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“COMBINARAM DE NOS MATAR,

COMBINAMOS DE FICAR VIVOS”:


RACISMO E RESISTÊNCIA NEGRA
NO RAP BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO*

Henrique da Rosa Müller


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Lucas Lazzarotto Vasconcelos Costa


Universidade Federal de Santa Maria

O
Hip Hop é uma expressão cultural multifacetada, que tradicio-
nalmente pode ser decomposta em quatro elementos: o grafite,
enquanto vertente ligada às artes visuais; a dança de rua,
representada principalmente pelo break e por personagens como os b-boys
e b-girls; o Disc-Jockey (DJ), que comanda as pick-ups (toca-discos);
e o Mestre de Cerimônia (MC), que compõe rimas e poesias. Estes dois
últimos são os principais responsáveis pelo que é chamado de rap (rhythm
and poetry – ritmo e poesia). Diversos hip hoppers, sobretudo o influente DJ
Afrika Bambaataa, propuseram a existência do chamado “quinto elemento”,
que envolveria o reconhecimento da realidade histórica, cultural e social
dos grupos oprimidos.1 Desde sua origem, o rap funciona como uma
ferramenta para a expressão daquilo que os sujeitos periféricos veem,
sentem e sabem, refletindo sobre a realidade ao seu redor.2 Ao inserir-se na
realidade brasileira, o rap incorpora em seu discurso elementos singulares
dos processos raciais locais, marcados por um longo período escravocrata

* Pesquisa realizada com recursos de bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento do


Pessoal de Nível Superior (Capes).
1 Derek Pardue, “Hip hop as pedagogy: A look into ‘heaven’ and ‘soul’ in São Paulo,
Brazil”, Anthropological Quarterly, v. 80, n. 3 (2007), pp. 673-709 .
2 Afrika Bambaataa, “Interview w/ Afrika Bambaataa, Hip Hop’s Ambassador,
by Davey D”, Davey D’s Hip Hop Corner .

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seguido de uma integração precária dos negros à sociedade.3 Considerando
a capacidade organizadora do rap em seus aspectos culturais e sociais, e que
o rap é um importante instrumento social que incorpora as denúncias dos
problemas raciais de nossa sociedade, o objetivo deste trabalho será analisar
como os múltiplos elementos culturais, históricos e sociais relacionados
à questão racial brasileira são articulados no discurso do rap brasileiro
contemporâneo. Sustentamos que este gênero musical pode ser pensado
como uma forma de resistência cultural, a serviço de um projeto difuso
de ressignificação do lugar do negro na sociedade brasileira e de resgate
da autoestima e da consciência racial negra. Partiremos do pressuposto de
que a realidade sócio-histórica na qual se desdobram as relações raciais no
Brasil é atravessada pelo racismo estrutural, tal como conceitualizado por
Almeida. Segundo o autor, o racismo é um processo histórico, estrutural
e racional de legitimação de poder político, econômico, social e cultural,
além de se apresentar como um processo subjetivo. Portanto, ele se traduz
de forma constitutiva na organização do poder e no surgimento do moderno
Estado-nação, tocando tanto as macroestruturas quanto as microrrelações.4
Preliminarmente, apresentaremos um panorama sobre a conso-
lidação do rap enquanto um dispositivo de denúncia racial, assim como
algumas considerações históricas e conceituais sobre a situação do negro na
sociedade brasileira. Em seguida, faremos uma análise temática de compo-
sições de rap brasileiro contemporâneo, visando sublinhar as articulações
entre o discurso presente nessas músicas e o debate racial brasileiro.

Hip Hop: da periferia americana à periferia brasileira

O Hip Hop, assim como a totalidade das manifestações culturais


afro-diaspóricas, contempla em sua matriz as realidades sociais,

3 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes: ensaio de inter-


pretação sociológica, São Paulo: Globo, 2008, v. 1: O legado da “raça branca”.
4 Sílvio Almeida, O que é racismo estrutural, Belo Horizonte: Letramento, 2018.

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políticas, econômicas e culturais a que estes grupos étnicos estão condi-
cionados. Surgida nos anos 1970 no Bronx, periferia de Nova Iorque,
a cena Hip Hop é constituída principalmente por negros americanos
e imigrantes jamaicanos e hispânicos. A paisagem social que propul-
siona o surgimento desta manifestação cultural é marcada por diversas
contradições sociais, como a guerra do Vietnã, a crise econômica
dos anos 1970 e a segregação racial.5 Têm papel fundamental nesse
contexto os inúmeros projetos de reurbanização e limpeza social do
bairro, que forçaram as populações negra e hispânica a viverem em
uma paisagem em destroços.6 Os grupos não brancos, que vivenciavam
cotidianamente aquela atmosfera de preconceito, discriminação e segre-
gação socioespacial, encontravam no Hip Hop uma forma de lazer e,
principalmente, de manifestação da sua realidade racializada:

Nesse contexto, o sentimento de pertencer a uma identidade étnica,


encontra-se associado no hip hop, politicamente, a uma abordagem
crítico-emancipatória de diálogo com o espaço público, de se
compreender parte de uma história e de se territorializar no espaço
de forma representativa. A questão da negritude ressurge como tema
central no hip hop para se pensar, criticar e enfrentar a exclusão social,
o que tem levado, por consequência, à racialização da discussão.7

Os bailes de Hip Hop espalharam-se por quase todos os centros


urbanos dos Estados Unidos. Em 1980, o rap alcança sucesso nacional
através da sua comercialização pela indústria fonográfica e consequente
massificação do gênero, que acaba perdendo algumas características
iniciais e passa a dar espaço para mensagens de consumismo, violência
e sexo. Data deste período a globalização do rap e sua absorção por

5 Juliana Dutra, “RAP: identidade local e resistência global”, Dissertação (Mestrado em


Música), Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2007 .
6 Cheryl L. Keyes, “At the Crossroads: Rap Music and Its African Nexus”,
Ethnomusicology, v. 40, n. 2 (1996), p. 223 .
7 Rosana Martins, “Hip hop, arte e cultura política: expressões culturais e represen-
tações da diáspora africana”, Em Questão, v. 19, n. 2 (2013), p. 261 .

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outras culturas: assim como a realidade social, política e econômica
do Bronx influenciou a primeira fase do rap, as realidades locais nas
quais ele se desenvolvia fora dos Estados Unidos foram incorporadas
por essa expressão cultural.8
No final dos anos 1980, surgem em São Paulo os primeiros
grupos de rap, mas o gênero musical só ganha projeção nacional a
partir dos anos 1990, com os álbuns Sobrevivendo ao Inferno (1997),
do grupo Racionais MC’s, e Preste Atenção (1995), de Thaide.
Os grupos da primeira fase do rap nacional apresentavam um nítido
tom de protesto e contestação social em seu discurso, refletindo sobre
a desigualdade e o preconceito racial, a violência policial, a exclusão
social e o cotidiano da periferia.
Assim como acontecera nos Estados Unidos, o rap brasileiro
também incorpora em seu discurso mensagens ligadas ao consumismo,
à ostentação e à objetificação feminina.9 Mesmo assim, o rap voltado
para os temas raciais nunca perdeu espaço, mantendo-se como a vertente
mais prolífica tanto nas cenas locais quanto entre grupos que alcançam
sucesso nacional. Neste trabalho, nos interessa sobretudo o rap ligado
à expressão dos elementos basilares que possibilitaram o surgimento
deste gênero musical, como a denúncia da injustiça social e a ênfase no
debate racial. Portanto, ao nos referirmos ao rap, privilegiaremos este
subgênero, também conhecido como rap social,10 rap consciência11 ou
rap de mensagem.12

8 Dutra, “RAP: identidade local e resistência global”.


9 Ricardo Indig Teperman, “O rap radical e a ‘nova classe média’”, Psicologia USP,
v. 26, n. 1 (2015), pp. 37-42 .
10 Leslie Colima e Diego Cabezas, “Análise do rap social como discurso político de
resistência”, Bakhtiana, v. 2, n. 12 (2017) .
11 Sales Augusto dos Santos, “Os rappers e o ‘rap consciência’: novos agentes e instru-
mentos na luta anti-racismo no Brasil na década de 1990”, Sociedade e Cultura, v. 11,
n. 2 (2008), pp. 169-182 .
12 Theo de Sá Guimarães Cancello, “RAP: insistência, resistência e (re)existência:
Relatos de Rappers da Baixada Santista”, Dissertação (Mestrado em Educação),
Universidade Católica de Santos, Santos, 2019 .

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O rap e o protesto negro

No Brasil, o rap apresenta características particulares, refletindo as especifi-


cidades do cenário político e racial do país. Dessa forma, a vertente brasileira
do rap pode ser entendida como um elemento de continuidade do movimento
musical popular negro, que teve raízes de norte a sul do país e valorizava a
“busca da autoestima da população negra, diante do preconceito racial”.13
Esse processo “compreende a valorização da ascendência étnica negra, o conhe-
cimento histórico da luta dos negros e de sua herança cultural e o combate ao
preconceito racial”.14 Em síntese, pode-se afirmar que o discurso do Hip Hop
articula as dimensões históricas, culturais, políticas e sociais da questão racial.

Nesse contexto, o hip-hop, concebido através de ações artísticas,


culturais e políticas, constituiu-se como exemplo de cultura contem-
porânea de resistência negra, possibilitando a expressão da voz do
marginalizado, do excluído, além de uma reflexão acerca daquilo que
reprime as classes menos favorecidas. Observa-se especificamente
a construção do estilo rap como relato da exclusão, da violência,
e também da riqueza cultural e da resistência.15

Inúmeras manifestações culturais dos grupos subordinados pela


opressão racializada adquirem um caráter de resistência e contestação em
relação aos elementos políticos, econômicos e ideológicos que alicerçam as
sociedades de origem escravocrata. Hall chama este fenômeno de estratégia
cultural, entendido como um espaço possível de disputa e proliferação de
ideias de contestação.16 Esta é uma característica ainda muito viva no rap
brasileiro contemporâneo: observa-se que MC’s e grupos de rap garantem

13 Alberto T. Ikeda, “Música, Política e ideologia: algumas considerações”, V Simpósio


Latino-Americano de Musicologia, Curitiba, 2001 .
14 Bruno Zeni, “O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva”, Estudos
Avançados, v. 18, n. 50 (2004), pp. 225-241, p. 230 .
15 Rhuann Fernandes, “O rap nacional e o caso Djonga: Por uma sociologia das ausências
e das emergências”, RELACult, v. 5, n. 3 (2019), pp. 1-25, p. 2 .
16 Stuart Hall, Da diáspora: identidades e mediações culturais, Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2003.

