Laura Kinsale A Sombra e A Estrela

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Laura Kinsale Serie Ashland 02 A Sombra e a estrela

Pesquisa, traduo e reviso Lizzy. Londres, 1887. Delegaes de todo o mundo vo capital britnica para somar-se aos festejos pelo jubileu da rainha Vitria. E acompanhando misso diplomtica das longnquas ilhas Hava chegou

um homem enigmtico. Atrativo, culto e rico, Samuel Gerard oculta atrs uma personalidade atraente as cicatrizes de uma infncia cruel. Unicamente a disciplina e o domnio de si mesmo conseguiram lhe apartar do que ele percebe como seu lado mais sombrio, onde habitam os desejos que esteve reprimindo at que entra em

sua vide Leda toile.

Mame, papai, Cindy, Ubba, av, av, Elva, Tootsie, Bud, Frances, Sue, Georgia, tia, Christine Okage sama de: Sou o que sou graas a sua generosidade No existe terra alheia no mundo que exera em mim atrao mais profunda e intensa que aquela, nem terra alguma que me tenha obcecado

como ela com tanto amor e tanto encanto, em sonhos e acordado, ao longo de meia vida. Outras coisas me abandonam, mas ela permanece inaltervel. Para mim no cessa de sopro sua brisa clida nem de refulgir sob o sol seu mar de estio; o rumor de seu fluxo ressoa em meus

ouvidos; vejo seus penhascos engalanados, suas cascatas cantarinas, os penachos de suas palmeiras sonolentas nas praias, suas cpulas longnquas que flutuam qual ilhas sobre anis de nuvens Pervive em meu olfato o aroma de umas flores que se murcharam faz vinte anos. Mark TWAIN E lei kau, e

lei ho'oilo i ke aloha. O amor nos rodeia como uma grinalda ao longo de invernos e estios. A sombra do guerreiro 1887 Deixou em suspense o pensamento em um lugar escuro e silencioso. Apartando do vasto falatrio da humanidade, permitiu que o sussurro da suave

brisa que movia as cortinas alagasse sua mente. Contemplou sua tnue imagem no espelho at que o rosto ali refletido se converteu no de um desconhecido, em um conjunto de traos sem expresso alguma nos olhos prateados nem na boca impassvel e depois em algo menos que um desconhecido, em uma simples

mscara austera e depois em algo ainda mais frente: em umas formas elementares, sem rastro humano. S um espectro de luz e sombra, uma substncia visvel e invisvel. Dedicou-se a transformar a realidade circundante para adequ-la a seus fins. Para ocultar seus cabelos dourados, utilizou um recurso do teatro

kabuki, o capuz negro com o que se cobriam os kuroko ao introduzir-se sigilosos em uma cena para trocar o cenrio. Para esconder seu rosto, rechaou por inadequados a pintura ou a fuligem: era muito difcil tirar-lhe com rapidez e uma prova do mais flagrante se tirava o chapu sua presena. Em

seu lugar, atou sobre o rosto uma mscara que s deixava ao descoberto os olhos, de um tecido mais escuro que o carvo e de uma malha suave e flexvel similar ao do capote cinza, escuro como a meia-noite, que ajustou cintura com um cinturo. Sob as escuras

roupagens levava os meios para escalar um muro, para propinar um golpe fulminante, para escapar ou ferir; para matar. Em lugar de sapatos, escolheu os flexveis tabi1 com o fim de no fazer rudo ao andar e de manter o contato com a terra. Terra gua ar fogo e

o vazio. Sentou-se no cho com as pernas cruzadas. Os ouvidos atentos a suave brisa que nenhum homem tinha poder suficiente para deter. Sentiu nos ossos a fora imensa e profunda que emanava da terra. Deixou que nada ocupasse sua mente. Imvel, fundiu-se com a noite: invisvel no espelho, inadvertido na brisa.

Com os dedos entrelaados, invocou o poder de suas intenes para mudar o mundo tal como era. Ficou em p e desapareceu. Londres, 1887 Leda despertou de repente em plena noite. Tinha estado sonhando com cerejas. Seu corpo sentiu o sobressalto da transio, uma sacudida desagradvel

que a obrigou a tragar o ar, que estremeceu seus msculos e lhe acelerou o corao enquanto olhava a escurido e tratava de recuperar o flego, de entender as diferenas entre a realidade e os sonhos. Eram cerejas e ameixas? tratava-se de um bolo? De uma sobremesa? Da receita de

um refresco? No ah no, do chapu. Fechou os olhos. Deixou que a mente sonolenta se deslizasse ante a questo de se deviam ser cerejas ou ameixas as que adornassem o chapu alto, terminado em ponta, que poderia comprar no fim de semana quando madame Elise lhe pagasse o trabalho dirio.

Vagamente intuiu que o chapu era um tema muito menos perigoso e mais agradvel no que pensar que o que sabia que deveria ocupar seus pensamentos: sua escura habitao e os distintos rinces ainda mais escuros, e que alterao podia ter sido a causa de seu despertar de um torpor profundo

e muito necessrio. O silncio da noite era quase total, s interrompido pelo tique-taque do relgio e a suave brisa que entrava pela janela do sto onde se encontrava sua habitao e que essa noite lhe levava o aroma do Tamisa e no os aromas normais a vinagre e destilaria.

A esse vero antecipado o chamavam tempo da rainha, e Leda o notou na face. As celebraes do jubileu da rainha Vitria faziam que pelas noites as ruas estivessem mais ruidosas que de costume, o que se somava s multides e o alvoroo dos espetculos, aos estrangeiros extravagantes procedentes de todos os

rinces do mundo que se viam em qualquer parte, cobertos com turbantes e jias, e que parecia que acabavam de desmontar de seus elefantes. Mas nesse momento a noite estava em silncio. Ante a janela aberta distinguiu apenas a silhueta do gernio e o vulto de seda rosa que tinha

terminado de costurar s duas da manh. O traje de baile devia entregar1 Tradicionais sapatos japoneses.

se antes das oito, com as costuras e as dobras feitas e os bordados da cauda terminados. A prpria Leda devia estar vestida e na porta de atrs de madame Elise antes dessa hora, por volta das seis e meia, com o traje em uma cesta de vime a fim de

que uma das garotas da oficina o provasse para comprovar que no tinha defeitos antes que o repartidor o levasse consigo. Tentou recuperar aquele sonho to prezado, mas tinha o corpo tenso e o corao no cessava de pulsar com fora. Era aquilo um rudo? No sabia com

segurana se o que ouvia era um som real ou o batimento do seu prprio corao. Assim, como era de esperar, os batimentos do corao cobraram ainda mais fora, e aquela idia difusa que levava um tempo lhe rondando o pensamento sem que o reconhecesse se apropriou por completo de sua mente:

havia algum ali com ela na pequena habitao. A sensao de medo que experimentou Leda teria feito soprar senhorita Myrtle. A senhorita Myrtle tinha uma atitude valorosa. Ela no teria ficado na cama morta de medo com o corao desbocado. Teria se posto em p de um salto e agarrado o

atiador que teria deixado junto ao travesseiro, porque a senhorita Myrtle tinha o hbito de planejar adiantado emergncias desse tipo, como descobrir que no estava sozinha em sua prpria habitao no meio da escurido. Leda no era feita dessa fibra. Sabia que a esse respeito tinha sido uma decepo para

a senhorita Myrtle. Tinha um atiador, mas no se acordou de coloc-lo perto da cama antes de deitar-se, j que estava esgotada e era filha de uma frvola francesa. Ao estar desarmada, no ficava mais que dar o seguinte passo lgico: convencer-se a si mesmo de que com toda segurana

no havia ningum mais em sua habitao. Era evidente que no. De onde se encontrava a podia ver em quase sua totalidade, e a sombra da parede no era outra coisa que seu casaco e seu guarda-chuva no cabide, onde os tinha pendurado fazia um ms, depois dos ltimos frios de meados

de maio. Tinha uma cadeira e uma mesa com a mquina de costurar alugada; um mvel lavabo com sua bacia e jarra. Teve um susto momentneo ao ver a silhueta do manequim junto chamin; mas, ao olhar com mais parada, deu-se conta de que, atravs da malha aberta do torso e

a saia, podia ver a forma quadrada do lar da chamin. Podia distinguir todas essas coisas, inclusive na escurido; sua cama estava prxima parede do pequeno sto, assim, a no ser que o intruso estivesse pendurado qual morcego da viga do teto que havia sobre sua cabea, devia estar sozinha.

Fechou os olhos. Abriu-os de novo. Moveu-se a sombra? No era um tanto larga para ser a de seu casaco e desaparecer na escurido nas proximidades do cho? No tinha aquela mancha ainda mais escura a forma dos ps de um homem? Tolices. O esgotamento lhe impedia de ver

com claridade. Fechou os olhos de novo e respirou profundamente. Abriu-os.

Fixou o olhar na sombra de seu casaco e, continuando, apartou os lenis, levantou-se apressada e gritou: Quem ? Aquela pergunta to genrica obteve um silncio por toda resposta. Ali de p, descala sobre a madeira fria e rugosa do cho, sentiu-se estpida. Riscou um

crculo com o p para comprovar a profunda sombra sob seu casaco. Deu quatro passos para trs, para a chamin, e procurou provas o atiador. Com aquele utenslio na mo, sentiu-se muito mais proprietria da situao. Moveu o atiador em direo ao casaco e com a barra de ferro mediu o tecido

de cima abaixo, e depois o passou por todos os rinces escuros da habitao, inclusive por debaixo da cama. Nas sombras no havia nada. Nenhum intruso escondido. Nada a no ser espao vazio. O alvio fez que relaxasse os msculos. Levou a mo ao peito, rezou uma curta

prece em agradecimento e, antes de voltar para a cama, comprovou que a porta estivesse fechada com chave. A janela aberta no oferecia nenhum perigo; dava ao enlodado canal e s se podia acessar a ela de um telhado ngreme. Mas, em que pese a tudo, deixou o atiador mo, no

cho. Depois de cobrir-se com o remendado lenol at o nariz, voltou a sumirse em um agradvel sonho no que teve um destacado papel um tentilho2 dissecado, muito bonito e elegante, e to de acordo com os cnones da moda do momento que a uma a podiam persuadir de

que, para adornar um chapu, era mil vezes prefervel s cerejas e as ameixas. O jubileu fazia que todas as coisas e todo mundo cobrassem um ritmo amalucado. Logo que tinha amanhecido quando Leda subiu a escada traseira de Regent Street, mas encontrou a todas as moas da oficina com

a agulha na mo e inclinadas sobre seus trabalhos luz dos abajures de gs. Dava a impresso de que a maioria delas tinha passado ali toda a noite, algo de tudo provvel. Esse ano, as pressas anuais da temporada de festejos se aceleraram: festas, piqueniques campestres, e todas as jovens bonitas

e as damas com estilo imersas em uma autntica mar de compromissos e diverses por causa do jubileu. Leda fechou os olhos cansados e piscou de novo enquanto ela e a chefa da oficina tiravam da cesta o enorme vulto de tecido. Estava esgotada; todas o estavam, mas o nervosismo e a

iluso eram contagiosos. Quem pudesse levar algo assim, to belo! Fechou os olhos uma vez mais e se separou do vestido de baile, um pouco tonta pela fome e a agitao. V procurar um po-doce lhe disse a primeira costureira. Certo que no terminou com isto antes das duas da

manh, no verdade? Tome um ch se quiser, mas date pressa. H uma reunio a primeira 22 Tipo de pssaro.

hora. Uma das delegaes estrangeiras estar aqui s oito em ponto e tem que ter prontas as sedas de cores. Estrangeiros? Orientais, acredito. Tero o cabelo negro. E claro, no seria boa idia ressaltar sua pele amarela. Leda se apressou a ir

outra habitao, tragou depressa uma taa de ch aucarado junto com o po-doce, e a seguir correu escada acima e foi saudando o passar s aprendizes internas. Ao chegar ao terceiro piso, introduziu-se em uma pequena habitao, tirou a singela saia azul marinho e a blusa de algodo, lavou-se no lavabo de

porcelana com a gua morna de um balde de lato e ps-se a andar pelo corredor de camisa e cales. Uma das aprendizes lhe saiu ao encontro a meio caminho. J escolheu sob medida disse a moa. O de seda com xadrez, em honra ao carinho que sua

majestade sente pelo castelo de Balmoral. Leda soltou um pequeno grito de irritao. Veja! Mas eu Se deteve quando estava a ponto de dizer algo to vulgar quanto no podia permitir-se de nenhuma forma o novo traje. Mas esse ia ser o uniforme do salo durante o resto

do jubileu; deduziriam-lhe o custo obrigatoriamente de seu salrio. A perda da senhorita Myrtle lhe tinha posto as coisas muito difceis. Mas Leda no ia ficar a chorar, obvio que no, por muito que tivesse que rebaixar-se. O que lhe acontecia era que tinha dormido muito pouco, que seu

descanso no tinha sido completo e que se despertou tarde e de mal humor. Sentia mais ganha de pegar patadas que de chorar, porque a senhorita Myrtle tinha planejado o futuro com cuidado, e tinha redigido legalmente sua ltima vontade e testamento, no que deixava a posse de sua casa de Mayfair

a um sobrinho vivo, a ponto de cumprir os oitenta anos, com a condio de que permitisse que Leda seguisse vivendo nela e se encarregasse de lhe levar a casa, e de que sua habitao continuasse sendo dela, se assim o desejava, e ela o desejava com toda sua alma.

O vivo tinha mostrado sua conformidade em privado, e no escritrio do advogado tinha chegado a dizer que seria toda uma honra que a jovem dama de companhia da senhorita Myrtle estivesse frente de sua casa. E, quando tudo parecia haver-se resolvido a satisfao de ambos, foi questo de muito m

sorte que ele se colocou no caminho de um nibus sem deixar testamento nem herdeiros e sem to sequer ter expressado sua opinio sobre o assunto. Mas assim eram as coisas, e assim os homens. Um sexo do mais insensato, ao fim e ao cabo. A casa de

Mayfair tinha ido parar ento a uma prima longnqua da senhorita Myrtle que no tinha nenhuma inteno de ocup-la. Nem de manter a Leda para que se ocupasse dos novos inquilinos. Leda era muito jovem para ser um ama de chaves como devido; no era o adequado. No, nem sequer apesar

de que a prima Myrtle, uma Balfour, tivesse criado a Leda em South Street. Aquele assunto tinha sido uma temeridade:

tirar uma menina do rio e situ-la por cima do que era sua posio natural. A prima duvidava muito de que fosse apropriado, v se o fazia. Mas, bom, a prima Myrtle sempre tinha sido um tanto peculiar -toda a famlia sabia, em que pese a que em uma poca esteve

prometida com um visconde. Em vez de seguir com ele, atou-se com aquele homem inominvel, o que a tinha colocado em uma situao absolutamente inaceitvel, e sem to sequer uma aliana matrimonial que poder mostrar em troca, verdade que no? Tampouco via a prima nenhuma maneira de que Leda continuasse

na casa em outra posio por muito que trabalhasse, por muito boa que fosse costurar ou para confeccionar elegantes objetos; tampouco podia em conscincia escrever uma carta de recomendao para que Leda solicitasse um posto de datilgrafa. A prima o sentia muito, de verdade que o sentia, mas no sabia nada da

senhorita Leda toile, exceto sua me era francesa, e do que serviria escrever algo assim como referncia? E, como Leda tinha descoberto muito em breve, era certo que s havia dois tipos de estabelecimentos nos que uma jovem dama de maneiras refinados e duvidosa origem francesa era bem-vinda, e o

salo de uma costureira de moda era o nico que se podia nomear. Leda tomou ar com fora. Bom, pois vamos parecer todas autnticas habitantes das Terras Altas da Esccia com os trajes quadriculados, no? disse a aprendiz. Est preparado o meu? A moa assentiu.

S me falta subir a prega. Voc tem um passe s oito. Estrangeiros. Orientais -disse Leda enquanto seguia moa de avental branco a uma estadia em que o tapete e a larga mesa estavam salpicadas de recortes de tecido de todo tipo e cor. Enquanto Leda colocava o

espartilho e ajustava os aros de metal das anquinhas por detrs dos quadris, a moa agarrou um vulto de tecido xadrez azul e verde. Leda levantou os braos para que o vestido se deslizasse sobre sua cabea. Ento so orientais, n? murmurou a moa com a boca cheia de alfinetes.

Foi tirando e colocando com destreza. So desses que retorceram o pescoo dos frangos no hotel Langham? Claro que no -reps Leda. Acredito que foi um sulto o que bom, que originou o desafortunado incidente com as aves. No era apropriado que uma dama falasse de retorcer o pescoo dos

frangos. Consciente disso, fez um esforo por lhe esclarecer as idias moa. Os orientais so do Japo. Ou Nipnico, que o nome correto. E isso onde fica? Leda, sem muita segurana em seus conhecimentos de geografia, franziu o cenho. A senhorita Myrtle tinha sido uma grande

defensora da educao feminina; mas, como carecia dos meios adequados -de uma esfera terrquea, por exemplo, algumas das lies repartidas por ela no tinham deixado mais que um leve rastro.

difcil de descrever -respondeu, tratando de ganhar tempo, teria que lhe mostrar isso em um mapa. A agulha da moa entrava e saa com rapidez do tecido de seda. Leda torceu o nariz ao ver refletido o traje xadrez no espelho rachado embutido na parede. Esses tecidos to

chamativos no eram de seu agrado, e, pior ainda, aquele tecido to rgido no se ajustava bem aos contornos das anquinhas. Note em como fica avultada por detrs -disse enquanto tratava de esmagar o enorme vulto que lhe formava depois dos quadris. O que pareo uma galinha escocesa.

Vamos, no para tanto, senhorita toile. O verde vai muito bem a seus olhos. Faz que destaque sua cor. A, sobre a mesa, est o distintivo que tem que levar no cabelo. Leda se aproximou e agarrou o adorno; provou a colocar-se o de distintas formas sobre o

cabelo cor mogno escuro at ficar completamente satisfeita com o efeito. O verde escuro do xadrez do distintivo quase no destacava entre a intensa cor de seu cabelo, assim que o colocou com uma inclinao que lhe dava um ar desenvolto. A senhorita Myrtle, depois de uma olhada, haveria dito que o

efeito resultava muito coquete para ser elegante. Alm disso, teria aproveitado a circunstncia para mencionar que em certa ocasio tinha quebrado seu compromisso com um visconde, esta ao do mais imprudente, tinha que reconhecer; mas as jovens de dezessete anos cometem imprudncias freqentemente. (Nesse momento da histria sempre dirigia a Leda um

olhar cheio de significado, tanto se maturao Leda tinha doze anos, como se tinha vinte.) A prpria senhorita Myrtle tendia a ser mesurada e comedida no que ao aspecto se refere. Que essa tendncia to refinada tivesse algo que ver com a escassez de meios para adquirir adornos excessivos e outras

frivolidades da moda era um fato que amavelmente passava por cima o crculo ntimo de amizades da senhorita Myrtle: damas criadas na elegncia, de circunstncias parecidas, que se mostravam de total acordo nesse ponto. Mas a senhorita Myrtle havia falecido e, por muito que Leda a honrasse em sua memria,

esses gostos to singelos no se adequavam ao que se esperava de uma jovem modelo de salo no estabelecimento de madame Elise, costureira da casa real por designao de sua alteza real a princesa de Gales. Tinha que resignar-se com o traje escocs, e a metade do dinheiro do preo do delicado

e elegante chapu com o que Leda tinha sonhado (j confeccionado e com o casto adorno de um pssaro embalsamado) estava claro que desapareceria, sem ir mais longe, com to s pagar o medalho dourado que adornava o distintivo a quadros. A senhora Isaacson, personalidade que se escondia depois do

pseudnimo de madame Elise, desaparecida longo tempo atrs, entrou com celeridade na oficina onde se cortavam os trajes. Ps nas mos de Leda um punhado de cartes, jogou-lhe uma breve olhada sem dizer uma palavra e fez um leve gesto de assentimento.

Muito bem. O adorno do cabelo conta com minha aprovao, aposto. Se no lhe importar, ajude senhorita Clark a ficar o com a mesma graa. Ela o tem cado. Fez um gesto com o dedo indicando os cartes. Haver damas inglesas entre o grupo de estrangeiros. Acredito que lady Ashland

e sua filha so tambm de pele escura. Modelos de dia e de noite, o enxoval completo. Concentre-se nos tons fortes e pode ser o rosa, e assegure-se de que no haja nem rastro de amarelo em nenhum objeto, embora o marfim possa ser que sirva; j veremos. Quando estiverem

todos aqui ser um grupo numeroso, uns seis ou sete. Conforme tenho entendido, todos querero que lhes faam as recomendaes de uma vez. Voc ter que dar uma mo se a necessitar. obvio, senhora -disse Leda e, depois de uma hesitao, obrigou-se a si mesmo a acrescentar: Poderia falar com voc

em privado, senhora, se dispuser de uns minutos? A senhora Isaacson lhe dirigiu um olhar cheio de acuidade. Agora mesmo no tenho tempo para falar em privado com voc. Trata-se do novo traje para o salo de exibies? Vivo fora, senhora. Neste momento, -Era horrvel

ver-se forada a falar assim. Minhas circunstncias so muito difceis na atualidade, senhora. Naturalmente, o custo pode deduzir-se de seu salrio. Em seu contrato acordamos que seriam seis xelins semana. Leda manteve a vista baixa. que me impossvel viver com o que fica,

senhora. A senhora Isaacson permaneceu uns instantes em silncio. Sua obrigao se vestir de acordo com o posto que ocupa. Tem que entender que no posso consentir que se altere o contrato. Explicaram-lhe com total claridade as condies quando veio trabalhar conosco. Seria um precedente que no

posso me permitir aceitar. No, senhora -disse Leda com um fio de voz. Produziu-se de novo outro silncio, quase insuportvel. Verei o que se pode fazer -disse por fim a senhora Isaacson. Uma sensao de alvio se apoderou de Leda. Obrigada, senhora.

Eu agradeo. E fez uma leve reverencia enquanto a senhora Isaacson recolhia o vo da saia para partir. Leda leu os cartes. Tal como era habitual naquele ano de visitantes exticos, algum do Ministrio de Assuntos Exteriores se encarregou de lhes fazer chegar conselhos teis no referente ao

protocolo. Sob a data apareciam as entrevistas agendadas. Representao japonesa, 8 da manh Sua alteza real a princesa imperial Terute-No-Miya do Japo. Tratamento de sua alteza muito serena. No fala ingls. Consorte imperial Okubo Otsu do Japo. Tratamento de sua alteza muito serena. No fala ingls.

Lady Inouye do Japo. Em representao de seu pai o conde Inouye, ministro japons de Assuntos Exteriores, tratamento diplomtico de sua excelncia. Ingls fluido, educada na Inglaterra, no ter dificuldades para fazer de intrprete. Representao do Hava (ilhas Sandwich), 10 da manh Sua majestade a rainha Kapiolani

das ilhas Hava. Tratamento de sua majestade. Fala muito pouco ingls, ser necessrio um intrprete. Sua alteza real a princesa Liliyewokalani, princesa herdeira das ilhas Hava. Tratamento de sua alteza. Ingls fluido, se far de intrprete sem problemas. Lady Ashland, marquesa de Ashland, e sua filha lady Catherine.

Com residncia atual nas ilhas Hava. Intima da rainha e a princesa do Hava. Leda olhou uma e outra vez os cartes, memorizando os ttulos, enquanto a aprendiz terminava de lhe costurar a prega. Encontrava-se em seu elemento. A senhorita Myrtle Balfour tinha posto todo seu empenho na misso de

educar Leda para que observasse as normas de etiqueta adequadas que tm que seguir quem so acolhidos pela boa sociedade. E era certo que Leda tinha sido recebida com toda cordialidade pelas vivas e solteironas de South Street. O halo de agradvel escndalo que ainda rodeava a senhorita Myrtle da poca daquele

homem inominvel, face aos mais de quarenta anos que levava de vida tranqila e retirada na casa de seus pais, era um passaporte seguro para qualquer desdobramento de comportamento estranho. A uma Balfour terei que lhe permitir ter suas prprias excentricidades, inclusive anim-la a isso; isso proporcionava certo ar de aventura e

atrevimento a fechada e recatada sociedade de South Street. Assim que as damas de South Street tinham fechado filas e repreendido de forma muito direta a qualquer que se atrevesse a pr em interdio o bom sentido da senhorita Myrtle por ter tomado a deciso de dar proteo em seu lar

filha pequena de uma francesa, e tinham acolhido a Leda em seu bem alimentado seio; e por isso tinha alcanado a plenitude de sua feminilidade entre as flores murchas da aristocracia de Mayfair e contava entre suas amizades mais ntimas com ancis filhas de condes e alhadas irms de bares. Todas estas

majestades e altezas, entretanto, tinham um pouco mais de categoria que aquelas pessoas s que estava acostumada a tratar, e o Ministrio de Assuntos Exteriores era muito atento e amvel ao esclarecer adiantado as distintas relaes e dissipar assim qualquer medo a incmodas intromisses. Tudo transcorreria sem problemas, tal como tinha acontecido

na semana anterior com a visita da maharan e as damas do Sio, acompanhadas por uma dama da China. Com a prega terminada, Leda se dirigiu a escolher os tecidos e agarrou um pesado cilindro atrs de outro de brocados, veludos e sedas, e foi empilhando depois do mostrador do

salo de exibies. Os altos espelhos que recobriam os painis da parede refletiam com toda sua opulncia os

tons violeta e mbar do tapete que cobria o cho da enorme estadia. Outras jovens empregadas faziam o mesmo, preparando-se para receber aos clientes habituais, que, em sua maioria, tinham entrevista agendada para mais tarde, h horas mais civilizadas. Justo no momento em que terminava de colocar o ltimo cilindro de

tecido de seda a raias sobre a pilha, entrou o lacaio no salo em companhia de sua alteza muito serena do Japo. Madame Elise, ou Isaacson, apressou-se a fazer uma reverncia ante as quatro delicadas damas orientais, que ficaram ao lado da porta como assustados cervos. Mantinham o olhar cravado

nas pontas de seus sapatos de estilo ocidental e as mos apoiadas nas saias. A raia que dividia seus cabelos negros como o azeviche era uma linha perfeita, de um branco nveo como seus rostos de porcelana. Madame Elise lhes deu as boas vindas com seu melhor sotaque francs e lhes rogou

que a acompanhassem. Comeou a afastar-se. Depois de apenas trs passos, estava claro que nenhuma das damas japonesas a seguia. Continuavam em silncio, sem mover-se, com a vista cravada no cho. Madame Elise olhou ao lacaio e, ao tempo que arqueava as sobrancelhas, perguntou formando as palavras com

os lbios: Lady Inouye? O homem respondeu encolhendo os ombros de forma quase imperceptvel. A madame no ficou mais remedeio que recorrer soluo extrema de dizer em voz alta, esta vez em ingls sem sotaque francs algum: Lady Inouye, permite-me ter a imensa honra, excelncia? Ningum respondeu.

Uma das duas damas japonesas que ficava meio oculta pelas outras duas fez um leve gesto para a silueta diante dela. Madame Elise deu um passo em direo dama. Sua excelncia? A jovem japonesa levou a mo aos lbios e sorriu, para depois soltar uma tmida risada.

Com uma bela voz de menina disse algo incompreensvel, quase entre sussurros, que soou como se tratasse de cantar com a boca cheia de gua. Inclinou-se ligeiramente, assinalou a porta s suas costas e fez uma nova inclinao. Deus nos ampare -disse madame Elise. Acreditava que sua excelncia falava ingls.

A jovem voltou a indicar a porta. Logo levou a mo garganta, tossiu teatralmente e assinalou novamente a porta. Todos os pressente guardaram silncio entre dvidas. Madame Elise -aventurou Leda, possvel que Lady Inouye no tenha vindo? Que no tenha vindo? A

voz de madame Elise estava tinta de pnico. Leda deu um passo adiante.

Sua excelncia -disse com lentido e claridade e, continuando, levou a mo garganta, tossiu como tinha feito a outra jovem e assinalou a porta. As quatro damas japonesas fizeram uma reverncia de uma vez; as saudaes foram de uma inclinao profunda, dobrando a cintura, a um ligeiro gesto

com a cabea. Deus nos ampare -disse madame Elise. Produziu-se outro silncio. Mademoiselle toile -disse madame Elise de repente, encarreguese destas clientes. Agarrou a Leda pelo brao e a empurrou para diante, apresentando-a como se de um presente se tratasse, e logo se

retirou fazendo reverncias at afastar do grupo. Leda respirou fundo. No tinha idia das quais eram a princesa nem a imperatriz consorte, mas intua que se tratava das duas que estavam diante, as que, em lugar de fazer uma reverncia, logo que tinham realizado um gesto de assentimento. Com um

amplo gesto do brao, tratou das levar a todas para os assentos dispostos junto ao mostrador de maior tamanho. Como um pequeno grupo de gansos obedientes, dirigiram-se a pequenos passos para as cadeiras. Duas tomaram assento, e as outras duas se fincaram com graa de joelhos no cho e mantiveram

o olhar baixo. Bom, estava claro que as duas das poltronas pertenciam realeza, e as outras duas eram algum tipo de damas de companhia. Leda agarrou uma revista de moda do mostrador. Como no estava segura de qual das damas, a uma princesa e a outra consorte, tinha preferncia,

ofereceu a que aparentava ter mais idade. A dama se apartou com um gesto negativo e moveu a palma da mo ante seu rosto como se fosse um leque. Leda se desculpou, fez uma profunda reverncia outra dama e lhe ofereceu a revista. Tambm esta declinou agarrar

a publicao ilustrada. Enquanto Leda permanecia com ela entre as mos, olhou desesperada s que estavam no cho. No era possvel que em seu pas a posio mais baixa era signo de superioridade? No ficava outra alternativa: ofereceu-lhe a revista dama mais prxima das duas que estavam ajoelhadas.

Era a que tinha gesticulado antes para indicar que Lady Inouye se encontrava indisposta. Agora, levantou a mo para rechaar a revista. Virou-se se dirigiu em voz baixa a mais jovem das damas sentadas, quem a sua vez respondeu com outro sussurro. Leda estava sumida na confuso. A jovem ajoelhada girou, inclinou

o corpo at roar o cho com a frente e disse: So gis. Leda mordeu os lbios e em seguida comps de novo o gesto. So gis -repetiu. Moda? acrescentou, aproximando de novo a revista ilustrada.

A negativa foi firme. Leda fez uma nova reverncia e se foi depois do mostrador, levantou duas peas de veludo e as levou at as damas. Possivelmente o que queriam era comear pelas malhas. O intento fracassou. As damas japonesas olharam os veludos sem a mais mnima inteno de

toc-los, e comearam a falar entre elas com suavidade. So gis -repetiu a acompanhante de joelhos. I as So gis. Sinto-o muitssimo -disse Leda com impotncia, mas no compreendo. Provou com uma seda de cor verde lima. Possivelmente procurassem tecidos mais leves. I as So gis

-foi a resposta suave, insistente. I as So gis. Ah! exclamou Leda de repente. Refere-se s ilhas Sandwich? A jovem de joelhos entrechocou as mos e se inclinou. Sangis! repetiu com alegria. Todas as damas japonesas soltaram uma risada. A de mais idade tinha

os dentes enegrecidos, o que fazia que sua boca parecesse um espao vazio ao abri-la, efeito estranho e desconcertante de uma vez. Desejam esperar a que chegue sua majestade a rainha das ilhas Sandwich? perguntou Leda. A dama de companhia respondeu com uma corrente de palavras em japons.

Leda fez uma inclinao e se ergueu sem saber o que fazer. As damas colocaram suas plidas e diminutas mos no colo e baixaram a vista. Durante duas horas, at a entrevista das dez com a rainha das ilhas Sandwich, permaneceram na mesma postura enquanto Leda, de p, fazia companhia

a aquele reduzido e paciente grupo de damas, que no moviam a vista nem direita nem esquerda, mas que, de vez em quando, falavam-se em sussurros. A nica pausa naquela tortura deliciosa foi quando madame Elise teve a presena de nimo de enviar uma bandeja de ch e bolos da

que as damas deram conta com discreto entusiasmo e em meio de mais risadas. Pareciam bonecas sorridentes, pequenas e cheias de acanhamento. Havia tal silncio no salo que todos puderam ouvir a carruagem quando por fim se deteve a entrada, assim como as vozes em ingls na porta. Leda sentiu

um alvio tal que se esqueceu da dor de costas que sofria e fez uma profunda reverncia. As ilhas Sandwich -disse esperanada, indicando as janelas. Todas as damas japonesas levantaram a vista, sorriram e fizeram distintas inclinaes. Depois de uns momentos, apareceu na porta o grupo

do Hava. Uma dama de aspecto imponente, que se movia com lentido, entrou no salo em primeiro lugar, embelezada com um vestido matinal de seda morada que lhe sentava como uma luva e que seu amplo busto enchia com opulncia. Depois dela ia uma dama igual de elegante e volumosa, um

pouco mais jovem e bela, de pele escura e largas bochechas, de aparncia majestosa. Madame Elise se adiantou e fez uma profunda reverncia. A segunda dama daquele impressionante casal disse em um ingls agradvel e perfeitamente compreensvel: Bom dia. Com um gesto da cabea indicou dama

vestida de seda Esta minha irm, sua majestade a rainha Kapiolani. Depois de exalar um suspiro de alvio perfeitamente audvel, madame Elise retomou seu sotaque francs. A humilde casa de madame Elise se honra com a presena de sua majestade -disse com lisonja, ao tempo que indicava

s damas que a acompanhassem. Depois das damas havaianas, o resto do grupo ficou na porta. Leda levantou a vista e, por um breve instante, esqueceu-se de suas maneiras e lhes dedicou um olhar de aberta admirao. Junto soleira estavam as duas mulheres mais belas que Leda

tinha visto no mesmo lugar e ao mesmo tempo. Com as mesmas mas do rosto bem definidos, a mesma pele deliciosa, o mesmo cabelo escuro e reluzente e idnticos olhos maravilhosos, me e filha formavam uma imagem fascinante. Vestiam com simplicidade. Lady Ashland, de azul escuro, levava uma armao mnima e evitava

assim o exagerado perfil de ave de curral que conferia a Leda o traje xadrez. Sua filha, Lady Catherine segundo a ficha protocolar, vestia cor rosa plido de debutante e sob a saia levava um meio mirinhaque que lhe dava uma aparncia mais moderna e um pouco mais de amplitude.

Madame Elise seguia ocupada tratando de estabelecer comunicao entre a rainha das ilhas Sandwich e as damas japonesas, assim Leda se adiantou a receber Lady Ashland e a sua filha. Lady Ashland lhe dirigiu um sorriso amvel que mostrou as linhas que o sol tinha deixado em torno

de seus olhos e que sua filha no tinha. Deve estar muito ocupada -disse com naturalidade. No a entreteremos muito tempo: a rainha queria um vestido matinal especialmente feito por madame Elise. Pediu-nos que lhes digamos que no necessrio que tenham pressa em confeccion-lo. Leda sentiu ao ponto o

desejo de dar preferncia s amizades daquela dama to agradvel e as passar por diante das demais. uma honra e um prazer servir a sua majestade, senhora. E nos sentiremos agradados de ajudar a sua senhoria em tudo o que deseje. Para ns no representa problema algum.

Lady Ashland ps-se a rir e encolheu os ombros. Bom, eu no sou nenhuma louca pela moda, mas possivelmente -e dirigiu um olhar interrogante a sua filha. Leda descobriu que mechas prateadas salpicavam o cabelo negro como asas de corvo da dama. Gostaria de algo para voc, Kai?

Ai, mame! No seja boba -disse lady Catherine com um marcado sotaque americano . Sabe que eu gosto dos espartilhos tanto quanto

como voc. Inclinou a cabea e sorriu a Leda com confiana. que no suporto essas coisas horrveis. No usavam espartilho? Lady Catherine tinha a fortuna de contar com uma silueta que resultaria elegante at com um saco de farinha em cima, mas no usar espartilho? Leda sentiu que

a senhorita Myrtle se revolvia em sua tumba. Temos um algodo suo muito fino em rosa claro -disse em voz alta, com o que se poderia fazer um vestido matinal. Muito cmodo e leve, ao mesmo tempo elegante. A mais jovem das duas mulheres lhe dirigiu um olhar

por debaixo das pestanas em que havia um sutil brilho de interesse que Leda reconheceu imediatamente. Sorriu e indicou os mostradores com a mo. Lady Tess A voz doce e profunda da princesa havaiana deteve seu avano. Parece que h um problema com o cortejo imperial. Toda

esperana de que a rainha das ilhas Sandwich se comunicasse com as damas japonesas parecia haver-se esfumado. Madame Elise dava amostras de sentir-se curvada no meio do grupo de estrangeiras; algumas das japonesas se empenhavam em desenhar no ar forma vagas que pareciam no ter significado algum para a rainha e sua

irm. No temos intrprete explicou Leda a lady Ashland, mas parecem insistir em algo que nenhuma de ns capaz de compreender. Samuel! disseram de uma vez lady Ashland e sua filha. Ele j partiu? gritou lady Catherine, ao tempo que corria para a janela,

abria-a de repente e aparecia. Samuel! gritou em tom muito pouco prprio de uma dama. Man Kane, espera! A voz adquiriu um tom carinhoso . Necessitamos que venha, Man, e que nos tire de outro apuro. Lady Ashland ficou imvel e no fez o mnimo gesto para impedir a amalucada

exibio de sua filha. Lady Catherine voltou da janela. Encontrei-o a tempo! O senhor Gerard se encarregar de traduzir disse lady Ashland. Claro que o far, fala um japons perfeito afirmou Lady Catherine ao tempo que fazia gestos de nimo ao grupo de damas

orientais. Que sorte que tenha vindo conosco esta manh! A Leda a circunstncia pareceu incrivelmente afortunada, j que supunha que no podia haver muita gente com um dom to singular como era falar japons perfeitamente, e que, alm disso, coincidisse em andar por Londres nesses momentos acompanhando a umas damas

a uma casa de modas. Mas, claro, lady Ashland e sua filha viviam mais perto do Japo. Ou, pelo menos, assim acreditava Leda. Tampouco tinha muito clara a situao das ilhas Sandwich. Virou-se para o vestbulo, esperando ver um desses bigodudos homens de negcios ianques que pareciam ter

estado em todas as partes com seus elegantes coletes e suas vozes muito altas. O lacaio entrou no salo e, com

aquele tom de voz prodigioso no que madame Elise insistia porque, segundo ela, causava o efeito majestoso adequado, anunciou: O senhor Samuel Gerard! A estadia cheia de mulheres guardou um silncio pouco corrente quando o senhor Gerard apareceu na porta Houve uma tira de ar

coletiva das fmeas ante sua presena: a de um dourado arcanjo Gabriel, o cabelo ligeiramente alvoroado pelo vento, que tivesse descendido a terra, e ao que s lhe faltavam as asas. O moo Hava, 1869 (dezoito anos antes) Justo ao lado da passarela, que retumbava e

corredor baixo as pegadas dos outros passageiros ao descer, estava ele no mole, em silncio. As pessoas passavam ao seu lado e corria para outras pessoas com as que formavam grupos nos que as lgrimas e as risadas passavam. Ele moveu os ps, machucados pelos sapatos novos que tinha reservado na escola

em Londres. Morria de vontade de morder um dedo. Para impedi-lo, teve que agarrar as mos com fora s costas. Viu mulheres com chamativos trajes de cor amarela e vermelho escarlate, com largas grinaldas de folhas escuras em torno do pescoo, e homens que s se cobriam com calas e

colete ou um chapu de palha. Entre a multido havia jovens montadas sobre cavalos: moas de pele escura, sorridentes, com longas cabeleiras negras e coroas de flores na cabea, que moviam as morenas pernas sobre suas montarias e saudavam com gritos e com as mos aos cavalheiros que passavam nas carruagens e

s damas com seus guarda-sis. Detrs de tudo estavam as verdes montanhas, que se elevavam entre a bruma e um arco ris duplo que se estendia por todo o cu. Quando estava a bordo, tinha tido medo de sair do camarote. Durante toda a viagem, no tinha movido daquele espao

estreito, mas dele, nas profundidades da nave, ali onde as mquinas de vapor vibravam e reinava o fedor a carvo, e o garom lhe levava toda a comida que podia comer. Ali tinha estado escondido at essa manh, quando tinham ido dizer lhe que se vestisse com suas melhores roupas,

porque o navio j tinha dobrado o cabo Diamond e tinha posto proa para o porto de Honolulu. Agora o ar cheirava bem, tinha um aroma estranho e fresco, limpo como o cu e as rvores. Aquelas rvores eram estranhas, no se pareciam com nenhum que tivesse visto at ento, coroados por

exticos penachos que reluziam e ondeavam sobre os altos troncos nus. Nunca na vida tinha cheirado um ar to limpo, nem havia sentido um sol to brilhante e to quente nos ombros. Estava ali sozinho, tratando de passar inadvertido e de fazer-se notar de uma vez, e aterrorizado de que

se esqueceram dele. Sammy?

Era uma voz doce, como a brisa que lhe alvoroava o cabelo e lhe metia nos olhos as douradas mechas. Deu-se a volta ao tempo que, com rapidez, umedecia-se os dedos para pr em seu lugar a mecha rebelde. Ela estava a to somente uns passos e levava sobre o brao

uma grinalda de alegres flores. O moo olhou aquele rosto. No ar ressonavam os gritos e o batepapo incompreensvel dos meninos nativos. Algum passou atrs dele e, ao faz-lo, empurrou-o meio passo para ela. A dama ficou de joelhos, rodeada da ampla saia da cor da lavanda, e lhe

abriu os braos. Lembra-te de mim, Sammy? Ficou olhando-a com impotncia. Que se lembrava dela? Ao longo de todos aqueles dias solitrios e de suas odiosas noites; em todas as lbregas estadias onde lhe tinham posto as mos e tinham feito o que gostava com ele; durante cada

um daqueles dias, daquelas semanas, daqueles anos de sofrimento em solido, tinha recordado. O nico rosto resplandecente de sua vida. As nicas palavras carinhosas. A nica mo que se elevou para proteg-lo. Sim, senhora -disse entre sussurros. Lembro-me. Sou Tess -disse ela, se por acaso o moo no

estava completamente seguro. Lady Ashland. Ele assentiu, e descobriu que tinha o punho apertado contra a boca. Com um gesto rpido e torpe, obrigou-se a baixar a mo rebelde. Colheu-a com a outra e a imobilizou depois das costas. Alegra-me tanto ver-te, Sammy! Seus braos seguiam

abertos em convite ao abrao. Olhou-o com aqueles belos olhos azuis esverdeado. O moo tinha um grande n na garganta que lhe impedia de respirar. No me deixa que te abrace? Sem dar-se conta, os ps cobertos pelos incmodos sapatos o impulsionaram para diante, primeiro um passo, depois

a tudo correr, at cair naqueles braos com tal mpeto e estupidez que se sentiu estpido e avermelhou de vergonha. Mas ela, depois de um leve gemido, estreitou-o com mais e mais fora, ps-lhe a grinalda de flores e apertou sua suave face contra a dele. O rosto da dama estava mido.

O moo se sentiu como se o estivesse espremendo, e aquele n na garganta se converteu em uma dor aguda, como se algo estivesse tentando sair e no o obtivesse. Ai, Sammy -disse ela. Ai, Sammy. Quanto tempo nos levou te encontrar. Sinto muito, senhora. As palavras ficaram

afogadas entre as flores e a suave renda do vestido da dama. Ela o separou de si sem solt-lo. No teve voc a culpa! Em sua voz havia risadas e lgrimas de uma vez. Deu-lhe um leve tranco. Voc merece cada minuto de busca. Oxal esses odiosos detetives

lhe tivessem encontrado antes. Quando penso em onde estiveste

O moo se limitou a olh-la. No sabia nada nem de detetives nem de buscas e desejava que ela no tivesse a mnima idia de onde tinha estado. Baixou a cabea. Sinto-o -repetiu. No sabia no tinha outro lugar aonde ir. Ela fechou os olhos. Durante um

instante de tortura, o moo pensou que o fazia por repugnncia, e que ele a merecia. Sabia que tinha que merec-la. No deveria ter permitido que aquelas coisas lhe acontecessem; deveria ter feito algo; no deveria ter tido medo nem haver-se sentido impotente. Mas a dama no se separou dele.

Em seu lugar, atraiu-o para si de novo com fora em um abrao apertado, quente, que cheirava a brisa e a flores. Nunca mais -disse com ferocidade. Sua voz se cortou, e ele soube que estava chorando. Esquea de tudo, Sammy. Esquece tudo at hoje. Agora voltaste para casa.

A casa. Deixou que o estreitasse contra ela, afundou o rosto no frescor das flores e ouviu uns sons estranhos e suaves que saam de sua prpria garganta, uma espcie de choramingao que teria envergonhado a um menino pequeno. Tratou de afog-lo, e tentou falar como algum que j no era

um menino, porque j no o era; tinha j oito anos, ou poderia ser que fossem nove, e deveria ser capaz de dizer um pouco adequado. As lgrimas da dama cobriram as faces de ambos e ele desejou ao menos poder chorar, mas tinha os olhos secos e de sua garganta seguiam

escapando aqueles rudos estranhos Estou em casa, queria dizer, e Obrigado, obrigado. Em casa Leda tinha ficado olhando-o. Deu-se conta de que o estava fazendo, mas no antes que Samuel Gerard lhe dirigisse um olhar direto, e de que por um instante seus olhares se cruzassem: o dela

paralisado, o dele prateado, ardente e maravilhoso, absolutamente deslumbrante naquele rosto masculino de uma perfeio sem mancha, desumana perfeito perfeito, com uma perfeio alm da meramente artstica de um rosto esculpido em mrmore, alm de tudo, s acessvel em sonhos. Foi um momento do mais estranho. Olhou a Leda como

se a conhecesse e no esperasse encontrar-lhe ali. Mas ela no o conhecia. No o tinha visto jamais. O olhar se separou dela. Lady Catherine lhe aproximava, lhe falando com voz tranqila e familiar, como se fosse o mais natural do mundo conversar com aquele arcanjo que tinha descendido das

alturas para mesclar-se com os humanos. Os lbios do homem se curvaram ligeiramente, sem chegar a desenhar por completo um sorriso ante lady Catherine, mas de repente Leda pensou: Se gostam.

Claro. Formavam um casal que quase tentava ao destino, de to bem que encaixavam. Uma beleza de pele escura e um deus radiante que brilhava como um sol. Pareciam feitos um para o outro. Ah, bem. Explique-nos, o que tratam de nos dizer estas pobres damas?

inquiriu lady Catherine e o obrigou a segui-la. Soltou-lhe a mo e fez uma elegante reverencia ante cada uma das damas japonesas que permaneciam sentadas. O sol da manh que entrava pelas janelas se posou nele como se lhe conferisse um favor especial, fez brilhar o ouro de seus cabelos

e os encheu de luz at as razes. Quando se ergueu e levantou a vista -que pestanas mais formosas tinha, espessas e largas, muito mais escuras que o cabelo comeou a falar com aquelas slabas entrecortadas e estranhas do idioma das damas, e fez uma nova inclinao cheia de corts deferncia antes

de terminar seu breve discurso. A mais jovem das damas respondeu com uma corrente de palavras e gestos e, em uma ocasio, inclinou ligeiramente a cabea para a rainha Kapiolani com tmido sorriso. Ele voltou a fazer perguntas. A dama, entre risadas, desenhou no ar um perfil que

percorreu seu prprio torso e descendeu at chegar aos ps. O senhor Gerard fez uma nova reverncia quando ela terminou e olhou para a rainha e sua irm. Trata-se de um assunto relacionado com a moda, senhora. De um vestido determinado. Como no caso de Lady Catherine, seu

sotaque era mais americano que ingls, e falava com tom srio, como se o futuro das naes dependesse daquilo. Sua majestade a rainha Kapiolani usou na corte um vestido branco. assim, senhora? Ricamente bordado? E fez com rapidez um gesto vago com a mo, uma espcie de cpia masculina do movimento

descritivo da princesa japonesa. Um ligeiro rubor lhe cobriu o pescoo. Solto? Sem n? Sem espartilho -disse lady Catherine com toda sensatez. O rosto do senhor Gerard adquiriu um profundo tom vermelho sob a pele bronzeada. Apartou o olhar. Todas as damas, qualquer que fosse sua nacionalidade, comearam a sorrir.

Que absurdos e encantadores eram os homens! Sim -respondeu a princesa, o muumuou de seda japonesa. E se dirigiu a sua irm em outro idioma, neste caso mais musical e belo que o japons. O senhor Gerard sorriu. De seda japonesa, ento?

Falou de novo com as damas orientais, que lhe responderam com agradecidos gestos de assentimento e ficaram a conversar, dando amostras de grande interesse. O senhor Gerard olhou de novo para o outro grupo e traduziu suas palavras. Desejam lhe agradecer a sua majestade a grande honra conferida a seu

pas.

Houve um intercmbio de saudaes nesse momento, e todo mundo se mostrou encantado com outros. Madame Elise aplaudiu e retomou sua exagerada atitude francesa. Por suposto, o traje solto de brocado branco, cortado ao estilo havaiano. Vi-o descrito em uma pgina da revista real -disse obsequiosa, revoando ao redor.

Possivelmente o que suas altezas muito serenas queiram copi-lo, sempre que sua majestade conceda a graa, de permit-lo. Parecia que assim era. Sua majestade se mostrou encantada de conceder aquele favor as suas estimadas parentas reais japonesas. Enviaram um lacaio a procurar o objeto em questo ao hotel; enquanto

isso terei que selecionar a malha. Teria que ser um brocado em tons plidos, e o pobre senhor Gerard, ao fazer de intrprete, viu-se apanhado sem remdio na rede da diplomacia internacional da moda. Leda se apressou a descobrir o que podia oferecer o armazm. Retornou com cinco peas de

seda branca e bege em uma pilha que lhe roava o nariz. Nada mais entrava no salo, o senhor Gerard se aproximou dela e lhe tirou aquele enorme peso dos braos de uma s vez. No, no, por favor -disse ela com o flego um pouco entrecortado. No se incomode,

senhor. No nenhum aborrecimento -respondeu ele com doura enquanto colocava sobre o mostrador as peas de tecido. Leda baixou a vista e fez como se ocupasse das sedas. Quando olhou por debaixo das pestanas, viu que ele continuava contemplando-a. No era capaz de compreender o

que aquele rosto mostrava. No momento em que o descobriu olhando-a, ele deu a volta, e Leda no pde decidir se aquele interesse era sozinho produto de sua imaginao esperanada. No era que quisesse que ele mostrasse interesse; no naquele lugar, ali jamais. Isso no poderia suport-lo: o tpico interesse que mostra

um homem por uma jovem que trabalha em um salo de modas. No era mais que uma fantasia por sua parte. A beleza daquele homem era to impressionante Um autntico presente para a vista que no podia a no ser admirar. Mas era curioso. Em certa forma, aquele homem lhe

resultava familiar. E, entretanto, aquele rosto masculino perfeito era inesquecvel; at sua forma de mover-se era algo nico, com aquela graa controlada e concentrada que exibia embainhado em um conservador traje escuro, traje prprio da manh, com jaqueta de lapelas amplas. Suas largas costas, sua alta silueta, aquelas impressionantes pestanas negras e

os olhos cor cinza j tinham ficado gravados de forma indelvel na memria de Leda. O nico que lhe ocorria era que talvez, em alguma ocasio, tivesse visto a ilustrao de um heri resplandecente em um livro, de um prncipe azul em seios arreios brancos e que agora o tinha ali diante,

no salo de madame Elise, em atitude pensativa, cheio de compostura, rodeado de sedas de cores e do falatrio das mulheres.

As demais jovens empregadas do salo aproveitavam qualquer desculpa para falar com nele. A notcia da presena do senhor Gerard se estendeu. Enquanto Leda desdobrava um brocado de cor marfim sobre o mostrador, captou uma risada dissimulada da senhorita Clark, que se mostrava da mais atarefada e se dedicava a ordenar

um mostrador que estava em perfeita ordem. Leda tratou de faz-la controlar-se, fazendo caso omisso daquele sorriso. A senhorita Myrtle tinha sido da opinio de que os homens eram uma sorte de imposio no mundo, no muito aceitveis como tema de conversao, com a nica exceo daquele homem inominvel, quem evidentemente era

a soma total em si mesmo, o mostrurio completo de todas as distintas formas de depravao nas que o ser humano pode cair. Aquele homem inominvel, portanto, resultava perfeito como tema de conversao, e de fato, para benefcio de Leda e de sua educao, ao longo dos anos, tinha sido objeto de

toda sorte de improprios com surpreendente regularidade no salo da senhorita Myrtle. Era algum autenticamente terrvel, sem dvida alguma o era. Cada vez que Leda estendia uma nova pea de malha para sua inspeo, lhe tirava a anterior das mos quando se dispunha a enrol-la de novo e

envolvia-o mesmo o tecido, levantando com facilidade o considervel peso da malha. E o fazia, alm disso, sem lhe outorgar a mnima importncia; sem deixar de traduzir do japons ao ingls e viceversa enquanto trabalhava ao lado de Leda e enquanto madame Elise, a sua vez, sustentava as distintas malhas ante

a janela e explicava como se veriam luz das velas ou dos abajures de gs. Quando caram as tesouras de prata de Leda, ele as recolheu e as devolveu. Leda as aceitou com um murmrio agradecido e se sentiu cheia de vergonha, atordoada como uma solteirona nervosa, quando a

mo sem luvas do homem roou a sua. Estava to absorta em contempl-lo com dissimulao que teve um susto quando o lacaio lhe murmurou algo ao ouvido. Baixou o olhar e viu na mo enluvada uma carta com monograma, selada com uma coroa. Para mademoiselle toile. E o

criado a entregou. Todos a olharam exceto madame Elise, que continuou falando sem pausa. Leda sentiu que o rubor lhe alagava as faces. Tomou a carta das mos do criado e a escondeu s suas costas, desesperada por no ter bolsos. A voz de madame Elise com seu

falso sotaque francs no se detinha, mas, de sbito, levantou a vista e olhou diretamente por volta de Leda durante uns instantes. Leda deixou cair a carta ao cho e a cobriu com o vo de sua saia. Tragou saliva, baixou o olhar e com mos torpes se ocupou da seda que

havia sobre o mostrador. No precisava abrir a carta. Tampouco tinha necessidade alguma de examinar com ateno a coroa que a adornava. Carecia de importncia a identidade do aristocrata dono do selo: uma nota dessas caractersticas s podia significar uma coisa, e ter um nico fim.

Isso era o que a senhora Isaacson tinha tido em mente quando disse aquilo de verei o que se pode fazer. Leda se sentiu horrorizada e humilhada, furiosa com a senhora Isaacson, e a seguir cheia de desgosto ao pensar que possivelmente era isso o que sua chefa tinha pensado que

lhe estava pedindo. Muitas das jovens empregadas saam com homens mas no Aquela no era forma de fazer as coisas, diante do resto das garotas e dos clientes. Tinha-na etiquetado em pblico, sua posio tinha ficado ao descoberto. Tinham-na vendido pelo preo do uniforme de seda xadrez do salo e

por um distintivo. A seu redor o trabalho seguia seu curso. Quando reuniu foras suficientes para levantar a vista, as damas japonesas se ocupavam de fixar a hora para que a primeira costureira fosse ao hotel a tomar medidas. Em meio de tudo, o senhor Gerard seguia com a traduo.

Ele tambm teria visto a carta. Todos a tinham visto, mas obvio ningum emprestava ateno aos assuntos de uma mulher empregada no salo de uma costureira. As damas japonesas se levantaram para partir. Leda no teve eleio; viu-se obrigada a apartar do lugar no que tinha atirado a carta

com tanto mpeto para atender ao grupo do Hava enquanto madame Elise acompanhava s outras damas porta. O senhor Gerard foi com elas at a carruagem. Antes que Leda pudesse agarrar a carta de forma discreta, Lady Catherine a chamou por seu nome, impaciente por comear ela a escolher. Leda acabava

de tirar o algodo suo de cor rosa para ela e uma seda esmeralda lustrada para a rainha Kapiolani, quando o jovem retornou. Vem e nos diga, Man. Lady Catherine colocou o tecido rosa ao redor do pescoo e adotou uma atitude coquete. Como v isto na sua fantasia masculina?

Para cruzar a estadia ele teve que passar parte de tapete onde se encontrava a carta, mas no olhou para ela nem para a Leda. Mas, justo naquele momento, Lady Catherine descobriu a carta e a assinalou. Parece-me que senhorita toile deixou cair sua nota.

No amistoso sorriso americano que dirigiu a Leda no havia outra coisa que inocncia . Por que no a recolhe? O jovem deu a volta e se inclinou. Cheia de horror, Leda aceitou o envelope. Ele a entregou com a direo para cima, mas o selo com a coroa tinha

estado visvel no lugar onde tinha cado a carta. No foi capaz nem de lhe dizer obrigado. Era-lhe impossvel levantar o olhar. Quando Lady Catherine reclamou alegremente que o cavalheiro voltasse a emprestar ateno cambraia sua rosa, Leda desejou estar morta e a salvo da humilhao, escondida sob uma

lpide sem nome em um recndito cemitrio a milhas de distncia. Mas decidiu no fazer uma coisa to baixa como morrer de vergonha em companhia de outros. Agachou a cabea e com muita calma ajudou

rainha Kapiolani a tomar uma deciso com respeito ao cetim de cor verde esmeralda. Assistiu a Lady Catherine e a sua me a escolher um patro adequado para o vestido matinal. Escutou o bate-papo distendido entre o senhor Gerard e as damas havaianas, que agora que o tinham a sua merc

no permitiam partir. Era bvio que se conheciam entre eles igual de bem que os membros de qualquer famlia: at as majestosas e elegantes damas do Hava o tratavam com ar maternal, e sorriam indulgentes quando as outras se mofavam dele e tiravam o sarro pelo desconforto to masculino que mostrava quando

tinha que dar sua opinio sobre os modelos. E de forma brincalhona, embora afvel, para Lady Catherine sua opinio era lei e descartava qualquer padro que no contasse com a aprovao do cavalheiro. Esto apaixonados -pensou Leda. obvio. Porque no estariam? Leda no se moveu do lado

das damas: proporcionou-lhes revistas de moda, colocou distintos modelos sobre o manequim forrado de tecido, acompanhou lady Catherine a um provador detrs declarar a dama daquela forma to americana e resolveu que era um sem sentido obrigar primeira costureira a ir at o hotel onde se alojava quando o considerasse oportuno,

quando ela se encontrava ali e podiam tomar medidas. E, de repente, a visita chegou a seu fim e Leda se encontrou fazendo uma reverncia enquanto o senhor Gerard tomava a sua majestade pelo brao e a acompanhava ao vestbulo. A princesa e lady Ashland foram atrs deles. Lady Catherine

se atrasou um instante, apoiou uma mo no brao de Leda e disse: Muitssimo obrigado. Eu sempre hei dito que odeio ir costureira, mas esta vez foi muito divertida. Leda fez um gesto de assentimento e esboou um sorriso forado, aterrorizada de que aquela ingnua jovem lhe

pusesse uma gorjeta na mo, como se de um guarda-florestal ou uma garonete se tratasse. Mas lady Catherine se limitou a lhe dar um aperto amistoso no brao, e a soltou imediatamente para apressar-se a alcanar a sua me. Leda retornou ao mostrador, agarrou o selo da coroa e saiu

disparada escada acima para o deserto corredor dos quartos antes de deter-se, ofegante, e rasg-lo at abri-lo. Minha querida mademoiselle toile: Na tera-feira passada no baile a admirei de longe, enquanto se ocupava junto de madame Elise de fazer os ajustes aos trajes das damas. Mas sou da

opinio de que algum como voc deveria contar com um bonito traje prprio, e me sentiria muito honrado de poder proporcionar-lhe pessoalmente, por meio de um vestido o tom com sua pessoa. Fico devotamente as suas ordens. HERRINGMORE Leda apertou a nota entre os punhos e a rompeu

pela metade. Por aquilo no passava; no permitiria que a insultassem assim a admirei

de longe. Semelhante indecncia! Nem sequer sabia quem podia ser o tal Herringmore, e obvio no sentia o mnimo desejo de que o apresentassem. Que coisa mais horrvel e mais vulgar que a comessem com os olhos como se de uma criada cabea-de-vento se tratasse. Deveria ter sido

datilgrafa. Todas as damas de South Street tinham sido contra, j que a considerava uma profisso descarada e atrevida, pouco apropriada para uma senhorita de educao gentil. Mas seguro que as datilgrafas no se viam obrigadas a suportar algo assim. Admirada de longe, sim homem! Mida desfaatez! Baixou a escada

com mpeto e atirou os pedaos de papel pela janela aberta do patamar. J no quarto de banho, arrancou o enfeite do cabelo e quase desloca um brao com a pressa por chegar aos botes e despojar o odioso vestido. Coberta j com a blusa e saia prprias, dirigiu-se com

passo firme ao salo a plantar o rosto na frente de madame Isaacson-Elise, aquela descarada falsa e repugnante, e a arrasar tudo a seu passo. A distncia entre o Regent Street e Bermondsey era tal que, sempre que tinha dinheiro suficiente, Leda tomava o nibus ou o trem. A zona

em que vivia era horrvel e estava no limite externo de um bairro que, conforme imaginava -j que nunca se atreveu a entrar nele, a to s umas ruas de distncia da sua devia converter-se em um autntico subrbio. Mas se tinha considerado afortunada ao encontrar uma habitao ali depois de descobrir

que com duas libras e dez xelins ao ms, que inicialmente tinha considerado um salrio muito bom, era muito pobre para permitir o quarto com sala que tinha alugado ao princpio em Kensington. Tinha necessitado que passasse algum tempo para dar-se conta por completo da realidade de sua nova situao.

De momento, aquela habitao no sto de uma das casas velhas que se amontoavam junto a um canal do rio, com seus toldos torcidos e as venezianas rotas, era dela, ao menos, calculou, at final de ms. Pagava pontualmente seu aluguel, por isso contava com a aprovao da caseira, que imediatamente reparou

janelas e fechaduras, mas Leda tinha a intuio de que deixaria de ser objeto de seu favoritismo se a mulher descobrisse que tinha perdido seu emprego. Aquela situao no ia durar muito, obvio que no. Leda iria visitar as damas de South Street e elas lhe proporcionariam as referncias

que madame Elise lhe tinha negado e comearia de novo, esta vez como datilgrafa, que era o que deveria ter feito desde o princpio. Nesta ocasio decidiu ir a p. Tinha que abrir a caixinha de lata e estudar seu caderno de contas para saber de verdade qual era sua

situao. Como no queria chegar muito cedo para no levantar suspeitas na mente da patroa, deteve-se ao chegar a Strand e entrou em um dos sales de ch para damas, onde bebeu uma taa da infuso e deu conta de um sandwich de pepino. Depois comprou um po-doce extra e ficou na

mesa junto aos alegres cortinados de renda todo o tempo ao que lhe dava direito ter pagado trs piniques. Esse dia no tinha que carregar com a cesta dos vestidos, assim colocou o po-doce intacto na bolsa enquanto percorria o cais junto ao rio e se unia mar

de pedestres, carromatos cobertos por lonas e carruagens de aluguel que cruzavam a Ponte de Londres em direo aos fedorentos distritos industriais do lado sul do rio. Neste ponto, preferiu abandonar o ritmo pausado e acelerar o passo para seguir seu caminho com vigor, rodeada da multido e os furges

de partilha. Era incmodo caminhar sem companhia; no desejava que tomassem por uma dama de moral duvidosa. Mas a senhorita Myrtle sempre havia dito que a qualidade falava por si s, de modo que Leda manteve o queixo erguido e o passo elegante, fazendo caso omisso no possvel das esfarrapadas figuras que

se amontoavam em sombrios portais e pululavam em torno das bancas que serviam caf. A primeira quebra de onda de aromas que a assaltou ao outro lado da ponte foi agradvel e interessante: essncia de lrios, ch, azeites de pinheiro e palisandro que vinham do mole de H, mescla de

aromas procedentes do vasto mundo que tinham chegado at Londres e exalavam seu perfume do interior dos armazns. Um ancio de estranha e vcua expresso se aconchegava junto a uma luz. A seu lado deitava ofegante um cachorrinho raqutico e esqueltico, que vigiava o contnuo fluxo de sapatos e calas que passavam

por seu lado. Leda seguiu adiante. Uns metros mais frente deu a volta bruscamente enquanto rebuscava na bolsa. Voltou atrs, depositou o po-doce nas mos do ancio e continuou seu caminho enquanto o homem murmurava algo a suas costas. Ouviu a choramingao impaciente do cachorrinho. Um trem da linha

de London Bridge passou com fragor a seu lado para entrar na estao. Era o mesmo estrondo que, com a regularidade de um despertador, interrompia seu sonho todas as manhs s cinco. Naquele ponto, o aroma de vinagre alagava os arredores, mas, em sua opinio, poderia ter sido pior em uma zona

industrial como aquela: de vez em quando, quando o vento soprava do este, chegavam-lhe baforadas do fedor dos curtumes e, s vezes, procedente do hospital, o aroma sutil, mas repugnante do clorofrmio. Vrios grupos de moleques de rua lhe dirigiram gritos sem muito entusiasmo ao passar, mas Leda fez caso omisso deles,

e se dedicaram de novo a arranhar os dedos dos ps descalos e a olh-la com fixidez. Em sua rua os meninos estavam mais cuidados. O casal de dspotas que vivia na casa vizinha tinha uma espcie de orfanato e, s vezes, acolhia a meninos procedentes do asilo e os

mantinha escrupulosamente limpos e bem vestidos e faziam que se comportassem com correo; nunca lhes permitiam brincar de correr pelas ruas entre a sujeira, e tratavam de lhes encontrar benfeitores e de lhes facilitar as coisas. No ms anterior se foi dali um menino belo, depois de ter sido adotado por um

cavalheiro benevolente, como Oliver Twist no romance do senhor Dickens.

At esse momento, a imaginao de Leda lhe tinha feito pensar que possivelmente aquela casa era em realidade como a do livro: um lugar em que ensinavam aos meninos a ser ladres. At tinha pensado em fazer polcia partcipe de suas suspeitas, mas lhe tinha dado medo que rissem dela.

Ou, o que era pior, que a sua patroa no fizesse graa aquela demonstrao de esprito cvico. obvio, a senhorita Myrtle jamais teria fraquejado em um propsito assim, mas Leda tinha descoberto que o que no South Street parecia to evidente e carregado de razo no estava to claro que fosse

apropriado em Crucifix Lane, Oatmeal Yard ou The Maze. Quando passou ante a grade de ferro forjado da delegacia de polcia de da esquina, deteve-se para desejar boa noite ao inspetor de guarda. Mas era um pouco antes de sua hora acostumada e o inspetor Ruby ainda no tinha chegado.

Encarregou ao jovem polcia que ali se encontrava que lhe transmitisse suas saudaes, e o agente levou a mo cabea em gesto de respeito e lhe assegurou que assim o faria. Continuou por uma rua do largo de uma ruela, com casas engessadas, mais velhas que a rainha Isabel,

e caladas enlameadas. Afastou seus pensamentos do lugar e se concentrou na imagem de uma mquina de escrever nova e reluzente, e conseguiu chegar at o p da escada da casa de hspedes antes que a senhora Dawkins aparecesse com seu andar desajeitado na porta de seu diminuto salo. A silueta da

patroa apareceu ante ela, iluminada por um raio de luz tnue que caa sobre o corrimo e os trs primeiros degraus, e que era a nica iluminao existente nas profundidades tenebrosas do vestbulo. Veja, se no voc? Apoiou um brao carnudo no marco da porta do salo e olhou

a Leda com seus olhos saltados de cor azul plida, que mostravam o mesmo movimento lento e mecnico que os de uma boneca . Saiu cedo, senhorita. A cabea coberta de cachos oscilou ao falar e as faces se agitaram. A senhora Dawkins sempre tratava Leda com deferncia, mas tinha

uma forma de olhar quando baixava a vista que resultava do mais desagradvel. Sim -respondeu Leda, um pouco cedo. E comeou a subir a escada. Esqueceu-se a cesta -perguntou a senhora Dawkins, a cesta com os bonitos vestidos? Quer que Jem Smollett a ajude a subi-la,

senhorita? Leda se deteve e girou a cabea. Se houvesse a trazido, poderia faz-lo. Mas no o tenho feito. Boa noite. No h cesta? A voz da patroa adquiriu um tom agudo. No a tero despedido, verdade? Leda subiu o seguinte degrau e deu

a volta ao chegar ao patamar. Claro que no, senhora Dawkins. Deram-nos a tarde livre a algumas para que descansemos antes que cheguem os apuros finais. Desejo-lhe boa noite. E, depois de repetir a saudao, apressou-se escada acima seguida do trmulo murmrio da patroa. Aquilo no podia funcionar.

A senhora

Dawkins conhecia suas hspedes, e era evidente que a mnima alterao em seus costumes seria motivo suficiente para que suspeitasse que as circunstncias tivessem mudado. Leda recolheu a saia e mordeu os lbios quando chegou ao ltimo patamar, antes do lance mais ngreme da escada. Ao chegar acima, abriu com chave

a porta de sua habitao, entrou e fechou detrs de si. O pequeno sto branco lhe pareceu quase caseiro ao pensar no que poderia lhe acontecer se a senhora Dawkins a jogava rua. Sem emprego, s poderia refugiar-se em uma daquelas horrveis penses nas que se alojava a um

monto de gente em uma habitao comum e suas magras economias desapareceriam rapidamente ao preo de quatro piniques a noite com cama, e trs sem ela. O desespero lhe fez pensar em relatar suas circunstncias s damas de South Street, mas a senhorita Myrtle nunca teria rebaixado a mendigar ajuda,

nem de palavra nem de obra. Ir de visita uma manh com normalidade e mencionar que agora lhe resultava mais adequado procurar um trabalho melhor era aceitvel. Reconhecer que estava muito perto de ter que viver na rua no, isso no podia nem queria faz-lo. Abriu a janela de cristal chumbado e

deixou que limpasse um pouco o ambiente carregado da estadia. Sobre o bairro se abatia o aroma de vinagre, misturado com os midos vapores que chegavam do canal. Ainda no tinha escurecido, mas ficou a roupa de dormir e se deitou, fazendo caso omisso das queixas de seu estmago. Um sandwich de

pepino no dava para muito, mas estava cansada e se sentia mais pobre, e comeou a embarg-la uma sensao de pnico pelo que tinha feito. Dormir e esquecer tudo era uma espcie de bno. Ao fechar os olhos, pensou em Lady Catherine e em sua me, e em como sempre

teriam jias que ficar para ressaltar a cor da pele. Depois de flutuar entre imagens vagas e fantsticas, em um torvelinho de sedas e vozes estrangeiras, despertou com um sobressalto e se encontrou com a estadia sumida na escurido. Por um momento, apropriou-se dela a confuso, j que tinha a impresso de

ter dormido apenas uns minutos, no de que tivessem transcorrido horas. O corao lhe pulsava de novo com fora e ressonava em seus ouvidos no meio do silncio circundante. Na lonjura, soou o assobio de um trem em meio da noite, como um som independente e com vida prpria.

Os olhos lhe fecharam embora tentasse mant-los abertos. De algum lugar lhe chegou o sorriso de Lady Catherine, sincera e bela, enquanto posava a mo no brao de Leda. A senhorita Myrtle a urgia a despertar. Acordada, acordada, acordada, mas era incapaz de abrir os olhos. Sentiase to cansada Teria

que dormir na rua, mas no importava. Na canaleta brilhavam umas tesouras de prata. Inclinou-se para agarr-las e a mo de um homem se interps. Estava ali, ali de verdade, em sua prpria habitao. Tinha que despertar tinha que faz-lo tinha que faz-lo No sonho, ele a agarrou pelo pulso,

atraiu-a para si e a rodeou contra o peito. No sentiu medo. No o via, pois no podia entreabrir as pesadas

plpebras. Mas se sentia to segura, rodeada por seus braos, to segura e cmoda Completamente a salvo. Man Kane Hava, 1871 A casa era grande, mas estava acostumando s casas grandes. Adorava as enormes estadias vazias e arejadas com as esteiras de lauhala entretecido sob

seus ps descalos, as colunas brancas e os amplos alpendres chamados lanai, a maneira em que as vozes ressonavam sob os altos tetos e o rumor do oceano sempre em seus ouvidos. Esse dia ps sapatos, j que ia sair com Lady Tess, e um traje marinheiro branco com cs

vermelhos e azuis. Era um traje to imaculado que no gostava de mover-se. No queria danific-lo. Tinha muita roupa, mas preferia a ter guardado, impoluta e perfeita, no armrio ou na cmoda. Era um verdadeiro prazer abrir os mveis e ver os objetos em seu interior perfeitamente dobrados, frescos e sem mcula.

Sentou-se em uma das cadeiras com o olhar fixo na perfeita trana das esteiras do cho enquanto Lady Tess conversava com a senhora Dominis, uma importante dama havaiana. Chegavam at ele retalhos da conversao, incompreensveis palavras de adultos sem interesse algum. Lady Tess lhe tinha perguntado se preferia ficar em

casa a brincar, mas no o tinha feito. Queria estar com ela. Era o que sempre tinha querido. Os melhores momentos eram quando tomava entre seus braos e o abraava, mas tambm lhe agradava que o levasse da mo, ou simplesmente agarrar uma dobra de seu vestido com os dedos e no

soltlo. Lady Tess tinha levado tambm consigo ao Robert e pequena Kai. dama havaiana adorava v-los, Samuel o via claramente. Perguntou-se se a senhora Dominis tinha outro nome em seu prprio idioma, distinto daquele pelo que os estrangeiros a conheciam e que tinha recebido do italiano barbudo

que era seu marido. Quando perguntou a Lady Tess, ela tinha respondido que o apelido da dama era Lydia. No estava mal, mas ele teria preferido ouvir o de verdade. Todos os havaianos tinham nomes estranhos e belos. Aquela senhora era uma dama gentil, de voz profunda e rica, e, alm disso,

tinha a pele morena e com aquele brilho dourado prprio dos ilhus. Quando se agachou para estreitar ao Robert e Kai em um amplo abrao, ambos pareciam muito pequenos e de pele rosada em contraste. Samuel tinha se refugiado detrs de Lady Tess quando a senhora Dominis quis dar um

abrao a ele. No sabia o porqu, j que estava seguro de que lhe teria gostado. Mas Robert e Kai eram os verdadeiros filhos de Lady Tess. Samuel no tinha sobrenome prprio. Sentia-se um impostor com aquelas elegantes roupas. A pequena Kai se acomodou no colo da senhora Dominis e

apoiou a face no amplo seio da mulher havaiana. Robert protestou um pouco ao

ficar parte at que a dama lhe deu um lei3 de sementes de kukui.O menino de quatro anos se sentou a seus ps e se entreteve em desfazer os ns que havia entre as sementes negras e brunidas. Fostes pescar, Samuel? perguntou a senhora Dominis. Assentiu com

a cabea. As damas inglesas e americanas nunca se dirigiam aos meninos em seus sales, mas as havaianas sempre queriam saber o que tinha estado fazendo, com o mesmo interesse que se elas mesmas fossem meninas. Apanhei um Man, senhora. Um tubaro! Era grande? Samuel se

moveu inquieto no assento e respondeu: Bastante grande, senhora. To largo como meu brao? Levantou a vista enquanto ela estendia a mo. O brao era gorducho e brando, no magro como o de Lady Tess. Um pouco mais largo. Matou-o e lhe

comeu isso? Sim, senhora. Golpeei-o com um remo. Kuke-wahine me ajudou a cort-lo em partes. Comemo-nos isso ontem noite no jantar -interveio Lady Tess. Muito bem. A senhora Dominis sorriu ao Samuel. Mat-lo e comer lhe far isso de ti um valente. Olhou-a

com interesse. Sim? Pois claro. Man Kane. O homem tubaro que jamais ter medo a nada no mar. Samuel se endireitou na cadeira, maravilhado ante a idia. Ficou a pensar nela, e se imaginou ser um tubaro que se desliza pelas escuras profundidades do oceano. Inexeqvel

ao medo. Fincando os dentes afiados e terrveis em todo aquilo que representasse uma ameaa para ele. Vou cantar-te uma cano que fala dos tubares -disse a senhora Dominis. E comeou a cantar naquele idioma dele, to musical. Nem sequer era uma cano; no tinha uma melodia, mas

ela marcava o ritmo com os dedos no colo. Samuel escutou fascinado aquela corrente de slabas. Quando terminou, Lady Tess lhe rogou que cantasse outra cano. A senhora Dominis se levantou, sem soltar ao Kai, e se sentou ao piano. Durante o resto da visita se dedicou a tocar conhecidas

canes inglesas, acompanhada por Lady Tess e Robert, enquanto a pequena Kai aplaudia com suas mozinhas sem seguir o ritmo. Samuel continuou sentado. No se uniu a outros. Oculto sob todas aquelas msicas mais meldicas, seguia escutando mentalmente o som profundo e rtmico da cano do tubaro. Colar tradicional havaiano.

Deveria estar casada, querida -disse a Leda a senhora Wrotham. Desgraadamente, a mulher de mais idade no se estendeu em explicaes de como alcanar aquele objetivo desejado, mas sim continuou sentada ao bordo da cadeira, que semelhava uma bobina de linho. No me agrada a mecanografia -continuou

enquanto unia com delicadeza os dedos intercalados de veias azuis. Pensa no que devem sujar as luvas. No acredito que use luvas, senhora Wrotham -disse Leda. Ou, pelo menos, tirarei-me isso quando estiver trabalhando com a mquina. E onde os por? Acumularo sujeira, querida, j sabe o que

acontece s luvas. Fez lentos gestos de assentimento e os cabelos prateados dos cachos nas tmporas se moveram ao compasso sob o gorro, como a paquera tmida de uma jovem de antigamente. Pode ser que tenha uma gaveta no escritrio. Envolverei-os em papel e os meterei nele.

A senhora Wrotham no respondeu, seguiu assentindo com a mesma lentido. Rodeada pelas paredes cor rosa plido e as descoloridas cortinas verde ma, tinha o mesmo aspecto delicado e antigo das grinaldas georgianas de estuque que adornavam o teto e o suporte da chamin. Enche-me de tristeza -disse

de repente imaginar ante um escritrio. Eu gostaria que o meditasse, Leda querida. Pode ser que senhorita Myrtle no tivesse gostado, no cr? Aquela referncia, feita com tom de tenra recriminao, feriu Leda no mais profundo. No havia dvida de que senhorita Myrtle a idia no teria gostado absolutamente. Leda

inclinou a cabea e, presa ao desespero, disse: Mas imagine quo interessante deve ser! Possivelmente chegasse a monopolizar o manuscrito de um autor da categoria de sir Walter Scott. Isso muito pouco provvel querida -respondeu a senhora Wrotham, e seus gestos de assentimento cobraram mais nfase. Do

mais improvvel. No acredito que voltemos a ver ningum da altura de sir Walter em nossa vida. Importaria-te servir o ch? Leda se se levantou consciente da honra que aquela petio entranhava. Era boa idia que a senhora Wrotham solicitasse aquilo dela, j que no havia dvida de que a

possibilidade de que algum dia pudesse nascer um escritor que igualasse a seu autor preferido lhe tinha provocado certa agitao. Enquanto comiam as finas fatias de po com manteiga, apareceu a donzela para anunciar que tinha chegado Lady Cove, acompanhada de sua irm a senhorita Lovatt. Durante um momento, produziu-se

a mesma complicao de sempre ante a porta, j que a senhorita Lovatt se empenhava em fazer-se a um lado e deixar que sua irm a baronesa tivesse preferncia para entrar, e Lady Cove resistia e fazia gestos inteis para que sua irm mais velha entrasse antes. A situao resolveu como de

costume: a baronesa entrou obedientemente em primeiro lugar e olhou agradecida a Leda enquanto esta situava um par de cadeiras para as damas prximas bandeja do ch. Foi como uma volta aos velhos tempos quando a senhorita Lovatt acomodou seu magro corpo na poltrona estofada de cretone4 e

pediu explicaes a Leda de por que se manteve afastada de suas amizades tanto tempo e que motivos tinha tido. Enquanto Leda lutava por dar explicaes sem causar s damas um desgosto desnecessrio por fazer uma descrio muito exata do que entranhava trabalhar por um salrio, Lady Cove a salvou ao dizer

com sua doce voz que era muito de agradecer que Leda voltasse a v-las quando tinha ocasio de faz-lo. Depois das novas incorporaes ao grupo, a conversao derivou por outros roteiros, entre eles, o assunto dos inquilinos da casa da senhorita Myrtle. Tem um ar grosseiro disse a

senhorita Wrotham ao descrever nova senhora da casa. uma mulher a um nariz grande. No fomos visit-la visita. Ele comercializa animais apontou a senhorita Lovatt. Com animais? repetiu Leda. Faz negcios com animais explicou a senhorita Lovatt. Mortos. A grande escala. Depois

dessas palavras, no havia nada que acrescentar. Fora o que fosse o que o cavalheiro fazia com animais mortos a grande escala, era melhor deix-lo imaginao. Produziu-se um momento de respeitoso silncio enquanto todas meditavam sobre o triste destino da casa da senhorita Myrtle, e Leda pensava em sua acolhedora habitao

com o tapete de veludo de Bruxelas e o papel irisado da parede com desenhos azul escuro sobre um fundo de tons rosa e vermelhos. Fez alguma melhora em seu novo quarto, querida? perguntou a Leda Lady Cove. Bom, melhoras Tratou de encontrar a resposta apropriada, algo que

impedisse mais pergunta sobre o quarto que no tinha podido conservar. Ainda no decidi o que vou fazer com ele. Eu no gosto de me precipitar. Sbia atitude -aprovou a senhorita Lovatt. sempre uma jovem muito equilibrada, Leda. Preocupamo-nos com ti, mas acredito que o far muito bem.

Sim, senhora. Leda me h dito que quer ser datilgrafa -anunciou a senhorita Wrotham. Tenho que reconhecer que no me agrada a idia. Pois claro que no! A senhorita Lovatt apoiou a taa de ch sobre a mesa. No, todas ns concordamos em que a profisso de

datilgrafa no era a adequada. A de costureira foi a que acordamos. 4 Tambm conhecido como bramante, tecido encorpado de algodo.

que, sabem? No me senti, quer dizer, no me sinto do todo cmoda com madame Elise -explicou Leda. Nesse caso, tem que trocar de emprego -disse Lady Cove com sua voz amvel de tom lhe sussurrem. O que podemos fazer para te ajudar? Leda lhe dirigiu

um olhar cheio de agradecimento. Ai, Lady Cove, seria toda uma honra para mim, poder contar com referncias -Se interrompeu, consciente de ter exposto a petio de forma muito brusca e pouco elegante. S uma frase, em realidade. Madame Elise se nega, s se for obrigada, e como vocs so

boas por natureza -Mordeu o lbio para frear aquela corrente de palavras. Pensaremos a respeito -disse a senhorita Lovatt. No que no nos alegremos de te dar nossa recomendao, Leda querida, entende-o. Mas possivelmente no teria que te haver precipitado tanto em deixar o emprego com madame Elise para

te fazer datilgrafa. Mas, senhora Tem que atender a conselhos mais sbios, Leda. A profisso de datilgrafa no a adequada. para mulheres de carter forte. Sujariam-te as luvas -acrescentou a senhorita Wrotham. Mas no teria necessidade de usar luvas, verdade? perguntou Lady

Cove com acanhamento. obvio que tem que levar usar luvas, Clarimond. Nesse tipo de trabalhos ter que estar em contato com gente das classes populares: mensageiros, dependentes -As aberturas do nariz da senhorita Lovatt tremeram. Pode ser que at atores. Atores! gritou horrorizada Lady Cove.

Poderiam lhe encarregar datilografar seus papis. Eu vi pessoalmente um anncio da Agncia Geral de Cpias e Datilgrafas no que se ofereciam para datilografar papis de teatro e documentos de advogados. As trs damas olharam a Leda com ar de recriminao. Ela baixou os olhos envergonhada e bebeu um sorvo

de ch, j que no tinha defesa alguma. Teria-lhe gostado muitssimo comer umas quantas fatias mais daquelas to finas como o papel e lubrificadas de manteiga, mas teria sido uma estupidez. Estudaremo-lo disse a senhorita Lovatt, com o qual queria dizer que ela o estudaria e as outras damas

escutariam com humildade seu discurso e suas concluses sobre o assunto. Todas ns queremos o melhor para ti, Leda querida. A senhorita Myrtle quereria que cuidssemos de seu futuro. Tem que voltar na sexta-feira que vem, e ento o decidiremos. Leda passou o resto do dia sentada na sala de

espera da agncia de emprego da senhorita Gernsheim. A entrevista com dita dama no tinha ido de tudo bem do momento em que aquela soube que Leda no teria uma recomendao escrita de sua anterior chefe. Os postos de datilgrafa, quis que Leda o entendesse bem, estavam muito solicitados, e

normalmente se concediam a pessoas com formao e experincia prvias. Sem to sequer referncias A senhorita Gernsheim deu golpes com sua caneta na lateral do tinteiro e adotou um ar grave. Leda lhe falou de suas amizades em South Street. Alguma vez ouvi falar de Lady Cove

-disse a senhorita Gernsheim, o que a desanimou ainda mais. Aparece a famlia no Calendrio Burke? obvio -disse Leda ofendida. Possuem a baronia desde 1630. E Lady Cove uma Lovatt por parte de me. Vejam s. E voc parente dela? Leda baixou o

olhar e a cravou nas luvas. No, senhora -disse entre murmrios. Ah. Pensei que possivelmente um parentesco ancestral seria a explicao de seu bom conhecimento da rvore genealgica da famlia. No, senhora -repetiu Leda, e guardou silncio. O sobrenome toile tampouco me resulta familiar.

Em que distrito vive sua famlia? Minha famlia no est viva, senhora. No sabe quanto o sinto -disse a senhorita Gernsheim com o mesmo tom que se estivesse falando de um negcio. Quais so suas origens, ento? Em um caso como o seu, com pouca experincia e um

histrico de renncia a um emprego com prejuzo, os possveis chefes querero saber quem voc. Nesta poca h toda classe de problemas; sabe-se que h pessoas perigosas soltas. Sociapatas. Criadas que assassinam as suas senhoras. Ter ouvido falar de Kate Webster, obvio. No, senhora -disse Leda.

De verdade que no? A senhorita Gernsheim arqueou as finas sobrancelhas e a olhou com ar de autntica surpresa. Apareceu em todos os jornais. No Richmond. Faz j agora alguns anos. A criada despedaou a uma pobre anci viva e cozeu os restos em sua prpria panela de cobre. E depois est

a histria de madame Trilho, estrangulada pela donzela em sua residncia de Park Lane. Esse tipo de coisas fazem que a gente se volte do mais desconfiada. No ser voc irlandesa, espero. Sou de origem francesa, senhora -respondeu Leda sem alterar-se. Pode me dar mais detalhe, senhorita toile?

Quando chegou sua famlia a Inglaterra? Leda comeou a encontrar um tanto irrespirvel o ar do pequeno escritrio. Temo-me que no esteja muito segura disso. Parece voc saber mais da famlia Lovatt que da sua prpria. Minha me morreu quando eu tinha trs anos.

A senhorita Myrtle Balfour de South Street se encarregou de minha educao a partir desse momento. E seu pai, o senhor toile? Leda, cheia de impotncia, guardou silncio. voc parente dessa senhorita Balfour, ento? No poderia ela lhe dar uma recomendao?

No, senhora -disse Leda, e ficou horrorizada ao advertir um leve tremor em sua voz. A senhorita Balfour passou desta para a melhor faz um ano. E no guarda voc parentesco com a famlia Balfour? No, senhora. que voc adotada? A

senhorita Balfour me acolheu em sua casa. A outra mulher deu sintomas de impacientar-se. No posso dizer que suas origens sejam muito prometedores, senhorita toile. Pode ser que fosse melhor que lhe buscssemos um emprego que no exija uns requisitos to estritos. Pensou no comrcio? Leda

estendeu as mos enluvadas. Preferiria no me dedicar ao comrcio, senhora, se for voc to amvel. Vamos, no seja to delicada. No acreditar que sua educao a coloca em um plano superior? Preferiria algo mais respeitvel que um comrcio, senhora -insistiu Leda com teima. O que

de verdade quero ser datilgrafa. Em tal caso, ter que me trazer uma boa carta de recomendao de algum importante. Como mnimo, de Lady Cove. Sim, senhora. A senhorita Gernsheim ficou a tomar notas. Se a entendi corretamente, toile seu sobrenome materno,

no? Sim, senhora. A voz de Leda se converteu em um sussurro. No estava casada? Leda, sem pronunciar palavra, negou com a cabea. A senhorita Gernsheim levantou a vista do papel, olhou-a com o cenho franzido e continuou escrevendo. Qual sua direo atual?

Vivo em casa da senhora Dawkins, no Jacob's Island, senhora. No Bermondsey. No Jacob's Island! A mulher fechou o caderno e depositou a pluma sobre a mesa. voc um verdadeiro caso, senhorita toile. Resulta do mais estranho que uma jovem sensata procure algo por cima de sua

categoria. Quando voltar com a recomendao, veremos o que se pode fazer. Parece-lhe bem na segunda-feira de na prxima semana? Acredito que poderei lhe trazer a carta antes -ofereceu Leda. Pode trazer isso logo que queira, senhorita toile, mas at na segunda-feira, como muito em breve, no terei

terminado de estudar quo postos possam resultar adequados as suas circunstncias. Fechamento a porta devagar quando sair, por favor. A cabea me estala hoje. Leda, do mesmo modo, tinha dor de cabea. Saiu do escritrio sumida na depresso. Teria que procurar a forma de encontrar Lady Cove em sua casa

sem que sua irm a senhorita Lovatt estivesse presente, tarefa quase impossvel, e depois convencer tmida baronesa de que lhe escrevesse uma carta de recomendao, coisa que a senhorita Lovatt tinha insinuado

que no deveriam fazer em que se inclura uma frase em que afirmasse que Leda no tinha o carter de uma assassina o qual era justo o tipo de coisa que provocaria uma conversao sobre o tema dos criados sanguinrios, e que terminaria com Lady Cove aterrorizada ante a possibilidade de

que seu mordomo, homem de voz trmula e ombros cados que levava trinta e cinco anos a seu servio, albergasse propsitos malignos para ela. E ter que esperar mais de uma semana para inteirar-se de possveis postos de trabalho! Leda fez um clculo mental do dinheiro que ficava, e apertou

o passo horrorizada. J tinha escurecido quando chegou a seu bairro. O inspetor do turno de noite descia nesse momento a escada da delegacia de polcia. Chega logo de novo, senhorita. Inteirei-me que ontem tambm passou cedo por aqui. Como est voc, inspetor Ruby? Deixaram-lhe tudo

em ordem? Claro que sim, senhorita. No poderia estar melhor. Essa parte da conversao era um ritual para eles. Leda se interessou por sua esposa e filhos e pelo que tinha jantado, e se ofereceu a lhe passar a receita da senhorita Myrtle para preparar a lngua de

boi. Agradeo-lhe sua amabilidade, senhorita. Suba comigo se puder, e a anotarei em minha agenda, se que no tem pressa. Leda subiu a escada e atravessou a porta de ferro forjado e vime que lhe abriu. Dentro da cada delegacia de polcia, o soalho do inspetor, iluminada

por um crculo de luz proveniente do abajur de gs, semelhava um plpito na crescente escurido. Na nica cela disponvel havia uma mulher deitada no cho quo larga era, uma espcie de vulto escuro que murmurava e gemia levemente para si entre as sombras. Um policial ficou em p de

um salto do banquinho junto cela e fez a seu superior a saudao de rigor. Leda pensou que seria uma amostra de curiosidade mrbida e vulgar examinar a mulher da cela com excessivo interesse, assim optou por tomar assento no banquinho, apoiou as costas na parede branca e com

o caderno do inspetor no colo ficou a escrever. Pese ao ambiente sufocante, o policial de guarda comeou a amontoar carvo sob a chaleira de cobre colocado na churrasqueira da chamin enquanto pedia desculpas ao inspetor por no ter o ch preparado. O inspetor fez uma careta de desgosto.

No tem a menor importncia; pequena porcaria o que me fez, MacDonald. Nunca na vida tinha bebido uma taa mais amarga. Sinto muito, senhor -disse MacDonald. Levantou-se e deu a impresso de no saber o que fazer com suas enormes mos cobertas de sardas. Enganchou-as ao vigamento de seu

cinturo branco e, com tal gesto, fez que saltasse a reluzente fivela. O jovem dirigiu um olhar tmido para a Leda. Nunca peguei o truque. Minha irm a que se encarrega de faz-lo em casa. Leda deixou a um lado o caderno.

Permita-me que lhe eu faa o ch, inspetor. Tenho bastante prtica. Veja s! muito amvel de sua parte, senhorita. O inspetor Ruby se acariciou o bigode e sorriu. Ficarei muito agradecido, o asseguro. No h nada como o toque de uma dama. Leda cruzou a nua

estadia e se ocupou da chaleira e o fogo. Pela extremidade do olho, viu que a mulher da cela se retorcia no cho como se tratasse de encontrar uma postura mais cmoda. De seus lbios saiu um suave gemido. Quando ficou de barriga para cima, sua silhueta avultada deixou muito claro que

estava muito bom em uma situao que daria fruto de forma iminente, como haveria dito a senhorita Myrtle entre sussurros, e cobrindo-a boca com a mo. Meu Deus -disse Leda, endireitando-se ante a pequena boca do fogo. Encontra-se voc bem, senhora? A mulher no respondeu. Respirava com dificuldade

e tinha as costas arqueada. Detrs de Leda, o inspetor Ruby perguntou com um grunhido: MAC, o que temos aqui? No caderno diz que alterao da ordem, senhor. O sargento MacDonald se esclareceu garganta. A detiveram no turno de tarde. Trouxeram-na desde o Oxslip, de Jacob's Island. Tinha

montado um escndalo. Arranhou a Sally, a da Frigideira na cara. Leda girou surpreendida, a tempo de ver o olhar que trocaram os homens. Oxslip? perguntou. Em minha rua? Nesse lugar onde acolhem aos meninos rfos. O inspetor lhe dirigiu um olhar estranho enquanto franzia

o cenho. Mordeu o lbio superior, acariciando o bigode com os dentes. O sargento MacDonald parecia desconcertado. O orfanato -disse o inspetor Ruby com brutalidade. Sim, est voc no certo, senhorita. Leda viu que a mulher presa se agarrava as costas e gemia. Quando a examinou de perto,

advertiu que se tratava de uma jovem de pele lisa, que logo tinha sado da adolescncia. Possivelmente, inspetor Ruby Parece-me -Leda titubeou antes expressar sua opinio, j que seus conhecimentos em questo de partos eram inexistentes, mas os gemidos da jovem no deixavam lugar a dvida. No deveriam chamar um

mdico? A um mdico? O inspetor examinou a jovem. No querer dizer Deus nos ajude No estar a ponto de A silueta prostrada na cela interrompeu suas palavras com um gemido que foi subindo de tom e que, de repente, interrompeu-se para dar passo a uma corrente de

palavras malsoantes proferidas entre murmrios. MacDonald -ordenou o inspetor com brutalidade, mande a algum a ver se o oficial mdico se encontra ainda em seu posto. Ela no ter dinheiro suficiente para um mdico. Sim, senhor, vou imediatamente, senhor.

MacDonald saltou como movido por uma mola, fez uma rpida saudao e desapareceu pela porta de vime com invejvel celeridade. MacDonald! gritou com fora o inspetor. Hei dito que mande a algum, no que voc v. Que tipo mais intil. Tudo o que tem de grande o tem de

tolo. Mau raio o parta! Ouviu-me perfeitamente; mais claro que gua. Morre de medo destas coisas de mulheres, isso o que acontece. O inspetor dirigiu um sorriso a Leda. Gosta de voc, senhorita. Pergunta todos os dias por voc. Quase no podia conter-se quando voc lhe falou ontem noite.

Tirou a jaqueta de botes brilhantes e comeou a arregaar-se. O que opina voc desta pobre garota, ento? Suponho que teremos que nos aproximar e ver o que lhe passa. Leda retrocedeu para a parede enquanto o inspetor abria a cela e o fazia gestos para que se aproximasse.

Por desgraa no sei muito do assunto -reconheceu Leda. Parece estar sofrendo grandes dores, e pensei que o mais indicado era trazer para um profissional. Deus a benza, senhorita. Mas aqui no vemos muitos profissionais, sabe? Sobre tudo quando se trata desta classe de gente. Pode ser que o

oficial mdico envie a uma parteira ou pode que no. Entrou na cela e ficou de joelhos junto jovem. Bom, garotinha, o que vamos fazer? Est com os dores do parto? Quanto tempo leva assim? Leda no ouviu a resposta que a jovem murmurou, mas o inspetor fez um

gesto negativo com a cabea ao receb-la. Ou seja, que todo o dia, n? Que moa mais tola. Por que no o disse antes? que no o quero -disse a jovem entre ofegos. No quero t-lo ainda. Pois bom, queira-o ou no, o vais ter.

o primeiro? A moa assentiu com uma espcie de choramingao. Por que foi a Oxslip? No esperaria o ter ali. Minha amiga andou perguntando por a Deu-me a entender que acolheriam ao beb. A jovem moveu a cabea de lado a lado. Eu

encarregaria de pagar por ele, juro que o faria. O inspetor negou com a cabea. Encarregue-te voc de seu beb, moa. Antes de entregar-lhe aos cuidadores, seria melhor que o assassinasse, me acredite. Assim trabalhava de criada? Tem algum pretendente na cidade? No no dou com ele. Essa sim que

m sorte. Mas no Oxslip no querem recm-nascidos, entende-me? Sua amiga se equivocou de meio ao meio quando mandou ali. A jovem comeou a respirar agitada, e o rosto lhe decomps. O inspetor a agarrou da mo. Leda, mordendo os lbios, aproximou-se deles. Posso fazer algo? perguntou

em um sussurro. O rangido da porta de vime fez que ambos voltassem a vista. Leda esperava ver o sargento MacDonald, mas o que entrou de improviso era

um agente desconhecido que tinha a face tinta e a casaca a ponto de arrebentar pelo esforo. O inspetor Ruby se levantou de repente. No me deixe -gritou a jovem. Di-me muito! Leda entrou na cela. Ficarei eu com ela -ofereceu enquanto se

ajoelhava no duro cho. Tomou a mo da moa e lhe deu umas tapinhas enquanto aqueles dedos agarravam os sua com fora. Obrigado, senhorita. O inspetor j tinha sado da cela e se dirigiu ao recm-chegado. Boa noite, delegado. Passa algo? O outro homem soltou uma gargalhada que

soou como um latido. Que se passar algo? Pois sim que passa! Por que no temos um telgrafo nesta delegacia de polcia, n? Tenho a uma matilha de jornalistas me pisando os calcanhares e ao Ministrio do Interior me envenenando, diria voc que algo passa? Venha comigo, Ruby, e ponha

boa cara. Meu agente MacDonald? Encontrei-me isso na rua e o mandei por diante. Os jornais, homem de Deus, os jornais! Se acreditar que o que quero que me flagre despreparado uma caterva de malditos jornalistas, est voc muito equivocado. O homem no olhou nenhuma s vez

para a Leda nem para a jovem da cela, mas sim tomou o pomo da porta enquanto o inspetor Ruby a toda pressa recolhia o casaco e o chapu. Estou convencido de que se trata de uma espcie de fraude, mas este sujeito tem feito pblicas suas maldades, comeando pelo Governo e

terminando com o jornal Temo, e vice-versa, e temos que dar a impresso de que estamos ao cabo da rua. Calculo que fica um quarto de hora para que a imprensa se presente no lugar de automveis. enxugou o suor da testa com um leno. Houve um roubo no hotel Alexandra, a

um desses malditos prncipes orientais, ao do Sio, acredito, mas isso no nos concerne ; o que temos uma maldita carta do maldito tio que roubou a maldita coroa siamesa de merda com todas suas pedras belas, que, no o perca, era um presente nada menos que para a rainha E

no vai o ladro dessa complicao e diz que a podemos recuperar no Oxslip, no Jacob's Island! No Oxslip! soltou o inspetor Ruby. No estranho que fique de boca aberta! E ainda no sabe tudo. Sabe que diabos deixou esse manaco no hotel em lugar da coroa? Uma

asquerosa estatueta prpria de uma casa de m reputao, Ruby. De uma casa de muito m reputao, e no refiro a um botequim de Haymarket cheia de meretrizes. Faz-se idia? O Ministrio do Interior se h posto histrico; ao de Assuntos Exteriores lhe deu um ataque: que se for um insulto

monstruoso a punheteira sensibilidade desses orientais, que se um incidente internacional, que se os acordos do comrcio do ch, que se os diplomticos Ruby, o asseguro, nego-me a ficar como um estpido frente a uma caterva de malditos diplomticos

Suas palavras se perderam ao fechar a porta atrs deles. Leda ficou perplexa olhando o lugar por onde tinham desaparecido, e a seguir baixou a vista at encontrar-se com o olhar aterrorizado da moa. No passa nada -disse, tratando de mostrar-se forte. Vai vir a parteira. Algo

me passa -gritou a jovem enquanto movia a cabea se desesperada. Estou completamente molhada Estou sangrando! Leda olhou e viu que, efetivamente, uma mancha escura se estendia pela saia da jovem. Parecia uma quantidade enorme de lquido, que comeou a cobrir o cho. No, no se trata de

sangue, querida -afirmou. completamente transparente. So as guas. Leda tinha ouvido que as mulheres rompiam guas, isso fora o que fosse. Deu-lhe muito medo de que aquilo indicasse que o nascimento era iminente. No fique nervosa. A parteira vem de caminho. A jovem deu um grito de dor e

seu corpo foi detento de estremecimentos. Cravou as unhas com fora na palma de Leda. Leda lhe acariciou a testa. A moa tinha a pele suave e mida, de uma cor saudvel que em nada se parecia com a palidez da pobreza que j comeava a lhe resultar familiar. Era

evidente que, pelo menos, tinha tido a alimentao e o alojamento adequados. Sua constituio era forte e s, mas isso no servia de muito consolo a Leda enquanto tinha que escutar aqueles horrveis gemidos de esforo e dor que proferia a jovem. Est a ponto de sair -disse esta com

a respirao entrecortada. Ai, Meu Deus, est saindo! Isso est bem -reps Leda, que o nico que queria era acalmar o pnico da jovem. Vai tudo bem. Como te chama, querida? Pammy Hodgkins. Ai, senhora, voc parteira? No. Mas no me moverei de seu

lado. A parteira j vem? Sim. O sargento MacDonald foi procurar ajuda. Mas ele disse o outro homem disse que o tinha mandado a outro lugar. A parteira vai chegar -disse Leda com firmeza, negando-se a acreditar outra coisa. Pensa sozinho em quo bonito

vai ser quando tiver ao beb entre os braos. Pammy arqueou o pescoo. Elevou os joelhos e comeou a mover-se de lado a lado. Di-me! Di-me muito! Respirou com fora e soltou o ar como uma exploso entre os lbios. Se pudesse lhe pr a mo em cima,

mataria ao Jamie. Quero morrer! A porta de vime se abriu com estrpito. Leda levantou a vista e murmurou: Graas a Deus! Duas mulheres se aproximaram.

Sou a senhora Layton, a enfermeira de maternidade. Esta a senhora Fullerton-Smith da Associao de Damas da Sanidade. Com que freqncia chega as dores? A pergunta ia dirigida com estridente brutalidade a Leda, que abriu a boca, fechou-a e disse impotente: No sei com certeza, mas

saiu grande quantidade de gua. Encarregue da chaleira -lhe ordenou a enfermeira. Senhora Fullerton-Smith, teria a amabilidade de me estender o lenol higinico aqui no cho? As duas mulheres ficaram a trabalhar com tal celeridade e habilidade que Leda sentiu um imenso alvio. A enfermeira, com rapidez e

zelo, no s no mostrou nenhuma compaixo ante os gemidos de Pammy, mas sim lhe repetiu com insistncia: Agente e nada de tolices, moa. Enquanto isso, a senhora Fullerton-Smith ps na mo de Leda um monto de folhetos. Voc v familiarizando-se com o que dizem, se fizer o favor.

Como muito em breve, no deve voltar a trabalhar at dentro de quatro semanas. Imploro-lhe que a convena para que amamente ao beb. Pode v-lo no escrito que se titula Os perigos da mamadeira. Alm disso, ter que abster-se de tomar opiceos como o xarope Godfrey, a infuso de papoulas e demais

tranqilizadores. A higiene de absoluta importncia: todo alimento deve estar coberto, ter que ferver o leite de vaca, lavar as mos depois de ir ao banheiro e limpar qualquer excreo corporal imediatamente. Onde vive voc? Eu vivo na casa da senhora Dawkins, senhora, mas Pammy Encarregaremo-nos das

visitas depois do parto. Como se chama a jovem? Pammy Hodgkins, mas Deixe-me lhe informar. A misso da Associao de Damas da Sanidade ajudar e educar. Pammy deu um alarido, e a senhora Fullerton-Smith foi entrar na cela. Leda se sentou fora no banquinho e

apertou entre as mos os folhetos Como cuidar de um beb, A sade das mes, O sarampo e Como criar filhos sos. O processo deve ter durado vrias horas, mas deu a impresso de que Pammy esteve gritando e gemendo inverificado durante toda uma eternidade. O abajur de gs desenhava

um crculo de luz sobre o estrado vazio enquanto a cela seguia sumida em sombras, e nela ressonavam os gemidos e as instrues dadas com voz firme. Pammy lanou um agudo grito e a seguir se fez um silncio que, durante um minuto, pareceu ir a aumento enquanto Leda esquadrinhava as silhuetas

ali apinhadas at que, de repente, a enfermeira se incorporou e anunciou com tom tranqilo, de uma vez que levantava um plido vulto: um menino.

Um rudo, que soou como o grito agudo de um rato, reverberou nas paredes da cela. Traga uma luz aqui, se for to amvel -ordenou a enfermeira. Leda pegou um salto e acendeu a lanterna de querosene do policial, abriu a porta da cela e iluminou seu

interior. A enfermeira limpava um diminuto pacote e tinha o branco avental coberto de sangue. Pammy murmurou algo e fez um novo esforo. A senhora Fullerton Smith disse: Com isto terminou. E se dedicou a atender moa, retirando o lenol sujo e pondo uma manta

de algodo limpa debaixo da exausta jovem. Os dbeis gritos foram aumentando de intensidade at converter-se em uma autntica choramingao infantil, que retumbou no espao fechado. No exterior se ouviram vozes masculinas e a porta da delegacia de polcia se abriu de repente. O inspetor a sustentou para que entrasse

o delegado, quem o fez com passo decidido seguido pelo sargento MacDonald, que levava um objeto do tamanho de um bule, envolto em um xale de cachemira. Muito em breve o lugar comeou a encher-se de gente, e de repente a delegacia de polcia estava a transbordar de homens: todos falavam de

uma vez, e todos tratavam de fazer perguntas a gritos para que o pranto do beb no as afogasse. Leda se viu esmagada contra a parede at que o sargento MacDonald conseguiu penetrar at ali e lhe estendeu a mo para ajud-la a unir-se ao banco. Cavalheiros! troou a voz

do inspetor. Guardem silncio, por favor! A multido se calou de repente e s se ouviu o pranto do bebe. O inspetor Ruby fez caso omisso do recm-nascido, conferenciou brevemente com seu superior e subiu ao soalho. Escutem a declarao oficial -disse com voz alta e cantante, afogando

os choros da criatura. s oito e quinze da tarde, agentes desta diviso se dirigiram casa conhecida pelo nome de Oxslip no Jacob's Island. Ali encontramos o que espervamos nos encontrar, quer dizer, uma coroa de manufatura estrangeira, acredita-se que procedente do Sio, que tinha sido subtrada das dependncias do hotel

Alexandra. Dita coroa, que no sofreu dano algum, encontra-se em lugar seguro e foi devolvida imediatamente ao proprietrio legal. Isso tudo, cavalheiros. Houve detenes? perguntou algum. Vai se proceder a interrogar ao senhor Ellis Oxslip e a uma mulher conhecida como Sally, a da Frigideira.

Onde? Na chefia central da Scotland Yard, senhor. Houve um protesto geral. Por que ali? Por que no os trouxeram aqui? Como possivelmente tenham observado, cavalheiros, sofremos alguma que outra alterao nesta delegacia de polcia esta noite. A nota! ouviu-se gritar a

algum por cima das queixa e os lamentos. Leia a nota, inspetor! O que dizia a nota?

No tenho autorizao para dar leitura a nenhuma nota. Dizia-se nela que Oxslip uma guarida onde se renem os pervertidos? No tenho autorizao para dar informao alguma a esse respeito. Outro homem insistiu: certo que a estatueta procedia do Oxslip, a

que deixaram no hotel em lugar da coroa? O inspetor Ruby dirigiu um olhar a seu superior, quem a sua vez fez um leve gesto de assentimento. Acreditam que assim foi, sim. Ouviu-se o rudo de lpis escrevendo a toda velocidade nos cadernos. Portanto

estamos falando de um salo de flagelao, no assim, inspetor Ruby? No estou autorizado Deixe j essa cantinela, inspetor! Um homem do fundo, justo diante de Leda, elevou a voz com desgosto-Esta sua zona, verdade? No est voc a par do que acontece aqui?

E o que nos diz dos jovens que vimos ali? Detiveram-nos como suspeitos? Quo menores habitam na casa no so suspeitos do roubo. Os interrogar pelo que possam saber em relao com ele. E depois o que faro com eles? Devolv-los ao Oxslip e Sally? O

inspetor moveu a mandbula, franziu o cenho e no respondeu pergunta. Qual o objetivo de tudo isto? quis saber o homem que estava diante de Leda. Trata-se de uma chantagem, ou de um intento para que enclausurem Oxslip? Foi polcia a que o organizou? O

inspetor Ruby titubeou e logo disse: No posso fazer especulaes sobre isso. Pois se for verdade que o fizeram, parabns -disse o homem entre murmrios de aprovao, enquanto o beb seguia chiando. Se no os pode pegar em plena ao, ter que arranc-lo da raiz. Esses meninos Por

Deus bendito! asqueroso. O inspetor pareceu lembrar-se de Leda pela primeira vez. Olhou diretamente para ela, e a seguir levantou as mos para deter a corrente de perguntas. Isso tudo, cavalheiros. H damas presente. Dirijam-se a Scotland Yard e perguntem tudo o que queiram. Aqui temos

assuntos policiais que ter que resolver. Mas no voc! gritou um jovem, assinalando com o polegar a cela em que o recm-nascido continuava chorando a gritos, embora agora se ouviam em surdina porque a enfermeira o tinha envolvido em uns panos de linho. Mas o inspetor Ruby e

o sargento MacDonald comearam a obrigar aos reprteres a sair pela porta. Alguns partiram, seguidos imediatamente por outros que no queriam que lhes levassem a dianteira, mas tambm os

ter que se fizeram os lentos e continuaram em seu empenho de fazer perguntas. A senhora Fullerton-Smith saiu da cela com o beb em braos. Quando Leda descendeu de seu posto no banco de madeira, encontrou-se com que depositavam o pequeno vulto em seus braos. O xale

foi doado pelo comit de damas de Marylebone Park -lhe informou a senhora Fullerton-Smith. Pode ficar com ele, mas lhe rogamos que o esterilize e que o passe a outra necessitada quando j no for de utilidade para o infante. Como pode observar, a me descansa tranqila. Dentro de uma ou duas

horas, quando se sentir com foras, pode segurar ao menino nos braos. A senhora Layton e eu temos que retornar junto ao oficial mdico porque h outras pacientes que necessitam nossa ateno esta noite. Se ocorrer uma hemorragia, nos mande chamar imediatamente. Leda estava a ponto de corrigir a senhora

Fullerton-Smith, quem era bvio que pensava que existia alguma relao entre ela e Pammy, quando ouviu a enfermeira dar instrues ao sargento MacDonald, que tomou nota laboriosamente no caderno de registro. Casa da senhora Dawkins no Jacob's Island -recitou a enfermeira como lugar de residncia de Pammy. No,

no -Leda tentou livrar-se da senhora Fullerton-Smith e de sua enxurrada de instrues. Sargento MacDonald, Pammy no vive a! Seus protestos se perderam entre as perguntas insistentes de dois dos reprteres, que seguiam lhe pedindo ao sargento MacDonald que desembrulhasse a coroa. Enquanto isso, a senhora Fullerton-Smith e a enfermeira

recolhiam seus pertences; esta ltima tirou o avental manchado de sangue e o guardou. O recm-nascido comeou de novo a chorar, e Leda contemplou seus olhinhos franzidos e a boquinha aberta. Chis, chis -murmurou Leda sem xito algum, de uma vez que lhe dava tapinhas nas costas. O

garotinho contraiu ainda mais as feies e ficou a chorar com mais fora. Sua carinha plida e com manchas vermelhas dava medo. Leda agarrou enfermeira pelo brao quando passava junto senhora Fullerton Smith, mas ambas as damas desapareceram antes que pudesse fazer nenhuma objeo. O inspetor

Ruby e seu chefe saram da delegacia de polcia, sorteando aos reprteres. Enquanto o sargento MacDonald estava ocupado com um dos jornalistas, que era especialmente persistente, outro se aproximou do banco onde se encontrava Leda e sobre o que tinham depositado o objeto envolto no xale. Atirou de um extremo deste e

deixou ao descoberto o que ocultava. A coroa oriental de ouro e esmaltes apareceu sobre o banquinho: era uma espcie de casco bicudo que parecia um templo redondo, coberto com profuso de diamantes e coroado por um enorme rubi encravado em uma concha branca.

O reprter ficou a toda pressa a fazer desenhos em seu caderno, at que o sargento MacDonald, depois de proferir um grito de indignao, separou-o de um tranco. O que est voc fazendo? Acabou-se. Fora todos daqui! E obrigou ao reprter a sair pela porta, levando-se a

outro com ele. Partiram entre fortes protesta. Leda ouviu suas vozes na rua quando tratavam de reter o sargento MacDonald na escada de entrada. Sem saber bem o que fazer, entrou na cela e se ajoelhou junto a Pammy. Como se sente? perguntou. Voc gostaria de v-lo?

