A Escrita Na História Da Humanidade
A Escrita Na História Da Humanidade
A Escrita Na História Da Humanidade
JOÃO PESSOA - PB
MARÇO DE 2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
JOÃO PESSOA - PB
MARÇO DE 2017
TÁSSIA TAVARES DE OLIVEIRA
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Liane Schneider
Orientadora - UFPB
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne
Examinadora - UFPB
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Karine da Rocha Oliveira
Examinadora - UFPE
___________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Marta dos Santos Nóbrega
Examinadora - UFCG
__________________________________________________
Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves
Examinador - UFCG
__________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Ana Cristina Marinho Lúcio
Suplente - UFPB
À minha mãe, minhas tias e minhas amigas
AGRADECIMENTOS
Em quatro anos de doutorado a vida parece que vira ao avesso com tantas conquistas e
perdas. Em meio a tanta emoção e aprendizado, agradeço a todos que permaneceram comigo
nos últimos anos e contribuíram, direta ou indiretamente, para a conclusão de mais uma etapa
tão importante da vida acadêmica.
Aos meus pais, Socorro e Tadeu, por tudo. E ao meu irmão, Mateus. Vocês são
alicerce e telhado.
À professora Liane Schneider, com quem tive a honra de ser orientada por 6 anos, e
que me inseriu no universo dos estudos de gênero, por toda a trajetória de orientação,
dedicação, incentivo e confiança atribuída desde o Mestrado, sempre compreensiva e
apoiadora. Espero que nossa parceria continue em atividades futuras.
À professora Luciana Calado, que sempre foi uma constante nas minhas bancas e
disciplinas desde o Mestrado, pelas sugestões na qualificação e pelo acompanhamento do
trabalho na banca examinadora, sempre uma leitora atenta e acessível.
Ao professor Hélder Pinheiro, que me acompanha desde o início da graduação em
Letras, por toda a valiosa formação inicial nos estudos literários e pelo apoio nas seleções,
bancas, disciplinas, projetos, sempre me auxiliando.
À professora Marta Nóbrega, pela disponibilidade em compor a banca examinadora
com sua leitura perspicaz.
À professora Karine Rocha, pela pronta disposição em compor a banca examinadora e
contribuir com sua leitura.
À professora Ana Marinho, por aceitar o convite para participar da banca examinadora
como suplente.
À professora Beliza Áurea, pela participação na banca de qualificação.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB: Wiebke Roben,
Genilda Azeredo e Marta Pragana, pela formação nas disciplinas cursadas no primeiro ano do
doutorado.
Aos novos doutores e companheiros de orientação, professores Carlos Eduardo,
Elizabeth Souto e Danielle Luna, por compartilharem dessa experiência apreensiva e
enriquecedora comigo em todas as etapas. E às futuras doutoras professoras Monaliza Rios,
Eliza Araújo e Morgana Medeiros, também do grupo de pesquisa.
Às companheiras de trabalho e novas doutorandas, professoras Aluska Silva e Paloma
Oliveira, que estiveram de perto, sempre incentivando e compartilhando experiências e
saberes.
Às amigas doutorandas do Direito, professoras Gilmara Medeiros e Helayne Candido,
que estão sempre do meu lado há mais de 10 anos, e, mesmo distantes, torcem e cuidam de
mim e sabem a loucura que é.
Às amigas mais próximas (e também professoras), Amanda Samira e Raquel Canejo,
pela presença que salva, pelos imprescindíveis momentos de descontração, por cuidarem,
torcerem, chorarem, se alegrarem e comemorarem comigo nessa trajetória doida da vida.
Aos colegas de trabalho, professores e funcionários da Unidade Acadêmica de Letras
da UFCG, em particular, à coordenadora administrativa professora Santana Ramos.
Aos meus alunos e ex-alunos do curso de Letras que me fazem ter alegria e satisfação
na profissão, é sempre um prazer ler literatura com o outro.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, à
coordenadora professora Socorro Barbosa e à funcionária Rosilene Marafon.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Delírio
O desejo revolvido
A chama arrebatada
O prazer entreaberto
O delírio da palavra
The present research focuses on the production of the Brazilian contemporary poet Marina
Colasanti, having as our literary corpus four of her books of poems (1993), (1998), (2005)
and (2009). In general terms, we defend that female poetic production has been for centuries
parcially silenced by patriarchal cultural tradition, what justifies our proposal of developing a
research in dialogue with established criticism on the literary production by women in the
national context from a persective attuned with the field of women and literature. This sounds
to us as a still necessary debate, despite considerable advances taken by women writers more
recently. We believe that the lyric I in the selected poems by Colasanti gives evidence of
relations and tensions established in the cultural field, marked by a gender system that gives
priority to the masculine, here questioned by women’s perspective. Thus, we have taken the
body as our category of analysis, in order to deal with the selected poems, having feminist and
cultural studies as our main theoretical basis, discussing the body as always gendered, never
neutral. So, we analyze how representations of the body and eroticism are connected to the
feminine, observing the construction of cultural identities in respect to sexual difference. Our
methodoly consists of developing a discussion of some gender theories, women’s literary
production as well as studies on the history of the body and eroticism, followed by an
analytical reading of the selected poems. Colasanti`s poetry is here taken as a way of rupture,
of breaking with the historical interdiction imposed to women and the taboos affecting
women’s bodies. We conclude that here the lyric eye gives opportunity to women to express
or deal with female craving for freedom in respect to their bodies and their lives in wider
terms.
CAPÍTULO 1
PERCURSOS HISTÓRICOS DOS FEMINISMOS E A QUESTÃO DO
CORPO
1.2 Os corpos das mulheres como pauta na história do feminismo .......................... 27
1.1 Breve história do corpo feminino na poesia brasileira de autoras mulheres .......... 40
CAPÍTULO 2
“EU SOU UMA MULHER”: PRESENÇA DO CORPO NA POESIA
COLASANTIANA PARA ALÉM DO SEXO
2.1 Questões metodológicas: delimitação do corpus .................................................... 64
2.2 “Frutos e flores”: o envelhecimento do corpo ........................................................ 68
2.3 “Sangue de mênstruo”: o corpo feminino empoderado .......................................... 75
2.4 “Na academia de ginástica”: corpo e mito da beleza .............................................. 87
2.5 Luxúria feminina: o direito ao prazer do corpo ...................................................... 91
CAPÍTULO 3
LITERATURA ERÓTICA E AUTORIA FEMININA: INTERDITOS E
TRANSGRESSÕES
3.1 A relação entre Eros e Poesis ................................................................................. 96
3.2 Erotismo e feminismo na literatura: dupla transgressão ......................................... 110
CAPÍTULO 4
“CORPO ADENTRO”: A LÍRICA ERÓTICO-AMOROSA COLASANTIANA
4.1 “Vem, amado”: “Entre um jogo e outro” da interlocução erótica .......................... 122
4.2 “Sim, pode-se” poetizar o sexo: a lírica erótica e o sexo como libertação ............. 142
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
A partir da leitura dos quatro livros de poemas que compõem a poesia adulta de Marina Colasanti, constatamos
que um aspecto que se destaca em sua produção é o aspecto imagético. É recurso comum ao longo de sua obra a
poetisa se valer de imagens para compor seus poemas, de modo que algumas de suas produções se assemelham a
quadros ou fotografias, como que emolduradas pela sensibilidade de seu olhar de artista.
13
poemas selecionados que abordam a representação do ato sexual e do corpo da mulher através
de imagens ou convenções não usuais, a saber: o corpo feminino não sexualizado e a lírica
erótico-amorosa. Evidentemente, alertamos que os poemas aqui analisados nem sempre se
enquadram em apenas uma das categorias, pois há um entrelaçamento entre estas que
apontam para uma concepção poética colasantiana sobre a relação entre as mulheres, seus
corpos e o sexo.
Defendemos que a poesia erótica de Marina Colasanti dialoga com as pautas do
movimento feminista atual no que diz respeito à autonomia do corpo feminino; que há
particularidades da linguagem do corpo e da experiência feminina que estão explícitas nessa
poesia e que isso colabora para uma diferente forma de conceber o erotismo não mais sobre a
ótica masculina; que as representações da mulher madura/idosa presentes nos poemas eróticos
rompem com o interdito sobre a sexualidade feminina na maturidade; e que diversas
associações são reveladas entre o ato sexual e a natureza implicando diversos efeitos ao longo
dos poemas.
A escritora Marina Colasanti possui mais de quarenta títulos publicados que
contemplam diversos gêneros (poemas, ensaios, crônicas, contos, estórias infanto-juvenis),
pelos quais já recebeu vários prêmios2, e vem conquistando a admiração de leitores e leitoras
pelo país. Apresenta-se, portanto, como uma das vozes femininas ainda ativas e mais
representativas da produção literária nacional.
Apesar de dedicar-se mais aos contos maravilhosos, a autora já publicou quatro livros
de poemas para adultos: Rota de colisão (1993); Gargantas abertas (1998); Fino sangue
(2005) e Passageira em trânsito (2009). No que concerne ao gênero lírico, sua produção
poética é formada por textos cuja voz é marcadamente feminina e transgressora, ao escrever
poemas fortemente eróticos, abordar um cotidiano das mulheres não necessariamente
doméstico, e por refletir sobre a passagem do tempo numa perspectiva feminina3.
2
A autora recebeu recentemente o seu 7º prêmio Jabuti, pelo livro infantil Breve história de um pequeno amor,
eleito também o melhor livro de ficção do ano de 2014. No rol dessa mesma premiação estão também as
publicações Entre a espada e a rosa, na categoria infantil/juvenil em 1993; na categoria poesia, Rota de colisão,
e na categoria infantil/juvenil, Ana Z, aonde vai você?, ambos em 1994; em 1997, na categoria contos e crônicas,
por Eu sei, mas não devia; em 2010, novamente na categoria poesia, com Passageira em trânsito; e em 2011, na
categoria juvenil, por Antes de virar gigante e outras histórias. Além de vários outros prêmios da Fundação
Nacional do Livro Infanto-Juvenil, por Uma ideia toda azul, em 1979; Doze reis e a moça no labirinto do vento,
em 1982; O menino que achou uma estrela, em 1988; Ofélia a ovelha, em 1989; Entre a espada e a rosa, em
1993; Ana Z, aonde vai você?, em 1994; Longe como o meu querer, em 1998; Penélope manda lembranças, em
2001; A casa das palavras, em 2002; Minha ilha fantasia, em 2008; Com certeza tenho amor, em 2010. Entre
outros prêmios.
3
Gostaríamos de advertir que o termo feminino vem sendo recorrentemente utilizado neste trabalho como
significado de relativo às mulheres, tentando desvincularmo-nos das amarras históricas a ele atreladas. Ou seja,
não estamos considerando noções como “alma feminina”, “natureza feminina”, “essência feminina” e outros
14
Como exemplo das marcas de gênero em sua escrita, tomemos a apresentação feita na
primeira crônica de seu primeiro livro publicado, Eu sozinha, de 1968. Nessa crônica
percebemos como o olhar e o símbolo do espelho são importantes na escrita colasantiana.
Jamais hei de saber a imagem que os outros têm de mim. Eu me conheço dos
espelhos, das fotografias dos reflexos, quando meus olhos param para se
olhar e a diferença de ângulos impede criar uma dimensão real. Não sei os
movimentos do meu rosto. Nunca me vi pela primeira vez. Tenho, de mim
mesma, uma idéia preconcebida que alia o espírito aos traços fisionômicos e
ao desejo de uma outra beleza. Criei, assim, uma pessoa invisível, mais real,
para mim, do que qualquer outra. Dessa pessoa eu gosto. E, talvez por saber-
me sua única amiga, ela me enternece profundidade.
Vejo um rosto oval, de maçãs altas, a linha fácil e cheia descendo até
meu queixo redondo, com uma doçura infantil. Os olhos grandes,
plantados com sabedoria, são verdes, compridos, muito separados; tôda
vez que alguém busca em mim algo a elogiar, apega-se aos olhos, e ficou-
me convencido que tenho olhos bonitos. Entre eles, ocupando mais
espaço do que o estritamente necessário, meu nariz é elemento básico
para manter viva a ilusão de que no dia em que resolver ficar bonita,
será suficiente operá-lo. A bôca, desenhada em redondos, tem o lábio
superior pequeno e o de baixo cheio; divide-se, nítida, em luz e sombra,
e somente os cantos virados para baixo a diferenciam de minha bôca de
menina.
Ao redor da cabeça pequena sinto o cabelo despenteado. Curto, desce
em vírgulas sôbre a testa, diante das orelhas e na nuca, deixando livre o
pescoço. Sempre tive a impressão de um pescoço gracioso e longo,
impressão provàvelmente devida à magreza com que surge dos ombros,
prêso por tendões fortes, como se fôsse um esfôrço erguer-se entre os
omoplatas.
Vejo um corpo de garôto, os ossos largos e aparentes confirmando a boa
estrutura. Nos meus braços, o sol desenha veias e músculos. As costas
são mais estreitas do que deveriam. Os seios, promessa nunca
concretizada. A cintura, pequena. Nos quadris e nas pernas, uma
capacidade de fôrça não solicitada. As mãos prendem-se ao punho sem
hesitação, a palma é larga, os dedos fortes. Os pés são de pedra.
Quando me olho nas vitrines, de soslaio, tenho a passo seguro. Ando rápida,
um pouco por pressa, um pouco pelo prazer físico de sentir o corpo em ação,
obediente e jovem. Gosto de andar, e o faço com cuidado, sentindo o
balanço e o apoio, prestando atenção. Tenho muito amor a meus gestos.
Quase não pisco. Às vêzes, a intensidade com que olho, querendo ver, doi-
me nas têmporas. Quando estou sozinha nuca sorrio, mas sorrio muito, com
prazer e consciência, quando companhia.
Quisera ser mais frágil do que sou. E me orgulho de minha fôrça. Meu rosto
é antigo. Ninguém mais moderno. Jovem, tenho tôda a minha velhice. A
resistência me assusta. A liberdade me pesa. Não quero ser livre.
equívocos. Pautamo-nos numa perspectiva cultural e, portanto, concebemos tais noções construídas
culturalmente e não dadas pela natureza. Sabemos das limitações do termo, no entanto, o utilizaremos como
forma de evidenciar as marcas de gênero no texto. Tal debate em torno da identidade do sujeito no feminismo
será novamente abordado neste trabalho mais adiante.
15
4
Disponível em Marina manda lembranças (www.marinacolasanti.com/), cujo conteúdo é postado com a
autorização e participação da própria escritora.
5
Relativizamos que as autoras contemporâneas já gozam de maior visibilidade que as primeiras escritoras.
16
leitura e análise de seus poemas, dado sua ausência na maior parte dos livros didáticos e
antologias gerais de literatura, que não só de mulheres.
Portanto, em linhas gerais, nosso trabalho busca estudar especificidades da voz lírica
marcadamente feminina nos poemas eróticos de Marina Colasanti. Isso significa que
adotamos o entendimento de que o eu lírico dos poemas colasantianos assume uma
perspectiva feminina que evidencia as relações de gênero, e que essas não devem, portanto,
serem apagadas, sob o risco de empobrecimento de sua capacidade expressiva própria e de
uma possível intervenção não apenas literária, mas também política da autora sobre o
imaginário social no que diz respeito às mulheres. E que, com essas marcas, sua poesia
merece, sim, aparecer em todo tipo de organizaçao poética da literatura brasileira, não
somente de publicações específicas de autoria feminina. Trabalhar sob a perspectiva dos
estudos de gênero requer do pesquisador uma postura reflexiva sobre aspectos culturais
distintivos entre homens e mulheres, naturalizados como aspectos biológicos, mas que, por
isso mesmo são, na verdade, discriminatórios, pois disfarçam a sua origem no sistema
patriarcal opressor, que busca controlar as subjetividades e coletividades de acordo com suas
normas categorizantes e binárias.
Nossa metodologia consiste na leitura analítica dos poemas selecionados, o que requer
também uma revisão da teoria do texto poético. O trabalho com o gênero lírico possui suas
especificidades, já que o texto poético não possui as mesmas características do texto narrativo,
e, por isso, pede um estudo próprio, utilizando-se de outras ferramentas daquelas utilizadas
pela prosa ao lidar com o texto. Os poemas selecionados buscam evidenciar os temas mais
recorrentes na lírica colasantiana. Selecionamos tais temas a partir da leitura dos livros de
poesia de Marina Colasanti, dessa forma, elegemos o conjunto de sua obra poética – Rota de
colisão (1993); Gargantas abertas (1998); Fino sangue (2005); e Passageira em trânsito
(2009) – como nosso corpus de pesquisa, por entendermos que há entre essas obras um fio
condutor que os perpassa e os une num projeto literário da autora, ao mesmo tempo em que
reconhecemos em seus poemas imprescindível qualidade estética e uma perspectiva politizada
ao refletir sobre a mulher, ao longo de uma década e meia de produção no gênero lírico.
Dessa forma, evidenciamos que corpo e erotismo é uma reflexão presente em toda a sua
produção poética, merecendo, portanto, uma análise que os ponha em evidência.
Ao nos propormos a abordar a literatura de autoria feminina contemporânea, é
inevitável considerar a importante contribuição teórica da crítica literária feminista e das
pesquisas sobre gênero, hoje em profícuo diálogo com os estudos culturais e sua preocupação
com a(s) identidade(s) na modernidade tardia. Nós nos referimos a “identidades” no plural
17
6
“Outras feministas [...] têm lutado pelo estabelecimento e validação da categoria “mulher” tanto como sujeito
quanto signo. Ao fazer isso, elas argumentam que não estão construindo mais outra subjetividade essencial
simplesmente porque, no patriarcado, nunca foi permitido à “mulher” a condição de sujeito” (COSTA, 2002, p.
66).
18
A vitalidade atribuída à teoria feminista hoje vem da sua posição dentro dos
discursos tanto autorizados quanto exteriores ou mesmo excessivos a eles
próprios, ou seja, da posição da “mulher” como essencial e também como
radicalmente “outra”. O reconhecimento desse fato – um insight obtido
através de práticas pessoais e da micropolítica da vida cotidiana das
mulheres – concede ao sujeito uma perspectiva “ex/cêntrica”, menos pura,
menos unificada e a qual percebe a identidade como um lugar de posições
múltiplas e variáveis dentro do campo social. (COSTA, 2002, p. 66-67)
Se na década de 1960 a questão feminista girava em torno das diferenças entre homens
e mulheres, a partir dos anos 1980 a abordagem se volta para as diferenças entre as mulheres,
problematizando a noção de ‘subjetividade feminina’. Schneider (2008) frisa, no entanto, que
essa problematização é positiva para o feminismo contemporâneo, não havendo motivos para
temer essa desestabilização do sujeito. “O sujeito do feminismo sobrevive nos tempos pós-
modernos, embora ele tenha se tornado menos identificado com o centro, com os ‘paradigmas
apropriados’ conforme o olhar ocidental hegemônico” (SCHNEIDER, 2008, p. 25). Essa
sobrevivência se dá pela necessidade ainda atual de questionar a supremacia hegemônica
masculina nas instituições sociais, o que mantém os conceitos de identidade, subjetividade e
subversão dentro da área de interesse dos sujeitos do feminismo, mesmo que para apontar as
suas lacunas. Ou seja, a própria revisão do feminismo é uma tendência atual e promissora.
Nas palavras de Schneider (2008, p. 29), “paralelamente, se para produzir crítica temos de
essencializar, para manter um pensamento crítico válido é necessário que se coloque o mesmo
sob constante questionamento, expondo-o às inevitáveis contradições internas e externas”.
Especificamente no que se refere à ideia de “feminino”, Nelly Richard afirma o que segue:
Nelly Richard (2002), como podemos ver a partir da citação acima, também
compartilha da noção de identidade descentrada, e alia essa noção aos estudos feministas
apontando para a necessidade de se rever a noção de identidade feminina, já que esta se
encontra em constante desequilíbrio, chegando assim à noção de identidade flutuante ou não
previsível, já que as mulheres são muitas e vivem, pensam e se posicionam de diversas
formas.
19
foi o masculino, dito universal. Quando há marcas de gênero explícitas, comumente elas
assumem uma conotação negativa7. O termo “mulher” é uma marca de diferença, e
qualificando ou restringindo o campo do humano, tal recorte determina um posicionamento
político em relações a outras restrições implícitas. Isso porque o terreno da escrita, que denota
poder, historicamente foi de domínio masculino. Às mulheres não era permitido atrever-se no
reino da palavra. As que ousaram aventurar-se no meio letrado, destacam-se inevitavelmente
em meio a um espaço tão preponderantemente masculino, seja em número de autores ou de
críticos.
Virgínia Leal (2010, p. 183) afirma que “ser uma escritora contemporânea é dialogar
com a história da inserção das mulheres no campo literário, considerando-se a atuação dos
movimentos feministas como força social”. Para perceber tal relação devemos observar que a
escrita da mulher é um gesto de transgressão. A autoria feminina é tão sufocada pelo sistema
ideológico literário que é preciso uma reivindicação de espaço, é preciso justificar essa escrita
como se ela não encontrasse razão de ser sem a permissão do cânone ou daqueles nele
seguramente inseridos. O campo literário é cenário dessa luta, pois constitui um espaço onde
se definem as relações de legitimação e reconhecimento entre os seus agentes – escritores/as,
editoras, crítica, meios de comunicação, escolas. Com isso queremos dizer que o estudo de
uma obra literária de autoria feminina preferencialmente dialoga com estudos sobre a
condição da mulher.
A escritora Marina Colasanti apresenta uma produção literária intensa e diversificada,
e com ela vem conquistando um público leitor consistente. Sua estreia literária acontece com
o livro Eu sozinha, de 1968, conforme mencionado anteriormente. O primeiro livro de
poemas da autora foi voltado ao público mirim, Cada bicho seu capricho, de 1992. Sua poesia
para adultos, que aqui nos interessa, é inaugurada com o livro Rota de colisão (1993). A partir
da leitura desses poemas, fortemente eróticos e marcados pelo cotidiano doméstico e
itinerante, podemos observar a presença de representações do feminino na sociedade atual,
pois a visão de mundo que nos é apresentada através de seus escritos traz à tona uma
perspectiva feminina, que interessa aos objetivos deste trabalho.
7
Exemplo seria o termo ‘poetisa’, rejeitado por algumas mulheres que escrevem poesia e se consideram ‘poetas’
(poetisa traria implícito o significado de “poeta menor”, segundo tal visão). Há que se destacar que parcela das
mulheres que escrevem poesia preferem, de fato, marcar a diferença de seu lugar de elocução, não considerando
esse ‘menor’ (é a posição que adotamos aqui, já que nosso intuito é justamente o de ressaltar a diferença).
21
Concordamos com Silvana Carrijo Silva (2007), para quem a preocupação com o
universo feminino é uma constante na literatura colasantiana. A partir da exposição acima,
percebemos como o dinamismo da atividade intelectual desempenhada pela escritora
corresponde também às chamadas exigências da ‘nova mulher’ em meio ao contexto de
explosão do pensamento feminista da década de 1970, época em que Marina trabalhava como
colunista de revistas nacionais, como Nova e Cláudia, dedicadas ao público feminino,
escrevendo para uma mulher cada vez mais ativa e conectada às novidades do mundo
moderno. Essa transformação do papel da mulher em nossa sociedade não passa despercebida
por Colasanti, para quem a reflexão sobre a condição feminina sempre foi uma preocupação
constante.
Ora, se há tantas mulheres escritoras no mundo que já nos são conhecidas e que já
provaram a validade de suas produções artísticas, não parece evidente que podemos sim falar
em manifestações femininas ou de mulheres nas artes? Ninguém lhes pergunta se existe uma
literatura masculina. A partir desse questionamento percebemos como o termo ‘feminino' é
mais carregado historicamente de valor negativo e de literatura “cor de rosa” do que o termo
masculino, que de fato, se lê simplesmente como literatura produzida por homens.
O alvoroço, como bem pontua Colasanti (2004), não está em reconhecer a existência
de uma literatura feminina, mas reconhecendo-a, abrir espaço para a sua equivalência, no
mesmo patamar da literatura dita ‘universal’ escrita por homens. Em última instância, fazer
desmoronar a ideia de uma literatura neutra e universal, que seria quase sagrada. Todos esses
são sinais de que as assimetrias de gênero e do poder atrelado a esse sistema ainda
permanecem no campo literário.
