Um Tempo Que Passou - Taylor Caldwell
Um Tempo Que Passou - Taylor Caldwell
Um Tempo Que Passou - Taylor Caldwell
TAYLOR CALDWELL
A vigorosa escritora, de cuja numerosa e excelente obra a Record já
publicou 8 livros entre os quais A Casa Grande, O Rugido do Trovão, A Terra de
Deus está de novo presente neste romance que conta a história emocionante de
duas mulheres que amavam o mesmo homem e quase o destruíram.
O homem era Frank Clair, um artista belo, talentoso e sensível,
inflamado por uma verdadeira paixão de aventureiro pela vida e que tinha uma
sofreguidão ardente pelos atributos correntes do sucesso — dinheiro, fama e
mulheres . . .
Das duas mulheres que o amavam, uma lhe deu tudo o que tinha. Era
uma voluptuosa beleza loura a quem a pobreza fizera cair na prostituição. Foi ela
quem primeiro tomou nas mãos o homem complexo e revoltado, ensinando-lhe
lições inesquecíveis e devastadoras de ternura e de paixão . . .
A outra procurou tomar tudo o que Frank tinha para dar. Era uma má
mulher, embora encantadora e bem-nascida, que torturava o jovem escritor no
seu ingênuo e sôfrego desejo de amor, mas que, apesar disso, deu-lhe o incentivo
necessário para que ele atingisse alturas incríveis de realização literária e de
fama...
É esse o tema difícil e complexo do presente livro. Nele, a autora, com
aquela compreensão profunda e direta da alma humana demonstrada em seus
livros anteriormente publicados opõe aqueles três destinos. No fim, tudo se
funde no amor sem limites de toda uma vida de Frank e Jessica numa história de
amor inesquecível, que consolidará o inegável prestígio de Taylor Caldwell, com
seus temas, seu estilo e sua infalível penetração psicológica.
Título original norte-americano: THERE WAS A TIME
Copyright (©) 1947 by Reback & Reback
O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste livro para
Portugal e outros países de língua portuguesa
Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil
adquiridos pela
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Flash
PRIMEIRA PARTE
Houve tempo em que o prado, o bosque e regato,
A terra e todas as paisagens comuns
Pareciam-me
Envolvidos em luz celestial, na glória e no frescor de um sonho.
WORDSWORTH
CAPÍTULO 1
— Que idade tinha eu quando morávamos em Higher Broughton? —
perguntou ele à mãe.
— Apenas dois anos e meio — respondeu ela. — Mudamo-nos para
High Town e, depois, para Reddish. Você não pode lembrar-se de Higher
Broughton.
Mas ele se lembrava. Havia dois fatos de que se lembrava com muito
mais nitidez, força e clareza do que da vida de adulto da véspera. Disse à mãe:
— Morávamos em uma casa que fazia parte de uma fileira de casas
sombrias, de tijolos vermelhos, semi-isoladas, com um quintal de lajes cercado
por um muro de pedra. Eu me sentava no sanitário do quintal, comendo pão com
geleia de uvas, enquanto você estendia as roupas para secar. Na casa em frente
morava uma família cujo sobrenome era Burns. Tinham uma filha pequena
chamada Nellie.
A mãe não pôde acreditar.
— Você tinha pouco mais de dois anos. Não pode lembrar-se disso. Na
certa, ouviu alguma conversa minha com seu pai.
Mas ele se lembrava.
Embora com apenas dois anos naquela época, lembrava-se claramente
do quintal. O muro lhe parecera imensamente alto. Não poderia ter mais de um
metro e oitenta de altura, mas ele achava que chegava às nuvens. A porta verde
de madeira era um bastião intransponível, com um trinco tão alto num dos lados
que ele nem sequer podia pensar em puxá-lo. Na parte mais baixa da porta, a
tinta desbotada formava grande quantidade de fascinantes bolhas. Deixava-se
ficar durante horas arrancando-as da madeira escura que se escondia por baixo.
Horas passadas estourando bolhas, horas saturadas de um vago êxtase e de uma
agitação íntima tão profunda e insondável como o movimento das lentas e
sonolentas marés.
A luz quente e diáfana do sol batia-lhe nas costas e filtrava-se pelos seus
ocupados e distraídos dedos. Sentia-o ainda naquele momento, se quisesse, e via
outra vez as pequenas unhas sujas, de pontas pretas, e experimentava mais uma
vez o envolvente êxtase. Raramente via as bolhas. Eram apenas algo para lhe
desviar a mente consciente da excitação tranquila em que ele submergia.
Sabia que esperava por algo, mas sem impaciência ou agitação, apenas
com uma espécie de paz insondável e silencioso enlevo. Não se sentia jovem.
Não sentia absolutamente a passagem do tempo. Existia em uma
intemporalidade sem limites, onde nada havia exceto uma estranha beatitude
íntima. Fora dele tudo mais era uma difusa e vertiginosa glória, suave,
harmoniosa, tremulando com uma radiante e absoluta tranquilidade. Não fora
júbilo, sabia agora. O júbilo era algo que o homem conhecia após a dor, após o
sucesso, após a realização. Aquilo era apenas mesquinho, vil, vergonhoso,
inteiramente da carne. Eu não era jovem naquela ocasião, pensou já homem.
Perdendo o que possuía naquele tempo, perdi a maturidade e tornei-me
vaziamente jovem.
A mãe tivera medo de ciganas, que se escondiam em becos, e obrigara o
pai a reforçar o trinco com um ferrolho. As ciganas eram inveteradas
sequestradoras de crianças, embora por que devessem elas preocupar-se com o
filho único de um casal de classe média inferior fosse algo que ela, em sua
exaltação, jamais parara para se perguntar. Conscientemente o menino nunca via
o ferrolho, mas sabia que devia estar lá. Por isso mesmo, o que aconteceu
permaneceu para ele sempre inexplicável.
Naquele dia arrancara todas as bolhas que conseguira alcançar. Em pé
nas pontas das pequenas botas, tenteava com os dedos. Havia uma deliciosa
bolha justamente além de seu alcance. Encerrava ela a promessa de lhe
conservar e aprofundar a grande serenidade. Precisava dela, a avó de todas as
bolhas. Olhou ansioso em volta.
Uma suave luz inglesa iluminava o quintal. Tanto quanto sabia, coisa
alguma existia além daquele alto muro e da porta verde — nenhuma outra alma
humana, nenhuma ave, nenhuma árvore, nenhuma voz, nenhum riso, nada. Às
suas costas erguia-se a massa fuliginosa de tijolos da casa. Aquilo, também, não
possuía existência, embora soubesse que a mãe trabalhava lá dentro. A mãe vivia
na fímbria de sua consciência e não lhe violava a realidade. Viu uma coluna de
fumaça dançar sobre as duras telhas de ardósia do telhado, varando o céu azul. O
silêncio era completo. As coisas agitavam-se em uma inundação de luz quente e
oscilante. Notou as gretas entre as lajes do chão. Verdes e úmidas de musgo.
Inquieto, ainda ansioso, agachou-se e passou os pequenos dedos sujos pelos
líquens. Com o camisolão puxado sobre as coxas, sentiu um vento frio tocar-lhe
as nádegas redondas. Arrancou o musgo e olhou petulante em volta. Seus olhos
se prenderam na porta e nas maravilhosas bolhas, tão longe de seu alcance.
A porta verde abriu-se devagar, sem o menor ruído, quase sem
movimento perceptível. Observou-a, sem curiosidade, com a boca aberta e uma
expressão vazia nos grandes olhos azuis. A porta abria-se como se não houvesse
trinco e ferrolho. Isso não lhe pareceu estranho, pois no seu mundo eles não
existiam e coisas estranhas aconteciam, para as quais ele não tinha perguntas
nem respostas.
A porta escancarou-se. Uma mulher entrou no quintal e fechou-a sem
ruído. Frank fitou-a com expressão vazia. Com o pequeno dedo ainda alisava o
musgo, enquanto o vento continuava a açoitar-lhe as nádegas nuas, lançando
para trás o camisolão e o babador. A mulher era muito alta, ou assim parecia da
posição agachada em que ele se encontrava. Muito bela. Até mesmo sua
inteligência de criança reconhecia isso. Esbelta e jovem. Não podia ter mais de
vinte anos. Os cabelos lhe caíam pesadamente sobre os ombros e desciam pelas
costas, dourados como narcisos. Usava um longo e brilhante robe de brancura
perfeita, alternadamente pesado, delicado ou rígido, conforme era tocado pela
luz do sol. Impossível identificar-lhe a substância, tão mutável a sua textura. Os
braços brancos estavam nus e pareciam muito macios. Sorriram os lábios
vermelhos e uma rosa pulsou e surgiu na sua face.
Ela aproximou-se. Desajeitado, ele levantou-se, esfregando as mãos
sujas uma na outra para limpá-las da areia e do musgo. Ergueu os olhos para ela,
ainda sem curiosidade, ainda de boca aberta. Não sentiu o menor medo ou
embaraço e coisa alguma da habitual timidez em presença de estranhos. Fungou
alto. Esfregou as mãos no babador sujo, já manchado de geleia, de sopa e usado
como lenço.
— Você me conhece? — perguntou bondosamente a mulher num tom
suave e vibrante.
Ele conservou-se calado. Não era um bebê precoce e falador. Conhecia
apenas algumas palavras. Nenhuma delas parecia apropriada naquele momento.
Continuou a fitá-la com expressão vazia. O sol quente e brilhante inundava o
quintal silencioso. Mas havia outra luz em volta da mulher, uma concentração e
uma beleza parecidas com o êxtase que ele mesmo sentia quando arrancava
bolhas da porta. Sorriu então, timidamente. Ela retribuiu e o sorriso tornou-se
audível como riso, suave e murmurante. Ele começou a rir também, acanhado,
ansioso.
Ela pôs a mão em sua massa de desgrenhados cachos castanhos. Passou
os anéis de seus cabelos pelos dedos. Ele sentiu a carícia percorrer-lhe o corpo
como se fosse uma língua de chamas. Aproximou-se mais dela e encostou a
cabeça no roupão branco. Sentiu-lhe a textura. Era como um toque doce e sedoso
do vento, como a superfície de uma pétala de lírio. Alisou-o timidamente,
encantado. A mulher murmurava alguma coisa. Acariciou-lhe o rosto. Curvou-
se, beijou-lhe a testa e suspirou. A fina língua de fogo alargou-se e transformou-
se num lençol de quente júbilo, passou por ele e tornou-se parte da beleza e da
luz. Ergueu os olhos para a encantadora face. Ela sorria ainda, mas estava triste,
também. Possuía os olhos azuis mais fulgurantes do mundo e, naquele momento,
eles nadavam no que somente podiam ser lágrimas radiantes. Apertou-o contra o
corpo quase convulsamente. O mundo inteiro vibrava de luz, de ternura, de
êxtase, de realização, mas a vibração concentrava-se toda em um luminoso
silêncio, intenso demais para traduzir-se em movimento ou mesmo em
respiração.
Em alguma parte, ouviu o inesperado e trovejante som de uma porta que
se abria e fechava e uma voz irritada, dizendo:
— Nenen! Nenen! O que é que você está fazendo? Não quer o seu chá?
Não ouviu quando o chamei?
Escutou os passos da mãe sobre as lajes, rápidos, impacientes, ásperos.
Viu-a com o canto externo do olho, além do qual ela nunca penetrava. Agarrou-
se à mulher. Ela tornou-se muito pálida nesse momento, tênue, e o robe a que ele
se agarrava perdeu toda a substância. Exclamou para si mesmo: “Não vá! Não
vá!”. Furioso olhou para a mãe. Gritou: “Vá embora!” Tentou agarrar-se ainda à
mulher. Mas ela desaparecera, inteiramente, como uma luz que se esvai, e ele viu
a porta verde, fechada outra vez, firmemente, com o trinco.
A mãe segurou-o pelo braço e sacudiu-o.
— Oh, seu nenen sujo! — exclamou. — Olhe só para o seu camisolão e
para as suas mãos! Não adianta dar banho em você. O sabão de nada serve! Olhe
só para você! Para o banheiro. Vou ter que lhe dar outro banho antes de você
poder tomar o chá!
A porta do sanitário rangeu alto e o sol inundou um estreito e úmido
interior que recendia a querosene e cloreto de cálcio. Foi posto sobre um banco
de madeira enquanto a mãe, em volta, queixava-se do destino de uma mulher
com um filho tão trabalhoso. Sentado ali, as lágrimas correram, abrindo grandes
sulcos na sujeira da sua face. Chorou como nunca chorara antes, com uma
sensação de perda imensa e sofrimento inconsolável enquanto a mãe o
repreendia e lhe enxugava a face com o avental.
Não conseguia lembrar-se de mais coisa alguma daquele dia, ou de
qualquer outro dia no quintal, com exceção de um, e também se chegara a
alcançar a bolha ou se elas desempenharam novamente algum papel importante
em sua vida.
Um sonho tudo aquilo? Mas era muito criança, recordou mais tarde, para
ter podido criar mentalmente aquela mulher e tê-la vestido de maneira tão
diferente da mãe e das vizinhas. De que modo poderia ter sonhado com tal
visita? Anos mais tarde, convenceu-se de que devia ter sido um sonho, embora
estranho e belo e desafiando toda e qualquer explicação.
Depois disso, aguardava-a todos os dias, pois se lembrava de que sentira
sempre a emoção da espera, da privação de algo, da inquietude, da insatisfação.
Nunca mais a vira em Higher Broughton, mas ela o visitara uma ou duas
vezes mais tarde. Depois disso, perguntava-se sempre se aquilo poderia ter sido
mesmo um sonho.
Havia somente uma recordação de Higher Broughton e não era bem uma
recordação. Realmente, era mais uma sensação, uma percepção.
O dia fora escuro e nublado e naquele momento o céu estava encoberto
por um nevoeiro cor de heliotrópio. Um pesado silêncio abafava todos os sons e
envolvia o quintal cercado pelo muro de pedra. Frank estivera brincando com
uma cadeira e uma boneca. Em certo momento, sentiu-se inquieto e entediado.
Andou sem destino pelo quintal. Tocou na porta verde e afastou-se novamente.
Ouviu nesse momento um som, somente o fantasma e o hálito de um
som, imensamente doce e penetrante. Ficou imóvel, com a cabeça erguida,
olhando fixamente para o céu, de onde o som parecia pingar como chuva. Não
era o chamado de uma ave ou o canto de uma voz humana ou mesmo o som de
qualquer instrumento que já ouvira. Nem mavioso como uma flauta nem
tilintante como uma harpa, não lembrava nem uma trombeta nem um violino,
mas, ainda assim, parecia incluir todos esses instrumentos em uma nota
demorada e indescritivelmente bela.
Extasiado, escutou. A música não subia e descia em qualquer compasso
ou cadência. Entretanto tornou-se mais forte, mais clara, mais próxima, até que o
céu, o quintal, o muro, as lajes sob os seus pés foram saturados por ela, ecoaram-
na, ficaram inundados por ela como se fosse luz. Possuía, na verdade, uma
característica de luz e imponderabilidade a despeito de seu tom em crescendo,
irresistível, de seu triunfo e poder. Pareceu a Frank que o mundo inteiro estava
tomado por aquela quase intolerável majestade e doçura, aquela música profunda
e insondável, simultaneamente impessoal e transbordante de significação.
Quanto tempo ele permaneceu ali, nunca soube. Porém, lenta,
imperceptivelmente, a música se retirou ao invés de se desvanecer ou se tornar
menos intensa. Era como a passagem de uma hoste pelos céus. Agarrou-se a ela
como se agarrara à mulher, até que o seu último murmúrio desapareceu.
Jamais esqueceu o júbilo e o solene êxtase que o engolfou naquele dia.
Mas, perguntou-se a si mesmo anos depois, fora aquilo também um sonho?
Jamais pôde saber.
CAPÍTULO 2
Não se lembrava de coisa alguma de High Town, embora a família deva
ter morado uns dois anos na localidade. Mas lembrava-se de Leeds, onde morava
a avó, que dirigia uma “pensão familiar para hóspedes selecionados”. Ou melhor,
lembrava-se da avó, da casa dela, dos sanduíches de agrião em fatias finas de
pão preto, com uma leve camada de manteiga, e das tortas Shrewsbury,
recheadas com passas e cidra.
As recordações de Leeds eram de ruas desertas e frias, sempre cinzentas
durante o dia, iluminadas por bruxuleantes lampiões à noite, altas casas de tijolo
manchadas pela fuligem, o eternamente presente gás de carvão flutuando no ar
úmido e sujo, os pequenos e fracos fogos sob majestosas cornijas de lareiras,
céus que pareciam úmidos cobertores cinzentos, pingando eternamente,
resfriados e roupas que coçavam. E de ódio.
Aceitava o ódio como aceitava os resfriados, o ventre dolorido e a chuva
onipresente. Aceitava-o com o plácido conhecimento de que sempre o
conhecera; era parte de sua vida e nele nada havia de especialmente violento. Era
o único aspecto positivo em uma atmosfera de negação total. Não lhe parecia
possível que houvesse algo mais e jamais se espantava.
A Sra. Jamie Clair possuía uma casa em uma rua igual a dezenas de
outras em Leeds, nem mais úmida, nem mais fria, nem mais lúgubre. Entretanto
era mais ampla do que a casa de Higher Broughton. Possuía nove quartos, dois
sanitários e um único banheiro, que ninguém usava. Casa estreita, de três
andares, espremia-se entre outras duas iguais a ela. As janelas pareciam frestas,
de dois metros e meio de altura por não mais de setenta e cinco centímetros de
largura, fechadas por cortinas de renda áspera e intrincada de Nottingham, das
quais pendiam drapejamentos de veludo escarlate empoeirado. A Sra. Clair, uma
excelente e incansável dona-de-casa, era ajudada apenas por uma pequena
desmazelada de quatorze anos, nariz sempre a escorrer, cabelo ralo e fino e um
sorriso perpétuo. No entanto, a despeito de correntes de água e sabão, assíduas
esfregadelas, metros de panos de chão e tijolos de cré, a fuligem e o pó de carvão
insinuavam-se por toda a parte como uma peste. A moça esfregava os degraus e
a passagem em frente todas as manhãs. À noite, estavam manchados de negrume
úmido. A aldraba de latão era polida diariamente: à noite aparecia cheia de
manchas e de sujeira. O som de escovas prolongava-se pelo dia adentro, às vezes
até a hora do chá. O pó, porém, acumulava-se em frestas e nas dobras das
cortinas. As cortinas de Nottingham eram lavadas cada quinze dias. Ao fim da
quinzena lembravam teias cinzentas, cheias de filamentos pretos. Todas as
semanas, as paredes recebiam vigorosas espanadelas com trapos na ponta de
vassouras. Na sexta-feira seguinte, havia ninhos de fios pretos em todos os
cantos, escorrendo sobre o berrante papel de parede. Os tapetes, escovados todos
os dias depois de borrifados com pedaços de papel embebidos em água, na
manhã seguinte mostravam desenhos apagados e pelos que pareciam secos ao pé
descalço. Todas as manhãs de sábado, as janelas polidas tornavam-se quase
invisíveis de tanto brilho. No sábado seguinte, haviam-se transformado em
manchas opacas de luz mortiça, através das quais mal se distinguia a rua.
Se o sol algum dia brilhou em Leeds, Frank Clair não se recordava de ter
presenciado esse fenômeno. Lembrava-se apenas do melancólico gotejar dos
beirais, da lívida água empoçada nas ruas calçadas com tijolos e do som baixo e
uivante do vento. Lembrava-se de guarda-chuvas a espalhar gotas sujas sobre os
ombros das pessoas, de galochas e, por algum motivo, esses aspectos de Leeds
sempre lhe recordavam peixe frito, estalando em cozinhas escuras e úmidas.
Devia ter uns quatro anos quando se tornou consciente, pela primeira
vez, de Leeds como tempo e lugar. Mas não se lembrava dos trens que o haviam
levado e trazido. Não podia ter visitado a avó mais de cinco ou seis vezes. Antes
de muito tempo notou que ela antipatizava com seu pai, desprezava-lhe a mãe, e
odiou-a. Tudo isso estava inextricavelmente ligado à pensão.
A longa e estreita sala de visitas possuía um teto incrivelmente alto,
perdido na escuridão, e cantos escuros como se as rosas escarlates do papel de
parede houvessem sido borradas com um pincel de tinta cinzenta. O sol jamais
penetrava em largos raios naquela sala envolvida sempre por uma luz
crepuscular, como se filtrada por um nevoeiro, o que com frequência acontecia.
Em uma das paredes havia uma imitação de uma cornija de lareira de mármore
preto, grande, descarnada e lascada, mostrando a descorada carne de gesso sob a
pele pintada. A lareira era de lajes pretas, polidas em vão. A cornija em si,
forrada de veludo escarlate escuro, arredondada e curva, fazia carranca para a
sala com suas salientes sobrancelhas. O pequeno fogo vermelho, bem no fundo,
era um rosnado frio e sem alegria. Mas o guarda-fogo e os atiçadores brilhavam
tanto quanto era possível conseguir-se com a aplicação de cré, sal e vinagre.
Sobre a cornija pendia um sombrio retrato do falecido Sr. William Clair, mas a
fuligem havia-lhe obliterado as feições, salvo um par de olhos ferozes e
esbugalhados, que seguiam o pequeno Frank por toda a parte, cheios de censura,
indignação e ressentimento.
Tapetes de Bruxelas, vermelhos, estriados e usados, cobriam todo o
chão. As paredes ao lado da lareira exibiam dois imensos jarros “chineses”
cheios de pendentes penas de avestruz, pintadas de um doentio violeta.
Constituíam o orgulho e a alegria da Sra. Clair. Várias vezes por ano, ela as
embebia em uma mistura de água e tinta violeta. As frondes eram cobertas por
pequenas teias escuras, costuradas com pequenas contas de fuligem. (Com
frequência, Frank esfregava sorrateiramente as frondes secas entre os dedos e
olhava fascinado para os fios pretos. Outras vezes, quando a avó estava ausente
da sala, subia no tamborete de aço ao lado da lareira e examinava com toda a
atenção os vasos vermelho e púrpura sobre a cornija, inserindo as pontas dos
pequenos dedos nas intrincadas volutas ao longo dos pescoços e em volta das
asas retorcidas. Sua maior ambição era ter tempo suficiente, algum dia, para
examinar todos os demais artigos expostos na atravancada prateleira forrada.)
A mobília da sala de visitas da Sra. Clair era muito “elegante”,
constituída de maciço e arqueado mogno, coberto de forros de crina preta ou
veludo vermelho, sofás de espaldar alto qual monstros deitados, cadeiras de
balanço que estalavam e rangiam, cadeiras duras, diabolicamente concebidas
para não se ajustar aos contornos do corpo humano. O centro era ocupado por
uma mesa redonda enorme, coberta com uma toalha de veludo vermelho, cheia
de gomos, caindo pelos lados. Aí ficava o candeeiro de latão e porcelana que
desprendia um horrível cheiro de querosene. A cúpula redonda era pintada com
rosas doentiamente vermelhas e folhas verdes venenosas. O candeeiro jamais era
aceso. A sala espojava-se no orgulho do lustre a gás, o qual, quando as camisas
Welsbach eram acesas, bruxuleava e brilhava com nua ferocidade. Às vezes,
quando era mudada uma camisa, Frank tinha permissão para levá-la até a
cozinha, onde, em frente à pia, transformava-a em pó em cima de um prato de
porcelana. As cinzas eram usadas para polir prata. Adorava sentir o delicado
rendilhado transformar-se em pó entre seus dedos.
Mas não gostava da sala de visitas. Para ele era um horror. Exalava um
perfume seco de lavanda que associava à avó, um cheiro insuportável de gás de
carvão e um frio úmido. O tapete, observou, desprendia um peculiar odor de lã e
pó quando se sentava nele. Às vezes, a sala era invadida por eflúvios de repolho
cozido e carne de carneiro, cevada e cebolas e, em um dos Natais que lá passou,
pela artemísia e o cheiro pesado e gorduroso de um ganso ao fogo. A abafada
sala abrigava em suas paredes os fantasmas de inumeráveis refeições.
De nada mais se lembrava a respeito do resto da casa. Quanto à cozinha,
recordava-se apenas da pia de ferro preto, onde esfacelava as camisas de
Welsbach. Soube pela mãe que a Sra. Clair dava pensão a nove impecáveis
“senhoras e cavalheiros”, de grande respeitabilidade: anêmicas chapeleiras,
costureiras, amanuenses, guarda-livros e um ou dois artistas, aprendizes de
tipógrafos. Jamais viu qualquer um deles, sempre escondidos em seus escuros e
tristes cubículos. A Sra. Clair não jantava com eles. “A familiaridade engendra o
desprezo”, dizia com grande unção e majestade. Frank ouvia-os amiúde
murmurando e tossindo em sons abafados na sala de jantar, do outro lado de
portas fechadas. A maior parte deles sofria de “catarro de Lancashire”. Escutava-
lhes os sufocados espirros, humildes e cheios de desculpas. Mais tarde, passos
lentos e arrastados subiam a escada dos fundos; uma ou duas portas se abriam
com um longo e demorado som. Em seguida, somente o silêncio, descendo sobre
a casa com o acompanhamento da chuva incessante. Nunca soube o que faziam
essas pobres criaturas na miséria sombria e muda de seus quartos. Na infância,
isso não o interessava. Homem, porém, era com frequência tomado por uma
sensação de desespero, de tristeza e uma espécie de fúria odienta ao lembrar-se
de tudo isso.
As recordações de Leeds confundiam-se em seu espírito, fluindo juntas
como água oleosa e cinzenta, movendo-se sem pressa e fundindo-se umas com
as outras. Mas lembrava-se claramente de certo dia, pois nesse dia experimentou,
mais uma vez, o êxtase e a exaltação-dos tenros anos.
Recordando-se, sentia novamente a aspereza da crina nas pernas nuas
que saíam das calças curtas de sarja, às quais fora ultimamente promovido.
Sentado em uma monstruosa cadeira de balanço na sala de visitas, não ousava,
porém, balançar-se. Devia ficar “como um ratinho e comportar-se”. Com as
mãos estendidas sobre os curvos braços de mogno da cadeira, sentiu a superfície
embaixo tornar-se molhada e turva com a umidade e o calor das pequenas
palmas de suas mãos. Vagamente, esfregou para frente e para trás, sentindo o frio
polido da madeira, procurando outra parte fresca quando aquecia a anterior.
Notou as meias pretas, estriadas, que não chegavam bem até as calças
quando ele se sentava, e as botas pretas abotoadas, vigorosamente engraxadas
naquela manhã. Os botões piscavam para ele à luz fraca da lareira. Moveu os pés
para captar a luz nos botões e apagá-la em seguida quando os baixava. Sua
mente estava toldada, vazia, vegetativa, o habitual nele, como à espera,
inteiramente oca, sem sequer o vestígio de uma emoção ou anelo. Todavia, com
frequência, enormes e amorfas sombras passavam por ela, como um nevoeiro,
sem traços ou aspectos distintos.
Parecia imune aos estímulos, lembrou-se anos depois. Não conseguia
recordar-se da menor irritação de sua parte, de qualquer forte desejo, da mais
fraca reação a estímulos ou tensões externas. Coisa alguma provocava-o,
irritava-o, deliciava-o. Pelo que conseguia recordar, fora um menino muito
obediente, embotado e silencioso, dócil, mal existindo, embora, considerando a
grande aversão que lhe demonstrava a avó, devia ter sido ocasionalmente muito
irritante, se não por outro motivo, pela expressão completamente vazia e pela
falta de reação ao impacto da vida. Certa vez, a avó chamou-o de “pateta”.
Fitara-a boquiaberto, com os olhos turvos de sonhos, profundos e sonolentos.
— Esse garoto não é bom da cabeça — disse ela, seca.
Sua mãe replicou em voz estridente, embora respeitosa:
— Ele é um bom menino. Nunca me causa problemas.
— Se ele não melhorar, você vai precisar interná-lo — afirmou sombria
a avó. Ele em coisa alguma pensava.
A amarga troca de palavras, que conhecia muito bem, ocorreu também
nesse dia. Balançava-se de leve na cadeira; os botões piscavam para ele e
escondiam-se na escuridão. Uma brasa estalou na grade e uma pequena língua de
fogo saltou. Frank observou-a, encantado. Parecia uma anelante flor vermelha,
abrindo-se, saltando, caindo. O lustre não fora ainda aceso. A sala de visitas
estava mergulhada numa grande e fria escuridão, cortada apenas pelo reluzir do
guarda-fogo e dos atiçadores. Gostava de observá-los. Eram coisas vivas, e
pequenas, e curiosas imagens relampejavam sobre eles.
Até esta ocasião jamais tomara realmente consciência dos pais, da avó,
ou de qualquer outra pessoa como importando ou existindo em seu mundo
privado, que era imenso, mudo e nublado. Inesperadamente, porém, ficou
consciente da presença dos demais na sala e ergueu alerta os olhos, que se
tornaram penetrantes e brilhantes na ocasião.
Pela primeira vez na vida, o mundo envolveu-o, alta e insuportavelmente
cheio de alarido e percepção, vívido demais, intenso demais. Sentiu algo girar
loucamente dentro de si mesmo, um terror, um medo, uma vontade súbita de
tapar os ouvidos com as mãos. A pequena face sem cor, triangular e mirrada
empalideceu ainda mais. A boca mole pendeu. Como se as narinas úmidas
tivessem sido apertadas, parou de respirar. Sentiu a aspereza da camisa
engomada e pregueada em torno do pescoço e dos punhos, da lã grossa do
avental, das calças de sarja, das meias, irritando-lhe a carne sensível. Sentiu o
corpo e, pela primeira vez, tornou-se consciente dele. Sentiu as batidas do
coração, saltando medroso no peito magro, o comprimento das pernas finas e
longas e o cabelo na cabeça. A crina arranhou-lhe a carne e fez sua pele arrepiar-
se. O frio da sala, a sua desolação, seus odores, o espetáculo do nevoeiro do
outro lado das janelas, os pingos de chuva e a presença de três adultos
penetraram nele como uma dor, até os ossos. O protoplasma que era seu corpo,
preguiçosamente adormecido durante quatro anos, foi subitamente inundado pela
alma. Tornou-se consciente e não conseguiu suportar a consciência.
Viu os pais realmente pela primeira vez naquele instante. O pai, um
homem baixo e murcho, de uns trinta e cinco anos, sentava-se em frente à avó.
Inteiramente calvo. O crânio, polido como o de um gnomo, era grande demais
para o pequeno corpo que o sustentava. Na face angular e sem expressão,
destacava-se um par de imensos bigodes encerados, parecendo simétricas e duras
asas na face de uma caveira. Uma aura humilde, cautelosa, pestanejante e
apologética cercava de tal modo o pobre Francis Clair, que logo se descobria que
ele não possuía a menor força de vontade, nenhum desejo de revoltar-se e
nenhuma emoção veemente na alma, a despeito dos ferozes bigodes. Via-se de
imediato que esse homem pequeno e magro vivia apavorado, vaga, mas
profundamente apavorado com tudo, que nunca reclamaria seus direitos e jamais
conhecera algo além dos mais furtivos vislumbres de grandeza e exaltação.
Possuía olhos pequenos, buliçosos, tímidos, apaziguadores, embora amiúde se
mostrassem também astutos, cautelosos e amedrontados.
Usava casimira preta, o tecido “elegante” e “respeitável”. O colete, o
melhor que possuía, de cetim preto, exibia um vago motivo de folhas que
tremiam sobre a mais diminuta das barrigas. Os cantos duros e abertos do
engomado colarinho branco pareciam sufocá-lo, como também a volumosa seda
preta da gravata, presa com uma imensa pérola cultivada que brilhava à luz da
lareira como um olho líquido. No pescoço fino, a borda afiada do colarinho
deixara uma crônica listra vermelha, profundamente sugestiva das cicatrizes de
uma corda de carrasco. Tremiam-lhe sem cessar as mãos; a direita tinha o hábito
de agarrar o joelho direito, com os dedos abertos e tensos como uma convulsa
garra. Em seguida, ele a levava ao pequeno queixo protuberante e alisava uma
covinha espantosamente profunda ou coçava o nariz pontudo e muito fino. Era
evidente que temia a mãe, que todos os gestos e palavras dela lhe causavam
apreensiva ansiedade, que se contorcia em sua presença como um verme
espetado num alfinete, suplicando-lhe, em vão, que fosse bondosa com ele em
cada temeroso movimento dos olhos.
À sua direita, longe do fogo, estava sentada Maybelle, a esposa. (Que
nome vulgar! — costumava dizer a Sra. Clair com uma fungadela.) Cinco anos
mais velha do que Francis. A sogra jamais deixava que ela esquecesse esse fato.
Fora costureira antes de casar-se e, ainda naquele momento, cinco anos depois,
possuía dedos ásperos como uma lixa, os quais, mesmo gordos, tinham um toque
calejado. Era uma mulher pequena, de seios muito grandes, cabelo ruivo
desgrenhado, caindo sempre em grandes massas em volta da face redonda, dura,
vermelha, firme como uma maçã. Os seios cheios e protuberantes chocavam-se
com o pequeno pescoço. Possuía a pele que facilmente se enrubesce das ruivas e,
à menor excitação, ondas úmidas de cor subiam-lhe até a garganta e a face. As
feições, pequenas, gorduchas, encolhidas, pareciam pregadas ao acaso na face
como torrões de massa rosada. Os amuados lábios espichados, cronicamente
amedrontados ou nervosamente beligerantes, traíam uma mente extremamente
comum e servil. Os olhos grandes, vazios, fixos, cheios de desconfiada cautela,
pestanejavam rápidos como os do marido quando sentia a menor confusão. As
pestanas avermelhadas projetavam-se das pálpebras em dura fímbria. A despeito
da gordura e da pouca altura, seus movimentos eram espasmódicos, rápidos e
desastrados. Às vezes, quando apressada se ocupava do trabalho mais
insignificante em casa, agitava distraída os braços pequenos e os gordos dedos
mexiam desajeitados em casas de botões.
Fizera o próprio corpete marrom claro, mas cometera um doloroso erro
no jabô de renda, da gola apertada até a cintura, pois carecia da menor parcela de
gosto.
— Realmente, May — dizia a Sra. Clair, desprezando o nome
“Maybelle”, — não posso compreender como você conseguiu viver de costura,
sendo tão ignorante em matéria de estilo! — O tecido de cor clara e opaca estava
completamente coberto de manchas de resíduos da última refeição, as quais
Maybelle procurava apagar sem cessar, esfregando-as inutilmente com um lenço
sujo. A saia, de sarja azul-marinho, fora mal cortada, não assentava bem e
escapava continuamente do cinto. As botas abotoadas, largas, chatas, traindo a
inchação de joanetes, eram nervosamente puxadas para baixo enquanto ela
olhava medrosa para a sogra e tentava sorrir conciliadoramente.
Frank fitou os pais, atônito, não por qualquer apreensão crítica, mas pela
percepção consciente da existência deles e de si mesmo. Olhou-os fixamente
durante longo tempo no demorado e contrafeito silêncio que caíra na sala.
Ouviu, em seguida, a voz áspera da avó, sobressaltou-se, e virou os olhos para
ela.
Ninguém sabia por que a Sra. Clair era chamada de “Jamie”, um nome
tipicamente masculino, mas era “Jamie”, e ai daqueles que fizessem troça!
Sentava-se espigada numa cadeira dura, pois, com ela, nada de frivolidade. Era a
dona razoavelmente próspera de uma pensão muito respeitável, possuía um “pé-
de-meia no banco” e orgulhava-se disso. Orgulhava-se também do fato de ter
provido o próprio sustento e o do filho desde os seis anos dele, “nunca pedira um
tostão a pessoa alguma e nunca devera favores”. E isso não era pouco para se
orgulhar naquele décimo dia de novembro de 1904. Tudo quanto havia na casa,
dizia ela, estava pago, dos tapetes no chão às cortinas nas janelas, bem como
todas as panelas, pratos e colheres na cozinha. “Os credores são maus amigos e
não quero coisa alguma com eles”, costumava dizer untuosamente em voz alta.
Essas palavras não eram ditas sem motivo. Considerava uma espécie de virtude
especial o fato de não ter parentes próximos. “Ando como uma rainha entre os
vizinhos”, dizia. “Ninguém pode dizer uma palavra contra mim e são bem
poucos os que falam comigo. Jamais ter amigos, jamais ter inimigos, este é o
meu lema. Pague suas dívidas, ande de cabeça erguida, dê seu óbolo na igreja
aos domingos e você pode enfrentar Deus e o homem com uma consciência
tranquila. ” Não era tagarela. Os hóspedes pouco lhe falavam, salvo para desejar
um humilde “bom dia, Sra. Clair”, ou um humilde “boa noite”. Somente um ou
outro ousava aventurar-se, na presença dela, a uma opinião sobre o estado do
tempo. Conservava-lhes os quartos bem limpos, exigia o pagamento do aluguel
aos sábados e não esperava que a considerassem como ser humano. Era uma
simples questão de negócio. Se um deles adoecia, uma bandeja podia ser levada
até o quarto pela relaxada empregada, mas não muitas. Dois dias de doença e
eram “postos na rua”, só Deus sabe para onde. Isso não interessava a ela.
Ali continuava, consciente de seu caráter e coragem, com fé irrestrita na
operosidade e no dinheiro no banco e nada de dívidas. Muito alta e magra, até
aquele dia Frank jamais lhe vira realmente a face. Viu-a naquele momento,
grave, cheia de retidão e firmeza, construída de ossos e de carne dura e
repuxada, olhos castanhos penetrantes, nariz proeminente, boca rasgada e
sombria em um ninho de rugas e um queixo que parecia uma pá. Vestia preto,
pois era viúva e a cor “ficava bem”. O corpete de seda preta e dura, brilhante,
estalava quando ela se movia, como se feito de ferro fundido. A gola alta e dura
era inocente da menor franja de renda. Do pescoço pendia uma fina corrente de
ouro com um medalhão, onde guardava um anel de cabelo do marido. A saia,
preta também de tão dura lembrava madeira. Cobria-lhe os pés. Para ela, nada de
vergonhosa exibição de tornozelos ou botas abotoadas. De fato, podia-se
imaginar que ela nunca fora jovem ou que o duro e cinzento penteado
pompadouriano, preso com grampos, jamais houvesse tido outra cor. Era
impossível acreditar que ela o soltava à noite e o deixava descer pelo pescoço
duro, ou que usava camisola. Os amedrontados hóspedes, às vezes, tinham
certeza de que ela jamais dormia, permanecendo sempre naquela cadeira, na
mesma posição, esperando pela noite de sábado. Um molho de chaves tilintava
em seu cinto.
Quando se movia, evolava-se dela um perfume seco, composto de sabão,
lavanda velha, cloreto de cálcio e retidão. O perfume atingiu as narinas do jovem
Frank, que se encolheu. Mas não desviou os olhos. Estava fascinado com a
consciência da existência da avó. Não tinha medo.
— Ponha um pouco de carvão no fogo, Francis — ordenou ela
peremptória ao filho. — Mas não demais. Apenas um níquel. Carvão custa
dinheiro.
Notou o olhar concentrado de Frank. Virou rápida e rigidamente a
cabeça para ele. O menino era “biruta”. Nenhuma dúvida a esse respeito. Que
olhos enormes e sem expressão, que boca mole, caída, que olhar! Apontou para
ele um duro dedo e disse com mais preocupação do que desprezo.
— O garoto é um parvo, May. Fracote. Não tem mais vida do que um
gato doente. E no próximo ano você vai mandá-lo à escola! Puxa! Ele vai ser-lhe
devolvido, estou avisando.
— Não fique aí embasbacado — ralhou o pai, com uma súbita irritação e
um olhar para a mãe. — Feche a boca. Você está-se babando pelos cantos. —
Perdoe-me, parecia ele suplicar à formidável Sra. Clair. Mas ela ignorou-lhe a
súplica e arqueou o longo pescoço.
— Frank é um bom menino — disse Maybelle com uma fraca e rara
coragem — Assoe o nariz, querido. E não olhe assim para sua avó. Muito bem,
assim é que se faz.
— Frank! — fungou a Sra. Clair, sacudindo a cabeça e dirigindo um
olhar maldoso para o filho acovardado. — O nome dele é Francis. Nunca
suportei apelidos. Francis é um nome respeitável. Ou será que você tem
vergonha dele, May? Se é que me lembro bem, você ficou orgulhosa de
pronunciá-lo quando se casou.
Como estavam insuportavelmente perto e próximas aquelas vozes! Não
mais altas do que o habitual, mas, para a consciência despertada da criança,
ressoavam fortes, com uma intensidade dilacerante. As figuras à frente não se
moveram, mas lhe deram a impressão de que se arremessavam contra ele pelo
espaço, como ameaçadoras presenças. Suas faces se intumesceram, tornaram-se
enormes, cheias de olhos, bocas, línguas trovejantes e apavorante tumulto.
Amedrontou-se com a arremetida, com o som das vozes. Estendeu as mãos para
conservá-las à distância. Explodiu em dolorosos soluços de puro pavor. Levou as
mãos aos ouvidos. Não havia ajuda, não havia refúgio. Dobrou as pernas sob o
corpo, como se quisesse esconder-se, como se tentasse tornar-se minúsculo como
um pequenino animal, ameaçado em uma floresta cheia de feras. Cruzou as mãos
sobre a cabeça e gritou.
May, com o instinto maternal dominando o medo e o respeito pela sogra,
exclamou em voz estridente:
— Olhe só o que a senhora fez com meu filho, Sra. Clair!
Apoquentando-o e irritando-o até que ele teve um ataque! — Saltou da cadeira e
foi bamboleando sobre as pernas curtas até a trêmula criança. Tomou-o nos
braços e puxou-lhe a face para os seios. Ele continuou a chorar em um murmúrio
indistinto, mergulhado na massa de rendas, carne quente e botões. Entre as
numerosas dobras do busto, porém, um traiçoeiro alfinete fora usado para fechar
uma casa de botão vazia. Furou-lhe a face como se fosse um toque de fogo. O
menino empurrou com as mãos o busto esmagador e gritou, numa mistura de
pavor e dor. Uma gota de sangue surgiu em sua pele.
— Oh, oh, o pobrezinho! — disse Maybelle quase em soluços,
esfregando freneticamente a umidade vermelha com a renda áspera do jabô. —
Poderia ter-lhe furado os olhos.
— Pelo amor de Deus, faça-o acabar com esses berros! — exigiu a Sra.
Clair, indiferente, apenas aborrecida e enojada. — E se você usa alfinetes, o que
nenhuma mulher arrumada faz, tem que aguentar as consequências. Há arnica lá
em cima. Onde é que colocou seu lenço?
Francis Clair havia-se erguido, sem saber o que fazer, dividido entre a
afeição natural pela esposa e o medo que sentia da mãe. Estava furioso com
“aquele diabrete” por ter criado toda a confusão. A mãe tinha razão, geralmente
tinha. O menino era um fracote, um pateta e Maybelle, “maluca” por ele a
despeito das palmadas que lhe dava e do rancor que sentia quando o tolinho a
irritava.
— Faça-o calar a boca ou lhe dou umas palmadas! — exclamou ele com
uma raiva fraca. — Todos aqui vão reclamar. O que é que os hóspedes vão
pensar?
— Não me importo com esses malditos hóspedes — respondeu irritada
Maybelle. — Não vou permitir que o pobrezinho seja castigado simplesmente
porque não é... não é... muito inteligente. Calminha, calminha, querido —
cantarolou para a criança, que estrebuchava em seus braços como um possesso.
Acalentou-o para cima e para baixo. O cabelo ruivo se soltara e caía-lhe sobre os
olhos. Com a face quente e úmida, cor de papoula, os olhos alagados de lágrimas
fáceis, tremiam-lhe os pequenos e grossos lábios. Indignada, respirava forte e
alto. — Calminha, é a mamãe que está com você agora. Não tenha medo. Quer
um pouquinho de torta, querido? Um lindo e gostoso pedaço de torta?
— Não há torta suficiente. Há apenas o bastante para os hóspedes —
observou a Sra. Clair com intencional indiferença. — Ele pode comer um pouco
de pão com geleia de groselha.
— Ele odeia geleia de groselha — protestou Maybelle. Andava
pesadamente de um lado para o outro, acalentando o menino nos braços. Os
gritos diminuíram, mas ele continuou a tapar convulsamente os olhos com as
mãos.
A Sra. Clair encolheu os ombros magros. Estalou a seda preta e
pregueada do corpete. Lançou ao filho um demorado e mortal olhar, exigindo
que aceitasse seu destino com fortaleza, embora ela, sua mãe, soubesse que ele
estava condenado à derrota.
Diminuía aos poucos a irritação de Maybelle com a sogra. Sabia que ia
ouvir do marido mais tarde por aquela exibição de revolta e pela linguagem.
Começou, nesse momento, a sentir-se aborrecida e impaciente com a criança.
— Cale a boca, cale a boca — disse com um pouco de irritação na voz.
— Deixe de chorar ou lhe dou umas palmadas. Dou mesmo. Um menino grande
como você!
Parou por um momento ante a cornija da lareira em seu rápido passeio
de um lado para o outro na sala de visitas. Sentiu uma umidade suspeita nos
antebraços. Disfarçadamente, dando as costas à sogra, apalpou as pequeninas
calças. Ele havia feito novamente. O que seria que a Sra. Clair e Francis
pensariam? Teriam confirmada a opinião que tinham sobre a criança. Ficou
furiosa e sacudiu o apavorado menino-
— Você quer levar umas palmadas? — perguntou, feroz.
O menino calou-se de chofre, mas o seu corpo tremeu violentamente.
Abriu os olhos. Não havia lágrimas neles, apenas dureza e fúria. Olhou zangado
em volta. Em seguida, abriu a boca.
Estando no mesmo nível da cornija da lareira, subitamente apontou com
o dedo, tirando sons grossos do fundo da garganta.
Maybelle acompanhou o pequeno dedo, espichando a cabeça
desgrenhada sobre o gordo ombro.
— Não, não, você não pode tocar nisso. São coisas da vovó.
— O que é que ele quer? — perguntou a Sra. Clair, inesperadamente, em
alerta. Para dizer a verdade, ficara algo perturbada minutos antes com a
veemência da criança, que fora sempre tão calada, dócil, emburrada. — Ele não
pode brincar com meus vasos e minhas bugigangas, nem mesmo para que cale a
boca.
Maybelle recuou, ainda estirando o pescoço. Frank estendeu
rapidamente a mão e agarrou um grande búzio, enroscado em volutas. Puxou-o
para bem junto do peito como se fosse um tesouro precioso. A pequenina face
brilhava.
— É o búzio! — informou mal-humorada Maybelle à sogra. — Não,
não, querido, você não pode tocar nele. Dê à mamãe para ela botá-lo no lugar.
Tentou arrancá-lo dos pequenos dedos úmidos. Frank, porém, gritou
novamente, em uma nota tão aguda que, involuntariamente, Maybelle se
encolheu toda. Francis pôs-se novamente de pé como se tocado por um ferro em
brasa, contraindo selvagemente os punhos. A Sra. Clair sentiu que ensurdecia.
Mas a sua voz abafou o alarido, firme e dura:
— Deixe-o ficar com o búzio, pelo amor de Deus! Ele não pode estragá-
lo. Não vale nada. Foi deixado aqui por um hóspede. — E acrescentou: — Ponha
esse diabrete no chão, junto à lareira, May. Tenho ainda muito que falar e não
podemos perder tempo com ele.
Maybelle colocou-o no chão com um baque surdo. Maldosamente, teve
esperança de que as calças molhadas do garoto sujassem o tapete de Bruxelas.
Amedrontada em seguida, levantou-o novamente, olhou em volta, viu o olhar da
Sra. Clair e acomodou-o outra vez junto à lareira.
Ele esqueceu tudo, as vozes, as faces, o ardor no rosto. Tinha o búzio na
mão. Inclinou-o na direção do fogo.
CAPÍTULO 3
O búzio media mais ou menos quinze centímetros de comprimento por
dez de largura. A superfície externa era áspera e cortada por sulcos. A interna,
porém, era sombreada, do rosa extremamente delicado da borda até o mais suave
rosa-malva na direção do centro. Além disso, a superfície interna era macia e fria
ao toque e estriada de prata viva, que relampejava e mudava à luz do fogo.
Frank aninhou nas mãos o maravilhoso tesouro, sem fôlego, enlevado,
tomado por um êxtase religioso, uma felicidade reverente. O seu pequeno
coração dilatou-se com uma espécie de indescritível júbilo. Conservou o corpo
imóvel para não perturbar o fluxo da prata frágil que saltava em pequenas listras
e regatos sobre a linda tonalidade rosa e malva. Tremiam-lhe as mãos. A prata
corria, tornava-se mais brilhante, transformava-se em luas e rios em um
microcosmo. Uma ilha rosada ergueu-se momentaneamente entre correntes de
prata, mergulhou e desapareceu.
Algo parecido com um soluço abafado sacudiu-lhe a garganta. Seus
cachos castanhos captaram a cor das chamas da lareira quando curvou a cabeça
sobre o búzio. Seu rosto afogueou-se e seus lábios ganharam cor. Uma luz
sonhadora e extasiante cobriu-lhe as feições, que, subitamente, se tornaram
belas.
A própria Sra. Clair não ficou insensível à inesperada e incrível beleza
da criança agachada junto à lareira, com o búzio tremendo ligeiramente nas
mãos. Relutante, disse:
— Ele devia ter sido menina. Eu nunca havia notado como é bonito. Se
houvesse sido menina, não importaria se não fosse inteligente. — E acrescentou
em voz mais suave do que o habitual: — Francis, ponha o búzio no ouvido. Você
ouvirá o som do mar.
O menino sobressaltou-se. Ergueu os olhos, aturdido. Mas havia
escutado. Obedientemente, levou o búzio ao ouvido, embora coisa alguma
soubesse sobre o mar, que para ele era apenas uma palavra.
Ouviu uma longa e sonora nota, uma miniatura de trovão, um zumbido
baixo e majestoso. Fascinado, sem ousar mover-se, escutou. Um som baixo e
cantante ergueu-se sobre as notas mais graves. Era um som de música de fadas,
doce, irresistível, uma voz cheia de alegria, ternura, glória. Nesse momento,
outras vozes se reuniram a ela. O universo transbordava de canto, acompanhado
por baixos longos, por imensos tambores rufando à distância e pelo estridor de
trombetas celestiais.
Esqueceu o tempo e o lugar. Esqueceu sua entidade recém-descoberta, o
mundo, os pais, a sala, o seu ser. Transformou-se apenas em um núcleo de
consciência, queimando forte, apaixonadamente concentrado na música que
subia mais e mais, inundando os limites mais remotos do espaço com o poder e a
força de uma harmonia esmagadora.
Nuvens de luz deslizaram pela visão. Escuros abismos rolaram em sua
direção, foram cortados ao meio por espadas de fogo e encheram-se de
atordoante radiação. Montanhas caóticas, atropelando-se, erguiam-se em
cinzenta majestade ante seus olhos e refulgiam em azul, púrpura, escarlate, ouro,
até que ele não conseguiu mais suportar-lhes o brilho. Oceanos de chamas
rodopiaram loucamente para longe, queimando em cores mutáveis; arco-íris
incandescentes, lançando raios, relampejaram sobre abismos insondáveis. E em
toda parte a música, sempre mais alta, como uma trovejante e universal
celebração de triunfo, mais terrível em seu esplendor do que a música que ouvira
no quintal em Higher Broughton. Naquela ocasião fora o mais baixo e nobre dos
ecos. Nesse momento era um êxtase insuportável, uma glória selvagem, quase
terrível.
Tal foi a alegria que não conseguiu suportá-la. Achou que tudo conhecia,
tudo compreendia. Seus olhos cegos fitaram as chamas, refletindo a luz
bruxuleante. Com expressão petrificada, sentiu um som de rompimento no peito,
como se algo houvesse sido libertado, solto. Continuou em transe, sentado ali,
com a alma na música, nas visões.
O trovão dilacerante parecia feito de grandes asas, batendo, palpitando,
ameaçadoramente próximas. Inesperadamente, viu uma mão emergir do fogo e
do esplendor cegante. Era uma mão enorme, mas, ainda assim, delicadamente
modelada, longa, esguia e forte. Segurava uma bola de barro. Os dedos fechados
em volta dela ergueram-se, projetaram-se para a frente, abriram-se. A bola saltou
como coisa viva e arremeteu para a frente e para baixo no espaço, mergulhando
no arco-íris e nas montanhas desmoronantes de luz e caos. Foi iluminada por
elas e raios coloridos brilharam em sua volta, cercando-a como um halo
brilhante- Desapareceu no espaço escuro, girando como um pião, girando, tonta
e desarvorada, mas cheia de sentido.
A mão estendeu-se, os dedos abriram-se e ergueram-se um pouco como
se lhe dessem uma bênção. Ficou assim durante algum tempo, a luz brilhando
através dela, caindo como feixes de sua palma, descendo pela escuridão que se
formava em cataratas de ouro, iluminando-lhes momentaneamente o rolar e a
queda.
A mão retirou-se devagar, relutante, mas com decisão. A luz seguiu-a.
As cores perderam a viveza e esmaeceram. As vozes baixaram e se
transformaram mais uma vez em um trovão sonoro e difuso. Retiraram-se como
uma maré melodiosa e meditativa para os confins do universo de onde vieram.
Naquele momento, eram apenas um murmúrio.
Finalmente, restou apenas o silêncio, as trevas, o vazio, a dor
insuportável e o senso de terrível perda no coração do menino.
— O menino dormiu, graças a Deus — disse a Sra. Clair. — Não, não o
acorde, May. Deixe-o dormir. Se o acordar, ele vai chorar novamente. Não, deixe
que ele fique com o búzio, se quiser. Logo vai deixá-lo cair no chão e quebrar.
Ele é anêmico — continuou a Sra. Clair. — Por que não lhe dá ferro? Parece que
ele sofre de raquitismo.
Ele se alimenta bem — respondeu Maybelle, justificando-se. Mas estava
preocupada com a palidez e a flacidez da criança.
A Sra. Clair encolheu eloquentemente os ombros. Voltou a atenção para
o filho.
— Então, está resolvido. Vou para a América em janeiro. Recebi uma
boa oferta pelos móveis da casa e os hóspedes foram avisados com bastante
antecedência. Francis, seria melhor que você fosse também.
— O que é que eu faria na América? — perguntou Francis Clair numa
fraca tentativa de gracejo. — Trabalharia como operário nas ruas, varrendo o
ouro que há por lá?
— Não gosto de leviandades — observou a Sra. Clair com grande
seriedade, balançando-se um pouco na cadeira dura. — Você faria exatamente o
que faz aqui: trabalharia numa farmácia. É um bom farmacêutico, pelo que diz o
Sr. Sawyer. E, depois, você tem seu violino. Poderia ter oportunidade de usá-lo.
Francis ficou calado. Apertou o joelho com a mão e olhou fixamente
para o fogo. Tinha a face imóvel, vazia, petrificada.
— Acho que lá há também casas de diversão — continuou inexorável a
Sra. Clair.
Francis Clair não se moveu, embora parecesse sacudir-se violentamente,
como se tomado de desespero. Em voz baixa, respondeu:
— Eu não tocaria em casas de diversão na América. Da mesma forma
que não toco aqui.
A Sra. Clair sacudiu impaciente a cabeça:
— Você não toca, absolutamente. Toca, May? Depois de todo o dinheiro
que gastei, tentando fazer dele alguma coisa, embora uma casa de pensão não
seja nenhuma vergonha, isso lhe garanto. Deu-nos pão e manteiga, boas roupas e
um telhado sobre nossas cabeças durante estes anos todos. É uma atividade
honesta e respeitável. Não me lamento. Não tive a quem recorrer...
— Não estou dizendo nada, mãe — respondeu o filho, mas falava em
tom distraído.
— E seria demais se dissesse! É mal-agradecido. Bem, eu tinha grandes
esperanças em você. Seu pai tinha uma loja. Isso é respeitável, também, e não
sou eu que vou pensar de outra maneira.
Mas eu queria algo melhor para você. Você queria tomar lições de
rabeca. Teve-as...
— Violino — murmurou Francis, contorcendo-se.
— Rabeca. Bobagem! O que é que isso importa? Era chamado de rabeca
no meu tempo, antes que as pessoas começassem a falar complicado. Rabeca.
Bem, você teve suas lições e o que foi que fez com elas? Nada. Nem mesmo
pratica, não é?
— Passou muito tempo. Tenho andado ocupado.
O que poderia dizer à mãe? O que poderia contar-lhe? Meu professor me
disse que eu não tinha verdadeiro talento e podia apenas decorar, isso a despeito
de tudo o que eu ouvia no íntimo. Mas não conseguia expressá-lo! Surgia em
espasmos, em gotas. O professor disse que eu me sairia bem numa taverna,
talvez num cabaré ordinário ou, quem sabe, poderia ensinar. Mas isso não era o
suficiente. Não era o suficiente para o que eu ouvia no íntimo! Não podia.
Realmente, não podia. Comigo era tudo ou nada. É nada. A caixa do violino
cobriu-se de pó. Isso sou eu. Coberto de pó. Não tenho alma alguma e isso é o
que importa- Nenhuma alma.
— Ocupado! — bufou a Sra. Clair. — A gente sempre arranja tempo
para fazer o que quer. Isso é simplesmente uma desculpa. Bem, faça o que
quiser. Não sou eu quem vou impor minhas opiniões a outrem. Meta-se com sua
vida, esse é o meu lema. Viva a sua vida e deixe que os outros vivam a deles.
Comporte-se e não dê bola para os vizinhos. De qualquer modo, você teria
sucesso na América.
— Você tem razão, mãe. É uma rabeca.
Maybelle ergueu rapidamente os olhos. Conhecia aquele tom quase
maligno de voz.