A moa fechou os olhos com a mesma fora que o recm-nascido. No o quero! murmurou. Leve-se o daqui! A enfermeira disse que podia segur-lo em braos dentro de uma hora ou assim. No quero faz-lo. Leda contemplou o rosto de rejeio da

jovem. Pammy abriu os olhos e levantou a mo, tratando sem fora de apartar os braos de Leda. No vou segurar ele -disse. Eu o odeio. V-se daqui! Leda se levantou e voltou para banquinho. A choramingao do recmnascido continuou sem pausa. Tomou assento junto coroa

e esquadrinhou o rosto da criatura. Era muito feio, no se podia negar; no era mais que uma boquinha mida rodeada de rugas, e sua me no o queria. Leda abraou aquele pacote to pouco atrativo, o que unicamente servia para que o pranto subisse de volume. Contemplou a bela

coroa de ouro e rubis, e, sem razo aparente, ps-se a chorar. 6 A cano Hava, 1871 pequena Kai adorava nadar. Dava gritos ao ver as enormes ondas que rompiam contra o atol de Waikiki, e golpeava com suas mozinhas os ombros de

Samuel. Longe! Mais longe! exigiu. Grande! Assim que ele a rodeou com o brao e entrou na tranqila espuma, um pouco mais frente que a maioria dos meninos havaianos que se banhavam na borda. A larga saia do traje de banho da menina flutuava na gua e

chocava contra o torso nu de Samuel com cada onda que chegava quando ele a levantava sobre a espuma. A menina dava risadas e gritos e, s vezes, em lugar de levant-la, inundava-a sob a gua e emergiam as duas com a gua deslizando-se pelo rosto e um sabor amargo e salino

na boca. Debaixo! gritou Kai. Debaixo! Tomaram ar; a carinha de Kai era cmica quando inchou as bochechas e apertou a boca com fora. Samuel se inundou sob a gua transparente, sujeitando-a com firmeza entre os braos. A fora de uma onda lhes

passou por cima, arrastando-os com ela para a praia, e a areia se moveu sob seus ps. Samuel apertou o gorducho corpo de Kai para lhe indicar acima, e a menina ficou a mover as pernas alocadamente. Samuel fincou os ps na areia e saiu de repente de debaixo da gua,

levantando o Kai no ar por cima de sua cabea. A menina dava gritos de prazer. Apareceu uma nova onda que rompeu sobre eles com estrpito e os cobriu de branca espuma. Samuel sacudiu a gua do cabelo. Quando os ouvidos lhe limparam, ouviu outros gritos mais fortes que os

do Kai. Olhou para a praia e viu siluetas que saam da gua entre gotas. Hei Man! Foi o grito que lhe chegou justo quando se aproximava uma nova onda. Hei Man! Hei Man nui louva! E ento o viu: uma parte de barbatana escura que surgia entre

a espuma, uma forma opaca e veloz, to larga como as pranchas com as que os havaianos cavalgavam sobre as ondas. O tubaro se deslizou entre eles e a praia. Samuel era apenas consciente da multido amontoada, das pessoas que gritavam e corriam pela praia. Depois, o que recordava com

mais nitidez era aquela profunda calma que se apoderou dele quando o tubaro fez um giro e se dirigiu veloz para eles. Tirou Kai da gua e a colocou sobre os ombros. A menina lhe puxava o cabelo, ainda rindo e lhe dando tapinhas no peito. Samuel lhe agarrou os

tornozelos e impediu que os movesse. Kai comeou a gritar algo, mas no a escutou. Por cima do fragor das ondas, dos dbeis gritos de pnico procedentes da praia e dos gritos dos homens ao lanar a canoa, ouviu outra coisa. Ouviu sua cano, a enigmtica cano de seu irmo

tubaro. Permaneceu imvel e escutou. Por um instante, a onda ocultou a barbatana, levantou-o da areia e voltou a deposit-lo sobre ela com suavidade. Viu como a enorme silhueta se aproximava, como estava a apenas um metro de distncia. Os agudos gritos de Kai chamando a sua me

ressonaram longnquos em seus ouvidos, como o assobio de um trem na distncia, mas sua mente estava imersa na cano. A melodia se apoderou dele em silncio, insonora; sentiu que era uma rocha firme recoberta de coral, uma parte de madeira deriva, algo sem vida, sem medo. O tubaro

passou a seu lado, deu um giro e se aproximou de novo, imenso como um pesadelo. Samuel escutava a cano. Percebeu a curiosidade sem pressas do tubaro, o transbordante e irracional apetite que havia nela, mas ele estava tranqilo e formava parte do mar, no era algo que o animal gostasse.

Kai tinha deixado de gritar. Tambm tinha ficado imvel ali sobre seus ombros com os dedos presos com fora nos seus cabelos. O ar levava os gritos dos homens e os fortes golpes rtmicos dos remos da canoa contra a gua ao aproximar-se com celeridade.

O tubaro deu um giro e se deslizou pela gua ao alcance de sua mo. Samuel o viu passar, viu a pele cinza e escura, a barbatana, a cauda e ento, de repente, o tubaro fez um brusco giro e se afastou mar dentro, distanciando-se da j prxima embarcao.

A canoa surgiu ante eles, enorme, levantada pela fora das ondas. Os remos golpeavam a gua com violncia. Samuel sentiu a primeira pontada de temor, que no se deveu ao tubaro, a no ser ameaa daquelas armas de madeira e dos gritos selvagens que proferiam os homens. A canoa esteve a

ponto de se chocar contra ele, mas, com assombrosa destreza, o havaiano que levava o leme a fez girar em direo contrria s ondas e passou sem ro-lo. Algum arrancou a uma histrica Kai dos ombros. Uns braos fortes e brutais o agarraram. Ao d-la volta, pegou um salto e

golpeou as coxas e os joelhos contra a dura madeira envernizada. Durante um instante de confuso, o outro extremo da canoa se elevou sobre a gua e a embarcao ameaou derrubando; mas ento o subiram a bordo de um puxo e se desabou sobre um peito coberto por uma camisa branca, consciente

de que lhe gritavam ao ouvido palavras em ingls. Aquelas palavras davam as graas a Deus, e davam as graas a ele; Lorde Gryphon estreitava as costas de Samuel contra si como se lhe resultasse impossvel solt-lo. Frente a eles, na canoa, Kai se retorceu entre os braos escuros de

um havaiano tratando de soltar-se, ao tempo que gritava: Papai! Papai! A voz soltou uma imprecao no ouvido de Samuel, e os braos o rodearam com tanta fora que lhe fizeram mal. Obrigado, Samuel, graas ao Senhor por sua existncia. Que Deus te benza, moo.

um autntico heri, nasceste para ser um maldito heri A voz continuou falando, seguiu com seu feroz murmrio que parecia no ter fim, at que, por fim, Kai conseguiu soltar-se, lanou-se nos braos de Samuel e seu pai os uniu em seu abrao, e quando a canoa alcanou a praia,

ficou em p sem solt-los e os levou a terra. Lady Tess estava esperando, metida na gua, o deso da saia flutuando atrs dela, molhada pela gua da praia. Tinha o rosto banhado em lgrimas, o cabelo solto e desordenado. Arrancou Kai dos braos de seu pai, ajoelhou-se e afundou

o rosto entre o cabelo e o ombro de Samuel, sem lhe importar que estivessem empapados de gua. A mar baixou e eles se retiraram, levando-se com ela a areia sob seus ps, e Samuel cambaleou. Cuidado, filho. Aquela mo firme ainda o agarrava do ombro. Samuel olhou

ao rosto de Lorde Gryphon. O sol reluzia no cabelo loiro do homem, era alto, agradvel e apaixonado, e at esse momento nunca o tinha chamado filho. Estava rindo. Samuel notou que a expresso de seu prprio rosto mudava e que se estendia por ele um sorriso tmido e vacilante. As pessoas

os rodearam, havaiano meio nus que jorravam gua, haole respeitveis de tez branca e

cobertas dos ps cabea com chapus e escuras vestimentas; at se encontrava ali o mordomo oriental de Lady Tess, que os tinha acompanhado na carruagem para lhes servir o almoo dominical na praia de Waikiki. Algum comeou a lanar vivas. Lorde Gryphon levantou Samuel em seus braos com

igual facilidade que ele o tinha feito com Kai. Uma multido de mos o agarrou pelos braos e as pernas e o levantaram ao grito de: Hurra! Hurra!. Lanaram-no ao ar trs vezes e depois o subiram nos ombros de Lorde Gryphon, em que pese a ter os cales de banho completamente

empapados. Kai se retorceu e comeou a gritar nos braos de Lady Tess, porque tambm queria que a subisse, coisa que fez que o pequeno Robert estalasse em soluos at que o mordomo Dojun o ps sobre os ombros e o levou para os coqueiros que rodeavam a praia. A

metade do grupo ps-se a andar na mesma direo; a outra metade ficou na praia aclamando aos havaianos, que voltaram a jogar a canoa ao mar para procurar o tubaro. De algum lado chegou o rumor de que o rei do Hava se encontrava descansando em sua casa em Waikiki. Quando chegaram

sob as altas palmeiras, encontraram-se a jovem com grinaldas de flores e folhas de parra. Lorde Gryphon depositou Samuel no cho. Quando todos se apartaram e guardaram silncio, as jovens se adiantaram e colocaram as grinaldas em torno do pescoo de Samuel, que se viu envolto em suaves fragrncias e frescas folhas.

Sua majestade te honra por seu valor -disse a primeira jovem e o beijou em ambas as faces. Quando a segunda delas se disps a fazer o mesmo, Samuel se revolveu e se separou dela, o que fez que a prpria jovem pusesse-se a rir feito coro por

todos os pressente; mas, em que pese a tudo, agarrou-o pelos ombros e tambm o beijou. Samuel se apartou e se chocou contra Lorde Gryphon, que se inclinou e lhe murmurou ao ouvido: Diga-lhe algo para que o transmitam a sua majestade. Samuel se umedeceu os

lbios e respirou fundo. Rogo-lhes que digam a sua majestade que no tem importncia. Digam-lhe, por favor, que as flores cheiram muito bem. Suas palavras pareceram tambm ser motivo para a risada, mas Lorde Gryphon rodeou com o brao os ombros de Samuel, atraiu-o para si e o

abraou com fora, de modo que no tinha que o que preocupar-se. Era maravilhoso. Samuel tinha ligeiros tremores. Olhou para trs, para a franja de gua azul turquesa no interior do atol, e s grandes ondas mais frente, entre as que o fantstico tubaro tinha desaparecido como uma sombra, de volta

s escuras e azuis profundidades do mar. Escapou de novo com o bota de cano longo!

A senhora Dawkins tinha o rosto avermelhado pelo entusiasmo quando saiu ao encontro de Leda na escurido da escada com as ltimas notcias sobre os extravagantes roubos que tinham comeado na semana anterior. a terceira vez em sete dias. Aqui tem o jornal, senhorita, leia o que diz.

Esta vez um prncipe japons. Pequeno artista esse tipo! Roubou uma espada sagrada ante os narizes do japons e com a pasma vigiando cada rinco. Quase gritava de alegria ante a inpcia da polcia. Isso sim que incrvel, senhorita. E seguro que ter deixado algo asqueroso outra vez, mas o

jornal, claro, no diz o que . Alguma vez abrem o pico para diz-lo, mas pode-se imaginar, a que sim? Ser algo da casa indecente a que manda polcia a recuperar a espada. Leda era muito consciente daquele terceiro roubo, e do estranho ladro pelo que se regiam todos

eles: roubavam um objeto de valor incalculvel a um dos enviados diplomticos que tinham chegado para o jubileu, e deixavam em seu lugar um objeto acidentado e indescritvel. Isso j era estranho de por si, mas o que resultava ainda mais peculiar era que o ladro parecia no sentir mais mnimo interesse

pelos objetos roubados: enviava uma nota polcia e lhes dizia onde recuperar a bota de cano longo, e cada vez era em uma casa de duvidosa reputao, que era a forma elegante que tinham os jornais de descrever o lugar. Que interessante -disse sem muito entusiasmo para que a

senhora Dawkins no seguisse adiante, e deu a volta para subir por aquela escada escura como um poo. Em realidade, Leda sabia muitssimo mais sobre os estranhos roubos do ladro, j que tinha pegado o costume de lhe preparar o ch ao inspetor Ruby e de ficar na delegacia de polcia at

passada a meia-noite, para assim dar a impresso de que continuava empregada na casa de modas. Boa noite, senhora. Uma mo rpida lhe agarrou o vestido para det-la. Sexta-feira, senhorita. Quatorze xelins pela semana. S faz meia hora que sexta-feira, senhora Dawkins -foi a resposta

de Leda. Espero que no haja sentido a necessidade de ficar levantada para me esperar. Pagarei-lhe sem problemas pela manh. A senhora Dawkins soltou uma risada sem a mais mnima amostra de embarao. Queria recordar-lhe senhorita. famlia Hoggins do piso debaixo do seu tive que p-los na

hoje mesmo. H muita gente interessada em alugar que me pagar religiosamente, senhorita, ao igual a faz voc. Mas os que no pagam no podem esperar que os mantenha, no lhe parece? Eu no sou uma dama da caridade, asseguro-lhe que no. Quatorze xelins semana sem incluir comidas. Aqui estamos conectados

a rede de esgoto, senhorita, e isso vale meia coroa, e assim o digo a todos. E tambm o havia dito a Leda com freqncia, quem, quando por fim conseguiu soltar-se, continuou seu caminho escada acima. Uma vez em sua habitao, lavou o rosto e regou os gernios do suporte

da janela luz de uma vela. O calor da noite intensificava os aromas do bairro, mas uma das folhas dos gernios estava rota e seu aroma, fresco e pungente,

misturava-se com as emanaes mais fortes que vinham do exterior. Arrancou a folha de tudo com os dedos e a espremeu com a mo, aproximando-lhe ao nariz para tampar o fedor procedente das fbricas de cerveja. Olhou pela janela para a mida escurido circundante. O enorme subrbio que comeava

na rua de detrs da sua -aquele lugar que no queria ver, que se negava a ver, que no suportava ver parecia atirar dela, como se tratasse de arrast-la para o interior de sua garganta aberta para devor-la. Leda pensou em Pammy, que tinha negado a aceitar a seu beb e a

amament-lo at que o inspetor Ruby, sem olhares, comunicoulhe que a deteria por assassinato de um recm-nascido se no dava amostras de prudncia. Leda teve a horrvel sensao de que, provavelmente, sua prpria vida tinha comeado de forma muito similar, que tinha sido igualmente feia e pouco desejada, e que no

tinha tido nada que ver com o comeo tranqilo e respeitvel que gostaria de ter. No se atrevia a pensar em quanto ia durar aquela comdia. Dos quatro trajes que possua, tinha decidido que s eram absolutamente necessrios a saia de percal e o vestido negro de seda do salo

de modas, o um para uso peridico e o outro para as visitas. Um tanto desgostada tinha levado os vestidos suprfluos ao bazar e os tinha vendido. Tinha-lhe resultado do mais insultante ter que discutir com a mulher do posto de roupa por assuntos pecunirios, e era muito consciente de que no

lhe tinham pagado o preo real do vestido de gabardina nem tampouco do de ponto cinza prateado. Tinha conservado o chapu bom e saa todas as manhs da casa bem cedo, e empregava o dia em percorrer as ruas e esquadrinhar os jornais e as janelas dos escritrios busca de emprego,

e sempre parecia chegar quando uma agncia j lhes tinha mandado candidata ideal, ou tinha que formar fila junto a outras vinte pessoas em um corredor, ou descobria que o posto no era adequado para uma mulher. Quando se sentia to cansada que no podia manter-se em p, ia a um

parque ou a um salo de ch. Tinha que pagar o aluguel da mquina de costurar e devolv-la antes do sbado, e idear uma desculpa para a senhora Dawkins de por que j no levava trabalho a casa, e ao dia seguinte bom esse mesmo dia, como se tinha encarregado

de lhe recordar a patroa era sexta-feira, o dia acordado para que Leda fosse de novo de visita a South Street. Tinha a inteno de gastar dois piniques pela manh na zona de gua quente da casa pblica de banhos, e de usar o traje de seda negra, uma vez arrumado o

pescoo desfiado. Entre tantos problemas e incerteza, o nico refgio seguro lhe parecia era a delegacia de polcia, em que pese a que seu ambiente fosse um tanto mais masculino que aquele ao que ela estava acostumada. O inspetor Ruby parecia aceitar a presena constante de Leda com suficiente alegria,

e o sargento MacDonald em particular se mostrava do mais agradvel e atento, embora Leda tivesse um pouco de medo a que se acreditasse que estava tratando de atrair sua ateno.

Dava a impresso de que gostava. A senhorita Myrtle teria ficado horrorizada. Um policial, depois de tudo. No era precisamente o que poderia denominar um partido desejvel, mas o homem era muito afvel. Em realidade, Leda pensava que talvez a idia no estivesse to mal. O sargento compartilhava casa com sua

irm em Lambeth, e Leda estava bastante disposta a adaptar-se situao, em caso de que ele pensasse que contava com os meios suficientes para manter tanto a uma esposa como a sua irm. E esta, segundo Leda tinha entendido, no chegava ainda aos trinta, com o que ainda tinha oportunidades por

diante, pensou judiciosamente. Poderia ser que o inspetor Ruby e o sargento MacDonald fossem os que apanhassem aquele infame ladro, e que recebessem a recompensa adequada por seus esforos. At poderiam lhes dar uma promoo. Perguntava-se que grau ia depois do de sargento. Segundo o Time, no se

tinha dado um s passo que conduzisse identificao do culpado, ou a descobrir o motivo de suas aes, e a senhora Dawkins desfrutou muito bem ao definir a polcia como um bando de autnticos inteis. Aquilo, continuava o Time em um editorial, ameaava convertendo-se em um desastre diplomtico de dimenses incalculveis,

que dificultaria as relaes com importantes naes. As delegaes estrangeiras no podiam evitar ver que as autoridades britnicas davam amostras de impotncia ante delitos cometidos em sua prpria jurisdio ou, o que era ainda pior, podiam chegar a acreditar que estavam deixando em ridculo a seus prprios pases com total deliberao.

No eram mais que exageros dos jornais. Leda sabia o motivo, obvio. E a polcia tambm. E o mais provvel era que o Time tambm soubesse. No tinha passado todas aquelas horas na delegacia de polcia com os ouvidos surdos. O inspetor Ruby e o sargento MacDonald faziam todo o

possvel para no falar do assunto diante dela, mas era evidente que os pobres no tinham nem idia de at que ponto sua idia masculina de falar em sussurros no s no funcionava, mas sim lhes ouvia perfeitamente do outro lado da estadia. Leda sabia tudo a respeito dos roubos. Aquelas casas

s que se levavam os objetos roubados eram todas, uma atrs de outra, casas de muito m reputao. E, embora Leda no tivesse esse ponto muito claro, resultava evidente que se tratava de estabelecimentos de um tipo especialmente horrvel, aos que atendiam homens das classes altas com afeies extremamente violentas e corruptas.

A polcia especulava com a idia de que se tratava de um caso muito tortuoso de chantagem, no que queria deixar claro a algum aficionado a esse tipo de estabelecimento, rico e de situao proeminente, a humilhao pblica a que se veria submetido se no acessava s exigncias do extorsionador.

O inspetor Ruby dizia que era um assunto muito sujo, e Leda estava de acordo com ele. Aquele ladro parecia

atravessar paredes e penetrar atravs da melhor rede de vigilncia que a polcia e o exrcito podiam proporcionar. Leda retorceu a folha de gernio entre os dedos. Preocupava-lhe pensar que aquelas casas horrveis -fora o que fosse o que nelas se fazia tinham funcionado, sem ir mais longe, em

sua prpria rua, no edifcio vizinho; onde ela sozinha tinha visto meninos calados, de rosto resplandecente, por detrs tinham acontecido coisas horrveis e cheias de maldade. Perguntouse o que seria agora dos meninos, depois de ter fechado a polcia esses estabelecimentos. Freqentemente pensava em quando tinha tido a inteno de ir

s autoridades com suspeitas de muito menor calibre, e de como, inclusive ento, tinha tido medo de faz-lo. Em realidade, no era muito melhor que a senhora Dawkins. Simplesmente, era menos sincera em reconhecer seus interesses egostas. Pese ao cansao que sentia, no era capaz de dormir. Antes de ir

para a cama, ordenou as coisas um pouco e, entre ofegos, empurrou a pesada mquina de costurar e a mesa at o centro da habitao e, continuando, arrastou o mvel do lavabo at a porta, enquanto tratava de decidir como acomodar os mveis para aproveitar a vantagem de no ter j que

necessitar a melhor luz para costurar. No estava muito segura, mas acreditava que as datilgrafas no levavam trabalho a casa. Ao reorganizar as coisas, viu-se obrigada a mover a cama, e decidiu que podia aproveitar e esfregar o cho de uma vez, assim empurrou a cabeceira at situ-la debaixo da

janela, despojou-se da blusa, a saia e o espartilho, e ficou mos obra em roupa interior. Quando as coisas no pequeno sto quente estivessem todas limpas e reluzentes com o que podia conseguir com um trapo e o extrato de sabo Hudson Doce como as rosas, afresco como a brisa marinha,

para lavar, limpar e esfregar tudo no lar; Hudson elimina os aromas, deixou a cama junto janela, j que lhe pareceu que ali fazia mais fresco, apagou de um sopro a vela para economizar cera, e vestiu a camisola s escuras. Estendida na cama, seguiu acordada pensando, com o

olhar perdido, enquanto a cabea dava voltas em torno de idias de policiais, dinheiro e cartas de recomendao. Tudo isso ficou em seu interior, e deu passo a um torpor ligeiro e inquieto no que no houve sonhos. Quando algo lhe deu em uma perna, sentou-se na cama imediatamente, completamente acordada e

com o corao lhe palpitando com fora na garganta. Era tal sua comoo que o batimento do corao do sangue lhe impedia de ouvir nada. A estadia estava sumida na escurido; no havia to sequer um raio de lua nem o reflexo de uma nuvem que projetasse uma sombra ou

dessa consistncia a algo. L fora, um gato miava e dava bufidos. Leda levou a mo ao pescoo e respirou profundamente. Claro, um gato tinha entrado pela janela. O que lhe tinha roado era um pouco pesado, com muita fora para tratar-se de um inseto, pensou, ao tempo que estremecia ao lhe

vir memria uma antiga histria de ratos do tamanho de gatos de rua.

Fora! sussurrou enquanto sacudia a roupa da cama. Est aqui ainda, besta horrvel? Fora agora mesmo, bichano! Levantou-se e tropeou com a mesa da mquina de costurar, que tinha mudado de lugar. Com um grito de dor agarrou o dedo do p no que se deu o golpe, e

caiu de costas sobre a cama E sobre um vulto de grande tamanho com vida e movimento prprios. Foi tal a impresso que no pde nem gritar, e de repente aquilo j no estava ali, aquela coisa aquela pessoa Era um homem em sua habitao. O terror a

impulsionou a afastar-se de um salto da cama. No via nada o atiador um homem em sua habitao que Deus a ajudasse Tentou dar um grito, mas descobriu que tinha a garganta fechada e que a dominava o pnico. De costas, retrocedeu para a porta, chocou de novo com a mesa da

mquina e a derrubou. Soou um golpe e, de uma vez, outro som: um estranho grunhido surdo. Ficou gelada e escutou. Com suavidade, algo arranhou o cho, e de sbito o rudo fez que tudo parecesse real e ainda mais espantoso. Havia algum ali, no era um sonho;

tinha-lhe atirado a mquina de cima e ele estava apartando-a a empurres. Voltou a ouvir o som da madeira arranhada, leve mas inegvel. Lgrimas de medo comearam a brotar de seus olhos. No me toque! gritou com uma voz que soou do mais trmula. Tenho o atiador na mo!

Ele no respondeu. Uma quietude horrvel e densa pareceu descender sobre a estadia. Se o homem fez algum movimento, realizou-o no mais absoluto dos silncios. Leda pensou que tinha fechada a via de escapamento, j que o homem estava entre ela e a porta; paralisada, afogou os soluos que ameaavam escapar

da garganta. V embora -disse com aquela voz quebrada e irreconhecvel. No farei nenhum alvoroo. O silncio se prolongou. Leda tragou saliva, e depois lhe pareceu ouvilo -muito, muito brandamente, ouviu um sussurro, como se tomasse flego. Estava segura de que ainda se encontrava ali, junto

porta: se sua inteno era partir sem lhe fazer dano, j poderia hav-lo feito. O teria ouvido girar a chave e abrir a porta. Estava ainda ali; no tinha terminado o que queria fazer, o que procurava? Com movimentos muito lentos, Leda se agachou e tateou o cho procurando o

atiador ao lado da cama. Seus dedos tropearam com um objeto de metal, curvado e liso; apartou a mo, sobressaltada, e logo voltou a apalp-lo e seguiu o contorno de uma folha larga. Aquilo era duro e pesado; o suficientemente pesado para brandi-lo em defesa prpria. Agarrou-o com ambas as mos e

comeou a endireitar-se. Imediatamente se encontrou no cho. Era como se lhe tivessem dobrado os joelhos; o estmago lhe deu um tombo e sentiu que lhe faltava claridade mental, que no tinha certeza do que tinha estado fazendo. Pensou, sumida na confuso, que tinha recebido um golpe, que era pela

manh, que fora na rua ressonavam os troves.

Seus dedos se fecharam em torno da arma. Ouviu o rudo de uns passos, e nem sequer foi capaz de apartar-se dele; era tal o tremor que a sacudia que seus membros se negavam a obedec-la. Entregue-me isso -Aquela voz profunda a fez agitar-se como uma marionete sem

vontade. Chegava de um ponto mais prximo do que ela pensava; o homem estava em p, a to somente uns centmetros de distncia. No tenho inteno de lhe causar nenhum dano disse o homem na escurido. Leda teve a impresso de que algo tinha acontecido a sua mente naquele momento

de desmaio. Entre os estremecimentos e a confuso, centrou o pensamento em uma s coisa: com intensidade sobrenatural se concentrou nele, em suas palavras, em sua voz, no calor que desprendia. Era estrangeiro. Percebeu o sotaque, pese ao dbil murmrio; a entonao distinta, estranho e ao mesmo tempo em que familiar, a

pronncia inconfundvel das vocais. O corao comeou a lhe pulsar com fora, ao tempo que o reconhecimento se abria passo entre a bruma de sua mente. Rodeou o corpo com os braos, presa da nusea. Senhor Gerard! murmurou. Por primeira vez em sua vida, pronunciou o nome de

Deus em vo, e desmaiou. Recuperou o sentido na escurido, ainda dbil e desconcertada. Um momento depois de abrir os olhos, notou no nariz o aroma azedo de um fsforo. Houve uma labareda de luz que projetou sombras amalucadas nas paredes. No era capaz de pensar com prudncia.

Algo escuro se abatia sobre ela: levantou a vista e viu a negra silueta que empunhava uma espada. Ia mascarada e coberta como em um sonho malvolo. Ele aquilo aproximou a chama vela e se voltou para olh-la. Leda emitiu um som afogado, incapaz de pronunciar palavra.

A sinistra silueta se moveu, como se fosse inclinar sobre ela, e Leda, aterrorizada, curvou-se e comeou a chorar. O homem se deteve e, continuando, levou-se a mo base do crnio e deu um puxo. A mscara se soltou e caiu sobre a cama. O homem retirou o capuz do rosto.

A cabeleira loira resplandeceu luz da vela. Sem fazer movimento algum, ficou olhando-a com um brilho frio e resistente nos olhos. Senhor Gerard -sussurrou Leda atordoada. A jovem tentou sentar-se, mas s conseguiu que os msculos se movessem de maneira espasmdica. Deite-se e

no se mova -disse ele. Descanse. Leda apoiou a cabea no duro cho, incapaz de fazer outra coisa que no fosse obedecer. Sem cruzar palavra, contemplou como ele depositava a espada no cho, dobrava um joelho e deixava cair o peso sobre uma mo

apoiada com firmeza no camastro. Posou uma palma sobre o rosto de Leda e lhe roou a tmpora com as gemas dos dedos. Respire comigo -disse. Leda emitiu um som, uma espcie de risada histrica. O estmago lhe estremeceu com incmodas arcadas e a risada

se tornou um gemido. Ele fez um movimento negativo com a cabea. importante. Observe. Segure o ar. Leda tragou uma baforada. Deixe-se levar -continuou ele. Com lentido. Sustentou seu olhar com aqueles olhos de um cinza profundo. Pense em uma cascata. Siga

gua em sua queda. Leda se sentiu flutuar, descender por um largo pendente. O flego saiu de seu corpo em uma exalao sem fim; o ar flua e flua at que se deixou apanhar por aquele olhar, pela autoridade silenciosa que dela emanava, e tomou ar de novo.

As foras voltaram pouco a pouco para seus membros. Mas ele seguia dominando-a com seu olhar firme, e de novo exalou o ar pouco a pouco; e como a gua daquela cascata infinita, sentiu-o fluir de seu interior, at deix-la completamente vazia e lhe dar a sensao de que flutuava sobre o

cho. E depois alagou seus pulmes uma vez mais, lhe devolvendo foras e calor. Utilizou a energia que dele se desprendia para encontrar a sua prpria e, com cada respirao, foi relaxando cada vez mais, at que por fim foi o bastante racional para dar-se conta de quo desatinado era tudo aquilo.

O que voc est fazendo? perguntou fracamente enquanto levantava uma mo para apart-lo dela. O que se passou? O homem utilizou o brao apoiado na cama para ficar em p, e depois, com lentido, sentou-se no bordo, com uma perna estendida. Estive ao ponto de

mat-la -disse com secura. Tinha os lbios tensos, quase em uma careta. Peo-lhe perdo por isso. No parecia contrito absolutamente. De fato, soava brusco, como se tivesse coisas mais importantes na cabea. Mas por qu? perguntou a jovem em tom lamentoso. Durante um longo momento, ele a examinou. Foi

um engano de clculo -respondeu ao fim. Acreditei que tinha necessidade de me defender. Leda se levantou at sentar-se, ainda sumida na confuso. Voc me golpeou? No, senhora. A boca se curvou em um gesto grave. Pode ser que tivesse sido melhor que o tivesse feito. A cabea de

Leda doa. Deixou-se cair para diante e apoiou a testa nas mos. impossvel. Por que voc est em meu quarto? Voc um cavalheiro. No Seus olhos se posaram na espada. Viu a bela capa curvada, esmaltada em ouro avermelhado com incrustaes de madreprola em forma de

grulla; o punho tambm de ouro em forma de ave incrustada. Da capa penduravam duas borlas de bronze trancado. A parte inferior estava adornada com um bordado de ouro, formado por folhas e diminutas flores, embelezado por esmaltes de cores que refulgiam em todo seu esplendor luz da vela. Pouco

a pouco, foi deixando cair mo at cobri-la boca com ela. Ai, Senhor -disse entre sussurros, Deus nos atira. Levantou a cabea. O cavalheiro seguia sentado, olhando-a sem expresso alguma no rosto. O corao de Leda comeou a pulsar com mais terror que antes. De

que podia mat-la se assim o desejava, no ficava a menor duvida; naquele rosto perfeito no havia rastro de humanidade nem de compaixo, nem sombra de clemncia. A jovem comeou a passar mal de novo. Pense na gua ao cair -ordenou ele com suavidade. Leda tragou saliva e

deixou que o ar sasse dos pulmes, sem apartar o olhar dele. Tente tranqilizar-se -foram suas palavras. No tenho inteno de assassin-la. Esta noite parece que perdi a compostura. No era meu propsito lhe causar dano. Isto uma autntica loucura -disse ela sem foras. Por voc est

em meu quarto? Neste momento me encontro em seu quarto, senhorita toile, porque voc me quebrou a perna. Que eu lhe tenho quebrado a Mas eu Ai, Meu Deus! Sim, resulta um tanto inconveniente. Quebrei a sua perna repetiu Leda com desespero.

-Isso impossvel! Faz um momento estava de p! Com um pouco de concentrao respondeu ele. A causa de minha desgraa parece ser uma mquina de costurar. Olhou para o objeto metlico que estava no cho e acrescentou enigmtico: possvel que sirva para me esclarecer as idias. Leda

retorceu com os dedos a malha da camisola e franziu o cenho ao olhar a perna estendida. Aquele tecido escuro a cobria com folga, exceto ao chegar panturrilha, onde o objeto estava ajustado por uns cordes de cor escura e permitia ver o estranho calado brando que deixava ao descoberto os

dedos. Todos os objetos que vestia eram negros, de confeco singela e linhas amplas, e no se pareciam com nada que ela tivesse visto antes. Poderia andar se me propusesse -disse isso ele com tom tranqilo. Mas acredito que seria uma estupidez. No faria a no ser agravar a ferida,

e no acredito que isso seja necessrio nem desejvel. E no quero ir at que voc tenha recuperado suas foras, senhorita toile, e recorde como respirar sem necessitar minha ajuda. Seu olhar se cruzou com o olhar de perplexidade de Leda, e de improviso sorriu: era um sorriso tranqilo e absurdamente cativante.

E no -acrescentou, no pense que perdi o julgamento.

Pois possivelmente eu sim -respondeu a jovem. que no posso Jamais o teria suspeitado senhor Gerard! Voc um cavalheiro. Voc e Lady Catherine completamente absurdo que voc seja! A -Se interrompeu quando estava a ponto de dizer: A polcia jamais imaginaria uma coisa assim. O sorriso

desapareceu do rosto do cavalheiro. Com voz suave e firme declarou: Lady Catherine, obvio, no tem nada que ver com este assunto. Leda baixou os olhos. No, no! Claro que no -disse com rapidez. Houve um longo silencio. Leda se sentia dbil e

a incerteza lhe produzia nuseas. Doa-lhe a perna ali onde se deu contra a mesa. As paredes da estadia comearam a girar a seu redor. De verdade que deveria respirar, senhorita toile -lhe chegaram as palavras do homem atravs da escurido envolvente. Preferiria que no morresse... Leda imaginou

a cascata, concentrou-se na queda de uma gota de gua e descobriu que a nvoa que lhe cobria os olhos comeava a dissipar-se. Ai, sim -disse trmula. Obrigado. E continuou com o olhar no cho enquanto os pensamentos seguiam um ritmo desenfreado. Deveria deitar-se de novo.

No me parece muito adequado -reps ela. Era incrvel encontrar-se sentada no cho de sua prpria habitao em companhia de um delinqente perigoso e que estava na boca de todos, de um cavalheiro com a perna quebrada que, com toda a tranqilidade do mundo, aconselhava-lhe que se deitasse no cho.

Pensou que deveria dar o alarme, mas no tinha a segurana de poder alcanar a porta, e muito menos de chegar at a polcia. O que lhe tinha feito, fosse o que fosse, tinha-lhe roubado as foras por completo. Se voltava a fazer-lhe pensou, poderia inclusive acabar com ela. Mas

algo tinha que fazer; gritar, dar golpes na parede ou o que fosse. Como era possvel que ningum tivesse ouvido a queda da mesa? Por que no agarrava o atiador e o atacava? A que velocidade podia mover-se ele com uma perna quebrada? Mas no fez nada. Olhou para ele

e o viu ali sentado ao bordo da cama sem dar mostra alguma de desconforto, simplesmente com a perna estirada, e sentiu medo dele. Sabe quem sou -disse o homem. Se sua inteno me entregar, pode faz-lo quando queira. No momento, descanse, at que se tenha recuperado por completo.

Leda fechou os olhos. Isto ridculo. No vou abandon-la. Voltou a abrir as plpebras. No vai abandonar-me -repetiu presa na vertigem, e apoiou a cabea no cho sobre os braos. No sabe a tranqilidade que me d!

O tigre silencioso Hava, 1871 Estava no jardim, uns dias depois do encontro com o tubaro, quando Dojun se aproximou. Kai tinha estava no alto de uma rvore tropical enquanto Samuel a vigiava atento, at que um tor fez com que a bab sasse correndo da casa

para levar-lhe entre gritos a seu interior. Samuel se recostou contra o tronco enquanto grandes gotas de chuva se deslizavam entre os ramos e caam sobre seus ombros e sua cabea. Estava indeciso entre as seguir casa, que era o que desejava fazer, ou ficar fora dos domnios da bab nos

que Kai no era j responsabilidade dela. Com a chuva chegou o aroma quente e agradvel da terra. Escutou o repico nas enormes folhas da rvore branca do gengibre, fechou os olhos, e pensou uma vez mais no tubaro, na cano e na forma em que o tinham jogado pelos

ares. Hurra! Hurra! Sorriu com os olhos fechados e, ao abri-los de novo, descobriu ao Dojun ante ele. O mordomo oriental se aproximou sem rudo, e tampouco agora fez o mais mnimo. Era apenas um pouco mais alto que o prprio Samuel, uma silhueta

conhecida de rosto alargado, mandbula quadrada e boca triste, vestido com um uniforme branco e com o cabelo parcialmente barbeado e recolhido em um estranho coque na parte superior da cabea. Observou ao Samuel um momento, e depois fez uma leve reverencia. Samuel-san. Bom dia. Aquela saudao formal

surpreendeu Samuel, quem titubeou antes de responder: Ol. Pergunta tenho. Voc ver tubaro, no mover. Como, pergunto. Samuel se limitou a olh-lo. Dojun jamais se dirigiu a ele, exceto em uma ou duas ocasies para lhe dar algum recado de Lady Tess ou Lorde Gryphon, ou

para lhe comunicar que o jantar estava servido. Dojun levou o dedo tmpora. Samuel-san pensar como, pergunto. Tubaro vir, no mover. Como, perguntar. Samuel apertou as costas contra o tronco, sem saber o que responder. Os negros olhos do mordomo no se separavam de seu

rosto. Pela primeira vez, Samuel foi consciente de que Dojun tinha opinies sobre a gente que o rodeava; que no era to s algum que tinha umas obrigaes e uma posio na casa. A chuva comeou a cair sobre eles e Dojun no se moveu dali, como tampouco o fez Samuel, consciente

do tor, mas decidido a no procurar refgio na casa por razes que s ele sabia.

O descobrimento o alarmou. Era como se ao arbusto do gengibre lhe tivessem sado de repente olhos e boca, e se tivesse posto a falar. Voc medo? perguntou Dojun com suavidade. Eu assustar? Samuel girou o rosto, limpou pingos de gua da face, evitou o olhar de

Dojun e encolheu os ombros. Dojun lhe deu um golpe no peito. Dizer coisa secreta -murmurou. Possivelmente voc sbio. Quando perigo chega eu tigre. Tigre silncio. Sua boca sria se entreabriu ligeiramente em um meio sorriso. Voc sbio, Samuel-san? No, senhor -respondeu Samuel em um sussurro.

Eu no Japo, vir aqui antes. Vir aqui Hava. No desejo, eleio m. Ficar no Japo, Dojun morrer. Vir quatro anos. Aqui Dojun procurar moo. Moo, moo, moo, ver todos os moos. Moo no Japo. Moo na China. Moo Hava. Moo branco haole. Procurar. Procurar. Eu necessitar tigre. Fez um

gesto com a cabea e uma careta de desgosto. Nenhum moo bom. Nenhum tigre. Todos moo estpido, assustado, brando. Moo leito, nada melhor. Eu zangado. Eu vergonha. O que posso fazer? Eu tigre necessito. Os olhos de Dojun eram intensos, escuros e estranhos. Ver Samuel-san, grande tubaro perigo, no mover, no assustar.

No moo estpido. Dojun perguntar: Samuel-san ver esse tubaro, Samuel-san, pensar como? Samuel fincou as unhas na branda casca da rvore. Voc medo? Ver tubaro, no poder mover? S estpido, ficar quieto estpido? No -disse Samuel com indignao. No estava assustado. Ah. Menino grande

valente. Ficar quieto, tubaro vir, tubaro perto. Demonstrar todo valente! Homem nmero um ento! Samuel, incmodo, olhou ao Dojun. No foi assim. No pensei em me mostrar valente. Est bem. No temor. No valente. Fala, fala, Samuel-san. A voz de Dojun era mais doce, no to

exigente. Tubaro vir. Como pensar, pergunto-te. Bom pensei na cano. O mordomo voltou a expressar aquele meio sorriso. Elevou o rosto ligeiramente. Cano tubaro? Samuel se surpreendeu. Conhece-a? O sorriso de Dojun se estendeu por todo seu rosto.

Conhecer cano tigre. Conhecer bem. Samuel o olhou, sentindo uma fasca de emoo. H tambm uma cano do tigre? Cano tigre. Cano fogo. Drago, terra, ar, tubaro. Todas canes se escutar. Samuel se separou um pouco do tronco da rvore e se aproximou de

Dojun.

Onde posso as escutar? O sorriso percorreu o rosto srio e envelhecido do homem, transformando-o. Assentiu com lentido. Voc escutar. Quero as ouvir todas. Sabe as cantar? Dojun soltou uma gargalhada e o agarrou dos ombros. Muito tempo, muito tempo procurar moo saber cano tigre; encontrar moo saber cano

tubaro. Est bem. Levantou a mo e a posou na mandbula de Samuel em um gesto suave de carinho, como se estivesse acariciando algo valioso. Est bem, Samuel-san. Enorme fortuna, sim. Est bem. O tem passou alvorada, retumbando nas paredes e fazendo vibrar o jarra. Leda deu a volta,

rgida, com o quadril e o ombro doloridos de estarem apoiados no duro cho. Abriu os olhos, viu o cho sob a cama, e se levantou como movimento por uma mola. Ele estava ainda ali. Seguia sentado imvel com suas roupagens escuras e flexveis. As pestanas lhe cobriam

os olhos e tinha os dedos entrelaados sem fora, formando uma espcie de pirmide dobro, como se fosse um menino que brincasse com sombras chinesas. Leda recordava aquelas mos do salo de modas: tinham recolhido do cho as tesouras de prata, enrolado as peas de tecido, entregue o sobre lacrado

que ela tinha deixado cair. Eram mos de cavalheiro, fortes e bem formadas. Cobriu os olhos com as mos e, quando as retirou, ele continuava ali de verdade. Que o cu me proteja. No era um sonho. Aquele homem estava ali, em sua habitao, sentado em

sua cama, enquanto que ela tinha dormido profundamente no cho, junto a uma espada roubada, como se no tivesse a mnima preocupao. O cavalheiro separou as mos. Inclinou a cabea e lhe dirigiu um olhar de soslaio sob as escuras pestanas, silencioso e belo com a luz do amanhecer detrs

de sua cabea. Bom dia, senhorita toile. Leda no pensava desejar bom dia a um ladro em sua habitao. Nem pensar; aquilo ultrapassava todos os limites. Algum tinha que preservar a prudncia como fosse. Por outro lado, no sabia o que se poderia dizer detrs despertar

em uma situao to incomum como era aquela de encontrar-se a um delinqente com sua espada ainda ali. Sente-se com mais fora? perguntou-lhe ele. Os ps descalos da jovem apareciam por debaixo da camisola. Leda ficou em p, agarrou a capa do cabide e se envolveu nela. Ao

faz-lo, deu-

se conta de que o que deveria fazer era sair correndo pela porta nesse mesmo instante e pr-se a correr escada abaixo para despertar a toda a casa. Estava admirada por ter podido dormir; como era possvel que adormeceu? Com ele ali, sem nada que lhe impedisse de fazer sua vontade,

tinha cado em um torpor sem sonhos sobre o cho de madeira como se a tivessem drogado. Sentiu que o pnico voltava a apoderar-se dela. Sem propor-lhe a imagem da cascata se formou em sua mente, e soltou uma longa baforada de ar. Muito bem -foi o comentrio

dele. O que o que h dito? Lembrou-se de respirar, senhorita toile. No se mova daqui! ordenou com voz trmula. -Vou trazer gua! Sem deter-se, tirou o ferrolho da porta, abriu-a, e a fechou de um golpe atrs dela. Uma vez fora, girou a chave na

fechadura e ficou ali sem flego. Necessitou uma nova imagem da cascata para controlar a histeria que a invadia. Muito bem. Agora estava a salvo. Fora de seu alcance. Encontrava-se no corredor do sto. Que fazia a seguir? A polcia. Prendeu a capa, deu-se conta de que se esqueceu dos

sapatos, esqueceu at de vestir-se: que aspecto teria se se punha a correr descala de camisola pela rua enlameada. Permaneceu indecisa no lgubre corredor. Curvou os dedos dos ps sobre a desfiada trama do tapete. Se ia nesse momento polcia, no seriam o sargento MacDonald nem o

inspetor Ruby os que se encarregariam de det-lo. No comeavam a trabalhar at a tarde. Para ento, tudo teria terminado e seriam outros os agentes aos que lhes reconheceria o mrito. Levou as mos boca e, presa dos nervos, ficou a fazer clculos. O homem tinha a perna quebrada. No podia

partir dali. Se conseguia ret-lo em seu quarto at a tarde No se via com foras para obt-lo. Mas com a perna quebrada era inofensivo. Aonde ia com uma perna quebrada? Antes que a razo se impusesse, deu a volta e girou a chave na fechadura.

Abriu a porta com cuidado enquanto preparava a desculpa de que em seu atordoamento se esqueceu do balde e da jarra. A estadia estava vazia. Agarrou a porta e, ainda atrs dela, esquadrinhou a habitao. A espada tinha desaparecido. Ele tinha desaparecido. Viu a janela aberta e correu

para ela, subiu de um salto cama e apareceu tanto que quase fez cair o gernio. Da janela do sto se viam com toda claridade os telhados a um lado e outro do canal, e no distinguiu nenhuma silueta que espreitasse sobre as telhas nem que desaparecesse depois de

uma das chamins. Enquanto tratava de manter um precrio equilbrio, sentou-se sobre o batente, ficou

em p sobre ele e estirou o pescoo todo o possvel para ver se tinha escondido em seu prprio telhado, mas no musgo que cobria as telhas no havia rastro de pegadas: ali tampouco estava. De maneira que tinha a perna quebrada -murmurou enquanto baixava com cuidado da janela

e voltava para interior. Embusteiro! Homem espantoso! sentou-se sobre a cama, levou as mos ao peito e deixou escapar um longo suspiro. Graas a Deus que se foi! Descansou ali um momento, pensando na cascata, lembrando-se de respirar. A sensao de alvio porque partiu e no fosse j dever seu

ir polcia foi desmesurada comparada com a de haver-se liberado do perigo. No havia sentido realmente medo dele. Mas se levantou e fechou as folhas da janela, correu o passador para assegur-la e, continuando, jogou o ferrolho porta. Durante uns instantes, assaltou-a o incmodo pensamento de

que o que tinha que fazer era, pelo menos, vestir-se e ir delegacia de polcia para alertar aos agentes de que o ladro que tanto procuravam tinha estado pela vizinhana. Mas, enquanto o pensava, deu-se conta do ridculo que lhes pareceria tudo quando emprestasse declarao. O senhor Gerard! Um ladro! O

amigo de Lady Ashland e da rainha das ilhas Hava! Seguro que a polcia ia acreditar-lhe. Teria sorte se no a enviavam diretamente a um manicmio. Falaria com o inspetor Ruby e o sargento MacDonald pela tarde. Eles sim que acreditariam, pensou, ou pelo menos estariam dispostos a escutla.

Normalmente, essa era a hora em que saa de casa, mas aquela manh no se sentia com foras para apressar-se s para enganar a senhora Dawkins. Se a patroa a interrogava, decidiu, diria-lhe que no se sentia bem e que ficou adormecida. E a verdade era que tinha a sensao

de que lhe falhavam todos os msculos do corpo. De fato, os dentes batiam ao endireitar a mesa cada ao cho e levantar a pesada mquina para colocla sobre ela, enquanto examinava o aparelho com medo. Tinha um arranho no verniz, mas, alm disso, no parecia ter sofrido dano algum. A

casa de banhos ainda demoraria um pouco para abrir suas portas, assim acendeu o fogo, fez o ch e, depois de subir a camisola at os joelhos, acomodou-se com as pernas cruzadas na cama e se disps a comer o podoce, j duro, que tinha guardado no dia anterior.

A mente no cessava de lhe dar voltas em torno do senhor Gerard. Era incrvel. Devia hav-lo sonhado. Estirou as nuas pernas e moveu os dedos dos ps em uma e outra direo. Ocorreu-lhe que tinha uns tornozelos agradveis, esbeltos, nveos e refinados. Ele os teria visto. Cobriu a boca com os

dedos e se ruborizou, ao tempo que escondia os ps sob a camisola e adotava uma postura mais decorosa para uma jovem dama. As mos ainda lhe tremiam com a reao, e o pires repicava inverificado. Antes de soltar as forquilhas do cabelo, correu as cortinas. A habitao se encheu

de cores ao filtr-la luz atravs dos alegres tecidos dos recortes que havia trazido da oficina para confeccion-las.

Com movimentos nervosos, alargou a mo para agarrar a regata e os cales, e descobriu que ainda estavam midos por ter esfregado com eles o cho a noite anterior. Depois de examinar a sujeira dos joelhos, fez uma confuso com eles para lav-lo no banheiro e, com a camisola

ao meio tirar, muito confundida para fazer as coisas na ordem devida, vestiu as anguas em primeiro lugar. Sentou-se com a camisola enrolada cintura. O cabelo lhe cobriu os nus ombros enquanto o escovava com a escova de prata da senhorita Myrtle, cem vezes em cada lado, e tratava de recuperar

a calma com o rotineiro gesto. Mas a cabea lhe dava voltas e se distraa da maneira mais tola, incapaz de concentrar-se nos problemas mais prximos. Distrada, recolheu o cabelo e o prendeu antes de vestir a roupa, depois vestiu a saia de percal, abotoou a blusa e tratou de ver-se no

espelho de mo da senhorita Myrtle para assegurar-se de que ningum adivinharia que, sob tais objetos, ia completamente nua. Arrumou o coque, depois de deixar cair as forquilhas trs ou quatro vezes, e quando esteve preparada, ficavam ainda duas horas para que abrisse a casa de banhos. Portanto, voltou a

sentar-se de novo na cama e tirou a caixinha de dinheiro para fazer uma vez mais as contas, embora soubesse muito bem qual era sua verdadeira situao. Fez uns montes com as moedas e o bilhete, colocando-os por ordem segundo seu valor, at que seu tesouro completo esteve sobre a

cama: um nico bilhete de uma libra, trs xelins e vinte piniques, antes de subtrair o aluguel semanal da habitao e da mquina de costurar. Exatamente, oito xelins e dois piniques para comer, banhar-se e fazer a penetrada. Embora encontrasse trabalho, no teria bastante para sobreviver at que lhe pagassem, sobretudo se

a agncia de emprego deduzia sua comisso do salrio do primeiro ms. Ainda contava com a escova e o espelho de prata da senhorita Myrtle. Mas no queria jogar mo deles ainda. No ia separar se deles ainda. Agarrou o espelho com carinho, e o fez girar uma e outra

vez entre suas mos. Deteve-se, e voltou a fazer um meio giro com ele, com a vista fixa no reflexo. Com um grito afogado, deixou cair o espelho e subiu cama de um salto, apoiou-se na parede e olhou para cima. Ali, entre as sombras que a

primeira luz da manh projetava sobre o teto em pico, estava ele sobre a viga do sto como uma pantera, completamente imvel e espreita. Leda comeou a tragar o ar com rapidez e afogar-se. O homem se moveu e se desprendeu do alto da viga qual penacho de fumaa

que de repente adquire forma. Sem perder a elegncia, apoiou-se nos braos para saltar ao cho com ligeireza, apoiando-se em uma s perna. A cascata -lhe recordou com brutalidade. E Leda fechou os olhos e regulou a respirao. Durante um breve instante.

Vilo! gritou Leda detrs recuperar o flego. voc um um voyeur! O que estava fazendo a acima? Em minha habitao! Estava-me olhando! E eu estava Ai, Meu Deus, eu estava A horrvel certeza do que ele devia ter visto lhe cortou a respirao uma vez mais; teve que

fazer uma pausa e controlar a inalao de ar, que mostrava uma alarmante tendncia a superar a capacidade de seus pulmes. Agarrou a escova e atirou nele. Com um movimento apenas perceptvel, ele o evitou, e Leda ficou a procurar o atiador pelo cho, desesperada. Com ele na mo se equilibrou sem

pensar sobre o homem; o atiador lhe passou roando o nariz e ela o tentou de novo, mas o cavalheiro se limitou a trocar de postura, sem ceder terreno. Fora, fora, fora! Leda estava agora to perto que o atiador poderia faz-lo em pedaos; levantou-o por cima da

cabea e o deixou cair com toda a fora da que era capaz. Ele nem piscou; levantou as mos com um movimento que deu a impresso de ser estranhamente lento e apanhou entre elas o atiador em descida, freando-o antes que alcanasse sua cabea. Durante um momento, olhou para a

Leda com os braos levantados, como lhe perguntando se tinha terminado. Fora daqui! Sem parar para pensar, Leda puxou o atiador para arranc-lo das mos dele e fez uso de todo seu peso para vencer sua resistncia. Ele o agarrou com fora. Com um grito de fria, Leda

tratou de recuperar o controle da arma, conseguiu ganhar uns centmetros e redobrou seus esforos. De repente, ele o soltou. Leda cambaleou para trs com o impulso de seu prprio puxo e caiu ao cho, dando um forte golpe no j dolorido quadril. Sem saber como, o atiador tinha acabado

nas mos dele, em lugar de estar nas de Leda. Levantou o olhar para o homem que, em silncio, abatia-se sobre ela e se encolheu ali sentada no cho, chorando de fria e impotncia. Como pde? Como o tem feito? uma besta No merece o nome de cavalheiro! No

voc mais que um malvado, um canalha de baixo estofo! E vou denunci-lo polcia, embora me mate! O asseguro! No pense nem por um momento que no o farei! Monstro! Sepultou o rosto entre os joelhos. V embora! Fora de! Em meio daquela diatribe, foi consciente da voz

da senhora Dawkins no corredor e das sacudidas da porta. O que acontece? perguntou a patroa do outro lado da porta. Quem est a com voc? O senhor Gerard apoiou a mo na mesa da mquina de costurar, e trocou de postura. Inclinou-se para a cama de Leda,

despojando do casaco solto e escuro e deixando ao descoberto uma camisa normal, branca como a de qualquer cavalheiro. A roupa caiu sobre seus ps e ocultou o estranho calado.

Abra agora mesmo! O ferrolho se moveu. No pode voc receber visitas masculinas, senhorita toile! No por quatorze xelins semana! Abra esta porta! Antes que Leda tivesse tempo para ordenar seus pensamentos, ouviu o rudo de uma chave na fechadura. A porta se abriu de repente.

Vestida com o gorro de dormir e um roupo de um vermelho estridente, a senhora Dawkins freou em seco e olhou furiosa ao senhor Gerard, que tinha a mo no pescoo da camisa, como se estivesse fechando a toda pressa o ltimo boto. Depois, a patroa girou para a Leda, com seus

olhos saltados de boneca piscando sem parar. Nos dias de minha vida! exclamou. Cadela; voc um hipcrita, n? Disse que era respeitvel. Disse que era uma dama. Que se no tinha pretendentes. J me cheirava eu algo quando vi com que mistrio entrava e saa, e sem cesta! Ou

seja, que se dedicou a subi-los aqui s escondidas, n? Ento passam por al! Agarrou a regata que parecia uma confuso no mvel do lavabo e a sacudiu em gesto de ameaa para a Leda. A mim nenhuma vagabunda extorque os quartos. Se dedicar a trazer homens aqui, quero minha parte. Que

objeto mais delicado, prpria de uma dama, senhorita Prostituta. E, depois de lanar o objeto ntimo para Leda, precipitou-se sobre a cama e recolheu o dinheiro em suas mos. E j veremos se no a ponho de patas na rua por me pegar isso. No! Por favor! Leda agarrou o

objeto, fez uma bola com ela e a apertou contra o peito. Senhora Dawkins, no Mas a proprietria j no a olhava, no contava o dinheiro que tinha na mo. Tinha os olhos cravados na mo do senhor Gerard, que, com a palma para cima, mostrava um uma nota

que sujeitava com o polegar. A senhora Dawkins se inclinou para ele e lhe arrancou a nota entre os dedos. Jogou-lhe uma olhada e suas protuberantes bochechas se sorriram de alegria. Ai, senhor! Sua atitude mudou e se voltou servil. Que amabilidade a sua, senhor. Asseguro-lhe que

do mais amvel. Gostaria que lhe subissem alguma bebida, senhor? Algo para tomar o caf da manh? Posso fazer que me tragam beicon da esquina em um momento. No-foi a resposta. Ch? Torradas? meteu o bilhete pelo decote da bata. Muito bem, nesse caso vou embora. Estarei abaixo

em caso de que necessite algo. dirigiu-se para a porta. A senhorita no tem mais que avisar. Limite-se a lhe devolver senhorita toile o dinheiro que lhe pertence -foi a fria resposta do cavalheiro. Claro, obvio. A senhora Dawkins depositou as moedas no mvel do

lavabo. Mas seu aluguel de vinte xelins, sabe? So vinte xelins para uma dama que entretm a seus pretendentes na habitao, a pagar na sexta-feira a primeira hora. E isso hoje, senhor. hoje, sabe? Dobrou a nota de uma libra com os dedos, fez uma humilde inclinao

com a cabea e abriu a porta.

Leda no abriu a boca, porque sabia muito bem que no serviria de nada; nem sequer mencionou a possibilidade de mandar chamar polcia. A senhora Dawkins no acreditaria nem meia palavra do que agora lhe contasse. Ao fechar a porta, Leda apertou o rosto contra os joelhos. Olhe

o que tem feito -disse entre gemidos. Olhe, Por Deus, o que tem feito. Poderia ter feito algo pior -disse ele. Que mulher mais desagradvel! Leda levantou a vista. Ele moveu uma mo sobre a outra como se sacudisse algo de cima, e de uma vez se ouviu

um forte golpe na porta. Leda olhou para ali, esperando de novo senhora Dawkins, mas em seu lugar apareceu um disco prateado encravado na madeira. A seguir apareceu outro depois de um golpe seco, e depois um terceiro e um quarto. Tinham forma de estrelas com muitas pontas afiadas, e cada

um dos discos tinha duas delas cravadas na porta. Levou-lhe um momento dar-se conta de que tinha sido ele quem os tinha jogado com aquele rpido gesto da mo. Entre os dedos tinha um quinto; f-lo girar de modo que a luz que se filtrava atravs das cortinas incidisse nele

e criasse todo um arco ris de cores, e logo fechou o punho. Quando o abriu, o disco tinha desaparecido; no aparecia encravado na porta como os outros, simplesmente tinha evaporado. Aquelas estrelas bicudas poderiam tirar um olho a algum. Leda ficou em p, apoiando-se na parede, com um brao

s costas e apertando com a outra a regata contra o peito. O que o que quer? gritou. Por que no vai embora? Quanto dinheiro tem voc? perguntou o homem com a mesma calma que se ela no houvesse dito nada. que tambm planeja

me roubar? Tome! Recolheu as moedas do mvel do lavabo e as jogou sobre ele em cascata. Leve-lhe tudo. Merece a pena ficar sem um pinique com tal de que se v! Ele agarrou uma das moedas no ar; as restantes caram sobre a cama e o cho,

e uma delas girou sobre si mesmo at cair com um tinido. O homem depositou o xelim que tinha pegado sobre a cama. No foi chamar polcia -disse. Muito obrigado. Leda, de repente cheia de cautela, olhou-o. No respondeu a suas palavras. Tinha minhas dvidas

sobre suas intenes quando saiu -continuou o homem. Pareceu-me melhor me ocultar. Agarrou o espelho, deu-lhe a volta e o sustentou tal como Leda fazia quando o descobriu. Um leve sorriso se desenhou em seus lbios ao ver o reflexo da viga do teto. Leda apertou a regata,

e recolheu um dos lados, que se tinha soltado. No sou um ladro -afirmou ele, sem deixar de olhar no espelho. Depois o deixou e alargou a mo para agarrar seu casaco. Um intruso, talvez. Mudo coisas que resistem a mudar. Olhou-a diretamente. E por isso me busca a polcia,

verdade? No porque tenha ferido a ningum nem

porque me tenha ficado com o que no me pertence. Buscam-me porque pus patas acima de coisas s que esto acostumados, e isso acabou alarmando a todos. Tambm me alarma -espetou Leda. Ele se cobriu com o escuro casaco e prendeu o cinturo. Agradaria-me que

voc confiasse em mim. Que confie em voc! repetiu Leda. Deve estar louco. Senhorita toile, estive nesta habitao todas as noites h mais de uma semana. Causei-lhe algum dano? Toquei alguma de suas posses? O que? A voz de Leda se elevou em um grito imprprio

de uma dama. Leva uma semana vindo a minha habitao? E voc no se inteirou, a que no? At que ficou a trocar tudo de lugar e se impregnou voc, e impregnou toda a habitao, com esse aroma to forte a sabo. Sim que est louco! O que

tem que ver o sabo com isto? um porcaria. Resultou-me um obstculo. No uma porcaria -protestou Leda indignada. O sabo Hudson no tem aroma. Pois uma porcaria -insistiu ele. Mas minha culpa um engano fui muito impaciente; permiti que minhas percepes se

alterassem. obvio que culpa dela. No vai ser minha! Tenho todo o direito do mundo a esfregar o piso e a colocar os mveis como gosto, sem que venha um ladro a queixar-se. E e ainda por cima, vai e se pendura nas vigas como um horrvel vampiro.

Leda sentiu que se ruborizava. Jamais o perdoarei por isso, senhor! Jamais! Poderia haver dito algo ao ver que no tinha ido polcia. Poderia ter feito notar sua presena. Ele apartou os olhos. Pela primeira vez, pareceu sentir um pouco de culpa. Perdeu voc o direito a

que o considere um cavalheiro -concluiu Leda com altivez. Por que no se foi por onde tinha vindo? Porque tenho perna quebrada. No lhe acredito. No pode sair pela janela, mas sim subir s vigas do teto? Ele se agachou e desatou os laos da perna.

O tecido escuro caiu ao cho e se abriu, como se de uma saia de vo se tratasse. Isso no era necessrio -disse Leda a toda pressa. No necessrio que me demonstre isso. O homem se inclinou e percorreu a panturrilha de cima abaixo com os dedos

sob a malha. Se me ajudar, poderei arrum-lo. Encontre uma tabuleta e partirei. Mas -Leda levou as mos boca e contemplou a perna coberta. No seria melhor que o visse um mdico? No -disse ele sem duvid-lo. Voc pode me ajudar. No acredito

que possa faz-lo -respondeu Leda. Pode me sustentar o p?

De verdade, acredito que seria melhor chamar um mdico assegurou a jovem, dando um passo atrs. Ele levantou a vista para olh-la. Siga respirando, senhorita toile. Ainda no comeamos. Leda se deu conta de que tragava ar em baforadas nervosas. Respirou profundamente e soltou

o ar de novo. O que lhe parecem esses jornais? perguntou ele, assinalando com a cabea a pilha que havia sobre a banqueta que Leda levava toda a semana acumulando para ler todos os detalhes dos roubos. Acredito que poderia utiliz-los para entalar a perna se tiver algo para at-los.

Leda olhou o monto de papel com ar de dvida. Serviria isso? Se rompssemos sua angua em tiras para at-lo. Comprarei-lhe uma nova. Nem pensar! A mim nenhum desconhecido me compra n esclareceu garganta, negando-se a comentar algo to pouco decoroso. Poderia ser

a toalha. Muito bem. Aproximou para si a pilha de jornais, dobrou-os e formou com eles um ordenado monto de um par de centmetros de grossura. Entre dvidas, Leda tomou a toalha e fez uns cortes na borda, para depois rasg-la em largas tiras. Depois as agarrou entre

as mos, e se apartou para a parede. Isto absurdo -disse. impossvel que seja capaz de entalar a perna. Voc ir desmaiar. No acredito que isso acontea. Sim, desmaiar -insistiu ela, elevando a voz. Ou dar um grito horrvel. E ento, o que farei

eu? O que vai pensar a senhora Dawkins? Na boca dele se desenhou um gesto malicioso. Por que no procura outro alojamento se tanto lhe importa a opinio da senhora Dawkins? No tenho dinheiro, nem perspectivas de encontrar emprego, embora isso a voc no diga respeito,

senhor Gerard. Ele girou a cabea, e depois lhe dirigiu um olhar de soslaio por debaixo das pestanas. Oferecem uma recompensa a quem proporciona informao sobre o autor dos roubos -disse. Ah, sim? perguntou Leda com muita ligeireza. Duzentas e cinqenta libras.

Sim, acredito acredito que o tenho lido. Poderia transladar-se e viver estupendamente com esse dinheiro. Leda ficou firme e lhe dirigiu um olhar gelado. Estou segura de que nenhum cidado necessita uma recompensa para saber quando tem que cumprir com seu dever. Repugnaria-me melhorar minha situao

s custas de dinheiro sujo. E no acredita que seu dever me entregar?

Estou convencida de que meu dever, senhor. Tomou uma grande baforada de ar. Tambm me atrevo a dizer que se sasse daqui, se voc me deixasse partir sem me lanar uma dessas monstruosas estrelas para me tirar um olho, volta, voc j no estaria aqui. E no posso confiar

em que a senhora Dawkins me acreditasse, nem tampouco em que chamasse polcia, e muito menos depois de que voc a tenha convencido por completo com sua nota de vinte libras de que me dedico a entreter cavalheiros em minha habitao. E tem feito desaparecer a espada japonesa muito limpamente; imagino

que a ter atirado ao canal, o que uma autntica vergonha e um desperdcio intencionado, malvolo e brbaro de um objeto que, no cabe dvida alguma, teve que lhe supor a um hbil arteso muito tempo e esforo, mas a nica prova que poderia apoiar minha declarao, e sem ela

a polcia me consideraria uma louca, ou no? Temo-me que isso poderia ser certo. Leda se deixou cair contra a parede. Que m sorte -acrescentou com desnimo. Tinha a esperana de que o sargento MacDonald conseguisse uma promoo graas a isto. um amigo

especial? Leda o olhou com gesto de marcado mau humor, como teria feito a senhorita Myrtle. Meus amigos, especiais ou no, no so de sua incumbncia, senhor Gerard. O homem sorriu. Por isso vejo, o sargento MacDonald no est de servio esta manh.

No tenho nem idia -foi a firme resposta de Leda. O que foi que aconteceu com sujeito que marcou a correspondncia com um selo extravagante? No sei do que me fala. Leda se deu conta de que se ruborizava. Para alvio dele, ele no insistiu

no assunto; olhou-a um momento e depois baixou a vista a sua perna. Traga-me a toalha, se for to amvel. Leda retorceu o tecido entre os dedos, ao lhe recordar ele bruscamente a tarefa que tinham por diante, e sentiu uma leve contrao no estmago. Aproxime-se

-disse ele com voz suave. S tem que me sustentar o p. A jovem tragou o grande n que lhe tinha formado na garganta, aproximou-se e ficou de joelhos ante ele. Vou lhe fazer dano -disse com voz lastimosa. Asseguro-lhe que j sinto dor. Intensa. Sustente o

tornozelo e, quando eu o disse, puxe ele. Mas no com suavidade: que seja um puxo longo e forte. O mais seguro que tenha que utilizar toda sua fora para fazer de contrapeso. Olhou-a por debaixo das pestanas. Acontea o que acontecer, senhorita toile, no o solte. Vai doer-lhe.

S se o soltar.

Ai, Senhor -disse Leda. No me sinto capaz de faz-lo. Segure o tornozelo com as mos, senhorita toile. Leda mordeu o lbio, tomou ar de novo e colocou as mos sobre aquele calado de tecido negro que ele levava. Com muita delicadeza, moveu as mos para cima

sob a escura malha de algodo que lhe cobria as pernas. O fato de que no as tivesse tirado ajudava, dava aquilo um ar de decoro. Imaginou que era uma enfermeira, que estava acostumada a tocar a homens que no lhe tinham sido apresentados. Aos homens sim, que lhe tinham sido apresentados.

J vestidos, a qualquer tipo de homem. O calado terminava justo por cima do tornozelo, e Leda sentiu nos dedos a pele ardente e inflamada. Olhou-o no rosto, pois s ento se deu conta da gravidade da leso e da dor que ele tinha estado suportando. Ele j no a

olhava. As pestanas lhe velavam os olhos e o rosto carecia de expresso, remoto como o de uma esttua de mrmore. Pouco a pouco foi mudando o ritmo de sua respirao, fez-se mais lenta, mais profunda; Leda a sentia, mas no a ouvia. De uma vez que a respirao, mudou ele tambm:

seguia com seu aspecto forte e musculoso, mas a pureza esttica de suas feies lhe conferia uma aparncia irreal, e a perfeio absoluta, sem mcula, do rosto era como a reflexo do sonho de um artista. Com aquela luz tinta de cores, o cabelo parecia dourado e avermelhado, com infinidade de tons

mais sutis; do corpo vestido de escuro emanavam sombras noturnas que cobravam vida. Agora -murmurou entreabrindo as pestanas. Puxe. Leda apertou o tornozelo e comeou a puxar sem muita fora. Mais forte. Olhou-a aos olhos. Leda mordeu os lbios e apertou com mais firmeza.

O rosto dele no se alterou em nenhum momento, mas Leda notou a aceitao ativa da tortura que devia estar sofrendo. Sentiu que a fora do homem comeava a rebater a sua, e teve que opor toda sua resistncia, cada vez com mais intensidade, at que toda sua energia esteve concentrada em

suas mos. Ouviu uma espcie de grito. No pare -disse o homem com voz suave, no preciso instante em que ela, presa da surpresa, estava a ponto de perder a fora nos dedos. Leda fez um gesto de assentimento, sentiu um ligeiro enjo e liberou dos dentes o

lbio inferior, sem deixar em nenhum momento de agarrar o p com fora e sem pausa enquanto ele se inclinava para diante. Antes de ver a perna, a jovem fechou os olhos rapidamente e os manteve sem abrir. Muito bem -disse ele com voz tranqila. V afrouxando a presso com

lentido. Assim est bem. No o solte de tudo. Leda ouviu o rudo do jornal e no pde conter-se: abriu os olhos. Ele se movia com segurana enquanto envolvia metodicamente a perna com a rgida tabuleta de papel de jornal, de um par de centmetros de grossura, e a atava

com fora com as tiras de toalha por cima do joelho, e duas vezes em torno da panturrilha. Aproximou de Leda a ltima tira. Poderia-me atar isso ao tornozelo?

A tranqilidade por ele exibida lhe infundiu confiana. Com cuidado infinito, sem permitir que o p roasse o cho, atou a tabuleta com a ltima laada. O gesto requereu algum esforo, porque o papel sobressaa um par de centmetros por cima do talo e exigia que a atadura se fizesse face

resistncia do grosso pacote dobrado sobre a impigem do p. Mas ficou surpreendida ante a fora e a rigidez do improvisado remdio. voc mdico? perguntou. No. Algo em sua voz a impeliu a levantar a vista. Agora que a perna estava imobilizada e o

aoite da dor tinha chegado a seu fim, estava sentado sem fazer movimento algum; durante um momento no que a Leda a invadiu o medo, o olhar do homem deu a impresso de estar desfocada e perdida, e as plpebras descenderam at ficar com os olhos entrecerrados. Leda se levantou com presteza

e o agarrou pelo pulso, com a inteno de impedir que casse para diante vtima de um desmaio, mas ele no se moveu nem se desabou com o mpeto do movimento da jovem. Deu a impresso de deixar-se ir e, de uma vez, de control-la, assim Leda parou a meio caminho com

a sensao de estar empurrando um muro, em que pese a que entre os dedos no tinha mais que o antebrao dele. Leda se moveu para recuperar o equilbrio e descobriu que, em lugar de ser ela o apoio, era o homem o que a sujeitava e a endireitava para

que no se derrubasse sobre seu ombro. Perdoe-me -disse ela com voz entrecortada quando pde apoiar-se sobre os ps. Soltou-se e se separou dele . Machuquei voc? Ele a olhou. O ligeiro sorriso, to incrivelmente sedutor, pareceu canalizar toda sua energia e convert-la em um raio de luz

dirigido ao corao de Leda. No me tem feito mal. Tem-me feito muito bem. Quero lhe pedir algo muito importante. O que? perguntou ela com cautela, de volta realidade de estar falando com um ladro comum. Sabe voc escrever? foi a pergunta.

obvio que sei escrever. A mquina? Leda quase titubeou. Sua resposta demorou um pouco mais do normal em produzir-se. Ele estava alerta e a observava, mas a improvisada mentira lhe saiu da boca sem vacilao ante o desespero imenso que a atendia. Quarenta palavras por minuto

-disse, repetindo o que tinha lido em um anncio para datilgrafas com experincia. Com exatido. Ele pareceu aceitar aquele desmesurado exagero com absoluta confiana. Tenho muita necessidade de algum como voc. Quer voc trabalhar para mim, senhorita toile? Para um ladro? espetou-lhe Leda. O

homem lhe dedicou um dbil sorriso e negou com a cabea.

Os roubos terminaram para mim. O simples feito de estar em presena de algum com tanto esprito cvico me reformou como ladro. Leda deu um pequeno bufo de incredulidade. Encontro-me em uma situao em que necessito uma secretria. Algum que seja minha mo direita, poderia dizer-se. Poderia

ser que lhe surpreenda um pouco, senhorita toile, mas tenho interesses amplos, e legtimos, no mundo dos negcios. inclinou-se e comeou a colocar o tecido escuro sobre a panturrilha e a improvisada tabuleta. Parece que esta perna vai me obrigar a estar encerrado durante o resto de minha estadia na Inglaterra. Vou

necessitar que algum me ajude com meus assuntos. No Hava pagaria cento e cinqenta dlares ao ms. mudana -Ergueu o torso. Ponhamos que dez libras semana? Dez libras semana? repetiu Leda. Encontra-o justo? A jovem se reclinou sobre a mesa. Justo

-disse, fraco com a impresso. Justo! Por quarenta palavras por minuto. Leda ficou em p e endireitou a coluna vertebral. No posso. impossvel. Voc um delinqente. Sou-o? Olhou-a com fixidez. A verdade algo que ter que descobrir por si mesmo. Eu

no tenho argumentos para convenc-la. Leda cobriu a face com as mos. Claro que era um delinqente. O que outra coisa podia ser algum que entrava s escondidas em meio da noite com objetos roubados e mascarado? Dez libras semana! S um proscrito podia pagar um salrio to absurdamente

alto a uma secretria. Poderia hav-la matado na escurido; quase o tinha feito, tal como ele mesmo tinha reconhecido. E tinha ficado com ela e a tinha ajudado a controlar a respirao. E tinha se escondido na viga do teto, essa besta malvola no era um cavalheiro; mas a seguir se sentiu

culpado por pens-lo. Apartou as mos do rosto. Se no um delinqente, a que vm roubar todas essas espadas e demais? Durante um momento, o homem no respondeu. Depois acariciou o queixo e disse: No h palavra para diz-lo em ingls.

Ah, como que no? Roubo me parece da mais descritiva. Kyojitsu. Olhou-a aos olhos sem pestanejar. Falsidade verdadeira. Falsidade verdadeira? repetiu Leda ctica. O homem fechou o punho e voltou a abri-lo, como se ao faz-lo a explicao cobrasse mais claridade. Engano e sinceridade.

Tato. Subterfgio. Debilidade e fora. Maldade e bondade. Simulacro. Significa tudo isso. No sei do que me est falando. Olhou-a com pacincia, como se estivesse dirigindo a um menino com atraso.

Minhas intenes. Perguntou-me por que levo coisas de seu lugar convencional. No era surpreendente que a senhorita Myrtle sempre a tivesse posto em guarda contra os homens. Que seres mais irritantes. Bom, temo-me que careo de talento para essas adivinhaes orientais -disse mal-humorada. Possivelmente possa me explicar

no que consistem esses negcios legtimos dele. Em navios, principalmente. Levo a companhia Arcturus de Lorde e Lady Ashland, e tenho a minha prpria, Kaiea, Estaleiros e Transportes. Sou dono de uma serraria na costa da Amrica do Norte. Participaes nos mercados do acar e o algodo. Em vrios bancos.

Seguros martimos. Sorriu. -Voc acredita em mim? No sei. Poderia estar inventando isso, Kai significa mar de fundo em havaiano. Arcturus era o nome do clper de transporte de ch que construiu em 1849 o tio de Lorde Ashland. O mesmo Lorde o rebatizou com o de

Arcanum. Mas possivelmente nada disto seja certo. Pode ser que eu seja algum de mente rpida, e um fantstico embusteiro. Acredito que existe gente assim -disse ela com tom majestoso. Nesse caso, poderia passar mil anos respondendo a suas perguntas e voc seguiria sem ter sabor de cincia

certa quem sou em realidade. O que eu sim sei, senhor Gerard, que voc a pessoa mais singular que eu tive a desgraa de conhecer. Ele a olhou com seus olhos cor de prata escura, da cor da lua em uma noite de nuvens e tormenta.

Com lentido, fez um gesto negativo com a cabea. O que algum sabe aqui dentro -disse com suavidade, colocando o punho no centro do corpo, essa a verdade. 10 Frear a queda Hava, 1872 Dojun nunca lhe ensinou as canes. Dojun

nunca lhe ensinou outra coisa que no fosse japons, nunca entoou ante ele outra coisa que ordens para realizar trabalhos, para fazer recados, para cortar pesados troncos e levar baldes de carpas do lago dos peixes a um vizinho distante que nem sequer o tinha pedido. Com freqncia, Dojun pedia coisas estranhas:

uma flor do ramo de uma rvore fora do alcance de Samuel, uma pedra da rocha mais alta da Diamond Head ou uma pluma de um pssaro vivo que aninhava sob o beiral do alpendre. As flores e as pedras no eram algo impossvel: Samuel aprendeu a subir e a

dar saltos; ia andando com Dojun os sbados at a Diamond Head, quinze quilmetros de ida e outros tantos de volta, sem parar, e este se limitava a aceitar com um gesto de assentimento os trofus que to difceis resultavam de obter e os metia na gua, dentro de uma terrina negra

que colocava no lugar que ocupava Samuel na mesa do comilo.

Uma vez terminada a comida, Samuel levava a terrina ao seu quarto e tombava na cama, com a terrina no cho, e o olhava, estudava-o e se perguntava o que tinha aquele objeto para que Dojun o tivesse eleito. A pluma resistia. Estudou o pssaro e o ninho durante

horas, observou o que a ave comia e onde posava. Falou com uns havaianos e aprendeu a construir uma armadilha com uma rede e uma substncia pegajosa com a que cobria os ramos. Apanhou ao pardal, e arrancou uma pluma da cauda antes de solt-lo de novo. Dojun aceitou a

pluma em silncio. Em um japons vacilante, Samuel lhe explicou a captura e lhe mostrou a inteligente e pegajosa armadilha, ao tempo que lhe explicava como tinha elegido o lugar para escond-la. Dojun o escutou sem pronunciar palavra. Na hora do jantar no apareceu terrina algum com a pluma. Samuel

se sentiu envergonhado, mas ignorava como nem por que tinha fracassado. Passou muitas tardes na varanda sem deixar de observar ao pardal que ia a saltos pelo beiral. Subiu rvore mais prxima e ficou ali imvel, sem pestanejar, enquanto via como o pardal revoava entre os finos ramos longe de seu

alcance. Um dia, o irmozinho Robert entrou no quarto de Samuel e o encontrou praticando com um acerico, tratando de mover-se com a velocidade do raio que requereria apanhar ao pssaro em liberdade com a mo. Robert tomou como uma brincadeira; tinha seis anos e, na opinio de Samuel, era

bastante bobo: at a pequena Kai, de s trs, s vezes ficava calada e pensativa, mas Robert no parava nunca de mover-se inquieto, de falar ou de chorar, a no ser que estivesse adormecido. Samuel converteu aquilo em uma brincadeira para o menino, atando a almofadinha com uma corda, mas

Robert era to impaciente e to torpe que nenhuma s vez conseguia jogar o objeto com a velocidade necessria, antes que Samuel o agarrasse com a mo. At com os olhos fechados, Samuel foi capaz de ganhar de Robert uma e outra vez, at que o menino ps-se a chorar, e seus

soluos de frustrao foram subindo de intensidade com cada derrota. Lady Tess apareceu e ficou na porta com expresso de aborrecimento. Robert correu para ela e afundou o rosto em sua saia, chorando de forma tal que os soluos entrecortados no lhe permitiam falar. Enquanto a dama abraava

a seu filho, Samuel ficou em p. Sinto muito! disse rapidamente. Estava fazendo-o rabiar. Perdoeme. Esperou enquanto Lady Tess consolava ao Robert, com o estmago contrado por uma horrvel certeza, e uma dor no peito que quase lhe impedia de respirar. A dama dava tapinhas ao Robert

nas costas enquanto deixava que desse rdea solta a toda sua frustrao infantil com a cabea afundada em seu pescoo. Quando ela se ergueu, Samuel deu um passo atrs, olhando-a ao rosto, temeroso de ver nela um gesto de desaprovao. Seu temor mais ntimo era que Lady Tess deixasse de gostar dele,

que descobrisse que, depois de tudo, no lhe agradava absolutamente, e que

aquele quarto, aquele lugar, aquele refgio, desaparecessem. No sabia aonde iria nem o que faria se ela o obrigasse a partir, mas o nico que lhe preocupava era que ela o quisesse ali. Que par de meninos mais parvos -murmurou Lady Tess e estendeu a mo a Samuel. Vem

aqui e me conte qual foi a tortura monstruosa que infligiste a esta pobre criatura. Um alvio imenso se apropriou de Samuel ao ver seu sorriso. Aproximou-se e, quando lhe ps a mo no ombro, fez de repente o que no tinha feito em trs anos: agarrando-lhe a saia com

fora, lanou-se a seus braos e ficou obstinado nica presena constante que tinha tido em sua vida. Sinto-o -disse de novo entre sussurros. Perdoe-me. Lady Tess lhe acariciou o cabelo. De repente, Robert se soltou de seus braos, esgotadas j as lgrimas, e com algum novo interesse.

Lady Tess o deixou partir e continuou abraando com fora a Samuel. O rudo dos ps descalos de Robert no cho foi se afastando quando o menino partiu corredor abaixo a passo ligeiro. Fez-se o silncio em torno deles, enquanto Samuel seguia aferrando-se a ela com desespero. A dama lhe

acariciou o cabelo entre os dedos e o apertou com fora contra si. Eu te amo, Sammy -afirmou com voz suave. Aqui est a salvo comigo. Era a nica que podia cham-lo com aquele nome antigo e to odiado; quo nica sabia. Ningum, nem Dojun, nem sequer Lorde

Gryphon, entendia como tinha sido a vida de Samuel da forma que o fazia ela. Tinha estado ali. Tinha-o visto tudo. E, em que pese a isso, dizia que o amava, e ele desejou poder ficar ali, naquele lugar seguro e protegido e aferrar-se a ela durante o resto de seus dias.

Quando a olhou no rosto, ela estava esfregando-os olhos com os dedos. Bom, j chega -reps com voz apagada. Como pode ver, Robert no tem o corao partido de tudo. Mas no acredito que encontre j muita satisfao em faz-lo rabiar, a no ser que voc goste das

cenas dramticas. No, senhora -disse obediente sem soltar-se. Ela tirou o leno e assuou o nariz. Sorri para mim, Samuel. Quase nunca sorri. Sim, senhora -disse Samuel e curvou os lbios. Com o leno na mo, Lady Tess fez um gesto com

a cabea. Muito bem! exclamou alegre. Samuel se separou dela e foi at a cmoda de madeira de accia. Colocou as mos sob as camisas limpas e encontrou a pedra marrom bicuda e com nervuras, com diminutas irisaes de cristal verde, que tinha conseguido nas rochas da Diamond

Head. Isto para voc -disse enquanto a oferecia no oco da mo. Ela tomou a pedra, olhou-a e a fez girar com os dedos, tocando-a com a mesma suavidade que se de um objeto valioso se tratasse.

Obrigada -disse. bela. Ento sim que Samuel sorriu. No era bela, claro que no, mas de todas formas se sentiu sobressaltado e satisfeito; sentou-se no cho e ficou a brincar com a corda de acerico, atirando dele e fazendo-o deslizar-se a pequenos saltos pelo gentil cho.

Ainda ajudas ao Dojun -comentou ela. No esquea o que Gryphon te disse, Samuel: no tem por que faz-lo. No deve pensar que tem a obrigao de trabalhar. Sim, senhora. Atirou da almofadinha para diante e para trs. No o esqueci. Sempre que seu trabalho escolar seja satisfatrio,

como foi at agora, quo nico tem que fazer brincar. Eu gosto de trabalhar -disse, com a vista cravada no cho entre suas pernas cruzadas. Quero faz-lo. A dama permanecia em silencio atrs dele. Samuel sentiu que o olhava e se notou acalorado e cheio de agitao, mas ficou imvel, com

a mesma falta de movimento que se estivesse na rvore observando ao pssaro, e sem apartar a vista do cho. Est bem -disse ao fim com relutncia Lady Tess. Se de verdade voc gostar Sim, senhora -afirmou Samuel. Eu gosto. A dama permaneceu ali outro instante;

depois ele ouviu um suave suspiro e o frufru de sua saia quando se afastava. Aquela tarde tentou apanhar ao pssaro. Esperou na rvore, lanou-se a agarrar o pardal quando apareceu, e caiu dos ramos. Dojun o encontrou ao p da rvore, emocionado e incapaz de mover-se. Samuel recordava vagamente

que o mordomo tinha posto o p descalo em sua axila e lhe tinha puxado o brao, o que lhe doeu intensamente durante um instante antes de perder a conscincia. Quando despertou, estava na cama, e ali teve que ficar durante uma semana para recuperar do ombro deslocado e da comoo cerebral.

Teve medo de que Dojun estivesse aborrecido com ele. Durante longo tempo depois do incidente, no foi capaz de reunir foras suficientes para falar com o mordomo japons. Quando Dojun se aproximava, Samuel desaparecia, fazia que sua presena passasse inadvertida: quieto, silencioso e humilde se escondia nas sombras como um

rato. At que um dia, inesperadamente, Dojun o encontrou quando atravessava o vazio comilo. Samuel ouviu seus passos e logo que teve tempo de meter-se detrs da porta e ficar imvel para fazer-se invisvel. O mordomo ps a mesa e se moveu pela estadia entre roce e entrechocar de cobertos.

Isso te d bem, verdade? disse em japons enquanto se inclinava para colocar um garfo. Kyojitsu difcil de aprender, mas voc j sabe como faz-lo. Samuel soube que Dojun estava se dirigindo a ele: ningum mais sabia absolutamente nada de japons. Ele no conhecia a palavra kyojitsu, e estava

completamente seguro de que Dojun era consciente do fato.

A gente ignorante s utiliza um tipo de disfarce -prosseguiu Dojun enquanto punha a mesa. Shin o que algum em seu pensamento. O que em seu corao. Itsuwaru fingir o que no se . Ambas as coisas juntas, podem ser kyojitsu. muito fcil ser sempre um

tigre. Se for um tigre, faz as coisas da forma que as faria um tigre, move-te igual a um tigre, utiliza sozinho a forma estabelecida do tigre, seu kata. Encontra-te com um tigre maior, e ento o que? Est em perigo. melhor saber tambm o kata de um camundongo. Melhor saber

como ser pequeno e silencioso. Pode que nesse caso o tigre no te veja, e siga com vida para voltar a ser um tigre. Samuel o escutou e se sobressaltou para ouvir o Dojun falar de um camundongo como se lhe tivesse lido o pensamento. Mas no parecia zangado nem

falava com desdm; por suas palavras parecia que era algo bom. Com lentido, Samuel tomou ar e saiu de detrs da porta. Dojun se limitou a seguir colocando as toalhas. Depois de um momento, Samuel fez uma reverncia respeitosa tal como Dojun lhe tinha ensinado. No

posso conseguir a pluma -disse em japons. Estou envergonhado, Dojun-san. Dojun se endireitou junto mesa e o olhou. Aqueles traos to exticos lhe devolveram a confiana. Samuel jamais tinha conhecido a ningum como Dojun: nunca mostrava signos de aborrecimento, fome ou entusiasmo. Os enigmticos olhos orientais faziam que Samuel

sentisse de uma vez segurana e curiosidade. por que envergonhado? perguntou Dojun sem alterar-se. Conseguiu a pluma primeira, com a armadilha. Samuel titubeou. Pensei que estava mau. No a ps na terrina. Pensa muito. Como sabe o que est bem e o que

est mau? muito jovem para sab-lo. Quer muito. Quer uma pluma em uma terrina. E o que faz? Cai-te de cabea para consegui-la. Esta noite porei uma pluma em uma terrina para ti. Far-te isso feliz? Samuel franziu o cenho e se olhou os ps. No, Dojun-san.

difcil de contentar. Samuel o olhou. Acredito que voc o que difcil de contentar. Aquelas ltimas palavras as disse em ingls, e em seguida, deu um passo atrs e agarrou o pomo da porta, assustado de seu prprio atrevimento.

Dojun fez um gesto com a mo para lhe tirar importncia. Ningum poder contentar a todos -grunhiu, recorrendo a seu ingls rudimentar, como se desprezasse o torpe japons de Samuel. Ser bom quando usar kata tigre, kata camundongo, Samuel-san. Ser bom aqui. E golpeou com o punho justo por debaixo

do umbigo. O que Dojun querer no importar quando Samuel-san cair da rvore. Cho muito duro, no?

Samuel se recostou na porta e percorreu a madeira de cima abaixo com a mo. Ser muito duro, Samual-san? perguntou Dojun. Bastante duro -disse Samuel com a cabea agachada. Dojun comeou a colocar os pratos. De novo, dirigiu-se a ele em japons. O

que te parece se te ensino como girar para frear a queda? perguntou. Chama-se taihenjutsu ukemi. Poderia te ensinar a faz-lo. Mas me pergunto que bem lhe far isso a este moo que quer tantas coisas? No posso colocar uma queda em uma terrina de gua. No posso lhe dar o

que ao parecer quer. Se aprender a cair, isso quo nico receber. Somente aprender a conseguir que o duro cho se converta em brando. O que isso para um moo que quer plumas em terrina de gua? No era sozinho a pluma na terrina -protestou Samuel em ingls

com voz chorosa. No o entende. Eu muito estpido. Estpido de verdade. Eu no acredito isso! Voc mais preparado, n? Samuel, frustrado e detento da confuso, retorceu o pomo da porta. No sei o que quer! Dojun se deteve, olhou-o

e sorriu. Samuel tinha os ombros afundados. Viu como Dojun voltava a agarrar os pratos e esperou at que o mordomo os tinha colocado todos em seu lugar e estava a ponto de sair do comilo. Dojun-san -disse com um sussurro em japons, ensinar-me a cair?

Este sbado -disse Dojun, vem comigo de novo a Diamond Head. 11 Leda tirou o chapu olhando com suspeita a toda a confuso que via entre as multides que enchiam as ruas, esperando pela metade descobrir os olhos cinza claro do senhor Gerard sob o chapu pudo de

um trabalhador de costas encurvada com o cabelo e o rosto manchados de carvo. Depois de ter declinado sua oferta de emprego -aceitar o posto de secretria de um ladro; impossvel!, a forma em que ele tinha transformado sua aparncia tinha sido do mais desconcertante: tinha obtido que o casaco perdesse a

forma e tinha utilizado um punhado das cinzas do carvo de sua chamin para enegrecer o rosto e as mos. Aquilo s no pareceu mud-lo muito enquanto estava na habitao observando o que fazia, mas detrs voltar de uma breve e furtiva incurso escada abaixo para pegar uma bengala do cabide que

a senhora Dawkins tinha no vestbulo, subiu o ltimo lance da escada e no pde evitar a levar um susto de medo ao encontrar-se a um desconhecido no patamar, uma silueta esfarrapada e que se apoiava como um bbado no corrimo. Tinha sido necessrio que passasse o momento de surpresa

para compreender de quem se tratava, pelo convincente que tinha resultado a

transformao do cavalheiro na silueta encurvada de um vagabundo recm sado do calabouo. Cobria o rosto com um chapu leve que deixava ver a suja ponta do queixo; usava a jaqueta desabotoada e embaixo ela se via a camisa, que tinha perdido dois botes e tinha um rasgo na costura do

pescoo; tinha arrancado a parte dianteira dos estranhos sapatos e tinha recheado os buracos com papel de jornal, o que estava em perfeita consonncia com aquele curioso entalado prprio de um mendigo que tinham feito entre as duas para a perna, e que era o nico reconhecvel de sua pessoa.

Ele a olhou por debaixo do chapu. Entre a penumbra do corredor e as sombras escuras de fuligem no rosto, os olhos pareciam de um cinza translcido, e a luz inteligente que neles se refletia resultava chocante em um ser de aspecto to spero e miservel. Leda lhe entregou a

bengala. Se o que quer evitar a curiosidade -lhe aconselhou, ser melhor que mantenha a vista baixa. Respondeu-lhe com um grunhido e levou a mo ao chapu em gesto de taciturno assentimento. Senhora. Se Leda no tivesse sabido perfeitamente bem que suas mos

careciam de defeito algum, teria sucumbido perfeita impresso de que lhe faltavam o polegar e o dedo do meio. Apoiou-se na parede do patamar com os lbios franzidos. Est voc seguro de que pode andar? Os olhos dele procuraram de novo seu olhar. Leda pensou,

de repente, que aquele era o ltimo momento com ele, que com toda probabilidade no voltaria a v-lo. Tem meu carto? perguntou ele com suavidade. De fato, o carto lhe queimava no bolso da saia. Leda assentiu. Talvez o pense melhor -disse ele. No

tom no havia ameaa alguma. Tampouco deixava entrever nenhuma emoo. Possivelmente, uma vez que se foi, fosse polcia, mas enquanto o tinha ante ela, olhando-a com aquela intensidade De repente recordou que a senhorita Myrtle nunca lhe tinha permitido sentarem-se nos bancos pblicos dos parques quando era menina, porque

podia ser que um estranho cavalheiro se sentasse ali antes. E os sapatos de couro eram indecentes porque um cavalheiro podia ver as anguas refletidas no brilho. Ele se encurvou sobre a bengala e, com a mudana de postura, Leda advertiu que lhe formava uma escura covinha junto comissura

da boca. No deveria andar -disse Leda. Irei procurar um carro. Ele baixou os trs degraus at o patamar com movimentos lentos, mas geis, elegantes inclusive com a bengala, como se a estupidez fosse algo to alheio a ele que, face incapacidade, era impossvel que

a mostrasse. Est a patroa perto? Quando subi, estava na sala.

Com a porta fechada? Leda assentiu. Mas sair ante o mnimo rudo. Quase no obtive bom tomar emprestado a bengala. Quer ir em segredo? No tenho muitas esperanas, mas preferiria que no voltasse para ver-me. Voc economizar problemas se deixar que pense que roubaram a

bengala. Acredito, segundo minha definio do termo, que em efeito vai ser roubada -disse Leda com aspereza. Ele sorriu. J paguei suficiente por ela. No deixe que o esquea se d conta de que sou eu o culpado. Que voc tenha um bom dia, senhorita toile.

Apoiou-se na bengala e lhe ofereceu a mo livre. Leda a pegou de forma automtica e ficou ali com os dedos nus dele na sua palma. Era a primeira vez em sua vida que se despedia de um homem sem usar luvas. O cavalheiro, obvio, sempre devia tirar-lhe

antes de oferecer a mo, mas tinha sido um engano natural do senhor Gerard esquecer-se de que ela no estava adequadamente vestida. Espero no lhe haver causado inconvenientes que no possa perdoar -murmurou, apertando a mo de Leda com firmeza, como se no tivesse pressa por emendar aquela incorreo.

No, claro que no -respondeu Leda com voz dbil. O aperto dele era quente e extremamente agradvel. O cavalheiro lhe dirigiu outra daquelas olhadas, a mesma que lhe tinha dirigido a primeira vez que o tinha visto, como se tivesse a resposta a algo que ele precisava resolver.

Coisa que era certa. O assunto de recorrer ou no polcia. Ele apartou o olhar. Soltou-lhe a mo e lhe dedicou uma leve inclinao. Tinha-a deixado ali no patamar e se deslizou escada abaixo com graciosidade, evitando pisar no lugar onde o quinto degrau rangia como

se o conhecesse bem. Agora, quando j tinha transcorrido todo um dia e toda uma noite desde sua partida, Leda no cessava de busc-lo, absurdamente, enquanto se deixava levar pelo intenso trfico de Whitehall. Esperava-se a entrada da rainha em Londres para na segunda-feira, e dava a impresso de que

a multido ruidosa que enchia as ruas e dificultava o trnsito se triplicou. Em que pese a tudo, Leda seguia buscando-o, como se ainda pudesse andar rondando por ali, e, sobretudo em meio de semelhante miscelnea, com a perna quebrada e disfarado de vagabundo. Era uma tolice. Estaria cmodo na cama. Na

cama e com os devidos cuidados em Morrow House. Em Park Lane. Tinha-lhe apontado a direo no carto, como se houvesse alguma possibilidade de que ela a esquecesse. Grupos encarregados de engalanar as ruas, que faziam retoques de ltima hora antes da chegada da rainha a Londres, contribuam a

aumentar o caos com andaimes e milhares de metros de colgaduras de cor vermelha e branca. Tudo tinha ar festivo: o cu luminoso, as bandeiras de vvidas cores, a enorme multido que tratava de abrir-se passo. No dia anterior se gastou parte de suas economias no banheiro e depois

tinha ido visitar as damas de South Street e, ao fim, tinha-as encontrado dispostas a escrever a carta de recomendao, mas obstinadas em faz-lo copiando palavra a palavra o que dizia um livro publicado em privado pelo defunto marido da senhora Wrotham, e no que se podia encontrar o estilo adequado para

qualquer tipo de carta. A senhora Wrotham tinha sabor de cincia certa que a ltima vez que o tinha visto servia de sustento porta da sala do caf da manh, mas j no estava ali. Mesmo assim, no lhe cabia dvida de que acabaria por encontr-lo entre seus pertences, se lhe

dava tempo para busc-lo. A senhora Wrotham tinha a completa segurana de que Leda descobriria que qualquer tentativa de reproduzir aqueles trminos ficaria muito por debaixo da expresso brilhante e o excelente estilo de seu falecido esposo. Seria algo to pobre e desastroso que lhe faria perder qualquer emprego que ela tivesse

a mnima esperana de conseguir. Era tanta sua ansiedade que Leda tinha pensado de fato na possibilidade de falsificar a famosa carta quando saa de South Street. De todas as formas, como descobriu, tampouco teria conseguido nada, j que ao ir cedo a jogar uma olhada agncia de emprego

da senhorita Gernsheim, encontrou um grande pster pendurado da porta. Fechado em honra das celebraes do jubileu que comemora os cinqenta anos de reinado de sua majestade a rainha Vitria, rainha da Inglaterra e imperatriz da ndia. Abriremos de novo na segunda-feira 27 de junho. Como se ficasse

algum que no se tivesse informado de que ia se celebrar o jubileu, pensou Leda cheia de pessimismo. At na segunda-feira. Era sbado, a rainha no chegaria at dois dias mais tarde, e o momento mximo da celebrao seria na tera-feira e iria seguido por uma semana inteira de festejos.

Pelo menos faltavam oito dias mais at que tivesse to sequer oportunidade de ver que possibilidades de trabalho tinha. Oito dias horrveis, e dois xelins. Pensou na polcia, e em uma recompensa de duzentas e cinqenta libras. Sentiu que, presa da agitao, o rosto lhe acendia em meio da multido.

De todas formas, no lhe acreditariam. Estava convencida de que no iriam faz-lo. Seguiu caminhando sem rumo, deixando-se arrastar pelas pessoas. O jornal do dia no tinha publicado nenhum anncio de emprego novo; no falava mais que do jubileu, o jubileu. E, em que pese a tudo, era

tudo to espetacular, havia tanta animao que parecia que todos estavam a ponto de estalar de emoo: falavam de que teriam que estar ali no domingo pela

tarde e pass-la noite em p para ver fugazmente rainha fazer sua entrada na cidade em sua limusine. O mundo inteiro se encontrava ali para lhe dar boas vindas e aclam-la, a ela e amada a Inglaterra. O corao de Leda se alagou daquele sentimento e, em um ato

de rebeldia ante seu destino, foi e gastou seus ltimos dois xelins em um enfeite comemorativo com uma miniatura de sua majestade, adornada de longos laos de cor vermelho escarlate, azul e dourado, junto com uma taa de lembrana do jubileu que, conforme lhe assegurou o vendedor, era uma cpia exata das

que o prncipe tinha encarregado fbrica de porcelana Doulton para lhe dar de presente a cada um dos trinta mil escolares britnicos que, na quarta-feira, receberiam rainha no Hyde Park. Foi uma tolice. Uma tolice to grande que, quando se afastava, os olhos se encheram de lgrimas de

desespero e teve que fingir que sentia grande interesse ante uma cristaleira. Veria-se obrigada a vender o vestido de seda negra do salo de modas que tinha posto e, certamente, tambm as luvas, para ter o suficiente para comer o resto da semana. E, em tal caso, o que ia

vestir para as entrevistas de trabalho? Com a saia de percal sempre se encontrava ridcula. Tinha aspecto de empregada e, dadas as circunstncias, parecia que isso era no que ia terminar. Ainda ficavam o espelho e a escova de prata da senhorita Myrtle. Possivelmente tivesse chegado o momento de vend-los.

Ou pode que o sargento MacDonald estivesse de verdade interessado nela, e que superasse seu acanhamento, pensou com mais otimismo. Nunca a tinha visto com o vestido de seda negra e o chapu que levava nesses momentos; sempre se tinha trocado antes de sair do salo de madame Elise. Ao olhar seu

reflexo na cristaleira, pareceu-lhe que o enfeite com todos seus laos e to colorido ficava muito bonito sobre o fundo elegante e negro do suti. Separou-se da cristaleira. Seus passos vacilantes se moveram com mais deciso para um destino concreto. Aos sbados, o sargento MacDonald e o inspetor Ruby chegavam

a trabalhar a primeira hora da tarde, em lugar de faz-lo de noite. Quando Leda chegou a Bermondsey, eles j estavam ali, bebendo umas taas de ch que acabava de lhes servir uma jovem dama coberta por um apertado vestido de gabardina de enormes anquinhas que lhe dava o aspecto de um

relgio de areia, e que ao entrar Leda levantou a vista e deixou a bule a um lado. Esta deve ser ela -disse a jovem em tom pouco amistoso enquanto ambos os policiais ficavam em p de um salto. A cara do sargento MacDonald ficou vermelha como um

tomate; enganchou os dedos no cinturo e fez uma rgida inclinao, sorrindo a Leda com ar contrito.

Sim, esta a senhorita toile confirmou o sargento. Senhorita, esta minha irm. Olhou outra mulher e fez um gesto torpe com a mo. A senhorita Mary MacDonald. Leda viu imediatamente qual era a situao. A senhorita MacDonald a olhou com o ar displicente prprio da

classe mdia. Senhorita toile -disse, pronunciando toile com sotaque francs exagerado e marcada afetao. No lhe ofereceu a mo. Meu irmo me falou que voc com tanta freqncia que pensei que tinha que vir e v-la com meus prprios olhos. Os trminos daquele comentrio eram to claramente impertinentes

que Leda fez caso omisso e forou um sorriso educado. Estou encantada de conhec-la, senhorita MacDonald. Faz um dia belo para sair e aproximar-se deste bairro -disse, como se Bermondsey fosse um lugar com o mesmo atrativo que Mayfair. Vai vir voc com todos ns a ver a chegada de

sua majestade? Meu irmo diz que ser um esgotamento terrvel. Todas as classes baixas e o vulgares sairo s ruas. Acredito que, nessas circunstncias, prefiro ficar em casa. Mas imagino que algo assim a voc no incomodar, senhorita toile. Atreveria-me a dizer que j est do mais acostumada a essas

coisas. Gosta de uma taa de ch, senhorita? disse rapidamente o sargento MacDonald, enquanto o inspetor Ruby lhe dirigia um seco sorriso. Obrigado -disse Leda, e aproximou sua taa. Como podem ver, tenho o objeto apropriado para tom-lo. Vou propor um brinde por sua majestade. A

taa foi a desculpa para que o sargento MacDonald e o inspetor Ruby se dedicassem a examin-la e fizessem comentrios cheios de cordialidade, e o inspetor anunciou que lhe compraria tambm uma a sua esposa. No querer levar-se a casa um artigo de imitao -comentou a senhorita MacDonald. Eu vi

uma de prata que tinha as palavras gravadas adequadas, se que sua esposa quer uma lembrana da ocasio. J sei, mas eu no posso me permitir comprar um pouco de prata, senhorita MacDonald -foi a resposta do inspetor, quem, quando Leda acabou de servir o ch, levantou sua taa.

sade de sua majestade! props. Por seu glorioso e adorado reinado -acrescentou Leda, elevando sua taa. Que tolice brindar com ch -disse a senhorita MacDonald. O sargento, que estava a ponto de somar-se ao brinde, baixou a taa e fechou a boca.

Leda e o inspetor entrechocaram as taas de cermica. O homem lhe fez uma dissimulada piscada. Leda lhe respondeu com um sorriso, mas lhe tinha cansado a alma aos ps. Estava perfeitamente claro que a senhorita MacDonald no tinha a mnima inteno de que um dom ningum de Bermondsey arrebatasse

a seu irmo.

Depois de um momento de silncio enquanto bebiam o ch, o sargento MacDonald disse sem pensar: Leva voc um traje de categoria, senhorita. Obrigado -disse Leda. Deu outro gole ao ch e perguntou com ar de curiosidade inocente: Tem feito a polcia algum progresso no assunto do

infame ladro? No, nem o mais mnimo. O inspetor Ruby se serviu uma colherinha mais de acar. Leda teria sabido como lhe servir a infuso da forma que gostava, mas era evidente que a senhorita MacDonald no tinha pensado em perguntar - desconcertante que a espada japonesa desaparecesse igual a

todo o resto, com uma nota e bom um objeto estranho deixado em seu lugar, e que, quando os agentes chegaram ao lugar indicado, a espada no se encontrasse ali como sempre tinha acontecido nos roubos anteriores. E ainda no a localizaram. Ter-os que pensam que poderia ser uma imitao dos outros

delitos, e que no se trate do mesmo sujeito absolutamente. Ou pode ser que tenha acontecido algo que lhe impedisse de levar a cabo seu plano -aventurou Leda. O inspetor se encolheu de ombros. Talvez. Isso o que opina o chefe, que com o aumento

do desdobramento de agentes em todos os esclareceu garganta e olhou senhorita MacDonald. Bom naqueles lugares aonde pensamos que era mais provvel que levasse a espada, e que a presena dos reforos o obrigasse a fugir. Seguem sem ter idia de quem poderia ser? perguntou Leda, quem pensou

que, tendo em conta o ritmo acelerado ao que lhe pulsava o corao, tinha pronunciado aquelas palavras com bastante normalidade. Que eu saiba, nenhuma, e essa a verdade. Mas nunca se sabe o que se guardam para si na Scotland Yard. Deveriam enforc-lo -opinou a senhorita MacDonald.

Merece que o esquartejem quando o encontrarem. asqueroso. Bom, no sei -disse o inspetor Ruby. No estou seguro de que tenha sido algo to mal depois de tudo. lgica que voc no esteja inteirada, senhorita MacDonald, mas, em certa forma, esses roubos propiciaram que se fizesse algo bom

e decente na cidade. algo vil e repugnante. No teria que aparecer nos jornais. S me pens-lo adoece. Nesse caso, o melhor seria que no o pensasse, senhorita MacDonald -aconselhou o inspetor. No o fao. E o que me admira que a senhorita toile

sinta interesse por semelhante asquerosidade. O sargento MacDonald guardou silncio, com a vista sempre cravada no cho. Uma sacudida de ira percorreu o corpo de Leda. Estava claro que no ia obter a aprovao da senhorita MacDonald. E uma malevolncia que no sabia que guardava em seu interior

a impulsionou a dizer:

Claro, sinto um vido interesse pelo assunto. minha afeio. Por isso desfrutei tanto de conhecer seu irmo. Ele me pode contar todos os horrveis detalhes de todos os delitos mais vis. O sargento MacDonald a olhou atnito. No me surpreende voc absolutamente, senhorita toile -disse a

irm. Hei-lhe dito que voc no o que parece; que ao vir aqui todos os dias tinha propsitos ocultos, que sua esperana era enganar a um homem decente e convencer o de que voc era uma dama. O sargento MacDonald ficou em p e, envergonhado, murmurou um inaudvel protesto

ante as palavras de sua irm, mas ela se soltou da mo que lhe agarrava o cotovelo. No vou permitir que lhe enrolem, Michael. Estava segura de que esta mulher no era mais que uma qualquer muito ardilosa, mas agora vejo que ainda pior do que tinha suspeitado.

obvio -disse Leda ficando em p. Estou segura de que muitssimo pior. Olhou uma vez ao sargento MacDonald, mas ele esquivou o olhar, o que lhe deixou claro tudo o que tinha que saber. Que tenha um bom dia, inspetor. Que voc tenha bom dia, sargento MacDonald. Senhorita MacDonald

Agarrou sua taa e se deu a volta entre o rgido frufru da seda, sem lhe dirigir ao sargento nem o mais mnimo gesto quando ele escalou para lhe abrir a porta de vime. Senhorita -disse este ao passar Leda, mas ela fez caso omisso dele e baixou

os degraus, agarrando com fora a taa, enquanto continha, com enorme esforo, a ameaa de lgrimas de fria e mortificao. Quando alcanou sua prpria rua, no se sentia com nimos para agentar a senhora Dawkins, mas no levava nem to sequer dez minutos em sua habitao nem tinha recuperado o

controle de sua acelerada respirao para poder pensar com claridade, quando a patroa chamou com fora a sua porta. Um cavalheiro quer v-la, senhorita -gritou a senhora Dawkins. Leda olhou a seu redor, srdida habitao, com a ira afogando-a. De maneira que tinha ido atrs dela a

lhe rogar e lhe suplicar? Depois de no pronunciar palavra para enfrentar-se a sua irm, nem um murmrio coerente em defesa de Leda Abriu a porta de par em par e passou diante da senhora Dawkins. Em minha sala -disse a patroa, apressando-se atrs dela. Ao

chegar ao p da escada, fez a Leda a um lado e abriu a porta. Aqui a tem, senhor, bela como uma prola, como pode ver. Uma jovem bela, senhor, o bastante adulta para saber como agrad-lo, e o suficientemente jovem para estar fresca como uma rosa. Leda

se deteve no corredor. Tinha esperado encontrar-se com o sargento MacDonald. Em seu lugar estava um desconhecido que j tinha passado os cinqenta e que apagou um charuto na taa de ch sobre a mesa da senhora Dawkins. Olhou a Leda e, continuando, assentiu sorridente.

Muito bonita -disse com educao. Por um instante, sua finura a distraiu. A ira se converteu em assombro, e de repente caiu na conta. O homem saiu ao corredor e se aproximou dela. A Leda chegou o aroma do charuto e se sentiu tonta; tonta, humilhada, desesperada

e presa do terror. Sua habitao, em que pese a sua sordidez, tinha constitudo seu ltimo refgio: estava paga por uma semana, e tinha um ferrolho na porta que lhe permitia isolar-se da realidade. O homem tentou lhe agarrar a mo. Apartou-lhe o brao e saiu disparada para a rua, com a

senhora Dawkins as suas costas dando gritos de indignao e pedindo desculpas ao cavalheiro de uma vez. Leda caminhou sem pausa at que as multides comearam a decrescer na hora do jantar, e os botequins e os sales de ch se encheram de bulcio e animao. Pensou em refugiar-se em

casa da senhora Wrotham, que tinha uma habitao vazia: era o ltimo recurso que ficava. Veria-se obrigada a lhe confessar a horrvel situao em que estava, mas como podia lhe contar senhora Wrotham, com aquelas mos trmulas e os cachos prateados que se agitavam com suavidade, que no podia voltar para

sua casa porque sua patroa queria que lhe proporcionasse entretenimento a um desconhecido? De fato, Leda chegou at o South Street, deteve-se, oculta nas sombras cada vez mais alargadas das primeiras horas do entardecer, e contemplou a velha casa da senhora Wrotham em que o gs no estava aceso e

no se via nenhum abajur, nem to sequer uma vela na janela, porque as circunstncias da dama no lhe permitiam esses pequenos luxos, embora ela jamais o mencionasse e seguia adiante como se o que obrigava senhora Wrotham, senhorita Lovatt e Lady Cove a olhar tanto por seu dinheiro -at

o ponto de que se viam foradas a compartilhar mulher que os fazia de criada e cozinheira nas duas casas no fosse mais que uma amostra da peculiar idiossincrasia de qualquer natureza aristocrtica. Leda tinha uma idia bastante clara do estado das contas de cada uma das damas, embora jamais se

falasse da questo. Sabia que alimentar e vestir a uma convidada faria que a senhora Wrotham tivesse dificuldades para seguir pagando seu tero do salrio da criada; tambm sabia que, uma vez que revelasse suas circunstncias s damas, no haveria maneira de impedir que insistissem em estirar seus escassos recursos para manter

a uma quarta pessoa, o que mal poderiam fazer, nem tampouco evitar as fazer sentir atormentadas e muito desgraadas se no o faziam. Os ps lhe doam. Estava fatigada e faminta, enquanto tratava com todas suas foras de decidir qual era o caminho que devia seguir: o que teria feito

a senhorita Myrtle se alguma vez tivesse sido to imprudente para encontrar-se em uma situao similar, coisa que Leda duvidava. Foi andando at a esquina -no estava mais que a uns passos de distncia,

to perto e to apetecvel para seus ps cansados, e girou por Park Lane para o Hyde Park Corner Em meio da crescente escurido, Morrow House resplandecia de luz. Uma fileira de abajures de cor rosa e amarelo reluziam depois dos painis de cristal da comprida e estreita estufa

que percorria o fronte da casa por cima da planta baixa, e que deixava a maior parte da singela fachada georgiana oculta depois da folhagem e o ferro forjado. Da balaustrada que rodeava o telhado pendia uma colorida colgadura em honra ao jubileu, e de cada um das dobras caa uma bandeira

sobre as janelas do piso superior, a insgnia britnica se alternava com outra distinta: uma a franjas vermelhas, azuis e brancas com uma pequena reproduo da bandeira britnica no quadrante superior. Leda conhecia Morrow House toda a vida. Tinha passado por diante milhares de vezes: uma manso mais das muitas

que se elevavam naquela rua, com vistas ao parque e ao trfico. At inclusive, em uma ocasio, a senhorita Myrtle e ela tinham estado ali de visita quando a falecida Lady Wynthrop ainda se encontrava com vida e tinha por costume transladar-se ali durante a temporada de festejos, em lugar de ficar

em sua prpria casa em King Street, menor e menos elegante. No era que a casa tivesse uma aparncia distinta da que Leda esperava. Era que lhe resultava impossvel estabelecer a mais remota conexo entre a direo cotada a toda pressa que levava no bolso e aquela slida realidade que

se elevava ante ela. No podia subir os degraus at a porta porticada, elevar a aldaba e perguntar se estava em casa o senhor Gerard. No s lhe parecia improvvel impossvel que as coisas que lhe tinham passado nas ltimas quarenta e oito horas fossem reais, mas sim

o tardio da hora e o fato de ser uma mulher s que ia visitar um cavalheiro solteiro lhe parecia um atrevimento, por no dizer um autntico descaramento. Mas no podia ir a sua casa, e lhe horrorizava voltar para a casa da senhorita Wrotham, assim, sumida em muitas dvidas,

ficou ao p da escada, com a mo enluvada apoiada no corrimo de ferro que bordeava a entrada. Chegou at ela um murmrio de vozes e risadas, e no momento em que levantava a mo a toda velocidade para girar sobre seus passos, a porta se abriu e um feixe de luz

dourada se projetou fora. Lady Catherine, coberta pelo que Leda reconheceu imediatamente como uma daquelas sedas de cor rosa e arremate de tule que lhe tinha aconselhado no salo de madame Elise, saiu ao terrao. Cobria os ombros com um xale de l branca que estragava bastante o efeito do

tule, mas levava como complemento um belo leque de plumas de cor nata que no deixava de agitar sob o queixo, como se a sensao fosse muito agradvel. J iniciava o giro para a porta quando viu a Leda. Veja, ao fim est aqui, senhorita toile! gritou para autntica surpresa

de Leda. J era hora, estvamos a ponto de que a preocupao pudesse com todos ns. Mame, mame querida, empreste ateno, por

favor. voltou-se para a porta, rindo. Deixa de cuidar as orqudeas A senhorita toile veio ficar conosco por fim. Ouviu-se uma exclamao no interior e Lady Ashland apareceu no vo da porta. Quando viu a Leda, seu rosto se iluminou de alegria. Senhorita toile! Entre, por favor.

Estamo-lhe to agradecidos! Desceu pelos degraus, apartando a um lado a elegante seda escarlate de sua saia, e agarrou a mo de Leda. Aloha. Entre. Aloha nui! Isso quer dizer bem-vinda em havaiano. Lady Catherine saiu ao encontro de Leda quando Lady Ashland lhe fez subir os degraus, e

a abraou. E a queremos. Muitssimo obrigado! Leda, atnita, soltou-se de seus braos. Ah mas estou segura de que no tm nada que me agradecer. Lady Catherine lhe deu um aperto na mo. Pode ser que para voc carea de importncia, mas para ns

Samuel tudo. Pusemo-nos frenticos quando no apareceu hora do caf da manh. Sabamos que algo ruim devia ter acontecido porque ningum recordava hav-lo visto entrar a noite anterior e tinha que nos haver levado na carruagem a tomar o caf da manh com os Roseberry, e jamais impontual.