Colasanti reconhece que essa pergunta não é relativa à literatura em sentido estrito, já
que a autoria feminina de fato existe e seus elementos estéticos estão à disposição dos críticos
(muitas vezes mais interessados em investigar curiosidades da vida pessoal do que a escrita
24
dessas mulheres), mas corresponde ao fenômeno literário inscrito numa cultura machista e
opressora, que requer das escritoras explicações que justifiquem o seu fazer literário, que
expliquem porque a mulher galgou outros espaços que não o do privado. Essa seria a real
intenção de uma pergunta como essa, reafirmar velhos valores, disfarçados de preocupação
literária. Ela não está apenas no campo da literatura, mas é no domínio da palavra que os
discursos hegemônicos e contradiscursos se constroem, por isso o terreno literário é um
cenário de tantas disputas. Desvendar esses mecanismos de transmissão de valores culturais
através da literatura tem sido um dos empenhos da crítica literária feminista.
Neste trabalho, ao analisarmos poemas escritos por uma mulher e que evidenciam o
corpo e a sexualidade das mulheres, nos interessa tensionar o emprego de tais categorias,
inclusive, como tentativa de ressignificar o termo ‘feminino’ da conotação pejorativa que
adquiriu na crítica literária (e não apenas no terreno da crítica8) e que se não for combatido
pela crítica literária da vertente feminista permanecerá (não julgamos que a supressão do
termo resolva tal problema no feminismo contemporâneo, ao contrário, é preciso forçar a
transformação de seu significado para que ele possa ser empregado com uma carga menos
pesada).
O trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro deles possui caráter histórico
e é intitulado Percursos históricos dos feminismos e a questão do corpo, nele buscamos
fazer um apanhado histórico do movimento feminista e como o direito ao corpo torna-se uma
reivindicação importante do feminismo atual. Este capítulo está dividido em dois tópicos: o
primeiro, 1.1 Os corpos das mulheres como pauta na história do feminismo, busca
articular as discussões sobre autonomia e empoderamento feminino a partir do corpo dentro
da história do movimento feminista, utilizamos autoras como Scott (1992), Lauretis (1994),
8
Impossível não nos lembrarmos de uma recente campanha publicitária divulgada nos EUA e promovida por
uma marca de absorventes femininos que questionava o fato de que sob a instrução “run like a girl” pessoas
adultas corriam de maneira estereotipada enquanto que as meninas simplesmente corriam. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=lM6hSM29HTc
25
Hemmings (2009), Butler (2011) e Wolff (2011). O segundo tópico chama-se 1.2 Breve
história do corpo feminino na poesia brasileira de autoras mulheres, aqui trazemos a
discussão do corpo no movimento feminista para a crítica literária e a história da literatura de
mulheres, particularmente de poetisas, demonstrando como Marina Colasanti está inserida
numa tradição de poesia erótica escrita por mulheres no Brasil, citamos autoras como Gotlib
(2003) e Duarte (2011), que fazem um percurso da produção de autoria feminina no país, e
depois destacamos algumas poetisas importantes do século XX, como Gilka Machado, Cecília
Meireles, Henriqueta Lisboa, Hilda Hilst, Olga Savary e Adélia Prado.
O segundo capítulo possui caráter analítico, chama-se “Eu sou uma mulher”:
presença do corpo na poesia colasantiana para além do sexo. Nesse capítulo analisamos
dez poemas em que o corpo feminino se faz presente relacionado com temáticas diversas. Ele
está dividido em cinco tópicos: 2.1 Questões metodológicas: delimitação do corpus, neste
tópico explicitamos como o corpus de pesquisa foi trabalhado para chegarmos no número de
poemas selecionado e como os organizamos para fins de análise, neste tópico analisamos o
poema “Rota de colisão”. 2.2 “Frutos e flores”: o envelhecimento do corpo, neste tópico o
corpo aparece marcado pelas transformações da idade, os poemas analisados são “Tive um
rosto” e “Frutos e flores”. 2.3 “Sangue de mênstruo”: o corpo feminino empoderado, neste
tópico o corpo da mulher aparece em suas particularidades biológicas e estas são enaltecidas
sem necessariamente estarem erotizadas, os poemas analisados são “Eu sou uma mulher” e
“Sangue de mênstruo”, que abordam a temática da menstruação, “De líquida carne” e “Livres
à noite”, que abordam os seios femininos como assunto. 2.4 “Na academia de ginástica”:
corpo e mito da beleza, neste tópico o corpo feminino está oprimido pela violência simbólica
da chamada ditadura da beleza, que marginaliza os corpos que não se encaixam num padrão, o
poema analisado é “Na academia de ginástica”. 2.5 Luxúria feminina: o direito ao prazer
sexual, no último tópico analisamos dois poemas que dialogam com o erótico, no entanto, há
uma reivindicação desse erótico que está sendo negado, os poemas são “Sexta-feira à noite” e
“Rumo à caixa”.
O terceiro capítulo tem caráter teórico e é intitulado Literatura erótica e autoria
feminina: interditos e transgressões. Nele buscamos abordar o erótico na literatura e em
particular o erótico de autoria feminina. Está dividido em dois tópicos: o primeiro se chama
3.1 A relação entre eros e poesis, nele citamos autores que tratam do erótico numa
perspectiva cultural distinguindo-o da atividade puramente sexual, e analisam como esse tema
é recorrente na tradição literária, como Bataille (1987), Guiddens (1993), Paz (1994), Soares
(1999) e Borges (2013). O segundo tópico, 3.2 Erotismo e feminismo na literatura: dupla
26
transgressão, traz a discussão sobre o erótico do primeiro tópico e alia com a problemática
do feminismo e em particular da autoria feminina na literatura, revelando como esta opera
uma dupla transgressão ao enunciar sobre o sexo, citamos autores como Bordo (1997),
O’Neill (1997), Soares (2000), Perrot (2003) e Matos (2003).
O quarto e último capítulo chama-se “Corpo adentro”: a lírica erótico-amorosa
colasantiana, nele analisamos vinte e três poemas erótico-amorosos (o que totaliza 33
poemas nos dois capítulos analíticos do trabalho), divididos em dois tópicos. No primeiro, 4.1
“Vem, amado”: “Entre um jogo e outro” da interlocução erótica, estão dezoito poemas
que aproximam erotismo e amor através da interlocução erótica com o sujeito amado,
rompendo com o interdito sobre o sexo e sobre o falar sobre o sexo. Os poemas analisados
são: “Entre um jogo e outro”, “Sobre a cama”, “De língua macia” (nesses três temos a
característica em comum em abordar o cotidiano íntimo do casal), “A um homem não”,
“Como é gentil”, “Ao meu guarda-caça”, (que trazem em comum descrições do corpo
masculino em comparação com a natureza), “Sem que se veja”, “Aberta frincha”, “Sim, mas
também” (que destacam o aspecto do toque), “Corpo adentro”, “Teu sexo”, “Ao nosso” (que
têm em comum a linguagem mais direta para se referir ao ato sexual em si), “Fartura”,
“Poema quase persa”, “Essa amplidão” (que aproximam o sexo da experiência mística), além
de “Pelo lanho de um instante”, “Tua mão em mim”, e “Instrumento sem som”. É, portanto, a
seção mais significativa sobre a produção colasantiana. E o último tópico, 4.2 “Sim, pode-se”
poetizar o sexo: a lírica erótica e o sexo como libertação, traz cinco poemas que tratam
também de sexo, mas se diferem dos anteriores pela ausência de um ser amado a quem a voz
lírica se dirige, são eles: “Sim, pode-se”, “Amor ao meio dia”, “Tato”, “Oitenta e uma
escamas”, e “Tarde e casa vazia”.
Como se pode perceber, são muitos os poemas analisados ao longo do trabalho, de
modo que em alguns nos detemos mais longamente do que em outros; visto que naturalmente
são infinitas as possibilidades de abordá-los, buscamos privilegiar em nossas análises as
questões pertinentes aos estudos de gênero e que punham em evidência as categorias que
procuramos evidenciar. Alguns aspectos formais também vão sendo abordados ao passo em
que dialogam com os significados implícitos do poema.
Por fim, nas considerações finais, tentamos retomar o que foi abordado ao longo do
trabalho e sintetizar nossas problematizações e conclusões acerca da poética erótica e do
corpo em Marina Colasanti.
27
CAPÍTULO 1
PERCURSOS HISTÓRICOS DOS FEMINISMOS E A QUESTÃO DO CORPO
Iniciaremos nosso trabalho falando sobre feminismo. O movimento ainda hoje é tido
como polêmico – o que por si só já demonstra a forma falocêntrica como compreendemos o
mundo: o feminino é sempre tido como o diferente – pois apesar de sua pauta fundamental ser
a defesa das mulheres como seres humanos portadores de direitos iguais – algo que deveria
ser compreendido e aceito por todos – é visto como algo perigoso, porque, de fato, o
feminismo9 abala estruturas de poder muito antigas e enraizadas na sociedade.
“A essência do feminismo é a crença de que as mulheres são subordinadas aos homens
na cultura ocidental” (EDGAR & SEDGWICK, 2003, p. 125). Na definição dos autores,
embora tragam uma boa explanação inicial sobre o tema, percebemos como o uso da palavra
crença serve como forma de não se comprometer politicamente com a causa. Ao definir a
visão de mundo feminista como uma crença, os autores notadamente não buscam se filiar
academicamente a ela e nem se comprometem em afirmar que a subordinação feminina
exista, nem que mereça ser revertida. Os autores também destacam diversos tipos de
feminismo, frisando que todos têm como objetivo a libertação das mulheres, a diferença
consiste na forma de encarar tal libertação e os meios para alcançá-la.
Acreditamos que após a explosão do movimento feminista nos anos 1960/1970 e a sua
chegada à academia nos anos 1980, ainda não havíamos tido um momento em que o termo
estivesse tão em voga quanto na recente década, impulsionado por publicações na rede de
feministas que trouxeram novo gás às demandas e reaproximaram o feminismo das jovens e
pela retomada das ruas promovida por manifestações como as Marchas das Vadias espalhadas
por todo o país desde 201110. Com isso, não queremos afirmar que houve uma morte e
9
O feminismo é uma teoria que privilegia o seu próprio revisionismo, dessa forma, partimos de um feminismo
mainstream para as diferentes perspectivas feministas cada vez mais plurais e interceccionais.
10
E também em outros países, já que o movimento conhecido mundialmente como Slutwalk inicia-se em
Toronto, Canadá, em 2011, promovido por universitárias inconformadas com o conselho de um policial no
campus de que não se vestir como ‘vadia’ poderia protegê-las de estupros, numa clara associação machista entre
a roupa da vítima e a causa do crime, ou seja, culpabilizando a vítima pela violência sexual sofrida. As Slutwalks
tem o grande mérito, apesar das inúmeras críticas que recebem (notoriamente de setores conservadores que se
dizem incomodados com o termo slut), de tornar pública e promover o debate sobre a cultura do estupro. No
Brasil, embora o estupro seja penalmente criminalizado como hediondo, é prática em alguns casos tão banalizada
28
retomada do movimento, não acreditamos nisso, pois temos plena consciência da existência
de coletivos de mulheres que nunca pararam de atuar nas universidades e de algumas ONGS
que sempre atuaram pelas causas feministas como o direito ao aborto. O que estamos
afirmando é que há uma crescente reaproximação das mulheres jovens, leigas ao movimento,
a partir do momento em que suas discussões voltam a circular em espaços comuns, como é o
caso da internet, momento em que inclusive celebridades como Beyoncé11 popularizam o
termo.
São várias as páginas nas redes sociais que discutem feminismo (Escreva Lola
escreva; Blogueiras feministas; Feminismo na rede; Feminismo sem demagogia; Feminista
cansada; Moça, você é machista; Machismo nosso de cada dia; Indiretas feministas; entre
tantas outras), não ainda sem resistência e ataques constantes por parte de ignorantes do
assunto ou misóginos mal intencionados. O fato é que campanhas como “Chega de fiu fiu12” e
“Eu não mereço ser estuprada13” tomaram conta da rede e trouxeram a pauta feminista sobre
liberdade sexual e autonomia sobre o próprio corpo aos tópicos mais comentados em grupos
de pessoas até então alheias ao tema. O crescimento de tais discussões sobre o livre
manifestar-se feminino (usar a roupa que escolher, andar pelos espaços públicos sem ser
incomodada, não ser julgada ou castigada por sua maneira de ser) é um fenômeno de nosso
interesse por entendermos que, na história do feminismo, os direitos relativos ao corpo são
uma disputa atual e que questionam as estruturas do pensamento machista de nossa sociedade
que ainda permanece ativo.
Tentaremos explicar melhor. A história do feminismo ocidental é antiga e passa por
diversas reivindicações14. As primeiras pautas feministas partem do próprio reconhecimento
que não chega a ser reconhecida como tal ou ainda recebe justificativas de grande parte da população, o que
desestimula as denúncias e protege os agressores. Na Índia, os casos de estupro coletivo são tão alarmantes que
ganham repercussão mundial e provocam iniciativas de resistência entre as mulheres. Em 2013, o vídeo satírico
It’s your fault (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PdPefSCx-uc), com atrizes de Bollywood,
viralizou na internet ao expor o quão ridícula é a culpabilização das vítimas no país.
11
Ao se apresentar na premiação organizada pela MTV americana em 2014, a cantora apareceu de pé diante da
palavra Feminist, projetada em grandes letras luminosas. A sua música “Flawless”, inclusive, cita o texto “We
should all be feminists”, da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.
12
Campanha promovida a partir de 2013 pelo grupo da página feminista Think Olga contra o assédio sexual em
locais públicos. Pesquisa realizada por uma das jornalistas aponta que 98% das brasileiras já receberam cantada
nas ruas e 90% já trocou de roupa antes de sair de casa por temer o assédio.
13
Campanha promovida inicialmente pela jornalista Nana Queiroz, em 2014, após divulgação de uma alarmante
pesquisa do IPEA que afirma que 65% dos brasileiros concordam que mulheres que usam roupas que mostram o
corpo merecem ser atacadas. Posteriormente os dados da pesquisa foram retificados para 26% (um número ainda
muito grande), mas o debate promovido na sociedade e as expressões machistas que desencadeou provam como
o assunto é importante.
14
Já na Idade média, em 1405, a italiana Christine de Pisan escreveu A cidade das damas e refletiu sobre a
desigualdade entre os sexos. No século XVIII, após a revolução francesa e a Declaração de direitos do homem e
do cidadão de 1789, a francesa Olympe de Gouges publica sua Déclaration des droits de la femme et de la
29
citoyenne em 1791. A inglesa Mary Wollstonecraft, autora de A vindication of the rights of woman de 1792, foi
uma das primeiras teóricas feministas bem documentadas em nossa tradição. No século XIX tal discussão chega
ao Brasil e a norteriograndense Nísia Floresta publica Direito das mulheres e injustiça dos homens em 1832.
30
Às seis da tarde
Ás seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução.
especialmente as casadas, a que chamou de mal sem nome15. Friedan buscou superar
explicações rasteiras e machistas e compreendeu que as mulheres em cujo íntimo fervilhava
essa insatisfação passaram a vida inteira procurando realizar seu papel "feminino", casavam-
se cada vez mais jovens, não frequentavam a universidade, tinham obsessão pela beleza, pela
limpeza do lar, por compras, não tinham círculo social para além de filhos e maridos, e viam
tais problemas como falhas no matrimônio, ou seja, o mal feminino era não sentir-se ajustada
ao papel de feminilidade imposto como mãe e esposa. No poema de Colasanti, percebemos
que as mulheres, apesar de assumirem uma nova função profissional, sugerido pelo fato de
estarem às seis horas (fim do expediente de trabalho) voltando para casa de condução, ainda
sofrem com o mal sem nome, no entanto, por estarem em ambiente público engolem as
lágrimas, e assim o problema permanece invisível.
A importância da agitação política promovida por essas mulheres para a crítica
literária foi enorme, pois foi com o ativismo da década de 1960 que nos Estados Unidos as
mulheres escritoras, professoras, editoras, críticas, começaram a questionar sistematicamente
a prática acadêmica patriarcal16. Nesse mesmo período se desenvolvia na Alemanha as teorias
da recepção, que compreendiam a história da literatura como profundamente afetada pela
recepção das obras, dessa forma, “a constatação aparentemente simples de que a experiência
da mulher enquanto leitora e escritora é diferente da experiência masculina levou a uma
verdadeira revolução intelectual, marcada pela quebra de paradigmas e pela descoberta de um
novo horizonte de expectativas” (FUNCK, 1994, p. 18).
Nos anos 80, a grande novidade é o advento do conceito de gênero. Para Susana Funck
(1994, p. 20), “o termo gênero vem sendo usado para designar o significado social, cultural e
psicológico imposto sobre a identidade sexual biológica. É diferente de sexo [...] e é diferente
de sexualidade”. A autora também destaca o duplo risco do termo, que traz a vantagem de
15
Essa noção do "mal sem nome" causou grande estardalhaço no welfare state americano, identificações
femininas e aversões masculinas, e tornou-se uma das bases do feminismo mainstream ocidental, inclusive,
tendo Betty Friedan à frente da National Organization for Women fundada em 1966. Milhares de mulheres
foram às ruas unidas pelo simples fato de serem mulheres, essa era a grande novidade, e assim a questão de
gênero torna-se uma questão política, como já eram a classe e a raça.
16
A crítica literária feminista estadunidense teve como publicação pioneira Sexual politics, de Kate Millet, em
1970, uma análise que extrapola o campo meramente literário e tomada de grande consciência política critica a
posição secundária a que estavam relegadas as escritoras e críticas mulheres. Essa é a característica principal do
que ficou denominado de primeira fase da crítica feminista, desmascarar a misoginia da prática literária,
denunciando imagens estereotipadas da mulher sempre representada ambiguamente como anjo ou monstro e a
sua exclusão sistemática do cânone literário. Note-se que tais objetivos continuam a fazer parte da crítica
feminista atual. Esse momento inicial abriu as portas para o pensamento crítico feminista, pois a partir do
momento que se constatou academicamente tal marginalização foi possível dar o passo seguinte, ou seja, mapear
uma história literária feminina não privilegiada pela tradição literária oficial. Elaine Showalter denomina essa
segunda fase da crítica feminista de ginocrítica, pois a mudança essencial é deixar de enfatizar os textos
masculinos para se centrar no resgate histórico e na validação de textos de escritoras mulheres silenciadas pelo
cânone. É desse período a famosa obra de Sandra Gilbert e Susan Gubar, The madwoman in the attic, de 1979.
32
incluir também a possibilidade de estudos sobre a masculinidade e por isso mesmo é acusado
de despolitizar os estudos feministas. Sobre isso, Joan Scott (1992), historiadora feminista,
utiliza o termo “movimento” para se referir ao campo de estudos da história das mulheres
justamente para associá-lo com a política, pois a política feminista é seu ponto de partida,
marcando o início da pauta do feminismo na década de 1960, ao reivindicar uma história que
estabelecesse heroínas, prova da existência e atuação das mulheres ao longo dos tempos. Scott
(1992) vê ganhos e perdas no uso do gênero como categoria, apontando que “o desvio para o
gênero na década de 80 foi um rompimento definitivo com a política e propiciou a este campo
conseguir o seu próprio espaço, pois gênero é um termo aparentemente neutro desprovido de
propósito ideológico imediato” (SCOTT, 1992, p. 64-65). Há que se considerar que outras
teóricas e críticas nunca perceberam a categoria de gênero como apolítica, nem mesmo sob
esse ângulo que Scott apresenta.
Clare Hemmings (2009) observa que a narrativa que nos é contada sobre o feminismo
apresenta uma linearidade que traz a ideia de evolução que deve ser questionada. “Essa estória
divide o passado recente em décadas definidas para fornecer uma narrativa de progresso
incansável ou de perda, proliferação ou homogeneização.” É isso o que a autora faz ao tentar
revalidar a importância do início da segunda onda feminista para o estado atual do
movimento. De modo geral, a narrativa sobre o feminismo aponta “uma mudança partindo do
início da segunda onda, vista como politizada e unificada, passando pela entrada na academia
nos anos 80, e daí para a fragmentação em múltiplos feminismos e carreiras individuais,
mapeia a estória de perda do compromisso com transformações políticas e sociais”
(HEMMINGS, 2009, p. 216). A autora discorda dessa narrativa em primeiro lugar porque
representa uma simplificação da estória; em segundo lugar, por atribuir ao pós-estruturalismo
lugar privilegiado no contexto de contestação da categoria mulher, algo que já vinha sendo
feito por teóricas feministas desde os anos 70, generalizadamente taxadas de essencialistas, e
em terceiro lugar pela centralidade que confere à crítica anglo-americana dentro dos estudos
feministas ocidentais.
A reflexão sobre o passado feminista é imprescindível ao movimento atual, segundo
lição de Gayatri Spivak nós precisamos ter em mente a reflexão “por que quero contar essa
história e, ao contá-la, que tipo de sujeito me torno?”. Nosso alinhamento, portanto, é com o
passado feminista que nos possibilitou estarmos aqui e enunciarmos de um lugar hoje
privilegiado. Queremos contar essa história porque acreditamos na amplidão de possibilidades
que ela nos trouxe e queremos também fazer parte dela. Nos assumimos como sujeitos do
feminismo, inclusive, aprendendo com a suas histórias, problemáticas, descobertas,
33
contradições e libertações que promove. Temos consciência do que Hemmings (2009) destaca
no modo como os textos feministas persuadem emocionalmente, ecoando em nossas próprias
experiências pessoais e que essa é uma maneira como nossos comprometimentos e práticas da
escrita são formados. O feminismo e sua história, para os sujeitos do feminismo, é também
uma questão identitária. “A emoção feminista, então, é central para as estórias feministas que
contamos, bem como para a forma como as contamos” (HEMMINGS, 2009, p. 221).
É interessante observarmos que há uma dupla visão dessa "evolução" dos estudos
feministas: por um lado, avalia-se a trajetória positivamente pelo resgate da história realizado,
por outro, o processo de despolitização é encarado negativamente.
Para Scott (1992) essa narrativa pede uma reflexão crítica, pois a simplificação
representa mal a história das mulheres e seu relacionamento com a política e com a disciplina
da história, já que não levaria em conta a posição variável das mulheres na história, a
emergência do feminismo como movimento organizado e a sua permanência na pauta atual,
ainda que sob uma perspectiva diferente. O estudo dinâmico exigido buscaria justamente
relacionar a história das mulheres com a legitimação do feminismo como movimento político
e com o trabalho acadêmico distinto da pauta política: “precisamos pensar sobre este campo
como um estudo dinâmico na política da produção de conhecimento” (SCOTT, 1992, p. 66).
Com isso, a autora avalia que a própria atividade acadêmica, que é um dos meios pelos quais
os discursos são legitimados pelo viés científico, é profundamente política, pois envolve
relações de poder e práticas ideológicas. A história das mulheres, portanto, é uma narrativa
política.
Assim, a autora conclui que a separação entre o estudo das mulheres e o movimento
feminista foi na verdade um artifício tático e político na busca pela legitimação. A própria
‘despolitização’ teria sido, segundo Scott, uma opção política. Daí por diante o caminho
percorrido foi o da teorização, com a emergência do conceito de gênero 17 para a questão da
17
O termo gênero, que se consolidou ao longo da década de oitenta do século passado, acaba por se definir
claramente como uma forma de indicar “construções culturais” (SCOTT, 1990) baseadas na diferença sexual, e
assim diferencia-se do ‘sexo’ (dado biológico). Portanto, gênero é categoria de importância fundamental para
pensarmos numa “história das mulheres”, inclusive dando-nos ferramentas para voltar no tempo munidas de
novos paradigmas que não eram reconhecíveis anteriormente. “Na literatura, as questões de gênero, ao
substituírem a questão da mulher, tiveram o mérito (questionado por algumas mulheres) de melhorar o
relacionamento entre as críticas feministas e seus colegas homens na academia” (FUNCK, 1994, p. 21). No
entanto, a própria Susana Funck observa que no Brasil, a partir de 1985 – referência ao início dos trabalhos do
GT da Anpoll Mulher e literatura – se percebe uma total predominância de mulheres na área e grande relutância
por parte da crítica estabelecida, além disso, pondera que grande número de trabalhos utilizavam o conceito de
gênero de forma incidental pois o que predominava eram os estudos sobre as representações de mulheres em
35
autores canonizados (leia-se homens). Assim, Funck (1994) compreende o deslocamento da questão da mulher
para a questão do gênero, e a crítica feminista cedendo espaço para os estudos de gênero.
