Deleuze: CONCLUSÃO Espinosa - EXPRESSIONISMO em Filosofia

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CONCLUSO:

Teoria da expresso em Leibniz e Spinoza


O expressionismo em filosofia
A fora de uma filosofia
medida pelos conceitos que ela criou,
ou cujo sentido ela renova,
e que impem uma nova maneira
de dispor as coisas e as aes.
Pode acontecer que esses conceitos
sejam evocados pelos tempos,
carregados de um sentido coletivo
de acordo com as exigncias de uma poca,
e sejam descobertos, criados ou recriados
por vrios autores ao mesmo tempo.
o que acontece com Espinosa e Leibniz,
e o conceito de expresso.
Esse conceito toma para si
a fora de uma reao anticartesiana
conduzida por esses dois autores,
de dois pontos de vista muito diferentes.
Ele implica uma redescoberta
da natureza e de sua potncia,
uma recriao da lgica e da ontologia:
um novo materialismo
e um novo formalismo.
O conceito de expresso
se aplica ao Ser determinado como Deus,
na medida em que Deus se exprime no mundo.
Ele se aplica s ideias
determinadas como verdadeiras,
na medida em que as ideias verdadeiras
exprimem Deus e o mundo
Ele se aplica, finalmente, aos indivduos
determinados como essncias singulares,
na medida em que as essncias singulares
se exprimem nas ideias.

De maneira que as trs determinaes fundamentais:


ser,
conhecer,
agir ou produzir,
so medidas e sistematizadas sob esse conceito.
Ser, conhecer, agir
so as espcies da expresso.
a idade da razo suficiente:
as trs ramificaes da razo suficiente,
ratio essendi,
ratio cognoscendi,
ratio fiendi ou agendi,
tm sua raiz comum na expresso.
O conceito de expresso, entretanto,
da maneira como redescoberto
por Espinosa e Leibniz, no novo:
ele j tem uma longa histria filosfica.
Um histria, porm, um pouco oculta,
um pouco maldita.
Na verdade, tentamos mostrar como o tema da expresso
j podia ser percebido nas duas grandes tradies teolgicas
da emanao
e da criao.
Ele no intervm como sendo um terceiro conceito
que rivaliza do exterior com os outros dois.
como se ele interviesse
num determinado momento do seu desenvolvimento,
podendo sempre desvi-los, confisc-los
em benefcio prprio.
Ou seja, um conceito propriamente filosfico,
de contedo imanente,
que se intromete nos conceitos transcendentes
de uma teologia emanativa ou criacionista.
Traz com ele o perigo propriamente filosfico:
o pantesmo ou a imanncia
imanncia da expresso naquilo que se exprime,
e daquilo que exprimido na expresso.

Ele tem a pretenso


de penetrar no mais profundo,
nos arcanos,
para usar uma palavra da qual Leibniz gostava.
Ele d novamente natureza
uma espessura que lhe prpria
e, ao mesmo tempo,
torna o homem capaz de penetrar nessa espessura.
Torna o homem adequado a Deus,
e detentor de uma nova lgica:
autmato espiritual,
igual combinatria do mundo.
Nascido nas tradies
da emanao
e da criao,
ele faz delas duas inimigas,
porque contesta
tanto a transcendncia
de um Uno superior ao ser
quanto a transcendncia
de um Ser superior criao.
Todo conceito possui em si, virtualmente,
um aparelho metafrico.
O aparelho metafrico da expresso
o espelho
e o germe1 .
1

A expresso
como ratio essendi,
se reflete no espelho
como ratio cognoscendi
e se reproduz no germe
como ratio fiendi.

1 Sobre esses dois temas do espelho e do germe (ou do ramo), em relao essencial com a noo de expresso
cf., por exemplo, o processo de Eckhart.
Na verdade, esses temas fazem parte das acusaes principais: cf. dition critique des pices relatives au procs
dEckhart, por G. Thry, Archives dhistoire doctrinale et littraire du Moyen ge (Vrin d., 1926-1927)

