrpolis; Vista do Rio de Janeiro, 1844, ol/t, 82,3 x 117,5 cm, Pinacoteca
do Estado de So Paulo; Retrato do Conde de Aljezur, 1848, ol/t, 92 x 73 cm; Retrato da
Viscondessa de Aljezur, s.d., 91 x 73 cm e Retrato do Desembargador Rodrigo da Silva Pontes,
1848, 86,5 x 66 cm, pertencentes ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de
Janeiro. Este ltimo fora executado em Montevideo, no momento da viagem do artista
rumo a Santiago.
6
Carlos Martins (Revelando um Acervo. Coleo Brasiliana. So Paulo: Bei Comunicao,
2000: pg. 9) sugere que o artista integrava a comitiva da Imperatriz Dona Teresa Cristina,
na funo de seu professor de desenho. Alguns autores indicam o ano de 1840 como o
momento da chegada do artista ao Brasil. Entre eles, Gonzaga-Duque (A Arte Brasileira,
Campinas: Mercado de Letras, 1995: pg.102), Roberto Pontual (Dicionrio de Artes
Plsticas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1969) e Q. Campofiorito (Histria
da Pintura Brasileira do Sculo XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983: pg.84). Segundo
Martins, porm, a verso mais aceita que teria sido convidado a acompanhar a imperatriz
d. Teresa Cristina como pintor de cmara e seu professor de pintura, tendo chegado ao Rio
de Janeiro em 1843.

Valria Lima & Samuel Quiroga

241
insero na Corte napolitana. Sua chegada est relacionada ao episdio
que trouxe para o Brasil a princesa Real das Duas Siclias, Dona Teresa
Cristina de Bourbon, casada por procurao com D. Pedro II, em Npoles.
Mesmo que o motivo exato de sua vinda seja ainda obscuro, importante
destacar que talvez tenha desempenhado um papel neste sentido o fato
de que Ciccarelli estivera em Roma como pensionista da academia, aps
vencer o concurso realizado em 1834. Tal experincia no currculo dos
artistas napolitanos significava um diferencial no momento das escolhas
dos comitentes e aproximava os ex-pensionistas dos interesses dos crculos
da Corte.7 Contando, portanto, com uma proximidade destes crculos,
Ciccarelli circulou, no Rio de Janeiro, entre a famlia imperial, os dignitrios
da Corte e a elite intelectual do pas. Travou contato com os estrangeiros
que visitavam ou se haviam instalado na capital carioca, sendo possvel
sugerir que tenha participado ativamente do meio artstico local, ainda que
poucos documentos o comprovem, no estado atual das pesquisas sobre o
artista, conforme ressaltado acima.
Inicialmente, a recepo de Ciccarelli no Rio de Janeiro, como se pode
apreciar em sua participao na Exposio Geral de Belas Artes em 18438,
foi favorvel. Pelo sucesso na mostra, recebeu de Dom Pedro II a insgnia
de Cavalheiro da Ordem de Cristo9 e, alguns anos depois, o encargo de
realizar uma tela do casamento real10, a qual no foi muito bem avaliada
pela crtica posterior11. Sua trajetria na cidade segue apagada pelas
fontes, emergindo apenas em dezembro de 1847, momento em que trava,
nas pginas da imprensa carioca, um duelo com um crtico annimo que
7
Stefano Susino aborda a formao dos artistas napolitanos em Roma em artigo do volume
Civilt dellOttocento. Cfr. Susino, 1997: pg. 88.
8
Cfr. Gonzaga Duque. A Arte Brasileira. Luiz Gonzaga Duque Estrada; introduo e notas
de Tadeu Chiarelli. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995: pg. 102-103.
9
Concedida em 8 de fevereiro de 1844. Cfr. Pereira Salas, 1992: pg. 64.
10
Segundo Pereira Salas, Dom Pedro II, por decreto de 31 de dezembro de 1846,
encomendou a Cicarelli uma grande tela de recordao de seu casamento com a imperatriz
Dona Teresa Cristina, na Capela Real de Npoles, com um honorrio de 4.000 contos. Cfr:
Pereira Salas, Eugenio, 1992, pg.64. Um ensaio interpretativo da obra encontra-se no artigo
de Lima, Valria. Alessandro Ciccarelli e a tela Casamento por procurao da Imperatriz D.
Teresa Cristina: um ensaio interpretativo. Oitocentos Arte Brasileira do Imprio Repblica.
Tomo 2. Org. Arthur Valle, Camila Dazzi. Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte,
2010, pg. 657 - 669.
11
O mesmo Gonzaga Duque, que resgatara crticas positivas s telas expostas em 1843,
reprova abertamente a tela do casamento dos monarcas. Cfr. Gonzaga Duque, Op. Cit.:
pg.103.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

242
reprovara o retrato do Imperador Dom Pedro II, executado por Monvoisin
e apresentado na Exposio Geral de Belas Artes de 1847.12 Logo aps este
episdio, apresentou-se a Ciccarelli a muito oportuna oferta do governo
chileno, que lhe props fundar e dirigir a Academia de Pintura na capital
do pas. O contrato foi assinado no Rio de Janeiro, em 18 de junho de 1848,
logo aps o que embarca o artista na fragata de guerra inglesa Gorgona,
rumbo a Valparaso, henchido con la meridional esperanza de poder
transformar a Chile en la Atenas de Amrica 13. Foi recebido em outubro
daquele ano em Santiago, por altos funcionrios civis e eclesisticos, bem
como pelo prprio Presidente da Repblica, o qual lhe ofereceu como ateli
uma sala do antigo Palacio de la Presidencia (atual Correo Central). 14
No Chile, a fundao da Academia de Pintura15 constituiu uma
estratgia para profissionalizar a criao artstica. Seu objetivo era instalar,
no imaginrio coletivo, a ideia de nao independente, desgnio ao qual
Ciccarelli iria se dedicar, valendo-se de sua formao neoclssica, onde as
novas ideias romnticas no tinham espao relevante.16 Esta opo tem sua
razo de ser no fato de que a elite local buscava recriar, ainda que em contexto
muito distinto, uma tradio e cultura alheias17, aderindo a formas artsticas
que focalizavam mais o prestgio social do que um desenvolvimento cultural
que fosse o resultado da reflexo e assimilao do fenmeno artstico como
tal18. Essa matriz inicial apoiou-se em uma base poltico-social que adotou
um ideal esttico estrangeiro, mas que evidentemente no esteve isento de
crticas e resistncias.
O discurso de Ciccarelli na inaugurao da Academia, segundo
Roberto Amigo, estabelece um primeiro parmetro para a compreenso
12
Sobre este duelo na imprensa, ver: Santos, Francisco Marques dos; James, David.
Raimundo Augusto Quinsac Monvoisin. Anurio do Museu Imperial, 1946, pg. 29-50.
13
Pereira Salas, Op. Cit: pg. 64 - 65.
14
Pereira Salas, idem.
15
Desde sua fundao, em 1849, Alessandro Ciccarelli (1810-1879) dirige a Academia
por vinte anos, com uma orientao classicista; posteriormente, Ernesto Kirchbach (1832
- 1880) sucede-o, desde 1869 at 1875, sem grandes mudanas na orientao do ensino que
a instituio aplicava. Somente a partir de Giovanni Mochi (1831 - 1892), que ocupou o
cargo de diretor de 1876 a 1881, que se inaugura uma flexibilidade at ento desconhecida,
voltada ao aperfeioamento das aptides naturais dos alunos. Cfr. Galaz e Ivelc, 1981: pg.
81-82; Cruz de Amenbar, 1984: pg.168.
16
Alegra, Op. Cit.: pg.174.
17
Cruz de Amenbar, Op. Cit.: pg.168.
18
Ivelic, 2000.

Valria Lima & Samuel Quiroga

243
do territrio de Chile como idealizao19 da paisagem. Ainda assim, no
estavam colocadas as possibilidades, no contexto em questo, de fazer da
natureza, e de sua representao, cones das propostas polticas associadas
s reformas das quais a Academia de Pintura fazia parte. Se, em outros
contextos, diretamente associados trajetria de Ciccarelli,20 a pintura de
paisagem assumiu a tarefa de comemorar a poltica oficial e ganhou um
estatuto que lhe permitia ser a traduo de seus projetos, o mesmo no
parece ter sido possvel em solo chileno. A Academia de Pintura seria, no
bojo das reformas republicanas, a evoluo lgica de uma das reas abertas
pelo ensino de desenho, sendo este o suporte tcnico fundamental do
progresso. Em seu interior, portanto, imperariam as orientaes normativas
e os esforos empreendidos por seu diretor no sentido de garantir o sucesso
da instituio, traduzido pela fidelidade tradio clssica e ao compromisso
com os valores vigentes. Neste sentido, podemos sugerir que Ciccarelli
reconhecia vlidas para sua gesto na instituio americana os preceitos
orientadores do estabelecimento no qual se formara. Os estatutos do Reale
Istituto di Belle Arti de Npoles, vigentes a partir de 1822 e ainda vlidos no
momento da passagem de Ciccarelli pela instituio, determinavam que a
instituio visava proteggere stabilmente la istituzione della giovent nelle
arti del disegno con quei mezzi che lesperienza di tutti i tempi ha fatto
conoscere i pi propri a formare valenti artisti, a perfezionare e diffondere
nel pubblico il buen gusto21 No difcil encontrar uma clara ressonncia
destas orientaes no discurso pronunciado por Ciccarelli na abertura
da Academia de Pintura, onde enfatiza a importncia da fidelidade aos
cnones clssicos e o compromisso dos jovens artistas formados no interior
desta tradio com a elevao das artes e do bom gosto.22 Na academia

19
Cfr. Amigo, 2009: pg. 171. O autor emprega o termo ideologizacin, o qual no possui
traduo direta para o idioma portugus. Optamos pelo termo idealizao, uma vez que
o sentido desejado o de adequar o sistema real (paisagem chilena) ao sistema ideal (Belo
ideal, da tradio clssica), contemplando um dos componentes das ideologias, qual seja, o
de apresentar-se como um programa de ao.
20
Referimo-nos ao papel da pintura de paisagem na corte de Ferdinando IV, rei de Npoles,
atravs da atuao de Jakob Philipp Hackert (1737-1807) e na corte bragantina no Rio de
Janeiro, com Nicolas Antoine Taunay (1755-1830). Sobre o assunto, ver importante ensaio
de Luciano Migliaccio, 2008.
21
Citado em Spinosa, 1997: pg. 65.
22
A. Ciccarelli. Discurso pronunciado na abertura da Academia de Pintura, em 1849.
Disponvel em: http://www.mac.uchile.cl/catalogos/anales/cicarelli.html. Acesso:
01/03/2015.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

244
italiana, tais preceitos alimentavam um Neoclassicismo cada vez mais
comprometido com a poltica oficial, de tendncia progressivamente
conservadora nos anos 1830-40, traduzindo a ideologia da elite dominante
atravs de uma iconografia celebrativa e de uma tipologia figurativa de
forte inspirao davidiana. no interior deste quadro que talvez fique
mais claro compreender as opes de Ciccarelli diante do compromisso
de fazer as artes servirem ao progresso na jovem nao republicana do
Chile. Explicaria, talvez, a aparente contradio entre o que assinala Amigo
sobre o papel da paisagem local em seu discurso e a conhecida oposio de
Ciccarelli ao ensino da paisagem, uma vez que para ele tinha mais valor o
desenho modelado da pintura de histria e da pintura religiosa23.
Ciccarelli iniciara sua formao artstica no Reale Istituto di Belle
Arti de Npoles, e depois continuou seus estudos em Roma, onde os
pensionistas eram submetidos a um forte rigor normativo, sob a direo
de Vincenzo Camuccini (1771-1844). Ao privilegiar os temas antigos,
fossem eles histricos, bblicos ou mitolgicos, Ciccarelli evidencia aquela
formao. Em sua prtica docente, seu objetivo era despertar nos alunos o
entusiasmo e o fervor por esses temas, como fica demostrado nos ttulos
de suas obras: David dando muerte a Goliat, Muerte de Abel e Filcteles.24 Na
Itlia, o Neoclassicismo resistia mais do que em outros centros europeus aos
inevitveis contgios romnticos, ainda que os anos 1830-40 tenham sido
de forte clima romntico e religioso em Npoles, inspirando uma pintura
de forte evocao sentimental, como afirma Luisa Martorelli.25
A recepo direo de Ciccarelli e sua postura frente pintura de
paisagem foi problemtica. Como exemplo, Antonio Smith aluno da
Academia ao no aceitar a rigidez da formao que aquele instala na
instituio, afasta-se dela em 1851. O prprio Smith, nas pginas da revista
El Correo Literario26 de 1858, publica uma cida caricatura de Ciccarelli,
crtica que ativou os sentidos no meio artstico. No ano seguinte, outra vez
atravs da imprensa, Ernesto Chartn envolveu-se em acesa polmica com
o diretor da Academia27.

23
Amigo, 2009: pg.176.
24
Galaz e Ivelc, Op. Cit.: pg. 76 77.
25
Cfr. Martorelli, 1991.
26
Revista El Correo Literario. Santiago, Ao I, N8, 04 de septiembre de 1858.
27
Cfr.: De la Maza, 2012: pg. 219 - 228.

Valria Lima & Samuel Quiroga

245
preciso destacar que, no Chile da poca, entre pintores e estudiosos
da arte o gnero da paisagem contava com uma avaliao favorvel, distinta e
inclusive oposta que Ciccarelli impunha Academia de Pintura. Do conta
desta avaliao a produo dos artistas viajantes e dos pintores vinculados
ao ateli de Antonio Smith, as publicaes de Marcial Gonzlez28 e de
Vicente Grez29, e os prmios outorgados em diversos concursos realizados
em Santiago durante a segunda metade do sculo XIX30. Ao contrrio, a
Academia, valendo-se efetivamente de sua funo diretiva no campo das
artes visuais, impunha uma hierarquia de gneros segundo a qual a paisagem
foi relegada por ser considerada de escasso valor na formao artstica.
Levando em conta estes antecedentes, chama nossa ateno constatar que
as paisagens de Ciccarelli constituam, apesar de seu reduzido nmero, um
significativo aspecto de sua caracterizao no continente, seja no Brasil ou
no Chile. Diante disso, poderamos nos perguntar o seguinte: no Chile, a
postura de Ciccarelli frente pintura de paisagem contraditria? Seria-o
tambm no Brasil? Ou esta polmica apenas um mito construdo pelas
narrativas? Por fim, se considerava a paisagem um gnero menor, por qual
razo decidiu pint-lo?
curioso pensar que a nica paisagem conhecida de Ciccarelli no
Brasil tenha se transformado em forte marca identitria de sua atuao
no meio artstico local, facilitando sua incluso na assim denominada
iconografia de viajantes. Rio de Janeiro [Fig. 01], obra assinada e datada
(Eque. Ciccarelli Rio 1844), apresenta uma vista da baa e de seu entorno,
construda na chave clssico-romntica que tanto caracteriza as obras de
artistas estrangeiros atuantes no Brasil neste perodo. O rigor do desenho
no impede a emergncia de tonalidades e artifcios compositivos de forte
evocao sentimental. Ainda assim, a diversidade pitoresca da cena, que
rene as plcidas guas da baa, um recorte da cadeia de montanhas que
envolve a cidade, elementos da flora local e a presena do homem inserido
na paisagem, submete-se cuidadosa ordenao que Ciccarelli lhe impe,
fiel aos princpios que o haviam orientado na Itlia. A obra foi adquirida
em 1996 pela Fundao Rank-Packard/Fundao Estudar, aos herdeiros
28
Gonzlez, Marcial. Los pintores chilenos. El paisaje. En: El Correo de la Exposicin, Ao
I, N 4, 23 de octubre de 1875, pg. 57 - 59.
29
Grez, 1882.
30
Especificamente, os concursos de pintura: a Exposicin de Pinturas de la Sociedad de
Instruccin Primaria (1867), a Primera Exposicin de Artes e Industrias (1872) e la Exposicin
Internacional (1875).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

246
da coleo privada do antiqurio de origem russa, estabelecido em Paris
nos anos 1920, Jacques Kugel. Em 2007, foi doada Pinacoteca do Estado
de So Paulo e encontra-se em exposio permanente nas salas do museu.
Desperta igualmente ateno e curiosidade o fato de que esta obra
possua duas outras verses em instituies no Brasil e nos Estados
Unidos. Vista do Rio de Janeiro [Fig.02], leo no assinando nem datado,
pertence ao acervo do Instituto Ricardo Brennand, na cidade do Recife.
Possui dimenses um pouco menores do que a tela da Pinacoteca e,
segundo informaes do Instituto31, estivera guardada por algum tempo na
instituio paulistana, antes de seguir para a capital pernambucana. Quanto
sua origem, ao contrrio da maioria das obras de paisagem que integram
hoje o acervo Brennand, oriundas da coleo da Cultura Inglesa, Sir Henry
Joseph Lynch, a verso da paisagem de Ciccarelli teria chegado ao Instituto
pelas mos de Mario Fonseca ou de Max Perlingeiro32.
A outra verso de que temos notcia encontra-se na Coleo Patricia
Phelps de Cisneros, em Nova Iorque. Intitulada Vue de Rio de Janeiro
depuis lle de Cobras [Fig. 03], a obra est atribuda a Raymond Quinsac
de Monvoisin (1790, Bordus 1870, Bolonha-sobre-mar), com datao
aproximada entre 1848-1857. A Fundao Cisneros tem origem na
Venezuela e foi criada nos anos 1970, com sede em Nova Iorque e Caracas.
Vue de Rio de Janeiro depuis lle de Cobras faz parte da coleo Paisagens das
Amricas, uma das cinco divises do acervo da Fundao. A obra, pelo que
permite ver a reproduo de que dispomos, de fato uma verso da tela da
Pinacoteca, porm, com indiscutvel inferioridade tcnica e com elementos
distintos da paisagem original.
O interesse de Ciccarelli pela pintura de paisagem, logo aps sua chegada
ao Brasil, pode estar relacionado crtica positiva endereada a seu Reunio
de pescadores e mulheres cantando arieta napolitana ao luar, cena de gnero
combinada paisagem, na qual, considerando descries contemporneas
da obra, o artista parece explorar efeitos comuns a certa tendncia da pintura
de paisagem napolitana no contexto de onde partira, onde era comum o
recurso a noturnos em claro de luar33. Alm disso, o ambiente favorvel ao
registro da natureza local, que atraa e ocupava os pincis estrangeiros nos
31
Hugo Coelho Vieira, Ncleo de Pesquisa e Documentao do Instituto Ricardo Brennand,
2012.
32
Respectivamente, antiqurio carioca e editor e empresrio cultural.
33
Cfr. Martorelli, Op. Cit.

Valria Lima & Samuel Quiroga

247
anos 1840, parece tambm t-lo convencido das vantagens de dedicar-se ao
gnero. Vale mencionar, nesse sentido, a observao de Manuel de Arajo
Porto-Alegre, que em artigo na Minerva Brasiliense sobre a Exposio de
1843, elogia a participao dos artistas estrangeiros que vieram residir em
nossa ptria: sejam elles sempre bemvindos, venham elles, em troco da
fortuna que procuram, illustrar este povo hospitaleiro, e sem prejuzos.34
Uma das primeiras paisagens que Ciccarelli provavelmente realizou
no Chile foi Reconstruccin del Fuerte Bulnes [Fig. 04], imagem capturada
durante sua passagem pelo Estreito de Magalhes, quando se dirigia do
Brasil a Valparaso, da qual apenas vimos uma reproduo35; a respeito
desta imagem, comenta Eugenio Pereira Salas que ensea de la soberana
chilena en el extremo austral, grupos de patagones, aves y animales de la
regin magallnica, los que tienen una frescura difcil de encontrar en la
pintura a veces engolada y artificiosa de este artista neoclsico.36
Vista de Santiago desde Pealoln (1853)37 [Fig. 05] um de seus
quadros mais conhecidos , consiste em uma paisagem-autorretrato que
fez parte das mais importantes exposies realizadas nos ltimos anos,
em Santiago38. Tambm circulou pelo mercado de arte Recodo de ro 39
[Fig. 06], paisagem que, em 2009, esteve venda na Casa de Remates Jorge
Carroza. Por fim, no podemos deixar de mencionar que El rbol seco40
[Fig. 07], que geralmente includo na categoria de paisagem, em nossa
opinio no passa de um estudo de elementos da paisagem, e que, por esse
motivo, no seria uma obra acabada. Ainda assim, em que pese o mistrio
que envolve sua realizao, no se pode deixar de reconhecer a qualidade
destacvel desta obra, o mesmo sendo justo afirmar a respeito de Recodo del
ro. Perguntaramos, ento, qual seria a justa avaliao e considerao deste
gnero de pintura para o diretor, para quem, segundo as crticas e narrativas
historiogrficas, a fidelidade aos princpios do Neoclassicismo seria a
34
Minerva Brasiliense. Jornal de Sciencias, Letras e Artes. Publicado por huma Associao de
Litteratos. Rio de Janeiro, Typographia de J.E.S.Cabral, Rua do Hospcio, n. 66. (quinzenal).
15 dezembro 1843, pg. 118 (grifos nossos).
35
Sitio web: Memoria chilena, consultado em 18 de fevereiro de 2015. http://www.
memoriachilena.cl/602/w3-article-70542.html
36
Pereira Salas, Op. Cit.: pg. 64 - 65.
37
leo sobre tela, 73 x 92 cm. Coleo do Banco Santander, Chile.
38
Ver nota N4.
39
leo sobre madeira, 32,5 x 40 cm. Assinado. Coleo particular.
40
leo sobre tela, 39 x 36 cm. Coleo do Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

248
exclusiva conduta a ser seguida na instituio, a fim de que os propsitos
de uma formao para a cidadania fossem plenamente alcanados no Chile
republicano.
Nesta comunicao quisemos contrastar narrativas construdas a partir
de espaos culturais nos quais circulou Alessandro Ciccarelli. O recorte
privilegiado nesta oportunidade a pintura de paisagem produzida por
Ciccarelli insere-se em um projeto de investigao que pretende, a partir
do levantamento de arquivos e da elaborao de um catlogo raisonn,
colocar em dilogo incoerncias e contradies presentes nas narrativas
elaboradas a partir da figura de Alessandro Cicarrelli, com o objetivo de
construir um relato que considere fontes dispersas na Itlia, Brasil e Chile.

Valria Lima & Samuel Quiroga

249
Fontes e Referncias Bibliogrficas

Alegra L., Juan. Ciccarelli y la construccin del discurso artstico chileno.


Martnez, Juan Manuel (ed.). Arte americano: contextos y formas de ver.
Terceras jornadas de Historia del Arte. Santiago: Rill editores, 2006,
pg.167 - 176.
Amigo, Roberto. Territorios de Estado. Paisaje y cartografa. Chile, siglo
XIX. Escobar, Ticio. Trienal de Chile 2009. Catlogo. Santiago, 2009,
pg. 171 - 177.
Becker, Howard S. Los Mundos del Arte. Sociologa del trabajo artstico.
Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2008.
Centro Cultural La Moneda. Puro Chile, Paisaje y territorio. Santaigo, 2014,
Curadores: Daniela Berger Prado, Glora Corts Aliaga y Juan Manuel
Martnez.
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Valria Lima & Samuel Quiroga

251
Figura 1
Alessandro CICCARELLI -
Rio de Janeiro.1844.
leo sobre tela;
82,3 x 117,5 cm.
Pinacoteca do Estado de So Paulo.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

252
Figura 2
Alessandro CICCARELLI (atrib.)
Vista do Rio de Janeiro. s.d.
leo sobre tela;
65 x 88 cm.
Pinacoteca do Estado de So Paulo.

Valria Lima & Samuel Quiroga

253
Figura 3
R. Q. MONVOISIN (atrib.)
Vue de Rio de Janeiro depuis lle de Cobras. s.d.
leo sobre tela;
65 x 88 cm.
Coleo Patricia Phelps de Cisneros, Nova Iorque.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

254
Figura 4
Alessandro CICCARELLI
Reconstruccin del Fuerte Bulnes. s
(reproduo disponvel em:
http://www.memoriachilena.cl/602/w3-article-70542.html .
ltimo acesso: 06/03/2015).

Valria Lima & Samuel Quiroga

255
Figura 5
Alessandro CICCARELLI -
Vista de Santiago desde Pealoln. 1853
leo sobre tela;
73 x 92 cm.
Coleo do Banco Santander, Chile.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

256
Figura 6
Alessandro CICCARELLI -
Recodo de ro.s.d.
leo sobre tela;
32,5 x 40 cm.
Assinado. Coleo particular.

Valria Lima & Samuel Quiroga

257
Figura 7
Alessandro CICCARELLI -
El rbol seco.s.d.
leo sobre tela;
39 x 36 cm
Coleo do Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

258
colees e museus

O colecionador portugus Luiz Fernandes


e a doao de obras para o acervo
da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Maria do Carmo Couto da Silva


Doutora em Histria da Arte.
Ps-doutoranda em Histria da Arte FAU-USP

O acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro


(RJ), fundado por Lei Federal n. 378, em 1937, um dos mais ricos em
termos de arte oitocentista em nosso pas. Grande parte de sua coleo foi
constituda em estreita ligao com a atividade de professores e diretores
da Academia Imperial de Belas Artes e posteriormente da Escola Nacional
de Belas Artes - ENBA, por meio da criao de uma galeria de obras de
arte pertencente quela instituio, que depois passou a constituir o acervo
do Museu.
Para o nosso ps-doutorado partimos de pesquisa realizada em nossa
tese de doutorado1 sobre a gesto de Rodolfo Bernardelli na direo da
Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, entre 1890 e 1915. No
captulo quatro da tese foi comentada a importncia dada pelo diretor
aquisio de obras de artistas contemporneos ainda vivos para a Galeria
da Escola.
Outro aspecto importante para a constituio do acervo ao longo do
sculo XIX foi a doao feita por colecionadores, com obras de artistas
estrangeiros que deveriam preencher lacunas existentes em relao arte
internacional oitocentista.2 O assunto foi apontado pioneiramente pelo
historiador Paulo Knauss em estudo recente:
1
SILVA, Maria do Carmo Couto da. Rodolfo Bernardelli, escultor moderno: anlise da produo
artstica e de sua atuao entre a Monarquia e a Repblica. Campinas, SP: [s. n.]. Tese de Dou-
torado em Histria da Arte, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas/UNICAMP, 2011.
Disponvel em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000785279.
Acesso em 15 maio 2012.
2
VALLE, Arthur. Consideraes sobre o Acervo de Pintura Portuguesa da Pinacoteca da
Escola Nacional de Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Dispon-
vel em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/portugueses_enba.htm>. Acesso em 05 maio
2012.

259
No Rio de Janeiro, ao longo do sculo XIX tambm se organizaram
outras grandes colees particulares de arte significativas, com a
especificidade da nfase na arte estrangeira. (...) Especialmente o
perodo do Segundo Reinado e das primeiras dcadas da Repblica
ficaram marcadas pelos colecionadores de arte e pintura europia. O
Museu Nacional de Belas possui acervo originado de colecionadores
importantes, que contriburam para a afirmao da pinacoteca da
antiga Escola Nacional de Belas Artes. Antes de seu falecimento
Salvador de Mendona j havia contribudo com doaes
instituio oficial de promoo das artes. Em 1922 foi a vez da viva
do Baro de So Joaquim cumprir o desejo do falecido marido,
doando 64 obras pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes,
na maioria pintura a leo, alm de desenhos e aquarelas europias.
Destacam-se no lote vinte pinturas de Eugne Boudin e criaes
de influncia impressionista como de Alfred Sisley, alm de obras
mais antigas como uma tela de Brueghel de Velours ou um David
Teniers, do sculo XVII. Do universo social do Imprio do Brasil
emergiu igualmente a coleo do Conde de Figueiredo, conhecida
por 38 pinturas doadas ENBA. Desse conjunto, possvel
considerar tambm a articulao estabelecida com a instituio
oficial das artes. Isso significa dizer que os colecionadores, atravs
de suas doaes, fortaleciam a referncia institucional do campo
artstico.3

Em nossa pesquisa levantamos a doao de diversos colecionadores


ao Museu Nacional de Belas Artes. Cada um deles necessitaria de uma
pesquisa particular sobre sua trajetria e interesses. Entre todos eles, pela
importncia da coleo doada em termos de arte portuguesa do sculo XIX,
demos prioridade na pesquisa a Luiz Fernandes.
Nascido na Bahia em 1859, tendo morrido em Paris em 1922, Luiz
Fernandes foi um homem de grande cultura e um dos mais importantes
colecionadores portugueses. Seu pai era portugus e a me baiana. A famlia
viveu um tempo no Brasil, transferindo-se para Portugal por motivo de
sade de seu pai, que faleceu em 1879, deixando ao filho de vinte anos
grande patrimnio. Luiz Fernandes viajou pelo mundo com me, onde teve
contado com centros de arte e museus. Nessa poca iniciaria uma grande
coleo de xcaras, gosto que manteve at o fim de sua vida.

3
KNAUSS, Paulo. O cavalete e a palheta. A prtica de colecionar no Brasil. Disponvel em:
http://www.historia.uff.br/labhoi/files/May07HQ6_MUcT_cavalete_paleta.pdf. Acesso
em 03/04/2011. Grifo nosso.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

260
Aps sua morte, seu acervo de xcaras, de partituras musicais e obras de
arte foi dividido entre o Museu de Arte Contempornea de Lisboa (Museu
das Janelas Verdes), Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e
Instituto Histrico e Geogrfico da Bahia. A galeria da Escola Nacional de
Belas Artes recebeu dessa forma uma importante coleo de obras de arte,
que inclua quadros e esculturas de artistas portugueses do final do sculo
XIX e do comeo do XX.
Em nossa pesquisa de ps-doutorado encontramos um nico livro
que comenta a sua biografia, publicado em 1923 como uma forma de
homenagem por seu pertencimento a Grupo de Amigos do Museu Nacional
de Arte Antiga.4 O texto que abre a publicao de Jos de Figueiredo,
primeiro diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, que menciona o
grande interesse de Luiz Fernandes em colecionar de cermicas e partituras
musicais, temas dos quais se tornaria grande conhecedor. O autor tambm
comenta a formao de uma biblioteca grande, doada posteriormente ao
Museu Nacional de Arte Antiga. Temos dessa forma um primeiro perfil
do colecionador Luiz Fernandes, homem de grande cultura, que possua
um grande interesse pelas cermicas de diversas pocas, e um intelectual de
contato intenso com a cultura brasileira, em especial, por sua vivncia em
Paris nos ltimos anos do sculo XIX, quando se encontrava na cidade um
grande ncleo brasileiro e portugus de artistas, colecionadores e escritores,
cujo centro era a casa de Eduardo Prado.5
interessante observarmos tambm o perfil das personalidades que
prestaram homenagem a Luiz Fernandes: um exemplo a pintora Fanny
Munr, uma das poucas mulheres a se destacar no cenrio das artes
do final do sculo XIX e incio do XX em Portugal. H tambm, entre
outras, a homenagem do poeta Affonso Lopes Vieira, escritor ligado ao
neogarretismo e Renascena Portuguesa. Outro autor que demonstrou
grande amizade por Fernandes foi o jornalista Alfredo da Cunha, diretor
do Dirio de Notcias e da Tipografia Universal de Lisboa. O texto de Cunha
refora o interesse do amigo pela criao e preservao de instituies
museolgicas em Portugal no comeo do sculo XX.
4
IN MEMORIAM Luiz Fernandes / homenagem dos Amigos do Museu Nacional de
Arte Antiga. Lisboa: Amigos do Museu de Arte Antiga, 1923.
5
MIGLIACCIO, Luciano. Entre Lisboa, Paris e o Rio de Janeiro. Para o estudo das re-
laes artsticas entre portugal e brasil na segunda metade do sculo XIX. In: VALLE, A.,
DAZZI, C; PORTELLA, Isabel (org.). Oitocentos: intercmbios culturais entre Brasil e
Portugal tomo 3. Seropdica: Ed. Da UFRRJ, 2015, p.267.

Maria do Carmo Couto da Silva

261
Ao longo de sua vida, ele dedicou-se especialmente a dois projetos: ao
do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e ao do Museu da Grande
Guerra, em Paris, em memria da Primeira Guerra Mundial, do qual ele
organizou a seo portuguesa.
Luiz Fernandes corresponde a um perfil de colecionador que conhece
profundamente o seu acervo, chegando a manter amizade o curador do
Muse du Louvre na rea de cermica. Jos de Figueiredo comenta que:

para Luiz Fernandes os livros de crtica e histria da arte no


eram apenas o complemento da obra de arte em si mesma e o seu
comentrio inteligente e valorisador, mas antes o melhor da sua
prpria alma, pois, profundamente culto e essencialmente cerebral, a
obra de arte valia sobretudo para ele pelo que as geraes sucessivas
de seus comentadores lhe tinha ido, pouco a pouco, acrescentando.6

Luiz Xavier da Costa, mdico de Fernandes recorda a maneira como a
sua casa se constitua como um verdadeiro museu com peas de diferentes
perodos histricos, da porcelana requintada ao artesanato do Extremoz.
Ele relata que o colecionador teria uma forma diversa de apresentar seus
quadros aos visitantes:

E quadros admirveis de Columbano, em vez de suspensos ao longe


nas tapearias das paredes, eram comodamente expostos nossa
contemplao em pequenos cavaletes, sobre os bufetes dourados do
salo.7

A coleo de pinturas e desenhos doada por Luiz Fernandes a Galeria


da Escola Nacional de Belas Artes basicamente composta por pintores do
realismo francs e artistas do romantismo e realismo portugus. Segundo
J. de Mello Viana ele manteve contato com muitos brasileiros em Lisboa
e Paris, considerava o Brasil a sua ptria e orgulhava-se do prodigioso
desenvolvimento da grande republica transatlntica, que visitar algumas
vezes 8. Ele seria muito amigo de Manoel de Souza Pinto, escritor e

6
Ibid: pg.9.
7
Ibid: pg 44.
8
Ibid: pg 37.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

262
professor da Cadeira de Estudos Brasileiros na Faculdade de Letras de
Coimbra que divulgava a literatura brasileira em universidades portuguesas.
O acervo de Luiz Fernandes no que se refere arte portuguesa de
sua poca muito significativo. Ressaltamos em sua doao as paisagens
de Adolfo Greno e Alfredo Keil e podemos destacar na coleo retratos
interessantes, como o da pintora Josefa Greno, feito por Adolfo Greno.
H tambm alguns esboos e paisagens de Silva Porto e os belssimos
Cabea de menina (s.d) e Porto Vermelho (s.d.). O crtico Ramalho
Ortigo, que foi um dos grandes admiradores das paisagens portuguesas
de Silva Porto, permite compreende-las sob o vis de um nacionalismo
nascente: h essa profunda luz extraordinariamente brilhante, de uma
palpitao intensa, que envolve to caracteristicamente as margens do Tejo,
banhando de um esplendor radiante as colinas que o cercam.9 Alm disso,
por meio da vegetao representada pelo artista que se sente o clima e a
geografia caractersticas de Portugal:

o cheiro do torro. bem aquela a regio dos pomares com as suas


rvores pequenas, rolias, bem aparadas, as pereiras e o pecegueiros
na encosta abrigados do vento norte, os limoeiros em trepadeira
acholchetados ao muro. bem aquela a regio das hortas ajardinadas,
com os talhes de couve e os caniados de feijo, debruados de
roseiras, de dlias e de moitas de alfasema, sobre as quais adejam os
zumbidos das abelhas e as esfusiadas turtuosas das borboletas cor
de palha.10

A doao das obras de artistas do Grupo do Leo ligados representao


dos costumes do povo e da paisagem portuguesa, como no esboo Mulher
montada sobre um burrinho (s.d.), de Silva Porto, assinalam a proximidade
intelectual entre Luiz Fernandes e as propostas dos professores e alunos da
Escola Nacional de Belas Artes a partir da dcada de 1890, em que vemos
diversas tipologias de representaes do Brasil sendo apresentadas nas
Exposies Gerais de Belas Artes. Nas mostras da Escola de 1894 e 1895
comeamos a notar uma presena cada vez mais forte de temas relativos
histria nacional, situao social ou aos costumes brasileiros, como
Almeida Jnior com as telas Partida da Mono e Caipira pitando (1893);

9
RAMALHO Ortigo. Arte Portuguesa. Lisboa: Livraria Clssica Editora, 1947, p.43.
10
Ibid: pg. 43

Maria do Carmo Couto da Silva

263
Modesto Brocos com A redeno de Cam (1895), Mulatinha e Garimpeiros;
e Pedro Weigartner com os quadros Vendedor de queijos, Corridas no Rio
Grande e Piquete de cavalaria; ou Angelo Agostini com Atravs das matas,
representando um trecho de mata, com uma linha frrea e umas figuras de
ndios.11
Uma outra pea a destacar na coleo Luiz Fernandes Lio de
Violino (1895), de Jos Malhoa, representando uma cena de gnero do
sculo XVIII, muito em voga nos sales parisienses do final do sculo XIX,
estimuladas por mercadores de arte como Goupil.
Por outro lado a coleo de obras em papel doadas Escola Nacional
de Belas Artes possui muitas obras de artistas franceses, alm de alguns
trabalhos de Domingos Sequeira, Miguel Lupi e de artistas do Grupo do
Leo, como Francisco Villaa e Adriano Lopes Vieira. Foram doadas ainda
duas caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro, uma delas representando
provavelmente Rui Barbosa e com crticas poltica do Encilhamento.
A proposta de preservar as caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro em
um museu bastante interessante e afirma a nova dimenso que a Galeria
da ENBA assumiu na segunda metade do sculo XX. Tratava-se de um
artista que teve grande destaque tambm na imprensa brasileira.12
A doao feita Escola Nacional de Belas Artes em termos de
escultura torna-se ainda mais representativa se lembrarmos que a cidade do
Rio de Janeiro possui destacados trabalhos de Teixeira Lopes, como as trs
portas da Igreja de Nossa Senhora da Candelria, possuindo ainda algumas
outras obras em alguns museus brasileiros. As obras de Teixeira Lopes do
acervo do MNBA esto entre as mais importantes de sua produo.
Para Luciano Migliaccio a grande porta de bronze executada pelo
artista portugus para a Catedral de Nossa Senhora da Candelria constitui
um verdadeiro marco para a renovao da arte religiosa no Brasil, a partir
de sugestes simbolistas, amplamente adotadas no meio local.13 Por volta
de 1900 o escultor Teixeira Lopes j era bem conhecido no Brasil. Um
artigo publicado na Gazeta de Notcias14 sobre o Salo de Paris ressalta
11
NOTAS sobre arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1895, p.2.
12
MALTA, Marize. Jarra Beethoven e a incrvel histria de uma imagem-problema. ArtCul-
tura, Uberlndia, v. 12, n. 20, p. 135-150, jan.-jun. 2010.
13
MIGLIACCIO, Op. Cit: pg.274.
14
CASTRO, Luiz de. BELLAS ARTES. Gazeta de Notcias, Rio de Janeiro, 16 jul. 1990,
p.1.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

264
a participao do artista portugus naquela mostra e menciona o livro
publicado por Antonio Arroyo: Soares dos Reis e Teixeira Lopes: estudo crtico
da obra dos dous esculptores portuguezes precedido de pontos de vista esthetico,
que comentava sua obra.
Em 1901 ocorreu a inaugurao das portas da Igreja da Candelria
no Rio de Janeiro. As obras, encomendadas a Teixeira Lopes em 1898,
foram fundidas em bronze em Paris e expostas na Exposio Universal de
1899. Segundo artigo publicado na Gazeta de Notcias, o escultor portugus
foi responsvel pelo projeto e execuo das novas portas em bronze, que
substituiriam anteriores, em madeira. Os jornais cariocas comentaram os
dois principais motivos dessa escolha: atender a magnificncia do templo
e ligar o nome de um artista da terra amiga a um projeto monumental
nacional.15 A obra, que seria um dos maiores trabalhos decorativos de
Teixeira Lopes, serviria tambm como modelo de escultura em bronze para
as geraes de artistas brasileiros, e deveria recordar ao mundo artstico o
Rio de Janeiro que as possui.16. Por ocasio da inaugurao das portas, o
diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Rodolfo Bernardelli escreveu ao
escultor, dizendo que acompanhava h muito tempo a sua carreira e que:

as portas fazem muito bem no lugar e para mim uma consolao


poder ter a sua preciosa companhia neste campo ainda to pobre no
meu belo pas. Meus parabns pois e espero que seja este o incio de
outros trabalhos do seu belo estro; assim o Brasil se enriquecer de
arte e oxal esta possa, um dia, suplantar o caf.17

A mostra de 1905 de Teixeira Lopes no Gabinete Portugus de


Leitura, organizada por Bernardino Lobo, foi comentada pelo crtico
carioca Gonzaga Duque, figura de destaque na crtica de arte brasileira.
Duque percebeu na obra de Teixeira Lopes um modelo novo, muito
ao gosto do fim de sculo brasileiro e europeu, abordado com muito
entusiasmo: a obra alli reunida um documento de arte, em que se sente
relampejar o genio na modelagem febril ou cariciosa dos typos arrancados
matria bruta, aos golpes de pollegar e raspes desboadores num jrro
15
AS PORTAS da Candelria. Gazeta de Notcias, Rio de Janeiro, 16 jun.1901, p.2.
16
Ibid: pg:2.
17
CARTA de Rodolfo Bernardelli a Antnio Teixeira Lopes, Rio de Janeiro, 10 jul. 1901.
Cfr: LOPES , A. Teixeira. Ao correr da pena: memrias de uma vida. Gaia : C. M. G., 1968,
p,288.

Maria do Carmo Couto da Silva

265
horebeano de vida imperecivel18. O trabalho A Caridade, apresentado nesta
mostra, foi mencionado por Gonzaga Duque. Trata-se de um dos trabalhos
mais importantes do escultor Teixeira Lopes, como ele nota em seu livro
autobiogrfico, Ao correr da pena:

Foi assente no pedestal que lhe era destinado, no cemitrio de


Agramont, o meu grupo em mrmore a Caridade, que me havia
sido encomendado pelo capitalista senhor Antonio Caetano de
Carvalho. Foi um dos primeiros trabalhos que aqui me encomendara
logo depois do meu regresso de Paris, em 1896. Levei alguns anos
a concebe-la e executa-la (...) No entanto, um dos meus melhores
trabalhos; tenho disso a conscincia e por isso mesmo, a melhor
paga.19

O MNBA possui uma estatueta representando um beb, da srie de


crianas feitas por Teixeira Lopes. Uma destas obras foi assinalada pelo
pintor em sua biografia:

Abriu-se, em Lisboa, a exposio da Sociedade Nacional de Belas


Artes. Eu concorri com muitas das minhas obras e o sucesso da
exposio foi completo. Fui a Lisboa por ocasio da abertura e assisti
inaugurao e que Suas Majestades muito nos felicitaram no 1
dia. Entre os trabalhos que expus tinha a esttua, em mrmore,
estudo de criana, Raquel, que pertencia Duquesa de Palmela e
que j havia sido exposta em Paris, em 1900. Todos os jornais faziam
os mais rasgados elogios aos trabalhos que mandei.20

Outro artista cuja doao de obras demonstrou-se importante para a


constituio do acervo portugus do Museu Nacional de Belas Artes Toms
Costa (1861-1932). O escultor formou-se em Portugal, com Marques de
Oliveira, tendo sido colega de Antnio Teixeira Lopes. Aperfeioou-se em
Paris, onde foi pensionista do Estado. O acervo do MNBA possui trabalhos
de Toms Costa como Busto feminino (s.d.), que revela afinidade com a

18
DUQUE, Gonzaga. Exposio Teixeira Lopes no Gabinete Portugus de Leitura. Kos-
mos, Rio de Janeiro, ano II, n. 10, out. 1905. n.p.
19
LOPES, Op. Cit: pg.389-390. Grifo nosso.
20
Ibid: pg. 413.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

266
produo de Rodolfo Bernardelli, um dos principais escultores brasileiros
do fim do sculo e diretor da ENBA e ainda com a escultura verista italiana.
Em Criana (s.d.) de Toms Costa, a retomada da escultura
policromada, que era importante tambm para a gerao de Bernardelli,
ressalta a coerncia da doao feita por Luiz Fernandes ao Brasil, trazendo
ao principal museu de arte local, obras de significativa importncia para a
gerao de artistas que reformara em 1890 a antiga Academia Imperial de
Belas Artes. Demonstra tambm a afinidade de ideais estticos entre Portugal
e Brasil no final do sculo XIX, assim como as possveis aproximaes entre
as propostas artsticas da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro
e dos artistas ligados ao Grupo do Leo em Portugal.

Maria do Carmo Couto da Silva

267
Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

268
colees e museus

A importncia de agremiaes artsticas e do colecionismo de


Portugal na constituio da coleo de arte portuguesa
da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro

Arthur Valle
Professor Adjunto
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Durante as primeiras dcadas que se seguiram implantao da


Repblica no Brasil, a Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro
(ENBA) constituiu aquela que provavelmente a mais significativa coleo
pblica de arte portuguesa oito-novecentista existente em territrio
brasileiro. Essa coleo conta com dezenas de obras de importantes artistas
atuantes nas dcadas finais do sculo XIX e iniciais do XX, como Columbano
Bordallo Pinheiro, Jos Vital Branco Malhoa, Antnio Francisco Silva
Porto, Jos Jlio de Souza Pinto, entre outros. Os significados dessa coleo
eram ento variados. Por um lado, a sua constituio e exibio reiterava
as orientaes pedaggicas implantadas na ENBA aps a proclamao
da Repblica, bem como as concepes de arte moderna que a instituio
buscava ento promover.1 Por outro lado, agentes portugueses estavam
interessados no estabelecimento dessa espcie de vitrine no seio da
Escola como um fator que contribua para a consolidao de um mercado
consumidor de arte, fomentado pelas colnias portuguesas em cidades
como Rio de Janeiro e So Paulo.
Partindo dessa ltima afirmao, a presente comunicao tem como
objetivo principal discutir o papel desempenhado por agremiaes artsticas
e pelo colecionismo de Portugal na formao da coleo em questo.
Centrar-nos-emos na discusso de dois tpicos: (1) as aquisies feitas
pela ENBA na Exposio de Arte Portuguesa, promovida no Rio de
Janeiro em 1902, sob os auspcios da Sociedade Nacional de Belas Artes de
Lisboa; (2) a doao de pinturas feita pelo colecionador luso-brasileiro Lus
Fernandes, efetivada em 1926. Pretendemos assim evidenciar a intensidade
1
Cfr. VALLE, A., O acervo de pintura portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes no
contexto pedaggico ps- Reforma de 1890. Revista de Histria da Arte e Arqueologia, v. 19,
2013. Pp. 117-139.

269
dos intercmbios artsticos entre Brasil e Portugal no perodo, bem como o
quanto a constituio da coleo de arte portuguesa da ENBA foi tributria
de prticas expositivas e colecionistas engendradas em Portugal a partir de
fins do sculo XIX.

Aquisies na Exposio de Arte Portuguesa de 1902

Em 17 de julho de 1902, no Liceu de Artes e Ofcios do Rio de


Janeiro, foi inaugurada a Exposio de Arte Portuguesa, organizada pelo
representante de artistas lusitanos Guilherme da Rosa. Essa mostra contava
com mais de uma centena de obras, entre pinturas, peas de arte aplicada e
projetos arquitetnicos, e obteve um grande sucesso de pblico e de vendas.
Dela participaram alguns dos mais consagrados artistas portugueses da
poca, como Raphael Bordallo Pinheiro, Joo Vaz e Jos Velloso Salgado,
alm dos j referidos Malhoa e Columbano, bem como artistas ento ainda
considerados novos, como Adriano de Souza Lopes.
Essa exposio foi largamente resenhada na imprensa carioca da poca
e obteve boa repercusso tambm do outro lado do Atlntico, em peridicos
lisboetas como O Dia, O Seculo e O Occidente. Alm de crticas escritas, foram
publicadas diversas fotografias de obras presentes na exposio e imagens
de sua instalao (FIG. 1). Aqui, todavia, no nos deteremos na recepo
da Exposio de Arte Portuguesa como fizemos em outro trabalho,2 mas
apenas na discusso de um dado significativo e at o momento pouco
conhecido: a relao entre a mostra e a Sociedade Nacional de Belas Artes
de Lisboa (SNBA).3
A SNBA, fundada em 1901,4 foi a mais importante agremiao artstica
portuguesa de incios do sculo XX. Ela surgiu como resultado da juno
de duas outras agremiaes artsticas lisboetas: (1) a Sociedade Promotora
de Belas Artes, criada em 1860, e (2) o Grmio Artstico, fundado em

2
Cfr. VALLE, A.. As aquisies da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro na
Exposio de Arte Portuguesa de 1902. In: NETO, M. J.; MALTA, M. (org.). Colees
de Arte em Portugal e Brasil nos Sculos XIX e XX - Perfis e Trnsitos. Casal de Cambra:
Caleidoscpio, 2014. Pp. 347-363.
3
Cfr. TAVARES, C. A.. A Sociedade Nacional de Belas-Artes: um sculo de histria e de arte.
Vila Franca de Xira: Ed. Projecto, Ncleo de Desenvolvimento Cultural de Vila Nova de
Cerveira, Fundao Bienal de Vila Nova de Cerveira, 2006.
4
Ibid: pg. 27-29.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

270
1890 na sequncia das exposies que os integrantes do chamado Grupo
do Leo5 realizaram nos anos 1880. Para a argumentao que se segue,
fundamental ressaltar que a SNBA deu continuidade sobretudo s aes do
Grmio, adotando os termos estatutrios, a atribuio de deveres e a forma
de organizao interna dessa ltima agremiao.
A anlise de uma srie de evidncias aponta para uma ligao estreita
entre a mostra portuguesa no Rio em 1902 e a SNBA. Por exemplo, diversos
peridicos cariocas reportaram a ligao entre Guilherme da Rosa e a
Sociedade; em um artigo da Revista da Semana se afirmava, inclusive, que a
mostra no Rio fazia parte de um projeto da Sociedade Nacional de Belas
Artes de Lisboa [que] consiste em abrir um mercado Arte portuguesa
no Brasil, e simultaneamente, um mercado Arte brasileira em Portugal.6
Alm disso, alguns meses aps a realizao da exposio no Rio, Guilherme
da Rosa fez publicar, no Diario de Noticias de Lisboa, um documento que,
segundo ele, liquida[va] as responsabilidades que contra com a Sociedade
Nacional de Belas Artes de Lisboa, por ocasio da minha recente viagem
ao Brasil.7 Tratava-se de uma carta assinada pelo pintor portugus Joo
Ribeiro Christino da Silva, na qual este designava a si prprio como
presidente da comisso organizadora da exposio de arte Portuguesa no
Rio de Janeiro, levada a a cabo pelo Exm. Sr. Guilherme da Rosa.8 Essas
notcia confirma, portanto, que, em 1902, Rosa representava, de maneira
formal, um grupo de artistas portugueses vinculados a SNBA.
Outro indcio da relao entre a Exposio de Arte Portuguesa e a
SNBA o conjunto de obras expostas no Rio, muitas das quais haviam
participado antes de mostras da Sociedade, em 1901 e 1902, ou do Grmio
Artstico, em finais dos anos 1890. As obras adquiridas pela ENBA s
quais aqui vamos nos referir mais detalhadamente exemplificam o quanto
a Exposio de Arte Portuguesa representava uma espcie de extenso

5
Para o surgimento do Grupo do Leo na arte portuguesa, ver: FRANA, J.-A.. A Arte
em Portugal no sculo XIX. 3 edio. Vol. 2. Lisboa: Bertrand Editora, 1990, pg. 23 sg;
SILVA, R. H. da. Silva Porto e a pintura naturalista. In: LAPA, P.; SILVEIRA, M. de A.
(Org.) Arte Portuguesa do Sculo XIX: 1850-1910. Vol. 1. Lisboa: Museu Nacional de Arte
Contempornea-Museu do Chiado/ Leya, 2010. Pp. LI-LXIII.
6
BONHOMME, J.. CRNICA. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 13 jul. 1902, pg. 1.
7
A exposio darte portuguesa no Rio de Janeiro. Diario de Noticias, Lisboa, 26 nov. 1902,
pg. 2.
8
Ibid: pg. 2.

Arthur Valle

271
das polticas expositivas dessas duas agremiaes lisboetas, que, como
salientamos, eram estreitamente vinculadas.
Um documento assinado pelo ento diretor da ENBA Rodolpho
Bernardelli9 informa que 11 quadros foram adquiridos na mostra de 1902:
4 de Columbano (A Luva Branca, A Locandeira, Madona e Soldado); 1 de
Velloso Salgado (Azinhaga em Benfica); 1 de Ernesto Condeixa (Um Homem
do Mar); 1 de Carlos Reis (Os Amores do Moleiro); 1 de Manoel Henrique
Pinto (A Sada do Rebanho); e 3 de Malhoa (A Sesta, A Corar a Roupa e
Gozando os Rendimentos). Todas essas obras pertencem hoje Coleo de
Pintura Estrangeira do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro,
que incorporou em 1937 a parte mais importante do antigo acervo da
Escola. A nica exceo a Madona de Columbano, que, em entrevista na
poca, Guilherme da Rosa declarou ter ele prprio comprado.10
Das trs obras de Jos Malhoa, Gozando os Rendimentos, um quadro de
temtica urbana relativamente rara na produo do artista, que retrata um
forte burgus que repousa num banco de jardim, provavelmente o de S. Pedro
de Alcntara,11 havia sido exibido, sob o n. 94, na exposio comemorativa
do 4. Centenrio do Descobrimento do Caminho Martimo para a ndia,
organizada pelo Grmio Artstico em 1898. J A Sesta indubitavelmente
a obra exibida sob o n. 63 na exposio organizada pela SNBA em 1902,
como comprova um desenho reproduzindo o quadro, publicado no jornal
lisboeta O Seculo.12 Apenas a respeito de A corar a roupa, no encontramos
referncias inequvocas em exposies lisboetas anteriores. Todavia, essa
tela bem poderia ser o Estudo exposto sob o n. 77 na mostra da SNBA de
1901. O escritor portugus Henrique de Vasconcellos resenhou esse Estudo
poca, juntamente com outro quadro intitulado Cebolas, que Malhoa
tambm enviou para o Rio, asseverando que nessas duas obras as figuras
so sadias, so verdadeiras camponesas, trigueiras e fortes. H, talvez,

9
Relatorio apresentado ao Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. J. J.
Seabra Ministro de Estado da Justia e Negcios Interiores em abril de 1903. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1903, pg. 225.
De Columbano ficaram nas Belas Artes os seguintes quadros: A locandeira, A luva branca,
10

Cabea de mulher, O soldado. A Madona, comprei-o eu. A exposio darte portuguesa no


Brasil. O Dia, Lisboa, 20 set. 1902, pg. 2.
11
SILVA, R. H. da. Invocao do Grupo do Leo e do naturalismo portugus. In: O Grupo
do Leo e o Naturalismo portugus. So Paulo: Pinacoteca do Estado, 1996, pg. 58.
12
Sociedade Nacional de Bellas Artes. O Seculo, Lisboa, 20 abr, 1902, pg. 1.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

272
no Estudo um excesso de branco, as roupas a secar.13 Essa descrio de
Vasconcellos se adequa bem, portanto, obra adquirida pela ENBA; alm
disso, corroborando essa hiptese de identificao, sabemos que Malhoa
realmente considerava o quadro aqui em questo um estudo para uma
verso maior de A corar a roupa, hoje perdida, que foi exibida na Exposition
Universelle de Paris, em 1900.14
Dois dos trs quadros de Columbano que sabemos terem sido
adquiridos pela ENBA - A Luva Branca, A Locandeira e Soldado - tambm
figuraram em mostras lisboetas anteriores. A verso dA Luva Branca que
ficou no Rio seria a mesma exposta na mostra do Grmio de 1897, sob o
n. 32. J A Locandeira participou da mostra da SNBA de 1902, sob o n. 17,
onde comps com outros dois quadros de pequeno formato centrados em
figuras femininas um conjunto que foi muito elogiado pelos crticos de
arte portugueses. Somente a respeito do terceiro quadro de Columbano,
Soldado, mais difcil fazer afirmaes, pois ainda no foram encontrados
indcios que permitam identificar de maneira inequvoca que obra com esse
ttulo foi efetivamente adquirida pela ENBA em 1902.
Alm das obras de Malhoa e Columbano, dois outros quadros
comprados pela Escola teriam figurado em exposies da SNBA. O
primeiro A Sada do Rebanho, de Manoel Henrique Pinto, que participou
da mostra de 1901, sob o n. 105. O segundo a tela de Ernesto Condeixa
intitulada Um homem do mar, que muito provavelmente a obra homnima
que figurou na exposio de 1902, sob o n. 23, que possua exatamente as
mesmas dimenses (73 x 53 cm) da obra que foi incorporada pela ENBA
em 1902. Apenas com relao a Azinhaga em Benfica de Velloso Salgado
e Os amores do moleiro de Carlos Reis no foi possvel, at o momento,
verificar qualquer participao em mostras organizadas pela SNBA ou pelo
Grmio Artstico.

13
VASCONCELLOS, H. de. Exposio de Belas-Artes. Brasil-Portugal, Lisboa, n. 58, 16
jun. 1901, pg. 155.
14
A verso de A corar a roupa exposta em Paris se perdeu no naufrgio do navio a vapor
Saint-Andr, quando retornava para Lisboa, junto com uma srie de importantes obras de
artistas portugueses.

Arthur Valle

273
A doao de Lus Fernandes

Depois de 1902, a coleo de arte portuguesa da ENBA foi sendo


aumentada lentamente, com aquisies importantes, mas esparsas no
tempo. Em termos quantitativos, nada semelhante grande compra de
1902 se verificou at 1926, quando a Escola recebeu um novo contigente de
obras portuguesas, no bojo da doao feita pelo colecionador luso-brasileiro
Lus Jos Seixas Fernandes (1859-1922). Lus Fernandes bem conhecido
na historiografia de arte portuguesa, especialmente pela sua participao
na criao do Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa (MNAA). Jos-
Augusto Frana o recordou em seu clssico A Arte em Portugal no sculo
XIX15 e, nos ltimos anos, tem surgido textos analisando a sua atuao
como primeiro diretor do Grupo dos Amigos do MNAA.16 Todavia, aquilo
que aqui mais nos interessa - a sua atividade como colecionador de arte -
ainda carece de investigaes sistemticas.
Lus Fernandes17 (FIG. 2) nasceu no Estado da Bahia, Brasil, filho
de Justino Jos Fernandes, um portugus natural do Minho, e de Maria
Emlia Figueiredo Seixas, de nacionalidade brasileira. Quando Fernandes
tinha cerca de 12 anos, sua famila se mudou para Portugal, em funo
do adoecimento de seu pai; aps a morte deste, Fernandes herdou uma
importante fortuna, que lhe deu a possibilidade de se dedicar, ainda no final
do sculo XIX, ao colecionismo de arte. Jos-Augusto Frana, ao traar
um panorama geral do colecionismo em Portugal em fins de Oitocentos,
definiu a coleo de Fernades como uma coleco de moveis, porcelanas,
esmaltes, tapearias, leques, com poucos quadros a nobilitarem o bricabraque
mais sensivelmente reunido.18 Com efeito, no palacete onde reunia sua
coleo, na antiga Travessa de So Maral (hoje Rua Lus Fernandes n.

15
FRANA, op. cit: pg. 80.
16
Cfr. BASTOS, C.; CARVALHO, M. B. (org.). Por amor arte. Grupo dos Amigos do Museu
Nacional de Arte Antiga. 100 anos 1912-2012. Lisboa: Amigos do Museu, 2012; BAIO, J..
O Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Fundao e primeiros anos. In:
De Amiticia. 100 anos do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa, MNAA/
IMC, 2012. Pp. 22-38.
17
Cfr. Verbete FERNANDES (Lus). In: Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira.
Lisboa, Rio de Janeiro: Editorial Enciclopdia Limitada, [s.d.], v. XI. P. 108; O Palcio do
Menino de Ouro. Olisipo: boletim do Grupo Amigos de Lisboa, Lisboa, S. 2, n 12, mar. 2000.
Pp. 111-114
18
FRANA, op. cit: pg. 80.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

274
1) em Lisboa, o destaque era dado aos objetos de cermica, em especial s
chvenas. Todavia, contemporneos do colecionador no Grupo dos Amigos
do MNAA negavam que ele fosse um mero bric--braquista e frisavam
o gosto apurado que regia a maneira de expor a sua coleo. Segundo o
depoimento de um contemporneo, no palacete da Travessa de So Maral
as obras de arte ocupavam os lugares para os quais pareciam naturalmente
destinadas, [...] todas subordinadas completamente decorao e adorno
dos vrios aposentos, ou aos fins para que haviam sido criadas.19 Os quadros
de Columbano que foram depois legados a ENBA, por exemplo, em vez de
suspensos ao longe nas tapearias das paredes, eram comodamente expostos
nossa contemplao em pequenos cavaletes, sobre os buftes dourados do
salo.20
Lus Fernandes faleceu em Paris no dia 6 de fevereiro de 1922. Menos
de uma semana depois, o seu testamento, que datava de 18 de dezembro de
1914, foi lido na conservatria do Registro Civil da Rua Ferreira Borges,
em Lisboa. Uma cpia integral se encontra conservada no Gabinete de
Estudos Olisiponenses e nela podem ser lidas as indicaes de Fernandes
quanto ao destino de suas colees de arte.21 Insituies portuguesas como
o MNAA e o Museu de Arte Contempornea (Museu do Chiado) foram
alguns dos principais beneficirios, mas instituies de sua terra natal, o
Brasil, tambm receberam doaes significativas. Foi o caso do Instituto
Histrico e Geogrfico da Bahia e da ENBA do Rio. O trecho que se
refere ao legado para a Escola especificava o seguinte: Deixo ao Estado
Brasileiro, com o exclusivo fim e aplicao de serem colocados e entrarem
em exposio na Academia [sic] Nacional de Belas artes do Rio de Janeiro,
todos os meus quadros a leo, desenhos, estampas, gravuras, [...] esmaltes,
bronzes e mrmores.22
Infelizmente, das diferentes sees da coleo de Lus Fernandes,
apenas aquela incorporada pelo MNAA de Lisboa, consituda em sua
grande maioria por peas de cermica, pode ser reconstituda com preciso.23
19
In memoriam. LUIZ FERNANDES. Homenagem dos Amigos do Museu Nacional de Arte
Antiga. Lisboa, [S.n.], 1923, pg. 44.
20
Ibid: pg. 44.
Cfr. Testamento de Lus Jos Fernandes [cpia; Lisboa, 4 de maro de 1922]. Gabinete de
21

Estudos Olisiponenses, MS-M 1416 CMLEO.


22
Ibid: pg.6-7.
23
Cfr. LEGADO DE LUS FERNANDES - 1923, Cdigo de referncia. Arquivo
Nacional Torre do Tombo, Lisboa. PT/MNAA/AJF/APF-MNAA-M/002/00005, Cota
atual: AJF-Cx.4-P.14

Arthur Valle

275
Nada relativo doao para a ENBA, que, como indicamos, s teria sido
recebida em 1926, foi at o momento encontrado em arquivos portugueses.
possvel que um registro se encontre no Museu Nacional de Belas Artes
do Rio de Janeiro, que, como j referido, incorporou a parte mais importante
das colees da ENBA. Atualmente, os arquivos do Museu se encontram
inacessveis para investigao, mas suas colees podem ser consultadas
atravs do Sistema de Informao do Acervo do Museu Nacional de
Belas Artes (SIMBA): um levantamento que realizamos nesse sistema em
setembro de 201424 revelou nada menos do que 113 obras relacionadas
doao de Lus Fernandes. Embora esse levantamento seja provavelmente
incompleto, ele parece revelar, em linhas gerais, o que foi incorporada pela
ENBA.
Em termos quantitativos, destacam-se os conjuntos de arte
contempornea ao colecionador, especialmente os de arte portuguesa,
com um total de 40 obras (18 desenhos, 18 pinturas e 4 esculturas), e arte
francesa, com um total de 37 obras (31 desenhos, 2 pinturas e 4 esculturas).
De maneira menos significativa, tambm se encontram representadas outras
escolas: a belga, com 1 pintura atribuda a John Michaux; a brasileira,
com 1 bronze de Auguste Girardet; a espanhola, com 1 pintura de Enrique
Atalaya Gonzales; a italiana, com 1 pintura de Giuseppe Carelli; a holandesa
com 2 pinturas de P. J. Lutgers; e a russa, com 4 esculturas de Eugne
Lancere. H, ainda, um conjunto de 15 obras de procedncia desconhecida
e um pequeno contingente de obras de mestres antigos, como o italiano
Corrado Giaquinto e o portugus Domingos Antnio de Sequeira, bem
como 12 peas classificadas como de arte decorativa (travessa, defumador,
jarra, relgio etc.).
No contexto da presente comunicao, nos interessa sobretudo a
composio da coleo de arte portuguesa legada por Lus Fernandes
ENBA. Seu interesse estava voltado para a produo daqueles artistas que
a historiografia de arte lusitana convencionou chamar naturalistas e para
gneros como a paisagem, o retrato e a pintura de gnero - uma predileo
que Fernandes partilhava com outros colecionadores portugueses de sua
gerao, notadamente com o importante poltico Jos de Mascarenhas

24
Agradeo a Mary Komatsu Shinkado, bibliotecria do Museu Nacional de Belas Artes,
por gentilmente ter me possibilitado consultar esse sistema.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

276
Relvas.25 Destacam-se artistas cujas obras j haviam sido incorporadas
em 1902, como Jos Malhoa, com Lio de Violino (quadro originalmente
exibido na mostra do Grmio Artstico de 1895 sob o n. 105, com o ttulo
Um compasso difcil), ou Columbano, com dois quadros que figuraram na
exposio do Grmio de 1896: A refeio (originalmente intitulada Estudo
(Efeito de Noite)), e A mulher da luneta.
Mas a doao de Lus Fernandes continha obras de diversos outros
artistas portugueses de relevo. Um de seus principais destaques um
conjunto de obras de pequenas dimenses atribudas a Silva Porto:26 5
pequenas manchas de paisagem e 2 obras centradas na figura humana
- Cabea de Menina e Mulher montada sobre um burrinho, essa ltima
relacionada a uma composio de grandes dimenses chamada A Volta do
Mercado, atualmente no Museu Nacional de Arte Contempornea - Museu
do Chiado de Lisboa. Ainda entre as pinturas a leo, encontramos obras
de Adolfo Cesar de Medeiros Greno, Alfredo Cristiano Keil, Antnio
Monteiro Ramalho, Carlos Reis, Francisco Villaa e Joo de Melo Falco
Trigoso, entre outros. Duas esculturas de Antnio Teixeira Lopes tambm
se destacam: Menino brincando, realizada em pedra-sabo, e A Caridade,
uma reduo em bronze de uma das mais conhecidas obras do escultor.
Entre os desenhos, encontramos obras de artistas de diversas geraes
como Sousa Lopes, Alfredo Roque Gameiro, Carlos Reis, Miguel ngelo
Lupi, Raphael Bordallo e Ricardo Hogan. Praticamente todas as peas que
integram a doao de Lus Fernandes aguardam por um esforo sistemtico
de investigao.
guisa de concluso, importante frisar o quanto as evidncias que
acima procuramos reunir demonstram a importncia de agremiaes
artsticas e do colecionismo portugueses no processo de constituio da
coleo de arte portuguesa da ENBA. Esses fatores tiveram, de resto, uma
repercusso ainda mais ampla. Por exemplo, o sucesso da Exposio de Arte
Portuguesa de 1902 teria desencadeado a importante srie de exposies de
artistas portugueses no Brasil, que se estendeu at os anos 1920 - inclusive,
nesse movimento, alguns artistas como Malhoa e Carlos Reis levariam seus
25
Cfr. GRILO, Fernando. COLECCIONISMO E MERCADO DE ARTE
NACIONAL E INTERNACIONAL NO INCIO DO SC. XX. A COLEO DE
JOS RELVAS. ARTIS. Revista de Histria da Arte e Cincias do Patrimnio, Lisboa, 2
srie, n. 2, maio 2014. Pp. 150-157.
26
Cfr. SILVA PORTO, 1850-1893, Exposio comemorativa do centenrio de sua morte. Lisboa:
Instituto Portugus de Museus/ Museu Nacional de Soares dos Reis, 1993.

Arthur Valle

277
quadros at outros pases latino-americanos, como a Argentina e o Chile.
A constituio da coleo de arte portuguesa da Escola Nacional de Belas
Artes do Rio se apresenta, assim, como um objeto privilegiado cujo estudo
permite que aprofundemos o entendimento dos intensos intercmbios
artsticos estabelecidos entre Portugal e Brasil nos anos finais do sculo
XIX e iniciais do XX.

Referncias bibliogrficas

A exposio darte portuguesa no Brasil. O Dia, Lisboa, 20 set. 1902. P.2.


A exposio darte portuguesa no Rio de Janeiro. Diario de Noticias,
Lisboa, 26 nov. 1902. P. 2.
BAIO, J. O Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga.
Fundao e primeiros anos. In: De Amiticia. 100 anos do Grupo de
Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. Lisboa: MNAA/IMC, 2012.
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BASTOS, C.; CARVALHO, M. B. (org.). Por amor arte. Grupo dos
Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga. 100 anos 1912-2012. Lisboa:
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BONHOMME, J.. CRNICA. Revista da Semana, Rio de Janeiro, 13
jul. 1902. P. 1.
FRANA, J.-A.. A Arte em Portugal no sculo XIX. 3 edio. Vol. 2. Lisboa:
Bertrand Editora, 1990.
GRILO, Fernando. Coleccionismo e mercado de arte nacional e
internacional no incio do sc. XX. A coleo de Jos Relvas. ARTIS.
Revista de Histria da Arte e Cincias do Patrimnio, Lisboa, 2 srie, n.
2, maio 2014. Pp. 150-157.
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Nacional de Arte Antiga. Lisboa, [S.n.], 1923.
O Palcio do Menino de Ouro. Olisipo: boletim do Grupo Amigos de Lisboa,
Lisboa, S. 2, n 12, mar. 2000. Pp. 111-114.
SILVA PORTO, 1850-1893, Exposio comemorativa do centenrio de sua
morte. Lisboa: Instituto Portugus de Museus/ Museu Nacional de

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

278
Soares dos Reis, 1993.
SILVA, R. H. da. Invocao do Grupo do Leo e do naturalismo portugus.
In: O Grupo do Leo e o Naturalismo portugus. So Paulo: Pinacoteca
do Estado, 1996. Pp. 27-31.
____. Silva Porto e a pintura naturalista. In: LAPA, P.; SILVEIRA, M.
de A. (Org.) Arte Portuguesa do Sculo XIX: 1850-1910. Vol. 1. Lisboa:
Museu Nacional de Arte Contempornea-Museu do Chiado/ Leya,
2010. Pp. LI-LXIII.
Sociedade Nacional de Bellas Artes. O Seculo, Lisboa, 20 abr, 1902. P.1.
TAVARES, C. A.. A Sociedade Nacional de Belas-Artes: um sculo de histria e
de arte. Vila Franca de Xira: Ed. Projecto, Ncleo de Desenvolvimento
Cultural de Vila Nova de Cerveira, Fundao Bienal de Vila Nova de
Cerveira, 2006.
VALLE, A.. As aquisies da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de
Janeiro na Exposio de Arte Portuguesa de 1902. In: NETO, M.
J.; MALTA, M. (org.). Colees de Arte em Portugal e Brasil nos Sculos
XIX e XX - Perfis e Trnsitos. Casal de Cambra: Caleidoscpio, 2014.
Pp. 347-363.
____. O acervo de pintura portuguesa da Escola Nacional de Belas Artes
no contexto pedaggico ps-Reforma de 1890. Revista de Histria da
Arte e Arqueologia, v. 19, 2013. Pp. 117-139.
VASCONCELLOS, H. de. Exposio de Belas-Artes. Brasil-Portugal,
Lisboa, n. 58, 16 jun. 1901. Pp. 155-158.
Verbete FERNANDES (Lus). In: Grande Enciclopdia Portuguesa e
Brasileira. Lisboa, Rio de Janeiro: Editorial Enciclopdia Limitada,
[s.d.], v. XI. P. 108.

Arthur Valle

279

colees e museus

As obras adquiridas pela Escola Nacional de Belas Artes


nos anos aps a reforma de 1890, hoje pertencentes
ao Museu Nacional de Belas Artes

Camila Dazzi
Professora adjunta.
Programa de Ps-graduao em Relaes tnico Raciais
do Centro Federal de Educao Tecnolgica do RJ

Pensar a histria da formao do acervo do Museu Nacional de Belas


Artes do Rio de Janeiro, correspondente ao sculo XIX, um importante
desafio. Parte do acervo abriga a coleo da famlia real portuguesa, que
fugiu para o Brasil em 1808, quando das invases napolenicas.1 Outra
parcela composta de doaes para a Academia Imperial de Belas Artes
e, posteriormente, j sob os auspcios da Repblica, para a Escola Nacional
de Belas Artes feitas por particulares, que, por diferentes motivos, presen-
tearam a instituio com telas, sobretudo, de artistas estrangeiros. Todavia,
parte significativa do acervo do Museu Nacional de Belas Artes referente
ao sculo XIX constituda de obras de alunos e professores que passaram
pala Academia e pela Escola Nacional de Belas Artes. Obras essas que, em
parte, foram compradas, que foram consagradas como prmio de viagem
para seus autores e que foram vencedoras de exposies de belas artes.2
Nesse sentido, o presente artigo pretende refletir sobre uma parte espe-
cfica da coleo artstica do Museu Nacional de Belas Artes, tendo como
base principal para o desenvolvimento da pesquisa o arquivo documental
do Museu Dom Joo VI da Escola de Belas Artes da UFRJ. O arquivo do
Museu Dom Joo VI pode ser compreendido como um abrigo da trama
de documentao e fontes escritas na qual se enredam as obras de arte.3
1
SOUZA, Alcidio Mafra de (ed.). O Museu Nacional de Belas Artes. So Paulo: Banco
Safra, 1985. p. 1-10. (Srie Museus Brasileiros)
2
DAZZI, Camila. Por em prtica e Reforma da antiga Academia: a concepo e a im-
plementao da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890. Rio de
Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Histria da Arte) - PPGAV/UFRJ. pp. 388-480
3 Retirado do texto de convocatria para as VIII JORNADAS DE HISTRIA DA
ARTE: COLEES, ARQUIVOS E NARRATIVAS. Disponvel em: <http://www.
humanas.unifesp.br/ppgha/eventos/viii-jornadas-de-historia-da-arte > Acesso em: 20 fev.
2015.

281
O texto aborda um perodo relativamente pouco estudado da formao
do acervo do Museu Nacional de Belas Artes; trata-se dos anos que sucede-
ram imediatamente a transformao da Academia Imperial de Belas Artes
em Escola Nacional de Belas Artes, momento que se delimita entre 1891,
quando de fato foi iniciada a implementao da reforma, e 1894, quando
aconteceu a 1 Exposio Geral organizada pela Escola.4 Compreendida
durante dcadas como uma mera questo de rtulo5, a chamada Reforma
de 1890 ficou esquecida pela historiografia da arte brasileira, tendo apenas
muito recentemente sido retomada, o que torna valiosa assim se pensa
qualquer anlise sobre o perodo.6
Um dos meios encontrados pela Academia e posteriormente pela Es-
cola para a formao de sua coleo que em 1937 foi em grande parte
transferida para o ento recm-criado Museu Nacional de Belas Artes7
foram as exposies gerais. Algumas obras premiadas passaram a fazer par-
te do acervo por meio da compra desses exemplares pela instituio, a qual
usava as premiaes que concedia para justificar ao governo tais aquisies
(em outro momento, ser comentado como se dava tal processo).
Neste artigo, sempre se pautando na documentao do Museu Dom
Joo VI da UFRJ, sero abordadas as exposies que, de um modo ou de
outro, envolveram a Escola Nacional de Belas Artes e das quais fizeram
parte obras que, atualmente, compem o acervo do Museu Nacional de
Belas Artes. Acredita-se, desse modo, contribuir para uma narrativa sobre a
histria da coleo do museu. No ser realizada a anlise de um logo per-
odo de tempo, mas de um momento pontual, que versa sobre um intervalo
especfico 1891 a 1894 , o qual bastante rico se pensada a colaborao
que oferece para a compreenso acerca das instituies envolvidas e das
colees (pois h, ainda, a coleo do Museu Dom Joo VI), do processo de
4
Destaca-se que o ento diretor da instituio, Rodolpho Bernardelli, optou por no dar
continuidade numrica s antigas exposies gerais, que ocorriam desde os tempos do Im-
prio, mas denominou de primeira a exposio de 1894, estabelecendo assim uma suspen-
so ou uma ruptura com o passado, ainda que a exposio geral, mesmo com todas as suas
inovaes, no deixasse de ser uma manuteno das suas predecessoras.
5
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Contemporneos. Rio de Janeiro: s/e, 1929. s/p.
6
A nica dissertao e ou tese concluda sobre o assunto qual se teve acesso trata di-
retamente da transformao da Academia em Escola Nacional de Belas Artes: DAZZI,
OP.CIT.
7
SALA, Dalton. As origens histricas do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes. In:
LUSTOSA, Heloisa (org.). Acervo Collection Museu Nacional de Belas Artes. So Paulo:
Banco Santos, 2002. pp. 18-27.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

282
colecionismo, dos colecionadores (dirigentes como Rodolpho Bernardelli),
dos museus e do arquivo pesquisado.
A primeira exposio geral organizada pela Escola Nacional de Belas
Artes aps a Reforma de 1890 aconteceu em 1894.8 Antes disso, a Escola
foi sede de exposies individuais, de mostras que reuniam os trabalhos
de alunos e de outras exposies que serviam para apresentar as provas do
Grande Prmio de Viagem Europa. Tambm as galerias da Escola eram
abertas ao pblico.9 No presente artigo, no entanto, so abordadas as expo-
sies que abrigaram pinturas e esculturas que, posteriormente, passaram a
integrar o acervo do Museu Nacional de Belas Artes.
Os relatrios ministeriais10, redigidos pelo diretor e pelo vice-diretor,
respectivamente, Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amodo, instruem que
a coleo da Escola era ampliada de ano para ano. Em 1893, foram ofereci-
das Escola as seguintes obras:

(...) uma aquarela de Carlos Schwabe, que figurou na exposio Rosa


+ Cruz de Pariz e Ciocciarre, modelo em gesso de Preatani, pelo Sr.
Luiz Resende. Foram adquiridos por compra: um quadro a leo com
moldura, de Diana Garcia, ex-aluna desta Escola, representando
uma costureira, por 190$; duas aquarelas de G.Bethune, com mol-
dura, por 1:000$000. Do Ministro da Justia e Negcios Interiores
foi remetido um quadro a leo, de Eugenio Teixeira, representando
a Primeira Communho na Amrica.11

Em 1894, a Coleo da Escola recebeu alguns acrscimos.