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seu sucesso e sua produção sonora ligados aos elementos de contestação
negra, por meio do reforço dos valores culturais negros, da busca pela
identidade racial, do protesto contra o racismo e do resgate da ancestra-
lidade e da história negra. Dessa maneira, compreendemos que o rap
se posiciona como uma das vertentes artístico-culturais do protesto negro.
Enquanto elemento da cultura popular negra, o rap caracteriza-se
também como um “local de contestação estratégica”, na medida em que
“tem sempre em sua base experiências, prazeres, memórias e tradições
do povo” e que se liga às “esperanças e aspirações locais, tragédias e
cenários locais que são práticas e experiências cotidianas de pessoas
comuns”.17 Assim, o rap é um ponto de acesso privilegiado às vivências
da população negra, em um contexto em que suas necessidades mais
elementares de subsistência e dignidade muitas vezes não estão dadas e
precisam ser conquistadas através da luta. A mensagem veiculada pelo rap
não só faz emergir os problemas raciais das periferias, mas constitui-se
como um importante espaço de reafirmação da identidade étnica nacional.
Essa identidade fora escamoteada pelo Estado brasileiro desde o surgimento
da ideologia da democracia racial, que se estabeleceu como característica
central do ethos nacional e garantiu o encobrimento das desigualdades
raciais gestadas na história social do Brasil.18
Por terem se desenvolvido enquanto uma tarefa cultural e política,
o rap e a cultura Hip Hop se fortalecem como um exemplo contemporâneo
do que Castells chamará de cultura de resistência.19 No caso do rap, a
cultura de resistência possibilita a manifestação da voz de uma população
marginalizada e excluída da estrutura social e a construção de sujeitos
preparados para enfrentar as discriminações e as desigualdades que
definem “o lugar do negro” em nossa sociedade. A arte torna-se um dispo-
sitivo cultural e político na busca de mudar a situação não só dos atores

17 Hall, Da diáspora, p. 340.


18 Clóvis Moura, Sociologia do negro brasileiro, São Paulo: Ática, 1988.
19 Manuel Castells, O poder da identidade. A era da informação: economia, sociedade
e cultura, São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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mais diretamente associados à cultura Hip Hop, mas de todo o grupo
social a que pertencem.20 Nesse contexto, destacam-se as comunidades
periféricas, que são frequentemente retratadas nas letras de rap e fazem
parte do universo de pertencimento destes atores sociais.
O rap brasileiro contemporâneo apresenta algumas características
particulares que o diferenciam parcialmente do rap produzido no final do
século XX. Como aponta Teperman, o rap contemporâneo, ou “nova escola
de rap”, perde força enquanto dispositivo de crítica social ao se aproximar
da indústria cultural.21 Rocha, por sua vez, compreende que o discurso
político do rap complexifica-se na contemporaneidade, pois articula o
debate de questões raciais, de classe e de gênero. A partir desse ponto de
vista, compreende-se que a “nova escola” não abandona a vocação do rap
para a crítica social, mas a adapta ao contexto atual, de forma que não se
observa uma ruptura radical entre a “velha escola” e o rap contemporâneo.22

Contexto político e racial brasileiro

Para compreender o contexto racializado que o rap brasileiro insistente-


mente denuncia, é necessário retomarmos os quadros históricos e sociais que
fundamentam o chamado racismo estrutural enquanto modelo morfológico
que garante a subalternização de negros e negras na sociedade brasileira.23
Com o fim da escravidão em 1988, o pensamento social nacional é forte-
mente influenciado pelas teses do racismo científico, que se reproduziam de
forma hegemônica em todos os centros intelectuais do mundo.24 Ao passo

20 Lorran Douglas Silva, “A política por trás do som: uma análise do rap como narrativa
política do movimento de resistência negro”, Revista do Instituto de Ciências
Humanas, v. 16, n. 25 (2020), pp. 37-64 .
21 Teperman, “O rap radical e a “nova classe média””.
22 Róbson Peres Rocha, “A Velha Escola de Rap e a Nova Escola de Rap: problemas
de método na análise de grupos culturais”, Revista Contraponto, v. 7, n. 2 (2020),
pp. 25-45 .
23 Almeida, O que é racismo estrutural.
24 Clóvis Moura, Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo, São Paulo: IBEA, 1983.

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que as elites e o Estado adotavam tais teses enquanto modelo organizador,
reproduzia-se no pensamento social e nas estratégias de Estado um projeto
que visava acabar com o “elemento negro” do cenário sociocultural brasileiro.
Assim, as produções intelectuais e ideológicas desse período, bem como as
estratégias de embranquecimento nacional, impediram a incorporação dos
negros no sistema ocupacional e os submeteram à marginalização social,
excluindo-os da riqueza, da cultura e do poder.25
A partir dos anos 1930, com a instauração do Estado Novo,
houve uma mudança significativa dos projetos nacionais em torno da
questão racial. Essa mudança é caracterizada principalmente pela adoção da
democracia racial enquanto discurso público oficial, situação que perdurou
até a constituição da Nova República. O mito da democracia racial e a
construção do ideário nacional de um país miscigenado serviram como mote
para uma série de ataques à cultura afro-brasileira, que incluíram a desafri-
canização dos elementos culturais negros e o consequente enfraquecimento
da identidade negra.26 No campo social, o racismo velado e a miscigenação
como proposta administrativa buscaram estabelecer o Brasil como um país
que aboliu o preconceito racial, colocando as expressões do racismo e da
desigualdade racial como um tabu difícil de ser acessado pela população.27
Mesmo que, na atualidade, a democracia racial não seja considerada um
discurso público oficial, as estratégias ideológicas adotadas até o final dos
anos 1980 ainda estão presentes no pensamento social brasileiro.
Em síntese, os projetos racializados a que a população negra foi
submetida ao longo da história do Brasil produziram efeitos profundos e
duradouros, manifestando-se na marginalização dos negros no pós-abo-
lição,28 na construção do mito da democracia racial,29 na perseguição dos

25 Florestan Fernandes, Significado do protesto negro, São Paulo: Cortez, 1989;


e A integração do negro na sociedade de classes.
26 Abdias do Nascimento, O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
mascarado, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
27 Moura, Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo.
28 Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes.
29 Nascimento, O genocídio do negro brasileiro.

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movimentos negros30 e na integração subordinada desse grupo ao sistema
capital-trabalho.31 Os marcadores sociais e a bibliografia especializada
são unânimes ao constatarem as inúmeras desvantagens sociais enfren-
tadas pela população negra no Brasil contemporâneo, como as altas taxas
de evasão escolar, trabalho infantil e encarceramento, dificuldades em
acessar o sistema de saúde, menor remuneração e a condição de cerca-
mento socioespacial, que isola essa população nas periferias.32 Além disso,
dentre os mortos em intervenções policiais violentas, quase 80% são
jovens negros periféricos.33 O caráter violento e sistemático do assassinato
de negros e negras no Brasil pode ser entendido como expressão de uma
política de extermínio e genocídio.34
Mas a população negra nunca esteve passiva diante da barbárie
organizada da história social brasileira, dado que estratégias de resistência
política e cultural são registradas desde o período colonial e se estendem
até o contemporâneo.35 As estratégias de luta difusas que ocorreram durante
o período colonial assumem, durante as primeiras décadas da República
Velha, a forma de um movimento negro organizado e articulado a partir
de inúmeras ações de resistência, como a imprensa negra, os partidos
políticos e os grupos artísticos e religiosos. No contemporâneo, o rap
assume uma posição de destaque enquanto elemento artístico-cultural do

30 Petrônio Domingues, “Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos”,


Tempo, v. 12, n. 23 (2007), pp. 100-122 .
31 Octavio Ianni, “Escravidão e racismo”, Revista de Antropologia, v. 23, n. 0 (1980),
pp. 197-201 ; Carlos Hasenbalg, “A pesquisa sobre desigualdades raciais no Brasil”
in Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (orgs.), Relações raciais no Brasil
contemporâneo (Rio de Janeiro: Rio Fundo e IUPERJ, 1992), pp. 9-16.
32 Almeida, O que é racismo estrutural; Moura, Sociologia do negro brasileiro;
Marcelo Weishaupt Proni e Darcilene Claudio Gomes, “Precariedade ocupacional:
uma questão de gênero e raça”, Estudos Avançados, v. 29, n. 85 (2015), pp. 137-151 .
33 Clara Velasco et al, “Nº de pessoas mortas pela polícia cresce no Brasil no 1º semestre
em plena pandemia; assassinatos de policiais também sobem”, G1 .
34 Nascimento, O genocídio do negro brasileiro; Marcelo Paixão, “Antropofagia e
racismo. Uma crítica ao modelo brasileiro de relações raciais” in Sílvia Ramos e
Leonarda Musumeci (orgs.), Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação
na cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005), pp. 283-322.
35 Clóvis Moura, Dialética radical do Brasil negro, São Paulo: Anita, 1994.

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movimento negro. Domingues afirma, inclusive, que a utilização política
do rap o posiciona como o elemento central de uma hipotética quarta etapa
do movimento negro brasileiro:

Trata-se de um movimento cultural inovador, o qual vem adquirindo


uma crescente dimensão nacional; é um movimento popular, que fala
a linguagem da periferia, rompendo com o discurso vanguardista
das entidades negras tradicionais. Além disso, o hip-hop expressa a
rebeldia da juventude afrodescendente, tendendo a modificar o perfil
dos ativistas do movimento negro; seus adeptos procuram resgatar a
autoestima do negro, com campanhas do tipo: Negro Sim!, Negro 100%,
bem como difundem o estilo sonoro rap, música cujas letras de protesto
combinam denúncia racial e social, costurando, assim, a aliança do
protagonismo negro com outros setores marginalizados da sociedade.36

O autor afirma, entretanto, que o Hip Hop “ainda é um movimento


desprovido de um programa político e ideológico mais geral de combate
ao racismo” e que, por isso, “não define explicitamente qual é o eixo
central da luta”.37 Nós compreendemos que o rap, enquanto manifestação
não só política, mas também artística, não está na posição de sustentar um
discurso inteiramente coerente, mas sim de funcionar como um caleidos-
cópio de sons e imagens que permitem deslocamentos e condensações
de sentidos. Em consonância com essa perspectiva, Santos entende que
a luta afro-brasileira contra o racismo se realiza no rap de forma difusa,
sem a necessidade de se organizar formalmente por meio de instituições.38
De acordo com o autor, essa característica não deslegitima o rap enquanto
uma nova forma de movimento social negro. Assim, embora o rap brasi-
leiro contemporâneo não seja um movimento político tradicional, com um
eixo central organizado, consideramos que é possível identificar as linhas
gerais de reivindicações e lutas adotadas pelos rappers, a serem inferidas
a partir das imagens e argumentos evocados por eles.