Mas eis que o espelho


parece absorver tanto o ser que nele se reflete
quanto o ser que olha a imagem.
O germe ou o ramo
parece absorver tanto a rvore da qual ele provm,
quanto a rvore que provm dele.
Que estranha existncia essa,
assim como ela tomada no espelho,
implicada, envolvida no germe
resumindo, aquilo que exprimido,
entidade da qual mal podemos dizer que existe?
Vimos que era como se o conceito de expresso
tivesse duas origens:
uma ontolgica,
que diz respeito expresso de Deus,
que nasce protegida pelas tradies
da emanao
e da criao,
mas que as contesta profundamente;
a outra, lgica,
que diz respeito aquilo que exprimido nas proposies,
que nasce protegida pela lgica aristotlica,
mas que a contesta e subverte.
As duas esto reunidas no problema
dos Nomes divinos, do Logos ou do Verbo
Se Leibniz e Espinosa,
no sculo XVII,
um a partir de uma tradio crist,
o outro a partir de uma tradio judaica,
reencontram o conceito de expresso
e lhe do nova luz,
isso se d, evidentemente,
num contexto que aquele do tempo deles
e em funo de problemas dos seus respectivos sistemas.

Tentaremos primeiro
destacar o que existe de comum nos dois sistemas,
e por que razes eles reinventam o conceito de expresso
O que eles dois criticam em Descartes, concretamente,
o fato de este ter feito uma filosofia
demasiado rpida
ou demasiado fcil.
Em todos os domnios,
Descartes anda to rpido
que deixa escapar a razo suficiente,
a essncia ou verdadeira natureza:
fica sempre apenas no relativo
Primeiramente, quanto a Deus:
a prova ontolgica de Descartes
repousa sobre o infinitamente perfeito,
e se apressa em tirar uma concluso;
mas o infinitamente perfeito um prprio,
totalmente insuficiente para mostrar
qual a natureza de Deus
e como essa natureza possvel.
Da mesma maneira,
as provas a posteriori de Descartes
repousam sobre a considerao
das quantidades de realidade dadas,
e no alcanam um princpio dinmico
do qual dependem.
Em seguida, quanto s ideias:
Descartes descobre os critrios do claro e do distinto;
mas o claro-e-distinto ainda um prprio,
uma determinao extrnseca da ideia
que no nos informa
sobre a natureza
e a possibilidade
da coisa em ideia,
nem do pensamento como tal.

Descartes se restringe
ao contedo representativo da ideia
e forma da conscincia psicolgica que a pensa:
ele perde assim
o verdadeiro contedo imanente da ideia,
assim como
a verdadeira forma lgica,
e a unidade dos dois (o autmato espiritual).
Ele nos diz que o verdadeiro
est presente na ideia clara e distinta,
mas o que que est presente
na ideia verdadeira?
Podemos ver facilmente at que ponto
essa segunda corrente crtica
se rene primeira:
pois se permanecermos no claro-e-distinto,
s poderemos medir as ideias entre elas
e compar-las s coisas
atravs da considerao
das quantidades de realidade.
Como s dispomos
de uma caracterstica extrnseca da ideia,
s atingimos no Ser
caractersticas elas mesmas extrnsecas.
Mais do que isso,
a distino como norma da ideia
prejulga o estado das distines
entre coisas representadas na ideia:
em relao ao critrio do claro e do distinto
que Descartes, de todo o tesouro das distines escolsticas,
s fica com a distino real,
segundo ele necessariamente numrica,
a distino de razo,
segundo ele necessariamente abstrata,
a distino modal,
segundo ele necessariamente acidental.

Finalmente, quanto aos indivduos e suas aes:


Descartes interpreta o indivduo humano
como sendo o composto real
de uma alma
e de um corpo,
isto , de dois termos heterogneos
que supostamente agem, realmente,
um sobre o outro.
No seria, ento, inevitvel
que tantas coisas sejam incompreensveis,
segundo Descartes?
No apenas esse prprio composto,
mas o processo da sua causalidade,
e tambm o infinito,
e tambm a liberdade?
Em um nico e mesmo movimento reduzimos
o ser monotonia do infinitamente perfeito,
as coisas monotonia das quantidades de realidade,
as ideias monotonia da causalidade real
e redescobrimos toda a espessura do mundo,
mas ento, sob uma forma incompreensvel.
Ora, quaisquer que sejam
as diferenas entre Leibniz e Espinosa,
e principalmente suas diferenas na interpretao da expresso,
o fato que todos dois se servem desse conceito
para ultrapassar, em todos os nveis anteriores,
aquilo que eles estimam ser
a insuficincia ou a facilidade do cartesianismo,
para restaurar a exigncia de uma razo suficiente
que opera no absoluto.
Isso no quer dizer que eles fiquem aqum de Descartes.
Para eles,
existem aquisies do cartesianismo
que no podem ser questionadas:
pelo menos, justamente,
as propriedades do infinitamente perfeito,
da quantidade de realidade,
do claro e do distinto,
do mecanismo etc.