36
A autora vai além e aponta como o advento de gênero traz uma contradição necessária
à própria existência do feminismo, as mulheres devem continuar a ser Mulher, continuar a
ficar presas ao gênero (assim como o sujeito de Althusser à ideologia), mesmo sabendo,
enquanto feministas, que não somos isso, e sim sujeitos históricos governados por relações
sociais, que incluem predominantemente o gênero (LAURETIS, 1994, p. 218). A crítica de
Lauretis, portanto, demonstra como a consciência de gênero enquanto construção social não
invalida a ideia de irmandade na qual se funda o feminismo.
Lauretis (1994) vai além e aponta como a falta de perspectiva de gênero promove
lacunas na análise cultural. A tese foucaultiana em História da sexualidade (1999) consiste
em analisar como a sexualidade, normalmente considerada como uma questão natural,
particular e íntima, é de fato totalmente construída na cultura de acordo com os objetivos
políticos da classe dominante. Contudo, a discussão que Foucault faz não é gendrada. Ele
defende que o século XIX representou um incitamento ao sexo e não à sua repressão, mas não
há qualquer dúvida quanto à opressão das mulheres através dos discursos relativos ao corpo
(WOLFF, 2011). É necessária uma análise que vá além de suas reflexões sobre a sexualização
do corpo feminino, pautada por uma discussão de gênero. A sexualidade feminina tem sido
invariavelmente definida tanto em oposição quanto em relação à masculina. Pretendemos
mostrar momentos em que isso se repete e também de ruptura nos poemas que iremos
analisar.
“Desestabilizar verdades preconcebidas e romper com os essencialismos são algumas
das contribuições do campo teórico dos Estudos Culturais. E também das abordagens
historiográficas críticas que tem tomado o corpo como locus de investigação (GOELLNER,
37
2013, p. 34). Em relação à política do corpo na agenda feminista, Wolff (2011) defende que
esta, apesar de problemática18, é possível e necessária justamente por ser o corpo da mulher
um local de repressão e possessão. Pensamos aqui no corpo como algo produzido na e pela
cultura e por isso é de interesse dos estudos culturais. O processo de desnaturalização do
corpo revela que este, além do aspecto biológico, é também histórico (GOELLNER, 2013).
Ou, esclarecendo ainda mais,
Nesse sentido, é interessante pensarmos na distinção que Mikhail Bakhtin (1965) faz
entre o corpo clássico e o corpo grotesco ao estudar a cultura popular na Idade média. O corpo
clássico se assemelha a uma estátua, não tem orifícios nem secreções, nem desempenha as
funções fisiológicas básicas como comer e defecar. Já o corpo grotesco se abre para a
realidade do mundo através das suas “imperfeições”, que na cultura oficial são vistas como
rebaixamento. Dissonante a esse realismo grotesco que Bakthin observa na obra de François
Rabelais, surge o corpo sublime da estética romântica, visto de forma individualizada, a noção
de padrão de beleza torna-se cada vez mais forte e a oposição entre mente e corpo19 se firma
de vez. Por isso é que Wolff (2011, p. 105) faz um questionamento que compreendermos ser
fundamental para configurar uma política do corpo que seja combativa e feminista: “Se o
corpo tem vindo a ser reprimido desta forma desde o século XVII, será que a irrupção do
corpo “grotesco”, tornando subitamente visíveis os seus traços suprimidos (sexo, riso,
18
A autora exemplifica com um protesto ocorrido em Dublin em 1989 no qual um grupo de mulheres despiu-se
dos trajes de banho para reivindicar acesso a uma zona balneária de exclusividade masculina, no entanto, o olhar
de luxúria dos homens presentes e a cobertura ambígua da mídia neutralizaram o poder contestador do ato,
apontando para os perigos do uso do corpo da mulher com fins políticos, pois “Os seus significados pré-
existentes, como objecto sexual, como objecto do olhar masculino, podem sempre prevalecer e reapropriar-se do
corpo, apesar das intenções da própria mulher” (WOLFF, 2011, p. 103). Casos mais recentes e igualmente
questionáveis são as manifestações do grupo Femen, nos quais mulheres (brancas, jovens, magras) expõem os
seios diante das câmeras que cobrem os protestos no intuito de serem fotografadas e assim seus dizeres escritos
em cartazes e no próprio corpo serem estampados nos jornais.
19
A separação cultural entre a mente (valorizada) e o corpo (rebaixado) não é algo sobre o qual nos deteremos
aqui. No entanto, é interessante observarmos como o julgamento moral sobre o corpo sempre recai sobre os
corpos das mulheres, ou seja, a mente masculina é valorizada e o corpo feminino é condenado. Exemplo na
cultura brasileira é o preconceito que recai quase unanimamente sobre as funkeiras, por fazerem uso do corpo em
coreografias sensuais rapidamente são taxadas de pouca capacidade mental, a mesma relação não se estabelece
tão imperativamente contra os funkeiros homens. O mesmo ocorre no sentido inverso, mulheres que
desempenham atividades intelectuais são condenadas pela sociedade se fizerem uso livre do corpo, como se
fossem atividades incompatíveis.
38
excreções e outros), constitui uma revolução política, tanto quanto uma transgressão moral?”.
Dessa forma, acreditamos que os corpos das mulheres insubmissas são sempre ambíguos
(perigosos e em perigo). As mulheres e seus corpos nos espaços públicos são sempre
transgressivos.
20
“Por corpo entendo uma organização concreta, material e animada de carne, órgãos, nervos, músculos e
estrutura óssea à qual é conferida uma unidade, uma coesão e uma organização através da sua inscrição psíquica
e social enquanto superfície e matéria-prima de uma totalidade integrada. O corpo é, por assim dizer,
organicamente/biologicamente/naturalmente “incompleto”; é indeterminado, amorfo, uma série de
potencialidades descoordenadas que requerem activação e ordenação social, bem como “administração” a longo
prazo, reguladas em cada cultura e época por aquilo que Foucault denominou “as microtecnologias do poder.” O
corpo torna-se humano, coincidente com a “forma” e espaço de uma psique, um corpo cuja superfície epidérmica
delimita uma unidade psíquica, um corpo que define assim os limites da experiência e da subjectividade em
termos psicanalíticos, através da intervenção do outro/mãe e, fundamentalmente, do Outro ou ordem Simbólica
(linguagem e ordem social regulada). Entre os princípios estruturantes deste corpo produzido está a inscrição e
codificação (organizada através de estruturas familiares) através de desejos sexuais (o desejo do outro) que
produzem (e em última instância reprimem) as zonas corporais, os orifícios e os órgãos da criança como fontes
libidinais; a sua inscrição por um conjunto de ideias e significados codificados socialmente (tanto para o sujeito
como para outros) faz do corpo uma identidade profunda, “legível” e significativa; e a sua produção e
desenvolvimento através de diversos regimes de disciplina e formação, incluindo a coordenação e integração das
suas funções corporais, para que possa não só assumir as tarefas sociais que lhe são exigidas, mas também para
que se torne uma parte integrante ou uma posição dentro de uma rede social, ligada a outros corpos e objetos”
(GROSZ, 2011, p. 91).
39
A identificação das mulheres com os seus corpos é algo perigoso, pois se aproxima
dos argumentos do senso comum conservador, que justificam a opressão das mulheres através
da sua biologia. O pensamento sexista identifica a mulher com o corpo, e assume uma
essência imutável e pré-determinada do feminino. “Qualquer política do corpo deve, por isso,
falar acerca do corpo, realçando a sua materialidade e a sua construção social e discursiva, ao
mesmo tempo que mina e subverte os regimes de representação existentes” (WOLFF, 2011, p.
120). Fazemos essa ressalva, pois a representação do corpo que encontramos nos poemas
que iremos analisar é culturalmente um corpo de mulher, e consideramos essa diferença
importante de frisar, pois comumente ao nos basearmos no corpo humano usamos o
masculino para representar o humano. “O falocentrismo é [...] o uso difundido e dissimulado
do masculino para representar o humano. O problema, portanto, [...] revelar a masculinidade
inerente à noção do humano genérico e universal ou do sujeito não especificado” (GORSZ,
2011, p. 94). Como em nossa cultura “homem” equivale falsa e universalmente a
“humanidade”, a teoria feminista procura tornar visível a especificação da “mulher”.
Quando Beauvoir afirma que a mulher é uma “situação histórica”, ela realça
que o corpo é objecto de uma certa construção cultural, não apenas pelas
convenções que sancionam e proscrevem o modo como alguém representa o
seu corpo, o “acto” ou a performance que é o seu corpo, mas também nas
convenções tácitas que estruturam o modo como o corpo é culturalmente
apreendido. (BUTLER, 2011, p. 76)
Contudo, a autora opina que o esforço para combater a invisibilidade das mulheres
como categoria torna visível uma categoria que pode não ser representativa das vidas
concretas das mulheres21.
21
“Na minha opinião, como feministas, temos sido menos ávidas em considerar o estatuto da categoria em si e,
de facto, discernir as condições de opressão provenientes de uma reprodução inquestionada de identidades de
género, que mantém as categorias homem e mulher discretas e binárias” (BUTLER, 2011, p. 76). “A minha
única preocupação é que a diferença sexual não se transforme numa reificação que involuntariamente preserva
uma restrição binária na identidade de género e numa estrutura implicitamente heterossexual para a descrição do
género, da identidade de género e da sexualidade. Na minha opinião, não há nada relativamente à feminilidade
que esteja à espera de ser expresso; há, por outro lado, muito sobre as diversas experiências das mulheres que
está a ser expresso e que ainda precisa de ser expresso” (BUTLER, 2011, p. 86.)
40
ela é algo construído no passado que precisa ser reconstruído no presente” (OTTE, 1999, p.
10), ou seja, Otte (1999) nos lembra que o cânone é historicamente construído, e como
elemento histórico ele não é algo dado ou natural, e portanto, pode ser questionado.
O que está sendo posto, portanto, é que os critérios estéticos não são os únicos levados
em conta no processo de edificação do cânone, como processo histórico o cânone é o
resultado da tensão entre valores e representações culturais postos em hierarquia.
No caso de países com um passado colonial, como é o caso do Brasil, esse dado revela
particularidades que afetam a forma como encaramos nossa produção e influências literárias.
Além disso, a pauta feminista também aponta como a legitimação do cânone é elaborada a
partir de pressupostos patriarcais. Por isso os estudos feministas e pós-coloniais abrem uma
nova possibilidade de estudo do não-cânone.
Julgamos que a poesia colasantiana, especificamente, já goza de reconhecimento de
crítica e público, pois a autora constantemente lança novas edições, traduções, e circula em
feiras e eventos literários, no entanto, ainda não dispõe da visibilidade dedicada àqueles cujos
escritos foram validados pela tradição, seja em aparições em antologias, seja em trabalhos
acadêmicos voltados para seus textos. Por isso a necessidade de nos aprofundarmos na leitura
e análise de seus poemas.
As inúmeras tendências presentes nos estudos literários, dos enfoques linguísticos aos
socioculturais, revelam a historicidade de seu objeto de estudo. A história literária tradicional,
com sua ênfase excessiva nos autores consagrados e na sucessão linear e cronológica dos
estilos de época, devido à marginalização das mulheres e de outros grupos minoritários,
determina um fenômeno excludente e opressor, pautado por e reprodutor da ordem social de
42
que emerge, já que parte da produção cultural permanece na quase invisibilidade22. Tal
tradição insiste em desconsiderar os elementos socioculturais que contribuem para a
valorização de determinadas manifestações artísticas em detrimento de outras; em outras
palavras, desconsidera o caráter ideológico da literatura e da crítica literária. Se
considerarmos, portanto, o caráter ideológico da tradição literária e o seu potencial reprodutor
das estruturas sociais que representa veremos como a história literária, da forma como é
ensinada nas escolas, é fundamentalmente etnocêntrica e viricêntrica. As tradições orientais,
femininas e orais são recorrentemente silenciadas.
A tradição tendeu a apagar a perspectiva feminina, como se as mulheres não tivessem
participado da história ou como se vivessem em um tempo histórico diferente dos homens.
Isso é facilmente constatado ao observarmos a escassez de heroínas nos manuais de história
geral e do Brasil. No campo da literatura isso também acontece e pode ser visto no número
ínfimo de personagens femininas que teriam qualidades heroicas atreladas a si, circulando
livremente mundo a fora, sem necessidade de se atrelar a papeis como o de musa
inspiradora23. Portanto, os estudos feministas procuram garantir espaço a uma nova
historiografia, agora validada pela participação ativa nos rumos da história e pela
representação das mulheres e de outras minorias excluídas do cânone literário. A partir desse
enfoque, outras histórias podem ser contadas e imaginadas.
No contexto nacional, foi justamente no século XIX que começaram a circular entre o
público letrado os primeiros textos escritos por mulheres brasileiras, sendo que até aquele
momento a produção feminina deve ter se limitado à tradição oral. Oriunda do Rio Grande do
Norte, Nísia Floresta é considerada a primeira escritora feminista brasileira, autora de livros
como Direito das mulheres e injustiça dos homens, de 1832, que reivindicava direitos às
mulheres, como o livre acesso à educação pública – registre-se que a primeira legislação
nacional referente à educação feminina surgiu apenas em 1827. Em 1859, em São Luís do
22
Nesse sentido, a historiografia literária feminista traz uma fundamental contribuição para os estudos literários
ao apontar que a história literária tradicional é “um dos discursos de uma sociedade que se baseia essencialmente
na desigualdade entre os sexos” (LEMAIRE, 1994, p. 67). Por isso o interesse das críticas feministas em
escrever uma nova história: “a história deve incluir um relato da experiência feminina através do tempo e deveria
incluir o desenvolvimento da consciência feminina como aspecto essencial do passado das mulheres. Esta é a
tarefa fundamental da história das mulheres” (SHOWALTER, 1994, p. 44). Foi a partir do trabalho de resgate
das acadêmicas feministas que os escritos marginalizados das primeiras escritoras feministas, ainda no período
medieval/clássico, como a italiana Cristine de Pisan (1363-1434), a francesa Olympe de Gouges (1748-1793) e a
inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797), puderam vir à tona no meio acadêmico. Contudo, a ideia de um
movimento coletivo começou apenas no século XIX (LEAL, 2010).
23
Para demonstrar o quanto nosso campo literário ainda é excludente, utilizamos os dados da pesquisa de
Regina Dalcastagnè (2007), abarcando o período de 1990 a 2004, em três grandes editoras brasileiras - Record,
Companhia das Letras e Rocco: das 258 obras publicadas no período, mais de 70% foram de autoria masculina.
Dos autores publicados, 93,9% são brancos, 78,8% possuem escolaridade superior, 49,7% são nascidos no eixo
Rio-São Paulo e outros 23,6%, no Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
43
Maranhão, Maria Firmina dos Reis publica Úrsula, considerado o primeiro romance de
autoria feminina lançado no Brasil.
Por volta de 1870 amplia-se enormemente o número de jornais e revistas feministas no
Brasil24. No século XIX, período em que as atividades literária e jornalística encontravam-se
bastante imbricadas, surgiram as primeiras mulheres editoras no Brasil (LEAL, 2010). Foi
com a imprensa e o lançamento de periódicos feministas que as brasileiras do século XIX
ganharam um importante veículo de divulgação de seus textos políticos e literários, na luta
pela emancipação. Tais publicações revelam o surgimento de um público leitor feminino e
funcionavam como difusores do que viria a ser o embrião do pensamento feminista brasileiro.
“As oscilações e ambiguidades presentes nesses periódicos refletiam, de certo modo, os
mesmos movimentos pendulares existentes na chamada ‘primeira onda feminista’” (LEAL,
2010, p. 186). Dessa forma, “a imprensa feminina tornou-se não só um canal de expressão
eficaz para as sufocadas vocações literárias das mulheres, mas exerceu ainda uma função
conscientizadora, catártica, psicoterápica, pedagógica e de lazer” (DUARTE, 2005, p. 229).
24
Em 1873, em Minas Gerais, é fundado o primeiro jornal feminista, O sexo feminino, dirigido por Francisca
Senhorinha da Mota Diniz, que posteriormente teve seu nome alterado para O quinze de novembro do sexo
feminino. Em 1897 começa a circular a revista literária A mensageira (GOTLIB, 2003). Entre 1888 e 1890,
circula A família, dirigido por Josefina Álvares de Azevedo, que se destaca pelo tom combativo e o
questionamento da tutela masculina.
44
Nádia Gotlib (2003) e Constância Duarte (2011) buscam determinar alguns momentos
mais significativos da história da literatura brasileira feita por mulheres. Segundo as autoras,
essa literatura volta-se para a construção e desconstrução de nomes ou sistemas de identidade
feminina, defendendo que este seria um dos caminhos para se ler essa vasta produção. Esse
seria um dos motivos pelos quais a literatura de autoria feminina permaneceu à margem
durante o período, enquanto o modernismo preocupava-se essencialmente com a renovação
estética, a literatura de autoria feminina do período estava voltada primordialmente para
questões políticas relativas à emancipação feminina. É importante, termos em mente que no
inicio do século, “a ideologia dominante presente na imprensa, no Estado, na Igreja, nos
educadores e profissionais da saúde ainda exortava os deveres das mulheres em relação à
manutenção dos valores tradicionais dentro da família no modelo patriarcal” (LEAL, 2010, p.
186).
25
Em 1917, Leonilda Daltro criou o Partido Republicano Feminino e liderou uma passeata de mulheres pelo Rio
de Janeiro para reivindicar o direito ao voto, as manifestantes foram alcunhadas pela imprensa de sufragetes
(DUARTE, 2005). A maior entidade feminista do início do século XX foi a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino (FBPF), fundada por Bertha Lutz, em 1922 – mesmo ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo –
que se disseminou em praticamente todos os estados e resistiu por quase cinquenta anos. Tinha por principal
frente de reivindicação o voto feminino, além de maiores oportunidades de emprego e de educação (LEAL,
2010).
45
Não que não tivéssemos escritoras naquele tempo. Havia – tanto poetas,
dramaturgas, como ficcionistas -, mas por um motivo ou outro, não
receberam convite. O sucesso literário tem dessas coisas: é preciso acertar o
timing, estar no lugar certo na hora certa; e, principalmente, olhar na mesma
direção. Se relacionamos as escritoras mais produtivas daquela década,
verificamos como elas estavam distantes do projeto modernistas tal como ele
foi elaborado, e o quanto estavam envolvidas em um outro projeto – não
necessariamente estético – mas principalmente ideológico, visando à
emancipação da mulher. (DUARTE, 2011, p. 45)
Ainda de acordo com Duarte (2011), as escritoras brasileiras que produziram nas
décadas de vinte e trinta, ou seja, as que se encontravam na vanguarda do pensamento
contemporâneo, na realidade, voltavam suas produções intelectuais e artísticas para questões
talvez mais urgentes sob a ótica feminina do que propriamente as questões estéticas
professadas pelos homens da mesma época, como contribuir para corrigir o atraso social e
intelectual em que se encontrava a mulher brasileira (DUARTE, 2011). Constância Lima
Duarte (2011, p. 46) afirma que essa opção política já ocorria desde o século XIX, sendo
possível verificar nos textos de autoria feminina do período27, entre outros aspectos, “a
26
A clássica foto da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, sempre presente nos livros
didáticos de literatura, conta com a presença de 16 artistas, todos eles homens. Os nomes femininos de maior
destaque do Modernismo brasileiro são: Tarsila do Amaral (1886-1973), pintora modernista e entusiasta do
Movimento Antropofágico, idealizado pelo seu marido, Oswald de Andrade; e Anita Malfatti (1889-1964), a
pintora responsável pela primeira exposição modernista no Brasil, em 1917, ocasião em que recebeu duras
críticas do escritor Monteiro Lobato, episódio esse ainda hoje mais comentado nos livros didáticos do que o
próprio trabalho da artista.
27
Dentre as autoras oitocentistas destacamos: Carmem Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de
Melo, foi colunista e escreveu, entre 1905 e 1910, em vários jornais da época. A escritora adotou alguns
pseudônimos (prática comum numa sociedade em que a atividade escrita era relegada aos homens), como Julia
de Castro e Leonel Sampaio, mas foi como Carmem Dolores que assinou seus principais textos, ficando
conhecida. Natural do Rio de Janeiro, nasceu em 1852 e faleceu aos 58 anos, em 1910. Com a morte do marido,
assumiu a profissão de escritora e colunista dos jornais Correio da Manhã e O País, com o qual manteve o
sustento da família e adquiriu o reconhecimento enquanto escritora, tendo sido uma das colunistas mais bem
pagas de O País (considerado o principal jornal da época, o maior em tiragem da América do Sul). Não era
sufragista, mas defendia a ampliação do acesso à educação das mulheres e o direito ao divórcio, além disso, foi
uma pioneira no tocante à profissionalização, pois era paga por seus artigos. Sua obra é composta principalmente
por contos e crônicas, publicadas em sua coluna e depois reunidas em livro. Outro grande nome de sucesso
literário da época e posterior alijamento do cânone é Julia Lopes de Almeida, natural do Rio de Janeiro, nasceu
em 1862 e faleceu em 1934. Suas obras tiveram, ainda em vida, várias edições e uma vendagem que lhe permitia
viver da literatura, além de citações em livros didáticos do inicio do século passado. Ela chegou a ser cogitada
para participar da Academia Brasileira de Letras e foi excluída por ser mulher, no seu lugar foi eleito seu marido,
46
Musa impassível
Felinto de Almeida, que se autonomeava, com humor, “acadêmico-consorte” (LEAL, 2010, p. 194). A autora
reconhecida e de destaque no período do final do século dezenove, atuante na literatura e no jornalismo, foi,
porém, silenciada pela voz opressora da nossa tradição literária patriarcal, já que apenas mais recentemente
críticos e estudiosos voltam a atenção para sua obra e passam a divulgar seus escritos. Júlia Lopes de Almeida é
um dos casos de escritoras que, por não terem participado do evento modernista de São Paulo, teve seu nome
esquecido. A autora escreveu mais de quarenta obras, em diversos gêneros, romances, contos, teatro, literatura
infantil, crônicas, além de ter sido colunista do jornal O País por mais de trinta anos. Também colaborou em
outros diversos jornais da época.
28
A admiração dos modernistas lhe rendeu um mausoleu esculpido por Victor Brecheret, nomeada “Musa
impassível”, a estátua de mármore ficava sobre seu túmulo no cemitério do Araçá e hoje se encontra em
exposição na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
47
Como se pode perceber a partir dos títulos de seus livros, sua poesia se
detém nas experiências de uma intimidade sensível, que manifesta,
explicitamente, suas sensações, emoções e desejos eróticos. [...] E mostra a
mulher esvaída em sensualidade, numa poesia que se constrói tanto segundo
a rigidez formal de tradição parnasiana quanto dando vazão às ondas de
languidez que atravessam o seu verso à moda simbolista. Daí uma reação
dupla por parte do público, pois causa tanto a admiração, por parte de uns,
em que se incluem as mulheres que encontram aí uma porta-voz na
representação de experiências da intimidade, até então proibida, quanto a
rejeição severa por parte de uma crítica moralista conservadora. [...] Mas foi
justamente por essa força reivindicadora patente na mistura bem dosada de
rigor formal e sensualidade ousada, que sua poesia ganhou força e até hoje
permanece, enquanto marco na história de resistência à situação de alienação
da mulher. Firmou-se, assim, como precursora na luta pelos direitos de
acesso à representação do prazer erótico na poesia feminina brasileira.
(GOTLIB, online, s.d.)