36 Domingues, “Movimento negro brasileiro”, pp. 119-120.


37 Domingues, “Movimento negro brasileiro”, p. 120.
38 Santos, “Os rappers e o ‘rap consciência’”.

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A investigação acadêmica a respeito do rap tem demonstrado sua
potência política enquanto local de debate sobre a questão racial brasileira,
através do resgate da religiosidade afro-brasileira,39 da produção de saberes
emancipatórios,40 da narrativa política das populações marginalizadas41 e
do incremento da consciência racial e da autoestima da população negra.42
Portanto, considera-se que o rap funciona como uma importante arena
de debate sobre a questão racial brasileira, apresentando contribuições
cruciais para a organização do movimento negro.

O discurso racial no rap brasileiro contemporâneo

Com o objetivo de compreender como o debate racial é abordado no rap


brasileiro contemporâneo, realizamos uma análise temática. A partir de um
conhecimento prévio sobre o panorama do rap brasileiro, selecionamos
canções de rap compostas por rappers negros e negras, privilegiando
aqueles que sistematicamente abordam a questão racial em suas produções.
Essa seleção não pretendeu ser exaustiva: procuramos selecionar artistas e
composições que fossem representativos do rap brasileiro e que tivessem
reconhecimento a nível nacional. Isso significa que os artistas analisados/as
se inserem de alguma forma no contexto de uma estratégia de resistência
cultural, como proposto por Hall e Castells.43 O recorte temporal adotado

39 Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva, “Foi conta para todo canto: as religiões
afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro”, Afro-Ásia, v. 34,
n. 34 (2006), pp. 189-235 ; Raquel Turetti Scotton e Sônia Regina Corrêa Lages,
“Ogum, a voz do gueto: o orixá do Rap e da rima nas letras de Criolo e Emicida”,
PLURA, v. 11, n. 1 (2020), pp. 169-186 .
40 Fernandes, “O rap nacional e o caso Djonga”.
41 Silva, “A política por trás do som”.
42 Joseli Aparecida Fernandes e Elaine de Souza Pinto Rodrigues, “Rap: instrumento de
libertação e reconhecimento da identidade negra”, Revista (Entre Parênteses), v. 1,
n. 7 (2018) ; Silva, “A política por trás do som”; Gabriel Delphino Fernandes de
Souza, Thiago Campos da Silva e Fernando Rodrigues da Silva, “Cultura popular
negra: decolonialidade no rap e em produções audiovisuais”, Tropos, v. 9, n. 2 (2020),
p. 1-24 ; Fernandes, “O rap nacional e o caso Djonga”.
43 Hall, Da diáspora; Castells, O poder da identidade.

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abrangeu canções divulgadas entre 2014 e 2021. Para esta análise,
consideramos apenas as letras das composições, desconsiderando os
elementos musicais intrínsecos, como timbre, melodia, harmonia e ritmo.
A seleção final contou com 49 composições, relacionadas no Quadro 1.

Quadro 1
Músicas analisadas
Intérprete(s) Álbum Ano Música
A Fantástica Fábrica
Eduardo Taddeo 2014 Eu Acredito
de Cadáveres
A Fantástica Fábrica Aprendendo com os
Eduardo Taddeo 2014
de Cadáveres Corpos Desfigurados
Thiago Elniño Fundamento 2015 Amigo Branco
Sobre Crianças,
Emicida Quadris, Pesadelos e 2015 Boa Esperança
Lições de Casa
Sobre Crianças,
Emicida, Marcelino
Quadris, Pesadelos e 2015 Trabalhadores do Brasil
Juvêncio Freire
Lições de Casa
Emicida,
Sobre Crianças,
Drik Barbosa, Amiri,
Quadris, Pesadelos e 2015 Mandume
Rico Dalasam, Muzzik e
Lições de Casa
Raphão Alaafin
ADL, Sant,
Favela Vive (Cypher)44 2016 Favela Vive
Raillow e Froid
ADL, BK,
Favela Vive 2 (Cypher) 2016 Favela Vive 2
Funkero e MV Bill
Filhos De Um Deus
Thiago Elniño 2016 Diáspora
Que Dança
Yzalú Minha Bossa É Treta 2016 Mulheres Negras
Thiago Elniño, part. Sant
Rotina do Pombo 2017 Pegadoginga
e KMKZ
Djonga Olho de Tigre (Single) 2017 Olho de Tigre

44 No contexto deste trabalho, entendemos álbuns como um conjunto de composições


lançadas juntas, que podem ou não estar relacionadas entre si, e singles, como músicas
lançadas individualmente, fora do contexto de um álbum. Cypher refere-se a uma
composição da qual participam vários artistas apresentando rimas inéditas e que,
em geral, é mais extensa do que um single.

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Quadro 1 - continuação

Intérprete(s) Álbum Ano Música


ADL, Choice, Djonga,
Menor da Chapa Favela Vive 3 (Cypher) 2018 Favela Vive 3
e Negra Li
Emicida Pantera Negra (Single) 2018 Pantera Negra
O Menino Que Queria
Djonga 2018 DE LÁ
Ser Deus
O Menino Que Queria
Djonga 2018 JUNHO DE 94
Ser Deus
O Menino Que Queria
Djonga 2018 CORRA
Ser Deus
BK, part. Baco Exu do
Gigantes 2018 Vivos
Blues e Luccas Carlo
BK Gigantes 2018 Julius
BK Gigantes 2018 Exóticos
BK Gigantes 2018 Titãs
Do Batuque ao Bass
GABZ 2018 Do Batuque ao Bass
(Single)
Thiago Elniño part. Pedras, Flechas, Lanças,
2019 Filhos do Sol
Tiago Mac Espadas e Espelhos
Thiago Elniño, Vibox,
Pedras, Flechas, Lanças,
Anarka, D’Ogum, 2019 Pretos Novos
Espadas e Espelhos
DenVin e Projeto Preto
Pedras, Flechas, Lanças,
Thiago Elniño 2019 BENÇA!
Espadas e Espelhos
Pedras, Flechas, Lanças, Atlântico (Calunga
Thiago Elniño e Natache 2019
Espadas e Espelhos Grande)
Emicida, part.
Larissa Luz e AmarElo 2019 Ismália
Fernanda Montenegro
Emicida, part.
Dona Onete, Jé Santiago AmarElo 2019 Eminência Parda
e Papillon
Emicida, part. Majur e
AmarElo 2019 AmarElo
Pabllo Vittar
Djonga Ladrão 2019 Falcão
Djonga Ladrão 2019 Bença
Djonga Ladrão 2019 Ladrão

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Quadro 1 - continuação

Intérprete(s) Álbum Ano Música


Djonga Ladrão 2019 Voz
Coruja Bc1 Psicodelic 2019 Fogo
Coruja Bc1 e
Psicodelic 2019 Ogum
Diomedes Chinaski
Coruja Bc1 Psicodelic 2019 Lágrimas de Odé
Coruja Bc1 e Zudizilla Psicodelic 2019 Um Acorde
Drik Barbosa Drik Barbosa 2019 Rosas
Drik Barbosa,
Drik Barbosa 2019 Herança
part. Anna Tréa
Drik Barbosa,
Drik Barbosa 2019 Renascer
part. Denise D’Paula
ADL, MC Cabelinho,
Kmila CDD, Orochi, Favela Vive 4 (Cypher) 2020 Favela Vive 4
Cesar MC, Edi Rock
Djonga, part. Cristal Histórias da Minha Área 2020 Deus Dará
Coruja Bc1 Antes do Álbum 2020 VIP
Eduardo Taddeo O Necrotério dos Vivos 2020 Mês de Maio
A Fantástica Fábrica
Eduardo Taddeo 2020 Depósito dos Rejeitados
de Cadáveres
BK O Líder em Movimento 2020 Movimento
Drik Barbosa,
Sobre Nós (Single) 2020 Sobre Nós
part. Rashid
Cristal Ambição (Single) 2020 Ambição
Djonga NU 2021 Nós

As músicas selecionadas foram escutadas a partir de serviços de


streaming – o principal meio de divulgação do rap contemporâneo – e trans-
critas na íntegra, resultando em 156 páginas de dados brutos. Na transcrição,
procuramos respeitar o estilo oral da recitação. As transcrições foram anali-
sadas a partir da análise temática reflexiva proposta por Virginia Braun e
Victoria Clarke.45 Essa estratégia analítica pressupõe um trabalho criativo e

45 Virginia Braun e Victoria Clarke, “Reflecting on Reflexive Thematic Analysis”,


Qualitative Research in Sport, Exercise and Health, v. 11, n. 4 (2019), pp. 589-597 .

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reflexivo dos pesquisadores, através do qual constrói-se sentidos ao longo
do material. Inicialmente, efetuamos leituras sucessivas dos dados brutos,
seguidas de uma codificação rigorosa, em que foram selecionados extratos
significativos relacionados aos aspectos raciais abordados nas canções.
Adotamos uma concepção ampla sobre a “questão racial”, entendida como
um arranjo complexo de fatores históricos, culturais, sociais, econômicos e
políticos que organizam as relações entre sujeitos racializados. Os extratos
selecionados foram organizados em grupos de acordo com seu sentido.
Os agrupamentos de extratos foram, então, trabalhados a fim de produ-
zirem temas bem delimitados, internamente coerentes e distintos entre
si. No contexto deste referencial metodológico, “temas” são entendidos
como “padrões de sentido compartilhado fundamentados por um conceito
organizador central”.46 Após a definição e nomeação dos temas, iniciou-se
o processo de redação, que consistiu na seleção de extratos vívidos e
representativos do material, que foram analisados em maior detalhe e
relacionados à bibliografia pertinente. Uma característica fundamental
deste processo de trabalho é seu caráter recursivo e flexível, de forma que
não houve uma sucessão rigorosa entre as diferentes etapas.47
Devido à natureza do corpus de dados e às particularidades de nosso
objetivo, optamos por centrar a análise no nível semântico ou explícito
do discurso, embora sempre atentos às suas implicações e pressupostos
subjacentes.48 Produzimos, assim, três temas, que serão apresentados
a seguir. No primeiro, analisaremos o recurso à religião afro-brasileira
como estratégia de resistência cultural; em seguida, serão abordados os
elementos históricos mencionados nas composições; por fim, nossa inves-
tigação se centrará no posicionamento do rap em relação aos aspectos
contemporâneos do racismo, da violência e da resistência negra.

46 Braun e Clarke, “Reflecting on Reflexive Thematic Analysis”, p. 589, tradução nossa.


47 Virginia Braun e Victoria Clarke, “Using Thematic Analysis in Psychology”,
Qualitative Research in Psychology, v. 3, n. 2 (2006), pp. 77-101 ; Braun e Clarke,
“Reflecting on Reflexive Thematic Analysis”.
48 Braun e Clarke, “Reflecting on Reflexive Thematic Analysis”; e “Using Thematic
Analysis in Psychology”.