Espinosa e Leibniz so ps cartesianos,


no sentido em que Fichte, Schelling, Hegel so pskantianos.
Trata-se para eles de atingir o fundamento
de onde derivam todas essas propriedades
enumeradas anteriormente,
de redescobrir um absoluto
que esteja altura do relativismo cartesiano.
Como que eles procedem,
e por que o conceito de expresso
o melhor para essa tarefa?
O infinitamente perfeito como prprio
deve ser ultrapassado na direo
do absolutamente infinito como natureza.
E as dez primeiras proposies da tica
mostram que Deus existe necessariamente,
mas isso porque o absolutamente infinito
possvel ou no contraditrio:
esse o procedimento espinosista no qual,
entre todas as definies do comeo da tica,
que so nominais,
demonstrado que a definio 6
real.
Ora, essa prpria realidade
constituda pela coexistncia
de todas as formas infinitas,
que introduzem sua distino no absoluto,
sem introduzir o nmero.
Essas formas constitutivas da natureza de Deus,
e que tm o infinitamente perfeito
apenas como propriedade,
so a expresso do absoluto.
Deus representado como infinitamente perfeito,
mas constitudo por essas formas mais profundas,
ele se exprime nessas formas,
nesses atributos.

O procedimento de Leibniz
formalmente semelhante:
mesma ultrapassagem do infinito
na direo do absoluto.
No que o Ser absoluto de Leibniz
seja o mesmo de Espinosa.
Mas ainda assim,
trata-se de demonstrar a realidade de uma definio,
e atingir uma natureza de Deus
para alm da propriedade.
Ainda assim, essa natureza
constituda por formas simples e distintas,
nas quais Deus se exprime
e que exprimem, elas mesmas,
qualidades positivas infinitas2 .
2

Da mesma maneira,
tanto em Espinosa quanto em Leibniz,
vimos que a descoberta
de quantidades intensivas
ou de quantidades de potncia,
que so mais profundas
do que as quantidades de realidade,
que transformam os procedimentos a posteriori,
introduzindo neles a expressividade.

2 Sobre as formas simples tomadas absolutamente, prprios atributos de Deus, causas primeiras e razo
ltima das coisas,
cf. Carta para Elisabeth, 1678, e Mditations sur la connaissance, 1684.
Na nota de 1676, Quod ens perfectissimum existit, a perfeio definida por uma qualidade positiva absoluta seu
quae quicquid exprimit, sine ullis limitibus exprimit (Gerhardt VII, pp 261-262).
Leibniz faz aluso, nos Nouveaux Essais, s qualidades originais ou que podem ser conhecidas distintamente,
que podem ser levadas ao infinito

Passemos ao segundo ponto, que diz respeito


ao conhecimento
e ideia.
Aquilo que comum a Leibniz e a Espinosa
a crtica do claro-e-distinto cartesiano,
como algo que convm mais recognio
e s definies nominais
do que ao verdadeiro conhecimento
por definies reais.
Ora, o verdadeiro conhecimento
descoberto como sendo uma espcie da expresso:
isto quer dizer ao mesmo tempo
que o contedo representativo da ideia
ultrapassado na direo
de um contedo imanente,
propriamente expressivo,
e que a forma da conscincia psicolgica
ultrapassada na direo
de um formalismo lgico,
explicativo.
E o autmato espiritual
apresenta a identidade
dessa nova forma
e desse novo contedo.
Somos ns mesmos ideias,
em virtude de nosso poder expressivo;
e poderamos chamar de nossa essncia ou ideia
aquilo que compreende tudo o que exprimimos,
e como ela exprime nossa unio com o prprio Deus,
ela no tem limites
e nada a ultrapassa.3
3

3 Leibniz,

Discours de mtaphysique, 16

Quanto ao terceiro ponto,


devemos repensar o indivduo definido
como sendo o composto
de uma alma e de um corpo.
que a hiptese
de uma causalidade real
talvez o meio mais simples
de interpretar os fenmenos desse composto,
as aes e as paixes,
mas nem por isso
o meio mais convincente
nem o mais inteligvel.
Na verdade, negligenciamos um mundo rico e profundo:
o mundo das correspondncias
no causais.
Mais do que isso, possvel
que a causalidade real
se estabelea e esteja alerta
apenas em algumas regies deste mundo
das correspondncias no causais
e, na verdade, o suponha.
A causalidade real
seria apenas um caso particular
de um princpio mais geral.
Temos ao mesmo tempo a impresso
de que a alma e o corpo
tm uma quase-identidade
que torna a causalidade real intil entre eles,
e uma heterogeneidade,
uma heteronmia
que a torna impossvel.
A identidade,
ou a quase-identidade,
a de um invariante;
a heteronmia
a de duas sries variveis,
uma corporal, outra espiritual.