48
Gilka Machado permanece na cena literária ao longo da década de 30, tendo sido eleita
em 1933 “a maior poetisa do Brasil” pelos leitores da revista O malho. Publicou Carne e alma
(1931), e Sublimação, (1938), que a mantiveram em destaque na imprensa da época. Depois
ainda teve poemas reunidos em Meu rosto (1947), e Velha poesia (1965). Sua poesia
completa foi reunida em 1978. Recusou se candidatar a ser a primeira mulher da Academia
Brasileira de Letras, mas em 1979 recebeu o Prêmio Machado de Assis da instituição. A
seguir, alguns poemas que revelam uma visão particularmente feminina da condição da
mulher “presa nos pesados grilhões dos preceitos sociais”.
Ser Mulher...
No poema “Ser mulher...” Gilka Machado reflete sobre a identidade feminina como
uma alma de águia que aspira um sonho superior, deseja transpor o infinito, no entanto, está
inerte, presa nos preceitos sociais, além disso, busca um companheiro e encontra um senhor.
O aspecto social da opressão feminina, portanto, está bem acentuado nos versos.
Nos poemas “Tuas mãos são quentes, muito quentes” e “Fecundação”, evidencia-se a
vertente erótica de sua poesia, que aqui nos interessa por ser Gilka Machado uma pioneira da
temática entre nossas poetisas.
é um bárbaro instrumento
que se volatiza em melodias...
e, então, suponho,
à orquestral harmonia de meu ser,
que teu grandioso sonho
diga, em mim, o que dizes, sem dizer.
Fecundação
Nada me dizes,
porém entra-me a carne a pesuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.
No terceiro poema, temos uma gradação do contato íntimo que parte do olhar (“Teus
olhos me olham longamente”), perpassa o encontro das mãos (“Tua mão contém a minha”),
insinua a penetração, (“Tem teu mórbido olhar / penetrações supremas”), até propor uma
metáfora do orgasmo feminino em “há nos meus poros tal palpitação, / que me vem a ilusão /
de que se vai abrir / todo meu corpo”. É interessante ainda observarmos como o título
“Fecundação” não associa o ato sexual à função reprodutiva, mas faz referência implítica ao
desabrochar das flores que se abrem como se abre o corpo da mulher para o amor. Além
disso, nos dois poemas encontramos metalinguagem que associa o prazer literário com o
prazer sexual. No primeiro, “a poesia que tens nos lábios presa, / teu inédito poema de
tristeza, / vibrar, / cantar, / na minha pele nua”, e no segundo, “que me vem a ilusão / de que
se vai abrir / todo meu corpo / em poemas”.
Havia ainda Ercília Nogueira Cobra (1891-?), que publicou apenas dois livros, um
ensaio, Virgindade anti-higiênica (1924), e uma ficção, Virgindade inútil, novela de uma
revoltada (1926), em ambos ela defende o amor livre e denuncia a hipocrisia religiosa e da
sociedade que vitimavam as mulheres. Tais livros tiveram diversas reedições e chegou a ser
alvo de ação da polícia, que invadiu livrarias para recolhê-los. A crítica literária da época
simplesmente a ignorou ou a condenou pela ousadia (DUARTE, 2011). É curioso observar
que tal renovação temática, por ser advinda de escritoras, não foi de interesse dos
modernistas, nesse aspecto, ainda muito conservadores.
É a partir dos anos 30, período de instabilidade política e social, que ocorrem
mudanças significativas no quadro de participação feminina política (com a conquista do
sufrágio e filiação partidárias) e literária. Um dos destaques literários do período é Patrícia
Galvão (1910-1962), a Pagu, figura marcada pela militância política no partido comunista,
tendo sido presa várias vezes, e por suas crônicas jornalísticas, na coluna “A mulher do
povo”, em 1931. Em 1933 lança um romance social, abordando a questão trabalhista e a causa
revolucionária comunista, Parque industrial, sob o pseudônimo de Mara Lobo. Ainda na
51
década de 1930 surge a produção literária da mais importante escritora do período, a cearense
Rachel de Queiroz (1910-2003), primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de
Letras, apenas em 1977; autora de célebres romances como O Quinze, de 1930, João Miguel,
de 1932, e Caminho de Pedras, de 1937, dentre outras obras do nosso chamado regionalismo
de 30, mas que surpreendem pela perspectiva e representação feminina, incomum para os
escritores da época, como Graciliano Ramos, que em curiosa passagem afirma ter duvidado
da autoria do romance29.
Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro em 1901 e faleceu em 1964. Estreia com
apenas 18 anos, em 1919, com Espectros, de caráter simbolista. Apesar de não ter se
envolvido com a agitação modernista a princípio, posteriormente participou da fundação da
Revista Festa (1927-1935), responsável pela vertente de renovação literária no Rio de Janeiro.
Dedicou-se à carreira docente e fundou a primeira Biblioteca Infantil do Rio de Janeiro, em
1934. Em 1939, publica Viagem, considerado o marco de seu amadurecimento poético, seja
pelo cuidado formal rigoroso, seja pela fina sensibilidade e delicadeza de seus versos, e
recebe por ele, no mesmo ano, o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras.
Continuou publicando ao longo da década de 40 a 6030. Em 1965, a Academia Brasileira de
Letras lhe concede, post mortem, o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. No
poema a seguir, um dos mais conheidos da autora, é interessante observarmos como o fazer
poético evidenciado na metalinguagem não traz marcas de explícitas de gênero (a autora
emprega formas no masculino, por exemplo, “Não sou alegre nem sou triste / sou poeta”).
Motivo
29
“O Quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos maiores que o romance de José
Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de
mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: Não há ninguém com esse
nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado. Depois, conheci
João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me durante muito tempo a idéia idiota de que ela era
homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos
e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O quinze não me parecia natural” (RAMOS, apud DUARTE,
2011, p. 52).
30
Vaga música (1942); Mar absoluto e outros poemas (1945); Retrato natural (1949); Amor em Leonoreta
(1952); doze noturnos de Holanda e O aeronauta (1952); Romanceiro da Inconfidência (1953); Poemas escritos
na Índia (1953); Pequeno oratório de Santa Clara (1955); Pistoia, cemitério militar brasileiro (1955); Canções
(1956); Romance de Santa Cecília (1957); A rosa (1957); Metal rosicler (1960); Solombra (1963), e o infantil
Ou isto ou aquilo (1964).
52
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Já no poema “Lua adversa”, a autora não só faz a flexão de gênero no feminino (por
exemplo, “Fases de andar escondida”) como também faz referência à lua e suas fases, uma
simbologia recorrente do calendário menstrual feminino e das “fases” da mulher.
Lua adversa
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
de alguém ser meu / não é dia de eu ser sua... / E, quando chega esse dia, / o outro
desapareceu...”). Tal desencontro, no entanto, não parece incomodar a voz lírica, pois a
musicalidade dos versos de sete sílabas poéticas empregam um ritmo de leitura oral que faz
transparecer como as fases dessa lua adversa devem ser celebradas, cantadas com alegria.
Destaque ainda para os versos “Fases de andar escondida, / fases de vir para a rua...”, que
demarcam uma certa reivindicação do espaço público da rua como ambiente também
feminino, e não apenas o doméstico.
Outro grande nome da poesia nacional do período é a mineira Henriqueta Lisboa
(1901-1985). Ela estreia em 1925, com Fogo-fátuo, também na estética simbolista. A partir de
Prisioneira da noite (1941), o modernismo se faz mais presente em sua obra e o verso ganha
liberdade. Destaque também merece a publicação de seu livro de poesia infantil, O menino
poeta (1943). Continua a publicar ao longo das décadas de 40 a 8031. Foi a primeira mulher a
ingressar na Academia Mineira de Letras, em 1963, e em 1984 recebeu o Prêmio Machado de
Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra.
Infância
A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;
A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!
A infância inquieta
31
A face lívida (1945); Flor da morte (1949); Madrinha Lua (1952); Azul profundo (1955); Lírica (1958);
Montanha viva (1959); Além da imagem (1963); Nova Lírica (1971); Belo Horizonte bem querer (1972); O alvo
humano (1973); Reverberações (1976); Miradouro e outros poemas (1976); Celebração dos elementos: água,
ar, fogo, terra (1977); Pousada do ser (1982).
54
A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado!
No campo da prosa o maior destaque é Clarice Lispector (1925-1977), que estreia com
o romance Perto do coração selvagem, em 1944. Seu último romance publicado em vida é A
hora da estrela, de 1977, que nos deixou uma das personagens literárias mais emblemáticas e
adoradas, a Macabéa, além de ter publicado várias edições de contos. Destacamos também
Lygia Fagundes Telles, importante contista que estreia em 1939 com Porão e sobrado; seu
primeiro romance foi Ciranda de pedra, de 1954.32
Num quadro mais recente e que nos guiará para o campo em que circula nossa autora,
Heloisa Buarque de Hollanda (1994) destaca a presença da voz feminina e o crescimento das
teorias feministas como um dos traços caracterizadores da cultura na modernidade tardia. É
num momento de crise das ideologias contestatórias que o pensamento feminista inova o
campo acadêmico por seu viés crítico e político, a partir da década de 1980. A segunda
metade do século XX marca também um aumento significativo no número de publicações de
autoria feminina no Brasil, além do reconhecimento dessas no meio das letras.
Em 1950, Hilda Hilst (1930-2004), poeta, ficcionista e dramaturga, inicia sua ascese
literária como poeta com seu primeiro livro, Presságio. A partir da década de 1960, a sua
fazenda, que nominou Casa do Sol, torna-se centro de formento cultural durante os anos da
32
Dentre outras ficcionistas, como: Maria Lacerda de Moura (1887-1945); Carolina Nabuco (1890-1981); Maria
José Dupré (1898-1984); Lúcia Miguel Pereira (1901-1959); Eneida de Morais (1903-1971); Adalzira
Bittencourt (1904-1976); Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), autora de A muralha, de 1954, a segunda
escritora a ingressar na ABL, em 1980; Zulmira Ribeiro Tavares (1930-); Nélida Piñon (1937-), primeira mulher
a presidir a ABL; a paraibana Maria Valéria Rezende (1942-), Ana Miranda (1951-); entre muitas outras.
55
ditadura militar. Em 1967 começa a escrever suas peças teatrais. Ao iniciar sua ficção, em
1970, com o livro Fluxo Floema, inaugura também um momento raro na literatura brasileira
pela revitalização da linguagem e do gênero em prosa, com recursos modernos como o fluxo
de consciência. Seguiram-se vários outros livros no gênero, dentre muitos outros, A obscena
senha D., de 1982; e a trilogia erótica O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Contos d’
escárnio/Textos grotescos (1990), Cartas de um sedutor (1991). Questiona temas existências
considerados tabus à época, como a morte, o sexo, a loucura e o divino. O erotismo é um dos
elementos centrais de sua obra33. A seguir, três poemas de décadas diferentes que demonstram
como a temática erótica é recorrente em sua poesia.
E a ti, te conhecendo
Que eu me faça carne
E posse
Como fazem os homens.
33
Dentro da grande obra de Hilst, destacamos aqui a poética, além dos citados acima, temos ainda: Balada de
Alzira (1951); Balada do festival (1955); Roteiro do silêncio (1959); Trovas de muito amor para um amado
senhor (1960); Ode fragmentária (1961); Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974); Odes mínimas (1980);
Cantares de perda e predileção (1983); Poemas malditos, gozosos e devotos (1984); Sobre tua grande face
(1986); Amavisse (1989); Alcoólicas (1990); Bufólicas (1992); Do desejo (1992); Cantares do Sem Nome e de
partidas (1995).
56
ressignificação do termo ao problematizar que tal gesto é praticado pelos homens da mesma
forma como amam as mulheres, a conquista de um território se assemelha à conquista do
corpo feminino. Fazer-se carne, posse, corporificar-se, opõe-se à ideia de espírito, portanto, o
ato sexual, une a libertação do que é etéreo (alma) e do que é terreno (corpo) na mulher.
A poeta paraense Olga Savary (1933 – ), estreia com o livro Espelho provisório em
1970. Em 1982 lança Magma, o primeiro livro só de poesia erótica a ser publicado por uma
mulher no Brasil, sessenta anos depois da publicação pioneira de Gilka Machado. Além de
várias outras publicações ao longo das décadas de 80 e 9034.
Nome
Acomodação do desejo
34
Sumidouro (1977); Altaonda (1979); Natureza Viva (1982); Hai-Kais (1986); Linha d'água (1987); Berço
Esplendido (1987); Retratos (1989); Rudá (1994); Éden Hades (1994); Morte de Moema (1996); Anima
Animalis (1996).
58
35
Na sequência, O Coração Disparado (1978); Terra de Santa Cruz (1981); O Pelicano (1987); A Faca no Peito
(1988); Oráculos de Maio (1999); A duração do dia (2010); e Miserere (2013).
59
Canícula
36
Impossível não refletirmos sobre a recente polêmica envolvendo a atriz transexual Viviany Beleboni e sua
performance crucificada como cristo, sob os dizeres “Basta de homofobia GLBT”, durante a 19ª Parada do
61
discurso religioso não é moralista, não se escandaliza com uma mulher gozando, mas com o
crime que é dizer que nisto consiste o pecado. O discurso religioso que aparece no poema de
Adélia Prado é o do amor e esse amor não exclui o prazer da carne, pois até cristo tem um par
de nádegas: “o que dizes é amor, / amor do corpo, amor”.
Este último poema é do mais recente livro de Adélia Prado, Miserere (2013), pelo
título em latim já percebemos como a religiosidade continua como aspecto importante, e pelo
poema percebemos como a voz lírica adeliana continua a abordar de forma direta o desejo de
se envolver amorosamente com o interlocutor. Essa voz não aceita “enrolação” (“Dá a
entender que me ama, / mas não se declara”), e demonstra-se impaciente com a falta de
iniciativa do candidato a companheiro (“Que enfado! Desembucha, homem”), além disso, se
gaba por ter outro pretendente e portanto não precisar perder tempo com quem fica como
qualquer bobo a mastigar grama, rodando o dedo na penca de chaves como se quisesse
demonstrar posses, ela não, a voz lírica feminina aqui é extremamente decidida e sabe o que
quer, por isso o desdém na forma de qualificar o verso do homem em questão como doente.
Nesse poema é a própria Adélia Prado quem agora utiliza a posição privilegiada de poetisa
renomada para mandar a indireta ao pretendente, ao dizer que não aceita a desculpa amarela
de que o que ele quer é discutir sua lírica. Tal postura é ainda mais relevante quando
consideramos a idade atual da poetisa (hoje com 79 anos) e a forma despojada da linguagem
que emprega para falar da conquista amorosa.
“Traçar esta linha entre escritoras e escrituras, revisitando dissonâncias e confluências,
é perceber como a narrativa erótica se desloca de seu território e começa a habitar um entre-
Orgulho LGBT na Avenida Paulista. A atriz foi acusada de profanar símbolo religioso e toda a comunidade
LGBT foi extremamente xingada por religiosos que aproveitaram o ensejo fazer política de ódio entre os fieis.
62
lugar a partir do momento em que cruza com a autoria feminina e com as performances de
gênero37 nela embutidas” (BORGES, 2010, p. 10). Evidentemente, esse percurso rápido de
revisão de autoras que apresentamos acima não visa esgotar nem abarcar toda a produção
literária brasileira feminina do período, apenas citar alguns nomes de destaque e
reconhecimento pela crítica especializada. Portanto, com esse breve apanhado das autoras
brasileiras modernas traçado acima queremos demonstrar que a autoria feminina – que, de
acordo com Norma Telles (1992), não corresponde ao feminino de autor –, ao reconstruir
novos significados, quebra tabus sociais, reconfigurando a própria literatura, expandindo o
horizonte de expectativas da literatura tradicional, ao assumir a perspectiva feminina inerente
a essas e outras obras escritas por mulheres anteriormente desconsideradas.
Por isso a importância de um revisionismo crítico, que resgate essas autoras
silenciadas pelos jogos de poder da sociedade hierarquizada e que traga à tona também uma
nova leitura, agora autorizada pelas mulheres (escritoras, críticas literárias, acadêmicas etc.),
rompendo com a autoridade da leitura, tradicionalmente vinculada aos homens. Para
compreender a evolução da incursão das mulheres na literatura brasileira é imprescindível
refletirmos sobre como a trajetória do feminismo como movimento social organizado foi
importante para o florescimento da literatura feminina/feminista. Em primeiro lugar, porque é
a partir da luta e das bandeiras defendidas pelo movimento feminista que as mulheres passam
a contestar as barreiras que sempre lhes foram impostas e passam a ter consciência e voz no
que se refere a seus direitos enquanto cidadãs em vários campos sociais. Esse processo de
libertação das mulheres, portanto, só se dá a partir de suas próprias reivindicações, por isso é
tão importante a conscientização operada pelas feministas nas suas mais diversas formas de
atuação, seja através das organizações políticas, seja atuando nos movimentos sociais, nos
palanques, através da literatura ou na crítica literária. Esse novo terreno conquistado pela
crítica feminista pôs em xeque alguns conceitos, antes inabaláveis da crítica literária
tradicional, isso porque a crítica feminista é profundamente questionadora, e busca descortinar
fenômenos literários e culturais antes tidos como naturais, mas que, na verdade, são
naturalizados pelo poder opressor das instituições sociais. “A cultura, com efeito, é um
conjunto de sistemas simbólicos, de códigos que, de uma forma ou de outra, prescrevem ou
limitam a conduta humana. O que nos sugere que a cultura implica ou requer mecanismos de
cerceamento social” (REIS, 1992, p. 66). O que interessa às mulheres é discutir o que vem
37
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2003.
63
sendo cerceado com base na diferença sexual e buscar modificar tal situação ou pelo menos
questionar suas bases.
64
CAPÍTULO 2
“EU SOU UMA MULHER”: PRESENÇA DO CORPO NA POESIA COLASANTIANA
PARA ALÉM DO SEXO
38
São atualmente 61 livros publicados entre 1968 e 2016, nos gêneros crônica (sete livros), conto/miniconto
(seis livros), contos de fada (onze livros), artigos/ensaios (oito livros), citações (dois livros), infantil (treze
livros), poesia infantil (cinco livros), poesia (quatro livros), novela juvenil (três livros), memórias/história (dois
livros).
39
A autora não considera os contos de fada necessariamente obras infantis.
40
Cada bicho seu capricho (1992), Minha ilha maravilha (2007), Poesia em 4 tempos (2008), Classificados e
nem tanto (2010), O nome da manhã (2012).
65
Rota de colisão
velhice e que busca compreender esse fênomeno atravez de metáforas que opõem uma
identidade do sujeito, que seria algo interno, e a materizalização desse sujeito externamente
através do corpo. Além disso a dualidade entre o que é externo e o que é interno associado à
velhice e à dificuldade de reconhecimento sinalizam que para a voz lírica a casca envelhece
antes da polpa.
Julgamos tais versos os mais belos do poema porque sintetizam bem sua ideia central.
Embora seja comum a expressão “chegada da velhice” – por nós mesmo tantas vezes utilizada
neste trabalho – a velhice não é um marco bem delimitado ao qual o sujeito simplesmente
chega triunfalmente como um barco que aproa ou um cavalo galopante que cruza a linha de
chegada. Não entramos na velhice por inteiro. A velhice é um vento que sopra sem soprar,
mas que está sempre constante, daí a dificuldade do sujeito em reconhecer-se diante da
“nova” identidade, já que na verdade ela não é “nova” nem está completa: é “jovem velha e
madura ao mesmo tempo”. As fases da vida não são isoladas, elas são transições entre umas e
outras e o corpo revela isso através do lento, porém perceptível ao longo do tempo, processo
de envelhecimento.
41
“Meu pescoço se enruga. / Imagino que seja / de mover a cabeça / para observar a vida. / E se enrugam as
mãos / cansadas dos seus gestos. / E as pálpebras / apertadas no sol. / Só da boca não sei / o sentido das rugas / se
dos sorrisos tantos / ou de trancar os dentes / sobre caladas coisas.” (COLASANTI, 1993, p. 28)
69
Tive um rosto
Tive um rosto
E o perdi
Penso diante do espelho
Que não me entrega aquela
que eu esperava
mas outra
bem mais velha.
Mais uma vez me engano.
Certo seria dizer:
Pensei ter tido um rosto
E o que perdi foi
A ilusão de um rosto.
Caminhei até um rosto
Longamente,
Um rosto que alcançado
Seria o meu.
E quando enfim cheguei
Àquele rosto
Ele nao era aquele
Era um rosto
Muitos rostos adiante.
Cheguei sempre atrasada
Nesse encontro
Porque quis alcançar meu rosto
Como a um porto
E não soube entender
Que rosto
É só percurso.
Tive um rosto
E o perdi
Penso diante do espelho
Que não me entrega aquela
que eu esperava
mas outra
bem mais velha.
particular, carrega o significado de não mais identificação, já que o rosto anterior foi perdido,
já não é mais o mesmo que o espelho entrega. O espelho é um substantivo importante porque
está intimamente associado com a noção de identidade. “O tema do espelho como revelação
da identidade e da diferença no processo de formação humana tem sua origem na Antiguidade
e relaciona-se, geralmente, ao autoconhecimento” (NÓBREGA, 2006, p. 98). Na teoria
psicanalítica de Lacan, a fase do espelho é responsável pela formação do eu na infância.
A crise de identidade da voz lírica está posta no momento em que o espelho simbólico
já não corresponde às expectativas de identificação. O que o espelho entrega não é mais o eu
que se esperava, mas uma outra e que é bem mais velha. Tal crise de identidade, portanto, se
desenvolve na velhice, em que a memória do eu reconhecido no espelho ao longo da vida não
corresponde mais ao rosto visto no espelho no momento presente. É uma crise da idade. No
entanto, tal crise não se revelará como algo negativo, ao contrário, é a partir dessa crise que o
eu lírico promove alta reflexão sobre sua identidade.
Mais uma vez conseguimos encontrar relação com os espelhos da teoria lacaniana. “O
imaginário, para Lacan, é precisamente esse reino das imagens, no qual fazemos
identificações, mas que, no próprio ato de fazê-las, somos levados a ver mal, e a reconhecer
mal, a nós mesmos” (EAGLETON, 1997, p. 227). Parece ser essa a conclusão a que chega o
eu lírico quando afirma que o que perdeu, na verdade, foi a ilusão de um rosto. Uma falsa
projeção que refletida no espelho correspondia às expectativas de unidade do eu, com a qual o
eu lírico podia se identificar. Quando a velhice promove alterações nessa imagem, as marcas
71
da velhice no rosto, é que o eu lírico percebe que, não deixando de ser quem é, não consegue
mais se identificar no espelho, portanto, o rosto que julgava possuir e que concebia como
reflexo do eu não passa de uma ilusão. “Certo seria dizer: Pensei ter tido um rosto”, aqui o
verbo ter passa a ser problematizado. A revelação é que pensamos possuir um rosto, um
corpo, mas na verdade essa é a grande ilusão, eles estão sempre em processo. Isso fica mais
claro ao final do poema com a conclusão que revela aprendizagem.
O final do poema revela uma nova rota de colisão, em que há o encontro do eu com o
rosto refletido no espelho e a comunhão entre os dois, identidade e reflexo. Mas como vimos,
esse encontro é inalcançável, o rosto não é um porto (e aqui é impossível não lembrarmos da
metáfora de rota de colisão: “Pensei entrar na velhice / por inteiro / como um barco / ou um
72
cavalo). O barco aqui não alcança o porto, o rosto não é um porto, não é um ponto de
chegada. A aprendizagem final a que o eu lírico chega é a de “que rosto / é só percurso”.
Jamais encontrará o rosto que almeja porque o rosto não é seu como algo inalterável, o rosto é
o percurso através do qual o sujeito busca ao longo da vida a sua identificação no espelho, e
justamente por não encontrá-la é que continua a jornada. “A função do espelho consiste,
portanto, na integração do ser dentro de uma dialética de identificação com o outro e de
socialização” (NOBREGA, 2006, p. 110). Notemos que tal aprendizado só é possível na
maturidade, justamente porque é a fase em que, já tendo percorrido grande parte da rota, se
consegue analisar essas mudanças do percurso. Então o que o eu lírico não soube entender
antes, a maturidade lhe revela como aprendizado.
Um dos poemas mais interessantes sobre a velhice traz também o aspecto erótico. É
importante pontuarmos que a sexualidade feminina é muito tolhida e comumente atrelada à
reprodução. O próprio “valor” de uma mulher chega a ser medido pela sua capacidade
reprodutora, as mulheres inférteis e as que estão na menopausa sofrem enorme preconceito.