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“Nunca foi sorte, sempre foi Exu”:
religião e resistência cultural negra

Neste tema, nosso objeto de análise será a utilização política de elementos


culturais negros através do rap. No discurso do rap, esse processo
compreende a revalorização do patrimônio cultural afro-diaspórico
e o posicionamento dos negros enquanto agentes de produção de
cultura. A revalorização do patrimônio cultural afro-brasileiro
centra-se, nas músicas analisadas, no resgate da religiosidade africana
e afro-brasileira, que funciona como dispositivo para a promoção de
autoestima e de consciência racial aos sujeitos negros.
De acordo com Bastide, os negros escravizados puderam trazer
ao Brasil apenas seus valores e crenças, em outras palavras, sua cultura.49
Por isso, a religiosidade e as divindades são elementos particularmente
importantes no estudo das culturas afro-brasileiras. O contato desses
elementos com o cristianismo dos colonizadores produziu, no pensa-
mento social brasileiro, uma imagem depreciativa das religiões africanas,
que foram interpretadas como representações pagãs, demoníacas,
inferiores e animalizadas. Tal processo legitimou a perseguição política
e cultural que culminou na criminalização dessas práticas religiosas no
código penal brasileiro de 1890.50
Esse arranjo legal só foi revertido em 1940, após a criação de um
novo código penal no contexto das reformas constitucionais getulistas.51
Nascimento relata a repressão policial e o franco vandalismo a que
eram submetidos os templos de religiões afro-brasileiras: “seus terreiros
(templos) localizados no interior das matas ou disfarçados nas encostas de
morros distantes, das frequentes invasões da polícia, tinham confiscados

49 Roger Bastide, As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das


interpretações de civilizações, São Paulo: Editora da USP, 1971.
50 Brasil, Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, Código Penal dos Estados Unidos
do Brazil .
51 Ana Cristina de Souza Mandarino, (Não) deu na primeira página: macumba, loucura
e criminalidade, São Cristóvão: Editora da UFS, 2007.

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esculturas rituais, objetos do culto, vestimentas litúrgicas, assim como
eram encarcerados sacerdotes, sacerdotisas e praticantes do culto”.52
No contemporâneo, a espiritualidade afro-brasileira ainda sofre perse-
guições fundadas no racismo e na intolerância religiosa. Nas músicas
analisadas, podemos observar o discurso de contestação a essa realidade:
“[Podem] atacar nossas religiões, acusar de feitiços / Menosprezar a nossa
contribuição na cultura brasileira / Mas não podem arrancar o orgulho de
nossa pele negra”.53 A música do rapper BK aponta no sentido de uma
positivação desse estereótipo: “E hoje nós que somos bruxos, feiticeiras”.54
As estratégias estatais de coerção e desvalorização dos traços
étnico-culturais negros culminaram na fragmentação da identidade negra
e na depreciação dessa ascendência racial, deixando marcas que são
percebidas no contemporâneo das relações raciais.55 O rapper Emicida
insere esse movimento de deslegitimação como um dos elementos do
aviltamento da população negra: “Primeiro sequestra eles / Rouba eles /
Mente sobre eles / Nega o Deus deles / Ofende, separa eles / Se algum
sonho ousar correr, cê pára ele”.56
Ainda assim, a cultura africana resistiu ao tráfico negreiro e à
escravidão, de forma a representar ela mesma a resistência. A partir
dessa perspectiva, é possível compreender que seus símbolos sejam
incorporados ao protesto enunciado no rap contemporâneo. Nas músicas
analisadas, as referências à religiosidade afro-brasileira são abundantes,
sobretudo através da menção aos orixás. É importante observar que não
se trata de uma mera menção à história da religião da população negra,
como quem aponta para uma peça de museu: a religião afro-brasileira é
uma religião viva e, como tal, adapta-se continuamente às necessidades

52 Nascimento, O genocídio do negro brasileiro, p. 103.


53 Eduardo Taddeo, “Mulheres Negras” in Yzalú, Minha Bossa é Treta: Raposo
Records, 2016.
54 Abebe Santos, Jonas Ribeiro Chagas, “Movimento” in BK, Líder em Movimento,
Rio de Janeiro: Pirâmide Perdida Records, 2020.
55 Moura, Sociologia do negro brasileiro.
56 Emicida, Nave, Renan Samam; part. Larissa Luz, Fernanda Montegro, “Ismália” in
Emicida, AmarELO, Rio de Janeiro, Sony Music Entertainment, 2019.

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e às demandas de seus seguidores.57 Neste trecho, Thiago Elniño
aborda a relação entre religiosidade e autoestima da população negra:
“Conversando com Exu sobre eternidade / Um dia ele disse que todo
menino preto é um deus, então entenda / Que autoestima é tipo fé,
uma prova é tipo uma oferenda”.58
Na contramão dos projetos racializados, o rap propõe a revalori-
zação da cultura negra e rompe com as barragens impostas pelo racismo
estrutural brasileiro: “Ontem eu servi um padê pra Exu / Pedi pro Orixá
abrir os meus caminhos / Que Omulu me dê saúde pra não ser / Um Dom
Quixote negro a enfrentar moinhos”;59 “Nossa fé é imensurável e trans-
forma dor em motivação”.60 Nos versos de Thiago Elniño, observa-se o
elemento religioso negro como organizador da força necessária para se
vencer os obstáculos impostos pelo racismo. Dessa maneira, o rap não só
serve como dispositivo de positivação dos traços culturais afro-brasileiros,
mas também relaciona a devoção aos orixás à motivação para superar as
contradições impostas pelo racismo estrutural.
É importante observar que os usos sociopolíticos das religiões
afro-brasileiras não são inerentemente revolucionários e nem sempre
correspondem a um movimento de resistência cultural. Como apontaram
Amaral e Silva, o projeto de unificação nacional através da constituição
de uma “cultura brasileira”, por volta dos anos 1930, incluiu a elevação
de alguns elementos culturais afro-brasileiros ao status de valores
nacionais.61 A política identitária do rap, que ganhou forma nos anos 1990
com os Racionais e que de certa forma permanece viva no rap contempo-
râneo, segue em uma direção contrária, expressando o descontentamento

57 Bastide, As religiões africanas no Brasil.


58 Thiago Elniño, Vibox, Anarka, D’Ogum, DenVin; part. Vibox, Anarka, D’Ogum,
DenVin, “Pretos Novos” in Thiago Elniño, Pedras, Flechas, Lanças, Espadas e
Espelhos, Rio de Janeiro: Abre Caminhos, 2019.
59 Thiago Elniño; part. Tiago Mac, “Filhos do Sol” in Pedras, Flechas, Lanças,
Espadas e Espelhos.
60 Thiago Elniño, Sant , KMKZ, “Pedagoginga” in Rotina do Pombo, [s.l.]: indepen-
dente, 2017.
61 Amaral e Silva, “Foi conta para todo canto”.

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dos grupos marginalizados face ao “sistema”.62 No rap contemporâneo,
a religiosidade afro-brasileira surge reafricanizada e dessincretizada,
o que, neste contexto, tem um sentido não só cultural e religioso,
mas também político e ideológico, uma vez que reafirma o lugar do negro
na sociedade brasileira.63 No excerto a seguir, são mencionados vários
orixás, evocados na qualidade de auxiliares nas múltiplas tarefas ligadas
ao projeto de emancipação negra:

Que Iansã nos faça gira da prosperidade / Pra cada moleque preto
nos canto dessa cidade / [….] / Certeiro como a flecha de Oxóssi,
eu vim pela posse / Do povo preto, de tudo aquilo que é seu / Sentiu
que o céu estremeceu / Trovão, machado de Xangô (a justiça chegou) /
E pra vocês, a lâmina de Ogum, e aos pretos, um por um / Conforto ao
colo de Oxum e respeito comum / E que busquemos a paz de Oxalá
pela rota de Iemanjá / Retorno ao que nos foi tomado / E que Nanã nos
receba de volta no solo sagrado.64

No trecho apresentado acima, logo após a menção a Xangô, o orixá


da justiça, há uma referência a Ogum, orixá associado à guerra. Bastide
informa que, na época da escravidão, os negros escravizados fizeram de
Ogum o patrono de sua vingança: “contra o sincretismo católico que o
identificava a São Jorge, a esse São Jorge louro como o sol, cujo cavalo
branco pisava um demônio preto, preservaram o Ogum de seus antepas-
sados, armado apenas com a faca dos assassinos”.65 O rapper parece
atualizar esse atributo do orixá quando invoca, contra seus algozes,
a lâmina de Ogum. Essa noção é expressa de forma particularmente
nítida no trecho seguinte, no qual são mencionados, novamente, Ogum
e Xangô, sugerindo que a justiça social só será conquistada através de
uma postura combativa:

62 Teperman, “O rap radical e a “nova classe média”.


63 Aislan Vieira de Melo, “Reafricanização e dessincretização do candomblé: movimentos
de um mesmo processo”, Anthropológicas, v. 19, n. 2 (2008), pp. 157-182 .
64 Thiago Elniño, “Diáspora” in Filhos de um Deus que Dança, [s.l.]: independente, 2016.
65 Bastide, As religiões africanas no Brasil, p. 222.

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Meu pai Ogum mandou chamar / Eu vim, eu vim de lá / Ele me ensinou
coisas sobre amor / E que na paz só se chega com a guerra / E que toda
bonança do trono do rei Xangô / Só vai conhecer quem for justo na Terra.66

Como aponta Bastide, as divindades africanas, ao serem trazidas


para o Brasil colonial, são imersas, assim como seus fiéis, em um contexto
radicalmente diferente daquele vivenciado em sua terra de origem. Assim,
de acordo com o autor, serão selecionadas as divindades mais aptas a
interceder em prol da causa dos negros. Nesse sentido, foram valorizados
particularmente Exu, Xangô, Iansã e Ogum, que sofreram adaptações em
seus atributos e passaram a se ocupar sobretudo da regência da ordem
social e do conflito racial que se instaura.67
A dessincretização e a valorização de elementos tradicionais
africanos e afro-brasileiros são características distintivas do rap brasileiro
contemporâneo.68 A título de comparação, os Racionais MC’s lançaram,
no álbum Sobrevivendo ao inferno (1997), uma versão da música “Jorge da
Capadócia”, que consiste em uma espécie de oração que pede proteção
contra os assédios dos inimigos. Um de seus versos diz “pois eu estou
vestido com as roupas e as armas de Jorge”. O rapper Coruja Bc1 faz uma
referência a essa música, porém, substituindo o santo católico pelo orixá
correspondente: “Tô protegido com as roupas e as armas de Ogum”.69
No trecho seguinte, temos outro interessante exemplo de releitura de
uma referência religiosa. É feita uma menção ao samba interpretado
por Leandro Sapucahy, intitulado “Nunca foi sorte, sempre foi Deus”.
Na música de Emicida, no entanto, Deus é substituído por Exu: “Só quem
driblou a morte pela morte saca / Que nunca foi sorte, sempre foi Exu”.70

66 Djonga, “De Lá” in O Menino que Queria Ser Deus, São Paulo: Ceia Ent. 2018
67 Bastide, As religiões africanas no Brasil.
68 Scotton e Lages, “Ogum, a voz do gueto”.
69 Coruja Bc1; part. Diomedes Chinaski, “Ogum” in Coruja Bc1, Psicodelic, [s.l.]:
independente, 2019.
70 Emicida, Jé Santiago, Nave, Papillon; part. Dona Onete, Jé Santiago, Papillon,
“Eminência Parda” in Emicida, AmarELO.