Ora, a causalidade real intervm sem dvida


em cada uma das sries por conta prpria;
mas a relao entre as duas sries,
e a relao destas com o invariante,
depende de uma correspondncia no causal.
Se perguntarmos agora
qual o conceito capaz de dar conta
de tal correspondncia,
parece que o de expresso.
Pois se verdade que o conceito de expresso
se aplica adequadamente
causalidade real,
no sentido de que o efeito
exprime
a causa,
e o conhecimento do efeito
exprime
um conhecimento da causa,
esse conceito vai alm da causalidade,
pois faz com que sries
completamente estranhas umas s outras
correspondam e entrem em ressonncia.
De maneira que a causalidade real
uma espcie da expresso,
mas apenas uma espcie subsumida
sob um gnero mais profundo.
Esse gnero traduz imediatamente
a possibilidade para sries distintas heterogneas
(as expresses)
de exprimir um mesmo invariante
(aquilo que exprimido),
estabelecendo em cada srie varivel
um mesmo encadeamento de causas e de efeitos.
A expresso se instala no corao do indivduo,
no seu corpo e na sua alma,
nas suas paixes e nas suas aes,
nas suas causas e nos seus efeitos.
Tanto Leibniz por mnada,
quanto Espinosa por modo,
no entendem outra coisa
a no ser o indivduo como centro expressivo

Se o conceito de expresso
tem mesmo essa tripla importncia,
do ponto de vista
do ser universal,
do conhecer especfico,
do agir individual,
no podemos quanto a isso exagerar
a importncia do que h de comum
entre Espinosa e Leibniz.
Mesmo se eles divergem
em cada ponto,
na utilizao e interpretao do conceito.
E as diferenas formais,
as diferenas de tom j prefiguram
as diferenas de contedo.
Dizamos que no encontramos em Espinosa
nem uma definio,
nem uma demonstrao explcitas da expresso
(se bem que essa definio,
essa demonstrao
estejam constantemente implicadas na obra).
Em Leibniz, pelo contrrio,
encontramos textos
que tratam explicitamente
da compreenso e da extenso
da categoria de expresso.

Estranhamente, porm,
Leibniz quem d a essa categoria
uma extenso tal,
que ela termina por recobrir tudo,
inclusive o mundo dos signos,
das similitudes,
dos smbolos
e das harmonias4
4

enquanto que Espinosa empreende


a mais severa depurao,
e ope estritamente
as expresses
aos signos ou s analogias.
Um dos textos mais claros de Leibniz
Quid est idea5 .
5

Depois de ter definido a expresso


como sendo uma correspondncia
de habitus entre duas coisas,
Leibniz distingue dois grandes tipos de expresses naturais:
as que implicam uma certa semelhana
(um desenho, por exemplo),
as que envolvem uma certa lei ou causalidade
(uma projeo).
Acontece, porm, que, de qualquer maneira,
um dos termos da relao de expresso
sempre superior ao outro:
seja porque ele desfruta da identidade
reproduzida pelo segundo,
seja porque ele envolve a lei
que o outro desenvolve.
E em todos os casos
ele concentra na sua unidade
aquilo que o outro dispersa na sua multido.