Graciosamente oferecido pelo seu autor, o artista italiano Fabbio Fa-


bbi, recebeu a Escola um quadro intitulado Algeriana. Enviado pelo
Ministro da Justia e Negcios Interiores, deu entrada na galeria um
8
Para maiores explicaes sobre o motivo de a exposio geral ter ocorrido em 1894, con-
sultar: DAZZI, OP.CIT: pg. 296.
9
AMODO, Rodolpho. Anexo Q. Relatrio apresentado ao vice-presidente da Repblica
dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Alexandre Cassiano do Nascimento, Ministro do
Estado Interino da Justia e Negcios Interiores, em maro de 1894. p. 12.
10
Nos relatrios anuais do ministro do Estado Interino da Justia e Negcios Interiores,
havia invariavelmente um espao reservado Escola Nacional de Belas Artes; quando pu-
blicadas, essas notcias, em geral sucintas, eram, por vezes, acompanhadas de anexos mais
detalhados, escritos pelos prprios diretores da instituio.
11
AMODO, OP.CIT: pg. 12.

Camila Dazzi

283
quadro a leo do pintor Eduardo de Martino, representando o Porto
de Montevideo. Este quadro, que estava na Secretaria da Industria,
Viao e Obras Pblicas, foi atravessado por um projectil vindo do
mar durante a revolta. Ser colocado na galeria, depois de conve-
nientemente restaurado pelo conservador de quadros.12

O ano de 1894 no somente foi marcado por vrias exposies se-


diadas no prdio da instituio, mas igualmente foi palco de exposies
individuais.

EXPOSIES
Duas exposies de pintura realisaram-se no corrente anno, alm
das j citadas. No dia 1 de maio o Sr. Joo Baptista Castagnetto
abriu sua exposio de marinhas e encerrou-a no dia 30. No dia 15
de setembro o Sr. Belmiro de Almeida Junior inaugurou sua exposi-
o de quadros e fechou-a no dia 22 [grifos nossos].13

Verifica-se, pela breve citao anterior, que cada vez mais a Escola ce-
dia espao para a realizao de mostras de artistas vinculados instituio.
Esse processo teve incio em 4 de agosto de 1891, quando Henrique Ber-
nardelli solicitou a exposio de quadros de sua autoria em uma das salas
do pavimento trreo da Escola.14 A autorizao foi concedida ao artista.
No ano de 1892, Pedro Weingrtner apresentou um pedido para melhor
exposio de algumas telas de sua autoria na sala nmero 2.15
No foi localizado no arquivo do Museu D. Joo VI nenhum docu-
mento redigido em 1891, 1892 ou 1893 sobre a aquisio de obras que
participaram das exposies de Henrique Bernardelli e Pedro Weingrtner.
No se sabe ao certo que telas integraram as referidas exposies. No en-
tanto, uma nota sobre a exposio de Henrique Bernardelli, publicada na
Gazeta de Notcias, descreve uma tela muito similar a Volta ao traba-
12
BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo P. Relatrio apresentado ao vice-presidente da
Repblica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Antonio Gonalves Ferreira, Ministro de
Estado da Justia e Negcios Interiores, em abril de 1895. p. 10.
13
IBID: pg. 9-10.
14
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondncias referente
a 4 ago. 1891. p. 17A.
15
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondncias
referente a 26 set. 1892. p. 41A.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

284
lho, do mesmo artista, cujo nome foi sugerido para aquisio pela Escola
em 189416 e a qual, atualmente, faz parte do acervo do Museu Nacional de
Belas Artes. Mas teria a obra integrado a exposio individual de 1891? Por
ora, trata-se somente de uma suposio.
Nem sempre a realizao de uma exposio nas dependncias da Es-
cola significava, portanto, que alguma obra do artista expositor seria adqui-
rida para a coleo, ao menos no no mesmo ano da mostra. No relatrio
ministerial redigido por Rodolpho Bernardelli, verifica-se que a aquisio
poderia ser um desejo dos professores da instituio, mas a verba para tanto
era proveniente do governo, o que, certamente, significava uma srie de
entraves.

Esta diretoria teve ocasio de propor ao Governo em officios ns. 692


e 792 de 7 de junho e 20 de novembro, a acquisio de dous quadros
do Sr. Joo Baptista Catagnetto, escolhidos pela comisso de pro-
fessores, nomeada para esse fim. At a presente data no foi dada a
autorizao para effectuar a acquisio desses trabalhos.17

Entre as exposies individuais realizadas na Escola, certamente, foi a


de Belmiro de Almeida a que mais gerou polmica no seio da prpria ins-
tituio, acabando por determinar, em certa medida, a suspenso do artista
do cargo de professor substituto que ocupava na Escola.18 Mais que uma
anedota, o episdio que se passou nos anos iniciais de implementao da
Reforma de 1890 revela algo do sistema de exposies no prdio da Escola
e do processo de aquisio das obras que passaram a compor o acervo do
Museu Nacional de Belas Artes.
O principal problema com a realizao da exposio de Belmiro de
Almeida foi o fato de ela acontecer no ms de setembro de 1894, quando os
preparativos para a 1 Exposio Geral de Belas Artes j haviam sido ini-
ciados. A data da mostra de Belmiro de Almeida por pouco no coincidiu
com a da exposio geral, inaugurada em outubro de 1894.
A 1 Exposio Geral de Belas Artes (o uso da expresso 1 visava
reforar uma descontinuidade em relao s edies anteriores do certame)

16
BERNARDELLI, OP.CIT: pg. 13.
17
IBID: pg. 13.
18
DAZZI, OP.CIT: pg. 251.

Camila Dazzi

285
se constitua em um evento de grande importncia para seus articuladores,
que pretendiam fazer dela um exemplo de nvel internacional. Nada pode-
ria desviar as atenes a seu respeito, sobretudo uma mostra paralela.
Indcios da tenso que se formou na Escola podem ser percebidos atra-
vs da anlise de um ofcio de Belmiro de Almeida dirigido a Rodolpho
Amodo, em 27 de julho de 1894.

Em resposta ao officio de hoje cumpre-me declarar-vos que, tendo


autorizado o restaurador desta escola Sr. Joo Jos da Silva a enten-
der-se com essa Directoria a respeito da exposio de trabalhos por
mim executados em Roma e alguns dos quaes j adquiridos pelo
Governo, tive ciencia da possibilidade de expor taes trabalhos, o que
de resto tem sido praxe entre os professores da Escola N. de Bellas
Artes.
Nestas circunstancias, e tendo j a promessa formal do Ministro da
Justia e Negocios Interiores de vir inaugurar a referida exposio,
espero que a falta de uma formalidade, de que no tinha conheci-
mento, no ser motivo para que a exposio no seja inaugurada
[grifos nossos].19

A disputa entre Belmiro de Almeida e Rodolpho Amodo ento


diretor interino da Escola, na ausncia de Rodolpho Bernardelli, que se
encontrava em Chicago em funo da Exposio Universal20 no se en-
cerrou nem mesmo aps a suspenso de Belmiro de Almeida do cargo de
professor substituto, em julho de 1893. Tal suspenso foi executada por
Amodo e, posteriormente, aprovada pelo Ministrio da Justia: em refe-
rencia aos officios 717.718.7. 720 e 725 de 28 e 30 de julho e de 2 de agosto
ltimos, ter approvado o acto de suspenso do professor interino Belmiro
de Almeida Junior.21
O duelo entre os dois mestres da arte brasileira, Belmiro de Almeida
e Rodolpho Amodo, s teve fim quando Rodolpho Bernardelli assumiu
19
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondncias re-
ferente a 27 jul. 1894. p. 79B.
20
Rodolpho Bernardelli reassumiu o cargo em 5 de setembro de 1894, como consta no rela-
trio ministerial de 1895: De volta da commisso que se achava na exposio de Chicago,
reassumiu a 5 de setembro o exerccio do cargo de diretor o professor Rodolpho Bernar-
delli. BERNARDELLI, OP.CIT: pg. 230.
21
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondncias ref-
erente a 5 set. 1894. p. 83A.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

286
novamente a direo da Escola, em 5 de setembro de 1894, e decidiu per-
mitir que a exposio de Belmiro de Almeida fosse realizada.22
Das obras expostas ento por Belmiro de Almeida, algumas fazem
parte, atualmente, do acervo do Museu Nacional de Belas Artes e constam
do catlogo da 1 Exposio de Belas Artes de 1894: A Tagarela, Bom
tempo e Vaso com flores (propriedades da Escola) e, ainda, Efeito de
Sol, que no integrava o catlogo como propriedade da escola, tendo, por
certo, sido adquirida posteriormente.23 importante destacar que, nos rela-
trios ministeriais ou em qualquer outro documento que se teve acesso, no
mencionada a aquisio das obras referidas como propriedade da escola.
No entanto, sem dvida, a compra foi efetuada.
To logo encerrada a exposio de Belmiro de Almeida, teve incio
a mui festejada 1 Exposio Geral de Belas Artes, de 1894, evento que
contou com o total apoio do governo e a absoluta dedicao de Rodolpho
Bernardelli. Tratou-se da primeira exposio geral realizada pela Escola e
esperava-se, nada menos, que fosse um evento de renome internacional.
Nesse sentido, fundamental compreender as motivaes que levaram
modificao dos critrios norteadores da seleo das obras que integra-
riam a Exposio Geral de Belas Artes de 1894, pois so tambm as razes
para a escolha das obras que compuseram a coleo da Escola. Tais critrios
indicavam o que se esperava para a arte nacional e, portanto, para a com-
posio da pinacoteca que, posteriormente, foi incorporada, em parte, pelo
MNBA. Apreender os anseios de Rodolpho Bernardelli compreender as
aspiraes dos artistas, uma vez que muitos pintavam exclusivamente para
as exposies; entender as obras e a narrativa que existe por trs delas.
A 1 Exposio Geral de Belas Artes se pretendia internacional e espe-
rava contar com a participao efetiva de artistas estrangeiros de diferentes
pases. Essa afirmao pode ser feita com base em um ofcio do Ministrio
da Justia, ainda em abril de 1893, solicitando vrios exemplares do regi-
mento da exposio para envi-los aos principais pases da Europa.24

ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Ata de 12 set. 1894. Ofcio de


22

Belmiro de Almeida ao diretor da Escola. p. 84A.


23
BIBLIOTECA DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Catlogo da Exposi-
o Geral de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1894.
24
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondncias re-
ferente a 16 abr. 1894. p. 73B, 74A.

Camila Dazzi

287
Para Rodolpho Bernardelli, participar das exposies gerais era no so-
mente um modo de desenvolver as artes plsticas nacionais, mas uma forma
de patriotismo; tendo em vista que o desenvolvimento artstico significava,
em ltima instncia, o desenvolvimento do prprio pas. No sem razo,
em 1893, foi redigido o novo Regimento das Exposies Geraes de Bellas
Artes25, que buscava implementar e assegurar a liberdade da arte. No ha-
via mais lugar para a imposio de modelos e diretrizes determinados pelo
Estado, como ocorria na velha Academia.
Pode-se comparar o regimento de 1893 com o documento que regu-
lava as exposies gerais aps a Reforma Pedreira de 1855, no que se refere
composio do jri. No se trata de uma tarefa alienada da proposta de
compreenso da formao da coleo da Escola e, consequentemente, do
acervo do Museu Nacional de Belas Artes, uma vez que os professores que
fizeram parte do jri de 1894 foram aqueles que indicaram quais obras de-
veriam ser adquiridas pelo governo para a instituio. A principal diferena
que o Estatuto de 1855, Ttulo VII Das exposies pblicas determina-
va que o jri fosse nomeado entre os professores da Academia.

Art. 64 O jury ser composto das Comisses cujas materias de


ensino estiverem mais em relao com os trabalhos apresentados
[grifo nosso]. este jury compete acceitar ou recusar qualquer obra
offerecida Exposio.26

No regimento de 1893, por sua vez, a no interveno do Estado fica


clara na passagem que determina como seria composto o jri.

CAPTULO V - DISPOSIES PARTICULARES


Art. 48. Os trabalhos do jury sero dirigidos em cada seco pelo
presidente do mesmo jury, que se compor de um presidente e mais
quatro membros, a saber:

25
REGIMENTO DAS EXPOSIES GERAES DE BELLAS ARTES. Rio de Janeiro:
Companhia Industrial de Papelaria, 1895. Na pgina 14, est assinado Fernando Lobo, 20
de julho de 1893.
26
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Estatutos da Academia de Be-
las Artes referentes ao Decreto n. 1630, de 14 de maio de 1855, Ttulo VII Das exposies
pblicas.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

288
Dous professores da Escola Nacional de Bellas Artes e does artistas
eleitos pelos expositores do anno [grifo nosso].27

O jri de pintura foi composto por Rodolpho Amodo e Modesto


Brocos y Gomez, professores da Escola, e por Delfim Correa e Antonio
Araujo de Souza Lobo, artistas eleitos pelos expositores. Do jri de escultu-
ra fizeram parte Rodolpho Bernardelli e Augusto Girardet, professores da
Escola, e Francisco Jos Pinto Carneiro, eleito pelos expositores.
H alguns outros fatores positivos na 1 Exposio de 1894 em rela-
o s exposies realizadas durante o Imprio, sob a gide da Academia
Imperial de Belas Artes, e que so significativos para a compreenso das
pinturas que foram adquiridas e que, hoje, fazem parte do acervo do Museu
Nacional de Belas Artes. Por um lado, no havia o excessivo teor naciona-
lista presente nas mostras anteriores; por outro, no mais foram expostas as
cpias e os antigos quadros da pinacoteca.28
No relatrio ministerial de 1895, Rodolpho Bernardelli menciona
quais telas a comisso nomeada para escolher as obras julgou serem mere-
cedoras da aquisio para a coleo da Escola. A comisso, composta pelos
professores Rodolpho Amodo, Henrique Bernardelli, Pedro Weingrtner
e Modesto Brocos y Gomes, decidiu por:

O rendez-vous, de J. J. de Souza Pinto;


Volta ao Trabalho, de Henrique Bernardelli;
Fantasia em Rosa, da Exm. Sra. Diana Cid;
Passar ele?, de Flix Bernardelli;
No vero, de Elyseu dAngelo Visconti;
Paisagem, de M. Lopes Rodrigues;
Boa Vista, Nictheroy, acquarella de Henrique Bernardelli;
A sade da bela, acquarella de Henrique Bernardelli;
Sello com as armas da Repblica, gravado em medalha, e
A effigie do General Benjamin Constant; gravada em agatha, do professor
Augusto Girardet.29

27
REGIMENTO DAS EXPOSIES, OP.CIT: pg. 9.
28
DAZZI, OP.CIT: pg. 304.
29
BERNARDELLI, OP.CIT: pg. 13.

Camila Dazzi

289
A ttulo de consideraes finais, so apresentadas duas hipteses que se
complementam na justificativa para a escolha de determinadas obras pelos
professores da Escola Nacional de Belas Artes. Por um lado, com base na
documentao encontrada, entende-se que, algumas vezes, as indicaes de
compra privilegiaram certos artistas merecedores, indubitavelmente que
necessitavam de ajuda financeira e era do interesse da Escola que recebes-
sem tal ajuda. o caso de Augusto Girardet, contratado em 189130, para a
cadeira de Gravura, mas que nunca desejou se fixar definitivamente como
professor da Escola31 e que precisava, com certa regularidade, visitar a fam-
lia que continuava a viver na Europa. Por outro lado, entre esses professores,
encabeados por Rodolpho Bernardelli, existia o desejo de constituio de
uma coleo de arte moderna.
No h espao aqui para o debate acerca do conceito de modernidade
para os professores da Escola32, mas pode-se, en passant, defender-se a ideia
de que obras como O rendez-vous, de Souza Pinto, Volta ao Trabalho,
de Henrique Bernardelli, e Passar ele?, de Flix Bernardelli, estavam em
plena consonncia com os parmetros de modernidade adotados pelos pro-
fessores da ENBA, quando da implementao da Reforma da instituio,
em 1890.
Por fim, pode-se concluir que as obras adquiridas para a coleo da
Escola Nacional de Belas Artes entre os anos iniciais de implementao da
Reforma de 1890 e a 1 Exposio Geral de 1894 e mesmo as obras ex-
postas durante esses anos e incorporadas posteriormente ou simplesmente
adquiridas nos anos finais do sculo XIX para comporem a coleo da Es-
cola e que, atualmente, fazem parte do Acervo do Museu Nacional de Belas
Artes esto intrinsecamente relacionadas com as mudanas pensadas por
Rodolpho Bernardelli e pelos professores a ele vinculados para a moder-
nizao do sistema de ensino artstico da instituio. Analisar tais obras
dissociadas desse contexto de renovao da antiga Academia desvi-las
da sua histria, amputar parte da narrativa histrica que as constitui.

30
Contratado em Roma, em 18 de dezembro de 1891. ARQUIVO DO MUSEU DOM
JOO VI/EBA/UFRJ. Notao: 591. Ofcio do Ministro da Justia e Negcios Interiores,
de 12 nov. 1918.
31 Segundo a notao 591, anteriormente mencionada, Girardet se tornou professor efetivo
somente em 1912.
32
DAZZI, Camila. O moderno no Brasil ao final do sculo 19. Revista de Histria da Arte
e Arqueologia, v. 11, 2012. p. 87-124.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

290
REFERNCIAS

Documentos

AMODO, Rodolpho. Anexo Q. Relatrio apresentado ao vice-presi-


dente da Repblica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Alexandre
Cassiano do Nascimento, ministro do Estado Interino da Justia e Ne-
gcios Interiores, em maro de 1894.
ARQUIVO DO MUSEU DOM JOO VI/EBA/UFRJ. Ata de 12 set.
1894. Ofcio de Belmiro de Almeida ao diretor da Escola.
___ . Estatutos da Academia de Belas Artes referentes ao Decreto n. 1630,
de 14 de maio de 1855, Ttulo VII Das exposies pblicas.
___ . Livro de correspondncias referente a 4 ago. 1891.
___ . Livro de correspondncias referente a 26 set. 1892.
___ . Livro de correspondncias referente a 27 jul. 1894.
___ . Livro de correspondncias referente a 5 set. 1894.
___ . Livro de correspondncias referente a 16 abr. 1894.
___ . Notao: 591. Ofcio do ministro da Justia e Negcios Interiores, de
12 nov. 1918.
BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo P. Relatrio apresentado ao vice-pre-
sidente da Repblica dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. Antonio
Gonalves Ferreira, ministro de Estado da Justia e Negcios Interio-
res, em abril de 1895.
BIBLIOTECA DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Cat-
logo da Exposio Geral de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1894.
REGIMENTO DAS EXPOSIES GERAES DE BELLAS ARTES.
Rio de Janeiro: Companhia Industrial de Papelaria, 1895.

Livros e artigos

DAZZI, Camila. O moderno no Brasil ao final do sculo 19. Revista de


Histria da Arte e Arqueologia, v. 11, 2012.

Camila Dazzi

291
___ . Por em prtica e Reforma da antiga Academia: a concepo e a imple-
mentao da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes
em 1890. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Histria da Arte)
- PPGAV/UFRJ.
DUQUE ESTRADA, Luiz Gonzaga. Contemporneos. Rio de Janeiro: s/e,
1929.
SALA, Dalton. As origens histricas do acervo do Museu Nacional de
Belas Artes. In: LUSTOSA, Heloisa (org.). Acervo Collection Museu
Nacional de Belas Artes. So Paulo: Banco Santos, 2002.
SOUZA, Alcidio Mafra de (ed.). O Museu Nacional de Belas Artes. So Pau-
lo: Banco Safra, 1985. (Srie Museus Brasileiros)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

292
colees e museus

La Exposicin Internacional de Bellas Artes de 1910:


La formacin de una coleccin y su legado

Carlos Ignacio Corso Laos


Licenciado en historia; Estudiante de magster en historia.
Universidad de los Andes; Pontificia Universidad Catlica de Chile

La Exposicin Internacional de Bellas Artes, que ha sido uno de los


grandes hitos de la historia del arte chilena, fue una muestra artstica reali-
zada en 1910 para conmemorar el primer Centenario de la conformacin
de una junta de gobierno en el pas. Siguiendo el modelo de la poca, sta
cont con invitados de varios pases y tuvo el afn de acercar al pueblo chi-
leno a las Bellas Artes exhibiendo y luego adquiriendo para una coleccin
permanente obras de los que se consideraban como los grandes maestros
internacionales. A pesar de sta importancia, se ha investigado muy poco
sobre la muestra, especialmente en el plano de su organizacin donde, por
lo general, han primado las explicaciones reductivas. Es por dicho moti-
vo, y con gran inters por aportar a la comprensin de la historia del arte
en Chile, que el presente artculo tratar aunque, en virtud del espacio,
de manera bastante resumida acerca de las pinturas compradas en dicha
ocasin para la coleccin permanente del Museo de Bellas Artes chileno y
todo el proceso que ello implic.
A fin de responder a la interrogante planteada ha sido necesario volcar
la mirada sobre el Consejo de Bellas Artes, grupo organizador y entidad
nacional encargada por el Gobierno de dirigir la enseanza artstica y fo-
mentar el cultivo artstico del pas. En adicin, hubo que indagar acerca de
las delegaciones de Chile en el extranjero de las que se valieron los organi-
zadores para apoyar su labor de invitacin de artistas y, por tanto, de crea-
cin de un grupo de obras de donde seleccionar al momento de comprar
para la coleccin.
Consecuentemente, las fuentes de este trabajo han sido las actas del
Consejo, una memoria realizada por el mismo al final de la muestra a fin
de informar detalladamente al Gobierno sobre lo realizado y su recepcin,
cartas y comunicaciones oficiales y las memorias de algunos de los organi-

293
zadores. Sobre esto ltimo vale decir que, en ciertos casos ha sido imposible
revisar los documentos originales, mas se ha logrado subsanar el problema
gracias a reproducciones amplias de ciertos fragmentos de las obras en par-
te de la bibliografa seleccionada.
Vale aadir que sta investigacin, centrada en el funcionamiento ins-
titucional del Museo chileno y la formacin de su coleccin, tiene una ten-
dencia hacia lo europeo puesto que las fuentes son ms ricas en lo relativo
a aquel continente y el grueso de los artistas invitados pertenecieron al lado
opuesto del Atlntico.
Finalmente, me gustara agradecer especialmente a Juan Ricardo Cou-
youmdjian y a Isabel Cruz por las correcciones y comentarios hechos a la
investigacin original; a Marianne Wacquez y a Gloria Corts del Museo
Nacional de Bellas Artes, quienes tan amablemente gestionaron el acceso
a ciertos documentos; y a Amalia Mayol por la lectura de los borradores y
sus valiosos comentarios. A ellos y a todos quienes, de una u otra manera,
aportaron en esta investigacin va toda mi gratitud.
Por su finalidad, el Consejo tuvo mucha influencia en las polticas p-
blicas relacionadas al embellecimiento de Santiago y el crecimiento cultural
del pas. Fue gracias a la iniciativa de sus miembros especialmente de Al-
berto Mackenna Subercaseaux que se construy el Palacio de Bellas Artes
para albergar definitivamente el Museo nacional de Bellas Artes1. La idea
de inaugurar el nuevo edificio con una exposicin de las caractersticas y
magnitud de la estudiada tambin fue obra de la entidad, aunque cabe pre-
cisar que, si bien este grupo fue el organizador, lo hizo actuando en nombre
del Gobierno de Chile, lo que significa que esta fue una celebracin estatal
del Centenario y el ltimo responsable fue el Gobierno.
Para sacar adelante stos y otros proyectos, el Consejo oper grupal-
mente, pero tambin se vali de las influencias personales de sus miembros
que, vale decir trabajaban ad honorem y contaban, por su condicin social
o su fama como artistas, con una excelente reputacin y una amplia red de
contactos2.
Dado el espacio con que se cuenta, es imposible dar un panorama com-
pleto de todo el Consejo y su funcionamiento. Por lo mismo, me limitar a
1
LAFOND, G: La France en Amrique Latin, Plon-Nourrit et cia. Editeurs, Paris, 1922.
Pp. 110; y BONT, M: Medio siglo de vida artstica chilena, en Atenea, ao XL, CLII,
402. Concepcin, octubrediciembre 1963. Pp. 8384.
2
POIRIER, E: Chile en 1910. Barcelona, Santiago, 1910. P. 268.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

294
decir que entre los 19 hombres que conformaron al menos por un tiem-
po el grupo se distinguen tres grupos: uno de personajes pblicos con al-
guna sensibilidad artstica, otro de artistas y crticos de arte, y un ltimo de
asesores. La entidad no fue exactamente homognea en torno a las profe-
siones de sus miembros; hubo abogados, periodistas, agricultores, pintores,
escritores y mucho ms, sin embargo, el gusto por los estilos tendientes al
naturalismo fue un gran factor de cohesin.
Cabe agregar que el grupo de asesores era ms bien de apoyo y no
participaba en la toma de decisiones.
Como en todo comit, el Consejo de Bellas Artes cont con miembros
que tuvieron un protagonismo mayor. Para efectos de la Exposicin fue-
ron Alberto Mackenna Subercaseaux, nombrado Comisario general de la
misma en noviembre de 1909; Fernando lvarez de Sotomayor; y Ricardo
Richon Brunet, quien renunci a su puesto en el Consejo para asumir como
Secretario general de la muestra y delegado en Chile del Comit permanent
des expositiores franaises de Beaux Arts lextranger, posicin que le permiti
organizar la seccin francesa de la Exposicin de manera independiente3.
Fernando lvarez de Sotomayor, prestigioso pintor espaol, fue con-
tratado en 1908 por el Gobierno de Chile como profesor de la Escuela de
Bellas Artes y, adems de haber propuesto la idea de la Exposicin, era el
pintor ms reconocido dentro del grupo de artistas en el momento de orga-
nizar la muestra de pintura4. Por otro lado, tanto sus memorias como las del
Comisario General sealan su responsabilidad en la seleccin de artistas
a invitar para la seccin espaola de la muestra, lo que deja claro que su
influencia era mayor a la de otros miembros5.
La primaca de Mackenna y Richon Brunet queda bastante clara por
los puestos que desempeaban en la Exposicin. Mas, cabe aadir que Ri-

3
Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, seccin artes grficas. Museo Nacional
de Bellas Artes, Archivo histrico, vol. 10, Santiago, 11 de noviembre de 1909 (reproduccin
abril de 2010). Pp. 52.
4
ZAMORANO, P: El pintor F. lvarez de Sotomayor y su huella en Amrica. Universidad
de La Corua: servicio de publicaciones. La Corua, 1994. Pp. 151; y Actas Comisin
permanente de bellas artes 1904-1908. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histrico,
vol. 10, Santiago, 11 de noviembre de 1908 (reproduccin marzo de 2010). Pp. 95.
5
LVAREZ DE SOTOMAYOR, F: Memorias de un viejo pintor, documento indito en
manos de la familia del artista, Pp. 123124, reproducido parcialmente en ZAMORANO,
P: Op. cit. Pp. 165; y MACKENNA, A: Luchas por el arte. Barcelona, SantiagoValparaso.
1914. Pp. 55.

Carlos Ignacio Corso Laos

295
chon Brunet, afamado crtico de arte francs y pintor de mediano recono-
cimiento, fue tremendamente importante en la educacin del gusto chileno.
A travs de sus columnas en revistas siendo la ms conocida Conversan-
do sobre arte: el arte en Chile en Selecta de septiembre de 1910, repro-
ducida ntegramente en el catlogo de la Exposicin gui gran parte del
pensamiento artstico de los chilenos, tendiente, sobre todo, al neoclasicis-
mo europeo pero ms abierto de lo que se piensa comnmente al uso de la
mancha y tcnicas de corte impresionista y post-impresionista6.
Ms all del caso espaol, la influencia de lvarez de Sotomayor no
difiri en mucho al menos en una manera que sea posible probar de la de
los dems miembros en cuanto a la seleccin de pintores y la organizacin
de la Exposicin.
En ayuda de Alberto Mackenna, cuya labor de Comisario general lo
pona al frente respecto a la seleccin de artistas a invitar, estuvieron los
delegados internacionales. Estos eran miembros del cuerpo diplomtico
chileno en los pases a invitar y algunos agregados especiales seleccionados
especialmente por el Consejo de Bellas Artes. Los delegados, que adems
estaban en constante contacto con el crtico francs, deban actuar slo
como apoyo de Mackenna y los consejeros pertinentes, tal como explicitan
las bases generales de la muestra, aunque, por fallas humanas ligadas a la
lentitud de la comunicacin y los malentendidos, no siempre funcion de
esa manera7.
A grandes rasgos, el sistema a seguir era bastante simple. El Consejo
peda a los delegados que le suministraran una lista con los artistas de ma-
yor reputacin de los pases donde residan, luego el Consejo seleccionaba,
en base a dicha lista y las preferencias de los miembros, a todos los artistas
que deban ser invitados y, finalmente, los delegados repartan las invita-
ciones correspondientes, sin las cuales no se podra exponer en la muestra
chilena8. Hubo, adems, artistas que pidieron directamente al Consejo la
posibilidad de exhibir algunas obras; el ms notable de estos casos fue el de
Juan Francisco Gonzlez, cuyas obras, finalmente, no fueron colgadas, sin
6
RICHON, R: Conversando sobre arte: el arte en Chile. Selecta, ao II, 6. Santiago, 18
de septiembre de 1910.
7
Catlogo oficial ilustrado Exposicin Internacional de Bellas Artes. Barcelona, Santiago.
1910. Pp. 910.
8
Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, seccin artes grficas. Museo Nacional
de Bellas Artes, Archivo histrico, vol. 10, Santiago, 29 de septiembre de 1909, 6 de octubre
de 1909 (reproduccin abril de 2010). Pp. 27, 32.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

296
embargo este tema especfico se ha tratado en las Jornadas de historia del
arte del ao pasado9.
La simpleza del sistema expresada en el papel puede hacer pensar que
su correcto funcionamiento era algo fcil de lograr. Sin embargo, los pro-
blemas comunicacionales, ligados tanto a la tecnologa de la poca como
a las fallas humanas, causaron grandes fisuras en la prctica. La seccin
italiana de la Exposicin es uno de los ejemplos ms notables. Luego de
comunicaciones oficiales entre los delegados en el pas Mediterrneo y el
Ministerio de Relaciones chileno que demoraban varios meses en recibir
respuestas, se decidi que dichos delegados seran los encargados de orga-
nizar todo lo referente a Italia sin obligacin de preguntar al Consejo en
Chile ni a Mackenna, que se mova por Europa organizando las secciones10.
De la misma manera, Estados Unidos tuvo una organizacin autno-
ma porque lo requiri especialmente de esa manera. El Consejo acept esto
sin mayores problemas11. Sin embargo, en el caso de Inglaterra hubo una
tremendo error comunicacional que provoc una emisin excesiva de invi-
taciones. Al parecer los delegados entendieron mal la instruccin del Con-
sejo invitando a todas las escuelas a participar sin una mayor seleccin12.
Ms all de los casos particulares, el funcionamiento del sistema de
seleccin de artistas evidencia algo importante respecto a la formacin de
la coleccin. Todos los artistas invitados o al menos la mayora si se con-
sidera que pueden haber existido invitaciones por compromiso fueron del
gusto del Consejo y, puesto que casi todas las obras venan con sus respecti-
vos precios de venta (incluido un tem de precio final), el grueso del cuerpo

9
CORSO, C: El Consejo Nacional de Bellas Artes y la ausencia de Juan Francisco
Gonzlez en la Exposicin del Centenario. ABELLA, R. et al (eds.): El Sistema de las
artes: VII Jornadas de Historia del arte. RIL, Santiago, 2014. Pp. 9198.
10
Copiador de telegramas recibidos 1909. Ministerio de Relaciones Exteriores, Fondo
histrico, 388h, Italia; Memoria sobre la Exposicin internacional de Bellas Artes presen-
tada al Supremo Gobierno por la Comisin de Bellas Artes. Museo Nacional de Bellas Ar-
tes, Archivo histrico, vol. 1. Santiago, 31 de noviembre de 1911. Pp. 51; Carta de Santiago
Aldunate a Agustn Edwards, Roma, 30 de agosto de 1909, Archivo Museo Nacional de
Bellas Artes, s.f.
11
Carta de Alberto Mackenna a Anbal Cruz, Santiago, 11 de marzo de 1910, en Ministe-
rio de Relaciones Exteriores, Cartas recibidas de Estados Unidos, 1909-1910, P. 1-2.
12
Carta de Enrique Cuevas a Ricardo Richon Brunet, Londres 7 de febrero de 1910, Ar-
chivo Museo Nacional de Bellas Artes, s. f.

Carlos Ignacio Corso Laos

297
de pinturas era potencial opcin para formar la coleccin13. El Consejo, por
medio de esta seleccin, ya se haba asegurado, antes de la muestra, que ten-
dra una coleccin con el tipo de obras que prefera, lo que lleva a un hecho
fundamental. Si la coleccin tena como uno de sus objetivos que los artis-
tas chilenos pudieran concurrirla para recibir las inspiraciones de las obras
de los maestros (), sus responsables deben haber elegido, lgicamente,
piezas que consideraran de buen gusto, con lo que automticamente se ex-
cluan todas aquellas tendencias consideradas mamarrachos o, como Mac-
kenna llam a ciertos vanguardistas belgas decadentes14. Nada de lo que
llegara a Chile estara fuera de lo que los organizadores consideraran bello.
Como se ha estudiado en otra ocasin, esto tena que ver con una figuracin
naturalista pero se aceptaban ciertos aspectos tcnicos de vanguardia mien-
tras que no afectaran la realidad sino que vitalizaran el cuadro15.
Hay varios factores que evidencian que la formacin de la coleccin era
un objetivo clave para los organizadores. Uno de los ms interesantes es un
acuerdo firmado tres das despus de la inauguracin de la Exposicin que
se suma al reglamento de compras. El acuerdo fue anotado de la siguiente
manera en las actas del Consejo.

Mientras se firma una lista definitiva de las obras de arte de la Ex-


posicin Internacional que deban ser adquiridas para el Museo, se
acuerda que toda obra que se venda queda sujeta a la condicin de
que el Consejo pueda adquirirla preferentemente para el Museo,
en cualquier momento antes de la clausura de la Exposicin.

Esta condicin debe advertirse a los compradores por los encargados


de la oficina de ventas a particulares.

13
Ficha Manuel Adolphe Bain, Exposicin Internacional de Bellas Artes, Santiago de
Chile, septiembre de 1910, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s.f. Hay una buena
serie de fichas como esta correspondientes a la mayora de los pases considerados en la
Exposicin. Se ha seleccionado esta slo como ejemplo puesto que especficamente no tiene
un valor particular para la investigacin.
14 BALMACEDA, C: Discurso inaugural del Palacio y la Exposicin de Bellas Artes por
el Ministro de Instruccin Carlos Balmaceda reproducido en La Inauguracin del Palacio
de Bellas Artes. El Mercurio. Santiago, 22 de septiembre de 1910, P. 9; y MACKENNA,
A: Op. cit, P. 61.
15
CORSO, C: Op. cit, P. 93.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

298
Una vez formada la lista definitiva de los objetos que se desea adquirir
para el Museo, el acuerdo anterior se referir solo a los incluidos en dicha
lista16.
Como queda en evidencia, el Consejo de Bellas Artes realizara una
buena seleccin de las obras que deseaba y adjudicrselas era de impor-
tancia suficiente como para reglamentar especialmente su preferencia de
compra. Como se lee, no hay una referencia explcita a la fecha en que
deba terminarse la lista definitiva, lo que habla de un Consejo que no
slo asegura obtener las obras que desea sino que se da plena libertad para
elegir con calma.
No se sabe con certeza a cuanto ascenda el monto destinado por el
Gobierno para la compra de obras, sin embargo, se sabe que el Consejo
compr 103 pinturas al leo por un monto total de al menos 11.855,6 libras
esterlinas, una inversin no menor para la poca, sin mencionar el inmenso
ensanchamiento que signific para la coleccin del museo y el inmenso
valor que signific la renovacin pictrica de la coleccin17.
Antes de la compra sealada, el Museo contaba, al menos, con 59 pin-
turas al leo en su coleccin, entre obras compradas, donadas y enviadas por
pensionistas, lo que significa que la Exposicin del Centenario no slo fue
la gran oportunidad de renovacin de la coleccin, cuyas piezas databan,
incluso de principios del siglo XIX, sino que la compra estuvo cerca de
duplicar el nmero de telas que se tenan lo que posiblemente dio mucha
ms variedad a la coleccin18.
Adems, es necesario considerar que los gastos de traslado de las obras
fueron reducidos considerablemente gracias a la liberacin de cargos hecha
por las aduanas chilenas mientras que el Gobierno se encarg de los envos.
La reduccin de estos gastos signific que habra un poco ms de dinero
16
El destacado es mo. Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, seccin artes grfi-
cas. Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histrico, vol. 10, Santiago, 24 de septiembre
de 1910 (reproduccin abril de 2010). Pp. 172173.
17
Desgraciadamente no se cuenta con los precios de todas las obras chilenas compradas por
lo que ha sido imposible dar con la inversin total exacta para leos en la Exposicin. Si es
posible decir que la suma probablemente no se elevara mucho si se sumaran esos precios
puesto que, en general, las obras chilenas no se vendieron a precios extremadamente altos.
18
COUSIO, L: Museo de Bellas Artes. Catlogo general de las obras de pintura, es-
cultura, etc. Universo, Santiago, 1922. Dada la falta de rigurosidad con la que est hecho el
catlogo es imposible saber la tcnica con la que han sido realizados ciertos cuadros adquiri-
dos antes de 1910. Por lo mismo, se han contabilizado slo aquellos donde pueda asegurarse,
inequvocamente, que se trata de pintura al leo.

Carlos Ignacio Corso Laos

299
disponible para la compra de obras, pudiendo as optar por piezas de mejor
calidad.
Est claro, por otro lado, que Chile no era un pas con una gran cul-
tura artstica, por lo mismo los pintores que enviaron sus obras no eran,
tampoco, los ms reconocidos de sus respectivos pases. Joaqun Sorolla es
quizs uno de los ms notables de toda la muestra, sin embargo, gracias a
un testimonio guardado por Alberto Mackenna sabemos que fue prctica-
mente obligado por sus amigos a enviar un par de telas y que estas no eran,
tampoco, lo mejor de su taller19. En este aspecto cabra tambin hacer una
breve mencin a una de las grandes crticas de la historiografa contempo-
rnea a la Exposicin: su poca sintona con las novedades artsticas de su
poca. Conociendo el contexto artstico chileno, con una Escuela de Bellas
Artes que contaba con apenas 50 aos al momento de la Exposicin y un
correspondiente ambiente artstico ms bien conservador que se limitaba
an a seguir las tendencias en vez de encontrar su veta propia que se empe-
zara a dibujar cada vez ms clara desde el nacimiento de la generacin del
13 sera descabellado exigirle a los encargados de la seleccin que tuvieran
la mirada de nuestro tiempo. Como asegura Marco Bont ante quienes ya
en 1963 afirmaban que Chile perdi entonces una preciosa oportunidad
de adquirir algunas telas de Cezanne, Renoir, Van Gogh, Gauguin, etc.,
Mal se poda pedir al enviado chileno [Alberto Mackenna] la milagrosa
intuicin de que se anticipara al juicio de Pars20. Cada poca debe juzgarse
desde su propia realidad, evitando los anacronismos que llevan a este tipo
de afirmaciones. Chile no era un pas retrgrada al tiempo de la Exposicin
sino uno tremendamente imbuido en su contexto de pas latinoamericano
sin mucha tradicin artstica y que an buscaba entre Francia, Italia, Es-
paa, Alemania y, en menor medida, Estados Unidos su modelo a seguir.
Prueba del triunfo para el arte nacional de la Exposicin y la coleccin
ha sido la generacin del 13. Los jvenes alumnos que se asombraron con
la aparicin de la mancha en el leo y la vibracin de las nuevas tcnicas
fueron los mismos que, apenas unos aos despus, y con gran influencia de
Fernando lvarez de Sotomayor y Juan Francisco Gonzlez constituyeron
una de las grandes escuelas de la historia del arte chileno y quizs la primera
en pintar de manera propiamente chilena, rescatando los paisajes, la cultura
y lo propiamente chileno para plasmarlo en la tela.
19
MACKENNA, A: Op. cit. P. 56.
20
BONT, M: Op. cit. P. 89.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

300
A modo de cierre sera bueno balancear algunos hechos relevantes. Si
bien es cierto que la coleccin no fue todo lo innovadora que pudo haber
sido para el contexto mundial en ese momento cuyas razones han sido
explicadas pertinentemente, s puede afirmarse que se dio un paso impor-
tante en la plstica chilena. Sin aceptar el impresionismo puro, que muchos
de los miembros siguieron criticando, se fueron aceptando algunos de sus
avances tcnicos como lo demuestran los cuadros modernistas espaoles
que fueron adquiridos. Como se ha mencionado, esta renovacin fue uno
de los factores del nacimiento de una pintura cada vez ms chilena, donde la
vivacidad del pas era plasmada en la tela y no slo representada como una
imagen dormida.
Por otro lado, puede considerarse como una virtud el hecho de haber
podido formar una coleccin bastante a la medida de lo que se quera, lo que
habla de un sistema que, an con sus fallas y excepciones, funcion como
se quera.
Finalmente, aunque podra hacerse un estudio econmico ms exhaus-
tivo de las compras de obras para determinar si el Consejo tuvo que dejar
pasar ciertos cuadros por sus precios la muestra y la coleccin lograron su
cometido de dar a Chile un nuevo aire y el comienzo de un arte cada vez
ms propio.

BIBLIOGRAFA

Fuentes.

Actas Comisin permanente de bellas artes 1904-1908. Museo Nacio-


nal de Bellas Artes, Archivo histrico, vol. 10, Santiago, (reproduccin
marzo de 2010).
Actas Consejo superior de letras y Bellas Artes, seccin artes grficas.
Museo Nacional de Bellas Artes, Archivo histrico, vol. 10, Santiago,
(reproduccin abril de 2010).
BALMACEDA, C: Discurso inaugural del Palacio y la Exposicin de Be-
llas Artes por el Ministro de Instruccin Carlos Balmaceda reprodu-
cido en La Inauguracin del Palacio de Bellas Artes. El Mercurio.
Santiago, 22 de septiembre de 1910, P. 9.

Carlos Ignacio Corso Laos

301
Carta de Alberto Mackenna a Anbal Cruz, Santiago, 11 de marzo de
1910, en Ministerio de Relaciones Exteriores, Cartas recibidas de Esta-
dos Unidos, 1909-1910, Pp. 1-2.
Carta de Enrique Cuevas a Ricardo Richon Brunet, Londres 7 de febrero
de 1910, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s. f.
Carta de Santiago Aldunate a Agustn Edwards, Roma 30 de agosto de
1909, Archivo Museo Nacional de Bellas Artes, s.f.
Catlogo oficial ilustrado Exposicin Internacional de Bellas Artes. Barcelona,
Santiago. 1910.
Copiador de telegramas recibidos 1909. Ministerio de Relaciones Exteriores,
Fondo histrico, 388h, Italia.
Ficha Manuel Adolphe Bain, Exposicin Internacional de Bellas Artes,
Santiago de Chile, septiembre de 1910, Archivo Museo Nacional de
Bellas Artes, s.f.
MACKENNA, A: Luchas por el arte. Barcelona, SantiagoValparaso. 1914
Memoria sobre la Exposicin internacional de Bellas Artes presentada al
Supremo Gobierno por la Comisin de Bellas Artes. Museo Nacional
de Bellas Artes, Archivo histrico, vol. 1. Santiago, 31 de noviembre
de 1911.
POIRIER, E: Chile en 1910. Barcelona, Santiago, 1910.

Artculos y Bibliografa

BONT, M: Medio siglo de vida artstica chilena, en Atenea, ao XL,


CLII, 402. Concepcin, octubrediciembre 1963. Pp. 7899.
CORSO, C: El Consejo Nacional de Bellas Artes y la ausencia de Juan
Francisco Gonzlez en la Exposicin del Centenario. ABELLA, R.
et al (eds.): El Sistema de las artes: VII Jornadas de Historia del arte. RIL,
Santiago, 2014. Pp. 9198.
COUSIO, L: Museo de Bellas Artes. Catlogo general de las obras de pintura,
escultura, etc. Universo, Santiago, 1922.
LAFOND, G: La France en Amrique Latin, Plon-Nourrit et cia. Editeurs,
Paris, 1922.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

302
RICHON, R: Conversando sobre arte: el arte en Chile. Selecta, ao II, 6.
Santiago, 18 de septiembre de 1910. Pp. 223232.

Carlos Ignacio Corso Laos

303
colees e museus

Un caleidoscopio de recuerdos. Apuntes a propsito de los lbumes


personales del msico Anbal Aracena Infanta (1881-1951)

Carmen Pea Fuenzalida


Musicloga. Profesora e investigadora. Instituto de Msica.
Pontificia Universidad Catlica de Chile

PREMBULO

Diarios de vida, de viaje, lbumes fotogrficos o de recuerdos personales


de un artista son joyas para los investigadores y estimulan rpidamente la
imaginacin, ms an si pertenecieron a una persona poco desconocida en
nuestros das pero con resonancia otrora. Tal es el caso de msico Anbal
Aracena Infanta (1881-1951), de quien se conservan siete lbumes de
recortes, custodiados por su nieto Rodofo Surez1.
Un primer acercamiento a dicho material busc articular un perfil
biogrfico de su trayectoria creativa e interpretativa y dar cuenta de la
recepcin de su quehacer por parte del pblico en el periodo comprendido
entre 1900 y 1930, contextualizndolo en la vida musical chilena de
comienzos del siglo XX2. En el curso de la investigacin, la variedad
y cantidad de documentos que contienen los lbumes, detonaron
interrogantes vinculadas tanto al propsito que, entonces, pudo animar a
Aracena a elaborar tales libros, como tambin a la perspectiva de estudio
y al aporte que ese material u otros similares pueden proporcionar a la
musicologa y, por ende, a la historiografa musical.
Muchas publicaciones sobre msica y msicos chilenos se han nutrido
de lbumes de recortes o de recuerdos y de archivos privados e institucionales
como fuente de investigacin. Para mencionar aleatoriamente algunas:
Cronologa epistolar de Pablo Garrido y Roberto Puelma y la identidad

1
Agradezco el contacto de la musicloga Raquel Bustos con Rodolfo Surez y a l y su
familia por la generosidad y confianza de facilitarme los lbumes para su estudio.
2
Pea Fuenzalida, C.: Anbal Aracena Infanta (1881-1951). Perfil de una infatigable
trayectoria dedicada al Divino Arte: periodo 1900-1930. Anales del Instituto de Chile,
XXXII, Santiago: Instituto de Chile, 2013, pp. 151-181.

305
del msico chileno, de Juan Pablo Gonzlez3; el estudio Luigi Stefano
Giarda: Una luz en la historia de la msica chilena, materializado ms
tarde como libro con el mismo nombre, de Ivn Barrientos4; Nuevos
aportes al estudio de Pedro Humberto Allende (1885-1959), de Raquel
Bustos5; Palabra de Soro, de Roberto Doniez Soro6; Iconografa Musical
Chilena, de Samuel Claro y otros7, y el lbum de Isidora Zegers de Huneeus,
al cual me referir a continuacin.
En general, los lbumes y archivos han permitido fundamentalmente
articular un discurso sobre el msico, su produccin musical o las relaciones
con sus pares e institucionales; ofrecer a estudiosos documentos visuales
(otro modo de construir un discurso), como en la Iconografa; o bien, dar
conocer la voz de un artista, como sucedi con el libro de E. Soro. Sin
embargo, el estudio que acompaa a la publicacin del decimonnico
lbum de Isidora Zegers de Huneeus (2013), aporta los retos que implica el
trabajo con ellos. Al respecto, Josefina de la Maza destaca el escaso estudio
acadmico acerca de estos libro-objeto y como parte de su diagnstico
seala:

En el contexto chileno, el estudio de los lbumes no tiene un espacio


denido al interior de las artes y las humanidades. Si bien desde
instituciones vinculadas a la fotografa -e investigadores asociados a
ellas- se ha promovido y prestado atencin a este tipo de objetos, la
mayora de los estudios que se han realizado privilegian lecturas que
miran estos documentos en funcin de la historia de los fotgrafos
y sus estudios8.

3
Gonzlez, J.P.:Cronologa epistolar de Pablo Garrido. Revista Musical Chilena , XXX-
VII/160 (julio-diciembre), 1983. Pp. 4-46; y Roberto Puelma y la identidad del msico
chileno. Revista Musical Chilena, XXXVIII/ 162, (julio-diciembre), 1984, pp. 46-68.
4
Barrientos, I.: Luigi Stefano Giarda: Una luz en la historia de la msica chilena. Revista
Musical Chilena , L/186 (julio diciembre), 1999, pp. 40-72; y Luigi Stefano Giarda: Una luz
en la historia de la msica chilena. Santiago de Chile: Universidad Metropolitana de Ciencias
de la Educacin, 2006.
5
Bustos Valderrama, R.: Nuevos Aportes al Estudio de Pedro Humberto Allende (1885-
1959). Revista Musical Chilena, XLIV/174 ( julio-diciembre), 1990, pp. 27-56.
6
Doniez Soro, Roberto. 2011. Palabra de Soro. Santiago de Chile: Ediciones Altazor.
7
Claro Valds, Samuel, et al.. Iconografa Musical Chilena. Santiago: Ediciones Universidad
Catlica de Chile, 1989. 2 vols.
8
De la Maza, J.: Itinerarios de una vida: El lbum de Isidora Zegers de Huneeus, Santiago:
Ediciones. de la Direccin de Bibliotecas, Archivos y Museos, 2013. Vol. 2, p.9.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

306
Problematizando, la autora es certera en apuntar que, por sus
caractersticas, los lbumes han sido considerados como un gnero menor
al cual todava no se le ha prestado la debida atencin, pese a que son
un objeto de la memoria y un lugar en el que quedan registrados los
distintos itinerarios de una vida9, otorgndole, en denitiva, su condicin
de documento histrico y de memorabilia 10.
En efecto, abundan estudios acadmicos sobre lbumes fotogrficos,
por ejemplo, pero es limitada la bibliografa especfica sobre lbumes de
recortes scrapbook- o de lbumes de recuerdos. No obstante la archivstica
-y bibliotecas y centros de documentacin- han contribuido a sistematizar
ciertos rasgos, precisamente por la complejidad que implica su catalogacin.
En este punto se cruzan terminologas.
El Diccionario de la lengua espaola (DRAE), en su primera acepcin,
define el lbum como: Libro en blanco, comnmente apaisado, y
encuadernado con ms o menos lujo, cuyas hojas se llenan con breves
composiciones literarias, sentencias, mximas, piezas de msica, firmas,
retratos, etc. 11. Tambin, encabezando las significaciones, seala que el
archivo es un Conjunto ordenado de documentos que una persona, una
sociedad, una institucin, etc., producen en el ejercicio de sus funciones o
actividades12. Claramente, en la primera el nfasis recae en el objeto-libro
cuyo contenido incluso puede ser diverso y sin organizacin preestablecida,
en cambio en el segundo el archivo- el acento radica en la informacin
generada ordenadamente por un sujeto o entidad en la prctica de un
determinado hacer.
En qu mbito se encuentran los lbumes del msico Anbal Aracena
Infanta cuyas blancas pginas contienen documentos sobre sus actividades
profesionales, organizados cronolgicamente e incluso con la fuente
identificada?
Un estudio sobre archivos personales y familiares en la regin de
Murcia, Espaa, precisando terminologa y conciliando perspectivas de
varios autores, caracteriza el archivo personal en el cual se incluye los
9
De la Maza, op. cit., p 9.
10
Ibid., p.10. La autora llega a esta premisa ya que en su estudio considera de manera
productiva y crtica su posicin intermedia entre la palabra y la imagen, entre lo pblico y
lo privado, entre lo personal y lo colaborativo.
11
http://lema.rae.es/drae/?val=lbum (consulta 2-2-2015)
12
http://lema.rae.es/drae/?val=archivo (consulta 3-2-2015).

Carmen Pea Fuenzalida

307
lbumes- como la documentacin generada y acumulada por una persona
durante la realizacin de las tareas personales y profesionales, actividades
que pueden ser de distinta ndole y que dependen de la idiosincrasia del
individuo que las realiza, el cual organiza dicha documentacin segn su
propio criterio y necesidades13.
Esta definicin, entre otras similares, se enriquece significativamente
desde la reflexin filosfica y la teora crtica del arte Derrida, Foucault
o Hal Foster14, entre otros-. Por ejemplo, Anna Mara Guasch -cuyos
estudios se focalizan en artistas visuales contemporneos y su obra- es clara
en diferenciar el concepto de almacenar o coleccionar y el de archivo: Si
el almacenar o coleccionar consiste en asignar un lugar o depositar algo
una cosa, un objeto, una imagen- en un lugar determinado, el concepto
de archivo entraa el hecho de consignar15. Desde esta perspectiva,
considera que el archivo es un punto de unin entre escritura y memoria
-coincidiendo con De la Maza - y, como objeto, su manera de proceder no
es amorfa o indeterminada, sino que nace con el propsito de coordinar un
corpus dentro de un sistema o una sincrona de elementos seleccionados
previamente en la que todos ellos se articulan y relacionan dentro de una
unidad de configuracin predeterminada16. De ah la cualidad de territorio
frtil para todo escrutinio terico e histrico17.
En este marco, estimo que los lbumes elaborados por Anbal Aracena
Infanta constituyen un objeto de memoria, como sealan De la Maza y
Guasch. Siguiendo una tradicin decimonnica frecuente tanto en escritores
y artistas como en mujeres, Aracena elabor cuidadosamente lbumes,
consignando en ellos su trayectoria profesional. No obstante, paralelamente,
en esa construccin subyace tambin una intencin autobiogrfica18. Por

Belmonte Garca, A. E.:. Archivos personales y familiares de la regin de Murcia. Tejuelo,


13

N11, Murcia, 2011, p. 5.


Derrida, J.: Mal darchive: une impression freudienn. Paris: Editions Galile, 1995; Foucault,
14

M.: LArchologie du savoir. Pars: Gallimard, 1969; Foster, H.: An archival impulse.
October 110, otoo 2004, pp. 3-22.
15
Guasch, A. M.: Arte y archivo. Genealogas, tipologas y discontinuidades. Madrid: Akal,
2011, p. 10.
16
Ibid.
17
Ibid.
18
Artires, P.: Arquivar a prpria vida, Estudos Histricos, 11 /21, 1998, p. 11. Consulta
versin electrnica 7/02/2015, en http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/
view/287

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

308
otra parte, desde el mbito del aporte de dicho material a la historia de la
msica en Chile, los lbumes revelan una realidad ms diversa de la vida
musical de las primeras dcadas del siglo XX, que matiza y a veces difiere
del discurso cannico enraizado en la historiografa musical acadmica del
siglo XX.

ANBAL ARACENA INFANTA (1881-1951) EN EL CONTEXTO DE SU TIEMPO

Anbal Aracena forma parte de un grupo de creadores nacidos en las


ltimas dcadas del siglo XIX, pero cuya vida artstica se desarroll en el
siglo XX. Fue un msico de oficio, formado en la academia, y multifactico
profesionalmente: compositor, pianista, organista, profesor, director de
coros y orquestas escolares, editor y propietario de la revista Msica (1920-
1924). Se suma a lo anterior su capacidad como gestor y colaborador en
diversas actividades msico-sociales.
Naci en Chaaral en 1881 y realiz sus humanidades en el Liceo
Santiago de la capital (hoy Liceo Valentn Letelier), poca en la que inici
su estudios musicales de piano, rgano, teora, armona y otras asignaturas
en el Conservatorio Nacional de Msica (CNM en adelante)19. Fue un
alumno talentoso, concluyendo rpidamente su formacin pianstica e
ingresando como profesor al CNM en 1907, donde permaneci hasta
1917. En 1918 viaj a Buenos Aires y posteriormente continu su actividad
musical en forma independiente en Santiago.
En el plano composicional, aunque no se ha estudiado su produccin
creativa ni tampoco hay un catlogo de ella, se sabe que sobrepas el centenar
de obras20, muchas estrenadas en vida en conciertos pblicos. Estticamente,
algunos autores lo consideran un creador tradicional o eclctico21, mientras
para otros es un compositor de obras italianizantes22. Como intrprete, las

19
Uzctegui, E.: Msicos chilenos contemporneos (Datos Biogrficos e impresiones sobre sus
obras). Santiago: Imprenta y Encuadernacin Amrica, 1919, p. 171. Ver tambin Pea
Fuenzalida, 2013.
20
En el catlogo de la Biblioteca Nacional de Chile, figura Bendita seas Virgen de Lourdes
[para canto y piano] Op.192, Casa Amarilla,1942.
Pereira Salas, E.: La msica chilena en los primeros aos del siglo XX. Revista Musical
21

Chilena, XL/40 (verano), 1950-1951. p. 70.


22
Ver Pea Fuenzalida, op. cit., pp. 161-162; Santa Cruz, D.: Mi vida en la msica.
Contribucin al estudio de la vida musical chilena durante el siglo XX. (Edicin y revisin

Carmen Pea Fuenzalida

309
fuentes coinciden en que fue un dotado pianista y organista, difundiendo
en Chile numerosas obras para ambos instrumentos.
Como revelan sus lbumes, su visin de mundo lo llev a mantener
permanente contacto con distintos sectores y entidades de la sociedad de su
poca (Conservatorio, colegios, sociedades, centros artsticos y sociales, la
iglesia, etc.) para las cuales organiz eventos musicales y tambin particip
como intrprete. Por tal razn y por su profesionalismo artstico, goz de
amplio reconocimiento pblico23.
Aracena vivi el trnsito del siglo XIX al XX, perodo complejo
para el pas tanto histrica como musicalmente. En un plano general, las
dcadas de 1900 a 1930 estuvieron marcadas por distintos y superpuestos
acontecimientos sociales, polticos, ideolgicos y estticos, como bien
enumera Ivelic 24:

Lucha de clases, decadencia de la vieja aristocracia, emergencia


de la clase media, profundas desigualdades sociales y anhelo de
reivindicaciones, tensiones entre poderes del Estado, crisis del
catolicismo y aumento del laicismo positivista; revolucin y golpes
militares, inestabilidad gubernamental, crecimiento del socialismo,
nacionalismo en oposicin al cosmopolitismo, superposicin y
contradiccin de tendencias estticas: clasicismo, romanticismo,
realismo, naturalismo, posromanticismo, parnasianismo, simbolismo,
modernismo, impresionismo, postimpresionismo y vanguardismo.

Desde el punto de vista musical, la situacin no fue distinta.


Institucionalmente existi una fuerte tensin entre el CNM y el Teatro
Municipal con grupos independientes - Los Diez25 y, especialmente, la
Sociedad Bach- que propiciaron una renovacin del ambiente artstico.

musicolgica: Raquel Bustos Valderrama). Santiago de Chile: Ediciones Universidad


Catlica, 2007, p. 55; y Salas Viu, V.: La creacin musical en Chile 1900-1951. Santiago:
Editorial Universitaria,1951, p. 151.
23
Cfr. Pea, 2013.
24
Ivelic, R.: Crtica literaria e identidad , en Arte, identidad y cultura chilena (1900-1930),
(Fidel Seplveda: editor), Santiago: Pontificia Universidad Catlica de Chile, Facultad de
Filosofa- Instituto de Esttica, 2005, p. 67.
25
Los Diez estuvo conformado por escritores, pintores, escultores, arquitectos y msicos.
Entre estos ltimos figuran Acario Cotapos, Alberto Garca Guerrero y Alfonso Leng.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

310
Como ya se ha estudiado26, en sntesis, el objetivo era erradicar lo que
llamaron el italianismo imperante, entendiendo por tal no solo la pera
italiana como gnero, sino el estilo romntico y tardoromntico entronizado
en el pas, tanto en lo creativo como en la difusin musical. La motivacin
fue, entonces, purificar27 el repertorio, contaminado por la lrica italiana
-muy en boga por esos aos-, y dar paso a una nueva esttica moderna.
La ofensiva de cambio, sustentada por la Sociedad Bach y liderada por
Domingo Santa Cruz, culmin con la reforma del Conservatorio. En la
prctica musical esto signific promover una orientacin hacia la msica
instrumental, de concierto (sinfnica, de cmara y solista), y una esttica de
cuo principalmente germano, desconociendo, por tanto, el pasado musical
decimonnico. Como discute Izquierdo28, a propsito de un estudio sobre
el canon musical, a partir de entonces el discurso se construy bajo esos
paradigmas y, a travs de los textos fundamentales sobre historia de la
msica en el siglo XX, como la Creacin Musical en Chile 1900-1951 de
Salas Viu y La msica chilena en los primeros cincuenta aos del siglo
XX de Eugenio Pereira Salas, de la misma poca29,

se fue con firmeza asentando la idea de que la msica chilena


seria -o ms bien, seriamente creada- naci despus de 1910, con
el surgimiento de la Sociedad Bach y del Grupo de los Diez. As,
la historiografa musical local simplemente dej atrs a aquellos
compositores no adscritos al programa generado con la reforma al
Conservatorio de Domingo Santa Cruz en 192830.

En consecuencia, un grupo creadores qued marginado de la divulgacin


de su produccin composicional en la esfera oficial. As, debieron agenciar
sus propias formas de desarrollo profesional y espacios para difundir su
26
Pea Fuenzalida, C.: pera decimonnica: al banquillo de los acusados. Resonancias,
n 29 (noviembre), 2011, pp. 57-71; Izquierdo, J. M.: Aproximacin a una recuperacin
histrica: compositores excluidos, msicas perdidas, transiciones estilsticas y descripciones
sinfnicas a comienzos del siglo XX. Resonancias, n 28 (mayo), 2011, pp. 33-47.
27
La presentacin del primer nmero de la revista Los Diez seala: Si en la seccin de crtica
se censura o se aplaude, slo lo haremos por dar forma a un noble anhelo de purificacin
artstica. Los Diez, Los Diez [presentacin], Los Diez, 1I1, septiembre,1916, snp.
28
Izquierdo, op. cit., pp. 33-34.
29
Pereira Salas, op. cit.
30
Izquierdo, op. cit., p.34.

Carmen Pea Fuenzalida

311
arte. Tal fue el caso Anbal Aracena Infanta, Enrique Soro, Luigi Stefano
Giarda, Juan Casanova Vicua, Roberto Puelma, Raoul Hgel, Celerino
Pereira, Javier Rengifo, Mara Luisa Seplveda y Pedro Valencia Courbis,
entre otros. No obstante, cabe decir que varios de ellos tambin fueron
intrpretes ejecutantes o directores- y, en ese plano, s reconocen su talento
y aporte a la difusin del repertorio serio autores como Salas Viu, Pereira
Salas e incluso Santa Cruz31.

LOS LBUMES DE ANBAL ARACENA

Los siete lbumes que se conservan n 1, 2, 3, 8, 11, 12 y 1432-


tienen un formato nico. Son libros de 23.5 x 28 cms., con 50 a 60 pginas
blancas, tapas gruesas color rojo, con la inscripcin Anbal Aracena Infanta
en el lomo y el nmero correspondiente. Cada uno abarca un periodo de
tiempo, comenzando el primero a partir de 1896. Como se observa en la
numeracin, algunos lbumes no estn disponibles, razn por la cual de
ciertos aos no hay noticias v.gr. 1909-1913 1918. Por otra parte, en
el ltimo - aunque contiene documentos de la dcada de 1930- hacia el
final se rompe cronologa e incluye informaciones anteriores e incluso en
muchos ya no se indica la fecha.
El total de documentos supera los setecientos. Todos corresponden a
actividades artsticas pblicas como msico, ya sea compositor, intrprete,
profesor, director, organizador, etc. Salvo un par, no hay fotos u otra
evidencia de testimonios familiares. Esto valida la intencin de registrar su
trayectoria artstica y, por ende, autobiogrfica.
Los lbumes contienen principalmente recortes de prensa, programas
de mano de conciertos y veladas, avisos de eventos en los que particip
u organiz. En menor medida, invitaciones que envi y recibi, algunos
folletos con publicaciones que Aracena realiz a otros compositores en
diarios o revistas, tres cartas y un carn de baile.

31
Por ejemplo, Enrique Soro: pianista; Luigo Stefano Giarda: violonchelista y director de
orquesta; Anbal Aracena: pianista y organista; Juan Casanova Casanova V.: director de
orquesta; Javier Rengifo: pianista y director. Salas Viu, op. cit.; Pereira Salas, op.cit; Santa
Cruz, op.cit.
32
Coleccin privada de Rodolfo Surez, en adelante CPRS.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

312
Entre los textos de prensa hay breves informaciones sobre un concierto,
una obra recin compuesta o por editarse, o su gestin y(o) participacin
en alguna actividad, audicin o festividad musical, incluyendo a veces el
programa musical. Los comentarios a sus conciertos son ms extensos y
casi siempre aluden tanto a la interpretacin como tambin al ambiente de
la audicin y la recepcin del pblico.
El estilo de escritura de los textos ms extensos es sencillo y,
con frecuencia, expresivo. Hay uso de metforas, frases laudatorias y
observaciones sobre el pblico o el clima del conciertos o celebracin. Son
comunes expresiones tales como: las distinguidas discpulas del maestro
Aracena, el selecto programa, las francas simpatas de que goza el
inteligente maestro33, el joven y distinguido artista, verdadera joya del
arte chileno34, el conocido maestro Anbal Aracena Infanta ejecut ayer
magistralmente 35, la selecta concurrencia, el distinguido y numeroso
auditorio, la luminosa antorcha de la msica y la poesa, entre otras.
El nmero de programas de mano que contienen los lbumes es
abundante y su factura es simple: papel corriente y sin mayores ilustraciones.
Usualmente proporcionan informacin bsica: lugar, hora, da y ao -a
veces-, el nombre del organizador o patrocinante, y en su interior los ttulos
y compositores de las obras junto al nombre de los intrpretes. Cuando se
incluyeron breves representaciones teatrales se mencionan los nombres de
los actores muchos de ellos aficionados-, pero con frecuencia se omite la
autora de las obras.
En los documentos figura un abanico de situaciones y acontecimientos
que motivaron la presencia de msica, dando cuenta de la importancia
que sta tuvo para la sociedad. Para mencionar algunas: aniversarios
de instituciones y de personas de relevancia social, efemrides religiosas
y civiles, recepciones privadas, eventos pblicos de caridad, reuniones
deportivas, inauguraciones, congresos profesionales, conmemoraciones,
e incluso catstrofes. Esto se revela en las veladas artsticas, literarias,
musicales y dramtico-musicales, tanto de establecimientos escolares
como de sociedades y otras agrupaciones; en las festividades religiosas y
audiciones de msica sacra; en funciones de gala, fiestas, actos y conciertos

33
lbum 3 de Aracena, CPRS.
34
Ibid.
35
Ibid.

Carmen Pea Fuenzalida

313
de beneficencia; en eventos deportivos; en audiciones conmemorativas36, y
en los conciertos anuales ofrecidos por Aracena, siempre muy publicitados.
En esas ocasiones las programaciones fueron diversas. Algunas
tuvieron el formato del concierto tradicional y otras ms cercanas a una
funcin o a un espectculo. En las primeras, principalmente se interpret
obras paradigmticas del repertorio clsico-romntico europeo. Por
ejemplo, para mencionar algunas sinfnicas y de cmara, como pianista
Aracena estren en Chile obras seeras como la Fantasa para piano, coro y
orquesta, Op. 80, de Beethoven37, el Concierto sinfnico N 5 en Do menor,
Op. 123, de Henry Litolff38 o el Septuor, Op. 65, de Camille Saint-Sans39
y organiz conciertos en los que ejecut el Concierto Imperial de Beethoven
o el Concierto en Re Menor de Mendelssohn40. Por el contrario, las segundas,
bajo la modalidad de veladas artsticas o literarias, fiestas o concierto a
beneficio u otro evento social, fueron ms miscelneas, con una seleccin
de varias piezas musicales breves, de gusto del pblico. Comnmente
incluyeron fragmentos de peras de G. Puccini, G. Verdi y R. Wagner
-en transcripciones para piano, piano y otro instrumento, con y sin voz-,
polonesas de F. Chopin, numerosas romanzas y canciones de autores como
E. Grieg, R. Schumann, F. Mendelsshon, F. Liszt, entre otros, y tambin
de compositores considerados como menores41. En algunos casos no
faltaron los himnos y los populares cupls o valses de distintos autores y
hasta un baile social para culminar el evento. Adems, en ocasiones hubo
discursos, lecturas o recitaciones y hasta la representacin de una comedia
o un juguete cmico -al final de la primera parte, la segunda o en ambas- o
la proyeccin de un film. En el repertorio de muchas de estas audiciones

36
Por ejemplo, los 100 aos de la muerte de Beethoven, en 1927, y los 250 del nacimiento
de Johann Sebastian Bach, en 1935.
37
El Mercurio, 23 VIII [IX], 1914. Sin duda hay error en la fecha manuscrita del mes ya que
el concierto se realiz el 21 de septiembre. lbum 3 de Aracena, CPRS.
38
[La] Unin, 20 VI, 1915; [sin fuente], 25 de julio, 1915; El Mercurio, 3 agosto, 1915.
lbum 3 de Aracena, CPRS.
39
C.H.S. [Carlos Humeres Solar]. Los conciertos del maestro Aracena Infanta, El
Mercurio, 17 de diciembre, 1935. lbum 14 de Aracena, CPRS.
40
La Nacin, 17 de diciembre, 1935; El Imparcial, 16 de diciembre, 1935; Las ltimas
Noticias, 17 de diciembre, 1935; La Discusin (Chilln), 21 de enero, 1936. lbum 14 de
Aracena, CPRS.
41
Trmino utilizado en algunas enciclopedias, diccionarios e historias de la msica del siglo
pasado para designar a msicos que no tuvieron la notoriedad de los grandes maestros.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

314
es patente la reminiscencia de conciertos decimonnicos ofrecidos por el
CNM y sociedades musicales de todo el pas, a los cuales asisti la elite.
No obstante, comienzos del siglo XX, precisamente estos programas fueron
duramente criticados por los msicos reformadores, por considerarlos no
solo obsoletos sino tambin indignos en msicos profesionales42.
Especial mencin merecen los programas msica religiosa, por una
parte, por la adhesin que tuvieron por parte de la poblacin y, por otra, por
la afinidad e importancia que esta msica tuvo en la trayectoria de Aracena,
como creador y organista.
En las primeras dcadas del siglo XX Chile fue un pas eminentemente
catlico (adems, hasta 1925 existi el vnculo Iglesia-Estado) y las fiestas
religiosas se conmemoraron con gran solemnidad musical en los colegios
confesionales e iglesias ms importantes. Aracena cre obras, por ejemplo,
para las comunidades escolares en las que fue profesor, y prepar coros,
orquestas y ejecut como intrprete solista y acompaante en numerosas
oportunidades43. Tambin compuso para masivas celebraciones en la
Catedral de Santiago como Santa Cecilia, patrona de la msica- y, con
gran aceptacin del pblico, program nutridos conciertos como organista
de la Baslica de la Merced. Como muestra, en diecinueve audiciones
ofrecidas en dicha iglesia en 1930, ejecut 123 obras de 64 compositores
diferentes. J. S. Bach se encuentra prcticamente en todas ellas (ms de 30
obras)44. Ese fue uno de los compositores preferidos [d]el primer organista
chileno, como lo llam Uzctegui45.
Tambin los lbumes informan sobre los numerosos msicos que
compartieron el escenario y(o) colaboraron junto con Aracena en distintas
oportunidades46. Al respecto, se observan dos aspectos relevantes: por un
lado, la frecuente participacin tanto de intrpretes profesionales como

Cfr. Spikin-Howard, A.: El por qu del fracaso de la enseanza musical en Chile,


42

Marsyas, I/1, (marzo), 1927, p. 36.


43
Entre los principales se encuentran: Colegio de los Padres Franceses, Colegio San Agustn,
Colegio San Pedro Nolasco y Colegio San Ignacio. Adems, program y colabor en actos
literario-musicales, reparticiones de premios, concursos, aniversarios y celebraciones de
autoridades.
44
Librillo suelto en lbum 11 A de Aracena, CPRS.
45
Uzacategui, op. cit., snp.
46
Entre muchos, figuran: Luis Sandoval (profesor y director), Enrique Soro (pianista y
compositor; Alfredo Padovani ( director y compositor), Lydia Montero (violinista),
Emmanuel Martnez (cantante), Amrico Tritini (pianista), Pedro Navia (cantante).

Carmen Pea Fuenzalida

315
tambin de msicos en formacin y aficionados y, por otro, el alto nmero
de mujeres.
La tajante divisin entre profesionales y aficionados que
paulatinamente se fue estableciendo es difusa en las primeras dcadas del
siglo XX. Fue comn que maestros y alumnos, as como msicos de bandas y
orfeones prestaran su cooperacin en presentaciones musicales ms masivas
o populares -como las comentadas ms arriba-, pero tambin fue usual que
estudiantes aventajados de un profesor tuvieran un papel interpretativo
importante en los conciertos tradicionales. Entonces todava fue un signo
de ilustracin, cultura o bien visto ejecutar instrumentos o cantar. Ms
an para las mujeres, que conforme a la tradicin decimonnica, recibieron
clases de msica, baile, canto e interpretaron msica como parte de su
formacin47. No obstante, ellas tambin encauzaron sus intereses en la
docencia privada y en el CNM- e incluso algunas se aventuraron en la
composicin y publicaron obras48.
No menos significativa es la galera de escenarios o espacios
representados en los lbumes. Salas y salones de sociedades varias de
Socorros Mutuos-, academias, crculos sociales y artsticos, colegios y
escuelas, hoteles junto a iglesias y numerosos teatros, en especial de la
capital, acogieron las diferentes veladas, actos, fiestas musicales o dramtico-
musicales y conciertos. Entre los teatros ms recurrentes se encuentran:
el Teatro Santiago, Teatro del Conservatorio Nacional de Msica, Teatro
Municipal, Teatro Novedades, Teatro Miraflores, Teatro Victoria y Teatro
Unin Central.

PERSPECTIVAS

El estudio vinculado especficamente a Aracena y a los lbumes es un


trabajo en proceso; falta mucho por decir. A diferencia de varios msicos de
47
Una estadstica de la poblacin escolar del Conservatorio de Msica y Declamacin
indica que en 1911 haba 196 hombres y 523 mujeres. Sandoval, L.: Resea histrica del
Conservatorio Nacional de Msica y Declamacin 1849-1911. Santiago Imprenta Gutenberg,
1911, p. 34.
48
Este tema es ampliamente abordado por Bustos Valderrama, R.: La mujer compositora y
su aporte al desarrollo musical chileno. Santiago: Ediciones Universidad Catlica de Chile,
2012; y Merino Montero, L.: Los inicios de la circulacin pblica de la creacin musical
escrita por mujeres en Chile. Revista Musical Chilena, LXIV/213 (enero-junio), 2010, pp.
53-76.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

316
su tiempo, fue una persona de pocas palabras; en un par de textos de prensa
l mismo lo seala y lo ratifican las contadas entrevistas que concedi. En
todas ellas sus palabras son escuetas y mesuradas. Por tal razn, bien se
puede aventurar que ese rasgo de su personalidad lo incentiv a elaborar sus
lbumes, dejando, de este modo, que ellos hablaran por l.
Los lbumes evocan un caleidoscopio. Aracena atesor y consign en
ellos un cmulo de recuerdos de su trayectoria artstica. Son fragmentos,
una seleccin de episodios, escogidos segn por su propio criterio, subjetivo,
pero tambin iluminan sobre distintos escenarios reales entendidos como
lugares y circunstancias- de circulacin de la msica en las tres primeras
dcadas del siglo XX. Dependiendo del prisma de la mirada y del anlisis
de la documentacin es posible conocer, comprender y (re)construir el
pulso de una actividad o faceta del quehacer musical capitalino a veces
sesgada, parcial o definitivamente ausente en la literatura cannica, tanto
en lo relativo al desarrollo profesional de los msicos como en cuanto a
repertorio creado y comunicado pblicamente.
En el curso de esta comunicacin, en varias ocasiones se hizo referencia
a la vida musical. Como bien seal en una ocasin el compositor
Fernando Garca, sta involucra desde el msico hasta quien vende discos
o la entrada al teatro. Desde esa perspectiva, estos lbumes y otros todava
inexplorados contienen un rico universo de documentos que, junto con
proporcionar datos duros, invitan a incursionar en lneas investigativas que
profundicen, por ejemplo, en prcticas de sociabilidad, redes de circulacin
de la msica, asociaciones entre los msicos (muchas veces ms solidarias
que propiamente musicales), apreciacin de la prensa sobre la msica y los
msicos, la funcin y aporte de los aficionados, el papel de las mujeres en
la prctica musical o los vnculos entre las msicas popular y seria- entre
otros. Todos son temas que, en definitiva, adems pueden contribuir a un
dilogo ms fructfero entre el pasado y el presente.

BIBLIOGRAFA

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lbumes de Anbal Aracena Infanta. Coleccin privada de Rodolfo Surez
Aracena (CPRS).
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Carmen Pea Fuenzalida

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sobre sus obras). Santiago: Imprenta y Encuadernacin Amrica, 1919.