— Hum? — disse a Sra. Clair. — Bem, neste caso... Uma rabeca é uma
rabeca. Não adianta desprezar qualquer maneira de ganhar a vida. Além disso,
você também é farmacêutico.
Preparar pequenos comprimidos verdes, brancos, vermelhos, para
preguiçosos intestinos, para vagas dores de cabeça, para todas as crônicas e
anônimas doenças que afligem o corpo humano. Fechar e embrulhar em papel
listrado. Amarrar com um barbante. Olhar para os grandes vasos de vidro e, às
vezes, ver cristais que parecem fagulhas de fogo amarelo, vermelho, azul.
Farmacêutico! Pensou nos grandes pioneiros da Farmacologia. Certa vez,
sonhara em ser um deles, em descobrir a cura da tuberculose, do câncer, do
coração lesado, de tumores no intestino. Pensara no dia em que se ajoelharia ante
a Rainha — era um Rei, naquele momento. “Erga-se, Sir Francis Clair.” Calções
de seda, meias de seda, um crachá no peito, os jornais e os nobres do mundo
homenageando-o! Meu Deus, farmacêutico! Farmacêutico em uma ruazinha sem
importância em High Town, com a luz do candeeiro ferindo-lhe os olhos, a
campainha tocando à porta, o cheiro de sujo, poeira, chuva, suor e guarda-chuvas
gotejantes! Apertou o joelho com tanta força que os dedos penetraram na carne.
América. Os dedos convulsos relaxaram-se lentamente. Havia dinheiro
na América. O dinheiro compensava uma porção de coisas. Qual era o nome
daquele indivíduo que voltara a Manchester para buscar a mulher e os filhos?
Não se lembrava. Mas o sujeito trouxera os bolsos cheios de libras — de dólares.
Mostrava-os como um nababo. Ganhava três libras semanais em uma loja, num
lugar chamado Philadelphia. Usava boas roupas. Havia dinheiro para queimar na
América, dissera. Bares onde corria cerveja barata, casas de vaudeville e
oportunidades para todos. A América era a terra do dinheiro. Empregos? Bastava
pedir, a quatro ou cinco libras por semana! Francis fez cálculos. Tinha sorte em
levar para casa três libras e dez xelins todas as noites de sábado. Não conseguia
lembrar-se de quando tivera nas mãos o último soberano. Poderia mesmo haver
esperança na América. O que dissera aquele homem? Horrivelmente quente o
verão em Philadelphia. Mas havia sol. Nunca se via o sol em Lancashire.
Inesperadamente, o sangue fraco e o corpo magro agitaram-se e ele ansiou pelo
sol que nunca vira. Ouviu a chuva descendo pelas biqueiras, escorrendo dos
beirais. Lavava as janelas em correntes amarelo-acinzentadas. O nevoeiro
empurrava as vidraças. Uma carroça passou chocalhando pelos tijolos da rua.
— América — disse em voz alta. — Vou pensar nisso.
— Oh, Frank, você nunca deixará a velha e querida Inglaterra! —
exclamou incrédula Maybelle. Espichou os beiços e seus olhos encheram-se de
lágrimas. — Viver entre estranhos!
— Não seja medrosa, May — interveio a Sra. Clair. Inclinou com
aprovação a cabeça para o filho. — É isso que você deve fazer, Francis. Fazer
valer sua vontade. Você é quem sabe o que é melhor para você. Eu planejei tudo.
Vou abrir uma pensão na América. Tenho uma amiga... Você deve lembrar-se
dela. Sra. Blossom, esse é o nome dela. Agora, Sra. Jones. Casou na América.
Mora em Bison, num lugar chamado Nova York. Você deve lembrar-se de que
lhe falei sobre ela. Tem uma pensão e cobra quinze xelins por semana. Pense
somente nisso. O meu melhor quarto de frente só rende oito. E ela não tem uma
pensão fina, pelo que diz. Simples, para gente da classe operária. Eu faria coisa
muito melhor. Caixeiros, guarda-livros, lojistas. Eu poderia cobrar mais.
Ganharia uma fortuna. Não tenho as melhores camas de pena que o dinheiro
pode comprar? E bons lençóis e travesseiros de pena? Eu sei o que é qualidade.
Vão gostar disso na América, onde as pessoas pouco mais são do que selvagens.
Gostarão também de provar a velha e boa cozinha inglesa. Um pouquinho de
salva, cebola, tomilho e manjerona. Acho que lá não há esses temperos.
Maybelle enxugou os olhos com o lenço amassado. Frank sempre seguia
os conselhos do velho demônio. Como enfeitiçado. Ouviu a chuva também, mas
para ela era uma voz amiga e conhecida. Horrorizava-se somente em pensar na
América.
— Está resolvido, então — disse a Sra. Clair, que sempre resolvia tudo
imediatamente, convencendo e deixando sem ação a plateia — Vocês vão depois.
Quanto é que você tem no banco, Francis?
Ele contorceu-se todo.
— Bem, mãe, a senhora sabe, houve a bronquite de Maybelle no último
inverno. Depois o garoto adoeceu e tivemos que lhe dar óleo de fígado de
bacalhau misturado com vinho. E precisei comprar um sobretudo novo. O velho
estava todo remendado...
A Sra. Clair endereçou a Maybelle um olhar maldoso, como se tudo
aquilo fosse culpa dela.
— Compreendo — disse sinistra. — Você nada tem.
— Duas libras e três xelins.
— Compreendo. Às vezes, um homem não pode progredir na vida. Mas
não o estou culpando, Francis. Sei o que você teve que enfrentar. Se não
houvesse extra algum, quanto é que você poderia economizar em um ano?
Um sorriso irônico apareceu na face de gnomo de Francis.
— Duas libras e três xelins, se tiver sorte.
— Quando você vender a mobília, isso dará algum dinheiro. Você possui
em casa algumas coisas boas. Dei-as a você e sei que são de qualidade. Consiga
um bom preço. — Interrompeu-se, lutando contra si mesmo. — Eu lhe enviarei a
diferença. Você poderá pagá-la aos poucos. Sem juros — acrescentou,
combatendo os próprios instintos.
Sem juros, pensou ele. Mas a vida jamais é assim. Os juros se empilham
e ultrapassam o principal. Transformam-se numa montanha que o homem jamais
pode escalar. É sepultado sob ela.
— Vou pensar no caso — falou novamente.
— Bem, estou satisfeita porque está tudo resolvido — disse firme a Sra.
Clair. — Vou buscar o chá. Tenho um regalo para você hoje à noite. Presunto e
língua fresca, cortada em fatias, muito finas. Pão preto, manteiga e geleia de
ameixa. E um pouquinho de bolo de passas. E agrião... o último. Você sempre
gostou de agrião, Francis. Chá bom e quente. Pode botar mais carvão no fogo.
Mas tenha cuidado. Não desperdice, não desperdice, esse é o meu lema.
CAPÍTULO 4
A Sra. Jamie Clair, competente e segura de si mesma como sempre,
“torrou” a mobília da casa e, armada com alguns objetos de uso doméstico,
viajou para a América em janeiro. Francis Clair, porém, conseguira um “posto”
numa grande farmácia em Reddish, com um aumento de quinze xelins por
semana. Maybelle, feliz por que a ameaçadora hégira fora, pelo menos, adiada,
acompanhou-o feliz para o pequeno subúrbio de Manchester.
A casa em que moravam em Mosston Street era quase idêntica às que
haviam ocupado em Higher Broughton e High Town, apenas um pouco mais
triste e coberta de fuligem, se tal era possível. Havia um cotonifício em Reddish,
onde crianças, rapazes, moças, homens e mulheres trabalhavam nos teares em
meio a um calor úmido e fumegante, quase nus, tossiam e contraíam bronquite
ou a “tísica”. Os vizinhos dos Clairs faziam parte dessa pobre gente, mas
Maybelle sentiu-se contente. Havia lojas próximas e podia-se comprar peixe e
batatas sem muito trabalho. Havia, também, os eternos quintais de pedra, os
muros e as portas verdes de madeira para matar as saudades de um lar. Ela era
por natureza uma alma cordial. Pouco tempo depois, do lado de fora do portão
verde, com os braços cruzados sobre o avental, trocava sintomas, bisbilhotices e
“receitas” com as esposas dos operários do cotonifício. Hipocritamente,
lamentava-se por não ter mais filhos, mas tinha todo o cuidado em não dizer sua
idade. Na verdade, mostrava-se realmente orgulhosa da benevolência da
natureza. Bastava-lhe olhar para as crianças anêmicas, semimortas de fome,
raquíticas, que repuxavam, chorando, as saias sujas das invejosas vizinhas para
reconhecer que fora abençoada por Deus. Além disso, tinha a oportunidade de
exercitar a “virtude” egoísta e realmente cruel chamada magnanimidade. Podia,
com Francis ganhando melhor salário e sendo ela mãe de um único filho, entrar
nas sórdidas cozinhas das vizinhas e deixar um pote de geleia, um pão, um
“pedacinho” de carne, ou um repolho como uma espécie de oferenda ao Moloch
da natureza, que fora tão inexplicavelmente bondoso com ela. Às vezes, evitando
o olhar vigilante de Francis, dava presentes de sapatos usados e roupas pequenas
demais para Frank, como um óbolo adicional aos malignos deuses de todos os
pobres, dos esfomeados e dos casais cheios de filhos.
Sentia uma espécie de cálida alegria quando via uma pobre mulher
descendo aos tropeços a rua, vestida com um de seus corpetes remendados, saia
de sarja jogada fora ou xales comidos pelas traças. Agradava-lhe sentar-se em
uma pobre cozinha e, lamentando-se e balançando-se, consolar uma mãe aflita
de muitos filhos pela calamidade de ter sido seu homem “chutado” da fábrica.
Às vezes, dava-se ao luxo de oferecer um xelim ou dois ou uma garrafa de óleo
de fígado de bacalhau a um pobre-diabo que tossia e escarrava os pulmões numa
cama imunda, ou uma nova camisola de batismo, de algodão áspero e renda
ainda mais áspera feita à máquina, a um recém-nascido. Certa vez, tivera a
deliciosa oportunidade de consolar uma arrasada mãe, cuja filha de dez anos
perdera três dedos da mão direita na fábrica. Maybelle achou que a ocasião
merecia meio quilo inteiro de chá. Heroicamente, expulsou da mente o
pensamento de que não podia mais comprar aquelas luvas de pelica branca para
ir à igreja nos domingos.
Frank lembrava-se de ouvi-la cantar feliz ao passar roupa à noite na
cozinha:
“Antes de casar, eu usava xale,
Agora, casada, nada mais tenho!
Oh, que vida, que dura vida!
Melhor solteira do que mulher de pobre!”
Até o fim da vida, essa canção tola o obcecaria, tornando a chuva, a
fuligem, o sofrimento dos pobres, os cotonifícios e toda a miséria dos
desafortunados tão vivos em sua memória como quando a ouvira pela primeira
vez. Achava que era a verdadeira canção da Inglaterra, a verdadeira canção do
povo, a canção dos que trabalhavam de sol a sol e cujas vozes mudas jamais lhes
conseguiam expressar a angústia.
Com que clareza, mesmo aos quarenta anos, lembrava-se da casa de
Mosston Street!
Havia do lado de fora um pequeno “jardim”, uma faixa de musgo
bolorento de três metros e sessenta por dois e quarenta, cuidadosamente
guardada por uma grade de ferro. Os degraus que davam para a casa, esfregados
todas as manhãs de sábado, brilhavam como neve, pois era ponto de honra das
donas-de-casa locais serem as primeiras a caírem de joelhos nesse dia, armadas
com balde, escovão e tijolo de sapólio. A mulher que negligenciava esse trabalho
público era considerada indigna e desprezível e recebia dos vizinhos apenas
curtas inclinações de cabeça. O parto era a única desculpa aceitável.
A sala, fechada por cortinas, não era uma “sala de estar” em qualquer
sentido da palavra. Frank não se lembrava de ter-se sentado ali alguma vez,
mesmo por um único momento, até o dia em que teve permissão de empoleirar-
se no caixote de madeira que continha as posses da família, um caixote já
rotulado: “Baltic. White Star Line”. Mas lembrava-se da planta de borracha na
janela, alta, fina, repulsiva, em seu vaso de porcelana verde, das cortinas de
Nottingham entreabertas com todo o cuidado para informar aos vizinhos que, do
lado de dentro, tudo era ortodoxo e estava em ordem e que havia ali uma planta
de borracha. Lembrava-se do tapete turco vermelho, do veludo vermelho das
cadeiras e do sofá, dos candelabros folheados a prata, da cornija de pedra da
lareira, forrada com veludo escarlate e das rosas vermelhas esparramadas do
papel de parede. A Sra. Clair havia-os presenteado com a grande mesa redonda
de centro, com respectiva toalha carmesim de gomos, e o candeeiro de porcelana
que rescendia a querosene. Sobre a mesa pendia um lustre barato de gás,
instalado recentemente. A Sra. Maybelle, grande apreciadora do vermelho, sentia
fascínio pela sala de visita. Com frequência, reverentemente à porta, murmurava:
“Rico”. Virava-se para Frank, escondido por trás de suas saias, e dizia orgulhosa:
“Rico, lindo, não é?” Jamais acendia o fogo na lareira de pedra, embora polisse
religiosamente o guarda-fogo e os atiçadores.
A família vivia em uma sala nos fundos, alcançada por meio de um curto
corredor. Havia ali menos “riqueza”, embora mais conforto. Sala feia, mas
animada por um fogo sempre aceso. A cornija da lareira acumulava grande
coleção de pequenas bugigangas, cálices com velas de cera, um relógio de
mármore de imitação e algumas fotografias. Um tapete barato cobria o chão, em
cujo centro ficava a mesa de jantar, entre duas janelas que faziam ângulo reto
entre si. Havia ainda cadeiras de balanço de madeira, com almofadas, e um lustre
a gás. Da sala subia uma escada até os quartos, sempre frios e despojados, e,
melhor que tudo, um banheiro, sem sanitário. Esta última e feia instalação, como
em Higher Broughton, localizava-se no quintal de pedra. Frank não se lembrava
de ter tomado um banho sequer na lustrosa e branca monstruosidade do andar
superior. Ele, como os pais, banhava-se numa banheira de lata diante do fogo da
sala de estar, em uma provação acompanhada por sabão cáustico e duras e
engomadas toalhas.
Do outro lado do quintal estendia-se o Common, onde brincavam as
crianças, e, além do Common, a rua elevada chamada Sandy Road. A rua levava
à “cidade”, que ficava à esquerda; à direita, conduzia às fábricas de algodão, à
terra aberta e, mais de um quilômetro e meio adiante, à escola pública.
Frank lembrava-se vividamente de alguns vizinhos. À esquerda, os
Wordens. O pai, Jim, trabalhava no cotonifício. A mãe era uma mulher
sofredora, silenciosa de tanto desespero, que passara a vida inteira na febricitante
atividade de “esticar o dinheiro”. Bertha, mulher feita aos dezesseis anos, frágil
mocinha de rosto branco, bastos cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis
arregalados, já trabalhava na fábrica. Will, de quatorze, chegava a casa ao meio-
dia e seguia para a fábrica sem passar pelo preliminar de uma refeição. Havia
ainda Jim, de onze anos, que morreria na França em 1916; Jack, de oito anos;
Helen, de sete, gorda, faladora, barulhenta, e Lassie, uma linda menina de cinco
anos, sem contar uma vaga criança sempre nos braços da mãe, chorando
eternamente e que morreu de raquitismo antes de completar o primeiro ano de
vida. Essa então, a família Worden, que comia quase exclusivamente peixe e
batata frita, batata cozida e repolho, cenouras velhas, cebolas a vapor, chá, pão
anêmico e geleia e, nos domingos, um “pedacinho” de carne cozida de vaca ou
de carneiro.
Os vizinhos da frente, do outro lado da rua calçada com tijolos
vermelhos, eram vagos nas recordações de Frank, com exceção dos Durhams.
Ele, pai de um único e solitário filho, era médico, embora fosse invejosamente
chamado de “charlatão”. Mas usava sobretudo de casimira com gola de veludo e
um elegante chapéu-coco, andava de luvas e bengala e fazia visitas em
carruagem alugada. A esposa, mal-humorada, bem vestida, desprezava
visivelmente os vizinhos e protegia o filho, Eddie, um detestável esnobe que
frequentava uma escola particular em Sandy Lane, longe de contatos com as
crianças “comuns”.
A escola onde estudava Eddie Durham e algumas poucas crianças de
Reddish cobrava apenas quatro xelins por semana. Francis Clair, ensoberbecido
com o aumento de salário, resolveu que o jovem Frank devia frequentá-la,
também. Desencorajou as medrosas tentativas de Frank de fazer amizade com os
garotos dos Wordens e fez comentários acres sobre as relações da esposa com
eles.
— Tenha um pouco de orgulho, Maybelle — dizia. — Você precisa
conservar a cabeça erguida. Não sou nenhum esnobe, mas, afinal de contas, há
limites.
O jovem Frank não podia usar tamancos como as demais crianças,
embora lhes julgasse o som fascinante. E invejava-as. Lavado e meticulosamente
escovado, esperava a chegada do pai para o jantar e o chá. Não podia brincar no
enlameado Common, o que fazia naturalmente em todas as ocasiões em que o
pai se ausentava. Não havia o menor esnobismo em Maybelle, que considerava a
Sra. Worden uma “boa e respeitável mulher, uma pobre alma”, preferindo a
quente cozinha da casa ao lado a sentar-se na elegante sala de visitas dos
Durhams para bebericar chá em porcelana branca e comer bolo de semente de
alcaravia. Permitia que Frank a acompanhasse e, com frequência, deixava-o na
casa dos Wordens quando ia “às compras”, levando no braço a cesta de mercado.
Temerosa e chorosa, acompanhou certa ocasião com os olhos o marido,
que levava Frank à escola no primeiro dia. A despeito de sua robusta mente
maternal, lembrou-se dos avisos da sogra. Estava inteiramente convencida de
que, naquela tarde, Frank seria ignominiosamente recusado. Como, então,
poderia andar de cabeça erguida? A lei exigia que as crianças começassem a
frequentar a escola aos cinco anos, mas... e se ele fosse um pouco “lerdo”?
Frank, porém, não foi recusado. Voltou naquela tarde, agitado, confuso, em
lágrimas e inteiramente desgrenhado, com a camisa branca nova manchada de
tinta, amassadas a jaqueta e as calças de sarja, caindo pelas pernas as meias
pretas e com o boné de marinheiro no pescoço, estrangulando-o com o elástico.
Francis Clair estava uma fera. Desceu a rua, puxando com tal ferocidade
o filho pela mão, que, às vezes, os pequenos pés deixavam inteiramente a
calçada, enquanto murmurava enfurecido para si mesmo:
— Vou-lhe dar uma surra, vou-lhe dar uma surra! — dizia, rilhando os
dentes. — Vou-lhe mostrar uma coisa! Espere até chegarmos em casa.
Depois de entrar em casa e fechar com todo o cuidado as portas e
janelas, para que os “vizinhos” nada ouvissem, fustigou a amedrontada Maybelle
com berros furiosos.
— Você sabe o que foi que ele fez, esse seu belo filho? Passou o dia
inteiro sentado como um estúpido e, pouco antes de eu chegar, apanhou um
tinteiro, lançou-o em uma garota e deu-lhe uma pancada na cabeça! E recebeu o
troco, também! Olhe só para ele! E a culpa de tudo isso é sua. Você o mimou de
tal jeito que ele agora não tem mais remédio.
Frank foi vigorosamente espancado, naturalmente, primeiro pelo pai e
depois pela mãe. A última surra foi aplicada menos por raiva do que como
tentativa para aplacar Francis. Frank permaneceu calado durante toda a dura
prova, embora ficasse lívido. Mandado para a cama sem chá, deitou-se,
tremendo e arrepiado de sofrimento, apavorado, enquanto altos berros
martelavam-lhe os ouvidos. Somente conseguiu dormir ao amanhecer.
Não tinha palavras. Não tinha absolutamente meios para articular o
imenso e terrível medo, o sofrimento. Sabia o que era o ódio. Conhecera-o na
avó. Mas conheceu-o pela primeira vez em grande escala naquele dia e o odor do
ódio impregnou-se em cada dobra de sua carne frágil.
A escola fora fundada por uma mulher fina e decadente, de
temperamento lânguido, porém malicioso. Consistia em duas grandes salas sobre
os cômodos onde ela residia. A primeira sala era a de aula, com uma longa mesa
estreita, cercada de cadeiras. Uma litografia da falecida Rainha adornava a
parede de reboco. Não havia lareira e a umidade fria do outono enchia a sala
com um cheiro fétido e empoeirado de giz. A segunda sala possuía outra longa
mesa, também cercada de cadeiras, onde as crianças tomavam chá momo e
fraco, adoçado com leite condensado, e comiam bolo velho e biscoitos. Aí
jantavam, com as mãos sujas do trabalho nas lousas, as faces sérias e
desconfiadas.
A turma era composta de apenas oito crianças, filhos de indivíduos com
pretensões à aristocracia, como Francis Clair. Seus pais eram pequenos lojistas,
donos de bares, guarda-livros e caixeiros esfomeados. Em comparação, os
paupérrimos Wordens eram robustos, sadios e fortes. Faces murchas,
inteiramente lívidas, e narizes escorrendo com o catarro de Lancashire ou a
coriza de resfriados. Todas as magras gargantas tossiam sem cessar. Nenhum
sólido tamanco lhes protegia os pés. Botas abotoadas, estreitas, mas bem
engraxadas, cobriam-lhes invariavelmente as extremidades, pendentes dos lados
das cadeiras. As meninas vestiam aventais bem feitos, pregueados. Os meninos
usavam roupas imaculadas.
Controladas, mal alimentadas, tremendo sempre de frio, variavam as
crianças em idade dos cinco aos quatorze anos. Eram todas ardentes esnobes,
invejosas, cheias de malícia e muito elegantes na fala. Seus instintos infantis
naturais, tão bem escondidos, negados e corrompidos, eram desviados do vigor
normal para a crueldade mesquinha e venenosa. Com a presciência das crianças,
bastou-lhes um olhar para reconhecer imediatamente em Frank Clair o estranho
eterno, esquisitão, ameaçador. Não sabiam o que nelas havia que Frank
ameaçava, mas sentiam que o garoto era diferente delas; odiaram-no e
imediatamente começaram a conspirar maneiras de atormentá-lo por sua
singularidade, pela ousadia de não ser uma delas.
E não estavam sozinhas na hostilidade. Miss Elizabeth Ballister
reconheceu-o, imediatamente. Seus vis instintos eriçaram-se ao conhecê-lo.
Arrepiaram-se seus cabelos. Odiou-o no primeiro dia. Não disse a si mesma:
“Ele é um estranho e os estranhos são perigosos, especialmente um estranho
como esse. Ameaça algo que há em mim. Deixa-me inquieta e contrafeita. Por
que, não sei.” Simplesmente o fitou e pensou: eis aqui uma criança
profundamente tola e desagradável e eu simplesmente não gosto desses olhos
azuis fixos e vazios, dessa boca mole e caída. Não parece muito inteligente e
aposto que vou ter problemas com ele.
Entretanto, quatro xelins por semana eram quatro xelins por semana e,
assim, sorriu com lânguido afeto para a apavorada criança, que procurava soltar-
se da mão do pai, e afetada e delicadamente para Francis.
— Que amor de criança! — arrulhou. — E que prazer eu e todas estas
queridas crianças vamos ter com o pequeno Francis entre nós! Sei que ele
também vai gostar muito.
Era uma alta solteirona de uns quarenta anos, muito magra, mas também
muito elegante em seu corpete de seda azul, cabelos louros cacheados, cinto
preto largo e saia de sarja azul. O penteado era incrivelmente bem feito. Nem um
único fio de cabelo escapava dos grampos e pentes. Exsudava um odor de
aristocracia nata, sabonete Pears e água-de-colônia. Possuía mãos frias e
ossudas, úmidas e esguias e uma cintura tão fina como uma haste de planta. A
pele lívida contraía-se em dezenas de pequenas e secas rugas quando sorria. O
sorriso revelava uma fileira de dentes grandes e suspeitosamente brancos,
grandes demais para a longa e magra face, onde não se via o menor vestígio de
cor. Os olhos azul-claros eram emoldurados por órbitas vermelhas. O catarro
havia avermelhado as narinas do seu grande nariz ossudo. Francis, cheio de
respeito pela aristocracia, pela condescendência açucarada, pelo flexível corpo
magro e aqueles ares de bem-nascida, lembrou-se com desprezo de sua vermelha
e gorda Maybelle.
Antes, Frank fora informado sobre a importância da escola e avisado de
que não devia chorar, mas comportar-se como um pequeno cavalheiro. Ouvira
silencioso, dócil. Não se sentira atraído nem repelido pelo discurso sobre sua boa
estrela em ter sido aceito pela escola. Não sentia nada, nem pensava em coisa
alguma, mergulhado como sempre em vagos sonhos. Quando, porém, a escola se
transformou numa súbita e terrível realidade, quando chegou realmente lá,
quando viu os olhos de Miss Ballister e os olhares penetrantes e vigilantes dos
novos colegas, prorrompeu em gritos. Não pôde controlar-se. Gritou
selvagemente, com os olhos secos, tremendo de medo, lutando para soltar-se do
pai, impelido apenas pelo cego desejo de fugir.
Francis ergueu a mão num impulsivo gesto de ameaça. Sua face adquiriu
a cor de púrpura baça das orelhas da mãe e imaginou-se sendo posto
ignominiosamente na rua e vivendo eternamente envergonhado perante os
vizinhos. Mas, antes que caísse o golpe, Miss Ballister, temendo pelos quatro
xelins por semana, agilmente arrancou o filho das mãos paternas e curvou-se
sobre ele como um anjo de misericórdia. Feliz, a criança olhou-a, ansiosa.
— Calma, calma — arrulhou Miss Ballister, acariciando-lhe os cachos
castanhos despenteados. — Nós apenas não nos conhecemos. Mas vamos ficar
calmos logo. Mandaremos o papai embora, agora, e tudo será maravilhoso, não
é?
Francis, suado e trêmulo, entendeu a insinuação. Deixou imediatamente
a sala e desceu as escadas, levando os gritos do filho nos ouvidos até que a porta
se fechou misericordiosamente atrás dele.
De súbito, Frank teve a certeza de que estava sozinho, que o pai se fora.
Parou abruptamente, tremendo sem parar dos pés à cabeça. O lenço que lhe
enxugava a face sem lágrimas enjoou-o com seu cheiro adocicado, mas
aguentou. O toque gentil tornou-se cruel. Esfregava e batia. A voz lânguida
perdeu a característica de arrulho. Soou dura e odienta:
— Agora, sente-se e comporte-se. Não quero tolice alguma, moço.
Sabemos o que fazer com crianças más e aviso-o de que você não gostará.
Foi erguido nos ares e sentado com um baque surdo numa cadeira; a
mesa erguia-se à sua frente, ao nível do queixo, coberta de lousas e papéis. Viu
as faces dos colegas, exultantes, esverdeadas, desencarnadas, arrumadas em fila
no outro lado da mesa, as janelas nuas, sem cortinas, e os olhos de Miss Ballister
fitando-o irados. Viu tudo isso em uma clara e brilhante luz cristalina que lhe
pareceu estranha e apavorante. Viu tudo isso e ficou imóvel.
Com lábios comprimidos e desdenhosos, Miss Ballister sentou-se. Bateu
peremptória com um lápis na mesa e disse:
— Crianças, vamos começar imediatamente nossas lições.
Esmagara crianças mais rebeldes do que aquela coisinha odiosa.
Resolvia as mais difíceis situações. Abriu o livro e começou a ditar
somas. Observava-o pelo canto do gélido olho. Não toleraria absurdo algum
daquele horrendo monstro. Observou que ele tinha os olhos fixos nas crianças à
frente. Está inteiramente desligado, pensou. O que é que devo fazer com ele?
Tudo o que peço é que continue quieto. Mas isso não me importa. Ele não tem
inteligência para agir de outra maneira, com esse rosto parvo e esses horríveis
olhos esbugalhados.
CAPÍTULO 5
Embora as odiasse, Miss Ballister não deixava de ter certos
conhecimentos a respeito de crianças. Fora obrigada a desenvolvê-los em
autodefesa. Empurrou um livro de gravuras para a frente de Frank e abriu-o.
Bateu em seguida na cabeça do menino com um lápis, provocando risinhos
deliciados das demais crianças e disse:
— Olhe para isso e distraia-se um pouco.
Aí está o Inimigo, pensaram as crianças, não em palavras, mas
instintivamente. É o Réprobo. O Estranho, formado de outra carne e dotado de
outro espírito. Que odiamos imensamente.
A profunda e primordial maré fluiu para a frente e para trás entre Frank
Clair e os colegas, a maré do reconhecimento e da negação, da compreensão e do
ódio. Fluiu durante toda a manhã enquanto Miss Ballister reclamava, repreendia,
interrogava e passava deveres. Um menino ou menina erguia-se e lia
monotonamente um trecho do livro; uma mosca retardatária zumbia e chocava-
se atordoada contra as vidraças. O cheiro do giz e do creiom tornou-se acre na
escuridão sempre maior, antes da chegada da chuva. O ar esfriou cada vez mais.
Frank olhou fixamente para o livro, virando as páginas com dedos dormentes.
Viu estranhas cenas: cegonhas empoleiradas em telhados; uma criança nos
braços de uma deusa do gelo a correr pela neve em meio a uma tempestade; um
menino num barco mágico, dourado, de velas de seda vermelha; uma garota de
sapatos escarlates correndo por uma escura floresta; uma bela mulher
adormecida há cem anos em um sofá de cetim azul; uma gata borralheira junto
ao fogo, entre cinzas, e uma carruagem de abóbora, puxada por minúsculos ratos
brancos. Conheceu, em suma, seu primeiro livro de contos de fadas e
imediatamente se fundiu com as criaturas dos desenhos coloridos. Entrou em
transe, sonhando, a léguas de profundidade, em uma meditação informe. Perdeu
a identidade e não sentiu mais frio, terror ou solidão.
Miss Ballister ficou satisfeita com tal imobilidade. Pelo menos, pensou,
ele não é incorrigível, como eu temera. Poderei controlá-lo. Mas que face tola,
parva, vazia! Nenhuma expressão, absolutamente. Talvez estivesse dormindo de
olhos abertos. Surpreendeu-se ao ver páginas sendo viradas, devagar, sem pressa,
por um pequeno dedo azulado.
As crianças, porém, não o haviam esquecido, embora, para ele, não mais
existissem. Estava inteiramente inconsciente da presença delas e elas se
ressentiram disso, também, instintivamente, quase com mais intensidade que da
consciência da existência dele. Às vezes, Frank erguia os sombrios olhos azuis e
fitava-as, mas era como se não existissem. Os jovens e selvagens corações
rebelaram-se contra esse descaso que os transformava em nada, em coisas
insignificantes. Tivesse ele, mesmo por um instante, sorrido para um ou dois,
tímida e esperançosamente, se os tivesse realmente visto, poderia ter feito um
amigo.
Ao meio-dia, as crianças sentiram cheiro de chá. Uma pequena
empregada entrou na sala ao lado com um forte bater de botas, carregando uma
bandeja com água quente e chá, uma bacia para os restos, uma lata de biscoitos
duros, incrustados com açúcar ou sementes que pareciam ardósia, um prato de
fatias finas de pão e manteiga, um pote de geleia e, para Miss Ballister, um
pequeno pires de carne fria em fatias. As crianças receberam-na com alegria,
empurraram para o lado as lousas e fecharam com estrondo os livros.
Miss Ballister organizou-as numa espécie de fila e levou-as para seus
lugares na mesa. Felizes, barulhentas, descontraídas, brincaram, empurraram-se,
riram e conversaram. Miss Ballister sentou-se, sorrindo levemente, com os olhos
ávidos postos sobre a carne. Nesse momento notou que Frank não se encontrava
entre as demais crianças.
Irritada, olhou para a outra sala. Viu-o curvado sobre o livro, a cabeça
loura iluminada pela fraca luz que se filtrava pelas janelas. Lembrava um jovem
noviço examinando, atento, pergaminhos místicos, petrificado de santa
reverência. A própria Miss Ballister tornou-se consciente de alguma profunda
característica de imobilidade nele, uma absorção que o atraíra para uma região
de sonhos eternos. A imobilidade fluía dele, pela sala deserta, lembrando um
poço de água estagnada, cinzenta, silenciosa. Aparentemente, nem respirava.
A despeito de si mesma, Miss Ballister sentiu um calafrio e pensou
vagamente no cachecol. Em seguida, uma pequena fagulha de ódio e
impaciência brilhou em seus olhos. Que garoto intolerável! Um impulso que não
soube explicar fê-la erguer-se rápida da cadeira, correr até a criança e agarrá-la
pelo braço flácido. Sacudiu-a com uma violência incomum.
— Seu bobinho, o que é que há com você? — exclamou. —. Venha
imediatamente tomar seu chá!
A cabeça da criança rolou sobre os ombros. Ela sentiu-lhe o tremor, a
volta atordoada à realidade. O menino ergueu os olhos para ela e uma luz viva
relampejou neles. Deixou-se arrastar para a sala ao lado. As crianças estavam
novamente alegres e buliçosas. Miss Ballister sentou-o com um baque surdo
numa cadeira e fitou-o maldosamente, enquanto lhe servia uma xícara de chá e
deixava cair três biscoitos no pires ao lado. Passou manteiga numa fina fatia de
pão e cobriu-a com uma leve camada de geleia. Contraíra fortemente os lábios
para não revelar mau humor ou nojo e algo indescritível que jamais sentira antes.
Ele observava-lhe os movimentos como se estivesse hipnotizado. Olhou em
seguida para o prato.
— Coma! — disse furiosa a professora enquanto as crianças
observavam, jubilosas.
Obedientemente, pois descobrira que a obediência o fazia ignorado,
levou um biscoito à boca. Ergueu a xícara aos lábios com as duas pequenas e
frias mãos. O calor confortante penetrou-lhe nas carnes. Chegou mesmo a erguer
os olhos.
Embora desapontadas porque haviam sido privadas de cenas e gritos, as
crianças conversaram e riram alegremente entre si, batendo com as colheres nas
xícaras, apoquentando-se mutuamente com cordial malícia, passando pratos,
bisbilhotando e discutindo. Um dos meninos, filho do lojista mais rico de
Reddish, era tratado com respeito e servilidade. A menor palavra sua era
recebida com vivas inclinações de cabeça, embora ele fosse um tiranete gordo e
tolo. Eddie Durham figurava em segundo lugar na escala do respeito devido. Era
o único que conhecia Frank. Cochichava maldosamente sem cessar com os
vizinhos, que respondiam com risinhos malévolos e olhares para a silenciosa
criatura. Eram crianças demais para já terem adquirido aquele verniz hipócrita da
civilização, que finge aceitar mesmo os estranhos. Selvagens, cruéis, desinibidos
e naturalmente bestiais, eram eles mesmos, autenticamente humanos, não
corrompidos ainda pela cortesia e pela tolerância.
Frank bebericou o chá. Mas, naquele momento, um mortal desânimo
desceu sobre ele, uma dor no coração que, jovem demais, não pôde
compreender. Passava com grande frequência por essas fases, embora não
pudesse descrevê-las. Tornava-se apenas mais calado. Ergueu os olhos e viu as
faces sorridentes, as sorrateiras inclinações de cabeças, os murmúrios odiosos.
Crianças nunca lhe haviam invadido a consciência antes, nem mesmo os
Wordens, que o suportavam com sadia indiferença, tão ocupados viviam e tão
prementes eram a fome e a pobreza. Naquele momento, porém, viu-as
objetivamente e teve certeza de que elas o haviam excluído, que nunca seria uma
delas.
Sentiu imensa solidão, isolamento, uma dor pungente e indescritível. A
sua carne gritava pedindo um toque humano, uma mão humana, uma palavra
humana de afeição, de intimidade. O coração, o ser, ansiavam por um olhar:
fraterno e amigo, um riso confiante, um gesto de aceitação. A solidão
aprofundou-se, imensa e esmagadora, como uma doença de espírito, uma fome
desesperada e insaciável.
Ele só faz olhar, olhar, pensou enojada Miss Ballister. Nunca vira
crianças antes? Parecia um imbecil. Talvez fosse. Bem, quatro xelins extras por
semana são quatro xelins e mendigos não podem ser exigentes, infelizmente.
— Beba seu chá, Francis •— ordenou, mal-humorada. Abriu com um
estalo o relógio preso ao corpete. — Temos exatamente apenas mais cinco
minutos.
Frank, porém, não podia bebê-lo. Suas mãos como que se dirigiam para
os colegas à frente, estendidas como se suplicassem uma esmola. As crianças,
entretanto, com a crueldade, a maldade e a malícia da infância, olharam apenas
para as mãos e permaneceram exultantemente mudas.
Frank soube nesse instante que fora final e irrevogavelmente rejeitado e
que sempre assim seria, a menos que se disfarçasse por trás de outra face que
não a sua, a menos que aprendesse uma estranha e odiosa linguagem, a menos
que se transformasse naquilo que eles desejavam que todos os demais fossem.
Recolheu as mãos suplicantes. Continuou ali em melancólico silêncio, não
rebelde, mas resignado, não irritado, apenas tomado de confusa mágoa.
As crianças voltaram à sala de aula. Frank seguiu-as, tropeçando
desajeitado. Em silêncio, subiu na cadeira. O livro continuava à frente, mas
perdera o encanto. Ele tinha a carne ferida, dolorida, sangrante e as entranhas
contraídas de dor.
Curvou a cabeça sobre o peito, com os olhos fechados.
O garoto está mesmo dormindo, pensou aliviada Miss Ballister. Espero
que durma até acabarem as aulas.
Frank, porém, não dormia. Permaneceu inteiramente inerte enquanto as
lições prosseguiam. Era jovem demais para pensar em imagens ou palavras, mas
eram sem fim suas emoções, formadas de tempestades, raios, mares, cansaço,
desespero. Os sons morreram em volta e ficou sozinho como sempre ficara e
sempre ficaria.
As horas arrastaram-se. Duas, três, quatro. As crianças, tendo-o
esquecido inteiramente, preparavam-se para voltar para casa. Francis, porém,
prometera vir buscar cedo o filho. Na manhã seguinte, uma das crianças mais
velhas, ou talvez o Dr. Durham, que às vezes ia apanhar Eddie, o
acompanhariam até em casa enquanto ele não aprendesse o caminho.
Durante uma hora mais ou menos, Frank havia-se mexido debilmente,
emergindo da letargia, mas não ainda presente entre as demais crianças.
Observava-as, movendo olhos apáticos na direção delas quando recitavam.
Observava Miss Ballister, que circulava por trás das cadeiras. Uma expressão
vaga e sombria cobria-lhe a face como um nevoeiro.
Neste instante, as crianças, alegres com a saída próxima, penduraram os
aventais, juntaram os livros, riram e se empurraram. As meninas deram laços nos
chapéus; os garotos tiraram os bonés dos bolsos. Frank continuou sentado.
Inesperadamente, atraiu a atenção da irmã do filho do rico lojista. Era
uma menina de face esverdeada, cabelo amarelo brilhante e olhos maldosos e
buliçosos. Sentira desde o início uma profunda antipatia por Frank. Subitamente,
parou à frente dele na mesa, inclinou-se, estirou a língua e emitiu um som feio,
respigando-o de saliva.
Frank nunca sentira raiva antes, nunca uma raiva tão terrível,
insopitável. Inesperadamente seus olhos clarearam, viu tudo com nitidez, viu a
odiosa menina à sua frente. Resumia ela tudo o que havia de horrendo. Sentiu a
garganta apertar-se por ter ela ousado mesmo tomar conhecimento de sua
presença. A raiva, que tornou as coisas tão claras, era um conhecimento de asco
e de ofensa. Ela corporificava para ele um mundo repulsivo que insistia em
invadir-lhe a vida privada, invadir aquilo que nele era inviolável.
Dominou-o um único desejo: destruir aquela face, eliminá-la, expulsá-la
da consciência, forçá-la a desaparecer, tirá-la da memória. Estendeu
instintivamente a mão, agarrou um tinteiro e lançou-o contra a criança. Atingiu-
lhe a testa com um alto som. A tinta escorreu em fios pretos pelo rosto, pelo
pescoço e pelo vestido de lã carmesim.
Ela continuou ali, atordoada. As outras crianças, ouvindo o barulho,
voltaram-se e olharam. Ao ver o que havia acontecido, sentiram-se deliciadas.
Berraram. Saltaram para cima e para baixo. Bateram as mãos de excitação. O
irmão da menina, porém, arremeteu contra Frank, derrubou-o da cadeira e
cobriu-o de pontapés. Continuou a chutá-lo. Algo voluptuoso, assassino, cresceu
no seu magro peito até tomar-se intolerável. Contorceu-se, gemeu, transtornou-
se. Sentindo o pé mergulhar no corpo mole e fraco da criança prostrada, arrepios
de puro êxtase percorreram-lhe os nervos e lhe desceram pelas costas em
filamentos de delicioso fogo.
Miss Ballister, horrorizada, observou durante um momento a cena,
inteiramente paralisada. Saltou em seguida sobre o agressor, puxou-o para trás e
sacudiu-o violentamente, esmurrando-lhe as orelhas. O garoto virou-se feroz
contra a mulher e mordeu-lhe a mão, rosnando alto.
Puxando a mão com um grito, ela lançou-o à distância com um bem
aplicado e vigoroso golpe. Sentiu deleite, também. Conhecia crianças e odiava-
as. Era um prazer imenso bater num garoto. Foi atrás dele com os punhos
fechados.
Encurralado, ele acalmou-se um pouco e disse entre lágrimas:
— Vou contar ao meu pai, vou contar! — soluçou, esfregando os olhos.
— Ele tirará Mary e a mim desta escola nojenta! E a senhora é quem vai
arrepender-se.
Mary dava pulos, delirante de excitação. As demais crianças
acompanharam-na, tomaram parte na embriaguez geral. Gritaram em coro:
— Vai arrepender-se. Vai arrepender-se.
Uma fria calma desceu sobre Miss Ballister. Esfregou a mão mordida.
Arquejou. Era uma solteirona solitária e pobre; nada mais tinha senão a renda
das aulas. Morreria de fome. Sabia disso. Subitamente, foi tomada pelo pavor e
sentiu a boca seca. O que perdera por defender uma criaturinha miserável, que
merecera o castigo recebido!
Seu coração transformou-se em mero pulso, batendo débil, rápido.
Empalideceu de medo. O corpo perdeu a rigidez, tomando-se velho e flácido.
Tirou o lenço e enxugou os olhos do filho do comerciante.
— Que coisa, que coisa! — Você foi muito mal. Frank Clair tem apenas
cinco anos, Bobbie, e você quase doze. Ele é apenas um bebê. Olhe, você o
feriu. Ele não se mexe, nem mesmo chora.
Aquilo era uma notícia tão interessante que Bobbie Tompkins empurrou
para o lado a mão trêmula e carinhosa e espichou o pescoço para observar o
prostrado Frank. Era verdade. O garoto continuava onde havia caído, como
ficara enquanto estava sendo chutado, com os braços instintivamente cruzados
em volta da cabeça para defendê-la. Poderia estar morto.
Miss Ballister teve uma inspiração. Espigou-se e olhou séria para as
crianças.
— Vocês sabem o que é que a lei faz quando alguém é ferido e chutado
dessa maneira? — perguntou com nova coragem e astúcia. — Põe na prisão a
pessoa que o fez. Pense nisso, Bobbie. Se Frank estiver muito ferido, vão levá-lo
para longe, para longe de sua mamãe e de seu papai, de suas irmãzinhas. Você
talvez nunca mais os veja. Podem mesmo mandar seu pai para a cadeia, ou
multá-lo.
Uma súbita e horrenda visão do pai cruzou a mente de Bobbie
Tompkins. Não era o filho predileto, embora tivesse sido “estragado” pela mãe,
situação essa que o Sr. Tompkins julgava difícil engolir. Era também homem
irascível, de maus bofes e dono de uma pesada mão. Mentalmente, Bobbie viu-o
sendo arrastado pelos policiais. Ouviu os gritos da mãe. Viu o confisco do
dinheiro da família e todos eles exilados para longe dos agradáveis subúrbios de
Sandy Lane, forçados a morar nessas horríveis ruas da “cidade”. O pai o mataria.
Com frequência, ameaçava fazê-lo. “Eu lhe digo uma coisa, Sally, ainda matarei
esse garoto algum dia, mesmo que tenha de ser enforcado por isso!” — gritara
em momentos de grande irritação.
Bobbie tremeu e quase caiu. Chorou ainda mais alto do que antes.
Agarrou-se a Miss Ballister.
— Não diga nada a meu pai, por favor, Miss Ballister — suplicou, quase
aos gritos. — A senhora não vai dizer, vai?
Miss Ballister, agradecendo fervorosamente a Deus pela inspiração, não
se deixou dobrar logo. Procurou acalmar o frenético Bobbie.
— Como é que posso evitar isso? — respondeu severa. — Todas as
outras crianças sabem. Como é que você vai explicar o vestido de Mary, todo
manchado de tinta, e o ferimento na cabeça dela?
Enfurecido pelo medo, Bobbie soltou-se da professora e, com os punhos
fechados e dentes à mostra, voltou-se para os colegas:
— Acabarei com o primeiro que disser uma única palavra — berrou,
esquecendo a linguagem elegante ensinada por Miss Ballister. — Pisarei na sua
cabeça de droga e acabarei com ele! Ouviram o que eu disse?
Encarou-os um a um, arquejante, com os olhos em fogo, enlouquecido
de medo e de raiva. Os garotos se encolheram ante o olho selvagem e a ameaça
muito real. Prorromperam em um coro de trêmulas garantias:
— Não diremos nada, Bobbie. Pode confiar em nós, Bobbie. Pode
confiar!
Satisfeito, respirando forte e asperamente, Bobbie voltou-se para a
chorosa irmã:
— Se você disser uma única palavra a papai, amassarei todas as suas
malditas bonecas e lhe quebrarei o nariz! — exclamou.
A menina passou um lenço preto sobre o vestido.
— O que é que vou dizer à mamãe sobre o vestido? — perguntou em
voz débil. — Tenho que dizer alguma coisa.
Bobbie pensou no assunto, com os punhos ainda fechados. Sabia que a
mãe o adorava. Começou a ficar animado.
— Eu sei! — disse pensativo. — Mamãe não vai importar-se. Estávamos
brincando e eu, sem querer, derrubei o tinteiro em sua cabeça. Mas precisamos ir
para casa antes que papai chegue.
O assunto foi resolvido, decidido. Resolutamente, Bobbie pôs o gorro na
cabeça, agarrou a mão da irmã e saiu apressado da sala.
Miss Ballister, respirando mais desafogada nesse momento, advertiu as
demais crianças:
— Será melhor que coisa alguma seja dita sobre o que aconteceu. —
Tenho certeza de que vocês sabem, meus queridos, que Bobbie tem um gênio
muito ruim.
Despediu-os. Os garotos saíram em fila, silenciosos, calmos. O perigo
passara. Ela estava em segurança. Ninguém ousaria resistir à chantagem de
Bobbie Tompkins.
Em seguida, sobressaltou-se, novamente apavorada. Durante toda a cena,
Frank continuara imóvel. Parecia morto. E a qualquer momento poderia chegar o
Sr. Clair para buscá-lo. Puxou-o e colocou-o de pé. Frank vacilou contra ela,
com os olhos semicerrados. Mas estava consciente. Limpou-lhe a roupa com a
mão. Correu em busca de água e banhou a face ferida. Agia como uma autômata,
enquanto mentalmente concebia uma explicação. A criança era jovem demais
para ter autocontrole. O pai precisava saber parte da verdade. Conhecia o seu
Francis Clair. Sabia que ele se sentira lisonjeado porque o filho fora “aceito” por
ela e notara como a bajulara durante a conversação. Podia ter certeza de que ele
não divulgaria o que acontecera.
O medo transformou-se em raiva da sofredora criança.
— Seu menininho nojento! — exclamou. — O que é que vou fazer com
você? Oh, se seu pai não o houvesse trazido para cá! Não sei o que fazer! Beba
um pouco de água. Cuidado para não sufocar. Muito bem. Oh, meu Deus, por
que tenho de sofrer tanto? Venha comigo, imediatamente, seu menino ruim. Pode
esperar pelo seu pai lá embaixo, na sala de visitas. Atirar um tinteiro na pobre
Mary! Nem sei o que seu pai vai fazer com você por causa disso! E como vai
ficar zangado quando souber como você provocou o pobre Bobbie, que teve que
defender a irmãzinha!
Interrompeu-se, esperando que este último e astucioso argumento
houvesse penetrado no duro e preguiçoso cérebro que se escondia por trás da
face vazia do menino. Ele, porém, continuou calado. Duvido de que ele saiba
falar, pensou. Não o ouvi pronunciar uma única palavra durante o dia inteiro.
Sentiu um novo alívio. Mas, ainda assim, as roupas manchadas e
empoeiradas e os ferimentos precisavam ser explicados.
Levou-o para a abafada sala de visitas no térreo, sentou-o na
semiescuridão, fechou a porta e esperou por Francis Clair.
Frank ficou sozinho, pela primeira vez naquele dia. Recostado na cadeira
de crina, fechou os olhos. Sentiu uma imensa exaustão. Caiu num cochilo,
procurando esquecer o corpo dolorido.
Anos depois, lembrou-se daquela escura e silenciosa meia hora. Teria ele
sonhado que era criança novamente, naquela pequena e úmida sala, e outro
sonho se fundira com aquele? Não pôde saber.
Mas, depois de algum tempo, notou a penumbra, a chuva cor de malva e
uma mulher de pé ao lado, com os braços cheios de lilases e olhos brilhantes na
escuridão. Em algum lugar, paz e doçura completa, o perfume de lilases em volta
e gotas de prata caindo no silêncio. Em alguma parte, um tordo cantava na
escuridão distante de bosques invisíveis. Aqueles olhos brilhantes fitavam-no
com profundo amor e ternura. Sentiu realização no íntimo. Sim, sim, devia ter
sido um sonho, pois era um homem, não uma criança, quando havia sonhado!
Miss Ballister recebeu Francis à porta e deu-lhe uma versão ligeiramente
modificada e expurgada do caso. Frank se mostrara traquinas. Lançara um
tinteiro numa criança. Talvez houvesse sido apenas a agitação natural da
infância, afinal de contas. Ela, Miss Ballister, sabia o que era essa agitação.
Naturalmente, era uma pena e sentia muito a respeito do pequeno Frank. E
quanto menos se falasse no caso, mais depressa seria esquecido. Vamos esquecê-
lo, Sr. Clair? Tenho certeza de que o pequeno Frank está muito arrependido e
essas coisas acontecem entre crianças.
Francis ficou horrorizado. Conseguiu apenas balbuciar abjetas
desculpas. Não podia saber que Miss Ballister estava preocupada com os quatro
xelins extras por semana receosa de que algum inerente cuidado paternal o
levasse a pôr em dúvida a história, em especial quando visse a criança. Mas não
precisava ter-se alarmado. Francis Clair era uma pessoa abjeta demais,
amedrontada demais, covarde demais para sentir raiva pelo dano visível feito a
uma criança, especialmente no que interessava à sua precária condição social.
Para dizer a verdade, se Miss Ballister lhe houvesse contado a verdadeira
história, incluindo o espancamento de Frank pelo depravado Bobbie Tompkins,
ele teria exclamado: “Bom trabalho! Bem feito, para ele aprender!” Tompkins
era rico e seus filhos, sacrossantos. Francis, o medroso crônico, dotado de uma
grande imaginação, teria visões de processos movidos contra a sua pessoa.
Ficou pasmo com a gentileza de Miss Ballister. A mulher, a senhora, tão
polida, tão bem-educada! Ali estava ela, dando bondosas desculpas pelo pequeno
salafrário, suplicando-lhe que não ficasse muito zangado com ele! Sentiu-se
tocado no fundo do coração, mas enfurecido também por ter o filho ousado
causar-lhe um momento de dissabor. Ela era também tão superior a ele! Notava-
se logo sua educação, seus modos finos. E conversava com ele, Francis Clair,
como se fosse um igual! Uma frase perpassou pela sua confusa mente:
“Corações bondosos valem mais do que coroas... e sangue normando”. Era claro
que ela possuía “sangue normando”. Seria bem feito se expulsasse o diabrete da
escola, seria mesmo!
— Ele é realmente um menininho tão bom! — dizia entusiástica Miss
Ballister, com o olho mental severamente focalizado nos quatro xelins. —
Divertimo-nos tanto. Ele folheou um livro e pediu-me que lhe dissesse o que
significavam os desenhos. Talvez tivesse ficado um pouco excitado com tudo
aquilo. Pensando no caso agora, quase acredito em que ele não sabia o que
estava fazendo! Eu lhe estava contando a história de Jack, o Matador de
Gigantes, e é bem possível... sim, é bem possível que ele tivesse estirado a mão
para pegar uma pedra e lançá-la contra o cruel gigante! Que fantasias têm as
crianças!
— Vou dar a ele umas fantasias — murmurou Francis entre os dentes
cerrados.
Frank permanecia na cadeira, na penumbra cor de malva do sonho.
Ouviu a porta abrir-se. Inesperadamente um único, claro e tranquilo pensamento
ocorreu-lhe com grande nitidez: “O que é que estou fazendo aqui?”
O que é que estou fazendo aqui! A sala escura girou em volta. Ele
estremeceu. Olhou em torno, estupefato. Por que estava ali? O que lhe
acontecera? Nada sabia sobre aquela sala, sobre o homem e a mulher, que eram
sombras indistintas à porta, olhando-o fixamente. Estranhos. Nunca os vira
antes.
A sala dissolveu-se ao redor dele como se fosse um nevoeiro,
inclinando-se grotescamente as suas paredes, recuando e perdendo-se no espaço
a porta que emoldurava as sombras. Estava sentado sobre um enorme pião, que
começou a girar, no início lentamente e, depois, com rapidez sempre maior. As
paredes, inclinadas, retiraram-se. Fugiram as sombras à porta.
Sentiu que alguma força o puxava de cima do pião. Uma pancada seca
no rosto. Somente quando se encontrava já em Sandy Lane tomou conhecimento
das coisas. Prorrompeu então em medrosas lágrimas.
— Quando chegarmos a casa, aí é que você vai ter motivo para chorar
— prometeu Francis, puxando-o pelo braço. — Seu porquinho sem-vergonha!
CAPÍTULO 6
Apenas lenta e dolorosamente Frank aprendeu aquilo que não dizia
respeito a letras e palavras.
Depois de uma semana, podia escrever palavras em traços seguros,
fortes e delicados, mas meses se passaram antes que conseguisse reconhecer
finalmente os números. Durante longo tempo, por exemplo, traçava o número
“nove”, sob a impaciente orientação de Miss Ballister, mas ao contrário. Em
seguida, com uma silenciosa sensação de triunfo, acrescentava outro círculo e
murmurava: “B!”. As letras tinham significação para ele; os números eram
caracteres cabalísticos que apenas se podia adivinhar, sonhadoramente, e, com
sorte, chegar à conclusão correta.
Aparentemente, amava o som das palavras, formadas com mão segura
pelas letras que traçava. Estava à frente de um milagre e, quando soletrou a
palavra “gato” e compreendeu que se referia à criatura desenhada no livro, seus
olhos faiscaram e pareceram que iam alagar-se de lágrimas. Possuía uma voz
baixa, insegura, uma jovem voz enferrujada, raramente usada, salvo para
pronunciar os grupamentos mágicos que formava ou que aprendera a reconhecer
nos livros. Naquele instante, começou a escutar o som das palavras, como se
fosse música, às vezes repetindo-as em silêncio com fortes movimentos dos
lábios, quando a professora as pronunciava. Estava como que embriagado pelas
palavras, quaisquer palavras. Eram relâmpagos de luz, janelas subitamente
abertas para uma terra de encanto, banhada pela lua. Eram o estrugir de
trombetas, bem altas na escuridão, envolvidas por um halo de luz. Eram
tambores que trovejavam e enchiam de asas o silêncio.
Como poderia ele algum dia explicar a embriaguez das palavras, meras
palavras soltas, as palavras em si, as mariposas de cor, as pontes de arco-íris
sobre abismos mudos, o súbito voo de aves, como as rodopiantes e altaneiras
gaivotas, com o pôr do sol em suas asas?
Instintivamente, conhecia a riqueza, a abundância, a oleosa opulência
das palavras. Às vezes, uma nova palavra lembrava-lhe um homenzinho gordo,
bamboleante, cheio de risos. Era o som delas, o mero som das palavras (pois não
podia ainda compreender o significado de um décimo do que ouvia) que o
fascinava. Era o ritmo e o espaçamento, o pianíssimo ou o fortíssimo da
entonação, a curva súbita de uma sílaba, como o giro de um vaso de vidro, a
súbita e abrupta elevação, como uma mão que, peremptória, se ergue. Às vezes
eram palavras feias, palavras desagradáveis e ásperas, pequenas e horrendas
colheres de palavras, contendo um pouco de geleia envenenada. Escutava-as na
rua, nas casas, nas lojas, nos corredores, nas salas. Escutava quando o pai lia o
Manchester Guardian. O ritmo comedido dessas palavras era como uma
procissão, uma parada sombria, um conclave de reis, um velho falando
gravemente na noite. Melhor que tudo, quando o pai lia algum incompreensível
comentário cômico, as palavras lembravam palhaços dando cambalhotas numa
pantomima, anões brincalhões com grandes narizes vermelhos, minúsculas fadas
de lantejoulas puxadas por barbantes, vozes cascateantes ou um pequeno e tolo
rufo de alegres tambores. Algumas palavras eram frias e rígidas como os
listrados pirulitos de hortelã-pimenta que as crianças ganhavam no Natal.