Um lacaio mantinha ainda a porta aberta, e Leda se viu conduzida ao interior da casa, onde um pequeno grupo era evidente que estava a ponto de sair para cumprir com algum compromisso aquela noite. Sem demora, apresentaram diretamente a Lorde Ashland, cavalheiro distinto cujo traje -consistente em traje

de etiqueta, gravata branca e luvas da mesma cor complementava perfeitamente seu loiro cabelo e suas aristocrticas faces, e tambm a Lorde Robert, que era um pouco maior que Lady Catherine, talvez de uns vinte anos, e tinha o mesmo sorriso franco e encantador de sua irm. Quando Leda olhou de novo

a Lorde Ashland, viu claramente de quem a tinham herdado ambos. Lorde Ashland rodeou com o brao a cintura de sua esposa, enquanto ela alargava a mo e tomava de novo a de Leda entre as suas. O mdico veio esta tarde -disse. Comunicou-nos que, agora que o

inchao se reduziu, encarregar-se de que a perna receba os cuidados adequados. Amanh a entalar como Deus manda. Disse tambm que a felicitssemos por sua criatividade, j que a ele jamais lhe teria ocorrido que um jornal enrolado fosse to rgido e proporcionasse o apoio necessrio. Bom, em realidade no

fui eu a que Agora est dormindo -interveio Lady Catherine. Dava-me conta de que sentia dores, em que pese a que ele se negava a reconhec-lo, e disse cozinheira que lhe pusesse ludano no jantar sem que se inteirasse. Kai! exclamou Lady Ashland com exasperao. No se

atreveu! No se importar -respondeu a filha. No se fui eu a que o fez. Lady Ashland parecia zangada. Possivelmente no -disse, mas se ele no quer tomar ludano, no corresponde a ti engan-lo para que o faa.

Lady Catherine mordeu os lbios. Bom, agora j passou. Ficou adormecido, e pode ser que manh pela manh me agradea isso. Aquelas palavras no pareceram satisfazer a sua me, que se apartou com o cenho um pouco franzido. Leda viu que Lorde Ashland observava a sua esposa,

mas o nico que ele disse foi: Possivelmente senhorita toile gostaria de acomodar-se em sua habitao. Minha habitao? repetiu Leda como um suave eco. Sim, claro. J subo eu e a ensino -disse Lady Catherine. Total, s temos que percorrer meia hora e no chegaremos

muito tarde ao jantar. Ao jantar! Leda soltou o brao do impetuoso aperto de Lady Catherine. Nesse caso, no podem chegar nem um minuto tarde, senhora. No se trata de um convite para jantar. Ah. Mas algum me disse que no tinha nada de mais, que aqui na

cidade era uma verdadeira metedura de mo chegar hora. No, a um jantar no. Talvez se estivessem se referindo a um baile. Quando se trata de um compromisso para jantar, h uma margem para chegar de um quarto de hora, a partir do tempo especificado no convite, Lady Catherine,

e o ideal chegar muito antes desse momento. Leda reconheceu em suas prprias palavras um forte eco da senhorita Myrtle, mas que, infelizmente, aquela alegre jovem necessitava com urgncia aprender umas quantas normas de urbanidade. No me tinha dado conta -disse Lady Catherine, que no mudou

sua atitude agradvel ao receber o conselho. Em tal caso, imagino que devemos nos dar pressa. Lorde Ashland apertou a mo de Leda sem despojar-se das luvas de pelica. Sheppard se encarregar de lev-la acima, senhorita toile. Sente-se como em sua casa. At mais tarde, senhora

-disse seu filho, quem a sua vez ofereceu a mo enluvada e lhe dedicou um sorriso. Quando foram para a porta, a prpria Lady Ashland se voltou para a Leda, tomou a mo, e disse: Obrigado, uma vez mais. No sabe como me alegra que se decidiu a

vir. Leda, ainda presa da insegurana, sorriu e os contemplou enquanto saam pela porta. Lorde Ashland ficou atrs, deixando que outros o precedessem. Quando o filho cruzou a soleira, Leda, sem pens-lo, foi nas pontas dos ps at Lorde Ashland e se inclinou para lhe sussurrar ao ouvido:

Perdoe. Rogo-lhe me desculpe, senhor mas possivelmente no se tenha informado de que um cavalheiro tem que tirar a luva antes de lhe oferecer a mo a uma dama. Dirigiu-lhe um olhar de surpresa, e a seguir apareceu o rubor sob o bronzeado de seu rosto, ao tempo que lhe

sorria de lado.

Meu Deus, de onde tiram todas essas normas? E elevou a cartola em sinal de saudao. Muito obrigado, o farei saber tambm ao Robert. Leda titubeou, mas depois acrescentou: Em um jantar, os pode tirar no vestbulo e entreg-los junto com o chapu e a bengala.

Ao mordomo. Sim, ao mordomo, quem a sua vez os entregar ao lacaio. Lorde Ashland fez um gesto com a cabea, rindo por debaixo, e saiu pela porta. Sua imagem de elegncia, vestido com traje de ornamento, absolutamente desmerecia a de nenhum cavalheiro que Leda tivesse visto

em sua vida. Ao chegar soleira, deteve-se e olhou para trs. H algo mais que teria que saber? No, senhor -disse Leda, quem respondeu a sua piscada com um tmido sorriso. Tem voc um aspecto absolutamente maravilhoso. De p, no centro do delicioso quarto, Leda

fez um esforo para no extasiar-se na contemplao dos estuques dourados do teto e da decorao da pea. Era tudo de cor azul sobre fundo branco; o tapete que cobria o cho, azul e rosa, e as cadeiras estavam estofos em cretone, com um delicado estampado de flores tambm azuis. E por

todos lados havia flores, mas no em vasos, a no ser plantadas em vasos de barro: ramalhetes de orqudeas brancas com irisaes rosas, que brotavam de frondosas matas vivas de folhas cor de rosas. No -disse em resposta pergunta da ama de chaves, no tenho bolsa de viagem.

Para sua vergonha, foi muito consciente de que estranha lhe pareceria aquela circunstncia mulher, mas a ama de chaves se limitou a dizer: Muito bem, senhorita. Acabam de instalar a eletricidade na casa. Se apertar este boto, ter toda a luz que necessite. Se gostar, farei que lhe

subam o jantar em uma bandeja. Sim, isso seria muito amvel de sua parte. Leda examinou o boto eltrico com desconfiana e decidiu que no era o bastante valente para prov-lo. Despojando do chapu e as luvas, aproximou-se da janela aberta e olhou para a rua

lateral a que dava sua habitao. O trfico noturno era veloz: reluzentes carruagens estralavam em ambas as direes depois da esquina com Park Lane. Os cavalheiros passeavam de dois em dois, e em seus chapus de seda se refletia a luz das luzes; de alguma festa nas proximidades chegavam ecos de msica.

As orqudeas no tinham aroma, mas, ao aparecer janela, as suaves ptalas de um dos ramalhetes, limpos e frescos, roaram-lhe a face como em uma carcia. Parecia fcil esquecer-se do incmodo de sua situao. Estava claro que o senhor Gerard a tinha feito aparecer como uma espcie de herona aos olhos

de seus amigos, ou de sua famlia, ou de qualquer que fosse a relao que tivesse com Lorde e Lady Ashland. E eles pareciam mais que decididos a acreditar em suas palavras. Tinham preparado

aquela habitao em espera de sua chegada. Como se ele tivesse sabido que ia ter necessidade dela. E dele. Quo nico lamentava era dar-se conta de que tinha abandonado a escova e o espelho de prata da senhorita Myrtle em Bermondsey. Agora no tinha maneira de recuper-los, e no

lhe cabia dvida de que a senhora Dawkins os venderia primeira ocasio. A prpria ama de chaves, e no uma donzela, apareceu com a bandeja. Colocou-a ante a Leda e ato seguido anunciou que se ia. Depois do jantar, trarei-lhe uma camisola e uma bata, senhorita,

alm de gua quente. Ah, muito bem -disse Leda, como se as camisolas e as batas fossem algo normal para qualquer convidado. Viu que na bandeja havia uma nota, e se mordeu o lbio. De momento, no necessito nada mais. O ama de chaves inclinou a cabea e partiu. Leda

agarrou a nota. Eu gostaria de v-la esta mesma noite. No me importa a hora, como pode adivinhar, j que no vou a nenhuma parte. Seu humilde servo. Samuel GERARD Pese fome que sentia, a Leda resultou difcil tragar o excelente salmo defumado e a

lagosta fria. Quando voltou a ama de chaves a lev-la bandeja, Leda se viu obrigada a lhe perguntar onde poderia encontrar ao senhor Gerard, e moveu a nota com descuido, para demonstrar que ela no era responsvel por uma forma de proceder to irregular. Venha comigo, senhorita -disse a ama

de chaves, que continuava sem deixar traslucir seus sentimentos. Guiou Leda pela escada principal at o primeiro piso, por um corredor bem iluminado coberto de tapetes turcos, e chamou uma porta. Uma voz masculina lhe respondeu, e Leda sentiu que o corao dava um tombo. Sem razo alguma,

tinha pensado que estaria em um escritrio ou em um salo, ou em qualquer territrio neutro. O fato de que fosse um quarto, com uma cama, e de que claramente o senhor Gerard se encontrasse acomodado nela fez que ficasse petrificada na soleira. Entre, senhorita toile -disse ele dos almofades,

e seu cabelo semelhante a ouro esparramado sobre os lenis. A ama de chaves comeou a fechar a porta detrs a Leda, que a sujeitou pelo bordo. Est bem -disse ele. Feche a porta, senhora Martin. Muito obrigado. Bom, no acredito que isso seja o adequado -protestou Leda, que a

manteve aberta. Pela manh quando se encontrar melhor, e a famlia esteja em casa possivelmente seja melhor que falemos ento. Encontro-me igual de bem do que me vou encontrar amanh, o asseguro. Lady Catherine disse que devia estar dormindo -afirmou Leda desesperada.

Pensava. Pois bem, no o estou. E ento? E dirigiu um olhar carregado de significado ama de chaves. A mulher se ruborizou e inclinou a cabea. No voltar a acontecer, senhor Gerard. O prometo. Terei umas palavras com a cozinheira. Obrigado. Lady Catherine no

tem por que inteirar-se. No, senhor -respondeu a ama de chaves. E feche a porta, se for to amvel. Sim, senhor. Com um firme puxo, a madeira se deslizou entre os dedos de Leda e a porta se fechou com um estalo.

A jovem apoiou nela as costas e rodeou o bracelete com os dedos. Era quase embaraoso ver a beleza deslumbrante daquele rosto masculino, e o difcil que lhe resultava no contempl-lo fascinada. Isto do mais incmodo. No deveria estar aqui. Fui eu o que lhe pediu que

viesse. Isso o faz ainda pior! Ele moveu a perna sob os lenis, levantou o joelho bom e a ps mais reta. No temos feito que se sinta bem-vinda? perguntou. Leda soltou uma risada nervosa. Muito bem-vinda. Estou afligida! Estupendo.

Sorriu, deslizou a mo vagarosamente pelo lenol que lhe cobria a perna, e depois centrou toda sua ateno no gesto, como se alisar as rugas do tecido fosse uma ocupao absorvente e repleta de interesse. Espero que o fato de que tenha vindo aqui implique que est disposta a aceitar o emprego.

Eu suponho que sim. O homem ficou um momento em silncio, sem deixar de alisar os lenis e sem olh-la no rosto. Disse que um tonel caiu de um carro e bateu na perna. Que desmaiei de dor e que, ao voltar em mim, voc, que

passava por ali casualmente, ocupou-se de tudo. Que tinha sido uma coincidncia incrvel. Elogiei muito seu esprito e no me detive em detalhes. A coisa foi muito bem. Olhou-a por debaixo das pestanas. J tinham gostado muito de voc no salo de modas, sabe? Leda, incmoda, no se moveu da

porta. Pergunto-me por que, se me levei to maravilhosamente, no me encarreguei de que chegasse a casa so e salvo. Negou-se a receber nada em troca de sua ajuda. Conseguiu uma maca, ocupou-se de me levar a um mdico, e depois partiu. Desapareceu como um anjo de bondade.

Mas eu lhe tinha entregado meu carto, e lhe tinha devotado um emprego em minha empresa. Leda soprou incrdula. impressionante que tivesse a mente to clara para pensar nisso, em meio de tanta dor.

verdade, mas depois de que voc me entalou a perna to bem, eu j no sentia tantos dores. Acredito que voc vive com pessoas excessivamente crdulas, senhor Gerard. So os melhores amigos do mundo. Dirigiu-lhe um olhar direto, frio e desafiador, como se a convidasse a

contradiz-lo. Leda baixou os olhos. Em tal caso, voc muito afortunado. E agora, tenho que ir de verdade. Como seu novo chefe, senhorita toile, devo insistir em que fique. Leda ergueu as costas. Senhor Gerard, este o momento e o

lugar menos adequado para falar de negcios. Vejo-me obrigada a solicitar sua permisso para me retirar. No estranho que a tenham despedido de seu emprego, senhorita toile, se negar-se a cumprir seu primeiro encargo indicao de como vai atuar de agora em diante. No me despediram. Fui

eu a que decidi ir. Por qu? Isso no assunto seu. Acabo de contrat-la. Parece-me que est claro que sim que meu assunto. Muito bem. Madame Elise queria que assumisse umas funes que eram que eu no podia assumir. Que

funes eram essas? Leda se limitou a olh-lo em silncio. Ele, com teima, no apartou o olhar, mas, um momento depois, refletiu-se em seu rosto certa compreenso; baixou a vista e acariciou de novo o lenol com a palma da mo. Leda notou que seu rosto ficava vermelho.

Posso me retirar agora, senhor Gerard? Ele esfregou uma dobra do lenol entre o polegar e o ndice. Tem medo de mim? perguntou em voz baixa. Leda no sabia o que lhe passava. Parecia incapaz de soltar o pomo da porta. H

alguma razo para que o tenha? inquiriu a sua vez. Est voc muito ansiosa por partir. Havia um tom de secura naquelas palavras, mas continuou sem levantar a vista. Esta situao da mais imprpria. No sei que costumes tm vocs em seu pas, mas aqui que uma

dama esteja no quarto de um cavalheiro umedeceu os lbios. No decente. E dar que falar com os criados. Ele soltou uma risada, zangado. Estou seguro de que os criados no me acharam capaz de violar sua virtude em meu presente estado.

Em tal caso, est claro que no o conhecem muito bem, verdade? disse ela com ar rgido. Eu estou melhor informada. Apertou o pomo com fora, espera de uma resposta zombadora, mas, em seu lugar, ficou atnita ao ver que um escuro rubor se estendia pelo rosto

do homem enquanto seguia com o olhar cravado no punho. Rogo-lhe que me perdoe por aquilo -disse. E por ret-la em uma situao comprometedora, se que esta o . Pode ir. Levantou os olhos e a olhou diretamente e, por um instante, interpsse entre eles a

imagem dele contemplando-a em sua prpria habitao enquanto se vestia. Leda sentiu que o calor da humilhao se estendia por toda sua pele. A boca dele parecia tensa por causa de alguma emoo no expressa e, de sbito, foi consciente de sentir-se perigosamente perto dele. Boa noite -disse, e abriu

a porta. Boa noite. Verei-a na biblioteca amanh s nove, se que isso adequado para suas idias de conduta decorosa. Amanh domingo -assinalou Leda. A boca dele se torceu. obvio. E imagino que querer tambm tom-la semana livre para os

festejos. De maneira nenhuma -disse a jovem. Na segunda-feira s nove ser perfeitamente adequado. Boa noite, senhor. E, sem esperar resposta, fechou a porta com firmeza. 12 Chikai Hava, 1874 Samuel sonhou com mulheres. Sonhava com elas quase todas as

noites, algo que lhe parecia to vergonhoso que nunca o contava a ningum. Tratou de impedi-lo, mas lhe resultou impossvel. Durante o dia podia centrar a mente no escritrio, ou treinar com os exigentes jogos de Dojun; chegar ao limite de suas foras e de seu equilbrio at ser o

bastante bom para atirar-se de cabea das ladeiras da cpula de Diamond Head e cair de p sobre os matagais secos e o talude de uns dez metros de profundidade. Mas ao chegar noite, tanto se dormia recitando versculos da Bblia, como se praticava os exerccios de respirao de Dojun ou

se dedicava a ler A volta ao mundo em oitenta dias, seguia sonhando com coisas que faziam que seu rosto ardesse quando pensava nelas; que o faziam sentir-se acalorado, desgraado e horrorizado pelo que guardava em seu foro ntimo. No tinha amigos no colgio. No queria amigos; preferia ir para

casa a cuidar de Kai, e entret-la at que acabava de jantar, momento no que se reunia com Dojun em seu lugar secreto para comear os difceis exerccios. Os estiramentos, as quedas e os giros que o enchiam de marcas, e os saltos, que pouco a pouco foram melhorando, que se fizeram

mais rpidos, mais suaves e mais fceis, at que se converteram em um pouco to

natural como responder corretamente a uma pergunta cuja soluo um sabia bem. Transcorrido um ano, quando j Samuel podia cair vinte vezes da rvore do jardim e ficar em p, preparado para subir a ele uma vez mais, Dojun deixou seu emprego de mordomo de Lady Tess e Lorde

Gryphon. Foi viver a uma casa distante em uma colina do monte Tantalus, onde as samambaias pareciam rvores e as mariposas da luz eram do tamanho do punho de Samuel. Da varanda de Dojun, Samuel podia contemplar todo o panorama desde Diamond Head at Pearl Harbor. A espessura de cor verde cinzenta

das rvores kukui ocultava a cidade l no fundo; Tantalus era uma espcie de paraso terrestre, onde se acumulavam e se limpavam as brumas e onde se formavam arco ris triplos que se estendiam sobre a costa e o imutvel horizonte marinho. Dojun se converteu em carpinteiro. Construa mveis de

koa, e repassava com as mos a madeira lisa, clara e escura, de gradaes infinitas que foram de uma cor dourada ao marrom chocolate, desde a de n liso a de n marcado -a melhor era a escura de gro marrom avermelhado com a que se faziam os violinos, a cotizada koa

frisada e todos os dias, ao sair do colgio, Samuel carregava com um monto de longas fitas de seda ao ombro e os subia monte acima para que Dojun os utilizasse. Dojun lhe ensinou a utilizar as mos com delicadeza para dar forma curvilnea s pernas de uma mesa tal

como Samuel aprendia o shoji, o complicado sistema de traado de caracteres chineses e japoneses, e a empregar tanto o corpo como o esprito para elaborar uma pea de linha singela e bela que encaixasse perfeio em um cabide de koa, e que ao Samuel parecia uma autntica obra de caligrafia.

Dojun soltava uma gargalhada e dizia que Samuel no tinha arte algum para a escritura: isso se chamava shodo, e significava o domnio absoluto da destreza, algo que estava a anos luz dos torpes intentos de Samuel, algo ao que um homem podia dedicar toda uma vida. Mas quando Dojun examinava as

peas de madeira, limitava-se a fazer alguma crtica e a lhe dar idias para melhorar, assim Samuel pensou que no o estava fazendo mal de tudo, e adorava o aroma de madeira serrada e a metal engordurado. Samuel convertia suas partes de madeira em blocos, dava-lhes forma de pssaros e

flores cheios de imaginao e os levava ao Kai de presente. Aos cinco anos -ou quase seis, como ela insistia, encontrava-os entretidos durante aproximadamente um quarto de hora, mas logo queria que Samuel a levasse a montar em seu pnei ou a vigiasse enquanto mergulhava no lago dos peixes. Quando

acabou o cabide de koa, envolveu-o cuidadosamente em um saco de pano, levou-o montanha abaixo e o deu de presente a Lady Tess. A dama o colocou em seu quarto, justo ao lado de sua cama, e ps em cima a pedra de Diamond Head que lhe tinha dado e que, agora

que j tinha crescido, ao Samuel parecia uma bobagem carente de beleza.

No colgio formava parte da equipe azul. As duas equipes o disputavam, j que era um dos jovens mais corpulentos da classe, mais forte e mais gil que a maioria, e tinha mais resistncia que nenhum de outros. No transcurso de uma escaramua, um de seus companheiros de equipe tropeou e

caiu sobre as pernas de Samuel, quem deu um giro sobre si mesmo sem dificuldade e, ao ficar em p, viu-se rodeado de jogadores da equipe vermelha que se lanaram sobre ele desde todos os lados. Samuel caiu de barriga para baixo sobre o cho e ficou sepultado sob todos aqueles corpos;

comeou a recuperar o flego quando, um aps o outro, foram-se levantando. Soou o sino, e todos se puseram a correr exceto o ltimo dos meninos, que no s no se levantou das costas de Samuel, mas sim ficou ali o esmagando, lhe respirando ao ouvido. Samuel no

se moveu. Por um instante, teve a sensao de que o mundo se desvaneceu; tudo se voltou negro. Quo nico percebia era um rudo horrvel e, continuando, encontrou-se ajoelhado sobre a alta erva, tremendo, olhando ao outro moo e respirando entrecortadamente. Maldio, o que te passa? gritou o

da equipe vermelha, ficando em p com dificuldade. Deixaste-me quase inconsciente. Perdeste a cabea! Deveria te obrigar a tragar a saliva. Samuel ficou olhando-o. Teve medo de vomitar, assim tragou saliva e no disse nada. Pea perdo! exigiu o outro jovem, erguido ao seu lado. A

mo de Samuel tremeu sob seu corpo ao ficar em p. Era mais alto que o menino de vermelho, mais corpulento, mas do fundo da garganta lhe saiu uma espcie de soluo afogado enquanto murmurava: Sinto muito. O que? O outro menino tinha os braos em jarras.

Sinto muito! gritou Samuel. O jovem sorriu. Est bem. Alargou a mo para apertar a de Samuel, mas este no se moveu, e o menino lhe rodeou os ombros com o brao e ps-se a andar com ele para o colgio. Samuel agentou o suarento

abrao durante o meio passo, e depois se apartou, sentou-se no cho e apoiou o rosto nos braos cruzados. Um dos professores os chamava gritos. Samuel ouviu que o outro jovem titubeava e a seguir punha-se a correr para o edifcio. Quando retornou o fez em companhia do professor, quem

perguntou ao Samuel se se encontrava bem. O moo tomou ar, ficou em p e respondeu: Sim, senhor. O professor apalpou a testa de Samuel. Est um pouco quente. Sente-se sombra uns minutos. Wilson, v procurar um pouco de gua.

Samuel, que no queria que o tocassem, tornou-se para trs. Estou bem -afirmou. Quero ir para dentro. Esqueceu dizer senhor. Passou ao lado dos dois e entrou no colgio, onde se sentou em sua carteira. Todos o olhavam com curiosidade e suas camisas brancas pareciam plidas mariposas

da luz no sala-de-aula sombria qual bosque de samambaias. Quando aquela tarde subiu ao Tantalus, ainda sentia estremecimentos. No era capaz de manter as mos firmes ao trabalhar a madeira. Voc doente? perguntou Dojun em seu ingls mal falado. Samuel recolheu o cinzel ou nomi que

lhe tinha cado das mos. Queria contar a Dojun, mas estava muito envergonhado. Nunca tinha querido que Dojun soubesse como tinha sido sua antiga vida, e no havia palavras que pudessem explicar o que lhe tinha ocorrido no campo de esportes do colgio. No, Dojun-san -respondeu, encontro-me perfeitamente.

Dojun lhe agarrou o nomi das mos. Memore para mim, Samua-chan -disse. Doente sim, mas no no corpo. A forma em que o disse, a palavra san que utilizou com o nome de Samuel tinha, como tantas outras palavras japonesas, milhares de significados para um s som: quero-te;

sou mais forte, mais sbio, de mais idade; cuidarei de ti, Samuel-san. Tenho medo -disse Samuel, com a vista no banco de trabalho. No quero voltar para colgio. Dojun lhe deu a volta ao nomi, sentou-se e comeou a trabalhar na colocao da perna de uma cadeira.

Por que medo? Samuel apertou as mos vazias e respirou profundamente. Eu no gosto dos outros meninos -disse com mais rotundidade. Brigar contigo? Oxal tivessem brigado com ele. Gostaria de mat-los a todos, especialmente ao menino da equipe vermelha que tombou sobre ele

e no se levantava, exalando flego quente em seu ouvido. Pela primeira vez em muito tempo, pensou no tubaro e na cano, em gua escura tinta de sangue. Dojun no havia tornado a mencionar as canes, e Samuel tinha abandonado a esperana das ouvir, e depois as tinha esquecido, mas agora, ao

pensar nelas, soube que, de algum jeito, Dojun as tinha estado ensinando, tinha-lhe mostrado como cantar canes sem palavras; com o corpo, com as mos e com a cabea. No, Dojun-san -murmurou. Eu no briguei. Vem aqui. Samuel levantou a cabea e se aproximou junto

banqueta em que Dojun trabalhava. Dojun deixou o nomi a um lado, com cuidado apartou umas pequenas aparas de madeira e as meteu em uma caixa. Ficou de p e com a palma da mo aberta golpeou o rosto de Samuel.

Samuel cambaleou para trs com a fora do golpe. Chocou-se contra o banco de trabalho, agarrou-se a ele com as mos e depois se apartou fazendo um giro ao ver que Dojun se movia de novo. Refugiou-se depois do banco, com a vista fixa em Dojun, e se aconchegou contra a

parede e uma cmoda de madeira de tansu ao meio acabar. Depois das ardentes lgrimas no via Dojun mais que uma forma escura que brilhava entre as sombras. O rosto lhe ardia, mas a dor no era to intensa; centenas de exerccios de Dojun lhe tinham causado muito mais dor.

Em que pese a isso, tremia-lhe o corpo e se estremeceu inverificado quando a difusa forma se moveu. Dojun. Dojun lhe tinha pegado. Parecia-lhe uma traio to enorme que lhe impedia de pensar; quo nico podia fazer era apoiar-se na parede como um boneco quebrado, agarrado a um objeto de

madeira. Dojun deu um passo para ele, e Samuel se estremeceu de novo. Parecia que algo fundamental se derrubou em seu interior e, depois de fazer-se pedaos, liquidificou-se e abandonado seu ser, levando-se consigo o que tinha de si mesmo. Em seu lugar tinha deixado uma carapaa vazio e trmula

que permanecia ali encurralado em um rinco. Samuel o via tudo como se estivesse fora de seu corpo, olhando, observando o que acontecia. Viu as lgrimas que comearam a deslizar-se por seu prprio rosto, que do queixo lhe caam sobre a camisa, em que deixavam manchas escuras de umidade.

Dojun ficou imvel. No se aproximou mais. O Samuel espectador teve a impresso de que Dojun estava surpreso em que pese a que no havia nada em seu rosto que o delatasse. O Samuel que era uma carapaa vazia se limitou a ficar ali chorando. Samuel-san -disse Dojun, e

Samuel se estremeceu. Dojun o contemplou um momento mais; depois voltou atrs e se sentou na banqueta. Ajustou um madeiro com a imprensa, agarrou a serra e comeou a cort-lo. Vou contar-te uma histria -disse em japons. uma histria que todos os moos japoneses conhecem, mas que

possivelmente os meninos estrangeiros no saibam. Agora disposta ateno. de um aluno que quer aprender a lutar com a espada, assim vai a busca do professor mais famoso que esteja vivo. Segue os rumores, e viaja at as montanhas mais inspitas, at que encontra um santurio e, depois dele, a choa

de um esfarrapado eremita. O eremita o professor, um guerreiro de habilidade inigualvel. Dojun acabou o corte e tirou o bordo da imprensa, p-lo em cima do banco e o mediu. Percorreu com a mo a parte de madeira uma s vez, como se o acariciasse, como faria um

homem ao tocar o pescoo de seu cavalo preferido. Estou aqui para estudar esgrima -continuou, imitando a forma altiva em que o aluno tinha anunciado seus planos ao eremita gesticulando com os braos. Quanto tempo me levar domin-la? O eremita continuava varrendo o cho de sua choa. Dez anos, foi

sua resposta. O aluno ficou

consternado. Mas e se escritrio muito e trabalho o dobro? Vinte anos, respondeu o professor. Dojun estendeu uma parte de tecido sobre seu colo. Agarrou o cinzel e comeou a dar forma a outra das pernas da cadeira. Enquanto falava, no apartou a vista de suas mos.

O aluno decide no discutir, e pede que o aceite como tutelado. Quando o professor ps ao aluno a trabalhar, no lhe mandou outra coisa que cortar madeira, limpar e cozinhar, um sem-fim de tarefas que lhe ocuparam o dia inteiro e a metade da noite. No ficava tempo para praticar com

a espada. O aluno nunca agarrava a espada e, passado um ano, comeou a impacientar-se. Professor, quando comeamos o treinamento? perguntou. que no sou outra coisa que um escravo para voc? Mas o professor fez caso omisso de suas palavras, e o tutelado continuou realizando suas tarefas, embora, com

cada dia que passava, sua frustrao crescia. Uma tarde estava lavando a roupa, enquanto pensava em abandonar a aquele ancio louco, quando um golpe de bengala o derrubou. Ficou chocado no cho e olhou ao professor, que se inclinava sobre ele. Senhor -gritou. No fazia mais que lavar a roupa. Fao-o bem.

Por que me golpeou? Mas o professor se afastou. O tutelado no era capaz de imaginar no que tinha falhado, mas decidiu faz-lo melhor. Ao dia seguinte, estava cortando madeira com diligncia, quando o professor lhe pegou de novo, e o golpe o fez cair quo longo era sobre o cho. O

que acontece? gritou o tutelado. Por que me castiga? O professor se limitou a olh-lo em silncio, sem dar mostra alguma de aborrecimento. O tutelado voltou a pensar em partir. Aquele ancio tinha perdido a cabea. Comeou a estar alerta ante ele, e a seguinte vez, quando o golpe chegou, o tutelado

conseguiu esquiv-lo. Ao apartar-se, rodou por uma ravina, mas evitou o golpe. Depois daquilo, os ataques se fizeram mais freqentes, e o tutelado os esquivava cada vez melhor. Mas as coisas no eram mais fceis. Quanto melhor era o tutelado em esquivar os golpes da bengada de seu professor, mais

freqentes e inesperados se fizeram seus ataques. Atacava-o enquanto dormia, quando se estava banhando e quando fazia suas necessidades. O tutelado pensou que ia enlouquecer, mas, pouco a pouco, seus sentidos se agudizaram tanto que ao professor lhe resultava virtualmente impossvel peg-lo de surpresa. Mas os golpes seguiam, dezenas de milhares de

golpes, procedentes de qualquer parte, a qualquer hora. At que um dia, quando o tutelado levava na choa quatro anos e se encontrava de ccoras diante do fogo, preparando umas verduras para meter na caarola, o professor o atacou pelas costas. O tutelado se limitou a agarrar a tampa da caarola, deteve

o golpe e continuou cortando as verduras sem to sequer trocar de postura. Pequenas aparas da dura madeira de koa caam sob o cinzel de Dojun ao pano branco que lhe cobria as pernas. O som familiar do nomi ao cinzelar a madeira soava rtmico e lhe chiem na estadia.

Desde aquele momento -continuou Dojun, o tutelado se converteu em professor, sem haver tocado nunca uma espada. Samuel entendeu o que Dojun queria lhe dizer. Ele queria ser aquele tutelado tenaz, entregue e humilde que se converteu em professor sem tocar uma espada; desejava-o tanto como respirar, como que

o corao lhe pulsasse, como a vida. E estava ali, aconchegado no rinco, com a certeza de que, se Dojun o golpeava de novo, ele no aprenderia a esquivar o golpe, mas sim teria que ir, agarrar a serra japonesa de folha afiada e matar-se. Dojun apartou a vista da

perna da cadeira e olhou Samuel aos olhos. Samuel sentiu que era incapaz de controlar seu rosto. As lgrimas no cessavam de brotar, como se o desespero que sentia em seu interior se negasse a estar apanhada, e se filtrasse e se deslizasse por qualquer fresta. Por favor. A splica

era apenas um sussurro. Dojun-san Dojun o obrigaria a partir. Em seus ensinamentos, como Samuel sabia, era inflexvel; no admitia a mnima amostra de debilidade ou limitao pessoal, nenhum medo especial para algum aspecto de qualquer rotina. Dojun oferecia o que ensinava tal qual; ou se aceitava ou se abandonava.

Dojun o observava, as mos imveis sobre o colo, sem deixar traslucir nada no olhar. De sbito, rompeu o silncio. Fao promessa a ti -disse. Nunca pegar. Possivelmente outra pessoa dar golpe. Eu jamais. Por um momento, Samuel no esteve seguro de entend-lo. Tragou

o n que tinha na garganta. O que? perguntou com voz rouca. Dojun se levou a mo ao peito e assinalou ao Samuel enquanto dizia: Eu. A ti. No pegar. Jamais. Prometer. Entendido, sim? Em nenhum momento sorriu nem apartou os olhos de Samuel. Voc obrigar

corpo a acreditar em Dojun, sim? Cabea acreditar. Brao acreditar. Dedo do p acreditar. Samuel se limitou a olhar Dojun com desconfiana. Sabia bem quando ouvia algo que era muito bom para que fora verdade. O japons se levantou, aproximou-se de Samuel e ficou ante ele com as

pernas abertas na posio shizen no kamae, a postura relaxada de alerta que lhe permitiria mover-se em qualquer direo sem problema. Quando subiu repentinamente a mo, Samuel estremeceu. Dojun interrompeu o movimento quando a mo chegou altura dos ombros de Samuel, a uns centmetros de distncia. No

convencido, n? Sorriu com ironia. Muito bem. Se eu ser voc, tampouco convencer logo. No ser tolo, n? Comeou a d-la volta. Samuel viu um ligeiro movimento pela extremidade do olho. Antes que pudesse apartar-se, a mo de Dojun se moveu com rapidez letal. Samuel continuou apoiado na parede, enquanto

a alma o fazia pedacinhos e fechava com fora os olhos espera do golpe.

Nunca chegou. Sentiu um pouco parecido brisa na face e, quando por fim conseguiu abrir os alagados olhos, a mo de Dojun seguia ali, com a palma aberta e parada em pleno movimento, quase roando o rosto de Samuel. Os dedos de Dojun, suaves como plumas, roaram-lhe a

pele. Samuel-san, voc acreditar Dojun. Eu prometer. Eu nunca mentiras. Jamais pegar. Samuel mordeu o lbio inferior, a nica forma de que deixasse de tremer como se fosse o de um beb. Para impor-se debilidade, apertou a mandbula com fora. Diga-me a palavra para promessa

-exigiu com voz rouca. Chikai. Prometa-me isso em japons -disse Samuel. Dojun deu um passo para trs, uniu as mos e fez uma reverncia formal. Prometo-lhe isso, Samuel-san -disse em seu prprio idioma. Jamais te pegarei voluntariamente por nenhum motivo. Lentamente, Samuel

endireitou o corpo agachado, aconchegado contra a parede, e se ergueu. Juntou as palmas uma com outra e copiou o gesto de Dojun, mas dobrou a cintura o dobro, para dizer que estava envergonhado de si mesmo, que o sentia, que se comportaria melhor e que acreditaria na promessa de Dojun com

cada fibra de seu corpo. Mas no era do todo verdade, porque quando o joelho de Dojun se elevou e se aproximou do rosto de Samuel em plena reverncia, os olhos lhe fecharam automaticamente e o corpo se tornou para trs em defesa prpria. Mas Samuel deteve o movimento a

meio caminho, igual Dojun parou o movimento de sua perna justo antes do impacto. Samuel se endireitou e ficou espera, tratando de fingir que as lgrimas de alvio que corriam por suas faces no existiam. Dojun tampouco lhes emprestou ateno. Voltou a tomar assento e continuou seu trabalho

com a pata da cadeira. No gostar dos meninos do colgio, s? disse, como se a crise que tinha interrompido a conversao naquele ponto jamais tivesse tido lugar. Samuel agarrou uma parte de lixa e brincou com ele, provando o lado rugoso em seu dedo. No

para tanto, acredito -disse e, certamente, j no lhe parecia to terrvel, comparado com o perto que tinha estado de ser vtima da total aniquilao. poca colgio, muitas brigas. Brigas ms, Samuel-san. Dojun no gostar de brigas. Sim, mas menino no brigar, e s haver duas coisas por que

no faz-lo. Um, menino assustado. Dois, menino to bom que nunca perder. Voc assustado? Eu no estou assustado. Voc dizer assustado, no querer voltar colgio.

Samuel se dedicou a lixar o lado da cmoda de madeira de tansu que j tinha sido alisado pela garlopa. Ainda lhe doa a face pela bofetada de Dojun. Voc no assustado. Voc bom em briga, n? O lixado adquiriu um ritmo mais rpido. Samuel se inclinou

sobre seu trabalho. Nunca tive uma briga. Eu ensinar a brigar, sim? Dojun lutador muito bom. Cano do tigre, Samuel-san. Recordar cano do tigre? A lembrana. O ataque chegou de repente; Samuel viu o punho de Dojun quando j lhe roava a mandbula. Nem

sequer tinha ouvido o japons aproximar-se por detrs. Dojun se apartou lentamente. Momento bom aqui agora. Escuta bem. Levantou a mo, e Samuel viu que tinha o punho fechado e que s o dedo mindinho estava estendido. Dojun abriu a mo e fez um gesto como

se fosse um leque, como se estivesse apartando uma mosca. S uma coisa mal, Samuel-san. Voc brigar, algum golpear. Eu no golpear, fazer chikai, ter honra, no pegar a ti. Dojun ensinar todo o dia brigar bem, trabalhar, trabalhar, trabalhar. Samuel-san aprender como lutar nmero um, so. Depois voc ir,

ser golpeado uma vez, kotsun! Entrechocou as palmas com um som agudo. Voc ferido, voc parar briga, assunto terminado. Samuel no teve resposta para aquilo. Baixou a cabea, ficou outra vez a lixar a madeira, e pensou em inalar o ar at o mais profundo de seu corpo, para

assim acalmar-se. Est bem -disse Dojun. Um dia voc, eu, baixar a Chinatown, procurar algum que te golpeie. 13 A donzela que apareceu pela manh com o ch e a fruta informou a Leda de que a senhora queria que a senhorita toile soubesse que a

famlia ia assistir ao segundo ofcio religioso, e que, se a senhorita encontrava conveniente acompanh-los, a carruagem estaria preparada s nove e meia, mas que se o que queria era descansar essa manh, no havia nada que lhe impedisse de faz-lo. A chegada da donzela com o ch quente e

a mensagem singela, mas cheio de considerao, aumentou a sensao de devaneio em que Leda se encontrava inundada desde que tinha despertado sob o dossel azul e dourado, rodeada de fresca luz e de flores cor nata. Se tivesse pensado nisso por sua conta, teria decidido assistir sozinha igreja sem que

ningum se inteirasse, ou possivelmente por uma vez na vida teria desistido de ir ao ofcio para ficar ali na cama e gozar do luxo incrvel que a rodeava. Mas era impensvel declinar o convite de Lady Ashland, por isso

se apressou a lhe assegurar donzela que seria uma honra para ela acompanhar famlia igreja. Leda nunca antes tinha comido abacaxi, pltanos e laranjas no caf da manh. Em alguma ocasio, a senhorita Myrtle tinha descascado uma laranja depois de jantar, mas no lhe agradavam nada

as coisas que requeriam algo mais que a faca e o garfo para poder as comer. O abacaxi, portanto, jamais tinha sido parte da experincia de Leda. Depois de que a donzela lhe ensinou como retirar o duro centro, que j vinha cortado, e a extrair as partes preparadas de antemo do

interior da pele rugosa e dura, Leda seguia sem estar muito segura de que a fruta fosse merecedora de todo aquele esforo. Tinha um sabor penetrante e um tanto cido que no a fazia apetecvel. Entretanto, torradas eram excelentes, ainda quentes e banhadas em manteiga, e o ch sabia de maravilha quando

se sentou junto janela aberta a beb-lo em sorvos, tal como estava acostumado a fazer em seu prprio quarto na casa da senhorita Myrtle. Levaram-lhe o vestido de seda negra, limpo e engomado. Leda estava acostumada a vestir-se sem ajuda e se assegurou de estar pronta com tempo para

reunir-se com a famlia no vestbulo principal. Acolheram-na com o mesmo carinho e igual familiaridade que a noite anterior e, quando a carruagem alcanou Hanover Square, Lady Catherine j as tinha arrumado para lhe fazer um relato completo do jantar da noite anterior. Queria, sobretudo que Leda lhe confirmasse que tinha feito

o correto ao recusar a garrafa de vinho que o anfitrio lhe tinha passado hora da sobremesa, porque o homem ficou um tanto perplexo quando o tinha feito. Depois de um interrogatrio mais detalhado, Leda tirou a concluso de que a inteno do anfitrio tinha sido que Lady Catherine

passasse a garrafa ao cavalheiro que estava justo ao seu lado, j que um segundo copo de vinho com a sobremesa era algo que se supunha que uma dama no necessitava ou que, em caso de faz-lo, de maneira nenhuma deveria ela servir-lhe, mas sim lhe corresponderia ao cavalheiro sentado a seu

lado lhe encher o copo. Portanto, fez voc muito bem ao declinar o oferecimento, mas pode ser que, nesse caso, o que lhe preocupasse fosse que a garrafa no desse a volta mesa. A prxima vez pode recusar, e lhe indicar ao cavalheiro que esteja ao seu lado que

ele sim pode servir um copo se esse for seu desejo, e assim as coisas seguiro o curso que os cavalheiros decidam. Mas me atreveria a dizer que tampouco lhes passar nada se por uma noite no tomam um segundo copo de vinho com a sobremesa. Lorde Ashland e seu

filho receberam o comentrio entre protestos e queixa feitas com bom humor. Nesses saraus necessitamos de toda a anestesia mental que possamos conseguir -disse Lorde Ashland. Por qu? O que quer dizer voc com isso, cavalheiro? perguntou sua esposa com ar de desdm, sentando-se reta e abanando-se. Asseguro-lhe

que se trata do melhor da sociedade, e que a conversao

da mais elevada e que, quanto antes comece um a ficar adormecido, tem que concluir que to mais seleta a companhia em que se encontra. Bom, eu gosto de -disse alegre Lady Catherine. H gente que um pouco aborrecida, certo, mas se esforam por que nos

sintamos bemvindos, e se mostram to nervosos e cheios de ansiedade quando algo no vai bem, que no posso evitar que me d um pouco de pena. Em especial quando voc lhes estraga a festa por no passar o vinho, tonta -disse seu irmo lhe dando umas tapinhas no

joelho. Espera a que mame aparea com um de seus queridos jaguares em um baile porque a pobre criatura est muito doente para deix-la sozinha. J ver como se esquecem do vinho. Nunca levei Vicky a um baile, Robert. Era um almoo beneficente. E no pude cancelar minha assistncia porque

tinha que dar um discurso. Lady Ashland olhou a Leda com gesto envergonhado, como se em realidade fosse uma jovem sem mundo a que tivessem pegado com uma mancha de gelia no nariz. E a ningum importou o mnimo, o asseguro. Em nenhum momento a soltei da correia. Em que

pese a seu desconcerto, Leda no pde por menos que fazer um gesto de assentimento; teria sido incapaz de no faz-lo, mesmo que no tivesse visto a piscada de cumplicidade de Lorde Ashland. A que assistiu ao almoo foi Vitria V -explicou Lorde Ashland a Leda com voz sria, quem

atualmente recebe a corte em sua residncia no campo. Temos descoberto que, face distncia, mantivemos em Sussex a toda uma ancestral linhagem de jaguares. E os matreiros demnios invadiram Westpark -disse Lorde Robert em tom de queixa. maravilhoso chegar s terras de nossos antepassados e no poder dar

um passeio pelo jardim sem que de entre os arbustos salte sobre ti um jaguar e te pegue um susto de morte. E para que falar da jibia -acrescentou Lady Catherine. Mantm a distancia a chusma -disse seu pai sem alterar-se. A me esclareceu garganta, pregou

o leque e manteve um silncio cheio de dignidade at que chegaram igreja. Com a ltima luz do entardecer, o salo de Morrow House parecia do mais espaoso, face enorme chamin de mrmore esculpido e as majestosas molduras do teto. Com as paredes cobertas de damasco de cor

ouro esvado como fundo, os mveis eram uma estranha, mas agradvel mescla de poltronas de dois lugares em dourado com almofadas de ponto de cruz, cadeiras de bambu de estilo japons, um fofo sof estofado em cretone com estampado de flores, e vrias mesas belas e singelas de brilhante madeira e desenho

pouco comum. Quando Leda olhou a seu redor, deu-se conta ao fim de que o efeito de ligeireza procedia do fato de que, em lugar da tpica coleo infinita do Marcos, figurinhas, lbuns e antimacasares que convertia a maior parte dos salos que conhecia em stios acolhedores, mas matizados, as

mesas e

o suporte da chamin do Morrow House no tinham outro adorno que mais vasos de barro de orqudeas. Na estufa que, comunicava com o salo, abria-se sobre Park Lane, as exticas flores formavam massas de cores intensas, rosa e prpura, em meio de plantas mais comuns como a kentia e a

aspidistra. Lady Ashland no permitia que se utilizasse gs na casa, porque matava as flores. A famlia tinha umas exigncias muito especiais, tinhalhe advertido a ama de chaves a Leda tal como o faria qualquer criado fiel: deixando entrever com deferncia e respeito que eram mais estranhos que um co verde.

Para proteger as orqudeas e no voltar para a poca do sebo e as tochas, o prprio senhor Gerard se encarregou de instalar a eletricidade na casa em uma viagem anterior a Londres o ano passado, entre outros preparativos prvios volta da famlia a Inglaterra depois de duas dcadas. Entre outras

coisas tinha feito instalar um fogo fechado, um refrigerador e uma mquina congeladora para gelados na cozinha, tinha acrescentado a estufa ao longo da fachada da casa que dava a Park Lane e, depois de encher o lugar de estranhas plantas tropicais, tinha contratado a um jardineiro que se encarregasse delas at

a chegada da famlia. Seus anfitries eram encantados, mas um tanto extravagantes, pensou Leda. Lady Catherine, depois de retornar com sua me de tomar o ch do domingo em um jardim, tinha batido na porta de Leda em pessoa, tinhalhe dado uma parte de torta de cominho que trazia

envolto em um leno de renda, ou leno como ela dizia, e lhe tinha rogado a Leda que descesse e se unisse a outros para desfrutar de um jantar frio no salo. Naquele momento, a jovem se dedicava a cavar os almofades do senhor Gerard, que se encontrava junto s janelas dianteiras.

Leda no tinha muito claro o que ele pensava de tais cuidados; pensou que talvez Lady Catherine no fosse consciente do que lhe devia doer a perna quando ela a movia e a acomodava com tanto entusiasmo, mas ele o agentava com tranqilo estoicismo. Sem dvida, a nova capa de

estuque ajudava a proteg-lo, mas Leda percebeu a tenso que havia atrs de seu sorriso. Lady Ashland tambm devia haver-se dado conta, j que levantou o rosto do caderno em que escrevia e disse: Por Deus bendito, Kai, o nico que te falta mat-lo. A filha se

ergueu com rosto triste. Ai, no! Estive-te fazendo mal, Man? Teria que me haver isso dito! No me di -disse ele. Leda se perguntou se aquele homem reconhecia alguma vez que sentia algum mal-estar no corpo. Lady Catherine, por sua parte, limitou-se a suspirar

aliviada. Muito bem. S te porei este travesseiro debaixo Kai! disse sua me em tom de advertncia. Leda viu que o senhor Gerard e Lady Catherine trocaram um olhar, um breve sinal de comunicao entre duas pessoas que se conheciam bem. Possivelmente poderia me

trazer um livro -disse ele.

Nesta casa no h um s livro que merea a pena ler -afirmou Lady Catherine, acomodando-se em uma cadeira junto Leda. Contemos histrias. Voc charlatana wahine, conta-conta historia sempre muitas -disse seu irmo, que entrava nesses momentos na estadia e lhe roou o cabelo ao passar por seu

lado. Bumby gastar lngua. Fecha seu ouvido, voc no gostar dele -respondeu ela com presteza. Muito melhor boca tua morta, blala. No correto falar como os nativos quando a senhorita toile no entende -disse Lady Catherine com razo, e se voltou para a Leda. Sabia

que Samuel me salvou a vida em uma ocasio, senhorita toile? No, no sabia -respondeu Leda com amabilidade. Nada menos que de um tubaro -disse Lady Catherine, baixando a voz com tom teatral. De um enorme tubaro branco, to grande como daqui aquela mesa. Conta, conta

-disse seu irmo da cadeira onde se acomodou com o jornal. Por isso o chamamos Man -continuou ela sem deter-se. Man tubaro e Kane a palavra para homem. Man Kane. Homem tubaro. A prpria princesa foi a que lhe ps o nome. Foi uma grande honra porque ele

sozinho tinha dez ou onze anos. Tirou-me da gua e me ps sobre seus ombros enquanto o tubaro passava a nosso lado, assim. inclinou-se e fez um movimento sinuoso com a mo, deslizando-a a apenas um par de centmetros do brao de Leda, e depois deu um giro com um estalo de

todos os dedos que fez que Leda levasse um susto. Estava assim de perto. Poderia-nos ter devorado a ambos. am, am. Oxal o tivesse feito -disse Lorde Robert atrs do jornal. J est bem, Robert! reprovou-lhe Lady Catherine desde seu assento. Bom, que s te

ouvi contar essa histria umas cem mil vezes. Qualquer diria que brigou contra a maldita besta com suas prprias mos. uma boa histria! Lorde Robert dobrou o jornal e os olhou por cima dele. Por que no deixa que seja Samuel quem a conte por

uma vez? Possivelmente nos proporcione algum aspecto totalmente desconhecido. Claro que sim! Lady Catherine se endireitou e se inclinou sobre o brao da poltrona para onde estava o senhor Gerard. Conta-o, Man! Passou medo? Eu era muito pequena para me dar conta do que acontecia, senhorita toile, assim em realidade

no tive medo. Mas o que sim recordo ao tubaro. Era enorme, a que sim? O senhor Gerard parecia ter mais interesse no punho que apoiava no brao do assento que no tamanho do tubaro. No me lembro -respondeu com voz suave. Leda viu por

que era sempre Lady Catherine a que se encarregava de contar as histrias. Bom, era enorme. Verdade, me?

Lady Ashland respirou fundo. Espantoso -disse sem estender-se. E enorme. Nunca o apanharam -disse o senhor Gerard. Parecia um comentrio despreocupado, mas Leda percebeu algo no tom de sua voz que lhe fez olhar em sua direo. O homem seguia olhando-a mo, at que lhe

dirigiu de soslaio um olhar frio e cinza a Leda. Ela tinha estado a ponto de dizer Que pena, mas refreou a lngua quando seus olhares se cruzaram. Ele no pensava que fosse uma pena que nunca tivessem apanhado ao tubaro: alegrava-se de que assim fosse. No teria podido explicar

com palavras como soube. Mas sabia. Ele parecia a ponto de falar e pela primeira vez, Leda se permitiu olhlo diretamente durante algo mais que um segundo breve. Face ao pouco que havia dito, tinha a virtude de atrair sua ateno de tal maneira que Leda teve que esforar-se

em manter uma conversao normal. De fato, necessitou de todas suas foras para no cair na tentao de ficar olhando-o fixamente como qualquer jovem sem maneiras, j que nem o Anjo Miguel com toda sua mestria poderia ter criado um tributo mais soberbo silueta humana que o que o senhor Gerard

oferecia em carne e osso. Possua uma beleza autntica e cheia de fora, algo que Leda nunca tinha conhecido em um homem; s a tinha visto em quadros e em obras de arte idealizadas. Em alguma ocasio tinha visto cavalheiros aos que se poderia descrever como bonitos, ou inclusive como

de muito boa aparncia; mas as pessoas no estavam acostumadas a tropear-se com algum que era como se Apolo, Marte e Mercrio se fundiram e encarnado em um corpo humano e, qual anjo cado, levassem por coroa uma cabeleira de raios de sol e uns olhos de gelo No, e muito menos

que esse ser se encontrasse vestido de smoking e sentado com uma perna apoiada sobre almofadas, e tivesse o dcil aspecto de um homem em sua casa. Enquanto Leda lhe sustentava o olhar, ele franziu o cenho, como se a jovem o tivesse incomodado, e voltou a dirigir o olhar

a Lady Catherine. Tinha parecido do mais correto que Leda lhe emprestasse toda sua ateno, porque, aparentemente, ele tinha estado a ponto de fazer alguma contribuio conversao, mas a forma to clara em que apartou o olhar de lhe resultou mortificante. Sem dvida o tinha olhado com fixidez. Era

muito provvel que toda classe de gente vulgar fizesse o prprio. Devia estar cansado de que isso acontecesse, e contente de ver-se rodeado daqueles que o conheciam desde fazia tempo e estavam acostumados a sua aparncia. Os Ashland no emprestavam a mais mnima ateno a seu aspecto perfeito. Inclusive a solcita Lady

Catherine, que saltou do assento para agarrar a bandeja de seu jantar das mos da criada e a colocou a seu lado em uma mesa, apenas lhe dirigiu um olhar carinhoso e um tapinha ao terminar, como se ele no fosse mais que um tio muito apreciado que padecesse um ataque de

gota. Leda no estava muito familiarizada com a conduta dos

apaixonados em geral, mas a maneira em que aquele casal se comportava lhe parecia bastante particular. O intenso olhar dele no se separou de Lady Catherine durante todo o tempo que ela se dedicou a tagarelar sobre o tubaro e o ch ao que tinha assistido e a interrogar

a Leda sobre o que era o melhor para ver em Londres. Era bvio que sentia adorao por ela. Leda era incapaz de imaginar-se a um homem que mostrasse com tanta claridade seu amor, nem a uma moa que fosse to desconhecedora de dito sentimento. Kai o tratava com maravilhosa devoo, e

com ausncia absoluta de ateno autntica: saa correndo ao comilo para assegurar-se de que lhe tinham servido quanta variedade de comida houvesse no buffet, sem dar-se conta em nenhum momento de que, dado o stio onde lhe tinha deixado a bandeja, era impossvel que pudesse alcan-la e comer sem ter que forar

a perna em um ngulo que lhe resultaria muito doloroso. Lorde Robert estava junto porta, esperando, e Leda compreendeu que era para deixar que ela passasse primeiro ao comilo. Lady Catherine, impaciente, j tinha obrigado a sua me a ir por diante; a voz da jovem se ouvia no corredor, saudando

seu pai, que acabava de chegar de cumprir com algum compromisso prprio. Lorde Robert soltou uma exclamao de alegria e abandonou o salo para unir-se a eles. Leda se deteve ante a porta e olhou ao senhor Gerard. Tomou flego, aproximou-se da mesa, ps-lhe a bandeja no colo e deu

a volta sem atrever-se a olh-lo no rosto. No queria fazer um mundo de nada, mas se de verdade o cavalheiro estava to assanhado que era incapaz de lhe dar a mais mnima pista a sua apaixonada a respeito do que lhe resultava cmodo, teria que fazer algo por ele.

Quando ia para a porta, ele murmurou seu agradecimento, mas Leda se apressou a sair ao corredor e fingiu no hav-lo ouvido. manh seguinte, a mesma donzela lhe levou outra mensagem junto com o ch. Era do senhor Gerard. Pedia-lhe que se reunisse com ele as nove na estufa,

em lugar de faz-lo na biblioteca. Leda sabia que o resto da famlia partiria da casa pouco antes daquela hora para reunir-se com a delegao havaiana no hotel Alexandra, onde a rainha Kapiolani e a princesa esperavam que as convocassem a uma audincia privada com sua majestade atrs de sua

chegada a Londres. Leda no tinha como saber se o senhor Gerard teria formado parte do grupo de haver-se encontrado em condies, pois desconhecia a natureza exata de sua relao com a famlia. Sem dvida, guardava um parentesco com Lorde Ashland quanto cor do cabelo, embora no houvesse entre eles outra

similitude. Era bvio que Lorde Ashland era um cavalheiro muito bonito, de perfil nobre e de sorriso agradvel e travesso, mas nem sequer em sua juventude teria podido igualar ao senhor Gerard. Leda pensou que ao melhor seu chefe era um primo ou algo assim. Qualquer que fosse o parentesco

estava claro que o senhor Gerard no ia participar de nenhum dos festejos, dadas suas atuais circunstncias.

Tambm era bvio que na casa no haveria ningum de certa categoria. Estaria a ss com ele e os criados. J que essa era a situao, preferia com muito que qualquer reunio que houvesse entre ela e o senhor Gerard fora na estufa, com portas que se abriam tudo

ao longo da casa, e no na recndita biblioteca. Mas se tivessem consultado sua opinio, seu desejo pessoal teria sido no manter nenhum encontro privado com um homem solteiro. E o que era mais, para observar as normas estabelecidas estava completamente disposta a ficar de chapu e luvas e somar-se multido

que esperava ali abaixo em Park Lane para ver a rainha. Embora fosse consciente de que no lhe tinham solicitado sua opinio, tinha inteno de express-la. Tomou assento e escreveu uma curta nota ao senhor Gerard, em que enumerava suas razes para que a reunio fosse adiada at um momento

mais apropriado. Depois de fazer a chegar com a donzela, recebeu uma rpida resposta. Quem voc imagina que vai estar nos observando?, era a sucinta pergunta. No levava assinatura nem selo. Leda voltou a sentar-se frente ao delicado escritrio francs e tirou uma nova folha de

papel da gaveta. Os criados, escreveu. Dobrou o papel, meteu-o em um sobre, selou-o com extremo cuidado, e o enviou ao senhor Gerard por mediao da donzela. A resposta chegou imediatamente: Acreditava que voc era uma mulher moderna, senhorita toile. Leda sentiu que seu temperamento comeava

a acender-se. Sua letra sofreu as conseqncias da nfase que ps ao final de cada palavra. No minha inteno envergonhar a uns anfitries to amveis como meus com um comportamento indiscreto. A resposta esta vez demorou um pouco mais em chegar e, quando o fez, vinha em

sobre fechado ao igual a sua nota. Est-me dando a entender que devo empregar a algum de meu prprio sexo para poder realizar as transaes comerciais normais com meu assistente? Rogo-lhe que medite bem sua resposta. Espero v-la as nove em ponto, senhorita toile. Leda leu a carta

ante a criada, que mantinha a vista apartada inocentemente e esperava com as mos entrelaadas. Sentindo um tanto nervosa, olhou o pequeno relgio de porcelana que havia sobre o escritrio. Faltavam cinco minutos para a hora fixada. Onde se encontra o senhor Gerard neste momento? perguntou donzela.

Na estufa, senhorita. Tomou ali o caf da manh. o melhor lugar para ver o que acontece. A todo o servio deram permisso para nos reunir ali at que passe a rainha, para que tenhamos boa vista da rua. A multido que se est formando algo maravilhoso. Se abrir a

janela, ouvir-a.

Leda ficou a remover na gaveta do escritrio para ocultar o rubor escarlate que notou que se estendia por seu rosto. No h resposta -disse rapidamente. Faa o favor de ir para no perder nada. A donzela lhe fez uma reverncia. Obrigado, senhorita. deu a

volta e fechou a porta atrs dela. Leda juntou as mos e as apertou contra a boca. obvio, ele no tinha tido a mais mnima inteno de que a reunio fosse privada. Que maneira de ficar em ridculo, e quase tinha sacrificado seu emprego ao faz-lo. No podia interpretar

de outra maneira a ltima linha da nota: era uma aluso clara, embora mordaz e merecida, a sua verdadeira situao. Esperava-se que atuasse em tudo como o faria um cavalheiro em sua posio de secretrio, coisa que, depois de tudo, ele tinha todo o direito a lhe exigir, se queria ocupar dito

posto. Foi difcil recuperar a compostura e descer. No teve mais que um momento e, tal como estavam as coisas, no queria chegar nem com um instante de atraso. Quando atravessou as portas abertas da estufa tinha o convencimento de que seu rosto seguia estando de cor vermelha acesa. A

tentao de esconder-se depois de um par de donzelas que riam entre elas, e assim manter-se afastada do senhor Gerard, foi extremamente forte. Mas o mordomo recriminou com seriedade s ruidosas jovens, as chamando ordem, e a Leda no ficou mais remedeio que apresentar-se ante seu chefe. Aquela manh

o via muitssimo mais cmodo, estendido em um sof de vime frente s portas de cristal abertas que davam rua, com a perna engessada sobre amaciadas almofadas, o outro p no cho e o brao colocado com o passar do respaldo do sof. Havia um par de muletas apoiadas em um

suporte de vasos a seu lado. A cada lado das portas que se abriam a terrao havia bandeiras inglesas e aquela outra que adornava Morrow House e que Leda adivinhou que devia ser a bandeira do Hava. Quando Leda se aproximou e ficou a plena vista, ele levantou a mo

e apoiou nela a face. Senhorita toile -murmurou, alegra-me que tenha visto as coisas claras e se uniu a ns. Bom dia, senhor Gerard -respondeu ela com voz decidida que soou um tanto forte. O que posso fazer para lhe ser de utilidade? Ele a contemplou

durante um longo momento; o suficientemente longo para que Leda pensasse que os criados tinham que estar dando-se conta de que dava a impresso de estar sopesando-a de cima abaixo. Sheppard -disse por fim, e assinalou com a cabea uma cadeira colocada junto a seu sof no ngulo apropriado para

uma visita, traga para a senhorita toile o Illustrated News para que nos leia tudo o referente ocasio. O mordomo fez uma inclinao e desapareceu um momento, e voltou com um exemplar engomado do The Illustrated London News. Leda se sentiu incmoda e cheia de acanhamento, mas dobrou o

jornal, escolheu um artigo que descrevia as normas que teria que seguir e comeou a ler.

Quando ia pelo terceiro pargrafo, advertiu que, pouco a pouco, o grupo que estava prximo a ela ia se fazendo cada vez menos numeroso. Continuou com a leitura e foi percorrendo a pgina at o seguinte artigo: a descrio do traje que ia usar a princesa de Gales. Quando

o terminou, levantou a vista e descobriu que todos os presentes na estufa a observavam espectadores. Perdo, senhorita -disse com acanhamento uma das duas donzelas idnticas, seria to amvel de ler outra vez a parte que fala do vestido? Leda cumpriu seu desejo. Notou que ia relaxando em

seu assento. Aquilo no era to difcil; freqentemente tinha lido em voz alta para as damas de South Street, e sabia exatamente o que resultava de maior interesse. Saltou as colunas polticas e procurou as notcias sobre o jubileu, que eram muito abundantes. Apareceu uma taa de ch sobre a

mesa que tinha a seu lado. Dirigiu um olhar de agradecimento criada de touca branca impecvel e avental de volantes. Enquanto Leda tinha estado lendo, encarregados da cozinha tinham disposto no lado oposto da estufa uma mesa com um desdobramento de comida de festa para fazer um ligeiro almoo, mas o

resto do pessoal continuava atento ao seu redor. Sentiu-se mais atrevida, e concluiu a leitura com um divertido anncio de um mirinhaque patritico que, conforme garantiam, tocaria o hino Deus salve rainha cada vez que se sentasse. As faxineiras achavam aquilo extremamente gracioso, sobre tudo quando Sheppard comentou quo

exaustivo devia ser aquele invento, j que todo ingls que se apreciasse teria que ficar imediatamente em p para ouvir a msica. At o chef francs soltou uma gargalhada. A multido amontoada na rua tinha sido como uma espcie de rudo de fundo toda a manh, mas naquele momento chegou

da rua uma nota de emoo. Eram s onze e meia: aproximava-se o grande momento. Sheppard lhe perguntou ao senhor Gerard se queria sair a terrao para ver melhor, mas ficou claro que o oferecimento do mordomo era uma pura frmula; o senhor Gerard demonstrou que era perfeitamente capaz de ficar em

p e agarrar as muletas sem ajuda. Leda tinha a convico de que seu desejo era que ningum o tocasse; Sheppard tambm pareceu dar-se conta e se limitou a fazer-se a um lado e a dar instrues a um lacaio para que tirasse a terrao sela para o senhor e a senhorita.

Do pequeno terrao, situada sobre a porta principal, tinham uma vista fabulosa do que ocorria em Park Lane. Quando Leda e o senhor Gerard saram, os espectadores que estavam sob o Morrow House os receberam entre vtores, como se fossem famosos por direito prprio. Com um sorriso irnico, o senhor

Gerard deixou uma das muletas, tornou-se para trs, e tirou primeiro a bandeira inglesa e depois a do Hava de seus correspondentes ps. Ps em mos de Leda a insgnia inglesa e, pata agarre, foi para diante, lhe indicando com um gesto que o seguisse. A multido se agitou. Ele olhou

Leda curioso com as sobrancelhas arqueadas.

Sentindo-se do mais audaz, Leda levantou o pesado mastro e tentou fazer ondear a bandeira. Ele levantou a sua, a maior altura que a da jovem. De repente alargou a mo, agarrou tambm a de Leda e as elevou ao mais alto. A ligeira brisa as desdobrou em toda sua extenso

e mostrou as cores reais. Os vtores da multido se converteram em um verdadeiro estrondo, que se foi estendendo por toda a rua ao ir-se somando todos os espectadores. A sensao que embargou a Leda no se parecia com nada que tivesse experiente antes. Tinha o corao transbordante, a ponto de estalar

de orgulho e lealdade para seu pas e inclusive, por estranho que fosse para as longnquas e inimaginveis ilhas representadas pela bandeira do senhor Gerard. Com um amplo sorriso, manteve o brao elevado junto ao dele, enquanto as ondulantes bandeiras se chocavam contra seu ombro e depois se desdobravam com

um golpe de ar e o sol de um dia perfeito caa sobre o parque e a enorme multido. O som de uma msica longnqua comeou a impor-se sobre o rudo; pela extremidade do olho via as colgaduras e o resto das bandeiras que engalanavam Morrow House quando elas, a sua vez,

elevavam-se e danavam ao som da suave brisa. Ele baixou ambas as insgnias e apoiou os mastros no terrao sem retirar a mo que cobria a da jovem. Leda o olhou, incapaz de reprimir seu entusiasmo, e viu que a estava observando atrs das dobras de tecido, e que lhe

sorria. Leda sentiu algo em seu interior que lhe roubou o flego e a invadiu de sensaes. V, pensou com sbito alarme, se no tomava cuidado com o que fazia, acabaria dissolvendo-se como uma pastilha de sabo. Apartou o olhar com rapidez, e tratou de soltar-se de sua

mo. Por um instante ele o impediu, mas depois a deixou ir, e ela ficou arranca-rabo ao mastro de sua bandeira. As insgnias ondularam entre eles e Leda no pde lhe ver a cara. O resto do acontecimento lhe pareceu opaco, em que pese a que a multido gritava vtores

ao ver aparecer ao guarda real em perfeita formao, seguida da prpria soberana, e a que Leda e o senhor Gerard agitaram suas bandeiras, esta vez por separado, para saudar o passo da limusine de sua majestade, e a que a amada e corpulenta rainha, com seu rosto de r, at levantou

o olhar para o Morrow House e lhes dirigiu uma graciosa saudao ao passar Leda fez um lhe esmaguem descobrimento sobre si mesmo: que trocaria alegremente, e sem lhe dar a menor importncia, aquela saudao pessoal de sua majestade a reina da Inglaterra, Esccia, Gales e Irlanda, e imperatriz da ndia por

um singelo sorriso ntimo do senhor Gerard. Kai Hava, 1876 Passou muito tempo antes que fossem ao Chinatown. Dojun ensinou ao Samuel golpes de combate e como utilizar os polegares e os dedos das

mos e dos ps como armas. Aprendeu a fazer chaves, e fortaleceu mos e ps golpeando a dura casca de uma accia. Dojun pendurou uma pedra grande e Lisa de uma viga, e Samuel dava cabaadas contra ela at que as lgrimas lhe ardiam os olhos. Aprendeu tambm a

evitar os ataques. Aprendeu a estar vigilante ante os golpes inesperados de Dojun, e quando era muito lento para evitar o golpe, coisa bastante freqente, Dojun o detinha justo a ponto de alcanlo. Tambm seguia fazendo outros exerccios: ainda tinha que aprender a respirar, a rodar pelo cho e frear as

quedas ou taihenjutsu, e coisas novas: como cuidar da espada, como julgar sua qualidade, os nomes e as histrias das folhas mais famosas; aprender a caminhar em silncio, a procurar esconderijos em cada destino; aprender a inalar o vapor de uma taa de ch e a identificar as vinte e duas variedades

da estante de Dojun, a sentar-se imvel durante horas e absorver o mundo, notando-se em coisas que antes no tinha notado, porque at a coisa mais diminuta podia ser importante. O tempo que passava com o Dojun comeou a parecer algo cada vez mais afastado do resto de sua vida.

Ningum na casa parecia lhe dar nenhuma importncia; sabiam que ia ao Tantalus a praticar a marcenaria, e o resto, por acordo tcito, era um segredo entre ele e seu professor. Samuel ia ao colgio, mantinha-se a distncia dos outros meninos, ia ver o Dojun, e depois voltava para casa e jogava

com o Kai. Durante o jantar falava com lorde Gryphon do que estava estudando em matemtica, e contemplava lady Tess quando sorria, e se sentia de novo a salvo e afortunado. Quando Kai tinha sete anos, baixou a escada s escondidas e viu danar uma valsa no transcurso de uma

festa que deu lady Tess para celebrar o aniversrio de bodas do senhor e a senhora Dominis. Era uma ocasio especialmente importante porque a senhora Dominis tinha deixado de ser simplesmente Lydia; era a irm do novo rei, e agora se chamava princesa Lili'uokalani. Depois de descobrir os vestidos, as luzes e

a msica, Kai decidiu que tinha que tomar classes de baile e que queria que a conhecessem como lady Catherine. Robert, obvio, negou-se em redondo a segui-la, e Kai no desejava ter a uma fmea como par, assim Samuel se converteu em seu gal para praticar. Aos quinze, ou

possivelmente os dezesseis anos nunca tinha sabido sua data de nascimento Samuel era muito mais alto que ela, que apenas lhe chegava cintura, mas no lhe importava aquela tarefa, e se dedicava a tomar o cabelo para v-la rir e pavonear-se e fingir que era uma dama j maior.

Ele adorava ao Kai. Sempre o tinha feito. Anos atrs, quando no tinha mais de onze, tinha recusado o oferecimento de lorde Gryphon de adot-lo legalmente porque estava seguro de que ia se casar com ela, embora nunca o houvesse dito em voz alta. Seguia com aquela segurana ainda, muito depois de

haver-se dado conta de que sua inteno era muito mais sria do que em seu momento tinha pensado.

Mas podia esperar ao Kai. Estava decidido a faz-lo. Manteve-se puro, afastava de si os sonhos e pensamentos que o envergonhavam, controlava seu corpo com os ensinos de Dojun. Era um alvio estar com o Kai; nunca se sentia a seu lado como quando via uma das mulheres havaianas passarem ao

trote rua abaixo sentada escarranchado sobre uns arreios esqueltica, com os ps descalos e o cabelo solto, caindo sobre as costas em ondas que atormentavam seus dias e suas noites. As vises pareciam brotar das paredes, do ar e do cu; fantasias de mulheres que abriam os braos e as

pernas, retalhos de coisas que recordava, de curvas de mulher, de pele de mulher. Uma vez estava em um armazm de loja de ferragens enquanto lorde Gryphon encarregava umas jarras de cristal para lady Tess, quando entrou uma das esposas americanas, uma alegre mulher vestida com simplicidade, deteve-se um momento a falar

com lorde Gryphon, e Samuel percebeu seu aroma: um aroma ntimo, secreto e explcito que invadiu sua mente. Ficou paralisado. Conhecia aquele aroma; viu a cabea da dama recostada em um travesseiro, o rosto avermelhado e os seios arqueados. Seu corpo se viu alagado pelo calor, o apetite e a

vergonha. No podia suportar v-la. Deu a volta e se imaginou apoiando a cabea naquele ventre e respirando aquele aroma salgado e penetrante, desesperado por sabore-lo at que aquilo o fizesse estalar. As coisas que imaginava o deixavam espantado. Queria lhe dizer a gritos a aquela mulher que se fosse

a casa, desse-se um banho e o deixasse em paz. Saiu do armazm e ficou na rua, respirando profundamente. Sem esperar lorde Gryphon, ps-se a andar e depois a correr. Encontrou-se ao Kai na sala de diante da casa, praticando escalas no piano, com expresso spera no rosto quando a

professora lhe corrigia as freqentes notas desafinadas. Samuel se sentou em um rinco da fresca estadia, ante uma janela pela que entrava uma brisa doce e fresca que lhe dava no rosto, e escutou as notas que foram em ascenso e em descida, uma e outra vez. Kai era dele.

Ele a protegia. Ia assegurar se de que a vida daquela menina fosse como devia ser. Nada ia fazer lhe danifico nunca, nem a assust-la nem a faz-la chorar de verdade. Adorava-a e, quando ela fosse o bastante maior, ia adorar o a ele. Ao chegar as frias do vero,

lorde Gryphon perguntou ao Samuel se algum posto na Arcturus Company lhe interessava com vistas a uma futura carreira. Samuel foi trabalhar ao escritrio do porto, profundamente encantado com a idia de que lorde Gryphon tivesse pensado nele como seu protegido. Sentado ali, rodeado de jornais de navegao, manifestos de embarque e

inventrios de armazns, aprendeu a levar a contabilidade da empresa e, pouco a pouco e para sua surpresa, descobriu que a naval era to s um passatempo para seu adotivo; que a razo de que no contassem com suficientes barcos a vapor e de que a maior parte dos

lucros se investisse em manter a frota era pura e simplesmente que lorde Gryphon adorava aqueles navios e que contava com dinheiro para esbanjlo neles mos enche. Lorde Gryphon era rico, imensamente rico. Samuel jamais tinha tido a mais mnima idia do que sua famlia postia tinha

at que viu o dinheiro que flua pelos livros de contabilidade da empresa. Viviam bem, mas nem remotamente desfrutavam dos luxos da metade dos homens de negcios americanos assentados em Honolulu. A frota da Arcturus estava melhor dirigida e mantida que nenhuma outra, mas logo que igualava a seus competidores. Era a

maneira que tinha um homem rico de entreter-se, e sempre havia um navio atracado no porto de Honolulu para que lorde Gryphon ficasse ao mando se gostava. Os agentes que trabalhavam no escritrio no tiveram reparo em informar ao Samuel de qual era a verdadeira fonte de ganhos: as ancestrais

posses de lorde Gryphon na Inglaterra, e o imenso fideicomisso que dirigia para sua esposa. Ao ir inteirando-se dos detalhes, Samuel sentiu que lhe gelava o corao com a consternao. Os pais do Kai eram incrivelmente ricos. No podia apresentar-se ante ela sem nada. Durante todo o vero,

continuou treinando-se com o Dojun e trabalhando na naval. Ao chegar setembro, disse lorde Gryphon que preferia continuar em seu posto que voltar para colgio. Lady Tess pareceu desgostar-se, e disse que seu trabalho escolar era to excelente que tinha esperado que ele quisesse ir universidade, mas isso implicava ir aos

Estados Unidos ou a Inglaterra. Implicava partir. Tentou convencer a de que conhecia alguns dos meninos que se foram ao Harvard, e que haviam tornado j como jovens. Eram elegantes e sofisticados, e gostavam de mostr-lo, mas no eram mais que estpidos. Falou-lhe de Oxford e da educao que ali se recebia.

Samuel respondeu que adorava trabalhar com os navios, e lhe prometeu ler todos os livros que se liam em Oxford. Lady Tess insistiu em que ele se merecia uma formao melhor da que Honolulu podia lhe proporcionar. Ao final, ele entrelaou as mos s costas, ficou olhando para a sombra brilhante do

alpendre e lhe suplicou que no o enviasse longe. Ainda no. Por favor, Senhor, ainda no. E ela no o fez. Samuel decidiu que no era seu assunto dizer a lorde Gryphon como dirigir seus negcios. Dedicou-se a trabalhar e a aprender. Quando os

livros de contabilidade mostraram que um tal Ling Hoo ficava com dez por cento dos artigos dos armazns cada vez que aconteciam suas mos, Samuel no o contou a ningum. Simplesmente foi ao Tantalus um dia e perguntou ao Dojun se tinha chegado o momento de ir ao Chinatown.

Por alguma razo, Leda tinha pensado que o segundo dia do jubileu transcorreria de forma muito parecida com o primeiro. A famlia, obvio, ia sair de novo: o cortejo de que formariam parte, que se dirigiria at a abadia de Westminster para assistir ao ofcio religioso de ao de obrigado,

tinha que sair do palcio de Buckhingham s onze menos quarto, e deviam apresentar-se na entrada ao palcio de Pimlico Road meia hora antes. Leda tinha passado a velada escutando um relato detalhado da audincia privada com a rainha, que tinha tido lugar imediatamente depois de que a reina Kapiolani e a

princesa tivessem falado com sua majestade. Parecia haver-se desenvolvido sem problemas -nos dez minutos que estiveram com a rainha no houve muito tempo para manifestar suas peculiaridades, mas lady Ashland no deixava de dizer: Graas a Deus j passou! Sinto tanto alvio de que no ocorresse nada!

Era evidente que lady Ashland conhecia o potencial de sua famlia para provocar uma calamidade social, e Leda desejou lhe dar um abrao para tranqiliz-la. Em lugar disso, tratou de ajudar por todos os meios na preparao da seguinte prova, ou aventura, ou chateio, segundo o membro da famlia

Ashland que estivesse falando do ato naquele momento. Visitou em pessoa a lady Catherine para assegurar-se de que a jovem estivesse levantada s cinco da manh, e lhe deu sua opinio sobre o penteado. No podia levar o cabelo ondulado, assim ter que alis-lo com a prancha, e logo a donzela o

recolheu em um coque denso e escuro no alto da cabea, enquanto Leda se concentrava em lhe colocar o meio doido da maneira mais na moda. Por sorte, tanto lady Catherine como lorde Robert tinham herdado os olhos cor azul esverdeado de sua me e as pestanas espessas e negras como o

carvo, bela combinao a que qualquer gama de cor favorecia, do negro at os tons bolo, por isso, em que pese a que Leda teria escolhido o azul para ela, o vestido de cetim cor amarela narcisista, debruado por laos verde jade, ficava de maravilha. A jovem se queixou bastante

quando lhe ataram o espartilho com fora, mas Leda se manteve firme e lhe assinalou as dobras to pouco atrativos que, com os cordes bem atados, evitariam-se. Depois disso, foi lady Catherine a que assumiu a misso de ir junto a sua me e se dedicou a acoss-la para que tambm ela

tivesse o mesmo aspecto de relgio de areia. Em algum momento, no curso de uma daquelas apressadas travessias entre um e outro quarto, Leda recebeu a mensagem do senhor Gerard, no que de novo a citava na estufa para uma reunio, mas apenas lhe jogou uma olhada antes de ir encarregar se

de arrumar uma das dobras da cauda de lady Ashland, que estava muito enrugado. s nove e meia j estavam todos reunidos no vestbulo, enquanto Leda realizava uma inspeo de ltima hora, assegurava-se de que lorde Ashland tinha o carto de admisso de lorde Chanceler, dava instrues a lorde Robert

para que levasse o chapu de trs picos sob o brao e para que em nenhum momento esquecesse que levava uma espada com seu

traje de ornamento de veludo azul, j que parecia ter tendncia a d-la volta e cravar s damas com a espada sem dar-se conta. Lady Ashland estava to plida e parecia to nervosa com seu singelo, mas elegante vestido de seda lils a guas, que Leda cedeu ao impulso de abra-la

e lhe murmurou ao ouvido: Tudo est perfeitamente bem, senhora, no se preocupe com nada. A dama sorriu de repente e apertou a mo de Leda. Oxal nenhum de ns faa nada que chame muito a ateno! Leda se apartou. Tenho que

lhe dizer, senhora, que no salo de madame Elise vestiu a metade das damas que estaro pressentem, e nenhuma delas to bela como vocs, nem leva uns acompanhantes to arrumados. Nem sequer a princesa do Gales. Assim se vir que a gente os olhe, deve recordar que ser com admirao.

Man! gritou lady Catherine. Baixa a nos ver! A senhorita toile diz que seremos as damas mais belas e os cavalheiros mais arrumados do ato! E ela sabe bem o que diz. Leda levantou o olhar e viu o senhor Gerard na escada. Baixou ajudado pelas muletas e se

deteve no ltimo degrau, apoiando-se no corrimo. bvio que sim que sabe. Seu esplendor cegador. Ai! Como eu gostaria que pudesse vir -disse lady Catherine. E voc tambm, senhorita toile. No justo! Antes que nenhum dos dois pudesse responder, entrou Sheppard do prtico

e anunciou que a carruagem estava ao seu dispor. Lorde Ashland tomou a sua esposa do brao. No estraguemos os esforos da senhorita toile chegando tarde. Kai, ser capaz de deixar que Robert te escolte ao sair pela porta? Com o estilo exagerado de uma princesa, lady Catherine

ofereceu a mo enluvada a seu irmo, quem fez uma ligeira reverncia, colocou-a sob seu brao e girou com cuidado para evitar que a espada lhe roasse a cauda. Leda ficou a aplaudir. Os pais saram a seguir, com a digna aparncia do marqus e a marquesa do Ashland, pensou

Leda com orgulho, e desejou que fora possvel v-los resplandecer em meio da assemblia de nobres que honrariam Westminster com sua presena. uma verdadeira pena a de sua leso -disse, voltando-se para o senhor Gerard enquanto o mordomo e o lacaio saam depois da famlia e fechavam a porta

atrs deles. Que lstima que no possa ir com eles! De todas as formas no teria ido. Seguia na escada com o estuque apoiado no bordo e o p coberto por uma meia trs-quartos negro. No estou convidado. Ah. Para cobrir seu embarao, Leda deu um puxo em

sua saia. No tinha dado conta Quero dizer Acreditei que era por sua indisposio -disse de maneira pouco convincente. No -disse ele com um ligeiro sorriso, porque ningum sabe quem demnios sou.

Ela o olhou e o viu completamente tranqilo, rodeando com o brao o ornamentado arremate do corrimo. Eu sim que sei quem -pensou enquanto sentia um repentino formigamento na base da coluna. Um ladro. Um ladro surpreendente e desconcertante, que se movia na noite como um felino na

selva. Que ia de um lado a outro com elegncia com as muletas e o estuque quando no fazia nem quatro dias que se quebrado um osso. Esclareceu garganta. Entendo -disse, tentando soar como se aquela revelao fosse do mais normal. Ele soltou o corrimo, ps

os extremos das muletas no cho de mrmore do vestbulo e se serve delas para baixar o ltimo degrau. Sou adotado, mais ou menos. No Hava, chamam-no honai. Na Inglaterra, no parece que saibam como cham-lo. Ah -disse ela de novo. Pensou em acrescentar algo, mas

no foi capaz de reconhecer que ela tambm tinha sido mais ou menos, adotada. Em seu lugar, olhou ao relgio de parede que pendurava sobre uma mesa auxiliar. J so quase as dez. Acredito que voc tinha a inteno de voltar a nos reunir a todos no estufa, no

assim, senhor Gerard? Isso ser muito satisfatrio, senhorita toile -disse. Leda passou por cima o tom irnico e se dirigiu ao lugar famoso, esperando encontrar-se ali ao mesmo grupo de criados. Foi chegar galeria deserta, sobre uma rua que estava quase to cheia de gente como no

dia anterior, embora essa manh pedestres e carruagens se moviam em direo ao sul, quando se lembrou de que esse dia no ia ser nada similar ao anterior, que o desfile no passaria por diante do Morrow House de caminho ao Westminster. No havia nada que contemplar da estufa, e ningum do

pessoal ia estar ali. Aquilo lhe pareceu uma traio considervel, e tentou recordar como lhe tinha feito acreditar o senhor Gerard que os criados foram se reunir novamente no estufa. O fato de que no fosse capaz de determinar nenhuma prova especfica de que assim o houvesse dito, solo serve

para faz-la sentir ainda mais enganada; quando chegou ele com as muletas uns momentos depois, Leda se negou a tomar assento, arqueou as sobrancelhas e disse com frieza: Acredito que estaria muito mais cmodo se o atendesse Sheppard. Sheppard tem o dia livre -lhe respondeu, enquanto se inclinava

sobre o sof de vime e apoiava o brao no fofo respaldo. Ao igual ao resto do pessoal. H carne para fazer sanduches no refrigerador. Espero que no lhe importe prepar-los. Leda ficou boquiaberta. Sim, importa-me. Importa-me muito. Eu tenho em conta sua posio, e o nvel distinto

desta casa, por muito que voc no o faa. Quem concedeu a todos o dia livre, se que no um atrevimento pergunt-lo?

Ele parecia um pouco surpreso ante tal amostra de veemncia. Eu. E lorde e lady Ashland o passaram? Nesta casa, senhorita toile, eu sou o responsvel pelo pessoal. Ningum mais vai voltar para casa at depois das cinco; est primeiro o ofcio de ao de

obrigado e depois haver um importante almoo e revista das tropas no palcio de Buckingham. Duvido muito que retornem antes do anoitecer. Por que foram ficar os criados aqui, cruzados de mos, quando podem sair e participar de um grande dia? Leda se negava a reconhecer a mais mnima lgica

em uma desculpa to dbil. No tinham por que estar cruzados de braos. Comeou a andar de um extremo a outro da estufa, levada pela agitao. Ter que organizar o jantar para quando retornar a famlia a casa. Ter que atender s damas quando se arrumarem; a donzela de lady

Ashland no dedicou suficiente ateno limpeza de suas jias: eu mesma tive que voltar a limpar a ametista esta manh. Os sapatos de lorde Robert podiam melhorar muito com um escovado bastante melhor que o que sua ajuda de cmara lhes deu at a data. Voc mesmo precisa cuidados, e me

empregou para ser sua secretria, senhor Robert, no sua cozinheira. Bem pouco tem feito em qualquer dos casos -murmurou ele. Leda pensou que era melhor fazer como se no tivesse ouvido aquele sarcasmo ignbil. Ficou em posio desafiante. Estou atnita de que Sheppard tenha aceitado. No

faz nada para melhorar minha opinio sobre ele. Ao menos, deveria ter insistido para que houvesse uns servios mnimos. O senhor Gerard inclinou a cabea e fez um gesto apenas perceptvel com os lbios. Fez-o! afirmou Leda triunfalmente. Foi um tanto obstinado, sim. Imagino

que agora se dar conta de que minha opinio justificada. O que vejo que parece que tenho tendncia a empregar a gente teimosa. Esse o comentrio tpico de um homem. No se pode confiar em um cavalheiro para levar o servio como Deus manda. Insistem

em fazer-se carrego, e depois lhes jogam a culpa aos empregados quando sua prpria falta de sentido comum a que provocou a situao. Reconhea que eu sei mais que voc destas coisas, senhor Gerard. Sheppard um excelente mordomo e voc deveria lhe dar liberdade para que cumpra com seu dever

da forma que ele considere adequada. De repente, teve uma idia. Deu-se a volta bruscamente e entrou no salo para fazer soar a campainha. Passou uns momentos, justo o tempo que ela tinha julgado necessrio para chegar sem pressas da cozinha at o vestbulo, e apareceu Sheppard na porta.

Senhorita? perguntou, com um agradvel sentido de respeito, igual a se ela fosse um mais da famlia.

Sheppard, queria saber se voc for estar fora esta manh. No, senhorita. Dirigiu-lhe um olhar ardiloso. Vi a limusine de sua majestade em distintas ocasies, e no tenho a inteno de que me esmaguem as multides do jubileu. Se necessitar algo, no tem mais que me chamar. Sabe a

que hora prefere comer o senhor Gerard? Pode nos interromper quando queira e perguntar-lhe Em qualquer momento. A porta estar aberta. Muito bem, senhorita. Sheppard inclinou a cabea em sinal de reconhecimento e se retirou. Leda voltou para estufa, satisfeita de que Sheppard entendesse coisas que,

evidentemente, seu amo no entendia. Tomou assento na mesma cadeira em que lhe tinham indicado que o fizesse no dia anterior, e manteve as costas erguidas. Bem, senhor Gerard. Sheppard me assegura que estar aqui ao seu servio, ou seja, que teremos que nos contentar com isso, tendo

em conta que hoje um dia especial em muitos aspectos. muito pouco provvel que venham visitas, portanto no temos que nos preocupar dessa questo. Obrigado, senhorita toile -disse ele com uma estranha risada. No tem por que agradecer me respondeu isso ela, um tanto nervosa porque

tinha tido medo de que se zangasse com ela, e grvida alm por seu sorriso. No mais que o que devo fazer por voc como empregada. Quero que receba os cuidados apropriados. Voc parece ser uma cuidadora estupenda. Leda se ruborizou, e o olhou com suspeita em

busca de algum sinal de brincadeira. No parecia que houvesse indcio algum de ironia em seu tom, e a forma em que a olhava-lhe fazia sentir um tanto tola e dbil em seu interior, cheia de prazer ante aquele louvor. Esboou um sorriso e baixou a vista para suas mos.

Kai gosta muito de voc disse ele. Leda sentiu que o deleite causado por seu anterior louvor se esfumava rapidamente. Lady Catherine? Sorriu de novo, esta vez por cortesia. uma honra que voc pense assim. Todos ns gostamos. Isso muito gratificante disse ela.

Os Ashland so pessoas maravilhosas. Ele assentiu com lentido, como se em realidade no pensasse na resposta dela. Depois de um momento disse: Ela tem dezoito anos. Ah, sim? disse Leda, j que ele pareceu fazer uma pausa para receber algum tipo de resposta. uma

jovem verdadeiramente bela. Cheia de frescura e inocncia. Desapareceu o ar pensativo do rosto dele; seus olhos se encontraram com os de Leda com uma expresso de sbita preocupao. Ela acrescentou a toda pressa:

Estou segura de que gostar de muito. um pouco ingnua, mas acredito que a sociedade atual recebe muito bem s jovens americanas. Quero dizer Lady Catherine, obvio, no americano, mas refiro s jovens esclareceu garganta com delicadeza, boa, de costumes americanos. No se espera que estejam a

par de cada pequeno detalhe da etiqueta. Alm disso, bvio que sua famlia tem o visto bom; estou segura de que a reina celebrou muito poucas audincias ontem. Que os tenha convocado para v-la to logo a maior adulao possvel. Sua opinio sobre o assunto no pareceu tranqiliz-lo.

Franziu o cenho ainda com mais fora e se esfregou uma das sobrancelhas. Senhorita toile -disse sem prembulo algum, voc uma mulher. Leda se sentiu um pouco molesta. Uniu as mos sobre o colo e tratou de pensar em como teria respondido a senhorita Myrtle ante uma

declarao to descarada, insegura de se devia sentir-se orgulhosa ou alarmada. Voc tem experincia do mundo -continuou ele, antes de lhe dar tempo a dizer nada. Saber coisas compreender coisas que a um homem, que a algum como eu, no lhe resultam to evidentes. Com uma estranha mescla

de alvio, desiluso e prazer pela idia de que ele a encontrasse to sofisticada e segura de si mesmo, disse: Bom, sim, talvez isso seja certo. A senhorita Myrtle sempre o havia dito. Ela no tinha estado a favor dessa idia to moderna da igualdade dos sexos. As

mulheres eram claramente superiores. voc tem pluma e papel? perguntou-lhe ele. Ah! ficou em p. Que parva que sou! Sinto-o muito. Foi rapidamente biblioteca, e retornou com uma pluma caneta e um caderno novo das reservas que ali havia. Voltou a sentar-se, tratando de no

mostrar-se excessivamente apressada, e o olhou espectador. Quero comear a cortejar ao Kai -disse ele, como se anunciasse um acordo de negcios. Eu gostaria que me ajudasse a planejar a melhor forma de faz-lo. Leda piscou. Fechou o caderno que tinha aberto no colo. Perdoe, senhor,

mas no acredito que lhe tenha entendido corretamente. Ele a olhou diretamente aos olhos. Sim que me entendeu. Mas est claro que seu cortejo um assunto absolutamente privado. No querer que eu tome como assunto prprio. Agradeceria-lhe profundamente que o converta em assunto dele. Eu no estou

muito corrente de como gosta s damas que as cortejem. No quero cometer nenhum engano. Exibiu um meio sorriso. As costas de Leda estavam mais rgidas que um pau. Acredito que se est burlando de mim, senhor.

O sorriso desapareceu do rosto dele. Girou a cabea e dirigiu o olhar alm das fileiras de novelo e flores at as taas das rvores do outro lado da rua. Quando voltou de novo a cabea, seu olhar era frio e intenso. No estou me burlando de voc, o

asseguro. Aquele ar sombrio e concentrado resultava desconcertante. Era como ser observada por uma esttua grega de olhos prateados que tivesse cobrado vida na penumbra do corredor de mrmore. Leda se recostou na cadeira. De verdade, senhor Gerard -disse sem poder conter-se. No sou capaz de imaginar que

um cavalheiro como voc no esteja versado em o cortejo s damas. Ele emitiu um riso sarcstico e esfregou com a mo o respaldo do sof. Apoiou-se contra ele como se fosse ficar em p, e depois desistiu do esforo com uma careta. Pois no, no o estou

-replicou com aborrecimento. O que faz a voc pensar o contrrio? Leda se afundou ainda mais em seu assento. No cria que o hei dito com nimo de insult-lo. sozinho que voc um cavalheiro excepcionalmente arrumado e Ele a olhou com tal violncia nos

olhos que a voz de Leda se apagou. No lhe importa absolutamente meu aspecto, a Deus obrigado murmurou, como se fosse o corcunda de Notre Dame. Leda duvidava que muitas outras damas tivessem sofrido a mesma cegueira que lady Catherine. Inclusive calado e taciturno, contemplando a perna

engessada, estava resplandecente: um arcanjo Gabriel inquietante dotado de asas escuras e invisveis. Este assunto de soma importncia para mim -disse de repente, sem olh-la. Leda acariciou o caderno. No sei como comear -acrescentou ele entre dentes. Ela abriu o caderno, desentupiu a

pluma com um ligeiro estalo e a passou pelo quadrado de mata-borro que havia dentro. Enquanto contemplava como se estendia a tinta da ponta, aventurou-se a dizer: Sabe ela algo de suas intenes? obvio que no. Era muito jovem. Eu jamais me aproveitaria dela. V-me como um

irmo. Leda, com a cabea baixa, permitiu-se um sorriso irnico. Talvez melhor como um tio, diria eu. Acredita que sou muito major para ela? perguntou ele com aspereza. A pluma de Leda fez um borro ao lhe tremer a mo pela dureza da pergunta.

No, senhor -disse. Claro que no. No cumpri os trinta. No sei com certeza. Acredito que tenho vinte e sete ou vinte e oito anos.

Ela se mordeu o lbio e continuou com a cabea cuidadosamente inclinada sobre o caderno. No acredito que isso seja um problema -disse. Esperaria a que ela fosse um pouco major, mas me d medo -Se interrompeu bruscamente e tamborilou com os dedos no brao do sof

de vime. que poderia ser j o bastante major para despertar o interesse de um desses malditos lordes ingleses com uma manso. Leda fez uma careta com os lbios. Estou segura de que no querer adquirir o hbito de utilizar linguagem grosseira em sua presena -disse com

suavidade. Peo-lhe desculpas. Tropeou com o olhar da jovem e imediatamente olhou para outro lado, mostrando por um instante a intensidade de uma emoo logo que contida. Leda abaixou de novo a cabea. Parecia quase como se fosse ela, e no a vaga ameaa dos lordes ingleses, o

que o tirava de gonzo. Aquela conversao no tinha nada de normal. Solo a olhava de passada e parecia preferir no olh-la absolutamente; de fato, cada vez que o fazia tinha o rosto tenso por algum sentimento cuja natureza Leda no era capaz de adivinhar. Embarao, disso no havia dvida, pois o

tema de conversao era o suficientemente incmodo para caus-lo, mas em sua expresso havia algo mais, algo sutil e perturbador. Sentia-se do mais coibida e os dedos lhe tremiam. O borro sob a pluma se foi fazendo maior enquanto ela o olhava com a cabea inclinada com acanhamento. Fez-se um

silncio muito carregado entre eles, prenhe de incmodas fantasias. Consideraro-a uma rica herdeira -disse ele em tom vago, como o faria algum que retoma o fio de uma conversao que se perdeu em meio de reflexes. Lady Catherine. Estavam falando de lady Catherine, obvio. Leda se esclareceu

garganta. Temo-me que isso seja verdade. Reuniu foras para levantar o olhar. Estava-lhe contemplando as mos; mas, ao levantar ela a cabea, apartou a vista, agarrou o jornal que estava no cho ao seu lado e o ps no colo enquanto se recostava de novo. Quero

que tome uns apontamentos -disse, dobrando o jornal, colocando-o sobre a coxa e olhando para ele com o cenho franzido como se o que queria saber estivesse ali escrito. Leda se sentou com a pluma preparada sobre o caderno. Esperava que no falasse muito rpido ao lhe ditar.

O que recomenda em primeiro lugar? perguntou ele. Com respeito a lady Catherine? perguntou duvidosa. Claro. Fez rudo com o jornal. Do que outra coisa poderia estar falando? Bem, eu encontro-me um tanto perdida, senhor Gerard. Suponho que no a conhece h muito tempo

-disse, com um rastro de aborrecimento em sua bela boca. Ainda no se pode esperar que

esteja a par de seus gostos. Dobrou o jornal, alisou-o e a seguir o enrolou com os dedos. Eu a conheo desde que era um beb, e ainda no me imagino. Leda no tinha resposta para aquilo. Todo o assunto a perturbava profundamente. Ele agarrou o jornal

enrolado com os punhos e o olhou com o cenho franzido. Como gostaria que lhe fizessem a corte a voc, senhorita toile? Leda sentiu uma debilidade repentina que lhe rasgava a garganta. Presa da consternao, olhou para o impreciso caderno, desesperada por ocultar seu rosto e sua estupidez.

No estou segura -disse muito rpido, porque assim talvez ele no percebesse nada estranho em sua voz. No lhe ocorre nenhuma idia? Golpeou o jornal contra a palma aberta e soltou uma risada breve e sem humor. Se assim for, retiro a pergunta. Como no gostaria que a

cortejassem? Leda piscou rapidamente. O rosto envergonhado do sargento MacDonald, avermelhado, triste e impotente, desenhou-se sobre a pgina em branco com raias azuis. Eu no gostaria que me abandonassem ao desprezo -disse. Eu gostaria que me defendessem. Notou que o senhor Gerard a olhava. Sentiu-o, porque

era incapaz de levantar a cabea, especialmente depois de dizer algo to ridculo. J vejo -reps ele lentamente. Sinto muito. No se trata disso, verdade? Endireitou a coluna, tratando com muito esforo de mostrar-se eficiente. Empunhou a pluma e escreveu a data, hora e o lugar na

parte superior da pgina. Acredito que o mais correto que comece por lhe pedir permisso ao pai de lady Catherine para lhe dirigir suas galanterias, se que no o tem feito j. Quer que o anote? Ele aproximou as muletas, ficou em p e balanando-se deu um passo

at que se situou frente grande janela. Eu nunca a abandonaria ante nada, nem ante o desprezo nem ante nenhuma outra coisa. Jamais. Pensava que ela saberia. Acredita que deveria dizer-lhe. Leda contemplou suas costas atlticas, seus largos ombros e a fortaleza de suas mos. Recordou seu

rosto quando lhe tinha entalado a perna: concentrado, severo e bonito. No, aquele homem no temeria enfrentar-se a nada. Podia ser algo, mas certamente fraco no. Estou segura de que j sabe -disse Leda. Como poderia no sab-lo?, pensou. Ele a olhou de esguelha.

Leda no podia lhe sustentar o olhar, nem sequer por um instante. Algo em seu interior o impedia. Evitou seus olhos, e procurou uma orqudea que pendurava perto de seu ombro como foco de ateno.

Lady Catherine me falou do tubaro, recorda-o? Parece lhe ter muito querida a essa histria, e parte que voc teve nela. Sim -disse ele. Sempre a cuidei. voc muito bom -disse Leda de forma mecnica. Estou segura de que lady Catherine lhe est muito agradecida.

Ele ficou em silencio comprido momento, olhando pela janela. Assim disse ao fim tenho que falar com lorde Gryphon. Suponho que isso o razovel. Mas no soava como se a idia lhe resultasse muito atraente. Acredito que maioria dos jovens lhes resulta bastante difcil

falar com os pais. Tratou de acrescentar uma nota de compreenso a suas palavras. Neste caso, como lorde Ashland est perfeitamente corrente de suas origens, suponho que no ser mais que puro formalismo. Ele apertou as muletas de novo. Que otimista voc. No acredito

que lhe ponha nenhuma objeo -Se interrompeu. A menos que me conhea to bem como voc? Leda se umedeceu os lbios e brincou com a pluma. Espero no me haver equivocado com voc, senhorita toile. Outorguei-lhe o poder de me arruinar. voc uma traidora?

No -sussurrou sem saber por que, ou por que no, mas segura, que Deus a perdoasse, de que no ia lhe dizer a lorde Ashland que o homem que queria casar-se com sua filha era um criminoso noturno e um ladro. O senhor Gerard a olhou aos olhos nesse

momento, com uma intimidade e uma cumplicidade que Leda sentiu em todo seu corpo com uma sacudida de doloroso prazer. Oxal, pensou, permitindo uma fraqueza que toda sua vida tinha tido muito cuidado em evitar. Ai, oxal 16 Folha de corao Hava,

1879 O guerreiro que v disfarado evitar os mantimentos salgados, condimentado-los, a comida de aroma penetrante com azeites, alhos e outras substncias similares -lecionou Dojun. No se revela ao inimigo pelo que h tocado, ou pelo lugar onde esteve, suas paixes no o traem. Shinobi estar um escondido. Outra

forma de diz-lo nin, que significa pacincia, resistncia, perseverana. Samuel escutava suas palavras, repetidas uma e mil vezes. Suas intrigas tinham sido to fceis como fazer mais atrativo um acordo da Arcturus mediante uma generosa doao com o fim de comprar o primeiro motor a vapor de Honolulu, e

to arriscadas como as ver-se com uma sociedade secreta a China chamada Hoong Moon por uma questo de pagamentos em troca de amparo, e, continuando, agachar-se a acender o

fogo de gs do escritrio do porto uma manh e perceber o aroma de plvora um instante antes de acender o fsforo. Pensa disse Dojun que os caracteres que formam a palavra nin se criam escrevendo o smbolo de folha sobre o smbolo de corao. Shinobideru sair em

segredo; shinobikomu entrar sigilosamente; shinobiwarai a risada silenciosa; o jihi no kokoru o corao piedoso. Todas essas coisas so tuas. No lute. No deseje. Tem que ser como a folha de bambu que se dobra com o rocio. A folha no se sacode a gota e, entretanto, chega o

momento em que o rocio cai e a folha se endireita, liberando fora. Samuel pensou na folha. No pensou nela de forma consciente, a no ser sem obstculos entre ele e o bambu e a gota de rocio. Algo se moveu nos borde de sua viso. A gota caiu. O

corpo de Samuel se tornou para trs com o golpe de Dojun, dominando a fora e afastando-se dela. Adotou de novo sua postura de joelhos. Agora j no havia homem no Chinatown, nem p?k? Oriental nem kanaka nativo que pudesse surpreend-lo. Samuel sabia. Era capaz de plantar-se em

uma rua de Chinatown e perceb-lo, igual a lhe chegava o aroma a especiarias e o aroma de repugnante pio que se misturava com o da manga e o pescado e o do barro. Ningum lhe emprestaria particular ateno; ningum o rodearia como se fosse merecedor de um respeito exagerado; mas bem

os robustos havaianos que guardassem a porta da casa de jogo clandestino de jogo mais prximo o observariam com um leve sorriso de irmandade. Com seu cabelo loiro e sua altura, Samuel no era o nico f kwai que operava no Chinatown, mas sim o mais importante dos diabos estrangeiros,

j que a Arcturus era a empresa mais importante do bairro que no pertencia aos chineses, porque Samuel contratava a todo aquele que fosse honrado e fiel a sua palavra, e pagava na mesma moeda quando terei que faz-lo. Dojun ainda lhe exigia o mximo de suas foras. Fazia muito

tempo que aquilo se converteu em uma estranha competio entre eles, pois no havia nada menos proveitoso que introduzir-se em um dos botequins e provocar uma briga com marinheiros bbados para praticar. Samuel se tinha tropeado com bbados agressivos em uma ou duas ocasies, e resultava muito fcil e pattico voltar-se, apartar-se

a um lado e deixar que eles mesmos se derrotassem ao desabar-se de cara sobre o cho. No, era o prprio Dojun o que o desafiava, que atirava de fios invisveis e encontrava sutis discordncias e falhas nos assuntos da Arcturus onde no deveria haver nenhum ponto dbil. Era Dojun

o que enfrentou ao Samuel e a Arcturus a cada uma das faces e cls que havia no Chinatown, um aps o outro, e quem, continuando, deixava-o que fosse ele o que encontrasse a soluo, mediante a fora ou a astcia. Samuel sabia agora o que era brigar de verdade. Teriam-lhe aberto

o crnio kotsun se no os tivesse deixado em paz.

Assim que os deixava em paz, e depois retornava, convertia-se no eixo central, dava um golpe certeiro e voltava a sumir-se no silncio. Ar. Fogo. gua. E sempre estava Dojun, falando de paz e instruindo-o a respeito da violncia, lhe dizendo que devia acalmar aquele ncleo implacvel

que Samuel tinha descoberto em seu interior e transform-lo em quietude e serenidade. Dojun tinha tido milhares de ocasies para golpe-lo. E milhares de vezes tinha freado o ataque justo ao limite, sem tocar jamais ao Samuel; sem romper jamais sua promessa. O guerreiro shinobi deve levar sempre

a verdade em seu interior. A voz de Dojun era tranqila e inexorvel. No luta por dinheiro nem pelo prazer de destruir. A fora e o poder no so nada. Mantm seu propsito. uma iluso dentro do mundo real; procurou-se uma camuflagem, do mesmo modo que uma mantis se confunde com

um ramo. Mas no se converte em um ramo. No esquece que uma mantis. Tem que tomar cuidado com isso. Samuel se inclinou sobre o colo em sinal de reconhecimento, com as Palmas apoiadas nos joelhos. O que o que faz com respeito s mulheres, Samuel-san?

Pergunta-a lhe chegou sem aviso, como uma bomba, to inesperada como um dos ataques de Dojun. Samuel sentiu que o rosto lhe avermelhava, que a vergonha lhe alagava o corpo. Ah -disse Dojun com interesse. Elas rompem sua harmonia. Samuel no sabia o que dizer. A

estupidez se apropriou de seus braos e suas pernas; permaneceu ali sentado como uma besta carente de inteligncia, esperando que Dojun chegasse at aquela parte de sua pessoa e a fizesse pedacinhos. No vai com mulheres? Na aparncia era uma pergunta, mas Dojun falou como se soubesse com certeza.

No -sussurrou Samuel, com a vista fixa diante dele. Durante um momento, Dojun no falou. A seguir disse com tom reflexivo: As mulheres adormecem os sentidos. Em geral, o melhor as evitar. melhor viver nas montanhas e comer mantimentos suaves, assim os sentidos se agudizan;

um guerreiro recebe uma mulher de longe, e sabe o trabalho que est fazendo sem to sequer v-la ou ouvi-la. Mas as mulheres so desejveis, no certo? Um guerreiro deve conhecer suas prprias debilidades. Os corpos das mulheres so belos, movem-se com graa, seus peitos so redondos e sua pele doce

e suave ao tato. Pensa nessas coisas? Samuel no abriu a boca. No tinha palavras para aquilo no que tratava de no pensar. Solo tinha imagens que o assediavam at o desespero, e, de sbito, para espanto dele, no pde lhe ocultar ao Dojun a reao que nele provocavam. Samuel

estava horrorizado. Sumido na mais

intolervel das humilhaes enquanto se traa a si mesmo como no o tinha feito desde que era um colegial. Seu corpo responde aos seus apetites inclusive enquanto eu falo deles, Samuel-san. Samuel sentiu que o sangue lhe pesava nas veias. Manteve os olhos abertos, olhando ao espao.

Inalou. Exalou. Era como se estivesse afogando. A voz de Dojun se abriu aconteo com suavidade no silncio. Isto shikijo, a concupiscncia, ruborizar-se por uma mulher. As mulheres distraem. Mas, graas paixo que o homem sente pela mulher, a fora universal da vida, o ki, transforma-se

em algo concreto, e se cria nova vida. uma questo delicada. No algo mau que um guerreiro yazca com uma mulher, mas, por muitas razes, melhor no faz-lo. No ter que render-se s fraquezas pessoais. Ter que manter no interior os princpios essenciais: a retido, o valor, a piedade,

a cortesia, a sinceridade absoluta, a honra, a lealdade. Todo isso te servir de guia. Como o resto dos ensinos de Dojun, era singelo, mas, de uma vez, de uma tremenda complexidade. Mas neste aspecto Samuel se ocultava, mantinha a aterradora fora de seus apetites escondida inclusive ante seu professor.

No havia retido em seu ser para control-la, nem cortesia, nem honra, nem piedade. Solo um profundo temor a perder-se, a cair, cair, cair em um poo sem fundo. Em seu lugar, agarra a energia do shikijo e utiliza-a nas artes que eu te ensino lhe aconselhou Dojun. o

vigor de um homem jovem. Concentra seu ki. Samuel fez uma inclinao para mostrar sua gratido pela lio, como se no fosse distinta das demais. No desperdice sua energia vital nas mulheres. No, Dojun-san. No esquea que esta uma fraqueza especial em seu

interior. Exercita a disciplina em todas as coisas. Sim, Dojun-san. um guerreiro. Seu corao a folha da espada. Samuel se inclinou de novo e fechou os olhos. 17 A senhorita Myrtle nunca tinha estado contra a idia de sentir uma curiosidade benigna;

mais, freqentemente havia dito que acrescentava um pouco de sabor picante muito necessrio s conversaes de umas damas que se conheciam bem, e que no tinham maus hbitos como a tendncia fofoca ou o entremeter-se para deixar a algum em mau lugar, e as damas de South Street confirmaram que

tal era o caso. A senhorita Lovatt pareceu ficar um momento perplexa quando Leda lhe anunciou seu novo emprego. Amanuense! exclamou.

Que palavra grande -murmurou lady Cove. Eu no gostaria que me fizessem soletr-la, embora me atrevesse a dizer que nosso querido pai o teria feito imediatamente, e com exatido, alm disso. Deve ser uma palavra latina, no? A senhora Wrotham se mostrou cheia de apreenso. Nunca me sentei cmoda

com o latim. Parece-me uma lngua muito masculina e, se por acaso fora pouco, morta. Por que razo quereria um pronunciar palavras que j no esto vivas? Lady Cove se estremeceu. Como tragar um peixe. Um peixe! A senhorita Lovatt franziu o cenho e dirigiu um

olhar exasperado a sua irm. A palavra no tem nada que ver com peixes. uma pessoa que toma coisas ao ditado. Sim -disse Leda a toda pressa, e tenho meu prprio quarto na casa e tudo o que necessite para a correspondncia papel, plumas e demais, e em lugar

de uma mesa de escritrio corrente, o senhor Gerard me proporcionou um segredo do mais elegante, encarregado pelo pai de lady Ashland, o falecido conde de Morrow, desenhado pelo prprio lorde, e fabricado seguindo suas instrues com madeiras belas gastas dos mares do Sul. Lorde Morrow foi um grande viajante e explorador,

conforme disse o senhor Gerard, e sua casa est cheia de objetos exticos. Falava latim sua senhoria? perguntou senhora Wrotham, ainda inquieta. A senhorita Lovatt no aprovou a pergunta, j que no via o que tinha que ver com o assunto. Depois de admoestar com dureza senhora Wrotham

e detrs lhe recordar de forma cortante que o prprio senhor Wrotham, e para que mencionar a lorde Cove, tinha falado latim sem dvida nenhuma, ou pelo menos o tinha lido, como qualquer outro cavalheiro que tivesse sido educado no Eton, percorreu com o olhar o pequeno grupo ali reunido e disse:

Suponho que lhes do conta da que famlia devemos estar nos referindo. Leda e o resto das damas confessaram humildemente sua ignorncia. Voc muito jovem para record-lo -assegurou a Leda a senhorita Lovatt, mas lady Cove e a senhora Wrotham deveriam lembrar-se. A tragdia dos

Ashland. Devem ter acontecido uns quarenta anos aps. A famlia ao completo, os meninos pequenos tambm, pereceu em um incndio a bordo do navio no que voltavam da ndia. Foi um sucesso terrvel, terrvel. O pobre marqus ancio ficou aqui sem nada. Acredito que o herdeiro estava solteiro, e que o filho

mais jovem da famlia tambm se encontrava a bordo. Morreram calcinados todos eles. Sim, recordo-o! disse lady Cove com tristeza. Foi uma desgraa espantosa. Lembro-me perfeitamente; foi o ano em que lorde Cove se deslocou a Paris em viagem de negcios, e at o Chronicle do Saint James escreveu sobre

o desastre, porque a famlia era da mais alta linhagem, e falou dos pobres meninos e de como os piratas os tinham matado. E logo, no muito depois, teve lugar a rebelio na ndia, e que relatos mais

espantosos! Eu no era capaz de l-los, no o suportava, mas as pessoas no deixavam de falar disso at que lhe rompiam o corao. Sim, sem dvida, um espanto -disse a senhorita Lovatt rapidamente para pr fim ao tema da rebelio. Mas recorda o que aconteceu com os Ashland

ao final: um dos netos, em que pese a tudo, no pereceu, e navegou por todo mundo at que se fez homem, no mesmo navio no que se supunha que se queimou, e depois retornou e se vingou de seu primo Se interrompeu bruscamente e franziu o cenho com ar irritado.

Acredito que se tratava do primo; neste momento no recordo o nome: Ellison, Elmore. Eliot! disse lady Cove incorporando-se e agitando as mos com a emoo. Claro que sim, lembro-me como se fosse ontem. Aquele julgamento to importante! O ltimo julgamento de um membro na Cmara dos Lordes

-recitou a senhorita Lovatt, no tom de voz adequado para um assunto de tanta solenidade. A pedido de sua majestade. A tm! Agora j vem o que aconteceu. Leda e a senhora Wrotham se limitaram a piscar com perplexidade ante a triunfante concluso daquele confuso relato. No entendo

absolutamente o que tem que ver que queimassem a uns meninos na Cmara dos Lordes com a Leda, nem tampouco com o do latim -disse a senhora Wrotham, compungida. Claro que no tem nada que ver com o latim -declarou a senhorita Lovatt. O emprego de Leda ser com o

mesmo homem. Com lorde Ashland, o marqus. No, no -disse Leda. No se trata do marqus. Seu nome senhor Gerard. A senhorita Lovatt a olhou com pena. uma garota muito boa, Leda, mas no muito inteligente. No estou segura de que classe de amanuense

ser se fica perplexa to facilmente. No me estou referindo ao senhor Gerard, querida. Falo de seus parentes, lorde e lady Ashland. Tem que tratar do mesmo homem, no o v? Do mesmo marqus desaparecido. Ah -exclamou Leda com humildade. E com quem se casou? perguntou-se a si

mesmo a senhorita Lovatt. Houve outro escndalo em relao a isso O tenho na ponta da lngua H dito Morrow? Leda foi enviada a procurar o livro da nobreza na penteadeira da senhora Wrotham. Quando retornou, as damas se lanaram sobre o livro como se fossem as pranchas da lei

que Moiss desceu da montanha, e brigaram elegantemente entre elas para ver quem lhe correspondia encarregar-se da investigao. Lady Cove foi descartada imediatamente por sua dificuldade para soletrar, e tambm a senhora Wrotham, em que pese a ser a proprietria do livro, por no ser capaz de voltar as pginas com a

velocidade que requeria a senhorita Lovatt, quem, ao final, foi a que tomou o volume em suas mos e fez a busca.