Carmen Pea Fuenzalida

319

colees e museus

Palotes

Justo Pastor Mellado


Profesor Seminario de Titulo. Escuela de Arte.
Universidad Diego Portales

En el peridico La Tercera de la Hora de Santiago de Chile del 6 de


septiembre del 2010, Rodrigo Miranda -periodista cultural- publica una
entrevista realizada a Eugenio Dittborn, a propsito de su exposicin de
Pinturas Aeropostales en el Museo de Artes Visuales. En la introduccin
de las preguntas, Miranda seala dos cosas que son de inters para la
determinacin del carcter de una polmica-de-obra que tiene lugar en
la coyuntura plstica chilena de 1983-1987. Lo primero que sostiene es
que en 1974, Eugenio Dittborn decidi no dibujar ms a mano alzada y
cre una mano ortopdica -una expresin de Enrique Lihn- compuesta
de instrumentos de dibujo tcnico con el objetivo de reprimir cualquier
emotividad de su gesto. Y luego le pregunta a Dittborn sobre el cambio
de estrategia que le significa dejar de trabajar con obras pesadas. Ni
siquiera menciona la nocin antagnica de obras livianas. Dittborn le
responde de inmediato que esas obras pesadas eran in-transportables. Y
agrega: Mi ltimo trabajo importante realizado sobre una superficie tan
pesada como extensa y tan rgida como frgil fue mi envo a la Bienal de
Sydney en abril de 1984.
La afirmacin de Dittborn sobre el abandono del dibujo a mano alzada
es preciso tomarla en lo que vale; es decir, que jams dej de dibujar a
mano alzada (en el privado de su produccin de obra), mientras realizaba su
programa ortopdico (de disposicin pblica). Ms bien, hay que entender
que en paralelo, la ortopedia vigilaba el alzamiento de la mano y que
este ltimo se regulaba de acuerdo a unos procedimientos rigurosos, que
tomaban el trazo como unidad grfica mnima de enunciacin1.
LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME. es una pieza
de Dittborn, realizada (aprox.) en 1987. La primera dificultad que debe

1
Mellado, Justo Pastor, Mano cortada, In Dos textos tcticos, Ediciones Jemmy Button
Ink, Santiago de Chile, 1998.

321
ser sorteada es que se trata de un envo por correo; es decir, de una carta
dirigida por Dittborn a un miembro de la comunidad artstica santiaguina
con quien est debatiendo acerca del carcter de su propio trabajo, hasta
ese momento. Dittborn responde a travs del envo por correo de un
dibujo, hacindole saber a su destinatario cual es su escena de origen,
donde el palote es la marca de una retraccin sentimental. No hay
narracin epistolar, sino una disposicin de signos que deben ser ledos
por el receptor como un manifiesto ideo(pro)gramtico. Esta es la razn
de por qu sealo la existencia de una polmica desplegada desde las obras,
poniendo de relieve los trminos de un conflicto formal. Mi propsito es
entregar antecedentes suficientes que permitan reconstruir la escena de la
polmica referida, prefigurando las pruebas que me autorizan a sostener que
el Sistema Dittborn precede no solo cronolgica, sino conceptualmente a
la instalacin de la estrategia de la aeropostalidad, que desde hace algunos
aos a esta parte se ha convertido en el canon interpretativo acerca de la obra
dittborniana. Resulta sorprendente, en este sentido, que todos los crticos
que han acudido aportar su auxilio a la preeminencia de la aeropostalidad,
desestimen el perodo de formacin in(d)icial de la obra dittborniana y
omitan sistemticamente las pruebas que demuestran la existencia de
un proceso de construccin de obra, cuya modelizacin ha resultado ser
ejemplar para la constitucin de un nuevo campo de productividad en la
escena chilena.
Sobre una lmina de cartn -que ha servido de soporte a un block de
papel borrador fiscal-, Eugenio Dittborn dispone una serie de palotes,
marcados no directamente por un lpiz, sino que su intervencin ha sido
mediada por la aplicacin de un papel calco que ha cubierto la lmina de
cartn, sobre el que se ha ejercido la presin de un lpiz. Una vez retirado
el papel calco aparece la inscripcin resultante, producto del traspaso. Este
gesto apela a enfatizar el valor que tiene para Dittborn el argumento del
traspaso como un momento tcnico de proyecciones conceptuales, en el
que Dittborn se invierte para construir una distancia crtica, a travs de la
cual ratifica su preocupacin por las ortopedias del traspaso mecnico de
la imagen. Sin embargo, la distancia se ha construido al dejar en evidencia
la ausencia del papel original que es colocado sobre el papel calco. De este
modo, Dittborn instala la preeminencia del papel que hace (la) falta, para
autorizar el rol sustituto del papel carbn que es, por as decir, ascendido a un
rol de original. Y luego, el propio papel carbn es dejado de lado, excluido,

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

322
deportado, como si se constituyera como la prueba de una prueba que ha
sido preciso escamotear, para dejar en suspenso el andamiaje tecnolgico
de la memoria grfica como la iniciativa de un traspaso habilitado por sus
propias condiciones de registro y de reproduccin.
Un palote es un trazo recto y vertical de escritura que se realiza en
papel pautado cuando se est aprendiendo a escribir. Sin embargo, en esta
lmina de Dittborn los palotes estn inclinados, un poco hacia la derecha,
como si anticiparan la condicin de una impresin tipogrfica en itlica.
Resulta sorprende cunto los crticos de la posteridad cercana omiten la
sobredeterminacin tipogrfica en la obra editorial de Dittborn. Es decir, en
una obra que se concibe a si misma como una gran puesta-en-edicin, que
articula el carcter combinado y desigual de las polticas de transferencia.
En alguna ocasin, cercano a la fecha de que hablo, Dittborn declara no
pinto, imprimo. Lo que equivale a decir, yo transfiero. De ah, su afeccin
por la letraset y los dispositivos de traspaso grfico, sobre todo en 1981,
cuando edita un libro magistral, que jams ha sido publicado: UN DIA
ENTERO DE MI VIDA.
Mi hiptesis es que en este libro, comenzado en 1979 (aprox.),
Eugenio Dittborn expone la teora que sostiene su sistema de obra,
desplegando sus argumentos scrito-visuales sobre una materialidad que
recusa la ideologa del papel blanco, al hacer empleo de los papeles de
ms baja calidad, tales como papel de envolver, papel secante, papel semi
acartonado (que en Chile tomaba el nombre de papel cartula), cartn
gris, por mencionar algunos. En Dittborn, es preciso situar la importancia
que adquiere el cartn piedra, que es el cartn de ms baja calidad; pero
sobre todo, porque es el producto que ms se acerca al secado de una pulpa
grosera, todava tibia al pasar por los rodillos de la mquina en el molino
de papel. Pues bien: sobre estas pginas, Dittborn evoca la teora de Locke
segn la cual el hombre carece de ideas innatas. Lo cual constituye una
humorada terica para insistir en el hecho de una pgina en blanco est
sobrecargada de sentido; que en definitiva, no existe la pgina en blanco,
sino esta pgina sobre la que la cultura ya ha sancionado su existencia, como
superficie de recepcin de los fragmentos y recortes de revistas, fotocopias
de fotografas encontradas, fotocopias de fotografas de fragmentos de su
propia obra, fotocopias de fragmentos de libros, sobre las cules escriba
(o haca escribir) con pluma y con tinta china, a veces roja, a veces negra,
refranes y lugares comunes. En otras pginas, escriba a mquina (en alta),

Justo Pastor Mellado

323
textos descriptivos sobre las condiciones de produccin del propio libro,
as como transcripciones de algunos textos de Ronald Kay, poeta y escritor
que haba escrito, ya en esa fecha, los mas relevantes textos sobre su obra
de 1978-19802.
En relacin a lo que interesa para mi propsito, hay decenas de pginas
en las que Dittborn transcribe a mquina, utilizando una IBM elctrica
de bola, cuyos modelo dispona de un carrete que contena una cinta
de carbn y una cinta correctiva. Sin embargo, la cinta de carbn tena un
problema de seguridad, ya que poda leerse en la cinta el texto que se haba
escrito, ya que las letras aparecan claras sobre un fondo negro. Por esta
fecha, podemos encontrar obras de Dittborn en las que emplea la cinta de
estos carretes, disponindolas como pie de pgina a ttulo de zcalo de la
imagen.
En la lmina de los palotes, de 1987, Dittborn escribe el ttulo con
esta mquina, en maysculas, y deja en minscula la frase una calcografa
de eugenio dittborn. En 1987 reproduce el mismo gesto programtico ya
planteado en 1981, en UN DA ENTERO DE MI VIDA, pero invierte
los trminos, en que ocupa como firma efectiva la escritura mediante el
empleo de una IBM elctrica y deja para la argumentacin pre-textual el
efecto de lo hecho a mano, mediante los palotes inclinados puestos all
para sealar la inexistencia de una pauta.
En los cursos de dibujo en la escuela de arte (antigua) se haca completar
a los estudiantes de primeros aos, cuadernos enteros de palotes a mano
alzada, de diversos grosores, como ejercicio elemental. Esta costumbre dej
de ser practicada hace muchos aos. Pero recuerdo que los estudiantes
deban llegar cada lunes con miles de palotes -de distintos grosores-
dibujados durante la semana. De ah la importancia de los palotes en los
comienzos de la caligrafa, en el entendido que escribir, en el fondo, es
practicar un tipo de dibujo especial, indicial e inicializante.
Para terminar, Dittborn hace referencia a un espacio de restriccin
ejemplar, como es el espacio carcelario, pero no emplea el trazo horizontal
que marca la completacin de un perodo, dejando establecida la hiptesis
sobre la propia prctica del dibujo y de los procedimientos que le
corresponden, como un espacio de restriccin ejemplar. Lo que importa,
en la coyuntura de 1987, es el recuerdo del uso programtico del palote,

2
Kay, Ronald. Del espacio de ac, ediciones V.I.S.U.A.L, Santiago de Chile, (1980).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

324
en Dittborn, para designar la eficacia de su propia escena de origen. (En
todos sus trabajos, esta cuestin est presente: lo nuevo es el acontecimiento
de un retorno; que es el retorno de los problemas que ha planteado en su
libro de 1981).
El trazo a mano alzada es la sola novedad que Dittborn puede afirmar
en el debate cifrado que sostiene con otros artistas, en la coyuntura de
1988, en el momento de preparar su exposicin de Pinturas Aeropostales
en el Centro Cultural Miraflores, de Lima. Sin embargo, se trata de la
mano alzada en su grado cero de expresin. Eso es un palote: escena
de origen de la escritura. Todo eso posee, en el sistema dittborniano un
lugar eminente, siempre habilitado por una mediacin; de ah que los
palotes sean realizados sobre papel calco, porque con esto remite a la
asociacin con el sistema fiscal de la reprografa. Lo que la dictadura militar
ha puesto en crisis es el modelo de la fiscalidad anterior, sobre cuyo soporte
grfico Dittborn re-edita los indicios de una memoria averiada, en cuya
reproduccin el papel (del) Original ha desaparecido.
El papel calco juega su rol en el universo de la dactilografa, realizado
en un espacio de oficina pblica. Esta es una sutil y distante referencia del
artista a la situacin de exclusin, de represin de la experiencia sensible
que afirma las relaciones del ciudadano con la administracin del Estado,
que ya no es ms su espacio de recurso providencial. De ah, la necesidad
de marcar a mano alzada sobre papel calco, para dotar al gesto individual
de un carcter burocrtico fundamental que insiste en el deseo de un
regreso al origen de donde provenan, en la democracia, anterior, todas las
inscripciones institucionales.
Durante la dictadura, los artistas como Dittborn se empecinaron en
poner en evidencia las faltas infringidas a la matriz, como nocin, para
contrarrestar las iniciativas de aniquilacin material y simblica de las
memorias anteriores que el rgimen militar se haba propuesto borrar.
De ah que en la coyuntura de fines de los setenta, fueran usuales -en los
artistas chilenos- las referencias al sistema del grabado clsico, siendo ste
un campo de operaciones desde donde se poda ejercer la crtica poltica,
apelando directamente al diagrama implcito que habilitaba su propia
memoria tecnolgica. Esto coincidira con una fobia pictrica que sera la
caracterstica de una coyuntura en que la pintura sera calificada como una
prctica reproductora de una impostura constitutiva, en el arte chileno.

Justo Pastor Mellado

325
La copia de un documento permite que haya envo de un original, al
momento que las copias se distribuyen en diversos archivos, constituyndose
en documentos de prueba. Al dibujar los palotes a travs del papel carbn,
Dittborn le atribuye a su dibujo el rol de una prueba para un original
extraviado.
Ahora bien: esta pieza de la que me ocupo es indicativa de una polmica
especfica, que no va a ser percibida por el conjunto de la crtica va a resolver
a nivel de obra. Al dibujar en papel calco sobre la lmina de cartn de bloc
de borrador, Dittborn hace una referencia material degradada y pardica
de un modelo de trabajo con el cual Gonzalo Daz ha operado desde 1985.
Me refiero al modelo del bloc mgico, al que hago referencia en un texto
que escrib sobre la obra de Gonzalo Daz, KM104, exhibida en junio de
1985 en Galera SUR3.
No es necesario describir aqu en qu consiste el bloc mgico. Existe
una similitud entre el modelo original de este bloc que da curso a un
anlisis de esa obra de Daz y la copia (documento probatorio) a travs
de la cual Dittborn realiza una cita sarcstica del extravo del original de
Daz, que ha sido realizado mediante impresin serigrfica. Dittborn le
hace recordar que se puede habilitar traspasos mecnicos simples a travs
de la intermediacin de un material de transferencia (papel carbn) sobre el
que se puede intervenir a mano alzada. En cierta medida, el argumento de
Dittborn apunta a declarar que Daz carece de un original de referencia lo
suficientemente consistente y le recuerda que la serigrafa corresponde a un
dispositivo ms de transferencia, y que si se trata de hacer la memoria de las
transferencias en el arte chileno, ya debiera saber a quien remitir la deuda.
Esta no es la nica mencin a Gonzalo Daz. El ttulo de esta
lmina es LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME y es
una transformacin del ttulo de la obra que Gonzalo Daz enva a la V
Bienal de Sidney, a la que ambos asisten, formando parte de un curioso
envo chileno, en el que participan Daz, Dittborn y Dvila. Curioso, por
el tringulo de exclusin que se configura como soporte de un envo a
una bienal que tiene como eje la proposicin Smbolo Privado: Metfora
Social4.
3
Mellado, Justo Pastor. El bloc mgico de Gonzalo Daz, 1985. Reproducido por Edi-
ciones Digitales, Centro de Documentacin de las Artes Visuales, CEDOC, Centro Cultu-
ral Palacio La Moneda, Santiago de Chile.
4
Catlogo, FIFTH BIENNAL OF SIDNEY (11 April - 17 June 1984), Private Symbol:

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326
Entender por tringulo de exclusin formal la ausencia de complicidad
epistemolgica entre los diagramas de obra de los artistas mencionados. La
coherencia de un envo a una bienal, teniendo como curadora nacional a
Nelly Richard, hace pensar que los artistas debieron haber sido otros, si
uno se atiene a lo que es dable esperar como reflejo de la posicin terica
que la propia crtica de arte ha elaborado para instalar la dictadura de un
significante pictofbico en la escena interna. Sin embargo, la solicitud
de coherencia que se poda esperar no tena por qu ser satisfecha, en la
medida que su discurso de exportacin bien poda sostenerse mediante
una solucin de compromiso formal, habilitado por el eje explcito de la
bienal, que acoga en un mismo envo a tres artistas cuyas obras eran puestas
en situacin de repelencia formal.
Por razones de espacio y de oportunidad solo har referencia a la
repelencia que tiene lugar entre las obras de Gonzalo Daz y Eugenio
Dittborn. Para hablar de repelencia no reducir la visin al asco o a la
impertinencia, sino a la propiedad de los suelos, como una metfora que
se atribuye para si las propiedades de unas obras, como en este caso. Ms
bien me voy a referir a la repelencia al agua que, siendo una propiedad de
las obras, reduce las tasas de infiltracin, pudiendo llegar stas a ofrecer una
resistencia intensa a la humectacin.
Pensar las relaciones entre las obras de Daz y Dittborn en trminos de
repelencia tiene el valor de fijar una pareja de opuestos entre humectacin
y sequedad. Daz piensa en trminos de una humectacin que favorece la
permeabilidad de las asociaciones en un espacio grfico concreto, sobre el
que comprime y diluye al mismo tiempo operaciones de veinte a veinticinco
pasadas de bastidor; en oposicin a Dittborn, que opera sobre la erosin
temporal de la imagen a travs de una monocroma que trabaja amenazado
por el fantasma de la sequa. Gonzalo Daz est de regreso de su estada
en Florencia en 1980 y viene de montar en Galera SUR, a comienzos
de 1982, la emblemtica exposicin Historia sentimental de la pintura
chilena, con la que se propone interpelar una obra de Eugenio Dittborn
de 1978, delachilenapintura,historia, sancionada de manera implcita
como el anverso de la sentimentalidad. La pulcritud narrativa de esta
ltima, que recurre a piezas para las que Dittborn emplea un sistema de
ortopedia grfica (trazos realizados con regla de arquitecto y rapidograph)
es enfrentada al exceso higienista consagrado por Gonzalo Daz mediante
Social Metaphor, Sidney, 1984.

Justo Pastor Mellado

327
la figura de una sirvienta, sustrada desde la publicidad de un limpiador de
artefactos sanitarios, que con un pao de fregar en la mano ha llegado al
arte chileno para limpiar -desengrasar- el grumo monocromo a que ha sido
sometida la condicin de representacin en la escena chilena.
En este debate, Gonzalo Daz introduce el humor humectante de la
imagen de la sirvienta que viene a representar la tarea de higienizacin
de la escena, que de manera implcita haba sido intoxicada por los efectos
qumicos de las tintas de impresin serigrfica. Hiptesis que funcionaba
solo si se consideraba el espacio dittborniano como subordinado a la
desertificacin de la imagen y del soporte, respecto de lo cual, la exhuberante
asociatividad narrativa de Gonzalo Daz no haca mas que apelar a la
humectacin y permeabilidad que conduca las referencias serigrficas
hacia un universo lxico en que la nocin de seminalidad ocupaba un rol
hegemnico, adquiriendo proyecciones propiamente pentecostales.
La humectabilidad conectiva de las referencias iconogrficas en Daz
se propona superar la resequedad de la fijacin de un fondo austero de
ingerencias figurativas monocromas en Dittborn; en el sobreentendido que
la humedad barroca de Daz deba confrontar el espacio de una economa
de la restriccin en Dittborn; es decir, donde apareca el delirio sentimental
(1982) como una estrategia de respuesta al martirio doloroso de la
impresin de grano (1978). Bajo estas circunstancias, esta es la primera
tentativa visible de Gonzalo Daz por re-pictorizar el dispositivo serigrfico
en la escena chilena, y anuncia lo que va a consolidar en la produccin de su
obra KM104, que ser presentada en Galera SUR en mayo de 1985.
En el ensayo que escrib a partir de esta obra, sostuve que el uso de la
pareja humectacin/sequedad reproduca, en cierta manera, los trminos
de una polmica significativa a nivel de obra. Dittborn haba instalado la
supremaca de la coagulacin en la pintura, haciendo un uso ampliado del
caput mortuum rot (el color de la sangre coagulada) como grado cero
de la pictoricidad. La sangre que brota del cuello del animal decapitado
es anloga al aceite quemado de auto que se precipita por una falla del
sistema de lubricacin de un automvil. Dittborn homologa de manera
forzada la mecnica automotriz a la mecnica corporal, poniendo el nfasis
en el lquido que cae sobre una superficie absorbente. Por eso emplear tela
de yute para recepcionar el goteo del aceite de manera a formar una gran
mancha auroleada por la temporalidad de la absorcin y del secado. De

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

328
este modo, la humedad de la liquidez en Dittborn es solo un momento que
permite valorizar su efecto de secado.
En Daz, en cambio, la humedad se propone mantener activa la
conectividad lquida entre las imgenes y las temporalidades polticas que
condensa en una sobreposicin, cuando combina elementos de diversa
procedencia. Aqu, Historia sentimental... interpela a la historiachilena,
pintura a nivel de la disputa entre liquefaccion y coagulacin del ttulo.
La sentimentalidad de la mirada y de la factura mecnica de esa serie de
Gonzalo Daz, se propone de manera manifiesta lubricar la narratividad
dittborniana mantenida en condiciones de secado programado. De ah que
no se entienda a cabalidad la incorporacin de ambos artistas en un mismo
envo a una bienal que tiene como eje la metaforizacin de los smbolos
privados. A menos que, de manera efectiva, cada uno de los artistas
representara estrategias diferenciadas que deban dar pie a un compromiso
formal desde la repelencia manifiesta de sus diagramas de constitucin.
Todo lo anterior es muy plausible, pero solo desde la necesidad que
Nelly Richard pone en evidencia para depositar sus argumentos sobre estas
obras de funcionalidad excluyente y poder sostener su hiptesis de trabajo a
partir de una pregunta -Latin America: cultures of repetition or cultures
of difference?- que ya desde 1979 -siendo responsable de revista CAL-,
convirtiera en su programa de trabajo analtico. La astucia editorial requera
instalar la validez de su programa, utilizando la ilustratividad de las obras de
Daz, Dvila y Dittborn, en una coyuntura extraordinariamente restrictiva
para el arte chileno. Valga recordar que en esa coyuntura las exposiciones de
artistas chilenos en el extranjero no eran comunes y que el envo a la Quinta
Bienal de Sidney es un momento de inflexin.
De este modo hay que dimensionar la ausencia de exposiciones de
proyeccin internacional y bajo esta consideracin, el envo a Sidney
concit a tal punto el inters y la expectacin de la escena chilena, que las
obras fueron expuestas en Galera SUR, en diciembre de 1983, antes de
ser embaladas para ser retiradas por la empresa de transportes que se haca
cargo de su traslado.
Respecto de la obra de Dittborn, este envo es realmente un momento
significativo. Ahora se entender por qu doy comienzo a esta ponencia
haciendo mencin a sus propias declaraciones a la prensa, con ocasin de su
exposicin en el Museo de Artes Visuales, en septiembre del 2010.

Justo Pastor Mellado

329
El entrevistador le pregunta a Dittborn sobre el cambio de estrategia
que le significa dejar de trabajar con obras pesadas. Es decir, obras
embalables bajo condiciones de extrema complejidad, para un artista
que vive en Santiago, que es un punto de arribo terminal para todos
los vuelos intercontinentales con destino hacia el fin del mundo, en
lo que esto significa en costos de traslado y de seguros. El trato del arte
chileno con el mercado de los seguros y de los transportes, y por lo tanto,
con los embalajes, en 1983, es decididamente precario, no alcanzando a
satisfacer las condiciones mnimas. No existiendo capacidad exportadora
del arte chileno, es imposible contratar empresas en el rubro especfico
del transporte de obras de arte porque simplemente ninguna de las que
intentan realizar dicha funcin alcanzan los rangos mnimos. Dittborn
le responde al periodista que esas obras pesadas se haban convertido en
obras intransportables. Esta afirmacin apunta a reconocer no solo una
fatalidad conectiva, sino que los curadores internacionales de renombre no
incluyen en sus agendas una visita a nuestro pas. Que mejor, entonces,
que disear un dispositivo que permita acceder a lugares de exhibicin,
resolviendo de antemano todos los problemas logsticos relativos al manejo
de obras pesadas. Por esta razn repito la declaracin de Dittborn sobre
el realismo con que aborda una situacin que favorece su exclusin del
circuito internacional: Mi ltimo trabajo importante realizado sobre una
superficie tan pesada como extensa y tan rgida como frgil fue mi envo a
la Bienal de Sydney en abril de 1984.
Este es el momento que justifica el nacimiento oficial de las Pinturas
Aeropostales como estrategia de insercin en el mercado internacional,
para un artista de la Periferia. Una solucin de este carcter termina por
convertirse en un complejo aparato de produccin formal con una historia
que contempla la re-puesta en escena de los dispositivos de su produccin
anterior, dando pie un re-comienzo de tal envergadura en cuanto a su
reconocimiento e inscripcin que ha pasado a convertirse en el sinnimo
de su obra. Sin embargo, sostengo que el Sistema Dittborn ya estaba
instalado, antes de 1983; solo que careca de circulacin internacional. En
este sentido, no me cansar de repetir que el diagrama de la obra ya haba
sido construido y es contra sus efectos conceptuales en la interpretacin de
la fase, que la pieza que Gonzalo Daz produce para Sidney se levanta desde
el propio ttulo: LETS SEE IF YOU CAN RUN AS FAST AS ME (A
ver si puedes correr tan rpido como yo). Ttulo que pasa a precisar una

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

330
acto de agresin solapado, de baja intensidad, que da curso al deseo de que
la figura del Correcaminos (dibujo animado) represente por contigidad el
factor de velocidad de transferencias y recambio de referentes que debiera
tener lugar en la escena chilena entendida como desierto. A estas alturas
queda solo por preguntar -desde esta operacin- a quien le cabra ocupar el
lugar del Coyote.
Es preciso poner en relacin la traduccin literal del ttulo de la
pieza de Gonzalo Daz con el ttulo de un relato empleado por Dittborn
desde 1977 (aprox.) y que se convirti en un procedimiento ejemplar en la
produccin del trabajo de ste ltimo desde esa fecha en adelante. No deja
de ser fundamental el hecho que para la Quinta Bienal de Sidney, Dittborn
considere para su envo, dos piezas: LA PIET y UN DIA ENTERO DE
MI VIDA. A mi juicio, estas piezas exponen a cabalidad el diagrama de lo
que he dado en llamar Sistema Dittborn.
La sequedad ha sido la condicin dittborniana para sostener un criterio
de desertificacin de los referentes pictricos transferidos a Amrica desde
hace cinco siglos. De este modo, levanta una hiptesis que le permitir
invertir el proceso tecnolgico de reproduccin de la pintura, mediante la
literalidad expansiva de sus procedimientos. Sin embargo, esta operacin
no poda ser realizada desde el interior del sistema pictrico, sino que deba
recibir el auxilio de un procedimiento analtico que Dittborn invent desde
el campo del grabado clsico, pero que ste lee como pre-historia de los
procedimientos tecnolgicos de transferencia. Siendo esta la razn de por
qu dirijo mi atencin hacia la fascinacin que guarda Dittborn respecto
de los dispositivos de traslado y que se conecta con la decisin de producir
la lmina de palotes a la que me he referido profusamente al comienzo de
esta ponencia.
La literalidad dittborniana concibe el desplazamiento analtico de los
elementos que entran en la definicin de la pintura, segn la categora del
gesto, del soporte y del medium. En el fondo, si el sistema pictrico oficial
exige pintar al leo, entonces Dittborn afirma que l lo hace, pero con otro
tipo de leo; a saber, el aceite quemado de automvil. Que es lo que
importa aqu? La nocin de merma. No se trata ya de recurrir al leo de
marca, sino a la excrecencia de un lubricante que asegura el funcionamiento
de una mquina corporal. Luego, si el sistema exige pintar sobre tela, ste lo
har sobre un soporte sin imprimar que va a recuperar de sacos de yute ya
utilizados, y que -de nuevo- exponen el efecto de las mermas de traslado,

Justo Pastor Mellado

331
como un modelo que prefigura toda prctica de transferencia informativa
en lo que a historia de la pintura se refiere. Y finamente, si el sistema
le exige involucrar la manualidad, Dittborn responde recurriendo a un
gesto simple, que es dejar escurrir. Si bien hay que admitir que antes
de subordinarse al escurrimiento, realiza pintura sobre tela de yute o tela
de linoca sin imprimar, ejecutando algunos compromisos iniciales, para
los que emplea unas herramientas simples que le permiten manchar por
aplicacin directa y dar una cierta forma al escurrimiento. Una de las piezas
para Sidney, LA PIET, recupera esta manera de trabajar, que ya haba
puesto en prctica hacia 1977. El modelo del gesto (cita bblica) es un
intento de contener la deflacin y la escurrencia de la corporalidad. Aunque
por el momento, mi propsito inmediato -falto de espacio- es mencionar
de donde viene el ttulo de la otra obra presentada: UN DA ENTERO
DE MI VIDA (A WHOLE DAY OF MY LIFE).
Todo proviene de un relato obtenido como fragmento literario
encontrado -en el Readers Digest- que adquiere el rol de biografema;
es decir, ancdota de proyeccin significante. Una madre regaa a su hijo
porque regresa al final del da a casa con la camisa enteramente manchada
por el efecto de sus andanzas infantiles. El nio observa su prenda lleno de
orgullo y responde: Mam, esto es un da entero de mi vida. La tela de la
camisa le ha absorbido el sudor y ha acogido las manchas de tierra obtenidas
en el curso de sus juegos. Mediante este conflicto, Dittborn relata las dos
formas de apropiacin tcnica de la imagen; ya sea por absorcin como
por contacto directo (monocopia). Podremos observar que las imgenes
impresas de esta pieza corresponden a dos fotografas: las superiores,
reproducen la imagen obtenida de un impreso deportivo de un nadador
sobre el agua realizando su mximo esfuerzo por avanzar; las inferiores,
el dibujo del estado de una momia reproducido en una publicacin
antropolgica. El esfuerzo corporal mximo supone la humedad, mientras
que el desfallecimiento de la representacin calza perfectamente con la
momificacin (sequedad).
Dittborn sabe en ese mes de diciembre de 1983, en que el envi a Sidney
se exhibe en Galera SUR antes de ser embalado, que a nivel de obra el
programa ya est definido y que solo debe esperar un tiempo razonable para
que la estrategia de la aeropostalidad se instale, no solo como dispositivo de
circulacin de obra, sino como sistema de trabajo. Con esto quiero sostener
la hiptesis por la cual la aeropostalidad es el efecto residual del sistema que
el propio artista pudo montar, ya desde antes de 1983.
Es as como en 1987 (aprox.) enva a un miembro de la comunidad
artstica santiaguina, una lmina de cartn conteniendo los palotes a
los que me he referido al comienzo de este ensayo. Solo ahora es posible
entender la importancia que se instala en la pequea diferencia entre los
dos ttulos involucrados en la polmica-de-obra: LETS SEE IF YOU
CAN RUN AS FAST AS ME (Daz, 1983) y LET US SEE IF YOU
CAN BE AS GOOD AS ME (Dittborn, 1987).
Lmina 1
LET US SEE IF YOU CAN BE AS GOOD AS ME,
una calcografa de Eugenio Dittborn,
(circa 1987)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

334
Lmina 2
UN DIA ENTERO DE MI VIDA
(PORTADA)

Justo Pastor Mellado

335
Lmina 3
LETS SEE IF YOU CAN RUN AS FAST AS ME
(Gonzalo Daz, 1983)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

336
exposies e narrativas

Lecciones de civilizacin:
La ilustrada exhibicin de la primera misa en Brasil
y la fundacin de Santiago

Patricia Herrera Styles


Estudiante de Doctorado en Filosofa con mencin en Esttica y Teora del Arte,
Universidad de Chile. Acadmica e investigadora. Facultad de Artes, Universidad
de Playa Ancha, Valparaso, Chile.

Bellas Artes y civilizacin

Durante la segunda mitad del siglo XIX, Amrica Latina vivi un pro-
ceso de reinvencin tanto material como simblica a partir de sus indepen-
dencias polticas que se inscribi dentro de una matriz denominada ilus-
trada. En sta, ideas y prcticas sociales se articularon en base a la conste-
lacin intelectual del positivismo, liberalismo, neoclasicismo, romanticismo
y especialmente a los conceptos de civilizacin y progreso. Asumido por las
elites dominantes, este modelo impuso una forma de pensamiento dual, en
la cual la realidad se entendi y organiz a partir del establecimiento de di-
cotomas tales como lo secular/religioso, lo femenino/masculino o lo culto/
popular. En el caso del concepto de civilizacin, ste se defini a partir de
su opuesto, es decir lo brbaro, acepciones que entre otras cosas, sirvieron
para ordenar jerrquicamente la sociedad, diferenciar espacios, establecer
ritos y crear objetos, al declarar la superioridad racial e intelectual del hom-
bre blanco (visto como un nosotros) y supeditar a un lugar secundario a
indios, clases bajas, esclavos o campesinos (los otros).
Adaptada a las realidades locales, esta matriz fue constantemente rein-
terpretada, dndose interesantes diferencias entre los pases. En Brasil y
Chile por ejemplo, se construyeron proyectos polticos muy diferentes, una
monarqua constitucional en el caso del primero, y una repblica en el caso
del segundo, proyectos que sin embargo coincidieron en ciertos aspectos
relacionados con la construccin simblica de la nacin.
En este sentido reconocemos las Bellas Artes, consideradas en la po-
ca una necesidad y modeladas a partir de una institucin conocida como
Academia, pintura, escultura y arquitectura, tuvieron un rol fundamental,

337
pues permitieron definir y diferenciar lo brbaro de lo civilizado cons-
tantemente. De esta forma, surgieron gneros pictricos nuevos como el
paisaje, el retrato y especialmente la pintura de historia; se crearon espacios
exclusivos como el museo y eventos artsticos como los salones, as como la
prctica de visitarlos, opinar y adquirir las obras. El artista mismo se erigi
como modelo de hombre civilizado y culto, al formarse en Europa, hablar
varios idiomas y entenderse como un intelectual con talento y no un artesa-
no. En este escenario, naturalmente, el brbaro, no tena cabida, sino slo
las representaciones que en tela o mrmol los artistas hacan de l.
Los leos La Primera Misa en Brasil, creada por Vctor Meirelles de
Lima en 1861, y La Fundacin de Santiago, realizada por Pedro Lira Ren-
coret en 1888, son dos ejemplos que nos permiten escudriar en lo anterior,
no slo porque ellas mismas pueden ser consideradas una especie de lec-
cin de lo que significaba ser civilizado y brbaro en el Brasil y el Chile de
la segunda mitad del siglo XIX, sino porque adems los primeros lugares y
formas cmo fueron exhibidas y coleccionadas, permiten conocer las estra-
tegias que las esferas artstica e intelectual locales utilizaron para reforzar o
modificar la idea de civilizacin.

Pintar para civilizar: La Primera Misa en Brasil y La Fundacin de San-


tiago.

La Primera Misa en Brasil (Fig. 1), uno de los principales conos visua-
les de este pas, es un leo sobre tela de 2,68 x 3,56 metros, que representa el
momento en que la flota del navegante portugus Pedro Alvares Cabral, ce-
lebra la primera misa en territorio brasileo el 1 de mayo de 1500. Adems
de soldados, marineros y sacerdotes, aparecen en la imagen un gran nmero
de nativos del lugar, quienes desde el primer plano de la escena, observan
el momento de la consagracin del pan y el vino por parte del sacerdote
Henrique de Coimbra. La obra creada por Meirelles entre 1859 y 1861
en Pars, - en calidad de becario del gobierno imperial y bajo el alero de la
Academia de Bellas Artes de Ro de Janeiro (AIBA), el Instituto Histrico
y Geogrfico Brasileo (IHGB) y especialmente de su maestro, el intelec-
tual y artista Manuel Arajo Porto-Alegre1-, es el ms fiel ejemplo de lo

1
Tal como consta en la correspondencia mantenida entre ambos durante la dcada de 1850.
Cfr. GALVO, 1959.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

338
que se conoce como pintura histrica decimonnica, gnero que no slo
buscaba la representacin visual de acontecimientos picos del pasado, sino
adems la transmisin de mensajes ticos y morales para promover cambios
sociales. Realizada bajo los severos requisitos de la Academia carioca, la
obra se haca cargo de los discursos que sobre brbaros y civilizados circu-
laban en Brasil entonces, principalmente articulados a travs del IHGB,
entre los cuales se distingua la existencia de dos tipos antagnicos de in-
dgenas -tupis y tapuias, es decir, indios buenos e indios bravos2- y de dos
tipos de hombres blancos - los violentos y colonizadores, por un lado, y los
religiosos que actuaban a favor de los indios, por otro-. La obra finalmente
se encargaba de representar el par enaltecido, es decir los portugueses que a
futuro integraran el imperio de Pedro II (1840-1889), -que representaban
la unidad nacional y sobre todo la fe cristiana-, y a los indgenas, modelos
del buen salvaje, que eran potencialmente capaces de incorporarse a la ci-
vilizacin. De esta forma el denominado Segundo Reinado, se presentaba
como una monarqua de hombres justos y la obra buscaba conformar una
identidad de ciudadanos brasileos, incluyendo a los indios dentro de la
nacin bajo la condicin de anular sus diferencias culturales.
La Fundacin de Santiago (Fig. 2.), por su parte, una de las obras ms
conocidas y difundidas de la iconografa chilena, es un leo sobre tela de
250 x 400 cms., que fue realizada por Pedro Lira en Santiago, entre 1885 y
1888. Retrata el instante en el que el espaol Pedro de Valdivia organiza la
fundacin de la ciudad de Santiago de Nueva Extremadura, el 12 de febrero
de 1541, en la cima del cerro Hueln. En la obra se observa la presencia de
al menos quince exploradores hispanos en contraposicin a tres indgenas,
habitantes originarios del Valle del Mapocho. Al igual que la obra brasilea,
La fundacin de Santiago tambin daba cuenta de los discursos que sobre
civilizados y brbaros existan en la poca en el pas, en este caso de mano
de los historiadores liberales que formaban la esfera intelectual criolla,
principalmente Diego Barros Arana, Luis Miguel Amuntegui y Benjamn
Vicua Mackenna3, para quienes el indio era un elemento que simplemente

2
Cfr. KODAMA, 2010.
3
Si bien en Chile existan otros discursos sobre el indgena desde la primera mitad del siglo,
entre ellos uno de defensa de los naturales, para la poca de la realizacin de la pintura el
planteamiento de estos intelectuales era el que se impona. Barros Arana haba publicado
Historia General de Chile, a partir de 1884; Amunategui Descubrimiento y Conquista de
Chile, en 1885 y Vicua Mackenna, Historia Crtica y Social de Santiago en 1869, entre
otras obras.

Patricia Herrera Styles

339
deba ser excluido del proyecto nacional, esto pues, perteneca a una raza
inferior, incapaz de superacin, y que nada tena que ver con el chileno. La
obra, en cierto sentido, entregaba esta leccin al observador, siguiendo la
opinin de Vicua Mackenna que justificaba plenamente la invasin del
pas civilizado en el brbaro (que para entonces poda identificarse con la
Araucana que haba sido recin4 pacificada). A partir de la obra quedaba
claro que Santiago estaba destinada a ser una ciudad de impronta europea
y prcticamente sin indios al igual que todo el pas5-, y si los haba sera
ocupando un lugar claramente subalterno, pues el nico indgena resaltado
en la imagen que aparece en primer plano, lo hace en una posicin inferior
a Valdivia, mientras le indica u ofrece el territorio ubicado abajo del cerro.

Exhibir para civilizar: Las obras en las primeras exposiciones y colec-


ciones nacionales

Como plantea Michael Baxandall, debemos recordar que dentro de


una cultura visual6, ninguna imagen acta por s sola, sino en un contexto
ms amplio de dilogo con otras imgenes -que permite reforzar o de-
bilitar discursos-, en relacin a un espacio especfico y con respecto a un
pblico que las contempla. Por ello, nos parece importante considerar que
la forma cmo nuestras obras fueron exhibidas, tanto de manera temporal
como luego en colecciones permanentes en sus respectivos pases, tambin
constituyeron lecciones de civilizacin. En la poca, una nacin civiliza-
da y culta adems de crear obras de arte, deba resguardarlas, exponerlas,
contemplarlas y comentarlas, por ello la disposicin en la que las obras
se mostraron a sus contemporneos no debe considerarse como un hecho
neutro, inocente o transparente7. En el caso de nuestras obras, ambas fueron
4
La denominada pacificacin u ocupacin de los territorios mapuches por parte del Ejr-
cito chileno se realiz entre 1860 y 1883.
5
Tanto Vicua Mackenna como Amuntegui promulgaban la idea de que los indios haban
desaparecido en Chile. Para el primero, una de las grandes virtudes del pas, segn haba
declarado en una conferencia en Nueva York en 1866, era no tener indios. Cfr. PINTO,
2000.
6
Cfr. BAXANDALL 1978.
7
En este sentido seguimos los planteamientos de autores como Carol Duncan, quien
sostiene que los museos occidentales desde la Revolucin Francesa llevan a cabo perma-
nentes tareas ideolgicas y polticas bajo la imagen de ser lugares objetivos y universales.
Esto incluye desde el edificio, que asume las caractersticas de templo donde se realizan

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

340
expuestas en varias ocasiones, tanto en presentaciones previas en sus pases
como en debuts oficiales en Francia, para luego pasar a ser objetos defini-
tivos de las ms importantes colecciones pblicas del arte nacional. En el
caso de La Primera Misa, mientras su autor viva en Pars, la obra se exhibi
en calidad de boceto en las Exposiciones Generales de la AIBA en Ro de
Janeiro en 1859 y 1860, para luego ser exhibida en el Saln de la capital
francesa de 1861, lo que fue considerado un gran triunfo del arte brasileo
y hasta del imperio, pues era la primera vez que una obra nacional era selec-
cionada para ser exhibida en el evento artstico ms importante del mundo.
Posteriormente, inmediatamente despus de su llegada a Brasil en 1862, la
obra sera comprada por el gobierno imperial para pasar a formar parte de
la pinacoteca que la academia mantena para sus alumnos. En el caso de La
Fundacin de Santiago, la obra fue presentada a la sociedad chilena -al pa-
recer- por primera vez en 1885, con ocasin de la inauguracin del Saln de
la Unin Artstica, en calidad de estudio8, luego en la Exposicin Nacional
(y Saln Oficial) de 1888, donde fue galardonada, para luego ser exhibida
en Pars en la Exposicin Universal de 1889. Posteriormente, igualmente
que la obra brasilea, fue comprada por el Estado a su regreso de Europa,
pasando a formar parte de la coleccin del Museo Nacional de Bellas Artes
de Santiago9.
Nos detendremos aqu, especialmente en las ocasiones en las que las
obras fueron exhibidas de manera indita en sus contextos locales, ya que
nos interesa rescatar el rol que como lecciones de civilizacin tuvieron
para sus compatriotas.
Las primeras veces que el pblico carioca restringido por cierto a la
corte e intelectualidad local- tuvo ocasin de contemplar La Primera Misa
fue en las Exposiciones Generales de la AIBA en 1859 y 186010, ocasiones
en las que el artista envi bocetos. Emplazadas en el neoclsico edificio
donde funcionaba la Academia (Fig. 3.)11, en estas muestras se exponan
rituales cvicos, hasta sus planteamientos museogrficos y curatoriales. Cfr. DUNCAN,
1991.
8
Segn artculos En la exposicin, El Taller Ilustrado, Ao IV, n 159, 17 de diciembre
1888 y Exposicin libre de Bellas Artes en Santiago, Diario La Unin, Ao I, n 225, 16
octubre 1885.
9
Posteriormente la obra sera transferida al Museo Histrico Nacional a partir de 1937
10
Se realizaron un total de 26 Exposiciones Generales a partir de 1840 hasta 1884.
11
Construido por el arquitecto de la Misin francesa Grandjean de Montigny en 1826,
segua los lineamientos de un templo clsico.

Patricia Herrera Styles

341
trabajos de alumnos y profesores de la misma, adems de obras de propie-
dad del emperador y coleccionistas privados. En la primera de estas exhi-
biciones, junto a 250 obras aproximadamente, el cuadro se present al lado
de un gran nmero de leos y esculturas religiosas, paisajes tanto brasi-
leos como europeos, retratos del emperador y otras personalidades, as
como algunas obras mitolgicas y de corte orientalista12. En general todo,
tanto el espacio como las imgenes, eran de una u otra manera, referentes
de civilizacin y muy pocas obras recordaban la existencia de brbaros,
salvajes o abyectos en Brasil, siguiendo ilustradas estrategias de invisi-
bilizacin, denostacin o subalternizacin de lo otro. Esto ltimo pues,
mientras algunas obras resaltaban la valenta del explorador blanco como El
cazador y el puma del profesor de la AIBA, Felix mile Taunay, las escasas
imgenes que s mostraban a indgenas, -entre ellas La Primera Misa-, lo
hacan resaltando o bien su mal actuar o su sumisin al civilizado. Es el caso
de la obra Nbrega y sus compaeros, del maestro de Meirelles, Manoel de
Melo Corte Real, que mostraba el dramtico caso de un sacerdote que fue
salvado de ser comido por indios antropfagos, de la que ya hablaremos. De
especial inters resulta El descubrimiento de las aguas termales de Piratininga,
tambin de Taunay, que de acuerdo a Elaine Dias habra tenido como refe-
rencia el leo chileno El Huaso y la Lavandera de Rugendas13, y que segn
nuestro punto de vista propone una relacin entre brbaro y civilizado muy
similar a la de La Fundacin de Santiago. En la tela, en la cual se narra el
descubrimiento de unas termas por parte del cazador Martinho Coelho
de Siqueira, aparece, al igual que en la obra de Lira, un indgena arrodilla-
do quien indica u ofrece con su mano la nueva riqueza natural al hombre
blanco (Fig 4)14. En la exposicin del ao siguiente, nuestra obra, que se
present como el boceto original de un cuadro terminado que tiene que

12
Se expusieron obras desde Antoine Watteau a Bartolom Murillo, con presencia de obras
de varios profesores de la AIBA, adems de Taunay, Auguste Muller, con Retrato de Ma-
nuel Correia dos Santos; Chaves Pinheiro, con Retrato de Jos Bonifcio. Tambin estuvo
presente Raimundo Monvoisin con Joven peruano. Meirelles present en la ocasin diez
obras, que incluan estudios y copias de pinturas europeas. LEVY, C. Exposies Gerais
da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes, Edioes Pinakotheke, Ro de
Janeiro, 1990, pp. 111-122.
13
DIAS, E. Flix-mile Taunay entre a tradio clssica de ensino e a paisagem contem-
pornea no sculo XIX, Revista Caiana, n 3, diciembre 2013, p. 12.
14
A pesar de las similitudes entre la obra brasilea y la chilena, sin embargo, no tenemos
conocimiento que Pedro Lira haya conocido la obra de Taunay.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

342
ser presentado en el Saln de Pars en mayo de 186115, comparti escenario
con cerca de 230 creaciones ms, que al igual que el ao anterior reforzaban
de mltiples maneras la condicin de buen gusto y cultura europea del
imperio. Nuevamente la presencia de lo indgena y lo brbaro estaban casi
ausentes, a excepcin de nuestra obra y dos pinturas de Frederico Tirone,
pintor italiano radicado en Ro en esos aos, tituladas Entierro de Atal y
Fuga de Atal, que ni siquiera daban cuenta de la realidad local, sino que re-
presentaban al personaje literario creado por Chateaubriand, una indgena
cristiana norteamericana del siglo XVIII que haba muerto trgicamente.
Luego de su exhibicin en Pars en 1862, la obra fue comprada por el
gobierno imperial, pasando a ocupar un lugar destacado en la Pinacoteca
de la AIBA, coleccin que para entonces tena fines pedaggicos pero tam-
bin de exhibicin hacia un pblico ms amplio, pues era abierta al pbli-
co general en ocasiones festivas16. A partir de 1879, parte de este acervo
sera reorganizado como Coleccin de Cuadros Nacionales de la Escuela
Brasilea17, con un total aproximado de 83 obras escogidas entre lo mejor
de la Academia18. Naturalmente La Primera Misa formaba parte de ella, al
lado de otras imgenes de pintura histrica, paisajes, retratos y naturaleza
muerta, que conformaban una verdadera versin visual de la historia de
Brasil19, tal como el gobierno imperial y el IHGB queran mostrar. Lo
interesante es que en esta coleccin, se encontraban obras como Magnani-
midad de Vieira del maestro de Meirelles, Jos Correia de Lima, conside-
rado el primer cuadro de tema brasileo producido en la AIBA en 1841,
que representaba el herosmo de los portugueses frente a los holandeses
en el siglo XVII y Nbrega y sus Compaeros de Melo Corte Real, que al
estar en la misma coleccin que La Primera Misa seguramente produca un
contrapunto discursivo y visual interesante pero complementario-, pues
mientras aquella entregaba una visin del sacerdote moribundo, -Manuel

15
LEVY, Op. Cit: p. 135.
16
FERNANDES, C. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperial das Belas Ar-
tes. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007. <http://www.dezenovevinte.net/ensino_ar-
tistico/aiba_ensino.htm>.
SQUEFF, L., A pinacoteca da Academia e a construao de uma histria visual do Brasil,
17

Anais do XXXII Colquio do Comit Brasileiro do Histria da Arte 2012, Universidade de


Brasilia, 2012, pg. 1717.
18
Obras que luego pasaran a conformar la Escuela Nacional de Bellas artes y el MNBA
desde 1937.
19
SQUEFF, Op. Cit: pg. 1717.

Patricia Herrera Styles

343
de Nbrega, primer jesuita enviado a Brasil-, siendo rescatado de las fauces
de indios antropfagos, la obra de Meirelles mostraba una multitud de in-
dios mansos que se maravillaban y comprendan la importancia del ritual
religioso trado por los portugueses.
Como parte de los preparativos para la participacin de Chile en la
Exposicin Universal de Pars de 1889, la comisin organizadora decidi la
realizacin de una Exposicin Nacional en 1888, en la que se mostrara al
pblico local los mismos productos y obras que seran exhibidos en Francia
al ao siguiente. Las obras de arte seleccionadas para ello, que fueron ms
de un centenar, fueron presentadas en el Museo de Bellas Artes, formando
la seccin de Bellas Artes de esta Exposicin y a la vez como el Saln de ese
ao, uniendo dos importantes eventos nacionales en uno.20 Entre las obras
seleccionadas se encontraban adems de La Fundacin de Santiago, que fue
presentada entonces como la nica de gnero histrico, una buena canti-
dad de cuadros costumbristas (Rafael Correa), paisajes de corte romntico
(Onofre Jarpa, Antonio Smith) y retratos tanto de personalidades, como
de tipos populares chilenos (Celia Castro), adems de escasas esculturas21.
Imgenes sobre la Guerra del Pacfico al parecer no se incluyeron y la pre-
sencia indgena es probable que slo se concretara con nuestra obra, pues el
objetivo promovido por la comisin organizadora, entre los que se encon-
traba el mismo Pedro Lira, era dar en Pars la imagen de Chile como un
pas civilizado, pacifico y liberal, ms bien laico,- la imagen religiosa casi no
estuvo presente tampoco-, donde el indgena casi no exista y si lo haca era
desde el ms absoluto aislamiento y abyeccin.
Ya en Pars, este objetivo no slo de la comisin, sino del gobierno chi-
leno en general, se vio reforzado por un triste episodio. Fuera del pabelln
nacional, probablemente en la seccin de Historia de la vivienda humana,
se exhibieron, con la anuencia del estado y como parte del proyecto del em-
20
Segn sostiene el artculo El saln de 1888, El Independiente, Santiago, 8 de diciem-
bre de 1888.
21
Algunas de las obras presentadas en la ocasin fueron Pregunta por m, de Albina Elgun,
El Trabajo de Rafael Correa, Valle de Ocoa de Onofre Jarpa, La poda de Celia Castro,
Retrato de la seora D.A de J, de Luis E. Lemoine, Jugando a las chapitas de Juan Harris
(premiadas). El Taller Ilustrado, Santiago, 24 diciembre 1888. Otras obras que se presen-
taron El primer hijo de J. M. Ortega; La Vieja y Primero de Noviembre de Celia Castro,
entre otras. Adems, otras obras fueron expuestas como fuera de concurso entre las que se
encontraban paisajes de Antonio Smith, en esta misma rea se presentaron las esculturas,
entre ellas ocho de Nicanor Plaza. El Saln de 1888 (continuacin), El independiente,
Santiago, 9 diciembre 1888.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

344
presario belga Maurice Maitre, once indgenas selknam, -hombres, mujeres
y nios-, bajo la ficcin de ser salvajes antropfagos (Fig. 5)22. De esta for-
ma, mientras en el pabelln chileno se ignoraba la existencia del indio, fuera
de l, se le exhiba en carne y hueso, asignndole caractersticas inexistentes,
pues los aborgenes fueguinos no practicaban la antropofagia.
Posteriormente de haber sido galardonada en Pars, donde recibi una
Segunda Medalla, La Fundacin de Santiago fue comprada por el Estado
chileno a un alto valor (4000 pesos), pasando inmediatamente a ser parte
de la coleccin del MNBA, que para entonces se ubicaba en el Partenn
de la Quinta Normal, pequeo edificio de estilo neoclsico que emulaba el
templo griego (Fig.6). El Museo se haba formado en 1880, en otra sede y
con una coleccin y criterio distinto a la que exista en 1889. La de enton-
ces, producto de acalorados debates al interior de la esfera artstica, haba
desechado obras que la Comisin de Bellas Artes consideraba indignas
de pertenecer a la principal coleccin del pas.23 En este recambio, la obra
de Lira pas a ocupar un lugar preponderante por ser una de las pocas de
temtica histrica, al lado de paisajes, cuadros de costumbres, retratos y
esculturas24. La idea original de Jos Miguel Blanco de incluir en el primer
museo los retratos de los hroes indgenas que haban forjado la nacin
obviamente haba sido desestimada25, pues obras como Caupolicn de Cica-
relli o Tegualda de Ortega, haban sido trasladas a Chilln en 1887, por ser
consideradas carentes de gusto. En cuanto a la escultura, sabemos que en
la poca el museo mantena un escaso nmero de representaciones bastante
neoclsicas de indgenas, entre ellas Caupolicn y Jugador de Chueca, de Ni-
canor Plaza, El Padre Las Casas de Blanco o Busto Araucano de Gonzlez,

22
Cfr. BEZ Y MASON, 2009
23
En relacin a esta controversia ver DE LA MAZA, J. De obras maestras y mamarrachos,
Edic. Metales Pesados, Santiago, 2014; HERRERA, P. Pedro Lira y Jos Miguel Blanco:
Sus luchas artsticas y la articulacin de un sistema del arte en Chile, Raquel Abella y otros
(ed), VII Jornadas de Historia del arte, UFSP-UAI; Santiago, 2014.
24 En el denominado Catlogo de los cuadros i esculturas adquiridas para el Museo de
Bellas Artes, 1888-1893, manuscrito que hoy se conserva en el Archivo Nacional de San-
tiago, consta que entre las obras que formaban la coleccin en esos aos se encontraban
cuadros de costumbres populares de Celia Castro y Rafael Correa; paisajes de Juan Fran-
cisco Gonzlez, Pedro Herzl, Enrique Swimburn y Onofre Jarpa y naturalezas muertas de
J. M. Ortega, Adolfo Silva y N. Scoffield, entre otros. La Fundacin de Santiago apareca
como la obra mejor pagada del conjunto.
25
BLANCO, J.M. Museo de Bellas Artes, proyecto de uno, Revista Chilena, Tomo XV,
Santiago, 1879.

Patricia Herrera Styles

345
la mayora de las cuales, sin embargo, por decisin de la culta e ilustrada
Comisin de Bellas Artes, no permanecieron en l por mucho tiempo.
De esta forma vemos como la invisibilizacin, la anulacin de dife-
rencias o la atribucin de caractersticas inexistentes a los denominados
brbaros, fueron algunas de las estrategias que las elites de Brasil y Chile
articularon a partir de estas obras y sus exhibiciones.

Bibliografa

Fuentes originales

BLANCO, J.M.:Museo de Bellas Artes, proyecto de uno, Revista Chilena,


tomo XV, Santiago, 1879.
Catlogo Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago de Chile, Imprenta y
Librera Ercilla, Santiago, 1896.
DVILA, L. Y GREZ, V. Catlogo de los cuadros i esculturas adquiridas
para el Museo de Bellas Artes 1888, 31 mayo 1893, Fondo Ministerio
Educacin, Vol. 857, Archivo Nacional.
Exposicin libre de Bellas Artes en Santiago, Diario La Unin, Ao I, n
225, Santiago, 16 octubre 1885.
En la exposicin, El Taller Ilustrado, Ao IV, n 159, Santiago, 17 de
diciembre 1888.
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Libros y captulos de libros
BAXANDALL, M.: Pintura y vida cotidiana en el Renacimiento, Editorial
Gustavo Gili, Barcelona, 1978.
BEZ, C.Y MASON, P.: Zoolgicos humanos, Fotografas de fueguinos y
mapuche en el Jardin d`Aclimatation de Pars, siglo XIX. Edit. Pehun,
Santiago, 2009.
DE LA MAZA, J.: De obras maestras y mamarrachos, Ediciones Metales
Pesados, Santiago, 2014.
DUNCAN, C.:Art museums and the ritual of citizenship, Karp, Ivan y
Steven Lavine (ed), Exhibiting cultures. The poetics and politics of museum
display, Smithsonian Institution Press, Washington, 1991.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

346
HERRERA, P. Pedro Lira y Jos Miguel Blanco: Sus luchas artsticas y
la articulacin de un sistema del arte en Chile, Raquel Abella y otros
(ed), VII Jornadas de Historia del arte, UFSP-UAI; Santiago, 2014.
LEVY, C.: Exposies Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de
Belas Artes, Edioes Pinakotheke, Ro de Janeiro, 1990
PINTO RODRGUEZ, J.: La formacin del Estado, la nacin y el pueblo
mapuche. De la inclusin a la exclusin. Edic. Dibam, 2 edic., Santiago,
2000.
SQUEFF, L.:A pinacoteca da Academia e a construao de uma histria
visual do Brasil, Anais do XXXII Colquio do Comit Brasileiro do
Histria da Arte 2012, Universidade de Brasilia, 2012.

Revistas

DIAS, E. Flix-mile Taunay entre a tradio clssica de ensino e a


paisagem contempornea no sculo XIX, Revista Caiana, n 3,
diciembre 2013.
FERNANDES, C. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia
Imperial das Belas Artes, 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 3, jul. 2007.
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GALVO, A., Manoel de Arajo Porto-Alegre: Trs cartas a Victor
Meirelles, 1854, 1855 y 1856, Revista de Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional. Rio de Janeiro, n 14, 1959.
KODAMA, K. Os estudos etnogrficos no Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro (1840-1860): histria, viagens e questo indgena Boletim do
Museu. Paraense Emlio Goeldi. Cincias humanas, vol.5 no.2, Belm,
May-Aug. 2010.

Patricia Herrera Styles

347
Figura 1
La Primera Misa en Brasil
Vctor Meirelles
1861, 268 x 356 cm.
Coleccin Museo Nacional de Bellas Artes, Ro de Janeiro.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

348
Figura 2
La Fundacin de Santiago
Pedro Lira
1888, 250 x 400 cm.
Coleccin Museo Nacional de Bellas Artes, Santiago.

Patricia Herrera Styles

349
Figura 3
Fachada Academia Imperial de Bellas Artes, Ro de Janeiro.
Marc Ferrez
c. 1885.
Coleccin Instituto Moreira Salles.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

350
Figura 4
Descubrimiento de las aguas termales de Piratininga
Flix-mile Taunay
s/f, 178 x 137 cm
Coleccin Museo Nacional de Bellas Artes, Ro de Janeiro.

Patricia Herrera Styles

351

Figura 5
Indgenas Selknam en Pars, 1889
Fotgrafo desconocido.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

352

Figura 6
Edificio El Partenn
Quinta Normal, Santiago.
Revista de Arte, Universidad de Chile.

Patricia Herrera Styles

353
exposies e narrativas

Yolanda Penteado da Caipirinha de Leme


organizao das Bienais

Marcos Jos Mantoan


Doutorando em Histria da Arte - Programa de Artes Visuais ECA-USP.

Yolanda Penteado, vinda da elite agrria paulista, vive o cotidiano


da cidade de So Paulo que ainda no era moderna, mas j caminha
nesse sentido. Afinal, So Paulo no era uma cidade nem de negros,
nem de brancos e nem mestios; nem de estrangeiros e nem brasileiros
(SEVCENKO, 2003, p. 30-31). Na So Paulo da juventude de Yolanda
Penteado, as famlias da elite se conheciam, tinham negcios comuns e,
acima de tudo, firmam laos familiares e de amizade. Todos se conhecem,
confirma Yolanda e a impresso que paira sobre sua biografia a de que
todos so aparentados. Ela mesma tem seu primeiro casamento com um
primo: Jayme da Silva Telles. A cidade de So Paulo dessa poca fechada e
provinciana. A sociedade no se mistura, circula entre si, arrogando-se uma
nobreza parte de tudo e de todos. Uma elite que vive primeiro nos campos
Elseos, depois migra para Higienpolis.
Jovem, bonita, culta e alegre, Yolanda desperta o interesse de todos:
seu primeiro admirador foi Jlio Mesquita Filho. Durante a adolescncia
Yolanda passa uma temporada no Rio de Janeiro. L compartilha longas
conversas e passeios com Alberto Santos Dumont um declarado
admirador da jovem, porm, 30 anos mais velho do que a moa. Juntos
vivem namoro platnico.
Outro admirador foi Assis Chateaubriand, que lhe chamava
carinhosamente de caipirinha de Leme dono dos Dirios Associados
um imprio do setor das comunicaes no Brasil que sempre se
demonstra apaixonado por Yolanda Penteado (OLIVEIRA, 2001). Com o
empresrio, Yolanda tem uma longa amizade e essa parceria d resultados em
empreendimentos importantes, tais como o apoio na formao da coleo
que originara o Museu de Arte de So Paulo e os Museus Regionais, nos
quais Yolanda torna-se a presidente honorfica.
O casamento com Jayme da Silva Telles acontece em 1921 um ano
antes da Semana de Arte Moderna os primeiros passos do movimento

355
modernista, Yolanda no acompanha, uma vez que a vida de casada se
divide entre a Hpica, Santos, Rio de Janeiro e So Paulo, os trs ltimos
lugares face aos negcios do marido. Nesse perodo, tambm, Yolanda e
Jayme passam uma longa temporada na Europa a primeira de muitas
outras. Nessa viagem Europa, Yolanda conhece Charles Chaplin, alm de
vivenciar novas experincias em meio sofisticado no entreguerras.
Antes do matrimnio, na casa de sua tia Olvia Guedes Penteado,
Yolanda relaciona-se com a primeira gerao de modernistas em So Paulo:
Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, entre
outros. D. Olvia Guedes, conhecida como a madrinha dos artistas e
protetora das artes, para acolher seus amigos modernistas criou, em 1925,
um ambiente especial, o Pavilho Modernista, expunha suas telas de Picasso,
Legr, Tarsila, Brancusi e Brecheret. Dessa convivncia, em suas memrias,
Di Cavalcanti merece um captulo especial. Em Tudo em Cor-de-Rosa,
Yolanda transcreve um bate-papo com o artista. Nessa transcrio, eles
mostram como se conhecem:

Meu conhecimento com voc no foi propriamente conhecimento


com a pessoa. Foi conhecimento com a entidade. Quando fui
estudar Direito em So Paulo, havia uma poro de mulheres
que eram verdadeiras entidades. Yolanda Penteado era uma delas
(PENTEADO, 1976, p. 255).

Nessa narrativa, emergem personagens, tais como: Oswald de Andrade,


rico Verssimo, Jos Lins do Rego, Paulo Prado, Villa-Lobos, Graa
Aranha, Nomia Mouro, Lasar Segall, Tarsila do Amaral e muitos outros.
O dilogo entre Yolanda e Di torna-se um registro ntimo da vida artstica
e intelectual de So Paulo nos anos de 1920 e 1930. Flvio de Carvalho
tambm surge nas memrias de Yolanda. Para ela, o artista revolucionrio,
irreverente e um gentleman (PENTEADO, 1976).
No que tange gesto das artes e ao projeto de modernizao do pas,
seu casamento com Francisco Matarazzo Sobrinho, Ciccillo, em 1946
um marco. Juntos participam da organizao do Museu de Arte Moderna
MAM SP (1947), das Bienais (a partir de 1951) e mais tarde, das colees
que formam o Museu de Arte Contempornea (1963). Yolanda parceira
de Ciccillo em todas as iniciativas e em muitas delas, como o caso da
organizao das bienais, o seu traquejo social permite que os investimentos
e as aes tenham xitos.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

356
Em 1946, Yolanda Penteado e Francisco Matarazzo Sobrinho se
conhecem. Naquela ocasio, em viagem Europa, o casal estabelece contatos
com o artista Alberto Magnelli, a crtica de arte Margherita Sarfatti e os
marchands Lvio Gaetani e Enrico Salvadori grupo que compraria diversas
obras para a coleo de Ciccillo e Yolanda Penteado. No exame sobre as
peas que compem essa coleo, pode se notar duas orientaes artsticas:
a francesa e a italiana. Porm, importante ressaltar que as escolhas do
casal foram pautas pelo modernismo moldado nas tendncias ao retorno
ordem.
Para a formao da vertente francesa, o casal confia essa misso ao
amigo Alberto Magnelli. A tarefa dele , basicamente, a busca por obras
representativas da cole de Paris (AJZENBERG, 2006). Para tanto,
Magnelli atua como conselheiro de Matarazzo e adquire peas diretamente
de artistas europeus (COELHO, 200, p. 25). Na seo italiana, a responsvel
pela escolha a crtica de arte italiana Margherita Sarfatti, atuante no
cenrio artstico italiano at os anos de 1930. Sua concepo evidenciada
nos aspectos estticos do segmento italiano da coleo Yolanda e Ciccillo,
em especial, na seleo de obras de artistas ligados vertente artstica
chamada de retorno ordem, sobretudo, o Novecento italiano (MUSEU
DE ARTE CONTEMPORNEA DA UNIVERSIDADE DE SO
PAULO, 1999, p. 29).
Compreende-se a orientao voltada ao retorno ordem, quando se
observa o fato de Margarita Sarfatti, poca, ser articuladora e principal
divulgadora na Itlia e no Exterior do Novecento, movimento surgido
em Milo em 1922, que apregoa a superao das vanguardas histricas
internacionalistas e a valorizao de poticas que recuperem os elementos
estticos tpicos e formadores da visualidade italiana. Outro fato importante
refere-se a modernismo que se instala no Brasil muito mais prximo
valorizao da tcnica do que das ousadias e inovaes formais das
vanguardas histricas das primeiras dcadas do sculo XX.
A coleo completa-se com as aquisies feitas pelos prprios mecenas
Yolanda Penteado e Ciccillo. Os dois, basicamente, seguem os parmetros
visuais estabelecidos por Margharita, porm em alguns momentos, adquirem
obras que fogem do rigor plstico imposto pela crtica de arte italiana.
Leve-se em conta que Yolanda e Ciccillo transitam, principalmente, no
eixo Paris-Roma-Milo, o mesmo de seus colaboradores Magnelli e Sarfatti
(MUSEU DE ARTE CONTEMPORNEA DA UNIVERSIDADE

Marcos Jos Mantoan

357
DE SO PAULO, 1999, p. 29). Para a ampliao da coleo italiana torna-
se fundamental a compra de esculturas futuristas como as de Umberto
Boccioni. Em 1952, Ciccillo compra da viva de Felippo Marinetti (poeta
futurista) os gessos originais de Desenvolvimento de uma Garrafa no Espao,
1912, e Formas nicas da Continuidade no Espao, 1913 (AJZENBERG,
2006, p. 14-15).
Concomitante, ao esforo de Yolanda e Ciccillo em formar uma
coleo de arte moderna, em novembro de 1946, Nelson Rockefeller, ento
presidente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em vista
ao Brasil, reune-se com um grupo de intelectuais e tenciona fundar um
museu de arte moderna de So Paulo. Essa poltica dedicada criao de
museus de arte moderna em pases latino-americanos se tratava de uma
estratgia cultural norte-americana de influncias sobre as zonas poltico-
econmicas sob sua gide. Nessa ocasio, Nelson Rockefeller doa 18 peas
para o futuro museu.
Imersa nessa poltica influncia poltico-cultural, a iniciativa da
organizao do Museu de Arte Moderna de So Paulo, ocorrida entre os
anos de 1948 e 1949, contou com a colaborao de representantes de diversas
reas da cultura. Esses intelectuais traaram o perfil e a poltica de aquisio
e formao do acervo moderno. A primeira sede do MAM SP foi em uma
sala do edifcio dos Dirios Associados, na rua 7 de abril, cedida por Assis
Chateaubriand - fundado do Museu de Arte de So Paulo. possvel que
essa cesso de espao tenha sido intermediada por Yolanda Penteado, uma
vez que Assis Chateaubriand sempre foi seu admirador. Em 8 de maro
de 1949, o MAM SP foi inaugurado com a mostra Do Figurativismo ao
Abstracionismo. Essa mostra instigou a discusso sobre a arte figurativa (de
representao da natureza) ser considerada conservadora e a arte abstrata
ser de vanguarda. Adjacente s polmicas, a coleo de Ciccillo e Yolanda
depositada no MAM SP e mais tarde, em 1963, doada Universidade
de So Paulo, nos seguintes termos: em 1962, Ciccillo doa 429 peas de sua
propriedade (AJZENBERG, 2006, p. 11).
A ideia de organizar uma exposio internacional de artes plsticas
surge, ainda, em 1949, durante os acontecimentos decorrentes da mostra
Figurativismo ao Abstracionismo, contudo, toma flego a partir de 1951,
quando o casal visita a Bienal de Veneza tomada como modelo inspirador
para sua similar em So Paulo. Aqui se assinala o modelo de ao e de
gesto das artes adotado pelo casal, no qual v Matarazzo se preocuparia

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

358
com as questes prticas e executivas do evento e Yolanda se voltaria
para as relaes e os contatos entre artistas, diplomatas e polticos que
possibilitariam a organizao do evento.

Um dia, o Ciccillo estava conversando com o Arturo Profili, e me


fez essa pergunta:
- Voc no quer experimentar fazer uma Bienal?
Fiquei muito espantada porque nem sabia direito o que era uma
bienal. A, eles me disseram:
- J escrevemos a diversos pases, sugerindo a ideia, mas no veio
resposta. Voc no quer tentar? (PENTEADO, 1976, p. 178).

Yolanda leva correspondncia sobre a organizao do evento aos


embaixadores e agentes culturais e artsticos. A ao apoiada por Getlio
Vargas que torna a viagem semioficial e uma das primeiras de muitas outras
que ocorreriam para a consolidao das relaes diplomticas a favor da
organizao da bienal, tendo sempre Yolanda Penteado como intermediria.
A proposta de organizao de uma bienal, utilizando o MAM SP como
suporte, bastante ousada os diretores do museu sentem a responsabilidade
e a ousadia do projeto. Yolanda, em suas viagens, relata a recepo da ideia
por parte dos pases procurados para formar suas delegaes.
Os contatos com Maria Martins, artistas e esposa de Carlos Martins
(embaixador do Brasil em Washington EUA), facilitam os trmites com
Getlio Vargas, presidente da Repblica, que telegrafa s embaixadas para
que essas dessem toda a infraestrutura e apoio a iniciativa de organizao
da bienal de arte. Segundo Yolanda:

Logo depois que o Getlio foi eleito presidente, os Embaixadores


no sabiam muito bem a quantas andavam as coisas. Era um enigma
essa nomeao. Foi muito bom, porque eles se redobraram em
amabilidade (FARINA, 2008).

Andr Malraux, naquele tempo, em incio de carreira, importante


na organizao do evento. A partir de lista redigida por ele, indicando as
pessoas a quem Yolanda deveria buscar na Frana para que o pas aderisse
ideia da Bienal. Em seguida, ela buscou o apoio da Itlia, na figura de

Marcos Jos Mantoan

359
Giulio Andreotti, subsecretrio de Estado para a Presidncia do Conselho
Italiano, porm, com o apoio do Conde Dino Grandi que reuniu mais
18 personalidades influentes na vida cultural italiana, que ela v mais um
pas importante aderir ao seu projeto. Como uma embaixadora das artes,
Yolanda serve-se do corpo diplomtico brasileiro na Europa para as adeses
dos pases. Quando a diplomacia no suficiente, no caso da Sua, Yolanda
no tem dvidas em colocar sua veia empresarial em ao:

Acrescentei que havia sabido, por membros da famlia de meu


marido, que eles estavam indecisos entre a Inglaterra e a Sua para
fazer teares. Se os suos continuassem inflexveis com a arte, talvez
seus teares no se materializassem (FARINA, 2008, p. 181).

Nesse episdio, Yolanda utiliza as relaes econmicas e comerciais


que o Estado Suo espera firmar com as Indstrias Matarazzo a favor
das relaes artstico-culturais aqui se assinala sua postura de gestora
das artes, afinal, ela lana mos de todos os instrumentais necessrios,
particularmente de sua viso de negcios, para a adeso da delegao sua
na organizao da bienal.
Aps o final da campanha diplomtica na Europa, Yolanda ainda
consegue, por intermdio de Assis Chateaubriand, o pavilho para abrigar
a I Bienal. Com a presena de cerca de 5000 pessoas, na inaugurao,
em 20 de outubro de 1951, a I Bienal contou com 21 pases, 1.800 obras
(AJZENBERG, 2004, p. 18). Yolanda foi responsvel por trazer as diversas
delegaes internacionais, pelo domnio que adquirira no cenrio artstico
nacional e internacional. Para seus idealizadores a Bienal deveria: inserir a
arte moderna no ambiente brasileiro e, simultaneamente, transformar So
Paulo em centro artstico internacional.
Graas aos esforos de Yolanda Penteado, Maria Martins, Franscisco
Matarazzo Sobrinho e muitos outros colaboradores, a I Bienal de So
Paulo a primeira exposio de arte moderna de grande porte realizada
fora dos centros culturais europeus e norte-americanos. So trazidos ao
Brasil artistas abstracionistas internacionais, tal como Max Bill e sua
obra emblemtica, Unidade Tripartida, 1948/49, apresentada na I Bienal.
Sob esta influncia, muitos artistas brasileiros passam a identificar os
abstracionismos como uma proposta de transformao das artes no pas,

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

360
em detrimento da arte figurativa. neste quadro que emergem os artistas
concretos, e os abstracionistas geomtricos e lricos.
Yolanda tem participao marcante em outras edies do evento.
Porm, sua atividade mais efetiva se d na II Bienal (que acompanhava as
comemoraes dos IV Centenrio da cidade de So Paulo; trouxe Guernica,
1937, de Pablo Guernica ao Brasil um dos maiores acontecimentos do
cenrio artstico at aquele momento e, transforma a ideia das bienais
brasileiras em algo consolidado e reconhecido internacionalmente) a
gesto de Yolanda na II Bienal colocada no presente estudo como linha de
frente nas investigaes. Torna-se importante mencionar que a participao
de Yolanda Penteado na organizao das bienais somente se ressente com a
separao de Ciccillo, em 1962.
Face aos contatos realizados para a organizao do MAM SP e depois
das Bienais de So Paulo, Yolanda manteve contatos com diversos artistas
internacionais que hoje se inscrevem na histria da arte, entre eles esto:
Fernand Lger, Matisse, Alberto Magnelli, Brancusi e Picasso. Um dos
relatos mais marcantes em Tudo em Cor-de-Rosa discorre sobre sua
convivncia com Pablo Picasso. Eram encontros dirios, em Antibes
(Frana), por volta de 1952/1953. Nesse perodo, ela tinha a inteno de
trazer trabalhos do artista espanhol para o Brasil. Nos primeiros dias, foi
aconselhada por Marie Cuttolie (amiga do pintor) a ouvi-lo com pacincia
e no pedir nada. Seu jeito prestativo e carismtico convenceu Picasso h
trazer para o Pas, Guernica, 1937 que poca estava na reserva tcnica do
Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), aguardando a mudana
de governo espanhol para retornar ao seu pas.

Diariamente, nos encontrvamos com Picasso em Antibes.


O convvio com o Mestre e as duas Marias cria uma grande
camaradagem. Pedi a Picasso uma dedicatria num seu livro. Ele
pegou meu batom e desenhou a cabea de cabra, escrevendo: Pour
Yolanda, Picasso (PENTEADO, 1976, p. 255).

Herdeira de D. Olvia Guedes, Yolanda Penteado sempre manteve


contatos om artistas nacionais e internacionais. Era muito boa anfitri,
especialmente em sua fazenda. Durante as primeiras bienais, por exemplo,
ela organizou inmeros jantares para os convidados especiais do evento. A
abertura da IV Bienal de So Paulo (1957) deu-se na fazenda de Leme, com

Marcos Jos Mantoan

361
os convidados transportados em avies que pousavam na pista construda
nas terras de Yolanda e depois cedida ao poder pblico municipal. Naquela
noite, o principal convidado era o presidente Juscelino Kubitschek, que
jantou e pernoitou no local (OLIVEIRA, 2001, op.cit.).
Yolanda tambm teve estreito relacionamento com cineastas, diretores
e atores de cinema, uma vez que Ciccillo era scio da Companhia
Cinematogrfica Vera Cruz, na dcada de 1950, em So Bernardo do
Campo, tendo como produtor Franco Zampari. A Companhia durou 04
anos e realizou 22 filmes longa-metragem, marcando a histria do cinema
brasileiro.
Em diversas ocasies Yolanda reafirma: toda a minha vida est ligada
terra, Fazenda Empyreo (PENTEADO, 1976, p. 37). Essa ligao afetiva
com a terra, Yolanda leva por todos os lugares por onde passa. Por mais que
se tornasse uma cidad do mundo; que falasse em diversos idiomas; que
tratasse com a elite paulistana e depois com milionrios, personalidades,
intelectuais e artistas internacionais (gozando de amizades e contatos em
Paris, Nova York, Berlim, Nova Delhi, Amsterd, entre outros centros
urbanos importantes), Yolanda jamais deixa de ser a Caipirinha de Leme.
Em sntese, ao longo de 30 edies da Bienal de So Paulo, diversos
acontecimentos marcaram a primeira grande mostra de arte moderna no
Brasil e na Amrica Latina: a organizao da coleo pessoal de Yolanda
e Ciccillo, por volta de 1946; a fundao do Museu de Arte Moderna de
So Paulo, em 1948/1949; o surgimento da ideia de organizao de mostra
internacional de grande porte, em 1949 e outros fatos decorrentes, tais
como a criao da Fundao Bienal Internacional de So Paulo (na dcada
de 1970). Porm as duas primeiras edies assinaladas pela forte presena
de Yolanda Penteado, como gestora das artes, especialmente dedicada s
relaes internacionais e ao contato com artistas (jovens e consagrados) so
fundamentais para o xito da organizao da mostra.

Referncias Bibliogrficas

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Ciccillo: Acervo MAC USP Homenagem a Francisco Matarazzo
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Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

362
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SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Exttico na Metrpole. So Paulo:
Sociedade e Cultura nos Frementes Anos 20. So Paulo: Cia das
Letras, 2003.

Marcos Jos Mantoan

363
exposies e narrativas

Aldemir Martins:
o cangao, o jaguno e a imagem do serto

Ana Maria Pimenta Hoffmann


Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao de Histria da
Arte da Universidade Federal de So Paulo.

Aldemir Martins (1922-2006) um dos artistas brasileiros mais im-


portantes da gerao do segundo ps-guerra. Obteve imenso sucesso nas
Bienais de So Paulo nos anos 1950 e recebeu um prmio da Bienal de Ve-
neza de 1956, conquistando inmeros outros prmios e expondo centenas
de vezes ao longo de sua prodigiosa vida artstica, extremante produtiva1.
Muito conhecido do pblico devido ao sucesso de mercado e atuao
junto aos meios de comunicao e indstria, Aldemir sempre se dedicou
a temas brasileiros, como o cangao, a vida simples do interior do pas
principalmente do Nordeste , a nossa fauna e flora, assim com cenas do
cotidiano. Dessa forma, podemos dizer que o artista criou uma imagem do
Brasil com suas obras, e a esse fato podemos somar sua generosa personali-
dade, sempre preocupada com as questes da arte e da identidade nacional,
e mesmo regional, o que faz dele um marco fundamental na histria da arte
do Brasil.
Expondo seus trabalhos desde os 20 anos de idade, realiza sua primeira
individual em 1946 e, na dcada seguinte, participa de diversas edies da
Bienal Internacional de So Paulo. Dedicando-se inteiramente ao dese-
nho por aproximadamente duas dcadas, Aldemir Martins descobre novos
meios de expresso que incluem a pintura e a cermica, alm de experin-
cias em design de objetos e televiso
Artista completo, com uma trajetria exemplar, foi amigo de persona-
lidades importantes do teatro, da literatura e da televiso nos anos seguintes
2a Guerra Mundial. Presente no cotidiano dos jovens artistas, tornou-se
uma referncia para as geraes futuras. Dessa forma, Aldemir Martins
um nome muito querido e sempre lembrado na arte brasileira, por seu in-
crvel talento e notvel pessoa.
1
Este texto retoma parte do meu livro: Aldemir Martins. 1a. ed. So Paulo: Folha de So
Paulo/Instituto Cultural Ita, 2013.