Contudo, ainda assim, não transportavam a projeção real de seu significado
intrínseco para o cérebro de Frank. Era o simples som delas que o deixava
petrificado de espanto.
A família recebia cartas da América, da Sra. Jamie Clair, as quais
Francis lia em voz alta para Maybelle. A Sra. Clair morava em Bison, Nova
York, e escrevia com grandiloquência (para exibir sua nova personalidade
cosmopolita) palavras heroicas como Oregon, Philadelphia, Califórnia. Oregon!
Frank sentiu cair um profundo e marmóreo silêncio. O “Ore” era uma grave voz
masculina e o “gon”, a solidão e a aventura. Philadelphia! Palavra de som
veludoso nas pontas. O “del”, no centro, era doçura e o “phia”, uma leve
emoção. Califórnia! Havia doçura também na primeira sílaba, embora doçura de
qualidade inferior, açucarada, como geleia que começa a cristalizar. O “for” era
duro como uma noz num caramelo, e não gostava absolutamente do “nia”. Não,
não era uma palavra tão deliciosa quanto Philadelphia e nem mesmo ressumava
o heroísmo de Oregon. Repetiu numerosas vezes as palavras para si mesmo, pelo
puro êxtase proporcionado pelo som.
Homem feito já, lembrava-se disso, sentia-se atônito e profundamente
invejoso. Que pura e encantadora emoção fora a sua! O que não daria para sentir
novamente aquele cristalino e terrível êxtase, a exaltação desconhecida ao
simples som de palavras! Vozes na rua, apenas uma comum e inexpressiva voz
de uma criança ou de uma dona-de-casa, todavia uma voz articulando uma
cadência de sílabas que atraía o ouvido com sua pungente dissonância ou corria
devagar como um regato na primavera! Imagens relampejavam em sua mente
desperta ao ouvir uma mera exclamação. Escutava uma criança exigir mal-
humorada algo da aborrecida mãe ou uma jovem gralha queixando-se nas
árvores desnudas do inverno. Uma jovem balconista falava na mais doce das
cadências com a mãe e um sonolento tordo acordava pela manhã. Uma mulher a
rir era como o tinido de um chocalho de boi na noite. Palavras encantadoras,
sons fascinantes, a excitação de um grunhido áspero, os medos imensos no
rosnado do sapateiro!
Sentia profunda aversão pela palavra “prato”. Possuía um som morto,
oco. Não gostava de “presunto”, um som grosso e como que satisfeito consigo
mesmo. Mas “guardanapo”! Que brincadeiras ternas, que graça, que dedos
faiscantes, que arqueamento de belos pescoços! “Toalha de mesa” sugeria lã
áspera e dava coceira só em ouvir o som. “Geleia” fazia-o trincar os dentes e
tornava-o aborrecido com a mãe quando ela a pronunciava. O pai falava em
“Torquay” e ele não sabia se era uma cidade, lugar, nome próprio ou algo para
comer, mas a articulação da palavra fazia-o sentir-se selvagem, estranho, cheio
de quente animação. Ouviu a palavra “sombrio” e viu uma face fechando-se,
cheia de augúrios. Não havia reação entre as palavras e o que via e
experimentava em seu trêmulo coração. Era suficiente que as ouvisse.
Muito antes de conhecer-lhes os sentidos havia palavras que não podia
suportar. “Esnobe” era uma delas. Levava-o a pensar em catarro grosso. Não
tolerava ouvir a mãe dizer “afazeres”. Que palavra tola, vaga, complicada como
um novelo desfiado! O pai chamou certa vez um conhecido de “jogador” e Frank
sentiu uma pedra nas mãos, uma pedra de ângulos ásperos e bordas
protuberantes. Um dia, a mãe queixou-se de “diarreia”. Frank viu uma pequena
pilha de pedras com arestas cortantes, brilhando no meio de um regato. Ouviu
Miss Ballister dizer “faiscante” e lembrou-se da sensação seca e doentia que lhe
cortara a carne quando furtivamente brincara com a navalha do pai. E havia
palavras que lhe provocavam arrepios na pele. Uma delas, sem motivos, era o
nome “Myrtle”. Lembrava-lhe o pai amolando a faca de trinchar aos domingos.
Não, não havia sentido nessa palavra, nenhum sentido, absolutamente.
Miss Ballister não conseguiu compreender por que ele a escutava com
tanta atenção, por que a fitava como se hipnotizado em todas as ocasiões em que
ela falava. Mas ficou surpresa e satisfeita. Talvez o menino não fosse um
imbecil, afinal de contas. Às vezes, ele brilhava, palpitava, quando ela fazia a
observação mais comum. Além disso, estava aprendendo. Em três meses, lia tão
bem quanto o pequeno Herbert Kemp, que tinha oito anos. Um mês depois,
passara à frente de Kemp e lia como a mais brilhante criança de nove anos.
Contudo, não havia maneira de fazê-lo compreender que o número “2” e o
número “3” tinham qualquer significação. Quando ela lhe demonstrava, em
numerosas repetições, que somavam cinco, ele simplesmente olhava para a
lousa, estupidificado. Dava-lhe outra soma: 4 e 2. Esperançosamente o garoto
escrevia a resposta como cinco, três, qualquer que fosse a soma de operação
anterior. Era inútil, complicado, ele não compreendia.
Finalmente, em desespero, ocorreu à professora um pensamento
inspirador. Tirou da bolsa cinco grandes pences de cobre, colocou-os na mesa e
demonstrou as operações de soma e subtração. Nesse momento, Frank ficou
fascinado. Algo fora projetado objetivamente. Era realidade. Olhou fixamente
para as moedas e, em seguida, para a lousa. Sentiu-se inesperadamente cheio de
alegria. Ergueu os olhos para Miss Ballister e sorriu empolgado. Aprendeu a
somar, subtrair, dividir. Entretanto até o fim da vida, isso foi tudo e todas as
vezes em que precisava somar uma coluna de números, números abstratos, era
obrigado a pensar neles como maçãs, moedas de cobre, laranjas. Jamais
conseguiu aprender álgebra e a geometria permaneceu sempre para ele uma
coisa cabalística, com a solução eternamente no reino da adivinhação ou do
palpite.
Aprendeu a escrever com impressionante rapidez. Mesmo aos seis anos,
sua letra já era pequena, rápida, angulosa e corrida, cheia de vida. Escreveu o
próprio nome na primeira semana; cinco meses depois, fazia os mesmos
exercícios das crianças de nove anos.
Mas surgisse outra tarefa que não escrever, ouvir ou ler, e recaía na
apatia, na inércia, como uma borboleta de asas verdes que se metamorfoseava
novamente em cega ninfa. O vazio derramava-se sobre suas feições como se
fosse lava e toda a sua animação e clareza se transformavam apenas em órbitas
vagas e protuberâncias faciais informes.
Certo dia, a mãe deu-lhe um prisma quebrado de um candeeiro. Por
sugestão dela, examinou-o contra o fraco sol da primavera. Imediatamente, ao
levá-lo aos olhos, o mundo dividiu-se em milhares de cores decompostas. As
pedras do muro do quintal bordaram-se de escarlate, púrpura e vivo amarelo-
dourado. Olhou para a mão. Os dedos tornaram-se incandescentes, estriados de
fogo colorido. Não pôde saciar-se dessa maravilha, dessa imensa animação. A
emoção jorrou e subiu dentro dele, ficou mudo e compreendeu que havia
patamares os quais as palavras não podiam transpor. Mas algo podia e o
conhecimento desse algo pairou um pouco além de suas recordações. Lembrou-
se, então, da estranha música que ouvira no velho jardim e no búzio da avó. A
música, e apenas a música, podia traduzir esse fino jogo e essas fantasias de
tonalidades e luz brilhante. Sentiu uma fome devoradora de um som exultante e
apaixonado que perdurasse além da articulação das palavras.
Mais tarde, como naquele instante, compreendeu que os pensamentos e
emoções surgidos na mente humana eram como peixes multicoloridos, radiantes,
brilhantes, arremetendo, saltando, virando, deslizando, que não podiam ser
capturados pela rede grossa das palavras. As palavras eram dedos grossos e
desajeitados que tentavam prender gotas de chuva de mercúrio. Mergulhou em
imensa agitação, tristeza, silêncio.
A mãe, pendurando roupas no quintal, voltou-se para ele:
— Frankie, não deixe esse vidro junto dos olhos o tempo todo. Vai fazer
mal.
Anos mais tarde, lembrou-se dessas palavras e pensou: sim, faz sempre
mal aos olhos saber que aquilo que eles viram jamais poderá ser fielmente
expressado, que aquilo que o coração sente pode ser tornado audível apenas por
desagradáveis grunhidos.
Mais e mais, à medida que os meses passavam, sentia a espessura e o
peso da língua, a inadequação das palavras que aprendia e ouvia. Eram como os
gestos estúpidos que surdos-mudos fazem para se comunicarem uns com os
outros.
Não sabia o que era a felicidade, a felicidade da coisa expressada. Sabia
apenas que sentia paz e alegria quando os olhos se enchiam de imagens e os
ouvidos transbordavam de sons. Nada mais lhe interessava.
Aceitou o ostracismo imposto pelos colegas como aceitava o ar que
respirava. Às vezes, mas somente às vezes, sentia um desejo quando os via
brincando, rindo, divertindo-se juntos e experimentava uma espécie de amarga
dor de criança ao notar que, quando se aproximava, eles caíam ao silêncio, os
olhos brilhando de ódio e hostilidade, e após um momento davam-lhe as costas e
se afastavam. Não sabia por que assim agiam. Começava a falar bem,
excepcionalmente bem, para citar a espantada Miss Ballister, e lhe ocorriam
coisas novas e interessantes para dizer. Os colegas, porém, não lhe queriam a
companhia ou a conversação. Aceitou tudo isso com apenas pequenas pontadas
de rebeldia e perplexidade.
Mas às vezes, raras vezes apenas, perguntava-se se acontecia isso porque
era sujo, feio ou repelente de alguma misteriosa maneira. Lentamente, começou
a pensar que era repulsivo a outros olhos. Subia em um tamborete na cozinha e
examinava-se ao espelho sobre a pia. O espelho refletia uma face magra, muito
pálida, brilhantes olhos azuis, uma boca larga e melancólica, quase incolor, um
nariz bastante grande e proeminente e uma massa emaranhada de cachos
castanhos. Era a face de um asceta em botão, de um profundo pensador, de uma
criatura que padecia de excessiva capacidade de percepção e dolorosa
sensibilidade. Era uma face estranha, obcecante, lembrando faces de velhas
estátuas gregas, pois era quase ininterrupta a linha que descia do cabelo à ponta
do nariz. E havia a curva clássica do pescoço e um carnudo lábio inferior. Um
artista a teria reconhecido. As crianças, porém, não eram gregos antigos nem
artistas e sabiam apenas que ele era diferente. Chamavam-no de “cara de lama”,
“cara de verme”, “cara de palhaço”. Diziam-lhe que era feio. Não conheciam
outras palavras para expressar a inquietação que lhes provocava sua presença.
Em vista disso, evitava-as tanto quanto possível. Os Wordens eram mais
amigos, ou melhor, indiferentes. Isso era consequência da cálida generosidade de
Maybelle para com a família. Ele achava consolo na grande e escura cozinha dos
Wordens, cheirando sempre a lenha úmida, esgoto, sabão, gordura e repolho. Ali
era tolerado. Maybelle exigia demais em questão de limpeza na sua própria casa
e havia em todas as peças do mobiliário um ar de frieza e feia rigidez. Na casa
dos Wordens, porém, tudo era feliz, sujo, desordenado, atravancado e cheio do
alarido de vozes jovens. Completamente contentes, as crianças mais jovens
agachavam-se ou deitavam-se junto à lareira e inalavam uma mistura de gás de
carvão e calor sufocante. Exausta e cansada demais, a Sra. Worden não
conseguia controlá-las ou arrumar a casa. Em toda parte, havia as coisas mais
fascinantes sob montes de cachecóis molhados ou cadeiras arranhadas, sob
camas, sob as bordas dos tapetes apagados e do linóleo.
Maybelle preocupava-se com a “comida” de Frank. Nenhuma
preocupação igual era vista na casa dos Wordens. As crianças, incluindo o
raquítico nenen, comiam tudo o que encontravam, onde encontravam: na mesa,
nas cadeiras, na cornija da lareira, no fogão, na carvoeira. Às vezes, havia
mesmo restos de bolo em cima das camas, que podiam ser comidos em feliz
imediatismo. Os Wordens consumiam em abundância peixe e batatas fritas,
generosamente borrifadas de sal e deliciosamente azedadas com vinagre. Frank
comia poucas dessas iguarias em casa, as quais eram condenadas por Maybelle
como impróprias para estômagos jovens. Os Wordens, porém, não sofriam tais
repressões. A Sra. Worden, em meio à lavagem de roupa nas tinas de madeira,
sacudia das mãos maceradas o sabão e a água e “punha uma panela” no fogo
para fazer batatas fritas. (Comiam peixe apenas uma vez ou outra.) Depois, que
som delicioso! A gordura saltava, estalava. Uma nuvem de fumaça subia quando
as iscas cruas de batatas eram lançadas na gordura. As crianças reuniam-se em
volta, saltando de antecipado prazer. As meninas mais velhas enrolavam, cheias
de entusiasmo, cornucópias de papel e as colocavam, prontas para receber as
batatas, sobre a arranhada mesa de madeira. A chuva descia em cataratas pelas
janelas sujas. Raios do fogão lançavam uma luz ocre sobre a caótica cozinha e as
faces excitadas das crianças. A batata amarelava e tornava-se ligeiramente
marrom. A panela era tirada da grelha com um som áspero. A Sra. Worden
apanhava uma concha e sorria, carinhosa e lânguida, para os ávidos olhos. Mãos
estendiam os cones de jornal, onde manchetes enroladas falavam do terremoto
de São Francisco. A concha pairava sobre os cones. Caíam as batatas
fumegantes, inundando de calor agradável os pequenos e frios dedos. Enchia até
a borda um jornal que falava em devastação, morte, incêndios e horror. Iniciava-
se então uma corrida para apanhar o incrustado saleiro da mesa e a garrafa de
vinagre, em cuja rolha fora aberto um pequeno furo. A fragrância penetrante
enchia a cozinha, uma fragrância combinada da adstringência de bocas secas que
se enchiam de água, de gordura quente e batatas tostadas. As crianças corriam
pela cozinha, procurando lugares onde sentar e saborear o petisco. Cabeças e
corpos derreavam-se junto à lareira; outros empoleiravam-se na mesa,
empurrando para o lado os pratos sujos de ovos e restos; alguns sentavam-se
perto do fogão, devorando a comida. O jornal enrolado de Frank era sempre
enchido até em cima e ele nunca mais na vida provaria algo tão delicioso.
A Terça-Feira de Carnaval, porém, era a delícia das delícias. Era dia
santo e Bertha, de dezesseis anos, chegava da fábrica ao meio-dia. As crianças
não iam à escola. Bertha, a reconhecida especialista em panquecas, faria com
cuidados extremos os preparativos para criar na cozinha dos Wordens o alimento
dos deuses. Muito antes de a moça chegar, enrolada num largo e desbotado
avental, as crianças já estavam à espera. Ela assumia o ar de uma sacerdotisa.
Não admitia as altas vozes, a tagarelice, os tamancos tamborilando e dançando,
os gritos e as batidas de mão que a mãe tolerava. As crianças precisavam sentar e
ficar quietas. Sentavam-se, de mãos cruzadas, as faces voltadas para o fogão
como se para um altar. As chamas saltitantes delineavam vivamente os jovens,
sérios e exultantes perfis.
Em primeiro lugar, a grande terrina amarela. Depois, as colheres de pau,
a farinha de trigo, o sal, o açúcar e o leite cuidadosamente desnatado, à espera na
leiteira branca e rachada. A farinha descia em uma cascata de neve; o açúcar era
medido com o cuidado de um alquimista, o sal usado muito pouco e o leite
vertido gota a gota na massa. Logo depois, o tinido das colheres, batendo contra
os lados da terrina. Helen, de sete anos, recém-iniciada nos mistérios, punha a
grande frigideira preta no fogão e nela deixava cair um pouco de preciosa
manteiga dourada, que derretia com um murmúrio baixo e reverente.
Frank esqueceu os Wordens, mas jamais esqueceu Bertha, os fios claros
e lustrosos de cabelo caindo em cachos em torno da face bonita, o nariz
pequenino, a boca cor de coral contraída de concentração e solenidade, o corpo
magro, mas de seios bem cheios, e as mãos jovens arranhadas pelo trabalho. Era
a sacerdotisa de todos os ritos, Hebe e Atena, Diana e Juno. Jamais esqueceu a
chuva eterna que se derramava pelas janelas, o fogo, o odor de manteiga
derretida, a intensidade da emoção que queimava baixo naquela cozinha cheirosa
e congestionada.
Chegava, então, o momento decisivo. Bertha dirigia-se solene para o
fogão, tão absorta nos ritos religiosos que parecia ostensivamente inconsciente
dos neófitos, dos acólitos, do coro ainda mudo de vozes que logo depois se
ergueriam em orações. Uma grande concha, pingando frio néctar branco, era
erguida e deixava-o cair, lenta e religiosamente, na frigideira. Som de fritura!
Bolhas que pipocavam, chiavam e estalavam! Uma ou outra criança levantava-se
e ia furtivamente até o fogo para observar a brancura espalhar-se, expandir-se,
tornar-se fina e borbulhante. Bertha somente permitia que um ou dois de cada
vez viessem olhar: em seguida, eram substituídos por outros, em ordem bem-
comportada. Um deles podia ver o néctar correr até a borda da frigideira preta e
fumegante; outro, o começo do aparecimento das bolhas e, em sucessão, as
bordas se erguerem, tostarem e amarelarem. Finalmente, o último rito, a imensa
e fina panqueca sendo virada, aparecendo-lhe as costas marrons, chiando,
suculenta, deliciosa demais.
Com os pratos já à espera, as crianças formavam fila. Jim, de onze anos,
tomava conta do açucareiro. As crianças, excitadas demais para falar,
entregavam-lhe os pratos, pratos cheirosos que quase lhes caíam dos dedos
trêmulos. Jim, com os lábios judiciosamente contraídos, borrifava uma leve
camada de açúcar sobre a fumegante panqueca. Logo depois, dedos sujos
enrolavam-na. De volta então para o seu lugar, o garfo e a felicidade
inimaginável.
Algumas das crianças mais velhas blasées com a recordação de outras
vezes, provavam criticamente a panqueca e faziam comentários: “Bacana.” “Um
estouro.” “Melhor do que no ano passado.” “Bem, não sei, a minha está um
pouco empapada.” “Talvez seja melhor botar mais um pouco de sal, Bert.” Os
mais jovens, porém, não estragados ainda pelo mundanismo, apreciavam, mudos
e extasiados, acompanhando a panqueca com pequenos goles de chá fraco e
quente.
Oh, dias felizes, felizes, de aconchego e de fogo, de cheiros e de bolhas
de sabão, de água cinzenta nas eternas tinas de madeira, de batatas fritas, de
gordura quente e de panquecas açucaradas! Oh, dias de deleite supremo para
todos os gostos! Oh, dias de aceitação, paz, sensações profundas, calor e
discussões, de vozes de crianças! O pequeno Frank Clair esqueceu muito da
Inglaterra, mas nunca a Terça-Feira de Carnaval, nunca esqueceu Bertha, a
terrina amarela, a concha, as panelas fumegantes e o grande bule de chá.
Esqueceu a chuva, o ódio na escola, o medo, a confusão, a dor, o
silêncio, a solidão. Estavam na Quaresma e a Terça-Feira de Carnaval era a
coroação de sua glória. A panqueca inglesa continuou a ser para Frank o pão
sagrado da crucificação. Era o maná de Deus para os pobres, o verdadeiro
sacramento de Seu corpo e de Seu sangue.
Todas as culpas eram lavadas pelo chá, todos os receios e
autocondenações dissolvidos juntamente com as panquecas. Naquele momento,
ele alcançava a paz. Era sua a graça dos temporariamente redimidos e sua alma
expandia-se de certeza e reverente tranquilidade.
CAPÍTULO 7
Não podia compreender por que os filhos dos Wordens pareciam tão
felizes, autoconfiantes, serenos e robustos. Possuíam eles uma sólida
objetividade de temperamento, embora fossem muito pobres e vivessem em
condições bastante precárias. Fanfarrões, falavam em voz alta e eram humanas
as suas falhas. As roupas, remendadas, consertadas com cuidado, refletiam os
gostos generosos dos vizinhos mais prósperos. Mas, com exceção do raquítico
bebê, todos possuíam faces rosadas, olhos brilhantes e um riso fácil. O pai, um
gnomo torto e moreno, cheirando com frequência à cerveja e possuidor de uma
boca suja, era um tipo alegre que podia, assoviando, imitar fielmente numerosas
aves. A sua humildade não era a humildade covarde de Francis Clair. Muito ao
contrário, era um “respeito pelos melhores” que em nada lhe reduzia a dignidade
natural. Não nutria ambições, salvo a muito simples de conservar o emprego,
casar as filhas com rapazes “direitos” e ajudar os filhos a arranjar emprego junto
a ele na fábrica. Aos sábados, tomava a sua “birita”, ia a jogos de críquete ou
futebol e jantava peixe com batatas fritas. Aos domingos, tirava o “atraso do
sono” pela manhã, tomava “um desjejum bacana”, lia os jornais junto ao fogo,
fazia um passeio após o jantar de carne cozida, batatas quentes, repolho e pudim
de rins, acompanhado de chá, e travava grandes discussões na rua sobre política
com os companheiros de trabalho, tudo isso acompanhado de numerosas
inclinações sombrias de cabeça. “Aquele Kaiser, bem, eu não confio nele,
embora, preste atenção, ele seja neto da velha Rainha. Ah, a vida não é a mesma
desde que ela morreu. Deus a tenha em Sua santa paz. Acontecem coisas em
Londres nestes dias que não podem ser sabidas e acho que nunca serão. Há uma
fermentação no ar, mas não como nos velhos dias. Os jornais nada dizem a esse
respeito”.
Jim Worden tinha o antigo orgulho do operário inglês, a fé inviolável e a
certeza de que a casa era seu castelo. Podia “olhar um policial nos olhos” e saber
que era um homem honesto. Não nutria a menor das pretensões da miserável
“classe média” a que pertencia Francis Clair. Não abrigava nenhum de seus
medos, ansiedades, leves preocupações com castas, necessidade de “manter a
cabeça erguida”. E era mais rico em sua dignidade do que ele em seu cauteloso e
lamentável esnobismo. Não se inclinava ante um olhar superior; jamais temia
haver dito alguma coisa que não fosse “fina”.
Nenhum medo o visitava, salvo os antigos — de ser “chutado” do
emprego ou as filhas “se perderem”. Enquanto esses receios não se
materializassem, sentia-se feliz e seguro. Amava a esposa à maneira meio
intimidadora, meio afetuosa de sua classe, lamentava que ela fosse tão fecunda e
respeitava ao Rei e a Deus, nessa ordem. Olhava ternamente para as fotografias
da Família Real estampadas nos jornais. Discutia-lhes intimamente os casos, às
vezes cheio de desprezo, quando não com perplexidade, mas sempre com
afeição. Sabia que moravam em seus palácios porque ele com isso concordava.
Sabia que era por vontade dele que lhes davam boa proteção, sentia-se orgulhoso
e feliz quando via no cinema os nobres casacos vermelhos dos granadeiros. As
carruagens em que viajavam, as joias que usavam, as roupas que vestiam, eram
deles por seu consentimento. Sem arrogância, mas com honesto e visível
orgulho, conhecia o seu próprio poder. Conhecia o poder de milhões como ele,
que precisavam apenas despertar para que desaparecesse toda essa panóplia
aceita como natural, para que as carruagens douradas se desintegrassem em
lenha para fogo, para que se esvaziassem os palácios. E era por conhecer esse
poder que os amava, preocupava-se com eles como se fossem seus filhos
menores e os apreciava. Estava disposto a lutar até a morte por eles, pois
representavam o poder imenso do consentimento, a estabilidade inabalável, a
dignidade invulnerável, a sua força como inglês. Tinha pena dos americanos, a
mudar regularmente de presidente. Fazia pouco caso dos alemães, que eram
governados e não governantes. Desprezava os russos, oprimidos por
sanguinários czares e um clero assassino. Não havia paz na mudança, nenhuma
dignidade em ser governado, nenhuma masculinidade na escravidão. Ele, inglês,
aceitava as leis que ele mesmo havia promulgado, pois eram as suas leis; amava
seus governantes, pois lhes havia concedido a honra de governá-lo. Quem
poderia vencê-lo, salvo a morte?
Olhava para homens como Francis Clair e ria: “Esnobezinhos de meia-
tigela! Não podem nem dizer que têm alma!” Frequentava a capela local aos
domingos e sorria quando via a classe média malvestida dirigir-se para a “Igreja
Superior Anglicana”. Não se importava com a “Igreja Superior Anglicana”. Ela
existia porque ele permitia que existisse, porque era um inglês justo e tolerante.
Mas que se acautelasse aquele que quisesse “fazer pouco dele” com seus
“padres”, “freiras” e “papismo”. Viva e deixe os outros viverem, era seu credo. E
Deus que ajudasse o homem que tentasse mudar isso, mesmo um pouquinho.
Achava Maybelle Clair “uma boa mulher”. Entretanto nada sentia senão
desdém por Francis, que apenas cumprimentava com uma curta inclinação de
cabeça. Como a maioria dos ingleses, não gostava abertamente de crianças e, às
vezes, fechava uma carranca para o pequeno Frank quando o via, cheio de
expectativa, rondando a cozinha, congestionada. Mas depois encolhia os ombros
e murmurava: “Pobre coitado” e ia tratar da vida.
Frank encontrava consolo na casa dos Wordens, embora eles
resolutamente o ignorassem ou o apoquentassem às vezes. Mas sem malícia.
Nada de bestialidades com ele, como os colegas na escola. Abertamente
mostravam pena porque o menino não frequentava a imensa barulhenta escola
deles e porque a mãe não o deixava usar tamancos. Não consideravam sapatos
abotoados como coisa superior. Não tinham todos eles um par para usar aos
domingos? Eram mais fortes que ele e, com frequência, comiam batata frita e
podiam provar um pouco de cerveja quando o pai se sentia generoso. Sabiam,
instintivamente, que o níquel que recebiam nos domingos era muito mais valioso
do que os muitos pence de Frank. Ficavam muito mais ricos com o saco de
caramelos que comprovam somente nos fins-de-semana do que ele, que podia
comprá-los quase todos os dias. Frank possuía numerosos brinquedos; os dois
brinquedos baratos (às vezes um só) que eles ganhavam no Natal eram
infinitamente mais preciosos. Tinham pena do garoto por isso, toleravam-no,
ricos como eram, e em sua magnanimidade tratavam-no com indiferente
bondade.
Frank não se lembrava de haver frequentado a igreja ou escola paroquial
e somente o fato de a mãe possuir uma certidão dizendo que fora “batizado”
garantia que não era pagão. Maybelle, que era batista, não ousava sugerir que o
menino frequentasse a “capela” batista local e, assim, Frank deve ter
acompanhado o pai à “Igreja Superior Anglicana”. Se o fez, não conservava
recordação do fato, ou fatos.
Certo dia, perguntou à mãe por que os Wordens não frequentavam a
“igreja” do pai.
— Bem, eles são assim — respondeu pensativa Maybelle, sem saber
que, em sua simplicidade, jamais diria novamente na vida algo que teria um
efeito tão profundo sobre o filho. — Algumas pessoas acreditam numa coisa;
outras, em coisas diferentes. Veja os McNultys, que moram em frente. São
católicos. Vão àquela pequena igreja em Sandy Lane, junto da peixaria. E há os
Horowitzes na esquina. Ele é alfaiate. Frequentam a igreja deles. O seu pai vai à
dele e, às vezes, eu vou à minha. Algumas pessoas gostam de música com os
sermões e outras, não. Algumas gostam de velas e outras não as quereriam por
nada neste mundo. Algumas vão a certas igrejas porque são esnobes e se dão
ares importantes. Gente fina barata. E algumas vão a outras porque são perto. A
Sra. McNulty gosta da dela porque pode ir lá a qualquer hora do dia e fazer suas
orações. Isso é bom. Minha igreja abre somente aos domingos. E há também os
Adventistas do Sétimo Dia, que pensam que o sábado é o dia do descanso.
“Tudo depende da maneira como eles veem as coisas, querido. Ninguém
sabe, realmente. Mas fazem o melhor que podem e isso é o que importa a longo
prazo. Deus é o mesmo. No entanto, algumas pessoas pensam que são as únicas
que podem falar com Ele. São como as crianças que se julgam as favoritas do
pai. Isso quando Deus, durante todo o tempo, pensa em todos os seus filhos e
não tem favoritos”.
Interrompeu-se e olhou atônita para o filho. Suas pestanas avermelhadas
projetavam-se vividamente de cima dos grandes olhos castanhos.
— Sabe, querido, as pessoas costumavam matar-se umas às outras
porque pensavam que Deus gostava mais delas e odiava as demais! É isso o que
seu pai diz. Não sei. Às vezes, não acredito nisso. Esquisito, não?
Riram juntos, deliciados, inteiramente incrédulos desse propalado
absurdo. Mais tarde, muitos anos depois, Frank lembrou-se do riso gostoso da
mãe, que lhe pareceu o comentário mais sábio que já ouvira ou ouviria sobre
ódio. Para ele, as palavras da mãe resumiam a Inglaterra e, por tal motivo,
apenas acalentaria por este país o respeito reverente e o amor que um indivíduo
dedica livremente a um homem ilustre e honrado.
Certa ocasião, acompanhando a mãe em um de seus “afazeres”, viu pela
primeira vez um negro. A mãe explicou que ele devia ter chegado “de um lugar
chamado índia”. O homem usava roupas inglesas convencionais, embora tivesse
a cabeça envolvida por um turbante. Possuía feições belas e uma pele da cor do
sofá de mogno de que tanto se orgulhava Maybelle. Uma multidão de meninos,
silenciosos, mas sem medo, de olhos fixos, mas sem hostilidade, seguia-o. Ele
parecia não se importar. De fato, um pequeno sorriso repuxava-lhe os cantos da
bela boca.
Frank ficou profundamente interessado, mas a mãe o proibiu de segui-lo
também.
— Vai embaraçá-lo — disse, severa. — Somente Deus sabe por que
essas crianças o estão seguindo, como gatinhos atrás da gata. Ele tem a pele mais
escura do que a nossa, mas há algum motivo para que as pessoas olhem tanto?
Deus fez flores vermelhas, brancas e azuis e tudo difere no mundo. Apesar disso,
certas pessoas são bobas e pensam que é excêntrico ser diferente. O que é que
querem? Que todos se pareçam com elas?
Criança ainda, Frank compreendeu que a política era o sangue vital do
inglês, por mais pobre que fosse ou por mais preocupado que vivesse com a
necessidade imediata de evitar a fome. Até mesmo os comentários do inglês
ignorante de política eram penetrantes, prudentes e apropriados. As atividades do
Parlamento constituíam assunto do mais imediato interesse. Na América
descobriria que a política era o circo vil dos tolos, a pantomima dos idiotas, o
“cavalo de pau” dos patifes. Os americanos ilustres, por inércia ou desalento,
evitavam-na.
Ouvia amiúde Jim Worden e seu pai falarem sobre o assunto em Reddish
e desenvolveu profundo respeito e reverência por todos os governos. Pois era
evidente para o inglês que o governo era ele mesmo e que devia ser preservado
da indignidade, do aviltamento e da falsidade. Os “esnobes” podiam parecer
importantes em suas carruagens, mas o inglês sabia que, ante a lei, ele e “eles”
eram iguais, que sofriam o mesmo castigo pelos mesmos crimes. O governo não
declarava que “todos os homens são iguais”, mas, sem ser prejudicado por essa
falácia hipócrita, fazia cumprir a lei com plena justiça. O direito inglês
sustentava que privilegiados e desprivilegiados deviam respeito às leis que eles
mesmos haviam elaborado e sancionado e que o dever não aumentava nem
diminuía com a posição social ou a riqueza.
Às vezes, o inglês sentia-se perturbado pela desagradável suspeita de
que nem tudo corria inteiramente “bem” em casa e no Império, que havia graves
injustiças, sofrimentos imerecidos e que numerosas cincadas eram cometidas por
indivíduos cautelosos ou sabidos demais.
Contudo, nutria também a crença inabalável em que, no momento
apropriado, ele poderia corrigir e corrigiria tais defeitos, que tinha o poder de
fazê-lo, que mudanças salutares não ocorriam do dia para a noite (exceto em
desastrosas convulsões, as quais ardentemente repudiava e rejeitava), mas
sobrevinham com a força lenta, implacável e irresistível do oceano, como a
chegada das marés. Afinal de contas, não dera ele a Magna Carta ao mundo?
Não fora o primeiro a declarar-se livre do clero e dos tiranos? Não fora o
primeiro na história a estabelecer “um Parlamento por discussão” e conceder-se
o direito ao voto? Essas coisas não haviam ocorrido entre a noite e o nascer do
dia. Surgiram após séculos e radicavam-se em sua força e coragem indômita. O
mal descia como esfomeados gafanhotos, mas desaparecia na manhã seguinte. A
floresta crescia devagar e nenhum vento casual podia arrancá-la pelas raízes e
dispersá-la.
O que, no fim, o inglês decretava era feito e permanecia.
CAPÍTULO 8
Mesmo nas recordações de Frank nem sempre chovia na Inglaterra.
Lembrava-se daquele último verão. Lembrava-se de a mãe tê-lo levado
pela mão, descendo Sandy Lane, passando pelas últimas lojas e casas, cruzando
uma pequena ponte de madeira e penetrando no Vale de Reddish. Viu a água
tranquila e azul entre as altas margens verdes e o enevoado céu inglês, onde
viajavam nuvens silenciosas, inundando de luz macia e tênue. Ah viu também o
anoitecer cor de alfazema, a malva dos nevoeiros, os grandes e robustos
carvalhos em enormes bosques cor de esmeralda, erguendo-se solitários contra
os céus vazios.
Às vezes, ele e Maybelle sentavam-se em silenciosas encostas de
colinas. Com o sol queimando-lhes as costas, abarcavam com os olhos prados
ondulados onde pastavam tranquilas vacas e sentiam o odor suave da terra
sonolenta, dos espinheiros e de brisas perfumadas, gostosas como leite.
Ele nunca soube onde ficava aquele local, nem podia a mãe dizer-lhe
isso, mas lembrava-se de um anoitecer azul após a chuva, da fragrância de rosas
molhadas sacudindo gotas cristalinas de suas cabeças encurvadas e do
movimento lento dos caracóis no caminho lajeado de um jardim. Lembrava-se
de lilases em volta do portão antigo de uma cabana coberta de palha, lilases
brancos e púrpuras desprendendo um aroma que tocava o coração, e do canto
pungente de um tordo.
Lembrava-se de bosques na primavera, inundados por uma fraca luz
branca, de tapetes de pequeninas violetas com olhos amarelos e de nevoeiro
verde em árvores que despertavam. Lembrava-se de milhões de margaridas
brancas, como miniaturas, apegando-se à fulva terra da primavera como montes
de neve, e, em cima, um sonhador céu de púrpura.
Lembrava-se do mercado, da abundância de uvas e maçãs amarelas,
galinhas depenadas, cestas de batatas descascadas, cheiro de peixe, batata frita e
cerveja, do riso de mulheres e gritos de crianças que brincavam e, acima de tudo,
de um sol que era uma bênção. Lembrava-se de Stockport, onde viajou no andar
superior de um ônibus, dos pais comendo contentes ali chouriço de morcela e
dando-lhe um saco de caramelos. Lembrava-se de Belleview, dos guinchos dos
macacos, do rugido dos leões, do passeio no lombo do elefante, do amendoim
descascado e esmagado entre os dentes, de moças com enormes chapéus e
sombrinhas, boás de peles em volta do pescoço, sentadas em bancos ou rindo das
piadas dos seus elegantes acompanhantes.
Lembrava-se da pantomima no Natal, da meia pendurada junto à lareira
rachada, de embrulhos marcados com os dedos fuliginosos de Papai Noel, de
pirulitos de hortelã-pimenta, de castanhas assadas, do ganso dourando ao fogo e
do tanque gelado onde patinara entre as sombras fortes lançadas pelo sol de
cristal e as árvores esgalhadas. Lembrava-se das canções natalinas em meio à
neve que caía como pequenas borboletas brancas e da doçura e do
contentamento proporcionados por uma lareira acesa em noites escuras.
Lembrava-se de sanduíches de agrião e de chá quente e doce, de narcisos
em um vaso amarelo sobre a toalha branca da mesa de chá, de sua mãe pondo o
pote de mel e o prato de pão cortado em fatias muito finas ao lado, do pai junto à
janela lendo o Manchester Guardian e comentando em voz irônica as várias
notícias.
Sabia por essa ocasião que a família ia para a América. Ouvira os altos
queixumes e protestos da mãe e a impaciente resposta do pai de que seria apenas
por alguns anos.
— Deus, você não vai morar nas selvas! — disse Francis, jogando longe
o jornal. — Esqueça todas essas histórias sobre índios. Bolas! Não há índios em
Bison, a despeito do nome. É um grande país, tem cidades, e o maldito lugar está
cheio de dinheiro. O que é que você espera que eu faça? Que fique aqui e
apodreça durante o resto da vida?
Acima de tudo, porém, lembrava-se da primeira vez em que vira a
morte.
Não se lembrava da ida à casa de fazenda, mas lá, tanto quanto podia
recordar, estivera em companhia de dois ou três dos Wordens. Viu-se numa
cozinha, grande e nua, ao lado de um minúsculo caixão onde dormia um bebê,
enquanto a mãe, parecendo muito indiferente e calma, penteava o cabelo longo e
amarelado em frente ao espelho pendurado sobre a pia. Lembrava-se de que não
gostara da mulher, pois, embora nunca houvesse visto a morte antes, sabia que
era acompanhada de sofrimento, e disso sabia instintivamente. Mas ali estava a
robusta e jovem mãe, ajeitando o cabelo comprido, colocando com todo o
cuidado os pentes e, meticulosa e competente, inserindo os grampos, que
segurava na boca firme. Usava um corpete branco, um medalhão no pescoço e
uma saía marrom áspera, destacando-se por baixo os sólidos quadris. De vez em
quando, distraída, olhava no espelho para as crianças em volta do pequeno
caixão. Frank nunca esqueceu o frio e duro brilho daqueles olhos verdes, as
mãos ocupadas e o ar de brutal indiferença.
O caixão descansava sobre uma mesa. Branco, forrado de seda branca
barata, cheia de pregas. O bebê vestia uma mortalha branca, como uma boneca
adormecida, as pequeninas mãos dobradas molemente ao lado do corpo. Não
podia ter mais de cinco meses. A morte não apagara toda a cor da face redonda e
imóvel e pestanas douradas curvavam-se sobre a miniatura de rosto. A doce boca
sorria levemente. A criança era uma flor caída do talo, envolvida por um ar de
coisa final, de suavidade e silêncio.
Frank olhou fixamente para a criança morta. Observou os cachos
dourados, tão patéticos sobre a almofada branca. Viu o sorriso e as mãos
vulneráveis, caídas. Subitamente, embora coisa alguma soubesse da morte, caiu
em profunda mágoa. Doeu-lhe a cabeça, os olhos arderam e um peso desceu
sorrateiro pelos seus membros. Era uma criança que chorava com facilidade.
Entretanto não pôde chorar naquele instante. De alguma maneira, soube que se
encontrava na presença de algo inexorável, algo profundo e sem explicação, ante
o qual as lágrimas eram impotentes.
Estendeu a mão e tocou os pequenos dedos de mármore do bebê. Sentiu
frio, um arrepio que lhe subiu pelo braço e envolveu o seu quente coração.
Experimentou o terror, a dor, a amargura e o conhecimento de um mistério. A
criança seria enterrada, sabia disso. Mas não a via, na terra, fechada para sempre
na escuridão e no mofo. Via-a andando através de nevoeiros longos e móveis,
sozinha, apavorada, perdida e muda.
Chorou naquela noite em casa, causando grande preocupação a
Maybelle.
— Por que você foi até lá? — perguntou ela, enxugando-lhe as lágrimas.
— Você não me disse. Não é bom que um menino de sua idade veja... a morte.
Procurando consolá-lo, falou-lhe do “céu” e disse que o bebê estava com
certeza, naquele exato minuto, brincando num jardim, cercado de anjos infantis
como ele. Frank escutou obedientemente, mas as lágrimas continuaram a correr.
Não acreditou no que a mãe disse. Não sabia por que não acreditava nela. Via
apenas a criança vagueando para longe no nevoeiro e no mistério, para sempre
perdida, para sempre silenciosa, o fantasma de uma pétala a boiar em escuros
mares.
CAPÍTULO 9
E naquele momento iam para a América!
Sob o quente céu de fevereiro, os campos ondulavam com as pequenas e
belas margaridas brancas que em parte alguma são vistas, senão na Inglaterra. Os
ramos das árvores haviam-se suavizado e tinham-se tornado tenros e cheios de
vida. Aqui e ali moitas de espinheiros exibiam gaze verde emaranhada em seus
galhos. Toda a terra recendia a doçura e frescor. A água no Vale de Reddish
tornava-se aos poucos tão azul como os céus de primavera, varridos pelos
ventos.
Os Clairs deixariam Liverpool no dia 22 de fevereiro de 1907. Naquele
momento todos os vizinhos eram amigos e encheram a casa para desejar-lhes
boa sorte. O Dr. Durham, sério, frio, cor de terra, amoleceu o bastante para dar
uma palmadinha na cabeça de Frank e apertar a mão de Francis. Junto ao fogo, a
Sra. Durham, bebendo graciosamente chá, pronunciou palavras bondosas. As
crianças dos Wordens entravam e saíam da casa, que rapidamente se esvaziava,
fascinadas com o som dos martelos nos grandes caixotes depositados na sala de
visita. Maybelle chorava, mas ela, também, fora envolvida pela excitação geral.
Embora não fosse uma alma aventureira, via claramente a inveja e o desejo no
rosto das amigas e adquiriu entre elas uma nova dignidade e importância.
Surpreendentemente, Miss Ballister manifestou sincera pena a Francis e
segurou Frank pela mão quando disse:
— Este menino é realmente inteligente, Sr. Clair. Realmente inteligente!
No princípio, teve um pouco de dificuldade para aprender. Tem modos muito
estranhos, que precisam ser compreendidos. E um temperamento muito ardente,
receio, mas gostamos de crianças cheias de vivacidade, não, Sr. Clair? Ele é
tímido, mas toma o que quer. Se acha que não o pode conseguir, toma-o e deixa
as consequências para depois. É um pouco... um pouco... implacável, não? É
muito resoluto, a despeito de toda a tranquilidade, e obedece apenas para não se
irritar. O senhor disse que ele é tímido? Meu Deus, eu não sei. Realmente, não
quero dizer isso, mas acho que ele é um garoto muito pacífico, quieto e dócil
quando não é atacado ou perturbado, mas cheio de um fogo terrível quando
alguém se mete no seu caminho ou se mostra injusto. O senhor pode confiar
nele, se o compreender. Se for seu inimigo, porém, não confie, nem um
pouquinho. Ele tem uma memória prodigiosa para desatenções e ofensas.
Francis, zombando polidamente e protestando contra esses exageros,
sacudiu a cabeça. Contudo, ficou satisfeito. Olhou para Frank, fazendo uma
avaliação objetiva. Bem, sim, o pequeno salafrário tinha uma aparência
“diferente”. Perdera também aquela expressão abobada. Parecia quase
inteligente. Possuía algo das cores de Maybelle, embora com feições nítidas e
bem delineadas. Talvez ele, Francis, conseguisse fazer dele “alguma coisa”.
Afinal de contas, corria bom sangue na família.
Tão jubiloso ficou Francis com a opinião de Miss Ballister que deu ao
filho oito xelins como “recordação”.
Durante algum tempo depois desse episódio foi muito bondoso com
Frank.
Os Clairs viajariam em segunda classe e isso, também, era motivo de
inveja entre os vizinhos de Mosston Street. Nada de acomodações baratas para
os Clairs! Camarotes, camaroteiros, salas de jantar reluzentes de prata e
porcelana fina. Dignidade. A Sra. Jamie Clair lhe enviara cinquenta libras para
as passagens. Estava “rolando em dinheiro” na América, diziam impressionados
os vizinhos. Possuía sua própria carruagem e vivia como uma rainha. Enviara ao
filho fotografias suas, sentada na carruagem, vestida de seda preta, com uma boa
zibelina nos ombros e uma sombrinha preta de babados cobrindo-lhe a cabeça. A
expressão era de grande majestade e superior tolerância. Por trás dela era vista
vagamente a fachada de uma imponente casa e a parte inferior de saias brancas,
calças de homem e botas polidas nos degraus. Os moradores, sem dúvida. Mas
agora ela se referia a eles como “hóspedes”.
Francis, Maybelle e o pequeno Frank prepararam-se com elegância para
a viagem. Por alguma razão que jamais foi inteiramente descoberta, Francis
comprara um par de perneira pretas de couro, com correias e fivelas. Seriam
usadas na América. O pequeno Frank, que coisa alguma sabia a respeito da
América, teve, apesar de tudo, uma inesperada visão de sombrias e
impenetráveis florestas, paisagens selvagens cortadas por calhaus e montanhas
que precisavam ser escaladas a pé. Ele, também, queria perneira, que
naturalmente lhe foram recusadas. Chegou à conclusão de que o pai o carregaria
para sempre nas costas, pois suas botas engraxadas não eram apropriadas para
árduas explorações na América. Além das perneiras, Francis comprara um
estranho chapéu ou boné de pano preto, com um grande visor, de aparência
muito interessante. Ninguém em Reddish jamais vira coisa igual e ela inspirava
espanto. Francis, porém, informou aos amigos com ares importantes que aquela
coisa era usada em toda a parte na América.
Francis trocara algum dinheiro por “centavos”, que deu a Frank e às
crianças Wordens, que nunca se cansavam de brincar com essas estranhas
moedas de cobre, da metade do tamanho dos pennies ingleses. “Centavos”. Ora,
isso era muito estranho. Certa vez, Francis disse em tom de brincadeira ao filho
que todos os americanos comiam com os pés na mesa. Frank teve uma
estonteante visão de fileiras de mesas, fileiras intermináveis de homens em
mangas de camisa, comendo vorazmente com os pés cruzados sobre as toalhas.
O Sra. Clair, usufruindo de sua vantajosa posição de pessoa que residia
havia dois anos na América, escreveu-lhes, acautelando-os sobre o clima. “Não é
como na Inglaterra, Francis. Será inverno quando você chegar aqui em março.
Neve, gelo e nevasca. É assim que chamam as tempestades de neve. O tempo
continua assim, até o fim de abril e, com frequência, até maio. Assim, arranje
roupas quentes.”
Francis e Maybelle, porém, riram gostosamente do absurdo de um
inverno que entrava pelo verão, mesmo nessa fantástica América. Ora, podia-se
ver claramente pelo mapa que Bison, Nova York, ficava muito mais ao sul do
que Manchester, muito mais ao sul! A Sra. Jamie estava “exagerando”. Contudo,
como uma concessão às ideias esquisitas da mãe, Francis comprou um terno
grosso de tweed (pelo que depois daria graças a Deus) enquanto Maybelle
adquiria uma jaqueta e uma saia de lã azul clara, com peitilho de seda azul.
Depois de pensar um pouco, resolveu levar também um casaco quente, mas
apenas no braço. Ora, seria março, o quente mês de março, quando chegassem à
América!
O pequeno Frank ganhou dois novos ternos de sarja azul, novas botas de
verniz e novos chapéus redondos de marujo, bem como novas jaquetas com
fileiras de galões brancos de marinheiro na gola. Jamais se cansava de olhar para
essa riqueza, guardada com amor e carinho no guarda-roupa. Uma delas seria
usada a bordo, juntamente com as velhas roupas. A outra, porém, estava
reservada para o “desembarque”. Os ricos americanos pouco motivo teriam para
se julgarem superiores quando chegassem os Clairs.
Pela primeira e última vez na vida, Francis Clair não sentiu medo,
cautela, apreensão. Fora tomado por certa excitação, certo espírito de aventura.
Suas próprias feições mudaram levemente. Vivia, seus olhos brilhavam, e a voz
hesitante tornou-se firme e forte. Durante a última semana na Inglaterra, descia
Mosston Street com calma arrogância. Respondia com majestosos acenos aos
cumprimentos de conhecidos. Era importante, invejado, visto “como exemplo a
ser imitado”. Naquele momento, uma sensação de deleite fluía por suas
apertadas veias. A expectativa feliz fazia-o lançar os ombros para trás e uma
nova dignidade levava-o a mover a cabeça devagar e lançar aos conhecidos um
olhar remoto. Falava com autoridade e orgulho. Até mesmo o Dr. Durham
tratava-o com respeito. O pequeno e insignificante homenzinho, careca, agora
servido por novos e ferozes bigodes, adquiriu subitamente um ar de vivacidade e
importância. Suas vigorosas palavras eram ouvidas com reverência. Como todos
os humildes de seu tipo, insignificantes e tímidos, explorava o prestígio
transitório. O pessoal da fábrica mal ousava dirigir-lhe a palavra. Banhava-se na
glória.
— Naturalmente — dizia com ar soberbo ao seu novo amigo do peito, o
Dr. Durham — teremos que suportar isso apenas durante alguns anos. Depois,
voltaremos, com os bolsos cheios de dinheiro. Tenho esperança de abrir minha
própria farmácia, talvez em Manchester, ou entrar em um ramo de negócios
inteiramente diferente. Há uma ou duas fórmulas em que ando pensando. De
minha invenção. Há uma fortuna nelas. Mas é preciso dinheiro para lançá-las em
um mercado de remédios de nomes registrados.
Pensou nas Pílulas Beecham. Ora, o tal indivíduo agora era baronete! E
tudo isso criado por umas poucas pílulas. O Sabonete Pears. Ora, ele conhecia a
tal fórmula. Simples demais para reduzir a palavras. Ele, Francis Clair, tinha uma
fórmula de um sabonete muito melhor, e muito mais barato. Um estranho e raro
perfume para as pessoas aspirarem e uma nova embalagem. Tudo isso requeria
dinheiro, naturalmente, e dinheiro era ganho com uma facilidade espantosa na
América. Brincou com a ideia de fabricar lá suas fórmulas, mas, em seguida,
sacudiu a cabeça. Não. Para ele, a Inglaterra. Talvez mesmo um título de
baronete. Que os esnobes ficassem com seus ares importantes. Títulos
construídos com pílulas, laxativos, tônicos para o cabelo e sabonetes não eram
motivo de troça, afinal de contas, em especial quando havia dinheiro por trás
deles. O coração disparava-lhe no peito. Carruagens próprias; uma pequena casa
própria no campo; invernos em Torquay ou na Riviera. Empregadas para
Maybelle, uma boa escola particular para o garoto. Miss Ballister não havia dito
que ele tinha valor? Erga-se, Sir Francis Clair. Em seguida, a volta para casa, um
banquete em Russel Square e as carruagens dos esnobes atravancando as ruas de
Londres a caminho de sua grande casa. Podia mesmo comprar um desses novos
e fumacentos automóveis e gozar a boa vida com os melhores entre eles. Talvez
mesmo comprar uma cabana de caça na Escócia. Erga-se, Sir Francis Clair.
Parecia vibrar ao andar pelas ruas. Não se encontrava mais em Reddish,
em Mosston Street. Passeava pelas ruas de Paris, com luvas cinzentas, bengala
de castão de ouro na mão e polainas nos pés.
Esses, então, eram os últimos dias. Maybelle dera aos Wordens grande
parte do que não conseguira vender. A sala de visitas, a sala de estar, os quartos,
tudo se esvaziou. Caixotes empilhavam-se ante a lareira fria da sala de visitas,
imensos caixotes que acondicionavam os preciosos colchões de penas de
Maybelle, os cobertores e os melhores lençóis de linho. Caixotes com a melhor
porcelana e a prataria, os enfeites e as peças avulsas. Ela arrumou-os,
escondendo as lágrimas. Ao ouvir Francis fechando com um martelo as tampas
dos caixotes, pareceu-lhe o som de cravos sendo pregados num caixão de
defunto.
O último dia foi de sol quente, céu azul brilhante, brisa fresca,
perfumada e suave. Vinte e dois de fevereiro de 1907 e o ar era o de um feriado,
mesmo nas recordações de Frank. Alguns vizinhos retardatários vieram dizer
adeus. O garoto nunca ouvira essa palavra antes e ela também teve para ele um
som de mortal finalidade. Os caixotes foram levados. Os quartos vazios
encheram-se de sol pela primeira vez nas recordações de Frank. Naquele
momento, a casa ecoava e os cômodos lhe pareceram estranhos, remotos,
fechados para ele em seu vazio.
Subiu correndo a escada simplesmente para ouvir seus próprios passos
ecoando pelos corredores vazios, simplesmente para ouvir o estrondo de uma
porta fechada com força. Oh, nunca havia dormido ali, naquele quarto com o alto
teto inclinado! Nunca vira um fogo naquela grade cheia de cinzas. Nunca vira o
sol atrás daquela janela empoeirada. Era um estranho ali, numa casa estranha,
com fantasmas em todos os cantos. Desceu as escadas em desabalada carreira,
ainda mais ligeiro, tremendo de medo.
Chegou a carruagem que deveria levar a família à estação. O veículo
brilhava ao sol e a escura pelagem dos cavalos faiscava. Um homem colocava
pequenas malas no chão. Ali estavam as novas malas do pai, compradas em
Londres, e uma trouxa misteriosa que pertencia à mãe, embrulhada em um velho
cachecol de Paisley. Francis sentiu-se enojado. Pôs sua mala sobre o vergonhoso
embrulho. A esposa nunca aprenderia. Havia algo de vulgar nela.
Depois de muita azáfama final de Maybelle, a família subiu finalmente
na carruagem. Os vizinhos na rua acenaram e jogaram beijos. A Sra. Worden
levou o avental aos olhos. O vento quente tangeu os cachecóis das mulheres e os
meninos abriram a boca. O sol batia sobre os telhados de ardósia, onde se
enroscava a fumaça acre das chaminés. Maybelle usava um novo e belo conjunto
marrom escuro e um grande chapéu pardo, pesado, com flores rosadas. A jaqueta
estava apertada demais. Forçava as costuras e a região da cintura. Ela exalava
um perfume de rosas, prodigamente borrifado sobre o corpo. As botas marrons
abotoadas brilhavam na luz clara. A camisa de lã de Frank arranhava-lhe a pele
sensível. Tinha a face úmida. Francis, erguendo cheio de dignidade o chapéu-
coco novo, inclinou-se em um último adeus às mulheres tagarelas. A carruagem
começou a rodar, Francis sentou-se, olhando diretamente para a frente, com as
mãos enluvadas cruzadas sobre o castão da bengala. Maybelle soluçava, com os
braços em volta do menino. Frank, porém, olhava interessado em volta,
deleitado com o movimento da carruagem. Nunca andara em tal veículo antes.
A carruagem chocalhou alto sobre os tijolos de Mosston Street. Subiu
uma ladeira íngreme e entrou em Sandy Lane. As vitrinas das lojas brilhavam à
luz da manhã. A rua tombou em ladeira e Frank viu um céu inefavelmente azul,
onde deslizavam nuvens brancas como neve, parecendo imensos cogumelos.
Maybelle chorava. Francis movia a cabeça majestosamente. Tilintavam
os arreios. Os cavalos trotavam. Saturava o ar um cheiro acre de esterco.
CAPÍTULO 10
A recordação seguinte de Frank era de uma rua em Liverpool, uma rua
iluminada pela luz pálida da tarde. Ao fim da rua, uma imensa parede cinzenta
de madeira, que sua mãe disse ser o “navio”.
Ficou desapontado. Vira desenhos de grandes veleiros em seus livros de
gravuras e tivera visões de si mesmo em um convés polido e de velas imensas
que se enfunavam sobre sua cabeça. Aquele não era o navio de seus sonhos. Era
simplesmente uma parede, nada mais, uma parede feia que fechava
completamente a rua. De que modo podia uma parede levar uma família pelos
mares até a América? Mas estava cansado e os sapatos novos lhe apertavam os
pés. Começou a choramingar baixinho.
A recordação seguinte era do camarote do navio, onde passaria doze dias
inteiros. Sabia que o nome do navio era “Baltic” e que o comandante se chamava
Smith. Anos depois, quando o “Titanic” mergulhou nas ondas do terrível
Atlântico, os pais lhe disseram que o comandante desse navio fora o mesmo que
os havia levado. Lembrava-se de um ou dois vislumbres do Capitão Smith, um
homem alto, tranquilo, robusto, com uma barba grisalha à Vandyke e olhos
bondosos e distantes.
O camarote era bem espaçoso. Possuía uma fascinante pia que dobrava e
penetrava na parede e três beliches fixos, macios, cobertos com bons cobertores,
muito confortáveis. Havia um armário para as roupas e a bagagem. Mas isso era
tudo o que lembrava do camarote, embora sua mãe ali permanecesse, gemendo
de enjoo, durante a maior parte da travessia.
Acudia-lhe apenas uma recordação viva do dia do embarque. As vigias
abriam-se para a quente brisa do mar. A mãe escancarara as malas e pusera a
trouxa sobre uma das camas. Naquele momento, ergueu a cabeça e olhou por
uma vigia. Frank, ao seu lado, olhou também. Não sentiu a menor sensação de
movimento, de deslocamento. Mas viu um grande trecho prateado e faiscante
que se elevava devagar e, mais além, as praias purpúreas da Inglaterra, caindo
lentamente por trás da curva da água.