Meridon -anunciou, inclinando-se sobre a pgina com seus impertinentes. Gryphon, Arthur. G-R-E-P-H-Ou-N. Que forma mais pag de escrever Griffon! Lorde Ashland, sexto marqus, dcimo conde do Orford e dcimo quarto visconde do Lyndley; nascido em 1838; filho de lorde Arthur Meridon do Ashland Court e Calcuta e de lady Mary Caroline

Ardline; contraiu matrimnio com lady Terese Elizabeth Collier, filha de lorde Morrow; fruto de dita unio nasceram um filho e uma filha. Realizou inumerveis viagens em expedies botnicas e cientficas; conselheiro naval de sua majestade o rei K Kala no acredito que o tenha pronunciado bem, rei das ilhas Hava; presidente da

companhia naval Arcturus; membro do conselho de administrao de outro nome impossvel K-A-I-E-A Ah, sim -disse Leda impaciente. Essa a companhia do prprio senhor Gerard. Rogo-te que no interrompa aos seus maiores, Leda -a admoestou a senhorita Lovatt. Lorde Ashland membro do conselho de administrao de

dita empresa, e presidente do que parecem ser uma srie de organizaes caridosas que se encarregam dos marinheiros, membro de distintos clubes, e prefere navegar em iate para seu recreio. A manso Ashland Court, no condado de Hampshire. Outras direes so Westpark, no Sussex, e Honolulu, no Hava.

Vieram como parte da delegao havaiana para o jubileu acrescentou Leda, mas o senhor Gerard disse que no havia uma data definitiva para a concluso da visita. Acredita que possvel que se transladem casa de lady Ashland no Westpark e permaneam ali at o outono. Ashland murmurou a

senhora Wrotham enquanto movia nervosa os dedos. V, acredito que vi esse nome Faz o favor de me trazer a circular da corte, Leda, querida. Estou segura de que a tenho em cima da penteadeira. Leda, que conhecia bem senhora Wrotham, receou um tanto daquela afirmao, e por fim

localizou o papel que lhe tinha solicitado sobre o aparador da sala de tomar o caf da manh. Depois de outra busca a fundo, descobriram que lorde e lady Ashland tinham assistido a distintas celebraes privadas do jubileu, tal como Leda havia dito, e se verificou que sua filha lady Catherine Meridon

tinha tido a honra de ser apresentada rainha. Quando, por acaso, localizaram o nome do senhor Gerard, em letra pequena na larga lista daqueles convidados a assistir ao ch no jardim com a rainha, o emprego de Leda recebeu o beneplcito. Se o gabinete do lorde chanceler considerava que

era apropriado convidar ao senhor Samuel Gerard de Honolulu para que participasse das festividades -embora fosse das menos cerimoniosas, estava claro que as damas de South Street tinham que ser da mesma opinio. Esqueceram-se de escndalos antigos e vagamente recordados. E, de abrigar certas suspeitas com respeito ao novo emprego de Leda,

as damas passaram a manifestar sua admirao para ela e os nobres com os que se

relacionava, e a senhora Wrotham pensou que deveria haver ficado o gorro parisiense, em lugar de cobrir-se com o de renda, que era de segunda categoria, e solicitou o perdo de Leda por no haver-se lembrado daquela amostra de respeito. Leda lhe suplicou que no lhe emprestasse nem um momento de

ateno ao detalhe, mas a anci dama estava realmente desgostada, e expressou vrias vezes sua esperana de que Leda no pensasse que era uma falta de estilo considervel de sua parte, e que desejava que fosse de novo de visita a semana seguinte para que todo se fizesse de maneira correta e

ela tivesse tempo para lhe pedir cozinheira que preparasse os pastis de limo especiais em honra da ocasio. Leda partiu rodeada por uma nuvem de parabns que se converteram em um autntico momento de glria quando as damas se deram conta de que a carruagem que a esperava

porta tinha sido proporcionado pelo senhor Gerard. Durante apenas um segundo, a senhorita Lovatt franziu um pouco o cenho e no se sentiu muito segura de que fosse muito correto que se visse a Leda em um carro propriedade de um cavalheiro solteiro; mas, depois de refletir um pouco, convenceu-se de que

era uma carruagem com adornos muito pouco chamativos, apenas uma fina e discreta banda de pintura dourada em torno das rodas, e com um lacaio junto ao chofer, ambos com cartolas reluzentes e com as mos enluvadas de branco, e de que, em realidade, resultava impossvel ver nada estranho naquilo. Pareceu-lhe um

ato de respeito absoluto pr uma carruagem a disposio de sua secretria. Estava segura de que o senhor Gerard era um cavalheiro dos ps cabea. Em que pese a que Leda, ao ser ntima das damas de South Street, tinha prolongado sua visita um pouco mais do quarto de

hora, que era o adequado, ainda era muito cedo quando chegou ao Morrow House. Sheppard lhe informou que o senhor Gerard estava ainda ocupado com seus assuntos em seus prprios aposentos. No transcurso dos ltimos dias, Leda tinha sido consciente de que seu chefe passava cada vez mais tempo em seus aposentos,

dedicado a assuntos cuja natureza lhe resultava sombria, embora estivesse claro que ela era a nica que se sentia intrigada por aquela circunstncia. Mas claro, bem pensado, havia muitas coisas no senhor Gerard que a enchiam de curiosidade, recordouse a si mesmo com severidade. Tinha-lhe dado ao Sheppard o

recado de que queria que ela o esperasse na biblioteca. Leda, obediente, dirigiu-se ao lugar, depois de aceitar o oferecimento que lhe fez Sheppard de uma taa de ch. Sabia por experincia que a bandeja deveria transbordar de massas, emparedados, po-doces e nata, coisa que no era muito elegante, mas, depois de

ter acontecido hora do almoo em meio da distinguida escassez de South Street, Leda se sentia disposta a ser vulgar. Pensou que com seu primeiro salrio, que receberia na segunda-feira, poderia enviar ao South Street uma cesta repleta de excelentes comestveis da seo de ultramarinos dos armazns Harrods. Talvez

inclusive pudesse convidar s damas para jantar em um pequeno reservado do hotel

Claridge, se que conseguia convencer as de que fossem a dito estabelecimento. Antes da chegada do ch, Leda refletiu sobre a reunio na biblioteca com o senhor Gerard, e abriu as trs portas que havia na estadia. A ele no ia gostar de lhe; no lhe cabia dvida

de que insistiria nas fechar, mas Leda estava decidida pelo menos a tent-lo. Ficou um momento contemplando o vazio salo de baile, admirando as deliciosas cornijas e os enormes abajures de aranha. Aquela estadia era famosa por ser a melhor decoradora de toda Mayfair. Aos maravilhosos adornos dourados e de cristal, somavam-se

uns altos suportes de vasos cheios de orqudeas naturais colocados entre as janelas, com flores em tons amarelos e dourados que ressaltavam contra as paredes enteladas com damasco vermelho. Leda se imaginou uma valsa, os vestidos girando em um torvelinho de cores enquanto as damas sustentavam as caudas sobre seus enluvados braos;

os cavalheiros esplndidos com seus trajes escuros. Ela no sabia danar a valsa, mas tinha visto faz-lo em uma ocasio, e imaginava que dar voltas sobre o cho ao ritmo cadencioso da msica tinha que produzir uma sensao do mais agradvel. Sem poder evit-lo, imaginou danando com o senhor Gerard,

e se deu a volta envergonhada de si mesmo. Apareceu um dos lacaios com o ch, e Leda voltou para a biblioteca e tomou assento em uma cadeira de respaldo alto de falso bambu. Tinha levado com ela um exemplar do Illustrated News. Se tivesse tido tempo, e valor para faz-lo, teria

ido aos escritrios do Teme e teria pedido ver os exemplares arquivados fazia quarenta anos, mas sua audcia no estava ao nvel de sua curiosidade. E, depois de tudo, era um prazer agradvel e ao que no se podia fazer nenhuma recriminao, aquele de beber uma taa de ch e mastigar pensativa

uma massa enquanto lia as ltimas informaes sobre o jubileu. J tinha transcorrido mais da metade da semana de festejos; havia uma srie de atos programados para o dia seguinte, e ficava o ch no jardim de palcio na sexta-feira. Leda leu com particular interesse os detalhes previstos do acontecimento, pois agora

sabia que o senhor Gerard tinha sido convidado, em que pese a que no poderia assistir. O corao lhe deu um forte tombo quando viu os titulares da segunda plaina: Encontrada a espada japonesa. Baixo eles havia um ttulo adicional que rezava: O ladro ainda anda solto. Enquanto o lia

com uma concentrao tal que o fazia franzir o cenho, viu com claridade que no tinham progredido absolutamente na identificao do delinqente, ou ao menos no tinham proporcionado aos reprteres nenhuma informao que apontasse nessa direo. A espada tinha sido localizada por um agente imobilirio durante uma inspeo rotineira a uma casa

vazia do Richmond, a muitos quilmetros de distncia do Bermondsey, para p-la em aluguel. Agora que se recuperaram todos os bens roubados, ouviu-se dizer no Scotland Yard a uma fonte bem informada que a investigao policial poderia interromper-se temporalmente, j que os agentes estavam sobrecarregados de trabalho ao ter que realizar servios

extras durante o

jubileu. O resumo do estranho caso no parecia ir mais frente do fechamento de umas quantas casas cujas srdidas atividades no mereciam nem sequer a m fama que lhes daria ser descritas em um jornal. O corpo diplomtico se ocupava de acalmar alguns alvoroados nimos, e dava a impresso de

que aquela srie de estranhos furtos ia caminho de cair no esquecimento da imprensa. Estava to imersa no assunto que solo se deu conta de que soavam vozes no salo de baile quando lhe chegou a de lady Ashland atravs da porta aberta, em tom alto e cheia de consternao.

Que tem feito o que? perguntou a dama, como se no tivesse ouvido bem a seu informador. Alguma caracterstica acstica do grande salo de baile lhe levou o eco do rudo dos passos de lorde Ashland e sua voz mais baixa com a mesma claridade que a de

sua esposa. Pediu-me permisso para cortejar ao Kai. Foi assim como o expressou, sabe? De maneira encantadoramente antiquada, em minha opinio. J conhece o Samuel. Ai, Meu deus. Sabia que ia acontecer -disse lady Ashland. Faz anos que o vejo vir. No te agrada? A voz

de seu marido soou mais suave e um tanto surpreendida. O que lhe h dito? exigiu ela. Disse-lhe que contava com meu beneplcito para fazer o que desejasse, o que outra coisa Se interrompeu para ouvir a afogada exclamao de lady Ashland. No imaginei que voc poria objees.

Leda girou a cabea. Atravs do bordo do aberto vigamento de um biombo japons, alcanou a ver o reflexo de lady Ashland no grande espelho sobre o suporte. Levou a mo boca, como se queria frear uma corrente de protestos. Quando seu marido alargou o brao e lhe ps

a mo no ombro, ela negou com a cabea e se lanou a seus braos. Leda se deu conta horrorizada de que a dama estava soluando. Sabia que seu dever era ir-se dali. Que aquilo no devia escut-lo. Mas continuou ali em silncio. No sabia que

te foste sentir assim -murmurou lorde Ashland, acariciando o cabelo de sua esposa, afundando os dedos naquela cabeleira escura, sem que parecesse lhe importar que se soltasse e lhe casse sobre as mos. Tess, pelo lugar de onde veio? Lady Ashland se apartou e negou com a cabea.

No! Moveu a cabea com mais veemncia ainda. No! Crie que seria capaz jamais, na vida, de reprovar-lhe No Kai a que me preocupa. Vai fer-lo. No o far intencionadamente, mas o destruir. Romper-o em mil pedaos. Ela muito jovem; jamais entenderia o que estava fazendo Jamais poder entender

o que aconteceu! Em sua voz havia uma nota de pnico, mas seu marido no discutiu aquelas acusaes to fantsticas contra a filha de ambos. Abraou-a de novo e a balanou em seus braos enquanto murmurava:

Tess, Tess minha bela Tess. Amo-te mais que a minha vida. Eu queria que ele fosse feliz -disse ela com voz entrecortada, apoiando a cabea em seu ombro e apertando-o com fora. Sei. Lhe acariciava com a mo todas as costas. Sei. Se o tivesse

visto. O rosto dela se desencaixou, e ficou de novo a chorar. Ai, se o tivesse visto Meu valente Tess Com que freqncia pensa naquilo? s vezes -respondeu com voz dbil. Escute-me. Apartou-a um pouco e lhe retirou o cabelo das tmporas. Cada vez que

pense nisso, vem mim. Esteja onde esteja. Faa o que faa isso no importa. Vem e te abrace a mim. Ela aspirou forte e assentiu. Promete-o? Lady Ashland ps as mos a ambos os lados de seu rosto e o contemplou como se fosse um pouco de valor incalculvel. Sempre

irei a seu lado. Sim, senhor -disse ele com severidade. Ela sorriu atravs das lgrimas. Sim, meu capito. Agarrou-lhe as mos e as baixou sem soltar as de entre as suas. No podemos forar ao Samuel a ser feliz, meu amor. Fizemos

todo o possvel por ele. sua vida. Lady Ashland inclinou a cabea. Oxal no lhe tivesse dado seu consentimento. Tess como poderia no faz-lo? Embora tivesse sabido o que sente no h maneira de que pudesse lhe dizer que no lhe permito pensar em casar-se

com o Kai. Dissesse-o como o dissesse, e expor as razes que expor sabe que no ficaria outro remdio que pensar Que no o consideramos o suficientemente bom -terminou ela, com a voz to apagada que a Leda custou trabalho entend-la. Pior ainda. Deus, muito pior que isso.

Somos os nicos que sabemos. Somos os que podemos feri-lo com solo uma palavra especialmente voc. Muito especialmente voc, Tess. Ela assentiu com um leve soluo. Se voc lhe disser que no pensa em sua filha, humilhar-o como jamais poderia faz-lo Kai. Sim Por isso nunca

-Fez um gesto de impotncia. Faz muito tempo que o vejo, que sei; mas jamais tive valor para fazer nada. Quo nico queria era que no ocorresse. Desejava que acontecesse algo, que outra se apaixonasse por ele Se merece a algum que seja capaz de compreender, e seguir querendo-o, mas Kai -Uniu

as mos com fora. Eu no trocaria nem um cabelo de sua cabea, mas to jovem e to despreocupada O trata como se Nem sequer consciente da forma em que a olhe. Far-se maior. E mais sbia, esperemos.

Muito rpido. Ai, muito rpido. E no com a velocidade suficiente. separou-se de seu marido. No com a rapidez que necessita Samuel. um homem feito -disse lorde Ashland com querida. Se lhe diz que no, no crie que o superar? Pelo menos, Kai ignora por completo seus

origens. No ter que perguntar-se se for essa a razo de seu rechao. Crie que no o faria? Sua esposa soava muito triste. Pensa que no fundo de seu corao no acredita que qualquer que o olhe capaz de adivinh-lo? Tess Nunca o esqueceu. No

o encontrei o bastante logo. Eu queria que ele o esquecesse. Tomou a mo de novo e ficou com a vista cravada nela, cobrindo-a com as suas. Voc no o esqueceu. No. E o que me passou com o Stephen durou apenas uns meses em uma

fria habitao No foi nada comparado com o que Samuel teve que suportar durante anos. No era mais que um menino -A voz lhe quebrou. Um menino to pequeno Agora j no um menino, meu amor. Converteu-se em um autntico homem. Ela se voltou para a janela

e ficou em silncio. Lorde Ashland ficou as suas costas e a rodeou com os braos. Ficaram ali juntos com a ltima luz da tarde derramando-se sobre eles: uma mulher com o brilho das lgrimas em seu rosto, um homem tranqilo e fiel, que no lhe ofereceu nenhuma esperana nem soluo, mas

que estava atrs dela, firme, para que apoiasse nele suas costas, e a abraava com fora. H-dito algo ao Kai? perguntou ela. No. No a vi. No o diga. Isso no trocar nada, meu amor. Por favor -lhe rogou sua esposa.

Ele agarrou seu cabelo solto e o fez deslizar seus dedos. No lhe direi nada. Ele no me pediu que o faa. Lady Ashland, sem deixar de olhar pela janela, recostou-se contra ele. Deixa as plantas ao jardineiro, que se ele encarregue das regar.

Lorde Ashland a fez d-la volta e olh-lo cara. Vem dar um passeio comigo. Ela se secou os olhos. Com este aspecto? Em Londres? Lorde Ashland lhe ofereceu um leno. Pois nesse caso vamos encerrar-nos em nossa habitao. Saltaremonos o jantar

e provocaremos um escndalo. Acredito que o pessoal se est voltando muito indiferente ante nossas excentricidades. Lady Ashland fez um rudo muito peculiar; de repente, Leda se deu conta de que era uma risada chorosa e afogada.

Comea a me invadir um desejo imperioso de fazer algo extravagante -disse seu marido. Eu gostaria de verte esfolar algo repugnante. Pode que um lagarto. Ou uma serpente. Pegou-lhe um empurro. A ti. Ele a agarrou pela cintura e colocou o rosto na curva de

seu ombro. Os olhos de Leda se abriram de par em par quando viu o que ele fazia com as mos. Lady Ashland no deu amostras de estar absolutamente escandalizada, como caberia esperar. Jogou a cabea um pouco para trs, e a angstia de seu rosto comeou a relaxar-se e

a converter-se em um pouco completamente distinto. Esquea a cama -sussurrou lorde Ashland. Comportemos-nos como uns selvagens no salo de baile. E no havia dvida de que a isso se estava dedicando. Leda fechou os olhos com fora e os abriu de novo, e descobriu que de verdade estava

desabotoando o suti de sua esposa. Gryf -protestou lady Ashland sem muita convico. As portas Leda se agachou imediatamente at ficar altura da cadeira, que ficava oculta depois da parte entupida do biombo, para ouvir os passos decididos dele aproximar-se da porta da biblioteca. Esta se fechou

com estrondo, e um momento depois ouviu girar a chave na fechadura. Cobriu a boca com a mo. Da porta aberta ao corredor chegou o rudo de outro golpe, e a outra entrada ao salo de baile ficou fechada com chave. Leda permaneceu imvel, completamente escandalizada e cheia de curiosidade

benvola. Ainda estava ali, desabada sobre a cadeira e com a mo sobre a boca, quando apareceu o senhor Gerard. Endireitou-se de repente e saltou do assento com ar culpado. Ele se apoiou nas muletas e lhe dirigiu um olhar de estranheza. Assustei-a?

No, o que vai! Solo estava lendo o jornal. Ele arqueou uma sobrancelha. Bom, estava-o -disse Leda fazendo ranger as folhas com a mo. Voc no me deu outras instrues. Ouviu-se um rudo do outro lado da porta da biblioteca. Leda, horrorizada, olhou para ali.

A fechadura deu um estalo, mas, para imenso alvio de Leda, a porta continuou fechada, e depois de uns momentos se ouviu o rumor distante de vozes suaves e de passos no corredor. Sabia que seu rosto estava de cor escarlate. Escondendo a admiradores secretos? perguntou ele.

Leda adotou uma postura digna. Acredito que queria que estivesse aqui ao seu dispor, no assim, senhor Gerard?

Ele alargou uma muleta e fechou a porta a suas costas. Fechamento a outra, quer? Leda fez uma careta de desaprovao, mas ele ficou ali espera. Com um suspiro, Leda se levantou e obedeceu. Falei com lorde Gryphon -disse ele, quando Leda voltou para

seu lado. Ela resistiu o impulso de lhe soltar: J sei. Em seu lugar, aproximouse da escrivania e agarrou seu caderno. Em tal caso, podemos tachar isso da lista. Abriu o caderno e se sentou. Estive meditando qual deveria ser o seguinte passo, mas me temo que

sua leso seja um impedimento. No pode convidar lady Catherine a ir ver os quadros da Royal Academy, nem a ir ao parque a montar a cavalo em sua companhia. Ele apoiou as costas na porta. No sou um invlido. Estou segura de que se considera

capacitado para poder percorrer o museu de ponta a ponta pata agarre -disse Leda com aspereza. Mas, possivelmente, no oferea uma imagem muito herica com as muletas. Pelo menos como acompanhante de uma jovem que se apresenta em sociedade pela primeira vez. Essa j no a questo. Vou

ter que partir. Leda levantou os olhos de repente. recebi notcias do Hava. necessrio que retorne. Imediatamente. Com a impresso, lhe fechou a garganta. Ficou olhando-o consternada. Necessitarei um camarote de luxo no primeiro vapor que zarpe. Utilize o telefone para organiz-lo. No

me importa o porto: Nova Iorque ou Washington, me indiferente. E um carro privado para ir ao Liverpool. As comissuras de seus lbios se curvaram. Siga respirando, senhorita toile. Leda tomou uma baforada de ar e o tragou. Olhou para o caderno e escreveu com mo trmula: Camarote

de primeira. Primeiro vapor. Carro privado. Depois, ficou em p entre tremores. Tem descoberto algo a polcia? por isso pelo que tem que partir do pas? No tem nada que ver com isso. Sua voz era tranqila e sem alterao alguma. H uma crise poltica

em Honolulu. Obrigaram ao rei a assinar sua abdicao a favor da partida reformista. Na sexta-feira poro corrente ao Kapiolani e a princesa Lydia. Imagino que tambm retornaro, e tero sorte se encontrarem seu trono intacto. inteirou-se voc antes que elas? Sim. No lhe perguntou

como era isso possvel: algo em seu olhar o impediu. No posso dirigir os assuntos a esta distancia com um governo instvel.

Leda baixou a vista. Sempre tinha sabido que aquilo era muito maravilhoso para durar. Bom -disse com voz apagada, foi uma honra e um prazer trabalhar como sua secretria. Espero que no futuro o encontre igual de satisfatrio. O corao de Leda pegou um salto.

Quer que o acompanhe? No, isso no ser necessrio. Pode ficar aqui. Sumida em uma miscelnea de desiluso e alvio, o nico que lhe ocorreu dizer foi: Aqui? Nesta casa? Ele se encolheu de ombros. Onde esteja a famlia. J

lhe disse que possivelmente se transladem ao Westpark. No se iro tambm de volta ao Hava? Eu posso me encarregar do que ter que fazer. J falei com lorde Gryphon do assunto. Leda recordou as vozes no salo de baile, que no tinham despertado sua ateno

at que se referiram a ele. Mas seguro que no lhes importar? Querem que fique com eles? Ele sorriu ligeiramente. Acredito que a consideram uma espcie de salva-vidas em meio da tormenta social. Ah -disse Leda. Quo nico tem que fazer

continuar como at agora, exceto, uma vez que me tenha partido, ter liberdade para deixar abertas todas as portas da casa. No acredito que seja necessrio quando voc no se encontre aqui replicou resolvida, fortalecida pela idia de ser um salva-vidas em uma tempestade social. Para ouvir

suas palavras, ele pareceu um tanto coibido, pensou Leda. Talvez estivesse exercendo uma influncia benfica sobre ele. Desistiu de mencionar o fato de que lorde e lady Ashland se gostava mais do que parecia decoroso, e que tambm preferiam manter as portas fechadas. Com semelhante modelo ante ele, no era de surpreender

que no tivesse nem idia de como dar bom exemplo aos criados. Dirigiu-lhe um daqueles olhares prateados. O que opinaria voc, senhorita toile, se falasse com lady Catherine antes de partir? No, no deve faz-lo. Leda agarrou o caderno que se deslizava de seu colo. Seria

seria muito precipitado. As arrumou para deter o caderno antes que casse ao cho. Sem penslo, sacudiu-o rapidamente, como se de verdade tivesse cansado ao cho. Rechaaria-me -disse ele com frieza, sem rastro algum de emoo; mas, na maneira em que agarrava as muletas, Leda viu de

repente quo

mesmo lady Ashland tinha visto, descobriu a enorme insegurana que se ocultava atrs daquela fachada impessoal. No que a isso se refere, no o poderia dizer. Leda adotou o tom magistral da senhorita Myrtle, como se tratasse de uma mera questo de etiqueta. Mas, em considerao a natural delicadeza

de uma dama, um cavalheiro no deve p-la em situao embaraosa mostrando-se muito apressado em suas insinuaes. Ele relaxou um pouco as mos sobre as muletas. O ligeiro rastro de um sorriso apareceu de novo em seu rosto. Nem sequer em uma emergncia? No se vai

voc guerra, senhor Gerard -replicou Leda. Confiamos em que nos devolvam isso vivo e inclume. No acredito que resolver assuntos inesperados possa considerar-se com justia uma emergncia. Ele inclinou a cabea. Sem dvida, como sempre, tem voc razo. Neste caso, coincido com voc -disse Leda

com modstia. Com o devido respeito. H outra coisa -disse ele, se acessar a me ajudar. Agradar-me lhe ser til no que possa. Estupendo. Jogou a cabea para trs, apoiou-a na porta e a olhou com os olhos entrecerrados. Seu olhar brilhante fez que Leda se

arrependesse imediatamente de ter aceitado com tanta facilidade. H certo objeto que tenho que recolher de sua antiga habitao antes de ir murmurou. Esta tarde, senhorita toile, voc e eu iremos busc-lo. 18 A Casa do Sol Hava, 1882 Diziam que Haleakala estava

a trs mil metros de altura sobre o nvel do mar. Dez mil rios se juntam no oceano. Uma inteno autntica derrotar a dez mil homens. S o vento chegava at ali, o vento e as nuvens que penetravam atravs de uma enorme brecha nas rochas

que rodeavam as paredes da cratera. As brumas se deslizavam silenciosas at o interior da Casa do Sol e apagavam as grandes extenses de cascalho e cinza, as colinas carbonizadas e o nu horizonte. As nuvens se acumulavam, ferviam e se dissolviam. Samuel e Dojun levavam meio-dia caminhando rodeados por aquela extenso

fantstica, e ainda as longnquas rochas se viam remotas e claras, como muitas coisas: nem mais prximas nem mais distantes do que tinham parecido ao princpio do esforo. Conta os ltimos quinze quilmetros de um trajeto de cento e cinqenta como se fossem a metade do caminho. Samuel

no fez perguntas. Nunca tinha estado ali antes. Nem tampouco, que ele soubesse, tinha-o feito Dojun. Ficava a dois dias de viagem de Honolulu: um dia no vapor que conectava as ilhas at chegar ao

Maui, outro para subir montanha acima atravs de campos de canos e um bosque nebuloso e, depois, alm da fileira de rvores at chegar ao bordo da monumental cratera. O ar era escasso e produzia uma dor seca nos pulmes. Um silncio desconhecido mantinha toda vida em suspense, e inclusive as

disseminadas plantas eram como estranhos crculos de estrelas de gelo prateado com ncleos que desprendiam uma suave luz, como se as folhas internas tivessem acumulado luz durante o dia e a refletissem sobre si mesmos, at adquirir uma intensidade metlica. Ali, onde no havia ningum para v-lo, Dojun levava a

vista uma espada dentro de uma larga vagem. Por prprio costume, Samuel preferia uma faca menos evidente, embora tivesse treinado no uso da espada como arma e como ferramenta para abrir e cortar, inclusive como apoio adequado para dar impulso extra em uma escalada. Sabia dos esconderijos secretos no interior da enganosa

vagem, ao igual aos havia na capa de sua faca, cheios de p cegador e de veneno. Descanso -disse Dojun, detendo-se o p de larga ladeira que levava at a boca redonda de um cone de cinza. Tinham estado seguindo um atalho de ferradura em curva que atravessava

aquele panorama de desolao, mas de sbito Dojun o abandonou, e ficou a caminhar sobre os lances de cascalho que, sem interrupo, conduziam cpula. Samuel permaneceu imvel e em alerta. Conforme passavam os minutos, a silueta de Dojun se ia fazendo cada vez mais diminuta; o cone de cinza,

em perspectiva, ia aumentando de tamanho at que se fez enorme e Dojun no era mais que um ponto escuro que se movia ladeira acima. Ao chegar ao bordo cncavo, desapareceu. O silncio era como uma presena fsica, um zumbido nos ouvidos de Samuel. Cada vez que movia os ps,

ampliada-a chamin de pedra dava um forte rangido. Aquele lugar confundia os sentidos, fazia que as coisas pequenas parecessem grandes e que as enormes adquirissem um tamanho insignificante. Saboreou aquela espcie de nada circundante. O espao vazio, o tremendo isolamento davam a seu corao uma trgua de preocupaes que no

era consciente de ter tido. Alegrou-se inclusive de que Dojun o tivesse deixado. Estava completamente a salvo; ali no havia arma que pudesse alcan-lo, nem sentimento de vergonha que se apoderasse dele. Ficou de joelhos, e esperou. Quando as nuvens descenderam, o frio se tornou glacial. Fazia muitos anos que

no sentia aquele frio. Por primeira vez em muito tempo, recordou estadias glidas e gua geada, as mos inchadas por sua causa e as marcas nas bonecas ardidas pelo frio no ponto onde ele havia oposto resistncia s ligaduras que o imobilizavam. No o tinha feito para escapar, pois jamais lhe tinha

passado pela mente a idia da fuga; simplesmente se tinha resistido cada vez que o golpeavam ou o tocavam, porque era algo que no podia evitar, e por isso tinha as bonecas descarnadas.

Recordava a alguns que no tinham podido sobreviver, que adoeceram e desapareceram, que gritaram at que algum se fartou de ouvi-los. Ele tinha tido mais resistncia, mas no tinha sido o suficientemente forte, nem o suficientemente inteligente para dar-se conta de que a vida podia ser distinta. Lady Tess

o tinha feito por ele, tinha-o liberado. E agora estava ali, respirando o ar limpo e estril das alturas: limpo, vazio e sem mcula; at as cinzas sob seus ps eram puras. As arestas da cor do bano reluziam, cheias de fealdade e de beleza de uma vez, como a cratera vulcnica

que as tinha engendrado. Estendeu uma parte de pano e recolheu um punhado de cinzas para levar-lhe a ela de presente. Enquanto atava o tecido, teve a sensao de que a escurido descendia sobre ele. O mundo pareceu desabar-se sobre si mesmo; Samuel rodou para um lado enquanto

o ao cortava o ar e um assobio agudo ressonava junto a seu ouvido. A espada descendeu como um relmpago quando ele a esquivou, com uma fora desatada que atravessou o espao sem hesitao riscando um arco mortal; a ponta se fincou no cho e abriu uma brecha de seis centmetros na

cinza, em que ficou oculta. Dojun soltou ambas as mos do punho e a espada ficou cravada na terra. Samuel ficou em p com equilbrio, imerso em uma sensao de perigo; quando Dojun lhe aproximou, a sombra pareceu afastar-se. Samuel pegou um salto para evitar a mo que

descendia sobre seu pescoo, levantou as bonecas unidas e evitou a patada que chegou a seguir e cujo objetivo era romper ossos. Os golpes choveram sobre ele um aps o outro; Samuel flutuava nas sombras, fugindo, esquivando, com a mente em branco, atnito ante a situao: Dojun arremetia contra ele, sem pausa.

Cada um de seus movimentos era intenso e letal e sua malvola inteno projetava uma sombra escura antes de golpear. Samuel no devolveu os ataques; ao final se limitou a retorcer-se e se inclinou ante a sombra, e ofereceu o ombro como o convidando quando Dojun irrompeu em seu espao,

este golpeou o cho com um p e aceitou o convite, concentrando todas suas foras em um assalto que o fez cair no lugar que antes tinha ocupado Samuel, passando por cima de seu ombro, como se tivesse sido vtima de um empurro, em que pese a que Samuel em nenhum momento

o tocou. Dojun caiu ao cho sobre as mos, rodou por ele, levantou-se como movido por uma mola em uma parte do terreno iluminada por um sol cinzento, e a sombra se esfumou entre as brumas como se jamais tivesse existido. Samuel, ofegante, ficou em p e o

olhou convencido de que a terra se rachou, o sol se fez cinzas e o mar convertido em rida rocha: Dojun tinha quebrado sua promessa. S? disse Dojun entre grunhidos, com os braos em jarras. Fazer promessa a ti. No pegar a Samuel-san, n?

Samuel torceu os lbios. Via pela extremidade do olho a espada com a ponta cravada na terra, no lugar exato onde tinha estado sentado. Bode queria lhe gritar. Eu confiava em ti. Dojun se encolheu de ombros como se Samuel tivesse falado em voz alta. Posto

a prova. Duras provas. No poder. Samuel encheu os pulmes de ar puro e ligeiro. Recordava a promessa de Dojun como se estivesse gravada em um muro em sua mente. Prometo-lhe isso, nunca te atacarei a propsito por nenhum motivo. Dojun tinha tentado atac-lo.

E no o tinha conseguido. Tinha-o posto a prova. Posto a prova. Duras provas. E tinha fracassado. Samuel levantou os olhos com incredulidade ao dar-se conta da verdade. No o conseguiu -disse lentamente. Sabia que no o conseguiria. Voc mais jovem, n?

Dojun tambm tinha dificuldades para respirar. Tem pequena vantagem. Samuel apertou os dentes e sorveu ar fresco entre eles. Descobriu que estava renda-se. Jogou a cabea atrs e soltou uma gargalhada silenciosa para o cu. Voc louco agora? perguntou Dojun zangado. Acreditar ser j homem nmero um?

Mas estava sorridente ao diz-lo. Aproximou-se e atirou da espada para extra-la do cho. Depois olhou a ambos os lados e ao Samuel. Saber boa cano, Samuel-san. Eu afortunado, sim? Se esta espada te matar, o que fazer eu? Poderia hav-lo matado. Aquele movimento que cortou o

ar no levava freio. Dojun falou em seu prprio idioma. Nos sales de treinamento se realizam provas. H movimentos e seqncias que lhe ensinam. Est o kyujutsu, que a arte do arco e a flecha. Est o jiujutsu, a arte de no opor resistncia. H tambm o

kenjutsu, a arte da espada. Est o primeiro do, o segundo do, o terceiro do: so os nveis que ter que ir subindo na escala. Embainhou a espada. A arte que eu te ensino no tem nveis. No conta com salo para treinar-se. a vida ou morte. Essa a nica

prova. O senhor Gerard era dono de um autntico talento para conseguir o que se propunha. Ante o olhar de Leda, converteu-se de repente no invlido mais contumaz: tratou com brutalidade e mau humor ao Sheppard quando o mordomo apareceu atrs de sua chamada, queixou-se de que lhe doa a

perna, recusou tomar a medicao que o doutor tinha deixado para ele, e insistiu em que o que precisava era ar fresco e exerccio.

Aquilo desencadeou uma pequena crise, no curso da qual rechaou de forma mesquinha, uma atrs de outra, as propostas de abrir uma janela, de tirar uma cadeira a terrao que dominava Park Lane, de sentar-se em um banco do jardim, e, por fim, de ir ao carro aberto a dar um

pausado passeio pelo parque. Posto que nos ltimos trs dias se dedicassem a andar de um lado a outro pela casa, ningum foi capaz de convencer o de que no podia fazer o mesmo pela rua sem problema algum. Ele queria lhe pedir a lady Catherine que o acompanhasse. Sheppard

murmurou que a dama e seu irmo tinham sado a montar em bicicleta com um grupo de jovens damas e cavalheiros. Enviou-se uma nota a lady Ashland, em qualquer lugar que se encontrasse nesse momento na casa, e sua resposta foi que em nenhum caso se emprestaria a uma tolice semelhante como

a de ir passeio ao parque com o Samuel. Assim que o senhor Gerard olhou a Leda com o cenho franzido e anunciou que iria com ela; e que no, que no necessitava a companhia de um lacaio nem de uma donzela, nem utilizar uma maldita cadeira de rodas, que, Por Deus

bendito, s tinham que cruzar a rua. O fato de que sua forma de falar se tornou to grosseira pareceu horrorizar de tal forma ao Sheppard que, ao final, acabou por render-se. Leda no considerou apropriado fazer recriminaes a seu chefe em presena dos criados, mas lhe dirigiu um olhar

severo, com as sobrancelhas arqueadas, como fazia a senhorita Myrtle. Alm da leso que ele sofria, no lhe parecia o mais decoroso ir passeio pelo parque, sem mais companhia que a de um cavalheiro solteiro. Entretanto, quando expressou sua opinio, obteve como resposta uma expresso de ameaa to evidente que

at o mesmo Sheppard se viu na tesitura de dizer que sim, que talvez a senhorita toile pudesse encarregar-se de cuidar dele dado o curto trajeto proposto. Assim Leda e o senhor Gerard saram de passeio ao parque. Entraram por uma das portas, com o senhor Gerard movendo-se com agilidade

com as muletas, e saram pela seguinte, onde ele solicitou uma das cadeiras de posta de quatro rodas que ali esperavam. Foi ento quando Leda se deu conta de que aquilo no tinha sido mais que uma atuao, que ele no tinha nenhuma inteno de dar um passeio. Sumida em

uma sensao de iminente desastre, ouviu-lhe dar instrues ao chofer. A velha carruagem avanou dando tombos pelo Piccadilly, evitou a multido que se amontoava ante o palcio do Buckingham, e estralou entre o trfico do Strand. Ao cruzar a ponte, o familiar aroma a vinagre e a rio assaltaram o olfato de

Leda, mais intensos inclusive que o aroma de tabaco e suor que impregnava o interior do carro. O senhor Gerard a observava. Ela via seu rosto, perfilado pela dbil luz que se filtrava pelo sujo guich e que se intensificou at cobrir seu rosto de tons dourados quando a carruagem

atravessou uma intercesso em que o sol da tarde reluzia entre os edifcios.

No lhe agrada vir aqui -disse ele, rompendo o silncio no que estavam sumidos. Leda uniu as pontas dos dedos enluvados. A verdade que no. Ele girou a cabea e olhou pelo guich. A luz caa de pleno sobre seu rosto, e o iluminava

com labaredas etreas de glido fogo. Sinto-o -disse ele, mas a necessito. Leda no queria que lhe pedisse perdo. Preferia com muito que tivesse necessidade dela. Ele atirou da correia de couro para que o carro se detivesse. Quando a carruagem diminuiu o passo at frear,

a expresso de seu rosto pareceu inquisitiva ao mesmo tempo em que desafiadora; Leda olhou a um lado e descobriu que estavam ante a delegacia de polcia de polcia. Agarrou-se com fora ao bordo do assento quando o veculo, depois de um balano, deteve-se por completo. Lista? perguntou ele.

Os dedos de Leda se cravaram com fora na almofada. O que devo fazer? Seguir respirando -disse ele com um meio sorriso, e fazer o que considerar oportuno. No tem nenhum plano? Como poderia? Pergunta-a foi feita com suavidade. No sei o que

vai acontecer. Mas certamente -Leda abriu as mos, nervosa, e as voltou a fechar. Pense em ns dois como se fssemos dois gatos -disse ele. Ou talvez dois tigres. Possivelmente dois gatos domsticos. No importa. Quando chegar o momento, saberemos. Senhor Gerard -sussurrou Leda, est voc

mais louco que uma cabra. Ela desejou que tivesse elegido outro lugar para abandonar o carro de aluguel. Mas era bvio que, naquele bairro, o melhor lugar para que ficasse a esper-los era justo frente delegacia de polcia. O senhor Gerard no pediu desculpas nem ofereceu explicaes quando o

chofer abriu a porta; limitou-se a lhe dar instrues para que os esperasse, com a segurana e aprumo tpicos das classes dominantes. Se o que gostava de era estar naquele lugar, trazia-lhe sem cuidado o que o chofer pensasse. Entretanto, ficou horrorizada quando entregou um bilhete ao homem e

o mandou delegacia de polcia a procurar um agente. Ela tinha alimentado a esperana de poder sair do carro pelo outro lado sem que a vissem, mas o senhor Gerard se inclinava para diante, sujeitava a portinhola e o fazia gestos para que sasse. Leda saiu rua e, ao

levantar a vista, encontrou-se ante o rosto atnito do sargento MacDonald. Senhorita! exclamou, enquanto se aproximava para ajudar a subir calada. Ai, senhorita, que alegria v-la! Temamo-nos que voc -Se

interrompeu, e a surpresa e o alvio deram passo a um instante de perplexidade. Soltou o brao de Leda como se lhe queimasse. Boa tarde, sargento -saudou o senhor Gerard, que se afirmou no bolia com a perna boa e, apoiando-se nas muletas, baixou sem nenhuma dificuldade ao cho.

O chofer se adiantou para ajud-lo, mas foi um gesto intil, j que o cavalheiro j estava sobre a calada e lhe tendia a mo polcia. meu novo chefe -disse Leda imediatamente. Samuel Gerard -disse ele, fazendo caso omisso do escuro rubor que cobria

o rosto do sargento MacDonald, e estreitou com fora a mo do resistente polcia. De Honolulu. Nas ilhas Sandwich. Com residncia temporria em Park Lane. E eu sou a secretria do senhor Gerard -acrescentou Leda, ansiosa de que o sargento no se formasse uma idia equivocada. Mas, de

qualquer forma, ele deu a impresso de que sim que a formava. Leda viu como seu rosto mudava de cor e as sardas se faziam mais evidentes em sua pele. Secretria -repetiu o policial em tom gelado, sem apartar a vista do senhor Gerard. Soube voc fazer muito bem as

coisas. Aquelas palavras poderiam ter sido agradveis, mas o tom em que as pronunciou fez que resultassem justamente o contrrio. Leda tragou ar desgostosa; mas, antes que pudesse dizer nada, o senhor Gerard posou a mo com firmeza no cotovelo da jovem. A senhorita toile tem que recolher

alguns de seus pertences na casa de hspedes. E pensa que poderia haver alguma disputa com a patroa e seu valento por alguns objetos de valor. No quereria incomod-lo, mas, como pode ver, eu no me encontro em condies de proteg-la como eu gostaria. Pergunto-me se disporia de um momento para nos

acompanhar. O roce de sua mo foi para a Leda como o de um ferro candente. Era bvio que aquele gesto de posse no fazia mais que confirmar as suspeitas do sargento MacDonald. Quase chegou a pensar que sua indignao o empurraria a atacar fisicamente ao senhor Gerard.

Mas as grandes mos do policial s se moveram para enganchar-se no cinturo. No sei, senhor. Terei que falar com o inspetor. Obrigado -disse o senhor Gerard, como se o assunto j estivesse saldado. O sargento nem olhou Leda quando se deu a volta. Nem sequer

se dirigiu a ela. Acredita que estou mentindo! exclamou a jovem, cheia de vergonha e desespero. No a conhece muito bem, no? foi o comentrio do senhor Gerard sem solt-la. Mas acredita Melhor assim. Que o acredite.

OH, Meu Deus! disse Leda com horror ao ver que o inspetor Ruby saa pela grade da delegacia de polcia. De forma instantnea, o senhor Gerard lhe soltou o brao. Tornou-se atrs, e deixou uma distncia decente entre eles. Senhorita toile! A saudao do inspetor

foi muito mais afetuosa; apertou a mo do senhor Gerard e a felicitou por seu novo emprego, como se aquela fosse uma visita do mais normal, estalou a lngua ao ver a leso do senhor Gerard e lhes assegurou que estaria encantado de mandar ao sargento MacDonald com eles para evitar qualquer

problema com a senhora Dawkins; entrava em sua ronda habitual. O prprio inspetor no podia abandonar a delegacia de polcia, mas reteve Leda um momento e lhe apertou a mo enquanto os dois homens punham-se a andar. Senhorita, esta situao no me parece de tudo respeitvel -lhe disse ao ouvido.

Est segura do que faz? Trabalho como secretria do senhor Gerard -replicou ela defensiva. At agora no tenho nada que lhe reprovar. O inspetor seguiu com o olhar aos homens. Sem lugar a dvidas, um homem bonito. Sacudiu a cabea. O sinto pelo pobre

MacDonald, embora me atreveria a dizer que o merece, pela forma em que ficou sentado como um saco e permitiu que a bruxa de sua irm jogasse a voc toda aquela porcaria em cima, e assim o hei dito. Est fora de si desde que voc desapareceu. No acredito que

preocupar-se com meu bem-estar seja assunto que concirna ao sargento MacDonald -disse Leda, empurrada altivez pela meno da senhorita MacDonald. Bom, j pagou por no hav-lo feito. S quero que tome cuidado, senhorita. Eu sei que voc algum de qualidade. No faa nenhuma tolice. Que classe de homem

o que contrata a uma secretria e vai com ela por a em um carro fechado? Uma boa classe de homem. Leda comeava a estar farta de tanta suspeita. Teria-lhe resultado impossvel subir e descer de um carro aberto, por isso tomamos um fechado. O senhor Gerard poderia me

haver deixado vir aqui a tentar recuperar minhas coisas da senhora Dawkins por mim mesma, ou no? Duvido que muitos chefes tomassem tantos aborrecimentos como ele. Claro -disse o inspetor, como se aquilo demonstrasse que estava certo. Claro que muitos no o fariam. Perdoe que seja to direto, senhorita. Nunca

lhe teria falado assim se no pensasse que era importante, mas no se surpreenda se tenta enrol-la. Vejo-o muito provvel, se que ainda no o tem feito. Leda se indignou. Pois eu, muito pelo contrrio, no sou capaz de imaginar nada mais improvvel -disse entre dentes. De

verdade, inspetor, no entendo como pode dizer uma baixeza assim. Asseguro-lhe que uma pessoa excelente, que sente verdadeira devoo por uma rica herdeira que o conhece de toda

a vida. Est a ponto de solicitar sua mo, e duvido muito que albergue pensamentos to sujos em sua mente como muitos neste bairro, que parecem completamente obcecados por essas coisas. Ps-se a andar e, ao momento, deu-se a volta e lhe soltou: Alm disso, tem a perna quebrada!

Isso no supe nenhum problema para um homem que esteja decidido -reps o inspetor Ruby, com a segurana de algum que sabe bem do que est falando. Boa tarde -disse Leda com firmeza, e girou para cruzar a rua, recolhendo a saia para correr detrs de seu chefe.

Dois gatos. Leda no tinha idia do que se esperava que fizesse. Resultava-lhe incrvel que o senhor Gerard tivesse o descaramento de pedir a um policial que os acompanhasse ao cenrio de suas maldades. Chegou a pensar que ao melhor no estava muito bem da cabea, o que lhe fez ter ainda

mais medo, porque agora estava enredada sem remdio nos estratagemas daquele homem. Seria do mais afortunada se no acabava no patbulo. Isso era o que acontecia, sups, quando uma mulher se metia em coisas de homens. Eram muito aventureiros em geral, e jogavam dados a imaginar coisas como se fossem

tigres, ou gatos de ruas ou o que fosse, quando estariam muitssimo melhor sentados em casa com as pernas quebradas apoiadas em tamboretes, descansando tranqilamente enquanto algum lia para eles. Leda tinha boa voz para ler e lhe teria encantado empreg-la nesses misteres. Em vez disso, ouviu que lhe tremia

um pouco a voz quando deu boa tarde senhora Dawkins. De maneira que voltou! A patroa saiu cambaleante da sala para ouvir abrir a porta da casa. Pensei que o faria, senhorita presunosa e trouxe o cavalheiro com voc. Boa tarde, meu senhor. Sua amabilidade desapareceu bruscamente ao ver

que o sargento MacDonald entrava pela porta. Bom, a que vem isto? O policial parecia ainda mais sombrio, e dirigia olhadas acusadoras a Leda pela extremidade do olho. No lhe emprestou ateno. O sargento no era melhor que sua irm, disposto a tirar as concluses mais desprezveis primeira. Leda

se considerou afortunada por ter visto como era em realidade. Mas, de qualquer forma, era humilhante. A senhora Dawkins no havia dito explicitamente que o senhor Gerard a tinha visitado em sua habitao, mas Leda temia que resultasse do mais bvio. A senhorita toile veio a recolher suas

coisas. O senhor Gerard deixou claro com sua atitude que a familiaridade da patroa lhe parecia abusiva. Para ser sincero, quando lhe entregou seu chapu, tratou-a como se fosse algum objeto desagradvel que encontrou na calada, o que fez que o humor de Leda melhorasse um tanto.

Suas coisas! A senhora Dawkins levou a mo ao peito. Pois bem, sinto-o muito, mas a senhorita toile as pegou, partiu daqui e ponto final. No me disse nem palavra sobre suas coisas. As levou todas com ela. Isso no certo! exclamou Leda. No levei nada!

Em tal caso, por que est a habitao mais vazia que a despensa de uma viva, e eu sem cobrar o aluguel? Asseguro-lhe que eu no as peguei. Eu paguei o aluguel -gritou Leda. Estava pago at na sexta-feira. Tem o recibo? perguntou a senhora Dawkins.

Jamais me deu nenhum! obvio que no. Porque voc jamais me pagou, senhorita presunosa. Deveria me haver dado conta do primeiro momento de que voc no era mais que escria. Se tivesse deixado algo, acredito que estaria em meu direito de recuperar as perdas vendendo qualquer porcaria que esqueceu

quando escapuliu de improviso. No o que diz a lei, sargento? O policial encolheu os ombros. Depende. Mas vendeu o espelho e a escova? perguntou Leda com inquietao. S quero o jogo de penteadeira da senhorita Myrtle, com isso me Mandei ao Jem

Smollett que levasse tudo e que tirasse o que pudesse, e no lote no havia nada que valesse dois pinique -grunhiu a senhora Dawkins. Eu no sei nada de um jogo de penteadeira de prata. Sabe que era de prata -interveio o senhor Gerard. Um jogo de penteadeira,

do que outra coisa ia ser? replicou a patroa, zangada. De concha. De marfim. De madeira. E de muitos materiais mais disse ele com tom razovel. Quando o roubou esse homem? Roub-lo! No diga semelhante coisa! Quo nico sei que a garota no me pagou nenhum

aluguel. Cobre isso o que lhe devia? apoiou-se em uma muleta e tirou uma carteira da jaqueta. Estou disposto a lhe pagar o que se deva. Quanto? A senhora Dawkins se inclinou para ele. Vinte xelins semana, para uma dama que entretm a seus pretendentes.

Nunca entretive a nenhum pretendente! Vamos, senhorita, com meus prprios olhos O senhor Gerard interrompeu a patroa. Como j vendeu o jogo de penteadeira, quanto devo subtrair? A dupla papada da senhora Dawkins tremeu quando se dispunha a falar e, imediatamente, titubeou.

Qualquer um podia ver que queria os vinte xelins inteiros, sem que lhes subtrasse nada. Quando seu olhar se cruzou com a do cavalheiro, pareceu perder um pouco de sua audcia. No o recorda? perguntou ele, controlando o tom de sua voz. No mais de dois pinique, como

j hei dito -murmurou a mulher. Tem problemas para fazer as contas, senhora Dawkins? Seu tom, no cabia dvida, era o de um tigre, o de um tigre grande e meio

adormecido que ainda ronronava, mas que se dispunha a atacar em qualquer momento. No eram mais que bagatelas -disse ela, olhando como se estivesse hipnotizada como ele guardava a carteira. Nada de prata autntica. Ele olhou em direo a Leda. Duvido que tenham levado algo

ainda. Suba e olhe. Ah, no, nem pensar. A patroa se exaltou de repente. Como no me pagou, no tem nenhum direito a pr o p em minha escada, senhorita. Paguei-lhe! Pegou voc mesma o dinheiro do mvel do lavabo! O senhor Gerard no participou da

disputa; simplesmente, levantou as muletas at o primeiro degrau e comeou a subir. A senhora Dawkins lhe agarrou o brao e o fez tropear; foi ela que tropeou e caiu para trs, dobrando o corpo com um grito de dor. Ai, meu joelho! Falhou-me o joelho! O senhor

Gerard olhou para trs. Perdoe-me. Eu lhe fiz mal? Ai, Deus! Ajudem-me a sentar! gritou enquanto se agarrava a Leda e ao sargento MacDonald. Os dois levaram-na at uma cadeira da sala, em que desabou com um gemido e um tremor na face coberta de ruge.

O senhor Gerard os seguiu at a porta com as muletas. Pode ser que venha bem um pouco de gua quente -reps. Isso foi o que me recomendou o mdico. Deixe de gua quente -disse o sargento MacDonald com rudeza. J lhe passar. Venha comigo, senhorita,

no posso ficar aqui todo o dia. No tem sentido que voc seja o que suba com a bengala demais, senhor. Leda olhou ao senhor Gerard com impotncia, mas ele se fez a um lado e deixou passar polcia. No lhe agradeceu por seu oferecimento, mas este tampouco

tinha sido feito com muita educao. Senhorita -disse o sargento MacDonald de forma cortante, apartando-se para que Leda passasse diante. Ela recolheu a saia e comeou a subir. Olhou para trs uma vez, atravs dos barrotes do primeiro patamar. O senhor Gerard parecia estar do mais interessado em

uma penugem que tinha nas calas, enquanto o sargento subia com fortes passos atrs dela. Leda chegou porta do sto e revolveu na bolsa tratando de encontrar a chave na tnue luz e introduzi-la na fechadura. O sargento MacDonald se aproximou tanto a suas costas que ela sentiu seu

flego na nuca. Depois de um rangido e um tremor, a porta se abriu. Leda entrou na habitao e a encontrou to nua como tinha afirmado a senhora Dawkins; s ficava ali a cama, a mesa e a cadeira. E agora o que? Tinha desaparecido sua capa, sua

terrina, seu cesto de costura; nada disso tinha importncia, mas perder o espelho e a escova da senhorita Myrtle

E que demnios esperava o senhor Gerard que fizesse ela? O que estava fazendo ali? Tinha suposto que ele tinha suas prprias razes para querer ir em pessoa a sua habitao, mas no se esforou muito em faz-lo. Possivelmente, depois de ter deixado incapacitada senhora Dawkins, queria que Leda tivesse

ao sargento ocupado enquanto ele ia a busca de seu objetivo a algum outro lugar. No posso acredit-lo, senhorita -disse o sargento MacDonald com voz tensa. Ela deu a volta para ele. Eu tampouco. Todas minhas coisas! Importam-me uma mer -A agarrou pelo brao.

Importam-me um nada suas coisas! No posso acreditar que minha irm estivesse certa. Sua irm -repetiu Leda, apartando-se tudo o que a mo de lhe permitia. Eu acreditei que voc era maravilhosa; acreditei que era uma jovem honesta. Tinha o rosto acalorado e a voz cheia de paixo.

Eu esperei. Tratei-a com respeito. Queria me casar com voc! Ela puxou o brao at soltar-se. Eu sou completamente honesta, sargento. E eu gostaria que no falasse dessas coisas comigo. Ele a agarrou em ambos os braos; suas mos a apertavam com tanta fora que lhe

faziam mal. esta a primeira vez? Saiu com homens antes? Solte-me! Sentia o sangue pulsar nas gemas dos dedos pela forma em que a apertava. Retorceu-se tentando liberar-se, mas no o obteve. Mary me advertiu isso. Advertiu-me que voc no era to boa

como aparentava. Mas at que o vi com meus prprios olhos Controle-se! gritou Leda. Deu-lhe um empurro, mas s serviu para que ele a rodeasse com mais fora. O sargento aproximou o rosto ao dela, e Leda se virou para trs, presa no pnico. Poderia ter gritado; pensou

que devia faz-lo, mas se dedicou a empurrar com todas suas foras e tratou de soltar-se, enquanto que ele a apertava cada vez com mais fora e a aproximava mais para si. Sargento! Leda estava ofegante, resistindo e apartando-se todo o possvel dele. Deixe-me ir! Que a deixe

ir! Para que possa partir com ele porque mais bonito que um diabo, e igualmente malvado. Eu conheo os de sua classe. E s mulheres como voc! s de sua classe no lhes importam os sentimentos de um homem feio, verdade que no? Sacudiu-a com fora. O nico que lhes importa,

como disse Mary, o que podem tirar de benefcio. Sargento MacDonald! Leda se removeu at soltar-se. Viu o senhor Gerard na soleira, e deu um grito afogado, mescla de alvio e de vergonha. Ele no disse nada; limitou-se a observar polcia com olhar desapaixonado.

De maneira que quer briga, no? gritou o sargento MacDonald fora de si. Deu um passo em direo ao senhor Gerard, fechando os punhos. Pois a vai ter, senhor elegante, d-me igual que esteja coxo. isso o que quer? Em realidade, no -murmurou o senhor Gerard.

Leda viu com muita claridade ao tigre em seu olhar tranqilo e alerta, aleijado, mas com garras ainda letais. Sentiu um pouco de temor pelo sargento MacDonald, que, ignorante do perigo, equilibrou-se sobre o senhor Gerard e lhe lanou um murro. Deu a impresso de que o senhor Gerard quo

nico fez foi virar-se a um lado. Por um instante, os dois estiveram juntos na soleira, e ao momento o sargento MacDonald cambaleou para trs e teve que agarrar-se ao corrimo para no precipitar-se escada abaixo. O senhor Gerard deu a volta e ficou ali, entre ela e o policial.

Leda ouviu que voltava o sargento MacDonald, e percebeu sua respirao agitada. Esfregou os doloridos braos com as mos e olhou mais frente do senhor Gerard. Eu me teria casado com voc! murmurou o sargento. Contra Mary, e em que pese a tudo! Pergunte a ele o que lhe

oferece! Leda sentiu que lhe tremia a boca com uma mescla de desiluso, lgrimas e nervoso. No, no o teria feito -disse em voz baixa. Nem sequer me defendeu ante sua irm. Quero que se v daqui! Esse homem no mais que escria! Olhe-o, senhorita!

Aos desta classe os distingue a quilmetros de distncia. Olhe-o. Tudo o que rasteiro e vergonhoso, isso o prprio da gente de sua classe. Voc pensa que muito bonito, mas puro lixo. J descobrir o que quer de voc. agarrou-se ao marco da porta e soltou de

repente. Maldita seja voc, senhorita! Malditos sejam os dois! deu a volta e comeou a descer pela escada. O rudo de suas botas ressonou no silncio que deixou atrs dele. O senhor Gerard permaneceu imvel, ainda de cara porta, enquanto os passos do policial se ouviam cada vez mais

longnquos. Quando o golpe da porta de entrada ao fechar-se fez tremer o ar com uma ligeira vibrao, virou-se a volta. Tinha um olhar estranho, perdida, como se por um instante no a reconhecesse. Sua expresso mudou em um abrir e fechar de olhos. Aproximou-se da mesa, subiu nela e

manteve o equilbrio sobre um p, com o joelho dobrado. Logo se ergueu, apartando a perna engessada do bordo, e se estirou para alcanar a viga do teto. Sujeitando-se com ambas as mos, pegou impulso e subiu a ela, sentou-se com uma perna a cada lado da viga, e desceu pelo outro

lado com um movimento rpido e gil. Quando desceu da mesa, Leda viu que levava na mo uma bolsa de feltro alargada e estreita que lhe resultou horrivelmente familiar. Ficou olhando a bolsa, mas no lhe deixou tempo para pensar. Sob a saia -disse com calma, aproximando o objeto.

O que? Ele no respondeu, mas sim a atraiu para si e comeou a dobrar um joelho, enquanto lhe levantava a saia por debaixo das anquinhas. Leda deu um grito, mas conseguiu tampar a boca com a mo. Agarrou a bolsa e apartou a saia. Posso faz-lo

eu -disse entre dentes. Faa o favor, senhor Gerard. Ele se levantou com um olhar que Leda no soube interpretar. Olhou-o com aborrecimento. Ele deu a volta, utilizando o bordo da mesa para apoiar-se e dar uma pernada at alcanar as muletas. A senhora Dawkins gritou algo de abaixo. Leda

levantou as saias com mos trmulas, tratando de uma vez de esconder a espada e de assegurar-se de que o senhor Gerard no estava olhando-a. No o fazia. Limitou-se a agarrar as muletas e comear a descer pela escada com passo tranqilo. Incapaz de conter sua ansiedade, Leda puxou o

cordo e abriu a bolsa. Dentro, o dourado punho da espada refletiu um raio de luz. Levou um susto, consternada. Como era possvel que estivesse ali quando a polcia a tinha encontrado? Era um louco. Um autntico luntico. A toda pressa, deslizou a bolsa atravs da

trama de metal de suas anquinhas e a atou com a corda a sua cintura, no sem um pouco de dificuldade. Ao final, teve que tirar uma luva para poder manipular o cordo. O peso daquele objeto era incmodo, e atou a corda trs vezes por medo de que se soltasse. Ao

dar um passo, a espada lhe golpeou as pernas, e teve que mov-la para um lado e alisar a saia de seda enquanto a senhora Dawkins gritava pelo oco da escada que no ia permitir que fizessem amor diante de seus narizes. Leda se aferrou a saia e se apressou

a dirigir-se escada. O senhor Gerard j tinha chegado abaixo e conversava com a patroa no vestbulo, ao que ela devia ter chegado coxeando. Quando Leda alcanou o primeiro patamar, ele estava inclinado sobre a senhora Dawkins de uma forma que parecia da mais ameaadora; a patroa tomou assento em uma

cadeira que havia mo sem separar os olhos do rosto dele. O senhor Gerard no deixou de falar quando Leda passou ao seu lado, mas ela no teve vontade de deter-se escutar o que estivesse dizendo com aquela voz baixa e inquietante. Leda saiu pela porta, pondo a luva,

e subiu rua acima com passo gil. O senhor vir dentro de um momento -informou Leda ao chofer, que estava ali espera; abriu a portinhola ela mesma, e subiu ao carro pelo lado contrrio delegacia de polcia. Acomodou-se no assento com o duro metal roando a

perna, e puxou freneticamente a saia, tratando de que as pregas cassem sobre a espada com naturalidade, mas a ponta curvada da arma seguia marcada de forma tal que Leda temia que o vulto que formava altura do joelho resultava do mais bvio.

O senhor Gerard apareceu. Depois de introduzir-se sem ajuda na carruagem, o chofer lhe entregou as muletas. Quando a portinhola se fechou, ele se deixou cair sobre o assento, frente a Leda. O carro ps-se a andar com um balano. Leda apoiou o rosto em uma mo, sentindo que

as foras a abandonavam e que ficava to flcida como uma angua mida. Tomou ar vrias vezes com baforadas rtmicas e depois elevou o rosto. Ai, Senhor! Inalou uma vez mais o ar ranoso do carro e o expulsou com fora. Ai, Senhor! O senhor Gerard estava olhando

o vulto que destacava sob sua saia. Leda tratou de esmagar aquela ponta indiscreta, tentando faz-la desaparecer. Acredito que a colocou ao reverso -disse ele com suavidade. Como ia eu saber isso? Puxou uma vez mais da saia. O que vamos fazer com ela? Acreditava que a

polcia a tinha recuperado! bvio que no foi assim. Mas no jornal Sim, um mistrio. Acredito que devem ter feito uma cpia. O porqu no sei. Mas algum decidiu evitar um conflito diplomtico, e fazer a entrega da espada falsa a sua majestade. encolheu

os ombros. No muda as coisas. Consegui o que queria. Bom, tudo isto me resulta muito oriental. O que vamos fazer com ela agora? Sub-la ao seu quarto. H algum lugar onde a possa pr ao que a donzela no v antes da noite? Em meu

quarto! A menos que prefira entregar isso agora. Poderia tentar escond-la bengala, mas no acredito que isso funcionasse muito bem. Leda viu com claridade que no, e tampouco queria ver-se obrigada a levantar a saia e suar para desat-la ali no carro, com ele observando tudo do assento

de em frente. Franziu o cenho aos edifcios que via passar ante o sujo guich. Suponho que caberia sob a mesa da penteadeira. Mas pela manh varrero o cho. Antes, levarei isso. Olhou-o rapidamente. Como? Ele se limitou a fazer aquele ligeiro

gesto com os lbios, que no chegava a ser um sorriso. Parecia remoto, muito distante dela em seus pensamentos, em que pese a encontrar-se a apenas uns centmetros de distncia frente a ela. Leda deu um leve gemido e pressionou com as gemas dos dedos o nariz. Aquele homem era

realmente difcil, e, alm disso, um ladro, e agora se introduziria em seu quarto no meio da noite para recuperar a espada obtida com suas ms artes. Segue-me voc? perguntou ele.

Leda apertou mais com as pontas dos dedos e assentiu. Senhorita toile -disse ele com suavidade, voc uma dama excepcional. A famlia jantava em casa essa noite, e Leda se inteirou de que haveria um lugar para ela na mesa. O senhor Gerard jantou em sua

habitao, depois de declarar que o passeio pelo parque o tinha deixado exausto, o que a Leda pareceu do mais acreditvel. Acomodaram-na a um extremo da mesa, ao lado de lady Ashland. direita do servio da dama havia uma terrina negra e reluzente entre o fino cristal e a

delicada porcelana. Continha um punhado de fragrantes aparas de madeira, sobre as que havia um quadrado de seda negra. No meio do quadrado aparecia um anel de prata sem adorno algum. Lady Ashland no fez nenhum movimento para toc-lo ou examin-lo, mas Leda se deu conta de que posava nele

o olhar vrias vezes quando a conversao tratava dos distrbios em suas ilhas e da partida do senhor Gerard. Quando as damas abandonaram a mesa, lady Ashland agarrou a terrina e o levou com ela; deteve-se no vestbulo para lhes comunicar a sua filha e a Leda que se reuniria com elas

no salo ao cabo de um momento. um dos presentes de Samuel -lhe confiou lady Catherine. um homem do mais irritante. Essas coisas tm sempre um profundo significado, mas eu, por mais que me esprema os miolos, nunca o capto. Mas encantador que o faa. Para a

pobre mame significam muito, sabe? Embora no sejam mais que plumas e partes de tecido e coisas pelo estilo. Eu gosto de lhe dar de presente coisas prticas. Sempre necessita cadernos novos, e os Natais passados economizei meu dinheiro e encarreguei a um marceneiro uma vitrine de cristal para guardar todas estas

amostras. Resultou muito bem. Tenho que pensar o que vou fazer este ano, j que pode ser que as passemos no Westpark. Possivelmente voc possa me ajudar. Leda se alegrou de dedicar-se a uma tarefa to agradvel at que chegou o caf, apareceu lady Ashland e, um pouco mais tarde,

os cavalheiros, momento em que, uma vez mais, a conversao se centrou em temas polticos, repleta de nomes impronunciveis e assuntos complexos que tinham que ver com o comrcio do acar, os tratados e a escassez de mo-de-obra. Leda escutava em silncio. Teria estado disposta a ficar ali at bem entrada a

noite, com a esperana de que, se o senhor Gerard tinha que entrar em sua habitao, fizesse-o enquanto ela estava abaixo, mas, ao final no houve desculpa para ficar mais tempo que lady Ashland e sua filha, que s dez se levantaram para irem cama. A bolsa com a

espada seguia sob a penteadeira de Leda quando voltou para seu quarto. No trocou de roupa, com a firme inteno de ficar sentada e acordada at que ele aparecesse, coisa que lhe parecia em certa forma mais respeitvel que ficar adormecida quando esperava que um homem solteiro aparecesse na habitao.

Acomodando-se em uma macia poltrona, tomou o nico livro que havia na habitao e acariciou o agradvel papel, suave e flexvel, decorado com flores de crisntemos orientais. O livro estava escrito em ingls e no que pareciam ser velhos caracteres chineses que semelhavam pssaros; tinha desenhos de pequenos templos, de navios

e de pessoas, e seu ttulo era Descries e raridades da cultura japonesa explicadas aos ingleses. Era interessante, mas no o bastante para evitar que as plpebras lhe fechassem enquanto avanava a noite e a luz eltrica brilhava sem interrupo sobre ela, muito mais intensa e incmoda para os olhos

que a de gs ou a de uma vela. Quando o Big Ben dava trs lentas badaladas no meio da noite, Leda acabava de ler que a palavra maru significava crculo, realizao completa, e s vezes era um sufixo afetuoso para coisas como folhas de espada de qualidade. Homens, pensou

com ironia, enquanto fechava os olhos para lhes dar um momento de descanso. Refletiu sobre o trmino para crculo, e sobre o anel de prata, e sonolenta pensou: Sei o que o crculo significa: realizao. Significa que voltar. Endireitou-se assustada, e descobriu que a habitao estava s escuras. Por um

momento se sentiu confundida, at que se deu conta de que se ficou adormecida na poltrona. As costas lhe doam. Entrecerrou os olhos, tratando de livrar do sonho que se apoderava deles. Ele devia ter estado ali j e haver partido, e apagado a luz ao sair. Via

muito bem graas luz da rua que se filtrava pela janela, e refletia nela os tons nata plido e os azuis claros do quarto. Levantou-se, pensando em tirar o vestido e ficar a camisola emprestada, para ter ao menos umas horas de sonho. Est acordada? A voz

dele lhe chegou suave; saiu da escurido e deveria lhe haver provocado um susto, mas em lugar disso teve um efeito balsmico, ao lhe resultar familiar imediatamente. Ah -sussurrou, levando a mo ao pescoo. Ainda est voc aqui. Localizou-o quando se moveu; tinha estado bastante perto de sua

cadeira, mas cruzou sem rudo at a janela, e Leda pde ver seu rosto sob a fria luz. Levava sozinho uma das muletas, e na outra mo tinha a bolsa com a espada. Enquanto ela o observava, ele abriu a bolsa, tirou a espada de seu interior e a levantou

de maneira que o punho dourado e a folha laqueada resplandeceram na escurido, e as borlas de bronze lhe caram sobre a mo. Venha a v-la -convidou. Leda se aproximou da janela, atrada pelo silncio da noite e o resplendor perlado da espada. Sob o punho, a guarnio

reluzia com incrustaes de ouro: redemoinhos de nuvens entre os que apareciam a face de um leo ou a de um co chins. Verdade que bela? perguntou ele em voz baixa. Estes arreios tem pelo menos quinhentos anos de antigidade.

Era bela. Ele tocou o punho. Deveria ter uma folha forjada por um professor, com a talha de um drago todo ao longo, ou de um deus da guerra, para o esprito da espada. Leda levantou a vista para ele. Ele agarrou o punho e

a vagem e as separou. Apareceu uma parte de spero ferro, de um palmo e meio de longitude, unido ao punho como um coto de um brao talhado. O que lhe passou? perguntou Leda com surpresa. Foi feita assim. uma kazaritachi, uma espada de cerimnia.

Um presente dedicado a honrar algum templo, imagino. Nunca para ser utilizada. Deslizou o punho em seu stio e a examinou luz da luz. As sombras e a prata lhe dividiam o rosto em distintos planos. Todo esse ouro por fora. E ferro dobrado a marteladas no interior. Repassou com o

dedo a vagem laqueada. Acredita que seu sargento tinha razo? Razo? Com respeito ao que? Ele se limitou a olhar para a rua. O sargento MacDonald um impertinente e tem pssimas maneiras disse Leda. E a prxima vez que o veja, negarei-lhe a saudao.

Em suas conjeturas sobre mim est completamente equivocado. Ele baixou as pestanas. E o que tem que suas conjeturas com respeito a mim? Permito-me duvidar que tenha razo em algo -reps Leda com aspereza. Est claro que um homem bastante estpido. Assustou-a, e

sinto muito que o fizesse. Bom, acredito que serve para distra-lo. Estava to ocupado me lanando acusaes absurdas, que no acredito que suspeitasse absolutamente nada do resto. Ele a olhou aos olhos. Senhorita toile, h algo que possa fazer por voc antes de partir?

A sbita profundidade que mostraram seus olhos fez que Leda se sentisse coibida. Acredito que deveria ser justo ao reverso. Eu sou sua secretria. Gostaria que esclarecesse coisas com o sargento MacDonald? H formas nas que poderia lhe fazer ver quo equivocado est no referente a relao

entre ns. No! Leda sacudiu a cabea com fora. No, no acredito que deva fazer voc nada mais que tenha que ver com a polcia que o que j tem feito. O sargento MacDonald me causou uma profunda desiluso. Se quer acreditar essas porcarias to desagradveis, assunto dele.

Embora no seja unicamente culpa dele. Leda fez uma careta desdenhosa. No era sua inteno ficar sentimental nem perdoar ao sargento MacDonald. Em lugar disso, perguntou-lhe: O que vai fazer com a espada? Ele acariciou a bolsa de feltro ao longo da vagem.

Ainda no sei com certeza. No era minha inteno t-la em minhas mos tanto tempo. E agora que acreditam hav-la encontrado Seu cenho franzido a encheu de alarme. Por favor, tenha muitssimo cuidado. A comissura de sua boca se elevou. Moveu a muleta e se

apoiou nela. To cuidadoso como um gato velho. Um gato velho e invlido. Acredito que, em seu estado, seria boa idia manter-se afastado das vigas do teto. Ele voltou de novo o rosto janela, sem fazer nenhuma promessa. Abaixo, na rua vazia, ouvia-se assobiar a

algum que voltava de uma festa. De sbito, Leda recordou que estava em sua habitao a altas horas da noite, com um visitante de antecedentes muito questionveis. Vou despedir-me -murmurou ele. Manh pode dormir at tarde. Seu trem saa as oito em ponto, informao que Leda tinha obtida

graas ao maravilhoso e aterrador invento do telefone, que, depois de ter superado ela o medo a ser vtima da eletrocusso, e em que pese a que o auricular fazia um rudo similar ao de uma colmia de abelhas zumbantes, tinha reduzido o trabalho de meio-dia para organizar a viagem em uma

tarefa de apenas um quarto de hora, e os bilhetes tinham sido entregues por um mensageiro na porta antes do jantar. O mundo moderno era uma verdadeira maravilha para uma secretria. Sim, bom, ento, adeus. Boa viagem. De repente se sentiu um tanto torpe. Resultava incrivelmente difcil dizer adeus a

um cavalheiro ao que logo que conhecia. Impulsivamente, esticou a mo e a posou sobre a que ele apoiava na espada. Obrigado! Querido senhor, obrigado por tudo. O ar pareceu parar. Leda se deu conta de que tinha a palma nua sobre a pele dele; ele a olhou com tal

severidade e de forma to intensa que a atravessou como o brilho da lua faz com a gua e o ao. A mo se moveu sob a sua e apertou a espada. S isso. S isso, e, entretanto ela percebeu uma mudana radical em tudo, e ouviu os batimentos de

seu prprio corao nos ouvidos. J descobrir o que ele quer de voc. No sabia o que era; no era capaz de express-lo, mas havia uma glida energia nele, nos olhos que percorriam seu rosto, na mo imvel, em sua quietude absoluta Leda baixou os olhos.

No mesmo instante lhe agarrou a mo e depositou algo em um tecido enrolado. Boa noite, senhorita toile. Separou-se dela e da janela, e se internou nas sombras da habitao. Leda no ouviu nada, nem sequer o estalo do ferrolho da porta, mas soube que se foi.

Deixou-se cair sobre o assento junto janela. O tecido sobre sua mo se desenrolou e viu que era um lao de seda escuro. No podia distinguir a verdadeira cor com a luz exterior, mas uma moeda estrangeira brilhava no centro. Uma nica moeda.

Uma moeda, como as partes de plumas e o anel de prata. Mediu o caminho at a poltrona e depois de volta janela, e se inclinou para ler o livro com a luz da rua. Ali estava, entre as singelas reprodues de dinheiro japons. Cinco ienes. Passou as

pginas com rapidez at chegar seo de presentes e festividades. Uma parte de tecido enrolado sinal de respeito, e ainda se conserva nos ritos cerimoniosos -explicava o livro; e, depois de umas quantas pginas, leu: Como conseqncia de um trocadilho, goen significa tanto "moeda" como "relao"; a moeda de cinco

ienes est considerada smbolo da amizade. Leda enrolou a moeda na seda com os dedos, e levou o pacote aos lbios at que adquiriu a mesma calidez que suas prprias mos. 20 Pleamar 1887 Desejava-a. Queria toc-la. A bordo do vapor que

cruzava o Atlntico, despertou cheio de desejo; no trem que o levava em direo ao oeste ficou adormecido embalado pelo rudo dos trilhos e embargado pelo desejo, e sonhou que a tocava, s em sonhos, quando no existia a vergonha nem podia ferir ningum. Ao zarpar de So Francisco, na cabine de

luxo de um navio de sua prpria empresa naval, permaneceu isolado, entregue aos sonhos, sem querer despertar ao chegar a manh e ver seu rosto no espelho. Honolulu era verde e ensolarada, as flores balanavam com a brisa e estava vazio. Ele se instalou em uma pequena habitao vazia do

escritrio do porto, em lugar de faz-lo na casa, que tinha as altas venezianas fechadas e as estadias sumidas na penumbra. Ao v-lo com as muletas, Dojun lhe recomendou um curandeiro chins. Tiraram-lhe o gesso europeu e lhe puseram um entalado oriental. Graas a um tratamento com ervas fedorentas e

infuses, e de umas quantas visitas clandestinas a um cirurgio americano, a perna foi se curando pouco a pouco. Seguia doendo; mas, cada vez que a provava, a dor tinha diminudo. Durante a ausncia de Samuel, Dojun tinha contratado a um moo como criado, filho de um dos imigrantes japoneses

que formavam a nova quebra de onda. O moo varria as aparas e no falava muito, nem sequer em japons. Dirigia-se a Dojun chamando-o Oyakatasama e lhe fazendo uma profunda reverncia, honrando-o assim com um tratamento da mais alta fila e a mais corts das saudaes. Com Samuel, o moo era igualmente

respeitoso, e em seu caso utilizava meijin, ou pessoa notvel, e a Samuel no lhe ocorria outro motivo para tal honra que a rgida etiqueta japonesa. Nos ltimos dois anos, desde que o Japo tinha permitido a emigrao ao Hava dos trabalhadores das plantaes, Dojun j no estava to solitrio

e afastado em sua casa no meio da montanha. Quase sempre que

Samuel aparecia por ali, encontrava a algum visitante japons que bebia ch ou sake e uma partida de go em progresso. Os convidados se mostravam reticentes com Samuel, amveis, mas receosos, j que o consideravam um estranho exemplar que no se ajustava a nenhum padro conhecido: um rico haole que era

dono de navios e falava seu idioma, que entendia os ideogramas kanji e a escritura japonesa. De uma vez que Dojun se voltava mais socivel com o mundo, parecia ser cada vez mais brusco com Samuel. Nos ltimos anos apenas treinaram juntos. Samuel fazia os exerccios fsicos por sua conta

e praticava com perseverana, mas continuava subindo montanha quase todos os dias. Dojun s vezes queria falar das artes marciais, outras se limitavam a saud-lo e voltava a dedicar-se a conversar com os visitantes e partida de go, mas com maior freqncia ficava sentado em silenciosa concentrao, e no lhe

oferecia nada. Ou lhe lanava um de seus ataques inesperados que no permitiam que Samuel descansasse por completo. No teve nenhuma indulgncia com sua leso, como Samuel sabia que no o faria. O atalho no se interrompia porque ele quebrado um osso; nada se detinha esperar porque ele tivesse suas

limitaes. esquea-as dizia Dojun, esquece as limitaes. Entregue-te ao dia por completo. Vive cada dia como se uma espada pendesse sobre sua cabea, porque assim . E no era sozinho em sentido metafrico. A espada de cerimnia estava escondida onde Samuel esperava que Dojun jamais a encontrasse. No tinha

inteno de que seu professor soubesse nada do assunto. Havia dias que nem sequer ia de visita, e evitava o perigo por completo, mas depois tinha que redobrar a vigilncia em seu prprio territrio, j que Dojun no duvidaria em ir e atac-lo ali. No lhe teria resultado to difcil

se no fosse pelas distraes, pelo destino que tinha agrupado toda a energia dispersa e catica do shikijo. E a tinha concentrado nela. Samuel pensava nela com a angua branca levantada sobre as pernas nuas, bebendo ch e arqueando os ps com o delicado movimento de uma bailarina; pensava em sua cabea

inclinada, com tudo aquele cabelo brilhante e a mo descansando sobre o caderno, e na suave pele da nuca que aparecia pela recatada gola virada da blusa. No era capaz de concentrar-se em seu prprio ncleo; desviava-se uma e outra vez do atalho, perdia o zanshin, a mente vigilante e sem ataduras,

e com ele se foram anos de exerccio e disciplina. Para combat-lo, passava as largas horas noturnas sentado em silncio, tentando desprender-se de qualquer desejo consciente, mas, em que pese a tudo, ela continuava filtrando-se em sua mente como uma lenta calidez. Estava sentado em perfeita paz, frente a uma

parede, sem pensar em nada e de um nada surgia a imagem dela escovando o cabelo sobre os ombros nus, a curva de suas costas, a branca redondez de seus quadris quando se inclinou para vestir a saia. No podia confiar aquilo a Dojun. Podiam falar das correntes polticas, de

seus contratos, de suas estratgias e planos, dessas coisas sim.

Inclusive se com freqncia ele no tinha certeza se Dojun estava a seu favor ou era contrrio no concernente a um objetivo determinado, era bom falar e escutar, ampliar as possibilidades e analisar as conseqncias e o propsito, como se de uma partida de go se tratasse, com toda uma infinidade

de possveis combinaes nas pedras brancas e negras do tabuleiro. Surgiam rumores de uma contra-revoluo e se desvaneciam para voltar a aparecer de novo. Samuel tinha informadores nos dois bandos; observava aos reformistas e aos donos das plantaes de acar que pressionavam para que se cedesse Pearl Harbor aos Estados

Unidos, enquanto o rei lutava por manter o porto sob sua soberania. Viu como as eleies de setembro ratificavam a reforma da Constituio, o qual atava ao rei de ps e mos. Via como os homens adotavam posturas extremas, gritavam e se permitiam as mais mesquinhas vinganas, mas a corrente avanava inexoravelmente

a favor do poder e do dinheiro, e Samuel no albergava nenhuma dvida em sua mente de que, ao final, seriam os reformistas e seus contatos americanos os que iam se dar bem. Parecia algo feio, mas ele entendia o poder e a batalha para mant-lo. Entendia o medo. Entendia

as frustraes de um monarca inteligente e cordial, mas esbanjador e jovial em excesso. Durante toda sua vida adulta tinha tido que lutar com a ambio dos homens de negcios, orientais e ocidentais, e tinha visto como, pouco a pouco, despojava-se aos esmagados ilhus de suas terras e de seu potencial e

os empurrava a um jogo cujas normas eram estabelecidas por homens com sangue muito mais frio. Samuel entendia todas essas coisas; que as aprovasse ou lhes pusesse objees era irrelevante: o importante era entender, predizer e saber quando e como mover-se. Tinha criado sua empresa por Kai, no pelo dinheiro

nem a influncia, nem por ir aos bailes de palcio nem para derrocar governos. No se tinha unido a nenhum bando, mas sim tinha conservado puro seu objetivo. Um futuro. Uma tarefa. Manter-se sem brechas e intocvel. Converter-se em algo mais que o engaste da espada, mais que algo tosco oculto depois

de uma elegante fachada. Separar o que tinha sido do que agora era, igual a forja a bigorna aparta a impureza do ferro e o converte em ao de qualidade. Para fazer-se merecedor das coisas que desejava. Para ser algum que ela amasse. Seu corao era

a folha da espada mas com imperfeies imperfeita. Essa debilidade o mantinha escurido, tinha aninhado em seu interior durante anos e nunca se purgou. Agora cristalizava, desabava-se sobre si mesmo. Formava o plo oposto: em um lado Kai, a honra e tudo o que queria ser; no outro, aquela

escurido clida e invitadora em que desejava inundar-se. Dois anos atrs tinha comprado um hectare e meio de terreno no alto, junto ao vale Nuuanu. Movido pela inquietao que agora o dominava,

tinha encarregado que lhe desenhassem os planos da casa que queria construir-se ali. Imaginava Kai em cada uma das estadias: uma para seu piano, outra para a mesa de comilo que lhe ia fazer, um alpendre amplo porque lhe gostava da brisa, um estbulo para seus cavalos. Reuniu-se com construtores e

encarregou madeiras de teca, de araucria e paulonia. Justo depois das eleies de setembro, limparam o terreno e comeou a construo. Quando pisou na terra enlameada entre os novos alicerces, j utilizava um cano por todo apoio. Onde antes tinha existido um autntico matagal de maleza, agora se tinha uma

vista despojada do oceano. Pensou em nomes, em chamar casa Vai Kai casa do mar em havaiano, mas decidiu que era muito bvio. Tinha-lhe aconselhado que no se precipitasse, e confiava em seu critrio. Imaginou seu rosto, seu pescoo, suas geis mos e a curva de seus

seios. Fixou o olhar no horizonte. Aparta esses pensamentos -se disse a si mesmo. Aparta-os. A seus ps, alm do pendente da ilha, da cidade, das agulhas das Iglesias e de quo cobertos reluziam entre a verde espessura, a mar subia cobrindo atis e areais.

J tinha utilizado o nome de Kai antes quando, acreditando-se muito engenhoso, tinha registrado sua empresa como Kaiea, unindo os trminos havaianos que significavam gua que banha as terras, mas agora pensava que Dojun tinha influenciado nele para ser muito sutil. Kai jamais tinha visto relao; nunca, por isso ele sabia,

deu-se conta do uso intencionado de seu nome. Tinha que ser mais direto com ela. A jovem era toda sinceridade e franqueza; o obstculo era aquela tendncia ocultao to prpria dele. Poderia ser que, depois de tudo, o melhor fosse chamar casa Vai Kai. Possivelmente deveria perguntar diretamente

a ela que nome gostaria. Como deveria chamar a este lar que estou construindo para ti, Kai? E, a propsito, quer ser minha esposa? No fez nenhuma das duas coisas. Contemplou o pr-do-sol sobre o oceano em todo seu esplendor de laranjas e dourados. Nem sequer era capaz

de pensar com claridade no problema com Kai; no deixava de v-la a ela: nas nuvens passageiras, a suavidade de seu cabelo; na terra mida pela chuva, o aroma de seu corpo. Maldio, maldito fosse tambm ele, surdo e cego em suas vises. Se Dojun tivesse estado ali, poderia hav-lo matado dez

vezes seguidas. At um menino rancoroso o teria feito com um simples coco. Chegou a mar com fora lenta, mas inexorvel, incontrolvel. Kai era a gua que banha a terra. Decidiu chamar casa com o nome traduzido: Pleamar. E no entendeu o porqu, mas soube

que aquela era a maior loucura de todas.

Leda tinha crescido na cidade. O mais perto que tinha estado da campina de Sussex tinha sido na ocasio de uma visita aos jardins de Kew, aos onze anos. Westpark lhe proporcionou uma autntica surpresa: a elegante casa georgiana, imensa, mas, entretanto, acolhedora de uma vez, cheia de rvores florescentes, plantadas

no meio da prpria casa, de estranhas colees de todo tipo de objetos impossveis, de ursos formigueiros dissecados, folhas secas, vitrines onde se exibiam milhares de conchas, insetos e minerais, fotografias e potes de cristal com coisas cuja natureza preferia desconhecer. E o parque! Face aos jaguares, aos que no lhes permitia

perambular em liberdade como havia dito lorde Robert, para a Leda era um autntico gozo passear por ele, respirar o ar limpo do campo ou, simplesmente, olhar cada manh por sua janela e no ver outra coisa que grama e rvores que se estendiam at as longnquas colinas. Ao final

dos jardins de recreio havia uma pitoresca casa onde em tempos se fabricou azeite de lavanda, uma pequena construo octogonal de gesso, decorada com parras de folhas avermelhadas e meio oculta depois de uma sebe de boj. Depois de terem sido expulsas da despensa encostada cozinha, Leda e lady Kai tinham

tomado posse da casa. Tinham retirado os poeirentos funis e frascos, esfregado os largos bancos e ocupado a mesa sob a janela de cristal chumbado para levar a cabo sua tarefa. A tarefa consistia na elaborao do licor de cerejas especial da senhorita Myrtle. Em agosto, quando tinham chegado ao

Westpark, as hortas estavam a transbordar das pequenas cerejas negras que se utilizavam para o licor. A lembrana que Leda guardava daquele elixir, e suas descries cheias de saudade da cerimnia de encher os potes e filtrar o licor para o Natal, fizeram que Kai ficasse mos obra. No cabia fazer

outra coisa que recolherem elas mesmas as cerejas e elaborar o licor para as festividades com suas prprias mos. Os preparativos as tinham tido plenamente ocupadas durante uma semana. Tudo se fazia seguindo ao p da letra a receita da senhorita Myrtle, tal como Leda a recordava: compilaram as cerejas,

escolheram-nas e as limparam, contudo cuidado; depois as desossaram, lavaram os potes de boca larga apropriados, introduziram a fruta, peneiraram o acar e o cobriram tudo com a mescla de especiarias particular da senhorita Myrtle. A proporo era metade de cerejas, metade de acar. Lorde Ashland chegou a solicitude do

autntico brandy francs que necessitavam. Depois de lhes fazer prometer que ele seria o primeiro em saborear aquela ambrsia -sem contar a Leda e a lady Kai, que se reservavam as decisivas provas durante o processo de elaborao, lorde Ashland acessou a lhes conseguir o licor da qualidade necessria. Depois de fazer

uma recontagem dos potes, Leda e Kai descobriram que tinham sido do mais entusiasta em seu trabalho e que, com quase sessenta litros de brandy, logo que teriam para cobrir sua produo.

Lorde Ashland tinha arqueado as sobrancelhas e esclareceu garganta, de forma muito parecida com o que a senhorita Myrtle estava acostumado a fazer ao tomar o primeiro sorvo. Mas o brandy chegou, como lhes tinha prometido, e os trabalhos continuaram at que, no incio de setembro, jogaram por fim o ferrolho

a casa e a abandonaram com toda a superfcie horizontal disponvel coberta de potes de cerejas de um vermelho escuro maceradas em brandy dourado. Leda estava muito satisfeita de como tinham transcorrido o vero e o outono. Os Ashland -seus Ashland, como gostava de cham-los para si se desenvolviam muito

bem em Londres. No que formassem parte exatamente do grupo de Marlborough House, mas Leda era da opinio de que, em qualquer caso, aquele nvel da escala social era muito dissoluto para manter a respeitabilidade. Sua alteza real o prncipe de Gales, de fato, tinha concedido a lady Tess

a honra de danar com ela em um dos bailes, ante a consternao e perplexidade da dama, que parecia no ter idia da conhecida predileo do prncipe pelas belas senhoras casadas. Leda decidiu no lhe comunicar nada daquilo. Conforme lhe tinham contado, o prncipe se dirigiu a lady Kai com muita amabilidade,

e tinha perguntado a lorde Ashland se estava interessado nas corridas de cavalos. Como lorde Ashland no o estava, e ningum lhe tinha aconselhado antes que fizesse o parip, simplesmente tinha respondido que no. Leda acreditava que aquela metedura de perna era com toda probabilidade a causa de que no

se viram alagados de convites do mais reluzente e destacado da sociedade, mas tinham recebido suficientes mais que suficientes de natureza muito mais adequada, e aceitaes encantadoras a formar parte dos grupos que iriam visita Westpark, o que demonstrava que no havia ningum disposto a fazer o vazio a seus Ashland.

Em que pese a estar no incio de dezembro, alm dos novos convidados entre eles lorde Scarsdale e seu filho, o honorvel George Curzon, cuja chegada era esperada no trem do meio-dia, lorde e lady Whitberry tinham decidido prolongar sua estadia, e outro tanto tinha feito os Goldborough com suas trs

filhas e, obvio, lorde Haye. Leda fez uma pausa enquanto tirava o p dos potes, e olhou de esguelha para lady Kai. Sob o grosso xale que levava para proteger dos raios da ensolarada manh, a outra jovem vestia um singelo traje de l azul marinho e um avental

pego da cozinha, e cantarolava enquanto limpava os funis e os coadores, e os colocava na mesa sob a janela. Lorde Haye fazia que Leda se sentisse culpada. Lady Kai gostava daquele jovem. Gostava muitssimo. Inclusive nesses momentos, sem dvida, teriam estado tomando o ch no salo e

falando da caa da raposa, se no fora porque ele e lorde Robert se somaram aquela manh a um grupo de caadores de faises em um imvel prximo. Lady Kai se converteu em uma grande aficionada a cavalgar com a matilha de ces, sempre que a raposa conseguia fugir. Em

setembro, a primeira vez que lorde Haye tinha sido convidado a Westpark, o cavalheiro

tinha estado presente quando a jovem tinha cavalgado pela primeira vez com uma matilha prpria. Depois de hav-la qualificado de amazona lamentvel, empregou-se em instru-la sobre as normas de etiqueta que teria que seguir nas caadas, conselhos que ela se tomou com bom humor e alegre sentido comum. Lorde Haye, depois

disso, tinha aceitado com prontido um segundo convite a Westpark, e levava ali presente uma semana. No se esperava a volta dos cavalheiros at j entrada tarde; por isso, quando Leda anunciou que tinha chegado a hora de filtrar o licor, lady Kai tinha acolhido a idia com entusiasmo.

As jovens Goldborough, embora dispostas tambm a participar, tinham recebido ordens de sua me para que em seu lugar escrevessem umas cartas a uma tia av. Entre lamentos e protestos, tinham subido com desinteressa a suas habitaes. Leda e Kai se puseram a trabalhar as duas ss na casa. J

terminei -anunciou lady Kai, dando uma ltima passada com um pano a um coador de barro. O que o seguinte? Agora esvaziamos um dos potes e o provamos. Primeiro temos que pass-lo pelo coador naquela terrina. Tiveram que unir seus esforos para realizar a tarefa sem danificar

a fruta. O aroma familiar a licor, a lcool doce, invadiu o nariz de Leda. Acredito que esta uma colheita excelente -disse com confiana, igual a sempre havia dito a senhorita Myrtle. Provemos ambas umas cerejas deste pote. Com ar solene, escolheu cada uma delas uma cereja

do coador e a levantou com a ponta da colher. Antes que Leda tivesse tempo de lhe advertir nada, lady Kai meteu a sua inteira na boca diretamente. Deu-lhe um ataque de tosse. Leda lhe deu tapinhas nas costas, enquanto seguia com sua cereja na colher.

Ai, que horror! Lady Catherine se endireitou e se levou a mo ao peito. muito forte. Seus olhares se cruzaram, e ambas romperam a rir. Leda tirou a lngua e lambeu a cereja de sua colher, deixando que a boca se fosse acostumando ao sabor quente e intenso.

Come-se assim. Apertou a cereja entre os dentes e a mordeu com delicadeza, partindo-a em dois. Depois deixou que o licor do interior do fruto lhe percorresse a lngua, e foi tragando pouco a pouco. Lady Kai agarrou uma segunda cereja e seguiu seu exemplo. Esta vez

s teve que esclarecer a garganta e sopro um pouco na lngua. Sim -confirmou, acredito que ficou muito bem. Este pote aceitvel. Temos que prov-los todos, para nos assegurar de que esto preparados. s vezes o acar no fica bem misturado. Olharam-se de novo, e

olharam as fileiras de potes colocados nas mesas. Leda se levou a mo boca e se deu suaves golpes nos lbios. Suponho que o melhor ser que comecemos -disse lady Kai.

Quando j foram pela metade do vazamento dos potes, Leda tinha as mos e os lbios pegajosos. O pano branco que cobria a mesa estava salpicado de gotas vermelhas. Lady Kai tirou o xale, e tudo lhes parecia do mais divertido. Olhe esta cereja -disse lady Kai mostrando uma

que estava especialmente encolhida e enrugada. Acredito que recorda lady Whitberry. Leda recebeu com toda seriedade seu comentrio e aceitou a cereja com calma. Uma cereja lady Whitberry -comentou a sua vez. As duas jovens estalaram em risadas. Sabe? disse Leda abrindo outra tampa.

No acredito que a senhorita Myrtle tenha preparado nunca mais de doze potes de uma vez. Ns temos feito doze dzias -respondeu lady Kai com orgulho assinalando com a colher ao redor da estadia. Vai ser um Natal legendrio. Leda colocou o seguinte pote junto ao coador.

Tinha que haver suficiente para todos. obvio. uma casa grande. Uma casa enorme. Uma casa realmente descomunal. Ambas se engasgaram pelas gargalhadas e caram de costas contra a mesa. Lady Kai rodeou a cintura de Leda com o brao,

enquanto na outra mo hasteava a colher. voc to divertida! exclamou. Alegro-me muitssimo de que se veio conosco. Obrigado -disse Leda, eu tambm me alegro. Acredito acredito fez uma pausa enquanto tratava de reunir seus dispersos pensamentos que teramos que comear a filtrar o licor e

encher as garrafas. Franziu o cenho, enquanto se concentrava na tarefa. Dobre esta gaze. Lady Kai a obedeceu com a mesma dignidade de um sacerdote que se dispe a celebrar a missa. Cobriram um funil e o introduziram no pescoo de uma garrafa. O lquido dourado avermelhado caiu no interior,

e refletiu os raios de sol que entravam pela janela. Olhe-o. Lady Kai suspirou encantada. esplndido. Delicioso -acrescentou Leda com reverncia. Impressionante -acrescentou uma voz masculina e familiar. Lady Kai deu a volta e gritou: Man! O senhor Gerard

se despojou do chapu, bem a tempo de agarr-la quando se lanou sobre ele. Deu um passo atrs e a levantou no ar como se fora uma menina, enquanto lhe dirigia um sorriso de boas vindas. A fria luz do sol que entrava pela porta se refletiu em seus cabelos.

Leda tinha esquecido; nos cincos meses transcorridos tinha esquecido o efeito que lhe causava, tinha esquecido aquela beleza sua to fora do

comum e to impactante. Entre os raios do sol e as sombras que a sebe de boj projetava sobre ele, brilhava com luz prpria. Ao olh-lo, sentiu-se aturdida. Sentiu-se tonta. Havia um poema Tigre, tigre, incandescente na noite arborescente Blake, esse era o

autor, selvagem e lhe esmaguem com dois simples versos. Como ele. Leda no era capaz de recordar o resto do poema. Naquele momento sua mente no parecia especialmente lcida. Resultava estranho v-lo de p sem necessidade de apoio. Tambm tinha esquecido de que, como era natural, ele se recuperaria. Quando

entrou o fez sem muleta, sem bengala, sem to sequer uma ligeira claudicao. Ai, Man! Lady Kai se pendurou de seus ombros, apoiou a cabea em seu peito e se balanou de lado a lado. Senti falta de voc. Estamos tendo um grande momento. Leda recolheu a saia

e fez uma inclinao, um tanto trmula ao endireitar-se. Seja bem-vindo. Ele a olhou por cima de lady Kai. Leda puxou para trs um cacho de cabelo que se soltou do coque. Todo o penteado corria perigo de desmoronar-se, mas ela no parecia ser capaz de pensar em

como solucion-lo. Ele sorriu. Leda sentiu uma quebra de onda de calor e prazer que quase lhe fez tornar-se a chorar. Piscou e fechou os olhos, e a estadia pareceu ficar a girar a seu redor. Estamos fazendo o licor de cerejas da senhorita Myrtle -anunciou lady Kai.

Tem que provar uma cereja. Soltou-o e agarrou uma com a colher. Ele a agarrou pelo pulso para que no deixasse cair o fruto. Sumida em uma espcie de fascinao, Leda contemplou como olhava para a cereja, e lhe pareceu incrvel que ele pudesse fixar a ateno sem problema algum

quando a ela todo resultava to difcil. Ele se aproximou a colher a uns centmetros da boca e exclamou: Me de Deus! Por favor, no jure, senhor Gerard -disse Leda em tom de recriminao. E comeou a rir. Ele a olhou e Leda tampou

a boca com as mos. Depois fez proviso de orgulho para pr ordem em sua mente, e disse com seriedade: Sim, faa o favor de prov-la. Tem apenas uma gota de brandy. Acredito que o ajudar a recuperar da viagem. No o duvido -foi a resposta dele.

Tragou a cereja, mas, por muito que o tentaram, no conseguiram que se comesse mais de uma. Conforme lhes explicou com gravidade, no queria danificar o jantar. O jantar! Que horas so? espetou-lhe lady Kai. As quatro e dez.

Tenho que ir. Deixou cair a colher sobre a mesa. Ai, senhorita Leda! Olhe como est tudo! Como vamos ao Man, quer ajudar senhorita Leda para que termine? impossvel que possa faz-lo sozinha, e eu lhe prometi No disse o que tinha prometido. Envolveu-se no xale e

ps-se a correr para a porta, chocou-se com a ombreira, pegou uma espcie de bote e desapareceu. Leda no sentiu nenhuma pena por v-la partir. Vagamente pensou que sim que teria que hav-la sentido, que no deveria estar ali a ss com o senhor Gerard, mas se alegrava

muito de estar sozinha com ele. Alegrava-se tanto de sua volta No pde reprimir um sorriso quando o olhou. Mas, enquanto ele continuava ao lado da porta, Leda recordou por que tinha ido at ali. No era para saudar a ela, claro que no. E lady Kai se foi a tudo correr

a reunir-se com lorde Haye depois de lhe haver dedicado menos de cinco minutos de boas vindas. Sentiu-se um pouco zangada com lady Kai. O senhor Gerard se incomodou em ir at ali; estava apaixonado por ela, queria casar-se com ela. Como era possvel que fosse to inconsciente e partisse

naquele momento? No queria que ele se sentisse ferido. Pensou em mand-lo atrs lady Kai mas ento a encontraria deslumbrada por lorde Haye, que era um cavalheiro do mais aceitvel, se que a uma gostava da caa da raposa, mas que, comparado com o senhor Gerard, no era ningum

nem nada. Leda sabia que no estava pensando com muita claridade, mas desejava que o senhor Gerard voltasse a lhe sorrir. Para obt-lo, pareceu-lhe que a melhor idia seria pegar outra cereja. Agarrou a colher e lambeu com delicadeza o fruto que sustentava. O senhor Gerard se separou

da porta. Ela jogou para traz a cabea e o olhou por debaixo das pestanas. Enquanto saboreava com a lngua a doura da cereja, dirigiu-lhe um olhar para lhe dar nimos. A expresso preocupada se desvaneceu do rosto dele. Olhou-a como se fosse a primeira vez que a via ali.

Leda meteu a cereja na boca e deixou que se deslizasse garganta abaixo. Lambeu os pegajosos dedos. No tem que me ajudar, se no gosta disso -disse com acanhamento. Mas do mais divertido. Ele no disse nada. Ficou com a vista fixa em seus lbios,

enquanto ela lambia um resto de licor da ponta do dedo mindinho. Quando seus olhares se cruzaram, o rosto dele mostrava uma tenso muito peculiar: nem rastro de um sorriso. mais entretido se formos dois para filtrar -disse ela. Colocou o funil em uma garrafa vazia, e

teve que agarr-la pelo pescoo quando cambaleou sobre a mesa. Com ambas as mos levantou a terrina do licor; mas, sem ningum que sustentasse a garrafa, no podia apoi-lo no bordo do funil.

Tampouco to difcil -afirmou, enquanto o olhava com esperana. Importaria-lhe estabilizar a garrafa? Ele se aproximou por detrs e lhe agarrou a terrina com uma s mo. Sustente isso -disse com brutalidade indicando a garrafa com um gesto. Leda rodeou a garrafa que tinha

diante com as mos. Quando ele levantou a pesada terrina de cermica, estava muito prximo a ela. Aproximou-se ainda mais para regular o fluxo do lquido, que caiu em cascata no interior da vasilha sem desviar-se. Leda vigiou o nvel da garrafa, e disse: Assim. J suficiente.

Ps a um lado a garrafa cheia e colocou o funil em outra. Era muito agradvel t-lo to perto. Tragou uma baforada de ar empapado de lcool e exalou um suspiro. Ele verteu o lquido uma vez mais. Enquanto o licor caa pelo funil, ele enganchou o polegar no bordo da terrina,

soltou a outra mo e se inclinou mais sobre o ombro de Leda para ver como caa o brandy. A garrafa se encheu at o ponto exato. Leda fechou os olhos cheia de satisfao e apoiou as costas nele. Era to cmodo, to slido, enquanto que todo o resto tinha

tendncia a ficar a dar voltas em lugar de ficar em seu stio. Lembrou-se de lady Tess na mesma postura com lorde Ashland. Era muito agradvel, de verdade que sim, em que pese a que o senhor Gerard no lhe rodeava o corpo com os braos. Estava quieto. Leda sentia

seu flego no cabelo, irregular, mais profundo do normal, como se tivesse estado correndo. Obrigado -murmurou. Deu a volta e roou o fronte da jaqueta dele com a face. O cabelo lhe caiu em cascata sobre os ombros finalmente, como levava tempo ameaando fazendo. No lhe

importou absolutamente. No se havia sentido jamais to satisfeita com o mundo. Samuel pensou desesperado no equilbrio interior. Na disciplina. Retido -pensou. Valentia, honra, lealdade. No sentia nenhuma dessas coisas em seu interior. Quo nico sentia era o cabelo dela sob sua mandbula, uma trana que desfeita e

solta. Tinha-o fascinado, porque era maravilhosamente suave; porque tinha visto a jovem escov-lo, tran-lo e sujeitar-lhe no alto. No podia mover-se. Se o fazia, acabaria afundando as mos nele, estenderia-o e enterraria nele seu rosto. Atrairia-a para si, a seus braos; morreria de joelhos, afogado naquele fluxo quente e escuro.

Leda jogou para traz a cabea e se acomodou mais perto dele. No o faa -pensou ele para seus adentros. Pelo amor de Deus

Levantou as mos sem chegar a ro-la. O corpo da jovem era aveludado e se apoiava no dele, apertando curvas e lugares desconhecidos. Ele em resposta estava ereto e o sangue lhe pulsava com a excitao. Recorda isto. Recorda isto como uma autntica fraqueza em seu interior.

Agarrou-a pelos cotovelos com firmeza e a empurrou para diante, apartando a de si. Ela deu a volta. Ele esperava um gesto de aborrecimento, de indignao por no ter respondido a sua provocao. Mas se apoiou no bordo da mesa e lhe dirigiu um radiante sorriso; jogou para traz a

cabea como um gatinho que se estira ao sol, deixando o pescoo ao descoberto. O cabelo lhe caa depois dos ombros, iluminado pela luz da janela, e luzes vermelhas e douradas brincavam na massa mogno. Era uma viso que explorou dentro dele e enviou quebras de onda de fora e debilidade at

as gemas de seus dedos. Enquanto ele permanecia paralisado pelo escuro desejo, Leda retirou o cabelo e ps o plugue s duas ltimas garrafas. Suponho que poderamos terminar amanh -disse com um alegre tom embriagado na voz. Olhou para as filas de potes e garrafas um momento e

rompeu a rir. Acredito que certo, temo-me que temos feito muito, no cr? Ele ouviu o quebro de sua voz e a inocncia de seu tom, mas no a queria inocente. Queria-a no mesmo estado que ele, queria deit-la no cho nu com ele, baixo ele, sua boca sorridente

sobre a boca dele, sua risada e seu corpo asfixiando-o em calor com a suavidade do cetim. Desejava-o e o detestava, como se detestava a si mesmo. No procurava dor nem brutalidade; s queria aquele sorriso e aquelas gargalhadas, mas tinha medo do que podia fazer se rendia ante elas.

Tomou um pano limpo e esfregou a mo com fora, tratando de tirar-se aquela substncia pegajosa. Se me desculpa -disse com rigidez, fazendo uma inclinao sem olh-la. Jogou o pano sobre a mesa, agarrou o chapu e saiu pela porta. Respirou o ar fresco e o mido aroma

da madeira de boj e deixou que lhe alagassem os pulmes, mas seguia sem poder livrar do aroma de licor de cerejas que persistia em suas mos. Nem sequer foi detrs de Kai. No podia, no nesse momento. No queria que ningum o visse; nem Kai, nem seus pais, nem

ningum que lhe importasse ver. Leda sentia um desagradvel martelar na cabea quando despertou. Tampouco suas vsceras pareciam estar muito bem, e havia uma imagem persistente nos limites de sua conscincia que tinha a impresso de no ter o mais mnimo desejo de recordar.

Deu a volta e se afundou ainda mais no travesseiro para ouvir o suave roce na porta. Mas, de qualquer forma, a donzela entrou sussurrando: Senhorita O sinto muito, senhorita; muito cedo, j sei, mas no sabemos o que fazer e o senhor Gerard diz que tem que

descer, senhorita. O senhor Gerard. A lembrana que se negava a reconhecer se abriu passo sem obstculos em sua mente. Leda gemeu e se enterrou ainda mais. No posso. As palavras foram apenas um balbuceio. Acredito que no me encontro bem. Ai, senhorita, asseguro-lhe

que de verdade que o sinto, mas o h dito o senhor Gerard; disse que possivelmente voc no se encontrasse de tudo bem, mas que tinha que descer de qualquer forma. Disse que lhe comunicasse que haveria ch esperando-a. O ch soava aceitvel. Mas enfrentar ao senhor Gerard, ordenar seus

desordenados pensamentos, tragar a blis que lhe subia garganta e, de fato, voluntariamente, sem que a arrastassem encadeada poderosas bestas, apresentar-se ante ele No, no se via capaz de faz-lo. A donzela, entretanto, no s o via possvel, a no ser imprescindvel. fora de insistncia, sussurros e esforo

manual, conseguiu levantar Leda e vesti-la. O aroma de licor de cerejas que desprendia o avental que Leda tinha usado no dia anterior quase lhe fez desabar, mas a donzela, depois de rebuscar um pouco, vestiu-a com uma saia limpa e uma blusa fresca de gola alta bordada em branco.

Com o cabelo penteado em uma apertada trana de estilo francs, Leda desceu por um dos lados da dupla escada da galeria que dominava o vestbulo central de Westpark rematada por uma cpula. rvores gigantescas, legado do pai naturalista de lady Tess, cresciam no prprio interior da casa, e elevavam suas folhagens

tropicais na luz cedo da manh que se filtrava pelas clarabias empapadas pela chuva. Durante todos os anos que a famlia tinha estado longe, a casa, as estufas, os jardins e os jaguares de Westpark tinham estado aos cuidados do senhor Sydney, ancio cavalheiro cheio de vida que era capaz de recitar

de um puxo o nome cientfico de cada planta imediatamente, coisa que fazia freqentemente sem que sequer o tivessem perguntado. Por necessidade, agarrou o corrimo com mo firme para ter apoio. Ningum mais, nem da famlia nem dos convidados, parecia haver despertado ainda, mas um lacaio a esperava ao p

da escada e a encaminhou para a sala pequena. Ao chegar soleira, sentiu um breve instante de nervos e rebeldia em seu interior, mas o lacaio j lhe abria a alta porta de madeira envernizada com adornos dourados e bordo de lato. Em Westpark no tinham gs nem tampouco

eletricidade. Tudo estava iluminado por velas e abajures de azeite. Na tnue e aquosa luz do dia, um abajur de cristal jogava um quente resplendor vermelho sobre o tapete e criava um rinco cheio de colorido na penumbra da manh. No limite do espao iluminado, o senhor Gerard estava em p com

o brao apoiado no

suporte da chamin. De um pequeno fogo, recm aceso, subia uma coluna de fumaa branca at o teto. Leda prendeu o grosso xale e olhou surpreendida a uma mulher de rosto grave que se levantou de uma poltrona em meio da penumbra, coberta por uma capa azul marinho sob

a que aparecia uma jaqueta vermelha de uniforme. Uma insgnia dourada e um lao vermelho adornavam o gorro militar a jogo. Senhorita toile? Estendeu a mo e falou em um tom suave de agradecimento. Sou a capit Peterson, do Exrcito de Salvao. Bom dia -disse Leda no mesmo

tom. Apertou-lhe a mo e reprimiu uma nusea. At respirar lhe resultava angustiante em seu presente estado. Vou a caminho de uma reunio no salo de Portsmouth. Como tinha que passar por aqui, pensei que o melhor seria lhe trazer o menino diretamente. Leda piscou para

ouvi-la. A capit Peterson, com um gesto da mo, assinalou-lhe a parte mais escura da estadia. Leda, por primeira vez, viu um grande cesto colocado sobre uma mesa. Olhou de novo a oficial do Exrcito de Salvao, e seus lbios pronunciaram sem fora: O menino? A jovem Pammy

Hodgkins, em cujas mos o deixou, no era adequada para encarregar-se dele. Em sua voz se advertia um tom resistente. Embora o tenha feito bastante bem; graas a Deus, est muito so para ser um beb que se deixou em mos de uma cuidadora. Pammy? Leda olhou para o cesto,

para a oficial e para o senhor Gerard, que lhe devolveu o olhar com olhos de um cinza glido. Mas no meu! disse ofegante. O beb no meu! Senhorita toile, apelo a seus melhores instintos de me. O cesto rangeu. A capit Peterson olhou para ele, e baixou

a voz at convert-la em um intenso sussurro. A senhorita Hodgkins nos informou que tinha aceitado dinheiro de voc para cuidar do menino. Conforme tenho entendido, esteve presente no nascimento. Solicitamos polcia que nos enviasse uma cpia do registro com todos os detalhes. Extraiu um papel dobrado de debaixo

da capa e o entregou a Leda. Nele, selado e assinado por um empregado de escritrio, havia um curto extrato do registro do nascimento na delegacia de polcia de um menino da senhorita Leda toile, residente na casa de hspedes da senhora Dawkins em Jacob's Island, de que eram testemunhas a senhora

Fullerton-Smith, da Associao de Damas da Sanidade, e a senhora Layton, enfermeira parteira; o sargento MacDonald e o inspetor Ruby tinham sido chamados para investigar os fatos previamente relatados. Isto um engano! protestou Leda com um forte sussurro. certo que eu fui testemunha, mas era o menino de

Pammy. O sargento MacDonald deve haver-se equivocado ao escrever os dados. Tudo foi muito confuso, mas, capit Peterson, tem que me acreditar quando lhe digo que o menino no meu.

A oficial no discutiu; limitou-se a olh-la imperturbvel, como se assim pudesse lhe extrair a verdade. Leda levou a mo dolorida cabea. Resultava-lhe difcil conseguir que a voz no lhe tremesse. Olhe a data. No tem por que confiar-se em minha palavra. Senhor Gerard, veja a

data deste documento. o dia seguinte da visita da rainha do Hava e o grupo japons ao salo de modas de madame Elise, no? Como v, impossvel. Aproximou-lhe o papel, mas ele no se moveu para agarr-lo. Acredito que a senhorita toile est certa. Sua voz

equnime foi como uma autntica liberao para que se impusesse a racionalidade. Cometeram um equvoco no registro. O que aconteceu a jovem Pammy? A oficial baixou a vista. Sinto lhe comunicar que a senhorita Hodgkins faleceu com febre tifide faz quatro dias. Isso o que nos trouxe

aqui. Com suas ltimas palavras, pediu a nosso oficial que lhe entregassem o menino a sua me. Fez um gesto com os lbios. Suponho que possvel que em uma situao to extrema tenha tratado de impedir que o menino fosse entregue parquia. Seu olhar escrutinador incluiu tambm ao senhor Gerard.

possvel, mas no me parece muito provvel. No meu! sussurrou Leda com veemncia. Sinto muitssimo que tenha tido que desviar-se de seu caminho. Mas no o . Sem que fizesse nenhum movimento perceptvel, a capit Peterson pareceu perder parte de seu aprumo. Franziu o cenho olhando

para o cesto, e a seguir estendeu a mo para a Leda. Eu gostaria de recuperar o documento, por favor. Ter que corrigi-lo. Arqueou as sobrancelhas e o escudo brilhou na boina. Ou, se for correto, fica o recurso de pensar em medidas legais para exigir a manuteno aos pais.