365
Manteve-se sempre fiel sua experincia afetiva e visual junto s tradi-
es e paisagem do Cear. Em maio de 1963, por ocasio da mostra indi-
vidual na Galeria Querino, em Salvador, Bahia, o jornalista baiano Odorico
Tavares (1912-80) descreveu assim sua personalidade:

Ao meio-dia, na porta da casa natal cearense, o menino olha a pai-


sagem da rua: tudo branco, tudo quase sem contorno, tudo transfigu-
rado pela luz implacvel do sol, rei absoluto, senhor todo-poderoso.
[...] O menino olha em redor e para ver tem que cerrar os olhos: eis
o homem meio deitado com suas roupas de couro, vigilante, o rifle
de lado. Bem perto, cantiga suave dos bilros: a rendeira como que s
dispe de movimentos nos dedos cleres de suas mos mgicas. [...]
O menino guarda tudo isso na sua alma e no seu corao e nunca
mais esquecer.2

Nascido no interior do Cear, Aldemir Martins teve formao no co-


lgio militar de Fortaleza, destacou-se como artista durante o servio mi-
litar e tornou-se um expoente no ambiente artstico cearense em meados
dos anos 1940. Aos 24 anos, migrou para a cidade do Rio de Janeiro e logo
depois para So Paulo, onde fixou residncia e alcanou enorme sucesso.
Desde muito cedo atuou como organizador de agremiaes artsticas
como a Sociedade Cearense de Artes Plsticas (SCAP); trabalhou em ins-
tituies de ponta no final dos anos 1940, como o Museu de Arte de So
Paulo Assis Chateaubriand (Masp); exps em eventos de grande porte nos
anos 1950, como a Bienal Internacional de So Paulo e a Bienal de Veneza,
conquistando o prmio de Melhor Desenhista Internacional na 28a Bienal
de Veneza de 1956. Realmente notvel em Aldemir Martins, entretanto,
a qualidade excepcional de seu desenho e de sua pintura, fartamente reco-
nhecida pelos incontveis prmios que recebeu durante a vida. E no pode-
mos deixar de destacar a engenhosidade com que transps sua arte para os
mais variados meios: ilustraes para a imprensa e para livros de literatura,
cenografias para teatros, bilhetes de loteria, latas de sorvete e vinhetas de
televiso, sendo que nesta ltima modalidade, foi pioneiro.
Aldemir Martins nos deixou tambm o legado de uma imensa e linds-
sima gama de temas ligados cultura nacional, seja nos personagens nor-
destinos, como o cangaceiro, o jaguno e as rendeiras, seja nas naturezas-

2
Artigo Aldemir (Bahia, maio de 1963), de Odorico Tavares (Arajo, 1985, p. 109).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

366
-mortas composta por frutas regionais, seja nas paisagens que remetem
caatinga ou ao litoral brasileiro. O artista imbuiu esses temas de uma beleza
monumental, nos seus desenhos de grandes dimenses (no que tambm foi
pioneiro) e no intenso colorido de suas pinturas.
Sua obra ficou igualmente marcada pela produo de desenhos e pin-
turas de seus prosaicos galos e gatos, que nos enchem de alegria ao vermos
imagens to refinadas desses simpticos animais domsticos. essa arte
alegre e sofisticada que constitui sua verdadeira marca.
Produzindo intensamente durante uma vida toda, ele povoou o imagi-
nrio brasileiro com seus personagens e paisagens, e difundiu a linguagem
modernista em desenhos, gravuras, pinturas, design, cermicas e joalheria.
Aldemir Martins nasceu em 8 de novembro de 1922 em Ingazeira,
pequena cidade do interior do Cear, onde residiam seus pais, Miguel de
Souza Martins e Raimunda Martins. Ele, Miguel, era funcionrio pblico,
responsvel pela expanso das linhas frreas no estado do Cear. Ela, filha
de ndios da regio de Quixeramobim, ascendncia sempre lembrada com
orgulho pelo prprio artista.
Em funo do trabalho do seu pai, a famlia muda-se dessa pequena
cidade do vale do Cariri para Guaiuba, Municpio de Pacatuba, muito pr-
ximo da capital Fortaleza, onde Aldemir comea seus estudos no Colgio
Militar. J nesse colgio, em funo de sua notvel habilidade com o dese-
nho, ser escolhido como orientador artstico.
Aos 17 anos, deixa o Colgio Militar para formar-se no Ateneu So
Jos, tambm em Fortaleza. Em 1941, alista-se no Exrcito, onde perma-
necer at 1945, quando termina a Segunda Guerra Mundial. Ser durante
essa longa e forosa permanncia no Exrcito que Aldemir Martins ter
sua primeira atuao profissional: desenha o mapa aerofotogramtrico de
Fortaleza e alcana, por concurso, o cargo de cabo-pintor. Segundo depoi-
mento do artista, o perodo de servio militar foi muito produtivo, pois ele
pde se dedicar ao aprimoramento da tcnica de pintura e desenho.
Durante esses anos iniciais em Fortaleza, Aldemir Martins partici-
pa como protagonista na incipiente organizao do ambiente artstico ce-
arense. Junto com artistas como Mrio Baratta, Barbosa Leite, Antnio
Bandeira, Joo Siqueira, Lus Delfino, Raimundo Campos, funda o Grupo
Artys que dar origem ao Centro Cultural de Belas-Artes e Sociedade
Cearense de Artistas Plsticos.

Ana Maria Pimenta Hoffmann

367
Neste perodo, produz pinturas e desenhos, expondo no II e III Sa-
lo Cearense de Belas-Artes (1942 e 1943), no I Salo de Abril (1943) e
na exposio coletiva intitulada Pinturas de Guerra (1944) organizada pela
SCAP. Alm disso, comea a trabalhar como ilustrador na imprensa cea-
renses, em jornais como O Unitrio e Correio do Cear.
neste ambiente que conhece Paulo Emilio Salles Gomes (1916-77),
intelectual paulista, que em passagem por Fortaleza compra um quadro
seu e incentiva o jovem artista a procurar novas oportunidades em cidades
maiores.
Minhas metas inclinaram-se para o Rio de Janeiro, cidade ento ves-
tida com as responsabilidades de capital federal, e So Paulo, j considerada
a locomotiva do crescimento industrial do pas.3
Ao embarcar para o Rio de Janeiro, Aldemir cumpre assim o passo
final no seu trajeto: vindo do interior do estado do Cear, de regio isolada,
passou pela capital do estado, onde teve importante atuao em Fortaleza, e
foi para ainda maiores tornar-se importante pea na histria do desenvol-
vimento das artes plsticas no Brasil, em um cenrio de intensas transfor-
maes socioculturais.
Desenvolvendo uma figurao nica, e trabalhando intensamente em
temticas brasileiras, como o folclore, as paisagens e hbitos do Nordeste,
tornou-se smbolo de arte brasileira, sem ser nacionalista. No texto abaixo
podemos ler como o jornalista baiano Edwaldo Pacote, seu amigo de longa
data, analisa a relao entre seu desenho e os temas por ele abordados:
A agressividade dos cangaceiros, a postura hiertica das rendeiras
tecendo tramas delicadas com a musicalidade dos seus bilros, a comba-
tividade do galo, a tristeza conformada dos retirantes, todos os temas de
Aldemir s poderiam ser interpretados adequadamente por meio de traos
severos, embora geis e livres, sem o sombreado bonito e maneiroso dos que
aprenderam a desenhar na escola. E o seu desenho era duro, desmentindo a
aparente fragilidade da linha, cheio de arestas cortantes como o mandacaru.
Diziam ainda que suas figuras no tinham movimento, que os seus canga-
ceiros assumiam a pose arrogante e esttica do samurai. Isso nada mais era
do que a impresso apressada de quem nunca sentiu o peso sufocante do
meio-dia na caatinga, quando nada se mexe, as nuvens ficam paradas no

3
Depoimento de Aldemir Martins (Guimares, 2005, p. 24).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

368
cu, no sopra nenhuma aragem para mover a folha do umbuzeiro e o gado
magro se deita espera da morte, sem foras para caminhar.4
Em abril de 1945, Aldemir Martins embarca para a cidade do Rio de
Janeiro a bordo do navio Almirante Alexandrino, levando consigo 12 telas,
15 desenhos e a convico de que necessitava ampliar os horizontes. re-
cepcionado pelo amigo e conterrneo, o pintor Antnio Bandeira, que logo
iria para a Europa. J no ano de sua chegada, Aldemir, expe no 51o Salo
Nacional de Belas-Artes, o mais importante salo oficial naquele perodo.
Alm disso, participa de coletiva na Galeria Askanasy.
Viaja a So Paulo no ano seguinte para visitar Paulo Emilio Salles
Gomes, que o recebe em casa por trs meses. O artista decide estabelecer-
-se na cidade e comea a trabalhar como ilustrador na imprensa paulista.
Lembrando essa poca, ele nos conta que fazia tudo para sobreviver, desde
que fosse ligado s artes plsticas5.
Ainda em 1946, Aldemir Martins faz sua primeira exposio individu-
al, no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), onde exibe 10 pinturas
e 15 desenhos, todos fundamentalmente em temas nordestinos e nas cores
vivas e cruas que marcavam meus trabalhos na poca6.
No ano seguinte, participa da exposio 19 Pintores, organizada por
Maria Eugenia Franco na Galeria Prestes Maia. A mostra inclua confe-
rncias sobre arte moderna coordenadas por Srgio Milliet (1898-1966),
Lus Martins e Lourival Gomes Machado (1917-67), e contava com um
incrvel jri de premiao formado por Anita Malfatti (1889-1954) (volu-
me 9 desta Coleo), Di Cavalcanti (1897-1976) (volume 1) e Lasar Segall
(1891-1957) (volume 6). Aldemir Martins obtm o terceiro lugar na pre-
miao, e alcana prestgio no meio artstico paulista. Essa exposio se no-
tabilizou por revelar uma nova gerao de artistas que trabalhava no incio
do ps-guerra com a linguagem expressionista.
Junto com Mario Gruber (1927-2011) e Enrico Camerini (1926-),
entre outros, participa ainda em 1947 de uma pequena mostra intitulada
Desenhistas Brasileiros, na cidade de Praga, na antiga Tchecoslovquia, atual
Repblica Tcheca.

4 Maitri!, de Edwaldo Pacote (Arajo, 1985, p. 18).


5 Depoimento de Aldemir Martins (Guimares, 2005, p. 26).
6 Depoimento de Aldemir Martins (Ibid, p. 26).

Ana Maria Pimenta Hoffmann

369
O Modernismo brasileiro estava passando nessa poca por um perodo
de reavaliao. Os artistas e intelectuais que ajudaram a cria-lo nos anos
1910 a 1930 empenhavam-se agora para estabelecer novos debates e conso-
lidar os projetos de instituies artsticas como o Museu de Arte Moderna
de So Paulo (MAM-SP) e do Rio de Janeiro (MAM-RJ), as Bienais e o
Masp. O jovem Aldemir Martins, ento com 24 anos, participa do proces-
so, engajando-se em muitas dessas iniciativas.
Autodidata declarado, Aldemir Martins sempre procurou conhecer os
mais diferentes aspectos da cultura visual e das artes plsticas, mantendo-
-se prximo aos crticos e historiadores da arte. Em 1949, encantado com
o projeto do Masp, faz o curso de histria da arte com o professor Pietro
Maria Bardi, a fim de qualificar-se para atuar como monitor no recm-
-inaugurado museu. Segundo o artista, esse curso representou um salto na
sua formao. No ano seguinte, participa do curso de gravura oferecido
pela Escola do Masp e ministrado Poty Lazzarotto, a quem eventualmente
substitua. Durante o curso, produz um lbum em gua-forte intitulado Ce-
nas da Seca do Nordeste. O trabalho ganhou prefcio de Rachel de Queiroz,
intelectual e romancista cearense com quem ir desenvolver outras parce-
rias ao longo da vida.
Nos anos seguintes, segue-se uma sucesso de mostras e premiaes
importantes. Em 1951 participa da I Bienal de So Paulo com trs de-
senhos a nanquim e ganha o prmio aquisio Olivia Guedes Penteado.
Expe pouco depois na Bienal de Veneza (1952), onde vende dois dese-
nhos, intitulados Cangaceiros I e II. Na II Bienal de So Paulo, em 1953,
conquista o Prmio Aquisio Nadir Figueiredo, e na terceira edio do
certame paulista conquista o Prmio Desenhista Nacional, consagrando-se
nesse ano de 1955.
A mais alta lurea obtida por Aldemir, entretanto, foi com certeza o
prmio de Melhor Desenhista Internacional na XXVIII Bienal de Veneza,
em 1956. A condecorao o colocou no preo para concorrer com os ven-
cedores do prmio em outras edies da Bienal, sendo por fim escolhido
como melhor desenhista das dez primeiras Bienais de Veneza do ps-guer-
ra (1946-66) pelo jri da Galerie Rive Gauche, que havia tomado para si a
tarefa de fazer essa anlise retrospectiva em 1968.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

370
A esse sucesso somou-se o Prmio de Viagem ao Exterior, concedido
no VII Salo Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1959. No
ano seguinte, aos 38 anos, Aldemir Martins embarca com a mulher e a filha
para Roma, onde permanece por dois anos, perodo de muitas aquisies
intelectuais e contato com diferentes escolas7.
Tendo dedicado sua arte consagrao de temtica ligada ao Nordes-
te, Aldemir Martins fez inmeras viagens de estudo por todo o Brasil, em
especial pelo interior de sua regio natal. Em 1951, vai a Fortaleza pintar
dois painis para o Cear Rdio Clube e volta em um pau de arara. Nessa
viagem faz as anotaes necessrias para desenvolver as primeiras sries de
desenhos de retirantes, cangaceiros e rendeiras, temas que passam a marcar
sua produo ao longo de toda a dcada. Pouco depois, percorre o roteiro
do cangao em uma viagem que se estendeu de dezembro de 1951 a abril
de 1952, passando por Caruaru, Canudos, Riacho do Navio e outras regies
da caatinga nordestina.
Ainda em 1952, vai para a Bahia com Mario Cravo (1923-) e Zanine
Caldas (1919-2001), quando conhece o serto baiano, que possui caraters-
ticas diferentes da caatinga. nesse perodo que comea a desenhar com
nanquim colorido.
O convite para expor em Washington, quatro anos depois, propor-
ciona-lhe a oportunidade de permanecer trs meses nos Estados Unidos,
visitando museus e acompanhando cursos de artes plsticas, e o Prmio de
Viagem ao Exterior do VIII Salo Nacional de Arte Moderna (1959) lhe
permite, pouco depois, nova temporada fora do Brasil. Dessa vez, perma-
nece dois anos em Roma com a famlia. L, complementa sua formao
em museus italianos como o Museu Etrusco, onde, em frequentes vistas,
aprendi com meus prprios olhos os fundamentos da arte etrusca e suas
repercusses nos movimentos artsticos europeus8.
Na Copa do Mundo de 1966, parte para a Inglaterra a fim de acom-
panhar os jogos, o que lhe rende inmeros trabalhos sobre o futebol, mas
tambm marca sua trajetria na aquisio de conhecimentos sobre uma
tcnica recm-introduzida no mercado de arte, a tinta acrlica, que ele passa
a adotar.

7
Depoimento de Aldemir Martins (Ibid p. 30).
8
Depoimento de Aldemir Martins (ibid, p. 30).

Ana Maria Pimenta Hoffmann

371
Em 1988, faz outra viagem importante: vai China a convite do go-
verno desse pas, na companhia do artista plstico Rubens Matuck (1952-),
travando intercmbio com artistas e acadmicos chineses, na Galeria de
Belas-Artes da China.
Aldemir Martins nos deixou uma vasta produo, criada em um lar-
go espao de tempo e constituda essencialmente de desenhos, gravuras
e pinturas. Alm disso, procurou apresentar as variadas temticas com as
quais o artista se notabilizou, como os personagens e objetos da cultura
nordestina o cangaceiro, o jaguno, a dana do bumba meu boi, a rede ,
as paisagens e as naturezas-mortas, assim como os to conhecidos gatos.
Em certa medida, esse seu repertrio iconogrfico remete-nos aos artistas
modernistas europeus, como Pablo Picasso (1881-1973), com seus touros
e animais domsticos; Henri Matisse (1869-1954), com seus interiores e
paisagens; e Marc Chagall (1887-1985), com suas cenas imaginrias que
evocam o cotidiano russo.
Tendo comeado muito cedo a carreira, Aldemir Martins produziu
ininterruptamente por sete dcadas, deixando obras em vrias tcnicas, e
tambm nos meio de comunicao de massa e em produtos industriali-
zados. Assim, pode-se dizer que sua obra testemunha do sculo XX, e
podemos ver nesse conjunto algumas caractersticas importantes da arte
deste sculo: o uso no descritivo dos elementos plsticos, como espao, luz
e cor; a autonomia de tais elementos, quase chegando abstrao; e a busca
de uma potica individual, muitas vezes militante.
O campo de atuao do Aldemir Martins o da figurao, mas sua
militncia pela cultura da sua regio de origem, e seu caminho foi pela
arte modernista.
Na obra Cangaceiro, 1951 (Col. MAC USP), desenho que Aldemir
Martins participou da I Bienal Internacional de So Paulo, ganhando o
Prmio Aquisio Nadir Figueiredo, vemos um grupo de cangaceiros sen-
tados no cho, dispostos em roda. O grupo caracterizado pelo uso do
tpico chapu de couro e pela presena de uma cabaa direita, e a cena
buclica sugere que esto descansando ou comendo.
Retratados inmeras vezes por Aldemir Martins, os cangaceiros per-
corriam em bandos o interior do Nordeste na segunda metade do sculo
XIX e incio do XX. Alguns constituam grupos organizados de assaltantes
armados, outros atuavam como pistoleiros, prestando servio a grandes fa-

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

372
zendeiros. Fossem o que fossem, tonaram-se smbolo de resistncia social e
valentia. Sem sombra de dvida, o mais conhecido deles veio a ser Lampio
(1898-1938). Ao mesmo tempo guerreiro e religioso, inspirou lendas e in-
meras narrativas com sua histria de vida cinematogrfica em especial sua
morte em um ataque-surpresa, seguida de degola e exibio de sua cabea
como trofu em vrios lugares do Brasil.
Com trao rpido de creiom sobre papel e uso da texturizao prpria
da tcnica, temos um desenho com aparncia rstica, evocando a natureza
do ambiente da caatinga e a precariedade que caracterizava a vida nma-
de desses bandos. Por outro lado, vemos um conjunto amplo, em que os
personagens, principalmente o da esquerda, adquirem monumentalidade
devido sua disposio no papel. Nenhum detalhe do ambiente mostrado
ao espectador, toda a cena se passa em um fundo neutro, com exceo da
cabaa, que serve como indicativo de um hbito presente em grande parte
do Brasil. Entretanto, com a memria que temos sobre o cangao, podemos
imaginar detalhes.
Dois anos depois, em 1953, o artista ganha com o desenho Cangacei-
ro, 1953 (Col. MAC USP), o Prmio Aquisio D. Olivia Guedes Pente-
ado, na II Bienal de So Paulo, onde est retratado um cangaceiro deitado
em escoro. O smbolo mximo da valentia e rapidez representado em
seu momento de repouso, criando-se assim um paradoxo. Toda a cena d
indicativos da calma do seu sono: a lua ao alto, a munio disposta ao lado
do corpo, a cabea apoiada nos bornais (como so chamadas essas sacolas
de couro, usadas a tiracolo), a carabina apoiada no chapu, o cantil.
Sabe-se que o bando de Lampio foi cercado em um ataque-surpresa
pelo Tenente Joo Bezerra, durante o amanhecer, no exato momento em
que o grupo despertava. Assim, no tiveram como se defender nem fugir,
sendo quase todos mortos ou capturados. Vendo esta imagem, podemos
pensar nesse momento que antecedeu o embate final entre o bando do co-
nhecido cangaceiro e as foras militares brasileiras, que tentavam alcan-lo
havia mais de uma dcada.
O desenho feito em traos finos, tpicos do uso da pena. Bastante
descritivo, busca ao mesmo tempo efeitos de sntese para dar universali-
dade ao personagem, paisagem e aos paramentos. Podemos identificar
sua filiao ao Modernismo brasileiro praticado por artistas como Candido
Portinari (1903-1962).

Ana Maria Pimenta Hoffmann

373
A iconografia do guerreiro em repouso humaniza o personagem. Po-
demos pensar nela como um contraponto s notcias que pouco tempo an-
tes haviam tomado conta das manchetes nos jornais: a captura e morte de
Lampio data de 1938.
Em outra obra pertencente coleo MAC USP, Cabra, 1956, pode-
mos ver toda a sntese do desenho de Aldemir Martins: o amor pelo gra-
fismo, o carter universal do tema, a importncia do imaginrio nordestino
e sua forte conexo com a arte modernista europeia. Autodidata declarado,
Aldemir teve, desde muito cedo, interesse pela arte moderna e pela arte no
acadmica. Organizou e frequentou vrias exposies de vanguarda durante
os anos 1940 e 1950, notavelmente a Bienal, e tambm trabalhou muito
nelas.
Nesse perodo, tanto na Europa e Estados Unidos como no Brasil,
estava sendo feita uma reavaliao do Modernismo do comeo do sculo
XX. O trabalho do jovem Aldemir fruto da compreenso dos ganhos ob-
tidos pela Arte Moderna, ganhos estes que podemos resumir na liberdade
formal, isto , liberdade de um sistema representativo que no est preocu-
pado com aspectos realsticos. A arte no busca mais reproduzir a natureza,
mas traduzi-la de forma prpria. Os desenhos de Aldemir Martins nesse
perodo, que iro marcar sua obra como um todo, podem ser entendidos
nessa chave.
A cabra, representada com os beres cheios, smbolo da prosperida-
de, constitui pea fundamental no sistema de sobrevivncia do homem do
serto. E na arte de Aldemir aparece universalizada pelo desenho, transfor-
mada pela estilizao geometrizante que a conecta com as cabras pintadas
e esculpidas por Pablo Picasso. As costas so uma linha reta, a anatomia do
animal traduzida em formas geomtricas preenchidas com grafismo que
constroem o volume por tonalizaes pela luz.
Nesta obra podemos ver um exemplar exerccio de experimentao
formal entre as possibilidades criadas pelas vanguardas modernistas pelo
Expressionismo alemo, pelo Cubismo francs , muito bem compreendi-
das pelo jovem artista, ento com 34 anos.
Por ultimo, gostaria de analisar a pintura O Jaguno, de 1967 (Col.
Masp), que retrata um dos personagens do imaginrio brasileiro mais pr-
digos de significaes. Smbolo de valentia e de resistncia poltica, re-
tratado neste quadro enquanto realiza a manuteno da sua arma, talvez

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

374
momentos antes de algum ataque. Euclides da Cunha, no ano de 1897,
empreende viagem a Canudos, reunindo material para escrever o livro Os
Sertes: Campanha de Canudos, publicado em 1902. Escrito durante cin-
co anos e dividido em trs partes intituladas A Terra, O Homem e A
Luta, a obra descreve a geografia, os tipos humanos e os conflitos sociais da
regio. No trecho dedicado compreenso do homem do interior do Brasil,
Euclides da Cunha descreve o jaguno da seguinte maneira:

O jaguno [...] procura o adversrio com o propsito firme de o


destruir, seja como for. Esta afeioado aos prlios obscuros e longos,
sem expanses entusisticas. A sua vida e uma conquista arduamen-
te feita, em faina diuturna. Guarda-a como capital precioso. No
esperdia a mais ligeira contrao muscular, a mais leve vibrao
nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao
riscar da faca no da um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa
ou o trabuco pesado, dorme na pontaria...

Aldemir Martins considerava o autor de Os Sertes o nosso maior es-


critor de todos os tempos9. O quadro acima mostra o jaguno exatamente
na atividade com que Euclides da Cunha termina sua descrio, mostrando
o preparo das armas, fundamental para o guerreiro infalvel que constitui
este tipo sertanejo. Tela de grande formato, constitui-se inteiramente de
efeitos grficos. sinttico o tratamento da figura humana que, sentada,
com a perna cruzada para apoiar a arma, empreende esforo para o bem
afiar da lazarina. Esta tela, junto com os desenhos precedentes, constituem
um testemunho importante da arte de Aldemir Martins no processo de
conhecer pela arte o interior do Brasil e divulgar tal imaginrio nas artes
brasileiras.

BIBLIOGRAFIA

DAmbrosio, Oscar; Matuck, Rubens. O Desenho de Aldemir


Martins. So Paulo: Cepar Cultural, 2011.
Arajo, Emanoel (Ed.). Aldemir Martins: Linha, Cor e Forma. So
Paulo: K/MWM, 1985.

9
Ibid, pag. 30.

Ana Maria Pimenta Hoffmann

375
GUIMARES, Benemar. Aldemir Martins por Aldemir Martins. So
Paulo: Bestpoint, 2005.
HOFFMANN, Ana Maria Pimenta. Aldemir Martins. So Paulo: Folha
de So Paulo/Instituto Cultural Itau, 2013.
Klintowitz, Jacob. Aldemir Martins: O Viajante Amigo. So Paulo:
Senac, 2006.
Matuck, Rubens; MOULIN, Nilson. Aldemir Martins: No Lpis da
Vida No Tem Borracha. So Paulo: Callis, 1999.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

376
exposies e narrativas

Os sales nacionais de arte em Belo Horizonte


na dcada de 1980

Ana Luiza Teixeira Neves


Historiadora da Arte. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

O presente trabalho parte de uma discusso maior, desenvolvida a


partir do Grupo de Pesquisa do CNPq, denominado Memria das Artes
Visuais de Belo Horizonte (MAV-BH), vinculado ao Departamento de
Artes Plsticas da Escola de Belas Artes da UFMG, que tem como base a
discusso das teorias e mtodos da Histria da Arte, assim como a anli-
se de obras artsticas pertencentes aos acervos de museus pblicos minei-
ros: Museu Histrico Ablio Barreto, Museu Mineiro e Museu de Arte da
Pampulha, comparativamente a outros acervos brasileiros e internacionais.
A histria da arte, enquanto campo de pesquisa autnomo, necessita
da utilizao de mtodos que abarquem tanto os aspectos tericos acerca da
produo artstica de um perodo quanto a abordagem do objeto artstico
em sua materialidade, por meio da educao do olhar. Tal educao diz
respeito a uma anlise da obra artstica em seus componentes formais, que
do a ela uma singularidade que no pode ser buscada em outro lugar
seno nela mesma.
Segundo o pesquisador Rodrigo Vivas, no Brasil, ainda no h histria
da arte como campo autnomo, visto que, para que isso ocorra, deve haver
uma definio do campo, uma categoria de objetos que sero analisados,
um quadro terico-metodolgico e uma escrita especfica.
Para essa escrita, torna-se necessrio uma intensa pesquisa sobre a pro-
duo artstica do perodo a ser analisado, e alm disso, na contempora-
neidade, deve-se problematizar a construo de acervos de museus que se
dedicam a guardar determinadas obras premiadas em sales de arte.

O grande problema dos historiadores que tratam uma obra artstica


no seu aspecto apenas informativo ou informacional o de negar um
conjunto de elementos formais que caracterizam a especificidade da
imagem artstica. Como possvel perceber, no parece existir um
campo disciplinar constitudo pela Histria da Arte no Brasil e por
isto natural esse sintoma constante de crise (VIVAS, 2011, p. 100).

377
O historiador da arte deve ter contato com a obra em sua materia-
lidade, pois esse contato permite entender como uma determinada obra
situa-se na interligao entre o espao museolgico e o aspecto fsico do
observador. Isso se torna inteligvel quando Giulio Carlo Argan (1909-
1992) situa a localizao da obra de arte dentro do campo histrico:

A obra de arte no um fato esttico que tem tambm um interesse


histrico: um fato que possui valor histrico porque tem um valor
artstico, uma obra de arte. A obra de um grande artista uma
realidade histrica que no fica atrs da reforma religiosa de Lutero,
da poltica de Carlos V, das descobertas cientficas de Galileu. Ela
, pois, explicada historicamente, como se explicam historicamente
os fatos da poltica, da economia, da cincia (ARGAN, 1992, p. 17).

Ao falarmos de obras de arte, devemos compreender anteriormente


como se do os processos de seleo e conservao das mesmas enquanto
referncias para a construo de uma histria da arte, seja nacional seja
regional. Os museus de arte moderna e contempornea muito nos tem a
dizer com seus acervos, como apontado no estudo de Emerson Dionsio de
Oliveira, onde mostra que grande parte dos acervos existentes nos museus
de arte moderna e contempornea brasileiros foi formada pelos prmios de
aquisio advindos dos sales de arte. Oliveira realizou estudo sobre nove
museus pbicos de diferentes localidades brasileiras e, segundo ele, pode
ser averiguado que todos herdaram obras de eventos que os ligam a uma
instituio anterior: os sales de arte .

Ao encararem sua tarefa como formuladores de uma coleo, os mu-


seus contemporneos de arte tornam-se a arena de negociao entre
memrias coletivas e individuais, dentro de um processo de seleti-
vidade em que a presena institucional passou a ser continuamente
questionada sobretudo pelos prprios artistas.14- Os museus de
arte dos grandes centros culturais, independentemente da tipologia
adotada, passaram a preocupar-se com a dinmica de circulao da
arte e no apenas com sua exposio e conservao, tanto no que se
refere ao seu valor mercadolgico quanto ao simblico (OLIVEI-
RA, 2010, p. 22).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


378
Percebemos no Brasil a inexistncia de uma poltica de formao de
acervo dos museus e colees, a no ser ora pelas premiaes de aquisies
dos sales existentes desde o sculo XIX ora por meio de colees particu-
lares que so doadas por seus colecionadores. O que no se faz como nico
problema, visto que, alm do que escolhido para que vire patrimnio de
determinado pas ou estado, os museus tambm enfrentam o desafio de
como lidar com as obras a serem conservadas e expostas ao pblico. Olivei-
ra nos coloca essa questo ao pesquisar sobre formao de acervos de mu-
seus brasileiros, em que, segundo ele, os museus ganharam uma m fama
atrelada a um passado burocrtico, elitista e, por conseguinte, segregador.
E essa m-fama est relacionada opo, muitas vezes, por preservar arqui-
vos ou objetos obsoletos. Porm, para ele,

Essa leitura dos acervos dos museus no de toda infundada; ao


contrrio, um dos pontos centrais de sustentao do discurso pre-
servacionista, que atravessou as prticas dos museus, principalmen-
te nos ltimos anos do sculo XIX, como vimos, refere-se ideia
de que tais instituies devem ser o depsito de nossas histrias.
Armazenam, portanto, uma infinita gama de seres e entes que
l, guardados, nos lembram de que temos um passado, mesmo que
meramente protocolar, lido por valores hegemnicos e acessveis a
poucos (Ibid, p. 22).

Os problemas apontados por Oliveira foram enfrentados no decorrer


desta pesquisa, contudo, faz-se importante o acesso a essas obras, mesmo
que no expostas, como nesse caso, em que as obras analisadas se encon-
tram na reserva tcnica do Museu de Arte da Pampulha. Juntamente a essas
anlises, foi necessrio o levantamento da fortuna crtica, por meio de tex-
tos jornalsticos e catlogos dos sales, para recuperar os juzos elaborados
no perodo sobre uma determinada produo.

Quando Argan nos orienta a ler o maior nmero possvel de obras


de arte, que se possa gozar da intimidade do objeto, conhecendo
processos expressivos, artistas e colees, ele enftico ao afirmar
que um historiador da arte forma-se em museus, galerias, igrejas, ao
que acrescentaramos, tambm em sales, pois no local onde a obra
se encontra que o historiador da arte se titula (LUZ, 2005, p. 19).

Ana Luiza Teixeira Neves

379
Ao considerar tais variveis e partindo do pressuposto que a nica
instituio que obedece aos critrios de preservao, divulgao e possi-
bilidade de consulta das obras em Belo Horizonte (com um acervo que
preservou a histria da arte da dcada de 1980) o Museu de Arte da
Pampulha (MAP), esta pesquisa se concentrou no contato e na anlise de
obras pertencentes a esse acervo, inseridas dentro do formato de aquisio
por meio dos sales de arte.

O Salo de Arte da Prefeitura de Belo Horizonte e a coleo do Museu


de Arte da Pampulha

Para se entender o desencadeamento da histria da arte em Belo Hori-


zonte, faz-se necessrio o estudo dos sales, que, desde seu comeo, passou
por significativas transformaes. Quanto ao estudo dos sales, possvel
concordar com Vivas quando esclarece sobre a importncia dele e o motivo
pelo qual ele deve ser nosso objeto de estudo para diagnstico da produo
artstica de uma poca:

Apesar da relevncia do tema, poucos estudos foram realizados sobre


os sales. No Brasil, o estudo inaugural foi realizado por ngela
ncora da Luz. O estudo dos sales de arte um caminho profcuo
e capaz de relacionar os mais variados componentes da produo
artstica, sejam eles: institucionais (o museu, a crtica de arte e o
pblico); os artsticos (as obras artsticas consideradas nos seus as-
pectos tcnicos e estticos) e sociais (significado das premiaes e
valorizao dos artistas) (VIVAS, 2012, p. 118).

Outra questo importante neste estudo o fato de os sales, no s em


Belo Horizonte, mas em todo o Brasil, passarem a constituir seus acervos
por meio de premiaes de aquisio, ou seja, no h uma poltica de aqui-
sio ou um colecionismo mais direcionado. Entender a histria da arte de
Belo Horizonte buscar nos sales todo o referencial de um perodo, o que
os artistas produziam e submetiam seleo, ao pensamento dos crticos e
reao do pblico. Os sales so capazes de diagnosticar um pensamento
que se delineava no campo artstico do momento estudado. O crtico Mr-
cio Sampaio aborda esse surgimento na capital:

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


380
Tendo surgido em meados dos ano 30 como reao ao academicis-
mo que dominava as mostras coletivas e os concursos de arte em
Belo Horizonte, o Salo de Arte promovido pela Prefeitura teve seu
formato modificado de tempos em tempo, sempre como resposta
s crticas, s demandas dos artistas e s exigncias da prpria arte
e dos meio de sua comunicao nas ultimas dcadas (SAMPAIO,
2009, p. 152).

Ligado aos Sales est o Museu, pois ele o local escolhido para a
mostra e a guarda das obras que foram expostas, alm de sua conservao.
O Museu de Arte da Pampulha, dedicado s artes moderna e contempo-
rnea, possui um acervo de aproximadamente 1.400 obras, formado por
praticamente todas as premiaes desses sales, mostrando ser tambm tais
premiaes diagnsticos de produes, modismos, e delineando momentos
artsticos de Belo Horizonte. Relacionado a essa questo, aborda Sampaio:

Por meio das premiaes no Salo que o Museu comearia a cons-


truir o seu acervo: os primeiros prmios em cada categoria regu-
lamentar pintura, escultura, desenho e gravura tinham carter
aquisitivo, e as obras premiadas passavam a integrar a coleo do
MAP, havendo, eventualmente, doaes de artistas premiados em 2
e 3 lugares. Em algumas edies, o Museu contou com o apoio de
instituies e empresas como patrocinadoras dos prmios de aqui-
sio, mas estas, via de regra, no doavam as obras ao Museu. Com
isso, muitas obras importantes deixaram de ser incorporadas ao seu
acervo (Ibid, p. 27).

Sampaio tambm aponta como problema outras questes relacionadas


ao Museu, como: a localizao, que dificulta o acesso do grande pblico, e a
falta de recursos e a inadequao de suas instalaes funo museolgica.
Contudo, as histrias dos sales e dos museus esto imbricadas e necessi-
tam ser vistas.
O Museu da Pampulha foi construdo em 1943, concebido por Oscar
Niemeyer, na gesto do prefeito Juscelino Kubitschek, para funcionar como
cassino, fazendo parte do complexo arquitetnico da Pampulha (Iate Clu-
be, Casa do Baile e Igreja So Francisco de Assis), representando a chegada
da modernidade em Belo Horizonte, nos quesitos artstico e arquitetnico.
Porm, as instalaes do prdio foram fechadas, aps o jogo de azar ter sido

Ana Luiza Teixeira Neves

381
proibido no Brasil, em 1946. Desse momento em diante, precisamente at
1951, o prdio passou a sediar eventos, comemoraes diversas e at mesmo
exposies de arte. Naquele mesmo ano, foi transferido, assim como todo o
complexo arquitetnico, para o Governo do Estado de Minas. Em 1957,
inaugurado como sede do Museu de Arte de Belo Horizonte, com a ceri-
mnia do XIII Salo Municipal de Belas Artes.
A histria dos sales na capital mineira mais antiga que a prpria
criao de seu Museu, como demonstra Sampaio em seu estudo:

Em seus 72 anos de existncia oficial, o Salo de Arte de Belo Ho-


rizonte passou por diversos formatos e denominaes, mantendo,
contudo, sua importncia como instrumento de estimulo criao
artstica na capital mineira. Suscitou polmicas, questionamentos,
mas indubitavelmente contribuiu para o surgimento e a insero de
inmeros artistas no circuito artstico de Minas e no contexto nacio-
nal. tambm o principal mecanismo utilizado para a constituio
do acervo de arte brasileira e mineira do Museu de Arte da Pampu-
lha (Ibid, p. 25).

Vivas ressalta a importncia dos sales da capital para o circuito artsti-


co brasileiro, no s promovendo intercmbio e propiciando formao para
os artistas, mas tambm servindo para desenhar uma histria da arte em
Belo Horizonte, definindo e direcionando as obras que seriam conservadas
at os dias de hoje.

Os Sales Municipais de Belas Artes (SMBA) da Prefeitura de Belo


Horizonte tm um papel fundamental para o desenvolvimento das
artes plsticas no Brasil. Considerado muitas vezes como respons-
vel por preservar o estilo acadmico, os sales transformam-se na
instituio capaz de financiar artistas, conceder viagens internacio-
nais e constituir o acervo dos museus de arte. Neste sentido, acabam
por definir o conjunto de obras que faria parte da memria visual
artstica brasileira, alm de determinar critrios que deveriam ser se-
guidos pelos artistas para serem aprovados pela instituio (VIVAS,
2012, p. 229).

Em seus primeiros anos de existncia, os sales aconteciam no saguo


da Prefeitura e, nas dcadas de 1940 e 1950, eram um grande evento ligado

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


382
s comemoraes do aniversrio de Belo Horizonte. Na dcada de 1950,
mais precisamente, em 1957, os sales seriam transferidos para o Museu
e, desse momento em diante, deu-se o incio da constituio do seu acervo
com os prmios de aquisies e outras doaes. Acervo esse formado por
meio do salo, e, como demonstra Sampaio, possvel crer em seu carter
circunstancial.

Primeiro, porque o Salo, em quase todas as suas edies, dependeu


do interesse dos artistas em inscrever suas obras, e o conjunto ins-
crito conformaria um contexto sobre o qual o jri teria de trabalhar;
segundo, pela razo de as curadorias exercerem o poder de escolha
dos membros de seleo e premiao, e, assim, na composio de um
jri, poder predominar um direcionamento conceitual e crtico da
curadoria; terceiro, porque o jri trabalha com um certo nvel de ex-
perincia e subjetividade e de composio de preferncias a partir de
discusses do grupo; quarto, por a premiao, muitas vezes, ser guia-
da tambm pela considerao da hora, isto , pelo que cada obra
expressa ou representa naquele momento (SAMPAIO, 2009, p. 23).

Outro fator que contribuiu para o fortalecimento do acervo do Museu


foi o fato de que, em 1958, o jornalista Assis Chateaubriand articulou um
grupo de doadores para incorporar obras ao acervo, e, assim, foi possvel
criar um maior repertrio da produo artstica apresentada no Museu,
indo do moderno ao popular. H ainda o fato apontado por Sampaio, de
que obras premiadas, muitas vezes, foram incorporadas s colees parti-
culares de patrocinadores (instituies e empresas diversas), em vez terem
sido doadas ao Museu.
Outra forma de constituio do acervo, alm dos sales de arte, so
doaes diversas, e, desde 2003, os programas de arte contempornea do
Museu tambm contribuem para formar a coleo do MAP, a exemplo
do Projeto Bolsa Pampulha, que passou a substituir os sales de arte, com
algumas semelhanas em sua formatao (edital, portflio, seleo e pre-
miao), alm de outras exposies.
O estudo do professor Vivas (2012) nos interessa, pois delineia um
momento de mudanas no s no campo da arte, mas de forma geral, no
que diz respeito ao advento da arte contempornea em Belo Horizonte,
com sua nova ordem, e a quebra de parmetros formais que ir atingir
tambm os sales:

Ana Luiza Teixeira Neves

383
A dcada de 1960 desempenha, como demonstra Michel Archer,
uma mudana vertiginosa no sistema artstico internacional. O fim
do duoplio pintura-escultura demarca a ruptura com sculos de re-
presentao artstica. Observa-se que, ainda no incio da dcada de
1960, possvel dividir a produo artstica em escultura e pintura.
Mas, como afirma Archer, o duoplio passa a ser questionado aps o
advento das colagens cubistas e da performance futurista, alm dos
eventos dadastas (VIVAS, 2012, p. 203).

Vivas situa a mudana dos sales na capital dentro dessas transforma-


es, advindas do questionamento das modalidades artsticas apresentadas,
e, nos sales, os questionamentos e a necessidade de mudana no seriam
diferentes.

O circuito artstico de Belo Horizonte, aps 1967, caracteriza-se


pelo dilogo constante entre a ruptura e a tradio. Dessa forma,
aps constantes crises, inicia-se um conjunto de medidas para re-
conquistar a legitimidade do SMBA junto aos artistas mineiros. O
discurso de ruptura rapidamente parecia estar sendo novamente in-
corporado por prticas conservadoras. A primeira medida trans-
formar o Salo Municipal da Prefeitura em Salo de Arte Con-
tempornea (SAC) e abolir as divises tradicionais como pintura,
escultura e desenho. O objetivo do SAC, segundo o novo programa
do salo, seria premiar bons trabalhos, independentemente de quem
os produzisse. Com essa observao, busca-se romper com a imagem
do SMBA, que estaria apenas premiando artistas do eixo Rio-So
Paulo. Inicia-se, novamente, a tentativa de estabelecer, nos sales,
critrios especficos para a arte mineira (Ibid, p. 203-204).

A partir de 1969, encerra-se o ciclo dos Sales Municipais de Belas-


-Artes, mais tradicional no formato e nas linguagens apresentadas, e cria-se
o Salo Nacional de Arte Contempornea. Como argumenta Vivas

a passagem do moderno ao contemporneo dependeu da crise dessa


instituio. O processo de quebra do suporte, a negao do museu
como espao expositivo privilegiado, a quebra do distanciamento
com os espectadores, o uso do corpo como expresso artstica e a
volta figurao so algumas caractersticas da arte contempornea
observveis na manifestao Do corpo terra, ocorrida na capital
mineira (Ibid, p. 41).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


384
A partir de 1971, retirado da denominao dos sales o termo Con-
temporneo, passando a ser chamado Salo Nacional de Arte da Prefeitura
de Belo Horizonte. Como informa Sampaio:

Encerrava-se ento o primeiro cicio dos Sales do Museu, reconhe-


cendo-se, sem dvida, sua importncia e seu saldo amplamente po-
sitivo. Iniciava-se uma nova fase com regulamentao aberta a novas
linguagens e tendncias. Aboliu-se a diviso por categorias, permi-
tindo com isso a inscrio de trabalhos em linguagens ainda no
catalogadas, interdisciplinares ou que se situavam na fronteira de
uma e outra categoria o regulamento referia-se a trabalhos e no
mais a obras. (...) Quanto premiao, tambm se aboliu a diviso
por categoria. Estabeleceu-se um Grande Prmio e outros prmios
de carter aquisitivo sem hierarquizao (SAMPAIO, 2009, p. 32).

Aps essas elucidaes, pretendeu-se, dentro do contexto apresentado,


investigar a arte produzida em Belo Horizonte, na dcada de 1980, e sua
insero dentro do circuito artstico da capital mineira por meio dos sales
de arte.
Esta pesquisa realizou um levantamento sobre os sales nacionais de
arte promovidos pela Prefeitura de Belo Horizonte na dcada de 1980,
figurando-se naquele momento como um dos principais eventos do pas, no
sentido de apresentar e promover a arte nacional. Portanto, foi preciso op-
tar por um recorte tamanho o volume de informaes encontradas, fontes
textuais e obras, sobre o assunto abordado. Decidiu-se, ento, por investigar
e analisar cinco sales nacionais de arte de Belo Horizonte, ocorridos entre
1979 e 1984 (exceto 1982) por meio das fontes produzidas por tais eventos,
que podem ser divididas em: fontes textuais catlogos, crticas jornalsti-
cas, atas e regulamentos dos sales e visuais, as obras artsticas premiadas.
Esses sales tiveram o diferencial, dentre prs e contras, de terem se
realizado, ora em seu formato tradicional com concorrncia ora como uma
grande exposio coletiva, em torno de um tema predeterminado por cura-
dores ou crticos trabalhando conjuntamente.
A principal justificativa para a mudana dos sales tradicionais para
os sales temticos, segundo seus organizadores, decorreu do esvaziamento
dos sales ocorridos na dcada de 1970 e os motivos apontados para tal
esvaziamento foram: a ditadura militar, que ainda alarmava o pas; o medo

Ana Luiza Teixeira Neves

385
dos artistas da censura; o vazio cultural assombrado pela efervescncia das
dcadas anteriores.
Outro fator que apresentou mudana foi o fato de, em muitos desses
sales, ter ocorrido a substituio do sistema de seleo dos artistas. Em
alguns dos sales, foi extinto o corpo de jurados que premiava as melhores
obras e, em vez de uma irrestrita concorrncia, adotou-se um sistema de
convite a artistas consolidados no circuito. Destaca-se, ainda, a criao do
sistema de curadoria, delineando um pensamento especfico para o evento,
juntamente com a insero de uma proposta temtica para cada salo ana-
lisado.
O foco deste estudo foram os sales temticos, que, como se sabe, foram
cinco em toda a histria dos sales em Belo Horizonte: XI Salo Nacional
de Arte, Figurao referencial, 1979; XII Salo Nacional de Arte, A cidade faz,
1980; XIII Salo Nacional de Arte, A casa, 1981; XV Salo Nacional de Arte,
Precariedade e criao, 1983; e XVI Salo Nacional de Arte, O homem, 1984.
Os sales temticos trouxeram consigo um carter peculiar, princi-
palmente pelo fato de terem acontecido num momento de transio na
poltica brasileira (ditadura-abertura) e por seus organizadores tentarem
fazer com que, de alguma forma, isso aparecesse na formatao desses even-
tos, ampliando a participao para outros tipos de manifestao popular,
juntamente com a produo artstica erudita ou mesmo no teor das obras
apresentadas quando os artistas eram convidados. Por meio dos textos e das
obras apresentadas nos sales, foi possvel verificar isso.
Diferentemente do que havia ocorrido at o contexto aqui tratado, em
1979, o XI SNA Figurao referencial ocorreu no formato de uma grande
mostra temtica, com convites a artistas, demonstrando a tendncia nos
trabalhos apresentados da figurao de referncia poltico-social e cultural,
nos quais se destacaram obras de Marcos Coelho Benjamin, Joo Cmara
e Mariza Trancoso.
Em 1980, o XII SNA A cidade faz, aberto concorrncia em torno
de um tema, trouxe consigo o diferencial de ocorrer sob uma curadoria
compartilhada, envolvendo crticos, jornalistas e historiadores, abarcando,
assim, reas e abordagens diferentes, como arquitetura e jornalismo. O con-
curso de artes plsticas tambm foi inovador, ao ampliar o aceite de pro-
postas que iriam para alm do espao do Museu. Destacaram-se nesse salo

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


386
as obras de Manfredo Souzanetto, Marco Tlio Resende, Hugo Denizart e
Ana Amlia Diniz Camargos.
Em 1981, em continuidade a uma proposta temtica, realizou-se o
XIII SNA A casa, no qual manteve-se a proposta de concorrncia aberta,
juntamente com convites a artistas que tivessem trabalhos em torno da te-
mtica. Destacaram-se as obras de Paulo Roberto Leal, Amilcar de Castro
e, novamente, Hugo Denizart.
Aps a quebra do ciclo temtico, em 1982, no ano seguinte, voltaria o
formato de salo temtico, ocorrendo, em 1983 o XV SNA Precariedade
e criao. Novamente, assim como em 1979, apenas com convite a artistas
e, dessa vez, sem prmios de aquisio. Mesmo sem obras no acervo, foi
possvel destacar as presenas de Marcos Coelho Benjamin e Fernando
Lucchesi.
No ano de 1984, acabaria o ciclo dos sales temticos, com o XVI SNA
O homem, e, com ele, a hiptese de que seria aquele o ano mais marcan-
te da emergncia da pintura como categoria principal eleita pelos artistas,
seguida do desenho, que tinha forte presena principalmente na produo
artstica mineira. Destacam-se nesse salo as obras de Marcos Benjamin e
Mariza Trancoso, mais uma vez.
Dentre os sales estudados, de 1979 a 1984, fez-se forte a presena
da pintura e do desenho, eleitos por grande parte dos artistas, jovens ou
mesmo com carreiras consolidadas; fato que pode ser delegado tambm
preferncia do jri e da crtica por esses suportes. Assinala-se, ainda, a
ampla recorrncia ao objeto e instalao, que, devido ao carter perecvel,
acabaria por no fazer parte do acervo do MAP.
Em suma, tanto no que diz respeito produo artstica da dcada
de 1980 quanto ao acervo do Museu de Arte da Pampulha, podem sur-
gir questes que nos possibilitam pensar numa escrita da histria da arte
contempornea brasileira, pela relevante quantidade de obras e fontes que
podem ser encontradas a respeito de tal perodo, especificamente, no acervo
do Museu de Arte da Pampulha.

Ana Luiza Teixeira Neves

387
REFERNCIAS

ARCHER, M. Arte contempornea: uma histria concisa. So Paulo: Mar-


tins Fontes, 2001.
ARGAN, G. C. Arte Moderna: do Iluminismo aos movimentos contempo-
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VIVAS, R. Os sales municipais de belas artes e emergncia da arte contem-
pornea em Belo Horizonte: 1960-1969. Tese (Doutorado em Histria
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Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


388
Catlogos

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Horizonte: Catlogo de Exposio, Museu de Arte da Pampulha,
2009.
Inventrio Museu de Arte da Pampulha/Museu de Arte da Pampulha.
Belo Horizonte: 2010, 240 p. Catlogo de exposio, Museu de Arte
da Pampulha.
FIGURAO REFERENCIAL: XI Salo Nacional de Arte. Belo Ho-
rizonte: 1979. Catlogo de exposio, Museu de Arte da Pampulha.
A CIDADE FAZ: XII Salo Nacional de Arte. Belo Horizonte: 1980.
Catlogo de exposio, Museu de Arte da Pampulha.
A CASA: XIII Salo Nacional de Arte. Belo Horizonte, 1981. Catlogo de
exposio, Museu de Arte da Pampulha.
PRECARIEDADE E CRIAO: XV Salo Nacional de Arte. Precarie-
dade e criao. Belo Horizonte: 1983. Catlogo de exposio, Museu
de Arte da Pampulha.
O HOMEM: XVI Salo Nacional de Arte. Belo Horizonte: 1984. Catlo-
go de exposio, Museu de Arte da Pampulha.

Artigos de peridicos

ALVIM, Celma. xito do XIII Salo Nacional de Arte. Estado de Minas,


Belo Horizonte, 22 nov. de 1981.
______. A casa, tema de um grande salo. Estado de Minas, Belo Horizon-
te, p. 8, 25 out. 1981. Feminino.
______. A trajetria dos sales. Estado de Minas, 25 nov. 1984. Feminino,
p. 9.
______. A viso da casa segundo os vencedores. Estado de Minas, Belo Ho-
rizonte, 10 dez. 1981.
______. Ainda os sales temticos. Estado de Minas, Belo Horizonte, 12
nov. 1982.
______. XII Salo Nacional. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 5, 2 nov.
de 1980.

Ana Luiza Teixeira Neves

389
______. A casa, tema do Salo-80. Estado de Minas, Belo Horizonte, 14
out. 1981.
______. Quando a casa tema. Estado de Minas, Belo Horizonte, 6 set. de
1981.
______. As vrias faces de um salo. Estado de Minas, Belo Horizonte, 9
ago. de 1981.
______. Figurao Referencial: a hora de um salo renovador. Estado de
Minas, Belo Horizonte, p. 6, 11 dez. 1979.
______. Os descaminhos de um salo. Estado de Minas, Belo Horizonte, p.
6, 26 nov. 1983.
______. Os destaques do Salo de Belo Horizonte (I). Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 6, 20 dez. 1981.
______. Os destaques do Salo de Belo Horizonte (II). Estado de Minas,
Belo Horizonte, 27 dez. 1981. Feminino, p. 8.
______. Os sales e as novas tendncias. Estado de Minas, Belo Horizonte,
28 nov. 1982.
______. Precariedade e criao. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 7, 11
de dezembro de 1983.
______. Sales temticos, sales abertos. Estado de Minas, Belo Horizonte,
12 set. 1982.
______. Sexta-feira no Museu: A cidade faz. Estado de Minas, Belo Hori-
zonte, p. 8, 7 dez. 1980.
______. Tempero nas coletivas. Estado de Minas, Belo Horizonte, 11 set.
1983. Feminino, p. 9.
Estado de Minas. Os premiados do Salo de Belo Horizonte. Belo Ho-
rizonte, 14 dez. 1980.
______. Interveno, mais uma etapa do Salo de Arte. Belo Horizonte,
12 nov. 1980.
______. No Salo de Arte, BH no tempo e na memria. Belo Horizonte,
20 nov. 1980.
______. Plsticas. Salo do Museu bate recorde de presenas. Belo Hori-
zonte, p. 7, 19 dez. 1984.
______. Abre-se hoje na Pampulha o XV Salo Nacional de Arte com
Precariedade e Criao. Belo Horizonte, 17 dez. 1983.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


390
______. Pampulha volta com o Salo. Belo Horizonte, 1 nov. 1980.
______. Interfira no dia-a-dia da cidade e leve ao Salo. Belo Horizonte,
12 nov. 1980.
______. Um milho em prmios no XII Salo de Arte. Belo Horizonte, 15
nov. 1980.
______. Cidade tema de XII Salo. Belo Horizonte, 18 nov. 1980. Pls-
ticas.
______. A cidade faz este o tema do XII Salo de Arte. Belo Horizonte,
2 nov. de 1980.
FRADE, Wilson. O tema A Casa. Estado de Minas, Belo Horizonte, 29
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MORAIS, Frederico. A casa como tema do 13 Salo de Belo Horizonte.
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______. A pintura vive. Viva a pintura. Estado de Minas, Belo Horizonte,
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Janeiro, 10 nov. 1980. .
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Globo, Rio de Janeiro, p. A8, 1 dez. 1983.
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O Estado de So Paulo. Mineiros reformulam salo nacional. So
Paulo, 25 nov. 1980.
OLIVEIRA, Maria das Graas. Condenado antes da abertura. O XI Salo
Nacional no passa de um tapa-buraco. Dirio da Tarde, Belo Hori-
zonte, 12 dez. 1979. 1 Caderno, p. 7.
OSWALDO, ngelo. No salo anti-salo, hora de ver a realidade. Estado
de Minas, Belo Horizonte, p. 9, 15 dez. 1979.

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______. O salo de arte visto com um acontecimento. Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 6, 27 dez. 1983.
______. O salo; anotaes em torno de suas exquias. Suplemento Literrio,
Belo Horizonte, p. 1-2, 9 dez 1972.
______. XV Salo Nacional de Arte. Precariedade, slida base da criao.
Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 7, 22 dez. 1983.
______. XVI Salo de Arte tem 380 participantes. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 6, 17 nov. 1984.
______. Figurao Referencial mostra 14 artistas brasileiros. Belo Hori-
zonte, 1 dez. 1979. 2 Caderno. Belo Horizonte.
______.O Salo vem a. Belo Horizonte, 5 nov. 1980.
______. Lcio Portella fala sobre o XII Salo. Belo Horizonte, 19 nov.
1980.
JORNAL DE MINAS. XV Salo realiza-se no museu at maro. Belo
Horizonte, p. 6, 11 dez. 1983.
TRISTO, MariStella. A coletiva 83 do salo da prefeitura. Estado de Mi-
nas, Belo Horizonte, p. 8, 13 dez. 1983.
______. Entre outras coisas. Estado de Minas, Belo Horizonte, 9 set. 1981.
______. Mais um Salo de Arte no aniversrio de BH. Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 5, 12 dez. 1984.
______. No Segundo Salo, uma retrospectiva da pintura mineira. Estado
de Minas, 12 de dezembro de 1979, p. 5.
______. O sucesso do Salo de Arte da Prefeitura. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 5, 17 dez. 1980.
______. Os dez primeiros indicados para o jri do Salo da prefeitura. Es-
tado de Minas, Belo Horizonte, p. 5, 7 nov. 1984.
______. Um Salo diferente, este XVIII de BH. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 8, 10 dez. 1980.
______. Os aprovados e premiados do Salo de Belo Horizonte. Estado de
Minas, Belo Horizonte, p. 7, 21 dez. 1984.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas


392
arquivos e fontes

Itabirismo: Apontamentos sobre o acervo de Cornelio Penna


no Arquivo-Museu da Literatura Brasileira (Fundao Casa de Rui
Barbosa / Rio de Janeiro)

Andr L. Tavares Pereira


Professor do Departamento e do Programa de Ps-Graduao de Histria da
Arte da Universidade Federal de So Paulo.

Cornlio parecia um homem desembarcado por engano


neste planeta. Num sculo que pretende nivelar em tom cinzento
a indistinta massa humana, ele pertencia ao nmero dos que
representam algo de excepcional.
Murilo Mendes, em seus Retratos-Relmpago.

Yo creo en los objetos inclusive ms que en los seres huma-


nos (...) los objetos los traicionamos nosotros. (...) Nosotros
somos los que mentimos, los objetos no mienten.
Manuel Mujica Linez, entrevista concedida a Joaqun
Soler Serrano, TVE, anos 1970.


Nascido em Petrpolis no ano de 1896, Cornlio Penna viveria mar-
cado pelo ambiente espiritual mrbido e tradicional, mstico e um pouco
divorciado do mundo real que encontrou na infncia em Itabira, Minas Ge-
rais, Brasil. Essa infncia no interior da provncia sempre lembrada como
matriz das imagens, temas e mesmo dos personagens que viria a utilizar em
suas obras futuras. No h exagero em ressaltar este apego, como fizeram
Afrnio Peixoto ou Adonias Filho, ao esprito da terra que o embruxou na
estadia mineira. Cornlio chegaria a dedicar Dois Romances de Nico Horta, o
segundo livro que publicou, cidade querida, apresentada como sua amiga
mais cara na abertura da obra. Mas o caso mais radical dessa devoo seria
mesmo Fronteira (1935) romance escrito e ilustrado por ele e que teria
seu tema mstico extrado de uma histria verdadeira, passada em Itabira.
Diplomado em Direito em 1919, Cornlio passa a viver do jornalismo e da
atividade de ilustrador e pintor. Trabalha, no Rio de Janeiro, como redator
nos jornais Gazeta de Notcias, A Nao e O Jornal. Realiza a nica individu-

393
al de seus trabalhos pinturas desenhos e ilustraes - na Associao dos
Empregados do Comrcio, no Rio de Janeiro, em 1928. Publica seus livros,
definindo uma nova rea de interesses, entre 1935 e 1954, desenvolvendo
e apurando o mecanismo da anlise introspectiva e psicolgica em cada
uma de suas obras. Dos captulos mais curtos e de sabor impressionista de
Dois Romances de Nico Horta (1939) e Repouso (1948), vemos seu estilo de-
senvolver-se no sentido da a expresso de ampla envergadura, culminando
na metfora da decadncia e desagregao da sociedade aristocrtica rural
representada por A Menina Morta (1954), sua realizao maior e compn-
dio de seu processo criativo. Inacabado deixaria o romance Alma Branca,
publicado como anexo edio dos Romances Completos que mereceu da
Ed. Jos Aguilar em 1958. Sob sua tcnica e habilidades, podemos lembrar
o juzo de A. Coutinho:

Dotado de singular capacidade de anlise introspectiva, criou persona-
gens de grande realismo e complexidade, situando-os, alm do mais, em
ambiente de densa atmosfera, soturnos, prprios ao desenrolar dos enredos
e episdios que narra numa linguagem seca, objetiva e direta. Seus ro-
mances possuem grande significao simblica, situando-se na zona de
fronteira em que se procura fazer sondagens sobre o mistrio da vida, das
pessoas, dos fatos1

A atmosfera de sonho que se desprende de seus textos so apenas
parte de um carter complexo e marcado por fora criativa excepcional. Sob
a gnese de seus romances, assim se havia manifestado, em entrevista ao
tambm escritor J. Cond, publicada nos seus Arquivos Implacveis:

(...) desde que me conheo, ouvia histrias de Itabira, de Pindamonhan-


gaba e das fazendas dos meus avs e tios, contadas de forma interrompida,
desconexa, cercadas pela mais suave discrio que j me foi dado contar,
contadas por minha me. Eu guardava tudo com avidez, sem demonstrar
como era funda a emoo que me provocavam aqueles episdios sem uma
ligao evidente entre eles, que eu recolhia e depois ligava com um fio
inventado por mim.2

1
COUTINHO, Afrnio ( Dir.): Enciclopdia de Literatura Brasileira (2 vols.), So Paulo:
Global Editora, 2001, Vol. 2, pg. 1234
2
FILHO, Adonias: Romances da Humildade, introduo aos Romances Completos, Rio de
Janeiro: Ed. Jos Aguilar, 1958, pgs. XXXIX- XL

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

394
Sua personalidade extravagante e misantropa foi fixada atravs de s-
ries de artigos ou referncias literrias, unnimes ao destacar seu carter
arcaizante, sua paixo pelas relquias familiares, mveis antigos ou seu in-
transigente apego ao passado, seja aquele da memria infantil - domina-
da pela lembrana de uma Itabira fantstica, matizada de cores afetivas e
impresses irremovveis - ou o da Monarquia banida e qual permaneceu
aparentemente fiel (Era mesmo das baronesas, como no Retrato elaborado
por Murilo Mendes). M. Rebelo, em seu conto A rvore, em que evoca o
bairro de Laranjeiras, o inclui entre os personagens tpicos daquele canto do
Rio de Janeiro, passeando o quanto pode pelas ruas do bairro, apoiando-se
ao brao da mulher, companheira de toda a vida3. A sua casa - mausolu,
espcie de cenrio montado dom o fim de reforar esse carter sombrio e
original que o acompanhava, seria descrita por Ldo Ivo com mincia e
sensibilidade num texto cujo efeito quase o de um conto gtico:

A casa onde reside Cornlio Penna, em Laranjeiras, d frente para a rua,


e, com a sua alta porta de madeira pintada de escuro, cor de bronze antigo,
lembra logo um pequeno convento. Para essa impresso, muito contribui
o estar sempre de janelas cerradas, bem como o seu ar de recolhimento e de
silncio, no meio das outras residncias ruidosas e muito abertas. O grande
vitral que nos surge logo aos olhos, com duas figuras graves, de olhar sere-
no, aumenta a sensao de paz e de longitude, que os mveis sombrios, os
papis de cores discretas, a grande quantidade de quadros de pinturas de
tons velados e os enormes retratos de famlia acentuam.4

Daquela casa viria a maior parte dos objetos pessoais, quadros escultu-
ras e moblia hoje legados Fundao Casa de Rui Barbosa, assim como os
desenhos e demais papis que se encontram no mesmo arquivo.
Mrio de Andrade dedicaria a Penna, mais especificamente na ocasio
do lanamento de Dois Romances de Nico Horta, o artigo Romances de um

3
Viam Cornlio Penna, enquanto pode, passeando ao sol com passos trpegos, firmando-se no brao
da esposa dedicada e na mo invisvel do Salvador, que o empolgou, afinal, para t-lo eternamente
junto ao seu seio amantssimo. Em Rebelo, MARQUES, A rvore, includo em Os Melhores
Contos de Marques Rebelo So Paulo: Global Editora, 1984, pgs. 122 e 123.
4
Depoimento a Ldo Ivo publicado originalmente nO Jornal, em 23 de maio de 1948 e
mais tarde includo nos Romances Completos, Rio de Janeiro, Jos Aguilar Editora, 1958,
pg. LIII.

Andr L. Tavares Pereira

395
antiqurio5. Tambm neste ttulo transparece a figura do autor dedicado a
revolver o passado, recolhido entre seus leques, relgios ou salvas de prata
do tempo do rei. Em muito recorda os ambientes e personagens de Mujica
Lainez em Los dolos. Esse o perfil de Cornlio pelo autor de Macunama:

Alma de colecionador vivendo no convvio de objetos velhos, Cornlio
Penna sabe traduzir, como ningum entre ns, o sabor de beleza mistu-
rado ao de segredo, de degenerao e mistrio, que torna uma arca antiga,
uma caixinha-de-msica, um leque, to evocativos, repletos de sobrevi-
vncia humana assombrada. Se sente que seus os romances so obras de
um antiqurio apaixonado, que em cada objeto antigo v renascer uns
dedos, uns braos, uma vida, todo um passado vivo, que a seu modo e em
seu mistrio ainda manda sobre sobre ns.6

A estria como romancista em 1935, justamente com Fronteira, abre
caminho para uma srie de novos romances, inaugurado - ou ao menos,
reinventando - uma tradio regionalista e introspectiva que seria, mais
adiante, desenvolvida at os limites da hipersensibilidade por Lcio Cardo-
so, autor a quem Cornlio Penna sempre associado. O clima opressivo do
interior desolado do pas, o peso da tradio e dos antepassados, a descri-
o impressionista e sugestiva dos ambientes, sua influncia no carter das
personagens cujas vidas parecem conduzir-se por fios invisveis, tudo est
presente nessas narrativas. Os adjetivos assombrado, misterioso ou nublado
so recorrentes na descrio de seu estilo, tanto na literatura quanto no de-
senho. O prprio autor, demonstrando possuir senso de auto-ironia e bom
humor, assim diria a Joo Cond sobre este ponto:

Sobre Fronteira, algum disse que era um romance de Boris Karloff, e eu


achei que tinha razo.7

Ao texto inovador de Fronteira seguir-se-iam Dois Romances de Nico
Horta e Repouso, etapas em que burilaria as histrias que colecionara em
seu ntimo dando a elas a forma de romances escuros, at ento organiza-
dos em captulos curtos. Sua obra, mxima, porm, ser A Menina Morta,
5
O artigo de 24-09-1939 foi publicado, mais tarde, no volume O empalhador de passarinho.
6
Mrio de Andrade, pg. 124.
7
Joo Cond, apud Adonias Filho, op.cit.,pg.XLI.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

396
obra-prima do gnero de romance fantasmagrico e noturno que refinou ao
extremo. O inslito do tema a desagregao de uma famlia aristocrtica
no Vale do Paraba vista atravs da movimentao ao redor das exquias de
uma criana defunta - soma-se histria da criao do prprio romance:
a inspirao derivava de um retrato de uma parenta (Zeferina, sua tia por
parte de me) morta ainda menina e que o autor conservava em sua casa.
Neste romance, Cornlio Penna expande seu texto, segurando por mais
tempo, com mo de mestre, o leitor perplexo. A trama aparece adensada, os
captulos mais extensos. Ao comentar a intimidade do autor com os objetos
antigos e ao culto do seu passado, assim escreve Murilo Mendes, no sem a
habitual dose de humor soturno:

O smbolo mximo era obviamente o quadro grande da menina morta
(sua tia Zeferina), pintado no sculo passado por um francs residente no
Brasil que lhe daria a matria de um livro. A mudana de Cornlio para
outra casa era sempre condicionada ao ajustamento desta tela parede da
sala de jantar. Vi-o rejeitar uma bela casa em Botafogo, onde o espao o
primeiro elemento funcional, onde se contacta a natureza, onde os mar-
ginais recebem ttulos de cidadania: desses sobrados com delicioso jardim
e pomar, hoje extintos. Hlas! No cabia na sala o quadro favorito, objeto
ferico de sua paixo8

A relquia familiar deu ensejo criao de sua obra mais significativa.
Apesar do sucesso de seu procedimento e da acolhida favorvel da crti-
ca, Cornlio Penna sempre se posicionou um pouco fora dos holofotes e
das discusses mais aferradas. Assim contava a Joo Cond, respondendo a
uma pergunta sobre o juzo que, eventualmente, faria do movimento de 22:

No julguei na poca e no julgo hoje o modernismo, porque no conheo
os movimentos literrios e penso que eles agem e influem fora da literatu-
ra. (...) De resto, leio apenas para no pensar, para esquecer a vida e no
para refletir sobre a literatura e fazer juzos paralelos9

O autor mereceu, em princpios da dcada de 1980, uma exposio


intitulada Os dois mundos de Cornlio Penna, iniciativa da Fundao Casa

8
Murilo Mendes, Retratos Relmpago in Obra Completa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,.
9
Ver Adonias Filho em Romances Completos, pg. LII.

Andr L. Tavares Pereira

397
de Rui Barbosa depositria de seu acervo pessoal. O catlogo, assinado
por Alexandre Eullio, converteu-se na referncia maior para a anlise do
trabalho de C. Penna como artista grfico e pintor. Neste texto, publicado
posteriormente na Revista Discurso (FFLCH / USP, 1981) bem como no
volume Escritos (Ed. UNICAMP), Alexandre Eullio tratava de esclarecer
possveis fontes visuais, modelos de figurao, para o estilo fantstico das
imagens elaboradas pelo autor de A Menina Morta. Seu parecer era de
que
Em Cornlio Penna, pintura e literatura constituram as formas arts-
ticas que, nessa ordem, o criador relutante aceitou a assumir a fim de dar
expresso a um mundo pessoal torturado e sombrio. Embora duvidasse
muito da eficcia da prpria atitude, sempre a oscilar entre a inutilidade
de cada gesto e o arrebatamento interior, o artista acaba por aceitar o
caminho da inveno10

Se, ainda na faculdade de Direito, iniciara-se nas letras com pequenas


lendas e narrativas curtas dentro de filiao simbolista, seria na imprensa
que sua personalidade artstica ganharia espessura. Nesta etapa, o artista
grfico passaria frente do escritor, apurando sua tcnica e definindo seu
campo de interesse temtico. A esta altura,

Executa (...) caricaturas polticas, apontamentos esquemticos, desenhos


vrios, em que o lado grotesco do dia-a-dia vence a anotao por vezes
lrica apanhada ao vivo: cenas de rua, comentrios de porta de bar, rid-
ciulos e mesquinheza da pequena-burguesia.11

Sua atividade, porm, foi alm da caricatura e da ilustrao de peque-


nas histrias publicadas nos jornais e revistas da moda. Trabalhou, ainda,
como um proto-designer, compondo modelos tipogrficos modernos, di-
zer, com letras geometrizadas e arrojadas para cartazes, anncios e letreiros
de lojas que desejassem para si um perfil e imagem inovadores.
A exposio de 1928 aparece, ento, como uma conseqncia natural
do prestgio crescente que seus desenhos vinham alcanando. Os estmulos

10
Alexandre Eullio, Os dois mundos de Cornlio Penna in Revista Discurso, So Paulo:
FFLCH / USP, 1981, pp.29 48. Esta citao, pg. 29.
11
Alexandre Eullio, op.cit, pgs. 29 e 30.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

398
dos amigos e fs dedicados acaba entusiasmando o autor, o que de causar
espcie, dado o carter retrado que vinha cultivando at ento:

J animado com o que me diziam alguns amigos, resolvi fazer uma


exposio individual, o que realizei graas ao esprito empreendedor de
Dona Nini Gronau, e o Sr. Teodoro Heubergerm que contou com o patro-
cnio do Ministro da Alemanha em nosso pas, o Sr. Hubert Knipping,
fizeram tudo para que esse desejo se tornasse uma realidade. Em 1928
foi inaugurada minha nica exposio, e consegui vender alguns quadros
(...). O catlogo foi escrito pelo Sr. Augusto Frederico Schmitd(...).12

Em 1929, porm, mesmo aps o sucesso de sua exposio e ao conti-


nuado apoio manifestado pelos fs de seu desenho nervoso e do cinismo
sutil com que impregnava alguns de seus sketches mais bem-sucedidos, Cor-
nlio Penna decide subordinar, pela deficincia na transmisso plena do
contedo emocional que deseja comunicar, o desenho escrita, publicando
seu acerto pessoal de contas com o universo artstico e resolvendo, atravs
da atitude radical, a indeciso, a dvida na escolha exata do meio de expres-
so consoante com seu gnio, a que vinha se submetendo. Assim,

Atingindo um paroxismo insuportvel para o mesmo artista, sem no


entanto provocar no espectador a nsia de absoluto que nele gostaria de
incutir, Cornlio Penna julga frustrada a prpria obra, que passa a consi-
derar um equvoco. (...) Procurando libertar-se com tristeza, mas de modo
definitivo, de um sofrimento que parece no levar a coisa alguma, Penna
assume para si mesmo que o abandono da pintura a nica soluo para o
dilema. A pintura deixar portanto (afirma) o principal meio de expres-
so do mundo interior dele. Em lugar adota a pintura arte do tempo,
no do espao, arte que afinal constitua o seu outro mundo - ,que a partir
da se torna o sangradouro dessa represa que ameaa aluir por excesso de
tenso dinmica.13

O desenho parecia ter sido, at a, o veculo. Passando ao romance, ado-


taria um estilo sugestivo, marcado pelas impresses vagas e pelo discurso
a meia-luz que associam-se com eficcia potica. A ciso entre o artista

Depoimento a Ldo Ivo em A vida Misteriosa de Cornlio Penna, Romances Completos,


12

Rio de Janeiro: Jos Aguilar Editora, 1958, pg. LX.


13
Alexandre Eullio, op.cit., pg.38.

Andr L. Tavares Pereira

399
plstico e o romancista era, a esta altura, irreversvel. Assim se manifesta
C. Penna sobre os eventos posteriores exposio e que culminaram na
Declarao de Insolvncia:

(...) fizeram-me um convite para levar a exposio a Buenos Aires, a


bordo do navio estrangeiro que inaugurava ento linha de navegao de
longo curso, para permanecer na capital argentina durante vinte dias,
tudo custa da empresa. Recusei, e pouco tempo depois, tendo desenhado
um quadro que chamei Anjos Combatentes, verifiquei com tristeza, que
no era pintor, nem desenhista, nem ilustrador, apesar de ter feito capas
e ilustraes para livros de Moacyr de Almeida, Arnalfo Tabai, Rubey
Wanderley e outros...14

O momento de impasse em que se inscreve o Cornlio Penna artista


grfico os anos 20 da definio militante do carter nacional pode ter
atordoado, mais do que desafiado como fez a tantos outros o artista,
precipitado num debate em que se via prostrado, incapaz de uma contribui-
o efetiva. Chegava mesmo a achar graa, a zombar de certa postura pan-
fletria que percebia em certos grupos de artistas15. O autor entendia que, a
despeito dos cem anos de atividade da Academia e da renovao promovida
pelas novas hordas de pintores, escultores ou desenhistas, o ambiente das
artes plsticas padecia da falta de consistncia e urdidura, inculcando na-

14 Do depoimento a Ldo Ivo, pg. LX.


15 Assim escrevia, na Declarao de Insolvncia, publicada
originalmente no jornal A Ordem, do Rio de Janeiro, em 1929,
sobre os que buscavam insistentemente a inveno de uma pintura
genuinamente brasileira: Muitas vezes, em minha misria,
procurei esse apoio negativo, e s encontrei quem procurasse, por
sua vez, um pintor-cobaia ou um pintor-tabu; aqueles que pintam
as idias de seu grupo, ou aqueles que tm a propriedade exclusiva
da seo de pintura, tambm de seu grupo. Ora no posso aceitar,
nem compreender, sem rir, uma e outra dessas atitudes(...).E da
no poder escrever nunca sobre arte, porque em vez de me acudirem
afirmaes e doutrinas, brotam em mim, atropelando-se umas s
outras, perguntas e dvidas, criadas pela minha educao literria,
monstruosa e vulgar. Ver Romances Completos, Rio de Janeiro: Ed.
Jos Aguilar, 1958, pg1350.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

400
queles que se dedicassem ao seu estudo mais dvidas e acanhamento inte-
lectual que segurana e desenvoltura artstica. A preferncia pela literatura,
ao fim do balano e da curva de vida representados pela Declarao, parece
ter correspondido a uma busca por um campo mais preparado para as rea-
lizaes artsticas, representado, entre ns, pela tradio literria. Uma pos-
tura como esta deduz-se imediatamente de opinies como a que se segue:

Uma vez que nosso adiantamento literrio, as nossas livrarias e os nos-


sos literatos, pelo menos em um pequeno agrupamento parte, so muito
mais interessantes, completos e avanados, como natural, do que o nosso
adianta mento artstico, as nossas galerias e os nossos artistas, dispersos
e isolados moralmente, todo aquele que deseja conhecer e estudar s acha
diante de si livros e teorias, e as viagens que faz, apressadas e como um
coroamento do que j conseguiu, so antes um novo elemento de confuso
e desvirtuamento.
- Por qu? interroga-nos, por sua vez Cornlio Penna porque fazia
literatura desenhada... Minha inteno primitiva na pintura era signifi-
car alguma coisa, criando uma imagem que falasse longamente ao esprito,
mesmo depois de esquecida a forma, o trabalho manual, a representao
em cores e linhas.16

Dessa dvida e da escolha subsequente nasceria um dos mais origi-


nais autores da primeira metade do sculo XX no Brasil. Estreando em
um perodo em que os romances do novo regionalismo, vaga representada
pelo xito de A Bagaceira de Jos Amrico de Almeida, pelo Caets de Gra-
ciliano Ramos ou Cacau ou Suor de Jorge Amado, por exemplo, Cornlio
Penna abriria uma vertente audaciosa, reaproveitando elementos folclri-
cos, supersties e densidade potica, indicando o caminho, v.g., ao Lcio
Cardoso de Maleita. Extrapola, por certos procedimentos na estruturao
narrativa, como a composio livre e deliberada de cenas encerradas em si
mesmo, como num sonho, as narrativas sombrias, porm marcadas pelo
recurso a finais surpreendentes ou a codas monumentais, de um Joo do
Rio ou, mais prximo ainda do universo de Cornlio Penna, do Monteiro
Lobato das Cidades Mortas ou dos contos dramticos de Negrinha.
Os quadros e outros trabalhos artsticos seriam depositados no desvo
da escada da emblemtica casa de Laranjeiras, no espao a que o autor

16
PENNA, C., Declarao de Insolvncia, op. cit., pg. 1350.

Andr L. Tavares Pereira

401
chamava - nada mais tpico do eprito corneliano Necrotrio. A Ldo Ivo
confessou, por fim:

No pintei mais continuou o escritor, sem o menor sinal de emoo,


na voz. Parecia falar de algum indiferente, morto h vinte anos. Aca-
bou-se a dvida, e, se no me convenci de todo que sou escritor, pelo menos
estou certo de que no sou pintor.17

O autor continuaria, explicando sua deciso dramtica por um juzo a


um tempo lcido e profundo sobre a realidade artstica brasileira de meados
dos anos vinte:

No Brasil, a arte sobretudo um caso pessoal, e ns precisamos, primeiro


da formao de artistas, mesmo que sejam cegos e surdos em nosso pas, to
ruidoso e to claro, para depois descobrir-se um nexo entre eles, e nascer
uma vaga e confusa personalidade coletiva, que poder ser estudada.18

Curiosamente, alguns dos trabalhos mais pungentes e composies


mais concisas e marcantes de Cornlio Penna viriam aps o advento de
sua Declarao de Insolvncia. De algum modo, ter-se desincumbido for-
malmente do papel de artista plstico ou da funo de contribuir direta-
mente para a criao de uma arte brasileira genuna ao gosto dos debates
da segunda metade dos anos 1920, parece ter dado asas sua imaginao
ou, ao menos, removido alguns pudores que o impedissem de se apropriar
livremente das estilizaes angulosas e fantasiosas, mais compactas e sem
o caracterstico ziguezaguear de linhas, que definem o seu estilo dos anos
1930. Continuou a executar desenhos a nanquim, ex-libris para amigos,
capas e desenhos sem maior pretenso. Gravuras como Famlia de 1933
ou as cinco gravuras capa e quatro imagens para o miolo, provavelmente
linleos - que elaborou para Fronteira (1935) indicam um artista em con-
tinuado, mesmo que velado, desenvolvimento. Suas figuras e composies
ganhavam em potncia psicolgica e o gosto anterior pela alegoria explcita
cedia lugar a uma conciso de meios e a um uso mais eficiente das sombras
e veios gravados. A fantstica capa, muito elogiada por Alexandre Eullio,
de Espelho dgua Jogos da Noite , livro de poemas de Onestaldo de
17
Cornlio Penna a Ldo Ivo, Romances Completos, op.cit., pg. LXI.
18
PENNA, C. Declarao de Insolvncia, op.cit. pg. 1349.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

402
Pennafort no data seno de 1931, assim como a ilustrao de cariz me-
dievalizante para O Prncipe Glorioso, conto de Estrela Azul, de Murilo
Arajo, no viria antes de 1940, onze anos adiante da Declarao... Teria a
auto-censura sido convertida em liberdade criativa?
O seu estilo inconfundvel, porm, vinha sendo desenvolvido desde o
incio de sua carreira na imprensa em ca. 1920. A sua capacidade criativa
e seus recursos como ilustrador vinham sendo pouco a pouco expandidos
e, trabalho aps trabalho era possvel enxergar mudanas significativas. E,
de fato, vemos a srie de caboclos (desenvolvida ao menos desde 1923),
de carter inicialmente impreciso e hesitante ganhar em sentido visual,
segurana de trao e profundidade de carter a cada nova tentativa para
culminar em novos e melhores resultados. O topo desta srie estar, sem
dvida, em desenhos como aquele de 1924 depositado, hoje, no Museu de
Arte Contempornea. O que se passa com a srie dos Caboclos significa-
tivo para compreendermos o progresso no estilo de Cornlio e na maneira
do autor compreender as suas possibilidades plsticas e sua capacidade de
expresso em um e outro meio. As imagens desenhos a nanquim, guache
e aquarela, principalmente - francamente medocres do incio da dcada
de vinte - como, por exemplo, O Homem- conviveram com gravuras ma-
cabras de sabor decadentista. Assim era Volpia (1923), v.g., muito mais
interessante como resultado plstico do que as telas e grisailles que vinha
produzindo. Segundo Alexandre Eullio, o interesse pela srie Caboclos viria
do tratamento original dedicado ao assunto. Assim,

A insistncia no tema indigenista, nos vastos sombreiros dos homens, nos


bands, coques e xales das mulheres, assim como o modo pouco ortodoxo
de dispor a matria na tela, provocou curiosidade no Primeiro Salo da
Primavera inaugurado no Rio naquele ano. 1923, lembremos, para
continuar Os trabalhos foram a acolhidos com benvola curiosidade
pelo jri, que pensou tratar-se da produo de pintor mexicano no se
sabia se de passagem ou estabelecido havia pouco no Brasil19

Quando opta abertamente pela estilizao, pelos temas obscuros e pe-


los desvos de alma que tenta esquadrinhar, alcana estratos mais altos em
sua produo. No h o resultado final dos Caboclos do MAC USP sem
trabalhos como Piedade (1924), Conversa Afiada ou da srie com temas
19
Alexandre Eullio, op.cit., pg. 33.