“Tanto o preconceito como as discriminações de idade se realizam muito mais, por exemplo,
em relação às mulheres que aos homens” (MOTTA, 2007, p. 134). Lago (2007) compreende a
velhice como um fenômeno complexo bio-social e também psíquico, portanto, não apenas os
fatores biológicos como as alterações hormonais interferem42, mas também os fatores sociais
e psíquicos que envolvem a questão de gênero.
42
Embora os homens permaneçam mais ativos que as mulheres, 17% delas, entre 75 e 85 anos, referem ser
sexualmente ativas. A maioria das dificuldades e disfunções sexuais cresce com o envelhecimento. Na mulher,
há um agravamento dessa situação no início do climatério, mantendo-se aproximadamente a mesma após os 55
anos. Quase 20% das mulheres brasileiras acima de 60 anos se ressentem da falta de interesse sexual. (FLEURY
e ABDO, 2015. p. 117-118).
73
Frutos e flores
É importante destacar que tal comparação parte do homem, que na lírica erótica-
amorosa de Marina Colasanti (tema do próximo capítulo) é recorrentemente identificado pelo
74
vocativo “meu amado” (“Meu amado me diz / que sou como maçã / cortada ao meio”). No
entanto, a constatação da semelhança com a maçã é feita pela própria mulher, portanto, não há
uma simples aceitação da visão masculina que é oferecida, pois a voz lírica ao tomar para si a
metáfora, expande a afirmação e a erotiza (isso pode ser comprovado pelos versos “é bem
verdade” – concordância – e “que não sei / se ainda tenho” – questionamento). Na sequência,
observamos como o aspecto erótico do poema se constrói a partir da descrição do formato da
maçã com as formas do corpo feminino (“e a simetria das curvas”). As sementes da maçã
também são erotizadas porque se reportam ao aspecto reprodutor (sementes/óvulos). E a
questão do envelhecimento, em particular, surge nos versos “Tive um certo rubor / na pele lisa
/ que não sei / se ainda tenho”, remetendo a perda do viço com o enrugar da pele que se torna
mais opaca, seca, perde o tom corado característico da jovialidade.
A segunda parte do poema inicia-se com a conjunção adversativa “mas”. Então,
mesmo aceitando o fato de não possuir mais o rubor da pele lisa, o eu lírico não concebe isso
como perda da capacidade de “florir”, ou seja, a maturidade e as transformações que acarreta
no corpo não são responsáveis pela perda da libido. Isso é extremamente provocativo porque
comumente se associa a velhice feminina com a frigidez – ao contrário do homem que se
manteria fértil e sexualmente ativo – o que é uma grande falácia.
Embora a idade seja, de fato, um dos fatores que pesam sobre a diminuição da
lubrificação natural feminina, o principal fator que acarreta a diminuição do apetite sexual das
mulheres é a própria falta de manejo masculino (não é raro que parceiros de longa data
percam o interesse pelos corpos das parceiras e a “culpa” recai sobre uma fictícia perda
irreparável da libido feminina). Por isso a voz lírica dá tanta importância ao desempenho do
amado (“cada vez que sua faca / me trespassa” – onde faca e falo se correspondem, mas a
metáfora criada não se limita apenas a penetração, mas ao ato sexual como um todo), capaz de
fazê-la se desdobrar em “brancas flores”. A metáfora do florescimento com o prazer sexual é
bastante interessante já que o florescer é diferente de dar frutos, portanto, o sexo não fica
atrelado a função reprodutiva, mas ao prazer. Além disso, a cor branca das flores nos remete
75
ao vestido das noivas, e tradicionalmente a noite de núpcias era a primeira relação sexual do
casal; então é como se cada vez que a faca masculina do amado cortasse a maçã feminina ao
meio, essa mulher fosse capaz de experienciar novamente as núpcias, já que o interesse sexual
pelo parceiro permanece vivo e se renova. Também há a valorização da maturidade nos versos
“eu maçã feita / e pra lá de madura”.
Nos dois poemas a seguir, ambos presentes em Rota de colisão (1993), temos a
temática da menstruação, um fator biológico relativo às mulheres, e por isso mesmo capaz de
as unir numa mesma categoria (seres que sangram mensalmente ao longo de grande parte da
vida). No entanto, a menstruação marca o período fértil da mulher, as meninas que ainda não
menstruam e as idosas que já pararam de menstruar estariam “excluídas”. Mesmo assim o
poema tem um empoderamento feminino porque usualmente a menstruação é vista como algo
indesejável, do qual as mulheres têm vergonha, que precisam esconder e que traz inúmeros
transtornos (cólicas, alterações de humor, acne, sensação de inchaço, maior necessidade de
76
higiene, etc.). Ao iniciar o poema com “Eu sou uma mulher / que sempre achou bonito /
menstruar” a poetisa opera uma grande quebra de expectativa: no horizonte de leitura dos/as
leitores/as, porque não temos a expectativa de vermos a menstruação como tema de poesia, e
no horizonte de expectativa construído culturalmente acerca do ciclo feminino, já que a
menstruação passa a ser algo admirável, belo, digno de poesia.
Em nós
O sangue aflora
Como fonte
No côncavo do corpo
Olho d’água escarlate
Encharcado cetim
Que escorre
Em fio.
Nosso sangue se dá
de mão beijada
Se entrega ao tempo
Como chuva ou vento.
O sangue masculino
Tinge as armas e
O mar
Empapa o chão
Dos campos de batalha
Respinga nas bandeiras
Mancha a história.
O sangue masculino só se derrama por influência externa ou atos súbitos, seja doença,
sangria ou punhal cravado. Em todos esses casos há uma valoração negativa desse derramar,
que é algo indesejável, que se busca evitar e que, ocorrendo, é urgente estancar, já que uma
hemorragia poderia levar a óbito. Notemos as aliterações presentes nesse fragmento (“Os
homens vertem sangue / Por doença / Sangria / Ou por punhal cravado, / Rubra urgência / A
estancar / Trancar / No escuro emaranhado / Das artérias.), a repetição do som consonantal
destacado, que se assemelha a um “arranhado” por ser produzido ainda na garganta (sons
vibrantes palatares /r/ ou uvulares /R/), causam uma sensação de “incômodo”, assim como é a
reação diante do sangue masculino. Muito diferente é a impressão causada pelo sangue
feminino: os homens vertem sangue; Em nós o sangue aflora. Verter é transbordar, jorrar;
aflorar é vir a tona, emergir. A escolha dos verbos associa o sangue masculino à violência
(como punhal cravado), enquanto o feminino é algo natural e renovável (como fonte).
78
Em nós
O sangue aflora
Como fonte
No côncavo do corpo
Olho d’água escarlate
Encharcado cetim
Que escorre
Em fio.
Nosso sangue se dá
de mão beijada
Se entrega ao tempo
Como chuva ou vento.
O sangue masculino
Tinge as armas e
O mar
Empapa o chão
Dos campos de batalha
Respinga nas bandeiras
Mancha a história.
Diferente é o sangue feminino que vai colhido em brancos panos. A bandeira branca é
um símbolo de paz, então mais uma vez o sangue menstrual se opõe à violência (“manso
sangrar sem grito”). Além disso, ele é colhido, o verbo colher mais uma vez o aproxima da
natureza e traz implícita a ideia de ciclo, a menstruação tem um período que se repete como
uma colheita. O verbo benzer também é muito forte e traz um tom de sacralidade ao ciclo
feminino43. É um ciclo que se repete e gira como uma ciranda, a ciranda da fêmea é uma
metáfora que remete ao período fértil da mulher, remete também ao universo místico das
bruxas44, que dançavam em círculos. O substantivo fêmea também tem a capacidade de
ressaltar o aspecto biológico, reprodutivo da menstruação, que une as mulheres sob um
mesmo grupo. Concuímos então que todo o poema, justamente por tratar de um processo
biológico feminino, é completamente referenciado na natureza e na experiência mística, que é
retomada na simbologia da lua ao final do poema.
A expressão de um sangue “que se entrega para a Lua” remete novamente aos rituais
pagãos, e há uma clara relação entre a Lua e a feminilidade. Além disso, o sangue masculino
43
O conhecimento do Sagrado Feminino é ancestralmente adquirido em círculos de mulheres, através do
compartilhamento de suas próprias experiências e observações do corpo, ciclo menstrual, gravidez, etc. em
equilíbrio com a natureza.
44
Religiões neopagãs (que se afastam do cristianismo e por isso são associadas ao satânico, macabro, oculto),
como wicca. Místicismo, bruxaria, magia são todos termos em tensão por significado também por serem
associados ao feminino.
80
“corre para a Morte”, é símbolo da guerra. A Morte grafada com letra maiúscula permite o
jogo com a palavra Marte, que na mitologia latina é o deus da guerra. E assim mantem-se o
mesmo campo semântico da astronomia (Marte é o nome dado ao quarto planeta do sistema
solar e a Lua é o principal satélite da Terra). A Lua por sua vez é uma divindade feminina:
Luna na mitologia latina e Jaci na mitologia tupi, por exemplo. A deusa grega Ártemis, ligada
à vida selvagem e à caça, também é associada à lua e à magia. A aproximação entre a Lua e a
mulher também se dá pelos ciclos vivenciados, haveria uma relação entre as fases da lua e o
ciclo menstrual da mulher, ou seu ciclo reprodutor. Na religião Wicca a divindade maior é
representada pela lua em suas fases (Deusa tríplice, correspondentes à donzela, mãe e anciã).
O poema, portanto, se equivocadamente for lido, pode ser entendido como uma
associação direta do feminino com a natureza em contraposição ao masculino associado à
cultura (um dualismo ultrapassado e constantemente questionado pelas teorias feministas).
Por outro lado, a leitura que fazemos dele, associando-o a uma visão não estereotipada dos
rituais pagãos e de conhecimento da mística feminina revelam uma possibilidade de leitura
muito mais ampla e que, na verdade, ressignifica a menstruação em nossa cultura, buscando
no conhecimento ancestral uma valorização do feminino que se perde na cultura patriarcal.
É preciso garantir às mulheres o conhecimento sobre o seu próprio corpo, sobre os
seus ciclos, suas transformações e necessidades. Tal conhecimento empírico feminino é
muitas vezes banido pelo conhecimento médico masculino45. Às mulheres não é permitido
conhecer e falar sobre seu próprio corpo, a menstruação é tida como algo sujo, fétido, motivo
de vergonha e que jamais deve ser exposto. Portanto, quando Marina Colasanti fala
poeticamente sobre a mesntruação, buscando beleza no conhecimento ancestral e mitológico
da mulher, ela está reivindicando um espaço. É o empoderando feminino através de seu
próprio corpo.
A ressignificação da menstruação também está presente no poema “Sangue de
mênstruo”, um poema metalinguístico em que a poetisa marca seu lugar de enunciação
poética através do corpo feminino, é uma escrita do corpo, representado aqui pelo sangue
menstrual.
Sangue de mênstruo
Paixão se escreve
Em folha vermelha
De papel de seda
45
Basta citarmos como exemplo a polêmica em torno do parto humanizado domiciliar com a presença de doulas
e a epidemia de cesáreas no Brasil.
81
Paixão te escrevo
Em língua de fogo
Pena de flamingo
Flor de gravatá.
De líquida carne
Neste poema “o ser feminino enuncia, livre das amarras do puder e da vergonha, o
conhecimento a respeito de tão singular elemento de seu corpo de mulher” (SILVA, 2008, p.
171). A carne dos seios se apresenta com uma característica próxima dos líquidos: a de mudar
de forma, adaptando-se ao recepiente em que se encontr, ou que lhe toma. No poema, o corpo
feminino é representado de maneira natural e, ao mesmo tempo, erotizada. As marcas eróticas
estão presentes em
46
Diversas mães no Brasil e no mundo promoveram “Mamaços”, a manifestação coletiva de grupos de mães que
se reúnem para amamentar seus filhos em público. No Brasil, tais eventos ocorreram em concentração em
algumas cidades ao longo do ano de 2012, quando essas mulheres passaram a questionar a proibição de
amamentar em espaços públicos como shoppings centers. Essas mulheres problematizavam que o seio feminino,
intensamente exposto e erotizado nos cartazes dos shoppings era proibido de ser exposto num gesto natural como
o da amamentação, o que revela que o corpo feminino está sempre questionado e proibido, ele só é permitido
quando interessa ao desejo masculino e do capital. Tais manifestações foram extremamente importantes e
resultaram em ganhos reais, além de promover a mudança de mentalidade resultaram também na aprovação da
Lei 414/2015, que proíbe que estabelecimentos impeçam ou coíbam as mães de amamentar em público. Os
mamaços encontram apoio dos profissionais da saúde que alertam para a importância do aleitamento materno.
83
Ou seja, o seio é capaz de tornar-se pontudo quando arrepiado ao ser posto em contato
com a boca do amante ou toma a forma arredondada quando é segurado pela curva de sua
mão. Esse fragmento erotizado é sinestésico (ardidas pontas, doce palma), além disso, os
verbos “colher” e “aprisionar” são as ações praticadas pelo amante, diferentemente de
“ondejar” que é uma ação produzida pelo movimento da própria mulher. A própria disposição
gráfica dos versos, com a palavra ondejam isolada num verso, precedida e seguida por versos
mais longos formam uma onda. A comparação final do seio com a maré traz a imagem do
movimento.
Livres à noite
47
A liberdade guiando o povo (1830) é a célebre tela de Delacroix, comumente presente nos livros de história
quando se referem à Revolução Francesa. Na imagem, temos a liberdade representada por uma mulher com os
seios desnudos, empunhando com a mão direita a bandeira francesa e com a esquerda uma arma.
84
E na quietude do quarto
Os peitos
Como navios
Fazem-se ao largo.
Da mesma forma como o dia útil é associado com a obrigação do trabalho, dos
afazeres cotidianos, associa-se também com a obrigação feminina de manter os seios firmes,
tudo nos devidos lugares, d acordo com a ordem estabelecida. A noite, portanto, representa o
momento de libertação em que acaba a jornada de trabalho e junto com ela o “dever de rijos
seios”. Ou seja, é no ambiente doméstico que a mulher experiementa essa libertação, já que
48
Basta lembrar por exemplo do famoso ato em que um grupo de feministas protestaram contra um concurso de
beleza nos Estados Unidos queimando sutiãs em 1968. O sutiã ali, como peça íntima feminina, era símbolo dessa
opressão, que os concursos de beleza exploram.
85
ali tais cobranças pela aparência não fazem o mesmo sentido. Podemos afirmar então que há
uma dupla cobrança cultural sobre a mulher: no campo do trabalho e no campo da beleza.
Duas palavras aparecem grafadas em itálico nesse fragmento: constrictor (do inglês,
compressor) e wonderbra (wonder = maravilhoso / bra = sutiã; marca canadense de lingerie
que se popularizou em todo mundo explorando o aspecto sensual da peça, que operaria
milagres). Tais palavras em destaque são exploradas semanticamente no poema: constrictor
tanto se refere ao resultado estético do sutiã, que comprime o seio contra o corpo, como
também com a própria opressão que tal simbologia encerra, pois o wonderbra também oprime
ao criar uma necessidade estética que não condiz com a realidade natural do corpo. Assim, a
expressão wonderbra aparece ironicamente, pois algo que seria “maravilhoso” na verdade é
algo do qual a mulher anseia por se livrar ao fim do dia. Para isso utiliza até mesmo a tesoura
como utensílio, de modo que o desejo de tirá-lo é tão grande que pouco importa a depreciação
do produto (sabemos que não é necessário cortar o sutiã com tesoura para removê-lo, no
entanto, tal expressão tem o poder de enfatizar o desejo de estar livre da peça de imediato).
Também merece atenção a palavra “couraça”. Na psicologia reichiana existe o
conceito de couraça como uma espécie de endurescimento protetor do ego. “O autor deixa
claro que é em torno do ego que a couraça se forma e a descreve como resultado do conflito
entre as exigências pulsionais e um mundo externo que frustra essas exigências” (FARIA,
2009, p. 5). O sutiã como couraça, portanto, poderia estar relacionado às frustrações
femininas em decorrência da sobrecarga de exigências que nos são colocadas. Tirar o
sutiã/couraça seria uma forma de se sentir livre desse molde pré-estabelecido.
49
Sabemos que o mundo do trabalho ainda é opressor com as mulheres, desde ameaças concretas à direitos
trabalhistas já consolidados, como a licença maternidade, ou outros ainda distantes de se tornarem efetivos,
como o direito da mãe trabalhadora de ter pausas na jornada para amamentar. Há também violências
psicológicas, como o assédio; e principalmente simbólicas: é extremamente comum que as mulheres sejam
elogiadas em seus locais de trabalho não por seu desempenho laboral, mas por sua beleza. As atletas passam
bastante por isso quando seus corpos são elogiados em detrimento de seus resultados; mulheres que desenvolvem
atividade intelectual também costumam ouvir que são lindas (em primeiro lugar) e inteligentes; etc. Tais
comentários não costumam ser dirigidos aos homens.
87
A descrição dos gestos da mulher ao retirar o sutiã (“Descem as alças pelos ombros /
As mãos se encontram nas costas / Soltando amarras”) cria um aspecto de ritual ao gesto, da
mesma forma como o ritual se repete todos os dias ao regressar à noite para a casa.
A metáfora final (“Os peitos / Como navios / Fazem-se ao largo”) relaciona-se à
forma. O largo é a posição que o veleiro toma em decorrência do vento, ou seja, quando não
está preso no porto. Da mesma forma, os peitos quando não estão presos no sutiã podem
mudar de posição, esparramando-se livremente. Esse poema dialoga com o anterior ao tratar
da anatomia feminina, mais especificamente da forma do seio (a metáfora imagética com que
se encerram, inclusive, tem semelhanças) e também aponta como o corpo feminino é marcado
pela opressão.
50
Sobre esse tema, Colasanti tem alguns microcontos, destacamos: “Porém igualmente” (In: Um espinho de
marfim & outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2009.) e “Para que ninguém a quisesse” e “Uma questão de
educação” (In: Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Record, 2010.).
51
Título do livro de Naomi Wolf.
52
Por isso uma famosa frase do movimento feminista atual é “Inicie uma revolução. Ame o seu corpo.”
88
Na academia de ginástica
Antigamente as santas
Fustigavam o corpo
Com açoites
Jejuavam
Maceravam as carnes no cilício.
E coroando tanto sacrifício
Descia do céu um anjo
Iluminado
Abençoando a alma
Em beatitude.
Eu chicoteio o corpo
Nas massagens
Me privo de comida
Macero dobro alongo
Vergo a carne.
Mas o anjo não vem
Nem Deus se agrada.
E longe está de mim
Odor de santidade.
Antigamente as santas
Fustigavam o corpo
Com açoites
Jejuavam
Maceravam as carnes no cilício.
E coroando tanto sacrifício
Descia do céu um anjo
Iluminado
Abençoando a alma
Em beatitude.
53
Comumente se associa tais práticas à religiões africanas ou indígenas, porém, como o poema nos traz, as
religiões cristãs também possuem seus rituais de privação e flagelação.
89
físicos (açoites, jejum, cilício). Castigar a carne pecaminosa, portanto, seria uma forma de
tornar a alma beata. E assim a religião reforça uma hierarquia entre corpo e alma, o corpo
sempre associado ao mundano, pecaminoso. Pode à primeira vista parecer algo absurdo para a
sociedade atual, mas Colasanti demonstra como tais práticas se assemelham com outros
rituais modernos que, não coincidentemente, também se voltam para as mulheres como
principal alvo.
Eu chicoteio o corpo
Nas massagens
Me privo de comida
Macero dobro alongo
Vergo a carne.
Mas o anjo não vem
Nem Deus se agrada.
E longe está de mim
Odor de santidade.
Os dados acima tomados como pressuposto por Naomi Wolf revelam que as mulheres
recorrem aos sacrifícios estéticos em nome do mito da beleza54. Não há mais a tentativa de
alcançar uma divindade inalcançável, mas a tentativa de alcançar um ideal de beleza
igualmente inalcançável, porque padronizado. Com isso, muitas mulheres gastam grande parte
54
Os dados da pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado” (apud CHACHAM & MAIA,
2004) revelam que no que se refere ao corpo estético, 75% das entrevistadas afirmaram estar satisfeitas com sua
aparência física. Menos da metade (42%) das mulheres entrevistas declarou estar insatisfeitas ou apenas
parcialmente satisfeitas com seu corpo, sendo que estar acima do peso (29%) e ter barriga (26%) eram as
principais queixas delas.
90
de suas vidas e finanças envolvidas em tais rituais estéticos; é assim que se exerce o controle
social através do mito da beleza feminina.
O alto nível de satisfação declarado pelas mulheres com sua aparência física
se contrapõe à enorme demanda das mulheres brasileiras por serviços
estéticos (cosméticos, cirurgias plásticas, tratamentos para a perda de peso,
etc.). Associa-se a isso o aumento do relato da ocorrência de distúrbios
alimentares como bulimia e anorexia, ambos relacionados com a pressão
cultural por um modelo estético relacionado com a magreza. O mais
instigante com relação à busca das mulheres por estar em conformidade com
o modelo estético contemporâneo é a legitimação pelo discurso da saúde. A
falácia que associa estética e saúde autoriza as mulheres (e cada vez mais os
homens) a se submeterem a procedimentos que podem, inclusive, prejudicar
a saúde. (CHACHAM & MAIA, 2004, p. 80)
Naomi Wolf nos mostra como o mito é uma reação do patriarcado contra o feminismo,
e vem justamente ocupar um espaço perdido por outras formas de controle do feminino, como
a castidade por exemplo.
De acordo com Colasanti, o que difere os sacrifícios das santas de antigamente dos
sacrifícios das mulheres modernas é justamente a ausência de santidade. O culto ao corpo é a
nova religião e essa não prevê nenhum tipo de aproximação com a divindade, nenhum anjo
descerá do céu, o próprio Deus não se agrada, já que o corpo não deixou de ser pecado e agora
é também adorado.
Ou seja, muito mais do que nas práticas antigas de sacrifício, mais visíveis, as
mulheres modernas se submetem a práticas invisíveis de sacrifício “voluntariamente”, pois
não enxergam a violência simbólica a atuar sobre seus corpos. Sofrem, portanto, duplamente:
fisicamente durante os rituais e psicologicamente por se auto condenarem pelas práticas sem
sucesso. É um sacrifício com um fim em si mesmo, que isola e não recompensa. Resta, talvez,
o odor do suor, do corpo escorrido à toa, sem nada divino.
Sexta-feira à noite
Sexta-feira à noite
Os homens acariciam o clitóris das esposas
Com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
Contam dinheiros papeis documentos
E folheiam nas revistas
A vida dos seus ídolos.
Sexta-feira à noite
Os homens penetram suas esposas
Com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
Enfiam o carro na garagem
O dedo no nariz
E metem a mão no bolso
Para coçar o saco.
Sexta-feira à noite
Os homens ressonam de borco
Enquanto as mulheres no escuro
Encaram seu destino
E sonham com o príncipe encantado.
Uma coisa é clara e pode ser afirmada com certeza: as mulheres brasileiras
vêem como legítimo, aceitável e, talvez, esperado responder afirmativamente
a uma enquete sobre a vida sexual e o grau de prazer. Talvez o inadmissível
seja questionar a qualidade de sua vida sexual e o prazer que obtêm. Se não,
os resultados podem ser simplesmente o reflexo de uma baixa expectativa
das mulheres sobre o que esperar do sexo (CHACHAN & MAIA, 2004, p.
78)
Os dados revelam que a sexualidade socialmente admitida e aceitável é aquela que está
no topo da “hierarquia sexual”, os heterossexuais casados, em idade reprodutiva, estão
sozinhos no topo da pirâmide erótica, mesmo que sua vida sexual seja monótona como a que
observamos no poema.
