Um Tempo Que Passou - Taylor Caldwell

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UM TEMPO QUE PASSOU

TAYLOR CALDWELL
A vigorosa escritora, de cuja numerosa e excelente obra a Record já
publicou 8 livros entre os quais A Casa Grande, O Rugido do Trovão, A Terra de
Deus está de novo presente neste romance que conta a história emocionante de
duas mulheres que amavam o mesmo homem e quase o destruíram.
O homem era Frank Clair, um artista belo, talentoso e sensível,
inflamado por uma verdadeira paixão de aventureiro pela vida e que tinha uma
sofreguidão ardente pelos atributos correntes do sucesso — dinheiro, fama e
mulheres . . .
Das duas mulheres que o amavam, uma lhe deu tudo o que tinha. Era
uma voluptuosa beleza loura a quem a pobreza fizera cair na prostituição. Foi ela
quem primeiro tomou nas mãos o homem complexo e revoltado, ensinando-lhe
lições inesquecíveis e devastadoras de ternura e de paixão . . .
A outra procurou tomar tudo o que Frank tinha para dar. Era uma má
mulher, embora encantadora e bem-nascida, que torturava o jovem escritor no
seu ingênuo e sôfrego desejo de amor, mas que, apesar disso, deu-lhe o incentivo
necessário para que ele atingisse alturas incríveis de realização literária e de
fama...
É esse o tema difícil e complexo do presente livro. Nele, a autora, com
aquela compreensão profunda e direta da alma humana demonstrada em seus
livros anteriormente publicados opõe aqueles três destinos. No fim, tudo se
funde no amor sem limites de toda uma vida de Frank e Jessica numa história de
amor inesquecível, que consolidará o inegável prestígio de Taylor Caldwell, com
seus temas, seu estilo e sua infalível penetração psicológica.
Título original norte-americano: THERE WAS A TIME
Copyright (©) 1947 by Reback & Reback
O contrato celebrado com a autora proíbe a exportação deste livro para
Portugal e outros países de língua portuguesa
Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil
adquiridos pela
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Av. Erasmo Braga, 255 — 8º andar — Rio de Janeiro, RJ que se reserva
a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
Este e-book:
Digitalização, ocerização, correção e formatação, PDF e Epub: The
Flash
PRIMEIRA PARTE
Houve tempo em que o prado, o bosque e regato,
A terra e todas as paisagens comuns
Pareciam-me
Envolvidos em luz celestial, na glória e no frescor de um sonho.
WORDSWORTH
CAPÍTULO 1
— Que idade tinha eu quando morávamos em Higher Broughton? —
perguntou ele à mãe.
— Apenas dois anos e meio — respondeu ela. — Mudamo-nos para
High Town e, depois, para Reddish. Você não pode lembrar-se de Higher
Broughton.
Mas ele se lembrava. Havia dois fatos de que se lembrava com muito
mais nitidez, força e clareza do que da vida de adulto da véspera. Disse à mãe:
— Morávamos em uma casa que fazia parte de uma fileira de casas
sombrias, de tijolos vermelhos, semi-isoladas, com um quintal de lajes cercado
por um muro de pedra. Eu me sentava no sanitário do quintal, comendo pão com
geleia de uvas, enquanto você estendia as roupas para secar. Na casa em frente
morava uma família cujo sobrenome era Burns. Tinham uma filha pequena
chamada Nellie.
A mãe não pôde acreditar.
— Você tinha pouco mais de dois anos. Não pode lembrar-se disso. Na
certa, ouviu alguma conversa minha com seu pai.
Mas ele se lembrava.
Embora com apenas dois anos naquela época, lembrava-se claramente
do quintal. O muro lhe parecera imensamente alto. Não poderia ter mais de um
metro e oitenta de altura, mas ele achava que chegava às nuvens. A porta verde
de madeira era um bastião intransponível, com um trinco tão alto num dos lados
que ele nem sequer podia pensar em puxá-lo. Na parte mais baixa da porta, a
tinta desbotada formava grande quantidade de fascinantes bolhas. Deixava-se
ficar durante horas arrancando-as da madeira escura que se escondia por baixo.
Horas passadas estourando bolhas, horas saturadas de um vago êxtase e de uma
agitação íntima tão profunda e insondável como o movimento das lentas e
sonolentas marés.
A luz quente e diáfana do sol batia-lhe nas costas e filtrava-se pelos seus
ocupados e distraídos dedos. Sentia-o ainda naquele momento, se quisesse, e via
outra vez as pequenas unhas sujas, de pontas pretas, e experimentava mais uma
vez o envolvente êxtase. Raramente via as bolhas. Eram apenas algo para lhe
desviar a mente consciente da excitação tranquila em que ele submergia.
Sabia que esperava por algo, mas sem impaciência ou agitação, apenas
com uma espécie de paz insondável e silencioso enlevo. Não se sentia jovem.
Não sentia absolutamente a passagem do tempo. Existia em uma
intemporalidade sem limites, onde nada havia exceto uma estranha beatitude
íntima. Fora dele tudo mais era uma difusa e vertiginosa glória, suave,
harmoniosa, tremulando com uma radiante e absoluta tranquilidade. Não fora
júbilo, sabia agora. O júbilo era algo que o homem conhecia após a dor, após o
sucesso, após a realização. Aquilo era apenas mesquinho, vil, vergonhoso,
inteiramente da carne. Eu não era jovem naquela ocasião, pensou já homem.
Perdendo o que possuía naquele tempo, perdi a maturidade e tornei-me
vaziamente jovem.
A mãe tivera medo de ciganas, que se escondiam em becos, e obrigara o
pai a reforçar o trinco com um ferrolho. As ciganas eram inveteradas
sequestradoras de crianças, embora por que devessem elas preocupar-se com o
filho único de um casal de classe média inferior fosse algo que ela, em sua
exaltação, jamais parara para se perguntar. Conscientemente o menino nunca via
o ferrolho, mas sabia que devia estar lá. Por isso mesmo, o que aconteceu
permaneceu para ele sempre inexplicável.
Naquele dia arrancara todas as bolhas que conseguira alcançar. Em pé
nas pontas das pequenas botas, tenteava com os dedos. Havia uma deliciosa
bolha justamente além de seu alcance. Encerrava ela a promessa de lhe
conservar e aprofundar a grande serenidade. Precisava dela, a avó de todas as
bolhas. Olhou ansioso em volta.
Uma suave luz inglesa iluminava o quintal. Tanto quanto sabia, coisa
alguma existia além daquele alto muro e da porta verde — nenhuma outra alma
humana, nenhuma ave, nenhuma árvore, nenhuma voz, nenhum riso, nada. Às
suas costas erguia-se a massa fuliginosa de tijolos da casa. Aquilo, também, não
possuía existência, embora soubesse que a mãe trabalhava lá dentro. A mãe vivia
na fímbria de sua consciência e não lhe violava a realidade. Viu uma coluna de
fumaça dançar sobre as duras telhas de ardósia do telhado, varando o céu azul. O
silêncio era completo. As coisas agitavam-se em uma inundação de luz quente e
oscilante. Notou as gretas entre as lajes do chão. Verdes e úmidas de musgo.
Inquieto, ainda ansioso, agachou-se e passou os pequenos dedos sujos pelos
líquens. Com o camisolão puxado sobre as coxas, sentiu um vento frio tocar-lhe
as nádegas redondas. Arrancou o musgo e olhou petulante em volta. Seus olhos
se prenderam na porta e nas maravilhosas bolhas, tão longe de seu alcance.
A porta verde abriu-se devagar, sem o menor ruído, quase sem
movimento perceptível. Observou-a, sem curiosidade, com a boca aberta e uma
expressão vazia nos grandes olhos azuis. A porta abria-se como se não houvesse
trinco e ferrolho. Isso não lhe pareceu estranho, pois no seu mundo eles não
existiam e coisas estranhas aconteciam, para as quais ele não tinha perguntas
nem respostas.
A porta escancarou-se. Uma mulher entrou no quintal e fechou-a sem
ruído. Frank fitou-a com expressão vazia. Com o pequeno dedo ainda alisava o
musgo, enquanto o vento continuava a açoitar-lhe as nádegas nuas, lançando
para trás o camisolão e o babador. A mulher era muito alta, ou assim parecia da
posição agachada em que ele se encontrava. Muito bela. Até mesmo sua
inteligência de criança reconhecia isso. Esbelta e jovem. Não podia ter mais de
vinte anos. Os cabelos lhe caíam pesadamente sobre os ombros e desciam pelas
costas, dourados como narcisos. Usava um longo e brilhante robe de brancura
perfeita, alternadamente pesado, delicado ou rígido, conforme era tocado pela
luz do sol. Impossível identificar-lhe a substância, tão mutável a sua textura. Os
braços brancos estavam nus e pareciam muito macios. Sorriram os lábios
vermelhos e uma rosa pulsou e surgiu na sua face.
Ela aproximou-se. Desajeitado, ele levantou-se, esfregando as mãos
sujas uma na outra para limpá-las da areia e do musgo. Ergueu os olhos para ela,
ainda sem curiosidade, ainda de boca aberta. Não sentiu o menor medo ou
embaraço e coisa alguma da habitual timidez em presença de estranhos. Fungou
alto. Esfregou as mãos no babador sujo, já manchado de geleia, de sopa e usado
como lenço.
— Você me conhece? — perguntou bondosamente a mulher num tom
suave e vibrante.
Ele conservou-se calado. Não era um bebê precoce e falador. Conhecia
apenas algumas palavras. Nenhuma delas parecia apropriada naquele momento.
Continuou a fitá-la com expressão vazia. O sol quente e brilhante inundava o
quintal silencioso. Mas havia outra luz em volta da mulher, uma concentração e
uma beleza parecidas com o êxtase que ele mesmo sentia quando arrancava
bolhas da porta. Sorriu então, timidamente. Ela retribuiu e o sorriso tornou-se
audível como riso, suave e murmurante. Ele começou a rir também, acanhado,
ansioso.
Ela pôs a mão em sua massa de desgrenhados cachos castanhos. Passou
os anéis de seus cabelos pelos dedos. Ele sentiu a carícia percorrer-lhe o corpo
como se fosse uma língua de chamas. Aproximou-se mais dela e encostou a
cabeça no roupão branco. Sentiu-lhe a textura. Era como um toque doce e sedoso
do vento, como a superfície de uma pétala de lírio. Alisou-o timidamente,
encantado. A mulher murmurava alguma coisa. Acariciou-lhe o rosto. Curvou-
se, beijou-lhe a testa e suspirou. A fina língua de fogo alargou-se e transformou-
se num lençol de quente júbilo, passou por ele e tornou-se parte da beleza e da
luz. Ergueu os olhos para a encantadora face. Ela sorria ainda, mas estava triste,
também. Possuía os olhos azuis mais fulgurantes do mundo e, naquele momento,
eles nadavam no que somente podiam ser lágrimas radiantes. Apertou-o contra o
corpo quase convulsamente. O mundo inteiro vibrava de luz, de ternura, de
êxtase, de realização, mas a vibração concentrava-se toda em um luminoso
silêncio, intenso demais para traduzir-se em movimento ou mesmo em
respiração.
Em alguma parte, ouviu o inesperado e trovejante som de uma porta que
se abria e fechava e uma voz irritada, dizendo:
— Nenen! Nenen! O que é que você está fazendo? Não quer o seu chá?
Não ouviu quando o chamei?
Escutou os passos da mãe sobre as lajes, rápidos, impacientes, ásperos.
Viu-a com o canto externo do olho, além do qual ela nunca penetrava. Agarrou-
se à mulher. Ela tornou-se muito pálida nesse momento, tênue, e o robe a que ele
se agarrava perdeu toda a substância. Exclamou para si mesmo: “Não vá! Não
vá!”. Furioso olhou para a mãe. Gritou: “Vá embora!” Tentou agarrar-se ainda à
mulher. Mas ela desaparecera, inteiramente, como uma luz que se esvai, e ele viu
a porta verde, fechada outra vez, firmemente, com o trinco.
A mãe segurou-o pelo braço e sacudiu-o.
— Oh, seu nenen sujo! — exclamou. — Olhe só para o seu camisolão e
para as suas mãos! Não adianta dar banho em você. O sabão de nada serve! Olhe
só para você! Para o banheiro. Vou ter que lhe dar outro banho antes de você
poder tomar o chá!
A porta do sanitário rangeu alto e o sol inundou um estreito e úmido
interior que recendia a querosene e cloreto de cálcio. Foi posto sobre um banco
de madeira enquanto a mãe, em volta, queixava-se do destino de uma mulher
com um filho tão trabalhoso. Sentado ali, as lágrimas correram, abrindo grandes
sulcos na sujeira da sua face. Chorou como nunca chorara antes, com uma
sensação de perda imensa e sofrimento inconsolável enquanto a mãe o
repreendia e lhe enxugava a face com o avental.
Não conseguia lembrar-se de mais coisa alguma daquele dia, ou de
qualquer outro dia no quintal, com exceção de um, e também se chegara a
alcançar a bolha ou se elas desempenharam novamente algum papel importante
em sua vida.
Um sonho tudo aquilo? Mas era muito criança, recordou mais tarde, para
ter podido criar mentalmente aquela mulher e tê-la vestido de maneira tão
diferente da mãe e das vizinhas. De que modo poderia ter sonhado com tal
visita? Anos mais tarde, convenceu-se de que devia ter sido um sonho, embora
estranho e belo e desafiando toda e qualquer explicação.
Depois disso, aguardava-a todos os dias, pois se lembrava de que sentira
sempre a emoção da espera, da privação de algo, da inquietude, da insatisfação.
Nunca mais a vira em Higher Broughton, mas ela o visitara uma ou duas
vezes mais tarde. Depois disso, perguntava-se sempre se aquilo poderia ter sido
mesmo um sonho.
Havia somente uma recordação de Higher Broughton e não era bem uma
recordação. Realmente, era mais uma sensação, uma percepção.
O dia fora escuro e nublado e naquele momento o céu estava encoberto
por um nevoeiro cor de heliotrópio. Um pesado silêncio abafava todos os sons e
envolvia o quintal cercado pelo muro de pedra. Frank estivera brincando com
uma cadeira e uma boneca. Em certo momento, sentiu-se inquieto e entediado.
Andou sem destino pelo quintal. Tocou na porta verde e afastou-se novamente.
Ouviu nesse momento um som, somente o fantasma e o hálito de um
som, imensamente doce e penetrante. Ficou imóvel, com a cabeça erguida,
olhando fixamente para o céu, de onde o som parecia pingar como chuva. Não
era o chamado de uma ave ou o canto de uma voz humana ou mesmo o som de
qualquer instrumento que já ouvira. Nem mavioso como uma flauta nem
tilintante como uma harpa, não lembrava nem uma trombeta nem um violino,
mas, ainda assim, parecia incluir todos esses instrumentos em uma nota
demorada e indescritivelmente bela.
Extasiado, escutou. A música não subia e descia em qualquer compasso
ou cadência. Entretanto tornou-se mais forte, mais clara, mais próxima, até que o
céu, o quintal, o muro, as lajes sob os seus pés foram saturados por ela, ecoaram-
na, ficaram inundados por ela como se fosse luz. Possuía, na verdade, uma
característica de luz e imponderabilidade a despeito de seu tom em crescendo,
irresistível, de seu triunfo e poder. Pareceu a Frank que o mundo inteiro estava
tomado por aquela quase intolerável majestade e doçura, aquela música profunda
e insondável, simultaneamente impessoal e transbordante de significação.
Quanto tempo ele permaneceu ali, nunca soube. Porém, lenta,
imperceptivelmente, a música se retirou ao invés de se desvanecer ou se tornar
menos intensa. Era como a passagem de uma hoste pelos céus. Agarrou-se a ela
como se agarrara à mulher, até que o seu último murmúrio desapareceu.
Jamais esqueceu o júbilo e o solene êxtase que o engolfou naquele dia.
Mas, perguntou-se a si mesmo anos depois, fora aquilo também um sonho?
Jamais pôde saber.
CAPÍTULO 2
Não se lembrava de coisa alguma de High Town, embora a família deva
ter morado uns dois anos na localidade. Mas lembrava-se de Leeds, onde morava
a avó, que dirigia uma “pensão familiar para hóspedes selecionados”. Ou melhor,
lembrava-se da avó, da casa dela, dos sanduíches de agrião em fatias finas de
pão preto, com uma leve camada de manteiga, e das tortas Shrewsbury,
recheadas com passas e cidra.
As recordações de Leeds eram de ruas desertas e frias, sempre cinzentas
durante o dia, iluminadas por bruxuleantes lampiões à noite, altas casas de tijolo
manchadas pela fuligem, o eternamente presente gás de carvão flutuando no ar
úmido e sujo, os pequenos e fracos fogos sob majestosas cornijas de lareiras,
céus que pareciam úmidos cobertores cinzentos, pingando eternamente,
resfriados e roupas que coçavam. E de ódio.
Aceitava o ódio como aceitava os resfriados, o ventre dolorido e a chuva
onipresente. Aceitava-o com o plácido conhecimento de que sempre o
conhecera; era parte de sua vida e nele nada havia de especialmente violento. Era
o único aspecto positivo em uma atmosfera de negação total. Não lhe parecia
possível que houvesse algo mais e jamais se espantava.
A Sra. Jamie Clair possuía uma casa em uma rua igual a dezenas de
outras em Leeds, nem mais úmida, nem mais fria, nem mais lúgubre. Entretanto
era mais ampla do que a casa de Higher Broughton. Possuía nove quartos, dois
sanitários e um único banheiro, que ninguém usava. Casa estreita, de três
andares, espremia-se entre outras duas iguais a ela. As janelas pareciam frestas,
de dois metros e meio de altura por não mais de setenta e cinco centímetros de
largura, fechadas por cortinas de renda áspera e intrincada de Nottingham, das
quais pendiam drapejamentos de veludo escarlate empoeirado. A Sra. Clair, uma
excelente e incansável dona-de-casa, era ajudada apenas por uma pequena
desmazelada de quatorze anos, nariz sempre a escorrer, cabelo ralo e fino e um
sorriso perpétuo. No entanto, a despeito de correntes de água e sabão, assíduas
esfregadelas, metros de panos de chão e tijolos de cré, a fuligem e o pó de carvão
insinuavam-se por toda a parte como uma peste. A moça esfregava os degraus e
a passagem em frente todas as manhãs. À noite, estavam manchados de negrume
úmido. A aldraba de latão era polida diariamente: à noite aparecia cheia de
manchas e de sujeira. O som de escovas prolongava-se pelo dia adentro, às vezes
até a hora do chá. O pó, porém, acumulava-se em frestas e nas dobras das
cortinas. As cortinas de Nottingham eram lavadas cada quinze dias. Ao fim da
quinzena lembravam teias cinzentas, cheias de filamentos pretos. Todas as
semanas, as paredes recebiam vigorosas espanadelas com trapos na ponta de
vassouras. Na sexta-feira seguinte, havia ninhos de fios pretos em todos os
cantos, escorrendo sobre o berrante papel de parede. Os tapetes, escovados todos
os dias depois de borrifados com pedaços de papel embebidos em água, na
manhã seguinte mostravam desenhos apagados e pelos que pareciam secos ao pé
descalço. Todas as manhãs de sábado, as janelas polidas tornavam-se quase
invisíveis de tanto brilho. No sábado seguinte, haviam-se transformado em
manchas opacas de luz mortiça, através das quais mal se distinguia a rua.
Se o sol algum dia brilhou em Leeds, Frank Clair não se recordava de ter
presenciado esse fenômeno. Lembrava-se apenas do melancólico gotejar dos
beirais, da lívida água empoçada nas ruas calçadas com tijolos e do som baixo e
uivante do vento. Lembrava-se de guarda-chuvas a espalhar gotas sujas sobre os
ombros das pessoas, de galochas e, por algum motivo, esses aspectos de Leeds
sempre lhe recordavam peixe frito, estalando em cozinhas escuras e úmidas.
Devia ter uns quatro anos quando se tornou consciente, pela primeira
vez, de Leeds como tempo e lugar. Mas não se lembrava dos trens que o haviam
levado e trazido. Não podia ter visitado a avó mais de cinco ou seis vezes. Antes
de muito tempo notou que ela antipatizava com seu pai, desprezava-lhe a mãe, e
odiou-a. Tudo isso estava inextricavelmente ligado à pensão.
A longa e estreita sala de visitas possuía um teto incrivelmente alto,
perdido na escuridão, e cantos escuros como se as rosas escarlates do papel de
parede houvessem sido borradas com um pincel de tinta cinzenta. O sol jamais
penetrava em largos raios naquela sala envolvida sempre por uma luz
crepuscular, como se filtrada por um nevoeiro, o que com frequência acontecia.
Em uma das paredes havia uma imitação de uma cornija de lareira de mármore
preto, grande, descarnada e lascada, mostrando a descorada carne de gesso sob a
pele pintada. A lareira era de lajes pretas, polidas em vão. A cornija em si,
forrada de veludo escarlate escuro, arredondada e curva, fazia carranca para a
sala com suas salientes sobrancelhas. O pequeno fogo vermelho, bem no fundo,
era um rosnado frio e sem alegria. Mas o guarda-fogo e os atiçadores brilhavam
tanto quanto era possível conseguir-se com a aplicação de cré, sal e vinagre.
Sobre a cornija pendia um sombrio retrato do falecido Sr. William Clair, mas a
fuligem havia-lhe obliterado as feições, salvo um par de olhos ferozes e
esbugalhados, que seguiam o pequeno Frank por toda a parte, cheios de censura,
indignação e ressentimento.
Tapetes de Bruxelas, vermelhos, estriados e usados, cobriam todo o
chão. As paredes ao lado da lareira exibiam dois imensos jarros “chineses”
cheios de pendentes penas de avestruz, pintadas de um doentio violeta.
Constituíam o orgulho e a alegria da Sra. Clair. Várias vezes por ano, ela as
embebia em uma mistura de água e tinta violeta. As frondes eram cobertas por
pequenas teias escuras, costuradas com pequenas contas de fuligem. (Com
frequência, Frank esfregava sorrateiramente as frondes secas entre os dedos e
olhava fascinado para os fios pretos. Outras vezes, quando a avó estava ausente
da sala, subia no tamborete de aço ao lado da lareira e examinava com toda a
atenção os vasos vermelho e púrpura sobre a cornija, inserindo as pontas dos
pequenos dedos nas intrincadas volutas ao longo dos pescoços e em volta das
asas retorcidas. Sua maior ambição era ter tempo suficiente, algum dia, para
examinar todos os demais artigos expostos na atravancada prateleira forrada.)
A mobília da sala de visitas da Sra. Clair era muito “elegante”,
constituída de maciço e arqueado mogno, coberto de forros de crina preta ou
veludo vermelho, sofás de espaldar alto qual monstros deitados, cadeiras de
balanço que estalavam e rangiam, cadeiras duras, diabolicamente concebidas
para não se ajustar aos contornos do corpo humano. O centro era ocupado por
uma mesa redonda enorme, coberta com uma toalha de veludo vermelho, cheia
de gomos, caindo pelos lados. Aí ficava o candeeiro de latão e porcelana que
desprendia um horrível cheiro de querosene. A cúpula redonda era pintada com
rosas doentiamente vermelhas e folhas verdes venenosas. O candeeiro jamais era
aceso. A sala espojava-se no orgulho do lustre a gás, o qual, quando as camisas
Welsbach eram acesas, bruxuleava e brilhava com nua ferocidade. Às vezes,
quando era mudada uma camisa, Frank tinha permissão para levá-la até a
cozinha, onde, em frente à pia, transformava-a em pó em cima de um prato de
porcelana. As cinzas eram usadas para polir prata. Adorava sentir o delicado
rendilhado transformar-se em pó entre seus dedos.
Mas não gostava da sala de visitas. Para ele era um horror. Exalava um
perfume seco de lavanda que associava à avó, um cheiro insuportável de gás de
carvão e um frio úmido. O tapete, observou, desprendia um peculiar odor de lã e
pó quando se sentava nele. Às vezes, a sala era invadida por eflúvios de repolho
cozido e carne de carneiro, cevada e cebolas e, em um dos Natais que lá passou,
pela artemísia e o cheiro pesado e gorduroso de um ganso ao fogo. A abafada
sala abrigava em suas paredes os fantasmas de inumeráveis refeições.
De nada mais se lembrava a respeito do resto da casa. Quanto à cozinha,
recordava-se apenas da pia de ferro preto, onde esfacelava as camisas de
Welsbach. Soube pela mãe que a Sra. Clair dava pensão a nove impecáveis
“senhoras e cavalheiros”, de grande respeitabilidade: anêmicas chapeleiras,
costureiras, amanuenses, guarda-livros e um ou dois artistas, aprendizes de
tipógrafos. Jamais viu qualquer um deles, sempre escondidos em seus escuros e
tristes cubículos. A Sra. Clair não jantava com eles. “A familiaridade engendra o
desprezo”, dizia com grande unção e majestade. Frank ouvia-os amiúde
murmurando e tossindo em sons abafados na sala de jantar, do outro lado de
portas fechadas. A maior parte deles sofria de “catarro de Lancashire”. Escutava-
lhes os sufocados espirros, humildes e cheios de desculpas. Mais tarde, passos
lentos e arrastados subiam a escada dos fundos; uma ou duas portas se abriam
com um longo e demorado som. Em seguida, somente o silêncio, descendo sobre
a casa com o acompanhamento da chuva incessante. Nunca soube o que faziam
essas pobres criaturas na miséria sombria e muda de seus quartos. Na infância,
isso não o interessava. Homem, porém, era com frequência tomado por uma
sensação de desespero, de tristeza e uma espécie de fúria odienta ao lembrar-se
de tudo isso.
As recordações de Leeds confundiam-se em seu espírito, fluindo juntas
como água oleosa e cinzenta, movendo-se sem pressa e fundindo-se umas com
as outras. Mas lembrava-se claramente de certo dia, pois nesse dia experimentou,
mais uma vez, o êxtase e a exaltação-dos tenros anos.
Recordando-se, sentia novamente a aspereza da crina nas pernas nuas
que saíam das calças curtas de sarja, às quais fora ultimamente promovido.
Sentado em uma monstruosa cadeira de balanço na sala de visitas, não ousava,
porém, balançar-se. Devia ficar “como um ratinho e comportar-se”. Com as
mãos estendidas sobre os curvos braços de mogno da cadeira, sentiu a superfície
embaixo tornar-se molhada e turva com a umidade e o calor das pequenas
palmas de suas mãos. Vagamente, esfregou para frente e para trás, sentindo o frio
polido da madeira, procurando outra parte fresca quando aquecia a anterior.
Notou as meias pretas, estriadas, que não chegavam bem até as calças
quando ele se sentava, e as botas pretas abotoadas, vigorosamente engraxadas
naquela manhã. Os botões piscavam para ele à luz fraca da lareira. Moveu os pés
para captar a luz nos botões e apagá-la em seguida quando os baixava. Sua
mente estava toldada, vazia, vegetativa, o habitual nele, como à espera,
inteiramente oca, sem sequer o vestígio de uma emoção ou anelo. Todavia, com
frequência, enormes e amorfas sombras passavam por ela, como um nevoeiro,
sem traços ou aspectos distintos.
Parecia imune aos estímulos, lembrou-se anos depois. Não conseguia
recordar-se da menor irritação de sua parte, de qualquer forte desejo, da mais
fraca reação a estímulos ou tensões externas. Coisa alguma provocava-o,
irritava-o, deliciava-o. Pelo que conseguia recordar, fora um menino muito
obediente, embotado e silencioso, dócil, mal existindo, embora, considerando a
grande aversão que lhe demonstrava a avó, devia ter sido ocasionalmente muito
irritante, se não por outro motivo, pela expressão completamente vazia e pela
falta de reação ao impacto da vida. Certa vez, a avó chamou-o de “pateta”.
Fitara-a boquiaberto, com os olhos turvos de sonhos, profundos e sonolentos.
— Esse garoto não é bom da cabeça — disse ela, seca.
Sua mãe replicou em voz estridente, embora respeitosa:
— Ele é um bom menino. Nunca me causa problemas.
— Se ele não melhorar, você vai precisar interná-lo — afirmou sombria
a avó. Ele em coisa alguma pensava.
A amarga troca de palavras, que conhecia muito bem, ocorreu também
nesse dia. Balançava-se de leve na cadeira; os botões piscavam para ele e
escondiam-se na escuridão. Uma brasa estalou na grade e uma pequena língua de
fogo saltou. Frank observou-a, encantado. Parecia uma anelante flor vermelha,
abrindo-se, saltando, caindo. O lustre não fora ainda aceso. A sala de visitas
estava mergulhada numa grande e fria escuridão, cortada apenas pelo reluzir do
guarda-fogo e dos atiçadores. Gostava de observá-los. Eram coisas vivas, e
pequenas, e curiosas imagens relampejavam sobre eles.
Até esta ocasião jamais tomara realmente consciência dos pais, da avó,
ou de qualquer outra pessoa como importando ou existindo em seu mundo
privado, que era imenso, mudo e nublado. Inesperadamente, porém, ficou
consciente da presença dos demais na sala e ergueu alerta os olhos, que se
tornaram penetrantes e brilhantes na ocasião.
Pela primeira vez na vida, o mundo envolveu-o, alta e insuportavelmente
cheio de alarido e percepção, vívido demais, intenso demais. Sentiu algo girar
loucamente dentro de si mesmo, um terror, um medo, uma vontade súbita de
tapar os ouvidos com as mãos. A pequena face sem cor, triangular e mirrada
empalideceu ainda mais. A boca mole pendeu. Como se as narinas úmidas
tivessem sido apertadas, parou de respirar. Sentiu a aspereza da camisa
engomada e pregueada em torno do pescoço e dos punhos, da lã grossa do
avental, das calças de sarja, das meias, irritando-lhe a carne sensível. Sentiu o
corpo e, pela primeira vez, tornou-se consciente dele. Sentiu as batidas do
coração, saltando medroso no peito magro, o comprimento das pernas finas e
longas e o cabelo na cabeça. A crina arranhou-lhe a carne e fez sua pele arrepiar-
se. O frio da sala, a sua desolação, seus odores, o espetáculo do nevoeiro do
outro lado das janelas, os pingos de chuva e a presença de três adultos
penetraram nele como uma dor, até os ossos. O protoplasma que era seu corpo,
preguiçosamente adormecido durante quatro anos, foi subitamente inundado pela
alma. Tornou-se consciente e não conseguiu suportar a consciência.
Viu os pais realmente pela primeira vez naquele instante. O pai, um
homem baixo e murcho, de uns trinta e cinco anos, sentava-se em frente à avó.
Inteiramente calvo. O crânio, polido como o de um gnomo, era grande demais
para o pequeno corpo que o sustentava. Na face angular e sem expressão,
destacava-se um par de imensos bigodes encerados, parecendo simétricas e duras
asas na face de uma caveira. Uma aura humilde, cautelosa, pestanejante e
apologética cercava de tal modo o pobre Francis Clair, que logo se descobria que
ele não possuía a menor força de vontade, nenhum desejo de revoltar-se e
nenhuma emoção veemente na alma, a despeito dos ferozes bigodes. Via-se de
imediato que esse homem pequeno e magro vivia apavorado, vaga, mas
profundamente apavorado com tudo, que nunca reclamaria seus direitos e jamais
conhecera algo além dos mais furtivos vislumbres de grandeza e exaltação.
Possuía olhos pequenos, buliçosos, tímidos, apaziguadores, embora amiúde se
mostrassem também astutos, cautelosos e amedrontados.
Usava casimira preta, o tecido “elegante” e “respeitável”. O colete, o
melhor que possuía, de cetim preto, exibia um vago motivo de folhas que
tremiam sobre a mais diminuta das barrigas. Os cantos duros e abertos do
engomado colarinho branco pareciam sufocá-lo, como também a volumosa seda
preta da gravata, presa com uma imensa pérola cultivada que brilhava à luz da
lareira como um olho líquido. No pescoço fino, a borda afiada do colarinho
deixara uma crônica listra vermelha, profundamente sugestiva das cicatrizes de
uma corda de carrasco. Tremiam-lhe sem cessar as mãos; a direita tinha o hábito
de agarrar o joelho direito, com os dedos abertos e tensos como uma convulsa
garra. Em seguida, ele a levava ao pequeno queixo protuberante e alisava uma
covinha espantosamente profunda ou coçava o nariz pontudo e muito fino. Era
evidente que temia a mãe, que todos os gestos e palavras dela lhe causavam
apreensiva ansiedade, que se contorcia em sua presença como um verme
espetado num alfinete, suplicando-lhe, em vão, que fosse bondosa com ele em
cada temeroso movimento dos olhos.
À sua direita, longe do fogo, estava sentada Maybelle, a esposa. (Que
nome vulgar! — costumava dizer a Sra. Clair com uma fungadela.) Cinco anos
mais velha do que Francis. A sogra jamais deixava que ela esquecesse esse fato.
Fora costureira antes de casar-se e, ainda naquele momento, cinco anos depois,
possuía dedos ásperos como uma lixa, os quais, mesmo gordos, tinham um toque
calejado. Era uma mulher pequena, de seios muito grandes, cabelo ruivo
desgrenhado, caindo sempre em grandes massas em volta da face redonda, dura,
vermelha, firme como uma maçã. Os seios cheios e protuberantes chocavam-se
com o pequeno pescoço. Possuía a pele que facilmente se enrubesce das ruivas e,
à menor excitação, ondas úmidas de cor subiam-lhe até a garganta e a face. As
feições, pequenas, gorduchas, encolhidas, pareciam pregadas ao acaso na face
como torrões de massa rosada. Os amuados lábios espichados, cronicamente
amedrontados ou nervosamente beligerantes, traíam uma mente extremamente
comum e servil. Os olhos grandes, vazios, fixos, cheios de desconfiada cautela,
pestanejavam rápidos como os do marido quando sentia a menor confusão. As
pestanas avermelhadas projetavam-se das pálpebras em dura fímbria. A despeito
da gordura e da pouca altura, seus movimentos eram espasmódicos, rápidos e
desastrados. Às vezes, quando apressada se ocupava do trabalho mais
insignificante em casa, agitava distraída os braços pequenos e os gordos dedos
mexiam desajeitados em casas de botões.
Fizera o próprio corpete marrom claro, mas cometera um doloroso erro
no jabô de renda, da gola apertada até a cintura, pois carecia da menor parcela de
gosto.
— Realmente, May — dizia a Sra. Clair, desprezando o nome
“Maybelle”, — não posso compreender como você conseguiu viver de costura,
sendo tão ignorante em matéria de estilo! — O tecido de cor clara e opaca estava
completamente coberto de manchas de resíduos da última refeição, as quais
Maybelle procurava apagar sem cessar, esfregando-as inutilmente com um lenço
sujo. A saia, de sarja azul-marinho, fora mal cortada, não assentava bem e
escapava continuamente do cinto. As botas abotoadas, largas, chatas, traindo a
inchação de joanetes, eram nervosamente puxadas para baixo enquanto ela
olhava medrosa para a sogra e tentava sorrir conciliadoramente.
Frank fitou os pais, atônito, não por qualquer apreensão crítica, mas pela
percepção consciente da existência deles e de si mesmo. Olhou-os fixamente
durante longo tempo no demorado e contrafeito silêncio que caíra na sala.
Ouviu, em seguida, a voz áspera da avó, sobressaltou-se, e virou os olhos para
ela.
Ninguém sabia por que a Sra. Clair era chamada de “Jamie”, um nome
tipicamente masculino, mas era “Jamie”, e ai daqueles que fizessem troça!
Sentava-se espigada numa cadeira dura, pois, com ela, nada de frivolidade. Era a
dona razoavelmente próspera de uma pensão muito respeitável, possuía um “pé-
de-meia no banco” e orgulhava-se disso. Orgulhava-se também do fato de ter
provido o próprio sustento e o do filho desde os seis anos dele, “nunca pedira um
tostão a pessoa alguma e nunca devera favores”. E isso não era pouco para se
orgulhar naquele décimo dia de novembro de 1904. Tudo quanto havia na casa,
dizia ela, estava pago, dos tapetes no chão às cortinas nas janelas, bem como
todas as panelas, pratos e colheres na cozinha. “Os credores são maus amigos e
não quero coisa alguma com eles”, costumava dizer untuosamente em voz alta.
Essas palavras não eram ditas sem motivo. Considerava uma espécie de virtude
especial o fato de não ter parentes próximos. “Ando como uma rainha entre os
vizinhos”, dizia. “Ninguém pode dizer uma palavra contra mim e são bem
poucos os que falam comigo. Jamais ter amigos, jamais ter inimigos, este é o
meu lema. Pague suas dívidas, ande de cabeça erguida, dê seu óbolo na igreja
aos domingos e você pode enfrentar Deus e o homem com uma consciência
tranquila. ” Não era tagarela. Os hóspedes pouco lhe falavam, salvo para desejar
um humilde “bom dia, Sra. Clair”, ou um humilde “boa noite”. Somente um ou
outro ousava aventurar-se, na presença dela, a uma opinião sobre o estado do
tempo. Conservava-lhes os quartos bem limpos, exigia o pagamento do aluguel
aos sábados e não esperava que a considerassem como ser humano. Era uma
simples questão de negócio. Se um deles adoecia, uma bandeja podia ser levada
até o quarto pela relaxada empregada, mas não muitas. Dois dias de doença e
eram “postos na rua”, só Deus sabe para onde. Isso não interessava a ela.
Ali continuava, consciente de seu caráter e coragem, com fé irrestrita na
operosidade e no dinheiro no banco e nada de dívidas. Muito alta e magra, até
aquele dia Frank jamais lhe vira realmente a face. Viu-a naquele momento,
grave, cheia de retidão e firmeza, construída de ossos e de carne dura e
repuxada, olhos castanhos penetrantes, nariz proeminente, boca rasgada e
sombria em um ninho de rugas e um queixo que parecia uma pá. Vestia preto,
pois era viúva e a cor “ficava bem”. O corpete de seda preta e dura, brilhante,
estalava quando ela se movia, como se feito de ferro fundido. A gola alta e dura
era inocente da menor franja de renda. Do pescoço pendia uma fina corrente de
ouro com um medalhão, onde guardava um anel de cabelo do marido. A saia,
preta também de tão dura lembrava madeira. Cobria-lhe os pés. Para ela, nada de
vergonhosa exibição de tornozelos ou botas abotoadas. De fato, podia-se
imaginar que ela nunca fora jovem ou que o duro e cinzento penteado
pompadouriano, preso com grampos, jamais houvesse tido outra cor. Era
impossível acreditar que ela o soltava à noite e o deixava descer pelo pescoço
duro, ou que usava camisola. Os amedrontados hóspedes, às vezes, tinham
certeza de que ela jamais dormia, permanecendo sempre naquela cadeira, na
mesma posição, esperando pela noite de sábado. Um molho de chaves tilintava
em seu cinto.
Quando se movia, evolava-se dela um perfume seco, composto de sabão,
lavanda velha, cloreto de cálcio e retidão. O perfume atingiu as narinas do jovem
Frank, que se encolheu. Mas não desviou os olhos. Estava fascinado com a
consciência da existência da avó. Não tinha medo.
— Ponha um pouco de carvão no fogo, Francis — ordenou ela
peremptória ao filho. — Mas não demais. Apenas um níquel. Carvão custa
dinheiro.
Notou o olhar concentrado de Frank. Virou rápida e rigidamente a
cabeça para ele. O menino era “biruta”. Nenhuma dúvida a esse respeito. Que
olhos enormes e sem expressão, que boca mole, caída, que olhar! Apontou para
ele um duro dedo e disse com mais preocupação do que desprezo.
— O garoto é um parvo, May. Fracote. Não tem mais vida do que um
gato doente. E no próximo ano você vai mandá-lo à escola! Puxa! Ele vai ser-lhe
devolvido, estou avisando.
— Não fique aí embasbacado — ralhou o pai, com uma súbita irritação e
um olhar para a mãe. — Feche a boca. Você está-se babando pelos cantos. —
Perdoe-me, parecia ele suplicar à formidável Sra. Clair. Mas ela ignorou-lhe a
súplica e arqueou o longo pescoço.
— Frank é um bom menino — disse Maybelle com uma fraca e rara
coragem — Assoe o nariz, querido. E não olhe assim para sua avó. Muito bem,
assim é que se faz.
— Frank! — fungou a Sra. Clair, sacudindo a cabeça e dirigindo um
olhar maldoso para o filho acovardado. — O nome dele é Francis. Nunca
suportei apelidos. Francis é um nome respeitável. Ou será que você tem
vergonha dele, May? Se é que me lembro bem, você ficou orgulhosa de
pronunciá-lo quando se casou.
Como estavam insuportavelmente perto e próximas aquelas vozes! Não
mais altas do que o habitual, mas, para a consciência despertada da criança,
ressoavam fortes, com uma intensidade dilacerante. As figuras à frente não se
moveram, mas lhe deram a impressão de que se arremessavam contra ele pelo
espaço, como ameaçadoras presenças. Suas faces se intumesceram, tornaram-se
enormes, cheias de olhos, bocas, línguas trovejantes e apavorante tumulto.
Amedrontou-se com a arremetida, com o som das vozes. Estendeu as mãos para
conservá-las à distância. Explodiu em dolorosos soluços de puro pavor. Levou as
mãos aos ouvidos. Não havia ajuda, não havia refúgio. Dobrou as pernas sob o
corpo, como se quisesse esconder-se, como se tentasse tornar-se minúsculo como
um pequenino animal, ameaçado em uma floresta cheia de feras. Cruzou as mãos
sobre a cabeça e gritou.
May, com o instinto maternal dominando o medo e o respeito pela sogra,
exclamou em voz estridente:
— Olhe só o que a senhora fez com meu filho, Sra. Clair!
Apoquentando-o e irritando-o até que ele teve um ataque! — Saltou da cadeira e
foi bamboleando sobre as pernas curtas até a trêmula criança. Tomou-o nos
braços e puxou-lhe a face para os seios. Ele continuou a chorar em um murmúrio
indistinto, mergulhado na massa de rendas, carne quente e botões. Entre as
numerosas dobras do busto, porém, um traiçoeiro alfinete fora usado para fechar
uma casa de botão vazia. Furou-lhe a face como se fosse um toque de fogo. O
menino empurrou com as mãos o busto esmagador e gritou, numa mistura de
pavor e dor. Uma gota de sangue surgiu em sua pele.
— Oh, oh, o pobrezinho! — disse Maybelle quase em soluços,
esfregando freneticamente a umidade vermelha com a renda áspera do jabô. —
Poderia ter-lhe furado os olhos.
— Pelo amor de Deus, faça-o acabar com esses berros! — exigiu a Sra.
Clair, indiferente, apenas aborrecida e enojada. — E se você usa alfinetes, o que
nenhuma mulher arrumada faz, tem que aguentar as consequências. Há arnica lá
em cima. Onde é que colocou seu lenço?
Francis Clair havia-se erguido, sem saber o que fazer, dividido entre a
afeição natural pela esposa e o medo que sentia da mãe. Estava furioso com
“aquele diabrete” por ter criado toda a confusão. A mãe tinha razão, geralmente
tinha. O menino era um fracote, um pateta e Maybelle, “maluca” por ele a
despeito das palmadas que lhe dava e do rancor que sentia quando o tolinho a
irritava.
— Faça-o calar a boca ou lhe dou umas palmadas! — exclamou ele com
uma raiva fraca. — Todos aqui vão reclamar. O que é que os hóspedes vão
pensar?
— Não me importo com esses malditos hóspedes — respondeu irritada
Maybelle. — Não vou permitir que o pobrezinho seja castigado simplesmente
porque não é... não é... muito inteligente. Calminha, calminha, querido —
cantarolou para a criança, que estrebuchava em seus braços como um possesso.
Acalentou-o para cima e para baixo. O cabelo ruivo se soltara e caía-lhe sobre os
olhos. Com a face quente e úmida, cor de papoula, os olhos alagados de lágrimas
fáceis, tremiam-lhe os pequenos e grossos lábios. Indignada, respirava forte e
alto. — Calminha, é a mamãe que está com você agora. Não tenha medo. Quer
um pouquinho de torta, querido? Um lindo e gostoso pedaço de torta?
— Não há torta suficiente. Há apenas o bastante para os hóspedes —
observou a Sra. Clair com intencional indiferença. — Ele pode comer um pouco
de pão com geleia de groselha.
— Ele odeia geleia de groselha — protestou Maybelle. Andava
pesadamente de um lado para o outro, acalentando o menino nos braços. Os
gritos diminuíram, mas ele continuou a tapar convulsamente os olhos com as
mãos.
A Sra. Clair encolheu os ombros magros. Estalou a seda preta e
pregueada do corpete. Lançou ao filho um demorado e mortal olhar, exigindo
que aceitasse seu destino com fortaleza, embora ela, sua mãe, soubesse que ele
estava condenado à derrota.
Diminuía aos poucos a irritação de Maybelle com a sogra. Sabia que ia
ouvir do marido mais tarde por aquela exibição de revolta e pela linguagem.
Começou, nesse momento, a sentir-se aborrecida e impaciente com a criança.
— Cale a boca, cale a boca — disse com um pouco de irritação na voz.
— Deixe de chorar ou lhe dou umas palmadas. Dou mesmo. Um menino grande
como você!
Parou por um momento ante a cornija da lareira em seu rápido passeio
de um lado para o outro na sala de visitas. Sentiu uma umidade suspeita nos
antebraços. Disfarçadamente, dando as costas à sogra, apalpou as pequeninas
calças. Ele havia feito novamente. O que seria que a Sra. Clair e Francis
pensariam? Teriam confirmada a opinião que tinham sobre a criança. Ficou
furiosa e sacudiu o apavorado menino-
— Você quer levar umas palmadas? — perguntou, feroz.
O menino calou-se de chofre, mas o seu corpo tremeu violentamente.
Abriu os olhos. Não havia lágrimas neles, apenas dureza e fúria. Olhou zangado
em volta. Em seguida, abriu a boca.
Estando no mesmo nível da cornija da lareira, subitamente apontou com
o dedo, tirando sons grossos do fundo da garganta.
Maybelle acompanhou o pequeno dedo, espichando a cabeça
desgrenhada sobre o gordo ombro.
— Não, não, você não pode tocar nisso. São coisas da vovó.
— O que é que ele quer? — perguntou a Sra. Clair, inesperadamente, em
alerta. Para dizer a verdade, ficara algo perturbada minutos antes com a
veemência da criança, que fora sempre tão calada, dócil, emburrada. — Ele não
pode brincar com meus vasos e minhas bugigangas, nem mesmo para que cale a
boca.
Maybelle recuou, ainda estirando o pescoço. Frank estendeu
rapidamente a mão e agarrou um grande búzio, enroscado em volutas. Puxou-o
para bem junto do peito como se fosse um tesouro precioso. A pequenina face
brilhava.
— É o búzio! — informou mal-humorada Maybelle à sogra. — Não,
não, querido, você não pode tocar nele. Dê à mamãe para ela botá-lo no lugar.
Tentou arrancá-lo dos pequenos dedos úmidos. Frank, porém, gritou
novamente, em uma nota tão aguda que, involuntariamente, Maybelle se
encolheu toda. Francis pôs-se novamente de pé como se tocado por um ferro em
brasa, contraindo selvagemente os punhos. A Sra. Clair sentiu que ensurdecia.
Mas a sua voz abafou o alarido, firme e dura:
— Deixe-o ficar com o búzio, pelo amor de Deus! Ele não pode estragá-
lo. Não vale nada. Foi deixado aqui por um hóspede. — E acrescentou: — Ponha
esse diabrete no chão, junto à lareira, May. Tenho ainda muito que falar e não
podemos perder tempo com ele.
Maybelle colocou-o no chão com um baque surdo. Maldosamente, teve
esperança de que as calças molhadas do garoto sujassem o tapete de Bruxelas.
Amedrontada em seguida, levantou-o novamente, olhou em volta, viu o olhar da
Sra. Clair e acomodou-o outra vez junto à lareira.
Ele esqueceu tudo, as vozes, as faces, o ardor no rosto. Tinha o búzio na
mão. Inclinou-o na direção do fogo.
CAPÍTULO 3
O búzio media mais ou menos quinze centímetros de comprimento por
dez de largura. A superfície externa era áspera e cortada por sulcos. A interna,
porém, era sombreada, do rosa extremamente delicado da borda até o mais suave
rosa-malva na direção do centro. Além disso, a superfície interna era macia e fria
ao toque e estriada de prata viva, que relampejava e mudava à luz do fogo.
Frank aninhou nas mãos o maravilhoso tesouro, sem fôlego, enlevado,
tomado por um êxtase religioso, uma felicidade reverente. O seu pequeno
coração dilatou-se com uma espécie de indescritível júbilo. Conservou o corpo
imóvel para não perturbar o fluxo da prata frágil que saltava em pequenas listras
e regatos sobre a linda tonalidade rosa e malva. Tremiam-lhe as mãos. A prata
corria, tornava-se mais brilhante, transformava-se em luas e rios em um
microcosmo. Uma ilha rosada ergueu-se momentaneamente entre correntes de
prata, mergulhou e desapareceu.
Algo parecido com um soluço abafado sacudiu-lhe a garganta. Seus
cachos castanhos captaram a cor das chamas da lareira quando curvou a cabeça
sobre o búzio. Seu rosto afogueou-se e seus lábios ganharam cor. Uma luz
sonhadora e extasiante cobriu-lhe as feições, que, subitamente, se tornaram
belas.
A própria Sra. Clair não ficou insensível à inesperada e incrível beleza
da criança agachada junto à lareira, com o búzio tremendo ligeiramente nas
mãos. Relutante, disse:
— Ele devia ter sido menina. Eu nunca havia notado como é bonito. Se
houvesse sido menina, não importaria se não fosse inteligente. — E acrescentou
em voz mais suave do que o habitual: — Francis, ponha o búzio no ouvido. Você
ouvirá o som do mar.
O menino sobressaltou-se. Ergueu os olhos, aturdido. Mas havia
escutado. Obedientemente, levou o búzio ao ouvido, embora coisa alguma
soubesse sobre o mar, que para ele era apenas uma palavra.
Ouviu uma longa e sonora nota, uma miniatura de trovão, um zumbido
baixo e majestoso. Fascinado, sem ousar mover-se, escutou. Um som baixo e
cantante ergueu-se sobre as notas mais graves. Era um som de música de fadas,
doce, irresistível, uma voz cheia de alegria, ternura, glória. Nesse momento,
outras vozes se reuniram a ela. O universo transbordava de canto, acompanhado
por baixos longos, por imensos tambores rufando à distância e pelo estridor de
trombetas celestiais.
Esqueceu o tempo e o lugar. Esqueceu sua entidade recém-descoberta, o
mundo, os pais, a sala, o seu ser. Transformou-se apenas em um núcleo de
consciência, queimando forte, apaixonadamente concentrado na música que
subia mais e mais, inundando os limites mais remotos do espaço com o poder e a
força de uma harmonia esmagadora.
Nuvens de luz deslizaram pela visão. Escuros abismos rolaram em sua
direção, foram cortados ao meio por espadas de fogo e encheram-se de
atordoante radiação. Montanhas caóticas, atropelando-se, erguiam-se em
cinzenta majestade ante seus olhos e refulgiam em azul, púrpura, escarlate, ouro,
até que ele não conseguiu mais suportar-lhes o brilho. Oceanos de chamas
rodopiaram loucamente para longe, queimando em cores mutáveis; arco-íris
incandescentes, lançando raios, relampejaram sobre abismos insondáveis. E em
toda parte a música, sempre mais alta, como uma trovejante e universal
celebração de triunfo, mais terrível em seu esplendor do que a música que ouvira
no quintal em Higher Broughton. Naquela ocasião fora o mais baixo e nobre dos
ecos. Nesse momento era um êxtase insuportável, uma glória selvagem, quase
terrível.
Tal foi a alegria que não conseguiu suportá-la. Achou que tudo conhecia,
tudo compreendia. Seus olhos cegos fitaram as chamas, refletindo a luz
bruxuleante. Com expressão petrificada, sentiu um som de rompimento no peito,
como se algo houvesse sido libertado, solto. Continuou em transe, sentado ali,
com a alma na música, nas visões.
O trovão dilacerante parecia feito de grandes asas, batendo, palpitando,
ameaçadoramente próximas. Inesperadamente, viu uma mão emergir do fogo e
do esplendor cegante. Era uma mão enorme, mas, ainda assim, delicadamente
modelada, longa, esguia e forte. Segurava uma bola de barro. Os dedos fechados
em volta dela ergueram-se, projetaram-se para a frente, abriram-se. A bola saltou
como coisa viva e arremeteu para a frente e para baixo no espaço, mergulhando
no arco-íris e nas montanhas desmoronantes de luz e caos. Foi iluminada por
elas e raios coloridos brilharam em sua volta, cercando-a como um halo
brilhante- Desapareceu no espaço escuro, girando como um pião, girando, tonta
e desarvorada, mas cheia de sentido.
A mão estendeu-se, os dedos abriram-se e ergueram-se um pouco como
se lhe dessem uma bênção. Ficou assim durante algum tempo, a luz brilhando
através dela, caindo como feixes de sua palma, descendo pela escuridão que se
formava em cataratas de ouro, iluminando-lhes momentaneamente o rolar e a
queda.
A mão retirou-se devagar, relutante, mas com decisão. A luz seguiu-a.
As cores perderam a viveza e esmaeceram. As vozes baixaram e se
transformaram mais uma vez em um trovão sonoro e difuso. Retiraram-se como
uma maré melodiosa e meditativa para os confins do universo de onde vieram.
Naquele momento, eram apenas um murmúrio.
Finalmente, restou apenas o silêncio, as trevas, o vazio, a dor
insuportável e o senso de terrível perda no coração do menino.
— O menino dormiu, graças a Deus — disse a Sra. Clair. — Não, não o
acorde, May. Deixe-o dormir. Se o acordar, ele vai chorar novamente. Não, deixe
que ele fique com o búzio, se quiser. Logo vai deixá-lo cair no chão e quebrar.
Ele é anêmico — continuou a Sra. Clair. — Por que não lhe dá ferro? Parece que
ele sofre de raquitismo.
Ele se alimenta bem — respondeu Maybelle, justificando-se. Mas estava
preocupada com a palidez e a flacidez da criança.
A Sra. Clair encolheu eloquentemente os ombros. Voltou a atenção para
o filho.
— Então, está resolvido. Vou para a América em janeiro. Recebi uma
boa oferta pelos móveis da casa e os hóspedes foram avisados com bastante
antecedência. Francis, seria melhor que você fosse também.
— O que é que eu faria na América? — perguntou Francis Clair numa
fraca tentativa de gracejo. — Trabalharia como operário nas ruas, varrendo o
ouro que há por lá?
— Não gosto de leviandades — observou a Sra. Clair com grande
seriedade, balançando-se um pouco na cadeira dura. — Você faria exatamente o
que faz aqui: trabalharia numa farmácia. É um bom farmacêutico, pelo que diz o
Sr. Sawyer. E, depois, você tem seu violino. Poderia ter oportunidade de usá-lo.
Francis ficou calado. Apertou o joelho com a mão e olhou fixamente
para o fogo. Tinha a face imóvel, vazia, petrificada.
— Acho que lá há também casas de diversão — continuou inexorável a
Sra. Clair.
Francis Clair não se moveu, embora parecesse sacudir-se violentamente,
como se tomado de desespero. Em voz baixa, respondeu:
— Eu não tocaria em casas de diversão na América. Da mesma forma
que não toco aqui.
A Sra. Clair sacudiu impaciente a cabeça:
— Você não toca, absolutamente. Toca, May? Depois de todo o dinheiro
que gastei, tentando fazer dele alguma coisa, embora uma casa de pensão não
seja nenhuma vergonha, isso lhe garanto. Deu-nos pão e manteiga, boas roupas e
um telhado sobre nossas cabeças durante estes anos todos. É uma atividade
honesta e respeitável. Não me lamento. Não tive a quem recorrer...
— Não estou dizendo nada, mãe — respondeu o filho, mas falava em
tom distraído.
— E seria demais se dissesse! É mal-agradecido. Bem, eu tinha grandes
esperanças em você. Seu pai tinha uma loja. Isso é respeitável, também, e não
sou eu que vou pensar de outra maneira.
Mas eu queria algo melhor para você. Você queria tomar lições de
rabeca. Teve-as...
— Violino — murmurou Francis, contorcendo-se.
— Rabeca. Bobagem! O que é que isso importa? Era chamado de rabeca
no meu tempo, antes que as pessoas começassem a falar complicado. Rabeca.
Bem, você teve suas lições e o que foi que fez com elas? Nada. Nem mesmo
pratica, não é?
— Passou muito tempo. Tenho andado ocupado.
O que poderia dizer à mãe? O que poderia contar-lhe? Meu professor me
disse que eu não tinha verdadeiro talento e podia apenas decorar, isso a despeito
de tudo o que eu ouvia no íntimo. Mas não conseguia expressá-lo! Surgia em
espasmos, em gotas. O professor disse que eu me sairia bem numa taverna,
talvez num cabaré ordinário ou, quem sabe, poderia ensinar. Mas isso não era o
suficiente. Não era o suficiente para o que eu ouvia no íntimo! Não podia.
Realmente, não podia. Comigo era tudo ou nada. É nada. A caixa do violino
cobriu-se de pó. Isso sou eu. Coberto de pó. Não tenho alma alguma e isso é o
que importa- Nenhuma alma.
— Ocupado! — bufou a Sra. Clair. — A gente sempre arranja tempo
para fazer o que quer. Isso é simplesmente uma desculpa. Bem, faça o que
quiser. Não sou eu quem vou impor minhas opiniões a outrem. Meta-se com sua
vida, esse é o meu lema. Viva a sua vida e deixe que os outros vivam a deles.
Comporte-se e não dê bola para os vizinhos. De qualquer modo, você teria
sucesso na América.
— Você tem razão, mãe. É uma rabeca.
Maybelle ergueu rapidamente os olhos. Conhecia aquele tom quase
maligno de voz.
— Hum? — disse a Sra. Clair. — Bem, neste caso... Uma rabeca é uma
rabeca. Não adianta desprezar qualquer maneira de ganhar a vida. Além disso,
você também é farmacêutico.
Preparar pequenos comprimidos verdes, brancos, vermelhos, para
preguiçosos intestinos, para vagas dores de cabeça, para todas as crônicas e
anônimas doenças que afligem o corpo humano. Fechar e embrulhar em papel
listrado. Amarrar com um barbante. Olhar para os grandes vasos de vidro e, às
vezes, ver cristais que parecem fagulhas de fogo amarelo, vermelho, azul.
Farmacêutico! Pensou nos grandes pioneiros da Farmacologia. Certa vez,
sonhara em ser um deles, em descobrir a cura da tuberculose, do câncer, do
coração lesado, de tumores no intestino. Pensara no dia em que se ajoelharia ante
a Rainha — era um Rei, naquele momento. “Erga-se, Sir Francis Clair.” Calções
de seda, meias de seda, um crachá no peito, os jornais e os nobres do mundo
homenageando-o! Meu Deus, farmacêutico! Farmacêutico em uma ruazinha sem
importância em High Town, com a luz do candeeiro ferindo-lhe os olhos, a
campainha tocando à porta, o cheiro de sujo, poeira, chuva, suor e guarda-chuvas
gotejantes! Apertou o joelho com tanta força que os dedos penetraram na carne.
América. Os dedos convulsos relaxaram-se lentamente. Havia dinheiro
na América. O dinheiro compensava uma porção de coisas. Qual era o nome
daquele indivíduo que voltara a Manchester para buscar a mulher e os filhos?
Não se lembrava. Mas o sujeito trouxera os bolsos cheios de libras — de dólares.
Mostrava-os como um nababo. Ganhava três libras semanais em uma loja, num
lugar chamado Philadelphia. Usava boas roupas. Havia dinheiro para queimar na
América, dissera. Bares onde corria cerveja barata, casas de vaudeville e
oportunidades para todos. A América era a terra do dinheiro. Empregos? Bastava
pedir, a quatro ou cinco libras por semana! Francis fez cálculos. Tinha sorte em
levar para casa três libras e dez xelins todas as noites de sábado. Não conseguia
lembrar-se de quando tivera nas mãos o último soberano. Poderia mesmo haver
esperança na América. O que dissera aquele homem? Horrivelmente quente o
verão em Philadelphia. Mas havia sol. Nunca se via o sol em Lancashire.
Inesperadamente, o sangue fraco e o corpo magro agitaram-se e ele ansiou pelo
sol que nunca vira. Ouviu a chuva descendo pelas biqueiras, escorrendo dos
beirais. Lavava as janelas em correntes amarelo-acinzentadas. O nevoeiro
empurrava as vidraças. Uma carroça passou chocalhando pelos tijolos da rua.
— América — disse em voz alta. — Vou pensar nisso.
— Oh, Frank, você nunca deixará a velha e querida Inglaterra! —
exclamou incrédula Maybelle. Espichou os beiços e seus olhos encheram-se de
lágrimas. — Viver entre estranhos!
— Não seja medrosa, May — interveio a Sra. Clair. Inclinou com
aprovação a cabeça para o filho. — É isso que você deve fazer, Francis. Fazer
valer sua vontade. Você é quem sabe o que é melhor para você. Eu planejei tudo.
Vou abrir uma pensão na América. Tenho uma amiga... Você deve lembrar-se
dela. Sra. Blossom, esse é o nome dela. Agora, Sra. Jones. Casou na América.
Mora em Bison, num lugar chamado Nova York. Você deve lembrar-se de que
lhe falei sobre ela. Tem uma pensão e cobra quinze xelins por semana. Pense
somente nisso. O meu melhor quarto de frente só rende oito. E ela não tem uma
pensão fina, pelo que diz. Simples, para gente da classe operária. Eu faria coisa
muito melhor. Caixeiros, guarda-livros, lojistas. Eu poderia cobrar mais.
Ganharia uma fortuna. Não tenho as melhores camas de pena que o dinheiro
pode comprar? E bons lençóis e travesseiros de pena? Eu sei o que é qualidade.
Vão gostar disso na América, onde as pessoas pouco mais são do que selvagens.
Gostarão também de provar a velha e boa cozinha inglesa. Um pouquinho de
salva, cebola, tomilho e manjerona. Acho que lá não há esses temperos.
Maybelle enxugou os olhos com o lenço amassado. Frank sempre seguia
os conselhos do velho demônio. Como enfeitiçado. Ouviu a chuva também, mas
para ela era uma voz amiga e conhecida. Horrorizava-se somente em pensar na
América.
— Está resolvido, então — disse a Sra. Clair, que sempre resolvia tudo
imediatamente, convencendo e deixando sem ação a plateia — Vocês vão depois.
Quanto é que você tem no banco, Francis?
Ele contorceu-se todo.
— Bem, mãe, a senhora sabe, houve a bronquite de Maybelle no último
inverno. Depois o garoto adoeceu e tivemos que lhe dar óleo de fígado de
bacalhau misturado com vinho. E precisei comprar um sobretudo novo. O velho
estava todo remendado...
A Sra. Clair endereçou a Maybelle um olhar maldoso, como se tudo
aquilo fosse culpa dela.
— Compreendo — disse sinistra. — Você nada tem.
— Duas libras e três xelins.
— Compreendo. Às vezes, um homem não pode progredir na vida. Mas
não o estou culpando, Francis. Sei o que você teve que enfrentar. Se não
houvesse extra algum, quanto é que você poderia economizar em um ano?
Um sorriso irônico apareceu na face de gnomo de Francis.
— Duas libras e três xelins, se tiver sorte.
— Quando você vender a mobília, isso dará algum dinheiro. Você possui
em casa algumas coisas boas. Dei-as a você e sei que são de qualidade. Consiga
um bom preço. — Interrompeu-se, lutando contra si mesmo. — Eu lhe enviarei a
diferença. Você poderá pagá-la aos poucos. Sem juros — acrescentou,
combatendo os próprios instintos.
Sem juros, pensou ele. Mas a vida jamais é assim. Os juros se empilham
e ultrapassam o principal. Transformam-se numa montanha que o homem jamais
pode escalar. É sepultado sob ela.
— Vou pensar no caso — falou novamente.
— Bem, estou satisfeita porque está tudo resolvido — disse firme a Sra.
Clair. — Vou buscar o chá. Tenho um regalo para você hoje à noite. Presunto e
língua fresca, cortada em fatias, muito finas. Pão preto, manteiga e geleia de
ameixa. E um pouquinho de bolo de passas. E agrião... o último. Você sempre
gostou de agrião, Francis. Chá bom e quente. Pode botar mais carvão no fogo.
Mas tenha cuidado. Não desperdice, não desperdice, esse é o meu lema.
CAPÍTULO 4
A Sra. Jamie Clair, competente e segura de si mesma como sempre,
“torrou” a mobília da casa e, armada com alguns objetos de uso doméstico,
viajou para a América em janeiro. Francis Clair, porém, conseguira um “posto”
numa grande farmácia em Reddish, com um aumento de quinze xelins por
semana. Maybelle, feliz por que a ameaçadora hégira fora, pelo menos, adiada,
acompanhou-o feliz para o pequeno subúrbio de Manchester.
A casa em que moravam em Mosston Street era quase idêntica às que
haviam ocupado em Higher Broughton e High Town, apenas um pouco mais
triste e coberta de fuligem, se tal era possível. Havia um cotonifício em Reddish,
onde crianças, rapazes, moças, homens e mulheres trabalhavam nos teares em
meio a um calor úmido e fumegante, quase nus, tossiam e contraíam bronquite
ou a “tísica”. Os vizinhos dos Clairs faziam parte dessa pobre gente, mas
Maybelle sentiu-se contente. Havia lojas próximas e podia-se comprar peixe e
batatas sem muito trabalho. Havia, também, os eternos quintais de pedra, os
muros e as portas verdes de madeira para matar as saudades de um lar. Ela era
por natureza uma alma cordial. Pouco tempo depois, do lado de fora do portão
verde, com os braços cruzados sobre o avental, trocava sintomas, bisbilhotices e
“receitas” com as esposas dos operários do cotonifício. Hipocritamente,
lamentava-se por não ter mais filhos, mas tinha todo o cuidado em não dizer sua
idade. Na verdade, mostrava-se realmente orgulhosa da benevolência da
natureza. Bastava-lhe olhar para as crianças anêmicas, semimortas de fome,
raquíticas, que repuxavam, chorando, as saias sujas das invejosas vizinhas para
reconhecer que fora abençoada por Deus. Além disso, tinha a oportunidade de
exercitar a “virtude” egoísta e realmente cruel chamada magnanimidade. Podia,
com Francis ganhando melhor salário e sendo ela mãe de um único filho, entrar
nas sórdidas cozinhas das vizinhas e deixar um pote de geleia, um pão, um
“pedacinho” de carne, ou um repolho como uma espécie de oferenda ao Moloch
da natureza, que fora tão inexplicavelmente bondoso com ela. Às vezes, evitando
o olhar vigilante de Francis, dava presentes de sapatos usados e roupas pequenas
demais para Frank, como um óbolo adicional aos malignos deuses de todos os
pobres, dos esfomeados e dos casais cheios de filhos.
Sentia uma espécie de cálida alegria quando via uma pobre mulher
descendo aos tropeços a rua, vestida com um de seus corpetes remendados, saia
de sarja jogada fora ou xales comidos pelas traças. Agradava-lhe sentar-se em
uma pobre cozinha e, lamentando-se e balançando-se, consolar uma mãe aflita
de muitos filhos pela calamidade de ter sido seu homem “chutado” da fábrica.
Às vezes, dava-se ao luxo de oferecer um xelim ou dois ou uma garrafa de óleo
de fígado de bacalhau a um pobre-diabo que tossia e escarrava os pulmões numa
cama imunda, ou uma nova camisola de batismo, de algodão áspero e renda
ainda mais áspera feita à máquina, a um recém-nascido. Certa vez, tivera a
deliciosa oportunidade de consolar uma arrasada mãe, cuja filha de dez anos
perdera três dedos da mão direita na fábrica. Maybelle achou que a ocasião
merecia meio quilo inteiro de chá. Heroicamente, expulsou da mente o
pensamento de que não podia mais comprar aquelas luvas de pelica branca para
ir à igreja nos domingos.
Frank lembrava-se de ouvi-la cantar feliz ao passar roupa à noite na
cozinha:
“Antes de casar, eu usava xale,
Agora, casada, nada mais tenho!
Oh, que vida, que dura vida!
Melhor solteira do que mulher de pobre!”
Até o fim da vida, essa canção tola o obcecaria, tornando a chuva, a
fuligem, o sofrimento dos pobres, os cotonifícios e toda a miséria dos
desafortunados tão vivos em sua memória como quando a ouvira pela primeira
vez. Achava que era a verdadeira canção da Inglaterra, a verdadeira canção do
povo, a canção dos que trabalhavam de sol a sol e cujas vozes mudas jamais lhes
conseguiam expressar a angústia.
Com que clareza, mesmo aos quarenta anos, lembrava-se da casa de
Mosston Street!
Havia do lado de fora um pequeno “jardim”, uma faixa de musgo
bolorento de três metros e sessenta por dois e quarenta, cuidadosamente
guardada por uma grade de ferro. Os degraus que davam para a casa, esfregados
todas as manhãs de sábado, brilhavam como neve, pois era ponto de honra das
donas-de-casa locais serem as primeiras a caírem de joelhos nesse dia, armadas
com balde, escovão e tijolo de sapólio. A mulher que negligenciava esse trabalho
público era considerada indigna e desprezível e recebia dos vizinhos apenas
curtas inclinações de cabeça. O parto era a única desculpa aceitável.
A sala, fechada por cortinas, não era uma “sala de estar” em qualquer
sentido da palavra. Frank não se lembrava de ter-se sentado ali alguma vez,
mesmo por um único momento, até o dia em que teve permissão de empoleirar-
se no caixote de madeira que continha as posses da família, um caixote já
rotulado: “Baltic. White Star Line”. Mas lembrava-se da planta de borracha na
janela, alta, fina, repulsiva, em seu vaso de porcelana verde, das cortinas de
Nottingham entreabertas com todo o cuidado para informar aos vizinhos que, do
lado de dentro, tudo era ortodoxo e estava em ordem e que havia ali uma planta
de borracha. Lembrava-se do tapete turco vermelho, do veludo vermelho das
cadeiras e do sofá, dos candelabros folheados a prata, da cornija de pedra da
lareira, forrada com veludo escarlate e das rosas vermelhas esparramadas do
papel de parede. A Sra. Clair havia-os presenteado com a grande mesa redonda
de centro, com respectiva toalha carmesim de gomos, e o candeeiro de porcelana
que rescendia a querosene. Sobre a mesa pendia um lustre barato de gás,
instalado recentemente. A Sra. Maybelle, grande apreciadora do vermelho, sentia
fascínio pela sala de visita. Com frequência, reverentemente à porta, murmurava:
“Rico”. Virava-se para Frank, escondido por trás de suas saias, e dizia orgulhosa:
“Rico, lindo, não é?” Jamais acendia o fogo na lareira de pedra, embora polisse
religiosamente o guarda-fogo e os atiçadores.
A família vivia em uma sala nos fundos, alcançada por meio de um curto
corredor. Havia ali menos “riqueza”, embora mais conforto. Sala feia, mas
animada por um fogo sempre aceso. A cornija da lareira acumulava grande
coleção de pequenas bugigangas, cálices com velas de cera, um relógio de
mármore de imitação e algumas fotografias. Um tapete barato cobria o chão, em
cujo centro ficava a mesa de jantar, entre duas janelas que faziam ângulo reto
entre si. Havia ainda cadeiras de balanço de madeira, com almofadas, e um lustre
a gás. Da sala subia uma escada até os quartos, sempre frios e despojados, e,
melhor que tudo, um banheiro, sem sanitário. Esta última e feia instalação, como
em Higher Broughton, localizava-se no quintal de pedra. Frank não se lembrava
de ter tomado um banho sequer na lustrosa e branca monstruosidade do andar
superior. Ele, como os pais, banhava-se numa banheira de lata diante do fogo da
sala de estar, em uma provação acompanhada por sabão cáustico e duras e
engomadas toalhas.
Do outro lado do quintal estendia-se o Common, onde brincavam as
crianças, e, além do Common, a rua elevada chamada Sandy Road. A rua levava
à “cidade”, que ficava à esquerda; à direita, conduzia às fábricas de algodão, à
terra aberta e, mais de um quilômetro e meio adiante, à escola pública.
Frank lembrava-se vividamente de alguns vizinhos. À esquerda, os
Wordens. O pai, Jim, trabalhava no cotonifício. A mãe era uma mulher
sofredora, silenciosa de tanto desespero, que passara a vida inteira na febricitante
atividade de “esticar o dinheiro”. Bertha, mulher feita aos dezesseis anos, frágil
mocinha de rosto branco, bastos cabelos castanhos encaracolados e olhos azuis
arregalados, já trabalhava na fábrica. Will, de quatorze, chegava a casa ao meio-
dia e seguia para a fábrica sem passar pelo preliminar de uma refeição. Havia
ainda Jim, de onze anos, que morreria na França em 1916; Jack, de oito anos;
Helen, de sete, gorda, faladora, barulhenta, e Lassie, uma linda menina de cinco
anos, sem contar uma vaga criança sempre nos braços da mãe, chorando
eternamente e que morreu de raquitismo antes de completar o primeiro ano de
vida. Essa então, a família Worden, que comia quase exclusivamente peixe e
batata frita, batata cozida e repolho, cenouras velhas, cebolas a vapor, chá, pão
anêmico e geleia e, nos domingos, um “pedacinho” de carne cozida de vaca ou
de carneiro.
Os vizinhos da frente, do outro lado da rua calçada com tijolos
vermelhos, eram vagos nas recordações de Frank, com exceção dos Durhams.
Ele, pai de um único e solitário filho, era médico, embora fosse invejosamente
chamado de “charlatão”. Mas usava sobretudo de casimira com gola de veludo e
um elegante chapéu-coco, andava de luvas e bengala e fazia visitas em
carruagem alugada. A esposa, mal-humorada, bem vestida, desprezava
visivelmente os vizinhos e protegia o filho, Eddie, um detestável esnobe que
frequentava uma escola particular em Sandy Lane, longe de contatos com as
crianças “comuns”.
A escola onde estudava Eddie Durham e algumas poucas crianças de
Reddish cobrava apenas quatro xelins por semana. Francis Clair, ensoberbecido
com o aumento de salário, resolveu que o jovem Frank devia frequentá-la,
também. Desencorajou as medrosas tentativas de Frank de fazer amizade com os
garotos dos Wordens e fez comentários acres sobre as relações da esposa com
eles.
— Tenha um pouco de orgulho, Maybelle — dizia. — Você precisa
conservar a cabeça erguida. Não sou nenhum esnobe, mas, afinal de contas, há
limites.
O jovem Frank não podia usar tamancos como as demais crianças,
embora lhes julgasse o som fascinante. E invejava-as. Lavado e meticulosamente
escovado, esperava a chegada do pai para o jantar e o chá. Não podia brincar no
enlameado Common, o que fazia naturalmente em todas as ocasiões em que o
pai se ausentava. Não havia o menor esnobismo em Maybelle, que considerava a
Sra. Worden uma “boa e respeitável mulher, uma pobre alma”, preferindo a
quente cozinha da casa ao lado a sentar-se na elegante sala de visitas dos
Durhams para bebericar chá em porcelana branca e comer bolo de semente de
alcaravia. Permitia que Frank a acompanhasse e, com frequência, deixava-o na
casa dos Wordens quando ia “às compras”, levando no braço a cesta de mercado.
Temerosa e chorosa, acompanhou certa ocasião com os olhos o marido,
que levava Frank à escola no primeiro dia. A despeito de sua robusta mente
maternal, lembrou-se dos avisos da sogra. Estava inteiramente convencida de
que, naquela tarde, Frank seria ignominiosamente recusado. Como, então,
poderia andar de cabeça erguida? A lei exigia que as crianças começassem a
frequentar a escola aos cinco anos, mas... e se ele fosse um pouco “lerdo”?
Frank, porém, não foi recusado. Voltou naquela tarde, agitado, confuso, em
lágrimas e inteiramente desgrenhado, com a camisa branca nova manchada de
tinta, amassadas a jaqueta e as calças de sarja, caindo pelas pernas as meias
pretas e com o boné de marinheiro no pescoço, estrangulando-o com o elástico.
Francis Clair estava uma fera. Desceu a rua, puxando com tal ferocidade
o filho pela mão, que, às vezes, os pequenos pés deixavam inteiramente a
calçada, enquanto murmurava enfurecido para si mesmo:
— Vou-lhe dar uma surra, vou-lhe dar uma surra! — dizia, rilhando os
dentes. — Vou-lhe mostrar uma coisa! Espere até chegarmos em casa.
Depois de entrar em casa e fechar com todo o cuidado as portas e
janelas, para que os “vizinhos” nada ouvissem, fustigou a amedrontada Maybelle
com berros furiosos.
— Você sabe o que foi que ele fez, esse seu belo filho? Passou o dia
inteiro sentado como um estúpido e, pouco antes de eu chegar, apanhou um
tinteiro, lançou-o em uma garota e deu-lhe uma pancada na cabeça! E recebeu o
troco, também! Olhe só para ele! E a culpa de tudo isso é sua. Você o mimou de
tal jeito que ele agora não tem mais remédio.
Frank foi vigorosamente espancado, naturalmente, primeiro pelo pai e
depois pela mãe. A última surra foi aplicada menos por raiva do que como
tentativa para aplacar Francis. Frank permaneceu calado durante toda a dura
prova, embora ficasse lívido. Mandado para a cama sem chá, deitou-se,
tremendo e arrepiado de sofrimento, apavorado, enquanto altos berros
martelavam-lhe os ouvidos. Somente conseguiu dormir ao amanhecer.
Não tinha palavras. Não tinha absolutamente meios para articular o
imenso e terrível medo, o sofrimento. Sabia o que era o ódio. Conhecera-o na
avó. Mas conheceu-o pela primeira vez em grande escala naquele dia e o odor do
ódio impregnou-se em cada dobra de sua carne frágil.
A escola fora fundada por uma mulher fina e decadente, de
temperamento lânguido, porém malicioso. Consistia em duas grandes salas sobre
os cômodos onde ela residia. A primeira sala era a de aula, com uma longa mesa
estreita, cercada de cadeiras. Uma litografia da falecida Rainha adornava a
parede de reboco. Não havia lareira e a umidade fria do outono enchia a sala
com um cheiro fétido e empoeirado de giz. A segunda sala possuía outra longa
mesa, também cercada de cadeiras, onde as crianças tomavam chá momo e
fraco, adoçado com leite condensado, e comiam bolo velho e biscoitos. Aí
jantavam, com as mãos sujas do trabalho nas lousas, as faces sérias e
desconfiadas.
A turma era composta de apenas oito crianças, filhos de indivíduos com
pretensões à aristocracia, como Francis Clair. Seus pais eram pequenos lojistas,
donos de bares, guarda-livros e caixeiros esfomeados. Em comparação, os
paupérrimos Wordens eram robustos, sadios e fortes. Faces murchas,
inteiramente lívidas, e narizes escorrendo com o catarro de Lancashire ou a
coriza de resfriados. Todas as magras gargantas tossiam sem cessar. Nenhum
sólido tamanco lhes protegia os pés. Botas abotoadas, estreitas, mas bem
engraxadas, cobriam-lhes invariavelmente as extremidades, pendentes dos lados
das cadeiras. As meninas vestiam aventais bem feitos, pregueados. Os meninos
usavam roupas imaculadas.
Controladas, mal alimentadas, tremendo sempre de frio, variavam as
crianças em idade dos cinco aos quatorze anos. Eram todas ardentes esnobes,
invejosas, cheias de malícia e muito elegantes na fala. Seus instintos infantis
naturais, tão bem escondidos, negados e corrompidos, eram desviados do vigor
normal para a crueldade mesquinha e venenosa. Com a presciência das crianças,
bastou-lhes um olhar para reconhecer imediatamente em Frank Clair o estranho
eterno, esquisitão, ameaçador. Não sabiam o que nelas havia que Frank
ameaçava, mas sentiam que o garoto era diferente delas; odiaram-no e
imediatamente começaram a conspirar maneiras de atormentá-lo por sua
singularidade, pela ousadia de não ser uma delas.
E não estavam sozinhas na hostilidade. Miss Elizabeth Ballister
reconheceu-o, imediatamente. Seus vis instintos eriçaram-se ao conhecê-lo.
Arrepiaram-se seus cabelos. Odiou-o no primeiro dia. Não disse a si mesma:
“Ele é um estranho e os estranhos são perigosos, especialmente um estranho
como esse. Ameaça algo que há em mim. Deixa-me inquieta e contrafeita. Por
que, não sei.” Simplesmente o fitou e pensou: eis aqui uma criança
profundamente tola e desagradável e eu simplesmente não gosto desses olhos
azuis fixos e vazios, dessa boca mole e caída. Não parece muito inteligente e
aposto que vou ter problemas com ele.
Entretanto, quatro xelins por semana eram quatro xelins por semana e,
assim, sorriu com lânguido afeto para a apavorada criança, que procurava soltar-
se da mão do pai, e afetada e delicadamente para Francis.
— Que amor de criança! — arrulhou. — E que prazer eu e todas estas
queridas crianças vamos ter com o pequeno Francis entre nós! Sei que ele
também vai gostar muito.
Era uma alta solteirona de uns quarenta anos, muito magra, mas também
muito elegante em seu corpete de seda azul, cabelos louros cacheados, cinto
preto largo e saia de sarja azul. O penteado era incrivelmente bem feito. Nem um
único fio de cabelo escapava dos grampos e pentes. Exsudava um odor de
aristocracia nata, sabonete Pears e água-de-colônia. Possuía mãos frias e
ossudas, úmidas e esguias e uma cintura tão fina como uma haste de planta. A
pele lívida contraía-se em dezenas de pequenas e secas rugas quando sorria. O
sorriso revelava uma fileira de dentes grandes e suspeitosamente brancos,
grandes demais para a longa e magra face, onde não se via o menor vestígio de
cor. Os olhos azul-claros eram emoldurados por órbitas vermelhas. O catarro
havia avermelhado as narinas do seu grande nariz ossudo. Francis, cheio de
respeito pela aristocracia, pela condescendência açucarada, pelo flexível corpo
magro e aqueles ares de bem-nascida, lembrou-se com desprezo de sua vermelha
e gorda Maybelle.
Antes, Frank fora informado sobre a importância da escola e avisado de
que não devia chorar, mas comportar-se como um pequeno cavalheiro. Ouvira
silencioso, dócil. Não se sentira atraído nem repelido pelo discurso sobre sua boa
estrela em ter sido aceito pela escola. Não sentia nada, nem pensava em coisa
alguma, mergulhado como sempre em vagos sonhos. Quando, porém, a escola se
transformou numa súbita e terrível realidade, quando chegou realmente lá,
quando viu os olhos de Miss Ballister e os olhares penetrantes e vigilantes dos
novos colegas, prorrompeu em gritos. Não pôde controlar-se. Gritou
selvagemente, com os olhos secos, tremendo de medo, lutando para soltar-se do
pai, impelido apenas pelo cego desejo de fugir.
Francis ergueu a mão num impulsivo gesto de ameaça. Sua face adquiriu
a cor de púrpura baça das orelhas da mãe e imaginou-se sendo posto
ignominiosamente na rua e vivendo eternamente envergonhado perante os
vizinhos. Mas, antes que caísse o golpe, Miss Ballister, temendo pelos quatro
xelins por semana, agilmente arrancou o filho das mãos paternas e curvou-se
sobre ele como um anjo de misericórdia. Feliz, a criança olhou-a, ansiosa.
— Calma, calma — arrulhou Miss Ballister, acariciando-lhe os cachos
castanhos despenteados. — Nós apenas não nos conhecemos. Mas vamos ficar
calmos logo. Mandaremos o papai embora, agora, e tudo será maravilhoso, não
é?
Francis, suado e trêmulo, entendeu a insinuação. Deixou imediatamente
a sala e desceu as escadas, levando os gritos do filho nos ouvidos até que a porta
se fechou misericordiosamente atrás dele.
De súbito, Frank teve a certeza de que estava sozinho, que o pai se fora.
Parou abruptamente, tremendo sem parar dos pés à cabeça. O lenço que lhe
enxugava a face sem lágrimas enjoou-o com seu cheiro adocicado, mas
aguentou. O toque gentil tornou-se cruel. Esfregava e batia. A voz lânguida
perdeu a característica de arrulho. Soou dura e odienta:
— Agora, sente-se e comporte-se. Não quero tolice alguma, moço.
Sabemos o que fazer com crianças más e aviso-o de que você não gostará.
Foi erguido nos ares e sentado com um baque surdo numa cadeira; a
mesa erguia-se à sua frente, ao nível do queixo, coberta de lousas e papéis. Viu
as faces dos colegas, exultantes, esverdeadas, desencarnadas, arrumadas em fila
no outro lado da mesa, as janelas nuas, sem cortinas, e os olhos de Miss Ballister
fitando-o irados. Viu tudo isso em uma clara e brilhante luz cristalina que lhe
pareceu estranha e apavorante. Viu tudo isso e ficou imóvel.
Com lábios comprimidos e desdenhosos, Miss Ballister sentou-se. Bateu
peremptória com um lápis na mesa e disse:
— Crianças, vamos começar imediatamente nossas lições.
Esmagara crianças mais rebeldes do que aquela coisinha odiosa.
Resolvia as mais difíceis situações. Abriu o livro e começou a ditar
somas. Observava-o pelo canto do gélido olho. Não toleraria absurdo algum
daquele horrendo monstro. Observou que ele tinha os olhos fixos nas crianças à
frente. Está inteiramente desligado, pensou. O que é que devo fazer com ele?
Tudo o que peço é que continue quieto. Mas isso não me importa. Ele não tem
inteligência para agir de outra maneira, com esse rosto parvo e esses horríveis
olhos esbugalhados.
CAPÍTULO 5
Embora as odiasse, Miss Ballister não deixava de ter certos
conhecimentos a respeito de crianças. Fora obrigada a desenvolvê-los em
autodefesa. Empurrou um livro de gravuras para a frente de Frank e abriu-o.
Bateu em seguida na cabeça do menino com um lápis, provocando risinhos
deliciados das demais crianças e disse:
— Olhe para isso e distraia-se um pouco.
Aí está o Inimigo, pensaram as crianças, não em palavras, mas
instintivamente. É o Réprobo. O Estranho, formado de outra carne e dotado de
outro espírito. Que odiamos imensamente.
A profunda e primordial maré fluiu para a frente e para trás entre Frank
Clair e os colegas, a maré do reconhecimento e da negação, da compreensão e do
ódio. Fluiu durante toda a manhã enquanto Miss Ballister reclamava, repreendia,
interrogava e passava deveres. Um menino ou menina erguia-se e lia
monotonamente um trecho do livro; uma mosca retardatária zumbia e chocava-
se atordoada contra as vidraças. O cheiro do giz e do creiom tornou-se acre na
escuridão sempre maior, antes da chegada da chuva. O ar esfriou cada vez mais.
Frank olhou fixamente para o livro, virando as páginas com dedos dormentes.
Viu estranhas cenas: cegonhas empoleiradas em telhados; uma criança nos
braços de uma deusa do gelo a correr pela neve em meio a uma tempestade; um
menino num barco mágico, dourado, de velas de seda vermelha; uma garota de
sapatos escarlates correndo por uma escura floresta; uma bela mulher
adormecida há cem anos em um sofá de cetim azul; uma gata borralheira junto
ao fogo, entre cinzas, e uma carruagem de abóbora, puxada por minúsculos ratos
brancos. Conheceu, em suma, seu primeiro livro de contos de fadas e
imediatamente se fundiu com as criaturas dos desenhos coloridos. Entrou em
transe, sonhando, a léguas de profundidade, em uma meditação informe. Perdeu
a identidade e não sentiu mais frio, terror ou solidão.
Miss Ballister ficou satisfeita com tal imobilidade. Pelo menos, pensou,
ele não é incorrigível, como eu temera. Poderei controlá-lo. Mas que face tola,
parva, vazia! Nenhuma expressão, absolutamente. Talvez estivesse dormindo de
olhos abertos. Surpreendeu-se ao ver páginas sendo viradas, devagar, sem pressa,
por um pequeno dedo azulado.
As crianças, porém, não o haviam esquecido, embora, para ele, não mais
existissem. Estava inteiramente inconsciente da presença delas e elas se
ressentiram disso, também, instintivamente, quase com mais intensidade que da
consciência da existência dele. Às vezes, Frank erguia os sombrios olhos azuis e
fitava-as, mas era como se não existissem. Os jovens e selvagens corações
rebelaram-se contra esse descaso que os transformava em nada, em coisas
insignificantes. Tivesse ele, mesmo por um instante, sorrido para um ou dois,
tímida e esperançosamente, se os tivesse realmente visto, poderia ter feito um
amigo.
Ao meio-dia, as crianças sentiram cheiro de chá. Uma pequena
empregada entrou na sala ao lado com um forte bater de botas, carregando uma
bandeja com água quente e chá, uma bacia para os restos, uma lata de biscoitos
duros, incrustados com açúcar ou sementes que pareciam ardósia, um prato de
fatias finas de pão e manteiga, um pote de geleia e, para Miss Ballister, um
pequeno pires de carne fria em fatias. As crianças receberam-na com alegria,
empurraram para o lado as lousas e fecharam com estrondo os livros.
Miss Ballister organizou-as numa espécie de fila e levou-as para seus
lugares na mesa. Felizes, barulhentas, descontraídas, brincaram, empurraram-se,
riram e conversaram. Miss Ballister sentou-se, sorrindo levemente, com os olhos
ávidos postos sobre a carne. Nesse momento notou que Frank não se encontrava
entre as demais crianças.
Irritada, olhou para a outra sala. Viu-o curvado sobre o livro, a cabeça
loura iluminada pela fraca luz que se filtrava pelas janelas. Lembrava um jovem
noviço examinando, atento, pergaminhos místicos, petrificado de santa
reverência. A própria Miss Ballister tornou-se consciente de alguma profunda
característica de imobilidade nele, uma absorção que o atraíra para uma região
de sonhos eternos. A imobilidade fluía dele, pela sala deserta, lembrando um
poço de água estagnada, cinzenta, silenciosa. Aparentemente, nem respirava.
A despeito de si mesma, Miss Ballister sentiu um calafrio e pensou
vagamente no cachecol. Em seguida, uma pequena fagulha de ódio e
impaciência brilhou em seus olhos. Que garoto intolerável! Um impulso que não
soube explicar fê-la erguer-se rápida da cadeira, correr até a criança e agarrá-la
pelo braço flácido. Sacudiu-a com uma violência incomum.
— Seu bobinho, o que é que há com você? — exclamou. —. Venha
imediatamente tomar seu chá!
A cabeça da criança rolou sobre os ombros. Ela sentiu-lhe o tremor, a
volta atordoada à realidade. O menino ergueu os olhos para ela e uma luz viva
relampejou neles. Deixou-se arrastar para a sala ao lado. As crianças estavam
novamente alegres e buliçosas. Miss Ballister sentou-o com um baque surdo
numa cadeira e fitou-o maldosamente, enquanto lhe servia uma xícara de chá e
deixava cair três biscoitos no pires ao lado. Passou manteiga numa fina fatia de
pão e cobriu-a com uma leve camada de geleia. Contraíra fortemente os lábios
para não revelar mau humor ou nojo e algo indescritível que jamais sentira antes.
Ele observava-lhe os movimentos como se estivesse hipnotizado. Olhou em
seguida para o prato.
— Coma! — disse furiosa a professora enquanto as crianças
observavam, jubilosas.
Obedientemente, pois descobrira que a obediência o fazia ignorado,
levou um biscoito à boca. Ergueu a xícara aos lábios com as duas pequenas e
frias mãos. O calor confortante penetrou-lhe nas carnes. Chegou mesmo a erguer
os olhos.
Embora desapontadas porque haviam sido privadas de cenas e gritos, as
crianças conversaram e riram alegremente entre si, batendo com as colheres nas
xícaras, apoquentando-se mutuamente com cordial malícia, passando pratos,
bisbilhotando e discutindo. Um dos meninos, filho do lojista mais rico de
Reddish, era tratado com respeito e servilidade. A menor palavra sua era
recebida com vivas inclinações de cabeça, embora ele fosse um tiranete gordo e
tolo. Eddie Durham figurava em segundo lugar na escala do respeito devido. Era
o único que conhecia Frank. Cochichava maldosamente sem cessar com os
vizinhos, que respondiam com risinhos malévolos e olhares para a silenciosa
criatura. Eram crianças demais para já terem adquirido aquele verniz hipócrita da
civilização, que finge aceitar mesmo os estranhos. Selvagens, cruéis, desinibidos
e naturalmente bestiais, eram eles mesmos, autenticamente humanos, não
corrompidos ainda pela cortesia e pela tolerância.
Frank bebericou o chá. Mas, naquele momento, um mortal desânimo
desceu sobre ele, uma dor no coração que, jovem demais, não pôde
compreender. Passava com grande frequência por essas fases, embora não
pudesse descrevê-las. Tornava-se apenas mais calado. Ergueu os olhos e viu as
faces sorridentes, as sorrateiras inclinações de cabeças, os murmúrios odiosos.
Crianças nunca lhe haviam invadido a consciência antes, nem mesmo os
Wordens, que o suportavam com sadia indiferença, tão ocupados viviam e tão
prementes eram a fome e a pobreza. Naquele momento, porém, viu-as
objetivamente e teve certeza de que elas o haviam excluído, que nunca seria uma
delas.
Sentiu imensa solidão, isolamento, uma dor pungente e indescritível. A
sua carne gritava pedindo um toque humano, uma mão humana, uma palavra
humana de afeição, de intimidade. O coração, o ser, ansiavam por um olhar:
fraterno e amigo, um riso confiante, um gesto de aceitação. A solidão
aprofundou-se, imensa e esmagadora, como uma doença de espírito, uma fome
desesperada e insaciável.
Ele só faz olhar, olhar, pensou enojada Miss Ballister. Nunca vira
crianças antes? Parecia um imbecil. Talvez fosse. Bem, quatro xelins extras por
semana são quatro xelins e mendigos não podem ser exigentes, infelizmente.
— Beba seu chá, Francis •— ordenou, mal-humorada. Abriu com um
estalo o relógio preso ao corpete. — Temos exatamente apenas mais cinco
minutos.
Frank, porém, não podia bebê-lo. Suas mãos como que se dirigiam para
os colegas à frente, estendidas como se suplicassem uma esmola. As crianças,
entretanto, com a crueldade, a maldade e a malícia da infância, olharam apenas
para as mãos e permaneceram exultantemente mudas.
Frank soube nesse instante que fora final e irrevogavelmente rejeitado e
que sempre assim seria, a menos que se disfarçasse por trás de outra face que
não a sua, a menos que aprendesse uma estranha e odiosa linguagem, a menos
que se transformasse naquilo que eles desejavam que todos os demais fossem.
Recolheu as mãos suplicantes. Continuou ali em melancólico silêncio, não
rebelde, mas resignado, não irritado, apenas tomado de confusa mágoa.
As crianças voltaram à sala de aula. Frank seguiu-as, tropeçando
desajeitado. Em silêncio, subiu na cadeira. O livro continuava à frente, mas
perdera o encanto. Ele tinha a carne ferida, dolorida, sangrante e as entranhas
contraídas de dor.
Curvou a cabeça sobre o peito, com os olhos fechados.
O garoto está mesmo dormindo, pensou aliviada Miss Ballister. Espero
que durma até acabarem as aulas.
Frank, porém, não dormia. Permaneceu inteiramente inerte enquanto as
lições prosseguiam. Era jovem demais para pensar em imagens ou palavras, mas
eram sem fim suas emoções, formadas de tempestades, raios, mares, cansaço,
desespero. Os sons morreram em volta e ficou sozinho como sempre ficara e
sempre ficaria.
As horas arrastaram-se. Duas, três, quatro. As crianças, tendo-o
esquecido inteiramente, preparavam-se para voltar para casa. Francis, porém,
prometera vir buscar cedo o filho. Na manhã seguinte, uma das crianças mais
velhas, ou talvez o Dr. Durham, que às vezes ia apanhar Eddie, o
acompanhariam até em casa enquanto ele não aprendesse o caminho.
Durante uma hora mais ou menos, Frank havia-se mexido debilmente,
emergindo da letargia, mas não ainda presente entre as demais crianças.
Observava-as, movendo olhos apáticos na direção delas quando recitavam.
Observava Miss Ballister, que circulava por trás das cadeiras. Uma expressão
vaga e sombria cobria-lhe a face como um nevoeiro.
Neste instante, as crianças, alegres com a saída próxima, penduraram os
aventais, juntaram os livros, riram e se empurraram. As meninas deram laços nos
chapéus; os garotos tiraram os bonés dos bolsos. Frank continuou sentado.
Inesperadamente, atraiu a atenção da irmã do filho do rico lojista. Era
uma menina de face esverdeada, cabelo amarelo brilhante e olhos maldosos e
buliçosos. Sentira desde o início uma profunda antipatia por Frank. Subitamente,
parou à frente dele na mesa, inclinou-se, estirou a língua e emitiu um som feio,
respigando-o de saliva.
Frank nunca sentira raiva antes, nunca uma raiva tão terrível,
insopitável. Inesperadamente seus olhos clarearam, viu tudo com nitidez, viu a
odiosa menina à sua frente. Resumia ela tudo o que havia de horrendo. Sentiu a
garganta apertar-se por ter ela ousado mesmo tomar conhecimento de sua
presença. A raiva, que tornou as coisas tão claras, era um conhecimento de asco
e de ofensa. Ela corporificava para ele um mundo repulsivo que insistia em
invadir-lhe a vida privada, invadir aquilo que nele era inviolável.
Dominou-o um único desejo: destruir aquela face, eliminá-la, expulsá-la
da consciência, forçá-la a desaparecer, tirá-la da memória. Estendeu
instintivamente a mão, agarrou um tinteiro e lançou-o contra a criança. Atingiu-
lhe a testa com um alto som. A tinta escorreu em fios pretos pelo rosto, pelo
pescoço e pelo vestido de lã carmesim.
Ela continuou ali, atordoada. As outras crianças, ouvindo o barulho,
voltaram-se e olharam. Ao ver o que havia acontecido, sentiram-se deliciadas.
Berraram. Saltaram para cima e para baixo. Bateram as mãos de excitação. O
irmão da menina, porém, arremeteu contra Frank, derrubou-o da cadeira e
cobriu-o de pontapés. Continuou a chutá-lo. Algo voluptuoso, assassino, cresceu
no seu magro peito até tomar-se intolerável. Contorceu-se, gemeu, transtornou-
se. Sentindo o pé mergulhar no corpo mole e fraco da criança prostrada, arrepios
de puro êxtase percorreram-lhe os nervos e lhe desceram pelas costas em
filamentos de delicioso fogo.
Miss Ballister, horrorizada, observou durante um momento a cena,
inteiramente paralisada. Saltou em seguida sobre o agressor, puxou-o para trás e
sacudiu-o violentamente, esmurrando-lhe as orelhas. O garoto virou-se feroz
contra a mulher e mordeu-lhe a mão, rosnando alto.
Puxando a mão com um grito, ela lançou-o à distância com um bem
aplicado e vigoroso golpe. Sentiu deleite, também. Conhecia crianças e odiava-
as. Era um prazer imenso bater num garoto. Foi atrás dele com os punhos
fechados.
Encurralado, ele acalmou-se um pouco e disse entre lágrimas:
— Vou contar ao meu pai, vou contar! — soluçou, esfregando os olhos.
— Ele tirará Mary e a mim desta escola nojenta! E a senhora é quem vai
arrepender-se.
Mary dava pulos, delirante de excitação. As demais crianças
acompanharam-na, tomaram parte na embriaguez geral. Gritaram em coro:
— Vai arrepender-se. Vai arrepender-se.
Uma fria calma desceu sobre Miss Ballister. Esfregou a mão mordida.
Arquejou. Era uma solteirona solitária e pobre; nada mais tinha senão a renda
das aulas. Morreria de fome. Sabia disso. Subitamente, foi tomada pelo pavor e
sentiu a boca seca. O que perdera por defender uma criaturinha miserável, que
merecera o castigo recebido!
Seu coração transformou-se em mero pulso, batendo débil, rápido.
Empalideceu de medo. O corpo perdeu a rigidez, tomando-se velho e flácido.
Tirou o lenço e enxugou os olhos do filho do comerciante.
— Que coisa, que coisa! — Você foi muito mal. Frank Clair tem apenas
cinco anos, Bobbie, e você quase doze. Ele é apenas um bebê. Olhe, você o
feriu. Ele não se mexe, nem mesmo chora.
Aquilo era uma notícia tão interessante que Bobbie Tompkins empurrou
para o lado a mão trêmula e carinhosa e espichou o pescoço para observar o
prostrado Frank. Era verdade. O garoto continuava onde havia caído, como
ficara enquanto estava sendo chutado, com os braços instintivamente cruzados
em volta da cabeça para defendê-la. Poderia estar morto.
Miss Ballister teve uma inspiração. Espigou-se e olhou séria para as
crianças.
— Vocês sabem o que é que a lei faz quando alguém é ferido e chutado
dessa maneira? — perguntou com nova coragem e astúcia. — Põe na prisão a
pessoa que o fez. Pense nisso, Bobbie. Se Frank estiver muito ferido, vão levá-lo
para longe, para longe de sua mamãe e de seu papai, de suas irmãzinhas. Você
talvez nunca mais os veja. Podem mesmo mandar seu pai para a cadeia, ou
multá-lo.
Uma súbita e horrenda visão do pai cruzou a mente de Bobbie
Tompkins. Não era o filho predileto, embora tivesse sido “estragado” pela mãe,
situação essa que o Sr. Tompkins julgava difícil engolir. Era também homem
irascível, de maus bofes e dono de uma pesada mão. Mentalmente, Bobbie viu-o
sendo arrastado pelos policiais. Ouviu os gritos da mãe. Viu o confisco do
dinheiro da família e todos eles exilados para longe dos agradáveis subúrbios de
Sandy Lane, forçados a morar nessas horríveis ruas da “cidade”. O pai o mataria.
Com frequência, ameaçava fazê-lo. “Eu lhe digo uma coisa, Sally, ainda matarei
esse garoto algum dia, mesmo que tenha de ser enforcado por isso!” — gritara
em momentos de grande irritação.
Bobbie tremeu e quase caiu. Chorou ainda mais alto do que antes.
Agarrou-se a Miss Ballister.
— Não diga nada a meu pai, por favor, Miss Ballister — suplicou, quase
aos gritos. — A senhora não vai dizer, vai?
Miss Ballister, agradecendo fervorosamente a Deus pela inspiração, não
se deixou dobrar logo. Procurou acalmar o frenético Bobbie.
— Como é que posso evitar isso? — respondeu severa. — Todas as
outras crianças sabem. Como é que você vai explicar o vestido de Mary, todo
manchado de tinta, e o ferimento na cabeça dela?
Enfurecido pelo medo, Bobbie soltou-se da professora e, com os punhos
fechados e dentes à mostra, voltou-se para os colegas:
— Acabarei com o primeiro que disser uma única palavra — berrou,
esquecendo a linguagem elegante ensinada por Miss Ballister. — Pisarei na sua
cabeça de droga e acabarei com ele! Ouviram o que eu disse?
Encarou-os um a um, arquejante, com os olhos em fogo, enlouquecido
de medo e de raiva. Os garotos se encolheram ante o olho selvagem e a ameaça
muito real. Prorromperam em um coro de trêmulas garantias:
— Não diremos nada, Bobbie. Pode confiar em nós, Bobbie. Pode
confiar!
Satisfeito, respirando forte e asperamente, Bobbie voltou-se para a
chorosa irmã:
— Se você disser uma única palavra a papai, amassarei todas as suas
malditas bonecas e lhe quebrarei o nariz! — exclamou.
A menina passou um lenço preto sobre o vestido.
— O que é que vou dizer à mamãe sobre o vestido? — perguntou em
voz débil. — Tenho que dizer alguma coisa.
Bobbie pensou no assunto, com os punhos ainda fechados. Sabia que a
mãe o adorava. Começou a ficar animado.
— Eu sei! — disse pensativo. — Mamãe não vai importar-se. Estávamos
brincando e eu, sem querer, derrubei o tinteiro em sua cabeça. Mas precisamos ir
para casa antes que papai chegue.
O assunto foi resolvido, decidido. Resolutamente, Bobbie pôs o gorro na
cabeça, agarrou a mão da irmã e saiu apressado da sala.
Miss Ballister, respirando mais desafogada nesse momento, advertiu as
demais crianças:
— Será melhor que coisa alguma seja dita sobre o que aconteceu. —
Tenho certeza de que vocês sabem, meus queridos, que Bobbie tem um gênio
muito ruim.
Despediu-os. Os garotos saíram em fila, silenciosos, calmos. O perigo
passara. Ela estava em segurança. Ninguém ousaria resistir à chantagem de
Bobbie Tompkins.
Em seguida, sobressaltou-se, novamente apavorada. Durante toda a cena,
Frank continuara imóvel. Parecia morto. E a qualquer momento poderia chegar o
Sr. Clair para buscá-lo. Puxou-o e colocou-o de pé. Frank vacilou contra ela,
com os olhos semicerrados. Mas estava consciente. Limpou-lhe a roupa com a
mão. Correu em busca de água e banhou a face ferida. Agia como uma autômata,
enquanto mentalmente concebia uma explicação. A criança era jovem demais
para ter autocontrole. O pai precisava saber parte da verdade. Conhecia o seu
Francis Clair. Sabia que ele se sentira lisonjeado porque o filho fora “aceito” por
ela e notara como a bajulara durante a conversação. Podia ter certeza de que ele
não divulgaria o que acontecera.
O medo transformou-se em raiva da sofredora criança.
— Seu menininho nojento! — exclamou. — O que é que vou fazer com
você? Oh, se seu pai não o houvesse trazido para cá! Não sei o que fazer! Beba
um pouco de água. Cuidado para não sufocar. Muito bem. Oh, meu Deus, por
que tenho de sofrer tanto? Venha comigo, imediatamente, seu menino ruim. Pode
esperar pelo seu pai lá embaixo, na sala de visitas. Atirar um tinteiro na pobre
Mary! Nem sei o que seu pai vai fazer com você por causa disso! E como vai
ficar zangado quando souber como você provocou o pobre Bobbie, que teve que
defender a irmãzinha!
Interrompeu-se, esperando que este último e astucioso argumento
houvesse penetrado no duro e preguiçoso cérebro que se escondia por trás da
face vazia do menino. Ele, porém, continuou calado. Duvido de que ele saiba
falar, pensou. Não o ouvi pronunciar uma única palavra durante o dia inteiro.
Sentiu um novo alívio. Mas, ainda assim, as roupas manchadas e
empoeiradas e os ferimentos precisavam ser explicados.
Levou-o para a abafada sala de visitas no térreo, sentou-o na
semiescuridão, fechou a porta e esperou por Francis Clair.
Frank ficou sozinho, pela primeira vez naquele dia. Recostado na cadeira
de crina, fechou os olhos. Sentiu uma imensa exaustão. Caiu num cochilo,
procurando esquecer o corpo dolorido.
Anos depois, lembrou-se daquela escura e silenciosa meia hora. Teria ele
sonhado que era criança novamente, naquela pequena e úmida sala, e outro
sonho se fundira com aquele? Não pôde saber.
Mas, depois de algum tempo, notou a penumbra, a chuva cor de malva e
uma mulher de pé ao lado, com os braços cheios de lilases e olhos brilhantes na
escuridão. Em algum lugar, paz e doçura completa, o perfume de lilases em volta
e gotas de prata caindo no silêncio. Em alguma parte, um tordo cantava na
escuridão distante de bosques invisíveis. Aqueles olhos brilhantes fitavam-no
com profundo amor e ternura. Sentiu realização no íntimo. Sim, sim, devia ter
sido um sonho, pois era um homem, não uma criança, quando havia sonhado!
Miss Ballister recebeu Francis à porta e deu-lhe uma versão ligeiramente
modificada e expurgada do caso. Frank se mostrara traquinas. Lançara um
tinteiro numa criança. Talvez houvesse sido apenas a agitação natural da
infância, afinal de contas. Ela, Miss Ballister, sabia o que era essa agitação.
Naturalmente, era uma pena e sentia muito a respeito do pequeno Frank. E
quanto menos se falasse no caso, mais depressa seria esquecido. Vamos esquecê-
lo, Sr. Clair? Tenho certeza de que o pequeno Frank está muito arrependido e
essas coisas acontecem entre crianças.
Francis ficou horrorizado. Conseguiu apenas balbuciar abjetas
desculpas. Não podia saber que Miss Ballister estava preocupada com os quatro
xelins extras por semana receosa de que algum inerente cuidado paternal o
levasse a pôr em dúvida a história, em especial quando visse a criança. Mas não
precisava ter-se alarmado. Francis Clair era uma pessoa abjeta demais,
amedrontada demais, covarde demais para sentir raiva pelo dano visível feito a
uma criança, especialmente no que interessava à sua precária condição social.
Para dizer a verdade, se Miss Ballister lhe houvesse contado a verdadeira
história, incluindo o espancamento de Frank pelo depravado Bobbie Tompkins,
ele teria exclamado: “Bom trabalho! Bem feito, para ele aprender!” Tompkins
era rico e seus filhos, sacrossantos. Francis, o medroso crônico, dotado de uma
grande imaginação, teria visões de processos movidos contra a sua pessoa.
Ficou pasmo com a gentileza de Miss Ballister. A mulher, a senhora, tão
polida, tão bem-educada! Ali estava ela, dando bondosas desculpas pelo pequeno
salafrário, suplicando-lhe que não ficasse muito zangado com ele! Sentiu-se
tocado no fundo do coração, mas enfurecido também por ter o filho ousado
causar-lhe um momento de dissabor. Ela era também tão superior a ele! Notava-
se logo sua educação, seus modos finos. E conversava com ele, Francis Clair,
como se fosse um igual! Uma frase perpassou pela sua confusa mente:
“Corações bondosos valem mais do que coroas... e sangue normando”. Era claro
que ela possuía “sangue normando”. Seria bem feito se expulsasse o diabrete da
escola, seria mesmo!
— Ele é realmente um menininho tão bom! — dizia entusiástica Miss
Ballister, com o olho mental severamente focalizado nos quatro xelins. —
Divertimo-nos tanto. Ele folheou um livro e pediu-me que lhe dissesse o que
significavam os desenhos. Talvez tivesse ficado um pouco excitado com tudo
aquilo. Pensando no caso agora, quase acredito em que ele não sabia o que
estava fazendo! Eu lhe estava contando a história de Jack, o Matador de
Gigantes, e é bem possível... sim, é bem possível que ele tivesse estirado a mão
para pegar uma pedra e lançá-la contra o cruel gigante! Que fantasias têm as
crianças!
— Vou dar a ele umas fantasias — murmurou Francis entre os dentes
cerrados.
Frank permanecia na cadeira, na penumbra cor de malva do sonho.
Ouviu a porta abrir-se. Inesperadamente um único, claro e tranquilo pensamento
ocorreu-lhe com grande nitidez: “O que é que estou fazendo aqui?”
O que é que estou fazendo aqui! A sala escura girou em volta. Ele
estremeceu. Olhou em torno, estupefato. Por que estava ali? O que lhe
acontecera? Nada sabia sobre aquela sala, sobre o homem e a mulher, que eram
sombras indistintas à porta, olhando-o fixamente. Estranhos. Nunca os vira
antes.
A sala dissolveu-se ao redor dele como se fosse um nevoeiro,
inclinando-se grotescamente as suas paredes, recuando e perdendo-se no espaço
a porta que emoldurava as sombras. Estava sentado sobre um enorme pião, que
começou a girar, no início lentamente e, depois, com rapidez sempre maior. As
paredes, inclinadas, retiraram-se. Fugiram as sombras à porta.
Sentiu que alguma força o puxava de cima do pião. Uma pancada seca
no rosto. Somente quando se encontrava já em Sandy Lane tomou conhecimento
das coisas. Prorrompeu então em medrosas lágrimas.
— Quando chegarmos a casa, aí é que você vai ter motivo para chorar
— prometeu Francis, puxando-o pelo braço. — Seu porquinho sem-vergonha!
CAPÍTULO 6
Apenas lenta e dolorosamente Frank aprendeu aquilo que não dizia
respeito a letras e palavras.
Depois de uma semana, podia escrever palavras em traços seguros,
fortes e delicados, mas meses se passaram antes que conseguisse reconhecer
finalmente os números. Durante longo tempo, por exemplo, traçava o número
“nove”, sob a impaciente orientação de Miss Ballister, mas ao contrário. Em
seguida, com uma silenciosa sensação de triunfo, acrescentava outro círculo e
murmurava: “B!”. As letras tinham significação para ele; os números eram
caracteres cabalísticos que apenas se podia adivinhar, sonhadoramente, e, com
sorte, chegar à conclusão correta.
Aparentemente, amava o som das palavras, formadas com mão segura
pelas letras que traçava. Estava à frente de um milagre e, quando soletrou a
palavra “gato” e compreendeu que se referia à criatura desenhada no livro, seus
olhos faiscaram e pareceram que iam alagar-se de lágrimas. Possuía uma voz
baixa, insegura, uma jovem voz enferrujada, raramente usada, salvo para
pronunciar os grupamentos mágicos que formava ou que aprendera a reconhecer
nos livros. Naquele instante, começou a escutar o som das palavras, como se
fosse música, às vezes repetindo-as em silêncio com fortes movimentos dos
lábios, quando a professora as pronunciava. Estava como que embriagado pelas
palavras, quaisquer palavras. Eram relâmpagos de luz, janelas subitamente
abertas para uma terra de encanto, banhada pela lua. Eram o estrugir de
trombetas, bem altas na escuridão, envolvidas por um halo de luz. Eram
tambores que trovejavam e enchiam de asas o silêncio.
Como poderia ele algum dia explicar a embriaguez das palavras, meras
palavras soltas, as palavras em si, as mariposas de cor, as pontes de arco-íris
sobre abismos mudos, o súbito voo de aves, como as rodopiantes e altaneiras
gaivotas, com o pôr do sol em suas asas?
Instintivamente, conhecia a riqueza, a abundância, a oleosa opulência
das palavras. Às vezes, uma nova palavra lembrava-lhe um homenzinho gordo,
bamboleante, cheio de risos. Era o som delas, o mero som das palavras (pois não
podia ainda compreender o significado de um décimo do que ouvia) que o
fascinava. Era o ritmo e o espaçamento, o pianíssimo ou o fortíssimo da
entonação, a curva súbita de uma sílaba, como o giro de um vaso de vidro, a
súbita e abrupta elevação, como uma mão que, peremptória, se ergue. Às vezes
eram palavras feias, palavras desagradáveis e ásperas, pequenas e horrendas
colheres de palavras, contendo um pouco de geleia envenenada. Escutava-as na
rua, nas casas, nas lojas, nos corredores, nas salas. Escutava quando o pai lia o
Manchester Guardian. O ritmo comedido dessas palavras era como uma
procissão, uma parada sombria, um conclave de reis, um velho falando
gravemente na noite. Melhor que tudo, quando o pai lia algum incompreensível
comentário cômico, as palavras lembravam palhaços dando cambalhotas numa
pantomima, anões brincalhões com grandes narizes vermelhos, minúsculas fadas
de lantejoulas puxadas por barbantes, vozes cascateantes ou um pequeno e tolo
rufo de alegres tambores. Algumas palavras eram frias e rígidas como os
listrados pirulitos de hortelã-pimenta que as crianças ganhavam no Natal.
Contudo, ainda assim, não transportavam a projeção real de seu significado
intrínseco para o cérebro de Frank. Era o simples som delas que o deixava
petrificado de espanto.
A família recebia cartas da América, da Sra. Jamie Clair, as quais
Francis lia em voz alta para Maybelle. A Sra. Clair morava em Bison, Nova
York, e escrevia com grandiloquência (para exibir sua nova personalidade
cosmopolita) palavras heroicas como Oregon, Philadelphia, Califórnia. Oregon!
Frank sentiu cair um profundo e marmóreo silêncio. O “Ore” era uma grave voz
masculina e o “gon”, a solidão e a aventura. Philadelphia! Palavra de som
veludoso nas pontas. O “del”, no centro, era doçura e o “phia”, uma leve
emoção. Califórnia! Havia doçura também na primeira sílaba, embora doçura de
qualidade inferior, açucarada, como geleia que começa a cristalizar. O “for” era
duro como uma noz num caramelo, e não gostava absolutamente do “nia”. Não,
não era uma palavra tão deliciosa quanto Philadelphia e nem mesmo ressumava
o heroísmo de Oregon. Repetiu numerosas vezes as palavras para si mesmo, pelo
puro êxtase proporcionado pelo som.
Homem feito já, lembrava-se disso, sentia-se atônito e profundamente
invejoso. Que pura e encantadora emoção fora a sua! O que não daria para sentir
novamente aquele cristalino e terrível êxtase, a exaltação desconhecida ao
simples som de palavras! Vozes na rua, apenas uma comum e inexpressiva voz
de uma criança ou de uma dona-de-casa, todavia uma voz articulando uma
cadência de sílabas que atraía o ouvido com sua pungente dissonância ou corria
devagar como um regato na primavera! Imagens relampejavam em sua mente
desperta ao ouvir uma mera exclamação. Escutava uma criança exigir mal-
humorada algo da aborrecida mãe ou uma jovem gralha queixando-se nas
árvores desnudas do inverno. Uma jovem balconista falava na mais doce das
cadências com a mãe e um sonolento tordo acordava pela manhã. Uma mulher a
rir era como o tinido de um chocalho de boi na noite. Palavras encantadoras,
sons fascinantes, a excitação de um grunhido áspero, os medos imensos no
rosnado do sapateiro!
Sentia profunda aversão pela palavra “prato”. Possuía um som morto,
oco. Não gostava de “presunto”, um som grosso e como que satisfeito consigo
mesmo. Mas “guardanapo”! Que brincadeiras ternas, que graça, que dedos
faiscantes, que arqueamento de belos pescoços! “Toalha de mesa” sugeria lã
áspera e dava coceira só em ouvir o som. “Geleia” fazia-o trincar os dentes e
tornava-o aborrecido com a mãe quando ela a pronunciava. O pai falava em
“Torquay” e ele não sabia se era uma cidade, lugar, nome próprio ou algo para
comer, mas a articulação da palavra fazia-o sentir-se selvagem, estranho, cheio
de quente animação. Ouviu a palavra “sombrio” e viu uma face fechando-se,
cheia de augúrios. Não havia reação entre as palavras e o que via e
experimentava em seu trêmulo coração. Era suficiente que as ouvisse.
Muito antes de conhecer-lhes os sentidos havia palavras que não podia
suportar. “Esnobe” era uma delas. Levava-o a pensar em catarro grosso. Não
tolerava ouvir a mãe dizer “afazeres”. Que palavra tola, vaga, complicada como
um novelo desfiado! O pai chamou certa vez um conhecido de “jogador” e Frank
sentiu uma pedra nas mãos, uma pedra de ângulos ásperos e bordas
protuberantes. Um dia, a mãe queixou-se de “diarreia”. Frank viu uma pequena
pilha de pedras com arestas cortantes, brilhando no meio de um regato. Ouviu
Miss Ballister dizer “faiscante” e lembrou-se da sensação seca e doentia que lhe
cortara a carne quando furtivamente brincara com a navalha do pai. E havia
palavras que lhe provocavam arrepios na pele. Uma delas, sem motivos, era o
nome “Myrtle”. Lembrava-lhe o pai amolando a faca de trinchar aos domingos.
Não, não havia sentido nessa palavra, nenhum sentido, absolutamente.
Miss Ballister não conseguiu compreender por que ele a escutava com
tanta atenção, por que a fitava como se hipnotizado em todas as ocasiões em que
ela falava. Mas ficou surpresa e satisfeita. Talvez o menino não fosse um
imbecil, afinal de contas. Às vezes, ele brilhava, palpitava, quando ela fazia a
observação mais comum. Além disso, estava aprendendo. Em três meses, lia tão
bem quanto o pequeno Herbert Kemp, que tinha oito anos. Um mês depois,
passara à frente de Kemp e lia como a mais brilhante criança de nove anos.
Contudo, não havia maneira de fazê-lo compreender que o número “2” e o
número “3” tinham qualquer significação. Quando ela lhe demonstrava, em
numerosas repetições, que somavam cinco, ele simplesmente olhava para a
lousa, estupidificado. Dava-lhe outra soma: 4 e 2. Esperançosamente o garoto
escrevia a resposta como cinco, três, qualquer que fosse a soma de operação
anterior. Era inútil, complicado, ele não compreendia.
Finalmente, em desespero, ocorreu à professora um pensamento
inspirador. Tirou da bolsa cinco grandes pences de cobre, colocou-os na mesa e
demonstrou as operações de soma e subtração. Nesse momento, Frank ficou
fascinado. Algo fora projetado objetivamente. Era realidade. Olhou fixamente
para as moedas e, em seguida, para a lousa. Sentiu-se inesperadamente cheio de
alegria. Ergueu os olhos para Miss Ballister e sorriu empolgado. Aprendeu a
somar, subtrair, dividir. Entretanto até o fim da vida, isso foi tudo e todas as
vezes em que precisava somar uma coluna de números, números abstratos, era
obrigado a pensar neles como maçãs, moedas de cobre, laranjas. Jamais
conseguiu aprender álgebra e a geometria permaneceu sempre para ele uma
coisa cabalística, com a solução eternamente no reino da adivinhação ou do
palpite.
Aprendeu a escrever com impressionante rapidez. Mesmo aos seis anos,
sua letra já era pequena, rápida, angulosa e corrida, cheia de vida. Escreveu o
próprio nome na primeira semana; cinco meses depois, fazia os mesmos
exercícios das crianças de nove anos.
Mas surgisse outra tarefa que não escrever, ouvir ou ler, e recaía na
apatia, na inércia, como uma borboleta de asas verdes que se metamorfoseava
novamente em cega ninfa. O vazio derramava-se sobre suas feições como se
fosse lava e toda a sua animação e clareza se transformavam apenas em órbitas
vagas e protuberâncias faciais informes.
Certo dia, a mãe deu-lhe um prisma quebrado de um candeeiro. Por
sugestão dela, examinou-o contra o fraco sol da primavera. Imediatamente, ao
levá-lo aos olhos, o mundo dividiu-se em milhares de cores decompostas. As
pedras do muro do quintal bordaram-se de escarlate, púrpura e vivo amarelo-
dourado. Olhou para a mão. Os dedos tornaram-se incandescentes, estriados de
fogo colorido. Não pôde saciar-se dessa maravilha, dessa imensa animação. A
emoção jorrou e subiu dentro dele, ficou mudo e compreendeu que havia
patamares os quais as palavras não podiam transpor. Mas algo podia e o
conhecimento desse algo pairou um pouco além de suas recordações. Lembrou-
se, então, da estranha música que ouvira no velho jardim e no búzio da avó. A
música, e apenas a música, podia traduzir esse fino jogo e essas fantasias de
tonalidades e luz brilhante. Sentiu uma fome devoradora de um som exultante e
apaixonado que perdurasse além da articulação das palavras.
Mais tarde, como naquele instante, compreendeu que os pensamentos e
emoções surgidos na mente humana eram como peixes multicoloridos, radiantes,
brilhantes, arremetendo, saltando, virando, deslizando, que não podiam ser
capturados pela rede grossa das palavras. As palavras eram dedos grossos e
desajeitados que tentavam prender gotas de chuva de mercúrio. Mergulhou em
imensa agitação, tristeza, silêncio.
A mãe, pendurando roupas no quintal, voltou-se para ele:
— Frankie, não deixe esse vidro junto dos olhos o tempo todo. Vai fazer
mal.
Anos mais tarde, lembrou-se dessas palavras e pensou: sim, faz sempre
mal aos olhos saber que aquilo que eles viram jamais poderá ser fielmente
expressado, que aquilo que o coração sente pode ser tornado audível apenas por
desagradáveis grunhidos.
Mais e mais, à medida que os meses passavam, sentia a espessura e o
peso da língua, a inadequação das palavras que aprendia e ouvia. Eram como os
gestos estúpidos que surdos-mudos fazem para se comunicarem uns com os
outros.
Não sabia o que era a felicidade, a felicidade da coisa expressada. Sabia
apenas que sentia paz e alegria quando os olhos se enchiam de imagens e os
ouvidos transbordavam de sons. Nada mais lhe interessava.
Aceitou o ostracismo imposto pelos colegas como aceitava o ar que
respirava. Às vezes, mas somente às vezes, sentia um desejo quando os via
brincando, rindo, divertindo-se juntos e experimentava uma espécie de amarga
dor de criança ao notar que, quando se aproximava, eles caíam ao silêncio, os
olhos brilhando de ódio e hostilidade, e após um momento davam-lhe as costas e
se afastavam. Não sabia por que assim agiam. Começava a falar bem,
excepcionalmente bem, para citar a espantada Miss Ballister, e lhe ocorriam
coisas novas e interessantes para dizer. Os colegas, porém, não lhe queriam a
companhia ou a conversação. Aceitou tudo isso com apenas pequenas pontadas
de rebeldia e perplexidade.
Mas às vezes, raras vezes apenas, perguntava-se se acontecia isso porque
era sujo, feio ou repelente de alguma misteriosa maneira. Lentamente, começou
a pensar que era repulsivo a outros olhos. Subia em um tamborete na cozinha e
examinava-se ao espelho sobre a pia. O espelho refletia uma face magra, muito
pálida, brilhantes olhos azuis, uma boca larga e melancólica, quase incolor, um
nariz bastante grande e proeminente e uma massa emaranhada de cachos
castanhos. Era a face de um asceta em botão, de um profundo pensador, de uma
criatura que padecia de excessiva capacidade de percepção e dolorosa
sensibilidade. Era uma face estranha, obcecante, lembrando faces de velhas
estátuas gregas, pois era quase ininterrupta a linha que descia do cabelo à ponta
do nariz. E havia a curva clássica do pescoço e um carnudo lábio inferior. Um
artista a teria reconhecido. As crianças, porém, não eram gregos antigos nem
artistas e sabiam apenas que ele era diferente. Chamavam-no de “cara de lama”,
“cara de verme”, “cara de palhaço”. Diziam-lhe que era feio. Não conheciam
outras palavras para expressar a inquietação que lhes provocava sua presença.
Em vista disso, evitava-as tanto quanto possível. Os Wordens eram mais
amigos, ou melhor, indiferentes. Isso era consequência da cálida generosidade de
Maybelle para com a família. Ele achava consolo na grande e escura cozinha dos
Wordens, cheirando sempre a lenha úmida, esgoto, sabão, gordura e repolho. Ali
era tolerado. Maybelle exigia demais em questão de limpeza na sua própria casa
e havia em todas as peças do mobiliário um ar de frieza e feia rigidez. Na casa
dos Wordens, porém, tudo era feliz, sujo, desordenado, atravancado e cheio do
alarido de vozes jovens. Completamente contentes, as crianças mais jovens
agachavam-se ou deitavam-se junto à lareira e inalavam uma mistura de gás de
carvão e calor sufocante. Exausta e cansada demais, a Sra. Worden não
conseguia controlá-las ou arrumar a casa. Em toda parte, havia as coisas mais
fascinantes sob montes de cachecóis molhados ou cadeiras arranhadas, sob
camas, sob as bordas dos tapetes apagados e do linóleo.
Maybelle preocupava-se com a “comida” de Frank. Nenhuma
preocupação igual era vista na casa dos Wordens. As crianças, incluindo o
raquítico nenen, comiam tudo o que encontravam, onde encontravam: na mesa,
nas cadeiras, na cornija da lareira, no fogão, na carvoeira. Às vezes, havia
mesmo restos de bolo em cima das camas, que podiam ser comidos em feliz
imediatismo. Os Wordens consumiam em abundância peixe e batatas fritas,
generosamente borrifadas de sal e deliciosamente azedadas com vinagre. Frank
comia poucas dessas iguarias em casa, as quais eram condenadas por Maybelle
como impróprias para estômagos jovens. Os Wordens, porém, não sofriam tais
repressões. A Sra. Worden, em meio à lavagem de roupa nas tinas de madeira,
sacudia das mãos maceradas o sabão e a água e “punha uma panela” no fogo
para fazer batatas fritas. (Comiam peixe apenas uma vez ou outra.) Depois, que
som delicioso! A gordura saltava, estalava. Uma nuvem de fumaça subia quando
as iscas cruas de batatas eram lançadas na gordura. As crianças reuniam-se em
volta, saltando de antecipado prazer. As meninas mais velhas enrolavam, cheias
de entusiasmo, cornucópias de papel e as colocavam, prontas para receber as
batatas, sobre a arranhada mesa de madeira. A chuva descia em cataratas pelas
janelas sujas. Raios do fogão lançavam uma luz ocre sobre a caótica cozinha e as
faces excitadas das crianças. A batata amarelava e tornava-se ligeiramente
marrom. A panela era tirada da grelha com um som áspero. A Sra. Worden
apanhava uma concha e sorria, carinhosa e lânguida, para os ávidos olhos. Mãos
estendiam os cones de jornal, onde manchetes enroladas falavam do terremoto
de São Francisco. A concha pairava sobre os cones. Caíam as batatas
fumegantes, inundando de calor agradável os pequenos e frios dedos. Enchia até
a borda um jornal que falava em devastação, morte, incêndios e horror. Iniciava-
se então uma corrida para apanhar o incrustado saleiro da mesa e a garrafa de
vinagre, em cuja rolha fora aberto um pequeno furo. A fragrância penetrante
enchia a cozinha, uma fragrância combinada da adstringência de bocas secas que
se enchiam de água, de gordura quente e batatas tostadas. As crianças corriam
pela cozinha, procurando lugares onde sentar e saborear o petisco. Cabeças e
corpos derreavam-se junto à lareira; outros empoleiravam-se na mesa,
empurrando para o lado os pratos sujos de ovos e restos; alguns sentavam-se
perto do fogão, devorando a comida. O jornal enrolado de Frank era sempre
enchido até em cima e ele nunca mais na vida provaria algo tão delicioso.
A Terça-Feira de Carnaval, porém, era a delícia das delícias. Era dia
santo e Bertha, de dezesseis anos, chegava da fábrica ao meio-dia. As crianças
não iam à escola. Bertha, a reconhecida especialista em panquecas, faria com
cuidados extremos os preparativos para criar na cozinha dos Wordens o alimento
dos deuses. Muito antes de a moça chegar, enrolada num largo e desbotado
avental, as crianças já estavam à espera. Ela assumia o ar de uma sacerdotisa.
Não admitia as altas vozes, a tagarelice, os tamancos tamborilando e dançando,
os gritos e as batidas de mão que a mãe tolerava. As crianças precisavam sentar e
ficar quietas. Sentavam-se, de mãos cruzadas, as faces voltadas para o fogão
como se para um altar. As chamas saltitantes delineavam vivamente os jovens,
sérios e exultantes perfis.
Em primeiro lugar, a grande terrina amarela. Depois, as colheres de pau,
a farinha de trigo, o sal, o açúcar e o leite cuidadosamente desnatado, à espera na
leiteira branca e rachada. A farinha descia em uma cascata de neve; o açúcar era
medido com o cuidado de um alquimista, o sal usado muito pouco e o leite
vertido gota a gota na massa. Logo depois, o tinido das colheres, batendo contra
os lados da terrina. Helen, de sete anos, recém-iniciada nos mistérios, punha a
grande frigideira preta no fogão e nela deixava cair um pouco de preciosa
manteiga dourada, que derretia com um murmúrio baixo e reverente.
Frank esqueceu os Wordens, mas jamais esqueceu Bertha, os fios claros
e lustrosos de cabelo caindo em cachos em torno da face bonita, o nariz
pequenino, a boca cor de coral contraída de concentração e solenidade, o corpo
magro, mas de seios bem cheios, e as mãos jovens arranhadas pelo trabalho. Era
a sacerdotisa de todos os ritos, Hebe e Atena, Diana e Juno. Jamais esqueceu a
chuva eterna que se derramava pelas janelas, o fogo, o odor de manteiga
derretida, a intensidade da emoção que queimava baixo naquela cozinha cheirosa
e congestionada.
Chegava, então, o momento decisivo. Bertha dirigia-se solene para o
fogão, tão absorta nos ritos religiosos que parecia ostensivamente inconsciente
dos neófitos, dos acólitos, do coro ainda mudo de vozes que logo depois se
ergueriam em orações. Uma grande concha, pingando frio néctar branco, era
erguida e deixava-o cair, lenta e religiosamente, na frigideira. Som de fritura!
Bolhas que pipocavam, chiavam e estalavam! Uma ou outra criança levantava-se
e ia furtivamente até o fogo para observar a brancura espalhar-se, expandir-se,
tornar-se fina e borbulhante. Bertha somente permitia que um ou dois de cada
vez viessem olhar: em seguida, eram substituídos por outros, em ordem bem-
comportada. Um deles podia ver o néctar correr até a borda da frigideira preta e
fumegante; outro, o começo do aparecimento das bolhas e, em sucessão, as
bordas se erguerem, tostarem e amarelarem. Finalmente, o último rito, a imensa
e fina panqueca sendo virada, aparecendo-lhe as costas marrons, chiando,
suculenta, deliciosa demais.
Com os pratos já à espera, as crianças formavam fila. Jim, de onze anos,
tomava conta do açucareiro. As crianças, excitadas demais para falar,
entregavam-lhe os pratos, pratos cheirosos que quase lhes caíam dos dedos
trêmulos. Jim, com os lábios judiciosamente contraídos, borrifava uma leve
camada de açúcar sobre a fumegante panqueca. Logo depois, dedos sujos
enrolavam-na. De volta então para o seu lugar, o garfo e a felicidade
inimaginável.
Algumas das crianças mais velhas blasées com a recordação de outras
vezes, provavam criticamente a panqueca e faziam comentários: “Bacana.” “Um
estouro.” “Melhor do que no ano passado.” “Bem, não sei, a minha está um
pouco empapada.” “Talvez seja melhor botar mais um pouco de sal, Bert.” Os
mais jovens, porém, não estragados ainda pelo mundanismo, apreciavam, mudos
e extasiados, acompanhando a panqueca com pequenos goles de chá fraco e
quente.
Oh, dias felizes, felizes, de aconchego e de fogo, de cheiros e de bolhas
de sabão, de água cinzenta nas eternas tinas de madeira, de batatas fritas, de
gordura quente e de panquecas açucaradas! Oh, dias de deleite supremo para
todos os gostos! Oh, dias de aceitação, paz, sensações profundas, calor e
discussões, de vozes de crianças! O pequeno Frank Clair esqueceu muito da
Inglaterra, mas nunca a Terça-Feira de Carnaval, nunca esqueceu Bertha, a
terrina amarela, a concha, as panelas fumegantes e o grande bule de chá.
Esqueceu a chuva, o ódio na escola, o medo, a confusão, a dor, o
silêncio, a solidão. Estavam na Quaresma e a Terça-Feira de Carnaval era a
coroação de sua glória. A panqueca inglesa continuou a ser para Frank o pão
sagrado da crucificação. Era o maná de Deus para os pobres, o verdadeiro
sacramento de Seu corpo e de Seu sangue.
Todas as culpas eram lavadas pelo chá, todos os receios e
autocondenações dissolvidos juntamente com as panquecas. Naquele momento,
ele alcançava a paz. Era sua a graça dos temporariamente redimidos e sua alma
expandia-se de certeza e reverente tranquilidade.
CAPÍTULO 7
Não podia compreender por que os filhos dos Wordens pareciam tão
felizes, autoconfiantes, serenos e robustos. Possuíam eles uma sólida
objetividade de temperamento, embora fossem muito pobres e vivessem em
condições bastante precárias. Fanfarrões, falavam em voz alta e eram humanas
as suas falhas. As roupas, remendadas, consertadas com cuidado, refletiam os
gostos generosos dos vizinhos mais prósperos. Mas, com exceção do raquítico
bebê, todos possuíam faces rosadas, olhos brilhantes e um riso fácil. O pai, um
gnomo torto e moreno, cheirando com frequência à cerveja e possuidor de uma
boca suja, era um tipo alegre que podia, assoviando, imitar fielmente numerosas
aves. A sua humildade não era a humildade covarde de Francis Clair. Muito ao
contrário, era um “respeito pelos melhores” que em nada lhe reduzia a dignidade
natural. Não nutria ambições, salvo a muito simples de conservar o emprego,
casar as filhas com rapazes “direitos” e ajudar os filhos a arranjar emprego junto
a ele na fábrica. Aos sábados, tomava a sua “birita”, ia a jogos de críquete ou
futebol e jantava peixe com batatas fritas. Aos domingos, tirava o “atraso do
sono” pela manhã, tomava “um desjejum bacana”, lia os jornais junto ao fogo,
fazia um passeio após o jantar de carne cozida, batatas quentes, repolho e pudim
de rins, acompanhado de chá, e travava grandes discussões na rua sobre política
com os companheiros de trabalho, tudo isso acompanhado de numerosas
inclinações sombrias de cabeça. “Aquele Kaiser, bem, eu não confio nele,
embora, preste atenção, ele seja neto da velha Rainha. Ah, a vida não é a mesma
desde que ela morreu. Deus a tenha em Sua santa paz. Acontecem coisas em
Londres nestes dias que não podem ser sabidas e acho que nunca serão. Há uma
fermentação no ar, mas não como nos velhos dias. Os jornais nada dizem a esse
respeito”.
Jim Worden tinha o antigo orgulho do operário inglês, a fé inviolável e a
certeza de que a casa era seu castelo. Podia “olhar um policial nos olhos” e saber
que era um homem honesto. Não nutria a menor das pretensões da miserável
“classe média” a que pertencia Francis Clair. Não abrigava nenhum de seus
medos, ansiedades, leves preocupações com castas, necessidade de “manter a
cabeça erguida”. E era mais rico em sua dignidade do que ele em seu cauteloso e
lamentável esnobismo. Não se inclinava ante um olhar superior; jamais temia
haver dito alguma coisa que não fosse “fina”.
Nenhum medo o visitava, salvo os antigos — de ser “chutado” do
emprego ou as filhas “se perderem”. Enquanto esses receios não se
materializassem, sentia-se feliz e seguro. Amava a esposa à maneira meio
intimidadora, meio afetuosa de sua classe, lamentava que ela fosse tão fecunda e
respeitava ao Rei e a Deus, nessa ordem. Olhava ternamente para as fotografias
da Família Real estampadas nos jornais. Discutia-lhes intimamente os casos, às
vezes cheio de desprezo, quando não com perplexidade, mas sempre com
afeição. Sabia que moravam em seus palácios porque ele com isso concordava.
Sabia que era por vontade dele que lhes davam boa proteção, sentia-se orgulhoso
e feliz quando via no cinema os nobres casacos vermelhos dos granadeiros. As
carruagens em que viajavam, as joias que usavam, as roupas que vestiam, eram
deles por seu consentimento. Sem arrogância, mas com honesto e visível
orgulho, conhecia o seu próprio poder. Conhecia o poder de milhões como ele,
que precisavam apenas despertar para que desaparecesse toda essa panóplia
aceita como natural, para que as carruagens douradas se desintegrassem em
lenha para fogo, para que se esvaziassem os palácios. E era por conhecer esse
poder que os amava, preocupava-se com eles como se fossem seus filhos
menores e os apreciava. Estava disposto a lutar até a morte por eles, pois
representavam o poder imenso do consentimento, a estabilidade inabalável, a
dignidade invulnerável, a sua força como inglês. Tinha pena dos americanos, a
mudar regularmente de presidente. Fazia pouco caso dos alemães, que eram
governados e não governantes. Desprezava os russos, oprimidos por
sanguinários czares e um clero assassino. Não havia paz na mudança, nenhuma