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De acordo com Prandi, Exu é o responsável pela comunicação entre os
humanos e os outros orixás, estando, portanto, sempre presente nos cultos.
Ainda segundo o autor, “na época dos primeiros contatos de missionários
cristãos com os iorubás na África, Exu foi grosseiramente identificado
pelos europeus com o diabo e ele carrega esse fardo até os dias de hoje”.71
É significativo que um orixá errônea e pejorativamente associado ao mal
pelos cristãos seja posto em paralelo a Deus.
Em síntese, compreende-se que aspectos da religiosidade
afro-brasileira têm sido consistentemente utilizados como ferramentas
simbólicas de resistência frente a ideologias racistas, de luta contra a
injustiça social e de fortalecimento da identidade racial negra. Assim,
o rap alinha-se à proposta de Fernandes, que entende que a construção de
uma sociedade efetivamente multirracial e democrática depende de que os
negros reformulem seus valores e atitudes em relação ao mundo cultural
em que vivemos, particularmente no que diz respeito às culturas ancestrais
afro-brasileiras e africanas.72 O resgate da religião afro-brasileira tem um
papel central na promoção do senso de autoestima e de identidade negra,
servindo inclusive como um dispositivo de transformação social.

“Busca sua raiz”: a (re)escrita de uma história negra

Neste tema, foram agrupados os extratos que tematizam a história e as raízes


da população negra. O processo histórico é entendido, neste contexto,
como um sistema aberto a reinterpretações e cujos efeitos podem ser
sentidos na sociedade contemporânea. A revisitação de temas histó-
ricos é, também, uma estratégia que objetiva a promoção da autoestima
e da consciência racial da população negra, de forma que as violências
da diáspora, da escravidão e do racismo são apresentadas a partir da
perspectiva de interpretes negros. O rap contemporâneo propõe, assim,

71 Reginaldo Prandi, Mitologia dos orixás, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 21.
72 Fernandes, Significado do protesto negro.

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a recolocação do negro na posição de sujeito da historicidade, capaz de
narrar sua própria história.
Na perspectiva apresentada pelas músicas analisadas, a história
dos negros não se inicia na escravidão, e sim na África. O tema da saudade
e da nostalgia não figura aqui senão na forma de um saudosismo de África,
ou seja, de uma época mítica anterior à escravidão, sugerindo que a
história dos negros no Brasil não é um objeto para a saudade. A música de
Thiago Elniño aponta nesse sentido ao afirmar que a África, e não o Brasil,
é o verdadeiro lar da população negra:

O mais próximo de casa que eu estive foi o mar / Boto os meus pés na
água e me lanço a pensar / Como é a vida aqui, como é a vida lá / Sinto
que eu não sou daqui, pra casa eu quero voltar / […] / Eu me sinto a um
oceano de casa / É como se faltasse um pedaço meu.73

A história da escravidão é retratada a partir do ponto de vista dos


negros escravizados. No trecho a seguir, o sofrimento do escravo é repre-
sentado pelo banzo: “É sobre o toque não mais machucar / E a dor do banzo
virar cicatriz”.74 Segundo Bastide, o banzo foi uma espécie de adoeci-
mento espiritual que acometeu os negros que não puderam se adaptar à
organização ecológica da colônia. Esses sujeitos, então, definhavam e
acabavam por morrer.75 No contexto do escravismo, o banzo adquire uma
significação colateral de resistência: se o escravo era considerado uma
posse do senhor, sua morte representava um prejuízo. Algumas estratégias
tinham uma conotação de resistência mais explícita, embora muitas vezes
representassem perdas enormes para os escravos. Foi o caso dos abortos
praticados por mulheres escravizadas, como representado no excerto a
seguir: “A colônia produziu muito mais que cativos / Fez heroínas que pra

73 Thiago Elniño; part. Natache, “Atlântico (Calunga Grande)” in Pedras, Flechas,


Lanças, Espadas e Espelhos.
74 Drik Barbosa, Damien Seth, Marissol Mwaba, Rashid; part. Rashid, “Sobre nós” in
Drik Barbosa, São Paulo: Laboratório Fantasma, 2020.
75 Bastide, As religiões africanas no Brasil.

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não gerar escravos matavam os filhos”.76 A vida reprodutiva dos escravos
era um dos campos de incidência do poder senhorial:

O branco estimulava a procriação de seus escravos: a mulher que tinha


posto no mundo 10 crianças era libertada, posteriormente o número
foi diminuído para 7. Mas sabemos que, não obstante essas vantagens,
a natalidade foi bastante baixa; era em parte devida às práticas anticon-
cepcionais e mesmo aos abortos voluntários, como forma de resistência.77

Na canção, o aborto é entendido como uma forma de heroísmo.


Além do aborto, os negros e negras escravizados adotaram uma série
de atos de resistência à barbárie a que eram submetidos, desde a ação
individual, como o suicídio e as fugas, até as mobilizações coletivas,
como as revoltas e o quilombismo.78
Segundo Fernandes, “a camada senhorial encarava o escravo
como uma coisa, um ‘fôlego vivo’, ou seja, um animal e uma mercado-
ria”.79 O trecho a seguir introduz a questão da vergonha e da humilhação
a que a situação de escravidão submetia os negros: “Pra superação,
tanta humilhação / Atravessar o oceano para trampar na sua plantação /
Café, algodão, cana, escravidão”.80 Veremos adiante que essa humilhação
produziu marcas profundas na subjetividade negra, que podem ser sentidas
ainda no contemporâneo. Ainda assim, as músicas analisadas afirmam uma
atitude de superação dessas marcas, sublinhando os aspectos positivos da
identidade negra: “Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes /
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes / É dar o troféu
pro nosso algoz e fazer nós sumir”.81 Ou seja, o crime fundamental contra
os negros seria relegá-los à posição subjetiva de vítimas.

76 Eduardo Taddeo, “Mulheres Negras”.


77 Bastide, As religiões africanas no Brasil, p. 98.
78 Moura, Dialética radical do Brasil negro.
79 Fernandes, Significado do protesto negro, p. 9.
80 Thiago Elniño, Sant, KMKZ, “Pedagoginga”.
81 Emicida, DJ Duh, Felipe Vassão; part. Majur, Pablo Vittar, “AmarELO” in Emicida,
AmarELO.

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O rapper Eduardo Taddeo sugere que o apagamento seletivo de
certos aspectos da história do negro no Brasil está diretamente relacionado
à situação contemporânea, ao afirmar que “Quando levantes e abolicio-
nistas não são estudados / Só sobra o ABC da Mauser82 pra ser decorado”.83
O apagamento dos negros enquanto atores sociais na história do Brasil
é denunciado também por Emicida: “Mas mano, sem identidade somos
objeto da História / Que endeusa ‘herói’ e forja, esconde os pretos na
história / Apropriação a eras, desses tá na repleto na história”.84
Apesar das atrocidades cometidas contra a população negra durante
os mais de trezentos anos de regime escravocrata, as músicas analisadas
preocupam-se em enfatizar a resiliência e a resistência dos negros face às
tentativas de aviltamento:

Dores e espinhos sem flores, desde os ancestrais / Horrores de senhores


que atrasaram nossa história / O legado é mais / Jamais mancharam
nossa memória / Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador /
Falharam na missão de me dar complexo de inferior / Não sou a subal-
terna que o senhorio crê que construiu / Meu lugar não é nos calvários
do Brasil / Fique de pé pelos que no mar foram jogados / Pelos corpos
que nos pelourinhos foram descarnados.85

Os acontecimentos do pós-abolição também são objeto de


crítica nas músicas analisadas. O fim do regime escravocrata não
significou imediatamente uma modificação da situação subjetiva dos
negros, muito menos do aspecto racista do pensamento social brasi-
leiro. Os ex-escravos foram privados das condições econômicas,

82 Mauser é uma fabricante de armas alemã.


83 Eduardo Taddeo, “Aprendendo com os Corpos Desfigurados” in A Fantástica Fábrica
de Cadáveres, [s.l.]: independente, 2014.
84 Adriana Souza, David Santos, Jefferson Silva, Leandro Oliveira, Philipe Cunha,
Rafael Tudesco, Rafael Sena; part. Amiri, Drik Barbosa, Muzzi, Raphão, Alaafin,
Rico Dalasam, “Mandume” in Emicida, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições
de Casa, São Paulo: Laboratório Fantasma, 2015.
85 Eduardo Taddeo, “Mulheres Negras”.

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sociais, culturais e morais para reivindicar o estatuto de cidadãos.86
Nas palavras de Thiago Elniño, “Alforriaram o nosso corpo,
mas deixaram as mentes na prisão”.87 Assim, entende-se que o rap
propõe uma articulação entre a emancipação política e cultural e a
libertação da subjetividade negra, o que seria o primeiro passo para a
transformação social.
Debruçando-se sobre o processo de transição do regime escra-
vista para a sociedade de classes, Fernandes pondera que a Lei Áurea
foi meramente um ato de romantismo político, pois não garantiu aos
ex-escravos condições mínimas de subsistência e de dignidade humana,
de forma que o trabalho livre foi entendido por eles como um simples
prolongamento das humilhações impostas pelo trabalho forçado.88
As músicas analisadas procuram contestar a importância dessa lei,
desmascarando o mito da benevolência da classe senhorial: “Se um dia
eu tiver que me alistar no tráfico do morro / É porque a Lei Áurea não
passa de um texto morto”.89 Através desse excerto, compreende-se que
a história reverbera e produz efeitos reais no cotidiano da população
negra, abrindo certas possibilidades e proibindo outras. Outro comen-
tário relacionado à negligência e à falta de políticas de indenização e
assistência aos negros libertos é feito por Eduardo Taddeo: “Escraviza
o boy por quatrocentos anos, depois liberta / Sem reparação financeira,
cultural, pedaço de terra / Pra ver se ele não acaba num raio / Dando
quarenta estocadas no agente penitenciário”.90
Há um explícito convite, nos raps analisados, para que os
negros se reapropriem de sua identidade racial, abandonando conceitos
depreciativos a respeito da população negra. No trecho a seguir,
esse chamado é feito pela via da busca das raízes: “Busca sua raiz

86 Fernandes, Significado do protesto negro.


87 Thiago Elniño, Sant, KMKZ, “Pedagoginga”.
88 Fernandes, Significado do protesto negro.
89 Eduardo Taddeo, “Mulheres Negras”.
90 Eduardo Taddeo, “Eu Acredito” in A Fantástica Fábrica de Cadáveres.