Leda entregou o papel com gesto rgido e ofendido. Sem dvida nenhuma. Se investigar mais, descobrir a verdadeira situao. Faa o favor de tom-la molstia de falar com o inspetor Ruby, presente aquela noite na delegacia de polcia. Bem. A mulher olhou a ambos, primeiro a

um e depois a outro, como se pensasse que a tinham enganado, mas que no podia prov-lo. Muito bem! Em tal caso, levarei-me isso de volta parquia. Aproximou-se da mesa, levantou o grande cesto e se inclinou sobre ele. Temo-me que temos que te levar com outros

rfos, Samuel Thomas. No meio do silncio se ouviu o crepitar do fogo. O senhor Gerard no se moveu: olhava para o lar sem expresso alguma no rosto. Samuel Thomas? repetiu Leda com voz tnue. A capit Peterson levantou os olhos, como se tivesse captado o

deixe de indeciso na voz de Leda. Talvez queira ver esta alma que envia longe. E aproximou o cesto a Leda.

Em que pese a si mesmo, Leda olhou em seu interior. Samuel Thomas estava de barriga para cima, profundamente adormecido em seu singelo bero. Tinha as faces rosadas e gordinhas, o nariz arrebitado e uma penugem cor castanho claro lhe cobria a cabea. Enquanto o observava, um lado de sua face

se moveu e desenhou um meio sorriso cmico, e a seguir deu um suspiro e a careta desapareceu. um encanto de menino -disse a capit Peterson, lhe levantando um pouco a cabea no cesto, como se queria exibir melhor o seu ocupante. O beb se retorceu enquanto

ela falava, meio acordado. Mas a seguir fechou os olhos por completo, exalou outro leve suspiro e voltou a dormir. Rogaremos a Deus para que o cuide. Sabe voc como so os barraces dos rfos, querida? A cabea de Lesa doa. Tinha o nimo pelos chos. Cobriu a

boca com ambas as mos e olhou ao senhor Gerard. Seus olhos impvidos se encontraram com os dela. No leu nada neles, nem nimo, nem acusao, nem negativa. No desge se ouvia cair a chuva com um rtmico tamborilar, uma e outra vez. Cr? No obtinha que lhe

sassem as palavras. Senhor Gerard A luz do abajur iluminou um lado de seu rosto e seu cabelo, desenhando nas sombras aquela beleza desumana. Fique com ele se quiser. Inclinou a cabea ante a capit Peterson e abandonou a estadia. Samuel Thomas Hodgkins se deu a

conhecer aos que ainda estavam em seus leitos imediatamente depois de que a oficial do Exrcito de Salvao sasse a toda pressa para no perder o trem. Ao princpio encheu a pequena sala de choramingaes e leves soluos, mas depois, enquanto Leda tentava acalm-lo agarrando-o em braos, com seus desesperados alaridos atraiu

at ali ao Sheppard, a duas donzelas, lady Tess e, em ltimo trmino, a uma lady Kai muito branca e de aspecto terrvel. Antes da chegada de lady Kai, sua me j tinha comeado a fazer-se com o controle da situao e passeava de um lado a outro da estadia,

enquanto o rosto congestionado e choroso de Samuel Thomas aparecia por cima de seu ombro coberto pelo roupo. Seus soluos se acalmaram o suficiente para que Leda, gaguejando, desse uma apressada explicao das circunstncias, que lady Tess pareceu aceitar com s uma ligeira perplexidade, enquanto dava tapinhas nas costas do beb e

lhe cantarolava durante as pausas que havia entre as emaranhadas frases de Leda. Se o senhor Gerard parecia aceitar ao beb com a mesma despreocupao com a que adotaria um cachorrinho perdido, e no se podia dizer que a atitude de Leda fosse muito melhor, o resto dos residentes no

lar dos Ashland se mostraram mais eficientes. Lady Tess enviou s donzelas a procurar algo que servisse de fraldas para o beb, e

um pouco de mingau de arroz e leite morno. Quando chegaram as toalhas, foi lady Kai, que sorria com valentia sob sua palidez, a que se fez cargo do beb, limpou-o e o trocou com soltura, enquanto Leda pensava que aquele repentino aroma ia acabar o fim com sua resistncia e

sua vontade e a ia fazer vomitar. Olhou a jovem e frvola lady Kai com novo respeito. Todos outros pareciam saber com exatido o que teriam que fazer, enquanto que Leda se fez a um lado, sentindo-se intil e estpida em sua ignorncia. Enquanto tratava de explicar a lady Kai

de onde tinha sado o beb, lady Tess, em voz alta, preocupava-se de coisas mais prticas: de que possivelmente ainda no estivesse acostumado aos mantimentos slidos, de que o leite de vaca poderia lhe dar urticria, de se poderiam encontrar um bab com tanta urgncia, e um sem-fim de problemas mais dos

que Leda no tinha idia e nos que no lhe teria ocorrido pensar. Mas Samuel Thomas pareceu tomar o cereal de arroz com entusiasmo. Quando a colher se chocava contra o prato, olhava com avidez e abria a boca como uma ave faminta. Com a boca totalmente aberto, descobriram que

tinha um nico dente na gengiva inferior. Bem, vejam s. Lady Kai lhe enxugou o rosto quando a criatura esvaziou a terrina e sorveu gua de um pano limpo, molhado em um copo. Como te encontra agora, meu biscoitinho? Est melhor? Como te chama? Thomas -respondeu lady Tess

antes que Leda pudesse falar. Tommy, Tommy! Lady Kai converteu o nome em um sonsonete, sentou ao beb em seus joelhos e o balanou de um lado a outro. Meu pequeno Tommy Tittletumps. O beb a olhou e curvou os lbios naquele meio sorriso. Alongou as mozinhas gorduchas

e lhe tocou o nariz, entre risadas. Ai, que biscoitinho mais tolo. Esfregou-lhe a barriga com o rosto e esfregou nela a cabea. Biscoitinho tolo! O menino gritava de risada e lhe agarrava as mechas soltas. Meu doce biscoitinho! Levantou-o e lhe deu um abrao.

Vieste me visitar? Vieste a ver sua tia Kai, n? Perdeste a seu pai e a sua me, meu pobrezinho, meu pobre Tommy Tittletumps? O que vai ser de ti? O senhor Gerard h dito que podia ficar -disse Leda vacilante. Samuel um bom menino! foi o

comentrio resolvido de lady Kai ante a notcia. Leda olhou para lady Tess com muita menos segurana. Voc e lorde Ashland tm alguma objeo, senhora? Porque poderia me aproximar da aldeia e procurar a algum que queria fazer-se cargo dele. O que? Lady Ashland, que contemplava

o tapete com o cenho franzido, levantou a vista. No, claro que no. Estava pensando no que vamos necessitar para organizar o quarto do menino.

Para fortalecer a perna, Samuel se dedicava a caminhar. Utilizava-a para dar chutes letais contra os troncos das rvores; rodava logo para trs e ficava imvel um tempo indefinido, respirando o flego longo e silencioso das rvores que o rodeavam. A chuva lhe caa rosto abaixo, e o aroma de folhas

com mofo lhe impregnava as mos e a roupa. Era consciente do medo que o invadia. Era consciente da enorme brecha que se aberto em seus propsitos. Permanecia sob a chuva e pensava em coisas elementares. Fogo. gua. Vento. F. A vontade que fica em ao sem pausa.

Havia momentos nos que esconder-se, e momentos nos que mostrar-se sem disfarces. Leda pensou que seus recentes encontros com o senhor Gerard no tinham sido de tudo satisfatrios. Sentia a necessidade urgente de encontrar-se com ele em uma situao em que ela tivesse o papel dominante, para lhe demonstrar o

to controlada e sbria que era, e que, por norma, no tinha tendncia alguma a exceder-se com as cerejas em brandy nem a apoiar as costas em cavalheiros solteiros. Entretanto, ele conseguiu assust-la e lhe fazer perder a compostura, ao aparecer molhado e com parte de uma folha morta pega

ao brilhante cabelo, justo no momento em que ela saa da biblioteca para lhe levar ao Sheppard os planos para sentar aos convidados na prxima semana. Onde est lady Kai? Nem uma saudao, to aquela s pergunta brusca, como se ela fosse um dos lacaios. Seus olhos cinza

se cruzaram com os dela apenas um instante. Leda apertou o caderno contra o peito. No quarto de criana. O quarto de criana! Apertou os lbios. Por qu? Ela e lady Tess esto inspecionando o que h nele, para ver o que servir para

o beb. Olhou-a com frieza, estreitando os olhos ligeiramente. Senhorita toile, teria a amabilidade de vir um momento biblioteca? Leda apertou com mais fora o caderno, agachou a cabea e o obedeceu com um sentimento de apreenso que estava muito longe da compostura digna que

tinha esperado mostrar. Quando ele fechou a porta atrs deles, Leda se voltou e a abriu. Ele esperou at que ela esteve sentada em uma cadeira, antes de dar a volta e fechar a porta uma vez mais com um ressonante golpe. Senhorita toile, quero que fique absolutamente claro que

o infante exclusivamente responsabilidade sua. No de lady Ashland. Nem do Kai. Sua, se que o quer aqui. Sem dvida. Leda tragou a angstia. Mas Ele girou e se dirigiu s estantes.

Procurar um bab, e se encarregar de tudo o que seja que um beb necessite. Ter que arrumar o quarto de criana, lady Tess d seu consentimento, voc vigiar as obras. Faa-me uma lista com o que acredita que vai custar, e com as faturas nas que incorra. Est claro para

voc? Leda elevou a cabea, indignada por que ele parecesse pensar que havia descumprido com seus deveres. Est muito claro, senhor Gerard. Sua dignidade ofendida no pareceu fazer racho nele. Dedicou-se a olhar uma fileira de livros encadernados em pele com ttulos em latim, como se

preferisse olh-los a eles antes que a Leda. Se elas querem entreter-se com a criana, esto em todo seu direito. Seu nome Samuel Thomas. O nome no tem nada que ver com o que lhe estou dizendo, senhorita toile. Lady Kai o chama

Tommy. Por fim, ele deu a volta e a olhou. Podia estar furioso, mas no tinha um cabelo de tolo. Pegou-lhe carinho? Na pergunta havia uma leve nota de surpresa. Senhor Gerard, se o que quer ganhar a admirao de lady Kai, descobrir que deu um

passo muito importante com a deciso tomada esta manh. Neste momento est coberto por uma brilhante armadura. S por dizer que voc podia ficar ele. Que podia ficar com ele, senhor Gerard. No lhe aconselho que se refira ao Tommy como um objeto em presena de lady Kai.

Ele ps-se a andar para a janela e ficou contemplando a chuva. Parecia que a notcia, em lugar de lhe agradar, tinha-o deixado confundido. Depois de uns instantes, seus lbios se curvaram com um pouco de humor. E se for assim? No vejo como me poderia arrumar isso

para lhe proporcionar bebs de forma regular. A Leda veio cabea a incisiva ironia da senhorita Myrtle. Em minha opinio esse deveria ser o principal propsito de seu matrimnio, ou que me equivoco? O senhor Gerard ficou gelado. Fechou os olhos e jogou lentamente

a cabea para trs. O sorriso de seu rosto era como um risco negro gravado em uma pedra, cheia de frieza e amargura. obvio. Tem razo, sem dvida. Como sempre, senhorita toile. Ela, j antes que ele falasse, estava ruborizando-se intensamente. senhorita Myrtle, a sua idade

e com suas excentricidades, e tendo em conta sua fama de boa conversadora -o que era um orgulho para o grupo de South Street, a ela podiam lhe haver perdoado um comentrio to descarado, feito entre damas e com a boca tampada com a mo. Mas que Leda mencionasse esses assuntos to

abertamente era indesculpvel. Agachou a cabea. Sou uma impertinente exmia e no tenho desculpa.

? Ele falou dirigindo-se ao teto, em um tom terrivelmente frio. No h dito mais que a verdade. Baixou o rosto e olhou para a janela. Com a penumbra exterior de fundo, o suave reflexo de suas feies parecia uma espcie de retrato esboado sobre o cristal. Tenho competidores, senhorita toile?

perguntou de sbito. O que me diz do tal Haye? Leda inclinou o queixo. O bordo do caderno lhe resultou do mais interessante. Refere-se voc a lorde Haye? Ele comeou a dar voltas pela estadia, sem propsito definido, colocando uma cadeira em seu lugar, passando a

mo pela superfcie de mrmore de uma mesa. Hei-me dito mesmo que devo ser mais direto com ela. deteve-se e olhou Leda de soslaio. Em Nova Iorque, fui joalheria Tiffany. Comprei um colar. O que lhe parece? Leda no sabia o que pensar. O fogo de carvo

que ardia na chamin lhe pareceu excessivo: os Ashland gastavam combustvel como se fosse gua do mar, mantinham um bom fogo em cada uma das estadias, e tinham um criado cuja nica misso era encarregar-se de mant-los acesos todo o dia. Deveria dar-lhe -Em sua voz havia uma nota de

impacincia. De presente de Natal, pensei. Ah. Leda esclareceu garganta ao dar-se conta de que esperava que ela elucidasse a questo. Tinha boa idia das jias de lady Kai, a quem lhe agradavam as coisas singelas e elegantes, muito apropriadas para sua idade. Um presente to pessoal no

era de tudo correto, ou poderia ser que fosse tratar-se de algo simples, como um brinco com uma prola, ou um broche. Em tal caso, pensou Leda, no seria to inapropriado, j que lady Kai e o senhor Gerard se conheciam muito bem entre eles. Assentiu sem muito entusiasmo.

Acredito que depende do colar. Do estilo e o preo da jia. O mostrarei. No estava seguro. encolheu-se de ombros. No sou um perito no que se refere ao gosto feminino. Acredito que eu sei o que lady Kai gostaria. Manteve um tom severo, tentando compensar sua

anterior falta de delicadeza. Em tal caso, venha aqui antes do jantar. Posou a mo no pomo da porta. O trarei ento. Enquanto esperava que ela fosse biblioteca hora assinalada, sentiuse absurdamente nervoso. O estojo de veludo da Tiffany repousava sobre a ampla superfcie de

um dos dois escritrios bem abrilhantados que ali havia, iluminado por uma vela que oscilava cada vez que uma pequena cascata de grosas gotas de chuva caa sobre o cristal escuro da janela. Os painis de madeira e as fileiras de livros absorviam toda a luz: s o fronte

de espelhos da secretaria que havia junto parede do fundo devolvia a iluminao. Dentro do estojo, sua compra jazia sobre um leito de cetim azul. Que a opinio de lhe importasse era uma espcie de debilidade, mas no resistiu idia. Era melhor utilizar a fora de seus

impulsos livres, dirigi-la e projet-la, e convert-la assim em inesperada energia. Havia coisas que precisava entender; ela era uma fonte de certo tipo de verdade, de uma verdade feminina confusa, nebulosa e sempre cambiante que escapava inclusive ao que Dojun lhe tinha ensinado. Ela compreendia coisas que a ele lhe

escapavam. A cegueira dele tinha sido monumental, de tal calibre que se encontrava em um ponto entre a vergonha e a risada mais sombria pelo fato de ter fugido a realidade. Claro que Kai adorava os meninos, obvio que quereria filhos prprios; durante toda a tarde no tinha feito outra coisa

que abraar ao Tommy, que lhe falar com menino quando no havia forma de separ-lo de lady Tess. E no se tratava de um entusiasmo passageiro: quando voltava a vista atrs e recordava todos aqueles anos, encontrava um sem-fim de provas de que assim era. Todas as amizades de Kai, todo seu

trabalho voluntrio, todas suas afeies tinham estado sempre em relao com os meninos. Sempre o tinha sabido. E nunca, at esse dia, enfrentou-se cara a cara com o que aquilo implicava. Nem a prpria Kai sabia o que isso significava, disso estava seguro. No podia sab-lo. Se soubesse,

seria distinta, no seria to alegre nem to aberta, no se dirigiria nem a ele nem a ningum mais com tanta liberdade, com abraos e beijos que eram como os abraos e beijos que d uma menina, limpos e cheios de ingenuidade. Pelo menos, os de uma menina como ela

tinha sido. Ele no queria que existissem aqueles outros meninos, meninos da classe que tinha sido ele. Em certa forma, queria que algum como ele no existisse. Quo nico sim queria, sempre, era proteger Kai do que ele sabia. Pelo que ele era. Da diferena entre o amor que por

ela sentia e o que tinha percorrido seu corpo no dia anterior quando a senhorita toile tinha apoiado seu corpo no dele. De todas as coisas que tinha claras, a mais meridiana era que no queria ferir Kai jamais. Que com ele estava completamente a salvo. No desejava outra coisa dela que

aqueles beijos e abraos ingnuos; no tinha necessidade de outra coisa que ser seu escudo e defender sua transparente inocncia. Sua vida inteira se resumia nesse objetivo: em casar-se com ela, e em que ambos estivessem a salvo. Estariam protegidos. Ele estaria completo. Mas ela queria ter filhos.

Deu-lhe voltas a aquela idia na mente, procurando um atalho que evitasse aquele poo. Tentar to sequer pensar de uma vez em Kai e na parte escondida de si mesmo lhe produzia mal-estar fsico, como o aroma do veneno no ch de Dojun. Seus instintos e cada fibra de seu corpo reagiram

com um terminante no.

Kai no entendia nada daquilo, nada do que ele ocultava, mas era possvel que a senhorita toile sim que o entendesse. Kai tinha se arrojado a seus braos: a mesma Kai de sempre, com a mesma total confiana, sbria ou bbada. A senhorita toile fazia ornamento de seu recato como se

estivesse coberta de espinhos, exceto quando se encontrava bria de licor de cerejas. Ela guardava as distncias possivelmente sim que o entendesse possivelmente sentisse quo mesmo ele e lutasse por control-lo. Seria um alvio, pensou. Um alvio escuro e desejado, deitar com ela e saciar seu apetite. Soube

em que momento ela se aproximava da porta e fazia uma pausa. Sempre a percebia com claridade; era uma sensao especialmente viva. Seu aroma, seus passos, seu flego suave, o frufru do tecido de seus vestidos; todas essas eram caractersticas delas que ele, obvio, conhecia, mas havia outras coisas que estavam

mais frente da soleira de percepo normal, e que resultavam claras, transparentes para a conscincia profunda que existia no mais recndito de seu ser. Conhecia-a da noite em que tinha comeado a utilizar o quarto da jovem como esconderijo de seus artigos roubados; tinha-a reconhecido imediatamente nos sales da costureira, em

que pese a que jamais tinha visto seu rosto luz do dia. Sua essncia era puramente feminina. Parecia-lhe mais feminina, mais oposta a ele, mais escondida entre as brumas do que Kai ou lady Tess lhe tinham parecido nunca. A parte dbil de seu ser tinha saudades.

Tem que ser ardiloso -lhe havia dito freqentemente Dojun. Pensar que a debilidade unicamente um defeito pr limites aos propsitos. Enfrente verdade, e depois a utiliza para seus prprios fins. Mas aquela debilidade sua era de uma classe que ele no queria utilizar. Para potencializar a debilidade

tinha que conhecer antes suas dimenses, e isso no sabia nem queria sab-lo. Havia mais gente com ela no corredor, ningum que lhe resultasse familiar. Ouviu-os falar, e ouviu tambm a apressada resposta dela em tom de desculpa e a promessa de que no demoraria muito. No bateu na porta

nem a entreabriu at que os outros passos continuaram corredor abaixo. Com ela entrou um aroma de plantas, uma brisa fresca na rida calidez da estadia. Ela a deixou fora rapidamente, e no fez intento algum de deixar a porta aberta. Vestia um traje verde de decote pronunciado,

com sombras cor esmeralda nas dobras da saia, e a pele e o pescoo sem adornos eram como o plido resplendor branco das flores que se abrem na noite. Samuel se sentiu leve, como se por vontade prpria tivesse saltado de uma rocha. Durante meses tinha freqentado a companhia de

Dojun e de homens de negcios, com dependentes chineses, arquitetos e marceneiros, cobradores de trem, capites de navios, marinheiros. Quase se poderia dizer que tinha sido um monge guerreiro yamabushi que vivia na cpula de uma montanha, no que ao contato com as mulheres se refere. Se as

evitar tinha aguado seus sentidos para aquilo do que se apartou, agora cada uma de suas sensaes e faculdades estava alagada dela. Vestiu-se sozinha para o jantar. Isso sabia. Kai tinha levado a pera decote muito mais reveladores. Em que pese a tudo, aquele fato o confundia. Nunca tinha

visto a senhorita toile vestida de outra forma que com golas altas das mais modestas, a no ser por aquela imagem que se apoderava dele de seus seios, suas costas e seus ombros enquanto escovava o cabelo em seu quarto. Tudo aquele arbusto de cabelo mogno, aquele cabelo que lhe

tinha acariciado a mandbula no dia anterior com a suavidade das plumas, o tinha recolhido em alto em um penteado solto de intrincados cachos de cabelo e tranados. No tinha as feies clssicas como as de Kai. O rosto da senhorita toile, como muito, podia descrever-se como bonito; os olhos no eram

de um verde puro, e o queixo tinha forma de corao. A boca tinha uma linha agradvel inclusive quando no estava sorrindo. Que bem a conhecia, depois de momentos roubados de observ-la. Ao lado de Kai, parecia inclusive que poderia passar inadvertida, mas no para ele. Agora no o olhava.

Estava em p e mantinha as mos as suas costas sobre o pomo da porta, como Joana DArc na fogueira. No farei que se perca a chamada para jantar -disse ele refugiandose na ironia, irritado ante o desconforto dela e a sua prpria. No lhe ocuparei mais que uns

minutos de seu tempo. obvio. Olhou-o e fez um gesto vago indicando o corredor. Eram as senhoritas Goldborough e sua me. Parecia pensar que a explicao lhe seria de alguma utilidade a ele, mas no foi assim. No entenderiam que eu seja secretria de voc,

sabe? Temo-me que senhora Goldborough no ia gostar disso. Acreditam que sou a acompanhante de lady Kai e a assistente em questes sociais de lady Ashland. H-lhes dito isso? obvio que no! Adotou aquela postura to sua de eficincia e dignidade ofendida, que normalmente lhe provocava

um sorriso. Esse dia lhe fez fixar-se na linha de seus ombros nus e na curva de sua cintura. No tive necessidade de mentir. Simplesmente me dediquei a realizar as tarefas que me atriburam, e deixei que fossem os prprios convidados os que tirem as concluses. Significa isso que j

no pode trabalhar para mim e seguir minhas ordens pessoais? Ela mordeu os lbios. Estava claro que teria preferido que fosse assim, mas passou a seu lado e se deu a volta, movendo a saia ao faz-lo. Estou completamente ao seu servio, obvio. Mas me desagradaria muito

que houvesse algo que desse uma m imagem da famlia. Igual me aconteceria. A leve irritao que sentia aumentou. Posou a mo sobre o estojo de veludo. Quer ver o colar?

Sim. Claro que sim. Esta semana fui ao joalheiro de lady Kai. No tem nada de prolas, se que, por acaso, essa foi sua eleio. No de prolas. Abriu o estojo e o inclinou em direo a jovem. A luz das velas iluminou as pedras

preciosas com toda intensidade. Samuel olhou senhorita toile. Observou como tragava ar, uma larga baforada seguida de uma pausa enquanto sua pele se ruborizava. Leda fechou os olhos e depois os abriu de novo, de par em par. Valha-me o cu. Exalou todo o ar de uma vez.

O colar era uma gargantilha desenhada em forma de amplo lao de filigrana, completamente coberta de diamantes, com flores e folhas engastadas de diamantes no centro. A parte dianteira era mais larga e simulava uma laada, cujo centro consistia em uma enorme pedra, da que saam os dois lados da laada

feitos de filigrana, que estavam rematados por uns fios de pequenas flores to brilhantes como os casulos em um lei. Cada um dos fios terminava em trs diamantes em forma de pra. Samuel esperou. Ao final, no teve mais remedeio que lhe perguntar diretamente: Gosta? Ela

levou o punho aos lbios e sacudiu a cabea. Samuel baixou o estojo e o depositou sobre a mesa, apalpando um dos fios de diamantes. Era estranho, mas se sentia como se o tivesse rechaado pessoalmente. Por Deus bendito, no era mais que um colar; tinha pensado que era bonito,

mas se no o era, no o era. Enviarei-o de volta. Manteve a voz firme, por medo de que ela se desse conta de sua desiluso. No! A jovem baixou a mo. No. magnfico. Sinto muito, mas por um momento fiquei aniquilada. Samuel levantou os

olhos para ela. Leda jogou a cabea atrs e soltou uma breve risada. Que afortunada lady Kai. Piscou um par de vezes. E que parva sou eu. Fez que me encham os olhos de lgrimas, senhor Gerard. Fez um gesto contido com o leno que

tinha tirado da manga. Passa-o? Leda soltou uma nova risada estranha. Asseguro-lhe que tem voc um gosto digno de louvor. Entretanto Levantou a cabea e tomou ar em profundidade enquanto voltava a colocar o leno no punho e se alisava a manga. Acredito

que talvez fosse melhor que o reservasse como presente de compromisso, a no ser que ela aceite sua proposio antes do Natal. Em que pese a que sua voz fosse firme, ainda flutuava em seus olhos um pouco da luz da vela, e em sua boca -naquela boca doce e curvada havia

um leve tremor inquieto. Gostaria que voc o provasse. Samuel ouviu si mesmo fazer a pergunta. De novo aquela sensao de ingravidez se apropriou dele; sentiu-se miservel pelas mars, empurrado para uma nascente tormenta.

No, no. No poderia. Eu gostaria de v-lo. Tratou de mostrar-se despreocupado. O fingido encolhimento de ombros fez ranger o duro pescoo de sua camisa. Tambm ele estava vestido para o jantar, com fraque negro e gravata branca. Na joalheria no havia mais que homens. Deveramos ir

ao salo. Estaro reunindo-se ali. Ele tomou o colar de seu leito de cetim e se aproximou dos espelhos. Venha aqui, senhorita toile. Tampouco que a tenha feito trabalhar muito a minhas ordens. Com os lbios franzidos, Leda abaixou a cabea e se aproximou aonde

ele aguardava. Samuel colocou uma cadeira ante o espelho e ela se sentou com as mos unidas no colo e lhe dando as costas. Ele deslizou o colar de diamantes em torno de seu pescoo sem ro-la. Mas a jia estava feita para ater-se ao pescoo, e o diminuto e

escondido fechamento lhe obrigou a usar os dedos sobre a nuca da jovem. Uma ligeira mecha de cabelo na base do penteado lhe roou o dedo. Era quente e sua pele fresca. Samuel levantou o olhar at o espelho. Ela olhava os diamantes, e o olhava a ele.

Sua inteno era apartar as mos. Soltou o fechamento da gargantilha e levantou os dedos muito s pressas. Um cacho de seu cabelo se soltou dos frouxos alfinetes. O colar reluzia sobre seu seio. Ela e aquelas pedras emanavam luz em meio da escurido circundante: ele mesmo no era mais

que escurido e caa caa No deveria ter feito aquilo. O colar teria que haver ficado guardado sem perigo em seu estojo. No precisava saber a opinio dela sobre a jia, no tinha convertido sua fraqueza em fortaleza, no tinha feito outra coisa que deixar que o consumisse.

A vela arrancou escuros reflexos do cacho de cabelo. Ela levantou a mo como se fosse p-lo em seu lugar; mas, antes que o fizesse, ele o tocou. Baixou o olhar e viu como sua mo brincava com a mecha entre os dedos, com o punho apoiado no ombro nu dela. Era

como se seus atos fossem alheios a ele, mas no era assim: sentia cada textura, cada delicado cabelo do cacho, cada respirao suave dela. Deslizou os ndulos com a suavidade de uma pluma pescoo acima, por cima do colar, at chegar a um ponto junto a sua orelha que era

pura seda, com uma sensao que jamais antes em sua vida tinha conhecido. Permaneceu em silncio, tocando-a. Era mais forte que ele, mais forte por completo; no podia afastar-se por sua prpria vontade. Detenha-me -pensou. No me permita isso. Era incapaz de retirar a mo, incapaz de falar.

Quando moveu os lbios, no saiu deles nenhum som. Ela s o olhava no espelho, os olhos muito abertos e de um verde escuro. Nos meses que ele tinha estado fora, seus mas do rosto tinham deixado de estar to marcados; seu rosto estava mais cheio, tinha mais doura. Sabia

que tinha passado fome, que tinha vivido ao bordo da indigncia; tinha utilizado aquele desespero para at-la a ele, tinha-lhe

posto um lao atrs de outro para sujeit-la, para que lhe resultasse impossvel tra-lo. Mas jamais o tinha trado. Nem ao princpio, quando tinha estado a ponto de mat-la. Parecia imensamente vulnervel, e sua quietude sob a mo dele era um ato de infinita confiana. Com os

dedos era capaz de abrir a casca das rvores e capaz de sentir as leves pulsaes do corao no pescoo dela, ligeiras e rpidas. Samuel levantou a outra mo e lhe rodeou o rosto. Pequeno. Delicado. Como se tivesse entre suas mos a vida de um pardal. O desejo o

invadiu. O que ele queria Deus, o que ele queria Pensou em Kai, em seus planos, na casa que tinha construdo. Tudo aquilo pertencia a outro universo, um universo de fantasia e brumas, e nunca havia se sentido to vivo como naquele momento. Abriu as mos, roou com

os polegares a pele sob o lbulo das orelhas, apoiou as gemas dos dedos nas tmporas, logo lhe roando a face. Ela continuava sem fazer outra coisa que olh-lo no espelho. Que olhos mais bonitos tinha, do mesmo verde apagado de uma pradaria na nvoa, de seus bosques ingleses, com as pestanas

to largas que sentiu seu roce nos dedos. Ficou ali tocando-a, imaginando seu cabelo cobrindo-o em ondas, imaginando seu corpo: o aroma voluptuoso, os sons. Sua prpria garganta se esticou para sossegar um gemido. S queria abra-la, levant-la e embal-la entre os braos contra si e queria domin-la. Dentro dele

havia uma violncia terrvel. Tudo o que sabia, tudo o que tinha aprendido na vida era destruio. O controle da vontade e a humilhao, mas a vontade lhe tinha falhado. Recorda isto -lhe tinha advertido Dojun. Essa paixo transbordada, esse corao que se soma com tanto mpeto ao tumulto do

corpo e encontra tanto gozo nele, convertero-se em um bosque de espadas que cortaro seu esprito em mil pedaos. Era preciso que o recordasse. Foi s a vergonha, uma imensa vergonha, a que finalmente o impeliu a abrir as mos e solt-la, e a sair mudo e cego

da estadia. 23 Leda ficou paralisada sentada ante o espelho. Do que parecia ser um ponto muito longnquo, soou o sino que anunciava o jantar. Era consciente de que a porta as suas costas estava aberta. O colar reluzia sobre seu pescoo com um resplendor de

diamantes. A imagem comeou a apagar-se ante seus olhos. Com mos torpes procurou o fechamento, no o encontrou e rompeu a chorar inverificado. porque minha me era francesa -pensou. Sou uma frvola. Uma desavergonhada. Sou feliz. No posso ser feliz. Contemplou sua imagem imprecisa no

espelho. Em seu peito sentia uma mescla de humilhao e triste gozo.

No podia estar feliz. Era indecente sentir felicidade. Tinha sido objeto de uma afronta terrvel e profunda. Ele tinha se comportado com o mais spero dos descaramentos. Era um insulto a lady Kai, famlia, ao teto que os cobria. Era imperdovel. Ela no tinha perdo, j que as

lgrimas que derramava no eram de remorso. No havia maneira de tirar o colar. Brigou com ele, ouviu passos e vozes procedentes do vestbulo da cpula, e, presa do pnico, forou o fechamento at abri-lo. Agarrou o estojo do escritrio e se meteu na zona escura da habitao. De um momento a

outro os convidados sairiam do salo pelas portas duplas que havia ao p da escada, os cavalheiros dariam o brao s damas e as conduziriam at o comilo segundo a ordem preferivelmente que a prpria Leda, depois de uma cuidadosa consulta do Burke's Peerage, tinha preparado para lorde e lady Ashland.

Agora, depois de meses de jantar alegremente com a famlia, a s idia a enchia de pnico. Sabia de cor a ordem dos convidados ao jantar dessa noite. Ao ser empregada e mulher comum, ela iria em ltimo lugar, justo diante da anfitri, do brao do cavalheiro cuja ausncia de relevncia

social fosse similar sua. O senhor Gerard. E se sentaria direita dele durante o jantar, enquanto que lady Kai estaria justo frente a ele ao outro lado da mesa. Leda ficou horrorizada ao dar-se conta de que ela mesma o tinha planejado assim. Dentro

dos limites que marcava a ordem de preferncias, em seu lugar poderia ter emparelhado a uma filha da famlia com o senhor Gerard, e a ela mesma com o ancio senhor Sydney, quem tampouco tinha direito algum a estar presente no comilo, se conduzisse de forma mais estrita s convenes, coisa que

trazia para os Ashland sem cuidado. Mas, quando tinha escrito os postos de cada um na mesa, tinha-se permitido dar um gosto, pequeno e s por essa semana, aproveitando um pouco da nica circunstncia que compartilhava com o senhor Gerard: no ser ningum na escala social, se deixavam a um

lado a naval de sua propriedade, os cargos diretores, as companhias madeireiras, os bancos e as asseguradoras martimas, assim como as dez libras semanais que ela ganhava como secretria por no fazer nada absolutamente. O rumor da conversao subiu de tom, a voz de lady Whitberry, inconfundvel por seu tom

trmulo, ressonou no espaoso vestbulo sob a cpula. Leda enxugou os olhos rapidamente com um leno, rogando que no os vissem inchados nem avermelhados. Incapaz de pensar em nada melhor, agarrou o primeiro livro ao seu alcance e colocou o colar detrs. Depois de esclarecer a garganta, alisar a saia e respirar

em profundidade para recuperar o ar, sem conseguir acalmar-se absolutamente, saiu ao corredor e percorreu a varanda sob os arcos em direo ao murmrio da conversao. Lorde Ashland e lady Whitberry j tinham comeado a descer pela escada. Os restantes casais, quinze em total, formaram-se no salo e os seguiram.

No momento em que Leda chegou ante a porta dobro, viu que

lady Tess se inclinava por diante de seu acompanhante, lorde Whitberry, e falava com o senhor Gerard, que no tinha par. Leda sabia perfeitamente bem que lady Tess estava lhe dizendo a quem tinha que acompanhar, tal como ela mesma se encarregou de lhe aconselhar que devia fazer com

todos os convidados. Pensou que o ar que a rodeava era impossvel que no refletisse o ardor daquele rubor que lhe cobria o rosto. Pior, quando ele levantou o rosto e a olhou aos olhos, viu que tambm mudava de expresso: o gesto de sua mandbula se esticou e deu a impresso

de que se apoderasse dele uma rigidez tal que lhe impedia at assentir. Lorde Whitberry moveu as brancas sobrancelhas em direo a ele e comentou em voz alta: Somos uns tios com sorte, n, Gerard? Ho-nos tocado ao nosso lado as moas mais bonitas. Leda distinguiu o escuro

rubor que transbordou o pescoo da camisa do senhor Gerard. Sua resposta foi to breve que no a ouviu. Lady Kai, que tirava uns dez centmetros ao senhor Sydney em altura, lanou um beijo a Leda quando passou com ligeireza ante ela do brao do gil ancio. E ento j no ficou

aos dois outro remdio: o senhor Gerard se aproximou e lhe ofereceu o brao. No lhe disse nada. Nem sequer a olhou. Leda ouvia as conversaes dos que foram diante e detrs deles. Lady Tess e sua filha obedeciam ao p da letra a norma que ela lhes tinha ensinado:

que os convidados no deviam dirigir-se ao comilo em silncio, que imediatamente teria que estabelecer um dilogo agradvel com os acompanhantes. Leda e o senhor Gerard, entretanto, desceram em um silncio asfixiante. Ela manteve os dedos sobre seu brao sem chegar a ro-lo, com a vista cravada na

outra mo, fingindo uma intensa concentrao no recolhido da saia enquanto baixava a escada. Ao p da escada sua postura a delatou; acreditou ter chegado ao cho quando ainda ficava um degrau e perdeu o equilbrio, precipitando-se para diante. No houve em nenhum momento perigo algum de que casse. Em

que pese a isso, apertou a mo instintivamente. Ele recebeu seu peso sem alterar-se e lhe transmitiu seu equilbrio. E, por um momento, as sensaes recordadas de seus dedos agarrando-a pelos ombros, de suas mos lhe rodeando o rosto, resultaram-lhe completamente reais, coisa que no lhe tinha acontecido quando as tinha experimentado.

Cada um daqueles detalhes adquiriu vida plena: a calidez do colar sobre a pele, as gemas dos dedos lhe percorrendo a face, o roce da lapela de cetim em sua espinha dorsal. Leda entrou no comilo invadida pela desagradvel verdade de que o homem que estava a seu lado, com aquele perfil

perfeito e frio, transbordante de fora sutil e com aspecto de um cone negro e dourado com aquela indumentria elegante, tinha-a acariciado intimamente, com deciso; que somente lhe tinha faltado abra-la. Mas sim que o tinha feito. Seria fiar muito fino afirmar que no tinha sido assim, fingir que se

limitou a lhe roar a mo ao passar. Percorrer

com os dedos a curva nua de seu pescoo no podia considerar-se outra coisa que uma imoralidade absoluta. E lhe acariciar o rosto! Soltou-se de seu brao antes do que marcavam os cnones. Aproximou-lhe a cadeira, e Leda se perguntou se o olhar que o senhor Curzon lhes dirigiu

estava to carregada de inteno como parecia, ou era simplesmente um gesto provocado pela doena de costas que sofria. De maneira absurda, veio-lhe cabea o pcaro poema que uma das senhoritas Goldborough tinha recitado a semana passada: George Nathaniel Curzon, cavalheiro gracinha; a bochecha rosada, a cabeleira azeitada, e

em lugares de grande fama jantar uma vez por semana. O certo era que o senhor Curzon era do mais altivo, e seu pai ainda pior. Nenhum dos dois se dirigiu a Leda nem ao senhor Sydney desde que os tinham apresentado aquela tarde, e lorde Scarsdale tinha virado para

o outro lado sem dissimulao quando lady Tess fazia as apresentaes. Leda entendia as peculiaridades do trato social, mas se tinha acostumado de tal forma ao ambiente depravado da casa dos Ashland que lhe resultava muito difcil no encontrar desagradvel a altivez dos Curzon. Mas no era capaz de pensar

nessas coisas naquele momento. O senhor Gerard a tinha acariciado. O mesmo senhor Gerard que estava apaixonado por lady Kai. O homem sentado a sua esquerda. Que no dirigia uma s palavra nem a Leda nem senhorita Goldborough, sentada ao outro lado. Muito desgostada para comer, Leda brincou com

a sopa enquanto lorde Whitberry, a sua direita, contava a gritos uma extensa histria. Man! Lady Kai interrompeu o silncio do senhor Gerard com um golpe da colher no copo. Nunca tinha emprestado nenhuma ateno ao axioma de que no se deve falar com algum situado ao outro lado da

mesa durante um jantar numeroso. Decidimos que Tommy ser botnico quando crescer. J tentou comer duas das orqudeas de mame. Se for te encarregar de seus gastos, como diz a senhorita Leda, tem que fazer o necessrio para que v Universidade de Oxford. A de Cambridge, querida! O senhor

Sydney a corrigiu com firmeza. Cambridge o lugar apropriado para um cientista jovem. Bom, que seja Cambridge. Estou segura de que em Cambridge consomem orqudeas com consumada elegncia. Voltou o rosto sorridente para o senhor Gerard. O que te parece? Eu me encarregarei de lhe proporcionar ao

menino tudo o que a senhorita toile considere apropriado -respondeu sem olhar a Leda. Temo que a senhorita toile no seja mais que uma novata nestes assuntos. Lady Kai fez um gesto negativo com a cabea. Olhe ao

Tommy como se tratasse de um mecanismo estranho cujo funcionamento no acaba de entender. Leda sorriu com esforo. Lamento confessar que no tenho nada de experincia com os meninos. Pois, em tal caso, tem que me dar isso. um verdadeiro encanto, seria

capaz de comer isso. Sabia que capaz de ficar de p no bero? E j tem um dente! muito precoce para ter apenas seis meses. Estou to contente de que no permitisse que o levassem de volta ao orfanato No quero nem pens-lo! De repente ficou mais sria do que

Leda a tinha visto jamais. Man Kane, tem que me prometer que nunca, que jamais o mandar a esse lugar. Para obter aquela promessa olhou ao senhor Gerard, e no a Leda, como se a responsabilidade do menino fosse acima de tudo dela, e ele no o negou.

Com seu tom tranqilo, limitou-se a responder: No, no o farei. Com a maioria das pessoas, aquelas palavras poderiam ter parecido sortes ligeira, como se sua nica inteno fosse tranqilizar. Mas o senhor Gerard tinha uma forma de falar que o fazia acreditvel. Retiraram a sopa. Quando chegou o

segundo prato, ele olhou a Kai de novo. Voc gostaria que o adotasse legalmente? Faria-o? O susto de surpresa de Kai se mesclou com o murmrio chocado com o que lady Tess pronunciou o nome de Samuel e com o grunhido de incredulidade de lorde Whitberry.

Estou-o meditando. Ainda no sei o que o processo implicaria. Leda lhe dirigiu um olhar por debaixo das pestanas. A idia tambm a tinha deixado chocada; quanto mais porque estava segura, completamente segura, de que ele a tinha mencionado -e de que sem dvida a levaria a cabo com o

nico fim de contentar lady Kai. A resposta cheia de entusiasmo de Kai fez que as feies do rosto do senhor Gerard perdessem algo de sua rigidez. Mas no ter que estar casado para adotar um menino? perguntou lady Kai com o cenho franzido. Samuel bebeu um sorvo

de vinho e a olhou do outro lado da mesa. Possivelmente. Lady Tess olhou primeiro para ele e depois para sua filha com preocupao, e a seguir baixou os olhos ao prato. E como vai aos filhotinhos de jaguar? perguntou Leda ao senhor Sydney, e em

sua voz houve apenas um tom muito agudo. Segue sendo to valento o maior? O homenzinho cortou com calma uma parte do pescado. Infelizmente, assim . E temos outro tirano em nossas mos: a me. Tornou-se excessivamente protetora. Vi-me obrigado a apart-la do resto e a p-la em

um cercado menor.

O senhor Curzon surpreendeu Leda quando teve a condescendncia de mencionar que tinha a inteno de viajar logo a Samarcanda e a sia central, e de lhe perguntar ao senhor Sydney se sabia que classe de animais exticos podia esperar encontrar-se ali. A conversao em torno da mesa retomou temas mais

apropriados, e Leda voltou para a realidade. O senhor Gerard desejava casar-se com lady Kai. A me de Leda tinha sido francesa, e aos cavalheiros resultava difcil controlar seus instintos animais quando de damas francesas se tratava. A senhorita Myrtle sempre o tinha assegurado, e citava a aquele

homem inominvel como o melhor exemplo do que dizia. E isso era tudo o que havia. Os impulsos masculinos do senhor Gerard se impuseram a suas maneiras por um momento. Estava claro que se sentia envergonhado por aquele deslize, e que pediria desculpas logo que se apresentasse a oportunidade. Ouvia

com claridade o que a senhorita Myrtle haveria dito com respeito ao incidente e, de repente, entendeu por que a dama tinha posto tanto empenho em instru-la sobre qual era a conduta adequada, e por que lhe tinha falado com tanta freqncia das imprudncias das jovens e, em particular, das que eram

meio francesas. E que Leda tinha a humilhante sensao de que, por muito absurdo que fosse, apaixonou-se pelo senhor Gerard. E o amor, como sempre havia dito a senhorita Myrtle, era um potente estimulante para as mentes carentes de sabedoria, que um tinha que saborear com extrema prudncia, com

sorvos pequenos e refinados, igual ao seu licor de cerejas. Samuel tentou cortejar Kai. Tentou-o. Observou ao Haye, que brincava com ela da mesma forma que estava acostumado a faz-lo antes ele mesmo, quando a jovem tinha sete anos e Samuel estava a anos luz em idade e experincia. Agora,

mais que sentir-se maior, tinha a impresso de ser um intruso, incapaz de encontrar algo que compartilhar com ela em temas como pssaros, sadas e entradas, ou a melhor maneira de saltar uma cerca ou um fosso a cavalo. Inclusive no referente ao Tommy, Haye ganhou a dianteira. Ao ser tio e

primo de um grande nmero de parentes jovens e prometedores, resultou ser do tipo de homens que se agacha e levanta em braos por cima da cabea a bebs que do alaridos, todos os dias antes de sentar-se a tomar o caf da manh. No era que Kai no fizesse

conta. A relao entre ambos era to carinhosa como sempre. Igual a sempre. Podia falar com ela, danar com ela, lhe dar conselhos que ela seguia. Descreveu-lhe a casa que tinha batizado com o nome de Pleamar e ela escutou com ateno, deu-lhe idias de como decor-la e aprovou o nome por

ele eleito. Mas Samuel se sentia incapaz de transpassar aquela barreira cmoda, familiar, to estabelecida da amizade entre ambos; no se decidia a lhe dizer que a

amava, resultava-lhe impossvel toc-la de forma que pudesse assust-la ou lhe causar desgosto. E, entretanto, viu que Haye albergava intenes amorosas para ela. O perigo de que a jovem aceitasse a outro homem antes que ele tivesse tido sequer ocasio de lhe falar o enchia de inquietao e ira.

Lutou contra esse sentimento, porque em suas intenes no havia capacidade para a ira, que s serviria para ceg-lo e pr obstculos em seu caminho. Mas, embora conseguisse liberar-se da hostilidade, no aconteceu assim com a inquietao, com a sensao de que suas certezas se desmoronavam e o apartavam mais e mais

daquela gente a que queria mais que a sua prpria vida. Inclusive lady Tess lhe parecia mais distante. s vezes era consciente da ateno silenciosa que lhe emprestava; mas, quando tentava aproximar-se dela, a dama sempre encontrava uma desculpa para afastarse, ou para falar com algum mais. Mas como,

mais que outra coisa, fez que sua inquietao se afianasse e estivesse ao bordo de transformar-se em alarme. Tinha que atuar. As coisas estavam mudando. Nas questes polticas e administrativas podia conservar o equilbrio, mas neste outro assunto era consciente de sua prpria estupidez, de sua capacidade para cometer enganos.

Preocupa-se muito -havia dito Dojun. Deseja muito. O que vou fazer contigo, n? Levava uma semana evitando senhorita toile, embora j no pensava nela com esse nome, nem sequer quando aparecia com aquelas golas to discretas que estava acostumada a usar. Agora, em seus pensamentos, a senhorita

toile era ela: calor, suavidade e desejo. Ela e Kai foram de um lado a outro da casa cheias de segredos, juntavam as cabeas, riam e se mandavam calar a uma outra quando ele aparecia de improviso: outra sensao mais de excluso, embora soubesse que s se tratava do

Natal, dos presentes e do que Kai desfrutava com as intrigas das festas. A casa estava invadida pelo aroma penetrante e afresco das grinaldas de folhas perenes: costumes ingleses, frio ingls; em seu pas teriam tido o aroma de porco assado e a flores, e bolo de coco no alpendre adornado para

o Natal. Oxal estivessem ali em lugar daqui. Gosta muito de voc. Havia ramalhetes de visco em lugares adequados, pendurando das aranhas do teto e sobre os lhes dente de algumas leva, e, embora ningum reconhecia ser o culpado de ter dado instrues nesse sentido, todas

as suspeitas recaam sobre o Robert, sobretudo depois de que ele e a mais velha das senhoritas Goldborough foram os primeiros em encontrar-se sob o ramalhete da porta do salo. A senhorita Goldborough se ruborizou, ps as mos s costas e lhe ofereceu a face ao jovem, mas sua me

estava dormindo a sesta, e Robert a agarrou pelos braos e a beijou em plena boca. As irms gritaram e

ficaram a danar entre risadas horrorizadas. Curzon arqueou as sobrancelhas. Samuel viu Kai lanar um olhar furtivo a lorde Haye. Haye, que estava em p com um livro entreaberto nas mos, contemplando as tticas de Robert, no pareceu dar-se conta. Enquanto Samuel a observava, Kai levantou os olhos e

tropeou com seu olhar. Dirigiu-lhe um leve sorriso, as faces tintas de um plido rosa. O sangue de Samuel gelou. Era um olhar a que no sabia como responder. De repente, voltou-se um autntico covarde e fingiu sentir um enorme interesse por um co azul e branco de porcelana da

China que havia em uma mesa prxima. Quando o agarrou e lhe deu a volta entre as mos para ver a marca, Kai recolheu a saia, apressou-se at chegar porta e, uma vez ali, deu-se a volta, saudou com uma breve reverencia e exibiu um sorriso travesso. Em meio

de sua inao, enquanto olhava sem ver a marca da porcelana, Samuel, mais que v-la, percebeu a sutil mudana no olhar de Haye. A tenso o invadiu. Entretanto, continuou imvel, incapaz de levantar-se: ficou sentado sem aproveitar a oportunidade, sabendo que Haye sim que ia se mover. Mas foi Robert

o que agarrou a sua irm, fez-a descrever um crculo na soleira, e terminou inclinando-se sobre sua mo e lhe beijando os dedos. Pequena bobagem! exclamou Kai retirando a mo. Desmanchaprazeres! Ele a separou da porta com um tranco. S tentava nos salvar de morrer

esmagados pela correria. No v como os elefantes se congregam para o ataque? Curzon os olhou com altivez. Haye sorriu e se acomodou no brao de uma poltrona, folheando a novela. A todo mundo chega seu dia, Orford -disse dirigindo-se a Robert. Orford! exclamou Kai com

tom de brincadeira. Como se fosse um lorde autntico. Na casa ningum o chama assim. Robert a olhou com uma risada zombadora. Tenho tanto de lorde como voc de lady, querida. Em seu caso, s se trata de um ttulo de cortesia. Isso o que

diz a senhorita Leda. Os lordes de verdade tm banco no Parlamento. Papai, se quisesse, poderia ocupar o seu. Haye levantou a novela. A ver, vocs dois. Tem lido algum destes livros? Sua interveno ps fim com delicadeza ao que ameaava degenerando em uma batalha verbal entre irmos.

Escritrio em escarlate. Escutem. esclareceu a garganta e baixou o tom de voz at lhe dar um toque dramtico: Na rigidez de seu rosto se via uma expresso de horror, e, conforme me pareceu, de dio que a postura retorcida e antinatural do cadver no fazia a no ser aumentar. Eu vi

a morte baixo muitas formas, mas jamais se apresentou ante mim sob uma aparncia mais aterradora que naquele piso escuro e imundo, que dava a uma das principais artrias dos subrbios de Londres.

Aquilo captou a ateno de Kai e de todos os pressente. Por favor, comece pelo princpio! exclamou a jovem, e se acomodou de novo em sua poltrona, interessada, com os olhos totalmente abertos. Enquanto Haye se ocupava em ler a histria de Sherlock Holmes e o doutor

Watson, Samuel no deixou de dar voltas entre os dedos a figura de porcelana da China. Levantou a vista sob as pestanas, escutou e observou como os outros respondiam ante a idia de deduzir as coisas a partir dos detalhes e a anlise. Tinha lido o livro, e o personagem de Holmes

lhe parecia apenas uma sombra de Dojun: torpe e bvio com sua lupa e sua lgica primitiva, muito seguro de seu universo e arrogante em suas concluses. No h nada mais que aprender aqui -afirmava com freqncia aquele personagem de fico. Minha mente j tem claro o caso. Um homem

que pensasse assim podia acabar morto. Dojun era capaz de mat-lo com um simples pensamento. Samuel sabia porque albergava em seu interior a mesma capacidade. A concentrao intuio; a intuio ao, como quando tinha estado a ponto de acabar com ela com um kiai, um grito do esprito,

naquele momento to crtico no sto da jovem. A intensidade de seu ataque tinha sido excessiva porque ele no tinha podido apart-la da mente. Inclusive ento, enfrentando-se a ela, tinha-a desejado. Sua inteno no tinha sido outra que imobiliz-la, ceg-la por uns momentos, mas entre eles havia uma conexo que no era

sozinho fruto da casualidade. Ele no era um professor como Dojun: no conhecia bem a si mesmo, cometia enganos. No se sentia em paz. Nem to sequer era capaz de levantar-se e dar um simples beijo sob o visgo. Sentado ali imvel, com o co azul e branco entre as

mos, soube que fugia de si mesmo a causa do pnico. E soube, do mesmo modo, que at que se atrevesse a enfrentar-se com a causa de seus temores, todas aquelas intenes suas no seriam outra coisa que fumaa e sonhos. O fogo na chamin da habitao de Leda se

consumou at ficar reduzido a umas brasas, a umas diminutas linhas com halos de cor laranja no negro carvo, que no arrojavam nenhuma luz mais frente do guarda-fogo. Samuel passou por diante e se apartou dali, em que pese a saber que ela estava adormecida e no veria sua silhueta ante

aquele resplendor. A estadia dava a sensao de estar invadida de aroma e presena femininas. Ela dormia tranqila, com respirao pausada que os sonhos no alteravam. Aquele sonho pacfico fez que algo no mais profundo de seu ser se sentisse gratificado. Ela se sentia segura ali, e era ele quem

a tinha levado; estava unida a ele de forma sutil por aquela paz alm de pela necessidade. Situou-se no rinco mais escuro da habitao e a contemplou, embora no havia nada que ver. Escutou, em que pese a que no havia nada que

ouvir. Esperou sem imaginar-se nada, sem fazer nada, sem pensar em nada, sem sentir nada. E, em que pese a tudo, o sentimento estava ali. Era consciente de cada curva do corpo da jovem. A lembrana alterou a superfcie em calma de sua concentrao; a pele dela sob seus

dedos, a forma do rosto entre suas mos. Aparta-o de ti. Estava ali para enfrentar aquele sentimento e liberarse dele. Mas havia contradies, paradoxos; ao tratar de liberar-se aferrava a ele com mais fora. Dojun o tinha instrudo. Aquele apetite de que queria desfazer-se estava to enraizado no ncleo

de seu ser que parecia ser ele. Se o apartava, se o extirpava, no ficaria nada. Imaginou-se deitado ao lado dela, em cima dela; coisas que sabia e que, entretanto, desconhecia ao no estar jamais seguro do que tinha sido real ou do que no era mais que fruto de

sua distorcida fantasia. Tinha sonhado e tinha recordado, no distinguia uma coisa de outra e fugia fazer perguntas por medo de que lhe revelasse o que mantinha to oculto. Era incapaz de beijar Kai. Embora fosse um beijo ligeiro, brincalho como o do Robert senhorita Goldborough. Ele no era

Robert. Naqueles sonhos e lembranas havia muito dor e muita angstia, misturados e confundidos com o prazer. S um roce, e no sabia o que poderia passar. Mas Kai quereria ter filhos. Filhos prprios. E dele. Enquanto que Samuel no se atrevia nem a ro-la. No era o

desejo de Kai o que o consumia. Olhou escurido. Uniu as mos no gesto de kuji, formando o complexo entrelaado de dedos que tinha como fim guiar e centrar sua vontade, converter a inteno em ao, dirigir a mente e a fora para seu objetivo. Mas no obteve a

concentrao, nem a unidade nem liberar-se das ataduras. Seu corpo morria pelo que sua mente desprezava. Alm disso, no tinha fora para nada. Deixou-a dormir em paz e entrou na vasta e fria noite. Ao percorrer a casa enquanto outros dormiam, sentiu-se muito afastado do quente contentamento que os rodeava,

um estranho ainda face aos anos transcorridos, um fantasma negro sob a silente luz da lua. Tenho um estojo para cartes para o Man. Lady Kai fazia saltar ao Tommy em seu colo enquanto ele dizia a, a, a com cada salto, diverso aquela que parecia lhe resultar do mais

agradvel. Com a mo livre consultou a lista. O comprei em Londres, assim do mais elegante, embora a ele isso o trar sem cuidado. O ano passado dei de presente uma terrina de barbear e um espelho, e gostou muitssimo. Leda pensou no colar que ele tinha adquirido para

lady Kai, uma autntica cascata de reluzentes diamantes. Voc vai lhe dar algo de presente? Lady Kai a olhou. Possivelmente deveria pensar em faz-lo; seguro que ele tem algo para voc.

No, no. No acredito que seja assim. Leda inclinou a cabea sobre as luvas estava tecendo para lady Tess. Sou sua secretria. E o que, lhe dar de presente algo. Surpreenderia-me que no houvesse trazido alguma coisa para cada um de ns de nosso pas; pode ser que inclusive

seja algo feito por ele. Faz coisas belas de madeira, se que lhe agrada o estilo japons. Nosso antigo mordomo lhe ensinou. Eu, pessoalmente, prefiro talhas mais trabalhadas. Acho-as mais artsticas. Mas as coisas que faz Man so muito bonitas, em que pese a sua simplicidade. Nunca as adorna com pssaros

nem flores nem coisas dessas. Leda teceu uma fileira em silncio. Tinha vrios presentes em marcha, um para cada um dos Ashland, porque desejava muitssimo lhes demonstrar sua gratido pela maneira em que a tinham acolhido. Alm disso, lady Tess lhe tinha pedido que escondesse em sua habitao os pacotes

surpresa que a dama estava acumulando para sua famlia. O monto de caixas e pacotes de papel dourado que ia aumento sob sua cama fazia que Leda se sentisse cheia de esprito festivo e parte da diverso. Tinha pensado em lhe dar de presente algo ao senhor Gerard, mas no

se atreveu. Deixou o trabalho de ponto em seu colo e brincou com um crculo de linho prateado em torno do dedo indicador, puxando o fio e envolvendo-o uma e outra vez. O que acredita que ele poderia gostar? De presente? Vamos, Tittletumps, abaixo. No, no pode comer

a saia de sua tia Kai. Toma esta colher, querido. Deixe que o pense. No fica tempo para comprar nada mais l da aldeia, verdade? Se o tivssemos pensado antes, teria podido encarregar uma pluma caneta. Possivelmente possa bordar uns lenos com suas iniciais. Em certa forma, as idias de

lady Kai encheram a Leda de melancolia. Uma terrina de barbear, um estojo para cartes, uma pluma caneta, uns lenos. O corao doa por ele. Recordou seu rosto meia luz de uma luz da rua ante sua janela, a breve presso de sua mo ao depositar em

sua palma um pequeno pacote de tecido. Ainda levava aquela moeda de cinco ienes, smbolo da amizade, pendurada de um fino lao sob sua blusa. No lhe tinha pedido desculpas por seu atrevido comportamento, nem sequer lhe tinha dirigido a palavra aps. Estava completamente segura de que a evitava.

Possivelmente, ao ser ela meio francesa, no se sentisse na obrigao de desculpar-se. Possivelmente lhe tivesse aborrecido o comportamento to pouco de acordo com a educao que ela tinha tido aquele dia por culpa do licor de cerejas. Possivelmente se tivesse acabado a amizade entre eles. O pensamento fez

que se sentisse ainda mais deprimida. Sim, claro. Desenrolou o fio do dedo, agarrou um ponto que lhe tinha escapado e suspirou. Pode ser que borde uns lenos.

Foi por causa do jaguar como Samuel se converteu em heri pela segunda vez na vida. De que maneira tinha obtido o animal escapar da jaula e o cercado era algo que um frentico senhor Sydney jamais pde determinar, mas ela e seus filhotes andavam soltos quando Kai agarrou ao Tommy,

colocou-o em uma cadeira que tinham recuperado do desvo, e o levou a dar um passeio ao redor do lago com seus reflexos. Todos os jovens presentes na casa se dirigiram ali tambm, cobertos de capas debruadas de pele e de casacos, para aproveitar o inesperado tempo ensolarado. Por isso,

Kai no se encontrava sozinha nem desprotegida quando teve lugar o incidente, embora Samuel pensasse que melhor teria sido que assim fosse. Kai tinha sentido comum, mas, ao parecer, no era esse o caso das jovens Goldborough. Nada mais ver o animal escondido, movendo a cauda, sombra de uma sebe que

rodeava a grama, comearam a gritar presas do terror e correram at situar-se detrs dos homens, com as saias revoando e oferecendo um apetecvel branco enquanto o faziam. O prprio Samuel se encontrou com a mais jovem das trs pendurada nos ombros a suas costas enquanto o jaguar de olhos amarelos continuava

tenso e incmodo com sua liberdade junto a sebe, e olhava desolado ao assustado grupo. Em um princpio, o felino no se moveu. Mas, quando as jovens continuaram com seus alaridos misturados com risadas e o espiavam protegidas por seus escudos humanos, o jaguar deu um golpe com a garra

a um dos travessos filhotes e o empurrou atrs dela, sem abandonar sua postura, sem apartar em nenhum momento a vista daqueles intrusos humanos. Baixou as orelhas e abriu a boca, mostrando as presas. Levantou uma das garras e a estendeu qual ameaadora navalha. As mos que sujeitavam os ombros de Samuel

se apertaram imediatamente. As jovens ficaram caladas de repente. Justo no momento em que Robert lhe disse: No se mova, a mais velha dos Goldborough se soltou dele, apartou-se e ps-se a correr para a casa. O repentino movimento ps fim tensa espera do felino. O jaguar percorreu uns

metros, deteve-se e voltou a vista atrs a seus filhotes. Mas o ataque interrompido fez que o pnico se apoderasse das outras jovens. O grupo se desfez em muitas direes: uma delas ps-se a correr para os degraus junto ao muro do jardim, Robert gritou e saiu atrs dela a

toda velocidade; a outra se soltou de Samuel, deu-se a volta, tropeou e caiu quo larga era sobre a grama. O nervoso felino reagiu imediatamente ante a confuso e perseguiu a quo jovem fugia; a seguir se lanou para Robert, e depois, depois de um louco ziguezague, equilibrou-se sobre Kai e Tommy.

Kai perdeu os nervos e arrancou ao Tommy da cadeira. Aquele estranho movimento, a revoada da saia e a manta pendurando: Samuel viu que o animal se centrava naquele objetivo e avanava pela grama, uma beleza escura e poderosa que agarrava velocidade. Ele se moveu para interpor-se na linha de ataque do

felino. O jaguar se fixou em sua ao e flexionou as

ancas para dar um giro. Samuel deu um passo atrs e acelerou a marcha para um lado para atra-lo para si. Trs saltos, e o animal estava ali, cruzando o ar e disposto ao ataque, pura energia necessitada de direo. Samuel rodou pelo cho. Uma garra se enganchou a sua jaqueta

e a rasgou quando o felino lhe saltou por cima do ombro. Samuel ficou em p quando se ouviu um sonoro chapinho e a gua salpicou o pavimento e as calas do homem. A escura cabea do jaguar emergiu da resplandecente superfcie do lago. Piscou os olhos, comeou a chapinhar,

e aquele ser de grunhidos ameaadores se transformou de sbito em um animal molhado e aturdido com as orelhas e a pele pegas ao crnio. O jaguar fazia movimentos frenticos no intento de voltar ao lado de seus filhotes; posou as patas dianteiras no escorregadio bordo de mrmore, incapaz de encontrar apoio

nas profundidades do lago para agarrar impulso e sair. Meu Deus. Haye foi o primeiro que conseguiu articular palavra. Est bem, Gerard? Est sangrando! Kai reviveu de repente. V procurar ao senhor Sydney, Robert, e aos lacaios para que capturem a esse animal. Lorde Haye -colocou ao Tommy

nos braos, leve-o depressa casa, se por acaso consegue sair do lago. Senhorita Sophie, Cecilia, necessitam sair? No se cambaleiem, faam o favor de voltar para interior com lorde Haye e avisem a minha me; ela saber o que ter que fazer. Samuel pressionou o brao com a mo

e sentiu a forte ardncia e a umidade do sangue procedente da ferida. Necessitaremos mantas e uma rede. Sem dvida que eles sim as necessitaro. Kai se voltou para Samuel. Voc no. Voc vai vir comigo a que te cure isso antes que possa infectar-se. Os arranhes dos

felinos sempre se infectam. Senhor Curzon, fique aqui e assegure de que no saia antes que possam apanhla. Estou segura de que ser capaz de faz-lo. Algum disposto a viajar a Samarcanda tem que ser do mais intrpido. obvio, senhorita. Curzon deu um golpe na palma aberta da

mo com a fortificao. No gostar que lhe d com isto nas fauces, se tratar de escapar. Muito bem, mas s est assustada, assim no seja muito brusco com ela. Bom, j temos aqui ao Robert disposto ao resgate. Man, vem comigo, e deixa que se eles encarreguem. Senhor Curzon,

que no se esqueam de recolher aos filhotes. Samuel permitiu que o levasse a interior da casa. Conduziu-o at o quarto dos meninos, nesses momentos vazio, onde havia panos limpos, algodo em ramo e lcool, e despojou das luvas. Sem a menor hesitao, ordenou-lhe que tirasse a jaqueta e a

camisa manchadas de sangue. Enquanto ele se sentava com o torso ao descoberto no assento de pouca altura sob a janela, Kai se ajoelhou ante ele e lhe esfregou os profundos arranhes. A ardncia do lcool atravessou ao Samuel como uma chama ardente; inalou ar at encher os pulmes, e

de seus lbios no

escapou nenhum som. Quando a jovem viu que o sangue se deteve e que as feridas estavam suficientemente limpas, ps-lhe uma atadura ao redor do brao e a atou. Durante todo esse tempo, Kai no pronunciou palavra. Quando terminou, sentou-se, fechou os olhos e exalou um suspiro comprido e trmulo.

Abriu os olhos e o olhou. Man, obrigado. Estavam sozinhos no quarto dos meninos. Desde debaixo da fechada janela, chegaram at eles os gritos e as salpicaduras da captura, que romperam a paz da silenciosa estadia. Samuel pensou: Agora. Fala agora.

No est ferida? perguntou-lhe de forma absurda. Claro que no. Moveu os olhos e sorriu. Tolo. Ningum mais que voc faria uma pergunta assim. No tinha se detido em tirar o alegre casaco vermelho at esse momento. O cs de pele branca roou a mo de Samuel quando

Kai desabotoou o objeto e a atirou a um lado. Ele tratou de pensar em alguma adulao, em uma forma de comear o que tinha que lhe dizer. Man Kai lhe cobriu as mos com as seu de repente. s vezes me esqueo -Se deteve. No no

que o esquea, porque no o fao, mas no me lembro de diz-lo em voz alta. Eu te amo. o melhor amigo, o mais querido que ningum poder ter jamais. Sempre est aqui quando lhe necessitamos. Samuel pensou que deveria tomar aquelas mos entre as suas. Pensou em centenas

de coisas que deveria fazer. Eu tambm te amo, Kai -disse ao fim. E a observou com o corao encolhido no peito. E seguro que no porque eu me merea isso! inclinou-se para ele e lhe deu um beijo na face. Deveria haver-se girado; poderia

hav-lo feito, pois a tinha junto a ele. Mas a paralisia se apropriou dele. Sentiu o breve calor do rosto dela ao roar o seu, um s instante, e a oportunidade se esfumou. Apertou-lhe as mos e ficou em p. Desa logo assim que se trocar. Quero que esteja

presente quando me dedicar a presumir de ti acima de todo o mundo e diga que o mais valente daqui China. Recolheu o casaco e se dirigiu porta. Kai Virou-se a olh-lo com a capa forrada de pele ao ombro. Samuel se sentiu

incapaz. Est segura de que te encontra bem? Man, o parvo mais doce. voc o que est ferido. Recorda-o, e ponha rosto srio de plido heri ante as massas fervorosas.

Leda e lady Tess tinham visto a maior parte do incidente das janelas da biblioteca, arrastadas at ali a toda pressa pelos alaridos das senhoritas Goldborough. Depois, as jovens decidiram nomear heri ao senhor Gerard. Os cavalheiros que tinham estado presente, embora se mostraram justos em seus louvores, estavam um pouco

menos impressionados. Leda ouviu o senhor Curzon lhe dizer a lorde Haye que tinha sido uma verdadeira sorte que o senhor Gerard no tivesse acabado com o pescoo aberto por provar um truque assim. Leda estava melhor inteirada. Ela sim que conhecia senhor Gerard. Desde seu ponto de observao no

primeiro piso, tinha-o visto fazer de chamariz e rodar pelo cho, com preciso milimtrica, com o fim de forar o inevitvel salto do felino e sua queda ao lago. O incidente desgostou a lady Tess e ao senhor Sydney at lev-los a bordo da angstia. Uma vez capturado o jaguar

e devolvido jaula, ambos se dedicaram a ir de um lado a outro pedindo perdo a todo aquele com quem se cruzavam. Lady Tess rompeu a chorar, e prometeu senhora Goldborough que se desfaria dos jaguares de uma vez por todas, que deveria ter sido consciente de que aquilo podia

acontecer qualquer dia; com os cuidados do senhor Sydney, Vicky V sempre se levou como a mais dcil das criaturas, mas jamais terei que menosprezar a um animal selvagem; para comear, no deveria ter permitido nunca que estivessem ali. Lorde Gryphon a levou a fim para manter uma conversao em

privado, que pareceu lhe proporcionar um pouco de alvio e consolo. Quando voltaram para salo onde todos se achavam reunidos, lady Tess conseguiu sorrir fracamente e at riu um pouco com a descrio que fez Robert da expresso atnita do jaguar quando passou por cima de Samuel e caiu ao lago.

Lorde Gryphon anunciou que imediatamente contratariam a um cuidador a jornada completa para encarregar-se da vigilncia dos animais, e que o pequeno zoolgico se aumentaria e reforaria que haveria um permetro exterior de segurana para encerrar aos que escapassem antes que pudessem entrar no parque. A senhora Goldborough parecia estar desejosa

de dissertar a fundo sobre a convenincia de ter perigosos animais da selva, em qualquer lugar que fosse, dentro do hemisfrio global de uma casa em que se alojavam suas filhas, mas como a mais velha delas estava decidida a conquistar lorde Robert, e ansiosa por acalmar as inquietaes maternais, afogou os

protestos de sua me dizendo com nfase: Rogo-te que no lhe d tanta importncia, mame. Se lhe tivesse feito caso a lorde Robert quando disse que no me movesse, em vez de ser to iludida e tentar correr, no teria havido nenhum problema. Toda a culpa minha.

Todos a coro o negaram, mas Leda pensou que assim era, que a jovem estava no certo. Entretanto, no era sua questo diz-lo, e tinha vrias

tarefas que completar antes da singela festa que se planejou para depois do jantar: um pequeno intercmbio de presentes no que tinham insistido os jovens, antes que os hspedes partissem para suas prprias celebraes natalinas. Em silncio, retirou-se ao vestbulo. O senhor Gerard a encontrou quando subia a escada.

O ltimo sol da tarde brincava entre as rvores do bosque em miniatura sob a cpula. Com seu atltico corpo embainhado em uma jaqueta negra e a dourada cabeleira, mostrava em sua pessoa algo do prprio jaguar: o mesmo movimento grcil e o mesmo esprito dos olhos cor topzio naquela selva verde.

Por primeira vez em duas semanas, deteve-se para dirigir-se a ela, ficando um degrau mais abaixo, com a mo apoiada no corrimo oposto da ampla escada. Senhorita toile. Fez uma leve inclinao com a cabea. Leda no queria mostrar o turvada que se sentia. Pensou que tinha que

manter o controle, face s considerveis palpitaes que se apropriaram de seu corao ante aquele inesperado gesto de reconhecimento renovado. Boa tarde, senhor Gerard. Fez um gesto afirmativo cheio de dignidade. Permita-me lhe expressar minha admirao por sua valentia e sua rpida atuao. Presenciei o incidente da janela. Espero que

no tenha sofrido feridas importantes. Ele fez um gesto com a mo para trocar de assunto. Esta festa desta noite. Temos que trocar presentes? Sim. Mas s tem que trazer um. Todo mundo tirar um nmero de uma terrina. Eu vou preparar agora. Durante

um momento ele olhou alm dela, aos brotos verdes iluminados pelo sol e s sombras cor esmeralda das taas das rvores que se elevavam at as clarabias. Continuando, com um movimento sutil, olhou-a de soslaio, com a classe de olhar que ela imaginava prpria de seres imortais de menor categoria, daqueles imprevisveis

semideuses sem nome dos campos e as montanhas solitrias, que tanto podiam conceder a graa como a morte. Sem nmeros. Sua voz era to suave que no despertou eco algum na cavidade da cpula. Brinquemos da falinha cega, senhorita toile. Que a pessoa que apanhemos seja a que abra nosso

presente. A mo de Leda apertou o corrimo. Senhor Gerard Se voc no quer ser a que proponha a idia, farei-o eu. Acredito iro gostar da idia. Estou segura de que ser assim. Acariciou com os dedos a madeira brilhante, e depois o olhou

com o cenho franzido. Mas, se entender bem o que quer dizer, senhor Gerard, no posso evitar pensar que no uma boa idia. Seu olhar intenso sustentou a dela. Por qu?

No o adequado. No podia lhe dizer que no queria v-lo ferido; que lady Kai no ia entender; que poderia resultar um desastre para suas esperanas. muito cedo para lhe dar um presente assim. A boca dele se esticou no que era uma imitao irnica de um

sorriso. No absolutamente muito cedo. Isso o asseguro, senhora. Depois de uma rpida saudao, passou por seu lado, e nem sequer reconheceu seu conselho com uma palavra de agradecimento. A idia de brincar de galinha cega recebeu a aprovao geral, como ocorreu com os diminutos

vasos de licor de cerejas colocadas em uma bandeja entre ramos de acebo. A Leda no gostava de nada o licor, mas todos outros, com a exceo de lady Whitberry, quem pensava que podia dificultar a digesto, pareciam ser da opinio de que o licor acrescentava certa alegria aos preparativos. Conforme avanava

a noite, os giros dos homens com os olhos enfaixados e seus nmeros se foram fazendo mais graciosos, as piadas mais inteligentes, os canes de natal intermitentes mais melodiosos, as risadas -at a do senhor Curzon mais clidas. S Leda parecia mostrar certa conteno em seu sorriso. Unicamente Leda, e

o senhor Gerard, que observava a cena desde detrs da cadeira de lady Kai. E no que ningum pudesse em justia acus-lo de se mostrar melanclico, pois sorria nos momentos apropriados, embora no ria em voz alta. Agora que o pensava, jamais tinha visto rir ao senhor Gerard. Essa noite, o

elemento de alerta latente que nele havia a sensao de ateno ininterrupta atrs de sua atitude relaxada lhe pareceram do mais impressionante. O colar de diamantes estava entre o monto de presentes. Tinha-lhe visto deposit-lo ali, e tinha reconhecido o estojo imediatamente pelo tamanho, a forma e o pacote de

papel. Pensou que o torpe lao no era prprio dele, que resultava incoerente em comparao com os presentes sutis e elegantes que tinha feito a ela e lady Tess. Ao sab-lo capaz de subir s vigas do teto com uma perna quebrada e transpassar em silencio na escurido levemente os

ferrolhos, estava segura de que seria capaz de localizar a uma jovem bastante faladora com s uma atadura nos olhos. Mas ignorava por que se sentia to seguro de que nenhum dos hspedes ia distinguir lady Kai. Tinha esperado que, pelo menos, ele insistisse em agarrar o primeiro turno. Quando

o observou subrepticiamente, entretanto, teve a estranha impresso de que ele dirigia o curso dos acontecimentos; que entre todas as risadas e a conversao, os papis rasgados e os comentrios de admirao ante cada um dos presentes, sua discreta concentrao da posio que ocupava detrs lady Kai irradiava um escudo invisvel que

a protegia dos outros participantes no jogo. Era um sem sentido, obvio mas embora aos participantes se os fazia dar voltas e logo saam em todas as direes, e freqentemente se detinham justo frente a ela, ningum

tocou lady Kai at que se entregaram todos os presentes, menos o estojo envolto em papel. Leda tinha ficado em segundo plano a maior parte do jogo, e suspeitava que lorde Ashland fizesse um pouco de armadilha quando lhe tinha agarrado a manga durante seu turno, que era o

penltimo, e que tinha espiado por debaixo da atadura para encontr-la, o que era muito amvel de sua parte. Tinha-lhe gostado muitssimo do lbum de fotos que tinha desenvolvido, em que pese a no ter nenhuma fotografia para pr nele. Deu golpes nervosos com o dedo no pequeno lbum. O

senhor Gerard no pegou a atadura, pois no tinha sentido. O seu era o ltimo presente, lady Kai quo nica no tinha recebido nenhum. Ele no fez mais que abandonar seu lugar e levar-lhe a ela, e mesmo assim houve algo nele que captou a ateno. Todo o falatrio, o rangido dos

papis e o exame dos presentes se deteve; todas as olhadas se centraram em lady Kai e no senhor Gerard quando este se situou frente a ela e depositou o estojo na mo que a jovem estendeu. Isto no nada divertido! A jovem dama fez uma careta com os

lbios que trocou ao momento por um amplo sorriso. Embora suponha que devo ser a ganhadora deste jogo, j que a galinha cega nunca me apanhou. Que lao mais bobo, Man. Levantou-o, movendo o torcido lao para que todos o vissem, e depois rompeu o papel com o entusiasmo de

uma menina. Leda fechou os olhos um instante ao ver o estojo de veludo. At aquele momento, tinha tido a esperana de que se tratasse de outra coisa. Voltou a abri-los, presa de uma ansiedade desmedida para aquela situao. O senhor Gerard ficou ao lado de lady Kai

enquanto ela levantava a tampa. Ante a espera de todos, uma expresso de divertida exasperao se desenhou em seu belo rosto. Man! Que diabos! Jogou a cabea para trs e baixou os ombros. Que coisa mais absurda! um desastre absoluto para escolher presentes, meu pobrezinho. E eu me pergunto:

o que teria passado se o senhor Curzon ou ou Robert tivesse sido o que recebesse isto? Levantou o estojo e mostrou o contedo a toda a habitao. Vrias damas tragaram ar com audveis murmrios. Algum disse: Que impressionante! E depois reinou um silncio fundo e

coletivo. pior -pensou Leda. ainda pior do que eu tinha temido. A maioria dos pressente soube, ou adivinhou ao momento, o que o senhor Gerard queria dizer com aquilo: Leda o leu nas expresses de surpresa e nos olhares especulativos. Man querido. Lady Kai

lhe deu um abrao. No tem nem idia, no? Supunha-se que tinha que envolver algo assim como um livro bonito. Eu teria que hav-lo pensado. A senhorita Leda e eu poderamos te haver ajudado a escolher algo, se me tivesse ocorrido. O senhor Gerard no pronunciou palavra nem deu mostra

alguma de sentir-se ofendido, mas quando lady Kai se aproximou de sua me com o

colar na mo, o ps diante do pescoo e comentou o bem que ficaria o colar, seu olhar silencioso se afastou delas. A qualquer das damas presentes ficaria bem -disse lorde Ashland com galanteria. Duvido que Samuel tivesse permitido que tocasse a algum do sexo equivocado. Isso

nem pensar -disse o senhor Gerard com um sorriso. Fez-o bem, com ligeireza, sem sinais exteriores do que devia lhe haver flanco faz-lo. Aproximou-se at lady Tess e agarrou o colar de mos de sua filha para prender-lhe ao pescoo de lady Tess. Ela o olhou e lhe apertou a

mo, com uma expresso muito parecida com a que tinha mostrado quando tinha tratado de expressar seu arrependimento senhora Goldborough por ter posto em perigo as suas filhas. Permite-me que lhe sirva um pouco mais de licor de cerejas, senhora? Leda se dirigiu a lady Whitberry, desejosa de fazer

o que fosse romper aquele momento de ateno concentrada. Com a mesma preciso de um relgio que nunca falha, lady Whitberry iniciou seu discurso sobre os efeitos negativos das bebidas espirituosas doces, os males da indigesto e as indesejveis conseqncias do licor de cerejas em particular. Lady Tess no se

moveu de sua poltrona com o deslumbrante colar em torno do pescoo. Lorde Ashland colocou ao senhor Gerard em um debate sobre as mudanas recentes na cidade de Nova Iorque, tema este de neutralidade to extrema que animou ao resto a reatar suas conversaes. Por um momento Leda pensou que

o senhor Gerard encontraria uma razo para desculpar sua presena, mas ao final foi ela a que se viu incapaz de manter uma atitude de despreocupao geral. Sentia a necessidade mais espantosa de tornar-se a chorar, por quem, no tinha idia. Mas quando se apresentou o primeiro pretexto para desculpar-se e retirar-se

a sua habitao, aproveitou-o com uma celeridade muito pouco elegante. Esteve acordada at tarde em seu quarto, folheando uma e outra vez Descries e raridades da cultura japonesa, tratando de encontrar um presente especial para fazer ao senhor Gerard no Natal. Um presente singelo e delicioso, repleto de significados ocultos.

No tinha que ser custoso. Nenhum dos presentes tradicionais dos que o livro falava como a moeda de cinco ienes, era-o; mas, em certa maneira, a idia de lhe dar uma tira de bacalhau salgado no lhe resultava atrativa, nem tampouco a de lhe dar de presente algas secas como smbolo de

alegria e felicidade, por muito que fossem envoltas nos bonitos e diminutos leques de papel vermelho e branco que apareciam ilustrados no livro. No se imaginava lhe dando de presente um molusco nem algas, nem mesmo no caso de que fosse possvel conseguir ditos elementos. Muito mais bonito teria sido

um par daqueles belos e coloridos peixes japoneses de largas caudas que os desenhos mostravam, mas tambm

aquilo era impossvel. Por fim, deixou de passar pgina detrs pgina do livro e se foi cama, embora permanecesse acordada durante muito tempo com o travesseiro lhe rodeando o pescoo por debaixo do queixo. Em certo momento, j na escurido, muito depois de que o silncio tinha comeado

a reinar em toda a casa, foi consciente da presena dele na habitao. No houve nem um som que o demonstrasse, nem um leve movimento que ela pudesse ver. Simplesmente, teve a sensao de que ele se encontrava ali. Senhor Gerard -disse incorporando-se na cama. No obteve resposta.

Era um tanto estranho estar falando quando o mais provvel era que a estadia estivesse vazia; mas, j que ningum podia ouvi-la, falou de novo. Espero que no se sinta muito decepcionado com lady Kai. Ningum respondeu tampouco a aquelas palavras. Leda cavou os travesseiros, colocou-as

junto a cabeceira e se voltou a recostar nelas. A escurido mais absoluta reinava na habitao. Eu gostaria de lhe dar de presente uns peixes de cores. Resultava muito agradvel lhe falar com a escurido e imaginar que ele estava ali. Dizer coisas que jamais teria tido valor de lhe

dizer em pessoa. No acredito que lady Kai pensasse jamais em lhe dar de presente uns peixes de cores de largas caudas. No so presentes prticos, suponho, como seriam uns lenos. Mas penso que devem ser belos. Algum dia eu gostaria de ver um. Flexionou as pernas e as rodeou

com os braos, apoiou a face nos joelhos e se disps a construir castelos no ar. O que de verdade eu gostaria seria ter meu prprio jardim, com um lago cheio de peixes de cores com caudas como a seda. Pensa alguma vez em coisas assim, senhor Gerard? No que

pensam os cavalheiros, perguntome? Refletiu sobre aquela questo e se respondeu a si mesmo: Em problemas polticos, imagino. Deve ser muito cansativo e muito aborrecido ser homem. Olhou para a penumbra. Sabia que o sexo masculino podia resultar til em certos momentos, principalmente para lhe levar a uns pacotes,

ou para averiguar a causa de umas goteiras no teto ou de uns escapamentos de fumaa, mas todas as damas de South Street lhe tinham feito advertncias contra permitir a presena de um homem na casa. Teria que esperar sempre os rastros que deixaria no cho, j que se esqueceria de tirar

as botas, em que pese a todos os intentos por lhe ensinar. Os homens eram um mistrio: temveis e reconfortantes, esquivos e diretos, transbordantes de estranhas paixes e curvas. Senhor Gerard -disse entre sussurros, temerosa de pergunt-lo em voz alta em que pese a estar sozinha na escurido.

Por que me acariciou? Por que me olhou daquela forma no espelho? Pensou em todas as coisas contra as que a tinham prevenido as damas de South Street. No acreditava que elas tivessem tido nunca ocasio de conhecer um cavalheiro que se parecesse remotamente ao senhor Gerard.

Juntou as mos e reconheceu ante o imaginrio homem entre as sombras o que nem sequer tinha reconhecido ante ela mesma. Desejaria que voltasse a faz-lo. Assustada, cobriu a boca com as mos. Mas aquele desejo era real, muito real, uma vez que ps nome ao nervosismo e a

angstia que havia em seu interior, emoo que parecia manter sempre as risadas e as lgrimas to ao alcance que nunca sabia qual delas se transbordaria ante qualquer crise sem importncia. No s estava bobamente apaixonada por senhor Gerard, mas sim morria por uma carcia dela. Aquela lhe parecia

uma situao to estpida e humilhante, que abraou o travesseiro contra si e sentiu as lgrimas ardentes que se deslizavam por suas faces. Que solitria devia lhe resultar a vida a uma mulher delicada e refinada, mas sem famlia conhecida. A uma mulher que em realidade no pertencia a nenhum lugar.

25 Desejaria que voltasse a faz-lo. Samuel permaneceu imvel, em silncio, com a tentao rodeando-o como uma fora tangvel. Via na escurido com os olhos e o corao; era capaz de fechar os olhos e sentir as lgrimas que ela derramava. No sabia por que

estava chorando. Pensou, naquele momento, que no era consciente de nada que no fosse o desejo de lhe responder. Desejaria havia dito ela, e a slida terra se afundou; o cho sob seus ps se rachou. Leda se sentou de sbito na cama, assustada; ouviu-se o rangido dos lenis.

Senhor Gerard? Ele jogou atrs a cabea. Como podia pensar que ela no ia sentir sua presena? Emanava desejo. Consumia-se nele como um rojo de luzes luminoso, como uma tocha invisvel na escurido da meia-noite. Ela sorveu as lgrimas rapidamente com um som surdo, tentando ocult-lo.

Sei que est aqui. Sim -disse ele. Leda deixou escapar um pequeno grito, surpreendida em que pese a tudo para ouvir sua voz. Ouviu sua respirao rpida e suave. Por qu? Logo que vocalizou a pergunta, que ficou em suspense, entre sussurros, na imobilidade do

ar. Samuel fechou os olhos. No sei. Mas sim que sabia. Ai, Meu Deus. Na voz da jovem se ouviu um ligeiro tremor. Imagino que est h algum tempo aqui. Imagino que me escutou. Que vergonha mais espantosa. Ali, na escurido, quase

conseguiu faz-lo sorrir.

Fez que morresse de vontade de estender a mo para ela, de enredar seus cabelos entre os dedos. Mas, no no o faria. Conteria aquela escura labareda que lhe corria pelas veias, que o envergonhava e o consumia. Da cama lhe chegou o som de movimento. Os

ps dela tocaram o cho, e mais que ouvi-lo sentiu a vibrao. Se o que quer conversar, ser melhor que procure a bata. Ao erguer-se, o cabelo de Leda caiu como uma cascata e Samuel percebeu o intenso aroma do sonho, a calidez de um corpo de

mulher sob os lenis. Poderia hav-la evitado. Mas sua vontade e seus atos tomaram caminhos diferentes. Permaneceu imvel enquanto uma vida inteira de resistncia se fazia pedacinhos ao seu redor, e permitiu que a jovem fosse diretamente para ele. Apesar da mo com a que procurava provas o caminho na

escurido, Leda tropeou com o peito de Samuel como se batesse contra um muro. Ele a agarrou pelo brao para que no perdesse o equilbrio. No quero manter uma conversao. Sua voz era grave e rouca. Em seu interior reinava a anarquia. Ah -disse Leda, imobilizada

por seu brao. Que deseja, ento? Quo mesmo voc. O que voc disse. Ela elevou o rosto. Os peixes de cores? Por Deus bendito. Rodeou com as mos a face da jovem e inclinou o rosto at alcanar sua boca. Isto. Isto

o que desejo. Roou com os lbios os dela. Sentiu um grande peso sobre ele, uma presso transbordante. Kai. Era Kai, era todo aquilo que tinha forjado com sua mente e seu corpo. No podia fazer aquilo. Significava a destruio. No sabia beijar a uma mulher. Pensou que tinha

que pressionar a boca fechada contra a dela, mas o contato o desarmou, a suavidade de sua face fez que sacudidas de prazer inaudveis percorressem seu corpo. Abriu a boca e inalou a essncia que ela desprendia at o mais profundo de seu ser, enquanto saboreava as comissuras de seus lbios com

a lngua. O corpo da jovem tremeu. Samuel percebeu um rubor nela, um calor que se estendia alm do que sua vista alcanava na escurido. Leda levantou as mos e as interps entre os dois. Imagino imagino que deve estar aborrecido pela acolhida de seu presente.

Um colar que ele no se importava. No lhe parecia mais que outro passo no caminho que se sentia impulsionado a percorrer. Atreveria-me a dizer que essa a razo de sua presena aqui. A voz de Leda soava dbil e entrecortada. Eu teria querido que no se precipitasse na

entrega. O aconselhei, quer dizer ai, Meu Deus, senhor Gerard. Como podia imaginar que aquela fosse a razo que o tinha levado at ali? Continuou abraando-a, saboreando-a, consciente da agitao que ela sentia, sabendo-se parte das sombras com sua vestimenta da cor cinzenta

da meia-noite. Duvidou que ela pudesse v-lo, esfregou uma mo contra a outra com um truque de magia que lhe era familiar, e em sua palma apareceu uma luz, fria e azul, como a fosforescncia do mar, que iluminou o rosto surpreso da jovem, as mangas fofas e os

adornos de renda da camisola que a cobria. Sentiu-se em suspense ao oferecer-se abertamente, sem o esconderijo da escurido. Leda olhou um instante para aquela pedra redonda que ele sustentava na palma, e a seguir elevou os olhos para ele. Baixo aquela luz etrea parecia confundida, e mais bela do que ele

podia ter imaginado. O brilho de seu cabelo solto e a aveludada curva de seu pescoo, todas as fantasias proibidas para ele cobraram corpo. Arrependeu-se imediatamente de ter conjurado aquela luz; aquele guerreiro negro surgiu da noite como por encanto a assustaria com seus desejos to inconfundveis, sem disfarces nem dissimulaes.

Ah -disse ela com voz baixa e melodiosa. No deveria estar voc aqui. Temo-me que isto seja uma tolice muito grande, senhor Gerard. do mais desaconselhvel Samuel fechou os olhos e apertou a pedra no punho. Deixe-me deitar com voc -sussurrou. No acredito no

me parece que isso seja no pode ser -A ouvia aturdida. Comigo? Samuel alargou a mo fechada em um punho e lhe acariciou a face com o dorso. A luz era apenas visvel entre seus dedos. Aqui. Agora. Leda titubeou, como se no alcanasse a compreend-lo.

Atreveria-me a dizer que se sente exausto, ao estar em p to tarde, mas Tomou o queixo e a elevou sobre seu punho. No estou exausto. Ah. Leda o olhou aos olhos. Ah prezado senhor, que se sente sozinho? Se no fosse pelo

inoportuno da hora, teria chamado para que nos trouxessem um ch. Sozinho. Deus. Ardendo de desejo e sozinho. Abriu a mo e, por um instante, a fantasmagrica luz iluminou a jovem em todo seu colorido enquanto ele percorria com os lbios seu pescoo. A fragrncia que ela desprendia cheirava a

antigas coisas femininas, a flores e ps, e o calor que aquele corpo albergava, profundo e provocador, era como uma chama velada que se acendesse de repente e ardesse nas vsceras do homem. No, no deveria. A voz de Leda expressou o que ele sabia; suas mos estavam um tanto

trmulas quando tratou de empurr-lo pelos ombros sem xito. Isto no decoroso. Claro que no era decoroso. Era uma loucura. Mas no a soltou. Rodeou-lhe a cintura com o brao e a atraiu para si. A gola de renda da camisola lhe roou a tmpora. Deixou cair a pedra

ao cho quando o cabelo dela se deslizou com toda sua espessura e lhe cobriu as mos. A

excitao o alagou. Assim era como o tinha imaginado a primeira vez que a tinha visto a luz do dia na casa de modas; quando ele se agachou para recolher o envelope com a coroa dirigido a ela, e tinha compreendido o que aquilo significava. Exerceu uma suave presso

e a obrigou a aproximar-se de costas cama. Ela cedeu, presa na dvida e fcil de controlar, e aquela falta de resistncia lhe confirmou que a jovem nem sequer reconhecia a natureza da fora que a empurrava. Uma vez ao bordo do leito, a habilidade de Samuel chegou a

seu fim. No assim seu apetite, nem suas imaginaes, nem a sensao de t-la entre seu corpo e a cama, com a perna apoiada com fora contra o bordo de madeira. A respirao dele era profunda e entrecortada, inverificado por causa daquele ato fsico, ao bordo de precipitar-se a um abismo feroz

e destrutivo. Recuperou o controle com um esforo sobre-humano e apoiou a testa na fenda de seu pescoo. No vou te machucar sussurrou. Sinceridade absoluta, dizia Dojun. No disse Leda. Claro que no me vai fazer isso. Aquela total confiana o fez

pedacinhos. No podia confiar nele; estavalhe mentindo, sabia que assim era, mas no podia impedi-lo. Renunciou a dezesseis anos de golpes, suor e sonhos, quando se ajoelhou lentamente ante ela e a atraiu para si. Apertou a boca aberta contra o corpo dela e se encontrou com a curva de seus

seios. O tecido de flanela guardava seu aroma e seu calor, deslizava-se sobre a pele sob sua lngua, com uma sedosa promessa abaixo dele. Ai senhor Gerard. O protesto de Leda no foi a no ser uma clida labareda no ar da noite. Disse que o desejava.

Samuel deslizou as mos e rodeou com elas a cintura. Isso era o que ele tinha sonhado; tinha-o sonhado durante milhares de anos. A voz da jovem mostrou uma velada surpresa. Imagino que como minha me era francesa A mo dela descansava sobre seu cabelo.

Ele virou a cabea e lhe beijou a palma. A jovem a fechou, e Samuel lhe beijou o dorso dos dedos. Sentiu que a jovem ficava imvel. E depois, lentamente com suavidade, agarrou uma mecha de Samuel entre os dedos. Controlar o impulso em seu interior requereu toda

a fora da que era dono. Acariciou-a como se estivesse a ponto de esfumar-se entre suas mos, apenas um leve contato quando o que desejava era estreit-la contra ele, uma carcia com os dedos seguindo a forma de seu corpo, as curvas sob os seios, a redondez dos quadris. Sentia-se to cheio

de calor e to ereto que teve medo de aterroriz-la se no continha seus movimentos. Jamais em sua vida adulta tinha acariciado a uma mulher durante tanto tempo at esse momento. Sua vida tinha consistido nos rpidos abraos de Kai, quem imediatamente se apartava, e nas breves e silenciosas demonstraes

de carinho de lady Tess quando retornava a

casa. A doura deste outro abrao o maravilhou; sentiu-se absurdamente ao bordo das lgrimas ao sentir a calidez da jovem em seu rosto e sob suas mos. Quis dizer-lhe mas no encontrou as palavras para faz-lo. Queria lhe dizer: Clida, delicada, suave; seu cabelo, seu belo cabelo solto, suas

mos, sua cintura o compreende? No te farei mal. No quero te machucar. Estou morrendo. A mo de Leda repousou depois do pescoo de Samuel. Ele a sentia respirar, sentia seus seios elevar-se e descender contra sua face. Temo-me que somos muito imprudentes. Leda apertou a mo ligeiramente.

Agarrou uma mecha do cabelo de Samuel entre os dedos, acariciou-o e o ps de novo em seu lugar. Mas meu prezado senhor eu tambm estive um pouco sozinha. Leda. S foi capaz de pronunciar seu nome em um sussurro como toda resposta. Lentamente, muito lentamente, para no

assust-la, ficou de p. Um lao sujeitava a camisola ao pescoo; ele colocou o dedo indicador na laada e a desfez. Deslizou a mo para baixo esperando encontrar casas, como nas camisas masculinas, mas no os havia: seu dedo tropeou com uns aritos de cetim que se desprenderam dos diminutos botes de

prola sem opor resistncia, e que chegavam quase cintura da jovem. O corpo de Leda ficou rgido. O final da abertura deteve a mo de Samuel; seu punho se fechou sobre o tecido. No tenha medo de mim disse ele com veemncia. Seus prprios

msculos estavam em tenso; seu corpo era um desconhecido para ele, movia-se como se estivesse coberto por uma pesada armadura. Leda levantou os olhos at ele. Viu como se refletia neles o desespero e compreendeu que at aquele preciso instante no tinha entendido o que ele queria, que, de alguma

forma, no o esperava, que o obrigaria a deterse, que as palavras para impedir que ele seguisse adiante estavam a ponto de sair de seus lbios. No o permitiria. Cobriu-lhe a boca com a sua em um beijo implacvel para deter aquelas palavras, e a atraiu para si com

a mo estendida sobre seu cabelo. Rompeu sua promessa imediatamente, pois aquele beijo machucou a jovem. Samuel sabia que era assim porque a violncia com que o deu tinha machucado sua prpria boca. Converteu-se em um catalisador, desdobrou todo seu influxo e, com uma fora controlada que fez que a jovem perdesse

o equilbrio, a fez cair sobre a cama quo larga era arrastando-a com ele. O cabelo lhe cobriu o rosto. Leda tratou de opor resistncia apoiando as mos nos ombros de Samuel, que se abatia sobre ela respirando forte, empurrado pelo instinto, as lembranas e o desejo. Seu corpo se

incrustou no da jovem com uma sensao deliciosa, muito perto da exploso, as pernas dela sob as suas com to s uma capa de fina malha entre os dois.

A pedra luminosa lanava raios apenas perceptveis na escurido da habitao. Leda estava deitada com os olhos totalmente abertos sob a sombra do corpo do homem, tratando de apart-lo. Ele teria podido acabar com sua resistncia em um instante, e ambos sabiam. Mas ela o olhou com expresso de

dignidade desesperada, confusa e grave de uma vez. Estou segura senhor Gerard de que lamentaria comportar-se de forma desonrosa. Samuel poderia ter soltado uma gargalhada ante aquela chamada honra em um momento assim. Mas seu rosto Em seu rosto viu a dvida e a f, a sinceridade

e uma dependncia absoluta dele e uma valentia doce e impossvel: o herosmo dos seres pequenos e indefesos ao enfrentarse ao perigo. Com sua debilidade, venceu-o. No podia seguir adiante, e no podia solt-la. Deixou-se cair com os braos rodeando o corpo da jovem, detento de estremecimentos,

e afundou o rosto junto a seu ouvido. Leda jazia sem protestar embaixo aquele abrao. O peso e a solidez daquele corpo eram considerveis, e a apertava com bastante fora, mas, de algum jeito, aquilo mais que incmodo lhe resultava reconfortante. Depois de um longo momento, notou como decrescia pouco

a pouco a tenso que havia nos braos dele; Samuel trocou de postura e se fez a um lado, sem deixar de abra-la, mas no com tanta fora. Nenhum dos dois pronunciou palavra. Por fim, ela caiu a momentos em um estranho torpor, de que voltava a sair

para sentir-se constantemente surpreendida da presena dele, constantemente encantada e confundida por ela. Era algo to extraordinrio, to maravilhoso, em realidade Meio sonolenta, entendeu-o; tinha-lhe pedido para deitar com ela, e quem tivesse pensado que aquilo era algo mais que um estranho capricho? Quem ia imaginar que fosse algo to

lhe gratificante? Estava deitada em um ngulo estranho, atravessada na cama, sem travesseiro, e, ao despertar, colocou a cabea aconchegada junto aquela calidez, e se sobressaltava ante a forte presso daquele brao sob sua cabea. Cada vez que comeava a despertar daquela forma, ele movia a mo e lhe retirava o cabelo

para trs com gesto tranqilizador, e parecia o mais natural do mundo refugiar-se entre seus braos, junto a seu corpo, e voltar a dormir. A estranha pedra tinha perdido o fulgor fazia j tempo, e lhe pareceu estar em um sonho quando o primeiro raio cinza da alvorada deu um

pouco de cor estadia. Ao despertar naquele momento de um sonho profundo, sua primeira impresso meio adormecida foi que havia uma sombra negra a seu lado, muito escura para distinguir forma ou detalhe algum. Depois descobriu uma silhueta, foi consciente da linha da perna, da longitude do torso, do

brao que se curvava sobre ela. Leda entrecerrou os olhos, para a seguir abri-los por completo. Ele a observava. A s uns centmetros de distncia, viu suas largas pestanas. Os olhos eram de um cinza translcido, da mesma cor que o permetro exterior do amanhecer invernal, onde o brilho

das estrelas se convertia na luz do dia. O fato de que estivesse acordado, a forma em que estava protegida e a salvo do frio graas a seu corpo, indicaram-lhe, com toda claridade, que ele no se deixou vencer pelo sono em nenhum momento. Uma repentina consternao se

apoderou de Leda. Recordou algo que tinha acontecido tempo atrs em sua poca escolar: uma donzela e um pretendente ilcito, algo que a cozinheira lhe tinha contado entre sussurros ao carvoeiro. Dorme com ele -tinha murmurado a cozinheira. No cr que no o faz essa desencaminhada. E, pouco depois, a donzela tinha

sido despedida em estranhas circunstncias que a senhorita Myrtle nunca teve a bem lhe explicar. Leda olhou aqueles olhos cinza como o amanhecer. Tinha dormido com ele. Deus bendito. Durante a noite tinha tido a sensao de salvar-se de algo, mas com a chegada

do dia teve a certeza de que tinha cado muito mais cedo do que a senhorita Myrtle lhe tinha advertido que era possvel cair. Ele estava em seu quarto. Tinha-a acariciado. Tinha-a despido. Tinha-a beijado como nenhum homem teria beijado a uma mulher respeitvel. Tinha dormido com ele. Comeou a

tremer de forma convulsiva. Ele tinha o brao apoiado em seu ombro; durante um instante apertou a mo contra seu pescoo, depois abriu os dedos e os deslizou entre o cabelo de Leda. As mechas cor mogno se deslizaram por sua mo. Ele se levantou, apoiando-se em um brao. Que

o cu a amparasse. J no tinha remdio, e o que pouco lhe parecia! Tinha dormido com ele. E no se sentia distinta absolutamente; nem melhor, nem pior, nem to sequer se envergonhava de hav-lo feito, no no fundo de seu corao. Com atraso, porque ele j se afastava de

seu lado, deu-se conta de que tinha a inteno de partir. Sem razo alguma, sem que um pensamento sensato lhe cruzasse a mente, Leda alargou o brao e o agarrou pelo pulso. Ele a olhou com uma grande intensidade, e ficou imvel sob a dbil luz da manh. De novo,

Leda pensou em semideuses, em divindades surgidas das montanhas, do cu e do mar. Levantou-se da cama, com a mo sobre aquele rgido brao, sem saber o que dizer. No deveria haver ficado. A voz do homem tinha um tom de dureza. O sinto. Voc adormeceu. A faixa

que sujeitava sua jaqueta negra se soltou. Leda viu o nascimento do pescoo e a curva de seu torso. Algo brilhou entre as dobras ocultas do escuro tecido. Uma arma: violncia e elegncia; era todo

um professor em ambas as coisas e, de alguma forma, invadiu-a o desejo de estender os braos, apert-lo entre eles, e abra-lo junto a seu corao. Voc no dormiu disse. Ele soltou uma risada irnica e olhou para outro lado. No. No

queria que ele partisse. A manh estava prxima, mas tampouco queria que chegasse. O que ia fazer agora, o que ia dizer, como ia trocar sua vida Ainda lhe parecia impossvel. Tinha dormido com um homem. Ele a tinha beijado. No se sentia to culpado como devia. Sentia-se feminina. Um

pouco tmida e nervosa. Tem que ir? Ele a olhou aos olhos. Por que deveria ficar? A brutalidade de sua voz a deixou perplexa. Era como se a acusasse de algo. Umedeceu os lbios e estendeu a mo sobre o antebrao dele, deslizando os dedos

sobre o tecido, sentindo a fora que estava oculta embaixo dela. Samuel flexionou o msculo sob sua mo. Diga sim ou no. Sim -disse Leda. Fique. Ele nem se aproximou nem se afastou dela. Ontem noite disse que sim. Que o

desejava. E depois, Deus Samuel exalou ar com fora. Leda se ruborizou ante aquela meno to direta ao acontecido a noite anterior. As mos dele em seu corpo, sua boca. Deveria haver-se sentido envergonhada, mas em lugar disso se sentia gratificada. Excitada. Ah, assim era isto

ser uma desencaminhada, uma mulher pecadora? Sentir uma alegria egosta pelo fato de que, quando se encontrava sozinho, tinha ido procurar a ela e no lady Kai? No era capaz de expressar-se com tanta vulgaridade e franqueza, embora agora a considerasse uma perdida. De verdade que no podia pensar assim

dela mesma: como uma daquelas descaradas empregadas que lhe piscavam os olhos o olho aos choferes e gritavam: No tem um beijo para mim, encanto? No lhe parecia que isso fosse o mesmo que desejar que o senhor Gerard voltasse a beij-la. O frio da habitao transpassou a

camisola de Leda, agora que j no tinha o refgio da cercania do homem. Trocou de postura, cobriu os ombros com o edredom de plumas e o olhou esperanada. No acredita que faz muitssimo frio? Subiu o edredom at a boca, e o espiou por cima dele, para ver se

tinha captado a insinuao. Ele seguia imvel, apoiado na mo. Mas no fez intento algum de afastar-se.

Ante aquele gesto mnimo de nimo, Leda se encorajou e se sentiu mais aventureira. Com cautela, estendeu a mo e lhe acariciou o cabelo. Deixou que os dedos percorressem a face dele, fascinada pela sutil aridez do plo que as cobria. A noite anterior tinha sentido o mesmo a noite anterior?

Que incrvel, que extico e atrativo podia resultar um homem. Recordou que a senhora Wrotham tinha conservado com muito cuidado, em uma caixa de madeira-rosa, as broxas e a navalha de barbear de seu falecido esposo. Objetos pessoais que para Leda no tinham tido um significado especial, nenhuma clara realidade, at esse

momento. Sempre lhe tinha surpreendido um pouco que uma anci to doce mimasse tanto uma navalha de barbear, enquanto que, de uma vez, utilizava o respeitado livro de modelos de cartas do senhor Wrotham como batente ocasional da porta. Era por isso, pensou naquele momento. Porque, no prazo de apenas

umas horas, o rosto de um homem adquiria uma textura completamente distinta. Mordeu os lbios, embargada de repente pela emoo, pela empatia pela doce e trmula senhora Wrotham, que entesourava a navalha de barbear de seu marido; por uma misteriosa ternura para o homem que no respondia as suas tmidas

carcias, cuja nica resposta era um profundo estremecimento, um movimento em meio da quietude. Aproximou a cabea a dele, e lhe roou a comissura dos lbios com os seus, como ele tinha feito com ela. Sua lngua o achou suave e spero, com um aroma ardente e ctrico. Abriu a

boca para sabore-lo melhor e subiu as mos para explorar seus cabelos. O tremor que o percorria se transformou em dura rigidez. Agarrou-a pelos ombros com um som brusco. Virou o rosto para o dela e se apropriou de sua boca. Durante um instante, Leda no sentiu outra

coisa que o despertar da excitao nele. Depois, a fora do homem tomou a iniciativa; empurrou-a para trs at deit-la sobre os travesseiros. Entre o redemoinho da roupa de cama a buscou, arrastou-a com ele; enredou a mo entre seus cabelos e a manteve quieta enquanto lhe beijava o rosto, todo o

rosto e o pescoo at onde lhe permitiu o decote da camisola. Leda se sentiu transbordada, mas no alcanou a protestar porque ele a esmagou com todo o peso de seu corpo, afundando-a no colcho. A perna dele abriu caminho entre as pernas da jovem, seu corpo se esmagou contra

as coxas e o ventre de Leda, sua mo agarrou a malha que se interpunha entre eles e o separou de um puxo. S ficou o calor da pele contra a pele nua no lugar mais ntimo imaginvel e algo, algo mais, o que? Ele se movia como se com

seu corpo quisesse enrol-la; sua respirao soava resfolegada e acelerada no ouvido da jovem, e seus movimentos despertavam quebras de onda de desejo no ponto to vergonhoso no que a pressionava. Uma espcie de descarga eltrica a percorreu invadindo-a com seu calor: um prazer crescente, que ia tomando corpo, que esticava

todos seus msculos e fazia que seu corpo se arqueasse procurando o dele, em lugar de afastar-se. Ele se elevou sobre as mos. Por um momento, Leda o olhou, com os lbios abertos em gesto de aborrecimento, mas o que ele fez a seguir a deixou surpreendida. Aquela presso

agradvel comeou a lhe doer. Tratou de afundar o corpo instintivamente para evit-lo, mas ele no pareceu darse conta; tinha os olhos fechados e pressionou contra ela -at seu interior! com um poderoso empurro em um lugar de seu corpo que ela no podia nem nomear. E lhe doeu.

Produziu dor a ambos, porque quando ela deixou escapar um grito afogado, ele jogou a cabea para trs e todo seu corpo se retorceu entre estremecimentos. Um som similar a um gemido angustiante vibrou na garganta do homem. Estava sobre ela, empurrando em seu interior com fora, os msculos de seus ombros,

braos e torso em tenso pelo esforo. Leda se deu conta de que cada vez que respirava emitia gemidos de terror que afogavam a surpresa e o pnico. Aquele momento de violncia parecia durar uma eternidade. Ele soltou o flego de repente. Seu corpo perdeu a rigidez e

a tenso. Tragou ar como se tivesse estado correndo a toda velocidade, e se deixou cair sobre ela. Leda sentiu as sacudidas que lhe percorriam os braos e se convertiam em rtmicos estremecimentos que ela notou dentro de si como pequenas convulses. Seguia lhe doendo. Era muito incmoda aquela sensao

ardente em seu lugar secreto, unida a ele. O homem no a olhou no rosto nem a liberou de seu peso. Apoiou a cabea no travesseiro ao lado da sua e lhe acariciou o cabelo uma e outra vez. Leda -sussurrou. Meu Deus, Leda. E ela pensou, presa

da histeria: Como pude ser to tola? Isto era. Isto. Agora agora sim que sou uma mulher desonrada. Samuel soube que ela estava chorando. Atravs dos batimentos do corao de seu prprio corao, sentiu mais que ouviu cada pequeno suspiro antes do soluo. A

vergonha e a paixo se apoderaram dele. Mentalmente, ficou em p e partiu, pondo fim ao ultraje; j que no podia troc-lo, acabava com ele. Mas seu corpo se limitou a ater-se ao dela, seus braos a rode-la, desejoso de penetr-la de novo. Em lugar de faz-lo a beijou e

lhe falou, tratando de consol-la, quando no sabia nem o que lhe dizia. Beijou-lhe os olhos e as lgrimas que havia em seu rosto; beijou-lhe o ombro nu onde a camisola baixada lhe rodeava o brao. Disse seu nome, e tratou de lhe explicar que o sentia, quando no havia

outra explicao que ele mesmo. No podia controlar-se; no era capaz.

Resultava-lhe deliciosa. Pura luxria e erotismo sob seu corpo. Pelas lgrimas que derramava, sabia que lhe tinha feito mal, e lhe enchia de desconcerto sentir um prazer to intenso. Ai! murmurou Leda, como se as tivesse surpreendido quando ele voltou a afundar-se nela. Samuel se elevou sobre

os cotovelos e lhe percorreu a face com os lbios, enquanto enxugava suas lgrimas salgadas com a lngua. Leda fechou os olhos enquanto lhe beijava as pestanas e as sobrancelhas. Ao v-la com o pescoo nu, a pele plida e o cabelo desordenado sobre o travesseiro luxurioso, ertica,

excitante um fogo renovado lhe percorreu as veias. Tratou de consol-la, mas seu consolo se voltou sensual, seus beijos se foram fazendo mais apaixonados e profundos, em lugares que ele tinha vontade de provar. Colocou a mo sob o seio da jovem e o levantou, enquanto dobrava a cabea para saborear a

suave redondez sob a camisola. A lembrana vivida do sabor em sua lngua umas horas antes lhe fez abrir a boca de novo e lamber o tecido sobre a pele dela. Leda emitiu um leve som, um meio protesto suave, e se moveu embaixo dele. Samuel sentiu que parte da

rigidez abandonava o corpo da jovem, e que uma tenso nova e grcil a substitua. Procurou com a lngua o mamilo daquele seio e riscou crculos em torno dele, umedecendo a flanela. Ela fez um movimento mais brusco embaixo dele, houve um soluo repentino e um tremor. A camisola se

abriu por completo, deixando ao descoberto o mamilo ante ele: redondo e belo, de um rosa escuro que contrastava com o branco da pele. As brasas ardentes de seu interior prenderam. Apertou os lbios contra o seio da jovem enquanto a penetrava com mais fora. Abriu a boca

e deslizou a lngua pela carnuda protuberncia. Agarrou-a com a boca e, nesse momento, ela emitiu o som mais doce que tinha ouvido na vida: um rudo entrecortado no que no havia nada de dor. Com a mo rodeou o outro seio, para acariciar e saborear os dois, enquanto Leda mantinha os

olhos fechados e seguia fazendo aqueles suaves rudos. Sabia que lhe tinha produzida dor; tinha sido a invaso de seu corpo, e, em algum lugar corrompido e profundo de seu ser, soube que aquelas outras carcias suavizariam essa dor. Eram lies antigas, meio esquecidas, que procediam de uma parte de

seu ser que odiava. Mas Leda se arqueava sob seu corpo, to bela em sua rosada calidez que a vergonha e a ira que havia nele se consumiram, converteram-se em p frente realidade que ela representava sob a luz prateada. Abraou-a e a penetrou de novo em profundidade, sentindo

aquelas quebras de onda de prazer e desejo brotar nele e arrast-lo at o ponto crtico. Comeou a mover-se com mais fora, com os olhos fechados, apanhado por aquela sensao cada vez mais intensa. Esta vez durou mais, adquiriu mais intensidade; cada impulso acrescentava intensidade ao ardor, at que se

esqueceu de respirar Se esqueceu de pensar, de ouvir, de ver se

esqueceu de tudo menos daquela paixo que o dominava e estalava dentro dela com a intensidade da plvora ao lhe prender fogo. Quando terminou, os aromas e as sensaes pareceram sumi-lo em uma estranha letargia. Descobriu que Leda o olhava com aqueles olhos belos de cor verde escura, como

se as palavras a tivessem abandonado. Uma confusa emoo se apropriou do interior de Samuel, alvio e prazer, cercania e coisas impossveis de descrever. Os pensamentos racionais o tinham abandonado. No queria outra coisa que dormir entre aqueles braos. Mas no por muito tempo. No podia atrasar-se ali.

Uma breve lembrana de Kai lhe cruzou a mente, mas nem sequer pde agarrar-se a ela. Sentia-se embriagado pela felicidade, pela consumao. Est bem? As palavras brotaram preguiosamente quando inclinou a cabea sobre a dela, com os lbios quase roando os da jovem. No sei -disse

ela, que soou queixosa como uma criana. Samuel tratou de pensar no que podia fazer para consol-la, e soube que tinha que desfazer-se daquela espcie de encantamento. Separou-se dela, que fez um gesto de dor quando seu corpo ainda firme se deslizou de seu interior. Beijou-a com doura,

passou do gozo ao remorso e voltou para princpio. Sentiu a necessidade urgente de dormir e de estreit-la contra si. O edredom que antes ela tinha apertado contra seu corpo estava enredado em torno de suas pernas; enquanto se fazia a um lado, cobriu-a com ele e tambm se cobriu frente ao

frio intenso da madrugada. Ficou de lado e a abraou, lhe rodeando a cintura com um brao, a mo entre os seios e o outro brao sob o travesseiro. Leda ficou quieta naquele abrao por um momento e, continuando, agarrou-lhe a mo. Querido senhor -disse e se deteve.