dignidade em ser governado, nenhuma masculinidade na escravidão. Ele, inglês,
aceitava as leis que ele mesmo havia promulgado, pois eram as suas leis; amava
seus governantes, pois lhes havia concedido a honra de governá-lo. Quem
poderia vencê-lo, salvo a morte?
Olhava para homens como Francis Clair e ria: “Esnobezinhos de meia-
tigela! Não podem nem dizer que têm alma!” Frequentava a capela local aos
domingos e sorria quando via a classe média malvestida dirigir-se para a “Igreja
Superior Anglicana”. Não se importava com a “Igreja Superior Anglicana”. Ela
existia porque ele permitia que existisse, porque era um inglês justo e tolerante.
Mas que se acautelasse aquele que quisesse “fazer pouco dele” com seus
“padres”, “freiras” e “papismo”. Viva e deixe os outros viverem, era seu credo. E
Deus que ajudasse o homem que tentasse mudar isso, mesmo um pouquinho.
Achava Maybelle Clair “uma boa mulher”. Entretanto nada sentia senão
desdém por Francis, que apenas cumprimentava com uma curta inclinação de
cabeça. Como a maioria dos ingleses, não gostava abertamente de crianças e, às
vezes, fechava uma carranca para o pequeno Frank quando o via, cheio de
expectativa, rondando a cozinha, congestionada. Mas depois encolhia os ombros
e murmurava: “Pobre coitado” e ia tratar da vida.
Frank encontrava consolo na casa dos Wordens, embora eles
resolutamente o ignorassem ou o apoquentassem às vezes. Mas sem malícia.
Nada de bestialidades com ele, como os colegas na escola. Abertamente
mostravam pena porque o menino não frequentava a imensa barulhenta escola
deles e porque a mãe não o deixava usar tamancos. Não consideravam sapatos
abotoados como coisa superior. Não tinham todos eles um par para usar aos
domingos? Eram mais fortes que ele e, com frequência, comiam batata frita e
podiam provar um pouco de cerveja quando o pai se sentia generoso. Sabiam,
instintivamente, que o níquel que recebiam nos domingos era muito mais valioso
do que os muitos pence de Frank. Ficavam muito mais ricos com o saco de
caramelos que comprovam somente nos fins-de-semana do que ele, que podia
comprá-los quase todos os dias. Frank possuía numerosos brinquedos; os dois
brinquedos baratos (às vezes um só) que eles ganhavam no Natal eram
infinitamente mais preciosos. Tinham pena do garoto por isso, toleravam-no,
ricos como eram, e em sua magnanimidade tratavam-no com indiferente
bondade.
Frank não se lembrava de haver frequentado a igreja ou escola paroquial
e somente o fato de a mãe possuir uma certidão dizendo que fora “batizado”
garantia que não era pagão. Maybelle, que era batista, não ousava sugerir que o
menino frequentasse a “capela” batista local e, assim, Frank deve ter
acompanhado o pai à “Igreja Superior Anglicana”. Se o fez, não conservava
recordação do fato, ou fatos.
Certo dia, perguntou à mãe por que os Wordens não frequentavam a
“igreja” do pai.
— Bem, eles são assim — respondeu pensativa Maybelle, sem saber
que, em sua simplicidade, jamais diria novamente na vida algo que teria um
efeito tão profundo sobre o filho. — Algumas pessoas acreditam numa coisa;
outras, em coisas diferentes. Veja os McNultys, que moram em frente. São
católicos. Vão àquela pequena igreja em Sandy Lane, junto da peixaria. E há os
Horowitzes na esquina. Ele é alfaiate. Frequentam a igreja deles. O seu pai vai à
dele e, às vezes, eu vou à minha. Algumas pessoas gostam de música com os
sermões e outras, não. Algumas gostam de velas e outras não as quereriam por
nada neste mundo. Algumas vão a certas igrejas porque são esnobes e se dão
ares importantes. Gente fina barata. E algumas vão a outras porque são perto. A
Sra. McNulty gosta da dela porque pode ir lá a qualquer hora do dia e fazer suas
orações. Isso é bom. Minha igreja abre somente aos domingos. E há também os
Adventistas do Sétimo Dia, que pensam que o sábado é o dia do descanso.
“Tudo depende da maneira como eles veem as coisas, querido. Ninguém
sabe, realmente. Mas fazem o melhor que podem e isso é o que importa a longo
prazo. Deus é o mesmo. No entanto, algumas pessoas pensam que são as únicas
que podem falar com Ele. São como as crianças que se julgam as favoritas do
pai. Isso quando Deus, durante todo o tempo, pensa em todos os seus filhos e
não tem favoritos”.
Interrompeu-se e olhou atônita para o filho. Suas pestanas avermelhadas
projetavam-se vividamente de cima dos grandes olhos castanhos.
— Sabe, querido, as pessoas costumavam matar-se umas às outras
porque pensavam que Deus gostava mais delas e odiava as demais! É isso o que
seu pai diz. Não sei. Às vezes, não acredito nisso. Esquisito, não?
Riram juntos, deliciados, inteiramente incrédulos desse propalado
absurdo. Mais tarde, muitos anos depois, Frank lembrou-se do riso gostoso da
mãe, que lhe pareceu o comentário mais sábio que já ouvira ou ouviria sobre
ódio. Para ele, as palavras da mãe resumiam a Inglaterra e, por tal motivo,
apenas acalentaria por este país o respeito reverente e o amor que um indivíduo
dedica livremente a um homem ilustre e honrado.
Certa ocasião, acompanhando a mãe em um de seus “afazeres”, viu pela
primeira vez um negro. A mãe explicou que ele devia ter chegado “de um lugar
chamado índia”. O homem usava roupas inglesas convencionais, embora tivesse
a cabeça envolvida por um turbante. Possuía feições belas e uma pele da cor do
sofá de mogno de que tanto se orgulhava Maybelle. Uma multidão de meninos,
silenciosos, mas sem medo, de olhos fixos, mas sem hostilidade, seguia-o. Ele
parecia não se importar. De fato, um pequeno sorriso repuxava-lhe os cantos da
bela boca.
Frank ficou profundamente interessado, mas a mãe o proibiu de segui-lo
também.
— Vai embaraçá-lo — disse, severa. — Somente Deus sabe por que
essas crianças o estão seguindo, como gatinhos atrás da gata. Ele tem a pele mais
escura do que a nossa, mas há algum motivo para que as pessoas olhem tanto?
Deus fez flores vermelhas, brancas e azuis e tudo difere no mundo. Apesar disso,
certas pessoas são bobas e pensam que é excêntrico ser diferente. O que é que
querem? Que todos se pareçam com elas?
Criança ainda, Frank compreendeu que a política era o sangue vital do
inglês, por mais pobre que fosse ou por mais preocupado que vivesse com a
necessidade imediata de evitar a fome. Até mesmo os comentários do inglês
ignorante de política eram penetrantes, prudentes e apropriados. As atividades do
Parlamento constituíam assunto do mais imediato interesse. Na América
descobriria que a política era o circo vil dos tolos, a pantomima dos idiotas, o
“cavalo de pau” dos patifes. Os americanos ilustres, por inércia ou desalento,
evitavam-na.
Ouvia amiúde Jim Worden e seu pai falarem sobre o assunto em Reddish
e desenvolveu profundo respeito e reverência por todos os governos. Pois era
evidente para o inglês que o governo era ele mesmo e que devia ser preservado
da indignidade, do aviltamento e da falsidade. Os “esnobes” podiam parecer
importantes em suas carruagens, mas o inglês sabia que, ante a lei, ele e “eles”
eram iguais, que sofriam o mesmo castigo pelos mesmos crimes. O governo não
declarava que “todos os homens são iguais”, mas, sem ser prejudicado por essa
falácia hipócrita, fazia cumprir a lei com plena justiça. O direito inglês
sustentava que privilegiados e desprivilegiados deviam respeito às leis que eles
mesmos haviam elaborado e sancionado e que o dever não aumentava nem
diminuía com a posição social ou a riqueza.
Às vezes, o inglês sentia-se perturbado pela desagradável suspeita de
que nem tudo corria inteiramente “bem” em casa e no Império, que havia graves
injustiças, sofrimentos imerecidos e que numerosas cincadas eram cometidas por
indivíduos cautelosos ou sabidos demais.
Contudo, nutria também a crença inabalável em que, no momento
apropriado, ele poderia corrigir e corrigiria tais defeitos, que tinha o poder de
fazê-lo, que mudanças salutares não ocorriam do dia para a noite (exceto em
desastrosas convulsões, as quais ardentemente repudiava e rejeitava), mas
sobrevinham com a força lenta, implacável e irresistível do oceano, como a
chegada das marés. Afinal de contas, não dera ele a Magna Carta ao mundo?
Não fora o primeiro a declarar-se livre do clero e dos tiranos? Não fora o
primeiro na história a estabelecer “um Parlamento por discussão” e conceder-se
o direito ao voto? Essas coisas não haviam ocorrido entre a noite e o nascer do
dia. Surgiram após séculos e radicavam-se em sua força e coragem indômita. O
mal descia como esfomeados gafanhotos, mas desaparecia na manhã seguinte. A
floresta crescia devagar e nenhum vento casual podia arrancá-la pelas raízes e
dispersá-la.
O que, no fim, o inglês decretava era feito e permanecia.
CAPÍTULO 8
Mesmo nas recordações de Frank nem sempre chovia na Inglaterra.
Lembrava-se daquele último verão. Lembrava-se de a mãe tê-lo levado
pela mão, descendo Sandy Lane, passando pelas últimas lojas e casas, cruzando
uma pequena ponte de madeira e penetrando no Vale de Reddish. Viu a água
tranquila e azul entre as altas margens verdes e o enevoado céu inglês, onde
viajavam nuvens silenciosas, inundando de luz macia e tênue. Ah viu também o
anoitecer cor de alfazema, a malva dos nevoeiros, os grandes e robustos
carvalhos em enormes bosques cor de esmeralda, erguendo-se solitários contra
os céus vazios.
Às vezes, ele e Maybelle sentavam-se em silenciosas encostas de
colinas. Com o sol queimando-lhes as costas, abarcavam com os olhos prados
ondulados onde pastavam tranquilas vacas e sentiam o odor suave da terra
sonolenta, dos espinheiros e de brisas perfumadas, gostosas como leite.
Ele nunca soube onde ficava aquele local, nem podia a mãe dizer-lhe
isso, mas lembrava-se de um anoitecer azul após a chuva, da fragrância de rosas
molhadas sacudindo gotas cristalinas de suas cabeças encurvadas e do
movimento lento dos caracóis no caminho lajeado de um jardim. Lembrava-se
de lilases em volta do portão antigo de uma cabana coberta de palha, lilases
brancos e púrpuras desprendendo um aroma que tocava o coração, e do canto
pungente de um tordo.
Lembrava-se de bosques na primavera, inundados por uma fraca luz
branca, de tapetes de pequeninas violetas com olhos amarelos e de nevoeiro
verde em árvores que despertavam. Lembrava-se de milhões de margaridas
brancas, como miniaturas, apegando-se à fulva terra da primavera como montes
de neve, e, em cima, um sonhador céu de púrpura.
Lembrava-se do mercado, da abundância de uvas e maçãs amarelas,
galinhas depenadas, cestas de batatas descascadas, cheiro de peixe, batata frita e
cerveja, do riso de mulheres e gritos de crianças que brincavam e, acima de tudo,
de um sol que era uma bênção. Lembrava-se de Stockport, onde viajou no andar
superior de um ônibus, dos pais comendo contentes ali chouriço de morcela e
dando-lhe um saco de caramelos. Lembrava-se de Belleview, dos guinchos dos
macacos, do rugido dos leões, do passeio no lombo do elefante, do amendoim
descascado e esmagado entre os dentes, de moças com enormes chapéus e
sombrinhas, boás de peles em volta do pescoço, sentadas em bancos ou rindo das
piadas dos seus elegantes acompanhantes.
Lembrava-se da pantomima no Natal, da meia pendurada junto à lareira
rachada, de embrulhos marcados com os dedos fuliginosos de Papai Noel, de
pirulitos de hortelã-pimenta, de castanhas assadas, do ganso dourando ao fogo e
do tanque gelado onde patinara entre as sombras fortes lançadas pelo sol de
cristal e as árvores esgalhadas. Lembrava-se das canções natalinas em meio à
neve que caía como pequenas borboletas brancas e da doçura e do
contentamento proporcionados por uma lareira acesa em noites escuras.
Lembrava-se de sanduíches de agrião e de chá quente e doce, de narcisos
em um vaso amarelo sobre a toalha branca da mesa de chá, de sua mãe pondo o
pote de mel e o prato de pão cortado em fatias muito finas ao lado, do pai junto à
janela lendo o Manchester Guardian e comentando em voz irônica as várias
notícias.
Sabia por essa ocasião que a família ia para a América. Ouvira os altos
queixumes e protestos da mãe e a impaciente resposta do pai de que seria apenas
por alguns anos.
— Deus, você não vai morar nas selvas! — disse Francis, jogando longe
o jornal. — Esqueça todas essas histórias sobre índios. Bolas! Não há índios em
Bison, a despeito do nome. É um grande país, tem cidades, e o maldito lugar está
cheio de dinheiro. O que é que você espera que eu faça? Que fique aqui e
apodreça durante o resto da vida?
Acima de tudo, porém, lembrava-se da primeira vez em que vira a
morte.
Não se lembrava da ida à casa de fazenda, mas lá, tanto quanto podia
recordar, estivera em companhia de dois ou três dos Wordens. Viu-se numa
cozinha, grande e nua, ao lado de um minúsculo caixão onde dormia um bebê,
enquanto a mãe, parecendo muito indiferente e calma, penteava o cabelo longo e
amarelado em frente ao espelho pendurado sobre a pia. Lembrava-se de que não
gostara da mulher, pois, embora nunca houvesse visto a morte antes, sabia que
era acompanhada de sofrimento, e disso sabia instintivamente. Mas ali estava a
robusta e jovem mãe, ajeitando o cabelo comprido, colocando com todo o
cuidado os pentes e, meticulosa e competente, inserindo os grampos, que
segurava na boca firme. Usava um corpete branco, um medalhão no pescoço e
uma saía marrom áspera, destacando-se por baixo os sólidos quadris. De vez em
quando, distraída, olhava no espelho para as crianças em volta do pequeno
caixão. Frank nunca esqueceu o frio e duro brilho daqueles olhos verdes, as
mãos ocupadas e o ar de brutal indiferença.
O caixão descansava sobre uma mesa. Branco, forrado de seda branca
barata, cheia de pregas. O bebê vestia uma mortalha branca, como uma boneca
adormecida, as pequeninas mãos dobradas molemente ao lado do corpo. Não
podia ter mais de cinco meses. A morte não apagara toda a cor da face redonda e
imóvel e pestanas douradas curvavam-se sobre a miniatura de rosto. A doce boca
sorria levemente. A criança era uma flor caída do talo, envolvida por um ar de
coisa final, de suavidade e silêncio.
Frank olhou fixamente para a criança morta. Observou os cachos
dourados, tão patéticos sobre a almofada branca. Viu o sorriso e as mãos
vulneráveis, caídas. Subitamente, embora coisa alguma soubesse da morte, caiu
em profunda mágoa. Doeu-lhe a cabeça, os olhos arderam e um peso desceu
sorrateiro pelos seus membros. Era uma criança que chorava com facilidade.
Entretanto não pôde chorar naquele instante. De alguma maneira, soube que se
encontrava na presença de algo inexorável, algo profundo e sem explicação, ante
o qual as lágrimas eram impotentes.
Estendeu a mão e tocou os pequenos dedos de mármore do bebê. Sentiu
frio, um arrepio que lhe subiu pelo braço e envolveu o seu quente coração.
Experimentou o terror, a dor, a amargura e o conhecimento de um mistério. A
criança seria enterrada, sabia disso. Mas não a via, na terra, fechada para sempre
na escuridão e no mofo. Via-a andando através de nevoeiros longos e móveis,
sozinha, apavorada, perdida e muda.
Chorou naquela noite em casa, causando grande preocupação a
Maybelle.
— Por que você foi até lá? — perguntou ela, enxugando-lhe as lágrimas.
— Você não me disse. Não é bom que um menino de sua idade veja... a morte.
Procurando consolá-lo, falou-lhe do “céu” e disse que o bebê estava com
certeza, naquele exato minuto, brincando num jardim, cercado de anjos infantis
como ele. Frank escutou obedientemente, mas as lágrimas continuaram a correr.
Não acreditou no que a mãe disse. Não sabia por que não acreditava nela. Via
apenas a criança vagueando para longe no nevoeiro e no mistério, para sempre
perdida, para sempre silenciosa, o fantasma de uma pétala a boiar em escuros
mares.
CAPÍTULO 9
E naquele momento iam para a América!
Sob o quente céu de fevereiro, os campos ondulavam com as pequenas e
belas margaridas brancas que em parte alguma são vistas, senão na Inglaterra. Os
ramos das árvores haviam-se suavizado e tinham-se tornado tenros e cheios de
vida. Aqui e ali moitas de espinheiros exibiam gaze verde emaranhada em seus
galhos. Toda a terra recendia a doçura e frescor. A água no Vale de Reddish
tornava-se aos poucos tão azul como os céus de primavera, varridos pelos
ventos.
Os Clairs deixariam Liverpool no dia 22 de fevereiro de 1907. Naquele
momento todos os vizinhos eram amigos e encheram a casa para desejar-lhes
boa sorte. O Dr. Durham, sério, frio, cor de terra, amoleceu o bastante para dar
uma palmadinha na cabeça de Frank e apertar a mão de Francis. Junto ao fogo, a
Sra. Durham, bebendo graciosamente chá, pronunciou palavras bondosas. As
crianças dos Wordens entravam e saíam da casa, que rapidamente se esvaziava,
fascinadas com o som dos martelos nos grandes caixotes depositados na sala de
visita. Maybelle chorava, mas ela, também, fora envolvida pela excitação geral.
Embora não fosse uma alma aventureira, via claramente a inveja e o desejo no
rosto das amigas e adquiriu entre elas uma nova dignidade e importância.
Surpreendentemente, Miss Ballister manifestou sincera pena a Francis e
segurou Frank pela mão quando disse:
— Este menino é realmente inteligente, Sr. Clair. Realmente inteligente!
No princípio, teve um pouco de dificuldade para aprender. Tem modos muito
estranhos, que precisam ser compreendidos. E um temperamento muito ardente,
receio, mas gostamos de crianças cheias de vivacidade, não, Sr. Clair? Ele é
tímido, mas toma o que quer. Se acha que não o pode conseguir, toma-o e deixa
as consequências para depois. É um pouco... um pouco... implacável, não? É
muito resoluto, a despeito de toda a tranquilidade, e obedece apenas para não se
irritar. O senhor disse que ele é tímido? Meu Deus, eu não sei. Realmente, não
quero dizer isso, mas acho que ele é um garoto muito pacífico, quieto e dócil
quando não é atacado ou perturbado, mas cheio de um fogo terrível quando
alguém se mete no seu caminho ou se mostra injusto. O senhor pode confiar
nele, se o compreender. Se for seu inimigo, porém, não confie, nem um
pouquinho. Ele tem uma memória prodigiosa para desatenções e ofensas.
Francis, zombando polidamente e protestando contra esses exageros,
sacudiu a cabeça. Contudo, ficou satisfeito. Olhou para Frank, fazendo uma
avaliação objetiva. Bem, sim, o pequeno salafrário tinha uma aparência
“diferente”. Perdera também aquela expressão abobada. Parecia quase
inteligente. Possuía algo das cores de Maybelle, embora com feições nítidas e
bem delineadas. Talvez ele, Francis, conseguisse fazer dele “alguma coisa”.
Afinal de contas, corria bom sangue na família.
Tão jubiloso ficou Francis com a opinião de Miss Ballister que deu ao
filho oito xelins como “recordação”.
Durante algum tempo depois desse episódio foi muito bondoso com
Frank.
Os Clairs viajariam em segunda classe e isso, também, era motivo de
inveja entre os vizinhos de Mosston Street. Nada de acomodações baratas para
os Clairs! Camarotes, camaroteiros, salas de jantar reluzentes de prata e
porcelana fina. Dignidade. A Sra. Jamie Clair lhe enviara cinquenta libras para
as passagens. Estava “rolando em dinheiro” na América, diziam impressionados
os vizinhos. Possuía sua própria carruagem e vivia como uma rainha. Enviara ao
filho fotografias suas, sentada na carruagem, vestida de seda preta, com uma boa
zibelina nos ombros e uma sombrinha preta de babados cobrindo-lhe a cabeça. A
expressão era de grande majestade e superior tolerância. Por trás dela era vista
vagamente a fachada de uma imponente casa e a parte inferior de saias brancas,
calças de homem e botas polidas nos degraus. Os moradores, sem dúvida. Mas
agora ela se referia a eles como “hóspedes”.
Francis, Maybelle e o pequeno Frank prepararam-se com elegância para
a viagem. Por alguma razão que jamais foi inteiramente descoberta, Francis
comprara um par de perneira pretas de couro, com correias e fivelas. Seriam
usadas na América. O pequeno Frank, que coisa alguma sabia a respeito da
América, teve, apesar de tudo, uma inesperada visão de sombrias e
impenetráveis florestas, paisagens selvagens cortadas por calhaus e montanhas
que precisavam ser escaladas a pé. Ele, também, queria perneira, que
naturalmente lhe foram recusadas. Chegou à conclusão de que o pai o carregaria
para sempre nas costas, pois suas botas engraxadas não eram apropriadas para
árduas explorações na América. Além das perneiras, Francis comprara um
estranho chapéu ou boné de pano preto, com um grande visor, de aparência
muito interessante. Ninguém em Reddish jamais vira coisa igual e ela inspirava
espanto. Francis, porém, informou aos amigos com ares importantes que aquela
coisa era usada em toda a parte na América.
Francis trocara algum dinheiro por “centavos”, que deu a Frank e às
crianças Wordens, que nunca se cansavam de brincar com essas estranhas
moedas de cobre, da metade do tamanho dos pennies ingleses. “Centavos”. Ora,
isso era muito estranho. Certa vez, Francis disse em tom de brincadeira ao filho
que todos os americanos comiam com os pés na mesa. Frank teve uma
estonteante visão de fileiras de mesas, fileiras intermináveis de homens em
mangas de camisa, comendo vorazmente com os pés cruzados sobre as toalhas.
O Sra. Clair, usufruindo de sua vantajosa posição de pessoa que residia
havia dois anos na América, escreveu-lhes, acautelando-os sobre o clima. “Não é
como na Inglaterra, Francis. Será inverno quando você chegar aqui em março.
Neve, gelo e nevasca. É assim que chamam as tempestades de neve. O tempo
continua assim, até o fim de abril e, com frequência, até maio. Assim, arranje
roupas quentes.”
Francis e Maybelle, porém, riram gostosamente do absurdo de um
inverno que entrava pelo verão, mesmo nessa fantástica América. Ora, podia-se
ver claramente pelo mapa que Bison, Nova York, ficava muito mais ao sul do
que Manchester, muito mais ao sul! A Sra. Jamie estava “exagerando”. Contudo,
como uma concessão às ideias esquisitas da mãe, Francis comprou um terno
grosso de tweed (pelo que depois daria graças a Deus) enquanto Maybelle
adquiria uma jaqueta e uma saia de lã azul clara, com peitilho de seda azul.
Depois de pensar um pouco, resolveu levar também um casaco quente, mas
apenas no braço. Ora, seria março, o quente mês de março, quando chegassem à
América!
O pequeno Frank ganhou dois novos ternos de sarja azul, novas botas de
verniz e novos chapéus redondos de marujo, bem como novas jaquetas com
fileiras de galões brancos de marinheiro na gola. Jamais se cansava de olhar para
essa riqueza, guardada com amor e carinho no guarda-roupa. Uma delas seria
usada a bordo, juntamente com as velhas roupas. A outra, porém, estava
reservada para o “desembarque”. Os ricos americanos pouco motivo teriam para
se julgarem superiores quando chegassem os Clairs.
Pela primeira e última vez na vida, Francis Clair não sentiu medo,
cautela, apreensão. Fora tomado por certa excitação, certo espírito de aventura.
Suas próprias feições mudaram levemente. Vivia, seus olhos brilhavam, e a voz
hesitante tornou-se firme e forte. Durante a última semana na Inglaterra, descia
Mosston Street com calma arrogância. Respondia com majestosos acenos aos
cumprimentos de conhecidos. Era importante, invejado, visto “como exemplo a
ser imitado”. Naquele momento, uma sensação de deleite fluía por suas
apertadas veias. A expectativa feliz fazia-o lançar os ombros para trás e uma
nova dignidade levava-o a mover a cabeça devagar e lançar aos conhecidos um
olhar remoto. Falava com autoridade e orgulho. Até mesmo o Dr. Durham
tratava-o com respeito. O pequeno e insignificante homenzinho, careca, agora
servido por novos e ferozes bigodes, adquiriu subitamente um ar de vivacidade e
importância. Suas vigorosas palavras eram ouvidas com reverência. Como todos
os humildes de seu tipo, insignificantes e tímidos, explorava o prestígio
transitório. O pessoal da fábrica mal ousava dirigir-lhe a palavra. Banhava-se na
glória.
— Naturalmente — dizia com ar soberbo ao seu novo amigo do peito, o
Dr. Durham — teremos que suportar isso apenas durante alguns anos. Depois,
voltaremos, com os bolsos cheios de dinheiro. Tenho esperança de abrir minha
própria farmácia, talvez em Manchester, ou entrar em um ramo de negócios
inteiramente diferente. Há uma ou duas fórmulas em que ando pensando. De
minha invenção. Há uma fortuna nelas. Mas é preciso dinheiro para lançá-las em
um mercado de remédios de nomes registrados.
Pensou nas Pílulas Beecham. Ora, o tal indivíduo agora era baronete! E
tudo isso criado por umas poucas pílulas. O Sabonete Pears. Ora, ele conhecia a
tal fórmula. Simples demais para reduzir a palavras. Ele, Francis Clair, tinha uma
fórmula de um sabonete muito melhor, e muito mais barato. Um estranho e raro
perfume para as pessoas aspirarem e uma nova embalagem. Tudo isso requeria
dinheiro, naturalmente, e dinheiro era ganho com uma facilidade espantosa na
América. Brincou com a ideia de fabricar lá suas fórmulas, mas, em seguida,
sacudiu a cabeça. Não. Para ele, a Inglaterra. Talvez mesmo um título de
baronete. Que os esnobes ficassem com seus ares importantes. Títulos
construídos com pílulas, laxativos, tônicos para o cabelo e sabonetes não eram
motivo de troça, afinal de contas, em especial quando havia dinheiro por trás
deles. O coração disparava-lhe no peito. Carruagens próprias; uma pequena casa
própria no campo; invernos em Torquay ou na Riviera. Empregadas para
Maybelle, uma boa escola particular para o garoto. Miss Ballister não havia dito
que ele tinha valor? Erga-se, Sir Francis Clair. Em seguida, a volta para casa, um
banquete em Russel Square e as carruagens dos esnobes atravancando as ruas de
Londres a caminho de sua grande casa. Podia mesmo comprar um desses novos
e fumacentos automóveis e gozar a boa vida com os melhores entre eles. Talvez
mesmo comprar uma cabana de caça na Escócia. Erga-se, Sir Francis Clair.
Parecia vibrar ao andar pelas ruas. Não se encontrava mais em Reddish,
em Mosston Street. Passeava pelas ruas de Paris, com luvas cinzentas, bengala
de castão de ouro na mão e polainas nos pés.
Esses, então, eram os últimos dias. Maybelle dera aos Wordens grande
parte do que não conseguira vender. A sala de visitas, a sala de estar, os quartos,
tudo se esvaziou. Caixotes empilhavam-se ante a lareira fria da sala de visitas,
imensos caixotes que acondicionavam os preciosos colchões de penas de
Maybelle, os cobertores e os melhores lençóis de linho. Caixotes com a melhor
porcelana e a prataria, os enfeites e as peças avulsas. Ela arrumou-os,
escondendo as lágrimas. Ao ouvir Francis fechando com um martelo as tampas
dos caixotes, pareceu-lhe o som de cravos sendo pregados num caixão de
defunto.
O último dia foi de sol quente, céu azul brilhante, brisa fresca,
perfumada e suave. Vinte e dois de fevereiro de 1907 e o ar era o de um feriado,
mesmo nas recordações de Frank. Alguns vizinhos retardatários vieram dizer
adeus. O garoto nunca ouvira essa palavra antes e ela também teve para ele um
som de mortal finalidade. Os caixotes foram levados. Os quartos vazios
encheram-se de sol pela primeira vez nas recordações de Frank. Naquele
momento, a casa ecoava e os cômodos lhe pareceram estranhos, remotos,
fechados para ele em seu vazio.
Subiu correndo a escada simplesmente para ouvir seus próprios passos
ecoando pelos corredores vazios, simplesmente para ouvir o estrondo de uma
porta fechada com força. Oh, nunca havia dormido ali, naquele quarto com o alto
teto inclinado! Nunca vira um fogo naquela grade cheia de cinzas. Nunca vira o
sol atrás daquela janela empoeirada. Era um estranho ali, numa casa estranha,
com fantasmas em todos os cantos. Desceu as escadas em desabalada carreira,
ainda mais ligeiro, tremendo de medo.
Chegou a carruagem que deveria levar a família à estação. O veículo
brilhava ao sol e a escura pelagem dos cavalos faiscava. Um homem colocava
pequenas malas no chão. Ali estavam as novas malas do pai, compradas em
Londres, e uma trouxa misteriosa que pertencia à mãe, embrulhada em um velho
cachecol de Paisley. Francis sentiu-se enojado. Pôs sua mala sobre o vergonhoso
embrulho. A esposa nunca aprenderia. Havia algo de vulgar nela.
Depois de muita azáfama final de Maybelle, a família subiu finalmente
na carruagem. Os vizinhos na rua acenaram e jogaram beijos. A Sra. Worden
levou o avental aos olhos. O vento quente tangeu os cachecóis das mulheres e os
meninos abriram a boca. O sol batia sobre os telhados de ardósia, onde se
enroscava a fumaça acre das chaminés. Maybelle usava um novo e belo conjunto
marrom escuro e um grande chapéu pardo, pesado, com flores rosadas. A jaqueta
estava apertada demais. Forçava as costuras e a região da cintura. Ela exalava
um perfume de rosas, prodigamente borrifado sobre o corpo. As botas marrons
abotoadas brilhavam na luz clara. A camisa de lã de Frank arranhava-lhe a pele
sensível. Tinha a face úmida. Francis, erguendo cheio de dignidade o chapéu-
coco novo, inclinou-se em um último adeus às mulheres tagarelas. A carruagem
começou a rodar, Francis sentou-se, olhando diretamente para a frente, com as
mãos enluvadas cruzadas sobre o castão da bengala. Maybelle soluçava, com os
braços em volta do menino. Frank, porém, olhava interessado em volta,
deleitado com o movimento da carruagem. Nunca andara em tal veículo antes.
A carruagem chocalhou alto sobre os tijolos de Mosston Street. Subiu
uma ladeira íngreme e entrou em Sandy Lane. As vitrinas das lojas brilhavam à
luz da manhã. A rua tombou em ladeira e Frank viu um céu inefavelmente azul,
onde deslizavam nuvens brancas como neve, parecendo imensos cogumelos.
Maybelle chorava. Francis movia a cabeça majestosamente. Tilintavam
os arreios. Os cavalos trotavam. Saturava o ar um cheiro acre de esterco.
CAPÍTULO 10
A recordação seguinte de Frank era de uma rua em Liverpool, uma rua
iluminada pela luz pálida da tarde. Ao fim da rua, uma imensa parede cinzenta
de madeira, que sua mãe disse ser o “navio”.
Ficou desapontado. Vira desenhos de grandes veleiros em seus livros de
gravuras e tivera visões de si mesmo em um convés polido e de velas imensas
que se enfunavam sobre sua cabeça. Aquele não era o navio de seus sonhos. Era
simplesmente uma parede, nada mais, uma parede feia que fechava
completamente a rua. De que modo podia uma parede levar uma família pelos
mares até a América? Mas estava cansado e os sapatos novos lhe apertavam os
pés. Começou a choramingar baixinho.
A recordação seguinte era do camarote do navio, onde passaria doze dias
inteiros. Sabia que o nome do navio era “Baltic” e que o comandante se chamava
Smith. Anos depois, quando o “Titanic” mergulhou nas ondas do terrível
Atlântico, os pais lhe disseram que o comandante desse navio fora o mesmo que
os havia levado. Lembrava-se de um ou dois vislumbres do Capitão Smith, um
homem alto, tranquilo, robusto, com uma barba grisalha à Vandyke e olhos
bondosos e distantes.
O camarote era bem espaçoso. Possuía uma fascinante pia que dobrava e
penetrava na parede e três beliches fixos, macios, cobertos com bons cobertores,
muito confortáveis. Havia um armário para as roupas e a bagagem. Mas isso era
tudo o que lembrava do camarote, embora sua mãe ali permanecesse, gemendo
de enjoo, durante a maior parte da travessia.
Acudia-lhe apenas uma recordação viva do dia do embarque. As vigias
abriam-se para a quente brisa do mar. A mãe escancarara as malas e pusera a
trouxa sobre uma das camas. Naquele momento, ergueu a cabeça e olhou por
uma vigia. Frank, ao seu lado, olhou também. Não sentiu a menor sensação de
movimento, de deslocamento. Mas viu um grande trecho prateado e faiscante
que se elevava devagar e, mais além, as praias purpúreas da Inglaterra, caindo
lentamente por trás da curva da água.
— Ali está a Inglaterra, a boa, velha e querida Inglaterra — disse
Maybelle.
Frank olhou até que a nuvem púrpura que era seu país nativo mergulhou
por trás das grandes ondas. Ouviu então o choro da mãe. Francis encontrava-se
no tombadilho da segunda classe, com os braços sobre o corrimão.
A bordo, Frank descobriu que não apenas ele, mas todos os demais
indivíduos eram personalidades distintas e que cada um deles possuía uma vida
secreta que não ultrapassava a borda da consciência de seus iguais.
A sua mente sempre vivera mergulhada em sonhos, em imensas emoções
e reações vagas, em respostas automáticas aos estímulos. Naquele momento,
porém, andando pelo navio, seus olhos se tornaram mais objetivos, e a argila
amorfa da mente passou a registrar sulcos de pensamentos, conjecturas
conscientes, deduções e comentários silenciosos. Se olhava para o mar pela
manhã não era apenas com a reação de êxtase e de reverência, mas também com
um pensamento: Como é belo! Quando o pai lhe mostrava uma baleia, muito
distante na vasta superfície do oceano, com uma pequena fonte de água que lhe
revelava a grande e indiferente presença, Frank não ficava mais simplesmente
emocionado. Projetava-se dentro da baleia e tornava-se parte do enorme
monstro, sentia-lhe a obscura consciência e conteúdo e imaginava o universo
verde que fluía nas profundezas abaixo do nível do mar. Quando via golfinhos
saltarem na esteira do navio, perguntava-se o que seria a vida deles e
maravilhava-se com os mistérios insondáveis da existência. Não aceitava mais
com uma alegria sem pensamento o ilimitado pôr do sol, que transformava em
fogo as águas cor de ametista, mas se interrogava sobre o sol e suas jornadas e
tentava resolver mentalmente o enigma.
Vagueando pelo convés, observando os passageiros em suas cadeiras,
debruçados no corrimão, conversando entre si ou andando em passos enérgicos,
não mais lhes aceitava a presença com uma vaga indiferença, como se aceitam
sombras. Começou a fitá-los cheio de interesse, observando-lhes o jogo de
expressões nas faces.
Sua sensibilidade, suas antenas delicadas estendiam-se para eles,
sondando a substância de seus seres, pensamentos, emoções, desesperos e
reações aos que os cercavam.
Ao projetar-se nos demais, na sensação do ar, no movimento das
estrelas, no significado de uma voz, descobriu a si mesmo e isto foi a mais
excitante de todas as descobertas.
Na manhã do terceiro dia no mar, Frank subiu ao tombadilho da segunda
classe e encontrou o pai, encostado no corrimão, palestrando com conhecidos de
bordo. Usava o estranho boné que, com tanto orgulho, comprara em Manchester,
e as perneiras. A bengala pendia-lhe do braço. O boné lançava sombra sobre a
face pequena e murcha, destacando a preta beligerância dos bigodes. As
perneiras traíam a finura de pernas de aranha nas panturrilhas. A bengala era
uma ostentação.
Com um ar de viajante blasé, ele falava em voz dogmática e afetada,
gestos lânguidos e europeus. Era um viajante entediado de Paris, Londres,
Copenhague, Berlim e Estocolmo. Era o buscador independente da novidade na
América. Casualmente, deu a impressão de que se encontrava encarregado de
uma missão de pesquisa experimental em certas cidades americanas e que iria
comparar notas com misteriosos colegas sobre assuntos de química. Como lera
muito sobre o assunto, possuía mais do que a baixa inteligência média e uma
mente viva que tapava elegantemente as falhas de seus conhecimentos, não
deixava de parecer convincente à plateia. Era uma sorte, contudo, que todos eles
fossem de sua própria classe, patéticos fazedores de poses, em busca de uma
importância que, instintivamente, sabiam que não tinham e nunca teriam, cada
um mais interessado em impressionar o outro. Você acredita nesta minha história
a respeito de minha importância e valor e eu acreditarei na sua, pareciam dizer.
Conceda-me minha miserável falsa glória, minha pequena hora ao sol de sua
admiração, e eu lhe concederei a mesma glória e deixarei que você se aqueça ao
meu sol. Finja acreditar que sou pessoa importante e cheia de dignidade e
fingirei a mesma coisa a seu respeito.
A certa distância, o jovem Frank observava e escutava. Pouco tempo
antes, teria notado inquieto a presença do pai e desaparecido em seguida. Os
adultos eram criaturas tediosas, sem motivo perceptível para existirem. Naquele
momento, porém, suas antenas supersensíveis estenderam-se inquietas para o pai
e os demais cavalheiros, que se mostravam forçadamente à vontade, e, embora
não tocada ainda pela experiência, a criança soube e compreendeu.
Não sabia exatamente naquele instante por que eram tão patéticos, por
que havia um ar de medo em todos eles, por que lhe davam tanta pena. Mas,
inesperadamente, foi engolfado por uma compaixão amarga e sem lágrimas, uma
ardente tristeza. Viu o pai como jamais o vira antes. Notou-lhe os lamentáveis
fingimentos, os complicados e comoventes gestos. O boné, as perneiras, a
bengala eram regiões de dor para o garoto, golpes separados num ponto
dolorosamente sensível da percepção. Quis chorar, mas lágrima alguma escorreu
dessa mágoa de adulto. Sentiu vontade de correr até Francis, segurar-lhe a mão e
gritar angustiado: “Eu sei! Eu sei!” Queria mergulhar nos amedrontados olhos
azuis de Francis e, tirando um grito das doloridas profundezas de seu espírito,
dizer-lhe: “Eu compreendo, papai. E sinto tanto! Quero ajudá-lo, mas sei que não
há ajuda, em parte alguma.”
A paralisante impotência da infância, porém, era forte demais e ele não
conhecia palavras com que pudesse expressar o novo conhecimento nem
dispunha de meios para comunicar a piedade. Afastou-se, voltou ao salão e
permaneceu sentado durante mais de uma hora, sofrendo a primeira e dolorosa
compaixão pelo pai, a primeira compreensão. Sentiu também a primeira fúria
abstrata contra o mundo, a primeira compreensão de que era vergonhoso e
terrível que algo na terra pudesse despertar piedade e que a necessidade de
piedade fosse má e insultuosa.
Não se recordava de ter feito amizade a bordo com outras crianças. Nem
uma única face jovem lhe surgiu na memória. Lembrava-se da bela sala de
jantar, dos camaroteiros, do chá vespertino no tombadilho, das pequenas taças de
bouillon de galinha, do som do gongo anunciando o jantar e da vasta extensão do
oceano. Lembrava-se de nevoeiro, de nervosas buzinas gemendo à noite e do
som de música.
No quinto dia, o “Baltic” desviou-se da rota para evitar uma tempestade
e a ameaça de icebergs. Desapareceu o calor da Corrente do Golfo. Os golfinhos
brincalhões não mais seguiram o navio. A glória azul da água foi substituída por
uma bruma cinzenta. O navio começou a jogar, balançar, arfar incessantemente.
A sala de jantar tornou-se mais e mais vazia a cada refeição. O Capitão Smith
andava com uma fisionomia preocupada e absorta. Durante três dias, os
passageiros foram proibidos de passear pelo tombadilho.
Vapor assoviava em canos ao longo dos passadiços e camarotes. Um frio
penetrante, porém, saturava todos os camarotes e salões e descia para a
congestionada terceira classe. Ao receberem permissão para voltar ao convés, os
passageiros arrepiaram-se e ficaram azulados de frio. O mês de março começava
e aproximavam-se da América. Francis vestiu o temo de tweed e deu graças a
Deus por tê-lo comprado. As camisas de lã de Frank não mais lhe provocaram
coceira. Maybelle vestiu o casaco, que usava mesmo no camarote, e até deitada.
As camaroteiras trouxeram sacos de borracha cheios de confortante água.
Sangue inglês congelou em veias inglesas.
No dia seis de março o oceano alteou-se em macias, cinzentas e oleosas
ondas, mas a fúria da tempestade fora substituída por um baixo, constante e
profundo som. O céu fervia com grossas nuvens esbranquiçadas, listradas por
nevoeiro negro, em volutas. O frio cortante “congelava o tutano de um homem”,
para citar Francis Clair, cujo curto nariz adotou uma tonalidade invariavelmente
azul. Nunca experimentara antes vento tão penetrante e temperaturas tão baixas.
A mãe tivera razão. Pensou na cálida brisa inglesa, nas margaridas, nas baixas
colinas cor de púrpura, nos prados verdes e, pela primeira vez na vida, sentiu-se
doente de saudade.
Na manhã de sete de março, Francis entrou correndo no camarote e,
emocionado, exigiu que a esposa e o filho subissem ao tombadilho com ele.
Maybelle, porém, cuja cor rosada fora substituída por uma permanente lividez,
estava ocupada arrumando a bagagem espalhada e respondeu que não tinha o
menor desejo de ver a costa de Nova York. Para ela, o navio havia-se
transformado em um elo com a Inglaterra. Agarrou-se àquele cordão umbilical
até o último momento. Frank, contudo, subiu correndo a escada em companhia
do pai. Francis conseguira um binóculo. Empurrou o filho através da multidão
até o corrimão e focalizou para ele o instrumento.
Frank, tremendo de emoção, olhou pelas lentes. Exatamente na
superfície do oceano, que se erguia a distância, viu uma baixa e clara parede,
fraturada e caótica, azul, alfazema e amarelo-clara. A parede parecia mergulhar,
erguer-se, tornar-se mais e mais brilhante e firme. Naquele instante, o jubiloso
navio urrou cumprimentos à América e o tombadilho foi inundado pela fumaça.
Vozes subiram numa feliz tempestade de exclamações e risos. A perigosa
jornada terminara. Frank sentiu um forte e doentio cheiro, adocicado,
insuportável. Gaivotas descreveram círculos sobre o navio, misturando-se seus
agudos pios com o vento frio. Frank viu pequenos e ativos rebocadores, pretos e
importantes, dirigindo-se para o navio, vomitando fumaça e produzindo um
horrível barulho.
A recordação seguinte foi a de funcionários da Alfândega americana
entrando no camarote. Desde que os Clairs eram passageiros de segunda classe,
não seriam obrigados a passar pela indignidade da revista em Ellis Island. Entre
os funcionários havia um médico baixinho, que aplicou um estetoscópio ao peito
dos três Clairs no próprio camarote.
Em seguida, Frank ouviu a voz zangada do pai erguer-se em protesto:
— Do que é que o senhor está falando, homem? Nunca sofri de tísica em
minha vida! Absurdo. Sou sadio como um cavalo!
O médico sacudiu a cabeça e auscultou-o novamente. Francis tirara o
colete e a camisa. Ficou com as roupas de baixo de lã, a face murcha brilhando
de raiva e medo, os olhos mexendo-se inquietos de um lado para o outro. Os
bigodes eriçaram-se e a língua nervosa umedeceu os lábios. Maybelle olhava
com expressão vazia para a frente, empalidecendo.
O médico guardou o estetoscópio e disse:
— Há estertores no peito. O senhor já teve bronquite?
— Quem foi que não teve? — respondeu zombeteiro Francis.
— É uma doença nacional na Inglaterra.
O médico examinou alguns papéis:
— Farmacêutico, hem? Não é um trabalhador braçal. Bem. Já recebemos
da Europa um número grande demais de trabalhadores braçais. Não fique
preocupado, Sr. Clair. Eu não disse que o senhor tem tísica, ou melhor,
tuberculose. Observei apenas que o senhor demonstra certa tendência para
contraí-la. Provavelmente, bronquite crônica. Descobrimos um bocado desses
casos em pessoas vindas da Inglaterra. — Sorriu e apertou com a mão trêmula o
ombro de Francis, muito magro e ossudo. — Temos aqui um bocado de sol e
talvez isso dê um jeito no seu caso. Mas, se aparecer com tosse ou escarros
sanguíneos, é melhor procurar um bom médico. Quanto mais cedo, melhor.
Saindo o médico e os funcionários, Francis derreou-se na cama,
respirando forte e com dificuldade. Empalidecera de medo. Tossiu
experimentalmente.
— Eu lhe disse que usasse cachecol de lã — lembrou Maybelle
— Mas você queria andar por aí mostrando o pescoço!
— Cale-se! — respondeu violentamente Francis. Tossiu outra vez, e
mais outra, escutando com total e apaixonada absorção o som produzido. A tosse
era seca, forçada. Francis começou a tremer enquanto escutava.
— Mel e limão — sugeriu Maybelle.
— Cale a boca! — gritou Francis. Tossiu e continuou a tossir. Levou o
lenço à boca. Seco e limpo. Desanuviou-se o seu rosto. — Você já me ouviu
tossir alguma vez à noite? — indagou nervoso à esposa.
— Não, querido.
— Fico afogueado ou suo à noite?
— Certamente que não.
Francis, triunfante, levantou-se de um salto.
— Esses médicos americanos! Não sabem de nada. Ouvi falar neles.
Frequentam a faculdade apenas durante dois anos. Foi isso o que Durham me
disse. Tísica! Nunca fiquei doente na vida. Ouviu aquela tosse? Tive que fazer
força para tossir.
CAPÍTULO 11
As recordações seguintes de Frank Clair não incluíam Nova York, salvo
uma vaga impressão de frio, trechos cobertos de neve e uma caótica confusão de
edifícios. Tampouco se lembrava da viagem de setecentos e cinquenta
quilômetros de trem, de Nova York até Bison.
Mas lembrava-se de ter descido do trem na Lackawanna Station. À
frente começava uma longa ladeira coberta de neve, vazia, suja e horrivelmente
fria, que terminava no começo de Main Street. De ambos os lados, estendiam-se
armazéns desertos, bares, casas de cômodos suspeitas usadas por vagabundos e
tripulantes dos barcos do lago, durante o verão. Um cheiro fétido de esgoto,
sujeira, álcool e comida ruim enchia o ar. Notou o céu do norte, nublado,
enfarruscado, sombrio, encoberto por escuras e pesadas nuvens cor de cinza.
Sentiu os ventos paralisantes que sopravam do rio e dos lagos, o ferrão das
partículas de neve, duras como grãos de areia, e gelo na face. Exausto, subiu a
ladeira ao lado da trêmula Maybelle. Francis, usando boné, bengala e lustrosas
perneira, subiu à frente, levando as preciosas malas compradas em Londres.
Frank nunca esqueceu aquelas lustrosas pernas, a pequena figura magra metida
em um temo de tweed, subindo com alegria a escorregadia ladeira.
Chegaram ao alto, no começo de Main Street, que se estendia diante de
Frank margeada por lojas, restaurantes, bares e casas de cômodos arruinadas.
Aparentemente, tudo se encolhia ante o imenso e apavorante céu invernal. As
ruas, o meio-fio e os telhados estavam cobertos pela neve suja. Havia um ar de
fronteira na cidade, não obstante ela possuir uns trezentos mil habitantes. Talvez
fossem o inverno interminável, o frio, a proximidade das grandes extensões dos
lagos de água doce e do feroz Rio Niágara que criassem aquele ar. No entanto,
embora Bison viesse finalmente a crescer e a abrigar uma população de cerca de
setecentas mil almas, jamais perdeu sua característica de fronteira, a desolação
no inverno, a atmosfera de duro isolamento. Era a segunda maior cidade do
Estado, mas entre ela e a de Nova York havia centenas de outras cidades, aldeias
e pequenos burgos que pareciam tão remotos entre si como se separados por
milhares de quilômetros. Situada às margens do Lago Erie e do Rio Niágara,
dava frente para a longa e nevada desolação do Canadá e atraía todo o impacto
do ar polar e de planícies desertas e montanhas esquecidas.
A Sra. Jamie Clair, que nunca misturava assuntos de “família” com
negócios, não lhes preparara acomodações na sua lúgubre pensão em Porter
Avenue, não muito longe do rio. Alugara dois cômodos para Francis e a família
em Vermont Street, próxima a Normal Avenue. Nem fora recebê-los quando
chegaram à deserta e triste cidade. Sabiam o endereço. Francis conseguiu
arranjar um frio táxi. Tremendo incontrolavelmente, ele e a família subiram e
partiram.
Frank era jovem demais para sentir grande incômodo físico, embora
tivesse os pés dormentes e as mãos nuas azuis de frio. Olhou pelas janelas sujas
do táxi, absorvido no que via. Viu ruas intermináveis, de esquálidas e escuras
casas de madeira; o meio-fio até em cima de neve; telhados leprosos em misturas
de branco e preto; o ar rodopiando com areia branca e vento furioso. Não parecia
haver uma única alma nas ruas às dez da manhã desse dia 8 de março. A neve
soprava em véus pelas ruas desertas, enrodilhava-se e contorcia-se nas esquinas
vazias. As casas eram apenas manchas indistintas, escuras, por trás de dançantes
e trêmulos xales de diáfana brancura.
— Viemos para o fim do mundo — choramingou Maybelle
dolorosamente, encolhendo-se toda dentro do casaco.
Francis permaneceu calado. Ele, também, olhava pela janela do táxi,
embaciada pelo gelo. Com o pequeno rosto rígido e tenso, pestanejavam sem
cessar os seus miúdos olhos azuis. Frank sentiu mais pena do pai do que da mãe,
embora não pudesse dizer por quê. A bengala jazia esquecida ao lado, as
pequenas e valentes perneiras pareciam vulneráveis, patéticas, e o boné, grande
demais para a cabeça. Até mesmo os magníficos bigodes começavam a pender
para os lados.
Depois de intermináveis solavancos pelas ruas cobertas de gelo, o táxi
parou em Vermon Street. Frank viu um armazém de secos e molhados, uma
alfaiataria e uma fileira de esquálidas casas de madeira, de aparência triste,
abandonadas ao assalto do inverno. Subiu um longo lance de íngremes degraus
de madeira, escuros e terrosos. A porta se abriu e uma gorda megera de
aparência sinistra surgiu, fitando-os em silêncio por trás dos óculos com aros de
aço.
Maybelle tentou sorrir.
— Bom dia — disse, mas a voz saiu rouca. — Somos os Clairs.
Acabamos de chegar.
A velha e obesa feiticeira afastou-se para o lado, sem falar. Fungou alto,
embora ninguém pudesse saber se o fez por estar resfriada ou por desprezo. Uma
pancada de ar gelado e pulverulento atingiu os viajantes. Maybelle olhou em
volta e seu cálido coração derreou-se para nunca mais erguer-se inteiramente na
América.
Havia dois cômodos à espera. Um deles era um quarto de dormir e sala
de estar. Continha uma grande cama de ferro, toda filigranada, coberta com
cobertores velhos e úmidos e uma colcha branca remendada; um sofá e uma
pilha de cobertores sujos no chão, obviamente destinados ao jovem Frank; uma
cômoda torta, de carvalho, com espelho manchado; duas cadeiras de balanço de
madeira; uma mesa redonda de carvalho sem toalha e, no chão, um linóleo gasto
e remendado, cuja decoração era irreconhecível. Um pequeno aquecedor a gás
fora aceso de má vontade e suas chamas vermelho-amareladas desprendiam um
fétido cheiro de gás não inteiramente queimado. Um lustre a gás, sem as
camisas, pendia do teto caiado.
O outro cômodo era a cozinha, contendo uma “chapa quente” em uma
caixa de madeira, uma pia de ferro com uma torneira que pingava apenas água
fria, uma mesa sem toalha e três ou quatro cadeiras de madeira com assentos
imitando couro. As cortinas de algodão áspero pendiam molemente, cobertas por
uma leve camada de fuligem. Um guarda-comida vazio, de madeira, bocejava
contra uma parede.
As janelas, estreitas e sujas, emolduravam uma cena de desolação:
telhados de madeira, fumegantes chaminés sujas e pretas, paredes de casas e a
apavorante rua embaixo.
Por esse luxo, os Clairs pagariam três dólares semanais, o que a Sra.
Clair lhes havia garantido ser muito barato, desde que estava tudo incluído, o
aquecimento, a iluminação e a mobília.
— Bem — disse a bruxa com os braços cruzados sob o avental — vocês
chegaram, finalmente. Eu os esperava há dois dias.
Francis tirou o boné. Lançou-o na grande e úmida cama.
— Enfrentamos uma tempestade — disse, tentando dar à voz que morria
um tom forte e confiante. — Atrasou a viagem em três dias. — Interrompeu-se.
— A senhora é a Sra. Watson, suponho?
A velha grunhiu um assentimento. Possuía um ventre enorme sob o
vestido sujo, de alguma espécie de tecido preto de algodão. O cabelo
esbranquiçado fora amarrado em um pequeno nó na parte superior da imensa
cabeça- Fios brancos cresciam-lhe em profusão no queixo. O aspecto dela era
brutal, grosseiro, suspeito.
Francis indicou a esposa e o filho com um aceno de mão.
— A Sra. Clair, e meu filho, Frank — disse.
Maybelle inclinou a cabeça. Não ousou falar, receosa de prorromper em
soluços. Frank olhou-a fixamente. A velha examinou sem pressa Maybelle e o
garoto.
— Espero que o menino não seja um traste. É a primeira vez em que
hospedo uma família com filho.
— O garoto é bem-comportado — prometeu Francis, olhando feroz para
Frank.
— Há uma escola aqui, no número 38, subindo a rua — disse a Sra.
Watson. — Ele já tem idade suficiente, não?
— Frank está na escola há um ano. — Maybelle falou pela primeira vez
e com uma débil coragem. — Ele é muito aplicado.
— Espero que não molhe a cama — respondeu azeda a Sra. Watson.
Estendeu a mão. — Três dólares. Isto é, até sábado. São apenas mais quatro dias,
mas reservei-lhes o quarto desde o começo da semana e, assim, devem o
pagamento todo.
Francis tirou o dinheiro do bolso. Seus dedos tremeram um pouco ao
contá-lo. Entregou-o à bruxa, que o arrancou da mão dele, olhou desconfiada
para as notas, dobrou-as e enfiou-as no seio. Odiava “estrangeiros” e,
especialmente, ingleses.
— Vocês usarão o banheiro, que está incluído no apartamento —
continuou a Sra. Watson. — É meu banheiro, também. Chegam lá, passando
pelos meus cômodos, nos fundos. Há uma regra sobre o uso. Vocês precisam
falar antes comigo quando quiserem tomar banho, e não mais de um banho por
semana. — Fungou. — Trouxeram louça e o resto?
— Nossos caixotes estão na estação. Combinei para serem trazidos hoje
à tarde —■ disse Francis. Parecia mais baixo na triste penumbra daqueles
cômodos do que na Inglaterra.
— Tenho roupas de cama — disse Maybelle, lançando um olhar
apavorado à cama e ao sofá. — Bons colchões de penas, lençóis e travesseiros.
A Sra. Watson pareceu desdenhosa.
— Bem, vocês podem usar suas coisas. Não me importo. Simplesmente,
devolvam estas quando as outras chegarem.
Dirigiu-se pesadamente para a porta, abalando as gastas pranchas de
madeixa do assoalho. Saiu e bateu com força a porta.
Caiu o silêncio nos feios e pobres cômodos. Maybelle sentou-se numa
cadeira da cozinha. Começou a puxar as finas luvas de pelica. Os dedos lhe
tremiam visivelmente. Francis andou de uma janela a outra, olhando para fora.
Os cômodos escureciam cada vez mais. O bom couro marrom das malas
abandonadas parecia recolher-se dentro de si mesmo.
Maybelle começou nesse momento a chorar incontrolavelmente. Cobriu
o rosto com as mãos. O chapéu inclinou-se como um enorme platô coberto de
flores. Afundou-se na cadeira e entregou-se ao sofrimento. Frank colou-se a ela,
infeliz e apavorado demais para chorar. Francis deixou a janela e olhou furioso
para a esposa.
— Pelo amor de Deus, acabe com isso, Maybelle — disse, mas a voz lhe
tremia — Isso não pode ser evitado. Mas é apenas temporário.
Maybelle, porém, chorava e dizia incoerentemente:
— E pensar que deixei minha casa tão confortável por isto, as grades
polidas e as lareiras, minhas boas camas e minha linda mobília! E pensar que
trocamos a Inglaterra por isto!
Falando do fundo do próprio desespero, depressão e medo, Francis
respondeu áspero:
— É apenas temporário, estou-lhe dizendo. É barato. Economizaremos
todo o nosso dinheiro e voltaremos para casa. Talvez dentro de dois ou três anos.
Mamãe me arranjou um bom emprego numa farmácia. Vinte e cinco dólares por
semana! Isso é mais de cinco libras! Ganharei um pouco mais depois. Podemos
economizar quinze dólares por semana, isto é, três libras. Três libras por semana
são setecentos e oitenta dólares por ano, ou cento e cinquenta e seis libras. Eu
também estarei ganhando mais. Ora, logo depois teremos duzentas libras num
ano, mil dólares! Dentro de três, quatro, cinco anos, possuiremos uma fortuna e
voltaremos para casa. Mil dólares por ano, pelo menos. Podemos tolerar
qualquer coisa por esse dinheiro.
Esperou o comentário de Maybelle, mas ela coisa alguma tinha a dizer.
Impotente, Francis torceu os bigodes.
— Considere isso como um exílio — disse, menos confiante. —
Simplesmente um exílio. Ainda somos jovens. Podemos suportar qualquer coisa
durante alguns anos. Depois, voltaremos com os bolsos cheios de dinheiro.
— Anos de vida neste lugar, onde o diabo perdeu as botas — soluçou
Maybelle.
Francis começou a vociferar:
— Você está falando como uma idiota. Aonde é que conseguiríamos
chegar na Inglaterra? Há dinheiro aqui. Não perca a coragem, pelo amor de
Deus! Pensa que isto é fácil para mim? — Olhou para as mãos trêmulas. —
Preciso lavar-me — disse. — O banheiro fica lá embaixo. Enquanto isso, é
melhor que você mude de roupa e arranje alguma coisa quente para se abrigar. O
resto da bagagem deve chegar esta tarde. Tenha coragem, Maybelle. Lave o rosto
de Frank. Mamãe está à nossa espera. Deve ter preparado um bom jantar.
Coragem! As coisas nunca são tão pretas como parecem.
Saiu pisando forte. Maybelle continuou a chorar, tomada de completa
desolação. Timidamente, Frank passou o braço em volta dos ombros dela. Sentiu
o movimento dos ombros gordos, subindo e descendo.
— Mamãe — disse em voz débil.
Ela abraçou-o com tanta força que ele perdeu a respiração.
— Oh, meu querido, como é que posso suportar isto? — exclamou. —
Este país horrível! Eu sabia que não devíamos ter deixado nossa casa. Nós nunca
voltaremos, Frankie, nunca voltaremos. Eu sinto isso, sinto isso no fundo do
coração! Nunca mais veremos a Inglaterra... nunca mais, nunca mais, nunca
mais!
CAPÍTULO 12
A pensão da Sra. Jamie Clair, “quartos elegantemente mobiliados e
comida caseira”, situava-se em Porter Avenue, perto de Niágara Street, onde
desfrutava das vantagens de vento congelantes no inverno e brisas frescas no
verão. Fora outrora uma mansão construída de acordo com os gostos da gente
lúgubre das décadas de setenta e oitenta e era pintada de uma sombria cor
marrom-chocolate. Possuía quartos geminados em “torre”, excrescências que
pareciam ventres protuberantes estendidos de cada lado do segundo andar.
Diretamente abaixo das torres truncadas havia uma janela de “sacada”, fechada
por quatro estreitas vidraças curvas. A casa possuía ainda um terceiro andar com
quatro janelas de águas-furtadas abertas no telhado de ardósia. Uma larga e
escura varanda cercava-a por três lados. Parecia ter sido habilmente planejada
para excluir todo e qualquer vestígio de sol que pudesse impudicamente infiltrar-
se pelos castanheiros que ocupavam toda a estreita faixa do gramado. As árvores
impediam inteiramente que a grama crescesse e uma área escura de musgo, de
um verde doentio e manchado, servia a essa finalidade. Casas quase idênticas
ladeavam a da Sra. Clair, tão perto que as janelas laterais de cada uma podiam
ser alcançadas pela mão estendida. O beco entre elas era estreito, úmido e preto
de fuligem. Mas todas as casas possuíam um “quintal”, onde haviam sido feitas
tentativas de plantar flores, principalmente girassóis, nastúrcios e peônias,
durante os curtos verões.
Frank Clair não conseguiu descobrir muitas diferenças entre essa casa de
Pôster Avenue, em Bison, Nova York, e a casa de Leeds. A Sra. Clair havia,
milagrosamente, conseguido transferir sua atmosfera quase intacta para a terra
estranha. Era o mesmo o ar úmido, frio, pegajoso e fechado, a mesma mobília de
veludo e crina, as mesmas altas e escuras janelas, cerradas por renda áspera e
cortinas escarlates, os mesmos tapetes escuros, as longas e crepusculares escadas
e os estreitos corredores. Instintivamente, escolhera a casa no exato momento em
que a vira pela primeira vez. O ar era saturado pelo mesmo cheiro de repolho
cozido, cevada, carne de carneiro, batatas e pudim de rins. Sentia-se um odor de
cloreto de cálcio, cera, gás de carvão e linóleo que fez Francis e Maybelle
fungarem e se entreolharem nostálgicos.
Com o mesmo instinto que a levara a escolher a casa e mobiliá-la, ela
selecionara com o máximo cuidado os “hóspedes”. Frank ouviu as mesmas
tosses humildes e secas na sala de jantar, nos corredores e nos quartos. Ouviu o
mesmo arrastar de passos cheio de desculpas, as mesmas vozes baixas e
apreensivas. Da mesma forma que em Leeds, os hóspedes eram caixeiros,
chapeleiras, costureiras e guarda-livros. A casa era respeitável, dirigida como um
quartel, e fornecia boa comida. A pensão da Sra. Clair vivia invariavelmente
cheia. Os quentes e minúsculos quartos sob o telhado eram alugados por nove
dólares semanais. Havia ainda dois grandes quartos de frente, com “sala de
estar”, que custavam a incrível soma de vinte dólares cada. Um deles era
ocupado por um tal Sr. Farley, o dono da farmácia onde Francis iria trabalhar, e o
outro, por uma “fina” viúva de meia-idade, a Sra. Prescott, que se bravateava de
uma pensão de mil e duzentos dólares anuais, o que era uma verdadeira fortuna.
Para esses hóspedes, e somente para eles, a Sra. Clair cedia um pouco. O Sr.
Farley e a Sra. Prescott eram bem-vindas a qualquer hora do dia na sala de
visitas do térreo e jantavam cerimoniosamente com a dona.
A Sra. Clair fora obrigada a aumentar a força de trabalho doméstico para
duas pessoas, mãe e filha.
— Esses ianques são tão independentes que você nem acreditaria —
disse ao filho. As duas empregadas moravam num pequeno quarto sem luz nos
fundos do terceiro andar e recebiam, em conjunto, dez dólares semanais. —
Duas libras! — exclamou a Sra. Clair com trágico orgulho. — Pense só nisso!
Uma semana de salário de uma família! — Confessou que tinha de tratar "com
luvas de pelica” a Sra. Clark e a filha, Sally. — Não têm nenhum senso de
responsabilidade ou dever — queixou-se ela a Maybelle. — E são
desavergonhadas. Exigem folga domingo sim domingo não, depois das quatro da
tarde, e não trabalham depois das dez da noite. Nunca se ouviu coisa igual.
Os Clairs eram convidados para jantar todos os domingos. Frank tremia
de frio, calado, mesmo nos verões. Ampliara-se sua capacidade de percepção.
Odiava aquela casa escura de Porter Avenue. Começava a odiar a avó.
Raramente, se alguma vez, dirigia-lhe a palavra, o que confirmava a opinião dela
de que o pequeno era “abobado”. Sentia pena do menino, disse a Francis, com
uma expressão maligna na face férrea. Mas, também, era preciso levar em conta
o sangue da mãe.
A Sra. Clair sentia crescente aborrecimento com Maybelle, que havia
perdido o quente rosado do semblante inglês. Adquirira uma lividez permanente
e manchas no rosto que pareciam sardas. O coral brilhante dos seus lábios fora
perdido para todo o sempre, e a sua figura pequenina e gorducha era agora lívida
e seca. O próprio cabelo começava a perder a tonalidade vermelho-viva;
descorara também e se tornara feio e estriado de branco. Os cachos haviam-se
transformado em finos e compridos fios. A gordura permanecera, não redonda e
firme como antes, mas flácida, informe, molemente doentia. Os olhos castanhos,
que nunca haviam sido muito vivos e brilhantes, adquiriram uma cor escura e
baça. Uma mudança ocorria nela e não era uma mudança bonita ou agradável.
Na Inglaterra, embora no íntimo não gostasse da velha, Maybelle sempre
a respeitara muito e raramente demonstrava seu temperamento natural em
qualquer choque ou encontro. Agora, porém, estava-se tomando mal-humorada.
— Ela nunca me diz uma palavra delicada — queixou-se a Sra. Clair, em
particular, ao filho. — Explode e fala secamente pela menor coisa. Pensei que
ela adorasse o menino, mas agora o espanca em todas as oportunidades e, às
vezes, até eu mesma reclamo. O que foi que lhe aconteceu?
Francis não sabia. Tampouco se importava. Era um homem de instintos
superficiais e tímido aproveitador de situações. Era “farmacêutico” no próspero
estabelecimento do Sr. Farley, em Niágara Street, próxima a West Ferry, e
recebia vinte e cinco dólares semanais. Tinha seus próprios problemas. Era-lhe
difícil familiarizar-se com os novos métodos de preparo das receitas. Não podia
reconciliar-se com a necessidade de servir “sodas”, que considerava uma
beberagem vil. Nem podia compreender por que uma “farmácia” vendia também
caramelos, sorvete e fumo, além de medicamentos. Finalmente, não conseguia
compreender o Sr. Farley.
O Sr. Timothy Farley era irlandês e, no início, Francis sentiu-se ofendido
por ter de trabalhar para ele. Antes de muito tempo, “colocaria esse salafrário em
seu lugar”. O Sr. Farley, contudo, parecia sincero e calorosamente inconsciente
de que devia ocupar determinado lugar. Era um homenzinho bondoso, gordo,
jovial, com alguns fios de cabelo ruivo na grande cabeça calva, olhos
esverdeados faiscantes, um grande e cativante sorriso, uma grossa corrente de
relógio em ouro e bom gosto em matéria de alfaiates. Viúvo, sem filhos. Sentia a
maior afeição por criaturas jovens, humanas ou animais, e seus bolsos andavam
sempre cheios de balas, drops, e goma de mascar, que distribuía cheio de ternura.
Tinha uma gargalhada gostosa e trovejante, difícil de resistir, embora Francis o
fizesse, com sucesso. Na Inglaterra, certamente, a Sra. Clair sequer teria sonhado
em ter um irlandês como “hóspede”. Mas as coisas diferiam na América e, como
dizia com frequência a Francis, “em Roma, faça como os romanos”.
Francis, porém, não conseguia acostumar-se a trabalhar para um
irlandês. Era “aviltante”. Mostrava-se tão impertinente quanto ousava com o
patrão. Entretanto, como não era corajoso, a impertinência passava quase
despercebida. O Sr. Farley não reconhecia ares superiores. Achava Francis um
“tipinho engraçado, sem sangue nas veias”. Sentia por ele toda a pena de que era
capaz seu cálido e generoso coração e, assim, era quase bondoso demais para
com o novo farmacêutico e, invariavelmente, incluía uma caixa de chocolates
para Maybelle, um saco de balas para o pequeno Frank e um quarto de sorvete
ao pagar a Francis o salário nas noites de sábado. Francis aceitava os presentes,
dados por instintiva compaixão e compreensão, com uma superior graciosidade.
Os presentes acalmavam-no.
Era um farmacêutico consciencioso, embora talvez sem inspiração. O Sr.
Farley sentia-se satisfeito. Havia-se quase acomodado com a incompetência, o
relaxamento e a irresponsabilidade dos empregados. E mesmo com furtos na
registradora. Quanto a Francis, podia-se confiar em que estaria na farmácia
exatamente às oito da manhã, superintendendo a limpeza do chão e das janelas e
mesmo realizando tais tarefas, se o preguiçoso escolar resolvia certas manhãs
que era trabalho demais comparecer. Podia-se confiar a ele a registradora, como
tornou evidente um acentuado aumento da féria diária. Cortês, embora frio, com
os clientes, despachava corretamente as receitas. Era tão cuidadoso e exato, na
verdade, que fez reputação entre os médicos locais, mesmo entre os que
geralmente não recomendavam a farmácia do Sr. Farley.
O jaleco branco de Francis era imaculado; as mãos, esfregadas e limpas;
a sua pessoa, impecável. Era um autômato, aparentemente incansável e sempre
preciso. Após seis meses, o Sr. Farley aumentou-lhe o salário para trinta dólares
semanais e presenteou-o com um cheque de vinte e cinco dólares no Natal.
Secretamente, o Sr. Farley desejava que Francis o convidasse para ir a
sua casa. Desenvolvera grande afeição pelo pequeno Frank, cuja face comparava
a de um santo ardente, embora silencioso. Sentia grande pena de Maybelle e
fornecia-lhe remédios de nome registrado, com os quais ela estava ficando
viciada. Ouvia-lhe com interminável paciência as queixas sobre vagas e sinistras
dores e não achava nada de mais em voltar à farmácia nos domingos e aviar uma
receita para ela. Olhava cheio de compaixão para aquela face inexpressiva e
flácida, de lábios petulantes e olhos empapuçados e, no fundo do coração, dizia
uma prece silenciosa por ela.
Os Clairs, porém, nunca o convidaram a visitá-los no pobre apartamento
de Vermont Street. O convite simplesmente jamais ocorreu a Francis. O Sr.
Farley era seu patrão e constituía dever dos patrões “manter a distância”. Os
empregados jamais exploravam o espírito de humanidade dos empregadores. Os
empregadores constituíam uma raça elevada, diferente. Francis não achava a
menor incoerência na profunda convicção de que o Sr. Farley, sendo irlandês, era
seu inferior e, simultaneamente, sendo seu empregador, era também seu superior.
Maybelle, não gozando das vantagens de uma educação de classe média,
considerava o Sr. Farley um homem realmente muito bom. Mostrava-se
respeitosamente humilde na presença dele, encarando-o como a fonte de seu pão
e manteiga, mas, às vezes, ele conseguia fazê-la rir. Sempre a escutava quando
ela se lamentava do exílio e falava, com lágrimas nos olhos, sobre a Inglaterra e,
embora em particular julgasse a Inglaterra um “inferno de país”, demonstrava
sempre simpatia para com a pobre mulher.
Se Maybelle mudava, Francis mudava também, e da mesma forma
inexorável. As mudanças continuaram invisíveis para Frank durante pelo menos
dois ou três anos. Francis, sempre apreensivo e preocupado, com uma tendência
para acovardar-se ante qualquer manifestação de malevolência inata do destino,
começava a conhecer o medo em sua forma mais mutiladora. Jamais soube por
quê. Anos mais tarde, Frank perguntou a si mesmo, em um forte acesso de
compaixão, se a mudança não começara no dia em que o médico da imigração
fizera aquele exame a bordo.
A imperceptível e implacável mudança nos pais, no entanto, não era
ainda o problema mais urgente na vida do jovem Frank Clair.
Para Miss Jones, as crianças do primeiro ano não constituíam uma massa
de aflições anônimas que lhe provia o sustento. Eram indivíduos, intensamente
diferentes entre si, almas dessemelhantes, infindavelmente interessantes e novas.
A maior parte dos alunos era formada de filhos da classe operária, embotados,
insensíveis e irremediavelmente inferiores em questão de intelecto. Por eles,
Miss
Jones sentia uma compaixão desesperada, não porque fossem pobres e
andassem com roupas remendadas, mas porque suas mentes os condenava a uma
semivida, dificilmente superior à de um animal dos campos. Eram embriões
eternos, semiformados, expelidos do ventre da vida antes do desenvolvimento
final.
CAPÍTULO 13
Três mestres em sua vida influenciaram-no profundamente e Frank
jamais os esqueceu. Duas mulheres e um homem. Diferiam inteiramente em
caráter, aparência e idade. Apesar disso, havia neles algo em comum: certa
sensibilidade e percepção agudíssimas.
A primeira mestra de Frank na América, uma solteirona de uns cinquenta
anos, era uma mulher pequena e magra cuja face parecia uma passa seca. Usava
um imenso e despenteado pompadour preto. Em contraste com o pequeno
tamanho, tudo nela era enorme, do penteado às grandes botas, das grandes mãos
ao relógio, preso ao corpete. Isso lhe dava um ar atrevido e picaresco, realçado
pelo inesperado sorriso, amplo, cheio de grandes dentes brancos e
deliciosamente engraçado. Esse pequeno grilo erguia-se alegre da cadeira e
corria para o quadro-negro, batendo com as botas no chão como se fosse um
granadeiro, enquanto o penteado parecia um grande tumor sobre a pequena face,
o imenso relógio balançava-se de um lado para o outro sobre o busto murcho e
as pulseiras de prata tilintavam nos punhos ossudos. Enquanto corria, soltava
uma série de altas e trinadas notas, sem palavras, numa expressão natural de sua
personalidade, e que eram tão suas e tão esperadas como o chilreado do grilo,
com o qual tanto se parecia. Chamava-se Emily Jones.
Frank ficou encantado. Amou-a desde o momento em que ela,
brincalhona, puxou-lhe as orelhas e chamou-o de “queridinho”. Tinha maneiras
rudes e vivas, esmurrava os garotos com pesada afeição, puxava as fitas das
meninas para o lugar, mandava-as embora com uma palmada no traseiro e, em
seguida, olhava em volta com um ar alegre e cheio de expectativa. Era um
azougue, toda ela movimentos rápidos, ternura, compreensão e disciplina. As
crianças riam dela e adoravam-na. Três rapazes e duas moças conseguiram
alcançar mais tarde graus variáveis de fama e todos falavam de Miss Jones com
divertido carinho. Somente um deles, Frank Clair, desconfiou de que ela
praticamente morria de fome com os quatrocentos e cinquenta dólares anuais,
com os quais sustentava ainda a mãe e a irmã inválida. Somente Frank procurou-
a mais tarde e descobriu que ela morrera de inanição.
Em todas as novas turmas de garotos de seis e sete anos, Emily Jones
estudava atentamente cada face infantil. Quatro ou cinco vezes nos longos anos
de ensino identificara certo brilho nos olhos, certa inclinação de cabeça, certo
gesto ou entonação que a enchia de súbita energia e grande exultação. Ali havia
não uma informe massa de argila, mas um ser humano completo, em potencial,
algo a ser descoberto, orientado, reverenciado e tratado com respeito e estima.
Ninguém levou Frank à escola no primeiro dia. Maybelle simplesmente
lhe mostrou onde ficava, a uns dois quarteirões de distância, em Vermont Street,
no número 38. Vestiu-o com sua segunda melhor roupa de marinheiro, disse-lhe
que se comportasse, endireitou-lhe uma das meias, enxugou-lhe o nariz, enfiou-
lhe um lenço no bolso e recomendou-lhe que, na volta, não se demorasse no
caminho. Em seguida, mandou-o embora e voltou às novas ocupações de pensar
no próprio sofrimento e tentar remover pelo menos parte da fuligem e do sujo
acumulados naqueles pobres cômodos.
Frank entrou na escola a um quarto para as nove da manhã. Desalentado,
notou que as crianças brincavam na calçada, esperando o toque da campainha.
Eram crianças barulhentas, rebeldes, que imediatamente lhe deram empurrões.
Penetrou no corredor da velha escola de tijolos e, timidamente, aproximou-se de
uma professora que o escoltou até Miss Emily Jones.
Miss Jones escrevia o alfabeto no quadro-negro no momento em que
Frank foi empurrado sala adentro pela colega. Estavam vazias ainda as carteiras
arranhadas; as janelas cinzentas deixavam passar o frio sol de março. A sala
cheirava a pó de giz, suor e madeira. Miss Jones virou-se rapidamente, examinou
Frank com pequeninos e buliçosos olhos pretos, endereçou-lhe um imenso
sorriso e exclamou:
— Oh, um novo aluno! Qual é o seu nome, querido?
Aproximou-se, puxou-lhe as orelhas com ar de brincadeira e examinou-o
com toda a atenção. Notou a pálida e magra face, os olhos azuis sérios, os cachos
castanhos e o corpo alto e magro. Ele sorriu sem graça e moveu a larga boca,
mas sem genuína alegria. Ela observou-lhe as longas e alvas mãos, os dedos
macios e as fortes juntas. E, mais uma vez, sentiu aquela rara emoção e
excitação, uma estranha falta de fôlego, aquele agudo reconhecimento.
Segurou-lhe a mão e puxou-o até a escrivaninha. Sentou-se, cruzou
fortemente as grandes mãos e fitou-o durante longo tempo. Estranhamente,
Frank não sentiu o menor embaraço ou timidez sob aquele olhar atento, mas
apenas uma espécie de imediata reação.
Disse-lhe o nome, endereço, os nomes dos pais, o local de nascimento.
Ela escutou, com a cabeça inclinada para um lado, com o enorme penteado
brilhando à luz do sol da primavera. Parecia escutar algo mais além da voz do
garoto.
Com algumas perguntas descobriu que Frank deveria ter sido
matriculado em uma turma mais adiantada. O garoto sabia ler, escrever e,
mediocremente, fazer contas. Mas não conseguiu mandá-lo embora. Sabia que
devia conservá-lo, ajudá-lo, que ele era uma dessas raras criaturas. Indicou-lhe
um assento no fundo da sala no momento em que as demais crianças entraram.
Eles imediatamente reconheceram em Frank um estranho e durante toda
a longa manhã ficaram a olhá-lo. Alguns dos garotos sentados perto sorriram-lhe
experimentalmente e ele retribuiu o sorriso. Mas, logo em seguida, os sorrisos
cessaram inexplicavelmente e Frank viu, mais uma vez, a dura máscara da
hostilidade descer sobre aquelas faces. Conhecia bem aquela máscara e
experimentou durante outro doloroso momento uma sensação de culpa, a certeza
de que não pertencia ao rebanho. Sentiu, novamente, a convicção de que era
repulsivo, feio além de qualquer esperança, uma monstruosidade a ser
eternamente repudiada, oprimida, expulsa. Preparou-se para o inevitável
ostracismo, para o exílio imposto pelos colegas.
Sensível demais como sempre ao ambiente, dotado desde cedo de uma
habilidade sobrenatural de “sentir” a atmosfera e as próprias emanações do
temperamento humano, passou a manhã apreendendo a sala de aula, a mestra e
os colegas. Suas antenas mentais sondaram os quadros-negros empoeirados, as
estreitas e fuliginosas janelas, as faces dos garotos e garotas em volta. Era como
se não possuísse pele. Os nervos inteiramente expostos sentiram as fracas e
curtas aragens de emoção que se agitavam em volta. Para ele coisa alguma
deixava de possuir uma personalidade. As paredes não eram apenas baças, mas
demonstravam-lhe também uma embotada inimizade e possuíam uma alma
inanimada que o fitava com uma expressão vazia, porém, ainda assim, com
conhecimento. Uma longa e irregular rachadura cortava o teto escuro,
despelando. Olhou para ela e caiu em depressão. Viu a litografia de um
cavalheiro nas tristes paredes. O cavalheiro possuía uma curiosa cabeleira
branca, cortada e arrumada para parecer tuna pirâmide. Usava, também, as mais
extraordinárias roupas que já vira. Não sabia que era uma litografia de George
Washington, mas foi atraído pelos firmes e tranquilos olhos, pelo leve e
enigmático sorriso e pelo superior desligamento da expressão. Perguntou a si
mesmo se aquilo era o retrato do diretor da escola. Tinha certeza de que aquele
homem gostaria dele e que ele também reagiria à profunda bondade estampada
naquela calma face. Sentiu algo parecido com um imediato parentesco de sangue
e entendimento com o homem do quadro.
O triste sol de março penetrava na sala e Frank foi mais uma vez
envolvido pela tristeza. Viu pela janela o muro que se projetava da escola e
achou estranhas e remotas as superfícies ásperas dos escuros tijolos vermelhos.
Intensificou-se nele a melancolia. Os nervos doeram com o impacto de um novo
despertar.
Miss Jones não o chamou, nem lhe deu lápis, papel ou livro. Deixou que
absorvesse o meio, desejando que se acostumasse a toda aquela estranheza. Mas
observava-o, mesmo enquanto lia alto para as crianças ou garatujava grandes
letras no quadro-negro. Notou-lhe os olhos confusos, a maneira como ele
estudava os colegas em volta, a absorção na rachadura do teto e na litografia.
Observou também os olhares das demais crianças e suspirou.
A sua voz alegre e chilreante ressoou durante toda a manhã. Possuía a
habilidade de prender a mais infantil das atenções. Depois de um exercício na
pedra sobre o alfabeto, acrescentou olhos, nariz e boca aos gordos A e B, fez do
C um focinho de esquilo e pôs um riso de feiticeira no E. As crianças riram,
deliciadas. Em seguida, com um olhar para a porta, apagou rapidamente as
pequenas e alegres caricaturas.
Sabia que Frank estava condenado à infelicidade devido ao seu próprio
caráter e estranheza. Sabia, também, que as crianças admiram e respeitam
mesmo os exilados se eles demonstram capacidade incomum. Sabia que Frank
lia bem. Assim, às onze, disse em tom alto e claro:
— Meus queridos, eu geralmente leio para vocês uma ou duas histórias
de fadas de Grimm a esta hora. Mas temos um novo aluno na turma que pode ler
tão bem como eu e, assim, vou pedir a ele que nos leia alguma coisa.
As crianças esbugalharam os olhos de espanto. Miss Jones sorriu viva e
alegremente e, com um livro na mão, dirigiu-se à carteira de Frank. Quando
parou, o garoto ergueu olhos apavorados, adivinhando-lhe a intenção. Ela fitou-o
serenamente nos olhos com uma expressão grave e tranquila. Colocou o livro
sobre a pequena carteira.
— Frank Clair — disse em voz bem clara —, pode fazer-me o favor de
ler para as crianças? Estamos na página 157.
Frank ficou paralisado de medo e confusão. Mas não podia desviar os
olhos de Miss Jones. Ela lhe dizia algo com seus olhos de pássaro e o que disse
deu-lhe coragem. Ele machucou um dos chacoalhantes joelhos ao se erguer.
Agarrou o livro com mãos trêmulas.
Miss Jones voltou à mesa. Seu sorriso e a confiança que demonstrou
nele eram como um raio de luz perpassando sobre as cabeças das crianças
pasmadas.
Frank começou a ler, no princípio quase inaudivelmente e, depois, com
uma segurança sempre maior. Conhecia a história e era uma de suas favoritas. A
voz jovem, clara e bem-educada, encheu a sala. As crianças escutaram. Um ou
dois riram maldosamente de seu sotaque inglês, da enunciação cuidadosa, tão
diferente da fala descuidada e engrolada deles mesmos. Nesse momento Frank
esqueceu a plateia. Viu florestas escuras inundadas de luz dourada, o telhado
vermelho da casa da bruxa, agachada sob galhos retorcidos, faces pálidas de
crianças medrosas e o azul e o branco de suas roupas na escuridão. Ouviu a
canção de estranhas aves no telhado de palha, o murmúrio de pequenos animais
sob floridos arbustos, o movimento do vento no alto e frio céu. Transmitiu à
história sua própria reação emocional a esses elementos. As crianças, a despeito
de si mesmas, ouviram-no arquejantes, espichando os pescoços para não perder
uma única palavra da aventura das crianças perdidas. O relógio tiquetaqueava na
parede caiada. O sol de março empalideceu, mas clareou também e iluminou o
muro de tijolos do lado de fora. Uma carroça passou pesadamente pela rua
lajeada. À distância, um cão deu um latido seco. As crianças escutavam sem
mexer um músculo.
Terminada a história, Frank sentou-se, aturdido. Havia-se transportado
para a floresta e a canção das aves ressoava ainda em seus ouvidos. Precisou de
vários segundos para se orientar.
Miss Jones falava, em voz alegre e firme:
— Crianças, espero que tenham escutado com atenção a leitura feita por
Francis. Espero que lembrem como o inglês deve ser realmente falado. Procurem
lembrar como Francis pronunciou as palavras, clara e distintamente, e não como
se estivesse com a boca cheia de pão e manteiga. O inglês é uma língua rica e
bela e merece ser bem falada, como Francis o fez.
As crianças arregalaram os olhos para ele. Era evidente a hostilidade
delas. Mas Frank sentiu-lhes a admiração, a despeito de tudo isso. Era um
estranho, mas aprendeu ali que mesmo o estranho pode ser tolerado e respeitado
se é superior de alguma maneira, embora, talvez, jamais possa despertar afeição.
Precisa usar da superioridade para provocar admiração. Nesse momento,
compreendeu que, da parte de inferiores, admiração e respeito são mais
desejáveis do que aceitação.
Maybelle, instruída pela Sra. Watson, a dona da pensão, lhe preparara
uma merenda de sanduíches e maçã. As demais crianças haviam trazido também
seus lanches. Desceram ao escuro porão para fazer a refeição, sentando-se em
bancos empoeirados, de frente para as fornalhas. Frank arranjou um lugar
tranquilo e começou a comer. O isolamento fechou-se em tomo dele como as
árvores de uma pequena floresta. As demais crianças comiam, gritavam, corriam
e brincavam em volta das fornalhas. Sentiu-se contente. Viera a nutrir a
esperança de ser sempre ignorado. Escutou as vozes e pensou que elas pareciam
o grunhido de porcos, o balido de pequenos cordeiros, o miado de gatos.
Nesse momento, notou um grande e gordo garoto de uns oito anos
plantado firmemente à sua frente. Reconheceu o mesmo que se sentara perto
dele na sala de aula. Ergueu a vista, inicialmente com o habitual embaraço e,
depois, com nojo. O garoto possuía uma grande e estúpida face, maldosa e
embotada, cabelo amarelo cortado rente, corpo gordo e mãos abrutalhadas. Era o
mais alto da sala, chamava-se Herman Kolzmann e fora obrigado a repetir o
primeiro ano. Ressentia-se malignamente dessa situação e havia-se nomeado
ditador e ferrabrás da classe. As crianças odiavam-no, temiam-no, admiravam-no
e seguiam-no, conscientes de sua força, de sua crueldade e da ameaça potencial
de seus punhos. Era um dos incorrigíveis.
Com as mãos nos quadris, ele olhou irritado para Frank.
— Inglês sujo — disse com desprezo. — O que é que tá fazendo aqui em
nosso país? Derrotamos vocês em setenta e seis. Lembra?
Frank fitou-o, fascinado. Sentiu a presença de algo cegamente malévolo
à sua frente, algo capaz de esmagar com desumana brutalidade. O ouvido
sensível percebeu o sotaque estranho.
— Você fala de maneira engraçada — comentou. O que fora que o pai
lhe dissera apenas na véspera? “Isto aqui é um país inglês, Frank. Temos mais
direitos do que todos esses malditos estrangeiros que moram por aqui. Lembre-
se, você é inglês e este é também seu país.” — Continuou: — Você não fala
inglês bem. Portanto, este país também não é seu.
A face gorda e flácida do garoto tornou-se carmesim. Cerrou o punho e
enfiou-o sob o nariz de Frank. Este, porém, pela primeira vez num contato com
uma pessoa estranha, não se encolheu. Seus grandes olhos azuis abriram-se,
dilataram-se de desprezo. Sentiu algo subir dentro de si, algo crescer e enchê-lo
de poder. Empurrou para o lado o gordo punho e levantou-se. Alto e magro, seus
olhos alcançavam quase o mesmo nível que os de Herman. Naquele momento
tremia, não de medo, mas de desejo de atingir aquela face estúpida e selvagem,
de afastá-la de si a pancadas.
— Vá embora — disse, tranquilo.
Herman recuou um passo ou dois e seus pequeninos olhos castanhos,
vazios e sem vida, pestanejaram. Diversas outras crianças, sentindo o cheiro de
perigo, reuniram-se em volta. Herman estava furioso, mas, tendo um
temperamento naturalmente covarde, ficou surpreendido com o azedo desprezo e
a falta de medo do adversário. Mordeu o lábio e olhou fixamente para o estranho
garoto. Podia-se ver sua mente hesitante e vaga procurando orientar-se.
— Eu podia acabar com você — rosnou ele, mas em voz pensativa,
quase chorosa.
— Pois experimente — sugeriu Frank. Pela primeira vez na vida, cerrou
os punhos, sentiu uma raiva quente apossar-se de seu ser e teve a certeza de que,
numa briga, seria o vencedor.
Herman sentiu também a certeza. Tentou sorrir.
— Está querendo arranjar briga? — perguntou. — O que é que há com
você, por falar nisso? Inglês sujo, sujo!
As crianças, surpresas e deliciadas, começaram a cantar:
— Inglês sujo, sujo!
Várias meninas bateram palmas e começaram a pular. Aumentou o
número de crianças em volta.
— Acabe com ele, Hermy — sugeriu um dos sanguinários garotos.
Herman não teria apreciado mais outra coisa, todavia, uma cautela
animal obrigou-o a ficar imóvel.
— Ah, não quero sujar minhas mãos com ele — disse, desdenhoso.
Ocorreu-lhe outro pensamento. — O que é que você é, por falar nisso? Um
beato?
Frank descontraiu os punhos. Era uma pena que não fosse derrubar
aquele odioso garoto. Mas ficou confuso.
— Um beato? — repetiu.
— Isso mesmo. Um beato sujo. — Herman esperou. Frank continuou a
olhá-lo, perplexo. Herman acrescentou, impaciente. — Você sabe, um papa-
hóstias.
Frank ficou mudo de espanto. Herman sentiu-se jubiloso.
— Ah, você não sabe de nada, seu inglês sujo! Ele não sabe o que é um
beato ou um papa-hóstias — informou aos fiéis correligionários, cheio de
desprezo, olhando-os por cima dos ombros gordos. As crianças riram alto,
triunfantes. Frank fitou-as, mais e mais perplexo. Notou, nesse momento, uma
garotinha e um garoto, vermelhos de embaraço, afastando-se do grupo.
Desapareceram por trás de uma das fornalhas.
— Não sei do que é que você está falando — respondeu Frank, irritado
de novo. — O que é um beato ou um papa-hóstias?
Herman mugiu numa risada animal:
— Um sujo papista. Isso é um beato ou um papa-hóstias. Eles o matam
logo que o veem. Seu inglês estúpido, sujo. Não há beatos e papa-hóstias em seu
país?
Frank pensou no caso. Nunca ouvira falar em pessoas que faziam
questão de matar os vizinhos.
— Os guardas não deixariam que beatos e papa-hóstias nos matassem —
disse. Estava curioso. — Como é que eles são?
Herman e os amigos mugiram novamente de alegria. O líder olhou em
volta.
— Ei, onde é que estão Tom Murphy e Mary Flynn? Eles estavam aqui.
Bem, não estão agora. — Voltou a atenção para Frank. — São maus, são papistas
e matam as pessoas logo que as veem. Temos que matá-los antes.
Frank ficou alarmado. Que lugar horrível devia ser aquele, onde uma
pessoa precisava defender-se até a morte! Era estranho que os pais não o
houvessem avisado dessa perigosa contingência.
— Você é protestante?
Mais uma vez, Frank ficou confuso.
— Protestante? — perguntou- — O que é isso?
Herman bateu com força no peito enquanto as crianças uivavam de
alegria.
— Eu sou protestante, seu burro. Como todos os outros. Bem, você é ou
não?
— Não sei — confessou Frank. — Nunca ouvi falar em protestantes.
Talvez eles não existam na Inglaterra.
Herman olhou-o zangado. Uma fagulha vermelha, viva, apareceu-lhe
nos olhos.
— Nunca foi batizado, seu burro?
Era outra palavra desconhecida do jovem Frank Clair. He coçou a testa.
— Não sei — disse. — Nunca ouvi falar nisso.
Herman não podia acreditar em seus deliciados ouvidos. A fagulha
vermelha tornou-se mais viva por baixo das curtas pestanas amarelas. Berrou.
Apontou um dedo para Frank enquanto as crianças, fascinadas,
observavam-no.
— Então, você não é somente um inglês sujo. É também um judeu sujo!
— guinchou.
As crianças bateram palmas e deram saltos de satisfação.
— Um judeu sujo! Um judeu sujo! — cantaram, tomadas de êxtase.
Herman sorriu largamente.
— Qual é seu verdadeiro nome, judeu? — perguntou. — Levy?
Frank permaneceu calado. Mais uma vez, a ira percorria-lhe o corpo
como se fosse uma torrente. Sentiu-a pulsando, queimando, nos braços, por toda
a carne, subindo-lhe a cabeça numa onda irresistível de ódio. Deu um passo na
direção de Herman. Este tornou-se subitamente calmo e passou a língua pelos
lábios. Repuxou as calças. As crianças, sentindo que algo dramático ia acontecer,
ficaram silenciosas, à espreita.
— Ah, você não pode ser um judeu — disse Herman, em tom
conciliador, observando Frank com certo nervosismo. — Judeus não brigam.
Escute aqui, seu burro, não quero brigar com você. Escute, qual é a sua igreja?
A ira palpitava ainda em Frank. Tinha todos os músculos tensos com a
vontade insopitável de lutar. Deu outro passo na direção de Herman, que recuou
mais uma vez.
— Olhe aqui — disse o garoto alemão —, não quero brigar com você.
Não sabe qual é a igreja aonde vai?
Frank deteve-se. Nesse momento, a curiosidade dominou-lhe
temporariamente a raiva.
— Você não tem nada com isso — respondeu desdenhoso. — Mas não
me importo de lhe dizer, seu imundo! Eu ia à Igreja Anglicana com meu pai, na
Inglaterra, mas minha mãe ia a uma capela batista. O que é que tem isso? O que
é que isso tom a ver com você?
Herman ficou aliviado. Não estava gostando da expressão de Frank nem
da visão daqueles punhos cerrados. Num tom choroso e mais conciliatório,
respondeu:
— Ah, bem. Então você é um protestante, como eu, e os outros garotos.
Não é papa-hóstias ou judeu. Eu sou luterano. — Interrompeu-se, esperançoso.
— Sabe o que é um luterano?
— Não, e não quero saber — respondeu zangado Frank. — Se você é
um protestante, não quero ser um deles e não vou ser um deles.
Esperou alguns segundos. Herman, porém, ficou calado. Somente um
ódio covarde e furtivo lhe brilhava nos olhos. Em seguida, cheio de desdém,
Frank deu-lhe as costas e subiu a escada para a sala de aula.
Foi o seu primeiro choque com o preconceito e o ódio repulsivos na livre
e nobre república fundada pelos ingleses na premissa de que todos os homens
são iguais aos olhos de Deus, de que todos têm o direito de viver dentro de suas
fronteiras em segurança e com justiça.
E foi a sua primeira e mais inebriante percepção do poder que nele
residia, um poder capaz de despertar respeito. Sentira a primeira ira pura e
repugnância, a primeira certeza de que a covardia brutal podia ser repelida pelo
desprezo e pela indignação dos puros. Descobriu que a resposta estava em seu
próprio coração indômito.
Mesmo quando as crianças o seguiam até em casa todos os dias, gritando
“Inglês sujo!”, mesmo quando lhe atiravam pedras, zombavam dele ou o
xingavam num ódio infantil e bruto, não sentia medo. Descobrira o que eram a
opressão e a perseguição e nunca as esqueceu. Aprendera a resposta a elas: o
desprezo e a coragem.
Mais tarde na vida jamais concordou com os amigos em que a resposta à
opressão, à ignorância, ao ódio e à perseguição era a “educação”- Isto porque
sabia que a educação jamais poderia penetrar em mentes brutas e subumanas,
que essas mentes são impermeáveis à bondade e à cultura. Não, a resposta
deveria ser sempre o desprezo e a coragem, a força armada, se necessário, e um
orgulho implacável.
CAPÍTULO 14
Maybelle examinou a caderneta de depósito. Francis, de pé ao lado,
sorriu com satisfação.
— Mais quinze dólares... três libras — disse. — Nesse ritmo, daqui a
pouco teremos uma fortuna.
Maybelle alisou as pequenas páginas com uma das mãos,
reverentemente. A caderneta se transformara no livro de sua vida. Examinou as
numerosas páginas em branco que se seguiam. Podia já vê-las, cheias, ricas de
promessas e esperanças. Virou a última página. Oh, sem dúvida, quando
estivesse cheia e somada ao fim das colunas, poderiam voltar! Quanto tempo
levaria? Os primeiros quatro lançamentos ocupavam tão pouco espaço!
Concentrou-se outra vez na última página. Quando estivesse cheia! Seus olhos
ardiam de lágrimas.
— Quero voltar para casa tanto quanto você — disse Francis em tom
defensivo, captando-lhe os pensamentos. — Eu lhe prometo. Quando a caderneta
estiver cheia, poderemos voltar.
— Mas vai levar anos — disse lamentosamente Maybelle.
— Não nesse ritmo. Não gastamos um único níquel desnecessário.
Podemos fazer sacrifícios. Foi por isso que fiquei tão irritado quando você quis
comprar outro par de botas para o garoto. Crianças crescem ligeiro. Um par de
cada vez é suficiente. Não se justifica desperdiçar dinheiro com extras e luxos.
Ainda lamento ter gasto aquele dólar e cinquenta sábado passado no Crescent
Park. Poderíamos tê-lo depositado no banco.
— Precisamos mudar de ares, às vezes — respondeu Maybelle, triste e
arrependida.
— Bem, a gente nem sempre pensa no futuro — censurou-a Francis. —
De grão em grão a galinha enche o papo, como dizem os escoceses. Pequenos
vazamentos afundam grandes navios. Um níquel no banco vale dois no bolso.
Planeje. Sacrifique-se. Economize.
Maybelle virou e revirou a caderneta nas mãos, que se tornaram
subitamente pegajosas e trêmulas. Não sabia o que fazer. Não podia fazer coisa
alguma. Precisavam economizar. Mas... e se acontecesse alguma coisa e não
pudessem continuar a fazê-lo? Maybelle conhecia muito bem as vicissitudes
imprevisíveis da vida. Se não pudessem economizar tanto quanto pretendiam,
viveriam no exílio para sempre.
O jovem Frank, na cozinha, lia um dos livros emprestados por Miss
Jones. Sentiu na atmosfera algo amargo, apavorante. Ergueu os olhos. Coisa
alguma, entretanto, parecia errada. O pai e a mãe haviam estado a preparar o
orçamento semanal na mesa da cozinha e, naquele momento, tinham nas mãos
uma caderneta cinzenta. Tudo tranquilo e pacífico. Ninguém falava. Ainda
assim, algo terrivelmente errado flutuava no ar, algo triste, apavorante,
esmagador.
Conservou sempre na memória aquela fria e escura noite de abril. Teria
sido nessa ocasião que os pais começaram visivelmente a mudar? Ou estivera a
mudança processando-se já durante semanas? Quando começara a sentir o odor
do medo naqueles pavorosos cômodos em cima de um armazém de secos e
molhados em Vermont Street? Quando começara o medo a saturar a vida dos
pais e tornar-lhes horrendos os dias? Quando começara a lhes corroer os
caracteres ingleses comuns e deteriorá-los, tornando-os malignos e cruéis,
histéricos e intolerantes, odientos, não apenas entre si, mas com ele, ainda tão
jovem e desvalido?
Jamais teve resposta. Sabia apenas que a mãe gostara outrora dele, na
Inglaterra, e nas primeiras semanas na América; que o defendera contra o pai,
amiúde irritado e intolerante, e que lhe ouvira com ternura as preces noturnas.
Lembrava-se de que, na Inglaterra, ela costumava cantar em uma voz bastante
agradável, ria com frequência e não raro lhe fazia pequenas surpresas sob a
forma de um caramelo, um piquenique ou uma alegre visita às lojas. Lembrava-
se de que o pai às vezes soltava gargalhadas e que se mostrava brincalhão,
ensinando-o a jogar damas à luz da lareira, levando-o em passeios pelo campo e
ajudando-o a colher as primeiras flores silvestres nos campos ingleses. Na
Inglaterra houvera conforto e alguns sólidos prazeres de classe média.
Recordava-se de que na Inglaterra fora frequentemente surrado, mas que
era uma surra curta e sadia. Reconhecia honestamente que devia ter sido uma
criança difícil de compreender. Mas, naquele instante, os espancamentos não
pareciam um castigo por uma travessura infantil e sim uma catarse sádica do
medo que os obcecava. Francis começou a dar-lhe beliscões, puxar-lhe as
orelhas, quando não esbofeteá-lo, enquanto a língua lhe pendia da boca como se
fosse um animal. Às vezes, pela simples ofensa de demorar-se no jantar,
esmurrava-o na cabeça, soltando obscenos grunhidos de prazer. Ocasionalmente,
pelo pequeno pecado de derramar chá na camisa, Maybelle literalmente
arrancava-lhe os cabelos da cabeça, arranhava-o, cortava-o com as unhas,
enquanto seus olhos faiscavam de crueldade.
— Eles deviam ter estado loucos — diria Frank anos mais tarde. —
Loucos de medo. Nada, senão o medo, poderia tê-los tornado tão cruelmente
brutais com uma criança, quaisquer que fossem os crimes dela.
Fora nesses primeiros dias que o medo começara a cobrir a vida dos pais
com um fétido e cinzento nevoeiro? Frank sabia apenas que, pouco depois, eles
começaram a temer todas as coisas: uma batida à porta, certo tom na voz da Sra.
Watson, uma estranha carta que mais tarde se verificava ser um folheto de
propaganda, os vizinhos, as pessoas nas ruas. E, inevitavelmente, o medo
transformou-se em ódio, ódio a tudo, ódio aos “ianques”, ao Sr. Farley, ao
tempo, à casa, ao dinheiro que precisavam gastar para prover a magra existência,
à Sra. Clair, ao sol nas ruas, à neve no inverno. E, ainda mais inevitavelmente,
em ódio recíproco.
Devia ter sido a estranheza de Frank, da qual se tornaram
crescentemente conscientes, que os enfurecia. Tivesse ele sentido também os
mesmos medos, tremido ao ouvir um passo desconhecido, demonstrado interesse
em poupar os raros níqueis que recebia, teria sido reconhecido como de sua
própria cepa e, vendo-se refletidos nele, os pais tê-lo-iam amado.
Tivesse ele berrado quando o espancavam com uma fúria monstruosa e
demente, tivesse ele gritado e chorado e, talvez, sua vida houvesse sido mais
fácil, pois temiam com absurdo terror “os vizinhos”. Mas ele não reclamava e,
assim, podiam torturá-lo com impunidade, deixando-o arquejante, coberto de
marcas.
Anos mais tarde, pareceu-lhe incrível que tal loucura se houvesse
apossado de duas pessoas anteriormente comuns e sem coisa alguma de
diferente. Quando a comentava com outras pessoas, não irado, mas perplexo,
elas olhavam-no incrédulas. Mas, também, são poucas as pessoas que vivem
tomadas de um medo tão insano como viviam Francis e Maybelle.
Frank não teria sido humano se não houvesse procurado defender-se dos
pais. Sabia que a menor infração da mais banal das regras, a mais leve queixa de
um vizinho, o menor aborrecimento que algum adulto pudesse demonstrar,
resultaria em um terrível espancamento. Se o enviavam ao armazém de secos e
molhados e ele voltava com um níquel a menos, Maybelle surrava-o
brutalmente. Assim, em autodefesa, Frank tornou-se mentiroso.
Nunca os perdoou, por isso. Por compreendê-los, poderia perdoar-lhes
os pavores abjetos. Mas não podia perdoá-los por tê-lo forçado a macular sua
jovem vida com mentiras. Não podia perdoá-los por ensombrecer-lhe a vida com
a necessidade da falsidade.
Miss Emily Jones ficou cada vez mais preocupada com Frank Clair. Ele
havia sido transferido de sua sala em junho de 1908 para os indiferentes
cuidados de Miss Leona Burkholz. Esta última não gostava de crianças e
tolerava apenas as que lhe causavam menos aborrecimentos. Frank não foi um
dos felizardos. Desatento, inerte e extremamente embotado quando um assunto
não lhe interessava, era dado também a garatujar estranhas faces, triângulos e
outros desenhos sem valor em meio às aulas de aritmética, gramática ou leitura.
Quanto à aritmética, continuava ainda a ser assunto cabalístico para ele, embora
às vezes, por mera sorte, acreditava, acertasse na resposta certa. Lia e escrevia
brilhantemente, a construção gramatical certa ocorria-lhe por instinto e não
precisava estudar ortografia. Em vista disso, sua mente vagueava para nevoentos
sonhos durante as lições com que Miss Leona martelava a cabeça das demais
crianças.
Julgava-a pessoa sem importância, pois sua voz não tinha entonação
nem sonoridade, suas maneiras eram afetadas e não demonstrava o menor
interesse pelo que ensinava. Frank jamais se lembrou do rosto ou do corpo dela.
Era uma imensa maçada para ele, que, jovem demais ainda, manifestava
francamente sua opinião. Além disso, as outras crianças não mais o
amedrontavam nem era dócil entre elas. O antagonismo inicial dos colegas se
aprofundara. Retribuía com desprezo e, não raro, metia-se em brigas.
As roupas, pequenas demais para um corpo que crescia célere,
remendadas, tornaram-se desmazeladas. Isso era consequência da avareza
sempre maior de Maybelle e da recusa veemente do pai em “gastar um único
níquel desnecessário”. Além disso, Maybelle começara a revelar um verdadeiro
gênio para descobrir lojas baratas, onde se vendiam roupas de segunda mão ou
fora de moda. As poucas roupas compradas para Frank eram estranhas, mal
cortadas, de confecção ordinária e não assentavam bem. Tais coisas despertavam
o riso das demais crianças e coisa alguma poderia tê-las deliciado mais do que a
ocasião em que Frank apareceu usando um par de extraordinários sapatos com
biqueira e tornozelos de verniz e corpo de pano cinzento, com botões pretos. Os
sapatos haviam sido feitos para um rapaz muitos anos mais velho do que Frank e
eram do estilo de dez anos antes, com biqueira do tipo “palito”, triangular. Por
questão de economia, Maybelle enchera os seis centímetros acima dos dedões
com pedaços de forro de algodão. A própria Miss Burkholz sorriu divertida ao
vê-los. Ninguém senão Miss Jones desconfiou de que os sapatos lhe causavam
profunda angústia física e mental, pois não somente as pessoas olhavam e riam,
mas a própria forma deles torcia e machucava os pés do garoto, provocando-lhe
verdadeiro sofrimento.
Pior que tudo, na opinião de Miss Jones, era outra mudança que se
tornava evidente em Frank. Além da crescente sonolência e absorção em algum
subjetivo universo próprio, surgiu nele uma tensão inquietadora, extrema, e uma
instabilidade nervosa. Fora sempre uma criança pálida. Naquele momento,
estava quase lívido e olheiras cor de malva cercavam-lhe os olhos. As mãos
tremiam-lhe à menor excitação. Os lábios, secos e pergaminhados, davam a
impressão de serem constantemente mordidos. Os olhos, sempre grandes,
estavam agora excessivamente brilhantes, atentos demais.
Muito inteligente e sensível, ela não acreditava em que tudo aquilo fosse
causado apenas pela hostilidade das demais crianças. Algum outro sofrimento
crônico devia estar afligindo o menino. Fazendo perguntas discretas, soube que
Frank era filho único e que o pai, um farmacêutico, ganhava bom salário. Nesse
caso, qual o motivo daquelas roupas atrozes? Por que, então, aquela expressão
de profunda ansiedade e nervosismo? Mas não os conhecia e não sabia como
visitá-los sem um motivo razoável.
Conseguiu combinar com Frank que fosse procurá-la em sua sala após as
aulas. Falava-lhe afetuosamente, às vezes segurando-lhe a mão. Tomava
emprestados livros para ele e sentia-se comovida e espantada com o interesse e a
compreensão do garoto, cujo apetite pela leitura parecia insaciável. Não mais o
satisfaziam os contos de fadas e as aventuras infantis. Na presença dela,
conversando com ela, relaxava-se a rigidez da face jovem, diminuía o brilho
anormal dos olhos e, às vezes, ele ria. Falava cheio de entusiasmo e escutava-lhe
as palavras quase como se estivesse sedento.
O garoto não lhe saía do pensamento. Procurava trocar umas poucas
palavras com ele nos corredores. Presenteava-o com balas, que o menino
devorava com tal avidez que ela se sentia enjoada. Quando, inesperadamente,
Frank começava a gaguejar, Miss Jones virava suavemente a cabeça para o lado
e evitava fitá-lo. Até o fim da vida, ela ouviu aquele patético balbuciar e viu
aquela expressão de sufocamento, dolorosa e sem remédio, quando ele se
esforçava para falar.
Em novembro de 1908, deu por falta dele. Procurou Miss Burkholz.
Esta, indiferente, lhe disse que o garoto vinha faltando às aulas havia dias.
— No que me diz respeito, ele pode ficar em casa o tempo que quiser —
disse cruelmente a professora. — Entre todos os garotos mesquinhos, estúpidos,
do contra, de maus bofes, ele é o pior! Devia estar num asilo para débeis
mentais.
Miss Jones comprou cinco pirulitos, três laranjas, duas bananas e armou-
se com vários livros da biblioteca. Saiu para visitar Frank e a mãe.
Notou que o bairro era pobre. Mas não tão pobre como muitos outros
onde viviam e se desenvolviam crianças sadias e felizes. Notou com aprovação
que os degraus escuros que conduziam aos cômodos dos Clairs estavam limpos e
esfregados. Bateu à porta. Esperou. Ouviu passos furtivos do lado de dentro e,
em seguida, silêncio. Bateu outra vez, com mais força. Não ouviu som algum,
mas, misteriosamente, sentiu a presença de medo e cautela por trás da porta
fechada e teve certeza de que ouvia uma respiração ofegante, como de uma
pessoa aflita ou amedrontada. Nervosa nesse momento, bateu outra vez e gritou:
— Há alguém em casa?
Mais uma vez, a sensação de medo, de uma presença próxima à porta.
Ouviu, depois, uma voz de mulher, mal-humorada, desconfiada:
— Quem é? O que é que você quer? Não queremos aqui nenhum agente.
Miss Jones ficou perplexa. Agente? Agente de quê? Desconhecendo a
terminologia inglesa, ignorava que “agente” significa vendedor ou mascate.
Disse em voz alta e clara:
— Sou Miss Jones, a professora de Frank. Eu gostaria de falar com ele,
por favor.
Surpresa, ouviu, após outro longo silêncio, o arranhar de uma corrente
de fechadura e o puxar de um trinco. A porta abriu-se um ou dois centímetros.
Vislumbrou cabelos ruivos, olhos castanhos esbugalhados e um avental.
— Sra. Clair? — perguntou, sorrindo alegremente e enfiando um pé na
abertura. — Sou Miss Jones. Frank não tem ido à escola e fiquei preocupada.
A porta abriu-se mais um pouco. Miss Jones entrou em uma esquálida
cozinha que, embora limpa, cheirava desagradavelmente a desinfetante, sabão
forte e querosene. Olhou para Maybelle, que tinha o lábio inferior espichado. Os
olhos pestanejavam, vigilantes. Pensou: Que mulherzinha estranha! Deve ser a
mãe de Frank. Ela parece... parece... um pouco esquisita.
— É um grande prazer conhecê-la — disse Maybelle em voz seca,
tirando o avental de cima de um vestido de algodão muito remendado. Um
sorriso artificial, antipático e ainda desconfiado apareceu-lhe nos lábios. — É
uma grande bondade sua, realmente. Frank está com sarampo. Há sempre algo
de errado com ele — acrescentou, tornando-se sua face quase maligna. —
Doentio — corrigiu, com uma entonação como se dissesse: “Criminoso”.
A mãe não o suporta. O garoto custa dinheiro, por pouco que seja. Os
pensamentos ocorreram a Miss Jones com tal clareza que ela ficou
momentaneamente aturdida, pois havia certa clarividência neles. Naquela
ocasião, em questão de instantes, compreendeu.
Maybelle não a mandou sentar. Era evidente que queria que ela se fosse,
que na verdade a temia. Será que pensa que sou capaz de furtar alguma coisa?
pensou incrédula Miss Jones. E, depois, preocupada: Será que vai castigar a
pobre criança porque vim até aqui?
Baixou os olhos para os embrulhos e os livros que levava no braço.
— Trouxe estas coisas para Frank — disse, tentando com um sorriso
desesperado despertar alguma reação amiga, algum interesse humano. Maybelle
sorriu realmente, mas com um sorriso ainda artificial e falso.
— É muita bondade sua — respondeu, nesse momento revelando certo
nervosismo.
— Espero que Frank não esteja muito doente — disse Miss Jones após
uma pausa durante a qual entregou os presentes a Maybelle. — O que foi que o
médico disse?
— Oh, não chamamos nenhum médico — disse Maybelle, com
verdadeiro medo, um ar defensivo e claro ressentimento. — Tenho certeza de
que sou capaz de fazer o que for preciso. E tenho esperança de que a senhora não
diga coisa alguma. Não queremos um cartaz pendurado na porta. O sarampo não
tem nenhuma importância.
É uma doença de comunicação obrigatória, pensou Emily Jones com
uma indignação que não lhe era habitual. E a pobre criança nem mesmo tivera a
visita de um médico! Compreendo. Isso custa dinheiro.
— Oh, naturalmente, não direi coisa alguma! Mas eu gostaria de vê-lo
durante um minuto ou dois, se ele não estiver muito doente.
— Doente? — repetiu Maybelle, franzindo os sobrolhos e novamente
desconfiada. — Oh, compreendo. A senhora quer dizer “enfermo”. Não estou
ainda acostumada à linguagem ianque — acrescentou com um sorriso
claramente malévolo e intencionalmente desdenhoso. — Não, o pequeno Frankie
não está muito enfermo. — Hesitou. — Se não se importa com um quarto
desarrumado, ele está lá dentro.
Relutante e com todas as linhas do corpo pequenino e gorducho
expressando ressentimento, conduziu a professora até o quarto ao lado. Lá, sobre
o duro o encalombado sofá, estava Frank, afogueado, cheio de manchas pelo
corpo, semiadormecido e evidentemente doente. Ele abriu languidamente os
olhos quando as duas entraram. Os olhos, vermelhos, inchados e dolorosamente
remelentos, fitaram-nas. Reconhecendo a antiga mestra, o menino, sorriu
debilmente e sua face iluminou-se de incrédulo prazer.
Miss Jones curvou-se ternamente sobre ele. Colocou a mão grande e fria
sobre a testa da criança. A febre assustou-a. Em voz baixa, disse:
— Minha pobre criança. Eu não sabia. Senti falta de você.
Frank lançou um olhar ansioso à mãe, um olhar que encheu Miss Jones
de súbita raiva e pena. Balbuciou:
— Eu... eu não estou muito enfermo, Miss Jones. Eu... eu vou ficar bom
logo.
— Naturalmente — respondeu alegre Miss Jones. — O sarampo não tem
importância. Nenhuma, absolutamente. Todo mundo tem isso. Diversos alunos
meus estão agora com a mesma coisa. Não tem importância, absolutamente,
Frank. — Estou dizendo coisas sem nexo, pensou. Surpresa, notou que tremia. A
forte luz de novembro enchia o quarto. Não filtrada por cortinas, batia nos olhos
doloridos e doentes da criança. Ele tossiu forte, rouco. O grosso edredom de
penas que o cobria era evidentemente incômodo.
Miss Jones voltou-se para Maybelle, que a observava atenta e
azedamente. Tossiu.
— Temos agora umas ideias novas — disse com uma conciliadora
desculpa e um pequeno riso forçado. — Achamos que os olhos das crianças
devem ser protegidos quando elas estão com sarampo. O que é que a senhora
acha? Talvez se as venezianas... — As palavras morreram ao notar a expressão
contrária e mal-humorada de Maybelle.
Intrometida, pensou Maybelle. Fez uma paródia de sorriso.
— O ar e a luz são bons para ele — respondeu. — É tolice isso a
respeito das venezianas. Não posso deixar o quarto às escuras.
Emily Jones suspirou. Sentiu raiva e um forte desejo de notificar a Junta
de Saúde. Não, era impossível. Frank pagaria por isso.
Curvou-se novamente sobre o menino e mordeu os lábios trêmulos.
Sorriu-lhe com ternura e afeto.
— Eu lhe trouxe algumas frutas e balas, querido. E uns livros. Mas,
Frank, precisa prometer-me, e sei que você cumprirá sua promessa, que não vai
ler uma única linha até ficar completamente bom. Você se lembrará disso? Não
forçará os olhos? Promete? — perguntou, com profunda ansiedade.
Frank inclinou a cabeça. Maybelle deixou cair os presentes sobre a
cama. Ele começou a abri-los, profundamente interessado, usando desajeitado as
mãos. Miss Jones tirou os livros e colocou-os sobre a cômoda. Deveria levá-los
de volta? Mas o garoto prometera e sabia que ele se lembraria da promessa.
Podia confiar nele.
Ajudou a descascar uma laranja, que ele chupou deliciado, umedecendo
a boca seca com o suco fresco. Uma expressão de pura felicidade apareceu-lhe
nos olhos. Algo se contraiu e se contorceu no peito magro de Miss Jones.
Quando o menino lhe endereçou um olhar imensamente cheio de amor, ela
sentiu lágrimas lhe turvarem os olhos.
Maybelle falava em voz chorosa e ressentida, interrompida e hesitante,
cheia de autocomiseração:
— Ele não goza de boa saúde desde que chegamos aqui. Nunca andou
enfermo antes. Agora, vive assim o tempo todo. É um grande fardo para nós. E
eu, também, com a saúde fraca. É para a gente ficar imaginando coisas. Nunca
pensei que teria tanto trabalho com uma criança doente. É um fardo, como tudo
mais.
Miss Jones contraiu as mãos. Todavia conservou o conciliador tom de
voz:
— Oh, ele não é doente, tenho certeza. É, realmente, um garoto sadio.
Todas as crianças pegam sarampo. Não tem importância, absolutamente. São
coisas que se esperam.
Maybelle gemeu baixinho.
— Não sei por que fui assim tão castigada. Nem um único dia bem
desde que chegamos. Vidros e mais vidros de remédio. Comprimidos aos
montes. Nunca tive que tomá-los na Inglaterra. Mas este clima daqui é mortal.
— É um pouco... difícil — concordou Miss Jones. Inclinou-se sobre
Frank e beijou-o, não uma, mas várias vezes. Posso fazer um gargarejo quando
chegar a casa, pensou. É preciso proteger as outras crianças. Olhou para a janela
escancarada. Se eu tivesse coragem de baixar essas venezianas esmolambadas!
— Fique logo bom, querido — murmurou, com as pestanas quentes de lágrimas.
Levantou-se. Maybelle, com melancólico orgulho, apontava para as
fileiras de vidros alinhados sobre a cômoda.
— Isso é para mim — disse, em tom vazio.
— Que pena! — comentou Miss Jones, tentando mostrar-se simpática.
Teve vontade de quebrar os vidros. O que ela estava fazendo por Frank?
perguntou a si mesma. Mas sabia que coisa alguma estava sendo feita.
Maybelle, cuja velha e natural antipatia se transformara na América em
venenosa hostilidade, observava, cautelosa e desconfiada, Miss Jones.
Antipatizara desde logo com a pequena professora, que julgava feia demais. Ali
estava ela, com o doloroso e conciliador sorriso na face enrugada, os olhos
pequeninos, vivos e inteligentes, o velho chapéu de veludo empoleirado sobre o
monstruoso penteado preto, a jaqueta e a saia de lã cinzenta visivelmente velhas,
a despeito das assíduas escovadelas e passadas a ferro, as luvas bem cerzidas e
as imensas botas, lustrosas como espelhos duplos. Não, Miss Jones não
impressionava e suas tentativas de se mostrar encantadora por causa de Frank
somente lhe davam um ar falso, que Maybelle notou imediatamente e do qual
desconfiou.
Saíram juntas do quarto. Maybelle, novamente triste, começou a
queixar-se:
— Não sei o que foi que deu no garoto. Ele sempre teve saúde na
Inglaterra. Não é por falta de boa comida. Não fazemos economia de coisa
alguma. — Apontou para a mesa da cozinha. Miss Jones, surpresa e satisfeita,
examinou os alimentos empilhados. Viu um frango fresco, gordo e apetitoso, um
pacote de costeletas de carneiro, uma peça de carne realmente excelente, ovos
em profusão, manteiga, verduras frescas, pães e leite. Satisfeita, chegou à
conclusão de que Maybelle era uma boa cozinheira. Uma grande panela de sopa
esfriava na modesta chapa quente. Nesse momento Miss Jones sentiu o cheiro de
algo muito saboroso.
— Ele está tomando sopa de aveia, temperada com açúcar e leite —
informou Maybelle — e acabei de fazer um pouco de caldo escocês. Mas ele não
come coisa alguma. Não tem o menor apetite. Temos que forçá-lo a comer.
Emily Jones lembrou-se, preocupada, da crescente tensão e instabilidade
nervosa de Frank. Não era por falta de excelente comida, então. Era algo
emocional. Desconfiou de que conhecia a causa.
— Vivemos para o dia em que poderemos voltar para casa — disse
Maybelle, a voz alquebrando-se. — Sentimo-nos infelizes aqui. Não gostamos
da América.
Um pequeno e quente espinho picou o coração de Miss Jones. Ela,
porém, abafou a natural resposta acre a tal observação.
— Vivíamos com conforto na Inglaterra — continuou Maybelle. —
Tínhamos nossa própria casa e uma bela mobília. Éramos ricos. Vivíamos como
reis em comparação com isto. Agora, parecemos mendigos.
Miss Jones foi obrigada a fazer alguns reajustamentos mentais.
Imigrantes faziam, com frequência, essas observações pouco lisonjeiras para se
tornarem mais importantes. Entretanto, imediatamente, teve certeza de que
Maybelle falava a verdade. Ficou espantada e realmente penalizada. Mas seria
necessário viver daquela maneira? Era evidente que os Clairs economizavam
cada tostão para a volta à Inglaterra. Mais uma vez, o pequeno, quente e
indignado espinho picou-a. Sentiu raiva dessas pessoas que consideravam o seu
amado país como a Caverna dos Quarenta Ladrões, para ser saqueada, esvaziada
de suas joias, profanada, para que os saqueadores pudessem levar-lhe os tesouros
para uma terra estranha. Como ousavam eles chegar assim, desembarcando à
meia-noite nas praias douradas, nada vendo da beleza, nada ouvindo da grande e
estranha música, trazendo sacos que tinham a esperança de encher de gemas e,
em seguida, partir! Fora por esses indivíduos que americanos haviam sonhado,
morrido, rezado, esperado? Deus abençoara esta imensa e nobre terra, dera-lhe
um encanto sobrenatural, pintara nela penhascos e montanhas com borbulhantes
cataratas, cortara enormes rios no meio de vicejantes planícies e jogara a luz do
sol sobre intermináveis prados dourados.
Como ousava Maybelle falar daquela maneira, com tanto desprezo, tanta
dureza, tanta falta de compreensão! Emily Jones sentiu um aperto na garganta e
um novo acesso de raiva. Nesse momento, descobriu o que precisava fazer.
Precisava ser apenas paciente.
Em voz baixa, disse:
— Bem, as coisas mudam. Sinto muito saber que a senhora não se sente
feliz aqui, querida Sra. Clair. — Interrompeu-se durante um momento. — Mas
sei também que a senhora tem motivo de felicidade. Frank é um garoto
maravilhoso. Realmente maravilhoso. Mas, naturalmente, a senhora sabe disso.
Maybelle escutava-a, nervosa. Em seguida, para satisfação de Miss
Jones, a expressão sombria e melancólica desapareceu e Maybelle pareceu, a
contragosto, satisfeita. Persistia ainda, então, o amor maternal nessa pobre e
infeliz mulher, tão aflita com a autocomiseração, o ressentimento e as saudades
de casa.
— Bem, não sei — respondeu Maybelle, tentando ser rigorosa.
— A nova professora não tem lá uma grande impressão dele, segundo a
caderneta. — Mas surgiu uma luz de preocupação, patética e cautelosa, em seus
olhos.
Miss Jones continuou a falar com autêntico e vivo entusiasmo:
— É preciso muito discernimento para compreendê-lo. Acho que o
compreendo. Ele possui uma mente superior. Sei que algum dia fará grandes
coisas.
Maybelle sorriu e respondeu afetada:
— Engraçado, foi isso exatamente o que disse a professora dele na
Inglaterra. Era uma escola particular — acrescentou, orgulhosa.
— Miss Ballister disse que ele tinha grandes sonhos. — Interrompeu-se,
esperando ansiosa por mais.
— Oh, tenho certeza de que tem! Lê tanto! As palavras fascinam-no. Ele
é muito sensível e sutil. Lê coisas muito adiantadas para a sua idade e demonstra
uma compreensão fora do comum. Brinca com palavras como um artista brinca
com tintas. Adora poesias. Ensinei-lhe um bocado delas. Até Shakespeare.
Maybelle espigou-se, sorriu afetada novamente e lançou a cabeça para
trás:
— Bem, ele não ouve porcarias nesta casa. O pai e eu somos grandes
amantes da leitura. Vamos à biblioteca todas as semanas. O pai gosta de História
e passa tudo o que lê a Frank. A leitura é o meu maior prazer.
Miss Jones ficou em dúvida apenas por um instante. Em seguida,
incrédula ainda, teve certeza de que Maybelle dizia a verdade. Não eram
imigrantes comuns. De alguma maneira, sempre soubera disso. Pensou: Eles são
do meu próprio sangue inglês.
Foram os ingleses que construíram a América e será o sangue inglês que
sempre a salvará. Tinha seus próprios receios ao ver o número crescente de
jovens estrangeiros nas escolas, falando com sotaques duros e cujas faces eram
estranhas à brilhante luz da América. Os celtas e os ingleses. Neles, sim, corria o
verdadeiro sangue de seu país e, enquanto formassem maioria, a América estaria
a salvo.
Comovida, pôs, num impulso, a mão sobre o gordo e flácido braço de
Maybelle.
— Frank é feliz em ter pais assim — disse, e agora sem hipocrisia. —
Mas é um garotinho nervoso. É isso o que me faz pensar que ele é um gênio.
Sabe, Sra. Clair, tenho a impressão de que ele será uma espécie de artista.
Escritor, talvez.
Despediram-se num clima de grande amizade. Mais animada, Miss
Jones desceu os escuros e limpos degraus.
Maybelle colocou a panela de sopa no fogo. Encheu uma grande terrina
com o fumegante e apetitoso líquido. Levou-o a Frank, que voltara a cochilar.
Acordou-o. Mas, quando ele viu e cheirou a comida, virou a cabeça, repugnado.
— Você precisa comer — disse Maybelle, resoluta. Sua face amarelecida
se suavizou. — Olhe, Frankie. A sopa está boa, saborosa. Você vai gostar. Agora,
coma, ou lhe dou uma surra.
Mais tarde, recostado nos quentes travesseiros, Frank mergulhou outra
vez em um leve sono. Maybelle, de pé ao lado, notou-lhe os olhos vermelhos e
remelentos. Em seguida, impaciente, baixou as cortinas. Olhou para as brilhantes
rachas e pontos de luz que surgiram na fazenda escura. Seus olhos se encheram
de lágrimas.
Frank estava apenas semiadormecido. Palavras formavam-se em sua
mente, como estrelas emergindo em um céu escuro. Lindas palavras marchando
juntas em silenciosa majestade, suas próprias palavras subindo do abismo de seu
ser:
“E Deus penetrou sozinho no Jardim.
Um nevoeiro grudava-se aos locais onde antes brilhara o sol,
Um nevoeiro de luz em meio ao qual se curvava a floresta,
E murmurava em voz suave e monótona.”
Viu a escura e sussurrante floresta, insondável nas sombras como
veludo, e picos de árvores flutuando no nevoeiro de ouro pálido. Viu os troncos
das árvores, cor de púrpura à luz que morria; viu os corredores, por onde
deslizavam sombras. Viu uma Presença movendo-se ali, radiante como se tocada
pela luz do luar, enquanto os ramos formavam dosséis sobre a majestosa cabeça.
Viu a Presença aproximar-se de uma árvore tombada e sentar-se. Tudo
era silêncio, uma escuridão sempre maior, sombria imobilidade, paz. Nesse
momento, em algum recanto distante e insondável, um tordo começou a cantar.
Deus ergueu a cabeça e escutou.
CAPÍTULO 15
Miss Emily Jones, que dispunha de tão pouco tempo em sua vida
agitada, passou a dedicar alguns momentos ao protegido. Às vezes, aos sábados,
conseguia convencer Maybelle de que a deixasse levá-lo a The Front, local
favorito dela. A chuva era a única coisa que impedia essas excursões.
A pequena e murcha mulher e o garoto deixavam-se ficar contemplando
o Rio Niágara, escuro como cinza sob um pálido céu. A corrente fervia, rápida e
irresistível, em desabalada carreira para as Cataratas. Observavam o pôr do sol
pintar o rio de móveis estrias escarlates. Às vezes, o céu apresentava-se baço,
frio, cor de cobre sujo, e as águas adquiriam uma tonalidade branca e mortal.
Certa ocasião, foram brindados com tal beleza e majestade que, depois, não
conseguiram comentá-las entre si.
Foi num pôr do sol em julho de 1909 que presenciaram o espetáculo
solene e indescritível. Caíra uma tempestade durante o dia, mas, naquele
momento, o ar transbordava de um novo frescor. A margem canadense, que
geralmente era uma parede verde indistinta do outro lado, desaparecera no
nevoeiro e o rio perdera as fronteiras. O céu, vasto, imóvel, transformara-se em
uma paleta de cores, de intensidade quase violenta. A partir do zênite de cobalto,
na direção oeste, fundia-se a púrpura forte em ametista, a ametista em alfazema
brilhante, e alfazema em um enorme arco de verde, vivo e pulsante, que
imperceptivelmente se transformava em rosa suave, o rosa em escarlate e o
escarlate, ao aproximar-se do horizonte, em carmesim sanguíneo. O sol
desaparecera. Mas as cores no alto avivaram-se, ampliaram-se, aprofundaram-se
cada vez mais como se o sol vibrante não quisesse partir, mas fosse obrigado a
derramar seus tesouros de cor, seus arco-íris de ardentes chamas verdes,
eternamente, sobre a escura terra, engolfando o universo em insuportável fulgor.
Entretanto, por mais maravilhoso que estivesse o céu, o impetuoso
Niágara ultrapassava-o em beleza. Púrpura escuro no horizonte aquoso,
desmaiava para um violeta profundo, mas delicado, ao aproximar-se dos
observadores. As cristas das ondas impetuosas eram pinceladas por um malva
rosado, brilhando sua parte côncava como um fogo evanescente. Pequenas ondas
espraiavam-se em cascata pela praia brilhante. Tinham a cor azul-turquesa mais
pura, como esmalte líquido, refletindo o azul do céu. Quando avançavam e
recuavam depois, lenta e suavemente, deixavam retalhos brilhantes sobre os
seixos úmidos.
Entre o céu e a terra estendia-se um nevoeiro, misterioso, cor de
heliotrópio. Um farol à esquerda, emergindo da água sobre um monte de rochas,
lançava seu fraco feixe no nevoeiro, que se iluminava durante um momento de
um apagado lilás.
Sozinhos ali, Miss Jones e Frank estavam de mãos dadas. Formavam
uma única consciência, reverente, oblativa, em meio àquela inacreditável glória.
Respiravam devagar. Sentiam a proximidade da Presença, movendo-se majestosa
em volta. Ficaram assim durante longo tempo, pois céu e terra pareciam
relutantes em ceder à noite esse indizível esplendor.
Com a face inundada por uma luz tranquila, mas nobre, Miss Jones
murmurou:
— Quando eu era pequena, minha avó contou-me uma história muito
estranha. Disse que, quando chamava seus artistas da terra, Deus permitia que
eles lhe pintassem um pôr do sol para alegria dos homens que deixaram atrás.
Assim, em cada pôr do sol, um artista escolhido apanhava sua paleta e aplicava
os pincéis ao céu. Pintava com carinho, com cuidado, o mais maravilhoso pôr do
sol de que era capaz e aguardava, cheio de esperança, o que os homens diriam.
“Os homens, porém, não ligavam. Raramente erguiam os olhos para o
céu e, às vezes, o artista tinha que se satisfazer apenas com a admiração dos
anjos. Até o último momento, antes da chegada da noite, o artista esperava. Se
apenas um homem o visse, o louvasse no fundo de seu coração e agradecesse a
Deus e ao artista pela beleza, este ficaria feliz.
Frank, comovendo-se, olhou para a glória indizível de céu e água e seus
olhos se marejaram de lágrimas. Para si mesmo, disse: Obrigado, obrigado.
Anos mais tarde, raro era o pôr do sol para o qual não reservava um
momento ou dois, por mais apressado que estivesse, e embora sorrisse de si
mesmo invariavelmente murmurava: Obrigado, obrigado. Mesmo quando, para
ele, “a glória desaparecera da terra”, sentia ainda gratidão por ela, podia ainda
vê-la, embora não mais a sentisse. “Vejo, embora não sinta, como é
maravilhoso”, pensava, usando as palavras de Coleridge. No entanto, embora a
emoção houvesse desaparecido, a gratidão permanecia e a gratidão era como um
espelho mudo que apenas podia refletir e nada saber de si mesmo.
Às vezes, deitavam-se no parque gramado do The Front, observando as
nuvens brancas e cheias que brotavam do céu intensamente azul. Em outras
ocasiões, sentavam-se sobre os velhos canhões da Guerra Hispano-Americana,
balançando os pés e cantando juntos. Desciam para olhar os soldados marchando
em frente ao quartel. Ao ver a bandeira dos Estados Unidos drapejando livre e
brilhante ao vento e ao sol ele comovia-se profundamente. Nessas ocasiões, Miss
Jones dizia com voz embargada:
— É uma bandeira tão nobre, tão querida, tão amada! Somente listras,
vermelhas e brancas, e estrelas brancas em céu azul. Mas quanta significação!
Liberdade, segurança, oportunidade, bondade instintiva, generosidade,
esperança, honestidade. Os homens são fracos, Frank, mas o sangue de grandes
homens tinge essas listras, a fé deles é branca e luminosa entre elas, e as estrelas
de suas almas refulgem no doce céu azul. Se a América não puder sobreviver, o
mundo morrerá com ela. Que importa que haja tantos homens maus no mundo,
mesmo aqui, homens traiçoeiros, falsos, perversos, cobiçosos? A bandeira
permanece e as coisas que ela representa continuam. Enquanto a bandeira flutuar
nos céus, tão livre, nobre e gloriosa, a fé dos bons jamais desaparecerá da face da
terra.
Frank sentia nos ombros a bênção do sol, um sol mais forte e mais
quente do que o sol inglês. Sentia em si mesmo um despertar, uma veemência,
ao olhar em volta. Ouvia a música de palavras ardentes, ternas e majestosas
subindo dentro do peito como se fossem acordes de uma harmonia interrompida,
ouvida à distância.
Como foram maravilhosos esses dias e tranquilas as noites de sua
infância! Apesar de perseguido pela histeria e demência dos pais, conseguia
esquecê-las quando estava sozinho ou em companhia de Miss Jones. Sua alma
embebia-se de luz e sol, de glória e música, dos movimentos imaginados de
vastas forças além do alcance do olho e do ouvido. Nessas ocasiões, havia
realmente glória e mistério na terra, êxtase e esplendor, uma pulsação do coração
universal, a unicidade com Deus. As grandes árvores eram suas amigas e ele lhes
tocava carinhosamente nos troncos. A grama era sua irmã e o céu, o telhado de
seu templo. Os ventos à meia-noite eram gritos de estranhas aventuras, de
poderosos espíritos correndo em volta do mundo. Quando a neve caía sobre seu
braço, estendia-o à luz dos postes de gás e maravilhava-se com seu intrincado
rendilhado, com as suas perfeitas e minúsculas formas, sentindo adoração na
alma. Não havia aspecto na dourada primavera, no verde verão, no carmesim
outono e no branco e resplandecente inverno que não o emocionasse.
Com frequência, via o disco flamejante do sol através de estreitos becos,
entre sombrias e pequenas casas e era como o chamado de Deus no deserto.
Amiúde, olhava para o céu azul-claro de inverno e era transportado para o
cristalino fulgor da companhia de anjos. Quando viu os primeiros tenros brotos
da íris no jardim da mãe, sentiu tal emoção que chorou. As primeiras
eflorescências das árvores elevavam-no em êxtase. Uma folha carmesim, caindo-
lhe aos pés, constituía uma nobre mensagem, para ele somente.
Às vezes, no escurecer do verão, sentava-se no degrau de pedra do
armazém e escutava vozes nas varandas próximas e os guinchos estridentes dos
gramofones. Ouvia risos suavizados pela noite e, às vezes, uma canção, simples,
pura, feliz. As horrendas palavras e a música de “Meet Me in St. Louis, Louis!”
pareciam-lhe divertidas e, alegre, sorria baixinho em resposta. Grupos de rapazes
e moças, em bicicletas, passavam rápidos, cheios de alegria. Observava-os
desaparecer na escuridão com amor em seu coração e uma estranha tristeza.
Continuava sentado ali até que as janelas em frente transformavam-se em
retângulos isolados de luz fraca, a pedra esfriava sob seu corpo e a mãe
chamava-o para ir dormir. Havia crianças na vizinhança, mas nunca lhes falava,
nem elas com ele. Contudo não era mais solitário. Sentia-se assim apenas na
companhia forçada dos demais. As emoções, os pensamentos e os vivos sonhos
lhe bastavam.
Adorava o riso cascateante da chuva nos beirais. Adorava as fagulhas de
mica nas calçadas de cimento. Adorava o pó que se transformava em ouro ao sol.
Quando os ventos de março o empurravam e lhe repuxavam a roupa, malhando-
o com força, ria alto. Mergulhava os pés nos montes de neve e ficava ali durante
um longo momento, observando a luz batendo na brancura.
Aos onze anos escreveu seu primeiro poema e deu-o a Miss Jones:

“Luz do amanhecer lilás, Perfume da árvore lilás,


Broto no espinheiro gotejante, Nevoeiro argênteo no mar!
Eu já passei por aqui.”
Sim, pensou Miss Jones, você já passou por aqui.
— Frankie — disse ela —, você vai ser poeta ou autor de grandes livros.
Nunca, nunca esqueça isso. Não deixe que pessoa alguma o detenha ou o desvie,
meu querido. Há uma finalidade cada vez maior em você, uma promessa. Se não
a cumprir, você terá deixado de dar cumprimento a algo mais do que sua vida.
Ficará em dívida para com Deus. — Com humildade e emoção fitou o alto
garoto. — Lembre-se, Frank. Lembre-se sempre.
No Natal, ela lhe deu um livro de poemas heroicos.
— Talvez você não os compreenda todos agora. Mais tarde, porém,
compreenderá.
No quarto ano nessa ocasião, Frank era antipatizado pelas mestras, que
invariavelmente lhe demonstravam aversão. Era preguiçoso, diziam, e
desobediente. Não estudava. Não demonstrava o menor interesse. Além disso,
era brigão. Provocava brigas com outras crianças.
— Frank apenas se defende da hostilidade deles — protestava Miss
Jones. As crianças chamavam-no de “o queridinho da Jones”. Ele olhava-os
cheio de desprezo e afastava-se em silêncio.
Certo dia, informou a Miss Jones que os pais iam mudar-se de Vermont
Street para Albany Street e que teria de frequentar outra escola. No rosto dele
havia dor e desespero. Embora a notícia fosse um choque, ela apertou-lhe a mão
e sorriu.
— Não tem importância, Frank. Você precisa vir sempre visitar-me e eu
também irei visitá-lo.
Emily Jones, porém, nunca mais o viu. Ele foi visitá-la dois meses
depois e descobriu que fora transferida para uma escola a quilômetros de
distância. Esperou-a procurá-lo. Ela tivera a intenção de visitá-lo, a mais firme
das resoluções. Mas a mãe morreu e ela própria caiu gravemente doente. Em
seguida, adoeceu-lhe a irmã e teve que cuidar dela durante semanas. Finalmente,
foi forçada a interná-la em uma instituição de caridade pública, pois não
dispunha de meios ou de tempo para tratá-la. Visitava-a nos fins-de-semana.
Menos de um ano depois, ela própria faleceu. A falta de alimentos e de roupas e
a exposição ao tempo inclemente levaram-na a contrair pneumonia. Foi
sepultada em um canto humilde do cemitério mantido por sua igreja. A erva
cresceu grossa, luxuriante e protetora sobre a sepultura, marcada apenas com um
pedaço de madeira e um número que Frank Clair jamais conseguiu encontrar.
CAPÍTULO 16
A mudança de Vermont para Albany Street não constituiu obra do acaso
nem ato voluntário de parte dos Clairs. Ocorreu porque a filha da Sra. Watson,
que recentemente enviuvara, vinha morar com ela, trazendo os dois filhos.
Com que lamentos, insultos, sofrimentos e desespero foi recebida a
notícia! Tivesse a morte se abatido sobre aqueles cômodos, tivesse Francis caído
vítima de uma mortal doença ou o jovem Frank cometido algum horrendo crime,
as demonstrações não poderiam ter excedido ao que aconteceu quando a Sra.
Watson lhes comunicou o fato. Francis suplicou abjetamente. Maybelle
lamentou-se. Foram tais os exageros que a Sra. Watson saiu de sua malevolente
indiferença. Disse-lhes sem rodeios que eles eram “malucos”. Havia
apartamentos e quartos à vontade em Bison. Bastava que procurassem.
— Vocês são as pessoas mais birutas que já conheci — disse-lhes com
toda a franqueza. — Pelo que estão fazendo, parece até que lhes roubei um
milhão de dólares.
Mesmo ela, que guardava e utilizava casca de queijo com o maior
espírito de economia, não podia compreender o horror com que Francis encarava
as contas de mudança, por menores que fossem. Se ela tivesse sugerido um litro
do sangue dele em troca da mudança, o inglês teria concordado com prazer. A
mulher fitou-o cheia de desprezo e, em seguida, saiu bamboleando e encolhendo
os ombros. Contas de mudança! Dois dólares, no máximo, e ele ganhando tão
bem naquela farmácia! Ela sabia. Estivera escutando à porta quando Francis,
cheio de alegria, contara que o Sr. Farley lhe havia aumentado o salário para
trinta e cinco dólares semanais. Isso fora quase um ano antes. Talvez estivesse
até ganhando mais.
Passado o paralisante choque inicial, Maybelle foi a primeira a
recuperar-se. Uma expressão calculadora apareceu-lhe nos olhos. Ela, mais do
que Francis, sofrera naqueles cômodos. Agora, havia a possibilidade de um lugar
“só nosso”. Um apartamento, talvez. Um pequeno bangalô. Como na Inglaterra.
Saiu à procura. Dias depois, descobriu em Albany Street a menor casa
que se podia imaginar, com uma fachada tão pequena que parecia uma casinha
de boneca. Mas, surpreendentemente, possuía uma grande sala “de frente”, uma
boa cozinha, um quarto de dormir e “nosso próprio sanitário”. Não tinha
banheiro, mas havia um grande quintal coberto de ervas, com muitas árvores e
moitas de vara-de-ouro. O aluguel não era mais alto do que o que vinham
pagando à Sra. Watson.
— Isso é muito bom — gemeu angustiado Francis. — Mas teremos que
comprar mobília!
— Não vai custar muito — respondeu Maybelle corajosamente.
— Connecticut Street está cheia de casas de móveis de segunda mão.
Andei vendo os preços de algumas peças.
Ela comprou duas camas de segunda, uma de latão e outra de ferro, esta
para Frank. Adquiriu um linóleo, marrom e lustroso, para a sala da frente, que
seria o quarto do casal. Incluiu também um horrendo guarda-roupa de carvalho
para esse cômodo, uma mesa, uma única cadeira de madeira e um aquecedor a
gás, com janela de mica. Isso completava a mobília da câmara nupcial. O quarto
de Frank era muito mais despojado. Continha apenas a cama de ferro, mesa,
tamborete e um pedaço de tapete ordinário para descansar os pés. Um fogão,
espesso de gordura e polidor, foi posto na cozinha, flanqueado por uma mesa de
madeira, também de segunda mão, e três cadeiras. Uma antiga imitação de sofá
de couro preto foi instalada junto à janela. Ali seria uma combinação de cozinha
e sala de estar para os Clairs durante muito tempo.
O custo de tamanho luxo chegou a exatamente trinta e cinco dólares.
— Trinta e cinco dólares! — lamentou-se Francis. — Duas semanas de
economias! Estamos agora atrasados nesse exato valor. Você está disposta a me
arruinar. Isso eu posso ver.
Maybelle, porém, intimamente feliz por ter “um lugar só nosso”,
mostrava-se mais otimista.
— Você pode cortar um dólar na despesa de comida. Passarei sem aquele
novo casaco de inverno e você, sem um terno durante mais um ano —
respondeu. — Não sentiremos falta do dinheiro. E ficaremos sozinhos! Com
vida privada.
Sentiu-se feliz durante algum tempo enquanto esfregava, polia e raspava
a minúscula casa e punha a mobília nos lugares. Era bem verdade que nem a
casa nem os móveis podiam comparar-se com o conforto do lar na Inglaterra,
mas eram seus. Estava livre da eterna presença de “uma estranha”. Para a
inglesa, a privacidade e a independência eram condições sagradas, desejáveis
acima de qualquer coisa. “Uma água-furtada, se moramos sozinhos nela, é
melhor do que um palácio com outras pessoas”, dizia feliz ao pequeno Frank.
Sentiu mesmo pelo marido e pela criança um novo carinho que durou
dois meses inteiros.
A casa situava-se a menos de dois quarteirões de Niágara Street, onde
Frank descobriu uma fascinante oficina de ferreiro, estábulos, celeiros próximos
ao rio, o Erie Canal e a doca das barcas. Além disso, os trens corriam pelo fim da
rua e ele nunca se cansou de vê-los passar, tonitruantes. Aprendeu as horas em
que podia esperá-los. Descia a longa ladeira ao fim de Niágara Street, passando
por bordéis, bares e cabanas onde se vendiam caniços e iscas, e ali esperava os
trens. Adorava o cheiro de peixe do rio, a quente e escorregadia estação das
barcas, as brigas que podia ouvir por trás das portas de vaivém dos bares, a visão
de mulheres suspeitas aquecendo-se ao sol em raquíticas galerias de madeira
sobre a rua imunda e estreita, pescadores com seus caniços curvos, sentados
sobre pilhas de cordas, e mesmo a fedentina de cerveja e poeira que saturava o
pequeno trecho que separava Niágara Street do rio.
Era uma zona que exalava os mais estranhos odores, perigosa e violenta.
Mas também cheia de animação, ruído e vitalidade. Preferia-a à suja e monótona
tranquilidade de Albany Street, do outro lado de Niágara, com suas lajes
cinzentas e decorosas, onde West Avenue, solidamente classe média em 1912,
cortava-a pelo meio.
Adorava ver as pequenas e ativas barcas que faziam o trajeto entre Bison
e o Canadá e as grandes banquistas que estalavam e se inclinavam na primavera
enquanto trovejavam em direção às Cataratas. Era um espetáculo deslumbrante.
Às vezes, tinha a sorte de ver um longo e fumacento navio lacustre descer
preguiçoso o Erie Canal, pesado com a carga trazida de longínquas e estranhas
cidades. Que espetáculo quando, depois de uma saraivada de apitos, a ponte se
erguia para deixar passar as chaminés dos grandes barcos! Notava, às vezes, que
mulheres e crianças moravam nesses barcos e achava que as cordas de roupas a
secar, flutuando às brisas da primavera e do outono, eram as mais alegres de
todas as coisas. Com frequência, via cães a bordo, latindo com ares importantes
para o rapazinho de pé na margem de pedra do Canal. Às suas narinas chegava o
cheiro fétido de água estagnada, de vegetação aquática malcheirosa, de fungos
malignamente verdes que se estendiam da terra até a metade do canal. Mas isso
não o repugnava. A aventura residia ali, entre esses homens rudes e gritalhões,
entre aqueles barcos, nas arruinadas cabanas de grileiros ao longo da margem do
canal, na passagem dos trens e nos navios resfolegantes.
Havia beatitude na aparência da margem canadense, formada de
pequenas colinas irregulares, verdes e sorridentes, minúsculas casas brancas e,
muito abaixo no rio, o delicado vão da Ponte Internacional. Apesar de tudo, não
havia ainda posto o pé em solo canadense, embora todos os verões Francis
invariavelmente prometesse levar a família a Erie Beach, “quando as coisas
melhorarem”. Mas não haviam ainda “melhorado”.
Ali passava os dias após as aulas, desaparecendo discretamente da
pequenina casa de Albany Street e voltando ao anoitecer. Gostaria de que Miss
Jones pudesse apreciar aquela nova maravilha. Esperou-a. Mas ela jamais
voltou.
Explorou a colônia dos grileiros, foi expulso por cães raivosos, ficou
encantado com as mulheres desmazeladas e as crianças imundas que brincavam
barulhentas em meio a montes de cinzas, pequenas latas, camas e colchões
abandonados. Certa vez, teve a alegria de assistir a uma feroz luta entre dois
grileiros — viu o relampejar de uma faca, sangue e ouviu os gritos de mulheres
que pareciam bruxas.
Não se sentia solitário, todavia começou a ansiar por uma companhia
com quem pudesse partilhar esses estimulantes prazeres. Queria ouvir alguém
comentar animado a impressionante fonte artificial no Front Park e o arsenal em
Niágara Street, que acabara de descobrir. Com frequência, corria atrás de lentas
carroças, subia nos fundos das mesmas e fazia um longo e feliz passeio ou, no
inverno, andava de carona nos trenós dos leiteiros e explorava novos bairros.
Aos sábados, Maybelle dava-lhe os seis centavos da passagem de bonde e ele
visitava a Biblioteca Pública, em Washington Street, no centro, e voltava com os
braços cheios de livros. Às vezes, quando se sentia especialmente benevolente,
Maybelle dava-lhe dois ou três níqueis extras e ele, com espírito de economia,
investia a passagem em uma bala adicional e caminhava os quatro quilômetros e
meio de volta para casa, chupando a guloseima, mastigando, sonhando. Para ele,
todas as ruas eram animadas aventuras, onde as coisas mais estranhas e
diferentes podiam acontecer e cada nova face era uma personagem de contos de
fadas.
Não, não se sentia solitário, mas ansiava por um companheiro, por um
ouvido.
Mais tarde, descobriu as residências dos ricos em Richmond Avenue,
Delaware Avenue e Delaware Park, e o belo cemitério chamado Forest Lawn.
CAPÍTULO 17
Era um desses dias de verão que mergulham os sentidos em uma
lânguida irrealidade, em que nada mais há senão um demorado e brumoso calor,
um total e dourado silêncio. As próprias sombras das árvores copadas tornavam-
se indistintas nas calçadas dançantes. As casas tinham a aparência irreal de coisa
pintada no pano de fundo de um palco. As ruas mostravam também a mesma
aparência deserta, sem nada à vista, quentes, vazias. Se um som chegava, o bater
de uma porta distante, o latido de um cão, o trovejar de uma carroça sobre lajes
cintilantes, era como um som de sonho, incorpóreo, sem significação.
Era o tipo de dia que Frank Clair adorava, pois, todos os perturbadores
elementos humanos dissolviam-se em sua consciência e ele ficava sozinho. Em
sonhos, via-se, com frequência, como o único ser vivo em uma grande cidade
abandonada, mergulhada em total silêncio. Vagueava pelas longas avenidas
tendo por companhia apenas as árvores. Nenhuma face fitava-o com hostil
desprezo. A luz argêntea e suave da terra do faz-de-conta brilhava nas
longínquas distâncias e escondia-se nos ramos baixos por onde ele passava.
Nesses momentos sentia-se feliz, sereno, cheio de contentamento. Olhava para
imponentes mansões que não escondiam inimigos e parava junto a gramados
onde brincavam leves sombras.
Foi num desses dias que lhe traziam vividamente os sonhos de volta.
Entre aqueles que dormiam inertes em quartos fechados por cortinas, cochilavam
em redes sob árvores nos quintais ou balançavam-se em silêncio nas varandas,
ele era o único vivo, inquieto, à procura. A cidade era sua. Andou quatro ou
cinco quilômetros, nada encontrando salvo um ou outro resfolegante cão ou uma
carroça de cerveja, arrastando-se sem pressa, com o cocheiro adormecido sobre
o assento alto. Uma ou duas vitrinas piscaram empoeiradas para ele, mas coisa
alguma se movia por trás delas.
Nesse momento, encontrava-se em uma larga e majestosa avenida,
margeada de árvores, com gramados luxuriantes e aveludados, banhados pelo ar
imóvel e prateado. Viu longas paredes cinzentas, terrenos em níveis diferentes,
janelas amortalhadas em seda e telhados de ardósia reluzindo ao sol, canteiros e
jardins distantes. Ali, também, coisa alguma se movia.
Parou à frente de um portão em um muro de pedra com um metro e
pouco de altura e olhou para dentro. Viu uma serpenteante passagem de veículos,
sombreada por cálidas árvores, arbustos, as paredes cinzentas de uma casa
distante e janelas imensas e lustrosas. Coisa alguma respirava ou se agitava
nessa ampla visão de calma majestosa e silêncio. Agarrou o portão e empurrou-o
experimentalmente. Abriu-se. Sem pensar, penetrou no fragrante encantamento
do local. Ouviu um leve som de seixos amassados sob os pés. Dirigiu-se
sonhador para a casa. Em um lado, notou árvores cobertas de lianas e, no outro,
uma parede forrada de hera. Nesse momento, as casas vizinhas desapareceram e
ele ficou sozinho num jardim de mistério e de luz suave e clara.
Era apenas um menino, não muito limpo, face suja, cabelo despenteado e
sapatos arranhados. Apesar disso, não se sentiu como um intruso. Era certo que
estivesse ali. Ali era o seu lar. Encontrara o caminho de volta; pertencia àquela
passagem de veículos e era apropriado que caminhasse em direção à imponente
mansão ao fim do caminho.
Absorvido em sonhos e prazer, não viu que uma menina se aproximava
dele vinda da casa. Somente quando ela chegou diretamente à sua frente,
fitando-o com enormes olhos escuros, é que se tornou consciente de sua
presença. Era muito bonita. Uma massa de cachos pretos caía-lhe até os ombros.
As pernas macias estavam envolvidas por meias vermelhas e calçava sapatos de
verniz. Usava um vestido rosa vivo, cheio de babados, fitas e pontas de renda.
Trazia um laço de fita rosada no alto da cabeça.
— Olá — disse ela, gravemente, fitando-o cheia de expectativa.
Frank não respondeu. Simplesmente a olhou. Jamais vira criatura tão
bela, tão doce, tão encantadora! A hostilidade dele para com as meninas era
muito menor do que a que reservava aos garotos. As meninas eram mais suaves,
nunca tão brutais ou perversas. Tinham, porém, malícia e astúcia e ele temia
esses traços mais do que a brutalidade. Podia-se enfrentar com punhos a
brutalidade física, mas não havia como lutar com a malícia e a astúcia, nenhuma
defesa contra a melosa traição ou a malevolência. A menina encantou-o,
tamanha era a sua beleza, mas lembrou-se de que as garotas costumavam ser
astuciosas e mesquinhas. Permaneceu, em vista disso, parado onde se
encontrava, fitando-a, pronto para uma briga quando os olhos dela se
iluminassem com aquela expressão maldosa que tão bem conhecia.
Todavia, para sua surpresa, ela permaneceu séria, com um ar de
expectativa, parecendo mesmo satisfeita.
— Qual é o seu nome? — perguntou.
— Frank — respondeu ele, cauteloso.
— O meu é Jessica — confidenciou ela. Seus olhos abriram-se ainda
mais e esperou que ele fizesse o movimento seguinte.
Ele, porém, apenas esfregou os seixos com os pés. A menina possuía um
rosto de boneca, perfeitamente pintado, e uma boca cheia, de coral, que lhe
lembrava um nastúrcio. Ela fitou-o, ansiosa.
Em voz rouca, ele perguntou:
— Você mora aqui?
Ela sacudiu a cabeça, agitando os cachos.
— Oh, não, quem mora é meu tio. Moro em Porter Avenue com meu pai.
Mas hoje é meu aniversário e meu tio vai dar uma festa para mim. Comprou este
vestido. Não é bonito? — Estendeu as pregas rosadas até que elas se
transformaram em gaze em volta de seu pequeno corpo. — Você veio à minha
festa?
— Acho que... não — balbuciou ele. — Não fui convidado. Seu tio não
me conhece.
Ela deixou cair os babados e olhou-o desapontada. Em seguida, animou-
se:
— Bem, assim mesmo você pode ficar, embora ainda não sejam quatro
horas. — Possuía uma voz alta e doce. Observou-o com carinhosa e completa
aceitação. — Gosto de você — disse. — Não gosto muito de meninos. Mas
gosto de você. Você briga?
— Somente quando tenho que brigar — respondeu ele. — Aí brigo pra
valer. Isso porque sou inglês — acrescentou orgulhoso e com o desafio que
sempre demonstrava quando obrigado a dizer sua nacionalidade.
Ela examinou-o de cima a baixo e achou-o admirável. Deu um pequeno
salto.
— Tenho um gatinho no pavilhão — disse. — Não vou deixar que os
outros garotos o vejam, mas você eu deixo.
Virou-se, chamou-o com um gesto e correu à frente. Ele seguiu-a,
observando-lhe as pequenas e belas pernas se moverem rápidas. Ela era uma
fada, uma fada cor-de-rosa flutuando sobre a grama verde. Seguiu-a como se
estivesse hipnotizado. Ela levou-o por um dos lados da grande casa cinzenta,
cujas paredes se elevavam muito alto. Nesse momento entrou em um jardim, um
jardim de sonhos, refulgente de flores, entremeado aqui e ali, como um parque,
por altos salgueiros e olmos. Viu um pavilhão branco no fim do jardim,
inteiramente coberto pelo brilho verde e escarlate das rosas que o coroavam. Viu
móveis de junco branco com almofadas vermelhas. Um gatinho miava num
pequeno cesto no centro de uma mesa branca.
Frankie aproximou-se devagar do gatinho e com bastante cautela. Nunca
lhe haviam permitido contato próximo com animais. Os cães, segundo a mãe,
ficavam “doidos” e os gatos eram “sujos”.
Observou a pequena Jessica tomar o gatinho nos braços e esfregar-lhe a
pelagem no pequeno nariz. Observou tudo aquilo fascinado. Em seguida,
estendeu uma mão encardida e hesitante e acariciou a cabeça do animal.
Jessica sentou-se com o gatinho nos joelhos. Frank acomodou-se na
borda de uma cadeira. Não podia tirar os olhos da pequena. A cada momento o
rosto dela se tornava mais encantador, mais fascinante, como as faces que via em
sonhos. Sentiu um estranho senso de familiaridade. Observou-a. Ela não dizia
bobagens, não tagarelava sem sentido nem se mexia ou soltava risinhos como as
outras garotas. Continuava simplesmente sentada ali, acariciando o gatinho e
fitando o garoto com olhos graves e escuros. Abriu a boca no mais leve e
pensativo dos sorrisos, com uma expressão de expectativa.
— Você é um pouco parecido com papai — confidenciou finalmente,
como se estivesse perplexa.
Frank riu, hesitante, rouco.
— Oh, puxa, não sou tão velho assim — disse.
Ela, porém, contraiu um pouco as sobrancelhas, observando-o ainda.
Tornou-se mais grave.
— Meu pai é um grande... artista — disse. — Toca piano muito bem.
— Meu pai tocava rabeca, antigamente — bravateou Frank.
Jessica alegrou-se.
— Talvez ele conheça papai. — Ao ver Frank sacudir a cabeça, ficou
desapontada. Olhou para o gatinho e Frank percebeu que ela entristecera.
O quente e nevoento silêncio estival envolvia o pequeno pavilhão.
Insetos zumbiam em volta das flores do lado de fora. Uma vespa entrou e saiu.
Uma nuvem de borboletas amarelas passou voando pela porta. As duas crianças
entreolharam-se solenes.
— Seria bom que você pudesse ficar para minha festa — disse
finalmente Jessica. Mas Frank teve certeza pelo tom de que ela sabia muito bem
por que ele não podia ficar. A menina suspirou: — Gosto de você — disse em
voz clara e forte — Gosto de você, Frank. Seria bom que você nunca fosse
embora. Mas acho que precisa.
Ele olhou pela porta aberta para o grande terreno, quase um parque, com
as árvores mergulhadas em suas próprias sombras diáfanas.
— Eu voltarei algum dia — disse ele, baixinho. — Sim, aposto que
volto. E não irei embora outra vez.
Não sabia por que se sentia tão à vontade com a garota, por que a
presença dela não o perturbava, por que ela lhe proporcionava tanto consolo
quando o fitava, uma alegria tão tranquila. Não achou que ela fosse uma criança,
mas parte de um lindo sonho. Era como se sempre a houvesse conhecido, e
sempre a conheceria, como se houvesse compreendido que, algum dia, voltaria
para ela. Jessica continuou ali, tranquila, acariciando o gatinho, olhando-o
simplesmente.
— Você gosta da festa e... de todos... que vêm? — perguntou.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não, mas Tio Wentworth... ele é irmão de papai, diz que não sei
brincar nem fazer coisa alguma, que preciso conhecer outras garotas e, talvez,
alguns garotos. Mas papai não acha isso. Além do mais, eu preferia estar com o
papai, ouvindo-o tocar. Às vezes, ele faz grandes viagens, toca, e ganhamos um
pouco de dinheiro. E, assim — continuou com toda franqueza —, não temos de
dispensar a Sra. Marks. Ela toma conta de mim quando temos dinheiro. Papai
fica simplesmente aqui e toca até viajar outra vez. Quando volta, chama a Sra.
Marks, que vem novamente.
— Você deve ter um tio muito bom — disse fascinado Frank.
Ela sacudiu enfática a cabeça.
— Oh, não, ele é terrível. Não gosta de mim ou de papai. Mas não tem
mulher, nem coisa alguma, e papai diz que ele talvez queira deixar-me seu
dinheiro. Mas papai diz que não quer que eu o aceite. Deixou que Tio Wentworth
desse a festa porque vamos para Nova York no próximo mês, eu e papai, e assim
a festa não tem importância.
— Você vai embora? — perguntou Frank consternado.
Jessica inclinou a cabeça e sorriu alegre.
— Oh, sim, e talvez nunca mais voltemos.
Em seguida, sua face mudou e tornou-se estranhamente sombria para
uma pessoa tão jovem. Mais uma vez, ela esperou.
Frank apertou os joelhos com as mãos e olhou-a fixamente.
Disse, então:
— Você vai voltar, eu sei que vai! Virei muitas vezes aqui e esperarei por
você, Jessica.
Ela observou-o em silêncio durante um longo tempo. Depois, baixou a
cabeça, com grande lentidão.
— Sim. Acho que você esperará, também. Jamais gostarei de outro
garoto, só de você, Frank. — Ergueu o pequeno queixo branco e seus olhos
profundos sorriram para ele.
Frank não sabia o que significava encanto, mas sentiu-o. Tudo naquela
criança era grave e pensativo, amadurecido, cheio de compreensão. Nela havia
força e suavidade e sentiu-as. Eram para ele uma consoladora doçura.
Ergueu-se como se algo houvesse temporariamente acabado e disse:
— Acho que devo ir agora.
Ela inclinou a cabeça e pôs o gatinho no cesto. Estendeu a mão para
Frank e sorriu-lhe.
Ficou observando-o enquanto ele se afastava. Não o acompanhou até a
passagem de carros. Uma única vez o garoto se voltou e acenou para ela. À porta
do pavilhão, parecendo uma grande boneca rosada, Jessica acenou em resposta.
Frank voltou no dia seguinte, todavia não a encontrou. Mal esperava por
isso, mas, ainda assim, veio. Veio quando chegou o outono, quando as folhas
caíram e estalaram sob os céus enfarruscados. Não a viu nem uma única vez.
Mas era-lhe suficiente estar próximo do local onde a conhecera.
Nunca a esqueceu. Mesmo quando conheceu Paul Hodge, que se tornou
parte tão grande de sua pessoa durante todo o resto da vida, não a esqueceu.
Uma ou duas vezes, pensou em levar Paul até a casa, mas algo o conteve. Não
podia contar, nem mesmo a Paul. À medida que os anos passavam, esqueceu a
localização exata da casa, e mesmo a rua. Mas nunca esqueceu Jessica. Jessica e
o pesado fardo que carregava na vida impediram-no de desenvolver qualquer
forte interesse por outras pequenas, salvo no sentido mais casual e premente.
Nunca a esqueceu, mas veio finalmente a acreditar em que fora outro
sonho, parte dos muitos sonhos da infância, belos e perdidos. Ainda assim,
quando ouvia uma moça rir de certa maneira, virava sempre a cabeça, olhava em
volta, observava e esperava até que ela passasse.
CAPÍTULO 18
As escolas, os pais, o lar haviam-se transformado em vagas e
desagradáveis realidades para ele.
A escola em West Avenue, nas proximidades de Hampshire Street,
número dezoito, era maior do que a de Vermont Street, porém igualmente velha
e fuliginosa. Descobriu que, escondendo-se no porão após a dispensa das classes
às três da tarde, podia evitar as zombarias e os odiosos colegas. Em seguida, só
para ele as ruas, que se tornavam subitamente tranquilas, margeadas por nobres
árvores e encharcadas de sol. Caminhando vagaroso e sonhador para casa,
imaginava histórias de estupenda magia e aventura, histórias de descoberta de
estranhas e perfumadas ilhas engastadas em mares de azul-turquesa. Começara a
escrevê-las nos cadernos durante as lições de História, Matemática e Gramática.
Mas ninguém as lera ainda. Às vezes, compunha poemas, cheios de palavras
vivas e coloridas, que tanto lhe acalmavam o espírito como o deixavam inquieto.
Então, num melancólico dia de novembro, encontrou o amigo, o ouvido,
o alter-ego, o companheiro.
Era um dia cinzento, entremeado de explosões de luz tão incolor e
ofuscante como água, interrompidas por pancadas ainda mais fortes e curtas de
vento picante. Foi durante o recreio que Frank o encontrou, andando contrafeito
por um canto do pátio, como ele mesmo fazia.
Por trás da grade de ferro que fechava o pátio podiam-se ver troncos de
árvores nus e lacerados, telhados escuros, paredes de casas baratas, a paisagem
feia de ruas vazias e cobertas de lixo. Reinava um seco silêncio no ar. De uma
rua lateral chegava o som da monótona sineta de um amolador de tesouras e
consertador de guarda-chuvas, o eco ocasional do trote de um cavalo, o ranger
de pesadas rodas. Esses sons apenas aprofundavam o silêncio além do pátio e
tornavam-no mais melancólico e sombrio.
O pátio em si era feio e não havia balanços ou outros brinquedos. O
terreno era coberto por pequenas e afiadas pedras brancas, que estalavam sob os
pés com um som alto e seco. Não havia contato fácil entre os sexos. Quando o
sol se escondia por trás dos montes de nuvens pretas, os vestidos das meninas
sobressaíam como fogos mortiços, embora vivos, na subida escuridão. Mas os
fogos saltitavam decorosa e isoladamente e não se misturavam com os gorros
escuros dos garotos. A mestra, exausta, esgotada, entrava na escola e reaparecia,
tremendo dentro de um casaco escuro, esfregando mãos que pareciam jamais ter
sido macias, quentes, ternas. Era sua semana de tomar conta das crianças. Ali à
porta, observava-os com um ódio que fuzilava sob as pálpebras vermelhas e
inchadas. Esperava apenas que os garotos não começassem a brigar novamente
ou invadir as fileiras das pequenas para uma sessão de puxadas de cabelos e
bofetões.
Frank Clair jamais brincava com as outras crianças. Elas não o teriam
aceito. Nem ele lhes desejava a companhia. Passava sem destino junto ao muro
de tijolos da escola, arrastando os pés pelo cascalho. Até mesmo as meninas, a
despeito de sua aparente indiferença, timidamente conscientes do outro sexo, não
o olhavam, embora ele possuísse uma estranha beleza que, dia a dia, se tornava
mais evidente.
Inesperadamente, colidiu com outro garoto que, encostado ao muro,
olhava macambúzio e impassível para a frente.
Frank não soube o que o fez parar com tamanha pressa e olhar com tanta
franqueza para o estranho. Vagamente, lembrou-se de tê-lo visto na classe
naquela manhã, mas o esquecera até aquele momento. Teria sido a expressão do
garoto, fixa e abstrata, que lhe chamara a atenção, ou algo mais profundo, uma
espécie de química de sangue e espírito? Nunca soube. Simplesmente o fitou e
achou-o conhecido, de alguma maneira misteriosa e inexplicável.
O garoto era da sua altura e tinha mais ou menos a mesma idade. Frank
viu um rosto pequeno e pálido; olhos bastante pequenos, de cor indefinida;
cabelo claro, bem escovado e lustroso; um nariz arrebitado e narinas sensíveis.
Cabelo, pele e olhos pareciam ter a mesma tonalidade vaga e incolor,
aproximando-se do amarelo-esverdeado, nublados de tristeza. Não havia a
menor expressão naquela face, mais paralisada e imóvel do que vazia, embora os
olhos tivessem uma característica vigilante e apreensiva, quase felina, olhos de
uma luminosidade esverdeada, sobrenaturais, cheios de medo, suspeita e cautela.
Era muito magro e de ossos aparentemente delicados. Usava roupas
menos sujas e remendadas do que as de Frank e era mesmo excessivamente
arrumado. Mãos apáticas, relaxadas, pendiam dos lados. Quando notou que
Frank o fitava com tanta atenção, moveu-se contrafeito, como se quisesse
afastar-se. Um relâmpago de medo e cauteloso desespero passou-lhe pelos olhos.
— Olá — disse Frank, surpreso com o som confiante de sua própria voz.
— Olá — respondeu o novo garoto, debilmente, em uma voz sem
inflexão. Havia certa falta de timbre na voz, certa falta de força. Era quase uma
voz de menina, fina e aguda.
Imediatamente, Frank sentiu que sempre conhecera aquele garoto, que
nunca, em companhia dele, experimentaria o velho recuo e medo, que seria
compreendido, jamais mal interpretado, jamais ridicularizado ou desprezado.
Sentou-se num banco de madeira próximo. O outro garoto, como se compelido
por alguma vontade mais forte, sentou-se também. As mãos lânguidas
relaxaram-se sobre os joelhos, limpas e vazias. Olhou para Frank com certa
expectativa, vaga e vigilante, que se tornaria tão familiar a Frank como seu
próprio rosto. Algo cálido e contido começou a crescer no peito de Frank. Ele,
que sempre evitara estranhos, que se desviava de grupos que se demoravam nas
ruas, que andava quarteirões para não ter que cumprimentar conhecidos, sentiu-
se senhor de uma caótica e sofredora vida. Possuía um sombrio, embora raro,
senso de humor e uma imensa profundidade de simpatia e presciência, da qual
ninguém jamais suspeitara. Sorriu tranquilizador para o garoto, que o fitava com
uma desconfiança curiosamente apreensiva. Talvez tenha sido aquela
desconfiança que o tocou, que o fez sentir-se forte e seguro de si.
— Você parece que está com medo — disse Frank com uma cordial
franqueza. — Do que é que você tem medo? Daquela velha e estúpida mestra ali,
ou desses nojentos garotos? Eu não tenho. Tudo o que ela pode fazer é gritar de
medo e isso é também tudo o que eles fazem: gritam. Mesmo calados, é isso que
fazem: gritam de medo. E as mães e os pais deles gritam também, exatamente
como eles. O mundo inteiro grita de medo. Estou cheio disso.
Uma estranha expressão apareceu furtiva na face do desconhecido. Era
como se suas contraídas e algo murchas feições esverdeadas começassem a
descongelar-se e a suavizar-se. Sangue vivo, quente e tímido apareceu por baixo
da palidez. Continuou a olhar para Frank em silêncio, mas um silêncio cheio de
compreensão. Os olhos felinos tornaram-se translúcidos, como esmeraldas
tocadas por um raio de sol. A boca entreabriu-se ansiosa, mostrando uma fileira
de dentes brancos, grandes e perfeitos. A expressão inteira era de alguém que
ouvira, inesperadamente, uma voz conhecida, uma linguagem familiar, em uma
terra estranha e deserta.
— Por que você pensou que eu estava com medo? — perguntou em voz
fina e neutra, após um longo silêncio.
Frank encolheu os ombros.
— Eu... eu acho... que posso reconhecer quando uma pessoa está com
medo. Qual é sua idade e qual é o seu nome? — perguntou abruptamente, pois os
poucos contatos sociais não lhe haviam ensinado técnica alguma de aproximação
fácil e jeitosa.
Relaxou-se o tenso nervosismo que contraía o corpo do garoto; suas
pernas se soltaram do pé do banco.
— Tenho treze, quase quatorze. Meu nome é Paul Hodge. Acabamos de
chegar a Bison, há dois dias. De Erie, Pennsylvania. Meu pai, eu e meu irmão,
Gordon. Gordon está no primeiro ano da escola secundária e é dois anos mais
velho do que eu. Não tenho mãe. — A voz tornou-se lamentosa e saudosa. —
Meu pai é guarda-livros de uma loja em Main Street. Não me lembro de qual. —
Interrompeu-se. Pareceu atônito com a própria loquacidade. — Qual é o seu
nome?
— Frank Clair. Ainda tenho mãe e pai. — Continuou: — Sou da mesma
idade que você. Meu pai é químico... farmacêutico. Isso é tudo. Onde é que você
mora?
— No fim de West Avenue, perto de Connecticut.
— Moro em Albany Street. Perto do rio. Já viu o rio? Posso-lhe mostrar
um bocado de lugares. Há barcos no canal, que vão para o Canadá. E pescadores,
bares e trens.
Entreolharam-se atentos, fascinados. O frio e esquálido pátio
desapareceu da consciência de ambos. Os gritos, berros e risos das outras
crianças eram menos do que o vento nas árvores.
— O que é que você faz? — perguntou Frank em voz baixa.
A profundidade da estranha comunicação que se estabelecera entre eles
fez com que o outro garoto compreendesse imediatamente. Murmurou:
— Toco violino. Tomo lições. — Nesse momento o rosto se iluminou.
— Meu professor disse que serei um grande violinista se continuar a estudar.
Frank sentiu a doçura da felicidade.
— Eu escrevo — disse. — Escrevo histórias e vou escrever logo um
livro.
— Livros! — exclamou Paul com total e maravilhosa aceitação.
— Posso ler o que você escreve?
— Pode, se tocar para mim algumas vezes. Eu... eu gosto muito de
música. Meu pai tocava violino antigamente. O instrumento está guardado no
porão. Mas meu pai não deixa que eu toque nele.
Terminou o recreio. Paul e Frank subiram correndo a escada para a sala
de aula, juntos, como se fugissem de um perigo comum que apenas a eles
ameaçasse. Ouviram o trovejar e o ribombo de pés da classe regressando do
recreio e de outras, impacientes e barulhentas, que iam entrar de folga. Os
corredores borbulhavam de crianças e o ar úmido enchia-se de poeira e
escuridão. Paul e Frank colaram-se às paredes, passaram furtivos pelos inimigos
naturais e entraram na sala à frente de todos.
A sala era despojada, escura e arranhada, mobiliada com velhas carteiras
manchadas de tinta e quadros-negros acinzentados. Um cheiro de giz, madeira
podre, umidade e frio pairava imóvel na atmosfera. Os dois garotos sentaram-se
e sorriram um para o outro, como conspiradores. Os olhos de Paul haviam
perdido a expressão de medo. Cheios de confiança, pousaram muitas vezes
durante a tarde sobre o colega.
Observava Frank quase fascinado. Conservava-se, porém, tão silencioso
e tinha uma face tão impassível que não se podia ler-lhe os pensamentos. Era um
garoto naturalmente obediente e bem-comportado. Miss Hempstead, feliz,
chegou à conclusão de que o novo aluno não lhe daria muito, ou apenas pouco
trabalho, ao contrário daquele horrível Frank Clair, que exibia para ela e suas
aulas uma franca mistura de descaso e indiferença, especialmente irritante.
Nunca sabia as lições, exceto ortografia e “inglês”. Não demonstrava o menor
interesse, salvo quando, na última meia hora, ela lia trechos de The Child’s
History of Napoleon. Tampouco o garoto parecia preocupar-se com o fato de
estar no fundo da classe. Com frequência, tomava ares insolentes, mas de modo
tão sutil que ela não conseguia encontrar um motivo claro para castigá-lo. Ficava
ali sentado, de cara amarrada e vazia, torcendo pedaços de papel nas mãos ou
olhando pelas janelas com uma expressão absolutamente vazia, enquanto o
corpo permanecia atrás, como uma pilha de roupas abandonadas. A professora,
contudo, respeitava-lhe o maravilhoso talento para escrever “composições” e,
relutante, lia-as em voz alta para a turma. Um garoto que podia escrever daquela
maneira, com tal lucidez, sabedoria amadurecida e beleza, certamente aprenderia
divisão e frações com facilidade. Um garoto que podia ler em voz alta com
expressão, compreensão e clareza não devia ter dificuldade em História ou
Geografia. Mas ele raramente, se é que alguma vez, obtinha uma nota de
aprovação nessas matérias, embora a surpreendesse em provas escritas de
História pela percepção de algum fato secundário que ela absolutamente não
mencionara.
Frank cochilou de olhos abertos durante toda a tarde, embora pela
manhã, quando a classe recebeu ordem de escrever uma composição sobre o
mar, tivesse demonstrado a maior agilidade e excitação. Às duas e meia, Miss
Hempstead começou a ler mais uma vez um trecho de The Child’s History of
Napoleon. Frank ressuscitou, erguendo-se visivelmente de alguma insondável
profundidade onde se havia metido semi-inconsciente.
Pela história, parecia que o nariz de Napoleão durante a mocidade fora
seu traço mais visível. Durante toda a leitura, os olhos das crianças viraram-se
para Frank, acompanhados de grandes sorrisos e risinhos. O nariz de Frank,
embora clássico e bem formado, era, na opinião dos outros, grande e marcado
demais. Ele próprio sentiu-se embaraçado quando foram lidos os trechos
referentes ao nariz de Napoleão. De alguma maneira diabólica e sutil que
somente as crianças conseguem descobrir, os colegas lhe haviam adivinhado o
ponto sensível. Além disso, uma história em quadrinhos muito popular estava
sendo publicada no jornal local sobre um velho cavalo, chamado absurdamente
de Napoleão. Jamais houvera uma reunião tão deliciosa de circunstâncias.
E assim, enquanto a leitura prosseguia, os garotos próximos
murmuravam cruelmente para Frank:
— Epa, epa, Napoleão, parece que vai chover!
Frank fingiu ignorar os comentários. Não quis olhar para Paul Hodge por
temer ver-lhe na face uma expressão de ridicularia. Mas, quando finalmente não
pôde mais conter-se, observou que a face de Paul estava vazia e inescrutável e
que dava à professora uma apropriada e total atenção. Frank compreendeu. Paul,
também, era estranho aos demais.
Logo depois, com uma excitação peculiar, notou algo mais. Além de
Paul Hodge havia outro estranho naquele dia, uma menina quieta, de tranças e
face coberta de sardas. Sentava-se junto de Paul, guardando uma decorosa
compostura. As demais crianças, cansadas de provocar Frank baixinho, voltaram
a atenção para Paul e para a garotinha com aquela curiosidade e especulação
simiescas que caracterizam a raça antropoide. Não civilizados ainda, não haviam
aprendido que se concede aos estranhos pelo menos uma aceitação provisória e
cortês e se esconde o antagonismo tão bem quanto possível. Examinaram a
menina. Misteriosamente, quase que por voto a descoberto e aclamação,
aceitaram-na sem reservas. Ela pertencia ao grupo e a decisão foi tomada
instintivamente. Esqueceram-na até que pudesse ser mais detalhadamente
analisada, de uma maneira cordial, numa segunda oportunidade. Voltaram a
atenção satisfeita para Paul. Imediatamente, houve um burburinho em volta dele.
Paul continuou sentado, escutando a mestra, com as mãos bem
modeladas e tranquilas postas sobre a mesa. Nada havia, em sua face ou trajo de
fora do comum ou estranho, como em Frank, nada esquisito na atitude, nada
absurdo na expressão. Parecia tão incolor como a maioria e inteiramente
convencional e aceitável. Apesar disso, nenhum olhar que o roçou mostrou calor
humano ou interesse. Os olhares deixaram-no, entediados, voltaram a ele,
transformaram-se vagamente em antipatia e, depois, em aversão.
— Acho que ele é uma criança muito tola — suspirou Miss Hempstead
para si mesma ao erguer os olhos do livro e focalizá-los em Paul Hodge. — Não
tem a menor expressão. Simplesmente, uma face boba, vazia. É pior, à sua
maneira, do que aquele horrível Frank Clair. — Não sentiu preocupação,
contudo. Sabia instintivamente que Paul jamais lhe causaria problemas. A
caderneta escolar que ele trouxera de Erie indicava que tirara notas médias.
Ao soarem as três horas, as crianças desceram correndo a escada em
busca de seus casacos. Frank, como sempre, atrasou-se atrás do grupo. Esperava
sempre até que os outros houvessem saído a fim de escapar a perseguições na
rua. Demorou muito tempo examinando os livros e guardando os lápis. Tinha a
esperança de que Paul esperasse por ele, mas isso foi mais um desejo, fruto de
depressão, do que expectativa. Ficou muito surpreso, por isso mesmo, quando
viu Paul, silencioso em seu assento na sala vazia, observando-o.
— Oi! Você não vai para casa?
— Hummm. Não quero sair agora — respondeu Paul em voz clara e
suave.
Frank fitou-o, espantado. Paul retribuiu o olhar. Sorriu um pouco e, mais
uma vez, seus olhos esverdeados brilharam, ganhando vida. Frank,
vagarosamente, pôs os livros sobre a carteira.
— Escute — disse em voz pausada —, você não... não odeia os garotos
como eu, não é?
Paul encolheu os ombros. Inesperadamente, não pareceu mais nervoso e
uma espécie de lívido desprezo surgiu-lhe na face. Mas não respondeu. Frank
lançou um olhar pela janela. A rua estava quase vazia.
— Acho que podemos ir... agora — murmurou, caindo a voz na palavra
final. Em silêncio, deixaram juntos a sala.
CAPÍTULO 19
A malevolência das crianças parecia saturar a rua até certa distância a
partir da escola. Frank e Paul andaram apressados até chegarem a outras artérias
onde era menos provável a presença de seus atormentadores.
— Puxa, preciso torcer-me como um saca-rolha para chegar a casa —
disse Frank com certo humor. — Primeiro, os garotos aqui. Depois, tenho que
passar pela escola paroquial. Você sabe, a escola católica, onde as mestras são
freiras. Os garotos perseguem os protestantes, gritando “Apóstatas” e
“Protestantes Negros Sujos”. Às vezes jogam pedras. Um dos garotos de nossa
turma quase perdeu um olho. — Acrescentou pensativo: — Eu sou protestante.
Não sabia que éramos até que chegamos aqui. Nunca ouvi falar disso na
Inglaterra.
— Em Erie — informou Paul Hodge — fazemos as mesmas coisas com
os católicos. Bem feito para eles.
Frank esfregou aborrecido os sapatos na calçada de concreto.
— Por que é mesmo que fazem isso? É uma coisa sem sentido.
Paul contraiu com força os lábios pálidos, mas permaneceu calado.
Relaxou-se a tensão nervosa de Frank. Diminuiu a marcha, mudou a
posição dos livros e disse:
— Tenho cinco centavos. Quer uma bala?
Paul concordou, sem muito interesse. Raramente mostrava interesse por
alguma coisa, mas era característico que estudasse com uma grande avidez os
balcões de balas nas pequenas e escuras confeitarias. Frank escolheu devagar.
Comprou duas pequenas garrafas de parafina, com recheio líquido de saboroso
mel doce e vermelho, um verdadeiro néctar para a língua. Em seguida, após
algum estudo, dez pequenos “negrinhos” de chocolate por um centavo, duas
minúsculas formas de estanho cheias de caramelo rosado e doce (para ser
comido com pequenas colheres, também de estanho) e um caniço de alcaçuz.
Desceram novamente a rua enquanto Paul comia sua parte com uma espécie de
disfarçada avidez em que havia mais do que um ar felino. Ao terminar, passou
delicadamente a ponta rosada da língua sobre os lábios. Andava, ao lado de
Frank, com postura e movimento superiores. Adotava uma espécie de fria e
negativa dignidade. Frank praticamente se arrastava ao seu lado, agressivo e
cauteloso, e naquele momento exibia na face uma ferocidade exagerada.
Pela primeira vez na vida, sentiu-se estranhamente expansivo e à
vontade. Descontraído. Por causa disso, tornou-se espirituoso. Paul riu,
escutando como que espantado com o próprio divertimento. Inspirada pelo riso,
a conversação de Frank tornou-se, aos seus próprios ouvidos, extremamente
brilhante. O humor fluiu, malicioso, sutil, acre, incomumente inteligente e
penetrante. Continuava a olhar cheio de expectativa para Paul, cujos olhos
esverdeados faiscavam de diversão e prazer. Às vezes, olhava para Frank com
uma espantada e nascente afeição. A voz de Frank subiu de tom, mais excitada,
entusiástica, volúvel e colorida, cheia de crueza excitante, mas também de força
e autoridade. Fazia gestos violentos e exagerados. Adultos, passando por eles na
rua, achavam graça. Frank não percebeu, Paul, sim, e ficou muito vermelho.
Aumentou sua simpatia por Frank, misteriosamente forte e protetora. Apesar
disso, pediu timidamente:
— Não grite assim, Frank. Os bobos estão olhando para nós.
Frank amarrou a cara para duas mulheres que passavam.
— Bobas — murmurou feroz, mas embaraçado.
Paul nada disse, mas uma calma malevolência desenhou-se em seu rosto
tranquilo ao olhar para os adultos. Frank notou a expressão e experimentou um
confuso choque, quase repugnância.
— Ora bolas, quem é que se importa com os velhos? — disse,
descuidado. — O que era que eu estava dizendo? Oh, sim. Bem, escrevo poemas
e histórias. Vou escrever um livro inteiro, logo. Sobre a Revolução Francesa. —
Inchou de orgulho. — Tive uma professora. Ela disse que eu seria escritor.
Parece que sempre fui, mesmo quando não sabia escrever. — Interrompeu-se por
um momento. — Tenho um poema no meu livro de História. Vou ler para você
quando arranjarmos um lugar para sentar.
Paul virou-se e sorriu para ele. Inesperadamente, o sorriso tornou-se
suave e radiante, cheio de ternura. Uma pequena e aguda pontada de alegria,
quase de dor, tocou o coração de Frank. Nenhum dos dois falara em se
separarem logo. Frank resolveu desviar-se do caminho para ficar tanto quanto
possível em companhia do amigo.
Começou a falar sobre os pais:
— Bem, meu pai é farmacêutico. Trabalha numa farmácia. Lá vendem
todos os tipos de balas. Mas ele não deixa que eu vá lá quando está trabalhando,
ou em qualquer outra ocasião também. Diz que não vale a pena tornar o lugar
“familiar” demais. Ele é engraçado. Nunca leva mamãe a parte alguma e ela fica
zangada. Mas ele não se importa com o que ela diz. Age como se lhe tivesse
ouvido as queixas durante tanto tempo que elas se transformaram num mero
ruído em seus ouvidos, que não ouvem mais. Papai diz que precisamos
economizar dinheiro para voltarmos à Inglaterra antes que ele e mamãe fiquem
velhos demais. — Sua fisionomia mudou, anuviou-se e tornou-se mais grave
enquanto ele lutava com os pensamentos. — Ele não é muito velho, apesar de
tudo. Tem apenas quarenta e dois anos, mas mamãe tem quarenta e sete. Quando
papai fala na Inglaterra, parece vivo. Anda de um lado para o outro, às vezes, e
fala com animação. Não é muito velho. Mas acho que anda de um lado para o
outro para se sentir importante. Quando os adultos ficam com medo, eles
simplesmente acham que precisam fazer alguma coisa importante. Quando não
têm alguma coisa importante para fazer, parece que estão mortos. Não é
engraçado? — Com inesperada excitação, fitou sério e atento a face de Paul,
impassível, inescrutável. -—Talvez todos nós precisemos sentir-nos importantes,
ou morreremos, quer nos deitemos para morrer quer não. Quando ficamos
velhos. É por isso que não quero crescer nunca e ficar velho. É sobre isso o
poema.
Chegaram à esquina de uma rua tranquila. Gramados luxuriantes
estendiam-se em volta deles. As casas, na mortiça luz de novembro, tinham um
ar de muda contenção. Encostaram-se numa grade de ferro junto à calçada.
Frank, com inesperada timidez, tirou a folha rabiscada de papel de dentro do
livro.
— Escrevi isso enquanto a velha Hempstead berrava alguma coisa sobre
frações — disse. — Nunca aprenderei frações. Não vejo o menor sentido
naquilo.
Paul ergueu uma sobrancelha. Os dois garotos encostaram-se
confortavelmente no corrimão.
— Por favor, leia o poema — disse polidamente.
Frank pigarreou discreto, olhando para o papel. A face incolor
enrubesceu.
— Bem — disse ele, e nesse momento não gaguejava mais —, dei ao
poema o título de “Se Tenho que Morrer...”
Ergueu os olhos para ver se havia alguma zombaria na face da Paul.
Uma estranha expressão, porém, quase séria demais, surgira nos olhos de Paul.
Frank começou a ler:

“Se tenho que morrer, então que morra


Enquanto ainda dedilho o alaúde,
Antes que as aves deixem os céus
E cantem todas as suas canções.
Se tenho que morrer, então que me vá
Enquanto ainda sinto e ainda sei
Que a terra é bela e radiante,
E Deus e eu ainda somos jovens.

Se tenho que dormir, então que durma


Antes que minhas horas se esgotem,
Antes que se aprofundem as neves do inverno,
E finde o dia de verão.
Se devo desaparecer, então que desapareça
Antes que toda a minha fé seja traída.
E espero que nas profundezas me enterrem
Para ser aquecido pelo sol da manhã.”
A voz se tornara vibrante, pujante e irresistível durante a recitação do
poema, tosco, mas cheio de vida, que pareceu pairar à luz mortiça em torno dos
dois garotos. Paul não se moveu. Encostou-se mais na grade. Observou Frank e
escutou. Mas a tensão em crescendo havia embranquecido a área em torno de
seus lábios impassíveis e os olhos se lhe dilataram imensamente nas órbitas. Não
falou enquanto Frank, desajeitado, dobrava o poema e o colocava com fingida
indiferença entre as páginas do livro.
— Bem, acho que não é grande coisa — disse o poeta. — Talvez, mais
tarde, eu consiga fazer coisa melhor.
Esperou, entretanto, com o coração batendo forte. Paul continuava
imóvel.
— O alaúde — disse baixinho Frank — é uma espécie de instrumento de
cordas. Os antigos gregos tocavam-no. Tem um som bonito, não? Alaúde. —
Contraiu os sobrolhos. Repetiu baixinho: — “Antes que toda a minha fé seja
traída.” Não sei exatamente o que é que isso significa... acho. Suponho que
queria dizer: antes que eu descubra que nada mais há de belo. Sim, foi isso.
Quando olhamos para os adultos, sabemos que para eles nada mais há de belo no
mundo. É como se eles se houvessem tornado daltônicos e vissem tudo em
cinza, preto e branco sujo.
Paul respirava levemente. Havia uma pequena e viva luz nos cantos de
seus olhos.
Morria o curto dia de novembro. A forte e seca ventania passara e o ar
estático pairava, imóvel, morto e muito frio em volta dos garotos. As ruas
estavam quase vazias, exceto por uma ocasional dona-de-casa apressada, com
uma cesta no braço; uma corajosa criança montada numa bicicleta; uma carroça
de cerveja passando pesadamente, seus barris chocando-se uns com os outros; ou
um automóvel, chocalhando, rugindo, soltando fumaça, deixando atrás um
cheiro fétido de gasolina. As janelas de casas de madeira baratas, embora
grandes, começaram a brilhar e a tremer à luz de gás amarela. Chaminés
fumaçavam languidamente, lançando serpentes de vapor escuro e contorcido
contra o céu escuro. Portas batiam com um som sobrenatural na escuridão; uma
ou duas vezes um cão ladrou. As árvores alinhavam-se, espectrais, ao longo do
meio-fio, e seus galhos nus entrelaçavam-se indistintos. Nos gramados
pardacentos folhas giravam em redemoinhos. A calçada transmitia uma sensação
terrosa aos pés. Nesse momento, uma lâmpada de arco de mercúrio, na esquina,
começou a chiar e a pipocar, rasgando a penumbra com raios fortes e brilhantes.
As coisas pareciam haver sido esvaziadas de cor e cobertas por um pó
acinzentado que a tudo dava a mesma tonalidade mortal. O céu, porém,
aparentemente escapara à decadência geral. Embora o zênite estivesse escuro e
sombrio, o baixo poente incendiava-se de fogo vermelho sujo, intenso e forte.
Sobre esse cinturão de chamas, os céus resplandeciam numa tonalidade rosada
mais suave, derretendo-se, todavia, extremamente frios. Coroando tudo isso, um
pálido lago de jade translúcido, decorado por um bando de aves douradas.
Frank notou o pôr do sol, mas nunca se referia às coisas que o
empolgavam e atormentavam com sua solitária beleza. Sentia um medo grande
demais das velhas zombarias que foram os comentários às suas primeiras
tentativas de expressão. Paul, também, observava o anoitecer. Fitava-o absorto.
Mas tinha a face rígida, quase paralisada, transbordante de dor muda e hirta. Não
experimentava coisa alguma da exaltação que tanto excitava e fortalecia Frank, e
nada do religioso êxtase. Sentia apenas angústia muda, desespero e um anelo que
não conseguia compreender.
Em voz baixa e hesitante, falou nesse momento:
— Seu poema é maravilhoso, Frank. É... é como esse pôr do sol. Não?
— perguntou em voz quase inaudível.
— Oh, não sei — respondeu Frank, sobranceiro. — Já fiz coisas
melhores. — Tomou o braço de Paul e desceram juntos a rua próxima. E a
seguinte, em profundo e absorto silêncio, com olhos apenas para si mesmos.
Alcançaram a esquina de West Avenue e Massachusetts Street. Paul
parou em frente a uma pequena casa de madeira cinzenta, de janelas altas,
estreitas e apagadas, e uma chaminé sem fumaça. Uma pequena e raquítica
varanda estendia-se em frente à porta. A casa parecia fria, lúgubre e pobre. O
gramado fora abandonado durante todo o inverno e a grama seca e descorada
subia quase trinta centímetros; começava a agitar-se e a farfalhar ao forte vento
que passou a soprar nesse instante. Frank olhou-a com uma vaga inquietação. A
casa esfriava-o, parecia que projetava uma empoeirada aura para cercá-lo e
sufocá-lo. Teve uma leve esperança de que Paul o convidasse a entrar. Mas ele
não o fez. A intimidade não se firmara ainda o bastante naquele frio e reticente
jovem coração. Paul meramente o fitou com fisionomia inexpressiva.
— Amanhã é sábado — disse subitamente Frank. — Virei aqui.
— Muito bem — respondeu indiferente Paul. Mas, no íntimo, ficou
emocionado e satisfeito. A face se tornou úmida, suave, e ele sorriu.
Frank esfregou o sapato no chão. Ergueu temerosos olhos para Paul.
— Você gosta de futebol?
— Não! — Pela primeira vez, uma verdadeira emoção coloriu o tom de
voz de Paul. Fez um pequeno gesto de repugnância involuntária. Frank sorriu
feliz.
— Nem eu. Negócio de bobos. Você gosta de alguma outra coisa do
mesmo tipo?
— Não, não gosto!
— Nem eu.
Tomados por um prazer íntimo, riram. Eram amigos. Frank gargalhou
alto e alegre. O riso de Paul, porém, tão raro e contido, soou agudo e musical.
Permaneceram ali, de frente um para o outro, jovens altos e emaciados, de
estranhas faces.
Frank, mesmo na escuridão, exsudava vitalidade e energia. Paul, porém,
dava a impressão de um todo imóvel. Frank era um rápido e brilhante raio
saltando pelos céus; Paul, uma rocha de granito com que o raio podia brincar,
apenas com uma ameaça muito remota de fender.
Frank desceu a rua sozinho. Estava muito atrasado, mas não se
preocupou. Olhando para trás, viu que Paul continuava na calçada, observando-
o. Fez-lhe um afetuoso aceno. Nesse momento já estava escuro demais para
notar se o amigo respondia ou não. Mas Paul não respondeu.
Nesse momento, afastando-se Frank, o calor, o conforto e a segurança
esvaíram-se de Paul por todas as rachaduras psíquicas e o medo insinuou-se
novamente para dentro. Entrou em casa.
Frank continuou seu caminho, assoviando baixinho, olhando para o céu,
onde nesse momento despertavam as estrelas prateadas. Um pequeno e ativo
homenzinho, um acendedor de lampiões, corria à frente, acendendo os postes.
Pálidos sóis dourados precediam Frank e ganhavam vida à medida que ele
caminhava.
Chegou à esquina de uma rua. Uma menina aproximava-se, vestida de
casaco e gorro vermelho. Cachos escuros desciam-lhe até os ombros. A face era
redonda e rosada. Frank esperou, contraindo as mãos nos bolsos. Ela passou sob
o poste. Não era Jessica. Fitou-o impudicamente e desviou em seguida o olhar.
Ele prosseguiu, desolado, seu caminho.
CAPÍTULO 20
Gordon, irmão de Paul, estava acendendo a luz de gás na pequena, fria e
pobre sala de visita no momento em que ele entrou.
Mais alto e largo do que Paul e de aparência muito mais sadia, Gordon
tinha a face magra, bonitona, muito inteligente e de boa cor. Além disso, móvel,
maliciosa e expressiva, o que não acontecia com a de Paul. Possuía olhos vivos
cinzentos e, mesmo que houvesse neles algo da fria desconfiança de Paul, nada
tinham da mesma honestidade. A larga e branca testa, sob um cabelo castanho
bem cortado, sugeria temperamento intelectual, embora a tendência de contrair-
se com frequência revelasse falta de autocontrole. A boca era quase bonita em
cor e forma, embora satírica.
Cultivava pequenas doenças corporais que o aliviavam de aborrecidas
responsabilidades e deveres. Nisso revelava grande gênio, pois era naturalmente
indolente e incapaz de fortes emoções.
— Alô — disse com irônico divertimento na voz ao ver o irmão. —
Quem era aquele garoto esquisito que estava conversando com você aí fora? O
garoto que falava agitando as mãos? Ele saltava de um lado para outro como se
fosse uma pulga.
Os lábios de Paul contraíram-se de raiva, mas ele encolheu os ombros,
como se não se importasse.
— Apenas um garoto da escola, que ia para casa e me acompanhou.
Gordon soltou um risinho maldoso.
— Bem, aquele garoto tinha mesmo uma aparência estranha — disse.
As sobrancelhas castanho-claras de Paul juntaram-se rapidamente, mas,
além disso, sua fisionomia mal mudou. Ficou consciente, mais uma vez, de uma
súbita possessividade em relação a Frank. A recordação do novo amigo tornou-
se preciosa, uma parte mesmo. A mente fechou-se sobre a recordação como as
conchas de um marisco, absorveram-na, digeriram-na, transformaram-na em
parte de sua própria substância.
— Ele não é estranho. É um bom garoto. Vem-me visitar aqui amanhã.
Gordon fingiu-se zombeteiramente estupefato.
— O quê? Desde quando você começou a fazer amizade com colegas na
escola? E que garoto! Enquanto você andava procurando fazer amigos, por que
não escolheu alguém mais apresentável e mais civilizado?
— Você não sabe de coisa alguma a respeito dele, Gordon. Foi o único
garoto que consegui suportar e não quero que faça troça dele amanhã. Seu pai é
farmacêutico em uma grande farmácia — acrescentou, fazendo um hábil apelo
ao forte esnobismo do irmão.
Gordon não se deixou impressionar.
— Pois não parece. Quero dizer, ele parece esquisitão e engraçado
naquelas roupas. Como se o pai fosse um trabalhador braçal. Espero que isso não
signifique que você vai gostar de outras pessoas assim e encher a casa com uma
cambada de joões-ninguém. Você sabe que papai jamais toleraria isso. E eu
mesmo não quero a casa cheia de crianças. Por falar nisso, esqueceu-se de trazer
o pão e o leite?
— Esqueci — respondeu zangado Paul.
— Bem, pelo amor de Deus, saia e vá buscá-los! E não grite assim
comigo. Você não é nenhum tenor. E como papai, com certeza, vai esquecer o
jornal, é melhor trazê-lo também. Há uns dois centavos na mesa da cozinha. E
pode limpá-la enquanto estiver lá para que eu possa começar minha ceia.
Paul olhou silencioso e desconsolado para a sala em volta. Caiu em
doentia depressão. A família Hodge chegara de Erie há apenas três dias e não
havia ainda arrumado as coisas. A casa não fora varrida antes de chegada dos
novos inquilinos e todas as instalações, dos peitoris arranhados das janelas à
horrenda mobília estilo “missão” e os puídos e desbotados tapetes de Bruxelas
estavam cobertos por uma pátina de pó oleoso. Nenhuma camisa fora posta
ainda sobre os bicos de gás e a luz bruxuleante, mortiça e amarelada, criava uma
atmosfera de tristeza. O papel de parede, desbotado e sujo, de uma feia
tonalidade parda, teria escurecido até mesmo o cômodo mais claro. Na mesa de
carvalho sem toalha, quadrada e manchada de tinta, havia um candeeiro de latão
com uma cúpula de vidro leitoso em uma armação, também de latão, faltando
diversos pedaços. Além da mobília, uma cadeira de imitação de couro, rachada,
despelava e mostrava o estofo através de pequenos rasgões. A única peça
pertencente aos Hodges era uma cômoda de mogno muito lustrosa e simples em
um dos cantos, embora tivesse sua beleza temporariamente eclipsada por pilhas
de pequenos embrulhos, caixas de fósforo, um saco de maçãs, outro de uvas,
uma caixa de violino barato e pequenos artigos semelhantes. O débil e trêmulo
fogo que queimava no pequeno fogão de ferro era incapaz de combater o picante
frio da sala, também extremamente abafada. Entre as duas pequenas janelas,
tristes e sem cortinas, empilhavam-se valises arranhadas e velhas. Gordon
acendera o gás na cozinha e no quarto. Paul viu a atravancada mesa do café, o
fogão empoeirado, as camas desarrumadas e cheias de coisas.
Sentiu um calafrio. O ressentimento ardeu nele como pólvora. Gordon,
queixando-se de dor de cabeça naquela manhã, não fora à escola, onde em três
dias conseguira distinguir-se. A despeito da alegação de doença, parecia
extraordinariamente saudável e satisfeito com ele mesmo.
— Você esteve em casa o dia inteiro, Gordon — disse Paul. — Podia
pelo menos ter arrumado um pouco esta sujeira e tirado nossas coisas das malas.
Gordon levantou rapidamente os olhos do pequeno fogão, cujo teimoso
conteúdo estava justamente espicaçando. Suas sobrancelhas amareladas
juntaram-se irritadas.
— Eu estava com dor de cabeça. Além disso, papai devia ter mandado
uma mulher limpar a casa antes de tirarmos as coisas da mala. Mas parece que
ele espera que a gente faça toda a limpeza.
— Naturalmente. Quem mais? Gordon, você, está dizendo besteira. Você
sabe que papai não tem dinheiro. Não pode economizar um centavo. Já vai
chegar do escritório, não há coisa alguma para comer em casa e você nem fez as
camas.
Gordon, com desdenhosa indiferença, encolheu os ombros.
— Muito bem, se quer as coisas feitas, Cinderela, faça-as você mesmo.
— Sua face contraiu-se e ele enrubesceu, zangado. Entrou no quarto, acendeu o
gás, tirou um livro de cima de uma cadeira quebrada e atravancada, enfiou um
travesseiro sujo sob a cabeça amarelada, derreou-se na cama estalante e começou
a ler tranquilamente. — Preciso compensar o dia que perdi na escola — disse. —
Corra agora e vá comprar o pão e o leite. Ponha umas batatas para cozinhar e
compre também um pouco de presunto cozido ou algumas costeletas de carneiro.
E uma lata de feijão e dois bolinhos na padaria. Oh, e um pouco de chá. E outra
coisa: não me amole.
Paul sentiu a garganta e o coração se fecharem de raiva. Apertou
convulso as mãos pálidas. Sentiu uma vontade imensa de descer aquelas mãos
sobre Gordon, cortar, rasgar, destruir. Coisa alguma do que sentia, porém,
transpareceu na pequena e inexpressiva face, à qual parecia faltarem os próprios
músculos que comandam a emoção. Deu simplesmente a impressão de tenso e
vazio, embora um forte e amarelado brilho queimasse sob as sobrancelhas.
Após um momento, entrou na cozinha. O corpo lhe tremia todo e sentiu
vontade de vomitar. Com todo o cuidado, lavou umas poucas batatas, apanhou
uma panela e acendeu o gás. Da prateleira imunda que guardava o tesouro da
família tirou diversas moedas.
Olhou para o quarto. Gordon lia serenamente. Tinha os frios lábios
contraídos em pétreo silêncio no momento em que Paul saiu.
No pequeno, sujo e malcheiroso armazém da esquina comprou presunto
cozido, uma lata de feijão e um pouco de pão, manteiga e chá. Olhou para uma
cesta de laranjas e hesitou. O pai adorava laranjas, mas a bolsa da família andava
muito magra e quatro dias se passariam ainda antes do pagamento. Comprou
meia dúzia para o pai e pediu que fossem colocadas em um saco separado. Teria
que escondê-las de Gordon, que as comeria imediatamente e riria dele em casa
ao fazê-lo. A antipatia de Gordon pelo irmão era ainda maior do que o amor pelo
pai. O fato de privar o pai de alguma coisa ocupava menos espaço em sua mente
do que o fato de que Paul tremeria de raiva e “pareceria ridículo” em sua
impotência.
Comprou o vespertino no armazém. Enquanto as compras eram
embrulhadas, olhou apático para as manchetes. Raramente sentia o menor
interesse por alguma coisa. Duas sufragistas haviam morrido durante uma greve
de fome numa prisão londrina. Um foro de indignados sacerdotes atacava
vigorosamente a moderna saia abaixo do joelho e a exibição de panturrilhas
femininas quando uma mulher subia num veículo público. Um dos clérigos
falava em líricas palavras sobre o efeito que tal exibição teria sobre uma tenra
geração em florescimento. “As mulheres perderam todo o pudor”, proclamava
ele. “O decoro está tomando o mesmo caminho que a carruagem e a frequência
às igrejas.” Paul bocejou. Não fazia parte do grupo de rapazolas que se reunia
nas esquinas onde paravam os bondes, na esperança de entrever uma perna de
mulher. Leu a manchete: “O Rei George visita o Kaiser Wilhelm”, e não sentiu
interesse. Políticos republicanos profetizavam, sombrios, que a recente eleição
de Woodrow Wilson resultaria em “pânico, depressão, moeda inflacionada e
desorganização, os concomitantes habituais dos governos democratas”. O Sr.
Taft, derrotado, tinha apenas sérios e contidos comentários a fazer. O Sr.
Theodore Roosevelt, porém, mostrava-se menos ambíguo, à sua corrosiva
maneira habitual. Era anunciado um embargo na venda de munições ao México.
Parecia geral a agitação.
Uma pobre mulher, malvestida e de mãos avermelhadas, entrou nesse
instante no armazém, puxando uma garota de uns cinco anos de idade. Tinha a
face contraída, pálida e feroz do desespero crônico. A menina parecia estar com
fome e frio. O caixeiro tirava as laranjas de Paul de cima do balcão e colocava-as
num saco quando a criança agarrou avidamente uma delas e apertou a fruta
gorda e amarela contra os lábios rachados.
— Ei, você não deve fazer isso — começou o caixeiro, com uma
embaraçada bondade. No entanto, antes que pudesse recuperar a laranja, Paul
saltou sobre a criança e arrancou-lhe com violência a fruta dos dedos magros e
sujos.
— Porca! — exclamou em voz aguda e cortante. A mulher, o caixeiro e a
criança fitaram-no, paralisados, pois sua face havia adquirido uma cor cinza
pétrea e em seus olhos brilhava o mortal e enojado ódio que era parte tão
integrante de seu caráter e do qual nem mesmo o pai desconfiava. Entre os lábios
lívidos, brilharam úmidos e ferozes os grandes dentes brancos. Tinha apenas
treze anos, mas naquele momento parecia um velho insano e perverso.
A menina começou a chorar subitamente, tomada de medo. A mulher e o
caixeiro, porém, continuavam petrificados. Em silêncio, observaram Paul deixar
o armazém. Então, o caixeiro respirou profundamente e olhou para a freguesa.
—Bem! — exclamou. — Já viu uma coisa dessas? Aqui, doçura, o Sr.
Murphy vai lhe dar uma grande e linda laranja. Isso mesmo!
CAPÍTULO 21
Paul, de volta à pobre casa em West Avenue, lavou os pratos e olhou
para a coçada caixa de violino depositada sobre a cômoda. Contraiu as
sobrancelhas: sentiu uma grande e súbita dor. No íntimo, acreditava em que
lições regulares revelariam que era um gênio. À noite, tinha belos sonhos
dourados e feéricas visões de um mundo a seus pés, adulando-o, depois de ouvi-
lo expressar-se na mais nobre das músicas.
A casa estava quase aquecida e a ceia quase pronta no momento em que
Edward Hodge subiu cansado, na escuridão, a calçada de tábuas. Alguns flocos
de neve lhe polvilhavam o velho sobretudo de mangas puídas e gola esgarçada.
Sob o chapéu grande demais para ele, a face suave e irônica, com um sorriso
torto de um dos lados, parecia muito pequena e angulosa. As calças, embora
estreitas segundo o estilo da moda, ainda assim batiam em volta das panturrilhas
magras e tornozelos finos. Caminhava como um homem que chegara ao último
grau do esgotamento, como que se encolhendo ante o vento cortante. De estatura
mediana, a falta de carnes, porém, fazia-o parecer ainda mais baixo.
Edward Hodge era, na realidade, um homem muito doente, fato este
evidente para o olho penetrante e interessado. Teria parecido patético não fosse o
permanente sorriso doce e tristemente satírico que impedia que o considerassem
um homem inerme. E afastava a compaixão. Embora contasse apenas quarenta
anos, parecia mais velho. Não que se houvesse coberto prematuramente de
cabelos brancos, tivesse murchado ou arrastasse os pés. Era algo mais na
expressão dos olhos bonitos, meigos e inteligentes. Na doçura, tranquilidade e
paciência da fisionomia delicada havia certa estranheza e sabedoria que, às
vezes, lhe davam um ar travesso. Desprezava todas as pessoas, inclusive ele
próprio, com um fraco humor. Era um homem estranho e sério, de imensa
tenacidade e ar extremamente sombrio.
Edna Hodge, a esposa, morrera quando Paul contava seis meses de
idade. Ela nunca parecera para o marido uma pessoa real, e ainda menos para os
filhos. Edward conservava uma desbotada fotografia da mulher; Gordon parecia-
se muito com ela, mas havia nos olhos de Edna certa fixidez felina que lembrava
Paul. Paul, contudo, lembrava o pai, embora nele nada houvesse da delicada
mobilidade das feições deste último. Possuía, contudo, os mesmos traços gerais,
a dignidade, a reserva e o ar desconfiado.
Edward achou que, naquela noite, não teria forças suficientes para
empurrar a porta rachada do novo lar. Durante todo o dia estivera certo de que
não seria capaz de continuar, que devia deitar-se e desistir de tudo. Talvez
morrer. Mas não havia realmente acreditado nisso. Nada lhe restava senão
continuar, educar os filhos, dar-lhes uma oportunidade de ser mais do que ele
havia sido.
Até que não mais dele precisassem, até que não mais fossem inermes,
não poderia morrer, por mais que o martirizasse o corpo doente e ansiasse pela
morte. A sua vontade e a necessidade que os filhos sentiam dele conservavam-no
vivo. Viera de Erie para Bison porque esta última cidade era muito maior,
possuía melhores escolas, oportunidades de bolsas-de-estudos e um colégio
estadual, onde as mensalidades eram quase de graça.
Entrando na pequena casa, o calor aconchegante envolveu-o e recebeu-o
com afeição. Gordon, reunindo atrasado as folhas dispersas dos jornais, falou-lhe
imediatamente da dor de cabeça que o impedira de ir à escola. Edward, ainda
sem fôlego, simplesmente sorriu. Iluminou-se a sua face pequena e delicada.
Paul correu da cozinha com uma faca na mão. Ao ver o pai, um brilho iluminou-
lhe os olhos e pareceu feliz com a chegada da pessoa amada. Nada disse,
contudo. Mas ajudou-o a tirar o casaco.
— Bem, rapazes — disse Edward em voz baixa. Olhou em volta da sala
de estar e suas narinas distenderam-se durante um instante. Os garotos nada
haviam feito naquele dia, a despeito de seus pedidos pela manhã. Podia ver isso.
Mas jamais se queixava, o que era tanto uma virtude como uma fonte de
irreparável dano para as crianças.
— A ceia está quase pronta — disse Paul. Notou a completa prostração
do pai. Mas jamais lhe ocorriam palavras para expressar o que sentia e carecia de
ternura para mostrá-lo.
Edward dirigiu-se ao quarto para tirar os sapatos. Notou que as camas
haviam sido feitas com desleixo. O chão nu lascado estava manchado e a velha e
raquítica mesa de carvalho continuava cheia de trastes. O bico de gás queimava
baixo na parede. Inesperadamente, com um gesto de total rendição, lançou-se de
bruços sobre uma das camas e permaneceu como morto, imóvel. Um ar de
completa resignação envolveu-lhe o corpo magro, enfiado num terno gasto e
barato de sarja. Um dos braços pendeu mole de um dos lados da cama, numa
atitude de desagregação. Uma dor intolerável lancetou-lhe o peito. Fechou os
olhos, flutuando para longe, levado por uma escura e ondulante maré.
Ouviu os garotos discutirem mal-humorados na cozinha enquanto eram
dados os últimos retoques no jantar. Mas estava cansado demais para pôr ordem
nas palavras que lhe penetravam nos ouvidos. Subitamente, nada mais teve
importância, nada mais lhe mereceu atenção, exceto a morte. Mas não ousava
ceder a essa desleal traição aos filhos; gemendo por dentro, sentou-se com
esforço e levou as mãos úmidas e trêmulas aos olhos. Notou a presença de
Gordon à porta, falando irritado como se estivesse tentando já há algum tempo
chamar-lhe a atenção.
— A ceia está pronta, papai. Já o chamei umas duas vezes.
— Muito bem, filho. Eu ouvi — respondeu Edward em voz sumida.
Entrou rastejando e trêmulo na pequena, suja e quente cozinha. Olhou
para os filhos e sorriu-lhes com uma egoísta e apaixonada devoção. Havia algo
terrível no amor por eles, pois era um amor pessoal demais, possessivo demais,
tenaz, excluindo o mundo, repudiando-o, mantendo-o longe com gestos de
suspeita e medo. O compassivo amor pelos filhos havia-o privado de compaixão
pelos demais.
Esforçou-se para comer alguma coisa, mas a comida deixou-o enjoado.
Escutou as conversas banais dos filhos e, enquanto o fazia, sorria o seu doce e
curioso pequeno sorriso, passeando os olhos de um para o outro com uma
expressão de encantamento.
Quando lhes falou naquela noite, fê-lo à maneira habitual, em voz baixa,
irônica, tolerante, ponderada. Tratava-os como homens de sua idade. Discutia
assuntos variados com eles. Mas o interesse pelos pensamentos e atividades
diárias dos filhos não era o interesse assiduamente cultivado de adultos que
acham que constitui um dever se mostrarem interessados. Sentia-se genuína,
apaixonada e avidamente absorto em tudo o que eles pensavam e faziam.
Paul falou pouco. Entre ele e o pai havia uma grande compreensão,
profunda demais para necessitar de palavras. Comia sem pausa, com o
desinteresse estampado na face pálida, absorto em si mesmo, quase avaro, o que,
como sempre, irritou Gordon. Os jovens nervos deste começaram a formigar
com a velha e desagradável sensação enquanto observava Paul extrair
delicadamente cada grama de sabor do pobre jantar. Rolava um bocado na boca
como se o saboreasse, delicado, engolia-o e os olhos amarelo-esverdeados
acendiam-se ligeiramente, como em êxtase. Como um gato, pensou Gordon
cheio de súbito ódio.
— Conte a papai a respeito do garoto esquisitão que veio hoje aqui com
você, Paul — pediu com uma risada.
Edward olhou para Paul com uma sorridente surpresa, erguendo as
sobrancelhas.
Paul enrubesceu, embaraçado.
— Ele não é esquisitão — respondeu, frio. — Não é igual aos outros
garotos. É diferente, brilhante. Vem-me visitar amanhã.
— Amanhã! — exclamou Edward.
— Ele parecia precisar de um banho — disse divertido Gordon. — E as
roupas dele eram uns três números menores que o necessário. Parecia um
cachorrinho sujo, grande demais, todo pernas e cotovelos. E pulava de um lado
para o outro como um cachorrinho, também. Você vai achar graça quando o
conhecer, papai. Não seria Paul quem arranjaria um garoto alinhado. Teria que
arranjar um monstrengo.
Paul olhou-o furioso.
— Ele não é monstrengo nenhum. Simplesmente não é tolo, como todos.
— De súbito, ficou envergonhado. Lembrou-se de toda a estranheza e
desajeitamento de Frank, da voz estranha e rápida, dos gestos grandiloquentes.
Mas a vergonha passou logo, substituída por uma cálida e afetuosa tolerância e
superioridade. — Ele é o único garoto de quem já gostei.
Edward nada disse, embora se sentisse perturbado e perplexo.
— Bolas, você nunca suportou ninguém, salvo a si mesmo! Jamais
conheci um animal tão egoísta como você, Paul — disse Gordon com sorridente
descaso. — Você sempre tomou as coisas, mesmo quando era apenas um bebê.
Esse garoto provavelmente tem alguma coisa que você gostaria de ter, ou então é
um bajulador.
Paul e o pai entreolharam-se. Paul falou em seguida:
— Você é um estúpido. Não quero coisa alguma de Frank, e ele não
bajula ninguém. Além disso, escreve livros, poemas e coisas assim.
A lassidão de Edward desapareceu nesse momento e um forte ciúme
apertou-lhe o coração. Sorriu tolerante e disse:
— Crianças contam vantagens. Com frequência, procuram parecer
importantes dessa maneira. — Ignorou Frank como algo insignificante demais
para merecer discussão. Mas, pelo menos por uma vez, Paul discordou dele.
Contraiu os lábios e desviou os olhos, obstinado. Edward, notando a reação do
filho, ficou vagamente perturbado.
Comiam nessa ocasião bolos de fôrma, que pareciam ter sido feitos com
pó de serra. Ouviram uma seca, embora discreta, batida à porta. O vento de
novembro começava a subir em tristes lamentos, mas a batida conseguiu abafá-
lo. Gordon ergueu-se e dirigiu-se até a sala de estar, onde o gás queimava
fracamente. Ao abrir a porta, deixando entrar uma lufada de vento poeirento,
Edward e Paul ouviram uma voz de mulher, sonora, cálida, cheia de desculpas.
— Você precisa desculpar-me, filhinho — disse ela, rindo um pouco. —
Puxa, está frio hoje à noite, não? Bem, eu pensei, os pobres garotos e o pai
devem estar tendo uma trabalheira danada para arrumarem a casa e tudo mais, e
sem uma mulher que cozinhe para eles. Bem, sendo sua vizinha, pensei em
trazer uma boa e quente torta de maçã para a ceia de vocês. Tome aqui. Cuidado,
o fundo dela está quente. Seu pai já chegou, filhinho?
A resposta afirmativa do Gordon, embora tímida e desconfiada, foi ainda
assim agradável e grata. Edward, olhando para a porta, franziu as sobrancelhas.
Paul pôs de lado o garfo e a faca. No silêncio, o gás crepitava e o enferrujado
fogão desprendia um odor de gordura e sujo. À porta, viram uma mulher gorda,
de seios grandes, uns quarenta anos de idade, rosto firme e vermelho, dentes
faiscantes e cabelo preto espesso, amarrado descuidadamente em um coque atrás
da cabeça. Usava um vestido duro de algodão listrado e um xale preto em volta
dos ombros. Edward e Paul fitaram-na com a pálida e ofendida apreensão das
pessoas que desconfiam de estranhos. Edward conseguiu encrespar os lábios
num rígido e amedrontado sorriso. Paul, porém, fitou-a zangado. Ela sorriu-lhes
alegre do umbral da porta. Gordon, atrás dela, murmurava alguma coisa.
— Não, não vou incomodá-los, pessoal — disse ela alegre atirando-lhes
um sorriso que tinha o calor anônimo de um fogo amigo. Tendo vindo de sua
limpa, reluzente e aconchegante casa, julgou horrendos aquela sujeira e desleixo.
Naturalmente, disse mais tarde ao marido, ele é homem e eles são garotos, mas a
gente pensaria que veriam aquela sujeira e procurariam tirá-la, não? Mas
continuou a sorrir sem deixar transparecer os pensamentos.
— Noite horrível, não? — perguntou alegre, puxando o xale sobre os
ombros como se estivesse prestes a ir embora.
Edward murmurou alguma coisa; Paul continuou a fitá-la com uma
expressão insultuosa, fixa. O seu pequeno corpo tornou-se tenso, digno,
ofendido.
— Bem, o inverno está chegando e tudo mais... — continuou ela. —
Espero que vocês estejam confortáveis. Conseguiram tudo de que precisam? Sei
como são as coisas quando a gente se muda.
Edward murmurou algo novamente. Não se ergueu. Virou-se um pouco
para longe da mulher e começou a brincar com o garfo. Havia algo mortal na
fragilidade de cera daqueles dedos. Não ofereceu à generosa visita uma cadeira.
Umedeceu os lábios e moveu levemente a cabeça, como se procurasse um meio
de escapar. A energia e o viço que emanavam do corpo e espírito da mulher
fizeram-no encolher-se com descarada timidez, enquanto lhe ocorria um adjetivo
mudo: “Vulgar”.
Ela continuou a tagarelar à porta. Gordon, ao lado, sorria contrafeito. A
mulher cruzou os robustos braços em volta do peito cheio.
— Sua esposa faleceu há muito tempo, Sr. Hodge? — perguntou, cheia
de simpatia.
— Sim — respondeu debilmente Edward. Uma escura e doentia cor da
raiva subiu pela face de Paul.
— Que pena! — comentou ela. Puxou do seio um grande suspiro. —
Bem, hoje vivo, amanhã morto. Ninguém sabe quando chega a sua vez. A vida é
assim. Espero que gostem da torta — acrescentou.
Deixou alvoroçada a casa, nada perdendo, na saída, da suja e triste
confusão da sala de estar. Do lado de fora, parou para conversar um momento
com Gordon, que estava profundamente mortificado com a conduta do pai.
— Se você precisar de alguma coisa, queridinho — disse, bondosa —,
simplesmente peça. Não fique acanhado. — Deu-lhe uma pancadinha no ombro
e mergulhou na forte ventania da noite de inverno. Gordon, indignado, voltou à
cozinha fervendo de recriminações. Mas elas morreram-lhe na garganta quando
viu que Paul justamente nesse instante lançava a quente e suculenta torta no
balde de lixo. Havia algo tão vingativo, tão selvagem em seus gestos que Gordon
ficou petrificado, incapaz de pronunciar uma única palavra. Edward nenhum
esforço fez para deter Paul. Continuou sentado em silêncio na cadeira, sorrindo
de leve, quase tolerante.
— Velha porca, metida! — exclamou Paul em sua voz musical, dando à
torta um último e violento empurrão, bem para o fundo do balde. — O que é que
interessa a ela saber se mamãe está morta? Ou qualquer outra coisa? Por que é
que ela não se mete com a vida dela?
Gordon fez um grande esforço para falar.
— Ora... você! — exclamou em voz rouca. — Ora... — A fúria explodiu
nele, numa raiva forte alimentada por milhares de queixas: a impotência e suave
obstinação do pai, os sorrisos superiores do pai e do irmão, a inexpressividade e
o silêncio deles, a imobilidade doentia, toda a sórdida e úmida esqualidez de sua
vida e de seu lar. A sala escureceu ante seus olhos e ele sentiu um gosto amargo
na boca. Nesse momento, teve certeza de que não adiantava, não adiantava
absolutamente.
CAPÍTULO 22
Ao voltar para casa ao meio-dia de sábado, Edward encontrou um
rapazola de aparência estranhíssima em companhia do filho.
Fizera grande frio durante a noite e a luz da manhã revelava uma terra
acinzentada, corrugada e dura, enrugada, salpicada pela primeira neve. As
árvores haviam-se entrelaçado umas às outras em branca confusão contra o
plúmbeo céu. As esquálidas casas ao longo da rua puxavam as tábuas do
revestimento externo para cima de suas finas paredes como se quisessem
proteger-se do ar corrosivo. Das chaminés erguiam-se, de má vontade, finas
colunas de fumaça.
Paul e Gordon haviam feito apáticos esforços para remover a sujeira e
arrumar a nova casa. O último caixote chegara naquela manhã e ocupava, ainda
fechado, o centro do empoeirado tapete da sala de estar. No momento em que
Edward entrou, um pálido e aguado raio de luz filtrou-se pelas janelas sujas,
listradas com velhas marcas de dedos, revelando toda a sujeira, a pobreza e a
desordem da sala.
Gordon, sentado sobre a tampa do caixote, comia com grande prazer um
sanduíche de queijo. A sua clara e inteligente face brilhava de divertimento e os
olhos riam com tolerante malícia. A alguma distância, Paul balançava-se
preguiçosamente na velha cadeira de couro. Entre os dois, viu um estranho
garoto.
Pouco antes de abrir a porta, o cansado Edward tivera a impressão de
ouvir uma nova e excitada voz, forte e veemente. Gordon começara a rir depois.
Mas, naquele momento, o estranho estava silencioso, olhando para Edward com
os olhos tímidos e um pouco hostis de um jovem e amedrontado animal.
Edward nada sentia por outras crianças senão uma total indiferença e
tédio. Por isso mesmo, apenas contraiu distraído as sobrancelhas e, imediata e
visivelmente, ignorou a presença do estranho. Mas sob a óbvia indiferença
escondia-se também certo embaraço.
Contudo, estava cansado demais para pensar no assunto. Paul se
aproximara e ajudava-o a tirar o casaco. O cansaço habitual de Edward, porém,
havia-se transformado naquele dia em dor na região do coração e, pelo menos
por uma vez, a esqualidez da casa venceu-lhe a apatia.
— Crianças, crianças — disse em voz sumida —, por que vocês não
arrumaram um pouco as coisas?
— Oh, papai, o senhor precisa ouvir esse garoto! — exclamou Gordon
em voz aguda e divertida. Enfiou o resto do sanduíche na boca e mastigou-o
rapidamente. — Ele diz as coisas mais ridículas possíveis! O senhor precisa
ouvi-lo! Nunca ouvi nada tão engraçado. As ideias que ele tem...
— Papai — interrompeu-o Paul em voz aguda —, este aqui é Frank
Clair, o garoto de quem lhe falei na noite passada.
Edward lançou a Frank um rápido olhar desinteressado, com a expressão
ausente de uma pessoa cuja atenção é forçada. Obrigou os lábios a sorrirem e,
mais uma vez, esqueceu o garoto estranho, exceto por uma pequena sensação de
irritação.
— Paul, achou o martelo? Precisamos abrir logo esse caixote. Quase
tudo que temos está aí dentro.
Não havia almoço à espera. O monstruoso egoísmo e auto absorção dos
filhos haviam-nos impedido de pensar em tal coisa. E, para dizer a verdade,
Edward teria gostado de comer alguma coisa. O corpo magro teria apreciado
uma xícara de chá quente e um sanduíche. Estava cansado demais para prepará-
los e não lhe ocorreu pedi-los aos filhos. Uma das suas mais firmes teorias era
que os pais não deviam “impor” coisa alguma aos filhos, nem lhes pedir nada
que não pudessem pedir a um cordial conhecido.
Quase sem intervenção sua, os pés doloridos levaram-no até o quarto. As
camas, naturalmente, não haviam sido feitas. Derreou-se em uma delas e sentiu o
cheiro bolorento de lençóis não ventilados, de cobertores não muito limpos, de
velhos odores corporais. Não se importou. Fechou os olhos e mergulhou em um
confuso pesadelo de dor, em total, embora temporária, resignação. Estava
cansado demais para dormir.
Paul achara o martelo e tentava persuadir Gordon a deixar o poleiro.
Gordon, em resposta, acomodou-se ainda mais solidamente no caixote e
começou a arreliar o irmão.
— Vamos, Gordon, saia daí de cima — pediu Paul, quase chorando.
— Não estou com vontade — respondeu Gordon. — Quero outro
sanduíche. Prepare-me outro sanduíche de queijo e, quando eu terminar, sairei.
Mas fico aqui até que você me traga o sanduíche.
— Mas precisamos das coisas que estão aí dentro. Preciso do meu suéter,
minhas galochas e mitenes.
— Bobagens. Por que é que você ficou tão trabalhador assim de repente?
Este caixote está aqui desde oito da manhã e você nem se mexeu para abri-lo. O
que foi mesmo que você fez? Dormiu até as onze. Nunca vi dorminhoco maior.
Parecia morto e, mesmo quando fica acordado algumas horas por dia, ainda
continua meio morto. Cachorrinho preguiçoso. Bem, vou ficar aqui até que você
me traga o sanduíche.
Frank estivera observando interessado e enojado a discussão. Embora
jovem, a desarrumação, os odores e a poeira daquela casa já o estavam
aborrecendo. A sua própria casa, embora fria e sem conforto, era limpa e bem
organizada. A sujeira era algo estranho à sua experiência. E, como era de
temperamento ardente e positivo, não conseguia compreender a impotência de
Paul.
— Se eu fosse você, Paul — disse—, daria uma martelada nele, e com
força. — Não gostara de Gordon, a despeito da superficial gentileza e
cordialidade do garoto.
— Oh, você faria isso, não faria, Charles Dickens? — perguntou
Gordon, sorrindo bem-humorado. — Leia-me aquele poema novamente, aquele
que acabou de ler, intitulado “Se eu Morrer”. Gostei dele.
Frank olhou-o irritado e enfiou o pé no tapete.
— Você é simplesmente um impostor — disse Gordon, cutucando-o
delicadamente com a ponta do pé. — Não acredito em que o tenha escrito.
Copiou-o de algum livro. Você pode meter-se numa encrenca por causa disso.
Achava Frank imensamente divertido. Não se distraíra tanto durante
muito tempo. Olhou firme e sorridente para ele. Haveria mesmo punhos tão
magros, mãos tão compridas e ossudas, pés tão grandes, nariz tão acavalado,
calças tão apertadas e cabelo tão desgrenhado assim! Como um garoto do
campo, pensou desdenhoso. Ainda assim, a despeito das brincadeiras, sentia
pena dele, quase gostava dele. Chegara à conclusão, contudo, de que o garoto era
“profundo” e de que valia a pena observá-lo.
Nas duas horas anteriores, antes da chegada de Edward, Frank se
mostrara cheio de animação. Possuía talento para pantomima e um agudo senso
de ridículo. Quando falava ante uma plateia simpática, as mãos, os pés, o corpo
inteiro transformavam-se em virtuais extensões da fala. Estivera “descrevendo”
alguns dos vizinhos para gáudio de Paul e do irmão e a pequena casa se enchera
de risos estridentes. Uma ou duas vezes, Gordon se interrompera para olhar
curioso o irmão. Nunca vira Paul rir antes. Ainda assim, naquele dia, o riso
musical e fino do irmão soara frequente nos seus ouvidos.
Mas o calor e a luz desapareceram do rosto de Paul quando voltou a
insistir com o irmão para que saísse de cima do caixote.
— Já sei o que vamos fazer — disse Gordon, soltando um risinho
contente. — Toque-me alguma coisa no violino, Paul. Estou com vontade de
ouvir música hoje. Depois, saio daqui.
— Bata nele — sugeriu Frank. — Você segura um braço e eu seguro o
outro. Paul. Nós dois o puxamos daí de cima.
Paul, porém, suspirou exausto. Na verdade, algo aliviado, pois tinha uma
desculpa para não abrir logo o caixote. Havia tempo de sobra.
— Muito bem — disse.
Dirigiu-se à cômoda, abriu com carinho a caixa e tirou o violino. Frank
lançou-lhe um olhar e ficou decepcionado. Viu imediatamente que era um
instrumento medíocre, barato, completamente diferente do esplêndido
instrumento do pai, que examinara em segredo em casa. Teve uma ideia! De
alguma maneira, de algum jeito, daria o violino do pai a Paul! Teve uma súbita
visão de si mesmo entregando ao pai um maço de notas verdes e, com ares
superiores, comprando o violino. Tomou o instrumento das mãos de Paul e
examinou-o com desdém.
— Isto é horrível — disse. — Ora, não é nada mais que um velho cinco-
setenta-cinco! Simplesmente, uma velha caixa de sabão com cordas em cima.
Pensei que você possuía um violino de verdade.
Paul enrubesceu, furioso, e tomou-lhe o tesouro. Frank compreendeu que
havia magoado o novo amigo e sentiu-se abjetamente arrependido. Disse:
— Bem, não sei de nada a respeito dessas coisas. Mas você vai ganhar
um violino bacana qualquer dia. Esse aí serve para praticar.
Paul virou-se para o irmão, ignorando Frank.
— Quer que eu toque o Fandango Espanhol? — perguntou desdenhoso.
— Você bem que pode — respondeu Gordon, tirando uma pequena maçã
do bolso e começando a mastigá-la. — É o que você toca melhor, camundongo.
Paul enfiou o violino sob o queixo e levantou o arco. Começou a tocar.
Tocava horrivelmente, e com absoluta correção. Sob o arco, a vivacidade
da simples canção popular espanhola morria e tornava-se fria e perfeita como
uma flor de cera, destruída sua vida alegre e infantil por aquelas pequenas mãos
duras, tão sem paixão e sentimento. Não que Paul cometesse um único erro ou
hesitasse uma única vez na execução. Tocava com exatidão e precisão. E, por
isso mesmo, transformava em coisa horrenda uma pequena música de dança que
fora criada para pés jovens, pés de pessoas que amavam a vida e se sentiam
inocentemente felizes e jubilosas. Transformava a música em um melancólico
hino, estranhamente tocado em ritmo vivo. Não havia emoção ou riso nela,
nenhum fogo, nenhum ardor. Era uma reprodução, em cinzento e branco
pardacento, de uma cena tumultuosa de cor e alegria.
Sorrindo de leve, divertido, Gordon continuava a mastigar a maçã.
Mastigava contente, lançando ocasionais olhares ao irmão. Preguiçosamente,
cantarolava um acompanhamento. Não tinha opinião certa sobre a capacidade de
Paul e, simplesmente, achava que ele tocava muito bem.
Lançou um olhar curioso a Frank e ficou surpreso. A face de Frank era
uma máscara vincada de incredulidade, espanto e dor. Pestanejava enquanto
ouvia, e uma ou duas vezes, enquanto Gordon o observava, sacudiu vivamente a
cabeça, com força, como se lançasse de si alguma coisa. Amarrou a cara, mexeu
com o rosto e enfiou as mãos nos bolsos das calças apertadas. Finalmente,
enquanto a música se aproximava penosamente do fim, umedeceu os lábios. A
expressão tornou-se grave e os olhos encheram-se de uma piedade adulta. Ora,
ele não sabe tocar absolutamente! pensou, e havia tristeza em seu coração.
A última nota tremeu e morreu no silêncio. Paul relaxou-se. Não olhou
para Frank. Sua face recuperou a expressão vazia e impassível. Ergueu o arco e
examinou-o com atenção.
— Foi o que pensei — murmurou zangado. Em seguida, pela primeira
vez, olhou para Frank com uma espécie de satisfação. Frank retribuiu o olhar,
sem falar.
Paul esfregava languidamente os dedos nas cordas. Era como se Frank
não mais o interessasse ou, desconfiou Frank, como se sua opinião sobre a
habilidade dele não tivesse importância alguma nem pudesse afetá-lo. Frank,
porém, não se sentiu ofendido. Não havia nele presunção autêntica e ficou
apenas triste. Nervoso, disse:
— Foi um bocado bom, Paul. — Mas se contorceu por dentro. Pareceu-
lhe que o próprio ar tremia ainda com o insulto da música de Paul e que as duras
notas, as acres vibrações, permaneceriam para sempre suspensas no espaço. Não
pôde suportar isso.
De súbito, tirou o violino das mãos de Paul e agarrou-o febrilmente.
Passou o arco sobre as cordas. Tremia. Mas apenas uma áspera e chorosa nota
recompensou-o. Não pôde suportá-la. Não tinha poder para evocar aquilo que no
íntimo ouvia. O instrumento era simples madeira em suas mãos e sentiu a agonia
de uma terrível necessidade de exteriorizar sua música íntima. Possuía apenas
palavras. Ergueu os olhos, que brilharam vividamente. Escreveria um poema.
Obrigaria as palavras a se harmonizarem para expressar, mesmo em pequeno
grau, o indizível.
— Esse garoto parece maluco — comentou Gordon, enxugando a boca.
— Ei, Frank, você parece biruta. O que é que há com você?
Edward continuava deitado, no estupor do cansaço, no fétido quarto.
Mas ouvira o filho tocando e o sorriso sombrio adquirira uma expressão
tranquila. Estava certo de que Paul era um grande gênio. Nesse momento, a dor
começou a deixá-lo e ele ouviu com clareza as vozes na sala ao lado. E elas
deram-lhe a paz.
—- Nada. Eu... eu vou escrever um poema sobre a canção que Paul
tocou — balbuciou. Pareceu, então, cair em sonhos e uma sombra pensativa
desceu-lhe sobre a face.
Gordon sorriu de leve.
— Gosto de seus poemas, seu pequeno plagiário — disse. Frank fitou-o.
O mesmo fez Paul. — Plágio — disse Gordon, satisfeito consigo mesmo. —
Sabe o que é isso? Você toma o que outra pessoa escreve e diz que foi você.
Como é que um garoto como você poderia escrever poemas? Você ainda não
sabe o bastante.
Frank fitou-o com olhos nublados de sonhos.
— Não sei — respondeu baixinho. — As palavras chegam. Às vezes...
eu... eu não sei o que elas significam. Mas elas chegam. Como música. E vieram
ontem à noite. Peguei lápis e papel, fui até a janela e escrevi à luz do poste da
rua.
— Bem, vamos ouvi-lo — sugeriu Gordon, piscando para o irmão. —
Ainda acho que você o surrupiou em algum lugar. Preciso conferir isso.
Edward, no quarto ao lado, sorriu contente. De certa maneira estranha,
desaparecera a misteriosa ameaça que sentira em Frank Clair. Escutou. Naquele
momento, Frank recitava o poema. A voz jovem chegava clara, sonora,
exultante, embora terna e meditativa, ao homem deitado na cama:

“Solitário fiquei ali onde Netuno, de verdes membros, arava


Sulcos escuros num radiante mar de ouro.
As negras rochas, submersas e úmidas, mas ainda viris,
Para o firmamento voltavam as frontes orladas de frio escarlate.
O céu era um silêncio transbordante de luz,
Uma esperança de alegria ante a marcha da noite.

Ainda assim, não estavas lá. O fogo da noite


Em sua grande beleza podia apenas lamentar-se.

Vi a pulsante beleza das estrelas,


Como gotas de orvalho sobre o manto da noite.
O luar esbatia a terra em espectrais raios
De trevas e tênue luz.
O mundo era apenas uma taça de sombras, inclinada
Para recolher o vinho argênteo que nela gotejava.

Oh, linda noite, que abafava o grito de medo!


Mas não me acalmou, não, porque não estavas lá.”
Edward ergueu-se sobre um cotovelo. Pequenos e dolorosos calafrios
percorreram-lhe o corpo, o pescoço, os braços, as pernas. Era amante da poesia e
compreendia-a. Sabia que o poema que acabara de ouvir era infantil, tosco e
desajeitado. Mas sentiu a grandiosidade das imagens que expressava, mesmo em
sua crueza. Percebeu a presença da mente que podia senti-las e evocá-las e foi
tomado por uma espécie de ciumento terror, irresistível, sem razão.
— Você não escreveu de forma alguma esse poema — disse, acusador,
Gordon.
Não, não, nunca escreveu! pensou fervorosa e violentamente Edward.
Suas mãos convulsas agarraram os lençóis e ele sentiu uma angústia percorrer-
lhe o corpo. Como ousava aquele pequeno miserável vir ali, com suas mentiras
furtadas, e afrontar Paul! Meu filho, meu filho, murmurou como quem reza.
A penumbra de princípios de inverno já enchia quase todo o quarto e,
naquele momento, parecia reunir-se em um nevoeiro que era uma dor
intolerável. Levantou-se com esforço. Dirigiu-se à soleira da porta. Aos poucos,
enquanto olhava para os rapazes, inconscientes de sua presença, algo parecido
com um profundo frio subiu-lhe furtivamente pelas carnes.
O estranho garoto defendia-se com veemência da acusação de plágio.
Berrava:
— Não é isso! Não preciso copiar coisa alguma! Eu mesmo posso
escrever essas coisas! Você é um mentiroso, Gordon Hodge! Eu... eu... lhe dou
um murro na cabeça.
Gordon sorriu contente. Imitou o zangado gaguejar de Frank.
Edward esfregou os olhos. Sabia. Sabia que Frank não era um plagiário e
que aquilo que tentara dizer a si mesmo era uma mentira. Deixou cair as mãos e
olhou para Paul com uma dolorosa ânsia, como se quisesse lançar um braço
protetor em volta dele. Nesse momento, parou no seu espanto.
Paul ressuscitara, estava tremulamente vivo, como uma flor de vidro que
milagrosamente adquire cor e se curva diante do vento. A imobilidade havia-se
transformado em movimento, e a palidez fora substituída pela cor. Olhava para
Frank como se o poema ainda lhe ecoasse na mente e, quanto mais o fitava, mais
fortes as cores da vida incendiavam-lhe a face já afogueada.
Nesse momento Edward sobressaltou-se, como se tocado por uma
chama. Ali estava o Inimigo sob a forma de um garoto que nunca vira até aquele
dia. Não igual aos inimigos comuns, conhecidos e desprezíveis, mas um inimigo
estranho e poderoso.
Levou a mão à garganta. Tentou falar e sua voz soou como um grasnado:
— Já não está tarde, meninos? — disse. Encostou-se no umbral da porta,
doente, sentindo-se desmaiar. Ouviu um vago som de arrastar de pés. Um
fósforo foi riscado e levado ao bico de gás. A Edward, o súbito arranhar do
fósforo e o baixo murmúrio do vento contra as janelas e portas pareceram
importunamente altos, significativamente altos, sinistramente altos. Todos
aqueles sons, durante alguns momentos, assumiram uma característica maléfica.
Paul olhava para o pai. Olhava para Frank. Seu rosto estava tomado por
um riso tímido, comovido, pungente, entusiasmado e por algo mais, que sugeria
adoração e amor.
Frank puxava desajeitado o gorro do bolso e sorria envergonhado.
— Acho que já é tempo de eu ir embora — disse, incomodamente ciente
da presença da débil sombra de um homem no umbral da porta e de uma vaga
inimizade por parte dele. Paul suspirou. Restituiu o violino à caixa. Sempre
agudamente consciente de tudo quanto o filho mais moço fazia, Edward sentiu
que nos gestos de Paul havia renúncia, mas não sem amargura, dor e revolta.
Fechou os olhos nas garras de um espasmo de intolerável sofrimento.
Disse em seguida:
— São quase cinco horas. O que foi que vocês compraram para a ceia?
Algo na sua voz ignorava, cheio de desprezo, Frank. Este sentia
profunda mortificação. Mais uma vez, era o inferior, o exilado. Um calor
queimou-lhe a face. Abateram-no as maneiras de Edward, aquele vago sorriso e
a luz morta e disfarçada naqueles olhos.
Dirigiu-se para a porta. Paul acompanhou-o. Silenciosos, entreolharam-
se durante um momento. Paul sorriu. Era um sorriso sem medo, absolutamente
natural e jovem.
— Até amanhã — murmurou Frank, desafiador, saindo para a escuridão
da noite.
— Tipinho engraçado — murmurou Edward, divertido, quando Paul
voltou para seu lado. — Onde, em nome de Deus, conseguiu achá-lo, filho? —
Anteriormente, tal ataque sempre tivera êxito quando Paul iniciava uma tímida
amizade com outra criança. Edward esperou.
Paul, porém, levantou a delicada e estreita cabeça e olhou de frente para
o pai. Com gentileza, quase como se compreendesse, disse:
— Ele é da minha turma na escola. Eu lhe disse, papai.
CAPÍTULO 23
Como eram inefavelmente belos e palpitantes de cor e luz os dias,
semanas e meses! Naquele momento a terra era um orbe de ouro, flutuando no
arco-íris, girando em acordes de música. O mundo inteiro perdia-se na harmonia
e no esplendor, decomposto, glorificado e transbordante de terna e majestosa
significação. Tudo se ampliava e contraía em uma espécie de ofuscante
incandescência. Figuras luminosas moviam-se em sonhos coloridos e a glória
que envolvia o mundo aprofundava-se e tornava-se mais brilhante a cada hora.
— Não sei o que foi que deu no garoto desde que ele começou a andar
com aquele Paul Hodge — queixou-se Maybelle ao marido. — Ele nunca foi
normal, mas agora está pior. Não adianta nada dizer-lhe que se conserve afastado
daquele garoto. Ele sai, depois da escola, e só volta na hora do chá.
— Ele precisa é de uma boa surra — respondeu Francis. — Precisa
trabalhar. Que idade tem? Quatorze? Já tem idade suficiente. Não faz mesmo
coisa alguma na escola. E nós precisamos do dinheiro.
— Eu já ganhava salário quando tinha a idade dele — concordou
Maybelle. — Acabei de receber um bilhete da professora. Diz que ele nunca faz
os deveres de casa, ou qualquer outra coisa, e que é intolerável. Jamais obedece
à menor ordem. Foge da escola na hora do almoço e, às vezes, nem volta. Ela
ameaça chamar um inspetor de disciplina, ou coisa assim. Mas diz que ele tem
uma boa cabeça — acrescentou com um leve orgulho. — Poderia fazer
maravilhas. Sente interesse pela História Antiga, diz a professora. Mas terá que
ficar no sétimo ano novamente porque não consegue somar direito e há uma
matéria chamada Moral e Cívica sobre a qual ele não sabe coisa alguma. E não
procura aprender. — Hesitou durante um momento. — A mestra parece um tipo
decente. Diz que Frank ganhará com certeza a medalha de ouro de composição
em junho. É um concurso, disse ela. E está espantada porque ele não se sai bem
nas outras matérias.
— Ele precisa trabalhar — repetiu Francis. — Medalha de ouro! Riu
baixinho. — Seria uma moeda de ouro de cinco dólares? Isso seria melhor. Que
porcaria! Um emprego... ele precisa é disso e vai ter. Tirará esses malditos
absurdos da cabeça.
Maybelle, porém, estava inquieta.
— A mestra disse que ele poderia ganhar uma bolsa-de-estudos, se
apenas tentasse. Entrar na faculdade.
Francis ficou amedrontado com essa ameaça potencial à possibilidade de
mais um salário na família.
— Faculdade! Ele vai é trabalhar, diabos o levem! Em que idade pode
começar? Na Inglaterra, já estaria trabalhando nas fábricas. — Interrompeu-se e
continuou: — Não sei onde o fomos arranjar. Foi como que imposto a nós.
Nenhum bom senso, nenhuma inteligência. Ele é simplesmente um grande tolo
de boca mole, tropeçando naqueles pés enormes e escrevendo aqueles malditos
poemas. Eu não lhe disse para mandá-lo parar com isso, tomar-lhe o papel e o
lápis quando voltasse da escola?
— Fiz isso — defendeu-se zangada Maybelle. — Depois, descobri que
ele estava escrevendo no papel higiênico. O que é que posso fazer? Não há
maneira de controlá-lo.
Sentiu uma picada de vaga dor e sofrimento.
Francis mordeu a língua.
— Espere só até que eu pegue aquele malandro escrevendo, em qualquer
que seja a coisa! — berrou. — Boto juízo nele a pancada e não demora muito!
Ele vai é trabalhar. Esses malditos ianques! Não permitem que a criança deixe a
escola antes dos dezesseis, mas ele pode trabalhar neste verão e, talvez,
possamos conservá-lo no trabalho se ninguém disser coisa alguma.
— Bem, esta é a terra deles — choramingou irritada Maybelle. —
Obrigar as crianças a ficarem na escola estes anos todos. Seria muito melhor que
trabalhassem. Isto os conservaria longe da rua e lhes daria alguma coisa para
fazer.
Possuíam naquele momento seis mil dólares no banco. O suficiente para
voltar para casa, pensou Maybelle, com uma dolorosa pontada no coração.
Francis, porém, dissera que não era suficiente.
— Dez mil dólares, e voltamos para casa, Maybelle. Palavra de honra.
Maybelle olhou para o marido. Ouviu-lhe a tosse surda que, em seguida,
se transformou em uma crise sufocante. A tosse piorava dia a dia. Mel e limão já
não ajudavam mais, nem os xaropes que ele preparava para si mesmo na
farmácia. Precisava de descanso. Mas não tirava um único dia de folga, embora
o Sr. Farley lhe houvesse prometido uma semana de férias pagas por ano.
Francis, astutamente, mas com revoltante compaixão por si mesmo, sugerira ao
patrão que lhe pagasse em dinheiro as férias a que tinha direito, mas nunca
aproveitava. O Sr. Farley o fitara e, em seguida, encolhera os ombros e amarrara
a cara. Pagou-lhe as férias, no ano seguinte e no outro. Exultante, Francis
depositou o dinheiro no banco. Mas perguntou-se por que o Sr. Farley se
mostrava menos cordial nestes últimos tempos, raramente dirigindo a palavra ao
empregado com a velha cordialidade. Às vezes, isso o amedrontava, fazia-o
esforçar-se ainda mais, numa tentativa de apaziguar a misteriosa hostilidade.
— Não sei o que é que há com aquele tipo — dizia a Maybelle. — Faço
o melhor que posso.
— Ninguém pode confiar nos irlandeses — respondia ela, como se isso
explicasse tudo.
Embranquecera a fímbria de cabelo escuro de Francis. Grossos fios
brancos estriavam-lhe os bigodes, que não eram mais tão garbosos. Quanto a
Maybelle, somente fios vermelhos no cabelo lembravam a antiga e luxuriante
cor. Desbotara e embranquecera também. Tinha a face enrugada, flácida e
extremamente pálida. No entanto, engordara ainda mais e se tornara mais
informe. Uma expressão de irritação crônica contorcia-lhe os lábios pendentes.
Obrigara o marido a levá-la, juntamente com Frank, a Erie Beach
algumas vezes no verão. Tomavam uma pequena e barulhenta barca que cruzava
o rio até o Canadá, onde, ao ver a Union Jack flutuando à quente brisa do lago,
enchiam-se os seus olhos de lágrimas ardentes. Esperavam, depois, pelo
minúsculo trem que os levava aos solavancos por um caminho cercado de
bosques até a praia.
Era uma praia agradável, às margens do Lago Erie, de águas azuis e
faiscantes ao sol, banhistas na areia e um som alegre que vinha das barracas. Às
vezes, conseguia convencer Francis a dar a Frank vinte e cinco centavos para
que o garoto andasse no carrossel ou no chicote. Ela e Francis sentavam-se num
trecho gramado perto da praia e comentavam acre e vingativamente os
transeuntes que passavam pelas calçadas de madeira lá embaixo. Eram os dias
das enormes saias rodadas e listradas. Maybelle ria gostosamente das senhoras
que usavam esse estranhíssimo estilo. Uma ou duas vezes jantaram mesmo no
pavilhão, discutiram e fizeram pouco caso do jantar de cinquenta centavos e o
compararam, invejosamente, com os jantares “lá da terrinha”.
Ali, como em Bison, Frank afastava-se deles, mas sempre aparecia
justamente na hora de voltar para casa. Aonde ele ia, nunca descobriram e não
poderiam ter-se importado menos.
Às vezes, mas não com frequência, iam a Crystal Beach. O navio que os
levava era maior e mais suntuoso do que as barcas e fazia Maybelle pensar na
viagem pelo Atlântico. Quando as praias do lago desapareciam durante algum
tempo, imaginava que estavam a caminho de casa e que, logo depois, veriam a
linha púrpura das costas da Inglaterra erguendo-se como uma nuvem do oceano.
Francis conseguia forçar Maybelle a pagar por essas pecaminosas e
maldosas excursões, que roubavam o banco de níqueis, centavos e dólares
extras. Na volta para casa, fechava-se numa carranca de ressentimento e rancor,
por mais que houvesse apreciado o dia.

//
Edward Hodge, com incrédula mágoa, leu a nota escrita por Miss
Gorman sobre o filho, enquanto Paul permanecia ao lado, impassível.
— Ora, Paul! — exclamou Edward. — Não compreendo. Você...
fazendo gazeta! Isso é impossível. Deve haver algum engano.
Em voz sem expressão, Paul respondeu.
— Não há erro algum. Matei as aulas, papai. Sinto muito. — Durante
um momento, uma expressão de espanto brilhou-lhe nos olhos. — Não sei por
que...
— Eu sei — respondeu Edward com uma descorada seriedade. — É
aquele garoto, Clair. Ele faz com você as coisas mais espantosas, Paul. Você sabe
que isso é verdade. Por quê? Por que, pelo amor de Deus? O que é que está
havendo?
— Não sei — murmurou Paul. Mas, novamente, aquela expressão
doentia de impassibilidade, de aviso, de exclusão, surgiu-lhe no rosto. Vendo-a,
Edward sentiu-se tomado por um impotente desespero.
— Paul, precisa prometer-me que não fará isso novamente. Isso é
horrível. Paul, você sabe que a nossa única esperança de vocês se educarem é
através de uma bolsa-de-estudos. Como é que vai consegui-la com tal atitude?
Você está no seu último ano. Os resultados que conseguir nos próximos quatro
anos serão decisivos para seu futuro. Você sabe que não tenho dinheiro...
— Eu sei — murmurou Paul com uma autêntica e impotente mágoa.
— Paul, você sempre se saiu tão bem em todas as escolas que
frequentou! Sempre fez parte da lista de honra. Agora, mata as aulas! Paul, eu
simplesmente não posso tolerar isso. Não sei o que é que está acontecendo.
Prometa-me, Paul.
Paul conservou-se calado. Por que seguia Frank Clair por toda parte,
metendo-se em situações perigosas e desagradáveis? Não sabia. Sabia apenas
que o seguia, queixando-se: “Não podemos fazer isso, Frank, não podemos fazer
isso!” Mas sempre fazia. Havia algo tão exuberante, tão romântico em Frank que
Paul, inevitável e impotentemente, o seguia. Como se estivesse hipnotizado.
— Prometa-me, Paul — suplicou Edward. Jamais castigava os filhos,
nunca lhes dava ordens. Era da teoria de que os pais deviam “raciocinar” com os
filhos e que havia algo absurdo e pomposo na autoridade paterna.
Paul havia-se afastado dele. Sua mente e pensamentos estavam postos
naquele dia no cais das barcas, quando as banquisas se haviam chocado como se
fossem dentes gigantescos e esfomeados, mastigando e esmagando. O Rio
Niágara estivera preto como tinta brilhante entre os pedaços azuis e cinzentos de
gelo, coberto por um céu de primavera que era um arco azul esfuziante de luz
cristalina. Os garotos receberam as frias pancadas do ar no rosto. Paul, ao lado
de Frank, sentiu de súbito um inspirador e indescritível êxtase de liberdade e
alegria. Mergulhava sempre no mesmo êxtase em companhia de Frank. Era a
vida para ele, que não conhecera a vida antes. Quando se aproximava do amigo,
era como se ingressasse na aura de um arco-íris violeta, de trovões musicais, de
riso, de excitação e prelibação imensa.
— O que é a escola comparada com isto... e os livros tolos? —
perguntara Frank, como perguntava sempre. — Sol, ar, luz e beleza... não são
mais importantes do que o pó e os pensamentos de uns velhos mortos há tanto
tempo?
Paul concordara em imóvel enlevo e compreendera que seu próprio
assentimento encerrava a verdade final.
Naquele momento era ameaçado novamente com o claustro, o velho e
cinzento claustro do nada, do vazio, do som de vozes secas e do passar brumoso
de dias escuros. Não! Não podia voltar. Não podia abdicar do reflexo de glória e
esplendor que o tocava na presença do amigo.
Em voz sem expressão, respondeu:
— Tentarei não matar as aulas novamente, papai. — Como poderia
perguntar ao pai: Você quer que eu morra novamente, que me transforme numa
massa sem vida no casulo da solidão e do frio? Não podia dizer-lhe isso. Sabia
que Edward jamais compreenderia. Subitamente, sentiu uma imensa pena do pai.
Foi essa pena que o fez recusar os dois convites seguintes para matar as
aulas. Observou Frank escapulir ao meio-dia e não sentiu nenhuma confortável
retidão moral, mas apenas um senso de perda e nostalgia. Aonde iria Frank? Para
que fervente excitação e novas descobertas de grandiosidade, encanto e
novidade?
O convite seguinte foi feito em começos de março. O inverno se estirara,
interminável. Montes de neve, de metros de altura, encheram as ruas e
sepultaram as casas. Depois, milagrosamente, houve dois ou três dias de tempo
bom e claro, sorridente, ardente. Cantos de tordos que voltavam saudaram o
nascer do sol em explosões de pungente música. Frank dissera:
— Vamos sair ao meio-dia. Tenho dez centavos. Você tem algum
dinheiro? Quero ir passear pelos campos e pelos bosques. Vou sempre nos
primeiros dias de bom tempo. Não há nada para ver ainda, claro, mas há alguma
coisa...
Paul escapulira também. Conseguiram evitar, como sombras, a
vigilância da mestra. Desceram até a estação das barcas, passando por ruas
silenciosas. Ouviram um realejo à distância, tocando o Intermezzo da Cavalleria
Rusticana. A música chegava pelos corredores das ruas abandonadas e cinzentas
como a voz de todo o amor, toda a doçura, toda a beleza oculta, abrandada e
melancólica. Ouviram batidas de martelo ao longe, um som oco. Parecia que
estavam sozinhos numa cidade morta na qual as únicas coisas vivas eram a
música e as batidas do martelo.
Do céu pálido e embaçado desciam raios longos e oblíquos do sol da
primavera. Gastaram cinco centavos num saco de amendoim e, cheios de
felicidade, mastigaram-nos enquanto subiam a bordo da barca deserta. Naquele
momento cruzavam o rio. Até onde a vista podia alcançar, até o próprio Lago
Erie, estendia-se um nevoeiro azul. As banquisas em volta do barco pareciam
inquietos tubarões, batendo nos costados e deslizando para longe. Entre elas, a
água tinha a cor de turquesa escuro. A margem canadense aguardava-os, parda e
adormecida à luz do sol.
Foram praticamente os únicos passageiros a desembarcar. O vento bateu
claro e forte em seus rostos, frio e puro como água cristalina. Dormitava a
pequena aldeia de Fort Erie; aqui e ali uma carroça de fazendeiro ribombava
pelas ruas cobertas de lajes. Galgaram uma colina, desceram uma estrada
enlameada, ouviram o latido de um cão, todavia nada mais viram. Em seguida,
mergulharam no bosque à frente. Não conversaram muito. Não era necessário
naquele momento. Conheciam-se bem demais.
O bosque fechou-se em volta deles: esguias e pálidas bétulas, velhos
bordos, castanheiros, faias, olmos. Os galhos estavam ainda nus, mas os troncos
já haviam adquirido uma tonalidade parda macia, prenhe de vida. Os botões dos
bordos apareciam, vermelhos e gordos. Os olmos apresentavam já pequeninos
tufos amarelos nos pequenos galhos. As bétulas pareciam altas e esguias, jovens,
nuas e solenes. Uma luz branca e fraca saturava os corredores entre as árvores,
uma luz mortiça, qual suave nevoeiro. Viram o céu através dos ramos, um azul
pálido, encoberto, muito distante e sereno. Havia apenas silêncio ali, mas, ainda
assim, ouviam o estuar da vida, o despertar da natureza após uma longa morte.
A terra em volta brilhava palidamente em pequenas poças de água.
Samambaias curvavam-se sobre trechos alagados. Os garotos mergulharam as
botas no barro marrom. Mais e mais penetraram no bosque, apressando o passo,
prendendo a respiração como se escapassem de alguma coisa, como se fossem
fugitivos. Naquele momento, tanto quanto podiam ver, o bosque se fechara em
volta deles e estavam presos no coração da natureza. Em algum lugar, ouviram
um baixo e líquido riso, mas nenhum outro som, nem mesmo o pio de uma ave.
Lado a lado, olharam em volta, sentiram, sorriram e estenderam os
braços como se acabassem de ser libertados de correntes.
Quanto tempo ficaram ali, não souberam. Mas, inesperadamente, como
se algum invisível maestro houvesse erguido a batuta, o bosque, os trechos
alagados, recobraram a vida, uma vida selvagem, contínua, apaixonada, de
agudos, altos e doces pios. O ar encheu-se do som; as árvores ecoaram-no; o céu
vibrou em resposta. Ouviram uma voz de vivificação, de nascimento, emergindo
da morte, de êxtase, de hosanas à primavera. O canto, quase insuportavelmente
alegre, não caía e subia. Era contínuo, firme, aumentando em tom e intensidade e
não em mero volume.
As crianças escutaram, reverentes. Estavam em meio a um
soerguimento, a uma explosão de vida e seus corações elevaram-se nas asas de
um pungente júbilo. Naquele momento, no chão, em torno deles, no ar, subia um
coro de enlevo, repetido em todas as direções.
— Rãs arbóreas — murmurou Paul.
Frank não respondeu. Sabia, naquele instante, embora não houvesse
sabido antes, que viera em busca daquilo, dessa primeira celebração da
primavera. Ela o chamara na empoeirada sala de aula. A mensagem lhe fora
entregue enquanto se encontrava sentado à sua carteira e a professora garatujava
monótonos símbolos algébricos no quadro-negro. Pã, vestido de folhagens
verdes, com olhos ainda pesados de sono e as lustrosas patas batendo
impacientes, chamara por ele.
Não pôde suportar a emoção. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
Voltou-se para Paul. Paul viu-as e, inesperadamente, seus olhos marejaram-se
também. Aproximaram-se um do outro.
— Obrigado... Deus — disse Frank e sentiu uma pontada de dor, de
solene júbilo, de gratidão por Deus tê-lo chamado até ali para escutar a promessa
e a voz da primavera.
Um poema começou a formar-se em sua mente enquanto escutava,
enquanto o pipilar das aves penetrava em cada célula de seu corpo e mente.
Aquilo seria parte de um poema em versos brancos que escrevia, uma peça em
três atos. Ouviu a comedida majestade e o desenrolar do poema, o seu
cadenciado brilho.
A caminho de casa, falou a Paul sobre o poema. Andaram em passos
lentos por silenciosos e enlameados caminhos enquanto Frank recitava alguns
versos. Paul escutou, com os olhos pousados na face do amigo, absorto. Era
como se escutasse uma voz que nascia dentro de si mesmo, que dava voz ao que
sempre soubera, mas nunca fora capaz de expressar.

“Oh, estranho e pavoroso mundo, onde as manhãs


Transbordam de solene esplendor e desespero!
Onde cada hausto que respiramos, cada movimento da mão e do olho
Transborda de maravilha e sombrio mistério.
Vivemos em maravilhas e questionamos cada hora
Pelo simples fato de viver.
Fazemos exigências aos deuses
A cada batida do coração.
Nossos menores passos
Confundem o sábio, refutam a filosofia.
Coisas estranhas, misteriosas, tocadas todas de medo,
Pela familiaridade perdem o poder de amedrontar.
Ainda assim, todas elas, se o homem apenas pudesse ver,
Lançá-lo-iam irremediavelmente de bruços no pó.
Os deuses são bondosos. Muito pouco é o homem dotado
Do poder de ver, de coração para bater de medo.
Nossa própria cegueira infantil é nosso escudo
Contra os portentos ocultos que se reúnem em volta”.
— É belo — disse Paul baixinho. — É o que eu sempre soube, Frank,
mas não tinha palavras para dizê-lo.
Frank pavoneou-se um pouco e tentou, em seguida, parecer modesto.
— Oh, não é grande coisa. Tento, tento e, simplesmente, espremo
alguma coisa, não o que eu tinha em mente. — Nesse momento uma sombra de
sincera aflição e anelo surgiu-lhe na face, — Gostaria de saber se há, realmente,
uma maneira pela qual o homem possa expressar tudo isso como
verdadeiramente é. A música, talvez, somente a música. Eu gostaria de poder
tocar algum instrumento. As palavras são tão... tão inadequadas.
Paul permaneceu calado. Uma sombra de sofrimento desceu sobre seu
rosto. Disse em seguida:
— Eu a ouço, algumas vezes. Mas não posso expressá-la no violino.
Deixei de tomar lições. Papai ficou aborrecido. Mas eu... eu não tive coragem de
continuar. Era como se fosse — parou e, mais uma vez, enrubesceu — uma
blasfêmia, ou coisa parecida.
A mão de Frank ergueu-se desajeitada e tocou a do amigo. Ao toque, o
coração de Paul dilatou-se com uma dor insuportável. Apesar disso, sentiu-se
consolado.
Andaram sem destino pelas alamedas silenciosas do bosque. Às vezes,
viam uma casa, muito longe da estrada, escutavam o latido de um cão, ou
vislumbravam uma cabeça de gado em um campo molhado. Cruzaram uma
pequena ponte de madeira sobre um regato pardo e impetuoso. Viram seixos
polidos no fundo da água, como se faiscassem de riso.
Ouviram apitos em Bison, vindos por sobre a água, e compreenderam
que era tempo de voltar. Uma depressão envolveu-os. Refizeram os passos.
Chegaram a uma cerca de madeira. Duas meninas da idade deles
empoleiravam-se sobre ela. Tinham a cabeça descoberta e seus cachos amarelos
flutuavam ao vento. Olharam para Paul e Frank com curiosidade, mas cautelosa
cordialidade, e nos seus rostos rosados apareceram covinhas tímidas.
Paul lançou-lhes um olhar, o rosto fechou-se e tornou-se quase lívido de
malignidade. Frank, porém, diminuiu o passo, hesitou e parou por um instante.
— Alô — disse.
As meninas riram baixinho e enrubesceram. Uma delas balbuciou:
— Alô.
Frank ficou satisfeito em vê-las. Observou-lhes as mãos vermelhas, as
meias pretas rasgadas, os sapatos rachados e enlameados, as roupas pobres.
Sentiu cálida compaixão, amizade, compreensão. Essa emoção estivera
desenvolvendo-se nele nos últimos anos e não podia mais olhar as pessoas sem
sentir uma triste ternura, especialmente se eram indefesas e não queriam fazer o
mal. Para ele, o mundo dividia-se entre os tímidos, os solitários, os frustrados, os
desesperançados e os perversos, os cruéis, os implacáveis.
— Vamos — murmurou Paul. A alegria desaparecera e fora substituída
por inquietação e aversão.
Frank, porém, demorou-se ainda um pouco. Perguntou:
— Vocês moram aqui?
Uma das garotas inclinou a cabeça. Sorriu para ele. Balançou-se na
cerca.
— É bom morar aqui — sugeriu Frank.
As meninas abriram muito a boca, espantadas. Entreolharam-se.
Simultaneamente, caíram na gargalhada. Sacudiram-se de um lado para o outro
no improvisado poleiro. Olharam para Frank com os olhos cheios de zombaria e
repúdio, como se ele acabasse de enlouquecer.
Paul puxou-lhe o braço.
— Você vê como são as coisas? — comentou asperamente.
Continuaram a andar, acompanhados pelo riso histérico das meninas.
— Você nunca vai aprender — disse zangado Paul. — Você sabe que
não se pode conversar com as pessoas. “É bom morar aqui!” Acha que elas
compreenderam o que você estava tentando dizer? Não! Só puderam mesmo rir,
como idiotas. Isso acontece porque todos são idiotas, e você não quer
compreender isso.
Frank, porém, simplesmente continuou a andar ao seu lado, mergulhado
em tristeza. Continuava a sacudir a cabeça. Respondeu depois:
— Isso é horrível. Elas não compreenderam, absolutamente. E é isso que
é tão horrível... não compreender.
Inesperadamente, pensou em Jessica e disse para si mesmo: Mas Jessica
teria compreendido! Não soube por que pensou nisso ou por que viu a face de
Jessica, mas o pensamento foi tão vivo e a recordação tão forte que parou e
olhou com grande seriedade para Paul.
—- O que é? — perguntou o colega.
Frank, porém, meramente sacudiu a cabeça e continuou a andar. Não
podia contar ao amigo, não sabia por que era assim tampouco, mas sabia que não
podia.
CAPÍTULO 24
Frank não ganhou a medalha de ouro de composição naquela primavera.
O tema escolhido fora “Por Que Devemos Tanto aos Pais?”. Frank simplesmente
não conseguiu descobrir o que lhes devia. A vida? Fora-lhe dada acidentalmente.
Dever? Que dever lhes devia, a eles que o consideravam apenas uma fonte de
despesas, pequenas que fossem? Amor? Não o mereciam. Despertavam-lhe
apenas medo e, muito raramente, piedade. Poderia acaso escrever uma
composição sobre a compaixão desdenhosa que sentia por eles, pelos temores
crescentes de ambos, suas desconfianças, a mal-humorada suspeita de tudo e de
todos?
Escreveu, em vez disso, um poema sobre a canção das rãs arbóreas nos
claros bosques da primavera.
Aconteceu que justamente nessa ocasião faleceu a mestra. Foi
substituída por outra, uma gorda e velha mulherzinha que tinha uma notável
semelhança com a Rainha Victoria. Era capaz e dotada de senso de humor,
inteligente, bondosa e algo satírica. Da mesma maneira que Miss Emily Jones,
vivia constantemente atenta a crianças fora do comum, crianças promissoras, que
se distinguissem das mediocridades dóceis e bem-educadas que ocupavam os
outros assentos. Era da teoria de que as mediocridades ilustravam muito bem as
palavras de certo poeta, que disse que elas “lambiam o prato até o fundo e depois
morriam”, deixando atrás, como legado ao mundo, apenas um monte de fezes.
Não conseguia, na verdade, encontrar razão para tais vidas, que admitia
constituírem a maioria, embora fosse possível, dizia, que servissem como uma
espécie de coro grego para as façanhas do herói.
Miss Lois Bendy não estivera à frente da turma de Frank por mais de
quatro dias quando o descobriu. Disse a si mesma: “Que garoto estranho! Às
vezes, parece uma pessoa obcecada, mal-humorada”. Observou que as outras
crianças o desprezavam. Isso apenas indicaria algo interessante e valioso nele.
Quando o chamava para a recitação, ele se erguia desengonçado e dizia, em voz
baixa, que não sabia a lição. Isso encantava as demais. Miss Bendy ouvia-lhes o
riso, com os ouvidos bem atentos. Sim, não havia dúvida de que o garoto era
fora do comum. Os medíocres e os tolos jamais riem da própria espécie.
Ao examinar pela primeira vez as composições da turma, descobriu
imediatamente o motivo. Frank escrevera um poema sobre a luz que se filtrava
pela janela da sala de aula, como mudava e possuía uma substância diferente,
uma realidade distinta, todos os dias, todas as semanas, todas as estações.
Satisfeita, sorriu para si mesma. Nunca se enganava. Pediu a Frank que
ficasse após a aula naquele dia. Ele fitou-a espantado. Miss Bendy notou que ele
olhava para outro garoto na sala. Ah, aquele Paul Hodge, o silencioso, o
impassível, o hirto jovem, sempre correto, sempre pronto na recitação, sempre
pontual nos deveres caseiros. O que haveria em comum entre os dois? Recordou-
se, então, de que nunca vira um sem o outro, de que andavam durante o recreio
como indiferentes fantasmas pela periferia dos demais grupos.
Instintivamente, disse:
— Não tem importância, Frank. Conversarei com você ao meio-dia.
Assim, não precisa ficar depois das aulas.
Mais tarde, interrogou-o. Percebeu que seria difícil ganhar-lhe a
confiança. Não o olhou quando comentou a composição. Havia apenas um erro,
uma vírgula mal colocada. Bondosamente, disse:
— Foi realmente você quem escreveu isto, querido? É maravilhoso.
Parece trabalho de adulto, de um escritor realizado. Se realmente faz este tipo de
trabalho, você tem um grande futuro.
Ergueu a vista nessa ocasião. Ele viu olhos pequeninos, sorridentes,
cheios de satírica bondade e cordial humor. Balbuciou:
— Eu, eu... escrevi isso, Miss... Bendy. Escrevo sempre um bocado de
coisas, o tempo todo. Eu... eu escrevi um livro, uma peça, em versos. — Nesse
momento o rosto comprido ficou muito vermelho. — Se quiser... eu o trarei para
que a senhora o veja. — Olhou-a fixamente e, depois, engoliu visivelmente em
seco. — Eu... eu tive certa vez uma mestra, Miss Jones. Mas eu... eu soube
depois que ela faleceu.
Miss Bendy não achou despropósito algum na observação.
Compreendeu imediatamente. Mas respondeu alegre:
— Oh, conheci Emily Jones. Uma mulher extraordinária! Ela foi sua
mestra? Que sorte a sua! Sim, querido, traga-me seu livro e os poemas. Eu
adoraria vê-los. De verdade, Frank, eu adorarei lê-los.
No dia seguinte ele trouxe uma grande pilha de papéis, embrulhada em
jornal. Ela olhou para as páginas, compreendeu mais uma vez e ficou também
furiosa. Algumas páginas haviam sido arrancadas do fim de livros; outras eram
papel higiênico, ou sacos cuidadosamente desfeitos e alisados, quando não
pedaços de papel de parede, sobre cuja superfície áspera a escrita a lápis mal
podia ser lida. Haviam sido utilizadas as costas de trabalhos escolares e até
papelão. Poucas eram as páginas de blocos comuns. Mas todos os tipos
diferentes haviam sido cortados com cuidado, no tamanho convencional, e
estavam bem numerados.
Naquela noite levou a triste pilha de trabalhos para casa. Era sua
intenção lê-los durante uma meia hora. À meia-noite continuava a ler. Escreveu
em seguida um bilhete a Maybelle.
Maybelle e Francis ficaram profundamente consternados ao recebê-lo e,
aos berros, acusaram Frank de “estar fazendo aquilo novamente” e de “dizer
coisas”. O que era aquilo que “estava fazendo” ou que andava “dizendo”, Frank
nunca soube. Ouviu apenas as acusações e foi tomado, mais uma vez, por uma
sensação de culpa.
A nota pedia a Maybelle que fosse à escola às quatro horas do dia
seguinte, se possível. Solicitava também que Frank não estivesse presente, o que
aumentou as sombrias suspeitas de Maybelle.
— Ele roubou alguma coisa! — gritou para Francis, enquanto Frank, de
costas para a parede da cozinha, empalidecia até a morte. — A policia estará lá!
Vão metê-lo na cadeia e matar-nos de vergonha! Como eu gostaria de que ele
estivesse morto!
Fora essa a primeira vez em que manifestara esse desejo com tanto
ardor, tanta sinceridade. Frank sentiu um profundo desmoronamento dentro de
si, horror. Vagamente acreditava em que, a despeito das surras e insultos, os pais
amavam-no à sua maneira. Agora sabia que o odiavam, que queriam que a terra
se fechasse sobre ele. Nesse momento, como fez milhares de vezes mais tarde,
perguntou a si mesmo: Por quê? Na idade adulta, o mistério confundia-o e
enfurecia-o. Fora ele realmente tão vil e mal como indicava o tratamento dado
pelos pais? A sombria poça de culpa que se enchera no seu íntimo transbordou e
insinuou-se por cada fissura e fresta de sua alma. Nunca mais se libertaria dela,
nem mesmo no fim da vida.
Rastejou para a cama, onde se debateu acordado até tarde, tremendo,
esperando a chegada do pai com a correia. Francis, porém, não apareceu. Nesse
momento ele e Maybelle se acusavam de responsabilidade pelos crimes do filho.
Chegaram quase às vias de fato. Durante a cena, Frank dirigiu-se ao banheiro e
vomitou. Pela primeira vez na vida, sentiu uma dor forte e assassina na região do
peito, tão intensa, tão cortante, tão quente que ficou sem fôlego. Rastejou de
volta para a cama e deitou-se, certo de que estava morrendo, feliz.
O dia seguinte transcorreu num inferno de ansiedade e medo. Olhava
para Miss Bendy com uma espécie de pavor. O que estaria ela prestes a dizer à
mãe? A professora lhe notou os olhares enviesados e um duro nó de raiva
formou-se em seu peito. Não conhecia os pais de Frank, mas compreendeu, de
alguma misteriosa maneira.
Às três horas, bateu-lhe no ombro e disse em tom tranquilizador:
— A sua mãe vem até aqui, querido? Bem, tenho uma surpresa muito
agradável para ela. Pode ir agora, com seu pequeno amigo Paul.
Saíram os dois juntos e, pela primeira vez na vida, Frank falou ao amigo,
completa e objetivamente, sobre os pais. Sentados na varanda da casa de Paul,
Frank, incapaz de conter-se, esvaziou a amargura, o nojo, o novo ódio, o
desprezo, a preocupação. Paul escutou calado.
— Eu fugiria de casa se fosse mais velho — disse Frank, cerrando os
punhos e olhando para a frente com aquela expressão que crianças não devem
adotar. — Eu iria embora e nunca mais os veria... nunca mais. Fingiria que
estavam mortos. Eles... eles me fizeram sentir sujo. Não me importo tanto com
as surras, mas eles me fizeram sentir sujo. — Olhou para as mãos, relaxou-as e
fitou as palmas. — Acho que nunca mais sentirei as mãos limpas. Sinto-me sujo,
por dentro.
Suavemente, conhecendo também no íntimo o horror, Paul disse:
— Você tem quase quinze anos. Precisa aguentar isso apenas mais
alguns anos. Você aguentou, este tempo todo. Depois, poderá ir embora e fingir
que eles morreram.
Frank, porém, continuou a falar como se não tivesse ouvido:
— Nunca me ocorreu que outros pais não fossem exatamente iguais a
eles. Eu... eu pensei que isso era coisa natural, que todas as crianças eram
surradas e tratadas assim. Mas agora compreendo que não são. Vejo como seu
pai é, os outros pais. O que foi que eu fiz? Não sei. Deve ser alguma coisa
terrível o que fiz. Devo ser uma... pessoa horrível.
— Você não é. — Paul colocou a mão no braço do amigo e apertou-o
fortemente. — Oh, Frank, você não é. Você é maravilhoso. De certa maneira,
você é maravilhoso. Talvez seja isso. Acham que ser maravilhoso é algo
criminoso, ou qualquer outra coisa, porque você não é igual a eles. Você não é
igual a pessoa alguma e é por isso que as pessoas, seu pai e sua mãe o odeiam.
Frank voltou os olhos molhados para Paul. Este sorriu, com ternura.
Frank tentou falar. Depois, para desespero seu, prorrompeu em lágrimas. Dobrou
a cabeça sobre os joelhos e chorou.
Ao entrar silencioso em casa na hora do jantar, Maybelle recebeu-o com
um timbre peculiar na voz. Os olhos dela saltavam de um lado para outro e a
boca pendia, aberta, de maneira estranha. Disse:
— Vá lá dentro lavar-se, Frankie. O chá está quase pronto e seu pai vai
chegar logo. — Hesitou, dirigiu-se a ele e desmanchou-lhe o cabelo com um
gesto rude. Pela primeira vez, a carne dele arrepiou-se ao sentir o toque da mãe.
Recuou e tremeu. Mas ficou aliviado com o tom de voz e lavou as mãos na pia
da cozinha.
Embora a curiosidade sobre a entrevista daquele dia fosse profunda,
notou apenas que Maybelle piscou exageradamente para Francis quando ele
entrou. Não conseguiu comer coisa alguma, embora Maybelle insistisse com
uma surpreendente preocupação.
— Deixe-o em paz — disse Francis, repugnado. — Se ele quer morrer,
que morra.
— Que maneira de falar! — disse Maybelle corajosamente.
— Ele precisa comer, conservar as forças. Olhe só como ele está, tão
pálido! Quase verde.
Frank saiu depois do jantar e vagueou pelas escuras ruas da primavera.
Notou nesse momento que, se caminhava muito depressa, a dor reaparecia,
prendendo-lhe a respiração, entorpecendo-lhe o corpo, obrigando-o a encostar-se
numa árvore até que passasse a crise. Perguntou-se qual o motivo desses
desabalados batimentos no peito, de tal enjoo.
Enquanto isso, Maybelle contava a Francis a entrevista com Miss
Bendy:
— Ela disse que ele é um gênio, Francis, um gênio. Disse que é um
autêntico poeta, um grande escritor, que precisa receber a melhor educação
possível e que nos fará a ambos orgulhosos.
— Olhou para o marido com seus salientes olhos castanhos e esperou.
— Besteira! — respondeu irritado Francis, virando com ruído as folhas
do jornal. — Isso é simplesmente um plano para matriculá-lo em alguma
faculdade e desperdiçar nosso dinheiro. Essas professoras andam sempre
fazendo esses planos. Gênio! Pará ele vai ser trabalho, e logo que esses malditos
ianques o deixarem trabalhar. Precisamos do dinheiro. Ele pode ganhar seis ou
sete dólares por semana em uma fábrica ou em algum outro lugar, e isso
representa dinheiro extra no banco. Não me diga — acrescentou colérico — que
você deixou que aquela velha solteirona a engabelasse. Ele é um sonhador, é isso
o que ele é, um tolo sonhador. Precisa acordar. Ele e seus poemas!
Maybelle, porém, ficou estranhamente silenciosa. Brincando com os
talheres, olhava-os com expressão vazia.
— Não é que ele se saia bem na escola — continuou furioso Francis. —
Você sabe quais são as notas dele. E as outras professoras o detestavam. Você
também sabe disso. Aquela velha tem algum plano oculto para nos fazer gastar
dinheiro. Sabe o que custaria uma faculdade? Já pensou nisso? Acabaria com
todas as nossas economias! E o diabo me leve se vou ficar neste buraco para que
aquele jovem idiota desperdice seu tempo na faculdade! — A face magra
coloriu-se de rancor e fúria. — Faculdade! Típico desses ianques!
Maybelle continuou a brincar com os talheres.
— Eu gostaria de saber se ela tem razão — respondeu, em voz quase
inaudível. — Disse que ele devia ter uma oportunidade, ou algo será perdido
para o mundo. Foi isso o que ela disse, juro.
Francis gargalhou, furioso.
— Posso-lhe dizer o que seria perdido! Um vagabundo, um imbecil!
Nunca ouvi em minha vida bobagem maior. Se há algum valor nele, coisa de que
duvido, surgirá sem que ele tenha de estudar numa faculdade. Trabalho.
Trabalho para ele. Vai trabalhar no próximo verão em qualquer coisa que surgir,
e que se dane!
Maybelle continuou em silêncio. Uma expressão dolorosa apareceu em
seu flácido rosto. Passou a língua pelos lábios. Disse em seguida, a voz
monótona:
— Não sei, Francis. E se ela tiver razão? Pense em todo o dinheiro que
ele nos poderia trazer como escritor.
Francis, porém, não podia mais suportar tal absurdo.
— Escute aqui, é você quem me amola com essa volta à Inglaterra! Quer
que gastemos o dinheiro, justamente agora que as coisas estão à vista? Quer ficar
aqui, em terra ianque, pelo resto da vida?
CAPÍTULO 25
O mundo mudou naquele agosto de 1914 e embora a imensa e terrível
sublevação no início não modificasse a vida de Frank Clair, mudou-a, apesar de
tudo.
O verão correu quente e dourado, cheio de sol, pássaros nas árvores e
paz até aquele pavoroso dia de agosto. Um vizinho dos Clairs, mais próspero do
que os demais, comprara um automóvel com capota de lona, pintada para
parecer couro, e um imponente chassi do vermelho mais puro, mais vivo, mais
berrante. Sabia-se que só os ricos podiam possuir tal maravilha. O aparecimento
de um automóvel naquele bairro constituiu um evento que deu motivo a
conversações invejosas, respeitosas e zombeteiras durante dias sem fim.
Incrivelmente, Frank foi convidado para dar um passeio no carro.
Os automóveis não eram coisas novas. Andavam chocalhando, rugindo e
desprendendo fumaça pelas ruas havia anos e ninguém gritava “Arranje um
cavalo! ” como outrora fora costume. Mas Frank jamais havia andado em um
deles, embora ele mesmo houvesse cantado com frequência “In My
Oldsmobile”. Aquele carro era, realmente, um Oldsmobile e ele fora realmente
convidado para dar um passeio. Atordoado, incrédulo, pois nunca fora íntimo de
vizinho algum, subiu no alto banco traseiro, agarrou-se aos lados e foi levado
sem fôlego pelas ruas a toda a velocidade de trinta quilômetros por hora. O carro
corria suavemente, embora não sem alguns grunhidos e chiados internos. Após
algum tempo, orgulhoso, contente, cheio de excitação, Frank passou a olhar as
casas que desfilavam céleres.
Aquele passeio, mais do que o assassinato do Arquiduque da Áustria e
da esposa, teve importância para ele. O mundo contorcia-se em uma súbita e
terrível convulsão enquanto Frank sonhava durante dias com aquele passeio. As
notícias nos jornais aborreciam-no menos do que a nova canção: “On the Trail of
the Lonesome Pine”. Passava as horas; não preocupado com o fato de que a
Inglaterra declarara guerra à Alemanha, mas acalmando suas irritadas reações à
sentimental melodia.
Os alemães invadiram a Bélgica. Frank, por insistência de Paul Hodge,
leu Pollyanna e teve outro acesso de raiva.
Finalmente, porém, a agitação dos pais e o interesse apaixonado com
que eles liam os jornais penetraram em sua consciência. A Inglaterra estava
ameaçada. Alguém, “aquele Kaiser sujo”, ousara desafiar-lhe a supremacia.
Frank nada mais ouvia que isso durante os jantares na casa da avó. O Sr. Farley
nada dizia, embora seus olhos fuzilassem de raiva. Odiava os alemães, pois em
Bison eles haviam estado assiduamente alimentando a animosidade, a suspeita e
uma perigosa antipatia contra os católicos da cidade. Realmente, tão implacáveis
haviam sido suas atividades que os católicos estavam seriamente preocupados.
Mais de uma criança, saindo da escola paroquial, fora atacada por grupos e
violentamente espancada. Mais de um padre, passeando pelo seu quintal ao
anoitecer, meditando, fora ferido por pedras lançadas por arruaceiros. Mas ainda
assim, o Sr. Farley, que odiava violentamente os alemães como somente os celtas
podem odiar os teutões, ficou aborrecido com os exageros fanáticos dos Clairs,
mãe, filho e esposa. “Ouvindo-os falarem”, dizia, “parece que ninguém tem
direito de viver, senão os ingleses, e que os que não gostam dos ingleses e não
acreditam em que são o povo eleito de Deus, são criminosos ou idiotas”.
Fervorosamente, o Sr. Farley rezava para que os alemães fossem
derrotados e destruídos e, com igual fervor, esperava que isso pusesse um fim à
crescente maré de ódio contra os católicos na América. Mas esperava, com ardor
não menor, que a Inglaterra recebesse primeiro uma boa surra, o suficiente para
inspirá-la com o temor de Deus e lhe reduzir um pouco a arrogância. Achava que
a Inglaterra era suficientemente forte para administrar o golpe de misericórdia no
“Kaiser” e ficava aborrecido com a furiosa exigência de Frank Clair de que a
América entrasse imediatamente na guerra com a Alemanha.
— Se não entrar, daqui a pouco os Heinies estarão fervilhando por todo
o país — dizia Francis, apaixonado.
O Sr. Farley tinha certeza de que os americanos eram suficientemente
bravos e fortes para evitar tal desastre, e disse isso mesmo. Falou de maneira tão
seca que Francis, amedrontado, resolveu não discutir mais a guerra na presença
do empregador.
Em casa, os Clairs em nada mais falavam. Quando o primeiro Zepelim
apareceu sobre Londres e lançou a primeira bomba, agitaram-se como galinhas à
vista de um gavião.
Uma grande agitação espraiou-se pela América logo depois do
irrompimento da guerra. Teddy Roosevelt exigiu “providências imediatas”. O Sr.
Wilson, timidamente, aconselhou paciência. O Congresso discutia
acaloradamente a situação.
Em setembro, a guerra caiu sobre Frank.
Os alemães de Bison entraram em ação. (Hastearam bandeiras alemães
no mesmo dia em que a América declarou guerra à Alemanha, em abril de 19l7).
Em Bison, pelo menos, despertaram ódio à Inglaterra e simpatia pela Alemanha.
Encontraram ouvintes entre os poloneses e os numerosos irlandeses, que temiam
menos a Alemanha do que a Inglaterra. Mas, por sorte, as famílias de
ascendência britânica constituíam ainda maioria e o trabalho assíduo dos
estranhos teutões não reduziu apreciavelmente a ansiedade, a preocupação e a
afeição pela Inglaterra na cidade. Logo depois os italianos, sempre amigos da
Inglaterra, e que haviam descoberto que ela era sua única defensora no mundo,
começaram a brigar nas ruas com os mal-humorados alemães e, ao contrário de
todas as expectativas, amiúde saíam vencedores.
A Escola Número 18 possuía uma grande quota de crianças germano-
americanas. Embora nascidas na América, não queriam ser nem jamais poderiam
ser parte do país. Nascidas na América ainda falavam inglês com fraseologia
germânica e um leve, mas perceptível sotaque. A vida de Frank na escola, nunca
feliz, nunca sem perseguições, logo depois tornou-se insuportável. Percebeu
novamente, como percebera certa vez, que precisaria lutar. Enquanto os garotos
alemães se limitaram a chamá-lo de “inglês sujo, nojento”, ignorou-os. Quando,
porém, as manifestações verbais ameaçaram passar ao ataque físico, preparou-se.
Não precisou esperar muito.
Em um domado e azul dia de outubro, o ódio que o seguia por toda a
parte explodiu em violência. Saindo em companhia de Paul Hodge às três e
quinze, certos de que as ruas estariam livres de seus perseguidores, encontraram
à espera um grupo de cinco meninos germano-americanos, atarracados, mal-
humorados, porcinos, com os cabelos cortados rentes, a cabeça projetando-se
dos pescoços e as mãos cerradas nos bolsos. Como sempre, os teutões haviam
resolvido provocar tuna briga desleal. Os cinco, combinaram, deveriam atacar
juntos os dois.
Frank e Paul pararam. O caminho estava bloqueado. Imediatamente,
embora nenhuma palavra houvesse sido dita nem um claro gesto feito, Frank
arrepiou-se. Eriçaram-se os cabelos de sua nuca e ele empalideceu. Paul, como
sempre, conservou-se impassível, inconsciente da tensão reinante no ar.
Um dos alemães falou:
— Seu sujo...! Seu inglês sujo, nojento!
Frank permaneceu calado. Paul encolheu os ombros.
— Saiam de nosso caminho — disse ele em voz clara e musical.
Os alemães prorromperam em um rugido porcino de gargalhadas. Um
deles imitou a voz de Paul com surpreendente exatidão. A face de Paul coloriu-
se de uma doentia vermelhidão. Cerrou os punhos. Mas não fez nenhum
movimento.
— Vamos chutar os... de vocês — anunciou um dos alemães.
Frank mexeu-se. Disse, tranquilo:
— Um de cada vez e mostrarei uma coisa a vocês.
Mas os alemães, naturalmente, não tinham tal intenção. Um de cada vez
e poderiam ser derrotados. A esperança deles repousava no peso, nos números.
Agacharam-se de punhos fechados e aproximaram-se juntos de Frank, que
nenhum movimento fez ainda, nem para avançar nem para recuar.
Não viu Paul dobrar-se rapidamente, tirar um sapato e segurá-lo pela
biqueira, por trás dele, como se fosse uma arma. Os demais tampouco o viram.
Tanto quanto lhes interessava, Paul não fazia parte da briga. Detestavam-no, mas
ignoravam-no. A atenção concentrava-se toda no outro garoto, que tencionavam
machucar tanto quanto possível. Se Paul interferisse, embora acreditassem que
não o faria, seria eliminado imediatamente. Nada na maneira dele, porém,
indicava que algum dia fosse demonstrar a menor belicosidade.
Um dos garotos tomou a frente. Frank ergueu subitamente a perna e
pegou-o na canela. Com um uivo, o garoto dobrou-se em dois e começou a andar
em círculos pela calçada, berrando de dor. Ele estava fora de combate, pelo
menos temporariamente, como atacante.
Os quatro restantes, surpreendidos pelo veloz ataque, hesitaram. Um
deles curvou-se para apanhar uma grande pedra e ergueu-a em posição.
Correram para cima de Frank. Este se projetou com os pés e as mãos para a
frente, dobrando a cabeça, usando-a com aríete. Empregou todos os meios à sua
disposição na luta desleal e cruel. Utilizou os pontudos cotovelos, o peso do
ombro. Mas não era muito forte e, naquele momento, na luta desesperada, sentiu
mais uma vez a dor paralisante no peito. Seus braços se entorpeceram, caíram
momentaneamente para os lados, e ele arquejou alto. Um dos alemães
aproveitou o momento e esmurrou-o na barriga.
O nariz fora atingido antes e o sangue lhe escorria pelo queixo. A cabeça
latejava violentamente com o impacto da pedra. Não conseguiu ver coisa
alguma, salvo fagulhas e borrões luminosos diante dos olhos. A dor no coração
aumentara e se tomara um sofrimento insuportável.
Ouviu nesse momento um grito agudo. Sacudindo a cabeça para dissipar
o nevoeiro, descobriu que os atacantes recuavam. Paul investia furioso contra
eles, brandindo o sapato, uma arma formidável. Deixara já aturdido dois garotos,
que recuavam nesse momento com as mãos na cabeça. Outro, choramingando,
afastava-se para o meio-fio, esfregando o pulso. Paul caíra sobre o mais velho e
mais forte e martelava-lhe a cabeça com o salto do sapato, com uma espécie de
selvagem e obscena alegria. Em seguida, com um som que parecia um grito de
ave de rapina, agarrou-o com mãos que pareciam esporões e fincou os dentes em
um dos lados do rosto do adversário.
Tomado por uma espécie de horror, o alemão ficou simplesmente parado
durante um longo tempo, de boca aberta, olhos esbugalhados. A seguir, em
desespero, tentou soltar-se. Suas mãos subiram impotentes para os ombros e
braços de Paul. Começou a gritar, sacudindo o corpo de um lado para o outro,
em vão.
Frank recuperou os sentidos. Diminuíra a dor no coração. Viu o sapato
na mão de Paul e agarrou-o. Inconscientemente, Paul soltou-o. Frank correu
atrás dos chorosos alemães, que continuavam a alisar a cabeça. Atingiu-os uma
vez, e mais outra, enquanto eles recuavam, e, mesmo quando lhe deram as costas
e fugiram em desordem, perseguiu-os por meio quarteirão. Voltou para junto do
garoto que se derreara junto ao meio-fio e que, com as mãos na cabeça,
soluçava:
— Não faça isso, por favor. Não faça isso. Eu não quis fazer coisa
alguma... Foi apenas uma brincadeira.
Frank deu-lhe um violento pontapé e lançou-o esparramado na sarjeta.
Voltou-se em seguida para o garoto em cujo pescoço Paul fincara os ferozes
dentes. Disse:
— Paul, solte-o. — E segurou com força o ombro do amigo.
Paul, que começava a tremer nesse momento, obedeceu. Recuou.
Tinha a boca manchada de sangue. Mas os olhos, onde luzia um fogo
esverdeado, pareciam de louco. O tremor quase o fez perder o equilíbrio.
Frank martelou o último alemão na cabeça com o sapato e atingiu-o em
seguida com um soco no queixo. O garoto caiu de bruços na calçada.
Frank voltou-se para Paul, que, arquejante e trêmulo, olhava furioso para
os dois derrotados inimigos:
— Isso é suficiente. Eles vão aprender uma lição — disse satisfeito.
Paul virou-se para ele. Viu a face de Frank manchada de sangue. Sua
boca mexia-se. Tirou o branco e imaculado lenço do bolso e enxugou o nariz
sanguinolento.
— Eu poderia matá-los — disse, em voz rouca. — Por que se meteu? Eu
os teria matado.
Frank sorriu e segurou o braço do amigo.
— Acho que basta. Eles não nos incomodarão mais. Meu pai diz que os
alemães são covardes. Só lutam em grupo. Acho que nunca mais nos atacarão.
Seu corpo distendeu-se de satisfação e amor. Aquilo não fora uma briga
de Paul, mas Paul correra em sua defesa. Prendeu o braço no braço do amigo e
se afastaram juntos.
A notícia da briga correu célere pelo telégrafo subterrâneo da escola.
Frank teve toda a razão. Ele e Paul nunca mais foram atacados.
CAPÍTULO 26
Esse foi o último ano da mocidade de Frank Clair e, em certo sentido, o
mais feliz.
A virilidade jovem vibrava nele e, como uma onda de exultação, o
enlevo que havia na terra vibrava também. A guerra entrava no sétimo mês e o
mundo conhecia seu próprio agravamento de terror e de maus presságios. Sabia
também que uma época passava; instintivamente sentia que passava. A
depressão de 1913-14 desaparecera com o conflito. As fábricas produziam a todo
vapor as munições da morte. Os americanos, jovens, ardentes, conservando
ainda ilusões, olhavam com olhos faiscantes para a outra margem do sombrio
Atlântico. A hostilidade contra a Alemanha, em especial no Sul anglo-saxão,
espraiava-se forte e violenta. Quando a Alemanha anunciou que havia
estabelecido um bloqueio com submarinos em volta das Ilhas Britânicas, o Sr.
Wilson publicou sua “Nota de Responsabilidade Total”. No dia 7 de maio, o
Lusitania mergulhou em ondas mortais, levando consigo centenas de neutras
vidas americanas. Entrementes, problemas surgiram na Nicarágua. Mas não
havia ainda uma ameaça real à segurança e à paz da América.