Andr L. Tavares Pereira

403
macabros de 1924. Da mesma cepa dos Caboclos, a capa assinada Penna,
em letra alongada como seus desenhos, para o romance Joo Miguel de
Raquel de Queiroz editado por Schmitd.
Sobre a relao entre o artista plstico e o escritor, a anlise de Adonias
Filho das mais precisas:

Nos quadros e desenhos, expostos no saguo da Associao dos empregados


do Comrcio, que oito anos depois Almeida Sales evocaria para explicar
certos aspectos do Romance Fronteira, uma personalidade singular ob-
servava o crtico, focaliza os seres e as coisas sob um prisma fantasma-
grico. O painel embebido de mistrio diludo, continua Almeida Sales,
na descontinuidade dos contornos, o recorte humano das figuras, j Cor-
nlio Penna estabelecia os dados imediatos da futura mensagem liter-
ria. Verificando o subjetivismo, o desprendimento do mundo, e no ensaio
que escrevia sobre o pintor, o poeta Augusto Frederico Schmidt lembrava
William Blake como ponto de referncia para a falta de priso s coisas
palpveis. E no subsistir exagero se acrescentarmos que a mensagem do
romancista comea no pintor Cornlio Penna. A correlao, em verdade,
perfeita.20

A correspondncia entre arte visual e literatura encontraria sua inter-


seco mais bem resolvida e equilibrada em Fronteira. Para Adonias Filho,
a ligao entre os desenhos e pinturas dos anos 20 e a novidade da incurso
literria era mais que evidente:

As atmosferas so idnticas e de tal modo se ajustam que os desenhos


podem ilustrar os romances. O grande exemplo se encontra na edio de
Fronteira: As ilustraes que a enriquecem no a contrariam os desenhos
e os quadros porque, dispondo dos mesmos traos, oferecem o mesmo fundo.
No pintor, e no viesse a ser escrita sua obra ficcional, j se encontravam
os elementos da mensagem: o mundo sombrio, o fundo mstico, em sangue
a converso da angstia.21

Essa anlise da obra de C. Penna seguia o seu percurso apontando as


razes que, hipoteticamente, teriam conduzido nosso autor do desenho e
da pintura ao romance. A idia central a de que os contedos intensos que

20
Adonias Filho, op.cit., pg. XX.
21
Adonias Filho: op.cit. pg.XX.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

404
C. Penna j desenvolvia e apresentava em seu trabalho artstico revelariam,
in herba, a sua matria literria predileta, solicitando, para desenvolvimento
natural, os recursos infinitamente potentes do romance, grande painel em
que no s poderia evocar as imagens que colecionava desde as narrativas
que ouvira na infncia mas, tambm, aproveitar as que reelaborara como
ilustrador. Assim,

possvel que, em conseqncia da fora dessa mensagem e mais liter-


ria que plstica Cornlio Penna chegasse ao romance como veculo mais
eficiente para exterioriz-la. O romance, e no a pintura, era o veculo
mais eficiente para explor-la em todos os seus rumos e todas as conseqn-
cias. Sua estrutura especulativa, complexa e poderosa, demonstrava menos
o pintor e mais o romancista. E este no tardaria em absorver aquele.22

Na prtica, a Declarao de insolvncia daria azo criao de uma for-


ma especial de romance ilustrado. O autor desejaria organizar uma forma
hbrida e equilibrada em que narrativa e imagem, elaboradas pelo mesmo
artista, fosse combinada num possvel modelo que lhe satisfizesse as pre-
tenses em um e outro campo? hiptese a ser verificada, mas a que res-
pondemos antecipadamente com um sim.
Nostalgia, colecionismo bem a recriao de mundos perdidos sempre
andaram associadas criao literria. Literatos oferecem verses do pas-
sado artstico que funcionam como potes a este mundo do passado. Neste
espectro, seguimos nossa investigao nos passos de Jos Rgio e suas ca-
sas de Vila do Conde e Portalegre, cheias dos santos e mveis dos sculos
XVII e XVIII, Mujica Linez e a seu Paraso de Crdoba, as casas perdidas
de Adolfo Couve em Santiago e Cartagena ou os mltiplos universos das
casas de Neruda ou Ea de Queiroz. A casa de Cornlio, como no poema
de Manuel Bandeira, esta permanece suspensa no ar, seus objetos dispersos
aguardando o fio que os rena.

22
Adonias Filho, op.cit., pg. XX.

Andr L. Tavares Pereira

405
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manuscrita A.M.L.B. Acervo Cornlio Penna. Transcrio Andr Ta-
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UNICAMP/2009.
RUFINONI, Simone R., Favor e melancolia: estudo sobre A Menina
Morta de Cornlio Penna. R. Nankin / EdUSP, So Paulo, 2010.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

406
arquivos e fontes

Anacronismo no uso de fontes historiogrficas


na National Gallery de Londres

Giordana Rocha Nassetti


Historiadora da Arte Bacharu. Departamento de Histria da Arte da
Universidade Federal de So Paulo.

A Polmica das Limpezas na National Gallery ocorrida na primeira


metade do sculo XX, aproximadamente entre os anos de 1933 e 1963,
foi um episdio marcado por acirradas discusses metodolgicas sobre
limpezas de coberturas pictricas e sobre a aparncia final de pinturas de
cavalete aps tais intervenes.
O staff do museu se dividiu e um dos grupos estava totalmente imbudo
do pensamento cientificista modernizante presente na poca. Era composto
por dois diretores, alguns membros do Conselho de Curadores e a equipe
de restauradores que fixaram-se na obteno de resultados objetivos e
incontestveis para aes de limpeza e restaurao. Alm disso, esse grupo
tinha a firme inteno de evitar a todo custo o que interpretara como
erros de abordagem detectados em intervenes anteriores e que, segundo
alguns de seus integrantes, haviam causado danos s pinturas. Havia uma
peremptria recusa por parte desse grupo em priorizar a consulta a qualquer
fonte documental anterior ao sculo XIX, que no fosse exclusivamente
tcnica, do prprio museu e que no contivesse anotaes que confirmassem
o acrscimo de vernizes com o intuito romntico de escurecer as pinturas.
Para eles, a remoo de tais camadas devolveria obra seu momento de
constituio original e os estudos historiogrficos serviriam apenas para
complement-los, se passassem por uma criteriosa seleo de fontes que
corroborasse a necessidade de tais limpezas. Quaisquer crticas ou mesmo
observaes feitas por entidades ou pessoal que no tivesse o mesmo
gabarito tcnico e, principalmente, que no compartilhasse da mesma viso,
teria suas colocaes analisadas como se tivessem sido feitas por diletantes
ou amadores com viso conservadora.
Em oposio estavam outros membros do Conselho de Curadores, da
Royal Academy, especialistas do Warburg Institute, tcnicos e restauradores
independentes que indicavam que a radicalizao em apenas um mtodo

407
ou base documental, sem uma certa flexibilizao, poderia gerar um
entendimento incompleto da obra. Alm disso, para este grupo os aspectos
fsico-qumicos constitutivos de uma pintura no poderiam fornecer uma
apreenso mais profunda sobre a imagem como fora concebida pelo artista
para compor o quadro. Os estudos estticos e historiogrficos poderiam
colaborar para expandir essa viso, se no fossem rechaados como fontes
no confiveis pelo grupo da National Gallery.
Entraram em campo, para engrossar o grupo dos opositores s aes
de limpeza profunda, dois expoentes em suas reas que, apesar de no
terem conseguido mudar minimamente o curso das intervenes naquele
museu, contriburam muito para que as discusses entorno da imagem e
da importncia da Histria da Arte como colaboradora na Restaurao
atingissem grande clareza de ideias: Cesare Brandi e Ernst Gombrich.
Eles compreendiam que os aspectos histricos e estticos so os que
fundamentam a obra pictrica e os textos levantados em datas heterogneas
por ambos para embasar suas verses voltavam-se, por exemplo, para
a origem histrico-documental das veladuras encontradas em alguns
poucos manuais, tratados e anotaes, a importncia do carter modelador
dos contrastes entre luzes e sombras, os procedimentos de aplicao em
camadas, a motivao dos artistas em us-las para apaziguar as cores
das telas e painis garantindo dramaticidade e, finalmente, o uso dessas
coberturas como provveis referncias s ascendncias artsticas de cada
pintor.

O fundamento de se olhar para o passado

Em julho de 1949 Brandi publicou um artigo discutindo certas


afirmaes da equipe do museu. Ele no considerava necessria a seleo
das fontes historiogrficas, restringindo-as a um determinado perodo para
embasar suas aes de restauro. Alm disso, as diferenas entre as abordagens
nas limpezas (se mais profundas ou se mais moderadas) no constituam
uma ciso entre dois campos multidisciplinares e colaborativos entre si,
como o da Histria da Arte e da Restaurao. Ele ofereceu alguns exemplos
de artistas e estudiosos de vrios sculos que anotaram frmulas tanto de
vernizes quanto de veladuras em seus tratados e arquivos. O mais importante
para ele era que esses documentos poderiam ser entendidos como registros

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

408
de certas intenes dos artistas justificando os motivos assumidos para a
aplicao dessas coberturas. Para Brandi, a afirmao da equipe da National
Gallery era equivocada, pois o rebaixamento de cores com o fenmeno da
ptina ou com o uso de veladuras e vernizes escuros no era acrscimo
tardio e de carter romntico. A fonte historiogrfica poderia ser pensada
como uma base documental para pelo menos considerar uma possibilidade
de existncia da tcnica em vrios perodos. Seu texto procurava fornecer
alguns pressupostos necessrios para fundamentar a permanncia de certas
coberturas na obra pictrica. Para exemplificar seus pontos de vista, Brandi
apresentou trs pinturas de perodos variados e de produo bem anterior
ao sculo XIX, sobre as quais ele interveio diretamente. Durante essas aes
de limpeza e restauro, ele pde constatar a presena de vernizes aplicados
com a funo de rebaixar as luzes e a colocao de veladuras coloridas
para obteno de efeitos dramticos especficos. Com isso, atestou que
estudos sobre esses acabamentos, executados tanto em pinturas em painel
de madeira quanto em tela, no eram recentes e que certas prticas de sua
conservao j haviam sido sedimentadas, baseadas em investigaes plurais
e no s qumicas. As substncias usadas como coberturas funcionavam
no apenas como proteo contra o desgaste dos pigmentos, mas tambm
como agentes estticos, tonalizando ou amortizando cores e luzes. A
pujana da cor despojada de seus atenuantes, traria tona a questo da
sobreposio da importncia da matria sobre quela da imagem. Caso a
limpeza removesse as coberturas escuras modeladoras, revelaria a crueza
de suas matrias primas de confeco. Isso transformaria o status da obra,
de objeto que concentra e sintetiza conceitos em sua imagem tal como se
pretende que seja a arte, em artigo utilitrio de artesanato, onde a matria
triunfa. A ideia de que a limpeza traria o original de volta, mostrando a
obra como estaria assim que acabada, tambm foi um argumento rebatido
por Brandi, pois no seria possvel comprovar que a pintura permaneceu a
mesma sob as coberturas.
Dois tcnicos da National Gallery concordaram que as discusses
trazidas pelo artigo de Brandi foram muito enriquecedoras para o meio,
mas continuaram afirmando sua discordncia em relao s fontes da
historiografia da arte. O apego aos textos, s descries e aos motivos pelo
uso das veladuras e dos vernizes era uma questo puramente esttica e
no tcnica, que poderia induzir a um erro de abordagem sobre a unidade
da imagem original na pintura. A ptina, a veladura e o verniz eram

Giordana Rocha Nassetti

409
acrscimos feitos posteriormente, fosse pela ao do tempo ou pela ao de
pessoas. Em momento algum a equipe consentiu sobre a possibilidade de
haver uma ao do artista nesses acrscimos, desconsiderando essas prticas
como tcnicas conhecidas e/ou aceitas. A dupla recusou a possibilidade
da transformao superficial de vernizes e veladuras em ptinas. Mas, na
tentativa de refutar alguns posicionamentos, acabaram por confirm-los,
inclusive citando pela primeira vez no decurso da Polmica o argumento de
Plnio, O Velho, sobre a pintura de Apeles, algo que Gombrich discutir
intensamente no futuro.

[...] O artigo do Professor Brandi mostra que suas maiores objees


s limpezas completas esto baseadas no medo de que parte das
intenes dos artistas na forma da ptina, da veladura e do verniz sejam
removidos ou danificados durante o processo. [...] incorreto[...]
referir-se veladura como um remdio secreto... dificilmente
reconhecvel e mantida quase ilegtima e omissa da existncia da
pintura. O emprego da veladura desde os tempos remotos por
certo universalmente reconhecido. Longe de ser o caso em que o
mtodo sugerido pela primeira vez em Armenino, ou seja, em 1587,
a essncia da tcnica de fato descrita por Plnio, na Academia de
Lucca, no oitavo sculo e em muitos outros manuscritos anteriores
ao sculo XVI. Muitas autoridades sequer assumem por completo a
tcnica da pintura a leo desenvolvida a partir do uso de veladuras
oleosas sobre a tmpera (a to falada tcnica mista).

Brandi respondeu dupla, trs meses aps a publicao do artigo. A
postura geral dos tcnicos parecia ser aquela de esperar que os clssicos
da historiografia da arte fornecessem evidncias claras e comprovadas na
prtica de seus contedos para que fossem levadas em considerao como
fontes merecedoras de crdito. Brandi procurou demonstrar que preciso
fazer uma grande coleta de informaes em textos muito variados para que
se pudesse chegar a um posicionamento e, permanecer ciente de que ele
poderia no ser comprovado de imediato ou que poderia ser contestado
ao longo do tempo. Esta foi a ltima vez em que Brandi manifestou-
se na The Burlington Magazine sobre a questo dos acabamentos. Ele
passou a trabalhar sobre o tema at que sua Teoria da Restaurao fosse
completamente formulada num livro que ele publicaria treze anos depois.
Ernst H. Gombrich era assistente de pesquisa do Warburg Institute

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

410
quando a instituio foi transferida para Londres (no ano de 1934) e
quando a guerra terminou em 1945, o historiador da arte foi nomeado
seu pesquisador snior. Como apoio a Brandi, Gombrich anexou algumas
linhas com seus comentrios ao artigo em resposta a Marclaren e Werner,
em outubro de 1950. Seu texto trazia a citao curta de uma passagem de
Plnio, o Velho, sobre as tcnicas pictricas do artista Apeles. Gombrich
compreendeu que este seria o exemplo historiogrfico mais antigo j citado
pela dupla do museu sobre coberturas e acabamentos finais tonalizantes
de que se tem notcia. Para ele, por conta da importncia que os textos de
Plnio tiveram, seria lgico pensar sobre a possibilidade da emulao de
tais tcnicas por artistas posteriores a Apeles. Ou ainda, aceitar que artistas
que tivessem somente lido o trecho de Plnio tivessem procurado reobter
o efeito descrito no texto em suas prprias obras. Contudo, Gombrich
tinha plena conscincia da dificuldade de se obter provas concretas disso,
mas manteve-se firmemente agarrado ideia da emulao da tcnica de
Apeles e foi o instrumento da historiografia ao qual mais recorreu durante
o perodo em que argumentou sobre o assunto com a National Gallery.

[...] A seguinte passagem do Historia Naturalis de Plnio
(XXXV, 97) parece-me relevante para a presente discusso sobre a
existncia e o propsito dos vernizes coloridos no passado. Cito a
partir da edio por E. Sellers, Londres, 1896, p. 133 (referente a
Apeles).
Todos tm lucrado com a sua inovao, embora um destes
jamais possa ser imitado; ele usou para dar s suas pinturas, quando
terminadas, uma veladura negra to fina que, devolvendo a luz
poderia suscitar uma cor [?esbranquiada] e, ao mesmo tempo, uma
proteo contra poeira e sujeira, s tornando-se visvel se em inspeo
mais prxima. Um dos propsitos principais desta, era impedir que
o brilho das cores ofendesse os olhos - o efeito foi como se fossem
vistas atravs de talco - e tambm, quando vistas distncia, aquelas
que estavam vivas em excesso poderiam ser imperceptivelmente
atenuadas.
A passagem um tanto obscura e talvez [esteja] corrompida,
contudo o que menos importa o que Apeles fez, e sim o que ele
pensou para fazer. Embora eu no tenha examinado a evidncia,
parece improvvel, em face disso, que essa descrio da tcnica do
proverbial Grande Pintor da Antiguidade no livro mais influente
na arte, no deva ter deixado nenhuma impresso sobre as normas
e prticas de artistas ps-medievais. Ser que realmente sabemos

Giordana Rocha Nassetti

411
o suficiente sobre essas coisas [?] [N]a verdade, podemos nunca
saber o suficiente sobre o passado e dizer com garantia ilimitada que
nenhum dos antigos mestres tentou seguir Apeles ao usar algum
verniz escuro para que o brilho das cores no devesse ferir os olhos
e - se a traduo o permitir - secretamente impor austeridade em
tons estridentes demais [...]

Em 1962, em seu livro Arte e Iluso, Gombrich retomou o assunto


e dedicou um captulo inteiro questo das coberturas de acabamento,
aparncia das obras pictricas e s concepes assumidas pelo museu.

A National Gallery de Londres tornou-se agora o foco de discusso


sobre o grau de ajustamento que estamos preparados a admitir
quando contemplamos quadros antigos. Aventuro-me a pensar que
essa questo seja frequentemente apresentada como um conflito
entre os mtodos objetivos da cincia e as impresses subjetivas
de artistas e crticos. A validade objetiva dos mtodos empregados
nos laboratrios das nossas principais galerias est to pouco em
discusso quanto a boa-f daqueles que os aplicam. Pode-se muito
bem objetar, no entanto, que os restauradores, na sua funo
responsvel e difcil, deveriam levar em conta no s a composio
qumica dos pigmentos mas tambm a psicologia da percepo a
nossa e a das galinhas. O que queremos deles no que restaurem
pigmentos individuais sua cor antiga, mas algo definitivamente
mais delicado e ardiloso preservar as relaes. [...] Sempre que
se d incio ao processo de limpeza, produz[-se] uma diferena
semelhante na claridade do quadro, um inesperado gradiente que
como se uma luz banhasse a pintura. [...] Temo que faa parte
da natureza das coisas o fato de o historiador desconfiar sempre do
homem de ao nesses assuntos difceis e delicados. Ficamos to
siderados quanto qualquer pessoa quando os nossos documentos
desbotam ou os nossos quadros ficam sujos; mas, por outro lado,
estamos cnscios da nossa ignorncia sobre o passado.

O historiador da arte assumiu como concretas as possibilidades de que
o texto de Plnio, o Velho, tenha sido lido por algum mestre nos sculos
seguintes e tambm que sua tcnica possa ter sido copiada. Para ele esta
a ciso apresentada em toda a Polmica, ou seja, um confronto de ideias
sobre dois mtodos diferentes de abordagem da imagem: a historiogrfica
e esttica em comparao com aquela cientificista com a indicao de

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

412
referncias completamente fora do alcance dos artistas do passado, como
no caso do texto de Freud, por exemplo. Tal como Brandi, Gombrich
considerava o indcio textual do passado como algo que merecia crdito
para a procura de outras citaes semelhantes em outros escritos. Essas
indicaes seriam as balizas para a ao de limpeza e restauro, com as
quais o profissional j partiria. Haveria, com isso, uma grande diferena de
postura diante da obra e da abordagem na interveno. Segundo Gombrich,
as limpezas radicais, baseadas em outro conjunto de ideias, no levariam
em conta esses conceitos e a National Gallery vinha demonstrando essa
abordagem desde 1933. Alm disso, o aspecto original da obra era mais
um conceito do que um fato tangvel. Para aqueles mais pragmticos, que
compreendiam que a obra deveria fornecer todos os dados necessrios para
seu entendimento, Gombrich sugeriu a consulta s gravuras copiadas das
pinturas, como meio termo entre a fonte historiogrfica e a fonte imagtica.
Ele atestou que as indicaes feitas por Cesare Brandi treze
anos antes na revista, procuravam justamente apresentar uma maior
flexibilizao nos estudos e mais alternativas aos parmetros adotado
pelos tcnicos do museu. Mesmo as suas propostas, relativas ao tema de
Plnio, deveriam ser encaradas como alternativas possveis. Mas a equipe
da National Gallery manteve sua contestao a toda e qualquer colocao,
fosse ela sobre a existncia de acabamentos tonalizantes, fosse sobre a
possibilidade da emulao tcnica de Apeles em Plnio, argumentando
sempre da mesma forma: os textos da historiografia da arte no apontavam
evidncias claras sobre as coberturas. Para a viso cientificista, indcios no
so provas incorruptveis e podem ser contestadas e o que valia eram apenas
a prticas de ateli passadas adiante pelo ensino direto, desconsiderando a
possibilidade de que os artistas pudessem pesquisar o passado procurando
por referncias escritas.

Referncias Bibliogrficas

Giordana Rocha Nassetti

413
LIVROS

BRANDI, C. Teoria da Restaurao. Traduo: Beatriz Mugayar Khl;


apresentao: Giovanni Carbonara; reviso: Renata Maria Parreira
Cordeiro. Cotia, SP: Ateli Editorial, 2004. P. 261.
FREUD, S. Leonardo da Vinci e uma Lembrana da sua Infncia. In:
Cinco Lies de Psicanlise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos
(1910). Edio Standard Brasileira de Obras Psicolgicas Completas
de Sigmund Freud. Volume XI. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2006. Pp.
37-83.
GOMBRICH, E. Parte IV, Captulo I: Da luz tinta, Primeira Parte:
Os Limites da Semelhana. Arte e Iluso: um estudo da psicologia
da representao pictrica. Traduo: Raul de S Barbosa; reviso:
Mnica Stahel. 4. ed. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
Pp. 48-54.

REVISTAS

BRANDI, C. The Cleaning Pictures in Relation to Patina, Varnishes


and Glazes. The Burlington Magazine Publications Ltd. v. 91, n.
556, jul. 1949, Pp. 183-185. Disponvel em <http://www.jstor.org/
stable/870047>. Acesso em 22 jun. 2013.
BRANDI, C.; Gombrich, E. The Cleaning of Paintings in Relation to
Patina, Varnish and Glazes. The Burlington Magazine Publications
Ltd. v. 92, n. 571, out. 1950, Pp. 296-298. Disponvel em <http://www.
jstor.org/stable/870560>. Acesso em 22 jun. 2013.
GOMBRICH, E. Dark Varnishes: Variations on a Theme from Pliny. The
Burlington Magazine. v. 104, n. 707, fev. 1962, Pp. 51-55. Disponvel
em <http://www.jstor.org/stable/873590>. Acesso em 22 jun. 2013.
MACLAREN, N.; WERNER, A. Some Factual Observations about
Varnishes and Glazes. v. 92, n. 568, jul. 1950, Pp. 189-192. Disponvel
em <http://jstor.org/stable/870432>. Acesso em 4 nov. 2013.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

414
arquivos e fontes

Do pecado da gula ao Douceur de Vivre:


Fontes escritas para uma natureza morta

Angela Brando
Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao
em Histria da Arte da Universidade Federal de So Paulo.

A diviso da pintura em gneros, como classificao temtica, surge


no pensamento terico artstico do sculo XVII, no mbito das Academias,
especialmente fracesa e italiana, e se fixa de modo cada vez mais ortodoxo
at o sculo XIX, tornando-se uma verdade quase incontestvel. Esta
diviso da pintura em gneros no foi apenas uma organizao terica e
pedaggica da pintura, mas representou tambm uma diviso hierrquica.
Os gneros de natureza morta ou paisagem foram considerados inferiores
se comparados ao retrato e pintura de histria.
A natureza morta se tornou, portanto, o mais nfimo dos gneros ao
excluir a figura humana e representar flores, alimentos e objetos. Como
se sabe, a representao dos alimentos na arte remontava s tradies
da Antiguidade, especialmente manifestada nos pisos em mosaicos e
pinturas parietais romanas, em espaos das vilas dedicados s refeies.
Representaes de peixes, frutas, pes e mesmo ossinhos de carnes j
digeridas cumpriam, ao mesmo tempo, uma funo decorativa e de definir
a destinao daquele espao da casa, de um lado, e a funo simblica de
manifestar a opulncia daquela morada.
Durante a Idade Mdia, de modo geral, o alimento no fora representado
isolado, mas quase sempre como parte de uma cena de refeio, como as
Santas Ceias. O Renascimeto traria um novo interesse pela representao
da natureza de modo imitativo, na arte, e um olhar que se tornava cientfico
ao representar gneros alimentcios. No final do sculo XVI, portanto,
localiza-se o que se poderia chamar de inveno da natureza-morta como
gnero para a pintura, fenmeno associado tanto emblemtica cesta de
frutas de Michelangelo Merigi da Caravaggio quanto aos bodegones de
Sanchez Cotn1.

1
GRIEGO, Allen J. The Meal. Themes in Art. London, 1992. Pp. 9-50

415
Um interesse mais detido pelos comestveis e por sua representao
na pintura teria surgido na mesma medida em que o alimento deixasse de
ser um elemento associado gula e ao prazer terreno como algo negativo
e se transformasse, gradativamente, em algo positivo, parte de uma nova
possibilidade de exerccio espiritual, que inclua o desenvolvimento dos
sentidos, como veremos adiante.
Numa das salas da Casa de Padre Toledo, em Tirandentes, encontramos
um forro com pinturas de naturezas-mortas (fig.1). O cmodo, certamente
destinado a abrigar as refeies solenes da casa, apresentava aos olhares dos
convivas um raro e apetitoso exemplar de pinturas deste gnero no Brasil
Colonial.
Trata-se de uma pintura a tmpera e cola em cinco painis, sobre
madeira, emoldurados pela diviso estrutural do forro em cinco gamelas,
com quatro trapzios laterais e um elemento central, quadrangular. Os
espaos predominantemente vazios contm elementos de decorao
rococ, rocalhas e flores em tons avivados pelo recente restauro2, azuis,
verdes e vermelhas, formando medalhes. Ao centro de cada um dos cinco
medalhes, esto representados recipientes com frutas: fatias de melancias
ao centro (fig.2); e, nas laterais: uvas, pssegos, ameixas ou jabuticabas, e
roms ou abacaxis3.
Nada sabemos a respeito da autoria destas pinturas. Poder-se-ia, no
entanto, aventar uma hiptese, ou ao menos, estabelecer um esforo de
atribuio, comparando as pinturas realizadas em outra obra importante
da mesma cidade, a Igreja Matriz de Santo Antnio, onde trabalharam
pintores como Joo Batista das Rosas (Painis Laterais do Altar Mor Santa
Ceia e Bodas de Cana) ou as pinturas de Manuel Victor de Jesus feitas
para o rgo em 1798 e o quadro do Batistrio. Mas estudos documentais e
2
VELOSO, Bethania Reis et allii. Crnicas de um Processo: Casa do Padre Toledo e os
Histricos de suas Restauraes. In DANGELO, A.G.D. et allii (org.) Museu Casa Padre
Toledo: memria da restaurao artstica e arquitetnica. Belo Horizonte: Fundao Rodri-
go Mello Franco Andrade, EA, UFMG, 2012. Pp. 78-90
3
Por sugesto do Prof. Amilcar Torro Filho, as frutas representadas poderiam ter relao
com o livro Frutas do Brasil: numa nova, e asctica Monarchia, consagrada Santssima
Senhora do Rosrio. Fac-smile da edio de Lisboa: Antnio Pedroso Galro, 1702. Apre-
sentao de Ana Hatherly. Lisboa: Biblioteca Nacional, 2002. de Frei Antonio do Rosario
(1647-1704). Por meio das sedutoras imagens das exticas frutas brasileiras, Frei Antonio
do Rosrio prope-se ensinar e propagar a essncia da filosofia crist, com seus preceitos
morais. BIRON, Berty R. R. Frutas do Brasil: uma alegoria do novo mundo. in Revista do
Ncleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n 3, Novembro de
2009. Pp. 47-57.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

416
anlise comparativa formal ainda devero ser realizados para que se chegue
a uma mnima possibilidade de atribuio de autoria para as pinturas da
Casa de Padre Toledo.
As pinturas de natureza-morta no foram comuns no perodo colonial
brasileiro, cujos esforos artsticos se dedicaram sobremodo arte religiosa.
A existncia de uma pintura de forro no espao civil, mas ao mesmo tempo
religioso por se tratar da nobre morada de um representante do clero
ilustrado nas Minas Gerais do Sculo XVIII sugere algumas reflexes.
Qual a relao destas imagens com a presena de um livro de receitas
numa das bibliotecas mais numerosas, pertencente a outro importante
representante do mesmo perodo4? Por que o Padre Toledo escolheria
um tema aparentemente profano para decorar sua sala de jantar, em lugar
de uma temtica religiosa relacionada alimentao, como a Santa Ceia?
Por que um espao ao mesmo tempo privado e pblico, uma vez que a
casa era cenrio de reunies polticas entre as que levariam Inconfidncia
Mineira fora decorado com naturezas-mortas, exaltando a beleza e uma
certa seduo do olhar em direo ao gustativo, se o pecado da gula
ainda aparecia como algo prescrito pela legislao que regia o clero naquele
momento? Qual a relao destas imagens com as demais pinturas que
decoram a casa?
Ensaiaremos esboos de respostas provisrias. No estgio atual desta
investigao no pudemos ainda analisar os ttulos dos livros no rol dos
bens confiscados do Padre Toledo, arrolados nos Autos da Devassa da
Inconfidncia Mineira5. Sabemos que ali constavam cento e cinco volumes de
vrios autores, entre grandes e pequenos, a saber, noventa e nove, com capas
de pasta, e seis com capas de pergaminho. No entanto, procuramos observar
a presena de um livro de receitas na biblioteca de outro representante
do clero, no mesmo perodo, em Minas Gerais, para traar um parelelo
provisrio para construir nossa hiptese. Ao analisar o inventrio de morte
do quarto bispo de Mariana, portanto, encontramos entre seus livros, um
volume dedicado culinria6.
4
VILLALTA, Luiz Carlos. Os Clrigos e os Livros em Minas Gerais da Segunda Metade
do Sculo XVIII. Acervo. Rio de Janeiro. Vol. 8 n I-II, p. 19-52, jan.-dez, 1985. pp.19-
52. Neste texto, Villalta analisa quantitativa e qualitativamente as livrarias dos clrigos em
Minas Gerais da segunda metade do sculo XVIII a partir do estudo dos inventrios.
5
IHGB Rio de Janeiro. Autos de sequestro em bens do vigrio Carlos Corra de Toledo
e Melo. 1789. [DL 101.3]
6
Inventrio de Dom frei Domingos da Encarnao Pontvel , 1793, armrio I, 4 gaveta,
livro. Arquivo Episcopal da Arquidiocese de Mariana.

Angela Brando

417
Dom Frei Domingos da Encarnao Pontvel, quarto bispo de Mariana,
assumiu a diocese em 1780. A julgar por sua biblioteca7, uma das maiores
do perodo colonial brasileiro, foi um erudito, cujas leituras passavam da
filosofia teologia, de tratados de moral e retrica, da histria geografia.
Encontramos ali um volume dedicado culinria: o Cozinheiro Moderno8,
um dos primeiros livros de receitas publicados em lngua portuguesa, pode
ser compreendido como exemplo da mudana na concepo dos hbitos
alimentares. Editado em Lisboa em 1780, considerado como o primeiro
livro de culinria em lngua portuguesa a trazer regras e valores da cozinha
de corte francesa, foi escrito por Lucas Rigaud. O autor fora cozinheiro
da corte de Dom Joo V e trazia sua experincia de trinta anos de ofcio
pelas principais cortes da Europa: Paris, Londres, Turim, Npoles e Madri.
Tratava-se de um manual culinrio, um receiturio que apresentava a
prtica e a teoria na arte de cozinhar e surgia, talvez, da inteno de Rigaud
de apresentar uma obra em oposio a sua precedente Arte da Cozinha9, de
Domingos Rodrigues de 1683. O livro de Rigaud permite o estudo do
que se entendia como cozinheiro moderno e da importncia atribuda ao
alimento naquele perodo10.
Alm da presena de um exemplar muito atualizado do ponto de
vista da mudana da compreenso do sentido dos alimentos, o que tambm
chamou a ateno, no entanto, na leitura do inventrio de Pontvel, foi a
presena de um grande aparato de mesa e de utenslios de alimentao:
chocolateiras, fontes de ch, chaleiras, cafeteiras, bules de cafs, vrias
peas de louas da ndia azuis e vermelhas, toalhas de mesa e guardanapos,
pratos para guardanapos, vidros lavrados, vrios utenslios de prata, cobre
e estanho.

7
VILLALTA, Luiz Carlos. O Diabo na Livraria dos Inconfidentes. In NOVAES, Adau-
to. Tempo e Histria. So Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Companhia das Le-
tras,1992. Pp. 372-375. (...) nela se notava a proeminncia das cincias sacras sobre as
cincias profanas: logramos identificar 251 obras na primeira seo e 76 na ltima, respecti-
vamente 60% e 18%, ficando o restante (85 obras, 21%) sem classificao em virtude da falta
de dados completos sobre as mesmas. Dentre as cincias sacras, alm disso, constatamos
igualmente a maior presena de livros de teologia e liturgia (...).
8
RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha. Lisboa: Colares,
1999.
9
RODRIGUES, Domingos. Arte da Cozinha. 1683. Lisboa: Colares, 2001
10
YANG, Klency Brito Kakazu e DOMENECH, Fernanda. Relatrio Final de Iniciao
Cientfica PIBIC- CNPq 2013-2014. Arte efmera nos sculos XVII e XVIII: a esttica da
alimentao. Orientao Angela Brando. Departamento de Histria da Arte, UNIFESP.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

418
A importncia dada aos alimentos um consumo do ch, caf e
chocolate e ainda a descrio do estoque de alimentos (azeitonas, barris
de azeite, carga de bacalhau, licores) refletia, como o livro de culinria
constante em sua biblioteca, O Cozinheiro Moderno, um novo sentido dado
culinria nas cortes do sculo XVIII no mais definitivamente um
conjunto de preceitos dietticos e curativos, mas o deliberado requinte, o
prazer e o desfrute da mesa e dos alimentos.

Durante muito tempo dependente da medicina, a cozina acabou por


conseguir se libertar dela lentamente e sem rudo, no decorrer dos
sculos XVII e XVIII. (...) Tendo deixado de ser includa na seo
de sade na qual, por rotina continuava a ser classificada pelos
biblifilos a arte culinria no se colocou, em primeiro lugar, a
servio da gula pecado capital mas a servio do bom gosto, como
todas as belas artes11.

O entendimento de uma modificao no sentido do alimento e da


refeio de algo inferior, associado gula, para algo superior, relacionado
arte de viver e receber bem, modificao que pode ser percebida pela leitura
do livro Cozinheiro Moderno e sua sintomtica presena na biblioteca de um
importante representante do clero, naquele momento, fornece elementos
para compreender a pintura de naturezas-mortas no teto da sala de jantar
da casa de Padre Toledo. No entanto, ainda parece inquietante a presena
das frutas apresentadas aparentemente por si mesmas, sem qualquer
sentido religioso imediato.
O vigrio Carlos Corra de Toledo e Melo, por sua vez, nascera na Vila
de So Francisco das Chagas de Taubat, Capitania de So Paulo, em 1731.
Foi designado vigrio, em 1777, da Matriz de Santo Antnio, e presbtero
do hbito de So Pedro. Por seu envolvimento na Inconfidncia Mineira, foi
preso aos 59 anos, em 1789. Expatriado para Portugal,permaneceu retido
na Fortaleza de So Julio, at ser transferido para uma priso eclesistica
em Lisboa, onde morreu em 1803. A casa em que residiu considerada
como um dos mais importantes edifcios civis da arquitetura no Brasil
Colonial, com aproximadamente 800m2 de rea construda sobre o plano

11
FLANDRIN, Jean-Louis. Da diettica gastronomia ou a liberao da gula. In FLAN-
DRIN, J.L. e MONTANARI, M. Histria da Alimentao, So Paulo: Estao Liberdade,
2008. P. 687. Ver BRANDO, A. O Uso e o Luxo: as artes decorativas num inventrio do
sculo XVIII. Anais do II Colquio Internacional de Histria da Arte e da Cultura. Juiz de
Fora, UFJF, 2012.

Angela Brando

419
elevado do Largo do Sol. Embora a documentao primria no permita
uma datao segura, a anlise esttica e histrica indicou que se trata de
um edifcio de segunda dcada da segunda metade do sculo XVIII, cujas
primeiras notcias documentais datam de 1777. Ali residiu primeiramente
o Cnego Luiz Vieira da Silva, que se tranferiria para Vila Rica com a
chegada do vigrio Carlos Correia Toledo e Melo. No h, portanto, fontes
precisas que informem a data da construo deste solar trreo, acrescido
posteriormente de pequeno torreo ou mirante, um anexo de dois andares,
o sobrado mstico como mencionado nos Autos da Devassa. Este anexo
foi construdo por encargo do Padre Toledo, durante os doze anos em que
viveu na casa, para, talvez, dotar-lhe de um sentido monumental e dar-lhe
um aspecto assobradado. As pinturas dos forros, bastante visveis aps o
cuidadoso restauro, e as pinturas das paredes (que hoje se podem ver apenas
em fragmentos) no tm autoria confirmada12.
No sequestro de bens do Vigrio Carlos Correia de Toledo, podemos
encontrar todos os ingredientes necessrios para festas ou refeies solenes,
alm do mobilirio e dos aparatos de mesa, um escravo cozinheiro e dois
msicos:

Doze cadeiras de cabina, com assento de trip carmesim; uma


mesa grande de cabina (...)trs dzias de pratos finos da ndia;
doze copos de vidro, entre grandes e pequenos; trs bules de loua
da ndia; duas terrinas de loua de Lisboa; sete chares de loua
de Lisboa, ou pratos compridos, entre pequenos e grandes; quatro
pratos de estanho grandes (...) uma dzia de xcaras e outros tantos
pires de loua da ndia (...) Leandro Angola, cozinheiro; Jos Mina,
que toca trompa; Antnio Angola, que toca rabeco13.

Embora se possa compreender a presena das pinturas de natureza


morta no forro da sala de jantar de um personagem que pertencia ao
clero ilustrado, um homem de luzes como foi designado nos Autos da
Devassa14, e que compusera em torno de si um ambiente religioso e civil
12
DANGELO, A.G.D. et allii (org.) Museu Casa Padre Toledo: memria da restaurao
artstica e arquitetnica. Belo Horizonte: Fundao Rodrigo Mello Franco Andrade, EA,
UFMG, 2012. Pp. 35, 78-81. Fundao Rodrigo Melo de Franco Andrade. https://www.
ufmg.br/frmfa/museu-padre-toledo/ acesso em 21 de novembro de 2014.
13
IHGB Rio de Janeiro. Autos de sequestro em bens do vigrio Carlos Corra de Toledo
e Melo. 1789. [DL 101.3]
Autos da Devassa da Inconfidncia Mineira. Vol. 7. Braslia, Belo Horizonte. Imprensa
14

Oficial de Belo Horizonte, 1982.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

420
prprio do sculo XVIII, marcado por um certo douceur de vivre, cabe
lembrar o significado ainda depreciativo que se atribua, do ponto de vista
da legislao cannica, ao pecado da gula.
As Constituies primeiras do Arcebispado da Bahia foram ordenadas
pelo quinto arcebispo da Bahia, D. Sebastio Monteiro da Vide. Reunira-
se o snodo, na cidade de Salvador, em 1707, a fim de confirmar e adequar
os preceitos do Conclio de Trento s terras brasileiras. Deste Conclave
resultaram as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, elaboradas
em 1707 e publicadas em Lisboa em 1719, e em Coimbra, em 172015.
O documento foi reimpresso em Lisboa, em 1765, e em So Paulo, em
1853. As Constituies eram formadas por cinco livros e 1318 ttulos que
contemplavam tanto as questes dogmticas, a doutrina, a administrao
religiosa, o funcionamento do culto, quanto as atitudes frente s coisas
sagradas, o comportamento dos religiosos e dos fiis no cotidiano, os
procedimentos do clero e institua as sanes determinadas em caso
de descumprimento de seus preceitos. O livro das Constituies, como
legislao do direito eclesistico, deveria obrigatoriamente constar entre os
documentos das Ss catedrais e Cabidos, em todas as Igrejas paroquiais
e curadas, assim como deveriam possu-lo tambm o provisor, o vigrio
geral, desembargadores, o promotor, vigrio da Vara e advogados, alm do
Meirinho Geral e o escrivo da Cmara. Foi determinado que os procos
deveriam ler trechos especficos em voz alta aos fiis em certa ocasies, para
que tomassem conhecimento dos preceitos a serem seguidos16.
Assim prescrevia o artigo 464 das Constituies Primeiras:

cousa indecente ao estado Clerical (...) andarem os Clrigos por


tavernas e comerem e beberem nellas, (...) ordenamos e mandamos
a todos os Clrigos de Ordens Sacras, que no entrem em vendas,
estalagens, tavernas, e outras casas pblicas a comer, ou beber,
exceto quando forem de caminho, e no tiverem outra casa (...)17
15
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustrssimo
e reverendssimo senhor d. Sebastio Monteiro da Vide... 1707. So Paulo: Typographia
Antonio Lousada Antunes, 1853. OLIVEIRA, M.R.A. de. O Rococ Religioso no Brasil e
seus antecedentes europeus. So Paulo: Cosac & Naif, 2003
16
LOTT, Myriam Moura. As Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia. Texto
apresentado no VII Simpsio da Associao Brasileira de Histria das Religies, realizado
na Universidade Catlica de Minas Gerais. Belo Horizonte MG. 2005. P. 1
17
Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustrssimo
e reverendssimo senhor d. Sebastio Monteiro da Vide... 1707. So Paulo: Typographia
Antonio Lousada Antunes, 1853. P. 183.

Angela Brando

421
Lia-se no artigo 465:

Se alguns Clrigos de Ordens Sagradas forem muito destemperados


em seu comer, e beber, de maneira em que se turvem do juzo,
ou seja em estalagens, tavernas, casas pblicas ou fora dellas
ou em suas prprias casas sero pela primeira vez admoestados,
e castigados com a pena pecuniaria, que parecer justa. E no se
emendando sero suspensos do Offcio (...) por seis mezes e se no
se emendarem se proceder contra elles com maiores penas como
parecer justia18

O artigo 466 prescrevia:

E, outrossim, lhes proibimos que em suas casas no faam


banquetes ou bodas ilcitas, salvo sendo de seus parentes. E se lhe
encommendamos muito que nas licitas, honestas e graves em que
se acharem, se hajo com muita moderao e modestia dando em
tudo exemplo, como de suas pessoas, e estado se deve esperar19.

As Constituies Primeiras conservavam, por certo, dentro dos


parmetros do direito cannico ps-tridentino a ser aplicado no Brasil, uma
viso negativa da gula, associada ao pecado. No entanto, o comportamento
do clero ilustrado nas Minas Gerais de segunda metado do sculo XVIII
apresentava-se mais adequado modernizao dos significados da
alimentao, resultante de um longo processo que permite compreender
a importncia dos refinados utenslios de mesa nos inventrios de alguns
clrigos; a presena de um livro de culinria como o Cozinheiro Moderno
na biblioteca do quarto bispo de Mariana e as pinturas do forro da sala de
jantar da casa do vigrio Carlos Corra Toledo e Melo.
Tal processo de civilizao do apetite que se desenvolvera desde
o sculo XVI20, caraterizou-se por uma progressiva desculpabilizao
catlica dos prazeres da mesa e baseava-se nas ambiguidades mesmas
da Gula. Ao escolher apenas um dos significados da gula, os manuais de
confisso conseguem envergonhar o gluto e o bbado sem condenar a
18
Ibid. Idem
19
Ibid. Pp. 183-184.
20
Nos Exerccios Espirituais de Santo Incio de Loyola, a terceira regra a abstinncia
nos alimentos, para evitar desordem, pode ter-se de duas maneiras: uma, habituando-se a
comer alimentos ordinrios, a outra, tratando-se de delicados, em pequena quantidade.
LOYOLA, Incio de. Exerccios Espirituais. So Paulo, Loyola, 2002.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

422
honestidade do gourmet, afirmou Quellier em seu livro Gula: histria de
um pecado capital. Para o autor, os ensinamentos da Igreja conduziram
a uma gastronomia da boa mesa: o prazer pela boa comida apenas aceito
a partir do momento em que respeita as regras, frente das quais figuram
as boas maneiras mesa (...) Desde os sculos XV e XVI, o culto boa
comida se desenvolveu na Itlia e, a partir do sculo XVII a gula honesta
associada ao surgimento do gourmet honesto e sofisticado se impe como
componente essencial do modelo cultural francs21.
Mas, para alm de uma reflexo em torno da histria da alimentao
e da gula, as pinturas de natureza-morta da Casa de Padre Toledo sugerem
uma complexa gama de significados. Seria preciso lembrar-se da inevitvel
carga simblica da iconografia ps-tridentina; da vigncia da linguagem
codificada ao largo dos sculos XVI e XVII; do carter emblemtico dos
atributos dos santos; da utilizao de elementos icnicos: cores, frutas e
flores. A representao da natureza fora, em diferentes momentos da
histria da pintura, marcada por concepes simblica (a gua, a flor, as
frutas). O mundo, como a escritura cifrada de Deus, faz questionar todo
aparente realismo puro da pintura.
A cultura do barroco foi, como se sabe, fortemente emblemtica.
Mesmo com um certo esvaziamento simblico na arte rococ, seria
ilusrio crer num aparente puro realismo, numa preocupao somente com
o natural: o objeto real esconderia, sob sua vulgar aparncia cotidiana, um
sistema de referncias e aluses. As pinturas de natureza-morta da casa
de Padre Toledo poderiam, portanto, ser entendidas como um elogio ao
valor da modstia, da frugalidade, do ascetismo e da simplicidade; como
um elogio vida contemplativa; como uma reflexo sobre o efmero e a
vaidade: as coisas do mundo so perecveis, s o esprito eterno.
Poderia ser aventada, ainda, a relao com os cinco sentidos:
especialmente o gosto. O tema dos cinco sentidos foi aceito a partir
da cultura barroca, quando se apresenta sua boa utilizao. O uso dos
sentidos, como uma experincia no necessariamente ligada ao pecado,
mas como um caminho de conhecimento e aprimoramento espiritual
compunha parte dos exerccios de Incio de Loyola e que se estendem
sobre a sensibilidade barroca22.
21
QUELLIER, Florent. Gula: histria de um pecado capital. So Paulo, SENAC, 2011.pp.
100-101, 105.
22
LOYOLA, Incio de. Exerccios Espirituais. So Paulo: Loyola, 2002. Exerccio 69
Quarto ponto, gostar, com o gosto, coisas amargas, assim como as lgrimas, tristeza e o

Angela Brando

423
Concluimos, provisoriamente, este primeiro conjunto de respostas,
aqui apenas esboadas, para iniciar um estudo mais detido sobre as pinturas
no forro da sala de jantar da casa onde viveu o abastato e culto Inconfidente,
considerando as fontes escritas que a ela podem ser associadas indiretamente,
quais sejam: dois inventrios de bens; um livro de receitas e a legislao
cannica ento vigente. No entanto, no se pode deixar de observar, de
sada, a relao destas representaes de frutas da sala de jantar com o tema
do grande salo nobre da mesma morada. Trata-se das pinturas na sala
principal que representam os cinco sentidos, a partir de cenas da mitologia
clssica. O paladar representado com uma personagem feminina, Bacante,
com os seios mostra, que oferece a taa de vinho a Baco, ambos sentados
sob uma videira. (fig. 3)
Podemos, com isso, supor uma interpretao que relacione as pinturas
de natureza-morta da Casa de Padre Toledo e uma base documental
no diretamente relacionada com as mesmas, porm capaz de fornece
subsdios para compreender o sentido do comer em seu tempo. Podemos
acrecescentar, ainda, que houvesse uma relao iconogrfica entre as alegorias
dos cinco sentidos especialmente o paladar, pintadas no salo principal,
e as pinturas da sala de jantar, como um refinado convite a percorrer a
trama complexa que articularia o programa decorativo da casa, levando
os convidados, de um cmodo ao outro, dos prazeres do pensamento em
direo ao desfrute da boa mesa.

Referncias Bibliogrficas

BIRON, Berty R. R. Frutas do Brasil: uma alegoria do novo mundo. in


Revista do Ncleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF,
Vol. 2, n 3, Novembro de 2009. Pp. 47-57.

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FLANDRIN, Jean-Louis. Da diettica gastronomia ou a liberao da gula.
In FLANDRIN, J.L. e MONTANARI, M. Histria da Alimentao,

verme da conscincia.. Exerccio 124 - Terceiro ponto: aspirar e saborear com o olfato e
com o gosto a infinita suavidade e doura da divindade, da alma e das suas virtudes e de tudo,
conforme a pessoa que se contempla. Refletir em si mesmo e tirar proveito disso.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

424
So Paulo: Estao Liberdade, 2008.
GRIEGO, Allen J. The Meal. Themes in Art. London, 1992.
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Corra de Toledo e Melo. 1789. [DL 101.3]
LOTT, Myriam Moura. As Constituies Primeiras do Arcebispado da
Bahia. Texto apresentado no VII Simpsio da Associao Brasileira de
Histria das Religies, realizado na Universidade Catlica de Minas
Gerais. Belo Horizonte MG. 2005
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococ religioso no Brasil e
seus antecedentes europeus. So Paulo: Cosac & Naif, 2003
QUELLIER, Florent. Gula: histria de um pecado capital. So Paulo,
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RIGAUD, L. Cozinheiro Moderno ou nova arte da cozinha dado luz por
Lucas Rigaud, hum dos chefes da cozinha de Suas Mageftades fidelssimo,
09c. Lisboa, 1780
RIGAUD, L. O Cozinheiro Moderno ou a Nova Arte da Cozinha. Lisboa,
Oficina de L. da Silva Godinho, 1785.
RODRIGUES, Domingos. Arte da Cozinha divindade em duas partes,
author Domingos Rodrigues,Cozinheyro do Conde do Vimiofo. Lisboa,
1683
ROSRIO, Antnio do. Frutas do Brasil: numa nova, e asctica Monar-
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SANCHEZ, A. E. Prez. A Pintura Espanhola no Sculo de Ouro. In
Catlogo da Exposio: Luzes do Sculo de Ouro na Pintura Espanhola.
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et allii (org.) Museu Casa Padre Toledo: memria da restaurao artstica
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da Bahia feitas e ordenadas pelo Ilustrssimo e reverendssimo senhor d.
Sebastio Monteiro da Vide... 1707. So Paulo: Typographia Antonio

Angela Brando

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Lousada Antunes, 1853. 2 vols.
VILLALTA, Luiz Carlos. O Diabo na Livraria dos Inconfidentes. In
NOVAES, Adauto. Tempo e Histria. So Paulo: Secretaria Municipal
de Cultura, Companhia das Letras,1992.
VILLALTA, Luiz Carlos. Os Clrigos e os Livros em Minas Gerais da
Segunda Metade do Sculo XVIII. Acervo. Rio de Janeiro. Vol. 8 n
I-II, p. 19-52, jan.-dez, 1985.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

426
Figura 1
Naturezas-mortas. Pintor desconhecido,
segunda metade do sculo XVIII.
Pintura a tmpera e cola sobre madeira.
Forro da Sala de Jantar, Casa de Padre Toledo.
Tirandentes MG.
Foto A. Brando.

Angela Brando

427

Figura 2
Melancias. Medalho central. Pintor desconhecido,
segunda metade do sculo XVIII.
Pintura a tmpera e cola sobre madeira.
Forro da Sala de Jantar, Casa de Padre Toledo.
Tirandentes MG.
Foto A.Brando

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

428

Figura 3
Alegoria do paladar. Baco e Bacante.
Pintor desconhecido,
segunda metade do sculo XVIII.
Pintura a tmpera e cola sobre madeira.
Forro da Sala Principal, Casa de Padre Toledo.
Tirandentes MG.
Foto A. Brando.

Angela Brando

429
arquivos e fontes

Relatos sobre el arte moderno en las bibliotecas argentinas.


Pistas halladas en el archivo y la biblioteca Antonio Vigo

Berenice Gustavino
Doctora en Historia y crtica del arte.
Facultad de Bellas Artes, UNLP, Argentina

Numerosos libros extranjeros de historia, crtica y teora del arte


moderno integran las bibliotecas y participan del universo intelectual de
artistas y crticos argentinos hacia los aos sesenta. Esos conjuntos permiten
identificar las lecturas privilegiadas, su procedencia y su representatividad
de las tradiciones intelectuales extranjeras. La produccin de los autores en
contacto con esos aportes hace posible detectar cmo las nociones y categoras
facilitadas por esa bibliografa participaron en los modos de pensar el arte
y la historia del arte del siglo XX en Argentina. Los aos comprendidos
entre la segunda posguerra europea y la eclosin del experimentalismo
neovanguardista ponen en escena algunas transformaciones que llevarn
a revisar las certezas provistas de manera bastante estable por la narrativa
histrica y la crtica del arte moderno. El caso que comento permite
abordar la manifestacin de esas modificaciones en un contexto perifrico y
tradicionalmente receptor de los grandes relatos elaborados en los centros.
Esta situacin excntrica no redujo a los argentinos necesariamente al
rol de buenos lectores pasivos y acrticos. Al contrario, algunos de ellos
transformaron activamente las versiones cannicas de la modernidad
artstica, atentos a los recorridos divergentes de la historiografa de la
primera mitad del siglo.
La circulacin de la literatura extranjera especializada de la primera
parte del siglo XX es profusa entre los argentinos. En este conjunto es
evidente la preeminencia de la literatura francfona. Tanto en las listas de
referencias bibliogrficas como en las citas, notas y comentarios de los textos
de Julio E. Payr, Jorge Romero Brest, Cayetano Crdova Iturburu, ngel
Osvaldo Nessi y otros, abundan los ttulos de Marcel Brion, Jean Cassou,
Raymond Cogniat, Pierre Courthion, Bernard Dorival, lie Faure y Ren
Huyghe. Esa bibliografa es leda principalmente en lengua original. Los
autores argentinos dominan el francs -y otras lenguas- como resultado

431
de su educacin formal, y de los viajes y estadas en Europa. Aunque en la
dcada del treinta Francia no renueva el envo de profesores a los pases del
sur del continente1 y se verifica una prdida de su predominio general, el
francs contina integrando los programas de las escuelas argentinas hasta
19422 y se sigue estudiando en el seno de las lites, donde se lo considera
una lengua superior, un elemento de discriminacin y de distincin cultural.
Esta familiaridad permite acceder a una literatura extranjera que no cuenta,
en general, con versiones en espaol.
Los argentinos no son slo lectores privados de esta bibliografa
sino que participan activamente de la industria del libro como autores,
traductores, editores y redactores de prefacios. Romero Brest, por ejemplo,
codirige la editorial Argos entre 1946 y 1952, puesto que le permite publicar
obras no disponibles hasta entonces como Los orgenes del arte gtico, de
Louis Courajod (1946); Laocoonte, de Lessing (1946); Cartas, de Nicolas
Poussin (1947); y Las obras maestras de la pintura griega, de Georges Mautis
(1948). Payr, por su parte, traduce obras de Andr Lhote y Lionello
Venturi, mientras que Damin Bayn traduce ensayos de Andr Malraux y
Pintura y sociedad de su maestro francs, Pierre Francastel3. Los argentinos
cosmopolitas y polglotas importan en su idioma, para darlas a conocer,
las obras de la modernidad central. Operan as como seleccionadores o
gate-keepers, en tanto agentes que intervienen en el desplazamiento de una
obra de una lengua a otra por medio de la traduccin4; son los passeurs5
entre el universo de referencias europeas y la crtica y la historia del arte
en espaol. La traduccin les permite acrecentar el propio patrimonio
mediante la anexin y la apropiacin de un patrimonio extranjero6.
1
Denis Rolland, La crise du modle franais. Marianne et lAmrique Latine. Culture, politique
et identit, Rennes, Presses Universitaires de Rennes. Institut Universitaire de France, 2000,
p. 229.
2
Ibidem, p. 233.
3
Andr Malraux, Las voces del silencio. Visin del arte, Buenos Aires, Emec, 1956,
traduccin de Bayn y Elva de Lizaga, y Pierre Francastel, Pintura y sociedad. Nacimiento
y destruccin de un espacio plstico. Del Renacimiento al Cubismo, Buenos Aires, Emec
Editores, 1960.
4
Pierre Bourdieu, Les conditions sociales de la circulation internationale des ides ,
in Actes de la recherche en sciences sociales. La circulation internationale des ides , n 145,
diciembre 2002, pp. 3-8.
5
Denis Rolland, LAmrique latine et la France: acteurs et rseaux dune relation culturelle,
Rennes, Presses universitaires de Rennes, 2011, p. 12.
6
Pascale Casanova, La rpublique mondiale des lettres, Paris, d. du Seuil, 2008, p. 332.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

432
Esta bibliografa est formada por el trabajo de crticos, historiadores,
periodistas, conservadores y funcionarios franceses o francfonos, que
desempean muchas veces esos roles a la vez. Muchos de ellos estaban
en actividad antes de la Segunda Guerra y, durante la posguerra, dirigen
las principales instituciones artsticas francesas. Todos elaboran balances,
panoramas o historias del arte moderno o contemporneo previo a la guerra
y defienden posiciones conservadoras y nacionalistas originadas en los
aos treinta7 o antes8. Estos autores se preocupan por aquellas propuestas
historiogrficas posteriores a la guerra que no hacen pasar el arte moderno
por Pars e instalan una doxa de la historiografa de la modernidad a la
francesa por medio de la escritura y de sus funciones en las instituciones9.
As, elaboran una historia del arte moderno basada en la conviccin de
la preeminencia de su pas, insistiendo sobre los valores de medida y
contencin de la pintura francesa que se distinguira as de los excesos
de la pintura alemana, por ejemplo. Una exposicin como Les sources du
XX sicle, organizada por Cassou en 1961 en el Museo de Arte Moderno
de Pars, completa y pone en escena esta historia del arte moderno a la
francesa. Este evento

trazaba una historia de la modernidad que se haba vuelto clsica:


orgenes en el posimpresionismo, ms precisamente en Czanne
y Seurat, subestimacin de Degas, sobreestimacin de Renoir,
articulacin fundamental del fauvismo con el cubismo, ninguna
mencin de los ready mades de Duchamp...10.

Los argentinos no son indiferentes a esta concepcin historiogrfica;
siguen este modelo cuando escriben sus propias historias del arte europeo
y lo observan constantemente al escribir la historia del arte local. Payr,
por ejemplo, considera a Van Gogh, Czanne, Gauguin y Seurat como
los hroes del color y a los fauves como la segunda lnea heroica en las

7
Leeman, R. Le critique, lart et lhistoire: de Michel Ragon Jean Clair. Rennes: Presses
universitaires de Rennes, 2010, pgs. 48-52.
8
Michaud, E.: Nord-Sud. Du nationalisme et du racisme en histoire de lart, en Histoire
de lart: une discipline ses frontires. Paris: Hazan, 2005, pgs. 49-84.
9
Leeman, R. Op. Cit.: pg. 103.
10
Ibid: pg. 107.

Berenice Gustavino

433
bsquedas pictricas modernas11; y explica la evolucin de la pintura de
los ltimos cincuenta aos a partir de la sucesin del postimpresionismo,
fauvismo, cubismo, futurismo, orfismo, purismo, expresionismo, surrealismo
y todas las formas del arte figurativo().12. Fig. 1.
En el conjunto de las bibliotecas de los autores argentinos, la de
Edgardo Antonio Vigo representa un caso particular. En primer lugar, y a
diferencia de los autores mencionados, Vigo es un artista. Sin embargo, su
produccin como crtico, poeta, profesor y editor, de la que dan cuenta los
documentos conservados en su archivo y biblioteca, revela que su vnculo
con la literatura especializada no se restringi al acopio y a la lectura
privada sino que, al contrario, adopt una forma apropiativa y productiva
que alcanz, en algunos casos, la circulacin social13.
A fines de los aos cincuenta, su biblioteca rene libros adquiridos
en La Plata y Buenos Aires, y otros trados probablemente de su primer
11
Esta adjetivacin es tomada por Payr de Andr Salmon. Payr, Julio E., Czanne,
Gauguin, Van Gogh, Seurat. Los hroes del color y su tiempo. Buenos Aires: Nova, 1951.
12
Payr, Julio E. Picasso y el ambiente artstico-social contemporneo. Buenos Aires: Nova,
1960. P. 7. Sobre este tema ver Wechsler, D., Julio Payr y la construccin de un panten
de hroes de la pintura viviente. Estudios e Investigaciones, Boletn del instituto de Teora e
Historia del Arte Julio E. Payr, n10, 2006.
13
Edgardo Antonio Vigo (1928-1997) fue un artista, crtico y editor nacido en La Plata,
Argentina. Su obra plstica incluye grabados, objetos y acciones. Desde 1958 redacta
columnas de crtica de arte para el diario El Argentino. A lo largo de su carrera edita varias
revistas experimentales como WC, Diagonal Cero y Hexgono 71 en las que rene poesa,
grabado y crtica de arte. En esos proyectos editoriales innova en la puesta en pgina,
los materiales y formatos. En 1967 funda el Museo de la xilografa, una organizacin
ambulante que rene grabados donados por distintos artistas que se conservan en cajas y
valijas y son expuestos en lugares no convencionales. Vigo fue un pionero de la poesa visual
y del arte correo junto a otros artistas de la regin como el chileno Guillermo Deisler y
el uruguayo Clemente Padn. Durante su carrera, Vigo colabora con el Grupo S y con el
Centro de Arte y Comunicacin (CAYC). Sus acciones, a las que denomina sealamientos,
comprenden elementos conceptuales y cuestionan las nociones tradicionales de obra de arte,
artista y espectador. Vigo es un artista comprometido con la situacin poltica del pas, en
particular durante la dictadura militar (1976-1983). Uno de sus hijos es una de las personas
desaparecidas durante ese rgimen. Para el anlisis de la obra de Vigo y de su actividad como
editor ver los siguientes trabajos: Dolinko, S., Arte plural: el grabado entre la tradicin y la
experimentacin 1955-1973. Buenos Aires: Edhasa, 2012; Bugnone, A., La revista Hexgono
71: 1971-1975. La Plata: Universidad Nacional de La Plata; Centro de Arte Experimental
Vigo, 2014; Davis, F., Edgardo-Antonio Vigo. Xilografas y ediciones (1962-1972). Buenos
Aires: Museo del Grabado, 2004, y Prcticas revulsivas. Edgardo Antonio Vigo en los
mrgenes del conceptualismo. En Freire, C. y Longoni, A. (eds.) Conceitualismos Do Sul/
Conceptualismos Del Sur. Sao Paulo: Annablume, MAC USP, AECID, 2009. Pp. 283-98;
entre otros.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

434
viaje a Europa en 1953. Su coleccin est por entonces en construccin: en
1958 Vigo tiene recin 30 aos, ha viajado una sola vez a Europa y lleva
pocos aos en la docencia. Por otro lado, acaba de comenzar su actividad
como crtico de arte en las pginas del diario platense El Argentino y
de fundar WC, la primera de sus revistas experimentales. Vigo es un
gran lector, segn demuestran los rastros de algunas prcticas de lectura
conservados en su biblioteca: lee los libros que colecciona, sus volmenes
estn prolijamente cortados y algunos de ellos fueron subrayados con
diferentes colores. Sus intereses incluyen el desarrollo del arte moderno,
sus diferentes estilos y movimientos. Entre los libros en francs de su
biblioteca se cuentan Czanne de Dorival (Paris, Pierre Tisn, 1948) y
Picasso, tude biographique et critique de Maurice Raynal, (Genve, Skira,
1959). Sin embargo, en las elecciones de Vigo, la modernidad artstica ya no
se remonta al impresionismo o al posimpresionismo, ni siquiera a Picasso:
en 1957, el artista sostiene que Picasso hace que se olvide a otros nombres
importantes. Picasso hoy es pasatista, su trabajo ya lo hizo y fue punto
de partida para otros. Hoy son otros nombres los que hay que tener en
cuenta14.
En los escritos y proyectos editoriales de Vigo, estas lecturas son
convocadas mediante la cita y el comentario. La traduccin aparece, sin
embargo, como la forma ms radical de apropiacin de ese material.
Efectivamente, adems de acrecentar progresivamente su biblioteca
tradicional, el artista confecciona desde 1954 y hasta 1975 aproximadamente
una biblioteca paralela, compuesta por una serie de libros nicos de
manufactura artesanal. Vigo se lanza a la traduccin al espaol y a la edicin
casera de ejemplares nicos, captulos de libros y artculos en francs,
existentes en versin original en su biblioteca. Estas ediciones le permiten
seleccionar, componer, montar y editar sus propios libros a partir de textos
de otros sobre los temas que le interesan. La esposa del artista, Elena
Comas, se ocupa de traducir y su colaboracin es regularmente sealada.
Los textos son mecanografiados y Vigo realiza la puesta en pgina, las
tapas, la ilustracin, la decoracin y la encuadernacin. Los formatos varan
aunque, aunque a lo largo de los aos, algunas series se recortan por su
apariencia similar y temas comunes15.

Vigo, E. A. Charla en la Asociacin del Poder Judicial dada el 20/12/50 i 7 [sic]. Notas
14

mecanografiadas. Archivo del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV) de La Plata.


15
No me detengo aqu en la apariencia de estos libros, aspecto ligado tanto a los textos
traducidos como a los diferentes perodos en el desarrollo de la obra plstica del artista.

Berenice Gustavino

435
La biblioteca paralela muestra la preferencia del artista por ciertos
movimientos artsticos como las vanguardias abstractas, el surrealismo,
el dadasmo, el suprematismo y el neoplasticismo. As, encontramos la
traduccin de Le surralisme dYves Duplessis; de Lart abstrait: ses origines,
ses premiers maitres, y de Mondrian, sa vie, son uvre, ambos de Michel
Seuphor; de los escritos de Wassily Kandinsky, Du spirituel dans lart: et
dans la peinture en particulier; adems de libros sobre Picasso, Hans Arp y
Paul Klee, y artculos sobre Mondrian y Theo van Doesburg. Fig. 2.
La traduccin en Vigo puede ser comprendida como una manifestacin
de la avidez por conocer y dominar las ideas sobre el arte moderno, y
como va para compensar y reparar las lagunas en la bibliografa sobre
arte en espaol, motivaciones que el artista comparte con otros de sus
contemporneos. Esto lo lleva, por ejemplo, a anticipar dos aos la versin
espaola de Du spirituel dans lart, traducida del francs por Edgar Bayley
y publicada en 1956 por Galatea-Nueva Visin. Los motivos que guan
otras elecciones son menos evidentes. Este es el caso de Vie des formes de
Henri Focillon, traducido integralmente por la pareja, a pesar de que una
versin existe desde hace una dcada publicada por El Ateneo16; o el del
pequeo compendio sobre el surrealismo de Yves Duplessis, editado en
1953 en Barcelona con traduccin de Juan Eduardo Cirlot. Otros libros
traducidos por Vigo, como Lart abstrait... de Seuphor, no cuentan con
traduccin castellana hasta la actualidad17.
Por otro lado, en los escritos de Vigo de la poca es comn encontrar
comentarios sobre la necesidad de leer para combatir la falta de informacin.
El artista ataca abiertamente el conservadurismo del pblico que se
deja dirigir y se expresa despectivamente sobre lo moderno; al Estado y
las instituciones como responsables de no proveer los conocimientos
necesarios; y a la crtica de arte como el elemento ms negativo del medio
artstico que revela en sus trabajos un desconocimiento de los problemas
de las artes plsticas en general18. Con el fin de revertir esta situacin,
Vigo utiliza sus presentaciones pblicas y sus artculos como tribunas
16
Focillon, H., Vida de las formas; seguido por el Elogio de la mano. Buenos Aires: El Ateneo,
1947, traduccin de Ins Rotenberg.
17
Otros libros de Seuphor s cuentan con ediciones en espaol, como por ejemplo Mondrian.
Pinturas. Barcelona: Gustavo Gili, 1958, con traduccin de Juan Eduardo Cirlot; Pintura
abstracta. Buenos Aires: Kapelusz, 1965, traduccin de Roberto Guibourg del Dictionnaire
de la peinture abstraite; y El estilo y el grito. Caracas: Monte vila Editores, 1970.
18
Vigo, E. A. Charla en la Asociacin del Poder Judicial..., documento citado. P. 20.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

436
desde donde movilizar y familiarizar al gran pblico con los problemas
del arte moderno. Adems de comentar la actividad artstica y de resear
las novedades editoriales, sus columnas suele incluir la transcripcin de
extensos prrafos tomados de los libros y revistas de su biblioteca. Esta
preocupacin por la divulgacin lo lleva a traducir y utilizar artculos que
proponen clasificaciones y periodizaciones del arte moderno, como La
peinture de 1900 1950. Essai de classification de Leon Degand, extrado
de la revista francesa Art daujourdhui, del que reparte un resumen entre los
asistentes a sus charlas19.
Las elecciones bibliogrficas de Vigo son coherentes con su defensa
de la abstraccin y de las vanguardias, que se comprueba en sus obras y
opiniones de la poca. Su exigencia de un arte que sea de su tiempo, es
decir, abstracto, se hace escuchar en numerosas ocasiones: hoy estamos en
una etapa que al quedarse en esa representacin copiativa de la naturaleza
[sic], se realiza por parte del plstico una aberracin de falta de enfoque, de
una total nulidad del tiempo que nos toca actuar20.
Del conjunto de libros y artculos traducidos por Vigo entre fines de
los aos cincuenta y mediados de los sesenta, al menos tres pueden haberle
facilitado al artista herramientas para pensar la historia del arte moderno
en un sentido divergente al propuesto por la historiografa a la francesa.
Vigo traduce a Seuphor, un autor francfono defensor de la abstraccin
y uno de los primeros en proponer una sntesis y una organizacin de la
historia de esta tendencia. En Lart abstrait..., que constituye un corpus
de base para libros publicados desde fines de los aos cincuenta a los
setenta, el autor elabora una historiografa que no pasa necesariamente
por Pars, estudiando artistas y tendencias alemanas, las vanguardias
rusas y otros olvidados de la historia del arte cannica. Aunque Seuphor
ignore las contribuciones del uruguayo Joaqun Torres Garca, ausencia
muy cuestionada por los argentinos21, sobre ese libro descansara, por su
apertura relativa en el contexto de la produccin historiogrfica europea,
la aplastante responsabilidad de haber asumido en Francia la historiografa

19
Ibid. P. 30.
20
Ibid. P. 4.
21
Cfr. De Torre, G. Joaqun Torres Garca. Buenos Aires: Instituto de Arte Moderno, n 8,
1951. P. 6. Citado en Giunta, A., Vanguardia, internacionalismo y poltica: arte argentino en los
aos sesenta. Buenos Aires: Paids, 2001.

Berenice Gustavino

437
de la vanguardia internacional22. Junto a otros autores francfonos,
Seuphor contribuye al cambio de panten artstico, inaugurando una nueva
historiografa que toma distancia de la figura de Picasso, para hacer ingresar
en el relato a Kandinsky, Klee y Mondrian. No sorprende que el ejemplar de
Lart abstrait... de Vigo haya sido profusamente subrayado por el artista23.
Fig. 3 y 4.
Adems de frecuentar esta historiografa en la que comienzan a
perfilarse nuevos relatos sobre el arte de la primera mitad del siglo,
que incorpora la abstraccin en una posicin central e introduce
progresivamente el relevo de los viejos, Vigo entra en contacto con otras
lecturas sobre el arte moderno elaboradas fuera de Francia. En la pgina
81 del libro de Seuphor citado se reproduce el clebre diagrama en el
que Alfred Barr, primer director del Museum of Modern Art (MoMA),
ordena las sucesivas tendencias artsticas comprendidas 1890 y 1935, y
sistematiza sus conexiones. Vigo traduce y copia fielmente este esquema
en rojo y negro sobre blanco que ilustraba originalmente el catlogo de la
exposicin Cubism and Abstract Art organizada en el MoMA en 1936. Fig.
5. Es comprensible que un diagrama como este haya despertado su inters:
Barr no parte del impresionismo -como s lo hacen otros cuadros similares
disponibles por entonces en Argentina24- sino de la generacin siguiente;
reserva, adems, un lugar importante al dadasmo; y subraya las conexiones
entre la esttica de la mquina y una amplia gama de tendencias que va
del cubismo a la arquitectura moderna y Bauhaus. Esa nocin, usada por
Barr para justificar la inclusin de objetos industriales y arquitectnicos en
la coleccin del MoMA25, encuentra probablemente sus ecos en Vigo, que
elabora en esos aos distintas series de mquinas intiles y mquinas
imposibles26. De este modo, y de acuerdo con la ambicin de informarse
22
Cfr. Leeman, R., Op. Cit.
23
Esto fue tambin sealado en Gradowczyk, M. H. et al, MAQUINAciones. Edgardo
Antonio Vigo: Trabajos 1953-1962. Buenos Aires: CCEBA-Centro Cultural de Espaa en
Buenos Aires, 2008.
24
Desde 1949, dos resmenes grficos de este tipo estaban disponibles en el catlogo de la
exposicin de arte francs presentada en Buenos Aires ese ao. La peinture franaise de
Manet nos jours, estaba firmado por Ren Huyghe y el otro, menos extenso, comprenda
la pintura entre 1905 y 1925.
Kantor, S. G., Alfred H. Barr, Jr. and the Intellectual Origins of the Museum of Modern Art.
25

MIT Press, 2003. P. 308.


Gradowczyk, M. H., Edgardo Antonio Vigo: MAQUINAciones (1953-1962), en Op.
26

Cit.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

438
sobre el arte moderno, el artista frecuenta una historiografa desarrollada
tempranamente, que ser luego muy influyente entre los propios franceses,
y que constituye la versin anglosajona de la modernidad artstica. Iniciada
por Roger Fry y por Barr, ser transformada luego en la narrativa moderna
con Clement Greenberg como principal vocero.
Como ya sealamos, Vigo opta, como lector y como traductor, por
aquella literatura que privilegia una versin del arte moderno marcada por
el predominio de la abstraccin. Pero su inters por otra rama dentro de las
vanguardias lo demuestra tambin la gran cantidad de volmenes dedicados
al surrealismo y a Dada en su biblioteca, y el desarrollo de su esttica y
escritos de la poca. Posiblemente, la traduccin ms notable de su biblioteca
paralela sea, en este sentido, la de los escritos de Marcel Duchamp reunidos
y publicados por primera vez en 1959 por Michel Sanouillet con el ttulo
de Marchand du sel. En 1966, Comas y Vigo traducen el libro a partir de un
ejemplar adquirido, probablemente, en la librera Galatea de Buenos Aires.
En espaol, el ttulo se transforma en vendedor de sal, frase que acaba
con el anagrama que permite, en francs, el desplazamiento de las slabas
del nombre del artista y el consecuente efecto potico. Entendemos, hasta
el momento, que esta es la primera traduccin integral al castellano de los
escritos de Duchamp compilados hasta entonces, aunque su existencia sea,
como en los otros casos, privada. Con este ejercicio, Vigo se adelante doce
aos a la primera traduccin profesional de esos textos, hecha en 1975 a
partir de un volumen posterior, organizado tambin por Sanouillet, bajo el
ttulo ahora de Duchamp du signe: ecrits27. Fig. 6.
Como afirma Richard Leeman, durante 1959 algunos crticos
franceses reconocen la influencia de Duchamp en la generacin ms joven
de artistas. Desde entonces se instala la idea de que tanto Picasso como
Klee, Kandinsky y Mondrian, hasta entonces figuras insoslayables en el
relato del arte moderno, ceden su lugar a Duchamp y a Picabia. Mientras
que el nombre de Duchamp no produce ningn eco durante medio siglo
en Francia, la historiografa del arte elaborada en ese pas durante la dcada
del sesenta, har de Dada la gran ruptura del siglo XX, cuestionando y
desplazando el rol que hasta entonces se le haba asignado al impresionismo.
En esos aos se debatir, por ejemplo, si el origen de la modernidad se sita

27
Duchamp, M. y Sanouillet, M. (ed.), Duchamp du signe: ecrits. Paris: Flammarion, 1975.
Este compilado que cuenta con varias ediciones es traducido y publicado por Gustavo Gili
en Barcelona en 1978, con la traduccin literal del ttulo, Duchamp del signo.

