O Rap e o Funk Na Cidade Tiradentes
O Rap e o Funk Na Cidade Tiradentes
O Rap e o Funk Na Cidade Tiradentes
Resumo
A comunicao aborda as relaes e diferenas entre dois
fazeres musicais presentes na periferia de So Paulo, em especial no
distrito de Cidade Tiradentes, maior complexo habitacional popular
da Amrica Latina, com mais de 300 mil habitantes. A partir de uma
perspectiva etnogrfica, a pesquisa aproxima-se do rap, tal qual praticado e pensado hoje por MCs que viveram os momentos de grande
influncia do estilo no bairro nos anos 1990, e do funk, em especial da
vertente Ostentao desta msica que ganhou linguagem entre os
moradores da periferia e alm.
Palavras-chave: funk; rap; periferia de So Paulo
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Esta comunicao apresenta resultados de pesquisas realizadas com apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), no mbito dos projetos
Images and sound making: a comparative and collaborative approach to visual anthropology, processo no. 2013/50222-0, A Experincia do filme na antropologia, processo
no. 2009/52880-9 e Antropologia da Performance: Drama, Esttica e Ritual, processo
no. 2006/53006-2. Agradeo a Marcos Cmara de Castro pelo convite para participao no VI Encontro de Musicologia de Ribeiro Preto, aos participantes pelo generoso
debate das questes aqui apresentadas, Sylvia Caiuby Novaes pelas sugestes
verso final deste texto e pela parceria, que inclui Alexandrine Boudreault-Fournier - a
quem tambm agradeo - na pesquisa sobre o Funk em Cidade Tiradentes.
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Abstract
This lecture addresses the relationship and differences between
the present musical practices in the suburbs of Sao Paulo, particularly
in Cidade Tiradentes district, most popular housing complex in Latin
America, with over 300 thousand inhabitants. From an ethnographic
perspective, the research approaches the rap, like practiced in the
neighborhood in the 1990s, and the funk style, especially its modality
Ostentation whose music won popularity among residents of the periphery and beyond.
Keywords: funk; rap; suburbs of So Paulo
Apresento aqui reflexes a partir de pesquisas realizadas entre
2009 e hoje em Cidade Tiradentes, maior complexo habitacional popular da Amrica Latina, com mais de 300 mil habitantes, situado no
extremo Leste da cidade de So Paulo. Dentre os resultados de minhas
pesquisas nesta localidade, destaco um mapeamento virtual (www.cidadetiradentes.org.br), dois filmes etnogrficos (A arte e a rua e L do
Leste), um livro (L do Leste - uma etnografia audiovisual compartilhada) e alguns artigos. Nesta apresentao, esboo algumas questes
com relao a algumas das prticas musicais locais, em especial o rap
e o funk.
O tema mais geral da pesquisa a relao entre arte (prticas
artsticas) e o espao urbano: como os artistas moradores da periferia
paulistana pensam e criam a partir da relao que estabelecem com
seu territrio. O funk e o rap aparecem como duas das formas artsticas
praticadas no cotidiano de Cidade Tiradentes, com muitas diferenas
e conflitos.
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Discutimos esse processo em HIKIJI, R.S.G. & CAFF, C. Hikiji, Rose Satiko Gitirana, Caff,
C. A arte e a rua: uma experincia colaborativa audiovisual com artistas de Cidade
Tiradentes. Revista de Cultura e Extenso. , v.7, p.41 - 51, 2012.
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Em 2009, toda rua tinha tambm uma Lan House, fenmeno que perde espao com a
popularizao da internet nas residncias.
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A arte e a rua
O projeto intitulado A arte e a rua previa a abordagem das
transformaes da arte de rua em Cidade Tiradentes. Selecionamos
quatro dos 200 grupos mapeados como personagens de nosso filme,
que tinha como questo mais geral o dilogo entre os artistas e os
processos de transformao do territrio, com a urbanizao e a chegada de equipamentos pblicos.
Os filmes acompanham a experincia de quatro grupos ligados
ao Hip Hop, que cresceram junto com Cidade Tiradentes, e em suas
obras dialogam com seus desafios e sonhos: grupo de grafite 5 Zonas;
grupo de rap RDM - Rapaziada Do Morro; grupo de dana Tiradentes
Street Dancers e grupo de rap gospel Relato Final. No mdia metragem
A arte e a rua incorporamos as reflexes de Daniel Hylario sobre as
transformaes no bairro e a arte em Cidade Tiradentes.
