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Crises da República: Ensaios
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Crises da República: Ensaios
E-book268 páginas4 horas

Crises da República: Ensaios

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Sobre este e-book

NOVA EDIÇÃO DE UM CLÁSSICO ESCRITO POR UMA DAS MAIORES FILÓSOFAS DO SÉCULO XX
Os três ensaios e a entrevista que compõem este livro foram escritos entre 1968 e 1971, período marcado pela luta por direitos civis, pelo movimento estudantil e pela Guerra do Vietnã. Os acontecimentos da época abalaram as instituições norte-americanas e impactaram o resto do mundo de maneira irreversível.
Diante de eventos que marcariam o século, Hannah Arendt, então professora nos Estados Unidos, examinou detidamente o desvirtuamento da política pela imagem e argumentou que o poder era distinto da violência, assim como atestou que a desobediência civil era um direito dos cidadãos.
Do calor da defesa da República e da democracia, seus julgamentos continuam a nos instigar. Nestas páginas, Arendt nos conduz à reflexão sobre o que nos constitui politicamente: a liberdade pública – que tanto promete, mas também exige de nós.
IdiomaPortuguês
EditoraCrítica
Data de lançamento25 de jan. de 2024
ISBN9788542225174
Crises da República: Ensaios

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    Crises da República - Hannah Arendt

    MENTIR NA POLÍTICA

    Reflexões sobre os Documentos do Pentágono

    Não é bonita a imagem da maior superpotência do mundo matando ou ferindo seriamente mil não combatentes por semana, enquanto tenta forçar uma pequena nação atrasada à submissão a respeito de uma questão cujos méritos são acaloradamente contestados.

    ROBERT S. MCNAMARA

    I

    Os Documentos do Pentágono – como ficou conhecida desde sua publicação no The New York Times, em junho de 1971, a História do processo de tomada de decisão dos Estados Unidos sobre a política para o Vietnã, de quarenta e sete volumes (encomendada pelo secretário de Defesa Robert S. McNamara em junho de 1967 e concluída um ano e meio depois), um relatório ultrassecreto, ricamente documentado, sobre o papel norte-americano na Indochina desde a Segunda Guerra Mundial até maio de 1968 – contam diferentes histórias, ensinam diferentes lições para diferentes leitores. Alguns afirmam que só agora compreenderam que o Vietnã era o resultado lógico da Guerra Fria ou da ideologia anticomunista. Outros, que essa é uma oportunidade única para aprender sobre os processos de tomada de decisão do governo, mas a maioria dos leitores tem concordado até agora que a questão básica levantada pelos documentos é o engano. De qualquer maneira, é óbvio que essa questão foi predominante nas mentes dos que compilaram os Documentos do Pentágono para o The New York Times, e é ao menos provável que tenha sido também uma questão para a equipe de redatores que prepararam os quarenta e sete volumes do estudo original.¹ A famosa falta de credibilidade, que tem nos acompanhado por seis longos anos, de repente se abriu para um abismo. A areia movediça de todo tipo de declarações mentirosas, enganos, assim como de autoenganos, está pronta para engolir qualquer leitor que deseje examinar esse material, que, infelizmente, deve reconhecer como a infraestrutura de quase uma década de política externa e interna dos Estados Unidos.

    Por causa do alcance extraordinário atingido pelo comprometimento com a inverdade na política no nível mais alto do governo, e por causa da concomitante extensão da mentira, que teve permissão para proliferar em todos os escalões de todos os serviços governamentais, militares e civis – as falsas contagens de corpos das missões de busca-e-destruição, os relatórios de danos adulterados da força aérea,² os relatórios de progresso para Washington escritos do campo por subordinados que sabiam que seus desempenhos seriam avaliados por seus próprios relatórios³ –, podemos ser facilmente tentados a esquecer a experiência da história passada, ela mesma não exatamente uma história de virtude imaculada, contra a qual esse mais novo episódio deve ser visto e julgado.

    O sigilo – o que diplomaticamente é chamado discrição, assim como os arcana imperii, os mistérios do governo – e o engano, a falsidade deliberada e a mentira descarada, usados como meios legítimos para alcançar fins políticos, têm nos acompanhado desde o começo da história registrada. A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e as mentiras sempre foram vistas como ferramentas justificáveis em acordos políticos. Qualquer pessoa que reflete sobre esses temas fica surpresa com a pouca atenção que tem sido dada à sua importância em nossa tradição de pensamento político e filosófico – por um lado, pela natureza da ação, e, por outro, pela natureza de nossa habilidade em negar em pensamento e em palavra qualquer que seja o caso. Essa capacidade ativa e agressiva é claramente diferente de nossa passiva suscetibilidade a sermos vítimas do erro, da ilusão, das distorções da memória e do que mais possa ser culpado pelas falhas de nosso aparato sensível e mental.