Berenice Gustavino

439
en los aportes de Czanne o en los de Duchamp28. Para Thierry de Duve,
un evento como la primera exposicin retrospectiva del inventor del ready
made en 1963 pone en evidencia que este deviene, si no ms famoso que
Picasso, al menos ms relevante para la comprensin del arte actual29.
Del mismo modo que en Francia, el nombre de Duchamp comienza
a circular en Argentina durante los aos sesenta, aunque ya previamente
apareciera asociado al dadasmo y a la invencin del ready made30. Aunque
no es objeto del debate historiogrfico en trminos de padre fundador
de la modernidad como es el caso en Europa, ocupa un rol central como
referente histrico en relacin a los nuevos comportamientos artsticos. Ese
rol se le reconoce en la prensa local -donde se lo presenta como enfant
terrible y antecedente iconoclasta del arte pop31-, y en los primeros textos
que historizan los estilos y movimientos ms recientes32.
El inters que demuestra Vigo por las ideas del francs no es aislado
entre los artistas argentinos. Algunos de ellos encuentran coincidencias
entre el trabajo y la figura de Duchamp, y sus propias ideas y bsquedas
experimentales. Es conocida, aunque poco documentada, la ancdota segn
la que Alberto Greco habra conocido a Duchamp en Nueva York hacia fines
de 1964 o comienzos de 1965. En esta oportunidad, Greco le habra pedido
que escribiera y firmara la leyenda Viva Greco! en una hoja de papel
que sera usada luego como tapa del catlogo de su prxima exposicin33.
La estada de Duchamp en Buenos Aires en 1918 tampoco es demasiado
conocida. En 1967, el escritor Julio Cortzar descubre el comentario de
este viaje en Marchand du sel, pero reconoce no contar con suficientes
elementos para asegurar la veracidad del relato34. Un ao despus, en un

28
Leeman, R., Op. Cit. Pp. 157-176.
29
Fernndez Vega, J., El mensaje de Duchamp recin lleg a destino en los aos sesenta.
Entrevista con Thierry de Duve. ramona. Revista de artes visuales. N 76, noviembre de
2007. P. 31.
30
Cfr. Romero Brest, J., La pintura europea contempornea: (1900-1950). Mxico: Fondo de
cultura econmica, 1952. Pp. 212-223.
31
Sin firma. Maestros. El breviario del viejo terrible. Primera Plana. 19 de julio de 1966.
P. 91.
32
Pellegrini, A. Panorama de la pintura argentina contempornea. Buenos Aires: Paids, 1967.
33
Rivas, F. Alberto Greco. Valencia: IVAM Centre Julio Gonzlez, Fundacin Mapfre,
1991. Pp. 328-331.
Cortzar, J. De otra mquina clibe, en La vuelta al da en ochenta mundos. Madrid:
34

Debate, 1994. Pp. 110-121.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

440
escrito posterior a la muerte del artista, Cortzar vuelve sobre ese dato,
confirmado por Octavio Paz que habra escuchado la historia directamente
de boca de Duchamp35.
La atencin de Vigo a las narrativas divergentes de la propuesta por la
historiografa del arte a la francesa se confirma en una resea de 1961 del
libro de Jean Cassou, Panorama des arts plastiques contemporaines, traducido
y publicado en Espaa. El artista platense objeta que el ttulo no aclare en
Francia, ya que el supuesto panorama se restringe a ese pas e ignora la
pintura espaola, la italiana, la holandesa, omisiones que Vigo inaceptables
en un crtico y figura de prestigio en las artes plsticas internacionales36.
Las traducciones y ediciones de Vigo son una prctica mayormente
privada. En los documentos y trabajos disponibles, no existen referencias
a tentativas de publicacin formal. Ellas alcanzan, sin embargo, una cierta
circulacin social a travs de las revistas editadas por el artista, de las
citas en sus columnas de crtica y en el contenido de sus conferencias y
charlas. Otra lectura de Duchamp y de las vanguardias puede verificarse
ampliamente en la produccin plstica del artista, que puede ser considerada
de neovanguardia, por su recuperacin de las operaciones dadastas y
constructivistas, por la crtica de los principios del arte burgus autnomo
y de la figura del artista expresivo, por la revisin de los convencionalismos
de los medios tradicionales, y de los parmetros perceptivos, cognitivos,
estructurales y discursivos de la institucin artstica37. La bsqueda
de respuesta y saberes sobre el arte moderno, lleva al artista y lector
perifrico, a tratar de primera mano las fuentes de esas ideas. En esta
operacin, el passeur interviene activamente, eligiendo y combinando los
elementos que le ofrece la tradicin artstica de Occidente, y optando por
las explicaciones y los saberes que responden con mayor coherencia a sus
intereses intelectuales y a la direccin que impone a su obra plstica.

Cortzar, J. Marcelo del Campo o ms encuentros a deshora, en ltimo round. Madrid:


35

Debate, 1992. Pp. 304-308.


36
Sin firma (Vigo, E. A.). Artes plsticas. Panorama. El Argentino, 31 julio de 1961. P. 8.
37
Cfr. Foster, H. El retorno de lo real: la vanguardia a finales de siglo.
Madrid: Akal, 2001.

Berenice Gustavino

441
Figura 1
Payr, Julio E., Czanne, Gauguin, Van Gogh, Seurat.
Los hroes del color y su tiempo.
Buenos Aires: Nova, 1951.
Portada

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

442
Figura 2
Edgardo Antonio Vigo. Tapa del volumen que contiene
La peinture de 1900 1950.
Essai de classification de Leon Degand
y otros artculos aparecidos en el nmero 78
de la revista Art daujourdhui de marzo 1950.
Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV)

Berenice Gustavino

443
Figura 3
Pginas subrayadas del libro
Lart abstrait: ses origines, ses premiers matres
de Michel Seuphor.
Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

444
Figura 4
Edgardo Antonio Vigo.
Pginas de la traduccin de Lart abstrait: ses origines, ses
premiers matres de Michel Seuphor.
Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV)

Berenice Gustavino

445
Figura 5
Edgardo Antonio Vigo. Traduccin del diagrama de
Alfred Barr de 1936.
Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

446
Figura 6
Edgardo Antonio Vigo.
Portada de la traduccin de Marchand du sel,
crits de Marcel Duchamp, 1966.
Archivo y Biblioteca del Centro de Arte Experimental Vigo (CAEV)

Berenice Gustavino

447

arquivos e fontes

Bienais de So Paulo: Arquivo, memria e esquecimento

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago


Ps-doutoranda do Programa de Ps-graduao em Artes, Cultura e Linguagem.
Universidade Federal de Juiz de Fora.

Introduo

Este texto fruto de uma reflexo acerca de pesquisas realizadas nos


ltimos anos sobre algumas edies das Bienais de So Paulo, em especial
as realizadas na dcada de 1970.
Desde o incio, ao eleger o acervo do Arquivo Histrico Wanda Svevo
(AHWS) como principal fonte de pesquisa, tornou-se fundamental refletir
sobre o papel do A(a)rquivo. As conceitualizaes do termo arquivo e suas
vrias interpretaes no so o objeto desta anlise, no entanto, inevitvel
criar um parmetro para compreender a maneira como o trabalho se de-
senvolve, j que a interpretao acerca deste problema perpassa a escrita,
levando-se em considerao o embate direto com as fontes arquivadas. No
documento que prev a criao do AHWS, destaca-se tambm a sua fun-
o de local de pesquisa da arte contempornea. imprescindvel para
a Fundao Bienal tornar o Arquivo acessvel ao pblico, ou pelo menos
ao pesquisador especializado ou interessado em arte, j que dessa maneira
possvel difundir a histria no apenas das artes visuais, mas da prpria
instituio desde 1951.
Alm disso, formulaes sobre o conceito de memria so importantes
para a abordagem das fontes selecionadas a fim de diagnosticar as diferen-
tes construes da histria das Bienais de So Paulo, ou seja, nesse caso, a
maneira como a Fundao Bienal narra a sua histria por meio de cat-
logos e publicaes prprias e sites na internet, diferentemente do modo
como sua histria est sendo construda, pelos pesquisadores acadmicos,
baseando-se em fontes primrias, ou seja, na documentao histrica guar-
dada no AHWS, ainda pouco explorada pela instituio. Dessa maneira,
outras questes foram levantadas ao longo dessa reflexo, relacionadas a
conceitos de tradio e identidade das Bienais, procurando dar conta de
uma confuso persistente engendrada por meio da profuso do discurso

449
oficial, utilizado pela instituio para a construo de sua identidade, que
difere do discurso gerado a partir dos enunciados contidos nas fontes ana-
lisadas, presentes no Arquivo.
Ao escrever sobre as Bienais de So Paulo, preciso lembrar que fo-
ram construdas em torno da Fundao Bienal, e mais especificamente das
exposies Bienais, uma narrativa, uma histria, um discurso. H uma me-
mria guardada e corroborada e uma tradio cultivada pela Fundao Bie-
nal, evitada e trabalhada pelos curadores e por vezes questionada por eles
prprios, pelos crticos e pelo pblico.
Trabalhar com essas questes implica a ideia de recuperar um passado
que evoca uma criao sobre ele. A presena de rupturas e continuidades
na anlise do passado pode ser percebida, portanto, como uma tentativa de,
atravs de discursos construdos a partir de enunciados distintos, oferecer
uma verso memorial sobre o passado que atenda a demandas especficas
do presente.
Estas possibilidades de apropriao do passado pela via do presente
apontam para uma questo ainda maior: a construo de futuros possveis.
Assim, no presente que a construo do passado pleiteada como recurso
para a construo de um futuro que responda s aspiraes deste presente.
Neste sentido, parece pertinente pensar as estratgias de armazenamento
e esquecimento do passado. A construo dos museus, arquivos, centros de
memria e institutos histricos como depositrios de uma concepo e uma
verso da memria so indicativos deste caminho. O que se guarda e arma-
zena o que se quer lembrar, pois o no-mais-visto e o no-dito tendem ao
esquecimento. Nstor Canclini aponta para esta necessidade de criao de
mitos e monumentos de preservao do passado como marcos fundamen-
tais de construo de identidades, incluindo neste processo os documentos
escritos. De acordo com Pierre Nora, possvel perceber os museus, insti-
tutos histricos, casas de cultura, monumentos, entre outros, como lugares
de memria, cuja funo exatamente manter ativo o pertencimento a de-
terminado vnculo identificatrio.1 Canclini afirma que ter uma identidade
seria ter um pas, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o
que compartilhado pelos que habitam esse lugar se tornasse idntico ou
intercambivel. Nesses territrios a identidade posta em cena, celebrada

1
NORA, Pierre. Entre memria e histria: a problemtica dos lugares. Projeto Histria, So
Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

450
nas festas e dramatizada tambm nos rituais cotidianos.2
H muito tempo est superada a perspectiva de que a memria um
atributo somente individual. Estudos de diversas origens disciplinares coin-
cidem na experincia compartida da memria, ou seja, na sua natureza so-
cial. Mesmo quando envolvem experincias pessoais, as lembranas resul-
tam da interao com outras pessoas. Alm disso, a memria passa a ser um
fator fundamental de identidade e de suporte dos sujeitos coletivos assim
como desempenha tambm outra funo importante, tanto na preservao
da experincia histrica acumulada, de valores e de tradies, como, em
muitas situaes, pretende ser a depositria da prpria histria (por exem-
plo, no caso das sociedades sem escrita, ou o das comunidades rurais marca-
das pela manuteno de forte tradio oral). inegvel que, representando
interesses de certos setores ou da comunidade como um todo, a memria,
transformada em senso comum, uma referncia de coeso identitria e faz
parte da cultura poltica de uma determinada sociedade.
Sendo uma construo ativa, dinmica, a memria nunca a repetio
exata de algo passado. Trata-se, em realidade, de uma reconstruo que cada
um realiza dependendo da sua histria, do momento e do lugar em que se
encontra. Portanto, a memria uma construo e, como tal, perpassada,
veladamente, por intercesses que expressam relaes de poder que hie-
rarquizam, segundo os interesses dominantes, aspectos de classe, polticos,
culturais, etc. Isto no produto do acaso; sim, resultado da relao e
interao entre os diversos atores histricos em um determinado momento
conjuntural.
Lembrar e esquecer so aes que implicam seleo de informaes, o
que significa dizer que tambm no h memria sem esquecimento. Sen-
do a memria coletiva uma construo social e um fator de identidade,
algumas questes surgem imediatamente. Ento, como viver com esqueci-
mentos impostos? Como lembrar ou esquecer o que no se permite conhe-
cer? Como conviver diante do apagamento (desmemria)? Para uma dada
coletividade, quais os prejuzos implcitos nesse acesso ao (des)conhecido
passado bloqueado? Os responsveis, por exemplo, pelos anos de chumbo
latino-americanos sabem que o desconhecimento impede o posicionamen-
to consciente e que, alm disso, h um potencial de inrcia que possui o es-
quecimento coletivo. A anlise da temtica da memria implica reconhecer
2
CANCLINI, Nestor Garca. Culturas Hbridas. So Paulo: Edusp ,2 ed.,1998, p. 190.
Grifos do autor.

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago

451
que h, como contrapartida, o esquecimento, os silncios e os no-ditos. O
esquecimento pode ser uma opo de restringir ao essencial certos fatos ou
informaes a respeito deles. No entanto, pode tambm ser o resultado de
uma ao deliberada de ocultamento.
Tzvetan Todorov3 afirma que os regimes totalitrios do sculo XX de-
ram memria um estatuto indito na medida em que perseguiram com
afinco a sua supresso. Sabe-se que polticas diversas de censura ocorreram
muito antes, entretanto no sculo XX, o domnio sobre a informao e a co-
municao redimensionou a apropriao da memria. H inmeros rastros
da eliminao de vestgios do passado, de manipulao ou de maquiamento
do que existiu. E isso ocorre independentemente de qualquer ideologia.
Seja sob ditaduras de direita ou de esquerda, a memria e a histria so
vtimas constantes dessa dominao. A nfase recente na (re)construo
de um pensamento nico vinculado aos interesses da globalizao mostra
a vigncia desta discusso e a permanente luta pelo controle das formas
autnomas e cientficas do pensamento.

Bienais de So Paulo: entre a memria e o esquecimento

Constantemente, ao longo das ltimas dcadas, os escritos fizeram re-


afirmar a memria coletiva construda pela Fundao Bienal, em nome de
uma tradio, deixando de lado os esquecimentos ou apagamentos, igno-
rando-os4. Se a lembrana e o esquecimento implicam a seleo de infor-
maes e se essas informaes eleitas para representar a memria coletiva
foram retiradas em grande parte de enunciados presentes em artigos de
peridicos de poca lembrando que o perodo em que esto inseridas as
pesquisas da autora coincidem com o perodo do governo militar brasileiro
e nas prprias publicaes realizadas pela instituio, pode-se deduzir que
o discurso oficial da Fundao Bienal construdo a partir dessas fontes.
Desta forma, por muito tempo, uma parte das pesquisas sobre as Bienais

3
Ver TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paids Asterisco*,
2000(a), p.12.
4
Nos ltimos anos h muitos trabalhos no mbito acadmico que reverteram esse diagns-
tico. Teses, dissertaes e artigos com pesquisas sistemticas de grande flego. Antigamente
os textos escritos sobre as bienais tinham mais um carter informativo ou de crtica jornals-
tica, em grande parte embasados apenas pelos dados retirados de artigos de jornais e peri-
dicos de poca. Isso no uma crtica da autora, apenas uma constatao acerca desse fato.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

452
utilizaram-se de informaes das fontes publicadas e no de fontes prim-
rias. Parecem, ento, guiadas por ecos de uma bibliografia que refora o dis-
curso oficial da Bienal5. O discurso oficial responsvel pelo domnio e pela
manipulao de informaes, da a importncia de trabalhos acadmicos
que contestem os esquecimentos. possvel questionar o poder ditatorial
do criador das Bienais Francisco Matarazzo Sobrinho e seu alinhamen-
to com o governo militar? H rastros da eliminao ou da manipulao de
informaes do passado pela instituio (Fundao Bienal) ou na imprensa
que estava sob censura militar? Tais questes certamente no sero res-
pondidas no decorrer, porm necessrio apont-las para diagnosticar de
que maneira foi construda a memria da Fundao Bienal6, bem como sua
identidade e tradio.
Alm disso, a ratificao da tradio das Bienais de So Paulo tambm
ocorre devido posio ocupada pela mostra dentro de um sistema da
arte institudo. Assiste-se atualmente ao surgimento e disseminao de
Bienais pelo mundo todo, porm, a Bienal de So Paulo ainda conside-
rada pelos estudiosos uma das trs maiores mostras de arte contempornea
existentes, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel. Assim,
mesmo com o aparecimento de grande nmero de Bienais, a Bienal de So
Paulo no perdeu seu status, sua tradio e sua identidade. Todavia, durante
os anos 1970 houve uma crise que caminhou ao lado do questionamento
do sistema artstico ento institudo e da prpria modificao do objeto da
arte. Pode-se definir esse sistema artstico como o espao, o lugar e o trn-
sito da arte contempornea, que foi amplamente questionado por crticos
e artistas a partir de novas propostas artsticas e curatoriais, justamente
na dcada de 1970. Neste perodo, observou-se uma crise institucional da
Fundao Bienal em duas frentes: poltica e artstica. Artistas e intelectuais
desse perodo agregaram questo nacional a luta contra o autoritarismo e
a Bienal estava inegavelmente ligada ao Estado, seja porque a maior parte
do financiamento para realizar o evento provinha dos governos federal, es-
tadual e municipal, seja pelo possvel alinhamento de Ciccillo Matarazzo
com o Estado.

5
Nesse caso no se pode afirmar que seja a Fundao Bienal, pois as Bienais existiam antes
da Fundao. Pode-se afirmar que o discurso oficial dos gestores da Bienal, antes o MAM-
-SP e depois a FB.
6
Idem.

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago

453
Sabe-se, porm, que existem algumas linhas interpretativas a respeito
da memria coletiva, construda sobre os vinte e um anos de regime ditato-
rial brasileiro. Como memria coletiva, a interpretao que prevaleceu foi
aquela que privilegiava a questo da oposio, concebida pelos historiadores
no final da dcada de 1970 e na dcada seguinte, no porque foi imposta,
mas porque supria uma demanda gerada pela insatisfao com o regime,
enfatizando o papel dos movimentos sociais de oposio, contra o regime.
No entanto, segundo Denise Rollemberg, hoje existe uma vasta his-
toriografia sobre a ditadura a partir da qual necessrio desconstruir uma
memria de resistncia no raramente superdimensionada e mitificada.
Mais do que isso:

preciso compreender esses objetos no exclusivamente em campos


bem delimitados de a favor ou contra, mas sim naquilo que o historia-
dor Pierre Laborie chamou de zona cinzenta: o enorme espao entre dois
polos resistncia e colaborao / apoio e mais, o lugar da ambivalncia
no qual os dois extremos se diluem na possibilidade de ser um e outro ao
mesmo tempo.7

Denise Rollemberg aplica a anlise que o historiador Pierre Laborie


faz da sociedade francesa sob o regime de Vichy (1940-44) ao caso da dita-
dura brasileira. Afirma que aqui tambm houve uma zona cinzenta. Parece
pertinente prolongar essa anlise tambm para a posio institucional da
Fundao Bienal em meio a esse perodo.
Alm disso, preciso destacar que, para esta reflexo, tanto o regime
militar quanto a oposio civil valorizavam a cultura, mas por motivos di-
ferentes. Para o governo militar, a cultura servia concomitantemente como
um campo de batalha da guerra psicolgica da subverso e parte da es-
tratgia de reverso das expectativas da classe mdia, dado o esgotamento
do ciclo de crescimento econmico que a beneficiava e garantia seu apoio
ditadura8, enquanto para a oposio, o campo cultural era visto como

7
ROLLEMBERG, Denise. As trincheiras da memoria. A associao Brasileira de Im-
prensa e a ditadura (1964-1974). In Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. (orgs.).
A construo social dos regimes autoritrios. Legitimidade, consenso e consentimento no
Sculo XX. v. 2: Brasil e Amrica Latina. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p.102.
8
NAPOLITANO, Marcos. Vencer Sat s com oraes: Polticas culturais e cultura de
oposio no Brasil dos anos 1970. In. Idem, p.150.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

454
ambiente para articulaes de foras sociais de resistncia e reafirmao de
ideais democrticos.
Portanto, de acordo com o historiador Marcos Napolitano:

O campo da cultura foi valorizado como canal de comunicao entre o Es-


tado para com a sociedade civil e da sociedade consigo mesma, alimentado
por uma conjuntura de fechamento do espao poltico tradicional. E a cul-
tura engajada de esquerda teve um papel central, ainda que contraditrio,
nesse jogo, no qual prticas de cooptao e resistncia no se excluram e
muitas vezes conviviam nos mesmos agentes e instituies socioculturais.9

Alm disso, a dimenso da identidade a servio de instituies ligadas


ao Estado permite que, em muitos casos, cunhe-se a ideia de que identi-
dades bem sucedidas so aquelas destinadas estabilidade, o que cabe nos
preceitos apresentados no perodo que abarca as condies polticas, his-
tricas e artsticas aqui tratadas, seja com o intuito de negar ou confirmar
o alinhamento da Fundao Bienal com o Estado brasileiro autoritrio da
dcada de 1970.

Discurso oficial e Arquivo

Entende-se aqui, por discurso oficial, a maneira em que a histria deve


ser lembrada de acordo com a memria coletiva construda, nesse caso, por
uma instituio, ou pelas exposies Bienais de So Paulo, o que ressalta
a existncia de um passado, mesmo que pouco acessvel, lido por valores
hegemnicos e protocolares.
A Fundao Bienal pretendia construir narrativas que constitussem
sua prpria durao e autoridade por meio de suas exposies comemo-
rativas, catlogos, documentos preservados em seu Arquivo, entre outras
formas de edificar sua identidade, criando sua tradio. responsabilidade
da instituio escolher os valores e seus locutores autorizados. H discursos
que representam a instituio, que ela prpria instituidora dos valores ar-
tsticos e refm de outros valores. Notou-se, por exemplo, durante apesquisa

9
Ibidem.

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago

455
de doutorado, que a Fundao Bienal no parece preocupada em preservar
a memria das Bienais Nacionais10.
Ao edificar uma narrativa especfica, apoiando-se na memria coletiva,
no esquecimento e/ou nas lacunas, fica implcito o apagamento e o recorte
buscado pela Fundao Bienal. A maneira como se encontra a documen-
tao histrica dessas Bienais Nacionais aponta para a questo do esque-
cimento. A documentao referente s Bienais Internacionais encontra-se
identificada como Fundo da Documentao Histrica11, algumas edies j
higienizadas, catalogadas e descritas enquanto a documentao das Bienais
Nacionais permanecia guardada em outro local do Arquivo, sem identifica-
o. Tivemos acesso a esses documentos aps iniciar a organizao da do-
cumentao da Bienal Internacional de 1971, onde encontramos uma srie
de ofcios com o indicativo PB/1970 - Pr-Bienal 1970 (isso ocorreu pois
os ofcios eram arquivados por datas). Como a Bienal de 1971 comeou
a ser organizada em 1970, algumas dessas cartas e ofcios permaneceram
juntos, j que a representao brasileira da Bienal de 1971 foi selecionada a
partir da Pr-Bienal 1970, dado que no havia sido explorado por nenhum
outro pesquisador. A pesquisa foi pensada tambm a partir da ausncia de
registros destas mostras nacionais, principalmente iconogrficos. A partir
de ento, levantou-se a ideia de um esquecimento proposital, ou apaga-

10
Mostras exclusivamente nacionais realizadas durante a dcada de 1970. Ver ZAGO, Re-
nata C O M. As Bienais Nacionais de So Paulo: 1970-76. Tese de doutorado em Artes
Visuais / Unicamp, Campinas, 2013.
11
A guarda e a organizao da documentao histrica da Fundao Bienal, bem como dos
artigos de jornais presentes na hemeroteca do AHWS apontam para uma falta de preocupa-
o com a conservao desse material. Apenas nos ltimos anos que comearam a escrever
projetos para captao de recursos para tratar todo o acervo. Por longa data, o Arquivo His-
trico permaneceu quase invisvel para a instituio. H pouco mais de uma dcada que
se iniciaram esforos para uma poltica adequada de guarda, catalogao e conservao. No
cabe aqui discutir a questo da conservao tcnica desse patrimnio, apenas apontar que
no houve grande preocupao com a sua preservao. Durante a 27a Bienal de So Paulo,
em 2006, a artista Mabe Bethnico concebeu sua obra, ligada ao Museu, a partir da relao
da Fundao Bienal com seu entorno, com sua histria e com seu tempo. Elegeu o Arquivo
Histrico Wanda Svevo como pea fundamental de sua ao artstica, j que percebeu o
desejo da prpria instituio em torn-lo visvel. A artista trabalha suscitando a memria
como material da prpria obra, traz o AHWS para o pblico, desenterra o esquecido e lhe
d novos significados. Essas revelaes possibilitam reverter, pela arte, a condio de esque-
cimento do Arquivo. claro que estamos falando de uma criao fictcia. No entanto, Mabe
utiliza conceitos que tambm so empregados na pesquisa histrica: a verdade, a memria e
a identidade. Cria um Arquivo fictcio construdo pela relao entre a histria e o presente.
Esse trabalho trouxe maior visibilidade para o Arquivo dentro da prpria instituio.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

456
mento desta parte da memria por parte da instituio ou simplesmente
uma lacuna encontrada devido ao fato dessas edies das Bienais Nacionais
configurarem-se como mostras menos relevantes para a instituio e para
a histria da arte nacional.
Dessa maneira, a narrativa aqui construda durante a tese baseada em
um ato de seleo realizado anteriormente. Lidar com isso implica refletir,
como j mencionado anteriormente, sobre o momento artstico-histrico
em que ocorreram estas exposies: o contexto da ditadura civil-militar
brasileira. Alm disso, pensar na fundao do prprio AHWS ajuda-nos a
entender seu papel para a Bienal.

Breve Histrico do Arquivo Histrico Wanda Svevo (AHWS)

Foi poca da celebrao do IV Centenrio da cidade de So Paulo, em


1954, que, por iniciativa de Wanda Svevo ento secretria do presidente
do Museu de Arte Moderna de So Paulo, Francisco Matarazzo Sobrinho
fundaram-se os Arquivos Histricos de Arte Contempornea da Bienal
do Museu de Arte Moderna de So Paulo. Nos moldes do Arquivo His-
trico das Artes Contemporneas da Bienal de Veneza, seu primeiro ob-
jetivo foi o de organizar a documentao gerada pelos eventos bienais, que
inclua: correspondncia com artistas e crticos de arte, fotografias, material
de pesquisa na concepo dos eventos, entre outros. Alm disso, pensou-se
para o Arquivo a funo de se constituir um centro de documentao de
referncia para a pesquisa acerca da produo artstica contempornea.
Segundo a proposta original, redigida por Wanda Svevo:

(...) inserem-se os Arquivos Histricos de Arte Contempornea da Bienal


de So Paulo na funo de estabilizar, em uma coleta contnua de dados,
todo o conhecimento vivo da atualidade artstica, no s em relao di-
reta e imediata com a realizao das Bienais, mas ainda um corolrio
margem desses certames artsticos, na ordem de uma ligao com os acon-
tecimentos paralelos, os museus, as exposies, as iniciativas que ocorreram
no mundo das artes, no pas e no exterior, e que possam interessar nossa
organizao.12

12
Carta-padro redigida por Wanda Svevo em 1955, destinada captao de informaes
para o Arquivo de Arte, traduzida para o ingls, o alemo, o italiano e o francs. Arquivo
Histrico Wanda Svevo da Fundao Bienal de So Paulo.

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago

457
O acervo, que nasceu a partir da iniciativa de Wanda Svevo, comeou
a funcionar em 1954, no ano da comemorao do IV Centenrio da ci-
dade de So Paulo. Os Arquivos Histricos foram oficializados em 1955
e tinham, como principal objetivo prtico, de acordo com o historiador e
antigo coordenador do AHWS, Dalton Sala:

...custodiar a documentao produzida no trmite de realizao dos even-


tos Bienais: o registro burocrtico das atividades institucionais, inclusive,
e, principalmente, a documentao resultante do contato com os artistas
expositores, acrescida das informaes que fosse possvel reunir sobre esses
e outros artistas: assim teve incio uma experincia pioneira na Amrica-
-Latina.13

Ainda no ano de 1955, Wanda Svevo redige uma carta padro, des-
tinada captao de informaes para o Arquivo de Arte, enviada com
variaes, de acordo com as circunstncias. Na carta, a secretria de Ciccillo
Matarazzo escreve:

...a Bienal de So Paulo iniciou, j no ano passado, a organizao dos Ar-
quivos Histricos de Arte Contempornea, que devero constituir a docu-
mentao mais completa e atualizada neste Continente, sobre a atividade
dos artistas de todos os pases, oferecendo ao mesmo tempo amplo material
ilustrativo para consulta aos jovens, critica, e a todos os Interessados.
O esquema da organizao compreende uma parte informativa, outra
bibliogrfica e de documentao e outra ainda ilustrativa.14

No ano de 1962, quando a Bienal separou-se do MAM, os Arquivos


permaneceram ligados recm-criada Fundao Bienal. E nesse mesmo
ano, com a morte de sua fundadora, passaram a ser chamados de Arquivos
Histricos Wanda Svevo.
O reconhecimento do AHWS como o mais importante acervo do-
cumental referente arte moderna e contempornea da Amrica Latina
levou o CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico,
Arqueolgico, Artstico e Turstico do Estado de So Paulo) a tombar o
Arquivo e seu acervo, atravs de Resoluo da Secretaria de Cultura do Es-

13
Revista USP, So Paulo, n.52, dez/fev, 2001-2002, p. 131.
14
Idem, p. 130

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

458
tado de So Paulo, SC-16, de 13 de outubro de 1993. Em 1996, o Arquivo
foi reinstalado no lugar que atualmente ocupa, no primeiro andar do Pavi-
lho da Bienal, em um espao de 184 m, planejado para abrigar seu acervo
de documentos, com parte de suas instalaes financiadas pela FAPESP.
Atualmente, o denominado Arquivo Histrico Wanda Svevo (AHWS),
abriga em seu acervo, como no iderio original proposto por Wanda Sve-
vo, tanto documentos textuais e iconogrficos resultantes da preparao e
organizao das mostras realizadas pela Fundao Bienal, quanto aqueles
gerados por estes mesmos eventos. Cartazes, fotografias, correspondn-
cias, publicaes livros, revistas, peridicos, catlogos constituem esta
documentao que, aps o trmino de cada evento, segue para o AHWS,
tornando-se til queles que dela necessitem.
H ainda, no Arquivo Histrico da Fundao Bienal, uma hemerote-
ca com recortes de jornais de todas as edies das Bienais Internacionais
de So Paulo e pastas de artistas participantes dos eventos Bienais. Neste
fundo, encontram-se recortes de jornais, pequenos catlogos e folders, foto-
grafias e projetos de obras, fichas de inscries e currculos de artistas.
relevante mencionar que no Arquivo Histrico tambm h uma
biblioteca especialmente criada para a organizao, pesquisa e preparao
das mostras realizadas pela Fundao Bienal. Este acervo nico, pois
fruto de pesquisas curatoriais efetuadas desde os primeiros eventos execu-
tados pelo MAM, do final da dcada de 1940, at os dias atuais. H, ainda,
alguns volumes que foram adquiridos a partir de doaes de artistas que
participaram das Bienais. Podemos identificar pelo menos trs conjuntos
importantes na biblioteca: as publicaes da Fundao Bienal de So Paulo
(catlogos de todos os eventos bienais e outras mostras organizadas pela
instituio, das quais podemos citar a representao brasileira na Bienal de
Veneza, a exposio Tradio e Ruptura, a Mostra do Redescobrimento, entre
outros); peridicos especializados na crtica de arte e arquitetura; e livros e
catlogos de referncia sobre artistas e temas tratados nos eventos Bienais
de So Paulo.
Alm disso, h o Fundo Histrico Ciccillo Matarazzo, onde guarda-
da a documentao pessoal (documentos textuais e iconogrficos) do fun-
dador da instituio.
Um arquivo enquanto instituio foi definido por Antonia Heredia
Herrera (2007) como uma unidade de gesto de um conjunto de documen-

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago

459
tos, responsvel por seu armazenamento e sua preservao. De acordo com
a autora, inquestionvel a interdependncia entre arquivo e documento.
Sem o segundo, o primeiro no pode ser constitudo, pois, ainda que um
Archivo como institucin se reconoce por su fundacin/creacin, por su titulari-
dad, por su tipologia, por su contenido documental, por sus instalaciones, por sus
recursos, por sus servicios15, o contedo armazenado que acaba por defini-
-lo. A explicao acima guia muitas das vises clssicas do significado da
categoria arquivo e do campo semntico que a rodeia, abreviando-a, por ve-
zes, a uma forma vista, a uma espacializao, metfora ou representao,
em detrimento de uma reflexo sobre a sua estrutura.
Para refletir sobre essa questo, ser retomada a noo de arquivo colo-
cada por Michel Foucault em Arqueologia do Saber (2008), texto no qual o
filsofo pauta o fundamento do arquivo para alm do status de documento,
na existncia do que ele denomina de enunciado. O arquivo, em Foucault,
o conjunto de discursos efetivamente pronunciados16. Esses discursos,
por sua vez, so formados a partir de grupos de enunciados, que no se
restringem ao documento ou ao objeto, mas esto imbricados neles (nas
falas que produzem, na simbologia que carregam). Um enunciado ento
um tomo de discursos possveis. Seu aparecimento ou permanncia como
elemento de um discurso (e tambm o prprio discurso), s determinado
pelo arquivo. A este no cabe a preservao, mas uma permisso formao
de existncias discursivas, mesmo aquelas outrora suspensas nos limbos
ou no purgatrio da histria17. Trata-se do espao (no necessariamente
fsico) onde os discursos so efetivamente criados. Em outros termos, ele
que mantm as coisas ditas num campo enunciativo.
Nas palavras de Foucault,

O arquivo , de incio, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o apa-
recimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo
, tambm, o que faz com que todas as coisas ditas no se acumulem inde-
finidamente em uma massa amorfa, no se inscrevam, tampouco, em uma
linearidade sem ruptura e no desapaream ao simples acaso de acidentes
externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas
15
HEREDIA HERRERA, Antonia. Qu es un achivo? Exposicin y Conferencias Inter-
nacional de Archivos (Excol07). Bogot, 23 al 27 de Mayo, 2007, pp. 03.
16
CHAGAS, Pedro Dolabela; PEREIRA, Ingridd M. L. Arquivo e Memria: uma anlise
dos conceitos de arquivo segundo Michel Foucault e Roberto Gonzalez Echevarra. Vitria
da Conquista: Flio Revista de Letras, v. 3, n. 2, jan./jun. 2011, pp. 323.
17
Ibidem.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

460
com as outras segundo relaes mltiplas, se mantenham ou se esfumem
segundo regularidades especficas; ele o que faz com que no recuem no
mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estre-
las prximas venham at ns, na verdade de muito longe, quando outras
contemporneas j esto extremamente plidas.18

De acordo com Foucault, o arquivo mantm sua ntima relao com


o passado, mas no se limita ao lugar reservado guarda dos documentos
pertencentes memria coletiva. O arquivo, nesta perspectiva, antes um
espao de conhecimento, de visibilidade de um determinado saber junto ao
qual so desenvolvidos discursos, prticas e mecanismos de organizao, de
disposio e de autorizao desse mesmo saber.19
Porm, como j destacamos, sabe-se que o AHWS formado por fon-
tes histricas que, por serem oficiais, podem ter sido previamente selecio-
nadas para serem guardadas.
A relao entre arte e poltica sempre um jogo que requer ateno es-
pecial. A trama das aes s percebida pela anlise de um conjunto de do-
cumentos formado por declaraes oficiais, correspondncia institucional
e privada, fotografias, artigos publicados na imprensa e estudo das obras.
Nesse caso, os documentos guardados no AHWS possibilitam diversos dis-
cursos que podem fabricar diferentes histrias. De acordo com Dalton Sala,
historiador e antigo coordenador do Arquivo, o contedo do arquivo:

...permite traar a histria da instituio, e, constantemente, esclarecer


o desenvolvimento da arte do sculo XX, inclusive porque a Fundao
Bienal de So Paulo, nascida de um mpeto pessoal de Ciccillo Matarazzo
que era tambm plena expresso das necessidades ideolgicas de seu tempo,
uma das mais importantes instituies internacionais no terreno das
artes plsticas.20
Por outro lado, ao situar sociologicamente a histria da instituio,
tornou-se necessrio refletir sobre as escolhas dessa Fundao, que desde a
sua criao participou da disputa entre as formas totalitrias e democrticas
da cultura, e no apenas no campo da cultura, mas tambm no poltico.

FOUCAULT, Michel (2008).Psychiatric power: lectures at the Collge de France, 1973-


18

1974. New York: Picador.p.147.


19
FOUCAULT, M.(2002). A arqueologia do saber. trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense Universitria, 6 ed.
20
SALA, Dalton. Revista USP, So Paulo, n.52, dez/fev, 2001-2002, p. 132.

Renata Cristina de Oliveira Maia Zago

461
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CHAGAS, Pedro Dolabela; PEREIRA, Ingridd M. L. Arquivo e Mem-
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ZAGO, Renata C O M. As Bienais Nacionais de So Paulo: 1970-76.
Tese de doutorado em Artes Visuais / Unicamp, Campinas, 2013.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

462
arte sacra: narrativas e colees

El Mecenazgo de Monseor Eyzaguirre


y la reforma del Arte Sagrado en Chile

Fernando Guzmn
Doctor en Historia del Arte, acadmico de la Universidad Adolfo Ibez.
Valentina Ripamonti
Magster en Historia del Arte, investigadora independiente.

El arte y la arquitectura religiosa de Santiago sufrieron una profunda


transformacin durante el siglo XIX. Se construyeron numerosos templos
nuevos y se renovaron los existentes, hasta tal punto que, al finalizar la
centuria, se observaban slo retazos del barroco hispanoamericano en
la ciudad1. Una de las personas que habra impulsado este proceso fue
Monseor Jos Ignacio Vctor Eyzaguirre, quin, en sintona con los
criterios artsticos del papa Pio IX, e influido por los intelectuales catlicos
europeos del perodo, como Montalambert o el Cardenal Wiseman,
promovi formas que expresaran -segn su sentir- el carcter de la fe y la
dignidad de la liturgia.
Eyzaguirre naci en el ao 1817, siendo ordenado sacerdote el ao
1840. A partir del ao 1852 realizar extensos viajes por Amrica, Europa,
Asia y frica, interrumpidos por estadas prolongadas en algunas ciudades,
particularmente Roma, Pars y Santiago. Sin haberlo planificado se
transformar en un puente entre el Arzobispado de Santiago y la Iglesia
Universal; su conocimiento del estado de los asuntos eclesisticos en todo
el mundo era profundo y fruto de una experiencia directa, hablaba de lo que
haba visto. Estos recorridos reforzaron ciertas ideas que se transformaran
en sus banderas de lucha: la conveniencia de liberar a la Iglesia
-particularmente en Amrica- de la injerencia de los gobiernos locales,
la necesidad de purificar la devocin popular de prcticas inadecuadas y
las ventajas de promover nuevas formas artsticas y arquitectnicas -ms
cercanas a la tradicin clsica- a la hora de concebir nuevas iglesias o
renovar las antiguas, son algunas de las concepciones que parecen guiar su
actuar en los aos posteriores. Una buena parte de este viaje qued recogido
en su libro El catolicismo en presencia de sus disidentes, publicado en Pars.
1
Cfr. Guzmn, Representaciones del Paraso. Retablos en Chile, siglos XVIII-XIX, pp. 121-127.

463
El ao 1855, estando en Roma, Eyzaguirre le propuso a Pio IX fundar
un seminario para sacerdotes latinoamericanos en Roma, con el fin obtener
un clero con formacin homognea y en sintona con el Sumo Pontfice.
Revisada la propuesta se acord la conveniencia de realizar un diagnstico
ms preciso de la situacin eclesial en cada pas, entablar relaciones con los
obispos correspondientes, recolectar fondos para el futuro establecimiento
y reclutar estudiantes para el futuro seminario romano. Inicia as su viaje
de reclutamiento y diagnstico en 1856, recorriendo Brasil, Uruguay,
Argentina, Paraguay, Bolivia, Per, Ecuador, Colombia, Venezuela, Mxico
y Cuba, finalizando en 1858. Luego, al retornar a Roma, entrega un informe
de lo realizado, el que debi ser evaluado positivamente, pues, en septiembre
de 1858 se creaba oficialmente el Colegio Po Latinoamericano.
Las apreciaciones recogidas en este viaje por Latinoamrica fueron
publicadas en su obra Los intereses catlicos en Amrica, editado en Pars
el ao 1859. En este libro es quiz donde mejor se perciben sus ideas
sobre la necesidad de purificar las formas de devocin, manifestando su
reprobacin al describir el sincretismo de ciertas prcticas heredadas del
perodo colonial. Tambin se comienza a mostrar de manera ms evidente
su visin sobre el arte, refirindose concretamente a la funcin que deba
cumplir en la promocin de una piedad ms ilustrada, alejada de la piedad
sensible que facilitan las obras barrocas.
Un primer aspecto que permite comprender, al menos en parte, las
perspectivas artsticas de Eyzaguirre, son sus opiniones respecto de las
devociones populares y de ciertas costumbres habituales en la fiestas religiosas
del perodo colonial y que an estaban vivas en muchas regiones de Amrica.
Es interesante en este sentido recoger las consideraciones que dej escritas
respecto de una procesin que pudo observar en el puerto de Iquique: Una
piedad ms ilustrada trabajara por desterrar de tales ceremonias todo lo que
les acompaa de profano y repugna a la fe que las inspira y las dirige2. No es
posible, en este caso, conocer con exactitud las expresiones de religiosidad
popular que ofenden a Eyzaguirre; sin embargo, es posible suponer que
diversos aspectos de las prcticas devocionales coloniales -bailes, mscaras
y otras manifestaciones- le pareceran del todo inadecuadas3.
2
Eyzaguirre, El catolicismo en presencia de sus disidentes, tomo I, p. 4.
3
El espritu modernizador o reformista de Eyzaguirre tiene muchas aristas - no desarrolladas
en este trabajo- que deben ser entendidas en el contexto de las polticas impulsada por Pio
IX, entre las que se pueden mencionar su amplia poltica de obras pblicas y la reforma a los
regulares. Cfr. Spagnesi, Edilizia romana nella seconda met del XIX secolo (1848-1905), pp.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

464
Su extenso viaje por Amrica, realizado entre 1856 y 1858, parece ir
acrecentando su aversin por estas manifestaciones de religiosidad popular
tan alejadas de lo que l denomina una piedad ilustrada, escandalizndose
especialmente de la desidia de los sacerdotes que no ponen remedio a estos
abusos. En el registro de su paso por Brasil recoge varias observaciones en
este sentido y se demuestra sinceramente preocupado:Yo he visto la del
Espritu Santo en Ro de Janeiro, en Santos y en otras ciudades ms o menos
importantes del Imperio, y en todas no encontr otra cosa que una mezcla
de religin y de supersticin4. Vuelve sobre lo mismo al recordar la fiesta del
Nazareno en Salvador de Baha: confieso que no me ha dejado recuerdos
de edificacinTodos los alrededores de aquella iglesia retumbaban con
repetidos truenos de plvora y de tamboriles5.
En su informe de Ecuador vuelve a aparecer el tema de las fiestas
populares al describir las peculiaridades de la solemnidad de Corpus Christi
en Tancunga: Con este motivo muchos de los indgenas se disfrazaban,
quien de ngel, quien de demonio y quien de gigante o de turco, y de este
modo saltan y danzan por las calles y los caminos, y especialmente en los
atrios de los templos y delante de las procesiones. Los indgenas conservan
a este respecto algunas supersticiones groseras Deber es de los prrocos
a cuyo cuidado estn confiados esos individuos ilustrar y ennoblecer sus
sentimientos religiosos con los medios que presenta la religin misma6.
Es tal la impresin que debieron causar en Eyzaguirre estos resabios
de las fiestas barrocas y su sincretismo religioso que, muchos aos despus,
al redactar sus Instrucciones para los sacerdotes, parece recordar lo que pudo
ver en Baha o Tacunga que nada intervenga ni en el templo, ni en las
procesiones que se celebran fuera de este, que pueda aparecer ridculo, ni
menos digno de la grandeza del objeto al que se refieren. En otros tiempos,
en que la sencillez de las costumbres y una piedad ms fervorosa sola
explicar su fe y su devocin de un modo sensible y material, podan muy
bien intervenir en las solemnidades de la Iglesia ciertos aparatos que hoy
son chocantes y repugnan con las costumbres de estos tiempos. Tales son,

15-32. En lo relativo a los efectos en Chile de la intervencin en los institutos de regulares


cfr. Marcial Snchez, rdenes religiosas y congregaciones, en Marcial Snchez, Historia
de la Iglesia en Chile, los nuevos caminos : la Iglesia y el Estado, Santiago, Tomo III, pp. 57-85.
4
Eyzaguirre, Los intereses catlicos en Amrica, vol II, p. 74.
5
Ibid, p. 71.
6
Ibid, p. 11.

Fernando Guzmn y Valentina Ripamonti

465
por ejemplo, las danzas delante del Santsimo Sacramento, las mscaras
con que vestidos hombres, mujeres y muchachos de ngeles o demonios
iban ac y all en el Corpus Domini; y otras tales como stas, que por
cierto repugnan a la verdadera devocin, y sirven de cobertor en no pocas
ocasiones a los ms detestables abusos7. Es interesante observar el contraste
que Eyzaguirre traza entre la devocin sensible propia de otros tiempos y
la piedad ilustrada que ahora debe primar. Se trata de hacer entender a
los futuros sacerdotes la necesidad de promover las formas modernas de
religiosidad, para las que, podemos suponer, se requiere un nuevo arte y una
arquitectura renovada.
En el registro escrito de su viaje por Amrica demuestra cierto inters
por la arquitectura colonial americana, sin embargo, en varias ocasiones
hace referencia a la imperfeccin acadmica de estas construcciones; al
referirse al templo de Santo Domingo en Popayn, por ejemplo, seala
que este edificio del siglo XVIII, como muchos otros del continente, sin
seguir estrictamente las reglas del arte ni someterse a sus prescripciones,
produce sin embargo un conjunto que inspira en el alma recogimiento y
devocin8. Por el contrario, al comentar la Catedral de Bogot, edificio de
clara inclinacin clasicista diseado por Domingo de Petrs y construido
entre 1807 y 1823, manifiesta una admiracin sin reservas: una de las ms
esplndidas de la Amrica espaola9.
Especialmente significativos son sus comentarios referentes al templo
de la Recoleta Dominica de Santiago, en ese momento en construccin;
luego de alabar diversos aspectos de la vida conventual se detiene a sealar:
Embellecen la capital de la Repblica con el templo ms suntuoso que
hasta hoy se ha construido en el continente americano10. La iglesia
diseada por el italiano Eusebio Chelli, inspirada en el proyecto historicista
de reconstruccin de la Baslica de San Pablo Extramuros, corresponde
plenamente a las reglas y prescripciones del arte que Eyzaguirre echa de
menos en el templo de Popayn.
Su predileccin por el clasicismo purista11 de la Recoleta Domnica lo
7
Eyzaguirre, Instrucciones para los sacerdotes, p. 252-253.
8
Eyzaguirre, El catolicismo en presencia de sus disidentes, tomo II, p.88.
9
Ibid, p. 218.
10
Ibid, p. 416.
11
El purismo es un movimiento que rene a arquitectos y artistas germanos e italianos en
la bsqueda de un arte cristiano purificado de las influencias del tardo renacimiento y el

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

466
pone en perfecta sintona con las formas que promueve en Roma el papa
Pio IX, principal impulsor de la restauracin de la Baslica Ostiense12. Las
obras que Eyzaguirre envo desde Roma y que han podido ser identificadas
fueron concebidas bajo unos principios comunes: respeto por la tradicin
clsica, predileccin por las formas artsticas del primer renacimiento,
inters por el arte paleocristiano, utilizacin selectiva del lenguaje pictrico
del barroco. Los altares, pinturas y esculturas que Eyzaguirre adquiere son
el fruto del trabajo de artistas que se vinculan, directa o indirectamente, con
las premisas artsticas del pontfice.
Estando en Roma, en el ao 1855, Eyzaguirre encarg varias obras
artsticas, entre ellas cinco altares para diferentes iglesias de Santiago. La
informacin documental permite saber que uno iba destinado a la Catedral
y otro a la iglesia de Santo Domingo, desconocindose, por ahora, el lugar
al que llegaron los otros tres. El de Santo Domingo debi daarse de
manera irreversible en el incendio que afect a ese templo el ao 1963.
El altar de la Catedral, por el contrario, se encuentra actualmente en el
primer arco de la nave lateral norte. El Arzobispo Valdivieso escribe una
carta agradeciendo al benefactor la generosa donacin, texto en el que
destaca el hecho de que ser el primer altar de mrmol que va a poseer
esta Iglesia13. El contraste entre los retablos barrocos de influencia bvara
que an ornamentaban el templo metropolitano y la simpleza acadmica
del nuevo altar debieron saltar a la vista. Las complicadas coronaciones
con ngeles en vuelo y rompimiento de gloria fueron reemplazados por un
discreto frontn interrumpido. Las columnas ornamentadas y con capiteles
en diagonal se podan comparar con los fustes lisos del nuevo altar; en
definitiva, la mesura clsica sustitua el dinamismo general que gobernaba

barroco. El texto fundacional de este fenmeno es: Bianchini, Dell purismo nelle arti. Se
trata de un manifiesto suscrito por artistas del crculo ms prximo a Pio IX como el pintor
Minardi y el escultor Tenerani.
12
Es interesante reconocer que no se trata de una preferencia esttica demasiado original,
otros chilenos como Benjamn Vicua Mackenna, quien, respecto del edificio de san Pablo
extra muros afirma es una esplndida iglesia de estilo moderno como la Magdalena de
Pars. Vicua Mackenna, Pginas de mi diario durante tres aos de viaje, p. 244.
13
Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, carta del Arzobispo Valdivieso a Monseor
Eyzaguirre, f. 105. El altar debi llegar estropeado a Santiago, pues se conserva un contrato
de 1870 entre Eyzaguirre y el seor Blanchetau para arreglar y arma un altar en la Catedral;
sera el dedicado actualmente a San Francisco de Sales, el primero de la nave lateral norte.
Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, f. 145, Contrato.

Fernando Guzmn y Valentina Ripamonti

467
la concepcin de los antiguos retablos14. No menor sera el impacto que
producira la comparacin entre las antiguas imitaciones de mrmol
pintadas sobre madera y la suntuosidad y brillo de la estructura de piedra
que llegaba desde Roma. No se trataba de una novedad absoluta; el altar
de mrmol diseado por Eusebio Chelli para la Recoleta Domnica haba
desatado tres aos antes numerosas muestras de admiracin, muchas de
ellas recogidas en la prensa. Pero, el regalo de Eyzaguirre vena a extender a
la Catedral la modernidad que lucan los dominicos15.
Los cinco altares y otras numerosas obras que Eyzaguirre envo desde
Roma y otras ciudades europeas, se pueden interpretar como verdaderas
semillas sembradas en Santiago, una ciudad en la que los templos an
conservaban su ornamentacin barroca. El envo de obras fue para
Eyzaguirre una actividad constante a lo largo de sus viajes, como se puede
comprobar a travs de la revisin de su epistolario. Se puede apreciar que l
mismo se hizo cargo de las contrataciones de artistas, pagos y traslados de
los cajones con las obras hacia nuestro pas, e incluso, en algunas ocasiones,
se preocup personalmente de la instalacin de la pieza en su lugar
definitivo. Como un interesante ejemplo de estos contratos llevados a cabo
por Eyzaguirre para asegurar la realizacin de las obras encomendadas, se
pueden citar los documentos que firm con los artistas Isidoro y Francisco
Blancheteau para la instalacin y reparacin de los altares destinados a la
Iglesia de Santo Domingo y a la Catedral de Santiago16.
En el mbito de la pintura se puede mencionar otro obsequio de
Eyzaguirre a la Catedral, cuyas caractersticas se pueden conocer por medio
de la documentacin. Se trata de un lienzo a que hace referencia una carta
de Monseor Valdivieso, fechada el 31 de diciembre de 1858: el hermoso
cuadro de la cena de N.I.J que ha hecho ud trabajar a un artista acreditado,
para colocar en el altar de mrmol que ud obsequi a nuestra iglesia
catedral17. La pintura fue encargada por Eyzaguirre a Ignazio Tirinelli,
artista que ejecut varias pinturas para la iglesia de Santa Mara Asunta

14
Cfr. Guzmn, op. cit: pp. 47-67.
15
Cfr. Guzmn, LArte di Roma nel Cile del XIX secolo. Un elemento delle strategie di
rappresentazione dellidentita nazionale. Il caso degli altari.
16
Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, contrato firmado en Santiago el 11 de noviembre
de 1847, f. 147.
17
Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XII, carta de Monseor Valdivieso a Eyzaguire del 31
de diciembre de 1858, f. 552.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

468
en Segni18 y del que se conserva un obra en el Museo Nacional de Bellas
Artes19. El contrato entre Eyzaguirre y Tirinelli fija con mucha precisin
la caracterstica de la obra: Il sig. Ignazio Tirinelli si obliga a dipingare
su di una tela alta metre tre meno due centimetri, e largo metri due e 14
centimetri, la cena di nostro Signori cogli apostoli, do presto un cartone
dal artista elegitto, e dal comittente aprovatto, meno alcuna variazione nell
espretione delle teste e dell architettura del fondo20. No ha sido posible
encontrar esta obra, sin embargo, a la luz de las obras de Tirinelli que se
conservan en Segni y en el Museo Nacional de Bellas Artes se puede afirmar
que el artista presenta el sello purista de Tomasso Minardi, quien fuera
su maestro en la Academia de San Lucas en Roma21. Debe sealarse que
Minardi era consejero de Pio IX en asuntos artsticos y que su influencia
en la Roma de mediados de siglo era muy amplia22. Eyzaguirre, por tanto,
est eligiendo a un pintor que est en perfecta sintona con los lineamientos
artsticos de un cercano colaborador del pontfice.
Otra obra relevante encargada por el sacerdote chileno es la escultura
de su to Monseor Jos Alejo Eyzaguirre que se encuentra en la nave
lateral sur de la Catedral de Santiago. Se trata de una representacin en
postura de orante de tamao natural realizada por el escultor milans
Giovanni Strazza23. El contrato firmado con el artista precisa algunas de
las caracterstica que la obra debe tener: Il signor Strazza dovra esquire in
marmo di Carrara de la qualita della seconda clase, una statua inginocchiatta
di grandeza poco prise de livero, pappresca tante S.E. Revma. Monsignor
D. J. de Eyzaguirre, que fu eletto Archivescovo di Santiago del Chili,
il cui modelo in creta e stato gia presso que abbozzato, ed aprovato dal
comitente, a la qual statua dovra essere sottoposta una conveniente base
con anloga iscrizione in quanto alla somiglianza del ritrato non dovra

18
Valenzi, Monseor Lorenzo Valenzi e la cappella di San Giovanne nella chiesa di Santa Mara
Assunta a Segni.
19
La obra se titula Soldado de la Guardia Nacional Romana de 1847 y tiene el nmero de
inventario E-427.
20
Fondo Jaime Eyzaguirre, volumen XXVI, contrato firmado en Roma el ao 1855, f. 97.
21
Tirinelli fue premiado en el concurso acadmico de 1840. Betti, Discorso sugli atti del
gran concorso Balestra de Belle Arti.
22
Capitelli, Mecenatismo pontificio e borbnico alla vigilia dellUnita, pp. 36-39.
23
Ibid, pp. 178-179.

Fernando Guzmn y Valentina Ripamonti

469
lartista allontanarsi da un daguerrotipo che gli a stato remesso24. La obra
presenta un grado de verismo que sorprende, particularmente al observar la
morbidez del cojn, el carcter del rostro y los pliegues del hbito. Strazza
haba recibido la formacin naturalista propia de la escuela de Miln; sin
embargo, su paso por la Academia de San Lucas y su trabajo con el escultor
Tenerani lo pusieron en la rbita del purismo y de aquellos creadores
cercanos a la orientacin pontificia25.
Es importante destacar que no se trata solamente del envo de algunas
piezas significativas, como lo son los altares de mrmol, la escultura de
Strazza o la pintura de Tirinelli; se podra afirmar que la voluntad del
sacerdote es sembrar Santiago con obras europeas, principalmente romanas,
asegurando as el arraigo de las nuevas formas26. A su muerte, el ao 1875,
decenas de obras romanas comenzaban a modificar el aspecto de las iglesias
de Santiago, el barroco local perda terreno frente al nuevo modelo artstico
que proyectaba eficazmente la poltica de Po IX en la periferia del mundo
catlico.
A la luz de los antecedentes disponibles se puede afirmar que para
Eyzaguirre el encargar, supervisar y despachar obras artsticas romanas, o
de otros orgenes, para Chile fue una actividad permanente; se trata de un
intenso flujo de objetos que comienza el ao 1855 y se sostiene en forma
estable por lo menos hasta 1870. Al analizar las caractersticas estticas
de algunas de las obras enviadas, se puede concluir que ellas corresponden
al tipo de arte y arquitectura que Pio IX promueve. No se trata del envo
de obras europeas por el slo prestigio que su origen les puede dar, sino
que existira una inclinacin esttica precisa, una preferencia por una
produccin clasicista que a mediados del siglo XIX resulta ser, al menos en
Europa, totalmente anti moderna.
Toda esta preocupacin por encargar y enviar obras, con los gastos
econmicos que esto implica, obedecen a un propsito bien definido:
24
Fondo Jaime Eyzaguirre, Volumen XXVI, contrato firmado en Roma el 14 de enero de
1856, f. 96..
25
Mazzocca, Da Oriente a Occidente: nuovi protagonista sulla scena romama, en Maest
di Roma da Napoleone allUnit dItalia. Universale ed Eterna. Capitale delle Arti, p. 373.
26
La revisin del fondo Jaime Eyzaguirre ha sido selectiva, un rastreo completo de la
documentacin permitira, probablemente, formarse una idea an ms precisa del volumen
y la naturaleza de los envos. Otra va de indagacin interesante se podra realizar en los
archivos de las instituciones religiosas que aparecen recibiendo obras por intermedio de
Eyzaguirre, como las Monjas Claras, los agustinos y los dominicos.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

470
promover una reforma del arte sagrado que permita reemplazar las
soluciones del barroco hispanoamericano por obras academicistas que se
ajusten a las verdaderas reglas del arte. Para Eyzaguirre el arte colonial
promovera una devocin sincrtica y emotiva y sus formas muchas veces
seran contrarias al decoro que debe imperar en la casa de Dios. El arte
producido en Roma sera apropiado para impulsar una piedad ilustrada y
poseera la solemnidad adecuada para servir de marco a la liturgia catlica.
La renovacin del arte sagrado y la bsqueda de un autntico
arte cristiano, purificado de elementos espurios, no es una idea original
de Eyzaguirre. Se trata de un movimiento europeo que tiene diversas
manifestaciones durante el siglo XIX. Los ensayos del Cardenal Wiseman,
los escritos de Montalembert y la poltica artstica de Po IX apuntan en esta
direccin. La bsqueda de unas formas artsticas que sirvan verdaderamente
a la piedad y a la liturgia es un propsito en el que Eyzaguirre no est slo,
lo peculiar es que la mayora de las obras resultantes de este proceso son
juzgadas en Europa como tradicionalistas, mientras en Chile, como en el
resto de Latinoamrica, sern la imagen de una iglesia moderna que se
sacude las rmoras de la tradicin colonial.

Bibliografa

Betti, S.: Discorso sugli atti del gran concorso Balestra de Belle Arti.
Giornale Arcadico, n 271, 272, 273. 1842.
Bianchini, A.: Dell purismo nelle arti. Roma. 1843.
Capitelli, G.: Mecenatismo pontificio e borbnico alla vigilia dellUnita. Roma,
Fondazione Roma Viviani Editore. 2011.
Eyzaguirre, J.I.V.: El catolicismo en presencia de sus disidentes. Pars, Librera
de Garnier Hermanos, Pars. 1857.
Eyzaguirre, J.I.V.: Instrucciones para los sacerdotes. Roma, Imprenta Polglota.
1875.
Eyzaguirre, J.I.V.: Los intereses catlicos en Amrica. Pars, Liberara de
Garnier Hermanos. 1859.
Guzmn, F.: Representaciones del Paraso. Retablos en Chile, siglos XVIII-
XIX. Santiago, Editorial Universitaria. 2009.

Fernando Guzmn y Valentina Ripamonti

471
Guzmn, F.: LArte di Roma nel Cile del XIX secolo. Un elemento delle
strategie di rappresentazione dellidentita nazionale. Il caso degli altari,
en Capitelli, Grandeso y Mazzarelli, Roma fuori di Roma. Lesportazione
dellarte moderna da Pio VII allUnita (1775-1870), Roma, Campisano
Editore, 2012.
Mazzocca, F.: Da Oriente a Occidente: nuovi protagonista sulla scena
romama. Maest di Roma da Napoleone allUnit dItalia. Universale ed
Eterna. Capitale delle Arti. Roma, Electa. 2003. Pp. 357-374.
Snchez, M.: rdenes religiosas y congregaciones. Snchez, M.: Historia
de la Iglesia en Chile, los nuevos caminos: la Iglesia y el Estado. Santiago,
Editorial Universitaria. 2011.
Spagnesi, G.: Edilizia romana nella seconda met del XIX secolo (1848-1905).
Roma, Dapco. 1979.
Valenzi, V.: Monseor Lorenzo Valenzi e la cappella di San Giovanne nella
chiesa di Santa Mara Assunta a Segni. Documenti di Storia Lepina N
58, Segni, Associazione Artisti Lepini. 2010.
Vicua Mackenna, B.: Pginas de mi diario durante tres aos de viaje.
Santiago, Imprenta del Ferrocarril. 1856.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

472
arte sacra: narrativas e colees

Da apresentao icnica representao histrica


de So Francisco de Assis

Sintia Cristina da Cunha


Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Histria da Arte na Universidade
Federal de So Paulo (UNIFESP). Bolsista FAPESP

Ao observarmos as variaes da figura de So Francisco de Assis a partir


do sculo XIII, um percurso pela Histria da Arte pode ser trilhado atravs
destas imagens. Passando os olhos, mesmo que brevemente, pelas inmeras
obras dedicadas retratar o santo e sua vida, percebemos referncias que
vo da retratstica romana e arte bizantina esttica do Kitsch1. Esta
ltima, expresso da industrializao e da produo/reproduo em massa
de imagens, apenas repetiu, de forma mais veloz e intensa, um fenmeno
ocorrido na arte ocidental desde a Baixa Idade Mdia: o da proliferao
de imagens representativas de So Francisco de Assis.
So muitos os motivos para tamanha popularidade da figura de So
Francisco. Um deles, pode ser atribudo repercusso do interesse pelo
mundo e pela individualidade em voga na poca, interesse este que se
afinava perfeitamente ao sentimento renovado dos franciscanos pela
natureza e pelo homem2. Outro motivo, o fato destas imagens, assim
como outros meios que propagavam a santidade de Francisco,
serem usadas como instrumento que fortalecia a poltica reformista do
papado nas regies da Itlia, onde o Imprio era hegemnico na primeira
metade do sculo XIII. Isto foi muito bem analisado por Andr Miatello3
no que se refere aos textos relacionados com a memria e o culto dos santos
produzidos na poca. Segundo o autor, esta retrica religiosa se prestava em
muito pacificao das cidade beligerantes nas revolues comunais. Tal
1
BRANDO, Angela. A Imagem de So Francisco na Arte. Projeto para Recuperao da
Histria da Imagem de So Francisco encontrada no Rio Iguau. Curitiba: Petrobrs, 2000-
2002.
2
Ibid.
3
MIATELLO, Andr Luis P. Santos e pregadores nas cidades medievais italianas:
retrica cvica e hagiogrfica. Belo Horizonte: Fino Trao, 2013.

473
pacificao era um dos atributos do legado papal de Gregrio IX4. Embora
a pesquisa do autor esteja centrada no relato da vida dos santos, isto , na
hagiografia, vemos que ela se adqua perfeitamente produo de imagens
como as de So Francisco de Assis. No se trata, naturalmente, de
uma conformao casual entre texto e imagem, pois ambos eram usados em
funo dos interesses eclesisticos que relutavam em absorver a proposta
inovadora e revolucionria de Francisco para a Igreja.
Assim como Miatello, a autora Chiara Frugoni utiliza a hagiografia
como fonte nos estudos desse momento histrico, contudo ela no
deixa de se ocupar tambm com a iconografia acerca do assunto, o que
contribui para o surgimento de uma leitura indita sobre a vida do
santo. Interceptando texto e imagem, a autora, em seu livro Francesco
e l linvenzione delle stimmate: una storia per parole e immagini fino a
Bonaventura e Giotto5, evidencia o processo de construo do personagem
Francisco pela Igreja, transformando-o num alter Christus atravs da
inveno dos estigmas, com o objetivo de reorientar a ordem dos frades
menores. Estes eram de suma importncia para o meio eclesistico no
momento, pois atravs da ordem a imagem da igreja, h muito corrompida,
dignificava-se.
Outra curiosa relao entre texto e imagem podemos encontrar em A
arte da memria de Francis Yates6. Nesse estudo, a autora discorre sobre a
tcnica, utilizada desde os oradores gregos, para memorizar informaes
atravs de imagens mentais. Para melhor se fixarem na memria, as
imagens escolhidas deveriam ser incomuns e impressionantes. Na Idade
Mdia, esta tcnica sofreu algumas transformaes e foi concebida, pela
escolstica, segundo intenes morais e piedosas. Neste caso, as imagens
mentais eram ainda aquelas, incomuns e impressionantes, porm, de acordo
com os preceitos de Toms de Aquino, seriam melhor lembradas pela alma
quando assumissem uma forma corporal similitudes corporais.
Naturalmente, a oratria na Idade Mdia ressurgiu na forma de
sermo e, assim sendo, a memria artificial foi utilizada, especialmente,
para a rememorao destes. Contudo, ela passou a ser exercitada tambm
4
Ibid.,p.66.
5
FRUGONI, Chiara. Francesco e linvenzione delle stimmate: una storia per parole
e immagini fino a Bonaventura e Giotto. Torino: Giulio Einaudi, 2010.
6
Yates, Francis. A arte da memria. Trad. de Flavia Bancher. Campinas: Editora da
Unicamp, 2007.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

474
por leigos, j que frades promoviam e recomendavam a todos a tcnica.
vista disso, Francis Yates sugere que o sistema de imagens, criado pelo
exerccio da memria artificial, possa ter motivado representaes visuais.
Algumas obras de arte, sobretudo as de Giotto, so analisadas por Yates do
ponto de vista da memria.
Este, certamente, um assunto amplo, mas muito til pesquisa
quando consideramos a reciprocidade e interdepedncia entre texto e
imagens. Em tal caso, no s as imagens visuais como tambm as mentais.
Um exemplo claro do dilogo existente entre diversas fontes,
hagiogrficas e iconogrficas, pode ser constatado naquela que considerada
a primeira imagem de Francisco [FIG.1], ainda em vida, realizada em
1223, segundo alguns historiadores7.
Pelo fato desta imagem ser anterior canonizao, que se deu em 1228,
Francisco aparece sem a aurola, prpria dos santos, e sem os estigmas que
lhe foram atribudos aps a beatificao. Ele leva em sua mo esquerda um
cartel com a inscrio Pax hic domui, enquanto o gesto da mo direita,
na altura do peito, indica a importncia da mensagem que, como observa
Miatello, demonstra a misso pacificadora de Francisco. Tal misso se torna
ainda mais evidente por se tratar de seu primeiro retrato8.
No entanto, considerando as observaes de Francis Yates, surge-nos
a questo: seria possvel vermos esta imagem como a exteriorizao de um
signo mnemnico? Capaz de imprimir na memria imagens de virtudes
ou de vcios9? Como dito anteriormente, a arte da memria na Idade
Mdia foi concebida segundo intenes morais e piedosas. Isto implica no
fato da tcnica, neste perodo, estar relacionada rememorao do Paraso
e do Inferno, e s virtudes e vcios como signos mnemnicos. Tais signos,
que guiam as trilhas da lembrana, deveriam ser escolhidos e acomodados
em locais conforme algumas regras que garantissem sua eficcia. So elas:
quanto iluminao, o lugar deveria ser nem muito escuro nem muito
iluminado, para que as figuras no fossem obscurecidas ou ofuscadas; o
7
THODE, Henry apud BRANDO, Angela. op. cit., p.1.
8
A santidade de So Frncico de Assis foi reconhecida em vida e sua canonizao
realizada logo aps a sua morte. Desta forma, suas primeiras imagens foram feitas
ou descritas por quem o conheceu pessoalmente, o que aproxima estas representaes
da concepo de retrato que temos no sentido moderno: como registro das feies
particulares de uma pessoa que se colocada diante do pintor, que est na memria deste
ou que so descritas por algum que a conheceu pessoalmente.
9
YATES, op. cit., p. 84 - 85.

Sintia Cristina da Cunha

475
sentido de espao e profundidade deveria ser preservado, para que a
imagem se destacasse em seu loci; as figuras deveriam sensibilizar, estimular
a imaginao e as emoes atravs das metaphoricas10; e, enfim, deveriam
tomar a forma de um corpo. Considerando as possveis aproximaes
entre essas instrues e a representao de Francisco, vemos que o pintor
esmerou-se para destacar a imagem em seu loci. Ele o fez por meio da
iluminao, do sentido de espao e profundidade ainda que a perspectiva
na pintura estivesse por ser aprimorada. Alm disso, tanto o cartel com a
inscrio Pax hic domui como o prprio Francisco, j conhecido como um
pacificador, podem ser tomados como metforas que sensibilizam mais a
alma e, por isso, auxiliam melhor a memria11. Neste caso, a imagem visual
de Francisco teria brotado de uma imagem mental de virtude, impressa na
memria como signo mnemnico para ajudar as pessoas a alcanar o Cu.
Alm das possveis relaes entre texto e imagem, vemos que nesta
representao esto presentes algumas das premissas formais da arte
bizantina e, mais especificamente, do cone bizantino (embora no tenha a
aurola e o fundo dourado que caracteriza o cone). Este, que surge com
o propsito de mediao entre o mundo divino e espiritual, reconhecido
pela sua imobilidade e frontalidade. A falta de movimento um dos fatores
que, autores como Pre Paul Florenski12, entendem lhe proporcionar um
carter eterno, pois o movimento estaria mais associado vida que finita.
J a posio frontal, hiertica e a forma como o cone nos olha, atestam a
presena de um corpo divino entre os homens. Embora, a imagem de So
Francisco contenha elementos plsticos que revelem um vislumbre de
dramaticidade e movimento - gesto das mos e pregueado da tnica -, os
aspectos formais mencionados da imagem icnica se sobressaem. Francisco
est representado de frente e tem algo imobilista de quem se faz retratar.
Outro detalhe que confirma a analogia a proporo alongada do corpo do
santo, acentuada pelo capuz alto, o que usualmente tenciona a relao cu
e terra nos cones sagrados. O ritmo mais linear que volumtrico da figura
intensifica esta tenso.
Temos nesta breve aproximao feita entre a imagem de So Francisco
e a arte bizantina um dos principais componentes responsveis pela
10
Ibid.,p.91.
11
Ibid., p.90.
12
FLORENSKY, P.P. La Perspective Inverse suivi de LIconostase. Suisse: LAge
dHomme, 1992.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

476
dinmica cultural que gerou o Renascimento em meados do sculo XIII.
Estes componentes foram muito bem detectados por Luiz Marques no
ensaio As Origens Mediterrneas do Renascimento13, no qual demonstrado
o descompasso existente na poca entre a escultura, assentada no mundo
antigo, e a pintura, guiada pela imaginria bizantina. Segundo o autor, este
descompasso subsistia em funo de duas foras: a do Imprio e a da
Igreja. A primeira era exercida por Frederico II que na Itlia meridional
promovia um revival da arte antiga, a segunda por Francisco De Assis
(curiosamente, no o papa) que na Itlia central era retratado por artistas
toscanos que ainda repetiam modelos da arte bizantina. Vale ressaltar,
que a regio da Toscana recebeu forte influncia de Bizncio a partir de
1204, quando o selvagem saque de Constantinopla pelos Cruzados da
Quarta Cruzada levara a uma dispora de artistas constantinopolitanos
pela Europa centro-oriental e pelos Blcs, mas tambm para a pennsula
itlica e inclusive para as cidades-porto do mar Tirreno, como Pisa14.
Desta maneira, se a escultura era certamente a arte que propagava
a imagem de Frederico II, j que este era um grande admirador do mundo
antigo, no seria o bronze e a pedra os elementos da arte que divulgava a
santidade de Francisco, mas sim a pintura. Nela, a tradicional associao
entre a luz do mundo e a luz divina, cara arte bizantina, era mais
facilmente assimilada15. No entanto, a arte bizantina entra em declnio na
Europa e, em especial, na regio da Toscana em meados do sculo XIII. Os
fatores, comentados por Luis Marques, que favoreceram este esvaecimento
esto relacionados a um certo dinamismo que tomava a situao poltica e
cultural europia. Segundo o autor, este novo cenrio era favorecido por trs
foras diversas. Uma delas, como j visto, era o fato do imperador promover
a sua imagem atravs da arte antiga, isto , a arte dos Csares romanos.
A fora com que arquitetura gtica, de origem francesa, expandia-se pela
Europa, tambm favorecia o declnio da arte bizantina, pois novas imagens
e formas escultricas se proliferavam medida que se fortalecia a realeza
capetina. A ltima, diz respeito ao prprio So Francisco de Assis, j que as
ordens mendicantes tinham favorecido a interveno da Igreja nas cidades

13
Marques, Luiz. As origens Mediterrneas do Renascimento. In Renascimento
Italiano: Ensaios e Tradues. Maria Berbara (org). Rio de Janeiro: Nau Editora, 2010. pp.
215-250.
14
Ibid., p.228.
15
Ibid., p.227.

Sintia Cristina da Cunha

477
italianas, promovendo uma nova espiritualidade e uma nova agenda de
representao das vidas dos santos, com decisivas implicaes artsticas16.
As primeiras imagens de So Fransisco de Assis encontravam-se, desta
forma, num momento crucial da Histria da Arte. Nelas esto expressas um
perodo de procura pela arte nacional italiana que as colocam na origem
do que, mais tarde, seria intitulado como Renascimento italiano. Autores
como Henry Thode vo alm nesta relevncia, pois vem em Francisco,
na sua empatia com a natureza e com o homem, a origem prpria deste
Renascimento. Entretanto, notvel a importncia da referncia arte
antiga no imprio de Frederico II, pois foi na escultura, mxima expresso
da cultura visual antiga, que a referida arte nacional italiana teve suas
bases assentadas. No que a arte bizantina e gtica foram categoricamente
rejeitadas em nome desta arte nacional, mas que o revival desta arte antiga
imps os limites de introduo daquelas, ao mesmo tempo que permitiu a
assimilao de ambas.
Nesta fase de afirmao da arte italiana, faltava pintura da poca
o atributo da narrativa, prpria da civilizao romana. Isto foi alcanado
num momento de fuso entre a pintura e a escultura ou, como nas palavras
de Marques, num momento de fecundao, na Toscana, da pintura pela
escultura17. Neste processo, a pintura de Cimabue assimila os atributos
expressivos da escultura, porm, este notvel acontecimento para a histria
da arte atinge maiores propores em Giotto, nos afrescos da Baslica
Superior de Assis.
No transepto direito da Baslica inferior de Assis temos a representao
de Nossa Senhora com o Menino Jesus, quatro anjos e So Francisco (1278-
1280). Nesta obra de Cimabue [FIG.2], elementos prprios dos hierticos
cones tais como, a ausncia de pathos, a imobilidade e a frontalidade, so
substitudos, no pelo seu total oposto o que nos conduziria novamente
a uma analogia com a arte bizantina em seu momento de mxima expresso
-, mas por um sutil desejo de revelar os sentimentos humanos. Isto bem
visto na forma como o menino Jesus toca com a mo direita o manto de
sua me e demonstra certa intimidade com ela, algo dificilmente visto nas
imagens icnicas. Porm, como prprio da estaturia antiga, trata-se aqui
no da demonstrao exasperada de sentimentos, mas do controle sobre
estes. A virgem entronada na diagonal tambm diverge da maniera greca
16
Ibid., p. 228.
17
MARQUES, op. cit., p.231.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

478
(bizantina). A frontalidade e estaticidade das virgens icnicas que atestam
uma presena que transcende a realidade, substituda pela lateralidade
do corpo, pelo seu movimento e volume, o que torna mais humana suas
representaes.
Embora a digresso para outra imagem, que no a de Francisco, seja
til para melhor compreeder a apropriao da escultura antiga pela pintura,
voltemos para a dele. direita da composio, o Pobre de Cristo, foi
retratado segundo descrio deixada pelo seu primeiro bigrafo, Toms
de Celano. Apesar da imagem de So Francisco de Assis ainda se parecer
muito com a de um cone bizantino, seja pela frontalidade e imobilidade
seja pela forma como ele fita o espectador, as linhas da face e do corpo so
menos lineares, delgadas e mais volumtricas. Como podemos perceber,
ele aqui j possui a aurola e os estigmas do santo, contudo aparece menos
como figura hiertica e mais como figura humana, o que bem demonstra
a forma como o sagrado, aos poucos, passava a ser pensado tambm no
mundo material. Com os estigmas mostra nos ps descalos e nas mos que
seguram um livro, Francisco no apenas aparece como um homem humilde
nesta imagem, como tambm humildemente representado pequeno ao
lado da celbre Maest e dos anjos, est meio deslocado da composio por
no ocupar o mesmo degrau no trono, no qual esto assentadas as demais
figuras. Nesta imagem, So Francisco de Assis ainda um simples monge,
embora santo, que ainda no ocupa a posio notria que lhe conferiram,
mais adiante, outros artistas e escritores.
Na Baslica superior de Assis, a iconografia de Francisco, elaborada
desde o sculo XIII, ganha de fato, com Giotto, valores artsticos da
Antiguidade greco-romana. Porm, para este, o antigo no sobrevivncia,
evocao, nem modelo, mas experincia histrica para investir no presente18.
Desta forma, Giotto, alm de acrescentar imagem de So Francisco novos
modelos de representao, inspirados na escultura clssica, tambm
resgata e reelabora, para o seu tempo, o sentido histrico destas esculturas.
Sobre esta mutao na representao de So Francisco, Giulio C. Argan
comenta:

18
ARGAN, Giulio Carlo Argan. Histria da Arte italiana. V. II : De Giotto a
Leonardo. So Paulo. Cosac & Naify, 2003. p.22

Sintia Cristina da Cunha

479
(...) o objetivo delinear em sentido histrico, e no lendrio ou
potico, a figura do santo moderno, criador de um movimento
em triunfal expanso, cuja fora impulso renovao da
Igreja. A figura que se destaca nos afrescos de Giotto no
certamente a do pobrezinho descrito por Toms de Celano ou
do asceta sofredor retratado por Cimabue na Baslica inferior,
uma pessoa cheia de dignidade e autoridade moral, cujos atos,
antes de milagres, so feitos memorveis, histricos.19

O afresco O sonho de Papa Inocncio III de Giotto mostra com clareza as


diferenas entre as representaes deste e de Cimabue [FIG.3]. Francisco,
que ocupa praticamente uma posio central na composio, retratado,
bem maneira de Giotto, como uma massa fechada, na qual o gesto
no excede funo da ao humana. A atitude, de ordem metafrica,
de se colocar como um dos pilares de sustentao da igreja, demonstra a
importncia de Francisco na poltica reformista do papado, para quem o
santo deixa de ser o Pobre de Cristo para ser um homem da histria.
Em paralelo a isto, as obras biogrficas e hagiogrficas em torno
da vida de So Francisco de Assis tambm se modificam conforme sua
imagem se torna notria. Toms de Celano em Vida I, faz uso da fora que o
reconhecimento papal atribui pregao minortica. Celano descreve, assim
como acabamos de constatar nos afrescos de Assis, a emancipao do santo
de apenas um pregador popular ambulante a um pregador investido
de autoridade apostlica20. Deste modo, importante observarmos como
estes escritos, juntamente com as imagens, contriburam para o destaque
da figura de So Francisco de Assis. Eles nos ajudam a entender a maneira
como o Francisco icnico, que ultrapassa o visvel, vai se mostrando na
visibilidade de sua imagem humana e, por conseguinte, histrica.