O RDM o representante do rap em nosso filme. Bob Jay, que
era um dos pesquisadores do Mapa das Artes, o MC do RDM. Conheceu os demais integrantes do grupo no final dos anos 1990, quando
suas famlias levantavam fileiras de bloco na construo das casas em
sistema de mutiro no setor Barro Branco de Cidade Tiradentes. Os
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Paniquinho, que acompanhava o debate na plateia, pediu a
palavra para narrar seu conhecimento com relao ao Hip Hop, uma
vez que se reconhece como participante de uma das primeiras geraes do movimento. Em 1994, participou da primeira posse de Hip
Hop de Tiradentes, a Aliana Negra. Seu relato dialoga com questes
apontadas pelo filme e trazidas para o debate pelos participantes:
A Cidade Tiradentes era mesmo um projeto arquitetnico
de cidade dormitrio. Foi colocada aqui, no tinha polticas pblicas mesmo, no tinha nada, e uma das nossas
necessidades enquanto jovens era, na apropriao do
espao, se manifestar culturalmente. [...]
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Debate reproduzido nos extras do DVD A Arte e a rua. Os trechos a seguir esto reproduzidos tambm em Hikiji & Caff. L do Leste - Uma etnografia audiovisual compartilhada. So Paulo, Humanitas, 2013.
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e no !
Os shows de rap que acompanhamos durante a pesquisa eram
realizados com pouco apoio da subprefeitura (no mximo um som), o
palco na rua no tinha um tablado, 5 a 10 grupos se revezavam para
um pblico de 30 a 50 pessoas. Nenhum dos rappers que conhecemos
viviam de msica, nem os evanglicos.
Mesmo assim, conseguiam reunir mais de dez membros da famlia
para um show ou um churrasco, continuavam compondo novas msicas,
batalhando locais para apresentao. O discurso de Paniquinho revela a resistncia como um mote deste movimento.
Fabrik Funk
Em 2010, ano de filmagens do A arte e a rua, o funk aparecia para os protagonistas do filme como o oponente do rap. Atraa
multides em carretas-palco promovidas pela prefeitura. Surgia como
oportunidade de sucesso para jovens com pouco contato prvio com
a msica.
Em 2014, decidimos produzir um filme que teria como foco o
funk ostentao. Este gnero ganha projeo nacional, com Pas do
Futebol, na voz do MC Guim, como msica tema da telenovela Gerao Brasil, da Rede Globo.
Em Cidade Tiradentes, conhecemos alguns dos protagonistas
desta cena funk. Com eles, aprendemos mais sobre o estilo que toca
na quebrada e nas baladas de playboy. Soubemos que esta msica
compartilha com o futebol o lugar de projeo de ascenso social do
jovem da periferia: todo menino sonha ser um MC. Cidade Tiradentes
teria virado uma fbrica de funk, nas palavras de seus produtores.
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Alm dos produtores de vdeo, atuam como interlocutores e
atores no filme Daniel Hylario e uma jovem cantora e compositora de
Funk, a MC Negaly.
Daniel tem um jeito prprio de pensar as prticas musicais em
diferentes dcadas. Em sua leitura, nos anos 1970, o Funk (norte-americano) chega na linguagem da Disco. Tocava em festas feitas em casa,
em que a famlia estava envolvida. Nos anos 1980, ganham fora os
bailes Black, como o Chic Show. Nos anos 1990, o show o lugar da
fruio musical. E nos dias de hoje, o Funk ganha a rua: h os grandes
palcos na rua, os rolezinhos7 nos shoppings em que o funk cantado
em alto volume por centenas de jovens, os fluxos encontros sem agendamento prvio, que renem milhares de pessoas em torno de carros de
som potentes, fechando as ruas da periferia.
Daniel identifica nos clipes de Funk quatro elementos: 1) a mulher: em geral, branca, estilo panicats - em referncia s modelos do
programa televisivo Pnico na Band; 2) o ouro: as correntes, tais como
as usadas pelo rapper norte-americano 50 cent, so figurino obrigatrio; 3) os carros: modelos importados, que custam at 200 mil reais,
devem ser dirigidos pelos MCs; 4) a dana: muitos vdeos que fizeram
sucesso resultam de passinhos que so criados pelos MCs.
Em junho de 2014, quando realizamos as filmagens de Fabrik
Funk, o estilo Ostentao j no aparecia como a grande referncia.
Dividia espao com o estilo putaria, que em suas letras faz referncias
explcitas ao sexo.
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Mais reflexes sobre o fenmeno do rolezinho em Pereira, Alexandre. Rolezinho no shopping: aproximao etnogrfica e poltica, Revista pensata, v.3, n. 2, 2014 disponvel
em
http://www2.unifesp.br/revistas/pensata/wp-content/uploads/2011/03/d-Alexandre.
pdf.pdf e e em Pinho, Osmundo. Black Bodies, Wrong Places: Spatial and Morality Politics
of Rolezinho Racialized Youth Invasions and Police, Repression in the Public Spaces of
Todays Brazil. Talk in Interdisciplinaire Humanities Centre, 2014, disponvel em http://www.
ihc.ucsb.edu/black-bodies-wrong-places.