4 Cf. Carta de Leibniz para Arnauld (Janet I, p. 594): A expresso comum a todas as formas, e um gnero
do qual a percepo natural, o sentimento animal e o conhecimento intelectual so espcies
5 5 Ed. Gerhardt, VII, pp. 263-264

A expresso, segundo Leibniz,


funda em todos os domnios
uma determinada relao
entre o Uno e o Mltiplo:
aquilo que se exprime
dotado de uma verdadeira unidade,
em relao as suas expresses;
ou, o que d no mesmo,
a expresso una,
em relao ao que exprimido,
mltiplo e divisvel6 .
6

Dessa maneira, porm,


uma certa zona obscura ou confusa
sempre introduzida na expresso:
o termo superior,
em razo da sua unidade,
exprime mais distintamente
aquilo que o outro exprime
menos distintamente,
na sua multido.
mesmo nesse sentido
que repartimos as causas e os efeitos,
as aes e as paixes:
quando dizemos que um corpo que nada
causa de uma infinidade de movimentos de partes da gua,
e no o contrrio,
porque o corpo tem uma unidade
que permite explicar mais distintamente
aquilo que acontece7 .
7

6 Leibniz, Carta para Arnauld (Janet I, p. 594): Basta que aquilo que divisvel e material, e est dividido em
vrios seres, seja exprimido ou representado em um nico ser indivisvel, ou na substncia que dotada de uma
verdadeira unidade. E ainda, Nouveaux Essais III, 6, 24: A alma e a mquina esto perfeitamente de acordo,
e mesmo que elas no tenham influncia imediata uma sobre a outra, elas se exprimem mutuamente, uma tendo
concentrado em uma perfeita unidade aquilo que a outra dispersou na multido
7 7 Projeto de uma carta para Arnauld (Janet I, pp. 552-553)

Mais do que isso,


como o segundo termo
exprimido no primeiro,
este molda, de certa forma,
sua expresso distinta em uma regio obscura
que o cerca por todas os lados,
e na qual ele mergulha:
assim, cada mnada
traa sua expresso parcial
distinta
sobre o fundo de uma expresso total
confusa;
ela exprime confusamente
a totalidade do mundo,
mas s exprime claramente
uma parte dela,
destacada ou determinada pela relao,
ela mesma expressiva,
que ela tem com seu corpo.
O mundo exprimido por cada mnada
um continuum provido de singularidades,
e em torno dessas singularidades
que as mnadas
se formam elas mesmas enquanto centros expressivos.
Assim tambm ocorre com as ideias:
Nossa alma s reflete
sobre os fenmenos mais singulares
que se distinguem dos outros,
sem pensar distintamente em nenhum,
quando ela pensa igualmente em todos8. 8

8 Carta

para Arnauld (Janet I, p. 596)

por isso que nosso pensamento


no atinge o absolutamente adequado,
nem as formas absolutamente simples
que esto em Deus,
mas que se limitam a formas
e termos relativamente simples
(isto , simples
relativamente multido
que eles envolvem).
E isso ainda verdadeiro quanto a Deus,
quanto as diferentes vises de Deus,
nas regies de seu entendimento
que dizem respeito criao possvel:
os diferentes mundos que podem ser criados
formam esse fundo obscuro,
a partir do qual Deus cria o melhor,
criando as mnadas ou expresses
que o exprimem melhor.
Mesmo em Deus,
ou pelo menos em certas regies do seu entendimento,
o Uno combina com um zero
que torna a criao possvel.
Devemos, portanto,
levar em conta dois fatores fundamentais
na concepo leibniziana da expresso:
a Analogia,
que exprime principalmente
os diferentes tipos de unidade,
em relao s multiplicidades que eles envolvem;
a Harmonia,
que exprime principalmente
a maneira pela qual uma multiplicidade
corresponde, em cada caso,
a sua unidade de referncia9
Tudo isso forma
9

9 Cf. Ed. Grua, p. 126: Como todos os espritos so unidades, podemos dizer que Deus a unidade primitiva,
exprimida por todas as outras de acordo com seu alcance ... Disso resulta a operao, na criatura, que varia
segundo as diferentes combinaes da unidade com o zero, ou ento do positivo com o privativo. So esses
diferentes tipos de unidade que simbolizam uns com os outros: por exemplo as noes relativamente simples do
nosso entendimento, com os absolutamente simples do entendimento divino (cf, ed. Couturat, Elementa Calculi,
e Introductio ad Encyclopaediam Arcanam). Um tipo de unidade sempre causa final em relao
multiplicidade que ele subsome. E Leibniz emprega particularmente a palavra harmonia para designar essa
referncia do mltiplo ao uno (Elementa verae pietatis, Grua, p. 7)