19
Ibid., p. 23.
20
CELANO, Toms de . Primeira vida de So Francisco. In So Francisco de Assis: Escritos
e biografias de So Francisco de Assis. Crnicas e outros testemunhos do primeiro sculo
franciscano. 6. Ed. Petrpolis: Editora Vozes. P. 210.

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Figura 1
Maestro di Frater/Franciscus, Frater (1223/1228).
Abadia de Subiaco, Itlia.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

486
Figura 2
Cimabue, Nossa Senhora com o Menino Jesus,
quatro anjos e So Francisco (1278-1280).
Baslica inferior de Assis, Itlia

Sintia Cristina da Cunha

487
Figura 3
Giotto, O sonho do Papa Inocncio III, 1297 a 1299.
Baslica superior de Assis, Itlia.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

488
arte sacra: narrativas e colees

La parroquia como acerbo artstico religiososo. Un caso:


La Santa Cruz de Tinguiririca y su Cristo Crucificado

Mara Jos Castillo Navasal


Profesora de Historia y Geografa, estudiante de Magister en Historia del Arte.
Investigador del Centro de Estudios Patrimoniales de la Facultad de Artes Libe-
rales de la Universidad Adolfo Ibez de Santiago de Chile.

INTRODUCCIN

La iglesia catlica presente en la historia de Chile desde la llegada


de los espaoles ha tenido y tiene una importancia en el quehacer nacio-
nal, hecho que la ha convertido en una institucin generadora de intereses
particulares y sociales, siendo muchas veces portadora de verdades que han
repercutido y traspasado las distintas pocas de nuestra historia. Uno de los
vehculos ms utilizados para el traspaso de la informacin, como tambin
para dar cuenta de la posicin de la Iglesia es la Parroquia, primeramente,
en la figura del prroco, adems de las manifestaciones artsticas que se han
ido incorporando paulatinamente no solo como un al ajamiento, sino que
tambin como una forma de evangelizacin.
El estudio pretende acercarnos a esta institucin, buscando a travs de
las reciprocidades culturales y sociales demostrar el grado de importancia
que tuvo como centro cvico, como guardadora de las estadsticas poblacio-
nales de la poca y de un acervo artstico que se fue nutriendo de elementos
y estilos en distintas pocas.

LA PARROQUIA

Cuando nos enfrentamos al trmino parroquia, la mayora de las per-


sonas lo asimilan a un templo, o a un orden con relacin a la religin Ca-
tlica que registra inscripciones de nacimientos, matrimonios, defunciones,
primeras comuniones o confirmaciones. El trmino parroquia proviene del
latn paroecia cuyo origen es del griego napolkia, cuyo significado se rela-
ciona a casa o conjunto de las mismas con sus habitantes. En latn tambin

489
se le conoce como parochia, como un derivado de parochus, cuyo significado
guarda relacin con proveer o suministrar algo, como derivado del griego
npoxoc. Sin embargo, la definicin que mejor podemos utilizar hoy res-
ponde a un distrito o territorio designado por el obispo, con lmites fijos,
donde existe un rector permanente con facultad de rejir al pueblo compren-
dido en l, i de administrarle los sacramentos i otros auxilios espirituales.
Para el siglo IV d.c., no se conoca la parroquia como hoy, solo exista
una edificacin de templo en la capital de ciudad, en la cual el obispo del
lugar realizaba los servicios religiosos a las personas que vivan en las reas
ms rurales para la vivencia del culto divino.
Eduardo Regatillo, nos cuenta que en Oriente se puede acceder a do-
cumentacin que establece la existencia de comunidades con sacerdotes a
su cargo, en Palestina y Alejandra previo al siglo V. Sin embargo, para Oc-
cidente, se va a situar un siglo ms tarde, periodo en el cual ya haba termi-
nado la persecucin intensa en contra de los cristianos, poca de Constan-
tino que contaba con pocos templos que no daban abasto para la cantidad
de feligreses que llegaban y se ubicaban en las comarcas, por ello, se decidi
crear una figura de sacerdote asistente enviando a los corepsicopos, que eran
como una especie de obispos auxiliares que acudan desde la ciudad a los
campos.
En el Concilio de Laodicea en 364 d.c., aparecen los periodeutas o sa-
cerdotes circulantes o visitadores quienes sern los que reemplazarn a los
obispos auxiliares y sern enviados por los obispos desde la capital para que
en los pueblos y lugares ms alejados enseasen las verdades de la fe, la mo-
ral cristiana y suministrasen los sacramentos. Dentro de las particularidades
de este mtodo, era que no siempre el mismo sacerdote acudira a una co-
munidad en particular con frecuencia, sino que rotara por otras a voluntad
del obispo, evitando con esto caer en excesos de confianza o relajo en la
encomienda, ya que una vez terminado el trabajo evangelizador volvan al
templo Catedral para la asignacin de una nueva tarea.
Con el pasar de los aos, la poblacin a servir comenz a ser ms nu-
merosa, creando la necesidad de nuevos asentamientos de curas en los dis-
tintos pueblos y campos. En la medida que se iban formando las nacientes
comunidades, se construan tambin templos y se creaba la obligacin de
un religioso permanente en ellos. Y como una forma de asegurar el susten-
to, que tambin no entorpeciera su labor evanglica, naci el primer paso
para el beneficio que corresponde al derecho a percibir los frutos de los

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

490
bienes que estn perpetuamente ajenos a cada ttulo y ministerio, el cual por
autoridad eclesistica, se asigna por el oficio a los clrigos para que vivan de
l. Si bien en los primeros tiempos estos beneficios eran desconocidos des-
de este punto de vista, se sabe que los clrigos siempre han tenido derecho
a vivir de las ddivas del altar, pero por muchos siglos lograron alimentar-
se del erario comn, naciendo estos beneficios de la porcin de bienes de
la masa comn, que al morir el sacerdote volvan al acerbo diocesano, sin
embargo, no contamos con una fecha clara para poder establecer esta res-
ponsabilidad de la comunidad, solo sabemos que en la medida que exista
necesidad se fue remediando en el camino.
El nacimiento de lo que hoy conocemos como parroquia no es una
creacin meditada para los fines que fueron fundadas, sino ms bien, conse-
cuencia del desarrollo natural del cristianismo, lo que s se puede establecer
es que surgieron primero las rurales antes que las urbanas, ya que estas l-
timas contaban con asiento episcopal. Su origen se remonta desde fines del
siglo IV e inicios del V, sin embargo, su instalacin en las ciudades no se vio
hasta avanzado el siglo X, con dos nicas excepciones: Alejandra y Roma
ya que eran cabecera cardenalicia. En numerosos textos se establece que a
partir del siglo XI se fueron introduciendo en todas las ciudades episcopa-
les. Para el ao 1234, an no aparecen como obligatorias en las Decretales
de Gregorio XI.
Con el avanzar de los aos, se establecieron en los pueblos numerosos
oratorios y capillas en distintas partes como palacios, monasterios u otros
lugares que tenan un sacerdote para celebrar la santa misa, pero uno de los
motivos principales por el cual acudan los feligreses a estos lugares era para
la recepcin del bautismo, por ello se les conoca como las bautismales, ya
que era el nico lugar fsico en el cual se poda recibir este sacramento. El
sacerdote que estaba a cargo de estas, se le llamaba acripreste o primer pres-
btero del distrito. Tambin se les conoca con el nombre de plebano, ya que
tena a su cuidado la poblacin campesina, su plebe. Estas nuevas iglesias,
se comenzaron a emancipar de las bautismales y adquirieron el nombre de
parroquias menores, naciendo de esta forma la distincin entre las iglesias
matrices y las filiales.
El Concilio de Trento fue el que entreg la primera disposicin o ley
sobre la parroquia y sus asuntos. En la sesin 24, captulo 13 de reforma se
establece: El Santo Concilio ordena que para mejor asegurar la salvacin
de las almas a ellos confiadas, asignen a cada grupo de fieles un prroco pro-

Mara Jos Castillo Navasal

491
pio y perpetuo o provean a esta necesidad de otro modo ms provechoso,
segn las conveniencias locales Que los obispos se apliquen a fundar
parroquias en las ciudades u otros sitios que an no las tienen. De la misma
manera, ordena este Concilio los lmites territoriales que tendrn que tener
y establece el modo de evitar el servicio de otros prrocos fuera de su juris-
diccin. Hace una distincin en cuanto una parroquia estuviera adscrita a
algn cabildo o monasterio, estableciendo la cura de almas a un vicario y no
prroco. Se hace importante destacar que la parroquia no es una institucin
divina, sino meramente eclesistica, esto se refiere a que es instituida por los
hombres para un mejor ordenamiento del trabajo evangelizador.
La Iglesia parroquial
Se le denomina bajo este nombre a la sede de la parroquia que cuenta
con templo propio o con solo ser persona jurdica (1918) y ser el lugar
donde el cura de almas ejercer su ministerio. La edificacin de templo ser
de uso exclusivo de la parroquia para evitar conflictos con otras entidades
como por ejemplo rdenes religiosas o instituciones vinculadas a ellos.
La propiedad de la iglesia parroquial podr ser variada, desde la fbrica
de la misma, pudiendo pertenecer a otra persona moral eclesistica o a un
particular, ya sea de un cabildo, orden tercera, cofrada, mitra, orden religio-
sa o de un particular. Esto significa que todos los bienes que se encuentran
en el interior puede que sea de tercero y que en conjunto conforman los
elementos para el servicio de la misma parroquia, esto significa que si el
ordinario (obispo) denomina a un templo como parroquial que no sea dio-
cesano no lo hace poseedor de sus bienes tanto muebles como inmuebles,
sino slo del uso como parroquia. Lo nico que ser de propiedad exclusiva
de la dicesis, son los libros sacramentales, guardadores del cumplimiento
de los sacramentos adquiridos por la feligresa.Cuando nos referimos al
trmino fbrica del templo, esto implica no solo su ereccin cannica como
tal y la asignacin de un sacerdote para brindar los servicios religiosos en
ella, sino que tambin a la construccin y al ajamiento de templo. En todo
el perodo virreinal los medios econmicos para hacerlo eran compartidos
tanto por la corona como por su feligresa como una forma de asegurar la
instalacin de la parroquia y de un sacerdote estable, feligreses que siempre
se encontraban preocupados del bienestar de su cura y que no le faltara a
lo menos lo ms elemental. Con el pasar de los aos y lo turbulento que
es nuestro territorio colmado de desastres naturales y otros de origen an-
trpicos, la costumbre mand la conformacin de una junta de fbrica, la

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

492
que se encargaba de realizar todas las gestiones, tanto polticas, tcnicas,
econmicas para conseguir los medios necesarios para la adquisicin de los
materiales, autorizaciones, planos y mano de obra para levantar el edificio,
costumbre muy desarrollada y exitosa en nuestro territorio.

NUESTRO SEOR CRUCIFICADO DE TINGUIRIRICA

La parroquia de Nuestro Seor Crucificado de Tinguiririca, ubicada


en la Regin del Libertador Bernardo OHiggins en Chile, nace como una
pequea capilla que colaboraba al servicio de las personas que vivan en esa
zona. Para 1860 se obtena la autorizacin de oratorio privado, entregndo-
le la comisin necesaria, i de cuya visita se pondr f en esta licencia, pueda
celebrar o hacer celebracin diariamente, i sin excepcin de los das mas
solemnes, el Santo Sacrificio de la Misa. Con esta disposicin, la vida de
la comunidad se fue incrementando, solicitando en 1871 se realizara un in-
forme para confirmar que atenda primeramente que atenda una cantidad
no inferior a seis mil almas y que adems contaban con un lugar, templo
adecuado para los usos que se requeran, As, en el informe emitido por el
prroco de San Jos de Toro, localidad que se ubicaba a ms de ocho leguas
de distancia, nos cuenta:
La capilla es nueva i est por consiguiente en buen estado, su tamao
es de cuarenta i seis varas incluso los corredores de que est rodeada tiene
adparte una piesa de sies varas cuadradas para sacrista. En cuanto a los
paramentos: Dos ornamentos blancos, uno colorado i uno morado, tres
alvasun sagrario, un santo cristo de regular tamao, envuelto, un cuadro
de la misma imagen en regular estado, pintura antigua el calis i 4 ima-
jenes son nuevas i me parece que son de plata: estn doradas por dentro i
el dorado parece fino la capilla esta edificada en un terreno comprado
con el objeto de trabajar una iglesia i consta de una cuadra La capilla
est blanqueada, el pavimento enladrillado, las puertas tienen cerradura, las
ventanas estn con vidrieras.
Informacin ms que suficiente, para otorgar el grado de Viceparro-
quia, Segn el auto de ereccin se sabe que la iglesia se encontraba en una
propiedad de varias cuadras donada por los vecinos, con templo, casas
parroquiales y cementerio, adems de otros recursos para la congrua sus-
tentacin del Prroco.

Mara Jos Castillo Navasal

493
Para el terremoto ocurrido en la zona central de Chile el 27 de febrero
del ao 2010, el dao provocado a los edificios de estas caractersticas en la
Dicesis de la Santa Cruz de Rancagua, a la cual pertenece esta parroquia
en particular, fue de gran magnitud, el 85% de los templos se encontraba
con algn tipo de dao tanto estructural o total, dentro de estos ltimos se
ubicaba esta edificacin. Si bien la respuesta fue rpida dentro de lo que
ocurre generalmente en estas circunstancias, muchas personas dedicadas
al patrimonio y rescate artstico concurrieron a las horas siguientes para
constatar el estado general de lo ocurrido, la desolacin fue la que cubri
toda la zona. El templo de Tinguiririca tuvo un dao estructural de gran-
des proporciones, no permitiendo su utilizacin, decretando su demolicin.
En una de esas inspecciones, fue encontrado un leo cuyas dimensiones
corresponden a 216 x 128 cms. que representa a un Cristo crucificado en
primer plano, el cual se encontraba en el retablo del altar mayor, retablo que
se desfragment por la magnitud del telrico 8,2 en la zona, rasgando el
leo en varias fracciones.
El sacerdote, luego de rescatarlo porque era la imagen que representa-
ba la advocacin del templo y en el fondo representaba una cierta identi-
dad para los fieles, lo ubic en el suelo embaldosado esperando tomar una
resolucin de qu hacer con l. Cuando lleg el equipo patrimonial del
Obispado le realizamos las consultas de la obra y su procedencia, segn
sus comentarios nos indic que le haban contado que era una pintura que
haba realizado un antiguo sacerdotes que permaneci por 65 aos como
prroco, hasta ms o menos los aos 70 y que era una copia de uno similar
que se encontraba en una localidad cercana, no entregndole ningn valor,
ms an que por el estado de deterioro en el cual se encontraba l crea que
sera desechado. A simple vista, el relato no se ajustaba a la obra, por ello, se
le propuso retirarlo y cotizar su restauracin, ya que el entelado, bastidor y
otras caractersticas no indicaban precisamente que fuera del siglo XX, sino
que de una mayor antigedad.
Con la obra ya resguardada, se inici la investigacin del caso, encon-
trando en el archivo de la Dicesis, en el primer inventario de bienes regis-
trado al pasar a ser Viceparroquia, la mencin de un cuadro de un Cristo
crucificado un cuadro de la misma imagen en regular estado, pintura an-
tigua(1871).
Los primeros anlisis de la obra, realizados por una restauradora profe-
sional, arrojaron que efectivamente contaba con una tela con caractersticas

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

494
del siglo XIX, confirmando con esto, en forma preliminar, una data mayor
a la conocida por el sacerdote, informacin que sumada a la obtenida en el
inventario podra acercarnos a pensar o proponer que el cuadro nombrado
en dicho inventario podra corresponder a la pintura que tuvo inicialmente
la capilla, teora apoyada por el colectivo recuerdo de la comunidad quienes
aseguraron que por generaciones esa pintura siempre haba estado en ese
lugar.

BIBLIOGRAFA

CAVALARIO, D. 2Instituciones del Derecho cannico. Pars. 1846, T. II.


DONOSO, J. Diccionario teolgico, cannico, jurdico, litrgico, bblico,
etc.. Imprenta y librera del Mercurio, Valparaso, 1857, T. III.
REGATILLO, E. Derecho Parroquial. Editorial Sal Terrae, Santander,
Espaa, 1959.
Boletn Eclesistico. T. XXIII, n180, pp 77-78
Archivo Histrico Dicesis de Rancagua. Fondo Parroquias, Tinguiririca
1870-1963. Legajo79 n14, Vice-parroquia de Tinguiririca, Parro-
quia de San Jos de Toro, Sobre la ereccin.

Mara Jos Castillo Navasal

495

arte sacra: narrativas e colees

El prestigio de los artistas jesuitas alemanes en Chile y el silencio


frente al posible origen brasilero de algunas obras.
El caso de escultura San Jos de la coleccin Marn Estevez

Fernando Guzmn Schiappacasse


Doctor en Historia del Arte, acadmico de la Universidad Adolfo Ibez.
Marisol Richter Scheuch
Historiadora del Arte. Universidad de los Andes, Santiago de Chile

Introduccin

En el Museo de Artes Universidad de los Andes, en Santiago de Chile,


se exhibe una imagen tallada y policromada de san Jos con el Nio que
ha sido fechada como factura del siglo XVIII. Se trata de una escultura
de bulto redondo de 104cm de alto, con una clara tendencia naturalista y
postura dinamizada por medio de un contrapposto. Sus ojos de cristal, as
como la carnacin, embolado, estofado y policroma para imitar las telas
de las vestimentas, poseen las caractersticas habituales en la escultura
iberoamericana del perodo. El santo porta el Nio con su brazo izquierdo,
mientras que con la mano derecha sostiene un lirio, atributo que corresponde
al milagro del florecimiento de la vara. Luce sandalias de caminante, en
tanto el Nio lleva en su mano izquierda un orbe La calidad de la pieza, as
como sus dimensiones, permiten postular que fue realizada para una capilla
domstica.
El propsito del presente estudio es intentar identificar la filiacin
artstica de una pieza escultrica que, de acuerdo a la historiografa, sera
una de las mejoras tallas realizadas en Chile durante el perodo colonial.
Los resultados obtenidos dejaran en evidencia un problema de atribucin
que podra extenderse a otras piezas del acervo colonial chileno. Se trata de
la tendencia a vincular las piezas de cierta calidad al crculo de los artistas
jesuitas alemanes activos en Chile durante el siglo XVIII, omitiendo
indagar otros posibles orgenes. La huella del barroco y rococ alemn, que
caracteriz la produccin de los artistas jesuitas de la provincia de Chile,
sera la fuente de atribuciones errneas, pues, los especialistas no habran

497
tenido en cuenta que en otras regiones del continente, particularmente en
Brasil, se produjeron esculturas, pinturas y retablos con rasgos similares.

La historiografa chilena y la escultura de san Jos

La escultura en estudio, como la mayora de las que se produjeron


durante la poca colonial, no contiene inscripcin alguna que permita
conocer a su autor o su lugar de origen. Sin embargo, en este caso se cuenta
con antecedentes acerca de su ubicacin original, a partir de los cules se
podran inferir otros datos relativos a la historia de la pieza, tales como la
identidad de los comitentes o el lugar en el que fue producida. Antes de
que la donante, Sra. Mara Loreto Marn, adquiriera el san Jos, la escultura
estuvo en manos de Juan Benavides Courtois, arquitecto, quien a su vez la
recibi de su padre, el tambin arquitecto, Alfredo Benavides Rodrguez;
este ltimo la habra adquirido a mediados del siglo XX1.
Benavides Rodrguez (1894-1959) incluy en su libro La
Arquitectura en el Virreinato del Per y en la Capitana General de Chile2,
especficamente en un apartado dedicado a la arquitectura rural del siglo
XVIII, una mencin al san Jos en el contexto del anlisis de las casas y
capilla de la hacienda La Punta, edificaciones que l habra visitado el ao
1927. De este modo, al publicarse la primera edicin de su libro en el ao
1941, la escultura qued instalada en la historiografa local como una pieza
relevante La descripcin de Benavides da cuenta del precario estado en que
se encontraba el edificio y la impresin que debi causarle el san Jos:

En la capilla transformada en bodega cuando la visitamos (1927), se


conservaba an en el altar mayor de un barroco sencillo una imagen
vestida de la Virgen llamada de la Candelaria. En esta misma capilla
se encontraba el San Jos de bulto, todo tallado en madera que
reproduce la fig. 188 ()3.

1
Informacin entregada por el anticuario Sr. Francisco Monge en enero 2013.
2
Se han realizados tres ediciones de este libro: 1941, 1961 y 1988.
3
Benavides: 1988, pgs. 275-276

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

498
La fotografa incluida en el libro permite corroborar que la escultura
de la que habla Benavides es el san Jos del Museo4. El arquitecto ampla el
anlisis de la pieza en el apartado dedicado a las tallas en madera durante el
siglo XVIII, donde se puede leer el siguiente comentario:

() tallada en un solo trozo de madera, el que proviene de la


capilla de la Hacienda La Punta y fue de los jesuitas La factura
de esta escultura estructurada para ser vista de abajo arriba, es
verdaderamente admirable, siendo digno de sealar el cuerpo del
nio, el detalle de la mano que lo sostiene y la cabellera del santo5.

El juicio de Benavides es categrico: Es una de las obras ms hermosas


que se conservan del arte chileno del siglo XVIII6.
La falta de antecedentes documentales adicionales explica que las
menciones posteriores a la escultura reiteren lo sealado por Benavides. Es
el caso de los trabajos del sacerdote Jesuita Walter Hanisch y del historiador
Eugenio Pereira Salas7. Este ltimo autor expresa que toda la informacin
que entrega sobre esta escultura proviene de Benavides, quien, segn Pereira,
alcanz a ver tambin el altar de San Joseph. A continuacin agrega:

La factura de esta escultura estructurada para ser vista de abajo


arriba, es verdaderamente admirable, dice, siendo digno de sealarse
el cuerpo del Nio, el detalle de la mano que lo sostiene y la cabellera
del santo8.

A pesar de la brevedad y de la falta de originalidad de la referencia


de Pereira acerca de la escultura de san Jos, se pueden obtener algunas
conclusiones significativas. En primer trmino, el texto deja en evidencia que
Pereira nunca vio la escultura, pues, explcitamente transcribe la descripcin
contenida en Arquitectura en el Virreinato del Per y la Capitana General

4
La escultura posee un anillo metlico en su espalda, con el que debi ser anclada a un
pequeo retablo o la pared.
5
Benavides: 1941, pg. 306
6
bid: pg. 306
7
Hanisch: 1974, pg.121 y Pereira: 1965, pg. 99
8
Pereira, Op Cit: pg. 99

Fernando Guzmn Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch

499
de Chile. En segundo lugar, la ubica en el altar de San Joseph9, precisin
que Benavides no aporta. Pero, sin duda, la diferencia ms relevante entre
los dos autores es que Pereira Salas menciona el san Jos en el captulo
titulado La preponderancia artstica de los Jesuitas10, atribuyndolo de
este modo, aunque sea indirectamente, al trabajo o al influjo de los jesuitas
germanos; aunque aclare en el texto que pertenece a un conjunto de piezas
cuyos autores no se conocen11.
Benavides dedic un espacio al aporte de los jesuitas germanos
en Chile, pero, el san Jos no es mencionado en ese contexto12. Autores
posteriores no aportan informacin ni anlisis a la pieza en estudio Vctor
Carvacho, en 1983, al referirse a la escultura colonial en Chile, repite lo
sealado por Benavides y expresa que en el altar de la hacienda La Punta
se ubicaba un bulto de la Candelaria13, sin mencionar la de san Jos con el
Nio. En tanto Enrique Melcherts e Isabel Cruz14 se refieren a la huella
dejada por los escultores jesuitas en Chile, pero sin hacer referencia a la
escultura que aqu interesa Tampoco se encuentran menciones en los textos
de Briceo y de Roa15.
En tanto las alusiones generales al hecho de que en las casas jesuitas
existan talleres para la produccin de objetos artsticos, no sera un
antecedente suficiente para atribuir el San Jos a los hermanos jesuitas16.
De modo que, lo nico que se puede afirmar taxativamente es que
el san Jos que Benavides vio el ao 1927 en la capilla de la hacienda La
Punta es la misma pieza que actualmente se custodia en el Museo de
Arte Universidad de los Andes. El hecho de que La Punta haya sido una
hacienda jesuita hasta 1767 obliga a indagar acerca de la posibilidad de que

9
Benavides 1941, Op Cit: pg. 273
10
Pereira, Op. Cit: pgs. 80-117
11
Benavides 1988, Op. Cit: pg. 179
12
Benavides ofrece su apreciacin respecto a la presencia de talladores y escultores chilenos:
[] habra que convenir que en nuestro pas floreci en el siglo XVIII una escuela de
escultores capaces de competir con los mejores, no slo de Quito, sino tambin de Espaa.
Benavides, 1941, Op. Cit: pgs. 306-307
13
Carvacho: 1983, pg. 162
14
Melcherts: 1966, pgs. 44-45; Melcherts: 1982, pgs. 20-27; Cruz: 1984, pgs. 85-92
15
Cfr. Briceo: 1889; Roa: 1929
16
Cruz, Op. Cit: pg. 87

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

500
se trata de un trabajo de los coadjutores, sin embargo, no es posible, a partir
de ese nico antecedente, adelantarse a sacar conclusiones.

Los antecedentes documentales

Como es bien sabido la expulsin de los jesuitas y posterior incautacin


de sus bienes gener una vasta documentacin a partir de la cual es posible
reconstruir de manera ms o menos precisa lo que haba en las distintas
casas jesuitas el ao 1767. En el registro de los bienes de la hacienda se
puede leer la siguiente nmina de objetos individualizados para la capilla:

1 lienzo grande del patriarca San Ignacio


7 lienzos de varias advocaciones
1 campana pequea
4 blandones de plata
2 auxiliares de plata
1 cliz de plata con su patena
unas vinajeras de plata
cajas para pedir limosnas
1 santo Cristo en su cruz
1 imagen para sacar (?) rosario
1 atril para contar los apstoles del evangelio
3 campanillas de bronce
1 bulto de San Joseph y el Nio de una cuarta de alto con su diadema
de plata, su manto azul y de oro viejo y el Nio con su tnica y
potencias de plata 17.

El inventario da cuenta de la existencia como en muchas otras casas


jesuitas18- de un san Jos con el Nio, sin embargo, sus caractersticas no
coinciden con la escultura que se conserva en el Museo. La diferencia ms
evidente corresponde a las dimensiones, la pieza que estaba en la hacienda
jesuita el ao 1767 meda una cuarta, un poco ms de veinte centmetros,
17
Inventario capilla con su sacrista, septiembre 1767, ANC, Fondo Jesuitas Chile Vol . 2 f.
145. DOC. NO PUBLICADO
18
Se establece inventario de las haciendas, 1767, ANC, Fondo Jesuitas Chile Vol. 7 f.107 y
siguientes. DOC. NO PUBLICADO

Fernando Guzmn Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch

501
mientras el San Jos del Museo mide 104 centmetros de alto, diferencia
suficientemente amplia como para concluir que son dos esculturas distintas.
Por otra parte, el inventario del momento de la expulsin habla de una
imagen de vestir con elementos de platera que la imagen del Museo no
posee. Es cierto que a muchas piezas de talla completa se les agregaban
igualmente vestimentas de tela, por lo que la diferencia no sera del todo
concluyente, sin embargo, resulta difcil pensar que la figura del Nio de la
escultura del Museo hubiese llevado potencias en algn momento, puesto
que su cabeza no presenta las intervenciones habituales para sostener dichas
elementos19.
Es interesante observar, adems, que los inventarios no se refieren a
la Virgen de la Candelaria que Benavides habra visto en la hornacina del
retablo principal. Por el contrario, los documentos de 1767 individualizan
un Santo Cristo y una Virgen del Rosario de carcter procesional que el
arquitecto-historiador no advirti o no mencion en su descripcin de la
capilla. Todo parece indicar que las imgenes originales, tanto escultricas
como pictricas, no estaban en el edificio al comenzar el siglo XX. Es bien
probable, como ocurri en muchos casos con los objetos de culto de los
jesuitas expulsos, que los bienes sealados en el inventario fuesen aplicados
a alguna parroquia o iglesia conventual que los necesitara 20. Lo cierto es
que la escultura que Benavides vio en la capilla de la hacienda La Punta
-hoy en exhibicin en el Museo- no se encontraba en el lugar al momento
de la expulsin.
Es necesario considerar que las propiedades jesuitas fueron vendidas
y rematadas a lo largo de los aos siguientes21; la hacienda La Punta fue
adquirida en 1771 por Lorenzo Gutirrez de Mier en 14.622 pesos y 4

19
La conservadora Ana Mara Lucchini intervino esta pieza el ao 2010, explica que la
madera se encontraba en buenas condiciones y presentaba varias capas de policroma, con la
excepcin del rostro de san Jos. Los tratamientos incluyeron limpieza general, remover un
barniz extendido sobre toda la superficie, adhesin de una zona del manto y retiro de parte
frontal de la base (no original) para rectificar su posicin. Adems se tom la decisin de
proceder a reintegrar pictricamente algunos puntos faltantes y aplicar una capa de barniz
de proteccin.
20
Al momento de inventariar los bienes de las capillas jesuitas expulsos y siguiendo el
protocolo establecido por la Pragmtica Sancin y las Providencias, era necesario distinguir
los objetos de culto de otros elementos. Los primeros deban ser reasignados y mantener
su uso litrgico, los segundos podan ser vendidos junto con las tierras. Corts: 2011, pgs.
81-117
21
Un amplio estudio sobre este tema en: Bravo: 2004

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

502
reales22. Gutirrez tambin compr ese mismo ao la hacienda Pudahuel,
igualmente cercana a la ciudad de Santiago, que tambin perteneci a
la Compaa23. De modo que una posibilidad a tener en cuenta es que
esta escultura hubiese sido llevada, por algn motivo, desde Pudahuel a
La Punta por los nuevos propietarios. Sin embargo, en el inventario de
la hacienda Pudahuel no se describe una escultura con las caractersticas
que se estudia24. Todo parece indicar que los objetos de culto de La Punta
fueron trasladados a la iglesia del Colegio Mximo de San Miguel25, su
paradero posterior se desconoce; de modo que la capilla qued desprovista
de imgenes poco despus del ao 1767.
Todo esto llevara a concluir que el san Jos con el Nio que se
encuentra en el Museo habra llegado a la capilla de la hacienda La Punta
despus de la expulsin de los jesuitas, por iniciativa de alguno de los
propietarios posteriores. El ao 1927, cuando Benavides visit los edificios,
la escultura se encontraba en la capilla; su ubicacin y caractersticas han
sido el fundamento para postular que se trata de una pieza realizada en
Chile por los coadjutores germanos.

Anlisis formal

La calidad del tallado obliga a pensar en alguno de los talleres de


mayor prestigio del perodo colonial. Debe descartarse la posibilidad de que
la obra fuese ejecutada en Lima, pues la escultura de esa ciudad mantuvo
durante los siglos XVII y XVIII una forma de trabajar los volmenes que
no es comparable con el dinamismo y proyeccin espacial del san Jos
santiaguino, como puede verse al comparar la pieza en estudio con el san
Jos de origen limeo que se conserva en la Catedral de Melipilla26.
22
Bravo, Op. Cit: pg. 11
23
Ibid: pg. 17
Inventario hacienda Pudahuel 1770, ANC, Fondo Jesuitas Chile, Vol .15 f.37 y siguientes.
24

DOC. NO PUBLICADO
25
Inventario haciendas Las Tablas, Peuelas, La Punta, San Pablo, 1767, ANC, Fondo
Jesuitas Chile, Vol.2
26
Una rendicin de cuentas relativa a la fundacin de Melipilla seala lo siguiente: [...] me
pongo en data tres pesos que pague por la conduccin del cajn en que vino el bulto del
Patriarca San Jos que remiti el seor Virrey de Lima para esta iglesia y aunque no consta
de documento juro ser cierta la partida Ordenacin de la cuenta de la villa de San Jos de
Logroo, alias Melipilla, desde el ao de 1746 hasta el de 1763, Archivo General de Indias,
Catlogo Chile, Vol. 227. DOC. NO PUBLICADO

Fernando Guzmn Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch

503
Tampoco corresponde a la tipologa caracterstica de las tallas de
Quito, desde cuyos talleres salieron numerosas obras con destino a Chile,
particularmente durante el siglo XVIII. El rostro del san Jos que se
encuentra en el Museo posee una personalidad propia, con rasgos bien
definidos, muy alejado de las soluciones estereotipadas de las piezas
quiteas27. Tambin se puede observar que los pliegues de las telas se
representan con una voluntad naturalista que no es habitual en las tallas
americanas. En este sentido, cabra la posibilidad de que fuese una pieza
ejecutada por alguno de los escultores jesuitas germanos que vivieron en
Chile entre 1718 y 1767. Sin embargo, no es posible vincular la factura
del san Jos del Museo con ninguna de las esculturas atribuidas a factura
jesuitas28. No posee el dinamismo, ni la correccin anatmica que presenta
el San Sebastin que se conserva en la Parroquia de Santa Rosa de Los
Andes, tampoco guarda relacin con las complejas posturas que tienen
los evangelistas del plpito de la Merced, ni con la expresividad del San
Francisco Javier yacente de la Catedral de Santiago, as como tampoco se
puede comparar con los gestos especficos de los bultos de santa Ana y san
Joaqun, en el Museo de Maip y en la Catedral respectivamente.
No habiendo pieza con la cual establecer un punto de contacto resulta
difcil, por la va del anlisis formal, establecer que se trata de una pieza
tallada en Chile por alguno de los escultores jesuitas activos durante el siglo
XVIII: Bitterich, Engelhardt, Kellner o Lanz29.
Las esculturas realizadas por los jesuitas germanos que llegaron a
Chile durante el siglo XVIII son el fruto de las grandes transformaciones
del arte religioso que se van a comenzar a producir despus de la Guerra
de los Treinta Aos, 1618-164830. La carga dramtica y atormentada que
caracteriz al arte del norte durante el Renacimiento y el Manierismo es
anulada, dejando su lugar a formas ms acordes con el impulso triunfante
de la Reforma Catlica; los edificios, los altares, las pinturas y las esculturas
manifiestan una aguda necesidad de confesar la propia fe y las ganas de
vivir31. Algunos de los rasgos ms caractersticos del barroco germano del
sur son el despliegue de figuras en el espacio, su sensual teatralidad y una
27
Kennedy: 2002, pgs. 185-204
28
Bailey; Guzmn: 2011, pg. 721-726
29
Sierra Pastor: 1944, pgs. 184-186, 385
30
Lill: 1925, pg. 191
31
Schindler: 1997, pg. 209

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

504
nueva relacin con la luz; todo puesto al servicio de una impresin general
de jbilo y victoria32.
La bsqueda de juegos volumtricos y el sentido escnico que se
pretenda imprimir a los nuevos decorados encontr en la escultura un
medio especialmente apto. Esto explica, al menos en parte, la predileccin
por las obras talladas en desmedro de la pintura, fenmeno que se puede
observar en muchos sitios de Europa. El tallado de la madera era un oficio
muy extendido entre los germanos, hecho que permite entender mejor la
rpida recuperacin de la actividad despus de la Guerra de los Treinta
Aos. Al mismo tiempo, el arraigo popular del trabajo de escultura en
madera es una buena explicacin de la persistencia de las soluciones locales,
a pesar de la fuerte influencia del arte italiano33.
La escultura de san Jos pareciera contener ciertos rasgos formales que
la entroncan con la tradicin germana de la segunda mitad del siglo XVII y
de las primeras dcadas del XVIII. Esto, a pesar de la imposibilidad, como
se ha sealado, de vincular la pieza con las esculturas atribuidas a los jesuitas
germanos activos en Chile. Si la escultura muestra rasgos germanos y no
pertenece a lo que se ha denominado el barroco bvaro chileno, resulta
necesario plantear la posibilidad de que la pieza sea de origen brasilero, en
cuya produccin artstica se observa, de distintas maneras, la huella de la
arquitectura, la pintura, la escultura y las artes decorativas germanas.

Anlisis iconogrfico

La escultura de san Jos que se analiza corresponde, claramente, al


resultado de la renovacin de su iconografa, proceso que comenz tras
el Concilio de Trento. En Europa a san Jos se lo muestra, hasta la Edad
Media, como una figura secundaria, con rasgos de anciano de barbas blancas
y afn a los episodios de la infancia de Cristo. Es a partir del siglo XVI
que la Iglesia potencia su culto y figura como padre de Jess en la tierra,
promoviendo una vida centrada en Dios con sencillez y pobreza.
La Compaa de Jess cumpli un papel significativo en la configuracin
moderna de la representacin iconogrfico del santo34. Gracias a este
32
Lill, Op. Cit: pg. 192
33
Schindler, Op. Cit: pg. 214
34 Reau: 2001, pg. 164

Fernando Guzmn Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch

505
impulso san Jos ser representado como un varn adulto en plena posesin
de sus fuerzas fsicas; de este modo se puede dedicar al cuidado de Jess
Nio, tanto en la atencin por alimentos y vestimenta, como en el privilegio
de conducir su formacin35.
Ha gozado de gran predileccin en el arte sacro tambin en Amrica
durante el periodo colonial Muchas veces llamado el Seor San Jos,
especialmente a partir de 1678, fecha en que Carlos II lo instituye como
patrono de todos sus dominios36.
Los rasgos iconogrficos del san Jos del Museo son los habituales
para el siglo XVIII en Amrica y Espaa. El nico rasgo peculiar es la
tnica corta que viste el santo, quedando un cuarto de la pierna a la vista. La
pintura y escultura hispanoamericana muestra siempre a san Jos con una
vestimenta que le cubre completamente las piernas. La solucin de la pieza
en estudio parece ms cercana a las representaciones del arte italiano que
luego se replican en la escultura y pintura germana. Es interesante observar
que en la escultura brasilea del siglo XVIII se pueden apreciar ejemplos
de figuras de san Jos con tnica corta, evidenciando el traspaso de modelos
italianos o germanos, como el san Jos de las botas de la coleccin Antonio
Carlos y Adele Curiati37.

Anlisis material: comprensin cientfica de la madera de esta


escultura

Para completar la informacin sobre la pieza en estudio y conocer su


posible origen, se solicit un anlisis de laboratorio para la identificacin
de la madera constitutiva38. El examen de la muestra fue descrito
microscpicamente de acuerdo a lo establecido en la Lista Estndar de
Identificacin de Maderas de Latifoliadas (IAWA 1989)39, lo que llev
a establecer que el trozo estudiado corresponde a la especie Swietenia
35
Schenone: 1991, pg. 491 Sebastin: 2007, pgs.187-189
36
Barros Arana: 2000, pg. 239
37
Varios Autores: 2001, pg. 71
38
Este anlisis se realiz gracias a la colaboracin de la Universidad Adolfo Ibez, Santiago
de Chile y encargado a Carolina Araya/Conservador cientfico.
39
El anlisis present el siguiente resultado: Perforaciones de los vasos simples -
Puntuaciones intervasculares circulares alternas - Depsitos de goma en los vasos - Fibras
leosas - Radios leosos heterogneos, de 2 a 4 clulas de grosor.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

506
macrophylla King, perteneciente a la familia Meliaceae. En distintas partes
de Amrica es conocida con los nombres comunes de caoba, aguano, orura,
zopilote, acajou dAmrique y american mahogani, la que se distribuye en
zonas de selva tropical en Mxico, Centroamrica y Sudamrica tropical.
Se trata de una madera con albura de color amarillo rojizo y duramen
castao rojizo, brillante, sin olor, de textura media y grano recto a
entrecruzado. Es muy durable, de densidad promedio de 540 Kg/m3, por lo
que permite utilizarse tanto en estructuras de barcos como para el tallado
de esculturas.
Este resultado permite saber que se trata de una madera que no crece
en territorio chileno debido a las condiciones ambientales que sta requiere
para su crecimiento y desarrollo, y por tanto difcil de conseguir para los
artistas locales del siglo XVIII.

Conclusiones

Tanto el anlisis iconogrfico como el formal permiten, hasta cierto


punto, afirmar que la escultura podra ser obra de alguno de los talladores
jesuitas germanos que estuvieron activos en Chile durante el siglo XVIII.
Sin embargo, no se puede descartar la posibilidad de que se trate de una
pieza portuguesa o brasilea del mismo perodo, pues, en ambos sitios se
produjeron obras que, por tener influencia germana, se pueden emparentar
o confundir con los trabajos de los artistas jesuitas.
Estas peculiaridades formales e iconogrficas hablan de una pieza que
no corresponde a los patrones habituales en Hispanoamrica, razn que,
junto a su ubicacin en la capilla de la antigua hacienda jesuitas de La Punta,
permitieron postular a Benavides y con mayor claridad a Pereira Salas, que
la pieza haba sido realizada por artistas jesuitas germanos. No obstante,
el hecho de que el san Jos no hubiese estado originalmente en dicha
capilla, como parecen indicar los inventarios realizados en el momento de
la expulsin, abre las puertas a la hiptesis de que la escultura corresponda
al contexto luso americano. Se tratara de una imagen adquirida por los
propietarios posteriores de la hacienda con el fin satisfacer sus particulares
inclinaciones devocionales.
La identificacin de la madera de un rbol que no se desarrolla en
territorio chileno hara ms plausible pensar que la pieza fue tallada en otro

Fernando Guzmn Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch

507
lugar, posiblemente en Brasil. Sin embargo, la alternativa de que haya llegado
un trozo de caoba americana a Chile con las dimensiones adecuadas para
ejecutar una escultura de ms de un metro no se debe descartar totalmente
Lo cierto es que la escultura de san Jos con el Nio habra llegado a
la capilla de La Punta con posterioridad a la expulsin de los jesuitas, que
sus rasgos formales e iconogrficos evidencian un influjo germano, que fue
tallada en la madera de un rbol inexistente en los bosques chilenos y que
no se la puede vincular con ninguna de las esculturas realizadas por los
artistas jesuitas germanos activos en Chile durante el siglo XVIII.

Bibliografa

Bailey, G.; Guzmn, F.: The Saint Sebastian of Los Andes: A Chilean
Cultural Treasure Reexamined. Burlington Magazine, Vol. 155, Nm.
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Barros Arana, D.: Historia General de Chile, Tomo 5. Editorial
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Fernando Guzmn Schiappacasse y Marisol Richter Scheuch

509
Figura 1
San Jos con el Nio
Anmino
Siglo XVIII
Madera tallada, encarnada, policromada, sobredorada;
plata repujada y recortada; vidrio
(Inv. ES_004)

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

510
arte sacra: narrativas e colees

Artefatos religiosos setecentistas:


Reflexes a partir de acervos paulistas

Silveli Maria de Toledo Russo


Professora (arquiteta) e Pesquisadora.
Museu de Arte Sacra de Sacra de So Paulo

INTRODUO

Diante de exemplares que incorporam museus e colees particulares


paulistas possvel inferir o tipo de discurso adotado sobre as gramticas
decorativas, cujo teor permite identificar um panorama de manufatura car-
acterizado pela conjugao de contributos plsticos com importante in-
teno representao da temtica crist, atento s observncias religiosas
da poca, quer no que concerne aos atributos que as figuraes ostentam
quer nos ornatos a que se associam, corroborando a dinmica de anlise do
universo iconogrfico da religio catlica.
Os documentos da Igreja, orientados por um conjunto de conhecimentos
relativos a mais de dois mil anos, direcionam suas recomendaes e conceitos
ao fazer artstico no mbito do servio litrgico e da espiritualidade catlica.
Neste contexto, entendese que, alm da documentao tridimensional, as
fontes textuais dos documentos eclesisticos , fortalecem os desafios
colocados para a abordagem das formas materiais do passado, atualmente
musealizadas, surpreendendo os estudiosos com informaes inesperadas
da histria de nossa arte religiosa.
Desde o incio do sculo XX, sobretudo, com a existncia de rgos
oficiais determinados ao estudo e programas de preservao dos bens
culturais no Brasil, vislumbrase efetivamente o incio de uma produo
historiogrfica da cultura material brasileira. Com metodologias diversas,
procurouse estudar seus artefatos, considerando, alm da morfologia e da
cronologia, a mo de obra e os materiais neles empregados. E ainda, sem
ignorlos no conjunto de discursos e prticas prprios da sociedade que os
produziu, buscouse compreendlos em sua relao com o funcionamento
da vida cotidiana.

511
Quase que simultaneamente, esses estudos iniciais provocaram o
interesse de museus e colecionadores, dando prosseguimento ao processo
de constituio do saber histrico, que desde a centria anterior j chamava
a ateno para o passado como um objeto do conhecimento que marca
as sociedades. Dentre os diversos escritos sobre o mobilirio brasileiro
em geral, surgiram cronologias, designaes estilsticas, nomenclaturas e
tipologias tendo em vista o resgate da memria dessa produo no Brasil,
em perspectiva comparativa com as influncias do mobilirio de Portugal e
de suas matrizes culturais de influncias externas: orientais, mdioorientais
e europeias.
Esse critrio parece ter sido adotado no vocabulrio de vrios estudos
que se seguiram no sculo XX sobre o mobilirio brasileiro. Ao estudo
cronolgicoestilstico se acresce uma diviso dos mveis com vistas s suas
funes, tais como: mveis de trabalho, de refeio e decorao, de higiene,
de transporte, de utilidade, de guarda, de descanso e de prticas religosas.
Acerca desta ltima funo, comentase aqui sobre aquela que se destinava
s prticas religiosas vinculadas ao contexto das moradias coloniais.

FUNES E SIGNIFICADOS

Ao analisar tais artefatos cuja funo principal acolher imagens


veneradas no recesso do lar, observasse que os mesmos contemplam dois
universos funcionais (que por vezes se sobrepem): em um domnio, tem
se o gnero dos objetos devocionais, destinado ao retiro, ao recolhimento
e orao; em outro domnio, temse a produo em que eles aparecem
especialmente dispostos para a orientao das celebraes oficiais da Igreja
catlica, tais como o ofcio da missa, do batismo, do matrimnio e da
extremauno.
A metodologia seguida para a abordagem do tema cerca informaes
adquiridas em documentos conservados nos arquivos religiosos das
parquias e das dioceses, a exemplo do arquivo da Cria Metropolitana de
So Paulo, que disponibiliza aos pesquisadores interessados um vasto legado
documental em torno das disposies do Vaticano face condio americana
dos sculos coloniais, em que vigorava o regime do padroado. Adequadas s
condies locais, observase que as providncias e determinaes advindas
das autoridades eclesisticas tiveram reflexos diretos nos agenciamentos

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

512
dos espaos domsticos destinados ao exerccio religioso bem como nas
formas materiais que o assistiam.
Contudo, importa salientar o seguinte: mesmo que a anlise se
desenvolva no mbito da museologia religiosa, o processo de transformao
dos objetos litrgicos e devocionais em documento histrico eixo da
musealizao sugere uma problemtica que diga respeito a problemas que
se relacionem dinmica da vida religiosa das sociedades, na compreenso
das motivaes inerentes experincia religiosa domstica, devocional
e litrgica, ao longo dos sculos XVIII e XIX. Ideia que corrobora o
entendimento dos artefatos, tal como refere o historiador Ulpiano Meneses,
enquanto produto e vetor das relaes que seus usurios estabelecem em
sociedade.1
Ocorre citar que a investigao da natureza das relaes individuais
e familiares desenvolvidas no interior das habitaes perante os oratrios
e suas imagens, a venerao e o culto que se dispensavam, por exemplo,
imprescindvel tanto para a anlise dos usos precedentes dessa tipologia de
artefatos, agora musealizados, como para o estudo do contexto histrico de
origem dos mesmos, com suas constantes e variaes no tocante presena
de aspectos arquitetnicos e plsticos recorrentes. Ademais, as informaes
relativas aos atributos fsicos, s funes utilitrias, aos usos religiosos dos
artefatos e seu papel mediador na sociedade e no contexto da moradia
conferem inteligibilidade aos exemplares guardados nos museus.
Este tipo de contextualizao sobre objetos religiosos dispostos
em exposies museolgicas tem sido bem discutido entre historiadores
estrangeiros. Em artigo dedicado ao estudo da exposio do sagrado em
Portugal, Maria Isabel Roque reclama sobre a descontextualizao do objeto
religioso na histria da museologia at a ltima dcada do sculo XX. Sobre
isso, a autora menciona o seguinte: ainda que tenham evoludo os conceitos
museolgicos e os mtodos e as tcnicas de exposio do patrimnio
histrico e artstico, o objecto religioso continua a ser apresentado como
objeto de arte.2
Os questionamentos levantados pela autora podem ser considerados
como um sinal de alerta para a importncia de se investigar os usos
precedentes dos artefatos que compem os acervos museolgicos e, ainda,
1
Cfr. MENESES, 1998.
2
ROQUE, M. I. A exposio do sagrado no museu. Comunicao & Cultura. Lisboa, N.
11, 2011. Pp. 137.

Silveli Maria de Toledo Russo

513
analisar os contextos sociais de origem, a fim de conferir inteligibilidade
s peas distribudas na reserva tcnica e na rea expositiva da instituio
museolgica e qui da coleo particular. A partir de suas anlises, Maria
Roque comenta ainda que tais direcionamentos acabaram por iluminar as
primeiras iniciativas em que a apresentao museolgica alm de evidenciar
o valor patrimonial e artstico do objeto, passa a us-lo como cdigo na
explicao do ritual catlico: numa inteno simultaneamente informativa
e catequtica, definida a partir do seu significado e da sua funcionalidade
litrgica.3
E assim, oportunamente a esses comentrios, somase agora um olhar
para a riqueza e capacidade simblica das variedades pictricas subjacentes
ao desenvolvimento da produo dos oratrios domsticos no Brasil, que
denotam terem sido elaborados ora por artistas com formao especfica ora
por artfices com formao autodidata, mas nem por isso menos sensveis
visto o peculiar respeito dado ao ritual que lhes est associado.

SOBRE A GRAMTICA ORNAMENTAL

Diante de alguns dos exemplares em estudo (no mbito de ps-


doutorado), a incorporar museus e colees particulares paulistas, infere-se
o tipo de discurso adotado sobre as gramticas decorativas que permitem
identificar um panorama de manufatura caracterizado pela conjugao
de contributos plsticos de importante inteno representao temtica
crist. E, alm disso, atento s observncias religiosas da poca, quer no que
concerne aos atributos que as figuraes ostentam quer nos ornatos a que
se associam, corroborando a dinmica de anlise do universo iconogrfico
da religio catlica.
E assim contemplase uma conformao especial das temticas
introduzidas, com destaque aos santos patronos e aos smbolos religiosos
mais populares, representando relatos histricos ou de tradies religiosas
associadas aos santos, como a constituio de cenas da vida de Cristo,
da Virgem Maria e dos Santos do hagiolgico cristo que exemplificam,
entre outros, a caridade, a piedade, o sacrifcio, a f inabalvel e a misso
evangelizadora.

3
Cfr. ROQUE, Op.Cit: pg.138.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

514
Tem-se assim todo esse repertrio composto com enquadramentos
de diferentes caractersticas, designadamente, estruturas de ndole
arquitetnica e paisagstica. No exemplar a seguir (FIG. 1), originrio do
Estado de Pernambuco, visualizase singular composio com colunas de
fuste torso, espiralado, pseudosalomnicas, e capitis com referncia
ordem clssica corntia.
O arremate superior em arco concntrico trabalhado de forma a
acompanhar o entalhe do fuste das colunas; desenvolvimento este tem
razes muito antigas na cultura portuguesa. Na modelagem da base, das
colunas e dos arcos aparecem concheados, folhas de parreira e msulas em
volutas de acanto, indicando um clima emocional que extravasa por toda
a pea. J as pinturas se apresentam com surpreendentes manifestaes:
no camarim cena citadina de Jerusalm e na face interna das portas: de
um lado o smbolo do sol a enaltecer a presena da luz divina, e do outro
a lua, a simbolizar qui o feminino da Virgem, envoltos por ornatos
que refletem uma ideia a primeira fase da pintura colonial no Brasil, os
grotteschi, ou brutescos - como eram denominados pelos portugueses.
Sob o resguardo do mesmo acervo particular, h outro oratrio de
grande singeleza (FIG. 2) onde vemos o sacrrio incorporado pea e a
indiscutvel evocao do Rococ nos painis inseridos na folha interna das
portas, com pintura em cartelas assimtricas de bordos recortados, cada
painel recebendo uma cartela com desenho dos atributos da crucificao.
Interessa notar tambm a pintura do camarim que procura criar um
habilssimo efeito celestial organizado pelos dezoito anjos que circundam
o resplendor. Nessa pintura de colorido escuro h uma particularidade: o
dourado figurando como cor e parece convidar o observador ao recolhimento
e meditao.
Do mencionado acervo, outro artefato contribui agora para relevar
o proeminente trabalho indo portugus, sobretudo no que refere ao
tratamento dos ornatos utilizados. o caso da representao alcanada
pelo prximo oratrio (FIG. 3), do sculo XVIII.
O exemplar resulta na conjugao de elementos arquitetnicos de
destacada complexidade escultrica (entalhe, dourao e policromia),
fechandose por meio de portas, cujas folhas internas acolhem um nicho
com dossel, de madeira entalhada e concepo indianizada, conduzindo
o olhar a uma pintura de imitao de tecido, com destaque s borlas que
pendem da parte superior da composio, oferecendo um inusitado efeito

Silveli Maria de Toledo Russo

515
cenogrfico. J na tbua de fundo do camarim, o forro de desenho arqueado
apresenta pinturas florais rompendo a limitao visual do teto.
Notase no tratamento dado abertura do camarim, um rendilhado que
envolve o aro fazendo moldura para o trono que centraliza a composio.
Observase ainda que os traos fisionmicos da imagem da Nossa Senhora
nele inserida mostram o trabalho de um artista indiano. Foi nos anos finais
do sculo XVI e no incio do seguinte que o tipo iconogrfico da Imaculada
Conceio, assim como se pode reconhec-la na colonizao da Amrica
portuguesa, alcana seu formato baseado na descrio escatolgica da
mulher do Apocalipse e da Virgem das Litanias. Deste modo, encontrase
a Purssima, na pose de orao sobre o crescente da lua.
Seguindo as conceituaes do historiador portugus Rafael Moreira
(19982000, p. 539), ocorre lembrar que a cidade de Goa foi um dos
maiores centros de produo da arte indoportuguesa, pelo fato de abrigar
importantes institutos religiosos, onde os oratrios entalhados encontram
se entre as criaes mais notveis da fuso artstica operada na ndia pelos
artistas locais, inspirados, por certo, em modelos portugueses continentais e
na solicitao corrente do culto catlico.
Outra diferenciao no tratamento espacial so as formas curvas com
diferentes solues: ornatos que se reportam talha, sanefas acompanhadas
por ricas ornamentaes, resultando desta disposio um entalhamento
curvo e movimentado mais adequado a composies cenogrficas que
arquitetnicas. De derivao rococ, vislumbrase neste prximo exemplar
como em outros analisados a adoo dos elementos rocailles, predominncia
de volutas, curvas e contracurvas, bem como remates que se mostram em
diversos formatos de estilizao fitomorfa, e ainda o gosto pela policromia
em revestimentos que imitavam tecidos suntuosos.
Em outros oratrios, entre formas diversificadas no vocabulrio das
pinturas, ressaltase o encadeamento de festes que se completa com o
trabalho da marchetaria em fitas, a pintura imitando tecido e, de outra
forma, a pintura de imitao de mrmores a pedra fingida, de particular
incidncia; recurso este, visto na base do oratrio, a seguir, em que nas
pinturas, destacamse tambm o dispositivo cnico de montes e rochedos
(FIG. 5), a representar qui o monte Tabor, o Sinai, o altar do sacrifcio de
Isaac, o Horeb, o monte das Oliveiras, a gruta da Natividade, o calvrio ou
o sepulcro trao compositivo que influenciou toda a Europa Central e a
Amrica com vrias gravuras.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

516
Ainda sobre este ltimo exemplar, inferese que o mesmo em suas
representaes direcionadas a membros de ordens religiosas parece ter sido
um dos meios mais eficazes na formao da memria da prpria Igreja
militante, visto o propsito de reabilitar em pleno sculo XVIII a memria
de Doutores da Igreja Latina, tais como o papa So Gregrio Magno,
os bispos Santo Ambrsio e Santo Agostinho de Hipona, So Jernimo,
e os franciscanos So Boaventura e So Bernardo, cujas referncias
ornamentais e de vestimentas utilizadas relacionamse com as distintas
funes ordenadas pela Igreja, correspondendo aos testemunhos coevos que
chegavam Amrica entre os sculos XVII e XVIII, entre retratos literrios
e estampas de gravuras.
Cabe destacar que, para a compreenso do mobilirio no Brasil, de
suas funes, ornamentaes e qualidades ergomtricas, esta anlise
percorre diversos acervos cujas composies apresentam inestimveis
conjuntos remanescentes do mobilirio colonial, possibilitando, inclusive,
ao pesquisador interessado, apreender o cotidiano vivenciado pelas
sociedades daqueles tempos, no somente no interior das moradias
como tambm no interior dos espaos religiosos. Fcil notar que o
desafio terico metodolgico que se aplica a essa dinmica importante
momento de inflexo nos estudos sobre cultura material , tem em vista
engrandecer o sentimento de brasilidade que permanece vivo entre museus
e colecionadores, os responsveis por sua continuidade.

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Silveli Maria de Toledo Russo

519

Figura 1
Oratrio (jacarand). Pernambuco. Sculo XVII.
232 x 114 x 59 cm.
Acervo particular ACF, So Paulo.
Fonte: Acervo.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

520
Figura 2
Oratrio. Minas Gerais. Sculo XVIII.
192 x 110 x 47 cm.
Portas Contendo os atributos da crucificao;
pintura central interna contendo dezoito anjos.
Imagem: Calvrio; Crucifixo, N. Senhora e So Joo Evangelista.
Ouro e Prata. Portugal.
Sculo XVIII.
Acervo particular ACF, So Paulo. Fonte: Acervo.

Silveli Maria de Toledo Russo

521
Figura 3
Oratrio. Sculo XVIII.
155x73x44 cm.
Imagem N. Senhora da Conceio, indoportuguesa.
Sculo XVIII. 40 cm.
Acervo particular, ACF. So Paulo.
Fonte: Acervo.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

522
Figura 4a
Oratrio aberto
Madeira entalhada, dourada e policromada.
Sculo XVIII. 180,0 cm alt.
Acervo Museu de Arte Sacra de So Paulo, So Paulo.
Fonte: Acervo.

Silveli Maria de Toledo Russo

523
Figura 4b
Oratrio fechado.
Madeira entalhada, dourada e policromada.
Sculo XVIII. 180,0 cm alt.
Acervo Museu de Arte Sacra de So Paulo, So Paulo.
Fonte: Acervo.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

524
narrativas, historiografia e memria

Construes balticas: Historiografia do bal no Brasil


e percepes contemporneas

Rousejanny da Silva Ferreira


Professora do curso de Licenciatura em dana do Instituto Federal de Gois
Campus Aparecida de Goinia. Pesquisadora do grupo INTERARTES
INTERMDIAS UFG. Orientadora acadmica do curso de Licenciatura
EAD em Artes Cnicas-UFG. Mestranda em Performances Culturais-UFG

Nas ltimas dcadas as pesquisas em dana tm delineado diversos en-


tendimentos e leituras a fim de problematizar os traos filosficos, sociais,
artsticos, entre outros aspectos que a constituem. A preocupao com os
caminhos determinados pela sistematizao artstica da dana, no caso o
bal, a dana moderna e contempornea, comumente chamadas de dan-
a acadmica, instigou a reflexo de conceitos e estruturas sistematizadas,
como o bal clssico. Originalmente o termo dana acadmica era um
termo vulgar para tratar do bal clssico, como aponta o Oxford dictionary
of dance 2 edition (2010), sendo hoje um termo genrico e apenas classifi-
catrio utilizado para tratar das formas de dana que no as danas de salo,
populares, folclricas etc.
Por isso, a dana tem buscado remexer o seu passado e refletir suas
questes do presente investigando quem, por que e como formularam-se
determinadas interpretaes, imposies e poderes delineadores de um vis
histrico e suas respectivas verdades. Voltando-se para a produo biblio-
grfica iniciada em solo brasileiro, temos a partir da segunda metade do
sculo XX, um pequeno conjunto de autores (geralmente vindos da forma-
o como bailarino, coregrafo e pouqussimos crticos de dana) que assu-
miram a funo de pesquisadores e escritores na tentativa de documentar,
popularizar e sistematizar conhecimentos sobre a dana acadmica, ainda
to incipiente em nosso pas nesta poca. Isso, de fato, louvvel pelo desejo
de organizar registros em uma rea de conhecimento que no Brasil, at a
dcada de 1980, possua uma tmida bibliografia, escassas tradues, apenas
um curso superior de dana 1 e pouco chamava ateno de campos como a
teoria da arte ou as cincias humanas.
1
A Universidade Federal da Bahia foi a primeira a oferecer o curso superior em dana
no Brasil, no ano de 1956. O segundo curso s surgiu em 1984 na Faculdade de Artes do

525
De acordo com crtico e historiador da dana, Roberto Pereira (1965-
2007, Rio de Janeiro) os primeiros registros de dana no Brasil surgiram
com a proposta de formao de uma tradio, no intuito de fomentar um
pblico que acompanhasse e pensasse as feituras artsticas da dana que
comeava a se formular nacionalmente. Tanto a crtica jornalstica 2, quanto
o registro histrico feito por bailarinos e professores foram importantes no
estabelecimento do projeto cultural e educativo, que norteava o que poderia
ser uma dana de/para teatros, que atendesse principalmente as elites das
capitais do Rio de Janeiro e So Paulo. No entanto, (PEREIRA, 2007, pg.
45) ressalta que tais publicaes apresentavam diversas fragilidades refe-
rentes aos preceitos e preconceitos que norteiam a dana, j que apontavam
muito mais uma afinidade e gosto pessoal do autor, que uma reflexo ou
investigao dos traos que a constituam.
Porm, a fragilidade da construo escrita da dana no se restringiu
s terras brasileiras. Ainda no ano de 1953, nos Estados Unidos, Susanne
Langer aponta em seu livro Feeling and Form: A Theory of Art (Sentimento e
Forma [1953] 1980) a limitao da bibliografia norte-americana da dana
apontando-a com os mesmos sintomas encontrados na literatura brasileira
de dana: acrtica, pseudo-etnolgica e pseudo-esttica, e que conduzia
o observador mecnica e acrobacia, ou a encantos pessoais e desejos er-
ticos (LANGER, 1980, p. 177). Langer uma das primeiras tericas da
modernidade a provocar a escrita sobre a dana produzida at aquele mo-
mento, convocando os historiadores e crticos da dana - como rea de
conhecimento com suas prprias especificidades 3 - a assumir e discutir seu
lugar enquanto arte.
Na proposio de destrinchar de que maneira isso delineou alguns en-
tendimentos sobre o bal, investigo uma possvel leitura do bal que escape
ao reforo de dogmas e preconceitos que ainda dominam sua historiografia,
a fim de mant-lo como uma prtica da obedincia, do celestial e mantene-
dor de tradies e concordncias inalterveis. Observa-se em grande parte
Paran num convnio entre a Fundao Teatro Guara e a Pontifcia Universidade Catlica
do Paran.
2
Ver CERBINO, Beatriz. Jaques Corseuil e a crtica de dana no Brasil, 2011. Disponvel
em: http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/viewFile/1792/1455.
3
Como descreve (Cfr.TAMBUTTI, 2008) a dana, nos sculos XVII ao XIX era
considerada como uma atividade de ilustrao da palavra, e secundria, dependente das reas
dos encaminhamentos da orquestra e da pera. a partir do sculo XX, com a dana moderna,
a dana comea a ser reconhecida como rea de fato, com suas prprias especificidades onde
se procura discutir e sistematizar os pontos cruciais de suas prticas.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

526
da produo bibliogrfica a respeito da histria da dana e histria do bal
o reforo de apenas um recorte histrico delineado entre o perodo romn-
tico (sculo XVII) e os bals de repertrio do incio do sculo XX e que,
mesmo valorado, traz poucas aberturas para discusses polticas, estticas e
seus desdobramentos no fazer atual.
Tal leitura encobriu outros acontecimentos, principalmente modernos
e contemporneos que agregaram ou distanciaram-se de sua proposio
tida culturalmente como clssica. No Brasil, isto to marcado na com-
preenso do que imagina como bal, que, mesmo atualmente, a percep-
o, formao, difuso de obras, assim como companhias de bal ainda tm
grande como grande propulsor o ideal imagtico do clssico, mesmo sua
esttica e discusso extrapolem tal recorte histrico.

1.1 Como delineou-se a escrita histrica do bal

Os primeiros registros4 sobre o bal no Brasil surgem na primeira me-


tade do sculo XX impulsionados pela inaugurao da Escola de Danas
Clssicas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro (1927). Com a abertura
desta escola, vrios coregrafos europeus como as russas Maria Olenewa
(1896-1965) 5 e Tatiana Leskova (1922) 6 fixaram-se no Brasil para tra-
balharem em escolas de dana, academias, clubes femininos e de etiqueta
tornando-se prtica popular entre a elite e a classe mdia das grandes capi-
tais que viam no bal um modelo de formao artstica e cultural.
A histria social do bal foi e permanece imbuda de negociaes e
tramas feitas a fim de definir o que seria um modo elegante e politicamente
correto de se portar socialmente. O carter disciplinador, ereto e direcio-
nado principalmente para a formao educativa do corpo da mulher dire-
4
No Brasil, j havia iniciado a pesquisa e publicao de danas sociais com o livro:
PATRICIO, A. D.: Novssimo e completo manual de dana, tratado theorico e pratico das
danas de sociedade. B. L. Garnier, Livreiro Editor, Rio de Janeiro. 1890; e os estudos
de ANDRADE, M. Danas dramticas, Introduo e Primeira Verso. Arquivo Mrio de
Andrade, IEB/USP, 1934
5
Iniciou seus estudos em dana em Moscou em 1916. Em 1926 mudou-se para o Brasil e
no ano seguinte fundou, juntamente com o crtico teatral Mrio Nunes, a primeira escola
profissionalizante de bal no pas, a Escola de Danas Clssicas do Theatro Municipal do
Rio de Janeiro (atual EEDMO). Em 1943 assumiu a direo da Escola de Bailados da
cidade de So Paulo.
6
Chegou ao Brasil em 1944, na cidade do Rio de Janeiro, onde vive at hoje. Assumiu a
direo do corpo de baile do Theatro Municipal, pela primeira vez, em 1950, aos 28 anos.

Rousejanny da Silva Ferreira

527
cionou seu ensino para fins eugnicos e polticos no s no Brasil, mas em
diversos pases em que esta se desenvolveu como a Frana e a Rssia. E no
contexto da formao/educao que surge a primeira publicao de histria
do bal no Brasil: A dana e a escola de ballet (1956) escrito pelo profes-
sor Pierre Michailowsky (1888-1970, Rssia) formado pela tradicional Es-
cola Imperial de Artes. Ele mudou-se para o Brasil em 1926 e direcionou
seu trabalho de bal para clubes frequentados por jovens que no tinham
o anseio de serem bailarinas e tinham o bal como uma prtica corporal
importante para o que era considerada uma formao social feminina.
O referido autor apresenta seu livro como um material fundamental
para a formao da juventude brasileira que estuda dana, e se define como
um pioneiro no Brasil no estudo terico e tcnico do bal, com seu enfoque
artstico-pedaggico fundamentado na histria, teoria e tcnica desta dan-
a. Segundo ele, o livro partiu da necessidade de teorizar e sistematizar o
pensamento de bal no pas, j que seu aprendizado ainda se dava predomi-
nantemente via conhecimento oral e corporal de professores e coregrafos
aqui residentes.
Michailowsky v a transformao histrica da dana no ocidente como
um processo evolucionista que atingido pela eugenia e a razo, partiu de
danas menos desenvolvidas (tidas como primitivas) para atingir formas
organizadas e artsticas que desencadearam no produto artstico chamado
bal. Ele formalizou em seu texto o trato universal e norteador do bal,
colocando-o frente de outras categorizaes da dana servindo inclusive,
como moralizao e modelo de arte. Como o autor afirma:

Sendo a essncia potica da imaginao abstrata, a dana clssica


universal, a linguagem da divindade perdida entre os mortais. Ela
no conhece os limites dos grupos ticos nem as fronteiras poltico-
-nacionais. A arte da dana clssica no tem ptria, sendo patrim-
nio universal de toda a humanidade (MICHAILOWSKY, 1956, p.
135).

No h registros de outra produo bibliogrfica no Brasil a respeito


da histria da dana at a dcada de 1980, momento em que esta alavan-
cou com livros de artistas e crticos de dana, que mesmo sem o apuro de
leituras sobre a arte, histria, cultura, dispuseram-se a escrever e construir a

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

528
quase inexistente historiografia da dana. Tendo como referncias o livro de
Michailowsky, algumas bibliografias em lngua estrangeira e tradues de
livros como Danser sa vie (Danar a Vida [1973] 1983) do filsofo Roger
Garaudy (1913-2012) e Histoire de la danse en Occident (Histria da Dana
no Ocidente [1978] 1987) do francs Paul Bourcier (s/d), a pesquisa hist-
rica da dana no Brasil deu seus primeiros passos.
Os livros que teo uma breve anlise neste trabalho7 foram publicados
por pesquisadores brasileiros que enfatizaram uma leitura do cenrio arts-
tico da dana e dedicaram-se a pensar o bal. So estes: Ballet: uma arte
(1980) da matre Dalal Achcar; Pequena Histria da Dana (1986) do
crtico e professor Antnio Jos Faro; Histria da Dana (1989) da jor-
nalista Maribel Portinari; e Histria da Dana: Evoluo Cultural (1999)
da professora Eliana Caminada. Tais materiais so, at hoje, importantes
referncias da histria artstica da dana no Brasil e no mundo ocidental,
apesar de algumas frgeis reflexes sobre os sentidos e contextos que nor-
teiam seus aspectos sociais e artsticos. No entanto, vejo a necessidade de
reconhecer nestas publicaes um ato corajoso de iniciar uma poltica da
escrita e pesquisa em dana no Brasil que, at a dcada de 1980, no acon-
tecia em uma adequada medida.
Sobre isso, o pesquisador Roberto Pereira em seu artigo Livros de his-
tria da dana no Brasil: porque eles merecem ser lidos, publicado na cole-
o Hmus - RS (2007), atenta para o esforo destes autores para a coleta
de dados e construo textual, que mesmo entre informaes tendenciosas
ou contraditrias foi por muito tempo foi nossa principal pra no dizer
nica fonte de acesso histria da dana. Segundo o autor:

Mas hoje, o pesquisador, o terico da dana que pode constatar isso


deve, antes de tudo e generosamente: primeiro, entender de que lu-
gar essa fala foi produzida, qual era a sua origem e qual era o seu in-
tento, mesmo que ingnuo; segundo, mapear como e porqu existia
a falta desse tipo de informao no pas naquele momento em que
essa fala foi produzida; terceiro: indagar se j existiam profissionais
capacitados a produzir/disseminar essa informao e porque isso
no foi feito; e quarto, respeitosamente (para no dizer, argutamente
tambm) tomar essas falas como documentos, como registros, como
7
Alm dos livros aqui discutidos, foram publicados outros livros que abordam a histria
da dana como: ELLMERICH, L.: Histria da Dana. So Paulo: Ricordi, 1964;
MENDES, M.: A Dana. So Paulo, tica. 1985; e SUCENA, E.: A dana teatral no
Brasil. Fundao Nacional de Artes Cnicas, Ministrio da Cultura. 1988

Rousejanny da Silva Ferreira

529
fonte de uma histria que se fazia contaminada por aquele que mis-
turava diferentes ofcios (PEREIRA, 2007, p. 52).

O que o autor nos grifa a necessidade de compreender, ou melhor,


localizar de onde partem as falas e em que conjuntura elas aconteceram.
Dessa forma, podemos, atualmente, construir e problematizar as lacunas e
fissuras deixadas por estes e outros autores, que muitas vezes, com recursos
limitados, colocaram-se como os autores pioneiros da histria da dana.
Detenho-me bibliografia brasileira sobre histria da dana produ-
o produzida entre as dcadas de 1980 e 1990, momento em que foram
lanados quatro importantes livros de histria da dana: Ballet: uma arte
(ACHCAR, 1980); Pequena Histria da Dana (FARO, 1986); Histria
da Dana (PORTINARI, 1989); Histria da Dana: Evoluo Cultural
(CAMINADA, 1999), a fim de identificar os discursos concebidos ao bal
e como isso repercutiu no entendimento atual desta forma de dana.
Inicio com a anlise do livro Ballet: uma arte (1980) 8 da coregrafa e
matre de bal Dalal Achcar (1956, Rio de Janeiro). Achar formou-se como
bailarina no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e logo depois assumiu o
cargo de presidente da Fundao deste teatro, trazendo para o Brasil em
1970, professores da renomada instituio Royal Ballet de Londres (Ingla-
terra) para aprimorar e disseminar o ensino do bal em vrios estados do
Brasil.
A autora aborda em oito captulos, as estruturas que considera princi-
pais no bal: a coreografia, a msica, o vesturio e as aulas de dana, usando
a histria da dana como roteiro para explicar tais elementos. Ao longo da
escrita, segundo seu ponto de vista, aponta os princpios de educao, for-
mao e esttica que gerem a dana como arte. Para Achcar, o bal a dan-
a imortal, sem fronteiras, feita por pases civilizados (ACHCAR, 1980, p.
15) e numa viso evolucionista e simplria defende que a dana progrediu
at chegar ao bal, marco na competncia e organizao da arte da dana.
De acordo com a autora, para adentrar este universo artstico o bailarino
deve ser altamente disciplinado e atender s exigncias que a complexida-
de que essa dana civilizada tomou. Achcar afirma ainda que, sendo o
corpo humano o instrumento da arte da dana necessrio disciplin-lo
e desenvolv-lo a fim de que atinja, por meio de movimentos harmnicos

8
A segunda edio do livro foi lanada em 1998.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

530
e coordenados, toda a plasticidade, pureza de linhas e expresso possveis
(ACHCAR, 1980, p. 15).
Tal polidez e o desejo de progresso permeiam o entendimento do bal
como instrumento de dominao cultural, determinando historicamente
normas sobre como, onde, e quem pode danar artisticamente, detendo-
-se principalmente s valoraes culturais e caractersticas de cada dana.
Sobre isso, Susana Tambutti (2008) afirma que a beleza produzida pelas
formas e narrativas do bal trouxe consigo uma concepo idealista, espi-
ritual e moralista, que devem ser atentamente observadas. As propores e
harmonias do bal podem muitas vezes determinar - por sutilezas e belezas
- valores coercitivos de corpo, dana e cultura consensualmente imbricados
em sua formao artstica.
No mesmo vis de Achcar, o crtico e professor de histria da dana
Antnio Jos Faro (1933-1991, Rio de Janeiro) publica Pequena histria
da dana (1986) divido em cinco captulos. No primeiro captulo (origem e
divises da dana) explana sobre uma possvel origem da dana e como esta
se dividiu culturalmente em tnica, folclrica e teatral 9. Apesar disto, nos
captulos seguintes dedica quase todo o livro aos acontecimentos relaciona-
dos ao bal, abortando a dana tnica, folclrica, inclusive a teatral, mesmo
que a ideia inicial descrita pelo autor seja a abordagem de todo o contexto
artstico da histria da dana.
Faro trata a histria do bal de modo descritivo trazendo predomi-
nantemente datas e histrico das principais companhias e coregrafos,
sem entrar em maiores detalhes ou problematizaes. Ao discorrer sobre
as transformaes da dana nos ltimos sculos, atribui ao bal os grandes
feitos e evolues, considerando a dana moderna e principalmente dan-
a contempornea como processo de decadncia, denominado pelo autor
como retrocesso da dana e apelao (FARO, 1986 p.127). Ao tratar da
dana contempornea, movimento que comeava a ganhar espao no Bra-
sil na dcada de 1980, traz poucas informaes, porm, aponta a seguinte
questo:
mais uma tentativa de se criarem novos espaos, novas formas de
expresso, mas o resultado desta mistura no parece muito enrique-
cedor para a dana como tal, j que tais espetculos atraem o pblico
mais como curiosidade do que propriamente como arte. Um bom
bal, tal como um bom conto, uma boa msica ou uma boa pea,

9
Definio do autor. No livro no aparecem autores ou conceitos que referenciem tal diviso.

Rousejanny da Silva Ferreira

531
deve aguar nossa vontade de voltar a v-lo outras vezes. E cada vez
que o virmos haver sempre uma renovao das emoes que devem
ser despertadas. A arte imediatista como um panfleto poltico: a
gente l, amassa e joga fora (FARO, 1998, p. 126).