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que obtm algum sucesso chegam a fazer seis shows por noite. Mesmo
com apenas uma ou duas msicas gravadas, tocam por cerca de 20
minutos os principais hits de outros MCs. Ganham de 1 a 5 mil reais por
show em mdia. Para as casas de show, vantajoso, uma vez que no
precisam contratar uma banda, mas apenas o MC e o DJ, que recebe
bem menos que o primeiro, em mdia 500 reais. Os shows acontecem
de quinta a domingo, na periferia e no centro.
A principal forma de divulgao da msica o YouTube e os
portais de Funk. Um MC pode alcanar o estrelato da noite para o
dia. Ao lanar uma msica (seja o videoclipe ou somente a gravao
sonora) no YouTube, tem incio o processo de divulgao. H relatos
de msicas que caram no YouTube em um dia e no mesmo dia j
estavam tocando nos carros que passam com as caixas de som no
mximo volume. O nmero de visualizaes o indicativo do sucesso
da msica. As casas de shows contratam os MCs com base no sucesso
virtual. At a Rdio Transamrica (que tem um programa semanal de
Funk) costuma tocar as msicas que estouram no Youtube.
So portanto artistas sem disco gravado, autores de uma ou
duas msicas, que viram uma referncia nacional e internacional (alguns tocam em pases do Mercosul, em outros estados brasileiros, e os
de maior sucesso gravam seus videoclipes at nos Estados Unidos).
Outra caracterstica interessante o uso dos estdios caseiros. Graas s novas tecnologias, todas as canes so gravadas
em pequenos estdios domsticos, inclusive os hits milionrios de DJs
como MC Guim (cujo clipe Pas do Futebol tem mais de 40 milhes
de visualizaes8, lembrando que a msica chegou a ser cotada como
msica de abertura da Copa, e que este MC recebe um cach de 400
mil por ms).
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46.145.165 visualizaes disponveis em https://www.youtube.com/watch?v=bWnS2dIDgQA (acessado em 20.1.15).
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praticado em todas as camadas etrias, meio de insero dos pobres no mundo, nas palavras de Daniel, que tambm um crtico desse
buraco branco:
Igualdade pra qu, mano? Que tipo de igualdade ns
queremos? Igualdade material? Ah, ento todo mundo vai
ter casa com piscina? Alguns tipos de igualdade que as
pessoas querem ter invivel: todo mundo ter o seu automvel? Acho que o caminho que ns estamos criando
o caminho do buraco branco. O buraco negro aquele
que pega tudo e coloca pra dentro de si. So pessoas
que guardam muita mgoa. O buraco branco o contrrio, acreditar que tudo prosperidade... as roupas
so prosperidade, a modernidade prosperidade, tudo
prosperidade e que tudo rpido, que passageiro e...
p, a gente tem acesso internet e tem outra pessoa que
no tem nem vdeo cassete. P mano, at um homem de
neandhertal conseguia ter uma caverna e eu, um homem
do sculo XXI, no consigo ter uma caverna...9
O consumo pode ser pensado no cenrio de crescimento do
poder aquisitivo das classes populares. Segundo dados do Instituto
Data Popular de 201310, a classe C, famlias cuja renda mensal per
capita varia de R$ 320 a R$ 1.120, e que so constitudas principalmente por profissionais ligados a servios de beleza, caixas de supermercados e lojas, representantes comerciais e vendedores e atendentes, gastou mais de R$ 1,17 trilho em 2013, movimentando 58% do
crdito no Brasil.
Tal cenrio, observado por analistas, coincide com o que Daniel Hylario observa no seu bairro: h um crescimento da renda, uma
diminuio do desemprego, o acesso a postos de trabalho diversos
que garantem uma renda maior a famlia. Em uma famlia com 5 inteDepoimento para o filme A Arte e a rua, reproduzido em Caff & Hikiji, 2013: 38.
10 Em Alvarenga, Darlan. Classe mdia brasileira o 18 maior pas do mundo em
consumo, reportagem disponvel em http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/02/
classe-media-brasileira-e-o-18-maior-pais-do-mundo-em-consumo.html (acessado em
21.1.15).
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Cabe ainda chamar a ateno ao que Daniel Hylario percebe
como uma dupla relao entre pobres e ricos no Funk. Ao mesmo tempo em que os pobres vislumbram se apropriar dos bens dos ricos, por
meio do consumo de itens de luxo e de alto custo (calados, vesturio,
carros), os ricos, ao consumirem o Funk, parecem se apropriar de um
vocabulrio dos pobres.
Diferentemente do rap, que separa, canta o gueto, reafirma
uma identidade marginal, o funk incorpora, cria uma identificao dos
moradores das periferia com a classe dominante, canta a possibilidade
de ser igual pelo consumo, ou ainda melhor, quando se pode ter (ou
desejar) ainda mais.
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