No poema, a repetição do termo sexta-feira à noite no início de cada uma das três
estrofes marca bem essa rotina repetitiva, sendo que sexta-feira à noite normalmente estaria
atrelada à quebra de rotina, o começo do final de semana. Nas duas primeiras estrofes a
excitação gerada pela prática sexual (“Os homens acariciam o clitóris das esposas” e “Os
homens penetram suas esposas”) é logo quebrada pelo gesto mecânico com que exercem: “O
mesmo gesto com que todos os dias / Contam dinheiros papeis documentos” (a ausência de
vírgulas entre os substantivos enfatiza a banalidade e equivalência de pouco significado entre
eles e o clitóris), e “O mesmo tédio com que todos os dias / Enfiam o carro na garagem / O
dedo no nariz / E metem a mão no bolso / Para coçar o saco.” (da mesma forma há uma
aproximação pejorativa entre a penetração entediante e outros gestos corriqueiros e
automáticos – como guardar o carro na garagem) e até mesmo considerados deselegantes
(como enfiar o dedo no nariz e coçar o saco). É o automatismo da rotina.
Observamos que o homem figura sempre no polo ativo, é ele quem acaricia e penetra e
é também o responsável pela frustração do casal. Tal frustração é gerada pela falta de diálogo
entre o casal (a repetição e automação causam a sensação de marasmo e também pela falta de
simetria entre as expectativas geradas individualmente pelos dois. Isso é sinalizado pela rotina
dos homens que “folheiam nas revistas / A vida dos seus ídolos.”, enquanto lidam diariamente
com “dinheiros papeis documentos”. Já as expectativas culturalmente romantizadas das
55
Apud CHACHAN & MAIA, 2004.
93
mulheres são reveladas apenas na terceira estrofe, o que gera um choque ainda maior com tal
simetria.
Sexta-feira à noite
Os homens ressonam de borco
Enquanto as mulheres no escuro
Encaram seu destino
E sonham com o príncipe encantado.
Rumo à caixa
Na fila do mercado
À minha frente
Empunha a cesta
e espera pela vez.
Mulher magra
sem peitos
quase seca.
Pele escura
94
sem viço
quase negra.
Pés cascudos.
Escrita na blusa
em letras bordadas
uma só palavra
LUXÚRIA
outros grupos de mulheres. Há um ruído entre o corpo e a palavra luxúria, que talvez nos
permitam inferir que o mundo dos prazeres pode estar em lugares improváveis.
96
CAPÍTULO 3
LITERATURA ERÓTICA E AUTORIA FEMININA: INTERDITOS E
TRANSGRESSÕES
Importante mencionar que tais visões de corpo, nudez, erótico e obceno acima
descritas estão imersas numa lógica cristã, recheada de noções de pecado e desejo pelo que é
proibido e está escondido, essa é uma marca cultural e ideológica inegável. Bataille (1987,
p.15) faz ainda uma distinção entre três tipos de erotismo: o erotismo dos corpos, o erotismo
dos corações e, finalmente, o erotismo sagrado.
97
As próprias obras sobre sexo tendem a uma separação por gênero. Em alguns
dos estudos mais notáveis sobre a sexualidade, escritos por homens, não há
virtualmente nenhuma menção ao amor, e os gêneros aparecem como uma
espécie de adendo. Atualmente, pela primeira vez na história, as mulheres
reivindicam igualdade com os homens. No que se segue, não tento analisar
98
56
Na crítica de Lauretis (1994), os pós-estruturalistas franceses em suas análises situam a subjetividade feminina
no sujeito masculino, tais teorias, apesar de bem intencionadas, acabam por reinscrever a mulher como o Outro
(COSTA, 2002).
57
A presença de elementos do amor romântico já pode ser vista, por exemplo, nas Cartas Portuguesas de
Mariana Alcoforado, ainda no século XVII. Nestas, no entanto, o ideal de amor proclamado pela freira
portuguesa, dado o contexto da autoria feminina questionada e de sua interdição num convento, representou uma
verdadeira revolução estética, além de um grande escândalo na igreja católica e entre os literatos conservadores.
99
inclusive resguardada pela lei dos costumes. Dessa forma, o adultério feminino é crime grave
punível com a morte, além de todas as outras formas de violência e privação da liberdade a
que ficam sujeitas às mulheres que desobedeciam tais regras sociais.
Cabe destacar que, apesar da revolução sexual ocorrida a partir do século XX, o ideal
de amor romântico ainda se encontra muito presente em nossa sociedade, constantemente
representado, com algumas variações, na literatura escrita e principalmente em produções
cinematográficas ou televisivas, reforçados por alguns dos aparelhos ideológicos como a
igreja e a mídia. Não por acaso, uma das críticas do feminismo contemporâneo é a afirmação
de que o amor romântico mata.
Giddens (1993) nomeia a forma diferente com que nos relacionamos na
contemporaneidade de sexualidade plástica e aponta como ela é crucial para a reivindicação
feminina ao prazer sexual.
O controle sexual dos homens sobre as mulheres é muito mais do que uma
característica incidental da vida social moderna. À medida que esse controle
começa a falhar, observamos mais claramente revelado o caráter compulsivo
100
Talvez a maior virtude do texto de Giddens seja no que se refere a uma das premissas
básicas do feminismo, que seria a superação do espaço privado como independente do
domínio público. “A intimidade implica uma total democratização do domínio interpessoal,
de uma maneira plenamente compatível com a democracia na esfera pública” (GIDDENS,
1993, p. 11). Essa superação, ainda de acordo com o autor, seria capaz de subverter as
instituições sociais como um todo, supondo que as mudanças na sexualidade contemporânea
são muito mais revolucionárias do que usualmente se costuma pensar.
Outra aproximação interessante é a operada por Octávio Paz (1994) entre a poesia e o
erotismo. Segundo o autor mexicano, “a relação entre erotismo e poesia é tal que se pode
dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal”
(PAZ, 1994, p. 12). Tal comparação, além de uma bela literariedade, nos ajuda a compreender
os dois fenômenos. O sexo e a linguagem se aproximam na sua relação com a imaginação,
sendo que “a imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que
transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora” (PAZ, 1994, p.
12). Além disso, o erotismo é também linguagem porque diferencia-se da sexualidade animal
pelo seu caráter de cerimônia e de representação, “o erotismo é sexualidade transfigurada:
metáfora”. Assim, podemos dizer que o erotismo possui potencial de subverter a sexualidade
assim como a poesia faz com a linguagem. Ambos são dotados de grande poder
transformador.
Assim, “a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu mundo de
operação, já é erotismo. E da mesma forma o erotismo é uma metáfora da sexualidade
101
animal” (PAZ, 1994, p. 12). Ou seja, de acordo com o poeta, poesia e erotismo não apenas se
aproximam quanto ao poder transformador, mas se confundem na essência.
mais bela das mulheres, vai, segue as pisadas das ovelhas, e apascenta os
cabritos junto às cabanas dos pastores. 9 - À égua dos carros do faraó eu te
comparo, ó minha amiga; 10 tuas faces são graciosas entre os brincos, e o
teu pescoço entre os colares de pérolas. 11 Faremos para ti brincos de ouro
com glóbulos de prata. 12 - Enquanto o rei descansa em seu divã, meu nardo
exala o seu perfume; 13 meu bem-amado é para mim um saquitel de mirra,
que repousa entre os meus seios; 14 meu bem-amado é para mim um cacho
de uvas nas vinhas de Engadi. 15- Como és formosa, amiga minha! Como és
bela! Teus olhos são como pombas. 16 - Como é belo, meu amor! Como és
encantador! Nosso leito é um leito verdejante, 17 as vigas de nossa casa são
de cedro, suas traves de cipreste (Cântico dos cânticos, Antigo testamento.
Capítulo 1, versículos 1-17).
De acordo com Paz (1994), o livro dos cânticos de Salomão é uma coleção de poemas
de amor profano e uma das obras eróticas mais belas já criadas pela palavra poética. A
tradição judaica e a cristã interpretam esses poemas como uma alegoria das relações entre
Jeová e Israel ou entre Cristo e a Igreja.
Alheio à moral cristã, é a Platão a quem devemos a ideia de erotismo como um
impulso vital que ascende até a contemplação do bem supremo, e da paulatina purificação da
alma ao passo que se distancia da carnalidade da sexualidade. Em O banquete temos uma
série de discursos sobre Eros. O Eros platônico transforma o amor numa filosofia
contemplativa, da qual as mulheres estavam excluídas – todos os convidados do banquete que
proferem discursos sobre o amor são homens. O fundamento do amor platônico é a sua
impossibilidade de realização, pois o que se ama é somente aquilo que não se tem. O amor
platônico, portanto, se opõe à razão e será exaustivamente retomado no período neoclássico
das artes, a partir do renascimento no século XVI com o poeta italiano Petrarca.
O libertino é justamente a figura oposta a essa noção. Para o libertino não há união
entre religião e erotismo, ao contrário, o prazer é um fim único que se opõe aos aspectos
religiosos ou éticos. A maior expressão da filosofia libertina são os contos de Sade – de onde
se origina a expressão sadismo e sadomasoquismo.
Entre esses dois períodos, na idade medieval, surge entre os poetas da nobreza feudal
da Florença, o amor cortês como ideal de vida superior. No século XII, através dos
trovadores, nasce a poesia lírica e o amor cortês como forma de vida. Mais uma vez os
caminhos de Eros e da poesia se misturam. O termo amor cortês refere-se a um sentimento
elevado, próprio das cortes senhoriais. Um amor sublime que não tinha por fim nem o prazer
nem a reprodução. Como características marcantes da poesia lírica provençal é que o tema do
amor referia-se à relação entre homem e mulher; não eram apreciados por escrito, mas
cantados com acompanhamento da música da lira; e não se comunicavam mais em latim, mas
103
na língua local, o francês arcaico. De acordo com Octávio Paz (1994) essa é uma grande
novidade, pois no banquete platônico, como já mencionamos, as mulheres não estavam
representadas.
Chegamos a um ponto crucial da reflexão de Octávio Paz: o surgimento do amor
cortês está intimamente relacionado às mudanças sociais no que se refere ao papel assumido
pelas mulheres. As mulheres nobres passaram a gozar de grande liberdade durante o período
feudal, e depois perderam esse poder através da ação da igreja e do absolutismo monárquico,
de modo que “a história do amor é inseparável da historia da liberdade da mulher” (PAZ,
1994, p. 73).
A abordagem realizada por Lieve Troch (2013) busca apontar as contribuições da
mística feminina entre os séculos XI e XV para a construção da história. Com isso, a autora
traz à tona o questionamento do “lugar dócil” em que a Idade Média é colocada na
historiografia, o que revela o efeito da modernidade ocidental sobre nossas representações
atuais (efeito esse normalmente despercebido). Nesse sentido é que a autora aponta como a
“medievalística” (estudos tradicionais sobre a Idade Média) funcionou para a construção de
uma visão estereotipada do período, de forma semelhante como aconteceu com o
“orientalismo” (estudos tradicionais sobre o oriente), carga de preconceitos denunciada por
Edward Said: “a Idade Média importa na medida em que constitui (na negação ou na
afirmação) a identidade do Ocidente Moderno Imperial” (TROCH, 2013, p. 1), ou seja, o
olhar sobre a Idade Média até então revelava mais sobre o período Moderno, enquanto
distanciava-se desse, numa concepção linear e evolutiva da história.
Para iniciarmos, pois, o estabelecimento dessa nova ordem de estudos, necessário se
faz lançar o olhar de suspeita sobre o próprio limite cronológico que a historiografia clássica
utilizou para demarcar o que se convencionou chamar de Idade Média – a própria
denominação já é questionável, pois carrega uma conotação negativa, trazendo a ideia de que
fosse um período inferior ante a importância dos demais. Esta tem início em 330 d.C., com o
declínio do Império Romano, e encerra-se em 1500 d.C., com a emergência dos Estados
Europeus Imperiais, ou seja, compreende uma época de transição que insurge entre duas
manifestações de dominação imperialista patriarcal e colonial – a Antiguidade Clássica e o
Renascimento Europeu.
Questionemos, por exemplo, a questão da posição das mulheres nessas sociedades
que marcam as fronteiras do período medieval: na Roma Antiga imperava o pater famílias (o
“poder do pai”), que possuía o direito inclusive de matar bebês do sexo feminino, deficientes
ou indesejáveis, além disso, sabemos que um dos grandes valores transmitidos pela
104
antiguidade clássica, o conceito de cidadania grega, não era estendido às mulheres, que
viviam às margens da sociedade. Na outra ponta temos o Renascimento, que trouxe a caça às
bruxas (grande massacre organizado pelo poder religioso e político contra grupos de
mulheres) e a sangrenta colonização do continente americano. Além disso, o florescimento de
uma nova ordem filosófica racional, um dos principais valores transmitidos pelo período, se
deu a partir do fortalecimento das universidades, que se configuravam como um reduto
estritamente masculino e de grande poder político, estabelecido a partir do controle do que era
legitimado como conhecimento.
“Se este intervalo é chamado de Idade Média, é evidente que a periodização da
história da Europa Ocidental é um resultado de uma definição patriarcal e imperialista”
(TROCH, 2013). Por isso o olhar feminista se interessa pela reavaliação da Idade Média, já
que a perspectiva feminista mostra que a influência das mulheres na vida social, política,
religiosa e econômica nesse período foi bastante forte, mas para a historiografia tradicional
estes séculos não foram considerados importantes pelo poder masculino.
A mística feminina se insere nesse contexto. “Efetivamente, por volta do século XI
até o século XII, as mulheres preenchem os papeis que tradicionalmente foram atribuídos aos
homens na história” (TROCH, 2013, p. 3). Durante a Idade Média percebemos um crescente
poder político das mulheres nobres, sendo que muitas possuíam um papel importante na
cultura (essas mulheres liam mais que os homens, já que a maioria deles era composta de
analfabetos), na economia (possuíam cervejarias, fábricas, moinhos, empresas têxteis), na
educação (eram pregadoras e professoras nos mosteiros) e na religião (estavam na liderança
de grandes mosteiros de poder religioso e político).
A mística feminina na Idade média se configura como uma forma de conhecimento e
poder feminino legitimado pelo teor divino. “A mística, tal como é praticada por mulheres, é
caracterizada por uma linguagem alegórica, uma linguagem de visões, uma linguagem
poética, um modo de vida e espiritualidade, mas também por uma reformulação teológica da
divindade” (TROCH, 2013, p. 3).
Esse poder só começa a desmoronar por volta do século XIV. O surgimento das
universidades no fim do período medieval entra em conflito com o conhecimento das
mulheres, que, numa valoração hierárquica, fora empurrado para fora do pensamento
intelectual, tendo início a perseguição às “bruxas”. “A mística feminina e os conceitos
estratégicos das mulheres no final da Idade Média – como visões, lidar com seus corpos, o
uso de seu intelecto, seu próprio poder e auto-confiança para dar forma para sua própria vida
– não serão mais possíveis a partir do século XV” (TROCH, 2013, p. 11). Duas foram as
instituições que contribuíram para esse cerceamento: a igreja e as universidades.
A partir de então a voz das mulheres não aparece mais tão claramente, sendo
silenciada pelas pautas da colonização, Reforma e Contra-reforma e o fortalecimento dos
Estados europeus.
Marina Colasanti já tratou do amor cortês no prefácio que escreveu para a tradução
dos lais da poetisa francesa Marie de France. A autora por nós estudada reflete que na poesia
lírica trovadoresca, as donzelas e os cavaleiros não amam de um amor qualquer. Nesses
versos estão as origens de uma concepção de relação amorosa que influenciou enormemente a
civilização ocidental, um conceito que, sem afastar o amor da sexualidade, faz dele o
sentimento redentor por excelência. É o amor cortês, que “a tal ponto impregnaria nosso
imaginário amoroso, que muitos estudiosos colocam ali o nascimento do amor tal como
vivemos hoje” (COLASANTI, 2001, p. 10).
Quanto à condição da mulher nesse contexto, é importante destacar que “a mulher,
aparentemente submissa, faz o que o homem pede, atende os seus desejos, mas o cavaleiro
enamorado estará para sempre a seu serviço” (COLASANTI, 2001, p. 11). Dessa forma, havia
um mecanismo de exercício do poder feminino nessas relações, muito semelhante ao que se
estabelecia entre suseranos e vassalos; na contracorrente do que muitos pensam sobre o amor
cortês. “Os lais de Maria desenvolvem-se ao redor do conceito que constitui o cerne do amor
cortês: o amor verdadeiro é fonte de todo o bem, ele purifica o homem e a mulher, e os
obstáculos com que se deparam só fazem exaltar sua nobreza e seu valor” (COLASANTI,
2001, p. 11).
Essa aproximação dos versos de amor cortês escritos por Maria de França e os contos
de fada que conhecemos não é apenas apontada por Marina Colasanti. A escritora apropria-se
de diversos elementos da cultura medieval e recria seus próprios contos de fada, em que o
107
universo mágico da fantasia funde-se, numa linguagem poética, com elementos da realidade
que nos fazem refletir sobre o meio em que vivemos.
Temos ainda a referência a Freud como o responsável por abrir os caminhos de
compreensão do erotismo ao unir as ciências biológicas à intuição dos grandes poetas.
Através do mito de Eros e Psique, Freud demonstra o duplo aspecto de Eros: luz e sombra.
No conto de Eros e Psique, o jovem cupido desobedece sua mãe Afrodite, que o havia
mandado à terra para vingar-se de Psique, uma jovem mortal, cuja beleza lhe rendia adoração
entre os mortais, o que desagradava a deusa. No entanto, Eros e Psique se apaixonam,
provocando a ira divina.
O estudo de Salma Silva (2003) revela as faces de Eros nos contos de fada de Marina
Colasanti, mostrando como suas personagens femininas alcançam, através de Eros, a
compreensão de si mesmas e do amor. A autora destaca que os contos de fada colasantianos
desenvolvem uma prosa poética de alto teor simbólico e os analisa sob a perspectiva do
imaginário, chegando à conclusão de as diversas faces do amor nos contos se revelam através
do mito de Eros.
O amor mítico possui várias versões; em todas elas está presente a complicada relação
que os seres humanos estabelecem com a divindade. A autora destaca a ambivalência e a
onipotência como características fundamentais de Eros, cujo nascimento sempre representa a
união de opostos: Afrodite e Ares, Pênia (Pobreza) e Poros (Recurso), assim como seu
108
parentesco com Tânatos, revelam a ambiguidade do deus, princípio de vida versus destino
mortal que compõem uma tensão necessária à dialética da existência humana, de acordo com
Freud em Além do princípio do prazer, de 1920. Na teoria freudiana, os instintos de vida
correspondem às forças libidinais do ego (Narciso) e do objeto (Eros), a que chama de instinto
sexual. Os instintos de morte, ao contrário, são forças internas que possuem um caráter
conservador e retrógrado, que tende à repetição e procura o estado inerte do ser. Dessa forma,
o ente vivo contém a morte dentro de si (Eros e Tânatos), a qual degenera aos poucos a
substância viva, provocando sua destruição. “Em Marina Colasanti, Eros e Tânatos conjugam-
se numa luta constante, ora vencendo um, ora outro – a vitória de um sobre o outro está
sempre ligada à escolha da natureza do amor com que se vai amar: se egoísta ou
compartilhado” (SILVA, 2003, p. 20).
Angélica Soares (1999) aponta que uma das características da poesia das mulheres
contemporâneas é a tensão entre a consciência literária do erotismo e a consciência erótica do
literário. Analisando poemas de Gilka Machado, Olga Savary e Adélia Prado, a autora
observa como a poesia erótica se instaura na autoria feminina como fonte de
autoconhecimento, de conhecimento do outro e do mundo. Ou seja, erotismo e feminismo
convergindo nos poemas e suas possibilidades interpretativas.
O gênero conhecido como literatura erótica, por estar inserido numa tradição
particularmente androcêntrica, foi e tem sido sempre culturalmente circunscrito à autoria
masculina. Luciana Borges (2013) parte do princípio de que a percepção do erótico ou do
pornográfico não se prende apenas a questões estéticas, mas também a questões políticas, as
quais envolvem, de modo amplo, os complicadores relativos às investiduras de gênero e aos
modos como a sexualidade masculina e feminina são construídas e tratadas no pensamento e
na nossa cultura ocidental (FONSECA, 2013, p. 15).
Ao analisar três narrativas eróticas de autoria feminina contemporâneas (Clarice
Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young), Borges (2013) observa que há um deslocamento do
feminino: da posição de objeto do desejo masculino para a posição de sujeito de seu próprio
desejo e do desejo de outrem. A conclusão é de que a presença de expectativas de gênero não
cessa de interferir no movimento criativo, provocando a desconstrução da forma canônica da
espécie literária que se dedica a tematizar o campo da sexualidade, na forma do erotismo, da
pornografia e/ou da obscenidade. Dessa forma, todas elas terminam por deslocar textos
eróticos, obscenos e pornográficos da zona de tolerância socialmente instituída para essa
categoria, provocando derivas e rasuras formais.
Luciana Borges (2013) defende que as narrativas eróticas escritas por mulheres são
transgressoras porque quebram o tabu do objeto a partir do momento em que abordam assunto
interditado e considerado perigoso; porque fazem emergir uma circunstância diferenciada em
relação ao conjunto da obra das autoras, todo ele dedicado anteriormente à escrita do que
Hilda Hilst chamaria de “literatura séria”, fato que propicia outro olhar sobre a degradação
estética que se crê presente no texto pornográfico e; porque transferem o lugar de fala do texto
110
erótico para o lugar da autoria feminina, fato que, conforme argumentamos, desconstroi a
ideia de que as mulheres não estão autorizadas a falar sobre erotismo e pornografia.
Pensar sobre a relação entre as mulheres e a temática erótica nos traz diversas
reflexões feministas, não só pela crítica que se faz necessária à apropriação comercial que o
corpo da mulher sofre cotidianamente, como também pela subversão que o prazer feminino
ainda representa. Tal ambiguidade é diariamente alimentada pelas práticas sociais machistas
de nossa sociedade, reforçadas seja através da mídia, da religião, da publicidade, da educação
familiar tradicional, etc.
Ao analisar os poemas eróticos de autoria feminina por uma perspectiva feminista
pretendemos, portanto, defender uma dupla reivindicação: da autonomia do corpo feminino e
da liberdade sexual para as mulheres. Acreditamos que os poemas de Marina Colasanti aqui
estudados afinam-se apropriadamente com tal perspectiva, pois rompem com os padrões de
representação do corpo feminino comumente presentes na publicidade e pelos meios de
comunicação de massa (a “mulher objeto” ou “mulher adereço”), ao mesmo tempo em que
reivindicam a livre manifestação do desejo feminino, ao contrário do que pregam os discursos
falso-moralistas e religiosos de exaltação da mulher casta como “mulher de verdade” ou
“mulher de valor”. Portanto, longe de endossarem o discurso moralizante sobre o sexo e as
manifestações alienantes sobre a sexualidade feminina, tais poemas revelam um olhar afinado
com os anseios feministas básicos sobre o direito ao próprio corpo.
Consoante, nosso objetivo é analisar alguns dos poemas da escritora Marina Colasanti,
presentes em seus livros Rota de colisão (1993); Gargantas abertas (1998); Fino sangue
(2005) e Passageira em trânsito (2009), que tratem da temática erótica e/ou que tragam
111
marcada pelo medo e vergonha, Perrot (2003, p. 16) chama atenção para a “assimetria entre a
glória do esperma viril e a mancha do sangue feminino”. No outro extremo do ciclo, a
menopausa ocorre numa semi-clandestinidade em sociedades patriarcais, já que quando a
mulher perde a função reprodutora essa fica privada, aos olhos públicos, também da sedução,
perdendo o status de mulher e tornando-se algo indefinível atrelado aos adjetivos
velha/assexuada/desnecessária.
A última zona de silêncio destacada por Perrot (2003) são as enfermidades das
mulheres, sendo a mulher encarada como “eterna doente”. Nervosas, histéricas, loucas,
113
58
A história oficial do feminismo traduz-se num progresso, a partir de um movimento de caráter exclusivista,
dominado por mulheres brancas heterossexuais de classe média, para um movimento maior e mais inclusivo,
integrando na pauta as questões das mulheres lésbicas, negras, pobres, trabalhadoras (FRASER, 2007). Um
momento emblemático dessa trajetória é o que a crítica chama de segunda onda do movimento feminista,
justamente quando tal discurso passa a gozar de um caráter mais teórico e acadêmico, em virtude do advento do
conceito de gênero, ao passo em que as feministas se viam cada vez mais separadas do campo político.