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(ou morra pela raiz) / Irmão, me diz qual é o receio / De saber de
onde tu veio / De saber quem você é / Irmão, fizeram tu achar feio /
Você vir de onde tu veio”.91
Reinterpretar a história do negro no pós-abolição implica inevi-
tavelmente posicionar-se em relação ao mito da democracia racial.
De acordo com Nascimento,

Devemos compreender “democracia racial” como significando a


metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão
óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado como
o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado
nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social,
psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país.92

A democracia racial significou para o Brasil o desenvolvimento de


uma ideologia racializada própria, que teve como efeitos o encobrimento
do racismo e o enfraquecimento da identidade racial negra. O projeto
político-demográfico da miscigenação, que tinha como mote a instauração
da igualdade democrática, na prática serviu para diferenciar, hierarquizar e
inferiorizar os sujeitos não brancos. Para fugir dessa realidade polarizada,
os sujeitos negros tentam encobrir sua condição racial, utilizando-se de
ideologias escamoteadoras e abrindo brechas para o não reconhecimento
racial.93 O verso de Coruja Bc1 evidencia esse processo de perda da
identidade: “E eu nunca me senti porra nenhuma normal / Ferida fruto de
um relacionamento birracial”.94
Nascimento aponta que o projeto de miscigenação apoia-se
diretamente na exploração sexual das mulheres negras, implicando a
ocultação dos crimes sexuais que ocorreram durante a história colonial
brasileira e o incremento da sexualização dos corpos negros no meio

91 Thiago Elniño, “Diáspora”.


92 Nascimento, O genocídio do negro brasileiro, p. 93.
93 Moura, Sociologia do negro brasileiro.
94 Coruja Bc1, “Lágrimas de Odé” in Psicodelic.

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social.95 Inúmeros indícios desse processo podem ser observados no
contemporâneo, do turismo sexual à hipersexualização dos corpos
negros em propagandas e em manifestações culturais. No carnaval,
por exemplo, a mulher negra é apresentada como “mulata” e valorizada
como um “produto de exportação”.96 O rap brasileiro contemporâneo
posiciona-se em relação a esses processos desenvolvidos e normalizados
da racialização brasileira em seus versos: “Não deixe que te façam
pensar que o nosso papel na pátria / É atrair gringo turista interpretando
mulata”.97 Os versos analisados também denunciam o lugar degradante
reservado aos corpos negros, frequentes vítimas de violências sexuais:

Bunda africana, esses peitos / Eu acabei com o preconceito / Fui pra


cama com um preto / Ele tem cara de mau / Ela tem sorriso branco /
Ela é da cor do pecado / Que me perdoem os santos / Mas olhe o
tamanho da roupa / Ela tava me tentando.98

Os versos acima retratam a forma sexualizada pela qual os


corpos negros são representados no meio social. Essa representação foi
construída meticulosamente ao longo da história do Brasil e estende seus
efeitos no contemporâneo das relações capitalistas. O rapper expõe com
crueza o discurso perverso da democracia racial: ao justapor sexo e raça,
o mito afirma que as relações sexuais interraciais resultam naturalmente
no fim do preconceito racial.
Os raps analisados parecem almejar uma modificação profunda
no pensamento social brasileiro. Em consonância com o movimento de
revisão histórica e de questionamento do papel de certos “heróis” da
colonização, BK convoca à reconsideração sobre as figuras históricas

95 Nascimento, O genocídio do negro brasileiro.


96 Lélia Gonzalez,“Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Ciências Sociais Hoje
(1984), pp. 223-243.
97 Eduardo Taddeo, “Mulheres Negras”.
98 Abebe Santos, Jonas Chagas, “Exóticos” in BK, Gigantes, Rio de Janeiro: Pirâmide
Perdida Records, 2018.

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que são homenageadas nos espaços públicos: “Vamo derrubar o nome
dessas ruas, dessas estátuas / Botar herói de verdade nessas praças”.99
Aqui, o discurso do rap parece novamente alinhado à agenda de reivindi-
cações dos movimentos sociais negros. Por exemplo, há um movimento
chamado “Galeria de Racistas”, com o objetivo de expor os monumentos
públicos brasileiros que homenageiam figuras históricas que apoiaram
a escravidão e outras práticas racistas.100 Há, também, o Projeto de Lei
nº 5.923/2019, que propõe a “proibição de homenagens a proprietários
de escravos, traficantes de escravos, pensadores que defenderam e
legitimaram a escravidão em monumentos públicos, estátuas, totens,
praças e bustos ou qualquer outro tipo de monumento”.101
Neste tema, foi possível compreender o compromisso do rap
contemporâneo com a dimensão histórica da situação racial brasileira.
A história é tomada não como um dado cristalizado do passado, mas como
um elemento vivo que produz efeitos no contemporâneo, sujeito a
releituras e reinterpretações. Observou-se, também, uma preocupação
com o desmascaramento do mito da democracia racial, que é uma
pauta permanente dos movimentos sociais negros.102 Como aponta
Nascimento, a democracia racial é uma característica transversal da
realidade sócio-político-cultural do Brasil.103 A análise das dimensões
históricas presentes no discurso do rap enfatiza a presença consistente
de estratégias de oposição a esse discurso. Se a história oficial propõe
uma versão pacífica do dilema racial, o discurso presente nas músicas
analisadas oferece uma versão conflitiva e pontuada pela resistência dos
negros ao aviltamento a que foram e são submetidos.

99 Abebe Santos, Jonas Ribeiro Chagas, “Movimento”.


100 Galeria de Racistas .
101 Talíria Petrone, Projeto de Lei nº 5.923/2019, Dispõe sobre a proibição de homenagens
por meio da utilização de expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal relacio-
nados à escravidão e/ou a pessoas notoriamente participantes do movimento eugenista
brasileiro por pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito público ou privado .
102 Domingues, “Movimento negro brasileiro”.
103 Nascimento, O genocídio do negro brasileiro.

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“Eu quero ser maior que essas muralhas
que eles construíram ao meu redor”:
segregação, violência e resistência negra na
sociedade contemporânea

60% dos jovens de periferia


Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Racionais MC’s – “Capítulo 4 versículo 3”

A realidade social da população negra no Brasil, retratada pelos Racionais


MC’s ao longo dos anos 1990, pouco se alterou até o contemporâneo:
as expressões do racismo relacionadas à discriminação, à coerção e à
violência são ainda sentidas por boa parte da população preta periférica.
Neste terceiro e último tema, analisaremos o discurso racial do rap a partir
de sua inserção na realidade social concreta, dando ênfase aos aspectos
socioespaciais e institucionais relacionados à questão racial brasileira.
Pode-se dizer que o rap tem uma vocação natural para a denúncia de
fenômenos sociais, uma vez que há um consenso, entre os rappers e seus
ouvintes, de que o rap trata da “realidade”, entendida como um arranjo
complexo de fatores raciais, socioespaciais, de gênero, entre outros.104
Os rappers, enquanto narradores de sua condição social e subjetiva,
estão na posição de tomar as vivências e experiências da população
negra como matéria prima para a composição das músicas: “Bebê eu
não canto rap, eu canto vida”.105
Enquanto elemento constituinte das relações sociais, o racismo
garante a reprodução das desigualdades e da discriminação racial,
expressando-se não só nas relações institucionais, mas também nas

104 Derek Pardue, “‘Writing in the Margins’: Brazilian Hip-Hop as an Educational


Project”, Anthropology & Education Quarterly, v. 35, n. 4 (2004), pp. 411-432 .
105 Abebe Santos, Felipe Hiltz, “Titãs” in BK, Gigantes.

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microrrelações sociais.106 Situações cotidianas de racismo são exaustiva-
mente narradas por diversos rappers investigados neste artigo, como no
excerto a seguir: “Ouvindo desde novo / ‘Cê já é preto!’ / Não sai desse
jeito / Se não eles te olha torto”.107 Episódios de discriminação e precon-
ceito não só demonstram a reprodução do racismo no contemporâneo, mas
também sua complexificação na sociedade brasileira. Hasenbalg, ao estudar
a integração precária dos negros e negras na estrutura social, observa o
imobilismo social desse grupo étnico ao longo da história, assim como
constata a existência de um código racial que subordina negros e negras
aos seus “lugares apropriados” na estrutura capitalista. O autor ressalta
que os projetos que ampliaram as desigualdades entre brancos e não
brancos são peças fundamentais do racismo contemporâneo, garantindo a
reprodução do “lugar do negro” na sociedade.108 Este arranjo é observado
também pelos rappers: “Chegar aqui de onde eu vim / É desafiar a lei da
gravidade / Pobre morre ou é preso nessa idade”.109
Pode-se considerar que um dos aspectos mais significativos
da violência contra os negros no Brasil é a alocação dessa população
nas periferias das grandes cidades, o que caracteriza um evidente
processo de segregação socioespacial. Soma-se a isso a proliferação de
favelas, cortiços e barracos, processo que se iniciou com a expansão da
urbanização e da indústria de produção após os anos 1930. As favelas
constituem-se como um dos principais cercamentos sociais de nosso
país, caracterizadas pelo acesso limitado à infraestrutura urbana e aos
serviços públicos básicos.110 Elas são o cenário preferencial das narra-
tivas do rap, sendo tematizadas frequentemente nas músicas analisadas.
O rapper Doug Now, no excerto a seguir, reafirma sua posição enquanto

106 Almeida, O que é racismo estrutural; Moura, Dialética radical do Brasil negro; Carlos
Hasenbalg, Discriminação e desigualdades no Brasil, 2ª ed., São Paulo: Humanitas, 2005.
107 Djonga, “Bença” in Ladrão, São Paulo: Ceia Ent. 2019.
108 Hasenbalg, Discriminação e desigualdades no Brasil.
109 Djonga, “Junho de 94” in O Menino Que Queria Ser Deus São Paulo.
110 Moura, Dialética radical do Brasil negro; Mário Theodoro, “A formação do mercado
de trabalho e a questão racial no Brasil” in As políticas públicas e a desigualdade
racial no Brasil: 120 anos após a abolição (Brasília: Ipea, 2008).