uma filosofia simblica da expresso,


na qual a expresso
nunca separada dos signos
das suas variaes,
no mais que das zonas obscuras
em que ela mergulha.
O distinto e o confuso
variam em cada expresso
(a entreexpresso significa, principalmente,
que, aquilo que uma mnada exprime confusamente,
uma outra o exprime distintamente).
Uma filosofia simblica como essa
necessariamente
uma filosofia das expresses equvocas.
E ao invs de opor Leibniz a Espinosa,
lembrando a importncia dos temas leibnizianos
do possvel e da finalidade,
nos parece necessrio destacar esse ponto concreto
que diz respeito maneira pela qual Leibniz
interpreta e vive o fenmeno da expresso,
porque todos os outros temas e conceitos da decorrem.
Tudo se passa como se Leibniz,
ao mesmo tempo para salvar a riqueza do conceito de expresso
e conjurar o perigo pantesta ligado a ele,
encontrasse uma nova frmula,
segundo a qual a criao e a emanao
fossem as duas espcies reais da expresso,
ou correspondessem a duas dimenses da expresso:
a criao,
na constituio originria
das unidades expressivas anlogas
(combinaes da unidade com o zero);
a emanao,
na srie derivada
que desenvolve as multiplicidades
exprimidas em cada tipo de unidade
(os envolvimentos e desenvolvimentos,
as transprodues, os metaesquematismos)10

10

10

10 Pode ocorrer que Leibniz empregue a palavra emanao para designar a criao das unidades e suas
combinaes: cf por exemplo, Discours de mtaphysique, 14

Ora, Espinosa
d uma interpretao viva da expresso,
completamente diferente.
Pois o essencial, para ele,
separar o domnio dos signos,
sempre equvocos,
e o das expresses,
cuja regra absoluta deve ser a univocidade.
Vimos, nesse sentido,
como os trs tipos de signos
(signos indicativos da percepo natural,
signos imperativos da lei moral
e signos da revelao religiosa)
eram radicalmente jogados no inadequado;
e com eles cai toda a linguagem da analogia,
tanto aquela que atribui a Deus
um entendimento e uma vontade,
quanto aquela que atribui um fim s coisas.
Ao mesmo tempo,
a ideia absolutamente adequada
pode ser alcanada e formada por ns,
na medida em que ela recebe suas condies
do estrito regime da univocidade:
a ideia adequada a ideia expressiva,
isto ,
a ideia distinta enquanto ela conjurou
esse fundo obscuro e confuso
do qual no se separava em Leibniz.
(Tentamos mostrar como Espinosa
operava concretamente essa seleo,
no processo de formao das noes comuns,
no qual a ideia deixa de ser um signo
para se tornar uma expresso unvoca).

Quaisquer que sejam os termos em questo,


na relao de expresso,
no poderemos dizer
que um exprime distintamente
aquilo que o outro exprime confusamente.
Principalmente,
no ser assim que repartiremos
o ativo e o passivo,
a ao e a paixo,
a causa e o efeito;
pois, contrariamente ao princpio tradicional,
as aes so paralelas s aes,
as paixes paralelas s paixes.
Se a harmonia preestabelecida de Leibniz
e o paralelismo de Espinosa
tm em comum o fato de romper com a hiptese
de uma causalidade real
entre a alma e o corpo,
sua diferena fundamental consiste no seguinte:
a repartio das aes e das paixes
continua sendo em Leibniz
aquilo que era na hiptese tradicional
(o corpo sofrendo quando a alma age,
e inversamente)
enquanto que Espinosa
modifica toda a repartio prtica,
ao afirmar a paridade das paixes
da alma com as do corpo,
das aes do corpo com as da alma.
Isso acontece porque, em Espinosa,
a relao de expresso
s se estabelece entre iguais.

Esse o verdadeiro sentido do paralelismo:


no existe nunca eminncia de uma srie.
Certamente, a causa, na sua srie,
continua sendo mais perfeita do que o efeito,
o conhecimento da causa, na sua srie,
continua sendo mais perfeito que o do efeito;
longe porm de implicar uma analogia,
uma simbolizao,
segundo a qual o mais perfeito
existiria num modo qualitativo superior
ao menos perfeito,
a perfeio implica apenas
um processo quantitativo imanente,
segundo o qual o menos perfeito
existe no mais perfeito,
isto ,
dentro dessa forma
e sob essa mesma forma unvoca
que constitui a essncia do mais perfeito.
( tambm nesse sentido,
como pudemos ver,
que devemos opor
a teoria da individuao qualitativa,
em Leibniz,
e a teoria da individuao quantitativa,
em Espinosa,
sem que possamos concluir, verdade,
que o modo
tenha menos autonomia
do que a mnada).
Tanto em Espinosa quanto em Leibniz,
a relao de expresso diz respeito essencialmente
ao Uno e ao Mltiplo.
Mas na tica,
buscaramos em vo um signo atravs do qual
o Mltiplo,
enquanto imperfeito,
implica uma certa confuso
no concernente distino do Uno
que exprimido nele.