— Ali está a Inglaterra, a boa, velha e querida Inglaterra — disse
Maybelle.
Frank olhou até que a nuvem púrpura que era seu país nativo mergulhou
por trás das grandes ondas. Ouviu então o choro da mãe. Francis encontrava-se
no tombadilho da segunda classe, com os braços sobre o corrimão.
A bordo, Frank descobriu que não apenas ele, mas todos os demais
indivíduos eram personalidades distintas e que cada um deles possuía uma vida
secreta que não ultrapassava a borda da consciência de seus iguais.
A sua mente sempre vivera mergulhada em sonhos, em imensas emoções
e reações vagas, em respostas automáticas aos estímulos. Naquele momento,
porém, andando pelo navio, seus olhos se tornaram mais objetivos, e a argila
amorfa da mente passou a registrar sulcos de pensamentos, conjecturas
conscientes, deduções e comentários silenciosos. Se olhava para o mar pela
manhã não era apenas com a reação de êxtase e de reverência, mas também com
um pensamento: Como é belo! Quando o pai lhe mostrava uma baleia, muito
distante na vasta superfície do oceano, com uma pequena fonte de água que lhe
revelava a grande e indiferente presença, Frank não ficava mais simplesmente
emocionado. Projetava-se dentro da baleia e tornava-se parte do enorme
monstro, sentia-lhe a obscura consciência e conteúdo e imaginava o universo
verde que fluía nas profundezas abaixo do nível do mar. Quando via golfinhos
saltarem na esteira do navio, perguntava-se o que seria a vida deles e
maravilhava-se com os mistérios insondáveis da existência. Não aceitava mais
com uma alegria sem pensamento o ilimitado pôr do sol, que transformava em
fogo as águas cor de ametista, mas se interrogava sobre o sol e suas jornadas e
tentava resolver mentalmente o enigma.
Vagueando pelo convés, observando os passageiros em suas cadeiras,
debruçados no corrimão, conversando entre si ou andando em passos enérgicos,
não mais lhes aceitava a presença com uma vaga indiferença, como se aceitam
sombras. Começou a fitá-los cheio de interesse, observando-lhes o jogo de
expressões nas faces.
Sua sensibilidade, suas antenas delicadas estendiam-se para eles,
sondando a substância de seus seres, pensamentos, emoções, desesperos e
reações aos que os cercavam.
Ao projetar-se nos demais, na sensação do ar, no movimento das
estrelas, no significado de uma voz, descobriu a si mesmo e isto foi a mais
excitante de todas as descobertas.
Na manhã do terceiro dia no mar, Frank subiu ao tombadilho da segunda
classe e encontrou o pai, encostado no corrimão, palestrando com conhecidos de
bordo. Usava o estranho boné que, com tanto orgulho, comprara em Manchester,
e as perneiras. A bengala pendia-lhe do braço. O boné lançava sombra sobre a
face pequena e murcha, destacando a preta beligerância dos bigodes. As
perneiras traíam a finura de pernas de aranha nas panturrilhas. A bengala era
uma ostentação.
Com um ar de viajante blasé, ele falava em voz dogmática e afetada,
gestos lânguidos e europeus. Era um viajante entediado de Paris, Londres,
Copenhague, Berlim e Estocolmo. Era o buscador independente da novidade na
América. Casualmente, deu a impressão de que se encontrava encarregado de
uma missão de pesquisa experimental em certas cidades americanas e que iria
comparar notas com misteriosos colegas sobre assuntos de química. Como lera
muito sobre o assunto, possuía mais do que a baixa inteligência média e uma
mente viva que tapava elegantemente as falhas de seus conhecimentos, não
deixava de parecer convincente à plateia. Era uma sorte, contudo, que todos eles
fossem de sua própria classe, patéticos fazedores de poses, em busca de uma
importância que, instintivamente, sabiam que não tinham e nunca teriam, cada
um mais interessado em impressionar o outro. Você acredita nesta minha história
a respeito de minha importância e valor e eu acreditarei na sua, pareciam dizer.
Conceda-me minha miserável falsa glória, minha pequena hora ao sol de sua
admiração, e eu lhe concederei a mesma glória e deixarei que você se aqueça ao
meu sol. Finja acreditar que sou pessoa importante e cheia de dignidade e
fingirei a mesma coisa a seu respeito.
A certa distância, o jovem Frank observava e escutava. Pouco tempo
antes, teria notado inquieto a presença do pai e desaparecido em seguida. Os
adultos eram criaturas tediosas, sem motivo perceptível para existirem. Naquele
momento, porém, suas antenas supersensíveis estenderam-se inquietas para o pai
e os demais cavalheiros, que se mostravam forçadamente à vontade, e, embora
não tocada ainda pela experiência, a criança soube e compreendeu.
Não sabia exatamente naquele instante por que eram tão patéticos, por
que havia um ar de medo em todos eles, por que lhe davam tanta pena. Mas,
inesperadamente, foi engolfado por uma compaixão amarga e sem lágrimas, uma
ardente tristeza. Viu o pai como jamais o vira antes. Notou-lhe os lamentáveis
fingimentos, os complicados e comoventes gestos. O boné, as perneiras, a
bengala eram regiões de dor para o garoto, golpes separados num ponto
dolorosamente sensível da percepção. Quis chorar, mas lágrima alguma escorreu
dessa mágoa de adulto. Sentiu vontade de correr até Francis, segurar-lhe a mão e
gritar angustiado: “Eu sei! Eu sei!” Queria mergulhar nos amedrontados olhos
azuis de Francis e, tirando um grito das doloridas profundezas de seu espírito,
dizer-lhe: “Eu compreendo, papai. E sinto tanto! Quero ajudá-lo, mas sei que não
há ajuda, em parte alguma.”
A paralisante impotência da infância, porém, era forte demais e ele não
conhecia palavras com que pudesse expressar o novo conhecimento nem
dispunha de meios para comunicar a piedade. Afastou-se, voltou ao salão e
permaneceu sentado durante mais de uma hora, sofrendo a primeira e dolorosa
compaixão pelo pai, a primeira compreensão. Sentiu também a primeira fúria
abstrata contra o mundo, a primeira compreensão de que era vergonhoso e
terrível que algo na terra pudesse despertar piedade e que a necessidade de
piedade fosse má e insultuosa.
Não se recordava de ter feito amizade a bordo com outras crianças. Nem
uma única face jovem lhe surgiu na memória. Lembrava-se da bela sala de
jantar, dos camaroteiros, do chá vespertino no tombadilho, das pequenas taças de
bouillon de galinha, do som do gongo anunciando o jantar e da vasta extensão do
oceano. Lembrava-se de nevoeiro, de nervosas buzinas gemendo à noite e do
som de música.
No quinto dia, o “Baltic” desviou-se da rota para evitar uma tempestade
e a ameaça de icebergs. Desapareceu o calor da Corrente do Golfo. Os golfinhos
brincalhões não mais seguiram o navio. A glória azul da água foi substituída por
uma bruma cinzenta. O navio começou a jogar, balançar, arfar incessantemente.
A sala de jantar tornou-se mais e mais vazia a cada refeição. O Capitão Smith
andava com uma fisionomia preocupada e absorta. Durante três dias, os
passageiros foram proibidos de passear pelo tombadilho.
Vapor assoviava em canos ao longo dos passadiços e camarotes. Um frio
penetrante, porém, saturava todos os camarotes e salões e descia para a
congestionada terceira classe. Ao receberem permissão para voltar ao convés, os
passageiros arrepiaram-se e ficaram azulados de frio. O mês de março começava
e aproximavam-se da América. Francis vestiu o temo de tweed e deu graças a
Deus por tê-lo comprado. As camisas de lã de Frank não mais lhe provocaram
coceira. Maybelle vestiu o casaco, que usava mesmo no camarote, e até deitada.
As camaroteiras trouxeram sacos de borracha cheios de confortante água.
Sangue inglês congelou em veias inglesas.
No dia seis de março o oceano alteou-se em macias, cinzentas e oleosas
ondas, mas a fúria da tempestade fora substituída por um baixo, constante e
profundo som. O céu fervia com grossas nuvens esbranquiçadas, listradas por
nevoeiro negro, em volutas. O frio cortante “congelava o tutano de um homem”,
para citar Francis Clair, cujo curto nariz adotou uma tonalidade invariavelmente
azul. Nunca experimentara antes vento tão penetrante e temperaturas tão baixas.
A mãe tivera razão. Pensou na cálida brisa inglesa, nas margaridas, nas baixas
colinas cor de púrpura, nos prados verdes e, pela primeira vez na vida, sentiu-se
doente de saudade.
Na manhã de sete de março, Francis entrou correndo no camarote e,
emocionado, exigiu que a esposa e o filho subissem ao tombadilho com ele.
Maybelle, porém, cuja cor rosada fora substituída por uma permanente lividez,
estava ocupada arrumando a bagagem espalhada e respondeu que não tinha o
menor desejo de ver a costa de Nova York. Para ela, o navio havia-se
transformado em um elo com a Inglaterra. Agarrou-se àquele cordão umbilical
até o último momento. Frank, contudo, subiu correndo a escada em companhia
do pai. Francis conseguira um binóculo. Empurrou o filho através da multidão
até o corrimão e focalizou para ele o instrumento.
Frank, tremendo de emoção, olhou pelas lentes. Exatamente na
superfície do oceano, que se erguia a distância, viu uma baixa e clara parede,
fraturada e caótica, azul, alfazema e amarelo-clara. A parede parecia mergulhar,
erguer-se, tornar-se mais e mais brilhante e firme. Naquele instante, o jubiloso
navio urrou cumprimentos à América e o tombadilho foi inundado pela fumaça.
Vozes subiram numa feliz tempestade de exclamações e risos. A perigosa
jornada terminara. Frank sentiu um forte e doentio cheiro, adocicado,
insuportável. Gaivotas descreveram círculos sobre o navio, misturando-se seus
agudos pios com o vento frio. Frank viu pequenos e ativos rebocadores, pretos e
importantes, dirigindo-se para o navio, vomitando fumaça e produzindo um
horrível barulho.
A recordação seguinte foi a de funcionários da Alfândega americana
entrando no camarote. Desde que os Clairs eram passageiros de segunda classe,
não seriam obrigados a passar pela indignidade da revista em Ellis Island. Entre
os funcionários havia um médico baixinho, que aplicou um estetoscópio ao peito
dos três Clairs no próprio camarote.
Em seguida, Frank ouviu a voz zangada do pai erguer-se em protesto:
— Do que é que o senhor está falando, homem? Nunca sofri de tísica em
minha vida! Absurdo. Sou sadio como um cavalo!
O médico sacudiu a cabeça e auscultou-o novamente. Francis tirara o
colete e a camisa. Ficou com as roupas de baixo de lã, a face murcha brilhando
de raiva e medo, os olhos mexendo-se inquietos de um lado para o outro. Os
bigodes eriçaram-se e a língua nervosa umedeceu os lábios. Maybelle olhava
com expressão vazia para a frente, empalidecendo.
O médico guardou o estetoscópio e disse:
— Há estertores no peito. O senhor já teve bronquite?
— Quem foi que não teve? — respondeu zombeteiro Francis.
— É uma doença nacional na Inglaterra.
O médico examinou alguns papéis:
— Farmacêutico, hem? Não é um trabalhador braçal. Bem. Já recebemos
da Europa um número grande demais de trabalhadores braçais. Não fique
preocupado, Sr. Clair. Eu não disse que o senhor tem tísica, ou melhor,
tuberculose. Observei apenas que o senhor demonstra certa tendência para
contraí-la. Provavelmente, bronquite crônica. Descobrimos um bocado desses
casos em pessoas vindas da Inglaterra. — Sorriu e apertou com a mão trêmula o
ombro de Francis, muito magro e ossudo. — Temos aqui um bocado de sol e
talvez isso dê um jeito no seu caso. Mas, se aparecer com tosse ou escarros
sanguíneos, é melhor procurar um bom médico. Quanto mais cedo, melhor.
Saindo o médico e os funcionários, Francis derreou-se na cama,
respirando forte e com dificuldade. Empalidecera de medo. Tossiu
experimentalmente.
— Eu lhe disse que usasse cachecol de lã — lembrou Maybelle
— Mas você queria andar por aí mostrando o pescoço!
— Cale-se! — respondeu violentamente Francis. Tossiu outra vez, e
mais outra, escutando com total e apaixonada absorção o som produzido. A tosse
era seca, forçada. Francis começou a tremer enquanto escutava.
— Mel e limão — sugeriu Maybelle.
— Cale a boca! — gritou Francis. Tossiu e continuou a tossir. Levou o
lenço à boca. Seco e limpo. Desanuviou-se o seu rosto. — Você já me ouviu
tossir alguma vez à noite? — indagou nervoso à esposa.
— Não, querido.
— Fico afogueado ou suo à noite?
— Certamente que não.
Francis, triunfante, levantou-se de um salto.
— Esses médicos americanos! Não sabem de nada. Ouvi falar neles.
Frequentam a faculdade apenas durante dois anos. Foi isso o que Durham me
disse. Tísica! Nunca fiquei doente na vida. Ouviu aquela tosse? Tive que fazer
força para tossir.
CAPÍTULO 11
As recordações seguintes de Frank Clair não incluíam Nova York, salvo
uma vaga impressão de frio, trechos cobertos de neve e uma caótica confusão de
edifícios. Tampouco se lembrava da viagem de setecentos e cinquenta
quilômetros de trem, de Nova York até Bison.
Mas lembrava-se de ter descido do trem na Lackawanna Station. À
frente começava uma longa ladeira coberta de neve, vazia, suja e horrivelmente
fria, que terminava no começo de Main Street. De ambos os lados, estendiam-se
armazéns desertos, bares, casas de cômodos suspeitas usadas por vagabundos e
tripulantes dos barcos do lago, durante o verão. Um cheiro fétido de esgoto,
sujeira, álcool e comida ruim enchia o ar. Notou o céu do norte, nublado,
enfarruscado, sombrio, encoberto por escuras e pesadas nuvens cor de cinza.
Sentiu os ventos paralisantes que sopravam do rio e dos lagos, o ferrão das
partículas de neve, duras como grãos de areia, e gelo na face. Exausto, subiu a
ladeira ao lado da trêmula Maybelle. Francis, usando boné, bengala e lustrosas
perneira, subiu à frente, levando as preciosas malas compradas em Londres.
Frank nunca esqueceu aquelas lustrosas pernas, a pequena figura magra metida
em um temo de tweed, subindo com alegria a escorregadia ladeira.
Chegaram ao alto, no começo de Main Street, que se estendia diante de
Frank margeada por lojas, restaurantes, bares e casas de cômodos arruinadas.
Aparentemente, tudo se encolhia ante o imenso e apavorante céu invernal. As
ruas, o meio-fio e os telhados estavam cobertos pela neve suja. Havia um ar de
fronteira na cidade, não obstante ela possuir uns trezentos mil habitantes. Talvez
fossem o inverno interminável, o frio, a proximidade das grandes extensões dos
lagos de água doce e do feroz Rio Niágara que criassem aquele ar. No entanto,
embora Bison viesse finalmente a crescer e a abrigar uma população de cerca de
setecentas mil almas, jamais perdeu sua característica de fronteira, a desolação
no inverno, a atmosfera de duro isolamento. Era a segunda maior cidade do
Estado, mas entre ela e a de Nova York havia centenas de outras cidades, aldeias
e pequenos burgos que pareciam tão remotos entre si como se separados por
milhares de quilômetros. Situada às margens do Lago Erie e do Rio Niágara,
dava frente para a longa e nevada desolação do Canadá e atraía todo o impacto
do ar polar e de planícies desertas e montanhas esquecidas.
A Sra. Jamie Clair, que nunca misturava assuntos de “família” com
negócios, não lhes preparara acomodações na sua lúgubre pensão em Porter
Avenue, não muito longe do rio. Alugara dois cômodos para Francis e a família
em Vermont Street, próxima a Normal Avenue. Nem fora recebê-los quando
chegaram à deserta e triste cidade. Sabiam o endereço. Francis conseguiu
arranjar um frio táxi. Tremendo incontrolavelmente, ele e a família subiram e
partiram.
Frank era jovem demais para sentir grande incômodo físico, embora
tivesse os pés dormentes e as mãos nuas azuis de frio. Olhou pelas janelas sujas
do táxi, absorvido no que via. Viu ruas intermináveis, de esquálidas e escuras
casas de madeira; o meio-fio até em cima de neve; telhados leprosos em misturas
de branco e preto; o ar rodopiando com areia branca e vento furioso. Não parecia
haver uma única alma nas ruas às dez da manhã desse dia 8 de março. A neve
soprava em véus pelas ruas desertas, enrodilhava-se e contorcia-se nas esquinas
vazias. As casas eram apenas manchas indistintas, escuras, por trás de dançantes
e trêmulos xales de diáfana brancura.
— Viemos para o fim do mundo — choramingou Maybelle
dolorosamente, encolhendo-se toda dentro do casaco.
Francis permaneceu calado. Ele, também, olhava pela janela do táxi,
embaciada pelo gelo. Com o pequeno rosto rígido e tenso, pestanejavam sem
cessar os seus miúdos olhos azuis. Frank sentiu mais pena do pai do que da mãe,
embora não pudesse dizer por quê. A bengala jazia esquecida ao lado, as
pequenas e valentes perneiras pareciam vulneráveis, patéticas, e o boné, grande
demais para a cabeça. Até mesmo os magníficos bigodes começavam a pender
para os lados.
Depois de intermináveis solavancos pelas ruas cobertas de gelo, o táxi
parou em Vermon Street. Frank viu um armazém de secos e molhados, uma
alfaiataria e uma fileira de esquálidas casas de madeira, de aparência triste,
abandonadas ao assalto do inverno. Subiu um longo lance de íngremes degraus
de madeira, escuros e terrosos. A porta se abriu e uma gorda megera de
aparência sinistra surgiu, fitando-os em silêncio por trás dos óculos com aros de
aço.
Maybelle tentou sorrir.
— Bom dia — disse, mas a voz saiu rouca. — Somos os Clairs.
Acabamos de chegar.
A velha e obesa feiticeira afastou-se para o lado, sem falar. Fungou alto,
embora ninguém pudesse saber se o fez por estar resfriada ou por desprezo. Uma
pancada de ar gelado e pulverulento atingiu os viajantes. Maybelle olhou em
volta e seu cálido coração derreou-se para nunca mais erguer-se inteiramente na
América.
Havia dois cômodos à espera. Um deles era um quarto de dormir e sala
de estar. Continha uma grande cama de ferro, toda filigranada, coberta com
cobertores velhos e úmidos e uma colcha branca remendada; um sofá e uma
pilha de cobertores sujos no chão, obviamente destinados ao jovem Frank; uma
cômoda torta, de carvalho, com espelho manchado; duas cadeiras de balanço de
madeira; uma mesa redonda de carvalho sem toalha e, no chão, um linóleo gasto
e remendado, cuja decoração era irreconhecível. Um pequeno aquecedor a gás
fora aceso de má vontade e suas chamas vermelho-amareladas desprendiam um
fétido cheiro de gás não inteiramente queimado. Um lustre a gás, sem as
camisas, pendia do teto caiado.
O outro cômodo era a cozinha, contendo uma “chapa quente” em uma
caixa de madeira, uma pia de ferro com uma torneira que pingava apenas água
fria, uma mesa sem toalha e três ou quatro cadeiras de madeira com assentos
imitando couro. As cortinas de algodão áspero pendiam molemente, cobertas por
uma leve camada de fuligem. Um guarda-comida vazio, de madeira, bocejava
contra uma parede.
As janelas, estreitas e sujas, emolduravam uma cena de desolação:
telhados de madeira, fumegantes chaminés sujas e pretas, paredes de casas e a
apavorante rua embaixo.
Por esse luxo, os Clairs pagariam três dólares semanais, o que a Sra.
Clair lhes havia garantido ser muito barato, desde que estava tudo incluído, o
aquecimento, a iluminação e a mobília.
— Bem — disse a bruxa com os braços cruzados sob o avental — vocês
chegaram, finalmente. Eu os esperava há dois dias.
Francis tirou o boné. Lançou-o na grande e úmida cama.
— Enfrentamos uma tempestade — disse, tentando dar à voz que morria
um tom forte e confiante. — Atrasou a viagem em três dias. — Interrompeu-se.
— A senhora é a Sra. Watson, suponho?
A velha grunhiu um assentimento. Possuía um ventre enorme sob o
vestido sujo, de alguma espécie de tecido preto de algodão. O cabelo
esbranquiçado fora amarrado em um pequeno nó na parte superior da imensa
cabeça- Fios brancos cresciam-lhe em profusão no queixo. O aspecto dela era
brutal, grosseiro, suspeito.
Francis indicou a esposa e o filho com um aceno de mão.
— A Sra. Clair, e meu filho, Frank — disse.
Maybelle inclinou a cabeça. Não ousou falar, receosa de prorromper em
soluços. Frank olhou-a fixamente. A velha examinou sem pressa Maybelle e o
garoto.
— Espero que o menino não seja um traste. É a primeira vez em que
hospedo uma família com filho.
— O garoto é bem-comportado — prometeu Francis, olhando feroz para
Frank.
— Há uma escola aqui, no número 38, subindo a rua — disse a Sra.
Watson. — Ele já tem idade suficiente, não?
— Frank está na escola há um ano. — Maybelle falou pela primeira vez
e com uma débil coragem. — Ele é muito aplicado.
— Espero que não molhe a cama — respondeu azeda a Sra. Watson.
Estendeu a mão. — Três dólares. Isto é, até sábado. São apenas mais quatro dias,
mas reservei-lhes o quarto desde o começo da semana e, assim, devem o
pagamento todo.
Francis tirou o dinheiro do bolso. Seus dedos tremeram um pouco ao
contá-lo. Entregou-o à bruxa, que o arrancou da mão dele, olhou desconfiada
para as notas, dobrou-as e enfiou-as no seio. Odiava “estrangeiros” e,
especialmente, ingleses.
— Vocês usarão o banheiro, que está incluído no apartamento —
continuou a Sra. Watson. — É meu banheiro, também. Chegam lá, passando
pelos meus cômodos, nos fundos. Há uma regra sobre o uso. Vocês precisam
falar antes comigo quando quiserem tomar banho, e não mais de um banho por
semana. — Fungou. — Trouxeram louça e o resto?
— Nossos caixotes estão na estação. Combinei para serem trazidos hoje
à tarde —■ disse Francis. Parecia mais baixo na triste penumbra daqueles
cômodos do que na Inglaterra.
— Tenho roupas de cama — disse Maybelle, lançando um olhar
apavorado à cama e ao sofá. — Bons colchões de penas, lençóis e travesseiros.
A Sra. Watson pareceu desdenhosa.
— Bem, vocês podem usar suas coisas. Não me importo. Simplesmente,
devolvam estas quando as outras chegarem.
Dirigiu-se pesadamente para a porta, abalando as gastas pranchas de
madeixa do assoalho. Saiu e bateu com força a porta.
Caiu o silêncio nos feios e pobres cômodos. Maybelle sentou-se numa
cadeira da cozinha. Começou a puxar as finas luvas de pelica. Os dedos lhe
tremiam visivelmente. Francis andou de uma janela a outra, olhando para fora.
Os cômodos escureciam cada vez mais. O bom couro marrom das malas
abandonadas parecia recolher-se dentro de si mesmo.
Maybelle começou nesse momento a chorar incontrolavelmente. Cobriu
o rosto com as mãos. O chapéu inclinou-se como um enorme platô coberto de
flores. Afundou-se na cadeira e entregou-se ao sofrimento. Frank colou-se a ela,
infeliz e apavorado demais para chorar. Francis deixou a janela e olhou furioso
para a esposa.
— Pelo amor de Deus, acabe com isso, Maybelle — disse, mas a voz lhe
tremia — Isso não pode ser evitado. Mas é apenas temporário.
Maybelle, porém, chorava e dizia incoerentemente:
— E pensar que deixei minha casa tão confortável por isto, as grades
polidas e as lareiras, minhas boas camas e minha linda mobília! E pensar que
trocamos a Inglaterra por isto!
Falando do fundo do próprio desespero, depressão e medo, Francis
respondeu áspero:
— É apenas temporário, estou-lhe dizendo. É barato. Economizaremos
todo o nosso dinheiro e voltaremos para casa. Talvez dentro de dois ou três anos.
Mamãe me arranjou um bom emprego numa farmácia. Vinte e cinco dólares por
semana! Isso é mais de cinco libras! Ganharei um pouco mais depois. Podemos
economizar quinze dólares por semana, isto é, três libras. Três libras por semana
são setecentos e oitenta dólares por ano, ou cento e cinquenta e seis libras. Eu
também estarei ganhando mais. Ora, logo depois teremos duzentas libras num
ano, mil dólares! Dentro de três, quatro, cinco anos, possuiremos uma fortuna e
voltaremos para casa. Mil dólares por ano, pelo menos. Podemos tolerar
qualquer coisa por esse dinheiro.
Esperou o comentário de Maybelle, mas ela coisa alguma tinha a dizer.
Impotente, Francis torceu os bigodes.
— Considere isso como um exílio — disse, menos confiante. —
Simplesmente um exílio. Ainda somos jovens. Podemos suportar qualquer coisa
durante alguns anos. Depois, voltaremos com os bolsos cheios de dinheiro.
— Anos de vida neste lugar, onde o diabo perdeu as botas — soluçou
Maybelle.
Francis começou a vociferar:
— Você está falando como uma idiota. Aonde é que conseguiríamos
chegar na Inglaterra? Há dinheiro aqui. Não perca a coragem, pelo amor de
Deus! Pensa que isto é fácil para mim? — Olhou para as mãos trêmulas. —
Preciso lavar-me — disse. — O banheiro fica lá embaixo. Enquanto isso, é
melhor que você mude de roupa e arranje alguma coisa quente para se abrigar. O
resto da bagagem deve chegar esta tarde. Tenha coragem, Maybelle. Lave o rosto
de Frank. Mamãe está à nossa espera. Deve ter preparado um bom jantar.
Coragem! As coisas nunca são tão pretas como parecem.
Saiu pisando forte. Maybelle continuou a chorar, tomada de completa
desolação. Timidamente, Frank passou o braço em volta dos ombros dela. Sentiu
o movimento dos ombros gordos, subindo e descendo.
— Mamãe — disse em voz débil.
Ela abraçou-o com tanta força que ele perdeu a respiração.
— Oh, meu querido, como é que posso suportar isto? — exclamou. —
Este país horrível! Eu sabia que não devíamos ter deixado nossa casa. Nós nunca
voltaremos, Frankie, nunca voltaremos. Eu sinto isso, sinto isso no fundo do
coração! Nunca mais veremos a Inglaterra... nunca mais, nunca mais, nunca
mais!
CAPÍTULO 12
A pensão da Sra. Jamie Clair, “quartos elegantemente mobiliados e
comida caseira”, situava-se em Porter Avenue, perto de Niágara Street, onde
desfrutava das vantagens de vento congelantes no inverno e brisas frescas no
verão. Fora outrora uma mansão construída de acordo com os gostos da gente
lúgubre das décadas de setenta e oitenta e era pintada de uma sombria cor
marrom-chocolate. Possuía quartos geminados em “torre”, excrescências que
pareciam ventres protuberantes estendidos de cada lado do segundo andar.
Diretamente abaixo das torres truncadas havia uma janela de “sacada”, fechada
por quatro estreitas vidraças curvas. A casa possuía ainda um terceiro andar com
quatro janelas de águas-furtadas abertas no telhado de ardósia. Uma larga e
escura varanda cercava-a por três lados. Parecia ter sido habilmente planejada
para excluir todo e qualquer vestígio de sol que pudesse impudicamente infiltrar-
se pelos castanheiros que ocupavam toda a estreita faixa do gramado. As árvores
impediam inteiramente que a grama crescesse e uma área escura de musgo, de
um verde doentio e manchado, servia a essa finalidade. Casas quase idênticas
ladeavam a da Sra. Clair, tão perto que as janelas laterais de cada uma podiam
ser alcançadas pela mão estendida. O beco entre elas era estreito, úmido e preto
de fuligem. Mas todas as casas possuíam um “quintal”, onde haviam sido feitas
tentativas de plantar flores, principalmente girassóis, nastúrcios e peônias,
durante os curtos verões.
Frank Clair não conseguiu descobrir muitas diferenças entre essa casa de
Pôster Avenue, em Bison, Nova York, e a casa de Leeds. A Sra. Clair havia,
milagrosamente, conseguido transferir sua atmosfera quase intacta para a terra
estranha. Era o mesmo o ar úmido, frio, pegajoso e fechado, a mesma mobília de
veludo e crina, as mesmas altas e escuras janelas, cerradas por renda áspera e
cortinas escarlates, os mesmos tapetes escuros, as longas e crepusculares escadas
e os estreitos corredores. Instintivamente, escolhera a casa no exato momento em
que a vira pela primeira vez. O ar era saturado pelo mesmo cheiro de repolho
cozido, cevada, carne de carneiro, batatas e pudim de rins. Sentia-se um odor de
cloreto de cálcio, cera, gás de carvão e linóleo que fez Francis e Maybelle
fungarem e se entreolharem nostálgicos.
Com o mesmo instinto que a levara a escolher a casa e mobiliá-la, ela
selecionara com o máximo cuidado os “hóspedes”. Frank ouviu as mesmas
tosses humildes e secas na sala de jantar, nos corredores e nos quartos. Ouviu o
mesmo arrastar de passos cheio de desculpas, as mesmas vozes baixas e
apreensivas. Da mesma forma que em Leeds, os hóspedes eram caixeiros,
chapeleiras, costureiras e guarda-livros. A casa era respeitável, dirigida como um
quartel, e fornecia boa comida. A pensão da Sra. Clair vivia invariavelmente
cheia. Os quentes e minúsculos quartos sob o telhado eram alugados por nove
dólares semanais. Havia ainda dois grandes quartos de frente, com “sala de
estar”, que custavam a incrível soma de vinte dólares cada. Um deles era
ocupado por um tal Sr. Farley, o dono da farmácia onde Francis iria trabalhar, e o
outro, por uma “fina” viúva de meia-idade, a Sra. Prescott, que se bravateava de
uma pensão de mil e duzentos dólares anuais, o que era uma verdadeira fortuna.
Para esses hóspedes, e somente para eles, a Sra. Clair cedia um pouco. O Sr.
Farley e a Sra. Prescott eram bem-vindas a qualquer hora do dia na sala de
visitas do térreo e jantavam cerimoniosamente com a dona.
A Sra. Clair fora obrigada a aumentar a força de trabalho doméstico para
duas pessoas, mãe e filha.
— Esses ianques são tão independentes que você nem acreditaria —
disse ao filho. As duas empregadas moravam num pequeno quarto sem luz nos
fundos do terceiro andar e recebiam, em conjunto, dez dólares semanais. —
Duas libras! — exclamou a Sra. Clair com trágico orgulho. — Pense só nisso!
Uma semana de salário de uma família! — Confessou que tinha de tratar "com
luvas de pelica” a Sra. Clark e a filha, Sally. — Não têm nenhum senso de
responsabilidade ou dever — queixou-se ela a Maybelle. — E são
desavergonhadas. Exigem folga domingo sim domingo não, depois das quatro da
tarde, e não trabalham depois das dez da noite. Nunca se ouviu coisa igual.
Os Clairs eram convidados para jantar todos os domingos. Frank tremia
de frio, calado, mesmo nos verões. Ampliara-se sua capacidade de percepção.
Odiava aquela casa escura de Porter Avenue. Começava a odiar a avó.
Raramente, se alguma vez, dirigia-lhe a palavra, o que confirmava a opinião dela
de que o pequeno era “abobado”. Sentia pena do menino, disse a Francis, com
uma expressão maligna na face férrea. Mas, também, era preciso levar em conta
o sangue da mãe.
A Sra. Clair sentia crescente aborrecimento com Maybelle, que havia
perdido o quente rosado do semblante inglês. Adquirira uma lividez permanente
e manchas no rosto que pareciam sardas. O coral brilhante dos seus lábios fora
perdido para todo o sempre, e a sua figura pequenina e gorducha era agora lívida
e seca. O próprio cabelo começava a perder a tonalidade vermelho-viva;
descorara também e se tornara feio e estriado de branco. Os cachos haviam-se
transformado em finos e compridos fios. A gordura permanecera, não redonda e
firme como antes, mas flácida, informe, molemente doentia. Os olhos castanhos,
que nunca haviam sido muito vivos e brilhantes, adquiriram uma cor escura e
baça. Uma mudança ocorria nela e não era uma mudança bonita ou agradável.
Na Inglaterra, embora no íntimo não gostasse da velha, Maybelle sempre
a respeitara muito e raramente demonstrava seu temperamento natural em
qualquer choque ou encontro. Agora, porém, estava-se tomando mal-humorada.
— Ela nunca me diz uma palavra delicada — queixou-se a Sra. Clair, em
particular, ao filho. — Explode e fala secamente pela menor coisa. Pensei que
ela adorasse o menino, mas agora o espanca em todas as oportunidades e, às
vezes, até eu mesma reclamo. O que foi que lhe aconteceu?
Francis não sabia. Tampouco se importava. Era um homem de instintos
superficiais e tímido aproveitador de situações. Era “farmacêutico” no próspero
estabelecimento do Sr. Farley, em Niágara Street, próxima a West Ferry, e
recebia vinte e cinco dólares semanais. Tinha seus próprios problemas. Era-lhe
difícil familiarizar-se com os novos métodos de preparo das receitas. Não podia
reconciliar-se com a necessidade de servir “sodas”, que considerava uma
beberagem vil. Nem podia compreender por que uma “farmácia” vendia também
caramelos, sorvete e fumo, além de medicamentos. Finalmente, não conseguia
compreender o Sr. Farley.
O Sr. Timothy Farley era irlandês e, no início, Francis sentiu-se ofendido
por ter de trabalhar para ele. Antes de muito tempo, “colocaria esse salafrário em
seu lugar”. O Sr. Farley, contudo, parecia sincero e calorosamente inconsciente
de que devia ocupar determinado lugar. Era um homenzinho bondoso, gordo,
jovial, com alguns fios de cabelo ruivo na grande cabeça calva, olhos
esverdeados faiscantes, um grande e cativante sorriso, uma grossa corrente de
relógio em ouro e bom gosto em matéria de alfaiates. Viúvo, sem filhos. Sentia a
maior afeição por criaturas jovens, humanas ou animais, e seus bolsos andavam
sempre cheios de balas, drops, e goma de mascar, que distribuía cheio de ternura.
Tinha uma gargalhada gostosa e trovejante, difícil de resistir, embora Francis o
fizesse, com sucesso. Na Inglaterra, certamente, a Sra. Clair sequer teria sonhado
em ter um irlandês como “hóspede”. Mas as coisas diferiam na América e, como
dizia com frequência a Francis, “em Roma, faça como os romanos”.
Francis, porém, não conseguia acostumar-se a trabalhar para um
irlandês. Era “aviltante”. Mostrava-se tão impertinente quanto ousava com o
patrão. Entretanto, como não era corajoso, a impertinência passava quase
despercebida. O Sr. Farley não reconhecia ares superiores. Achava Francis um
“tipinho engraçado, sem sangue nas veias”. Sentia por ele toda a pena de que era
capaz seu cálido e generoso coração e, assim, era quase bondoso demais para
com o novo farmacêutico e, invariavelmente, incluía uma caixa de chocolates
para Maybelle, um saco de balas para o pequeno Frank e um quarto de sorvete
ao pagar a Francis o salário nas noites de sábado. Francis aceitava os presentes,
dados por instintiva compaixão e compreensão, com uma superior graciosidade.
Os presentes acalmavam-no.
Era um farmacêutico consciencioso, embora talvez sem inspiração. O Sr.
Farley sentia-se satisfeito. Havia-se quase acomodado com a incompetência, o
relaxamento e a irresponsabilidade dos empregados. E mesmo com furtos na
registradora. Quanto a Francis, podia-se confiar em que estaria na farmácia
exatamente às oito da manhã, superintendendo a limpeza do chão e das janelas e
mesmo realizando tais tarefas, se o preguiçoso escolar resolvia certas manhãs
que era trabalho demais comparecer. Podia-se confiar a ele a registradora, como
tornou evidente um acentuado aumento da féria diária. Cortês, embora frio, com
os clientes, despachava corretamente as receitas. Era tão cuidadoso e exato, na
verdade, que fez reputação entre os médicos locais, mesmo entre os que
geralmente não recomendavam a farmácia do Sr. Farley.
O jaleco branco de Francis era imaculado; as mãos, esfregadas e limpas;
a sua pessoa, impecável. Era um autômato, aparentemente incansável e sempre
preciso. Após seis meses, o Sr. Farley aumentou-lhe o salário para trinta dólares
semanais e presenteou-o com um cheque de vinte e cinco dólares no Natal.
Secretamente, o Sr. Farley desejava que Francis o convidasse para ir a
sua casa. Desenvolvera grande afeição pelo pequeno Frank, cuja face comparava
a de um santo ardente, embora silencioso. Sentia grande pena de Maybelle e
fornecia-lhe remédios de nome registrado, com os quais ela estava ficando
viciada. Ouvia-lhe com interminável paciência as queixas sobre vagas e sinistras
dores e não achava nada de mais em voltar à farmácia nos domingos e aviar uma
receita para ela. Olhava cheio de compaixão para aquela face inexpressiva e
flácida, de lábios petulantes e olhos empapuçados e, no fundo do coração, dizia
uma prece silenciosa por ela.
Os Clairs, porém, nunca o convidaram a visitá-los no pobre apartamento
de Vermont Street. O convite simplesmente jamais ocorreu a Francis. O Sr.
Farley era seu patrão e constituía dever dos patrões “manter a distância”. Os
empregados jamais exploravam o espírito de humanidade dos empregadores. Os
empregadores constituíam uma raça elevada, diferente. Francis não achava a
menor incoerência na profunda convicção de que o Sr. Farley, sendo irlandês, era
seu inferior e, simultaneamente, sendo seu empregador, era também seu superior.
Maybelle, não gozando das vantagens de uma educação de classe média,
considerava o Sr. Farley um homem realmente muito bom. Mostrava-se
respeitosamente humilde na presença dele, encarando-o como a fonte de seu pão
e manteiga, mas, às vezes, ele conseguia fazê-la rir. Sempre a escutava quando
ela se lamentava do exílio e falava, com lágrimas nos olhos, sobre a Inglaterra e,
embora em particular julgasse a Inglaterra um “inferno de país”, demonstrava
sempre simpatia para com a pobre mulher.
Se Maybelle mudava, Francis mudava também, e da mesma forma
inexorável. As mudanças continuaram invisíveis para Frank durante pelo menos
dois ou três anos. Francis, sempre apreensivo e preocupado, com uma tendência
para acovardar-se ante qualquer manifestação de malevolência inata do destino,
começava a conhecer o medo em sua forma mais mutiladora. Jamais soube por
quê. Anos mais tarde, Frank perguntou a si mesmo, em um forte acesso de
compaixão, se a mudança não começara no dia em que o médico da imigração
fizera aquele exame a bordo.
A imperceptível e implacável mudança nos pais, no entanto, não era
ainda o problema mais urgente na vida do jovem Frank Clair.
Para Miss Jones, as crianças do primeiro ano não constituíam uma massa
de aflições anônimas que lhe provia o sustento. Eram indivíduos, intensamente
diferentes entre si, almas dessemelhantes, infindavelmente interessantes e novas.
A maior parte dos alunos era formada de filhos da classe operária, embotados,
insensíveis e irremediavelmente inferiores em questão de intelecto. Por eles,
Miss
Jones sentia uma compaixão desesperada, não porque fossem pobres e
andassem com roupas remendadas, mas porque suas mentes os condenava a uma
semivida, dificilmente superior à de um animal dos campos. Eram embriões
eternos, semiformados, expelidos do ventre da vida antes do desenvolvimento
final.
CAPÍTULO 13
Três mestres em sua vida influenciaram-no profundamente e Frank
jamais os esqueceu. Duas mulheres e um homem. Diferiam inteiramente em
caráter, aparência e idade. Apesar disso, havia neles algo em comum: certa
sensibilidade e percepção agudíssimas.
A primeira mestra de Frank na América, uma solteirona de uns cinquenta
anos, era uma mulher pequena e magra cuja face parecia uma passa seca. Usava
um imenso e despenteado pompadour preto. Em contraste com o pequeno
tamanho, tudo nela era enorme, do penteado às grandes botas, das grandes mãos
ao relógio, preso ao corpete. Isso lhe dava um ar atrevido e picaresco, realçado
pelo inesperado sorriso, amplo, cheio de grandes dentes brancos e
deliciosamente engraçado. Esse pequeno grilo erguia-se alegre da cadeira e
corria para o quadro-negro, batendo com as botas no chão como se fosse um
granadeiro, enquanto o penteado parecia um grande tumor sobre a pequena face,
o imenso relógio balançava-se de um lado para o outro sobre o busto murcho e
as pulseiras de prata tilintavam nos punhos ossudos. Enquanto corria, soltava
uma série de altas e trinadas notas, sem palavras, numa expressão natural de sua
personalidade, e que eram tão suas e tão esperadas como o chilreado do grilo,
com o qual tanto se parecia. Chamava-se Emily Jones.
Frank ficou encantado. Amou-a desde o momento em que ela,
brincalhona, puxou-lhe as orelhas e chamou-o de “queridinho”. Tinha maneiras
rudes e vivas, esmurrava os garotos com pesada afeição, puxava as fitas das
meninas para o lugar, mandava-as embora com uma palmada no traseiro e, em
seguida, olhava em volta com um ar alegre e cheio de expectativa. Era um
azougue, toda ela movimentos rápidos, ternura, compreensão e disciplina. As
crianças riam dela e adoravam-na. Três rapazes e duas moças conseguiram
alcançar mais tarde graus variáveis de fama e todos falavam de Miss Jones com
divertido carinho. Somente um deles, Frank Clair, desconfiou de que ela
praticamente morria de fome com os quatrocentos e cinquenta dólares anuais,
com os quais sustentava ainda a mãe e a irmã inválida. Somente Frank procurou-
a mais tarde e descobriu que ela morrera de inanição.
Em todas as novas turmas de garotos de seis e sete anos, Emily Jones
estudava atentamente cada face infantil. Quatro ou cinco vezes nos longos anos
de ensino identificara certo brilho nos olhos, certa inclinação de cabeça, certo
gesto ou entonação que a enchia de súbita energia e grande exultação. Ali havia
não uma informe massa de argila, mas um ser humano completo, em potencial,
algo a ser descoberto, orientado, reverenciado e tratado com respeito e estima.
Ninguém levou Frank à escola no primeiro dia. Maybelle simplesmente
lhe mostrou onde ficava, a uns dois quarteirões de distância, em Vermont Street,
no número 38. Vestiu-o com sua segunda melhor roupa de marinheiro, disse-lhe
que se comportasse, endireitou-lhe uma das meias, enxugou-lhe o nariz, enfiou-
lhe um lenço no bolso e recomendou-lhe que, na volta, não se demorasse no
caminho. Em seguida, mandou-o embora e voltou às novas ocupações de pensar
no próprio sofrimento e tentar remover pelo menos parte da fuligem e do sujo
acumulados naqueles pobres cômodos.
Frank entrou na escola a um quarto para as nove da manhã. Desalentado,
notou que as crianças brincavam na calçada, esperando o toque da campainha.
Eram crianças barulhentas, rebeldes, que imediatamente lhe deram empurrões.
Penetrou no corredor da velha escola de tijolos e, timidamente, aproximou-se de
uma professora que o escoltou até Miss Emily Jones.
Miss Jones escrevia o alfabeto no quadro-negro no momento em que
Frank foi empurrado sala adentro pela colega. Estavam vazias ainda as carteiras
arranhadas; as janelas cinzentas deixavam passar o frio sol de março. A sala
cheirava a pó de giz, suor e madeira. Miss Jones virou-se rapidamente, examinou
Frank com pequeninos e buliçosos olhos pretos, endereçou-lhe um imenso
sorriso e exclamou:
— Oh, um novo aluno! Qual é o seu nome, querido?
Aproximou-se, puxou-lhe as orelhas com ar de brincadeira e examinou-o
com toda a atenção. Notou a pálida e magra face, os olhos azuis sérios, os cachos
castanhos e o corpo alto e magro. Ele sorriu sem graça e moveu a larga boca,
mas sem genuína alegria. Ela observou-lhe as longas e alvas mãos, os dedos
macios e as fortes juntas. E, mais uma vez, sentiu aquela rara emoção e
excitação, uma estranha falta de fôlego, aquele agudo reconhecimento.
Segurou-lhe a mão e puxou-o até a escrivaninha. Sentou-se, cruzou
fortemente as grandes mãos e fitou-o durante longo tempo. Estranhamente,
Frank não sentiu o menor embaraço ou timidez sob aquele olhar atento, mas
apenas uma espécie de imediata reação.
Disse-lhe o nome, endereço, os nomes dos pais, o local de nascimento.
Ela escutou, com a cabeça inclinada para um lado, com o enorme penteado
brilhando à luz do sol da primavera. Parecia escutar algo mais além da voz do
garoto.
Com algumas perguntas descobriu que Frank deveria ter sido
matriculado em uma turma mais adiantada. O garoto sabia ler, escrever e,
mediocremente, fazer contas. Mas não conseguiu mandá-lo embora. Sabia que
devia conservá-lo, ajudá-lo, que ele era uma dessas raras criaturas. Indicou-lhe
um assento no fundo da sala no momento em que as demais crianças entraram.
Eles imediatamente reconheceram em Frank um estranho e durante toda
a longa manhã ficaram a olhá-lo. Alguns dos garotos sentados perto sorriram-lhe
experimentalmente e ele retribuiu o sorriso. Mas, logo em seguida, os sorrisos
cessaram inexplicavelmente e Frank viu, mais uma vez, a dura máscara da
hostilidade descer sobre aquelas faces. Conhecia bem aquela máscara e
experimentou durante outro doloroso momento uma sensação de culpa, a certeza
de que não pertencia ao rebanho. Sentiu, novamente, a convicção de que era
repulsivo, feio além de qualquer esperança, uma monstruosidade a ser
eternamente repudiada, oprimida, expulsa. Preparou-se para o inevitável
ostracismo, para o exílio imposto pelos colegas.
Sensível demais como sempre ao ambiente, dotado desde cedo de uma
habilidade sobrenatural de “sentir” a atmosfera e as próprias emanações do
temperamento humano, passou a manhã apreendendo a sala de aula, a mestra e
os colegas. Suas antenas mentais sondaram os quadros-negros empoeirados, as
estreitas e fuliginosas janelas, as faces dos garotos e garotas em volta. Era como
se não possuísse pele. Os nervos inteiramente expostos sentiram as fracas e
curtas aragens de emoção que se agitavam em volta. Para ele coisa alguma
deixava de possuir uma personalidade. As paredes não eram apenas baças, mas
demonstravam-lhe também uma embotada inimizade e possuíam uma alma
inanimada que o fitava com uma expressão vazia, porém, ainda assim, com
conhecimento. Uma longa e irregular rachadura cortava o teto escuro,
despelando. Olhou para ela e caiu em depressão. Viu a litografia de um
cavalheiro nas tristes paredes. O cavalheiro possuía uma curiosa cabeleira
branca, cortada e arrumada para parecer tuna pirâmide. Usava, também, as mais
extraordinárias roupas que já vira. Não sabia que era uma litografia de George
Washington, mas foi atraído pelos firmes e tranquilos olhos, pelo leve e
enigmático sorriso e pelo superior desligamento da expressão. Perguntou a si
mesmo se aquilo era o retrato do diretor da escola. Tinha certeza de que aquele
homem gostaria dele e que ele também reagiria à profunda bondade estampada
naquela calma face. Sentiu algo parecido com um imediato parentesco de sangue
e entendimento com o homem do quadro.
O triste sol de março penetrava na sala e Frank foi mais uma vez
envolvido pela tristeza. Viu pela janela o muro que se projetava da escola e
achou estranhas e remotas as superfícies ásperas dos escuros tijolos vermelhos.
Intensificou-se nele a melancolia. Os nervos doeram com o impacto de um novo
despertar.
Miss Jones não o chamou, nem lhe deu lápis, papel ou livro. Deixou que
absorvesse o meio, desejando que se acostumasse a toda aquela estranheza. Mas
observava-o, mesmo enquanto lia alto para as crianças ou garatujava grandes
letras no quadro-negro. Notou-lhe os olhos confusos, a maneira como ele
estudava os colegas em volta, a absorção na rachadura do teto e na litografia.
Observou também os olhares das demais crianças e suspirou.
A sua voz alegre e chilreante ressoou durante toda a manhã. Possuía a
habilidade de prender a mais infantil das atenções. Depois de um exercício na
pedra sobre o alfabeto, acrescentou olhos, nariz e boca aos gordos A e B, fez do
C um focinho de esquilo e pôs um riso de feiticeira no E. As crianças riram,
deliciadas. Em seguida, com um olhar para a porta, apagou rapidamente as
pequenas e alegres caricaturas.
Sabia que Frank estava condenado à infelicidade devido ao seu próprio
caráter e estranheza. Sabia, também, que as crianças admiram e respeitam
mesmo os exilados se eles demonstram capacidade incomum. Sabia que Frank
lia bem. Assim, às onze, disse em tom alto e claro:
— Meus queridos, eu geralmente leio para vocês uma ou duas histórias
de fadas de Grimm a esta hora. Mas temos um novo aluno na turma que pode ler
tão bem como eu e, assim, vou pedir a ele que nos leia alguma coisa.
As crianças esbugalharam os olhos de espanto. Miss Jones sorriu viva e
alegremente e, com um livro na mão, dirigiu-se à carteira de Frank. Quando
parou, o garoto ergueu olhos apavorados, adivinhando-lhe a intenção. Ela fitou-o
serenamente nos olhos com uma expressão grave e tranquila. Colocou o livro
sobre a pequena carteira.
— Frank Clair — disse em voz bem clara —, pode fazer-me o favor de
ler para as crianças? Estamos na página 157.
Frank ficou paralisado de medo e confusão. Mas não podia desviar os
olhos de Miss Jones. Ela lhe dizia algo com seus olhos de pássaro e o que disse
deu-lhe coragem. Ele machucou um dos chacoalhantes joelhos ao se erguer.
Agarrou o livro com mãos trêmulas.
Miss Jones voltou à mesa. Seu sorriso e a confiança que demonstrou
nele eram como um raio de luz perpassando sobre as cabeças das crianças
pasmadas.
Frank começou a ler, no princípio quase inaudivelmente e, depois, com
uma segurança sempre maior. Conhecia a história e era uma de suas favoritas. A
voz jovem, clara e bem-educada, encheu a sala. As crianças escutaram. Um ou
dois riram maldosamente de seu sotaque inglês, da enunciação cuidadosa, tão
diferente da fala descuidada e engrolada deles mesmos. Nesse momento Frank
esqueceu a plateia. Viu florestas escuras inundadas de luz dourada, o telhado
vermelho da casa da bruxa, agachada sob galhos retorcidos, faces pálidas de
crianças medrosas e o azul e o branco de suas roupas na escuridão. Ouviu a
canção de estranhas aves no telhado de palha, o murmúrio de pequenos animais
sob floridos arbustos, o movimento do vento no alto e frio céu. Transmitiu à
história sua própria reação emocional a esses elementos. As crianças, a despeito
de si mesmas, ouviram-no arquejantes, espichando os pescoços para não perder
uma única palavra da aventura das crianças perdidas. O relógio tiquetaqueava na
parede caiada. O sol de março empalideceu, mas clareou também e iluminou o
muro de tijolos do lado de fora. Uma carroça passou pesadamente pela rua
lajeada. À distância, um cão deu um latido seco. As crianças escutavam sem
mexer um músculo.
Terminada a história, Frank sentou-se, aturdido. Havia-se transportado
para a floresta e a canção das aves ressoava ainda em seus ouvidos. Precisou de
vários segundos para se orientar.
Miss Jones falava, em voz alegre e firme:
— Crianças, espero que tenham escutado com atenção a leitura feita por
Francis. Espero que lembrem como o inglês deve ser realmente falado. Procurem
lembrar como Francis pronunciou as palavras, clara e distintamente, e não como
se estivesse com a boca cheia de pão e manteiga. O inglês é uma língua rica e
bela e merece ser bem falada, como Francis o fez.
As crianças arregalaram os olhos para ele. Era evidente a hostilidade
delas. Mas Frank sentiu-lhes a admiração, a despeito de tudo isso. Era um
estranho, mas aprendeu ali que mesmo o estranho pode ser tolerado e respeitado
se é superior de alguma maneira, embora, talvez, jamais possa despertar afeição.
Precisa usar da superioridade para provocar admiração. Nesse momento,
compreendeu que, da parte de inferiores, admiração e respeito são mais
desejáveis do que aceitação.
Maybelle, instruída pela Sra. Watson, a dona da pensão, lhe preparara
uma merenda de sanduíches e maçã. As demais crianças haviam trazido também
seus lanches. Desceram ao escuro porão para fazer a refeição, sentando-se em
bancos empoeirados, de frente para as fornalhas. Frank arranjou um lugar
tranquilo e começou a comer. O isolamento fechou-se em tomo dele como as
árvores de uma pequena floresta. As demais crianças comiam, gritavam, corriam
e brincavam em volta das fornalhas. Sentiu-se contente. Viera a nutrir a
esperança de ser sempre ignorado. Escutou as vozes e pensou que elas pareciam
o grunhido de porcos, o balido de pequenos cordeiros, o miado de gatos.
Nesse momento, notou um grande e gordo garoto de uns oito anos
plantado firmemente à sua frente. Reconheceu o mesmo que se sentara perto
dele na sala de aula. Ergueu a vista, inicialmente com o habitual embaraço e,
depois, com nojo. O garoto possuía uma grande e estúpida face, maldosa e
embotada, cabelo amarelo cortado rente, corpo gordo e mãos abrutalhadas. Era o
mais alto da sala, chamava-se Herman Kolzmann e fora obrigado a repetir o
primeiro ano. Ressentia-se malignamente dessa situação e havia-se nomeado
ditador e ferrabrás da classe. As crianças odiavam-no, temiam-no, admiravam-no
e seguiam-no, conscientes de sua força, de sua crueldade e da ameaça potencial
de seus punhos. Era um dos incorrigíveis.
Com as mãos nos quadris, ele olhou irritado para Frank.
— Inglês sujo — disse com desprezo. — O que é que tá fazendo aqui em
nosso país? Derrotamos vocês em setenta e seis. Lembra?
Frank fitou-o, fascinado. Sentiu a presença de algo cegamente malévolo
à sua frente, algo capaz de esmagar com desumana brutalidade. O ouvido
sensível percebeu o sotaque estranho.
— Você fala de maneira engraçada — comentou. O que fora que o pai
lhe dissera apenas na véspera? “Isto aqui é um país inglês, Frank. Temos mais
direitos do que todos esses malditos estrangeiros que moram por aqui. Lembre-
se, você é inglês e este é também seu país.” — Continuou: — Você não fala
inglês bem. Portanto, este país também não é seu.
A face gorda e flácida do garoto tornou-se carmesim. Cerrou o punho e
enfiou-o sob o nariz de Frank. Este, porém, pela primeira vez num contato com
uma pessoa estranha, não se encolheu. Seus grandes olhos azuis abriram-se,
dilataram-se de desprezo. Sentiu algo subir dentro de si, algo crescer e enchê-lo
de poder. Empurrou para o lado o gordo punho e levantou-se. Alto e magro, seus
olhos alcançavam quase o mesmo nível que os de Herman. Naquele momento
tremia, não de medo, mas de desejo de atingir aquela face estúpida e selvagem,
de afastá-la de si a pancadas.
— Vá embora — disse, tranquilo.
Herman recuou um passo ou dois e seus pequeninos olhos castanhos,
vazios e sem vida, pestanejaram. Diversas outras crianças, sentindo o cheiro de
perigo, reuniram-se em volta. Herman estava furioso, mas, tendo um
temperamento naturalmente covarde, ficou surpreendido com o azedo desprezo e
a falta de medo do adversário. Mordeu o lábio e olhou fixamente para o estranho
garoto. Podia-se ver sua mente hesitante e vaga procurando orientar-se.
— Eu podia acabar com você — rosnou ele, mas em voz pensativa,
quase chorosa.
— Pois experimente — sugeriu Frank. Pela primeira vez na vida, cerrou
os punhos, sentiu uma raiva quente apossar-se de seu ser e teve a certeza de que,
numa briga, seria o vencedor.
Herman sentiu também a certeza. Tentou sorrir.
— Está querendo arranjar briga? — perguntou. — O que é que há com
você, por falar nisso? Inglês sujo, sujo!
As crianças, surpresas e deliciadas, começaram a cantar:
— Inglês sujo, sujo!
Várias meninas bateram palmas e começaram a pular. Aumentou o
número de crianças em volta.
— Acabe com ele, Hermy — sugeriu um dos sanguinários garotos.
Herman não teria apreciado mais outra coisa, todavia, uma cautela
animal obrigou-o a ficar imóvel.
— Ah, não quero sujar minhas mãos com ele — disse, desdenhoso.
Ocorreu-lhe outro pensamento. — O que é que você é, por falar nisso? Um
beato?
Frank descontraiu os punhos. Era uma pena que não fosse derrubar
aquele odioso garoto. Mas ficou confuso.
— Um beato? — repetiu.
— Isso mesmo. Um beato sujo. — Herman esperou. Frank continuou a
olhá-lo, perplexo. Herman acrescentou, impaciente. — Você sabe, um papa-
hóstias.