Isso foi tudo. Aquela sensao de torpor desceu lentamente sobre ele. Afundou-se na escurido aveludada sem responder, sem saber se aquelas palavras eram de carinho ou continham uma acusao. Samuel sonhou que algum batia na porta. Abriu os olhos. A habitao estava alagada pela

luz do dia, que o iluminava tudo: a cama, a senhorita toile, seu arbusto de cabelo de cor castanha intensa, e a silhueta escura da manga de sua camisa sobre o edredom de cor nata, como se fosse um retalho que a noite tivesse deixado atrs. Alm da desordenada cabeleira

de Leda, Samuel distinguiu o oco da porta. Viu lady Tess nele. Levava um presente envolto em papel a prontas brancas e verdes, pacote com um lao vermelho. E soube que durante o resto de seus dias recordaria aquele lao. Aquele vermelho em particular, aquele tom de verde, e o

tamanho exato e a forma precisa da caixa que levava na mo.

Uma sacudida tardia o atravessou, do ventre at as gemas dos dedos, uma impresso silenciosa e paralizadora controlada por dezesseis anos de disciplina. No fez um s movimento. Sobre o corpo adormecido da senhorita toile, seus olhos tropearam com os da dama. Lady Tess permaneceu um instante imvel, com

a mo no pomo da porta ao meio abrir. Desde algum lugar nas profundidades do corredor chegou o eco de umas vozes masculinas que cercavam e dirimiam uma cordial disputa. Lady Tess baixou o olhar at o presente, como se no soubesse o que fazer com ele, e a elevou

de novo at ele. Mordeu o lbio, ruborizou-se como uma moa inocente e saiu da habitao em silncio, fechando a porta detrs de si. 26 Leda tragou as lgrimas produzidas pelo pnico, e se sentou na cama bruscamente quando a donzela bateu na porta. Puxou os lenis e

o edredom para cobrir-se at o queixo. Apenas uns minutos antes, tinha retirado os lenis e descoberto a escura mancha vermelha que parecia hav-lo coberto toda: seu prprio corpo, a camisola e a roupa de cama; at o edredom estava manchado. Tanto! Ela no se sentia ferida de gravidade. A

dor e a ardncia tinham desaparecido logo que ele No era sequer capaz de pensar naquilo de forma coerente. A sensibilidade da senhorita Myrtle se haveria sentido ofendida pelo simples oferecimento de uma coxa, uma perna ou um peito de frango na mesa; ante uma pessoa com delicadeza, falava-se simplesmente de carne

branca ou carne vermelha. A Leda a tinham educado como a uma dama refinada. No tinha palavras para definir o que ele tinha feito. Partiu, tinha desaparecido enquanto ela dormia. Se no tivesse sido pelas manchas, os aromas misteriosos e a umidade, poderia ter sido fruto de uma alucinao. Tinha

procurado rapidamente com o olhar a pedra luminosa que ele tinha deixado cair, mas isso, do mesmo modo, esfumouse. A donzela entrou sem que a convidasse, um momento depois de bater na porta do modo acostumado. A moa nem sequer elevou o olhar at a Leda; limitou-se a fazer

uma rpida reverncia e lhe aproximou a bandeja ao lado da cama. A senhora h dito que, como a senhorita no se encontrava bem e se ficou adormecida at tarde, era provvel que queria tomar o caf da manh na cama. Sim, por favor. A voz de Leda

era baixa e entrecortada, como se levasse dias sem falar. A inocente amostra de solicitude de lady Tess fez que lhe desse vontade de chorar. Sobre a bandeja havia um prato e uma taa a mais. A donzela no fez nenhum comentrio a respeito; colocou a bandeja no colo de

Leda e foi acender o fogo. Pelo geral isso se fazia muito mais cedo; o ligeiro rudo da

p do carvo era o que despertava a Leda uma manh normal. Era incrivelmente afortunado que esse preciso dia tivesse havido um atraso na rotina cotidiana. Um pensamento horrvel lhe passou pela mente. E se no tivesse havido nenhum atraso? E se a moa tinha entrado na

habitao e visto? O aroma de torradas com manteiga, de repente, resultou-lhe nauseante. Seguro, seguro que o rudo da porta ao abrir a teria despertado como sempre o fazia. Tinha pensado que jamais seria capaz de voltar a dormir, aquela manh, depois de Fechou os olhos, ainda incapaz

de encontrar a expresso adequada para o que tinha acontecido. A donzela varreu o cho, fez outra reverncia rpida e se retirou. Leda tentou recordar se a moa se mostrou mais agradvel e amistosa no dia anterior. A donzela alguma vez tinha sido muito loquaz, e a Leda

agradava o trato com os serventes guardassem as distncias que eles mesmos decidissem, mas esta moa em particular, no sorria sempre com acanhamento e dizia Bom dia, senhorita cada vez que entrava e saa? Leda ps a bandeja a um lado. Sentia-se desesperada. Parecia-lhe que necessitava um banho, mas estava

muito envergonhada para chamar e pedir que o preparassem. E o que ia fazer com aquelas manchas que havia por toda parte? O que podia dizer? Pensou em pr uma desculpa e dizer que se devia a sua indisposio mensal, mas s fazia uma semana da ltima, e estava claro que o

pessoal encarregado da lavanderia saberia bem. Retirou o edredom e atravessou descala a habitao, abriu de um puxo as gavetas da penteadeira e ficou a procurar entre o ordenado contido umas tesouras para fazer um corte. Ouviu uma suave chamada na porta e ficou gelada. Lady Tess entrou

na habitao e fechou a porta atrs dela. O corpo de Leda reagiu e fez uma ameaa de atirar-se na cama e esconder-se; mas, quando a dama levantou a vista, viu que era intil. Lady Tess sabia. Leda ficou petrificada no meio da habitao, com a

camisola manchada apertada ao pescoo. Lady Tess sabia, sabia, sabia. A melhor entre as damas, a mais amvel, a mais generosa; a me da jovem com a que ele tinha inteno de casar-se; a famlia que tinha proporcionado refgio a Leda, mais que isso, a que lhe tinha

devotado sua amizade sem reservas, e inclusive uma espcie de afeto A respirao de Leda comeou a entrecortar-se. Fechou os olhos, juntou as mos e cobriu a boca com elas. Os joelhos lhe falharam. As lgrimas transbordaram de seus olhos enquanto se deixava cair ao cho; eram lgrimas de angstia,

de vergonha e de terror pelo que agora poderia lhe acontecer. Chis, chis. Os braos de lady Tess a rodearam enquanto ela estava abaixada sobre o tapete, tremendo, e sacudida pelos soluos. Atraiu a

cabea de Leda at seu seio, acariciou-lhe o cabelo e a embalou entre seus braos. Silencio. No vai passar nada. Tudo vai estar bem. Estou to -A voz de Leda ficou afogada por outro dilacerador soluo. Ai, senhora! Cala, querida. Lady Tess apertou a face contra a

cabea de Leda. No trate de me contar isso agora. Leda se via incapaz de elevar o rosto, de conter o tumultuoso pranto. Girou a cabea para a bela blusa de renda de lady Tess e chorou. O apoio calado, a suave mo que lhe retirou o cabelo para trs

s pioraram as coisas; Leda no era capaz de entender como lady Tess suportava o contato com ela. Por fim, entre hipidos e sorvos, limpou o rosto com o leno que lady Tess lhe deu. Sinto-o tanto! conseguiu dizer para, continuando, contrair de novo o rosto

e voltar a soluar. Nunca tive a inteno. Jamais o teria feito No o entendia! Suas palavras acabaram em um alarido. Vem ao vestidor. Lady Tess a obrigou a ficar em p. Mandei que esquentem gua e deixem ali a banheira porttil. Vamos te tirar isto. Leda olhou para a

camisola, e no pde evitar chorar uma vez mais. A cama. Todos os serventes vo se inteirar, verdade? No tem importncia. J me ocuparei eu disso. Algo na voz da dama fez que Leda levantasse a vista assustada. J se inteiraram? Lady

Tess tomou a mo e a apertou. Leda voltou a sentir que aquelas lgrimas horrveis lhe alagavam os olhos. A donzela! A donzela veio a sua hora. J falaremos disso quando estiver vestida. A voz de lady Tess era tranqilizadora, como se lhe falasse com um

menino nervoso. Uma sensao de atordoamento absoluto se apoderou de Leda. Se os criados estavam inteirados nenhum sinal nas costas poderia proclamar sua vergonha com mais nitidez naquela casa. Em uma espcie de inconscincia, deixou-se levar por lady Tess ao vestidor contigo, permitiu que lhe tirasse a camisola

pela cabea, e pela primeira vez na vida ficou completamente nua diante de algum. A prova do acontecido marcava suas coxas com feias manchas, mas lady Tess pareceu no lhe emprestar ateno: limitou-se a lhe derramar gua quente em cima, como se fosse uma donzela normal, e deu a Leda uma toalha

para lavar-se e uma pastilha de sabo quando entrou na banheira. Tudo o que Leda queria era afundar-se naquele banho quente e ficar ali para sempre. Seu desejo era afogar-se. Mas no pde faz-lo. Lady Tess tinha roupa limpa preparada para ela, e um pano para impedir que

houvesse mais manchas. Hoje no tem por que levar espartilho ou anquinhas. O que voc gostaria de te pr, esta saia ou a de listas? perguntou a Leda sem perder a compostura.

Aquelas amostras de considerao fizeram que Leda rompesse a chorar de novo. No podia parar; ficou ali vestida soluando. Lady Tess a rodeou com seus braos enquanto Leda se apoiava em seu ombro para chorar. Quando as lgrimas se detiveram, obrigou a Leda a sentar-se na poltrona que havia em sua

habitao diante da chamin. Ai, senhora, no sei como como pode ser to boa comigo? Lady Tess sorriu com tristeza. Acredito que porque eu gostaria de fazer isto pelo Samuel. Mas no posso. Assim que o fao por ti. Em sua voz no

havia nenhum tom de censura. Leda secou os olhos. No me odeia? Lady Tess sorriu mais abertamente e estendeu a blusa a Leda. No, no te odeio. Eu gosto de voc. E espero que Samuel se sinta igual a voc esta manh. Leda soltou

uma risada que era quase um soluo. Se for assim, deve estar histrico. Possivelmente. Mas saber ao olh-lo. Viu-o? Lady Tess deixou de grampear os botes das costas de Leda. No respondeu. Senhora -disse Leda com um tremor, foi foi a donzela

quem o disse? Os dedos as suas costas reataram a tarefa. Esta manh vim com um presente para escond-lo debaixo de sua cama. Por desgraa, no esperei a que respondesse a minha chamada porta. A Leda deu um tombo o corao. Ai, senhora.

Ai, senhora. Foi uma impresso muito grande. Durante longo momento, Leda no disse nada. Sentia-se doente. Quando lady Tess lhe passou a saia, Leda a ps com gesto rgido, movendo-se como um autmato. Lady Tess comeou a grampear a larga fileira de botes no alto talhe do objeto.

Face vergonha que a embargava, Leda no pde evitar a nota de esperana na voz ao perguntar: Quer isso dizer que solo sabe voc, senhora? Vem e toma assento. Leda fechou os olhos ao compreender o que aquela resposta implicava. Respirou fundo e

foi sentar se na poltrona junto ao fogo. Lady Tess serviu uma taa do ch que havia na bandeja e a levou a Leda; serviu outra para ela e se sentou junto a penteadeira. Temo-me que isto no te vai resultar fcil, Leda. Tem que saber que a donzela veio

esta manh hora acostumada. Pelo menos, uma hora antes que o fizesse eu. Agora quase meio-dia. A taa tremeu um pouco na mo de Leda. Depositou-a sobre a mesa e uniu as mos no colo.

Todo mundo sabe. Gryphon me disse no caf da manh que se rumoreava que Tommy era teu filho e de Samuel, concebido quando Samuel esteve aqui o ano passado por questo de negcios. Leda ficou em p. Senhora! Leda, a gente j tinha

comentado antes, e eu at agora nem o tinha pensado, quo estranho era que Samuel houvesse te trazido para viver conosco. E Tommy No meu. O juro! No verdade; pode lhes perguntar ao inspetor Ruby e ao sargento MacDonald. Lady Tess, com um ligeiro sorriso, torceu

o rosto para indicar a camisola manchada que estava sobre a cama. J sei. Estou completamente segura de que ontem noite foi a primeira vez que estiveste com um homem. Leda a olhou cheia de embarao, com os olhos totalmente abertos, e logo apartou o olhar.

Quer que eu v embora. No sei no que estive pensando Deveria ter feito a bagagem j. Eu no desejo que v. Ai, senhora! Est lady Kai, e a senhora Goldborough e suas filhas. No posso lhes impor minha presena aqui. No em minhas atuais circunstncias.

Ah Porque poderia manchar sua inocncia juvenil? Suponho que, em tal caso, tambm teria que lhe dizer ao Samuel que se v e poderia ser que tambm a Robert e lorde Haye, embora no caso do senhor Curzon o mais provvel que continue sendo to virgem como um

branco lrio. Brincou com um alfinete de chapu que havia sobre a penteadeira. Ia resultar um tanto difcil. Senhora! em que pese a tudo, Leda se sentiu escandalizada. Eu no quero que v, mas se isso o que decide, pode ir. Olhou a Leda de forma muito direta,

com um olhar intenso de seus olhos, emoldurados pelo escuro cabelo. Se quer saber o que desejo desejo que seja valente, Leda, querida, que fique aqui e enfrente a eles. Enfrentar a eles. A lorde Ashland, lorde Robert, o senhor Curzon, a todos os convidados a lady Kai.

No acredito que seja capaz. A voz quase lhe falhou. Apertou as mos entre as dobras da saia. Lady Tess acariciou com os dedos a prola que rematava o alfinete. Levantou a vista de novo. Se for, aonde ir? Leda viu seu prprio reflexo

no longo painel de cristal entre as janelas. Temeu que at seu aspecto fosse distinto; o cabelo em desordem lhe caa sobre os ombros, ainda sem pentear, tinha a pele torcida por causa das lgrimas, os olhos enormes no plido rosto. Tinha aspecto de prostituta? Poderia algum adivinhar que no

era casta?

Abriu as mos e estirou os dedos entre as dobras da saia, e virou o rosto para no ver aquela imagem. Eu queria ser datilgrafa. Economizei meu salrio e se me dessem uma carta Lady Tess no respondeu splica escondida naquelas palavras. Apertou a cabea do

alfinete contra o dedo indicador, como se aquele gesto fosse muito delicado e importante. Cr que Samuel no te deve nada mais? perguntou com suavidade. Para frustrao dela, Leda sentiu que as ardentes lgrimas se amontoavam de novo em seus olhos. Mordeu o lbio, tratando de evitar que

se derramassem uma vez mais. No, senhora -disse com um sussurro. Lady Tess deixou o alfinete a um lado e ergueu a cabea. De verdade? Imagino que natural que eu tenha mais f nele que voc. Eu gostaria de pensar que o educamos para saber

o que correto. Eu no sou responsabilidade dela. Ai, Leda, Leda. Vai casar-se com lady Kai. Disse-o com rapidez, porque de outra maneira no teria sido capaz de faz-lo. Lady Tess fez girar a taa de ch no prato. Eu no

tenho notcia alguma de que se anunciou esse compromisso. Leda recordou de repente que lady Tess se havia oposto a esse matrimnio, que se tinha aborrecido muitssimo quando lorde Gryphon lhe tinha falado das intenes do senhor Gerard. Leda comeou a respirar mais fundo. Senhora seria uma autntica

loucura No pode obrig-lo Ele no querer casar-se comigo! Temo-me que isso seja verdade. E tem liberdade para partir se isso for o que decide, minha querida, porque vai ser muito difcil para ti se ficar. No vai dobrar-se facilmente. Voc quer quer impedi-los de casarem? Tanto rechaa

a idia desse matrimnio? A mais velha das duas mulheres franziu o cenho e apartou a vista do espelho da penteadeira para olhar pela janela. Eu amo a minha filha. Ao Samuel tambm amo. No quero que me interprete mal, mas, em certo sentido, a unio que

tenho com o Samuel mais profunda. Kai e Robert no quero que nada os faa sofrer nunca. So meus filhos. Desejo que sejam felizes o resto de sua vida. Mas Samuel Samuel o mais forte muito, muito mais forte do que poderia te explicar. Sorriu com tristeza e sacudiu

a cabea. E ao que desejo felicidade com mais ferocidade. O sorriso elevou as comissuras de seus lbios. Asseguro-te que Vicky com seus filhotes no pode nem comparar-se comigo como me. Leda olhou para o tapete azul e vermelho a seus ps. No sei -prosseguiu lady Tess, apoiando a face na

mo. Estou segura de que, quando era mais jovem, pensava que quando meus filhos

alcanassem esta idade iria me preocupar menos. Pergunto-me por que tenho a impresso de que agora que mais me inquieta. Senhora -disse Leda com acanhamento, acredito que deve ser algo maravilhoso ter uma me como voc. Bom. endireitou-se no assento com mais brio. Se me sair

com a minha, o mais provvel que Samuel deseje que v a Tombuct, e voc comigo. Querer ficar e lhe dar a oportunidade de que faa o que deve fazer? O pensamento de que o senhor Gerard chegasse a desejar v-la em Tombuct ou algo pior no serviu para

tranqiliz-la. E a idia de que fizesse o que tinha que fazer lhe parecia completamente impossvel, e to dolorosa e desanimador que os ombros de Leda se afundaram. Acredito que deveria partir, senhora. Leda ele no te importa absolutamente? A jovem se deu a volta para

esconder o rosto. Ele quer a sua filha. Isso terminou. Mas se s ontem o colar Por favor, no faa que me zangue por subestimar Kai. Minha filha amiga tua, Leda e, embora quisesse faz-lo, voc cr que ia comprometer se com ele,

sabendo que te tinha falhado? Se o quiser, o primeiro que desejar dele quo mesmo espero eu: que cumpra com o dever que tem contigo. Acreditar menos nele, seria um insulto. Que cumpra com seu dever. A voz de Leda soou dbil. Sim. Imagino que no

uma forma muito bonita de diz-lo -disse lady Tess com um suspiro, mas este no um mundo ideal, querida. Por grande que fosse sua inocncia ao faz-lo, o que tem feito real e tem conseqncias reais. Pode ter um menino. Pensaste nisso? Leda ficou tensa, com a vista

cravada em lady Tess. Um gemido de incredulidade lhe escapou entre os lbios. da que vem os meninos -disse lady Tess, fazendo um gesto de afirmao em direo cama. Sinto te dizer que o da cegonha pertence fico. Leda abriu as mos e as estendeu,

como se queria afastar a idia dela. Est segura? Do da cegonha, sim. Sorriu brevemente. Completamente segura. Se voc ter um beb como resultado da noite passada, no, disso no posso estar segura. S uma possibilidade. Ai, senhora! O mundo em torno de Leda se

obscureceu. Como saberei? Tero que passar vrias semanas. Se a menstruao no aparecer, ser um sinal bastante claro. Leda comeou a ofegar. A escurido se apropriou de sua vista. Leda!

A voz aguda de lady Tess e a mo que apoiou nela a detiveram antes que a escura bruma a tragasse. Leda descobriu que estava na poltrona, dobrada sobre o colo. Bom, j est -lhe murmurava lady Tess ao ouvido. No te deixe levar pelo pnico, querida. No te

aterrorize. Chis, minha menina valente chis no chore. Ele se encarregar de ti, Leda; no est sozinha. Samuel olhou seu reflexo no espelho. Deveria ter podido ver seu rosto como contornos e sombras; fora em potncia, capaz de adaptar-se a qualquer papel que lhe exigisse. A falsidade e a iluso

eram ferramentas de sua disciplina. No deveria estar perdido entre o real e o enganoso. Seishin. Um corao sem fissuras. Ele adotou o seishin-seii. Fechou os olhos e os abriu de novo. No viu verdade. No viu integridade. No viu outra coisa que a si mesmo, a boca

endurecida pela raiva, a mandbula rgida, os olhos reluzentes sob o feixe de luz que entrava pela janela do vestidor. No passado, tinham-no chamado belo. Um belo entretenimento. Um belo cachorrinho tentador. Depois de toda a brutal aprendizagem com Dojun, nenhum corte deixou jamais cicatriz. Nenhum golpe deixou

marca. Nada danificava sua beleza. Odiava seu prprio rosto. Com um gesto brusco, deu-se a volta e agarrou os gmeos da cmoda. Os objetos secretos que sempre levava em cima j estavam na jaqueta que ficaria essa manh; a cmoda roupa oriental jazia em um escuro monto volumoso,

sua roupa de exerccio, como a chamavam as donzelas quando falavam entre elas. O aroma dela, e a ele, ainda a impregnava. Ficou um momento ao lado da roupa, e respirou aquele aroma que desprendia. A rigidez se apoderou de seu corpo. Era pior, agora que o conhecia.

Agora que tinha lembranas, frescas e vvidas, para alimentar o fogo. O desejo tinha vida e vontade prpria: pensar nela o encheu de euforia. Pagaria-lhe para que partisse dali. Sabia que, ao menos, isso era o exigido. Uma generosa gratificao, tinha ouvido que o chamavam. Pequena ironia utilizar para isso

um termo que em francs significava doura, quando no era mais que uma liquidao. O que era adequado que fosse em francs. Agarrou a pilha de roupa cinza e a atirou sobre o respaldo de um assento. A mo lhe enredou nas dobras do tecido. Leda, pensou, mas a mente

no parecia poder ir mais frente do nome. O prazer era uma espcie de dor em suas vsceras, como uma tortura que lhe oprimisse a garganta. Tinha que controlar aquilo. Tinha que falar com ela, que organizar tudo, que exercer algo parecido ao domnio sobre a situao.

Como tinha

podido dormir como se o tivessem drogado, como se estivesse surdo e cego, como era possvel que no tivesse ouvido nada, que no houvesse sentido nenhum perigo, que tivesse permitido Lady Tess Uma quebra de onda de vergonha o invadiu. Ouviu um estalo repentino. Deu-se

conta de que se moveu e, ao baixar a vista, descobriu que a cadeira partiu at o cho e que havia uma fenda na tosca madeira. Soltou-a como se lhe queimasse as mos, e a cadeira ficou inclinada, apoiada sozinho em trs pernas. Chikush? amaldioou em voz baixa, chamando-se besta.

E o era. Deus, claro que o era. Os convidados j partiam, embora nenhum deles parecia ter muita pressa por partir. No vestbulo dianteiro, trs malas e um ba se apinhavam em uma esquina. Na sala do caf da manh tinham colocado um buffet para o almoo. Embora

passasse j das duas da tarde, ainda havia uns foges de lcool acesos sob as fontes de prata com presunto e carne de ganso, que desprendiam um intenso aroma quando Samuel entrou. Haye e Robert estavam revolvendo entre os apetitosos manjares e servindo-se em uns pratos. Gerard. Lorde Haye lhe

fez um leve gesto de saudao. Robert se limitou a sustentar o prato ao meio cheio e olhou Samuel, como se no soubesse bem de quem se tratava. Depois baixou os olhos e meteu uma parte de queijo na boca. Tenho que falar contigo -disse. Em privado.

Samuel controlou o movimento com muito cuidado. Robert jamais tinha querido falar com ele em privado. O rumor dos convidados e criados reunidos no vestbulo foi a desculpa para apartar-se. Os Whitberry estavam despedindo-se; Robert fez um gesto de chateio, deixou o prato e saiu para lhes dizer adeus.

Samuel se serviu e tomou assento junto grande mesa. Ele e Haye comeram em silncio, separados pela toalha branca em toda sua extenso. Nunca tinha havido entre eles nada mais que um trato corts e distante, mas aquela manh Samuel nem sequer era capaz de seguir as mais elementares

normas de urbanidade. A mais velha das jovens Goldborough apareceu porta da sala de cafs da manh, inclinou-se e esquadrinhou a estadia. Viemos a nos despedir e lhes desejar Feliz Natal. Haye e Samuel ficaram em p. Enquanto o outro homem se dedicava a conversar

sobre coisas intrascendentes como o tempo e o trajeto at a estao, Samuel murmurou a saudao mais corrente que foi capaz de expressar. Desejava que todos fossem ao inferno. Sobre o que quereria Robert falar com ele? As outras duas irms Goldborough apareceram, envoltas em grossos casaco com

mangas de pele de coelho. Fez-lhes uma inclinao e lhes

beijou a mo quando a estenderam ansiosas e no lhe deixaram outra opo. Olharam-no com a mesma expresso de curiosidade e admirao risonha com a que o tinham visto desde que os tinham apresentado. Haye abandonou a sala de caf da manh em companhia das jovens. Samuel ficou um

momento de p e logo abandonou o prato sem terminar e saiu pela outra porta ao deserto salo, em lugar de faz-lo ao vestbulo. Aproximou-se at a sala de bilhar. No havia ningum. Subiu pela escada traseira e se deteve no corredor diante da habitao da senhorita toile. Ningum respondeu

a sua suave chamada porta. No podia arriscarse a permanecer ali. Ao dar a volta e pr-se a andar, tropeou com Kai, que vinha do quarto dos meninos. Levava Tommy no ombro. O beb tinha os olhos vermelhos e parecia aborrecido, como se preferisse seguir dormindo a que

o depositassem nos braos de Samuel, como aconteceu, sem cerimnia alguma. Kai -disse Samuel, e imediatamente o interrompeu um agudo grito. Vamos, Tittletumps, que no te quer? Kai ficou a falar com o garotinho. Volta comigo, ento. Vem aqui outra vez. Vai, vai, j est. Levantou

o beb nos braos. Enquanto os gritos davam passo a um ligeiro soluo, a jovem olhou de esguelha a Samuel. verdade? Ao Samuel lhe gelaram as vsceras. Kai deu tapinhas nas costas do Tommy e contemplou Samuel com as sobrancelhas arqueadas. Que se for verdade

o que? No soube onde encontrou as foras para falar. Ela abraou ao Tommy. Todo mundo diz que voc e a senhorita Leda Seguiu falando, mas Samuel no ouviu suas palavras. Quo nico ouvia eram os batimentos do corao de seu corao que lhe retumbavam nos

ouvidos: o silencioso som de sua vida ao romper-se em pedaos. No. Negou-o. No ia permitir que ela acreditasse. O eco daquela slaba pronunciada com fora se perdeu corredor adiante; ele escutou o eco como se fosse outro o que tivesse falado. Tommy se tranqilizou, agarrou

o pescoo do vestido de Kai com o punho e afundou a cabea no ombro da jovem. Ouviu-se o suave murmrio dos pssaros entre a folhagem, proveniente do vestbulo central. Kai mordeu o lbio, com expresso preocupada. Pensei que era um horrvel rumor, e assim o disse

senhorita Goldborough. Mas, Man, voc no me Voc me diria a verdade, se fosse certo? Samuel ficou olhando-a. Man, voc no me mentiria, no? Ele baixou os olhos e olhou para outro lado. Ah -A voz de Kai refletiu sua consternao. Man.

Kai no significa nada. -Esticou a mandbula. Deus, voc no sabe! disse com ferocidade. No pode entend-lo.

Que no significa nada? Olhou-o incrdula. No. A voz da jovem subiu de tom. Est dizendo que certo, e que no significa nada? A expresso de seu rosto mudou. E o que acontece Tommy? O que acontece a senhorita Leda? No possvel que

voc que no posso acreditar! Como pode dizer que no significa nada! Tommy comeou a chorar de novo; seus roucos gritos se impuseram veemncia de Kai, mas ela no se deteve. Os teria abandonado na rua? E j est? Ou ou -Seus olhos se abriram de par em par e

seu queixo se ergueu. J vejo! No de tudo cruel. Trouxeste-os aqui, e esperava que fssemos ns os que nos encarregssemos de seus trapos sujos, enquanto que voc nem sequer o reconhece! Samuel ficou rgido, enquanto se dava conta pelas palavras de Kai do alcance do iminente desastre.

No h nada que reconhecer -replicou com firmeza. Nada! Cheia de paixo empurrou ao Tommy a seus braos. que ele te parece que no nada? Samuel no teve mais remedeio que agarrar ao beb para que no casse. Tommy arqueou as costas, incmodo, e comeou

a dar alaridos ante aquela brusca mudana, um aps o outro. Ele tem os seus olhos! disse ela com ironia. No sei como no me tinha dado conta antes! No te tinha dado conta porque no mais que um produto de sua imaginao. Isso foi

tudo o que conseguiu articular, apenas vocalizou aquelas palavras. No podia raciocinar com ela naquele momento, dominado como estava pelo aborrecimento, pela fria ante o destino e ante si mesmo. Passou ao lado de Kai e se dirigiu ao quarto dos meninos com o choroso beb nos braos. Kai foi

atrs dele. Samuel sentiu a mo dela em seu brao e deu a volta, mas nos olhos da jovem brilhavam lgrimas de fria. Arrancou ao Tommy dos braos e se afastou dele, enquanto o vo de sua saia ondulava pela fora de suas pernadas ao escapar corredor abaixo ao quarto dos meninos.

Samuel. A voz de lorde Gryphon o deixou pregado ante a porta. A tarde cobria com uma fria bruma a esplanada que se estendia ante a casa e a grama das pradarias, ocultando a ltima das carruagens que se dirigia estao. Sim, senhor. Samuel no

se girou. Vai a algum lugar? A pergunta foi feita com suavidade, quase com preguia, com infinidade de implicaes. Samuel fechou os olhos brevemente. Sim, senhor.

Vou contigo. Muito bem, senhor. calou as luvas de um puxo. Se deseja. Caminharam em companhia. Lorde Gryphon se movia sem rudo ao lado de Samuel, com as mos nos bolsos, exalando flego gelado ao respirar. Avanavam pelo atalho de cascalho, que se curvava afastando-se da casa,

deixando atrs a luz e o calor. Samuel havia sentido a necessidade de isolar-se. No tinha querido encontrar-se com ningum, e menos depois de seu enfrentamento com o Kai. Encerrou-se enquanto o resto dos convidados partia por fim, e tinha visto da janela sair Kai para se despedir de Haye.

A jovem ficou na esplanada e havia dito adeus com a mo at que a carruagem desapareceu. As mos de Samuel se apertaram no interior das luvas ao record-lo. Tinha perdido todo domnio sobre si mesmo, no sentia outra coisa que cimes e ultraje em seu corao. As

rvores se elevavam como escuras sombras entre a bruma. Pareciam afastar-se flutuando lentamente quando passavam ante eles, enquanto o rangido de seus passos e os de lorde Gryphon era o nico som que interrompia o silncio. Os degraus que conduziam aos elegantes jardins apareceram ante eles, com um escuro brilho prateado por

causa da umidade. Que intenes tm? perguntou lorde Gryphon. No disse a que se referia. Samuel se deteve e respirou fundo. No sei o que quer dizer. V se sabe! As palavras foram pronunciadas com suavidade. Lorde Gryphon deu uma patada a

uma pedra e a lanou ao bordo do atalho. Olhou para a bruma e sorriu preocupado. A pacincia de Samuel se fez pedaos. Afastarei-a daqui. No voltarei a v-la nunca. Darei-lhe dinheiro suficiente para que viva como uma princesa o resto de seus dias. Cortareime o pescoo.

Ser suficiente com isso? Elevou o rosto para o firmamento vazio com um gesto de tortura. O que seria suficiente? O outro homem se apoiou em um pedestal de pedra e cruzou os braos. Suficiente para que? Samuel tropeou com seu frio olhar. No

que eu exija de ti uma virtude clara e absoluta. Eu tampouco sou nenhum santo, mas quando conheci a mulher que amava, no me deitei com outra distinta. Samuel tinha a garganta seca, e o ar que entrava em seus pulmes era gelado. Entende-me? perguntou lorde Gryphon

sem alterar-se. No. Samuel fechou os olhos para proteger-se. No me faa isto. A voz soou tranqila, mas inexorvel: Retiro meu consentimento. No permitirei que faa mal a minha filha. Nem a minha esposa.

Samuel deu a volta para afastar-se dele. Deteve-se e olhou atrs entre os vapores da nvoa. Antes me mataria. Sim. Lorde Gryphon descruzou os braos e se separou do pedestal Isso o que eu pensava. O lacaio lhe levou a nota em uma

bandeja de prata. Samuel reconheceu a letra antes de toc-la. Tirou as luvas, tratando de afastar gestos fteis o inevitvel. Lady Tess o esperava na sala de msica para falar com ele. Isso era tudo o que a nota dizia. Em uma ocasio o tinham golpeado, tinham-lhe dado

nas costas com um tamborete de um botequim, nos tempos em que se dedicava a aprender o que implicava que a um o golpeassem. O ataque lhe tinha talhado a respirao, tinha concentrado toda sua conscincia naquela exploso de dor, tinha-o aniquilado, mas tinha tido que seguir adiante, que continuar brigando, que

mover-se quando tinha o corpo paralisado. Agora era igual. S se movia impulsionado pela disciplina e os nervos. Bateu na porta, abriu-a para ouvir a voz da dama e a fechou atrs dele. As orqudeas brancas e rosas ondearam com suavidade do suporte da chamin e se refletiram

no negro verniz do piano de cauda. Lady Tess estava sentada ante ele e folheava uma partitura musical. Quando ele entrou, voltou a deix-la no suporte de livro. Nunca me deu bem a msica -disse. Kai sabia tocar -Se interrompeu e pareceu envergonhada. Bom, isso no importa agora. Samuel, eu

Lady Tess se interrompeu de novo. Ficou em p, alisou a saia com rapidez, apoiou a mo na tampa do piano e a retirou imediatamente. Lorde Gryphon j falou comigo-disse ele. Lady Tess levantou a vista do teclado. No tem por que me dizer

isso voc outra vez. Se sentir incmoda a ver-me A dama apertou os lbios. Sinto que tudo se soube. Eu no o haveria dito a ningum. Nem sequer ao Gryf. Sobre o piano ardia lentamente uma vela sob um globo de cristal. Samuel concentrou ali a

vista, incapaz de olhar a outro lado. Voc no tem nada do que se arrepender. Entrelaou as mos depois das costas. Nada. Alm de me haver trazido para sua casa. Nunca fui capaz de dizer-lhe tentei lhe dizer o que isso significou para mim Perdeu todo domnio sobre sua

voz. Por fim, sem subterfgios, olhou-a a cara e disse: Eu no estaria vivo hoje. Ai, Samuel.

Lady Tess voltou de novo a vista para o teclado. Ele contemplou aquela cabea inclinada, as mos obscurecidas pelo sol. Sentia uma opresso no peito que lhe impedia de respirar. Por todos os diabos -disse rispidamente, sabendo que a tinha feito chorar. Sim. A dama secou os

olhos. Eu sinto quo mesmo voc. Samuel quis acabar com aquela situao e se lanou a falar com frases entrecortadas que no expressavam nada do que sentia. Irei amanh. No verei Kai. S peo que algum lhe diga que o menino no meu. Essa a verdade.

Nunca vi senhorita toile at o dia que fomos casa de modas. E nunca antes de ontem noite As palavras lhe engasgaram de novo. Lady Tess no apartou os olhos do teclado. Desejava que o olhasse no rosto. Pensou que o que no era capaz

de expressar tinha que ler-se em seu rosto. Mas ela no o fez. Tocou uma tecla negra e a percorreu com o dedo. Esperaria pela Kai o resto de minha vida -soltou de sbito, se voc acreditasse que pode chegar o dia em que tudo isto fique no esquecimento.

Lady Tess riscou com o dedo os contornos da tecla de marfim. No sou eu a que tem que esquec-lo. Kai no sabe. Quo nico ouviu foi o que disseram do menino. O outro no o entenderia. Tampouco Kai a que tem que esquec-lo

-disse ela com suavidade. Girou-se e levantou a vista para ele. No paraste para pensar na jovem que arruinaste? Samuel sentiu que a tenso se apoderava de seus ombros e suas costas. Arruinei. Acredito que sim, que esse o trmino correto. Encarregarei-me da

senhorita toile. No acredito que v ter motivos para lamentar esta runa em particular. Lady Tess arqueou as finas sobrancelhas. Isso no o que ela me h dito. Samuel soltou uma brusca interjeio. No deveria ter falado com voc. O que lhe h

dito? Virtualmente o mesmo que voc. Que traiu nossa amizade. Que ir embora daqui. Que voc est apaixonado pela Kai. O que pediu? Nada. Disse-me que ela no era tua responsabilidade. Acredito que esteve a ponto de me pedir uma carta de recomendao, para poder fazer-

se datilgrafa. Golpeou as teclas com as unhas. Mas, ao final, no o fez. Falarei com ela. Com um brusco movimento, voltou-se para a chamin. Agarrou o atiador e o colocou entre os carves. No ter por que ser uma maldita datilgrafa. O que vais fazer com ela,

Samuel?

Comprarei-lhe uma casa e lhe darei cinco mil dlares. No ter que ser datilgrafa. No disse lady Tess com doura, o que ser ento? Ele olhou o fogo com rosto zangado e viu elev-las chamas azuis entre o carvo. Sempre quis que se esquecesse de

onde vinha disse a dama. Sempre quis que o apagasse da memria. Agora, no acredito que o tenha esquecido. No mais profundo de seu ser, Samuel comeou a tremer. Recordo-o. E no te importa que ela Com uma violenta sacudida, separou-se do fogo.

Recordo-o! gritou. Se pensar que quo mesmo seria capaz de convert-la no que eu era que poderia -Soltou flego com fria, e se controlou; deixou que o piano se interpusesse entre eles. No esqueci de onde procedo. O lbio inferior da dama comeou a tremer. Baixou a vista.

Sinto muito. No deveria te haver dito algo semelhante. No chore! disse Samuel entre dentes. Deus me ajude. No chore. Destroar-me. Lady Tess se sentou de repente no tamborete do piano, que soou com uma nota discordante quando ela golpeou o teclado com o cotovelo.

Jamais antes lhe havia dito ele um pouco parecido. Jamais tinha levantado a voz, jamais tinha pedido nada. Samuel rodeou com a mo um peso de papel de cristal que havia sobre a superfcie de bano do piano, e seu punho se refletiu no brilho. Com cuidado para controlar

o tom de voz, disse: Ela esperar que lhe d uma esplndida quantidade de dinheiro. Comprar, alm disso, uma casa mais que generoso. No ter que vender-se de novo. A menos que queira faz-lo. Lady Tess ergueu a cabea. De novo? Sua situao

muito melhor da que tinha no passado. O esplndido lorde que lhe enviou aquela nota casa de modas a tinha vivendo em um sto. Samuel. O rosto da dama empalideceu. Est equivocado. No estou equivocado replicou ele com amargura. Conheo o lugar. Mas ontem

noite no lhe? Lady Tess se umedeceu os lbios . Ai, Samuel. Algo no tom de sua voz fez que Samuel olhasse aqueles olhos cheios de surpresa e consternao. A mo do jovem apertou com fora o peso de papel. Lady Tess falou devagar, como se tivesse

dificuldade para pronunciar aquelas palavras. Samuel no te deu conta de que era virgem?

Ele olhou para o objeto que tinha na mo. Dentro do ovalide cristalino, espirais de cor e crculos com flores diminutas formavam um alegre desenho. Isso foi o que lhe disse? No houve necessidade de que me dissesse nada. Vi-a. Uma jovem com experincia no choraria dessa

maneira, nem sangraria. Ele se lembrou de um menino que tinha feito ambas as coisas: derramar lgrimas e sangue que toda uma vida de empenho no tinha conseguido apagar. Lgrimas e sangue era quo nico reconhecia, a nica conexo entre seu passado e o prazer fsico da noite anterior. Mas

no podia reconhecer que tinha esperado essas coisas e que, em que pese a isso, tinha permitido que acontecesse que tinha querido que acontecesse, que o tinha desejado. O peso de papel, pesado e frio, caiu sobre a palma de sua mo. Naquele ovalide de cristal, seu corpo reconheceu uma

arma em potncia. Seus msculos o sopesaram de forma automtica; a mo julgou e percorreu a superfcie para ver suas possibilidades. Com cuidado, voltou a deix-lo em seu lugar. Seu desejo tinha sido casar-se com Kai, tinha tentado ser o suficientemente bom para ela, tinha desejado que a pureza da

jovem o absolvesse de seu passado. Sentiu que as paredes desabavam sobre ele. Prometi-lhe que faria o adequado. Se levantava os olhos, veria a splica nos de lady Tess, e a sua filha nela, e tudo aquilo pelo que tanto tinha lutado. Samuel. A splica deu

passo confuso. Estava to segura de te conhecer Ele moveu a mo e flexionou os dedos em torno do peso de papel. Nunca pensei que no me olharia no rosto sussurrou lady Tess . Nunca imaginei que me decepcionaria. O cristal se estrelou contra a

chamin de mrmore com o estrepito de um disparo. Samuel viu a exploso de cores, antes de dar-se conta de que tinha sido ele quem o tinha jogado. Lascas curvas caram sobre o fogo, e fizeram que saltassem fascas e se elevassem chamas. O resplendor se apagou. Lady Tess, cobrindo-a

boca com as mos, no apartava a vista do que ele tinha feito. Toda sua fria, toda sua frustrao brilhava nas partes de cristal entre o carvo. O correto. Faz o correto. Kai! No podia acredit-lo. No era capaz de acreditar que tudo se acabou. Deu a volta

e saiu aturdido da estadia, deixando a lady Tess s com os afiados fragmentos que ficavam de seus sonhos, depois de fazer-se pedacinhos. Lady Tess lhe tinha pedido que aguardasse a ss na estadia contiga habitao dos meninos. Leda no podia estar quieta; perambulou entre o

velho aroma a rosas longo tempo desaparecidas e as flores murchas dos sofs cobertos com tecidos. Antigamente a habitao, situada na parte superior da casa e com vistas avenida e jardins dianteiros, tinha sido o vestidor de alguma dama. Agora umas cortinas de cretone cobriam suas amplas janelas.

Deteve-se um momento para ouvir vozes na habitao dos meninos, mas se tratava to s da nova bab e de uma donzela que murmuravam enquanto deitavam ao Tommy. A bab apareceu pela porta entreaberta e, ao ver Leda, sorriu-lhe e deu as boa noite antes de fech-la. Fez-se o silncio.

Leda se sentia como um fantasma naquele vestidor cheio de cmodos travesseiros e cadeiras desvencilhadas. Pensou que uma habitao como aquela tinha que ter sido testemunha de muitos momentos de felicidade: a famlia teria sentado e rido nas acolhedoras almofadas do confidente; os meninos teriam brincado sobre a amaciado tapete; uma av

teria desgastado a superfcie sob a velha cadeira de balano. Leda s estava de visita por pouco tempo; era uma presena estranha e de passagem que logo seria esquecida. O senhor Gerard entrou sem fazer rudo. Leda se separou da livraria, dos exemplares de Alicia no pas das maravilhas e

dos Contos dos irmos Grimm, e o viu de p ante ela, como um anjo frio e poderoso que tivesse adotado a aparncia de um mortal. Leda tinha preparado um pequeno discurso, mas lhe falharam as palavras. Pareceu-lhe impossvel adotar um ar de cordialidade ao uso com algum com quem

tinha falado por ltima vez em seu quarto, em sua cama, enquanto se abraavam de forma to indecorosa. Ruborizou-se e permaneceu calada, olhando-o, tentando fazer-se idia de que o que recordava era certo. Aquele homem glido e resplandecente a tinha beijado, tinha-a pego e invadido, tinha-a rodeado com seus braos enquanto

dormia. Senhorita toile disse ele sem tampouco esforar-se muito por guardar as formas, casaremo-nos depois do Natal, se lhe parecer bem. Leda apartou a vista, surpreendida e molesta por aquelas palavras to impessoais. Juntou as mos e se sentou na cadeira de balano olhando-os dedos. Senhor

Gerard, no se sinta obrigado a tomar uma deciso to definitiva. Possivelmente queira dispor de mais tempo para refletir. E no que tenho que refletir? replicou ele com uma frieza que deixava entrever sua amargura. A deciso se tomou ontem noite e definitiva, senhorita toile. Mas

lady Kai J no tenho o consentimento de seus pais, nem o afeto dela. Leda se retorceu as mos. Sinto-o sussurrou. O sinto muito. Diga-me uma coisa, e me diga a verdade disse ele enquanto seu rosto ficava tenso. Fui o primeiro?

Durante uns instantes Leda no entendeu a pergunta mas, continuando, sentiu um intenso sufoco que se apoderava dela. Apertou os ps contra o cho e ps a cadeira de balano em movimento em um esforo desesperado por ocultar-se nela. Sim. Ele a olhou aos olhos com um

brilho de fogo que fez que a Leda ardesse o rosto. O primeiro. Acaso se acreditava que poderia haver outro, que poderia suportar que algum que no fora ele a tocasse daquela forma? No sabia o que esperar disse ele virando-se. Suas speras palavras pareciam cheias de ira e desgosto.

No tenho muita experincia nessas coisas. Leda se levantou da cadeira de balano e se plantou muito rgida ante ele. Senhor Gerard, nunca manteria com nenhum cavalheiro esse tipo de contato to ntimo e direto. Ah, no? replicou o olhando-a com expresso irnica. Leda

recordou intensa e repentinamente o corpo dele contra o seu, suas mos lhe percorrendo o cabelo, o contato de sua pele nua. No deveria hav-lo feito! exclamou. Foi muito errado da minha parte! Oxal tivesse tido esses escrpulos ontem noite. Pensei que voc se sentia

muito sozinho! No me ocorreu que pretendesse o que pretendia. Ele a olhou com uma intensidade quase lhe desarmem. Leda apertou os punhos. Asseguro-lhe, senhor, que nem sequer me teria ocorrido jamais que algo assim fosse possvel. Certamente ningum me tinha falado nunca disso afirmou levantando o queixo,

indignada. E, embora o tivessem feito, no o teria acreditado. Um estranho sorriso se esboou na boca dele. Pensava que a encontraria chorando, e muito plida pela perda de sangue. Qualquer um se poria a chorar, embora s fora pela surpresa. Foi a experincia mais inslita

de toda minha vida. Sim afirmou ele. A minha tambm. Leda voltou a sentar-se e a balanar-se com violncia. E agora todos acreditam disse mordendo o lbio. to humilhante! Todo mundo me olha! E nos temos que casar, quando voc vai me odiar tanto por

faz-lo? Lady Tess diz que assim como bom, o dos meninos. E ainda por cima tenho que esperar vrias semanas at estar segura. levantou-se de um salto da cadeira de balano e lhe deu as costas enquanto fechava os olhos com fora e se rodeava o corpo com os braos. Tenho

muito medo. Ele no disse nada. Quando Leda abriu os olhos, estava junto a ela com uma proximidade alarmante, tanto que no pde evitar soltar um gemido de surpresa.

Como o faz, sem que chie o cho? Sujeitou-lhe o queixo e a olhou aos olhos. Est ficando histrica. No, no o estou. No me educaram para que desse amostras vulgares de emoo em pblico. Mas, no caso contrrio, seguro que o que a olhem

a uma, murmurem sobre ela, assinalem-na e esperem que se case com um cavalheiro que a odiar, razo mais que suficiente para que me ponha histrica. E no faz falta que me diga que respire fundo, senhor Gerard. Estou convencida de que adoraria que no o fizesse, e assim se livraria

de mim em um momento. No. S ficaria azul, deprimiria-se e, depois, voltaria a estar to viva como sempre. E eu seguiria obrigado a me casar com voc. Pois no o faa se no quiser! o que tentei dizer a lady Tess. Se me dessem uma carta

de recomendao Apertou-lhe o queixo com mais fora. No necessita nenhuma disse. Ns casamos dentro de trs semanas. Eu cuidarei de voc. Leda tragou saliva. Isso o que disse lady Tess. Ah, sim? exclamou ele enquanto a soltava. Sim, ela me

conhece bem. Uma careta voltou a aparecer em sua boca. Sabe que nunca a defraudaria. As bodas se celebraram em um dia ventoso e nublado de janeiro na capela privada de Westpark, com lady Kai atuando como dama de honra de Leda. Tudo parecia to irreal e fraudulento como o

vestido de cetim branco e o antigo vu de tule que usava Leda, feito a toda pressa por madame Elise e enviado justo no dia anterior de Londres com uma nota pessoal de felicitao dessa dama, que no desperdiava nenhuma ocasio para fazer negcio; na nota, esperava que a senhorita toile lhe

fizesse a honra de permitir que fora sua oficina quem lhe subministrasse aqueles vestidos, de excelente gosto e ltima moda, que a noiva pudesse necessitar para completar seu enxoval nupcial. Leda no estava segura de quem tinha pagado o vestido, nem tampouco o de organza pssego de

lady Kai com um grande lao s costas, nem as flores de flor-de-laranja, autnticas e fora de temporada, que perfumavam o frio ambiente. Sups que teria sido lorde Gryphon, que tinha um aspecto esplndido e distinto enquanto esperava com ela na estadia adjacente, e que lhe apertou o brao para lhe dar

nimos quando comearam a percorrer o corredor da capela. Leda estava convencida de que, de no ter estado ele ali a seu lado, lhe teriam falhado as pernas e teria cado sobre o cho de pedra, presa de medo e de sofrimento. A capela era um desdobramento do sculo dezoito de esculturas

e harmonia, de gesso branco e intensa luz pese ao dia apagado. Leda sabia

que aquele no era seu lugar, que nenhum antepassado seu aristocrata tinha criado aquele lugar de conto de fadas. O senhor Gerard, entretanto, encaixava naquele elegante cenrio melhor que seu padrinho de bodas, lorde Robert, o qual ficou a brincar nervoso com os botes de seu traje quando a

msica comeou a alagar a capela. O senhor Gerard, pelo contrrio, permaneceu imvel, vestido com um casaco preto justo, enquanto observava como a escassa congregao ficava em p fila conforme Leda ia passando. Esta pensou que nunca ningum real ou imaginrio poderia ter dado melhor aquela imagem de perfeio fria, resplandecente e

firme. Ento, atravs do vu, viu lady Cove. Lady Cove! Arderam-lhe os olhos, e teve que morder o lbio para conter a emoo que se apoderou dela. Tinham acudido todas as damas de South Street; lady Cove ficou em p com expresso entusiasmada e o leno preparado na mo; levava

um chapu rematado com o que parecia ser uma perdiz dissecada, to moderno e ltima moda que quase resultava imprprio de uma dama. E tambm estava a senhora Wrotham com seu melhor vestido, que tinha comprado vinte anos atrs em Paris. Mas foi a digna senhorita Lovatt, para quem as lgrimas

eram uma debilidade prpria da classe baixa, a que de repente abandonou sua expresso sria para agarrar o leno de lady Cove e levar-lhe aos olhos enquanto a boca lhe contraa em uma careta, com o que conseguiu que Leda perdesse sua frgil compostura. Nublou-lhe a vista e teve que agarrar-se com

mais fora ao brao de lorde Gryphon para seguir andando s cegas enquanto lhe caam as lgrimas sob o vu. Acreditavam que tudo aquilo era real. Faziam toda a viagem de Londres, certamente em trem em que pese a que a senhora Wrotham se enjoava com o movimento dos vages.

Eram seus amigas e se alegravam por ela, mas tudo era mentira, at aquele vestido branco que simbolizava sua pureza. Lorde Gryphon lhe soltou o brao. Lady Kai lhe agarrou o ramo enquanto sorria emocionada. E ento j no ficou mais remedeio que voltar-se e olh-lo ao rosto.

Atravs do vu e de seus olhos cheios de lgrimas, Leda s alcanou a ver sua silhueta, escura e dourada. Ouviu sua voz, firme e sem rastro algum de emoo. Amor, riqueza, honra. Como podia ele dizer todas essas coisas? Ela no se sentia capaz de emitir o menor som.

E, entretanto, quando foi seu turno, as palavras saram, claras e decididas. Amava-o. Claro que o amava. Foi o nico momento verdadeiro em todo aquele teatro. Na sade e na enfermidade, at que a morte nos separe. Levantou-lhe o vu. Leda piscou e o viu com claridade. Seus

olhos, com aquelas negras pestanas e o cinza da luz do amanhecer; seu rosto, perfeito at roar o desumano; sua boca, que tinha provado a sua. Viu que ele percebeu suas lgrimas. A mandbula de Samuel se contraiu levemente quando inclinou a cabea e seus lbios tocaram a face mida de Leda.

Lady Tess ia de um lado a outro da habitao. Abriu a cama, arrumou os travesseiros, abriu os cortinados fechados do dossel e alisou o vestido branco que a donzela tinha pendurado no armrio vazio. Esta era a habitao de minha av. Pode voltar a decor-la, se quiser. Ficou

tudo muito antigo. uma habitao encantadora, senhora disse Leda. Chame-me de Tess. Endireitou um marco oval que pendurava de uma cinta do trilho para quadros e que continha uma fotografia de um menino pequeno pescando. Seu incansvel movimento estava conseguindo que Leda ficasse ainda mais

nervosa do que j estava. No acredito que possa Suplico-lhe disse isso a olhando. Chame-me de Tess. o diminutivo de Terese, nome que devo confessar que eu no gosto de nada. Est bem, senhora digo, Tess. Havia uma caixa de marfim sobre a

penteadeira branca e dourado. Isto de Samuel. Pediu-me que lhe d isso. Leda aceitou aquele presente desprovido de pacote. Vacilou um instante, mas lady Tess ou Tess, embora Leda duvidava muito de que alguma vez fora capaz de ter a rabugice de cham-la assim a observava espectador,

por isso se sentou em uma poltrona estofada e levantou a tampa. Dentro, sobre um fundo de cetim rosa, havia uma escova e um espelho que lhe eram muito queridos e familiares, tanto que em seguida viu as pequenas bolinhas a um lado do marco que Leda sempre tinha pensado que pareciam

o diminuto rosto de um elfo aparecendo pelo um bordo do cristal. O senhor Gerard encontrou isto? disse enquanto lhe formava um n na garganta. Leda! exclamou lady Tess zangada. Rogo-te que no ponha a chorar outra vez. Est bem, senhora. Absorveu o lquido que lhe

acumulava no nariz e abaixou a cabea. Em seguida a levantou e emitiu uma risada entrecortada. Isso justo o que me haveria dito a senhorita Myrtle disse enquanto tocava o espelho e percorria com o dedo o desenho do marco de prata. No acreditava que voltasse a v-lo.

Quer que te escove o cabelo? E, sem esperar a que lhe desse permisso, lady Tess agarrou a escova e comeou a tirar ganchos e forquilhas do cabelo de Leda. Marcado os cachos deste caram sobre seus ombros. Lady Tess se aplicou tarefa em silncio e sem muita suavidade

durante uns instantes, enquanto Leda tentava no fazer nenhuma careta. Bom, vou entremeter em seus assuntos outra vez disse lady Tess com esse ligeiro tom de exasperao que Leda estava comeando a aprender que significava que estava molesta ou insegura. Eu tampouco tinha me quando me casei, mas tinha uma

amiga. Eu gostaria de ser sua

amiga, Leda. Importa-te que me sente e te explique algumas coisas que acredito que deve saber? No, senhora, obvio que no. Tess, por favor. Ai, senhora, que me custa muito, sinto muito. Parece-me muito descarado por minha parte. Lady

Tess se sentou no bordo da alta cama com os ps apoiados no pequeno tamborete que havia junto a ela, enquanto seguia sustentando a escova da senhorita Myrtle. Bom, Samuel tampouco conseguiu acostumar-se a faz-lo nunca, assim suponho que d igual. Embora me faa me sentir muito velha e estirada.

Ningum me chamou senhora durante meus primeiros vinte anos de vida, por isso acredito que muito desagradvel e pouco considerado que todo mundo me chame isso agora at no poder mais. Leda se virou rapidamente e a olhou. Voc no nada velha, senhora, digo Tess. Pouco

a pouco acredito que o conseguirei. Obrigado, j me sinto mais jovem disse a outra inclinando um pouco a cabea. Bem, pois te vou explicar o que me contou minha amiga, mas no deve te assustar. Fez uma pausa e sorriu. Bom, pode te assustar se quiser. Suponho que

muito pedir que no te assuste do que te vou dizer, mas me prometa que se esquecer da senhorita Myrtle e do decoro e todo isso, e que pensar no que te vou dizer. Leda sentiu que se ruborizava. sobre? perguntou. Sim, sobre isso.

Sobre o Samuel e voc. No passa nada, Leda, no aparte a vista. Agora uma mulher casada. Agora pode dar prazer ao seu marido ou faz-lo infeliz. A deciso tua, mas no quero que a que tome seja produto da ignorncia. No, senhora, digo Tess. Minha

amiga se chama Mahina Fraser. do Tahit. E te asseguro, Leda, que ningum sabe mais do amor fsico entre homem e mulher que um tahitiano. Leda se limitou a emitir uma exclamao cheia de dvidas. Ouviste falar do Tahit? prosseguiu lady Tess. uma ilha. Mahina me

contou todas essas coisas em uma praia. Tnhamos os dedos dos ps metidos na areia quente, e o cabelo solto, igual a voc. Os homens so algo distintos nisso, mas considero que uma mulher necessita muito relaxamento para fazer bem o amor. Tnhamos o cabelo solto, e nenhum medo. Entreabriu os olhos

com expresso zombadora. V? J te tornei a assustar, e nem sequer comeamos ainda. Tem medo de Samuel, Leda? Pergunta-a foi to repentina que esta solo pde piscar atnita. Ele te machucou? perguntou-lhe Tess com doura. Leda abaixou a cabea enquanto esfregava o polegar contra a asa

de prata do espelho. Sim.

Acredite-me, me acredite de verdade quando te digo que s algo temporal. Ao cabo de pouco tempo j no te doer. Se doer, que h algo mal, no o esquea. E no deixe (no deixe, ouve-me?) que Samuel pense o contrrio, porque temo que isso o que

far. Falarei-te dele dentro de um momento, mas nessa questo tenho toda a razo. Sou velha e estirada, e sei mais disso que vs dois. O corpo de uma garota demora um pouco em acostumar-se, mas essa toda a dor e o sangramento que h. Entendeme? Leda tragou saliva e

assentiu. Sorria. No horrvel, a no ser muito agradvel. Colocaste alguma vez os dedos dos ps na areia? No, senhora. Pois ento pensa em algo quente e agradvel. Em um edredom de plumas ou em um xale de caxemira. Leda olhou para a

cama com dossel. Ao ver que Tess se dava conta imediatamente do que acontecia sua mente nesses instantes, ruborizou-se profundamente. Est pensando no Samuel? perguntou a dama enquanto se movia como se fosse uma menina contente por algo e se inclinava para diante. Excelente. Bem, vou te contar tudo o

que me explicou Mahina sobre os homens. E te posso assegurar que tudo certo. Quando Tess terminou, Leda tinha aprendido os nomes tahitianos de coisas que nunca tinha imaginado que existissem, e de partes do corpo nas que s tinha pensado vagamente como isso. A senhorita Myrtle teria desacordado

muito antes do momento em que Tess dirigiu a Leda um olhar zombador e lhe disse pela ensima vez: J te tornei a assustar. No comece com a risada, por favor. Sonha muito mais parvo do que em realidade. Meu Deus disse Leda cobrindo-a boca com as

mos. Com que s seja a metade de absurdo do que parece, no sei como as posso conseguir com algum. Conseguir. E no comece com as risadas no momento mais inoportuno ou ferir seus sentimentos. Os homens so muito sensveis para essas coisas. E Samuel Tess adotou uma expresso meditativa

enquanto fazia girar a escova em sua mo. Tambm te tenho que falar dele, Leda. Ele no quereria por nada do mundo que o fizesse mas Apertou os lbios com deciso. Mas sou uma anci intrometida que est convencida de que sabe as coisas melhor que ningum. Houve algo

na forma em que, continuando, deixou a escova com cuidado sobre a cama e ficou em p, agarrando-se de um dos pilares da cama, que fez que o corao de Leda pulsasse mais rpido. Tudo isto que te contei prosseguiu Tess bom para as pessoas que se querem dentro

do matrimnio. Tenho que te dizer que me casei em

primeiras npcias faz muitos anos, quando era muito jovem e estpida. Anulou-se ao cabo de pouco tempo. Leda tentou controlar sua surpresa sem saber o que dizer. Meu primeiro marido foi o senhor Eliot, um homem horrvel. Ainda hoje em dia me pergunto s vezes

por que se comportava assim, e por que me fez o que me fez. Seus dedos empalideceram ali onde estava agarrada ao pilar. H pessoas que mesclam todas estas coisas, Leda, e as volta do reverso convertendo o amor em algo horrvel. E no sei por que Asseguro-te que no sei por

que, face ao velha e experimentada que sou. Sorriu com ironia e tomou flego, como se agarrasse foras para prosseguir. H homens que pagam a mulheres para fazer as coisas das que te estive falando, e temos que compadec-los mais que nada, porque no h amor no que fazem. H homens que

pagam a outros homens. E h homens que compram meninos. Leda se endireitou e olhou magra mulher que tinha ante si apoiada contra o pilar da cama. A primeira noite que passei na casa do senhor Eliot, entrou um menino em minha habitao. Teria cinco ou, no

mximo, seis anos, no sei. Era Samuel disse com uma voz pausada em que, no obstante, podia-se perceber um ligeiro tremor. Comportou-se com grande mansido. No disse nenhuma palavra. O senhor Eliot o atou pelos pulsos e comeou a golpe-lo. E me resulta muito difcil, por no dizer impossvel, entender, explicar ou

to sequer falar de algo assim, mas ao parece era a forma em que o senhor Eliot procurava prazer. E, quando me opus com todas minhas foras a aquilo, encerrou-me em uma habitao e no me deixou sair durante quase um ano. O tremor de sua voz se converteu em

um estremecimento bem perceptvel. Ficou imvel olhando para uma esquina da estadia. Quando confia que est a salvo disse, quando confia que tudo a seu redor razovel e lgico, que a gente o que parece, e te passa algo assim, nunca o esquece. Nunca. Nunca poderei

Sua voz sucumbiu finalmente. Leda ficou em p sem saber o que fazer ou lhe oferecer. Tess girou a cabea e viu sua expresso de desgosto. Sorriu, mas seu olhar delatava a amargura que sentia nesses momentos. Aquilo me mudou. O mundo nunca me tornou a parecer o mesmo aps.

E tive sorte de ter amigos que me resgataram, tiraram-me dali e arrumaram tudo para a nulidade, e depois conheci o Gryf, mas no podia tirar aquele menino da cabea. Tivemos detetives procurando durante quase trs anos, at que o encontraram em um desses lugares em que os meninos so vendidos aos

homens. Leda voltou a sentar-se na poltrona. No quero te alterar com tudo isto, Leda. S quero que entenda sua forma de ser. Diz que essa primeira vez te fez mal, e suponho que tambm te assustou. Imagine como deve ser estar sozinho em um lugar assim quando

ainda no se tm nem oito anos.

Leda subiu as pernas poltrona e apoiou a cabea sobre os joelhos. Pensou em todos os pequenos presentes cheios de afeto que ele tinha feito a Tess, to meticulosamente escolhidos; na moeda trespassada em uma cinta ao redor de sua prpria garganta; na escova e o espelho de prata. E

pensou, com repentina certeza, nos estranhos roubos que ele tinha levado a cabo na cidade. Fez-o para fechar esses lugares, pensou Leda. Em vez de usar marchas, hinos e campanhas promovidas por damas, ele, em silncio e por sua conta, fazia impossvel que tais stios pudessem seguir existindo

e sair luz pblica. um homem excepcional disse Leda com a boca pega camisola. De verdade lhe parece isso? perguntou Tess com um tom de esperana na voz. Leda assentiu sobre seus joelhos. Graas a Deus! exclamou Tess com um longo

e profundo suspiro. Dava-me muito medo de lhe contar isso. Sabia que tinha que faz-lo, mas me dava muito medo que no quisesse casar com ele. Sempre quis confessou Leda sem levantar a cabea. Mas temo que ele no. Pois se casou contigo. Leda espremeu a

camisola entre os dedos. Porque no tinha outra opo. Que no tinha outra opo? repetiu Tess com uma nota de incredulidade na voz. Bom, isso j compadec-lo mais do que merece. Ningum o obrigou a te fazer o amor. Ningum o coagiu para que ficasse contigo, quando

sabe to bem como voc e como eu que os criados comeam sua jornada s seis. Ningum o convenceu de que aquilo no teria nenhuma conseqncia. J adulto; tinha perfeita liberdade para reprimir-se de fazer o que fez. Leda permaneceu com a cabea inclinada. Ainda tenho medo

murmurou. Tess se aproximou dela e lhe tocou o cabelo. Pois claro, e normal que o tenha, querida minha. Qualquer um tem quando tem que olhar para o futuro e perguntar-se o que vai passar. Mas h algo que me cheia de esperana. Diz que um

homem excepcional. Se contasse isto Kai, a ela no o pareceria. Sofreria e teria piedade dele de uma forma que ele no poderia agentar. muito orgulhoso, e est muito envergonhado. Pois no deveria estar afirmou Leda levantando a cabea. Ele no teve a culpa do que lhe passou.

Que feliz me faz, Leda disse Tess sorrindo. Sim que devo me haver voltado uma anci sbia, para estar segura de que te daria conta disso. Pois claro que me dou conta, senhora. Quem no o faria? Samuel disse Tess por toda resposta enquanto agarrava a Leda

das mos. Bom, j me misturei bastante em sua vida. At as ancis

intrometidas tem que ter um limite. Vou dizer a Samuel que j pode subir. Que seja muito feliz, Leda disse lhe apertando as mos, depois do qual se dirigiu porta. Uma vez ali, voltou-se e, olhando-a, acrescentou: Voc tambm uma mulher excepcional. Fechou a porta atrs dela.

Leda abraou os joelhos. Continuando, agarrou o espelho da senhorita Myrtle e se olhou nele. O cabelo lhe frisava sobre os ombros e as faces. Pensou que era um rosto muito pouco excepcional, sem rastro algum de sabedoria, segurana ou inteligncia. Samuel representou bem o papel que lhe tinha sido

atribudo. Aceitou as felicitaes dos convidados, sorriu quando tinha que sorrir, sentou-se, levantou-se e fez tudo o que tinha que fazer ao longo daquele dia interminvel. A maioria dos convidados o cnsul havaiano, uns quantos scios de negcios deles e o trio de ancis que tinham assistido por parte da senhorita toile

no sabiam nada das escandalosas circunstncias que tinham motivado as bodas, embora estivesse seguro de que no passaria muito tempo antes que se inteirassem. Dita perspectiva lhe preocupava, porque no queria que ela tivesse que seguir suportando essas olhadas e falaes que tanto a atormentavam. Assim, assegurou-se de parecer muito

satisfeito quando lhe entregaram a mo da senhorita toile, como afirmou uma diminuta anci de voz doce e aflautada que levava um pssaro morto no chapu. Seu sorriso no foi de tudo fingida, pois havia algo comovedor naquelas idosas grandes damas, com seu intenso aroma de violetas e sabo, seu profundo interesse

por saber o que ia se servir no banquete, seus complicadas estratagemas para, sem resultar vulgares, satisfazer sua curiosidade a respeito da organizao domstica da casa que o abrangia tudo, dos criados quantidade de carvo que se necessitava para esquentar aquelas estadias to grandes, e o incondicional orgulho que sentiam por

sua senhorita toile, assim como seu sincero desejo de que esta fora muito feliz. As damas s lhe fizeram peties muito singelas: o clculo aproximado do nmero de velas do abajur do comilo as contentou, a promessa de que a cozinheira lhes enviaria a receita da limonada as satisfez, e a taa

de ch que lhes levou o noivo em pessoa as deleitou e inclusive alterou, mas sem chegar nunca a perder a compostura. Samuel passou quase toda tarde em sua companhia, evitando assim outras mais prximas, igual s tinha evitado depois de Natal viajando a Londres e ao Newcastle para

calibrar as possibilidades dos motores de turbina de Charles Parsons. Enquanto estava ausente, lorde Haye tinha voltado para Westpark, por um motivo to bvio que Samuel sentia saudades no sem sentir certo desprezo de que ainda no tivessem anunciado o compromisso. No tinha inteno de estar presente quando tivesse lugar.

Viu o entusiasmo de Kai pela celebrao das bodas, ouviu lady Tess falar do que poderiam plantar nos jardins na primavera, e pensou: No estarei aqui.

Era como se inesperadamente se abrisse um abismo a seus ps, e a comoo o tivesse deixado paralisado. Embora, obvio, sempre se havia sentido rejeitado. To s tinha terminado por demonstr-lo ao render-se finalmente escurido que nunca o tinha abandonado. Tinha-o tentado, uma e outra

vez, mas seguia a. O outro estava a, dentro dele, e cobrou intensa vida quando lady Tess agarrou senhorita toile a sua esposa, santo cu, a sua esposa e a levou ao piso de acima. Robert fez uma careta e lhe piscou os olhos. Ele se limitou a olh-lo

com expresso austera. Todo mundo seguiu falando, como se fora o mais normal do mundo, mas Samuel percebeu a nova nota de diverso que todos tentavam ocultar sob sua aparente alegria externa. Ningum mais o olhou cara. Sorriam em outras direes, como se ele os envergonhasse por estar ali.

Sentiu-se atordoado. To claro estava o que queria? To fcil era ver que inclusive ento, quando aquilo tinha causado sua runa, quando o tinha conduzido situao em que se encontrava, seguia desejando deitar com ela e entregar-se a aquele fogo secreto e sedutor? At Kai o evitou, fingindo um

repentino esgotamento e fazendo um movimento como se fosse agarrar lhe as mos para, de repente, com as faces rosadas, apartar-se sem chegar a toc-lo. Boa noite, Man. Parabns. Como se fora um sinal, todos os pressente comearam a retirar-se. Em ausncia de sua me, Kai se encarregou

de conduzir a suas habitaes aos convidados que ia ficar passando a noite, enquanto que Robert e Haye partiram juntos. Samuel ficou sozinho na sala de estar, entre as flores que Kai tinha prendido com laos de cetim branco, a mesa coberta de presentes e o vu que jazia esquecido sobre a

almofada bordada do assento de uma janela. Minha esposa, pensou. At essas palavras lhe pareceram estranhas. Mas conhecia muito bem esse ardor de desejo que ia crescendo lentamente nele. Era a sombra de seu outro eu, do inimigo que morava em seu interior. 28

Foi ao seu encontro porque teria sido uma derrota no faz-lo. Teria sido como admitir que no tinha controle sobre si mesmo. Quando entrou, Leda estava aconchegada em uma poltrona abraada a seus joelhos, como em um quadro que ele tinha visto em certa ocasio de uma jovem meditativa refugiada

em uma pequena cavidade. Tinha o cabelo solto e brincava com as fitas da camisola. O pomo da porta fez um rudo quando Samuel o soltou. Ela levantou imediatamente a cabea e, ao v-lo, ficou em p ao tempo que agarrava a bata que havia sobre o respaldo da poltrona.

Seus ps nus, o balano de seu cabelo quando o jogou para trs, a curva de sua face ao girar timidamente a cabea a um lado Samuel ficou imvel, dominado pela paixo. No pde dizer o que pretendia. Queria lhe jurar que no a tocaria, mas foi incapaz. Nesses momentos no

podia. Deixou isto abaixo disse ele lhe mostrando o vu, cujos metros de renda tinha dobrados entre os dedos. No o leve assim! exclamou ela enquanto agarrava aquela massa de espuma branca e o alisava com cuidado. Pode rasgar a malha. irlands, fazem-no as freiras empregando centenas de

carretis. Tenho a receita para lav-lo com leite e caf para que fixe a cor certa. No se deve engomar, nem engomar. Leda dirigiu um olhar furtivo ao Samuel, depois do qual guardou o vu no armrio. Ouviu-se o frufru de sua bata de cor verde jade ao deslizar-se sobre o tapete.

Quando Leda se virou, nervosa, concentrou o olhar em algum ponto perto do cotovelo dele. um vestido to maravilhoso! E a fatura pelos gastos e as pressas, com o Natal no meio, tem que ter sido muito elevada. Quando chegou o ba com tudo fiquei atnita. A amabilidade de lorde e

lady Ashland no tem limites. No sei como poderei agradecer-lhe nunca. Gosta? Leda respirou profundamente enquanto seguia sem olh-lo. o mais bonito que vi em minha vida. Pois com isso basta disse ele. No tem que dar as graas a ningum.

Samuel viu na expresso de Leda como esta caa na conta. Ento, foi voc? perguntou olhando-o aos olhos. Ele se levou as mos s costas e se apoiou contra a porta. Madame Elise me informou que voc necessitaria um vesturio de grandes propores. Tenho-lhe aberto uma

conta bancria. Quando necessitar que lhe faa um ingresso, no tem mais que me dizer isso. O saldo inicial de dez mil libras. Dez mil libras! exclamou ela boquiaberta. uma loucura! Tampouco tem que gastar tudo de repente. No me poderia gastar isso nem

em toda a vida! voc muito bom comigo. E voc minha esposa respondeu ele dando incio ao discurso que tinha preparado. Tem perfeito direito a que a mantenha. Tudo o que possuo seu. Ela no disse nada, mas sim deu uns quantos passos enquanto passava

os dedos sobre as franjas da colcha e sobre o penteadeira com cara de assombro, para finalmente deixar cair sobre o assento deste. Veja, faz que me sinta muito mal disse enquanto se fechava mais a bata. Voc me encontrou o espelho e a escova da senhorita Myrtle, teve a

amabilidade de me atribuir dez mil libras, e eu no tenho absolutamente nada que lhe dar. Samuel tentou no olhar como o corpo dela marcava sob o tecido de seda.

No importa. Leda esfregou os polegares uma e outra vez enquanto contemplava as mos. Tinha pensado em uma navalha de barbear, mas no estava segura. Tenho entendido que os cavalheiros so muito especiais para essas coisas. J tenho navalha de barbear disse ele.

Poderia lhe haver encarregado uma camisa, ou um chapu de seda novo. Tambm tenho alfaiate. Leda olhou o colo e passou a palma da mo sobre o brilhante tecido da bata. Quer que lhe d uma massagem nas costas? disse ao fim em voz muito baixa.

Samuel se apoiou com mais fora contra a porta e contemplou a cabea inclinada dela. Sentiu como aquela imagem se apoderava dele com uma sensao parecida com cair das alturas. No que tenha muita prtica em dar massagens explicou ela enquanto grampeava e desabotoava repetidas vezes um

boto da bata. De fato, nunca o tive que fazer. Embora, quando tinha doze anos, pegue a gripe e, como me doa muito, a senhorita Myrtle me deu frices com cnfora que foram um grande alvio. Lady Tess diz que os cavalheiros casados gostam de muito as massagens, claro que sem a

cnfora. Se quiser, ser uma honra para mim tent-lo. No disse ele descarregando todo seu peso sobre a porta e fazendo fora contra ela. No acredito que seja boa idia. que no gosta? perguntou ela levantando a cabea para olh-lo. Samuel j sentia a excitao

que estava apoderando-se de todo seu corpo. Adorava seu rosto erguido, seu sotaque ingls, sua bata de cor verde jade, os dedos de seus ps que apareciam baixo as dobras da camisola branca. Era bela, virginal. Sua frescura o excitava, invocando ao demnio que morava em seu interior. Separou-se da

porta e se voltou para a tela da chamin para ocultar os claros indcios de excitao que revelava seu corpo. Queria falar com voc desta unio. Pensei que, dadas as circunstncias, possivelmente tenha medo de que eu no tome este matrimnio a srio. Pois lhe asseguro que sim que o

fao. Pode confiar em mim para algo que necessite. Voltou a ouvir o frufru da bata dela ao ficar em p. Obrigado. Eu tambm queria aproveitar a ocasio para lhe dizer que, em efeito, j que as circunstncias no so muito propcias, como diz voc, e o matrimnio

algo muito solene que no se deve tomar ligeira, e como me acho no direi que perplexa sobre o que devo fazer em geral, mas sim que algo insegura sobre o que quer e prefere um cavalheiro, j que no estou muito familiarizada com eles, exceo de voc, claro

est, ao que tenho que acrescentar que eu no gostaria embora j saiba que um homem deve mandar em sua casa Leda fez uma pausa em meio

daquele matagal de frases entrecortadas e tomou flego. Bom, porque no quero que creia que me sinto infeliz por ser sua esposa. Samuel fixou o olhar na cena de damas empoeiradas e gals afetados que havia na tela da chamin. Minha esposa pensou. Minha esposa, minha esposa.

De repente se encontrou avanando para ela em lugar de afastar-se, e agarrando-a com fora pelos pulsos. Ao ver sua expresso de surpresa, e aqueles olhos verdes, abertos e vulnerveis, deu-se conta de quo grande era em comparao com ela, do dano que podia lhe fazer, de como poderia esmag-la com um

simples movimento, e nesse preciso instante quis proteg-la, agrad-la e ador-la com todo seu corpo. Queria lhe dizer algo, mas no sabia o que. Embora estivesse cedendo nesses mesmos momentos, queria lhe prometer que nunca sucumbiria ao que lhe ardia no corao e por todo o corpo. Lentamente juntou as

mos de Leda costas desta, como se a empurrasse longe dele, mas, de uma vez, aproximasse-a ainda mais. O movimento fez que os seios dela se arqueassem contra ele. No podia senti-los com a bata posta; to s viu como a bata se abria e a camisola branca se

esticava, marcando com toda claridade aquelas formas turgentes. Samuel notou uma opresso no peito. Manteve-a assim, cativa contra ele, com as duas mos apanhadas por uma das suas. No era isso o que pretendia em um princpio. Sua inteno original era ir v-la, lhe dizer que estava a salvo de

qualquer imposio por sua parte, j fora ento ou no futuro, e partir. Mas pensou: Deus, to s me deixe. Ela no ops nenhuma resistncia. Baixou o olhar pudorosamente e a posou no pescoo e na gravata branca do traje de bodas dele. Samuel observou suas pestanas e

o suave contorno de seu rosto. Sentiu como ela aceitava que a retivera daquele modo, e ento compreendeu que estava perdido. Leda sussurrou. Inclinou a cabea e, lenta e brandamente, comeou a lhe beijar a orelha, depois de lhe apartar o cabelo com a mo que tinha livre. No vou

te machucar. Nunca lhe faria isso. Queria lhe demonstrar como se sentia, mas era difcil, difcil at a tortura, controlar a paixo que o transbordava. O corpo dela seguia arqueado, como entregando-se a ele. Samuel deslizou os dedos pela curva de sua garganta, surpreso por sua delicadeza, e se impregnou

de sua pele. Seus dedos sabiam como faz-lo; era como a caligrafia, ou como esculpir madeira. Moviam-se vidos da vida que havia nela para transmitir-lhe a ele e depois devolver-lhe. Leda desprendia a mesma fragrncia que ele recordava, aquele maravilhoso ardor feminino, ainda mais excitante que a primeira vez, embora

j no to casto e inocente. Uma quebra de onda de pura luxria o fez agitar-se quando se deu conta de que estava percebendo a resposta corporal dela.

S queria lhe demonstrar que no tinha inteno de lhe machucar, que o nico que sentia era uma intensa ternura cheia de ardor; s queria tocar cada parte de seu corpo, degustar aquela vida radiante e encantadora que perfumava sua pele dotada de um brilho sensual. Rodeou-lhe um seio

com a mo e lhe acariciou o mamilo com o polegar. Ela emitiu um ligeiro gemido enquanto fazia fora para soltar-se de sua mo. No, no me detenha, por favor disse ele com voz extremamente suave e trmula. Acariciou-lhe o seio com absoluta reverncia. Quero que veja quo bonita

para mim. No vou te fazer mal, juro-lhe isso. No tenho medo, meu prezado senhor sussurrou ela. s que me sinto como se tivesse bebido brandy de cerejas. Samuel sentiu a vibrao daquele murmrio sob seus lbios. Leda, ainda sujeita pelos pulsos, tremia com os quadris arqueados

para ele enquanto notava o membro ereto de Samuel contra ela. Ento ele baixou a mo e a deslizou pelo arco de suas costas, apalpando a suave realidade de uma silueta feminina sem saias nem acolchoados nem distores; to s a fina capa formada pela camisola e a bata separava sua mo

do corpo nu de Leda. Soltou-lhe os pulsos e a abraou durante um momento, apenas um momento, que foi tudo o que pde agentar ao tocar as ndegas dela e roar seu pnis ereto contra seu corpo. Soprando com violncia, apoiou-a contra o bordo da penteadeira e abriu as pernas

para control-la melhor. Acariciou-a, mimou, abraou e beijou em todas as partes ao seu alcance, na face e pestanas, nos ombros, nos seios. Ela emitia leves gemidos enquanto mantinha a cabea arremessada para trs e se agarrava ao borde dourado da penteadeira. Seus mamilos sofreram uma mudana e se ergueram;

Samuel podia senti-los sob a camisola. -Deixe-me que te veja, Leda disse ele, que aproximou mais sua boca a dela e a lambeu enquanto lhe agarrava os mamilos com os dedos. Tenho que ver-te. Ela abriu os olhos. Ele no esperou a receber resposta, mas sim baixou uma

mo e, devagar e com muito cuidado, foi desabotoando as prolas da camisola da cintura at o pescoo. A branca pele de Leda, sua sedutora silhueta, brilhou entre as sombras. Tirou-lhe a camisola com suma delicadeza. Seus seios nus, redondos e plidos, mostraram-se em todo seu esplendor, rematados pelos mamilos

de uma intensa cor roscea que se elevavam e baixavam ao ritmo de sua respirao. Samuel lhe retirou a camisola e a bata dos ombros e deixou que cassem sobre a penteadeira altura dos quadris dela. Leda o olhou, imersa na sensao de estar em um sonho. J no

era ela, a senhorita Leda toile, a no ser outra pessoa, nua com total indecncia ante um homem. Era a Leda da mitologia, a mulher com um deus por amante, a protagonista da histria que a senhorita Myrtle nunca tinha querido lhe contar, mas que ela tinha lido em segredo, em um

livro

que guardava sob a cama e que no entendia de tudo, mas que sabia que era um mistrio pago e proibido. Um amante. No era Zeus, no era um enorme e magnfico cisne, a no ser um homem, que a contemplava como se fosse uma deusa e admirava seu

corpo como se de uma jia bela se tratasse. Acariciou-lhe os seios com suavidade, com tanta suavidade e doura que Leda fechou os olhos, entusiasmada de vergonha e prazer. Samuel se aproximou ainda mais a ela; deslizou-se para baixo e se ajoelhou com as pernas abertas enquanto com seu corpo

aprisionava o dela contra o duro bordo da penteadeira. Voltou-lhe a acariciar os mamilos com os polegares, fazendo que ela jogasse de novo a cabea para trs. Ento, quando a tocou com a boca, Leda sentiu uma exploso de vida e luz em seu interior. O flego de Samuel era quente enquanto

com lbios, dente e lngua brincavam com seus seios, provocando uma quebra de onda de sensaes em seu estmago. Leda lanou um gemido e, fazendo fora com os braos contra o aparador, elevou-se mais para o Samuel. Este seguiu lambendo-a com maior intensidade e, enquanto ela movia os quadris, puxou

a camisola baixando-lhe por debaixo da cintura. Continuando, apoiou a face contra ela e lhe percorreu todo o torso com as mos. Tudo em voc lindo disse de uma vez que soltava um riso calmo e cheia de admirao que fez que seu flego acariciasse a pele de Leda.

Seus seios so lindos, sua silueta maravilhosa e sua pele muito bela. Leda lhe rodeou a cabea com os braos e o embalou, envergonhada e excitada pelo roce de veludo do cabelo dele contra sua pele nua e pelo contato de sua ma do rosto e sua tmpora,

que se afundavam nela. Samuel a virou a agarrou pelos pulsos e lhe estendeu os braos, apanhando-os contra o bordo da mesa. Depois de lamb-la entre os seios, seguiu acariciando-a com a lngua enquanto se movia para baixo. Queria lhe demonstrar quo deliciosa era; queria beij-la por toda parte. Consciente do prazer

que estava provocando nela, saboreou seu intenso aroma feminino ao chegar a seu ventre. As panturrilhas de Leda se agitavam entre as coxas abertas dele. Ela lanou um suave gemido. Ele acariciou com a boca seu rosceo montculo coberto de cabelo enquanto aspirava profundamente para encher-se dela. Leda tentou soltar-se,

com um esforo que a fez tremer, mas Samuel o impediu. Nunca havia sentido algo assim, essa fora que o obrigava a continuar. Ela apertou as pernas contra ele justo ali onde se concentravam todas suas sensaes. A fragrncia de Leda acendeu ainda mais a chama da paixo de Samuel.

Beijou-a com delicadeza, com muita delicadeza. Abriu a boca sobre aquele lugar secreto e sedoso e introduziu a lngua nele. Ela se agitou emitindo um som inarticulado de protesto, mas ele a apaziguou com um sussurro. No ia parar. No havia poder na terra capaz de impedir que gozasse do deleite de

acarici-la. Beijou-a ali onde sua pele desaparecia abaixo daqueles deliciosos cachos. Abaixou mais a cabea e a lambeu

debaixo acima, assim como a suave pele ao redor. Todo o corpo de Leda tremia; cada vez que a lngua dele subia, ela se agitava e gemia enquanto o agarrava com mais fora. Samuel desfrutava ouvindo sua agitao. Encontrou o ponto que mais a acendia e o desfrutou com

a lngua, uma e outra vez, at que Leda comeou a mover-se sob sua boca do modo em que ele queria mover-se dentro dela. De repente lhe liberou as mos ao tempo que se levantava e lhe beijava as coxas, o ventre e os seios. Quando terminou de erguer-se, Leda

lhe rodeou os ombros com os braos e apoiou a cabea contra seu peito. Ai, meu senhor, meu senhor! Sua voz soou dbil, e sua respirao parecia consumir-se entre gemidos. Encolheu-se abraada a ele, com a face apertada contra seu corao. Samuel a sustentou enquanto todo seu corpo

vibrava; sentia as costas nua dela sob as mangas de seu casaco e sua frgil silhueta entre os braos. Ao cabo de uns instantes, Samuel deslizou uma mo mais abaixo de seu quadril. Estendeu os dedos e tocou o lugar que antes tinha beijado. Estava escorregadio, suculento, mido. Abaixou a

cabea e mordeu o pescoo de Leda enquanto lhe introduzia os dedos. Ela voltou a gemer enquanto se esticava ante aquela sbita invaso. Ele retirou os dedos e desabotoou as calas. Os erticos e provocadores cachos entre as pernas de Leda roaram seu membro. Samuel fechou os olhos muito excitado

e se introduziu lentamente nela. Foi recebido pela abundante umidade do sexo de Leda. Esta abriu mais as pernas ao tempo que se aferrava a ele, deliciosa, quente, suave, mas tambm tensa. Jogou a cabea para trs. Samuel abriu os olhos e contemplou seus seios elevando-se com cada flexo e

seu cabelo caindo sobre seus ombros nus. Sustentou-a com uma mo e lhe beliscou um mamilo. Leda soltou um grito, um grito muito feminino, cheio de vergonha e surpresa, de uma vez que seus quadris se moviam com fora contra ele, seus dedos se aferravam as suas costas e, finalmente,

seu corpo se unia ao seu com um longo e desesperado calafrio que, continuando, deu passo a uma srie de rpidos e voluptuosos espasmos. Tudo aquilo fez que ele chegasse ao orgasmo sem to sequer mover-se. Seus sentidos responderam aquele estmulo e exploraram; seus msculos se contraram; um prazer insuportvel o percorreu

enquanto a mantinha unida a ele, trmula, sem flego e esmagada contra seu peito. Nada do que lhe havia dito lady Tess a tinha preparado para aquilo. Leda estava totalmente rodeada pelo corpo e os braos dele. S lhe doa ali onde estava apoiada contra o duro bordo da penteadeira,

alm de sentir uma ligeira ardncia e estiramento em seu interior que tampouco era

grande coisa, to s como pr a mo numa luva de criana que no lhe coubesse. Tinha imaginado que seria agradvel, possivelmente como colocar um tijolo quente na cama para aquec-la; isso era o que tinha deduzido das palavras de lady Tess. Mas no recordava nenhuma s palavra de

advertncia nelas, nenhuma meno euforia desenfreada que a havia possudo. Mas sim que recordava os olhos zombadores de lady Tess, e pensou: Sabia que ia passar isto. Entretanto, no tinha tentado descrever-lhe. Ao fim e ao cabo, ningum poderia. Ningum poderia explicar o que se sentia ao

estar sujeita como o estava nesses momentos, com sua pele nua contra a seda branca e negra do traje dele, envergonhada, mas desinibida de uma vez, enquanto ainda notava nele os tremores da paixo. Samuel respirou profundamente e soltou um brusco suspiro, como se o ar tivesse ficado retido at

ao fim conseguir sair. Apoiou a cabea contra a dela. No o posso evitar murmurou com voz rouca. No posso me controlar. Leda mordeu o lbio inferior e escondeu o rosto em seu casaco enquanto percorria as lapelas com os dedos. Meu prezado senhor disse, no

ruim. Agora no. De repente ele estremeceu com violncia. Sua respirao se fez mais profunda e lenta. Inclinou a cabea para o pescoo dela, mas imediatamente se endireitou com uma sacudida, como se estivesse ficando adormecido em p. Leda no tinha o menor sono. Depois de aplacar

os batimentos do corao de seu corao, sentia-se ligeira e limpa pela primeira vez em muitas semanas. Vamos deitar disse lhe atirando do pescoo da camisa. Ele abriu os olhos. Leda contemplou sua expresso sonolenta e sorriu enquanto lhe dava umas tapinhas no ombro. To s retire-se

um pouco, senhor, se for to amvel, e deixe a mim. Mas ele no o fez em seguida, mas sim apoiou os braos na penteadeira e a beijou na boca. Samuel sabia algo que Leda no tinha provado nunca, como a terra em um dia chuvoso ou mar do

Tamisa, um sabor forte e salgado, mas sem resultar desagradvel. Em certo modo at era muito atraente, por isso Leda sentiu o desejo de aproximar o mais possvel o nariz a sua pele para absorver tudo o que pudesse daquele aroma penetrante. De repente ele se moveu, levantando-a como se

no pesasse nada. Leda afogou uma exclamao quando ele retirou seu membro do interior dela e a ps de p. Ao olhar para baixo voltou a lanar uma exclamao. Alm disso, no havia muito mais que dizer. Leda sentiu uma abundante umidade entre as pernas, mas nessa ocasio no se tratava de

sangue. E ele Mas Samuel levou a mo braguilha e se virou, para desgosto de

Leda. Lady Tess o tinha explicado tudo com palavras, mas no teria estado mal comprovar de primeira mo se o que lhe havia dito era verdadeiramente possvel. Leda se ajoelhou e, depois de recolher a bata, cobriu-se com ela. Estando assim, mais ou menos vestida, sentia-se proprietria da situao,

capaz de dar as ordens devidas. Meu prezado senhor, se parar para pensar, dar conta de que foi um dia exaustivo. Eu no estou cansada; de fato, sinto-me muito bem. Assim, com sua permisso, vou ajud-lo a tir-la roupa, para que possa escovar um pouco a jaqueta antes de guard-la.

Samuel permaneceu imvel. Com os ps nus sobre o tapete, Leda se aproximou dele e procurou o n da gravata para desat-lo. Uma vez feito, deixou-a sobre uma cadeira e baixou a mo pelo peito dele em busca dos botes do colete. No faz falta que o faa

disse ele. E quem far se no for fazer? Seguro que acredita que no sei nada sobre a roupa dos cavalheiros, o qual certo em sentido estrito, mas lhe asseguro que sei que importante tratar com o devido cuidado as malhas caras. Fez uma pausa, depois da qual

acrescentou: Mas no sei muito bem como lhe tirar a roupa eu sozinha. D-me a jaqueta, senhor? Durante uns instantes no soube se Samuel ia cooperar, mas finalmente este a tirou com um movimento gil e rpido. Leda a agarrou e a levou a armrio, onde a ps com supremo

cuidado na gaveta inferior. Quando deu a volta, ele j tinha despojado do colete e estava ante a penteadeira desabotoando o boto superior do pescoo. Leda se deteve um momento para admir-lo. Certamente era o homem mais atraente que conhecia, no s no que diz respeito ao seu rosto, mas

tambm na graciosidade com que se movia e na harmoniosa proporo de seus ombros e extremidades. Samuel deixou cair os gmeos de prolas da camisa em um recipiente de cristal que havia sobre a penteadeira. A senhorita Myrtle haveria dito que sua pele bronzeada pelo sol era vulgar, mas Leda

a achou muito agradvel, sobre tudo quando ele soltou os punhos, abaixou aquelas curiosas cintas brancas dos ombros e tirou a camisa. Ele no se deu conta de que Leda o observava. Apoiou um sapato sobre o assento bordado da penteadeira para desatar os cordes. O bronzeado se

estendia por todas as costas e o peito, e o contorno de seu corpo era como o das esttuas clssicas, mas em seu caso com vida e movimento, o que significava um espetculo fascinante de contemplar. Samuel olhou por cima do ombro e a viu. Leda inventou rapidamente um motivo para estar

observando-o. Assinalou com a cabea para as cintas que lhe penduravam da cintura. Isso o que so? perguntou. O que? disse ele detendo-se. Essas cintas brancas. Quero comear a aprender a nomenclatura dos adminculos de cavalheiro.

Aquelas palavras fizeram desaparecer a quase imperceptvel tenso de suas costas. Se Leda no tivesse estado pendente de cada msculo e osso de seu corpo, no teria se precavido disso. Isto? perguntou movendo uma das cintas antes de voltar a ocuparse dos sapatos. Suspensrios. Ah murmurou

ela ao tempo que recolhia o colete, que Samuel tinha atirado sobre uma cadeira. Depois de guard-lo, fez o mesmo com a camisa, que estava impregnada do aroma dele. Sem que Samuel a visse, a levou a boca e ao nariz e aspirou profundamente durante um breve instante antes de

deixla junto ao resto da roupa suja. Produziu-se ento um momento de confuso, no que nenhum dos dois soube o que dizer. Samuel estava de p vestido to somente com as calas e as meias. Leda no viu por nenhum lado que tivessem deixado uma bata para ele. No

teria que haver-se encarregado algum disso? Ou era que no tinha? No, seguro que os cavalheiros usavam bata. Prefere que v a outra parte? perguntou ele de repente. Foi at uma porta lateral que havia junto ao armrio e, depois de abri-la, olhou ao interior da outra estadia. A dentro

h um sof. Pois claro que o havia. Leda nem sequer tinha advertido que a estava o vestidor. Provavelmente tinham deixado a bata e o resto da roupa dele nessa habitao. Leda recordou que, quando o primo e a esposa do falecido lorde Cove tinham ido visitar lady Cove, tinham

disposto assim as coisas, no sem que lhes ocasionasse muitos problemas, pois tinha dado lugar a infinitas conversaes, perguntas e nervos at conseguir prover-se de escovas e sapatilhas para o vestidor e de um cama de armar emprestado para o cavalheiro, o qual no chegou a utilizar nada disso. Nem

sequer a cama de armar. A partir dessa lembrana, Leda chegou a um monto de concluses lgicas. Possivelmente era que aos cavalheiros casados no gostavam de dormir nos pequenos vestidores. Possivelmente ditos infelizes maridos tinham que passar o calvrio de pedir cada noite a sua esposa que lhes concedesse permisso

para dormir em sua cmoda cama, mas tinham que retirar-se aos camas de armar se no obtinham sorte autorizao. No, no quero que v a nenhum outro lugar disse Leda com um luminoso e magnnimo sorriso. livre de dormir nesta habitao. E no faz falta que me pea isso

nenhuma noite, senhor Gerard. Samuel replicou ele com voz zangada enquanto agarrava um apaga velas de prata. Estamos casados, Por Deus bendito. Meu nome Samuel. Foi ao suporte da chamin e levantou o brao para apagar a vela do spot da parede. A luz que refletiu o

espelho que havia depois do abajur iluminou sua mo. Leda tinha aberto a boca para lhe jogar uma reprimenda por sua forma de falar, mas a voltou a fechar. Desde no haver o contado lady Tess, no teria reconhecido imediatamente a ligeira cicatriz no pulso. Nem sequer se teria dado

conta. Mas a intensidade da luz da

vela aumentava o contraste, destacando a franja de pele mais plida que lhe percorria a parte inferior da mo. Leda olhou a outra mo e tambm a viu nela, apenas perceptvel. No deveria perjurar, Samuel disse ao fim, em um tom de voz mais cometido de que tinha pretendido

empregar em um princpio. Virtualmente no lhe havia dito nada, mas at isso pareceu a Leda pouco educado por sua parte, por trat-lo como se fora uma criatura criada na selva da que no se pudesse esperar um comportamento civilizado. Rogo-lhe que me perdoe disse ele olhando-a com

expresso irnica. Guiada por um esprito conciliador, Leda sorriu e disse: Sinto-me muito honrada de que prefira dirigir-se a mim de forma mais familiar. Estarei encantada de que voc tambm -Se deteve, vtima de um repentino acesso de acanhamento. Juntou as mos e se voltou um pouco antes

de prosseguir: De que voc faa o mesmo e me chame Leda. Ele apagou a ltima vela. A estadia ficou em penumbra, s iluminada pelo fogo da chamin, e com um ligeiro aroma acre a fumaa. J o tenho feito, ou no? Em alguns desses momentos em que

perco as formas disse ele da escurido. Em sua voz se seguia percebendo uma estranha nota de aborrecimento. Leda se cobriu bem com a bata e foi at a cama, onde apalpou com os dedos nus dos ps at encontrar o tamborete para subir a ela. A gola

da bata lhe deu um puxo quando tentou deitar-se, mas no tinha inteno alguma de tirar-lhe. Subiu a roupa de cama e, depois de amaci-la e arrum-la, deitou muito quieta perto do bordo. Olhou para cima, ao resplendor laranja do fogo na parte inferior do dossel, e fechou os olhos.

Pareceu passar muito tempo antes que ele fora cama. O movimento desta pegou Leda de improviso, e o contato de Samuel a surpreendeu ainda mais. Agarrou-a entre seus braos e apertou todo seu corpo contra o dela. No levava nada posto. Leda apartou rapidamente a mo, mas tampouco tinha onde p-la.

Samuel aconchegou o rosto na curva que formavam o pescoo e o ombro de Leda. Esta abriu os olhos e ficou olhando ao dossel. Boa noite, meu prezado senhor disse em um sussurro quase inaudvel. Leda murmurou ele, enredando os dedos em seu cabelo.

Tinha o brao por cima dela; ao princpio estava tenso mas, pouco a pouco, foi relaxando. Leda percebeu at o menor sinal de distenso de seu corpo e de sua respirao enquanto ficava adormecido. Meu prezado senhor sussurrou de novo pondo a mo no antebrao dele. Que tenha felizes sonhos.

Com a amabilidade que a caracterizava, lady Kai quis acompanhar a Leda estao a se despedir das damas de South Street. Isso fez

necessrio realizar uns pequenos ajustes, pois a carruagem no estava preparada para acomodar bem a cinco pessoas. Todas sabiam que a senhora Wrotham tinha que sentar-se junto a um guich para diminuir no possvel os enjos, e as duas damas mais jovens se ofereceram obvio a ocupar o assento dianteiro.

A senhorita Lovatt, por sua parte, insistiu em sentar-se no de no meio em deferncia a lady Cove, a qual pensou que no estava muito bem consentir que sua irm mais velha cedesse o posto mais cmodo junto ao outro guich. Assim, lady Cove tentou subir antes que sua irm

carruagem e ficar no pior lugar, o que provocou um rpido comentrio desta respeito a que, depois de quarenta e dois anos pertencendo nobreza, caberia esperar que certas pessoas, que ao parecer ainda desconheciam sua fila como esposa de um baro, j tivessem aprendido bem as devidas normas de precedncia.

Lady Cove, que no era imune a essas amostras de amabilidade de sua irm, apartou-se a um lado com total submisso. Em conseqncia, a senhorita Lovatt se instalou na parte central do assento, assegurando-se de parecer encolhida pondo o ombro da maneira adequada, o qual teria provocado sem dvida a

compaixo das demais se o tivesse mantido assim durante todo o caminho at chegar estao. Entretanto, assim que a carruagem ficou em marcha e a senhorita Wrotham se queixou de que comeava a sentir enjos, a senhorita Lovatt se trabalhou em excesso tanto em tirar as sai que a outra tinha

esquecido agarrar, e em assegurar-se de que tivesse a manta de viagem bem posta sobre o colo e que o guich estivesse aberto a seu gosto, que se esqueceu de seguir mantendo a aparncia de estar confinada em um assento estreito. Uma vez que a senhorita Wrotham teve recuperado a

compostura, a senhorita Lovatt se reclinou e disse: Bom, Leda, ainda no tinha encontrado o momento de te dizer que me alegro muito de ver-te to bem situada. Confesso que tive meus temores quando me inteirei, a verdade, mas seu jovem cavalheiro do mais agradvel. Deu-me sua palavra de

que far que a cozinheira me envie a receita da limonada a South Street. Antes que Leda pudesse lhe agradecer, a senhorita Lovatt recordou um caso similar de um jovem bem situado e do mais respeitvel que se casou com uma amiga de uma terceira prima da senhorita Lovatt, e

que ao cabo de algum tempo cravou uma tocha ao jardineiro e foi enforcado. Essa desafortunada histria lhe trouxe para a mente outro exemplo do carter masculino; nesse caso no se tratava de nada que lhe tivesse ocorrido a algum que ela conhecesse, mas sim procedia dessa fonte fidedigna de informao que

era a esposa do pasteleiro. Ao parecer, uma jovem e respeitvel dama se casou com um rico e prestigioso mdico para descobrir com horror que o sujeito no o era em realidade, mas sim tinha conseguido voltar da Austrlia, aonde tinha sido deportado, e tinha feito passar por mdico com tanto xito

que tinha tratado a mais de trezentos

pacientes, dos que matou na metade por lhes administrar os tratamentos incorretos antes de ser descoberto. Outras histrias similares amenizaram o resto do trajeto at a estao. Quando se deteve a carruagem, a senhorita Lovatt concluiu: Temo-me que o matrimnio algo muito arriscado. No acredito que

eu tivesse seu valor, Leda, se um cavalheiro se apaixonasse por mim. V, que macabro pinta voc protestou lady Kai. Samuel totalmente confivel. obvio que o , lady Catherine afirmou a senhorita Lovatt levantando as sobrancelhas. Nunca na vida me ocorreria sugerir o contrrio.

Pois isso justo o que parece. Eu confiaria minha vida a Samuel, e o mesmo pode fazer sem nenhum problema a senhorita Leda, bom, a senhora Gerard. obvio! A senhorita Lovatt ficou to rgida que a senhora Wrotham e lady Cove tiveram que encolher-se para que coubessem as

plumas arrepiadas daquela. Parece-me um homem do mais admirvel, para ser norte-americano. Por fortuna, a moo de bagagens abriu a porta nesse momento fazendo impossvel que lady Kai respondesse, pois Leda temia que a cor roscea da face desta denotasse certo aquecimento. Enquanto a senhorita Lovatt fiscalizava o trabalho do

moo, lady Cove ps uma mo enluvada sobre o brao de Leda e sorriu a lady Kai. No deixem que minha irm as altere, queridas minhas disse em voz baixa. Rebecca acredita que tem a obrigao de advertir s jovens sobre o matrimnio, para que no se precipitem e se

metam em confuses, mas me parece que logo descobriro que um pouco de inocncia e confiana sempre vem bem. De verdade cr, senhora? perguntou lady Kai com mais interesse do que Leda teria esperado dela. Lady Cove agarrou a cada uma da mo. Bom, eu no

sou to inteligente como Rebecca, mas lhes vou dizer o que penso do matrimnio. Acredito que se os casados, tanto o homem como a mulher, pensam sempre no outro nos momentos difceis, e acodem sempre ao outro em busca de felicidade em tempos melhores, ento tudo ir muito bem explicou com um

sorriso e certo brilho nisso olhos o que desejo para ti, Leda, e para voc tambm, lady Catherine. O silncio reinou na carruagem enquanto percorriam aqueles caminhos invernais de retorno a Westpark, at que lady Kai disse: Que amigas mais agradveis tem. Sobre tudo lady Cove.

Leda se sentiu na obrigao de defender um pouco senhorita Lovatt, mas s tinha conseguido explicar como esta sempre se assegurava de que o carvoeiro no as fraudasse levando menos quantidade da pedida, quando lady Kai a interrompeu de repente:

Leda Posso-te chamar Leda, agora que somos como irms? Tenho que falar contigo aproveitando que estamos a ss. O tom de emoo contida de sua voz fez que Leda a olhasse com certo receio. obvio murmurou. Suponho que ter pensado que no estive muito

bom, muito amigvel contigo estas ltimas semanas. Espero que me perdoe. Leda abaixou a cabea e se contemplou as luvas para, continuando, olhar pelo guich. No tem que te desculpar. No me tinha dado conta. Claro, porque estiveste muito ocupada. Sim, passou tudo muito

depressa. Leda, custa-me muito dizer isto mas, ver, quando Samuel e voc se prometeram, correu um rumor perverso e durante algum tempo eu mesma acreditei. Agora j sei que no verdade. Agora o compreendo tudo. Minha me me explicou isso, e estou muito envergonhada de ter acreditado algo to

infame, e posso assegurar que no penso voltar a falar com a senhorita Goldborough. Espero que Robert no seja to estpido de casar-se com essa tola, claro que tampouco acredito que em realidade goste muito. Leda guardou silncio, mortificada. Acredito que o que me passava era que estava

ciumenta confessou lady Kai com toda naturalidade. Tinha muito medo de que Samuel e voc levassem ao Tommy. Leda levantou a cabea. Ao Tommy? Quero ficar com ele Leda, digo-lhe isso de corao. E, se no certo que voc seja sua me, nesse caso

rfo de verdade, e acredito que tenho o mesmo direito que Samuel e voc a ficar com ele sobre tudo desde que No sou sua me! exclamou Leda. Por que cr isso todo mundo? No, no, minha me j me disse que era do todo impossvel. Se cheguei a acredit-lo

foi porque estava molesta. Como Samuel disse que o ia adotar, e a mim no me tinha ocorrido que as coisas fossem bom, a sair como saram Lady Kai esfregou as mos enluvadas e olhou a Leda com olhos suplicantes. Lorde Haye me pediu em matrimnio, e aceitei. E ele tambm quer

muito ao Tommy, e diz que adoraria ser um pai para ele. Assim Prometeste-lhes? perguntou Leda ficando quase sem flego e pensando rapidamente no Samuel. Sim. O vamos anunciar esta noite. Meus pais nos pediram que esperssemos at que vocs casassem. Entendo! Espero que

no te importe, Leda. No! Claro que no! Parece-me estupendo pelo que a mim respeite. Espero que sejam muito felizes.

E cr que Samuel quer tanto ao Tommy? perguntou lady Kai juntando de novo as mos. Salvo pelo de dizer que o ia adotar, nunca me pareceu que lhe tivesse muito carinho. Mas ao melhor ultimamente houve alguma mudana, e ultimamente voc o conhece melhor que eu, claro. Leda

se sentia incapaz de olhar ao rosto. Acredito que ultimamente no conheo muito bem a ningum. Nem a mim mesma. Entendo-o disse lady Kai. Entendo muito bem o que quer dizer. Mas Leda logo descobriu que o conhecia bastante bem. Assim que o viu de p

junto ao fogo, depois de entrar lady Kai e ela no salo, soube que j o haviam dito. Deu os parabns pelo compromisso com a mesma compostura que tinha mantido ao longo de todas as bodas. Lady Kai imediatamente o abordou com o assunto do Tommy. No foi to fcil

convenc-lo como tinha suposto Leda; limitou-se a dizer que falaria com os pais de lady Kai e com lorde Haye. Leda considerou que era uma deciso muito sbia, mas, no obstante, lady Kai sentiu a necessidade de manifestar com todas suas foras sua devoo pelo menino. Tem dezoito anos disse

Samuel. Cumpro dezenove dentro de duas semanas. E, alm disso, isso o que tem que ver? replicou lady Kai. Tem tudo que ver respondeu ele muito srio. Suponho que cr que sou muito jovem para saber o que quero. Pois te asseguro que, se sou maior

para me casar, tambm o sou para saber que quero ter filhos. Ao fim e ao cabo, Tommy s chega um pouco antes que tenha meus prprios. Falarei com lady Tess repetiu ele virando-se. E o que passa com a Leda? disse lady Kai, que no estava disposta

a render-se to facilmente. Assinalou com uma mo para onde aquela estava sentada, fingindo estar absorta na leitura de um livro de monografias cientficas. Quase no sabe trocar os fraldas ao Tommy. Se eu no posso me fazer cargo dele, como esperas que Leda sim possa? Seus prprios filhos j sero mais

que suficientes para Lanou-lhe um olhar que pareceu assust-la, fazendo que se calasse. Man disse a jovem com voz melanclica , zangaste-te comigo? Ele vacilou uns instantes antes de responder: No. Sim que o est, quando este teria que ser o dia

mais feliz de minha vida! exclamou lady Kai agarrando as saias e, depois de um rpido giro, dirigiu-se para a porta. Ao chegar a esta, deteve-se com ar melodramtico. Esperava que voc mais que ningum, meu melhor amigo, desejasse que tudo fosse perfeito.

Samuel no respondeu. Permaneceu imvel com as mos s costas, enquanto Leda estranhou que lady Kai no reconhecesse a expresso de seu rosto. So muito desagradveis, os dois! exclamou esta. Esperava que risses, e que me levasse de um lado a outro da habitao embargado pela felicidade e, entretanto,

atua como se morreu a tia av de algum. Por favor, Man, no vais sorrir, pelo menos? Ele inclinou ligeiramente a cabea a um lado. Logo, fez uma grande reverencia, da que se incorporou sorrindo. obvio, senhora. Seus desejos so Lady Kai deu uma palmada

enquanto emitia um grito de alegria. Foi correndo at ele e o abraou muito forte. Assim eu gosto! Esse meu Man. Sabia que no estava zangado de verdade. Dir a meus pais que sou perfeitamente capaz de cuidar do Tommy? Sim. Lady Kai lhe deu

um sonoro beijo na face. Bem. Vou procurar lorde Haye. Seguro que ficar muito contente. A habitao pareceu ficar em um profundo silncio quando partiu. S se ouvia o chiado do fogo e o bater as asas de cada pgina que Leda passava, enquanto seguia com o olhar

fixo nos nomes latinos e as reprodues de louros de vivas cores. No levantou a cabea quando ele foi at a janela que havia as costas dela. Sinto muito, queria lhe dizer Leda, sinto-o muito, por mais que estava convencida de que teria sido o mais horrvel do mundo se

Samuel tivesse chegado a pedir a lady Kai que se casasse com ele. Partimos amanh anunciou ele. Tenho importantes assuntos que atender em Honolulu. O tom zombador de sua voz estava em consonncia com a reverncia que tinha feito a lady Kai. Honolulu. At seu nome

extico a punha nervosa. Um lugar a uma distncia inimaginvel, totalmente isolado, uma diminuta partcula que quase no tinha podido distinguir no globo terrestre. Leda respirou profundamente. Estarei encantada de te acompanhar aonde queira ir, meu prezado senhor. Notou que se aproximava dela por detrs. Samuel lhe acariciou

a nuca e com o dedo desenhou uma linha desde debaixo de sua orelha at o final do ngulo do queixo. Depois apoiou a mo sobre seu rosto, e o calor de sua pele perturbou os pensamentos de Leda do mesmo modo que a perturbava a lembrana das coisas que lhe tinha

feito a noite anterior. Obrigado disse ele, antes de partir da estadia. No o voltou a ver at o jantar, em que a conversao se centrou no Tommy, no pouco que lhe convinha fazer a longa viagem at o Hava a sua curta idade, no muito encantada que

estaria lady Tess do t-lo em Westpark at que as coisas estivessem melhor assentadas em todas as

partes, assim como na data das bodas. Lady Kai insistiu muito brincalhona em que, qualquer que fosse a razo pela que Samuel e Leda tinham que ir nesse momento, deviam retornar em julho para assistir cerimnia. Mas j tarde essa noite, depois do caf e dos brinde pelo

compromisso, muito depois de que os homens se foram a fumar e as damas cama, ele entrou sigilosamente em sua habitao. Tocou seu corpo como o tinha feito a noite anterior, cheio de excitao e um febril desejo de posse e, continuando, abraou-a muito forte e ficou adormecido com o rosto

apoiada em seu ombro. Leda permaneceu acordada um longo tempo, observando o reflexo do rescaldo do fogo no dossel sobre suas cabeas, pensando no que havia dito lady Cove do matrimnio, e esperando que assim fora. Samuel mentiu respondeu com evasivas, nas palavras de Leda no referente a

sua partida, ao dizer que essa mesma semana pegavam vapor no Liverpool. Entretanto, uma vez que tiveram deixado Westpark e chegaram a Londres, no considerou que houvesse necessidade de tanta pressa. De fato, no considerou que houvesse necessidade de fazer nada. Sua primeira manh de estadia na cidade a passou adormecido na

cama da sute do hotel em que se alojavam. Era a primeira vez em sua vida que o fazia gozando de boa sade. Tampouco estava precisamente adormecido. O som apagado do trfico depois das cortinas abertas se mesclou com o ligeiro tinido da prata quando Leda entrou da sala de

estar com uma bandeja com o ch. Levava um vestido cor nata, o cabelo recolhido em seu habitual e intrincado coque, e sua fina cintura rematada pelos elaborados volantes que rodeavam o anquinhas. Observou-a atravs dos olhos entrecerrados, como a tinha observado quando se levantou da cama, qual plida ninfa na penumbra,

e tinha recolhido a bata de onde ele a tinha atirado a noite anterior. Leda ps a bandeja sobre uma mesa de mrmore. Samuel viu que inclinava um tanto a cabea a um lado e o olhava. Continuando, dirigiu-se janela e abriu um pouco as cortinas para que entrasse

um feixe de tnue luz. Depois de esperar uns instantes, abriu mais as cortinas. Deve ser hora de levantar disse ele. Leda se apressou s fechar de novo. Perdo no me tinha dado conta pensei que um pouco de luz no estaria de mais.

Samuel se levantou levemente na cama. Ainda se o fazia estranho aquilo de estar desprovido de armas e de roupa, fundo entre amaciados travesseiros e colchas, mais vulnervel do que tinha permitido em muitssimo tempo. Bom dia disse ela. Quer o ch? Espero no haver despertado. Estou to descansada que

no posso parar de me mover.

Serviu o ch enquanto falava, e lhe levou a taa como se esperasse que ele se sentasse na cama e o bebesse ali. Samuel se deu conta de que no tinha muita eleio, j que no se atrevia a lhe pedir que sasse da habitao para que ele pudesse vestir as

calas. Assim, apoiou os ombros contra a cama de metal e aceitou o pires com a taa. O intenso aroma do ch se mesclou com o penetrante aroma de sua intimidade fsica que flutuava no ambiente, uma atmosfera que parecia apoderar-se da habitao e de todas as faculdades de Samuel.

Leda lhe sorriu com expresso tmida e satisfeita, e logo recolheu as saias e voltou para a mesa. Depois de servir uma taa, sentou-se e o olhou enquanto tomava um sorvo de ch. Samuel bebeu de um gole o aromtico ch negro e disse: Deveria ir pensando no

que quer comprar. Pratos e o que seja. Pode encarregar as coisas aqui, ou esperar at que cheguemos a So Francisco. Pratos? disse ela deixando a taa no pires. Pratos, quadros, mveis. A casa est terminada salvo o interior. Tenho os planos com as medidas, para os tapetes

e as cortinas e todo isso. Suponho que necessitamos de tudo. Quer que decore toda sua casa? perguntou Leda com voz incrdula. Nossa casa. Ela ficou vermelha. muito generoso de sua parte. Samuel ps a taa vazia a um lado. Tirava-lhe

do srio que se mostrasse to agradecida por tudo. Como se fosse uma espcie de desafio, retirou os lenis e se levantou, embora optou por sair da cama pelo lado que estava mais longe dela. No nenhuma generosidade por minha parte, maldio! minha mulher. Samuel esperava

ouvir um protesto horrorizado por sua nudez; em seu lugar, e em meio de um absoluto silncio, viu que havia roupa limpa esperando-o em uma cadeira junto cama. Comeou a vestir-se. No perjure, por favor disse ela ao fim. Perdoe-me reps ele enquanto se sentava com

os cales postos e ajustava as meias, mas no atue como se fosse minha donzela, por favor. Quando levantou a cabea, viu que Leda tinha a sua cabea inclinada e as mos juntas sobre o colo. Por um instante acreditou que, mas no Quando lhe lanou um olhar furtivo, Samuel pde comprovar

que tentava reprimir um sorriso. Sentiu uma profunda satisfao em seu interior. Acreditava que s damas gostavam de ir s compras disse com certa aspereza. Sim, muito. Samuel inclinou a cabea. Bem, pois problema resolvido. muito grande a casa? perguntou Leda. Ele meditou uns instantes enquanto fechava

as calas.