59
Na primeira, durante o período do pós-guerra até meados dos anos 60, o feminismo estava imbricado na que se
convencionou chamar de novos movimentos sociais, relacionado à Nova esquerda, sua atuação, portanto, se dava
principalmente na arena das manifestações de rua, no intuito de questionar a distribuição entre as classes e inserir
aí a questão do gênero. Na segunda fase surgem as políticas de identidade e o movimento perde um pouco de sua
anterior atuação (a busca por igualdade) para se focar na questão da valorização das diferenças, ou seja, as
questões culturais tomam a dianteira e torna-se o discurso mais acadêmico, distante das lutas que se travavam
com a ascensão da política neoliberal (nesse sentido, a autora tece a sua crítica a tal guinada apolítica).
114
momento, por ser ainda recente, demanda das ativistas a necessidade de reinventar o
feminismo nesse novo contexto.
São, portanto, diferentes pautas que estão sendo postas à mesa. Dentre elas, a questão
do corpo sempre foi central, seja nas reivindicações pela legalização do aborto nos países
influenciados pela moral cristã em que ainda é uma prática clandestina, seja nas políticas de
combate à violência doméstica, ou nas reivindicações, muito presentes em movimentos como
a Marcha das Vadias, por exemplo, em que se problematiza a cultura do estupro e a
autonomia da mulher sobre o próprio corpo. Com isso, queremos demonstrar que o discurso
sobre o erotismo presente na poesia de autora feminina cumpre também um papel político na
pauta feminista.
Durante séculos, esse corpo foi tema de discursos masculinos, objeto dos
mais variados saberes, lugar de uma fala abundante, relegando a voz
feminina ao silêncio. Hoje, as mulheres apropriaram-se dele, lutando pelo
conhecimento e pela autonomia de seu corpo, grande bandeira do feminismo
contemporâneo. (XAVIER, 2008, p. 22)
“mulher de valor”, e as segundas, por sua prática sexual ativa fora do matrimônio, são tidas
como vadias, mulheres de “segunda categoria” e portadoras de menos direitos.
Finalmente, podemos começar a ver como o erótico pode ser usado também
na luta pessoal como política. Uma inabilidade de expressar facilmente
vários aspectos de nossa sexualidade, através das palavras e imagens
correntes, ilustra as possibilidades epistemológicas do erótico. Ele pode
insinuar as lacunas e os vazios, os silêncios dentro de nossos discursos
sexuais. (O’NEILL, 1997, p. 81)
O’Neill (1997) destaca em relação à pintura erótica feita por mulheres que
representam mulheres sexualmente ativas que estas inovam porque “[...] são auto-retratos e
[...] representam a mulher como sexual e politicamente impressionante. Ao designar a
artista/agente , esses nus femininos, ativos em sua representação, são eroticamente vigorosos”
(O’NEILL, 1997, p. 88-89). Ou seja, são capazes de despertar a consciência da expectadora
118
escritos. A professora avalia que, não por acaso, a questão da sexualidade vem sendo uma
pauta na luta pela emancipação feminina desde a década anterior.
Ao analisar poemas de diferentes autoras sobre o tema, Soares (2000) observa que há
uma recorrente interação entre as representações do corpo e da natureza, e, portanto, utiliza-se
da ecosofia guattariana para proceder ao que chama de leitura ecológica do desejo60. Isso se
torna mais claro quando a autora procede à análise dos poemas de Myriam Fraga e Olga
Savary, nós iremos apresentar essa íntima relação através de um poema muito significativo de
Colasanti. No poema a seguir, a liberdade alcançada pelo pleno gozo de seus direitos sexuais
é vista também como uma forma de autoconhecimento e libertação (“Tudo me adentra e
lambe / com água / tudo me acaricia / tudo me expande”), alcançados através da realização
amorosa.
Essa amplidão
60
O equilíbrio global só será alcançado através do inter-relacionamento das três ecologias (do meio ambiente,
do social e da subjetividade).
120
natureza a invadir a voz lírica que enuncia, ou seja, a experiência sexual desencadeia uma
expansão do universo do ser, um maior auto-conhecimento e prazer. O teor erótico não se
expressa apenas através da descrição da penetração, mas também no emprego de verbos como
lamber e acariciar, que denotam o prazer obtido com essa experiência íntima. Temos o
contato com a natureza, representado pelas montanhas, ipês, quaresmeiras e cães, a
relacionar-se intimamente com a natureza humana, representada pelo impulso sexual, de tal
modo que não é apenas o corpo do amado a preencher a voz poética, mas a própria amplidão
da vida lá fora que lhe complementa. Além disso, o próprio desembaraço com que a autora
aborda o ato sexual (“Abertas pernas neste fim de tarde / Não é apenas teu corpo que me
invade / deitado sobre o meu.”) rompe com o lugar comum da poesia lírica tradicional e
representa um avanço para a liberdade sexual das mulheres e o seu direito de expressar
livremente a sua sexualidade.
Outro aspecto destacado por Soares (2000) é o fato de a autoria feminina realizar uma
inversão nos papéis representados na poesia erótica tradicional. Ao remeter a relações
heterossexuais, a voz feminina dos poemas dirige-se ao amado do sexo masculino, criando
assim novas representações do corpo masculino como objeto de desejo.
Também encontramos essa inversão em poemas da autora por nós estudada. No poema
em destaque abaixo, atentamos não só para a representação do voyeurismo sobre o nu
masculino, mas também para a questão da idade do homem mencionada, representa, portanto,
uma dupla transgressão.
De língua macia
E que
No meu olhar
Lhe lambe
A pele.
De acordo com Silvana Carrijo Silva (2008), há dois pesados interditos que recaem
sobre a mulher e que ainda resultam num terceiro: o interdito à palavra, o interdito ao
exercício pleno de sua sexualidade e o interdito à enunciação sobre a sexualidade. Tal
silenciar envolve tanto questões relativas ao ato erótico propriamente dito, quanto às que
dizem respeito às representações do corpo feminino e do corpo masculino (SILVA, 2008).
Mas a própria autora afirma que “a uma interdição prossegue uma transgressão” (SILVA,
2008, p. 160). Assim, concordamos que os poemas de Colasanti aqui apresentados realizam
essa tripla transgressão: do silêncio, da sexualidade e da enunciação erótica.
122
CAPÍTULO 4
“CORPO ADENTRO”: A LÍRICA ERÓTICO-AMOROSA COLASANTIANA
61
É recorrente o emprego de pronomes possessivos em expressões como “meu amado”, “meu homem”, “meu
amor”, como veremos adiante.
123
que a voz lírica feminina que enuncia sobre o sexo, tem conhecimento sobre seu corpo, sobre
o corpo do parceiro, sobre sexo e o que dá prazer. Percebemos que esse diálogo é fundamental
para uma vida sexual saudável e prazerosa para ambos.
No poema “Entre um jogo e outro” a voz lírica é marcadamente a de uma mulher. Isso
pode ser verificado através do emprego do adjetivo “quieta”, no feminino (segundo verso da
segunda estrofe). Trata-se, portanto, de uma relação íntima heterossexual, na qual a mulher se
dirige ao homem amado. É interessante observarmos como, nesse poema, a questão erótica
aparece diluída em meio a outros prazeres do cotidiano do casal, que revelam um alto grau de
intimidade e cumplicidade dos amantes.
Te beijo no cangote
e quieta penso:
um outro amante assim
Senhor
que trabalho terias
pra me arrumar
se me tomasses este.
62
Sobre esse aspecto religioso e de agradecimento trataremos mais adiante com o poema “Fartura”.
125
A relação sexual que Marina Colasanti apresenta em seus poemas, portanto, representa
a legitimidade de que “as pessoas cujo comportamento as situa no nível mais alto dessa
hierarquia são recompensadas com o reconhecimento de sua saúde mental, respeitabilidade,
legalidade, mobilidade física e social, apoio institucional e benefícios materiais”
(CHACHAM & MAIA, 2004, p. 79)63, enquanto “o sexo apenas pelo prazer, a
“promiscuidade” sexual, a prostituição e a homossexualidade são objeto de estigma e
repressão na cultura brasileira pelo menos desde a metade do século XIX, formalizados pela
religião como pecado e pela medicina como doença” (CHACHAM & MAIA, 2004, p. 79).
O cotidiano do casal de amantes é revelado através da importância que a cama
(símbolo e até mesmo sinônimo de sexo) recebe, aparecendo em diversos poemas.
Sobre a cama
63
Na parte inferior da pirâmide, “na medida em que o comportamento “cai” nessa escala, os indivíduos
responsáveis por ele são submetidos à presunção de doença mental, perda de respeitabilidade, criminalidade,
restrição à mobilidade social e física, perda de apoio institucional e sanções econômcas” (CHACHAM & MAIA,
2004, p. 79).
64 Corresponde à expressão de Horácio (Sátiras, I, IV, 62) disiecti membra poetae (os membros do poeta
despedaçado).
65
Quanto a esse aspecto recorrente cabe mencionar um dado biográfico já que a autora também é casada com um
escritor.
126
pro ar” – ou no caso, “de pena ao ar”, já que temos um casal de poetas. O riso provocado
revela grande intimidade e novamente aproxima o ato sexual do lúdico, como algo que
desperta alegria. A expressão em latim, portanto, ganha novo significado: “Aberto o corpo ao
tempo / De brincar”.
No poema a seguir novamente o cotidiano do casal aparece através do elemento da
literatura. A questão da idade também é ressaltada. E chama a atenção a inversão poética que
a autora opera sobre a imagem do nu masculino, já que nas artes são muito mais comuns os
nus femininos.
De língua macia
Mais uma vez temos o pronome possessivo para identificar o parceiro (“Meu homem
está nu / Lendo na cama.”)66. Tal imagem cotidiana é poetizada pela poetisa ao refletir sobre a
idade e o nu masculino. Apesar da idade tal imagem lhe desperta admiração, mais do que isso,
o tempo é capaz de aflorar a beleza da imagem. Curioso é observar que a autora recorre a uma
representação feminina para metaforizar o homem nu (“E no entanto / É cariátide sentada”).
Cariátide é o nome dado às estátuas femininas que funcionavam como suporte arquitetônico
na Grécia Antiga. Esse dado nos leva a refletir como o mundo das artes é carente de metáforas
sobre o nu masculino, se comparado a profusão de metáforas sobre o corpo da mulher. Outra
questão é a função de sustentação das cariátides, que a fazem comparar com o homem nu a
sustentar o livro. A imagem descrita é tão importante para o poema em questão que há ao
66
Destacamos a subversão que a expressão “meu homem” carrega. Apesar de atrelar-se a concepção possessiva
da relação monogâmica, ela desafia o poder da voz feminina, pois a expressão “minha mulher” quando dita por
um homem traz usualmente uma conotação meramente matrimonial (minha mulher = minha esposa), já a
expressão “meu homem” quando dita por uma mulher não corresponde meramente a “meu marido”, mas traz
uma conotação sexual implícita.
127
final uma sinestesia erótica (“E que / No meu olhar / Lhe lambe / A pele.”), o voyeurismo aqui
consiste no prazer em observar o homem nu que lê sentado na cama, como se o poder do olhar
fosse capaz de tocar, ou melhor, lamber a pele observada.
Chama atenção também a disposição gráfica dos versos, alterando versos mais
compridos e mais curtos. Apesar de não haver regularidade métrica, podemos dizer que a
quantidade de sílabas poéticas de cada verso é importante para ajudar a formar visualmente o
formato de uma dessas estátuas.
Sobre a questão das metáforas referentes ao corpo masculino, é bastante pertinente o
poema a seguir.
A um homem não
O campo semântico onde a autora vai buscar as metáforas aqui é o reino vegetal. É
extremamente comum compararmos mulheres à flores, associando-as com as características
da beleza, perfume, fragilidade, etc. O mesmo não ocorre em relação aos homens, para os
quais tais adjetivos não costumam ser valorizados. É com isso que a autora brinca quando diz:
“A um homem não se diz: ciclame, a tua / Presença faz do meu jardim / Um jardim mais
precioso.” Em nossa sociedade tal declaração soaria como jocosa, pois ciclame é uma flor
delicada e jamais se deve atrelar tal qualidade a um homem. Portanto, enquanto às mulheres
são chamadas de gladíolo, miosótis e íris (três espécies de plantas cujas flores são belas,
coloridas, ornamentais), a um homem só se comparam o baobá, o choupo e a palmeira, que
são árvores grandes, frondosas, de tronco grosso e forte, ou seja, imponentes, capazes de
abrigar da chuva e proteger do sol, tais características são atribuídas aos homens, fortes,
128
No entanto, que
Gentis podem ser com mãos e boca
Capazes de entregar flor e semente
Se apenas o desejam.
Apesar das metáforas utilizadas anteriormente para referir-se aos homens darem a
impressão de poder e autoridade, a voz lírica suaviza tal entendimento com o erotismo final:
mãos e boca são metonímias empregadas durante o sexo, capazes da “gentileza” de oferecer
prazer, gozo, quando são desejados, e independentes da penetração constante e rígida.
Destacamos também como as aliterações do poema são importantes:
Da espécie vegetal
A um homem
Só baobá choupo palmeira se comparam
Poder e tronco.
Como é gentil
(COLASANTI, 1998, p. 9)
Ao meu guarda-caça
Teus pentelhos
são duros como arame
espinheiro cerrado
mato escuro.
E no entanto
delicados me acolhem
quando os dedos
130
Meus dedos
metidos na fresta que
os rasos botões me concedem
alcançando a pele do peito,
o peito do homem que é meu.
De pé
Distraído
Mal sente meu toque
No abraço que o toma por trás.
Tão leves os dedos,
Tão fundo
E tão breve
no tato
o encontro entre amor e desejo.
Como podemos perceber o último verso sintetiza bem a temática dos poemas erótico-
amorosos que estamos analisando aqui: é “o encontro entre amor e desejo”. O toque da
mulher amada sob os botões da camisa ao abraçar seu parceiro distraído por trás revelam não
131
só um alto grau de intimidade, como também de carinho, afeto e também desejo. Se no poema
“Sem que se veja” há uma confusão entre os limites dos corpos dos amantes (“o peito do
homem que é meu”), e essa comunhão de intimidade é que provoca o desejo; no poema
“Aberta frincha” temos o contrário (“Que a pele dele não é minha pele / Que as suas coxas e
peito são só dele.”) e é justamente a constatação de que os corpos enamorados são alheios
entre si que é capaz de despertar o desejo.
Aberta frincha
Se na primeira estrofe o toque do amado não é capaz de crispar a pele, por ser um
gesto natural e recorrente de carinho, na segunda estrofe temos o contrário, justamente por ser
o toque do homem amado é que é capaz de estremecer. Daí o título “Sim, mas também”, pois
por ser o parceiro habitual, o toque do companheiro se torna ambivalente: capaz a um só
tempo de não crispar e de estremecer, de acordo com a conveniência da ocasião.
Assim, a enunciação erótica no poema de Marina Colasanti é marcada tanto pela
naturalidade com que evoca a questão sexual, como também pela inversão que provoca ao
representar o corpo masculino como objeto do desejo feminino, uma figura literária pouco
usual. “Por instaurar o corpo feminino como território não somente desejado, mas também
desejoso, a poesia de Marina Colasanti convida a um (re) pensar o papel estabelecido para os
sujeitos do ato amoroso em seus (des) encontros” (SILVA, 2008, p. 160). Vejamos como a
construção dessa imagem metaforizada é bem trabalhada no poema “Corpo adentro”.
Corpo adentro
Nesse poema não há a marca de gênero que nos permita afirmar com mais exatidão o
sexo da voz lírica. No entanto, dadas as representações simbólicas da penetração sexual (“me
afio e enfio”; “teu corpo é pele exata para o meu”, além do próprio título “corpo adentro”)
podemos supor que o eu lírico agora é masculino. Essa é a leitura feita por Silva (2008, p.
163): “A ideia um tanto óbvia de que é o homem que adentra no corpo da mulher é atestada
133
Outros poemas eróticos do livro, sem descuidar das imagens, metáforas, comparações
e outros jogos de palavras são bem mais explícitos ao se referir ao ato sexual. O poema “Teu
sexo”, por exemplo, faz menção explícita ao sexo oral. “Há toda uma valorização dessa
alternativa de encontro sexual, rompendo as barreiras do pudor a limitar o sexo erótico apenas
à penetração da genitália feminina pela genitália masculina” (SILVA, 2008, p. 164).
Teu sexo
O que mais chama atenção nesse poema é a forma crua com que se faz referência às
partes pudicas do corpo masculino e feminino (sexo, vagina, peitos). “É justamente pelo
choque advindo do uso dessas palavras tão temidas, tão reprimidas, mas tão naturais ao
humano porque fazem parte de seu próprio corpo, que Marina Colasanti possibilita ao leitor
135
um saber sobre o prazer” (SILVA, 2008, p. 169-170). Outra vez temos uma enunciação
resolutamente feminina. Destacamos na segunda estrofe a relação estabelecida entre a
penetração vaginal, capaz de engravidar, e o sexo oral, que, longe de causar-lhe repugnância,
é capaz igualmente de a engravidar de si, de a preencher. A sensação de completude é
tamanha que a faz transbordar mel pelos peitos. O líquido natural a ser retirado do seio da
mulher grávida é o leite materno, no entanto, este é relacionado à gravidez e à maternidade.
No poema, o líquido extraído do seio feminino é o mel, que simboliza a doçura do prazer.
Outra vez vocábulos do campo semântico da anatomia genital humana – pau e hímem
– ganham destaque no poema a seguir:
Ao nosso
Ao olharmos para o poema e a disposição dos versos com recuo da margem esquerda
percebemos a intenção em aproximar a imagem do pênis ereto que sobressai através da calça.
O poema também dá destaque e erotiza o beijo, o encontro dos corpos, mostrando que o que
concebemos como erótico vai muito além da relação sexual. Há a metáfora do tecido como a
membrana do hímem, que longe de trazer ideia de castidade ao ato, cede e consente ao desejo.
O conceito de consentimento é um dos termos mais importantes do feminismo atual, em que a
cultura do estupro passa a ser cada vez mais denunciada. Só podemos falar em sexo quando
há consentimento, sem consentimento o que ocorre é estupro, uma grave violência sexual. E
inclusive pode ocorrer estupro dentro de relacionamentos; não são raros os casos de maridos
que estupram as próprias esposas, obrigando-as a manter relações sexuais contra a sua
vontade, ou até mesmo de relações sexuais extremamente violentas que se resumem a
penetração vaginal e causam dor e desconforto às mulheres. Muitas mulheres inclusive
acreditam não gostar ou são julgadas por não gostar de sexo, mas na realidade a experiência
sexual que conhecem ao longo da vida é que são extremanete frustrantes ou violentas, em que
136
seu prazer fica à mercê. Logo se vê que, no poema, a mulher é figura ativa e está
extremamente envolvida no ato sexual desde o beijo. É o beijo que desperta o desejo sexual,
ela então consente e cede ao seu desejo, e é isso que garante o sucesso da relação sexual que
se anuncia.
Há ainda diversos outros poemas que abordam a temática erótica, tal assunto é
recorrente nos poemas colasantianos presentes em todas as publicações da autora. Na maioria
deles, como percebemos a questão da interlocução é recorrente, o que demonstra a desinibição
e naturalidade com que o eu lírico aborda o tema para o parceiro sexual.
Para além do diálogo com o parceiro presente ali, alguns poemas de Colasanti
revelam um diálogo com o divino, não que tragam marcas religiosas tão explícitas como as
que encontramos em poemas eróticos de Adélia Prado, por exemplo, mas a experiência de
libertação provocada pelo sexo tem diálogo com o que chamamos de revelação mística.
Percebemos o diálogo com a experiência mística a partir da relação de conhecimento que se
estabelece com o corpo e a sexualidade. Marina Colasanti é autora de versos eróticos e,
embora a poesia erótica contemporânea diferencie-se bastante dos versos de outras épocas
pelo caráter mais direto e desinibido com que trata da temática sexual, acreditamos que ainda
podemos falar em ruptura ao nos depararmos com textos de autoria feminina como os que se
seguem:
Fartura
Agradeço, Senhor,
As três orquídeas roxas
No jardim
E as mãos do meu amor
Nas minhas coxas.
Vem, amado,
Segura minhas ancas nas tuas mãos
Enquanto as minhas
Domam teus joelhos.
Vem,
Abre na minha testa
Uma estrada de estrelas
E como um sol nascente de verão
Aquece
Folha a folha
Os meus rosais.
Nesse belo poema, em que o desejo feminino aparece de forma explícita, Colasanti
faz referência a partir do título à rica tradição poética persa em uma lírica amorosa, de cunho
místico e também sensual. Percebemos a sensualidade nas referências ao corpo (“Segura
minhas ancas nas tuas mãos, / enquanto as minhas / domam teus joelhos”), o erotismo do
gesto amoroso intenso, indicando uma mulher ativa no ato, solta em seu corpo sobre o
homem. O poema preza pela simplicidade da linguagem e por isso é claro ao descrever a
posição do ato sexual. Contém também versos extremamente poéticos que remetem à
elevação da alma, através de uma “estrada de estrelas” (“Abre na minha testa / uma estrada de
estrelas”), através da comunhão carnal. É um amor capaz de transcender, propondo outros
patamares de relação para além do simplesmente físico, mas também em diálogo com o
corpo.
Há novamente referência a elementos da natureza, como as folhas e os roseirais que
se confundem com o corpo da mulher (“E como um sol nascente de verão / aquece / folha a
folha / os meus rosais”), ao mesmo tempo em que essa sublimação do desejo que aquece o
corpo comparado ao sol nascente de verão que aquece os roseirais culmina com o momento
do gozo. O poema também traz verbos imperativos (Vem; segura; abre; aquece), indicando
que a voz lírica expressa e exige o seu desejo sexual, clamando pelo corpo do parceiro a
interagir com o seu, um convite explícito e exigente. O parceiro aqui é marcadamente
masculino (“amado”), há, portanto uma inversão dos papeis da lírica amorosa tradicional já
que a enunciação é feminina e se dirige a um homem. Esse é um indício capaz de tornar o seu
poema “quase” persa67.
Ao escrever poemas eróticos sob uma perspectiva feminina, ressaltando características
da experiência sexual feminina, Marina Colasanti rompe com a repressão exercida por muitos
anos a sufocar a voz das mulheres e inibindo o seu direito de expressar-se sobre o sexo. Tal
repressão é ainda exercida atualmente, e reproduzida por piadas e jargões que visam a
inferioridade da mulher “vulgar” e a super valoração da virgindade feminina.
A expressão “abrir as pernas”68, por exemplo, é extremamente pejorativa quando se
aplica às mulheres que cedem ao desejo e praticam sexo. Por séculos o mundo da cultura
tentou dividir as mulheres entre as que “abrem as pernas” (possuem vida sexual ativa e/ou
vários parceiros) e as que “abrem os livros” (resistem aos impulsos sexuais e restringem-se à
atividade intelectual, numa dicotomia ultrapassada entre corpo e mente, como se uma
67
Referência à tradição literária do oriente médio, que possui obras como As mil e uma noites.
68
Ver também o podema “Sim, pode-se”, no subtópico seguinte.
139
Essa amplidão
Há um paralelismo entre o ato sexual conotado nos versos “Abertas pernas neste fim
de tarde / Não é apenas teu corpo que me invade / Deitado sobre o meu.” e a presença da
natureza selvagem dos versos seguintes (“Essa amplidão lá fora entre montanhas / O ouro dos
ipês, as quaresmeiras, / O chamar-se dos cães, os / Sons distantes”.). As aliterações e
assonâncias nasaladas em destaque reforçam uma sensação de eco decorrente da amplidão do
lado de fora e seus sons distantes. Os elementos da natureza evocados (montanhas, árvores,
animais) que estão lá fora são apropriados pela voz lírica da mesma forma que o órgão
masculino a penetrar por entre as pernas abertas na intimidade do casal. Dessa forma, a
“invasão” do corpo masculino não é tida como algo ruim ou a ser evitado, pelo contrário, essa
invasão é capaz de promover o encontro com o que há de sublime na natureza, como se, ao
abrir as pernas, a mulher experienciasse a amplidão dos sentidos, a expansão de sua própria
natureza. Os verbos adentrar, lamber, acariciar e expandir reafirmam a conotação erótica
libertadora. Aqui ao abrir as pernas a mulher não estaria perdendo nada, pelo contrário, ela
adquire um poder advindo da natureza capaz de expandir a sua existência.