Frank ficou mudo de espanto. Herman sentiu-se jubiloso.
— Ah, você não sabe de nada, seu inglês sujo! Ele não sabe o que é um
beato ou um papa-hóstias — informou aos fiéis correligionários, cheio de
desprezo, olhando-os por cima dos ombros gordos. As crianças riram alto,
triunfantes. Frank fitou-as, mais e mais perplexo. Notou, nesse momento, uma
garotinha e um garoto, vermelhos de embaraço, afastando-se do grupo.
Desapareceram por trás de uma das fornalhas.
— Não sei do que é que você está falando — respondeu Frank, irritado
de novo. — O que é um beato ou um papa-hóstias?
Herman mugiu numa risada animal:
— Um sujo papista. Isso é um beato ou um papa-hóstias. Eles o matam
logo que o veem. Seu inglês estúpido, sujo. Não há beatos e papa-hóstias em seu
país?
Frank pensou no caso. Nunca ouvira falar em pessoas que faziam
questão de matar os vizinhos.
— Os guardas não deixariam que beatos e papa-hóstias nos matassem —
disse. Estava curioso. — Como é que eles são?
Herman e os amigos mugiram novamente de alegria. O líder olhou em
volta.
— Ei, onde é que estão Tom Murphy e Mary Flynn? Eles estavam aqui.
Bem, não estão agora. — Voltou a atenção para Frank. — São maus, são papistas
e matam as pessoas logo que as veem. Temos que matá-los antes.
Frank ficou alarmado. Que lugar horrível devia ser aquele, onde uma
pessoa precisava defender-se até a morte! Era estranho que os pais não o
houvessem avisado dessa perigosa contingência.
— Você é protestante?
Mais uma vez, Frank ficou confuso.
— Protestante? — perguntou- — O que é isso?
Herman bateu com força no peito enquanto as crianças uivavam de
alegria.
— Eu sou protestante, seu burro. Como todos os outros. Bem, você é ou
não?
— Não sei — confessou Frank. — Nunca ouvi falar em protestantes.
Talvez eles não existam na Inglaterra.
Herman olhou-o zangado. Uma fagulha vermelha, viva, apareceu-lhe
nos olhos.
— Nunca foi batizado, seu burro?
Era outra palavra desconhecida do jovem Frank Clair. He coçou a testa.
— Não sei — disse. — Nunca ouvi falar nisso.
Herman não podia acreditar em seus deliciados ouvidos. A fagulha
vermelha tornou-se mais viva por baixo das curtas pestanas amarelas. Berrou.
Apontou um dedo para Frank enquanto as crianças, fascinadas,
observavam-no.
— Então, você não é somente um inglês sujo. É também um judeu sujo!
— guinchou.
As crianças bateram palmas e deram saltos de satisfação.
— Um judeu sujo! Um judeu sujo! — cantaram, tomadas de êxtase.
Herman sorriu largamente.
— Qual é seu verdadeiro nome, judeu? — perguntou. — Levy?
Frank permaneceu calado. Mais uma vez, a ira percorria-lhe o corpo
como se fosse uma torrente. Sentiu-a pulsando, queimando, nos braços, por toda
a carne, subindo-lhe a cabeça numa onda irresistível de ódio. Deu um passo na
direção de Herman. Este tornou-se subitamente calmo e passou a língua pelos
lábios. Repuxou as calças. As crianças, sentindo que algo dramático ia acontecer,
ficaram silenciosas, à espreita.
— Ah, você não pode ser um judeu — disse Herman, em tom
conciliador, observando Frank com certo nervosismo. — Judeus não brigam.
Escute aqui, seu burro, não quero brigar com você. Escute, qual é a sua igreja?
A ira palpitava ainda em Frank. Tinha todos os músculos tensos com a
vontade insopitável de lutar. Deu outro passo na direção de Herman, que recuou
mais uma vez.
— Olhe aqui — disse o garoto alemão —, não quero brigar com você.
Não sabe qual é a igreja aonde vai?
Frank deteve-se. Nesse momento, a curiosidade dominou-lhe
temporariamente a raiva.
— Você não tem nada com isso — respondeu desdenhoso. — Mas não
me importo de lhe dizer, seu imundo! Eu ia à Igreja Anglicana com meu pai, na
Inglaterra, mas minha mãe ia a uma capela batista. O que é que tem isso? O que
é que isso tom a ver com você?
Herman ficou aliviado. Não estava gostando da expressão de Frank nem
da visão daqueles punhos cerrados. Num tom choroso e mais conciliatório,
respondeu:
— Ah, bem. Então você é um protestante, como eu, e os outros garotos.
Não é papa-hóstias ou judeu. Eu sou luterano. — Interrompeu-se, esperançoso.
— Sabe o que é um luterano?
— Não, e não quero saber — respondeu zangado Frank. — Se você é
um protestante, não quero ser um deles e não vou ser um deles.
Esperou alguns segundos. Herman, porém, ficou calado. Somente um
ódio covarde e furtivo lhe brilhava nos olhos. Em seguida, cheio de desdém,
Frank deu-lhe as costas e subiu a escada para a sala de aula.
Foi o seu primeiro choque com o preconceito e o ódio repulsivos na livre
e nobre república fundada pelos ingleses na premissa de que todos os homens
são iguais aos olhos de Deus, de que todos têm o direito de viver dentro de suas
fronteiras em segurança e com justiça.
E foi a sua primeira e mais inebriante percepção do poder que nele
residia, um poder capaz de despertar respeito. Sentira a primeira ira pura e
repugnância, a primeira certeza de que a covardia brutal podia ser repelida pelo
desprezo e pela indignação dos puros. Descobriu que a resposta estava em seu
próprio coração indômito.
Mesmo quando as crianças o seguiam até em casa todos os dias, gritando
“Inglês sujo!”, mesmo quando lhe atiravam pedras, zombavam dele ou o
xingavam num ódio infantil e bruto, não sentia medo. Descobrira o que eram a
opressão e a perseguição e nunca as esqueceu. Aprendera a resposta a elas: o
desprezo e a coragem.
Mais tarde na vida jamais concordou com os amigos em que a resposta à
opressão, à ignorância, ao ódio e à perseguição era a “educação”- Isto porque
sabia que a educação jamais poderia penetrar em mentes brutas e subumanas,
que essas mentes são impermeáveis à bondade e à cultura. Não, a resposta
deveria ser sempre o desprezo e a coragem, a força armada, se necessário, e um
orgulho implacável.
CAPÍTULO 14
Maybelle examinou a caderneta de depósito. Francis, de pé ao lado,
sorriu com satisfação.
— Mais quinze dólares... três libras — disse. — Nesse ritmo, daqui a
pouco teremos uma fortuna.
Maybelle alisou as pequenas páginas com uma das mãos,
reverentemente. A caderneta se transformara no livro de sua vida. Examinou as
numerosas páginas em branco que se seguiam. Podia já vê-las, cheias, ricas de
promessas e esperanças. Virou a última página. Oh, sem dúvida, quando
estivesse cheia e somada ao fim das colunas, poderiam voltar! Quanto tempo
levaria? Os primeiros quatro lançamentos ocupavam tão pouco espaço!
Concentrou-se outra vez na última página. Quando estivesse cheia! Seus olhos
ardiam de lágrimas.
— Quero voltar para casa tanto quanto você — disse Francis em tom
defensivo, captando-lhe os pensamentos. — Eu lhe prometo. Quando a caderneta
estiver cheia, poderemos voltar.
— Mas vai levar anos — disse lamentosamente Maybelle.
— Não nesse ritmo. Não gastamos um único níquel desnecessário.
Podemos fazer sacrifícios. Foi por isso que fiquei tão irritado quando você quis
comprar outro par de botas para o garoto. Crianças crescem ligeiro. Um par de
cada vez é suficiente. Não se justifica desperdiçar dinheiro com extras e luxos.
Ainda lamento ter gasto aquele dólar e cinquenta sábado passado no Crescent
Park. Poderíamos tê-lo depositado no banco.
— Precisamos mudar de ares, às vezes — respondeu Maybelle, triste e
arrependida.
— Bem, a gente nem sempre pensa no futuro — censurou-a Francis. —
De grão em grão a galinha enche o papo, como dizem os escoceses. Pequenos
vazamentos afundam grandes navios. Um níquel no banco vale dois no bolso.
Planeje. Sacrifique-se. Economize.
Maybelle virou e revirou a caderneta nas mãos, que se tornaram
subitamente pegajosas e trêmulas. Não sabia o que fazer. Não podia fazer coisa
alguma. Precisavam economizar. Mas... e se acontecesse alguma coisa e não
pudessem continuar a fazê-lo? Maybelle conhecia muito bem as vicissitudes
imprevisíveis da vida. Se não pudessem economizar tanto quanto pretendiam,
viveriam no exílio para sempre.
O jovem Frank, na cozinha, lia um dos livros emprestados por Miss
Jones. Sentiu na atmosfera algo amargo, apavorante. Ergueu os olhos. Coisa
alguma, entretanto, parecia errada. O pai e a mãe haviam estado a preparar o
orçamento semanal na mesa da cozinha e, naquele momento, tinham nas mãos
uma caderneta cinzenta. Tudo tranquilo e pacífico. Ninguém falava. Ainda
assim, algo terrivelmente errado flutuava no ar, algo triste, apavorante,
esmagador.
Conservou sempre na memória aquela fria e escura noite de abril. Teria
sido nessa ocasião que os pais começaram visivelmente a mudar? Ou estivera a
mudança processando-se já durante semanas? Quando começara a sentir o odor
do medo naqueles pavorosos cômodos em cima de um armazém de secos e
molhados em Vermont Street? Quando começara o medo a saturar a vida dos
pais e tornar-lhes horrendos os dias? Quando começara a lhes corroer os
caracteres ingleses comuns e deteriorá-los, tornando-os malignos e cruéis,
histéricos e intolerantes, odientos, não apenas entre si, mas com ele, ainda tão
jovem e desvalido?
Jamais teve resposta. Sabia apenas que a mãe gostara outrora dele, na
Inglaterra, e nas primeiras semanas na América; que o defendera contra o pai,
amiúde irritado e intolerante, e que lhe ouvira com ternura as preces noturnas.
Lembrava-se de que, na Inglaterra, ela costumava cantar em uma voz bastante
agradável, ria com frequência e não raro lhe fazia pequenas surpresas sob a
forma de um caramelo, um piquenique ou uma alegre visita às lojas. Lembrava-
se de que o pai às vezes soltava gargalhadas e que se mostrava brincalhão,
ensinando-o a jogar damas à luz da lareira, levando-o em passeios pelo campo e
ajudando-o a colher as primeiras flores silvestres nos campos ingleses. Na
Inglaterra houvera conforto e alguns sólidos prazeres de classe média.
Recordava-se de que na Inglaterra fora frequentemente surrado, mas que
era uma surra curta e sadia. Reconhecia honestamente que devia ter sido uma
criança difícil de compreender. Mas, naquele instante, os espancamentos não
pareciam um castigo por uma travessura infantil e sim uma catarse sádica do
medo que os obcecava. Francis começou a dar-lhe beliscões, puxar-lhe as
orelhas, quando não esbofeteá-lo, enquanto a língua lhe pendia da boca como se
fosse um animal. Às vezes, pela simples ofensa de demorar-se no jantar,
esmurrava-o na cabeça, soltando obscenos grunhidos de prazer. Ocasionalmente,
pelo pequeno pecado de derramar chá na camisa, Maybelle literalmente
arrancava-lhe os cabelos da cabeça, arranhava-o, cortava-o com as unhas,
enquanto seus olhos faiscavam de crueldade.
— Eles deviam ter estado loucos — diria Frank anos mais tarde. —
Loucos de medo. Nada, senão o medo, poderia tê-los tornado tão cruelmente
brutais com uma criança, quaisquer que fossem os crimes dela.
Fora nesses primeiros dias que o medo começara a cobrir a vida dos pais
com um fétido e cinzento nevoeiro? Frank sabia apenas que, pouco depois, eles
começaram a temer todas as coisas: uma batida à porta, certo tom na voz da Sra.
Watson, uma estranha carta que mais tarde se verificava ser um folheto de
propaganda, os vizinhos, as pessoas nas ruas. E, inevitavelmente, o medo
transformou-se em ódio, ódio a tudo, ódio aos “ianques”, ao Sr. Farley, ao
tempo, à casa, ao dinheiro que precisavam gastar para prover a magra existência,
à Sra. Clair, ao sol nas ruas, à neve no inverno. E, ainda mais inevitavelmente,
em ódio recíproco.
Devia ter sido a estranheza de Frank, da qual se tornaram
crescentemente conscientes, que os enfurecia. Tivesse ele sentido também os
mesmos medos, tremido ao ouvir um passo desconhecido, demonstrado interesse
em poupar os raros níqueis que recebia, teria sido reconhecido como de sua
própria cepa e, vendo-se refletidos nele, os pais tê-lo-iam amado.
Tivesse ele berrado quando o espancavam com uma fúria monstruosa e
demente, tivesse ele gritado e chorado e, talvez, sua vida houvesse sido mais
fácil, pois temiam com absurdo terror “os vizinhos”. Mas ele não reclamava e,
assim, podiam torturá-lo com impunidade, deixando-o arquejante, coberto de
marcas.
Anos mais tarde, pareceu-lhe incrível que tal loucura se houvesse
apossado de duas pessoas anteriormente comuns e sem coisa alguma de
diferente. Quando a comentava com outras pessoas, não irado, mas perplexo,
elas olhavam-no incrédulas. Mas, também, são poucas as pessoas que vivem
tomadas de um medo tão insano como viviam Francis e Maybelle.
Frank não teria sido humano se não houvesse procurado defender-se dos
pais. Sabia que a menor infração da mais banal das regras, a mais leve queixa de
um vizinho, o menor aborrecimento que algum adulto pudesse demonstrar,
resultaria em um terrível espancamento. Se o enviavam ao armazém de secos e
molhados e ele voltava com um níquel a menos, Maybelle surrava-o
brutalmente. Assim, em autodefesa, Frank tornou-se mentiroso.
Nunca os perdoou, por isso. Por compreendê-los, poderia perdoar-lhes
os pavores abjetos. Mas não podia perdoá-los por tê-lo forçado a macular sua
jovem vida com mentiras. Não podia perdoá-los por ensombrecer-lhe a vida com
a necessidade da falsidade.
Miss Emily Jones ficou cada vez mais preocupada com Frank Clair. Ele
havia sido transferido de sua sala em junho de 1908 para os indiferentes
cuidados de Miss Leona Burkholz. Esta última não gostava de crianças e
tolerava apenas as que lhe causavam menos aborrecimentos. Frank não foi um
dos felizardos. Desatento, inerte e extremamente embotado quando um assunto
não lhe interessava, era dado também a garatujar estranhas faces, triângulos e
outros desenhos sem valor em meio às aulas de aritmética, gramática ou leitura.
Quanto à aritmética, continuava ainda a ser assunto cabalístico para ele, embora
às vezes, por mera sorte, acreditava, acertasse na resposta certa. Lia e escrevia
brilhantemente, a construção gramatical certa ocorria-lhe por instinto e não
precisava estudar ortografia. Em vista disso, sua mente vagueava para nevoentos
sonhos durante as lições com que Miss Leona martelava a cabeça das demais
crianças.
Julgava-a pessoa sem importância, pois sua voz não tinha entonação
nem sonoridade, suas maneiras eram afetadas e não demonstrava o menor
interesse pelo que ensinava. Frank jamais se lembrou do rosto ou do corpo dela.
Era uma imensa maçada para ele, que, jovem demais ainda, manifestava
francamente sua opinião. Além disso, as outras crianças não mais o
amedrontavam nem era dócil entre elas. O antagonismo inicial dos colegas se
aprofundara. Retribuía com desprezo e, não raro, metia-se em brigas.
As roupas, pequenas demais para um corpo que crescia célere,
remendadas, tornaram-se desmazeladas. Isso era consequência da avareza
sempre maior de Maybelle e da recusa veemente do pai em “gastar um único
níquel desnecessário”. Além disso, Maybelle começara a revelar um verdadeiro
gênio para descobrir lojas baratas, onde se vendiam roupas de segunda mão ou
fora de moda. As poucas roupas compradas para Frank eram estranhas, mal
cortadas, de confecção ordinária e não assentavam bem. Tais coisas despertavam
o riso das demais crianças e coisa alguma poderia tê-las deliciado mais do que a
ocasião em que Frank apareceu usando um par de extraordinários sapatos com
biqueira e tornozelos de verniz e corpo de pano cinzento, com botões pretos. Os
sapatos haviam sido feitos para um rapaz muitos anos mais velho do que Frank e
eram do estilo de dez anos antes, com biqueira do tipo “palito”, triangular. Por
questão de economia, Maybelle enchera os seis centímetros acima dos dedões
com pedaços de forro de algodão. A própria Miss Burkholz sorriu divertida ao
vê-los. Ninguém senão Miss Jones desconfiou de que os sapatos lhe causavam
profunda angústia física e mental, pois não somente as pessoas olhavam e riam,
mas a própria forma deles torcia e machucava os pés do garoto, provocando-lhe
verdadeiro sofrimento.
Pior que tudo, na opinião de Miss Jones, era outra mudança que se
tornava evidente em Frank. Além da crescente sonolência e absorção em algum
subjetivo universo próprio, surgiu nele uma tensão inquietadora, extrema, e uma
instabilidade nervosa. Fora sempre uma criança pálida. Naquele momento,
estava quase lívido e olheiras cor de malva cercavam-lhe os olhos. As mãos
tremiam-lhe à menor excitação. Os lábios, secos e pergaminhados, davam a
impressão de serem constantemente mordidos. Os olhos, sempre grandes,
estavam agora excessivamente brilhantes, atentos demais.
Muito inteligente e sensível, ela não acreditava em que tudo aquilo fosse
causado apenas pela hostilidade das demais crianças. Algum outro sofrimento
crônico devia estar afligindo o menino. Fazendo perguntas discretas, soube que
Frank era filho único e que o pai, um farmacêutico, ganhava bom salário. Nesse
caso, qual o motivo daquelas roupas atrozes? Por que, então, aquela expressão
de profunda ansiedade e nervosismo? Mas não os conhecia e não sabia como
visitá-los sem um motivo razoável.
Conseguiu combinar com Frank que fosse procurá-la em sua sala após as
aulas. Falava-lhe afetuosamente, às vezes segurando-lhe a mão. Tomava
emprestados livros para ele e sentia-se comovida e espantada com o interesse e a
compreensão do garoto, cujo apetite pela leitura parecia insaciável. Não mais o
satisfaziam os contos de fadas e as aventuras infantis. Na presença dela,
conversando com ela, relaxava-se a rigidez da face jovem, diminuía o brilho
anormal dos olhos e, às vezes, ele ria. Falava cheio de entusiasmo e escutava-lhe
as palavras quase como se estivesse sedento.
O garoto não lhe saía do pensamento. Procurava trocar umas poucas
palavras com ele nos corredores. Presenteava-o com balas, que o menino
devorava com tal avidez que ela se sentia enjoada. Quando, inesperadamente,
Frank começava a gaguejar, Miss Jones virava suavemente a cabeça para o lado
e evitava fitá-lo. Até o fim da vida, ela ouviu aquele patético balbuciar e viu
aquela expressão de sufocamento, dolorosa e sem remédio, quando ele se
esforçava para falar.
Em novembro de 1908, deu por falta dele. Procurou Miss Burkholz.
Esta, indiferente, lhe disse que o garoto vinha faltando às aulas havia dias.
— No que me diz respeito, ele pode ficar em casa o tempo que quiser —
disse cruelmente a professora. — Entre todos os garotos mesquinhos, estúpidos,
do contra, de maus bofes, ele é o pior! Devia estar num asilo para débeis
mentais.
Miss Jones comprou cinco pirulitos, três laranjas, duas bananas e armou-
se com vários livros da biblioteca. Saiu para visitar Frank e a mãe.
Notou que o bairro era pobre. Mas não tão pobre como muitos outros
onde viviam e se desenvolviam crianças sadias e felizes. Notou com aprovação
que os degraus escuros que conduziam aos cômodos dos Clairs estavam limpos e
esfregados. Bateu à porta. Esperou. Ouviu passos furtivos do lado de dentro e,
em seguida, silêncio. Bateu outra vez, com mais força. Não ouviu som algum,
mas, misteriosamente, sentiu a presença de medo e cautela por trás da porta
fechada e teve certeza de que ouvia uma respiração ofegante, como de uma
pessoa aflita ou amedrontada. Nervosa nesse momento, bateu outra vez e gritou:
— Há alguém em casa?
Mais uma vez, a sensação de medo, de uma presença próxima à porta.
Ouviu, depois, uma voz de mulher, mal-humorada, desconfiada:
— Quem é? O que é que você quer? Não queremos aqui nenhum agente.
Miss Jones ficou perplexa. Agente? Agente de quê? Desconhecendo a
terminologia inglesa, ignorava que “agente” significa vendedor ou mascate.
Disse em voz alta e clara:
— Sou Miss Jones, a professora de Frank. Eu gostaria de falar com ele,
por favor.
Surpresa, ouviu, após outro longo silêncio, o arranhar de uma corrente
de fechadura e o puxar de um trinco. A porta abriu-se um ou dois centímetros.
Vislumbrou cabelos ruivos, olhos castanhos esbugalhados e um avental.
— Sra. Clair? — perguntou, sorrindo alegremente e enfiando um pé na
abertura. — Sou Miss Jones. Frank não tem ido à escola e fiquei preocupada.
A porta abriu-se mais um pouco. Miss Jones entrou em uma esquálida
cozinha que, embora limpa, cheirava desagradavelmente a desinfetante, sabão
forte e querosene. Olhou para Maybelle, que tinha o lábio inferior espichado. Os
olhos pestanejavam, vigilantes. Pensou: Que mulherzinha estranha! Deve ser a
mãe de Frank. Ela parece... parece... um pouco esquisita.
— É um grande prazer conhecê-la — disse Maybelle em voz seca,
tirando o avental de cima de um vestido de algodão muito remendado. Um
sorriso artificial, antipático e ainda desconfiado apareceu-lhe nos lábios. — É
uma grande bondade sua, realmente. Frank está com sarampo. Há sempre algo
de errado com ele — acrescentou, tornando-se sua face quase maligna. —
Doentio — corrigiu, com uma entonação como se dissesse: “Criminoso”.
A mãe não o suporta. O garoto custa dinheiro, por pouco que seja. Os
pensamentos ocorreram a Miss Jones com tal clareza que ela ficou
momentaneamente aturdida, pois havia certa clarividência neles. Naquela
ocasião, em questão de instantes, compreendeu.
Maybelle não a mandou sentar. Era evidente que queria que ela se fosse,
que na verdade a temia. Será que pensa que sou capaz de furtar alguma coisa?
pensou incrédula Miss Jones. E, depois, preocupada: Será que vai castigar a
pobre criança porque vim até aqui?
Baixou os olhos para os embrulhos e os livros que levava no braço.
— Trouxe estas coisas para Frank — disse, tentando com um sorriso
desesperado despertar alguma reação amiga, algum interesse humano. Maybelle
sorriu realmente, mas com um sorriso ainda artificial e falso.
— É muita bondade sua — respondeu, nesse momento revelando certo
nervosismo.
— Espero que Frank não esteja muito doente — disse Miss Jones após
uma pausa durante a qual entregou os presentes a Maybelle. — O que foi que o
médico disse?
— Oh, não chamamos nenhum médico — disse Maybelle, com
verdadeiro medo, um ar defensivo e claro ressentimento. — Tenho certeza de
que sou capaz de fazer o que for preciso. E tenho esperança de que a senhora não
diga coisa alguma. Não queremos um cartaz pendurado na porta. O sarampo não
tem nenhuma importância.
É uma doença de comunicação obrigatória, pensou Emily Jones com
uma indignação que não lhe era habitual. E a pobre criança nem mesmo tivera a
visita de um médico! Compreendo. Isso custa dinheiro.
— Oh, naturalmente, não direi coisa alguma! Mas eu gostaria de vê-lo
durante um minuto ou dois, se ele não estiver muito doente.
— Doente? — repetiu Maybelle, franzindo os sobrolhos e novamente
desconfiada. — Oh, compreendo. A senhora quer dizer “enfermo”. Não estou
ainda acostumada à linguagem ianque — acrescentou com um sorriso
claramente malévolo e intencionalmente desdenhoso. — Não, o pequeno Frankie
não está muito enfermo. — Hesitou. — Se não se importa com um quarto
desarrumado, ele está lá dentro.
Relutante e com todas as linhas do corpo pequenino e gorducho
expressando ressentimento, conduziu a professora até o quarto ao lado. Lá, sobre
o duro o encalombado sofá, estava Frank, afogueado, cheio de manchas pelo
corpo, semiadormecido e evidentemente doente. Ele abriu languidamente os
olhos quando as duas entraram. Os olhos, vermelhos, inchados e dolorosamente
remelentos, fitaram-nas. Reconhecendo a antiga mestra, o menino, sorriu
debilmente e sua face iluminou-se de incrédulo prazer.
Miss Jones curvou-se ternamente sobre ele. Colocou a mão grande e fria
sobre a testa da criança. A febre assustou-a. Em voz baixa, disse:
— Minha pobre criança. Eu não sabia. Senti falta de você.
Frank lançou um olhar ansioso à mãe, um olhar que encheu Miss Jones
de súbita raiva e pena. Balbuciou:
— Eu... eu não estou muito enfermo, Miss Jones. Eu... eu vou ficar bom
logo.
— Naturalmente — respondeu alegre Miss Jones. — O sarampo não tem
importância. Nenhuma, absolutamente. Todo mundo tem isso. Diversos alunos
meus estão agora com a mesma coisa. Não tem importância, absolutamente,
Frank. — Estou dizendo coisas sem nexo, pensou. Surpresa, notou que tremia. A
forte luz de novembro enchia o quarto. Não filtrada por cortinas, batia nos olhos
doloridos e doentes da criança. Ele tossiu forte, rouco. O grosso edredom de
penas que o cobria era evidentemente incômodo.
Miss Jones voltou-se para Maybelle, que a observava atenta e
azedamente. Tossiu.
— Temos agora umas ideias novas — disse com uma conciliadora
desculpa e um pequeno riso forçado. — Achamos que os olhos das crianças
devem ser protegidos quando elas estão com sarampo. O que é que a senhora
acha? Talvez se as venezianas... — As palavras morreram ao notar a expressão
contrária e mal-humorada de Maybelle.
Intrometida, pensou Maybelle. Fez uma paródia de sorriso.
— O ar e a luz são bons para ele — respondeu. — É tolice isso a
respeito das venezianas. Não posso deixar o quarto às escuras.
Emily Jones suspirou. Sentiu raiva e um forte desejo de notificar a Junta
de Saúde. Não, era impossível. Frank pagaria por isso.
Curvou-se novamente sobre o menino e mordeu os lábios trêmulos.
Sorriu-lhe com ternura e afeto.
— Eu lhe trouxe algumas frutas e balas, querido. E uns livros. Mas,
Frank, precisa prometer-me, e sei que você cumprirá sua promessa, que não vai
ler uma única linha até ficar completamente bom. Você se lembrará disso? Não
forçará os olhos? Promete? — perguntou, com profunda ansiedade.
Frank inclinou a cabeça. Maybelle deixou cair os presentes sobre a
cama. Ele começou a abri-los, profundamente interessado, usando desajeitado as
mãos. Miss Jones tirou os livros e colocou-os sobre a cômoda. Deveria levá-los
de volta? Mas o garoto prometera e sabia que ele se lembraria da promessa.
Podia confiar nele.
Ajudou a descascar uma laranja, que ele chupou deliciado, umedecendo
a boca seca com o suco fresco. Uma expressão de pura felicidade apareceu-lhe
nos olhos. Algo se contraiu e se contorceu no peito magro de Miss Jones.
Quando o menino lhe endereçou um olhar imensamente cheio de amor, ela
sentiu lágrimas lhe turvarem os olhos.
Maybelle falava em voz chorosa e ressentida, interrompida e hesitante,
cheia de autocomiseração:
— Ele não goza de boa saúde desde que chegamos aqui. Nunca andou
enfermo antes. Agora, vive assim o tempo todo. É um grande fardo para nós. E
eu, também, com a saúde fraca. É para a gente ficar imaginando coisas. Nunca
pensei que teria tanto trabalho com uma criança doente. É um fardo, como tudo
mais.
Miss Jones contraiu as mãos. Todavia conservou o conciliador tom de
voz:
— Oh, ele não é doente, tenho certeza. É, realmente, um garoto sadio.
Todas as crianças pegam sarampo. Não tem importância, absolutamente. São
coisas que se esperam.
Maybelle gemeu baixinho.
— Não sei por que fui assim tão castigada. Nem um único dia bem
desde que chegamos. Vidros e mais vidros de remédio. Comprimidos aos
montes. Nunca tive que tomá-los na Inglaterra. Mas este clima daqui é mortal.
— É um pouco... difícil — concordou Miss Jones. Inclinou-se sobre
Frank e beijou-o, não uma, mas várias vezes. Posso fazer um gargarejo quando
chegar a casa, pensou. É preciso proteger as outras crianças. Olhou para a janela
escancarada. Se eu tivesse coragem de baixar essas venezianas esmolambadas!
— Fique logo bom, querido — murmurou, com as pestanas quentes de lágrimas.
Levantou-se. Maybelle, com melancólico orgulho, apontava para as
fileiras de vidros alinhados sobre a cômoda.
— Isso é para mim — disse, em tom vazio.
— Que pena! — comentou Miss Jones, tentando mostrar-se simpática.
Teve vontade de quebrar os vidros. O que ela estava fazendo por Frank?
perguntou a si mesma. Mas sabia que coisa alguma estava sendo feita.
Maybelle, cuja velha e natural antipatia se transformara na América em
venenosa hostilidade, observava, cautelosa e desconfiada, Miss Jones.
Antipatizara desde logo com a pequena professora, que julgava feia demais. Ali
estava ela, com o doloroso e conciliador sorriso na face enrugada, os olhos
pequeninos, vivos e inteligentes, o velho chapéu de veludo empoleirado sobre o
monstruoso penteado preto, a jaqueta e a saia de lã cinzenta visivelmente velhas,
a despeito das assíduas escovadelas e passadas a ferro, as luvas bem cerzidas e
as imensas botas, lustrosas como espelhos duplos. Não, Miss Jones não
impressionava e suas tentativas de se mostrar encantadora por causa de Frank
somente lhe davam um ar falso, que Maybelle notou imediatamente e do qual
desconfiou.
Saíram juntas do quarto. Maybelle, novamente triste, começou a
queixar-se:
— Não sei o que foi que deu no garoto. Ele sempre teve saúde na
Inglaterra. Não é por falta de boa comida. Não fazemos economia de coisa
alguma. — Apontou para a mesa da cozinha. Miss Jones, surpresa e satisfeita,
examinou os alimentos empilhados. Viu um frango fresco, gordo e apetitoso, um
pacote de costeletas de carneiro, uma peça de carne realmente excelente, ovos
em profusão, manteiga, verduras frescas, pães e leite. Satisfeita, chegou à
conclusão de que Maybelle era uma boa cozinheira. Uma grande panela de sopa
esfriava na modesta chapa quente. Nesse momento Miss Jones sentiu o cheiro de
algo muito saboroso.
— Ele está tomando sopa de aveia, temperada com açúcar e leite —
informou Maybelle — e acabei de fazer um pouco de caldo escocês. Mas ele não
come coisa alguma. Não tem o menor apetite. Temos que forçá-lo a comer.
Emily Jones lembrou-se, preocupada, da crescente tensão e instabilidade
nervosa de Frank. Não era por falta de excelente comida, então. Era algo
emocional. Desconfiou de que conhecia a causa.
— Vivemos para o dia em que poderemos voltar para casa — disse
Maybelle, a voz alquebrando-se. — Sentimo-nos infelizes aqui. Não gostamos
da América.
Um pequeno e quente espinho picou o coração de Miss Jones. Ela,
porém, abafou a natural resposta acre a tal observação.
— Vivíamos com conforto na Inglaterra — continuou Maybelle. —
Tínhamos nossa própria casa e uma bela mobília. Éramos ricos. Vivíamos como
reis em comparação com isto. Agora, parecemos mendigos.
Miss Jones foi obrigada a fazer alguns reajustamentos mentais.
Imigrantes faziam, com frequência, essas observações pouco lisonjeiras para se
tornarem mais importantes. Entretanto, imediatamente, teve certeza de que
Maybelle falava a verdade. Ficou espantada e realmente penalizada. Mas seria
necessário viver daquela maneira? Era evidente que os Clairs economizavam
cada tostão para a volta à Inglaterra. Mais uma vez, o pequeno, quente e
indignado espinho picou-a. Sentiu raiva dessas pessoas que consideravam o seu
amado país como a Caverna dos Quarenta Ladrões, para ser saqueada, esvaziada
de suas joias, profanada, para que os saqueadores pudessem levar-lhe os tesouros
para uma terra estranha. Como ousavam eles chegar assim, desembarcando à
meia-noite nas praias douradas, nada vendo da beleza, nada ouvindo da grande e
estranha música, trazendo sacos que tinham a esperança de encher de gemas e,
em seguida, partir! Fora por esses indivíduos que americanos haviam sonhado,
morrido, rezado, esperado? Deus abençoara esta imensa e nobre terra, dera-lhe
um encanto sobrenatural, pintara nela penhascos e montanhas com borbulhantes
cataratas, cortara enormes rios no meio de vicejantes planícies e jogara a luz do
sol sobre intermináveis prados dourados.
Como ousava Maybelle falar daquela maneira, com tanto desprezo, tanta
dureza, tanta falta de compreensão! Emily Jones sentiu um aperto na garganta e
um novo acesso de raiva. Nesse momento, descobriu o que precisava fazer.
Precisava ser apenas paciente.
Em voz baixa, disse:
— Bem, as coisas mudam. Sinto muito saber que a senhora não se sente
feliz aqui, querida Sra. Clair. — Interrompeu-se durante um momento. — Mas
sei também que a senhora tem motivo de felicidade. Frank é um garoto
maravilhoso. Realmente maravilhoso. Mas, naturalmente, a senhora sabe disso.
Maybelle escutava-a, nervosa. Em seguida, para satisfação de Miss
Jones, a expressão sombria e melancólica desapareceu e Maybelle pareceu, a
contragosto, satisfeita. Persistia ainda, então, o amor maternal nessa pobre e
infeliz mulher, tão aflita com a autocomiseração, o ressentimento e as saudades
de casa.
— Bem, não sei — respondeu Maybelle, tentando ser rigorosa.
— A nova professora não tem lá uma grande impressão dele, segundo a
caderneta. — Mas surgiu uma luz de preocupação, patética e cautelosa, em seus
olhos.
Miss Jones continuou a falar com autêntico e vivo entusiasmo:
— É preciso muito discernimento para compreendê-lo. Acho que o
compreendo. Ele possui uma mente superior. Sei que algum dia fará grandes
coisas.
Maybelle sorriu e respondeu afetada:
— Engraçado, foi isso exatamente o que disse a professora dele na
Inglaterra. Era uma escola particular — acrescentou, orgulhosa.
— Miss Ballister disse que ele tinha grandes sonhos. — Interrompeu-se,
esperando ansiosa por mais.
— Oh, tenho certeza de que tem! Lê tanto! As palavras fascinam-no. Ele
é muito sensível e sutil. Lê coisas muito adiantadas para a sua idade e demonstra
uma compreensão fora do comum. Brinca com palavras como um artista brinca
com tintas. Adora poesias. Ensinei-lhe um bocado delas. Até Shakespeare.
Maybelle espigou-se, sorriu afetada novamente e lançou a cabeça para
trás:
— Bem, ele não ouve porcarias nesta casa. O pai e eu somos grandes
amantes da leitura. Vamos à biblioteca todas as semanas. O pai gosta de História
e passa tudo o que lê a Frank. A leitura é o meu maior prazer.
Miss Jones ficou em dúvida apenas por um instante. Em seguida,
incrédula ainda, teve certeza de que Maybelle dizia a verdade. Não eram
imigrantes comuns. De alguma maneira, sempre soubera disso. Pensou: Eles são
do meu próprio sangue inglês.
Foram os ingleses que construíram a América e será o sangue inglês que
sempre a salvará. Tinha seus próprios receios ao ver o número crescente de
jovens estrangeiros nas escolas, falando com sotaques duros e cujas faces eram
estranhas à brilhante luz da América. Os celtas e os ingleses. Neles, sim, corria o
verdadeiro sangue de seu país e, enquanto formassem maioria, a América estaria
a salvo.
Comovida, pôs, num impulso, a mão sobre o gordo e flácido braço de
Maybelle.
— Frank é feliz em ter pais assim — disse, e agora sem hipocrisia. —
Mas é um garotinho nervoso. É isso o que me faz pensar que ele é um gênio.
Sabe, Sra. Clair, tenho a impressão de que ele será uma espécie de artista.
Escritor, talvez.
Despediram-se num clima de grande amizade. Mais animada, Miss
Jones desceu os escuros e limpos degraus.
Maybelle colocou a panela de sopa no fogo. Encheu uma grande terrina
com o fumegante e apetitoso líquido. Levou-o a Frank, que voltara a cochilar.
Acordou-o. Mas, quando ele viu e cheirou a comida, virou a cabeça, repugnado.
— Você precisa comer — disse Maybelle, resoluta. Sua face amarelecida
se suavizou. — Olhe, Frankie. A sopa está boa, saborosa. Você vai gostar. Agora,
coma, ou lhe dou uma surra.
Mais tarde, recostado nos quentes travesseiros, Frank mergulhou outra
vez em um leve sono. Maybelle, de pé ao lado, notou-lhe os olhos vermelhos e
remelentos. Em seguida, impaciente, baixou as cortinas. Olhou para as brilhantes
rachas e pontos de luz que surgiram na fazenda escura. Seus olhos se encheram
de lágrimas.
Frank estava apenas semiadormecido. Palavras formavam-se em sua
mente, como estrelas emergindo em um céu escuro. Lindas palavras marchando
juntas em silenciosa majestade, suas próprias palavras subindo do abismo de seu
ser:
“E Deus penetrou sozinho no Jardim.
Um nevoeiro grudava-se aos locais onde antes brilhara o sol,
Um nevoeiro de luz em meio ao qual se curvava a floresta,
E murmurava em voz suave e monótona.”
Viu a escura e sussurrante floresta, insondável nas sombras como
veludo, e picos de árvores flutuando no nevoeiro de ouro pálido. Viu os troncos
das árvores, cor de púrpura à luz que morria; viu os corredores, por onde
deslizavam sombras. Viu uma Presença movendo-se ali, radiante como se tocada
pela luz do luar, enquanto os ramos formavam dosséis sobre a majestosa cabeça.
Viu a Presença aproximar-se de uma árvore tombada e sentar-se. Tudo
era silêncio, uma escuridão sempre maior, sombria imobilidade, paz. Nesse
momento, em algum recanto distante e insondável, um tordo começou a cantar.
Deus ergueu a cabeça e escutou.
CAPÍTULO 15
Miss Emily Jones, que dispunha de tão pouco tempo em sua vida
agitada, passou a dedicar alguns momentos ao protegido. Às vezes, aos sábados,
conseguia convencer Maybelle de que a deixasse levá-lo a The Front, local
favorito dela. A chuva era a única coisa que impedia essas excursões.
A pequena e murcha mulher e o garoto deixavam-se ficar contemplando
o Rio Niágara, escuro como cinza sob um pálido céu. A corrente fervia, rápida e
irresistível, em desabalada carreira para as Cataratas. Observavam o pôr do sol
pintar o rio de móveis estrias escarlates. Às vezes, o céu apresentava-se baço,
frio, cor de cobre sujo, e as águas adquiriam uma tonalidade branca e mortal.
Certa ocasião, foram brindados com tal beleza e majestade que, depois, não
conseguiram comentá-las entre si.
Foi num pôr do sol em julho de 1909 que presenciaram o espetáculo
solene e indescritível. Caíra uma tempestade durante o dia, mas, naquele
momento, o ar transbordava de um novo frescor. A margem canadense, que
geralmente era uma parede verde indistinta do outro lado, desaparecera no
nevoeiro e o rio perdera as fronteiras. O céu, vasto, imóvel, transformara-se em
uma paleta de cores, de intensidade quase violenta. A partir do zênite de cobalto,
na direção oeste, fundia-se a púrpura forte em ametista, a ametista em alfazema
brilhante, e alfazema em um enorme arco de verde, vivo e pulsante, que
imperceptivelmente se transformava em rosa suave, o rosa em escarlate e o
escarlate, ao aproximar-se do horizonte, em carmesim sanguíneo. O sol
desaparecera. Mas as cores no alto avivaram-se, ampliaram-se, aprofundaram-se
cada vez mais como se o sol vibrante não quisesse partir, mas fosse obrigado a
derramar seus tesouros de cor, seus arco-íris de ardentes chamas verdes,
eternamente, sobre a escura terra, engolfando o universo em insuportável fulgor.
Entretanto, por mais maravilhoso que estivesse o céu, o impetuoso
Niágara ultrapassava-o em beleza. Púrpura escuro no horizonte aquoso,
desmaiava para um violeta profundo, mas delicado, ao aproximar-se dos
observadores. As cristas das ondas impetuosas eram pinceladas por um malva
rosado, brilhando sua parte côncava como um fogo evanescente. Pequenas ondas
espraiavam-se em cascata pela praia brilhante. Tinham a cor azul-turquesa mais
pura, como esmalte líquido, refletindo o azul do céu. Quando avançavam e
recuavam depois, lenta e suavemente, deixavam retalhos brilhantes sobre os
seixos úmidos.
Entre o céu e a terra estendia-se um nevoeiro, misterioso, cor de
heliotrópio. Um farol à esquerda, emergindo da água sobre um monte de rochas,
lançava seu fraco feixe no nevoeiro, que se iluminava durante um momento de
um apagado lilás.
Sozinhos ali, Miss Jones e Frank estavam de mãos dadas. Formavam
uma única consciência, reverente, oblativa, em meio àquela inacreditável glória.
Respiravam devagar. Sentiam a proximidade da Presença, movendo-se majestosa
em volta. Ficaram assim durante longo tempo, pois céu e terra pareciam
relutantes em ceder à noite esse indizível esplendor.
Com a face inundada por uma luz tranquila, mas nobre, Miss Jones
murmurou:
— Quando eu era pequena, minha avó contou-me uma história muito
estranha. Disse que, quando chamava seus artistas da terra, Deus permitia que
eles lhe pintassem um pôr do sol para alegria dos homens que deixaram atrás.
Assim, em cada pôr do sol, um artista escolhido apanhava sua paleta e aplicava
os pincéis ao céu. Pintava com carinho, com cuidado, o mais maravilhoso pôr do
sol de que era capaz e aguardava, cheio de esperança, o que os homens diriam.
“Os homens, porém, não ligavam. Raramente erguiam os olhos para o
céu e, às vezes, o artista tinha que se satisfazer apenas com a admiração dos
anjos. Até o último momento, antes da chegada da noite, o artista esperava. Se
apenas um homem o visse, o louvasse no fundo de seu coração e agradecesse a
Deus e ao artista pela beleza, este ficaria feliz.
Frank, comovendo-se, olhou para a glória indizível de céu e água e seus
olhos se marejaram de lágrimas. Para si mesmo, disse: Obrigado, obrigado.
Anos mais tarde, raro era o pôr do sol para o qual não reservava um
momento ou dois, por mais apressado que estivesse, e embora sorrisse de si
mesmo invariavelmente murmurava: Obrigado, obrigado. Mesmo quando, para
ele, “a glória desaparecera da terra”, sentia ainda gratidão por ela, podia ainda
vê-la, embora não mais a sentisse. “Vejo, embora não sinta, como é
maravilhoso”, pensava, usando as palavras de Coleridge. No entanto, embora a
emoção houvesse desaparecido, a gratidão permanecia e a gratidão era como um
espelho mudo que apenas podia refletir e nada saber de si mesmo.
Às vezes, deitavam-se no parque gramado do The Front, observando as
nuvens brancas e cheias que brotavam do céu intensamente azul. Em outras
ocasiões, sentavam-se sobre os velhos canhões da Guerra Hispano-Americana,
balançando os pés e cantando juntos. Desciam para olhar os soldados marchando
em frente ao quartel. Ao ver a bandeira dos Estados Unidos drapejando livre e
brilhante ao vento e ao sol ele comovia-se profundamente. Nessas ocasiões, Miss
Jones dizia com voz embargada:
— É uma bandeira tão nobre, tão querida, tão amada! Somente listras,
vermelhas e brancas, e estrelas brancas em céu azul. Mas quanta significação!
Liberdade, segurança, oportunidade, bondade instintiva, generosidade,
esperança, honestidade. Os homens são fracos, Frank, mas o sangue de grandes
homens tinge essas listras, a fé deles é branca e luminosa entre elas, e as estrelas
de suas almas refulgem no doce céu azul. Se a América não puder sobreviver, o
mundo morrerá com ela. Que importa que haja tantos homens maus no mundo,
mesmo aqui, homens traiçoeiros, falsos, perversos, cobiçosos? A bandeira
permanece e as coisas que ela representa continuam. Enquanto a bandeira flutuar
nos céus, tão livre, nobre e gloriosa, a fé dos bons jamais desaparecerá da face da
terra.
Frank sentia nos ombros a bênção do sol, um sol mais forte e mais
quente do que o sol inglês. Sentia em si mesmo um despertar, uma veemência,
ao olhar em volta. Ouvia a música de palavras ardentes, ternas e majestosas
subindo dentro do peito como se fossem acordes de uma harmonia interrompida,
ouvida à distância.
Como foram maravilhosos esses dias e tranquilas as noites de sua
infância! Apesar de perseguido pela histeria e demência dos pais, conseguia
esquecê-las quando estava sozinho ou em companhia de Miss Jones. Sua alma
embebia-se de luz e sol, de glória e música, dos movimentos imaginados de
vastas forças além do alcance do olho e do ouvido. Nessas ocasiões, havia
realmente glória e mistério na terra, êxtase e esplendor, uma pulsação do coração
universal, a unicidade com Deus. As grandes árvores eram suas amigas e ele lhes
tocava carinhosamente nos troncos. A grama era sua irmã e o céu, o telhado de
seu templo. Os ventos à meia-noite eram gritos de estranhas aventuras, de
poderosos espíritos correndo em volta do mundo. Quando a neve caía sobre seu
braço, estendia-o à luz dos postes de gás e maravilhava-se com seu intrincado
rendilhado, com as suas perfeitas e minúsculas formas, sentindo adoração na
alma. Não havia aspecto na dourada primavera, no verde verão, no carmesim
outono e no branco e resplandecente inverno que não o emocionasse.
Com frequência, via o disco flamejante do sol através de estreitos becos,
entre sombrias e pequenas casas e era como o chamado de Deus no deserto.
Amiúde, olhava para o céu azul-claro de inverno e era transportado para o
cristalino fulgor da companhia de anjos. Quando viu os primeiros tenros brotos
da íris no jardim da mãe, sentiu tal emoção que chorou. As primeiras
eflorescências das árvores elevavam-no em êxtase. Uma folha carmesim, caindo-
lhe aos pés, constituía uma nobre mensagem, para ele somente.
Às vezes, no escurecer do verão, sentava-se no degrau de pedra do
armazém e escutava vozes nas varandas próximas e os guinchos estridentes dos
gramofones. Ouvia risos suavizados pela noite e, às vezes, uma canção, simples,
pura, feliz. As horrendas palavras e a música de “Meet Me in St. Louis, Louis!”
pareciam-lhe divertidas e, alegre, sorria baixinho em resposta. Grupos de rapazes
e moças, em bicicletas, passavam rápidos, cheios de alegria. Observava-os
desaparecer na escuridão com amor em seu coração e uma estranha tristeza.
Continuava sentado ali até que as janelas em frente transformavam-se em
retângulos isolados de luz fraca, a pedra esfriava sob seu corpo e a mãe
chamava-o para ir dormir. Havia crianças na vizinhança, mas nunca lhes falava,
nem elas com ele. Contudo não era mais solitário. Sentia-se assim apenas na
companhia forçada dos demais. As emoções, os pensamentos e os vivos sonhos
lhe bastavam.
Adorava o riso cascateante da chuva nos beirais. Adorava as fagulhas de
mica nas calçadas de cimento. Adorava o pó que se transformava em ouro ao sol.
Quando os ventos de março o empurravam e lhe repuxavam a roupa, malhando-
o com força, ria alto. Mergulhava os pés nos montes de neve e ficava ali durante
um longo momento, observando a luz batendo na brancura.
Aos onze anos escreveu seu primeiro poema e deu-o a Miss Jones:
//
Edward Hodge, com incrédula mágoa, leu a nota escrita por Miss
Gorman sobre o filho, enquanto Paul permanecia ao lado, impassível.
— Ora, Paul! — exclamou Edward. — Não compreendo. Você...
fazendo gazeta! Isso é impossível. Deve haver algum engano.
Em voz sem expressão, Paul respondeu.
— Não há erro algum. Matei as aulas, papai. Sinto muito. — Durante
um momento, uma expressão de espanto brilhou-lhe nos olhos. — Não sei por
que...
— Eu sei — respondeu Edward com uma descorada seriedade. — É
aquele garoto, Clair. Ele faz com você as coisas mais espantosas, Paul. Você sabe
que isso é verdade. Por quê? Por que, pelo amor de Deus? O que é que está
havendo?
— Não sei — murmurou Paul. Mas, novamente, aquela expressão
doentia de impassibilidade, de aviso, de exclusão, surgiu-lhe no rosto. Vendo-a,
Edward sentiu-se tomado por um impotente desespero.
— Paul, precisa prometer-me que não fará isso novamente. Isso é
horrível. Paul, você sabe que a nossa única esperança de vocês se educarem é
através de uma bolsa-de-estudos. Como é que vai consegui-la com tal atitude?
Você está no seu último ano. Os resultados que conseguir nos próximos quatro
anos serão decisivos para seu futuro. Você sabe que não tenho dinheiro...
— Eu sei — murmurou Paul com uma autêntica e impotente mágoa.
— Paul, você sempre se saiu tão bem em todas as escolas que
frequentou! Sempre fez parte da lista de honra. Agora, mata as aulas! Paul, eu
simplesmente não posso tolerar isso. Não sei o que é que está acontecendo.
Prometa-me, Paul.
Paul conservou-se calado. Por que seguia Frank Clair por toda parte,
metendo-se em situações perigosas e desagradáveis? Não sabia. Sabia apenas
que o seguia, queixando-se: “Não podemos fazer isso, Frank, não podemos fazer
isso!” Mas sempre fazia. Havia algo tão exuberante, tão romântico em Frank que
Paul, inevitável e impotentemente, o seguia. Como se estivesse hipnotizado.
— Prometa-me, Paul — suplicou Edward. Jamais castigava os filhos,
nunca lhes dava ordens. Era da teoria de que os pais deviam “raciocinar” com os
filhos e que havia algo absurdo e pomposo na autoridade paterna.
Paul havia-se afastado dele. Sua mente e pensamentos estavam postos
naquele dia no cais das barcas, quando as banquisas se haviam chocado como se
fossem dentes gigantescos e esfomeados, mastigando e esmagando. O Rio
Niágara estivera preto como tinta brilhante entre os pedaços azuis e cinzentos de
gelo, coberto por um céu de primavera que era um arco azul esfuziante de luz
cristalina. Os garotos receberam as frias pancadas do ar no rosto. Paul, ao lado
de Frank, sentiu de súbito um inspirador e indescritível êxtase de liberdade e
alegria. Mergulhava sempre no mesmo êxtase em companhia de Frank. Era a
vida para ele, que não conhecera a vida antes. Quando se aproximava do amigo,
era como se ingressasse na aura de um arco-íris violeta, de trovões musicais, de
riso, de excitação e prelibação imensa.
— O que é a escola comparada com isto... e os livros tolos? —
perguntara Frank, como perguntava sempre. — Sol, ar, luz e beleza... não são
mais importantes do que o pó e os pensamentos de uns velhos mortos há tanto
tempo?
Paul concordara em imóvel enlevo e compreendera que seu próprio
assentimento encerrava a verdade final.
Naquele momento era ameaçado novamente com o claustro, o velho e
cinzento claustro do nada, do vazio, do som de vozes secas e do passar brumoso
de dias escuros. Não! Não podia voltar. Não podia abdicar do reflexo de glória e
esplendor que o tocava na presença do amigo.
Em voz sem expressão, respondeu:
— Tentarei não matar as aulas novamente, papai. — Como poderia
perguntar ao pai: Você quer que eu morra novamente, que me transforme numa
massa sem vida no casulo da solidão e do frio? Não podia dizer-lhe isso. Sabia
que Edward jamais compreenderia. Subitamente, sentiu uma imensa pena do pai.
Foi essa pena que o fez recusar os dois convites seguintes para matar as
aulas. Observou Frank escapulir ao meio-dia e não sentiu nenhuma confortável
retidão moral, mas apenas um senso de perda e nostalgia. Aonde iria Frank? Para
que fervente excitação e novas descobertas de grandiosidade, encanto e
novidade?
O convite seguinte foi feito em começos de março. O inverno se estirara,
interminável. Montes de neve, de metros de altura, encheram as ruas e
sepultaram as casas. Depois, milagrosamente, houve dois ou três dias de tempo
bom e claro, sorridente, ardente. Cantos de tordos que voltavam saudaram o
nascer do sol em explosões de pungente música. Frank dissera:
— Vamos sair ao meio-dia. Tenho dez centavos. Você tem algum
dinheiro? Quero ir passear pelos campos e pelos bosques. Vou sempre nos
primeiros dias de bom tempo. Não há nada para ver ainda, claro, mas há alguma
coisa...
Paul escapulira também. Conseguiram evitar, como sombras, a
vigilância da mestra. Desceram até a estação das barcas, passando por ruas
silenciosas. Ouviram um realejo à distância, tocando o Intermezzo da Cavalleria
Rusticana. A música chegava pelos corredores das ruas abandonadas e cinzentas
como a voz de todo o amor, toda a doçura, toda a beleza oculta, abrandada e
melancólica. Ouviram batidas de martelo ao longe, um som oco. Parecia que
estavam sozinhos numa cidade morta na qual as únicas coisas vivas eram a
música e as batidas do martelo.
Do céu pálido e embaçado desciam raios longos e oblíquos do sol da
primavera. Gastaram cinco centavos num saco de amendoim e, cheios de
felicidade, mastigaram-nos enquanto subiam a bordo da barca deserta. Naquele
momento cruzavam o rio. Até onde a vista podia alcançar, até o próprio Lago
Erie, estendia-se um nevoeiro azul. As banquisas em volta do barco pareciam
inquietos tubarões, batendo nos costados e deslizando para longe. Entre elas, a
água tinha a cor de turquesa escuro. A margem canadense aguardava-os, parda e
adormecida à luz do sol.
Foram praticamente os únicos passageiros a desembarcar. O vento bateu
claro e forte em seus rostos, frio e puro como água cristalina. Dormitava a
pequena aldeia de Fort Erie; aqui e ali uma carroça de fazendeiro ribombava
pelas ruas cobertas de lajes. Galgaram uma colina, desceram uma estrada
enlameada, ouviram o latido de um cão, todavia nada mais viram. Em seguida,
mergulharam no bosque à frente. Não conversaram muito. Não era necessário
naquele momento. Conheciam-se bem demais.
O bosque fechou-se em volta deles: esguias e pálidas bétulas, velhos
bordos, castanheiros, faias, olmos. Os galhos estavam ainda nus, mas os troncos
já haviam adquirido uma tonalidade parda macia, prenhe de vida. Os botões dos
bordos apareciam, vermelhos e gordos. Os olmos apresentavam já pequeninos
tufos amarelos nos pequenos galhos. As bétulas pareciam altas e esguias, jovens,
nuas e solenes. Uma luz branca e fraca saturava os corredores entre as árvores,
uma luz mortiça, qual suave nevoeiro. Viram o céu através dos ramos, um azul
pálido, encoberto, muito distante e sereno. Havia apenas silêncio ali, mas, ainda
assim, ouviam o estuar da vida, o despertar da natureza após uma longa morte.
A terra em volta brilhava palidamente em pequenas poças de água.
Samambaias curvavam-se sobre trechos alagados. Os garotos mergulharam as
botas no barro marrom. Mais e mais penetraram no bosque, apressando o passo,
prendendo a respiração como se escapassem de alguma coisa, como se fossem
fugitivos. Naquele momento, tanto quanto podiam ver, o bosque se fechara em
volta deles e estavam presos no coração da natureza. Em algum lugar, ouviram
um baixo e líquido riso, mas nenhum outro som, nem mesmo o pio de uma ave.
Lado a lado, olharam em volta, sentiram, sorriram e estenderam os
braços como se acabassem de ser libertados de correntes.
Quanto tempo ficaram ali, não souberam. Mas, inesperadamente, como
se algum invisível maestro houvesse erguido a batuta, o bosque, os trechos
alagados, recobraram a vida, uma vida selvagem, contínua, apaixonada, de
agudos, altos e doces pios. O ar encheu-se do som; as árvores ecoaram-no; o céu
vibrou em resposta. Ouviram uma voz de vivificação, de nascimento, emergindo
da morte, de êxtase, de hosanas à primavera. O canto, quase insuportavelmente
alegre, não caía e subia. Era contínuo, firme, aumentando em tom e intensidade e
não em mero volume.
As crianças escutaram, reverentes. Estavam em meio a um
soerguimento, a uma explosão de vida e seus corações elevaram-se nas asas de
um pungente júbilo. Naquele momento, no chão, em torno deles, no ar, subia um
coro de enlevo, repetido em todas as direções.
— Rãs arbóreas — murmurou Paul.