Faro, preconceituosamente defende a autoridade do bal como dire-


cionador dos tratos dados a dana como produto da cena artstica. Sua po-
sio desemboca num olhar minimizado e equivocado para outras danas
que no compartilharam dos mesmos preceitos tcnicos e estticos do bal.
Contrrio a este tipo de pensamento, a historiadora da dana Laurance
Louppe (1938-2012, Frana) sinaliza em seu livro Potique de la danse con-
temporaine (Potica da dana contempornea [1997] 2012) a necessidade
da ruptura com a viso linear, e muitas vezes ingenuamente progressista
da histria da dana (LOUPPE, 2012, p. 43) e aponta que preciso ex-
plorar novos modos de percepo e vias de anlise, para que os conheci-
mentos tericos e prticos da dana sejam identificados e compreendidos
(LOUPPE, 2012, p. 48). A crtica e criticidade da dana foram lugares
muito frgeis e ao mesmo tempo determinadores do qu deveria legitimar-
-se, portanto, analisar as transformaes da dana a partir de uma possvel
evoluo ou involuo, torna-se no mnimo perigoso e taxativo.
O terceiro livro analisado aqui Histria da dana (1989) dividi-
do em oito captulos, da jornalista e historiadora Maribel Portinari (s/d,
Rio de Janeiro). A autora busca, ao mesmo modo que Jos Faro, fazer um
panorama geral da histria da dana desde suas formas primeiras (tidas
como primitivas) at a dana contempornea. A autora, como era de se
esperar, dedica grande parte do livro a histria do bal, principalmente em
seu perodo romntico e clssico, ocorrido entre os sculos XVIII e XIX e
defende a superioridade do bal frente a outras danas, como por exemplo,
a necessidade do domnio tcnico do bal para a aprendizagem de outras
ramificaes da dana acadmica. De acordo com Portinari (1989):

Quem domina a tcnica do ballet pode se quiser interpretar uma


coreografia moderna (...). Mas aqui a recproca no verdadeira. Um
profissional formado exclusivamente na tcnica da dana moderna
no faz 32 fouetts nem entrechats, nem cabrioles, no sabe danar
sobre as pontas (PORTINARI, 1989, p.134).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

532
As discusses tericas e as prticas relacionadas cena artstica da dan-
a h tempos necessitam de um debate aprofundado para reconhecimento
das peculiaridades dos movimentos artsticos e a superao de um ideal tc-
nico supremo que reja as demais construes da dana. Submeter a dana
moderna ou qualquer outra natureza de dana ao estudo comparativo com
a construo tcnica especializada do bal significa continuar replicando
hierarquias e velar o entendimento das particularidades corporais, culturais
e estticas desenvolvidas no ltimo sculo e que inclusive, reagiram ao mo-
delo de bal instaurado.
Apesar de tudo, ao contrrio dos outros autores apresentados aqui,
Portinari apresenta maior trato com a escrita da histria da dana, trazendo
dados e reflexes importantes sobre o desencadeamento do bal, da dana
moderna, do jazz e da dana contempornea no Brasil, Amrica do Norte
e Europa. No entanto, a autora preserva o bal como um modelo superior,
uma dana consoante hierarquia construda em torno de si e acrtica s
transformaes artsticas das ltimas dcadas, trao este que custou muito
para a compreenso mais ampliada de suas transformaes e problemticas.
Longe de ser congelado no tempo, o bal tambm construiu e discutiu suas
fissuras, costurando histrias no to lineares e passivas como aquelas des-
critas nos livros aqui apresentados.
Fora das elaboraes das companhias legitimadas, o bal estabeleceu
frutferos dilogos que questionaram inclusive, algumas concepes hie-
rrquicas, estticas e metodolgicas defendidas pelos autores aqui citados,
como a publicao das Cartas sobre a dana de Jean Georges Noverre
(1727-1810, Frana) em 1760 que toma como base algumas reflexes sobre
a dramaturgia e a liberdade criativa do bal; o empreendimento da com-
panhia Ballets Russes (1909-1929, Paris) com coregrafos e bailarinos que
deram o tom para discusses modernas sobre o bal; e mais recentemen-
te (dcada de 1990), as problematizaes metodolgicas e conceituais do
coregrafo norte americano William Forsythe (1949), assim como outras
aes que borbulham por artistas e pesquisadores atuais.
Para finalizar, trago o livro Histria da dana: evoluo cultural (1999)
da pesquisadora de bal e professora Eliana Caminada (s/d, Rio de Janeiro).
Caminada, j no pr do sol do sculo XXI, se prope a abordar o percurso
da dana em uma forma mais detalhada, desde sua organizao nas antigas
civilizaes at a formao da dana contempornea. Sendo o livro mais
extenso (486 pginas) de todas as obras relatadas at aqui, a autora constri

Rousejanny da Silva Ferreira

533
a escrita da histria utilizando fotografias pessoais e breves relatos de sua
carreira como bailarina profissional, usando diversas imagens e referncias
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, local de sua formao.
notvel o apreo e dedicao da autora aos estudos histricos do
bal, j que quase toda a escrita dedicada aos acontecimentos deste na Eu-
ropa, Estados Unidos e Brasil. Entretanto, mesmo sendo a publicao mais
recente dos livros aqui pesquisados, a autora pouco aprofunda na escrita da
dana moderna, contempornea, ou mesmo, em abordagens mais atuais e
ousadas do bal ao longo do sculo XX, adotando o mesmo ponto de vis-
ta de Portinari (1989) de que as construes da dana seguem uma linha
temporal/substituvel, e vinculadas estritamente a perodos especficos da
histria da arte e da dana.
Assim como Dalal Achcar, Eliana Caminada apresenta sua viso afir-
mativa e soberana sobre o bal. Caminada afirma: o ballet se tornou uma
arte imortal (CAMINADA, 1999, p.87) pela sua complexidade e impo-
nncia conquistada ao longo da historia da dana no Ocidente. Na mes-
ma linha de pensamento, reafirma o tom de civilidade e progresso que os
autores anteriores j trouxeram, ao afirmar que: sabe-se que nem todos os
povos possuem talento na mesma proporo, contudo, seria um tanto levia-
no falar que existem povos que no dancem (CAMINADA, 1999, p. 01).
Os discursos formalizados socialmente sobre o bal e, neste contexto,
as pessoas que escreveram sobre ele fixaram pressupostos colonizadores que
demarcam o bal como dana modelar e utopicamente perfeita para sofrer
discordncias que alterem seus status. Estas escolhas, de fato, representam
lugares polticos da dana que tentam preservar hierarquias estilsticas e
endossar o controle dos discursos/aes formulados sobre esta no presen-
te. Atualmente, passamos por um momento de grandes transformaes
na pesquisa histrica em dana, tanto no Brasil quanto no cenrio inter-
nacional. No Brasil, pesquisadores como Helena Katz, Roberto Pereira (in
memorian), Fabiana Britto e Mariana Monteiro foram impulsionadores de
leituras histricas da dana que traaram importantes reflexes polticas,
filosficas e sociais 10 que possibilitaram visualizar o imenso cho de lacu-
nas ainda no investigadas na dana cnica e principalmente, no terreno do
bal.
10
Ver MONTEIRO, M.: Cartas sobre a dana. So Paulo: Edusp/Fapesp, 1998;
PEREIRA, R..: A Formao do Bal Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2003; PEREIRA,
R.: Giselle, o Vo Traduzido da Lenda ao Bal. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2003;
BRITTO, F.: Temporalidade em Dana: Parmetros para uma Histria Contempornea.
FID, , Belo Horizonte. 2008

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

534
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

ACHCAR, D.: Ballet: Uma Arte. 2 edio. Ediouro, Rio de Janeiro.1998


CAMINADA, E.: Histria da Dana: Evoluo Cultural. Sprint, Rio de
Janeiro. 1999
CERBINO, B.: Jaques Corseuil e a Crtica de Dana no Brasil. 2011.
Disponvel em: http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonli-
ne/article/viewFile/1792/1455.
FARO, A.: Pequena Histria da Dana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 1986
LANGER, S.: Poderes Virtuais. In: Sentimento e Forma. Ed. Perspecti-
va, So Paulo. 1980.
LOUPPE, L.: Potica da Dana Contempornea. Orfeu Negro, Lisboa.
2012
MICHAILOWSKY, P.: A Dana e a Escola de Ballet. MEC, Rio de
Janeiro.1956
OXFORD,DICTIONARY OF DANCE. 2 edition. 2010 Dis-
ponvel em: http://www.oxfordreference.com/view/10.1093/
acref/9780199563449.001.0001/acref-9780199563449. Acesso em
nov. de 2014.
PEREIRA, R.: Livros de Histria da Dana no Brasil: porque eles mere-
cem ser lidos In: NORA, Singrid. (Org.) Hmus 2. Lorigraf, Caxias
do Sul. p. 43-54, 2007
PORTINARI, M.: Histria da Dana. Nova fronteira, Rio de Janeiro.
1989
TAMBUTTI, S.: Itinerrios Tericos de la Danza: La Autonomia Como
Relato Abarcador. 2008. Disponvel em: http://www.redalyc.org/
pdf/1632/163219835001.pdf. Acesso em 30 de jun. 2013
_______________. Danza y Pensamiento Moderno. 2011. Disponvel
em: http://pt.scribd.com/doc/57706295/Danza-y-to-Moderno-Por-
-Susana-Tambutti. Acesso em 30 de jun. 2013

Sites:
http://www.wikidanca.net/wiki/index.php/Maria_Olenewa. Acesso em
ago. de 2014.

Rousejanny da Silva Ferreira

535
http://www.wikidanca.net/wiki/index.php/Tatiana_Leskova. Acesso em
ago. de 2014

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

536
narrativas, historiografia e memria

O arquivo Marta Rossetti Batista:


Indcios de um fazer historiogrfico

Roberta Paredes Valin


Mestre pelo Instituto de Estudos Brasileiros/USP
Marina Mazze Cerchiaro
Mestranda pelo Instituto de Estudos Brasileiros/USP, bolsista FAPESP
Morgana Souza Viana
Graduanda em Cincias Sociais pela FFLCH/USP,
bolsista de iniciao cientfica SANTANDER

Introduo

Marta Rossetti Batista, paulista nascida em 1942, formou-se em


Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de So Paulo em 1964. Na
mesma instituio, tornou-se mestre em Artes, com a dissertao Anita
Malfatti e o Incio da Arte Moderna no Brasil, em 1980, e obteve o ttulo de
doutora, com a tese Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris Anos 20, em
1987. Foi tambm na Universidade de So Paulo, mais especificamente no
Instituto de Estudos Brasileiros IEB, que iniciou sua carreira docente, em
1969, vindo a ocupar, no mesmo instituto, os cargos de vice-diretora, entre
1990 e 1994, e de diretora, entre 1994 e 1998. Em 30 de maio de 2007,
faleceu, deixando legado importante para a histria da arte e da cultura
brasileira, tanto como pesquisadora e docente como por sua atuao
frente da diretoria do IEB.
Aps sua morte, em 15 de fevereiro de 2008, seu acervo pessoal,
constitudo ao longo desses mais de 40 anos dedicados vida acadmica,
foi doado ao IEB por Luiz Olavo Batista (vivo da titular) e passou a
integrar os trs setores do instituto: Arquivo, Biblioteca e Coleo de Artes
Visuais. O acervo extenso e contm documentao de natureza variada.
Na Biblioteca, encontram-se livros, catlogos, revistas e jornais sobre
temas afinados com suas pesquisas, perfazendo um total aproximado de
2 mil volumes; e, na Coleo de Artes Visuais, consta um conjunto com
aproximadamente 180 peas de objetos populares.

537
Com o objetivo de realizar um trabalho inicial de extroverso do
Fundo, em junho de 2013 surgiu o projeto De Anita ao IEB Mapeamento
e descrio parcial do Fundo Marta Rossetti Batista do IEB/USP, contemplado
pelo Edital 2012-2013 do Programa de Pesquisa nos Acervos da USP,
subsidiado pela Pr-Reitoria de Pesquisa da Universidade de So Paulo,
sob a coordenao da professora Ana Paula Cavalcanti Simioni. O projeto
deveria ser realizado em cinco meses e visava: 1) diagnosticar o estado de
conservao do Fundo; 2) elaborar um inventrio temtico referente
documentao; e 3) catalogar documentos referentes formao de Anita
Malfatti na Frana.
Ao longo do processo de inventrio, o projeto tornou-se mais abrangente
e algumas modificaes foram necessrias, o que resultou na ampliao
do recorte do projeto para Artistas Brasileiros na Frana, beneficiando a
extroverso do Fundo e o acesso do consulente interessado. Essa mudana
de recorte levou continuao do projeto at o presente momento, de
maneira voluntria, incluindo mudanas na equipe de pesquisadores.
O desenvolvimento do plano de trabalho envolveu trs etapas, as duas
primeiras j concludas e a terceira ainda em execuo: 1) diagnstico
do estado de conservao do Fundo e elaborao de inventrio temtico
referente documentao; 2) higienizao e acondicionamento adequado
do acervo; 3) triagem e indexao ao SGA dos documentos referentes aos
Artistas Brasileiros na Frana.
Primeiramente, investigou-se o contedo de todo o Fundo, o que
implicou a leitura completa da documentao. A partir da, foi possvel
realizar o diagnstico do Fundo. Ao mesmo tempo, ia se estabelecendo
o inventrio temtico. Ao todo, foram inventariadas 247 caixas, que
apresentavam: documentos pessoais; documentos resultantes de pesquisas
e outras atividades acadmicas; documentos institucionais; livros e revistas;
fotografias; correspondncias; negativos, slides, plantas arquitetnicas,
microfilmes e objetos tridimensionais.
Realizada a triagem e estabelecido o inventrio temtico, elaborou-se
um quadro de arranjo inicial, ainda passvel de alteraes. Sua estrutura
segue elencada em categorias e subcategorias, cuja hierarquia vai das
generalidades s especificidades. As categorias adotadas seguiram critrio
funcional, refletindo o conjunto de atividades do organismo produtor de
arquivo, no caso a pesquisadora Marta Rossetti Batista, representadas em
Grupos, Subgrupos e Temas.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

538
Neste artigo trataremos da documentao referente aos Artistas
Brasileiros na Frana, recorte do projeto, que faz parte do Grupo Atuao
como Pesquisadora do quadro de arranjo. Ela nos permite fazer alguns
apontamentos sobre a metodologia de pesquisa de Marta Rossetti Batista,
bem como reflexes sobre as narrativas de histria da arte construdas pela
historiadora.

O arquivo como indcio de uma histria: a construo de uma


narrativa do modernismo

A categoria denominada Atuao como Pesquisadora traz materiais


que foram divididos em dois subgrupos: Estudos para Obras e Obras.
No primeiro, foram definidas outras 11 categorias representativas dos
temas de pesquisa de Batista: Anita Malfatti; Mrio de Andrade; Adriana
Janacpulos; Victor Brecheret; Tarsila do Amaral; Antnio Gomide; Celso
Antnio; Toledo Piza; Arte Popular e Religiosa; Arquitetura; Revistas
e Catlogos Franceses. Essas categorias refletem uma organizao j
estabelecida pela historiadora ao compor dossis, pastas de artistas e
cadernos de anotao que ordenavam os documentos.
Entre os materiais relacionados nesse subgrupo esto cadernetas e
cadernos, blocos, folhas avulsas com anotaes manuscritas, inmeras
fotocpias de artigos de jornais, revistas francesas e brasileiras , alguns
catlogos dos Sales franceses na dcada de 1920 e de captulos de livros de
interesse; entrevistas; correspondncias relacionadas s pesquisas de Batista;
e at mesmo fotocpias de documentos de arquivos de artistas.
A maioria dos documentos de gnero textual, sendo alguns
iconogrficos. So muitas as tcnicas de registro utilizadas manuscritos,
datilografados, digitalizados e impressos grficos, em papis diversos,
apresentando em grande parte anotaes, correes, grifos e rasuras e
grande a quantidade de fotocpias em preto e branco, muitas vezes de um
mesmo documento, o que garante ao Fundo caractersticas peculiares.
A condio financeira privilegiada da historiadora lhe permitiu usar
um instrumental que seguia o compasso das mudanas tecnolgicas. Os
documentos mais antigos do Fundo foram produzidos de prprio punho ou
datilografados; os mais recentes, j em computadores, como alguns textos
e e-mails trocados com a Editora 34 sobre a vida e obra de Anita Malfatti.

Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana

539
O subgrupo Estudos para Obras nos revela a investigadora meticulosa,
incansvel, paciente e sistemtica que era Batista e nos aponta a metodologia
de pesquisa desenvolvida pela historiadora. Suas fontes, de modo geral,
constituam-se de documentos escritos, principalmente artigos de jornais
e revistas, relatos orais e documentos de arquivo de artistas. Batista valia-
se ainda, como instrumento de pesquisa, de fotografias com reprodues
de obras. Seus fichamentos demonstram grande preocupao em recuperar
dados biogrficos dos artistas analisados e em construir cronologias da vida
deles e de suas produes, em uma tentativa de compor fases e perodos.
O segundo subgrupo Obras composto de livros e textos escritos
pela pesquisadora, que foram subdivididos nas seguintes categorias: Brasil:
1 Tempo Modernista; Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris; Anita
Malfatti no Tempo e no Espao; Bandeiras de Brecheret; Cartas de Mrio
de Andrade a Anita Malfatti; Catlogos do IEB; Livros e Textos No
Publicados. Nesta ltima categoria, esto textos e provas dos livros, por
vezes inditos, de autoria ou coautoria de Batista, que no se enquadram
nos itens anteriores. Nesse subgrupo, a documentao inclui esboos
iniciais dos livros, verses, provas tipogrficas e documentos resultantes de
conversas estabelecidas entre Batista e as editoras. Por meio desse material,
possvel acompanhar o progresso do texto, bem como as anotaes
indicando alteraes, correes, ampliaes e excluses feitas pela prpria
autora.
Um olhar atento aos documentos presentes nesses dois subgrupos
permite captar alguns eixos norteadores dos modos de fazer histria da arte
de Batista: 1) seu objeto de estudo so os artistas ligados ao modernismo
brasileiro; 2) suas anotaes demonstram preocupao em estabelecer
cronologias; 3) grande parte do acervo constituda de artigos publicados
pela imprensa, sobretudo escritos por crticos, fonte importante para as
reflexes de Batista.
Esses eixos mostram que a pesquisadora seguia uma metodologia
tradicional da histria da arte. Desde Giorgio Vasari (1550), a histria
da arte buscou escrever biografias de artistas. Quando Marta opta por
compreender o movimento modernista brasileiro, ela combina essa primeira
metodologia com outras duas. De um lado, o entendimento de que a arte
se d por uma evoluo de estilos e escolas e, de outro, que ela fruto de
um esprito do tempo. Essa articulao bastante explcita na definio
de modernismo de Batista:

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

540
O termo modernismo que eles mesmos usavam para se classificar
no quis e no quer dizer uma escola com regras rgidas, mas serve
para designar aqueles que, negando os padres ultrapassados da arte
brasileira do incio do sculo, procuram desenvolver uma linguagem
nova para expressar seu tempo e seu meio. Engloba escritores como
Mrio de Andrade e Oswald de Andrade, msicos como Villa-
Lobos e artistas plsticos estes ltimos sero examinados aqui.
O movimento modernista fruto da prpria situao da cultura
brasileira da poca: tanto do cansao e esgotamento das frmulas
de arte em uso esgotamento que propicia o aparecimento do novo
como das transformaes por que passa o pas. O modernismo
fruto da poca, sculo XX, e do meio brasileiro, que finalmente se
interessa pela arte nova e procura a brasilidade.

Esse trecho parece evocar o texto Conceitos Fundamentais da Histria


da Arte, de Heirich Wlfflin, que figura na bibliografia da dissertao de
Marta Rossetti Batista sobre Anita Malfatti, defendida em 1980. Para
esse autor, a evoluo da arte no feita de uma srie de pontos isolados,
mas de indivduos que se organizam em grupos. A histria da arte para
ele tem como problema de investigao as condies que determinam o
estilo de um indivduo, de um povo e de uma poca. Caberia ao historiador
compreender o estilo pessoal do artista, em seguida o de uma escola, para
ento entender o estilo de um pas e de uma poca. Essa ideia perpassa os
trabalhos de Marta, uma vez que ela procura compreender o artista e o
movimento modernista tendo como horizonte a reflexo da arte brasileira.
Justifica-se assim sua preocupao em estabelecer cronologias de artistas
e obras. Faz sentido tambm a pesquisa da historiadora com artigos de
imprensa e principalmente a utilizao de textos de escritores modernistas.
com base neles que ela consegue apreender os artistas plsticos como um
grupo, j que eles no procuraram teorizar sobre suas obras.
As relaes entre o arquivo de Batista e a construo de uma narrativa
de histria da arte podem ser mais bem observadas com base em uma
anlise pontual dos documentos referentes s duas pesquisas de maior
flego realizadas pela historiadora: sobre os artistas brasileiros em Paris e
sobre Anita Malfatti.

Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana

541
Mapeando o meio artstico parisiense: as revistas como fonte
documental

Quando comeamos a inventariar o acervo Marta Rossetti Batista,


interessadas nos documentos referentes s pesquisas da historiadora sobre
a formao dos artistas brasileiros em Paris, nos surpreendemos com a
gama de artigos fotocopiados das revistas francesas LAmrique Latine, La
Renaissance, LArt Vivant e Le Crapouillot. Os artigos eram da dcada de
1920 e estavam organizados em dossis de acordo com a revista e o ano,
armazenados em quatro caixas. Com eles, havia dois cadernos dedicados
exclusivamente ao levantamento de dados referentes s revistas. Esses
materiais esto atualmente em fase de catalogao. Despertam grande
interesse, no apenas pela dificuldade de encontrar essas revistas no Brasil,
e at mesmo na Frana, mas tambm porque dizem respeito forma de
pesquisar de Batista. So raros nmeros inteiros de revistas fotocopiadas; o
mais comum nos depararmos com dois ou trs artigos de cada edio. Em
geral, eles contm grifos a lpis ou marca-texto. So sobre eventos artsticos
ocorridos no perodo, principalmente sales; crticas e tambm colunas que
tratam de lanamento de livros e de inaugurao de exposies em galerias
e cafs parisienses.
Os grifos ressaltam nomes de artistas brasileiros e franceses atuantes
no perodo, de galerias e exposies, bem como reprodues de obras.
Demonstram a vontade de Marta de mapear o ambiente artstico parisiense.
A presena desses artigos no arquivo faz pleno sentido quando lemos
sua tese Os Artistas Brasileiros na Escola de Paris Anos 20. Boa parte da
pesquisa desse trabalho se assenta em jornais e revistas da Paris dos anos
1920, como nos lembram as notas de rodap e os anexos finais, que trazem,
de maneira cuidadosa e generosa, cada nome de artista brasileiro estudado
com a referncia aos artigos parisienses em que foi citado. Em uma poca em
que no havia documentos digitalizados disponveis via internet, a pesquisa
em revistas requeria longo tempo e empenho do pesquisador. O interesse
de Marta por essa fonte e o modo como lidava com ela so fundamentais
para a compreenso de sua metodologia.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

542
Arquivos cruzados: as pesquisas sobre Anita Malfatti no Fundo
Marta Rossetti Batista

Anita Malfatti no Tempo e no Espao (2006) uma das biografias mais


completas sobre a artista, fruto de exaustivo levantamento de documentao.
Cartas, entrevistas, artigos de peridicos, catlogos, fichamentos,
cronologias, reproduo de obras, cadernos de anotaes e de desenhos,
muitos deles fotocopiados na tentativa de sistematiz-los, esto entre as
fontes e mtodos aos quais recorreu Batista. Ao observar a parte do acervo
referente s pesquisas sobre Malfatti, percebe-se que Batista no s se
esforou para conhecer fatos sobre a vida da pintora mas tambm procurou
esmiuar seu trabalho artstico e o significado de sua vida e atuao para a
arte brasileira.
Com base nessas fontes variadas, muitas delas obtidas pela leitura e
anlise do acervo de Anita Malfatti que tambm se encontra no IEB, Marta
Batista buscou apresentar a artista e sua obra com complexidade, para alm
dos esteretipos criados pelos modernistas e seus inmeros interlocutores
ao longo do tempo, que a projetaram como cone de uma renovao que se
fazia imediata no Brasil pela verve expressionista de suas obras expostas em
1917 e, anos depois, a criticaram pelos rumos intencionalmente tomados
da sua produo pictrica.
Batista reconstri a trajetria de Anita Malfatti baseada em trs
momentos em que ela pde reconhecer o que chamou de trs Anitas:
o primeiro vai de sua infncia at a emblemtica individual de 1917; o
segundo aborda os contornos decorrentes aps a exposio, sua ida a Paris
pelo Pensionato Artstico de So Paulo e os anos que seguiram at o incio
da dcada de 1930, quando retorna ao Brasil; e, por fim, o terceiro momento
o mais extenso, at sua morte, em 1964 contempla o perodo em que
volta a dar aulas, destacando suas experincias exitosas com crianas em seu
ateli, suas exposies retrospectivas e, sobretudo, seu direcionamento para
uma pintura de temticas regionais e religiosas, com luz aos personagens,
paisagens e festas do interior de So Paulo.
Os dois ltimos momentos demonstram os esforos de Marta em
revelar uma Anita desconhecida, de temperamento forte e, ao mesmo
tempo, sensvel e reservada, caractersticas que lhe permitiram fazer

Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana

543
escolhas motivadas por suas crenas e gostos apesar de sua modesta
situao financeira.
Ao debruar-se sobre a fase francesa da artista, perodo em que suas
obras foram incompreendidas pela crtica brasileira (por isso mesmo dos
mais interessantes para a historiografia da arte brasileira), a pesquisadora
retoma a tessitura de suas relaes sociais e os nveis em que elas se deram,
tanto no campo afetivo das amizades quanto no profissional e artstico;
e suas vivncias pelos espaos de formao e exposio franceses. Mas,
sobretudo, nos revela outra faceta de Anita: a desenhista incessante, bolsista
dedicada, que se mostrou virtuose e aclamada pela crtica na Frana quando
l esteve, entre 1923 e 1928.
O arquivo mostra que, ao montar parte do complexo quebra-cabea do
percurso da artista em Paris, Batista manteve dilogo estreito com o acervo
de Anita. Principalmente ao confrontar a correspondncia entre Malfatti
e Mrio de Andrade e os cadernos de desenho da artista documentos
que se complementam, seja na reconstruo de sua trajetria em Paris,
seja no entendimento dos liames de seu processo criativo. A maior parte
dos cadernos foi feita em Paris e tinha como temtica os nus femininos.
Eles foram peas fundamentais para a pesquisadora compreender e revelar,
ainda que de forma inicial, as variaes de estilo pelas quais o desenho de
Anita passou: dos nus americanos, sobretudo masculinos e com alta carga
expressionista, entre 1915 e 1916, aos franceses, produzidos entre 1923 e
1928, lineares, sem rebuscamentos e deformaes, sintticos e precisos, cujo
grande vigor clssico, de acordo com Tadeu Chiarelli (1995), so dignos de
uma anlise de Winckelmann.
Em seu acervo, claramente se desenha a linha de investigao que
adotara para os cadernos da artista. A metodologia de anlise que Marta
desenvolveu tinha como objetivo tentar estabelecer uma cronologia para os
cadernos, uma vez que no foram datados (e por isso tornaram-se fontes
bastante complexas), e compreender o estilo e as temticas do seu repertrio
grfico. Marta ento reproduziu vrias pequenas imagens dos desenhos e
as colocou em sequncia em grandes pranchas. Abaixo de cada imagem,
veem-se muitas anotaes manuscritas. Foram encontradas no acervo da
pesquisadora sete pranchas, mas elas no contemplaram a totalidade dos
desenhos presentes nos cadernos.
Ao optar pela biografia como narrativa de histria da arte, Marta procura
quebrar os esteretipos que cercam Anita, abrindo novos caminhos de

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

544
percepo sobre sua vida e obra. Como estratgia metodolgica, empenha-
se em compreender as obras e os movimentos artsticos que rodeavam
Malfatti, no se restringindo aos momentos de sua atuao artstica mais
valorizados pela historiografia. Divide perodos da vida e produo da
artista, buscando montar cronologias e detectar estilos. A principal fonte
documental de Batista o arquivo pessoal e familiar de Malfatti, o qual
explora de modo exaustivo. Esses so alguns dos modos de fazer histria
da arte que permitem a Batista compor uma anlise inovadora sobre a
trajetria artstica da pintora, que, at ento, encontrava-se eclipsada pelas
vises de Paulo Mendes de Almeida e Mrio da Silva Brito.

Concluso

Ana Paula Cavalcanti Simioni, em artigo intitulado Modernismo


Brasileiro: entre a Consagrao e a Contestao, demonstra que na histria
da arte brasileira o modernismo foi visto de trs formas diferentes. Em um
primeiro momento, de 1917 a 1940, houve sua glorificao, com os agentes
que participaram do movimento procurando narrar sua histria. O segundo
perodo, de 1940 a 1970, caracterizado pela sua institucionalizao e
legitimao no meio acadmico. O fim da dcada de 1970 marca o terceiro
perodo, no qual surgem trabalhos de contestao viso instituda do
modernismo, instaurando um perodo de revisionismo crtico.
O Fundo Marta Rossetti Batista dispe de documentos que nos
permitem entender com mais clareza o primeiro momento, devido ao
levantamento de relatos orais, bem como de textos de agentes ligados ao
modernismo; e o segundo momento, pelo fato de a historiadora ter feito
parte de uma gerao de intelectuais que buscaram escrever e legitimar
certa perspectiva sobre o modernismo brasileiro.
Batista construiu uma narrativa sobre o modernismo no apenas no
plano acadmico mas tambm por meio de atividades de curadoria e gesto
e difuso de acervos. Partiu dela a organizao dos catlogos sobre a coleo
Mrio de Andrade: Catlogo Coleo Mrio de Andrade Artes Plsticas e
Coleo Mrio de Andrade Religio e Magia/ Msica e Dana/ Cotidiano;
a publicao das cartas de Mrio de Andrade para Anita Malfatti e do
guia geral de acervos do IEB. Foi Marta tambm quem coordenou o
processamento do Arquivo Anita Malfatti. Como diretora do Instituto

Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana

545
de Estudos Brasileiros, reconhecido pela sua importncia como guardio
de acervos de artistas e intelectuais modernistas, a historiadora contribuiu
ainda para modelar o perfil da instituio. Os documentos referentes a
essas atribuies esto ainda por ser catalogados nas categorias Atuao
como Curadora e Atuao como Diretora do IEB. So essenciais para
compreender a histria de arte feita por Marta Rossetti Batista.
Como procuramos demonstrar, o arquivo de Marta fundamental
para o conhecimento sobre arte e arquitetura no Brasil, sobre o Instituto
de Estudos Brasileiros e a Universidade de So Paulo, bem como para o
entendimento da trajetria e obra dessa intelectual proeminente que atuou
como pesquisadora, professora, diretora do IEB e curadora, impactando o
cenrio universitrio e cultural brasileiro.
No nosso intento fazer aqui uma anlise detalhada sobre a histria
da arte escrita por Batista. No somos pesquisadoras da obra de Marta. Mas
foram nossas pesquisas e nossos questionamentos sobre o modernismo e
as lacunas de documentao sobre o perodo que nos levaram ao encontro
do arquivo da historiadora e nos motivaram a process-lo. Com este artigo,
buscamos demonstrar quanto esse arquivo abrangente, fonte inesgotvel
de investigaes. Fornece material para aqueles cujas pesquisas versam
sobre o modernismo brasileiro dos anos e 1920 a 1940; para os que se
interessam pelas instituies acadmicas e artsticas dos anos de 1970 a
1990; e, sobretudo, para aqueles que tm como foco de estudo a histria da
arte brasileira, uma vez que o prprio arquivo se torna objeto de pesquisa,
uma narrativa a ser investigada.

Referncias bibliogrficas

ALMEIDA, P. M. De Anita ao Museu. So Paulo: Editora Perspectiva,


1976.
BATISTA, M. R. Anita Malfatti no tempo e no espao: Biografia e estudo
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Editora 43, 2012.
______ e LIMA, A. P. C. Marta Rossetti - Escritos sobre arte e modernismo
brasileiro. So Paulo: Editora 34, 2012.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

546
BAXANDALL, M. Padres de inteno. A explicao histrica dos
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BRITO, M. S. Histria do Modernismo Brasileiro: antecedentes da
Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,
1997.
CAMARGOS, M. Entre a vanguarda e a tradio. Os artistas brasileiros
na Europa (1912-1930). So Paulo: Alameda, 2011, e Villa Kyrial:
crnica da Belle poque paulistana. So Paulo: Editora Senac, 2001.
CHIARELLI, T. Anita Malfatti - Expressionista e clssica. In: Anita
Malfatti: Desenhos dos Anos 10 e 20 . So Paulo: Galeria Sinduscon,
1995.
MENESES, R. C. Modernismo e Tradio. A produo de Anita Malfatti
nos anos de 1920. Tese de Doutorado em Artes Visuais. Campinas,
Instituto de Artes, 2012.
PINTO, S. M. de Carvalho. A controversa pintura de Anita Malfatti.
Tese de Doutorado. Curso de Ps-Graduao da Faculdade de
Filosofia, Cincias Humanas e Letras rea de concentrao Esttica.
Universidade de So Paulo, 2007.
SIMIONI, A. P. C. Viajes progresivos x regresivos: las rutas mltiples
de los artistas brasileos en Pars, aos 1920. In: Las Redes del Arte.
Intercambios, procesos y trayectos en la circulacin de las imgenes. VII
Congreso Internacional de Teora e Historia de las Artes. XV Jornadas
CAIA, 2013, Buenos Aires. Las Redes del Arte. Intercambios, procesos
y trayectos en la circulacin de las imgenes. Buenos Aires: CAIA,
2013. v. 1. p. 173-186
_____________. Modernismo brasileiro: entre a consagrao e a
contestao. Perspective, v. 14, 2014. Pp. 1-31.
VALIN, R. P. Cadernos-dirios de Anita Malfatti uma trajetria
desenhada em Paris. Dissertao de Mestrado pelo de Ps-Graduao
em Culturas e Identidades Brasileiras. So Paulo, Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de So Paulo, 2015.
WOLFFLIN, H. Conceitos Fundamentais da Histria da Arte. So
Paulo: Martins Editora, 2001.

Roberta Paredes Valin, Marina Mazze Cerchiaro e Morgana Souza Viana

547

narrativas, historiografia e memria

Narrativa, cine e historia

Yanet Aguilera
Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao de Histria da
Arte da Universidade Federal de So Paulo.

Para Jacques Aumont y Michel Marie las primeras historias del cine
son apenas enumeracin descriptiva de las invenciones y de los retratos, en
la mayora hagiogrficos, de los pioneros de la industria (2001:152). Las
narrativas inaugurales de la historia del cine son consideradas, en general,
superficiales, una especie de inicio incipiente de los estudios cinematogrfi-
cos. Todava, a estas apreciaciones les escapa la temporalidad de la enumera-
cin y de la construccin de los retratos que producen un sentido histrico
especfico. Terry Ramsaye piensa, por ejemplo, la invencin del quinescopio
como un peldao que llega al star system, visto como pice y consolidacin
del cine como tecnologa e industria (1986: 72-73). Este recorrido cro-
nolgico elabora una narrativa histrica que privilegia intelectualmente la
cinematografa de los Estados Unidos, que se torna el lugar donde se inven-
t y se consolid el cine, con el poder de formular su definicin. Se releva
el hecho de que el cinematgrafo es una invencin francesa y se rebajan
otros inventos, como el bioscopio de los Skladanowsky1, por ejemplo, a una
mera curiosidad. No es un enredo rudimentario, es la reiteracin del propio
mtodo histrico. Concebir tales narrativas como incipientes es reduplicar
la perspectiva histrica sin ninguna interrogacin.
Tambin la obra de Sadoul (1975) aparece como incipiente, apesar de
que se la considera una precursora ms digna del abordaje histrico2. Las
suposiciones de Sadoul no son diferentes de aquellas de Ramsaye porque
buscan establecer una sintaxis del lenguaje cinematogrfico cronolgica-
mente. El close-up, el movimiento de la cmara y el montaje, en germen en
las primeras invenciones de las imgenes en movimiento y en las primeras
1
Max y Emil Skladanowsky, en noviembre de 1895, dos meses antes de la primera exhibi-
cin del cinematgrafo de los Hermanos Lumire, mostraron imgenes proyectadas por el
bioscopio. Ver. Die Grebrder Skladanowsky, filme de Wim Wenders, de 1996.
2
Gian Piero Brunetta lo coloca como un proto-historiador del cine internacional (filmes
que no son del circuito Europa y Hollywood) (2004:229).

549
pelculas del cinematgrafo, solamente alcanzarn el status de lenguaje con
Mlis y tendrn pleno desarrollo con Griffith (Sadoul, 1975:III). El obje-
tivo principal es formular, ms una vez, un desarrollo progresivo de la tc-
nica cinematogrfica, aqu apoyada en el montaje, que ser el elemento pri-
vilegiado en la formulacin de la sintaxis (Sadoul, 1975:IV). El cine mudo
sovitico ser el punto culminante de este transcurso (Sadoul, 1975:IV).
El privilegio del montaje, adems de afirmar el proceso evolutivo, concibe
a las pelculas narrativas como el mismo cine. Las invenciones anteriores al
cinematgrafo y las pelculas del inicio, como no construyen narrativas, son
considerados una pre-historia, en la cual el cine aun no haba aprendido a
narrar, actividad que se torna su finalidad y esencia. En lneas generales se
repiten las suposiciones de Ramsaye.
La jerarqua que disminuye Ramsaye no es vlida simplemente porque
el trabajo de Sadoul es ms complejo. La palabra de este estudioso no es
la de un crtico o periodista que piensa improvisadamente, tiene el aval de
instituciones importantes, en la cuales particip activamente la Cine-
mateca Francesa y algunos cineclubs representativos (Vignaux, 2009:252).
Fue tambin profesor de Historia del cine en el Institut des Hautes tudes
Cinmatographiques y en Institut de Filmologie de la Sorbonne. La academia
ayud a consolidar su taxonoma como referencial para otras tentativas de
historiar el cine3, para su difusin y para el anlisis de las pelculas. Sadoul
deja como herencia la concepcin de una historia linear y teleolgica, la
consolidacin del cine narrativo como paradigma, la elaboracin de un mo-
delo gua basado en las reflexiones tericas y crticas de las obras cinema-
togrficas europeas y de los Estados Unidos, y la investigacin acadmica
como argumento de autoridad. Es un legado importante para considerarlo
ultrapasado. No basta decir que el concepto de historia de su obra es ya fue
cuestionado, pues varios fundamentos aun permanecen activos y muchas
directrices de su pensamiento se mantienen intocadas en el presente. Eso
se ve, por ejemplo en la monumental Histoire du Cinema, de Jean Mitry y
otras tentativas de historiar el cine hechas recientemente.

3
Podemos encontrar cuatro tentativas de escribir una historia del cine. La de Georges Sa-
doul, la Jean Mitry, Histoire du Cinma Art et Industrie (Paris, ditions Universitaires,
1967-1980), escrita em 5 tomos: Tomo I (1895-1914), Tomo II (1915-1925), Tomo III
(1923-1930), Tomo IV (1930-1940), Tomo V (annes 40) Fue publicado tambin Storia
del Cinema Mondiale (Torino, Guilio Einaudi, 2001), de Gian Piero Brunetta, escrito en 5
tomos: Tomo I - LEuropa, Tomo II - Gli Stati Uniti, Tomo III - LEuropa, Tomo IV - ,
Americhe, Asia, Africa, Oceania, Tomo V - Teoria, Instrumenti, memorie.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

550
Los fundamentos histricos de la teora y crtica cinematogrficas ra-
ramente fueron objetos de estudio, ni por los historiadores que se ocupan
hoy del cine. El pionerismo afirma un proceso que coloca el presente como
su auge y finalidad. Esa megalomana crtica es injusta en la construccin
del pasado porque lo deshecha con objeciones, en general, bastante superfi-
ciales. Podemos resumir la crtica a la obra de Sadoul a dos puntos cuestio-
nables: lo acusaron de poco rigor con relacin a las fechas de los aconteci-
mientos relatados (Deslande, Richard, 1996)4 y de no conseguir especificar
el objeto propio del cine (Casetti, 1995: 311).
Sin embargo, colocar las fechas correctamente, a pesar de recomen-
dable, no es un criterio serio para considerar el valor histrico de una obra.
El historiador Pierre Sorlin afirma que:

La historia de Gran Bretaa, desde el siglo XVIII era de un rigor


sin falla, pero se mantena en la idea de que el sistema poltico ingles
era un modelo para el resto del mundo y que Inglaterra encarnaba
el espritu de las Islas Britnicas, las seriedad metodolgica no co-
rrega el direccin tomada desde el comienzo por el anglo-centrismo
(2009 s/n).

Adems, como el rigor cronolgico exige un orden continuo, es una


repeticin de la tercer regla cartesiana del Discurso del Mtodo. La exigencia
de nada omitir es un recurso retrico para afirmar un pretenso rigor en
los recortes escogidos, que envuelven infinitos aspecto sobre cuya elec-
cin slo decide la intencin de aquel que conoce, como afirma Adorno
(2009:25).
Tambin la especificidad del medio cinematogrfico no puede deter-
minar el juicio histrico de una obra.

en nombre de una prctica flmica temporal y particular, concebi-


da ilusoriamente como conocimiento del objeto cine, el historia-
dor cataloga masas de signos precursores de esta prctica (). Eso
es apenas una legitimacin de una experiencia particular. (Comolli,
1997:452).
As, la segunda objecin a Sadoul no se sostiene.
4
Esta crtica es de dos historiadores, hecha en 1966 (Deslande, 1996), y continua vlida
hasta hoy. Valrie Vignau (2009: 294-267) afirma tambin que la obra de Sadoul es apenas
un pionerismo ultrapasado por la falta de rigor.

Yanet Aguilera

551
Algunos historiadores, en los aos 1960, reivindicaron una distancia
de los estudios cinematogrficos considerados inadecuados para pensar
la relacin entre cine e historia y de la investigacin histrica, que an no
haba admitido completamente el cine como fuente. Marc Ferro ve el cine,
por ejemplo, como una posibilidad de interrogar la propia narrativa de la
historia. Como fuente nueva, an sospechosa, las pelculas se tornan instru-
mentos adecuados para cuestionar la historia de los historiadores y exhibir
la funcin que estos desempean (Ferro, 1992). La falta de inters por el
cine explicita el hecho del historiador casi siempre escoger el conjunto de
fuentes y mtodo utilizado por la funcin que ejerce y por los objetivos
propuestos, que nunca son inocentes, ya que, segn Lefevbre (1971), este
personaje, en general, est a servicio del poder constituido. Especficamen-
te, hay dos problemas con la narrativa de la historia. La verborragia de un
mtodo que promete un rigor sin conseguir cumplirlo:

Aqu estn mis referencias, aqu estn mis pruebas () Mas nadie
dira que la eleccin de esos documentos, la forma de reunirlos y el
enfoque de sus argumentos son tambin un montaje, un ardid, un
trucaje (Ferro,1992: 20).

Y la jerarquizacin de las fuentes, pues torna la imagen como mera


ilustracin de los textos escritos.
Para el historiador Eduardo Morettin la prctica analtica de Ferro
transforma el cine en fuente complementar subordinndolo a los criterios
postulados por el saber histrico, que tiene la fuente escrita como elemento
principal para fornecer y abalizar informaciones. Como el hecho histri-
co es el referencial, el conocimiento histrico comanda el anlisis flmico
(Morettin, 2003:11:42). A pesar del esfuerzo, Ferro no puede evitar el es-
quema jerrquico adoptado por Sadoul. El espanto no es tanto que este
sistema histrico sea defectuoso, mas que se produjera y se ejecutara hasta
ese grado de solidez que aun posee.
La crtica de Morettin a Ferro supone que el cine tiene su propia his-
toria: la de las formas cinematogrficas.

... no se trata de fazer a obra confessar seu sentido inconsciente,


que ela esconderia, no se trata de absorver o social ou o histrico
pelo cinematogrfico, ou vice versa (...). Trata-se de examinar sim-

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

552
plesmente como o sentido produzido (...). Parte-se da hiptese
de que, se a questo do cinema na histria e na sociedade pertence
de direito histria econmica ou institucional, aquela da Histria
e da sociedade nos filmes no dissocivel da histria do cinema
entendida como histrias das formas cinematogrficas... (1995:38).

Antoine de Baecque es uno de los historiadores que llega a formular la


gnesis de esta historia. Para el estudioso fueron los crticos de los Cahiers
du Cinema, los primeros a sostener que el fondo de una pelcula reside
enteramente en su forma, en su mise-en scne, en su estilo (Baecque, 2011).
Entonces el panten de las pelculas escogidas encarnan una narrativa de
las formas del cine (Baecque, 2008:284).
En esta versin de la historia de las formas se afirma que la crtica y la
historia modernas del cine surgen en el momento en que se comienza a ha-
cer una lectura formal de las pelculas. En general, se considera la forma ci-
nematogrfica como un virtuosismo de mise-en scne una asociacin entre
imgenes, un movimiento de cmara, un encuadre etc. Alfred Hitchcock es
considerado el maestro del estilo. Es el caso de la fusin entre el fragmento
de agua escurriendo en el hueco del lavamanos o el detalle del ojo vidriado
de Janet Leigt, de Psicose; la tasa en primer plano, en Notorious etc.
La forma se torna una norma, a pesar de ser apenas un recorte impues-
to a la enorme produccin cinematogrfica. La referencia ms inmediata
parece ser la teora de la pura visibilidad, formulada por los historiadores
del arte. Sin embargo, al proponerse unir el formalismo a la historia, Bae-
cque parece querer ir ms all. Quiere rebatir las crticas que se hacan a la
Escuela de Viena, que habra transmutado la realidad histrica en bloques
sin admitir diversas temporalidades o ritmos de transformacin simult-
neos y no habra tratado an del contexto social. La 2 Guerra Mundial
produjo un corte traumtico en la historia cinematogrfica, mudando la
manera de ver y realizar las pelculas (Baecque, 2008:20-22). Se asume la
cuestin formal como la posibilidad de recrear el mundo y transfigurarlo
en una forma especfica por la escrita de la historia o por la elaboracin
artstica de la pelcula (Baecque, 2008: 38). El anlisis no es apenas la mera
visibilidad, se trata de transferir a la forma cinematogrfica el corte epis-
tmico que la historia habra impreso a la historia del cine. De modo que
la forma cinematogrfica ser la insurgencia intempestiva que subvierte el
material de la pelcula (Baecque, 2008:20).

Yanet Aguilera

553
A pesar de ser un recorte interesante, el cine y la crtica europea son
confirmadas como modelo, igual a Sadoul, pero ahora atribuyndose una
legitimidad mayor al inaugurar un nuevo inicio de la lectura y la prctica
cinematogrficas que pretende llevar el cine a superarse a si propio y a
transformarlo en una verdadera arte al digerir los traumas de la historia por
medio de un proceso formal.
Otro problema de la teora formalista es que el cine creador de formas
parece haber desaparecido en el escenario contemporneo. Segn Alain
Bergala, actualmente los realizadores contemporneos retiran del pasado
formal cinematogrfico como se este fuese un self-service, ignorando que
las formas tienen un origen histrico y una relacin con un cineasta sin-
gular. El pasado fue transformado en un simples reservatorio de motivos
y de imgenes, de donde nasce una forma degradada y obtusa del manie-
rismo amanerado. En esta perspectiva, el cine actual no crea, apenas recicla
(Oliveira, 2012: 5). Baecque afirma que lo mimtico, la reprise, la citacin
constituyen el modo terico al mismo tiempo cognitivo, narrativo y feti-
chista de los tiempos presentes (2008:392). Obras como Quem vai ficar
com Mary (1998), de Peter y John Farrelly son de mal gusto y substituyeron
una consciencia autoral y cinfila de prestigio por un uso iconoclasta que
corta con el progresivo y constante ennoblecimiento cultural, que tuvo que
se asociar con las pulsiones corporales primitivas; no negarlas, pues ellas
eran la misma energa y el origen del cine, mas colocarla en un cuadro re-
conocible. Esas pelculas que se hacen con una mano son el fin de la mise-
en- scne, ya que desorganizan y revientan todo (Baecque, 2008: 399). A
pesar de la referencia al libro de Jean-Marie Goulemot (2001), Baecque no
percibe que la crtica que la literatura pornogrfica direcciona a la filosofa
de las luces puede ser dirigida a las formas cinematogrficas.
Se invierte aqu el recorrido tradicional de la historia, en que el pasado
era considerado como un eslabn del progreso histrico. El presente est
comprometido por el desaparecimiento de las promesas que pautaban la
lectura del pasado. Ese cuadro, producto de la rarefaccin de las formas,
conduce Baecque a pensar en un ps-cine (2008: 401). Pero la aparente
proximidad con las reflexiones de los historiadores del arte, como Hans
Belting o Arthur Danto sobre el fin de la historia de arte parece no tener
ninguna resonancia.
Por otro lado, Baecque liga los estudios formales a los escritos de Sie-
gfried Kracauer, de modo que la teora esttica de Walter Benjamin y, prin-

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

554
cipalmente, la de la forma ensayo, de Theodor Adorno, son referencias. En
esta direccin, una vertiente bastante fuerte que se desenvolvi en la teora
y crtica cinematogrficas es el film ensayo, que se torn uno de los cnones
actuales. Arlindo Machado afirma que el ensayo es ms operativo que las
otras formas artsticas, ya que posibilita la inclusin de pelculas que no
pueden ser catalogadas como documentales o ficcin (Machado, p.65 y 72).
As, su suceso es comprensible por el esfuerzo de intentar ultrapasar clasi-
ficaciones dicotmicas que simplifican la manera de analizar las pelculas.
Mas, es en el campo de la eficacia analtica que se puede cuestionar
la relacin entre cine y ensayo. Primero, la relacin intrnseca entre ensayo
y autor. Al final del siglo XX, la autora se impuso en los estudios cinema-
togrficos principalmente por medio de la poltica del autor de la Nouvelle
Vague, pero luego fue contestadas por estudiosos que seguan las reflexiones
de Foucault. Hasta en el ensayo literario o filosfico, la autora es proble-
mtica, principalmente si pensamos la relacin entre Adorno y Montaig-
ne. Mismo que se suponga que el modelo de Adorno sean los Essais, de
Montaigne, no se puede decir que la reflexin de este filsofo pueda ser
pensada como una especie de prolegmenos de la teora del ensayo ador-
niada como en general es considerada por los estudiosos del ensayo, hasta
en el abordaje de Jean Starobinski (1993). El discurso es para Montaigne
el olvido del Ser y, por lo tanto, la moral del ensayo depende de una lgica
y de una ontologa. Montaigne parte del individuo Michel de Montaigne,
el nombre particular que sostiene la teora nominalista. Pero, como cada
hombre conlleva la forma entera de la humana condicin, como la forma se
presenta en su relacin con la materia e como la materia se configura como
un particular mal formado, se concluye que la causa formal o el principio
que estructura y que constituye cada cosa en su especie no es lo todo, mas
justamente la nada. As, considerar Michel de Montaigne como objeto del
mismo saber no es apenas una marca de subjetividad del autor de la forma
ensayo, mas el propio ensayo como tentativa fracasada de pensar la posi-
bilidad de un universal en re y no apenas en voci. Michel de Montaigne, el
nombre de esa realidad formal que es el libro, es pura formalidad, que jams
puede ser la marca del individuo como bien mostr el propio Montaigne
en los Essais, cuando debati la relacin entre el autor, el nombre y la muer-
te (Montaigne, 2000 y Compagnon, 1980). Por lo tanto, la pretensin de
introducir lo sensible en el concepto no es ms que eso, pura pretensin.
Por eso los Essais nunca pueden producir un canon. El problema es que La

Yanet Aguilera

555
Forma ensayo, que fue pensado por Adorno como un anti-canon se torn el
canon moderno. Segundo punto, como el ensayo es un genero literario, el
problema ser la transposicin de los postulados literarios para el cine, que
trabaja con imgenes.

Toda reflexo sobre o ensaio, entretanto, sempre pensou essa forma


como essencialmente verbal, isto , baseada no manejo da lingua-
gem escritas, mesmo que a relao do ensaio com a literatura seja,
como vimos, problemtica. O objetivo deste ensaio discutir a pos-
sibilidade de ensaios no escritos, em forma de enunciados audiovi-
suais (Machado, p. 65).

Pero, la transposicin no ser realiza sin una serie de problemas. Un de


los ms importantes es la transformacin de imgenes en enunciados. Ma-
chado trata este tema como si ya estuviese resuelto y la problematizacin se
limitase al ensayo como genero literario. Las dificultades que esta cuestin
conlleva es evidente en el mismo texto del estudioso cuando coloca la figura
de Vertov, como ejemplo del autor ensayista.

A maioria das imagens de Tchelovek Kinoapparatom, , na verdade,


criao do fotgrafo Mikhail Kaufman. Vertov operou nesses filmes
nos nveis da concepo, da roteirizao e, depois, da montagem.
Embora no fosse diretamente o montador (a montagem foi realiza-
da por Elizaveta Svilova, que aparece nos crditos como assistente
de montagem), ele dirigia o processo de montagem mais ou menos
como um filsofo da Idade Mdia ditava seu texto para o escriba
(Machado, p. 71,72).

La simplificacin de ver el trabajo del fotgrafo como materia prima


bruta y de transformar a la mujer en una especie de mquina que ejecuta
ideas ajenas se hace en nombre de la produccin de una mitologa: Vertov,
el cineasta filsofo, que controla intelectualmente la pelcula. Esta manera
de criar mitos es bastante conocida, vase el proceso que sufri Hitchcock5.
Adems hay una revalorizacin del texto escrito en detrimento de las
imgenes, que no apenas retoma la jerarqua ideolgica de la historiografa
5
Segn Oliveira Khron conclui que o Alfred Hitchcock de quem sempre ouvira falar
um mito [o controlador obsessivo], promovido, primeiramente pelo prprio cineasta, mas
propagado e aumentado pelas pessoas que escreveram sobre ele (2000:17).

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

556
tradicional, como transforma las imgenes en enunciados. Machado cree
que este asunto controvertido sea as fcilmente resuelto.
Para Gilles Deleuze la relacin entre imagen y lenguaje en el cine es
un problema grave (1985: 37). Critica la asimilacin de las imgenes a pro-
posiciones o enunciados narrativos que Christian Metz6. El hecho de que
el cine se haya desenvuelto histricamente como narrativa no autoriza tal
subordinacin, pues la narracin nunca es un dato aparente de las im-
genes o el efecto de una estructura que las sostiene, es consecuencia de las
propias imgenes aparente, de las imgenes sensible, que se definen por si
propias (1985:38).
Hans Belting sustenta que las imgenes no son signos y que la con-
vertibilidad de los signos visuales y lingsticos no puede resolverse en el
sentido de una ecuacin simples. Como en la

idea de mimesis reside un clich esttico del siglo XIX () pensa-


mos, con excesiva precipitacin, en una praxis ingenua de la repro-
duccin bien aclimatada en la pintura del pasado y nos olvidamos
de las estrategias del cine y del video en que esta posicin ingenua
ya, hace mucho, fue superada, an antes de haber comenzado la era
digital (Belting, 2011: 143-144).

Deleuze ya afirmara que la imagen-movimiento cinematogrfica no


es analgica en el sentido de la semejanza (1985:40).
Parece que se sobre-valoriz la cuestin ontolgica de la copia cinema-
togrfica, principalmente por algunos estudiosos de las teoras del lenguaje
y de la forma ensayo, que reducen a una dicotoma simplificadora copia o
discurso la complejidad del cine. As, se reverbera toda la tradicin icono-
fbica del pensamiento occidental en el propio terreno de la imagen. En el
caso de su reduccin al enunciado, se somete las imgenes a los imperativos
del lenguaje y de la narracin, transformndolas en un mero elemento su-
bordinado a la cadena sintctica, o a la simples ilustracin de una historia,
o como fuente suplementar de la Historia.
El cine es imagen e narrativa. Luego, hay que tener cuidado en colocar
esa ecuacin de otra manera.
6
Arlindo Machado se distancia de la narracin e ve el cine conceptual como elaboracin de
ideias complexas por meio apenas de imagens e sons, sem passar necessariamente pela na-
rrao (p. 70). Pero, no hay como ignorar la relacin entre un enunciado e una narrativa..

Yanet Aguilera

557
hoy hay ms sentido en estudiar las imgenes y los signos en su cru-
zamiento en formas hbridas, como lo hace W.J.T. Mitchell en sus
trabajos, desenvolviendo para ambos una nueva conceptualizacin y
abordando igualmente el lenguaje y el texto en la imagen(Belting,
2011: 144).

O sea, no la imagen en el lenguaje y el texto, al contrario, el lenguaje y


el texto en la imagen, vale repetir.

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Yanet Aguilera

559

narrativas, historiografia e memria

O Segredo dos Seus Olhos:


Cores, Texturas e Tessituras da Memria

Marina Soler Jorge


Professora do Departamento e do Programa de Ps-Graduao de Histria da
Arte da Universidade Federal de So Paulo.

O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos), filme dirigido pelo
argentino Juan Jos Campanella e lanado em 2009, chamou a ateno do
pblico e da crtica ao contar uma histria que mistura romance, poltica
e thriller policial, fotografada em cores quentes e chiaroscuro, e passada
na Argentina do comeo dos anos 70 e final dos anos 90. O elenco conta
com o astro do cinema argentino Ricardo Darn, astro do cinema argentino
que dispensa apresentaes, e a belssima Soledad Vilamil, que desempenha
extraordinariamente o papel de jovem advogada e promotora da meia idade,
transitando entre os vinte e cinco anos de diferena de sua personagem com
pouqussima maquiagem e grande investimento emocional.
Brevemente descrito, a narrativa apresenta a histria de Benjamin
Espsito (Ricardo Darn), oficial de justia em Buenos Aires que, nos
anos 90, resolve escrever um romance sobre fatos passados nos anos 70
que marcaram sua vida. Basicamente, estes fatos so dois: sua paixo, no
concretizada, por sua colega de trabalho Irene Menndez Hastings (Soledad
Vilamil) e a investigao do Caso Morales estupro e assassinato da jovem
professora Liliana Coloto. Irene superior hierarquicamente a Benjamin,
alm de filha de uma famlia rica e influente na Argentina. Benjamin no
ningum. Quando procura Irene para apresentar-lhe sua ideia de romance,
a narrativa pula para os anos 70, apresentando o surgimento e crescimento
da paixo platnica entre Benjamin e Irene e a investigao policial do
estupro e assassinato na qual os dois esto envolvidos. O marido da moa
assassinada, Ricardo Morales, est obssecado em achar o criminoso e v-
lo punido. O principal suspeito, Isidoro Gomes, ex-colega de bairro de
Liliana, sabe que est sendo procurado e some do mapa. O Caso Morales
parece que resultar no resolvido quando Pablo Sandoval, colega de
Benjamin e alcolatra, percebe, pelas cartas do suspeito a sua me, que ele

561
fantico pelo time do Racing. Segundo filosofa Sandoval, a pessoa pode
mudar de tudo na vida, mas no pode mudar sua paixo. Efetivamente,
Isidoro Gomes encontrado em um jogo do Racing, preso e confessa.
Pouco tempo depois, no entanto, ele visto solto na televiso, trabalhando
como guarda-costas da presidenta Maria Estela Martnez de Pern. Irene
e Benjamin descobrem que ele foi solto por colaborar com o governo,
passando a compor as milcias que perseguiam elementos potencialmente
subversivos. A seu mando, milicianos invadem a casa de Benjamin para
assassina-lo, mas confundem-no com Sandoval, que l se recuperava da
bebedeira. Temendo pela vida, Benjamin deixa Buenos Aires e a mulher
que ama sem concretizar sua paixo. Vinte e cinco anos depois, voltando
ao presente narrativo e a Buenos Aires, Benjamin procura Morales para
tentar entender como o vivo passou esse tempo sem sua paixo. Descobre,
horrorizado, que este aprisionou Gomez e o mantm em cativeiro h
muitos anos, fazendo justia as prprias mos. Benjamin no o denuncia.
Ao invs disso, vai ao escritrio de Irene onde o casal assume a paixo e
decide finalmente viv-la.
O Segrede de Seus Olhos foi ganhador do Oscar de melhor filme
estrangeiro e motivou, alm de inmeras crticas e reviews, ao menos
quatro artigos acadmicos. Os artigos concentram-se, sobretudo, no que
poderamos denominar anlise de contedo pois, ainda que mencionem
aspectos estilsticos, esto voltados sobretudo para o estudo da narrativa
apresentada em seus mltiplos aspectos.
O artigo El secreto de sus ojos o cmo vivir una vida vaca: de la
literatura al cine, escrito por Rafael Malpartida Tirado e publicado na
Revista de Crtica Literria Latinoamericana (ano 37, n 73, 2011), procura
analisar como se deu a adaptao do romance, escrito por Eduardo Sacheri,
para as telas. O autor enfatiza as diferenas na narrativa e na construo
dos personagens entre as duas obras, procurando explicitar os sentidos
que advm das alteraes promovidas por Campanella. Essas alteraes se
referem maior nfase no romance e no personagem de Irene, o ponto
de vista narrativo, o fato de, no texto escrito, haver mais de dois tempos
histricos nos quais se desenrolam as aes, o nome dos personagens
entre outras. O artigo considera que a adaptao para o cinema foi muito
sucedida, dotando a histria contada no filme de grande coerncia e solidez
narrativa.

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

562
J o texto de Roberto Ramos O Segredo dos Seus Olhos: os significantes
da ps-modernidade, publicado na revista Sesses do Imaginrio (ano
18, n 29, 2013), enfatiza a anlise semiolgica, investigando os sentidos
mticos e psicanalticos que residem na ao (e na inao) dos personagens
e em seus nomes prprios. O artigo propes leituras cruzadas com relao
ao roteiro, comparando, por exemplo, a vida vazia, sem sentido, que Ricardo
Morales passou sem Liliana e aquela que acometeu Benjamin, imobilizado
pela falta de coragem de confessar seu amor. Roberto Ramos procura
extrair os sentidos que extravasam estes significantes verbais e visuais e que
passam a operar num lugar simblico: As dimenses de Eros e Tnatos se
sintetizam. Igualam-se em um elo. Da mesma forma, o autor estabelece um
paralelo entre Benjamin e Gomez na medida em que ambos, nas fotos em
que aparecem, no conseguem esconder o olhar obsessivo que depositam
respectivamente em Irene e Liliana. Trata-se, em ltima anlise, de texto
que tambm est centrado na questo da narrativa, desta vez procurando
sentidos ocultos, da ordem do simblico, do mito e da psiqu, que ocultam-
se na histria contada. O enredo, em suas diversidades, apresenta uma
unidade. So os seus personagens principais: Benjamin, Irene, Ricardo,
Liliana, Isidoro e Pablo. Assumem as condies de Personagens Conceituais,
de acordo com Deleuze e Guattari (1992). Simbolizam ideias e configuram
conceitos a respeito da vida e sobre o viver.
Os dois outros textos enfatizam a questo da memria poltica que
atravessa a pelcula e que oferecem um pano de fundo essencial para a no
concretizao da paixo entre os Benjamim Espsito e Irene. Com efeito,
o romance foi interrompido, em um momento em que parecia que iria se
concretizar, pela necessidade de partida imediata de Benjamin de Buenos
Aires. A justia, em sua omisso, ao libertar Isidoro Gomes e utiliza-lo
para fins escusos, impede a felicidade do casal e condena-os a uma vida
vazia. Estes artigos analisaro a questo da memria que atravessa a
pelcula: por um lado trata-se de um homem que, atravs da produo de
um romance autobiogrfico, procura entender o que se passou com a sua
vida, reconstruindo uma memria individual para que o fracasso de sua vida
possa ser compreendido; por outro lado, trata-se de investigar a forma como
uma nao lida com as consequncias sociais e coletivas de um passado
vergonhoso de insegurana civil e jurdica que trar consequncias para a
memria coletiva sobretudo na forma de uma contaminao moral social.

Marina Soler Jorge

563
O artigo Memoria e impunidad atravs del imaginario cinematogrfico:
La mujer sin cabeza y El secreto de sus ojos, de Ana Moraa, publicada
na mesma edio da Revista de Crtica Literria Latinoamericana citada
acima, explora o filme de Campanella e tambm A mulher sem cabea
(2008), de Lucrecia Martel, no que se refere s consequncia sociais da
impunidade. Segundo autora, a impunidade poltica no se esgota em sua
consequncia imediata a soltura de Isidoro Gomez mas contamina,
como um cncer, outros mbitos, ensejando uma resposta aberrante a
um pacto social entre setores privilegiados. No filme em questo, isso se
expressaria sobretudo na justia com as prprias mos operada por Ricardo
Morales, consequncia mais monstruosa da impunidade inicial. Para a
autora, o romance que Benjamin pretende escrever sobre o Caso Morales
constitui-se como uma resposta ao desafio que representa a memria:
o personagem busca recuperar do passado um delito acontecido tempos
atrs, como uma forma de fazer justia, e a melhor forma que encontra para
alcanar este propsito a palavra e por isso decide escrever um livro. A
palavra, neste caso, funciona como uma reparao, a nvel individual, do
malefcio causado por uma falha grave do Estado oferecer um ambiente
de segurana jurdica, e como uma maneira para que a memria desta
falha, e de suas consequncias nefastas, no se extinga. A autora do artigo
se atentar para o fato de que Morales, o marido da moa assassinada,
no cr na recuperao da memria pela palavra nem que a justia se faa
em se trazendo luz a memria do erro cometido. J Benjamin concebe
da recuperao da memria em sua funo compensatria, ante inao
judicial que tambm o afeta como uma vtima mais ou menos indireta dos
fatos.
Finalmente, o artigo Polticas del recuerdo y memorias de la poltica
en El secreto de sus ojos de Juan Jos Campanella, de Hugo Hortiguera,
publicado no Ciberletras. Journal of literary criticism and culture (Vol. 24,
2010), analisa em profundidade a questo da memria poltica Argentina a
partir do enredo do filme e do livro no qual foi baseado mas tambm a partir
do cotejamento entre as obras e os contextos retratados ficcionalmente,
tanto o passado no qual a impunidade ocorre quanto o presente no qual essa
impunidade continua produzindo efeitos. Para Hortiguera, o fracasso de
Benjamin parece ter-se espalhado para e de um sistema social que coloca
a comunidade descrita na histria para alm das fronteiras civilizadoras
da razo, fora da lei, que se rege por um impulso amnsico e monstruoso

Histria da Arte: Colees, Arquivos e Narrativas

564
que j no pode evitar. O autor lembra que o perodo retratado, entre
1973 e 1976, era um breve intervalo democrtico, caracterizado por uma
radicalizao do pensamento poltico, o fortalecimento de grupos armados
terroristas e o surgimento de esquadres paramilitares organizadas pelo
Ministrio da Previdncia Social, pelo ento ministro Jos Lpez Rega.
Campanella, ento, estaria interessado no momento em que um governo
democrtico comea a transgredir seus limites legais, em que um estado
de direito se esvazia de direito e comea a infringir a lei para garantir sua
continuidade e sua prpria existncia. Ainda segundo Hortiguera, o fato
do filme ter sido lanado durante a era neoperonista de Kirchner no
desprovido de significado poltico, dado que este presidente reivindica a
herana poltica dos anos 70 esvaziando-a das contradies do perodo.
Esta pequena sntese do que poderamos denominar fortuna crtica
acadmica em torno da obra O Segredo dos Seus Olhos1 nos mostra, de
imediato, que as relevantes questes colocadas sobre o filme se referem
muito centralmente em seu contedo narrativo. Os dois ltimos artigos
citados, que tratam da questo da memria poltica invocada no filme,
assim como os dois primeiros, fazem poucas menes a questes estilsticas,
e procuram analisar sobretudo o enredo em seu dilogo com a situao de
anomia jurdica que, obviamente, na Amrica Latina, no privilgio da
Argentina. Mencionfa-se frequentemente o quo belo e bem fotografado
o filme e a atrao que suas imagens ao mesmo tempo quentes e sombrias
exercem sobre o espectador. No entanto, a meno ao estilo do filme, ou
imagem propriamente dita, nunca se combina com a anlise da narrativa,
de modo que ficamos com a impresso de que a histria de O Segredo de
Seus Olhos poderia ser contada de qualquer outra forma. Sabemos que
outras abordagens com relao fotografia, montagem, mise-en-scne,
etc, poderiam ser adotadas para se contar essa histria. No entanto no
foram. O diretor e sua equipe decidiram que a narrativa seria apresentada
de determinada maneira, a partir de determinadas imagens, e no de outra.
O que me interessa aqui, portanto, compreender como alguns
aspectos mais formais do filme, ou aspectos que compe os quadros e as
cenas, colaboram no desenrolar da narrativa. Nossa inteno no discordar
da leitura produzida pelas anlises abordadas acima, mas entender como
elas so possveis a partir de algumas imagens que formam a pelcula.
1
No abordaremos as crticas em jornais e revistas no-cientficas. Caso as mencionssemos,
teramos centenas de outros textos.

Marina Soler Jorge

565
De que maneira memria, romance, subjetividade, desejo, vazio so no
apenas narrados mas mostrados, produzindo no espectador as sentimentos
e emoes e em relao aos eventos? Pois, ainda que dotado de uma histria
interessante, plena de romance e contedo crtico, ela sozinha, ou a narrativa
que a apresenta, no produziriam o sucesso causado por este filme, nem o
apreo conquistado entre grande parte do pblico e da crtica.
Dentro todos os elementos que compe e estilo da obra que poderamos
escolher, elegemos um dos mais insuspeitos e pouco abordados. Em um
filme dotado de uma cinematografia elegante, enquadramentos soberbos
e montagem precisa, escolhemos analisar a textura e a tessitura de alguns
planos, presente nas roupas, nos panos, nas cores, na materialidade do
personagem e do ambiente. Mais do que figurino, cabelo ou maquiagem,
trata-se daquilo que as imagens vestem, e que as dotam de textura, brilho,
suavidade, numa experincia sinesttica entre o olhar e o tato de que quase
nunca nos damos conta mas que esto sempre presentes na concretude e
no volume de cada imagem. O que veste, de cor , qual a textura, afinal,
da memria de Benjamin Espsito? Por limites de espao, escolheremos
apenas algumas imagens que, a nosso ver, falam da paixo e do vazio da
existncia.
Henri Bergson, em Matria e Memria, nos mostra a relao profunda,
irresistvel, que h entre memria e imagem: uma lembrana, medida que
se atualiza, tende a viver numa imagem2. O passado que no acionei, a
lembrana pura, no rememorada, reside fora do corpo, no atua sobre
nosso mecanismo sensrio-motor. No entanto, to logo se transforma em
imagem, o passado deixa o estado de lembrana pura e se confunde com
uma certa parte do meu presente3.
O passado de Benjamin Espsito, rememorado e portanto transformado
em imagem, constituir parte importante do O Segredo dos Seus Olhos,
pois l que reside, para o personagem, a chave para o fracasso de sua
vida. Sua lembrana mais importante, a imagem que mais frequentou sua
memria nos ltimos vinte e cinco anos, o momento em que conhece
Irene, sua nova colega de trabalho. A montagem em campo-contracampo
nos d a ver o deslumbramento de Benjamin neste momento. Irene,
vestida com um conjunto de l escarlate, com leno de seda no pescoo

2
BERGSON, Henri. Matria e Memria. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 158.
3
BERGSON, Op. cit: p. 164.

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e uma graciosa boina na cabea, ambos tambm vermelhos, uma viso
arrebatadora da paixo. O uso das tonalidades vermelhas pela personagem
de Irene durante o filme marcante: seja no passado ou no presente, sua
cor mais utilizada. Quando jovem, Irene usar o vermelho vivo, tendendo
para o alaranjado, mas tambm o cor de rosa, o xadrez branco e vermelho,
camisas com estampas avermelhadas, coletes de l e lenos vermelhos no
pescoo. No presente, mais velha, ela usar casaquetos tambm vermelhos
de jacquard e microfibra e camisas vermelhas por baixo do cardigan de l.
As cores quentes de suas vestes combinam-se com o mogno avermelhado
do escritrio onde trabalha e de todos os espaos relacionados justia:
no trabalho, Irene est em seu elemento. Ela no apenas paixo, mas
competncia e seriedade profissional. Ou, talvez, poderamos dizer, que
Irene toda paixo, entregando-se a seu trabalho com responsabilidade
e devoo. Isso colabora para afastar, cada vez mais, os sonhos romnticos
de Benjamin, dividido entre a imagem do amor romntico e a realidade da
distncia social que os separa e que expressa-se plenamente no ambiente
de trabalho. A permanncia da cor em momentos diferentes da vida de
Irene, no presente e no passado, sugere a continuidade da mesma mulher
que deslumbrou Benjamin e do efeito que sua viso causa no oficial de
justia. O essencial de Irene, ou seja, a paixo que desperta, no se atenuou
com o passar do tempo. assim que justifica-se que, mesmo depois de ter
levado uma vida distante, casado com outra mulher, Benjamin Espsito
ainda sinta a mesma emoo diante de Irene. O diretor Campanella
precisava convencer-nos, enquanto espectadores, de que Irene era capaz de
atingir completamente e persistentemente o corao de um homem, e que
Benjamin, vinte e cinco anos depois, continuava suscetvel a ser atingido.
Quando Irene no usa vermelho ela est, preferencialmente, de branco,
cor que o personagem usa quando Campanella no a quer to apaixonada.
Seu figurino preto, no entanto, o que ir revelar para o espectador de
maneira clara, pela primeira vez, a paixo de Benjamin. Ao chegar no
escritrio, Sandoval faz um graa com a colega: Hoje dia da morte
de algum santo? Pois estou vendo um anjo de luto. Benjamin questiona
Sandoval como consegue pensar em um gracejo to rapidamente: Para
mim mais fcil, Benja. Eu no estou apaixonado.
Imaginar no lembrar-se, dir Henri Bergson. Ainda que uma
lembrana viva na imagem, a pura imagem no se constitui necessariamente
como lembrana, a menos que seja efetivamente no passado que eu v

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busca-la4. esse o movimento que Benjamin far na busca de um comeo
para seu livro, reconstruindo um evento a partir de uma imagem a partir
de uma memria que na verdade no possui. Benjamin Espsito imagina o
ltimo dia de vida de Liliana Coloto e narra seu desjejum com o marido: ela, o
retrato puro da inocncia, uma moa quase ainda adolescente, vestindo uma
camisola florida com mangas bufantes a manga tpica de vestidos infantis.
Benjamin no gosta dessa imagem; ela demasiado superficial, rasa (o foco
pouco profundo), clara, brilhante e inocente, como o vestido que Liliana
usa. Benjamin rasga a folha e procura outro comeo para sua histria. Ele
vem abruptamente, talvez sem que fosse buscado, e prescinde da narrao
do autor-escritor: na primeira imagem-memria do estupro de Liliana
que Benjamin cria vemos a roupa da moa sendo violentamente rasgada.
O barulho do tecido partindo-se quase insuportvel, acompanhado dos
gritos de horror da moa. Benjamin no sabe o que fazer com essa imagem,
que, ao contrrio da outra o desjejum ele parecia no estar procurando.
O corpo nu, violado e sem vida, de Liliana Coloto, aparecer mais
a frente, quando est sendo narrado o momento em que Benjamin
chamado para atender investigao do crime. Esparramado entre a cama e
o cho, atravessado diagonalmente no plano, o corpo despido e machucado
exerce profunda influncia em Benjamin, que nunca conseguir se esquecer
essa viso. Ele sofre ao contemplar o contraste entre a violncia do corpo
despido e as fotos inocentes do jovem casal, e imagina a enorme tristeza
que o assassinato causar no marido. O corpo nu no apenas despido,
mas est desumanizado. A civilizao no o habita mais, ele foi arrancado
violentamente da mundo em que vivia e deixado exposto, arrogantemente,
para que quem o encontrasse presenciasse o desprezo da assassino por ele.
A viso do corpo suficientemente chocante para justificar o impacto que
exerce em Benjamin durante todo a sua vida. Esse impacto ajuda a explicar
que Benjamin vista Liliana, ao imaginar seu ltimo desjejum, com alguns
smbolos da mais pura inocncia. Trata-se, assim, da violao de um corpo
que lhe parece imaculado.
tambm um pedao de corpo nu, no entanto, que ajudar na priso
do assassino de Liliana. Durante uma breve discusso, na qual Irene e
Benjamin discordam a respeito de como se deve dar o interrogatrio
de Isidoro Gomez, Benjamin puxa-a pelo ombro e sem querer abre o
ltimo boto de sua camisa branca. um sequncia rpida, a qual no
4
BERGSON, Op. cit: p. 158.

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dada grande ateno, e o espectador que assiste ao filme pela primeira
vez dificilmente deve notar o movimento de Irene para tentar abotoar
rapidamente a camisa. Benjamin entra em uma sala e, sozinho, comea a
interrogar Isidoro, que parece saber como livrar-se da suspeita que recai
sobre ele e est conseguindo colocar em dvida a convico de Benjamin
sobre a autoria do crime. Irene entra na sala para avisar Benjamin de que
Sandoval no foi encontrado, e se debrua para conversar ao p do ouvido
com o colega. Nesse movimento, a camisa branca de Irene, aberta, revela
seu colo e um pouco do seio pequeno dentro do suti bege claro. Benjamin
est com o rosto grudado ao colo de Irene, mas no repara na viso dos
seios sob a camisa. J Isidoro, como um manaco, no consegue disfarar
o olhar, e mantm os olhos fixos sobre o colo de Irene por todo o tempo
que pode, no se importando com o fato da moa ter percebido que estava
sendo olhada. O profundo desrespeito corpo feminino, materializado por
um olhar que Isidoro no tenta evitar, cria em Irene a certeza de que esse
homem seria capaz de violar e assassinar uma mulher. Ela o provoca e ele
acaba confessando ter cometido o crime contra Liliana.
O corpo de Irene, nesse momento, sob camisa de algodo, to casto
quanto o de Liliana, que cobria-se com vestidos florais claros e de corte
infantil. A advogada, que gosta do vermelho, agora est usando branco,
e seu suti, discreto, sem renda, sem cor, uma pea eminentemente
dessexualizada. Irene no chama a ateno sobre seu corpo; Isidoro,
psicopata, que sexualiza seu olhar, atingindo o objeto olhado de maneira
despudorada (Liliana tambm era olhada por Isidoro nas fotos em que
ambos apareciam, e esse olhar violento, manaco, levou Benjamin ao
encontro do assassino).
Deixamos a Irene jovem, dos anos 70, no momento em que ela se
despede de Benjamin na estao de trem, mandando-o ao interior da
Argentina, onde ele ficar seguro sob proteo dos influentes familiares de
Irene. uma das sequncias mais romnticas do cinema contemporneo e
deve muito interpretao de Soledad Vilamil, cujo personagem implora,
com os olhos, que Benjamin finalmente declare seu amor; seu queixo treme
enquanto ela tenta segurar o choro, mas ela no consegue evitar encher os
olhos de lgrima. O tom monocromtico: em contraste com o mogno
avermelhado e as cores quentes de Irene no escritrio, a estao de trem
triste, desbotada, e o figurino preto e branco, em um anncio da vida vazia
que aguarda Irene e Benjamin separados.

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preciso mencionar, antes de chegarmos ao fim deste texto, a tonalidade
e a textura que marcam os planos no passado de Benjamin os anos 70
e seu presente. O que nos chama a ateno, na verdade, a ausncia
de marcas claras de que o tempo passou, com excesso dos cabelos mais
curtos de Irene e os cabelos grisalhos de Benjamin. Os edifcios de justia
continuam com o mesmo aspecto suntuoso e neoclssico; o chiaroscuro
se mantm tanto l quanto c, e as imagens continuam com o mesmo
brilho granulado. A ambientao e o figurino dos anos 70 so elegantes
e impecveis, mas difcil determinar, apenas pelas imagens, quando o
presente retratado, a no ser por sabermos que se passaram vinte e cinco
anos (o que nos leva a 1999). O clima sempre o mesmo, sem sol, sem
chuva, um pouco frio. Em um certo momento aparece um telefone celular,
raro registro de ps-modernidade, uma vez que no vemos computadores
no presente. Benjamin escreve seu romance em uma mquina de escrever
antiga ou mo. Tudo se passa como se o tempo no houvesse passado para
Benjamin. L e c, sua vida no avanou. A confuso visual entre passado
e presente nos sugere, autonomamente, apenas pelo trabalho de imagem,
a imobilidade de Benjamin, que viveu uma vida vazia e nunca conseguiu
livrar-se realmente do passado.

Bibliografia

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