A relação com a natureza aparece em mais um poema através de diversos verbos
(florescer, plantar, brotar, desfolhar):
69
Em 2014 uma editora causou revolta nas redes sociais ao divulgar a imagem de um livro aberto com os dizeres
“abra livros, não as pernas”. O machismo da publicação foi denunciado pela escritora Clara Averbuck, entre
outras feministas (Matéria disponível em: http://extra.globo.com/noticias/celular-e-tecnologia/facebook/editora-
carioca-recebe-criticas-apos-compartilhar-comentario-considerado-ofensivo-no-facebook-13399255.html.)
Desde então circula pela internet em páginas feministas os dizeres “Abra os livros, as pernas e a cabeça de
quem disser que você não pode fazer as duas coisas!”.
140
Para a autora o desencontro entre os amados é patente, “enquanto ela navega pelas
encostas do adormecimento, dos sonhos à solta, ele a interpela, cravando os dedos do seu
desejo na pele dela. [...] quando ela finalmente acordar [...] o amado pode estar navegando
pelo reinado do sono” (SILVA, 2008, p. 168). Gostaríamos, no entanto, de propor uma outra
leitura.
O poema inteiro é construído sob metáforas do mar, e há uma aproximação entre o
ritmo do poema, as ondas do mar e o compasso dos movimentos repetidos do ato sexual. Não
há desencontro, primeiramente, porque o amado a desperta (“Você me acorda no meio da
noite”), e ela atende ao chamado (“Afloro de repente entre as paradas ondas dos lençois”). As
primeiras metáforas, de fato, remetem à ideia de sono (“E eu que navegava tão distante /
Cravada a proa em espumas”), porém, as metáforas seguintes aproximam eroticamente a
umidade da maresia com o suor e a lubrificação da relação sexual.
Ora, se a maresia escorre do seu corpo é porque houve sim a satisfação do desejo, em
resposta ao chamamento no meio da noite. E essa satisfação do gozo é tão intensa que é como
se ela fosse arrastada pela correnteza (“Cravam-se ao fundo os dedos do desejo. / A
correnteza arrasta.”), aqui o sono interrompido soma-se ao cansaço posterior ao sexo, e a
sensação de entorpecimento decorrente do gozo, daí a sensação de ser levada pela correnteza
(novamente a metáfora da petite mort, como a que vimos em “Corpo adentro”: lá, “me
entregando à deriva”, aqui, “a correnteza arrasta”).
A leitura de Silvana Silva pode ser bem compreendida nos versos: “Só quando o
primeiro sopro escapar / Entre os lábios da manhã / Levantarei âncora.”, entendendo a
expressão “levantar âncora” como sinônimo de acordar. Mas como defendemos que o eu
142
lírico já havia não só despertado mas também gozado da relação sexual, estamos lendo que é
só pela manhã que será possível levantar a âncora cravada ao fundo do desejo; não
“despertar” no sentido literal de “acordar”, mas despertar da sensação de sonolência
provocada pelo sexo. Ou seja, após ser acordada no meio da noite, o navegar pelo desejo dos
amantes dura o resto da noite e só termina ao amanhecer. No entanto, com o amanhecer, findo
o ato sexual em si, não cessa porém o desejo, pois “será tarde demais”, o desejo já foi
despertado e o porto estará trancado, não haverá como fugir. Por isso o eu lírico permanece
“prisioneira da vigília”, desperta, acordada, como o estado de insônia provocado pelo desejo
latente.
No poema a seguir, a metáfora construída não é com o mar ou outros elementos da
natureza como já vimos tantas vezes, mas com a música, e por isso merece destaque por fazer
a poesia dialogar com outras artes70.
4.2 “Sim, pode-se” poetizar o sexo: a lírica erótica e o sexo como libertação
70
A autora é formada em Belas Artes e também atua como ilustradora. Há diversos poemas em seus quatro
livros que dialogam com quadros famosos, falamos sobre esse aspecto em: OLIVEIRA, T. T. Diálogo entre
poesia e pintura em poemas de Marina Colasanti. Revista Sebastiana , v. 1, p. 10, 2012.
143
Neste segundo tópico, temos os poemas eróticos que não implicam em relação
amorosa, portanto, que poetizam o sexo em si, desvinculando-o de um parceiro amado.
Muitas das características, no entanto, já foram destacadas em poemas anteriores. A diferença
aqui, segundo nosso critério de divisão, é a ausência da interlocução erótica; o sexo é tratado
numa perspectiva pessoal, porém, continua feminista e libertadora.
Sim, pode-se
Neste curto e belo poema temos algumas das metáfora já abordadas anteriormente.
Destacamos o primeiro verso “Pode-se abrir as pernas”, em que já problematizamos na
análise do poema “Essa amplidão” como Marina Colasanti subverte o significado da
expressão pejorativa às mulheres. No poema “Sim, pode-se” essa subversão fica ainda mais
evidente, pois ela problematiza a própria noção de ativo e passivo na relação sexual. Tem-se
na heteronormatividade uma concepção de sexo muito centrada na penetração vaginal pelo
pênis, de modo que considera-se o masculino como polo ativo, o que penetra, e o feminino
como polo passivo, como se seu papel se limitasse a “abrir as pernas”. O poema colasantinao,
no entanto, afirma que “Pode-se abrir as pernas / Com a mesma firmeza / De uma quilha que
avança.”, ou seja, “abrir as pernas” não é um gesto meramente passivo, mas um gesto de
firmeza, de avanço. Ao comparar com um quilha que avança, Colasanti aponta para a
possibilidade de abrir mares, desbravar. Ser porto e ao mesmo tempo navegante,
apontandando a multiplicidade de sentidos que o ato sexual abarca, a mulher é a que acolhe e
é também a que desbrava, mais uma vez o sexo é visto como um ato de libertação.
No poema “Amor ao meio dia” Colasanti constrói o significado erótico a partir do
jogo que estabelece com a ambiguidade dos termos. Desse modo, o poema bebe na rica
tradição popular que produz expressões de “duplo sentido” com conotação sexual a fim de
provocar riso. A diferença está na finalidade, quando se deseja provocar o riso, a expressão de
“duplo sentido” deve ser facilmente associada à sua conotação sexual, nisto consiste a malícia
144
O sol
no pau
a pique.
A sombra
da vulva
telha-vã.
O título do poema já é uma provocação. Amor aparece aqui no sentido popular como
sinônimo de “fazer amor”, ter relações sexuais; e a indicação do horário meio dia cria uma
imagem importante para a interptetação do poema, pois nesse horário dizemos que o sol “está
a pino”, ou seja, encontra-se na posição mais elevada, como se estivesse no “centro” do céu e
assim os objetos ao sol não formam sombras no chão. Além disso, consideramos que o sol do
meio dia é a hora mais quente – a palavra “quente” aqui também possui “duplo sentido” – e
deve ser evitada a exposição aos raios solares sob o risco de insolação ou queimaduras de
pele.
Uma casa de pau a pique (também conhecida como casa de taipa ou casa de sapê) é
um tipo de construção popular e muito antiga que consiste basicamente em levantar paredes
preenchidas com barro sobre uma armação de vigas de madeira. É muito característica de
regiões pobres pelo seu baixo custo de edificação nas formas mais rústicas. O poema brinca
com a expressão pau a pique (a própria construção dos versos em separado – “no pau / a
pique” – demonstra isso), pois aqui o substantivo “pau” é sinônimo de pênis e a expressão “a
pique” assume o significado de “na vertical”, portanto, a ambiguidade está formada nos
versos “O sol / no pau / a pique”, que aponta para duas possibilidades: o sol na “casa de pau a
pique” ou o sol no “pênis ereto”.
O mesmo ocorre na segunda parte do poema, que sela o significado erótico ao final da
leitura. Telha vã é o telhado sem forro, também característico de casas mais pobres – e,
portanto, as casas de pau a pique possuem telhã vã. No poema, contudo, a palavra vã é um
adjetivo feminino e assume o significado de “em vão”, “inútil”. Agora podemos compreender
a imagem erótica construída no poema a partir da ambiguidade: o sol do meio dia não forma
sombras dos objetos no chão por causa da sua posição elevada, da mesma forma que o pênis
145
ereto não forma sombra na vulva, a sombra da vulva torna-se vã quando está sob o pênis
ereto. E assim, a partir da observação de termos da arquitetura popular, a poetisa aproxima
pênis e vulva, da mesma forma que a telha vã está para a casa de pau a pique. Além disso, a
construção do poema em versos de apenas duas e três sílabas poéticas forma versos curtos,
permitindo que o poema também fique na posição “ereta” em termos visuais.
Como observamos, na poética erótica colsantiana é comum a utilização de vocábulos
considerados “feios” ou “ofensivos” (pau, vulva, etc.) em paralelo ao emprego de belas
metáforas, referências a mitos, etc. Tal recurso tem o apelo de demonstrar a beleza presente
em tais elementos do corpo e no ato sexual.
Tato
Às vezes
sem Ariadne e sem fio
a mão de um homem
se perde
entre as pregas
da vulva
como se perderia
num labirinto.
E por mais que procure
- ou dele fuja –
não encontra
o doce Minotauro
posto à espera.
para encontrar o ponto G das mulheres, como se o corpo feminino fosse um verdadeiro e
indecifrável labirinto. O orgasmo feminino, dessa forma, é metaforizado como o doce
Minotauro posto à espera.
Nesse sentido, o homem que se atreve a acariciar a vulva é como o herói Teseu, no
entanto, sem Ariadne e sem fio, o homem permanece perdido, e, assustado por toda a
repressão e mistério que envolvem o orgasmo feminino, não consegue encontrar o clitóris, ou
talvez fuja dele, ao mesmo tempo temido Minotauro e docemente posto à sua espera.
Podemos fazer a leitura de que sem a sagacidade de Ariadne, conhecedora do labirinto, nem
mesmo o herói Teseu conseguiria derrotar o Minotauro. Da mesma forma, sem o auxílio da
mulher conhecedora de seu próprio corpo, o homem não seria capaz de estimulá-la
satisfatoriamente. Contudo, segundo o eu-lírico, isso só acontece “às vezes”. Há a
reivindicação ao conhecimento íntimo através do toque. É mais um tabu abordado através de
metáforas, outro belo poema de repercussões várias.
O poema a seguir se aproxima pela forma como traz a temática erótica recorrendo à
metáforas que utilizam como pano de fundo narrativas conhecidas do público, agora os
elementos presentes são identificados nas novelas medievais ou romances de cavalaria
(donzela, cavaleiro, dragão, cavalo, etc.).
Sou donzela
E dragão
Dona da gruta
E o cavaleiro vem
No seu cavalo.
Oitenta e uma escamas têm
Meus seios
Para enfrentar a espada
Nessa luta.
E o cavaleiro vem
Queimando a grama
Sem que ninguém se atreva
A desarmá-lo.
Labaredas e sol
Entre meus lábios.
Entre as mãos dele
Cintilar de aço.
E o chão todo estremece
Sob os cascos.
E o sangue rumoreja
Em minhas veias.
E a distância se anula
Passo a passo.
147
O pudim amorna
Sobre a grade do forno
O cheiro de canela deita-se
Entre frestas.
Há um silêncio na casa
Um zumbido de inseto
E o sangue que lateja na cabeça.
No casulo da rede
O corpo
Falsamente dormido
Arrasta leve a mão para a virilha.
E não há mais silêncio
Nem ruídos
Somente esse querer
Que chama
E que se atende.
escala, já que o poderoso estigma do século XIX contra a masturbação ainda permanece,
menos potente e de forma modificada, como um substituto inferior do sexo com outra pessoa”
(CHACHAM & MAIA, 2004, p.78-79).
O título também chama a atenção pois a a tarde e a casa estão vazias, como se depois
de cumpridas as obrigações diárias o corpo pudesse se render a seus desejos mesmo que na
ausência do outro. Essa ambiguidade fica expressa nos últimos versos “E não há mais silêncio
/ Nem ruídos / Somente esse querer / Que chama / E que se atende.” O desejo é como uma
visita que bate a porta e é preciso atender. A presença do desejo faz com que até mesmo o
silêncio da casa se esvaia, de modo que mesmo na casa vazia o eu lírico não se sente mais só,
pois atender ao seu próprio desejo lhe faz companhia.
150
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Defendemos aqui que Marina Colasanti, em seus quatro livros de poesia – Rota de
colisão (1993); Gargantas abertas (1998); Fino sangue (2005); e Passageira em trânsito
(2009) –, expressa sua subjetividade lírica a partir de um olhar feminista e questionador,
rompendo com as amarras que circunscreviam o horizonte de expectativas feminino sobre o
sexo e o corpo, limitando-os ao casamento e à maternidade. Há em seus poemas eróticos a
manifestação do prazer feminino, expresso como parte da natureza humana, e, por isso, a
autora se insere na tradição de poesia erótica de autoria feminina iniciada no Brasil com Gilka
Machado. Após séculos de opressão, parcial silenciamento e luta constante, as escritoras
contemporâneas conquistaram autonomia para produzir literatura abordando variados temas e
perspectivas diversas – não sem ainda algum estranhamento por parte dos mais conservadores
leitores ou críticos.
Nosso trabalho buscou evidenciar a perspectiva feminina expressa na voz lírica
colasantiana, ou seja, adotamos o entendimento de que o eu lírico dos poemas eróticos de
Marina Colasanti assume uma perspectiva de mulher (é construído a partir de uma experiência
feminina própria) que evidencia as relações de gênero e que não deve ser apagada (ao
contrário do que postulam os defensores da neutralidade literária), sob o risco de
empobrecimento de sua capacidade expressiva. Em outras palavras, a carga expressiva
atribuída pelos leitores aos poemas apresentados e discutidos considera o aspecto cultural em
que estamos inseridos, e, portanto, não é um dado neutro o fato de terem sido escritos por uma
mulher, de idade, ainda que acreditemos que Marina Colasanti escreve a partir desse lócus de
gênero específico, mas também para além dele. Ou seja, a forma como se dá a recepção de
textos eróticos é diferente quando a autoria é feminina, ou ainda de uma mulher idosa.
Procuramos relacionar a maior participação feminina na literatura com a evolução do
pensamento feminista, em particular como aumenta a desenvoltura das poetisas mulheres para
falar sobre sexo, reconhecendo que as condições sociais postas interferem na forma de
produzir e de ler a autoria feminina. Para isso, procedemos à revisão bibliográfica de alguns
pontos importantes da história das mulheres, da crítica e do movimento feminista, da história
cultural do corpo, do erotismo e da literatura erótica, abordando conceitos teóricos
fundamentais como o de corpo e gênero.
Apresentamos a autora estudada sob uma perspectiva feminista, preocupada com a
questão da autoria feminina, expressos tanto pelo eu lírico quanto pela autora em textos de
151
outra natureza que não a literária. Nos centramos na experiência feminina, com manifestações
eróticas abordadas por Colasanti, pois considerarmos que elas são fundamentais dentro da
poética colasantiana a partir da reflexão sobre autonomia do próprio corpo e liberdade sexual.
E por fim, chegamos ao estudo crítico do corpus de pesquisa, por um viés feminista, a partir
do corpo atrelado ao gênero utilizado aqui como categoria de análise. Analisamos ao todo 33
poemas dos seus quatro livros, buscando aliar as elucidações teóricas prévias ao trabalho de
crítica textual proposto.
Ao todo foram lidos durante essa pesquisa os 405 poemas da autora publicados em
seus quatro livros. Dessa leitura iniciamos chagamos à delimitação do corpus com 33 poemas
que dialogam com os interesses dessa pesquisa: Rota de colisão (15 poemas), Gargantas
abertas (5 poemas), Fino sangue (6 poemas) e Passageira em trânsito (7 poemas). Tal recorte
demonstra quantitativamente como as palavras-chave empregadas aqui (corpo, velhice,
erotismo, mulher) permeiam e caracterizam toda a sua produção poética (com destaque para o
primeiro livro). Esses 33 poemas foram estudados e buscou-se categorizá-los de acordo com
as palavras-chave da pesquisa, não sem dificuldade, pois em muitos tais categorias dialogam
entre si. Além disso, privilegiamos o estudo analítico dos poemas à luz dos estudos
feministas, buscando evitar o mero formalismo e também a fuga do texto. Ao trabalhar com
os poemas optamos por escapar um pouco da tendência excessivamente cartesiana dos
estudos acadêmicos em geral, por vezes mais preocupados em organizar e engavetar
conhecimento do que em ligar prazer a estudo e análise. A justificativa desse trabalho envolve
o prazer da leitura, o gosto pela investigação literária, a identificação com a autora e a
admiração pelos textos por ela produzidos. A literatura, de algum modo, sempre nos faz
transpor barreiras.
Para os objetivos do trabalho, portanto, privilegiamos a categoria corpo na sua relação
com as demais temáticas, entendemos aqui que “o corpo e seus usos se estruturam como
linguagem que simboliza, significa e comunica as expectativas abarcadas por um determinado
contexto histórico e cultural” (CHACHAM & MAIA, 2004, p. 75). Chegamos a uma
tipologia simples de poemas em que o corpo aparece erotizado (23 poemas erótico-amorosos
analisados no capítulo 4) e não erotizados (10 poemas em que o corpo marca o processo de
envelhecimento, empoderamento e opressão ao feminino, analisados no capítulo 2).
Portanto, compreendemos que o desnudamento para falar sobre o corpo e o sexo é um
mecanismo de resistência feminista muito bem representado na lírica colasantiana. A mulher
que assume a perspectiva de uma conhecedora de seu corpo e do corpo do outro se demonstra
152
capaz de assumir as rédeas de seu próprio prazer – o prazer das mulheres que outrora era algo
negado.
Com os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres sendo ampliados (mesmo que
ainda encontrem grande resistência conservadora, vide exemplo o tabu sobre aborto e a
cultura do estupro), a própria vivência e imaginação sobre o sexo das mulheres se expandiu.
Isso altera a noção do senso comum sobre a falsa ideia de que as mulheres não falam nem se
interessam por sexo (antes apenas estimulada e reconhecido quando vinculada ao matrimônio
e à maternidade). O recurso do erotismo na lírica colasantiana representa a ruptura, bem como
a consagração do seu direito de gozar do (e com o) próprio corpo e emitir impressões,
opiniões, construindo imagens sobre esse território antes proibido.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro deles buscamos fazer um
apanhado histórico do movimento feminista e, como o direito ao corpo tornou-se uma
reivindicação importante dos feminismos atuais, buscamos articular as discussões sobre
autonomia e empoderamento feminino a partir do corpo dentro da história do movimento
feminista. Depois trouxemos a discussão do corpo desenvolvida pelo movimento feminista
para a crítica literária e a história da literatura de mulheres, particularmente de poetisas,
demonstrando como Marina Colasanti está inserida numa tradição de poesia erótica escrita
por mulheres no Brasil desde Gilka Machado. Rever a história do corpo no feminismo e na
literatura foi importante porque quem detém o poder de escrever a história tem o poder de
mudar a própria concepção que se tem do presente. Por isso, nossa perspectiva sobre o corpo
e a sexualidade hoje é muito mais politizada. A inserção das mulheres na literatura é um
processo histórico de luta que não pode passar despercebido pelos estudos atuais sobre autoria
feminina e escrita contemporânea. Além disso, não se pode negar o feminismo como
movimento político que mudou os rumos da experiência das mulheres e a forma como hoje
nos compreendemos como sujeitos capazes de reescrever a(s) história(s).
No segundo capítulo, de caráter analítico, analisamos dez poemas em que o corpo
feminino se faz presente relacionado com temáticas diversas, de acordo com os tópicos:
envelhecimento, empoderamento, mito da beleza e luxúria. Os poemas analisados foram:
“Rota de colisão”; “Tive um rosto” e “Frutos e flores” (sobre o corpo na velhice); “Eu sou
uma mulher” e “Sangue de mênstruo” (que falam de menstruação); “De líquida carne” e
“Livres à noite” (que falam dos seios); “Na academia de ginástica” (sobre o padrão de
beleza); “Sexta-feira à noite” e “Rumo à caixa” (reivindicação do prazer feminino). Buscamos
compreender como a observação do corpo se torna elemento importante dentro da poética de
153
conhecimento sobre o corpo feminino e sobre o corpo do outro, afinados com uma
experiência quase mística de libertação do prazer feminino e de compreensão ou aceitação da
passagem do tempo, em interlocução erótica com o parceiro. Analisamos tais características
nos poemas em consonância com as mudanças vivenciadas pelas mulheres na modernidade
tardia graças ao feminismo. O processo de transformação da intimidade nas sociedades
modernas alterou significativamente o papel feminino na esfera privada, de modo que não
podemos pensar em revolução sexual sem imaginar as pautas feministas sobre o direito ao
próprio corpo e prazer.
Defendemos que a poesia erótica de Marina Colasanti dialoga com as pautas do
movimento feminista atual no que diz respeito à autonomia do corpo feminino; que há
particularidades da linguagem do corpo e da experiência feminina que estão explícitas nessa
poesia e que isso colabora para uma diferente forma de conceber o erotismo não mais sobre a
ótica masculina; que as representações da mulher madura/idosa presentes nos poemas eróticos
rompem com o interdito sobre a sexualidade feminina na maturidade; e que diversas
associações são reveladas entre o ato sexual e a natureza implicando diversos efeitos ao longo
dos poemas.
E assim chegamos ao final de nosso trabalho, com o sentimento de que a pesquisa
transformou nossa forma de pensar sobre a literatura, a poesia, a condição feminina, o corpo e
o erotismo. Desde o início de nossos estudos defendemos a poética de Marina Colasanti como
portadora de grande qualidade estética e coerência temática aliada aos anseios feministas da
contemporaneidade e concluimos com essa certeza: de que ela deu e dá voz aos desejos de
tantas mulheres, que querem liberdade para seus corpos e também para si mesmas, como
sujeitos que são.
Prova disso é a forma escrachada com que poetisas brasileiras mais contemporâneas
falam de sexualidade. Para finalizar citamos como exemplo Paula Taitelbaum72, percebemos
em sua poesia, apesar das diferenças de estilo e linguagem, que estas devem muito ao
passado, às vozes pioneiras de Gilka Machado, ou de contemporâneas anteriores como Hilda
Hilst, Adélia Prado e Marina Colasanti, e de todas as escritoras e ativistas feministas que
buscam uma forma de expressão própria e inovadora, cada vez mais livre de amarras, num
72
Paula Taitelbaum nasceu em novembro de 1969, em Porto Alegre. É publicitária, produtora cultural, atriz,
escritora e jornalista. Pela L&PM, já publicou Sem vergonha (1999), Mundo da lua (2002), Porno pop
pocket (2004) e Ménage à trois (2006) que reúne seus três primeiros livros, entre eles, Eu versos eu (1998), sua
obra de estreia. Em setembro de 2013, lançou seu primeiro livro infantil Palavra vai, palavra vem no qual além
de ser responsável pelos textos, também ilustrou a obra com colagens. Paula escreve para a Revista Claudia,
Claudia Bebê, Estilo Zaffari, entre outras. (Disponível em:
http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&Template=../liv
ros/layout_autor.asp&AutorID=100)
155
verdadeiro diálogo com a tradição erótica e de representação do corpo nas artes, mas cada vez
mais preocupadas com as questões do feminismo e da liberdade das mulheres.
Eu abro as pernas
para perpetuar
a tênue
ternura
do infinito
da Fênix
e seu rito.
Eu abro as pernas
para enrijecer
o grelo
descontrolar
o grito
gotejar
a gruta
e me perder
no atrito.
O atrito que captamos aqui é aquele que se estabelece entre diferentes gerações de
mulheres escritoras, que nos é prazeroso por lembrar outra presença, outra proximidade, outra
subjetividade. Buscamos acompanhar Colasanti dessa forma ao longo do trabalho que aqui
encerramos – como uma voz que nos leva a novas aberturas, expostas a novas ternuras e
enrijecimentos pela e através da palavra.
156
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