Mais ou menos perfeio,


segundo Espinosa,
no implica nunca uma mudana de forma.
Dessa maneira,
a multiplicidade dos atributos
estritamente igual
unidade da substncia:
atravs dessa estrita igualdade,
devemos entender
que os atributos
so formalmente
aquilo que a substncia
ontologicamente.
Em nome dessa igualdade,
as formas de atributos
no introduzem nenhuma distino numrica
entre substncias;
pelo contrrio, sua prpria
distino formal
igual a toda
a diferena ontolgica
da substncia nica.
E se considerarmos
a quantidade dos modos
em cada atributo,
vemos que esses modos envolvem o atributo,
mas sem que esse envolvimento
signifique que o atributo
tome uma outra forma diferente
daquela sob a qual ele constitui a essncia da substncia:
os modos envolvem e exprimem o atributo
sob essa mesma forma
na qual ele envolve e exprime a essncia divina.

por isso que o espinosismo


acompanhado por uma extraordinria teoria das distines,
a qual, mesmo quando toma emprestado a terminologia cartesiana,
fala uma linguagem completamente diferente:
dessa maneira,
a distino real
, na verdade,
uma distino formal
no numrica
(cf. os atributos);
a distino modal
uma
distino numrica intensiva ou extensiva
(cf. os modos);
a distino de razo
uma
distino formal-objetiva
(cf. as ideias).
Na sua prpria teoria, Leibniz
multiplica os tipos de distino,
mas para garantir todos os recursos
da simbolizao,
da harmonia
e da analogia.
Em Espinosa, pelo contrrio,
a nica linguagem a da univocidade:
primeiramente, univocidade dos atributos
(enquanto os atributos, sob a mesma forma,
so aquilo que constitui a essncia da substncia
e aquilo que contm os modos e suas essncias);
depois, univocidade da causa
(enquanto Deus causa de todas as coisas
no mesmo sentido em que causa de si);
em seguida, univocidade da ideia
(enquanto a noo comum
a mesma na parte e no todo).

Univocidade do ser,
univocidade do produzir,
univocidade do conhecer;
forma comum,
causa comum,
noo comum
essas so as trs figuras do Unvoco
que se renem absolutamente
na ideia do terceiro gnero.
A expresso, em Espinosa,
longe de se reconciliar
com a criao
e a emanao,
pelo contrrio, expulsa-as,
joga-as para o lado dos signos inadequados
ou da linguagem equvoca.
Espinosa aceita o perigo
propriamente filosfico
implicado na noo de expresso:
a imanncia,
o pantesmo.
Mais do que isso,
ele aposta nesse perigo.
Em Espinosa,
toda a teoria da expresso
est a servio da univocidade;
e todo seu sentido de arrancar
o Ser unvoco
do seu estado
de indiferena ou de neutralidade,
para fazer dele o objeto de uma afirmao pura,
efetivamente realizada no pantesmo
ou a imanncia expressiva.
Essa nos parece ser a verdadeira oposio
entre Espinosa e Leibniz:
a teoria das expresses unvocas de um
se ope teoria das expresses equvocas do outro.

Todas as outra oposies


(a necessidade e a finalidade,
o necessrio e o possvel)
derivam da,
e so abstratas em relao a ela.
Pois existe, na verdade,
uma origem concreta das diferenas filosficas,
uma certa maneira de avaliar um fenmeno:
aqui, a expresso.
Qualquer que seja, porm,
a importncia da oposio,
devemos voltar aquilo que existe de comum
entre Leibniz e Espinosa,
nesse uso da noo de expresso
que manifesta toda a fora da reao anticartesiana dos dois.
Essa noo de expresso essencialmente tridica :
devemos distinguir
aquilo que se exprime,
a prpria expresso
e aquilo que exprimido.
Ora, o paradoxo que, ao mesmo tempo,
o que exprimido
no existe fora da expresso
e, no entanto,
no se assemelha a ela,
mas est essencialmente ligado
aquilo que se exprime,
como sendo distinto
da prpria expresso.
De maneira que a expresso
o suporte de um duplo movimento:
ou envolvemos,
implicamos,
enrolamos
o que exprimido na expresso,
para guardar apenas o par expressivoexpresso;
ou ento
desenvolvemos,
explicamos,
desenrolamos
a expresso de maneira a restituir o que exprimido
(expressivo-exprimido) .