    Uma característica da ação humana é que ela sempre inicia algo novo, e isso não significa que é sempre permitido começar ab ovo, criar ex nihilo. Para abrir espaço para a própria ação, algo que estava lá antes deve ser removido ou destruído, e coisas que estavam lá antes são mudadas. Tal mudança seria impossível se não pudéssemos remover a nós mesmos mentalmente de onde estamos fisicamente e imaginar que as coisas poderiam também ser diferentes do que realmente são. Em outras palavras, a negação deliberada da verdade factual – a habilidade de mentir – e a capacidade de mudar fatos – a habilidade de agir – são interconectadas; elas devem sua existência à mesma fonte: a imaginação. Não é de modo algum uma obviedade que possamos dizer O sol brilha quando na verdade está chovendo (a consequência de alguns danos cerebrais é a perda dessa capacidade); antes isso indica que, embora sejamos bem equipados tanto sensível quanto mentalmente para o mundo, não estamos encaixados ou ajustados a ele como uma de suas partes inalienáveis. Somos livres para mudar o mundo e começar algo novo nele. Sem a liberdade mental para negar ou afirmar a existência, para dizer sim ou não – não apenas a afirmações ou proposições para expressar concordância ou discordância, mas também às coisas como elas são dadas, para além da concordância ou discordância, a nossos órgãos de percepção e cognição –, nenhuma ação seria possível; e ação, é claro, é a verdadeira matéria de que é feita a política.

    Consequentemente, quando falamos sobre mentira, especialmente sobre mentira entre homens de ação, vamos lembrar que a mentira não se esgueirou para dentro da política por algum acidente da pecaminosidade humana. A indignação moral, apenas por essa razão, provavelmente não vai fazê-la desaparecer. A falsidade deliberada lida com fatos contingentes, ou seja, com assuntos que não guardam nenhuma verdade inerente neles mesmos, nenhuma necessidade de serem como são. Verdades factuais nunca são forçosamente verdadeiras. O historiador sabe quão vulnerável é toda a tessitura de fatos na qual passamos nossa vida cotidiana: ela está sempre sob o perigo de ser perfurada por mentiras simples ou despedaçada pela mentira organizada de grupos, nações ou classes, ou negada e distorcida, muitas vezes cuidadosamente encoberta com resmas de falsidades ou simplesmente deixada de lado até cair no esquecimento. Fatos precisam de testemunho para serem lembrados e de testemunhas confiáveis para serem estabelecidos a fim de encontrarem uma morada segura no domínio dos assuntos humanos. Disso se segue que nenhuma afirmação factual pode ser indubitável – tão segura e protegida contra ataques quanto, por exemplo, a afirmação de que dois e dois são quatro.

    É essa fragilidade que faz o engano ser tão fácil até certo ponto, e tão tentador. Ele nunca chega a entrar em conflito com a razão, porque as coisas realmente poderiam ter sido como o mentiroso sustenta que elas foram. Mentiras são frequentemente muito mais plausíveis, têm mais apelo à razão do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a grande vantagem de saber de antemão o que o público deseja ou espera ouvir. Ele prepara sua história para o consumo do público com o cuidado de fazê-la verossímil, ao passo que a realidade tem o desconcertante hábito de nos confrontar com o inesperado, para o qual não estamos preparados.

    Em circunstâncias normais, o mentiroso é derrotado pela realidade, para a qual não há substituto; não importa o tamanho do tecido de falsidade que um mentiroso experiente tem a oferecer, ele nunca será grande o bastante, mesmo se tiver a ajuda de computadores, para encobrir a imensidão da factualidade. O mentiroso, que pode se safar com qualquer número de pequenas falsidades, achará impossível se safar tendo a mentira como princípio. Essa é uma das lições que poderia ser aprendida com os experimentos totalitários e com a confiança assustadora dos líderes totalitários no poder da mentira – em sua habilidade, por exemplo, de reescrever a história várias vezes para adaptar o passado a sua linha política do momento presente ou para eliminar dados que não se encaixavam em sua ideologia. Assim, em uma economia socialista, eles negariam que o desemprego existiu, a pessoa desempregada simplesmente se tornando uma não-pessoa.