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narrador das “histórias do morro”, ou seja, da periferia e, por extensão, da
população negra marginalizada: “Mas parece que eu não morro / Parece
que pouparam minha vida pra contar história de morro / De rua e de gorro
à noite / Madruga e seus açoites”.111
A coerção estrutural sobre a população negra é legitimada pela
ausência de medidas reparatórias no pós-abolição e se soma à implemen-
tação de projetos de violência e criminalização da pobreza, às políticas de
genocídio e ao encobrimento das desigualdades raciais.112 Nina Rodrigues,
ao escrever diversas obras sobre o “problema do negro” no Brasil no final
do século XIX, ajuda a reforçar no pensamento social diversos essencia-
lismos sobre degeneração racial, raça e criminalidade, conduzindo para o
campo da biologia e da psicologia um problema eminentemente social:
“Estas pessoas estão constantemente envolvidas com assaltos à mão
armada onde se revela todos os sentimentos e instintos bárbaros ainda mal
contidos de seus ancestrais”.113
Na realidade brasileira contemporânea, o movimento de crimi-
nalização dos negros e a violência institucional praticada nas periferias
das cidades revelam que o pensamento social e as práticas de coerção
relacionadas a esse grupo seguem essencialmente as mesmas. Nas músicas
analisadas, os rappers descrevem minuciosamente o cotidiano violento
e injusto da favela, como no excerto a seguir: “Favela ainda vive,
mediante ao crime / Onde se nasce menor sem pai / Se for morto aonde
cai? Se crescer pra onde vai?”.114 Nesses versos, é narrada a dificuldade
de se construir alternativas diante da violenta repressão da pobreza e ao
julgamento de que toda favela é criminosa, que legitima as práticas de

111 Djonga, “Voz” in Djonga, Chris MC, Coyote Beatz, Dougnow, Ladrão, São Paulo:
Ceia Ent. 2019
112 Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes; Sérgio Adorno, “Exclusão
socioeconômica e violência urbana”, Sociologias, n. 8 (2002), pp. 84-135 ;
Nascimento, O genocídio do negro brasileiro; Moura, Escravismo, colonialismo,
imperialismo e racismo.
113 Raymundo Nina Rodrigues, Epidémie de folie religieuse au Brésil, Paris: L.
Maretheux, 1898.
114 DK, Lord, “Favela Vive” in ADL, Sant, Raillow e Froid, Favela Vive, Rio de Janeiro:
Esfinge Records, 2016.

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violência institucional. As questões postas pelo rapper apontam para uma
quase impossível alternativa de saída desta situação:

Vai além da visão, sair de casa e bater de frente com o caveirão /


Com um .762 apontado na minha cabeça / O cana me revistando e
cheirando minha mão, não / Papo de realidade, vários não chegaram na
minha idade / Não dá pra acreditar que vai mudar / Se trocar o nome de
favela pra comunidade.115

A condição de violentas revistas, a desumanização das


operações policiais nas periferias e as chacinas que ocorrem nas
favelas mostram o lado obscuro da intervenção policial nos espaços
reservados a negros e negras. Emicida apresenta de maneira muito
precisa a natureza das intervenções policiais violentas, estabelecendo
um paralelo entre a favela e as senzalas: “E os camburão,116 o que
são? / Negreiros a retraficar / Favela ainda é senzala, Jão / Bomba
relógio prestes a estourar”.117 Assim, o rapper sugere que a situação
do negro no Brasil permaneceu estruturalmente a mesma ao longo dos
séculos. Além do comentário socioespacial sobre a condição de vida
dos negros no contemporâneo, esse excerto introduz, com a menção ao
camburão, a questão da institucionalização da população negra através
de seu encarceramento sistemático e desproporcional. Em um sentido
mais amplo, apresenta-se o tema do racismo e da violência, praticada
sobretudo pelo Estado e por seus representantes. A violência e o medo
por ela suscitado são retratados no extrato a seguir:

80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo / Quem disparou
usava farda (mais uma vez) / Quem te acusou nem lá num tava

115 ADL, BK, Funkero, MV Bill, “Favela Vive 2” in Favela Vive 2, Rio de Janeiro:
Esfinge Records, 2016.
116 Camburão é um carro de polícia blindado, usado para transportar presos, que se tornou
um símbolo das incursões policiais violentas nas periferias.
117 Leandro Roque de Oliveira, Vinicius Leonard Moreira, “Boa Esperança” in Emicida,
Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa.

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(bando de espírito de porco) / Por que um corpo preto morto / É tipo
os hits das parada / Todo mundo vê mas essa porra não diz nada /
[…] / Um primeiro salário / Duas fardas policiais / Três no banco
traseiro da cor dos quatro Racionais / Cinco vida interrompida /
Moleques de ouro e bronze / Tiros, e tiros, e tiros / O menino levou
cento e onze.118

Aqui, o rapper também alude ao episódio que ficou conhecido


como “Chacina de Costa Barros”, no qual cinco jovens negros foram assas-
sinados por policiais militares na Zona Norte do Rio de Janeiro em 2015.
As composições analisadas denunciam a existência de uma guerra que
tem como objetivo a aniquilação da população negra: “Mas num enredo
genocida / A guerra vem como herança / […] / A guerra tem como alvo
pardos e retintos / Pro meu povo ser extinto”.119 A temática da guerra é
elaborada em diversas músicas analisadas, explicitando a dura realidade
vivida pelas comunidades não brancas:

Deus, nunca vi finalidade dessa guerra burra que rola no morro /


A nossa revolta você só vai entender / Quando uma bala perdida
simplesmente achar você / Me perguntaram um dia o quê que eu acho
da UPP120 / A maior covardia que o governo foi fazer/ Só me diz pra
quê? Melhorou o quê? / Mudou o quê? Quero saber/ Tem alguém
aê pra me responder? Será que ninguém vê? / Pelo amor de Deus,
mais quantos vão morrer?.121

No verso acima, o rapper endereça inúmeras perguntas ao inter-


locutor, ao relatar o clima de violência contra a população periférica.
Trata-se, segundo ele, de um cenário de guerra, caracterizado por balas

118 Emicida, Nave, Renan Samam, “Ismália”.


119 Coruja Bc1, “Lágrimas de Odé”.
120 A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) é uma política implementada pelo estado do
Rio de Janeiro, aplicada desde 2008, com o objetivo de combater o crime organizado
e o tráfico de drogas nas favelas.
121 MC Cabelinho, Cesar Mc, Dk 47, Edi Rock, Kmila Cdd, Lord, Orochi, “Favela
Vive 4” in ADL, MC Cabelinho, Kmila CDD, Orochi, Cesar MC, Edi Rock, Favela
vive 4, Rio de Janeiro: Além da Loucura, 2020.

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perdidas, Unidades de Polícia Pacificadora e um número crescente
de mortos. Mbembe sinaliza a existência de zonas de territorialização
marcadas pela violência, pela classificação e hierarquização de pessoas
e pelo uso deliberado de armas letais. Podemos chamar esses territórios
de zonas de guerra, onde a intervenção do Estado organiza quem vive
e quem morre, reproduzindo a biopolítica do poder.122 Magalhães,
ao analisar a distribuição da violência em periferias urbanas do Rio de
Janeiro, afirma que “a guerra se transformou no modo mesmo de governar
certas populações”.123 O controle da violência, da letalidade e do clima de
terror é observado em diversas letras do rap contemporâneo.

Nos empurram todo dia goela a abaixo / Ódio, medo, desespero e


incentivo à violência / Dizem que somos bandidos / Mas quem mata
usa farda e exala despreparo e truculência / Cada beco da cidade guarda
um pouco da guerra / Com projéteis que acerta, com projéteis que erra /
Quem é o inimigo? Quem é você? / Nessa guerra sem motivos e sem
vencedor / Quem é o inimigo? Quem é você? / A bala perdida acha o
outro sofredor / […] / Nós já nascemos preparados pra morrer […] PM
aplica pena de morte com aval do Estado / Quem tá certo? Quem tá
errado? / Só sei que o alvejado é sempre o favelado / Quantos irmãos
tombaram cedo demais.124

No excerto acima, o agente que organiza os processos de violência


e garante a manutenção do estado de guerra é representado pela imagem
da polícia. De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública,
foram registradas 6.375 mortes por intervenções policiais em 2019,
das quais 79% foram de pessoas pretas.125 Os números revelam a
permanente guerra contra estratos específicos da população nacional.
As operações realizadas a mando do Estado revelam a estratégia adotada da

122 Achille Mbembe, “Necropolítica”, Arte & Ensaios, n. 32 (2016), pp. 123-151 .
123 Alexandre Magalhães, “A guerra como modo de governo em favelas do Rio de
Janeiro”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 106 (2021), p. 8 .
124 ADL, BK, Funkero, MV Bill, “Favela Vive 2” in Favela Vive 2.
125 Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Anuário Brasileiro De Segurança Pública,
ano 14, 2020 .

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criminalização da pobreza e do genocídio do negro brasileiro, explicitando
claramente quem morre e quem mata.126
Essa política de violência e morte está alicerçada nas construções
racializadas do racismo estrutural de nossa sociedade.127 A política do medo
organiza quem pode morrer; voltando aos versos do rapper Funkeiro, “somos
o monstro que vocês criaram, seu pesadelo”, evidencia-se a mobilização das
construções ideológicas que interpelam os corpos negros periféricos desde
o colonialismo. Trata-se da criação de um não-corpo destinado aos códigos
bestiais, à desumanização e à reprodução da política do medo com a crimi-
nalização inerente dessas pessoas. Os códigos amplamente difundidos no
pensamento social criam a base dessa estrutura racializada e o substrato da
violência institucional, o que Mbembe chama de industrialização da morte
e de necropolítica promovida pelo capital, que garante o uso indiscriminado
da força, do terror, do medo, da violência e da morte como formas legitima-
doras dos ordenamentos Estatais nas zonas de guerra.128
Não apenas pessoas anônimas são vítimas dessa política de extermínio,
já que lideranças do movimento de resistência negro também figuram entre os
mortos: “Malcolm X, eu não tô bem com isso / Mataram Marielle e ninguém
sabe o motivo / Na real, todos sabemos o motivo / É o mesmo de nenhum
dos meus heróis continuar vivo”.129 Nesse extrato, BK denuncia a sistemática
perseguição e execução de líderes negros que se levantaram contra a opressão
racial, aludindo em particular a Marielle Franco, socióloga e política brasi-
leira assassinada em 2018 em circunstâncias que até o momento não foram
elucidadas. O rapper também faz referência a Malcolm X, liderança negra
dos Estados Unidos, assassinado enquanto proferia um discurso em 1965.
A menção a Malcolm X sugere que a luta antirracista é global e que o protesto
negro brasileiro se insere em um contexto de luta internacional.

126 Adorno, “Exclusão socioeconômica e violência urbana”; Nascimento, O genocídio do


negro brasileiro.
127 Almeida, O que é racismo estrutural.
128 Mbembe, “Necropolítica”.
129 Abebe Santos, Jonas Ribeiro Chagas, “Movimento”.