Frank não respondeu. Sabia, naquele instante, embora não houvesse
sabido antes, que viera em busca daquilo, dessa primeira celebração da
primavera. Ela o chamara na empoeirada sala de aula. A mensagem lhe fora
entregue enquanto se encontrava sentado à sua carteira e a professora garatujava
monótonos símbolos algébricos no quadro-negro. Pã, vestido de folhagens
verdes, com olhos ainda pesados de sono e as lustrosas patas batendo
impacientes, chamara por ele.
Não pôde suportar a emoção. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
Voltou-se para Paul. Paul viu-as e, inesperadamente, seus olhos marejaram-se
também. Aproximaram-se um do outro.
— Obrigado... Deus — disse Frank e sentiu uma pontada de dor, de
solene júbilo, de gratidão por Deus tê-lo chamado até ali para escutar a promessa
e a voz da primavera.
Um poema começou a formar-se em sua mente enquanto escutava,
enquanto o pipilar das aves penetrava em cada célula de seu corpo e mente.
Aquilo seria parte de um poema em versos brancos que escrevia, uma peça em
três atos. Ouviu a comedida majestade e o desenrolar do poema, o seu
cadenciado brilho.
A caminho de casa, falou a Paul sobre o poema. Andaram em passos
lentos por silenciosos e enlameados caminhos enquanto Frank recitava alguns
versos. Paul escutou, com os olhos pousados na face do amigo, absorto. Era
como se escutasse uma voz que nascia dentro de si mesmo, que dava voz ao que
sempre soubera, mas nunca fora capaz de expressar.
“Lá, lá,
Rezem pelos rapazes
Que estão lá...!”
O outro disse alguma coisa obscena e ambos riram alto como mocinhas
deixando a sala de aula. Frank observou-os até que desapareceram sob as árvores
sujas. Nesse momento todo o nojo e o ódio abandonaram-no aos poucos,
restando apenas um vazio, uma espécie de enjoo. Aqueles rapazes eram pouco
mais velhos do que ele. Certamente não sentia pena por causa da ameaça de
morte que pairava sobre eles. Não sentia pena por causa da mocidade deles, pois
ele era também jovem. A piedade não tinha nome.
“Rezem pelos rapazes que estão lá... ” Não. Rezar, sim, uma oração por
todos os rapazes, que “estão lá”, em toda a parte, em todo o mundo. Rezar uma
oração pelos jovens eterna e inevitavelmente traídos, não pelo mundo, mas pelos
seus próprios sonhos, pelo tempo, pelo mero ato de viver. Se o homem pudesse
morrer apenas enquanto ainda acreditava... Acreditava em quê? Um nevoeiro
dourado estendia-se entre o seu eu, naquele momento, e a criança que fora, e ele
não conseguia ver através da névoa.
Por que estava ali, agindo como um tolo, motivado por algo que não
sabia o que era? Acreditara em que tinha acabado para sempre com a dor, com a
saudade, com os anelos. Olhou para a escada escura por onde desaparecera
Myrtle. Se não se apressasse, ela voltaria e ele ficaria embaraçado, pois nenhum
desejo tinha de acompanhá-la até o quarto. Começou a andar. Mas, impelido
pelo que poderia ser apenas curiosidade, voltou e subiu em silêncio a escada.
Não sabia por que fazia aquilo. Seria para descobrir se Myrtle tivera um cliente
antes, para mergulhar em outra cena de degradação? Uma luz fraca brilhava sob
a fresta da porta ao fim da escada. A porta não estava inteiramente fechada.
Empurrou-a devagar e olhou para dentro.
Em um rápido relance abarcou o quarto miserável, a cama desarrumada,
a cômoda atravancada, as duas cadeiras de balanço em madeira. Viu o bico
amarelo de gás pendente do teto caiado. Havia outra porta em frente onde viu
uma velha desarrumada e gorda, que lhe lembrou a Sra. Watson. Meio virada,
com os braços dobrados sobre os peitos imensos, ela começava a falar
azedamente:
— Bem, é melhor que você arranje algum dinheiro. Isso é tudo. Deixei
você atrasar o pagamento durante uma semana. Seria melhor para ele que
arranjasse um pouco de dinheiro, só isso. Ande logo. Você não pode deixar um
cara esperando demais e eu preciso dormir. Só vou tomar conta do menino até
meia-noite. Tenho que visitar uma amiga hoje.
Nesse momento, Frank viu Myrtle, junto a uma das janelas. Estava
sentada em um tamborete, de costas para ele. Amamentava um bebê. O corpo
frágil curvava-se sobre a criança em um arco de ternura. Frank viu de perfil todo
o seu seio contra o qual se colavam os lábios esfomeados da criança. Myrtle
continuava ainda de chapéu. Na pressa, não havia nem mesmo tirado a blusa.
Dobrara as pernas para sustentar o peso da criança nas coxas. Cantarolava, sem
palavras.
A velha resmungou:
— Não entendo por que você não interna o bebê num orfanato, ou coisa
parecida. Ia ter melhor tratamento do que você pode dar a ele. E você não ficaria
presa a ele. Poderia arranjar um emprego com um salário certo.
Myrtle ergueu violentamente a cabeça. Frank viu-lhe o perfil, magro,
apavorado, cheio de raiva.
— Eu não dou meu bebê! Vão adotá-lo e nunca mais o verei! Desta
maneira, posso cuidar dele durante os dias e sustentá-lo durante as noites! Eu
não dou meu bebê!
A velha encolheu os ombros. Mastigava indiferente um pedaço de goma
de mascar.
— Bem, faça o que quiser. Não adianta dar conselhos a tolos. Aquele
filho da mãe devia ter-se casado com você antes de ir para a guerra e morrer.
Você devia ter tido mais juízo.
Myrtle começou a chorar.
— Ele foi embarcado cedo demais. Nós íamos casar. E, então, ele foi
mandado embora. — Inesperadamente, agarrou frenética, feroz, a criança. —
Mas eu tenho Floyd! Tenho meu bebê, dele! E vai ficar comigo!
Mais uma vez a bruxa fungou:
— Que bela vida você vai dar a ele! Filho de uma prostituta comum.
— Eu não sou! Eu não sou! — exclamou com veemência Myrtle. —
Quando eu acabar de amamentá-lo, vou arranjar uma pessoa que cuide dele legal
e vou trabalhar. Não faço isso por dinheiro para mim. Faço por Floyd! E não sou
prostituta.
Lágrimas corriam-lhes pela face. Enxugou-as com as costas da mão e
fungou como uma criança. O bebê continuava a mamar contente. Myrtle
soluçou.
— Eu tinha um bom emprego num restaurante. Ainda posso voltar para
lá depois que o desmamar. Mas ele precisa de mim por mais uns dois meses. Aí,
posso arranjar uma pessoa para tomar conta dele.
Frank fechou a porta. Permaneceu na escuridão. Sentiu a testa molhada
de suor, suor escorrendo pelas costas, pois fazia grande calor ali na escada.
Ouviu as batidas surdas do próprio coração. Levou a mão ao bolso. Sabia até o
último níquel quanto havia ali. Quinze dólares. Pensara em depositar o dinheiro
na manhã seguinte. Curvou-se com toda a cautela e enfiou as notas por baixo da
porta. Em seguida, prendendo a respiração, desceu a escada e ganhou a rua.
Percorrera apenas três quarteirões quando começou a amaldiçoar-se,
chamando a si mesmo de tolo. O que fora que o traíra mais uma vez e o levara a
cometer aquela fraqueza, a sentir aquela vergonhosa compaixão? Quinze
dólares! Dez minutos antes estivera quinze dólares mais perto da liberdade, um
forte e completo passo. Mas dera um passo para trás. Para quê? Censurou-se
violentamente durante toda a volta para casa. Menos de meia hora antes, vira
clara e honestamente as coisas. Naqueles instantes, sua vista se turvara, mesmo
que por apenas alguns momentos, e ele cerrara fileira ao lado dos asnos
sentimentais que encorajavam os inferiores a permanecerem no estado bestial em
que viviam.
O que, na sua loucura, pensara ali na escada? Que Myrtle pudesse ficar
em paz com o bebê durante uma noite, duas noites! Mas, e na terceira noite?
Bolas, disse para si mesmo. O que importavam as Myrtles e seus horríveis e
pequeninos “Floyds”! Eles eram os fracos, os rejeitados pela vida, os restos da
humanidade.
Mergulhado em furiosos pensamentos, notou surpreso que chegara à sua
casa em Albany Street. Estavam acesos todos os bicos de gás, e as cortinas, ao
contrário do costume habitual de Maybelle, abriam-se de par em par. Em um
momento menos irritado, teria parado para pensar nesse extraordinário
fenômeno. Mas naquele momento sentiu apenas nojo em entrar naquela pequena,
quente e arrumada casa, para ser recebido pelas irritadas queixas da mãe pela sua
ausência.
O vento noturno cheio de pó transportava o cheiro de excremento seco
de cavalo, asfalto quente e lixo. Em alguma parte, também, uma dona-de-casa
fazia seu suprimento de molho de tomate para o inverno e todos os demais
odores eram abafados pelo cheiro forte de especiarias e tomates cozidos. Frank
deu-se conta de que estava ainda com fome. Ouviu os altos olmos junto à
calçada murmurarem entre si. Hesitou.
Dirigiu-se sem fazer barulho para os fundos da casa e penetrou no
quintal. Ali era mais escuro e mais fresco. Francis trabalhara muitos duros anos
naquele quintal durante as noites e nos dias de folga. Plantara fileiras de rosas
vermelhas e brancas ao longo da cerca de madeira, um canteiro de hortelã,
cebolinhas e tomilho, e outro canteiro de sua flor favorita, amor-perfeito. A
grama, também, fora cuidada com carinho e dobrava-se, abundante e aveludada,
sob os pés de Frank. No centro exato do quintal erguia-se uma catalpa, que ele
mesmo plantara. Quando? O nevoeiro dourado entre ele e sua infância esgarçou-
se e através da névoa brilhante e cambiável viu-se como um menino de... oito
anos? Nove? Dez? Não se lembrava, mas se recordava de que fora no Dia da
Arvore e que todas as crianças na escola haviam recebido uma muda para
plantar. Viu-se sob um esplêndido e forte sol, com o pai ao lado, açoitados pelo
vento de começos da primavera, sob um céu cor de ametista. Francis enfiara a pá
profundamente na terra marrom, no próprio centro do quintal. Frank viu a terra
abrir-se, cheia de vermes que contorciam seus corpos vermelhos. Água foi
despejada no profundo buraco e, depois, ele permitiu que Frank plantasse a
árvore. O pai, com todo o cuidado, espalhou as raízes. Frank apanhou a pá e,
com ternura, cobriu de terra as raízes e, levemente, bateu-as. Era uma árvore
muito pequena. Plantada, não era mais alta do que o garoto, apenas um galho
sem folhas, vulnerável, muito jovem, curvando-se ao vento.
Agora, como era alta, com o tronco grosso e forte, transbordante de
vitalidade e de juventude! Os seus ramos estendiam-se muito acima da cabeça de
Frank e suas largas folhas murmuravam. Tangidas pelo vento transformavam-se
num borrão contra as estrelas. Na primavera, ele se lembrou, produzia cones de
doces flores. Era estranho que se lembrasse dessas flores, pois não se recordava
de tê-las visto nos últimos anos, desde a partida de Paul Hodge.
Pôs a mão sobre o tronco da árvore. Minha árvore. Eu a plantei. É uma
parte de mim. Se não fosse por mim, esta árvore não estaria aqui, cheia de
folhas, vivendo na terra, lutando para subir aos céus. Não haveria flores nem
sombra... não fosse eu. Paul e eu a examinávamos com atenção na primavera,
procurando descobrir os primeiros brotos. Eu contava a ele quando saíam as
flores. Ele arrancava algumas, mas elas sempre escorriam pelos seus dedos. É
estranho que não me lembre dessas flores desde que tinha quinze anos. Ficarei à
espera no próximo ano.
A árvore sussurrou para ele. Quando garoto, imaginara que a árvore lhe
falava, lhe contava histórias e as mais estranhas fábulas. Ouvira autênticas
palavras murmuradas, baixas e profundas. Mas não podia lembrar-se das
histórias e, se a árvore agora falava, era numa linguagem inteiramente estranha
para ele, para sempre perdida.
— Para onde é que você vai no inverno? — perguntara à árvore. Que
idade teria na ocasião? Onze? Doze anos?
— Para o mesmo lugar para onde você vai, quando dorme — respondera
a árvore, farfalhando misteriosa. — Para o mesmo lugar para onde irei quando
morrer, e para onde você irá, quando morrer.
— Onde é que fica isso? — perguntara à árvore, com as jovens mãos em
volta do tronco curvo.
A árvore lhe dissera. Fora tão claro, tão satisfatório, tão maravilhoso!
Mas esquecera a resposta. Lembrava-se da pergunta, mas não da resposta. Como
fora glorioso o mundo naquele tempo! Tão cheio de magia, de maravilha, de
percepção, compreensão completa, irrestrita! Agora, desaparecera a luz dourada
e havia apenas um frio e estéril meio-dia em volta, a luz parda do “dia comum”.
Durante os poucos momentos em que permaneceu sob a árvore foi
jovem novamente, como fora em outros tempos, e um baixíssimo eco de magia e
maravilha chegou-lhe aos ouvidos. Arrancou uma grande e fria folha da árvore.
Com quanta frequência segurara essas folhas nas mãos e sentira a baixa e
misteriosa pulsação que havia nelas, a baixa e saltitante resposta a sua própria
pulsação! Estaria realmente sentindo-a, outra vez? Não. Jogou fora a folha.
Crianças têm uma imaginação tão delirante!
De súbito, com relutância, pensou outra vez em Paul Hodge. Poderia
escrever-lhe. De alguma maneira, teria que explicar sua estranha atitude. O
amigo compreenderia?
Ouviu profundos e dolorosos soluços na sala da frente. Fechou a porta às
suas costas e correu para a “sala de visitas”, que era também o quarto dos pais.
Viu Francis na cama, a face branca como a morte, os lençóis puxados até o
pescoço, os olhos encovados e fechados. Ao seu lado, sentava-se Maybelle; do
outro lado, a Sra. Clair. Maybelle cobria o rosto com o avental. A Sra. Clair,
porém, conservava-se sombriamente silenciosa e pálida. Notou a chegada de
Frank.
— Onde foi que você esteve, quando precisamos de você? — perguntou
severamente. — Seu pai desmaiou hoje na farmácia. O médico diz que é
tuberculose e que ele nunca mais poderá trabalhar. Que belo filho é você,
passeando pelas ruas quando seu pai e sua mãe precisam de você!
CAPÍTULO 35
Frank tinha diante de si neste momento a imagem plúmbea de fins de
novembro de 1918. Escrevera a Paul Hodge que, aparentemente, se encontrava
ainda na Escola de Treinamento dos Grandes Lagos:
“Escrevi-lhe cinco vezes e não obtive resposta de nenhuma carta. Por
quê? Bem, continuarei a escrever, Paul. Sei que minhas cartas não despertam o
menor eco, mas não posso evitar escrever. Quero apenas que saiba...”
Saiba o quê? Olhou para as teclas da máquina, onde descansavam as
mãos, e depois pela janela da fábrica, cuja atividade diminuíra, Era hora de
almoço. O que queria que Paul soubesse?
Não podia lembrar-se. Acrescentou: que penso muito em você. Mas você
não precisa fazer o mesmo. Nem mesmo respondeu à carta em que lhe disse que
meu pai faleceu no dia vinte e um de outubro.”
Frank interrompeu-se. Por que teve de pensar, justamente naquele
momento, na ocasião em que não pôde comparecer à festa de formatura da nona
série da Escola Dezoito, que fora realizada na Lafayette High School? Sabia
apenas que não comparecera porque os pais se recusaram a comprar-lhe um
terno de sarja azul e insistiram em que a velha roupa marrom, puída e pequena
demais, era suficientemente boa para aquela “besteira ianque”. Não fora,
portanto, à formatura. Miss Bendy providenciara para que o diploma lhe fosse
entregue. Lembrando-se daquilo, seu coração ardeu de raiva.
A raiva morreu, contudo, por mais que tentasse reavivá-la. Não sinto
pena realmente, pensou, e tornou-se vazio, fraco, deprimido.
“Acho que lhe disse que meu pai sofria de tuberculose. O médico disse
em setembro que ele jamais poderia trabalhar, ou, pelo menos, não durante muito
tempo. Adoeceu gravemente, mas poderia ter vivido. No fim, morreu de medo,
medo de que suas economias diminuíssem. Não queria ouvir o médico. Após a
primeira hemoptise, insistiu em voltar ao trabalho. Lá, desmaiou. Dois dias
depois, morreu.”
As fossas oculares de Frank enevoaram-se. Acendeu um cigarro.
Inesperadamente, sem o menor motivo, pensou no violino do pai, depositado no
porão da casa de Albany Street, coberto de mofo e pó. Uma dor aguda lanceou-
lhe o peito. Minha própria fraqueza, pensou, combatendo selvagemente a dor até
que ela o deixou. Era de alguma maneira uma dor diferente da antiga. Voltou a
escrever no escritório deserto:
“Você deve ter notado que estou com endereço novo, e muito bom,
também. Minha mãe mora agora com minha avó em Porter Avenue. Elas falam
em voltar para a Inglaterra dentro de um ou dois anos. Rompi com a família e
não posso suportar minha avó. Naturalmente, não irei com elas para a Inglaterra.
Depois da morte de meu pai, o médico me examinou, em busca de sinais de
tuberculose. Nada, graças a Deus. Mamãe, porém, começou a tossir, embora
nada haja de errado com ela.
Bem, a guerra terminou e você provavelmente sairá da Marinha qualquer
dia destes. O Dia do Armistício foi curioso aqui em Bison. Fui até o centro para
ver se haveria alguma comemoração. Vi apenas alguns garotos soprando apitos e
uns poucos adultos andando de um lado para outro, aparentemente sem destino.
Será que o fim da guerra nada significava para eles? Parecia que não. Sei apenas
que houve tristeza aqui, nesta fábrica de material de guerra. Os operários estão
muito deprimidos.
A própria depressão e o sofrimento de Frank fecharam-se ainda mais
sobre ele. A oficina escureceu e flocos de neve caíram no dia cinzento. Como
odiava novembro, a imagem plúmbea e estática de pernas e braços que se
dissolviam! Continuou:
“Acho que agora você vai voltar para junto de seu pai e de Gordon. Não
poderia parar em Bison a caminho de casa e fazer-me uma visita? Simplesmente,
avise-me. Ficarei à espera. Tenho um ótimo quarto no endereço que está no alto
desta carta.
Estou estudando na escola noturna, em Hutchinson, desde setembro. A
minha dificuldade, como sempre, é a Matemática. Os professores me disseram
que tenho de aprendê-la ou nunca obterei o diploma e, neste caso, não poderei
entrar na faculdade. Comecei a pensar que o melhor seria fazer todos os cursos
de que preciso e quero para minha literatura e, em seguida, matricular-me na
Universidade de Bison como aluno especial. Isso parece ser a única solução.
Descobriram em Hutch que não consigo compreender nem mesmo divisão com
muitas casas e, embora tenha aprendido Matemática suficiente para me formar
na Dezoito, esqueci-tudo.
Tenho um maravilhoso professor de Inglês, contudo, um tal Sr. Mason.
O nosso primeiro trabalho foi uma composição. Eu, porém, escrevi um poema
curto em versos brancos.”
Mais uma vez, Frank parou e ouviu a voz suave de Robert Mason:
“Notável, Excelente. Mas falta alguma coisa. Não sei exatamente o que é. Todos
os pontos essenciais estão aqui: cor, vitalidade, originalidade, vigor. Você tem
um grande talento. Se eu apenas pudesse descobrir o que está faltando...”
Frank franziu as sobrancelhas. “Faltando!” Coisa alguma faltava, nada,
absolutamente, salvo, talvez, sentimentalismo. Terminou abruptamente a carta e
colocou-a em um envelope. Terminara a hora do almoço. Voltaram os demais
empregados do escritório, conversando e rindo. Um deles era um rapaz jovem
com quem Frank fizera uma espécie de amizade, um tipo alto, encurvado,
sorridente, um sulista de Kentucky.
— Oi — disse ele. — Escrevendo novamente?
Frank fechou e selou o envelope, lançando-a na pequena cesta do
correio.
— Nada de importante. Ei, o que é que vamos fazer agora, Tim?
Recebeu também o aviso de dispensa?
— Exato. Vou para casa. Voltar às colmas. Meus três irmãos dizem que
há petróleo por lá. Apenas um dólar e meio o barril agora, mas o petróleo está
correndo como água. Você devia topar a coisa, como eu lhe disse. Vamos comigo
quando eu for para casa. Ora, cavalheiro, o senhor pode ganhar um barril de
dinheiro!
Ele gosta realmente de mim, pensou Frank, levemente surpreso. Olhou
para a face morena, estreita e bem-humorada, para os olhos azul-claros e a
gaforinha castanha, notou as maneiras descontraídas e a suavidade do jovem
interlocutor. Quanto a si mesmo, conservava-se inteiramente neutro no tocante a
Tim Cunningham. Não gostava nem desgostava dele. Algo se atrofiara no seu
íntimo. Suas reações aos demais eram negativas, indiferentes. Raramente os via.
Congratulava-se consigo mesmo por essa atitude “normal”. Aprendera a encarar
o mundo imparcialmente, sem muito sentimento.
— Talvez eu faça isso — respondeu, subitamente entediado com a
presença de Tim.
Tim fitou-o curioso. Sujeito esquisito aquele. Um tipo alto, bem
apessoado, com uma cara de “americano”. Não igual a esses malditos húngaros,
alemães e italianos que fervilhavam naquela cidade maluca. Ele tampouco era
“ianque”. Nascido na Inglaterra. Tim sentiu-se enternecido. A velha amizade e
afeto do sulista pelo inglês brilharam em seus olhos. Ora, nós somos a mesma
gente, pensou. Pôs a mão no ombro de Frank, apertou-o e dirigiu-se à sua
escrivaninha.
Kentucky. Frank brincou com a caneta. O que fora que lhe dissera o Sr.
Mason? “Precisa aprender um bocado de coisas, Sr. Clair. Muito mesmo. Anos e
mais anos de estudo. Mas, se tiver fé em si mesmo, estudar, viajar um pouco,
poderá ser um escritor.”
Frank investigara com todo o cuidado a profissão de escritor. Descobrira
que somente uns poucos podiam viver da pena. Somente estes eram autênticos
profissionais e colhiam as recompensas. Havia centenas de outros que escreviam
os numerosos outros livros, que desfrutavam de um pequeno sucesso, trazendo
aos seus autores somas que variavam de mil e quinhentos a dois mil e quinhentos
dólares anuais. Um homem não podia fazer muita coisa com isso. No topo é que
ficavam os reluzentes prêmios. Mas era longo o caminho até o cume. Queria
dinheiro, e com muito mais rapidez. E não havia garantia de que, no fim,
chegaria ao alto. A escrita, em contraste com seus esforços juvenis, se tornara
uma tarefa tediosa e tensa para ele, um trabalho. Outrora, escrevera com suave e
entusiástico deleite; as frases borbotavam da pena como fogo líquido,
fascinando-o até com as imagens, o poder e a beleza. Fora como um
derramamento, um pote mágico inclinado e do qual fluía ouro sem esforço,
suavemente. Houvera maravilha no mundo naquela ocasião — neste momento
era trabalho, monótono, mecânico. Algo lhe acontecera. Sentia uma exaustão
psíquica descendo pelas pernas e braços, drenando-lhe as forças, um aviso de
fracasso.
Kentucky. “O senhor pode ganhar um barril de dinheiro.”
Se eu pudesse ganhar um bocado de dinheiro, pensou, poderia realmente
estudar, viajar de verdade. Em seguida, quando estivesse livre do fardo de
ganhar a vida, poderia reconquistar aquela “coisa que falta”, de que falara
Mason. É simplesmente a preocupação de ter que ganhar a vida o que me segura.
Além disso, eu conheceria um pouco o país.
Conservara grande parte dos seus primeiros poemas e contos. Eram
toscos, descobrira, trabalhos de amador. Excessivamente rebuscados, com
adjetivos em demasia. Fervilhavam de repetições. Sim, estava aprendendo. Sabia
o que estava errado. Poderia escrever muito melhor do que aquilo. Mas sabia, no
íntimo, que perdera algo que possuíra outrora: poder, força, exuberância, a
capacidade mágica de criar uma metáfora refulgente. Encolheu os ombros. Tão
logo superasse a necessidade de ganhar a vida, aquilo voltaria. De súbito, disse a
si mesmo, veementemente: “Precisa voltar! Precisa! Precisa!”
A veemência do pensamento surpreendeu-o. Era como uma voz gritando
nas escuras e sufocantes profundezas de si mesmo. Era uma voz que fora
abafada durante anos.
Tim aproximou-se em passos vagarosos e ofereceu-lhe um cigarro.
Piscou, curvou-se sobre Frank e sussurrou:
— Ei, parece que aquelas pequenas gostaram de nós naquela noite.
Vamos tentar novamente? Elas são seguras, como eu lhe disse.
CAPÍTULO 36
Frank, sentado à beira da cama, na escuridão do quarto, acendeu outro
cigarro e puxou furioso a fumaça. O que fora que Emerson dissera? “Não façam
concessões, promulguem leis justas, garantam a vida e a propriedade, e não
precisaremos dar esmolas. Abram as portas da oportunidade ao talento e à
virtude e eles mesmos a si farão justiça e a propriedade não cairá em mãos
desonestas. Em uma comunidade livre e justa a propriedade flui dos ociosos e
dos imbecis para os operosos, os bravos e os perseverantes.”
Sorriu, sombrio. Eu sou operoso, pensou, sei que sou bravo e posso ser
persistente. Três pás para cavar como num jardim de pedra. Havia algo novo no
mundo naquela ocasião, algo sinistro e sugestivo de influências enervantes,
debilitantes, enfraquecedoras. Havia tolos que berravam que os estúpidos, os
incompetentes e os covardes tinham tanto “direito” de viver como seus
superiores, que possuíam coragem, virtude e talento. Quem lhes dera tal direito?
Quem eram os tolos que declaravam que eles o tinham? Não tinha direito de
viver o homem que era incapaz de trabalhar e sobreviver. O adágio de ferro dos
puritanos perpassou-lhe a mente: “Quem não trabalha não come.”
Frank inclinou a cabeça. Sim. Emerson tinha razão. Os puritanos tinham
razão. Sentiu a retidão daquelas palavras. Mas faltava alguma coisa, e faltava
nele mesmo. À equação faltava uma soma, sabia, e enfureceu-se outra vez.
Sentia aquele “algo” por trás das sombrias palavras de Emerson. Poderia ser a
mesma coisa que o Sr. Mason dissera que “faltava” em seus escritos? Maldito
absurdo. Metafísico.
Levantou-se, tocou em um interruptor na parede e a luz inundou o
quarto. Os pensamentos desmaiaram à luz confortante e olhou em volta,
satisfeito. Os últimos cinco anos haviam produzido uma mudança em Linwood
Avenue, situada ao longo dos primeiros oito ou dez quarteirões a partir do
centro. O comércio obrigara os proprietários de muitas grandes mansões a se
mudarem para os arrabaldes. Os que haviam comprado as casas abandonadas
transformaram-nas em pensões “particulares”, cobrando altos aluguéis pelas
“instalações superiores”. O quarto de Frank na casa próxima a North Street
custava-lhe dez dólares semanais, com o café da manhã. Mas era um belo quarto,
embora pequeno e antiquado. Possuía teto muito alto, de gesso trabalhado, e era
pintado de verde claro e suave, como os lados de uma maçã nova. Havia um
desbotado tapete Axminster no assoalho, de boa qualidade, com a cópia de um
motivo oriental em vermelhos, azuis e verdes desbotados. Olhou para a mobília
e, mais uma vez, ficou satisfeito. Deviam ser peças antigas, pensou, pois, a
cômoda era de velho mogno polido, com uma rica textura, combinando com um
espelho embaçado.
Sentou-se na cadeira de balanço, acendeu um cigarro e olhou para a
frente. O relógio de ouro, a única herança do pai, acusava dez e meia. Dentro de
um ou dois minutos iria tomar uma cerveja e comer um sanduíche de bife.
Entrementes, curtia o quarto.
Em seguida, ficou inquieto. Restava-lhe apenas uma semana, mais ou
menos, na fábrica Curtiss. Naturalmente, conseguiria logo outro emprego a
despeito dos boatos crescentes de dispensas, agora que findara a guerra.
Recebera o aviso prévio em novembro, mas já era janeiro e continuava
trabalhando. Trabalhava bem, era inteligente e operoso. Aprendera taquigrafia na
escola noturna e havia boa procura de rapazes com essa habilidade. Mas hesitava
um pouco ante a deprimente necessidade de procurar outro emprego, de ajustar-
se a outra situação. Tim Cunningham viajara em novembro, de volta às
“colinas”. Trabalhava com os irmãos na montanha procurando petróleo e,
aparentemente, com bom resultado. “Ganhamos duzentos cada na semana
passada”, escrevera a Frank. “Por que não vem para cá e ganha também todo
esse dinheiro? Acho que devo gostar de você, para andar insistindo dessa
maneira.” As cartas traziam o endereço de Shortsville, Kentucky. Era uma
localidade que não figurava no mapa, forçosamente uma pequena cidade do
interior.
Duzentos dólares numa única semana! Ora, aquilo era tudo o que Frank
possuía no banco! Apagou o cigarro num prato de porcelana. Duzentos dólares
semanais, pensou ele, fazendo as contas com dificuldade, totalizavam oitocentos
por mês. Calculou a soma no espaço de um ano, dois anos, três. Ora, seria um
homem rico ao fim desse período! Mas isso importaria em deixar a escola
noturna. Diabo, pensou, posso saltar a escola secundária e entrar na universidade
como aluno especial! Além disso, conhecerei o país.
Distraído, puxou o pesado relógio de ouro e olhou as horas. Um quarto
para as onze. Precisava ir tomar logo a cerveja e comer o sanduíche, se é que iria
mesmo. Levantou-se, dirigiu-se ao espelho e ajeitou a gravata. Observou o rosto.
Não era mais o rosto da adolescência.
Era um homem, de quase um metro e oitenta e cinco, ombros magros e
largos, braços e pernas compridos. O terno assentava-lhe bem e ele tinha um ar
elegante. Fora muito desarrumado e grotesco em criança, lembrou-se. Agora,
cuidava-se. Estendeu a mão para apanhar o relógio e colocá-lo no bolso.
Curiosamente, o relógio tornou-se de súbito pesado e pulsante em sua mão,
como um coração. Não pôde guardá-lo. Olhou-o fixamente.
A caixa macia de ouro aqueceu-se em sua mão. Ouviu as batidas altas.
Era o coração do pai. Sentiu as pulsações. Nesse momento, uma violenta dor
irradiou-se pelo seu corpo. Cerrou os dentes e fez um esforço para dominá-la,
desprezando-se.
O quarto desapareceu. Sentava-se ao lado da cama, no dia anterior ao
falecimento de Francis.
A galopante e espetacular doença do pai não o impressionara muito.
Estava acostumado aos lamentos da mãe sobre a morte. Naquele momento,
concluiu, o pai pelo menos por uma vez ocupava o centro do palco e estava
ativamente desfrutando da situação. Quando trabalhava, ele não pensava
absolutamente em Francis. Além disso, fazia muito tempo desde que dedicara o
menor pensamento aos pais.
Aquele dia de outubro passara com um duro e amarelo encanto. As
coisas brilhavam naquela forte amarelidão. Fundiam-se com ela o sol, as árvores,
a luz nos rostos que passavam, nas bordas dos prédios de tijolo, ao longo do
meio-fio na rua, nas janelas empoeiradas dos bondes — tudo havia sido tingido
por aquela luz amarelada e metálica. Tudo, exceto o céu, que queimava e
flamejava no alto como uma abóbada de água-marinha escura. Não havia
profundidade naquele céu. Era uma abóbada fixa, habilmente cortada de uma
enorme gema redonda, tão azul que parecia irreal. Frank, em princípios da noite,
deixara a fábrica Curtiss e perdera um ou dois bondes para observar aquele céu e
aquele dourado antes que desaparecessem. Enquanto andava, vendo, mas não
sentindo, desfrutando, mas não participando, deliciando-se sem êxtase, lembrou-
se de que fora numa noite como essa, enquanto vagueava pelos trilhos
ferroviários ao pé de Ferry Street, que presenciara o acidente.
Tinha quatorze anos naquela ocasião e estava matando uma aula.
Divertira-se muito andando sem destino, vendo, absorvendo, sonhando. Chegara
quase a Ferry Street quando viu o garotinho, que devia ter menos de dez anos,
lançando uma bola no ar e pegando-a na queda. Estava malvestido e, embora o
dia não estivesse quente, andava de pés descalços. Filho de um grileiro dali,
tinha um cabelo tão amarelo e metálico como o sol de fim da tarde e uma face
tão rosada, suja e feliz que comovia o coração só em vê-la.
Um trem aproximava-se pela curva aberta, gemendo como uma legião
de almas danadas ao aproximar-se do cruzamento. O garoto, inteiramente
inconsciente do perigo, brincava com a bola, lançando-a alto no ar. Era uma bola
vermelha, obviamente nova e possivelmente furtada. Quando a bola subia para o
céu, o garoto saltava com ela, entusiástico, esforçando-se para agarrá-la, com os
braços lançados para o alto, os pequenos dedos estendidos, os pés e as pernas
nuas erguidos como os de uma jovem ave, o cabelo dourado lançado para trás
como finas asas. Frank viu-lhe o perfil, puro e enlevado, e sentiu o mesmo
desejo apaixonado de voar, de subir com a bola que empolgava o menino. Sentiu
na carne sensível algo mais enquanto observava o menino e a bola: a arremetida
para o alto de toda a humanidade no desejo da criança de subir, de tornar-se
imponderável, de deslizar pela brilhante radiância do ar, deixar para sempre a
carne, a morte, a fealdade, a dor, ser alçada até o sol. Ele mesmo contava apenas
quatorze anos nessa época, mas sentiu uma pontada de angústia, de
conhecimento, mas de êxtase ante aquele fraco e impotente esforço, mas, ainda
assim, glorioso.
Mais uma vez a bola foi lançada para cima e, mais uma vez, o garoto
saltou. Quando caiu novamente, porém, como um pequenino globo vermelho, a
bola errou as mãos que se erguiam. Tocou no chão, rolou pela pequena ladeira na
direção dos trilhos e acomodou-se entre as brilhantes fitas de ferro. O garoto
correu saltando atrás dela. Frank, petrificado, abriu a boca para gritar, mas
nenhum som saiu da garganta, subitamente apertada por mãos de ferro. Tentou
correr para o menino, mas seu corpo parou como se houvesse virado gelo.
Tentou fechar os olhos, mas eles se conservaram abertos, inexoravelmente, e
foram forçados a ver o que tinham de ver. O maquinista aplicou em desespero os
freios. Um terrível guincho e um rangido cortaram o ar. Ouviu-se um arranhar
tonitruante de ferro sobre ferro e subiu nos ares o uivo de um apito. Mas coisa
alguma podia ser feita. Como um monstro gigantesco deslizando na terra sobre
as patas traseiras, a máquina, pelo próprio impulso que levava, arremeteu contra
a criança agachada. Somente nesse instante Frank conseguiu fechar os olhos.
Jamais conseguiu lembrar os momentos seguintes. Sabia apenas que,
quando abriu os olhos aturdidos, uma pequena multidão se reunira, vinda não se
sabia de onde, composta de homens malvestidos, de macacões e suéteres,
mulheres que choravam e torciam as mãos, crianças curiosas, boquiabertas. O
trem parou, pontilhado de cabeças que se espichavam nas janelas. O maquinista,
de pé sobre os trilhos, soluçava alto, rouco, enquanto o foguista tentava consolá-
lo. Passageiros, homens, começaram a descer do trem e aproximaram-se
correndo. O ar encheu-se de exclamações, gritos, pragas. O local transformou-se
numa selva. Nesse momento uma mulher gritou, uma mulher gorda e
desarrumada, enfiada num vestido de algodão, que saíra correndo de uma choça
de grileiro próxima. Frank notou os espirais de seu cabelo preto, de cigana, e a
face branca e sem expressão quando ela chegou junto ao maquinista e à mórbida
multidão que se reunira em meio à fumaça na frente da máquina. Ouviu-lhe o
grito, os gritos repetidos, loucos, dementes, sufocados. Mas a coisa sobre a qual
chorava, aquela luzida coisa que queria voar, não emitia som algum, nunca mais
o emitiria.
As pernas lhe começaram a tremer e sentiu gotas de suor escorrerem por
elas. Virou-se, querendo correr, correr, para sempre gravada na sua visão interna
a recordação de uma criança que subia para um céu azul cintilante. Mas a
criança não voltara à terra. Voara para longe e se perdera no sol.
O pé de Frank tocou em algo, que rolou. De alguma maneira
inexplicável a bola fora lançada de volta ao caminho, intacta, vermelha,
intocada. Apanhou-a. Estava marcada por todos os lados pelos pequenos dedos
do garoto que a tivera nas mãos e que nunca mais a lançaria para o alto.
Palpitava na mão de Frank, queimava-lhe a pele. Levou-a até o canal e atirou-a
na água. Observou-a durante um momento saltitar e depois, enchendo-se por um
orifício invisível afundar.
Não soubera na ocasião que fora compaixão pura e sem mácula o que
sentira. Mas soube naquele dia de outubro quando ia para casa sob a luz dourada
da noite de outono. Que criança tola fora! Que criança louca! Lamentando-se
como um sentimental idiota com a morte de um diabrete que, se houvesse
vivido, teria sido um bêbado, um gatuno como o pai, e que teria provavelmente
terminado seus dias na prisão ou na forca. Mas ficara ali, observando a bola
afundar, derramando lágrimas idiotas, sentimentais. A visão da criança que
subia, pura, imaculada ansiosa, recortada contra o céu, toldou-se, diminuiu de
nitidez e foi praticamente esquecida.
Esperando o bonde naquela noite de outubro, pensou: Eu nutria
pensamentos muito heroicos e imbecis naqueles dias. Sinto vontade de vomitar
quando me lembro. Ia salvar o mundo, ia escrever histórias idiotas, como a
morte daquele menino. Ia levar piedade, amor, alegria, poesia a todos os
homens! Que ultrajante e impudente desfaçatez de minha parte!
O espelho de sua mente tornou-se tão baço como o espelho sobre a pia
da cozinha da mãe, desfigurado pela fumaça, marcado, manchado, uma dura
folha que, nas suas profundidades, refletia apenas sombras.
Lembrou-se de tudo aquilo naquele momento no quarto de Linwood
Avenue, tendo na mão o relógio do falecido pai. Aquele dia tão antigo de
outubro e o dia da morte do pai estavam inextricavelmente fundidos, haviam-se
transformado em um único dia. Da mesma maneira que segurara nas mãos a bola
do garoto, antes de lançá-la no canal, segurava naquele momento o relógio do
pai e, durante um curto momento, imaginou que o relógio pulsava.
Os seus dedos esquentaram sob o metal. Fez um gesto como se fosse
enfiar o relógio no bolso. Algo, porém, deteve-lhe a mão e nada pôde fazer
senão continuar ali, olhando-o. Ora — naquele momento sentiu divertimento —
era quase a bola outra vez, a bola de uma criança sem nome que sentira uma
aspiração, tentara galgar os ares, fora abatida e morrera!
Encontrava-se novamente na “sala da frente”, em Albany Street, no
quarto dos pais.
A noite esfriara. O pequeno aquecedor de gás, com suas “roscas” de
argila quente, queimava forte, lançando um calor agradável sobre o linóleo
marrom, gasto, mas bem esfregado. As remendadas e cerzidas cortinas de
“renda” de Maybelle eram ondulações de neve nas venezianas baixadas, duras
como papel, e igualmente brancas. Um sofá de mogno enroscado, com um
recosto de veludo verde doentio e uma cadeira combinando haviam sido
acrescentados à despojada mobília original. Maybelle comprara o “conjunto”
numa movelaria de segunda mão. Aplicação vigorosa de flanela e óleo haviam
conservado brilhante a madeira. A cama de bronze fora polida também e suas
estreitas colunas e a parte superior em volutas lembravam ouro puro. Na cama,
sob o edredom branco de casa de abelhas, jazia Francis, reclinado bem alto nos
fofos travesseiros (Os amados travesseiros de Maybelle, trazidos da Inglaterra).
O bico de gás queimava fraco no teto. Frank sentou-se ao lado do pai enquanto a
mãe dormia. Devia acordá-la à uma da manhã e ir dormir. Seria substituído pela
mãe até o amanhecer. Isso porque ambos sabiam naquele momento que Francis
não resistiria.
Como a luz era fraca demais para ler, foi obrigado a sentar-se junto ao
pequeno aquecedor a gás, numa dura cadeira de balanço, de frente para a cama,
observando o doente. Balançou-se, inquieto. O assoalho rangia sob a cadeira; o
gás silvava; o aquecedor chiava e estalava. O vento de outubro empurrava as
janelas e as cortinas mexiam-se contra as venezianas. Francis parecia dormir,
embora a respiração fosse irregular e rouca e ele, às vezes, tossisse surdamente.
Era uma caveira o que repousava ali sobre o travesseiro, cinzenta, funda,
manchada de profundas sombras, descarnada, espectral. A cabeça calva, a testa
estreita e saliente pareciam enormes sobre as feições murchas, como pedra
esbranquiçada sobre uma minúscula face que, à medida que mergulhava na
morte, conservava uma fantasmagórica semelhança com a ancestralidade
primordial e simiesca. Naquele momento, enquanto as características humanas
se esvaíam, preparando-se para partir para sempre, o espectro remoto e perdido
dos primórdios do homem manifestava-se com clareza sempre maior. A morte é
uma coisa feia, pensou Frank, mas de certa maneira, misteriosa. Ficou intrigado
com o triunfo da testa e do domo do crânio — a testa e o crânio da ascensão do
homem, que não seriam derrotados e dissolvidos, mas permaneceriam inviolados
e resistentes muito depois que aluíssem em barro a feições simiescas as quais
coroavam. Como um monumento, como uma tumba que a tudo resiste, o domo
do crânio, cheio, polido, invulnerável, persistia através das idades como
testemunha muda de estranhas criaturas que o haviam habitado e crescera sem
parar, da pequena cabeça do símio, voltada sem curiosidade para as árvores da
selva, para a do homem que sonhava com cidades e conquistava planícies.
A luz do gás bruxuleava; silvava o aquecedor. Frank permaneceu imóvel
na cadeira e, durante alguns exultantes momentos, sentiu a chama e a emoção da
infância, a exaltação, o êxtase, a maravilha, o respeito. E murmurou para si
mesmo com uma alegria que não conseguiu compreender: — Eu ainda sinto!
Em seguida, combateu essa imbecilidade e pensou na escola, nas suas
ambições, no dinheiro, na fuga para sempre daquele quarto e de tudo quanto ele
implicava. Olhou em volta, odiou, rejeitou, e a visão desapareceu.
Francis tossiu forte, moribundo, e abriu os olhos mortos. Viu o filho
junto à cama, olhando sombrio para o vazio. Viu os olhos do filho, apertados,
sem nada ver do quarto ou do pai, mas algo em si mesmo. Viu algo além disso.
Viu o filho, aquele rapaz sentado ali, com as longas pernas cruzadas, o colarinho
duro e brilhante, a gravata de nó elegante, as magras e fortes mãos crispadas nos
braços da cadeira. Algo fê-lo exclamar:
— Filhinho!
O nome carinhoso, há tanto tempo esquecido, produziu uma espécie de
choque em Frank. Olhou fixamente para o pai e ouviu o nome ecoando,
chegando-lhe de uma infância muito antiga e mais bondosa, dos campos verdes e
bordados com margaridas da Inglaterra, do cheiro de candeeiro a gasolina, da
pantomima e do Natal em casa. Ouviu a palavra e captou o frescor do pilriteiro e
do agrião, sentiu o gosto de pirulitos de hortelã e panquecas de Terça-Feira de
Carnaval, ouviu o riso de crianças que comiam batatas fritas enquanto a chuva
caía forte do lado de fora. Ouviu e viu um jovem Francis segurando-lhe a mão
enquanto passeavam pelo ensolarado Reddish Vale e ele escutava a história da
Gata Borralheira contada pelo pai.
— Filhinho! — exclamou Francis, e Frank sentiu o beijo cálido da
jovem mãe e ouviu a dura e desajeitada execução do pai na “rabeca”. Viu as
patéticas botas do pai no tombadilho do “Baltic”, o gorro absurdo e os grossos
bigodes pretos, a bengala e o faiscar dos olhos azuis, atentos. Nesse momento,
sentiu uma forte amargura e confusão e procurou lembrar-se de quando o pai
deixara de chamá-lo por aquele nome. Não podia lembrar-se, mas sabia que a
dor de sua infância começara nessa ocasião, assim como a fealdade esquálida e o
desespero da vida na América.
Tremendo, dirigiu-se para a cama do pai com os lustrosos sapatos
batendo forte no linóleo. Junto da cama, olhou para Francis, que o fitava com
uma expressão ansiosa, a boca encolhida movendo-se sob o bigode grisalho. O
que estaria ele tentando dizer? Frank curvou-se sobre a cama. A boca mexeu-se,
mas nenhuma palavra conseguiu articular, salvo um murmúrio sufocado, terrível
em sua incoerência.
Francis moveu cegamente a mão direita sobre a colcha da cama. Algo
em Frank fê-lo querer segurar aquela mão. Sabia que o pai queria que fizesse
isso. Mas não pôde. Não pôde porque algo parecido com uma paralisia férrea o
deteve. A mão de Francis parou por fim. Olhou para o filho e aquela alma que
partia fitou-o ardentemente, como se soubesse.
Em voz baixa, choramingou:
— Minha rabeca.
— Sim, pai — respondeu Frank em voz fria e tranquila. — Está no
porão. Quer que vá buscá-la? — Ele quer a rabeca, e está morrendo! Era de se
esperar algo tão sentimental assim, acho. Ele não pode nem mesmo morrer sem
fazer um gesto para despertar comiseração!
Mas não há pena em mim, pensou amargo. Não há compaixão por essa
vida ignóbil. Há apenas amargura quando me lembro de todos estes anos. Não
posso esquecer.
Francis ficou observando-o, absolutamente imóvel, silencioso,
compreendendo. A desolação, o terror e a desesperança brilharam naqueles olhos
mudos. A luz do gás iluminava uma face onde se desenhava uma aguda
percepção, uma percepção jamais revelada em uma vida anterior e mais sadia.
Era o avivamento da chama de uma alma, expandindo-se, sacudindo as asas
úmidas em preparação para o voo que a libertaria da gasta crisálida.
Que palavras havia para traduzir tal compreensão, tal percepção? Não
estavam registradas na língua de qualquer raça. O sentimento transcendia as
palavras.
A rabeca, pensou Frank. O que quereria ele com a rabeca?
— Quer que vá buscá-la? — repetiu.
Sem tirar os olhos ansiosos da face do filho, Francis moveu de leve a
cabeça no travesseiro num gesto de negação. Ele está tentando dizer-me alguma
coisa, pensou Frank. Sorriu, em seguida, com desprezo de si mesmo por esse
sentimentalismo. O que poderia essa pequena e mesquinha criatura dizer-lhe? O
que poderia dizer?
Não se lembrava de ter visto os olhos de Francis tão brilhantes, tão
azuis, como naquele momento. Febre, naturalmente. Febre e medo. O medo
sempre fora emoção conhecida do pai. Enojado, Frank respirou longa e
profundamente.
Frio, em voz alta, perguntou:
— Está-se sentindo bem, pai?
Aparentemente, Francis não o ouviu. Os olhos, dilatados, enormes,
olhavam fixamente da caverna de sombras onde se engastavam. Os lábios
moviam-se em silêncio com palavras que não conseguiam articular. Mais uma
vez, a mão contorceu-se em desespero, trágica. Frank notou o gesto e desviou a
vista.
— Quer que chame mamãe? — perguntou. Olhou para o despertador,
que batia alto na mesa quadrada de carvalho junto à janela. Quase uma hora. Era
tempo de acordar a mãe e ir dormir.
Observou o pai. Após um longo momento, Francis inclinou a cabeça.
Frank dirigiu-se à porta. Francis observou-o afastar-se. O azul que lhe queimava
nos olhos seguiu o filho. A porta foi aberta e fechada por trás do jovem. Os olhos
de Francis, porém, continuaram a arder, ignorando a impermeabilidade da porta,
como se algo nele a atravessasse, seguindo-o.
Maybelle, inchada, com manchas no rosto, desgrenhada, ergueu-se
gemendo da cama de Frank. Cobriu-se pudicamente com a colcha. Suspirando,
soluçando um pouco de exaustão, empurrou para trás a massa de cabelos
grisalhos e pestanejou com o brilho da luz do gás, acesa pelo filho. Tinha os
olhos mortos e opacos. Perguntou:
— Como está ele?
— Está acordado. Melhor do que na noite passada.
Tirou o paletó e o casaco e pendurou-os nos pregos da parede que lhe
serviam de guarda-roupa. A mãe começou a chorar.
— Acontecer isso logo a nós! — choramingou, enxugando o nariz e o
rosto no avental amassado. — Por que teria de acontecer?
Frank tirou a gravata. Examinou com atenção o colarinho, aproximando-
o da luz. Com indiferença, respondeu:
— Por que não nos deveria acontecer? Acontece todos os dias.
Maybelle assoou-se.
— Nenhuma pena — gemeu. — Você não tem sentimentos, Frank.
Como é que você pode ficar tão calmo assim quando seu pai está morrendo?
Ele fitou-a com uma viva curiosidade. Durante toda a doença, Francis se
lamentara da redução das suas economias. Maybelle, porém, não falara nem uma
única vez em dinheiro. Em voz mais suave, respondeu Frank:
— Talvez ele não esteja morrendo. Parece muito melhor hoje à noite.
Segurando as costas doloridas, Maybelle saiu do quarto. Frank fechou a
porta. Bocejou. Dirigiu-se para a cama, deitou-se, mas não adormeceu logo,
como de hábito. Os olhos do pai continuavam a fitá-lo, queimando, azuis e fixos,
na escuridão.
O amanhecer de outono foi rompido pelos gritos e o choro de Maybelle
e, mesmo antes de chegar ao quarto da frente, Frank teve certeza de que o pai
falecera.
Conseguiu colocar agora o relógio no bolso, onde ficou como um peso.
Não se lembrava de que fosse tão pesado. De súbito, teve vontade de livrar-se
dele. Vou vendê-lo sábado à tarde, pensou. Com o dinheiro comprarei outro.
Desceu em passos rápidos a escada. Precisava andar ligeiro antes que o
bar fechasse. Havia boatos de Lei Seca. Isso era um absurdo, naturalmente. Não
poder beber um copo de cerveja quando se tinha vontade! O pai se enganara: os
ianques não eram tão estúpidos assim. Pensou um momento e acrescentou para
si mesmo: nós não somos tão estúpidos assim.
Linwood Avenue estava muito tranquila, escura e deserta quando Frank
fechou a porta da rua. Pedaços de gelo escuro continuavam sobre as calçadas
raspadas à pá e pestanejavam à rara luz dos postes, muito espaçados, de
iluminação elétrica. Enormes montes de neve, cheios de furos e mossas,
levantavam-se nos gramados e no meio-fio. As grandes e melancólicas casas de
cada lado da rua pareciam haver-se retirado ainda mais para dentro de seus
terrenos cobertos de neve. Piazzas, projetando-se das fachadas de tijolo
vermelho, pareciam cavernas de sombras. Um automóvel passou com um triste
toque de buzina. Uma grande lua branca, pendurada, sobre um telhado, tingia de
prata a ardósia. As árvores nuas estalavam no silêncio, pois o frio aumentara nas
últimas horas. Ouviu o barulho de um bonde que descia, balançando-se, Main
Street. Subiu North Street a caminho do bar em Main.
O bar, igualmente, estava deserto, salvo pelo garçom, que bocejava
entediado e preparava-se para fechar, e um único freguês, derreado no balcão.
Um único globo de luz pendia do teto. O lugar cheirava a cerveja e a suor velho.
Aproximou-se e pediu uma cerveja. O garçom conhecia-o.
— Um minuto mais, Frank, e você encontraria a casa fechada — disse
ele. — Está frio lá fora, não?
Frank inclinou a cabeça e bebeu a cerveja. O garçom, com os cotovelos
no bar, puxou do peito um profundo e cansado suspiro e alisou a fímbria de
cabelo em torno da cabeça calva. Era um homem gordo e informe, de meia-
idade, pequenos olhos bondosos e rosto flácido. Olhou para Frank com sonolenta
amizade.
— Umas duas pequenas estiveram aqui, mais ou menos há uma hora —
confidenciou. — Procurando fregueses. Botei-as logo para fora. É preciso ter
cuidado nestes dias, com esses santarrões querendo implantar a Lei Seca. Bem, o
povo não vai admitir isso, simplesmente. Havia uma coisa estranha com uma das
pequenas — recomeçou em tom mais animado. — Era uma garota de uns
dezesseis anos, talvez quinze. Uma filha das gerações da guerra, como dizem os
jornais. Bonita, também, com a saia chegando quase até o joelho e um grande
chapéu de Viúva Alegre. Não, acho que era um troço parecido com um
cogumelo. — Sorriu. — Bem, a menina entrou aqui com a moça mais velha,
remexendo as cadeiras, mascando chiclete e bancando a ousada. A outra pequena
não era “boa” como ela, via-se logo. Mas havia alguma coisa na menina que me
fez mal. Tenho uma filha da mesma idade. Eu disse: “Por que você não volta
para casa, querida, tira essa tinta da cara e vai para a escola?”. Sabe o que foi que
ela respondeu? “Não tenho casa nenhuma e minha mãe está por aí, fazendo a
vida também.” — O garçom sacudiu a cabeça. — “Admirável Mundo Novo”, é
isso o que dizem os jornais, depois da guerra. “Admirável Mundo Novo” para
quem? Não houve nenhum “Admirável Mundo Novo” depois da Guerra
Hispano-Americana, mas acho que as pessoas simplesmente se continuam
enganando o tempo todo. Não parecem compreender que, se querem esse tipo de
mundo, têm que construí-lo, com as próprias mãos, e não esperar que alguém o
faça, sentando-se sobre o traseiro e simplesmente esperando.
Suspirou novamente e, mais uma vez, passou a mão pela fímbria de
cabelos e continuou.
— Culpam os bares. Culpam a guerra. Culpam todo mundo. Mas não há
um único filho da mãe que se olhe no espelho quando faz a barba e diga a si
mesmo: “É esse aí que está impedindo que venha o admirável mundo novo. E
esse filho da mãe que está botando areia no brinquedo. Mexa-se, irmão, faça sua
parte.” Não, ele não faz isso. — O garçom, triste, sacudiu a cabeça.
— O que é que você está fazendo, Tom, a respeito do “admirável mundo
novo”? — perguntou indolente Frank.
O garçom sorriu acanhado e alisou o queixo.
— Eu? Escuto as histórias tristes que eles me contam. Um homem
precisa de ter alguém com quem falar não? E ouça aqui, garoto, escutar é
trabalho duro. Talvez mais duro do que você pensa. Eu também dou conselhos
quando não estou com pressa demais. Digo a esses chorões que voltem para suas
esposas, para casa, e que brinquem com os filhos. Digo aos veteranos que
deixem de se lamentar porque o Governo não os ajuda. Digo aos rapazes que
deixem de andar procurando moleza e trabalhem duro. Digo aos caras metidos a
sebo que não vendam seus Bônus de Guerra e que deixem de fumar grandes
charutos e de se mostrar simplesmente, trocando notas de vinte dólares. Digo a
todos que vêm por aí, novamente, tempos difíceis, que estão bem perto, e que
eles vão ter que lutar para ganhar níqueis, em vez de jogar fora os dólares, como
se fossem caras importantes. Digo a eles que os empregos moles estão acabando
e que não há coisa menos permanente do que a “prosperidade permanente”.
Todos têm que trabalhar duro... é isso o que eu digo a todos esses calhordas que
vêm aqui.
— E eles prestam atenção?
Tom pensou seriamente no caso, ergueu-se do bar, coçou a cabeça e
contraiu os lábios gordos.
— Bem, moço, alguns prestam, outros não.
Frank sorriu cordialmente e disse:
— Parece que você é uma força pelo bem, Tom. — Pagou a cerveja e
terminou o sanduíche de carne. Ouviu o tinido da registradora.
De costas viradas, Tom disse:
— Há gente que pensa que os que trabalham não têm cérebro. São
simplesmente mulas, acham. Mas você ficaria surpreso se soubesse o quanto eles
pensam. Todo o povo americano.
Frank apertou os olhos, fitando as costas gordas e suadas do garçom.
Ergueu-se abruptamente, despediu-se e saiu. O garçom, girando lentamente
sobre os calcanhares, observou-o sair. Lançou um olhar para o último ocupante
do bar, piscou e suspirou:
— Aquele moço pensa que conhece todas as respostas. Mas vai acordar
qualquer dia destes, espero. Ele poderia ser um cara legal, se apenas se
descontraísse. Espero que não acorde tarde demais. Olhou para a cara dele? É
como se usasse uma máscara. Aposto que a verdadeira é melhor. Se ao menos a
mostrasse...
CAPÍTULO 37
Frank tomou o desjejum às oito e quinze na sala de jantar de Miss
Woods. Esperava com ansiedade tal refeição, pois por essa hora os menos
importantes haviam terminado e saído e os mais “desejáveis” podiam comer sem
pressa ou saborear uma última xícara de bom café. Mas as manhãs de domingo
eram as melhores de todas.