    Os resultados de tais experimentos, quando realizados por aqueles que possuem os meios de violência, são terríveis o suficiente, mas o engano duradouro não está entre eles. Sempre se chega ao ponto além do qual a mentira se torna contraproducente. Esse ponto é alcançado quando o público para o qual as mentiras são endereçadas é forçado a desprezar completamente a linha de distinção entre verdade e falsidade para poder sobreviver. Verdade e falsidade – não importa mais qual, se sua vida depende de que você aja como se acreditasse; a verdade em que se pode confiar desaparece totalmente da vida pública, e com ela o principal fator estabilizador nos sempre mutáveis assuntos humanos.

    Aos muitos gêneros da arte de mentir desenvolvida no passado, devemos adicionar agora duas variedades mais recentes. Há, primeiro, aquela aparentemente inofensiva dos gerentes de relações públicas do governo que aprenderam seu ofício na inventividade da Avenida Madison. Relações públicas é só uma variedade da publicidade; por isso tem sua origem na sociedade de consumo, com seu apetite desmesurado por mercadorias a serem distribuídas em uma economia de mercado. O problema com a mentalidade do agente de relações públicas é que ele lida apenas com opiniões e com boa vontade, a prontidão para comprar, isto é, com intangíveis cuja realidade concreta é mínima. Isso significa que, para suas invenções, pode realmente parecer que o céu é o limite, pois falta a ele o poder do político para agir, para criar fatos, portanto, aquela simples realidade cotidiana que estabelece limites ao poder e traz as forças da imaginação para a terra.

    A única limitação para o que o agente de relações públicas faz surge quando ele descobre que as mesmas pessoas que talvez possam ser manipuladas para comprar um certo tipo de sabonete não podem ser manipuladas – embora, é claro, possam ser forçadas pelo terror – para comprar opiniões e visões políticas. Portanto, a premissa psicológica da manipulabilidade humana tem se tornado um dos principais artigos vendidos no mercado da opinião instruída e comum. Mas tais doutrinas não mudam a maneira como as pessoas formam opiniões nem evitam que elas ajam de acordo com suas próprias capacidades. O único método, à parte o terror, que tem influência real em suas condutas é ainda a velha abordagem de recompensa e punição. Não é de surpreender que a nova geração de intelectuais, que cresceu na atmosfera insana da publicidade desenfreada e à qual foi ensinado que metade da política é construção de imagem e a outra metade é a arte de fazer as pessoas acreditarem na imagem, deve quase automaticamente recorrer às antigas abordagens de recompensa e punição sempre que a situação se torna séria demais para a teoria. Para eles, o maior desapontamento na aventura do Vietnã deve ter sido a descoberta de que há pessoas com as quais os métodos de recompensa e punição também não funcionam.

    (Estranhamente, a única pessoa passível de ser uma vítima ideal da completa manipulação é o presidente dos Estados Unidos. Por causa da imensidão de seu trabalho, ele deve se cercar de conselheiros, os encarregados da Segurança Nacional, como foram chamados recentemente por Richard J. Barnet, que exercitam seus poderes principalmente filtrando a informação que chega ao presidente e interpretando o mundo lá fora para ele.⁵ O presidente, somos tentados a argumentar, presumivelmente a pessoa mais poderosa do país mais poderoso, é o único indivíduo deste país cuja gama de escolhas pode ser predeterminada. Isso, é claro, pode acontecer apenas se o poder executivo tiver cortado contato com os poderes legislativos do Congresso; essa é a consequência lógica em nosso sistema de governo quando o Senado está sendo privado de, ou reluta em, exercer seus poderes de participar e aconselhar a conduta nas relações exteriores. Uma das funções do Senado, como sabemos agora, é proteger o processo de tomada de decisão contra os humores transitórios e as tendências da sociedade em geral – nesse caso, as artimanhas de nossa sociedade de consumo e dos gerentes de relações públicas que a guarnecem.)