Vinte e quatro habitaes. Leda levou uma mo ao peito e esclareceu garganta. Bom, pois ento isso vai requerer uma considervel ofensiva contra Mount Street. Os planos esto nessa mala pequena. A pasta est ao fundo. Enquanto ela abria a tampa de pele,

Samuel, s vestido da cintura para baixo, entrou no vestidor e puxou o cordo no que punha: gua quente em menos de um minuto. E, aos quarenta e cinco segundos, a pequena luz que havia sobre o elevador para pratos se acendeu. Ao abri-lo, encontrou uma fumegante jarra de cobre.

Ao voltar para quarto, viu a Leda estudando os planos estendidos da casa. Depois de mesclar sabo de barbear e levantar um pouco o espelho da penteadeira, molhou o rosto com gua e comeou a aplic-la espuma. Leda moveu os planos. Vou chamar para que tragam o caf da manh,

e podemos preparar a campanha enquanto tomamos disse. A campanha eu deixo para ti replicou ele levantando o queixo e apoiando um brao na penteadeira enquanto se agachava para tentar verse melhor no espelho. Temo-me que no posso permitir semelhante covardia. Necessito seus conhecimentos prticos do terreno.

Para que vai se utilizar esta pequena habitao que h a um lado, por exemplo? Samuel teve que atravessar a habitao com o rosto meio ensaboado. para a planta eltrica. que a eletricidade sai das plantas? perguntou ela com toda inocncia. E, a ver,

sim, esta a casa? acrescentou tirando uma fotografia da pasta e pondo-a sobre seu colo. Samuel a observou enquanto se inclinava sobre a imagem da casa, com suas duas plantas com amplas varandas e altas janelas. Um grupo de operrios sujos, com serras e martelos nas mos e restos

de materiais aos ps, posavam orgulhosos na grande escada que baixava at o que seria o jardim. Ainda no estava pronta naquela poca explicou Samuel ao ver que Leda no dizia nada. Meu Deus murmurou ela em voz muito baixa, como se no o tivesse ouvido. Santo cu

acrescentou movendo a cabea de um lado a outro. E esta nossa casa? Samuel queria lhe perguntar se gostava. Ardia de vontade de perguntar, mas, em seu lugar, voltou para penteadeira e, agarrando a broxa de barbear, voltou a inclinar-se sobre o espelho. No teria muito sentido

fotografar outra casa disse. Pelo espelho viu Leda voltar a mover a cabea enquanto sustentava a fotografia ante sua cara. Prometo que tentarei no me comportar como uma criada mas, meu prezado senhor, estou francamente atnita.

Samuel sentiu de novo uma profunda satisfao, e comeou a barbearse. Durante trs dias Samuel participou de todas as provas de sofs e minuciosos exames de baixelas. Redigiu listas e mediu mesas. Emprestouse a corrigir a atitude de qualquer vendedor que no tratasse em um princpio com

a suficiente deferncia ao senhor e a senhora Gerard, de Honolulu, do reino do Hava, os quais acabavam de chegar da encantadora residncia campestre de lorde e lady Ashland, onde se tinham informado de boca da prpria lady Ashland que Coote's, em Bond Street, tinha a melhor seleo de cmodas de marchetaria,

ou que se podia confiar na excelente qualidade das sedas e cretones de Mackay e Pelham. Eram pequenos comentrios parte que Leda fazia ao Samuel do modo mais inocente, e que este teve que reconhecer que sempre provocavam o mesmo entusiasmo entre os vendedores. A estratagema dava resultado inclusive quando Samuel

a olhava com expresso zombadora enquanto ela o dizia, o qual fazia que recebesse uma sonora reprimenda assim que abandonavam o estabelecimento. Em que pese a seus sorrisos subversivos, Leda descobriu que podia ser til para vrias coisas; principalmente para confeccionar listas, em certas ocasies para transportar pequenos pacotes e,

com muito escassa freqncia, para aconselh-la em questes de gosto, j que a maioria dos mveis que viam lhe pareciam dignos do inferno. Continuando, como no podia ser de outro modo, tinha que desculpar-se por perjurar, assim pelo geral optava por no abrir a boca. Leda se detinha ante peas escuras e

pesadas que lhe revolviam o estmago mas, ao final, s compraram as coisas que mais gostaram ao Samuel: um escritrio antigo com grande quantidade de gavetas, parties e compartimentos secretos, e um jogo de pratos com pssaros diferentes em cada um deles. Samuel no era to ingnuo para acreditar que seus gostos

eram idnticos; enquanto escolhiam os pratos, observou o cuidado e discrio com que Leda o julgava e acomodava suas decises s suas. No estava seguro de como o fazia sentir-se isso. Era uma experincia nova para ele. S Dojun lhe tinha emprestado tanta ateno, e por razes bem diferentes. Dojun

o guiava, exigia-lhe, vigiava-o em busca de debilidades e imperfeies, mas o de Leda era distinto. Samuel no acabava de entender por que lhe importava tanto o que ele opinasse dos mveis e as cortinas. No obstante, uma parte dele parecia reagir muito favoravelmente a esse interesse por parte dela,

como se tratasse de uma videira oculta que crescesse sob os edifcios e as caladas e que, abrindo-se passo cheia de desejo, dirigisse-se para a luz. No obstante, a mesma intensidade daquela sensao agradvel lhe alarmava. Era similar nsia que sentia pelo corpo dela, e parecia que poderia chegar a ter

o mesmo poder sobre ele se consentia que seguisse crescendo.

Caminhava pelas ruas pensativo, a metade de caminho entre a realidade e as fantasias que Leda provocava nele. Solo o tirava desse estupor a ntida e reta linha das costas dela, que ia desde seu recatado pescoo at a curva dos quadris. O conhecer a verdadeira silhueta que se escondia baixo

aquela abundncia de tecido e rendas o estimulava; qualquer espionagem de aroma compartilhado, ou a mera viso das pequenas e encantadoras mechas de cabelo da nuca quando ela se inclinava sobre algum mostrador, resultavam electrificantes. E esse profundo torpor sem sonhos que lhe sobrevinha detrs por possu-la o assustava. Em

certo modo era mais fascinante e atrativo que o prprio ato de faz-la sua. Gostava de abra-la e cair naquele estado de sonolncia, enquanto ela falava porque falava e falava com voz suave e animada do que tinham feito e comprado esse dia; gostava quando da letargia o invadia como uma sombria

manta de algodo e no podia responder nem evitar sentir-se totalmente depravado, vulnervel e feliz. Tinha que ser outro o que estivesse jazendo a nesses momentos. No podia ser ele. Depois de trs dias juntos, tinham chegado a uma rotina comum. Ele se levantava mais tarde que Leda. Barbeava-se e

vestia ante ela, e s estava a ss os poucos momentos que passava no vestidor praticando seus rituais guerreiros com grande destreza e concentrao, os nicos momentos de verdadeira concreo que ficavam em meio daquela nvoa de coisas intangveis. Continuando, saam a comprar, o qual supunha toda uma incongruncia que lhe divertia

e assustava de uma vez. Depois de jantar em um reservado pois por nada do mundo estava Leda disposta a consentir ser vista em um comilo pblico e expor-se a que a gente a tachasse de libertina, esta se retirou habitao, deixando sozinho ao Samuel. Este sups que se

esperava dele que desfrutasse em solido de um porto e um charuto, mas, em vez disso, foi rua e passeou pela Piccadilly, onde os apitos dos porteiros ressonavam cada certo tempo entre o rudo do trfico. Uma garota, vestida de rosa plido, saiu de entre as sombras e agarrou a um

homem do brao: Vem comigo, querido disse, e te fao um cigarro. Nenhuma dessas mulheres abordava jamais ao Samuel, por mais que este soubesse que o observavam quando passava por diante delas. Exasperavam-no com sua forma direta de olhar; sua prpria existncia o envergonhava. Se alguma delas se

atrevesse a agarr-lo do brao dessa forma, a toc-lo, ele sim que lhe faria algo: lan-la a vinte metros de distncia, pensou com ferocidade. Essa sensao de desconforto persistiu at que encontrou uma livraria que estava aberta, em que poderia jogar uma olhada sem que ningum o observasse. Sentia-se inquieto

e acalorado, e sem poder deixar de pensar em Leda. Desejou estar com ela na cama nesses momentos, mas era como se no o merecesse, como se fosse um impostor, como se o que devesse fazer fosse seguir caminhando at que a noite terminasse por engoli-lo.

Folheou o livro que tinha na mo, uma traduo de um tratado filosfico alemo, rodeado de p, livros e outros clientes. Novelas, livros de cozinha, de viagens, dicionrios. O relgio do fundo da loja deu as dez. Era j o bastante tarde? A noite anterior tinha esperado at as

onze. Tinha-a encontrado muito limpa, com o cabelo mido. Samuel tinha apagado o abajur e a tinha beijado, logo os tinha despido aos dois, enquanto estava no escuro. Seguia-se recordando essas coisas, terminaria por humilhar-se. Decidiu que era muito cedo para ir junto a ela. O melhor era que ficasse

ali, ou que seguisse caminhando. O melhor era seguir caminhando para sempre. Estava respirando de forma muito agitada. Voltou a deixar em sua prateleira um livro sobre criado de gado ovino na Nova Zelndia, meteu as mos nos bolsos e saiu da loja detrs devolver com a cabea a saudao

do homem que havia depois do mostrador. Uma vez na rua, deteve-se, deu meia volta e voltou para hotel. Quando chegou porta da sute, viu pela fresta que a luz estava acesa. A sala de estar, profusamente decorada, estava vazia, mas ouviu a voz de Leda dizendo

seu nome do quarto. Samuel confirmou que era ele e, continuando, duvidou se devia entrar na outra habitao ou no. Mas Leda apareceu na soleira ao momento, muito sedutora com a bata verde jade e o cabelo solto. Ol disse ela. A forma em que ficou na porta

com as mos juntas, sem aproximar-se nem afastar-se, advertiu em seguida ao Samuel que algo passava essa noite. Sentiu o desejo de jogar-se sobre ela, mas, em seu lugar, tirou o chapu e as luvas. Leda agarrou os objetos da cadeira sobre a que as tinha atirado e percebeu de uma mancha

amarelada em uma das luvas. Sujaste-lhe isso. p de livros explicou ele. Estiveste em Hatchard's? De hav-lo sabido te teria feito um encargo. Os obras de fico? Algo assim. Eu gosto dos livros do senhor Verne disse Leda muito animada, porque

escreve de lugares muito exticos. Claro que voc j haveria visto tudo isso em pessoa, assim que imagino que te d igual. Claro. Vejo calamares gigantes e canibais todos os dias. Queria dizer que Fez uma pausa e sorriu enquanto olhava o chapu de Samuel, que sustentava entre

as mos. Bom, no sei o que queria dizer, mas suas histrias so do mais entretidas. Samuel a olhou e pensou: que nos vamos pr a falar de livros?. Leda juntou ambas as luvas e deu uns passos. Ao passar por diante de Samuel, este a agarrou

do brao. Ela ficou muito rgida e se deteve. Ele no sabia o que fazer nem dizer. Toda a submisso e doce aceitao de Leda, que fazia que tudo fosse suportvel, parecia ter desaparecido,

enquanto que o desejo de Samuel seguia ardendo com a mesma intensidade de sempre. No teria que ter voltado. Teria que ter seguido andando e andando at chegar ao fim do mundo. Soltou-a. Foi at a janela e, depois de abrir as cortinas, apoiou-se no marco e fechou os

olhos enquanto apertava com fora o tecido de veludo e l. Leda disse com voz muito triste: Tem que saber que estou indisposta. Samuel soltou a cortina e se deu a volta. No, meu prezado senhor, no ponha essa cara disse ela ao tempo

que fazia um gesto com a mo para tirar ferro ao assunto. s o que passa cada ms durante uns dias. Os troves que retumbavam nos ouvidos de Samuel comearam a desvanecer-se. Jesus bendito murmurou. Sinto-o disse Leda em voz baixa. No queria te alarmar.

Samuel soltou um longo suspiro. Demorou algum tempo em sobreporse ao acesso de pnico que o tinha invadido. S tinha uma vaga noo sobre essas coisas de mulheres to crticas, mas estava claro que ela no queria que ele a tocasse enquanto padecesse essa indisposio transitria. Nesse

caso, dormirei no vestidor disse. Leda emitiu um gemido de surpresa e pareceu bastante contrariada. Ento, o que quer que faa? disse ele, carrancudo. No quero que se sinta incmodo explicou Leda com acanhamento. Essa vacilao dela o estava deixando louco. Foi rapidamente onde

estava e, agarrando a dos ombros, beijou-a com fora. A tenso das costas dela desapareceu. Jogou a cabea para trs e se abriu a ele enquanto a rodeava com seus braos. O medo de Samuel ao rechao se esfumou por completo. Adotou uma atitude mais suave enquanto explorava seus lbios.

Diga-me o que quer sussurrou. Bom, tinha pensado que talvez no te importe sozinho te deitar. Em nossa cama, claro. E eu poderia, se gostar, te dar uma massagem nas costas. No respondeu ele soltando-a. Leda abaixou a cabea. De acordo disse Samuel tentando

apagar a expresso de aborrecimento de seu rosto. Se for o que quer, farei-o. Mesmo assim, sentia a mesma agitao de sempre crescendo em seu interior, mas tentou reprimi-la com todas suas foras. Leda o olhou e o agarrou nas mos. Se voc no quiser, meu

prezado senhor, eu tampouco. Samuel sentiu um profundo alvio, assim como o desejo irracional de lhe agradecer. S deixe que te abrace, isso tudo, que te abrace e durma disse enquanto lhe acariciava as mos com os polegares. Enquanto, me pode contar isso tudo sobre baixelas, cristaleiras

e demais coisas.

Leda permaneceu uns instantes em silncio contemplando suas mos entrelaadas. Do que prefere que te fale, de loua ou de cobertores? inquiriu ao cabo. De cobertores, obvio. Seguro que com isso dorme. Atreveria-me a dizer que, quando chegar ao garfo de sobremesa, j estar

roncando. Meu Deus, que rouco? Certamente ontem noite o fez enquanto dissertava sobre as caractersticas e adequada disposio dos aparadores. Sou bastante perita em aparadores, mas compreendo que no todo mundo compartilhe meu entusiasmo. E te rogo que te abstenha de perjurar, por favor.

Peo-te desculpas disse ele lhe beijando o nariz enquanto deslizava uma mo para sua cintura. Seguro que est indisposta? Totalmente. Demnios disse Samuel e, antes que Leda pudesse abrir a boca, cobriu-a com a sua. 30 Teria gostado de ensinar os Estados Unidos a

Leda em toda sua vasta glria de montanhas e cu, mas, em seu lugar, o que ela viu fundamentalmente foi muita vastido e pouca glria, por isso Samuel sups que o pas lhe teria parecido a sua mulher um lugar incomensurvel dominado pela chuva, a neve e ainda mais chuva. Pedaos de

gelo de gelo ao meio descongelar gotejavam dos beirais de pequenas e miserveis estaes feitas de tabuleiros de madeira, cujos nicos habitantes pareciam ser dois cavalos e um co velho e feio. Nem sequer tinham compartilhado camarote no navio. O nmero de travessias se reduziu durante o inverno pelo que,

a menos que esperassem outras trs semanas, no havia nada livre para duas pessoas nos melhores camarotes daqueles navios nos que Samuel estava disposto a embarcar. assim, reservou um lugar para a Leda em um camarote para damas bem equipado de primeira classe e, em segredo, sentiu-se muito orgulhoso dela quando esta

se negou a admitir nenhuma s vez que as oscilaes do navio a aterrorizassem. Leda teve a sorte de no chegar a enjoar-se, e fez todo o possvel para parecer serena, mas fez to mal tempo que, finalmente, Samuel lhe aconselhou que fizesse as comidas no salo para damas em vez de

tentar chegar ao comilo. Em conseqncia, viu-a pouco at que desembarcaram em Nova Iorque, e tampouco muito uma vez ali, j que Leda foi levada rapidamente Milha das Damas da Broadway pelas esposas e filhas dos homens que se sentavam frente a Samuel em mesas de mogno para falar

de ouro e emprstimos, de madeira e aes petrolferas e, como sempre, de acar. Ele os deixava falar e escutava, intervindo unicamente para conseguir que seguissem lhe proporcionando informao. No disse nada, por exemplo, do engenheiro Parsons de Newcastle, que queria manufaturar suas

turbinas de vapor por sua prpria conta e desenvolver um sistema que permitisse que os navios alcanassem os trinta ns. Ao Samuel no custou muito voltar para essa parte de sua vida; o surpreendente era a facilidade com a que sorria quando entrava com algum homem de negcios em

algum restaurante da Quinta Avenida e ouvia um ligeiro sotaque ingls em meio das estridentes vozes das damas norte-americanas. Leda falava o bastante, ao menos a ele, mas tampouco com muita efuso. Sua voz no se voltava alta pelo entusiasmo. Era uma voz muito boa para dormir ouvindo-a, e isso era o

que fazia que Samuel sorrindo. De noite, escutava tudo o que Leda tinha que lhe contar sobre os vulgares objetos de manufatura francesa, com ouro, incrustaes e enormes arabescos, que suas novas amigas norte-americanas lhe tinham mostrado. Todas eram muito amveis, mas era uma pena ver que julgavam um artigo

mais por seu preo que por seu refinamento e qualidade, embora certamente tinha que admitir que em Nova Iorque todo era muito caro. Seguro que o hotel queimava quilogramas e quilogramas de carvo, vendo o quentes que estavam sempre as habitaes. E tudo esses encanamentos no quarto de banho! E

pior ainda eram como as chamavam? as escarradeiras. Que palavra mais desagradvel; deveriam empregar alguma mais escondida. Leda esperava que a Samuel nunca lhe ocorresse adotar um hbito assim. O tabaco era inaceitvel em uma pessoa verdadeiramente refinada, e do mais desagradvel quando se consumia dessa forma. Foi em Denver

onde mencionou as escarradeiras. Girou a cabea no travesseiro e olhou Samuel com um pouco de inquietao. Ele enroscou uma mecha de seu cabelo em um dedo e lhe prometeu que nunca mastigaria tabaco. No era a promessa mais difcil que tinha tido que fazer na vida, mas, a seu modo, agradou-lhe

faz-la. Samuel dormiu muito bem essa noite. Em So Francisco, seguindo um impulso repentino, levou-a a Chinatown a mesma noite banhada de nvoa que chegaram a essa cidade. Era o ano novo chins. No lhe advertiu de nada, e valeu a pena no fazlo s por ver a expresso

de Leda quando entraram naquele territrio de luzes vermelhas e douradas. Caminhava junto a ele atnita, agarrada de seu brao e pegando um salo cada vez que estalava um petardo, enquanto abriam passo entre as multides de chineses vestidos com trajes de rica seda. Revoavam papis vermelhos e laranjas por

toda parte, e havia um intenso aroma de incenso e comida. Fileiras de esplndidos faris penduravam dos balces sobre suas cabeas. Todas as lojas exibiam altos psteres de vivo veludo, com caracteres chineses pintados em ouro neles e rematados com tecido vermelho. Samuel se deteve ante um posto coberto de

cintas e Ramos de narcisistas em flor, rodeados por cestas de fruta. O lojista, que levava uma calota negra e tinha um cabelo que lhe chegava at a cintura, atendeu-os

solcito. Samuel o saudou lhe desejando feliz ano em um cantons morto, o qual fez que o interesse do comerciante se transformasse em entusiasmo. Com movimentos rpidos e enrgicos, subiu a um tamborete e baixou os dois pergaminhos de cores que Samuel tinha eleito. Poremo-los sobre a porta de

casa explicou ele enquanto os sustentava luz aafro de uma lanterna chinesa e assinalava os caracteres escritos em um deles. So as cinco benes. Sade, riqueza, longevidade, amor virtude e uma morte natural. Sabe ler isso? perguntou ela olhando-o com admirao. O comerciante deu uma laranja

a Leda. Kun hee FAT choy! Samuel observou a expresso confusa dela. um presente de ano novo lhe explicou. A laranja significa boa fortuna. Com um sorriso de grande satisfao, Leda deu as graas ao lojista, o qual entregou ento um ramo de

narcisos, depois do qual juntou as mos e fez uma profunda reverncia. Leda, carregada com a laranja e as flores, a devolveu com uma leve inclinao. Obrigado disse. Muito obrigado e feliz ano novo, senhor. O lojista mostrou ao Samuel uma rstia de pacotes vermelhos. Petardos,

senhor? A quarto de dlar. O outro negou com a cabea. No. Vamos olhar por a. Ah! Olhar, bom. Grande exploso. A senhora gostar. E o que pe no outro? perguntou Leda assinalando o segundo pergaminho. Samuel sentiu o repentino desejo de

no dizer-lhe por isso vacilou uns instantes. Leda aspirou o aroma das flores e o olhou curiosa, com a boca entreaberta e formando um sorriso. O comerciante leu o pergaminho em chins enquanto assentia com a cabea. Samuel sabia o suficiente cantes para entend-lo e, de todos os modos, compreendia a caligrafia,

mas lhe dava vergonha diz-lo em voz alta. Teria preferido pendur-lo detrs de uma porta de sua casa onde s ele pudesse v-lo, e que seguisse sendo um mistrio incompreensvel para a Leda. No entende esse? perguntou ela. sozinho uma frase tpica de ano novo.

Leda contemplou o pergaminho, com seus adornos pintados em dourado e bano. bonito. uma pena no saber o que pe. Samuel o enrolou. Significa ame um ao outro. Leda abriu os olhos. S uma frase disse Samuel ao tempo

que olhava para cima a outras pancartas e lia umas quantas. Longevidade, sorte, alegria e recompensas oficiais. Que sempre tenhamos clientes ricos. Esse tipo de coisas.

Leda voltou a afundar o nariz entre os narcisos e o olhou com olhos brilhantes. Entendo. Samuel se sentiu como se caminhasse sobre uma corda frouxa com os olhos enfaixados. Como se transpassasse o bordo de um precipcio mas, mesmo assim, seguisse andando sobre o ar enquanto

se abria um vazio infinito a seus ps. Segue fazendo um tempo deplorvel escreveu Leda s damas de South Street, mas tampouco o lamento, j que nossa partida para as ilhas Sandwich me cheia de grande emoo. Nestes precisos instantes navegamos no casco de navio de meu honorvel marido, o

Kaiea. Esta admirvel nave tem fez uma pausa para consultar as notas que Samuel lhe tinha escrito um peso bruto de oito mil e seiscentas toneladas, e est construda em ao com hlices dobre e motores de triplo expanso, que so caractersticas de grande excelncia no que a barcos a vapor se

refere. Alegrar-lhes saber que ditos atributos do como resultado uma velocidade de cruzeiro de vinte e um ns, magna celeridade que supera a do navio Oregn, recentemente galardoado com a Banda Azul do Atlntico por fazer a travessia mais rpida entre o Liverpool e Nova Iorque. Ao que parece no existe Banda

Azul para o Pacfico, o qual acredito que do mais injusto, pois sem dvida o Kaiea se faria merecedor de dita distino. Poderia me estender mais na descrio desta admirvel nave, mas o senhor Gerard me aconselhou que no enchesse esta carta de jargo martimo. Leda levantou a vista

do escritrio e olhou a seu redor antes de continuar. Ocupamos o camarote principal da cabine superior, que compreende trs amplas estadias: comilo, sala de estar e um quarto com banho e asseio anexos. A decorao muito bonita, toda em metais muito polidos, teca asitica e outras madeiras exticas.

Um grande espelho dourado preside o suporte da chamin. As paredes esto empapeladas com uns encantadores motivos chineses de pssaros e flores, sobre um fundo vermelho muito alegre, o qual, conforme tenho entendido, para os orientais a cor da boa fortuna, que acreditam muito eficaz na hora de manter afastados aos

maus espritos. Quando subimos a bordo, receberam-nos uns esplndidos vasos cheios de flores frescas, dispostos sobre as mesas e nos spots ou mamparos, que seu nome correto das paredes. O efeito global faz difcil acreditar que algum esteja a bordo de um navio. O senhor Gerard e eu temos um garom

a nosso servio cuja nica tarefa nos atender cada vez que apertamos um boto eltrico. Tenho que terminar, pois a barco que se tem que levar estas cartas a So Francisco j pronto para partir, e dentro de pouco passaremos por debaixo do clebre Golden Gate, uma experincia que

tenho entendido que

no se deve perder embora faa mal tempo. Como podero notar por minha caligrafia, nosso camarote um refgio excelente do movimento do navio, ao estar situado no lugar em que o est para aproveitar um detalhe concreto do desenho da nave que, devo confessar, no acabo de entender de tudo.

No obstante, o certo que a extremada oscilao prpria da navegao em to mau tempo fica aqui reduzida a um suave balano. Sada-lhes, como sempre, sua leal e abnegada amiga, Leda GERARD Admirou seu nome de casada durante uns instantes e, continuando, selou o sobre

e o acrescentou a suas outras respostas de ltima hora s cartas que os aguardavam chegar a So Francisco. Uma era de lady Tess para ela, outra de lady Kai e a ltima da senhorita Lovatt, que escrevia em nome de todas as damas de South Street. Chamou o garom, que se

apresentou imediatamente. Era um homem alto e muito magro chamado senhor Vidal, de trato muito atento e respeitoso. Este agarrou as cartas e ajudou a Leda a colocar a capa de chuva e o chapu de borracha que lhe tinham entregado ao subir Kaiea. Sem contar a porta que

conduzia a um corredor interior, a sala dava a uma espcie de balco privado do que se via a proa do navio mas, como este no oferecia amparo contra o mau tempo, o senhor Vidal recomendou elevando a voz a um bramido para fazer-se ouvir sobre a intensa chuva que Leda baixasse

e se reunisse com o senhor Gerard na cabine do capito. Esta se alegrou de dispor da firme mo do garom para ajudla a baixar a escada exterior que levava a cabine de comando e s cabines inferiores. A chuva no amainava, por isso pde ver muito pouco do

Golden Gate. Era curioso, mas se sentia totalmente segura a bordo de um navio construdo por seu marido, coisa que no lhe tinha passado durante a travessia atlntica, embora atribusse parte dessa tranqilidade ao feito de haver-se convertido j em uma blusa de marinheiro mais intrpida. De fato, estava convencida de que

poderia conseguir a condio de velho lobo de mar com um mnimo esforo. Encontrou muito interessante ir aconchegada em uma esquina daquela cabine acristalada, com uma taa de chocolate quente nas mos, enquanto o capito do navio dava ordens, o chefe de mquinas gritava pelo microfone e a

nave se enfrentava s enormes ondas do Pacfico. Do pacfico era sem dvida um nome muito pouco apropriado e otimista, como mencionou ao Samuel quando um forte fluxo a lanou longe de seu assento contra ele. Samuel sorriu e a rodeou com os braos enquanto se apoiava contra o mamparo. Leda pensou

que era uma postura pouco decorosa, mas ningum pareceu lhes emprestar ateno alguma, j que estavam todos muito ocupados com suas tarefas nuticas. Uma vez que o bote rebocador se retirou e se estabeleceu o rumo, diminuiu a atividade na cabine. Como Samuel tinha assuntos que tratar com o capito, Leda decidiu

aproveitar de novo ao senhor Vidal como

escolta at o salo de primeira classe. Deixou a proteo lhe balancem que era o abrao de Samuel e deu a mo ao capito felicitando-o por seu trabalho, ao qual este respondeu: V, parece todo um marinheiro, senhora, v se o est. Ruborizada pelo completo, Leda baixou

com cuidado as perigosas escadas exteriores e, ao chegar ao salo, descobriu o certa que tinha sido a afirmao do capito. O resto dos cento e pico passageiros estavam encerrados em seus camarotes. No havia ningum no salo salvo um menino enjoado, sentado em uma luxuosa poltrona de veludo com os ombros

encolhidos e a boca torcida formando uma estranha careta. O senhor Vidal perguntou se no preferia unir-se a seus pais no camarote, mas o menino lhe informou com um agnico sussurro que viajava sozinho, mas tinha vomitado na terrina de seu camarote, e cheirava to mal que no o tinha

podido suportar mais e tinha sado. Continuando, ps-se a chorar. Leda o agarrou da mo. Vem comigo a meu camarote disse. Ali no se move tanto. Podete tombar, e j ver como ao momento te encontra melhor. O menino lhe apertou a mo agradecido. Guiados

pelo senhor Vidal, foram pela escada interior at chegar ao camarote principal, enquanto o menino agarrava cada vez com mais fora a mo de Leda e seu rosto sulcado de lgrimas ficava cada vez mais plido. Quando entraram na sala, e detrs sent-lo Leda no sof, inclinou-se para diante e se vomitou

nas calas. V Por Deus! disse Leda fazendo uma careta. Vamos tirar isso em seguida e te deite. Mas o menino soluou e lhe apartou a mo. No posso disse. No me posso tirar isso diante de uma dama como voc. Est bem, meu

pequeno, no se preocupe. Senhor Vidal! exclamou Leda enquanto se levantava e se dava a volta. Por favor, faa-se cargo de suas calas. Eu espero fora. Passe-me os pela porta e me levarei isso. De acordo, senhora, mas basta com que os atire pela escada. Eu lhe trago uma manta

ao menino. Leda saiu do camarote e agarrou as calas quando o senhor Vidal os passou. Agarrou-se ao corrimo e se dirigiu para a escada. Deu-lhe reparo atirar o objeto manchado por elas, assim que se limitou a enrol-la e deix-la no primeiro degrau antes de voltar para camarote.

Ao chegar porta, surpreendeu-lhe ouvir a voz de Samuel dentro. No entendeu o que disse, mas havia uma fria em seu tom que a assustou. Justo quando comeou a abrir a porta, algo chocou contra ela pelo outro lado. Leda se agarrou aos passamanes. A porta se abriu de repente

e apareceu o senhor Vidal. Cambaleou-se para trs e teve que agarrar-se asa para no perder o equilbrio. Samuel, com o capa de chuva posto, estava junto porta exterior olhando ao garom.

Com exceo de suas asquerosas mos dele! rugiu como um animal lanando uma advertncia. Pela porta aberta entrava muito frio. Saia daqui antes que o mate. Uma rajada de vento fechou a porta exterior de repente. Leda olhou a ambos os homens. A jaqueta azul do garom estava rasgada

pelo pescoo. Encolhido em um extremo do sof, com os olhos arregalados, a boca entreaberta e uma manta sobre seus joelhos nus, o menino olhava ao Samuel como se fosse uma monstruosidade surgida do abismo. Samuel! O que? Leda se aferrou ao marco da porta quando o navio

deu uma grande sacudida. O pescoo rasgado do garom e a expresso de Samuel a assustavam. Mas o que tenho feito? perguntou o senhor Vidal atnito enquanto esfregava o ombro. O que tenho feito? Samuel no se moveu. Leda viu uma veia pulsando em seu pescoo. E, de

repente, atando cabos, caiu na conta do que tinha passado: o menino ao meio vestir e chorando, o outro homem, a expresso de Samuel Samuel, no o que pensa! exclamou. Eu trouxe para o menino, bom, de fato os trouxe para os dois. O menino estava enjoado e manchou

as calas, e o senhor Vidal to s me estava ajudando. O navio oscilou. No sof, o menino tentou recompor-se, terminando de cobri-las pernas com a manta. Leda viu nos olhos de Samuel como este ia entrando em razo. Depois de um brilho de compreenso, a cor de seu rosto

se fez mais intensa. Olhou ao menino, depois ao senhor Vidal e, por ltimo, a Leda. Continuando, s a distncia. Todo rastro de emoo o abandonou por completo. Com movimentos metdicos, desprendeu-se do capa de chuva mido e, como se nada tivesse passado, o deu ao senhor Vidal, o qual vacilou durante

uns instantes antes de agarr-lo. Est ferido? perguntou-lhe Samuel com voz tranqila. No, senhor respondeu o garom tentando acalmar-se. Aceita minhas desculpas? Sim, senhor disse o outro erguendo de tudo. Mas o que tenho feito? Nada respondeu Samuel com rosto ptreo. Falarei

com o capito para que lhe dem uma compensao, se quiser. Bom, se tiver feito algo que me fizesse merecedor de Obrigado, senhor Vidal o interrompeu Isso Leda tudo, salvo que traga umas calas limpas para o menino. Como te chama, querido, e em que camarote est?

Dickie, senhora. Estou no B-5 respondeu o menino em voz baixa e rouca. Podem me trazer meu travesseiro, senhora? Est em cima da cama. E traga tambm seu travesseiro disse Leda, que se aproximou do Dickie. Est melhor? O menino se encolheu sob a manta enquanto

seguia olhando a Samuel com estupor.

Um pouco, mas a boca tem um gosto ruim e me arde o nariz, e tenho sede. Por que o empurrou contra a porta, se no tinha feito nada mal? Foi um mal-entendido explicou Leda. Trarei uma jarra de limonada, senhora disse o senhor Vidal e, com

uma breve inclinao, saiu do camarote. Foi um empurro tremendo disse o menino. Saiu voando daqui at l. Leda tomou flego. Lamento que te tenha assustado, mas s foi um desafortunado engano. No me pareceu isso, senhora. Entrou e, diretamente, agarrou-o e o lanou

contra a porta. E h dito que o ia matar. Ouviu-o? Leda fechou a boca. Samuel tampouco disse nada, mas sim abriu a porta e saiu do camarote. O temporal a fechou de um golpe atrs dele, apartando-o dali e deixando a Leda e ao Dickie sozinhos na sala.

A chuva lhe pegava a jaqueta ao pescoo. S pensou na escada a seus ps, no vento a suas costas e no movimento do navio ao se chocar contra as ondas. Ante ele tinha a cabine vazia varrida pela chuva, um embate branco sobre a madeira chapeada. Cobriu-se no

oco de uma porta. Apoiou-se contra a superfcie de ao, pego aos passamanes que havia a cada lado. Doam-lhe os dedos pela umidade e o frio. Durante longo, infinito tempo, limitou-se a contemplar o mar enfurecido. Logo comeou a tremer inverificado. Era pelo frio. Disse-se que tremia pelo

frio. Maldio murmurou. Maldio. Jogou a cabea para trs com fora e se golpeou contra a porta. Recebeu com agrado a dor que lhe produziu. Apertou os dentes e voltou a faz-lo. De novo lhe doeu, e o mal-estar se estendeu por peito, braos e pernas.

Como era que Leda sabia? Tinha-a olhado aos olhos e se deu conta em seguida de que ela sabia. Ningum em seu so julgamento, ningum normal, faria o que ele fez. Jesus, nem o prprio Vidal tinha cado na conta. Tinha-o pego pelo pescoo, tinha-o jogado pela habitao, e o garom seguia

sem saber a razo. Mas Leda sim. Chikush? Besta, besta! No era um ser racional. Como no se parou um momento a analisar a situao, e tinha visto que no passava nada mal? Como tinha podido delatar-se desse modo? Ai, Leda, Leda, voc no deveria saber

isso, no quero que saiba, no quero. O navio se elevava e baixava como se fosse um lento pndulo lutando contra o vento. Trs quartos de milho de dlares de motores e ao. Ele era o dono de tudo, at o ltimo prego; seu nome estava nos documentos.

Seiscentas pessoas recebiam seu salrio cada ms com cheques que se cobravam de suas contas. Os benefcios de quatrocentos mil dlares ao ano foram parar a um banco que tinha seu nome escrito na porta do escritrio maior. Seu nome, que tinha tido que escolher de um livro.

A origem dos sobrenomes normandos. Recordava-o muito bem. Era o nico que tinha encontrado na biblioteca do colgio que lhe pudesse servir, assim que se fez normando. Olhou-se em um espelho e tinha decidido que seu nariz era germnico e seus olhos cinza, escandinavos. Inventou uma famlia e um passado: seus

ancestrais tinham chegado a Inglaterra com a conquista Normandia em 1066; seu verdadeiro av tinha morrido durante a carga da Brigada Ligeira; vivia em um antigo e nobre castelo at que um agente da propriedade corrupto o enganou e ficou com todo seu dinheiro, mas algum dia, algum dia, chegaria uma carta

em que poria que tudo tinha sido um engano, que o que Samuel recordava sozinho era fico e nada disso tinha acontecido, e que lady Tess e lorde Gryphon o cuidariam at que seus verdadeiros pais o encontrassem. Fantasias. Meros sonhos e fumaa. Leda! Samuel se sentia como se flutuasse

no ar, sem nenhuma rede ou segurana debaixo, do mesmo modo que tinha sabido aos treze, quatorze ou quinze anos ningum conhecia sua verdadeira idade, nem ento nem agora que no havia nenhuma famlia que o buscasse. Seguiu tremendo enquanto permanecia firmemente sujeito ao corrimo. Parecia como se o metal

destes e suas extremidades se fundiram em uma nica coisa. Leda no deveria sab-lo. Samuel olhou ao mar, sem lhe importar que a fria chuva lhe jorrasse pelo pescoo. No era possvel que, apoiando-se unicamente em sua prpria experincia, Leda fosse capaz de saber e compreender aquilo. Casou-se com ele,

unido a ele, permitido que a tocasse. Era impossvel que soubesse. Claro que, um momento antes, na ponte, ele tinha notado algo estranho e no o tinha entendido, quando ela se havia posto rgida ao rode-la ele com os braos. Samuel jogou a cabea para trs e apertou a boca

com fora. Ento teve uma intuio, que passou rapidamente a converter-se em uma certeza to terrvel que sentiu vontades de gritar pela angstia que lhe produziu. No era que Leda o tivesse sabido ou intudo, mas sim o tinham contado. Tinha que ter sido nas cartas que tinha

recebido. Tess lhe tinha escrito contando-lhe. Durante uns instantes lhe pareceu uma traio muito grande para ser real. Mas ento se deu conta. Era culpa dele e de ningum mais. Lady Tess nunca o teria trado se ele no tivesse cedido mostrando-se tal e como era. Se no tivesse esquecido

tudo o que Dojun lhe tinha ensinado e no tivesse acudido a Leda para deitar com ela e deixar que a escurido o possusse.

Era culpa dela. Tudo isso o tinha feito ele e tinha perdido Kai, igual a tinha perdido tudo o que tanto lhe havia flanco ser. A forma em que o tinha carinho a esse menino no camarote, como se fora ele de quem tivesse que ter medo.

Voltou a golpear a cabea contra o ao. Negras fascas de dor danaram em seus olhos. Tinha que recompor os pedaos de sua alma. No tinha querido reconhecer o muito que se deixou levar naquele mar de emoes. Dojun se daria conta imediatamente. No podia chegar ao Hava desse modo.

um guerreiro pensou. Seu corao tem que ser uma espada. Apertou a cabea contra a porta, gelando-se, respirando com dificuldade, tremendo e rindo. Dojun. Samuel tinha que recuperar o equilbrio. O gelado vento, limpo e puro, cortava-lhe. No vendaval e as ondas estava a justia

impessoal do universo. Dojun lhe tinha dado olhos para v-la, deciso para suport-la, fora para domin-la. Pacincia, resistncia, perseverana, e mil formas de esconder-se entre as sombras. 31 Leda. A suave voz disse seu nome e, ainda adormecida, ela sentiu uma quebra de onda de prazer

e alvio. Samuel tinha retornado, assim que tudo voltaria a ir bem. Voltou a diz-lo. Leda abriu os olhos e despertou a incessante oscilao do navio. Uma brisa fria e escura soprou sobre ela, mitigando o calor pegajoso da camisola. S podia ver a silhueta de Samuel inclinado sobre o

beliche. Ia vestido de branco, e era como um fantasma apenas perceptvel na escurido. Vem comigo sussurrou ele. Ento Leda recordou que Dickie estava no beliche de acima, recordou que Samuel levava sete dias sem aproximar-se dela, recordou o que tinha passado e a razo pela que o

som de sua voz a tinha aliviado to enquanto ainda dormia. Deu-se conta de que o constante murmrio dos motores tinha cessado, e o rugido do vento tinha desaparecido. Salvo pelo longnquo som do navio ao sulcar as ondas, o camarote parecia achar-se em total silncio. Samuel disse

sentando-se e alargando o brao. Vem comigo repetiu ele. Quero te ensinar algo. Com os olhos entreabertos para tentar ver melhor, Leda apartou os lenis e ps os ps sobre o tapete enquanto procurava as sapatilhas na malha que havia aos ps do beliche. Levantou-se e avanou pela

escurido para a sala de estar, fechando a porta com cuidado para no despertar ao pobre Dickie, que j dormia bem depois de sete dias de contnuo mal tempo durante os que tinha padecido constantes enjos. Samuel s era uma plida silhueta junto porta aberta. A suave brisa procedia

dela, contribuindo um fresco aroma. Quando chegou ao seu lado,

Samuel lhe deu a bata. Leda no pde distinguir a expresso de seu rosto, mas suas mos lhe resultaram muito impessoais enquanto lhe punha o objeto sobre os ombros. Leda agachou a cabea e saiu ao pequeno semicrculo da cabine privada. O vento soprava com mais fora ali, fazendo

que o cabelo lhe formasse redemoinhos sobre a cara. Sobre suas cabeas, os mastros do navio, vazios at ento, luziam com multido de velas. O vasto arco do cu estava deixando a escurido da noite para transformar-se em um brilhante azul no cnit. Era uma cor que nunca tinha visto, intenso e

transparente de uma vez, que se mesclava com um marfim com toques de safira para o este. Leda fechou bem a bata e se apoiou contra o corrimo de madeira. Ante eles, as escuras guas se foram enchendo das cores do cu, como uma infinidade de espelhos que, rapidamente, formavam-se

para romper-se e voltar-se para formar, enquanto a esteira do navio se desfazia em sulcos de escura fosforescncia. A altura a que se encontrava a coberta, e a curva de uma pequena vela, ocultavam todo o resto salvo a proa do navio. Leda se sentiu como se flutuassem em um

mundo de cristal, no que a parte inferior chapeada das nuvens do horizonte se tornava rosa por acima. O rosa maturou at voltarse laranja enquanto Leda o contemplava, uma cor to suave como a clida brisa agitava a bata e o cabelo. Olhe disse Samuel, cujo cabelo tambm era

uma desordem dourada, desde sua posio algo detrs dela enquanto assinalava com a cabea para diante. Leda olhou. Sob as nuvens, a luz cada vez maior revelou uma forma coberta de sombras no horizonte. Oahu disse ele; logo assinalou para a esquerda, onde Leda logo que pde

distinguir uma mancha cinzenta sob outra massa de nuvens tocadas de ouro no alto. E aquilo Molokai. Leda contemplou ambas as ilhas e mordeu o lbio. So muito pequenas. Ficaro maiores. Ainda estamos a vinte milhas de distncia. Leda teria jurado que a distncia

era menor, pois j podia ver cpulas e vales luz do amanhecer. Colheu-se com mais fora ao corrimo e esperou a que ele voltasse a falar, temerosa de destruir aquele momento de unio. Mas Samuel se manteve longo momento calado e sem aproximar-se dela, apoiado com uma mo na parte em

que o corrimo se curvava seguindo a forma da coberta. Pensei que voc gostaria de v-lo disse ele ao fim em tom bastante distante. belo. Samuel no respondeu, mas tampouco partiu. Em que pese a que Leda queria lhe dizer muitas coisas, no

era capaz de encontrar as palavras adequadas. Inclusive quando tudo ia bem entre eles, no teria sabido como lhe dizer que sua sossegada companhia era muito importante para

ela, que adorava a forma em que a abraava e ficava adormecido. E, quanto ao que sentia sobre o que faziam antes de dormir, teria podido falar disso tanto como podia nesses momentos lanar-se de ali e sair voando para as distantes rochas do horizonte. O sentia falta dele.

O pobre e enjoado Dickie mudou a seu camarote graas a uma espcie de consenso geral, e seu travesseiro e sua roupa tinham ido chegando gradualmente de uma vez que o menino ocupava o beliche superior. A criatura sofria tanto e confiava tanto nos cuidados dela, que Leda teria estado encantada de

dedicar-se unicamente a ele se isso no tivesse suposto que no ia ver o Samuel durante toda a travessia. Recordou a expresso dele ao dar-se conta do engano que tinha cometido com o garom, e pensou iludida que talvez Samuel tambm a necessitava um pouco. No me tinha

fixado em que o cu fora to alto disse olhando s nuvens. Nunca me pareceu isso em -Se deteve, pois tinha estado a ponto de dizer em casa, mas essa massa sombria de rochas do horizonte ia ser sua casa. Em Londres concluiu, apartando o cabelo dos olhos. Samuel seguia

imvel e em silncio. Leda viu passar a toda velocidade uma pequena nuvem que brilhava como se levasse dentro sua prpria luz roscea. Cr que o tempo seguir bom hoje? Ignoro-o respondeu ele com ar distante, como se Leda fosse algum que lhe acabassem de apresentar em uma

festa. Mas ter alguma opinio a respeito. Chove a rajadas, nesta poca do ano. A frieza de Samuel comeava a se desesper-la. Por que iaram as velas? Temos bom vento, e estamos navegando. Acreditava que melhor seria com os motores.

No esto ligados. A ansiedade de Leda ia aumento. Ele estava muito frio, como se ela tivesse feito algo que lhe tivesse incomodado. Para impedir que a conversao cessasse, Leda disse: E no iria mais rpido se tambm funcionassem os motores? que tem

pressa? perguntou ele bruscamente. No, no. Mas acreditava que, em geral, todo mundo a tinha. Acreditava que a velocidade era o maior mrito destes navios. Ele guardou silncio um instante antes de responder: Pedi que apagassem os motores um momento, se por acaso voc gostava mais

assim. Como seguia detrs dela, Leda no pde lhe ver o rosto ao diz-lo. Sentiu-se coibida e perplexa, e desejou com todas suas foras encontrar algo melhor que fazer e dizer que olh-las mos e murmurar: Obrigado. muito amvel de sua parte. Viu os dedos

bronzeados de Samuel repicar rapidamente sobre o corrimo e, continuando, soltar-se dela.

Tenho coisas que fazer disse de repente. Bom dia. Quando Leda se deu a volta, ele j tinha desaparecido pela porta, que se balanava brandamente adiante e atrs ao ritmo das ondas. Por alguma razo, Leda tinha suposto que Hava pareceria bastante com a Esccia. No tinha

estado nunca ali, mas sabia que era um lugar sombrio de ridas montanhas e pequenas aldeias, e as fotografias em branco e negro que tinha visto de Honolulu, com os mastros negros dos veleiros atracados no porto, as choas e as montanhas rodeadas de neblina ao fundo, pareciam encaixar com aquela descrio.

No tinha esperado encontrar-se com tudo aquele colorido. Pois era um colorido inimaginvel, como se algum tivesse derramado uma gigantesca caixa de aquarelas no mar. O anil se transformava em cobalto, azul, jade, turquesa, e avanava em brilhantes espirais para a costa. Depois das escuras e avermelhadas ladeiras de Diamond

Head, as nuvens acariciavam verdes montanhas e se dissolviam ao passar por elas. Outra cratera, revestido de um intenso vermelho vulcnico e cobre em p, elevava-se em perfeita simetria da base das montanhas, por cima da linha de palmeiras e selva. At o ar parecia intenso, suave e cheio de

doura. Conforme avanavam pelo estreito e lhe ziguezagueiem canal que conduzia ao porto de Honolulu, de onde se podia contemplar as colnias de coral sob a gua, o montono rugido das ondas se foi mesclando com notas musicais que pouco a pouco se foram impondo. No mole, entre centenas ou milhares de

pessoas, os msicos de uma banda, vestidos com jaquetas vermelhas com gales dourados, interpretavam alegres melodias. Leda o contemplava tudo junto ao Dickie, to surpreendida e encantada por aquele mundo de fantasia como o menino de doze anos, enquanto a multido do mole subia a bordo do Kaiea em massa.

Todos exibiam os traos prprios de sua raa, todos levavam amplas tnicas folgadas de mltiplos cores escarlate e amarela, verde, branco, rosa, e todos, tanto homens como mulheres, luziam grinaldas de flores e folhas. A Leda custou evitar que Dickie sasse correndo escada abaixo para toda aquela animada gritaria, ou

que saltasse por cima do corrimo para unir-se aos nadadores que sulcavam as cristalinas guas. O senhor Vidal lhes tinha aconselhado que esperassem na cabine privada enquanto localizava aos pais do menino, e Leda se deu conta em seguida de que era o melhor que podiam ter feito. Dickie no

deixava de tentar soltar-se e de lhe rogar que o deixasse baixar a ver, pendente de tudo o que ocorria, at que finalmente comeou a pegar saltos de alegria e gritou: A esto! Mame! Papai! Escapou da mo de Leda, correu escada abaixo e se lanou contra um casal vestido

de branco que foram carregados de flores. Ao momento o abraaram e, ao seguinte, o menino desapareceu entre a multido do mole.

Leda observou o recebimento. Pensou que no havia razo alguma para sentir-se compungida; em realidade, tinha todos os motivos do mundo para estar contente. A cidade s parecia um lugar tranqilo de ruas sujas e umas quantas torres de igreja no meio do verde mas, de uma vez, era um stio

no que reinava a alegria. De repente ficou a procurar entre os numerosos cavalheiros vestidos de branco e chapu de palha, e pensou: Oxal. O qual, ao fim e ao cabo, era um pensamento muito tolo. Certamente era um sinal de debilidade e de falta de controle. Tinha construdo um

enorme castelo no ar durante o ms passado, e no ganhava nada vivendo de fantasias. A senhorita Myrtle sempre dizia que no se podia confiar naquilo que se conseguia com muita facilidade. Esse era seu novo lar. Era a esposa do dono daquele imponente navio. No ia ser to parva

de tornar-se a chorar porque ele parecia voltar a lamentar haver-se casado com ela, ou porque evitava tratar com ela das coisas que mais o preocupavam. O que tinha que fazer era demonstrar que era merecedora de sua confiana. Tinha que levantar a cabea bem alta, contemplar o navio com um sorriso

e sentir-se verdadeira, sincera e decididamente orgulhosa e contente de ser a senhora de Samuel Gerard nesses momentos. Viu o senhor Vidal ao final da escada e recolheu as saias para reunir-se com ele; mas, antes que pudesse faz-lo, este j estava a metade do caminho encabeando uma comitiva de

damas e cavalheiros que invadiram a coberta privada e o camarote principal. Aloha! Uma aromtica coroa de flores caiu sobre sua cabea e ombros. Outro Aloha, bem-vinda ao Hava, senhora Gerard e mais floresa seguiram, enquanto aqueles perfeitos desconhecidos a saudavam por seu nome, entregavam-lhe mais grinaldas e

a agarravam da mo apresentando-se e rendo. Flores tropicais de formas e perfumes desconhecidos se foram amontoando at lhe chegar ao pescoo e, depois, ao queixo, em tal quantidade que teve que ficar nas pontas dos ps e tentar responder s saudaes com a boca cheia de ptalas. Uma risonha dama, no

muito maior, mas sim o suficiente para ser algo mais reservada, disps uma rstia de flores sobre o chapu de Leda, e um jovem com barba lhe lanou um ramo de cravos vermelhos s mos. Asa depenada, bem-vinda, senhora. Sou Walter Richards, seu diretor geral. J chamei por telefone ao

hotel e lhes consegui a sute do muito mesmo rei. Minha esposa e eu lhes ajudaremos a instalar-se. A senhora Richards era a dama risonha. Outros comearam a descida, guiando pela escada a uma Leda envolta em flores como se estivessem brincando a galinha cega. Quando chegaram passarela, toda

a tripulao esperava formada em cabine. O capito tirou a boina. Leda lhe deu a mo e lhe agradeceu aquela viagem to agradvel e segura. Enquanto comeava a descender do navio, a tripulao a saudou com as boinas na mo, aclamao que foi tambm secundada pela multido de abaixo.

Samuel estava ao final da rampa. Entre todas aquelas caras sorridentes, a sua era a nica sem expresso. Sustentava uma cascata de flores prpuras, vermelhas e brancas. Leda vacilou uns instantes, assustada por sua frieza, mas ento pensou: No o vou desonrar. Que ningum pense que no sou feliz.

Sorriu e saudou a multido com a mo, sentindo-se como se fosse a prpria rainha pisando no Hava pela primeira vez. Mas piscou e tragou saliva quando descobriu, surpreendida, que a terra firme no parecia to slida como tinha imaginado. Samuel deu um passo para diante e a agarrou do

brao. Leda viu que franzia o cenho preocupado mas, assim que ela deu amostras de recuperar-se da impresso de que a terra se movia, ele deixou de lhe apertar o brao com tanta fora. Debilidade nas pernas? perguntou-lhe Samuel. Leda tinha esquecido que tinha tido a mesma sensao

de enjo ao desembarcar em Nova Iorque. Agarrou-se a seu brao. V, eu no gostaria nada cair diante de todos seus amigos. Samuel depositou suas flores em cima das que j levava Leda, e a deixou to tampada que quo nico via eram ptalas. A multido reatou os

vtores, como se fosse a celebrao de algum dia festivo. Que companhia mais efusiva comentou ela. Samuel a agarrou pelos ombros. Embora logo que acertava a v-lo entre as ptalas e folhas, sentiu como se inclinava sobre seu ouvido. Aloha, Leda disse em voz baixa, bem-vinda

Se deteve, como se tivesse perdido o fio da frase, e deu um passo atrs. Bem-vinda ao Hava concluiu ao fim. Leda se deixou levar por um momento de espontaneidade e, colocando os dedos entre o amontoado de flores que rodeavam seu chapu, o tirou. Espionando por um oco entre

o tributo floral que lhe cobria o rosto, levantou o brao e lanou a coroa rosa e prpura sobre a cabea de Samuel. A grinalda caiu sobre o chapu deste e lhe escorregou at os ombros. Aos espectadores deveu lhes parecer um gesto muito bonito, j que todos os homens

comearam a gritar e assobiar com entusiasmo, e as mulheres a rir. A dourada pele de Samuel se obscureceu mais altura do pescoo de seu traje de linho. Aloha, meu prezado senhor disse Leda, embora duvidou de que ningum pudesse ouvi-la, afogada em flores como estava. Leda

e a senhora Richards estavam sentadas em umas cadeiras de balano de vime branco em um dos amplos terraos do Hotel Havaiano, semi ocultas por uma trepadeira cor rubi. O hotel era um lugar barulhento, de amplos corredores ao ar livre, com vistas a um jardim e ao brilhante azul do cu

e as montanhas do fundo. Havia grande quantidade de oficiais da marinha britnica e americana, vestidos com seus reluzentes uniformes de vero, junto com turistas,

donos de plantaes e capites de navio, que pareciam divertir-se, contudo. De fato, era impossvel no gozar da vida em um lugar assim, e mais difcil ainda preocupar-se com algo, assim Leda tampouco devia fazlo. No era que quisesse, mas no via o Samuel desde no dia anterior, quando os

Richards a tinham levado quase em volandas do navio ao hotel. Samuel tinha telefonado para dizer que ia atrasar em muitas coisas que tinha que fazer em seu escritrio do porto. Ao que parece, o atraso era to grande que ainda no tinha aparecido. Leda se disse que

estava muito inquieta. Samuel levava meses afastado de seus negcios, por isso era normal que tivesse muito do que ocupar-se. E em modo algum se esqueceu dela, j que tinha dado instrues ao senhor e senhora Richards para que a atendessem, coisa que estes tinham feito admiravelmente. Enquanto Leda contemplava os

enormes e majestosos troncos de palmeiras, a profuso de clemtides e pasionarias, os rostos alegres ao seu redor, voltou a pensar: Oxal e se administrou uma boa reprimenda mental. A senhora Richards bebeu um sorvo de sua raspadinha de frutas. J sei que o hei dito um monto

de vezes, mas no se pode imaginar a surpresa to agradvel que nos levamos quando nos inteiramos de que o senhor Gerard se casou. Nem se imagina quo loucas que estavam as garotas daqui por ele, mas ele no emprestava ateno a nenhuma. Sim que o havia dito j um

monto de vezes. Leda no sabia o que responder, assim s sorria e assentia da forma mais grcil que podia cada vez que a outra mencionava essa surpresa interminvel. Foi um detalhe muito bonito de voc, o de lhe dar o seu a ele. Todo mundo diz que tem alma

de havaiana. Assim lady Kai vai se casar, e com um lorde, nada menos. Embora, no ainda muito jovem? Ainda no cumpriu vinte anos. Claro que eu me casei com o senhor Richards com dezessete recm cumpridos, mas aquilo era diferente. No explicou por que o era. Uma incessante

e benigna curiosidade parecia ser a fora vital das damas e os cavalheiros europeus e norteamericanos residentes no Hava. Os assuntos de todo o mundo eram cuidadosamente investigados, difundidos e comentados com toda liberdade. Leda j tinha recebido a visita de seis damas e sete cavalheiros, entre os que se incluam

os pais de Dickie, que queriam lhe agradecer a ateno emprestada a seu filho. Se nesses momentos no se via submetida a um interrogatrio para que proporcionasse toda a informao que dispusera sobre qualquer tema, era porque Samuel havia tornado a telefonar. Estava de caminho para lev-la a ver sua

nova casa e, enquanto esperavam, a senhora Richards tinha encontrado esse esconderijo depois da trepadeira. Deste modo explicou podero partir mais rapidamente quando chegar porque, se houvesse algum visitando-a, no se poderia mover antes de ao menos uma hora ou dois, e imagino a vontade que deve ter de ver

a casa. Est bastante dentro do vale, a trs tors de distncia, como dizemos aqui, porque j ver como chove essas vezes antes que cheguem.

Mas no se preocupe por isso, porque secar quase sem inteirar-se. Ah, j est aqui. A senhora Richards se reclinou em seu assento e suspirou enquanto Samuel atravessava a recepo com seu chapu de palha sob o brao. o homem mais bonito e romntico do mundo. Certamente indecorosamente atraente.

E no h nada que lhe reprovar, o asseguro, porque ele nunca deu p a que nenhuma garota se faa iluses, mas nem se imagina quantos coraes que tem quebrado, senhora Gerard. Leda comeava a suspeitar que o da senhora Richards era um dos danificados, mas se limitou a sorrir

e assentir. Samuel a saudou com tanta cordialidade que Leda se sentiu muito mais animada imediatamente. Ningum levava luvas naquele clima tropical, assim que lhe resultou estranho, mas de uma vez familiar, notar o contato da mo nua de Samuel sob a sua enquanto se levantava. Leda se

sentiu como se flutuasse no ar durante o tempo que demoraram para baixar a escada at chegar ao jardim e subir carruagem, que um havaiano descalo, mas vestido com um uniforme imaculado, mantinha disposto para eles. Entretanto, enquanto abandonavam o recinto do hotel, o silncio se instalou entre eles. Leda contemplou

o palcio do rei, um edifcio moderno e imponente com torres em cada esquina e terraos de pedra que se elevava ao outro lado da avenida. Caminharam sob a protetora sombra das rvores que contornavam o caminho, atravessada aqui e l pela luz solar. O que isso? perguntou Leda

ao ver uma rvore que parecia ter dzias de trompetistas brancas pendurando de tudo seus ramos. Uma rvore trompetista respondeu ele. Ah. Leda brincou com sua sombrinha fechada e, continuando, assinalou outra rvore coberta de ricos amontoados de casulos dourados . E como se chama esse?

Essa uma rvore do ouro. Ah. A obviedade dos nomes a fez sentir-se ridcula por perguntar. Samuel no lhe deu mais informao a respeito. Estava claro que sua amabilidade ao chegar ao hotel tinha estado motivada pela presena da senhora Richards. No queria que a esposa de

seu diretor visse nenhuma irregularidade em seu matrimnio. Samuel devia estar pensando nesses momentos em que teria que estar levando lady Kai a ver seu novo lar. Estaria pensando em seus planos e sonhos. Estaria desejando que no fosse Leda a que o acompanhasse na carruagem. O ar

tinha um forte aroma a gardnias, lrios e rosas. Detrs das brancas cercas um tanto instveis, as casas estavam envoltas em uma profunda sombra, sob enramados de trepadeiras em flor. Leda viu retalhos de habitaes abertas depois das onipresentes e amplas terraos. tudo de seu agrado? perguntou Samuel de

repente. Voc gosta do hotel? Sim, sim.

A sute est bem? uma sute excelente. Perfeita. A senhora Richards te cuida bem? Sim, do mais amvel. Tudo encantador. Samuel aulou ao cavalo estalando a lngua. O animal trotou mais depressa, chapinhando sobre um atoleiro de barro. Leda fez

como se contemplasse as gotas de chuva que, de repente, caram em cascata de um nada enquanto o cu seguia azul. Eram umas brilhantes gotas atravessadas pela luz do sol. Encantador pensou deprimida. Perfeito. Era a chuva a causador de que lhe nublasse a vista. Ela tinha sua

dignidade, e no estava chorando. Esta a sala de cima disse Samuel. Olhou para trs para ver se Leda j tinha subido a escada. Os passos desta ressonaram sobre a madeira polida do vestbulo. Leda negou com a cabea quando passou por seu lado para

atravessar a porta onde ele se deteve. A luz se filtrava pelas frestas das janelas fechadas, desenhando franjas de branco resplendor no cho. Mas, sobre o plano, disse-me que aqui ia seu escritrio. Lembre-se que medimos o escritrio para que no chocasse com estas portas. Posso p-lo no

escritrio da cidade. Samuel a observou enquanto se detinha em meio da estadia, seguida pela cauda do vestido azul claro que levava. J no usava espartilhos. Poucas mulheres os usavam ali, certamente pelo calor, sups Samuel. Leda se apoiou sobre sua sombrinha branca. Com o chapu de asa larga e

aquela atitude pensativa, com a cabea agachada, parecia uma silueta tirada de um elegante quadro. Samuel sentiu a necessidade de sonar cortante, para que ela no se desse conta do muito que lhe custava manter aquela atitude. De todos os modos, o escritrio quo nico encarregou para

meu uso pessoal, no? Acerta esta habitao para utilizar a da sala. No faz falta que seja um escritrio, porque no o vou necessitar. Leda ficou olhando a um ponto do cho durante uns instantes; logo agarrou a sombrinha e caminhou lentamente at a porta de frente. Samuel no sabia

no que podia estar pensando, como tampouco estava seguro de que ela tivesse entendido o que tentava lhe oferecer. No faz falta que eu passe muito tempo aqui disse. Leda entrou na habitao contiga. Samuel ouviu seus curtos passos. Seguiu-a e a achou junto a uma porta com

as janelas abertas que davam para a varanda do segundo piso, de onde contemplava a paisagem. Samuel se deteve no centro da habitao vazia. Depois dela viu a copa das rvores da ladeira de abaixo, e mais frente a vasta extenso da ilha e o mar. O Kaiea descansava em seu

atracadouro, e suas brancas cobertas pareciam

de brinquedo a essa distncia. Um arco ris duplo pendia do ar sobre as ladeiras mais baixas e a cratera vermelha de Punchbowl. Voc gosta? perguntou Samuel. Leda demorou tempo em responder, at que, sem girar-se, disse: o lugar mais bonito que

vi na vida. Samuel sentiu um profundo alvio, mas tambm uma intensa dor. No podia olh-la sem sentir o desejo de toc-la. Essa habitao, situada em uma esquina da casa e banhada por uma brisa procedente dos verdes escarpados e a catarata que havia detrs, estava marcada nos

planos como quarto de Kai. Enquanto construam a casa, Samuel nunca se imaginou que ele fora a estar nela, mas sim unicamente se preocupou de que fora do agrado de Kai. Mas, nesses momentos, s pensava no que seria dormir ali com Leda em uma grande cama, com a fresca

brisa das montanhas lhe acariciando as costas e o quente corpo dela sob o seu. Ao melhor gostaria de plantar rvores frutferas disse. Mangas ou algo. Comi uma manga ontem noite respondeu Leda emitindo um ligeiro som que talvez fora uma risada. Era muito pegajoso.

Pois mames, ou s algo com flores disse Samuel, que queria que ela escolhesse uma rvore como smbolo de que cabia a possibilidade de que tivessem um futuro juntos nessa casa. As plumeras crescem rpido. Voc gosta? Do muitas flores, que tm um aroma agradvel. Leda

girou um pouco a cabea. Sim, mas voc gosta? Ao Samuel davam exatamente igual. Em lugar de pensar nisso, perguntou-se se Leda se apartaria ou se aproximava mais a ela. Estavam sozinhos, e no tinham que manter as aparncias. No havia ningum que pudesse impedir que ela o

rechaasse. Sentiu como o atacava uma paralisia nos ps que se foi estendendo por todo o corpo at chegar nos braos, mos e garganta. Mas, ao mesmo tempo, tambm sentiu como crescia nele um violento desejo. Leda seguia olhando-o, depois de lhe fazer alguma pergunta que ele j tinha esquecido,

envolta em azul e branco com o intenso cu atrs dela. Fracamente, tanto que Samuel no soube se s se tratava de sua imaginao, viu o contorno de suas pernas sob a musselina, assim como seus seios, com as aurolas rosceas Tinha que ser uma fantasia. Samuel murmurou ela.

Ele no podia mover-se. Viu-a com o cabelo caindo pelas costas, com os ombros nus e a cabea inclinada para trs. Leda se virou para ele movendo delicadamente os quadris sob o vestido. No podia se mover. Nem podia nem queria. Estava muito excitado. Mas ento se

moveu e, agarrando-a pelos ombros, empurrou-a contra a nua parede branca. No lhe deu tempo para que pudesse tentar apart-lo. O chapu de Leda, com todas suas fitas e plumas, deslizou-se atrs de

suas costas. Beijou-a, aprisionada como se encontrava contra aquela superfcie. No pde olh-la enquanto o fazia. Afundou o rosto em seu pescoo ao tempo que lhe subia as saias e odiava a si mesmo e a amava e a sua sensao de suavidade. Empurrada contra a parede pela urgncia

de seu desejo, Leda emitiu um dbil som, como um soluo inarticulado. Sob anguas e rendas jazia o mistrio de tudo o que ela significava para ele. Sob a suave musselina cobria sua delicada pele nua. Samuel encontrou suas redondas e suaves ndegas e o colchete que liberava todos aqueles intrincadas objetos

interiores femininos. O ardor o voltou a alagar como uma fonte quando sentiu os quadris e cintura de Leda enquanto espremia o leve tecido entre os dedos. No podia deixar de acarici-la mas, quando ela estendeu as mos sobre seus ombros, teve medo de que tentasse apart-lo. Beijou-a com fria

para que no pudesse dizer nada. Agarrou-lhe as mos e as apartou, e logo desabotoou os botes da braguilha. Continuando, levantou-a contra a madeira e se afundou entre suas coxas enquanto a sujeitava pelas ndegas. Leda inalou com fora quando a penetrou. Samuel no podia abrir os olhos. S podia

entrar nela, apoiada como a tinha contra a parede, e propinar selvagens investidas. No saiu nenhum som de Leda; s se ouvia a respirao agitada de Samuel e o impacto de seus corpos contra a slida parede. E ento chegou o momento culminante. Samuel chegou ao orgasmo lanando um grunhido

gutural que alagou a habitao vazia. Prazer, culpa, liberao. Degradao. Samuel se deu conta imediatamente. Degradao. Essa vez no o invadiu a sensao de enjo e relaxao posterior ao clmax. Em seu lugar, solo sentiu asco de si mesmo. Deixou-se cair sobre ela com a testa apoiada na

parede, respirando ar, pintura fresca e o suave aroma de sal do suor que escorregava depois da orelha de Leda. Lentamente a soltou, e s ento advertiu que ela o tinha pegado os seus ombros com a mesma fora, como se tivesse medo de cair. Leda ps os ps no

cho. O matagal de tecido que eram o vestido e a angua se deslizou de entre os dedos de Samuel. Ento este se separou dela sem olhar ao rosto. A sombrinha branca jazia aberta no cho. Samuel a agarrou e, tampando-se com ela e com a jaqueta, arrumo a roupa de costas

a Leda. Logo ficou imvel com o olhar perdido no horizonte. Ao cabo de um momento, ouviu rudo de roupas a suas costas, e sups que Leda estaria recompondo-se, se alisando e sacudindo-a roupa, tentando eliminar qualquer vestgio do que lhe tinha feito. Fechou os olhos e soltou uma forte

baforada de ar. Sinto-o disse bruscamente, pese ao medo que tinha a voltar-se e ver a expresso dela. No houve resposta. Samuel ouviu passos e, caso que Leda se dispunha a sair da habitao, teve ao fim que voltar-se mas, para sua

surpresa, encontrou-a reclinada contra a parede, com o chapu apoiado contra a saia como uma menina pequena, e a cabea agachada. Voltemos para hotel disse Samuel agachando-se a sua vez para agarrar seu chapu. Talvez te interesse saber que o Kaiea garra amanh pela tarde rumo a So Francisco.

Leda levantou a cabea e o olhou sobressaltada. Samuel encolheu os ombros. Somos muito eficientes. S passaro cinqenta e duas horas entre um trajeto e outro. Leda seguiu olhando-o como se a s idia de partir a enchesse de uma profunda tristeza. Prometi-te que

teria todo meu apoio continuou ele. Se quer ir, pode faz-lo. Tem a conta aberta em Londres. Quando necessitar mais, no tem mais que me comunicar isso. O chapu de Leda caiu de suas mos. Deteve-se sobre a prega do vestido enquanto as plumas que o rematavam se agitavam brandamente.

Quer que v? perguntou ela. No quero nada respondeu Samuel dirigindo-se para a outra janela e abrindo-a de par em par. Uma fresca brisa levou o aroma do mar a seu acalorado rosto. A um extremo da varanda, o inclinado precipcio da montanha mostrava um banco de neblina

que cruzava o verdor. tua deciso. Se prefere ficar e viver nesta casa, e manter as aparncias, prometo-te que no te exigirei nada. Uma careta apareceu em seu rosto. Isso o que levava algum tempo tentando te dizer mas Se deteve e lanou uma spera gargalhada. Deus! Suponho que agora

ser difcil que me creia. No deveria perjurar murmurou Leda. Sinto-o disse ele apoiando uma mo no marco da janela. O sinto, maldio acrescentou entre dentes. Girou a cabea e viu que Leda se levantou. Esta recolheu o chapu e avanou uns passos at o centro

da habitao. Tenho que decidir? Depois de sua voz trmula se adivinhavam as lgrimas que estavam a ponto de brotar. Samuel sentiu um ardor to grande na garganta e o peito que pensou que ia afogar-se. Em efeito conseguiu responder com voz serena. Ento

quero ficar disse Leda. Quero ficar, viver nesta casa e guardar as aparncias. Dojun lhe tinha ensinado que, ao fazer uma reverncia, no se devia fazer de qualquer maneira, como se fora um gesto sem mais. Sua beleza tinha que ser completa, e o movimento total. Teria que juntar as

palmas das mos suave e lentamente, com as gemas dos dedos formando o ngulo adequado. Todo o corpo devia dobrar-se da cintura com vigor, com forma e fora, com a mente serena, as costas reta, o peso equilibrado e firme, para

depois incorporar-se com as mos ainda juntas e permanecer imvel com absoluta naturalidade. Desse modo, dizia Dojun, mostrava-se respeito. Respeito por seu professor, por seu rival, pela vida. luz de um nico abajur de azeite de seu escritrio, sendo as trs da madrugada, Samuel se inclinou

ante Dojun evitando que sua sombra casse dentro da janela. O lugar e a hora do encontro eram de tudo incomuns. Que tivesse sido Dojun quem procurasse o Samuel e marcasse um encontro no territrio deste era um fato sem precedentes. Dojun vestia roupas pudas, como se fosse um coletor

de plantao mais; uns olhos no treinados teriam acreditado que no ocultava nada abaixo elas. Devolveu a reverncia de Samuel com outra mais leve e disse em japons: Estiveste com uma mulher. A ducha que tinha tomado Samuel, em que se tinha esfregado o corpo a fundo, no tinha

servido para nada. Casei-me explicou este. Fez-se um profundo silncio, to s quebrado pelo escuro e incessante som do fluxo do longnquo recife mais frente do porto. Samuel no pde agentar o sombrio olhar de Dojun, por isso apartou a vista para a sombra de uma esquina

atrs de seu escritrio. Ento, lady Catherine te aceitou? Claro. Dojun sempre tinha sabido que levava anos planejando, em que pese a que Samuel nunca o havia dito. A leve sensao de surpresa e desgosto que acreditou intuir em Dojun, como se levantasse uma sobrancelha invisvel ante a

idia de que Kai aceitasse casar-se com o Samuel, fez que este se ruborizasse. No cheguei a pedir a Kai disse. Sentia-se indefeso, incapaz de manter a mente acordada e atenta para fazer frente a qualquer possvel ataque de Dojun. No me casei com ningum importante. uma garota inglesa

acrescentou enquanto se movia para tentar aliviar a tenso do ambiente; assinalou com a cabea o recipiente que havia na estufa. Esquentei sake para ti. No nada especial, mas te rogo que o aceite. Disse-o dessa forma humilde e educada, em que pese a que tanto Dojun como ele

sabiam que era o melhor tokubetsuna existente. Itadakimasu. Dojun agarrou a bebida que lhe ofereceu o outro vertido da pequena garrafa de cermica. Sentaram-se juntos no cho e, ficando sal nos lbios, beberam das diminutas caixas de madeira que Samuel tinha preparado. Saber que esto fazendo

perguntas sobre ti disse Dojun. Sim respondeu Samuel, que j se inteirou. Desde fazia vrias semanas, estavam-se fazendo pesquisas sobre ele tanto em Honolulu como em So Francisco. Sua origem era desconhecida, e se perdia em Chinatown. Mas no sei de quem se trata. Nihonjin desu disse Dojun

enquanto o olhava atravs da fumaa que se elevava de sua bebida.

Japoneses. Estavam-no investigando uns japoneses. Samuel pensou imediatamente no punho de espada que escondia sob a estufa. E por que esto perguntando, Samuel-san? inquiriu Dojun com frieza. Samuel se deu conta de que tinha detectado a conexo mental que acabava de cruzar sua mente. As dotes de

Dojun eram tais que podia lhe ler os pensamentos mnima oportunidade. Era muito tarde para dizer que no tinha nem idia de por que uns japoneses se interessavam por ele. Muito tarde para fingir que no tinha nada que ocultar. Levantou-se e ofereceu a pequena garrafa ao Dojun com

outra profunda reverncia. Depois de que este levantou a taa para que a enchesse, Samuel lhe disse em ingls: Apresento-te minhas desculpas, Dojun-san, mas meu assunto. Depois de olh-lo fixamente durante uns instantes, Dojun tomou um lento sorvo de sake. muito considerado. Sou velho

e quer me agradar. Mas vamos compartilhar o problema, no? Seguiu falando em sua prpria lngua pese mudana prvia de Samuel, com o qual queria indicar muitas coisas: sua posio de superioridade, que era ele quem dirigia a conversao, e que aquilo do que queria falar era muito delicado e no

podiam arriscar-se a que houvesse mal-entendidos.Diga-me por que esto fazendo perguntas esses homens sobre ti. Roubei algo da embaixada do Japo em Londres respondeu Samuel, que tinha as costas muito reta e as pernas cruzadas. Pode ser que o estejam procurando. Dojun o olhou de uma forma inescrutvel.

Encarregarei-me de que o recuperem acrescentou Samuel. O rosto de Dojun tinha sofrido uma mudana indefinvel. Seu olhar era escuro e poderoso. O que o que tem, pequeno baka? perguntou. Samuel no permitiu que seu corpo se esticasse detrs ter sido chamado idiota.

Uma kazaritachi respondeu. Dojun emitiu um estranho som, como o rugido de uma tempestade. No era de ira, mas sim de pura energia. Olhou fixamente ao Samuel. Onde est? No houve necessidade de dizer-lhe com palavras. Samuel s teve que pens-lo, e

Dojun dirigiu a vista para o esconderijo secreto, cuidadosamente selado, que havia sob a estufa. Poderia ter sido pior disse este esboando um estranho sorriso. No sabe no que te colocaste. Samuel esperou. Se perguntava, no receberia nenhuma explicao. E tampouco se no o fazia. S a teria se Dojun assim o

decidisse. Diga-me os nomes das cinco grandes espadas lhe exigiu este.

A Juzu-maru respondeu Samuel. Dojigiri, a cortadora do Doji. Mikazuki, a foice lunar. O Tenta, a obra professora de Mitsuyo. Ichigo Hitofuri, chamada Uma vez na vida. Cinco o nmero maior segundo a tradio. Mas est escrito no Meibutsuch? que h outra espada mais entre essas cinco.

No pode hav-la. H cinco nomes e cinco folhas. Mas o leste, verdade? No meio esto as cinco grandes espadas, e outra mais entre essas cinco. Li-o mas no o compreendi. Estranha-me passar quando tento decifrar os escritos japoneses. Dojun esboou outro sorriso.

Bom, de todos os modos isso s um quebra-cabeas absurdo. Talvez os monges pudessem tirar alguma concluso filosfica dele, mas o certo que h uma sexta grande espada, e que os que recolheram o Meibutsuch tiveram medo de escrever seu nome. Agarrou o cntaro de sake e o

sustentou por cima do masu de madeira de Samuel. Depois de ench-lo com um grcil movimento, voltou a deixar a garrafa no cho. Teria sido melhor disse se o tivessem omitido por completo, em lugar de no dizer nada ao que no sabe e no ocultar nada ao que sim.

Samuel bebeu do vinho quente enquanto Dojun o observava. Uma ligeira careta de humor seguia visvel na boca deste. Pacincia disse o japons. Faz muitas perguntas. Samuel esperou. A velha sensao de calma concentrada estava retornando a ele enquanto escutava, nem tanto as palavras em si

de Dojun como a certeza que encerravam. Sabia que tudo o que este lhe dizia obedecia a algum propsito. Gokuakuma. Esse seria o nome da espada se existisse. O demnio supremo. Algum que foi escola crist contou a histria do anjo que se converteu no diabo. Esse o

esprito dessa espada. Se existisse. A folha mede dois shaku e cinco Sun, quase um metro. larga, para rebater sua longitude, e tem entalhes a cada lado da curvatura. Sob a espiga est gravado o demnio chamado o tengu, de largas garras, asas e voraz pico. A

espiga no est assinada. To s est marcada com trs caracteres: Goku, aku, MA. Nunca houve um espadachim com esse nome. Samuel reconheceu esse inventrio de atributos como tpico das descries do Meibutsucho, o catlogo de espadas famosas do Japo. S lhe faltava a relao de seus proprietrios e as

faanhas levadas a cabo com ela para estar completo, por mais que ele no tivesse encontrado nunca nada parecido no que tinha lido. Est perdida? No, no est perdida. Est em estado potencial. luz do abajur, o rosto de Dojun resultava atemporal, nem mais velho

nem mais jovem do que sempre lhe tinha parecido a Samuel. S seu cabelo

negro era diferente, j que o tinha cortado anos atrs ao estilo ocidental. Enquanto tudo trocava a seu redor, Dojun seguia igual. Este levantou uma mo e fechou o punho. Sem punho, uma boa folha s perigosa. Pode-te cortar os dedos se no tomar

cuidado ao dirigi-la. Com sorte, poderia chegar a matar a algum com uma folha sem montar, ou at te poderia matar a ti mesmo com a mesma facilidade. Mas montada, com um punho feito medida da mo do guerreiro, com um guarda-mo para proteger a este e uma vagem em que

lev-la, seu potencial se converte em sua verdade. O esprito da folha passa a ser o esprito do homem. Samuel pensou na espada cerimoniosa que tinha roubado, em sua feia folha de ferro unida a aquele belo punho, e comeou a intuir o que se morava. Gokuakuma

formosa e terrvel. Ningum conhece sua verdadeira antigidade. O primeiro testemunho escrito confivel data de faz setecentos anos, quando uma espada com punho dourado apareceu em mos do Minamoto Yoritomo enquanto este expulsava ao cl Taira da capital e destrua ao menino imperador. Mas no basta alcanando o poder; a Gokuakuma sempre

quer mais. Yoritomo se desfez de seu prprio irmo e acabou com aqueles membros de sua famlia que s eram um lastro para ele. A sua morte, a espada passou a ser propriedade da famlia de sua mulher, os Ho-jo, aos que o demnio daquela possuiu. Mataram aos herdeiros do Yoritomo, assassinaram

a todo o cl e se fizeram com o mando. Mesmo assim, seguiam sem dar-se conta do perigo da espada, to solo viam seu poder. Um samuri sem professor elaborou um plano para fazer-se com ela, e conseguiu roubar a folha pondo outra em seu lugar. Esse ronin, cujo nome maldito foi

apagado da histria, pareceu triunfar ao princpio, j que reuniu a um grupo de outros ronin e dobrou aos vassalos dos Ho-jo; mas, quando tentou usar a espada em combate, a folha saiu disparada do punho falso, o qual fez que ele casse do cavalo e se empalasse. Dojun fez

uma pausa enquanto Samuel seguia contemplando-o fixamente. A Gokuakuma s encaixa em seu punho dourado, e s entra em sua vagem. A voz de Dojun adquiriu um tom recitativo e hipntico. Foi Ashikaga Takauji o que reuniu o verdadeiro punho com a folha, depois do qual atacou aos Ho-jo e

os obrigou a abrir o estmago em seppuku. Seguiram sessenta anos de guerra, at que o neto do Takauji se fez com a Gokuakuma e sua fora. Mas era sbio, e voltou a separar folha e punho. Ps o punho em seu Pavilho Dourado, para poder admirar a beleza de seu rico

trabalho, e deixou a folha aos cuidados dos monges das montanhas da Iga. Durante o tempo que durou essa disposio, o pas desfrutou de um perodo de paz, era-a dourada dos Ashikaga, mas a Gokuakuma tinha seus prprios planos. A espada exige estar completa e, para conseguir seus propsitos, atrai com fora

a aqueles que gozam de grande poder mas no chegaram a sua cpula. O irmo do shogun Yoshimasa queimou o

monastrio para fazer-se com a folha, voltou-a a unir ao punho e iniciou uma guerra civil. Durante sculos a espada foi passando de mo em mo em meio da guerra e o caos, at que chegou s da Nobunaga, guerreiro de grande talento. Nobunaga conquistou o centro do Japo,

mas foi assassinado em seu momento de maior gloria por um vassalo ambicioso. Seu general Hideyoshi, obrigado tanto a sua percia como prpria Gokuakuma, eliminou a seus rivais, reunificou a todo o pas e declarou a guerra a China e Coria. Ordenou que todas as espadas fossem confiscadas ou registradas, e

que so pudessem ser levadas por samurais. Seu sucessor Ieyasu se apoderou da Gokuakuma e eliminou a todos os membros vivos da famlia do Hideyoshi. Mas esse Ieyasu aprendeu a lio detrs ver o destino dos herdeiros de Nobunaga e de Hideyoshi, por isso separou de novo a Gokuakuma. Pediu ao divino

imperador que concedesse o amparo da folha a uma nica famlia, cujo dever seria escond-la. E assim, durante os ltimos duzentos e setenta e trs anos, a Gokuakuma no pde voltar a estar completa. Eu tenho o punho da Gokuakuma disse Samuel. Sabia sem to sequer ter ouvido

sua descrio, nem receber uma explicao de como semelhante certeza era possvel. Sim, voc tem o punho disse Dojun inclinando cabea e ombros, e eu tenho a folha. Samuel foi captando pouco a pouco o significado da expresso irnica do rosto do outro. Voc?

Tenho-a h vinte e um anos, oculta e separada do punho que a faz completa. Quando chegar o momento de entregar minha vida, seu cuidado passar a ti. Samuel o olhou com expresso perplexa. para o que foste treinado acrescentou Dojun com toda naturalidade. Samuel,

com a pequena forma quadrada do masu vazio nas mos, ficou atnito. Permaneceram em silncio at que Dojun voltou a falar. A sabedoria passa como uma corrente de corao a corao. Meu prprio cl de sangue me encomendou esse dever. De menino fui treinado como voc o foste, nas artes

que te ensinei e em outras mais. Em tempos de paz, temos que estar preparados e sempre alerta, mas em perodos de mudana quando a Gokuakuma mais letal, quando possu-la enche o esprito de agressividade, quando procurada com mais zelo pelo poder que confere ao que a consegue. Quando

os samurais se rebelaram contra o shogun, encomendaram-me a tarefa de fugir com a Gokuakuma, me esconder e esperar. Naquela poca o Japo estava isolado; a pena de morte era o castigo que aguardava os que tentavam abandonar o pas sem permisso, e os que queriam a Gokuakuma eram os que odiavam

aos brbaros ocidentais com maior fanatismo. Formei parte do nico contingente de homens que, durante o perodo de distrbios civis,

assinaram contratos para trabalhar aqui de pees. J estvamos a bordo quando os rebeldes se fizeram com o governo e endureceram o controle do pas. Cancelaram nossos passaportes, mas os norte-americanos mantiveram os contratos de repente Dojun sorriu, como divertido por uma inesperada nota de humor em meio de seu desapaixonado

relato. E que aos norte-americanos no importam no mais mnimo os imperadores, os shogun nem as espadas demonacas. Gastaram-se muito dinheiro no navio e nos trabalhadores, por isso partimos da baa da Yokohama antes do amanhecer, sem luzes. Dojun contemplou as mos, que tinha unidas, com o mesmo sorriso

na cara, como se ainda encontrasse divertido aquela lembrana. Samuel no se moveu. To s observava ao homem que tinha dominado boa parte de sua vida. Sentia-se como se estivesse sentado em uma cadeira cuja ltima perna s tivesse acabado de ceder. Ento, tudo o que me ensinaste foi pela

espada? Tudo pela folha de uma espada? O prprio Samuel captou a nota de incredulidade de sua voz. Dojun o olhou. Em meu cl disse, quem faz o que eu fiz um homem katsura. Sou como uma rvore katsura plantada na lua, separado dos que me enviaram.

Aqui tenho que plantar minha prpria semente e cuid-la, para que sobreviva quando eu no esteja. Escolhi a ti quando cheguei. O seguinte Shoji, o varredor. Em certo essa modo foi a maior surpresa. Dojun tinha comeado a treinar a algum para que ocupasse o lugar de Samuel sem

que este se inteirasse e nem to sequer o suspeitasse. Para ele Shoji no era mais que um menino tmido com uma vassoura. Depois de uma pausa, Dojun disse: Recentemente me inteirei de que tinham enviado o punho rainha inglesa, para tentar apart-la definitivamente dos que querem

militarizar o Japo por seus prprios interesses. Olhou ao Samuel aos olhos. Ao parecer, o destino no quis colaborar com dito propsito. Samuel inspirou profundamente e se levantou para ir at a estufa e esquentar mais vinho. Procurava encontrar o equilbrio, a tranqilidade, nessa ao ritual. De momento no podia

pensar em nada mais. Enquanto, Dojun permaneceu sentado em silncio. Perdoe-me! exclamou Samuel interrompendo a cerimnia e tentando manter a compostura. Sou um estpido, Dojun-san. No sou japons, e no acredito em demnios. deu-se a volta e olhou ao Dojun. Ah, no? perguntou este.

No. Ento suponho que so anjos quem lhe protege. Eles so os que fazem que te passe toda a vida tentando ser forte, rpido, inteligente e estar a salvo do mal.

Samuel baixou o olhar e verteu o sake quente na garrafa. Do que tenta estar a salvo, Samuel-san, se no cr em demnios? Samuel no tinha resposta para isso. Tudo o que tinha acreditado at esse momento se converteu em uma humilhao para ele. Todo seu esforo,

todo seu compromisso incondicional, sem perguntar-se nunca para que. Quer muito, tinha-lhe advertido Dojun uma e outra vez, mas ele nunca tinha feito caso a essas palavras. Nunca tinha querido lhes fazer caso; to s se esforou at o limite de suas foras e de seu esprito para conseguir o reconhecimento, avaliao

e amizade de Dojun. Houve um momento no que eu mesmo tive minhas dvidas sobre a Gokuakuma disse Dojun. Pensei que estava vivendo no exlio sem saber em realidade por que. To s porque possivelmente a algum lhe tinha ocorrido a brincadeira de gravar a palavra demnio na espiga de

uma magnfica espada. Se seguisse vivendo no Japo, nunca teria pensado algo assim, mas aqui diferente. Levantou o masu para que Samuel lhe servisse mais vinho. Aqui, no Ocidente, algum questiona tudo. E isso no conduz a nenhuma parte, Samuel-san. Pode pensar e pensar at que a mente se converte em

um torvelinho e, mesmo assim, no encontrar nenhuma resposta. Ao final, d igual a haja um verdadeiro demnio na espada ou no. A histria diz que uma nao inteira se elevar s ordens da Gokuakuma. Os homens lem os livros de histria, e seriam capazes de matar por semelhante poder. Sei que

isso assim porque vi a minha prpria famlia morrer para manter a folha separada do punho que a faz completa. Bebeu um sorvo de sake e prosseguiu: Possivelmente essa seja a natureza dos demnios. Vivem adormecidos na mente dos homens, at que a folha de uma espada reflete a luz que

os acordada. Samuel se olhou as mos com o cenho franzido. Pois destri a espada disse. Ouviste falar da estrela de mar, que destri os recifes de ostras? Antigamente, quando um pescador agarrava uma, cortava-a em dois e a voltava a atirar ao mar. Dojun baixou

o vinho e o deixou sobre o cho. Mas, no fundo do recife, sem que ningum as visse, as duas metades se convertiam em duas novas estrelas de mar. Samuel se levantou duro. E j est? Por isso me ensinou tudo? Meu Deus, tanto tempo, e nunca me

disse nada. Seus punhos fechados tremeram. Obrigou-se a abri-los. Uma adaga da grossura de um lpis apareceu na mo de Dojun. Samuel fez um ligeiro movimento de evaso; seu corpo reconheceu a direo do golpe antes que sua mente, e o bo shurukin se cravou no cho de madeira.

Quando a forma e a fora no tm mcula, o movimento que segue tampouco a tem disse Dojun sem alterar sua expresso. Tira o arco, pensa sem pensar, aponta na direo exata e lana a flecha. Agarrou o vinho com ambas as mos e assentiu. Isso o que tenho feito.

Voc minha flecha, e te lancei.

Samuel soltou um brusco bufo e se virou. Continuando, ajoelhou-se e, depois de mover a estufa uns centmetros pese ao calor que lhe queimava as mos, rompeu o selo. Colocou a mo dentro do oco, mas s havia escurido em seu interior. Estava vazio. O punho da Gokuakuma tinha

desaparecido. Leda tinha observado que certo nmero de respeitveis damas estavam acostumadas tomar o caf da manh no comilo do hotel, que logo que parecia tal mas sim era mais como uma terrao, j que suas grandes janelas abertas davam s montanhas por um lado e s taas das rvores

tropicais pelo outro. Tudo parecia to distendido que decidiu que no podia ser indecoroso tomar o caf da manh nele e, em efeito, o matre havaiano a recebeu com tanta cordialidade, e os serventes chineses, com o tpico cabelo e vestidos de um imaculado linho branco, foram to agradveis e bem-intencionados, em

que pese a que seu ingls no era muito fluido, que Leda no se sentiu incmoda em nenhum momento. Ningum a olhou. Vrios oficiais da marinha e residentes do lugar que tinha conhecido no dia anterior se detiveram um momento para saud-la antes de dirigir-se a suas prprias mesas, adornadas com montes

de pltanos, limas, laranjas e goiabas. Fora, os pssaros cantavam com estrondo nas rvores. Uma ligeira brisa entrou pela janela junto que se encontrava. Olhou com receio o pescado frito que tinha ante si, o qual parecia um desses grandes peixes vermelhos que estava acostumado a haver nos aqurios

domsticos, e que o garom chins lhe tinha levado em lugar da torrada que tinha pedido. Estava tentando explicar o engano ao atento, mas confuso empregado, quando Samuel apareceu atrs dele. Parecia muito alto em comparao com o pequeno chins. Te leve o ia disse bruscamente ao garom. Diga ao

cozinheiro que ponha po ao fogo ula ula e caf para mim. O garom retirou o pescado imediatamente entre mltiplas desculpas. O corao de Leda comeou a pulsar mais rpido do normal. Samuel se sentou frente a ela sem olh-la, e se limitou a contemplar a paisagem pela

janela em silncio. Leda enrugou o guardanapo que tinha sobre o colo, enrolando-a ao redor de um dedo sob a mesa. Bom dia se aventurou ela a dizer ao fim. Chegou o caf. Ambos observaram ao garom enquanto o servia. Leda aspirou o agradvel aroma enquanto levantava a

vista da branca manga do servente e olhava ao Samuel. Este seguia contemplando o negro lquido com a boca muito fechada. Quando o garom se retirou, devolveu-lhe o olhar com uma frrea falta de expresso. Quero que v disse. No era uma sugesto como no dia anterior, quando lhe tinha

quebrado o corao. Era uma ordem.

Vir um homem a recolher seus bas s doze lhe comunicou olhando de novo para as rvores cheias de flores do exterior. O navio sai s dois. Um diminuto pssaro entrou pela janela e posou no bordo de sua mesa. O garom voltou com a torrada e fez dramalhes

para que partisse. O ave, sem alterar-se, roubou um miolo do prato de Leda e, depois de dar vrios saltos pela toalha, voltou a partir pela janela. Leda tinha perdido o apetite e se sentia doente. Nem sequer tinha foras para falar, por isso se limitou a ver como a

manteiga se solidificava no po. Queria lhe perguntar se tinha feito algo mal. Mas, se o tinha feito, tampouco queria ouvi-lo, se era to mal que, como conseqncia, ia ser expulsa dali. E, alm disso, sabia no mais profundo de seu ser que no se tratava de nada que tivesse

feito ela. Tratava-se simplesmente de que ele no a queria ali. Tinha-o deixado bem claro no dia anterior, quando a havia tocado com tanta brutalidade, como se lhe desagradasse, como se pudesse envi-la longe ao converter algo que tinha sido to ntimo e especial entre eles em um ataque brutal. Um ataque

brutal em uma habitao vazia e contra a parede. Leda mordeu o lbio e cobriu a boca com o guardanapo. Isso era ainda pior, receber a notcia em um lugar pblico, no que estalar em lgrimas seria a maior humilhao possvel. A voz de Samuel seguia sem denotar

o menor rastro de emoo. O capito se far cargo de algo que necessite. Entregar-te um cheque para que o cobre em So Francisco para o resto da viagem. Pode ir aonde queira, mas eu gostaria que me informasse de seu paradeiro. Se envias um telegrama a meu escritrio de

So Francisco cada semana, saberei que est s e salva. Samuel apartou rapidamente a vista e voltou a olhar pela janela. O pssaro, de plumagem laranja pardusco e uma banda branca ao redor de seus brilhantes olhos, retornou. Quase parecia domesticado, pela audcia com que voltou a posar-se sobre a

mesa e a picar da torrada de Leda. Far-o? perguntou Samuel. Sim. Era o nico que podia dizer nesses momentos. Bem, pois ento te desejo boa viagem agora. No acredito que possa ir despedir-te ao navio. Leda tragou saliva rapidamente e ficou

em p. Como quer. No faz falta que v. Samuel tambm se levantou. Durante uns instantes Leda se permitiu olh-lo, para gravar em sua memria o que estava mais frente da lembrana. Quando ele j no estivesse, seria impossvel recrear uma imagem dele o bastante vivida ou

perfeita, porque, ao olh-lo, no podia ver o homem que a senhora Richards tinha qualificado de indecorosamente atrativo. J no via a capitalista e imaculada fascinao anglica que fazia que as damas das mesas adjacentes lhe lanassem

olhadas por cima das cartas de menu que sustentavam. Sabia que tudo aquilo estava ali, ante ela, mas no mais profundo de seu corao s via o Samuel e sua terrvel infelicidade, via que essa expresso ptrea no era mais que uma mscara. H algo mais que possa fazer

por ti? perguntou ele. Leda baixou a cabea e fez um gesto de negao, incapaz de dizer nada. Ento adeus, Leda. Adeus. No pde lhe responder. Sua boca se negava a abrir-se e diz-lo. Sem levantar a cabea, Leda partiu rapidamente avanando entre as mesas at

sair do comilo. 33 Dojun perambulava pela casa de Samuel inspecionando-a. Este se encontrava na varanda do segundo piso, apoiado contra o corrimo, observando como Dojun ia abrindo portas e avaliava a fortaleza das defesas. Samuel sentia um pouco parecido a uma agridoce satisfao cada vez

que ao Dojun lhe escapava algum detalhe, por mais que isso tampouco ocorresse com muita freqncia. Encontrou as escotilhas, assim como as janelas que s se abriam quando se deslizava uma fina folha de papel em um ponto concreto delas. J conhecia o passadio natural de lava que proporcionava uma entrada e

sada subterrnea montanha em que se elevava a casa. Era uma das razes pelas que Samuel tinha decidido construir a casa ali. Mas Dojun teve que lhe perguntar como se levantava o painel que conduzia a dito passadio, por isso Samuel avanou pela casa vazia enquanto abria e fechava

a combinao de portas que permitia que o painel se movesse. Continuando, voltou a sair varanda e, dali, viu como zarpava o Kaiea. Leda tinha aceito ir sem o menor reparo. Sem dvidas nem perguntas. Nem sequer havia dito adeus. Samuel sups que, depois de uma noite

de meditao, Leda teria dado conta de que no valia a pena ficar e guardar as aparncias. Claro que se ele tivesse sido capaz de controlar-se Fechou os olhos e apertou a mandbula muito forte. Era melhor que Leda fosse embora. Distrairia-o e, alm disso, ela correria perigo.

Os homens que tinham entrado em seu escritrio, que tinham encontrado e pego a kazaritachi sem romper nenhum dos selos e levaram o punho da Gokuakuma, tambm deviam ter estado nessa casa. Deviam ter encontrado tudo o que Dojun estava encontrando nesses momentos. Atacariam qualquer debilidade que Samuel tivesse, e Leda era

sua nica debilidade. Seguia sendo-o enquanto estava ali de p vendo como o navio se afastava. Ouviu abaixo as suaves vozes de trs de seus jardineiros, escolhidos com cuidado de entre seus homens e os de Dojun. Para converter rpida e dissimuladamente uma casa em uma fortaleza era necessrio fazer

esse tipo de eleies. Samuel conhecia bem a sua prpria gente: kanaka

nativos, chineses e uns quantos haole, norte-americanos e europeus de muito diversas ndole. Tinha-os selecionado por sua lealdade, aptido e falta de conexes japonesas, para reduzir no possvel o risco de subverso. Dojun contava com gente de seu prprio cl. Samuel ainda no se recuperou da surpresa de saber

que esses amigos que Dojun fazia entre os novos imigrantes eram em realidade familiares deles, o qual significava que os laos existentes entre eles eram mais antigos e fortes que os que Samuel mantinha com seu professor. Shoji, o da vassoura e o grande respeito, era sobrinho de Dojun, e tinha sido

enviado ao Hava para ser instrudo por este e assim poder custodiar a Gokuakuma. Durante os anos em que Dojun tinha estado sozinho, quando o Japo no permitia que ningum sasse de suas fronteiras, teve-se que arrumar com o que tinha encontrado. E tinha encontrado e preparado ao Samuel, que

agora se sentia estpido por estar ciumento de um menino com uma vassoura. Apoiou-se contra uma coluna branca e contemplou a cidade atravs da espessa arvoredo. Ali estava o porto de Honolulu, e Pearl Harbor mais ao oeste, com lacunas de peixes e mais vegetao entre ambos os pontos. Os

que o buscavam estavam ali, em algum lugar e em nmero desconhecido, longe de sua terra natal, em territrio de Samuel. Dojun protegeria a folha; prepararia a casa para que fosse segura e se resguardaria nela; era a fora do in. Samuel tinha que sair e procurar os caadores; a energia do

eu. Isso era tudo o que sabia das intenes de Dojun. Era o nico que este lhe tinha crdulo. Uma espada demonaca. No sabia o que pensar. Tinha recebido instrues e faria tudo o que Dojun lhe pedisse, como sempre tinha feito. Mas, pela primeira vez, tinha suas reservas.

No havia dito o mais bvio. No havia dito que, de hav-lo sabido, de ter gozado da total confiana de Dojun, no teria precipitado essa crise. No teria roubado uma kazaritachi obedecendo a seus prprios interesses particulares e sem conhecer sua verdadeira importncia, nem a teria levado ali, to perto de

sua folha, e menos ainda teria posto em perigo a Leda tambm. Recordou o esconderijo secreto sob a estufa, e a cpia do punho que to convenientemente tinham encontrado para substituir a que tinha roubado em Londres. Os adversrios de Dojun j foram depois do punho da Gokuakuma muito antes

que Samuel lhe pusesse a mo em cima; era a nica explicao para a existncia de uma cpia. O teriam feito para substitui-lo pelo punho verdadeiro antes que fosse entregue rainha. O roubo de Samuel tinha impedido a mudana e precipitada a busca. E tinha levado meses aos rastreadores, mas finalmente

estes tinham conseguido fazer o que a metade do Scotland Yard no tinha podido: tinham identificado ao Samuel e o tinham seguido at ali. Quem fosse depois da Gokuakuma tinham recebido o mesmo treinamento que ele, s que ainda mais completo. Se acreditavam na

espada, ento era tal e como Dojun lhe havia dito. O demnio era to real como os buscadores, e estes seriam capazes de algo. Samuel estudou o terreno. Trs anos antes tudo teria resultado muito fcil, porque havia muito poucos nihonjin nas ilhas, e ele conhecia todos os de

Honolulu. Mas agora havia milhares de compatriotas de Dojun no Hava, entre trabalhadores das plantaes e quo imigrantes estavam montando seus prprios negcios na cidade. Milhares de rostos depois dos que esconder-se. Provavelmente era uma vantagem que ele no acreditasse na Gokuakuma do modo em que Dojun e seus inimigos

o faziam. Para vencer necessrio no desej-lo, havia-lhe dito Dojun. Samuel viu a Kaiea mover-se lenta e majestosamente depois do Diamond Head, com as chamins jogando fumaa enquanto se dirigia para o Makapu'ou Point, fora de sua vista, longe do alcance de qualquer sinal para que Leda

voltasse junto a ele. No mole lhe tinha parecido uma idia muito razovel, clara e precisa. Leda estava convencida de que, quando chegou o momento de pisar na passarela para subir a bordo e no o fez, sua deciso se apoiou em um convincente e indiscutvel raciocnio lgico. Estava segura

de que tinha algo que ver com a obedincia e deveres de uma esposa mas, agora que se tornou a instalar no Hotel Havaiano, e o som de sereia do Kaiea que anunciava sua partida j se desvaneceu, no parecia ser capaz de reconstruir a lgica desse raciocnio que a tinha levado

a desafiar diretamente as ordens expressas de seu marido, como tampouco se sentia com foras para apresentar-se ante ele de modo amvel, submisso e respeitoso. Manolo, o condutor havaiano que Samuel tinha enviado para lev-la ao navio, ajudou-a a subir a charrete. Era um jovem musculoso de altura e robustez

formidveis ao que no parecia lhe importar carregar com a maioria dos colares de flores que tinha levado para empilhar sobre a cabea de Leda, embora sim que tinha insistido em adorn-la ao menos com uma coroa de hibiscos e gardnias. Voc faz bem em ficar. Ao Haku-nui, o nmero

um, gostar, sim, que voc no ir a Califrnia. Estar bem no Hava disse o sorridente Manolo os bas montados, eu levar a casa, wikiwiki. Fustigou ao cavalo e a charrete saiu do hotel a grande velocidade, esquivando limpamente a um carro atirado por uma mula, e se dirigiu

para as montanhas. Leda no estava to desejosa de precipitar-se colina acima como Manolo, do mesmo modo que tampouco estava segura de como ia receber Haku-nui a notcia de que no tinha partido no navio. Em um princpio sua inteno tinha sido preparar um pequeno discurso para defender-se, mas, entre

a agitao de encarregar-se de que se levassem seus bas do mole no ltimo minuto, a surpresa que tinha provocado sua inesperada

volta ao hotel, as saudaes e conversaes nas que, de forma provavelmente deliberada, tinha-se demorado bastante com pessoas das o que acabava de despedir uma hora ou dois antes e, nesses momentos, o esforo de ir bem agarrada a charrete enquanto esta atravessava a toda marcha as enlodadas ruas de Honolulu,

no tinha nem a menor idia do que ia dizer ao Samuel, por isso temia que chegasse o momento do encontro. O pobre cavalo jogava fumaa quando alcanaram aquelas alturas mais frias. A casa de Samuel nossa casa, insistiu Leda mentalmente se elevava em toda sua branca elegncia ante a

montanha, rodeada por uma franja vermelha de terreno sem cultivar. Quando Manolo conduziu ao cavalo pelo ngreme atalho de concreto, dois jardineiros surgiram de onde parecia que estavam limpando moitas. Tinham um ar ameaador, imveis e em silncio e armados com suas enxadas e foices, at que lhes Emane gritou algo em

havaiano e assinalou a Leda. Nesse momento seus rostos sombrios se iluminaram com sorrisos. Tiraram-se o chapu e fizeram uma profunda reverncia quando a charrete passou ante eles. Leda lhes devolveu a saudao. O cavalo tomou a ltima curva e se deteve ante os degraus de entrada, onde outros trabalhadores

ainda se trabalhavam em excesso em colocar pedras de cor nata para completar o pavimento. Leda olhou a seu redor sem mover-se. No havia rastro de Samuel. Um homem oriental vestido com grande sobriedade apareceu na soleira e baixou os degraus. Aloha exclamou Manolo descendo da charrete de um salto,

Dojun-san. Dama wahine no querer partir, no ir na Kaiea. Onde nmero um Haku-nui? O outro homem se inclinou com as palmas das mos sobre as coxas. Senhora Samuel-san, aloha disse com ar cerimonioso. Quando Manolo ajudou a Leda a descer da carruagem, o homem voltou a inclinar-

se e levantou uma mo. Samuel-san acima. Leda seguiu seu gesto com o olhar. Na terrao superior, apoiado contra uma das altas colunas e com os braos cruzados, Samuel os observava. Emitiu um suave aloha que baixou at ela com uma notvel carga de ironia. Que demnios faz

aqui? perguntou. Depois de medit-lo longa e atentamente comeou Leda, cheguei concluso enquanto subia a bordo do excelente Kaiea de que, bom, de que no conveniente que v. Sentia os olhos de todos os trabalhadores pendentes dela. Quer dizer, que v to logo e sem justificao. s pessoas

lhe pareceria muito estranho. Possivelmente, se for to amvel, e podemos falar do tema com mais intimidade No h nada de que falar. O navio j partiu. Sim, suponho que sim Eu diria que j se encontra a mais de dezessete milhas do Makapu'ou Point.

Teria vindo antes para te advertir da mudana de planos, mas Manolo e eu acreditamos mais conveniente levar primeira a bagagem ao hotel. No h nenhum outro at dentro de duas semanas. Ah, no? Leda agachou a cabea enquanto a envolvia o intenso aroma das gardnias.

uma lstima. Inclusive de onde se encontrava, pde ouvir o lento suspiro de Samuel, seguido de seus passos que se afastavam. Olhou para a porta principal e viu a oriental observando-a com expresso contrita. OH, nmero um fazer huh? disse Manolo ficando carrancudo; logo sorriu e moveu a

cabea tendo piedade de Leda. Pilikia. Voc hoopilikia. Leda j tinha ouvido essa palavra antes, pilikia, o trmino nativo que parecia aplicar-se a qualquer tipo de problema. Leda olhou a Manolo com expresso severa, mas este s se agachou tudo o que seu volumoso corpo lhe permitia e se retirou

uns passos quando Samuel apareceu na terrao da planta baixa e se deteve o final dos degraus. Leda acreditou adivinhar em seu olhar que estava zangado, mas o nico que ele disse foi: E o que pensa fazer agora? Bom, pois deveria me pr mos obra.

Fazendo o que? Leda fez proviso de todo o valor que pde. Minha obrigao arrumar esta casa para que vivas nela com comodidade. Samuel a observou sem dizer nada. Essa falta de resposta fez que Leda seguisse falando com maior paixo: Ficamos

aqum em Londres. O que encarregamos sozinho d para encher uma habitao, e pode ser tarde em chegar. A senhora Richards me disse que aqui em Honolulu se podem conseguir mveis e acessrios. Eu fazer mveis disse o oriental inclinando-se repetidas vezes. Eu fazer, senhora Samuel-san. Amanh voc voltar, ver

casa, todas habitaes, necessito isto e isto. Eu tomar medidas, mesa, cadeira, tudo. No interveio Samuel. No a quero aqui. Leda se ruborizou e deu um passo atrs. O pequeno oriental olhou a Samuel compungido. Samuel-san ter esposa disse. Necessitar mveis. Cadeira, cama, tudo.

No repetiu Samuel com expresso grave, depois do qual se voltou para a Leda. Volta para hotel e fique ali. A seguir dirigiu um frio olhar a Manolo. Eu a levo, j que parece que no posso confiar em que ningum obedea uma singela ordem. O havaiano, adornado com suas

flores vermelhas e amarelas, adotou imediatamente um ar de dor e aflio ante aquelas duras palavras. O que poder fazer eu? Ela no querer subir navio. Voc no dizer para mim: N, Manolo, voc subi-la como . Em efeito disse Leda. No culpa de Manolo.

Gostar de cadeira aqui, senhora Samuel-san? perguntou o oriental estendendo um brao e assinalando uma esquina da terrao. Bonito. Sentar-se e olhar oceano, montanha, tudo. Ter todo tipo de madeira, koa, ohia, paulownia. Qual querer? Samuel lhe disse bruscamente algo em sua prpria lngua. O criado fez uma servil

inclinao e lhe respondeu. Conforme a expresso de Samuel foi fazendo-se cada vez mais severa, as reverncias do outro foram mais profundas e os murmrios de resposta mais largos. De repente Samuel lanou uma estranha exclamao e se deu a volta. Bem, pois moblia a casa se quiser. Que te

divirta. Dispe de todo o tempo que deseje disse enquanto entrava na casa como se todos outros no estivessem pressentem. Bem, Samuel-san disse o oriental inclinando-se de novo ante ele e depois ante a Leda; logo se destacou a si mesmo. Meu nome Dojun. Carpinteiro. Boas mesas e cadeiras. Voc

dizer o que quer. Leda tinha suposto que trataria mais ampliamente o tema do mobilirio com o Samuel, mas o senhor Dojun a olhava curioso, como se esperasse que apresentasse uma lista de encargos nesses mesmos instantes. Bom, pois suponho que faz falta uma mesa para o comilo,

e cadeiras. De momento, basta com dois para comear. Quanto demorar para as ter? Ter mesa. Ter cadeiras. Ter Levantou uma mo e foi baixando os dedos at que s o mindinho ficou em alto. Uma, dois, trs, quatro. Quatro cadeiras feitas. Eu trazer. Em seguida. Quer dizer

que j parecem? Hai. Feitas. E tem outras peas disponveis, senhor Dojun? Aparador respondeu o outro riscando uma grande forma quadrada no ar, muito mais alta que ele. Livraria. Poltrona chins. Cadeira de balano. Mesa pequena. Mesa grande. Todo tipo mveis. Dojun mveis, aparador tansu, no

igual se comprar a outro. Muito melhor. Japo, shibui, no feio, no extravagante. Bonito, sim. Eu trazer aqui, voc ver que coisas gostar. No, no, no quero lhe causar tantas complicaes. Posso ir a sua loja a ver. No, no, eu trazer. Voc dizer pr a, pr a,

olhar, se no gostar, eu levar. V, muito amvel de sua parte. Suponho que o melhor que veja como fica cada coisa em seu lugar, sim. O senhor Dojun se inclinou. Amanh, no? Voc vir aqui. Eu trazer. Leda vacilou uns instantes.

Com toda essa repentina abundncia de mveis, talvez fosse possvel Conseguiria que tudo ficasse muito elegante e, alm disso, ao Samuel gostava das coisas japonesas. Recordou que lady Kai lhe tinha contado que ele fazia coisas com madeira ao estilo japons. Mas no acabava de

estar do todo segura, j que era consciente de suas lamentveis limitaes no relativo s comodidades que poderiam fazer que um homem se sentisse a gosto em sua casa. Por regra geral, a delicadeza feminina lhe teria impedido de manter uma conversao com estranhos sobre algo to pessoal como

os gostos de seu marido. Entretanto, sabia por experincia que uma criada, donzela ou inclusive cozinheira estava acostumada estar mais disposta a falar das preferncias particulares de sua senhora que o parente mais prximo desta, por isso Leda sups que ocorreria o mesmo no caso dos homens. Assim, olhou com acanhamento ao

senhor Dojun e a Manolo e disse: Isto, espero que no lhes parea impertinente, mas eu gostaria de saber se o senhor Manolo e voc conhecem senhor Gerard faz tempo. Tempo? repetiu Dojun. Anos. Voc e o senhor Manolo, trabalham para o senhor Gerard h muito

tempo? Sim, muitos anos. Dezesseis, dezessete anos. Antes, eu trabalhar vinte anos para lady Ashland, ela cuidar de Samuel-san. Para lady Ashland! Qualquer reserva que Leda tivesse podido albergar com respeito ao senhor Dojun se esfumou imediatamente. Se tinha sido empregado de lady Tess, ento podia

confiar nele. Manolo-kun mais jovem. Ainda no trinta anos, no? disse Dojun inclinando-se ligeiramente ante o havaiano. Possivelmente trabalhar seis ou sete anos para Samuel-san. Manolo sorriu com afeto. Muito tempo. No nadar, no montar, no cantar. Auwo. Tudo trabalhar disse passando a mo pela testa.

Ento, se o conhecerem bem Leda baixou o tom de voz. No estou muito segura de como gosta a um cavalheiro que decorem sua casa, assim que eu gostaria de saber se me poderiam fazer algumas sugestes para as coisas mais importantes. Os dois homens a olharam sem

entend-la. Que tipo de mveis e complementos prefere um homem. Leda se deu conta de que no conseguia fazer-se entender, at que exclamou: O que gostar a homem em casa. Cama se apressou a responder Manolo lhe piscando os olhos um olho. Sim assentiu o senhor

Dojun, cama coisa nmero um. Maridos gostar. Leda se sentiu profundamente sobressaltada. Enquanto Manolo ria de seu sufoco, o senhor Dojun comeou uma intrincada e indecifrvel descrio de uma cama que tinha disponvel. Em que pese a toda a vulgaridade de Manolo tanto que Leda no ficaria surpresa

no mnimo se o tivesse encontrado comendo cebolas cruas em um salo, este parecia bastante sincero. Era da opinio de que as mesas, as cadeiras, as estantes e as cmodas no tinham importncia

alguma. J fora de vime, ou coberta com um edredom de plumas, a cama era o mvel principal para um marido. Nesse caso disse Leda ao senhor Dojun, suponho que o melhor ser que traga a cama amanh. Trazer cama, sim respondeu ele com outra reverncia. Quando

ter cama, ter lar. Bom, sim reps Isso Leda espero. E diz o senhor Dojun que tem uma cama muito bonita feita de madeira veteada explicou Leda enquanto percorria seu sorvete com uma colher, mas no estou muito segura do que isso. Madeira veteada de

koa explicou Samuel enquanto a observava. Leda no o tinha visto desde que a tinha ajudado a subir a charrete para voltar para hotel. muito cara. Leda deixou de fazer crculos no sorvete. Parece-te um luxo muito extravagante? Pode gastar o que quiser.