A guerra continuava a ser algo irreal, sem substância ou importância


para Frank, na ocasião com quinze anos de idade. Descobria-se a si mesmo
como ser humano que chegava à maturidade e à idade viril. O mundo, como
realidade em si, tornou-se mais próximo, qual sonho glorioso de aventura, da
qual, dentro em pouco, participaria e onde se distinguiria.
Uma de suas visitas favoritas era à velha Igreja da Natividade, em
Albany Street. Coisa alguma conseguia induzir Paul a entrar no templo. Frank
nele penetrava sozinho, enquanto o amigo esperava mal-humorado do lado de
fora.
Certo dia de maio, quando em companhia de Paul passava pelo local,
sentiu um profundo desejo de entrar. Paul, obstinado, recusou-se a acompanhá-
lo. Atravessou a rua e foi esperá-lo no pequeno parque verde em frente. A igreja
estava em semiescuridão, inundada por uma suave sombra cor de alfazema, onde
os vitrais iluminados pelo sol engastavam-se como fulgentes e multicoloridas
joias. Notou as imagens brilhando como neve na penumbra suave e o altar de
luzes bruxuleantes. Pouco sabia sobre o catolicismo, mas havia algo ali que o
excitava e enchia de respeito. A igreja não se localizava em paróquia próspera,
mas, ainda assim, havia beleza ali, nobre, envolvida em esplendor. Ele percorria
a Via Sacra e parava ante os altares de Maria e José. Via o arco de velas
douradas na escuridão. Às vezes, embora não com frequência, aproximava-se do
altar-mor e de suas luzes eternas, ajoelhava-se nos degraus forrados por tapetes
vermelhos e ali ficava durante longo tempo, perdido em vagas meditações. Era
cercado pelo silêncio e interrompido apenas por leves sons de passos ou pelo
estalido das contas de um rosário nos bancos escuros.
Parecia-lhe encantadora essa igreja aberta que não cerrava as portas após
os serviços religiosos do domingo para reabri-las no sábado ao acompanhamento
dos odores de tapetes velhos, bolor e ranço. Ali a igreja e Deus estavam sempre
à espera, sempre prontos para o consolo, a meditação, a bondade.
Quando menino, Maybelle o enviara à Igreja Batista, não muito longe da
Igreja Católica, mas havia muito tempo que deixara de frequentá-la. Naqueles
domingos enfiava o Testamento sob o braço, dava um puxão na roupa e, com um
triste suspiro, dirigia-se para a Escola Dominical. Passava por intermináveis e
desertas ruas onde as casas ao sol pareciam sepulturas adormecidas. Uns poucos
vidros “chineses” reluziam fracamente à leve brisa em varandas desertas. As
árvores farfalhavam de leve. As portas de madeira da igreja bocejavam, abrindo-
se. O coro afinava-se em um daqueles hinos infantis e sem melodia, tão
peculiares às cerimônias religiosas protestantes. As portas se fechavam às suas
costas e todas as esperanças eram abandonadas durante as duas mais longas
horas do tempo conhecido, enquanto um bem-educado pastor discorria
monotonamente sobre um assunto tão remoto a Deus e à realidade que lembrava
o zumbido de uma mosca contra uma vidraça.
Frank ficaria entediado numerosas vezes mais na vida, todavia nunca tão
completamente e sem esperança como na sua própria igreja. Em toda a sua
experiência de sentir-se maçado com assuntos asininos e banais, coisa alguma
jamais superou as horas passadas naquela igreja e coisa alguma jamais o afetou
com tão completo entorpecimento, monotonia e inércia. Às vezes, contudo, o
pastor animava os trabalhos desfechando furiosos ataques contra a Igreja
Católica Romana. Os ataques contra a “Mulher de Vermelho das Sete Colinas”
despertavam a congregação, que nesse momento revelava o seu primeiro indício
de vida. Nem mesmo as tiradas contra o “demônio da bebida”, contra homens
que praguejavam e fumavam, contra mulheres que mostravam os tornozelos e
contra todos os que violavam a santidade do sábado podiam despertar atenção
tão apaixonada e alegria. Nessas ocasiões, rostos brilhavam de ódio mudo e
contido, mãos tremiam cheias de desejo de esganar e bocas escancaravam em
enlevados sorrisos.
Mais tarde, então, Frank descobrira a Igreja da Natividade e, com
frequência, assistia à missa solene quando, ostensivamente, estava na segurança
de sua própria igreja. Ali descobriu a majestade, o mistério, a música heroica, a
virilidade e a pompa. O padre não parecia ter a dizer coisa alguma; muito
superior ao que dizia o pastor, mas os sermões eram mais curtos. O resto do
tempo era reservado a gestos, solene encanto e grandiosidade. Descobriu que a
Igreja Católica oferece às massas humildes e famintas de beleza, aos escravos
das pavorosas fábricas e das empoeiradas lojas, um cenário de esplendor, de
apaixonada calidez e dinâmica emoção.
Começava a compreender essas coisas, vagamente, embora sempre mais,
à medida que o tempo passava e ele continuava a visitar a Igreja da Natividade.
Sentiu-as fortemente nesse quente dia de maio enquanto Paul o esperava no
pequeno parque do outro lado da rua.
Viu um grupo de mulheres acendendo grossas velas em pequenos copos
vermelhos. Dirigiu-se a elas e descobriu pelo som de algumas palavras
sussurradas que as velas queimavam em intenção dos mortos. Permaneceu ali,
tomado de uma emoção indescritível, observando o bruxulear das pequenas
chamas, muito juntas.
Viu o espírito dos mortos e seus olhos turvos e cheios de barro serem
feridos pelas pequenas luzes. Viu-os se abrirem, ganharem vivacidade,
encherem-se de lágrimas porque haviam sido lembrados e seu amor não fora
esquecido. Iluminados pelas luzes, davam mais um passo para o céu eterno e a
escuridão recuava em volta deles.
Conhecia o dogma do inferno. Pensou nas almas nas profundezas, que
nunca veriam tal luz, que nunca sairiam das trevas, na dor, no desamparo. Achou
isso horrendo. Lançou um olhar para o depósito de velas e notou que, ao lado,
havia uma caixa de moedas. Não possuía dinheiro. Esperou até que as mulheres
se afastassem e restassem apenas as pequenas chamas douradas, acesas em
oblação. Apanhou diversas velas, acendeu-as e murmurou:
— Para as almas no inferno, para lhes iluminar o caminho.
Teve certeza, uma profunda e crescente certeza, de que elas viam essas
luzes e davam seu primeiro passo de volta a Deus. E pareceu-lhe muitíssimo
apropriado que as luzes acesas para guiá-las fossem luzes roubadas e que, com o
seu pecado, as houvesse redimido.
Conhecera antes a compaixão, mas aquele pequeno ato de pena, como
uma flor que subitamente desabrocha para a vida, encheu o ar em volta com uma
fragrância forte e insuportável. Ajoelhou-se ante o altar-mor, conheceu a paz
mais profunda e fez o primeiro voto de ajudar na salvação dos perdidos e dos
aflitos, dos abandonados e dos desesperados, dos lacerados pela dor, dos cegos,
dos sem remédio, dos perseguidos e explorados e de todos aqueles que não
conheciam nem a alegria e Deus nem o amor do homem.
Ajoelhado ainda, olhou para os dedos e murmurou:
— Em minha mão!
Sentiu um misterioso toque nela, uma consagração, uma unção. Sabia
que isso acontecera, embora não lhe ocorressem palavras nem motivos para
explicá-lo.
Ao reunir-se a Paul, seu primeiro impulso foi contar-lhe a experiência,
falar-lhe de sua compaixão e amor. Mas, ao ver a face pálida e contraída do
amigo e o olhar que ele dirigiu a algumas crianças a brincar, conservou-se
calado.
Mais tarde, quando Paul o deixou, foi apressado até a grande casa
silenciosa onde conhecera a pequena Jessica. Olhou pelos portões para a deserta
passagem de automóveis. Vagueou para cima e para baixo na rua, ao longo do
baixo muro cinzento. Não esperava realmente vê-la, mas ansiava por algo que
não podia explicar. Sabia apenas, vagamente, mas com certeza, que Jessica teria
compreendido aquilo sobre as velas e os mortos no inferno, o que Paul não
conseguiria. Segurou o portão e sacudiu-o fortemente. Estava fechado.
Entretanto afastou-se consolado. Algum dia reencontraria Jessica e lhe
diria as coisas que não podia dizer a Paul. Havia alguma razão pela qual não
podia contar tudo ao amigo, alguma barreira que, na sua inocência, não podia
compreender. Mas não haveria barreira entre ele e Jessica. Sabia disso, embora
desconhecesse o porquê.
Mesmo quando deixou de ir até aquela casa, o consolo permaneceu com
ele durante longo tempo. Mesmo quando quase acreditou em que tudo aquilo
fora um sonho, sentia-se ainda consolado e podia esperar com uma espécie de
firme expectativa. Mesmo quando esqueceu a própria casa, sentiu consolo e
esperança.
Em junho, Miss Bendy disse-lhe que ele não apenas se distinguira em
Inglês e História, mas conseguira também notas suficientes para passar em
Moral e Cívica, Gramática e Matemática.
— Eu sabia que você conseguiria! — exclamou ela. — Eu sabia que
você se lembraria do que eu lhe disse. Esforcei-me, não, Frank? Ensinei-lhe que
era quase tão necessário aprender outras matérias como passar em Inglês e
História. Isso mesmo! Afinal de contas, a educação não é uma coisa unilateral.
Uma estrutura pesada demais pode cair pelo próprio peso. Como é que você
pode ser escritor se não sabe quase nada mais? Um grande escritor deve ter
conhecimento de muitas coisas. — Olhou-o cheio de solenidade, com a sua
pequena e gorda face enrugada e lustrosa. — E agora você vai-se formar! Vai
para a escola secundária e, depois, para a faculdade. Espero viver o suficiente
para dizer: “Aquele grande escritor foi meu aluno. Fui um pouco responsável
pelo seu sucesso!”
Sorriu-lhe. Notou, então, que os olhos dele se haviam enevoado. Notou a
maneira como ele a fitava. Perguntou-lhe, nervosa:
— O que é, Frank?
Ele tartamudeou com esforço:
— Não vou entrar na escola secundária, Miss Bendy. Não vou entrar na
faculdade. Meu pai disse que preciso trabalhar.
Ela ficou consternada.
— Oh, Frank! Você está enganado, com certeza. Falei com sua mãe, e
ela ficou muito impressionada com a necessidade de você obter uma boa
educação. Pensei que tudo havia sido resolvido.
Ele mexeu-se, inquieto.
— Não foi, Miss Bendy. — A voz prendeu-se-lhe na garganta.
Passaram-se alguns momentos antes que pudesse falar. — Eu... eu tenho quase
dezesseis anos. Meus pais precisam de dinheiro. Eu... eu acho que posso apanhar
livros na biblioteca e continuar a estudar.
Posso tirar minha carteira profissional agora porque terminei o nono ano.
— Interrompeu-se, a voz fraquejou e não pôde continuar.
Miss Bendy torceu os dedos gordos e seu coração queimou de feroz
indignação, mágoa e ódio pelos pais de Frank.
Tentou conservar um tom calmo na voz:
— Frank, seus pais não precisam desse dinheiro. Eu sei. Seu pai está
ganhando muito bem. Conheço o Sr. Farley, o patrão dele. Seu pai... está
ganhando agora quarenta dólares por semana. Ouvi dizer que ele é muito
econômico. Ele poderia enviá-lo a uma faculdade, Frank.
Frank respondeu através de lábios duros e brancos:
— Ele não fará isso, Miss Bendy. Quer economizar tudo o que pode para
que possamos voltar para a Inglaterra depois da guerra. — Olhou para o espaço
em frente. — Eu não quero voltar para a Inglaterra. Meu país é este aqui. Amo-
o. Quero viver, trabalhar e morrer aqui. Este é o meu país.
— Naturalmente que é, Frank — Miss Bendy, porém, falou distraída.
Preciso vigiar minha pressão arterial, lembrou severamente a si mesma. Disse
em seguida: — Quer que eu fale com seus pais, querido? Talvez eu possa
convencê-los.
Uma expressão de puro medo, contudo, encheu os olhos de Frank.
— Não! Eles simplesmente botariam a culpa em mim, Miss Bendy. Eu...
eu acho que seria melhor se não falássemos mais nisso.
Apanhou o gorro e fez um movimento para se afastar. Ela segurou-lhe o
braço. Segurou-o com força e obrigou-o a voltar-se para ela. Falou em voz lenta,
mas veemente:
— Frank, talvez eu nunca mais o veja. Mas quero que se lembre disto,
durante todos os dias de sua vida. Deus concedeu-lhe um grande dom. Não ouse
desperdiçá-lo. Não, não ouse! Seria um horrível pecado. Assim, de algum jeito,
de alguma maneira, você precisa educar-se. Talvez possa frequentar uma escola
noturna. Sim, pode. Será difícil, quase insuportável. Mas precisa frequentá-la.
Levará muito tempo, um tempo imensamente longo. Mas vale a pena. Frank,
olhe para mim. Vale a*pena!
Ele não respondeu. Após um momento, ela soltou-o e acompanhou-o
com os olhos enquanto ele se afastava.
CAPÍTULO 27
Em setembro, de posse já da carteira profissional, Frank arranjou um
emprego numa pequena fábrica em Eliot Street, com um salário de seis dólares,
seis dias por semana, de sete e meia da manhã às seis da noite. A mãe tomava-
lhe cinco dólares e cinquenta centavos, dava-lhe a passagem de bonde e
preparava-lhe o almoço. Os outros cinquenta centavos eram dele.
A fábrica imprimia e grampeava pequenos rótulos que seriam pregados
em tubos de pasta de dentes. O trabalho de Frank consistia em ficar ao lado de
uma grande máquina, apanhar as pilhas de rótulos, contá-los, grampeá-los e
colocá-los em uma caixa. Não havia período de descanso. O seu mundo se
resumia na tonitruante e impessoal máquina, nas caixas, nos braços doloridos,
nos pés cansados, nas costas duras e, às vezes, numa dor dilacerante no peito.
Não ousava parar sequer por um momento, pois, de outra maneira, o engradado
onde caíam os rótulos se encheria e transbordaria. O contramestre apareceria
vindo do nada, como um demônio, censurando-o acremente e ameaçando-o com
dispensa.
Mas, de alguma maneira, não se importava. Sua mente era um ferimento
infeccionado, sangrando, latejando. Isto porque a primeira e, de certa maneira, a
maior mágoa se abatera sobre ele e estava tomado de desolação e angústia.
Gordon Hodge havia triunfantemente conquistado uma bolsa-de-estudos
para uma faculdade em uma pequena cidade no sul do Estado. A família Hodge
reunira os pobres trastes e seguira o filho conquistador.
Frank jamais esqueceu o dia em que se despediu do primeiro amigo.
Nunca, até o fim da vida, se recuperou inteiramente daquele dia, pois marcou
também a hora em que deixou de escrever durante muitos anos.
Se apenas lhe houvesse chegado o menor aviso, o mais leve sinal... Mas
nada houve naquela quente noite de agosto que pudesse tê-lo preparado,
sugerindo a imensa mágoa que se avizinhava.
Estava trabalhando na fábrica havia quase dois meses. Todas as manhãs
corria no frio e úmido amanhecer atrás dos raros bondes. Ao meio-dia, deixava a
máquina, encharcado de suor, as mãos e os joelhos tremendo, o coração batendo
dolorosamente. Todas as noites deixava a fábrica com os pés tão cansados que
pareciam haver-se transformado em madeira. Chegava a casa pouco depois das
sete. A crônica má saúde de Maybelle, dissera ela ao marido e ao filho, impedia-
a agora de completar o trabalho do dia. Assim, tornara-se dever de Frank lavar
os pratos do “chá” e arrumar a cozinha. Geralmente terminava esse trabalho por
volta das oito horas. Em seguida, saía às pressas, com o suor pegajoso fazendo-
lhe cócegas na pele sensível, para encontrar Paul em casa.
Era a coroação de seu dia, o arco-íris noturno depois da tempestade de
dor e sofrimento. A adolescência, a puberdade chegaram-lhe tarde, tão absorvida
estava sua mente nos escritos, no trabalho, nos dias apressados e cheios de
afazeres, em sonhos e esperanças. As mocinhas que via em volta excitavam-no
muito de leve ainda e apenas como criaturas douradas, reservadas para o futuro.
Não lhe tocaram os prazeres da companhia de outros rapazes, os grupos felizes
reunidos em varandas cálidas de verão, os piqueniques coletivos, as reuniões, no
bar para tomar gasosas, as visitas aos salões de danças, as festas em casas de
vizinhos. O seu amor natural pela solidão, a falta de dinheiro para pequenas
despesas, a timidez ante os demais, ocasionada pelas roupas baratas e a
inimizade dos pais pelos vizinhos, haviam militado contra a menor oportunidade
de saborear os prazeres naturais de sua idade. Além disso, em Paul Hodge
encontrara a única pessoa da mesma idade que o compreendia e com quem podia
conversar. Simultaneamente maduro e imaturo demais, não se sentia à vontade
nem com os jovens nem com os adultos. Homem já em mente e emoções,
julgava insípida, estéril e cansativa a companhia até mesmo dos poucos rapazes
que se mostravam dispostos a serem cordiais. Criança fisicamente, era ignorado
pelos mais velhos.
Para junto do amigo, então, corria todas as noites. Somente quando o
encontrava, diminuía o sofrimento acumulado durante o dia. Sentia-se outra vez
feliz, loquaz, entusiástico, ardente. Paul, naturalmente, não trabalhava. Passava
os dias lendo, apaticamente varrendo a pequenina e pobre casa, sonhando.
Quando se encontravam, entreolhavam-se em silêncio, rostos vivos e sorridentes,
e simultaneamente explodiam em palavras. Sentavam-se na varanda da casa
enquanto a quente escuridão descia em volta deles, a luz de arco voltaico na
esquina começava a crepitar e as árvores negras murmuravam ao vento da noite.
Conversavam, ou permaneciam em silêncio durante longo tempo, contentes. Às
vezes, dirigiam-se ao armazém da esquina, onde Frank comprava duas
casquinhas de sorvete, que lambiam felizes até a última gota.
Não, não houvera aviso, prenúncio algum da calamidade iminente.
Naquela noite de agosto, andava apressado, como sempre, a caminho da casa do
amigo. Os últimos raios do sol tocavam como um fogo moribundo os topos das
árvores. As ruas descansavam em consoladoras sombras violetas. As varandas
estalavam com o som de cadeiras de balanço e murmuravam nas vozes cansadas
de pessoas esgotadas pelo calor. Raios silenciosos corriam e saltavam pelo céu
de leste. A estrela vespertina subia, tranquila e prateada, no céu rosado do oeste.
Frank desejava discutir naquela noite os cursos noturnos que ia fazer
durante o outono. Descobrira que perderia a primeira aula, pois somente ficaria
livre bem tarde. Precisava do conselho de Paul, pensou. A áspera camisa azul de
trabalho estava úmida sobre os braços e em volta da gola enrugada e aberta. As
calças puídas colavam-se às pernas. Os pés eram pedaços de brasas. Mas, na
pressa, mal se dava conta de tudo isso.
Encontrou a pequena casa iluminada pelos bicos de gás. Isso em si era
algo estranho, pois Edward Hodge fazia empenho em não desperdiçar gás. Paul
esperava-o na varanda. Levantou-se devagar, sem a habitual animação. Frank
deixou-se cair ao lado dele e enxugou o rosto com um lenço sujo.
— Puxa! — exclamou. — Que calor está fazendo! Pensei que ia entregar
os pontos antes das seis.
Ouviram chiados e estalos numa casa próxima e uma voz aguda e
cortante de homens emergiu de uma vitrola: “Suba, Josephine, em minha
máquina voadora, é para cima que iremos, é para cima que iremos...!”
Para não ficar por baixo, uma vitrola do outro lado da rua implorou a
alguma tímida mulher que não usasse os olhos de modo tão assassino, “porque
eles não querem dizer o que dizem!”. Uma criança gritou zangada, um
automóvel estrondeou e buzinou descendo uma rua próxima, uma porta bateu e
sombras passaram e voltaram a passar por janelas iluminadas. Uma voz irritada
de homem ergueu-se em um quintal:
— Se eles pensam que vão arrastar-nos para essa guerra, é melhor que
pensem novamente!
A rua escureceu e sombras caíram como chuva sobre as calçadas quentes
e o asfalto empoeirado, os raios saltaram e tremeram, obscurecendo as estrelas
cintilantes. As árvores ergueram as copas e murmuraram uma profunda pergunta.
Ouviu-se nesse momento o ribombo distante de um trovão, como se subisse das
próprias entranhas da terra.
Frank observou os raios e sentiu uma seca e fria brisa no rosto. Escutou
o rugido do trovão.
— Talvez caia uma tempestade — disse. — Espero que sim. — Notou
que Paul não se sentara. Sugeriu que o fizesse. — Tenho um bocado de coisas
para conversar.
Paul respondeu em voz muito baixa:
— Eu também preciso falar com você.
Algo no tom hesitante, monótono, relutante, feriu-lhe o ouvido sensível.
Mas, ainda assim, não teve presságios. Sentiu-se apenas curioso.
Paul sentou-se, não com a habitual e sinuosa facilidade, mas
pesadamente. Agarrou os joelhos com as mãos e olhou para a frente.
— Há duas semanas soubemos que Gordon havia ganho uma bolsa-de-
estudos para uma faculdade em uma pequena cidade no sul do Estado. Pensamos
que poderíamos transferi-la para uma faculdade aqui na cidade. — Interrompeu-
se e apertou fortemente as mãos. — Mas não conseguimos. Papai achou que
talvez não fosse possível e, há umas duas semanas, foi até à cidade e arranjou
um emprego, apenas por cautela. Lembra-se de quando ele viajou? Não lhe
contei coisa alguma na ocasião, Frank, porque não queria acreditar nisso. Não
queria que isso se realizasse, nem mesmo em palavras. Eu... eu pensei que tudo
pudesse dar certo. Mas não deu.
Interrompeu-se. Não olhou para o amigo, que se tornara mortalmente
quieto.
— Temos que nos mudar às pressas. Se papai quer aquele emprego,
temos que estar lá depois de amanhã. Vamos embora no trem de cinco horas.
Amanhã à tarde.
Frank ouviria muitas palavras calamitosas na vida, mas poucas o
atingiriam tão mortalmente como aquelas. Dançaram diante dele, orladas por um
fogo de profundo sofrimento. Eram como punhos martelando-lhe o coração,
desferindo golpes que o deixavam aturdido, entorpecido. Sentiu alguma coisa
grossa, seca e sufocante na garganta. Um frio desceu-lhe pelos braços e pernas
quentes e terminou em uma poça de dor aos pés. Agarrou-se à madeira lascada
dos degraus.
— Não — disse. — Você não pode deixar-me. — A secura na boca
cortou-lhe a respiração e ele tossiu.
Paul suspirou.
— Vamos embora. Amanhã.
A luz do arco voltaico crepitou feroz e inundou a calçada e a árvore com
um cruel e branco fulgor. Uma vitrola suplicava à sua querida que apertasse com
força. O trovão reforçou a ameaça e, nesse momento, um nevoeiro encobriu as
estrelas. O homem no quintal vizinho elevou a voz:
— Ora, se esses Heinies sequer tentassem pôr os pés em um centímetro
deste país, nós os expulsaríamos da face da terra em uma hora! Como diz minha
mulher, não criamos nosso filho para ser soldado, e não precisamos de soldados.
Precisamos apenas de nossa boa e velha força americana!
Trazido pelo vento, chegou até eles o silvo de um trem, doloroso, cheio
de desespero, desolação, mágoa. Era um grito que falava de sofrimento e
angústia, de adeus eterno, de algo terrível demais para ser suportado. Frank
escutou-o, o som penetrou em seu corpo, rasgou-lhe o coração. Inesperadamente,
levou as mãos aos ouvidos e dobrou-se em imóvel dor sobre o degrau.
Paul compreendeu. Suavemente, disse:
— É simplesmente um trem. Nós o escutamos todas as noites.
Sim, haviam-no escutado todas as noites, mas Frank nunca mais o
escutaria exceto com tristeza, sofrimento, um louco desejo de fugir. Nunca mais
o escutaria sem erguer as mãos, como se quisesse tapar os ouvidos, sem tremer.
Nunca mais lhe chegaria o som sem aquela terrível dor de perda.
Finalmente, deixou cair as mãos. Nada mais havia, salvo o fulgor da luz
de arco. Disse:
— Então, não o verei novamente.
Jamais ousaria matar o trabalho na fábrica, pois seria despedido. Não
ousava ser despedido.
— Acho que é melhor para você não ir até a estação — disse Paul, e
esperou. Frank não conseguiu falar. Paul continuou: — Eu lhe escreverei.
Escreverei todos os dias. Podemos corresponder-nos.
— Você nunca me disse coisa alguma — murmurou Frank. — Devia ter-
me dito antes.
— Mas eu não tinha certeza. Somente soube esta tarde.
A voz de Edward veio pela janela:
— Paul, filho, é melhor arrumar suas malas. Lembre-se de que temos
muita coisa a fazer amanhã.
Arrumar as coisas. Roupas dobradas e colocadas em estreitas caixas e
malas. Roupas dobradas, levando em suas dobras a vida de um ser humano. Uma
tampa baixando como uma tampa de caixão mortuário.
— Não sei o que é que vou fazer — sussurrou Frank. — Não sei o que
vou fazer!
— Você vai estudar à noite — murmurou Paul. — Vai escrever. E me
escreverá. E, quando juntar algum dinheiro, poderá ir visitar-me.
Falava em voz tão calma, tão firme, que Frank sentiu uma súbita e
convulsa raiva. A separação, essa viagem, significava muito menos para Paul do
que para ele! Falou em voz rouca, balbuciante:
— Você... você não se importa! Isso não... significa... coisa alguma para
você! Você tem seu pai, seu irmão, sua escola. Eu... eu nada tenho!
A angústia pura daquela voz fez Paul contorcer-se. Mas respondeu
amargo, como quem faz uma pergunta a si mesmo:
— Como é que você sabe como eu me sinto? Como lhe poderia dizer?
Frank permaneceu calado. Paul pôs uma mão hesitante no braço do
amigo.
— Você me enviará seus poemas e suas histórias, não? Nós nos
corresponderemos, todos os dias.
Edward falou novamente pela janela, implorante:
— Paul! Por favor, entre imediatamente!
Gordon, nas profundezas da casa, berrou:
— Entre, seu malandro, e faça sua parte no trabalho! Se você pensa que
vou meter suas sujas roupas na mala, está muito enganado.
— Paul — suplicou Edward.
— Entre enquanto faço as malas — insistiu Paul, erguendo-se. Frank
ergueu-se também. Sacudiu a cabeça. Não pôde mais falar. Olhou para o rosto de
Paul, descorado pela luz de arco. Parecia que não podia despregar os olhos do
rosto do amigo. Entreabriu os lábios, mas nenhum som emitiu. Desceu
tropeçando os degraus e correu pela rua. Paul observou-o afastar-se. Gritou:
— Eu escreverei, será a primeira coisa...
Frank não respondeu. O alto e magro corpo desapareceu nas escuras
sombras. Paul permaneceu ali durante longo tempo, olhando o poço de sombras
para aonde havia fugido o amigo. Entrou em seguida.
SEGUNDA PARTE

“It is not now as it hath been of yore;


Turn wherever I may,
By night or day,
The things which I have seen
I now can see no more.

The rainbow comes and goes,


And lovely is the rose;
The moon doth with delight

Look round her when the heavens are bare;


Waters on a starry night
Are beautiful and fair;

The sunshine is a glorious birth;


But yet I know, where’er I go,

That there hath passed away a glory from the earth.”(*)


Wordsworth

(*) Hoje não é como ontem;


Para onde quer que me volte,
A noite ou de dia,
Não mais vejo o que antes via.
Chega e se vai o arco-íris,
Encantadora é a rosa;
A Lua, deliciada, olha em volta sob o desnudo céu;
Belas e alvas fluem as águas nas noites estreladas;
Brota o sol em glorioso nascer;
Mas, ainda assim, aonde quer que eu vá,
Sei que desapareceu uma das glórias da terra.
CAPÍTULO 28
Dias longos, infindáveis. Dias silenciosos, parados. Girando,
eternamente cinzenta, a roda das estações. Manhã, meio-dia, tarde, noite.
Sombras apenas, mais pálidas ou mais brilhantes. Sons aproximando-se e
morrendo à distância, como marés sem sentido sob uma lua morta. Faces
aparecendo, recuando, vozes como vozes de sonhos. Mutismo pesado na língua,
secura na garganta, escuridão nos olhos, opressão de pesadelo em braços e
pernas. Portas abrindo-se e fechando-se em corredores intermináveis e cansaço
transformado em doença da carne.
— Não sei — disse Maybelle, queixando-se preocupada a Francis
quando Frank foi dormir. — Ele não se interessa. Tem notado o seu rosto
ultimamente? Parece um cadáver. Raramente diz alguma coisa. Nunca mais saiu
para passear, como fazia quando aquele garoto, Paul Hodge, morava por aqui.
Não escreve mais, embora eu tenha tentado animá-lo. Juro que tentei. Era
melhor do que nada. Não come nada, deixa tudo no prato. Fica emburrado.
O instinto maternal de Maybelle agitava-se débil sob a superfície de
medo e sofrimento crônico. O jornal escorregou-lhe do regaço para o chão.
Embora estivesse lendo, Francis ergueu zangado os olhos, tossiu forte e rouco e
tomou um gole de cerveja.
— Ele anda cabisbaixo por aí, como um bezerro apaixonado — disse,
rancoroso. — Embora eu tenha de reconhecer que traz regularmente o salário
para casa. Quanto a isso, não tenho queixas. O que é que você me diz daquela
matrícula na escola noturna, sobre a qual ele falou tanto no último verão?
Conversador! Matriculou-se? Não! Era tudo conversa. Com ele é sempre
conversa. E você queria que eu o botasse numa faculdade! Eu o conheço melhor
do que você. Mimado.
Tossiu outra vez, com violência. O rosto murcho tornou-se escarlate com
o esforço. Olhou furtivamente para o lenço quando o retirou dos lábios. Claro
como cristal. Mas todos naquela maldita cidade tinham catarro ou bronquite.
Pior ainda do que em Manchester.
— Você sempre o mimou — continuou Francis. Maybelle, ouvindo a
acusação, olhou para os lados com tímida melancolia e fingida humildade. —
Livros. Sonhos. Poemas. Agradeça a Deus por ele ter esquecido essas tolices.
Está ficando homem. Se você o deixar em paz, tudo correrá bem. Eles ficam
estranhos nessa idade. Como potros.
— Não sei — respondeu Maybelle com um suspiro e um tom irritado. —
Fiz tudo o que pude. Se tivesse que repetir, não o faria melhor. Boa comida. Boa
cama. Limpeza. Ainda assim, ele parece um fantasma. Não se interessa por coisa
alguma.
— Bobagem. Ele simplesmente está crescendo. Estou satisfeito porque
aquele tal de Hodge foi embora. Era uma má influência. Sempre sonhando.
Agora, ele está sob controle e agradeça a Deus por isso.
Sentado à beira da cama, sob a luz bruxuleante do bico de gás, Frank
tinha sobre os joelhos a última carta de Paul. Curvou-se e leu-a, como a havia
lido uma dezena de vezes naquele dia.
“Não gosto da escola aqui. Papai está preocupado porque os professores
são muito medíocres. Gordon, porém, gosta da faculdade. O campo é belo. Papai
e eu damos grandes passeios. É todo cheio de morros e foi maravilhoso na
última semana, quando as árvores começavam a brotar. Ouvimos as rãs arbóreas,
como você e eu as ouvimos naquela primavera. Lembra-se? Faço esforço para
não ficar insatisfeito. Papai parece muito mais feliz aqui e, se a escola fosse tão
boa como a de Lafayette, as coisas seriam perfeitas. O povo daqui fez uma
parada no Dia da Preparação e foi interessante. Papai acha que vamos entrar
mesmo na guerra, já que a Alemanha continua a afundar nossos navios. Mas sei
que ele está preocupado com a possibilidade de Gordon ser convocado pelo
Exército, se entrarmos na coisa. Vi fotos da parada do Dia da Preparação em
Bison e ela, quero dizer, as ruas, pareceram-me muito conhecidas. Reconheci o
Teck Theatre em Court Street. Lembra-se do dia em que você e eu
economizamos nosso dinheiro e fomos a um espetáculo burlesco lá e quase não
conseguimos ver ou ouvir coisa alguma, lá em cima na galeria? Mas, de
qualquer maneira, foi divertido.
Papai não gosta do emprego. Ganha dois dólares menos por semana do
que em Bison. Mas parece um bocado mais feliz.
Acho que isso é porque Gordon ganhou aquela bolsa-de-estudos. Vamos
fazer piqueniques todos os domingos, quando o tempo está bom. Há uma
paisagem que se avista da colina...”
Os olhos de Frank enevoaram-se. Mas ele não se moveu. Olhou
fixamente para a carta. A letra precisa e bem cuidada saltou e dançou diante de
seus olhos. Continuou a ler:
“De muitas maneiras, gosto mais desta cidade do que de Bison. É mais
tranquila. Não há tanta gente. Você acha que poderia vir visitar-me aqui no
verão? Há um hotel muito bom aqui perto, barato...”
A voz de Francis rugiu pela escada, cheia de ira:
— Apague a porcaria dessa luz! São onze e meia e você precisa acordar
cedo. Acha que somos milionários?
Frank estendeu a mão e apagou o gás. Continuou sentado na escuridão,
com a carta sobre os joelhos. A lua de começos de verão batia no peitoril da
janela e costurava com fios de prata a renda grossa das cortinas. As árvores
murmuravam do lado de fora. Um casal passou, rindo. Uma barca mugiu no
lago, muito distante. Em seguida, um trem trovejou bem longe e seu apito longo
e melancólico ecoou sob as estrelas. Frank curvou-se para a frente como se
sentisse uma grande dor e tapou os ouvidos com as mãos. Ouviu o trem, ouviu-o
muito tempo depois de ele ter passado. Caiu de lado sobre a cama e ficou ali,
olhando sem ver para a escuridão iluminada pela lua, mal respirando. Escutou os
movimentos dos pais indo para a cama. Ouviu a porta ser fechada e a queixa das
molas da cama. Ficou ali durante longo tempo, inteiramente vestido, com os pés
no chão, até que adormeceu.
— Naturalmente — disse o Sr. Farley (“tirando vantagem”, como
sombriamente comentou consigo mesma a Sra. Clair) —, não tenho nada com
isso. Mas gosto do garoto. Quero dizer, do seu neto. Não gostei da aparência dele
hoje. Tem dezesseis anos, não? — O Sr. Farley sacudiu a cabeça e balançou-se
devagar na varanda. Na rua, a tranquilidade do domingo e o sol. — Mas ele está
muito pálido e magro. Nunca foi um garoto vigoroso, mas é alto demais para a
idade e parece que está doente. Na semana passada, dei a Francis um vidro de
comprimidos à base de ferro para o garoto.
A Sra. Clair continuou muito ocupada a bordar e disse:
— Ele está crescendo. Isso é tudo. Sempre foi um peso para os pais.
Nunca se interessou por coisa alguma, acho eu. Estou surpresa porque ele vem
conseguindo conservar aquele emprego na fábrica. Está ganhando sete dólares
agora, diz Francis, e isso não é coisa que se despreze. Eles precisam daquele
dinheiro.
O Sr. Farley lançou-lhe um impaciente e desdenhoso olhar, que ela não
percebeu. Estou pagando agora a ele quarenta por semana, pensou. E a maior
parte do que até agora lhe paguei está no banco. Para quê? O que foi que esses
dois já tiraram da vida? E eles mataram alguma coisa naquele pobre garoto. As
roupas que ele veste não servem nem para um cão. Já vi mendigos mais bem
vestidos e ele trabalhando seis dias por semana naquela fábrica nojenta. É
inteligente, também. Basta olhar para os olhos dele. Há alguma coisa ali. Mas
não podemos esperar que aqueles idiotas notem isso! Não parece absolutamente
filho deles. Como eu gostaria de poder ajudá-lo um pouco. Antigamente gostava
de conversar comigo; agora, porém, jamais pronuncia uma palavra, se pode
evitá-lo. Quando tento falar-lhe, ele se encolhe todo. Não gosto da sua aparência!
Não gosto da aparência daqueles olhos. Parece que o garoto perdeu alguém. É
como se alguém houvesse morrido para ele.
Em voz alta, disse:
— Aquele garoto devia estar na escola, em vez de trabalhando.
A Sra. Clair comprimiu os lábios para conter a raiva, lembrando-se em
tempo de que o Sr. Farley era o patrão do filho e o melhor hóspede dela. Mas o
rangido emitido por sua cadeira de balanço valeu como um seco protesto.
— Não mimamos nossos filhos como vocês fazem na América — disse
ela com dura condescendência. — Acreditamos em fazê-los se mexerem por si
mesmos. Em torná-los independentes. Plantá-los sobre os próprios pés. Todas as
banheiras devem descansar sobre seu próprio fundo. O jovem Francis tem
dezesseis anos. É um homem. Além disso, os pais dele precisam do dinheiro. —
Levantou-se com um majestoso rodar das saias. — Hora do chá, acho.
Entrou na casa e deu uma forte batida na porta de tela. O seu cabelo
adquirira um frio branco invernal, mas ela continuava tão enérgica e competente
como sempre. O Sr. Farley nada disse. Permaneceu no seu lugar na varanda. Um
carro ou dois passaram em uma nuvem de poeira. Sinos tocaram baixo as
vésperas. O Sr. Farley suspirou.
Eu gostaria de fazer alguma coisa pelo garoto, pensou. Mas não adianta
falar com o pai dele. Foi enlouquecido pelo dinheiro. Bolas! Eu gostaria de fazer
alguma coisa! Talvez seja uma boa ideia rezar uma novena por ele. Vou
perguntar ao Padre Walsh se posso fazer isso por um protestante.
Levantou-se. Se andasse depressa, chegaria a tempo para as vésperas.
Não se confessava havia duas semanas. Engraçado, pensar em rezar por um
garoto protestante, quando não se confessava fazia duas semanas! Não se podia
esperar que Deus escutasse um pecador inveterado.
Um gramofone numa casa próxima berrou esganiçado: “Não criei meu
filho para ser soldado!”. Uma criança desceu ruidosa alguns degraus. O céu do
oeste cobria-se de ouro.
Bem, pensou sombrio o Sr. Farley, talvez a senhora não tenha criado seu
filho para ser soldado, madame, mas parece danado de certo agora que ele vai
ser soldado mesmo!
CAPÍTULO 29
À medida que a pura dor e o choque passavam aos poucos, a solidão
fechava-se em volta de Frank Clair. Solidão como um muro de vidro à prova de
som, através do qual ele podia ver as pessoas, observar-lhes os gestos, captar
imagens disformes de seus rostos, mas não ouvi-las. Nos gemebundos bondes de
Bison as pessoas em volta falavam uma língua desconhecida que ele não podia
entender e seus olhos varavam-no como se ele não estivesse ali.
O sol desaparecera literalmente de sua vida. Restava apenas o brilho de
luzes de ribalta cruamente pintadas em panos de fundo bidimensionais. A
desolação caminhava ao seu lado, escoando. Para ele, a cidade morrera.
Vagueava por ruas conhecidas. Via o pôr do sol. Sentava-se em bancos no Front
Park e olhava para o rio. Via a primavera, o verão, o outono vermelho, o inverno
azul e ofuscante. Mas a exultação deixara tudo aquilo e, com ela, a sensação de
maravilha, o deleite. Não conseguia ler. A primavera de fantasia, de cor, de
vitalidade, de enlevo e alegria havia-se transformado em um deserto de areia
sufocante e não sentia desejo nem inspiração para voltar a escrever. Entorpecido,
calado, sozinho, vazio, trabalhava, comia, dormia e nada sentia salvo abandono e
angústia. Em volta dele estendia-se um jardim morto onde o vento farfalhava,
relva morta se curvava em seus talos e flores murchas pendiam de hastes
amarelas.
Em uma úmida noite cor de lilás em abril soube que a América declarara
guerra à Alemanha. Notou agitação nas ruas, grupos reunidos em volta de
esquinas, jornais que andavam de mão em mão. Em alguma parte ouviu o rufo
de um excitado tambor. Os bondes passavam barulhentos com comentários e
vozes exaltadas.
Mas, para ele, tudo aquilo era destituído de sentido, uma agitação de
idiotia, sons desconexos e irrelevantes, vozes de pesadelo.
Nervosa, disse-lhe Maybelle naquela noite:
— Filhinho, por que não arranja um amigo? Sei que você não é o mesmo
desde que Paul foi embora. Não há ninguém na fábrica com quem você possa
fazer amizade? E trazer aqui para tomar chá? Um rapazinho de sua idade?
Frank notou a hesitante preocupação na voz da mãe e fitou-a de frente,
como não o fazia havia anos. Os olhos castanhos levemente protuberantes da
mãe estavam toldados de preocupação. Sorriu para ela. Os músculos de sua face
moveram-se, duros. Disse:
— Não há ninguém, mamãe.
— Mas procure, Frankie! Moram rapazes nesta rua. Você podia ir a um
espetáculo com eles, ou à praia. — Hesitou novamente. — Eu poderia arranjar-
lhe um ou dois dólares. Você não vai mais à biblioteca. Não lê mais. Leia os
jornais. Não está interessado na guerra? Se ela continuar, vão convocá-lo.
Ele se sentiu comovido. Uma mão encontrara a sua na escuridão, uma
mão calejada e hesitante. Pensou: Acho que ela gosta um pouco de mim. Tentou
sorrir novamente.
— Eu não me importaria se fosse convocado para o Exército.
A monstruosa dor espiritual que o afligira durante os primeiros meses da
ausência de Paul voltou como um súbito golpe de espada no coração e, mais uma
vez, sentiu o doloroso impacto. Levantou-se e deixou a mesa.
Francis andara receoso de que o filho pudesse “conhecer moças e botar
dinheiro fora”. Se Frank se tornasse igual a um bocado de calejados rapazes,
poderia mesmo casar e privar os pais do salário. Frank, porém, não via nem
homens nem mulheres em volta, apenas sombras.
— Paul não lhe escreve mais com tanta frequência — queixou-se
Maybelle. — Escrevia todos os dias, ou quase isso. Agora, apenas duas vezes
por mês, às vezes menos. Mas acho que não é culpa de Paul. Li uma de suas
cartas. Perguntava a Frankie por que não lhe escrevia.
— Ele é um lunático — comentou azedo Francis. — A gente imaginava
que ele se interessaria... A guerra continua e o mundo está conflagrado. E ele
anda por aí em meio a sonhos. E pensei que ele estava ficando homem! Nunca
chegará a ser coisa alguma. É um fracasso. Vai simplesmente continuar a ganhar
salário de diarista. Não tem ambição alguma.
— Faço tudo para despertá-lo — respondeu sofredora Maybelle. — Se
ele apenas comesse alguma coisa. Tem quase dezessete anos e parece um
graveto. Nenhuma carne. Talvez esteja ficando tuberculoso.
Francis, porém, interrompeu a conversação, como interromperia todas as
que o aborreciam e entediavam e tossiu violentamente. Não olhava mais para o
lenço, uma ou duas vezes sentira um gosto salgado na língua. Tinha seus
próprios problemas, só Deus sabia! E, naquele momento, a esposa amolava-o
falando naquele garoto estúpido, que não sabia quando as coisas eram boas para
ele. Alguns caras tinham filhos bons, ambiciosos, econômicos, que davam
prazer. E ele tinha como filho uma besta que em dois anos só obtivera um
aumento de dois dólares semanais.
Nesse momento, disse à Maybelle que, depois da guerra, voltariam para
a Inglaterra. Possuíam dez mil dólares no banco. Duas mil libras! Uma fortuna.
Francis começava a ter certo sentido de urgência, de ansiedade, embora não
pudesse explicar por quê. Maybelle mostrou-se razoavelmente feliz e cheia de
expectativa. Falou a Frank sobre a Inglaterra.
— Não se lembra mais de nossa antiga casa, querido? — perguntava
insistente. — De Reddish Vale e Sandy Lane? De nossa própria terra? Pense só
como vamos ser felizes, em casa novamente!
As palavras penetraram até o fundo da consciência de Frank, mas ele
não experimentou a menor reação. Inglaterra. Ora, a Inglaterra não era seu lar.
Este sim era seu país. Pela primeira vez, sentiu uma emoção de leve protesto.
Naquela noite leu o jornal com um novo interesse. Viu fotografias de rapazes de
Bison dirigindo-se para a estação, marchando em jovens e exultantes fileiras,
puxados por uma banda. Ora, ele ouvira a banda naquele dia e todos na fábrica
correram para ver a passagem das jovens oferendas a Moloch, à estupidez, à
cegueira, à imbecilidade mundial. Mas ele não saíra. Devia tê-lo feito. Naquele
instante, pela primeira vez, sentiu uma surda dor no coração atrofiado, um
movimento débil do sangue preguiçoso e congelado.
Aquela guerra era a respeito de quê? A Alemanha invadira a Bélgica e a
França. O Kaiser ameaçara. Woodrow Wilson respondera em tons pesarosos e
comedidos. “A guerra para terminar todas as guerras.” “Tornar o mundo seguro
para a democracia.” Era sobre isso a guerra? Pensou nas crianças nas escolas
alemães e uma pequena língua de fogo lambeu-lhe a mente embotada. Não
importava sobre o que era a guerra. Os Aliados tencionavam matar tantos
alemães quanto possível. Esse era o fato mais importante, o único fato relevante,
justificável. Matar alemães. Política de poder, agressões, lutas, entrechoques de
armas, isso nada era, no fim, comparado com a necessidade de matar tantos
alemães quanto possível, homens, mulheres, crianças.
Naquela noite, Maybelle reiterou a súplica de que ele “arranjasse um
amigo”. Era uma tolice, mas, na manhã seguinte, obrigou-se a olhar para os
colegas de trabalho com interesse e uma interrogação no espírito. Muitos eram
jovens. Bem cedo poderiam ter que ir para a guerra. Naquele momento, vozes e
rostos passaram a ter importância. Absorveram-no.
A operadora de sua máquina sentava-se num tamborete alto, movendo
alavancas e engrenagens. Era uma mulher de não mais de vinte e cinco anos.
Possuía feições rudes de camponesa, mas também uma concentração alerta nos
olhos e na boca. Trabalhava com rapidez e eficiência. Frank ergueu a face
naquela manhã e sorriu. Em voz alta, disse:
— Alô, Elsie.
Ela olhou para ele e endereçou-lhe um sorriso irônico.
— Alô, surdo-mudo — respondeu. — Encontrou a língua? Por que o
interesse tão repentino? Está-me vendo pela primeira vez?
— Estou — replicou ele, sério. — Acho que estou.
Ela olhou-o criticamente.
— Estou mesmo lisonjeada. Ei, você não é um garoto feio, apenas
esquisito. Eu gostaria de que você fosse mais velho. Poderia levar-me a passear.
— Começou a cantar. — “K... K... Katy, oh, bela Katy!”
Frank, para espanto seu (pois não sabia que já ouvira aquela música
tola), começou a cantar também:
— “Você é a única m... moça que eu adoro!”
— Ouçam só, pessoal! — berrou Elsie, satisfeita, para os colegas em
volta. — O morto ressuscitou!
Frank almoçou ao meio-dia em companhia de vários colegas. Sentou-se
ao lado de Elsie, que achava que, de alguma maneira, tinha certa
responsabilidade por aquela ressurreição. Atento e com objetivo interesse,
estudou cada rosto e cada par de mãos gastas e calejadas.
Havia o contramestre, um pequeno e gordo húngaro que fora batizado
como Tom pelos subordinados, embora seu nome fosse muito mais complicado.
Tinha um rosto redondo e dourado como uma lua de outono, os olhos
pequeninos e faiscantes, duros e divertidos. Homenzinho entroncado e
malcheiroso. Ofereceu aos amigos pequenos bolos húngaros feitos pela esposa.
Que massa! Frank comeu um deles cheio de apreciação e olhou esfomeado em
volta, querendo mais. Tom deu-lhe mais um bolinho e fitou-o, curioso.
— Tenho um filho de dezenove anos — disse, mastigando. — Ele deve
ser convocado. Bem, sou húngaro e meu país está lutando contra os Aliados.
Mas sabe o que foi que eu disse à minha velha na noite passada? “Ouça, a
Áustria-Hungria não é mais nosso país. Veja só o que este país fez por nós. Não
somos donos de nossa própria casa? Não temos dinheiro no banco e o suficiente
para comer? As pessoas não foram boas para nós?” Foi isso o que eu disse e meu
garoto (ele ganhou uma bolsa-de-estudos para a Universidade de Bison) disse:
“Pai, você tem toda a razão. Este é o meu país e vai receber tudo o que eu lhe
puder dar. É isso mesmo.”
Uma pequena e frágil moça, obviamente tuberculosa, ergueu vivamente
os olhos.
— Estão chamando moças agora, para a Marinha. Pensei em entrar. Mas
não tenho instrução. Querem moças que saibam bater à máquina. Mas posso
comprar bônus da liberdade. Estou comprando um por semana. — Tossiu
roucamente e os demais olharam-na com simpatia.
O alto e magro encarregado da expedição, um homem de rosto
vermelho, na casa dos quarenta, mastigou o sanduíche e bebeu um pouco de café
frio.
— Bem, estamos ganhando agora mais dinheiro, não? Ouvi dizer que
vamos ter um aumento. Eles têm que dar. Todos estão indo trabalhar nas fábricas
de armas. A Curtiss está pedindo gente aos berros. Todos agora podem arranjar
emprego com um bom salário. Ouvi dizer que estão pagando trinta e cinco
dólares por semana a encarregados de expedição, lá na Curtiss! A minha velha
me disse: “Por que é que você ainda está trabalhando lá, a vinte e cinco dólares
por semana? Além disso, é patriótico.”
Os rostos em volta tornaram-se pensativos, ensimesmados.
— É isso mesmo, há dinheiro grosso por aí — reconheceu Tom.
Pigarreou: — Bem, este trabalho aqui não é tão importante para vencer a guerra.
Eu não censuraria pessoa alguma que fosse ganhar mais dinheiro na Curtiss.
Jesus! É difícil ganhar dinheiro.
— É bom malhar enquanto o ferro está quente — observou
judiciosamente Elsie. — Sou uma boa operadora de máquina e o namorado de
minha irmã disse que estão pagando trinta dólares por semana aos operadores lá
na Curtiss. Talvez ele esteja mentindo. Quem é que já ouviu falar de uma
operadora ganhar trinta por semana? Mas não fará mal nenhum ir verificar.
— Dinheiro é dinheiro — sentenciou Tom. — E eu gostaria de ganhar
algum dinheiro graúdo. Estou ficando velho. O que é que vou fazer quando não
puder mais trabalhar? Ouvi dizer que há um sindicato na Curtiss. Devíamos ter
tido sindicatos há muito tempo. Lembram-se daquele garoto que perdeu os dedos
numa máquina, há dois meses? Bem, foi só isso o que ele arranjou: dois dedos
arrancados. Se perdemos a cabeça, que pena! Sabem o que foi que li no jornal?
Que os operários americanos são iguais aos trabalhadores da Índia ou da China.
Nenhuma indenização, nenhuma ajuda se perdem as pernas ou os braços. Há
aquela U. I. T., União Internacional dos Trabalhadores, acho que é isso. Diz que
devemos receber indenização quando perdemos as mãos, ou coisa assim. Fazer
com que os grandões paguem. Agora nós simplesmente morremos de fome.
— Oh, aqueles russos — disse o encarregado da expedição, cheio de
desprezo. — U. I. T.!
— Você está dizendo besteira! — exclamou Elsie. — O que é que tem se
eles são russos? Faz alguma diferença quem é que fala em nos dar alguma
proteção? Veja só o caso de meu pai. Trabalhou para uma companhia em cujo
quintal passava uma estrada de ferro. Carregava caixotes. Um deles caiu e
esmagou o pé dele. Como se fosse uma batata. Nós, os filhos, éramos muito
pequenos. O mais velho tinha só doze anos. Bem, papai teve envenenamento do
sangue e morreu. A velha teve que começar a lavar pra fora e pegou pneumonia.
Isso aconteceu quando eu tinha quatorze anos. O pai recebeu algum dinheiro
pelo pé que perdeu? Não! Mamãe acabou morrendo e deixando toda aquela
filharada. Fui obrigada a deixar a escola e eu era boa em Álgebra! Podia ter
arranjado um emprego num escritório e estaria ganhando bom dinheiro. Mas,
não, tive que trabalhar. Meu irmão Jim vendia jornais pela rua e teve que deixar
também a escola. E, logo que os outros garotos fizeram quatorze anos, tiveram
que ir trabalhar também. Se tivéssemos recebido uma indenização, mamãe não
teria morrido, poderíamos ter continuado na escola e as coisas não teriam sido
tão ruins.
A sua face morena e inteligente contorceu-se. Não falou na bela e
pequenina irmã que fora obrigada a se prostituir porque não era “inteligente” o
bastante para conservar um emprego como fazedora de embrulhos numa loja de
departamentos. A pobrezinha da Mamie! Naquele momento estava internada em
um hospital de caridade, morrendo, apodrecendo.
Os outros falaram de casos semelhantes em suas famílias ou na família
de amigos. Dinheiro. A terrível, irresistível e trágica necessidade de dinheiro.
Não para economizar, “para um pé-de-meia”, mas apenas dinheiro para o pão,
para a segurança, para um teto, para roupas, para tratamento médico. Dinheiro
para viver! Dinheiro para ter o direito de respirar, de viver como um ser humano.
Dinheiro para a proteção dos filhos. Dinheiro, dinheiro!
Frank escutava. O dinheiro não era um novo estribilho para ele. Mas
aquele dinheiro era de um tipo diferente, uma terrível necessidade. Não era
dinheiro para depositar no banco, para realizar certo sonho. Era dinheiro para
viver! Dinheiro, sangue, vida, ar, abrigo! Era o dinheiro que fazia a diferença
suprema entre o homem e o animal, e sem dinheiro o homem era apenas um cão,
um pária, menos do que um boi.
Conhecera a pobreza durante toda a vida, inicialmente na Inglaterra e
depois na América. Vira-a no seu próprio lar em Albany Street. (Mas havia uma
diferença em sua casa: a pobreza lá existente era proposital, deliberada.) Vira-a,
essa apavorante pobreza, em quase todas as ruas de Bison. Havia-a cheirado e
ela desprendia o mais fétido dos cheiros: de medo, em todas as casas. Apesar de
tudo, não o havia tocado, ele que vivia em sonhos multicoloridos de arco-íris. As
roupas, embora pobres, remendadas e grotescas, pelo menos o haviam
conservado aquecido e protegido contra o mau tempo. Não, não o havia tocado,
aquela mão esquelética. A fedentina não lhe alcançara as narinas com qualquer
insistente significação.
Agora via como ela era. Dissipou-se a nuvem opaca que, por tanto
tempo, lhe turvara os olhos e viu as faces dos colegas, preocupadas, pensativas,
rostos cansados, cobertos pelo pavor do medo. Naquele momento, sentiu medo e
fúria. Ora, eles nada tinham além das mãos, e se as mãos lhes faltassem
morreriam inevitavelmente de fome! Isso não podia ser suportado. A ameaça
sobrepairava como um escuro nevoeiro sobre a cidade. Rodopiava naquela
empoeirada sala de expedição. Rondava as máquinas. Erguia-se como um
fantasma nas ruínas em todos os bondes. Não havia maneira de pôr-se a salvo.
Vira um sem-número de faces embotadas na vida, faces derrotadas,
esmagadas. Haviam-no, vagamente, e com muito mais razão do que sabia então,
deprimido. Considerara a pátina que cobria essas faces como evidência de
autêntica estupidez animal e as havia evitado. Mas, naquele momento, sabia o
que era. Era pobreza, a terrível necessidade de bastante dinheiro. Era pavor.
Não sentiu compaixão alguma por aquelas pessoas. A compaixão, como
também a cor, a glória, o enlevo, a alegria e o mistério haviam-no desertado com
a partida de Paul Hodge. Sentiu apenas um sombrio medo e ansiedade. De
alguma maneira, de alguma forma, precisava de dinheiro! Mas como? Ganhava
tão pouco! Mal poderia viver com aquilo quando os pais voltassem para a
Inglaterra. (Não havia indecisão em sua mente sobre a questão da volta. Ele
ficaria.) O que faria? Quando estivesse sozinho, viveria tão inseguro como
aquelas pessoas. Precisava ganhar dinheiro!
— O que é que você acha disso, garoto? — perguntou-lhe Elsie, dando-
lhe uma cotovelada.
Ele sobressaltou-se e ergueu os olhos.
— Eu... eu estava pensando em dinheiro.
Sombria, ela inclinou a cabeça.
— Não é isso o que todos nós fazemos? Sabe, estou trabalhando aqui há
muito tempo, mas nunca chega uma noite de sábado em que eu não fique
arrepiada de medo. E se receber um aviso de dispensa em meu envelope? O que
é que vou fazer? Tenho ainda um irmão menor na escola. Ele é inteligente! Não
possuo mais de cinquenta dólares de economia. Parece que nunca consegui
ganhar o bastante para juntar. Jamais ganhei o suficiente. — Olhou para as mãos
calejadas, cheias de marcas, e sacudiu a cabeça. — Todos estes anos trabalhando
e apenas cinquenta dólares para mostrar! Compro por acaso roupas bonitas?
Tenho apenas duas camisolas, três pares de meia, uma saia extra de sarja e uma
única blusa de algodão. Isso é tudo. E se eu adoecer? Às vezes me sinto tão
doente que, em certas manhãs, minha cabeça parece que vai cair. Mas fico em
casa? Pode apostar a vida que não! Meu irmão menor precisa de óculos. Estou
economizando cinquenta centavos por semana. Preciso de dez dólares. Sabe o
que foi que ouvi dizer? Na Alemanha eles têm o que chamam seguro de doença
e de desemprego. Pense só nisso! A gente é dispensada de um emprego e pagam
a gente. A gente fica doente e vai a um médico, de graça. Quando ficamos
velhos, recebemos uma pensão...
— Oh! — exclamou o encarregado da expedição. — É uma mentira
danada, com toda probabilidade. De qualquer maneira, isso é na Alemanha. Nós
somos americanos, livres e independentes. Isso parece mesmo coisa de russos.
— A Rússia — disse Frank em voz tensa — é governada pelo Czar e lá o
povo é escravo. Não tem coisa alguma.
— Bem, de qualquer modo — disse o encarregado da expedição —, há
russos por aqui e eles estão criando casos. U. I. T.! Querem-nos tornar
socialistas. Nós, americanos, independentes e livres!
— Não sei de nada sobre socialistas — afirmou seca Elsie. — Mas, por
Deus, não me importo com o que chamem a isso se eu arranjar dinheiro para os
óculos de meu irmão e não morrer de fome se não conseguir um emprego.
— Bem, se algum de vocês for até a Curtiss e conseguir um bom
emprego, não sou eu quem vai censurá-lo — interveio o contramestre,
pigarreando embaraçado. Sorriu largamente. — Por que um de vocês não vai até
lá e depois me conta? Talvez eu também faça a mesma coisa!
Dinheiro, preciso de dinheiro! pensou Frank. Não para economizá-lo,
talvez, mas para usá-lo, construir com ele uma fortaleza. Olhou para o macacão
remendado e desbotado e, pela primeira vez, abominou aqueles andrajos,
revoltou-se contra eles com uma intensidade que o fez sentir-se quase nauseado.
Se possuísse dinheiro, compraria roupas decentes e respeitáveis. Poderia viajar.
Poderia conhecer o mundo. Poderia ir visitar Paul...
Pensou na casa de Paul e no pai do amigo. Por que não notara antes a
enorme e horrível pobreza em que haviam vivido os Hodges? Por que ela não o
havia sensibilizado, despertado a compreensão? Por que não se sentira enojado?
Preciso de dinheiro, dinheiro, dinheiro! Preciso de dinheiro para me afastar dessa
fealdade, dessa fedentina de medo, desse pântano de desesperança. Preciso tê-lo
para me afastar dessas pessoas revoltantes!
Olhou para os rostos em volta e odiou-os. Eram seus inimigos porque
eram pobres, sem esperanças, porque nada podiam fazer senão sofrer como gado
estúpido ante o chicote do vaqueiro. Não tinham coragem! Não tinham força.
Queixavam-se, mas era uma queixa impotente e inútil. Eram revoltantes! Eram
detestáveis.
Tocou a sirena e ele voltou à máquina.
Naquele instante, pela primeira vez em quase um ano, sentiu força e
vitalidade, uma finalidade ardente, uma pureza de raivosa emoção. Elsie falou-
lhe do alto de seu poleiro, mas ignorou-a. Precisava fugir. Havia novamente uma
luz no mundo, uma vívida e forte luz, embora sem beleza ou suavidade.
CAPÍTULO 30
Saiu furtivamente bem cedo na manhã seguinte. Levantava-se sempre
antes dos pais, pois Maybelle não mais deixava o leito para fazer o desjejum.
Frank preparava o seu com flocos de trigo, leite quente e chá. Francis fazia o
mesmo. Não teve, assim, dificuldade em vestir seu único bom terno, dar um nó
bem cuidado na gravata, escovar a basta cabeleira castanha e raspar os poucos
pelos que ocasionalmente lhe brotavam na face. Engraxou o único par de boas
botas, deu uma última escovadela na roupa, assumiu uma expressão de agressiva
confiança e tomou um bonde em Niágara Street em direção à fábrica Curtiss, em
Austin Street. Discretamente sob o braço levava as roupas de trabalho em um
embrulho.
O bonde tonitruou, balançou-se e queixou-se ao longo do caminho.
Estava cheio de operários vestidos de macacões e levando marmitas. Tinham os
rostos cansados e suados. Estendiam apáticos os pés para a frente. Frank desviou
a cabeça. Sentiu por eles um ódio estimulante, mas mortal no fundo do coração.
Eles eram a ameaça! Eram aquilo a que ele podia ser reduzido. Porque não
tinham dinheiro, nenhuma esperança, nenhuma finalidade! Olhou para as ruas
por onde passava e observou-lhes a pobreza e sujeira. Nuvens de detritos
voavam sobre as calçadas de pedras. O lixo fora posto do lado de fora e a
fedentina subia no vento quente e penetrava no bonde. Crianças sujas brincavam
já nas calçadas imundas. Aquilo era pobreza. Por que não havia visto isso antes?
Por que não a havia odiado, como odiava aquelas pessoas que refletiam o horror
corrupto da amarga provação em que viviam? A pobreza era uma peste e eles
haviam sido contaminados por ela.
Merecem-na, pensou, cerrando sombrio os dentes. Isso é tudo o que
merecem! É a fealdade e a esterilidade que criam os cortiços onde moram. Eles
são simultaneamente a causa e o resultado de uma apavorante existência. Não
têm inteligência. Não sentem desejo de serem outra coisa além do que são! Oh,
meu Deus, se eu apenas pudesse fugir deles! Mas eu fugirei, fugirei, fugirei!
O gerente de pessoal da Curtiss Aeroplane Company não chegara ainda
quando Frank entrou na fábrica. Mas já havia operários à espera nos bancos do
escritório. Mentalmente, Frank passou uma febril revista às suas qualificações.
Sabia bater à máquina. Não bater sem olhar para o teclado, mas batia com
grande rapidez. Tenho três anos de escola secundária, pensou. Não podiam
conferir isso e, assim, a mentira não importava. E tenho dezoito anos. De
qualquer maneira, pareço. Além disso, vou fazer dezoito em novembro, e, assim,
está certo. E vou-me matricular na escola noturna este outono! Se aprender
datilografia, sem olhar, e taquigrafia, aprenderei também contabilidade. Isso será
o primeiro passo. Mas não vou parar nisso! Vou ser alguma coisa! Vou ganhar
dinheiro.
Olhou em volta. Enquanto outrora havia estendido as antenas da mente,
sondado com delicadeza cada face, sentido compaixão e ternura, visto a beleza e
a maravilha da vida em cada coisa viva, agora via apenas fealdade. Odiava os
operários. Sentia no íntimo uma pulsação forte de resolução e ambição. Ora, não
havia coisa alguma que não pudesse fazer! Possuía mãos, mas possuía também
um cérebro, o que o distinguia daquele gado estúpido e abrutalhado em volta.
Voltou a fitá-los e sentiu a força do ódio como um aríete irresistível, um
transbordamento de forças.
O gerente de pessoal era um jovem bondoso e apoquentado. Recebeu
Frank antes dos demais. Ora, ali estava um rapaz que parecia ter inteligência e
caráter! pensou. De boa aparência, também, um jeito meio esquisito. Chamou
Frank à escrivaninha e anotou-lhe as falsas informações em uma pequena ficha.
Ouviu a voz tranquila e controlada de Frank correndo fácil. Três anos de escola
secundária. Datilografia. Aprovado em Inglês. Bom em contas.
— Clair, acho que podemos aproveitá-lo no escritório. Vinte e dois
dólares por semana para começar. Está bem? Um rapaz com sua formação e
ambição pode ir longe. Disse que trabalhou no escritório da Bison Wheat
Elevators? Não, acho que não precisamos de referências. Temos que dispensá-las
nestes dias que correm.
Frank respirou fundo, de alívio. Vinte e dois dólares semanais. Isso era
incrível. Eles não vão tomar tudo isso de mim, pensou sombrio a respeito dos
pais. Se tentarem, eu me mudarei. Darei a eles dez dólares por semana, e isso
será tudo. É pegar ou largar.
Com um cartão amarelo na mão atravessou a fábrica barulhenta. Em
alguma parte estava sendo testado um avião. O trovão dilacerante atacou-lhe os
ouvidos. Chegou a um pequeno escritório de madeira, erigido às pressas no
próprio centro da fábrica. Apresentou o cartão ao Sr. Wilson, que pareceu
satisfeito. Era grande a falta de pessoal e aquele rapaz parecia conhecer o
serviço. Apontou para uma máquina de escrever.
— Examine aqueles conhecimentos e pedidos de sobressalentes!
Comece a trabalhar imediatamente, garoto. Despache o máximo que puder.
Havia jovens estenógrafos por ali e algumas moças, trabalhando em
ruidosas máquinas de extrair faturas. Frank olhou em volta e sorriu. As moças
eram limpas, bonitas, bem vestidas. Olharam-no furtivamente. Os homens
usavam ternos bem passados, camisas brancas e gravatas. É mais ou menos isso!
pensou, usando o jeito de falar dos pais. Dera o primeiro passo para fugir da
fealdade, da odiosidade das roupas de operário, das faces suadas e sem esperança
dos pobres. Além disso, aquele emprego começava às nove e terminava às cinco.
Compensou a falta de habilidade na máquina de escrever com uma pura
e persistente operosidade. Às cinco horas havia quase chegado ao fim da pilha.
O Sr. Wilson ficou satisfeitíssimo.
Chegou a casa às cinco e meia, uma hora inteira antes da habitual.
Maybelle ficou tão desolada que não notou, no início, que ele usava as melhores
roupas.
— Você foi despedido? — perguntou, medrosa e zangada.
Frank sentou-se na cozinha e, friamente, falou-lhe do novo emprego. No
início, ela mostrou-se incrédula e enfurecida. Depois, cheia de respeito. Derreou-
se numa cadeira, umedeceu os lábios e pestanejou.
— Vinte e dois dólares por semana — murmurou. — Mas isso não vai
durar. — Estava pálida.
Francis chegou e a sua primeira exclamação, depois de ser informado,
foi:
— É uma mentira cabeluda! Não acredito nisso! — Ficou menos
impressionado do que Maybelle. — Eu sabia que ele não conseguiria aguentar-se
em coisa alguma — disse furioso. — Trabalhou naquela fábrica durante apenas
dois anos. Mas nunca aprendeu a conservar a cabeça baixa! Aí é que está todo o
problema, nunca aprendeu a conservar a cabeça baixa.
Frank fitou-o, desdenhoso. Com que clareza via agora os pais, e como os
desprezava!
— Por que devia eu manter a cabeça baixa? Por quê? Tenciono manter
minha cabeça erguida. Tenciono mantê-la erguida.
— Fale. Você sempre foi um falador. Um boca-mole! Muita conversa e
pouca ação. Bem, você não vai durar lá. Nunca durou, em parte alguma. Você é
um fracassado.
Frank cerrou os punhos. Naquele momento, sentiu um ódio e fúria
realmente assassinos pelo pai. Inesperadamente, pareceu que se ampliava,
alargava, transbordava das estreitas fronteiras do medo da sua infância. Disse:
— Durante toda a minha vida você me disse que eu era um fracassado.
Continue. Não o ouço nem acredito no que diz.
Francis olhou-o furioso. Estava acostumado a ver Frank baixar os olhos.
Naquela ocasião, entretanto, ele não o fez. Subitamente, sentiu a sua própria
pequenez diante daquele rapaz alto. Rilhou os dentes e vociferou:
— Vou-lhe dar uma surra pela sua insolência! Mentiroso é isso o que
você é. Sempre foi um mentiroso. Ninguém podia acreditar em uma única
palavra do que você dizia! Boca-mole! — Mas era pequenino, baixinho e Frank
se transformara subitamente em um homem. Ali estava um estranho, não mais
uma criança, mas um homem, e não tinha poder sobre ele. — Vou-lhe dar uma
surra! — repetiu, selvagemente. — Você não apanhou ainda o suficiente!
Frank sorriu e o sorriso enfureceu o pai.
— Vinte e dois dólares por semana — murmurou inquieta Maybelle. —
Isso é uma fortuna para um rapaz da idade dele. Pense no dinheiro que podemos
depositar no banco.
Francis mordeu a ponta do bigode e seus olhos pestanejaram, pensativos.
Murmurou:
— Dezoito dólares por semana no banco, no mínimo. Extras. Dois
dólares por semana para as roupas dele. Agora que está trabalhando num
escritório, precisará de mais roupas. Um dólar para o bonde. Isso chega a vinte e
um dólares. Um dólar para ele...
— Não — disse tranquilamente Frank —, não um dólar para mim. Doze
dólares para mim. Dez para vocês pela dormida e pela comida.
— O que é que você está dizendo, seu velhaco! — gritou Francis,
agarrando os braços da cadeira. — Vou derrubá-lo... vou...
— Você não vai fazer coisa alguma — respondeu calmo Frank. —
Tomei uma resolução. Então, sou um boca-mole, não? Desta vez, vou fazer mais
do que falar. Ou aceita os dez dólares ou não leva coisa alguma. E não pense que
vai dizer-me que sou menor. Vou fazer dezoito anos em novembro e serei dono
de mim mesmo. Irei embora e vocês não receberão coisa alguma. Estou falando
sério.
Ali, em suas cadeiras, os dois se entreolharam e foram os olhos de
Francis que se desviaram.
— Você me explorou por um tempo longo demais — disse Frank em voz
baixa. — Estou-lhe fazendo um favor em ficar aqui, em lhe dar alguma coisa.
Você me deu cinquenta centavos por semana de um dinheiro que me custou
muito a ganhar. Você não precisava dele. Tem mais de dez mil dólares no banco.
Agora, sou independente. E vou continuar independente. Pode dizer que sou
menor e que tem direito ao meu dinheiro. Pode ameaçar-me com a Polícia, como
fez antes. E contarei à Polícia que você me obrigou a mentir, a dizer que tinha
dezesseis anos, quando tinha apenas quinze. Contarei que você mandou um filho
de quinze anos trabalhar numa fábrica. Eu também posso falar.
— Mas dez dólares por semana não são suficientes — choramingou
Maybelle, desde que Francis, sufocando de raiva, não conseguiu falar. — Ora,
recebíamos oito e meio quando você trabalhava na fábrica! Apenas um dólar e
meio a mais é o que você quer pagar-nos. Não acha que nos deve alguma coisa
por todos os nossos anos de trabalho, esforço e sacrifício por você?
Frank levantou-se. Desviou os olhos do pai para a mãe. Falou, então, e
suas palavras, embora pronunciadas em voz calma, correram de seus lábios
como uma corrente de ácido sulfúrico e ódio:
— Não devo coisa alguma a vocês, salvo dor, ridículo e insultos. Foi
isso o que vocês me deram. Devo-lhes uma infância miserável, aviltamento e
medo. Foi isso o que me deram. Devo-lhes crueldade e surras imerecidas. Devo
a falta de uma educação apropriada. Se isso tivesse sido necessário, eu
compreenderia, perdoaria e faria o que pudesse. Mas não foi! Fizeram de mim
objeto de riso porque nunca me compraram roupas que não fossem roupas de
palhaço. Privaram-me de material comum para a escola e tive que roubar papel,
canetas e mesmo livros. Devo a vocês anos de má saúde porque não me queriam
dar cuidados médicos. Devo a vocês ódio, pois a mim foi o que deram.
Tornaram-me um mentiroso, fizeram-me sujo aos meus próprios olhos. Devo a
vocês tudo isso e, em troca, ofereço-lhes dez dólares por semana.
Maybelle apenas pôde ouvir, entorpecida, e fazer gestos inúteis com as
pequenas mãos gordas. Em seguida seus olhos se encheram de lágrimas.
— Pensar que eu viveria para ouvir isso de meu próprio filho! — disse
finalmente. À presa de serpente. Mais aguda do que a presa de uma serpente. Foi
isso o que Shakespeare disse sobre o filho ingrato. Eu fiz o que podia. E o
pagamento é apenas a ingratidão. — Virou-se para o marido em busca de apoio.
O rosto de Francis, porém, horrendo de fúria, estava escarlate. Projetara a língua
entre os dentes e mordia-a com força. Parecia ter enlouquecido.
Frank sentiu um último tremor de medo. Mas passou, para nunca mais
voltar. Perguntou:
— Querem que eu faça a mala e vá embora?
— Você tem que nos dar dezoito dólares por semana! — gritou
Maybelle, batendo as gordas mãos uma na outra.
— Dez. Quer que eu faça a mala e vá embora?
Francis reencontrou a língua. Levantou-se cambaleando e brandiu os
punhos. Caiu sobre o filho. Frank, agilmente, segurou os braços que desciam e
prendeu-os com uma única mão. Olhou para os olhos do pai e foi esse olhar,
cheio de ódio, nojo e desprezo, que fez Francis parar, e não a empunhadura do
filho.
— Se você algum dia me tocar novamente — disse Frank em voz baixa
—, eu o derrubarei a socos. Conheço a lei. Eu mesmo a estudei um pouco.
Agressão. Quer ir para a cadeia, papai?
Lançou para os lados os braços do pai e esfregou as palmas das mãos
uma na outra, como se quisesse limpá-las de algum sujo. Espigou-se e ergueu o
queixo. Os pais eram como pequeninas crianças à sua frente. A cabeça de
Francis mal lhe chegava à boca e a cabeleira grisalha de Maybelle não passava
do seu queixo.
— Dez dólares. Pensem no caso.
CAPÍTULO 31
Em setembro, o salário de Frank foi elevado para vinte e cinco dólares
semanais.
Podia agora economizar sete dólares por semana. Olhou para a caderneta
de depósitos e entreviu a liberdade. Estudava os algarismos não como os pais
faziam, com avareza, mas com feroz determinação. Não era suficiente! Precisava
de mais dinheiro, muito mais dinheiro, não dez mil dólares, ou vinte, ou
cinquenta mil, mas de uma soma astronômica. Precisava do suficiente para se
libertar para sempre do toque letal da pobreza, para esconder-se para sempre da
face da pobreza, de sua voz rouca e de suas esquálidas habitações.
Voltou a passear pelas ruas onde moravam os ricos, não para saborear o
prazer da beleza das árvores, dos gramados e dos jardins, como outrora, mas
com inveja e sombria finalidade. Não via a beleza. Via o luxo, a prodigalidade, a
vida fácil, o ócio, uma segurança de muros de fortaleza. Via os caros automóveis
que rodavam pelas passagens privativas e imaginou-se no volante de um deles.
Consumia-o agora uma fome devoradora de riqueza, riqueza obtida a qualquer
preço, a qualquer custo. Se pensava ainda em Paul Hodge, era como quem se
lembra de um sonho radiante e colorido, mas, afinal de contas, apenas um sonho.
Um calo crescia sobre a recordação de Paul, grosso, impermeável, coberto de
cicatrizes, insensível. Fazia seis meses que não escrevia ao amigo.
Certo dia, em um quente e dourado setembro, o Sr. Wilson bateu-lhe no
ombro.
— Garoto, há um cara lá fora que quer vê-lo. Está vestido de marinheiro.
Diz que conhece você e quer-lhe falar. Vá atendê-lo. O trabalho pode esperar
alguns minutos.
Perplexo, Frank levantou-se e transpôs a porta de madeira do pequeno
escritório. Seus ouvidos foram imediatamente assaltados pelo rugido de um
avião. Viu um marinheiro observando o teste do motor. Ele voltou-se e sorriu.
Era Paul.
Frank parou abruptamente. Durante um momento todo o sangue afluiu
para seu coração e quase desmaiou. A figura de Paul como que vacilou e tornou-
se cinzenta, indistinta. Sentiu que o amigo lhe tomava a mão. Ouviu-lhe a voz. A
fábrica desapareceu e encontravam-se novamente no bosque, na primavera,
escutando os agudos e doces cantos de hosanas à vida.
Olhou para a face de Paul e isso foi tudo o que conseguiu fazer: olhar.
Sorriram um para o outro e não conseguiram pronunciar palavra. Ficaram
simplesmente ali, sorrindo, e um bolo fechou a garganta de Frank. Tinham as
mãos presas uma na outra. Paul disse suavemente:
— Você mudou, Frank. Meu Deus, que prazer vê-lo novamente! Por que
não me escreveu?
Frank respondeu em voz quase inaudível:
— Não adiantava. Não adiantava.
Pigarreou e apontou mudo para o uniforme. Paul olhou para a farda,
enrubesceu e disse, desajeitado:
— Foi a única coisa a fazer. Papai deu permissão. Afinal de contas,
tenho quase dezoito anos. — Interrompeu-se por um instante. — Estou indo para
a Escola de Treinamento, nos Grandes Lagos. Meu trem sai às seis. Falei com
aquele homem e ele disse que não havia problema se você saísse comigo, para
passarmos algum tempo juntos antes que eu vá embora.
A porta abriu-se nesse momento e o Sr. Wilson apareceu, sorrindo.
— Vão em frente. Está tudo O.K., rapazes. Boa sorte, marinheiro.
Estonteado, inerte, Frank mais uma vez olhou para Paul. O amigo estava
tão alto como ele e tão magro como sempre. O rosto pequeno e as feições
delicadas pouco haviam mudado. O uniforme dava-lhe uma elegância e um
equilíbrio que recordavam a dignidade infantil de seus primeiros anos.
— Dizem que a guerra vai terminar logo — comentou Frank.
Paul não ficou confuso com a observação aparentemente irrelevante.
Sentiu-se, em vez disso, comovido. Puxou de leve a manga de Frank.
— Vamos agora?
Saíram para o quente azul e o ouro daquele belo dia. Desceram juntos,
sem falar, a barulhenta e suja rua.
— Vamos até The Front — disse Paul. — Era um de nossos passeios
prediletos.
Frank permaneceu calado. Os olhos esverdeados de Paul estudaram-lhe
o rosto durante um momento e seu próprio rosto enrubesceu. Um bonde
apareceu chocalhando e balançando-se nos trilhos. Subiram juntos. O veículo
desceu barulhento Niágara Street. Nada disseram durante a viagem. Frank não
olhou para o amigo. Tinha o perfil virado para ele e Paul examinou-o
atentamente. Sua boca descorada comprimiu-se em uma linha de tristeza.
Chegaram a The Front. O rio corria embaixo, azul-esverdeado,
apressado, faiscando. Uma barca descia o canal. Apitou. A margem canadense
brilhava vivida e verde do outro lado da água. O céu arqueava-se sobre eles
como uma pura e brilhante água-marinha. Sentaram-se em um banco e sentiram
o vento quente e capitoso nas faces.
Paul nunca tomava a iniciativa numa palestra. Naquele momento podia
apenas esperar. Sentiu-se profundamente triste. Aquele não era o Frank de que se
lembrava, esse estranho indiferente e contido, com uma mandíbula dura, olhos
desviados e frio silêncio. Onde estavam o velho calor, o velho entusiasmo e a
animação, o velho riso e a voz rápida e risonha? Onde estavam a segurança que
ele sempre sentira, a força e a esperança, o olho que descobria tantas coisas
misteriosas e importantes?
Frank falou nesse momento:
— E a sua educação? — Havia uma nota dura, quase zombeteira na voz.
Não olhou para o amigo.
Paul virou a cabeça para o outro lado. Olhou para o rio. Respondeu em
voz baixa e neutra:
— Pode esperar. Mas..., mas isto, não.
A boca de Frank encrespou-se levemente em um pequeno sorriso.
— O que é que não pode esperar?
Paul olhou para as mãos estreitas e tranquilas. Moveu-as um pouco e
respondeu:
— Meu país.
Teria Frank encolhido os ombros, mesmo de leve? Os lábios de Paul
contraíram-se durante um momento. Continuou:
— Posso dar um ano pelo que a América significa para mim. Posso dar
um ano para...
— Salvar a democracia — interrompeu-o Frank.
Paul enrubesceu. Ergueu a cabeça e disse, com dignidade:
— Sim.
Esperou. Frank continuou calado. Paul voltou a falar:
— As palavras podem ser usadas com tanta frequência, de forma tão
leviana... serem tão prostituídas com tal irreflexão e banalidade pelos políticos,
pelos tolos, pelos repetidores de frases fáceis que podem parecer sem
significação, absurdas. Mas não perdem a significação básica. Podem ser
emporcalhadas por mãos sujas e estúpidas, mas, por baixo do sujo, continuam
brilhantes. — Parou por um momento. Não era dado a discursos longos, mas seu
coração batia naquele instante da mais estranha das maneiras, como se estivesse
indignado, ou com medo, ou como se tentasse comunicar alguma coisa a alguém
que cegara e emudecera. — Mas você sabe disso. Nós conversamos muito sobre
isso. Lembra-se?
Frank olhou fixamente para o rio.
— Você entende o que quero dizer — continuou desanimado Paul. —
Ouça: este é o meu país. Quero fazer alguma coisa por ele. Esta é a única
maneira pela qual posso fazê-lo. É... é tudo o que tenho para dar. — Esperou
mais uma vez. Em seguida, falou em um tom de desespero: — O que é que há
com você, Frank? Você mudou. Não parece mais a mesma pessoa. O que foi que
houve?
— Você esperava encontrar-me ainda como criança, de calças curtas? —
perguntou Frank. — Não dê importância a isso. Você também mudou. Mas não
vamos falar a meu respeito. Como vai você? Sabe que estou muito satisfeito em
vê-lo de novo? — Sorriu nesse momento e algo no peito de Paul contraiu-se de
dor. Era como se visse o reflexo de um sorriso bem lembrado e amado nos lábios
de um frio estranho. Era como se ouvisse a inflexão de um morto na voz de
alguém que não conhecia. Era como se visse a face de um estranho, em uma
multidão estranha, que lembrasse alguém que desaparecera e que fora mais do
que um irmão.
— Você está contente em me ver novamente? — perguntou Paul em voz
tranquila e desviou a vista.
Sentiu a mão de Frank no ombro. Estava sacudindo-o de modo
brincalhão. Paul não soube o que foi que o fez dizer com secura:
— Não faça isso!
Frank deixou cair a mão. Olhou firme para a face afogueada do amigo.
Nesse momento era o jovem Frank, perturbado, perplexo, volúvel, ferido. Mas
ele desapareceu logo, quase antes que Paul pudesse entrevê-lo.
— Sinto muito. Esqueci que você era tão sensível, Paul.
Não é isso, você sabe que não é isso! gritou Paul para si mesmo. O que
é? O que foi que lhe aconteceu? Mas conseguiu apenas dizer, claudicante:
— Por que você não vem comigo? Poderíamos ficar juntos, como nos
velhos dias.
Os olhos de Frank tornaram-se pensativos, imóveis. Em seguida,
perguntou:
— E Gordon? Ele também sentou praça?
Paul encolheu os ombros.
— Não pôde. Os olhos dele são muito fracos. Está estudando agora para
obter o mestrado. Ofereceram-lhe um cargo de assistente na Universidade,
quando ele terminar o curso. Isso significa muito para ele e para papai.
De que modo poderia restabelecer o contato com Frank? Naquele dia,
durante a longa viagem, em nada mais pensara senão no amigo. Como
conversariam novamente, ririam, veriam as mesmas coisas, e com que
eloquência Frank interpretaria tudo para ele, de modo que, mais uma vez, teria
olhos e haveria beleza, significação e glória no mundo! Sentiu-se como se
houvesse sido privado da visão por uma pessoa que podia devolvê-la a ele, por
alguém que podia tirar frias e mortas mãos de seus ouvidos.
Paul olhou para o rio, que naquele momento era uma sombra verde e
azul, prenhe de vigor e vitalidade. Mas não pôde senti-lo. O intérprete fora
embora. Lembrou-se dos anos passados longe do amigo. Vivera de recordações.
Vira belos cenários e os comentara mentalmente com Frank, que falava sobre
algum indescritível pôr do sol. Frank discernia o significado de um trigal, de um
pálido brilho à luz da lua, dizia o que significava o som do rio no inverno. Mas
Frank se fora e a glória desaparecera da face da terra.
Eu sempre fui um espelho, o espelho dele, pensou Paul. Ele me fazia ver
o que via, ouvir o que ouvia. Agora, nada mais me resta.
Frank dizia:
— Estou ganhando vinte e cinco dólares semanais. Vou ganhar mais.
Comecei a estudar na escola noturna. Quando terminar o curso secundário, vou-
me matricular numa universidade.
Paul alegrou-se e sentiu uma leve calidez.
— Foi isso o que você disse antes! Que bom! Mas não esteve estudando
antes disto? Você disse que ia.
A fisionomia vazia de Frank tornou-se ainda mais inexpressiva.
— Não, não tive tempo. Perdi o interesse por todas as coisas depois que
você foi embora. Acho que fui um idiota. Não tinha ambição. Mas agora tenho.
Paul permaneceu calado durante longo tempo. Em seguida, perguntou
baixinho:
— Qual é a sua ambição?
— Dinheiro. Somente dinheiro. — As palavras foram pronunciadas em
voz tranquila, mas Paul sentiu que havia uma determinação férrea por trás delas.
Fez um esforço para rir.
— Bem, essa é minha ideia, também. Eu sempre quis dinheiro. Odeio ser
pobre. Não da maneira como parece, talvez. Mas queria dinheiro para comprar
coisas. Livros, quadros. É nisso que você está pensando, também?
Frank virou a cabeça e fitou-o longamente. Paul notou a dura linha da
boca do amigo.
— Não, não é nisso que estou pensando. Eu simplesmente quero
dinheiro. Porque eu odeio. O dinheiro é tudo o que importa.
Tocado por uma compreensão, uma dolorosa percepção, Paul exclamou:
— Você é um covarde!
Frank, porém, não se deixou emocionar. Paul virou-se com uma
veemência rara nele.
— E sua poesia? Os seus escritos? O que é que você está fazendo?
Frank explodiu numa gargalhada.
— Oh, esqueci toda essa bobagem! Não escrevo há anos.
Interrompeu-se durante um momento, virou-se bruscamente para olhar o
amigo e seus olhos azuis faiscaram pensativos durante um curto momento.
— O que é que você quer dizer com isso? Não há dinheiro em literatura.
Os escritores morrem em águas-furtadas.
Esperou. Paul não respondeu. Frank repetiu, insistente:
— Não há dinheiro em literatura, há? Já ouviu falar em algum escritor
que houvesse ganho dinheiro?
Paul respondeu, apático:
— Ora, claro que há dinheiro em literatura. Mas você nunca pensou
antes no aspecto monetário, ou pensou? Ele nunca lhe ocorreu. — Suspirou. —
Você queria fazer algo pelo mundo. Queria dar algo ao homem. Foi isso o que
me disse. — Ficou silencioso por alguns momentos e continuou depois, na
mesma voz morta: — Li recentemente que E. Phillips Oppenheim, Rex Beach e
alguns outros ganharam centenas de milhares de dólares. É isso o que você quer?
Escrever livros como os deles?
Uma estranha excitação, contudo, surgira nos olhos e no rosto de Frank.
Virou-se no banco. Quase agachado olhou para Paul.
— Se eu apenas pudesse escrever como eles! — exclamou. — Eu posso!
Vou escrever! Sei que ainda posso escrever! Mas, primeiro, preciso estudar
durante muito tempo. Preciso aprender. Eu não sei realmente coisa alguma!
Paul fitou-o, mudo. Frank riu secamente e continuou:
— Olhe só quem está falando em “dar algo ao homem”. Você nunca teve
a menor vontade de dar coisa alguma. Dizia que odiava quase todo mundo. Por
que essa conversão à bondade e ao amor, assim tão de repente?
Paul afastou-se dele. Em seguida, respondeu firme:
— Continuo a não gostar de gente. Mas você... não era... eu. Você tinha
algo mais. Tinha algo a dar. Eu não. Talvez fosse esse o motivo por que eu
odiava o mundo. Nada tinha para dar. Você tinha. Você tinha algo de valor
inapreciável. Agora, não tem mais. — Dilataram-se seus claros olhos verdes. —
Você tomou até mesmo o que me deu.
Frank começou a falar mas, em seguida, sua boca se contraiu em um
sorriso desdenhoso.
— Não me diga agora que se tornou sentimental! — exclamou, por fim.
— Você é igual a todos os outros. Está inteiramente disposto a ser rico e fará
qualquer coisa para ter dinheiro, e isso não lhe causará remorso. Mas pensa que
“aqueles que servem à arte” devem viver uma vida de fome e sacrifícios. Quer
que lhe sirvam, enquanto você se enche de dinheiro. Por que deveriam eles
servir-lhe? Por quê? Será você tão valioso, tão heroico, tão digno de atenção?
Paul apertou fortemente as mãos. Afastou-se de Frank. Olhou para a
linha verde da costa canadense.
— Você me fez ver... tudo aquilo... certa vez. Você me deu algo que fez
o mundo tolerável para mim. Tornou-o... belo... Agora tomou tudo.
— Oh, diabo!•— exclamou desdenhoso Frank. — Não estou entendendo
o que você está dizendo.
A face de Paul tornou-se inteiramente morta. Sentiu a vida desaparecer
do cenário em volta, que se transformou em coisa inerte, coberta de poeira,
pintada de cinzento. Um gosto doentio e velho surgiu-lhe na boca. O mundo era
um deserto, e nele só havia cinzas e silêncio.
Levantou-se.
— Esqueci. Há umas duas ou três pessoas que preciso ver antes de ir
embora.
Olhou para Frank e, nesse momento, tinha a face impassível, recolhida,
tão paralisada e rígida como na ocasião em que o conhecera. Frank ficou
espantado e curiosamente abalado com aquela expressão. Levantou-se também.
Paul estendeu-lhe a mão. Após um momento, Frank apertou-a. Era uma
mão desconhecida, a mão de um estranho que não o conhecia.
Paul afastou-se. Frank permaneceu onde se encontrava observando-o,
como Paul o havia observado naquela terrível noite, há tanto tempo.
Nesse momento, sentindo uma inesperada e convulsa dor, gritou:
— Escreva-me! Não se esqueça de me escrever!
Paul não se voltou nem respondeu.
Frank despedira-se antes de Paul dessa maneira, mas fora ele próprio
quem se afastara e não olhara para trás. Mas, certa vez, descera uma longa e
vazia passagem de automóveis, virara a cabeça e alguém lhe acenara, alguém
que parecia uma pequena nuvem cor-de-rosa. Sacudiu impaciente a cabeça. Fora
um de seus sonhos, naturalmente, um sonho que se misturara muito tempo antes
com a fantasia de uma mulher numa chuva cor de malva, entre lilases.
CAPÍTULO 32
Voltou ao banco num estado de profunda agitação. Sentou-se e olhou
fixamente para a frente, sem ver, para o jogo de luzes e sombras no rio.
Ultimamente começara a fumar. Acendeu um cigarro, mas achou-lhe o gosto
amargo e acre. Conservou-o na mão, porém, até que ele se reduziu a cinzas.
Como pudera falar daquela maneira a Paul, cuja partida lamentara por
tanto tempo? Por quê? Aquele rapaz era o Paul! Era seu amigo e fora por ele que
sofrera tanto. Toda a luz deixara o mundo com a partida de Paul. Não podia, nem
mesmo naquele momento, pensar naquela quente noite de agosto sem depressão
e sofrimento.
A tristeza e a privação continuavam ainda, tão sombrias, hirtas e
dolorosas como sempre. Mas haviam-se alargado, haviam-se tornado difusas.
Sentiu tristeza, sentado ali em meio à luz que desaparecia. No entanto não era
mais por Paul e isso até a ele pareceu estranho. A tristeza transcendera a Paul,
perdera os contornos, abarcava tudo o que ele via, tocava e pensava. Começara
numa noite de agosto. Estendera-se por todos aqueles anos. Mas não era uma dor
aguda e pessoal. Era algo que não conseguia compreender.
Pensou: Eu devia ter pedido notícias dele. Devia ter falado.
Simplesmente falado. Mesmo que fosse hipocrisia e eu não estivesse realmente
presente. Devia ter sorrido, sido agradável, devia ter fingido. Fingido? Era
necessário que eu fingisse?
Sim, pensou com sombrio e doloroso espanto, teria sido fingimento.
Fingir para Paul! Fingir como se na presença de um estranho, por quem
não se importava! Sonhara com a volta de Paul e os sonhos haviam sido de
êxtase, desespero, lágrimas. Paul voltara. E... nada houvera. Nada o comovera ou
agitara. Uma ou duas vezes sentira uma pontada de impaciência, irritação,
cansaço. E somente uma vez um regresso, um suspiro, como se um morto se
houvesse virado na sepultura durante um instante. Isso quando o vira na fábrica.
Mas o morto morrera novamente e ele se afastara como de alguém que não
conhecesse.
Você não pode voltar, pensou. Não pode voltar à alegria, aos dias do
verão, às recordações. Pode voltar apenas para o sofrimento. Sim, pode voltar
sempre ao sofrimento. E, de certa maneira, é um sofrimento maior, uma mágoa
que encheu de pedras e ervas daninhas o campo estéril. Pode voltar para o
sofrimento, mas, mesmo assim, é um sofrimento diferente, que se transformou
não num soldado morto, mas num campo de batalha de dor.
Sentiu profundo entorpecimento e cansaço. Olhou para o rio brilhante e
continuou mudo. Sim, era um mudo. Fora a sua mudez que causara tanta
desolação a Paul. Mas eu não tinha coisa alguma a lhe dizer. Nada,
absolutamente! Não tenho mais tampouco coisa alguma para dizer a mim
mesmo.
Certa ocasião, sentara naquele mesmo banco em um anoitecer cor de
violeta enquanto as árvores gotejavam pingos de cristal em volta e o rio
murmurava aos seus pés. Sentara ali e sentira grande exultação, emoção, fora
inundado de amor e ternura! Estivera sozinho, mas, na verdade, não solitário.
Não solitário como naquele momento. Olhara para a mão e exclamara para si
mesmo: “Em minha mão! Em minha mão!”. As palmas vazias repousavam nos
joelhos naquele momento e olhou para elas. Estavam vazias. Estavam vazias,
completamente vazias. Paul soubera. Fora por isso que não seguira Paul, não o
chamara, não o abraçara. Não poderia ter ido a ele com aquelas mãos. Não
tinham coisa alguma para oferecer a quem sempre lhe chegara em busca de vida,
significado, compreensão, luz.
Lamentou-se, mas não pelo amigo. Lamentou-se por si mesmo, seu
vazio, sua desolação. Era um impotente. Sentiu a impotência como um aperto no
peito.
Mexeu-se no banco. Estou ficando sentimental, pensou. Acordei agora.
Não sou um jovem tolo, que diz coisas sem nexo. Sou um homem e preciso
trabalhar... por mim mesmo.
O céu do oeste cobria-se de um rosado delicado, da tonalidade de uma
pétala fresca ao amanhecer. Olhou para o espetáculo. Observou-o aprofundar-se
em cores. Um bando de gaivotas brancas alçou voo da margem do rio embaixo e
voou em direção ao pôr do sol. Viu o rosado de suas asas e ouviu-lhes os pios
selvagens. O rio adquiriu uma cor escura e brilhante. Belo, pensou embotado.
Mas não sentiu a beleza.
Não conseguiu afastar a vista. Desenvolvera ultimamente o hábito de
observar as coisas belas com atenção, ao passo que antes as sentira e as traduzira
em poesia e êxtase. Naquele momento, apenas se lembrava delas. Reunia os
quadros de tardes que morriam, de árvores, céus e águas e os armazenava na
memória. Compreendeu nesse momento por que assim agia. Escreveria
novamente sobre eles, no futuro, embora objetivamente, sem sentimentos. Mas
escreveria sobre eles e os quadros que recriaria na memória lhe trariam dinheiro.
Surpreso, pensou que aquela finalidade devia ter estado presente em sua
mente durante todo o tempo. Estivera ali e ele não se dera conta disso. Era uma
finalidade sem emoção, a beleza discernida sem paixão. Algum dia escreveria
mesmo sobre Paul e seria com compreensão, com delicado discernimento e
habilidade. Mas seria tudo sem ternura e sem amor, sem exultação, sem a
sensação de que, durante um instante, sentira a passagem de Deus.
Tenho muita coisa ainda que aprender, pensou. Sou realmente um
ignorante. Li uma biblioteca inteira e nada sei. Preciso aprender e com tanta
rapidez quanto possível. O que foi que Paul disse? Havia dinheiro em literatura.
Mas eu sempre soube disso. Simplesmente, nunca me subiu à consciência antes.
Continuou sentado ali até que a orbe refulgente do sol mergulhou no
lado distante e desceu o anoitecer cor de púrpura. Viu tudo aquilo com uma
clareza que não fora sua na juventude, pois um nevoeiro dourado a tudo cobrira
e houvera tremor em seu coração. Naquele momento era como se um plano
houvesse mudado, bem de leve, e se tivesse nivelado em alguma profunda
dimensão. Todas as cores continuavam ali, mas eram nítidas e a luz um pouco
forte demais. Eram apenas pinturas estáticas de cenas que vira em sua realidade
viva, quando as árvores murmuravam e o calor da vida perpassava por elas como
o vento. Por mais talentoso que fosse o pintor, seu pincel podia reproduzir
apenas cenas mudas e a luz em suas árvores, paisagens e nas faces de suas gentes
era imóvel, rasa. Permaneciam, mas aquilo que o pintor vira e não pudera
transferir inteiramente para a tela desaparecera para sempre.
A galeria da mente transbordava de todas essas paisagens e retratos
estáticos. Mas fugira a emoção com que outrora as vira e restara somente uma
dor muda, a própria sombra, o próprio nevoeiro da recordação.
Escurecia. O acendedor de lampiões fazia sua ronda. Luas amarelas
brotavam ao longo de The Front. Ouviu nesse momento um ribombo distante e
viu a luz redonda e branca de um trem aproximando-se nos trilhos embaixo.
Tentou desviar a vista. Não pôde. O trem nesse momento passa à sua frente e, de
súbito, ouviu-lhe o lamento, prolongado, desesperado, triste. Escutou-o e o som
ecoou em todas as células de seu corpo, ecoou no vazio.
CAPÍTULO 33
O trem desaparecera e seu último eco fora abafado pelo silêncio.
Naquele instante havia apenas o farfalhar das secas árvores de outono, o cheiro
bravio do rio escuro, o perfume da grama outonal. Subiu um vento das águas
rápidas embaixo e as árvores se queixaram, inquietas. Frank fumou um cigarro
após outro até sentir a boca seca. A mente, porém, trabalhava rápida, girando,
analisando, com uma nova e fria excitação e esquematização.
Há tanto tempo que não escrevo coisa alguma, pensou. Devo estar
destreinado, mas voltarei. Sou como um pianista que negligenciou o piano e
precisa voltar, com os dedos duros e a mente rígida. Mas preciso voltar. Posso
fazer isso! Fiz certa vez, quando era criança, e posso fazê-lo de novo. E por
dinheiro! Nunca houve coisa tão importante como o dinheiro.
Voltaria à escola. Precisaria tratar do assunto na manhã seguinte. Em
primeiro lugar, naturalmente, a escola secundária e, mais tarde, aulas noturnas na
Universidade de Bison. Anos. Isso não importava. Se a pessoa estava resolvida e
tinha uma meta, o tempo passava e tornava-se mais frutífero com a sua
passagem. “A corrida para os rápidos e a batalha para os fortes”. Sentiu uma
onda de poder, exultação e sombria determinação subir dentro do peito. O que
importava se não era mais o antigo, doce e terno poder, o velho êxtase? Aquilo
era novo e, ainda assim, antigo. Era a paixão de um homem, não de uma criança
sonhadora. O que desejara a criança? Beleza, compaixão, dedicação... Dedicação
a quê? Esfregou a testa e sorriu cruelmente. Não podia lembrar-se do que era
aquilo a que desejara dedicar-se. Fora algo terrível e esplêndido... mas não podia
lembrar-se. Tolice! “A glória e o frescor de um sonho.” Wordsworth devia ter
estado quase senil quando escrevera aquele poema. Havia glória e chamava-se
dinheiro. Havia frescor e chamava-se ambição. Tudo mais era bobagem.
Enquanto estiver na escola preciso escrever e praticar. Preciso escrever.
Sobre o quê? Nada sabia. Nada sabia absolutamente das grandes cidades, de
aventuras emocionantes, de lugares estranhos. Das coisas sobre as quais
escreviam os escritores. O que sabia ele, sobre o que poderia escrever? A quem
conhecia cuja história pudesse interessar enormemente ao mundo? Nada sabia,
não conhecia pessoa alguma. Se escrevesse, forçosamente teria que fazê-lo sobre
coisas insignificantes, sobre pessoas sem importância ou valor. Quem estaria
interessado, por exemplo, na história de seu covarde pai, que nada conhecia
senão o medo, quisera ser um grande violinista e não era nem mesmo um
“rabequista”? Que plateia refinada ficaria absorvida com a visita semanal de
Francis Clair ao banco quase às carreiras, sua exultação ao alisar as notas e a
maneira pela qual ele estacara de chofre certa vez na calçada para escutar alguém
que tocava violino na janela mal iluminada de uma casa? Frank lembrou-se
daquela noite. Estivera chovendo e a água gotejava em sons leves e musicais. As
árvores solitárias brilhavam como espelhos pretos à luz amarela do gás e
ninguém andava pelas calçadas silenciosas. Ele e o pai haviam saído a fim de
fazer uma compra para Maybelle, mas não falaram, porque nada havia para
dizerem um ao outro. Passaram então por aquela casa e Francis parara
subitamente, como se alguém o houvesse atingido no peito e ele não se pudesse
mover. O jovem Frank sentira o aroma doce da grama molhada e no rosto os
pingos de chuva que caíam das copadas e escuras árvores. O violino os abordara
como uma estranha e misteriosa voz saída do nada, um chamado, uma suave
insistência, uma doçura além de toda a doçura, uma saudade que ultrapassava
toda a compreensão.
— A Meditação... Thais — murmurara Francis.
O jovem Frank erguera os olhos para ele. A luz do poste iluminava o
rosto pequeno e murcho de Francis, onde havia uma pura angústia, um
sofrimento congelado. Naquele momento, enquanto olhava incrédulo, o menino
viu lágrimas descerem pelo rosto do pai.
Não, ninguém se interessaria por um sofrimento tão baixo e
insignificante. Quem acreditaria que uma alma vivia naquele pequenino e
medroso corpo de farmacêutico sem importância e que aquela alma podia sentir
sofrimento e esforçar-se para ouvir a voz de um anjo? Bem, se ele, Frank, apenas
conhecesse um grande musicista, um compositor! Que história não poderia
escrever sobre tal homem e com que prazer e lisonjas — e dinheiro — seria
recompensado por ela!
Quem pararia para comprar um livro que contasse a história do Sr.
Timothy Farley, o patrão do pai? Quem se importaria em saber que o Sr. Farley
se interessava mais pelo estado de sua alma do que pelo estado de suas contas
bancárias? O Sr. Farley fora noivo outrora de uma boa moça, na Irlanda, a qual
se afogara na véspera do casamento. Ele dissera a Frank certa vez que jamais
podia olhar para a água sem ver-lhe a face branca flutuando no verde líquido e
por isso sempre evitava rios e lagos.
Havia também o Sr. Brislow, cuja esposa e quatro filhos morreram num
acidente ferroviário. Sobrara apenas uma filha, uma mocinha de quatorze anos.
O Sr. Brislow fora outro Francis Clair, um indivíduo cuidadoso, temeroso,
avarento, cheio de cautela. Mas, ao receber quinze mil dólares de indenização
pela perda da família, enlouquecera inteiramente. Deixara o emprego numa
alfaiataria e levara a filha em um cruzeiro pelo mundo, comprando-lhe o mais
rico e estupendo guarda-roupa e, para si mesmo, os melhores ternos e trajes
esporte. Francis lhe perguntara por quanto tempo esperava que o dinheiro
durasse.
— O que é que me importa! — exclamara o Sr. Brislow com uma
excitação demente. — Eu terei vivido, não? Terei visto o que sempre quis ver!
Saberei o que é beber, comer e dormir quando quero e fazer o que quero, mesmo
que apenas durante uns dois anos. O que é que importa, depois disso? Isto é
dinheiro de sangue, compreendeu? Minha esposa, o nome dela era Ethel, disse-
me uma vez: “Matt, se você apenas vivesse, uma única vez!” Foi isso que ela
quis que eu fizesse... vivesse. Apenas uma vez.
Quem se importaria com o Sr. Brislow, cuja vida fora uma pequena e
fechada horta e que, naquele momento, se enchera da selvagem folhagem da
selva? Quem desejaria saber o que fora que libertara aquela alma de verme e
levara aquelas botas lustrosas a pisar em estranhos e exóticos lugares?
Havia o velho Sr. Tom Sheridan, que fora aleijado durante toda a vida e
nunca deixara o pobre quintal por trás da minúscula cabana onde vivia. Mas o
velho Tom contava espantosas histórias do que observava em volta.
Maravilhava-se com a operosidade das formigas, deliciava-se com o trabalho das
abelhas, alegrava-se ao ver um beija-flor, extasiava-se com o voo dos gansos
selvagens sobre o quintal no outono, espantava-se de coração com um dente-de-
leão. Descobria Deus num talo de grama e o mistério do fluxo da vida numa
folha. Conhecia a Sra. Tordo e seu companheiro e dizia que todas as aves
possuem um caráter diferente. Discutia com os melros, que lhe chamavam
nomes, e possuía um amigo muito querido, um corvo, que se encarapitava em
seu joelho e maldizia as outras aves. Velho estúpido. Que leitor exigente em
Nova York quereria saber alguma coisa sobre Tom Sheridan e seus desvarios
naquele pobre quintal, um emaranhado de trepadeiras e rosas que subiam pelas
paredes?
Frank imaginava os leitores para quem escreveria e muito lhe pagariam.
Lânguidos, amigos do luxo, elegantes, queriam histórias sobre Maquiavel e os
Bórgias, grandes músicos, cantores, aventureiros, importantes figuras históricas,
ilhas perdidas nos trópicos, a França, seus bordéis e bares, a Alemanha com seus
castelos, sombrias florestas e planícies, a Rússia com suas estepes intermináveis
e rios escuros.
Queriam histórias sobre o teatro e os grandes de Espanha, sobre pessoas
de sua própria grei que viviam em Nova York entre canyons de pedra azul-clara,
amarela e cor de alfazema, que frequentavam restaurantes finos e exclusivos e as
casas fechadas dos “Quatrocentos”. O que sabia ele sobre tudo isso? Nada. Sabia
que um amador como ele jamais ousaria escrever as histórias que eles queriam.
Ririam dele com desprezo. E ele nada tinha ainda para lhes oferecer, salvo os
Francis Clairs, os Brislows, os Tom Sheridans. O que é que lhes interessava
Bison, seu profundo e cascateante Rio Niágara, e que simpatia podiam sentir
pelos lagos? Pessoas como eles ignoravam a própria existência das gentes das
pequenas cidades, que nada tinham a oferecer ao mundo salvo filosofias em má
gramática, uma vida de formigas, esperanças mesquinhas e tristes, mortes
ignóbeis.
Eu preciso aprender. Preciso viajar. Preciso saber! exclamou para si
mesmo com uma determinação raivosa, mas férrea. Não tenho um minuto a
perder!
Ouviu o bimbalhar distante de sinos de igreja. Lançou um olhar para o
relógio niquelado e sentiu fome. A mãe se perguntaria o que lhe havia
acontecido e reclamaria interminavelmente quando chegasse a casa. Não
conseguia ainda aguentar-lhe as apoquentações sem ficar nauseado. Naquele
momento sentiu frio. Arrepiou-se. Ouviu a voz sombria do rio embaixo, mas o
rio em si fora engolido pela noite.
Não ouviu as passadas leves na grama ao lado, mas sentiu o banco vibrar
quando alguém se sentou. Virou irritado a cabeça, erguendo-se um pouco ao
fazê-lo. Viu uma moça. Ela usava uma roupa barata e extravagante e um grande
chapéu preto, enfeitado com uma guarnição cor-de-rosa. O cabelo amarelado,
notou ele à luz do poste, era cacheado e frisado. No rosto exageradamente
pintado e impudente, destacavam-se os lábios purpúreos. Possuía olhos azul-
claros, desconfiados, duros, de quem sabia coisas. Ela sorriu. Os lábios se
entreabriram, revelando dentes amarelados. O sorriso era brejeiro. Podia ser um
ou dois anos mais velha do que Frank.
— Como vai, queridinho? — perguntou em voz rouca. — Linda noite,
não? Solitário?
Usava um conjunto de um doentio cinza pálido, blusa vermelha e um
longo colar de pérolas. As meias eram baratas, de seda artificial, brilhantes, e os
sapatos de verniz, rachados. Notou o olhar de Frank e, timidamente, levantou a
saia, mostrando o tornozelo magro e fino. Soltou um risinho e bateu as pestanas
claras.
— Solitário, queridinho? — murmurou. — Quer companhia?
Uma prostituta, pensou Frank, enojado. Inesperadamente, lembrou-se
das azedas e desajeitadas advertências do pai. Doenças “ruins” eram o destino de
jovens como ele, vítimas de mulheres doentes que viviam à custa de rapazes
meio imbecis, mulheres que se vendiam por dois dólares. Teve vontade de
levantar-se e afastar-se, mas algo o conservou preso ao banco. Não sabia o que
era, mas ficou e olhou para ela, calmo e curioso.
— O que é que você quer? — perguntou.
— Ora, nada — respondeu examinando-o com olhos antigos de pessoa
experiente. Sorriu em seguida. — Não está acostumado com mulheres, não é? Já
andou com uma pequena?
Frank sentiu raiva e um calor no rosto. Tinha dezoito anos, mas, tanto
quando se lembrava, seus desejos sexuais haviam sido leves e controlados,
abafados pelas revoltantes histórias do pai. A sua vida fora limitada demais,
ocupada demais, cheia demais, desesperada demais para especulações ociosas e,
de certa maneira, as histórias entre risinhos dos colegas de trabalho mal lhe
haviam ferido os ouvidos.
Em silêncio, continuou a fitá-la. Com o olho intuitivo do escritor
percebeu a inferioridade, entreviu a vida, a fome, o sofrimento da mulher. Mas
viu-os objetivamente. Aquela leve dor que sentiu, aquela débil agitação, não
podia ser pena, podia? Muito tempo antes deixara para trás a compaixão. Mas
alguma forma de depressão apossou-se dele e ele ficou colado àquele banco.
— Está com fome? — perguntou. — Acho que poderemos ir a um
restaurante.
O rosto tolo da moça, a despeito de todo o seu ar de astúcia, iluminou-se
durante um instante, embora ainda se conservasse cauteloso.
— Ei, isso é que é uma boa ideia! Estou mesmo quase desmaiando de
fome. Aonde é que você quer ir? Por falar nisso, meu nome é Myrtle. Pode
chamar-me de Myrt. Todos os meus amigos me chamam assim.
— Meu nome é Frank — disse. A leve dor, a leve excitação tornaram-se
mais fortes, mais claras. Cerrou os dentes e fez um esforço para dominá-las.
Inesperadamente, sentiu a solidão, o cansaço. Qualquer companhia seria melhor
do que nenhuma. Recusou-se a lembrar-se de Paul Hodge. Mas o que faria com
aquela horrível pequena? Ela desprendia um perfume barato, enjoativo,
lembrando baunilha, um odor de corrupção. Ergueu-se. — Vamos comer alguma
coisa — acrescentou.
Ela levantou-se também. O chapéu bamboleante de veludo mal chegava
ao queixo de Frank. Ele lhe segurou o braço com instintiva cortesia. Sentiu ossos
sob a pobre lã cinzenta. Mais uma vez, a excitação, a dor, a depressão. Ela
sorriu-lhe, brejeira. Saltitou ao seu lado enquanto se dirigiam para Niágara
Street. Riu e o riso era a voz áspera, crocitante, de um corvo. Mas era jovem
demais para possuir uma voz daquelas.'
— Qual é a sua idade... Myrt? — perguntou.
— Dezenove — respondeu ela alegremente. — Mais velha do que você,
não?
Ele sacudiu a cabeça. Dezenove anos. Uma mulher velha, doente,
faminta. Um pouco de refugo abandonado. Refugo em um monte de outros
refugos ao longo do caminho. Uma lata vazia de flandre, enferrujando à chuva.
Um trapo sujo, flutuando nas águas do canal. Horror, doença, morte. Imundície,
terror.
Os saltos extremamente altos da mulher tamborilavam na calçada ao seu
lado. O cheiro de baunilha e podridão chegou mais forte às narinas. Desviou a
cabeça. Ela segurava-lhe o braço. Olhou para a mão enluvada em sua manga.
Uma luva barata. Vinte e cinco centavos. E remendada. Por que ela não
trabalhava? As fábricas de munições andavam frenéticas em busca de gente. Os
restaurantes e as lojas estavam ansiosas para contratar qualquer tipo de
empregado. Ainda assim, ela rondava bancos de parques, sorria com lábios cor
de púrpura e chamava estranhos de “queridinho”.
— Você trabalha durante o dia, Myrt? — perguntou.
A mão soltou-lhe o braço. Ela sacudiu a cabeça e olhou-o, desconfiada.
— Não posso — respondeu laconicamente. — Tenho... obrigações. Sim,
é isso, obrigações. — Ergueu os olhos para a lua de setembro. — Ora, não é
bonita e romântica? — perguntou em voz rouca. — Gosto da lua. E você? —
Começou a cantarolar uma canção: — “À luz da lua prateada!” — A canção era
horrível, como a voz dela. Frank permaneceu tenso até que ela terminou. Logo
depois, ela disse animada: — Há um bom restaurante em Niágara Street, bem
perto daqui. Pode-se pedir qualquer coisa. E é barato, também.
— Cerveja? — perguntou Frank.
Ela sacudiu a cabeça, ergueu-a e endereçou-lhe um olhar grotescamente
pudico.
— Eu não bebo. Nada. Mas você pode tomar uma cerveja, se quiser.
Ele nunca andara pelas ruas com uma moça. Era uma experiência nova e
estranhamente desagradável. Foi obrigado a diminuir a marcha para que ela
pudesse acompanhá-lo com seus pequenos passos. Sentiu-lhe o peso da mão no
braço. Inesperadamente, esqueceu que ela era uma prostituta. Era apenas uma
moça. O que era que os homens diziam às moças? De fato, o que era que se dizia
a qualquer pessoa? O seu único amigo fora Paul Hodge e, momentos antes,
mesmo com Paul Hodge, coisa alguma tivera para dizer. Fez um esforço mental.
— Você acha que a guerra vai acabar logo? — perguntou.
Ela sacudiu a cabeça com exagerada solenidade.
— Nada disso. Nem em três anos. É isso que dizem aqueles caras
importantes, os Wilsons e os Pershings. Eles devem saber. Mais três anos e toda
aquela mortandade. — A voz caiu de volume, tornou-se baixa e curiosamente
abafada. Ele olhou-a, vagamente surpreendido, pois havia identificado ecos de
emoção. Ela ergueu novamente a cabeça e sorriu. — Diabo, não devemos pensar
nisso. Temos que continuar, não? Não importa o que aconteça. As mortes não
acontecem somente na França.
Ele vira entre os civis muito daquela espúria bravura, daquela fortaleza
teatral, daquela atitude de enfrentar os fatos e manter a cabeça erguida. A guerra
mal o tocara. Não se importava nem pensava muito nela. Desconfiava de que
quase todos os civis, com exceção dos intimamente interessados no caso, pouco
se preocupavam com a conflagração. Ainda assim, havia aquela bravura
degradante, o sobranceiro erguer de cabeças, os lábios que se comprimiam entre
seus colegas de trabalho. Nesse momento, reencontrava-os na pessoa de uma
pequena prostituta malcheirosa! Mais uma vez, ficou enraivecido, Indagou:
— Você tem um irmão ou alguma outra pessoa na guerra?
O chapéu de veludo ergueu-se bem alto.
— Não — respondeu a moça, em voz alta e enfática. — Ninguém.
Frank permaneceu calado. Aproximavam-se de uma esquina. Sentiu
vontade de levar a mão ao chapéu e deixá-la abruptamente.
— Ninguém — repetiu a moça e ele tornou-se consciente, mais uma vez,
da voz dela, apressada e mais enfática ainda. — Não conheço pessoa alguma. Eu
vivo sozinha. Não tenho ninguém.
— Nem pai, nem, mãe, irmão ou irmã? — Diabo, o que isso importava?
Dentro de momentos ele a deixaria. Não estava interessado nas respostas dela.
Myrtle sacudia a cabeça, quase com veemência.
— Eu sou órfã. — Apressadamente, acrescentou: — E você, queridinho?
Já não tem idade para ser convocado? — Ergueu os olhos para ele. Frank viu a
lívida dureza daqueles olhos e pensou: Ora, ela me olha como se me odiasse!
Isso o confundiu e ele tartamudeou:
— Não, ainda não tenho idade. Não fiz dezoito ainda.
A dureza dissolveu-se como se fosse gelo. Ela acariciou-lhe o braço.
— Ora, você é apenas uma criança — murmurou com ternura. — Sou
uma vovó comparada com você. Sim, sou mesmo. Vou fazer vinte logo. Eu me
sinto como uma avó junto de você. — Apareceu um pouco de umidade em torno
de suas pálpebras. — Talvez a guerra acabe logo. Talvez. Talvez você não tenha
que seguir. Eu odiaria vê-lo ir. Ouça, eu leio os jornais, procuro descobrir sobre o
que é essa guerra. Para começar, como foi que deixamos que os alemães
ficassem assim? É isso o que pergunto. Nós temos olhos, não temos? Vimos o
que eles andavam fazendo, durante todo o tempo, antes da guerra, não? Por que
não fizemos alguma coisa antes que eles começassem a guerra? Ora, um cara
disse nos jornais que os alemães andavam tentando provocar guerras, há muitos
e muitos anos. Assim, conhecíamos os alemães, não é? Podíamos ter visto o que
estavam fazendo, o tempo todo. Podíamos ter acabado com isso antes que
houvesse guerra. Mas não fizemos coisa alguma. Fico tão danada com isso que
tenho até vontade de vomitar. E agora todos aqueles rapazes morrendo.
Eu podia contar-lhe alguma coisa sobre política mundial, pensou Frank
com sombrio humor. Mas ela não compreenderia. E, naturalmente, eu mesmo
não sei o bastante sobre o assunto. Acariciou-lhe a mão. Surpreso, notou que ela
tremia dentro da luva.
— Não tem importância — disse. — Talvez a gente aprenda sobre os
alemães depois de algum tempo.
— Talvez — murmurou ela. E sorriu, profunda e sentidamente.
Chegaram à suja e barulhenta Niágara Street, onde donas-de-casa
italianas se sentavam em arruinadas varandas, crianças sujas corriam, brigavam e
berravam nas calçadas e os novos postes elétricos lançavam sua luz sobre o
asfalto e as casas miseráveis, sem pintura. Um bonde “expresso”, pintado de
amarelo, passou barulhento. Automóveis chocalhavam e buzinavam. Havia por
ali um cheiro fétido, como de massa velha fermentada, de sujeira e suor. Música
saía alta dos bares de esquina. Subiu um inesperado cheiro de gordura de
presunto e de vapores de cerveja.
— Conheço um restaurante — dizia Myrtle. — Não impressiona muito a
vista. Mas não é restaurante chinês, também. Boa e velha comida americana.
Nada de fricotes. Mas bom.
Frank esqueceu que havia resolvido deixá-la. Estava com fome. E sentia
uma estranha bondade para com Myrtle, uma pessoa sem importância, cuja
humilde e feia vida constituía um insulto à alegada dignidade do homem. Ela o
conduziu para a porta de um pequeno e horrendo restaurante, onde ele viu bolos,
tortas e carnes inteiramente cobertos de moscas numa vitrina. Era muito pouco o
que Frank sabia a respeito de restaurantes. Às vezes, no Natal, quando Maybelle
não se sentia com vontade de preparar um jantar de festa, Francis levava a
família ao Statler Restaurant, no Shelton Square Building, onde um jantar
razoavelmente bom e higiênico custava sessenta e cinco centavos, incluindo
sobremesa. Nunca estivera antes num restaurante como aquele, estreito, quente,
profusamente iluminado, onde as camisas de gás queimavam sobre as cabeças
com um calor insuportável e mesas sujas, cobertas com sujos oleados brancos,
esperavam o freguês casual. O lugar fervilhava de moscas e recendia a gordura
rançosa e o suor de alguns indivíduos abrutalhados, em mangas de camisa, que
se sentavam às mesas em companhia de mulheres gordas, informes e de rostos
porcinos. O chão escorregadio e manchado era coberto por um linóleo pardo.
Uma ou duas garçonetes vagueavam por ali, em uniformes manchados e curtos
demais, com os cabelos frisados colados aos rostos vermelhos e suados. E de
mãos imundas. Serviam pratos de carnes quentes e oleosas e purê de batatas
acinzentado.
Quando o cheiro lhe chegou às narinas, Frank perdeu o apetite. Sentiu
um impulso momentâneo de recuar, sugerir o Statler Restaurante, mas Myrtle
levava-o alegre para uma mesa. Foi obrigado a sentar-se.
Evidentemente, ela era pessoa conhecida ali. Os homens piscaram-lhe os
olhos, as mulheres fitaram-na raivosas e as garçonetes soltaram risinhos.
— Oi, Myrt! — disse uma delas.
Em seguida, a atenção dos presentes concentrou-se em Frank,
tristemente sentado ali em seu bem arrumado terno de sarja azul, gravata
vermelha escura, sapatos lustrosos de cadarço, colarinho e punhos brancos.
Viram as bem penteadas ondas castanhas do seu cabelo; a face magra, bem
barbeada; feições nítidas, duras e fortes; os olhos azuis embaraçados. Aumentou
o interesse. Aquele tipo de cliente era coisa nova para Myrtle. Onde fora arranjar
ela aquele “pão”? Na Universidade? Será que Myrtle ia também frequentar
faculdade? As mulheres sorriram zombeteiras e olharam despudoradas para
Frank. Myrtle, porém, exibindo-se, sentou-se com gestos finos, arrumou os
cachos do cabelo amarelado, furtivamente empoou o nariz com pó-de-arroz
tirado de uma pequena bolsa e rearranjou as pregas vermelhas da blusa.
Ostensivamente, ignorou as antigas companheiras. Cerimoniosamente, entregou
a Frank o gorduroso cardápio, sarapintado de sujeira de moscas e escrito a lápis
em inglês analfabeto.
Em voz artificial e afetada, disse:
— Recomendo o rosbife. É muito bom. E as ervilhas com creme e o purê
de batatas. E hoje à noite há torta de amoras com creme batido. O café também é
bom. O melhor da cidade.
A luz de gás cuspia e silvava. Aparentemente, aumentava o calor. Uma
porta de vaivém nos fundos, ao se abrir, deixava passar o rugido em baixo
profundo de um cozinheiro grego e os eflúvios insuportáveis de frituras. Frank
pôde observar melhor sua acompanhante a luz forte e quente. O cabelo de Myrtle
tinha raízes pretas; os lábios eram tão purpúreos como ameixas e o chapéu de
veludo preto, de fabricação caseira com guarnição cor-de-rosa, fora obviamente
montado sobre uma estrutura de papelão. A aba ondeava. O conjunto cinza
estava sujo aqui e ali. Nos pulsos tilintavam numerosas joias de imitação, num
amarelo esverdeado. A pele do rosto estava de tal maneira coberta com pó-de-
arroz e ruge que parecia uma tela, onde o suor abrira fissuras e rachas. Tinha
feições minúsculas, quase delicadas, mas tão matreiras, tão agressivas, que a
delicadeza se perdia e se transformava em degradação.
Era impossível. Ele precisava deixar imediatamente aquele horror,
aquela torpe e vil corrupção! Nesse momento, viu-lhe o pescoço.
Que magro, jovem, vulnerável e patético pescoço, tão infantil, tão terno,
tão insuportável em seu apelo! Não conseguiu desviar os olhos. A dolorosa
excitação que sentira antes tornou-se de imensidão intolerável. Ora, aquilo era o
pescoço de uma menina, uma pequena e esfomeada garota, uma criança inocente
e indefesa! Um colar de pérolas de dez centavos, enrolado com veludo preto,
envolvia o pescoço, mas isso apenas servia para lhe realçar o aspecto tocante.
Frank teve vontade de acariciar aquele pescoço, de gritar alguma coisa, de
desviar a vista. A emoção era nova, ou melhor, renovada. Sentira a mesma coisa
com grande frequência quando mais jovem e esperara e acreditara em que aquilo
havia passado. Não existia mais para ela um lugar mutilador e debilitante em sua
vida. Era um abismo na estrada que ele se propusera a percorrer. Precisava
transpô-lo, por mais difícil que pudesse ser. Cerrou os dentes e disse:
— Escolherei o que você escolher, Myrtle. — E não quis olhar mais para
aquele pescoço. Contraiu fortemente as mãos sob o oleado.
CAPÍTULO 34
A carne tinha gosto picante e forte; o molho estava rançoso. O purê era
composto de bolhas de batata, solidificadas. As “ervilhas ao creme” lembravam
soda e leite azedo. No café, que era pura chicória, preto e amargo, o alegado
creme flutuava em pequenas pastilhas semissólidas. Frank comeu uma ou duas
garfadas, engasgou-se e recostou-se na cadeira, observando Myrtle, que
devorava a horrenda comida com prazer e um apetite quase voraz. Quando ela
notava que o rapaz a observava, assumia maneiras muito elegantes, mas tão logo
ele desviava a vista, caía sobre o prato como um lobo esfaimado. Bebeu leite,
três ou quatro copos, não com apetite e prazer, mas com uma espécie de sombria
determinação.
— Se você não gosta de leite, por quê que o bebe? — perguntou ele. Os
olhos da moça desviaram-se dos seus.
— Preciso — murmurou ela.
Estaria tuberculosa? Era macérrima e a pele, nos lugares onde não estava
empastada de pó, tinha uma aparência azulada. Mas não havia rubor tísico.
Frank lembrou-se da voz firme e dogmática da mãe: “Ferro! Comprimidos de
Blaud. Ferro.” Com um seco divertimento, perguntou-se se não devia comprar
um vidro de comprimidos de Blaud para Myrtle.
Enquanto ela comia, Frank examinou o restaurante e seus
frequentadores. Aquilo, então, era a pobreza. Vivera cercado de gente pobre
durante toda a vida, trabalhadores, mecânicos, paupérrimos artesãos, lavadeiras,
motoristas. Mas nunca, anteriormente, os pobres haviam-lhe invadido a vida,
provocado um nojo tão agudo e forte. Fora ofuscado pela inconsciência da
criança ou por aquela doentia compaixão que o vitimara outrora? Não sabia.
Sabia apenas que quando olhava para essas faces semelhantes a focinhos de
animais, essas mãos sujas e rachadas, de unhas pretas, sentia repugnância e ódio.
Ouviu risadas altas e vazias. Escutou trechos de roucas conversas. Pareciam os
grunhidos, os guinchos, os mugidos de animais. Poderia uma pessoa
honestamente acreditar em que aquelas criaturas pertenciam à heroica raça
humana, aquelas mulheres de fisionomias porcinas, inexpressivas, cabelos
frisados, e aqueles homens cujos olhos tinham o embotamento de bois? Aquele
homem ali, por exemplo, cujo cabelo úmido e espesso, de uma feia tonalidade
marrom, descia até a testa e quase tocava as sobrancelhas eriçadas. A parte
posterior da cabeça era tão chata que parecia haver sido premida por uma tábua.
O pescoço, taurino. A boca, flácida, meio aberta; o nariz, grande e largo; os
olhos pequeninos, porcinos, apagados, mergulhados nos seios da obesa
companheira. Seria aquilo um homem? Teria aquele monstro uma alma? Uma
alma!
— Aí, eu disse a ele: “Ora, seu filho da mãe, eu podia ganhar você no
bolão de dez a um, se não tivesse tomado há pouco oito copos de cerveja!” — A
companheira rosnou uma concordância afetuosa. — Mesmo ele sendo o
contramestre, eu disse isso a ele, nas fuças... e ele fechou a matraca.
— E eles têm mesmo que fechar, nestes dias — contribuiu um homem
baixo e imensamente gordo em uma mesa próxima. — Eles andam apavorados,
nestes dias. Têm que beijar o traseiro da gente, ou pedimos as contas. Onde é
que vão arranjar empregados? É isso que eu queria saber. É isso mesmo, eles
andam apavorados. Têm que aumentar a gente em mais dez centavos por hora e
diminuir a semana. É isso que o nosso sindicato vai dizer a eles na semana
próxima. Vocês, caras, precisam arranjar um sindicato. Não há nada igual. A
guerra vai durar três anos ou mais, pelo menos. É isso que andam dizendo por aí
e eles precisam de que a gente trabalhe pra eles, aqueles calhordas ricos.
Sua gorda companheira sacudiu lúgubre a cabeça.
— Ouvi uma coisa diferente. Que a guerra vai acabar logo — disse.
Suas palavras foram recebidas por um coro de irritadas vaias:
— Feche essa matraca!
— Você é uma idiota, Maisie!
— O que é que você sabe mesmo? Ouvi de gente que sabe que ela vai
durar três anos! Espero que dure mesmo. Ora, o huno está mais forte do que
nunca!
Os demais mugiram e guincharam alto, inclinando a cabeça.
— A guerra vai durar! Talvez cinco anos, se a gente tiver sorte.
Frank fitou-os sombrio, essas criaturas que ousavam acreditar em que
eram iguais a ele. Esses homens votavam. Constituíam as massas. Formavam
setenta e cinco por cento de todas as nações. Eram os inimigos da civilização.
Mais uma vez, emergiu do seu subconsciente a voz de Miss Bendy: “O
mundo está cheio de almas cegas, embotadas, escondidas na escuridão, como
toupeiras, Frank. Quando você for mais velho, quando viajar, encontrá-las-á por
toda a parte, em todos os vilarejos, nas pequenas e grandes cidades, em todas as
fazendas. Descobrirá esses olhos cegos e corações cobertos de barro, essas
línguas grossas que grunhem e mãos que são como patas. Eles são o Terror,
Frank, e precisamos fazer algo a respeito deles. Mas o quê?”
Frank ergueu-se abruptamente.
— Terminou, Myrtle? — perguntou.
Espantada, Myrtle enxugou rapidamente a boca no lenço sujo e
levantou-se.
Frank saiu apressado à frente, com a carne arrepiada pela proximidade
daqueles animais, daquela perversão. Na calçada terrosa, sob o poste de luz,
olhou para a rua suja, barulhenta. Myrtle aproximou-se e sorriu alegre.
—. Bem, acho que podemos ir para minha casa, hem? — Olhou tímida
para ele e falou em voz afetada.
Involuntariamente, de puro desgosto, Frank ouviu-se dizendo:
— Myrtle, você os ouviu, ali dentro? Querem que a guerra continue
eternamente, apenas para ganharem grandes salários nas fábricas de munições.
O rosto dela mudou e tornou-se velho e encolhido. Os olhos se
desviaram.
— Sim, ouviu o que eles disseram. A gente fica com vontade de odiá-
los, não é? Talvez seja isso o que você ache, pensando em todos aqueles rapazes
que estão morrendo. Mas a gente pensa também: “Esta é a primeira vez em que
eles comem bem, a primeira vez em que têm um pouco de dinheiro no bolso e
podem sentir que não são... não são... apenas cavalos. Pelo menos por uma vez,
têm onde morar e não serão postos para fora no fim do mês.” É nisso que você
precisa pensar. Se você dissesse a Johnny, lá dentro: “Escute, quer que os
rapazes morram para que você possa ganhar quarenta dólares por semana?”.
Johnny diria não, diria não logo, e talvez lhe desse um murro no queixo. Eles
não querem que os rapazes morram. Querem apenas comer. — Suspirou. — É
horrível, não, que a única vez em que podem comer seja quando os rapazes
morrem? — Esperou que Frank dissesse alguma coisa e, quando notou que ele
não ia falar, acrescentou: — Ouvi Lloyd berrando aquela história do
contramestre. Faz bem a ele sentir que, pelo menos uma vez, cantou de galo, que
também é um homem.
Lloyd! Outro dos horríveis nomes que os analfabetos escolhem! A
primeira reação de Frank foi ao nome e a segunda, às palavras de Myrtle. “Um
homem!” Ora, por que não surgia um benfeitor público e ensinava a essas
criaturas que não há virilidade implícita em mandar o contramestre “calar a
boca”, mas em respeito próprio e dignidade, no orgulho íntimo que põe o ser
humano na estrada real do auto melhoramento? Em vez disso, os jornais fingiam
descobrir um lado patético na nova e apaixonada propensão do operário
americano por camisas de seda e falavam com sentimentalismo piegas de sua
ilusão de que palavras “finas”, conduta arrogante e prodigalidade nos gastos
significavam que havia adquirido importância. “Eles não sabem”, dissera um
colunista com um suspiro, “que os ricos e os importantes não usam camisas de
seda nem jogam dinheiro fora”. Mas não havia pessoa alguma para lhes dizer
isso. Suas travessuras de símios provocavam ternos sorrisos e tolas defesas de
pessoas que não deviam ser tão estúpidas.
A luz forte do poste iluminava as entorpecidas faces que passavam,
pequenos olhos furtivos, feições brutais e quase simiescas. O nojo de Frank
transformou-se em fúria. Esquecera Myrtle. Quando ela lhe tocou o braço,
recuou como se houvesse sido atingido por um raio.
— Moro aqui — disse ela afetada, apontando para duas janelas sujas
sobre uma loja fechada. Frank ergueu automaticamente os olhos. Viu cortinas
encardidas, esbranquiçadas, enfunando-se para fora à leve brisa. Distinguiu um
brilho mortiço de candeeiro por trás delas.
— Vou ter de pedir a você que espere uns dois minutos — disse Myrtle.
— Preciso, primeiro, arrumar um pouco as coisas. Depois, eu grito lá de cima da
escada e você sobe. O.K.?
Frank ficou aliviado. Uma vez que o pequeno horror desaparecesse de
sua vista, cairia fora sem demora. Hesitou. Olhou para a pequena face pintada e
algo se contraiu dentro dele. Pôs a mão no bolso. Retirou-a em seguida.
Observou-a quando ela abriu a porta, que dava para uma escura escada, viu-lhe o
rápido e provocador sorriso. Ela desapareceu. Ouviu-lhe os saltos tamborilando
nos degraus de madeira e o som de uma porta que se abria no alto. Em algum
lugar, uma criança choramingou e foi mandada calar.
Permaneceu ali na rua. Um bonde passou barulhento, com rostos colados
às janelas iluminadas. Um vento forte subiu pela rua, cheio de poeira e detritos.
Um gramofone guinchou que uma longa, longa trilha estava espiralando para
uma terra de sonhos. Um trovão ribombou ao longe, num som dilacerante,
ecoando pelo espaço. Havia um salão de boliche por perto. Junto, um bar, por
cujas portas de vaivém saía um cheiro azedo de cerveja velha e trechos de uma
rouca canção. Dois jovens soldados, de perneira, sorridentes, desceram a rua
gingando, riscaram fósforos e acenderam cigarros. Um deles começou a cantar:

“Lá, lá,
Rezem pelos rapazes
Que estão lá...!”
O outro disse alguma coisa obscena e ambos riram alto como mocinhas
deixando a sala de aula. Frank observou-os até que desapareceram sob as árvores
sujas. Nesse momento todo o nojo e o ódio abandonaram-no aos poucos,
restando apenas um vazio, uma espécie de enjoo. Aqueles rapazes eram pouco
mais velhos do que ele. Certamente não sentia pena por causa da ameaça de
morte que pairava sobre eles. Não sentia pena por causa da mocidade deles, pois
ele era também jovem. A piedade não tinha nome.
“Rezem pelos rapazes que estão lá... ” Não. Rezar, sim, uma oração por
todos os rapazes, que “estão lá”, em toda a parte, em todo o mundo. Rezar uma
oração pelos jovens eterna e inevitavelmente traídos, não pelo mundo, mas pelos
seus próprios sonhos, pelo tempo, pelo mero ato de viver. Se o homem pudesse
morrer apenas enquanto ainda acreditava... Acreditava em quê? Um nevoeiro
dourado estendia-se entre o seu eu, naquele momento, e a criança que fora, e ele
não conseguia ver através da névoa.
Por que estava ali, agindo como um tolo, motivado por algo que não
sabia o que era? Acreditara em que tinha acabado para sempre com a dor, com a
saudade, com os anelos. Olhou para a escada escura por onde desaparecera
Myrtle. Se não se apressasse, ela voltaria e ele ficaria embaraçado, pois nenhum
desejo tinha de acompanhá-la até o quarto. Começou a andar. Mas, impelido
pelo que poderia ser apenas curiosidade, voltou e subiu em silêncio a escada.
Não sabia por que fazia aquilo. Seria para descobrir se Myrtle tivera um cliente
antes, para mergulhar em outra cena de degradação? Uma luz fraca brilhava sob
a fresta da porta ao fim da escada. A porta não estava inteiramente fechada.
Empurrou-a devagar e olhou para dentro.
Em um rápido relance abarcou o quarto miserável, a cama desarrumada,
a cômoda atravancada, as duas cadeiras de balanço em madeira. Viu o bico
amarelo de gás pendente do teto caiado. Havia outra porta em frente onde viu
uma velha desarrumada e gorda, que lhe lembrou a Sra. Watson. Meio virada,
com os braços dobrados sobre os peitos imensos, ela começava a falar
azedamente:
— Bem, é melhor que você arranje algum dinheiro. Isso é tudo. Deixei
você atrasar o pagamento durante uma semana. Seria melhor para ele que
arranjasse um pouco de dinheiro, só isso. Ande logo. Você não pode deixar um
cara esperando demais e eu preciso dormir. Só vou tomar conta do menino até
meia-noite. Tenho que visitar uma amiga hoje.
Nesse momento, Frank viu Myrtle, junto a uma das janelas. Estava
sentada em um tamborete, de costas para ele. Amamentava um bebê. O corpo
frágil curvava-se sobre a criança em um arco de ternura. Frank viu de perfil todo
o seu seio contra o qual se colavam os lábios esfomeados da criança. Myrtle
continuava ainda de chapéu. Na pressa, não havia nem mesmo tirado a blusa.
Dobrara as pernas para sustentar o peso da criança nas coxas. Cantarolava, sem
palavras.
A velha resmungou:
— Não entendo por que você não interna o bebê num orfanato, ou coisa
parecida. Ia ter melhor tratamento do que você pode dar a ele. E você não ficaria
presa a ele. Poderia arranjar um emprego com um salário certo.
Myrtle ergueu violentamente a cabeça. Frank viu-lhe o perfil, magro,
apavorado, cheio de raiva.
— Eu não dou meu bebê! Vão adotá-lo e nunca mais o verei! Desta
maneira, posso cuidar dele durante os dias e sustentá-lo durante as noites! Eu
não dou meu bebê!
A velha encolheu os ombros. Mastigava indiferente um pedaço de goma
de mascar.
— Bem, faça o que quiser. Não adianta dar conselhos a tolos. Aquele
filho da mãe devia ter-se casado com você antes de ir para a guerra e morrer.
Você devia ter tido mais juízo.
Myrtle começou a chorar.
— Ele foi embarcado cedo demais. Nós íamos casar. E, então, ele foi
mandado embora. — Inesperadamente, agarrou frenética, feroz, a criança. —
Mas eu tenho Floyd! Tenho meu bebê, dele! E vai ficar comigo!
Mais uma vez a bruxa fungou:
— Que bela vida você vai dar a ele! Filho de uma prostituta comum.
— Eu não sou! Eu não sou! — exclamou com veemência Myrtle. —
Quando eu acabar de amamentá-lo, vou arranjar uma pessoa que cuide dele legal
e vou trabalhar. Não faço isso por dinheiro para mim. Faço por Floyd! E não sou
prostituta.
Lágrimas corriam-lhes pela face. Enxugou-as com as costas da mão e
fungou como uma criança. O bebê continuava a mamar contente. Myrtle
soluçou.
— Eu tinha um bom emprego num restaurante. Ainda posso voltar para
lá depois que o desmamar. Mas ele precisa de mim por mais uns dois meses. Aí,
posso arranjar uma pessoa para tomar conta dele.
Frank fechou a porta. Permaneceu na escuridão. Sentiu a testa molhada
de suor, suor escorrendo pelas costas, pois fazia grande calor ali na escada.
Ouviu as batidas surdas do próprio coração. Levou a mão ao bolso. Sabia até o
último níquel quanto havia ali. Quinze dólares. Pensara em depositar o dinheiro
na manhã seguinte. Curvou-se com toda a cautela e enfiou as notas por baixo da
porta. Em seguida, prendendo a respiração, desceu a escada e ganhou a rua.
Percorrera apenas três quarteirões quando começou a amaldiçoar-se,
chamando a si mesmo de tolo. O que fora que o traíra mais uma vez e o levara a
cometer aquela fraqueza, a sentir aquela vergonhosa compaixão? Quinze
dólares! Dez minutos antes estivera quinze dólares mais perto da liberdade, um
forte e completo passo. Mas dera um passo para trás. Para quê? Censurou-se
violentamente durante toda a volta para casa. Menos de meia hora antes, vira
clara e honestamente as coisas. Naqueles instantes, sua vista se turvara, mesmo
que por apenas alguns momentos, e ele cerrara fileira ao lado dos asnos
sentimentais que encorajavam os inferiores a permanecerem no estado bestial em
que viviam.
O que, na sua loucura, pensara ali na escada? Que Myrtle pudesse ficar
em paz com o bebê durante uma noite, duas noites! Mas, e na terceira noite?
Bolas, disse para si mesmo. O que importavam as Myrtles e seus horríveis e
pequeninos “Floyds”! Eles eram os fracos, os rejeitados pela vida, os restos da
humanidade.
Mergulhado em furiosos pensamentos, notou surpreso que chegara à sua
casa em Albany Street. Estavam acesos todos os bicos de gás, e as cortinas, ao
contrário do costume habitual de Maybelle, abriam-se de par em par. Em um
momento menos irritado, teria parado para pensar nesse extraordinário
fenômeno. Mas naquele momento sentiu apenas nojo em entrar naquela pequena,
quente e arrumada casa, para ser recebido pelas irritadas queixas da mãe pela sua
ausência.
O vento noturno cheio de pó transportava o cheiro de excremento seco
de cavalo, asfalto quente e lixo. Em alguma parte, também, uma dona-de-casa
fazia seu suprimento de molho de tomate para o inverno e todos os demais
odores eram abafados pelo cheiro forte de especiarias e tomates cozidos. Frank
deu-se conta de que estava ainda com fome. Ouviu os altos olmos junto à
calçada murmurarem entre si. Hesitou.
Dirigiu-se sem fazer barulho para os fundos da casa e penetrou no
quintal. Ali era mais escuro e mais fresco. Francis trabalhara muitos duros anos
naquele quintal durante as noites e nos dias de folga. Plantara fileiras de rosas
vermelhas e brancas ao longo da cerca de madeira, um canteiro de hortelã,
cebolinhas e tomilho, e outro canteiro de sua flor favorita, amor-perfeito. A
grama, também, fora cuidada com carinho e dobrava-se, abundante e aveludada,
sob os pés de Frank. No centro exato do quintal erguia-se uma catalpa, que ele
mesmo plantara. Quando? O nevoeiro dourado entre ele e sua infância esgarçou-
se e através da névoa brilhante e cambiável viu-se como um menino de... oito
anos? Nove? Dez? Não se lembrava, mas se recordava de que fora no Dia da
Arvore e que todas as crianças na escola haviam recebido uma muda para
plantar. Viu-se sob um esplêndido e forte sol, com o pai ao lado, açoitados pelo
vento de começos da primavera, sob um céu cor de ametista. Francis enfiara a pá
profundamente na terra marrom, no próprio centro do quintal. Frank viu a terra
abrir-se, cheia de vermes que contorciam seus corpos vermelhos. Água foi
despejada no profundo buraco e, depois, ele permitiu que Frank plantasse a
árvore. O pai, com todo o cuidado, espalhou as raízes. Frank apanhou a pá e,
com ternura, cobriu de terra as raízes e, levemente, bateu-as. Era uma árvore
muito pequena. Plantada, não era mais alta do que o garoto, apenas um galho
sem folhas, vulnerável, muito jovem, curvando-se ao vento.
Agora, como era alta, com o tronco grosso e forte, transbordante de
vitalidade e de juventude! Os seus ramos estendiam-se muito acima da cabeça de
Frank e suas largas folhas murmuravam. Tangidas pelo vento transformavam-se
num borrão contra as estrelas. Na primavera, ele se lembrou, produzia cones de
doces flores. Era estranho que se lembrasse dessas flores, pois não se recordava
de tê-las visto nos últimos anos, desde a partida de Paul Hodge.
Pôs a mão sobre o tronco da árvore. Minha árvore. Eu a plantei. É uma
parte de mim. Se não fosse por mim, esta árvore não estaria aqui, cheia de
folhas, vivendo na terra, lutando para subir aos céus. Não haveria flores nem
sombra... não fosse eu. Paul e eu a examinávamos com atenção na primavera,
procurando descobrir os primeiros brotos. Eu contava a ele quando saíam as
flores. Ele arrancava algumas, mas elas sempre escorriam pelos seus dedos. É
estranho que não me lembre dessas flores desde que tinha quinze anos. Ficarei à
espera no próximo ano.
A árvore sussurrou para ele. Quando garoto, imaginara que a árvore lhe
falava, lhe contava histórias e as mais estranhas fábulas. Ouvira autênticas
palavras murmuradas, baixas e profundas. Mas não podia lembrar-se das
histórias e, se a árvore agora falava, era numa linguagem inteiramente estranha
para ele, para sempre perdida.
— Para onde é que você vai no inverno? — perguntara à árvore. Que
idade teria na ocasião? Onze? Doze anos?
— Para o mesmo lugar para onde você vai, quando dorme — respondera
a árvore, farfalhando misteriosa. — Para o mesmo lugar para onde irei quando
morrer, e para onde você irá, quando morrer.
— Onde é que fica isso? — perguntara à árvore, com as jovens mãos em
volta do tronco curvo.
A árvore lhe dissera. Fora tão claro, tão satisfatório, tão maravilhoso!
Mas esquecera a resposta. Lembrava-se da pergunta, mas não da resposta. Como
fora glorioso o mundo naquele tempo! Tão cheio de magia, de maravilha, de
percepção, compreensão completa, irrestrita! Agora, desaparecera a luz dourada
e havia apenas um frio e estéril meio-dia em volta, a luz parda do “dia comum”.
Durante os poucos momentos em que permaneceu sob a árvore foi
jovem novamente, como fora em outros tempos, e um baixíssimo eco de magia e
maravilha chegou-lhe aos ouvidos. Arrancou uma grande e fria folha da árvore.
Com quanta frequência segurara essas folhas nas mãos e sentira a baixa e
misteriosa pulsação que havia nelas, a baixa e saltitante resposta a sua própria
pulsação! Estaria realmente sentindo-a, outra vez? Não. Jogou fora a folha.
Crianças têm uma imaginação tão delirante!
De súbito, com relutância, pensou outra vez em Paul Hodge. Poderia
escrever-lhe. De alguma maneira, teria que explicar sua estranha atitude. O
amigo compreenderia?
Ouviu profundos e dolorosos soluços na sala da frente. Fechou a porta às
suas costas e correu para a “sala de visitas”, que era também o quarto dos pais.
Viu Francis na cama, a face branca como a morte, os lençóis puxados até o
pescoço, os olhos encovados e fechados. Ao seu lado, sentava-se Maybelle; do
outro lado, a Sra. Clair. Maybelle cobria o rosto com o avental. A Sra. Clair,
porém, conservava-se sombriamente silenciosa e pálida. Notou a chegada de
Frank.
— Onde foi que você esteve, quando precisamos de você? — perguntou
severamente. — Seu pai desmaiou hoje na farmácia. O médico diz que é
tuberculose e que ele nunca mais poderá trabalhar. Que belo filho é você,
passeando pelas ruas quando seu pai e sua mãe precisam de você!
CAPÍTULO 35
Frank tinha diante de si neste momento a imagem plúmbea de fins de
novembro de 1918. Escrevera a Paul Hodge que, aparentemente, se encontrava
ainda na Escola de Treinamento dos Grandes Lagos:
“Escrevi-lhe cinco vezes e não obtive resposta de nenhuma carta. Por
quê? Bem, continuarei a escrever, Paul. Sei que minhas cartas não despertam o
menor eco, mas não posso evitar escrever. Quero apenas que saiba...”
Saiba o quê? Olhou para as teclas da máquina, onde descansavam as
mãos, e depois pela janela da fábrica, cuja atividade diminuíra, Era hora de
almoço. O que queria que Paul soubesse?
Não podia lembrar-se. Acrescentou: que penso muito em você. Mas você
não precisa fazer o mesmo. Nem mesmo respondeu à carta em que lhe disse que
meu pai faleceu no dia vinte e um de outubro.”
Frank interrompeu-se. Por que teve de pensar, justamente naquele
momento, na ocasião em que não pôde comparecer à festa de formatura da nona
série da Escola Dezoito, que fora realizada na Lafayette High School? Sabia
apenas que não comparecera porque os pais se recusaram a comprar-lhe um
terno de sarja azul e insistiram em que a velha roupa marrom, puída e pequena
demais, era suficientemente boa para aquela “besteira ianque”. Não fora,
portanto, à formatura. Miss Bendy providenciara para que o diploma lhe fosse
entregue. Lembrando-se daquilo, seu coração ardeu de raiva.
A raiva morreu, contudo, por mais que tentasse reavivá-la. Não sinto
pena realmente, pensou, e tornou-se vazio, fraco, deprimido.
“Acho que lhe disse que meu pai sofria de tuberculose. O médico disse
em setembro que ele jamais poderia trabalhar, ou, pelo menos, não durante muito
tempo. Adoeceu gravemente, mas poderia ter vivido. No fim, morreu de medo,
medo de que suas economias diminuíssem. Não queria ouvir o médico. Após a
primeira hemoptise, insistiu em voltar ao trabalho. Lá, desmaiou. Dois dias
depois, morreu.”
As fossas oculares de Frank enevoaram-se. Acendeu um cigarro.
Inesperadamente, sem o menor motivo, pensou no violino do pai, depositado no
porão da casa de Albany Street, coberto de mofo e pó. Uma dor aguda lanceou-
lhe o peito. Minha própria fraqueza, pensou, combatendo selvagemente a dor até
que ela o deixou. Era de alguma maneira uma dor diferente da antiga. Voltou a
escrever no escritório deserto:
“Você deve ter notado que estou com endereço novo, e muito bom,
também. Minha mãe mora agora com minha avó em Porter Avenue. Elas falam
em voltar para a Inglaterra dentro de um ou dois anos. Rompi com a família e
não posso suportar minha avó. Naturalmente, não irei com elas para a Inglaterra.
Depois da morte de meu pai, o médico me examinou, em busca de sinais de
tuberculose. Nada, graças a Deus. Mamãe, porém, começou a tossir, embora
nada haja de errado com ela.
Bem, a guerra terminou e você provavelmente sairá da Marinha qualquer
dia destes. O Dia do Armistício foi curioso aqui em Bison. Fui até o centro para
ver se haveria alguma comemoração. Vi apenas alguns garotos soprando apitos e
uns poucos adultos andando de um lado para outro, aparentemente sem destino.
Será que o fim da guerra nada significava para eles? Parecia que não. Sei apenas
que houve tristeza aqui, nesta fábrica de material de guerra. Os operários estão
muito deprimidos.
A própria depressão e o sofrimento de Frank fecharam-se ainda mais
sobre ele. A oficina escureceu e flocos de neve caíram no dia cinzento. Como
odiava novembro, a imagem plúmbea e estática de pernas e braços que se
dissolviam! Continuou:
“Acho que agora você vai voltar para junto de seu pai e de Gordon. Não
poderia parar em Bison a caminho de casa e fazer-me uma visita? Simplesmente,
avise-me. Ficarei à espera. Tenho um ótimo quarto no endereço que está no alto
desta carta.
Estou estudando na escola noturna, em Hutchinson, desde setembro. A
minha dificuldade, como sempre, é a Matemática. Os professores me disseram
que tenho de aprendê-la ou nunca obterei o diploma e, neste caso, não poderei
entrar na faculdade. Comecei a pensar que o melhor seria fazer todos os cursos
de que preciso e quero para minha literatura e, em seguida, matricular-me na
Universidade de Bison como aluno especial. Isso parece ser a única solução.
Descobriram em Hutch que não consigo compreender nem mesmo divisão com
muitas casas e, embora tenha aprendido Matemática suficiente para me formar
na Dezoito, esqueci-tudo.
Tenho um maravilhoso professor de Inglês, contudo, um tal Sr. Mason.
O nosso primeiro trabalho foi uma composição. Eu, porém, escrevi um poema
curto em versos brancos.”
Mais uma vez, Frank parou e ouviu a voz suave de Robert Mason:
“Notável, Excelente. Mas falta alguma coisa. Não sei exatamente o que é. Todos
os pontos essenciais estão aqui: cor, vitalidade, originalidade, vigor. Você tem
um grande talento. Se eu apenas pudesse descobrir o que está faltando...”
Frank franziu as sobrancelhas. “Faltando!” Coisa alguma faltava, nada,
absolutamente, salvo, talvez, sentimentalismo. Terminou abruptamente a carta e
colocou-a em um envelope. Terminara a hora do almoço. Voltaram os demais
empregados do escritório, conversando e rindo. Um deles era um rapaz jovem
com quem Frank fizera uma espécie de amizade, um tipo alto, encurvado,
sorridente, um sulista de Kentucky.
— Oi — disse ele. — Escrevendo novamente?
Frank fechou e selou o envelope, lançando-a na pequena cesta do
correio.
— Nada de importante. Ei, o que é que vamos fazer agora, Tim?
Recebeu também o aviso de dispensa?
— Exato. Vou para casa. Voltar às colmas. Meus três irmãos dizem que
há petróleo por lá. Apenas um dólar e meio o barril agora, mas o petróleo está
correndo como água. Você devia topar a coisa, como eu lhe disse. Vamos comigo
quando eu for para casa. Ora, cavalheiro, o senhor pode ganhar um barril de
dinheiro!
Ele gosta realmente de mim, pensou Frank, levemente surpreso. Olhou
para a face morena, estreita e bem-humorada, para os olhos azul-claros e a
gaforinha castanha, notou as maneiras descontraídas e a suavidade do jovem
interlocutor. Quanto a si mesmo, conservava-se inteiramente neutro no tocante a
Tim Cunningham. Não gostava nem desgostava dele. Algo se atrofiara no seu
íntimo. Suas reações aos demais eram negativas, indiferentes. Raramente os via.
Congratulava-se consigo mesmo por essa atitude “normal”. Aprendera a encarar
o mundo imparcialmente, sem muito sentimento.
— Talvez eu faça isso — respondeu, subitamente entediado com a
presença de Tim.
Tim fitou-o curioso. Sujeito esquisito aquele. Um tipo alto, bem
apessoado, com uma cara de “americano”. Não igual a esses malditos húngaros,
alemães e italianos que fervilhavam naquela cidade maluca. Ele tampouco era
“ianque”. Nascido na Inglaterra. Tim sentiu-se enternecido. A velha amizade e
afeto do sulista pelo inglês brilharam em seus olhos. Ora, nós somos a mesma
gente, pensou. Pôs a mão no ombro de Frank, apertou-o e dirigiu-se à sua
escrivaninha.
Kentucky. Frank brincou com a caneta. O que fora que lhe dissera o Sr.
Mason? “Precisa aprender um bocado de coisas, Sr. Clair. Muito mesmo. Anos e
mais anos de estudo. Mas, se tiver fé em si mesmo, estudar, viajar um pouco,
poderá ser um escritor.”
Frank investigara com todo o cuidado a profissão de escritor. Descobrira
que somente uns poucos podiam viver da pena. Somente estes eram autênticos
profissionais e colhiam as recompensas. Havia centenas de outros que escreviam
os numerosos outros livros, que desfrutavam de um pequeno sucesso, trazendo
aos seus autores somas que variavam de mil e quinhentos a dois mil e quinhentos
dólares anuais. Um homem não podia fazer muita coisa com isso. No topo é que
ficavam os reluzentes prêmios. Mas era longo o caminho até o cume. Queria
dinheiro, e com muito mais rapidez. E não havia garantia de que, no fim,
chegaria ao alto. A escrita, em contraste com seus esforços juvenis, se tornara
uma tarefa tediosa e tensa para ele, um trabalho. Outrora, escrevera com suave e
entusiástico deleite; as frases borbotavam da pena como fogo líquido,
fascinando-o até com as imagens, o poder e a beleza. Fora como um
derramamento, um pote mágico inclinado e do qual fluía ouro sem esforço,
suavemente. Houvera maravilha no mundo naquela ocasião — neste momento
era trabalho, monótono, mecânico. Algo lhe acontecera. Sentia uma exaustão
psíquica descendo pelas pernas e braços, drenando-lhe as forças, um aviso de
fracasso.
Kentucky. “O senhor pode ganhar um barril de dinheiro.”
Se eu pudesse ganhar um bocado de dinheiro, pensou, poderia realmente
estudar, viajar de verdade. Em seguida, quando estivesse livre do fardo de
ganhar a vida, poderia reconquistar aquela “coisa que falta”, de que falara
Mason. É simplesmente a preocupação de ter que ganhar a vida o que me segura.
Além disso, eu conheceria um pouco o país.
Conservara grande parte dos seus primeiros poemas e contos. Eram
toscos, descobrira, trabalhos de amador. Excessivamente rebuscados, com
adjetivos em demasia. Fervilhavam de repetições. Sim, estava aprendendo. Sabia
o que estava errado. Poderia escrever muito melhor do que aquilo. Mas sabia, no
íntimo, que perdera algo que possuíra outrora: poder, força, exuberância, a
capacidade mágica de criar uma metáfora refulgente. Encolheu os ombros. Tão
logo superasse a necessidade de ganhar a vida, aquilo voltaria. De súbito, disse a
si mesmo, veementemente: “Precisa voltar! Precisa! Precisa!”
A veemência do pensamento surpreendeu-o. Era como uma voz gritando
nas escuras e sufocantes profundezas de si mesmo. Era uma voz que fora
abafada durante anos.
Tim aproximou-se em passos vagarosos e ofereceu-lhe um cigarro.
Piscou, curvou-se sobre Frank e sussurrou:
— Ei, parece que aquelas pequenas gostaram de nós naquela noite.
Vamos tentar novamente? Elas são seguras, como eu lhe disse.
CAPÍTULO 36
Frank, sentado à beira da cama, na escuridão do quarto, acendeu outro
cigarro e puxou furioso a fumaça. O que fora que Emerson dissera? “Não façam
concessões, promulguem leis justas, garantam a vida e a propriedade, e não
precisaremos dar esmolas. Abram as portas da oportunidade ao talento e à
virtude e eles mesmos a si farão justiça e a propriedade não cairá em mãos
desonestas. Em uma comunidade livre e justa a propriedade flui dos ociosos e
dos imbecis para os operosos, os bravos e os perseverantes.”
Sorriu, sombrio. Eu sou operoso, pensou, sei que sou bravo e posso ser
persistente. Três pás para cavar como num jardim de pedra. Havia algo novo no
mundo naquela ocasião, algo sinistro e sugestivo de influências enervantes,
debilitantes, enfraquecedoras. Havia tolos que berravam que os estúpidos, os
incompetentes e os covardes tinham tanto “direito” de viver como seus
superiores, que possuíam coragem, virtude e talento. Quem lhes dera tal direito?
Quem eram os tolos que declaravam que eles o tinham? Não tinha direito de
viver o homem que era incapaz de trabalhar e sobreviver. O adágio de ferro dos
puritanos perpassou-lhe a mente: “Quem não trabalha não come.”
Frank inclinou a cabeça. Sim. Emerson tinha razão. Os puritanos tinham
razão. Sentiu a retidão daquelas palavras. Mas faltava alguma coisa, e faltava
nele mesmo. À equação faltava uma soma, sabia, e enfureceu-se outra vez.
Sentia aquele “algo” por trás das sombrias palavras de Emerson. Poderia ser a
mesma coisa que o Sr. Mason dissera que “faltava” em seus escritos? Maldito
absurdo. Metafísico.
Levantou-se, tocou em um interruptor na parede e a luz inundou o
quarto. Os pensamentos desmaiaram à luz confortante e olhou em volta,
satisfeito. Os últimos cinco anos haviam produzido uma mudança em Linwood
Avenue, situada ao longo dos primeiros oito ou dez quarteirões a partir do
centro. O comércio obrigara os proprietários de muitas grandes mansões a se
mudarem para os arrabaldes. Os que haviam comprado as casas abandonadas
transformaram-nas em pensões “particulares”, cobrando altos aluguéis pelas
“instalações superiores”. O quarto de Frank na casa próxima a North Street
custava-lhe dez dólares semanais, com o café da manhã. Mas era um belo quarto,
embora pequeno e antiquado. Possuía teto muito alto, de gesso trabalhado, e era
pintado de verde claro e suave, como os lados de uma maçã nova. Havia um
desbotado tapete Axminster no assoalho, de boa qualidade, com a cópia de um
motivo oriental em vermelhos, azuis e verdes desbotados. Olhou para a mobília
e, mais uma vez, ficou satisfeito. Deviam ser peças antigas, pensou, pois, a
cômoda era de velho mogno polido, com uma rica textura, combinando com um
espelho embaçado.
Sentou-se na cadeira de balanço, acendeu um cigarro e olhou para a
frente. O relógio de ouro, a única herança do pai, acusava dez e meia. Dentro de
um ou dois minutos iria tomar uma cerveja e comer um sanduíche de bife.
Entrementes, curtia o quarto.
Em seguida, ficou inquieto. Restava-lhe apenas uma semana, mais ou
menos, na fábrica Curtiss. Naturalmente, conseguiria logo outro emprego a
despeito dos boatos crescentes de dispensas, agora que findara a guerra.
Recebera o aviso prévio em novembro, mas já era janeiro e continuava
trabalhando. Trabalhava bem, era inteligente e operoso. Aprendera taquigrafia na
escola noturna e havia boa procura de rapazes com essa habilidade. Mas hesitava
um pouco ante a deprimente necessidade de procurar outro emprego, de ajustar-
se a outra situação. Tim Cunningham viajara em novembro, de volta às
“colinas”. Trabalhava com os irmãos na montanha procurando petróleo e,
aparentemente, com bom resultado. “Ganhamos duzentos cada na semana
passada”, escrevera a Frank. “Por que não vem para cá e ganha também todo
esse dinheiro? Acho que devo gostar de você, para andar insistindo dessa
maneira.” As cartas traziam o endereço de Shortsville, Kentucky. Era uma
localidade que não figurava no mapa, forçosamente uma pequena cidade do
interior.
Duzentos dólares numa única semana! Ora, aquilo era tudo o que Frank
possuía no banco! Apagou o cigarro num prato de porcelana. Duzentos dólares
semanais, pensou ele, fazendo as contas com dificuldade, totalizavam oitocentos
por mês. Calculou a soma no espaço de um ano, dois anos, três. Ora, seria um
homem rico ao fim desse período! Mas isso importaria em deixar a escola
noturna. Diabo, pensou, posso saltar a escola secundária e entrar na universidade
como aluno especial! Além disso, conhecerei o país.
Distraído, puxou o pesado relógio de ouro e olhou as horas. Um quarto
para as onze. Precisava ir tomar logo a cerveja e comer o sanduíche, se é que iria
mesmo. Levantou-se, dirigiu-se ao espelho e ajeitou a gravata. Observou o rosto.
Não era mais o rosto da adolescência.
Era um homem, de quase um metro e oitenta e cinco, ombros magros e
largos, braços e pernas compridos. O terno assentava-lhe bem e ele tinha um ar
elegante. Fora muito desarrumado e grotesco em criança, lembrou-se. Agora,
cuidava-se. Estendeu a mão para apanhar o relógio e colocá-lo no bolso.
Curiosamente, o relógio tornou-se de súbito pesado e pulsante em sua mão,
como um coração. Não pôde guardá-lo. Olhou-o fixamente.
A caixa macia de ouro aqueceu-se em sua mão. Ouviu as batidas altas.
Era o coração do pai. Sentiu as pulsações. Nesse momento, uma violenta dor
irradiou-se pelo seu corpo. Cerrou os dentes e fez um esforço para dominá-la,
desprezando-se.
O quarto desapareceu. Sentava-se ao lado da cama, no dia anterior ao
falecimento de Francis.
A galopante e espetacular doença do pai não o impressionara muito.
Estava acostumado aos lamentos da mãe sobre a morte. Naquele momento,
concluiu, o pai pelo menos por uma vez ocupava o centro do palco e estava
ativamente desfrutando da situação. Quando trabalhava, ele não pensava
absolutamente em Francis. Além disso, fazia muito tempo desde que dedicara o
menor pensamento aos pais.
Aquele dia de outubro passara com um duro e amarelo encanto. As
coisas brilhavam naquela forte amarelidão. Fundiam-se com ela o sol, as árvores,
a luz nos rostos que passavam, nas bordas dos prédios de tijolo, ao longo do
meio-fio na rua, nas janelas empoeiradas dos bondes — tudo havia sido tingido
por aquela luz amarelada e metálica. Tudo, exceto o céu, que queimava e
flamejava no alto como uma abóbada de água-marinha escura. Não havia
profundidade naquele céu. Era uma abóbada fixa, habilmente cortada de uma
enorme gema redonda, tão azul que parecia irreal. Frank, em princípios da noite,
deixara a fábrica Curtiss e perdera um ou dois bondes para observar aquele céu e
aquele dourado antes que desaparecessem. Enquanto andava, vendo, mas não
sentindo, desfrutando, mas não participando, deliciando-se sem êxtase, lembrou-
se de que fora numa noite como essa, enquanto vagueava pelos trilhos
ferroviários ao pé de Ferry Street, que presenciara o acidente.
Tinha quatorze anos naquela ocasião e estava matando uma aula.
Divertira-se muito andando sem destino, vendo, absorvendo, sonhando. Chegara
quase a Ferry Street quando viu o garotinho, que devia ter menos de dez anos,
lançando uma bola no ar e pegando-a na queda. Estava malvestido e, embora o
dia não estivesse quente, andava de pés descalços. Filho de um grileiro dali,
tinha um cabelo tão amarelo e metálico como o sol de fim da tarde e uma face
tão rosada, suja e feliz que comovia o coração só em vê-la.
Um trem aproximava-se pela curva aberta, gemendo como uma legião
de almas danadas ao aproximar-se do cruzamento. O garoto, inteiramente
inconsciente do perigo, brincava com a bola, lançando-a alto no ar. Era uma bola
vermelha, obviamente nova e possivelmente furtada. Quando a bola subia para o
céu, o garoto saltava com ela, entusiástico, esforçando-se para agarrá-la, com os
braços lançados para o alto, os pequenos dedos estendidos, os pés e as pernas
nuas erguidos como os de uma jovem ave, o cabelo dourado lançado para trás
como finas asas. Frank viu-lhe o perfil, puro e enlevado, e sentiu o mesmo
desejo apaixonado de voar, de subir com a bola que empolgava o menino. Sentiu
na carne sensível algo mais enquanto observava o menino e a bola: a arremetida
para o alto de toda a humanidade no desejo da criança de subir, de tornar-se
imponderável, de deslizar pela brilhante radiância do ar, deixar para sempre a
carne, a morte, a fealdade, a dor, ser alçada até o sol. Ele mesmo contava apenas
quatorze anos nessa época, mas sentiu uma pontada de angústia, de
conhecimento, mas de êxtase ante aquele fraco e impotente esforço, mas, ainda
assim, glorioso.
Mais uma vez a bola foi lançada para cima e, mais uma vez, o garoto
saltou. Quando caiu novamente, porém, como um pequenino globo vermelho, a
bola errou as mãos que se erguiam. Tocou no chão, rolou pela pequena ladeira na
direção dos trilhos e acomodou-se entre as brilhantes fitas de ferro. O garoto
correu saltando atrás dela. Frank, petrificado, abriu a boca para gritar, mas
nenhum som saiu da garganta, subitamente apertada por mãos de ferro. Tentou
correr para o menino, mas seu corpo parou como se houvesse virado gelo.
Tentou fechar os olhos, mas eles se conservaram abertos, inexoravelmente, e
foram forçados a ver o que tinham de ver. O maquinista aplicou em desespero os
freios. Um terrível guincho e um rangido cortaram o ar. Ouviu-se um arranhar
tonitruante de ferro sobre ferro e subiu nos ares o uivo de um apito. Mas coisa
alguma podia ser feita. Como um monstro gigantesco deslizando na terra sobre
as patas traseiras, a máquina, pelo próprio impulso que levava, arremeteu contra
a criança agachada. Somente nesse instante Frank conseguiu fechar os olhos.
Jamais conseguiu lembrar os momentos seguintes. Sabia apenas que,
quando abriu os olhos aturdidos, uma pequena multidão se reunira, vinda não se
sabia de onde, composta de homens malvestidos, de macacões e suéteres,
mulheres que choravam e torciam as mãos, crianças curiosas, boquiabertas. O
trem parou, pontilhado de cabeças que se espichavam nas janelas. O maquinista,
de pé sobre os trilhos, soluçava alto, rouco, enquanto o foguista tentava consolá-
lo. Passageiros, homens, começaram a descer do trem e aproximaram-se
correndo. O ar encheu-se de exclamações, gritos, pragas. O local transformou-se
numa selva. Nesse momento uma mulher gritou, uma mulher gorda e
desarrumada, enfiada num vestido de algodão, que saíra correndo de uma choça
de grileiro próxima. Frank notou os espirais de seu cabelo preto, de cigana, e a
face branca e sem expressão quando ela chegou junto ao maquinista e à mórbida
multidão que se reunira em meio à fumaça na frente da máquina. Ouviu-lhe o
grito, os gritos repetidos, loucos, dementes, sufocados. Mas a coisa sobre a qual
chorava, aquela luzida coisa que queria voar, não emitia som algum, nunca mais
o emitiria.
As pernas lhe começaram a tremer e sentiu gotas de suor escorrerem por
elas. Virou-se, querendo correr, correr, para sempre gravada na sua visão interna
a recordação de uma criança que subia para um céu azul cintilante. Mas a
criança não voltara à terra. Voara para longe e se perdera no sol.
O pé de Frank tocou em algo, que rolou. De alguma maneira
inexplicável a bola fora lançada de volta ao caminho, intacta, vermelha,
intocada. Apanhou-a. Estava marcada por todos os lados pelos pequenos dedos
do garoto que a tivera nas mãos e que nunca mais a lançaria para o alto.
Palpitava na mão de Frank, queimava-lhe a pele. Levou-a até o canal e atirou-a
na água. Observou-a durante um momento saltitar e depois, enchendo-se por um
orifício invisível afundar.
Não soubera na ocasião que fora compaixão pura e sem mácula o que
sentira. Mas soube naquele dia de outubro quando ia para casa sob a luz dourada
da noite de outono. Que criança tola fora! Que criança louca! Lamentando-se
como um sentimental idiota com a morte de um diabrete que, se houvesse
vivido, teria sido um bêbado, um gatuno como o pai, e que teria provavelmente
terminado seus dias na prisão ou na forca. Mas ficara ali, observando a bola
afundar, derramando lágrimas idiotas, sentimentais. A visão da criança que
subia, pura, imaculada ansiosa, recortada contra o céu, toldou-se, diminuiu de
nitidez e foi praticamente esquecida.
Esperando o bonde naquela noite de outubro, pensou: Eu nutria
pensamentos muito heroicos e imbecis naqueles dias. Sinto vontade de vomitar
quando me lembro. Ia salvar o mundo, ia escrever histórias idiotas, como a
morte daquele menino. Ia levar piedade, amor, alegria, poesia a todos os
homens! Que ultrajante e impudente desfaçatez de minha parte!
O espelho de sua mente tornou-se tão baço como o espelho sobre a pia
da cozinha da mãe, desfigurado pela fumaça, marcado, manchado, uma dura
folha que, nas suas profundidades, refletia apenas sombras.
Lembrou-se de tudo aquilo naquele momento no quarto de Linwood
Avenue, tendo na mão o relógio do falecido pai. Aquele dia tão antigo de
outubro e o dia da morte do pai estavam inextricavelmente fundidos, haviam-se
transformado em um único dia. Da mesma maneira que segurara nas mãos a bola
do garoto, antes de lançá-la no canal, segurava naquele momento o relógio do
pai e, durante um curto momento, imaginou que o relógio pulsava.
Os seus dedos esquentaram sob o metal. Fez um gesto como se fosse
enfiar o relógio no bolso. Algo, porém, deteve-lhe a mão e nada pôde fazer
senão continuar ali, olhando-o. Ora — naquele momento sentiu divertimento —
era quase a bola outra vez, a bola de uma criança sem nome que sentira uma
aspiração, tentara galgar os ares, fora abatida e morrera!
Encontrava-se novamente na “sala da frente”, em Albany Street, no
quarto dos pais.
A noite esfriara. O pequeno aquecedor de gás, com suas “roscas” de
argila quente, queimava forte, lançando um calor agradável sobre o linóleo
marrom, gasto, mas bem esfregado. As remendadas e cerzidas cortinas de
“renda” de Maybelle eram ondulações de neve nas venezianas baixadas, duras
como papel, e igualmente brancas. Um sofá de mogno enroscado, com um
recosto de veludo verde doentio e uma cadeira combinando haviam sido
acrescentados à despojada mobília original. Maybelle comprara o “conjunto”
numa movelaria de segunda mão. Aplicação vigorosa de flanela e óleo haviam
conservado brilhante a madeira. A cama de bronze fora polida também e suas
estreitas colunas e a parte superior em volutas lembravam ouro puro. Na cama,
sob o edredom branco de casa de abelhas, jazia Francis, reclinado bem alto nos
fofos travesseiros (Os amados travesseiros de Maybelle, trazidos da Inglaterra).
O bico de gás queimava fraco no teto. Frank sentou-se ao lado do pai enquanto a
mãe dormia. Devia acordá-la à uma da manhã e ir dormir. Seria substituído pela
mãe até o amanhecer. Isso porque ambos sabiam naquele momento que Francis
não resistiria.
Como a luz era fraca demais para ler, foi obrigado a sentar-se junto ao
pequeno aquecedor a gás, numa dura cadeira de balanço, de frente para a cama,
observando o doente. Balançou-se, inquieto. O assoalho rangia sob a cadeira; o
gás silvava; o aquecedor chiava e estalava. O vento de outubro empurrava as
janelas e as cortinas mexiam-se contra as venezianas. Francis parecia dormir,
embora a respiração fosse irregular e rouca e ele, às vezes, tossisse surdamente.
Era uma caveira o que repousava ali sobre o travesseiro, cinzenta, funda,
manchada de profundas sombras, descarnada, espectral. A cabeça calva, a testa
estreita e saliente pareciam enormes sobre as feições murchas, como pedra
esbranquiçada sobre uma minúscula face que, à medida que mergulhava na
morte, conservava uma fantasmagórica semelhança com a ancestralidade
primordial e simiesca. Naquele momento, enquanto as características humanas
se esvaíam, preparando-se para partir para sempre, o espectro remoto e perdido
dos primórdios do homem manifestava-se com clareza sempre maior. A morte é
uma coisa feia, pensou Frank, mas de certa maneira, misteriosa. Ficou intrigado
com o triunfo da testa e do domo do crânio — a testa e o crânio da ascensão do
homem, que não seriam derrotados e dissolvidos, mas permaneceriam inviolados
e resistentes muito depois que aluíssem em barro a feições simiescas as quais
coroavam. Como um monumento, como uma tumba que a tudo resiste, o domo
do crânio, cheio, polido, invulnerável, persistia através das idades como
testemunha muda de estranhas criaturas que o haviam habitado e crescera sem
parar, da pequena cabeça do símio, voltada sem curiosidade para as árvores da
selva, para a do homem que sonhava com cidades e conquistava planícies.
A luz do gás bruxuleava; silvava o aquecedor. Frank permaneceu imóvel
na cadeira e, durante alguns exultantes momentos, sentiu a chama e a emoção da
infância, a exaltação, o êxtase, a maravilha, o respeito. E murmurou para si
mesmo com uma alegria que não conseguiu compreender: — Eu ainda sinto!
Em seguida, combateu essa imbecilidade e pensou na escola, nas suas
ambições, no dinheiro, na fuga para sempre daquele quarto e de tudo quanto ele
implicava. Olhou em volta, odiou, rejeitou, e a visão desapareceu.
Francis tossiu forte, moribundo, e abriu os olhos mortos. Viu o filho
junto à cama, olhando sombrio para o vazio. Viu os olhos do filho, apertados,
sem nada ver do quarto ou do pai, mas algo em si mesmo. Viu algo além disso.
Viu o filho, aquele rapaz sentado ali, com as longas pernas cruzadas, o colarinho
duro e brilhante, a gravata de nó elegante, as magras e fortes mãos crispadas nos
braços da cadeira. Algo fê-lo exclamar:
— Filhinho!
O nome carinhoso, há tanto tempo esquecido, produziu uma espécie de
choque em Frank. Olhou fixamente para o pai e ouviu o nome ecoando,
chegando-lhe de uma infância muito antiga e mais bondosa, dos campos verdes e
bordados com margaridas da Inglaterra, do cheiro de candeeiro a gasolina, da
pantomima e do Natal em casa. Ouviu a palavra e captou o frescor do pilriteiro e
do agrião, sentiu o gosto de pirulitos de hortelã e panquecas de Terça-Feira de
Carnaval, ouviu o riso de crianças que comiam batatas fritas enquanto a chuva
caía forte do lado de fora. Ouviu e viu um jovem Francis segurando-lhe a mão
enquanto passeavam pelo ensolarado Reddish Vale e ele escutava a história da
Gata Borralheira contada pelo pai.
— Filhinho! — exclamou Francis, e Frank sentiu o beijo cálido da
jovem mãe e ouviu a dura e desajeitada execução do pai na “rabeca”. Viu as
patéticas botas do pai no tombadilho do “Baltic”, o gorro absurdo e os grossos
bigodes pretos, a bengala e o faiscar dos olhos azuis, atentos. Nesse momento,
sentiu uma forte amargura e confusão e procurou lembrar-se de quando o pai
deixara de chamá-lo por aquele nome. Não podia lembrar-se, mas sabia que a
dor de sua infância começara nessa ocasião, assim como a fealdade esquálida e o
desespero da vida na América.
Tremendo, dirigiu-se para a cama do pai com os lustrosos sapatos
batendo forte no linóleo. Junto da cama, olhou para Francis, que o fitava com
uma expressão ansiosa, a boca encolhida movendo-se sob o bigode grisalho. O
que estaria ele tentando dizer? Frank curvou-se sobre a cama. A boca mexeu-se,
mas nenhuma palavra conseguiu articular, salvo um murmúrio sufocado, terrível
em sua incoerência.
Francis moveu cegamente a mão direita sobre a colcha da cama. Algo
em Frank fê-lo querer segurar aquela mão. Sabia que o pai queria que fizesse
isso. Mas não pôde. Não pôde porque algo parecido com uma paralisia férrea o
deteve. A mão de Francis parou por fim. Olhou para o filho e aquela alma que
partia fitou-o ardentemente, como se soubesse.
Em voz baixa, choramingou:
— Minha rabeca.
— Sim, pai — respondeu Frank em voz fria e tranquila. — Está no
porão. Quer que vá buscá-la? — Ele quer a rabeca, e está morrendo! Era de se
esperar algo tão sentimental assim, acho. Ele não pode nem mesmo morrer sem
fazer um gesto para despertar comiseração!
Mas não há pena em mim, pensou amargo. Não há compaixão por essa
vida ignóbil. Há apenas amargura quando me lembro de todos estes anos. Não
posso esquecer.
Francis ficou observando-o, absolutamente imóvel, silencioso,
compreendendo. A desolação, o terror e a desesperança brilharam naqueles olhos
mudos. A luz do gás iluminava uma face onde se desenhava uma aguda
percepção, uma percepção jamais revelada em uma vida anterior e mais sadia.
Era o avivamento da chama de uma alma, expandindo-se, sacudindo as asas
úmidas em preparação para o voo que a libertaria da gasta crisálida.
Que palavras havia para traduzir tal compreensão, tal percepção? Não
estavam registradas na língua de qualquer raça. O sentimento transcendia as
palavras.
A rabeca, pensou Frank. O que quereria ele com a rabeca?
— Quer que vá buscá-la? — repetiu.
Sem tirar os olhos ansiosos da face do filho, Francis moveu de leve a
cabeça no travesseiro num gesto de negação. Ele está tentando dizer-me alguma
coisa, pensou Frank. Sorriu, em seguida, com desprezo de si mesmo por esse
sentimentalismo. O que poderia essa pequena e mesquinha criatura dizer-lhe? O
que poderia dizer?
Não se lembrava de ter visto os olhos de Francis tão brilhantes, tão
azuis, como naquele momento. Febre, naturalmente. Febre e medo. O medo
sempre fora emoção conhecida do pai. Enojado, Frank respirou longa e
profundamente.
Frio, em voz alta, perguntou:
— Está-se sentindo bem, pai?
Aparentemente, Francis não o ouviu. Os olhos, dilatados, enormes,
olhavam fixamente da caverna de sombras onde se engastavam. Os lábios
moviam-se em silêncio com palavras que não conseguiam articular. Mais uma
vez, a mão contorceu-se em desespero, trágica. Frank notou o gesto e desviou a
vista.
— Quer que chame mamãe? — perguntou. Olhou para o despertador,
que batia alto na mesa quadrada de carvalho junto à janela. Quase uma hora. Era
tempo de acordar a mãe e ir dormir.
Observou o pai. Após um longo momento, Francis inclinou a cabeça.
Frank dirigiu-se à porta. Francis observou-o afastar-se. O azul que lhe queimava
nos olhos seguiu o filho. A porta foi aberta e fechada por trás do jovem. Os olhos
de Francis, porém, continuaram a arder, ignorando a impermeabilidade da porta,
como se algo nele a atravessasse, seguindo-o.
Maybelle, inchada, com manchas no rosto, desgrenhada, ergueu-se
gemendo da cama de Frank. Cobriu-se pudicamente com a colcha. Suspirando,
soluçando um pouco de exaustão, empurrou para trás a massa de cabelos
grisalhos e pestanejou com o brilho da luz do gás, acesa pelo filho. Tinha os
olhos mortos e opacos. Perguntou:
— Como está ele?
— Está acordado. Melhor do que na noite passada.
Tirou o paletó e o casaco e pendurou-os nos pregos da parede que lhe
serviam de guarda-roupa. A mãe começou a chorar.
— Acontecer isso logo a nós! — choramingou, enxugando o nariz e o
rosto no avental amassado. — Por que teria de acontecer?
Frank tirou a gravata. Examinou com atenção o colarinho, aproximando-
o da luz. Com indiferença, respondeu:
— Por que não nos deveria acontecer? Acontece todos os dias.
Maybelle assoou-se.
— Nenhuma pena — gemeu. — Você não tem sentimentos, Frank.
Como é que você pode ficar tão calmo assim quando seu pai está morrendo?
Ele fitou-a com uma viva curiosidade. Durante toda a doença, Francis se
lamentara da redução das suas economias. Maybelle, porém, não falara nem uma
única vez em dinheiro. Em voz mais suave, respondeu Frank:
— Talvez ele não esteja morrendo. Parece muito melhor hoje à noite.
Segurando as costas doloridas, Maybelle saiu do quarto. Frank fechou a
porta. Bocejou. Dirigiu-se para a cama, deitou-se, mas não adormeceu logo,
como de hábito. Os olhos do pai continuavam a fitá-lo, queimando, azuis e fixos,
na escuridão.
O amanhecer de outono foi rompido pelos gritos e o choro de Maybelle
e, mesmo antes de chegar ao quarto da frente, Frank teve certeza de que o pai
falecera.
Conseguiu colocar agora o relógio no bolso, onde ficou como um peso.
Não se lembrava de que fosse tão pesado. De súbito, teve vontade de livrar-se
dele. Vou vendê-lo sábado à tarde, pensou. Com o dinheiro comprarei outro.
Desceu em passos rápidos a escada. Precisava andar ligeiro antes que o
bar fechasse. Havia boatos de Lei Seca. Isso era um absurdo, naturalmente. Não
poder beber um copo de cerveja quando se tinha vontade! O pai se enganara: os
ianques não eram tão estúpidos assim. Pensou um momento e acrescentou para
si mesmo: nós não somos tão estúpidos assim.
Linwood Avenue estava muito tranquila, escura e deserta quando Frank
fechou a porta da rua. Pedaços de gelo escuro continuavam sobre as calçadas
raspadas à pá e pestanejavam à rara luz dos postes, muito espaçados, de
iluminação elétrica. Enormes montes de neve, cheios de furos e mossas,
levantavam-se nos gramados e no meio-fio. As grandes e melancólicas casas de
cada lado da rua pareciam haver-se retirado ainda mais para dentro de seus
terrenos cobertos de neve. Piazzas, projetando-se das fachadas de tijolo
vermelho, pareciam cavernas de sombras. Um automóvel passou com um triste
toque de buzina. Uma grande lua branca, pendurada, sobre um telhado, tingia de
prata a ardósia. As árvores nuas estalavam no silêncio, pois o frio aumentara nas
últimas horas. Ouviu o barulho de um bonde que descia, balançando-se, Main
Street. Subiu North Street a caminho do bar em Main.
O bar, igualmente, estava deserto, salvo pelo garçom, que bocejava
entediado e preparava-se para fechar, e um único freguês, derreado no balcão.
Um único globo de luz pendia do teto. O lugar cheirava a cerveja e a suor velho.
Aproximou-se e pediu uma cerveja. O garçom conhecia-o.
— Um minuto mais, Frank, e você encontraria a casa fechada — disse
ele. — Está frio lá fora, não?
Frank inclinou a cabeça e bebeu a cerveja. O garçom, com os cotovelos
no bar, puxou do peito um profundo e cansado suspiro e alisou a fímbria de
cabelo em torno da cabeça calva. Era um homem gordo e informe, de meia-
idade, pequenos olhos bondosos e rosto flácido. Olhou para Frank com sonolenta
amizade.
— Umas duas pequenas estiveram aqui, mais ou menos há uma hora —
confidenciou. — Procurando fregueses. Botei-as logo para fora. É preciso ter
cuidado nestes dias, com esses santarrões querendo implantar a Lei Seca. Bem, o
povo não vai admitir isso, simplesmente. Havia uma coisa estranha com uma das
pequenas — recomeçou em tom mais animado. — Era uma garota de uns
dezesseis anos, talvez quinze. Uma filha das gerações da guerra, como dizem os
jornais. Bonita, também, com a saia chegando quase até o joelho e um grande
chapéu de Viúva Alegre. Não, acho que era um troço parecido com um
cogumelo. — Sorriu. — Bem, a menina entrou aqui com a moça mais velha,
remexendo as cadeiras, mascando chiclete e bancando a ousada. A outra pequena
não era “boa” como ela, via-se logo. Mas havia alguma coisa na menina que me
fez mal. Tenho uma filha da mesma idade. Eu disse: “Por que você não volta
para casa, querida, tira essa tinta da cara e vai para a escola?”. Sabe o que foi que
ela respondeu? “Não tenho casa nenhuma e minha mãe está por aí, fazendo a
vida também.” — O garçom sacudiu a cabeça. — “Admirável Mundo Novo”, é
isso o que dizem os jornais, depois da guerra. “Admirável Mundo Novo” para
quem? Não houve nenhum “Admirável Mundo Novo” depois da Guerra
Hispano-Americana, mas acho que as pessoas simplesmente se continuam
enganando o tempo todo. Não parecem compreender que, se querem esse tipo de
mundo, têm que construí-lo, com as próprias mãos, e não esperar que alguém o
faça, sentando-se sobre o traseiro e simplesmente esperando.
Suspirou novamente e, mais uma vez, passou a mão pela fímbria de
cabelos e continuou.
— Culpam os bares. Culpam a guerra. Culpam todo mundo. Mas não há
um único filho da mãe que se olhe no espelho quando faz a barba e diga a si
mesmo: “É esse aí que está impedindo que venha o admirável mundo novo. E
esse filho da mãe que está botando areia no brinquedo. Mexa-se, irmão, faça sua
parte.” Não, ele não faz isso. — O garçom, triste, sacudiu a cabeça.
— O que é que você está fazendo, Tom, a respeito do “admirável mundo
novo”? — perguntou indolente Frank.
O garçom sorriu acanhado e alisou o queixo.
— Eu? Escuto as histórias tristes que eles me contam. Um homem
precisa de ter alguém com quem falar não? E ouça aqui, garoto, escutar é
trabalho duro. Talvez mais duro do que você pensa. Eu também dou conselhos
quando não estou com pressa demais. Digo a esses chorões que voltem para suas
esposas, para casa, e que brinquem com os filhos. Digo aos veteranos que
deixem de se lamentar porque o Governo não os ajuda. Digo aos rapazes que
deixem de andar procurando moleza e trabalhem duro. Digo aos caras metidos a
sebo que não vendam seus Bônus de Guerra e que deixem de fumar grandes
charutos e de se mostrar simplesmente, trocando notas de vinte dólares. Digo a
todos que vêm por aí, novamente, tempos difíceis, que estão bem perto, e que
eles vão ter que lutar para ganhar níqueis, em vez de jogar fora os dólares, como
se fossem caras importantes. Digo a eles que os empregos moles estão acabando
e que não há coisa menos permanente do que a “prosperidade permanente”.
Todos têm que trabalhar duro... é isso o que eu digo a todos esses calhordas que
vêm aqui.
— E eles prestam atenção?
Tom pensou seriamente no caso, ergueu-se do bar, coçou a cabeça e
contraiu os lábios gordos.
— Bem, moço, alguns prestam, outros não.
Frank sorriu cordialmente e disse:
— Parece que você é uma força pelo bem, Tom. — Pagou a cerveja e
terminou o sanduíche de carne. Ouviu o tinido da registradora.
De costas viradas, Tom disse:
— Há gente que pensa que os que trabalham não têm cérebro. São
simplesmente mulas, acham. Mas você ficaria surpreso se soubesse o quanto eles
pensam. Todo o povo americano.
Frank apertou os olhos, fitando as costas gordas e suadas do garçom.
Ergueu-se abruptamente, despediu-se e saiu. O garçom, girando lentamente
sobre os calcanhares, observou-o sair. Lançou um olhar para o último ocupante
do bar, piscou e suspirou:
— Aquele moço pensa que conhece todas as respostas. Mas vai acordar
qualquer dia destes, espero. Ele poderia ser um cara legal, se apenas se
descontraísse. Espero que não acorde tarde demais. Olhou para a cara dele? É
como se usasse uma máscara. Aposto que a verdadeira é melhor. Se ao menos a
mostrasse...
CAPÍTULO 37
Frank tomou o desjejum às oito e quinze na sala de jantar de Miss
Woods. Esperava com ansiedade tal refeição, pois por essa hora os menos
importantes haviam terminado e saído e os mais “desejáveis” podiam comer sem
pressa ou saborear uma última xícara de bom café. Mas as manhãs de domingo
eram as melhores de todas.
Era muito agradável a sala de jantar de Miss Woods, com suas velhas
paredes apaineladas, de luxuosa nogueira. Era verdade que pouco sol penetrava
no cômodo, pois as casas de tijolos vermelhos de Linwood Avenue pareciam ter
sido construídas em um estado de espírito sombrio por arquitetos sem inspiração
que temiam o sol. Situava-se em um dos lados da casa, atrás da sala de visita. A
penumbra dava-lhe um ar aristocrático, realçado ainda mais pelas janelas altas e
estreitas, discretamente fechadas por cortinas de renda e guarnições grossas de
brocado de veludo marrom, combinando com o apainelamento de nogueira. O
aparador maciço, com o espelho e as extremidades altas, a imensa mesa redonda,
lustrosa com o vidro grosso e pesado, as velhas cadeiras forradas de couro preto,
a mesa de servir, com espelho no tampo, e os candelabros de prata que haviam
pertencido à mãe de Miss Woods, formavam a mobília que, embora feia e
maciça, era o grande orgulho da dona.
Nas manhãs de inverno formava-se na sala de jantar uma atmosfera
especialmente agradável. Um arranjo de velas elétricas, instaladas com muito
gosto no antigo lustre de gás sobre a mesa, iluminava o damasco branco puro, a
prataria brilhante, a excelente porcelana Haviland de cor creme clara com bordas
de pequeninas rosas e o bule de café. Às vezes, nas manhãs de domingo, Miss
Woods punha uma ou duas toras na lareira de mármore preto na extremidade da
sala. O fogo, combinado com o aroma agradável do café, o cheiro esfumaçado e
quebradiço do bacon frito e o aroma de fazer água na boca dos pãezinhos
quentes, tornavam a sala de jantar o cômodo mais acolhedor e agradável da casa.
Descendo a escada às nove horas daquele domingo de princípios de
março, Frank notou satisfeito que Miss Woods havia acendido a lareira. Ele
sabia que fazia muito frio do lado de fora, provavelmente abaixo de zero, pois as
janelas estavam embaciadas pela geada e fora forçado a soprar forte nelas
durante algum tempo antes que pudesse abrir com um dedo um orifício para
olhar a rua. Pela manhã, os quartos eram bastante frios e agradava ver o fogo e
sentir o cheiro do café, do presunto e dos pães. Os moradores já se encontravam
ali, esperando pelo primeiro prato: ameixas com creme. O ruído do vento,
chocando-se violento contra as janelas, guinchando nas chaminés, havia
acordado todos muito cedo naquela manhã.
Miss Woods, uma mulher pequenina quase tão larga como alta, presidia
à cabeceira da mesa. A vulgaridade da carne, o volume dos seios e ombros, a
grossura dos braços curtos, porém, produziam o efeito muito peculiar de lhe
realçar a aristocracia inata, e não de desmerecê-la. Usava um vestido de seda
preta de viúva, embora nunca houvesse casado, tinha setenta e dois anos, era
antiquada e “orgulhosa disso”, e jamais alguém a via sem um laço de renda
branca no alto do cabelo branco lustroso. As feições pequenas e gordas e os
pequenos olhos cinzentos, afundados em camadas de gordura, deviam ter dado
um aspecto rude à face larga e volumosa, mas outra vez e estranhamente,
emprestavam-lhe apenas um ar de refinamento. Havia um quê de solidez,
majestosa vivacidade, inteligência e bom senso em Miss Woods que lhe dava
quase um porte de rainha. A sua conversa era pura e feita em frases muito bem
construídas, pois era mulher de grande educação. Apreciava uma piada e
adorava sutilezas. Era vaidosa das pequenas mãos brancas, as quais mesmo pela
manhã estavam sempre cobertas de anéis.
Era inexplicável como essas feições minúsculas podiam expressar, com
grande mobilidade, as mudanças, as incursões, as arremetidas e os sumários de
uma mente profundamente viva e inteligente. Miss Woods não nutria ilusões
sobre a excelência da natureza humana. Mas não era cínica. Velha demais para
isso. Tampouco era tolerante e complacente com os demais. Em hipótese alguma
“pensava o melhor das pessoas”. Simplesmente as aceitava com imperturbável
bom humor, um pouco de secura nos comentários particulares e uma indiferença
zombeteira, embora bondosa. Ninguém esperava compreensão de Miss Woods,
pois não era confidente de ninguém. Não que as pessoas a entediassem, pois
interessava-se muito pela vida e era bastante inteligente. Mas desenvolvera uma
filosofia própria, insistia em preservar sua vida privada e discretamente exigia
que os outros fizessem o mesmo. Não queria envolver-se. Para muitos dos
hóspedes, devia ter parecido uma mulher dura e insensível, mesmo egoísta,
devido à sua recusa em ser atraída pelo vórtice dos problemas, mágoas e
angústias dos demais e a exigência de que a vida em sua casa transcorresse numa
atmosfera de amenidade permanente, agradável calma e tranquilidade.
À sua direita — o que era estranho — sentava-se um rapaz
extremamente feio. Miss Woods preferia pessoas atraentes, todavia elas não lhe
despertavam qualquer interesse impróprio. Mas eram agradáveis de ver e ela
gostava de pessoas que não apresentassem um aspecto desagradável ao seu olho
exigente. No entanto, como Miss Woods nunca se explicava, não se queixava,
nem tentava justificar ou racionalizar seus atos, ninguém ousava perguntar por
que Irving Schultz se sentava à sua direita e era contemplado com mais sincera
bondade e interesse do que ela já demonstrara por qualquer outro hóspede.
Chegara ao ponto de fazer para os demais hóspedes um retrato sumário do jovem
antes do primeiro aparecimento dele à mesa e, pela primeira vez,
inexplicavelmente, os moradores ficaram atônitos ao ouvir o mais leve eco de
emoção naquela voz bem-educada.
Irving Schultz era filho de imigrantes alsacianos, segundo informou
Miss Woods. Residira certa vez em Plymouth Avenue, nas proximidades de
Albany Street. Frank conhecia bem o ambiente de onde ele provinha, mas estava
convencido de que o mesmo não acontecia com Miss Woods, e ficava
cinicamente divertido pensando em quais seriam as reações dela se soubesse
(Miss Woods sabia).
A questão da paternidade de Irving era algo ambígua. Ele nunca soube se
o seu pai era Adrian Schultz ou seu tio ostensivo, Rudolph Schultz, irmão de
Adrian. A família, composta do pai, do tio, da alegre esposa e oito filhos, residira
em Plymouth Avenue, numa pequena casa junto à cocheira onde eram guardados
os dois cavalos de tração de Adrian. Isso porque Adrian era cocheiro e
trabalhava a esquisitos intervalos para firmas de transportes locais, enquanto os
cavalos, e não os filhos, engordavam bastante. Mesmo os vizinhos naquele
bairro miserável, nunca muito exigentes no tocante à aparência das casas
avermelhadas ou ao estado dos cômodos internos, achavam os Schultzes
intoleráveis. Haviam passado pelo menos vinte anos desde que as tábuas
externas da casa de Schultz foram pintadas; as telhas do telhado arruinado
encrespavam-se ao sol do verão e encolhiam-se como papelão sob a chuva e a
neve do inverno. Pelo menos um terço das janelas possuía buracos fechados com
chumaços de jornal e velhos trapos. As poucas cortinas, de tão imundas, tão
rasgadas, tão esfiapadas, pouco mais eram do que trapos. A varanda em frente
tinha tantos buracos e era tão inclinada, arranhada, cheia de calombos e ripas
soltas que atravessá-la à noite equivalia a uma grande façanha. Somente Adrian
e Rudolph, nos seus interlúdios de bebedeira, podiam milagrosamente serpentear
em segurança até a porta, que pendia das dobradiças. O terreno, na frente e nos
fundos, estava atravancado de latas de cinzas, caixotes e engradados úmidos,
lixo de todos os tipos possíveis, montes de refugo, pedaços de paus, pedras e
artigos variados, incluindo montes de garrafas vazias de cerveja, que,
aparentemente, constituía o principal refresco dos Schultzes. Uma fedentina
insuportável pairava sobre o terreno e a casa, e os vizinhos faziam questão de
levar a mão ao nariz quando passavam por ali, em especial quando a Sra. Schultz
conseguia descobrir um lugar seguro na varanda e sentava numa cadeira de
balanço quebrada. Quando faziam isso, e quase sempre o faziam, a Sra. Schultz,
com os braços confortavelmente cruzados sobre os seios, inclinava-se para a
frente e emitia um forte e obsceno ruído, esgaravatava o nariz com o polegar em
um gesto imemorial, ou explodia numa forte e alegre gargalhada, precedida de
um sonoro palavrão.
Nenhuma criança da vizinhança brincava com os filhos dos Schultzes,
que andavam invariavelmente imundos e esmolambados, de pés descalços desde
princípios da primavera até fins de outono. Corriam como esquilos pela casa e
pelo terreno, aparecendo às vezes sobre o precário telhado da varanda,
acocorados os mais jovens ali e dando indiferentes aos transeuntes uma vista que
a sociedade bem-educada decretara que não devia ser apresentada ao público. As
crianças diziam nomes feios o dia todo, enfiavam os dedos no nariz ali mesmo
na calçada, jogavam dados na varanda, brigavam, berravam, rugiam e uivavam,
como num asilo, desde o amanhecer até quase meia-noite. Como as janelas
jamais haviam possuído telas, enxames de moscas entravam e saíam à vontade.
A casa não possuía tapetes e por dentro era pelo menos tão horrenda como por
fora. As crianças dormiam por toda a parte, a qualquer hora, como porcos num
chiqueiro. Jamais havia uma “refeição direita”, como dizia Maybelle.
Para tornar ainda mais animadas as coisas, a Sra. Schultz, Adrian e
Rudolph geralmente escolhiam a noite de sábado para uma violenta discussão,
acompanhada de gritos, ameaças, nomes feios e pancadas. Eram claramente
ouvidos os berros de Adrian, acompanhados de ameaça de morte à esposa,
exigindo que ela identificasse quem era o pai de quais filhos. A Sra. Schultz,
uma mulher baixa, robusta, muito morena, uns quarenta anos e bastante
coragem, dizia-lhe para onde ele podia ir, e sem perder tempo. Certa vez, quando
a exigência se tornou insistente demais, alguém a ouviu responder em voz muito
alta: “Como diabo eu posso saber, seu...?”
Irving era o mais velho nessa ambígua família, um ou dois anos mais
velho do que Frank. Como os irmãos, não tinha atração alguma, pois era
excessivamente alto, encurvado, moreno, com o mesmo nariz grande e adunco
da mãe, olhos pretos pequeninos, queixo longo e pontudo e lábios finos. Além
disso, possuía uma gaforinha preta, cacheada, quase negroide na ondulação.
Irving, porém, fora o único membro tranquilo da casa, um garoto silencioso e
fechado, inexplicavelmente brilhante na escola, ao passo que os irmãos e irmãs
mal passavam da classe dos idiotas. Sempre estivera um ou dois anos à frente de
Frank Clair, mas os boatos sobre suas façanhas em Matemática, Inglês e
Gramática espalharam-se para cima e para baixo na escada acadêmica. Passara
pelas mãos de Miss Bendy, que lhe dera todo o entusiástico encorajamento que
lhe fora possível.
Cursava a escola secundária, indiferente às troças dos colegas a respeito
de suas roupas remendadas, mãos sujas, cabelo negroide, enorme nariz e lenços
que eram trapos. Ao contrário de Frank, demonstrara a mais completa
indiferença pelas perseguições de que era vítima. Nunca brigara, nunca dirigira a
palavra aos colegas e sua voz era ouvida apenas quando se levantava para ler a
lição, o que fazia com elegância, equilíbrio e eloquência. Nem mesmo Miss
Bendy jamais desconfiou do que ele pensava.
Conseguira cursar a escola secundária graças ao expediente simples de
trabalhar à noite inteira em uma fábrica de caixas local. Havia-se formado com a
incrível média de cem em todas as matérias e ganhara uma bolsa-de-estudos para
a Universidade de Bison.
Entrementes, chegara ao cargo de contramestre da fábrica. Com a guerra,
haviam subido os salários e Irving continuara no turno de meia-noite até às oito
da manhã. Da fábrica dirigia-se diretamente para a Universidade, chegava a casa
às quatro da tarde, dormia algumas horas, levantava-se, estudava as lições,
comia às pressas em uma das mesas e saía para o trabalho. Por essa altura, Frank
o perdera inteiramente de vista e, como a Sra. Schultz, Adrian e Rudolph haviam
chegado à comparativa tranquilidade de fins da meia-idade, os Schultzes não
constituíam mais o vivo e agradável escândalo que haviam sido em anos mais
jovens. Em 1917, a Sra. Schultz morrera de delirium tremem e a família
desaparecera.
Constituíra um choque para Frank reencontrar Irving na seleta casa de
Miss Woods. Nenhum sinal de reconhecimento, contudo, passou entre eles.
Irving inclinara cortesmente a cabeça, mas continuara a comer, pois haviam sido
apresentados no primeiro desjejum que Frank saboreara na agradável sala de
jantar.
Mais tarde, foi informado de que Irving cursava o terceiro ano da
Universidade de Bison, era funcionário extremamente respeitado na fábrica de
caixas, com um salário de cinquenta dólares semanais, e alugara o quarto mais
barato e menos desejável na parte superior da casa. Irving, disse Miss Woods, ia
ser médico, pesquisador, um “especialista” em doenças mentais.
O favoritismo dela, no entanto, era revelado apenas pelo fato de permitir
que ele se sentasse à sua direita e de lhe endereçar ocasionalmente um olhar
cálido e quase maternal. Nunca lhe fazia a menor pergunta, compreendendo-o e
respeitando-lhe os estranhos silêncios, e ficava contente, se lhe endereçava uma
observação exclusiva, quando ele respondia com uma tranquila inclinação de
cabeça ou um leve sorriso.
Se ela apenas soubesse o que ele realmente era! pensou Frank,
desdenhoso.
Nenhum contato havia entre os dois jovens, salvo as mais curtas
inclinações de cabeça. No fim, Frank ignorou-lhe inteiramente a existência.
Nutria a firme convicção de que, mais cedo ou mais tarde, Irving terminaria,
como os pais, caído na sarjeta. A água nunca sobe acima de sua nascente, como
dizia Francis. Os filhos de ladrões, bêbados e degenerados forçosamente deviam
tornar-se ladrões, bêbados e degenerados, por sua vez. As pretensões de Irving
constituíam a mais grosseira das impudências.
Achava mais agradável contemplar os outros hóspedes.
Havia um seco e pequenino solteirão, o Sr. Roberts, chefe da
contabilidade da Bethlehem Steel e que era considerado muito “próspero”. No
fim dos sessenta, era um cavalheiro tranquilo e cortês, de modos muito
antiquados, muito polido, vagamente cordial e grande leitor de Walter Pater,
Aristóteles, Locke, Berkeley e Hume. Ele e Miss Woods amiúde travavam
animadas e edificantes conversações sobre esses luminares.
Miss Ethelinda Shaw, diretora de uma escola secundária, era uma mulher
de uns quarenta anos, alta, esgalgada e muito elegante, titular de opiniões muito
avançadas e maneiras extremamente dogmáticas. Sufragista, ela e Miss Woods,
surpreendentemente também sufragista, mantinham amizade quase íntima. Miss
Shaw lembrava a Frank uma garça e ele antipatizava profundamente com ela, em
especial quando lhe voltava seus inteligentes e perspicazes olhos de professora.
Era como se ele estivesse matando aula, fosse um desajustado e, embora se
vestisse bem, Miss Shaw fazia-o sentir-se como se usasse ainda as roupas
miseráveis e remendadas da infância. Bastava que Miss Shaw virasse para ele o
vazio brilhante dos seus óculos para que se encolhesse todo. Tinha certeza de
que ela o via por dentro, o que, de fato, acontecia. Mas não sabia que Ethelinda
Shaw tinha pena dele.
A vice-diretora, Miss Ida Stengel, uma mulher pequenina, pálida,
amarelada, informe, de uns quarenta e cinco anos de idade, morava também na
casa de Miss Woods. Na verdade, ela e Miss Shaw dividiam um grande quarto
de casal que ficava atrás do quarto do hóspede principal. Miss Stengel repetia
como um papagaio todas as vigorosas opiniões de Miss Shaw e todos a
consideravam muito tediosa, com aquele sorriso imutável e ansioso e os olhos
fixos na sua superiora. Tentava mesmo copiar as roupas elegantes de Miss Shaw,
mas com resultados desastrosos. E bastava que Miss Shaw dissesse
desdenhosamente: “Ora, Ida!” para que a pequenina e gorda mulher se
encolhesse como um caracol tomando um banho de vinagre.
Havia os Crimmonses, marido e mulher.
Frank podia desprezar Irving, ignorá-lo, esquecer o Sr. Roberts,
considerando-o um velho idiota e pedante, sorrir cativante para a formidável
Miss Shaw e sua companheira e sentir-se canhestro na presença de ambas. Mas
não temia realmente nenhum deles, com exceção do Sr. e Sra. Crimmons. Estava
seguro no que interessava a todos os demais. Mas não se sentia seguro com
respeito a Sra. Amy Crimmons.
Isto porque a Sra. Crimmons era uma das odiadas “entendidas”. Ela
“descobrira” tudo a respeito de Frank Clair.

//
Havia sempre uma, duas ou três pessoas que, aonde quer que ele fosse,
bastavam olhá-lo para “descobri-lo”. Descobri-lo, a despeito da aparência de
normalidade duramente conquistada, da máscara enganadora, mentirosa! Podiam
vê-lo por dentro a despeito da fisionomia cuidadosamente composta que —
quase sempre — expressava o vazio e a falta de emoção que estava em moda, o
nada vago, a cordialidade, a reticência, a brandura, a polidez, o aspecto comum
dos que não sobressaiam, a face informe das multidões que enchiam a terra. Sim,
descobriam-no, aqueles entendidos, de rostos perscrutadores, penetravam-lhe o
disfarce, o estudado fingimento de que era um deles, de que se assemelhava a
eles na fala, no trajo, na tipicalidade. Pareciam saber, quase imediatamente, que
aquilo tudo era apenas disfarce, uma fantasia para que pudesse ser aceito e
admirado por eles em espírito fraternal. E sabiam sempre, de alguma maneira
quase animal e instintiva, que ele os temia e temia tudo o que eram, acreditando,
envergonhado, em que eram superiores a ele e tinham o poder de feri-lo.
Ficavam deliciados quando ele os bajulava, quando procurava apaziguá-
los, quando lhes copiava o sotaque, os maneirismos. Haviam descoberto a
“diferença” visível que havia nele. E sempre o rejeitavam.
Eram tão inteligentes, esses entendidos “normais”. Tão vivos, esses
parasitas da vida, esses insetos satisfeitos no coração da rosa viva, esses liquens
devoradores na folha, esses musgos estranguladores nas árvores. Não eram
inócuos nem bovinos, amigáveis e de boa natureza, como seus irmãos e irmãs
mais estúpidos. Constituíam um perigo potencial para o mundo, pois
pronunciavam todas as palavras da virtude, fariam todos os gestos da retidão,
possuíam as feições gordas e macias dos comodistas e egoístas, entreabriam os
lábios nos pequenos e secos sorrisos dos que odiavam o homem, exibiam as
maneiras bem-educadas dos cruéis, o tato e as frases bem-feitas dos devoradores,
a serenidade dos malignos.
Mesmo quando Frank tentava discutir partidas de basebol ou futebol,
Gloria Swanson, Mary Pickford e Francis X. Bushman do cinema, ou manifestar
a opinião convencional sobre o Presidente Wilson, os entendidos ouviam-no com
perversa e semi-sorridente atenção e trocavam olhares entre si. Sabiam que ele
mentia, que dissentia e que suas observações, embora vazadas no linguajar
estéril e destituído de adjetivos das coisas familiares e aceitas, constituíam uma
linguagem falsa, através da qual tentava aproximar-se deles e apaziguá-los.
Quando sentia vergonha da conversação — uma vergonha depuradora, higiênica
— pensava que aquilo era meramente ódio de si mesmo, que não conseguira
alcançá-los e aplacá-los.
Jamais soube por que Miss Woods o observava com curiosa severidade
quando ele conversava com o Sr. e a Sra. Crimmons ou por que lhe respondia
com tanta secura quando se voltava para ela. Achou que isso acontecia porque
Miss Woods o descobrira também. Mas por que se voltava ela para Irving
Schultz, que nunca tentava apaziguar, ser aceito ou conversar da maneira
comum, e lhe sorria com tanta ternura e como se sentisse um alívio?
Frank descobrira que esses entendidos eram, com maior frequência, mais
mulheres do que homens. Quase sempre, mulheres de baixa extração e educação,
nascidas na classe média inferior. Como quer que fosse, homens de melhor
classe amiúde casavam com essas vulgaridades bem lavadas, perfumadas com
talco e elegantemente vestidas, criaturas que sentiam profunda ternura por si
mesmas.
Essas harpias apresentavam mesmo traços em comum, ou, pelo menos,
expressões faciais idênticas. Havia frescor em suas peles, brilho em seus cabelos
e queixos de criança. A maioria tinha rostos redondos, agradáveis e levemente
empoados, pequenas bocas contraídas bocas de grandes devoradoras de comida.
Geralmente possuíam pequenos e gordos narizes arrebitados, olhos pequeninos
sem nada de especial, brilhando astutos por trás de óculos sem aros, tipo pince-
nez. As roupas eram deselegantes, embora de excelente qualidade, gostavam de
rendas abundantes sobre os seios chatos, embora às vezes fingissem severidade
no vestir. Tinham covinhas nas mãos, dedos pequenos de unhas afiadas, muito
limpas e rosadas à custa de vigorosas esfregadelas. Eram enfatuadas, cheias de
si, comiam com elegância, vorazmente e com grande delicadeza.
Para Frank, representavam o primeiro passo social para fora do poço
onde viviam os paupérrimos, os ignorantes, os desprezíveis, os sem-remédio, os
estúpidos, com suas mãos sujas de operários.
Eram seus superiores e deles queria aceitação. Assim, procurava agradar
a Sra. Bennett Crimmons e o marido e rezava para tornar-se íntimo deles.
O Sr. Bennett Crimmons era um quase próspero fornecedor de material
de escritório a lojas retalhistas. Uma vez que a querida Amy não gostava de
hotéis e conhecera a velha Miss Woods quando residira antes em Bison,
geralmente se hospedavam ali durante os dois ou três meses do ano em que
permaneciam na cidade. Eram os únicos hóspedes que faziam as três refeições
com a idosa solteirona. Aparentemente, ela os aceitava sem reservas mentais.
Ocupavam o grande quarto da frente, muito bem mobiliado. Desde que a Sra.
Crimmons sempre trazia consigo algumas peças de bom bric-a-brac, algumas
gordas almofadas exageradamente bordadas e umas poucas fotografias das duas
feias filhas e dos netos, estes com fisionomia tão sem expressão como as mães,
para não mencionar uma caixa japonesa pintada onde guardava um suprimento
sempre renovado de bombons ou pequenos bolos, o quarto se tornava
literalmente deles durante a estada. A Sra. Crimmons dominava o baixo e gordo
marido, um homenzinho que possuía uma fímbria de cabelos louros, óculos
semelhantes aos da esposa, características físicas quase idênticas e o mesmo ar
de banhos frequentes, talco e atenção apaixonada às roupas e à comida.
Chamava-a de “Mãe”. Ela retribuía, chamando-o de “Pai”.
Mas havia algo no Sr. Crimmons, embora tênue e vago, que o colocava à
parte do monstro acolchoado que era a sua correta e meticulosa esposa.
Considerava Frank como um rapaz bem vestido e tranquilo, com uma face
atraente e boas mãos, bem-falante e educado. Mas era um homem muito
estúpido e não compreendia logo que Frank usava uma máscara e era
absolutamente intolerável e suspeito.
Frank não mais entrava numa sala com o olhar penetrante e interessado
da infância, pois, embora não soubesse, perdera a capacidade de maravilhar-se e
o forte interesse pelas coisas que outrora tornara o mundo interessante e mágico.
Perdera tudo isso e conservara apenas a repugnância instintiva. Assim, ao
penetrar na sala de jantar nessa enfarruscada manhã de domingo, sorriu
hesitante, polidamente, e não olhou de frente para pessoa alguma. Mas não
perdera de todo a aguda sensibilidade da percepção e os olhares que foram
endereçados pareceram arranhar alguma crua superfície no seu espírito. Sem
parecer, viu o sorriso leve e vago do Sr. Roberts, para quem todas as pessoas
eram apenas sombras indistintas, o fulgor professoral dos óculos de Miss Shaw,
o humilde olhar vazio de Miss Stengel, a cabeça curvada e confusa de Irving
Schultz, a fria e viva inclinação de cabeça de Miss Woods e o sorriso afável do
Sr. Crimmons. Notou o elegante penteado e a majestosa inclinação de cabeça da
Sra. Crimmons e o polido erguer dos cantos de sua gorda boca. Notou-a com
mais agudeza do que a qualquer outra pessoa na sala. Sentou-se à esquerda dela
com um leve e embaraçado movimento.
— Dia horrível, não? — perguntou com o velho e conhecido aperto na
garganta. Concordância geral. A Sra. Crimmons dissecando elegante e
sadicamente as ameixas, nada disse. Pelo canto do olho, Frank viu com que cruel
prazer (como se as ameixas pudessem sentir) ela cortava delicadamente as duras
entranhas da fruta e as empurrava para o lado. No momento em que ela pôs a
escura e mole carne da fruta na boca, ele sentiu um momentâneo enjoo e nojo.
Mais do que ouvindo-o, sentiu o baixo estalo dos lábios, o grande prazer do
paladar. Olhou para as ameixas no seu próprio prato e ficou repugnado. Mas
comeu-as com todo o cuidado. Chegava-lhe às narinas o aroma do talco da Sra.
Crimmons e da pele perfumada com sabonete Cashmere Bouquet. Algo se agitou
nele, o que não conseguiu reconhecer: um honesto ódio. Pensou que era
ressentimento porque a Sra. Crimmons o ignorava, com ares superiores, como
era seu costume, exceto quando ele se dirigia diretamente a ela.
O Sr. Roberts estivera discutindo tranquilamente com Miss Woods sobre
Darwin e Huxley. Alegava, em voz suave, que a defesa de Darwin feita por
Huxley fora irônica e satírica, e não realmente sincera. Miss Woods estivera
defendendo Huxley dessa covarde calúnia. Conversavam como se esses
eminentes eruditos e cavalheiros estivessem ainda vivos, como se o antigo
debate fosse ainda matéria corrente nos jornais do mundo.
Frank escutou, enquanto esperava o cereal. Somente pouco antes o Sr.
Mason, seu professor de Inglês, o apresentara a Darwin e a Huxley, e era com
um frescor de descoberta que ouvira a amigável discussão que se travava
exclusivamente entre Miss Woods e o Sr. Roberts. No momento em que Miss
Woods se interrompeu para servir-se de café ele disse:
— Acho que a senhora tem razão, Miss Woods. Huxley foi sincero na
sua defesa de Darwin. Nunca ouvi dizer que ele fosse sarcástico. —
Interrompeu-se. Miss Woods endereçou-lhe um sorriso, como se aprovasse não
tanto as palavras, mas alguma outra coisa nele. — Os cientistas — acrescentou
Frank — são geralmente indivíduos destituídos de humor ou mesmo de espírito
de sátira. Defendem ou atacam sem a menor leveza.
— Isso mesmo — concordou Miss Woods, passando-lhe a xícara com
um curioso brilho nos olhos, como se houvesse vislumbrado nele algo novo.
Frank, muito satisfeito com a delicadeza, recebeu o café com certa emoção. Não
notou que Irving Schultz erguera a cabeça sonhadora e fitava-o com atenção.
A Sra. Crimmons riu com elegante divertimento. Miss Woods dirigiu-lhe
um olhar interrogativo.
— Oh, por favor, desculpe-me, Pollie — disse a Sra. Crimmons com um
malicioso sentido na voz afetada. — Não estou rindo de você, realmente. Mas
isso parece tão... tão...
— Irrelevante — sugeriu Miss Woods, que era muito sutil, e nesse
momento assumiu uma expressão vazia.
A Sra. Crimmons sorriu de modo aristocrático.
— Sim, ir... relevante — concordou, sem compreender em absoluto a
palavra. — Quero dizer, não parece parte do que hoje está acontecendo no
mundo.
O rosto magro de Frank começou a enrubescer. Mas ficou deliciado com
a má pronúncia da palavra, tomada de empréstimo, que saíra desajeitada dos
lábios refinados da Sra. Crimmons. Parvenu! Mas, imediatamente, sufocou o
epíteto e ficou furioso consigo mesmo. Voltou-se atencioso e com maior
deferência para a Sra. Crimmons.
— Acho que a senhora, de certa maneira, tem razão, Sra. Crimmons —
disse. — Não é pertinente ao mundo moderno. Tudo isso está morto e acabado.
A Sra. Crimmons sorriu baixinho, sem olhá-lo, numa espécie de maldosa
satisfação com a capitulação dele, outro pequeno triunfo. Miss Woods, porém,
com uma leve severidade na voz, replicou:
— Coisa alguma deixa de ter pertinência ou relevância. O passado, o
futuro e o presente são partes inextricáveis de um todo vivo.
A Sra. Crimmons não entendeu patavina de tudo isso, mas era
suficientemente inteligente para compreender que a repreensão não fora dirigida
a ela, mas àquele horrível jovem, o pretensioso Frank Clair. Por que, não sabia.
Pensou apenas que a querida Pollie estava pondo aquela criatura no seu lugar,
como ele merecia, o que lhe deu ainda mais motivo para se sentir satisfeita
consigo mesma.
— Para ser franca — disse Miss Shaw em sua voz seca e direta —, não
estou mais interessada em Darwin ou Huxley. O que quero saber, sem
sentimentalismo ou qualquer outra coisa, é quando as mulheres poderão votar.
Nunca anteriormente, na história do mundo, foi tão necessário que as mulheres
obtivessem seus direitos políticos. Os homens têm feito muita confusão do
mundo! Guerras religiosas, internacionais, internas. Massacres. Anarquia
política. Governos nefandos, chicana, traição, cincadas. Vejam só nossa atitude
política em relação à Rússia.
Olharam todos para ela polidamente, confusos. Era evidente que nem
mesmo Miss Woods acompanhara o rumo da tirada e, quanto ao Sr. Roberts, este
se retirara tranquilamente para a contemplação de Darwin e Huxley como se
fossem mais compreensíveis e muito mais dignos de atenção de uma mente
erudita.
Miss Shaw lançou um vivo e desafiador olhar em volta da mesa. Miss
Stengel murmurou:
— Vejam só nossa atitude política em relação à Rússia.
Miss Shaw lançou-lhe um olhar irritado.
— Não banque o papagaio, Ida — disse. — Use sua própria cabeça. Aí é
que está o problema com as mulheres. Deixam que outros pensem por elas. —
Lançou um desafio às pessoas sentadas em volta da mesa: — Alguém tem
alguma sugestão? Não há ninguém interessado nas imensas possibilidades da
participação das mulheres no cenário mundial? Não há aqui imaginação
suficiente para compreender a importância da emancipação das mulheres...
— Exuberante — comentou Miss Woods, que não pôde resistir a uma
piada, a despeito de suas convicções particulares.
A Sra. Crimmons soltou uma risadinha. Miss Shaw enrubesceu e os
óculos em seu nariz de garça quase explodiram.
— Sinto muito, Ethelinda — disse Miss Woods. — Bem, concordo com
você, até certo ponto. As mulheres devem votar, se não por outro motivo, porque
são seres humanos. Mas duvido muito de que a “participação das mulheres no
cenário mundial” resulte em um mundo novo, rejuvenescido, ou mesmo muito
mais virtuoso. As mulheres, como os homens, têm ainda a mesma natureza
humana que nosso pastor chama de Pecado Original. Quando as mulheres
votarem, teremos ampliado apenas as fileiras de democratas ou republicanos. A
contagem dos votos será, por isso mesmo, muito mais complicada e trabalhosa.
Contudo, quero que as mulheres votem, e lutarei por esse direito. É o princípio
por trás da coisa. Eu mesma sou uma mulher madura, acho que tão inteligente
como a maioria dos homens e tenho ideias próprias. Não me agrada ser posta na
mesma classe das crianças, dos criminosos e dos idiotas.
Miss Shaw, com uma contida, mas apaixonada veemência, bateu com
um punho na mesa, sacudindo os talheres próximos.
— Oh, Pollie! .Que atitude míope! Será que você acredita em que os
homens estejam tão interessados nos assuntos mundiais como as mulheres? Os
homens gostam de guerra, acredite. Gostam de assassinatos e de rapina. Isso está
na própria natureza deles. Mas as mulheres sentem interesse pelo mundo: os
filhos, o lar, a vida pacífica. Odeiam a guerra e o homicídio. Instintivamente
odeiam o crime, a sujeira, a política sórdida...
Miss Woods sacudiu a grande e branca cabeça e sorriu cinicamente.
— Minha querida — disse —, a maioria das mulheres pode odiar a
guerra. Admito isso. Mas são tão suscetíveis à propaganda como os homens e
em certo sentido mais, pois são mais emotivas do que ponderadas e, embora eu
odeie confessar isso, odeiam com mais crueldade. Quando ao ódio das mulheres
pelo crime e pela sujeira... — Mais uma vez sacudiu divertida a cabeça. — Meu
pai costumava dizer que para cada mulher decaída há um homem decaído. A
menos que a história minta, numerosas mulheres superaram os homens no crime
e na perversidade. A virtude não é propriedade exclusiva das mulheres. Conheci
muitos homens virtuosos, cuja honestidade não podia ser posta em dúvida. E
confesso que conheci muito mais homens virtuosos do que mulheres virtuosas.
— Oh, Pollie! Como é que você pode dizer uma coisa dessas!
O sorriso de Miss Woods tornou-se grave.
— É a verdade, Ethelinda. Conheci homens maus, mas só uns poucos
perversos. E o mais extraordinário é que a maioria das mulheres perversas que
conheci eram castas virgens ou matronas. Mas, talvez, quando falamos de
“perversidade”, não nos estejamos referindo à mesma coisa. Há perversidade da
alma, que é muito pior do que a perversidade do corpo e essa perversidade nas
mulheres excede de muito a de seus irmãos.
Miss Shaw, uma alma valente, mas inocente, ponderou confusa essas
palavras. Mas não fora ainda derrotada. Seus óculos faiscaram vivamente. Miss
Woods observou-a com uma leve sugestão de pena. Inclinou-se sobre Irving
Schultz para dar uma palmadinha na mão de Miss Shaw.
— Não dê importância a isso, querida. Nós concordamos sobre os
pontos essenciais, não?
Erguendo corajosa a face de garça, Ethelinda Shaw respondeu:
— Às vezes, você fala de maneira incompreensível, Pollie. Às vezes,
não entendo realmente o que você quer dizer.
— Ótimo — retrucou Miss Woods. — Conserve seu belo e ingênuo
coração, Ethelinda. Isso é muito animador em um mundo malvado. — Voltou-se
para a Sra. Crimmons: — Mais café, querida?
— Não, muito obrigada — respondeu brejeira a Sra. Crimmons,
lançando um olhar para a segunda xícara de Frank. — Como você sabe, tenho
muito cuidado com a saúde. É uma posse inapreciável.
Miss Woods sorriu.
— Excelente. É preciso cuidar da saúde quando envelhecemos, não? Nós
não temos mais a capacidade de recuperação da juventude.
A Sra. Crimmons fitou-a vivamente e seu rosto liso e gordo enrubesceu.
A expressão de Miss Woods continuava cordialmente vazia. Nada vendo de
hostil naquela velha face, grande e vazia, a Sra. Crimmons lançou um olhar de
esguelha, malicioso e cheio de ressentimento, para Frank. Ele sentiu o toque
venenoso dos olhos dela e ficou infeliz. Apaziguadoramente, disse:
— Sei que não deveria tomar mais de uma xícara. Mas o café está tão
bom.
A face de Miss Woods mudou de expressão e ela disse friamente:
— Naturalmente que deve tomar mais de uma xícara, se quiser. Para que
é que serve mesmo a mocidade?
Frank ficou confuso como sempre fazia quando Miss Woods lhe falava
naquele tom e lhe dirigia um olhar tão desdenhoso. De que modo a ofendera?
Não conseguira nem mesmo amansar a harpia, a Sra. Crimmons.
Diminuiu ainda mais a pálida luz da manhã, do lado de fora das janelas.
Nesse momento a tempestade, que havia diminuído durante um breve espaço de
tempo, atacou a casa com o rugido rouco de um trovão. Todos os olhos se
voltaram inquietos para as janelas, cujas cortinas e sanefas se mexeram. Era
impossível ver o que ocorria do outro lado das vidraças embaciadas,
transformadas em uma parede de trêmula brancura. A velha casa gemeu, as
lâmpadas elétricas bruxulearam e, vindo de alguma parte, penetrando mesmo na
quente e confortável sala, entrou um hálito congelante.
— Uma terrível nevasca — comentou o Sr. Roberts, saindo de sua
contemplação. — Um metro e vinte de neve em menos de vinte e quatro horas e,
ao que parece, ainda há mais por vir.
Uma empregada entrou com uma travessa de bacon frito, estalando,
cheiroso. Todos se serviram. O café preto, quente, escorreu para as xícaras como
se todos os presentes, homens e mulheres, quisessem provar que ainda eram
“jovens”. Miss Woods sorriu e serviu-se de uma terceira xícara.
A Sra. Crimmons anunciou que recebera naquela manhã uma carta
registrada da filha. Disse em voz afetada:
— A querida Sally simplesmente suplica que eu volte por alguns dias
para casa. Naturalmente, ela e o marido, o querido Billie, estão cuidando da
nossa linda casinha enquanto estamos viajando, tomando conta dos
encanamentos, vigiando a fornalha, tudo. Mas as minhas queridas filhas sentem
tanta falta de mim e do Sr. Crimmons! São casadas e têm filhos, mas não podem
passar sem a mamãe e o papai. O pequeno Billie, filho de Sally, teve bronquite.
Que garotinho inteligente! Não está ainda na escola, mas já sabe ler e escrever
como se tivesse dez anos. É espantoso. Não é espantoso, papai? — indagou ao
marido, que não participara de nenhuma das conversações à mesa. Desde que
estivera preocupado apenas com a comida, com exclusão de tudo mais, o Sr.
Crimmons sobressaltou-se, lançou um olhar para a esposa, a qual lhe endereçou
um seco olhar azul, e balbuciou:
— Hum? Sim, sim, naturalmente. Você tem toda a razão, querida.
A Sra. Crimmons aceitou o quarto pãozinho quente e, macambúzia,
cobriu-o de manteiga. O gordo lábio superior de Miss Woods ergueu-se quase
imperceptivelmente. Com grande sorte, o Sr. Crimmons referiu-se
pertinentemente ao assunto:
— Quer voltar para passar alguns dias em casa, mamãe?
Ela sorriu com profunda ternura, aplacada.
— Eu realmente não sei, querido. Com essa nevasca e tudo mais. Você
sabe como são os trens. Às vezes, penso que é melhor que as crianças resolvam
tudo sozinhas. Elas são tão dependentes. Os próprios maridos são muito
dependentes dos conselhos do Sr. Crimmons — informou orgulhosa ao resto da
mesa. — Vocês não acreditariam. O papai precisa resolver isto, resolver aquilo.
Precisa escolher um novo carro... Eles sempre compram um carro novo cada três
anos. Os rapazes estão indo muito bem. Billie está trabalhando em publicidade e
Mark em comércio atacadista com armazéns. São rapazes tão finos, tão bem-
sucedidos! Mas o papai precisa resolver tudo por eles. E as meninas insistem em
que eu escolha cada peça de mobília, embora elas tenham um gosto maravilhoso.
Quando Sally quis mandar forrar o sofá... pagou quatrocentos dólares por ele,
aquela menina gastadora!... eu fiz finca-pé e disse: “Ouça, querida, esse linho
simplesmente não combina com suas cortinas!” E não houve mais discussão
alguma a respeito. Ela simplesmente concordou, como sempre faz, desde quando
ainda usava trancas e blusa de marinheiro na escola.
Frank era o único a escutar, pois os demais rostos haviam-se tornado
polidamente vazios. Teve uma visão de três confortáveis lares de classe média,
com canários nas janelas entre cortinas brancas pregueadas, carros nas garagens
localizadas em quintais bem cuidados, grandes e ensolarados quartos mobiliados
com uma sóbria elegância, cozinhas equipadas com enormes geladeiras cheias
de frangos e presuntos, gramados verdes lustrosos no verão, janelas polidas
protegidas por toldos e o calor silvando nos aquecedores a vapor durante o
inverno. Viu paz, segurança e contentamento, a sólida e agradável segurança de
classe média, vidas sérias. Viu felizes e cordiais contatos entre as três
confortáveis casas e ouviu o riso de crianças bem alimentadas. E era isso
exatamente o que a Sra. Crimmons queria transmitir à plateia. Detroit ficava
muito longe. Não era possível que alguém à mesa fosse tão longe para investigar
e descobrir que Sally, Susan e os respectivos maridos e filhos moravam em dois
apartamentos de cinco cômodos em uma rua muito suburbana; que as somas de
dinheiro referidas com tanta indiferença pela Sra. Crimmons eram mentiras; que
Billie e Mark eram, respectivamente, escriturário numa agência de publicidade e
encarregado de expedição num armazém de secos e molhados e que os próprios
Crimmons moravam perto das filhas em uma pequena casa retirada, um pouco
mais desejável do que a minúscula casa de Albany Street, e não tão limpa.
Naquela manhã ela continuou a mostrar-se, a sorrir, a exultar, a
entreabrir os lábios com terno humor enquanto contava a saga da família. Frank
escutava ávido, tomado de respeito. A Sra. Crimmons sentiu isso e desprezou-o
ainda mais. Sua cabeça ergueu-se ainda mais das profundidades dos cálidos e
gordos seios. Foi nessa ocasião que ela captou o brilho dos profundos e escuros
olhos de Irving Schultz, fitando-a por trás de seus grossos óculos. E o que viu,
gelou-a e enfureceu-a.
Raramente Irving olhava de modo tão direto para uma pessoa e menos
ainda com uma concentração tão intensa. Com os olhos, ele dizia à Sra.
Crimmons: “A senhora é uma velha e gorda mentirosa. Nem mesmo é uma
mentirosa que desperte pena, pois é uma mulher maldosa e tola, sem a menor
sombra de caridade. É uma fazedora de pose, vulgar, barata e pretensiosa.”
Era estranho que ela ficasse tão impressionada e enfurecida com o olhar
de Irving. Sempre o ignorara. Ele nunca fingira ser o que não era e não se
envergonhava do que fora. Para a Sra. Crimmons esse rapaz nada era,
absolutamente, e com frequência se perguntara por que Miss Woods permitira
que um jovem tão insignificante, tão feio e apagado sequer entrasse em sua casa.
Podia desprezar Frank, pois, sem margem de erro, identificara um fingido como
ela, mas, pelo menos, lhe falava algumas vezes.
Tremeu, realmente. Sentiu-se chocada até o fundo do gordo e
impermeável coração. Inesperadamente, ergueu a voz com dura secura, como se
desferisse um golpe para abater aqueles firmes olhos escuros:
— Papai, eu acho que talvez vá passar alguns dias em casa, em nossa
querida casinha! E com as crianças. Contei-lhe que Sally escreveu dizendo que a
Sra. Gregory St. John-Simmons vai dar uma festa maravilhosa para alguns
amigos escolhidos e que insistiu em que todos nós fôssemos? — Soltou uma
risadinha, embora uma veia pulsasse forte no pescoço grosso. Explicou
condescendente aos demais: — Tenho certeza de que vocês todos já ouviram
falar na Sra. Gregory St. John-Simmons. Aparentada com o pessoal Cadillac.
Têm uma casa maravilhosa no subúrbio. Soberba. E tão fechada! Marion é
grande amiga de Sally desde que eram crianças e coisa alguma fica completa a
menos que Sally compareça a todas as festas que ela dá.
Nesse momento, Irving sorriu estranhamente, de leve. Voltou ao
presunto.
Dotado de aguda capacidade de percepção, notou Frank que a Sra.
Crimmons estava zangada. Viu a vibração na manga de seda marrom do vestido
e o tremor da pequena mão gorda, de unhas afiadas. Sentiu, de alguma maneira
estranha, que a hostilidade dela se dirigia contra Irving. Um rápido olhar
confirmou-lhe as suspeitas, pois ela fitava duramente, através do pince-nez, a
desarrumada gaforinha negroide do rapaz. Naturalmente, uma mulher como a
Sra. Crimmons se ressentiria da presença de um indivíduo como Irving Schultz.
Era de se esperar.
Olhou para Irving e detestou-o. Não sabia o que em si mesmo despertava
esse ódio. Sabia apenas que algo ardia nesse momento nele, forte e vivo. Pela
primeira vez em meses, dirigiu-se ao jovem com um sorriso:
— Como é que vão indo seus estudos, Irving?
Com grande lentidão, Irving ergueu a cabeça e olhou para Frank. Miss
Woods pôs o garfo de lado. Não se moveu. Escutou apenas.
Irving sorriu, um sorriso estranho, irônico, quase triste.
— Muito bem, obrigado, Frank — respondeu pensativo.
Frank lançou um olhar protetor e divertido à Sra. Crimmons. Disse:
— Doenças mentais. Pelo amor de Deus, por que doenças mentais? Por
que não outra coisa? Algo tangível.
— Não há coisa mais tangível do que a mente — respondeu baixinho
Irving. — É a única coisa real, tangível... Frank. Meu professor disse ontem que
o mundo externo é apenas a projeção da mente do homem. Talvez ele estivesse
sendo metafísico, ou qualquer outra coisa. Não sei. Lembra-se daquela velha
pergunta na escola: se uma árvore caísse na floresta e não houvesse um único
ouvido por ali, haveria algum som?
Frank fez um esforço para falar. Algo, porém, prendeu-o numa espécie
de encantamento, como se ouvisse uma maravilhosa voz esquecida, uma amada,
encantadora e nobre voz, chamando-o do outro lado de um vasto deserto de
cinzas. Algo lhe produziu uma autêntica paralisia de mágoa desesperada, uma
profunda sensação de imensa perda, ao ouvir aquela voz. Não conseguiu emitir o
menor som. Os demais olharam surpresos para Irving. Não se recordavam de tê-
lo ouvido falar tanto. A voz lhes pareceu também estranha: uma voz áspera, mas
ainda assim suave; rouca, mas também macia e irresistível.
Irving, tendo falado, olhou para Frank e esperou. Ele sabia.
Por trás dos óculos, brilhavam-lhe os olhos. Venha para fora! Venha para
fora! exclamavam eles para Frank. Venha para a luz, que é o seu lugar. Você
viveu, certa vez. Venha para fora.
A Sra. Crimmons soltou uma risadinha e ergueu a cabeça.
— Bem, frequentei apenas uma das melhores escolas de preparatórios,
naturalmente, mas não compreendo o que o senhor está dizendo, Sr. Schultz.
Talvez eu não seja tão inteligente e, quem sabe, talvez o senhor possa explicar
suas palavras. — Tentou captar o olhar de Miss Woods para uma divertida e
maliciosa troca. Miss Woods, porém, com os olhos postos na prata redonda e
brilhante do bule de café, parecia estranhamente mergulhada em contemplação.
— Talvez eu não tenha estudado, afinal de contas, na escola apropriada, Sr.
Schultz — continuou a Sra. Crimmons em uma voz onde transpareceria um
zombeteiro ódio —, embora meu querido papai houvesse pago quase dois mil
dólares anuais por minha educação. Talvez eu devesse ter estudado nas escolas
em que o senhor estudou, Sr. Schultz, e ter recebido a sua formação.
Irving, porém, aparentemente não a ouvia. Venha para fora, venha para
fora! imploravam seus olhos. Venha para fora, Frank, comigo.
Em voz hesitante, alta, lenta e forte, ele disse:
— Existiria algum som se não houvesse um ouvido e uma mente por trás
do ouvido, para ouvir o som da árvore que caía... Frank? E se continuamos com
o mesmo exemplo, existiria qualquer mundo de som ou de visão se não houvesse
um... ouvido e um olho compreensivos para captá-los? Foi isso o que meu
professor teve em mente quando disse que a única coisa real e tangível era a
mente humana e que somente quando ela se projeta é que o mundo ganha
realidade.
A Sra. Crimmons soltou nova risadinha. Mas ninguém lhe prestou
atenção. Surgiu uma expressão de animação, de interesse, na velha e descorada
face do Sr. Roberts. Miss Shaw e Miss Stengel ouviam, com os lábios
entreabertos. O Sr. Crimmons voltara à comida. Miss Woods alisou a prata
quente do bule com um meditativo dedo indicador. Frank continuou imóvel em
seu encantamento, na dor profunda.
Irving continuou mansamente:
— É por isso que estou estudando doenças mentais. Se a mente do
homem é tortuosa e ele não vê clara e retamente, o mundo que ela projeta é
deformado, um pesadelo, de ângulos... errados ... e de ilusões. Um pesadelo. O
que é agora. Simplesmente um pesadelo. Vem-se tornando assim há muito
tempo. — Interrompeu-se por um momento. — Olhamos através de um pedaço
de vidro deformado e o mundo parece fora de perspectiva. Todos nós olhamos
através de vidros deformados. O que vemos é a projeção de nossa mente doente.
Lembra-se de como aquele velho filósofo alemão classificou o homem? “O
animal doente”.
“O animal doente! Sim, sim, era verdade! Algo se movia, se mexia
violentamente em Frank. Um mundo doente à espera do curador, não do curador
do corpo deformado, mas da mente que produzia a deformação. Um mundo à
espera do curador, do médico da alma, do grande escritor, do grande artista, do
grande profeta, que removeria o vidro deformador do olho doente e permitiria
que ele contemplasse um mundo de beleza e compaixão, de alegria e glória, de
amor, paz e Deus!
Certa vez, ele, Frank Clair, soubera disso, soubera disso com intensa
piedade, amor e uma clara e doce angústia. Viu-se na velha Igreja da Natividade
com a vela entre os dedos, olhando-os. Pareceram brilhar naquela ocasião como
se algum óleo sagrado houvesse sido vertido sobre eles em um gesto de
consagração. Mentalmente, sentiu o antigo bater do coração exultante, humilde,
apavorado, mas, ainda assim, alegre.
A recordação daquele coração em disparada transformou-se em um
tamborilar surdo em sua mente, uma sublevação, um movimento tumultuoso.
Algo se agitou nele, uma dor gigantesca, uma mágoa, uma penetrante doçura.
Ouviu um som áspero e agudo e sobressaltou-se. A Sra. Crimmons
havia-se atirado com gorda cautela contra as costas da cadeira e ria cruelmente.
— Oh, meu Deus, oh, meu Deus! — exclamou ela. — Que conversa
intelectual! Nunca ouvi nada parecido numa manhã de domingo, pouco antes da
hora da igreja! E também de sua parte, Sr. Schultz! Talvez seja a sua mente que
está doente, meu querido rapaz. Eu, com frequência, pensei que sim.
Simplesmente uma espécie de... de... É isso que ensinam agora aos rapazes na
escola? Que todo mundo está doente, este mundo belo e encantador, onde nos
sentimos todos tão felizes, agora que a guerra acabou?
Frank escutou-a. Escutou-lhe o surdo e estúpido ódio, rouco e venenoso.
Escutou o som de autocontentamento e notou-lhe a trêmula gordura. Notou a
crueldade e a mediocridade e compreendeu o que ela era, e sua grei. O Inimigo.
Tantos, os Inimigos, os mentirosos e os posudos, os sádicos e os mesquinhos —
um mundo inteiro, mau, fervilhante, bichado, como uma feia e estrebuchante
colina tapando a estrada brilhante! Cerrou os punhos. Virou-se para ela
abruptamente e seus olhos brilharam, azuis de fúria e nojo.
— Cale a boca, sua tola! — exclamou. — Sua tola bamboleante! Sua
idiota, mentirosa, néscia!
Ergueu-se com tanta subtaneidade e veemência que a cadeira tombou
para trás com um alto som. Miss Stengel soltou um grito agudo. Ninguém mais
se moveu ou pronunciou palavra. A Sra. Crimmons, porém, boquiaberta, olhava-
o incrédula. Frank notou isso e ficou exultante. Sentiu-se como se houvesse
passado por um batismo purificador. Teve vontade de esbofetear aquela face
trêmula e bem alimentada, aquela feia personificação de todas as imensas
mediocridades do mundo.
— Sua velha estúpida! — exclamou. — E isso vale para todos os outros
iguais a você! Vocês... vocês, seus imundos assassinos!
Saiu às cegas da sala, subiu impetuoso as escadas e bateu a porta do
quarto. Ouviu a própria respiração, difícil e arquejante, como se houvesse
corrido. O quarto oscilou à sua frente em um escuro nevoeiro. Sentou-se
abruptamente na dama e, sem querer, agarrou os joelhos com as mãos, no velho
gesto de Francis quando sentia uma emoção incontrolável.
CAPÍTULO 38
Miss Woods, ofegante, subiu as escalas até o terceiro andar. Suas velhas
e gordas coxas doíam com o esforço e as grandes bochechas logo se cobriram de
suor. Sentia a enorme massa de carne tentando irromper pela cinta que usava e as
batidas fortes do coração. Nada disso lhe causou a menor apreensão. Sabia que
era velha e não desejava a juventude. Houvera tanto de insuportavelmente feio e
revoltante na sua infância e mocidade! E conhecera a felicidade apenas na
velhice. Considerava a mocidade o mais terrível dos períodos da vida: não
emocionante, não divertida, exceto para adultos obtusos e sentimentais; não
alegre e descuidada, como acreditavam os romancistas; e certamente não
cravejada de estrelas e torres faiscantes de mármore e de luz em mares
prateados.
“Nuvens viajantes de glória, viemos... de junto de Deus, onde fica o
nosso lar.” Miss Woods parou no segundo patamar para enxugar o rosto, arrumar
um cacho do cabelo branco e puxar para baixo o espartilho. A velha casa, sitiada
pela tempestade, rangia e estalava no fim da tarde escura daquele domingo.
Ouviu o silvo da neve contra as janelas espectrais, o ataque do vento contra as
paredes. Não havia outro som. Os moradores dormiam ou liam. Vira luz amarela
sob as frestas de portas.
Distraída, pensou: março é sempre o pior mês do ano neste clima. Abriu
a grande e gorda boca para acalmar o coração. Não suportava a dor, em si
mesma ou nos demais. Era uma humilhação, um lembrete de que, por mais alto
que se alçasse, filosofasse, meditasse ou se demorasse a mente na possibilidade
da existência de Deus, o corpo podia sempre trazê-la de volta como um falcão
preso a um fio, para pousar no monte de esterco que era a carne. Era uma
indignidade que a mente excelsa, concentrada no sol, tivesse que ser puxada de
sua ascensão por uma urticária, uma pedra na bexiga, um ouvido pruriginoso ou,
como sua geração delicadamente dizia, “uma necessidade fisiológica”. Se havia
uma alma e ela sobrevivia ao apodrecimento da carne mortal, como devia sentir-
se feliz quando, libertada, podia fugir não somente das tristes misérias do
mundo, mas da ignomínia secreta do corpo. O mundo era errado para a
humanidade porque a humanidade podia pensar. O mundo estava errado para os
jovens porque eles podiam lembrar-se de uma época anterior à penetração da
alma na carne.
Ouvindo ruídos dentro de si mesma, Miss Woods deu uma palmadinha
na barriga protuberante.
— Eu me livro de você logo — informou-a com satisfação. — Não sei se
saberei alguma coisa a seu respeito, mas, pelo menos, não tomarei mais
conhecimento de sua presença, sua gorda humilhação.
Nas tardes de domingo, embora ninguém na casa soubesse, era seu
costume subir a escada e fazer uma visita a Irving Schultz. Sentavam-se ali no
pequeno quarto sob o telhado, onde, no inverno, via-se apenas neve e, no verão,
o cocuruto das árvores.
Galgou o último lance de degraus e bateu à porta. Abriu-a e entrou
resfolegando no pequeno quarto.
O calor da fornalha não chegava até esse tugúrio, mas havia um
substituto adequado, um aquecedor a gás que queimava vermelho e forte em um
recanto na parede de tijolos. Brilhava e tremeluzia alegre no quarto cinza-escuro,
sob o teto inclinado. A escuridão era combatida ainda por um grande abajur
colocado em uma larga mesa de cerejeira que servia de escrivaninha. Poucas
semanas depois da chegada de Irving, Miss Woods colocara um de seus
melhores tapetes persas no chão polido, pendurara ricas cortinas amarelas e
verdes de linho nas quatro minúsculas janelas e acrescentara uma velha e
confortável cadeira de balanço ao mobiliário, que consistia numa estreita cama,
uma pequena mesa de cabeceira redonda, um bom abajur e uma velha cadeira
trabalhada, com assento de crina. O próprio Irving fabricara uma grande estante
na parede em frente à cama e habilmente a pintara da cor de mogno e a lustrara
com cera. Em consequência, o quarto nessa bravia tarde de março tinha um ar
aconchegante e uma dignidade que o tornavam mais atraente do que qualquer
outro na casa.
Os livros de estudo de Irving estavam empilhados em uma das
extremidades da mesa. Com os cadernos à frente, trabalhava ativamente,
tomando notas. Ergueu os olhos quando viu Miss Woods. Levantou-se com lenta
e desajeitada cortesia. Em silêncio, sorrindo apenas, puxou a cadeira de balanço
para mais perto do aquecedor e colocou sua cadeira em frente.
— Espero que não o esteja perturbando, Irving — disse Miss Woods.
Isso era sempre a etiqueta da esperada visita.
Ele respondeu, usando também uma fórmula:
— Naturalmente que não. Eu a esperava, Miss Woods.
Ela sentou-se, gemendo baixinho. Esfregou os joelhos. A sede preta
chiou sob as mãos cobertas de anéis. Sorriu alegre para o jovem. Lançou um
olhar para as pequenas janelas e notou os véus alucinantes de neve que se
despencavam do lado de fora.
— O dia hoje está pavoroso, não? — observou. — Moro há setenta e
dois anos em Bison e nunca me acostumei aos invernos.
Irving olhou para a neve.
— Eu gosto — disse, com simplicidade. — Ela... como que me isola.
Sinto-me seguro e feliz numa tempestade.
Falou com tímida tranquilidade, pois ele e Miss Woods eram amigos
sinceros, embora secretos. Olhou-a com afeição e ela retribuiu o olhar.
— Irving, você se parece cada vez mais com Abe Lincoln a cada dia que
passa — disse. — Bem, como é que vão indo seus estudos?
O rosto moreno e feio do rapaz iluminou-se nesse instante, quase com
paixão.
— Não consigo estudar tudo o que queria. Odeio dormir porque tenho
que deixar de lado os livros. Isso parece por acaso pedantismo? — perguntou, o
rosto encovado enrubescendo um pouco.
— Bobagem — respondeu ela, com sinceridade. — Se a pessoa não
sente paixão por uma coisa, é melhor abandoná-la. Quanto a mim, sempre tive
paixão pela vida. É por isso que espero chegar aos cem — continuou com uma
pequena risada. — Meu pai dizia que, se um homem não tem paixões, está meio
morto e que um vício, se seguido com bastante coragem e alegre ardor, é mais
desejável do que aguadas virtudes. Ele era um grande bebedor, mas não um
bêbado, e nunca houve homem mais sadio ou mais encantador. Você devia ter
visto a adega desta casa enquanto ele viveu! Possuía a melhor coleção de
conhaque de todo o mundo, acho. Isso me lembra de uma coisa: como vamos de
conhaque? Não recordo se nós o bebemos todo no último domingo.
Irving dirigiu-se à cômoda, uma autêntica peça de museu que a bisavó
de Miss Woods trouxera da Inglaterra cem anos antes e que fora um presente de
sua própria avó. Abriu a gaveta mais baixa e tirou uma garrafa de Napoleon e
dois cálices de cristal, embrulhados com todo o cuidado em papel de seda.
Serviu um pouco do líquido dourado enquanto Miss Woods o observava com
toda a atenção. Ergueram os cálices em um silencioso e cordial brinde, aspiraram
o aroma do líquido e beberam.
— Hummm! — exclamou Miss Woods, olhando com carinho para o
cálice. — Isso é um néctar. É o elixir divino do sangue. Uma espécie de
transfusão vinda do céu. Omar Khayyam não disse alguma coisa sobre perdoar a
Deus porque ele criara o álcool para ajudar o homem a suportar as agruras que
inventara para ele? Sim, foi alguma coisa nesse sentido. E temos agora essa
multidão de mulheres azedas e bastardas tentando infligir-nos a Lei Seca! Sabe,
Irving, acho que elas vão vencer. Os loucos encontram na América um lugar
maravilhoso para suas atividades. Acontece isso porque quase todos os
americanos são, infelizmente, filhos e netos de camponeses supersticiosos e não
têm inteligência alguma. É uma grande pena. Devíamos ter Leis de Imigração
que permitissem a entrada apenas de gente da classe média, da classe superior.
Temos um número excessivo de indivíduos subumanos e isso se aplica até
mesmo aos nossos chamados “velhos” americanos.
Irving sorriu de leve, mas nada disse.
Miss Woods apertou os olhos, observando-o astutamente.
— Bem, não estou tentando ofendê-lo, Irving, Deus sabe. Você é
simplesmente a encantadora exceção à regra. Mas veja só o que vimos
recebendo nos últimos setenta anos, mais ou menos! Camponeses deformados
das zonas esfomeadas da Europa! Analfabetos mentais. Agora andam falando
em quotas. O governo quer limitar a quantidade de imigrantes, o que em parte é
bom, mas os nossos legisladores idiotas coisa alguma pensam na questão da
qualidade. Um trabalhador braçal terá a mesma possibilidade de vir para cá e
reproduzir-se que um profissional liberal. Acho que devemos elevar a qualidade.
Nada de quotas aplicáveis a professores, profissionais liberais, artistas,
pensadores, escritores e bons homens de negócios. Que venham, em grandes
quantidades. Mas devemos fechar a porta aos camponeses, aos sujos
cavoucadores da terra. Não importa de que país venham os melhores. Que
venham, em enxames, sejam eles alemães, italianos, suecos, judeus, poloneses
ou turcos. De modo que possamos obter o melhor e excluir os camponeses.
Como se peneirássemos a nata da Europa, deixando o rebotalho. Mas isso é uma
coisa além da compreensão dos nossos legisladores, que não passam, eles
mesmos, de camponeses e bois de cabeça dura.
Saboreou um gole do conhaque e continuou:
— Ethelinda Shaw é proibicionista. Louca furiosa a esse respeito. Isso
acontece porque sua alma secou e ela odeia todo mundo a despeito de sua paixão
pelas sufragistas e pela defesa do que chama de “a gente comum”. Você notou
por acaso, Irving, que os defensores do “homem comum” geralmente odeiam
todo mundo? Gente lúgubre. Perigosa, também. Quanto a mim, adoro algumas
pessoas e não dou a mínima bola para o resto, mas não as odeio. De qualquer
maneira, o ódio é prejudicial à digestão.
Deixou que Irving lhe servisse mais um pouco de conhaque e sorriu
terna para ele.
— Acho que você não odeia ninguém, não é? — perguntou.
Uma expressão de divertimento passou rápida pelo rosto de Irving.
— Eu tenho boa digestão — respondeu.
— Humm. Bem, então. É realmente muito esquisito. Notei esse tipo de
pessoas também na igreja... pessoas como Ethelinda. Têm todos os tipos de faces
e naturezas, mas uma estranha coisa em comum: odeiam as pessoas. Eu gostaria
de saber por quê.
Lançando um olhar aos livros, Irving respondeu:
— Temos uma nova palavra para isso, uma palavra inventada por um
grande médico alemão, Freud. Ele chama a isso de “compensação”. Essas
pessoas sentem-se culpadas. Sabem no que pensam realmente e o que são.
Sabem, consciente ou inconscientemente, que são... más. Não querem que o
mundo saiba, às vezes nem mesmo elas reconhecem. Em vista disso,
intrometem-se em todas as atividades humanas. — Levantou-se, acendeu um
velho cachimbo e tirou pensativas baforadas. — Desconfia-se agora de que os
reformadores são perversos, essas pessoas que querem promulgar leis proibindo
isto ou aquilo, “defender” os trabalhadores, derrubar o governo no poder, mudar
a face das coisas, aprovar o que chamam de “boas” leis.
Sorveram o conhaque em cordial silêncio e escutaram os gemidos e as
pancadas da tempestade nas janelas. O abajur e o aquecedor tornaram-se mais
brilhantes à medida que o quarto escurecia. Era uma caverna sob os beirais;
dedos rosados moviam-se sobre o teto inclinado, com seu desenho de
ramalhetes. Miss Woods retomou a palavra, embora algo inquieta e obscura:
— Não gosto do jeito do mundo nos dias que correm. Há alguma coisa
errada, realmente errada, Irving. As calamidades prognosticadas quando
entramos na guerra, o fim do capitalismo e da liberdade individual, a fome e a
ruína gerais, não se materializaram. Graças a Deus por isso. Possuímos ainda um
sadio capitalismo, continuamos ainda livres e conseguimos ajudar o resto do
mundo a viver. A Europa se reconstruirá com nossa ajuda. Assim, as
calamidades não ocorreram, afinal de contas. Mas há alguma coisa mais em
andamento, muito pior. Não sei o que é. Alguma coisa furtiva, alguma coisa que
poderá arruinar-nos, receio. O que é, Irving?
Falou como se falasse com um igual, essa mulher de setenta e dois anos,
com um jovem de vinte e dois, e falou com veemência.
Ele respondeu, sério:
— Acho que estamos doentes. Naturalmente, não sei como era o mundo
quando a senhora era jovem...
— Bem, eu sei, meu querido. Era um mundo duro, mas viril. Ninguém
esperava comer se não trabalhasse. E parece-me que todos trabalhavam na
América, até mesmo os muito ricos. Não lembro bem pelo que trabalhavam, mas
eram entusiastas, e não lúgubres como agora. Acho que julgavam ter de trabalhar
por alguma coisa, ricos e pobres. Não fazem mais isso. Há agora uma espécie de
ateísmo.,. — Pôs o cálice de lado e enxugou os lábios. — Não acreditei, como
todos, em que uma nobre era se seguiria à guerra, em que todo mundo amaria o
vizinho e haveria uma nova revelação espiritual. Mas pensei que aprenderíamos
nossa lição e que, se havia apenas um Deus, havia um único mundo humano. O
pobre Sr. Wilson sabe disso. Mas está destinado a fracassar e isso é o que é tão
terrível! Talvez eu esteja ficando velha, mas acho que, se não aprendermos isso
agora e fizermos alguma coisa com base nesse conhecimento, vamos acabar
presenciando coisas pavorosas dentro de dez, vinte ou trinta anos... Ateísmo, é
isso. Um mundo doente.
— Exato — concordou Irving Schultz. Olhou para Miss Woods e mesmo
na escuridão do quarto ela viu que a face dele se tornara veemente, viva
apaixonada. — Foi isso mesmo o que o Dr. Pembroke nos disse quando nos
falou logo depois do fim da guerra. Disse que procuramos descobrir uma solução
para os nossos problemas como um caracol que quer encontrar um mundo dentro
de sua estreita casca e que apenas termina mergulhando ainda mais dentro dela.
Disse que havia algo mais fora da casca e que devíamos descobri-lo. Precisamos
de uma concepção mais ampla de nós mesmos do que o mero animalismo e o
materialismo, a crença de que há algo significativo na humanidade, embora,
naturalmente, isso possa parecer ridículo e metafísico para os que se consideram
sofisticados.
— Ou para aqueles que acham agradável ou lucrativo lançar um homem
contra o outro — acrescentou sombria Miss Woods.
Mais uma vez, caiu o silêncio entre eles. Irving pareceu inquieto e
desajeitado, mergulhado em pensamentos. Em voz hesitante, disse:
— Sinto muito a respeito do desjejum de hoje, Miss Woods. Acho que
provoquei aquilo, de certa maneira. Sabe — disse, e sua voz alteou-se um pouco
—, não quero que pense mal de Frank Clair pela maneira como ele saltou sobre a
garganta da Sra. Crimmons. — Olhou implorante para Miss Woods, lembrando-
se da maneira sumária como ela expulsava os que perturbavam a placidez de sua
casa. — Conheço Frank há alguns anos. Um pouco, mas o suficiente. Ele... ele
era infeliz. Eu costumava observá-lo, embora raramente trocássemos uma
palavra. Acho que ele não tem muito autocontrole.
Silenciosa, Miss Woods fitou-o com olhos inescrutáveis.
Ele continuou a suplicar, fechando fortemente as mãos de proeminentes
nós.
— Sei como a senhora gosta de que as coisas aqui sejam agradáveis e
impessoais. Não sei como dizer isto, Miss Woods, mas fiquei satisfeito quando
ele falou daquela maneira com aquela mulher. Tive esperança de que ele dissesse
ou fizesse alguma coisa. Acho que a senhora não pode compreender isso. Mas, a
senhora vê, conheço Frank Clair. Sim, fiquei muito satisfeito.
Miss Woods respondeu tranquilamente:
— Eu sabia que você o conhecia. Ele me disse quando veio morar aqui.
Irving espigou-se vivamente na cadeira:
— Disse? Bem, fico também satisfeito com isso. — Observou a grande
face branca à luz do abajur e, em seguida, suspirou: — Compreendo — disse
triste. Mas acrescentou em seguida: — Todavia continuo satisfeito. É difícil
dizer isso em palavras. Mas Francis escrevia poesias e contos na escola. Minha
velha professora, Miss Bendy, mostrava-os a mim, algumas vezes. Depois, ele
deixou a escola para trabalhar. Não que os pais dele fossem tão pobres assim...
como os meus. Mas foi mandado trabalhar, perdi-o de vista e somente o vi
quando ele veio morar aqui. Percebi imediatamente que ele havia mudado. Foi...
foi algo terrível para mim, Miss Woods. Ele é mais moço do que eu, mas agora
parece velho, doente e cansado. Alguma coisa deve ter-lhe acontecido. Não pude
perguntar, naturalmente, porque nunca fomos mais do que meros conhecidos. —
A face de Irving enrubesceu dolorosamente. — Sei que não me estou fazendo
claro. É uma coisa que não consigo dizer em palavras. Assim, a senhora não
pode compreender por que fiquei satisfeito quando ele explodiu daquela
maneira, tão selvagem...
— Sim — disse Miss Woods —, acho que compreendo. — Interrompeu-
se por um momento. — É por isso que vou ter que dar amanhã um aviso prévio
aos Crimmons. Nunca suportei aquela mulher, mas tenho pena do marido. Ele é
um tolo.
Irving fitou-a, incrédulo, alegre.
— A senhora quer dizer que, depois de tudo, vai deixar que Frank fique
e mandará aqueles dois embora?
— Naturalmente — respondeu com vivacidade Miss Woods.
— Afinal de contas, seria embaraçoso para Frank se eles ficassem, não?
— Sorriu para Irving com profundo divertimento e ternura.
— Eu estava ficando um pouco cansada de Frank nos últimos tempos.
Acho que, se ele não houvesse falado com aquela franqueza, eu o teria mandado
embora. E como você diz, meu querido, isso é uma coisa que não sei como dizer
em palavras.
Ergueu-se, no que foi acompanhada por ele. Alisou sem acanhamento a
seda preta sobre os grandes seios e a barriga.
— Espero que, depois disso — continuou —, vocês dois fiquem amigos.
Será bom para ambos, especialmente para Frank. Ele precisa de você, Irving.
Precisa, realmente. Ele não tem um único amigo no mundo. Ele não é como
você. Você tem algo mais importante do que amigos. Mas ele não tem coisa
alguma, a pobre criança.
CAPÍTULO 39
Frank mergulhou na tempestade, pois o quarto se tornara intolerável na
sua pequenez silenciosa. Pensara em estudar naquela tarde, em trabalhar,
escrever a “composição” que o Sr. Mason lhe pedira. Pela manhã, pensara com
prazer naquela tarde.
Mas, sentado na cama, agitado, com o coração batendo de excitação e
raiva, compreendeu que lhe seria impossível controlar-se e dedicar-se a um
trabalho produtivo. Melhor sair. Talvez, um pouco mais tarde, pudesse ir visitar a
mãe e a avó e tomar “chá” com elas.
Ocorreu-lhe com insuportável amargura que teria de ir à pensão de
Porter Avenue se quisesse alguma espécie de contato humano. Olhou em volta
do quarto e, pela primeira vez, compreendeu a sua solidão, o completo
isolamento, a falta de contato com outras pessoas. Haviam passado anos desde
que sentira igual solidão e, estranhamente, conquanto experimentasse naquela
época uma espécie de sufocante desolação, era também estimulado por ela.
Desde a partida de Paul Hodge vivera em um estreito mundo privado, onde seu
próprio hálito e o som de seu coração lhe haviam bastado. Mas algo explodira na
pequena concha daquele mundo, lançando fragmentos por todos os lados,
deixando-o exposto. Não tinha certeza se esse desnudamento era agradável ou
não. Sabia apenas que estava estranhamente excitado, inquieto, e que não podia
continuar no quarto. Além disso, tinha ainda receio de pensar. Tinha receio de
pensar nas consequências de sua inexplicável explosão da manhã e não queria,
nesse instante, examinar-lhe as razões. Tomou cuidado para que ninguém o
ouvisse sair furtivamente da casa, pois temia um encontro com Miss Woods, que
aliás, já descia naquele momento para lhe falar.
A neve e o vento que se despencavam do céu avermelhado envolveram-
no por todos os lados. Linwood Avenue estava inteiramente deserta. Um
tranquilo rio de brancura estendia-se de um meio-fio ao outro; os postes de luz
coroavam-se de branco e os frios montes de gelo ao longo das calçadas haviam-
se transformado em miniaturas alvas de montanhas. Um frio de zero açoitou-lhe
as bochechas, o nariz, o pescoço. Levantou a gola e aconchegou-se no fraco
calor do casaco. Baixou o chapéu, que logo depois foi cingido por uma coroa
branca. Continuou a arrastar-se, satisfeito por ter trazido as luvas “árticas”, bem
abotoadas nas mãos. A neve chegava-lhe até os joelhos; logo depois começou a
arquejar. Mas, a despeito da luta contra o vento e a nevasca, não conseguiu
aquecer-se. Muito ao contrário, o frio começou a penetrar pela lã, atacando-lhe
os joelhos, insinuando-se por cada abertura da roupa.
Era cedo demais para o chá na casa da avó e não jantara ainda. Andaria
um pouco e iria depois a West Utica Street fazer uma boa refeição no Louis. Era
um prazer que sempre se concedia nos domingos. Mas também era cedo demais.
Continuou a descer Linwood Avenue, lutando com a tempestade. As casas
pareciam rebocadas com placas de neve, que se empilhava também nas janelas.
Às vezes, nem mesmo conseguia ver as casas e como que caminhava por um
ermo sob uma bravia tempestade e uma nevasca branca que lhe mordia as
carnes. Caminhou durante quinze minutos sem encontrar pessoa alguma nem
mesmo um veículo, embora ocasionalmente ouvisse bondes em Main Street,
gemendo em uma surda luta enquanto procuravam abrir caminho pelos trilhos
encobertos. Ocasionalmente, vislumbrava um retângulo amarelo no rodopiante
preto e branco da tempestade e reconhecia uma janela iluminada. Os grandes
olmos em cima lançavam avalanches de neve sobre e em volta dele e estalavam
de frio. Os seus troncos estavam igualmente enfaixados em dura brancura.
Não havia outro som senão o selvagem uivo que, rugindo, descia do céu.
Frank continuou a andar, respirando ainda com maior dificuldade, com a aba da
gola puxada sobre os lábios.
Inesperadamente, sentiu uma súbita excitação no coração, uma imensa
alegria. Parou de chofre para senti-la, para não perder coisa alguma desse fluxo
intenso que lhe percorria o corpo. Sentiu imenso júbilo, exaltação. Não se sentira
assim desde os quinze anos, quando o mundo girara em sonhos coloridos. Nesse
momento, a solidão e a ansiedade deixaram-no e foi aquecido por um
indescritível fogo de exultação, expectativa, uma veemente libertação.
O que o libertara tão inesperadamente do triste sofrimento e solidão?
Que dedo rompera o anel de ferro fechado em volta de seu coração? Parou,
pensou e não viu nem sentiu mais a tempestade. O que trouxera de novo o velho
e acalentador fluxo, emergindo da escuridão dos últimos quatro anos? Aquele
velho e doce fluxo de vibrante promessa e expectativa, de força, poder, ternura!
Que velho e misterioso senso de comunicação com imensas realidades externas!
Cambaleando um pouco sob a força do vento, aproximou-se do tronco de um
grande olmo, encostou-se e fechou os olhos.
Lembrou-se de que sentira pela primeira vez o movimento do fluxo,
próximo, quando ouvira a voz de Irving Schultz. No momento em que se erguera
e gritara com a Sra. Crimmons o fluxo aumentara em força e movimento.
Lambera-lhe os pés e lhe provocara inquietação e desejo de fugir do quarto.
Sabia naquele instante. Com o conhecimento, aumentou a sensação de coragem,
fé, antiga alegria. Sentia-se ainda imensamente confuso e a cabeça lhe doía. Não
podia compreender. Mas, inesperadamente, percebeu que um profundo conflito
se estivera travando no seu íntimo durante todos esses anos. Se esperasse apenas
mais alguns minutos, saberia qual era o conflito e dele se libertaria.
O rugido do vento transformou-se em seus ouvidos no trovejar de uma
imensa harpa a ressoar com música primeva. A música desapareceu, retirou-se,
voltou e envolveu-o. A nevasca diminuiu de intensidade; naquele momento,
conseguiu distinguir a silhueta das casas. Inesperadamente, não eram mais casas,
mas emoções projetadas que lhe chegavam por sobre os montes brancos de neve.
Possuíam existências separadas, personalidade distintas. Fitou-as, batendo as
pálpebras para afugentar a neve. Ora, sentira a mesma coisa em criança e
esquecera!
Uma ardente e forte exultação apertou-lhe a garganta e o coração bateu
célere. Lembrava-se, reexperimentava. Olhou para as casas, para as árvores
amortalhadas de branco, e sentiu-lhes a existência, individual e separada do seu
próprio corpo, não mais consciente do frio.
Houvera época, lembrou-se, em que todas as coisas, uma xícara de chá,
uma cadeira, um garfo, uma mesa, uma cortina, uma cama, uma árvore, uma
nuvem, uma lâmina de grama, uma escada — todas as coisas, de fato, em que
seus olhos pousavam, mesmo momentaneamente — possuíam emoção para ele,
a personalidade real de um ser. Não fora tanto a textura, a aparência, a realidade
no tempo ou lugar, a cor ou falta de cor dessas coisas que lhe invadiam de tal
modo a consciência. Fora, sim, a projeção delas em sua própria consciência, uma
projeção individual, penetrante e senciente, pessoal e intensa, que sempre o
fascinara. E esquecera essa alegria, essa gloriosa participação em toda a matéria
visível, a instintiva e infantil certeza de que todos os objetos, ao se
transformarem em forma, se haviam transformado em vida!
Lembrou-se de que, certa vez, uma colher ou um copo de água não
haviam sido, como para as demais pessoas, meramente objetos insensíveis.
Talvez, na infância (acreditava nesse momento) houvesse inconscientemente
dotado as coisas com a intensidade mágica de sua imaginação, infantil e
fundamental, exatamente como os povos primitivos haviam dotado árvores,
pedras, águas, com espíritos pessoais, bons ou malignos, estúpidos ou ardentes.
(Mas, novamente, talvez o olho e o coração da infância fossem mais agudos,
mais perspicazes do que a visão coberta por uma catarata ou a sensitividade
embotada da virilidade.)
Como quer que fosse, a beleza ou fealdade do objeto, a sua maciez ou
aspereza, haviam-lhe inspirado amor ou ódio, como uma personalidade em si,
sem referência àquilo que realmente eram. Foram para ele indivíduos,
possuidores de uma consciência distinta, ainda que vaga. Quando um objeto se
quebrava na mão descuidada, fosse uma lâmpada ou um copo, um prato ou uma
travessa, sentia perda, dor física. Algo que existira havia morrido, fora destruído.
Certa vez Maybelle quebrara acidentalmente uma xícara de chá.
Misteriosamente, a xícara fora amiga dele, uma criatura alegre, larga e redonda,
com uma engraçada asa curva. Não se distinguia de nenhuma maneira: na
verdade, Maybelle a comprara numa loja barata e possuía xícaras melhores, que
trouxera da Inglaterra. Mas, ela fora amiga de Frank desde o momento em que
ele a vira, e amara-a pelo seu ser individual, pela emoção que lhe transmitia.
Lembrou-se de que sempre odiara em especial um par de cortinas na
casa da mãe. Eram de algodão vermelho. O vermelho sempre fora sua cor
favorita e, assim, não era a tonalidade que o repelia. Mas julgara as cortinas
arrogantes, de temperamento violento e elas, com grande perspicácia, não
haviam simpatizado com ele. Sentira a antipatia delas da mesma maneira que
sentira a antipatia de certas portas. O descanso para os pés do pai tampouco
gostara dele, ao passo que um dos cachimbos o apreciara, a seu seco jeito. Certa
casa em Normal Avenue odiava-o, embora não fosse diferente das outras. Frank
acreditara literalmente em que, quando ele descia a rua, a casa cerrava as janelas
da água-furtada como se fossem punhos e ameaçava-o de cima do telhado mal-
encarado da varanda. Os degraus zombavam dele abertamente.
As trepadeiras no terraço da casa da avó lhe haviam demonstrado
amizade e inclinado suas cabeças purpúreas para ele, em cumprimento. A
calçada em frente da casa, porém, era uma inimiga. Não tanto porque as
rachaduras e depressões formassem uma face rosnante, mas porque a própria
superfície, encalombada, acinzentada e levemente inclinada, parecia projetar
contra ele uma maligna emoção própria, ao passo que sua irmã e as secções
contíguas, quase idênticas, somente o fitavam com uma expressão vazia.
Lembrou-se, apertando o casaco para defender-se do vento, embora mais
fraco, de que certa cerca de taliscas parecia contente consigo mesma, entendida,
e que ria para ele de maneira astuciosa. Um pequeno abeto que crescia num
gramado empoeirado o fitara desejoso e ele nunca passava por ali sem lhe tocar
o tronco com uma terna mão. Quando se afastava, sabia que a árvore ficava a
observá-lo, como um pequeno cão abandonado, sem cuidados e sem lar. A
aparência e a tristeza da árvore magoavam-no.
A mãe possuíra uma terrina de vidro barato, multicolorido, que comprara
por vinte e cinco centavos. A cor principal era uma espécie de marrom gelado,
pontilhado de amarelo, vermelho ferrugem e âmbar desmaiado. Ficava na mesa
da cozinha, feia, mas satisfeita consigo mesma, como se fosse uma terrina de
grande preço! Frank a detestara. Quando estava sozinho, curvava-se e
murmurava entre dentes: “Você é simplesmente uma terrina velha e barata,
metida a sebo!”. A terrina, porém, brilhava complacentemente e ignorava-o, ou
talvez faiscasse um pouco à luz do sol como se encolhesse cruelmente os ombros
e lhe julgasse a opinião sem importância demais para merecer atenção.
Absorvido nas recordações, absorto na renovada presciência e
consciência, Frank permaneceu ali, com as costas contra a árvore. Pensou: Estou
vivo! Estou realmente vivo! Não sabia que estive morto durante todos estes
anos.
Sentiu a enorme solidão e ela foi para ele como uma bênção. Sentiu a
solidão, e sua unicidade com tudo o que havia dentro e em volta de si mesmo
transformou-se em participação. Notou, então, que a tempestade cessara
bruscamente. O céu conservava uma cor cinza avermelhada, mas, nesse
momento, caíam apenas alguns flocos isolados. O gemido das árvores se
transformara em um murmúrio inquieto.
Olhou para o oeste, como olhara em criança, e sentiu uma súbita e forte
emoção. As nuvens esgarçadas deixavam o céu do oeste e corriam
impulsionadas por algum vento forte e oculto. O céu adquiriu nesse momento
uma pálida cor azul, fria, sem limites. Frank teve a atenção despertada por uma
curiosa formação de nuvens, como nunca vira antes. Um grande pilar de nuvens,
aparentemente subindo de uma pesada base na terra, erguia-se como uma coluna
de pedra branca no céu azul, liso, imenso, afilando-se um verdadeiro monumento
coroado de ouro. Não pôde acreditar em que aquilo fosse real, modelado pelas
mãos gigantescas do vento, uma “agulha de Cleópatra” de vapor, possuindo a
característica e a forma do mármore.
Viu-a e experimentou novamente, depois de tantos anos, aquela
expectativa doce e mística, caindo como súbita e viva luz sobre o espírito, aquele
momento de glória em que o coração espera, reza, insiste em que algo seja
revelado, desça, se expanda, suba do invisível para o visível e, com certeza, se
erga, salte, em uma realidade bela que a tudo abarca e a tudo explica, que se
transforme em júbilo puro e extático, numa revelação, conhecida pela alma,
idosa de muitos milhares de anos e exigida pelo corpo que ainda não sabe. Que
tranquila e fascinante expectativa! Esse conhecimento, imaginado, previamente
conhecido, semiesquecido, tornando-se dia a dia menos lembrado, subitamente
prestes a ser, completo, visto, fulgurante como fora outrora recordado!
Observou e esperou sozinho no deserto gelado de Linwood Avenue. A
torre de brancura coroada de ouro permaneceu ali, um monumento majestoso a
algo que ele instintivamente sabia que existia. Em seguida, aos poucos,
dissolveu-se, deslizou, expandiu-se e transformou-se em nevoeiro, tornou-se um
monte de nada e começou a afastar-se.
Experimentou um doentio desapontamento espiritual nessa ocasião,
como experimentara mil vezes antes, a mágoa, a perda, a desolação universal, a
escuridão da mente, pois passara o que fora quase revelado e, no fim, se ocultara
mais uma vez.
Mas não ficou vazio. A exultação continuava presente, mais calma
naquele instante, mas, ainda assim, esplendorosa, luminosa, como se, embora a
glória houvesse passado, a sua recordação permanecesse como um doce consolo
e solene promessa.
Continuou a descer a rua. Olhou para o relógio do pai, que não vendera,
afinal de contas. Três horas. Jantaria no Louis’ e, em seguida, iria visitar a mãe e
a avó. Inesperadamente, sentiu vontade de ver o Sr. Farley e conversar com ele.
CAPÍTULO 40
O Louis’ estava quase deserto, com a neve empilhada quase até a altura
das largas vitrinas. O interior, embora quente, devido ao estado do tempo
lembrava um ambiente de fronteira. Frank bateu os pés e sentiu o calor subir
pelos membros entorpecidos. Sorriu para o mâitre, que correu apressado ao seu
encontro. O homem tomou-lhe o casaco, sacudiu-o da neve e pendurou-o. Fez
uma observação sobre o fim da tempestade e deu a Frank sua mesa favorita, em
um dos lados da sala.
Frank olhou em volta, ainda agitado. Nesse momento, as paredes do
restaurante não eram mais apenas paredes, mas personalidades amigas,
satisfeitas em vê-lo. Achou alegres e plácidas as mesas redondas e brancas e as
cadeiras, com seus forros de chintz, pareceram-lhe pequenas e robustas pessoas à
espera de amigos. Os pães na mesa exibiram-lhes cascas amigáveis e os talheres
lhe piscaram de modo alegre. Até o cardápio mostrou-se íntimo e ele sentiu com
prazer a sua textura nas mãos.
Observou os poucos frequentadores, as lâmpadas encobertas no teto, o
vazio cinzento das janelas e sentiu o tapete sob os pés, o cardápio nas mãos, o
ajustamento do colarinho e da gravata. Todas as coisas possuíam profundidade,
três dimensões, pátina, cor. Na semana anterior, ali se sentara como se fosse
parte de uma fotografia sem relevo, sem profundidade, sem significado. Naquele
momento, tudo possuía significação, um padrão, projetava sua personalidade,
absorvendo em troca a personalidade dele, fundindo-se com ela para lhe dar esse
senso de participação e alegre realidade.
A excitação, enquanto ele comia, aumentou em vez de diminuir. A sua
mente fervilhava. Uma dúzia de enredos de romances esfuziou pela sua
imaginação. Coisa alguma era destituída de valor, insignificante demais, pequena
demais, que não exigisse projeção através da palavra escrita. Aquele velho
garçom, por exemplo. A história da vida dele podia ser imensa. Aquele idoso
casal, modestamente bem vestido, jantando ali, trocando sorrisos, tinha
dignidade e uma história da vida deles teria drama e profunda significação. A
jovem caixa, com seus cachos e ondas de cabelo vermelho e uma cascata de
babados nos punhos e garganta poderia, com toda probabilidade, fornecer-lhe
material para uma dúzia de contos. Todos os seres humanos, os que passavam
pelas vitrinas, o cozinheiro e seus ajudantes, eram almas humanas trágicas, com
objetivos, importância. Em todos eles agitava-se uma finalidade intensa, suas
vidas eram partes de um grande todo, místico e completo.
A percepção tornou-se uma emoção quase insuportável. Notou que não
sentia mais medo, não estava mais ansioso, tenso. Pensou por um curto momento
na débâcle daquela manhã e sorriu levemente. Se Miss Woods lhe pedisse que
deixasse a casa, ficaria triste, naturalmente, mas o assunto não teria importância.
Havia uma dezena de outras pensões. A dela não era a única. Além disso, havia
repelido aquela velha bruxa e isso constituía motivo de imensa satisfação.
Perguntou-se por que algum dia se preocupara com ela, tentara agradá-la.
Enrubesceu de vergonha, e isso, curiosamente, apenas o excitou ainda mais.
Quanto ao seu emprego, se o perdesse dentro de uma ou duas semanas,
como provavelmente aconteceria, haveria outros. Nem mesmo os empregos
importavam. Recuperara algo de valor inapreciável: a capacidade de pensar e
sentir. Inesperadamente, sentiu impaciência e desejo de voltar ao quarto e
recomeçar a escrever. Achou naquele instante que escrever seria um prazer.
Palavras, frases, sentenças, cheias de cor e vitalidade, desfilaram céleres na sua
imaginação em uma tumultuosa corrente.
Pensou em Irving Schultz e disse a si mesmo: Vou conversar com Irving.
Como é que não percebi antes que ele é grande, heroico? Talvez se torne meu
amigo. Posso conversar com ele! Ele me compreenderá.
Sou livre, pensou, e o próprio som das palavras na mente fizeram-no
ficar tenso e mudo, como se houvesse presenciado um milagre.
Escreverei a Paul. Escreverei de tal maneira que ele não poderá deixar
de compreender. Talvez eu consiga um emprego perto dele e poderemos estar
juntos novamente. Sim, sim, tudo é possível agora!
O rio dourado dos pensamentos transformou-se em uma irresistível
inundação, transbordando das frias margens em correntes exuberantes e rios que
engrossavam. Viu-os tornando-se mais brilhantes sob um céu dourado, até que
terra e céu estenderam-se à sua frente, fluindo juntos em uma glória
indescritível. Ouviu vozes sob a luz, cantando, chamando, e todas tinham uma
história a contar. O garçom trouxe-lhe a sobremesa favorita — pudim de pão
com calda grossa — mas Frank conservou a colher suspensa no ar enquanto
olhava fascinado para a frente com os olhos absortos. Viu degraus de mármore
se erguerem rapidamente do rio dourado da imaginação e galgou-os. Vozes e luz
se fundiram e, naquele momento, tinham uma única história para relatar, um
romance que se desenvolvia como música, de acorde em acorde, como numa
sinfonia. Descobrira! Era belo, completo e não havia parte que não fosse
perfeita. Pisando um por um os degraus de mármore salpicados de ouro, subiu, e
cada passo era uma parte da história.
Escreveria a história do médico que fora um dos discípulos de Cristo,
Lucas, o grego sutil, o homem que, do nada, ascendera à imortalidade. Por trás
dele, pórticos brancos em um nevoeiro violeta, vozes elevadas em rarefeitas
dialéticas, um mundo que mergulhava no nada, transformava-se em um deserto
de palavras onde tudo era estéril. Lucas, o jovem, sim, com certeza, um jovem,
de rosto moreno, sorrindo levemente, culto, movendo-se com os gestos da
decadência e da vida dissoluta, um jovem elegante que nada dizia sobre si
mesmo, cujos olhos sugeriam cinismo e desespero. As suas mãos seriam as de
um médico, fortes, mas tranquilas, embora, naquele momento, vazias. Estivera
ele em Roma? Sim, naturalmente, estivera em Roma e lhe conhecera o esplendor
e sabia que fora um esplendor em desintegração, como murais pintados em
paredes que desmoronavam. Onde encontrar aquele jovem judeu que, com um
simples relance dos olhos, podia fundir a alma do homem e reinstilar-lhe um
conhecimento que ele esquecera? Ele, Frank, precisava reler a Bíblia. Mas, se se
lembrava bem, a história de Lucas era obscura, não fora contada. Mas ele sabia!
Conhecia-a no fundo do coração, conhecia Lucas como se ele fosse a sua própria
carne e pensamento.
O que pensara ele quando conhecera aquele jovem judeu, marcado pelas
viagens, tão esfarrapado, tão cansado, mas, ainda assim, possuidor de uma carne
tão luminosa? O que pensou aquele grego Lucas quando ouviu pela primeira vez
as palavras que haviam sacudido um mundo de homens perdidos e decadentes,
desesperados, afligidos por todos os males do espírito? Viu, nesse momento,
aquele mundo e sentiu nos ouvidos seus sons e tumultos. Daquele caos de
orgulho e luxúria, de escravidão e morte, de bandeiras, fúria e grandeza,
conquista e majestade, daquele universo romano de triunfo, ostentação e poder,
saíra Lucas para vaguear até essa arenosa e estéril Jerusalém, habitada por
judeus desesperados, mas inconquistados. Fora Lucas um escravo que fugira do
mundo romano e procurara esconderijo ali, sob as palmeiras poeirentas, ao longo
das praias daquele mar morto, naquelas ruas barulhentas e fétidas? Pensara em
encontrar uma nova filosofia entre essas pedras vermelhas e caminhos
fervilhantes de escorpiões? Lucas, o grego elegante e sofisticado, cansado como
somente os homens de pensamento e cultura podem cansar-se quando enojados
do mundo: o que lhe acontecera quando vira a paupérrima populaça judaica
reunindo-se em volta daquele jovem judeu ainda mais pobre, cuja voz era como
uma trombeta em meio à algazarra? E em que momento a populaça se dividira
para que o jovem judeu pudesse ser visto claramente por Lucas, que parara
preguiçosa e cansadamente à margem do grupo? Falara Jesus nessa ocasião?
Sorrira? Chamara, erguera a Sua mão? Ou fora aquele olhar suficiente para
escravizar, despertar a alma poética e bem polida, mas tão seca e doentia? O que
ocorrera quando seus olhos se encontraram, graves e sorridentes?
Um significado imenso, trepidante, poderoso, deve ter passado célere
entre eles. Lucas soubera! Ficara ali, sob a fulgurante catarata de luz que se
despejava dos céus sobre a terra vermelha e estéril e soubera. Ficara ali como se
nunca mais fosse mover-se, pois vira a Deus. Curvara a cabeça, em um gesto
cerimonioso, e tirara as sandálias gastas, como Moisés tirara os sapatos, sabendo
que aquela terra era santa? Sim, Frank viu-o fazer isso, curvar o magro corpo de
erudito, estender a magra e graciosa mão, escurecendo seu perfil austero com sua
própria sombra. Em seguida se erguera, com simplicidade e dignidade, com os
pés descalços no chão, os olhos brilhantes sobre Jesus, orgulhoso e humilde,
compreensivo, em paz e cheio de júbilo. Toda a sua rasa filosofia, a sua
sabedoria de epigramas, o seu refinamento e cansada decadência se
transformaram em nada, uma doença que lançou para longe de si como lançara
as sandálias.
De súbito, Frank não pôde mais esperar para voltar ao quarto, para
colocar no papel a história maravilhosa. Entretanto, talvez, fosse melhor escrever
uma peça! Frank, no próprio ato de erguer-se, sentou-se de novo. Uma peça em
três atos, seis cenas, escrita em ardentes e majestosos versos brancos. Ali estava
Lucas, conversando indolente com um grupo de barbados anciãos judeus, perto
dos degraus do templo ameaçado. Os anciãos ouviam com cortesia e curiosa
atenção, mas também com impaciência. Por trás dele, no quente pôr do sol
escarlate, erguia-se o templo, multidões passavam puxando asnos carregados, e
mulheres andavam com as cabeças cobertas por véus listrados amarelos,
brancos, azuis e vermelhos. Lucas, sorrindo levemente com superior
indulgência, dissera:

“Se os homens nesta hora a visão perdessem,


Toda a beleza e toda a vida cessariam de existir.
Na pequena íris do homem, vaga, confusa, obscura,
Residem todos os deuses, toda a sabedoria, todos os sóis.”
Frank viu os anciãos sacudirem as velhas cabeças e erguerem, cheios de
dignidade, os rostos, negando. Um deles falou na objetividade de Deus,
censurando-o, e referiu-se ao grande e esplendoroso universo que o homem
jamais vira e que existia à parte. Compassos após compassos fluíam pela mente
de Frank, que os escutava fascinado. De que modo poderia ele transpor para o
papel, algum dia, a beleza e a majestade dessas palavras? Precisava apressar-se,
voltar logo para o quarto e tentar captar-lhes mesmo que fosse um leve eco.
Ergueu-se. O garçom aproximou-se apressado com a conta. Frank
lançou-lhe um olhar e parou interdito. O que acontecera a seus próprios olhos?
Ter-se-iam eles curado de uma estranha miopia, tornando o rosto do garçom tão
claro e vivido, tão detalhadamente desenhado com aquelas velhas rugas? O
garçom era um velho conhecido. Chamava Frank pelo nome. Conversara com
frequência, embora hesitante, com o freguês habitual. Apesar disso, um tanto
espantado, Frank não conseguiu recordar-se de uma única conversação, de uma
única frase. Por quê?
Sentindo todas as coisas tão próximas dele, tão claras, tão sencientes, tão
cheias de significado, disse:
— Como vai a família, Giovanni? — Giovanni! Não era mais um nome,
era uma pessoa, uma criatura viva, um homem, carne de sua carne, um irmão
com membros como os seus, com seu próprio coração e sensações!
Possuía Giovanni uma “família”? Frank não se lembrava, mas sentiu
uma vaga impressão de que, durante as conversas, uma família forçosamente
devia ter sido mencionada. Olhou-o atentamente para ver se o velho mostrava
sinais de confusão. Giovanni, porém, sorriu radiante, com a bandeja cheia de
pratos sujos na mão. A sua face murcha suavizou-se e tornou-se terna.
— Maria Pia está feliz agora — disse.
Maria Pia. Quem era Maria Pia? O nome tinha um som familiar, mas não
provocou nenhum reconhecimento, e Frank sentiu vergonha. Giovanni devia ter-
lhe falado com frequência de Maria Pia e ele não escutara! Que pensamento
vergonhoso, vil, degradante, que uma pessoa pudesse ser, em qualquer momento,
tão insensível a outro ser humano! Deu uma expressão interessada à face e,
novamente, sentiu vergonha.
— O que é que Maria Pia está fazendo agora? — perguntou.
— Está dançando novamente. — Os olhos de Giovanni brilharam de
líquida e simples alegria. Os cantos se umedeceram. Havia lágrimas naqueles
cansados e velhos olhos, mas eram lágrimas de alegria.
— Ótimo — disse Frank em voz cautelosa, experimental. Dentro de um
momento saberia tudo sobre Maria Pia, quem quer que ela fosse. Esperou.
O garçom pôs os talheres sujos na bandeja. A mão, encordoada de veias,
morena, tremia incontrolavelmente. Mas a luz continuava a iluminar-lhe o rosto.
Murmurou:
— Depois de todo este tempo, ela está dançando com os anjos. A mãe
dela e eu estamos muito felizes agora.
Afastou-se, cautelosa, mas rapidamente, com seus doloridos pés de
garçom. Frank fitou-o, tomado por uma sensação de completa perda e frustração.
Uma história lhe fora contada. Conhecia o fim, mas não o princípio. Jamais
saberia. Houvera drama, cru, de intensa dor e sofrimento, mas porque fora cego
e surdo, e seu coração estivera coberto por uma concha, jamais saberia. Pôs a
habitual gorjeta de cinquenta centavos na mesa e depois, impulsivamente,
aumentou-a.
Maria Pia, filha de Giovanni? Irmã mais moça? Dançara ela outrora e se
tornara inválida? Giovanni lhe contara. Frank sabia disso. Inquieto e irrealizado
saiu para a rua cinzenta de princípios da noite. As últimas páginas, molhadas de
lágrimas, estavam em suas mãos. As primeiras estavam perdidas. Adeus, Maria
Pia, disse com humildade.
Quanto o homem perdia por não conhecer, não amar, não se importar
com seu vizinho! Como sua vida se tornava vazia, empobrecida, se os seus olhos
se voltavam sempre para sua cobiça, seu egoísmo, sua própria insignificância!
Quando o homem não via seu irmão, não via a Deus. Via apenas o vazio, a fonte
seca num ermo de calhaus e pedras descorados, um jardim morto de palha
tangida pelo vento e de esqueletos de árvores derrubadas. O próprio homem se
transformava em pedra, em um pilar de sal, um ser sem começo nem fim.
Sentiu um aperto na garganta e ódio de si mesmo. Perdoe-me, disse.
Perdoe-me pela minha obtusidade e minha dor egoísta, pelo meu auto
engrandecimento e esterilidade. Se há um inferno, pensou, deve estar cheio das
águas amargas do egoísmo e do interesse e os pés são feridos pela terra
pedregosa.
Iria até a casa da avó. Olharia para a mãe com os olhos de uma nova
compreensão. Conversaria com o Sr. Farley. Depois, voltaria para casa e
escreveria como não fizera durante anos. As cadências sonoras da história de
Lucas soavam exultantes, cada vez mais altas, nos seus ouvidos.
CAPÍTULO 41
A tempestade passara definitivamente. Main Street, contudo, continuava
deserta, salvo por um e outro homem ou mulher apressados, à procura de abrigo.
O ar que fustigou a face de Frank parecia feito de lâminas de facas geladas. Um
bonde passou com as janelas quase encobertas pela neve e o telhado
desprendendo fumaça. Frank cruzou a rua e, nesse momento, os postes
acenderam-se, enevoados, à luz do anoitecer. Tomaria o bonde de West Utica até
Niágara Street e chegaria à casa da avó com tempo mais do que suficiente para o
chá.
Era o único passageiro à espera do bonde. Não havia por ali abrigo onde
se pudesse esconder do tempo inclemente. Bateu com os pés na neve espessa
para abrir um lugar. O frio infiltrou-se pelas meias grossas e entorpeceu-lhe os
pés. Embora a pior parte da tempestade houvesse passado, a neve assoviava
inquieta, impulsionada pelas correntes de vento. Nuvens de esgarçada e
fervilhante brancura corriam pelo céu cinzento.
Pensou em Kentucky. Tim Cunningham escrevera recentemente falando
do calor de primavera nos vales, das flores nas árvores frutíferas, que
transformavam as colinas em grandes elevações rosadas e brancas, dos
abrunheiros que logo depois perfumariam os bosques, dos campos cobrindo-se
de verde. Escrevera com a poesia simples do homem do campo, comparando o
clima sulista com o frio cortante, e os invernos mortais do Norte. Frank teve uma
visão de grandes casas brancas aninhadas em luxuriantes bosques, de “coronéis
de Kentucky” bebendo juleps, de majestosa dignidade, sol dourado, toadas de
trabalhadores negros no campo. Inesperadamente, anelou pelo calor e a vida
mansa, pelo Sul teatral que imaginara de leituras de romances sentimentais e de
palavras dos próprios sulistas. Como seria agradável trabalhar durante o dia nos
campos de petróleo e, à noite, no poético romance sobre Lucas! Ele e Tim
ocupariam, quem sabe, um bangalô coberto de trepadeiras no bosque, onde
somente a lua iluminava a escuridão e pássaros cantavam à noite. Imaginou-se a
uma mesa rústica, sob um candeeiro, escrevendo horas seguidas enquanto Tim
dormia ou lia e a luz da lua misturava-se com a luz do lampião, e a fragrância da
terra, de flores e das árvores chegava até ele através das janelas altas.
Frank sabia que a despeito da esperança geral de que a guerra
recomeçasse e as fábricas voltassem a trabalhar a todo o vapor, a fábrica Curtiss
iria fechar sem demora. A qualquer momento ficaria sem emprego. Por que
esperar? Escreveria naquela noite a Tim Cunningham e lhe diria que, em abril ou
maio, o mais tardar, iria ao seu encontro em Benton, Kentucky.
Saindo da escuridão do inverno envolvente como um branco monstro
pré-histórico, o bonde de West Utica gemeu na direção de Main Street. Frank
subiu. Era o único passageiro. Geada branca e espessa cobria as janelas.
Encontrava-se fechado em uma apertada câmara de frio congelante, onde sua
respiração subia em nuvens. As luzes fracas piscavam e apagavam-se
momentaneamente no teto quando a lança do bonde tocava numa conexão
cristalizada pelo gelo. O veículo continuou a rolar pelas ruas vazias e açoitadas
pelo vento. A mente de Frank, porém, fervilhava de sonhos excitados. Embora
sua carne se arrepiasse e ficasse entorpecida, não mais a sentia.
Ao chegar a Niágara Street, continuava a ser o único passageiro. Saltou
duro e quase entorpecido de frio. Teria que andar até a casa da avó. Seria
trabalho perdido esperar outro bonde naquele deserto de neve. Tiritando,
começou a descer Niágara Street. Passou por Albany Street, onde residira
outrora e onde o pai falecera.
Inesperadamente, teve vontade de ver a sua árvore, dura de frio, à espera
no quintal. Queria vê-la. Em seguida, escreveria a Paul Hodge sobre ela.
Examinaria um ramo para ver se os brotos estavam tenros e se começavam a
aparecer. Tocaria no tronco e contaria à árvore o que tinha naquele momento no
coração. A árvore escutaria, embora estivesse entorpecida e adormecida,
compreenderia e ficaria satisfeita.
Sem dúvida, a casa estaria ocupada por outra família. Bem, era grande a
escuridão e a nevasca engolira todas as formas de vida. Ninguém o veria
penetrar no quintal para visitar a amiga. Ficaria ali apenas o tempo suficiente
para falar à árvore e iria embora, mais feliz e consolado. Era a árvore que
plantara tantos anos antes e que, como ele, pouco depois floresceria e encheria o
ar com sua beleza e suas folhas! A seiva subia nela, irresistível, esperançosa,
firme no conhecimento empírico de que a primavera se avizinhava e que,
conquanto estivesse ainda sitiada pelo gelo e pela neve, vida toda poderosa
palpitava em seus ramos.
Parou durante um momento na esquina de Niágara e Albany. Hesitou.
Não compreendeu a súbita relutância, que lhe chegou como um aviso.
Argumentou consigo mesmo: isso demorará apenas alguns minutos. A hesitação,
porém, aumentou, insistente. Naquele momento sentiu como que uma mão em
seus ombros, insistindo em que continuasse a descer Niágara Street. Mas por
quê? Somente alguns momentos e, depois, iria embora. Sentiu que a árvore o
esperava, desejosa, mexendo-se no seu sono. Desceu resoluto Albany Street,
discutindo ainda vagamente consigo mesmo.
A pequenina e velha casa continuava no mesmo lugar, tal como se
lembrava dela. Viu luzes nas janelas. Parou um momento para observá-la.
Certamente seus pais estavam ainda naquela sala, tostando-se diante do
aquecedor, e haveria um cheiro de galinha assada na cozinha. Precisava apenas
pôr a mão na maçaneta da porta e abri-la para ouvir a voz irritada de Francis:
“Feche essa maldita porta! Você está deixando entrar todo o frio.”
Mas havia uma aparência estranha na casa, como se ela se houvesse
afastado dele. Fora ocupada por estranhos naquele momento. Aquela janela não
era a mesma por onde olhara para a neve, as árvores, o gramado verde. Nunca se
postara naqueles degraus. Algo inevitável acontecera à casa e ela se retirara para
um plano desconhecido. Lembrava apenas de leve a casa que ele conhecera,
como um ser humano usasse, durante um curto instante, o sorriso de alguém
muito conhecido, fizesse um gesto familiar. Alguma coisa havia mudado: as
próprias tábuas do revestimento externo, a própria porta do porão, a própria
forma das janelas negavam que o conhecessem. Algo no tempo e no espaço
continuara a ser parte dele, mas não parte do que via naquele momento.
Havia estranheza na rua escura, com seus postes tremeluzentes. Olhou
para as casas em volta. Estendeu os olhos pela rua. Viu o armazém na esquina, o
Vincents, onde bebera extasiado uma rara soda limonada ou olhara para as
vitrinas cheias de pirulitos de múltiplos sabores. A pouca luz que havia na rua
não era a luz de que se lembrava. Seis meses apenas haviam-se passado, mas o
mundo que conhecera se fora com ele. Aquele mundo era diferente. No outro
lado da rua moravam os Campbells; aquela casa com a varanda amarela era o lar
dos Flahertys. A velha viúva Berger residia naquele bangalô marrom. Não
haviam ido embora. Mas não haviam mesmo? Se batesse naquelas portas, faces
conhecidas olhariam para ele? Ou apareceriam rostos estranhos, interrogativos,
aguardando suas primeiras palavras?
Mais uma vez, enquanto estava parado sobre um montículo de neve,
algo insistiu em que ele não fosse visitar a árvore, em que voltasse. A árvore que
você conheceu não está mais lá. Você a tem no coração. Florescerá nele para
sempre, sempre coberta de flores, sempre viva. Você levará a árvore consigo, é
sua, jamais será derrubada. Dê a volta, continue seu caminho. Você não pode
voltar, pois voltará para algo que nunca conheceu. O que conheceu permanecerá
sempre com você.
Frank bateu com os pés, impaciente, ignorando o conselho da antiga
sabedoria. Atravessou com dificuldade os montículos em direção à pequena
casa, esmagando com os pés a dura neve que estalava. A luz do poste, às suas
costas, lançava-lhe a sombra à frente, contorcida, angulosa. Pensou, como se
num encantamento: esta sombra pertence a isto aqui. Vive nesta rua, esta coisa
desajeitada e misteriosa. Vive nesta casa. É quem possui a árvore. Eu não tenho
direitos aqui.
Cauteloso para não perturbar as misteriosas criaturas que se escondiam
por trás das janelas iluminadas, chegou aos fundos da casa.
A luz apareceu por uma fresta nas nuvens, uma pura luz espectral em um
fundo de alabastro. Viu a cerca de taliscas, quase coberta pela neve. Viu o
telhado do galinheiro, do outro lado. Viu as chaminés das casas vizinhas
desprendendo fumaça à luz da lua e o vapor transformar-se em prata frágil. Viu
lampejos de luz projetados pelas janelas dos fundos. Sentiu o silêncio e a
imobilidade fria e solitária da noite.
Mas não viu a árvore. Desaparecera. Não havia nem mesmo um toco
preto e ferido sobre o mármore liso e profundo do quintal. Não havia coisa
alguma, absolutamente.
Permaneceu ali, em uma grande imobilidade interior como se o coração
houvesse parado e o sangue deixado de correr. Como sempre, as emoções fortes
lhe chegavam com atraso; ficava sempre inicialmente atordoado como se um
raio o houvesse atingido e o trovão se atrasasse em suas reverberações. Não
sentiu, assim, coisa alguma enquanto olhava para o luzente monte branco em que
se transformara a árvore. Depois, disse para si mesmo: Cortaram-na. O
pensamento surgiu na sua mente com uma espécie de tranquila impessoalidade e
indiferença.
Derrubaram-na, disse para si mesma aquela sombra alta, escura e magra
sob a lua, com as mãos profundamente enfiadas nos bolsos, enquanto a neve se
elevava acima de seus tornozelos. Alguém na pequena casa onde ele morara
acendeu a luz da cozinha e um feixe dourado inundou a neve. Automaticamente,
recuou alguns passos para um dos lados, fugindo da luz. Mas, mesmo se
afastando, não tirou os olhos do local onde se erguera a árvore.
Virou-se para ir embora. Desolado, abandonado, olhou para trás. O
fantasmagórico montículo de neve continuava no local onde existira a árvore.
Naquele momento tornou-se consciente do vazio, da mágoa cruel, da fúria.
Certamente, certamente, a árvore estivera ali apenas momentos antes, mas,
depois, o machado lhe mordera o tronco e ela caíra, transformando-se em nada,
desaparecendo. Correu até o montículo. Subiu nele, tenteando em desespero com
os pés. Não havia toco. Mas, imediatamente, sentiu as raízes no chão,
profundamente enterradas, como uma pessoa sente os mortos em suas sepulturas.
As raízes continuavam ali, apodrecendo.
As raízes tentaram alcançá-lo como se fossem mãos de cego,
implorando-lhe piedade e ajuda, conscientes de seu amor, ainda quando
morriam. Sentiu as mãos erguidas, a confusão. A primavera estava chegando.
Havia seiva ainda nas raízes, mas seria uma seiva sufocada, bloqueada. Nada
havia no mundo aéreo em cima por onde pudesse subir. Hora após hora, as raízes
morriam, aturdidas, tentando compreender como haviam sido traídas e por que a
mão que as plantara permitira que aquilo acontecesse.
Frank sentiu o próprio sangue descer até as raízes, misturar-se com elas.
Ouviu o cego apelo. Sem saber o que fazia, ajoelhou-se na neve e freneticamente
a atirou para os lados. As mãos enluvadas cavaram mais e mais fundo. Ouviu um
farfalhar alto nos ouvidos e não percebeu que era sua própria respiração.
Chegou à dura terra negra. Apalpou-a. Não havia coisa alguma. Apertou
mais as palmas úmidas das mãos enluvadas contra a terra áspera. Algo pulsou
sob elas. Como um coração moribundo.
Sentiu a vida das raízes, a força jovem. Em seguida, como se o
reconhecessem, com um último suspiro, a pulsação diminuiu e desapareceu.
Frank ergueu-se lentamente e olhou para a sepultura da árvore. A dor
tornou-se insuportável para ele. E uma fúria surgiu, selvagem e terrível. Por que
havia aquela árvore sido condenada à morte? Quem ousara cometer tamanho
crime contra um ser tão belo e tão vivo? O homem era uma criatura má, suja,
animalesca, torpe. Sem o menor remorso, sem pensar, destruía coisas belas e
inócuas, pouco se importando. Viu a árvore sendo levada para longe e atirada em
um monte de lixo. Viu as folhas desbotando aos poucos, desprendendo-se,
caindo. Por que não soubera?
Ouviu um áspero ruído ao ser aberta uma porta. Uma voz rouca de
homem berrou:
— Que diabo está você fazendo aí?
Frank, trêmulo e fraco, voltou-se e viu um brutamontes caminhando pela
neve em sua direção. A luz reapareceu nesse instante e ele notou, sob o domo
calvo da cabeça do homem, um rosto abrutalhado e barbado, o rosto de um rude
operário. O homem aproximou-se, meio agachado, como um símio que acabara
de profanar uma ninfa. A lua brilhava com tal fulgor, que Frank viu os olhos
pequeninos, faiscantes, selvagens e desconfiados.
Em voz fraca, sufocada, perguntou:
— Onde está minha árvore? A árvore que eu plantei?
O homem parou de chofre e olhou-o fixamente. Notou o buraco estreito
e escuro na neve e voltou a fitar Frank.
— Você está louco? — rouquejou. — Está falando da árvore que havia
aqui? Eu a cortei para que os garotos tivessem um campo de basebol, foi por
isso. E que história é essa de vir até aqui?
Frank não soube que havia cerrado os punhos úmidos, nem que dera um
passo na direção desse horror, dessa personificação de um mundo que, naquele
momento, odiava. Observou que o símio recuava, aos poucos, cauteloso. Seguiu-
o. Disse, em voz muito baixa:
— Eu plantei aquela árvore. Vi-a crescer. Era minha. Você a matou.
— Você está louco — respondeu o símio, parando finalmente no recuo.
— Você morou aqui antes de nós mudarmos? Bem, e daí? Os garotos queriam
jogar basebol e, assim, cortei aquela maldita coisa. Que importância tem isso,
seu filho da mãe? Caia fora daqui ou chamo a Polícia. — Ergueu a voz para
gritar, não ousando desviar a vista de Frank, cuja face via claramente à luz da
lua: — Grace, chame a Polícia! Há um maluco aqui! Está tentando arrombar a
casa!
Um rouco grito de mulher subiu da casa. Frank nem notou que se movia,
mas, automaticamente, seu braço projetou-se do ombro, levando o punho úmido,
como se fosse uma pedra. Atingiu carne e osso e ele ouviu um som surdo de
coisa esmagada. Viu o símio cair para trás na neve, batendo com os braços e as
pernas. Ainda sem plena consciência do que fazia, chutou várias vezes os flancos
da criatura. Depois correu, tropeçando nos montículos de neve.
CAPÍTULO 42
Mais uma vez no bonde de West Utica, encolheu-se no assento. Mais
uma vez, era o único passageiro. O veículo balançou-se e arquejou. Tinha as
janelas embaciadas pela geada. Sentou-se quase encurvado, como um homem
nas vascas de uma grande dor, com as mãos profundamente enterradas nos
bolsos, a gola até as orelhas, o chapéu puxado para baixo. Escutou e sentiu as
rodas esmagarem e arranharem o gelo e foi sacudido para frente, para trás e para
os lados. O fragor surdo e rouco ecoava em sua carne. Doía-lhe um dos punhos e
sabia que a mão estava ferida. Mexeu-a dentro da luva e ficou satisfeito com o
ardor da pele arranhada.
Olhou entorpecido em volta. O ambiente não tinha perspectiva, era como
uma fotografia. Sentiu a presença das paredes do carro, das janelas embaciadas,
das luzes bruxuleantes no teto. Viu-as, mas estavam niveladas, sem sentido. Em
alguma parte, muito longe no espaço, latejava uma dor, uma dor que era como
uma náusea. Não pensou na árvore. A árvore morrera, não era mais parte dele.
Sentia apenas o próprio ódio.
O carro sacudiu-se, seu corpo sacudiu-se também e foi lançado para trás
contra o assento. A dor aumentou e latejou. Viu o motorneiro aos controles,
assoviando entre os dentes e tocando furiosamente a sineta. Odiou-o. Odiou
aqueles largos ombros quadrados, as orelhas vermelhas, o tolo boné do
uniforme, a maneira como suas mãos puxavam a corda da sineta. Era um animal,
como o resto deles, um animal metido em um velho uniforme de sarja azul, uma
monstruosidade, um ser sem sentido ou significação.
O bonde rangeu e parou. Uma velha subiu com dificuldade. Vestia um
velho casaco preto que lhe descia até os grossos e inchados tornozelos. Grandes
botões pretos piscaram à luz amarela. Usava um informe chapéu de feltro, de
onde o cabelo grisalho e grosso descia e colava-se à testa enrugada e às
bochechas encovadas. Cambaleou pelo corredor, escolheu um assento e derreou-
se nele.
Frank fitou-a. Odiou-a também. Irritou-o profundamente o fato de que
ela respirasse, essa deformada, imunda e feia paródia de gente. Os olhos azuis e
tímidos da mulher pestanejavam por trás dos óculos de aro de aço. Ela contraiu a
boca desdentada e pareceu mastigar alguma coisa. Com uma expressão vazia,
olhou em volta. Os lábios murchos moveram-se de um lado para o outro, para
cima e para baixo, como se estivesse comendo. Esfregou o rosto com a mão
enluvada. A mão tremia. Deixou-a cair molemente e continuou a mastigar.
Frank colou-se rígido às costas do assento. Não devia levantar-se e dar-
lhe um pontapé. A Polícia prendia as pessoas que faziam isso. Não podia dizer à
Polícia: ela era pavorosa de ver, horrenda, velha, não possuía mente, nenhum
sentimento! Nem mesmo estava viva. Deu-me vontade de vomitar e, assim, dei-
lhe um pontapé.
Os olhos úmidos, quase cegos, voltaram-se para ele. Ela parou o
mastigar. Frank fitou-a. Ela murmurou alguma coisa, num leve som animal.
Levantou-se e dirigiu-se mais para o fundo do veículo. O murmúrio aumentou. A
face encovada tornou-se matreira e vagamente amedrontada.
— Para o que é mesmo que você está olhando? — perguntou ela em voz
trêmula às costas de Frank.
Ele precisou colar-se ainda com mais força contra o assento. Precisava
controlar-se, ficar imóvel. O motorneiro tocou a sineta. Frank cerrou os dentes.
Mais uma vez, o bonde parou. Uma mulher lívida e malvestida, de uns trinta
anos, subiu pesadamente, as suas saias arrastando-se contra as botas abotoadas.
Trazia uma pálida criança nos braços, uma menina de uns quatro meses, com o
rosto sujo e manchado de lágrimas secas. Frank observou-as passar ao lado.
Animais imundos! Comiam e excretavam como todos os animais, dormiam,
roncavam e viviam em seus vis cortiços. Mas não possuíam coisa alguma da
selvagem beleza e graça das criaturas cobertas de pelos dos bosques, ou das
criaturas emplumadas das árvores. Não tinham nem mesmo a desculpa da beleza
para viverem. Por que não era possível matá-las, acabar com elas, preservar os
alimentos que devoraram para homens que estavam realmente vivos e tinham
uma razão para viver? Era um mal que tivessem nascido. Tornavam-se inócuos
apenas quando morriam. Entre o nascimento e a morte constituíam um insulto
aos céus.
A dor nauseante aprofundou-se. Sentiu-se profundamente enojado.
Apertou os lábios para combater a vontade de vomitar. Para toda parte para onde
olhava via apenas fealdade, movimentos sem sentido, espetáculos repulsivos. As
coisas se reduziam, obscureciam, tornavam-se superficiais. Como pudera
esquecer durante umas poucas horas naquele dia como era o mundo feio e mal,
ofensivo à vista? Como cheirava mal!
A criança guinchou às suas costas. Arrepiou-se de ódio e nojo. A velha
continuava a resmungar. Nesse momento, seu ódio e sua revolta voltaram-se
selvagens contra ele mesmo. Que débil mental sentimentaloide fora ele! Poucas
horas antes sentira um tolo júbilo, acreditara em que discernira um significado,
um padrão patético, mas heroico, em criaturas como aquelas. Sofrera e vibrara
com uma abominável compaixão, espojara-se em um debilitante romantismo.
Maria Pia! Giovanni! A velha e a moça malvestida, a criança aos berros!
Animais, cães, à imagem deformada de anjos. Leis idiotas permitiam que
vivessem. Em uma sociedade melhor e mais realista não se teria permitido que
nascessem ou, se nascidos, teriam sido destruídos e decentemente escondidos na
terra da vista de todos.
Sentiu saudade de casa, de seu belo e tranquilo quarto, da luz do abajur
sobre a velha cama, dos livros em volta. Queria apagar da vista toda aquela
fealdade, esquecê-la.
De súbito, sentiu uma profunda apreensão. Lembrou-se de Miss Woods e
da cena à mesa naquela manhã. O que diria ela quando o ouvisse entrar? Dar-
lhe-ia aviso para que se mudasse? Idiota! O que fizera, e por quem? Por um
imbecil de face esquelética e coberta de espinhas o qual nem mesmo sabia
exatamente quem era seu pai? Por um rato de cortiço com pretensões a ser
homem? Pusera em perigo um tranquilo refúgio, uma vida agradável, por um
Irving Schultz. Insultara uma mulher respeitável e criara uma embaraçosa
confusão em uma sala tranquila. Se recebesse aviso de despejo, isso não seria
mais do que o que merecia. Nesse momento, começou em furiosa ansiedade a
respirar com esforço. Lançou um olhar ao relógio. Passava das oito. Miss Woods
estaria em sua “sala de visitas”. Iria procurá-la imediatamente, pedir humildes
desculpas. Procuraria a Sra. Crimmons, suplicando-lhe que o perdoasse pelos
seus injustificáveis e insanos insultos. Talvez, nesse caso, Miss Woods lhe
permitisse continuar a morar ali. Talvez não fosse expulso. Precisava apenas
apressar-se.
Soprou na janela e abriu um pequeno orifício na geada. Logo depois,
chegaria a Linwood Avenue. Chamou-se de imbecil pelo que experimentara
naquela manhã. Ansiou nesse momento pela segurança e tranquilidade
ameaçadas. Se apenas não fosse tarde demais! Por que se arriscara tanto? Por
que saltara e gritara com a pobre Sra. Crimmons? O que houvera no rosto e nos
olhos daquele rato de cortiço para induzi-lo a se prejudicar daquela maneira
vergonhosa? Boca-mole! O pai tivera razão, afinal de contas, ele era um
sonhador, um conversador, uma imbecilidade vazia. Depois de todos aqueles
anos de esforços, permitira que algo impublicável o arruinasse. Depois de todos
esses anos de luta para chegar à normalidade, à respeitabilidade, ao confortável
meio-termo, permitira que uma emoção delirante arruinasse toda a dolorosa
remodelação que fizera em si mesmo. Não podia nem mesmo recordar-se da
emoção, mas sabia que fora vergonhosa. Enrubesceu de sofrimento e indignação.
Levantou-se e puxou a corda da sineta. Correu até a porta. A velha e a
moça acompanharam-no com os olhos. A criança berrou e agitou-se nos braços
magros da mãe. A porta fechou-se às costas de Frank. O bonde continuou seu
caminho sem ele.
A velha assoou-se num trapo sujo e resmungou:
— Viu aquele cara que acabou de descer? Olhou esquisito para mim,
como se estivesse bêbado, ou coisa parecida. Olhou para mim, olhou mesmo,
como se quisesse matar-me. E nunca o vi antes, em toda a minha vida! Devia
estar bêbado.
Frank arrastava-se, tropeçando, em direção à casa. Sentia calor em todo
o corpo, mas, ainda assim, tremia. Idiota desastrado, sentimental! Se apenas não
fosse tarde demais! Falaria, imediatamente, com Miss Woods e depois iria pedir
desculpas à Sra. Crimmons. Se apenas tivesse poder de persuasão! Mas não
possuía graças naturais, não sabia lisonjear. Febrilmente, ensaiou o que diria:
“Miss Woods, sinto imensamente. Não sei o que foi que deu em mim.” Não, essa
expressão era inglesa. Esforçara-se tanto para eliminar todos os anglicismos que
adquirira com os pais e que pareciam incomodar tanto os americanos!
“Miss Woods, sinto imensamente a respeito desta manhã. A senhora
acha que a Sra. Crimmons aceitaria minhas desculpas?” Isso era melhor. Possuía
dignidade. Colocava-o numa base de homem-para-homem com Miss Woods. Viu
diante de si a grande e vazia face e odiou-a. Eu odeio tudo, pensou
selvagemente. Estou enojado de tudo.
Bateu os pés no vestíbulo de inverno para sacudir a neve. Notou que
tinha as calças úmidas até bem acima do joelho. A neve se infiltrara até a parte
superior das meias “árticas” e ele sentia uma desagradável área fria entre as
espáduas, como se uma grande mão gelada estivesse pousada ali. Tremia quase
violentamente nesse momento. Respirou profundamente. Logo sentiu uma
pontada violenta no lado direito. Prendeu a respiração e, em seguida,
amedrontado, soltou-a devagar. Não devia ter corrido pela neve.
Lançou um olhar pelos cortinados de veludo do umbral da sala de
visitas. Viu Miss Woods sentada em frente à lareira, cercada por sombrias
heranças de família. Lia. O gato dormia aos seus pés. Ela pôs o livro de lado
calmamente no momento em que Frank entrou, e encarou-o, sem falar. Ele não
viu nem animosidade nem bondade naqueles olhos. Ela simplesmente esperou.
Por que não falava? Geralmente o cumprimentava com alguma palavra
agradável. Mas era evidente para ele, mesmo em seu confuso estado de
ansiedade, que ela esperava alguma coisa. Ficou aliviado: ela esperava que ele
dissesse o que precisava dizer. Apressadamente, pronunciou o ensaiado discurso:
— Miss Woods, sinto imensamente a respeito desta manhã. A senhora
acha que a Sra. Crimmons aceitaria minhas desculpas?
A face dela pareceu aproximar-se dele através do tapete desmaiado e
Frank viu-lhe os olhos nesse momento, muito atentos, perscrutadores. Ela não
sorriu, conservando uma expressão vazia e inescrutável. Em seguida, disse em
voz muito lenta:
— O senhor está realmente arrependido?
Viu-a quase como se a houvesse enquadrado no foco nítido de um
binóculo. Tudo em volta tornou-se muito claro e vivido. Mas ficou
profundamente aliviado, pois esperava que as primeiras palavras da mulher
fossem severas, recriminadoras. Contudo, ela simplesmente o observava e
parecia esperar com grande interesse a resposta.
Nervosamente, respondeu:
— Estou, sinto imensamente. A senhora compreende...
Ela desviou a cabeça e ele lhe viu o perfil gordo contra a luz da lareira.
Baixou meditativa os olhos para as mãos cobertas de anéis. Depois, disse:
— Sim, compreendo.
Suspirou e o grandes seios subiram e desceram como se ela lamentasse
profundamente alguma coisa. Ainda com a cabeça desviada para o lado, ela
continuou:
— Sinto muito também, Sr. Clair. Mas o senhor compreenderá, sei disso.
Não posso permitir discussões violentas em minha casa. O Sr. e a Sra. Crimmons
são velhos... conhecidos meus e se hospedam aqui há anos. Seria embaraçoso
para eles se o senhor continuasse aqui, não acha?
Frank sentiu um profundo desânimo. A fria umidade das roupas colou-se
às pernas trêmulas e a mão gelada apertou-lhe, forte, as costas. Teve uma ligeira
sensação de choque na boca do estômago. Balbuciou, como não havia
balbuciado durante anos:
— Eu... eu acho que poderia... pedir desculpas à Sra. Crimmons e ficaria
tudo bem...
Ela sacudiu a cabeça. Voltou-se nesse momento inteiramente para ele e
Frank viu apenas a massa dos seus cabelos brancos e os gordos ombros.
— Acho que seria melhor para todos, inclusive para o senhor, se
entregasse o quarto dentro de uma semana, a partir de amanhã. Penso, realmente,
que seria melhor.
A vergonha, a raiva e o desapontamento envolveram-no. Na estranha
clareza que enchia a sala viu cada ruga da face da velha senhora e a seda preta
que brilhava em seus ombros e lhe envolvia os braços como se fosse uma bainha
escura. Tudo ali naquela sala tornou-se hostil, repudiando-o, afastando-se dele.
Era um estranho, jamais morara ali ou passara uma noite sequer sob aquele teto.
— Por favor, a senhora... não mudaria de ideia, Miss Woods? —
tartamudeou, suplicante. — Eu... eu gosto daqui. De certa maneira, é o único lar
que já tive...
E odiou-a, com profunda malevolência, pela própria humilhação.
Em voz quase inaudível, ela respondeu:
— Sinto muito. Acho que o senhor nunca terá um lar, Sr. Clair, até que
descubra a verdade sobre si mesmo. Sinto muita pena do senhor. Sinto,
realmente. Mas, talvez, um destes dias, o senhor compreenda o que é que estou
dizendo. Peço-lhe que me desculpe. Não mudarei de ideia e, assim, por favor,
não insista.
A odiosa e cruel cadela! A velha, gorda e avarenta bruxa! Permitira que
ele se humilhasse, saboreando cada momento daquilo. Teve vontade de esmurrá-
la. Teve vontade de chutá-la como chutara aquele símio no quintal de Albany
Street. Mas ela falava novamente:
— Se eu fosse o senhor, tomaria imediatamente um banho quente. O
senhor está todo molhado. E agora, boa noite, Sr. Clair.
A escada girou ante seus olhos enquanto subia. Foi obrigado a parar no
patamar a fim de recuperar o fôlego e, mais uma vez, uma faca quente furou-lhe
um dos lados do peito. Tremia tanto nesse momento que foi forçado a agarrar-se
ao corrimão para não cair. O calor, a tranquilidade, a escuridão da velha casa
cercavam-no por todos os lados, mas era uma cordialidade distante, que o
despedia. Viu luzes sob as portas, ouviu um pequeno riso, uma tosse, o farfalhar
de um jornal. Uma semana a partir do dia seguinte e ele iria embora. A casa e
seus felizes habitantes o esqueceriam. Ouviu o velho relógio soar na sala de
visitas. Um alto espelho na parede à frente brilhou, mostrando-lhe um rosto
fantasmagórico. O vento aumentava novamente, corria pelos robustos beirais e
gemia no telhado que, dentro em breve, não seria mais seu amado abrigo. Não
teria mais acesso àqueles belos livros da biblioteca de Miss Woods nem lhe seria
permitido sentar-se ali, nas profundezas da velha cadeira de couro vermelho,
saboreando o privilégio que só ultimamente lhe fora concedido. Não ouviria
mais o melodioso carrilhão nem se demoraria mais na sala de jantar ao terminar
os agradáveis cafés das manhãs de inverno. A dor picou-lhe os olhos. Aquele era
o seu lar e fora expulso dele. Naquele momento estava novamente desprotegido,
inteiramente nu, desabrigado.
CAPÍTULO 43
O mês de maio espumejava como uma maré de arbustos floridos, árvores
e plantas em todas as ruas e em todos os quintais. Os lilases curvavam-se em
plumas de branco puro e púrpura sobre cercas quebradas; as moitas de silindras
pareciam montículos de neve emoldurando terraços e varandas. Quintais
abandonados ganhavam beleza com as flores rosadas de contorcidas macieiras;
olmos deixavam cair chuvas de sementes pardas sobre a terra enquanto as folhas
de jovens bordos mostravam, orgulhosas, suas pontas douradas. A primavera
lançara suas pálidas roupagens verdes sobre todos os ramos. As ruas vibravam à
noite com suaves ecos e sombras cor de malva encompridavam-se sobre
luxuriantes gramados. A cidade estava embebida em fragrância, em doçura, sob
vastos e suaves céus, embora o ar continuasse frio e o vento, soprando dos lagos,
ainda conservasse o gume agudo do gelo que se dissolvia.
Frank Clair, envolvido em um pesado casaco e com um velho cobertor
em torno dos joelhos, olhava em silêncio para a rua do outro lado do pequeno
gramado. Sentado na varanda da casa da avó, sentia ali o aroma dos lilases e o
frescor da grama nova. Longos feixes de luz caíam sobre suas magras mãos
brancas, de fortes nós. Tinha as mãos no regaço do casaco, imóveis, flácidas.
Ouviu sinos de igreja repicarem com uma nova nitidez de primavera; famílias
passaram apressadas a caminho dos serviços religiosos. Seguiu-as indiferente
com os olhos vazios e, em seguida, desviou-os como se ficasse levemente
enojado. Não havia nele coisa alguma da nova força dos convalescentes e, ainda
menos, de nova esperança. Permanecia ali, imóvel, sentindo o calor do sol nas
mãos, desligado, mal consciente da vida. O vento fresco soprou um cacho de
cabelo castanho sobre sua testa. Não o empurrou para o lado. O cacho moveu-se,
ergueu-se e tapou-lhe os olhos, mas ele não sacudiu a cabeça para tirá-lo. As
fortes e magras feições estavam agora emaciadas e os lábios tinham a mesma cor
do rosto. Os olhos moviam-se com grande lentidão em escuras fossas.
Maybelle abriu a porta de tela e olhou-o furtivamente. Observando-o de
perfil, notou-lhe a imobilidade. Lembrou-se da sua jovem vivacidade e agitação.
Aquele rapaz não parecia Frank, pensou com nervosa irritação. Era mais do que
o que podia tolerar, depois de tudo, vê-lo simplesmente sentado ali o tempo
inteiro, dia após dia, raramente falando e, quando o fazia, apenas em tom lerdo,
“não demonstrando o menor interesse”, comendo apenas quando pressionado,
conservando-se calado quando ela insinuava que o médico dissera que ele estava
curado e que poderia logo depois procurar emprego.
E eu tão esgotada, pensou Maybelle, tendo suportado tanto. Ninguém
sentia a menor pena dela. Eu, uma viúva, continuou em seus melancólicos
pensamentos, sem ter para onde me virar e nem mesmo uma casa própria. Entre
estranhos. Ainda seria pouco se o filho “mostrasse algum interesse”, pensasse
em se mexer, arranjasse um emprego e trouxesse um pouco de dinheiro para
casa. O médico dissera que “lhe desse tempo”, que ele tivera um caso grave de
gripe espanhola e que ainda estava um pouco fraco. Mas ele estava era
mimando-se, como nesse momento, simplesmente sentado na varanda num dia
como aquele, ou deixando-se ficar no quarto na água-furtada quando chovia.
Nunca se oferecia para ajudar na casa. Que importância tinha se ele pagava sem
demora o médico e dava à avó dez dólares por semana pela moradia? Ele não era
um verdadeiro hóspede, sem responsabilidades. Afinal de contas, a mãe havia
cuidado dele durante “três semanas de inferno” e ele nem lhe agradecera — não
tivera uma única palavra de gratidão. Não que a Sra. Clair se houvesse oferecido
para aliviá-la de suas tarefas na casa, mesmo quando foi obrigada a passar três
noites em claro na primeira semana quando ele contraíra pneumonia. Era duro,
era muito duro. Ele simplesmente se deixara ficar no quente, sob os cobertores,
com uma cor realmente muito boa no rosto e nem um único olhar para ela. O que
fora que ele dissera? Simplesmente um bocado de bobagens sobre uma árvore,
usando nomes feios como um marinheiro e chorando como um bebê. Um
homem como aquele jamais demonstrara a menor pena pelo que ela fora forçada
a fazer, limpando-lhe as fezes e enxugando o chão quando ele vomitava. Mesmo
quando cochilava algumas vezes na cadeira, ouvira-o falando, gritando e dizendo
palavrões, falando sem nexo, como um idiota. Não lhe dera um único minuto de
descanso. Que lindo, o médico falar em enfermeiras! Quem é que tinha dinheiro
para pagar enfermeiras? Ela, Maybelle, dissera-lhe “umas verdades” quando ele
sugerira um hospital. “Os hospitais vivem cheios de charlatões. Mate-os logo, é
o lema deles!” replicara, e o médico se fora com o rabo entre as pernas. Ianques!
Ninguém sentia a menor pena dela, nem “a velha diaba” nem o filho e,
quanto ao médico, ele nunca mais ousara voltar ali. Os olhos de Maybelle
brilharam vingativos ao olhar para Frank. Mimando-se ali, quando podia estar
trazendo algum dinheiro para casa. E se ele nunca mais se mexesse? pensou
amedrontada. O que não diria a “velha diaba”? A Sra. Clair insinuara em termos
bastante claros que já era tempo de ele tomar interesse pela vida e procurar
alguma coisa para fazer. O que aconteceria quando acabasse o dinheiro dele? Só
lhe restavam duzentos dólares. Era preciso que alguém lhe dissesse que reagisse,
que fosse homem, que encontrasse os pés novamente.
Frank começou a tossir rouca e violentamente nesse instante. Sacudido
pela convulsão curvou a cabeça sobre o braço da cadeira. O corpo magro tremeu.
E se ele contraísse tuberculose agora, como o pai? Maybelle foi tomada de
furioso pavor. Se adoecesse, iria para um hospital de indigentes, disso não havia
dúvida! Ela, uma pobre viúva, à mercê de estranhos, na terra dos ianques, sem
lugar algum para onde ir, nem mesmo um banco que pudesse chamar de sua
mobília, e ainda havia gente esperando que ela cuidasse “dele”.
Frank, no momento em que se levantara da posição curvada, lançou um
olhar à porta de tela. Ele me viu! pensou Maybelle com uma mistura de raiva e
alívio. Está fingindo isso para me fazer pena. Está querendo se mimar. Fingido.
Mas demonstrara bastante energia, disso não havia dúvida, quando ela
abrira as cartas dele. Falara em termos violentos, brutais. Ora, ela sempre abrira
todas as cartas que chegavam “em casa”, fossem dirigidas ao pobre Francis ou
ao filho. Como falara! E se recusara a discutir o que ela lera na carta sobre o
estranho que lhe pedia que fosse para Kentucky. Sim, era suficientemente forte
para berrar quando a pobre e velha mãe lhe abria as cartas. E olhara para ela
maldosamente. Depois de tudo o que ela fizera. Nada de pena. Naquele
momento, tossia assim para que ela não pudesse ter com ele uma conversa séria
a respeito de mexer-se e ir procurar emprego. Bem, ela lhe mostraria, e como!
Empurrou inteiramente a porta de tela e entrou pesadamente na varanda.
A papada sacudiu-se beligerante e seus olhos brilharam de indignação e
malignidade. O forte vento de maio desmanchou-lhe ainda mais o cabelo
despenteado, mais grisalho agora do que ruivo. Enrolou os braços gordos na
fralda do avental e dirigiu-se ao filho com passos decididos. Nenhuma bobagem
mais naquele momento. Já tolerara o suficiente.
Frank não se voltou para ela. Olhava outra vez para a rua com uma
expressão vazia.
— Ouça aqui — disse ela asperamente. — Para variar, já é tempo de
você pensar em mim. Você não tem mais nada, ouviu? Amanhã é segunda-feira.
Vai sair e procurar um emprego. E logo. Estou cansada de vê-lo por aqui, sem
fazer nada, e ela atrás de mim perguntando quando é que você vai mexer-se e
fazer alguma coisa por sua mãe.
Frank não respondeu logo. À luz do sol, suas mãos pareciam quase
transparentes. Ela viu-lhe os ossos da mandíbula sob a pele branca e as fossas
em volta das narinas. No momento em que abria a boca para continuar suas
irritadas exigências, ele respondeu tranquilo:
— Vou sair. Dentro de alguns dias.
— Amanhã — retrucou Maybelle com voz alta e firme.
— Vou sair e comprar a passagem — disse Frank.
Maybelle fitou-o com olhos arregalados de espanto.
— Vou para Kentucky — continuou Frank. Havia um curioso vazio na
sua voz desde que ele adoecera. — Falei ontem ao telefone com o médico e ele
disse que um clima mais quente e uma mudança de ambiente me fariam bem.
— Você não vai fazer nada disso! — exclamou furiosa Maybelle. —
Depois de tudo o que fiz por você, noite após noite, sem ouvir uma única palavra
de gratidão de sua parte. Você vai arranjar um emprego e trazer dinheiro para
casa... — Tirou as mãos do avental, cerrou-as e bateu uma na outra, como se a
cabeça dele estivesse entre elas. — Baterei em você, se me falar assim! —
continuou. — Você me deve alguma coisa.
— Eu lhe darei cinquenta dólares — respondeu indiferente Frank,
acompanhando com os olhos um cão que passava vagaroso pela rua. — O
médico está pago e não devo coisa alguma à minha avó.
— Eu lhe darei cinquenta dólares! — exclamou Maybelle
profundamente ofendida. — Seu descarado! O que é que você pensa que é,
falando comigo dessa maneira? E eu me escravizando para tratar de você quando
você apanhou aquele resfriado, andando por aí com estranhos, eu esvaziando
seus urinóis enquanto você falava como um demente sobre uma árvore, ou
coisas assim! Seu idiota. Você é um fracasso. Um boca-mole, como seu pobre
pai sempre dizia. Pois eu lhe digo. Você não vai ficar por aqui sem fazer nada,
dando-se ares, e eu trabalhando dia e noite...
Um homem idoso e grisalho, robusto, aproximou-se nesse momento da
varanda. Lançou um rápido olhar para Frank e sorriu cordialmente para
Maybelle, que respirava forte.
Entrou na varanda, tirou o velho chapéu de feltro marrom e abanou-se
alegremente.
— Lindo dia, não? — comentou. — Que bom ficar sentado aqui! Você
está com boa aparência, Frank. Quase novinho em folha.
— Foi isso justamente o que acabei de dizer a ele, Sr. Farley! —
exclamou Maybelle com uma vigorosa inclinação de cabeça. — Fale com ele.
Diga-lhe o que é que ele deve à sua mãe.
O Sr. Farley sentou-se no corrimão da varanda e espalhou
confortavelmente as gordas coxas. Sorria, ainda, mas tinha os olhos pensativos.
Esperou.
— Acabei de dizer a ele que precisa sair, arranjar um emprego e trazer
algum dinheiro para casa — prosseguiu furiosa Maybelle. — Ele foi morar com
estranhos quando morreu o pobre pai dele, embora lhe fosse oferecido um bom
lar aqui, com a mãe e a avó. Mas, não, foi embora, e veja o que foi que ele
arranjou, depois de eu lhe ter dito e suplicado para vir para onde devia, que era
ficar com a família. Mas os estranhos eram melhores do que nós, até que
adoeceu.
O Sr. Farley olhou para as largas botas lustrosas. Lembrou-se da noite
em que Frank viera para aquela casa, molhado, tremendo incontrolavelmente,
com os olhos já delirantes e opacos de febre. Viera procurar a mãe
instintivamente, como um animal rasteja para uma velha e conhecida caverna
para morrer. O Sr. Farley duvidava de que uma decisão raciocinada tivesse tido
algo a ver com a chegada de Frank. Ele agira cegamente, por instinto. Se
houvesse pensado durante, um único momento, não teria vindo.
Lembrou-se também de que cuidara de Frank durante as três semanas
que ele passara de cama, com exceção de umas poucas noites em que Maybelle
“ficara de vigília”. Encontrara o rapaz abandonado, delirante. De fato, fora o alto
delírio de Frank que levara o velho a subir as escadas até a pobre água-furtada.
Escutara durante horas as palavras desconexas; não ouvira passos em cima,
nenhuma voz tranquilizante. Subira e encontrara Frank descoberto na cama,
lutando para levantar-se. O Sr. Farley não gostava de lembrar-se daquela noite.
Fizera companhia a ele até o amanhecer e depois saíra sem ruído, levando sua
própria esponja e bacia, com as quais havia banhado aquela carne ardente. Mas o
deixara adormecido e tranquilo.
Noite após noite depois disso, subira em silêncio a escada, levando a
bacia, a esponja e suas próprias toalhas. Levara o copo aos lábios gretados pela
febre, murmurando em voz suave, rezando, desafiando o rosário com uma fé
simples. Ninguém sabia coisa alguma dessas semanas de cuidado paciente e
terno, exceto ele mesmo e Frank. Ninguém sabia que fora ele quem lhe dera os
remédios, que lhe trouxera o leite quente quando ele conseguira finalmente
engolir e o sorvete da farmácia, escondido sob o paletó. Maybelle, “esgotada”,
deixava o filho todas as noites às oito horas e ia para seu próprio quarto, onde,
embora alegasse sempre que “nunca pregava olhos”, dormia sempre o sono
profundo dos justos. Ela se obrigara a acreditar em que Frank cuidava de si
mesmo, dormia confortavelmente durante toda a noite e sua cura se devia
exclusivamente a ela.
Em voz suave, pois era um homem gentil, paciente e compreensivo,
disse o Sr. Farley:
— Bem, ele vai surpreendê-la um destes dias, Sra. Clair, e arranjar um
bom emprego. Você está justamente ficando bom, não é, Frank?
Frank olhou-o diretamente e sorriu de leve.
— Tolice — interveio Maybelle, secamente.
— Ele está muito bem agora e já pode sair, arranjar um emprego e trazer
um pouco de dinheiro para casa. O senhor precisa passar-lhe um carão. É preciso
que um homem lhe fale para ele deixar de ser tão descarado. Agora, anda
falando em ir para Kentucky!
O Sr. Farley ergueu as sobrancelhas avermelhadas.
— É mesmo? — perguntou, fingindo surpresa, pois Frank já discutira o
assunto com ele. — Bem, precisamos conversar sobre isso, não?
— Conversei — disse Maybelle, inclinando a cabeça e endereçando ao
filho um relâmpago dos olhos esbugalhados. — Talvez ele lhe dê atenção. —
Voltou para dentro batendo forte com a porta.
Caiu o silêncio na varanda. O Sr. Farley continuou a abanar-se
preguiçosamente com o chapéu, olhando para a rua e os transeuntes com aquela
expressão cordial e afetuosa de compreensão que tanto enfurecera Frank. Mas,
naquele momento, pouco o perturbava, coisa alguma conseguia abrir uma brecha
em sua apatia. Vistas, sons, cenas, vozes, movimentos aproximavam-se da
extrema periferia de sua consciência, mas aí se detinham. Somente o Sr. Farley, o
ignorante, inculto, simples e religioso Sr. Farley compreendia que o espírito de
Frank se encontrava em estado de paralisia extrema, que ele chegara a um ponto
perigoso de negação e lassidão mental.
No delírio, Frank falara sem nexo a respeito de uma árvore. O Sr. Farley
depreendera que a árvore fora derrubada. Que árvore e por quê? O que aquela
árvore representara para Frank? Sabia que o rapaz era sensível e vulnerável
demais ao ambiente, mas reconhecera nele também uma espécie de dura
implacabilidade e ausência de sentimentalismo. Sendo humano, curioso e, além
disso, bondoso e generoso, o Sr. Farley ficara preocupado. Havia mais naquela
história da árvore do que podia compreender.
Naquele momento, aparentemente entretido apenas na contemplação
agradável da rua, o Sr. Farley pensava na árvore. Intuitivamente, sabia que a
árvore devia ter alguma relação com a inércia de Frank, com os prolongados
silêncios, o vazio dos olhos.
Ergueu-se e fechou a porta por trás da tela. Riu baixinho ao voltar para
junto de Frank.
— Acho que nós precisamos ter a “conversa séria” a que sua mãe se
referiu — disse.
Frank não deu sinal de ter ouvido. O Sr. Farley ofereceu-lhe um cigarro
de uma carteira amassada, acendeu-o para o jovem e, depois, acendeu outro para
si mesmo. A fumaça subiu, enovelando-se pelo ar capitoso e fresco.
— Duzentos dólares não serão suficientes para viajar até Kentucky,
Frank — disse o Sr. Farley. — Acho que seria melhor se você me deixasse
emprestar-lhe outros duzentos. Não vai querer chegar lá quebrado. Oh, sim,
lembro-me das cartas que você me mostrou, escritas por aquele rapaz, mas os
jovens ficam entusiasmados demais e, quando menos se espera, a pessoa está
quebrada e a um milhão de quilômetros de casa. Nada bom.
Frank sacudiu a cabeça.
— Obrigado, mas não quero. — Sorriu. — Vou dar cinquenta dólares a
minha mãe. Com isso, ficarei com cento e cinquenta. Será suficiente. De
qualquer modo, vou morar com Tim Cunningham. Ele tem uma grande tenda
somente para ele lá nas montanhas.
O Sr. Farley, ingenuamente, teve uma visão de picos de montanhas
coroadas de neve, profundos vales azuis, saúde e ar vivificante, ventos
perfumados com o aroma de pinheiros, paz. Seria bom para Frank. Arrancaria o
rapaz daquela situação. O médico não dissera algo sinistro sobre tuberculose
incipiente? Nada igual às montanhas para isso! A visão do Sr. Farley sobre as
montanhas de Kentucky era apenas ligeiramente menos incorreta do que a de
Frank.
— Quando é que você pensa em viajar? — perguntou.
— Terça-feira, o mais tardar.
O Sr. Farley franziu os sobrolhos.
— Tem certeza de que aguenta? Você andou muito doente, lembre-se.
Ainda está um pouco fraco, não?
A mandíbula de Frank, tão nítida sob a pele branca, projetou-se para a
frente.
— Darei um jeito. Vai tudo correr bem. — Interrompeu-se por um
momento. — Nunca agradeci ao senhor, como devia, por tudo quanto fez por
mim. E tenho-me perguntado por que fez tudo aquilo.
Espantado, o Sr. Farley fitou-o.
— Você não sabe? Ora, Frank, quando você fala assim, fico em dúvida a
seu respeito. Eu pensava que você entendia melhor as coisas. Ou talvez tenha
esquecido. Talvez você tenha esquecido o que sabia quando era criança.
Esperou. Frank, porém, não respondeu. O Sr. Farley ficou muito
perturbado. Tocara a periferia do ser de Frank e sentira algo liso, duro, frio,
insensível. Naquele momento ficou amedrontado. Inclinou-se para o jovem e
disse vivamente:
— Você precisa dizer-me, Frank, que não quis insultar-me. Você precisa
dizer-me que estava simplesmente falando...
Frank respondeu com a antiga vivacidade:
— Pelo amor de Deus, Sr. Farley, insultá-lo seria a última coisa em que
eu pensaria! Eu estava-me perguntando, simplesmente, por que se deu a todo
aquele trabalho. Afinal de contas, não sou nada do senhor. — O Sr. Farley
simplesmente o fitou com tal sofrimento na fisionomia que Frank sentiu uma
estranha agitação. Mas abafou imediatamente a emoção e sorriu com expressão
vazia. — Bem, estou realmente grato... e, naturalmente, compreendo. Tentarei
algum dia retribuir o que o senhor fez por mim. Quando os poços de Tim
começarem a produzir, voltarei como milionário. — Sorriu e explodiu em
seguida em outro acesso de tosse. O Sr. Farley, gentilmente, tirou o cigarro dos
dedos magros e brancos e atirou-o fora.
— Você tem que me prometer — disse, um pouco rouco, — que me
avisará se precisar de algum dinheiro. Eu não teria sossego se soubesse que você
estava quebrado por lá.
Frank inclinou a cabeça. Depois do acesso de tosse, a lassidão tornou-se
insuportável.
— Você continuará a escrever, não, Frank? Você tem o estofo de um
escritor.
Frank esfregou a palma da mão nas costas da outra. Escrever? Nunca
mais escreveria. Aquilo estava terminado para sempre. Sabia disso, com uma
finalidade completa. A capacidade de escrever fora amputada dele com a
derrubada da árvore. A antiga febre e o brilhantismo haviam sido substituídos
pelo vazio, por um silêncio morto e repleto de calhaus. Sabia. Várias vezes na
semana anterior tentara escrever. Tentara escrever o drama poético sobre Lucas.
Lembrava-se de ter sentado à mesa sob os beirais, no pequeno quarto, e posto a
pena no papel. Mas a pena permanecera simplesmente ali, com a ponta pousada
sobre a brancura. Coisa alguma lhe ocorrera. O sombrio vazio que nele havia se
aprofundara. Finalmente, com esforço, escrevera: “Lucas encontrava-se ... em
frente... ao templo. Os anciãos... os anciãos judeus...” Fora tomado então por um
profundo nojo, uma horrível náusea e desfalecimento. Rasgara o papel e lançara
a caneta ao chão. Não havia mais nada naquele momento. Havia apenas aquele
doentio vazio, aquele afastamento, aquele horrível nivelamento da perspectiva, o
esvaziamento das cores, o desespero flácido, a falta completa de desejo.
Escrever! Um profundo desprezo de si mesmo se abatera sobre ele como se fosse
um golpe atordoante. Ele não era coisa alguma. O que tivera no passado fora
uma ilusão egoísta, um devaneio infantil, uma presunção completa e vergonhosa.
Um fracasso. Era isso o que era. Os pais haviam-no chamado de
fracasso; os mestres haviam-no desprezado; os colegas, ridicularizado. Miss
Woods o rejeitara, cheia de desdém! Eles o conheciam! Naquele momento, ele
próprio se conhecia e aceitava-se como os demais o viam. Um fracasso.
Desperdiçara anos nessas ilusões, quando poderia ter preparado um futuro
sólido. Amargamente, olhara para sua imagem no espelho e o ódio contra si
mesmo tivera o gosto de bile em sua boca.
Apaticamente, disse:
— Pensarei nisso quando me sentir mais forte, Sr. Farley. — Aprendera
a evitar com grande rapidez o menor problema, quando antes teria reagido
vigorosamente. Naquele instante, queria apenas evitar a menor controvérsia.
Não, coisa alguma sobrara, exceto o desejo de ganhar dinheiro. O desejo
era mais forte do que nunca. De alguma maneira, de algum jeito, precisava
ganhar dinheiro, muito dinheiro, incontáveis milhares de dólares. Havia apenas
uma maneira: os campos petrolíferos de Kentucky.
O Sr. Farley observou o perfil magro e bem delineado de Frank, tão
tenso e obstinado. Notou-lhe a palidez transparente, as escuras cavernas sob os
olhos apertados. Pensou: Meu Deus, que pobre criança!
Humildemente, acrescentou, suplicante, para si mesmo: Santa Maria,
Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém.
Por favor, Santa Mãe, Torre de Marfim, Refúgio dos Pecadores, por favor, ajudai
essa criança... Não sei por que, mas ele é como se fosse meu filho, embora
saibais que nunca tive filhos... Ele sofre, querida e bendita Mãe, e precisa de
ajuda... Ele é como se fosse seu próprio Filho, na sua própria cruz, apenas ele
não tem fé para ajudá-lo e nada sabe sobre vós... Está perdido nas profundezas
de si mesmo, lutando ali, sem esperança... Ajudai-o. Ave Maria, cheia de graça,
o Senhor seja convosco... bendita sois entre as mulheres, bendito é o fruto de
vosso ventre, Jesus... Eu farei uma novena... Eu...
Mesmo... antes... eu podia escrever, pensou Frank. Mesmo antes daquele
maldito domingo lá na neve. Era difícil, mas eu podia escrever. Podia produzir
composições apresentáveis e mesmo poesia. Podia fazer um trabalho artesanal.
Foi isso o que Mason disse. Ele disse praticamente que eu tinha gênio. Mas
agora não posso escrever coerentemente duas palavras. Não há coisa alguma na
minha mente, nada. E não quero coisa alguma. Quero apenas dinheiro.
Em voz alta, disse:
— As coisas terão que esperar até que eu ganhe um pouco de dinheiro.
Quero enviar alguma coisa para minha mãe.
O Sr. Farley, saindo da absorção das fervorosas preces, respondeu:
— Sua mãe disse que ela e sua avó vão voltar à Inglaterra. Talvez no
próximo verão.
— Isso mesmo.
A sineta do jantar bateu alto na tarde tranquila do domingo. Frank
mexeu-se. Em desespero, o Sr. Farley chegou à conclusão de que precisava
andar depressa. Lembrou-se de que Maybelle possuía naquela ocasião cerca de
doze mil dólares. Ele mesmo lhe dera mil dólares após a morte de Francis e,
como explicação, murmurara alguma coisa sobre “uma espécie de seguro que
fazia pelos empregados”. Maybelle não fizera objeção nem pusera em dúvida a
declaração inteiramente fantasiosa. O bondoso homem sentiu nesse momento
pena por não ter dado o dinheiro a Frank, com a mentira de que Francis deixara
o “seguro” para o filho.
Mas havia algo mais importante a dizer. O rapaz ia embora. Não poderia
deixar que se fosse assim, amargurado, inerte, evitando toda a manifestação de
bondade como se não pudesse tolerá-la, em um estado de abulia e desespero.
Pigarreou e desceu do corrimão. Falou em palavras atropeladas, incoerentes:
— Ouça, Frank, talvez eu não o veja novamente, depois de amanhã.
Você foi uma espécie de filho para mim, e sabe disso. Sempre pensei em você,
mais ou menos desde que era pequeno, quando em companhia de sua mãe e seu
pai vinha aqui todos os domingos para jantar. Você tem um grande valor, Frank.
Precisa acreditar nisso, entendeu? Jamais esqueça isso. E... e precisa esquecer...
um bocado de outras coisas.
Frank ergueu os olhos para o velho amigo e neles brilhou uma leve
curiosidade.
— O que é que preciso esquecer? — perguntou num tom de quem faz as
vontades de um velho.
O Sr. Farley enrubesceu profundamente. Coçou o alto da cabeça e suou
um pouco.
— Bem, talvez você ache que me estou metendo onde não devo. Talvez
eu esteja, por falar nisso. Mas você é como se fosse meu próprio filho, um filho
que nunca tive. Compreende o que é que quero dizer? Bem, bem, você teve uma
vida difícil e as coisas não correram bem para você. Eu também fui menino e é
uma coisa engraçada, mas o que acontece à gente, quando somos crianças,
parece que deixa marcas, mais do que quando a gente cresce e sabe de tudo
sobre tudo. Os pais que não são bons para uma criança... Ela se lembra disso e,
se não tiver uma boa cabeça e um pouco de compreensão, pode deixar que os
pais lhe arruínem o resto da vida simplesmente se lembrando deles.
A face magra de Frank se afilara lentamente, mostrando interesse, mas,
ainda assim, permanecia impenetrável como pedra. Entretanto escutou, sem
desviar os olhos do Sr. Farley.
— Bem, veja o meu caso — continuou o Sr. Farley, amaldiçoando-se por
sua falta de jeito e rezando para ser apenas um pouco eloquente. — Veja o meu
caso. Cheguei da Irlanda quando tinha apenas treze anos. Fui morar com um tio
e uma tia e eles me botaram imediatamente para trabalhar. Isso aconteceu em
Detroit. Ficavam com todo o meu salário, não me mandaram para a escola e fui
obrigado a dormir num sótão. E lá era terrivelmente frio no inverno. Bem, eu os
odiava, e odiava os filhos deles, todos os seis. Meu tio bebia sem parar e minha
tia lavava para fora. Nunca me demonstraram a menor bondade. Eu trabalhava
numa fábrica, entregava a eles todo o meu salário e só ficava com dez centavos
por semana. E eu estava ganhando cinco dólares. Assim, eu ficava lá em cima no
quarto, simplesmente odiando, às vezes até a hora de me levantar. Às vezes, Tio
Pat me dava um cascudo apenas por ruindade e minha tia me batia com o cabo
da vassoura. Isso me fazia odiá-los ainda mais. Fiquei de tal jeito que até passei
a gostar de odiá-los.
Frank sorriu e não foi um sorriso agradável. Mas continuou a escutar. O
Sr. Farley pigarreou outra vez e continuou a falar veementemente:
— Bem, eu podia ter arruinado minha vida se tivesse continuado
simplesmente a odiá-los e a pensar em maneiras de me vingar. Depois, o velho
padre de nossa igreja teve uma conversa comigo. Disse-me que meu tio tinha um
joelho aleijado que lhe doía o tempo todo. Explicou que Tio Pat fora um homem
bom e ambicioso na velha terra e que viera para a América cheio de esperanças.
Mas tinha apenas os músculos e duas mãos e, como diz Rockefeller, um homem
só vale um dólar da cabeça para baixo. Tio Pat não tinha educação nem tempo
para obtê-la porque trouxera a mulher e os meninos começaram a nascer um
depois do outro. Tio Pat trabalhava para o dono de uma cervejaria e guiava uma
carroça. Um dólar por dia, e os meninos não paravam de nascer. E havia Tia
Bridget, a moça mais bonita de Cork, diziam. Podia ter arranjado coisa melhor
do que Tio Pat, mas foi amor, ou coisa assim. Vieram para cá, querendo
conquistar o mundo. Um dólar por dia, então, para Tio Pat, e Tia Bridget lavando
para fora, entre o nascimento das crianças. Talvez ela tenha sido bonita. Mas era
uma bruxa quando a conheci, e não tinha ainda trinta anos, quase nenhum dente
e dinheiro nenhum para comprar uma peça.
“Ambos estavam doentes — continuou —, cansados, sem esperança,
sobrecarregados pelos filhos, sem uma pessoa a quem pudessem recorrer. Talvez
isso não fosse desculpa para que eles me tratassem daquela maneira, você pode
dizer. Mas eles não podiam evitar isso, disse o velho padre. Não que fossem
naturalmente ruins, perversos. Não eram piores do que outras criaturas humanas,
acho. Mas precisavam de meu dinheiro e o tomavam. Não havia outra maneira
para saírem da situação em que se encontravam. Simplesmente atacavam o que
viam, e eu era um rapaz forte e robusto, que podia aguentar. Batiam em mim
como se bate num cão quando ele corre pela casa, começa a morder a mão que
se aproxima dele, mesmo que seja a mão do dono.
Frank levantou-se. O Sr. Farley, respirando forte, ajudou-o a
desvencilhar-se do emaranhado de cobertores que lhe cobria as pernas. A luz do
sol pareceu varar de um lado a outro o corpo transparente de Frank, espigado ali
junto à borda da varanda. Nesse momento, não mais olhava para o Sr. Farley.
O Sr. Farley pôs a mão no ombro ossudo do rapaz e sorriu-lhe.
— Você se lembrará disso, não, Frank? Eu gostaria de que você se
lembrasse disso. Ouça, Frankie — continuou em desespero —, pense na coisa
desta maneira: no momento em que tiver pena de alguém que lhe magoar, você
está salvo. E, antes de sentir pena, precisa compreender primeiro. E preciso
apenas um pequeno esforço. Depois, você compreende, fica com pena e é salvo.
E torna-se livre, também.
Esperou. Frank continuou imóvel. Simplesmente olhou para a rua
tranquila.
O Sr. Farley, suando mais do que antes, continuou:
— Há todos os tipos possíveis de gente no mundo. Você não precisa
amá-los. Você conhecerá pessoas boas e pessoas más, mesquinhas e generosas,
bondosas e cruéis, estúpidas e inteligentes. Conhecerá centenas de faces
diferentes. É mais do que se pode esperar da natureza humana que se ande por aí
amando todos os filhos da mãe deste mundo. Há alguns que você simplesmente
terá que evitar e não querer coisa alguma com eles. Mas há uma coisa que você
pode fazer por todas as pessoas. Pode sentir pena delas. Compreendeu? E por
quê? Simplesmente porque nascemos, é por isso. A vida não é fácil para pessoa
alguma, seja ela boa ou má. Devemos simplesmente ter pena porque nascemos.
Dirigiu-se para a porta em companhia de Frank e balbuciou quando a
abriu, olhando quase ardentemente para o jovem:
— Caridade. É isso. Foi isso o que Nosso Senhor disse ser mais
importante do que a fé ou a esperança. Simplesmente, caridade. Compreendeu?
— Compreendi — respondeu Frank polidamente. — Compreendi. Muito
obrigado.
Entraram na fria e escura caverna que era o úmido saguão da casa. Os
“hóspedes” desciam como tímidos espectros a escada de carvalho. Inclinaram a
cabeça na direção do Sr. Farley e de Frank e, em seguida, deslizaram furtivos
para a sala de jantar, nos fundos da casa. O Sr. Farley observou-os.
— Deus os ajude — murmurou. — Que Deus os ajude!
CAPÍTULO 44
Grande parte da lassidão e apatia de Frank desapareceu quando o trem
diurno se aproximou de Cincinnati, embora o empoeirado vagão naquele fim de
maio se tornasse cada vez mais quente e fétido com a transpiração dos
passageiros. Nunca estivera longe de casa. Naquele momento, passando por
pequenas cidades e povoados, conhecia pela primeira vez uma parte da América
e uma curiosidade e interesse humanos, bem normais, despertaram nele.
Esqueceu a fraqueza física e o sombrio e avassalador desespero diminuiu
consideravelmente.
Estando Bison muito atrás, começou a pensar em Kentucky e lhe
voltaram as ideias românticas do Norte no tocante ao Sul. Tim Cunningham lhe
escrevera falando na enorme e confortável tenda onde morava. Frank imaginava
graciosos relvados de grama verde-azulada, cercados por altas e sobranceiras
montanhas, residências majestosas de pilares brancos, aninhadas em bosques de
árvores floridas e entre belos jardins, cerimoniosas e ilustres famílias reunidas
em varandas envolvidas em sombras cor de púrpura no frescor do dia, e belas
cidadezinhas sulistas repletas de gente despreocupada e feliz. Ficou um pouco
animado. Descobriu que conseguia comer os sanduíches quentes e beber o café
forte vendidos no trem em uma espécie de volta ao apetite da infância. Dirigiu-se
para o vagão de fumantes e tirou algumas baforadas pouco antes de o trem entrar
em Cincinnati.
Tivesse feito a viagem alguns meses antes, suas reações aos passageiros
no trem teriam sido mais mansas e tolerantes. Mas, naquele momento, nada
sentia senão ódio e nojo. Envenenava-se de ódio. As crianças sujas, nervosas,
aos berros, devorando laranjas e bananas, enchendo os vagões de acres odores,
as mulheres desarrumadas e imundas, os homens com roupas de trabalho sujas,
em mangas de camisa, constituíam todos símbolos daquilo de que ele precisava
fugir a qualquer custo. Ia com frequência ao carro dos fumantes, onde o
incômodo era apenas a presença de passageiros masculinos e onde podia evitar o
espetáculo e os sons de crianças imundas e de mulheres com os focinhos animais
da classe operária. Em certas estações, quando os passageiros dos vagões
Pullman desciam à plataforma para estirar um pouco as pernas, fitava-os pelas
janelas empoeiradas e pensava: Eu sou um de vocês, mas, ainda assim, estou
aqui neste vagão. Algum dia vocês me conhecerão e reconhecerão, me receberão
em suas frescas e agradáveis casas e se sentirão orgulhosos com a minha
presença.
Quando pensava nessas coisas sentia-se estimulado e tornava-se tão
inquieto, que mal podia suportar as paredes sufocantes do vagão. Levantava-se e
dirigia-se ao carro dos fumantes até que ficava excitado demais para continuar lá
e voltava ao seu próprio vagão. Dormira durante toda a noite espigado no
incômodo assento de acolchoado verde que recendia a areia, sujo e fumaça. Mas,
para surpresa sua, não se sentiu esgotado depois. O coração batia mais vivo, a
fraqueza desaparecia e quase não tossia mais.
Embora as janelas do vagão dos fumantes fossem conservadas abertas,
não era possível ver claramente através delas. A fumaça produzida pela
locomotiva, acompanhada por uma fuligem cegante, combinava-se com a
fumaça desprendida pelos cachimbos e cigarros. Os passageiros estavam em
mangas de camisa e quase todos haviam tirado os colarinhos duros e as gravatas.
Gargantas brancas brilhavam de suor. Havia jornais por toda a parte e grande
número de soldados desmobilizados, que jogavam dados e pôquer e bebiam com
grande prazer gim e uísque, rigorosamente proibidos. Os civis acompanhavam os
jogos, aplaudindo ou fazendo rudes observações desdenhosas. Embora imundo e
saturado de todos os tipos imagináveis de mau cheiro, havia no vagão uma rude
atmosfera masculina.
Sentou-se ao lado de um sossegado passageiro, absorvido na leitura de
um livro. Não o fitou. Acendeu um cigarro e olhou para os esfumaçados
subúrbios de Cincinnati. Em seguida, seus olhos caíram no livro: Folklore and
Culture of Rural America. Surpreso, ergueu a vista para o leitor e descobriu um
antigo colega das aulas noturnas, Jim Watson, um mulato.
Jim Watson, um jovem negro alto e calado, fora empregado de uma
fábrica. Raramente falava, possuía um faiscante sorriso branco, olhos castanhos
suaves e graves e maneiras corteses, cheias de dignidade e respeito próprio.
Alguns estudantes haviam-no desprezado. Com toda a franqueza ele dissera que
não passara do segundo ano primário, nunca frequentara a escola secundária,
mas reconhecia tudo isso como se fosse um assunto banal e sem importância.
Ninguém sabia exatamente por que estudava à noite, ser-lhe-ia sempre
impossível obter um diploma, por mais notáveis que fossem suas notas, E eram.
Fazia seis cursos, incluindo Francês, Alemão e Apreciação Musical, uma
façanha prodigiosa, mas não entrara na faculdade através da porta estreita de
uma escola secundária. Em consequência, embora estivesse sempre à frente da
classe e seus trabalhos constituíssem milagres de boa apresentação, clareza
lógica e inteligência, um diploma lhe seria sempre negado. Suas poesias haviam
despertado um autêntico e apaixonado entusiasmo do Sr. Mason pela sua soberba
simplicidade, quase perfeitas, escritas na linguagem desataviada da América.
Farte, confessara ao Sr. Mason, fora escrita expressamente para ser musicada.
Jim tencionava oportunamente fazer isso, numa pretensão que divertia muito os
colegas.
Frank, cujas reações aos demais seres humanos haviam muito tempo
antes se tornado embotadas, demonstrara-lhe a mais completa indiferença. Ele
era simplesmente um joão-ninguém numa sala cheia de joões-ninguém.
Experimentara certa impaciência e ciúme quando o Sr. Mason lera na classe
alguns versos e composições de Jim. Considerara-as banais e sem importância.
Contudo, educado como fora em uma atmosfera britânica e em um lar
implacável, pouco adquirira dos preconceitos raciais e religiosos que
proliferavam na América. Mesmo o pai, Francis, que sentia o desprezo inglês
pelo irlandês (semelhante ao desprezo do sulista pelo negro) raramente
pronunciara em casa uma palavra de preconceito. Quanto a Maybelle, somente
expressava um difuso antagonismo à “terra dos ianques” e isso apenas porque a
América não era a Inglaterra. Por isso mesmo, Frank escutava apenas com tédio
e indiferença as manifestações de ódio racial e religioso nas escolas, nos
escritórios onde trabalhara e entre seus poucos conhecidos. Não que fosse imune
às emoções irracionais, mas parecia-lhe tolo, como americano de ascendência
inglesa, condenar um homem por motivo de raça ou cor. Descobrira também
que, quanto mais inteligente e bem-educado o homem, menos preconceitos nutre
contra indivíduos de outras raças e credos. E chegara à conclusão, não
inteiramente falaciosa, de que esse preconceito faria parte da depravação geral
dos ignorantes e dos mentalmente inferiores. Os colegas de escritório originários
de respeitáveis famílias de classe média e que podiam bravatear-se de, pelo
menos, ter educação secundária, simplesmente sorriam ante as manifestações
roucas de ódio, mas os que haviam subido de classe inferior insistiam
perversamente em sua superioridade sobre negros, católicos, judeus, poloneses,
italianos e todos os “estrangeiros” em geral. Dessa maneira, ter sucumbido a
preconceitos estúpidos e incultos, que eram sinistramente gerais na América,
teria rebaixado Frank, na sua própria opinião, a membro da classe que
desprezava com um ardor inextinguível.
A indiferença e mesmo a sua antipatia por Jim Watson, em
consequência, não tiveram origem em aversão racial, mas na indiferença cada
vez maior por toda a humanidade e no ciúme. A sua primeira vontade foi
levantar-se e deixar o assento. Mas, no instante exato em que faria o primeiro
movimento, Jim olhou-o e endereçou-lhe um radiante sorriso branco.
— Ora, olá, Frank! — exclamou, surpreso. — O que é que você anda
fazendo por aqui? Indo para o Sul?
Mal-humorado, Frank voltou a sentar-se.
— Vou para Kentucky — respondeu seco. — E você?
— Ainda mais para o sul. Tennessee. Eu vim de lá, como você sabe,
quando tinha quinze anos. — A voz suave de Jim possuía sonoras inflexões e
vibrava com uma característica que Frank, a contragosto, apreciava.
— Vai morar lá agora? — perguntou, indiferente e já entediado.
— Não — respondeu Jim em voz baixa, vibrante e vagamente irritada.
Frank fitou-o com mais interesse. — Não, Frank. Nunca mais. Vou voltar
simplesmente para colher... material.
— Material? Para o quê? — A curiosidade de Frank tornou-se nesse
momento mais forte, embora mais desdenhosa.
Jim hesitou. Olhou para o livro no colo. Em seguida, como se houvesse
convencido a si mesmo de que era humilhante ter hesitado, respondeu com
simplicidade:
— Quero escrever canções, letra e música. Sei que posso fazê-lo.
Tenciono passar alguns anos no Sul e refrescar a memória. Quero escutar as
toadas dos negros apanhadores de algodão, dos lavradores, e adaptá-las. As
canções deles são maravilhosas! — Os suaves olhos castanhos brilharam
animados ao fitarem Frank e tornaram-se profundamente sonhadores. — Elas
são... tristes e... e... inesquecíveis. Constituem a expressão da alma negra...
americana. São parte da América e todos os americanos deviam conhecê-las.
Sabe — disse em voz mais lenta como se procurasse as palavras perfeitas para
vestir os pensamentos —, sabe, Frank, há uma característica nas canções negras
americanas, uma mistura de desprezo, despreocupação, alegria, sofrimento e
fatalismo que não pode ser encontrada nas de qualquer outro grupo racial. Ainda
assim... ainda assim... elas conseguem, de algum modo... expressar os
sentimentos de todos os homens. São universais, como dizia o Sr. Mason.
Frank conservou-se calado. Em seguida, vendo Jim à espera, disse:
— Eu pouco sei a respeito dessas canções. Acho que vou ouvi-las em
Kentucky. Lembrarei do que você disse.
— Kentucky. Onde, em Kentucky? — perguntou mansamente Jim.
— Nos municípios de Lawrence e Johnson, acho.
Jim sacudiu a cabeça.
— Você não vai encontrar muitos negros nas montanhas. E não há
muitos nas cidades e aldeias da região. De alguma maneira, o lugar para onde
você vai é quase norte.
Desapontado e aborrecido, Frank respondeu:
— Eu não sei.
Começou a pensar na presunção de Jim Watson. Um operário querendo
apresentar-se como compositor! Era algo tão presunçoso como seus antigos
sonhos, sua loucura. Lembrando-se deles, sentiu-se ressentido e desdenhoso.
Disse:
— Jim, odeio ser um desmancha-prazeres, mas acho que você está no
caminho errado. Ninguém quer canções como as suas. Você está perdendo
tempo. Eu sei. Exatamente como desperdicei o meu nas aulas noturnas.
Jim lançou-lhe um olhar rápido e perscrutador:
— Você pensa assim? Ora, isso é horrível! O Sr. Mason disse que você
era um gênio em potencial, Frank. Não acredita?
— Não, não acredito — replicou Frank em voz amarga e destituída de
expressão. — O Sr. Mason era um tolo pedante. Achava que todos os
rabiscadores da classe eram um Dickens, uma Brontê ou um Tolstoi. É preciso
tomar providências contra homens como Mason. Eles instilam nos amadores e
nos medíocres ambições erradas e os impedem para sempre de alcançar
pequenos sucessos. Estou satisfeito porque caí em mim.
— Você quer dizer — perguntou Jim em voz baixa — que não vai mais
escrever? Que desistiu?
A última frase irritou profundamente Frank.
— Oh, não seja idiota! Não desisti de coisa alguma, salvo de tolices e de
um bocado de sonhos idiotas. Eu não tinha nada, agora que penso bem no caso, e
não “renunciei” a coisa alguma, absolutamente!
Jim permaneceu silencioso. Virou a cabeça e olhou pela janela
empoeirada durante um longo tempo. Os soldados desmobilizados berravam uns
com os outros e abafavam o ruído da locomotiva. A fumaça invadiu o vagão.
Tornaram-se mais intenso o calor e a luz do sol. Enjoado com os movimentos do
vagão, que se balançava e sacudia, Frank recostou-se na cadeira e fechou os
olhos, engolindo o líquido salgado que lhe subiu até a garganta. Sentiu medo e
lutou para reprimi-lo. Mais uma vez, exausto e enjoado, foi dominado por total
sofrimento e desesperança. Aparentemente, não se curara de todo da doença,
afinal de contas. Uma fraqueza, como água fria e penetrante, começou a descer-
lhe pelo corpo. Tremeu um pouco, a despeito do calor. Foi tomado
simultaneamente de inquietação e torpor. A cabeça começou a latejar. Por trás
das pálpebras cerradas, sentiu picadas e ardor. Algo doeu e contorceu-se em seu
peito como a recordação de uma grande mágoa. O que importava para onde ia,
se ia ou não? O que qualquer coisa importava? O mundo recuou para longe dele
como se fosse uma lívida maré, deixando apenas uma praia coberta de pedras.
Deveria saltar na parada seguinte? Deveria continuar? O que importava isso? Se
eu apenas pudesse morrer, pensou. Mas sabia que carecia da vontade de morrer,
como carecia também da vontade de viver. Se apenas houvesse alguma maneira
de esquecer ... O quê? Não conseguiu lembrar-se do que queria esquecer. Sabia
apenas que, no íntimo, em algum lugar dele, havia uma grande e mortal doença,
mas, se da mente ou do corpo, não sabia.
Suor apareceu nas palmas das suas mãos quentes, pousadas nos braços
do acolchoado verde da poltrona, e ele sentiu a cabeça dolorida. As sacudidelas
do vagão repuxavam-lhe os ossos e prolongavam-se além da dimensão física. O
calor maltratava-lhe o corpo, mas, ainda assim, sentia frio. O ruído em volta do
carro transformou-se num clamor vago e distante. Esqueceu o rapaz sentado ao
lado. Imagens formaram-se, flutuaram no fundo vermelho e quente das suas
pálpebras cerradas, imagens doentias e depravadas, faces grotescas, visões de
dor interminável, lagos escuros cercados por fulgurantes montanhas escarlates,
relâmpagos de raios negros, abismos carmesins, palpitantes de dor.
Alguma coisa mexeu-se e empurrou-lhe o joelho. Abriu os olhos em
meio a um torvelinho de calor e ruídos. Jim erguia-se nesse momento, com o
pesado livro sob o braço.
— Preciso voltar ao vagão segregado, Frank — disse ele.
Frank espigou-se, pestanejando.
— Vagão segregado? — Ouvira antes essa expressão, lembrou-se, e
franziu os sobrolhos. Deixou que Jim passasse e observou o jovem negro puxar
as malas da prateleira. Nesse momento, sentiu vergonha, mortificação e raiva.
— Estamos em Kentucky — disse Jim em voz agradável e casual.
Ergueu as malas. Vários outros negros levantaram-se também de seus
assentos. Frank lançou-lhes um furtivo olhar. Nesse momento, voltou à vida e
todas as células de seu corpo doeram de humilhação.
— Adeus, Frank — disse Jim do corredor. Hesitou. Não havia
ressentimento na bela face escura. Curvou-se sobre Frank e disse apressado: —
Frank, você não deve desistir. Eu... eu andei observando-o durante quase uma
hora. Você não pode desistir, Frank. Você... você não viverá, se fizer isso. —
Interrompeu-se. — Sinto imensamente. Você disse que não desistiu de coisa
alguma. Mas desistiu, compreende? E você sabe disso. Adeus.
Frank não respondeu. Com um relâmpago, em torrente, engrossando e
rolando, a vida voltou à medida que a humilhação e a vergonha aumentavam. Ele
ardeu de pura e violenta fúria enquanto observava Jim e os demais negros
deixarem o vagão. Som e visão tornaram-se nítidos, de impacto imediato. O
vagão, que antes fora apenas uma fotografia colorida, plana e sem significação,
adquiriu dimensões. As paredes, as poltronas, cada mala a balançar-se nas
prateleiras, todas elas, adquiriram significado, existência. As faces dos jovens
soldados completaram-se e transformaram-se na corporificação de algo vivo e
importante. As quentes nuvens brancas que flutuavam no céu incandescente
enovelaram-se em formas cheias de finalidade.
— Posso-me sentar aqui? — A voz arrastada interrompeu o sonho de
Frank e, com um sobressalto, ele acordou. Observou o homem que fazia pressão
contra seus joelhos, um homem comprido, de rosto vermelho e feições
embotadas e brutais. O homem usava um macacão listrado, cheirando a esterco.
Vestia um casaco do mesmo tecido, com botões de metal. Um chapéu
empoeirado de abas largas caia sobre os olhos maldosas e matreiros. O sorriso
mostrava dentes quebrados e amarelos. Sentou-se ao lado de Frank, puxou um
naco de fumo, mordeu-o e começou a mascá-lo.
O sonho recuou para longe. Frank cerrou os punhos. Mais uma vez,
sentiu ódio, mas não o mesmo ódio que antes. Naquele momento era o ódio
conhecido, feito de nojo e repugnância. Lentamente, todas as coisas se
achataram, escureceram, empalideceram. Afastou-se do companheiro de assento.
Mais uma vez, foi inundado pela exaustão, desespero, sofrimento. O sonho
desapareceu. Gradualmente, transformou-se em nada e, gradualmente, foi
esquecido.
CAPÍTULO 45
Paintsville, Kentucky, no calor e na luz ofuscante de princípios da
manhã.
Frank Clair jamais experimentara ou imaginara que pudesse haver um
calor tão implacável, tão escaldante. Nunca vira coisa alguma tão desoladora e
estranha como aquela pequena cidade. A própria indeterminação, a própria falta
de caráter da cidade deprimia-o. Os pais lhe haviam dito que as aldeias e as
pequenas e grandes cidades inglesas possuíam individualidades, peculiaridades
na arquitetura e nas ruas. A leitura ampla havia-lhe ensinado que todas as
cidades europeias eram diferentes entre si.
Naquele momento, conhecia a sua primeira pequena cidade americana,
feia, sem caráter, desolada. Deduzira, pelas cartas de Tim Cunningham, que
Paintsville era, de certa maneira, um “arruado”, uma aldeia de fronteira. O
“ponto de partida” para as montanhas. Mas não exibia nenhuma das cruas e
pitorescas características das cidades do Oeste, tão vividamente mostradas no
cinema. Possuía uma horrenda capela metodista forrada de tábuas; um ou dois
caminhos à guisa de ruas, ladeadas por casas de madeiras; um “hotel” também
de madeira com telhado de empena; uma série de “armazéns gerais” ordinários;
uma pequena estação ferroviária e calçadas quentes e esburacadas. Até as
árvores, empoeiradas e queimadas pelo calor de começos de verão, não davam
ideia de frescor nem se vestiam com o verde luxuriante das árvores do Norte.
Algumas carroças, baratas e arruinadas, faziam ponto em frente aos
armazéns. Mulheres com vestidos compridos que lhes chegavam até os
tornozelos e lembravam camisolas, chapéus largos de cor rosa ou azul, andavam
pelas calçadas quentes levando nos braços sujos bebês. Vira-latas amarelos
corriam atrás delas. Os maridos, de macacão e camisas listradinhas, de pés
descalços, tendo na cabeça velhos chapéus de feltro ou largos chapéus de palha,
mascavam fumo ou conversavam apaticamente ao longo do meio-fio. Frank
observou-os, curioso. Aqueles homens não eram certamente os “sulistas” que
havia imaginado. Deviam ser, sem dúvida, o “rebotalho branco” de que falara
Tim Cunningham e vários romancistas. Mas não eram figuras pitorescas. Eram
simplesmente feios, muito sujos, possuidores de rostos que, para Frank,
acostumado às faces mais coloridas de italianos, poloneses e eslavos em Bison,
pareciam muito esquisitos, de estrangeiros.
A maioria dos homens tinha uma altura incrível. Um metro e oitenta e
cinco era apenas a média. Mas pareciam todos com gravetos, incrivelmente
magros, de membros compridos. Quando andavam, balançavam-se e gingavam
de um lado para o outro como pequenas árvores que houvessem subitamente
adquirido movimento. As mulheres eram mais baixas, de rostos pontudos, sem
expressão, olhos vazios e cabelos amarelos. Era evidente que a maioria sofria de
alguma doença. Tossiam e cuspiam sem parar. As crianças obviamente tinham
pelagra, em vista das faces pálidas e encolhidas, ventres dilatados, pernas mal
conformadas e cambaias. Estavam todos descalços. Era claro que a maioria se
constituía de agricultores das vizinhanças, pois os bem vestidos e calçados
moradores da cidade eram mais gordos e tinham um ar de saúde ausente no
pessoal da roça.
Paintsville situava-se no sopé das montanhas. Mais além da horrenda
cidadezinha Frank viu colinas onduladas, escuras, de cocurutos planos e
vertentes suaves. Ficou profundamente desapontado. Desapareceu nesse
momento a visão de altíssimas montanhas de pedra, coroadas de neve faiscante.
Mas, pensou amargamente, isso é fruto de minha ignorância. Eu devia ter sabido
que essas montanhas não podem ser encontradas deste lado de cá das Montanhas
Rochosas.
Vozes apáticas ecoavam no insuportável calor e luz ofuscante. Cavalos
passavam trotando e levantando nuvens de poeira. Batiam as portas dos
“armazéns gerais”. Moscas zumbiam sem cessar. Por toda a parte, pairava um
mau cheiro forte de esterco. Os pequenos prédios da cidade nem sequer
lançavam sombras que pudessem servir de abrigo aos transeuntes. O céu
brilhava implacável, branco de calor e luz inclemente.
Levando na mão o casaco e a grande valise de papelão, Frank dirigiu-se
à oficina do ferreiro, conforme as instruções de Tim Cunningham. Ferro
ressoava sobre ferro. O ferreiro, um homem surpreendentemente vigoroso, batia
com o martelo na bigorna. Possuía um rosto grande, sensual e forte, emoldurado
por uma barba. Frank pensou em um morador de aldeia de uma peça de
Shakespeare. Ele endereçou a Frank um grande sorriso, mostrando dentes
quebrados e manchados por sumo de tabaco. Enxugou a testa ampla com o
antebraço nu.
— Em que é que posso servi-lo, cavalheiro? — perguntou cortesmente
depois de cuspir um pedaço de fumo sobre um monte de esterco do lado da larga
porta da oficina. O mau cheiro e o calor da oficina quase fizeram Frank
desmaiar. Ele contraiu as narinas e procurou respirar de leve.
Mas gostou do homem. Ouviu o seu próprio sotaque inglês na voz rude
do interlocutor e ficou subitamente satisfeito. Com que afinco na estranha Bison
ele se esforçara para eliminar o sotaque, e com que desengonçado cuidado e
embaraço! Como tivera medo de falar na escola com os filhos de alemães,
italianos e outros estrangeiros, receoso de que o levassem no ridículo! Naquele
momento, poderia falar sem nervosismo e não seria considerado estranho e
suspeito. O ferreiro falou e aquela era a autêntica voz da América, ligeiramente
encoberta por um tom monótono e certa apatia. Bem alimentado e robusto, o
ferreiro era, como ele, de pura linhagem inglesa, e a sua abundante energia
íntima transparecia no rosto moreno, na barba enroscada e no longo cabelo
cacheado. Não havia decadência nele, nenhuma depravação, tal como a que via
nas faces dos preguiçosos agricultores que se arrastavam pelas ruas.
Pôs no chão a valise. Falou em voz lenta, mas sem embaraço:
— Eu devia encontrar aqui uma carroça, ou coisa parecida, para me
levar a Benton. O senhor sabe alguma coisa a esse respeito?
O ferreiro apertou os olhos e encostou o malho. Tirou um naco de fumo
do bolso do macacão e ofereceu-o a Frank, que polidamente declinou. O ferreiro
fincou os dentes no fumo e pensativamente o mascou enquanto fitava Frank de
maneira cordial. Afastou-se em seguida da bigorna, deu uma palmada afetuosa
nas ancas de uma mula amarrada perto da porta e aproximou-se de Frank,
fitando-o com uma franqueza infantil.
— Qual é o seu nome, senhor? — perguntou em tom de desculpa.
— Frank Clair. Sou amigo de Tim Cunningham. Conhece-o?
O ferreiro examinou-o com todo o cuidado. Frank sentiu o cheiro de
suor velho, mas o odor não o repugnou, pois era a própria emanação de saúde e
virilidade. Ficou perplexo, contudo, com o cuidadoso exame do ferreiro e com a
maneira pela qual ele o fitava.
— Sim, senhor. Conheço um Cunningham. O senhor disse que se chama
Frank Clair?
Frank sentiu-se contrafeito, pois notara uma súbita vigilância e um ar de
alerta no ferreiro.
— Sim, é esse mesmo meu nome.
— De onde é que o senhor vem? — perguntou o ferreiro com um pouco
mais de desculpa na voz.
Frank franziu os sobrolhos.
— De Bison. Do Norte. O que é que está mesmo acontecendo?
O ferreiro, porém, fitou-o quase matreiramente e conservou-se calado.
Em seguida, entreabriu os lábios em um lento sorriso. Deu uma pesada palmada
no ombro de Frank.
— Acho que o senhor é o tipo sobre quem Tim falou — disse e explodiu
na gargalhada. — Desculpe, senhor, mas precisamos ter cuidado. Os coletores
vivem aparecendo por aqui. O senhor não é coletor, é?
Confuso, Frank pensou na pergunta. Em seguida, sua face iluminou-se.
— Coletor de impostos. — Sacudiu a cabeça, negando.
Alargou-se o sorriso do ferreiro. Estendeu a mão para trás e tirou uma
garrafa do bolso traseiro, entregando-a generosamente a Frank, que a recebeu,
hesitante.
— Tome um gole, senhor — convidou-o o ferreiro. — Aguardente de
maçã.
Ficou observando enquanto Frank, com grande delicadeza, limpava o
pescoço da encardida garrafa e levava-a aos lábios. O líquido forte e picante,
dourado como a luz do sol, quase o engasgou. O ferreiro pareceu imensamente
divertido, curvou-se para a frente e caiu na risada.
— Foi meu irmão quem a fez — informou a Frank, quando o visitante
conseguiu recuperar o fôlego. — Ninguém faz coisa melhor nas montanhas.
Posta a amizade em uma base cordial, o ferreiro descontraiu-se. A
parelha de mulas era esperada a qualquer momento.
— As estradas continuam ruins — disse. Ninguém consegue que esses
preguiçosos filhos da mãe que andam por aí tapem os buracos. Eles querem
simplesmente bater papo na cidade.
Convidou Frank a sentar-se em um banco junto à porta. Enquanto
conversava, bebia goles frequentes da garrafa. A mula batia impaciente as patas.
Uma carroça passou pela rua calçada de lajes, O sol, insuportavelmente
brilhante, inundava a escura oficina. Do outro lado da porta, Frank notou a
silhueta das escuras “montanhas”.
Foi informado de que o ferreiro possuía uma fazenda “lá pelos lados de
Benton”, a uns cinquenta quilômetros de distância. Segundo ele, na história
entrecortada de palavrões, era uma terrinha que “não valia para nada”. Mas Tim
Cunningham e os irmãos descobriram petróleo lá e, naquele momento, ela
produzia trezentos barris por dia. Com um esforço, Frank fez o cálculo.
Trezentos e cinquenta dólares diários! Nesse caso, perguntou-lhe por que
continuava a trabalhar por ali? Para onde um homem poderia ir? perguntou
ingenuamente o ferreiro. Louisville? Ele não “topava” essa cidade. Não gostava
dela, não havia animação. A zona onde residia era bonita, morava ali havia
quarenta anos, desde menino. As cidades eram lugares pecaminosos, cheios de
mulheres, bebidas nos domingos, jogos de cartas e tudo mais. Teatros, também.
Sacudiu a cabeça. Ele não podia, pensou Frank, conceber outra coisa além do
horizonte das montanhas e da vida despojada e simples. O que faria com o
dinheiro? O que, por falar nisso, faria um homem com dinheiro, além de
depositá-lo num banco? Era óbvio que ele coisa alguma sabia sobre os
“povoados”, como chamava o mundo exterior, e que não “topava” viagens
longas na “Maria Fumaça”. Quando Frank lhe falou em automóveis, o ferreiro
sacudiu outra vez a cabeça. Não havia nada melhor do que uma parelha de bons
cavalos, como a que ele possuía. Morava numa cabana de troncos à margem da
estrada, bastante espaçosa para ele, a esposa e as duas filhas. Uma das pequenas,
“uma azougue”, ia estudar no Berea College e lecionar depois em Paintsville. A
outra ia casar com um fazendeiro que possuía cinquenta acres de boa terra de
várzea. O dinheiro em si coisa alguma significava para ele. Nada havia que
quisesse e, como ingenuamente perguntou, o que mais podia um homem querer?
Mulher? As mulheres eram umas criadoras de casos. Sua velha era
suficientemente boa, ou suficientemente má, para ele. Além disso, era um
homem idoso, beirando os quarenta e um anos, e nada senão encrencas acontecia
com alguém que esquecia a própria idade. Livros? Bom, não conseguia ler uma
única palavra, graças a Deus, pois neles estavam todos os pecados.
Frank pensou nos trezentos e cinquenta dólares, depositados e ociosos
no banco. Pensou na liberdade e na paz que tal soma lhe traria; pensou nos
noventa dólares que levava no bolso e que eram tudo o que possuía no mundo. O
ferreiro fitou-o com inocentes olhos escuros, iluminados pela luz da fornalha, e
perguntou-se por que aquele jovem magro tinha uma expressão tão azeda na
face. Achou que a pinga de maçã não estava combinando bem com o estômago
dele.
Tão perdido ficou Frank em amargos ressentimentos e elucubrações, que
não se deu conta de que alguém entrava na ferraria até que escutou os
cumprimentos alegres do companheiro. Viu um jovem alto e magro,
elegantemente metido em um terno de “cidade”, perneiras pretas e chapéu de
feltro de abas largas. Ele entrou na ferraria com tal ar de tranquila elegância e
dignidade que Frank teve a atenção imediatamente despertada.
— Como vai, pastor! — exclamou o ferreiro, enxugando as mãos no
avental de couro. — Belo dia, não? Sua mula já foi ferrada. É um animalzinho
comum.
Um desses “pastores ambulantes”, acho, pensou Frank, um desses
pregadores evangélicos a respeito dos quais lera em alguma esquecida história
sobre as montanhas do sul. Ia virando-se cheio de desprezo para o lado quando,
mais uma vez, teve a atenção despertada pela agradável voz com sotaque do
Leste do jovem:
— Obrigado, Little Les — disse. Deu uma palmada afetuosa com a mão
aberta na anca da mula. — Você não é comum, é, Boss? Ela é simplesmente
inteligente. Talvez seja a mesma coisa, a longo prazo. Hem, Boss?
O ferreiro, “Little Les”, ele próprio, o “pastor”, a “inteligente” mula, as
escuras silhuetas arredondadas das montanhas ao longe, o calor, a forte luz do
sol, os sons, odores e formas estranhas em volta tornaram-se mais nítidos para
Frank. A sua percepção, que se tornara tão obscura, vaga e superficial, aguçou-
se. Mas, à medida que as impressões o cercavam por todos os lados, sentiu-se
também profundamente deprimido e desorientado e algo parecido com uma
surda nostalgia provocou-lhe um pequeno sofrimento.
Little Les e o “pastor” trocavam alegres comentários sobre a mula. Frank
escutava. Os sotaques das vozes não mais o agradavam pela sua familiaridade.
Permaneceu distante, em meio a uma depressão que era como uma nuvem.
Adquirira a capacidade de apagar-se, de modo que, na retirada da personalidade
e na imposição de uma vazia neutralidade ao corpo e à mente, não parecia estar
mais presente. Little Les, desviando a vista do “pastor”, voltou-se para ele e
fitou-o, espantado. Em seguida, sorriu.
— Acho que você vai ter a companhia do pastor quando for viajar, Frank
— disse. Explicou a situação ao outro jovem: — Esse moço é dos povoados e
vai trabalhar em Benton com um Cunningham. O nome dele é Frank Clair.
Aperte a mão do pastor, Frank.
O “pastor” pareceu surpreso em vê-lo, mas, mesmo assim, estendeu a
mão com uma cordial espontaneidade. Frank, profundamente contrafeito,
apertou-a. Sentiu a empunhadura quente de dedos fortes e esguios e, a despeito
de si mesmo, não pôde deixar de retribuir o tranquilo e franco sorriso.
— Vai trabalhar em Benton com a turma do petróleo? — perguntou o
“pastor”. — Bem, vamos ver-nos um bocado. Sou o Doutor Wade O’Leary, de
Salt Lake City, Utah. Médico, e não apenas teólogo. — O sorriso tornou-se mais
cordial. Frank descontraiu-se, satisfeito. Ele sabe que não sou um ignorantão,
pensou. Quase nem gaguejou quando respondeu.
— Dr. O’Leary? O senhor é também pastor?
— Exatamente. Da Igreja dos Santos dos Últimos Dias. Algumas
pessoas chamam-nos de “mórmons”. Sou realmente um missionário, juntamente
com meu irmão Peter, nas montanhas de Kentucky. Conseguimos construir uma
pequena escola para crianças, onde meu irmão leciona. Cuida da mente deles
enquanto cuido do corpo. E, às vezes, da alma, quando precisam disso — O Dr.
O’Leary sorriu de leve, deu um final e sincero aperto na mão de Frank e soltou-
a. — Melhor do que tudo, conseguimos construir um pequeno hospital para
mulheres pobres. Você vai descobrir que as montanhas têm muita coisa a ensinar.
De onde é você? Não é sulista?
— Não, sou de Bison. Nova York.
— Ah! — A expressão do Dr. O’Leary tornou-se pensativa enquanto
olhava atento para Frank. Este, por seu turno, examinou o médico. O que viu
agradou-lhe e descontraiu-o ainda mais. Wade O’Leary tinha uma face
extremamente morena e magra, a face de um erudito, mentalmente alerta, mas
ponderado, formada de ângulos bem pronunciados e planos fortes e delicados.
Era evidente que possuía o que Maybelle chamava de “bom sangue”. Os olhos,
profundamente engastados em fossas largas e ossudas, emitiam um brilho pardo
sob sobrancelhas grossas e escuras. O nariz, um pouco aquilino, bem formado,
dava à face o ar vigilante de um falcão e uma tranquilidade imóvel e orgulhosa,
que, paradoxalmente, era também suave e gentil. A boca fina e flexível tinha
também algo estranho, pois embora suas linhas fossem extremamente firmes,
eram também móveis e vivas, sorrindo fácil e sutilmente, como se quisesse negar
a existência do queixo resoluto embaixo. Tirara o chapéu e Frank notou o
contorno magro e bem formado da cabeça pequena, de proporções patrícias, e o
cabelo preto liso.
— Você está um bocado longe de casa — observou Wade, — Conhece
bem Tim Cunningham? Ele é um ótimo sujeito. Conheço também os irmãos
dele. Vi-os, há um mês, mais ou menos, antes de voltar para casa, aonde fui
apanhar soro antitífico. Tem havido muitos casos de tifo em Benton. Trouxe
também um pouco de vacina contra varíola. Se você não se vacinou
recentemente, será bom fazê-lo quando chegarmos a Benton. Dez casos, antes de
eu voltar a Salt Lake City. Espero que não tenham surgido outros enquanto
estive fora.
— Não há nenhum outro médico por aqui? — perguntou apreensivo
Frank.
Wade sacudiu a cabeça.
— Somente um velho, uma espécie de curandeiro. Duvido muito de que
ele tenha estudado medicina. Cozinha umas poções e receita purgantes para tudo,
de varíola à febre puerperal. Sou também o único conselheiro religioso em
Benton, exceto por um pregador ambulante que faz uma visita rápida todos os
verões e subverte tudo quanto venho procurando construir durante anos. Mas ele
traz animação à vida miserável e sofredora dessa gente e acho que não devo
zangar-me. — Interrompeu-se e sorriu de leve. — Você vai conhecer aqui um
novo mundo... Frank. Espero que lhe agrade.
Na verdade, Frank estava bastante alarmado. Não julgara que Benton
fosse um local que precisava urgentemente de vacinas e de missionários, de bons
e devotados homens que queriam dedicar a vida às pessoas e a uma comunidade
que sinistramente lembrava uma colônia de leprosos. Quando pensara em
Benton, acreditara em que fosse uma pequenina cidade do interior, em cujos
arrabaldes fora encontrado petróleo.
Wade O’Leary falava em voz grave:
— Você vai aprender um bocado de coisas sobre a região, Frank.
Descobri que tudo o que um homem aprende é valioso, embora ele talvez não
pense assim, na ocasião.
— Eu... eu não vim aqui para prender — Frank não pôde deixar de dizer,
amargamente. — Vim aqui para ganhar dinheiro.
— Compreendo — respondeu pensativo Wade. Tirou um cachimbo do
bolso e encheu-o. Acendeu-o. Fez tudo isso sem desviar os olhos de Frank.
Prosseguiu: — Ouvi dizer que Tim Cunningham está ganhando um bocado de
dinheiro, considerando tudo. Espero que consiga o mesmo, também.
O ferreiro soltou uma risadinha.
— Parece que não pode deixar de ganhar — comentou.
— Vai morar com Tim? — perguntou Wade.
— Acho que sim. — A depressão de Frank aumentou. — Mas, talvez, eu
possa arranjar dormida e comida... num pequeno hotel?
Wade sorriu.
— Não há por aqui hotel algum — disse. — Nem mesmo uma pensão.
— Interrompeu-se por um momento. — Talvez seja melhor você voltar para
casa, Frank. Acho que você não tem ideia do lugar para onde está indo.
Ouviram um ruído pesado nas lajes do lado de fora e uma carroça baixa
cheia de palha, puxada por quatro empoeiradas mulas, parou junto à porta.
— Eis aí... o seu veículo — disse Wade. Virou-se para o ferreiro. — Os
buracos da estrada já foram tapados, Little Les?
O ferreiro riu e sacudiu a cabeça.
— Não por esses filhos da mãe — disse jovialmente. — Eles não
fizeram coisa alguma desde as chuvas da primavera. Um cara foi pelos ares na
semana passada com o caminhão. Estava levando “sopa” para Benton. Fez um
buraco danado de grande na estrada. — Soltou uma imensa gargalhada e deu
uma palmada nas coxas cobertas pelo avental de couro.
Wade explicou a Frank:
— A “sopa” é nitroglicerina, usada na abertura dos poços. Há muito
tempo que venho temendo acidentes nestas estradas. Elas não servem para
automóveis. O pobre homem devia ter tido mais juízo. Disse a eles para não usar
caminhões, mas carroças, o tempo todo. Mas são quarenta quilômetros e a
viagem leva pelo menos doze horas de carroça.
— Três quilômetros por hora! — exclamou Frank em incrédula
desolação.
Wade inclinou a cabeça. Examinou a sela e os arreios da mula.
— Você verá por si mesmo. Bem, estamos prontos?
Levantou do chão uma mala alta e quadrada e prendeu-a jeitosamente na
sela. Puxou a mula para fora e iniciou uma conversa com o barbado cocheiro que
estava sentado no fundo da carroça cheia de palha. Frank seguiu-o devagar e
pestanejou ao ser atingido pela luz forte e ofuscante. O suor começou a brotar
por todo o seu corpo em grandes gotas no mesmo instante e o céu, branco e
incandescente, pareceu-lhe uma chama pura. As lajes dançaram ante seus olhos
atordoados. Uma onda de calor pairava sobre a rua deserta. Vozes abafadas pelo
efeito do calor chegaram-lhe como ecos vazios e fracos das portas das casas. As
mulas agitaram as caudas, voltaram os olhos maliciosos e inteligentes para Frank
e sacudiram a poeira das ancas. Do outro lado da cidade, as montanhas
enroscavam-se, parecendo o dorso escuro de grandes serpentes.
Foi apresentado a Ben Calloway, o barbado cocheiro, que o examinou
com grande solenidade, cuspiu um grande pedaço de fumo e estendeu-lhe uma
mão suja e calejada.
— O nome é Frank Gair? — repetiu, depois que Wade O’Leary lhe
mencionou o nome. — Estava à sua espera. Trouxe seu grude?
Frank permaneceu calado, confuso. O Dr. O’Leary, que já havia
montado, bateu na mala preta.
— Tenho aqui o suficiente para nós dois, Ben, e talvez possa arranjar-lhe
uma coxa de galinha. E Little Les me deu uma grande garrafa de aguardente de
maçã. Não vamos passar fome.
Com todo o cuidado, infeliz, Frank subiu desajeitado na carroça depois
de ter colocado a valise de papelão preto em cima da palha. Perguntou-se por
que não havia uma tábua para sentar-se, mas logo depois descobriu que seria
impraticável qualquer outro tipo de assento.
Tirou o paletó, a gravata e o chapéu e colocou-os apreensivo ao lado.
Arregaçou as mangas e o sol ardente tocou-lhe a carne pálida. Bem, a situação
não seria tão má, se não sofresse um ataque de insolação. Little Les acenou
alegre da ferraria, berrou um aviso profano sobre os buracos, disse esperar que
não encontrassem cara algum levando “sopa” e voltou para a escura caverna da
ferraria. Ben bateu com as rédeas no lombo das mulas, espicaçou-as com um
chicote de couro e a carroça começou a sacolejar sobre as lajes. O Dr. O’Leary,
trotando ao lado, sorriu para Frank e ofereceu-lhe um cigarro.
Na rua e em altas varandas de velhas casas, apáticas mulheres olharam
para eles enquanto saíam, arrastando-se, da cidade. A palha picou as meias de
Frank, acima dos sapatos, e desprendeu uma nuvem de pó, fazendo-o espirrar.
Em seguida, o sol caiu como um malho sobre uma bigorna em chamas. As
montanhas acachaparam-se, mais próximas, a carroça saiu da cidade e tomou a
esburacada estrada cor de cobre novo. As árvores, cobertas por uma fina pátina
da mesma cor, estendiam ramos magros e mortos sobre a estrada, lançando finas
e fracas sombras. A terra delgada da vertente das colinas era coberta por grama
parda e alta e por trechos de flores silvestres, vermelhas e amarelas. Por cima de
tudo isso, refulgia o sol assassino, queimando a terra e soprando ar quente nos
pulmões.
A cidade ficou para trás, escondida em uma dobra das colinas e nada
mais houve para ser visto, salvo o leito seco de um regato entre as montanhas,
um grupo de abetos quase mortos e algumas árvores isoladas e mirradas. Frank
foi obrigado a usar novamente o chapéu para proteger a cabeça. Puxou para cima
as pernas das calças, em parte para protegê-las da palha e também porque achou
que um sol daqueles devia ter propriedades curativas. O suor lhe escorria em
ondas pela testa, descendo pelo arco do nariz e acumulando-se em gotas nos
cantos da boca. A camisa colou-se às costas. Wade O’Leary trotava
confortavelmente, próximo, e Frank ficou grato. Sabia que o médico podia
ultrapassar sem a menor dificuldade a sacolejante carroça, mas que, ainda assim,
permanecia ao lado do novo conhecido.
A uns dois quilômetros de Paintsville, Frank começou a reconhecer a
sabedoria da escolha da palha para forrar a carroça, pois a cada dez ou doze
metros as rodas penetravam em imensos buracos, com a altura de uma meia
sepultura. Ben Calloway curvava-se sobre a palha, picando com o chicote o
lombo das esforçadas mulas. Atravessou sem problemas a maioria dos buracos,
passando pelas bordas das depressões em um ângulo de uns trinta graus apenas.
Frank conseguiu permanecer no poleiro, embora tendo que agarrar-se à baixa
grade do veículo. Às vezes, porém, surgiam dois buracos a apenas uns noventa
centímetros um do outro, com o fundo ainda cheio de lama meio seca. A carroça
erguia-se sobre a parte traseira ou mergulhava inesperadamente enquanto a
parelha de mulas à frente parecia vacilar nos ares ou desaparecer num buraco.
Nessas ocasiões, Frank mal conseguia permanecer na carroça, aparentemente de
pé sobre a cabeça num momento ou olhando para a íngreme ladeira das pernas,
no outro. Finalmente, chegou à conclusão de que uma posição meio deitada
cansava menos do que tentar sentar-se espigado. A poeira da palha começou a
colar-se a seu corpo suado, desprendendo um cheiro bolorento.
Em volta deles, apenas o silêncio ofuscante das colinas escuras e da terra
descorada e coberta de seixos, interrompido ocasionalmente pelos nomes feios
com que Ben estimulava as mulas, o arquejar delas ou o zumbido de insetos
esfomeados que desciam em enxames sobre o lombo dos animais ou
mergulhavam para beber o suor dos passageiros. Às vezes, Wade inclinava-se
para segurar o freio das mulas dianteiras e, com palavras baixas de
encorajamento e a força das mãos, ajudava-as a sair de um buraco. As mulas não
eram criaturas dóceis como os cavalos e coisa alguma tinham da aceitação
confusa do destino, típica dos equinos. Frank notou o desgosto e o ressentimento
delas e ficou inteiramente convencido de que praguejavam entre si enquanto
comentavam a viagem. Via-lhes as altas orelhas empoeiradas, as narinas
distendidas, os dentes à mostra. A despeito do próprio sofrimento, divertiu-se e
ficou interessado. Elas eram pessoas, cínicas e corrompidas, coriáceas e irônicas,
que faziam uma opinião muito baixa das criaturas humanas que puxavam e
exibiam um vil preconceito contra a esguia mula que o Dr. O’Leary cavalgava.
Aparentemente, insultavam-na sem parar e esta última, empinando desdenhosa
as orelhas, sacudia a cabeça e ignorava as companheiras com um ar tão superior
que era impossível não percebê-lo.
— Bichos ordinários — comentou Ben. —•Odeio mulas. São mesmo
umas criaturas miseráveis. Mas têm mais cabeça do que os cavalos. Elas
pensam. Isso mesmo, pensam. Preciso controlá-las, senão elas fazem sujeiras, da
grossa. Ei, Wade, que tal passar aquela aguardente de maçã?
— Neste calor? — perguntou Wade. Mas tirou a grande garrafa e
passou-a a Ben, que tomou um enorme gole. Frank sacudiu a cabeça quando a
garrafa lhe foi oferecida. O sol e a aguardente que tomara na ferraria haviam-lhe
provocado dor de cabeça. O campo estéril e deserto começou nesse momento a
dançar diante de seus olhos. Wade tentou entabular conversa, mas o sofrimento
era demais para que Frank respondesse. Continuou ali deitado na palha,
sofrendo, enquanto a valise lhe batia nas pernas e as roupas suadas se colavam à
palha.
Mas deve ter dormido apesar de tudo, pois, algum tempo depois,
percebeu que a carroça havia parado. Sentou-se, atordoado, com um enorme
esforço. Nauseado, sedento, notou que seus braços nus haviam adquirido uma
brilhante e dolorosa coloração vermelha. As pernas, entre as calças arregaçadas e
as meias empoeiradas, também escarlates, coçavam e ardiam.
A carroça parara sob um grupo de árvores ao lado da estrada esburacada.
A sombra era de um preto grosso de tinta, um trecho de agradável abrigo, em
meio a uma terra deserta e crestada. Ouviu, próximo, o gotejar de água, um som
indizivelmente delicioso. Ben descera da carroça e estava amarrando as mulas,
cujos lombos estavam cobertos de espuma. Resfolegavam alto no luminoso e
sufocante silêncio. O Dr. O’Leary amarrara sua mula a uma cuidadosa distância
dos outros animais e havia tirado de algum lugar uma pequena toalha branca,
onde estendia a “boia”.
Frank, com a cabeça girando perigosamente, desceu por um dos lados da
carroça. O terreno oscilou sob seus pés. Quase cambaleando, chegou à sombra
das árvores e derreou-se no chão. Wade lançou-lhe um olhar.
— Vamos comer alguma coisa agora — disse. As suas escuras roupas
“citadinas” continuavam arrumadas e elegantes, e penteada ainda a lisa e estreita
cabeça. — Ei — disse, preocupado —, você está muito queimado. Precisamos
fazer alguma coisa a esse respeito. — Abriu a maleta e tirou um vidro de
unguento branco. — Espalhe isso nas queimaduras ou ficará doente.
Frank, mudo de sofrimento, recebeu o vidro, mas não teve forças para
abri-lo. Wade, olhando-o de relance, ajoelhou-se ao seu lado e besuntou as áreas
queimadas. Frank simplesmente o observou, cansado demais para agradecer. O
unguento, porém, teve um efeito refrescante e tranquilizador. Observando o
médico, sentiu a despeito de todo o sofrimento uma cálida emoção formando-se,
uma espécie de forte devoção, ao ver as magras mãos morenas que dele
tratavam. Ben, voltando com um balde cheio de água da fonte, observava-os,
interessado.
— Gente da cidade — comentou com certo desprezo. E cuspiu para o
lado.
Wade encheu uma pequena xícara com água fria e ofereceu-a a Frank, já
inteiramente besuntado com o pegajoso unguento. Derramou-lhe meia colher de
sal na mão e disse-lhe que o engolisse juntamente com a água.
— Você vai sentir-se melhor logo — disse, animando-o. Levantou-se e
tirou a grama seca dos joelhos. Guardou o unguento e pôs sobre a toalha pedaços
de galinha frita, fatias de pão de milho, carne fria, metade de um bolo, cortado
em cunhas, e meia dúzia de laranjas. Frank fechou os olhos num acesso de
náusea e encostou-se no duro tronco de uma árvore. Não podia suportar a luz
ofuscante que batia sobre a terra vazia e as colinas em chamas.
Mas, logo depois, começou a sentir-se melhor e o latejamento das
queimaduras diminuiu. Aceitou uma coxinha de galinha, muito saborosa, e
tomou mesmo uma “bicada” de aguardente de maçã. Mas não pôde tolerar o pão
de milho e a carne. O bolo, contudo, estava saboroso, embora notasse, incrédulo
também, que fora frito. Apreciou o suco de laranja. Comeu devagar, ouvindo
apenas com meia atenção as brincadeiras afetuosas trocadas entre Ben e Wade
O’Leary, que comiam como se estivessem esfomeados.
Então, isto era Kentucky, esta terra crua e desolada, este chão amarelado
e fervente, estas sombrias montanhas. Muito longe, no alto de uma colina, viu
sua primeira cabana de troncos e ouviu o eco de aves domésticas e o latido de
um cão. Uma brisa seca agitou as folhas empoeiradas das árvores. Bolsões de
silêncio ferviam em toda parte.
CAPÍTULO 46
Espichados na grama espessa e morta, Ben e Wade cochilavam. Frank,
porém, encostado na árvore, entregou-se aos tristes pensamentos e ao silêncio.
Estreitaram-se as sombras das árvores. Olhou para o relógio. Mais de uma hora.
Não tinha ideia de quantos quilômetros haviam coberto desde a manhã, mas
achava que haviam sido poucos. Ouviu o som das mulas, balançando as caudas,
com as cabeças baixas. Naquele momento, não se escutava mesmo nem mais o
som de galinhas e de cães à distância. O céu continuava insuportavelmente
brilhante e descorado.
Como poderia suportar o resto da viagem, com todo aquele calor e sol?
Para onde ia, e por quê? Enxugou o rosto com o lenço úmido e sujo. O corpo
doía-lhe de exaustão e pareceu-lhe que estava ferido. Olhou para os
companheiros, adormecidos sob os chapéus puxados sobre o rosto. Notou o
corpo grande e maciço e os musculosos braços morenos de Ben, dobrados sob a
cabeça. O Dr. O’Leary, porém, conseguira conservar a arrumação e elegância.
Até mesmo as perneiras pretas estavam apenas ligeiramente empoeiradas.
Inesperadamente, lembrou-se das patéticas perneiras pretas do pai e caiu em
profunda depressão.
Kentucky, mulas, calor e silêncio atordoante; Kentucky, um pastor
mórmon e um montanhês. Confuso, desorientado, não pôde acreditar em que se
encontrava realmente naquele lugar, sob uma sombra cada vez menor, refugiado
do calor e do ambiente estranho. Deixou que a saudade sempre maior de casa o
envolvesse. Bison, pensando agora, era um oásis verde de sombras, de
civilização. Amaldiçoou-se por ter vindo. Tinha absoluta certeza de que não
ganharia coisa alguma, que se condenara ao exílio, à prisão nessas montanhas. Já
dera a Ben dez dos seus entesourados noventa dólares. Outros dez o levariam de
volta a Paintsville na manhã seguinte. Trinta e cinco dólares, ou um pouco mais,
para voltar a Bison. Quarenta e cinco de sobra, se tivesse sorte, para recomeçar a
vida. Não era o bastante. De alguma maneira, teria que ficar ali até juntar pelo
menos cem dólares. Quanto tempo isso lhe custaria?
O Dr. O’Leary mexeu-se e espreguiçou-se satisfeito. Sentou-se, bocejou
e sorriu para Frank.
— Não dormiu? Bem, de qualquer maneira você cochilou na carroça.
Melhor, agora?
Frank conservou-se calado durante um instante, enrolando longas folhas
de grama entre os dedos trêmulos.
Em voz surda, murmurou:
— Eu não devia ter vindo. Fui um idiota.
O Dr. O’Leary sorria ainda, mas ficaram pensativos os olhos que
pousaram em Frank.
— Sabe — disse, finalmente —, eu tenho uma teoria. Acho que nenhum
de nós tem muita opção sobre o lugar para onde vai ou sobre o que faz. A opção
existe apenas em nossas reações individuais ao local onde nos encontramos.
Talvez você não possa ter evitado vir até aqui. Mas pode contribuir para a
maneira como enfrenta o meio, como controla os pensamentos e como age. Acho
que um homem ganha ou perde com as experiências que tem e a decisão é sua.
Frank não respondeu. Deu um puxão na grama.
— Que idade tem você, Frank? — perguntou suavemente Wade.
— Quase vinte.
— Vinte — repetiu meditativo Wade. — Bem, você é um homem agora.
O que você fazia em casa, em Bison?
— Eu... eu era estenógrafo. — A resposta foi curta e seca e Frank
desviou os olhos.
— Estenógrafo! Eu não quis perguntar isso, exatamente. Queria saber o
que você realmente fazia?
Frank fitou-o. Vendo os firmes e bondosos olhos castanhos de Wade,
respondeu logo, involuntariamente, com certa amargura inconsciente:
— Eu... eu pensei que era... escritor! Eu escrevia... escrevi durante toda a
minha vida, desde que consegui pôr palavras num papel.
— E não escreve mais?
A boca descorada de Frank fechou-se com tal expressão que Wade
contraiu, preocupado, as sobrancelhas.
— Não, não escrevo. Nunca pude, na realidade. Isso foi simplesmente
uma ideia estúpida que tive quando era criança. Não foi absolutamente nada.
Apenas um sonho.
— Como é que você sabe? — perguntou Wade em voz suave.
Frank abriu a boca e fechou-a em seguida. Depois de muito tempo,
vendo Wade ainda à espera, começou a falar em voz baixa e sem expressão:
— Eu sei. Não tenho instrução. Tudo o que sei... aprendi em livros
emprestados por bibliotecas. O que é que um homem pode fazer sem instrução?
Frequentei uma escola noturna depois do trabalho. Verifiquei que era inútil.
Descobri que não conseguia aprender coisa alguma salvo Inglês e composição.
Eu possuía uma massa de conhecimentos irrelevantes. Quanto mais aprendia,
mais descobria como era ignorante. Li centenas de livros de História e pensei...
pensei que tinha... jeito... para História, mas quando chegava o momento da
aplicação... Quero dizer, não conseguia lembrar-me de datas e fatos em
sequência, e assim fui reprovado. Além disso, todos os campos da Matemática
ficavam além de minha compreensão. Fui um completo fracasso.
Interrompeu-se. Wade esperou por um momento e perguntou em
seguida:
— E então?
Frank lançou-lhe um olhar de amarga surpresa:
— E então o quê? — Já estava envergonhado de haver falado.
— Quero dizer — continuou Wade com grande suavidade —, o que foi
que o fez pensar que era um “fracasso”?
— Eu sabia — respondeu mal-humorado Frank. Em seguida, exclamou:
— Você está rindo de mim porque pensa que sou presunçoso! Porque eu nada
sei!
Wade acendeu o cachimbo, soprou o fósforo, lançou-o para longe e
observou-lhe as espirais no ar claro antes que caísse na grama.
Com um ar meditativo, disse:
— Estou pensando no que disse Maquiavel: “Que ninguém tema ser
incapaz de realizar o que outros realizaram, pois, todos os homens nascem,
vivem e morrem da mesma maneira e, por conseguinte, assemelham-se entre si”.
Frank olhou-o sombriamente e, numa voz lúgubre, retrucou:
— Maquiavel. — Soltou uma curta risada. Depois, ficou calado, com a
face tensa e fechada. Após algum tempo, disse: — Se Maquiavel disse isso, ele
também foi um idiota. Eu não consigo realizar coisa alguma. Meus pais tiveram
razão, desde o princípio. Sou um fracasso. Eu os odeio, mas eles tiveram razão.
— Por que tiveram razão? Por que você acreditou neles?
Frank voltou-se para ele com inesperada violência e raiva:
— Não pensei que tinham razão até bem pouco tempo! Nessa ocasião,
eu soube. E tive que desperdiçar esses anos todos antes de descobrir.
Wade coçou um tornozelo, sem pressa, e olhou para uma baixa e distante
montanha. Disse:
— O homem não está perdido até que começa a acreditar em que aquilo
que os demais pensam dele é a verdade a seu respeito, pensem que ele é melhor
ou pior do que realmente é. Se é melhor, será para sempre um derrotado. Se é
pior, morrerá lutando para colocar-se à altura da opinião lisonjeira deles. Não sei
o que é mais prejudicial ao homem. De qualquer modo, quando aceita sem
reservas as opiniões dos outros, ele deixa de ser um indivíduo. É apenas a
projeção da mente de estranhos e não tem existência real própria.
Frank escutou e seus pensamentos, liberados nesse instante, saltaram ao
longo das palavras de Wade como um homem salta sobre pedras:
— Entendo o que você está querendo dizer. Mas isso não se aplica a
mim. Eu... eu cheguei a uma conclusão a meu respeito depois que, finalmente,
descobri quem sou.
— Você pode ter-se enganado — observou mansamente Wade. — Sobre
o que escrevia? — perguntou inesperadamente.
Embora se odiasse por isso, Frank respondeu:
—- Escrevia poemas no início e, depois, contos e romances. Lembro-me
bem deles. Eram trabalhos de amador, ridículos. Cheios de anacronismo, de
coisas tolas, de ignorância. Eu... eu sempre tive que fazer um rodeio quando
precisava de conhecimentos reais porque não os possuía. —! Interrompeu-se por
um momento e depois exclamou irritado: — Sei o que é que estou dizendo! Era
inútil no meu caso. Agora, acabou. Vou partir daí. Vou ganhar dinheiro de
alguma maneira e, assim, não terei que viver entre as pessoas que desprezo.
— Que tipos de pessoas?
— Os pobres. Os sujos. Os estúpidos e miseráveis. O que chamamos de
“as massas”. Odeio-as. Eu... tenho medo delas. — Parou e repetiu, como se
estivesse espantado: — Sim, é isso. Tenho medo delas!
Wade continuou calado. Tirava contentes baforadas do cachimbo,
olhando para a frente. Frank saiu do triste ensimesmamento ao olhar para o
jovem companheiro. Havia em Wade O’Leary algo muito calmo, muito
sossegado, suave, contido, mas ainda assim muito forte. Com uma melancólica
curiosidade, perguntou:
— Por que se preocupa com eles, você, médico e pastor? Por que perde
seu tempo nestas montanhas com essa gente horrível?
— Porque — respondeu Wade — tenho pena deles. Eles precisam de
ajuda. Você mesmo verá isso. E alguém tem que ajudá-los. Não adiantava
esperar que outra pessoa aparecesse para ajudá-los. A necessidade estava aqui.
Assim, meu irmão e eu viemos.
— Eles precisam mesmo de ajuda? E daí? — exclamou excitado Frank.
— Se um homem precisa de ajuda, isso acontece porque ele não tem cérebro
para ajudar a si mesmo. Neste caso, por que devem outros fazer o trabalho que
ele devia ter feito ou que não faz porque não tem inteligência para fazê-lo?
— Em outras palavras — disse Wade, sorrindo um pouco — serei por
acaso o guardião de meu irmão? Sim, acho que sou. Quando um homem se está
afogando ou morrendo de fome, não me interessa saber como ele se meteu em
tal situação. Procuro tirá-lo da água ou alimentá-lo. Só isso. — E acrescentou,
com grande tranquilidade: — Algum dia você descobrirá isso, terá certeza e
voltará a escrever, melhor do que poderia imaginar.
Frank abafou as palavras desdenhosas e amargas que lhe subiram aos
lábios. O sofrimento era para ele como uma doença.
— Você não quer realmente dinheiro — disse pensativo Wade. — Pensa
simplesmente que quer.
— Você fala assim — retrucou perversamente Frank — porque é um
pastor. Os pastores só falam em bondade. Não compreendem. São geralmente
pobres e foram ensinados a desprezar o dinheiro.
Wade sorriu outra vez.
— Eu não sou pobre, realmente. Meu pai é um homem muito rico, em
Salt Lake City. Mas nunca julgou o dinheiro importante. Você provavelmente vai
dizer que acontece isso porque ele nunca precisou de dinheiro. Talvez tenha
razão. Não sei. Meu irmão Peter e eu tivemos tudo o que queríamos. Mas
precisávamos de algo mais valioso. Foi por isso que viemos para cá.
Encontramos o que procurávamos.
— Vocês provavelmente têm o que chamam de “fé” — disse Frank com
profundo nojo. — Qual é mesmo a sua fé? O que é o mormonismo?
Wade riu.
— Isso é uma longa história. Tenho alguns livros em Benton e você
poderá lê-los, se quiser. Mas Peter e eu não procuramos fazer prosélitos, no
sentido tradicional da palavra. Não somos evangelistas. Não achamos que somos
os donos da “única fé verdadeira”. Como é que uma pessoa pode, realmente,
acreditar nisso? Lembra-se do que escreveu Samuel Butler? “Diz-se que todos os
homens sensatos têm a mesma religião, mas nenhum deles jamais diz qual é”.
Frank, com uma curiosa agitação íntima, notou, inconscientemente, que
o campo liso e crestado em volta adquiria profundidade, significado e
perspectiva. Isso, em si, excitou-o, como sempre.
— Mas você acha que aquilo em que acredita é a “verdade”?
— Acredito. É a verdade. Para mim — respondeu em voz grave Wade.
— Mas não acredito em que seja a verdade para todos os homens. A verdade,
com tudo mais, é relativa. Mas isso não lhe muda a natureza intrínseca nem a
torna falsa. Reclinou-se sobre um cotovelo e sorriu divertido para Frank. — É
por isso que estou tentando dizer-lhe que a “verdade” sobre você mesmo não se
encontra na opinião dos demais. Talvez a “verdade” não esteja nem em você.
Terá que encontrá-la à sua própria maneira, Frank.
Mas a melancolia descera novamente sobre Frank e, mais uma vez, a
paisagem se nivelara, transformando-se em uma ofuscante fotografia,
acompanhada pela desolação total que conhecia tão bem, aquela indiferença
completa por todas as coisas e cansaço de tudo.
Ben Calloway gemeu, virou-se, soltou um palavrão e sentou-se.
— Bem, rapazes — disse, bocejando —, acho que já é hora de ir.
CAPÍTULO 47
Dos escuros bosques subiu um guincho baixo e agudo, respondido por
um coro de outras vozes. A lua, que não podia penetrar até a terra e tocar o chão,
pintava manchas douradas na folhagem espessa. Uma coruja piou na noite e
ouviu em resposta gritos roucos em rápida sucessão. Um odor de fumaça e
aromas variados perfumavam o ar de outono. A lua, um prato dourado no céu
escuro, dourava os cocurutos das colinas baixas e sombrias.
Frank, sentado à nua mesa de madeira da tenda, escutava as vozes nas
trevas e os roncos de Ira Cunningham, deitado às suas costas em uma cama
portátil. O lampião de querosene lançava uma luz fraca sobre a mesa e o livro,
um exemplar antigo e amassado de um romance de Lord Lytton.
A tenda media cerca de dezesseis pés quadrados. Possuía uma parede de
madeira com cerca de um metro e vinte de altura, onde começava outra parede
de tela que subia até o teto de lona. Um grosso mastro de ferro segurava o
telhado, que ondeava e batia nos dias de ventania. A tenda localizava-se em meio
a um círculo de grossos carvalhos, bordos e alfarrobeiras à margem de um
bosque ralo, onde esquilos e outros animais corriam e discutiam durante o dia e
aves guinchavam, gemiam e piavam durante a noite. De frente para uma espécie
de longa clareira, a tenda ficava a cavaleiro de plantações de fumo e milho,
naquele momento amarelecidas sob o efeito da luz da lua, as quais desciam para
um pequeno e estreito vale. Dali ele via o fogo do poço de petróleo que estava
sendo perfurado no vale. Quando uma rápida sombra passava, sabia que era a
sombra de Tim Cunningham, do irmão, Ike, ou de um dos trabalhadores. Às
vezes, quando o estrugir constante das máquinas parava por um momento, ouvia
uma voz indistinta. Mas, à parte isso, as batidas e vibrações concorriam com as
aves e os animais pela honra de despedaçar o silêncio.
As árvores serpenteavam para cima, por trás da tenda, até o cume da
colina. Em volta havia pés de amoras-pretas e framboesas, lianas venenosas que
se arrastavam, cobras e grande número de flores silvestres de cores fortes.
Naquele momento, porém, estava tudo perdido na noite impenetrável e apenas a
luz da lua e a chama vermelha saltitante do fogo lá embaixo iluminavam a cena
rústica.
A tenda era mobiliada com dois catres, forrados com cobertores pardos
do Exército, onde Frank Clair e Ira Cunningham dormiam após seus “turnos”
que terminavam à meia-noite, e onde Tom e Ike Cunningham os substituíam
durante o dia; um fogão a óleo onde preparavam a comida simples; dois bancos
de madeira e um grande e antigo baú. Das paredes protegidas por telas pendiam
de pregos as roupas de trabalho. O chão de madeira jamais era varrido e
manchas grandes, areentas e oleosas decoravam-no por toda a parte. Em todos os
lados, igualmente, viam-se caixotes de alimentos enviados em carroça pelos
armazéns da Sears, Roebuck, em Chicago: leite em pó, latas de carne e peixe,
sacos de açúcar, café, bacon defumado, um ou dois presuntos embrulhados em
pano grosso, latas de feijão e sopa, biscoitos duros e sal. O único armazém de
Benton atendia as demais necessidades na medida em que o permitia seu pobre
estoque e havia sempre verduras “verdes” para salada, que eram colhidas nos
bosques e em lugares abertos, sem mencionar as azedas maçãs silvestres, frutas
do mato, e os esquilos, perdizes e sariguês abatidos pelas armas dos
Cunninghams. Às vezes, o armazém fornecia-lhes laranjas, bananas e “pão de
padaria”, trazido também em carroça. Ocasionalmente, um agricultor de Benton
vendia-lhes um pouco de queijo e manteiga.
Entre os utensílios havia certo número de caçarolas de ferro, uma grande
panela de ferro para cozinhar “verduras” e porcos salgado (o que constituía um
prato atroz para Frank, ainda embebido de ideias românticas sobre o que aquilo
deveria ser), uma coleção variada de louça grosseira, sempre por lavar, e talheres
de aço. Ocasionalmente, os rapazes lavavam as roupas manchadas de óleo em
uma grande tina colocada do lado de fora, sobre uma pilha de pedras, utilizando
água trazida com grande dificuldade até o alto da colina de um poço artesiano
existente no vale. Uma vez que a lavagem era feita com a mesma negligência
com que cuidavam da casa, com a água dura do poço e com pedaços de sabão
gorduroso feito ali mesmo na montanha, as roupas viviam sempre duras de óleo
e sujeira. Somente a sede mais inextinguível podia fazer com que Frank bebesse
água do poço, a despeito da propalada pureza e frescor da mesma, pois, quando
demorava uma hora ou pouco mais nos baldes, tomava-se inteiramente marrom e
deixava um halo enferrujado na borda. Cheirava também a enxofre, o que
lembrava a Frank as privadas da montanha ou ovos podres. (Não havia privada
próxima à tenda. O bosque e as moitas serviam a essa finalidade).
Sentado à mesa, curvado sobre o livro à luz do lampião, sentiu naquele
momento o cheiro da água. Sentiu também cheiro de suor velho das roupas de
trabalho penduradas nas paredes. O robusto e viril Ira Cunningham, roncando na
desarrumada cama à sombra da parede, exalava um cheiro acre próprio. No frio
ar de outono pairava uma fedentina de cangambás zangados e de vegetação
apodrecida. Às vezes, quando o vento soprava na direção da tenda, Frank sentia
o cheiro de petróleo, forte e penetrante, e os eflúvios de gás libertado nas
profundezas do poço. Os Cunningham haviam descoberto petróleo próximo ao
poço que no momento perfuravam. Ouviu as batidas lentas das bombas que
enchiam o oleoduto que se ligava a outros poços nas vizinhanças. O ruído surdo
da bomba era ecoado pela vibração de outras máquinas, em operação no poço
que estava sendo aberto. O fogo ora ganhava forças, ora morria no vale embaixo.
Aves piavam e gemiam e corujas assoviavam e choravam lamentosamente. Em
cima, a luz derramava sobre bosques e campos uma catarata de ouro quente.
Exausto, Frank fechou os olhos e descansou a cabeça nas mãos cerradas.
Mas sentiu apenas solidão, deslocamento, desespero e o pano pegajoso da
camisa azul colado às costas. Não era o trabalho que o esgotava tanto, embora
trabalhasse de meio-dia até meia-noite todos os dias, mesmo aos domingos. Na
verdade, era um alívio cuidar do fogo, observar no poço uma broca nova morder
a terra e ver a pedra cinzenta e fundida esguichar e espalhar-se sobre a grama
verde. Os Cunninghams, porém, abriam mais poços secos do que produtivos e
mesmo os poucos que eram sucesso produziam apenas petróleo medíocre de
superfície ou em quantidade insuficiente. Frank descobrira que os grandes poços
haviam sido abertos apenas quando os Cunninghams trabalhavam para outros
prospectores. Logo que se estabeleceram por conta própria, a sorte abandonou-os
por completo.
Mas havia sempre a excelente possibilidade de que o poço seguinte, ou
outro, enriquecesse a todos eles, incluindo Frank, a quem pagavam três dólares
diários pelo trabalho. Frank maravilhava-se com o alegre entusiasmo, o
otimismo inextinguível, o vivo senso de aventura que saturavam as horas de
vigília dos amigos. A vida em si, com sua promessa de um amanhã rico, ou
simplesmente de uma boa bebedeira e uma bela pequena, ou talvez uma briga
animada com outros prospectores, era mais do que suficiente. As riquezas que
procuravam na terra sem jamais se deixarem abater constituíam apenas um feliz
pensamento secundário que, caso fosse concretizado, deixá-los-ia
profundamente contentes. Enquanto isso, divertiam-se imensamente, como se
fossem animais simples, agradáveis, jovens e risonhos que, às vezes, achavam
Frank difícil de entender, a despeito de o terem aceito com fácil e pronta
amizade.
Não lhe compreendiam a sombria obsessão pelo dinheiro, a terrível
decepção quando um poço nada produzia senão água, o desespero quando a
broca era finalmente puxada pelos cabos e a maquinaria transferida para um
local mais promissor. Ele estava-se divertindo, não? Bebia com eles e, às vezes,
aos domingos, em duas mulas alugadas, acompanhava-os à montanha e descia
até Benton, ou visitava uma distante cabana onde moravam duas agradáveis
irmãs e a avó senil, que passava a vida fumando cachimbo à luz do sol. Haviam-
lhe ensinado a atirar e, espantados e felizes, cobriam-no de congratulações
quando ele abatia esquilos, aves e sariguês como o melhor entre eles. Olhavam-
no, surpresos, quando, ao se voltarem para ele nas profundidades verdes e
manchadas de sol dos bosques, encontravam uma inesperada expressão de
sofrimento, de dor ou de exaustão.
— Quais são as possibilidades desse novo poço? — perguntava-lhes,
sério, com lábios pálidos. Eles fitavam-no espantados e, encolhendo os ombros,
respondiam:
— Muito boas. Talvez. Vai subir as colinas para visitar as pequenas
amanhã?
Bem, ele era um cara da cidade, e ianque, de quebra, pobre coitado.
Trabalhava como um mouro... por dinheiro. Não por prazer, não pelo dia que
passava. Depois de uma ou outra caída no feno com as moças, voltava a reunir-
se a eles, de fisionomia sombria, silencioso, mudo. Aquilo não era natural. Bem,
gente de cidade...
Zombavam afetuosamente dele quando o viam adquirir vales postais na
agência dos correios em Benton, que enviava à Sears, Roebuck em pagamento
de livros, juntamente com pedidos de alimentos e outros artigos. Riam quando
ele cobria a pé todas as semanas os cinco quilômetros até Benton, onde ia buscar
a pilha de revistas de que era assinante ou quando a carroça entregava montes de
livros misturados com o açúcar, os presuntos e o bacon. Às vezes, iam passear
nas colinas e nos bosques e se perguntavam o que era que ele achava de tão
absorvente nos livros que espalhava em torno de si sob a grande alfarrobeira.
Mas gostavam dele. Frank era tranquilo, prestativo, e nunca recusava
trabalho. Aprendera a preparar um excelente guisado de esquilo, usando pimenta
verde e tomates comprados a um fazendeiro local, pequenas batatas e cebolas.
Aprendera também a fazer pão de milho, embora obviamente o odiasse. Quando,
porém, experimentou acrescentar fermento, farinha de trigo e banha, produziu
um pão de sabor tão diferente, assado em um forno de lata colocado sobre os
queimadores de petróleo do fogão, que os amigos declararam entusiasmados que
nunca mais comeriam “pão de padaria”, que era trazido duas vezes por semana
de Paintsville. Não gostavam de suas “saladas”, feitas de verduras frescas e
cruas, temperadas com ovos duros, vinagre e óleo, mas comiam-nas polidamente
por insistência dele, que dizia que apanhariam escorbuto se não as comessem.
Em consequência, olhavam cheios de suspeita para o “livro de medicina” que ele
comprara pelo reembolso postal na Sears, Roebuck e, sombriamente,
ameaçavam, em conversas particulares entre si, “queimá-lo qualquer dia destes”.
Mas ninguém faria melhor que ele uma sopa de ervilhas secas, e o feijão, cozido
com melado, carne salgada e mostarda, despertava-lhes delirante entusiasmo.
Aprendera também a arte de fazer biscoitos, redondos, macios, de massa branca,
assados até se tornarem dourados e perfeitos, verdadeiros biscoitos do Sul. Além
disso, podia assar uma galinha como ninguém. Os Cunninghams, que haviam
rido ao ver o livro de culinária da Sears, agora o fitavam com a reverência que o
autêntico sulista dedica à Bíblia. Mesmo quando Frank produzia estranhos e
esquisitos pratos, a serem provados com cautela e suspeita, os Cunninghams
elogiavam-nos depois e alisavam satisfeitos os ventres dilatados. Frank era uma
pessoa maravilhosa; adoravam-no. Não sabiam, porém, que ele aprendera a
cozinhar em autodefesa pois julgava repugnantes e indigeríveis os habituais
pratos sulistas de miúdos fritos, pão de milho, verduras cozidas até ficarem
pretas de gordura e gordurosos bolos fritos. Teria que aprender a cozinhar ou
morrer de fome. Preferiu a primeira alternativa.
Além de cozinhar, Frank dava ainda no mínimo quatro horas de trabalho
nos poços. A obsessão por dinheiro não lhe permitia menos. Percebia com que
facilidade poderia ser designado para o trabalho permanente de cozinheiro do
grupo a três dólares por dia e, provavelmente, sem uma parte nas possíveis
riquezas. Trabalhando pelo menos parte da jornada habitual, conservava a
qualidade de co-explorador e teria a sua quarta parte nos resultados. Embora os
Cunninghams lhe houvessem veementemente garantido que ele teria a sua parte
de qualquer maneira, preferia não confiar demais na natureza humana.
Com frequência, passava dias sem pensar em coisa alguma. As noites,
porém, eram as piores. No silêncio, voltavam-lhe o desespero e a angústia, como
naquela noite de outono, com o livro aberto à frente.
Por quanto tempo mais poderia suportar a vida nessas pavorosas colinas
e entre essas pessoas horrendas? Sabia até o último dólar quanto possuía
guardado entre as roupas amarfanhadas, suas e dos Cunninghams, no velho baú
Saratoga. Quatrocentos dólares por cinco meses de trabalho. Pouco mais de mil
dólares se permanecesse até o verão seguinte, a menos que descobrissem um
poço altamente produtivo. Duvidava dessa possibilidade, porém, e começou a
odiar a alegre exuberância dos Cunninghams, que achavam hilariante descobrir
poços secos ou cheios apenas de água.
Pensou nos habitantes daquela solitária e analfabeta aldeia nas colinas e
arrepiou-se de nojo. Benton não possuía estradas, salvo uma trilha irregular,
percorrida por mulas, que serpenteava pelas montanhas até Paintsville, situada a
cinquenta quilômetros de distância.
Abrigava uns novecentos habitantes, morando todos em cabanas
cinzentas de troncos, onde eles e seus ancestrais haviam residido durante
dezenas de anos. Possuía também um “riacho” que, juntamente com seus
“afluentes”, secava no verão. Ninguém se dava ao trabalho de conservar a única
estrada local, que se tornava intransitável no outono e na primavera. Aqui e ali
um ex-agricultor mais próspero construía uma cabana de alvenaria revestida de
tábuas, com uma bomba interna. Raramente, nas zonas mais distantes, era vista
uma pequena casa cinzenta de pedra. No centro da única rua ficavam localizados
o correio, o armazém, uma ferraria, uma oficina de seleiro e uma farmácia, que
passara a fazer concorrência ao armazém. No fim da rua erguia-se uma
pequenina igreja branca, com um campanário, mas sem cruz, uma igreja batista,
visitada todos os verões por um pregador ambulante. Crestada pelo sol, árida,
suja, enlameada, Benton dificilmente podia ser considerada uma aldeia. O
médico local e sua velha esposa ocupavam a isolada casa de pedra que se erguia
em frente à igreja. Os irmãos O’Leary haviam construído uma pequena escola
atrás do templo e, cheios de esperanças, pintaram o prédio de vermelho.
Consistia ela em meia dúzia de bancos sem encosto, um quadro-negro, um
grande fogão preto e uma mesa para o mestre: o próprio Peter O’Leary. Os
O’Learys residiam numa tenda, parecida com a dos Cunninghams, na vertente de
uma colina a uns oitocentos metros da aldeia.
Numa extensão de muitos quilômetros em volta pouco era plantado. A
terra devastada pela erosão abria-se em buracos amarelos nas vertentes e nos
vales. Ninguém praticava o plantio em curvas de nível, embora os O’Learys
houvessem trabalhosamente ensinado essa técnica durante anos. Em vista disso,
era pouco em matéria de sustento o que podia ser tirado das vizinhanças
imediatas de Benton.
Benton aninhava-se em um estreito vale, sem uma árvore em volta,
brilhando cruamente ao sol entre sorumbáticas colinas cobertas por capoeiras.
Permanecera ali, perdida, durante gerações, até que alguns intrépidos
prospectores abriram o primeiro poço na comunidade. Naquele momento, esses
indivíduos, na sua maioria nativos de Kentucky, Tennessee ou Oklahoma,
haviam instilado um pouco de vida na esquálida e árida cidadezinha, trazendo
com eles algumas maneiras civilizadas, comida decente e uma despreocupada
imoralidade. Quase todos jovens, andavam de perneira e culotes, eram vigorosos
e barulhentos, grandes fumantes de cigarros, dados a cantorias, valentes
bebedores e amigos de um rabo de saia, brigões e trapaceiros, comprando opções
de terras por alguns níqueis e enriquecendo alguns no processo. Moravam em
tendas ou em cabanas de troncos abandonadas nas colmas e desciam até Benton
em pequenos e ruidosos grupos nas noites de sábado e nos domingos. Alguns
residiam “abaixo de Benton”, a leste, e outros “acima”, a oeste. Haviam
importado boas mulas e robustos cavalos e, generosamente, permitiam que suas
éguas cruzassem com os asnos locais, revertendo a cria para o dono do asno
contra o pagamento de uma pequena soma.
Não eram esses, porém, os indivíduos que Frank abominava, pois alguns
dos prospectores possuíam mais do que a educação comum e eram assinantes de
revistas. Considerava repulsivos, sim, os nativos e suas mulheres, com seus
longos e informes vestidos arrastando-se em volta dos pés descalços e sujos, as
faces sem expressão sob o largo chapéu de pano azul ou cor-de-rosa, os filhos
esqueléticos, cheios de escrófulas, pernas deformadas, e os homens de ombros
incrivelmente estreitos, a maioria barbada e descalça. Muitos deles haviam
enriquecido, mas isso não aliviara a abjeta pobreza, as doenças e a ignorância. O
dinheiro era enviado aos “bancos” nos “povoados”, servindo os prospectores de
intermediários, embora Frank desconfiasse de que o “banco” era o próprio bolso
desses cavalheiros. Se era assim, isso não prejudicava. Os nativos não teriam, de
qualquer maneira, utilizado o dinheiro. Este se revestia de uma natureza
cabalística para as pessoas que tão pouco o haviam usado até então. Os
prospectores mostravam-se generosos com uma ou outra nota de cinco dólares
ou, com mais frequência, com grandes carregamentos de moedas de pratas. A
prata significava mais para os nativos do que as notas verdes, possivelmente
devido à sua substância mais duradoura. Gastavam o dinheiro nos sábados em
aguardente de maçã ou uísque e, vez por outra, compravam “pão de padaria”,
farinha de trigo ou as estranhas laranjas e bananas amarelas, que nunca haviam
visto antes.
Poucos se preocupavam em plantar uma horta, embora, ocasionalmente,
fosse visto um canteiro isolado de cebolas, tomates, pimenta, milho, fumo ou
batatas, lutando para sobreviver, inteiramente abandonado, nos fundos das
cabanas de troncos. Ali, em raras ocasiões, mulheres tuberculosas e pálidas e
uma ou outra criança trabalhavam languidamente e logo depois se retiravam para
o interior das cabanas escuras e despojadas.
Os cães, naturalmente, eram numerosos, formando uma matilha de vira-
latas amarelados, semimortos de fome, de pelagem sarnenta. Todas as famílias
possuíam um ou dois galinheiros e as aves ciscavam por toda a parte, procurando
tirar o sustento que podiam nos tórridos jardins ou em volta das privadas.
Enxames de moscas zumbiam em grandes nuvens por toda a parte.
Os pregadores ambulantes, montanheses também, conheciam bem sua
geração e os costumes do rebanho. Deblateravam contra o “pecado”, que
aparentemente consistia em “cobiçar a mulher do próximo”, “profanar o sábado”
ou “adorar Mammon”, mas evitavam a questão dos assassinatos, a fabricação
ilegal de uísque e as relações sexuais promíscuas entre os jovens. Eram assuntos
delicados. Os serviços dos pregadores eram necessários apenas nos casos de
ocasionais casamentos e batismos, rezas pelos mortos, que podiam ter falecido
dez meses antes, e para provocar nos nativos e frenesi religioso, a loucura e o
espojamento no chão da igreja. O fato de o número de assassinatos aumentar
geralmente depois dessas incursões pelo reino da loucura não preocupava os
pregadores, que portavam também armas nas selas de suas mulas.
Os irmãos O’Leary haviam construído a pequena escola vermelha a
despeito do desdém dos pregadores analfabetos e da zombaria dos nativos de
Benton. Realizavam os serviços religiosos na escola ou sob as árvores em volta.
Eram poucos os convertidos, pois eles pouco faziam nesse sentido, contentando-
se em lutar desesperadamente para pôr livros e educação ao alcance das crianças,
aliviar a dor e as doenças de homens e mulheres e consolar os moribundos. Com
grande frequência, levavam os doentes para a cabana onde moravam e tratavam
deles ali mesmo. Tentaram ensinar novos métodos agrícolas aos fazendeiros.
Trabalharam paciente e teimosamente durante anos até que os nativos, de
maneira apática, os aceitaram e passaram a procurá-los quando precisavam de
remédios ou consolo nos desolados meses de inverno, quando nenhum pregador
ousava aventurar-se pelas estradas esburacadas. Mas não podiam sequer pensar
em pedir a Wade O’Leary que os casasse. Ele era mórmon e acreditava na
poligamia, o que era contra a Bíblia. A fonte onde haviam buscado essa
informação sem fundamento constituía um mistério eterno para os O’Learys,
embora eles desconfiassem dos pregadores ambulantes.
Wade tinha um rancoroso inimigo na pessoa do velho Dr. Jim Ward, há
muito tempo estabelecido em Benton e nativo do lugar. Tentara, no início,
manter boas relações com o velho, tornar-se seu aliado na luta contra a doença e
a morte. O Dr. Jim, porém, que “estudara” durante dois anos sob a orientação de
um “médico” tão ignorante e incivilizado como ele mesmo, que nunca assinara
uma revista médica e cujos conhecimentos lembravam os da Idade Média, se
ressentiu da chegada do estranho com suas “ideias moderninhas”, livros de
medicina e educação. O Dr. Jim nunca vira um microscópio na vida, “não
gostava deles”, considerava os micróbios como alguma tenebrosa maquinação da
“gente da cidade”, nunca vira ou usara um fórceps num parto difícil, não sabia o
que era febre puerperal, embora um terço de suas pacientes houvesse morrido
dessa infecção, e utilizava ervas, que ele mesmo colhia, para tratar de todas as
doenças, de furúnculos à difteria. As disenterias eram tratadas com óleo de
rícino, como também a febre tifoide; as cataplasmas de massa de pão e o leite
quente eram suas panaceias para a varíola; a septicemia recebia o mesmo
tratamento. Chamava a apendicite de “doença do intestino cego” e aconselhava o
emprego de pedras quentes sobre o abdômen dolorido, com resultados fatais.
Rotulava a tuberculose de “fraqueza dos pulmões” e receitava, nesses casos,
muitos abrigos para evitar o sol e um chá de raízes de dente-de-leão. Cercava-se
de uma atmosfera de profundo mistério e impressionava os pacientes ignorantes.
O mistério, aliás, impedia muitos deles de consultar Wade O’Leary, o homem
dos instrumentos, dos tubos de ensaio, dos testes de escarro, da “agulha” dos
soros, da bem abastecida farmácia. Somente depois que aprendeu a fazer
estranhos gestos, murmurar em voz baixa palavras engroladas, usar óculos pretos
e assumir um ar de prodígio foi que Wade conseguiu atrair alguns pacientes.
Frank via com frequência os O’Learys montados em suas mulas,
subindo as encostas da montanha ou fazendo obras de caridade em Benton. Peter
O’Leary era mais alto e musculoso do que o irmão, Wade, e, em comparação,
quase um gigante. Possuía um rosto alvo e queimado pelo sol, de expressão
pugnaz, embora bondosa, e uma massa de desgrenhados cabelos amarelos.
Arrastava-se quando andava, num jeito mais familiar ao pessoal da montanha do
que os passos suaves e elegantes de Wade. Possuía uma voz forte e aprendera a
praguejar violentamente com os nativos quando lhes agarrava os filhos pela gola
“para irem aprender a ler”. Wade podia ser encarado com reverência, respeito,
dedicação; os montanheses, porém, amavam Peter O’Leary, que bebia como o
melhor entre eles, atirava muito melhor do que o irmão e podia dizer nomes
feios “como um filho da mãe”. Frank descobriu logo o profundo afeto entre os
irmãos, a grande compreensão e a fidelidade mútua.
Wade levava-lhe livros, pois Frank jamais tinha o suficiente para ler. No
início, recebera-o com grande satisfação. Finalmente, porém, Wade descobriu
que algum negro desespero fazia com que Frank começasse a evitá-lo. Além
disso, os últimos poços haviam sido abertos muito mais longe de Benton. O
último situava-se a uns sete quilômetros de distância e Frank raramente “subia
até Benton”.
Debruçado sobre o livro à luz do lampião, Frank lembrou-se subitamente
do que Wade lhe dissera na última vez em que o havia encontrado, embaraçado,
na rua de areia da aldeia:
— Não encontrou ainda nada de interesse nesta pobre gente? Já
conversou com eles?
Lembrou-se dos olhos graves e pensativos de Wade, apertados de
espanto, da ligeira repreensão e desapontamento que lhe transparecia na voz, e
ardeu de ressentimento.
— Pensei que você pudesse encontrar material para seus escritos. ..
Que interesse poderia uma pessoa sentir por essas horríveis caricaturas
da humanidade, esses imbecis de voz chorosa, esses miseráveis espécimes
subumanos? Frank deixara muito tempo antes de sentir qualquer parentesco real
com esses indivíduos, embora eles falassem com o familiar sotaque inglês. Não
eram mais sua gente, irmãos de raça e sangue. Irritavam-no os nomes ingleses,
escoceses e irlandeses que usavam e achava insultuoso que fossem legalmente
deles. Quando menos esperou, começou a pensar com nostalgia nos italianos,
alemães, eslovacos e mesmo poloneses de Bison.
— Eles, e não houve culpa alguma da parte deles, não progrediram além
dos dias de exploração pioneira dos antepassados — protestara Wade. — Será
que você não consegue achar isso em si interessante, encontrar pessoas saídas
diretamente das páginas da velha história do Oeste, nem um passo sequer além
das carroças em que cruzaram as campinas, que os trouxeram até aqui e os
abandonaram? Você não precisa imaginar o que foram essas pessoas que
viveram há um século ou mais. — E acrescentara: — Estou decepcionado com
você, Frank. Venha à nossa tenda logo que puder e ajude-me a aplicar neles soro
antitífico e vacina contra varíola. Eu lhe ensinarei como fazer isso. É muito
simples e sei que vai aprender logo. Preciso de toda ajuda que puder conseguir.
Assim, você terá oportunidade de aproximar-se dessa gente e compreendê-la. Eu
gostaria de que você os compreendesse. Eles aprenderão a gostar de você,
desenvolverão afeição por você e você os verá como eles realmente são, tão
patéticos, tão humanos, tão simples!
Mas, naturalmente, Frank não fora. E daí em diante procurara evitar
Wade O’Leary tanto quanto possível.
O desespero que conhecera em Bison fora felicidade em comparação
com aquele momento, pois estava inteiramente desorientado.
Mais altas, mais ferozes, mais primevas, mais agudas e selvagens
chegaram naquela noite as vozes estranhas aos ouvidos de Frank Clair. Levou as
mãos cerradas à boca e olhou pela tela escura da tenda para a noite preta e
informe, iluminada apenas pela fina e vermelha língua do fogo saltitante.
Ocorreu-lhe, então, inexoravelmente, que mais terrível do que qualquer outra
coisa para um homem são as vozes estranhas que ouve numa terra que não é sua,
na qual não passou a infância e os fugazes anos da juventude.
As vozes gritavam, a noite respondia e todos os que ali haviam nascido
compreendiam as vozes e a noite. A pessoa adormecida virava-se, meio
acordada, tornava-se consciente, ouvia o coro, a resposta profunda e sorria
porque sabia o que era que diziam umas às outras. Aquelas palavras eram sua
carne; a mensagem lhe era entregue e ela era una com as criaturas que a
cantavam. Era una com a terra e as vozes que lhe haviam acompanhado a
chegada seriam as vozes que lhe acompanhariam a partida.
Pensou em Bison. Estavam em fins de outubro. Talvez o primeiro e
rápido borrifo de neve já houvesse caído. As árvores nuas e pretas ergueriam os
galhos para o céu incandescente com as suas frias estrelas setentrionais. Folhas
sussurrariam secas nas sarjetas e cairiam dos beirais, tangidas pelo vento. As
chaminés expeliriam fumaça prateada para a grande lua branca. As vitrinas em
Grant Street e Ferry Street brilhariam à luz dos postes e mostrariam as grandes
cabeças douradas das abóboras que as enchiam. Sentiu o cheiro da poeira da
meia-noite na rua, forçou os ouvidos e escutou o trovejar distante de um bonde
retardatário e a vibração dos fios telefônicos sob a brisa fria. Um ruído de passos
ecoaria em algum lugar, as lâmpadas das ruas bruxuleariam e as casas de
madeira adormeceriam sob a lua, com suas varandas mergulhadas nas sombras.
Tais eram as coisas de seu lar, de sua cidade.
Quando deixara Bison manifestara a amarga esperança de jamais lá
voltar enquanto vivesse. Quando, dias antes, recebera uma carta da mãe, dizendo
que “reservas” já haviam sido feitas para a volta dela e da Sra. Clair à Inglaterra
em março próximo, não sentira absolutamente nada. Apesar disso, naquele
momento, olhando para a noite estranha, escutando as terríveis vozes
desconhecidas, foi tomado de profunda nostalgia.
Pensou: Mas eu não era feliz em Bison. Sentia-me desgraçado,
desesperado. Não importa, sussurrava o novo conhecimento, ali está o seu lar. É
o único lugar na terra onde você conheceu a grande felicidade e o espírito de
companheirismo, onde sentiu o mais forte dos êxtases e sonhou os mais nobres e
doces sonhos. É em Bison que fica a sepultura desses êxtases e sonhos. Mas
mesmo uma sepultura pode ser mais preciosa do que uma terra onde não há
sepultura alguma. Mesmo homens de outra raça, mas que foram conhecidos na
infância, são mais amados do que homens de seu próprio sangue, e são
estranhos. Pensou nas zonas italianas que bordejavam as ruas que desciam até o
Front e sorriu lembrando-se do cheiro azedo do fermento, do calor, da poeira, do
alho e de como era saboroso aquele odor. Reviu as pequenas casas bem
arrumadas dos alemães de Bison, as quais pareciam sempre recém-lavadas com
água quente e sabão, e amou-as. Recordou-se das largas e quadradas faces dos
lívidos poloneses e lhes ouviu as vozes eslavas; embora não compreendesse uma
única palavra, essas vozes eram mais suas do que as vozes daqueles
montanheses, que falavam com o sotaque de sua própria raça.
Pela primeira vez compreendeu, naquele momento, a dilacerante
saudade que a mãe suportara durante todos aqueles anos e sentiu uma pontada de
pena. Pensou no pai e compreendeu por que ele economizara tão desesperada e
cruelmente, por que sacrificara a vida pelo sonho do lar. Ora, pensou, com um
forte e absorvente espanto, esse é o motivo por que eu, também, estou
economizando! Nunca soube disso antes!
Pensou no dinheiro guardado, virou-se no banco e olhou para o exterior
arranhado do baú. Ali estava seu resgate. Aumentá-lo-ia logo que lhe fosse
possível para poder voltar para casa. Ergueu-se de chofre. Ouvia a batida surda
da broca, o som das bombas que puxavam o fio de petróleo do poço vizinho.
Aquele poço produzia apenas quinze barris por dia e sua parcela era de apenas
três dólares, além dos três que recebia pelo trabalho. Mas talvez o novo poço
fosse produtivo e seria um homem livre. Livre para voltar para casa.
Ira Cunningham rolou por baixo dos cobertores e roncou, sonhando. O
lampião bruxuleava. Frank, com todo o cuidado, abriu a porta de tela e desceu os
três degraus até o chão. Dirigiu-se para o novo poço e para as sombras que se
moviam em frente ao fogo e em volta dele.
Quando tentava lembrar-se de cada um dos Cunninghams, ficava
exasperado porque não podia fazê-lo. Tim Cunningham, alto, queimado de sol,
de cabelos amarelados, sorriso lento e preguiçoso, voz lânguida, continuaria a
existir vagamente em suas recordações. Ike era uma edição mais baixa e mais
magra de Tim, e Ira, de estatura mediana, um pouco mais gordo do que Ike. Mas
seus rostos ficariam para sempre perdidos, mesclados e fundidos uns com os
outros, iguais aos de milhares de indivíduos anônimos que encontrara na vida.
Parecia o horror final que a humanidade, que se distinguia dos demais animais
por uma vaga e bruxuleante percepção da vida e que se dizia situar-se apenas
abaixo dos anjos, não possuísse identidade real como indivíduos, nenhuma forte
projeção de personalidade, nenhuma intensidade de ser.
Quando Wade O’Leary lhe lembrara os grandes poetas, filósofos, santos,
cientistas e artistas produzidos pelo mundo humano, respondera com um súbito
acesso de dor:
— São esses indivíduos que põem em relevo a enorme estupidez e
bestialidade de todos os demais, que põem à vista as formas brutas e os aspectos
rudes da humanidade. Não é paradoxo algum que os homens matem seus
cantores, seus heróis, seus salvadores, seus santos. Não é nem mesmo mau ou
misterioso o que fazem. Agem simplesmente em autodefesa, motivados pelas
profundezas de sua lógica animal.
Não conseguia lembrar se qualquer um dos Cunninghams possuía uma
personalidade distinta, uma nítida individualidade. Não conseguia recordar se
gostava ou não deles. As emoções deles eram ondulações rasas em uma corrente
rasa, eram apenas animais felizes, sadios, risonhos. Por tudo isso, quando se
aproximou do fogo e foi recebido com alguma surpresa por Tim e Ike
Cunningham, não experimentou o menor contato de mentes ou personalidades
com qualquer um deles, nem conseguiu lembrar-se dos nomes dos dois
montanheses que os ajudavam.
— Como é que está indo o poço? — perguntou a Tim, ou talvez fosse
Ike.
— Simplesmente legal — respondeu a voz de Ike, ou talvez fosse a voz
de Tim.
Macambúzio, Frank observou os cabos, subindo e descendo à luz da
fogueira. Um dos ajudantes malhava uma broca, muito vermelha, que acabara de
sair do fogo. Nesse momento, uma sombra emergiu de trás das máquinas e Frank
reconheceu a face e a figura elegante de Wade O’Leary.
Enrubescendo, olhou para Wade. Inclinou a cabeça, respondendo ao
cumprimento casual.
— Parece que você vai ter sorte desta vez — disse ele, aproximando-se
de Frank.
Frank contraiu às sobrancelhas. Wade parecia captar sempre os
pensamentos das pessoas. Virou-se e deu alguns passos na direção da tenda.
Wade seguiu-o tranquilamente. Falou em voz calma:
— Eu queria conversar com você. Vim até aqui justamente para isso. Fiz
o parto de outro filho da pequena Hawthorne... Coitada. Quer saber quem é o pai
desta vez?
Frank encolheu os ombros. Sentiu a velha náusea, a antiga repulsa e
cansaço que sempre se agravavam todas as vezes em que encontrava Wade
O’Leary.
— O que era que você queria conversar comigo? — perguntou, mal-
humorado.
— Vim-lhe trazer alguns livros de um amigo meu que mora do outro
lado das montanhas, a uns oito quilômetros daqui... e algumas revistas.
— Outra Vida de Cristo, ou Montanha da Vida, ou uma pilha de
Trombetas do Evangelho?
Wade riu levemente.
— Não. Seis romances modernos e os quatro últimos números do
Saturday Evening Post. Os cinco últimos números do New York Times, dois
Atlantic Monthlies, três Harpers Magazines e não sei quantos exemplares do
Literary Digest. Todos recentes. Estão amarrados em minha mula. Espere aqui,
vou buscá-los e ajudarei você a levá-los até a tenda.
Frank esperou, extremamente surpreso e embaraçado. Wade foi até o
local onde a mula se encontrava amarrada e arriou um grande embrulho de livros
e revistas. Entregou-o a Frank, sorrindo divertido:
— Eu gostaria de que você conhecesse meu amigo — disse, enquanto
Frank examinava incrédulo o pacote.
— Você quer dizer que um desses matutos realmente lê e compra estas
coisas? — Frank fitou-o com fria incredulidade. — Ou, quem sabe, ele também
é um missionário mórmon?
— Não. É um montanhês fino do Kentucky. Mora perto de outros
amigos meus, que se parecem com ele. Eu gostaria de que você os conhecesse.
Amanhã é domingo. Eu lhe trarei uma boa égua. Nove horas é cedo demais?
Voltou o mau humor de Frank.
— Não gosto de cavalos. E não gosto da montanha. Desprezo essa gente,
suas cabanas de troncos, a sujeira...
Wade conservou o bom humor:
— Meus amigos não moram em cabanas de troncos, não são sujos, não
têm tuberculose, sífilis, varíola ou febre tifoide, e não vivem cercados de filhos e
vira-latas sarnentos. Tenho a impressão de que você vai gostar deles. Talvez os
ache... diferentes.
Frank suspirou, impaciente.
— Muito bem. E obrigado pelos livros. Encontrei por aí um velho
exemplar rasgado de um dos romances de Lord Lytton e venho lendo-o e
relendo-o porque não tenho mais coisa alguma para ler e minha próxima remessa
de livros e revistas somente deverá chegar dentro de duas semanas. Muito bem.
Vou com você.
Deu-lhe as costas. Wade observou-o desaparecer no interior da tenda.
CAPÍTULO 48
A manhã era uma moeda de cobre recém-cunhada, dura, clara, quente.
Colinas próximas, também cor de cobre, com seus cumes nítidos e
incandescentes, alteavam-se em direção a um céu cor de água-marinha. Os
estreitos e pequenos vales entre elas haviam-se escondido em fumarolas de
leitoso nevoeiro, perdendo todas as características individuais e tornando
idênticos todos os vales e cristas. Grama seca perfumava o ar capitoso e as curtas
rajadas de vento traziam o perfume do poejo, das acres ervas dos bosques e das
folhas secas. Por toda a parte um profundo silêncio, interrompido apenas pelas
corridas de coelhos, esquilos e perdizes entre as moitas e uma ocasional, doce e
penetrante nota emitida por uma ave.
Frank Clair e Wade O’Leary cavalgavam pelas colinas, Wade na sua fiel
e caprichosa mula e Frank numa égua alugada. A mula e a égua eram grandes e
acanhadas amigas e se focinhavam entre si quando os jovens paravam no alto de
um morro para observar as ondas de terra que subiam e desciam em volta. A
sombria e profunda depressão de Frank diminuíra um pouco naquela manhã,
ainda que houvesse sido substituída por uma inquietação quase tão difícil de
suportar. À medida que vislumbrava cada pequeno vale serpenteante, sentia uma
curiosa excitação, como se estivesse prestes a se deparar com algo gratificante,
belo e estranho. Quando, porém, via as isoladas cabanas de troncos,
empoleiradas nas vertentes ou aconchegadas nas várzeas, experimentava um
forte e doentio desapontamento. Em criança vagueara por Bison e arredores, ao
longo da fronteira canadense, procurando um lugar mágico, uma pequena ilha de
sonhos. Embora nunca os houvesse encontrado, persistira a esperança de que
precisava procurar apenas um pouco mais, virar naquele grupo de árvores, ou
atravessar correndo aquele prado, e descobriria a terra de encantamento.
Esquecera a busca infantil da terra do sonho, mas não esquecera a emoção que
ela lhe despertara e, quando via apenas cabanas de troncos, vales desertos ou
bosques escuros e ralos, sentia uma frustração inexplicavelmente amarga.
Contudo, procurou disfarçar o estado de espírito e mostrar-se cordial
com Wade O’Leary, pessoa de quem a contragosto e secretamente gostava.
Durante toda a vida procurara um ouvido amigo e o encontrara e perdera na
pessoa de Paul Hodge. Ali estava outro homem com quem podia falar e o qual
poderia compreendê-lo. Aumentava a dor, em vez de diminuí-la, o fato de ter
encontrado esse homem em um meio e região que transformavam em zombaria a
descoberta. A situação era sutil demais para ser transposta para palavras e,
embora desejasse ardentemente contar tudo isso a Wade, temia não ser
compreendido.
Como se percebesse isso, Wade mal falava. Cavalgava como se estivesse
montado num majestoso cavalo de batalha, saltando com leveza até o cume dos
morros e derreando-se graciosamente na sela em cada íngreme descida. A face
magra e morena conservava-se pensativa e tranquila e a cabeça, orgulhosamente
ereta. Amarrada à sela, como sempre, levava a maleta de médico. Usava com
elegância o traje de lã escura, sobre o qual a poeira aparentemente nunca se
depositava. Frank invejava e admirava essa impecável arrumação, pois seu
próprio terno domingueiro já se cobrira de uma pátina pardacenta. Além disso,
suava profundamente.
Chegaram ao alto de outra colina, onde encontraram uma pequena e
musical fonte de água fresca. Desmontaram e, deitados à verde beira da fonte,
beberam e sentiram-se refrescados. Sentaram-se em seguida, acenderam os
cigarros e descansaram um pouco. Em volta, os cumes polidos de outras
montanhas. Fazia frio e estava escuro sob as árvores emaranhadas.
Involuntariamente, disse Frank:
— Continuo pensando que, ao chegarmos ao cume de outra colina, nós...
nós... encontraremos algo... diferente, embaixo. — Mas enrubesceu
profundamente, envergonhado pela traição da língua.
Wade, porém, inclinou sério a cabeça.
— Eu sei. Acho que, de certa maneira, todos nós temos essa esperança.
— Virou-se sobre o cotovelo e olhou para Frank com um demorado interesse. —
A maioria de nós nunca o encontra. Mas acho que você o encontrará, um destes
dias.
— Não — respondeu Frank. Olhou para a ponta do cigarro e repetiu: —
Não.
Era preciso disfarçar a traição cometida contra si mesmo e, assim, disse,
gaguejando como sempre quando ficava embaraçado ou confuso:
— Você tem muitos amigos por aqui, não? Parece que conhece todo
mundo. — A voz cheia de mal-humorado sarcasmo ocultava uma solitária e
amarga inveja. — Eu nunca tive nenhum amigo.
Wade não sorriu. Continuou sério e pensativo.
— Amigos? Não, acho que não. Não consigo pensar em um único amigo
verdadeiro. — Sorriu ao notar a incredulidade e cautelosa desconfiança de
Frank. — E, pensando no caso, não acredito em que alguém tenha um amigo, no
sentido que damos à palavra. Conheci um homem em Salt Lake City que se
bravateava sem cessar dos seus muitos amigos. Juntava e entesourava amigos
como outras pessoas juntam dinheiro e vivia contando-os. Era a sua distração,
alegria e orgulho. E não fazia amigos para tirar qualquer vantagem deles, social
ou financeira. Era apenas um homem comum e ingênuo, que colecionava amigos
como outros colecionam selos, primeiras edições, porcelana antiga ou
borboletas. Exibia os amigos, reunidos em volta, como um mendigo reúne os
trapos ou uma mulher puxa as peles em volta do corpo numa noite muito fria. E
pela mesma razão, provavelmente. — Interrompeu-se e continuou meditativo em
seguida: — Sim, era um tipo muito patético aquele pobre homem.
Frank esperou. Wade, porém, não falou mais e, assim, Frank disse
ironicamente:
— Depois, ele adoeceu, perdeu o negócio ou o dinheiro e descobriu que,
afinal de contas, não tinha um único amigo no mundo.
Wade sacudiu a cabeça.
— Não, nada disso. Continuou simplesmente a colecionar “amigos” e
jamais descobriu, até o dia de sua morte, que não tinha amigo algum e que a
amizade é um ideal raramente ou nunca atingido. Exatamente como o ideal do
herói, o ideal do salvador, o ideal do amor raramente, ou jamais, é realizado. Por
isso mesmo, transforma-se em matéria de heroicos contos de fada que os homens
contam a si mesmos para tornar a vida mais suportável. O ideal de amizade é
belo e glorioso e será mais do que suficiente se nos aproximarmos dele uma vez
por outra e fingirmos, mesmo que apenas durante uma hora, que o encontramos.
Mas não devemos enganar-nos pensando que é realmente atingível. Isso é
perigoso.
— Você não fica... revoltado... ou se sente infeliz, pensando assim? —
perguntou mal-humorado Frank.
Wade lançou-lhe um rápido olhar de suave compreensão e pena. Disse,
então, com profunda e bondosa compreensão:
— Não. Porque nunca fui idealista. Como você.
Abalado e irritado, Frank observou-o erguer-se do chão e, com todo o
cuidado, remover da roupa folhas secas de grama. Continuou sentado.
Simplesmente o olhou zangado.
— Eu? Idealista? — explodiu.
Wade apertou os arreios da mula e, sobre os ombros, olhou sorridente
para Frank.
— Oh, isso mesmo. Você é! Descobri isso logo que o conheci. Acho que
isso é ótimo. Quero que continue a ser idealista. Acho que, de qualquer maneira,
você não pode deixar de sê-lo. Sei que deixou que o idealismo o dominasse e
não admite que ele seja aviltado em seus contatos com outros homens. E eles
podem, sem dúvida, enlameá-lo, o que será uma grande pena para você e para as
pessoas que você poderia ajudar. Não há nada mais perigoso do que um
potencial salvador transformado em realista por um contato íntimo demais com o
mundo humano.
Frank montou novamente na égua, humilhado e insultado, como se
Wade o houvesse surpreendido nu e tivesse feito uma observação imoral a seu
respeito.
Não cavalgaram mais lado a lado. Frank atrasou-se um pouco, mal-
humorado. Desceram uma colina e chegaram inesperadamente a uma grande
cabana de troncos, aninhada em um bosque de altos pinheiros. Os terrenos em
volta estavam capinados; fileiras de flores bem cuidadas cercavam a varanda,
onde se espalhavam várias cadeiras de balanço. A vertente da colina embaixo
fora trabalhada de acordo com os ideais de Wade de plantio em curvas de nível.
As fileiras curvas de pés de milho e fumo agitavam-se, verdes e douradas, à luz
quente do sol. Um homem barbado e corpulento, sentado na varanda, consertava
alguns arreios. Um cão de caça levantou-se e saudou os recém-chegados com um
alegre latido. Por trás da casa estendia-se um grande celeiro cinzento e um
galinheiro cheio de aves.
O homem, barbado, moreno, usando uma camisa de mangas curtas,
ergueu-se alegre, sorriu e acenou.
— Olá — disse. Lançou um curioso olhar a Frank. Ao ser-lhe
apresentado, apertou-lhe cordialmente a mão. — É um prazer vê-lo, pastor —
disse a Wade, quando os jovens desmontaram. — Já fez um bocado de tempo
desde que andou por aqui.
— Bem, eu ando um bocado pelo território — respondeu Wade. —
Sentiu minha falta?
Eli Gratwick soltou um risinho.
— Exato. Parece que nunca o vejo, exceto quando há enterro.
— Voltou-se para Frank. — O pastor aqui enterrou a minha velha, vai
fazer um ano na próxima primavera. Foi a melhor conversa mole de funeral que
já ouvi!
— Então, o senhor também é mórmon? — perguntou Frank
polidamente, mas sem interesse. Curvou-se e acariciou a cabeça do cachorro.
— Não, Eli é um pagão inveterado — respondeu Wade, rindo. Observou
o olhar de Frank. — Chamamos de pagãos àqueles que não fazem parte de nossa
Igreja — explicou. Olhou para Eli Gratwick, um gigante moreno, de rosto largo
e cordial e olhos vivos de camponês.
— Como é que vai Bobby? Bobby é o filho de Eli. Está fora, estudando
numa faculdade — explicou a Frank.
O rosto de Eli animou-se, suavizou-se, enobreceu-se de amor e
acanhamento.
— Ora, o velho filho da mãe vai muito bem — disse. — Vem para casa
cheio de perigosas ideias novas, também. Arranjou um emprego de subdelegado
e vai morar em Paintsville. — Explodiu subitamente em uma hercúlea
gargalhada, que reverberou pelas colinas e provocou um nervoso latido do
cachorro. — É melhor que ele não apareça por aqui atrás desses fabricantes
clandestinos de uísque! — exclamou. — Mas Bobby tem bom senso, como o
pai. Espero. Disse que vem para casa na primavera. Ele tem uma pequena lá na
montanha, como lhe disse. A filha do velho Saunders. Embora eu não combine
com as ideias heréticas do velho Saunders, que não são cristãs, a menina é um
bocado bonita e inteligente. Ela também aprendeu umas ideias no Berea.
— Isaac Saunders — explicou Wade — é um dos amigos que vamos
visitar hoje. A filha dele, Betty, é uma moça encantadora e acho que começará a
lecionar este outono em Paintsville, onde Bobby vai trabalhar, também.
Eli convidou-os a entrar. O interior da cabana era espaçoso e bastante
fresco. O chão de pinho fora esfregado até tornar-se branco como leite. Havia
uma mesa sem toalha, igualmente limpa e lisa, e cadeiras de assento de junco
dispostas a intervalos regulares ao longo das paredes, forradas recentemente com
as inevitáveis páginas arrancadas de catálogos da Sears, Roebuck. Numa grande
e tosca lareira de pedra, aberta na parede mais distante, queimavam pedaços de
carvão de gás, encontrado nas vizinhanças. Uma chaleira escura borbulhava em
cima do fogo. Sobre a lareira, presas à parede, havia quatro excelentes carabinas
Winchester. A luz entrava pelas janelas bem lavadas, mas sem cortinas. Num dos
lados estendia-se uma “enxerga” nova, onde dormia Eli. Frank viu uma
prateleira de louça branca, arrumada em fileiras simétricas, em outra parede e,
embaixo, várias panelas e frigideiras de ferro.
Conhecia bem o interior das cabanas da montanha, mas a limpeza era
coisa nova e ficou satisfeito. Ele e Wade aceitaram o convite de Eli para
“descansarem” um pouco enquanto o dono da casa se dirigia à pequena copa
contígua. Logo depois, reapareceu com um jarro de leite “doce”, um prato de
biscoitos e um pote de geleia de morangos silvestres. Colocou os alimentos
sobre a mesa, voltou à copa e trouxe uma travessa de rosado presunto defumado,
cortado em fatias finas.
Frank ficou a princípio desconfiado com essa hospitalidade montanhesa,
mas, quando viu os copos faiscantes e o aspecto limpo dos talheres de aço,
sentiu-se aliviado. Comeu com grande satisfação e prazer enquanto Wade e Eli
renovavam a amizade e trocavam piadas que lhe pareceram misteriosas. Era
evidente que Eli gostava imensamente de Wade, como mostravam os adjetivos
alegres, profanos, mesmo obscenos, que lhe dirigia em profusão. Uma ou duas
vezes estendeu o braço e colocou a imensa pata morena sobre o impecável
joelho de Wade e sorriu alegre. Frank, como sempre, retirou-se para o segundo
plano aparentemente esquecido pelos dois amigos.
Nesse momento, Wade lembrou-se do companheiro. Disse a Eli:
— Mostre a Frank a fotografia que Bobby lhe enviou da faculdade.
Quero que ele conheça um excelente rapaz.
Enrubescendo e radiante como o sol, Eli levantou-se e foi pesadamente
até o catre. Puxou dos cobertores uma pasta de papelão branco áspero e,
orgulhosamente, mostrou-a a Frank.
— Não há muito que ver no velho filho da mãe — disse em voz grossa e
cheia de ternura. — Tem uma cara que parece de um cachorro doente. Mas é
meu filho.
Polidamente, Frank abriu a pasta. Ficou surpreso. A fotografia mostrava
um jovem de não mais de vinte e um anos, com a cabeça de um erudito ou de um
santo, estreita, longa, belamente formada, com sedosos cabelos louros levemente
ondulados. As feições eram delicadas, mas fortemente marcadas, perfeitamente
claras e nítidas. A expressão, contudo, era séria demais. Havia um excesso de
intensidade que lhe dava um ar quase fanático a despeito da grande inteligência
que revelava. Notou os olhos do jovem, grandes, claros e brilhantes demais,
excessivamente vulneráveis e penetrantes. Pensando bem, era a face de um
mártir, implacável em sua retidão, absolutamente sensível e puro, sem qualquer
humor, tolerância ou ternura.
Era difícil acreditar que aquele jovem fosse filho daquele rude
camponês, nesse momento circulando em volta de Frank com uma expressão
presunçosa no rosto.
— Ora... é... é... uma bela face — gaguejou incrédulo Frank.
Eli tomou a pasta e conservou-a durante um instante nas mãos
gigantescas. Praticamente, babava-se de êxtase. Fechou-a com todo o respeito.
— O velho filho da mãe — disse, e a voz lhe tremeu. Guardou a pasta no
catre e deu uma palmadinha nos cobertores como se faz à noite com um filho
adorado.
— Diga a Bobby que quero conversar com ele quando ele voltar — disse
Wade, levantando-se. — Talvez ele deixe que eu faça o casamento dele com
Betty.
Eli contraiu imponente as sobrancelhas.
— Nenhum maldito pastor vai casá-los, a não ser você! — exclamou. —
Eu quebro a cabeça do velho filho da mãe se ele escolher um desses malditos
pregadores ambulantes!
Cavalgando novamente ao lado de Wade pelas colinas, Frank não
conseguia esquecer os faiscantes e fanáticos olhos do jovem Robert Gratwick.
Pensando naquela face, na orgulhosa e delicada posição daquela cabeça, disse
finalmente:
— Wade, como é que um rosto daqueles apareceu nestas montanhas? Eli
é apenas um camponês analfabeto. O filho não se parece absolutamente com ele.
Como foi que ele conseguiu desenvolver ambição suficiente aqui nas colinas
para querer educar-se ou para saber algo sobre escolas?
Wade permaneceu silencioso durante alguns momentos antes de
responder:
— Talvez você não compreenda esta gente da montanha. A maioria,
admito, era composta de irresponsáveis, estúpidos e incompetentes quando
moravam no Leste. Não podiam aguentar a vida lá ou sobreviver entre os mais
agressivos, mais ambiciosos e mais inteligentes. Ouviram falar no Oeste e
pensaram que encontrariam aqui uma vida fácil e que não teriam de trabalhar
muito. Em vista disso, partiram. Mas não tiveram energia ou imaginação para ir
além destas montanhas. Ficaram por aqui.
Interrompeu-se por um instante e continuou:
— Ainda assim, alguns deles tinham bom sangue e educação. Eram uns
fracassados, provavelmente, e ineptos. Mas, apesar de tudo, eram homens de
boas famílias. Além disso, alguns deles possuíam esposas de educação superior,
que não podiam deixar os maridos. Assim instalaram-se por aqui e tiveram
muitos filhos, numa mistura de sangue bom e ruim. Com o passar do tempo, o
sangue ruim venceu, mas ocasionalmente, como no caso de Robert Gratwick, o
sangue bom retorna em outra geração.
Parou, esporeou a mula para subir uma ladeira e continuou:
— Conheci a mãe de Bobby uns dois anos antes da morte dela. Parecia-
se exatamente com Bobby. Era inteiramente analfabeta, mas, ainda assim, uma
mulher refinada de gostos delicados. Nada sabia sobre escolas, mas queria que
Bobby “aprendesse nos livros”. Eli adorava-a, o que aliás não é comum entre os
montanheses. Ele também respeitava muito a educação. Carvão de gás foi
encontrado em suas terras, lá para o leste, e assim ele tem um pouco de dinheiro.
Adorava Bobby, como adorava a esposa e, então, mandou-o para a escola.
— Bobby tem um rosto de fanático — disse Frank. — Parece um tipo
desagradável, mentalmente limitado e intolerante.
Wade suspirou.
— A mãe dele era o que chamamos de fanática religiosa. Não que
tivesse sido mais exposta do que qualquer outra mulher nestas montanhas aos
desvarios dos pregadores ambulantes, com seus berros de ignorantes e excitação
religiosa. Mas ela possuía uma mente delicada e com um equilíbrio fraco demais
para suportar essas excitações e desvarios. Mais ou menos há um ano, ficou
inteiramente perturbada, disse que viu certa noite a “ira de Deus” no cume da
montanha e cometeu suicídio, lançando-se de um penhasco.
Na voz mais zangada e viva que Frank já o ouvira falar, continuou:
— Mais perigosa e má do que qualquer forma do chamado “ateísmo” é a
loucura religiosa, em qualquer religião! Há algo de obsceno na dedicação e
devoção religiosas totais. Viajei por todo o Sul e vi a intolerância, o ódio e o
horror que a loucura religiosa desenfreada pode inspirar. Vi igrejas católicas
profanadas, sinagogas judaicas destruídas, escolas incendiadas, tudo isso em
nome de uma ignorante demência religiosa. Somente a educação poderá fazer
algo a esse respeito e serão necessárias gerações para diluir o veneno. Por que os
pastores e padres de outras zonas do país não vêm para o Sul e trabalham aqui,
neste autêntico vinhedo de serpentes, de linchadores de doenças? Por que
deixam esta bela região nas mãos dos analfabetos, dos demagogos, dos
pregadores ambulantes e rústicos “pastores do Evangelho”? Os sulistas educados
e aristocráticos riem e chamam seus irmãos de “rebotalho branco”. Acham esses
frenesis religiosos, esses berros, muito estranhos e divertidos. Não
compreendem, e o resto do país não compreende, que há aqui meia nação de
indivíduos parcialmente analfabetos e pagãos, maduros para qualquer mentiroso
ou patife que queira lançá-los numa loucura homicida. Em nome da Bíblia, em
nome de Deus.
Voltou-se na sela e olhou para Frank com uma face sombria e inflamada
de irritada revolta e grande medo.
— Já ouviu falar na Ku Klux Klan? Bem, a organização está novamente
em atividade, contra católicos, judeus e negros. Os sulistas educados riem desse
movimento e o toleram. Alguns acham-no pitoresco, mesmo quando o
denunciam. E eu lhe digo que não é divertido nem pitoresco. É horrendamente
perigoso. Traz à luz as mentes doentias que estão por trás dele, os analfabetos, os
ignorantes, as mentes cegas e odientas. Talvez o Sul o abafe, como tenta fazer
justamente agora, segundo os jornais que recebo. Mas o movimento ficará à
espera, como uma besta obscena em alguma pegajosa floresta. Esperará pela
hora de matar em nome da Bíblia “protestante”, da supremacia branca, ou de
qualquer outra coisa. É um sintoma do que existe de errado no Sul e, talvez, em
toda a América, talvez em todo o mundo!
Frank fitou-o, confuso. Entretanto, escutando e vendo a face agitada de
Wade, sentiu um arrepio, um formigamento, como se o seu sangue começasse a
abrir caminho através de tecidos entorpecidos e veias bloqueadas.
Wade bateu violentamente no pescoço da mula, que, assustada, saltou
um ou dois passos para a frente. Arrependido, deu uma palmadinha no pescoço
do animal e continuou a fitar Frank com insistência:
— Você pensa que estou exagerando. Acho que eles nem mesmo sabem
o que odeiam. Simplesmente odeiam e procuram um alvo para o ódio! Às vezes,
penso que isso não acontece simplesmente no Sul, mas em toda parte, esse ódio
do homem pelo seu irmão. No último verão, fui à Europa... — Suspirou, em
desespero. — Eu não sei. Às vezes, penso que não há remédio. Não há um
número suficiente de pessoas que se importe com esse ódio ou mesmo consiga
vê-lo. Parece que uma espécie de fatalismo tomou conta dos homens de boa
vontade. Acham que o mundo é grande demais. Pensam que a estupidez, o ódio
e a ignorância são partes tão fundamentais da natureza humana que ninguém
pode fazer coisa alguma a esse respeito. Formam um pequeno grupo fechado e
pregam sermões uns aos outros, em vez de penetrarem nos tórridos vinhedos e
nos desertos onde reside o resto do mundo. Mas eu lhe digo que homens de boa
vontade poderiam salvar o mundo, se apenas tentassem, se apenas se reunissem e
trabalhassem como um só corpo!
Continuaram a cavalgar, subitamente silenciosos. Frank ergueu os olhos
para as montanhas e pareceu-lhe que elas se avolumavam, adquiriam substância,
tornavam-se importantes. A sensação era tênue. Pensou: quando chega não é tão
intensa. Eu gostaria de poder sentir... de me importar.
Após um período de silêncio, Wade voltou a falar:
— Mas eu estava falando a respeito de Lizzie Gratwick. Ela tentou, a pobre
alma, contaminar Bobby. Ele, porém, ficou indiferente à demência religiosa da
mãe e não foi contagiado. Contudo, conservou-lhe a emoção, digamos assim, por
falta de uma palavra melhor. Tornou-se defensor intransigente da “retidão”.
Desconfio do entusiasmo dele, que é parte de sua intolerância. Desconfio de
todos os indivíduos entusiásticos, lamento dizer, a menos que eles sejam grandes
homens. Mas os grandes raramente são entusiásticos, e aí é que talvez resida o
problema. A ideia de Bobby de “iluminar” as pessoas é torná-las ateus puritanos,
defensores intransigentes da lei, rigorosos. Pobre rapaz! — Suspirou. — Acho
que não fui muito claro. Bem, é isso.
— Acho que você não gosta de Bobby — comentou irônico Frank.
Wade riu levemente.
— Não gosto desse tipo de mente, seja religiosa ou ateia. Quando
descemos ao fundo, descobrimos que é a mesma coisa.
— E Bobby, gosta de você?
Wade pensou na pergunta.
— Para ser franco, acho que Bobby não gosta de pessoa alguma. Acho
que ele nem mesmo vê as pessoas de modo objetivo. Espero apenas que, casando
com Betty, essa atitude seja suavizada e tornada mais generosa. Mas estou
receoso agora, depois de ter ouvido dizer que ele vai ser subdelegado em
Paintsville. É exatamente o tipo de coisa que ele faria.
CAPÍTULO 49
Começaram a subir a encosta de uma alta colina. O calor do dia se
tornava mais intenso, embora já fosse quase novembro. O céu embranquecera,
fervia, e as colinas haviam adquirido uma cor mais sombria, embora mais vivida.
Por que Wade me fala dessa maneira? Perguntou-se Frank. Fala como se
fosse um professor, dirigindo-se a um aluno. “Mostra-me coisas.” Por quê? Por
que deveria ele importar-se? Que intenções tem a meu respeito? E por que pensa
que eu me importaria mesmo? Por que me trouxe hoje até aqui? Ele não é
homem de perder tempo simplesmente fazendo excursões. Tem algo definido em
mente e pensa, ou espera, que eu compreenda.
Chegaram ao cume da colina. Wade colheu as rédeas da mula e apontou.
Bem lá embaixo, Frank viu um vale muito mais largo do que os demais, um vale
verde e sorridente, coberto por um leve nevoeiro. Dominava-o uma casa de
fazenda tão diferente das cabanas de troncos das outras zonas que Frank ficou
atônito. Notou o grande tamanho da casa branca, as pequeninas venezianas, o
telhado vermelho e a chaminé de onde se evolava uma coluna de fumaça.
Observou grandes celeiros, o silo vermelho, os gramados bem cortados, com
cercas brancas, os pátios bem cuidados, os campos bem capinados e os prados
onde miniaturas de gado Holstein pastavam no calor do dia. Notou grupos de
grossos carvalhos e olmos bordejando os prados e lançando sombras azuis sobre
o verde quente da terra.
— É aí que mora Sherry Hempstead — disse Wade —, um fazendeiro
muito próspero. Além disso, possui uma grande gleba perto de Benton, onde
foram encontrados os melhores poços de petróleo. Quero que você o conheça. —
Interrompeu-se e olhou pensativo para Frank.
— Mórmon?
— Não. Pagão. — Wade sorriu. — Mas um bom amigo meu, tanto
quanto amigos podem ser. Temos muita coisa em comum e ele é generoso com
os “víveres” que peço para a gente semimorta de fome que mora nas vizinhanças
de Benton. Ele ri, mas dá o que peço por amizade a mim, pois sente apenas
desprezo pelas demais pessoas. É um homem muito inteligente e vivo, duro
como uma pedra, absolutamente implacável, mas também de considerável
cultura, que adquiriu principalmente por esforço próprio.
Wade interrompeu-se. Havia algo peculiar em suas maneiras e, perplexo,
Frank olhou para a fazenda e para os maravilhosos campos verdes, pardos,
vermelhos e amarelos. Não soube por que, mas, de súbito, achou que a cena
calma e luminosa adquirira um ar sinistro, funesto, secreto, fatídico. Encolheu os
ombros para afastar a impressão e esperou que Wade continuasse, como aliás ele
estava evidentemente prestes a fazer.
— Sherry tem uns cinquenta anos de idade. Não tem filhos. Tem esposa.
Ela é uma senhora encantadora, educada em uma faculdade do Leste. O pai dela
era dono dessa fazenda, que passou a Sherry, o qual, mesmo na ocasião, já
possuía bastante dinheiro, antes de casar com Mary Wilcox. Mary tem uns
quarenta e cinco anos. — Parou novamente.
— Como é que ela pode viver assim tão isolada? — perguntou Frank.
Distraído, Wade acariciou o pescoço da mula.
— Não podia, mas agora pode. — Suas maneiras e voz tornaram-se mais
peculiares do que nunca. Continuou: — Há uma estranha história a respeito de
Sherry e Mary. Dizem que ela o amava quando casou com ele. Naturalmente,
não os conheci quando jovens. Devem ter-se dado muito bem. Certo dia, porém,
um pastor começou a andar por estas colinas. Pelo que ouvi dos desdenhosos
montanheses, ele era um dedicado jovem de Louisville que pensava em fazer
algo pela gente destas bandas. Diz a história que ele e Mary se apaixonaram e
fugiram juntos.
Mais uma vez, Wade interrompeu-se.
— Não sei — continuou, após alguns momentos. — Posso apenas
contar-lhe a história, segundo a qual Sherry foi atrás dos dois. Dizem que, depois
de cavalgar dois dias, acompanhado de três empregados da fazenda... preste
atenção... encontraram Mary semimorta no fundo de um velho poço abandonado,
em algum lugar da montanha. Os ajudantes que estavam com Sherry disseram,
em depoimento mais tarde, que a coisa foi assim. E nada mais. O jovem pastor
desaparecera, disseram. Havia apenas Mary no poço. Ninguém mais viu o pastor.
Houve alguma curiosidade a esse respeito nas cidades, pois o rapaz era de uma
família rica e importante de Louisville, que não deixou a questão morrer assim.
A família enviou enxames de policiais pela montanha, interrogando todo mundo
e, principalmente, Sherry e os empregados da fazenda. Mas ninguém jamais
voltou a ver o pastor.
— E daí? — indagou Frank quando Wade se calou outra vez. — O que
foi que aconteceu com Mary?
Wade puxou as rédeas.
— Sherry trouxe-a de volta. Aparentemente, perdoou-a. Mas ela estava
louca, completamente louca. Foi forçado a interná-la num sanatório particular
em uma das cidades, segundo dizem. Ela ficou lá durante três anos. Em seguida,
teve alta como curada. Sherry trouxe-a para casa. Moram juntos agora e a
história está quase esquecida. Conheci-os há uns três anos. Mary continua bela e
é uma das mulheres mais doces e meigas que já conheci.
— Ela contou a alguém o que aconteceu?
— Se o fez — respondeu lentamente Wade —, nunca ouvi essa versão.
Acho que não. Talvez ela mesma tenha esquecido.
Começaram a descer a íngreme ladeira, Frank na retaguarda, enquanto a
mula e a égua escorregavam cautelosas pela terra cheia de pedras, arrancando
com as patas pequenos torrões cobertos de relva e deixando atrás nuvens de
poeira amarela. Logo depois, Frank emparelhou-se com Wade e perguntou:
— Mas, escute aqui, a Polícia podia acreditar nos empregados da
fazenda? Talvez Sherry os tenha subornado... O que foi que aconteceu com eles?
— Bem — respondeu pensativo Wade com um olhar para a casa, que se
erguia para recebê-los —, isso é que é estranho. Houve uma série de
coincidências, acho. Um deles morreu quando a árvore que estava cortando
tombou sobre o lado errado. Outro faleceu devido a patadas de uma das mulas de
Sherry. E o terceiro foi envenenado com carne estragada. Acho que nós,
médicos, chamamos a isso de envenenamento por ptomaína.
— E tudo isso aconteceu na propriedade de Sherry?
— Exatamente. — A voz de Wade se tornara um pouco tensa. — Na
propriedade de Sherry e tudo no espaço de seis meses após o dia em que
encontraram Mary. — Esporeou a montaria, parou, continuou em passo mais
lento e disse sem, voltar a cabeça: — Você vai gostar de Sherry. Ele é muito
respeitado neste município. Eu gosto dele. Muito. É trágico. Ele é dedicado a
Mary, sempre foi, e gastou uma fortuna no tratamento dela.
— Mas o que é que os montanheses pensam de tudo isso e da morte dos
empregados da fazenda?
— Passados vinte anos, pensam ainda que Mary é uma mulher má, mas
nunca a veem. Ela nunca deixa a fazenda e nunca saiu daqui desde que voltou.
Os empregados da fazenda? Bem, o pessoal diz que a fazenda é “encantada”,
que pesa sobre ela uma maldição, por algum motivo, provavelmente por causa
do pecado de Mary. Sherry não conseguiria empregados se não pagasse salários
enormes. O pagamento de empregados por aqui é de mais ou menos um dólar
por dia. Sherry paga três, além de fornecer a comida. Mas nenhum deles dorme
na fazenda.
Frank, aborrecido com aquela curiosa e estranha reserva de Wade, disse
rudemente;
— Acho que seu amigo matou o pastor, mandou os empregados
enterrarem o cadáver e subornou-os para que ficassem calados. Em seguida, com
medo de que eles viessem a falar algum dia, matou-os, um depois do outro.
Acho que Mary viu o amante ser assassinado e enterrado, lançou-se no poço e
enlouqueceu. É isso o que penso. E acho que é uma vergonha que o patife não
tenha sido preso e enforcado.
— Espere até conhecer Sherry — recomendou Wade em voz calma.
Continuou, após um momento: — O estranho é que se descobriu que Ronald
Truesdale fora um velho amigo de Sherry. Ele ofereceu uma recompensa a quem
quer que descobrisse sinal de Ronald, e era um bocado de dinheiro. Os
montanheses passaram um pente fino pelas colinas, por quilômetros em volta.
Eles possuem olhos de mateiros e não encontraram o menor sinal de uma
sepultura apressadamente aberta.
— Bem, o que é que você pensa? — desafiou-o Frank.
— Tenho uma teoria — respondeu Wade em voz baixa e perturbada. —
É possível que Ronald Truesdale se tenha arrependido, ou coisa parecida, depois
de ele e Mary estarem cavalgando durante dois dias pelas montanhas. Pode ser
que tenha jogado Mary no poço. Então, acreditando em que ela estava morta,
fugiu, mudou de identidade e, ainda sentimentalmente arrependido ou pensando
ser um assassino, escondeu-se em alguma cidade distante.
Frank permaneceu silencioso durante alguns minutos.
— Mas você não acredita nisso, acredita? — indagou.
Wade não respondeu. Continuou simplesmente a cavalgar, seguido por
Frank, que fervia de irritação.
A casa da fazenda estava bem à frente deles nesse momento, no centro
do vale, pacífica, serena, plácida, cercada de gramados e campos inundados por
uma catarata de luz. Cães correram para recebê-los, latindo contentes.
Empregados ergueram a cabeça e olharam para eles. O latido dos cães ecoou de
colina em colina no quente silêncio. Em alguma parte, um homem chamou-os,
um cavalo relinchou e galinhas cacarejaram. As janelas da grande casa branca
brilhavam vivamente ao sol, enquanto a chaminé soltava preguiçosas nuvens de
fumaça. Um curioso bando de galinhas-da-guiné, cinzentas com pintas brancas,
correu até a cerca de taliscas aos gritos de “tô-fraco, tô-fraco!’. A luz
transformava o silo em um alto pilar de chamas.
Um largo pátio, com samambaias em potes e confortáveis cadeiras de
balanço, abria-se diante da casa. Um homem ergueu-se devagar de uma das
cadeiras quando Wade e Frank amarraram os animais em um poste. Ao
reconhecer Wade, desceu rapidamente três degraus baixos, gritando alegre e
acenando com a mão.
— Wade! Seu velho filho da mãe! Como é que vai você? De qualquer
maneira, onde foi que você andou?
Cheio de desconfiança, Frank observou-o aproximar-se. Mas ninguém
poderia parecer menos com um “assassino” do que Sherry Hempstead. Era um
homem alto e bonitão de uns cinquenta anos, largo, ágil, rápido de movimentos,
com uma massa de cabelos brancos espessos sobre uma testa larga e uma face
morena e quadrada. Aquele homem não era um camponês, mas um espécime de
sangue excelente, viril, alerta, inteligente, de expressão agradável, nariz forte e
grosso, boca sorridente, belos dentes brancos, queixo quadrado e os mais alegres
e brilhantes olhos azuis que Frank já vira em toda a vida. Tudo nele era vivo e
esfuziante, ágil e rápido. O aperto de mão que deu em Frank foi firme, quente e
cordial. Não usava os trajos habituais dos montanheses, composto de camisa
azul e calça de brim grosso da mesma cor, abotoada com botões de latão. Vestia
camisa branca e engomada, calças de flanela cinza-clara e sapatos de verniz bem
engraxados. Recebera a apresentação de Frank com uma grave e cordial cortesia.
A maneira firme como fitou o estranho foi tranquilizadora e agradável. Então ali
estava o autêntico sulista, polido, hospitaleiro, bondoso.
— Todos os amigos de Wade são meus amigos — disse ele em tom
sincero e sorrindo de modo encantador.
Ainda assim, pensou hesitante Frank, ele é provavelmente um assassino.
Sherry levou-os para a casa com um braço passado sobre os ombros de
Wade, insultando em voz alta e musical o jovem pastor pelo longo abandono em
que o havia deixado. Frank, extremamente surpreso, notou que a casa era muito
bem mobiliada, embora com simplicidade. O saguão, com chão de madeira
polida e paredes apaineladas, era gracioso e sério. Um relógio antigo batia
melodioso no fresco e azul silêncio. Uma escada branca espiralava para o
segundo andar e tão belamente trabalhada e entalhada fora, que no seu aspecto
quase imponderável parecia ser feita de neve, parada um instante antes de
tombar no chão. Sherry conduziu-os pela porta do saguão até uma sala de visitas,
de chão lustroso, coberto por pequenos tapetes persas. Sobre a lareira de
mármore branco erguia-se um candelabro requintado, com velas brancas. De
cada lado da lareira, um jarro cloisonné de azul cobalto, montado sobre pernas
de madeira torneada. As paredes eram da mesma cor, embora de tonalidade mais
clara. Uma das paredes abrigava estantes de nogueira cheias de livros, dezenas
deles, encadernados em couro fino, além de numerosos outros cujas sobrecapas
mostravam ser edições recentes. Frank notou que a mobília, constituída sem
exceção de antiguidades preciosas, fora bem restaurada: um sofá Rainha Ana,
diversas cadeiras pequenas torneadas, com forro de damasco azul, coral, rosa e
vermelho, certo número de mesas redondas Duncan Phyfe de mogno com pés de
latão e, nas paredes, uma ou duas antigas e belas paisagens e retratos. Havia
também uma novidade: cortinas de brocado, combinando com as cores das
cadeiras e presas com borlas. Abajures realmente maravilhosos, com cúpulas
pintadas, em forma de globos ou faiscando com prismas, ornamentavam as
mesas.
Frank não conseguiu acreditar nos próprios olhos. Sentou-se,
inteiramente confuso, atendendo ao cordial e amável convite de Sherry.
Escutando, enquanto Wade e Sherry trocavam brincadeiras e insultos afetuosos,
sem querer ficou encantado com a voz doce e sedosa do dono da casa. Mas
encantava-o ainda mais a elegância e graça da grande sala de visitas e seu
mobiliário. A sua mente tensa e sofredora involuntariamente se relaxou. Ali
estava a sala e a casa com que sonhara durante toda a vida, aconchegada entre
campos sorridentes, separada por lustrosas colinas do feio mundo e abraçada por
um círculo luminoso de ensolarado silêncio e paz.
Sherry ergueu a voz e momentos depois entrou uma moça de vestido
azul limpo e avental branco, inocentemente descalça.
— Prepare uns dois copos, Sal — disse Sherry —, três, para ser exato. E
não faça economia no uísque.
Despediu-a com um gesto e voltou à animada e afetuosa conversação
com Wade. Da mesma forma que acontecera na casa de troncos de Eli Gratwick,
Frank foi momentaneamente esquecido. Ergueu-se sem chamar a atenção e
passou a vista pelos livros. Encontrou obras de Platão a Santayana, de
Shakespeare a Galsworthy, de Dickens a Gene Stratton Porter, de Harold Bell
Wright a Michael Arlen. Abriu algumas furtivamente e notou que haviam sido
lidas, pois viu os cantos dobrados e anotações em margens feitas com uma forte
mão masculina. A casa, porém, pertencera ao pai de Mary e aquele homem
provavelmente não lia. Lançou o olhar em volta e viu várias revistas, variando
do Literary Digest ao The Country Gentleman, um jornal, o Louisville Times,
datado de apenas alguns dias antes.
Sentou-se e ficou escutando a conversação entre Wade O’Leary e Sherry
Hempstead. Este dominava a conversação e era evidente que sentia fome de
palestra inteligente e de companheirismo. Após as primeiras manifestações
brincalhonas, mas sinceras, de assuntos pessoais, lançara-se numa discussão
sobre a política nacional e a última guerra. Falava com verve e energia,
imaginação e fogo, e saltava aos olhos que era um homem bem informado.
Falando, usava as mãos de modo vivo para sublinhar as palavras, enquanto os
brilhantes olhos azuis relampejavam, luziam e faiscavam. Wade recostou-se na
cadeira, indolentemente gracioso e interessado.
— Ora, qualquer pessoa sensata veria desde o início que Wilson teria de
fracassar! — exclamou ele convictamente. — Esse é o problema com os
idealistas: transferem suas próprias virtudes e sonhos para os demais e acham
que todos pensam como eles e querem as mesmas coisas. É assim que esses tolos
raciocinam: paz, justiça, fraternidade e bondade são coisas boas, não? Bem,
todos querem as coisas boas, não? Os idealistas são homens bons, não odeiam
ninguém e querem comiseração, tolerância e compreensão entre as nações.
Acham que todos são como eles e, sendo assim, querem todos a paternidade de
Deus e a fraternidade dos homens na terra. E isso terá que ser assim, não? O que
não sabem é que para cada idealista e cada homem bom há milhões de outros
que não se importam em absoluto com os demais e que querem apenas odiar,
tomar, assassinar e encher os bolsos. — Soltou uma grande gargalhada e sacudiu
a grande cabeleira, branca como a neve.
— Mas um único homem bom em Sodoma poderia ter salvo a cidade —
murmurou sorrindo Wade.
—•Ora bolas, então não há um único homem bom em todo o mundo! —
respondeu Sherry, rindo novamente. — Você verá. As coisas todas estão
apodrecendo. Espere só alguns anos e o inferno abrirá suas portas. Por quê?
Porque ninguém quer realmente paz, justiça, fraternidade, exceto idealistas como
Wilson. E não há gente como ele em número suficiente para combater o
inevitável.
—•Então você pensa que a Liga das Nações vai ser um fracasso?
— Sei que vai ser — respondeu convicto Sherry. — Contudo, note, não
sou contra ela. Somente os tolos completos o seriam. Mas o mundo está cheio de
tolos e, assim, a Liga não tem a menor possibilidade. — Olhou para Wade, cuja
face se tornara séria e sombria. — Ei! — disse, dando uma palmada carinhosa no
joelho do jovem. — Não fique desse jeito. Não é tão grave assim. Por que é que
você se importa? Mas você se importa, acho. Sim, acho que sim. Meu Deus,
rapaz, o mundo não merece isso, pode acreditar. Não vá torturar o cérebro por
causa disso, lamentar-se e andar por aí tentando reformar o mundo. Temos
conosco o Pecado Original e você faria melhor em deixar que cozinhássemos em
nosso próprio caldo. De qualquer maneira, o que é que você pode fazer?
— Não gosto desse seu “cozinhar no próprio caldo” — disse Wade com
uma dura nota na voz, embora sorrisse. — Há um número excessivo de pessoas
entre nós que adotam essa atitude.
Sherry deu outra palmada no joelho de Wade e seus olhos, embora
sorridentes, suavizaram-se de piedade.
— Volte para o lugar de onde veio. Case-se com alguma boa moça, lá
em sua terra. Pratique a sua medicina e deixe que o resto do mundo vá para o
inferno. Ele o fará, de qualquer maneira, pode acreditar. Sabe de uma coisa? O
Calvário constituiu um grande erro.
— Um Homem morreu no Calvário para que nós não morrêssemos em
milhões de outros Calvários — disse Wade.
— Mas nós morreremos, apesar de tudo! E você não pode evitar isso...
ou Wilson, ou qualquer outra pessoa. Estamos determinados a subir os nossos
Calvários, todos nós, e o demônio é quem pregará os cravos. A nosso pedido.
— Bem — disse sombriamente Wade —, temos que ensinar ao resto da
humanidade que, se não aceitar a paz, a justiça e a amizade entre as nações, ela
morrerá em um charco de sangue e deixará a terra a animais mais sensatos.
Viveremos juntos ou morreremos juntos, amanhã, no próximo ano, dentro de dez
ou cinquenta anos a partir de agora.
Frank escutou interessado a discussão e sentiu certa simpatia por Wade.
Ficou surpreendido com o modo de falar de Sherry, que oscilava entre frases de
um erudito e a simplicidade e má gramática de um homem do campo. Achou que
esta última característica era uma afetação completa, uma espécie de embaraçada
simplicidade, e não se enganou inteiramente.
— Você não pode fazer coisa alguma a esse respeito — persistiu Sherry
Hempstead. — Ouça aqui, Wade, por que não compra uma fazenda por aí? Não
nesta terra esquecida por Deus, mas em Utah, ou talvez em outro lugar. Lembra-
se do que disse o velho William Penn? “O interior é o jardim e a biblioteca do
filósofo. Onde ele lê e contempla o poder, a sabedoria e a bondade de Deus”.
Ande por aí, faça seu jardim, percorra sua fazenda e, talvez, construa um grande
muro em volta de sua casa. Depois, esqueça o resto do mundo. Você não pode
ajudá-lo. Não adianta sofrer e lamentar-se pelo resto de nós.
Wade, porém, permaneceu sombrio, mergulhado em tristes pensamentos.
Frank, que o conhecera como pessoa fria e tranquila, tolerante e extremamente
equilibrada, ficou surpreso. Nesse momento, Wade, mexendo-se como se
sentisse um profundo cansaço, disse:
— Você fala como Caim, Sherry.
— Claro, claro! Quer saber de uma coisa? Caim foi um homem sensato e
tem sido injustamente tratado. Se ele não tivesse dado uma paulada na cabeça de
Abel, pode ter certeza de que outra pessoa o teria feito, naquele cara de sangue
aguado, preocupado com Deus e em fazer o bem! Ouça, li justamente esta
manhã um poema de Stephen Crane:

“Disse um homem ao universo:


Senhor, eu existo!
Não obstante, respondeu o universo,
Esse fato não criou em mim
Um senso de obrigação”.
Wade riu a despeito de si mesmo e sacudiu a cabeça. Sherry escutou o
riso, satisfeito por ter conseguido tirar o amigo da depressão.
Nesse momento entrou uma mulher, trazendo uma bandeja de prata com
três altos copos. Mas não era Sal, a empregada. Era uma mulher alta e esguia,
em princípios da meia-idade, face pálida e belamente esculpida e cabelo louro
lustroso arrumado alto sobre a pequena cabeça. Usava um vestido de refinado
corte, em linho azul, de modelo sério, que lhe realçava o corpo esbelto e jovem.
Não usava joias, salvo uma larga aliança de ouro. Movia-se com graça e sorriu
para Wade com visível prazer.
—- Wade! — exclamou, depositando a bandeja numa mesa enquanto os
homens se erguiam, com Sherry à frente. — Que prazer vê-lo! — Estendeu a
mão branca e esguia. Quando Wade a apertou, ela colocou a outra mão sobre a
mão dele num gesto de cálida afeição,
— É um prazer vê-la também, Mary — respondeu Wade. — Quis vir
antes, mas houve um surto de febre tifoide e andei muito ocupado. — Indicou
Frank com um gesto. — Este aqui é Frank Clair, Mary. Do Norte. Um dos
prospectores de petróleo e amigo meu.
Ela voltou-se graciosamente e Frank notou-lhe a beleza calma e
tranquila e os grandes olhos castanhos claros sob pálpebras e sobrancelhas
douradas. Nunca vira olhos tão meigos ou suaves, tão radiantes e ternos. Apesar
disso, de maneira curiosa, pareceram-lhe cegos, obscuramente inconscientes,
sem focalização. O prazer inicial transformou-se em desconforto, em especial
quando sentiu a frieza da mão macia e a flacidez dos dedos. Além disso, não era
normal que uma mulher da idade dela parecesse tão jovem, tão intocada pelo
tempo. A face e a pele poderiam ter sido as de uma mulher na casa dos vinte,
serena, sem uma ruga, como de uma moça falecida na juventude, interrompida
no próprio ato de florescer.
Sem querer, com a mão de Mary ainda na sua, Frank olhou para Sherry.
Sherry fitava a esposa com uma expectativa sorridente, apaixonada, e profunda
intensidade. Parecia vigiar-lhe os menores movimentos, alerta demais, pronto,
para uma emergência. Ainda assim, ninguém poderia ter-se mostrado mais
equilibrada do que Mary Hempstead, mais graciosa, mais tranquila. A voz era
encantadora, com a maciez do autêntico sotaque sulista, sem pressa, muito doce.
Sherry ofereceu-lhe uma cadeira, tocou-lhe a mão, sorriu para seus olhos
e foi buscar um cálice de vinho para ela. Pôs sua própria cadeira junto à dela,
recebendo um grato e tranquilo sorriso. Mary sentou-se com os sedosos e
esguios tornozelos cruzados, as mãos dobradas no regaço, fitando-os com olhos
iluminados, com imparcial polidez e satisfação. Sherry, como se houvesse
temporariamente esquecido as visitas, olhava para a esposa, seguindo-lhe todos
os movimentos com evidente devoção.
Foi sua imaginação sem dúvida, mas, inesperadamente, Frank achou
difícil respirar naquela bela sala, no centro da qual sentava-se a linda e serena
mulher. Certamente foi a imaginação que lançou uma leve e sinistra luz pelas
janelas e cobriu todas as coisas com uma sombra quase imperceptivelmente
lívida.
Sherry inclinou-se e passou o braço pelo encosto da cadeira da esposa,
que mais uma vez o fitou com olhos tranquilos e cegos. Sherry insistiu nesse
momento em que Wade contasse como iam as coisas “lá por Benton” e suas
experiências no combate à epidemia de febre tifoide. Aparentemente, a voz de
Wade agradava a Sherry pelo seu próprio som, mas ele demonstrava também o
interesse do homem isolado pelo menor fato ocorrido em volta. Gargalhou de
satisfação ao saber da briga entre dois fabricantes ilegais de bebida, pediu
informações sobre os novos poços abertos, perguntou sobre amigos comuns.
Mary escutava, virando os grandes olhos castanhos para um e outro e, às vezes,
endereçando a Frank um sorriso cordial e encantador. Era a própria imagem de
uma esposa bem feminina, adorada, mimada, contente em florescer no amor do
marido e coisa alguma contribuir para a conversação, embora, às vezes, quando
Sherry falava, lançasse a ele um olhar de viva e carinhosa aprovação.
Mais tarde, a convite de Sherry, Wade e Frank foram ver os campos de
fumo, que justamente amadureciam, e os estábulos, onde os cavalos eram
protegidos dos calores do dia. Sherry orgulhava-se dos animais. Ia inscrever uma
égua preta nas corridas daquele ano. Os estábulos cheiravam a couro e a cavalo e
estavam meticulosamente limpos. O interesse de Frank por cavalos não era
grande coisa. Para ele, um cavalo era um cavalo, um animal não muito
inteligente, com uma queda por maliciosas travessuras e apetite por aveia. Wade,
porém, profundamente interessado, andou de baia em baia acariciando as
estúpidas bestas e deixando que elas esfregassem os focinhos em sua mão.
Sherry andou com eles pelos campos dizendo coisas incompreensíveis
sobre o fumo e o mosaico, o que estava fazendo para combater essa doença e que
preço esperava obter pela safra. Falava e gesticulava com ares francos. Era um
típico cavalheiro rural, cheio de vigor e saúde. Frank lembrou-se da mulher
silenciosa e sorridente na sala que haviam acabado de deixar e perguntou-se se
ela estaria à espera, sem mexer-se na cadeira, até que eles voltassem. Estava.
Continuava sentada, sorrindo levemente, perdida em uma estranha nuvem de
sonhos. Frank ficou realmente sobressaltado quando ela indicou que os havia
visto e convidou-o e a Wade para jantar.
Frank, porém, sentiu-se tão embaraçado e contrafeito que foi grande seu
alívio quando Wade polidamente se desculpou, dizendo que ele e Frank eram
esperados ao jantar por Isaac Saunders. Isso divertiu Sherry, que fez algumas
observações faceciosas sobre Saunders, observações que Wade rebateu em tom
brincalhão. Mary, porém, continuou a sorrir o mesmo sorriso e não insistiu.
Frank teve a impressão de que ela nem mesmo estava consciente de ter feito o
convite. Ergueu-se, apertou as mãos dos dois jovens e graciosamente pediu que
viessem visitá-los logo que pudessem. Não houve mudança alguma na sua
expressão encantadora e cega.
Sherry envolveu-a com um braço. Ela encostou-se levemente nele.
Acompanharam Frank e Wade até a porta e observaram-nos descer o caminho de
lajes até o portão, onde montaram e tomaram as rédeas.
Nesse momento, uma coisa horrível aconteceu. Inesperadamente, Mary
soltou-se do marido, desceu correndo os degraus da varanda e disparou na
direção deles. Mas, como se atingida por um raio, por algum apavorante e
paralisante horror, parou no caminho e ergueu os braços. Petrificado, Frank viu-
lhe a bela face pasmada, convulsa, os olhos rolando nas órbitas, a boca contraída
e torta. Começou a gritar, batendo juntas as palmas das mãos erguidas. Sherry
alcançou-a no que pareceu ser um único salto e tentou tomá-la nos braços. Ela,
porém, saltou para um lado, sem desviar os olhos de Wade, que, pálido e imóvel,
permanecia montado ao animal.
— Ronald! — gritou a pobre e desvairada mulher, num agudo e
penetrante lamento, horrível de escutar. — Ronald! Meu querido, querido,
querido! Oh, Deus! Não faça isso com Ronald! Oh, Deus, Deus, Deus! Tenha
piedade! Ronald!
Os olhos dela faiscavam, loucos, em desespero, terríveis, pousados em
Wade. Sherry tentou agarrá-la novamente. Ela saltou para trás, evitando-o com
um guincho selvagem, curvando-se na cintura, cobrindo os seios com as mãos,
agachando-se como se quisesse evitar a própria morte. Recuou, seguida por
Sherry, que murmurava palavras tranquilizadoras, insistentes, tentando dominá-
la com a força dos olhos. Estava lívido. Mesmo daquela distância, Frank notou
que ele tremia violentamente. Estendeu os braços para Mary, implorando,
seguindo-a no recuo, sem pressa, no mesmo ritmo que ela. Ela parou, dobrou-se
toda, gemendo em voz horrível, como se dominada por insuportável mágoa e
desespero. Sherry ergueu-a nos braços; a cabeça loura caiu sobre seu ombro; os
braços brancos penderam sob os seus. Levou-a para casa e, até o último
momento, eles viram o rosto dele colado aos cabelos da mulher, a ternura que
havia em todo o seu corpo e ouviram, até que a porta se fechou, inexorável,
sobre o último farfalhar de vestido azul e o lampejo da mão arrastada, os gritos
abafados da esposa e as palavras de compaixão e amor do marido.
Atordoado pela tragédia, Frank, incrédulo, observou Wade partir a trote
para as colinas. Somente depois que o amigo já se encontrava a uns duzentos
metros de distância foi que o seguiu, emparelhou-se e disse quase zangado:
— Meus Deus, você não vai voltar para aquela casa e procurar fazer
alguma coisa pela pobre mulher?
Wade respondeu em voz tranquila, sem virar a cabeça:
— Sherry sabe o que fazer. Ela tem esses ataques... às vezes. Não com
frequência, mas às vezes.
— Aquele assassino! Você pode ver isso agora! Ele não fará coisa
alguma por ela. Vai simplesmente trancá-la. Ele está com medo!
— Você não sabe, Frank — respondeu Wade, virando-se na sela com a
face tensa e pálida. — Você não pode chamá-lo de assassino. Você não sabe.
Ninguém sabe. E acho que ninguém jamais saberá.
— Ela chamou-o de Ronald.
— Ronald — disse Wade em voz quase inaudível — deve ter sido um
homem magro e moreno, como eu. Além disso, ele, também, era pastor. —
Suspirou. — Isso aconteceu há muito tempo, vinte anos ou mais. Tem sido difícil
para Sherry.
Seus olhos tornaram-se estreitos, sombrios. Frank, ressentido, perguntou:
— Por que me levou lá? Foi uma experiência horrenda.
Wade sorriu de leve, sem divertimento.
— Você é jovem demais, Frank. Não sabe coisa alguma sobre a vida,
não é? Pensei que a visita poderia ser um pouco educativa.
— Educativa! E pior do que tudo — continuou ingenuamente Frank —
acho também que nunca saberei a verdade!
— É justamente isso o que quero dizer — falou Wade com um tom e um
sorriso afetuoso. — Jamais saber a autêntica verdade sobre uma pessoa é que
educa o homem.
A fazenda e as tranquilas terras, esquentando ao sol, ficaram para trás. À
medida que subiam a colina, elas retiraram-se, tornaram-se menores, como um
oásis de paz e contentamento no vale.
CAPÍTULO 50
Frank, após a penosa cena, não se sentia no estado de espírito de fazer
outra visita. Profundamente exasperado, perguntou:
— Que monstrengo vamos visitar agora?
Wade lançou-lhe um vivo olhar.
— O único verdadeiro cavalheiro cristão que já conheci.
— Oh, Deus! — exclamou irado Frank.
Em voz pensativa, Wade acrescentou:
— Ele adora Afrodite.
— O quê!
Wade inclinou alegremente a cabeça.
— Isso mesmo. Afrodite, Isis, Maria, Astarteia... Não falo em termos
simbólicos, em sentido “artístico”. Quero dizer, literalmente.
Frank puxou as rédeas da mula e empurrou o chapéu para trás da testa
suada. Olhou para Wade, estupefato.
— Você está brincando? Ou será que estou tendo um pesadelo?
— Estou falando sério e você está acordado. — Wade parou também e
riu. Encheu sem pressa o cachimbo e pareceu contemplar as colinas brilhantes
com um prazer objetivo. — Isaac Saunders, pelo que sei, foi certa vez idealista.
Como você. E, como todos os idealistas, tinha uma fixação na perfeição. Havia
formado, mentalmente, um padrão inflexível para Deus. Pelo que ele mesmo me
contou, foi com toda a probabilidade um devoto e um místico completo. Mas
estou-me adiantando muito na história. Isaac Saunders não é nativo destas
montanhas. De fato, é virginiano, não kentuckiano, educou-se em Princeton e,
depois, na Europa. Não fique surpreso. Você vai encontrar um bocado de gente
estranha por aqui...
— Você acha? — perguntou Frank com profunda ironia.
Wade ignorou a observação.
— Como tantos dos melhores aristocratas do Sul, era protestante e,
quando esteve na Europa, entreteve a ideia de tomar-se católico romano. Era um
homem à procura da religião perfeita, que se ajustasse ao Deus perfeito. Mas
nenhuma delas combinava com sua ideia de perfeição. Simplesmente andou de
um país a outro, por todo o mundo. Somente depois de muitos anos, começou a
nutrir sérias dúvidas sobre a perfeição de Deus. Isto porque, por essa época,
Isaac, o idealista, começara a descobrir o sofrimento do homem.
“Até aquela ocasião ele não conhecera absolutamente a humanidade. Ela
era apenas uma sombra, muito abaixo da resplandecente perfeição de Deus.
Naquele instante, deu-se conta das multidões da humanidade, sofrendo,
morrendo, desesperando-se, e sua terna alma idealista ficou, no início,
atordoada, depois apavorada e, em seguida, torturada quase ao ponto da loucura.
Bem, se ele houvesse sido um homem prático e razoável, teria ingressado em
algum caridoso grupo de missionários, ou algo assim, e se teria dedicado a
aliviar parte do sofrimento que observava. Mas, não, não Isaac. Viu o sofrimento
e odiou a Deus. Não se tornou ateu, como alguns idealistas quando descobrem o
que é o mundo. Disse a si mesmo que o homem tinha muito a perdoar a Deus por
um mundo de tanta angústia, dor irremediável e morte de inocentes. Mas Isaac
Saunders não ia perdoá-lo. Ia simplesmente transformar-se em seu inimigo.
— Você faz com que ele pareça ridículo — comentou Frank, enquanto
continuavam devagar a marcha. Por algum motivo, sentiu um calor na face e
ficou embaraçado e ressentido.
Wade tornou-se subitamente grave. Uma viva sombra azul cortou-lhe
diagonalmente a face e nela, sob a pala do chapéu, brilharam os olhos escuros.
— Deus me livre disso! Acontece que conheço as agonias por que Isaac
passou. Ele me contou, um pouco. Bem, de qualquer modo, não lhe foi possível
voltar a Richmond e levar uma vida tranquila e aconchegada. Vira demais e
sofria demais. Não podia suportar mais. Descobriu estas montanhas e veio para
cá como um eremita que deseja passar o resto da vida contemplando Deus,
adorando-o. Queria apenas contemplá-lo e odiá-lo.
“Entre as viagens, encontrara tempo de casar-se com uma excelente
moça de Richmond, cerca de vinte anos mais moça do que ele. Encontrava-se na
Índia, onde compartilhava dos sofrimentos dos nativos, quando a esposa morreu
de parto, deixando-lhe uma filha. Trouxe a criança quando veio para cá, há
dezoito anos, além de um casal de negros, que continua com ele e que são os
únicos negros destas montanhas.
— Eu sei! — disse em voz desagradável Frank. — Sei o resto. O nosso
Isaac precisava adorar alguma coisa e, assim, escolheu Vênus, ou Afrodite, ou o
que quer que fosse. Ele devia estar louco.
Wade cavalgou em silêncio durante alguns minutos até que alcançaram o
cume de outra colina. Puxou a rédea da mula e apontou para baixo.
Havia ali uma profunda e suave dobra na terra, menos do que um vale.
Aconchegada na dobra, como que se escondendo, uma pequena casa branca de
madeira com uma chaminé de pedra. Em volta dela erguiam-se pinheiros altos,
alfarrobeiras e olmos. A casa era apenas entrevista na sua brancura em meio aos
troncos que a cercavam por todos os lados. Na frente e nos fundos da casa, uma
luxuriante massa de cor: malva-rosas, enormes margaridas, salvas, zínias, canas-
bravas, misturadas, explodindo em manchas brilhantes, apostando carreira entre
si na direção do sol. Era uma pequenina casa encantada, perdida entre as colinas,
sonhando em cores e sol.
Frank, embora encantado, ficou também desapontado. Esperara algo
parecido com a casa de Sherry ou uma reprodução (desde que o Sr. Saunders era
um rico virginiano) de uma “mansão sulista”. Mas era evidente que aquela casa
continha, quando muito, cinco cômodos simples e despretensiosos.
Wade falava novamente:
— Conheci Isaac Saunders há três anos. Na ocasião, ele estava
justamente completando sua nova teologia. Mas não contei a você que, na
mocidade, ele foi um grande estudioso da mitologia grega. Naquele momento,
trouxe de volta à vida Isis, Astarteia, Vênus... o princípio maternal, o alegre,
terno, encantador espírito feminino do universo. De alguma maneira,
convencera-se de que Deus, sendo homem, podia logicamente ser o assassino, o
torturador da humanidade, pois, de acordo com o Velho Testamento, não amara
Ele o sangue, o sacrifício e o entrechoque dos exércitos? Não inventara Ele o
inferno e as sarças ardentes? Como você vê, o pobre Isaac tinha em si uma
grande base de fundamentalismo, a despeito de sua formação protestante. Era
inteiramente lógico, de certa maneira, que um homem tão tímido, tão manso, tão
suave, viesse a adorar a mulher idealizada, a deusa, pois tais homens possuem
numerosas características femininas. A guerra quase o matou. Pensei durante
certo tempo que ele ia perder o juízo.
“Assim, Isaac adora agora o Princípio Feminino do Universo, a deusa
compassiva, a deusa que sofre, perdoa e se apieda. É devoto também de Maria,
que ele alega ter sido chamada de Ísis, Astarteia, Vênus ou Afrodite muito tempo
antes que o Deus masculino adquirisse a menor importância. Acredita em que a
deusa feminina é inimiga do Deus masculino, é o Espírito da luz eterna e do
bem, em oposição ao Espírito devorador que tortura os homens e permite as
guerras e outros horrores.
— E você não tentou falar-lhe sobre a Igreja dos Santos dos Últimos
Dias? — perguntou irônico Frank.
Wade, porém, respondeu em voz suave:
— Não. Por que deveria? Qual é a finalidade da religião? Tornar o
homem contente, feliz, esperançoso. A nova religião de Isaac faz tudo isso por
ele e, assim, para ele é a certa. Não importa o nome que o homem dá ao Todo-
Poderoso, desde que esteja consciente dele. Não há uma lenda que diz que
ninguém sabe o nome de Deus, nem mesmo os arcanjos? O que importa, então, o
nome que o homem Lhe dá? Ele permanece.
A pequena casa ergueu-se para recebê-los quando desceram lentamente a
colina. Envolvida em magia, resplendor, radiação, silêncio, a casa adquiriu uma
atmosfera de conto de fadas para Frank. Viram as janelas brilhando entre as
árvores e a pequena porta branca da frente.
— Eu lhe disse que Isaac tem muito dinheiro — recomeçou Wade,
baixando a voz. — Foi ele quem custeou nossa escola. Vai construir-nos um
hospital. Gasta quase toda a renda em obras de caridade, hospitais, asilos para
órfãos, sociedades de promoção da paz, missões de todos os tipos, católicas,
protestantes, judaicas, mórmons... tudo. Padres e freiras em colônias de leprosos
rezam por ele. Missionários cristãos na índia, China e Japão escrevem-lhe com
frequência, abençoando-o. Ele não se interessa pela religião dessas pessoas.
Preocupa-se apenas em aliviar o sofrimento e a dor do homem. Sofre pela
humanidade. Adora-a. Vive com tanta simplicidade e frugalidade quanto pode.
Acho que tem raiva de cada pedaço de pão que come.
Estavam nesse momento quase no mesmo nível da casa, que parecia
deserta no silêncio luminoso. As árvores soltavam suas folhas. Estas,
farfalhantes, vermelho-ferrugem, ouro e carmesim, empilhavam-se nos pequenos
gramados verdes. Nuvens de flores espumejavam contra as paredes brancas.
Nenhum som se ouvia de vida humana, gado ou aves domésticas. Se existiam
afinal, dormiam também na atmosfera radiante.
Wade desceu da mula e assoviou clara e agudamente. As montanhas
restituíram os sons, repetindo-os. Ouviram um leve movimento na casa e um
homem baixo e de aparência delicada apareceu à porta, com um livro na mão.
Exclamou:
— Wade! Bem, bem, você veio, finalmente! Entre, entre!
O que quer que houvesse esperado, Frank não esperara alguém tão
normal como Isaac Saunders, embora, talvez, o bem cuidado terno preto de sarja,
a camisa branca, o colarinho duro, a gravata fina preta e os sapatos pretos bem
engraxados dificilmente fossem normais na montanha. Nada havia de matuto em
Isaac. Poderia ter sido um banqueiro ou um empresário da Virgínia, pronto para
entrar em sua limusine e ir passar um dia tranquilo entre bem-comportados
colegas. A pequena e pálida face, magra, de ossos frágeis, o curto bigode preto e
o cabelo grisalho bem penteado, as mãos brancas, os olhos castanhos tímidos,
mas firmes, proclamavam todos o homem da cidade, de tradição e formação
aristocrática. A voz, igualmente, era de um tom quase doce, muito suave e
macia. Ao ser apresentado a Frank, não o fitou francamente, como Sherry fizera.
Desviou os olhos, cheio de consideração, deu-lhe um caloroso aperto de mão,
embora reservado, e curvou-se um pouco rigidamente. Havia muito de ares
antigos na pessoa dele. Cheio de dignidade, disse:
— Bem-vindo. Bem-vindo, cavalheiro.
Depois continuou, dirigindo-se a Wade e abrindo a porta:
— Mas que interrupção agradável você é, meu rapaz! Estive sentado à
escrivaninha desde o amanhecer e agora a luz do sol me fere os olhos. A remessa
de alimentos e cobertores que você queria chegou há alguns dias. E tenho um
cheque para você.
Nunca Frank vira um interior tão reluzente, uma escuridão tão
fascinante, tão fria e espaçosa! As paredes eram de nogueira macia; o velho
assoalho de ripas largas fora tão polido que se havia transformado em um
espelho. Eram poucos os móveis. Frank viu uma mesa de madeira, sem toalha,
brilhando com uma velha pátina lustrosa, sobre a qual havia um candeeiro a óleo
e um grande vaso de zínias. O largo banco embutido sob a janela servia de base a
vasos e pilhas de livros. Uma parede fora reservada inteiramente a livros de
todos os tipos, muitos deles em preciosas encadernações de couro, gravados a
ouro. As cadeiras eram de fabricação local, com assento de junco, retas e
severas, mas de contornos encantadores, pretas e lustrosas. Não havia tapetes e
nenhum outro ornamento, salvo flores. As cortinas no batente das janelas eram
em algodão de cor creme, bem puxadas para os lados, deixando entrar o cálido ar
de outono. A lareira de pedra brilhava com um fogo moribundo. Sobre ela, um
único retrato, de uma bela senhora, ainda jovem, de face sonhadora, vestida de
branco, com fitas prateadas sobre o seio e uma coroa de lilases brancos em volta
do cabelo escorrido e dourado. Sob o retrato queimavam velas fracas em um
pequeno candelabro de prata.
O retrato era obra de um bom artista e a encantadora face brilhava como
a lua em um fundo de luz azul-clara. Frank desconfiou de que não representava
uma mulher viva, mas uma combinação do que Wade chamara de Princípio
Feminino do Universo. Ficou fascinado pelo retrato. Aproximou-se e olhou para
dentro dos ternos olhos azuis, tão brilhantes e firmes, tão puros e bondosos!
Pensou no Sr. Farley, que adorava a Virgem Maria, e achou que esse sentimento
era belo, essa adoração da Mãe, da Compassiva, da Onisciente, da Compadecida,
da Genetriz de Deus e dos homens, a Mulher que conhecia a mágoa e as dores
do parto, a agonia da humanidade e o sofrimento das crianças.
Com a cerimoniosa cortesia e sincera polidez do aristocrata sulista, Isaac
Saunders tratou do conforto dos hóspedes. Dirigiu-se à cozinha e voltou
acompanhado de uma gorda negra de meia-idade.
— Randy, nossos hóspedes chegaram. Por favor, pode servir o jantar —
disse à sorridente mulher.
Falou-lhe como se ela fosse uma querida amiga. Ela dirigiu-lhe um
cálido olhar de afeição antes de retirar-se. Em seguida, ele sentou-se próximo a
Wade e fitou-o com carinho.
— Você precisa contar-me tudo — disse, voltando para Wade toda a sua
atenção. — Quero, em especial, saber no que andou pensando, e não no que
andou fazendo. — Olhou com ar de desculpa para Frank. — Há muito tempo
que não vejo Wade, Sr. Clair.
A sua face afilada e os olhos brilhantes despertaram o respeito e a
admiração de Frank. O dono da casa sentou-se à beira da cadeira, com as mãos
plantadas nos joelhos. Todos os ângulos do seu corpo pequenino eram patrícios.
Como era estranho encontrar tal homem nessas montanhas bárbaras e desertas!
Incrível. Frank recostou-se no espaldar reto da cadeira e escutou a curiosa
conversa que, nesse momento, absorvia os dois amigos.
Wade disse acreditar em que a segurança e a paz no mundo dependiam
de uma lei internacional rigorosamente cumprida e administrada. O Sr. Saunders,
com a cabeça cortesmente inclinada, ouviu-lhe atento cada palavra. Levantou-se
em seguida, dirigiu-se pelo chão polido até a estante e voltou com um volume,
que folheou rapidamente. Começou a ler um trecho de Spengler:
— “Mas uma lei que consiste meramente em uma série de cifras lidas
em um documento (ou uma lei feita de palavras escritas em papel macio) não
pode, nem mesmo como uma operação intelectual, ser inteiramente eficaz nesse
estado puro”. Wade, antes de haver lei, é preciso haver desejo. Antes de desejo,
convicção ponderada do homem. Antes de convicção, a emoção, o amor à justiça
e à piedade. Um grupo de idealistas pode, reunidos em conclave em Genebra,
promulgar mil leis internacionais; no entanto, a menos que toda a humanidade
sinta ódio à guerra, à injustiça e à crueldade, as leis serão impotentes. A pedra
fundamental de tudo isso reside no coração do homem. Sem essa pedra, o arco
inteiro terá que desmoronar num monte de escombros.
Wade suspirou.
— Mas é impossível ensinar a milhões de homens em todo o mundo que
o ódio constitui a sua própria morte.
— Wade, como dizem os chineses, até uma jornada de mil milhas
começa com o primeiro passo. Concordo em que serão precisas muitas gerações
para iluminar a humanidade. Mas neste próprio minuto, não é tarde demais para
começar. Em primeiro lugar, precisamos ensinar a cada criança, em todas as
escolas, que toda religião que ensina o ódio a outra religião, ou a intolerância, é
sua inimiga, e que todo governo que exalta seu povo acima de todos os demais,
ou o seu sistema político como o melhor, é constituído de um bando de
assassinos. O mundo foi criado para o homem; se o homem morrer, não haverá
mundo. — Observou o sorriso sombrio de Wade e, mais uma vez, folheou
apressado o livro. — Você sorri de minhas ideias antropomórficas. Mas escute
isso: “Somos nada menos do que presunçosos em supor que podemos pôr A
Verdade no lugar das concepções antropomórficas, porque nenhuma outra
concepção, salvo essa, existe absolutamente”. O ouvido e o olho do homem
projetam e transformam em realidade um sonho, Wade. Sem o homem, não há
nem mesmo sonho. O universo deixaria de existir.
Frank lembrou-se subitamente de Irving Schultz e, sem saber por que,
sentiu uma dor aguda, imediata.
Interrompeu a conversação, gaguejando alto:
— Sr. Saunders, eu... eu tenho um amigo... lá na minha terra. Ele diz que
o homem é a única realidade, que ele dá substância ao nada... e existência... a
Deus — Notou os olhos zombeteiros de Wade, enrubesceu e desprezou-se. Mas
notou também a viva atenção do Sr. Saunders e continuou: — Quero... quero
dizer que, sem a percepção de Deus pelo homem, o próprio Deus não existiria.
Não. Talvez eu não tenha compreendido bem, ou então, alguma coisa...
O Sr. Saunders sorriu mansamente, interessado.
— Acho que você compreendeu. As palavras não são adequadas, não é?
Você quer dizer que, quando o homem se torna consciente do... Princípio Divino,
então esse Princípio Divino torna-se realidade e potente?
Frank inclinou a cabeça, com a face ainda em fogo.
O Sr. Saunders juntou as pontas dos dedos e pareceu perder-se em
contemplação. Em seguida, disse baixinho:
— Quando o homem se der conta de sua percepção do Princípio Divino,
ele se dará conta dos demais homens como partes de si mesmo. De que modo
pode um homem odiar a outro? Ele só poderá amá-lo, como participante de sua
própria vida. Mas, antes de tudo, é preciso que o homem tenha percepção
completa do Princípio Divino.
Paz e doçura pareciam encher a sala como água pura, tranquila, sem uma
única ondulação. Frank, porém, já estava envergonhado do que dissera e
recolheu-se dentro de si mesmo como um caracol que mergulha na escuridão,
sob uma folha. Como Wade devia considerá-lo idiota! Não observou a expressão
satisfeita e a surpresa de Wade ou o seu disfarçado sorriso de contentamento.
Voltaram para casa através do nevoeiro púrpura que cobria as
montanhas. Pouco falaram. Durante longo tempo ficaram observando o pôr do
sol, incendiando as colinas distantes. Longas fitas de fogo cor de magenta eram
sopradas contra um céu de azul-turquesa, profundo e translúcido. As colinas
agachavam-se em escuras e informes cristas como se fossem dorsos de enormes
animais adormecidos.
Após um dia com aquele, constituiu um alívio para Frank voltar à
companhia ruidosa dos Cunninghams, sentar-se em companhia deles nos degraus
da tenda ao anoitecer, escutar Ira dedilhar o violão e cantar spirituels. Disse a si
mesmo que participara de um sonho grotesco e afastou cheio de nojo as
recordações dos Hempsteads e de Isaac Saunders. Achou que fora uma
impertinência da parte de Wade provocar-lhe essa desorientação. Eu poderia
mesmo enlouquecer pensando nessas pessoas, achou, ressentido. Um assassino,
uma mulher demente e um adorador de Afrodite! Essas pessoas não faziam parte
do mundo real e cru de Benton, dos poços de petróleo, da feliz companhia de
retardados mentais que eram os Cunninghams. Ira cantava:

— “À noite, à luz do luar,


Ouvimos aqueles banjos a cantar”.
Os últimos pássaros noturnos piaram e ouviram em resposta os
gafanhotos. A lua de outono ergueu-se em amarelo esplendor sobre as árvores.
Envolvido pelo silêncio, Frank conheceu novamente a terrível solidão e o
abandono da infância.
CAPÍTULO 51
Com a chegada do inverno, os Cunninghams e Frank desceram para o
vale e se instalaram numa antiga e abandonada cabana de troncos. Os rapazes
teriam ficado contentes em estender os catres em qualquer lugar e continuar a
viver com feliz indiferença à sujeira e à esqualidez em volta. Frank, porém, para
divertimento deles, começou a esfregar e a limpar, a branquear o chão lascado de
tábuas com lixívia e a cobrir de papel as ásperas paredes com folhas arrancadas
de catálogos da Sears, Roebuck. De alguma maneira, conseguiu vidraças e
instalou-as nos caixilhos vazios das janelas. Cortou grandes retângulos de oleado
preto, comprado à Sears, Roebuck, e estendeu-os sobre os catres, fazendo com
que eles dessem um ar de grotesca formalidade à grande e escura sala. Por algum
motivo, Frank não podia suportar cobertores desarrumados e lençóis
amarfanhados e o oleado impedia os felizes Cunninghams de bagunçarem as
camas. Eram preguiçosos demais para tirarem o oleado durante o dia, ou talvez
fossem polidos demais. Por causa das habilidades culinárias de Frank e também
porque, a despeito de seus mal-humorados silêncios e profundas depressões,
gostavam dele, foram obrigados a fazer-lhe a vontade.
Frank construiu uma longa mesa de madeira, que descorou até ficar
imaculadamente branca, e fabricou longos bancos, que dispôs dos lados da mesa
como num refeitório. Arranjando madeira de melhor qualidade, fez um tosco
guarda-comidas e pintou-o da cor de nogueira. Chegou mesmo ao ponto de
encomendar alguns tapetes baratos à Sears, Roebuck e fabricou uma estante para
os livros. Comprou, em seguida, um lustroso lampião de querosene e pagou a um
“transportador de sopa” para trazer o necessário fluido dos “povoados”.
Os Cunninghams orgulhavam-se dele. Era agradável sair dos aguaceiros
do inverno, pendurar as roupas molhadas sob o severo olhar de Frank, sentar-se
junto à lareira e tomar um estimulante aperitivo enquanto Frank punha na mesa
terrinas fumegantes de exóticas comidas enlatadas. Ele encomendara mesmo
várias latas de carne de baleia, que parecia carne de vaca e tinha um leve cheiro
de peixe. Mas não constituiu um sucesso com os Cunninghams, que, confiantes,
haviam provado o guisado. Acharam que, daquela vez, Frank fora um pouco
longe demais e apareceram censuras nos seus olhos simples. A refeição ideal
para eles, pela manhã, ao meio-dia e à noite, consistia em bacon frito, batatas
fritas, pão de milho e manteiga, molho de maçã, café e bolo frito. Frank faria
variações desses pratos para deleite dos amigos.
Era forçado a contentar-se com a nua limpeza em volta e com os
carregamentos de livros que irregularmente chegavam de Chicago ou lhe eram
emprestados por Wade O’Leary. Lia com crescente paixão e avidez: biografias,
história, novas obras de ficção, velhos clássicos, poesia e trabalhos religiosos
que o catálogo piedosamente descrevia como “frutos do labor” de velhos
mestres. Quando lhe faltava melhor cardápio, era, com frequência, reduzido a
essas leituras. Mas leu entre outros, Quo Vadis, Ben Hur e, de Tolstoi, Guerra e
Paz. Decorou grandes obras de poesia. Leu e releu as obras completas de
Shakespeare, que Wade lhe dera de presente, e conservou na memória grande
parte da majestosa grandiosidade de seus versos. Tendo gostos imparciais, lia
Tennyson e Keats com igual prazer, Hall Caine e Walter Scott, Thackeray e a
Sra. Humphry Ward. Sentia sede da palavra impressa e, quando nada mais havia,
lia mesmo The Gospel Trumpet, que podia ser sempre tomado de empréstimo da
esposa do capataz dos poços mais prósperos. Essa senhora residia em um bem
arrumado vagão ferroviário convertido. Como aquele veículo pôde ter sido
rebocado até as colinas continuava a ser um grande mistério.
No Natal, Wade presenteou-o com The Golden Bough, completo e sem
cortes. Absorto e encantado, Frank conheceu as inumeráveis religiões do mundo,
vivas e mortas. Peter O’Leary, que tinha uma mente menos exótica, conservava-
o abastecido com todas as revistas conhecidas e aproveitava ingenuamente para
introduzir alguma literatura mórmon.
O frio e úmido inverno caíra implacável. Os Cunninghams, amantes do
sol, teriam abandonado prazerosamente as perfurações até março. Frank, porém,
qual inexorável consciência, mantinha-os no trabalho. O último poço produzira
apenas um fio de uns magros oito barris por dia e somente a insistência e as
cartas de melosa persuasão de Frank à Indian Pipe Line Company haviam
conseguido acrescentar esse poço à torrente local.
O trabalho no novo poço era feito languidamente e sem método e
somente ganhava ímpeto durante o “quarto” de Frank. Os Cunninghams
queixavam-se e lamentavam-se entre si. Deus, aquele ianque não pensava em
outra coisa senão em trabalho e dinheiro? Estavam no inverno e todos os homens
sensatos vadiavam, bebiam e dormiam durante os cinzentos e tristes meses. Mas
não Frank. E, ai deles, também não os Cunninghams, que tinham outro motivo
para se sentirem inquietos e, prudentemente, o escondiam de Frank. O dinheiro
estava acabando. Se o novo poço não produzisse com abundância, estariam
liquidados como prospectores independentes. Teriam que se resignar a oferecer
seus serviços às companhias mais prósperas que operavam nas colinas. Falavam
em ir para o Sul, para as vizinhanças de Bowling Green, onde se dizia que uma
quantidade como cem barris por dia era considerada uma bagatela. Se Frank
fosse “legal”, queixavam-se, teriam contado a ele a situação. Além disso,
insinuou Ira, ele possuía mil e quinhentos dólares guardados e se fosse um
sulista, em vez de um maldito ianque, teria sido fácil convencê-lo a “emprestar”
aquela fortuna aos amigos. Afinal de contas, estavam todos no mesmo barco,
não? Mas não lhe pediram coisa alguma.
Fortes e cinzentas chuvas caíam dia após dia, às vezes misturadas com
neve úmida. Frank, olhando pelas pequenas e escuras janelas, pensava na
ofuscante brancura do inverno em Bison, no ar claro e capitoso, no odor frio e
limpo dos ventos que sopravam dos Lagos, no sol fraco em uma abóbada de céu
branco e ofuscante. Lembrava-se das decorosas ruas limpas, dos meios-fios onde
era empilhada a neve. Ouvia as sinetas de trenós e via o vapor de seu próprio
hálito à luz do sol. Nada disso havia ali, somente a chuva monótona e escura, o
cinzento céu enfarruscado, as colinas amareladas, ensopadas e apodrecendo; do
lado de dentro, a sala nua da cabana com os catres pretos e a lareira. Sentia-se
doente de nostalgia. Os Cunninghams, desdenhosamente, consideravam o Norte
como não sendo “realmente americano”, embora Frank, olhando para toda
aquela chuva e desolação, julgasse que ele, sim, se encontrava em terra estranha
e que a América, fria e refulgente, enérgica, forte e viril, situava-se além da linha
Mason e Dixon. Foi empolgado por uma espécie de doce e profundo patriotismo,
uma paixão pela América que jamais sentira antes.
A plúmbea chuva de fevereiro transformou-se na plúmbea chuva de
março. Não ocorria ali a verde, fria e selvagem explosão da primavera no Norte,
mas apenas uma leve e quase imperceptível elevação da preguiçosa temperatura
e um pequeno esmorecimento da chuva. A primavera não trazia uma ânsia de
expectativa, de entusiasmo pela vida, de alegria, de movimento. Mas trouxe-lhe
uma carta de Maybelle:
“Sua avó e eu vamos, finalmente, voltar para casa no dia 3 de abril. Na
White Star Line, graças a Deus. O lar, finalmente, depois de todas as minhas
orações. Vamos para Manchester, onde sua avó vai abrir outra pensão na velha e
querida Inglaterra. Se você tivesse sido um verdadeiro filho, iria conosco agora,
para sua terra natal. Mas não, você fica em Kentucky, onde não há coisa alguma.
Nunca sente saudade de casa? Pensamos que você, pelo menos, voltaria a Bison
para se despedir de nós. Mas nem isso fez. Bem, cuide-se, Frankie, e escreva
sempre. Escreverei a você quando chegar em casa e talvez você mesmo apareça,
um destes dias. Você diz que está ganhando dinheiro, economizando-o, e,
embora fosse uma pena que você somente me mandasse tão pouco dinheiro e tão
raramente, estou satisfeita porque você está procurando economizar. Talvez seja
o melhor. Se ao menos seu pai pudesse ir conosco! Essa é a nossa mágoa. Bem,
não se pode ter tudo na vida, acho. Estou-lhe enviando este certificado de
naturalização, que seu pai tirou quando você tinha doze anos. Não preciso dele.
Mas consta aí seu nome e talvez você o queira”.
A carta não lhe provocou a mínima emoção. Mas olhou com intenso
sentimento para o certificado de naturalização. Nunca o vira antes. Ali estava seu
nome! Sabia, havia muito tempo, que era cidadão dos Estados Unidos, mas,
naquele momento, tinha a prova nas mãos e, por algum motivo, achou-a bela.
Dobrou-o, desdobrou-o, leu-o novamente, alisou-o com os dedos calejados, e
segurou-o fortemente. Em seguida, guardou-o no baú, dentro do saco de
algodão, juntamente com o dinheiro, e fechou-o sem pressa e com todo o
cuidado. Jamais, antes, dissera a si mesmo: “Sou americano”.
Durante dias, sentiu-se quase contente e feliz. Chegou mesmo a
acompanhar os Cunninghams nas cantorias. Eles eram americanos. Mas ele
também. Eles haviam nascido naquele país. Não podiam sentir o júbilo no
coração, a leveza, a sensação de liberdade e de orgulho que o empolgava. Teve
pena deles, que simplesmente haviam nascido ali e nada sabiam do verdadeiro
júbilo da cidadania.
Certa vez, com a mais absoluta surpresa, ouviu-se dizendo a si mesmo:
“Algum dia, eu escreverei sobre a América!” Profundamente abalado pelo
pensamento, parou ali junto ao fogão, onde fazia uma sopa, e olhou para o
espaço vazio. Por que havia pensado naquilo? Nunca mais escreveria. Sabia
disso. Apesar de tudo, havia-lhe ocorrido a absurda ideia, resplandecente,
triunfante, forte. Sacudiu a cabeça e mexeu a sopa, mas o musical esplendor do
pensamento continuou com ele, como um acorde, a desdobrar-se pelos
corredores de sua mente e não podia ser abafado por gritos.
Certo dia, Tim Cunningham “desceu até Benton” para comprar café, sal
e gasolina e voltou com um saco de livros e uma carta de Wade O’Leary. A carta,
curta e seca, começava sem uma saudação:
“Você deve ter ouvido dizer que irrompeu outro surto de febre tifoide
por aqui, a despeito de todos nossos esforços para convencer o povo a ferver a
água suspeita. Houve também vários casos de varíola. Peter e eu estamo-nos
matando de tanto trabalhar e precisamos de ajuda inteligente. Estou exigindo, e
não pedindo, que nos dê um pouco de seu tempo para nos ajudar a aplicar soro
contra o tifo e vacinar nossos pacientes. Posso usar sua ajuda durante alguns
dias. Soube por Tim que o trabalho no poço parou até que vocês consigam novos
suprimentos. Se você tem algum senso de decência ou qualquer amizade por
mim, pelo amor de Deus, venha ajudar-nos! Enquanto isso, envio-lhe um vidro
de iodo. Senão tem certeza sobre a qualidade de água por aí, pingue uma gota de
iodo em cada copo e deixe-a descansar durante meia hora antes de bebê-la. Estou
à sua espera”.
Frank enrubesceu de fúria ao ler o bilhete e lançou-o no fogo. Estava
profundamente zangado com Wade por sua impudência. Então ele ia exigir
pagamento pelos livros e revistas, não? O diabo o levasse e todo o seu gado
montanhês! Que os cães morressem em suas bolorentas colinas. De qualquer
modo, nenhum direito tinham de viver.
Mais tarde, pensou: mandarei a ele um pouco de dinheiro para comprar
seus malditos soros. Sozinho na cabana, abriu o baú, puxou o saco e, relutante,
extraiu várias notas. Viu então o certificado de naturalização, estalando de novo,
desdobrou-o e releu-o.
CAPÍTULO 52
— Em primeiro lugar — disse Wade, falando através de lábios pálidos e
contraídos —, você esfrega o braço assim, com sabão e água quente. Esfregue
com força. Em seguida, molha este pedaço de algodão esterilizado em álcool.
Depois, apanha esta agulha e faz um arranhão. Três ou quatro pequenos
arranhões, para tirar sangue. Depois, espreme a vacina nos arranhões.
Finalmente, apanha a gaze, faz uma pequena atadura e diz a esses pobres-diabos
que não a tirem por motivo algum.
Wade tinha a face cinza de exaustão. As colinas fervilhavam de doentes,
moribundos, de gente apavorada. Além do mais, as mulheres haviam escolhido a
ocasião para dar à luz grande número de bebês. Grassava também pneumonia.
Os O’Learys haviam-se instalado no pequeno hospital que estava sendo
construído por Isaac Saunders e estabelecido a estação de primeiros socorros em
um interior que cheirava ainda a pinho novo e a resina. Com as entregas de
correspondência e livros vinham também novas remessas de soro, vacinas e
remédios. Embora as montanhas estivessem em estado desesperador, a
população, obstinada e estúpida, recusava-se a ferver a água ou limpar as
privadas úmidas e malcheirosas. Choravam pelos pregadores ambulantes, que
podiam “rezar” a doença, e, embora entrementes aceitassem o tratamento
profano de Wade, faziam-no temerosos e apáticos. Confiavam nele e, se ele
queria expô-los ao “veneno do sangue” com suas agulhas e ataduras, bem, ele
tinha uma maneira esquisita de divertir-se. Submetiam-se ao tratamento por pura
afeição. Ele e Peter eram habilidosos com os bebês e haviam salvo muitos deles
de “ataques”. Não havia lá um grande mal nas novas ideias. Com as agulhas, ele
distribuía cobertores e leite em lata, enquanto Peter trazia o banjo para distrair as
muitas crianças. Não percebiam a menor conexão entre as doenças e os poços
sujos e Peter e Wade amiúde encontravam crianças brincando ao lado de pais ou
mães que morriam de varíola.
Os O’Learys haviam instalado suas padiolas e o trem de cozinha nos
fundos do pequeno hospital. Haviam-nos encomendado à custa do Sr. Saunders
e, logo depois, começaram a encher de pacientes a estreita enfermaria. Homens,
mulheres e crianças in extremis eram levados para ali em macas apressadamente
improvisadas acompanhados por parentes que, docilmente, deles tratavam sob a
orientação de Wade. Outra sala fora transformada em laboratório, onde soros e
vacinas eram aplicados implacável e rapidamente. Dia após dia, formavam-se
filas de pais, mães, crianças e velhos, tremendo na chuva, esperando apavorados
a vez.
A chuva continuava a cair, as filas aumentavam e diminuíam, e pessoas
choramingavam. Fazia calor na enfermaria, patrulhada sem cessar por Peter. Ele
obrigava as enfermeiras montanhesas a lavar com frequência as mãos e parava
para tomar a temperatura e dar remédios. As paredes vazias, ainda inacabadas,
sem reboco, brilhavam úmidas à luz dos candeeiros. Os gemidos e choros de
adultos e crianças misturavam-se em um único acorde de dor e medo.
O lugar de Frank, porém, era ao lado de Wade, que lhe ensinara o
procedimento simples de fazer os arranhões e besuntá-los com a esverdeada
vacina antivariólica ou aplicar soro antitífico em braços trêmulos e medrosos,
esqueléticos de desnutrição. Não havia tempo para lavar o braço inteiro. Frank
ficava enojado com a pálida área que a lavagem abria na pele suja e, conquanto
fizesse seu trabalho habilmente, censurava os montanheses pela sujeira. Eles
submetiam-se mal-humorados ao tratamento, voltando olhos medrosos numa
súplica infantil para Wade, que lhes sorria encorajadoramente. As mulheres
enrolavam-se em seus xales úmidos, com as saias arrastando-se sobre os sapatos
rasgados, tomados de empréstimo a maridos ou filhos. As cabeças eram cobertas
pelos indefectíveis chapéus largos de pano. Os homens demonstravam mais
coragem, comentando em termos obscenos o tratamento e observando Frank
com antipatia. Mascavam fumo, encolhiam os ombros, mas cuspiam nas caixas
cheias de areia fornecidas pelos O’Learys. As crianças choramingavam coladas
às saias das mães ou penduravam-se sonolentas nos braços dos pais. Frank
observava as faces contraídas e pálidas das crianças, os olhos mortos e estúpidos
das mulheres, os rostos magros e barbados dos homens e odiava-os. Não havia
fim para aquilo. Chegavam montados em mulas, a pé, desprendendo vapor no
calor da pequena sala, cheirando profundamente a esterco, sebo rançoso e
sujeira. De hora em hora, Frank raspava a lama vermelha da montanha do chão
de madeira nua e lançava por cima um balde de água quente, com forte dosagem
de desinfetante.
Wade, porém, a despeito do esgotamento sempre maior, falava com
bondade, amizade e compaixão com aquelas pessoas. Brincava com elas. Dava
palmadinhas no rosto e cabeça das crianças. Possuía uma imensa caixa de
pirulitos, que prometia às crianças se elas não “berrassem”. As faces vazias das
mulheres animavam-se com sorrisos; os homens olhavam para Wade com
acanhada amizade. Os rápidos e pesados passos de Peter O’Leary ecoavam do
lado de fora, andando para cima e para baixo no pátio, por trás da porta fechada.
Às vezes, ele cantava para consolar uma criança em lágrimas ou uma mulher
sofredora.
Coisa alguma podia induzir Frank a ir até o pátio. Passava uma sombria
hora após outra lavando braços, fazendo arranhões, injetando soros, enchendo e
esvaziando seringas, amaldiçoando aquelas pessoas em voz baixa e olhando com
sombrio espanto para Wade. Não havia tempo para conversa, mas apenas para
aplicar vacina e soro, lavar os assoalhos e preparar apressadas refeições na
cozinha parcialmente acabada. De onde vinha mesmo toda essa gente? Que
magia possuía Wade, que os fizera vir até ali a despeito de todas as suas
convicções supersticiosas e ignorantes? Frank sabia que Wade trabalhava contra
o tempo. Logo que os pregadores ambulantes aparecessem pelas colinas, o povo
não mais viria fazer tratamento preventivo. A qualquer momento, chegariam os
recitadores de salmos e o laboratório se esvaziaria. Todas as horas eram
preciosas. O exército da ciência e da cultura logo depois seria dispersado pela
algazarra dos recitadores da Bíblia, dos propagadores do Evangelho, sob as patas
violentas das trevas e da ignorância. Não havia solução. Porque preservar a vida
desses restos humanos?
Lavar, esfregar, arranhar, agarrar braços medrosos, espremer a vacina,
colocar a atadura, baixar a manga, exortar com severidade, mandar embora.
Hora após fatigante hora. Enfiar a agulha, ignorar os guinchos de dor, retirar a
seringa, esterilizar as agulhas em água quente no fumacento fogão a óleo, trazer
novas remessas de chumaços de algodão e ataduras.
O trabalho continuou durante intermináveis dias, com um ou outro
interlúdio, durante o qual Frank desmoronava no seu catre, próximo ao de Wade,
e onde dormia durante alguns momentos em meio à umidade. Mais uma vez, de
pé para preparar uma apressada refeição, lavar e esfregar as mãos e voltar ao
laboratório, onde Wade, em mangas de camisa e coberto de suor, se tornava mais
pálido a cada hora, embora sorrisse constantemente. Às vezes, ficava sozinho
com os pacientes, que o fitavam com expressão vazia ou hostilidade, sentindo-
lhe o antagonismo e o nojo. Wade, tirando um febril cochilo no catre junto à
porta, ouvia as zangadas pragas de Frank, os gritos das crianças, os palavrões
dos homens. Frank, porém, era um ajudante competente e incansável. Wade
fechava os olhos, suspirava e caía em um pesadelo de esgotamento, agradecendo
a Deus até mesmo pelo zangado e resistente ajudante.
— Faço isso apenas por você, diabos o levem! — disse a Frank certa vez
e Wade sorrira. — Não quero que você e Peter morram de cansaço. Preciso
demais de seus livros.
A chuva continuava incessante, mas já havia no ar de primavera um
calor doentio. As mulas zurravam em poças enlameadas, esperando os donos. A
rua de Benton corria vermelha de lama e água e as cabanas gotejavam de
umidade, enquanto as colinas cor de púrpura se vestiam aos poucos de verde. O
“afluente” que corria abaixo de Benton trazia manchas variadas de amarelo,
púrpura e vermelho em suas águas impetuosas, que fluíam misturadas com
petróleo.
A qualquer dia agora chegariam os pregadores ambulantes para abrir sua
tenda evangélica na arruinada igrejinha próxima ao armazém. O povo da
montanha continuava a chegar a Benton como se eles, também, sentissem o
vento frio da morte e da superstição soprar-lhes os pescoços. Vinham por mera
gratidão a Wade, afeição por ele e uma confusa fé em suas “ideias”. Não havia
dúvida de que alguma coisa detivera a varíola no seu perverso caminho e, sem
dúvida, a febre diminuíra. Mas era ainda uma corrida contra o tempo e Frank
sabia disso.
Passando-se os dias sem a chegada, a galope, dos pregadores montados
em suas mulas selvagens, Frank começou a ficar excitado. Outra vida era salva e
outros olhos e feições de crianças arrancadas do desfiguramento e mutilação da
varíola. Amolecia um pouco quando observava as crianças, tão confusas, tão
pálidas, tão confiantes! Espantava-se quando elas sorriam para ele, pois não se
dera conta de que sorrira primeiro para elas. Quando notou que suas mãos se
haviam tomado estranhamente magras e brancas, não soube por que sentiu tanta
exultação e orgulho. Quando viu a própria face num pedaço de espelho sobre a
porta e observou que emagrecera e tinha uma expressão esquelética, encovada,
não se alarmou. Havia algo bom, algo excelente, naquela luta contra a morte e a
ignorância. Por mais indignas que fossem as pessoas, ele acrescentava
mentalmente.
Era bom lutar ao lado de Wade. Embora soubesse com a mais profunda
convicção que jamais confiaria em outro homem como havia confiado em Paul
Hodge, que nunca mais teria um alter ego com quem pudesse falar, ou não falar,
e ser inteiramente compreendido, confiava em Wade e gostava dele com o que
sobrara da fé e da devoção cega da infância. Sua língua estava para sempre
inibida de revelar inteiramente o que lhe ia no fundo da mente, mas dizia tanto
quanto lhe era possível revelar ao amigo.
Havia apenas uma coisa que o deixava perplexo e o magoava: sabia que
Peter O’Leary não gostava especialmente dele e sentia isso, pois gostava muito
de Peter.
Certa ocasião, durante tuna trégua no atendimento dos montanheses,
disse a Wade:
— Seu irmão não gosta de mim.
Wade pôs de lado um vidro de soro e olhou sério e durante longo tempo
para Frank. Em seguida, disse em voz suave:
— Não. Não. Você não compreende Peter. — Interrompeu-se e chegou
mais perto de uma confidência do que jamais o faria novamente: — Peter está
noivo de uma ótima moça em Salt Lake City, uma moça de boa família, boa
educação e formação. Ela... — Wade hesitou e, em seguida, continuou tentando
aliviar a expressão sombria que via na face de Frank — ela é exatamente igual a
ele. Nunca esperarão muito um do outro.
— Peter parece íntimo e muito dado com todos, exceto comigo! —
exclamou zangado Frank, enrubescendo de humilhação.
— Talvez isso aconteça porque ninguém se torna tão íntimo... de
qualquer um de nós — respondeu Wade de modo bastante ambíguo.
Cansado da solidão e da esterilidade da vida que levava, Frank resolveu
inesperadamente, certa manhã, que não ficaria ali por muito mais tempo. O
ciúme começou a atormentá-lo. A despeito do afeto e do interesse de Wade,
sentia-lhe a indiferença. Frank teria que ter tudo, ou nada. Mas não sabia disso
ainda. Não sabia que fugiria sempre do tipo de amizade que não poderia
aprofundar-se e transformar-se em amor. Pois teria sempre que amar ou odiar.
Não havia para ele um terreno intermediário. Precisava confiar sem reservas,
abrindo de par em par as portas da mente e do coração ou jamais confiar em
absoluto e conservar as portas fechadas, aferrolhadas, guardadas.
Uma mudança ocorreu nele, uma espécie de retirada, como se estivesse
em preparação para ir embora. Wade percebeu isso, impotente. Nada mais podia
fazer por Frank, pois ele, Wade O’Leary, não era capaz de dar mais do que já
dera.
CAPÍTULO 53
Certo domingo o pequeno hospital ficou tranquilo, exceto pelos sons da
enfermaria. Nenhum montanhês esperava pacientemente à porta do laboratório.
Frank acordou de um longo e profundo sono e viu que raiara um dia ensolarado,
um dia quente e dourado, úmido e brilhante. Saiu para a luz trêmula e notou que,
da noite para o dia, as colmas se haviam tornado intensamente verdes sob um
suave céu azul. A própria Benton parecia menos crua e eram pitorescas suas
fileiras de pequenas casas de madeira e cabanas de troncos à luz ofuscante. As
grandes árvores, inteiramente nuas pouco tempo antes, eram naquele momento
fontes de folhas de esmeralda pura, oscilando ao murmúrio do vento. Fungou
com ar apreciador e sentiu o cheiro forte e pungente da terra despertada. Ouviu,
então, o forte clangor dos sinos da igreja. Os pregadores ambulantes haviam
finalmente chegado e seriam agora poucos os montanheses à procura de soro e
vacina.
Espreguiçou-se e sentiu a rigidez do corpo cansado. Mas sentiu-se
jubiloso com o sol e a recordação de um trabalho difícil e bem feito. Não viu
pessoa alguma por perto. Sentou-se no degrau de madeira do hospital e acendeu
um cigarro. Aprendera a enrolar seus próprios cigarros com perfeição. Com o sol
nos ombros e na cabeça, nasceu-lhe uma nova coragem. O vento aumentou um
pouco e bateu de leve em seu rosto.
Dentro de minutos, iria até a cozinha do hospital e prepararia o café da
manhã antes da chegada das montanhosas que cozinhavam para os doentes.
Chegara um presunto na véspera e havia café novo moído e uma cesta de ovos
frescos. Um fazendeiro logo depois traria saboroso leite. Wade, aparentemente,
continuava a dormir.
Ouviu o som das botas do amigo e Wade empurrou a porta, bocejando.
Sentou-se ao lado de Frank, esfregou os olhos e bocejou novamente. Frank
enrolou-lhe um cigarro. Os dois permaneceram ali em cansado e contente
silêncio, olhando para a rua na direção da igreja. Viram algumas figuras
encurvadas e malvestidas dirigindo-se para as portas do templo. Os sinos
repicavam com mais força.
— Bem — disse Wade —, o inimigo chegou. Mas vencemos a luta. —
Não se barbeara ainda e, em contraste, a barba preta tornava-lhe a face pálida
quase branca. — Acho que agora você vai voltar para as colinas, Frank.
— Isso mesmo. Preciso ver o que é que os rapazes andam fazendo.
Quando estou longe, eles amolecem no trabalho. É engraçado que nenhum deles
tenha vindo aqui visitar-me.
Wade puxou uma baforada e olhou pensativo para a ponta do cigarro.
— Por que não volta agora para casa, Frank? Por algum motivo, acho
que os Cunninghams nunca farão a sua fortuna. Eles são excessivamente...
excessivamente desleixados, talvez. Além disso, acho que você já aprendeu o
suficiente sobre estas montanhas e esta gente.
— Não vim aqui para aprender — respondeu-lhe friamente Frank. —
Vim aqui para ganhar dinheiro.
Wade ergueu uma sobrancelha.
— Sinto muito, mas não acho que venha a ganhá-lo por aqui. Não acho
que venha a ganhá-lo com qualquer súbita reviravolta da fortuna. Você não é
desse tipo. Volte para casa. Trabalhe. Aprenda. Estude. Volte a escrever.
Frank fez um gesto impaciente. Sentiu-se profundamente inquieto
naquele momento. Levantou-se.
— Vou preparar o café. Depois, voltarei para a cabana. Os rapazes
devem estar trabalhando agora a todo vapor no poço, se é que não resolveram
hibernar. Mostravam sintomas disso pouco antes de eu vir para cá.
Wade conservou-se calado. Ergueu os olhos para o amigo e notou-lhe a
pálida magreza. O seu cabelo castanho escuro não fora cortado durante muito
tempo e lhe descia pelas orelhas e mesmo pelo pescoço. Havia bolsas sob os
olhos azuis, o nariz afilara e parecia que ele envelhecera.
— Você está parecendo um demônio — disse Wade. — Volte para lá e
durma durante uns três dias. Não quero agradecer-lhe — acrescentou com um
sorriso.
Frank teve vontade de dizer impulsivamente: “Eu fiz isso por você,
diabos o levem! Simplesmente por você!” Mas as palavras ficaram presas. Não
queria ver novamente a bondosa indiferença nos olhos de Wade, o embaraço, a
reserva. Assim, meramente, abaixou-se e empurrou-lhe o ombro com afetuosa
rudeza.
Momentos depois aproximou-se Peter, desgrenhado, bocejando, vestindo
calças de brim enfiadas nas botas altas, a camisa azul aberta no peito, o cabelo
louro longo demais e uma penugem dourada na face larga e saudável. Ao
contrário de Wade, ele usava sempre uma larga cartucheira de couro com
revólver. O cinto pendia da cintura estreita. Tinha a aparência de um vigoroso
aventureiro. Pequenas gotas de umidade apareciam sempre em sua pele rosada,
qualquer que fosse o tempo. Não podendo expressar sua admiração natural por
ele, Frank cumprimentou-o alegre.
Peter acenou na direção da igreja.
— Então, eles chegaram, hem? Mas vencemos nossa batalha primeiro,
não? Eles que espumejem agora sobre as chamas do inferno. De qualquer modo,
o pessoal está cheio de antitoxinas. Eu gostaria de que houvesse antitoxina para a
loucura bíblica.
— Eu gostaria de que pudéssemos descobrir uma antitoxina ou uma
vacina contra todos os pecados do mundo — disse Wade meio sério, meio
brincalhão.
— Então, este mundo seria danado de monótono! — exclamou Peter.
Aceitou o cigarro oferecido por Frank. — Ei, Frank, você fez um grande
trabalho para nós. Posso-lhe dizer agora que não consegui acreditar quando o vi
aqui, pela primeira vez, fazendo arranhões e dando injeções como um louco.
— Por que não?
— Bem, você não parecia esse tipo. — Sorriu para Frank com grande
bom humor. Mas permaneceu junto de Wade.
A boca de Frank contraiu-se.
— Você não devia ser tão apressado assim em seus julgamentos — disse.
— Como é que você pode conhecer as pessoas?
Dirigiu-se à cozinha e iniciou o preparo do café da manhã. Pela tela da
porta via a parte superior da cabeça loura de Peter. Ouviu a voz baixa de Wade e
a resposta rápida e áspera de Peter. Mas não conseguiu escutar as palavras.
Deprimido e nervoso, achou que odiava Peter, que jamais o havia aceito.
Mais tarde, durante o desjejum, Wade disse que Peter ia viajar em maio
para Salt Lake City. Ia casar.
— Peter não vai voltar, mas vou permanecer aqui até sermos substituídos
por nossa Igreja. Estamos aqui há muito tempo e vamos ser chamados de volta.
— Mas o que acontecerá a essa gente? — perguntou Frank, triste com o
pensamento de jamais rever o amigo.
— Oh, a Igreja enviará gente competente. A sociedade missionária é
muito ativa.
Wade e Peter começaram a falar com nostálgico prazer do lar e da
família. Esqueceram Frank, que aceitou sombrio o descaso. Ele nada significa
para eles. Lembrar-se-iam dele com gratidão e teriam palavras amáveis a seu
respeito, pensariam nele cada vez menos até que seu próprio nome fosse
aquecido. Era apenas parte de Benton, uma pequena parte apenas dos anos de
luta naquele local ermo. Mas ele nunca os esqueceria. Quando fosse de meia-
idade ou muito velho, lembraria a face morena e magra de Wade e o sorriso
radiante e a pele úmida de Peter. Isso acontece, pensou, porque nunca tive coisa
alguma, realmente, e eles sempre foram ricos em tudo.
Esqueciam-no, já naquele momento. Conversavam sobre o pai, a mãe, a
fazenda adquirida por um primo. Falaram sobre as mulheres que amavam e para
as quais logo voltariam. Conversaram sobre membros da Igreja e velhos amigos.
Frank imaginou-lhes a vida familiar, contente, agradável, de classe média
superior, satisfatória. Sentiu ainda mais agudamente a falta de um lar e de
amigos. Voltaria oportunamente para Bison, mas não haveria lá pessoa alguma
que tivesse prazer em vê-lo ou o amasse. Enquanto lutava em total insegurança e
levava uma vida mesquinha, esses dois jovens progrediriam em riqueza material,
no respeito e na afeição da comunidade natal, casariam com mulheres bonitas e
tranquilas, criariam filhos felizes e sadios no amor de Deus e na segurança da
paz e do dinheiro abundante. No fundo do coração, eles já haviam partido de
Benton. Seus olhos voltavam-se para o Oeste e a luz do sol ocidental brilhava-
lhes nos rostos. Deixem-me ir com vocês! Deixem-me ficar sempre com vocês!
exclamou o coração solitário de Frank. Mas os dois irmãos riam de alguma piada
familiar.
Mais tarde, Wade emprestou-lhe a mula para a volta às colinas.
— Um dos rapazes pode trazê-la de volta amanhã, quando vier buscar
suprimentos — disse.
Frank subiu as colinas, evitando com todo cuidado os buracos das
estradas enlameadas. Deixando Benton, o vento tornou-se mais frio e forte e
ficou quase insuportável o aroma dos pinheiros. As colinas ergueram-se à sua
frente e caíram por trás dele no verde e luminoso silêncio. Ocasionalmente, via
poços de petróleo, onde bombas funcionavam sem parar, mas nenhuma criatura
viva. Aqui e ali, na dobra de um vale, aparecia uma cabana de troncos ou uma
minúscula casa cinzenta de fazenda, mas, tanto quanto podia ver, estavam
desertas. O sol esquentou-lhe os ombros e a cabeça e folhas farfalharam ao
vento. A lama vermelha das montanhas colava-se às patas da mula, que subiam
com um som de sucção. De vez em quando, uma ave piava e outra respondia.
Uma hora depois, viu a conhecida ravina e a cabana de troncos onde
residia com os Cunninghams. Nenhuma fumaça subia da Chaminé. Viu as
longarinas do poço de petróleo próximo, mas ninguém em volta. O diabo os
levasse! Provavelmente dormiam ainda na cabana, que, com toda a
probabilidade, haviam transformado em um campo de batalha.
Na terra deserta os troncos cinzentos da cabana lembraram-lhe um velho
cochilando ao sol. Prendeu a mula a um dos postes que suportavam o telhado do
alpendre e pisou ruidosamente sobre as pranchas da porta. Fez um barulho
desnecessário, como se tentasse instilar vida no silêncio dobrado.
Impaciente, empurrou com um alto rangido a áspera porta. Gritou:
— Que diabo! Vocês ainda estão dormindo?
Nenhuma resposta. Permaneceu no umbral da escura sala, estupefato,
incrédulo. Os catres estavam desfeitos, o chão sujo, coberto de manchas
gordurosas, lama e revistas velhas. No seu canto, abandonado, o fogão preto,
cobrindo-se de ferrugem, em meio a pratos quebrados. Em cima, uma frigideira
fria, meio cheia de gordura suja. As armas haviam desaparecido de cima da
lareira, onde só havia cinzas. Não havia sinal algum de roupas, embora as suas
próprias roupas continuassem penduradas nos ganchos próximos à janela. O
antigo e arruinado baú continuava em seu canto e, sobre a tampa, um punhado de
trapos e umas duas xícaras sujas de café.
Bastou-lhe um segundo para compreender que os Cunninghams haviam
fugido e que não voltariam. Havia um ar furtivo na malcheirosa cabana, um
segredo nos cantos empoeirados. Com o coração batendo violentamente, correu
até o baú. Os dedos trêmulos mal conseguiram erguer a tampa. Prendeu, então, a
respiração com profundo alívio. Suas roupas “domingueiras” continuavam ali e
também o saco de dinheiro. Agarrou este último e sentiu, em seguida, vontade de
vomitar. Estava muito leve. Cortou o barbante e caíram algumas notas e o
certificado de naturalização do pai. Havia também um pedaço de papel amarelo
dobrado. Nesse momento as mãos lhe tremeram violentamente. Desdobrou o
papel, aproximou-o da luz e leu:
“Não fique danado, Frank. Mas não há petróleo algum nestas malditas
colinas e acabou nosso dinheiro. Não adianta ficar aqui. Já resolvemos. Ouvimos
dizer por alguns amigos que há petróleo à beça em Bowling Green e vamos para
lá. Acho que deveríamos ter-lhe falado a esse respeito, mas não houve tempo.
Assim, tomamos emprestado seu dinheiro para nos estabelecermos em Bowling
Green, onde podemos ganhar uma pá de dinheiro. Deixamos-lhe cem dólares
para que você venha ao nosso encontro quando chegar aí. Quando chegar a
Bowling Green, procure Sir Bellowes. Todos o conhecem por lá. Ele lhe dirá
onde nos estabelecemos. Estaremos à sua espera. P.S. Talvez isto seja uma
sujeira, mas você andava ocupado com Wade O’Leary e estamos apenas
tomando o dinheiro emprestado. Pagaremos a você juros de seis por cento.
Venha. Você pode mesmo fazer uma fortuna em Bowling Green. É uma
verdadeira cidade petroleira e não como este buraco desgraçado.”
CAPÍTULO 54
Wade leu o bilhete e sua expressão tornou-se sombria de preocupação.
Olhou para a face jovem e desvairada de Frank, para os olhos injetados e para a
boca trêmula de fúria e horror.
— Bem! Isso é uma grande sujeira — disse Peter. — Sempre achei que
aqueles caras não prestavam, mas nunca pensei que fizessem uma coisa dessas.
— O que é que posso fazer? O que é que posso fazer? — balbuciou
Frank em desespero. Torceu as mãos e, em seguida, cerrou-as fortemente. —
Meu dinheiro! Trabalhei um ano por aquele dinheiro. Não... não é justo que eles
se safem depois de fazer uma coisa dessas! O que é que posso fazer? Posso
mandar prendê-los? Quero ver aqueles canalhas na cadeia. Quero meu dinheiro!
Desvairado, olhou em desespero para Wade, que continuava calado e,
depois, voltou-se para Peter. Instintivamente, sentiu a profunda indignação e a
raiva do irmão mais moço e segurou-lhe o braço.
— Será que posso detê-los? Há Polícia por aqui? E o delegado?
Encontravam-se os três do lado de fora do hospital, ao sol do meio-dia.
Frank viera às pressas para Benton, chicoteando a valer a filosófica mula de
Wade. Os seus gritos haviam atraído os irmãos para fora. Viram que ele estava
quase transtornado.
— Vamos discutir o assunto — disse Peter, e havia mais calor pessoal na
sua voz franca do que Frank já ouvira até então. Lançou um olhar ao irmão, que
tinha as sobrancelhas contraídas. — Não adianta ficar excitado agora. Você disse
que a cabana dá a impressão de que eles foram há umas duas semanas? Você
veio para cá há umas três semanas, certo? Eles devem ter aproveitado a
oportunidade para escapulir com seu dinheiro. Wade, o que é que você acha do
delegado, ou da Polícia em Paintsville?
Wade empurrou para trás o mole chapéu preto.
— Não podemos exatamente acusá-los de roubo, no sentido legal, acho.
Frank era sócio deles. Os irmãos reuniram todo o dinheiro que tinham e acho
que se poderia dizer que um sócio deveria fazer o «mesmo. Não sei. Não sou
advogado. Eles disseram para onde iam e como entrar em contato com eles,
Frank. Moralmente, acho, você poderia chamá-los de ladrões. O importante é
saber se eles estão em Bowling Green. Se estão, não roubaram de fato o
dinheiro... tecnicamente falando, embora eu ache que a Polícia ficaria
interessada. Entretanto, se não estiverem lá, você poderá acusá-lo de roubo.
Estava alarmado com a face cinzenta e a boca trêmula de Frank, com o
brilho alucinado dos seus olhos furiosos. Virou-se abruptamente após um olhar
para Peter, dirigiu-se ao laboratório e voltou com um copo de água e um
comprimido branco. Estendeu-os a Frank. O jovem, porém, derrubou-os com um
repelão.
— Meu dinheiro! — exclamou em voz alquebrada, virando-se ora para
um, ora para outro. — Meus mil e quinhentos dólares! Trabalhei por esse
dinheiro, neste maldito lugar, fazendo das tripas coração! Eu... eu não estava
vivo aqui! Eu simplesmente trabalhava para poder ir embora! E, agora, o
dinheiro desapareceu e vocês dizem que não... não é roubo! — A voz morreu e
ele começou a tremer violentamente. — Mil e quinhentos dólares não significam
coisa alguma para vocês. Para mim, era minha vida!
Ele era jovem e os dois irmãos viram que, em sua angústia, estava
prestes a desfazer-se em lágrimas.
— Espere um minuto, por favor — disse suavemente Wade. Lançou
outro olhar a Peter. — Nós não temos muito dinheiro contado, Frank. Quanto é
que você tem, Peter? Cinquenta dólares. Eu tenho também mais ou menos isso.
Escute, Frank, nós... lhe emprestaremos esses cem dólares. Vá até Painstsville e
procure o delegado. O cara não é lá grande coisa. Passa a vida toda bêbado,
tomando uísque falsificado. Permaneça em Paintsville até que a Polícia consiga
descobrir os Cunninghams em Bowling Green. Agora, procure ficar calmo.
Tenho um palpite de que você vai receber seu dinheiro de volta...
Enfiou um pequeno maço de notas na mão de Frank, que as olhou
embotado. Fez um esforço para falar. Peter pôs a mão em sem ombro.
— Sei que é uma sujeira, Frank. Mas, como Wade diz, acho que você
encontrará os Cunninghams. Se eles têm ainda parte do dinheiro, não sei.
Equipamento custa dinheiro e, com toda certeza, eles já o gastaram. Mas você
pode conseguir direito de retenção sobre a maquinaria, ou coisa parecida. Que tal
se ele fosse direto a Bowling Green, em vez de esperar em Paintsville? —
perguntou a Wade.
Wade inclinou a cabeça. Segurou o braço de Frank com a mão firme.
— É melhor não voltar à cabana, exceto para ir buscar as roupas.
Mandarei lá um dos rapazes para fazer isso. É melhor que você fique aqui
durante uns dois dias. Há um telefone no armazém e eu telefonarei amanhã à
Polícia de Bowling Green. Enquanto isso, é melhor você se acalmar. Acho que já
aguentou demais. Veremos o que diz o Chefe de Polícia de Bowling Green.
— Isso mesmo! — exclamou Peter. — Você não pode fazer coisa
alguma até amanhã. Há café quente no fogão e é melhor você tomar um pouco.
Lágrimas de sofrimento sufocavam Frank. Enfiou o dinheiro no bolso da
camisa com as mãos tremendo.
— Vocês não sabem o que aquele dinheiro significava para mim! —
disse uma e várias vezes em voz alquebrada. — Como é que posso ir embora,
sair daqui, sem dinheiro? — Mal conseguia ver as coisas e suas palavras
transbordavam de ódio. — Este maldito e fedorento lugar! Sou um prisioneiro
aqui! Nunca escaparei. Vou enlouquecer!
— Vamos ver amanhã o que é que a Polícia de Bowling Green diz! —
repetiu penalizado Wade. Hesitou. — Escute, talvez fosse melhor você voltar
para casa e ficar lá durante alguns dias. Poderemos dar-lhe um cheque nominal.
Depois, quando os Cunninghams lhe pagarem, você poderá restituir-nos o
dinheiro. O que é que acha disso?
— Mas... mas eles podem ter fugido do país! — gaguejou Frank. A sua
dolorosa respiração, contudo, tornara-se mais lenta e mais tranquila a voz. —
Neste caso, eu simplesmente deveria dinheiro a vocês e passariam anos antes
que eu pudesse pagar.
Wade encolheu os ombros e sorriu.
— Podemos esperar. Que tal aquele café, Peter?
Ouviram um grito e pararam nos degraus do hospital. Um jovem, bem
vestido, de tweed, cinza e perneira marrons, montando uma bela égua,
aproximava-se a galope, levantando uma nuvem de poeira. Desmontou com um
salto ágil e com a mão estendida correu para Wade.
— Olá! Como vai, Wade? E você, Peter? Puxa, é um prazer vê-los de
novo!
— Bobby! — exclamou Peter, apertando com prazer a mão do jovem. —
Quando foi que voltou?
— Estou em casa já há uma semana, mas não pude vir a Benton antes.
Que tal vocês dois irem jantar hoje comigo e papai? Tenho um milhão de coisas
para contar aos dois.
Segurando ainda a mão do estranho, Wade voltou-se para Frank, a cuja
face lívida o sangue voltava aos poucos.
— Frank, este aqui é Bobby Gratwick. Lembra-se de que visitamos o pai
dele em outubro passado?
— Muito prazer — gaguejou Frank, tremendo ainda ligeiramente.
Reconheceu Bobby Gratwick pela foto vista na cabana do velho. Sua mão, fria e
úmida, foi agarrada por outra, magra, seca, mas igualmente fria. Após um olhar
muito rápido, Bobby soltou-a indiferente. Focalizou toda a atenção em Wade.
Falava na voz aguda e leve do montanhês, mas não no mesmo tom arrastado.
Falava de maneira excitada, quase feminina.
Frank começou a sentir a reação provocada pelas fortes emoções:
vontade de vomitar, fraqueza, desejo de sentar-se. Os O’Learys haviam-no
momentaneamente esquecido e o seu embaraçoso problema. Absorvidos, riam e
conversavam com Bobby Gratwick. Frank tomou violenta antipatia por Bobby,
provavelmente ocasionada pela sua indesejável intromissão na cena. Odiou a
face pálida e expressiva, o cabelo louro liso, os olhos profundamente azuis e a
boca flexível demais. Era uma maldita face de mulher! Bonita demais para... ser
descrita! Por que, diabo, havia ele chegado justamente naquela ocasião? Ele,
com suas perneiras, a lustrosa égua, monopolizando os O’Learys! Foi tomado
por violento e insensato ódio dos O’Learys, que, temporariamente, o haviam
abandonado. O velho ressentimento contra Peter e o ressentimento menor e mais
recente contra Wade voltaram com plena força. Como podiam esquecê-lo com
toda aquela facilidade e dedicar toda a atenção àquela criatura efeminada?
Talvez estivessem satisfeitos com a interrupção. Talvez estivessem esperando
que Frank houvesse esquecido o oferecimento do cheque. A mocidade chocada
de Frank, ferida e em desespero, fê-lo olhar furioso para Bobby Gratwick e
desejar dar-lhe um selvagem pontapé. Fê-lo desejar também dar pontapés em
Wade e Peter e amaldiçoá-los porque o haviam esquecido e estavam tão
absorvidos na conversa com o velho amigo.
Fervendo de raiva, nauseado, com a cabeça dolorida, ficou de lado. O
estômago contraiu-se. Engoliu com força para não vomitar. A voz entusiástica e
fina continuou a falar, acompanhada por explosões de riso dos O’Learys. O
ciúme torturou-o. Em seguida, após alguma coisa dita pelo efeminado idiota,
ouviu Wade soltar uma viva exclamação. Naquele momento, cessou o riso.
Frank olhou fixamente para Bob Gratwick e notou que a face sorridente se
tornara pálida, tensa e dura.
— É isso mesmo. Você me entendeu perfeitamente, Wade. Foi isso o que
andei fazendo. A ordem de prisão foi executada contra Big Les e os filhos,
ontem. E estou também atrás de todos os falsificadores de bebida. Por que é que
você está assim? Lei é lei, não? Não se trata mais de uma questão de ação dos
coletores. A Lei Seca foi promulgada no país e, quanto mais cedo esses matutos
descobrirem isso, melhor para eles.
Esperou um comentário. Wade e Peter, porém, depois de trocarem um
olhar, fitaram-no sombrio. Zangado, ele continuou:
— Sou o subdelegado! Estou cumprindo meu dever.
Wade falou nesse instante num tom de voz que Frank não o ouvira usar
antes:
— Você transformou isso em seu dever, Bob. Mas, de certa maneira, não
é um dever. Você é simplesmente reto demais. É isso que torna toda a coisa
errada...
— Bem, agora você não está “falando legal” — respondeu Bob em voz
precisa, voltando ao linguajar da montanha. — Lei é lei. Fiz um juramento e vou
honrá-lo.
O tom de voz de Wade tornou-se ainda mais tenso:
— Bob, você sempre odiou sua própria gente, não? Não sei por quê.
Talvez nem você mesmo saiba. Seu pai é um montanhês e ele sempre... o adorou.
Será que você não gosta de seu pai? Não precisa responder. Estou simplesmente
tentando descobrir o que faz você funcionar, Bob. Talvez você seja apenas um
calhorda íntegro, com um jeito para meter-se na vida dos outros. Não — ergueu
a mão —, você não precisa tentar justificar-se comigo. Mas sejamos sensatos
porque isto é assunto sério. A sua gente vem fabricando uísque há gerações, aqui
nas montanhas. Isso está no sangue deles, consideram isso o direito supremo,
parte de suas vidas. Você sabe do fato tão bem como eu. Eles lutaram contra os
coletores desde que o primeiro apareceu por estas colinas. Consideravam um
coletor algo pior do que um mero servidor da lei. Ele interferia na vida deles, na
liberdade, na busca da felicidade. São homens livres e não admitem que um
“estranho” lhes venha ditar ordens. Esse era o código de liberdade deles e
lutaram por ele...
— Você está ladeando a questão! — exclamou irritado e afogueado Bob.
— Não vou responder às suas absurdas acusações de que odeio essas... pessoas e
meu pai. Meu pai! Isso é realmente absurdo, Wade. O problema, agora, é que sou
o subdelegado deste município e que temos agora a Lei Seca, de âmbito
nacional. E vou cumprir a lei!
—E mandou Big Les e os filhos para a cadeia... montanheses que
morrerão se forem privados, mesmo por um momento, da liberdade! Mandou-os
para a cadeia porque fabricam uísque, como os pais deles fizeram, e os avós e
bisavós antes deles.
— Você não respeita a lei dos Estados Unidos da América! — exclamou
Bob, ofendido. Sua pele escureceu.
— Lei, uma ova! — interrompeu Peter com grande rudeza. — Você não
está interessado na lei, e sabe disso, mesmo que tente enganar-se! Você está
interessado em satisfazer sua maldade, embora eu ache que disse a si mesmo que
é apenas um bom e decente cumpridor da lei!
— Você não pode falar-me assim! — A face de Bob esvaziou-se
subitamente de toda a cor.
Wade deu um passo na direção dele e falou-lhe em tom mais calmo:
— Bob, o que é que o seu pai acha disso?
Bob cerrou os dentes, mas não desviou os olhos de Wade.
— Ele pensa, erradamente, da mesma forma que você. — A voz tornou-
se mais excitada nesse momento, quase implorante: — Wade, é por isso que eu
queria que você fosse comigo e falasse com ele. Ele... ele é um velho ignorante,
analfabeto, e não compreende. Mas você compreende. Você sabe muito bem que
os mórmons não aprovam o álcool. Pensei que você ia ajudar-me — acrescentou
com o desamparo de um rapaz. — Não o compreendo, Wade.
— Não estou falando a respeito da lei agora, Bob — respondeu Wade
em voz quase meiga, como se falasse com uma criança. — Estou falando a
respeito de psicologia humana, de psicologia da montanha. A sua gente não vai
considerá-lo um servidor da lei, que cumpre aquilo que jurou cumprir. Irá
considerá-lo como um homem que ousa infringir velhos e altivos direitos.
— Não há “direitos” acima da lei — respondeu firme Bob.
Wade suspirou.
— Odeio ouvir uma pessoa dizer isso — respondeu. — Quando um
homem acredita nisso, ele já perdeu a liberdade, o seu americanismo. Está
maduro para a autocracia. O que é uma lei? Numa democracia, um édito
aprovado pela maioria. Mas a maioria nem sempre tem razão. Cabe a todos os
homens bons, em toda parte, examinar cada lei antes de ser promulgada e, se for
uma lei má, aprovada por homens ignorantes e maus em nome da maioria, os
bons deverão procurar ab-rogá-la em nome da liberdade e da honra.
— Isso é inconstitucional — protestou Bob Gratwick — e você sabe
disso. Isso é bolchevismo.
— Estou vendo que você lê os jornais conservadores — disse Wade. —
Ouça aqui, Bob, há uma lei moral e uma lei legal. Elas não são necessariamente
as mesmas. Mas talvez você mesmo descubra isso algum dia. — Interrompeu-se.
— Isso é muito sério.
— Se eu fosse você, correria para o mato ou voltaria para a cidade com
tanta rapidez quanto possível — disse Peter com sombrio humor. — O pessoal
aqui é muito bom de pontaria.
Bob ergueu orgulhoso o queixo.
— Não tenho medo desses porcos analfabetos — disse. A voz tornou-se
dura, quase cruel, e seus olhos faiscaram. — Chegou a hora de alguém pôr o
temor de Deus em suas almas.
— Foi o que pensei — disse sombrio Wade.
Frank escutara a conversação com grande interesse, momentaneamente
esquecido de seus próprios problemas. Aumentou a sua antipatia por Bob
Gratwick. O farisaico calhorda! O que é que havia por trás de todo aquele
falatório? Ódio! Com toda a certeza. De quem e por quê?
Peter batia com visível e ruidosa ostentação no coldre da arma. Bob
ouviu-o e voltou-se para ele quase selvagemente:
— O que é que você está tentando fazer? Meter-me medo? Ninguém
pode fazer-me medo. Assim, acabe de mexer nessa coisa, estou-lhe dizendo!
Wade pôs a mão no braço do irmão, mas olhou para Bob:
— O que é que Betty Saunders diz a esse respeito, Bobby?
Bob Gratwick hesitou:
— Ela está ensinando em Paintsville. Nunca faz perguntas. Sabe que
dever é dever.
— Ela sabe que você veio aqui, deliberadamente, para fazer o mal,
prender a gente dela, e que se apresentou voluntariamente porque lhes conhece
muito bem os costumes e sabe onde escondem seus pobres alambiques?
Tão absorvidos estavam que ninguém, exceto Frank, ouviu o som
abafado de patas de cavalo que se aproximavam. Foi o primeiro a erguer a vista
e ver um grupo de três montanheses, de grandes barbas e rostos duros. Trariam
os rifles nas mãos e seus olhos faiscavam sinistramente à suave luz do sol.
CAPÍTULO 55
A primeira emoção de Frank ao ver os montanheses foi de nojo,
mesclado de ódio. Jamais um deles deixava de provocar-lhe, logo no início, uma
contração de asco. Esses porcos sujos, tomadores de rapé, mascadores de fumo,
analfabetos. Sentiu-lhes o cheiro quando ainda montados e viu os macacões
azuis, com seus botões de latão, as camisas fedendo a suor, os chapéus de palha
arruinados, as botas cheias de crostas de esterco seco. Reconheceu-os. Havia
aplicado soro antitífico neles e esfregado vacina antivariólica em seus braços
magros, mas musculosos. E desejara, enquanto trabalhava, estar usando cianeto
ou germes de tétano.
Não conseguiu controlar o nojo quando gritou para eles:
— O que é que vocês querem?
Eles haviam provavelmente acabado de sair da arruinada igreja no fim
da rua, onde, naquele instante, se ouviam os uivos obscenos dos fiéis. Frank
comparecera a uma das sessões uma semana antes, por ocasião do primeiro
“serviço religioso” do pregador ambulante. Sentara em um sujo banco de
madeira, entre mulheres cobertas por grandes chapéus, crianças aos berros e
homens de camisas de brim listrado. O pregador, um homem comprido e magro,
de face encovada, metido em roupas empoeiradas, subira ao púlpito de madeira e
gritara: “Na casa de meu Pai há muitas mansões! Na casa de meu Pai há muitas
mansões! Mansões! Deus! A casa de meu Pai! Mansões! Mansões! Mansões! Eu
não diria isso se não fosse verdade! Verdade! Mansões.” Isso fora tudo. Nada de
hinos “apropriados”, nada de livros de orações, nenhuma cerimônia, nenhum
sermão, apenas aquele uivo demente, insano, incoerente, na malcheirosa
igrejinha de madeira, enquanto a congregação começava a balançar-se de um
lado para o outro e a murmurar. Em seguida, para completa estupefação de
Frank, homens e mulheres enlouqueceram. Ergueram-se, saltaram para cima e
para baixo, lançaram-se ao chão, rolando pelos bancos, derrubando-os,
abraçando-se uns aos outros, deitados ali, mordendo-se, guinchando, uivando,
gritando, enquanto o pregador cabriolava e berrava no púlpito. Frank fugira
absolutamente apavorado, saltando por cima dos bancos, temeroso de que algum
raivoso crente o mordesse no tornozelo ou na perna ou o agarrasse e o fizesse
rolar no monte emaranhado de corpos. Do lado de fora, trêmulo e arrepiado,
continuou a ouvir o coro inumano do lado de dentro, os choques dos bancos, as
batidas de braços e os gritos do “pastor”.
Quando contara o episódio a Wade, o amigo lhe respondera
tranquilamente:
— É a mais velha e mais primitiva manifestação de êxtase religioso —
dissera. — Não fique assim tão horrorizado, Frank. Pode-se ver isso nas selvas
africanas, nas danças dos índios. É um fenômeno estranho, reconheço, mas tem
seu lado interessante. Essas pessoas chamam a isso de “baixar o espírito”. Pobres
coitados.
O asco de Frank, porém, não diminuíra. Não achara a loucura religiosa
nem “curiosa” nem “interessante”. Considerava aquilo algo terrível, revoltante.
Naquele momento, erguendo os olhos para os montanheses, recém-saídos da
crise de uivos e mordidas, sentiu vontade de poder varrê-los, com os olhos, da
face da terra.
Ao lhe ouvirem a pergunta, Peter, Wade e Bob Gratwick voltaram-se.
Foi como se um choque lhes houvesse provocado uma pétrea imobilidade. Frank
esperou que Wade falasse com os cavaleiros, lhes sorrisse, cumprimentasse.
Wade, porém, permaneceu tenso. O irmão deu um passo para o lado dele. Era
curioso, mas imediatamente Frank percebeu que os dois irmãos se haviam
interposto entre os montanheses e Bob Gratwick. E haviam-no feito quase sem
movimento algum.
Em seguida, em voz tranquila e despreocupada, estranhamente alta no
sossego da montanha, disse Wade:
— Olá, Hank. Olá, Eli. Olá, Jeremiah.
Bob Gratwick ficara branco como a morte. Encolhera dentro das finas
roupas. Mas não se moveu. Virou a face lívida para os montanheses e
permaneceu em silêncio atrás dos O’Learys. Lançara um único olhar para o
hospital e, aparentemente, abandonara a ideia da fuga como impossível, pois uns
cinco metros o separavam da segurança.
Frank fitou-os incrédulo. Algo no ar fez com que sua carne se arrepiasse.
Sentiu o cheiro insistente e forte do perigo. Olhou para Wade. Para Peter.
Imperceptivelmente, Peter solara a capa do coldre. Tinha a mão no cabo do
revólver e, embora parecesse à vontade, havia nele algo atento, vigilante.
Os montanheses permaneceram em sombrio silêncio nas suas montarias.
Olhavam apenas para Bob Gratwick. Frank viu-lhe as faces, tensas, encovadas,
ferozes. Os uivos na igreja em um crescendo insuportável. Por trás dos
montanheses, as montanhas verdejavam contra um céu radiante. Três aves, um
ganso, uma gansa e um gansinho desciam em imponente fila a rua. As três lojas
do outro lado da rua refletiam a luz de sol em suas empoeiradas janelas. Não
havia mais pessoa alguma por ali, salvo os três cavaleiros, Frank, os O’Learys e
Bob Gratwick.
Frank conhecera violência mesquinha durante toda a sua vida, mas
nunca sentira antes uma violência selvagem como a que o cercava naquele
momento e aos demais. Não podia acreditar naquilo. Quais eram as intenções
dessas criaturas primitivas, ali montadas em seus cavalos? Devia ser algo sério.
A face morena de Wade estava tensa e grave; a expressão cordial de Peter
desaparecera e fora substituída por algo fechado e duro. Bob Gratwick
conservava-se atrás dos amigos, parecendo um condenado.
Como os montanheses não responderam ao cumprimento nem desviaram
os olhos de Bob, Wade perguntou:
— Como vai sua mulher, Eli? Como vai o bebê? Passaram os acessos?
Os montanheses, que não se haviam movido, conservando-se como
estátuas naqueles últimos minutos, entreolharam-se nesse momento. Eli
pigarreou e apertou a mão em volta do rifle, que levava em diagonal sobre a sela.
Os demais repetiram o mesmo gesto. Disse:
— A mulher vai bem, pastor. Os meninos vão bem. Obrigado ao senhor.
— Parou e recomeçou em tom arrastado: — A gente não quer encrenca com o
senhor, pastor. A gente espera que não vá haver. Não é isso, rapazes?
Os amigos murmuraram uma afirmativa.
Peter falou nessa ocasião:
— Por que é que vocês não estão na igreja? Parece que o negócio lá está
bem animado.
Os homens mudaram a posição dos rifles e ergueram-no
simultaneamente. Frank nunca olhara antes para a boca de um rifle e achou o
espetáculo desinteressante. Eli disse:
— Pastor, a gente ficaria muito satisfeito se o senhor e seus amigos
tivessem a bondade de dar um passo pro lado. Temos um negócio a resolver com
essa jaritacaca aí.
A mão de Peter moveu-se levemente para o revólver. Frank notou que
ele empunhara o cabo da arma. Wade, porém, falava com grande tranquilidade:
— Escutem aqui, rapazes, nenhum de nós quer encrenca. Este é o nosso
hospital e um bocado de seus amigos está doente aqui. Por que vocês não vão
para casa e esquecem tudo isto? Se houver algo que eu possa fazer para ajeitar as
coisas...
Frank percebeu uma nota contida na voz de Wade, uma forte
determinação. O médico fixou os olhos nos homens que salvara da morte, de
quem fora amigo, cujas esposas assistira no parto e cujos filhos salvara de graves
doenças. Disse:
— Vocês sempre foram meus amigos e eu sempre fui amigo de vocês.
Nunca lhes pedi coisa alguma, salvo deixar que os ajudasse. Vocês me
suplicaram, muitas vezes, que os deixasse me fazerem um favor. Nunca me
aproveitei disso. Vou fazê-lo agora. Vão para casa. Esqueçam tudo isto.
Os homens olharam-no do alto de suas montarias e suas fisionomias
sérias adquiriram uma estranha expressão de pena e afeto. Em voz quase doce,
Jeremiah disse:
— Pastor, sabemos o que o senhor fez pela gente. Não estamos negando
isso. Não queremos encrenca com o senhor. Se quer o nosso couro, nós damos.
O senhor sabe disso. Mas a gente não vai deixar de fazer o que tem de fazer. O
senhor não tem parte nisso. O senhor não é destas montanhas. E nós vamos
mandar pro inferno essa jaritacaca!
Bob Gratwick mexeu-se nesse momento. Apertou os flancos com as
mãos e lançou aos montanheses um olhar de nojo completo e de ódio. Seus olhos
azuis faiscaram à luz do sol.
— Não está compreendendo o que eles querem, Wade? Querem-me
matar. Sou simplesmente um homem desarmado, um contra três, mas sou
perigoso e esses valentes têm medo de mim.
— Cale a boca, seu idiota — disse áspero Peter. Olhou para os
montanheses e sorriu. — Oh, vão para casa, seus palermas — disse bem-
humorado. — Bob é um jumento e eu garanto que ele vai cair fora destas
montanhas e ficar longe daqui. O que vocês acham disso?
Eli escutou e fitou-o com uma espécie de primitiva dignidade:
— Peter, não adianta discutir. Você não compreende. Estou vendo isso.
Ele fez uma coisa ruim para todo o pessoal da montanha. Ele mesmo é daqui e
levou uns de nós para os povoados e os botou na cadeia. Você acha que isso não
é ruim? Você não sabe coisa nenhuma sobre isso. Não há palavra para dizer o
que é isso.
— Eu sei — disse Wade tranquilamente. — Vocês foram insultados por
Bob Gratwick. Mas vocês precisam pensar em si mesmos. Estão vendo este
hospital? O pai da moça com quem Bob vai casar foi quem deu isso a vocês.
Jeremiah, sua esposa está neste hospital há quase um mês. Salvamos a vida dela.
Se não tivesse sido por Isaac Saunders, sua mulher estaria morta agora. Pense
em Isaac Saunders e no que ele fez por vocês. Eli, as suas sementes de milho
foram dadas por Isaac Saunders. Você teria morrido de fome sem elas. Hank,
você teve apendicite no verão passado. Isaac Saunders pagou os instrumentos de
nosso hospital que salvaram sua vida e o cavalo que você usa agora foi dado por
ele. Bob é um idiota. Todos nós sabemos disso. Mas vocês precisam lembrar-se
de Isaac, que é amigo de vocês.
— Ele não é nosso amigo! — exclamou Eli, soltando um palavrão. —
Ele adora deuses pagãos! Foi isso o que disse nosso pastor, ali embaixo! O
senhor pode dizer sua ladainha, pastor, mas isso não vai adiantar nada!
Finalmente, naquele momento, Frank viu raiva e nojo nos olhos de
Wade.
— Ora, seus idiotas! — exclamou. — Então, vocês meteram isso
também na cabeça? Eu, devia ter sabido.
Peter pôs a mão sobre o braço do irmão.
— Espere um minuto, Wade — começou.
Eli, porém, berrava alucinado:
— Deuses pagãos, é isso o que disse o nosso pastor! Adorando mulheres
lá nos morros! Isso não é cristão! Nós somos cristãos e, depois de acabarmos
com esse rato, vamos botar Isaac para correr até Louisville! Ele mandou esse
calhorda botar nossos amigos na cadeia...
Frank notou as faces alucinadas e brutais e teve medo. Encontrava-se à
parte do grupo formado pelos O’Learys e Bob Gratwick. E se simplesmente
recuasse, despreocupadamente, em direção ao canto do hospital, e começasse a
correr? Olhou então para Wade O’Leary, tão moreno, magro e elegante à luz do
sol, sem medo algum, tremendo de indignação e raiva, e, quase sem querer,
aproximou-se dos irmãos. Encontrava-se ao lado de Peter. Peter, o brincalhão, o
simples e franco, o louro, cujos dedos tensos se fechavam nesse momento em
torno do revólver.
— Não queremos encrenca — disse selvagemente Jeremiah. — O
senhor não conhece o código das montanhas, pastor. O senhor é apenas mórmon.
Nós fomos bons para o senhor e deixamos que ficasse aqui, mesmo o senhor não
sendo cristão completo, o senhor e seu irmão. Não vamos deixar mais que
envenene a cabeça de nossos filhos se criar um caso pra gente. Assim, caia fora e
trate de sua vida.
Os dedos de Frank agarraram a mão de Peter. Peter não se voltou nem
tirou os olhos de cima dos montanheses. Mas seus dedos eram como ferro em
volta do cabo do revólver e resistiram aos frenéticos esforços de Frank.
Wade, cuja palidez se fizera lívida, disse:
— Se você matar esse homem, eu providenciarei pessoalmente para que
todos vocês sejam enforcados. Estou avisando. Serão enforcados.
Jeremiah ergueu o rifle e apontou-o para o jovem pastor mórmon. Eli,
porém, levantou a mão e baixou a boca da arma. Fez isso distraidamente.
— Segure seu cavalo, Jeremiah. Não temos encrenca com o pastor. Ele
não pode fazer nada com a gente. O delegado está do nosso lado. O delegado é
gente nossa, lá na cadeia da cidade.
Bob Gratwick, porém, falou nesse momento, cheio de desprezo:
— Wade, não se meta nisto. Eles querem-me matar. Se você tentar detê-
los, eles o matarão, e o Peter, também. Eu não valho isso. Por que você e Peter
não vão para o hospital e fecham a porta? Escutem vocês — disse, olhando para
os montanheses por sobre a cabeça dos O’Learys —, vou para as montanhas com
vocês, bem pra dentro das montanhas, e vocês podem fazer lá seu serviço sujo.
Os montanheses olharam-no. Eli cuspiu para o lado.
— Está bom pra gente — disse. — Vamos.
— Não! — exclamou Wade, e ele e Peter aproximaram-se mais de Bob.
— Não haverá assassinato hoje. Dou-lhes cinco minutos para cair fora daqui ou
será pior para vocês.
Frank notou nesse momento que um grupo de mulheres desalinhadas e
homens sujos haviam emergido da igreja e se encontravam a uma segura e
medrosa distância do hospital, observando avidamente a cena, como lobos.
Ergueu o braço e chamou-os freneticamente. Alguns o viram, mas desviaram a
cabeça e esconderam-se por trás dos camaradas. Continuaram ali, em silêncio,
como abutres, à espera do sacrifício.
Os cavaleiros estudaram o grupo dos três valentes em frente aos cavalos.
Bob Gratwick era mais baixo do que os amigos. Não podiam atirar sobre a
cabeça dos O’Learys sem feri-los. Entreolharam-se. Pareceram cansados, mas
resolutos.
— Pastor — disse cansado Eli —, não queríamos fazer isto, mas o
senhor é teimoso como uma mula. — Com profunda deliberação, ergueu o rifle e
apontou-o para Wade. Houve uma explosão de fogo azul, cegante, e, em seguida,
o estampido.
Pareceu que, no mesmo instante, se seguia uma saraivada de tiros a que
as montanhas respondiam em uma série de ecos ressoantes. Frank recuou
cambaleando, louco de pavor, atordoado pelos relâmpagos e pelo ruído
ensurdecedor, sufocado com a acre fumaça de pólvora. Seus ouvidos retiniram e
os olhos foram tomados por uma nuvem azul e flutuante. Pensou: Vão acabar
com todos nós.
A nuvem esgarçou-se. Ouviu batidas de patas e um grito. O sol atingiu-
lhe os olhos lacrimejantes. Como se sonhasse, viu os montanheses cavalgando
em direção à colina. Viu a luz sobre as janelas das lojas e o grupo compacto de
homens e mulheres do outro lado da rua. Estava vivo. Não fora ferido. Olhou em
volta para os O’Learys e gritou.
Wade e Bob Gratwick estavam estirados lado a lado na areia amarela,
próximos ao hospital. A face de Bob fora inteiramente obliterada, substituídas as
feições por uma polpa informe e sangrenta sob o cabelo claro. Wade, em mortal
silêncio, tinha os olhos fechados e a face cinzenta e contraída. Peter ajoelhava-se
ao lado dele, com as mãos no peito do irmão, o sangue escorrendo pelos seus
dedos. Em voz baixa e insistente, continuava a dizer:
— Wade, Wade, fale comigo...
Frank viu a morte estirada aos seus pés. Os seus olhos, revoltados e
apavorados, desviaram-se de Bob Gratwick. Olhou para Wade e viu um fio de
sangue descer pelos lábios severos e lívidos. Saltou então sobre Peter. Arrancou-
lhe o revólver do coldre. Virou-se, arquejante, rilhando os dentes de náusea e
louca fúria. Os montanheses encontravam-se naquele momento a alguma
distância, aproximando-se da íngreme ladeira que conduzia às colinas. Nunca
tivera antes nas mãos um revólver, mas sentiu o gatilho contra o dedo suado.
Ergueu a arma e instintivamente a apontou como se fosse um rifle. As costas dos
montanheses em fuga dançaram à sua frente como figuras horríveis em um
sonho grotesco. Os joelhos lhe tremeram, controlou-os, tornou-os rígidos. Puxou
o gatilho, sentiu o poderoso coice da arma percorrer-lhe o corpo e cambaleou
para o lado. Não ouviu o rugido da explosão nesse pesadelo de horror e loucura,
mas sentiu nos lábios e nos olhos a pólvora quente.
Pensamentos passaram em tropel pela sua mente: isto não é real. Isto é
um sonho. Isto não aconteceu. A náusea era uma imensa massa salgada na sua
garganta e peito. Sacudiu a cabeça e olhou em volta, atordoado, incrédulo.
Pareceu-lhe que mil longos anos se haviam passado, que uma era chegara e se
fora, e que acordaria em meio a uma explosão atordoante de som, de luz, de
percepção.
Ainda assim, apenas um ou dois segundos haviam mergulhado no nada.
Sacudiu várias vezes a cabeça pesada e, em meio ao pesadelo vertiginoso, notou
que os cavaleiros se haviam detido abruptamente. Eli, que cavalgava entre os
dois companheiros, derreara-se sobre a sela, e na clara e ofuscante luz Frank
notou que um fio de sangue corria das costas da camisa azul. Hank e Jeremiah,
seguravam-lhe o cavalo e apoiavam-no para que ele não tombasse da sela. Hank
olhou para trás e praguejou em voz alta. Sua voz reverberou pelas colinas. Mas
nem ele nem Jeremiah responderam ao tiro com uma saraivada de balas.
Seguraram com cuidado Eli e, lentamente, subiram com ele a encosta da
montanha. A boquiaberta multidão de mulheres e homens desfez-se tranquila e
furtivamente, como animais. O sol continuou a dardejar seus raios. No hospital,
os pacientes começaram a chamar e fazer perguntas lamurientas.
Peter erguera parcialmente o irmão e o apoiara no joelho dobrado, ainda
com a mão pressionando com força o peito despedaçado. Frank correu para ele,
ajoelhou-se ao seu lado e soluçou. Peter, branco como um fantasma, lançou-lhe
um breve olhar. Era como se não houvesse visto ou ouvido coisa alguma. Em
voz muito tranquila, disse:
— Ajude-me a levá-lo lá para dentro, Frank.
A cidade de Benton permaneceu em completo sossego. Ninguém desceu
a rua da morte naquele dia. Somente o ganso, a gansa e o gansinho desfilaram
em fila em direção ao “afluente”. Mesmo a igreja e as lojas conservaram uma
aparência contida e furtiva, como se houvessem saído dali.
Chegou a noite e as montanhas flutuaram em um claro nevoeiro lilás. O
vento subiu dos campos. De alguma parte chegou o ruído de um chocalho de
gado. O hospital permanecia envolvido em um demorado e escuro silêncio. Mas
nenhum habitante de Benton veio saber se Wade sobrevivera ao ataque
assassino. Alguém levara o corpo de Bob Gratwick. Frank desconfiou de que ele
se encontrava atrás de umas moitas, nos fundos do hospital, coberto
decentemente por um lençol, à espera de que fosse reclamado pelo velho
Gratwick.
Sentado nos degraus do hospital, com os pés sobre os joelhos, apertou
selvagemente a boca com um punho cerrado. Deve ter ficado ali durante horas,
olhando sem ver para a frente, consciente apenas de uma grande e vazia dor no
peito. Não viera médico algum para examinar Wade, para ajudá-lo. Somente o
irmão se sentara ao lado da cama, separada do resto do hospital por um biombo
improvisado de lençóis e mesas erguidas sobre os lados. Todas as vezes em que
Frank entrava, Peter mandava-o sair com um gesto quase selvagem.
— Ainda não, ainda não — sussurrava. Exausto, Frank voltava aos
degraus e à contemplação da rua deserta e da aldeia.
Ninguém veio dizer-lhe se Eli morrera do tiro. Queria saber. Queria
saber que mandara para a morte aquele monstruoso assassino. Queria olhar para
a mão e saber que ela vingara Wade O’Leary. Seus dentes penetraram num dos
lados da mão com que apertava a boca. Rígido como uma pedra, olhava
fixamente para o trecho descolorido de terra onde Wade e Bob Gratwick haviam
caído.
Não soube que, de tempos em tempos, lágrimas escorriam pela sua face
empoeirada e nela abriam sulcos. Vagamente notou que, às vezes, sentia gosto de
sal nos lábios gretados. Finalmente, de pura exaustão, não conseguiria mais
mover-se nem que quisesse. O seu corpo era uma imensa dor, a mente, uma
chama de ódio, uma onda de mágoa e fúria.
O anoitecer desceu pelas colinas como se fosse água e as estrelas
começaram a piscar no céu que escurecia. Frank não notou que Peter se
aproximara até que o jovem se sentou pesadamente ao lado sobre os degraus de
madeira. Sobressaltado, tornou-se consciente da presença dele. Agarrou-lhe o
braço e tentou falar. A garganta seca, porém, cortou todos os sons.
Peter sacudiu a cabeça e curvou-a sobre as costas da mão. O seu grande
corpo expressava o mais completo sofrimento e dor. O cabelo louro agitou-se ao
vento da noite.
A mão de Frank caiu do braço de Peter como se houvesse tocado em
fogo. Engoliu em seco, repetidas vezes, e sentiu uma grande escuridão dentro de
si. Murmurou finalmente:
— Ele... ele...
A cabeça de Peter caiu mais e quase tocou os joelhos. A apatia e a
exaustão dominaram-no. Emitiu um baixo gemido. Mas, quando finalmente
ergueu a cabeça e voltou a face encovada para Frank, tinha os olhos febris,
brilhantes e secos.
Falou em voz firme e rouca:
— Frank, você precisa ir embora daqui. Agora. Neste exato minuto. Se...
se Eli morrer... se estiver morto agora, eles voltarão e o matarão. Se... se eu
houvesse atirado em Eli, teria sido... direito. Eu sou... “parente” de Wade.
Esperariam isso de mim, e me deixariam em paz. Mas você... não é “parente”. Se
ele estiver morto, eles o matarão. Eu devia ter pensado nisso antes. A qualquer
minuto agora, alguém dirá a eles que não fui eu quem disparou aquele tiro.
Aturdido, sentindo frio e tornando-se inteiramente embotado, Frank
simplesmente ficou ali, sem poder mover-se. Murmurou, então:
— Espero que ele esteja morto. — Um nevoeiro cobriu-lhe os olhos e,
mais uma vez, a dor fê-lo contorcer-se de angústia. — Wade — disse em voz
alta, e a palavra foi como uma pedra. — Eles mataram Wade.
Peter levantou-se e, mais uma vez, mostrou-se muito calmo e
controlado, orgulhoso em sua dor, composto e digno.
— Você tem duzentos dólares, Frank. Tome meu cavalo. Corra... corra
como o diabo. Não para Paintsville. Eles esperariam que você fosse para a
cidade mais próxima. Vá para Charlottestown, a quarenta e cinco quilômetros
para o oeste. Você sabe como chegar lá. E não pare, nem mesmo por um minuto.
— Espigou-se e sua face era uma mancha branca na escuridão crescente. —
Vou-lhe arranjar um pouco de comida. Você vai precisar. Não há tempo para café
ou qualquer outra coisa — Interrompeu-se. Sua mão caiu pesadamente sobre o
ombro de Frank. Tentou dizer alguma coisa, mas não pôde. A pressão no ombro,
porém, pareceu chegar ao coração de Frank. Pôs as mãos sobre os dedos de
Peter.
TERCEIRA PARTE