    A segunda nova variedade da arte de mentir, embora menos frequentemente encontrada na vida cotidiana, desempenha um papel mais importante nos Documentos do Pentágono. Ela também atrai homens bem melhores, por exemplo, os que provavelmente são encontrados nos mais altos escalões dos serviços civis. Eles são, na frase feliz de Neil Sheehan, resolvedores de problema profissionais⁶ e foram atraídos para o governo nas universidades e nos vários think tanks,⁷ alguns dos quais equipados com teorias de jogos e análises de sistemas, portanto preparados, como pensavam, para resolver todos os problemas de política externa. Um número significativo de autores do estudo de McNamara pertence a esse grupo, que consistia em dezoito oficiais militares e dezoito civis de think tanks, de universidades e de serviços governamentais. Eles certamente não eram um bando de pombas – um mero punhado era crítico ao empenho dos Estados Unidos no Vietnã⁸ –, e ainda assim é a eles que devemos essa verdadeira, embora, é claro, não completa, história do que aconteceu dentro da máquina do governo.

    Os resolvedores de problema têm sido caracterizados como homens de grande autoconfiança, que parecem raramente duvidar de suas habilidades para triunfar, e trabalharam com os membros militares, sobre os quais a história observa que eram ‘homens acostumados a vencer’.⁹ Não devemos esquecer que ao esforço dos resolvedores de problema em fazer um autoexame imparcial, raro entre tais pessoas, devemos o fato de que as tentativas dos atores de esconder seus papéis por trás de uma tela de sigilo autoprotetor (ao menos até terem completado suas memórias – o mais enganoso gênero literário no nosso século) foram frustradas. A integridade básica daqueles que escreveram o relatório está fora de dúvida; eles realmente puderam ter a confiança do secretário McNamara para produzir um relatório enciclopédico e objetivo e deixar as coisas acontecerem.¹⁰

    Mas essas qualidades morais, que merecem admiração, claramente não os impediram de participar por muitos anos do jogo de enganos e de falsidades. Confiantes da posição, da educação e da conquista,¹¹ eles mentiram talvez por um patriotismo equivocado. Mas o ponto é que eles mentiram não tanto por seu país – certamente não pela sobrevivência de seu país, que nunca esteve em jogo –, e sim pela imagem de seu país. Apesar de sua indubitável inteligência – manifesta em muitos memorandos de seus punhos –, eles também acreditaram que a política é só uma variedade das relações públicas, e foram tomados por todas as premissas psicológicas bizarras subjacentes a essa crença.

    Entretanto, eles eram obviamente diferentes dos criadores de imagens mais típicos. Sua distinção está em que eles também eram resolvedores de problema. Consequentemente, não eram apenas inteligentes, mas orgulhosos de si mesmos por serem racionais, e estavam de fato em um grau bastante assustador acima do sentimentalismo e apaixonados pela teoria, o mundo do esforço mental puro. Estavam ansiosos para encontrar fórmulas, preferencialmente expressas em uma linguagem pseudomatemática, que unificariam os fenômenos mais díspares que a realidade lhes apresentava; isto é, estavam ansiosos para descobrir leis por meio das quais explicar e prever fatos históricos e políticos, como se estes fossem tão necessários, e, portanto, tão confiáveis, quanto os físicos um dia acreditaram que eram os fenômenos naturais.

    Contudo, diferentemente do cientista natural, que lida com temas que, seja qual for sua origem, não são feitos pelo ser humano ou promulgados pelo ser humano, e que, portanto, podem ser observados, compreendidos e finalmente até mesmo modificados apenas pela mais meticulosa lealdade à realidade factual e dada, o historiador, assim como o político, lida com assuntos humanos que devem sua existência à capacidade do ser humano para a ação, e isso significa a relativa liberdade do ser humano em relação às coisas como elas são. Seres humanos que agem, na medida em que se sentem mestres de seu próprio futuro, serão sempre tentados a se fazerem mestres também do passado. Enquanto eles têm o apetite pela ação e estão também apaixonados pelas teorias, dificilmente terão a paciência do cientista natural para esperar até as teorias e as explanações hipotéticas serem verificadas ou negadas pelos fatos. Em vez disso, ficarão tentados a encaixar sua realidade – que, afinal, foi feita pelo ser humano, para começo de conversa, e, portanto, poderia ter sido de outra forma – em sua teoria, livrando-se assim mentalmente de sua desconcertante contingência.