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Ao mesmo tempo em que capturam elementos do concreto,
referindo-se ao estado de guerra e à constante ameaça do direito à vida,
os versos desenvolvidos pelos rappers evocam possibilidades de superação
desse cenário. Nos extratos a seguir, a resistência negra é compreendida
como uma atitude coletiva e organizada: “Combinaram de nos matar /
Combinamos de ficar vivos”;130 “Mano preto, entenda que estamos em guerra /
E essa porra, mano, um dia se encerra quando nosso povo se organizar”.131
Dentre as estratégias de resistência apontadas nas canções,
figura ostensivamente a utilização do próprio rap, que é tomado refle-
xivamente como objeto de análise nas letras. Através do rap, opera-se
a revalorização e ressignificação da identidade racial, promovendo o
incremento da autoestima e do senso de pertencimento entre a população
negra.132 Parece haver um acordo implícito de que o rap não é meramente
um estilo musical, mas um projeto político. Thiago Elniño compreende esse
projeto como uma “missão”, que tem um objetivo mais ou menos explícito:
“Por isso eu faço mais que som / Trato como missão o que chamam
de dom / Espalhando a ideia de que todo preto / Deve ter um lugar para
chamar de seu”.133 Ou seja, o que está em jogo é a afirmação de que os
negros devem ter um lugar próprio no sistema social e cultural do Brasil,
ao contrário do que afirmam as políticas de embranquecimento e de silen-
ciamento da população negra. No sentido de considerar os rappers como
agentes da transformação social e subjetiva, Emicida faz uma convocação:
“Vê na rua o que as rima fizeram”.134 Em algumas passagens, a escrita e
a música ocupam simbolicamente a função de armas, como em Djonga:
“Os irmão me ofereceram arma / Ofereci um fone”;135 e Coruja Bc1: “Minha
bic vale um tiro”.136 Scotton e Lages, ao analisarem composições dos rappers

130 Djonga, “Ladrão”.


131 Thiago Elniño, Vibox, Anarka, D’Ogum, DenVin, “Pretos Novos”.
132 Souza, Silva e Silva, “Cultura popular negra”; Martins, “Hip hop, arte e cultura política”.
133 Thiago Elniño, “Atlântico (Calunga Grande)”.
134 Emicida, Jé Santiago, Nave, Papillon, “Eminência Parda”.
135 Djonga, “Junho de 94”.
136 Coruja Bc1, “Fogo” In Psicodelic.

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Emicida e Criolo, concluíram que, em suas músicas, a voz e a música figuram
como as armas à disposição dos negros para a transformação social.137
O rap surge, mais explicitamente, enquanto uma possibilidade de salvação:
“A riqueza dava medo / Aí veio o Hip Hop e salvou o negro”.138
Os versos de Djonga também discutem a questão do sentindo de
ser negro, dentro da valorização de sua ascendência e do orgulho racial,
forjando um novo sujeito que supera os códigos racializados de nossa
sociedade: “Deixa eu devolver o orgulho do gueto / E dar outro sentido
pra frase ‘tinha que ser preto”.139 Da crítica social à emancipação, o rap
contemporâneo participa da formação de sujeitos que foram interpelados
pelo racismo e pelas desigualdades, revelando o árduo trabalho de superar
os cercamentos e limites impostos pela história social do Brasil: “Eu quero
ser maior que essas muralhas / Que eles construíram ao meu redor”.140
O rap e a cultura Hip Hop no contemporâneo da realidade social
brasileira não se inserem apenas como simples relatos das contradições
desenvolvidas pelo racismo, mas ajudam no processo de reconhecimento
de uma identidade perdida e atacada, na reprodução do conhecimento
social, no processo que incentiva mudanças internas na sociedade. Portanto,
inscrevem-se como ações contra-hegemônicas, tal como entendidas
por Gramsci. De acordo com o autor, trata-se de ações culturais inseridas
na base social, capazes de potencializar práticas diretamente relacionadas
aos interesses políticos contrários à hegemonia social. É uma nova forma
política que se manifesta a partir da reprodução de meios culturais que
tenham como base de seu repertório a denúncia das mazelas e o anseio por
reverter as condições de marginalização, exclusão e violência impostas
pelas normativas sociais.141

137 Scotton e Lages, “Ogum, a voz do gueto”.


138 Abebe Santos, Diogo Moncorvo, Vinicius Moreira; part. Baco Exu do Blues,
Luccas Carlo, “Vivos” in BK, Gigantes.
139 Djonga, “Junho de 94”.
140 Abebe Santos, Felipe Hiltz, “Titãs”.
141 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere: introdução ao estudo da filosofia. A filosofia
de Benedetto Croce, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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Neste tema, foi possível compreender a interação entre o rap e
a realidade concreta na qual ele se insere, enfatizando o papel da favela
como espaço de vida da população negra. Nas músicas analisadas,
o Estado é retratado como um importante agente de opressão e violência
racial, operacionalizadas através da ação, como no caso das intervenções
policiais violentas; e também através da omissão, que pode ser observada
na ausência de políticas de reparação que garantam condições dignas de
vida à população periférica. Na medida em que o racismo se constitui
enquanto um dado estrutural de nossa sociedade, suas manifestações
extrapolam o campo institucional, podendo ser observadas também no
cotidiano da população negra. Diante dessa realidade, o rap adota uma
postura combativa, que tem como ferramentas de luta o fortalecimento
da identidade racial negra e a promoção do senso de pertencimento a
um grupo étnico que tem demandas mais ou menos unificadas, além de
expressar a potencialidade do rap enquanto ferramenta de resistência da
população negra e periférica.

Conclusão

O objetivo deste trabalho foi investigar como a questão racial é abordada


no rap brasileiro contemporâneo. A partir da análise de músicas repre-
sentativas desse gênero, foi possível compreender que o debate racial
é abordado de maneira complexa, a partir de suas dimensões culturais,
históricas e sociais. No campo cultural, as músicas analisadas parecem
privilegiar a utilização da religiosidade enquanto elemento de resistência
negra e promoção de consciência racial. Esse objetivo é operacionalizado
através da resistência contra a depreciação da cultura negra e de um processo
ativo de dessincretização dos elementos religiosos afro-brasileiros, o que
os posiciona enquanto componentes legítimos da cultura brasileira.
No campo histórico, percebe-se uma tentativa de subverter a importância do
período escravocrata na história dos negros no Brasil. No discurso do rap,

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a denúncia do sofrimento e das violências perpetradas contra os escravos
dividem espaço com os atos heroicos e os movimentos de resistência
protagonizados por eles. Pontua-se a necessidade de uma revisão crítica
da importância da Lei Áurea e do mito da democracia racial, bem como
uma crítica à miscigenação e à hipersexualização dos corpos negros e uma
revisão do papel dos “heróis da colonização”. Finalmente, os elementos
discursivos que aludem à situação do negro no contemporâneo apresentam
denúncias e críticas contundentes ao racismo, à segregação socioespacial
e à violência institucional. A polícia e o Estado surgem como principais
agentes dessa violência. Aqui, novamente, a denúncia da injustiça social
é entrecortada pelas possibilidades de superação que se abrem aos negros,
dando destaque à função do próprio rap como estratégia de resistência.
A partir da análise empreendida, fica evidente a articulação entre o
discurso dos rappers e os discursos formulados por outras frentes de luta,
como os intelectuais negros e os movimentos sociais negros. Tal articulação
sugere que o debate racial, apesar de ser multifacetado e heterogêneo,
tem algumas pautas e estratégias transversais. Outro ponto a ser observado
é que o rap não apresenta meramente uma agenda de reivindicações e luta:
ele efetivamente põe em ato tal luta. Em outras palavras o rap apresenta-se
como um modelo e uma demonstração dos caminhos possível para o
movimento social negro. Assim, o rap se consolida como uma estratégia de
resistência cultural e de contra-hegemonia, alicerçado pela compreensão dos
determinantes históricos, culturais, sociais e políticos que interpelam o negro
no seio da estrutura capitalista. O rap funciona, ainda, como catalisador das
demandas e dos anseios da população negra brasileira. Sua potencialidade
deriva de sua situação enquanto um gênero musical de massas, mas que
mantém uma postura combativa e propositiva a respeito da situação de
aviltamento em que a população negra se encontra no Brasil.
Foi possível compreender que o discurso racial articulado pelo rap
e por seus narradores não se resume à denúncia do preconceito racial,
da depreciação do patrimônio cultural negro, da discriminação racial e
dos limites impostos pela desigualdade. É possível reconhecer que,

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em paralelo a essa denúncia, organiza-se um nítido movimento de resis-
tência à condição de subalternização social. Essa resistência se materializa
principalmente através do reconhecimento racial, da promoção da
autoestima negra e do reencontro com a cultura e com a história negra.
O discurso do rap parece estar comprometido com a promoção de uma
imagem positiva e combativa da população negra: para além da simples
denúncia do racismo, os rappers propõem que os negros se reconheçam
como agentes da luta antirracista.

Recebido em 23 jun. 2021


Aprovado em 18 out. 2021

doi: 10.9771/aa.v0i65.45173

Afro-Ásia, n. 65 (2022), pp. 607-647 | 646


Desde seu surgimento e ao longo de sua penetração no contexto racializado
brasileiro, o rap mantém-se como uma estratégia de resistência cultural negra.
O objetivo deste trabalho é analisar como o rap articula dimensões culturais,
históricas e sociais do debate racial brasileiro em suas composições. Para tanto,
propomos um debate teórico sobre a constituição do rap como instrumento de
crítica e as especificidades da questão racial brasileira. Em seguida, apresentamos
uma análise temática reflexiva de 49 músicas de rap. A partir desta análise,
discute-se a utilização da religiosidade afro-brasileira como um dispositivo da
resistência cultural; a releitura da história do Brasil a partir do ponto de vista
da população negra; e a crítica da realidade racial contemporânea, na qual são
apontadas estratégias de resistência. Concluímos que o rap se constitui como
uma importante ferramenta contra-hegemônica, centrando-se na valorização da
cultura negra e na promoção da autoestima e da consciência racial.
Raça | Política | Rap | Resistência negra | Cultura afro-brasileira

“THEY AGREED TO KILL US, WE AGREED TO STAY ALIVE”:


RACISM AND BLACK RESISTANCE IN CONTEMPORARY BRAZILIAN RAP
Since its emergence and throughout the expansion of its popularity in the
Brazilian racialized context, rap has been a strategy of black cultural resistance.
This article analyzes how rap articulates cultural, historical, and social dimen-
sions of the Brazilian racial debate in its compositions. Therefore, we propose
a theoretical debate on the constitution of rap as an instrument of criticism and
the specificities of the Brazilian racial issue. We then present a reflexive thematic
analysis of 49 rap songs. From this analysis, we discuss the use of Afro-Brazilian
religion as a mechanism for cultural resistance; a re-reading of the history of
Brazil from a black perspective; and a critique of contemporary racial reality
and the possible strategies for resistance. We conclude that rap is an important
counter-hegemonic tool that encourages the appreciation of black culture and
promotes self-esteem and racial awareness.
Race | Politics | Rap | Black resistance | Afro-Brazilian culture

Afro-Ásia, n. 65 (2022), pp. 607-647 | 647

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