Era muito agradável a sala de jantar de Miss Woods, com suas velhas
paredes apaineladas, de luxuosa nogueira. Era verdade que pouco sol penetrava
no cômodo, pois as casas de tijolos vermelhos de Linwood Avenue pareciam ter
sido construídas em um estado de espírito sombrio por arquitetos sem inspiração
que temiam o sol. Situava-se em um dos lados da casa, atrás da sala de visita. A
penumbra dava-lhe um ar aristocrático, realçado ainda mais pelas janelas altas e
estreitas, discretamente fechadas por cortinas de renda e guarnições grossas de
brocado de veludo marrom, combinando com o apainelamento de nogueira. O
aparador maciço, com o espelho e as extremidades altas, a imensa mesa redonda,
lustrosa com o vidro grosso e pesado, as velhas cadeiras forradas de couro preto,
a mesa de servir, com espelho no tampo, e os candelabros de prata que haviam
pertencido à mãe de Miss Woods, formavam a mobília que, embora feia e
maciça, era o grande orgulho da dona.
Nas manhãs de inverno formava-se na sala de jantar uma atmosfera
especialmente agradável. Um arranjo de velas elétricas, instaladas com muito
gosto no antigo lustre de gás sobre a mesa, iluminava o damasco branco puro, a
prataria brilhante, a excelente porcelana Haviland de cor creme clara com bordas
de pequeninas rosas e o bule de café. Às vezes, nas manhãs de domingo, Miss
Woods punha uma ou duas toras na lareira de mármore preto na extremidade da
sala. O fogo, combinado com o aroma agradável do café, o cheiro esfumaçado e
quebradiço do bacon frito e o aroma de fazer água na boca dos pãezinhos
quentes, tornavam a sala de jantar o cômodo mais acolhedor e agradável da casa.
Descendo a escada às nove horas daquele domingo de princípios de
março, Frank notou satisfeito que Miss Woods havia acendido a lareira. Ele
sabia que fazia muito frio do lado de fora, provavelmente abaixo de zero, pois as
janelas estavam embaciadas pela geada e fora forçado a soprar forte nelas
durante algum tempo antes que pudesse abrir com um dedo um orifício para
olhar a rua. Pela manhã, os quartos eram bastante frios e agradava ver o fogo e
sentir o cheiro do café, do presunto e dos pães. Os moradores já se encontravam
ali, esperando pelo primeiro prato: ameixas com creme. O ruído do vento,
chocando-se violento contra as janelas, guinchando nas chaminés, havia
acordado todos muito cedo naquela manhã.
Miss Woods, uma mulher pequenina quase tão larga como alta, presidia
à cabeceira da mesa. A vulgaridade da carne, o volume dos seios e ombros, a
grossura dos braços curtos, porém, produziam o efeito muito peculiar de lhe
realçar a aristocracia inata, e não de desmerecê-la. Usava um vestido de seda
preta de viúva, embora nunca houvesse casado, tinha setenta e dois anos, era
antiquada e “orgulhosa disso”, e jamais alguém a via sem um laço de renda
branca no alto do cabelo branco lustroso. As feições pequenas e gordas e os
pequenos olhos cinzentos, afundados em camadas de gordura, deviam ter dado
um aspecto rude à face larga e volumosa, mas outra vez e estranhamente,
emprestavam-lhe apenas um ar de refinamento. Havia um quê de solidez,
majestosa vivacidade, inteligência e bom senso em Miss Woods que lhe dava
quase um porte de rainha. A sua conversa era pura e feita em frases muito bem
construídas, pois era mulher de grande educação. Apreciava uma piada e
adorava sutilezas. Era vaidosa das pequenas mãos brancas, as quais mesmo pela
manhã estavam sempre cobertas de anéis.
Era inexplicável como essas feições minúsculas podiam expressar, com
grande mobilidade, as mudanças, as incursões, as arremetidas e os sumários de
uma mente profundamente viva e inteligente. Miss Woods não nutria ilusões
sobre a excelência da natureza humana. Mas não era cínica. Velha demais para
isso. Tampouco era tolerante e complacente com os demais. Em hipótese alguma
“pensava o melhor das pessoas”. Simplesmente as aceitava com imperturbável
bom humor, um pouco de secura nos comentários particulares e uma indiferença
zombeteira, embora bondosa. Ninguém esperava compreensão de Miss Woods,
pois não era confidente de ninguém. Não que as pessoas a entediassem, pois
interessava-se muito pela vida e era bastante inteligente. Mas desenvolvera uma
filosofia própria, insistia em preservar sua vida privada e discretamente exigia
que os outros fizessem o mesmo. Não queria envolver-se. Para muitos dos
hóspedes, devia ter parecido uma mulher dura e insensível, mesmo egoísta,
devido à sua recusa em ser atraída pelo vórtice dos problemas, mágoas e
angústias dos demais e a exigência de que a vida em sua casa transcorresse numa
atmosfera de amenidade permanente, agradável calma e tranquilidade.
À sua direita — o que era estranho — sentava-se um rapaz
extremamente feio. Miss Woods preferia pessoas atraentes, todavia elas não lhe
despertavam qualquer interesse impróprio. Mas eram agradáveis de ver e ela
gostava de pessoas que não apresentassem um aspecto desagradável ao seu olho
exigente. No entanto, como Miss Woods nunca se explicava, não se queixava,
nem tentava justificar ou racionalizar seus atos, ninguém ousava perguntar por
que Irving Schultz se sentava à sua direita e era contemplado com mais sincera
bondade e interesse do que ela já demonstrara por qualquer outro hóspede.
Chegara ao ponto de fazer para os demais hóspedes um retrato sumário do jovem
antes do primeiro aparecimento dele à mesa e, pela primeira vez,
inexplicavelmente, os moradores ficaram atônitos ao ouvir o mais leve eco de
emoção naquela voz bem-educada.
Irving Schultz era filho de imigrantes alsacianos, segundo informou
Miss Woods. Residira certa vez em Plymouth Avenue, nas proximidades de
Albany Street. Frank conhecia bem o ambiente de onde ele provinha, mas estava
convencido de que o mesmo não acontecia com Miss Woods, e ficava
cinicamente divertido pensando em quais seriam as reações dela se soubesse
(Miss Woods sabia).
A questão da paternidade de Irving era algo ambígua. Ele nunca soube se
o seu pai era Adrian Schultz ou seu tio ostensivo, Rudolph Schultz, irmão de
Adrian. A família, composta do pai, do tio, da alegre esposa e oito filhos, residira
em Plymouth Avenue, numa pequena casa junto à cocheira onde eram guardados
os dois cavalos de tração de Adrian. Isso porque Adrian era cocheiro e
trabalhava a esquisitos intervalos para firmas de transportes locais, enquanto os
cavalos, e não os filhos, engordavam bastante. Mesmo os vizinhos naquele
bairro miserável, nunca muito exigentes no tocante à aparência das casas
avermelhadas ou ao estado dos cômodos internos, achavam os Schultzes
intoleráveis. Haviam passado pelo menos vinte anos desde que as tábuas
externas da casa de Schultz foram pintadas; as telhas do telhado arruinado
encrespavam-se ao sol do verão e encolhiam-se como papelão sob a chuva e a
neve do inverno. Pelo menos um terço das janelas possuía buracos fechados com
chumaços de jornal e velhos trapos. As poucas cortinas, de tão imundas, tão
rasgadas, tão esfiapadas, pouco mais eram do que trapos. A varanda em frente
tinha tantos buracos e era tão inclinada, arranhada, cheia de calombos e ripas
soltas que atravessá-la à noite equivalia a uma grande façanha. Somente Adrian
e Rudolph, nos seus interlúdios de bebedeira, podiam milagrosamente serpentear
em segurança até a porta, que pendia das dobradiças. O terreno, na frente e nos
fundos, estava atravancado de latas de cinzas, caixotes e engradados úmidos,
lixo de todos os tipos possíveis, montes de refugo, pedaços de paus, pedras e
artigos variados, incluindo montes de garrafas vazias de cerveja, que,
aparentemente, constituía o principal refresco dos Schultzes. Uma fedentina
insuportável pairava sobre o terreno e a casa, e os vizinhos faziam questão de
levar a mão ao nariz quando passavam por ali, em especial quando a Sra. Schultz
conseguia descobrir um lugar seguro na varanda e sentava numa cadeira de
balanço quebrada. Quando faziam isso, e quase sempre o faziam, a Sra. Schultz,
com os braços confortavelmente cruzados sobre os seios, inclinava-se para a
frente e emitia um forte e obsceno ruído, esgaravatava o nariz com o polegar em
um gesto imemorial, ou explodia numa forte e alegre gargalhada, precedida de
um sonoro palavrão.
Nenhuma criança da vizinhança brincava com os filhos dos Schultzes,
que andavam invariavelmente imundos e esmolambados, de pés descalços desde
princípios da primavera até fins de outono. Corriam como esquilos pela casa e
pelo terreno, aparecendo às vezes sobre o precário telhado da varanda,
acocorados os mais jovens ali e dando indiferentes aos transeuntes uma vista que
a sociedade bem-educada decretara que não devia ser apresentada ao público. As
crianças diziam nomes feios o dia todo, enfiavam os dedos no nariz ali mesmo
na calçada, jogavam dados na varanda, brigavam, berravam, rugiam e uivavam,
como num asilo, desde o amanhecer até quase meia-noite. Como as janelas
jamais haviam possuído telas, enxames de moscas entravam e saíam à vontade.
A casa não possuía tapetes e por dentro era pelo menos tão horrenda como por
fora. As crianças dormiam por toda a parte, a qualquer hora, como porcos num
chiqueiro. Jamais havia uma “refeição direita”, como dizia Maybelle.
Para tornar ainda mais animadas as coisas, a Sra. Schultz, Adrian e
Rudolph geralmente escolhiam a noite de sábado para uma violenta discussão,
acompanhada de gritos, ameaças, nomes feios e pancadas. Eram claramente
ouvidos os berros de Adrian, acompanhados de ameaça de morte à esposa,
exigindo que ela identificasse quem era o pai de quais filhos. A Sra. Schultz,
uma mulher baixa, robusta, muito morena, uns quarenta anos e bastante
coragem, dizia-lhe para onde ele podia ir, e sem perder tempo. Certa vez, quando
a exigência se tornou insistente demais, alguém a ouviu responder em voz muito
alta: “Como diabo eu posso saber, seu...?”
Irving era o mais velho nessa ambígua família, um ou dois anos mais
velho do que Frank. Como os irmãos, não tinha atração alguma, pois era
excessivamente alto, encurvado, moreno, com o mesmo nariz grande e adunco
da mãe, olhos pretos pequeninos, queixo longo e pontudo e lábios finos. Além
disso, possuía uma gaforinha preta, cacheada, quase negroide na ondulação.
Irving, porém, fora o único membro tranquilo da casa, um garoto silencioso e
fechado, inexplicavelmente brilhante na escola, ao passo que os irmãos e irmãs
mal passavam da classe dos idiotas. Sempre estivera um ou dois anos à frente de
Frank Clair, mas os boatos sobre suas façanhas em Matemática, Inglês e
Gramática espalharam-se para cima e para baixo na escada acadêmica. Passara
pelas mãos de Miss Bendy, que lhe dera todo o entusiástico encorajamento que
lhe fora possível.
Cursava a escola secundária, indiferente às troças dos colegas a respeito
de suas roupas remendadas, mãos sujas, cabelo negroide, enorme nariz e lenços
que eram trapos. Ao contrário de Frank, demonstrara a mais completa
indiferença pelas perseguições de que era vítima. Nunca brigara, nunca dirigira a
palavra aos colegas e sua voz era ouvida apenas quando se levantava para ler a
lição, o que fazia com elegância, equilíbrio e eloquência. Nem mesmo Miss
Bendy jamais desconfiou do que ele pensava.
Conseguira cursar a escola secundária graças ao expediente simples de
trabalhar à noite inteira em uma fábrica de caixas local. Havia-se formado com a
incrível média de cem em todas as matérias e ganhara uma bolsa-de-estudos para
a Universidade de Bison.
Entrementes, chegara ao cargo de contramestre da fábrica. Com a guerra,
haviam subido os salários e Irving continuara no turno de meia-noite até às oito
da manhã. Da fábrica dirigia-se diretamente para a Universidade, chegava a casa
às quatro da tarde, dormia algumas horas, levantava-se, estudava as lições,
comia às pressas em uma das mesas e saía para o trabalho. Por essa altura, Frank
o perdera inteiramente de vista e, como a Sra. Schultz, Adrian e Rudolph haviam
chegado à comparativa tranquilidade de fins da meia-idade, os Schultzes não
constituíam mais o vivo e agradável escândalo que haviam sido em anos mais
jovens. Em 1917, a Sra. Schultz morrera de delirium tremem e a família
desaparecera.
Constituíra um choque para Frank reencontrar Irving na seleta casa de
Miss Woods. Nenhum sinal de reconhecimento, contudo, passou entre eles.
Irving inclinara cortesmente a cabeça, mas continuara a comer, pois haviam sido
apresentados no primeiro desjejum que Frank saboreara na agradável sala de
jantar.
Mais tarde, foi informado de que Irving cursava o terceiro ano da
Universidade de Bison, era funcionário extremamente respeitado na fábrica de
caixas, com um salário de cinquenta dólares semanais, e alugara o quarto mais
barato e menos desejável na parte superior da casa. Irving, disse Miss Woods, ia
ser médico, pesquisador, um “especialista” em doenças mentais.
O favoritismo dela, no entanto, era revelado apenas pelo fato de permitir
que ele se sentasse à sua direita e de lhe endereçar ocasionalmente um olhar
cálido e quase maternal. Nunca lhe fazia a menor pergunta, compreendendo-o e
respeitando-lhe os estranhos silêncios, e ficava contente, se lhe endereçava uma
observação exclusiva, quando ele respondia com uma tranquila inclinação de
cabeça ou um leve sorriso.
Se ela apenas soubesse o que ele realmente era! pensou Frank,
desdenhoso.
Nenhum contato havia entre os dois jovens, salvo as mais curtas
inclinações de cabeça. No fim, Frank ignorou-lhe inteiramente a existência.
Nutria a firme convicção de que, mais cedo ou mais tarde, Irving terminaria,
como os pais, caído na sarjeta. A água nunca sobe acima de sua nascente, como
dizia Francis. Os filhos de ladrões, bêbados e degenerados forçosamente deviam
tornar-se ladrões, bêbados e degenerados, por sua vez. As pretensões de Irving
constituíam a mais grosseira das impudências.
Achava mais agradável contemplar os outros hóspedes.
Havia um seco e pequenino solteirão, o Sr. Roberts, chefe da
contabilidade da Bethlehem Steel e que era considerado muito “próspero”. No
fim dos sessenta, era um cavalheiro tranquilo e cortês, de modos muito
antiquados, muito polido, vagamente cordial e grande leitor de Walter Pater,
Aristóteles, Locke, Berkeley e Hume. Ele e Miss Woods amiúde travavam
animadas e edificantes conversações sobre esses luminares.
Miss Ethelinda Shaw, diretora de uma escola secundária, era uma mulher
de uns quarenta anos, alta, esgalgada e muito elegante, titular de opiniões muito
avançadas e maneiras extremamente dogmáticas. Sufragista, ela e Miss Woods,
surpreendentemente também sufragista, mantinham amizade quase íntima. Miss
Shaw lembrava a Frank uma garça e ele antipatizava profundamente com ela, em
especial quando lhe voltava seus inteligentes e perspicazes olhos de professora.
Era como se ele estivesse matando aula, fosse um desajustado e, embora se
vestisse bem, Miss Shaw fazia-o sentir-se como se usasse ainda as roupas
miseráveis e remendadas da infância. Bastava que Miss Shaw virasse para ele o
vazio brilhante dos seus óculos para que se encolhesse todo. Tinha certeza de
que ela o via por dentro, o que, de fato, acontecia. Mas não sabia que Ethelinda
Shaw tinha pena dele.
A vice-diretora, Miss Ida Stengel, uma mulher pequenina, pálida,
amarelada, informe, de uns quarenta e cinco anos de idade, morava também na
casa de Miss Woods. Na verdade, ela e Miss Shaw dividiam um grande quarto
de casal que ficava atrás do quarto do hóspede principal. Miss Stengel repetia
como um papagaio todas as vigorosas opiniões de Miss Shaw e todos a
consideravam muito tediosa, com aquele sorriso imutável e ansioso e os olhos
fixos na sua superiora. Tentava mesmo copiar as roupas elegantes de Miss Shaw,
mas com resultados desastrosos. E bastava que Miss Shaw dissesse
desdenhosamente: “Ora, Ida!” para que a pequenina e gorda mulher se
encolhesse como um caracol tomando um banho de vinagre.
Havia os Crimmonses, marido e mulher.
Frank podia desprezar Irving, ignorá-lo, esquecer o Sr. Roberts,
considerando-o um velho idiota e pedante, sorrir cativante para a formidável
Miss Shaw e sua companheira e sentir-se canhestro na presença de ambas. Mas
não temia realmente nenhum deles, com exceção do Sr. e Sra. Crimmons. Estava
seguro no que interessava a todos os demais. Mas não se sentia seguro com
respeito a Sra. Amy Crimmons.
Isto porque a Sra. Crimmons era uma das odiadas “entendidas”. Ela
“descobrira” tudo a respeito de Frank Clair.
//
Havia sempre uma, duas ou três pessoas que, aonde quer que ele fosse,
bastavam olhá-lo para “descobri-lo”. Descobri-lo, a despeito da aparência de
normalidade duramente conquistada, da máscara enganadora, mentirosa! Podiam
vê-lo por dentro a despeito da fisionomia cuidadosamente composta que —
quase sempre — expressava o vazio e a falta de emoção que estava em moda, o
nada vago, a cordialidade, a reticência, a brandura, a polidez, o aspecto comum
dos que não sobressaiam, a face informe das multidões que enchiam a terra. Sim,
descobriam-no, aqueles entendidos, de rostos perscrutadores, penetravam-lhe o
disfarce, o estudado fingimento de que era um deles, de que se assemelhava a
eles na fala, no trajo, na tipicalidade. Pareciam saber, quase imediatamente, que
aquilo tudo era apenas disfarce, uma fantasia para que pudesse ser aceito e
admirado por eles em espírito fraternal. E sabiam sempre, de alguma maneira
quase animal e instintiva, que ele os temia e temia tudo o que eram, acreditando,
envergonhado, em que eram superiores a ele e tinham o poder de feri-lo.
Ficavam deliciados quando ele os bajulava, quando procurava apaziguá-
los, quando lhes copiava o sotaque, os maneirismos. Haviam descoberto a
“diferença” visível que havia nele. E sempre o rejeitavam.
Eram tão inteligentes, esses entendidos “normais”. Tão vivos, esses
parasitas da vida, esses insetos satisfeitos no coração da rosa viva, esses liquens
devoradores na folha, esses musgos estranguladores nas árvores. Não eram
inócuos nem bovinos, amigáveis e de boa natureza, como seus irmãos e irmãs
mais estúpidos. Constituíam um perigo potencial para o mundo, pois
pronunciavam todas as palavras da virtude, fariam todos os gestos da retidão,
possuíam as feições gordas e macias dos comodistas e egoístas, entreabriam os
lábios nos pequenos e secos sorrisos dos que odiavam o homem, exibiam as
maneiras bem-educadas dos cruéis, o tato e as frases bem-feitas dos devoradores,
a serenidade dos malignos.
Mesmo quando Frank tentava discutir partidas de basebol ou futebol,
Gloria Swanson, Mary Pickford e Francis X. Bushman do cinema, ou manifestar
a opinião convencional sobre o Presidente Wilson, os entendidos ouviam-no com
perversa e semi-sorridente atenção e trocavam olhares entre si. Sabiam que ele
mentia, que dissentia e que suas observações, embora vazadas no linguajar
estéril e destituído de adjetivos das coisas familiares e aceitas, constituíam uma
linguagem falsa, através da qual tentava aproximar-se deles e apaziguá-los.
Quando sentia vergonha da conversação — uma vergonha depuradora, higiênica
— pensava que aquilo era meramente ódio de si mesmo, que não conseguira
alcançá-los e aplacá-los.
Jamais soube por que Miss Woods o observava com curiosa severidade
quando ele conversava com o Sr. e a Sra. Crimmons ou por que lhe respondia
com tanta secura quando se voltava para ela. Achou que isso acontecia porque
Miss Woods o descobrira também. Mas por que se voltava ela para Irving
Schultz, que nunca tentava apaziguar, ser aceito ou conversar da maneira
comum, e lhe sorria com tanta ternura e como se sentisse um alívio?
Frank descobrira que esses entendidos eram, com maior frequência, mais
mulheres do que homens. Quase sempre, mulheres de baixa extração e educação,
nascidas na classe média inferior. Como quer que fosse, homens de melhor
classe amiúde casavam com essas vulgaridades bem lavadas, perfumadas com
talco e elegantemente vestidas, criaturas que sentiam profunda ternura por si
mesmas.
Essas harpias apresentavam mesmo traços em comum, ou, pelo menos,
expressões faciais idênticas. Havia frescor em suas peles, brilho em seus cabelos
e queixos de criança. A maioria tinha rostos redondos, agradáveis e levemente
empoados, pequenas bocas contraídas bocas de grandes devoradoras de comida.
Geralmente possuíam pequenos e gordos narizes arrebitados, olhos pequeninos
sem nada de especial, brilhando astutos por trás de óculos sem aros, tipo pince-
nez. As roupas eram deselegantes, embora de excelente qualidade, gostavam de
rendas abundantes sobre os seios chatos, embora às vezes fingissem severidade
no vestir. Tinham covinhas nas mãos, dedos pequenos de unhas afiadas, muito
limpas e rosadas à custa de vigorosas esfregadelas. Eram enfatuadas, cheias de
si, comiam com elegância, vorazmente e com grande delicadeza.
Para Frank, representavam o primeiro passo social para fora do poço
onde viviam os paupérrimos, os ignorantes, os desprezíveis, os sem-remédio, os
estúpidos, com suas mãos sujas de operários.
Eram seus superiores e deles queria aceitação. Assim, procurava agradar
a Sra. Bennett Crimmons e o marido e rezava para tornar-se íntimo deles.
O Sr. Bennett Crimmons era um quase próspero fornecedor de material
de escritório a lojas retalhistas. Uma vez que a querida Amy não gostava de
hotéis e conhecera a velha Miss Woods quando residira antes em Bison,
geralmente se hospedavam ali durante os dois ou três meses do ano em que
permaneciam na cidade. Eram os únicos hóspedes que faziam as três refeições
com a idosa solteirona. Aparentemente, ela os aceitava sem reservas mentais.
Ocupavam o grande quarto da frente, muito bem mobiliado. Desde que a Sra.
Crimmons sempre trazia consigo algumas peças de bom bric-a-brac, algumas
gordas almofadas exageradamente bordadas e umas poucas fotografias das duas
feias filhas e dos netos, estes com fisionomia tão sem expressão como as mães,
para não mencionar uma caixa japonesa pintada onde guardava um suprimento
sempre renovado de bombons ou pequenos bolos, o quarto se tornava
literalmente deles durante a estada. A Sra. Crimmons dominava o baixo e gordo
marido, um homenzinho que possuía uma fímbria de cabelos louros, óculos
semelhantes aos da esposa, características físicas quase idênticas e o mesmo ar
de banhos frequentes, talco e atenção apaixonada às roupas e à comida.
Chamava-a de “Mãe”. Ela retribuía, chamando-o de “Pai”.
Mas havia algo no Sr. Crimmons, embora tênue e vago, que o colocava à
parte do monstro acolchoado que era a sua correta e meticulosa esposa.
Considerava Frank como um rapaz bem vestido e tranquilo, com uma face
atraente e boas mãos, bem-falante e educado. Mas era um homem muito
estúpido e não compreendia logo que Frank usava uma máscara e era
absolutamente intolerável e suspeito.
Frank não mais entrava numa sala com o olhar penetrante e interessado
da infância, pois, embora não soubesse, perdera a capacidade de maravilhar-se e
o forte interesse pelas coisas que outrora tornara o mundo interessante e mágico.
Perdera tudo isso e conservara apenas a repugnância instintiva. Assim, ao
penetrar na sala de jantar nessa enfarruscada manhã de domingo, sorriu
hesitante, polidamente, e não olhou de frente para pessoa alguma. Mas não
perdera de todo a aguda sensibilidade da percepção e os olhares que foram
endereçados pareceram arranhar alguma crua superfície no seu espírito. Sem
parecer, viu o sorriso leve e vago do Sr. Roberts, para quem todas as pessoas
eram apenas sombras indistintas, o fulgor professoral dos óculos de Miss Shaw,
o humilde olhar vazio de Miss Stengel, a cabeça curvada e confusa de Irving
Schultz, a fria e viva inclinação de cabeça de Miss Woods e o sorriso afável do
Sr. Crimmons. Notou o elegante penteado e a majestosa inclinação de cabeça da
Sra. Crimmons e o polido erguer dos cantos de sua gorda boca. Notou-a com
mais agudeza do que a qualquer outra pessoa na sala. Sentou-se à esquerda dela
com um leve e embaraçado movimento.
— Dia horrível, não? — perguntou com o velho e conhecido aperto na
garganta. Concordância geral. A Sra. Crimmons dissecando elegante e
sadicamente as ameixas, nada disse. Pelo canto do olho, Frank viu com que cruel
prazer (como se as ameixas pudessem sentir) ela cortava delicadamente as duras
entranhas da fruta e as empurrava para o lado. No momento em que ela pôs a
escura e mole carne da fruta na boca, ele sentiu um momentâneo enjoo e nojo.
Mais do que ouvindo-o, sentiu o baixo estalo dos lábios, o grande prazer do
paladar. Olhou para as ameixas no seu próprio prato e ficou repugnado. Mas
comeu-as com todo o cuidado. Chegava-lhe às narinas o aroma do talco da Sra.
Crimmons e da pele perfumada com sabonete Cashmere Bouquet. Algo se agitou
nele, o que não conseguiu reconhecer: um honesto ódio. Pensou que era
ressentimento porque a Sra. Crimmons o ignorava, com ares superiores, como
era seu costume, exceto quando ele se dirigia diretamente a ela.
O Sr. Roberts estivera discutindo tranquilamente com Miss Woods sobre
Darwin e Huxley. Alegava, em voz suave, que a defesa de Darwin feita por
Huxley fora irônica e satírica, e não realmente sincera. Miss Woods estivera
defendendo Huxley dessa covarde calúnia. Conversavam como se esses
eminentes eruditos e cavalheiros estivessem ainda vivos, como se o antigo
debate fosse ainda matéria corrente nos jornais do mundo.
Frank escutou, enquanto esperava o cereal. Somente pouco antes o Sr.
Mason, seu professor de Inglês, o apresentara a Darwin e a Huxley, e era com
um frescor de descoberta que ouvira a amigável discussão que se travava
exclusivamente entre Miss Woods e o Sr. Roberts. No momento em que Miss
Woods se interrompeu para servir-se de café ele disse:
— Acho que a senhora tem razão, Miss Woods. Huxley foi sincero na
sua defesa de Darwin. Nunca ouvi dizer que ele fosse sarcástico. —
Interrompeu-se. Miss Woods endereçou-lhe um sorriso, como se aprovasse não
tanto as palavras, mas alguma outra coisa nele. — Os cientistas — acrescentou
Frank — são geralmente indivíduos destituídos de humor ou mesmo de espírito
de sátira. Defendem ou atacam sem a menor leveza.
— Isso mesmo — concordou Miss Woods, passando-lhe a xícara com
um curioso brilho nos olhos, como se houvesse vislumbrado nele algo novo.
Frank, muito satisfeito com a delicadeza, recebeu o café com certa emoção. Não
notou que Irving Schultz erguera a cabeça sonhadora e fitava-o com atenção.
A Sra. Crimmons riu com elegante divertimento. Miss Woods dirigiu-lhe
um olhar interrogativo.
— Oh, por favor, desculpe-me, Pollie — disse a Sra. Crimmons com um
malicioso sentido na voz afetada. — Não estou rindo de você, realmente. Mas
isso parece tão... tão...
— Irrelevante — sugeriu Miss Woods, que era muito sutil, e nesse
momento assumiu uma expressão vazia.
A Sra. Crimmons sorriu de modo aristocrático.
— Sim, ir... relevante — concordou, sem compreender em absoluto a
palavra. — Quero dizer, não parece parte do que hoje está acontecendo no
mundo.
O rosto magro de Frank começou a enrubescer. Mas ficou deliciado com
a má pronúncia da palavra, tomada de empréstimo, que saíra desajeitada dos
lábios refinados da Sra. Crimmons. Parvenu! Mas, imediatamente, sufocou o
epíteto e ficou furioso consigo mesmo. Voltou-se atencioso e com maior
deferência para a Sra. Crimmons.
— Acho que a senhora, de certa maneira, tem razão, Sra. Crimmons —
disse. — Não é pertinente ao mundo moderno. Tudo isso está morto e acabado.
A Sra. Crimmons sorriu baixinho, sem olhá-lo, numa espécie de maldosa
satisfação com a capitulação dele, outro pequeno triunfo. Miss Woods, porém,
com uma leve severidade na voz, replicou:
— Coisa alguma deixa de ter pertinência ou relevância. O passado, o
futuro e o presente são partes inextricáveis de um todo vivo.
A Sra. Crimmons não entendeu patavina de tudo isso, mas era
suficientemente inteligente para compreender que a repreensão não fora dirigida
a ela, mas àquele horrível jovem, o pretensioso Frank Clair. Por que, não sabia.
Pensou apenas que a querida Pollie estava pondo aquela criatura no seu lugar,
como ele merecia, o que lhe deu ainda mais motivo para se sentir satisfeita
consigo mesma.
— Para ser franca — disse Miss Shaw em sua voz seca e direta —, não
estou mais interessada em Darwin ou Huxley. O que quero saber, sem
sentimentalismo ou qualquer outra coisa, é quando as mulheres poderão votar.
Nunca anteriormente, na história do mundo, foi tão necessário que as mulheres
obtivessem seus direitos políticos. Os homens têm feito muita confusão do
mundo! Guerras religiosas, internacionais, internas. Massacres. Anarquia
política. Governos nefandos, chicana, traição, cincadas. Vejam só nossa atitude
política em relação à Rússia.
Olharam todos para ela polidamente, confusos. Era evidente que nem
mesmo Miss Woods acompanhara o rumo da tirada e, quanto ao Sr. Roberts, este
se retirara tranquilamente para a contemplação de Darwin e Huxley como se
fossem mais compreensíveis e muito mais dignos de atenção de uma mente
erudita.
Miss Shaw lançou um vivo e desafiador olhar em volta da mesa. Miss
Stengel murmurou:
— Vejam só nossa atitude política em relação à Rússia.
Miss Shaw lançou-lhe um olhar irritado.
— Não banque o papagaio, Ida — disse. — Use sua própria cabeça. Aí é
que está o problema com as mulheres. Deixam que outros pensem por elas. —
Lançou um desafio às pessoas sentadas em volta da mesa: — Alguém tem
alguma sugestão? Não há ninguém interessado nas imensas possibilidades da
participação das mulheres no cenário mundial? Não há aqui imaginação
suficiente para compreender a importância da emancipação das mulheres...
— Exuberante — comentou Miss Woods, que não pôde resistir a uma
piada, a despeito de suas convicções particulares.
A Sra. Crimmons soltou uma risadinha. Miss Shaw enrubesceu e os
óculos em seu nariz de garça quase explodiram.
— Sinto muito, Ethelinda — disse Miss Woods. — Bem, concordo com
você, até certo ponto. As mulheres devem votar, se não por outro motivo, porque
são seres humanos. Mas duvido muito de que a “participação das mulheres no
cenário mundial” resulte em um mundo novo, rejuvenescido, ou mesmo muito
mais virtuoso. As mulheres, como os homens, têm ainda a mesma natureza
humana que nosso pastor chama de Pecado Original. Quando as mulheres
votarem, teremos ampliado apenas as fileiras de democratas ou republicanos. A
contagem dos votos será, por isso mesmo, muito mais complicada e trabalhosa.
Contudo, quero que as mulheres votem, e lutarei por esse direito. É o princípio
por trás da coisa. Eu mesma sou uma mulher madura, acho que tão inteligente
como a maioria dos homens e tenho ideias próprias. Não me agrada ser posta na
mesma classe das crianças, dos criminosos e dos idiotas.
Miss Shaw, com uma contida, mas apaixonada veemência, bateu com
um punho na mesa, sacudindo os talheres próximos.
— Oh, Pollie! .Que atitude míope! Será que você acredita em que os
homens estejam tão interessados nos assuntos mundiais como as mulheres? Os
homens gostam de guerra, acredite. Gostam de assassinatos e de rapina. Isso está
na própria natureza deles. Mas as mulheres sentem interesse pelo mundo: os
filhos, o lar, a vida pacífica. Odeiam a guerra e o homicídio. Instintivamente
odeiam o crime, a sujeira, a política sórdida...
Miss Woods sacudiu a grande e branca cabeça e sorriu cinicamente.
— Minha querida — disse —, a maioria das mulheres pode odiar a
guerra. Admito isso. Mas são tão suscetíveis à propaganda como os homens e
em certo sentido mais, pois são mais emotivas do que ponderadas e, embora eu
odeie confessar isso, odeiam com mais crueldade. Quando ao ódio das mulheres
pelo crime e pela sujeira... — Mais uma vez sacudiu divertida a cabeça. — Meu
pai costumava dizer que para cada mulher decaída há um homem decaído. A
menos que a história minta, numerosas mulheres superaram os homens no crime
e na perversidade. A virtude não é propriedade exclusiva das mulheres. Conheci
muitos homens virtuosos, cuja honestidade não podia ser posta em dúvida. E
confesso que conheci muito mais homens virtuosos do que mulheres virtuosas.
— Oh, Pollie! Como é que você pode dizer uma coisa dessas!
O sorriso de Miss Woods tornou-se grave.
— É a verdade, Ethelinda. Conheci homens maus, mas só uns poucos
perversos. E o mais extraordinário é que a maioria das mulheres perversas que
conheci eram castas virgens ou matronas. Mas, talvez, quando falamos de
“perversidade”, não nos estejamos referindo à mesma coisa. Há perversidade da
alma, que é muito pior do que a perversidade do corpo e essa perversidade nas
mulheres excede de muito a de seus irmãos.
Miss Shaw, uma alma valente, mas inocente, ponderou confusa essas
palavras. Mas não fora ainda derrotada. Seus óculos faiscaram vivamente. Miss
Woods observou-a com uma leve sugestão de pena. Inclinou-se sobre Irving
Schultz para dar uma palmadinha na mão de Miss Shaw.
— Não dê importância a isso, querida. Nós concordamos sobre os
pontos essenciais, não?
Erguendo corajosa a face de garça, Ethelinda Shaw respondeu:
— Às vezes, você fala de maneira incompreensível, Pollie. Às vezes,
não entendo realmente o que você quer dizer.
— Ótimo — retrucou Miss Woods. — Conserve seu belo e ingênuo
coração, Ethelinda. Isso é muito animador em um mundo malvado. — Voltou-se
para a Sra. Crimmons: — Mais café, querida?
— Não, muito obrigada — respondeu brejeira a Sra. Crimmons,
lançando um olhar para a segunda xícara de Frank. — Como você sabe, tenho
muito cuidado com a saúde. É uma posse inapreciável.
Miss Woods sorriu.
— Excelente. É preciso cuidar da saúde quando envelhecemos, não? Nós
não temos mais a capacidade de recuperação da juventude.
A Sra. Crimmons fitou-a vivamente e seu rosto liso e gordo enrubesceu.
A expressão de Miss Woods continuava cordialmente vazia. Nada vendo de
hostil naquela velha face, grande e vazia, a Sra. Crimmons lançou um olhar de
esguelha, malicioso e cheio de ressentimento, para Frank. Ele sentiu o toque
venenoso dos olhos dela e ficou infeliz. Apaziguadoramente, disse:
— Sei que não deveria tomar mais de uma xícara. Mas o café está tão
bom.
A face de Miss Woods mudou de expressão e ela disse friamente:
— Naturalmente que deve tomar mais de uma xícara, se quiser. Para que
é que serve mesmo a mocidade?
Frank ficou confuso como sempre fazia quando Miss Woods lhe falava
naquele tom e lhe dirigia um olhar tão desdenhoso. De que modo a ofendera?
Não conseguira nem mesmo amansar a harpia, a Sra. Crimmons.
Diminuiu ainda mais a pálida luz da manhã, do lado de fora das janelas.
Nesse momento a tempestade, que havia diminuído durante um breve espaço de
tempo, atacou a casa com o rugido rouco de um trovão. Todos os olhos se
voltaram inquietos para as janelas, cujas cortinas e sanefas se mexeram. Era
impossível ver o que ocorria do outro lado das vidraças embaciadas,
transformadas em uma parede de trêmula brancura. A velha casa gemeu, as
lâmpadas elétricas bruxulearam e, vindo de alguma parte, penetrando mesmo na
quente e confortável sala, entrou um hálito congelante.
— Uma terrível nevasca — comentou o Sr. Roberts, saindo de sua
contemplação. — Um metro e vinte de neve em menos de vinte e quatro horas e,
ao que parece, ainda há mais por vir.
Uma empregada entrou com uma travessa de bacon frito, estalando,
cheiroso. Todos se serviram. O café preto, quente, escorreu para as xícaras como
se todos os presentes, homens e mulheres, quisessem provar que ainda eram
“jovens”. Miss Woods sorriu e serviu-se de uma terceira xícara.
A Sra. Crimmons anunciou que recebera naquela manhã uma carta
registrada da filha. Disse em voz afetada:
— A querida Sally simplesmente suplica que eu volte por alguns dias
para casa. Naturalmente, ela e o marido, o querido Billie, estão cuidando da
nossa linda casinha enquanto estamos viajando, tomando conta dos
encanamentos, vigiando a fornalha, tudo. Mas as minhas queridas filhas sentem
tanta falta de mim e do Sr. Crimmons! São casadas e têm filhos, mas não podem
passar sem a mamãe e o papai. O pequeno Billie, filho de Sally, teve bronquite.
Que garotinho inteligente! Não está ainda na escola, mas já sabe ler e escrever
como se tivesse dez anos. É espantoso. Não é espantoso, papai? — indagou ao
marido, que não participara de nenhuma das conversações à mesa. Desde que
estivera preocupado apenas com a comida, com exclusão de tudo mais, o Sr.
Crimmons sobressaltou-se, lançou um olhar para a esposa, a qual lhe endereçou
um seco olhar azul, e balbuciou:
— Hum? Sim, sim, naturalmente. Você tem toda a razão, querida.
A Sra. Crimmons aceitou o quarto pãozinho quente e, macambúzia,
cobriu-o de manteiga. O gordo lábio superior de Miss Woods ergueu-se quase
imperceptivelmente. Com grande sorte, o Sr. Crimmons referiu-se
pertinentemente ao assunto:
— Quer voltar para passar alguns dias em casa, mamãe?
Ela sorriu com profunda ternura, aplacada.
— Eu realmente não sei, querido. Com essa nevasca e tudo mais. Você
sabe como são os trens. Às vezes, penso que é melhor que as crianças resolvam
tudo sozinhas. Elas são tão dependentes. Os próprios maridos são muito
dependentes dos conselhos do Sr. Crimmons — informou orgulhosa ao resto da
mesa. — Vocês não acreditariam. O papai precisa resolver isto, resolver aquilo.
Precisa escolher um novo carro... Eles sempre compram um carro novo cada três
anos. Os rapazes estão indo muito bem. Billie está trabalhando em publicidade e
Mark em comércio atacadista com armazéns. São rapazes tão finos, tão bem-
sucedidos! Mas o papai precisa resolver tudo por eles. E as meninas insistem em
que eu escolha cada peça de mobília, embora elas tenham um gosto maravilhoso.
Quando Sally quis mandar forrar o sofá... pagou quatrocentos dólares por ele,
aquela menina gastadora!... eu fiz finca-pé e disse: “Ouça, querida, esse linho
simplesmente não combina com suas cortinas!” E não houve mais discussão
alguma a respeito. Ela simplesmente concordou, como sempre faz, desde quando
ainda usava trancas e blusa de marinheiro na escola.
Frank era o único a escutar, pois os demais rostos haviam-se tornado
polidamente vazios. Teve uma visão de três confortáveis lares de classe média,
com canários nas janelas entre cortinas brancas pregueadas, carros nas garagens
localizadas em quintais bem cuidados, grandes e ensolarados quartos mobiliados
com uma sóbria elegância, cozinhas equipadas com enormes geladeiras cheias
de frangos e presuntos, gramados verdes lustrosos no verão, janelas polidas
protegidas por toldos e o calor silvando nos aquecedores a vapor durante o
inverno. Viu paz, segurança e contentamento, a sólida e agradável segurança de
classe média, vidas sérias. Viu felizes e cordiais contatos entre as três
confortáveis casas e ouviu o riso de crianças bem alimentadas. E era isso
exatamente o que a Sra. Crimmons queria transmitir à plateia. Detroit ficava
muito longe. Não era possível que alguém à mesa fosse tão longe para investigar
e descobrir que Sally, Susan e os respectivos maridos e filhos moravam em dois
apartamentos de cinco cômodos em uma rua muito suburbana; que as somas de
dinheiro referidas com tanta indiferença pela Sra. Crimmons eram mentiras; que
Billie e Mark eram, respectivamente, escriturário numa agência de publicidade e
encarregado de expedição num armazém de secos e molhados e que os próprios
Crimmons moravam perto das filhas em uma pequena casa retirada, um pouco
mais desejável do que a minúscula casa de Albany Street, e não tão limpa.
Naquela manhã ela continuou a mostrar-se, a sorrir, a exultar, a
entreabrir os lábios com terno humor enquanto contava a saga da família. Frank
escutava ávido, tomado de respeito. A Sra. Crimmons sentiu isso e desprezou-o
ainda mais. Sua cabeça ergueu-se ainda mais das profundidades dos cálidos e
gordos seios. Foi nessa ocasião que ela captou o brilho dos profundos e escuros
olhos de Irving Schultz, fitando-a por trás de seus grossos óculos. E o que viu,
gelou-a e enfureceu-a.
Raramente Irving olhava de modo tão direto para uma pessoa e menos
ainda com uma concentração tão intensa. Com os olhos, ele dizia à Sra.
Crimmons: “A senhora é uma velha e gorda mentirosa. Nem mesmo é uma
mentirosa que desperte pena, pois é uma mulher maldosa e tola, sem a menor
sombra de caridade. É uma fazedora de pose, vulgar, barata e pretensiosa.”
Era estranho que ela ficasse tão impressionada e enfurecida com o olhar
de Irving. Sempre o ignorara. Ele nunca fingira ser o que não era e não se
envergonhava do que fora. Para a Sra. Crimmons esse rapaz nada era,
absolutamente, e com frequência se perguntara por que Miss Woods permitira
que um jovem tão insignificante, tão feio e apagado sequer entrasse em sua casa.
Podia desprezar Frank, pois, sem margem de erro, identificara um fingido como
ela, mas, pelo menos, lhe falava algumas vezes.
Tremeu, realmente. Sentiu-se chocada até o fundo do gordo e
impermeável coração. Inesperadamente, ergueu a voz com dura secura, como se
desferisse um golpe para abater aqueles firmes olhos escuros:
— Papai, eu acho que talvez vá passar alguns dias em casa, em nossa
querida casinha! E com as crianças. Contei-lhe que Sally escreveu dizendo que a
Sra. Gregory St. John-Simmons vai dar uma festa maravilhosa para alguns
amigos escolhidos e que insistiu em que todos nós fôssemos? — Soltou uma
risadinha, embora uma veia pulsasse forte no pescoço grosso. Explicou
condescendente aos demais: — Tenho certeza de que vocês todos já ouviram
falar na Sra. Gregory St. John-Simmons. Aparentada com o pessoal Cadillac.
Têm uma casa maravilhosa no subúrbio. Soberba. E tão fechada! Marion é
grande amiga de Sally desde que eram crianças e coisa alguma fica completa a
menos que Sally compareça a todas as festas que ela dá.
Nesse momento, Irving sorriu estranhamente, de leve. Voltou ao
presunto.
Dotado de aguda capacidade de percepção, notou Frank que a Sra.
Crimmons estava zangada. Viu a vibração na manga de seda marrom do vestido
e o tremor da pequena mão gorda, de unhas afiadas. Sentiu, de alguma maneira
estranha, que a hostilidade dela se dirigia contra Irving. Um rápido olhar
confirmou-lhe as suspeitas, pois ela fitava duramente, através do pince-nez, a
desarrumada gaforinha negroide do rapaz. Naturalmente, uma mulher como a
Sra. Crimmons se ressentiria da presença de um indivíduo como Irving Schultz.
Era de se esperar.
Olhou para Irving e detestou-o. Não sabia o que em si mesmo despertava
esse ódio. Sabia apenas que algo ardia nesse momento nele, forte e vivo. Pela
primeira vez em meses, dirigiu-se ao jovem com um sorriso:
— Como é que vão indo seus estudos, Irving?
Com grande lentidão, Irving ergueu a cabeça e olhou para Frank. Miss
Woods pôs o garfo de lado. Não se moveu. Escutou apenas.
Irving sorriu, um sorriso estranho, irônico, quase triste.
— Muito bem, obrigado, Frank — respondeu pensativo.
Frank lançou um olhar protetor e divertido à Sra. Crimmons. Disse:
— Doenças mentais. Pelo amor de Deus, por que doenças mentais? Por
que não outra coisa? Algo tangível.
— Não há coisa mais tangível do que a mente — respondeu baixinho
Irving. — É a única coisa real, tangível... Frank. Meu professor disse ontem que
o mundo externo é apenas a projeção da mente do homem. Talvez ele estivesse
sendo metafísico, ou qualquer outra coisa. Não sei. Lembra-se daquela velha
pergunta na escola: se uma árvore caísse na floresta e não houvesse um único
ouvido por ali, haveria algum som?
Frank fez um esforço para falar. Algo, porém, prendeu-o numa espécie
de encantamento, como se ouvisse uma maravilhosa voz esquecida, uma amada,
encantadora e nobre voz, chamando-o do outro lado de um vasto deserto de
cinzas. Algo lhe produziu uma autêntica paralisia de mágoa desesperada, uma
profunda sensação de imensa perda, ao ouvir aquela voz. Não conseguiu emitir o
menor som. Os demais olharam surpresos para Irving. Não se recordavam de tê-
lo ouvido falar tanto. A voz lhes pareceu também estranha: uma voz áspera, mas
ainda assim suave; rouca, mas também macia e irresistível.
Irving, tendo falado, olhou para Frank e esperou. Ele sabia.
Por trás dos óculos, brilhavam-lhe os olhos. Venha para fora! Venha para
fora! exclamavam eles para Frank. Venha para a luz, que é o seu lugar. Você
viveu, certa vez. Venha para fora.
A Sra. Crimmons soltou uma risadinha e ergueu a cabeça.
— Bem, frequentei apenas uma das melhores escolas de preparatórios,
naturalmente, mas não compreendo o que o senhor está dizendo, Sr. Schultz.
Talvez eu não seja tão inteligente e, quem sabe, talvez o senhor possa explicar
suas palavras. — Tentou captar o olhar de Miss Woods para uma divertida e
maliciosa troca. Miss Woods, porém, com os olhos postos na prata redonda e
brilhante do bule de café, parecia estranhamente mergulhada em contemplação.
— Talvez eu não tenha estudado, afinal de contas, na escola apropriada, Sr.
Schultz — continuou a Sra. Crimmons em uma voz onde transpareceria um
zombeteiro ódio —, embora meu querido papai houvesse pago quase dois mil
dólares anuais por minha educação. Talvez eu devesse ter estudado nas escolas
em que o senhor estudou, Sr. Schultz, e ter recebido a sua formação.
Irving, porém, aparentemente não a ouvia. Venha para fora, venha para
fora! imploravam seus olhos. Venha para fora, Frank, comigo.
Em voz hesitante, alta, lenta e forte, ele disse:
— Existiria algum som se não houvesse um ouvido e uma mente por trás
do ouvido, para ouvir o som da árvore que caía... Frank? E se continuamos com
o mesmo exemplo, existiria qualquer mundo de som ou de visão se não houvesse
um... ouvido e um olho compreensivos para captá-los? Foi isso o que meu
professor teve em mente quando disse que a única coisa real e tangível era a
mente humana e que somente quando ela se projeta é que o mundo ganha
realidade.
A Sra. Crimmons soltou nova risadinha. Mas ninguém lhe prestou
atenção. Surgiu uma expressão de animação, de interesse, na velha e descorada
face do Sr. Roberts. Miss Shaw e Miss Stengel ouviam, com os lábios
entreabertos. O Sr. Crimmons voltara à comida. Miss Woods alisou a prata
quente do bule com um meditativo dedo indicador. Frank continuou imóvel em
seu encantamento, na dor profunda.
Irving continuou mansamente:
— É por isso que estou estudando doenças mentais. Se a mente do
homem é tortuosa e ele não vê clara e retamente, o mundo que ela projeta é
deformado, um pesadelo, de ângulos... errados ... e de ilusões. Um pesadelo. O
que é agora. Simplesmente um pesadelo. Vem-se tornando assim há muito
tempo. — Interrompeu-se por um momento. — Olhamos através de um pedaço
de vidro deformado e o mundo parece fora de perspectiva. Todos nós olhamos
através de vidros deformados. O que vemos é a projeção de nossa mente doente.
Lembra-se de como aquele velho filósofo alemão classificou o homem? “O
animal doente”.
“O animal doente! Sim, sim, era verdade! Algo se movia, se mexia
violentamente em Frank. Um mundo doente à espera do curador, não do curador
do corpo deformado, mas da mente que produzia a deformação. Um mundo à
espera do curador, do médico da alma, do grande escritor, do grande artista, do
grande profeta, que removeria o vidro deformador do olho doente e permitiria
que ele contemplasse um mundo de beleza e compaixão, de alegria e glória, de
amor, paz e Deus!
Certa vez, ele, Frank Clair, soubera disso, soubera disso com intensa
piedade, amor e uma clara e doce angústia. Viu-se na velha Igreja da Natividade
com a vela entre os dedos, olhando-os. Pareceram brilhar naquela ocasião como
se algum óleo sagrado houvesse sido vertido sobre eles em um gesto de
consagração. Mentalmente, sentiu o antigo bater do coração exultante, humilde,
apavorado, mas, ainda assim, alegre.
A recordação daquele coração em disparada transformou-se em um
tamborilar surdo em sua mente, uma sublevação, um movimento tumultuoso.
Algo se agitou nele, uma dor gigantesca, uma mágoa, uma penetrante doçura.
Ouviu um som áspero e agudo e sobressaltou-se. A Sra. Crimmons
havia-se atirado com gorda cautela contra as costas da cadeira e ria cruelmente.
— Oh, meu Deus, oh, meu Deus! — exclamou ela. — Que conversa
intelectual! Nunca ouvi nada parecido numa manhã de domingo, pouco antes da
hora da igreja! E também de sua parte, Sr. Schultz! Talvez seja a sua mente que
está doente, meu querido rapaz. Eu, com frequência, pensei que sim.
Simplesmente uma espécie de... de... É isso que ensinam agora aos rapazes na
escola? Que todo mundo está doente, este mundo belo e encantador, onde nos
sentimos todos tão felizes, agora que a guerra acabou?
Frank escutou-a. Escutou-lhe o surdo e estúpido ódio, rouco e venenoso.
Escutou o som de autocontentamento e notou-lhe a trêmula gordura. Notou a
crueldade e a mediocridade e compreendeu o que ela era, e sua grei. O Inimigo.
Tantos, os Inimigos, os mentirosos e os posudos, os sádicos e os mesquinhos —
um mundo inteiro, mau, fervilhante, bichado, como uma feia e estrebuchante
colina tapando a estrada brilhante! Cerrou os punhos. Virou-se para ela
abruptamente e seus olhos brilharam, azuis de fúria e nojo.
— Cale a boca, sua tola! — exclamou. — Sua tola bamboleante! Sua
idiota, mentirosa, néscia!
Ergueu-se com tanta subtaneidade e veemência que a cadeira tombou
para trás com um alto som. Miss Stengel soltou um grito agudo. Ninguém mais
se moveu ou pronunciou palavra. A Sra. Crimmons, porém, boquiaberta, olhava-
o incrédula. Frank notou isso e ficou exultante. Sentiu-se como se houvesse
passado por um batismo purificador. Teve vontade de esbofetear aquela face
trêmula e bem alimentada, aquela feia personificação de todas as imensas
mediocridades do mundo.
— Sua velha estúpida! — exclamou. — E isso vale para todos os outros
iguais a você! Vocês... vocês, seus imundos assassinos!
Saiu às cegas da sala, subiu impetuoso as escadas e bateu a porta do
quarto. Ouviu a própria respiração, difícil e arquejante, como se houvesse
corrido. O quarto oscilou à sua frente em um escuro nevoeiro. Sentou-se
abruptamente na dama e, sem querer, agarrou os joelhos com as mãos, no velho
gesto de Francis quando sentia uma emoção incontrolável.
CAPÍTULO 38
Miss Woods, ofegante, subiu as escalas até o terceiro andar. Suas velhas
e gordas coxas doíam com o esforço e as grandes bochechas logo se cobriram de
suor. Sentia a enorme massa de carne tentando irromper pela cinta que usava e as
batidas fortes do coração. Nada disso lhe causou a menor apreensão. Sabia que
era velha e não desejava a juventude. Houvera tanto de insuportavelmente feio e
revoltante na sua infância e mocidade! E conhecera a felicidade apenas na
velhice. Considerava a mocidade o mais terrível dos períodos da vida: não
emocionante, não divertida, exceto para adultos obtusos e sentimentais; não
alegre e descuidada, como acreditavam os romancistas; e certamente não
cravejada de estrelas e torres faiscantes de mármore e de luz em mares
prateados.
“Nuvens viajantes de glória, viemos... de junto de Deus, onde fica o
nosso lar.” Miss Woods parou no segundo patamar para enxugar o rosto, arrumar
um cacho do cabelo branco e puxar para baixo o espartilho. A velha casa, sitiada
pela tempestade, rangia e estalava no fim da tarde escura daquele domingo.
Ouviu o silvo da neve contra as janelas espectrais, o ataque do vento contra as
paredes. Não havia outro som. Os moradores dormiam ou liam. Vira luz amarela
sob as frestas de portas.
Distraída, pensou: março é sempre o pior mês do ano neste clima. Abriu
a grande e gorda boca para acalmar o coração. Não suportava a dor, em si
mesma ou nos demais. Era uma humilhação, um lembrete de que, por mais alto
que se alçasse, filosofasse, meditasse ou se demorasse a mente na possibilidade
da existência de Deus, o corpo podia sempre trazê-la de volta como um falcão
preso a um fio, para pousar no monte de esterco que era a carne. Era uma
indignidade que a mente excelsa, concentrada no sol, tivesse que ser puxada de
sua ascensão por uma urticária, uma pedra na bexiga, um ouvido pruriginoso ou,
como sua geração delicadamente dizia, “uma necessidade fisiológica”. Se havia
uma alma e ela sobrevivia ao apodrecimento da carne mortal, como devia sentir-
se feliz quando, libertada, podia fugir não somente das tristes misérias do
mundo, mas da ignomínia secreta do corpo. O mundo era errado para a
humanidade porque a humanidade podia pensar. O mundo estava errado para os
jovens porque eles podiam lembrar-se de uma época anterior à penetração da
alma na carne.
Ouvindo ruídos dentro de si mesma, Miss Woods deu uma palmadinha
na barriga protuberante.
— Eu me livro de você logo — informou-a com satisfação. — Não sei se
saberei alguma coisa a seu respeito, mas, pelo menos, não tomarei mais
conhecimento de sua presença, sua gorda humilhação.
Nas tardes de domingo, embora ninguém na casa soubesse, era seu
costume subir a escada e fazer uma visita a Irving Schultz. Sentavam-se ali no
pequeno quarto sob o telhado, onde, no inverno, via-se apenas neve e, no verão,
o cocuruto das árvores.
Galgou o último lance de degraus e bateu à porta. Abriu-a e entrou
resfolegando no pequeno quarto.
O calor da fornalha não chegava até esse tugúrio, mas havia um
substituto adequado, um aquecedor a gás que queimava vermelho e forte em um
recanto na parede de tijolos. Brilhava e tremeluzia alegre no quarto cinza-escuro,
sob o teto inclinado. A escuridão era combatida ainda por um grande abajur
colocado em uma larga mesa de cerejeira que servia de escrivaninha. Poucas
semanas depois da chegada de Irving, Miss Woods colocara um de seus
melhores tapetes persas no chão polido, pendurara ricas cortinas amarelas e
verdes de linho nas quatro minúsculas janelas e acrescentara uma velha e
confortável cadeira de balanço ao mobiliário, que consistia numa estreita cama,
uma pequena mesa de cabeceira redonda, um bom abajur e uma velha cadeira
trabalhada, com assento de crina. O próprio Irving fabricara uma grande estante
na parede em frente à cama e habilmente a pintara da cor de mogno e a lustrara
com cera. Em consequência, o quarto nessa bravia tarde de março tinha um ar
aconchegante e uma dignidade que o tornavam mais atraente do que qualquer
outro na casa.
Os livros de estudo de Irving estavam empilhados em uma das
extremidades da mesa. Com os cadernos à frente, trabalhava ativamente,
tomando notas. Ergueu os olhos quando viu Miss Woods. Levantou-se com lenta
e desajeitada cortesia. Em silêncio, sorrindo apenas, puxou a cadeira de balanço
para mais perto do aquecedor e colocou sua cadeira em frente.
— Espero que não o esteja perturbando, Irving — disse Miss Woods.
Isso era sempre a etiqueta da esperada visita.