    A aversão da razão à contingência é muito forte. Foi Hegel, o pai dos esquemas grandiosos da história, quem sustentou que a contemplação filosófica não tem outra intenção que eliminar o acidental.¹² Realmente, muito do arsenal moderno da teoria política – as teorias dos jogos e análises de sistemas, os roteiros escritos para públicos imaginados e a enumeração cuidadosa de, habitualmente, três opções (A, B, C), em que A e C representam os extremos opostos e B a solução de meio-termo lógica do problema – tem sua fonte nessa profunda aversão. A falácia de tal pensamento começa em forçar as escolhas em dilemas mutuamente exclusivos; a realidade nunca apresenta a nós algo tão puro como premissas para conclusões lógicas. O tipo de pensamento que apresenta ambos, A e C, como indesejáveis, e que por consequência se fixa em B, dificilmente serve a qualquer outro propósito além de desviar a mente e embotar o juízo para a multidão de possibilidades reais. O que esses resolvedores de problema têm em comum com os mentirosos pragmáticos é a tentativa de se livrar dos fatos e a confiança de que isso deve ser possível por causa da contingência inerente aos fatos.

    A verdade é que isso nunca pode ser feito nem pela teoria, nem pela manipulação da opinião – como se um fato fosse seguramente removido do mundo desde que pessoas suficientes acreditem em sua não existência. Isso pode ser feito apenas pela destruição radical – como no caso do assassino que diz que a senhora Smith morreu e então vai e a mata. No domínio político, tal destruição teria de ser em larga escala. Não é preciso dizer que nunca existiu em qualquer nível do governo tal desejo de destruição em larga escala, apesar do número assustador de crimes de guerra cometidos ao longo da Guerra do Vietnã. Mas mesmo onde essa vontade está presente, como estava no caso tanto de Hitler como de Stálin, o poder para alcançar essa destruição teria de ser a onipotência. Para eliminar o papel de Trótski na história da Revolução Russa, não é suficiente matá-lo e eliminar seu nome de todos os registros russos enquanto não se pode matar todos os seus contemporâneos e exercer poder sobre as bibliotecas e arquivos de todos os países da Terra.

    II

    Que a dissimulação, a falsidade e o papel da mentira deliberada tenham se tornado as principais questões dos Documentos do Pentágono em vez da ilusão, do erro, do erro de cálculo e afins, se deve, sobretudo, ao estranho fato de que as decisões erradas e as afirmações mentirosas consistentemente violaram os relatórios factuais surpreendentemente precisos da comunidade de inteligência, ao menos como registradas na edição da Bantam. O ponto crucial aqui não é meramente que a política de mentir quase nunca foi direcionada ao inimigo (essa é uma das razões pelas quais os documentos não revelam nenhum segredo militar que poderia se enquadrar na Lei de Espionagem), mas foi destinada principalmente, se não exclusivamente, para consumo doméstico, para propaganda no país, sobretudo com o propósito de enganar o Congresso. Um exemplo disso é o Incidente Tonquim, em que o inimigo sabia de todos os fatos e o Comitê de Relações Exteriores do Senado, de nenhum.

    Ainda de maior interesse é que quase todas as decisões nesse empreendimento desastroso foram tomadas com pleno conhecimento do fato de que provavelmente não poderiam ser realizadas: por isso, os objetivos tinham de ser constantemente alterados. Primeiro, havia os objetivos publicamente proclamados – garantir que o povo do Vietnã do Sul seja autorizado a determinar seu futuro, ou ajudar o país a vencer sua luta contra a [...] conspiração comunista, ou a contenção da China e a anulação do efeito dominó, ou a proteção da reputação dos Estados Unidos como um avalista contrassubversivo.¹³ A esses objetivos Dean Rusk recentemente acrescentou o de prevenir a Terceira Guerra Mundial, embora isso pareça não estar nos Documentos do Pentágono ou ter desempenhado um papel no registro factual como nós o conhecemos. A mesma flexibilidade marca as considerações táticas: o Vietnã do Norte está sendo bombardeado para prevenir um colapso da moral nacional¹⁴ no Sul e, particularmente, a ruína do governo de Saigon. Mas, quando os primeiros ataques foram programados para começar, o governo havia caído, o pandemônio reinava em Saigon, os ataques tiveram de ser adiados e uma nova finalidade encontrada.¹⁵ Agora o objetivo era obrigar Hanói a parar os vietcongues e o Pathet Lao, uma meta que mesmo a Junta de Comando do Estado-Maior não tinha esperança de alcançar. Como disseram, seria leviano concluir que esses esforços terão um efeito decisivo.¹⁶

    De 1965 em diante, a noção de uma nítida vitória ficou em segundo plano e o objetivo se tornou "convencer o inimigo de que ele não poderia vencer (ênfase nossa). Como o inimigo permaneceu não convencido, a próxima finalidade apareceu: evitar uma derrota humilhante" – como se a marca distintiva de

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