Dessa forma existe na verdade,


primeiramente, em Leibniz,
uma expresso divina:
Deus se exprime em formas absolutas
ou noes absolutamente simples,
como em um Alfabeto divino;
essas formas exprimem qualidades ilimitadas
ligadas a Deus
como sendo sua essncia.
Em seguida, Deus se reexprime,
ao nvel da criao possvel:
ele se exprime, ento,
em noes individuais
ou relativamente simples,
mnadas,
que correspondem a cada uma das vises de Deus;
e essas expresses,
por sua vez,
exprimem o mundo todo,
ou seja, a totalidade do mundo escolhido,
que est ligado a Deus
como sendo a manifestao
da sua glria e da sua vontade.
Em Leibniz, podemos ver bem
que o mundo no existe fora das mnadas que o exprimem,
e que, no entanto,
Deus faz com que o mundo exista,
e no as mnadas11 .
11

Essas duas proposies no so,


de forma alguma, contraditrias,
mas atestam o duplo movimento
pelo qual o mundo exprimido
se envolve nas mnadas que o exprimem,
e atravs do qual, inversamente,
as mnadas se desenvolvem e restituem essa continuidade
de um fundo provido de singularidades,
em torno das quais elas se constituram.

11

11 Tema

constante nas Cartas para Arnauld: Deus no criou Ado pecador, mas o mundo onde Ado pecou

Com as mesmas reservas anteriores,


diremos a mesma coisa de Espinosa.
Na trade da substncia,
Deus se exprime nos atributos,
os atributos exprimem qualidades ilimitadas
que constituem sua essncia.
Na trade do modo,
Deus se reexprime,
ou os atributos se exprimem por sua vez:
eles se exprimem nos modos,
os modos exprimem modificaes
como sendo modificaes da substncia,
constitutivas de um mesmo mundo
atravs de todos os atributos.
em funo dessa caracterstica,
sempre tridica,
que o conceito de expresso no se deixa ligar
nem causalidade no ser,
nem representao na ideia,
mas ultrapassa as duas,
fazendo delas dois de seus casos particulares.

Pois, dade
da causa e do efeito,
ou da ideia e seu objeto,
vem juntar-se um terceiro termo
que as transforma.
certo que o efeito exprime sua causa;
mais profundamente, porm,
a causa e o efeito formam uma srie
que deve exprimir alguma coisa,
e alguma coisa idntica (ou semelhante)
aquilo que exprime uma outra srie.
Assim, a causalidade real
acha-se localizada em sries expressivas
que gozam entre si de correspondncias no causais.
Assim tambm,
a ideia representa um objeto
e, de uma certa maneira, o exprime;
mais profundamente, porm,
a ideia e seu objeto exprimem alguma coisa que lhes comum
e, no entanto, prpria a cada um:
a potncia, ou o absoluto
sob duas potncias, que so as potncias
de pensar ou de conhecer,
de ser ou de agir.
Assim, a representao acha-se localizada
numa certa conexo extrnseca
entre a ideia e o objeto,
cada qual, por sua vez,
gozando de uma expressividade para alm da representao.
Enfim, por toda a parte,
o que exprimido
intervm
como um terceiro que transforma os dualismos.

Para alm da causalidade real,


para alm da representao ideal,
descobrimos aquilo que exprimido
como sendo o terceiro
que torna as distines infinitamente mais reais,
a identidade infinitamente melhor pensada.
Isso que exprimido o sentido:
mais profundo do que a relao de causalidade,
mais profundo do que a relao de representao.
H um mecanismo dos corpos que segue a realidade,
h um automatismo dos pensamentos que segue a idealidade;
mas aprendemos que
a mecnica corporal
e o autmato espiritual
so mais expressivos
quando recebem
seu sentido
e sua correspondncia,
como sendo essa razo necessria
que faltava em todo o cartesianismo
No podemos dizer o que mais importante:
as diferenas entre Leibniz e Espinosa
na sua avaliao da expresso;
ou seu apelo comum a esse conceito
para fundar uma filosofia ps-cartesiana

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