Ele respondeu, usando também uma fórmula:
— Naturalmente que não. Eu a esperava, Miss Woods.
Ela sentou-se, gemendo baixinho. Esfregou os joelhos. A sede preta
chiou sob as mãos cobertas de anéis. Sorriu alegre para o jovem. Lançou um
olhar para as pequenas janelas e notou os véus alucinantes de neve que se
despencavam do lado de fora.
— O dia hoje está pavoroso, não? — observou. — Moro há setenta e
dois anos em Bison e nunca me acostumei aos invernos.
Irving olhou para a neve.
— Eu gosto — disse, com simplicidade. — Ela... como que me isola.
Sinto-me seguro e feliz numa tempestade.
Falou com tímida tranquilidade, pois ele e Miss Woods eram amigos
sinceros, embora secretos. Olhou-a com afeição e ela retribuiu o olhar.
— Irving, você se parece cada vez mais com Abe Lincoln a cada dia que
passa — disse. — Bem, como é que vão indo seus estudos?
O rosto moreno e feio do rapaz iluminou-se nesse instante, quase com
paixão.
— Não consigo estudar tudo o que queria. Odeio dormir porque tenho
que deixar de lado os livros. Isso parece por acaso pedantismo? — perguntou, o
rosto encovado enrubescendo um pouco.
— Bobagem — respondeu ela, com sinceridade. — Se a pessoa não
sente paixão por uma coisa, é melhor abandoná-la. Quanto a mim, sempre tive
paixão pela vida. É por isso que espero chegar aos cem — continuou com uma
pequena risada. — Meu pai dizia que, se um homem não tem paixões, está meio
morto e que um vício, se seguido com bastante coragem e alegre ardor, é mais
desejável do que aguadas virtudes. Ele era um grande bebedor, mas não um
bêbado, e nunca houve homem mais sadio ou mais encantador. Você devia ter
visto a adega desta casa enquanto ele viveu! Possuía a melhor coleção de
conhaque de todo o mundo, acho. Isso me lembra de uma coisa: como vamos de
conhaque? Não recordo se nós o bebemos todo no último domingo.
Irving dirigiu-se à cômoda, uma autêntica peça de museu que a bisavó
de Miss Woods trouxera da Inglaterra cem anos antes e que fora um presente de
sua própria avó. Abriu a gaveta mais baixa e tirou uma garrafa de Napoleon e
dois cálices de cristal, embrulhados com todo o cuidado em papel de seda.
Serviu um pouco do líquido dourado enquanto Miss Woods o observava com
toda a atenção. Ergueram os cálices em um silencioso e cordial brinde, aspiraram
o aroma do líquido e beberam.
— Hummm! — exclamou Miss Woods, olhando com carinho para o
cálice. — Isso é um néctar. É o elixir divino do sangue. Uma espécie de
transfusão vinda do céu. Omar Khayyam não disse alguma coisa sobre perdoar a
Deus porque ele criara o álcool para ajudar o homem a suportar as agruras que
inventara para ele? Sim, foi alguma coisa nesse sentido. E temos agora essa
multidão de mulheres azedas e bastardas tentando infligir-nos a Lei Seca! Sabe,
Irving, acho que elas vão vencer. Os loucos encontram na América um lugar
maravilhoso para suas atividades. Acontece isso porque quase todos os
americanos são, infelizmente, filhos e netos de camponeses supersticiosos e não
têm inteligência alguma. É uma grande pena. Devíamos ter Leis de Imigração
que permitissem a entrada apenas de gente da classe média, da classe superior.
Temos um número excessivo de indivíduos subumanos e isso se aplica até
mesmo aos nossos chamados “velhos” americanos.
Irving sorriu de leve, mas nada disse.
Miss Woods apertou os olhos, observando-o astutamente.
— Bem, não estou tentando ofendê-lo, Irving, Deus sabe. Você é
simplesmente a encantadora exceção à regra. Mas veja só o que vimos
recebendo nos últimos setenta anos, mais ou menos! Camponeses deformados
das zonas esfomeadas da Europa! Analfabetos mentais. Agora andam falando
em quotas. O governo quer limitar a quantidade de imigrantes, o que em parte é
bom, mas os nossos legisladores idiotas coisa alguma pensam na questão da
qualidade. Um trabalhador braçal terá a mesma possibilidade de vir para cá e
reproduzir-se que um profissional liberal. Acho que devemos elevar a qualidade.
Nada de quotas aplicáveis a professores, profissionais liberais, artistas,
pensadores, escritores e bons homens de negócios. Que venham, em grandes
quantidades. Mas devemos fechar a porta aos camponeses, aos sujos
cavoucadores da terra. Não importa de que país venham os melhores. Que
venham, em enxames, sejam eles alemães, italianos, suecos, judeus, poloneses
ou turcos. De modo que possamos obter o melhor e excluir os camponeses.
Como se peneirássemos a nata da Europa, deixando o rebotalho. Mas isso é uma
coisa além da compreensão dos nossos legisladores, que não passam, eles
mesmos, de camponeses e bois de cabeça dura.
Saboreou um gole do conhaque e continuou:
— Ethelinda Shaw é proibicionista. Louca furiosa a esse respeito. Isso
acontece porque sua alma secou e ela odeia todo mundo a despeito de sua paixão
pelas sufragistas e pela defesa do que chama de “a gente comum”. Você notou
por acaso, Irving, que os defensores do “homem comum” geralmente odeiam
todo mundo? Gente lúgubre. Perigosa, também. Quanto a mim, adoro algumas
pessoas e não dou a mínima bola para o resto, mas não as odeio. De qualquer
maneira, o ódio é prejudicial à digestão.
Deixou que Irving lhe servisse mais um pouco de conhaque e sorriu
terna para ele.
— Acho que você não odeia ninguém, não é? — perguntou.
Uma expressão de divertimento passou rápida pelo rosto de Irving.
— Eu tenho boa digestão — respondeu.
— Humm. Bem, então. É realmente muito esquisito. Notei esse tipo de
pessoas também na igreja... pessoas como Ethelinda. Têm todos os tipos de faces
e naturezas, mas uma estranha coisa em comum: odeiam as pessoas. Eu gostaria
de saber por quê.
Lançando um olhar aos livros, Irving respondeu:
— Temos uma nova palavra para isso, uma palavra inventada por um
grande médico alemão, Freud. Ele chama a isso de “compensação”. Essas
pessoas sentem-se culpadas. Sabem no que pensam realmente e o que são.
Sabem, consciente ou inconscientemente, que são... más. Não querem que o
mundo saiba, às vezes nem mesmo elas reconhecem. Em vista disso,
intrometem-se em todas as atividades humanas. — Levantou-se, acendeu um
velho cachimbo e tirou pensativas baforadas. — Desconfia-se agora de que os
reformadores são perversos, essas pessoas que querem promulgar leis proibindo
isto ou aquilo, “defender” os trabalhadores, derrubar o governo no poder, mudar
a face das coisas, aprovar o que chamam de “boas” leis.
Sorveram o conhaque em cordial silêncio e escutaram os gemidos e as
pancadas da tempestade nas janelas. O abajur e o aquecedor tornaram-se mais
brilhantes à medida que o quarto escurecia. Era uma caverna sob os beirais;
dedos rosados moviam-se sobre o teto inclinado, com seu desenho de
ramalhetes. Miss Woods retomou a palavra, embora algo inquieta e obscura:
— Não gosto do jeito do mundo nos dias que correm. Há alguma coisa
errada, realmente errada, Irving. As calamidades prognosticadas quando
entramos na guerra, o fim do capitalismo e da liberdade individual, a fome e a
ruína gerais, não se materializaram. Graças a Deus por isso. Possuímos ainda um
sadio capitalismo, continuamos ainda livres e conseguimos ajudar o resto do
mundo a viver. A Europa se reconstruirá com nossa ajuda. Assim, as
calamidades não ocorreram, afinal de contas. Mas há alguma coisa mais em
andamento, muito pior. Não sei o que é. Alguma coisa furtiva, alguma coisa que
poderá arruinar-nos, receio. O que é, Irving?
Falou como se falasse com um igual, essa mulher de setenta e dois anos,
com um jovem de vinte e dois, e falou com veemência.
Ele respondeu, sério:
— Acho que estamos doentes. Naturalmente, não sei como era o mundo
quando a senhora era jovem...
— Bem, eu sei, meu querido. Era um mundo duro, mas viril. Ninguém
esperava comer se não trabalhasse. E parece-me que todos trabalhavam na
América, até mesmo os muito ricos. Não lembro bem pelo que trabalhavam, mas
eram entusiastas, e não lúgubres como agora. Acho que julgavam ter de trabalhar
por alguma coisa, ricos e pobres. Não fazem mais isso. Há agora uma espécie de
ateísmo.,. — Pôs o cálice de lado e enxugou os lábios. — Não acreditei, como
todos, em que uma nobre era se seguiria à guerra, em que todo mundo amaria o
vizinho e haveria uma nova revelação espiritual. Mas pensei que aprenderíamos
nossa lição e que, se havia apenas um Deus, havia um único mundo humano. O
pobre Sr. Wilson sabe disso. Mas está destinado a fracassar e isso é o que é tão
terrível! Talvez eu esteja ficando velha, mas acho que, se não aprendermos isso
agora e fizermos alguma coisa com base nesse conhecimento, vamos acabar
presenciando coisas pavorosas dentro de dez, vinte ou trinta anos... Ateísmo, é
isso. Um mundo doente.
— Exato — concordou Irving Schultz. Olhou para Miss Woods e mesmo
na escuridão do quarto ela viu que a face dele se tornara veemente, viva
apaixonada. — Foi isso mesmo o que o Dr. Pembroke nos disse quando nos
falou logo depois do fim da guerra. Disse que procuramos descobrir uma solução
para os nossos problemas como um caracol que quer encontrar um mundo dentro
de sua estreita casca e que apenas termina mergulhando ainda mais dentro dela.
Disse que havia algo mais fora da casca e que devíamos descobri-lo. Precisamos
de uma concepção mais ampla de nós mesmos do que o mero animalismo e o
materialismo, a crença de que há algo significativo na humanidade, embora,
naturalmente, isso possa parecer ridículo e metafísico para os que se consideram
sofisticados.
— Ou para aqueles que acham agradável ou lucrativo lançar um homem
contra o outro — acrescentou sombria Miss Woods.
Mais uma vez, caiu o silêncio entre eles. Irving pareceu inquieto e
desajeitado, mergulhado em pensamentos. Em voz hesitante, disse:
— Sinto muito a respeito do desjejum de hoje, Miss Woods. Acho que
provoquei aquilo, de certa maneira. Sabe — disse, e sua voz alteou-se um pouco
—, não quero que pense mal de Frank Clair pela maneira como ele saltou sobre a
garganta da Sra. Crimmons. — Olhou implorante para Miss Woods, lembrando-
se da maneira sumária como ela expulsava os que perturbavam a placidez de sua
casa. — Conheço Frank há alguns anos. Um pouco, mas o suficiente. Ele... ele
era infeliz. Eu costumava observá-lo, embora raramente trocássemos uma
palavra. Acho que ele não tem muito autocontrole.
Silenciosa, Miss Woods fitou-o com olhos inescrutáveis.
Ele continuou a suplicar, fechando fortemente as mãos de proeminentes
nós.
— Sei como a senhora gosta de que as coisas aqui sejam agradáveis e
impessoais. Não sei como dizer isto, Miss Woods, mas fiquei satisfeito quando
ele falou daquela maneira com aquela mulher. Tive esperança de que ele dissesse
ou fizesse alguma coisa. Acho que a senhora não pode compreender isso. Mas, a
senhora vê, conheço Frank Clair. Sim, fiquei muito satisfeito.
Miss Woods respondeu tranquilamente:
— Eu sabia que você o conhecia. Ele me disse quando veio morar aqui.
Irving espigou-se vivamente na cadeira:
— Disse? Bem, fico também satisfeito com isso. — Observou a grande
face branca à luz do abajur e, em seguida, suspirou: — Compreendo — disse
triste. Mas acrescentou em seguida: — Todavia continuo satisfeito. É difícil
dizer isso em palavras. Mas Francis escrevia poesias e contos na escola. Minha
velha professora, Miss Bendy, mostrava-os a mim, algumas vezes. Depois, ele
deixou a escola para trabalhar. Não que os pais dele fossem tão pobres assim...
como os meus. Mas foi mandado trabalhar, perdi-o de vista e somente o vi
quando ele veio morar aqui. Percebi imediatamente que ele havia mudado. Foi...
foi algo terrível para mim, Miss Woods. Ele é mais moço do que eu, mas agora
parece velho, doente e cansado. Alguma coisa deve ter-lhe acontecido. Não pude
perguntar, naturalmente, porque nunca fomos mais do que meros conhecidos. —
A face de Irving enrubesceu dolorosamente. — Sei que não me estou fazendo
claro. É uma coisa que não consigo dizer em palavras. Assim, a senhora não
pode compreender por que fiquei satisfeito quando ele explodiu daquela
maneira, tão selvagem...
— Sim — disse Miss Woods —, acho que compreendo. — Interrompeu-
se por um momento. — É por isso que vou ter que dar amanhã um aviso prévio
aos Crimmons. Nunca suportei aquela mulher, mas tenho pena do marido. Ele é
um tolo.
Irving fitou-a, incrédulo, alegre.
— A senhora quer dizer que, depois de tudo, vai deixar que Frank fique
e mandará aqueles dois embora?
— Naturalmente — respondeu com vivacidade Miss Woods.
— Afinal de contas, seria embaraçoso para Frank se eles ficassem, não?
— Sorriu para Irving com profundo divertimento e ternura.
— Eu estava ficando um pouco cansada de Frank nos últimos tempos.
Acho que, se ele não houvesse falado com aquela franqueza, eu o teria mandado
embora. E como você diz, meu querido, isso é uma coisa que não sei como dizer
em palavras.
Ergueu-se, no que foi acompanhada por ele. Alisou sem acanhamento a
seda preta sobre os grandes seios e a barriga.
— Espero que, depois disso — continuou —, vocês dois fiquem amigos.
Será bom para ambos, especialmente para Frank. Ele precisa de você, Irving.
Precisa, realmente. Ele não tem um único amigo no mundo. Ele não é como
você. Você tem algo mais importante do que amigos. Mas ele não tem coisa
alguma, a pobre criança.
CAPÍTULO 39
Frank mergulhou na tempestade, pois o quarto se tornara intolerável na
sua pequenez silenciosa. Pensara em estudar naquela tarde, em trabalhar,
escrever a “composição” que o Sr. Mason lhe pedira. Pela manhã, pensara com
prazer naquela tarde.
Mas, sentado na cama, agitado, com o coração batendo de excitação e
raiva, compreendeu que lhe seria impossível controlar-se e dedicar-se a um
trabalho produtivo. Melhor sair. Talvez, um pouco mais tarde, pudesse ir visitar a
mãe e a avó e tomar “chá” com elas.
Ocorreu-lhe com insuportável amargura que teria de ir à pensão de
Porter Avenue se quisesse alguma espécie de contato humano. Olhou em volta
do quarto e, pela primeira vez, compreendeu a sua solidão, o completo
isolamento, a falta de contato com outras pessoas. Haviam passado anos desde
que sentira igual solidão e, estranhamente, conquanto experimentasse naquela
época uma espécie de sufocante desolação, era também estimulado por ela.
Desde a partida de Paul Hodge vivera em um estreito mundo privado, onde seu
próprio hálito e o som de seu coração lhe haviam bastado. Mas algo explodira na
pequena concha daquele mundo, lançando fragmentos por todos os lados,
deixando-o exposto. Não tinha certeza se esse desnudamento era agradável ou
não. Sabia apenas que estava estranhamente excitado, inquieto, e que não podia
continuar no quarto. Além disso, tinha ainda receio de pensar. Tinha receio de
pensar nas consequências de sua inexplicável explosão da manhã e não queria,
nesse instante, examinar-lhe as razões. Tomou cuidado para que ninguém o
ouvisse sair furtivamente da casa, pois temia um encontro com Miss Woods, que
aliás, já descia naquele momento para lhe falar.
A neve e o vento que se despencavam do céu avermelhado envolveram-
no por todos os lados. Linwood Avenue estava inteiramente deserta. Um
tranquilo rio de brancura estendia-se de um meio-fio ao outro; os postes de luz
coroavam-se de branco e os frios montes de gelo ao longo das calçadas haviam-
se transformado em miniaturas alvas de montanhas. Um frio de zero açoitou-lhe
as bochechas, o nariz, o pescoço. Levantou a gola e aconchegou-se no fraco
calor do casaco. Baixou o chapéu, que logo depois foi cingido por uma coroa
branca. Continuou a arrastar-se, satisfeito por ter trazido as luvas “árticas”, bem
abotoadas nas mãos. A neve chegava-lhe até os joelhos; logo depois começou a
arquejar. Mas, a despeito da luta contra o vento e a nevasca, não conseguiu
aquecer-se. Muito ao contrário, o frio começou a penetrar pela lã, atacando-lhe
os joelhos, insinuando-se por cada abertura da roupa.
Era cedo demais para o chá na casa da avó e não jantara ainda. Andaria
um pouco e iria depois a West Utica Street fazer uma boa refeição no Louis. Era
um prazer que sempre se concedia nos domingos. Mas também era cedo demais.
Continuou a descer Linwood Avenue, lutando com a tempestade. As casas
pareciam rebocadas com placas de neve, que se empilhava também nas janelas.
Às vezes, nem mesmo conseguia ver as casas e como que caminhava por um
ermo sob uma bravia tempestade e uma nevasca branca que lhe mordia as
carnes. Caminhou durante quinze minutos sem encontrar pessoa alguma nem
mesmo um veículo, embora ocasionalmente ouvisse bondes em Main Street,
gemendo em uma surda luta enquanto procuravam abrir caminho pelos trilhos
encobertos. Ocasionalmente, vislumbrava um retângulo amarelo no rodopiante
preto e branco da tempestade e reconhecia uma janela iluminada. Os grandes
olmos em cima lançavam avalanches de neve sobre e em volta dele e estalavam
de frio. Os seus troncos estavam igualmente enfaixados em dura brancura.
Não havia outro som senão o selvagem uivo que, rugindo, descia do céu.
Frank continuou a andar, respirando ainda com maior dificuldade, com a aba da
gola puxada sobre os lábios.
Inesperadamente, sentiu uma súbita excitação no coração, uma imensa
alegria. Parou de chofre para senti-la, para não perder coisa alguma desse fluxo
intenso que lhe percorria o corpo. Sentiu imenso júbilo, exaltação. Não se sentira
assim desde os quinze anos, quando o mundo girara em sonhos coloridos. Nesse
momento, a solidão e a ansiedade deixaram-no e foi aquecido por um
indescritível fogo de exultação, expectativa, uma veemente libertação.
O que o libertara tão inesperadamente do triste sofrimento e solidão?
Que dedo rompera o anel de ferro fechado em volta de seu coração? Parou,
pensou e não viu nem sentiu mais a tempestade. O que trouxera de novo o velho
e acalentador fluxo, emergindo da escuridão dos últimos quatro anos? Aquele
velho e doce fluxo de vibrante promessa e expectativa, de força, poder, ternura!
Que velho e misterioso senso de comunicação com imensas realidades externas!
Cambaleando um pouco sob a força do vento, aproximou-se do tronco de um
grande olmo, encostou-se e fechou os olhos.
Lembrou-se de que sentira pela primeira vez o movimento do fluxo,
próximo, quando ouvira a voz de Irving Schultz. No momento em que se erguera
e gritara com a Sra. Crimmons o fluxo aumentara em força e movimento.
Lambera-lhe os pés e lhe provocara inquietação e desejo de fugir do quarto.
Sabia naquele instante. Com o conhecimento, aumentou a sensação de coragem,
fé, antiga alegria. Sentia-se ainda imensamente confuso e a cabeça lhe doía. Não
podia compreender. Mas, inesperadamente, percebeu que um profundo conflito
se estivera travando no seu íntimo durante todos esses anos. Se esperasse apenas
mais alguns minutos, saberia qual era o conflito e dele se libertaria.
O rugido do vento transformou-se em seus ouvidos no trovejar de uma
imensa harpa a ressoar com música primeva. A música desapareceu, retirou-se,
voltou e envolveu-o. A nevasca diminuiu de intensidade; naquele momento,
conseguiu distinguir a silhueta das casas. Inesperadamente, não eram mais casas,
mas emoções projetadas que lhe chegavam por sobre os montes brancos de neve.
Possuíam existências separadas, personalidade distintas. Fitou-as, batendo as
pálpebras para afugentar a neve. Ora, sentira a mesma coisa em criança e
esquecera!
Uma ardente e forte exultação apertou-lhe a garganta e o coração bateu
célere. Lembrava-se, reexperimentava. Olhou para as casas, para as árvores
amortalhadas de branco, e sentiu-lhes a existência, individual e separada do seu
próprio corpo, não mais consciente do frio.
Houvera época, lembrou-se, em que todas as coisas, uma xícara de chá,
uma cadeira, um garfo, uma mesa, uma cortina, uma cama, uma árvore, uma
nuvem, uma lâmina de grama, uma escada — todas as coisas, de fato, em que
seus olhos pousavam, mesmo momentaneamente — possuíam emoção para ele,
a personalidade real de um ser. Não fora tanto a textura, a aparência, a realidade
no tempo ou lugar, a cor ou falta de cor dessas coisas que lhe invadiam de tal
modo a consciência. Fora, sim, a projeção delas em sua própria consciência, uma
projeção individual, penetrante e senciente, pessoal e intensa, que sempre o
fascinara. E esquecera essa alegria, essa gloriosa participação em toda a matéria
visível, a instintiva e infantil certeza de que todos os objetos, ao se
transformarem em forma, se haviam transformado em vida!
Lembrou-se de que, certa vez, uma colher ou um copo de água não
haviam sido, como para as demais pessoas, meramente objetos insensíveis.
Talvez, na infância (acreditava nesse momento) houvesse inconscientemente
dotado as coisas com a intensidade mágica de sua imaginação, infantil e
fundamental, exatamente como os povos primitivos haviam dotado árvores,
pedras, águas, com espíritos pessoais, bons ou malignos, estúpidos ou ardentes.
(Mas, novamente, talvez o olho e o coração da infância fossem mais agudos,
mais perspicazes do que a visão coberta por uma catarata ou a sensitividade
embotada da virilidade.)
Como quer que fosse, a beleza ou fealdade do objeto, a sua maciez ou
aspereza, haviam-lhe inspirado amor ou ódio, como uma personalidade em si,
sem referência àquilo que realmente eram. Foram para ele indivíduos,
possuidores de uma consciência distinta, ainda que vaga. Quando um objeto se
quebrava na mão descuidada, fosse uma lâmpada ou um copo, um prato ou uma
travessa, sentia perda, dor física. Algo que existira havia morrido, fora destruído.
Certa vez Maybelle quebrara acidentalmente uma xícara de chá.
Misteriosamente, a xícara fora amiga dele, uma criatura alegre, larga e redonda,
com uma engraçada asa curva. Não se distinguia de nenhuma maneira: na
verdade, Maybelle a comprara numa loja barata e possuía xícaras melhores, que
trouxera da Inglaterra. Mas, ela fora amiga de Frank desde o momento em que
ele a vira, e amara-a pelo seu ser individual, pela emoção que lhe transmitia.
Lembrou-se de que sempre odiara em especial um par de cortinas na
casa da mãe. Eram de algodão vermelho. O vermelho sempre fora sua cor
favorita e, assim, não era a tonalidade que o repelia. Mas julgara as cortinas
arrogantes, de temperamento violento e elas, com grande perspicácia, não
haviam simpatizado com ele. Sentira a antipatia delas da mesma maneira que
sentira a antipatia de certas portas. O descanso para os pés do pai tampouco
gostara dele, ao passo que um dos cachimbos o apreciara, a seu seco jeito. Certa
casa em Normal Avenue odiava-o, embora não fosse diferente das outras. Frank
acreditara literalmente em que, quando ele descia a rua, a casa cerrava as janelas
da água-furtada como se fossem punhos e ameaçava-o de cima do telhado mal-
encarado da varanda. Os degraus zombavam dele abertamente.
As trepadeiras no terraço da casa da avó lhe haviam demonstrado
amizade e inclinado suas cabeças purpúreas para ele, em cumprimento. A
calçada em frente da casa, porém, era uma inimiga. Não tanto porque as
rachaduras e depressões formassem uma face rosnante, mas porque a própria
superfície, encalombada, acinzentada e levemente inclinada, parecia projetar
contra ele uma maligna emoção própria, ao passo que sua irmã e as secções
contíguas, quase idênticas, somente o fitavam com uma expressão vazia.
Lembrou-se, apertando o casaco para defender-se do vento, embora mais
fraco, de que certa cerca de taliscas parecia contente consigo mesma, entendida,
e que ria para ele de maneira astuciosa. Um pequeno abeto que crescia num
gramado empoeirado o fitara desejoso e ele nunca passava por ali sem lhe tocar
o tronco com uma terna mão. Quando se afastava, sabia que a árvore ficava a
observá-lo, como um pequeno cão abandonado, sem cuidados e sem lar. A
aparência e a tristeza da árvore magoavam-no.
A mãe possuíra uma terrina de vidro barato, multicolorido, que comprara
por vinte e cinco centavos. A cor principal era uma espécie de marrom gelado,
pontilhado de amarelo, vermelho ferrugem e âmbar desmaiado. Ficava na mesa
da cozinha, feia, mas satisfeita consigo mesma, como se fosse uma terrina de
grande preço! Frank a detestara. Quando estava sozinho, curvava-se e
murmurava entre dentes: “Você é simplesmente uma terrina velha e barata,
metida a sebo!”. A terrina, porém, brilhava complacentemente e ignorava-o, ou
talvez faiscasse um pouco à luz do sol como se encolhesse cruelmente os ombros
e lhe julgasse a opinião sem importância demais para merecer atenção.
Absorvido nas recordações, absorto na renovada presciência e
consciência, Frank permaneceu ali, com as costas contra a árvore. Pensou: Estou
vivo! Estou realmente vivo! Não sabia que estive morto durante todos estes
anos.
Sentiu a enorme solidão e ela foi para ele como uma bênção. Sentiu a
solidão, e sua unicidade com tudo o que havia dentro e em volta de si mesmo
transformou-se em participação. Notou, então, que a tempestade cessara
bruscamente. O céu conservava uma cor cinza avermelhada, mas, nesse
momento, caíam apenas alguns flocos isolados. O gemido das árvores se
transformara em um murmúrio inquieto.
Olhou para o oeste, como olhara em criança, e sentiu uma súbita e forte
emoção. As nuvens esgarçadas deixavam o céu do oeste e corriam
impulsionadas por algum vento forte e oculto. O céu adquiriu nesse momento
uma pálida cor azul, fria, sem limites. Frank teve a atenção despertada por uma
curiosa formação de nuvens, como nunca vira antes. Um grande pilar de nuvens,
aparentemente subindo de uma pesada base na terra, erguia-se como uma coluna
de pedra branca no céu azul, liso, imenso, afilando-se um verdadeiro monumento
coroado de ouro. Não pôde acreditar em que aquilo fosse real, modelado pelas
mãos gigantescas do vento, uma “agulha de Cleópatra” de vapor, possuindo a
característica e a forma do mármore.
Viu-a e experimentou novamente, depois de tantos anos, aquela
expectativa doce e mística, caindo como súbita e viva luz sobre o espírito, aquele
momento de glória em que o coração espera, reza, insiste em que algo seja
revelado, desça, se expanda, suba do invisível para o visível e, com certeza, se
erga, salte, em uma realidade bela que a tudo abarca e a tudo explica, que se
transforme em júbilo puro e extático, numa revelação, conhecida pela alma,
idosa de muitos milhares de anos e exigida pelo corpo que ainda não sabe. Que
tranquila e fascinante expectativa! Esse conhecimento, imaginado, previamente
conhecido, semiesquecido, tornando-se dia a dia menos lembrado, subitamente
prestes a ser, completo, visto, fulgurante como fora outrora recordado!
Observou e esperou sozinho no deserto gelado de Linwood Avenue. A
torre de brancura coroada de ouro permaneceu ali, um monumento majestoso a
algo que ele instintivamente sabia que existia. Em seguida, aos poucos,
dissolveu-se, deslizou, expandiu-se e transformou-se em nevoeiro, tornou-se um
monte de nada e começou a afastar-se.
Experimentou um doentio desapontamento espiritual nessa ocasião,
como experimentara mil vezes antes, a mágoa, a perda, a desolação universal, a
escuridão da mente, pois passara o que fora quase revelado e, no fim, se ocultara
mais uma vez.
Mas não ficou vazio. A exultação continuava presente, mais calma
naquele instante, mas, ainda assim, esplendorosa, luminosa, como se, embora a
glória houvesse passado, a sua recordação permanecesse como um doce consolo
e solene promessa.
Continuou a descer a rua. Olhou para o relógio do pai, que não vendera,
afinal de contas. Três horas. Jantaria no Louis’ e, em seguida, iria visitar a mãe e
a avó. Inesperadamente, sentiu vontade de ver o Sr. Farley e conversar com ele.
CAPÍTULO 40
O Louis’ estava quase deserto, com a neve empilhada quase até a altura
das largas vitrinas. O interior, embora quente, devido ao estado do tempo
lembrava um ambiente de fronteira. Frank bateu os pés e sentiu o calor subir
pelos membros entorpecidos. Sorriu para o mâitre, que correu apressado ao seu
encontro. O homem tomou-lhe o casaco, sacudiu-o da neve e pendurou-o. Fez
uma observação sobre o fim da tempestade e deu a Frank sua mesa favorita, em
um dos lados da sala.
Frank olhou em volta, ainda agitado. Nesse momento, as paredes do
restaurante não eram mais apenas paredes, mas personalidades amigas,
satisfeitas em vê-lo. Achou alegres e plácidas as mesas redondas e brancas e as
cadeiras, com seus forros de chintz, pareceram-lhe pequenas e robustas pessoas à
espera de amigos. Os pães na mesa exibiram-lhes cascas amigáveis e os talheres
lhe piscaram de modo alegre. Até o cardápio mostrou-se íntimo e ele sentiu com
prazer a sua textura nas mãos.
Observou os poucos frequentadores, as lâmpadas encobertas no teto, o
vazio cinzento das janelas e sentiu o tapete sob os pés, o cardápio nas mãos, o
ajustamento do colarinho e da gravata. Todas as coisas possuíam profundidade,
três dimensões, pátina, cor. Na semana anterior, ali se sentara como se fosse
parte de uma fotografia sem relevo, sem profundidade, sem significado. Naquele
momento, tudo possuía significação, um padrão, projetava sua personalidade,
absorvendo em troca a personalidade dele, fundindo-se com ela para lhe dar esse
senso de participação e alegre realidade.
A excitação, enquanto ele comia, aumentou em vez de diminuir. A sua
mente fervilhava. Uma dúzia de enredos de romances esfuziou pela sua
imaginação. Coisa alguma era destituída de valor, insignificante demais, pequena
demais, que não exigisse projeção através da palavra escrita. Aquele velho
garçom, por exemplo. A história da vida dele podia ser imensa. Aquele idoso
casal, modestamente bem vestido, jantando ali, trocando sorrisos, tinha
dignidade e uma história da vida deles teria drama e profunda significação. A
jovem caixa, com seus cachos e ondas de cabelo vermelho e uma cascata de
babados nos punhos e garganta poderia, com toda probabilidade, fornecer-lhe
material para uma dúzia de contos. Todos os seres humanos, os que passavam
pelas vitrinas, o cozinheiro e seus ajudantes, eram almas humanas trágicas, com
objetivos, importância. Em todos eles agitava-se uma finalidade intensa, suas
vidas eram partes de um grande todo, místico e completo.
A percepção tornou-se uma emoção quase insuportável. Notou que não
sentia mais medo, não estava mais ansioso, tenso. Pensou por um curto momento
na débâcle daquela manhã e sorriu levemente. Se Miss Woods lhe pedisse que
deixasse a casa, ficaria triste, naturalmente, mas o assunto não teria importância.
Havia uma dezena de outras pensões. A dela não era a única. Além disso, havia
repelido aquela velha bruxa e isso constituía motivo de imensa satisfação.
Perguntou-se por que algum dia se preocupara com ela, tentara agradá-la.
Enrubesceu de vergonha, e isso, curiosamente, apenas o excitou ainda mais.
Quanto ao seu emprego, se o perdesse dentro de uma ou duas semanas,
como provavelmente aconteceria, haveria outros. Nem mesmo os empregos
importavam. Recuperara algo de valor inapreciável: a capacidade de pensar e
sentir. Inesperadamente, sentiu impaciência e desejo de voltar ao quarto e
recomeçar a escrever. Achou naquele instante que escrever seria um prazer.
Palavras, frases, sentenças, cheias de cor e vitalidade, desfilaram céleres na sua
imaginação em uma tumultuosa corrente.
Pensou em Irving Schultz e disse a si mesmo: Vou conversar com Irving.
Como é que não percebi antes que ele é grande, heroico? Talvez se torne meu
amigo. Posso conversar com ele! Ele me compreenderá.
Sou livre, pensou, e o próprio som das palavras na mente fizeram-no
ficar tenso e mudo, como se houvesse presenciado um milagre.
Escreverei a Paul. Escreverei de tal maneira que ele não poderá deixar
de compreender. Talvez eu consiga um emprego perto dele e poderemos estar
juntos novamente. Sim, sim, tudo é possível agora!
O rio dourado dos pensamentos transformou-se em uma irresistível
inundação, transbordando das frias margens em correntes exuberantes e rios que
engrossavam. Viu-os tornando-se mais brilhantes sob um céu dourado, até que
terra e céu estenderam-se à sua frente, fluindo juntos em uma glória
indescritível. Ouviu vozes sob a luz, cantando, chamando, e todas tinham uma
história a contar. O garçom trouxe-lhe a sobremesa favorita — pudim de pão
com calda grossa — mas Frank conservou a colher suspensa no ar enquanto
olhava fascinado para a frente com os olhos absortos. Viu degraus de mármore
se erguerem rapidamente do rio dourado da imaginação e galgou-os. Vozes e luz
se fundiram e, naquele momento, tinham uma única história para relatar, um
romance que se desenvolvia como música, de acorde em acorde, como numa
sinfonia. Descobrira! Era belo, completo e não havia parte que não fosse
perfeita. Pisando um por um os degraus de mármore salpicados de ouro, subiu, e
cada passo era uma parte da história.
Escreveria a história do médico que fora um dos discípulos de Cristo,
Lucas, o grego sutil, o homem que, do nada, ascendera à imortalidade. Por trás
dele, pórticos brancos em um nevoeiro violeta, vozes elevadas em rarefeitas
dialéticas, um mundo que mergulhava no nada, transformava-se em um deserto
de palavras onde tudo era estéril. Lucas, o jovem, sim, com certeza, um jovem,
de rosto moreno, sorrindo levemente, culto, movendo-se com os gestos da
decadência e da vida dissoluta, um jovem elegante que nada dizia sobre si
mesmo, cujos olhos sugeriam cinismo e desespero. As suas mãos seriam as de
um médico, fortes, mas tranquilas, embora, naquele momento, vazias. Estivera
ele em Roma? Sim, naturalmente, estivera em Roma e lhe conhecera o esplendor
e sabia que fora um esplendor em desintegração, como murais pintados em
paredes que desmoronavam. Onde encontrar aquele jovem judeu que, com um
simples relance dos olhos, podia fundir a alma do homem e reinstilar-lhe um
conhecimento que ele esquecera? Ele, Frank, precisava reler a Bíblia. Mas, se se
lembrava bem, a história de Lucas era obscura, não fora contada. Mas ele sabia!
Conhecia-a no fundo do coração, conhecia Lucas como se ele fosse a sua própria
carne e pensamento.
O que pensara ele quando conhecera aquele jovem judeu, marcado pelas
viagens, tão esfarrapado, tão cansado, mas, ainda assim, possuidor de uma carne
tão luminosa? O que pensou aquele grego Lucas quando ouviu pela primeira vez
as palavras que haviam sacudido um mundo de homens perdidos e decadentes,
desesperados, afligidos por todos os males do espírito? Viu, nesse momento,
aquele mundo e sentiu nos ouvidos seus sons e tumultos. Daquele caos de
orgulho e luxúria, de escravidão e morte, de bandeiras, fúria e grandeza,
conquista e majestade, daquele universo romano de triunfo, ostentação e poder,
saíra Lucas para vaguear até essa arenosa e estéril Jerusalém, habitada por
judeus desesperados, mas inconquistados. Fora Lucas um escravo que fugira do
mundo romano e procurara esconderijo ali, sob as palmeiras poeirentas, ao longo
das praias daquele mar morto, naquelas ruas barulhentas e fétidas? Pensara em
encontrar uma nova filosofia entre essas pedras vermelhas e caminhos
fervilhantes de escorpiões? Lucas, o grego elegante e sofisticado, cansado como
somente os homens de pensamento e cultura podem cansar-se quando enojados
do mundo: o que lhe acontecera quando vira a paupérrima populaça judaica
reunindo-se em volta daquele jovem judeu ainda mais pobre, cuja voz era como
uma trombeta em meio à algazarra? E em que momento a populaça se dividira
para que o jovem judeu pudesse ser visto claramente por Lucas, que parara
preguiçosa e cansadamente à margem do grupo? Falara Jesus nessa ocasião?
Sorrira? Chamara, erguera a Sua mão? Ou fora aquele olhar suficiente para
escravizar, despertar a alma poética e bem polida, mas tão seca e doentia? O que
ocorrera quando seus olhos se encontraram, graves e sorridentes?
Um significado imenso, trepidante, poderoso, deve ter passado célere
entre eles. Lucas soubera! Ficara ali, sob a fulgurante catarata de luz que se
despejava dos céus sobre a terra vermelha e estéril e soubera. Ficara ali como se
nunca mais fosse mover-se, pois vira a Deus. Curvara a cabeça, em um gesto
cerimonioso, e tirara as sandálias gastas, como Moisés tirara os sapatos, sabendo
que aquela terra era santa? Sim, Frank viu-o fazer isso, curvar o magro corpo de
erudito, estender a magra e graciosa mão, escurecendo seu perfil austero com sua
própria sombra. Em seguida se erguera, com simplicidade e dignidade, com os
pés descalços no chão, os olhos brilhantes sobre Jesus, orgulhoso e humilde,
compreensivo, em paz e cheio de júbilo. Toda a sua rasa filosofia, a sua
sabedoria de epigramas, o seu refinamento e cansada decadência se
transformaram em nada, uma doença que lançou para longe de si como lançara
as sandálias.
De súbito, Frank não pôde mais esperar para voltar ao quarto, para
colocar no papel a história maravilhosa. Entretanto, talvez, fosse melhor escrever
uma peça! Frank, no próprio ato de erguer-se, sentou-se de novo. Uma peça em
três atos, seis cenas, escrita em ardentes e majestosos versos brancos. Ali estava
Lucas, conversando indolente com um grupo de barbados anciãos judeus, perto
dos degraus do templo ameaçado. Os anciãos ouviam com cortesia e curiosa
atenção, mas também com impaciência. Por trás dele, no quente pôr do sol
escarlate, erguia-se o templo, multidões passavam puxando asnos carregados, e
mulheres andavam com as cabeças cobertas por véus listrados amarelos,
brancos, azuis e vermelhos. Lucas, sorrindo levemente com superior
indulgência, dissera:
//
//
As ruas estavam escuras e sossegadas sob a quente e branca lua. Árvores
farfalhavam e murmuravam. Frank ouviu vozes nas varandas das casas por onde
passava. Ouviu o chiado de carros na rua e viu luzes nas vitrinas. Viu e ouviu
tudo isso em um estado de exultação. Sua mente ardia com a visão de um novo
livro. Tinha-o pronto e acabado naquele instante. Contaria a história do
crescimento do medo em si mesmo, do terror e, finalmente, do ódio. A guerra
pairava como uma asa negra sobre o mundo. A guerra viria, pois o medo do
homem fora longe demais. Mas, talvez, depois de passada a loucura, houvesse
esperança. Se ao menos o homem pudesse compreender! Se ao menos pudesse
olhar para seu irmão e conhecê-lo! Talvez não fosse tarde demais, mesmo
naquele instante. Talvez não fosse tarde demais mesmo em meio à tempestade
rubra da loucura. Se apenas uns poucos escutassem, talvez não fosse tarde
demais. Farei o que puder, pensou Frank. Posso ser uma única voz, mas talvez,
no deserto, vozes até então silenciosas se ergam e se juntem à minha.
Aumentava o vento do verão e as folhas das árvores se ergueram para
recebê-lo. Frank chegou a uma esquina e viu diante de si uma grande árvore,
sozinha em um longo e escuro gramado. Observou-a, parado na rua. Seu coração
estendeu-se para ela como se estendera outrora para todas as árvores e todas as
coisas. Estendeu-se como uma onda de amor e luz, comunicando-se, chamando,
abraçando, abrangendo, numa longa onda de paixão, de desejo, de
conhecimento. A árvore permaneceu silenciosa sob a lua, com todas as suas
folhas imóveis, todos os ramos pesados de sonhos e escuridão. O vento, nesse
momento, tocou-a e quebrou-lhe o estático silêncio; inesperadamente, a árvore
moveu-se como um ser senciente que desperta de um sono e transformou-se em
movimento, em um ser fluido, em vida plena. De seus ramos, das profundezas de
seu ser, irrompeu um rugido profundo e suave, uma voz, como se replicasse,
como se respondesse ao chamado de Frank. As folhas transformaram-se em
prata brilhante à luz da lua, uma imensidão de pequenos e vividos pontos
brilhantes, espelhos luminosos de glória, bruxuleantes, tremeluzentes.
O vento escuro e argênteo tocou Frank nesse momento, correndo em
volta e por ele como um mar encapelado. Sentiu-o, olhou para a árvore e algo de
sua antiga e apaixonada exultação respondeu à noite, algo da velha alegria,
êxtase e embevecido reconhecimento.
Mas soube também enquanto olhava para a árvore, chamava-a e a árvore
respondia, que nunca mais possuiria a maravilha e o encantamento do mundo.
Os anos haviam aberto um negro abismo entre ele e sua mocidade e não havia
maneira de transpô-lo. O globo de sua infância rolou para o espaço estriado pelo
arco-íris; era um sonho, um encantamento. Eram glória e deleite completos.
Nunca mais, contudo, seriam conhecidos por ele porque era um homem e sabia
que o encantamento e a magia não são da idade viril e que o “esplendor da relva”
está reservado apenas para os olhos das crianças.
Nunca mais andaria pelas ruas e desviraria uma pequena pedra ou um
pedaço de papel, esperando encontrar a palavra mágica que lhe daria o mundo, a
realização de seus sonhos, as torres luminosas do encantamento, os jardins de
Circe. Nunca mais acreditaria em que havia ilhas de arrebatador encanto à espera
do descobridor, transbordantes de doçura, êxtase e encanto. Nunca mais galgaria
uma colina esperando encontrar do outro lado paredes de mármore e portões
dourados e uma cidade onde pisavam os anjos, vestidos de ouro, com o sol
tocando-lhes as faces. O mundo era pequeno, duro e concreto de realidade. Não
havia colunas brancas banhadas pela luz da lua a serem encontradas em um
campo abandonado e nem montanhas que ressoassem com música. O que havia
no mundo para ser conhecido ele sabia e não existia local algum “envolvido em
luz celestial”.
Mas para o homem de boa vontade, o homem que amava e não odiava, o
homem que conhecia a compaixão, a dor e a compreensão, restava a suave
esperança, a doçura da simpatia, o fruto da paz. A vida para ele nunca mais seria
tão radiante como a “glória e o frescor de um sonho”. O êxtase não mais seria
sua companhia entre o amanhecer e o pôr do sol. Mas para o homem de boa
vontade havia conhecimento e fé para viver e trabalhar de tal modo, que cada dia
encontrasse outra pedra de angústia removida de cima da humanidade, a fé em
que o medo e o ódio que a torturam e condenam à morte inexorável podiam ser
transmutados em confiança e amor — se apenas alguns homens o desejassem e
estivessem determinados a consegui-lo.
CAPÍTULO 71
Como era incrivelmente belo acordar pela manhã com esse vagaroso e
extasiante contentamento fluindo pela pessoa como água dourada! Sentir-se
pleno e realizado, tranquilo e sorridente, ver o sol nas mãos como se acabasse de
nascer, não o sol de ontem, porém uma luz mais estranha e mais doce. Olhar para
as paredes conhecidas, mas, ainda assim, estranhas, sentir novamente as
emanações de todos os objetos como as sentira na juventude — isso era renascer,
sentir novamente a encantadora expectativa da criança tranquilizada nesse
momento, com um brilho menos refulgente, mas com uma riqueza que não era
para ser conhecida pela frágil e inconstante infância.
Não era a paz outra vez em uma nova manhã, mas compreensão. Não era
êxtase. Era simplesmente não ter medo, medo do amanhã, medo de todas as
vozes, medo da dor, da morte, da derrota, da ignomínia, da frustração. Era, em
suma, estar livre do medo de outros homens, de sua crueldade, malignidade,
brutalidade, ódio. Era ver o homem agachado em uma escura sombra e sentir
compaixão e dor por ele, um desejo veemente de dizer-lhe que não mais o temia
e que, como não mais o temia, ele também não tinha motivos para temê-lo.
Como era bom saber disso, sentir isso e, com isso, a força e o poder
concedidos apenas aos compassivos e aos liberados!
Não era possível esquecer a maldade do homem, as trevas de sua mente,
seus ódios, sua ilimitada capacidade de praticar o mal, a inveja, a avareza, a
vontade de matar que se escondiam nele como se fosse uma besta à espreita.
Mas era possível sentir pena dele, tristeza, mágoa — os prelúdios do amor.
Mesmo que ele reagisse com uma pedra ou com uma cruz, isso nada era,
absolutamente. Mesmo que reagisse com a estaca, as fogueiras de ódio que
acenderia poderiam brilhar sobre ele, iluminando-o, fazendo-o arrepender-se,
acordar.
O homem estava empoleirado e ilhado numa árvore em alguma escura
floresta que crescia em um ermo, com sua verdadeira voz estrangulada na
garganta, seus gestos hirtos, seus olhos cegos, e apenas um leve murmúrio era
ouvido quando gritava de dor. Como era possível odiar essa alma emparedada,
muda, enraizada na terra, de onde não podia escapar, lutando para alcançar um
céu que não podia ver, mas apenas vagamente sentir?
Frank sentou-se à beira da cama e pensou: Eu era um deles. Mas agora
sou livre. De alguma forma ou maneira, encontrarei palavras para libertá-los
também. Algo forte e veemente se agitou nele, uma ânsia vasta e poderosa.
Escutou-a e sentiu que ela ganhava força e irrefutabilidade. Em que forma estava
fluindo? Que palavras usaria quando eloquentemente pudesse falar? Não sabia.
Mas sentia-a crescendo, expandindo-se, momento após momento, relampejando
de exultação e finalidade, como o raio risca os picos da montanha, mostrando,
durante um momento, a forma de imagens e penedias contra o céu escuro.
Quando soaria a hora em que ouviria a palavra “Agora!” e se sentaria outra vez
para pôr em movimento aquilo que aprendera?
Sabia que teria de esperar. O poder e a força estavam ali. Esperavam,
como ele tinha de esperar. Entrementes, como raízes irresistíveis, sondavam bem
fundo no escuro e rico solo de sua mente, enroscando-se através de depósitos
aluviais, sorvendo vida e transformando-se elas mesmas em vida.
O velho Sr. Penseres gritou, do fundo da escada, que haviam chegado o
fotógrafo e o repórter do Evening News. Espantado, notou que eram quase onze
horas. Dormira mais de dez horas, num profundo sono, sem sonhos, que não
conhecera durante anos.
Mais tarde, orgulhosamente, o Sr. Penseres mostrou-lhe uma grande nota
no vespertino sobre a aceitação de seu romance pela Thomas Ingham’s Sons.
Frank leu a notícia, que dera ao repórter pelo telefone na véspera, e pensou: Mas
isso foi um sonho. Não que não fosse mais importante e, sim, que desde ontem
ele percorrera imensidões de espaço e tempo e a face que vira no espelho
naquela manhã não era a face que conhecia.
Era quase uma hora. Telefonaria para Jessica e lhe diria. Por mais
desenxabidas que fossem as palavras, ela compreenderia e saberia. No momento
em que estendia a mão para o telefone, o aparelho tocou. Respondeu,
impaciente. Uma voz de homem perguntou por ele e ele respondeu:
— Sim, é Frank Clair quem está falando.
A voz riu de maneira cordial e, nesse momento, pareceu-lhe vagamente
conhecida.
— Lembra-se de mim, Frank? — perguntou a voz. — Gordon Hodge?
Frank agarrou convulsamente o aparelho.
— Gordon — repetiu. A sua voz soou num excitado gaguejo. — Gordon
Hodge! Onde está? Eu... eu andei procurando por vocês...
— Andou? — perguntou Gordon com uma leve surpresa. Frank podia
vê-lo, de cabelos amarelados, sorrindo com indulgente incredulidade, bem-
humorado, mas, ainda assim, cauteloso, como fora quando eram crianças. Bem,
estou aqui desde maio. Fui nomeado professor-adjunto de Inglês na
Universidade de Bison e estive também dando aulas nos cursos de verão na
universidade. — Interrompeu-se por um momento. — Eu me perguntei com
frequência o que lhe havia acontecido. Estive ensinando em Ohio nestes últimos
anos. Esta manhã, li uma notícia a seu respeito no Bison Courier e tive que lhe
telefonar logo para lhe dar os parabéns. Acho que é maravilhoso, mas, também,
sempre achei que você conseguiria isso, Frank.
Frank ouviu um forte rufar dentro de si e em volta. Sua voz parecia
paralisada por uma emoção que se atropelava, querendo falar, pelas cordas
vocais. Apertou com força o aparelho.
— Estou casado agora — continuou calmamente Gordon, mas com uma
leve interrogação na voz ao perceber o silêncio de Frank.
— Moramos perto da Universidade, minha mulher e eu, e temos dois
filhos. Eu gostaria de que você nos visitasse para que pudéssemos conversar
sobre um bocado de coisas. Sabe que meu pai morreu?
— Não, eu não sabia — gaguejou Frank. As pernas se enfraqueceram e
ele sentou-se bruscamente. Engoliu em seco e disse:
— Estive tentando encontrá-los durante anos. Gordon, onde está Paul?
Gordon não respondeu. O telefone zumbiu no ouvido de Frank. Esperou
e, não ouvindo coisa alguma, repetiu, insistente:
— Gordon? Você ainda está aí? Onde está Paul?
A voz de Gordon voltou ao telefone, mais fina e com uma frieza cheia de
desconfiança:
— O que é que você está tentando dizer, Frank? Que não sabe que Paul
morreu também?
Todas as sensações desapareceram de Frank. Ficou simplesmente
sentado ali, no vazio. Ouviu sua voz murmurar, seca:
— Eu não sabia. Eu não sabia.
— Alô? — disse Gordon. — Alô, Frank? — Como se fosse um eco oco,
ouviu Frank dizer:
— Eu não sabia. Meu Deus, eu não sabia!
Incerto e embaraçado, Gordon disse:
— Ora, quase não posso acreditar. Isso aconteceu quando você foi para
Kentucky. Você havia escrito uma ou duas vezes para Paul, quando ele estava na
Marinha, e as cartas me foram enviadas, como parente mais próximo. Eu mesmo
lhe escrevi e a carta nunca foi respondida.
Isso deve ter acontecido quando fugi de lá, pensou Frank, ainda sem
sentir absolutamente coisa alguma. Perguntou:
— Quando foi que isso aconteceu?
— Um ano mais ou menos depois da guerra, quando ele estava ainda na
Marinha, fazendo serviço de transporte. O navio bateu numa mina submersa e
acho que morreram todos. Sinto imensamente, Frank. Pensei que você sabia.
Isso aconteceu há tanto tempo.
Não, pensou Frank, não aconteceu há tanto tempo. Aconteceu somente
agora. Neste exato minuto. Acabei de receber o golpe de um bate-estaca, mas
isso foi tudo o que senti. Dentro de pouco, compreenderei, porque acaba de
acontecer, justamente agora.
Gordon continuou a falar em voz conciliatória e preocupada. Frank,
porém, ouviu apenas sons indistintos, que nada significavam. Paul morrera.
Sentirei a morte dele logo, pensou Frank. Saberei, dentro de minutos. O som
indistinto tornou-se outra vez cauteloso e incrédulo, levemente zombeteiro, sem
querer acreditar. Esta é a maneira como ele sempre me falou quando éramos
crianças, pensou Frank. Ele vivia sempre em guarda contra meus “traques”.
Pôs o aparelho no gancho e subiu as escadas até o apartamento. Dirigiu-
se à janela e olhou para as quentes calçadas de julho. Passou um bonde e
acompanhou-o mudo e desolado com os olhos. Observou uma mulher e algumas
crianças nas calçadas. Notou o faiscar azul do meio-dia sobre os edifícios do
outro lado da rua. A luz do sol refletia-se das capotas empoeiradas dos
automóveis e dos trilhos de aço da rua. Nesse momento, as coisas começaram a
tremer com os contornos brilhantes de uma dor crescente.
— Paul! — disse em voz alta. E depois, com uma insistente e terrível
pergunta: — Paul?
Somente a luz do sol e o hálito quente e empoeirado da calçada
responderam.
— Eu não sabia — repetiu Frank. — Por que não soube? Por que não
senti? Por que não me disse, Paul? Pensei em você durante todo o tempo e
então... e então... Não houve resposta! Eu devia ter sabido nessa ocasião.
Sentou-se e acendeu distraído um cigarro. O cigarro queimou-Ihe os
dedos. Olhou fixamente para a parede iluminada pelo sol. Disse, ainda falando
em voz alta:
— Eu devia ter sabido quando não lhe ouvi a voz. Você me ouve agora,
Paul? Lembra-se de todos aqueles anos, de todos os passeios que fizemos juntos,
de todas as conversas, de todas as esperanças para o futuro, de todas as ideias,
sonhos, de tudo o que imaginávamos? Ora, você é minha infância, Paul! você é
parte de mim, mais do que se tivéssemos sido irmãos. Você é uma parte
inseparável de mim, como ninguém poderá ser, nem mesmo Jessica. Vimos junto
o novo mundo. Lembra-se daquele dia de primavera, nos bosques canadenses?
Pode lembrar-se ainda daqueles secos e cinzentos dias de novembro, quando
passeávamos ao longo do rio e dizíamos um ao outro tudo o que pensávamos e
sabíamos, e víamos o mundo através dos olhos um do outro? Os livros que
lemos, Paul, os concertos de banda que costumávamos ir escutar em The Front,
os crepúsculos que víamos juntos, as graves e infantis conjecturas que fazíamos
sobre Deus, a terra, a vida, o ser? Lembra-se das trepadeiras que cresciam ao
longo da cerca, perto de sua casa, e que para nós eram um milagre? Dos nossos
jogos, das bolas que atirávamos, dos sanduíches que comíamos na úmida grama
da primavera e da maneira como fazíamos desenhos na neve com os pés? Das
balas que comprávamos com os nossos poucos níqueis e como descobrimos uma
farmácia que vendia gasosas por um tostão e andávamos quilômetros no verão
quente para ir tomá-las, como púnhamos alfinetes cruzados sobre os trilhos dos
bondes para transformá-los em tesouras? E como falávamos do dia em que eu
seria um “grande escritor” e como compraríamos juntos uma casa, onde
moraríamos para sempre, uma casa nos bosques, no alto de uma verde colina, de
frente para águas frias e verdes? Você acreditava em mim, Paul. Mesmo quando
foi embora naquele dia, naquele último dia, você não foi, realmente. Você ficou
sempre. Aquele dia foi apenas um sonho que, realmente, nunca nos aconteceu.
A luz do sol tornou-se mais forte sobre a parede e o tapete. Não se ouvia
outro som senão o do tráfego embaixo e uma ocasional voz de criança.
— Você acreditava em mim, Paul. Acredita ainda?
Havia apenas silêncio no quarto, mas, inesperadamente, Frank sentiu um
sorriso. Procurou em volta, tentando dominar a voz que se aguçava nele.
— Paul? — disse.
O mais estranho dos consolos desceu sobre ele e a angústia recuou
devagar, onda após onda.
— Não, Paul, você não está morto. Sei disso agora. Sei que coisa alguma
jamais morre. É isso o que está tentando dizer-me?
E então, ainda mais estranhamente, a imagem de Paul em sua mente
fundiu-se com as imagens de Miss Jones, do velho Tim Farley, de Wade
O’Leary, de todos aqueles que conhecera que haviam sentido afeto por ele, que
haviam tido esperança, nele, que haviam acreditado nele. Viu-os a todos e eles
eram Paul e Paul era eles. Eu fui rico durante todo este tempo, pensou Frank. Eu
os conheci e eles estarão sempre comigo. Eles querem que eu faça o que posso,
aquilo que agora sei que posso fazer. Querem que o faça.
Devia isso a eles porque eles o haviam amado. Viu-os a todos, com uma
grande clareza. Eram partes de sua vida e, porque eram, nunca poderiam deixá-
lo. Havia-os amado e, assim, dera-lhes para sempre uma parte de si mesmo, que
eles conservavam como refém.
O poder e o entusiasmo que sentira naquela manhã voltaram e, nesse
momento, falaram em voz forte, eloquente, triunfante, comedida. Ergueu-se,
tremendo com a força que pulsava vibrante nele e em volta dele.
Dirigiu-se para a máquina de escrever e tirou a capa. Pôs uma folha de
papel no rolo. Esperou. Sabia que precisava escrever naquele momento e sabia
como devia escrever.
Após um momento, datilografou o título: “Um Tempo que passou”.
FIM