Formação, práticas e técnicas do artista teatral
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Formação, práticas e técnicas do artista teatral - Patrícia Teixeira Alves
APRESENTAÇÃO
Esta publicação, em que tenho a grande satisfação de participar como ensaísta e organizadora, tem como um dos objetivos principais o fomento e o encontro de ideias e experiências de artistas-autores e espectadores-leitores, por meio de textos que promovem o descortinamento dos processos criativos de artistas teatrais, em suas formações práticas e técnicas. O novo eixo temático se traduz e se amplifica na bem-vinda oportunidade para falarmos dos caminhos de formação e de descobertas de sentidos que movem cada artista ‒ e grupos de artistas ‒ no contato com o caos criativo e na elaboração das trilhas inéditas em busca de sua pedra filosofal ‒ sua obra ‒ e que vai tomando forma, constituindo-se como um corpo e uma alma na experiência teatral.
Seriam os artistas as antenas da raça, como sugeria Ezra Pound? Seríamos nós, com nossa arte, os grandes transgressores dos paradigmas da vida humana? Partindo dessas indagações, propomos um passeio por pensamentos, impressões, sensações e intuições, num mergulho no qual cada experiência única em que artistas ‒ de formações diversas ‒ procuram fazer destas páginas, a bússola da imersão em seus processos. Trata-se de uma busca e de uma construção coletiva de um projeto artístico de conhecimento em um momento auspicioso do artista contemporâneo, que pode se utilizar do mise en scene para compor um discurso mais livre, sem estar aprisionado em cadeias de definições fechadas. Como se pode observar no material aqui apresentado, alguns conceitos passam a ser repensados como categorias abertas e dinâmicas e refletem um pensamento novo e complexo, deixando de simplesmente remeter ao estabelecido e passando a possibilitar uma visão de alteridade do e no percurso, como uma realidade em mudança que se desnuda e se desdobra na construção de novos devires.
Abrimos, com esse eixo temático, um novo horizonte que se desvela num caminhar pela diversidade de escolhas, experiências, formações, práticas e técnicas artísticas, que passam a contribuir para uma nova pluralização do Ser artista, para a reconstrução do homem, de um novo homem. Novas produções podem ser vinculadas a uma prática acadêmica que valoriza o laboratório de experiências criativas e que procura destacar o que é vivido e vivenciado no solo de práticas artísticas, de forma crítica e criteriosa, recompondo tanto a unidade ontológica quanto a integração epistemológica do conhecimento. Entre expectativas e tentativas, transpondo as práticas, a invenção e a reflexão sobre a técnica enquanto escrita do devir, do cotidiano e dos fundamentos do fazer teatral para as formulações e reformulações dos processos criativos envolvidos, os textos aqui reunidos descrevem a atividade e legitimam a ação.
São Paulo, 18 de dezembro de 2019.
Patrícia Teixeira Alves
A Organizadora
1. O QUE A ÓPERA NOS ENSINA? TRÂNSITOS ENTRE A FORMAÇÃO DO ARTISTA CÊNICO E O UNIVERSO LÍRICO
Carlos Eduardo da Silva
Preludio: anacronismos e territórios formativos de mútuo interesse
A grande questão do capítulo, que ora se apresenta ao leitor, parte de uma reflexão sobre a experiência compartilhada por Constantin Stanislavski, colocada nos seguintes termos:
A teoria do sistema
de atuação de Stanislavski consistia em exercícios diários até a música, esquetes encenados com a finalidade de criar o contexto para os mais variados tipos de posições corporais, movimentos no espaço, liberação da tensão muscular e, finalmente, o principal e mais interessante trabalho, o canto das árias e baladas líricas (em execuções nas quais os alunos sintetizavam todos as partes que compõem o sistema
) – todo esse trabalho preparatório foi feito pelos alunos antes de iniciarem qualquer produção do Studio. Stanislavski, ao ensinar os outros, estava aprendendo ao mesmo tempo. (Stanislavski; Rumyantsev, 1998, p. 2, tradução nossa)¹
Numa primeira perspectiva, chama a atenção o método que o pesquisador russo buscou desenvolver e implantar para aperfeiçoar o trabalho de atores em ópera, mas o objetivo do presente capítulo está no que surge implícito na última frase da citação acima, qual seja: Stanislavski, ao ensinar os outros, estava aprendendo ao mesmo tempo
, e que direciona a uma questão posterior: o que o mestre russo aprendeu, ou melhor, o que a ópera tem a ensinar e contribuir com o artista teatral? A seguir, buscar-se-á alcançar algumas respostas possíveis, ou pelo menos refletir sobre um processo pedagógico de formação do artista teatral a partir da fricção com outros saberes.
Esse método lembra, em parte, o conteúdo de um diálogo entre o príncipe-filósofo Frederick d’Orange-Nassau e o pedagogo Joseph Jacotot, registrado em Enseignement universel: Mathématiques (1829) pelo referido educador, e que foi replicado por Rancière (2007, p. 39):
Durante essa educação primária, nós aprendíamos, um, o inglês, outro, o alemão, esse, fortificação, aquele, química etc. etc.
– Mas o Fundador sabe tudo isso?
– Nem um pouco, mas nós lhe explicávamos e eu vos asseguro que ele aproveitou lindamente a escola normal.
– Estou confuso: então, todos vós sabíeis química?
– Não, mas nós aprendíamos e lhe ensinávamos. Eis o Ensino Universal. É o discípulo que faz o mestre.
De certo modo, Stanislavski não pode ser comparado integralmente ao professor do diálogo citado, que não sabia nada e aprendia tudo com os alunos, já que o russo era um homem culto e profundo conhecedor de sua arte. Contudo, uma das grandes e reconhecidas qualidades, daquele que foi um dos fundadores do Teatro de Arte de Moscou, era a de aprender com seus alunos e transformá-los nos verdadeiros mestres de suas lições.
O cenário torna-se menos complicado quando se percebe que tanto a ópera quanto o teatro são artes da cena, motivo pelo qual escolheu-se empregar o termo específico: artista teatral em vez de artista da cena, já que também é o ator-cantor da ópera. Portanto, trata-se de gêneros que se entrecruzam constantemente, compartilhando incontáveis características e preocupações em comum, tais como: a dramaturgia, a linguagem da encenação, a articulação de todos esses elementos pela ação presencial, não mediada, de um ser humano que visa materializar um personagem ou um ente ficcional, etc. Entretanto, não são apenas as especificidades inerentes à cada gênero artístico que separam o teatro da ópera, mas um aparente anacronismo dessa última, o qual convém compreender antes de seguir com as reflexões formativas.
O anacronismo não surge aqui como um julgamento de valor, mas como