A colher voltou a mover-se lentamente, e Leda tomou um pequeno bocado de sorvete. Samuel no sabia que fazia ali sentado. Tinha coisas que fazer, tanto de Dojun como suas prprias e, entretanto, ali estava, contemplando as mos de Leda, seu cabelo cuidadosamente recolhido, sua saia de babados rosa e branco, enchendo-se

de sua presena. pensei que algum motivo oriental poderia ficar bonito disse ela. O que te parece? O que queira. D-me igual. Samuel sabia que sua resposta tinha sido muito grosseira, mas no queria que ela estivesse ali nesses momentos, a ponto de correr um risco

que ele no podia calcular, nem queria acreditar, nem se atrevia a descartar. Sobre tudo no a queria na casa. Seu instinto lhe gritava que a encerrasse em uma habitao e pusesse dez guardas ante a porta, mas a lgica e sua preparao lhe diziam que Dojun tinha razo: qualquer guarda, qualquer

possvel indicao de que ela era de interesse ou valor, seria mal-entendida. No queria que Leda seguisse ali e, no obstante, a estava ele sentado, perdendo-se no som de sua voz, em sua doce enxurrada de intrascendentes palavras: que cores acreditava ele que ficariam melhor para as cortinas, se seria

possvel encontrar uma cozinheira perita que cobrasse um salrio razovel, se de verdade o papel pintado no se aderia bem naquele clima, como lhe tinha advertido a senhora Richards. Samuel se sentia atrado por tudo aquilo, seduzido pelo interesse que ela demonstrava por saber sua opinio, cativado por sua delicadeza

e singela afinidade. Leda tinha ficado, e tudo o que dizia estava relacionado com seu futuro juntos, em sua casa, como marido e mulher. O sorvete se derreteu. No exterior do comilo o sol comeou a ficar entre a suave brisa que entrava pelas janelas abertas. Leda seguiu

brincando com a colherinha um momento enquanto se ia apagando a conversao, at que ficaram em silncio rodeados pelo rudo de pratos e copos e o murmrio de outras vozes. Se no tiver assuntos que atender esta noite disse Leda levantando a vista e olhando-o, talvez voc gostaria de

tomar o caf em nossa sute. Samuel no acreditava muito provvel que ela corresse perigo essa noite. E, alm disso, se ficava, teria sabor de cincia certa que estava a salvo. assim, assentiu e se levantou, depois do qual apartou a cadeira dela. A sute era a maior

do hotel, com altos tetos e um salo com capacidade para albergar uma recepo real. Vasos chineses com enormes Ramos de flores adornavam cada mesa. O caf tinha chegado misteriosamente antes que eles em uma bandeja de prata. O garom o serve e desapareceu. Samuel percorreu as altas janelas que

davam para a varanda. Qualquer um poderia entrar sem o menor esforo. Nem sequer faria falta o sigilo de um babuno. Leda estava sentada com a taa de caf na mo, iluminada to s pela luz de uma lanterna de papel vermelho que se filtrava pelos portinhas das venezianas meio

fechadas. Dava um tom rosceo s gardnias cor nata de seu colar e deixava a saia escondida entre as sombras. Por que voltou? perguntou Samuel. Leda removeu o acar da taa uma e outra vez. Porque estaria mal que fosse. Disse-te que era livre

de partir. A boca de Leda se torceu ligeiramente formando uma careta de obstinao. Isso no significa que esteja bem que v. Pois deveria haver ido espetou Samuel enquanto abria e fechava um dos portinhas. Maldio, no sou No posso te prometer Jogou a cabea para

trs. J comprovaste como seria. Parte daqui, veja, no tem obrigao de ficar. O matrimnio um voto solene disse ela com certo tom desafiante. No sei como vou honrar te amar na sade e na enfermidade se no me achar razoavelmente perto de ti. As bodas foi

uma farsa! exclamou ele voltando-se com brutalidade para ela. Teria feito algum voto se soubesse? Leda ficou em p. No foi nenhuma farsa, e no consinto que diga isso. Voc incrvel. um santa. Diria que pretende ser sarcstico, e tambm me atreveria a

dizer que a pena por no te haver casado com quem de verdade queria tem feito que esquea suas maneiras. No lamento isso murmurou Samuel.

Ah, no? Ento, s me estiveste oferecendo uma hbil imitao de dita circunstncia? V? disse Leda, apartando-se dele. Conseguiste que eu tambm perca os estribos e caia no sarcasmo. Estar contente. Samuel contemplou sua imagem distorcida em um espelho convexo que havia entre duas janelas, e a de Leda

detrs dele. No o lamento repetiu Samuel enquanto observava a espiral de cores do espelho at que acreditou no poder ver nada. No o lamento porque te amo. O sangue comeou a fluir por todo seu corpo com mais fora. Sentiu-se de novo como flutuando no ar, a

vrios metros do precipcio sem fundo, e sem nada slido sob seus ps. J sei que isso no muda nada acrescentou enquanto tentava saltar para cair em terra firme. No te quero nesta ilha. No te quero em minha casa. Entende-o? Est claro? O espelho no refletiu nenhum

movimento. Era impossvel ver a expresso de Leda. A brisa que penetrava pelas janelas agitou as palmeiras do exterior. Finalmente Leda disse com suavidade: Meu prezado senhor, nunca me pareceste atordoado, mas a verdade que isso que h dito sim que o . Esquece-o respondeu ele. Esquece-o

repetiu enquanto entrava no quarto para comprovar por onde poderia irromper algum. Deteve-se entre os tnues raios de luz dos faris e, enquanto contemplava com m cara a cama com mosquiteiro e os janelas to vulnerveis como as outras, Leda apareceu atrs dele. No acredito que possa prometer

fazer nada disso disse. Esquece-o. Vai ou fique. Faz o que queira. Nunca quis ir, porque eu tambm te amo. Samuel lhe lanou um rpido olhar. Deus, olhe que so impecveis suas maneiras disse. Quando um cavalheiro declara seu afeto acrescentou imitando os tpicos

aforismos de Leda, a dama deve responder imediatamente com a mentira adequada, no, perdo, com as evasivas adequadas, para evitar que ele fique como um perfeito imbecil. Leda o olhou e agachou a cabea. Cr que o que hei dito no verdade? Acredito que

impossvel, sabendo o que sabe de mim. Leda no levantou a vista do tapete. Tudo o que sei de ti admirvel. Samuel soltou uma forte gargalhada. Sim, com certeza. Tudo insistiu Leda. Porque sabe, verdade? Ela lhe contou isso.

Leda levantou o olhar. Samuel esperava que dissesse algo e se preparou para o que fosse, mas ela se limitou a olh-lo com uma seriedade cheia de ternura e pacincia.

O tremor tinha voltado para ele, levando-o a bordo da emoo. manteve-se imvel enquanto tentava combat-lo e elimin-lo, incapaz de dizer nada. Eu te amo, meu prezado senhor. Isso impossvel. No, no o . Samuel tinha dificuldades para respirar, como se esquecesse

a cada instante que devia inalar ar. No faz falta que diga tudo isso. J te hei dito que no faz falta que o diga. Leda levantou o queixo. Bom, mas o digo. Samuel se apartou bruscamente dela. No verdade, mentes.

No pode ser verdade. No tenho inteno de discutir sobre isso contigo replicou Leda enquanto seguia olhando-o fixamente. Em nossa noite de bodas, lady Tess me contou vrias coisas que considerou que era importante que eu soubesse para o bom desenvolvimento de nossa unio. Disse que voc no gostaria que

eu soubesse, e j vejo que assim . Lamento-o muito se cr que meu defeito, mas o certo que nada do que me disse, nem nada do que aprendi convivendo contigo conseguiu que sinta outra coisa mais que a voz de Leda perdeu algo de sua firmeza uma profunda avaliao

e respeito por ti, meu prezado senhor. O tremor de sempre pareceu apoderar-se violentamente de Samuel. Para evit-lo, agarrou a Leda e a aproximou para ele. Nem sequer isto? perguntou, beijando-a apaixonadamente enquanto lhe sujeitava os braos com uma fora que sabia que lhe causaria dor.

As gardnias esmagadas do colar de Leda encheram o ambiente de uma intensa fragrncia ao tempo que Samuel a sustentava contra si. Este deslizou uma mo para baixo e acariciou seu corpo at chegar ao provocador vale que era a base de seu espinho dorsal. Percorreu-o com os dedos acima e abaixo,

e logo apertou a mo contra a saia rosa e branca enquanto empurrava lascivamente a Leda com seu membro viril j turgente. Aquilo era uma deliberada crueldade produto de um instante de paixo, como tambm o era colocar a lngua at o fundo de sua boca Samuel apartou a Leda

dele com a mesma presteza com que a tinha pego. Entre as rosceas sombras, viu-a despenteada e muito atrativa, com os olhos totalmente abertos. No, nem sequer isso disse Leda enquanto se arrumava os punhos do vestido, porque sou meio francesa, e porque sei que tem pena de me machucar

de propsito. Certamente ele tinha, tanto que lhe daria nuseas. Samuel sentiu a necessidade de embal-la entre seus braos e lhe acariciar o cabelo, mas no se atrevia a toc-la. Seguro que ela no quereria, por mais que ele no

alcanasse a entender o que tinha que ver o que fosse meio francesa. Era tpico de Leda dizer coisas assim, tolas e, de uma vez, to inocentes. Tinha que ser muito inocente, possuir uma inocncia obstinada, doce, decidida e confiante, para saber tudo o que ele ocultava em seu interior, tudo

o que tinha sido e o que era e, mesmo assim, dizer que era admirvel. E, alm disso, dizer que o amava. Ao Samuel dava medo s pens-lo. E se sentir medo?, tinha perguntado a Dojun em certa ocasio fazia j muito tempo. E Dojun tinha respondido: Medo?,

como se desconhecesse a palavra. O medo sempre resulta de lutar contra algo, assim v com isso, no contra isso. Nessa longnqua ocasio, tinha-o entendido. Em uma briga, terei que ser um com o adversrio, no ir contra ele. Mas agora no o entendia. Olhou a Leda e sentiu que

tudo em seu interior se acendia, fundia-se e saa pelas gretas de seu ser, at parecer que no ia ficar nada. Leda girou a cabea e o olhou. Eu gostaria, meu prezado senhor, que ficasse aqui comigo esta noite. Essa habitao de hotel era pouco segura,

pensou Samuel enquanto voltava a estudar as janelas. Vou sala para que te possa trocar disse. Um sorriso de satisfao brilhou no rosto de Leda. Abaixou a cabea. No demoro, bom, no faz falta, no demoro nada. Samuel passou ao salo, e dali

ao terrao. As lanternas de papel balanavam com suavidade, jogando crculos de luz ao longo de toda a ampla varanda. Viu um casal observando as fascinantes luzes dos jardins do hotel e se fixou neles. Pareciam inofensivos haole, residentes de alguma das outras ilhas que estavam ali de frias. Novos feixes de

luzes caram sobre o cho da varanda ao acend-la abajur eltrico do quarto de Leda. Samuel observou o branco discorrer de garons pela grama e tratou de perceber a essncia de seu movimento, seu equilbrio fundamental, como a gracilidade animal da postura natural de Dojun. Quo nico conseguiu ver foi

um servente chins repreendido por levar gua gelada em lugar de limo. s vezes pensava que manter o zanshin era como morrer lenta e tranqilamente. Era como morrer para deixar a um lado o desejo, a dvida, o eu, para converter-se em sombra e poder mover-se com liberdade pela escurido.

Essa noite era como afogar-se deliberadamente em um oceano gelado. Sentir a lenta queimadura do gelo pelos dedos e extremidades at chegar ao crebro e j no perceber nada absolutamente. O abajur do quarto se apagou, deixando sozinho os anis de luz oscilantes das luminrias. Samuel voltou para

salo e fechou a porta, mas sem se incomodar em puxar o ferrolho. Entrou no quarto com sigilo. Leda tinha deslocado o mosquiteiro ao redor de toda a cama. Samuel podia aproveit-lo para camuflar sua roupa de linho branco. Apoiou-se contra a parede para que, do ngulo da porta e as janelas,

no se distinguisse sua roupa da rede.

Meu prezado senhor? disse Leda com suavidade da cama. Durma. Estou aqui, no vou. A escura forma de Leda se levantou dentro daquela tenda de gaze. Mas no vem cama? Durma, Leda. Durma. Ficou sentada durante um longo tempo. Os

olhos de Samuel se foram acostumando gradualmente escurido, mas no conseguiu ver o rosto dela. Ao fim, Leda se deitou rodeada de travesseiros. Passaram duas horas, e as risadas e conversaes do jardim e dos terraos j se apagaram para serem substitudas pela branca luz da lua que caa em franjas

sobre o cho, antes que Samuel soubesse por sua respirao que Leda adormeceu. 34 O som do fluxo, que se percebia com toda claridade quando no soprava um vento forte que agitasse as rvores, despertou Leda. A incessante e doce brisa havaiana beijava sua pele. As janelas abertas,

no exterior, o vermelho brilhante dos galhos das poincianas oscilavam brandamente contra o verde intenso. Leda se sentiu feliz e um pouco desconcertada enquanto contemplava o mosquiteiro sobre sua cabea. O quarto estava vazio, mas se ouvia algum mover-se no salo, assim como um dbil tinido de porcelana. Sem recolher

o cabelo ou calar as sapatilhas, Leda apartou o mosquiteiro e foi at a porta de camisola. Bom dia disse com voz muito clida antes de dar-se conta de que no se tratava de Samuel. Aloha respondeu Manolo com seu melodioso timbre de voz. O jovem ficou em

p e pareceu um gigante em comparao com o garom chins com cabelo preso em um rabo de cavalo que estava dispondo a bandeja do caf da manh na mesa. Voc comer, e eu levar a casa. Haku-nui dizer que voc ir. Leda caiu na conta de que estava na

soleira da porta descala e sem vestir, por mais que o traje tpico das damas havaianas fossem parecidos com sua camisola, muito mais colorido. Fechou a porta de repente e entrou no quarto de banho, onde comeou a lavar o rosto como se fosse um dia qualquer. Como se pudesse deixar de

sorrir, pensou ao olhar-se no espelho, ou pudesse eliminar o rubor de sua face, produto tanto dos esfregar como da satisfao. Como se aquela no fora a manh seguinte da noite em que lhe havia dito que a amava. Amava-a. Havia-o dito bem claro. Leda estava segura de que no

se equivocava. Mas, justo a seguir, tinha acrescentado com a mesma claridade que queria que se fora, e sua voz tinha divulgado cheio de orgulho e amargura, como um animal ferido. Leda se contemplou no espelho. Parecia que a senhorita Lovatt fazia bem em lhe advertir. Decididamente o matrimnio era

algo muito arriscado. Uma instituio dolorosa, gozosa e surpreendente.

Para encontrar a sua presa, Samuel seguiu o rastro para trs, fazendo discretos sondagens. No era questo de demonstrar muita ansiedade ou ardor, a no ser to s de manifestar certo interesse por saber quem o buscava. Era o que teria feito de todos os modos. No mundo dourado e crepuscular

de Chinatown, fazer outra coisa teria resultado estranho e estpido. Tinha demorado apenas uns poucos dias em averiguar que o rastro conduzia a uma larga barcaa ancorada em uma ilha coberta de matagais do amplo porto do rio Pearl. Era uma sorte que no o tivesse conduzido s plantaes, onde

o poderia ter perdido facilmente entre as legies de novos trabalhadores, e indicava que aqueles homens no tinham contato japoneses que chegavam at ali contratados para ganhar o sustento e mandar dinheiro para alimentar e vestir a suas famlias. Seus vnculos eram com outro degrau social bem distinto, um que no tinha

a menor necessidade nem desejo de sair do Japo. O silncio era tangvel no Pearl. Tudo era silncio, o azul e prata sobre as mansas guas. O companheiro de Samuel, um pescador metade havaiano, metade portugus no que se podia confiar para que alugasse seu bote e mantivesse a boca

fechada, estava sentado com os ps descalos no alto e o chapu cado sobre os olhos, e emitia um dbil ronco cada certo intervalo de tempo. Alm disso, o nico som perceptvel era, de vez em quando, o repique de latas velhas que penduravam de mltiplos cordas sobre os arrozais,

e que agitava algum menino situado em um barraco para espantar aos pardais. Samuel tinha boa parte do rosto sob a sombra de seu chapu e pescava diligentemente, emprestando menos ateno barcaa que situao em si, enquanto tentava achar a melhor forma de se aproximar. Seus adversrios tampouco se incomodaram

muito em ocultar-se, embora o certo que tampouco tinham necessidade de faz-lo. Encontravam-se em uma posio tima da que podiam vigiar todos os flancos, e que era difcil de assaltar inclusive de noite. Havia quatro homens na barcaa, e Samuel sabia que outros trs permaneciam na cidade; pelo resto,

no podia concretizar a quantidade total com absoluta segurana. Os de terra firme transmitiam seus informes a um tal Ikeno a bordo da barcaa. No valia a pena especular se esse era seu verdadeiro nome ou no. Os japoneses tendiam a trocar os nomes com uma freqncia que surpreendia aos estrangeiros, outorgando

uma nova identidade para algo, seja para obter um novo posto de trabalho ou para obter o objetivo de toda uma vida. Sem dvida Ikeno teria eleito seu novo nome pensando no momento em que conseguisse unir a Gokuakuma. E ele, ou aquele para o que trabalhasse, j tinha madeira de sobra

para acender a chama no Japo. Teria se proposto revisar o tratado com o Ocidente para lhe conceder mais direitos, o qual tinha encolerizado o sentimento nacionalista do pas, enquanto o governo cambaleava ante o debate sem precedentes sobre a convenincia de redigir uma constituio.

Havia muito em jogo, e a principal vaza era uma espada demonaca. As rotas mais bvias de partida estavam vigiadas pelos homens de Ikeno. Para que Dojun pudesse abandonar a ilha com a lmina tal e como pretendia, teria que atravessar as montanhas e partir de alguma praia apartada

em uma canoa nativa at conseguir interceptar a uma navio maior. Era um assunto muito complicado que requeria de muita sorte. Mas isso era problema de Dojun, pensou Samuel, que nem sequer sabia onde tinha escondido seu professor a lmina, nem quando nem como ia lev-la. Ele se limitava a

lhe proporcionar cobertura e amparo, assim como o passadio que conduzia de sua casa s montanhas. Sua casa, em que Leda estava to feliz decorando e movendo mveis, enquanto Dojun fingia ser um simples criado. Tudo parecia tranqilo, como em suspenso. Aquilo poderia durar um dia ou um ano. Em

algum momento, e de algum modo, Dojun conseguiria tirar a lmina de seu esconderijo, lev-la a casa de Samuel e, de ali, escapar com ela. Este olhou por debaixo do chapu barcaa. O ressentimento ainda pulsava nele e quebrava o gelo do zanshin. No o preocupava a segurana da

espada; o nico que lhe preocupava era que seus inimigos tinham razes de sobra para acreditar que ele conhecia igual a Dojun o paradeiro da lmina. Seu roubo londrino lhes teria parecido uma audaz manobra para fazer-se com o punho e unir a espada. No teria que hav-lo feito. Tinha

sido uma ao com conseqncias imprevistas, como a estrela do mar de Dojun. Cortava uma em duas e surgiam duas novas ameaas. Seus adversrios estariam esperando debilidades. Dojun no tinha nenhuma, mas Samuel as tinha todas. A mera presena de Leda era uma forma de se entregar de bandeja. Faria tudo para

proteg-la, a faria cada vez mais importante e a colocaria no centro das observaes. A casa no era segura, e o hotel era muito pior. E, se Dojun conseguia fugir com a lmina, acabaria ento tudo? Ficariam os caadores convencidos de que lhes tinha escapado a lmina e partiriam, com a certeza

de que Samuel no sabia de nada e nem Leda nem ele supunham uma ameaa? Pensamentos norte-americanos estava acostumado a dizer Dojun, medos ocidentais. Sua vida no mais que uma iluso. Quando lhe enterrarem, ningum te acompanhar, e ningum te amar. A morte surge entre um momento e o

seguinte. Tem que viver cada dia como se fosses morrer essa noite. Mas ele no queria morrer essa noite. Tinha albergado muitas iluses falsas ao longo de sua vida, mas Leda no era uma delas. Era pela Leda que em sua mente bulia uma idia muito pior que qualquer outra.

Se os caadores conseguissem obter a lmina e o punho, sua parte e a de Leda em tudo aquilo acabaria. No deixava de lhe dar voltas possibilidade de trair Dojun, sabendo de que este tambm o teria pensado e, por isso, no lhe tinha confiado o segredo do esconderijo da Gokuakuma.

Dezessete anos juntos. Os japoneses diziam: Okage sama de, Sou o que sou pelo que tem feito por mim. Samuel pensou em Dojun e fechou os olhos, atormentado. Leda no teria podido fazer tantos progressos em to pouco tempo sem a ajuda do senhor Dojun e de Manolo. O

condutor havaiano a levava a todas as partes, conduzia cadeiras e vasos de barro, acompanhava-a na charrete s comidas s que era convidada quase diariamente. Ao cabo de uma semana, Leda at tinha conseguido que Manolo conduzisse a carruagem a uma velocidade razovel. E o senhor Dojun tinha sido uma

grande ajuda na hora de decorar Pleamar, a casa. Leda nunca teria imaginado que um mobilirio de linhas to singelas pudesse resultar to atrativo e, entretanto, quando inspecionou o escritrio e o quarto, deu-se conta de que no havia nada mais refinado e elegante que aquelas singelas esteiras de lauhala entrelaadas que

substituam aos tpicos e volumosos tapetes, ou a cadeira de balano com o respaldo de vime, ou a nervura cor mel do sbrio tansu, uma cmoda com portas acima e gavetas na parte de abaixo que emitiam uma suave nota musical cada vez que se abriam. Era uma inovao da que o

senhor Dojun parecia estar muito orgulhoso. Nova cmoda de esposa disse. No Japo nova esposa levar cmoda a casa marido. Gostar, senhora Samuel-san? Sim, bela. E a cama magnfica. Dojun se inclinou e percorreu a cabeceira com um de seus dedos calejados, bordeando o

medalho encravado que representava a uma esbelta ave com as asas estendidas. Boa fortuna. No Japo dizer: Tsuru wa sennen. Grou viver mil anos. isso o que significa? um smbolo de boa sorte? Boa sorte. Larga vida. Tsuru wa sennen; kame wa mannen. Grou

viver mil anos, tartaruga viver dez mil. Bodas, nascimento, celebrao, amigos fazer mil grullas de papel, pendurar, felizes mil anos, no? Leda o olhou com um ligeiro sorriso. um costume muito bonito disse enquanto tocava um dos suaves e estreitos pilares da cama e suspirava. Oxal o

tivesse conhecido o Natal passado. A nica idia que encontrei em um livro para o senhor Samuel-san foi lhe dar de presente pescado seco. Pescado seco, hai. Grou, tartaruga, bolo de arroz. Bambu tambm boa fortuna. Dobrar bambu sem romper e ter fiel devoo. Eu pr bambu em tansu, por

isso gavetas cantar. Acredita que ele sabe essas coisas sobre as grullas, o bambu e as tartarugas? Samuel-san? Sim, ele saber. Acredita que gostar se pendurar algumas grullas de papel? Sim gostar. Possivelmente assim vir a casa mais, no?

No era a primeira vez que a perspiccia do senhor Dojun deixava a Leda um tanto perplexa. Bom, j sabe que est muito ocupado. Seus negcios requerem muita ateno por sua parte. Claro disse o senhor Dojun, inclinando-se como se Leda acabasse de lhe proporcionar a resposta

a uma questo que o intrigava. De todos os modos seria muito agradvel, se ele reps ela enquanto apoiava a face contra o frio pilar de madeira. Eu gostaria que aqui se sentisse feliz e em seu lar. Eu conhecer senhora fazer grullas de papel. Comprar?

Sim, sim, eu gostaria de comprar. Quantas, mil? Mil, hai. Pendurar todas de fios. Bonito. Possivelmente algumas tartarugas tambm. Eu escrever e dizer ao Obosan fazer. Tirou uma caderneta e um lpis de algum bolso oculto e escreveu uns caracteres orientais em uma lmina que arrancou, dobrou cuidadosamente

e entregou a Leda. Obrigado, e possivelmente tambm poderamos pr bambu em vasos de barro. Dojun assentiu. Manolo levar senhora Samuel-san a cidade, ao Obosan. Ela ler e voc comprar grullas de papel e tudo. Para bambu, ir a estufa. Obrigado, senhor Dojun.

Com um rpido movimento, este guardou a caderneta e fez soar o timbre para chamar a Manolo. Enquanto Leda metia o papel no bolso, Dojun lhe disse: Dizer segredo, senhora Samuel-san. Eu feliz. Voc boa esposa para ele. Cama meu presente para os dois acrescentou fazendo uma reverncia.

Obrigado disse Leda com suavidade, sentindo um tanto retrada ante o olhar escrutinador do outro. Intento ser uma boa esposa, mas parece que ainda no o consegui de tudo. Ter cama. Ter tansu. S necessitar hanayome-taku. O que isso? Dojun fez um movimento circular

com as mos. Mesa pequena. Menino fazer e dar a me. Samuel-san fazer hanayome-taku, muito tempo atrs. Quando menino. Dar a lady Ashland. Quando ter nova mulher No, que palavra dizer? Mulher? Esposa. Sim, esposa ir casa de me, e levar hanayome-taku a casa marido.

Bom matrimnio depois de levar a casa dos dois. Leda inclinou a cabea, interessada. E o senhor Samuel-san fez uma dessas como se chama? Hanayome-taku. Mesa de esposa. Eu ajudar a fazer, possivelmente quinze anos atrs. Senhora Samuel-san ir a casa de lady Ashland e ver

mesa. Fez uma pausa e levantou as sobrancelhas. Melhor, voc ir e

trazer mesa de esposa a esta casa, no? Tudo bem ento. Bom matrimnio. Samuel-san vir a casa. Leda sorriu. Seguro que uma idia muito boa, mas Bem! Eu desenhar. Dojun tirou a caderneta de novo e fez um esboo que,

a primeira vista, parecia uma verso maior dos caracteres japoneses que tinha escrito na nota. Quando Leda o examinou mais atentamente, viu que representava algo similar a uma base para vasos de barro, com trs pernas abertas, um tabuleiro quadrado e uma nica prateleira redonda mais abaixo. Voc ir casa

Ashland e trazer mesa. No acredito que Estes quinze anos no quarto de lady Ashland. Voc olhar no quarto, pegar hanayome-taku e trazer aqui. Senhor Dojun, temo-me que no posso ir e pegar o que quiser de sua casa. No, no, pertencer a voc

disse ele assinalando-a com a mo para recalc-lo. Voc esposa de Samuel-san. Lady Ashland saber, e no importar no ter mesa. Mesmo assim A Samuel-san gostar de ver hanayome-taku. Ele ver e saber que voc honrar e respeitar. Leda mordeu o lbio duvidosa. Dojun se inclinou.

Ele ver e saber seguro. No necessitar palavras. Parecia uma faanha muito grande para uma mesa to pequena, mas Leda olhou com tristeza ao seu redor, habitao recm decorada que Samuel nem se incomodou em inspecionar nos poucos jantares taciturnos que tinham passado juntos, e sentiu o

sbito desejo de tent-lo. Talvez se pudesse traz-la voc da casa dos Ashland disse. Eu me sentiria como uma ladra. O senhor Dojun negou com a mo. No poder. Nova esposa trazer. Se ela no usar suas mos, no fortuna, no bom matrimnio. Mvel pequeno, no

pesar. Leda emitiu um leve suspiro. Bom, pensarei-o. E o pensou. Essa noite, enquanto estava deitada na nova cama escutando o murmrio das grullas de papel que penduravam os canos de bambu do teto, pensou-o. Era a primeira noite que passava na Pleamar, e estava sozinha.

Tampouco exatamente sozinha. De vez em quando ouvia pelas janelas abertas falar em voz baixa aos diversos jardineiros, que sempre ficavam a passar a noite, e o senhor Dojun dormia na habitao do mordomo no piso de abaixo. Mas Samuel no estava. Ao menos no hotel

ele aparecia de noite, embora sempre ficasse sentado enquanto ela dormia e partia antes que despertasse. Mas essa

noite no tinha ido casa, em que pese a lhe haver dada permisso atravs de Manolo para que se mudasse a ela. manh seguinte decidiu ir residncia dos Ashland e pegar a mesa de esposa, com a esperana de que no a detivessem por roubo. Manolo

no parecia acreditar que isso fosse ocorrer. Claro que tampouco parecia pensar muito em nada quando chegou montado na charrete e com aspecto muito deprimido, porque sua mulher o tinha abandonado para fugir com um homem de Wahiawa. Leda tentou dissimular a impresso que lhe causou a histria, que o

outro lhe contou sem reparos e com todo tipo de explicaes. Dirigiam-se a casa do general Miller, onde Leda estava convidada a um caf da manh no jardim. Durante o trajeto, Manolo a obsequiou com todos os tristes detalhes de sua ruptura e, muito pesaroso, pediu-lhe conselho. Leda no se sentia capaz

de lhe dar nenhum mas, de todas formas, o pouco que disse no pareceu fazer racho no havaiano. Este nem sequer conduziu a charrete com seu habitual frenesi, por isso chegaram meia hora tarde ao caf da manh. Quando Leda abandonou a reunio, Manolo tinha deixado a verborria para passar

a uma estranha e silenciosa tristeza. Usava um lei 5de hibiscos amarelos e diminutos bagos vermelhos, enlaados entre folhas de um intenso aroma. A prpria Leda usava uma coroa de cravos brancos que lhe tinha dado a senhora Miller mas, face fragrncia das flores, percebeu um doce e peculiar aroma procedente

de Manolo. Este voltou para sua forma mais rpida e descuidada de conduzir. Leda teve que se agarrar com fora a charrete vrias vezes e insistir em que fosse mais devagar. Do mesmo modo, Manolo se perdeu e deu trs vezes a volta ao mesmo quarteiro sem encontrar a casa

dos Ashland at que, finalmente, cruzou uma grade coberta de vegetao pela que se acessava a uma bonita casa Branca de dois pisos, rodeada de terraos como a Pleamar, assim como de um bonito jardim de uma cor esmeralda, pintalgado pelas sombras verde escuro procedentes de enormes rvores encurvadas e altas palmeiras.

As rvores penduravam uma profuso de orqudeas prpuras e brancas e de rosas em flor. Parecia um lugar mgico e espectral, bonito mas profundamente silencioso e, entretanto, to cuidado que dava a impresso de que seus habitantes poderiam aparecer no jardim a qualquer momento. Manolo no saltou da charrete para

ajud-la a baixar, mas sim permaneceu desmoronado em seu assento. Leda observou a expresso fnebre de seu rosto e, recolhendo as saias, desceu do veculo por si s. Tanto o senhor Dojun como Manolo tinham afirmado que a porta principal no estaria fechada com chave. Ao parecer, ningum se incomodava

em fechar nada ali. Mesmo assim, a Leda no teria importado que Manolo a acompanhasse quando penetrou no lgubre interior da casa. Tradicional colar Havaiano.

Os mveis estavam cobertos com lonas brancas, e o cho carecia de esteiras e tapetes. Leda atravessou nas pontas dos ps o amplo saguo e subiu a escada at que encontrou a porta do quarto de lorde e lady Ashland junto livraria de portas de cristal que lady Kai tinha

ganho a sua me e havia descrito a Leda. Levantou com cuidado a coberta de um objeto que havia ao lado da cama deixando ao descoberto uma mesa que soube imediatamente que era a hanayome-taku de Samuel. A austera forma curva das pernas no se parecia em nada s inglesas,

mas sim, como dizia Dojun, era shibui, de uma elegncia e simplicidade tipicamente japonesa. A madeira apresentava umas intensas nervuras que ia do negro a um dourado avermelhado, quase como se um artista tivesse esboado arcos de tinta de cor sobre ela. Sobre a superfcie polida havia uma srie de

pequenas lembranas: uma vulgar pedra marrom metida em uma terrina negra, uma cabaa de madeira e uma pequena caixa com um aroma que Leda reconheceu como sndalo. Enquanto os olhava, voltou a pensar que no deveria levar a mesa, j que seria um grave atrevimento de sua parte. No obstante, depositou cuidadosamente

os objetos sobre a penteadeira, esperando que o senhor Dojun tivesse estado no certo ao afirmar que a lady Tess no importaria. Dobrou a toalha de mesa de musselina e o deixou sobre a cama. A mesa era muito mais pesada do que acreditava, e sua incmoda forma e altura,

que chegava cintura de Leda, fez que se balanasse de forma estranha para um lado quando a levantou. Levou-a ao piso de abaixo com extremo cuidado. Pass-la pela porta principal requereu mais trabalho, enquanto Manolo seguia sentado na charrete e, ao que parecia, adormecido. No respondeu s chamadas em voz baixa

de Leda, que tampouco queria gritar para que toda a vizinhana se inteirasse de sua presena ali. Assim, teve que levar ela sozinha a mesa com grandes dificuldades at a carruagem, mas no tentou coloc-la por sua conta nela, por medo de que se arranhasse. Manolo! sussurrou. Faz o favor

de despertar e de te esquecer de seus problemas por um momento. Este girou a cabea e a olhou com aspecto sonolento; logo se levantou, enganchou as rdeas a um poste da charrete, embora no parecia que o pobre cavalo tivesse muita vontade de se mover, e se aproximou sem

pressa a Leda. Levanta-a e me d isso por favor, quando eu j estiver subindo Mas, antes que tivesse terminado de lhe dar as instrues, Manolo j lhe tinha arrebatado a mesa das mos, depois do qual comeou a balanar-se de uma forma muito estranha. No mesmo momento

em que Leda caa na conta de que o estranho aroma procedente dele no era de flores, mas sim de algum forte licor, o cavalo decidiu examinar mais de perto a grama do jardim. Uma perna da mesa se enganchou no bordo da charrete e Manolo tropeou para diante. Leda lanou um

grito quando a

mesa caiu da carruagem e golpeou o atalho de tijolos com um rudo espantoso. Olhe o que tem feito! exclamou Leda, apartando a Manolo. Este caiu de costas sobre a erva soltando um grunhido, mas Leda no tinha tempo nesses momentos para ocupar-se dele, j

que toda sua ateno estava centrada em contemplar consternada a perna da mesa, que pendurava solta do tabuleiro. No! sussurrou compungida. No, Meu Deus, no. Agachou-se e, com supremo cuidado, deu a volta mesa. Uma espcie de junta ou rebite liso de metal, com alguma caligrafia oriental

gravada, sobressaa-me de um extremo da perna. Ao inclinar esta um pouco mais, ficou com ela na mo e, fazendo um estranho som, o rebite comeou a soltar-se tambm. Leda tentou rapidamente endireitar a perna, mas o peso do metal foi muito grande para ela. Separou-se de um salto para que no

casse sobre seus ps aquela lmina de ao curvo e de ponta muito afiada que apanhou a luz que se filtrava entre as rvores e lanou uma mirade de luzes multicoloridas ao se chocar contra o cho. Leda pensou que era uma junta muito estranha para uma mesa, mas imediatamente

se deu conta de que no era uma pea prpria de um mvel, mas sim o que tinha ante si era uma formosa e afiada lmina de espada, com o desenho de algum tipo de besta horripilante gravado nela. Deus bendito! exclamou, e ao ponto se levou a mo

boca, escandalizada pela linguagem que tinha empregado. Girou a cabea e olhou a Manolo, que seguia convexo imvel sobre a erva. Leda soltou outra exclamao e, agachando-se junto a ele, agarrou-o por uma mo, mas o nico que fez o havaiano foi abrir os olhos, voltar a fech-los e comear

a roncar, enquanto de seu flego emanava um aroma parecido ao brandy de cerejas. Leda depositou a mo sobre o peito. T pilikia! disse profundamente desgostada. O que vou fazer agora? Aproximou-se da mesa e tentou levantar a lmina agarrando-a pelo extremo para voltar a coloc-la na perna, mas

tanto uma como outra lhe caram das mos, que apartou rapidamente para no cortar-se enquanto os olhos lhe enchiam de lgrimas. Com a perna quebrada na terra, empurrou brandamente a espada para ela, dirigindo a ponta para a ranhura oca. Quando ao fim conseguiu colocar a lmina, levantou a mesa e tentou

encaixar a perna, sem muitas esperanas de que fora a conseguilo. No valia a pena devanar-se os miolos tentando encontrar uma explicao ao feito de que houvesse uma lmina de espada dentro da mesa de Samuel. Seria algum tipo de tradio japonesa. Provavelmente todas as mesas de esposa as

tivessem, e a desposada padeceria a pior das sortes se a rompia e deixava a espada ao descoberto. Certamente aquilo significava que se morava um desastre de propores inimaginveis. Mas, de momento, Leda j tinha bastante com aquele desastre. O que ia dizer ao Samuel, ou ao senhor Dojun, ou

a lady Tess? No se deu conta

de que estava falando sozinha, enquanto seguia tentando encaixar a perna, at que algum lhe respondeu. Ficou em p de um salto e viu ante si o sorriso sem dentes de um kau-kau descalo e com um chapu de palha na cabea que parecia ter surgido de um nada. Levava um

pau sobre o ombro de que penduravam dois enormes cestos de fruta. Necessitar ajuda, senhorita? perguntou com afabilidade. Romper mesa? Ele a quebrou respondeu Leda zangada, mas minha culpa. No deveria hav-la pego. O que posso fazer? No queria que sofresse nem o menor arranho, e aqui

est, danificada e sem que parea que possa ter acerto. Querer arrumar? Eu ter neto que arrumar. Ele arrumar e ningum saber mesa rota. Leda, cheia de esperana por uns instantes, levantou a cabea para olhar a aquele homem e, continuando, voltou a olhar a mesa.

No acredito que tenha concerto. Sim arrumo, sim! Meu neto, Ikeno, o melhor fabricante de mveis de ilha. Mesa especial, sim? No todos poder arrumar. Meu neto poder. De verdade? Mesa de espada especial. Japonesa, sim? S meu neto poder arrumar. Ele viver longe, Ewa, Aiea,

perto de plantaes. Muito longe? perguntou Leda presa das dvidas e o desespero. Talvez uma hora de charrete. E no h outro lugar mais perto, na cidade? Suponho que os melhores carpinteiros estaro aqui. No, muitos haole, chineses. No saber nada de mesa de

espada japonesa. Meu neto chegar ano passado do Japo. Acredita que a poder arrumar no momento, para que me possa levar isso a casa? Sim, sim. Eu levar e ele arrumar. Pster grande pr No momento. Voc esperar e ele arrumar. Leda voltou junto a Manolo

e, agachando-se, sacudiu-o de um ombro. Levanta! Acordada, temos que ir. O havaiano abriu os olhos e murmurou algo. Depois de muita insistncia, Leda conseguiu que se levantasse e, sentado sobre a erva, olhou ainda sonolento ao vendedor de frutas. Temos que ir imediatamente, Manolo. Lamento

que no te encontre muito bem, mas este homem pode fazer que arrumem a mesa, e quero me assegurar de que assim seja. Vamos. Vamos! Mas Manolo moveu a cabea em sentido negativo e a apartou para logo voltar a tombar sobre a grama. Uma pequena garrafa marrom caiu do

bolso de sua camisa. Leda se levantou e deu uma pisada no cho de uma vez que se voltava para o outro homem, desesperada. Voc sabe conduzir uma charrete? Pode me levar e me trazer depois? Pagarei-lhe agradecida.

No pagar, no pagar! Eu conduzir disse o japons enquanto carregava as cestas de fruta na parte traseira da charrete, depois do qual se dirigiu para onde o cavalo pastava tranquilamente fora do atalho. Voc vir comigo. No chorar, senhorita. Ns arrumar mesa. No chorar, no chorar. Depois de

cinco dias de laborioso trabalho nos que no mostrou muita impacincia, a no ser to somente a necessria, nos cautelosos contatos que manteve com os homens de Ikeno, Samuel se encontrou a bordo da barcaa de Pearl Harbor. Estava ali na qualidade de traidor aos seus, como gyaku fukuro de Dojun, um

saco do avesso. Fukurogaeshi no jutsu: parecia uma mudana de bando total, mtodo cuja efetividade era diretamente proporcional ao risco que implicava. Teria sido impossvel sem os convenientes antecedentes incriminatorios de seu roubo londrino. Entretanto, Samuel no podia perceber as dvidas de Ikeno enquanto este estava sentado no cho do

camarote do navio com as pernas cruzadas, segurando arroz de uma terrina com seu fino e ornamentado hashi. Seus movimentos eram to delicados e graciosos como os de uma garota mas, no obstante, ocultavam uma grande fora, to grande como deviam ser suas suspeitas. Mas Samuel tambm sabia usar os

palitos com refinamento. Estava ajoelhado descalo, vestido com suas roupas ocidentais, e comia pouco e rpido, o justo para no ofender a hospitalidade de seu anfitrio e, ao mesmo tempo, lhe demonstrar sua frrea disciplina. Comer, igual a dormir, eram prazeres que um s se podia permitir em momentos de descanso. Esse

no era um deles, e Samuel queria que Ikeno o entendesse. De fato, o que queria era que Ikeno no estivesse muito seguro do que tinha que entender. Este falava em um ingls estranho e instrudo, com marcado sotaque japons. Samuel, por sua parte, dirigia-se ao outro como se este

fosse seu superior, por isso se negava a falar em ingls, respondendo em japons a todas suas perguntas. Sabia que aquilo o desconcertava: era como um elefante ao que se acostumasse a danar a valsa, algum de quem s se esperava que se comportasse como um ocidental desajeitado mas, mesmo assim, algum

com uma preparao que tinha que ser to evidente para os outros como a deles o era para ele. Sabia que estava condenado a cometer enganos. Com freqncia Dojun lhe repreendia por transpassar a escura linha que marcava o comportamento adequado, por ficar em evidencia por culpa de sua ignorncia

ocidental. Mas possivelmente esses mesmos enganos jogassem mais a seu favor que todo aquilo que sabia fazer bem. Um co falante perfeitamente adestrado poderia despertar suspeitas; um imperfeito mas com vontade de agradar tinha mais possibilidade de ganhar a simpatia de seus espectadores. Assim desejas me render homenagem, n? disse

Ikeno.

O homem tinha o rosto e o olhar suaves de uma mulher, mas seu nariz pontudo e suas sobrancelhas arqueadas lhe outorgavam um porte aristocrtico e feroz prprio das pinturas japonesas de antigos guerreiros. Parecia jovem, no muito mais velho que Samuel de acordo com os parmetros haole, o qual significava

que teria quarenta anos ou algo mais. No acabo de te entender acrescentou. Finalmente consentiu em falar em japons, mas o fez em um tom muito rude. Samuel se inclinou ante ele. Com o devido temor e respeito, este insignificante ser roga a Ikenosama que

se digne lhe conceder sua ateno durante uns breves instantes. No tenho muito que oferecer que te possa interessar, pois meu negcio pobre e meus poucos navios fazem gua por toda parte, mas possivelmente tenha a amabilidade de fazer bom uso de minha educao s mos do Tanabe Dojun Harutake.

E possivelmente devesse te cortar a cabea, se o Tanabe te enviar. Samuel voltou a se inclinar, e logo levantou a cabea e olhou Ikeno aos olhos. Rogo-te que perdoe minha insolncia, mas ele no me envia. J no devo giri ao Tanabe Dojun. Ah,

no? Pois isso no o que ouvi que ti. O que ouvi que o visita em sua casa e tomas sake com ele. Ouvi que como um pai para ti. Inclusive agora est vivendo em sua casa, e finge ser o criado de sua esposa. Com o

devido respeito, no meu pai. No levo nem seu nome nem seu sangue, como o honorvel Ikeno-sama pode comprovar com seus prprios olhos disse Samuel enquanto com um rpido movimento destacava o cabelo como burlando-se de si mesmo. Ikeno esboou um ligeiro sorriso. Mas, de todos os

modos, adestrou-te, e muito possvel que te tenha instrudo no mtodo fukurogaeshi, e que te tenha enviado aqui para rir de ns. No te tem feito nenhum favor se for assim. Quando lhe enviar sua cabea, estarei voltando a bolsa do reverso. Possivelmente ento se d conta de que no somos

baka. Samuel baixou o olhar. Falou-me que esse fukurogaeshi no jutsu, mas no me pediu que o ponha em prtica aqui. No me pediu nada ultimamente, salvo o refgio de minha deplorvel casa. Possivelmente no me creia capaz de obt-lo acrescentou com uma nota de amargura na

voz. Ikeno no disse nada. Samuel notou que um dos homens se aproximava mais a ele por detrs. Rogo-te que ordene a seu honorvel criado que levante sua espada disse Samuel lentamente, se meu atrevimento ao te oferecer minha ajuda te desagrada. Est disposto a

morrer? Se o respeitvel Ikeno-sama no me cr digno de lhe servir, estou-o.

Digno! grunhiu o outro. Acredito que o Tanabe te enviou para que ria de mim. Ikeno fez um sinal com a cabea ao homem da espada. Samuel ouviu seu capanga exalar pelo esforo e reconheceu a inteno do golpe pelo assobio que fez a lmina. Pela extremidade do olho

viu o brilho de luz horizontal da espada. No se moveu. Cada msculo e clula de seu corpo conhecia a diferena entre um golpe mortal e outro que ficava curto. Manteve-se ajoelhado e relaxado enquanto a lmina o golpeava e fatiava a gola da camisa. O repentino picor de um

leve corte e o aroma de sangue revelou o perto que tinha estado da morte. O rosto de Ikeno no mostrou nenhuma expresso, salvo talvez certa indiferena. O longo silencio que seguiu poderia interpretar-se como falta de interesse, mas Samuel pensou que era devido surpresa. Inclinou-se at roar o

cho, tocando a testa com as mos. Meu mais fervente agradecimento por preservar minha indigna vida. Quer trair a seu professor espetou de repente Ikeno. Nem sequer um co trai ao seu professor. A mandbula de Samuel se contraiu. Fui-lhe fiel disse da mesma

incmoda postura, depois do qual fez gesto de ir seguir falando, mas se deteve. Ao cabo de um momento, acrescentou em voz baixa e apaixonada: Tanabe Dojun me ps a prova de todas as formas possveis, e nunca lhe falhei. Mas est aqui. Burlou-se de mim. Despreza minhas

capacidades. O eco das palavras de Samuel se apagou no silencioso camarote. Depois de seu frieza ressonava uma profunda fria. Ele mesmo o podia sentir, e queria que Ikeno o notasse. Estava o giri, a dvida de sangue e dedicao que um homem devia a seu professor, mas ele tambm

devia ao seu prprio nome. Em centenas de antigas lendas japonesas, heris guerreiros que se teriam aberto em canal mnima ordem de seu senhor, passavam o resto de sua vida tentando vingar-se desse mesmo senhor por ter recebido dele um insulto muito menor que o desdm e a brincadeira. Esse era

o comportamento correto de um guerreiro, e estava seguro de que Ikeno assim o entenderia. Meu corpo ainda se inclina ante Tanabe Dojun Harutake disse Samuel, mas meu corao no tem amo. Apresento-me ante o honorvel Ikeno-sama para lhe oferecer minha pobre ajuda em sua insigne busca. Roubei o punho

da Gokuakuma em Londres, mas ainda no pude conseguir a lmina. deteve-se e lanou uma breve gargalhada. No fazia falta que o respeitvel Ikeno-sama irrompesse em meu escritrio. Eu lhe teria entregue encantado o punho se soubesse que era ele quem a queria. o giri que devo a meu nome.

E no que se apia esse giri?

Samuel no respondeu imediatamente. Olhou um a um aos outros trs homens presentes no camarote. Ikeno no fez gesto algum de mand-los embora. Em ingls, Samuel disse lentamente ao fim: Dojun-san me treinou para a Gokuakuma. Eu o amava e honrava. Nunca falhei nenhuma prova. Nenhuma! Mas ele me

deixou de lado to somente porque sua boca se torceu em uma careta de desprezo porque sou quem sou. No sou nihonjin. Sou branco. No pode me confiar uma tarefa to importante. Segurou em meu lugar a um menino de quatorze anos, quatorze!, Agora que de novo pode sair do Japo. Girou

a cabea devagar e cuspiu ao cho. No penso carregar a vergonha que isso me produz. Um dos homens grunhiu, mas Ikeno o apaziguou com um ligeiro movimento de mo e acrescentou em japons: Reconhece que manchou sua honra? Acreditava que o nico que importava a um brbaro

era o dinheiro. Samuel ficou em p. O homem da espada que tinha atrs dele avanou uns passos. Com um golpe para trs, Samuel o apanhou contra sua prpria lmina. Permaneceram assim entrelaados sem que Samuel fizesse nenhum movimento mais, limitando-se to s a sujeitar ao homem de maneira que,

se movia para qualquer lado, resultaria ferido pela espada. Meu muito temido e respeitado Ikeno-sama disse Samuel de uma vez que deixava livre ao outro de um empurro e se inclinava de novo, perdoa aos meus pobres ouvidos e cegos olhos, mas no cheguei a captar as sbias e honorveis

palavras que acaba de dizer. Voltou a levantar-se enquanto Ikeno o contemplava pensativo. Samuel devolveu o olhar desde sua postura diferente mas, ao mesmo tempo, desafiante. E que ajuda em concreto oferece o brbaro Jurada-san? perguntou Ikeno lentamente. Samuel se deu conta de que o outro

tinha elevado seu sobrenome a um grau de honra. O respeitvel Ikeno-sama tem a posse do punho da Gokuakuma, mas necessita da lmina. Ikeno inclinou a cabea para reconhecer o que era bvio. Dojun conhece o roubo do punho. Acredita que o fizeram quem procura a

Gokuakuma. No suspeita que fui eu quem a roubou. Sabe que esto aqui, e supe que tm o punho com vs, por isso se prope levar a lmina da ilha e a esconder em alguma parte. Samuel fez uma pausa e encolheu os ombros. Eu no sei onde est escondida nem onde

pretende ir, mas saberei assim que fique em marcha. E cr que o Tanabe te confiar essa informao? No me confia nada de importncia, mas acredita em minha devoo. Conheo-o muito bem, e tambm a ilha. Posso fazer o que digo. E o que quer em

troca de sua honorvel contribuio? S quero ver a Gokuakuma reunida, Ikeno-sama. V-la com meus prprios olhos e saber que est fora do alcance de Tanabe Dojun, que

dedicou sua vida a evitar que se juntassem suas partes, do mesmo modo que eu dediquei a minha a me preparar para ocupar seu posto at que decidiu me substituir por outro. Se tiver tanta vontade de vingana, talvez queira que o Tanabe veja a espada completa tambm.

No, no necessrio, e seria muito perigoso. Vendo-a eu, sabendo que as injrias a minha honra ficaram lavadas, basta-me. Ikeno assentiu. Felicito-te. Quando o mundo se inclina de um lado, ter que voltar a equilibr-lo. Seu plano parece a vingana correta pela ofensa recebida.

Samuel voltou a adotar seu porte mais respeitoso. O generoso e nada merecido elogio do honorvel Ikeno-sama me causa uma profunda gratido. Seu inimigo o observou com olhar austero e inteligente. Profunda gratido, diz? Seu professor tem feito um homem de ti, assim tambm deve a

ele. Devo, mas ele me arrebatou a forma de pagar-lhe. O giri ainda mais difcil de suportar quando se trata de dois lados do mesmo corao. O que vais fazer para lhe pagar o que lhe deve, Juradasan? Samuel lhe devolveu o mesmo olhar impassvel.

Trair a Dojun-san uma vergonha insuportvel. Quando tudo tiver acabado, quando te entregar a Gokuakuma, j no ficar nada por fazer salvo o que exige minha honra. Ikeno se inclinou, em sinal de reconhecimento de que se encontrava ante seu igual. Assim deve ser. Traga-me a lmina,

e poder usar a Gokuakuma com honra contra ti mesmo. 35 As dvidas de Leda tinham ido aumento at chegar ao cais que se estendia como uma cinta irregular no meio do tranqilo porto. Est certo de que aqui? Parece muito afastado. No se v

nenhuma casa. Era a ensima vez que repetia que tinha que haver algum engano. O ar parecia mais denso e quente ali; a profusa e acolhedora vegetao da cidade deu lugar a plantaes alagadas e ervas secas, to somente interrompidas por palmeiras de aspecto to atraente como o de uma

vassoura velha. O kau-kau desceu da charrete e agarrou a mesa de atrs do assento. Ser aqui, senhorita. Agora subir o bote. Ao bote? disse Leda enquanto contemplava cheia de apreenso a pequena embarcao que tinha amarrada um pouco alm dos lamaais ao tempo que apartava

um mosquito do rosto. Acredito que no quero subir a.

nica forma de chegar, senhorita. Vamos, Ikeno arrumar mesa. Voc querer, no? No respondeu Leda adotando a deciso que levava meia hora refletindo e agarrando as rdeas do cavalo. No, no quero dar nem um passo mais. No querer ir? O homem moveu a cabea desconsolado e,

continuando, sorriu. Ento eu levar mesa. Arrumar e levar a sua casa esta noite. Bem? Antes que Leda pudesse dissentir, o outro levou a mesa quebrada pelo cais at deposit-la com cuidado no bote. Leda franziu o cenho. Acabava de chegar concluso de que a estavam seqestrando, e esse

parecia o momento mais propcio para fugir dali. Entretanto, tendo em conta a amabilidade daquele homem, ao estilo de todos os ilhus, e o fato de que parecia mais interessado na mesa que nela mesma, a conjetura de um possvel seqestro parecia muito exagerada. A mesa tinha um grande valor para ela,

mas no acreditava que pudesse ser objeto de cobia para ningum. Quando o cavalo comeou a mover-se para o arbusto mais prximo, Leda tambm caiu na conta de que no era uma perita condutora. De fato, era a primeira vez que tocava umas rdeas. Deu um puxo nelas para que

o cavalo cessasse em sua investigao, e se deparou de repente que a charrete se movia rapidamente para trs, a caminho da gua. Alto! gritou. Alto, detenha, por favor! O kau-kau voltou correndo pelo cais. Agarrou ao cavalo pela brida justo no momento em que as

rodas traseiras se afundavam entre as pequenas ondas que rompiam contra o lodo, e o obrigou a voltar para a borda. Leda aprendeu que, para evitar que um cavalo se movesse para trs, no era muito recomendvel pendurar das rdeas. Voc voltar para cidade sozinha? perguntou o homem com cepticismo.

Possivelmente melhor esperar aqui. Leda recolheu as saias com deciso. Ate-o se quiser. Vou com voc. Bem! exclamou o outro. Desenganchou ao cavalo dos arns deixando-o em liberdade. O animal meneou a cauda e avanou pelo caminho pelo que tinham chegado at ali.

No escapar? perguntou Leda alarmada. No, no, no escapar. Ficar aqui, por capim. Cavalos sempre gostar de capim. Vir a bote, senhorita. Leda no viu nenhum capim. Ao momento seguinte, tampouco viu nenhum cavalo. No havia nada que ver salvo arbustos, altas canos e o rastro das

duas rodas que terminava no cais. Tudo parecia muito tranqilo, com a exceo de um estranho tinido monocrdio que parecia como se cem meninos golpeassem longnquas caarolas. Chegou com o vento e partiu, sumindo tudo de novo no silncio. Vir a bote, senhorita. Ikeno arrumar mesa.

Leda apertou os lbios sem saber o que fazer, mas o pequeno kau-kau no a estava obrigando nem empregando a violncia, como se supunha que faria um seqestrador. To s estava inclinado sobre o cais enquanto sustentava o bote, e inclusive sorriu alegremente a Leda ao tempo que lhe dizia que

tomasse cuidado ao subir. Quando tinham avanado uns metros, as suspeitas de Leda voltaram a cobrar fora. Tinha suposto que o kau-kau remaria para o brao de terra mais prximo, que podia ver-se esquerda. Mas, em seu lugar, pareceu dirigir-se pequena ilha de aspecto inspito que havia no

meio do lago. Aonde vamos? perguntou ela. Insisto em que me diga aonde me leva. O homem seguiu remando sem responder. Leda se levantou um pouco para ver por cima dele. Depois de transbordar um montculo arenoso, apareceram os mastros de uma pequena embarcao pesqueira, e Leda comprovou

horrorizada que se dirigiam para ela. Se no der a volta imediatamente, lano-me gua! afirmou. Tubares disse o kau-kau como toda resposta. Leda tomou flego e fechou os olhos. Aferrou-se s laterais do bote, mas em seguida se soltou e ps as mos em seu

colo. No vai receber dinheiro. Meu marido no vai dar nem um xelim. Este lugar ter deusa chantagista explicou o homem como se no passasse nada. Nome dela Kaahupahau. Kanakas dizer ela viver neste porto. Que estranho que tudo isto murmurou Leda. Seja

corajosa se disse, no entre o pnico. Tinha a mesa apoiada contra os joelhos, e pensou que, chegado o caso de que o homem tentasse atac-la, poderia defender-se com a espada. Mas este seguiu comportando-se com amabilidade e, quando alcanaram a barcaa, chamou aos seus ocupantes para lhes advertir sua

chegada e pareceu muito mais interessado em subir a mesa a bordo sem que sofresse danos que em ocupar-se dela. Leda permaneceu sentada no oscilante banco enquanto ele transladava a mesa, muito perto das cristalinas guas verde azuladas infestadas de tubares. Ouviu-se um grito de surpresa e alegria procedente de

acima, ao que seguiu um agitao de pegadas e uma verborria de vozes estrangeiras. O bote voltou a oscilar, e Leda olhou a sua redor em busca de barbatanas. Leda! A voz de Samuel pareceu surgir de um nada. Ela levantou a cabea e o viu apoiado no

corrimo e olhando-a. Bendito seja Deus! exclamou ficando em p de um salto, mas o violento movimento do bote que provocou lhe fez voltar a sentar-se rapidamente. Samuel! disse levando a mo garganta cheia de alvio . Samuel, o que isto? Uma festa surpresa? Meu Deus, quase me

Fique a sussurrou ele com voz quase ininteligvel. Mas h tubares protestou ela.

Entretanto, Samuel j tinha desaparecido. Ouviu-o dizendo algo em japons em tom premente, ao que seguiu a resposta de alguma outra pessoa. Dois orientais apareceram no corrimo; baixaram uma escala de corda e a olharam curiosos. Como Leda no parecia decidir-se, um deles lhe disse algo e lhe fez

gestos de que subisse. Samuel! chamou ela sem saber o que fazer. Um terceiro homem se dirigiu a ela. Esposa de Jurada-san, subir. Devemos gratido. Leda estava muito confusa. Gratido? Este Ikeno disse o kau-kau enquanto aproximava a barco

escala. Voc subir. Sinto muito, mas o senhor Gerard me h dito que fique aqui. O homem de acima disse algo. Ao cabo de um momento, Leda ouviu o Samuel dizer: Faz o que diz, no passa nada. Pela forma de falar no parecia

ele. Leda recolheu as saias e, com muito cuidado e delicadeza, agarrou a escala e comeou a subir. Com a ajuda do kau-kau e dos orientais de acima, e com to somente um momento de angstia ao enganchar o p na saia e comear a barco a balanar-se violentamente, conseguiu pr p

no cho e respirar aliviada. O kau-kau golpeou duas vezes o casco do navio e, depois de gritar aloha, partiu no bote. Samuel estava descalo vestido com seu traje branco, que tinha uma horrvel mancha de sangre no pescoo. Leda quase tropeou com a mesa enquanto se dirigia para ele.

Um dos orientais tinha tirado a lmina de dentro da perna. Outro sustentava uma espada completa. No parecia haver nenhuma dama presente. Leda se deteve e se mordeu o lbio. Em voz muito baixa, disse: uma festa de disfarces? Fez bem, Leda. Fez o correto,

e te agradeo. Samuel falava de forma estranha, lentamente e pondo muita nfase nas palavras. Continuando, e sem rastro algum de emoo, acrescentou: um assunto de negcios. Leda, faz tudo o que eu te diga, imediatamente e sem protestar. Um deles fala ingls, mas no nos pode

entender se falarmos rpido. Pelo amor de Deus, faz o que eu te diga. Resultava curioso ouvir o Samuel felicit-la para, ao momento seguinte, passar a lhe dar ordens cortantes nesse tom to desprovido de emoo. Leda tragou saliva e abaixou a cabea. Sim, obvio. Temia que

no fosse uma festa de disfarces disse e, olhando-o ao rosto, acrescentou: Est ferido? No respondeu ele sorrindo e assentindo com a cabea como se a felicitasse. Diga-me como chegaste at aqui com essa lmina da espada. A espada? Samuel, sinto-o muitssimo, mas no quebrei sua mesa de

esposa. Eu sozinha queria fazer o que me recomendou o senhor Dojun, e

lev-la da casa de lady Ashland nossa como diz a tradio japonesa, porque assim teramos um matrimnio feliz e saberia que te honro e respeito, mas ento a mulher de Manolo o abandonou e ele bebeu mais da conta e a rompeu, dormiu e tudo saiu mal. Mesa

de esposa? repetiu ele estranhando. Sim, a que fez para lady Tess, a mesa que uma esposa tem que levar ao seu novo lar com suas prprias mos. No te lembra? chama-se hano hana, ou algo assim. Certamente comea com h em japons. Mas se quebrou. Isso d azar? Queria

arrum-la, por isso vim at aqui. Apareceu esse homem, que no sei se teu amigo, e me disse que o senhor Ikeno podia arrum-la sem que ningum notasse a diferena. O senhor Dojun me disse que te alegraria de que a levasse a Pleamar, e por isso o fiz. Bom, tentava

faz-lo Deus espetou Samuel. Dojun te colocou nisto? Leda umedeceu os lbios, consciente de que ningum se movia e, entretanto, todos estavam muitos conscientes dela. Bom, ele me incentivou que fosse procurar a mesa. Se ele no tivesse me dito isso, eu no teria conhecido sua

existncia. Samuel fechou os olhos. Durante um instante o percorreu uma fria to forte que quase pareceu transpassar Leda como uma quebra de onda de frio e calor. Quando abriu os olhos, sem que seu rosto denotasse nenhuma expresso, separou-se dela e, inclinando-se ante o senhor Ikeno, falou-lhe em um

ingls muito moderado: Tanabe Dojun voltou a me fazer de idiota disse pondo uma nfase muito amarga em cada palavra. Minha esposa uma pessoa tola e inferior, que s tem valor para mim. Estou surpreendido por sua faanha de ter conseguido a lmina. O ato em si no tem

importncia, mas te rogo que aceite o benefcio que conduz. Embora as palavras de Samuel lhe pareceram excessivas, Leda sups que no devia estar muito contente com ela nesse momento por ter quebrado a mesa. Olhou para onde estava o senhor Ikeno e descobriu que este a observava.

Esposa de Jurada-san a saudou com uma reverncia. Seus olhos orientais, to negros e penetrantes, fizeram que Leda se sentisse incmoda de um modo que nunca lhe tinha ocorrido com o senhor Dojun, mas esboou um ligeiro sorriso e assentiu com a cabea. Boa tarde, senhor. Encantada de

conhec-lo. Meus melhores desejos disse ele. Logo deu uma ordem cortante em japons, e um dos tripulantes desapareceu pelo sob arco que conduzia ao interior da nave. Ao cabo de uns instantes voltou com uma caixa lisa e esmaltada e com um saco de feltro de uma forma

e longitude que resultaram muito familiares para a Leda. O senhor Ikeno agarrou o saco e tirou a arma que continha, que no era a no ser a espada cerimoniosa que tinha um pssaro dourado no punho e madreprola incrustada em laca vermelha. Leda a teria reconhecido embora levasse dcadas sem v-la.

Olhou para Samuel, mas este s prestava ateno no senhor Ikeno e na espada. Pela mente de Leda passaram todo tipo de tristes pensamentos: talvez Samuel tivesse roubado o presente do jubileu para vender ao senhor Ikeno; possivelmente era um espio, ou um traidor, ou um srdido ladro. Como

conseguir esposa de Jurada-san? perguntou o senhor Ikeno assinalando a lmina. Estava na extremidade disse Leda, que se sentia incapaz de pronunciar uma palavra to vulgar como perna em pblico, embora se tratasse de estrangeiros. O que ser extremidade? Perna. Esta parte daqui. Estava a dentro,

como pode ver. Ver, sim. Como saber dentro, esposa-san? No sabia. Rompeu-se e vi a espada respondeu ela enquanto fazia um esforo para no morder o lbio. Com tantos estranhos de aspecto perigoso a seu redor, no estava segura do que devia dizer. E aqui est.

O senhor Ikeno olhou a Samuel. Voc no tolo e querer me enganar com lmina falsa, no? Samuel se limitou a olh-lo sem mover um pice por toda resposta. A um sinal do senhor Ikeno, seus homens desdobraram uma esteira aos seus ps. Colocaram a

caixa justo no centro e tiraram seu contedo um pano dobrado, alguns potes escuros e umas pequenas ferramentas, que colocaram de forma muito ordenada. Com ar sombrio, o senhor Ikeno se ajoelhou e, deixando a vagem dourada sobre a esteira, extraiu parte do punho dela. Depois de escolher um instrumento que

parecia ser uma pua de madeira, deu uns ligeiros golpes em um ponto concreto do punho. Um pequeno alfinete caiu sobre o pano dobrado. Continuando, tirou a basta lmina da vagem por completo e se deu um golpe com o punho no antebrao. A barra, que j estava bastante instvel, soltou-se de

tudo. Ikeno tirou aquele tosco ferro do punho e o lanou pela amurada. Quando se desvaneceu o som do chapinho, o homem que levava a lmina esculpida deu um passo adiante e a ofereceu ao senhor Ikeno com uma profunda reverncia. Este agarrou a espada e, sustentando-a para cima, tentou

unir o punho e a nova lmina, mas no pareciam encaixar. S entrou a metade da espiga, j que no parecia ser do mesmo tamanho que a ranhura do punho. O senhor Ikeno olhou ao Samuel. Leda nunca tinha visto uma imobilidade to impenetrvel no rosto de seu marido como

a que exibia nesses momentos. O japons voltou a contemplar a espada. Golpeou o extremo do punho contra a palma da mo e a lmina encaixou firmemente. Ia exclamou com suavidade o senhor Ikeno, como se estivesse rompendo um feitio. Outros homens se moveram e murmuraram com um sorriso no

rosto. O senhor Ikeno se inclinou e voltou a colocar o alfinete em seu lugar, depois do qual elevou a espada para o sol. Banzai! Banzai! repetiram os outros, e o grito ressonou por toda a silenciosa baa.

Podemos ir j a casa? perguntou Leda. Samuel sorriu. Escute-me bem, Leda disse com expresso afvel e da forma fluda e suave que havia dito que o senhor Ikeno no poderia entender, acontea o que acontecer, faz o que eu te diga. Incline-te ante este homem, e

depois ante mim. Leda vacilou um instante antes de obedec-lo, para o que imitou o movimento que tinha visto fazer tanto a ele como ao senhor Dojun infinitas vezes. O senhor Ikeno fez caso omisso dela. Olhou ao Samuel e assentiu com a cabea enquanto sustentava a espada

sobre seu peito com os ombros muito tensos. A honorvel esposa de Jurada-san pode pedir favor. Petio ela fazer, Ikeno conceder. No futuro, honorvel esposa-san nunca s enquanto Ikeno viver. Sumimasen respondeu Samuel. Sempre estarei em dvida contigo por isso. Olhou a Leda, que voltou a

inclinar-se ante ele. Antes que ela levantasse a cabea, Samuel lhe disse em voz muito baixa: Assim que lhe diga isso, salta pela amurada. Leda se endireitou rapidamente. O que? Faz o que te digo. Acontea o que acontecer insistiu ele com expresso muito

sria. Mas Silncio! exclamou Samuel agarrando a dos ombros e apoiando-a contra o corrimo enquanto ele dava as costas a outros. Escute-me, esposa minha acrescentou com fria falando entre dentes, digo-te que se no obedecer minhas ordens ao p da letra, no chegar viva em casa, nem eu

tampouco. Isto no nenhuma festa de disfarces. Se te disser que salte pela amurada, salta. Entende-me? Agora quero que se ponha a chorar. Faz-o! Leda j estava a ponto de estalar em lgrimas pelo susto. No entendia nada; aquilo no tinha o menor sentido. Fechou os olhos com fora

e os voltou a abrir. Mas, Samuel No podem zarpar at que suba a mar. Isso ser dentro de umas quatro horas. Acontea o que acontecer, Leda, se jogue na gua quando lhe disser isso. Faz o que eu te diga acontea o que acontecer. Os

olhos de Leda comearam a encher-se de lgrimas de autntico medo. O que vai acontecer? Samuel emitiu um som rouco e se separou dela. Foi at onde estava o senhor Ikeno e ficou ante ele com as costas muito reta. A mancha de sangue do pescoo destacava contra

a cor nata do traje de linho. Yoi shiy? disse.

O japons respondeu no mesmo idioma assinalando a espada e a si mesmo. Samuel duvidou uns instantes e inclinou a cabea, como se assentira a alguma deciso. O senhor Ikeno deu algumas ordens a seus homens. O porte de todos se tornou muito solene, e cada movimento que faziam parecia estudado.

Puseram outra esteira junto primeira, e uma segunda espada mais curta de punho singelo sobre ela. Samuel se ajoelhou graciosamente ante a espada. Tocou as mos com a testa e se endireitou. O senhor Ikeno tambm se ajoelhou. Depois de observar ao Samuel, agarrou a espada mais curta. Com

movimentos rituais, tirou-a da vagem e separou a lmina do punho como tinha feito com a outra. Lenta e silenciosamente limpou a lmina com um pano, com o nico som das pequenas ondas que rompiam contra a ilha como fundo. Leda no gostava de muito aquilo. Viu como o senhor

Ikeno passava pela lmina um pequeno travesseiro, como a borla de uma caixa de p, deixando um ligeiro polvillo sobre ela. Ento a limpou com outro pano pondo ainda mais esmero e cuidado. Uma vez limpo, o ao brilhou. O senhor Ikeno lhe deu infinidade de voltas entre as mos

enquanto o examinava. Continuando, estendeu a lmina com a espiga nua por diante apontando ao Samuel. Leda agarrou do corrimo do navio de pesca. Ardiam-lhe a face. O chapu de palha que usava lhe oferecia pouco amparo contra o sol da tarde. Samuel no tinha posto nenhum chapu; seu cabelo

apanhava e concentrava a luz do mesmo modo que a lmina que segurou detrs oferecendo-lhe o outro. Depois de estud-la, emprestando especial ateno ao fio, a devolveu ao senhor Ikeno. Permaneceu sentado enquanto o japons a lubrificava de azeite com um pano com o mesmo cuidado com que a tinha limpo. Uma

vez que voltou a uni-la a seu punho, deixou-a de novo sobre a esteira, sem embainhar, com a ponta assinalando ao Samuel. Logo, agarrou a espada do punho dourado e repetiu o mesmo ritual. Leda ficou sem flego. Foram lutar com as espadas. Aquilo era algum tipo de preparativo cerimonioso.

O corao lhe pulsava muito forte. Samuel disse com voz trmula, poderamos ir a casa? O senhor Ikeno levantou a cabea e a olhou, como se uma gaivota tivesse falado de repente. Deixou de limpar a espada. Samuel se manteve calado durante uns instantes, e ao cabo disse

ao senhor Ikeno: Gomen nasai. O outro, com a espada mais larga levantada, assentiu: S. Samuel embainhou a sua, deixou-a sobre a esteira e, ficando em p, aproximou-se de Leda, a agarrou pelo brao e disse ao ouvido: No podemos ir para

casa agora. Faz o que eu te diga, isso tudo o que te peo. O que vai passar? Samuel lhe acariciou a face. Leda, por favor.

O que vai passar? Ele a olhou aos olhos por toda resposta. Leda tragou saliva muito assustada e o agarrou pelo casaco. Samuel, no penso consentir isto, pode me ouvir? Voc me ama? A resposta dela surgiu imediatamente. Sim. Ento confia em mim. Faz

o que te digo. Chora e grita se quiser, mas esteja atenta e, quando eu lhe disser isso, faz-o. Isto um pesadelo. Samuel voltou a acarici-la. Eu te amo, Leda. No o esquea. Esta contemplou a mancha de sangue do pescoo dele. O

terror lhe paralisava a garganta. Abriu a boca para protestar mas no saiu nenhum som dela. Samuel esboou um sorriso. E no se esquea de respirar acrescentou. Samuel, se te passar algo No o esquea sussurrou ele. Samuel se separou dela e voltou a situar-se ante Ikeno e

a curta e sbria harakiri-gatana, de duplo fio e punho envolto em seda negra. ajoelhou-se fazendo a saudao adequada e centrou toda sua ateno na Gokuakuma. Ikeno lhe tinha devotado uma honra envenenada: o kaishaku, atuar como seu segundo, como um parente, e rematar seu suicdio ritual com a espada

demonaca. Era uma forma de economizar dor a Samuel e preservar a nobreza do ato. Quando este se cravasse a espada, Ikeno lhe cortaria a cabea. Era um gesto de amabilidade por parte do japons que partia da suposio que um ocidental no seria capaz de faz-lo sozinho; no teria

a suficiente disciplina para abrir-se em canal da esquerda a direita, de cima abaixo e, por ltimo, cravar a espada na garganta como um verdadeiro guerreiro. Samuel observou as mos do outro enquanto esfregava a Gokuakuma. Eram umas mos cheias de amor, como as de uma me acariciando a seu

filho, que passavam o pano por toda a superfcie da lmina para encardila. Ikeno tomou todo o tempo necessrio. A valia de uma espada japonesa se provava comprovando quantos corpos de inimigos mortos podia atravessar de um s golpe. A dessa espada, depois de sculos sem ser utilizada, ia ser verificada

com o Samuel. Ikeno inspecionou a Gokuakuma milmetro a milmetro. Continuando, estendeu a lmina ante o Samuel, lhe permitindo que a olhasse sem tocla para que comprovasse seu fio. Aquele ao brunido, sem corroer, brilhou sem mcula com um resplendor que pareceu dar vida ao tengu esculpido. Samuel se

inclinou em sinal de aceitao. Ikeno ajustou a lmina no

punho dourado e colocou o alfinete em seu lugar. Embainhou a Gokuakuma e se levantou para ir ocupar seu lugar detrs de Samuel. Este recitava mentalmente o kuji, conjurando a fora dos nove smbolos que suas mos no podiam formar. Escutou sem ouvir nada e sentiu sem experimentar nada;

respirou o vazio at que s houve terra, gua, vento, fogo e aquela espada ante ele. Tempo, e a espada. Tempo infinito. A lua brilha na gua, e a gua passa, passa e passa, enquanto que o reflexo da lua nunca se move. A barcaa se

moveu com a crescente enjoa enquanto o horizonte parecia passar a toda velocidade. Pensou sem pensar na Leda e no Dojun. Era como morrer, o zanshin. de repente a velha cano voltou para ele. Era a primeira, a do tubaro. E, no meio do infinito, ouviu o repicar de sinos.

Um, dois, trs. Leda pensou. Leda! Agarrou a espada e a levantou. 36 Leda sentiu como lhe caa um fio de suor pela nuca. Sabia que tinham passado horas, porque tinha visto o senhor Ikeno situar-se detrs de Samuel enquanto sustentava a espada vermelha e

dourada com ambas as mos, e sua sombra se foi estendendo pelo cho com uma lentido incomensurvel conforme o navio ia girando. Todos esperavam. Era como um sonho: aquele silncio infinito, aquele lugar, aqueles homens; Samuel com a mancha de sangue no pescoo e as espadas que absorviam toda a

luz e a transformavam em ouro, prata e ao. Como era um sonho, Leda no se moveu quando a sombra passou ante ela. Girou a cabea ligeiramente, pois no queria deixar de olhar ao Samuel, e a sombra voltou a passar. Foi ento quando Leda se sacudiu. Seu

corpo pareceu perder tudo o que o mantinha composto. Estremeceu de cima abaixo, e a viso de Leda comeou a nublar-se. Respira. Tentou segurar o ar e, voltando-se para a direita, abaixou a cabea. Tinha que ser um sonho. Um sonho odioso e inslito, um escuro pesadelo, cuja

longitude abrangia a metade daquele navio pesqueiro, e que se movia lentamente pela coberta, percorria o casco, flutuava por debaixo e desaparecia nas profundidades com um repentino mergulho final. Leda abriu a boca, mas no pde dizer nada. Em seu lugar, comeou a chorar enquanto olhava a todos os que a rodeavam,

que s estavam conscientes de Samuel e do senhor Ikeno. No meio do silncio ouviu um tinido de sinos, o repicar monocrdio das latas dos arrozais. Era um som to cotidiano e vulgar que no tinha sentido naquele cenrio. Leda se sentiu como freqentemente se sentia em seus sonhos, como

se tentasse gritar e no pudesse mover-se, como se tudo passasse mesma velocidade com que o mel caa de seu pote.

Viu Samuel inclinar-se ante a espada que tinha ante ele sobre a esteira. O senhor Ikeno desembainhou a sua com um som que foi como o do vento sussurrando um cntico ancestral. Abriu as pernas e levantou o punho dourado, que sustentava com ambas as mos. A espada absorveu a luz

solar e um raio de fogo surgiu de seu fio. A imagem ficou congelada na retina de Leda, que olhou fixamente o resplendor de ao que pendia sobre a cabea de Samuel. No pensou, no! Ouviu um grito. Vrias mos a sujeitaram com fora dos braos

lhe impedindo de aproximar-se. Viu como Samuel agarrava a espada da esteira e a sustentava com uma mo. Quando a dirigiu para seu prprio corpo, a outra espada comeou a baixar. Ento Leda se deu conta de que o grito era dele: No, no, no! O

corpo de Samuel desabou como uma boneca quebrada, como o cavalo de uma carruagem que Leda tinha visto cair morto na rua. O senhor Ikeno se equilibrou sobre o Samuel, que estava morto, sacrificado, cado sobre o cho com seu assassino mas, de repente, era Samuel quem gritava a Leda:

Agora, se joge na gua! gua. Samuel se levantou com ambas as espadas nas mos. Com um rpido giro do corpo, deu um chute no senhor Ikeno no queixo, e este saiu jogado para trs e golpeou violentamente a cabea contra a parede do camarote. O homem

que retinha Leda a soltou para agarrar um arpo. Leda! gritou Samuel. Pula! Sua voz ressonou como uma fora tangvel que empurrou a Leda. Esta se agarrou ao corrimo e olhou para baixo, mas ali estava aquele tubaro deslizando pelas guas enquanto sua horrvel barbatana cortava a superfcie.

Leda deu a volta sem saber o que fazer. Nesse momento Samuel esquivou a ponta do arpo e, golpeando com o punho ao seu atacante na mo, imobilizou-lhe o brao com o cotovelo e lhe golpeou a rtula com o joelho com tanta fora que Leda ouviu um rangido de

ossos. O homem o suportou sem emitir nenhum som, e agitou o arpo enquanto caa ao cho. O feroz talho assobiou no ar e cortou a face de Samuel, onde deixou uma intensa lista vermelha. Este saltou, como um gato a ponto de cair de uma rvore. A espada curta que levava

brilhou, fatiando vrios dos dedos que sujeitavam o arpo e que deixaram um rastro de sangue quando Samuel lanou ao homem pela amurada com um chute. Hei mano! O grito provinha da gua. Um dos japoneses se interps no caminho de Samuel, enquanto outro agitava uma rede. O

senhor Ikeno se levantou, cambaleando contra a parede. Alm deles Leda viu uma canoa nativa que, ao ritmo de seus cintilantes remos, aproximava-se do navio deixando uma brilhante esteira detrs de si sobre as tranqilas guas. Voltou a aparecer

a barbatana do tubaro, que riscou sua prpria esteira antes de inundarse de novo. Samuel retrocedeu uns passos para fugir do ataque dos japoneses e passou uma perna sobre o corrimo. Leda lanou um grito quando viu como se inclinava sobre a gua, mas sem chegar a saltar.

Em lugar disso, pendurou-se com braos e pernas do corrimo para esquivar a rede que lhe tinham jogado. A rede se chocou com o corrimo com um repico dos pesos que penduravam dela, sem conseguir captur-lo. Ento Samuel brandiu a espada mais larga contra a panturrilha do homem que tinha mais perto

e rasgou a carne, deixando o osso vista. Depois de cambalearse, o japons tentou erguer-se, mas as pernas lhe falharam. Com um rpido giro, Samuel se sentou sobre o corrimo. Seguia emanando sangue da ferida, que lhe manchava boa parte do rosto. O seus atacantes tinham espalhado as

redes e impregnava o ambiente com um aroma especial. Samuel gritou algo em japons, e o nico japons que seguia ileso se deteve imediatamente. Voltaram a ouvir-se gritos de advertncia procedentes da canoa: Hei Man! Hei Man! Auto, Haku-nui! No saltar! Leda reconheceu Manolo e o

senhor Dojun como os ocupantes da pequena embarcao, mas no teve tempo de pensar nisso, j que, nesse instante, o senhor Ikeno se equilibrou sobre ela. Tentou apartar-se, mas o japons a agarrou por um brao e a puxou para si. Chocou-se contra o corrimo sentindo uma intensa dor nos quadris enquanto

seu chapu de palha caia e seus ps perdiam o equilbrio sobre o cho. O outro a sacudiu, tanto que Leda viu claramente como seu chapu caa na gua. Ikeno a manteve assim presa em um brao enquanto ela tentava agarrarse ao corrimo redondo de metal e era incapaz de lanar

o grito que tinha na garganta. Ento ele a levantou de tal maneira que Leda agitou as pernas com frenesi sem poder pr os ps sobre o cho. Samuel os observou enquanto respirava agitadamente. Abaixo a canoa se chocou contra o casco do navio. O senhor Ikeno disse algo, com

uma voz cuja suavidade contrastava com a fora com que a sujeitava pelo brao, fazendo todo impossvel para que conseguisse escapar. E, ento, voltou a empurrar para trs de maneira que, se a soltava, cairia pelo corrimo gua. Leda tentou aferrar-se ao brao do japons, cravando as unhas onde

pde. Tocou o cho da embarcao com os ps, mas s conseguiu escorregar sobre ela, para logo voltar a flutuar no ar. S a frrea sujeio do senhor Ikeno evitava que perdesse o equilbrio por completo. Fuka! bramou Samuel. Same! V-o, Ikeno? meu tubaro. Meteu a espada curta

pelo cinturo e, de um salto, separou-se do corrimo. Eu o chamei! acrescentou como se estivesse louco, gritando em japons e em ingls ao limite da capacidade de seus pulmes. Golpeou o peito com o punho. Boku-no, Ikeno, wakarimasu ko. De repente brandiu a espada dourada contra o escudeiro de

Ikeno. Este deu um fenomenal salto para cima para esquivar a lmina, mas Samuel

seguiu rapidamente seu movimento e, quando o homem voltou a pisar no cho, encontrou-se com a ponta da espada lhe apontando garganta. Quando retrocedeu at o corrimo, Samuel lhe deu um chute nos ps fazendo que perdesse o equilbrio do mesmo modo que Leda. O japons deu uma cambalhota no

ar como se fosse um equilibrista de circo, e ficou pego barra com as pernas penduradas sobre a gua. Onaka GA sukimashita k! Tem fome, tubaro? gritou Samuel ao tempo que golpeava o corrimo de ferro com a espada, fazendo que soasse como um sino rachado. Leda

sentiu a vibrao nos dedos. Samuel deu outro golpe. Vem, fuka, que vou te dar comida! Voc ll? exclamou Manolo da canoa. No chamar tubaro! No me far mal, nem aos meus disse Samuel enquanto abatia a espada perigosamente sobre as mos do homem pendurado no

corrimo, mas pode ser que coma a este se o entrego. O senhor Ikeno lanou um grito rouco e gutural em sua lngua. Leda soltou um grito e tentou agarrar-se com mais fora quando o outro a empurrou ainda mais sobre o corrimo fazendo que seu equilbrio fosse mais instvel.

Samuel deu um passo atrs para permitir que o homem voltasse para a embarcao. Ao mesmo tempo, o senhor Dojun subiu a bordo. No obstante, o senhor Ikeno a manteve nesse perigoso ngulo enquanto seguia vociferando em japons. Samuel ficou imvel sobre a rede manchada de sangue. Recolheu a vagem

laqueada em vermelho e guardou a espada nela. Ikeno-sejam! Dojun-san! gritou enquanto sustentava a arma ante si. Quem a quer? Nenhum deles se moveu nem disse nada. Dojun-san, meu amo, meu professor, meu amigo! Meu amigo! O eco da fria de sua voz ressonou contra a

ilha e a gua. Aqui tem sua espada, Dojun-san! Fez uma profunda reverncia e apresentou ao senhor Dojun a espada, que irradiava uma luz dourada e vermelha. O senhor Ikeno grunhiu alguma advertncia e empurrou Leda um pouco mais para trs. Esta voltou a gritar enquanto seguia tentando agarrar o

seu brao, ao corrimo ou aonde pudesse. Veja, Dojun-san! exclamou Samuel em tom irnico. Olhe o que pode acontecer se devolver a Gokuakuma ao seu muito honorvel amo. O senhor Dojun o olhou impertrrito. Samuel encolheu os ombros e baixou a espada. Claro, procurar

outra esposa, no isso, no? Bastardo! D na mesma. Enganaste-me e me utilizou durante dezessete anos, bastardo. Por que est ela aqui? Samuel respirava ruidosamente entre dentes de forma entrecortada. Olha-a! uivou enquanto elevava a espada sobre sua cabea. Sabe como rapidamente eu poderia matar aos dois?

Tem debilidade, Samuel-san respondeu o senhor Dojun com calma. Queres muito. Samuel o olhou em silncio e baixou a espada. Eu quero muito repetiu incrdulo. Eu quero muito! O sangue seco que lhe cobria o rosto era como pintura de guerra. Negou com a cabea,

em sinal de que a mera idia o desconcertava, de que o senhor Dojun o tinha deixado perplexo. De repente se voltou e deu outro golpe no corrimo. Ouviste, tubaro? Eu quero muito! Leda afogou uma exclamao quando, ao olhar para um lado, viu aquela espantosa

e enorme silueta sair disparada de debaixo do navio; era to grande que a barbatana triangular ficou quase altura dela. Golpeou contra o casco fazendo que todo o barco se movesse. No quero muito afirmou Samuel, que, sem soltar a espada, dirigiu-se para a Leda e o senhor Ikeno.

Dojun emitiu um estranho som. Comeou como um grunhido para ir elevando-se em intensidade. Paralisada pela impresso, Leda sentiu que seu captor a sujeitava com mais fora. Samuel se deteve, como se de repente tivesse surgido um muro ante ele. Leda agitou freneticamente a mo que tinha livre, tentando agarrar-se

ao corrimo para recuperar o equilbrio. Samuel! exclamou desesperada. Este se moveu. Com um som que no era tal a no ser uma exploso de ar e fora que sossegou todo o resto, lanou a espada longe dele. O senhor Ikeno soltou Leda e deu um salto para

tentar interceptar a arma quando terminasse de descrever seu arco ascendente. Ela gritou enquanto oscilava violentamente sobre o corrimo e tentava sem xito pr os ps na terra. Samuel a agarrou pelo brao e a puxou at abra-la contra seu peito, enquanto os dois tropeavam pela fora do impacto. O senhor Ikeno

nem os olhou; s estava concentrado na espada, que ao fim, depois de dar uma srie de voltas no ar, comeou a cair. Entrou na gua pela ponta, a uns poucos metros do navio, quase sem provocar salpicaduras, e pareceu apanhar toda a luz do sol sob as cristalinas guas.

Da distncia a que se encontrava, o tubaro se voltou com rapidez felina. A espada comeou a afundar como se fosse uma lmina que casse de uma rvore, enquanto o punho dourado se ia fazendo cada vez mais impreciso. Quando a besta marinha se aproximou da arma, sua enorme cabea pareceu inchar-se.

O tubaro girou para um lado, mostrando seu ventre branco e sua enorme boca arrepiada de presas, e engoliu a espada. Iya murmurou o senhor Ikeno. A barbatana cinza cortou a superfcie da gua. O tubaro passou junto ao navio de pesca, que se balanou pela fora do movimento. Hei

Man exclamou Manolo da canoa com voz de profundo assombro, k wahao Kaahupahau!

Ningum mais falou. O tubaro se dirigiu para o porto enquanto sua barbatana desaparecia sob a gua. Sua monumental silueta foi diminuindo at perder-se de vista nas profundidades do mar. Samuel abraava Leda com as costas apoiada contra a cabine do navio. Podia sentir os calafrios que a sacudiam,

um aps o outro, cada vez que tentava falar ou mover-se. O cabelo, que estava solto, tampava-lhe os olhos. Samuel o alisou para trs enquanto olhava aos outros por cima de sua cabea. Ikeno permanecia imvel enquanto via como o tubaro desaparecia. Aiya murmurou de novo. Que Buda

e todos os deuses nos protejam. O que tem feito o Tanabe? No sei respondeu Dojun em voz baixa. Ikeno no se virou para olh-lo. um louco ou um santo? O que voc fez, Tanabe-san? O voc fez? No tenho resposta. S aconteceu.

Ikeno tirou um amuleto omamori de debaixo de suas roupas e o apertou em seu punho. O deus da guerra falou, no? disse com nervosismo. Possivelmente Hachiman, o do arco e a flecha emplumada, esteja intranqilo, e fuja de debaixo de seu templo de pedra para voar longe.

Namuamidabutsu, namuamidabutsu comeou a entoar em voz muito baixa. O que vais fazer? perguntou Dojun com a mesma parcimnia. Ikeno deixou de apertar o amuleto e, entreabrindo os olhos, sacudiu os ombros, como se tentasse livrar-se de seu medo supersticioso. Pescado para o tubaro disse desafiante

levantando a cabea, face perceptvel nota de desespero de sua voz. Impossvel disse Dojun. Seu rt sangra. Ikeno olhou para trs e viu o nico homem ileso enfaixando aos outros. Todos sangramos por uma dor de barriga. Kuso! Teria que ter ido atrs dele.

Teria sido uma morte infame e sem sentido. um traidor. Traste a nosso pas. Necessitamos a Gokuakuma. Estamos prostrados ante o Ocidente. Pois, nesse caso, nos ponhamos em p, mas sem confiar em demnios lhe espetou Dojun. No acredito que o deus da guerra viva sob

um templo de pedra. Levo muito tempo no Ocidente, e Hachiman no vive aqui, Ikeno-san a no ser nos ventres dos polticos, dos padres e dos homens como voc e como eu. Ikeno soltou um bufido de brincadeira. Nihonjin no kuse ni! Certamente o Tanabe leva muito tempo

no exlio, e j no japons. Dojun se voltou para ele com uma expresso de emoo no rosto como Samuel jamais lhe tinha visto. Ikeno permaneceu esperando-o, disposto lutar, com as pernas abertas e a cabea levantada. De repente se ouviu

uma voz que falava em um ingls rudimentar, misturada com os murmrios dos homens feridos. Manolo tinha subido a bordo e, levado por essa bondade natural prpria dos ilhus, estava ajudando a enfaixar a uns homens que, um quarto de hora antes, o teriam matado sem o menor olhar.

Dojun contemplou a cena e, ao cabo de um momento, olhou ao Samuel. Com um sorriso sarcstico, disse: Talvez o honorvel Ikeno-san esteja falando sem saber muito bem o que diz. Samuel no sabia como interpretar aquele olhar. Deu-se conta de que nunca tinha chegado a conhecer as

verdadeiras emoes de Dojun. Nem sequer nesses momentos as conhecia, pois o tinha filtrado tudo atravs do peneira de seus prprios desejos, ira e dor. Dojun sempre, sempre, tinha levado as rdeas, exceto aquela vez na Haleakala, e inclusive ento Samuel tinha suas dvidas. Dojun era um professor. Sempre o

tinha sido e sempre o seria mas, nessa ocasio, Samuel tinha desafiado ao muro inquebrvel de sua vontade e o tinha quebrado com a sua prpria. Dojun se inclinou ante ele dando amostras de uma rigidez produto do orgulho. Vejo que manter uma amizade com um ocidental algo muito

forte e difcil disse. Claro que h coisas que no se podem evitar neste ciclo da existncia. Samuel escutou essa acusao que tambm era uma confisso e lhe devolveu o olhar desafiante. Ele no conseguiu sua espada demonaca. No assentiu Dojun enquanto dirigia o olhar para

o Pearl Harbor, no a conseguiu. Mas recorda o que acontece com a estrela do mar, Samuel-san acrescentou com um dbil sorriso. Samuel abraou ainda mais a Leda e apoiou a face contra a sua. Apertou-lhe a mo enquanto um intenso calafrio lhe percorria todo o corpo. Por

favor disse com sua suave e andina voz inglesa, podemos ir para casa? Samuel disse algo a Manolo, o qual assentiu e se apressou a lanar-se canoa. Ao v-lo, Leda, que seguia entre os braos de Samuel, ficou tensa. Temos que ir nesse bote to pequeno?

Ele a apertou com mais fora. O tubaro j foi embora. Leda tremeu e tomou flego. Bom, sim, tenho certeza que tem razo disse. Separando-se de Samuel, e sem olhar Ikeno, nem ao Dojun, nem a todo o caos da embarcao, Leda comeou

a avanar esquivando as redes ensangentadas com expresso de mrtir resignada. Deteve-se o chegar ao corrimo.

Eu gostaria de levar a mesa de esposa, senhor Dojun, se for to amvel de segur-la. Talvez se possa arrumar, e encontrar outra espada que substitua a que tragou o tubaro. Dojun no pestanejou no mais mnimo, mas sim se limitou a inclinarse e dizer: Say.

Eu arrumar, senhora Samuel-san. Tudo boa sorte. Excelente. E tenho que lhes dar as graas ao senhor Manolo e a voc pelo resgate. J puderam comprovar que o senhor Gerard tinha a situao sob controle mas, de todas as formas, seu valor e ajuda so dignos de elogio e agradecimento.

Kin doku. Muito honrado disse Dojun com uma profunda reverncia carregada de respeito. Boa esposa, Samuel-san. Kanshin, kanshin. Comeou a falar em japons. Leve-a. Digo isso a srio. uma mulher admirvel, a que respeito profundamente, e que quer te fazer muito feliz. Samuel vacilou durante um instante.

Nunca tinha ouvido o Dojun elogiar tanto a algum. Voc no vem? Que venha Manolo logo para me buscar respondeu o outro com um sorriso. Tenho que levar sua mesa de esposa. Samuel olhou Ikeno e a seus homens. Quero convencer a esta pessoa

mal aconselhada de que cometeu um engano ao pensar que j no sou japons acrescentou Dojun em tom alegre. Ikeno se apartou com um grunhido do corrimo, de onde seguia contemplando o lugar pelo que tinha desaparecido o tubaro. Sua cara de poucos amigos era como a dos guerreiros com

rosto de demnio das gravuras de madeira, e parecia indicar que desfrutaria muito matando a algum nesses momentos. O sangue de Samuel ainda fervia de ira por Dojun mas, mesmo assim, uma estranha mescla de lealdade, costume e obrigao lhe fez dizer: Necessita de ajuda? Dojun passou a

mo adiante da face, gesto que significava que no. Chigaimasu. Voc acredita, pequeno baka? Samuel olhou pela extremidade do olho a Ikeno, que os observava ameaador, e adotou um sorriso irnico. Como quiser disse em ingls. Que se divirta. Leda se sentou diante dele

na canoa, e foi todo o trajeto muito rgida, com as mos e os cotovelos junto ao corpo. Chegaram borda sem rastro de nenhum tubaro. Shji, o moo que tinha dirigido as latas dos arrozais para comunicar-se com o Samuel enquanto este estava a bordo do navio de pesca (um sinal

para alertar da chegada de um homem do Ikeno, dois para um estranho, trs para Dojun), esperava-os. Meteu-se na gua para ajudar a arrastar a canoa at a borda enlodada. Enquanto isso Samuel,

com as calas enroladas at os joelhos, desembarcou e chegou a terra firme para ajudar a Leda a descer. Esta agarrou as saias como se fosse descender de uma carruagem em Park Lane. Shji tinha prendido os cavalos a charrete. Leda esperou enquanto enganchavam ao veculo. Com o cabelo

solto e emaranhado ao redor do rosto e sem chapu, parecia uma vagabunda perdida nas ruas. Samuel ansiava agarr-la entre os braos e abra-la muito, muito forte mas, em lugar disso, ajudou Manolo e ao menino para ocultar a estranha sensao que o embargava. Quando terminou de ajustar uma fivela, ficou imvel

contemplando-a sem saber o que fazer. Shji o olhou com cara de preocupao, dando a entender ao Samuel que temia pelo Dojun. Est bem lhe disse Samuel. Voc s segue vigiando. O moo deslizou rapidamente entre os arbustos e desapareceu. Manolo voltou para a canoa, o qual

provocou grandes protestos por parte de Leda pelo perigo que entranhava, mas o havaiano se limitou a encolher os ombros e disse: Ter que voltar a recolher Dojun-san. Mas o tubaro O outro riu. Manolo mau sabor. A tubaro no gostar. Mas

ao menos gosta do sabor do usque, no, blad? murmurou Samuel. A prxima vez que te embebede, chamarei o tubaro para que te despedace. O sorriso de Manolo se desvaneceu rapidamente, dando passo a um olhar de desassossego. Mahope aku disse Samuel com um movimento de cabea. Logo

falaremos, irmo. O havaiano torceu o gesto e comeou a colocar a canoa na gua. Talvez Manolo ir pescar uns dias disse saltando a bordo e levantando o remo. Aloha nui. Leda seguiu a canoa com a vista at que desapareceu ao outro lado da ilha.

Bom disse, espero que tome cuidado com os tubares. Samuel apoiou uma mo no lombo do cavalo. Viu Leda tremer sem olh-lo. To s se abraava e contemplava a gua enquanto piscava repetidas vezes. Leda Ela girou a cabea e o olhou com olhos

brilhantes e ausentes. Quando posou o olhar nas manchas de sangue do pescoo e do casaco de Samuel, afogou um soluo. Abraou-se com mais fora e tentou conter-se, o qual fez que de sua garganta brotassem uns gemidos entrecortados. No quero chorar. No vou chorar. Samuel deu um

passo adiante, mas se deteve. No passa nada disse enquanto seguia muito rgido, pego de uma barra da charrete. Pode chorar se quiser.

Leda negou energicamente com a cabea. No! muito Um profundo gemido a interrompeu. muito pouco digno. O cabelo voltou a cair sobre os ombros quando os violentos soluos lhe sacudiram o corpo. Eu no gosto dos tubares, e menos ainda que me balacem sobre eles!

J no h tubares disse ele com a mo presa barra. Nem espadas. E essa outra. Foi o duelo com espadas mais pouco esportivo que vi na vida, embora no tenha visto nenhum jamais acrescentou com veemncia. Foi absurdo! Por que tinha que comear sentando-se? Assim

o senhor Ikeno tinha toda a vantagem do mundo. E com essa mahu, mahu, com essa espada horrivelmente curta que lhe deram, Samuel, poderiam-lhe lhe poderiam Os soluos voltaram a deix-la sem palavras. Samuel se soltou da barra e a segurou entre seus braos abraando-a com fora. Leda tremia tanto que at

lhe falhavam as pernas. Aferrou-se s mangas dele e afundou a cabea em seu peito, enquanto Samuel a acariciava e balanava ao tempo que sentia como uma estranha risada nervosa comeava a surgir em seu interior. Minha menina valente, no passa nada. Minha menina doce e valente, j terminou tudo.

Leda estalou em pranto enquanto Samuel a embalava carregando com o peso dos dois. Apoiou a face cortada contra o cabelo dela sem lhe importar a ardncia. Ai, Leda, Meu Deus sussurrou ele lhe acariciando o cabelo e sentindo como ela se apertava contra ele. Os tremores de Leda comearam

a remeter. Seguiu apoiada contra ele conforme os soluos se foram fazendo cada vez mais suaves. Oxal me tivesse ocorrido algo muito cortante que dizer a esses homens disse ela tomando flego. Seguro que me ocorrer amanh, quando j for muito tarde. No sei o que tem de engraado para que te

ria tanto. De repente, Samuel a agarrou dos braos e a agitou. No me deixe disse. No me deixe nunca, Leda. Ela se apartou bruscamente dele. Veja s, bonita coisa para dizer, quando tem feito tudo o que pudeste para que me v replicou

enquanto se dirigia para a charrete. Ao chegar a ela, deteve-se. Tremiam-lhe os lbios, e tanto suas roupas como seu cabelo estavam em total desordem. E tenho que dizer que, eu se eu no fosse uma pessoa com princpios e carter, certamente teria ido embora. Samuel respirou profundamente. De novo

parecia abrir o vazio aos seus ps, de novo parecia estar a ponto de iniciar a larga queda, mas no estava disposto a sofrer de forma to absurda uma vez mais. Sabia o que queria, e essa vez no ia renunciar a nada. Deixaste escapar a ocasio de partir disse.

Leda elevou o queixo.

que nunca quis t-la, homem tolo e impossvel. Suponho que, como varo que , no serve de nada te explicar que te amei desde dia que me deu aquelas tesouras quando trabalhava na oficina de confeco. Para ti isso no significar nada, e at me atreveria a dizer que o

ter esquecido por completo, mas j se sabe que assim so os homens quando se trata de qualquer assunto de importncia. E tenho que dizer que vai muito contra a delicadeza feminina que algum tenha que estar insistindo de uma forma to direta no afeto que sente. Bom, e se

eu gostar de ouvi-lo? Leda o olhou, perplexa ante sua veemncia. E se precisar ouvi-lo? perguntou ele com repentina fria. E se precisar despertar cada maldita manh e ouvir dizer que me ama? acrescentou ainda com maior veemncia. E se isso for o nico que me importa

de verdade nesta fodida6 vida? Leda o olhou escandalizada. H dito um palavro, no? Usaste uma linguagem indecente! E o que! gritou ele. quo nico quero nesta fodida vida, Leda, ouvir cada manh que me ama! o nico que quero ouvir! Leda

o contemplou em silncio. Samuel respirava de forma entrecortada, como se acabasse de lutar. O mar devolveu o eco de suas palavras uma e outra vez. Ela umedeceu os lbios e, agarrando as saias com uma mo, enxugou as lgrimas com a outra e subiu a charrete com um sonoro frufru de

suas roupas. Uma vez sentada, arrumou o cabelo at conseguir lhe dar um aspecto de relativa normalidade. Bem, pois nesse caso, meu senhor disse ao fim olhando fixamente ao Samuel, asseguro-te que isso o que vai ouvir. 37 Leda se sentia bastante coibida, e Samuel

no a estava ajudando a pr as coisas mais fceis. Nem sequer estava ali o senhor Dojun para suavizar aquele momento to delicado com alguma conversao intracedente assassinada em ingls. Todos os jardineiros pareciam haver-se esfumado do lugar. Pleamar estava deserta, e o sol da tarde incidia sobre suas altas colunas brancas

desenhando largas sombras sobre a varanda. Leda posou os ps nus no cho de madeira deixando para traz os sapatos e as meias na soleira, pois tinha aprendido do senhor Dojun que no era de boa educao entrar calado em uma casa. Esperou no vestbulo, justo depois da porta de

entrada aberta, enquanto Samuel levava o cavalo ao estbulo. A casa, com suas brancas paredes que contrastavam com o brilho entre avermelhado e dourado dos marcos de madeira de koa das portas e das altas venezianas, parecia imponente, austera, solitria. No havia mveis no vestbulo nem em nenhuma outra estadia,

exceo do quarto e do escritrio do piso de acima, que era onde Leda tinha concentrado todos 6 A autora realmente colocou jodida.

seus esforos iniciais. Esperava que Samuel gostasse. Desejava-o com tanta vontade que quo nico ouvia eram os batimentos do corao de seu corao. Quando ele apareceu, movendo-se como sempre com sigilo e descalo, Leda teve um susto. Tinha-lhe recomendado que deixasse no cabide a jaqueta e a camisa, danificadas pelo sangue

sem possibilidade de acerto, at que a lavadeira se fizesse cargo delas. Leda viu que tambm havia lavado o rosto, pois tinha o cabelo mido e os rastros de sangue tinham desaparecido, lhe deixando to somente a marca do talho no rosto. Leda franziu o cenho enquanto o olhava. Seu

pobre rosto! Sigo pensando que teramos que informar polcia do incidente. Pelo menos fica uma cicatriz de malfeitor disse ele com um sorriso, embora momento eu no tenha pensado nisso. Tem que ir ver um mdico. Mas no esta noite replicou Samuel apoiando-se no

marco da porta e cruzando-se de braos. Descalo, com as calas manchadas de barro e sem camisa, parecia to bronzeado e desalinhado como Manolo, embora sem todas as flores que sempre levava este. Leda juntou as mos sem saber o que fazer nem dizer. Samuel no tinha falado

muito no trajeto at a casa; to s tinha explicado que a polcia no podia fazer nada naquele assunto, e que no se tratava de um seqestro para pedir resgate, mas sim de uma mera questo de negcios. Leda pensou que devia instruir Samuel sobre as vantagens de escolher aos scios comerciais

de um com mais cuidado o antes possvel. Mas no ia dar o sermo nesse momento. Leda sabia de sobra que os cavalheiros tinham tendncia a incomodar-se quando lhes insinuava que no possuam um controle completo de seus negcios, por isso decidiu no tirar o tema. Bem disse

com um grande sorriso, convidaria-te a que nos sentemos na sala, mas me temo que ainda no h onde sentar. Acreditava que voc tinha passado toda a semana enchendo isto de mveis. Sim, mas comecei pelas estadias do piso de acima respondeu Leda ruborizando-se. Manolo e o senhor

Dojun me recomendaram que Samuel se agitou um pouco, o nico sinal de alterao em seu porte descontrado. A partir de agora vai me ouvir, no a esses dois disse. E estarei encantada de faz-lo, asseguro-lhe isso. Ultimamente no pude, j que nunca estava em casa.

Samuel ficou em silencio durante um instante ao tempo que a olhava fixamente. Mas agora eu estou reps ao fim. A Leda pareceu muito atrevido e vulgar convid-lo a subir ao quarto. Tentou pensar em alguma forma de tirar o tema durante a conversao

mas, como esta virtualmente no existia, e a pouca que mantinham

tampouco era muito fluida e cordial, ficou sem saber o que dizer e com a sensao de estar recebendo um trato pouco corts por parte de Samuel. Era sem dvida o cavalheiro mais insolente de todos os que formavam parte de seu crculo social. Voc me ama, Leda?

perguntou-lhe ele de repente. Claro que sim. Quero Samuel se interrompeu e, tomando flego, girou a cabea. Tocou a ferida do seu rosto que empalideceu. Leda demorou algum tempo em cair na conta do que queria dizer e o que estava pensando. Samuel murmurou algo que no conseguiu entender. Justo quando

Leda comeava a esboar um sorriso, ele se separou da porta e se dirigiu para ela com tal brutalidade que Leda se apoiou contra a parede como tentando protegerse. Samuel se deteve em seco com expresso sria, e logo continuou andando sem parar ao chegar a seu lado. Bem,

vamos ver seus malditos mveis. Subiu os degraus de dois em dois at deter-se na elegante curva em que a escada girava sobre si mesmo. Desde sua posio, Leda no podia lhe ver o rosto, a no ser to s sua mo agarrada ao corrimo esculpido. Leda! gritou

Samuel de repente com uma fria que ressonou por toda a casa vazia. Maldio! H dito que me ama. E eu sou assim, e no h nada que possa fazer para evit-lo. Quero te tocar, quero me deitar contigo, quero entrar em ti. Deus, estou desejando-a desde que te resgatei das mos

daquele bode. Teria feito amor com voc no barco, na charrete, contra uma parede. D-me igual onde seja. Leda abaixou a cabea e olhou os dedos dos ps, que apareciam sob a saia. Pois eu prefiro uma cama disse. Bem, pois acredito que aqui acima h

uma, no? Sim. De fato, levava um momento tentando encontrar a forma de tirar o tema. Quando o suave murmrio de Leda se apagou, Samuel, que seguia segurando o corrimo, voltou a falar. De verdade? disse lentamente. Sim. Fez-se outro longo silencio.

A suave brisa que percorria o vestbulo refrescou o calor que Leda sentia no rosto e o pescoo. Ento, por que demnios est ainda a embaixo? perguntou Samuel com voz de desespero. Leda juntou os ps. Porque no quero estar presente quando vir como decorei as

habitaes, se por acaso voc no gosta. Por Deus bendito, se no so mais que mveis. Bom, tambm h outras coisas. Ele no disse nada. Leda deu na parede umas batidas nervosas com os dedos. Ao cabo de um momento, a mo de Samuel

desapareceu do

corrimo. Ela sabia que ele sempre se movia com muito sigilo, e pensou que teria que ir se acostumando mas, mesmo assim, essa forma de desaparecer de repente, unida ausncia de som procedente do piso superior, conseguia desenquadr-la. Finalmente decidiu a subir a escada, o qual fez muito

devagar. Quando chegou ao patamar de acima, no viu Samuel nem ouviu nada. Atravessou o escritrio at chegar ao quarto. Samuel estava ali, entre as dez mil grullas7 de papel vermelho que simbolizavam uma vida longa e feliz. Estas estavam penduravam em cascata de seus arcos de bambu suspensos do alto teto

em grupos de vinte, trinta e cinqenta enquanto giravam lentamente sobre seu eixo. Algumas quase tocavam o cho, elevando uns centmetros sobre este pela ao de quo corrente entrava pelas portas abertas. A maioria, no obstante, pendia a tal altura que Leda e o senhor Dojun tinham passado embaixo delas sem problemas,

mas Leda no tinha reparado na estatura de Samuel, o qual estava nesses momentos rodeado por infinidade delas. Algumas lhe roavam o rosto, outras lhe caam sobre o cabelo e os ombros nus, e se moviam ao ritmo de sua respirao como um dossel de salgueiros vermelhos. Samuel levantou os braos e

as atraiu ainda mais para ele. Fechou os olhos e deixou que cassem sobre seu rosto levantado. Leda permaneceu na soleira. Nem sequer sabia se ele tinha advertido sua presena. Voc que fez? perguntou ele sem abrir os olhos e com a cabea ainda apontando para o

teto. Bom, a idia foi minha, mas as fez a senhora Obosan. O senhor Dojun me disse que o costume era pr mil grullas, mas pensei que, como ela j tinha feito, talvez pendurar dez mil seria um bom investimento. Um bom investimento repetiu Samuel. Sim, em boa

sorte e felicidade. como o de investir em bolsa e essas coisas. Estou convencida de que as grullas funcionam de acordo com os mesmos princpios, e no vejo por que teria que ser de outro modo. E, alm disso, tm desconto quando compram em grandes quantidades. Viu a tartaruga?

No respondeu ele em um tom de voz muito estranho. No vi a tartaruga. Est em seu escritrio, sobre o escrivania, dentro de uma terrina negra laqueada muito bonita e junto a umas pedras brancas e um pouco de gua. S um cgado pequeno. Dickie nos emprestou at que

possamos importar nossa prpria tartaruga. Vais importar uma tartaruga? O senhor Richards est se encarregando de tudo. Acredita que chegar antes de um ms. Mas por qu? 7 Ave que no Japo simboliza paz e prosperidade.

um presente. Meu presente de casamento. O senhor Dojun disse que o entenderia. Samuel a olhou sem dizer nada. E h outro presente meu, mas esse lhe ensinarei dentro de um momento. Primeiro quero que saiba que o senhor Dojun nos deu esta cama com essa

grulla na cabeceira. E as gavetas da cmoda assobiam uma nota musical cada vez que se abrem. Ele tambm a fez. Samuel tocou um dos ps de bambu que havia aos ps da cama. E o bambu, constante, fiel e flexvel, tambm d boa sorte acrescentou Leda.

Samuel puxou uma das lminas e a soltou. Sei como a lmina de bambu que se dobra sob o peso do orvalho disse enquanto sacudia ligeiramente a cabea. Dojun sempre est dizendo coisas assim. Ah, sim? Terei que emprestar mais ateno ao que diz.

No, no o faa, nem agarre mais mesas de esposa mesmo que ele lhe indique isso. Lamento muito sobre a mesa. Esquea dela, no passa nada. No significa nada. Ele inventou todas essas coisas da esposa disse Samuel, que voltou a levantar o rosto. Mas isto

Voltou a sacudir a cabea com um sorriso de assombro. No posso acreditar que voc fez tudo isto. E uma tartaruga, Por Deus bendito. Deixa-me atnito. De verdade? Ele levantou a mo e, com um grande sorriso, deixou que um ramalhete de grullas se deslizasse por ela. Alegro-me muito

que voc goste disse Leda. Assim at pode ser que goste dos peixes. Samuel lanou uma gargalhada. Jesus, no ser pescado seco! No, no. O pescado seco cheiraria. Vem comigo. Segurou-o pela mo e o conduziu ao quarto de banho. Este estava equipado com

todas as inovaes mais modernas, entre as que destacavam grifos para a gua fria e quente, assim como uma banheira de mrmore branco de grandes dimenses que estava ocupada nesse momento por dois peixes de cor marfim e dourado, os quais riscavam crculos na gua com um movimento lento e solene, de

uma vez que deixavam uma esteira translcida detrs de si. Este meu verdadeiro presente. o que estava planejando desde que Fez uma pausa e tocou o lbio superior com a lngua, desde que bom, desde a primeira noite, quando veio, quero dizer, quando fizemos Se calou envergonhada. Voc

se lembra? Samuel soltou sua mo da dela, que seguiu falando: Tero que ficar aqui at que lhes faa um lugar no jardim. O senhor Dojun diz que eles que tem que receber sol uma hora ao dia para que no percam a cor. Espero que no se

importe

Samuel deslizou uma mo por um lado do pescoo de Leda para obrigla a girar o rosto e levant-la. Continuando, beijou-a com frenesi enquanto com a lngua percorria cada fresta de sua boca e a abraava com fora. Espero que voc tenha gostado replicou ela sem flego assim

que teve ocasio de falar. Amanh eu gostarei disse ele lhe lambendo a comissura dos lbios. Mas, esta noite, Leda acrescentou ao tempo que comeava a lhe desabotoar o vestido. Ela se deixou despir com graa e elegncia. Era um fato bem sabido que teria que proporcionar aos

cavalheiros o devido apoio em tais circunstncias para que estes no se sentissem contrariados. Quando o vestido caiu ao cho, Leda fechou os olhos e, rodeando os ombros de Samuel com os braos e unindo sua boca a dele, disps-se a lhe dar todo seu apoio da forma mais digna e alegre

possvel. RESENHA BIBLIOGRFICA Laura Kinsale Laura Kinsale uma das escritoras mais admiradas e reconhecidas dentro do gnero da novela romntica graas a suas histrias muito cuidadosas, intensas e originais. Escreve novelas que gosta de ler e reler. foi ganhadora do prmio que concede a Associao

de Autores de Novela Romntica dos Estados Unidos do qual foi finalista tambm em vrias ocasies e admirada pelas melhores escritoras deste gnero. Laura Kinsale estudou geologia e no comeou a escrever at os trinta e cinco anos. Dela a Plaza & Jans j publicou, com enorme xito, a

novela Flores na Tempestade. Est casada e reparte seu tempo entre sua casa da Santa F (Novo o Mxico) e Texas. *** Ttulo original: The Shadow and the Star Primeira edio: outubro, 2006 1991, Amanda Moor Jay 2006, Random House

Mondadori, S.A 2006, Ana Eiroa Guillen, pela traduo. ISBN-13: 978-84-01-38225-3 ISBN-10: 84-01-38225-4 Depsito legal: B. 31.364-2006 Desenho da coberta: Tholn Kunst Imagem: St. Pancras Hotel & Station from Pentonville Road, Londres, 1884. The Art Arquive. The

Picture Desk

-356 Laura KINSALE Sombra e estrela

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