“What though the radiance which was once so bright


Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendor in the grass, of glory in the flowers;
We will grieve not, rather find
Strenght in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.”(*)
Wordsworth
(*) Que importa se o fulgor outrora tão brilhante/Foi para sempre
apagado de nossa visão,/Embora nada possa de volta trazer a hora/De esplendor
da relva e da glória das flores;/Não nos queixaremos, pois encontraremos/Força
no que restou;/Na simpatia primeva/Que tendo sido para sempre será;/Nos
pensamentos tranquilizadores que brotam/Do sofrimento humano;/Na fé que vê
através da morte,/Nos anos que trazem a filosófica compreensão.
CAPÍTULO 56
Há anos que são irreconhecíveis, uma mancha de sombras cinzentas, um
longo arrastar de pés através de escuros túneis. Há anos que não deixam traço no
coração, nenhuma marca ou cicatriz na mente, nenhuma fonte de luz na
escuridão. É primavera? Ontem era o outono. É manhã? Ora, era meia-noite há
apenas uma hora. É verão? É impossível; noite passada era inverno. Comi,
dormi, bebi, andei, falei, trabalhei? Quando? Há um momento comi meu jantar.
Apesar disso, meu estômago está vazio. Barbeei-me há apenas um momento,
mas, ainda assim, meu queixo está áspero. Quando tomei banho? Não me
lembro. Não me lembro. Nunca me lembro. Quem me falou, então, como se me
conhecesse? Nunca o vi antes, mas ele me chamou pelo nome. Esta rua parece
conhecida. Quando foi que a desci pela última vez? Vi-a esta manhã — ontem
— há duas semanas, mas o sol não me olhou assim, vermelho e feroz entre estas
casas. Deve ter sido neste amanhecer que o vi sobre meus ombros. Ainda assim,
está aqui agora, olhando para esta rua. Mas o que foi que aconteceu à manhã, às
horas transcorridas entre a manhã e este minuto? Para onde foram elas? Nunca
as experimentei.
Tenho agora vinte e nove anos, mas entre o ano em que tinha vinte e
agora, deve ter havido tempo e espaço, a manhã, o meio-dia, a noite, todas as
estações do ano, todos os feriados, os ventos, as neves, as chuvas, os sóis. Devo
ter ficado doente, devo ter conhecido a cidade noturna, o frio, a fome, o trabalho,
a derrota. Devo ter conhecido esperança. Mas sei agora que nunca conheci
esperança. É a esperança que ilumina os anos, mede-os, marca-os, registra-os no
tempo. É a esperança que diz: no ano passado pensei que poderia ter amor,
sucesso ou satisfação. Se não neste ano, pelo menos no próximo. Esperança
mentirosa, traiçoeira, inspiradora, bela! Não é o riso que distingue o homem dos
outros animais; é a esperança, a esperança que divide o tempo, projeta as colinas
que devem ser escaladas, os rios que devem ser cruzados, criando a manhã,
criando a alma, lançando os olhos para além do espaço, saltando além do espaço,
movendo as estrelas, atingindo o coração. Sem esperança não há percepção, não
há tempo, ser, momentos, horas, nenhum passo que vem e vai, nenhuma face
esperada, nenhuma sombra a cair para leste ou oeste, nenhuma promessa,
nenhuma vida, nenhuma morte.
Houve tempo em que cada árvore mudava com o sol, com o amanhecer,
o meio-dia, a noite, quando era um ser fluido com mil aspectos, quando se
tornava branca ao vento, dobrava os braços e curvava a cabeça sob as estrelas,
lançava-se para cima nas tempestades e dançava à brilhante luz do verão. Mas
nunca era a mesma, nem por um único minuto. Nunca houve um pôr do sol em
que esta árvore lançasse a mesma sombra sobre a grama ou a neve e nunca seus
galhos puseram-se na mesma posição da véspera. O mesmo acontecia com todas
as coisas. Todos os dias eram distintos e vividos no tempo, separados dos outros.
As estrelas nunca fulgiam com brilho idêntico ao que tiveram na noite anterior
ou dez anos antes. As próprias casas, as ruas, as paredes dos edifícios, as
sarjetas, as lojas, as calçadas eram recriadas a cada manhã, refulgindo de magia,
encanto, maravilha. E o céu, sempre, hora após hora, mudava em excitação,
glória e beleza, fosse um estudo em mil tons de cinzento tempestuoso, estriado
de fogo cor de magenta ao anoitecer, ou estivesse pensativo sobre a terra, ao
anoitecer, em uma imensa e fria abóbada de verde ilimitado.
Mas, às vezes, em algum lugar, em alguma ocasião, uma mão era
erguida e a mudança, a cor e o movimento interrompiam-se, tornavam-se fixos,
estáticos, imutáveis. Ontem foi amanhã; o amanhã ocorreu há um ano, há cinco
anos. A luz nunca se move com vertiginosa pressa; escurece ou desaparece,
torna-se pálida ou difusa, mas é sempre a mesma e não há uma linha de
demarcação, nenhuma intensidade. Vejo sombras, mas elas estão ali para toda a
eternidade, imóveis, fixas. Vejo o sol ao meio-dia, mas ele nunca muda de lugar.
Se há um inferno, então é um lugar onde não há amanhã, ou ontem, ou hoje, mas
onde tudo permanece parado no tempo, sem respirar, conhecido, imutável, uma
monótona paisagem pintada, pendurada para sempre na parede.
Tenho vinte e nove anos e muito breve terei trinta. Onde estão os dias de
minha juventude, a juventude dourada dos poetas, dos cantores, dos
sentimentais? Onde está o amor, a esperança, a ambição, a alegria ou o riso e a
expectativa? Nunca os conheci. Não tenho mais vinte anos como ontem. Passou
uma década, mas passou em silêncio, na escuridão da lua e, se tive vinte e três,
vinte e cinco, vinte e sete, não me lembro.
Se apenas eu pudesse sentir alguma coisa, qualquer coisa, novamente!
Se eu apenas pudesse sentir desespero! Se eu apenas pudesse odiar! Mas não
sinto absolutamente nada. Um homem está morto se não mais se desespera, não
mais espera, nem mesmo adoece gravemente ou sente profunda dor. Olho para
minha mão e ela é irreal para mim. Não tem substância. Vejo meu rosto no
espelho, mas é apenas a sombra de uma face que não existe. São minhas estas
pernas, esta carne? Não me pertencem. Nunca me conheceram e nunca as
conheci. Meu nome é Frank Clair, mas, quando o pronuncio, ele nada significa
para mim. Eu morri há muito tempo.
CAPÍTULO 57
O anoitecer de inverno desceu, escuro, sobre Bison. Longas sombras
cinzentas mergulharam profundamente na neve e fundiram-se com ela. O lago
verde vivo que havia no céu do oeste fluíra para o leste e se transformara em um
mar insondável de luz fria e estática. Postes de luz dispersos ao longo de River
Road começaram a bruxulear na escuridão que caía.
O grande relógio de madeira na parede marcava dois minutos para as
cinco. O grande salão do escritório da Dumont Tire and Rubber Company
pareceu alegrar-se com a expectativa do fim do expediente. Apenas meia hora
antes, o úmido e desagradável ar de inverno saturava a sala, obscurecera as
luzes, embaçara o tampo da longa fileira de escrivaninhas. Naquele momento,
porém, havia expectativa na sala; uma ou duas vozes falaram alegres; alguém
riu. As máquinas de escrever e calcular bateram animadas e papéis farfalharam
alto. Era noite de sexta-feira, e no dia seguinte, haveria apenas meio expediente.
Estendia-se à frente o fim-de-semana, e cinquenta ou mais pessoas, jovens e
velhos, homens e mulheres, faces descoradas ou vivas, animavam-se por
antecipação. Alguns rapazes acenderam cigarros; empregados mais idosos
encheram sem pressa os cachimbos. Algumas moças abriram estojos de
maquilagem, passaram pó no nariz e avivaram a cor dos lábios. Estavam todos
contentes. Nesses sombrios e cruéis dias da Grande Depressão, ainda
conservavam seus empregos.
Formou-se inesperadamente uma nevasca, caíram os primeiros flocos de
neve e as grandes janelas iluminadas estalaram. Como corredores a postos, os
empregados olhavam para o relógio. Um minuto mais e haveria uma corrida
apressada para chapéus e casacos, bolsas, luvas e galochas de inverno e, em
seguida, a descida ruidosa pelas escadas até a rua, onde ônibus os esperavam. Os
ônibus estacionavam embaixo, iluminados e vazios. Dentro de minutos, estariam
cheios até as portas e seguiriam roncando, balançando-se, esmagando a neve em
direção à cidade. O dia seguinte era sábado. Algumas moças já começavam a
colocar na cabeça os pequenos e apertados chapéus de feltro.
Frank fechou a escrivaninha da máquina de escrever, guardou o bloco de
ditados de estenografia, esmagou o papel carbono na mão e lançou-o na cesta.
Recolocou a pilha ainda não terminada de faturas e conhecimentos ferroviários
na cesta de arame sobre a escrivaninha. Estava tudo perfeitamente arrumado.
Numa rasa bandeja de madeira à direita erguia-se uma pilha reta de trabalho
terminado. Seria recolhido pela manhã. Guardou os lápis e a caneta e fechou o
tinteiro.
Cinco horas. Começara o êxodo. O ar encheu-se de risos, vozes que
chamavam, pés que batiam. Foram abertas as portas na extremidade da sala e o
pessoal do escritório dirigiu-se em massa para elas. Uma lufada do frio ar,
subindo pelas portas do térreo, penetrou na sala. Frank era sempre o último a
sair.
Ergueu-se, dirigiu-se ao cabide próximo e pôs o chapéu, o casaco e as
luvas grossas. Apalpou o bolso do colete à procura do envelope do salário.
Estava ali, naturalmente. Mas, a caminho de casa, tocaria nele várias vezes.
Enfiou a mão no bolso à procura da passagem do ônibus e colocou-a na palma
da mão, entre a luva de lã e a pele.
O grande escritório se esvaziara com notável velocidade. Frank desceu
quase sozinho as escadas. Viu as costas dos últimos empregados, correndo para o
último ônibus. Apressou o passo e subiu no veículo pouco antes de a porta
fechar-se. Tremeu, pois, o ar e o vento haviam sido como chicotadas.
Teve que ficar de pé nos degraus, com a face imprensada pelo ombro de
alguém. Era sempre o último, como fora sempre o último a deixar a escola. O
velho instinto de anonimato continuava presente e fora agravado durante os
últimos anos. “Ele se mete consigo mesmo”, costumara Maybelle dizer. Não
olhava para pessoa alguma, evitando amarga e mal humoradamente qualquer
possível cumprimento. Mas, de fato, era ignorado e impopular no escritório
devido ao seu jeito reticente, indiferente, empertigado. Um pobretão.
As pequenas não se teriam incomodado com sua pobreza, pois todos
sabiam que “as coisas andavam pretas”, e elas haviam chegado à conclusão de
que Frank, com toda a certeza, devia ter dependentes. Mãe, talvez, ou irmãos e
irmãs menores. De qualquer modo, era um homem, não? Mas por que aquele “ar
importante”? Tivesse ele sido fisicamente sem atrativos, a sua reserva não teria
irritado as moças. Mas, como elas diziam, ele tinha “classe”. Era mais “bonitão”
do que qualquer outro empregado solteiro do escritório. Era alto, talvez magro
demais, e movia-se com rapidez, mais sem nada de desengonçado. Que idade
tinha ele? Parecia ter uns trinta, mas era provavelmente mais velho, pois no
cabelo castanho escuro já apareciam alguns fios brancos. Mas isso não
importava às moças, que achavam “distinto” o cabelo grisalho. Não, não fora a
aparência pobre que fizera com que a excitação e prazer inicial se
transformassem em antipatia, zombaria e hostilidade. Fora a frieza, a atitude
desdenhosa em relação a todas as pessoas, homens e mulheres, a recusa em
participar de qualquer contato social com os colegas, o ar sombrio e as maneiras
mal-humoradas. Fazia seu trabalho da manhã até a noite, emprestando o jornal,
se havia insistência, e, às vezes, cedendo de má vontade um cigarro, se
solicitado, mas evitando o menor e mais tímido oferecimento de
companheirismo.
“Ele pensa que é o Manda-Chuva, o Executivo Jovem”, diziam em
risotas as pequenas do escritório. Tivesse ele tido sucesso, contudo, tivesse sido
promovido a um cubículo particular ao longo da parede leste do escritório, isso
também poderia ter sido perdoado e admirado. Mas não era um sucesso. Não era
“bom” no trabalho. Várias vezes o chefe do escritório havia-o repreendido por
descuidos. Murmurava-se, segundo informações seguras da tesouraria, que ele
tivera um único “aumento” em cinco anos, e mesmo assim insignificante.
Mas as moças não estavam sozinhas na zombaria maliciosa e na
inimizade. Os colegas antipatizavam também com Frank, chegavam mesmo a
odiá-lo. Nunca se aproximava deles na hora do almoço para olhar as pules das
corridas de cavalos, nem indicava o menor interesse pelos Red Sox, ou os Green,
Pink, Yellow, Scarlet ou Lavender Sox. Nas ocasiões em que todos ficavam
excitados com os jogos de futebol do outono e a hora do almoço fervilhava de
opiniões veementes ou de alegações sobre um time ou outro, Frank permanecia
sentado à escrivaninha, às vezes lançando um olhar involuntário, mas
visivelmente desdenhoso, para os demais. Às vezes, notavam-lhe os olhos e
muitos deles encolhiam-se numa espécie de desolação ao verem a expressão e o
brilho de nojo que os iluminava tão vividamente. Nunca participara das galhofas
contra o Presidente Hoover e sua obstinada convicção de que “a prosperidade
está justamente ali na esquina”.
Depois de nove anos, ninguém sabia mais sobre ele do que no primeiro
dia em que se sentara à escrivaninha. Não gostavam de sua voz, embora fosse
baixa, friamente polida e meticulosa na pronúncia. Ouviam um leve sotaque
inglês, e isso irritava os alemães, poloneses e italianos de segunda geração que
havia entre os empregados, que achavam a fala arrastada e mastigada preferível
à pronúncia correta da língua. Assim, tornou-se o “chato”, como, na infância,
fora “aquele inglês sujo, sujo”.
Ele, porém, não dava a menor indicação de que sabia do ódio e da
hostilidade dos colegas. Mas estava ciente de tudo. Não se importava.
Desprezava esses vigorosos camponeses de extração europeia, abominava a
maneira como andavam, suas vozes, seus sorrisos, seus preconceitos e opiniões
infantis, a ignorância, as frases alegres e mal construídas, a gíria popular, as
próprias roupas que vestiam. Ele sabia que, apesar da cordialidade externa, havia
uma profunda clivagem entre os empregados do escritório. Os protestantes
inevitavelmente se reuniam contra os católicos e deles desconfiavam
profundamente. Se um católico era promovido, isso acontecia porque o “chefe”
era católico. Os novos empregados eram discretamente interrogados até se
descobrir qual a sua religião. Se católico, misteriosamente passava a fazer parte
do grupo minoritário. Se protestante, entrava para a invisível organização mais
numerosa.
Somente uma vez Frank participara, por alguns instantes, de uma
discussão. Um grupo de jovens, devorando o almoço, começara a criticar o
comunismo. Não conheciam bem os princípios da doutrina, mas denunciavam-
na veementemente. Frank voltava para sua escrivaninha, depois de ter ido ao
bebedouro, quando parara subitamente e perguntara em voz zombeteira e fria:
— Escutem, o que é o comunismo?
O grupo olhara para ele, espantado com a interrupção não solicitada de
uma pessoa que haviam aprendido a ignorar. Notaram-lhe o sorriso desdenhoso e
não gostaram da maneira como lhe dançavam os olhos. Mas estavam dispostos a
esclarecê-lo. Um deles disse que o comunismo era a “nacionalização das
mulheres”. Outro, incerto, que era ateísmo. Outro afirmou, quase com ânsia, que
significava o confisco de todo o dinheiro dos ricos. Nenhum deles, tornou-se
imediatamente evidente, sabia de coisa alguma sobre comunismo, embora
citassem muito seus jornais favoritos. Contudo, odiavam os jornais por alguma
nebulosa ou errônea razão.
Vocês, pensou Frank, são um bando de idiotas. Por que não calam a boca
até saberem sobre o que estão falando? Seus ignorantes. Por quanto tempo
frequentaram a escola, qualquer um de vocês? Onde foi que arranjaram essas
opiniões? Nas histórias em quadrinhos? No cinema? Nas pules das corridas? Nas
suas igrejas? Onde quer que as tenham recolhido, elas estão erradas e são tão
estúpidas como vocês. Por que, às vezes, não leem um pouco? Chamam a isto de
democracia. É uma pena. Nenhum de vocês deveria ter direito de votar. Se
fossem usados testes de inteligência para determinar o direito de votar, nenhum
de vocês ousaria entrar numa cabina eleitoral. Acho que a democracia cheira
mal. Sempre achei isso e, agora, sei.
Mas o que disse foi:
— Pelo amor de Deus, deixem de falar sobre uma coisa que
desconhecem inteiramente!
E com isso, afastou-se, deixando-os a olhar ofendidos e atordoados para
suas costas magras, que pareciam ter assumido uma postura de desdém. Depois
disso, passou a ser o “bolchevista”. Foi classificado, finalmente. Conheciam-lhe
o lugar. Cinco anos depois, ele era o “fascista”.
//

Os sulcos de gelo na rua faziam o ônibus sacudir-se, balançar-se de um


lado para o outro, mergulhar para a frente e para trás. As moças soltavam
gritinhos, sorriam acanhadas e cambaleavam com força desnecessária contra os
rapazes ao lado. Algumas delas, fingindo serem baixas demais para se agarrarem
às correias do teto, seguravam braços masculinos. Frank, precariamente pousado
num degrau, lançado contra a porta, ouvia as conversações gritadas à frente.
Uma das moças defendia Gary Cooper de um zombeteiro ataque masculino.
Outra adorava Greta Garbo. Duas vozes masculinas discutiam as possibilidades
dos Cardinais no verão seguinte. Uma voz de moça ergueu-se, comentando os
novos estilos da moda. Um homem berrou seu nojo pelo Presidente Hoover:
— Eu sempre fui republicano, igual ao papai. Mas, na próxima vez, vou
votar nos democratas. Não me importo se apresentarem um negro. Vou votar
nele!
Uma moça soltou um gritinho quando uma mão masculina lhe deu uma
palmada nas nádegas naquela confusão de corpos. Outra moça comentava a
dança a que fora na noite anterior:
— Oh, puxa, foi quente! Havia uma moça lá que se parecia com
Claudette Colbert, e como ela se mostrava! Vocês deviam ter visto como os
rapazes andavam atrás dela. Um cara pisou no meu vestido vermelho novo.
Um rapaz anunciou que descobrira em Niágara Street uma nova
espelunca, onde “valia tudo”. Generosamente, deu o nome do lugar. Um jogo de
cartas foi combinado entre três jovens. O ar no ônibus tornou quente e fétido,
saturado pelo cheiro de perfume barato e pó-de-arroz. As luzes piscavam e
acendiam-se com força, mostrando faces jovens, grosseiras, com frouxos lábios
avermelhados e olhos inocentes e glutões de animais. Todas as vezes em que a
porta era aberta, Frank tinha que descer, enquanto moças e homens passavam
roçando por ele. Conservava-se tenso, com as narinas apertadas de ódio. Às
vezes, o nojo era como uma bebida forte e embriagante. Se seus olhos eram
atraídos pelos olhos de outra pessoa, desviavam-se com visível aversão.
A voz do povo! A voz da democracia! Aquela multidão uivante,
berrante, ignorante, descorticada! Essa aglomeração barata, preconceituosa e
odienta de animais, que nunca lia coisa alguma, nunca pensava, nunca tinha uma
ideia, destituída de dignidade e humanidade, analfabeta, orgulhosa da sua falta
de cultura! O ônibus fumegava com a respiração dessa gente e esta era o hálito
de bois, de almas amorfas, castradas. Eram os assassinos dos profetas, os
animais uivantes das selvas, os corpos masculinos e femininos que conheciam o
desejo sexual, mas nunca haviam tido um sonho heroico. Ali estavam, odiando-
se, desejando-se fisicamente, berrando e uivando entre si, esse conglomerado
horrendo, contorcendo-se como vermes, chamado de “As Massas”!
Odeio-os! pensou Frank. Parou então, rígido, imóvel. Odiava,
novamente! Onde se havia escondido essa excitante fúria, depuradora,
purificadora, durante todos aqueles anos? Onde se ocultara, como um animal
confuso? O que a havia despertado naquele instante? Inesperadamente, as vozes
no ônibus soaram altas, com um ruído ensurdecedor nos seus ouvidos. As luzes
tornaram-se vividamente brilhantes. Sentiu o pulsar do coração, a batida súbita
de exultação nas veias. A vida acelerou-se em seu corpo e sentiu o toque da
roupa na carne. Pareceu-lhe que se dilatava, que se tornava forte, suficiente,
invulnerável.
A exultação foi como um fogo, aquecendo-lhe as pernas e os braços
entorpecidos. Curvou-se para ele, ansioso. Odiava. Precisava escapar daqueles
que odiava. Havia-os suportado, durante todos aqueles informes anos porque não
tivera escolha. Não houvera poder nele. Possuía dois mil dólares no banco.
Nunca, mesmo que vivesse cinquenta anos, economizaria o suficiente para
escapar dessa horrível grosseria chamada de “O Povo”. Mesmo que passasse
fome, entesourasse cada níquel, não seria bastante. Precisava fugir! Precisava
escapar do toque profano de seus corpos, dos eflúvios de suas mentes mortas,
dos sons, da vista, da escuta, do ser, deles!
Mas como? Lembrou-se de ter lido anúncios de escolas por
correspondência. “Seja um contador formado, mecânico de rádio, torne-se
especialista em bancos, em direito, em relações públicas...!” Não queria nada
disso. Conhecia a própria aversão por tudo que dizia respeito ao mundo dos
negócios, à mecânica ou às finanças. Mas deveria haver um meio de fuga.
Quando um homem queria escapar, encontrava uma maneira. Qual seria a sua
maneira?
Agarrou-se ao corrimão. A respiração quente e rápida fluía pelos seus
lábios frios. Sentia a urgência e a necessidade desesperada de escapar.
Silenciosamente, repetiu para si mesmo: Preciso fugir. Preciso descobrir uma
maneira! Mas onde, como? Onde poderia ganhar dinheiro suficiente para erguer
um alto muro cheio de espigões entre ele e os demais, de modo que nunca mais
precisasse encontrá-los, olhá-los ou saber que eles existiam?
Minha literatura. A sua mão fechou-se no corrimão. Eu fui escritor certa
vez. Eu... eu era bom. Disseram isso. Certa vez, eu soube que podia ganhar
dinheiro escrevendo. Depois, alguma coisa me aconteceu. O que foi? Não me
lembro. Mas acabou porque minha emoção acabou e eu não mais odiava a
fealdade ou a vida. Gostaria de que minha cabeça deixasse de girar... Preciso
pensar com cuidado nisto. Escrever. Posso voltar a escrever. Posso voltar à
universidade e estudar. Eu me concentrarei em Inglês e Literatura Inglesa. Deve
haver uma maneira e esta é a maneira. Posso fazê-lo! Algo me voltou, algum
grande poder, certa veemência. Posso senti-la em todo o corpo. Não a perderei
desta vez! Minha vida depende disso.
O ônibus parou em Forest Avenue. Mecanicamente, desceu. A porta
fechou-se às suas costas. A nevasca envolveu-o, uivando, numa explosão de
brancura sufocante. O vento encheu-lhe a boca, o nariz, os olhos. Lutou contra
ele. Na calçada, véus de neve fluíram em volta dele e para longe. Com grande
dificuldade, evitou ser atropelado por um carro. Curvou-se em dois e dirigiu-se
para o pequeno e malcheiroso restaurante onde fazia as refeições. Parou nesse
momento à porta.
Não. Irei ao Statler esta noite! Vou oferecer a mim mesmo um grande
jantar. Sentarei em uma grande sala iluminada, com mesas cobertas por toalhas
brancas, música. Sentarei entre os que têm dinheiro. Olharei para eles e me
tornarei ainda mais forte e poderoso.
É apenas dezembro. Voltarei à universidade para cursar o segundo
semestre. Desta vez, não desistirei. Desta vez, irei até o fim!
CAPÍTULO 58
Em repouso, o rosto pálido e estreito do Sr. Endicott Preston parecia o de
um cansado e cínico camelo, pois o longo nariz, com narinas largas e chatas,
curvava-se para baixo até a boca rasgada e expressiva, torta e encurvada. O
queixo encolhia-se ligeiramente; possuía grandes e melancólicos olhos; os
planos das bochechas inclinavam-se para trás até as grandes orelhas moles.
Apesar disso, paradoxalmente, era um homem muito bonito, no começo dos
quarenta, acima da média em altura e peso, com cabelo espesso e grisalho em
graciosas e elegantes ondas. Os olhos melancólicos eram também grandes,
cheios e azuis e, quando ele sorria, cessava a semelhança com um camelo e ele
transformava-se em Puck, todo humor e cética bondade. A inteligente face
refulgia. Uma expressão sutil sucedia-se a outra até que era um puro fascínio
observá-lo. A voz, sonora, flexível, de profunda sensibilidade, encantava o
ouvinte, pois coisa alguma dizia de monótono e a menor frase brilhava de cor,
espírito, volubilidade e brilho, revelando a mente aguda que luzia por trás dela
como uma opala furta-cor.
Como a dos demais professores, suas roupas eram comuns, de qualidade
e corte médio, evidentemente compradas prontas em uma loja de departamentos
local. Era um dos muitos cultos, ilustres e sensíveis lentes da Universidade de
Bison. Embora mais tarde Frank viesse a conhecer muitos e esplêndidos
professores e lentes, sempre achou que nenhum deles foi superior àquele
dedicado cavalheiro, nenhum deles mais bondoso e compreensivo, nenhum mais
ansioso para descobrir e ajudar o estudante excepcional, nenhum mais
consciencioso.
Frank cursava nesse momento o terceiro semestre da classe de Inglês do
Sr. Preston. Todos os semestres, o professor recebia-o sem muita surpresa,
apenas com um alçar zombeteiro, mas satisfeito da sobrancelha esquerda. Frank
estudava também História Antiga, Francês, Sociologia e Lógica. Achava a
História um pouco monótona, pois datas, batalhas e fatos eram para ele tediosos,
embora houvesse momentos em que “sentia” algo vivo, em movimento, vital,
sob as mortas folhas pardas do passado. O Dr. Riordan ficava às vezes um pouco
perplexo quando Frank despertava subitamente para a vida e dava uma opinião
inortodoxa sobre o assunto em discussão. Aparentemente, ele nunca lia as obras
de referência recomendadas. Voltava à classe com uma expressão animada e um
trabalho onde dera sua própria interpretação de algum fato ou personagem
histórico. A interpretação, observava bondosamente o Dr. Riordan, era um tanto
estranha e não se baseava em autoridade reconhecida. O Sr. Clair usava sua
“imaginação” e, na História, dizia algo seco o Dr. Riordan, a imaginação
constituía um ingrediente perigoso.
Saía-se moderadamente bem em Francês, embora, como não tivesse base
de escola secundária, fosse obrigado a estudar e acompanhar as aulas com
absoluta atenção para conseguir uma nota suficiente todos os meses. O Dr.
Bontelle, triste, às vezes acusava-o de inventar uma frase que, embora colorida,
teria deixado um francês perplexo.
Discutia acaloradamente com o Dr. Grayson, o mestre de Sociologia. O
Dr. Grayson era um desses idealistas e Frank, instintivamente, antipatizava com
eles. Certa vez, o professor comentou pensativo temer que Frank houvesse,
inadvertidamente, absorvido algumas ideias fascistas e que, afinal de contas, Sr.
Clair, ele, o Dr. Grayson, estava ali para ensinar e não para travar acaloradas
discussões sobre questões de ideologia. O Dr. Grayson preocupava-se com Frank
e passava muito tempo procurando dobrar-lhe a mente de acordo com suas
ideias. Frank recebia uma nota suficiente todos os meses e ela lhe era dada
apenas porque o Dr. Grayson forçava um pouco a consciência, pois Frank nunca
respondia às perguntas, escrevendo, em vez disso, página após página de
filípicas, insistindo em que o homem que não compreendia a liberdade não devia
tê-la, em que o fraco e o estúpido não devia ter oportunidade igual ao bravo e ao
inteligente, em que o valor do homem, e não o fato de ter ele nascido, é que
devia determinar se desfrutaria dos privilégios da democracia. “A Democracia”,
escreveu veementemente Frank, “não significa que todos os homens, quaisquer
que sejam seus dotes mentais ou seu valor, devam ter um lugar na gamela, mas
apenas que são iguais perante a lei.” O Dr. Grayson receava que o Sr. Clair
nutrisse uma opinião estreita e pragmática demais e que não entendesse bem o
pleno significado de democracia. Ele cansava-o muito, pois a única grande
paixão do Dr. Grayson era seu amor, infindo e bastante ingênuo, pelos seres
humanos.
Saía-se um pouco melhor com o Dr. Herbert Markson, o mestre de
Lógica. Mas nessa matéria, também, Frank não prestava atenção às questões
nem as respondia de maneira ortodoxa. Aborrecia-o descobrir que validade nem
sempre é verdade e chegou à conclusão de que a Lógica era uma irmã pobre da
Matemática, demasiadamente estruturado, rígida demais, para satisfazê-lo. Não
tinha a mente de um lógico e, embora ficasse irritado quando, mais uma vez, era
lembrado de sua “imaginação” e o Dr. Markson insinuava que ele pensava com
as emoções, e não com a razão, sentia prazer em refutar lógica com paixão.
Gostava de todos eles e os admirava. Mas amava o Sr. Endicott Preston.
Voltava à sua classe, semestre após semestre, e em todos os períodos era o mais
velho dos alunos. Vinha escutar, estudar, sentir a excitação e a alegria quando o
Sr. Preston falava e, literalmente, tremer quando ele enfaticamente lhe elogiava
os escritos.
Ao aparecer na classe do terceiro semestre, o Sr. Preston o chamara de
lado e dissera:
-— Bem, este é o seu terceiro semestre comigo, não? Vi seu nome no
cartão um dia destes e fiquei... fiquei um pouco surpreso. Você tem trinta e dois
anos, não? Não acha que está pronto agora para o Dr. Berry? Afinal de contas,
meu Inglês é apenas para primeiranistas...
Frank respondera:
— Não. O senhor me dá tudo o que quero e de que preciso.
O Sr. Preston enrubescera ao ouvir essas palavras, sentindo-se um pouco
culpado, mas feliz. Sabia de tudo a respeito de Frank. Nunca possuíra um
estudante como ele e, às vezes, acusava-se de orientar os estudos para beneficiá-
lo. Não havia dúvida de que cada semestre era diferente do anterior e que
continha muito que seria uma clara vantagem para Frank e particularmente útil
para ele. O Sr. Preston estava muito cansado. Sofria de uma grave doença do
coração. Dava aulas durante o dia e ensinava durante três noites por semana no
programa noturno. Às vezes, sentia-se tão fatigado que achava que a morte seria
preferível àquele doloroso cansaço da carne. Ainda assim, pelo menos uma vez
por semana, retinha Frank durante quase uma hora após o término da aula,
conversando com ele, fazendo a crítica de seus trabalhos, recomendando certos
livros-texto, biografias, livros sobre viagens ou história romantizada. Inspirava-
o, encorajava-o e transmitia-lhe todo forte ardor de sua paixão pela poesia e pela
grande prosa até que o seu imenso cansaço se esgotava e desaparecia no desejo
altruísta de ajudar, amparar, estimular. Frank escutava, sentindo um tumulto no
íntimo, ardor, alegria. Alimentavam-se mutuamente, dando um compreensão e
gratidão e o outro, sabedoria, até que as horas passadas juntos se transformavam
em interlúdios de supremo prazer e satisfação.
— Notei — disse-lhe o Sr. Preston — que, quando expressa seu ódio à
hipocrisia, à crueldade e à estupidez, você escreve com fogo, com autêntico
poder literário. Aí está, então, uma pista para você, a única verdadeira pista. Mas
quando você meramente expressa ódio, cego, selvagem, por tudo e todos, há
uma espécie de perigo no seu trabalho, uma espécie de selvageria. Você se anula.
E fracassará e sofrerá com o fracasso por mais dinheiro que possa ganhar. Não
me refiro ao ódio vivificante, ao ódio de Jeremias, ao ódio construtivo, que é
como um aguilhão no traseiro dos símios chamados malícia, bestialidade e
selvageria. Esse ódio promove a civilização e a justiça, ilumina a humanidade,
ajuda o animal a erguer-se sobre as patas traseiras e tomar a forma e a postura de
homem. Mas há outro tipo de ódio que destrói não apenas o escritor, mas os que
o leem e ouvem, que envenena a fonte da esperança e da honestidade, que
enlouquece o homem. Você deve ficar de sobreaviso para esse ódio em seus
escritos, em sua pessoa. Ele surge com excessiva frequência e isso me
amedronta... Tem lido muita coisa a respeito de Hitler? Preste atenção ao que ele
diz e compreenderá o que estou dizendo.
Ao ouvir isso, o rosto de Frank contraiu-se, obstinado e mal-humorado.
O senhor fala como um velho idiota que conheci, um tal Farley, pensou.
Enviou três de suas histórias a algumas das revistas mais populares e
prósperas. Voltaram todas, rejeitadas, embora os editores as acompanhassem
com cartas pessoais, manifestando fé em seu futuro e pedindo outras histórias ou
artigos para exame. Um editor criticou a história que lhe foi enviada quase que
na mesma fraseologia usada pelo Sr. Preston. Destruiu essa carta. As demais,
mostrou orgulhosamente.
CAPÍTULO 59
Os Anos dos Gafanhotos Negros haviam descido sobre a América e
toldavam os céus do país. Sob a sinistra nuvem, a nação agachava-se em
estupefata paralisia. O povo voltava-se para Washington, como os homens se
voltam para o Leste em uma noite de sofrimento, pois Roosevelt acabava de
tomar posse e uma leve e mortiça esperança começara a arder no sombrio
horizonte. O feriado bancário provocara um pânico temporário, mas tão firme
era a fé do povo desesperado em que o novo Governo dissiparia o horror que
empolgava a todos, a paralisia de seus braços e o: medo de seus corações, que
mesmo isso foi considerado apenas o primeiro passo para a recuperação
nacional.
Os suicídios de especuladores na Bolsa de Valores e de homens outrora
ricos eram noticiados em grandes manchetes nos jornais do país. Mas os
milhares de suicídios de indivíduos idosos e de meia-idade que haviam
presenciado a execução das hipotecas sobre suas pequenas casas e enfrentavam a
caveira, de boca escancarada, da fome eram mencionados apenas em pequenos
parágrafos, apropriadamente perto dos avisos fúnebres, ou não publicados
absolutamente. Ouvia-se de leste a oeste o ruído do desmoronamento de grandes
fortunas. Mas ninguém ouvia o desespero mudo de milhões de homens comuns
que, em silêncio e sombriamente, preferiam deixar de comer a comparecer à
gamela pública. Permaneciam entre os escombros de uma economia esfacelada e
olhavam em volta com olhos aturdidos, incapazes de compreender o que lhes
havia acontecido, podendo apenas se mover, embotados, entre as ruínas. Uma
após outra fecharam pequenas lojas e, uma por uma, fábricas cerraram as portas.
Um depois do outro, em seguida, acelerando-se o ritmo, faliram centenas de
bancos enquanto petrificados e malvestidos depositantes se deixavam ficar
estupefatos nas calçadas.
Mesmo os que temiam Roosevelt esperavam-lhe as palavras. Afinal de
contas, um perigo, como um fogo queimando lento, começava a lamber as ruas
da nação e já se podia sentir o cheiro de fumaça. Ao meio-dia, o sol tomava-se
vermelho com o reflexo do incêndio. Se Roosevelt conseguisse apagar o
incêndio que se alastrava, até seus inimigos se tomariam gratos. Um “maluco”
radical era melhor do que uma revolução. Se a fome do povo pudesse ser
saciada, se a confusa fúria pudesse ser aquietada, haveria esperança para toda a
nação. Um povo esfomeado não consegue pensar. Pode apenas revoltar-se,
pilhar, massacrar. Pode apenas dar vazão ao ódio e ao ressentimento latentes
contra os que vivem vidas mais mansas, comem melhor e têm maior segurança.
Os poderosos do país, lembrando-se da guilhotina nas ruas de Paris, voltaram-se
para Washington e esperaram.

//

Quem cantará a saga do vendedor de porta em porta durante a Grande


Depressão?
Frank Clair vendeu, ou tentou vender, Meias de Seda Pura e Roupa de
Baixo de Seda Pura e de Raiom para Senhoras. Carregava a pesada valise com
pedidos em branco e catálogos de amostras de porta em porta no calor do verão e
nas nevascas do inverno. Às vezes, ganhava vinte dólares por semana de
comissão. Outras vezes, apenas dez!. A conta bancária reduzia-se
inexoravelmente. Sombriamente, de começos da manhã até tarde da noite,
percorria as ruas, batendo em portas de fundos. Sombriamente, com o braço
quase arrancado da articulação, caminhava vários quilômetros de volta ao quarto
miserável que ocupava sobre um açougue em Grant Street. No café da manhã
comia uma rosca e tomava uma xícara de café — por dez centavos. Fazia uma
refeição semelhante ao meio-dia. À noite, parava em uma barraquinha de
cachorro quente e oferecia-se uma refeição de trinta e cinco centavos. Às vezes,
era tarde demais para voltar ao quarto com a valise. Levava-a para as aulas
noturnas. Os dias eram insuportavelmente quentes ou terrivelmente frios. As
noites constituíam ilhas perfumadas de luz, som e esperança. A conta corrente,
porém, diminuíra para mil dólares, para oitocentos, para quinhentos, para
quatrocentos.
Descobriu que os pobres compravam com maior facilidade do que a
gente da classe média. Mulheres pobres, com as faces cheias de medo e pena,
hesitavam em suas portas lascadas. Encomendavam um ou dois pares de meias,
pois não era possível andar pelas ruas no inverno com as pernas nuas. Contavam
relutantes seus cinquenta centavos, mas seus olhos cansados e encapuzados
brilhavam de pena quando olhavam para Frank. Não podiam fazer aquela
despesa. Mas o sofrimento geral trouxera à tona o heroísmo latente no povo. O
gasto de um dólar ou dois poderia ter parecido mesquinho ou insignificante. Mas
em toda a vida essas pessoas não praticaram atos mais heroicos. Às vezes, Frank
era convidado a entrar em uma fria e despojada casa ou apartamento, bebia café
ou comia um sanduíche de um estoque cuidadosamente guardado.
Ocasionalmente, quando se servia nessas mesas nuas, surgia nele uma curiosa
dor, contra a qual cerrava os dentes e tentava enrijecer o coração. Fazia um
esforço para não ouvir as tristes e desesperadas histórias. Procurava endurecer-se
contra elas. Mas elas penetravam como pedras na água escura de seu
subconsciente, aguardando o dia em que ele lhes daria palavras e existência.
Conheceu companheiros de desespero, fome e penúria. Certo dia, no
início de Main Street, fez amizade com o velho Matthew Sanders. Encontrou-o
no fétido cubículo de um restaurante onde, por trinta e cinco centavos, fazia a
refeição vespertina.
O começo de Main Street em Bison corria escuro e pobre até o cais,
através de um amontoado de horrendas lojinhas e bilhares, hotéis suspeitos e
imundos, pequeninos e esquálidos restaurantes e bares, antigas casas inclinadas,
arruinadas, escuras. Em uma dessas casas quase desertas, num quarto do sótão,
morava Matthew Sanders, um agente de fotógrafo que trabalhava de porta em
porta.
Frank fazia justamente um esforço para empurrar garganta abaixo o
horrível guisado quando se tornou consciente do homenzinho arrumado e
sentado ao seu lado na gordurosa mesa de madeira. Raramente percebia o que se
passava em volta; fechava os olhos e a consciência para não ver. Mas não pôde
ignorar aquele homem, tão reservado e tranquilo mostrava-se ele, e tão limpas
estavam suas roupas remendadas. A despeito de si mesmo, Frank fitou-o,
curioso.
Matthew Sanders, mesmo à mesa, parecia muito alto e magro em seu
terno preto e no velho casaco barato e puído. Polidamente tirara o chapéu,
embora nenhum outro homem no quente e imundo buraco houvesse feito o
mesmo. Frank viu uma massa de abundantes cabelos brancos, cuidadosamente
penteados. As bordas desiguais mostravam que ele mesmo os havia cortado e
aparado. Possuía uma face longa e magra, enrugada e séria. Os olhos, que ergueu
durante um momento para Frank, eram azuis e brilhavam de suave e infantil
curiosidade. Frank observou-lhe as mãos, bem lavadas, trêmulas e encordoadas
de veias. As mangas puídas da camisa eram brancas e estavam duras de goma.
Ao notar que Frank o fitava, ele sorriu e a face muito velha adquiriu uma
expressão ainda mais infantil e simples do que os olhos. Em voz rachada, disse:
— Tempinho ruim hoje, não?
— Muito — respondeu Frank. O velho inclinou a cabeça e sorriu outra
vez, como se satisfeito. Frank notou então que os olhos do homem estavam
pousados no pão ao lado, em que ele não tocara. O velho desviou a vista e voltou
a falar alegremente:
— Mas dizem que é sadio. O inverno.
Frank hesitou. Em seguida, com impaciência, empurrou o pão na direção
do velho, pois vira que ele comia apenas um sanduíche de queijo e um pequeno
copo de leite.
— Não quero o pão — murmurou. — É uma vergonha jogá-lo fora.
Quer?
— Tem certeza? — perguntou o outro, mas a boca pálida contorceu-se e
a cabeça tremeu de desejo. — Não o estou privando de alguma coisa?
Frank respondeu empurrando o pão para mais perto dele. E acrescentou,
a despeito do esforço para ficar calado:
— Pedi também um pedaço de torta de maçã, mas não estou com
vontade de comê-la. Quer?
Aquele dia assinalou o começo da curiosa amizade de ambos. Frank
mostrava-se amargo e desdenhoso com a pobreza, inutilidade e desvalimento do
velho. Mas ouvia-lhe as histórias com um estranho interesse que não conseguiu
explicar a si mesmo. Encontravam-se todas as noites às seis horas e
conversavam à mesa. Certa noite, Matthew convidou o novo amigo a subir até o
seu sótão, em cima do restaurante.
Frank acompanhou-o, relutante, amaldiçoando-se por essa fraqueza.
Subiram a imunda e quebrada escada. Viu então o quarto. Era pequenino, sem
janela, sem ar. Havia um beliche de ferro do Exército, coberto com dois sujos
cobertores marrons, surrados e cheios de buracos, um lavatório com um jarro e
uma bacia rachada, uma cadeira quebrada e um pequeno aquecedor a gás. Uma
pequena lâmpada elétrica pendia do teto. O chão era nu e as paredes e teto
literalmente fervilhavam de baratas. No armário, bem arrumadas, as poucas
posses de Matthew. Por esse quarto ele pagava dois dólares semanais.
Informou a Frank, a quem cerimoniosamente oferecera a única cadeira,
que ele mesmo lavava as camisas, as meias e os lenços na bacia, a qual enchia
em um sujo banheiro no térreo, por trás do restaurante. Todas as manhãs,
engraxava os sapatos. Espalhava jornais sobre a cama, entre os lençóis. Todas as
noites, acendia o pequeno aquecedor e sentava-se em frente a ele. Frank
imaginou-o com grande clareza, olhando para o espaço vazio, esfregando com
um seco som as magras mãos retorcidas.
Todas as manhãs, descia furtivo os degraus cheios de lixo, passava por
quartos onde reinavam a obscenidade e o vício, passava sem chamar a atenção
por um tumultuoso bar e desviava a vista dos degenerados seres que encontrava
na rua. De casa em casa, carregava uma pasta de fotografias. Vendia senhas a um
dólar por uma foto maior e não muito ruim. Precisava vender dez senhas para o
estúdio se queria conservar seu salário de cinco dólares por semana; tudo mais
acima dessa média lhe dava direito a cinquenta por cento de comissão.
“Fotografias de estúdio, com acabamento lustroso”, disse ele orgulhoso a Frank.
Valiam dois dólares cada, pelo menos. Vendia também fotografias para
passaporte e carteiras de habilitação de motorista. Às vezes, ganhava dez dólares
semanais.
Frank, dotado do olho vivo e arguto do escritor, imaginava quase como
se estivesse presente as visitas feitas pelo velho Matthew. Via o velho
cambaleando de porta em porta, alto, encolhido, ligeiramente encurvado, de uma
palidez azulada, olhos orlados de vermelho, vagamente cortês e cavalheiresco,
distante. A voz sem expressão ou musicalidade oferecia polidamente seus
serviços e despertava a pena dos pobres por esse homem velho e cansado. Frank
conhecia essa pena e, mais uma vez, a dor apunhalou-o e, novamente,
endureceu-se contra ela. Viu Matthew andando pesadamente pelas ruas,
tremendo no inverno, encolhendo-se exausto nos umbrais das portas para
respirar um pouco, entrando furtivo nas lojas para gozar de um momento de
calor antes de ser posto para fora. Mas ganhava seus oito ou dez dólares
semanais. Notou que Matthew era bastante digno de pena para provocar a
simpatia mesmo dos miseráveis, mas também suficientemente refinado para não
levar a simpatia ao ponto do desespero.
Aguçou-se a visão clarividente de Frank. Como se fosse o próprio
Matthew, viu os quilômetros de dolorosas e fatigantes caminhadas pelas ruas
cobertas de neve, a entrada sorrateira pelos fundos de casas, a dor de fome no
estômago e os pés que pareciam chagas de fogo vivo, pernas trêmulas e costas
que cediam. Ouviu, como se lhe houvessem sido endereçadas, as recusas, teve a
sensação de portas batidas e um velho e embotado desespero.
Era tudo muito estranho, pois o velho Matthew, conversando
alegremente com Frank, nada lhe disse a esse respeito. Frank, porém, sentia e
sabia de tudo isso nos ossos, na mente sombria, nas profundidades do coração
dolorido. Sabia que as solas dos sapatos de Matthew haviam acabado e que ele
tapara os buracos com papelão. Sabia que Matthew dormia sobre as calças para
conservá-las passadas e vincadas. Fazia frio no quarto naquela noite a despeito
do sibilante e pequenino fogo de gás. Matthew andaria em um mundo vazio, sem
desespero, mas também sem vida. Sabia que ele rezava. Mas suas orações eram
como uma velha e empoeirada folha de papel sobre a qual coisa alguma jamais
fora escrita, nem uma única palavra de esperança.
Frank era ainda jovem, mas sentiu a fragilidade de Matthew, os longos e
terríveis anos que ele deixara atrás. Sentado na cadeira quebrada, escutou o
velho, absorto, preso, encantado, acorrentado ao corpo do velho como se seu
próprio espírito houvesse penetrado na carne idosa e soubesse de todos seus
segredos, dores e sofrimentos.
Matthew, muito simples e ingênuo, não sabia que Frank se tornara uno
com ele, sentado ali na cadeira quebrada à sua frente, enquanto ele se sentava à
beira do catre. Viu apenas os olhos levemente vidrados e atentos de Frank à luz
elétrica descoberta. Encorajado pelo silêncio e aparente simpatia de jovem,
falou-lhe ingenuamente de sua vida passada.
Ele e a esposa, Eliza, haviam sido proprietários de um próspero, embora
pequeno, armazém de secos e molhados. Eliza era a cabeça do negócio. Fazia a
escrituração, encomendava as mercadorias, ia ao mercado com ele, pechinchava
bem. Matthew não a descreveu, mas Frank viu-a com uma visão clarividente:
magra, alta, forte, boca séria, olhar firme e reto e cabelo grisalho amarrado em
coque no alto da cabeça. Matthew confessou que não era homem de negócios;
simplesmente trabalhava no balcão. Iam muito bem e os fregueses pagavam
pontualmente no primeiro dia de cada mês. Eliza providenciava nesse sentido,
disse com um risinho carinhoso o velho Matthew.
Então, chegara a depressão. Os fregueses não puderam saldar as contas
ou desapareceram discretamente das vizinhanças, deixando débitos
consideráveis. Eliza e Matthew continuaram a lutar durante algum tempo e, em
seguida, foram à falência. Mas algo ainda pior aconteceu. Eliza adoeceu
inesperadamente. Descobriu-se que sofria de câncer. Faleceu em uma enfermaria
do hospital local. Matthew insistira em pagar todas as contas. Ficara na miséria.
Eliza fora “religiosa”, disse ternamente Matthew, estalando as juntas
ante o fogo. Fizera com que ele se tornasse também piedoso. Ela acreditava em
Deus. Deus sabia o que faria. Mesmo antes de morrer, as últimas palavras dela,
irresistíveis, insistentes, severas, haviam sido: “Tenha fé.” Sim, ele sempre
“tivera fé”, confessou com simplicidade. O que faria sem Deus e sem a
esperança de voltar a ver Eliza muito em breve? Frank, porém, ainda no corpo de
Matthew, uno com sua mente, ouviu-lhe as orações, metódicas, insistentes,
mecânicas, e soube que elas se haviam transformado em repetições, palavras
sem sentido, sem paz, sem esperança, sem eco. Rezava como quem fazia um
sacrifício terno pela esposa. Rezava por causa dela. Mas nada havia nele, salvo o
terrível sofrimento, a aceitação entorpecida, a dor.
— Deus, meu querido Frank, é sempre o refúgio — disse Matthew,
fitando-o com os exaustos olhos claros, mas sorrindo. — sempre o refúgio.
Nossa vida aqui nada é. Descubra a alegria da santidade, meu rapaz. Há sempre
Deus. O que é que eu faria sem Ele?
Frank deixou o corpo do velho e estremeceu. A piedade, a compaixão
encheram-no de cansaço e desespero. Disse:
— Por que é que você não pede ajuda por desemprego, Matt? Você
poderia, pelo menos, comer. O governo pagaria seu aluguel e você não teria que
andar mais batendo pernas pelas ruas.
Matthew, que estivera sorrindo vagamente para si mesmo, saiu do
devaneio com um sobressalto de choque e horror. Olhou consternado para Frank.
— Seguro-desemprego? O que diria Eliza? Ela nunca me perdoaria!
Nunca comemos de graça uma única migalha de pão em toda a nossa vida! Ora...
ora, eu preferia morrer de fome! Nunca mais poderia erguer a cabeça!
É neste instante que eu deveria sentir admiração, pensou amargo Frank.
Mas viu o espaço vazio em Matthew de onde a alegria, a esperança, o amor, o
significado haviam partido para sempre, nada deixando atrás senão um sótão
habitado por teias de aranhas, visitado apenas pelos ventos da meia-noite,
assombrado por fantasmas mudos: a recordação de uma orgulhosa e resoluta
mulher e a longa sombra de um Deus morto.
Não posso suportar isso, pensou, ignominiosamente abalado e infeliz.
Depois disto, vou evitar esse pobre velho idiota. Saiu, depois de apertar a mão de
Matthew e de ouvir um último conselho:
— Confie em Deus e tudo correrá bem.
Não voltou ao restaurante durante quase uma semana. Em seguida,
compelido por algo que não conseguiu explicar, procurou o velho Matthew. Não
o encontrou, porém. Nem na noite seguinte, nem na outra, nem durante toda a
semana. Perguntou então ao velho e gordo cozinheiro.
O cozinheiro fitou-o com expressão vazia durante alguns minutos.
Depois, disse:
— Está falando do velho que se sentava à mesa com você? Oh, esticou
as canelas uma noite destas. Mais ou menos há uma semana. — Fez uma
carranca. — Velho estúpido! Eu avisei a ele. Sou dono desta pocilga. Às vezes,
ele deixava o aquecedor de gás aceso o dia inteiro quando saía. O aquecedor não
tinha chaminé e era perigoso. Eu disse a ele: “Ouça aqui, Matt, gás custa
dinheiro. Apague o gás quando sair. E desligue-o à noite. Se não fizer isso, vai
acordar morto uma destas manhãs e isso não é justo comigo.”
Frank sentiu vontade de vomitar. Perguntou:
— E ele não apagou o aquecedor certa noite... quando foi dormir?
O cozinheiro fez outra carranca e inclinou a cabeça:
— Ele era apenas um velho tolo. Nunca se lembrava de coisa alguma. —
Coçou a borda do cabelo sob o chapéu de cozinheiro. — Bem, talvez ele não se
tenha suicidado, afinal de contas. Simplesmente esqueceu de apagar o aquecedor
quando foi dormir. De qualquer modo, apareceu morto certa manhã. Acidente,
disse a Polícia. Deixei as coisas assim.
Frank, porém, sentado à mesa vazia, teve uma súbita e clara certeza de
que não fora acidente. Esqueceu-se de onde se encontrava. Era Matthew
novamente e tudo sabia.
Voltou ao seu pobre quarto, sentou-se e escreveu a história de Matthew
Sanders. Escreveu-a em uma única noite. Enviou-a a uma revista. Recebeu-a
imediatamente de volta, acompanhada de uma carta pessoal do editor:
“Maravilhosa, poderosa e compassivamente contada. Mas deprimente demais
nestes dias, quando todos precisam de encorajamento e esperança no futuro. Por
favor, envie-nos outra história, algo brilhante e alegre, cheio de amor jovem,
talvez... alguma coisa para desviar a mente dos leitores do presente. Histórias
sobre amor jovem são sempre muito procuradas.”
CAPÍTULO 60
— Amor jovem! — exclamou amargo Frank. — Meu Deus! Será que o
público nada quer ler senão sobre libidinosos problemas de adolescentes?
O Sr. Endicott Preston leu a carta enviada pelo editor de ficção de uma
das grandes revistas nacionais. Contraiu os lábios em seu sorriso curiosamente
triste e cínico.
— Isso — disse — é que é tecnicamente chamado de “fuga à realidade”.
— Olhou pensativo durante longo tempo para Frank e enrugou as sobrancelhas
em pequenos tufos. Notou a face magra do rapaz e as depressões nas bochechas
que, naquele momento, estavam cobertas de um irado carmesim. Coçou o queixo
com o canto da carta do editor e, em seguida, olhando para o espaço vazio,
continuou em voz baixa e meditativa: — Há uma coisa que você deve resolver
sozinho, Frank, e várias ideias de que deve desvencilhar-se. Vejamos, em
primeiro lugar, a literatura. O que é literatura no sentido mais autêntico da
palavra? Acho que é o reflexo fiel da substância da realidade, da plenitude e
natureza de ser, escrita com paixão, autenticidade e energia, saturada de poder e
de verdade individual. Por verdade individual, tenho em mente a convicção
honesta e veemente do escritor, que não significa necessariamente a verdade
como outros a veem. Mas significa realmente a verdade do escritor, a sua falta de
hipocrisia e de adulação, sua coragem e força. A literatura, então, é escrever
honesta e heroicamente. Pode ser falquejada e robusta, mesmo instável e crua, à
maneira de uma grande estátua cuja forma e grandiosidade precisam ser
sugeridas contra um céu amplo, sem atenção exagerada a pequenos detalhes. Ou
pode ser uma miniatura pintada em ouro, uma estatueta de marfim. Mas seja
enorme em conceito ou delicada e minúscula na execução, precisa ter
integridade, honra, honestidade. Isso é literatura.
Frank escutou, com a impaciência e a raiva lutando com a amizade pelo
professor.
Sem pressa, o Sr. Preston releu a carta.
— Sim. Bem. Há outro tipo de literatura que não costuma irritar tantos
os críticos. Descobri que os críticos ficam um bocado irritados e desconcertados
pela literatura heroica, implacável, pela realidade. Às vezes, chamam-na de
“túrgida”, “melodramática”, “florida”, ou mesmo “irreal”. E isso é realmente
uma coisa muito curiosa. A realidade é, com frequência, acusada de ser a
irrealidade e a verdade, de “droga”. Como você vê, leio as notas críticas. Perdoe-
me se dou a impressão de que me desvio do assunto... Estou pensando em voz
alta. Recentemente, fui induzido a ler um romance escrito por uma esmerada
escritora. Um crítico eminente mostrou-se entusiástico sobre o livro. Achou-o
“finamente traçado, sensível, sutil, um triunfo artístico, cheio de graça e refinada
compreensão da humanidade”. Eu não devia ter caído nessa, mas gastei dois
dólares e setenta e cinco centavos para comprar o romance. Depois, tive vontade
de enforcar o crítico por me ter feito jogar fora meu dinheiro. Pensei que ia ler
literatura; li baboseiras. O livro carecia de grandiosidade, terror, compaixão,
fealdade, de todas as coisas de que a realidade é composta. As personagens eram
todas muito bem-educadas; o trabalho dela era tão “sensível” que não pude saber
com certeza sobre o que era a história. Não consegui compreender coisa alguma.
Ela não conhecia mais a humanidade do que um aluno de jardim de infância.
Ilusões encantadoras sobre o mundo são muito boas para crianças sonhadoras.
Mas são grotescas e horrendas em adultos. São revoltantes.
— Muito bem, mas o que é que tem isso tudo a ver comigo? —
perguntou Frank, impaciente. Queria que o Sr. Preston acabasse com aqueles
devaneios e se juntasse a ele numa grande fúria contra o editor.
O Sr. Preston continuou a olhar para o espaço.
— Às vezes, os autores são recompensados com a popularidade pública
e enriquecem. Com maior frequência, isso não acontece, embora eu nunca tenha
sido daqueles que acreditam em que o “verdadeiro” artista passa invariavelmente
fome em uma água-furtada. Incidentalmente, valem pelo que são, o público às
vezes descobre isso e lhes compra os livros. Mas é um risco que o verdadeiro
autor tem que correr. Há, porém, uma maneira mais segura de ganhar dinheiro —
O Sr. Preston interrompeu-se. — Você pode escrever o que o público quer, ou o
que os editores pensam que o público quer. Às vezes, é a mesma coisa. Os
escritores que colaboram em revistas populares ganham um bocado de dinheiro.
Se é dinheiro o que você quer. — Esperou uma resposta.
Frank cerrou sombrio os lábios.
— É o que quero, como o senhor sabe.
O Sr. Preston derreou-se em sua poltrona como se estivesse muito
cansado. Esfregou a testa e abafou um bocejo.
— Eu talvez não seja um bom juiz, mas acho que seu estilo é forte
demais, intrínseca e poderosamente rude demais, apaixonado demais, para ser
aceito pelas revistas. Mas... você pode imitar. Compre ou leia as três revistas
mais populares. Leia-as com toda a atenção. O povo deve gostar delas, desde que
têm grande circulação. Naturalmente, seria desonesto de sua parte escrever tais
coisas.
— Quero dinheiro — disse selvagemente Frank. Olhou para o Sr.
Preston com olhos furiosos e faiscantes. — Eu lhe disse! Escrever é minha única
maneira de escapar daquilo que odeio! Escreverei o que puder ser publicado.
Preciso de dinheiro! Eu... eu morrerei a menos que tenha dinheiro.
O Sr. Preston não o olhou. Perguntou, em voz distraída:
— Por quê? O que é que você quer fazer com esse dinheiro?
De pé diante do professor, Frank olhou sem ver para as escuras e
empoeiradas janelas que refletiam a forte luz elétrica da sala de aula. Falou em
voz baixa e contida, mas, ainda assim, curiosamente violenta:
— Preciso fugir da pobreza, do cheiro da pobreza, de tudo o que ela
significa. Eu... preciso ter um pouco de dignidade e liberdade na vida. Eu
quero... segurança.
— Segurança — murmurou o Sr. Preston, deixando cair as mãos sobre
os joelhos e fitando atento Frank.
— Quero tudo o que o dinheiro me pode dar: uma bela casa, a
companhia de gente bem-educada, livros, música, viagens, paz de espírito,
coisas belas... Oh, diabo! O senhor sabe o que o dinheiro pode dar a um homem!
Fuga...
— Fuga — repetiu pensativo o Sr. Preston. — Eu tinha receio disso.
Fuga de si mesmo, é isso o que você quer dizer, acho, embora você não saiba
disso agora. — Levantou-se, tirou do bolso o velho relógio de prata e lançou-lhe
um olhar: — Preciso realmente ir para casa, Frank. Estamos aqui há mais de uma
hora desde o término da aula. — A sua face enrugada parecia uma máscara, mas
ele tinha os olhos inundados de pena e cansaço. — Esperei ter-me enganado a
seu respeito. Mas estou vendo como você está apavorado. Você está apavorado,
horrivelmente apavorado, não?
Frank havia cerrado os dentes de humilhação.
— Não. Naturalmente que não. — Palavra feia, revoltante, repulsiva:
medo! — Não estou com medo de coisa alguma. Odeio o medo. — Como o Sr.
Preston permanecesse calado, Frank continuou em uma torrente de palavras
furiosas: — Meus pais viveram a vida inteira com medo! Tornaram-se
asquerosos de medo. Detestava-os por isso. Eles queriam dinheiro porque tinham
medo da vida, tinham medo de tudo, medo de respirar, medo de cada homem e
de cada mulher que viam. Nunca tive medo. Eu... simplesmente odiava...
— É a mesma coisa — disse suavemente o Sr. Preston.
— Não! Não é. — Frank tremia de mortificação. — Meus pais queriam
dinheiro porque tinham medo de viver. Eu não tenho. Oh, diabo! Não consigo
fazer com que o senhor compreenda.
O Sr. Preston sacudiu a cabeça.
— Algum dia, espero, você compreenderá que agora está muito parecido
com seus pais. Neste momento você é filho deles.
A ideia era tão repelente, tão humilhante, que Frank olhou para o Sr.
Preston com algo perigosamente próximo do ódio. A voz saiu abafada e
balbuciante quando falou:
— Se eu fosse tão covarde como o senhor pensa que sou, ficaria
amedrontado porque não tenho emprego. Eu teria medo... do amanhã. Mas não
tenho! Não me importo de viver passando fome e de morar num buraco sobre
um açougue. Nem sinto ou vejo essas coisas. Excluí-as de mim. Vou... vou sair
amanhã e tentar vender uma destas malditas meias. E venderei algumas. O
suficiente para comprar algumas refeições baratas e guardar o bastante para o
aluguel. Olhe para minhas roupas. Estou quase em andrajos. Meus pais teriam
morrido de pavor se alguma vez houvessem estado em minha situação. Mas não
tenho medo. Estou isolado...
— Sim — disse o Sr. Preston —, tenho muito receio de que você esteja.
Frank abriu os pálidos lábios para falar e, depois, saiu abruptamente da
sala.
O maldito, velho e sentimental asno! pensou Frank, fervendo de raiva. O
pedante, indiferente ao dinheiro! Ele acha lindo e nobre passar fome pela “arte”.
Arte!
Dirigiu-se na tarde seguinte à velha e parda biblioteca pública de
Washington Street. Ali fora em criança, sonhador, banhado em luz, levando os
braços cheios de livros. Flammarion, Hugo, Haggard, Dickens, Dumas,
Thackeray... haviam descansado em seus jovens braços como um cofre pesado,
mas belo, cheio de tesouros. Estivera também “isolado” nessa ocasião, mas
isolado em exultação, em uma sonora e musical realidade. Andara por aquelas
velhas e sossegadas salas e sentira exultação e alegria. Naquele momento, notou
que, embora limpas e decoradas com gravuras, as paredes eram ordinárias. Viu o
antigo elevador de ferro e desprezou-o. Observou as hordas de homens, jovens e
velhos, sentados às longas mesas, e teve certeza de que a maioria vinha ali
apenas para descansar durante um momento das ruas fatigantes, do frio violento.
Não para ler. Viu-lhe as mãos sobre a mesa, moles ou cerradas. Olhavam para os
livros à frente, sem vê-los, mergulhados em seus terríveis pensamentos. Desviou
a cabeça e subiu os gastos degraus de pedra até o andar das revistas. Não tinha
coisa alguma em comum com os derrotados pela vida. Odiava-os. Os jornais
chamavam-nos de “vítimas da depressão”. Eles, porém, chamava-os de vítimas
de sua própria inadequação.
Pensava que havia fechado a consciência contra a visão dessas pessoas.
Mas como emanações cinzentas, como farrapos de nevoeiro, elas seguiram-no
pelos degraus e sentiu-lhes o leve e raso hálito nas costas. Estugou o passo,
plantando os pés com firmeza e ruído na pedra. Achou que era o nojo que lhe
apertava a garganta, fazia seu coração bater com tanta força e com uma dor tão
surda.
Encontrou as revistas que procurava. Sentou-se, leu as páginas lustrosas
e examinou com atenção os desenhos brilhantemente coloridos que ilustravam as
desenxabidas histórias. Amor jovem, triunfante. Amor jovem, em meio a tolas
vicissitudes. Amor jovem em apartamentos de cobertura e boates. Amor jovem
desafiando irados pais. Amor jovem nas faculdades, nos escritórios, em casas
majestosas. Amor jovem desafiando outro amor jovem. Uma história estúpida
aqui e ali, uma criança “sensível”, ou um cão, um cavalo, um gato, uma ave mais
do que humanos. Mas, principalmente, amor jovem, casado, para casar,
discretamente fornicando, indiscretamente “amando”. A saga de banalidades
enchia páginas, entremeadas de anúncios muito mais vivos e atraentes.
O que havia sobre a fúria que se formava na Itália e na Alemanha? O
que havia sobre o saltimbanco Mussolini ou o assassino Hitler? Um artigo aqui e
ali, apressadamente escrito, curto, escondido entre as páginas do eterno, ubíquo,
adocicado e onipotente Amor Jovem.
O que havia sobre a Depressão, sobre milhões de vidas arruinadas, sobre
o desespero de uma nação, sobre o terror, a fúria, a paralisia de um povo inteiro?
Aqui e ali, acompanhado por uma pequena fotografia do Presidente, do Sr. Ickes,
do Sr. Hopkins ou do Sr. Wallace, um artigo assinado por uma “autoridade”.
Mas, sempre, e para sempre — o diabo o levasse! — o Amor Jovem.
Rilhando os dentes para combater uma verdadeira náusea, Frank leu as
histórias. Com a raiva, crescia o espanto, o puro e honesto espanto, o pasmo com
essa colossal e vergonhosa loucura, essa desavergonhada sedução da mente
humana, esse alcovitamento do grosseiro, do estúpido, do arrebicado. O que era
o amor, da forma descrita nessas páginas? Era uma quinquilharia vendida em
uma loja barata, um penduricalho folheado no braço de um débil mental, uma
diversão doméstica, um barato repicar de sinetas, um sonho de pré-adolescência,
uma excitação de pré-puberdade! O que havia com a alma da nação que, quando
confrontada com a tempestade de horror e morte que se erguia no horizonte,
evitava olhar para os raios e ouvir o ribombo do trovão distante em troca de uma
terrina de mingau doce?
“Fuga à realidade”, fora o que o Sr. Preston chamara a esse sonho de
vida do viciado em tóxicos, essa falsificação do “amor”. Frank empurrou para
longe as revistas. Bem, era isso o que queriam, era isso o que compravam.
Voltou para o quarto e lançou a valise de amostras de meias no chão nu e
empoeirado. As paredes do quarto haviam sido originalmente revestidas de
papel, com um fundo amarelo vivo e listras de azul brilhante. Naquele momento,
porém, estavam descoradas e haviam adquirido uma tonalidade biliosa,
manchada, rasgada, baça. A única pequena janela, sem cortinas, dava para a
estreita Grant Street, onde era grande o tráfego e onde bondes estrondejavam dia
e noite. Havia uma bela vista de várias casas de frutas atravancadas e uma
oficina de alfaiate do outro lado da rua, mas Frank não estava mais consciente
dessa paisagem, da mesma maneira que mal percebia que o estreito e
empoeirado quarto era mobiliado com uma cama de ferro, cujo trabalho de
filigrana na cabeceira fora pintado de branco, mas que, naquele momento, era
um estudo em cinza e preto que descascava, uma velha mesa de carvalho
quadrada junto à janela, onde ficava a sua velha máquina de escrever, um
dicionário e uma resma de papel, uma cadeira de cozinha de espaldar reto junto à
mesa e um “guarda-roupa” cambaleante no canto distante. Pelo quarto,
insuportavelmente quente no verão e gelado no inverno, pagava três dólares por
semana. Mas nunca o vira realmente.
Não tirou o casaco de inverno ao sentar-se à máquina de escrever.
Soprou nas mãos geladas e vermelhas, flexionou-as e experimentou-as no
teclado. Colocou uma folha de papel na máquina. Mordeu os lábios em
concentração e olhou com as sobrancelhas contraídas para o papel. Daria a
“eles” a corrupção que queriam, a papa envenenada que comiam com tanto
apetite naquela “fuga à realidade”. Enquanto fazia um profundo esforço mental,
levantou-se, puxou a colcha da cama, enrolou-a em volta dos pés e sentou-se
outra vez. O que deveria escrever? Ah, sabia! Amor jovem, triunfante a despeito
da depressão. O título? Tinha-o também: “Não Temeremos.” Metralhou o título
na máquina. Parou, em seguida. Algo se revolveu nele, escuro e nauseante, como
o conteúdo de um esgoto que transborda. Por amor a seu estômago, não poderia
escrever aquela matéria. Mas rilhou os dentes e curvou-se sobre a máquina.
Precisava escrever, mesmo que vomitasse. Esperou mais um pouco. Naquele
momento imaginou os personagens: uma moça nobre e altruísta, despedida do
emprego — secretária, compradora de loja, o quê? Secretária, naturalmente. O
patrão acabara de abrir falência. Era um homem bonitão, ainda moço, arquiteto,
com as têmporas prateadas. Estavam sem níquel, mas eram corajosos, com
pendor para uma risada alegre e um jeito de lançar violentamente a cabeça para
trás e achar tudo imensamente engraçado.
A máquina metralhou forte. Frank curvou-se sobre ela, com as longas
mãos subindo e descendo furiosas, a face tensa, dura, cheia de nojo. Ora, era
fácil! Não precisava absolutamente pensar. O quarto começou a escurecer.
Ergueu-se e puxou a corrente da lâmpada descoberta sobre a sua cabeça. A neve
começou a cair devagar do lado de fora da janela e as vidraças estalaram como
se atingidas por uma saraivada de chumbo. A máquina deslizou, tocou a sineta; o
papel foi posto e retirado do rolo. A neve desceu como uma arrepiante cortina
branca pela janela e o quarto tornou-se uma caixa estreita, gelada. As lâmpadas
da rua foram acesas e os bondes rolaram e grunhiram do lado de fora.
Às nove horas havia completado a história. Leu-a rapidamente, fazendo
correções a mão. Enfiou-a num envelope e endereçou-a a uma das revistas
populares de maior circulação. Levantou-se. Os joelhos lhe tremiam de exaustão.
A cabeça latejava de dor e os olhos ardiam. Saiu e mergulhou na tempestade de
março, comprou selos e lançou o manuscrito na caixa de correio. O custo dos
selos abalara fortemente o fundo ciumentamente conservado para as refeições.
Dirigiu-se à carrocinha da esquina, onde, por vinte e cinco centavos, comeu um
cachorro quente e uma rosca e bebeu uma xícara de café.
Tinha a mente esgotada, cinzenta, manchada como um pedaço rasgado
de mata-borrão. Não podia pensar. Sentia-se sujo. Vagamente pensou em um
banho. Mas estava tão cansado que preferiu a cama, onde, pelo menos, ficaria
aquecido.
Nesse momento surgiram pensamentos pesados, em tropel, nauseantes.
Por trás das pálpebras fechadas marcharam os anos informes da mocidade
perdida, os anos de vida vazia. Via-os, sombras de sombras, caindo no abismo
do tempo. Viu-se observando-os, embotado, impotente, mudo, e sentiu-lhes a
substância fantasmagórica passar pela sua face antes de desaparecer.
Pensou na mãe, sozinha agora em Manchester, pois a avó falecera dois
anos antes, deixando-lhe a pensão. Não tinha certeza de como ela ia de vida,
embora suas raras cartas viessem sempre cheias de queixas. Mas devia estar
ganhando o suficiente para viver, desde que não pedira dinheiro. Cinicamente,
sabia que o capital dela continuava intacto. Ela estava feliz por se encontrar na
Inglaterra, mas a Inglaterra “mudara”. Não era mais a Inglaterra agradável,
iluminada pelo fogo das lareiras de que se lembrava. Maybelle queixava-se,
irritada com a situação, como se isso fosse um insulto pessoal a ela.
Pensou no dinheiro roubado pelos Cunninghams e que nunca mais
pudera recuperar. Voltara a Bison, deixando Kentucky em desabalada fuga.
Contratara os serviços de um rábula, que escrevera intermináveis cartas à Polícia
de Bowling Green. Os Cunninghams, porém, como Frank desconfiara, haviam
permanecido ali apenas uma semana e, depois, desaparecido. Somente Deus
sabia para onde haviam ido.
Pensando no caso, o interlúdio de Kentucky jamais deixava de deprimi-
lo e horrorizá-lo e via-o sob uma luz grotesca. O que acontecera aos Sherry
Hempsteads, aos Isaac Saunders, a Peter O’Leary? Falecera o montanhês que
baleara? Qual era o seu nome? Não conseguia lembrar-se. Podia apenas lembrar-
se com clareza de Wade O’Leary.
Wade, pensou. Wade, está-me ouvindo? Está consciente de alguma
coisa, Wade? Viu a face magra e morena de Wade, mas ela estava séria nesse
instante, fechada e cega, como se, resolutamente, não quisesse ver.
CAPÍTULO 61
Corria naquele momento o mês de abril, um abril úmido e frio, com um
céu opalino ao anoitecer e buzinas de nevoeiro soando no lago nas nevoentas
manhãs. Frank ouvia-as, quais grandes rãs rouquejando monotonamente avisos
aos barcos que chegavam de outras cidades do lago. Sentia o cheiro das velhas e
fétidas colchas que o cobriam e os eflúvios úmidos e desagradáveis do
encalombado colchão e do travesseiro. Era nessas manhãs, antes de levantar-se
para começar a ronda pelas ruas chuvosas, que ficava imóvel, rígido, numa
espécie de vazio mental.
Mas chegou um dia em fins de abril, um dia tão perfumado, tão
docemente radiante, tão capitoso e belo que despertou até mesmo o coração
atrofiado de Frank. No dia dourado, Bison, sacudindo a chuva como um cão
sacode a água do pelo, abriu os olhos para saudar a manhã. Frank levantou-se.
Algo frágil e trêmulo, como uma esperança, surgiu nele. Teve a sensação, muito
estranha, de que o vazio acabara, de que os fatos começavam a mover-se no seu
interesse. Cantarolou mesmo um pouco enquanto se vestia e ficou surpreso com
o estranho som de sua voz. Tomou um bom café na carrocinha da esquina e, com
mais coragem e entusiasmo do que durante anos, iniciou as visitas de casa em
casa.
Persistiu a promessa dourada do dia. Ao meio-dia, ganhara de comissão
mais de cinco dólares. Uma fortuna! O dia afetara a população da cidade, da
mesma maneira que a ele. A depressão pareceu menos sinistra naquele dia,
menos terrível e irresistível. Com os dólares dos “depósitos” tilintando no bolso,
quase esqueceu a odiosidade do destino do vendedor, a bater de porta em porta, a
profunda humilhação, a inevitável perda de amor próprio, o instante antes que se
abrisse a porta inóspita, o início da conversa de venda, o momento em que se
afastava de uma porta que lhe fora batida na cara, com uma sensação de
vergonha entre as espáduas e um quente e doentio ódio na boca do estômago.
(Como fora horrível para ele afivelar aquele débil e ensaiado sorriso, aprender a
tirar o chapéu, curvar-se cortesmente e falar em uma “voz clara e bem
modelada”, da forma demonstrada pelo gerente de vendas, sorrir, sorrir, sorrir
para as faces estúpidas, desleixadas, vulgares, belicosas, impacientes, superiores
das donas-de-casa, e sorrir novamente ante uma recusa em voz alta, lamentosa
ou áspera, tinha que sorrir, sorrir sempre, enquanto se afastava!) Mas, naquele
momento, quase esqueceu tudo isso. Quem sabe, fora o dia dourado que
persuadira as donas-de-casa a esquecer suas desconfianças e a simpatizar, em
vez de antipatizar, com sua face pálida de traços nítidos e os duros olhos azuis
que negavam o largo e tenso sorriso. Não o trataram como um mendigo, da
forma habitual; algumas mesmo o receberam bem. Haviam encomendado não
dois pares de “Meias de Seda pura”, mas três, quatro ou mesmo meia dúzia.
Vendera também alguns negligés de raiom a seis dólares cada, duas dúzias de
“combinações” de raiom, e quatro dúzias de pares de meia de homem.
Trabalhava em uma zona melhor do que a habitual e encontrou poucos
colegas vendedores nas ruas naquela manhã. Ao meio-dia, entrou numa pequena
e limpa drugstore em Elmwood Avenue e almoçou. O sol inundava a rua, as
crianças voltavam à escola e ele ouviu-lhes o riso feliz e descontraído. O sol
tirava reflexos das carrocerias e capotas dos automóveis estacionados. Até os
bondes retiniam alegres.
Não estava longe do Delaware Park e, depois de sair da drugstore,
caminhou um pouco até o parque para ir dar uma olhada de apaixonada
admiração e orgulho na refinada e bela Albright Art Gallery, aquela reprodução
quase perfeita de um templo grego. As árvores estavam cobertas por um
nevoeiro azul e dourado; a grama brilhava ao sol; aves piavam alegres nos ramos
pardos e as passagens faiscavam e ondulavam com fios de água que desciam.
Observou a galeria, à luz do sol, em toda a sua branca e encantadora dignidade,
erguendo-se com delicada força contra o azul e lavado céu. Em volta dele subia
o frio e doce hálito da terra despertada, o murmúrio de uma promessa, de uma
esperança. Sentiu uma súbita exultação, um calafrio de antecipação, uma força
no coração. Qualquer coisa poderia acontecer num dia como aquele.
Como era maravilhoso sentir-se jovem novamente, como não se sentira
durante anos! Esqueceu que tinha quase trinta e quatro anos, que era um
vendedor ambulante sem lar, que quase não possuía dinheiro algum, que estava
malvestido, emaciado, cansado e amargurado. Era outra vez menino, com Paul
Hodge ao lado, compartilhando da “alegria” que lhe despertava a galeria. Sentiu
quase o braço de Paul junto ao seu, a doce e inocente emoção provocada pela
proximidade do amigo. Sentiu tristeza nesse momento, mas era uma tristeza
doce, uma dor viva, e não um vazio. Pensou em Paul como se pensa em alguém
que morreu.
Após um longo tempo, afastou-se relutante. Mas a força e a esperança
caminharam com ele, companheiras invisíveis de sua juventude. Voltou às ruas.
Viu nesse momento outros vendedores, furtivos, rápidos ou lentos, levando suas
valises, homens e mulheres, velhos e moços, mal vestidos, cansados, arrastando
os pés. Olhou-os e pensou: Eles estão com medo. Por que este país inteiro está
com medo, este país rico, poderoso, ilimitado! Este orgulho do mundo, esta
esperança do mundo, esta inesgotável riqueza e poder, foram reduzidas à
impotência pelo medo! Por quê? A terra é a mesma, suas entranhas abundam
ainda de imensos recursos, sua riqueza não diminuiu realmente, as suas
potencialidades são como veias de ouro em seu corpo, o seu vigor troveja como
um dínamo no seu coração, a sua força espera, como uma pujante máquina, pela
mão que aperte o botão de partida. Nada mudou realmente, nada, em absoluto.
Nada, exceto a crença do povo, a fé do povo. O que sobra quando um povo não
mais acredita na própria energia e poder?
O povo da América e o povo.de todo o mundo estavam impotentes e
fatalisticamente projetavam outra realidade, a realidade das trevas, do ódio, do
medo. Era tão real como a que haviam projetado antes. O que não sabiam era
que, se quisessem, dispunham do poder de substituí-la por outra realidade. O
mundo não era uma objetividade imutável; era maleável, capaz de mutações
infinitas, nas mãos do homem de vontade e coragem.
O medo o deixara, embora ele jamais houvesse admitido que era medo.
Andou em passos rápidos pelas ruas, desviando a vista dos colegas. Decidira,
antes, não tentar vender mais coisa alguma naquele dia. Mas havia nele uma
espécie de invencibilidade. Sabia que podia vender naquele instante.
Caminhava ao longo de um baixo muro de pedra cinzenta de um metro e
pouco de altura, mais ou menos, por trás do qual se amontoavam imensos
gramados, como se formassem um terraço. Do outro lado do muro, uma cerca de
sempre-vivas ocultava a casa. Havia um portão de ferro no muro, que Frank
abriu, entrando numa longa e curva passagem de automóveis. Naquele momento,
viu a casa, muito grande e austera, construída de ásperas pedras cinzentas, com
uma pequena torre de cada lado da fachada. O sol da primavera brilhava sobre as
majestosas janelas de pequenas vidraças, que davam à casa uma aparência
baronial, segundo a tradição inglesa. Notou os degraus brancos distantes e a
porta gradeada, o telhado vermelho e as grandes chaminés de pedra de onde
fumaça azul subia para o céu brilhante.
Parou então, abruptamente. Devagar, depositou a valise no caminho.
Não era possível! Sonhara com aquela casa muito tempo antes, e ali estava ela,
completa, das paredes cinzentas à faiscante estufa nos fundos, dos jardins com
longos caminhos de lajes às árvores grossas e os arbustos. Estava tudo ali, em
meio a uma grande e sossegada aura de riqueza. Mas havia alguma coisa de
errada; fora verão em seu sonho e houvera uma menina com cabelos escuros e
grandes olhos negros. Sonhara com a casa quando fora criança, tentara encontrá-
la e ela desaparecera como desaparecem todos os sonhos. Ainda assim, ali
estava, exatamente como dela se lembrava.
Lembrou-se do nome da menina. Jessica. Sim, fora Jessica! Ela correra
em sua direção por aquela mesma passagem, com o cabelo amarrado atrás com
uma grande fita cor-de-rosa. Esperou. Ninguém se mexeu. As janelas
continuavam vazias. A água das chuvas descia pela passagem de automóveis.
Sentiu-se estranhamente entorpecido, em trêmula expectativa. Não
sonhara com a casa, afinal de contas. Estivera ali muito tempo antes. A menina
lhe dissera que ia para Nova York com o pai. Ele “tocava piano”, o pai, e o tio
lhe dera o vestido cor-de-rosa que usava. Haviam-se sentado no pavilhão de
verão nos fundos da casa. Frank deu um passo para o lado. Sim, ali estava o
pavilhão de verão, tal como se lembrava dele, mas com as trepadeiras ainda
destituídas de flores. Haviam-se sentado nas cadeiras brancas e houvera um
gatinho branco. A menina olhara para ele com grande gravidade e ele dissera que
algum dia voltaria para ela. Jessica!
Ergueu a valise do chão. Ela escorregou pelos seus dedos e caiu.
Apanhou-a novamente. Era tolice, mas tremia. Dirigiu-se para a casa. Ela ia para
Nova York. Não havia possibilidade de que se encontrasse ali naquele instante. A
casa talvez não pertencesse mais ao seu tio. Afinal de contas, tudo aquilo
acontecera muito tempo antes. Mas os pés levaram-no apressados até a alta porta
branca. Ergueu a aldraba e deixou-a cair com força, reverberando o eco por todas
as paredes.
Ouviu o correr de ferrolhos e viu o rosto de uma empregada, de
uniforme e touca. Ela olhou para a valise e disse brutalmente:
— O senhor devia ter batido na porta lateral. Além disso, não queremos
coisa alguma. Não compramos coisa alguma de gente como o senhor.
Ele olhou para a face rude e coberta de espinhas, para os olhos de suíno,
para a fresta da boca malévola. Odiou-a imediatamente e deu aos olhos uma
expressão dominadora.
— Quem é que mora aqui? — perguntou. — Tenho um recado para sua
patroa.
Ela estava quase pronta a bater com a porta na sua cara quando se
interrompeu e fitou-o com o sorriso astucioso:
— Não, não tem! Como é que o senhor pode ter um recado se não sabe
quem é que mora aqui?
— Chame sua patroa — disse ele e pôs o pé na porta. Ela notou o gesto e
ficou com medo.
— Vá embora daqui ou chamarei a Polícia! — exclamou amedrontada.
— Seu ladrão!
Lançou as palavras contra ele como se fossem pedras. Um ódio lívido
tremia em suas feições, afrouxava e fazia tremer a sua boca. Ela não tinha mais
medo dele, mas apenas a hostilidade instintiva dos inferiores.
— Não sou ladrão — respondeu ele tranquilamente — e você sabe disso.
Preciso falar com sua patroa. — Qual era o nome? Jessica... o quê? Não
conseguiu lembrar-se.
Nenhum dos dois ouviu o deslizar baixo de uma limusine preta que subia
a passagem de automóveis nem o passo leve e rápido e ficaram ambos surpresos
ao ouvirem uma clara voz de moça:
— O que é, Marie?
Frank voltou-se e viu a jovem, quase ao seu lado. Devagar, tirou o
chapéu. A empregada começou a falar, furiosa:
— É este mendigo, Srta. Bailey! Eu ia agora mesmo chamar a Polícia.
Ele tentou entrar na casa!
A moça fitou-o com um olhar tranquilo, penetrante, grave, reservado.
Era uma moça alta e muito magra, com longas e belas pernas e pés delicados.
Usava um vestido cinza-pérola e um rico casaco de arminho, descuidadamente
lançado sobre os ombros. Possuía cabelo lustroso, preto como carvão,
contrastando surpreendentemente com a pura brancura das têmporas, testa e
garganta. Não havia outra cor na face exceto na boca coral, simultaneamente
firme e suave, pensativa e bondosa. Usava brincos e um colar de pérolas.
Olhou interrogativamente para Frank. Eram olhos extremamente vivos,
mas, ainda assim, tranquilos, muito escuros e radiantes. Naquele momento,
olhando para o rapaz, eles iluminaram-se um pouco, embora nada perdessem da
firmeza, da inteligência séria e do tranquilo humor.
É Jessica, pensou. Não fora um sonho, afinal de contas. É Jessica. Sentiu
o peso da valise na mão, sentiu a vergonhosa pobreza de seus trajos, embaraço,
ao mesmo tempo que lhe sentia a compostura tranquila e a vitalidade.
Naturalmente, ela não o conhecia. Fora tão jovem naquele distante
passado. Ela não precisaria jamais saber que ele era aquele menino encantado
que se sentara com ela no pavilhão de verão. Não poderia dizer-lhe, pois, se o
fizesse, ela o examinaria com mais atenção e o desprezaria pelo que ele se havia
tornado. Precisava apenas recuar e ir embora e não haveria necessidade de mais
coisa alguma, de nada, absolutamente.
Mas quis ouvir-lhe a voz novamente, a doce e profunda voz. Disse:
— Se... se a senhora pudesse apenas me dedicar alguns momentos... —
Interrompeu-se, então, odiando-se.
Os olhos da moça não se desviaram dele e ela notou, sem perder coisa
alguma, a pobreza bem arrumada de suas roupas, a face magra, o cabelo longo
demais, agitado pela brisa fria. Sentiu algo como uma embaraçada compaixão e
surpresa. Passou por ele em direção à porta e disse cortesmente:
— Entre, por favor. Posso-lhe reservar alguns minutos. — Entrou na
casa sem olhar para trás, deixando a empregada a fitar Frank em furiosa
estupefação.
Ele passou pela empregada como se ela não existisse, como se fosse um
cão, cujos latidos ignorava. A Srta. Bailey, no grande saguão apainelado, tirava
as luvas. A empregada fechara com violência a porta e Frank lhe ouvia a
respiração alta e furiosa. A Srta. Bailey, porém, tirou tranquilamente o casaco e o
chapéu, entregou-os à empregada e tomou a frente em direção a uma sala à
direita. Frank seguiu-a, mas não sem antes olhar em volta pelo saguão, onde um
fogo queimava na lareira de mármore. Notou a grande escada de carvalho que
subia em espiral para o segundo andar; no patamar da escada havia uma grande
janela, abrindo para fora. Ouviu o estalido quente do fogo, sentiu a grossura
luxuosa do tapete sob os pés e viu sobre a lareira o retrato obscuro de um
homem, em uma moldura dourada.
Entrou na grande sala de estar, onde o esperava a Srta. Bailey, e
observou a refinada simplicidade da sala, que mais negava do que afirmava a
existência de recursos ilimitados. Outro fogo de toras ardia ali, iluminando as
paredes verde-claras, cujas janelas altas davam para os gramados e as altaneiras
árvores. A mobília da sala era de cor clara e habilmente disposta sobre
desmaiados tapetes persas, com suas obscuras e fascinantes cores. Tudo aquilo
era antigo e de fino gosto. Frank captou uma impressão de rosa claro, azul
desmaiado e marfim frágil das cadeiras francesas e divãs até as cores sérias das
cortinas que emolduravam as janelas. Havia abajures de cristal, prata ou bronze,
uma exótica pequena caixa ou estatueta, ou um vaso de prata com flores em
todas as pequenas mesas. Sobre o grande piano de cauda que brilhava
mortiçamente num canto distante, notou um grande vaso de rosas amarelas e, nas
paredes, excelentes retratos e paisagens em estreitas molduras douradas, velhas e
desmaiadas. Era uma sala aristocrática, encomendada e mobiliada por um
aristocrata. Mas até mesmo para os olhos inexperientes de Frank, havia ali algo
decadente, algo tênue e refinado demais.
Graciosa e tranquila junto à lareira, a Srta. Bailey acendeu um cigarro e
inclinou a cabeça para uma caixa de cristal sobre uma mesa baixa ao lado. Frank
pôs de lado a valise e o chapéu e aceitou um cigarro. Os dedos lhe tremeram um
pouco. Pela primeira vez na vida, estava realmente consciente de uma mulher,
consciente dela nas pontas dos dedos, no rosto, em todo o corpo, consciente dela
como de algo docemente familiar. Sentiu calor na face e ouviu batidas do
coração. Embora não a olhasse diretamente, sentiu o brilho dos sedosos joelhos
sob o vestido de lã cinza-pérola, a pressão do largo cinto de prata em torno da
cintura esguia, o calor de suas coxas e os movimentos de seus seios. Ela mexeu-
se um pouco, esperando que ele tirasse o casaco, e chegou-lhe às narinas o
aroma de um leve e doce perfume.
Não adiantava. Não devia estar ali naquela casa. Tivera oportunidade de
ir embora e a oportunidade passara. Para que ela de coisa alguma suspeitasse,
precisava continuar com a ridícula farsa. Não devia demonstrar, pelo menor
gesto ou entonação, que se haviam encontrado antes. Não havia reconhecimento
nos olhos dela, nenhuma perplexidade, nenhuma interrogação. Naturalmente que
não. Como podia ela lembrar-se? Precisava apenas conservar a calma, fazer sua
demonstração e ir embora, envergonhado, esquecido, para sempre anônimo.
Tivera um sonho e ele se transformara em realidade. Poderia ir embora e levar
consigo o sonho e o teria para sempre, intacto.
Ela sentou-se com uma expressão calma e distantemente agradável. Ele
abriu a valise sobre o divã. Fez um esforço para começar a demonstração. Mas,
antes que pudesse falar, ela perguntou suavemente:
— Você gosta realmente desse tipo de trabalho?
Não havia condescendência em sua voz, mas uma autêntica e polida
curiosidade. Morreu a primeira irritante emoção de Frank. Com franqueza
simples, enquanto tirava as várias amostras, respondeu:
— Não, odeio-o. Mas, no momento, não consegui encontrar coisa
melhor para fazer.
Ela sorriu, um sorriso súbito e encantador que a fez parecer muito
jovem, embora estivesse, aparentemente, no início dos trinta anos.
— Sinto muito — disse ela. — Eu não quis ser... metida, naturalmente.
Mas pensei que fosse um pouco fora de sua linha de interesse. — Interrompeu-se
por um momento. — Acho que sinto simplesmente curiosidade vulgar —
acrescentou. Esperou, obviamente que ele lhe dissesse qual era sua ocupação
real. Frank fitou-a em silêncio. Deveria mentir e dizer que era um contador
desempregado, um jovem executivo qualquer, um jovem empresário que falira,
um advogado sem clientela, ou mesmo um médico? Ela o fitava com os grandes
e brilhantes olhos, bondosos e firmes.
Respondeu:
— Nunca fiz coisa alguma realmente importante, ou não estaria fazendo
isto agora. Acho que sou um dos inadequados.
Ela permaneceu calada. Sorriu apenas e tirou uma baforada do cigarro,
recostando-se na cadeira e cruzando os lustrosos tornozelos. Impaciente, Frank
recomeçou:
— Quer realmente ver estas coisas, Srta. Bailey, ou está tentando apenas
ser bondosa? Eu preferia que não fosse isso.
Por que os ricos e os seguros na vida pensavam que tinham o direito de
espionar a vida dos menos afortunados e fazerem o supremo insulto de ter pena
daqueles que deles necessitavam? Frank conservou a caixa de amostras na mão e
apenas fazendo um forte esforço de vontade deixou de fechá-la com estrondo.
Seus olhos chegaram quase a faiscar enquanto seu magro rosto empalidecia.
Ela olhou para o cigarro na mão esguia. Sua expressão entristeceu-se.
— Naturalmente que quero vê-los. Tenho dois amigos que são médicos,
jovens e muito competentes. Neste momento, estão vendendo lençóis e fronhas
de porta em porta. Um dentista conhecido meu faz agora consertos caseiros de
todos os tipos. Um filho de um amigo de meu tio tem um “ferro velho”, onde
velhos trastes são trocados por outros. Algumas pessoas podem achar isso
horrível. Eu acho quase... esplêndido. — Havia real interesse na voz dela. Sorriu
novamente e continuou: — Acho que na América somos esnobes e temos um
tipo muito tolo de esnobismo. Não temos realmente classes e nem aristocracia
herdada. Mas precisamos ter alguma coisa, ao que parece. Assim, chamamos
alguns tipos de trabalho de degradantes e outros, de respeitáveis. Trabalho é
trabalho. Não há qualquer distinção entre eles. — E acrescentou, ao ver que
Frank não fazia comentário algum: — Acho que o senhor deve julgar seu
trabalho muito interessante.
— Eu sei — interrompeu-a rudemente Frank. — Conhecem-se tantas
pessoas interessantes!
Pensou que a ofendera, mas ela riu inesperadamente e, depois de um
momento, ele riu também, acanhado. Estava sentado frente a ela, perto da
lareira.
— Não acho interessante donas-de-casa desarrumadas — disse. — Não
acho excitante ter uma porta batida na minha cara. Eu, simplesmente, tenho
vontade de matar alguém, qualquer pessoa, durante a maior parte do tempo. Mas
gosto ainda menos de passar fome do que vender de porta em porta. Além
disso... — Interrompeu-se abruptamente e enrubesceu. Ia falar-lhe de sua
literatura e caiu em si em tempo.
Estendeu as amostras sobre os joelhos da calça barata, escolheu três
meias de várias tonalidades e entregou-as à moça. Ela examinou-as com
cuidado, criticamente. Escutou enquanto Frank, em voz monótona, dava os
preços. Ela teve vontade de lançar para longe as meias, mas era muito sensível e
sabia que um gesto impensado poderia ofendê-lo irremediavelmente, insultá-lo,
e, assim, fingiu hesitar e pensar.
— Não estou querendo desfazer de suas mercadorias — disse em voz
fria — mas posso comprar artigos desta qualidade por cinquenta centavos menos
nas lojas do centro.
Frank pisava nesse momento terreno conhecido e argumentou
convincentemente:
— Não dessa qualidade. Nossas meias são de seda pura, sem
adulteração. Duram quase duas vezes mais do que as marcas mais conhecidas.
— Para exemplificar, habilmente enrolou uma meia em forma de corda e deu-lhe
um forte puxão, num truque ensinado aos vendedores pelo gerente de vendas. A
Srta. Bailey fingiu-se em dúvida, impressionada. Frank desenrolou a meia e,
triunfantemente, mostrou-a sem uma marca ou fio corrido. A Srta. Bailey
examinou com atenção a meia e pareceu entregar os pontos.
— Bem — disse ela lentamente. — Deixe-me ver. Vou querer uma dúzia
de cinza-escuro, meia dúzia de “Raio de Sol” e meia dúzia de “Folhas de
Outono”. Tamanho nove.
Frank tomou nota do nome, Jessica Bailey, e do endereço. O lápis,
porém, tremeu em sua mão ao ser envolvido pela onda de calor perfumado que
fluía da moça. Ela estava sentada a pelo menos uns dois metros dele, mas ele
sentia a proximidade de sua carne branca, o próprio toque de seu hálito. Cerrou
fortemente os lábios. Tinha a cabeça curvada sobre o livro de pedidos. A moça
observou-o atentamente, com a boca um pouco aberta e os olhos brilhando
vivamente. Observou-lhe o contorno da cabeça estreita, a dura linha do queixo, a
posição dos ombros largos e magros e a elegante e forte forma das mãos.
Moveu-se na cadeira com uma curiosa inquietação.
Frank entregou-lhe a cópia a carbono do pedido. Ela leu-o. Francis Clair.
Então era esse o nome dele. Na sua vida havia dezenas de nomes. Era muito
estranho que aquele nome lhe parecesse tão excitante, tão cheio de significação.
Dobrou com todo o cuidado o recibo e guardou-o na bolsa.
— A senhora quer pagar tudo agora, ou prefere fazer um depósito e
pagar o resto contra a entrega?
— Pagarei agora — disse ela. Tinha amigos que trabalhavam nesse ramo
e sabia que o depósito era a comissão de Frank. Abriu a bolsa e entregou-lhe a
soma exata. Observou-o enquanto ele se erguia e fechava a caixa de amostras
com um estalo. Inesperadamente, sentiu vontade de prendê-lo ali, de conservá-lo
ali um pouco mais. Não parou para analisar o estranho impulso, como
geralmente fazia quando eles lhe ocorriam. Era imperativo para ela que Frank
não se fosse imediatamente. Mas o que poderia fazer? Poderia convidá-lo para
tomar chá? Não havia desculpa, nenhum pretexto que pudesse dar e não
parecesse absurdo, ou coisa pior ainda, ou que ele, com toda a probabilidade,
não interpretasse mal. Mas, pensou ela com secura, ele não compreenderia,
realmente? Ela era uma tola! O que lhe estava acontecendo? Tinha trinta e dois
anos e nunca olhara para outro jovem a não ser com indiferença ou apenas com
leve interesse. Mas não queria que Frank fosse embora. Em desespero, procurou
algo para dizer que o conservasse ali um pouco mais. Queria saber tudo a
respeito dele. Queria vê-lo novamente!
Disse:
— Estou vendo que o senhor vende também outras coisas. Por que não
as mostra?
Frank ergueu rapidamente os olhos:
— A senhora não as quer. Foi por isso que não as mostrei.
— Como é que o senhor sabe? Por favor, deixe-me vê-las.
Ele estendeu-lhe o livro de amostras e ela examinou-as sobre os joelhos.
Os artigos eram fortes, bem feitos, mas grosseiros. Disse:
— Eu... gosto deste negligé. Rosa, acho. Número quatorze. E o azul,
também. Um de cada. E... as combinações. Duas, brancas, mesmo número.
Frank permanecia ao seu lado, em silêncio. Depois, disse sombrio:
— A senhora não as quer.
Ela ergueu rapidamente os olhos e sorriu.
— Não são para mim, talvez — respondeu com franqueza. — Mas uma
das empregadas vai fazer aniversário e adorará um destes. — Uma covinha
apareceu, desculpando-se, perto da boca rosada. — Poderia ser então tamanho
dezoito. Quatorze é o meu número.
Com a boca contraída e uma expressão desagradável, Frank extraiu outra
nota de vendas. Ela observava-o quase com humildade. Gostou da maneira como
ele escrevia, em traços claros, fortes, sem hesitação. Ele entregou-lhe a nota e
disse:
— Quinze dólares, se quiser pagar tudo.
Ela entregou-lhe os quinze dólares, que ele guardou na surrada carteira.
Não a surpreendeu que os dedos dele tremessem, embora não pudesse ter dito
por quê. Algo forte e vibrante corria entre ela e esse estranho rapaz e sabia que
ele estava consciente disso também, como ela.
Poderia dizer-lhe: “Por favor, não vá embora. Tome chá comigo agora.
Quero conversar com você. Não sei por que, mas preciso conversar com você”.
Ela sentiu a boca seca e um latejar na garganta. Como sou ridícula!
pensou, confusa. Estou agindo e pensando como uma idiota. Mas não importa!
Ele não deve ir embora ainda, simplesmente não pode ir. Frank, nesse momento,
apanhava o chapéu e as luvas baratas de couro e voltava-se em sua direção. Ela
falou impulsivamente, de uma maneira que teria deixado pasmo seu tio:
— Você sempre morou em Bison? Tenho a impressão de que o
conheço...
Ele fitou-a com dura e sombria franqueza.
— Sim, sempre morei aqui, desde os seis anos de idade. Vim da
Inglaterra, com meus pais. Mas nunca a encontrei.
Ela ficou confusa. Contraiu as belas sobrancelhas escuras, como se
estivesse querendo lembrar-se de alguma coisa.
— É uma coisa muito engraçada, mas acho que o conheci em alguma
parte. Conhece os Crawfords, os Ansteths ou os Brownes?
— Não — respondeu Frank —, não os conheço. E duvido muito de que
a senhora tenha conhecido as pessoas que eu conheci, Srta. Bailey. Meu pai era
farmacêutico. Trabalhou durante muito tempo em uma farmácia em Niágara
Street, perto da estação das barcas. A senhora provavelmente não o conheceria.
A face dela iluminou-se de animação.
— Mas, naturalmente! A farmácia não pertencia ao Sr. Farley?
Morávamos em Porter Avenue, numa casa grande e velha, e o Sr. Farley era
conhecido como o homem que vendia as melhores e maiores gasosas da cidade.
Minhas amigas e eu íamos sempre lá. É bem possível que eu tenha conhecido
seu pai...
A face de Frank, porém, estava sombria, com uma expressão
desagradável.
Jessica ficou estranhamente frustrada com aquela expressão.
Balbuciou levemente quando disse:
— Eu me lembro muito bem do Sr. Farley. Ele era um velho tão bom...
— Isso mesmo — disse sombrio Frank — ele era. — Notou, então, em
que tempo de verbo estavam falando. — Ele não morreu... morreu?
— Oh, sim. Lembro-me de ter lido seu nome no jornal há uns doze,
treze, ou talvez quatorze anos. Eu ainda usava tranças e blusas de marinheiro
nessa ocasião. Foi pouco depois da guerra.
Frank conservou-se silencioso. Morto. E não soubera. Ora, fora sua
intenção visitar novamente o Sr. Farley! Até aquele momento não soubera que
tivera tal intenção. Não pôde compreender a dor de perda e a depressão que o
envolveu nesse instante. Aquele pobre velho pateta! Ele lhe salvara a vida.
Havia-o compreendido como ninguém o fizera desde então. As mãos de Frank,
segurando o livro de pedidos, tornaram-se frias e dormentes.
— Sinto muito — disse ele em voz monótona. Vestiu o casaco e disse
novamente, como se estivesse sozinho: — Sinto imensamente. Eu queria vê-lo
de novo.
A moça levantou-se. Não adiantava. Não havia coisa alguma que
pudesse dizer para conservá-lo ali. Mas a tristeza mútua com o falecimento do
Sr. Farley era, pelo menos, alguma coisa entre os dois. Vivamente, disse:
— Lamento muito ter sido eu quem lhe deu a notícia, Sr. Clair.
Acompanhou-o pelo saguão e pôs a mão na porta. Em seguida, disse em
desespero:
— Por favor, volte aqui dentro de umas duas semanas. Poderei querer
comprar mais alguma coisa...
Ele inclinou secamente a cabeça, sem falar. Saiu para o sol da primavera
e ela ficou observando-o até que ele foi ocultado por uma curva no caminho.
Mesmo assim, continuou no umbral da porta até sentir o sopro de uma brisa fria.
Pensou: Eu o conheço. Conheci-o antes. Sei disso. Mas, onde, onde? Por
que não me posso lembrar? Não poderia ter sido um sonho. Não posso deixar
que ele se vá.
Apertou com força a nota de venda na mão.
CAPÍTULO 62
A luz do sol pareceu menos brilhante e promissora no instante em que
Frank desceu a tranquila e majestosa avenida. A valise pesava-lhe na mão.
Então, Farley falecera. Não conseguia compreender a sua esmagadora
depressão. Nos últimos quatorze anos não se lembrara absolutamente do velho.
Algo lhe havia bloqueado a mente, excluído das recordações anos de sua vida,
apagando as lembranças do pai, da mãe, dos dias da juventude. Mas a recordação
do Sr. Farley devia ter permanecido naquele local fechado, murado, como um
pequeno poço de luz. Teria ele realmente, durante todo o tempo, sem saber,
tencionado visitar o velho?
Mal percebendo o que fazia, tomou um ônibus e, depois, um bonde.
Ficou vagamente surpreso ao notar que chegara a Niágara Street, às vizinhanças
da pequena farmácia. O que tencionava fazer? Que compulsão o levara até ali?
Eram quase cinco horas e estava com fome. Que proveito haveria em entrar na
farmácia e perguntar pelo Sr. Farley e por detalhes de sua morte? Era ridículo.
Mas uma compulsão havia-o impelido, como muitas vezes fizera nos seus
tempos de garoto e, sem querer, foi levado por ela.
A farmácia era aquilo de que se lembrava, embora parecesse algo menor
e mais esquálida. Os grandes jarros vermelho e verde continuavam na vitrina
empoeirada, mas desaparecera a grande e florescente samambaia que o Sr.
Farley sentimentalmente colocara entre eles. Crianças sujas e malvestidas
entravam e saíam, trazendo nas mãos sorvetes ou pirulitos, exatamente como ele
fizera algumas vezes. Entrou. A farmácia fora sempre assim, tão escura, tão
malcheirosa, tão empoeirada, tão malconservada? Viu um homem grande, rude,
de meia-idade, vestido com um sujo jaleco branco, por trás do balcão de
cosméticos baratos. Possuía um grande rosto vermelho e olhos azuis brilhantes.
Lembrava, de alguma maneira indefinível, o Sr. Farley.
— Sim, senhor? — disse ele interessado, na voz de boas-vindas dos
comerciantes durante a Depressão.
Frank comprou um bastão de sabão para barba, pasta de dente e algumas
lâminas. Dirigiu-se ao balcão das gasosas e pediu um refrigerante. O homem
serviu-o rapidamente. Frank bebeu e, em seguida, disse ociosamente:
— O senhor é o Sr. Farley?
— Oh, certamente — disse o outro, fitando-o com olhos apertados. —
Mas não estou conseguindo lembrar-me do senhor. — Olhou para a valise de
amostras de Frank e o sorriso deixou-lhe a face.
— Conheci o velho Sr. Farley — disse Frank. — O senhor é por acaso
parente dele?
Voltou o sorriso do homem, um sorriso muito doce.
— Sou sobrinho dele. Ele me deixou a farmácia. Vim para cá, de
Detroit, com minha mulher e os garotos. Há quatorze anos. Isso mesmo, era um
homem bom o Tio Jim.
— Acabei de saber que ele morreu — disse Frank, pondo o copo no
balcão. — Fiquei triste em saber disso. Conheci-o muito bem quando era
menino. Meu pai trabalhou para ele.
O Sr. Farley limpava nesse momento o rachado balcão de mármore com
um trapo sujo. Mas, ao ouvir as palavras de Frank, interrompeu-se bruscamente
e tornou-se rígido. Olhou para o jovem, apertando os olhos.
— Qual é o seu nome? — perguntou abruptamente.
Frank contraiu as sobrancelhas.
— Isso não tem importância, mas meu nome é Clair.
A face do Sr. Farley tornou-se profundamente excitada.
— Frank Clair? O filho do velho Frank Clair? O farmacêutico que
trabalhou aqui?
— Isso mesmo. — Frank ficou curioso. — Meu pai morreu há muito
tempo, mas o Sr. Farley e eu éramos amigos. Ele sentia um bondoso interesse
por mim.
O Sr. Farley pousou os gordos cotovelos no balcão e riu baixinho,
mostrando todos os dentes amarelos. Depois, estendeu a mão, segurou o ombro
de Frank e deu-lhe um empurrão.
— Bem, o diabo me leve! Sabe que há advogados à sua procura por toda
a cidade? Ei, você não passou uns tempos em Kentucky?
Algo começou a agitar-se em Frank.
— Sim, passei.
— Bem, o diabo me leve! O advogado escreveu para o lugar onde se
pensava que você estivesse. Ninguém por lá sabia onde você se encontrava.
— Não poderiam ter sabido — respondeu Frank, lembrando-se da fuga.
— Não deixei endereço algum para remessa de correspondência. Estou aqui há
quase quatorze anos, mas, naturalmente, ninguém poderia ter sabido disso. —
Por que estava sua garganta tão apertada? — O que era que... o seu advogado
queria?
— O que era que ele queria? O Sr. Farley lançou a cabeça para trás e
soltou um berro. — Ora, seu filho da mãe, ele queria simplesmente pagar-lhe mil
e quinhentos dólares, só isso! O velho lhe deixou esse dinheiro em testamento!
Ei, escute, vou-lhe dar o endereço do advogado! Não! São apenas cinco horas, e
você talvez o encontre ainda no escritório! Espere, telefonarei para ele! Se isso
não foi a coisa mais danada de esquisita...
Foi pesadamente até a cabina do telefone nos fundos da farmácia. Frank
espigou-se. Sentiu uma fraqueza nos joelhos. Mil e quinhentos dólares! Mil e
quinhentos dólares! Uma nuvem toldou-lhe os olhos. Todos esses anos de quase
fome e mil e quinhentos dólares à sua espera no banco, em tranquila espera,
aguardando que ele chegasse para levá-los! Seguiu o Sr. Farley até os fundos da
farmácia. Foi obrigado a pôr a mão sobre o balcão para se firmar. O bolo na sua
garganta tornou-se enorme. Meu Deus! pensou.
O Sr. Farley, mais excitado do que nunca, luzindo como um sol
vermelho, entregou-lhe o aparelho. Frank colocou-o no ouvido, mas um rugido
na cabeça impediu-o de ouvir com clareza. O homem no outro lado do fio dizia
em voz seca:
— ... Identificação, naturalmente. Uma formalidade. Amanhã pela
manhã, às dez horas? O que é que acha? Muito bem, dez horas Sr. Clair.
Naturalmente, haverá algumas pequenas despesas, cerca de uns cem dólares, que
gastamos procurando localizá-lo. Dez horas.
Frank apoiou-se novamente no balcão, suando, tremendo. Gaguejando
violentamente, disse:
— Eu... eu acho... eu acho que não guardei o nome dele. O senhor... o
senhor... poderia escrevê-lo para mim, Sr. Farley. Isso foi tão súbito...
— Isso mesmo, eu sei — respondeu o Sr. Farley em voz sonora e cheia
de simpatia. Olhou novamente para a mala de mostras. — É um murro na
cabeça, quando a gente recebe um dinheiro que não espera, não? Bem, estou
danado de satisfeito. O bom velho deve ter gostado muito de você. Li o
testamento e ele disse alguma coisa que era assim... bem, uma espécie de coisa
maravilhosa. Alguma coisa parecida com: “Para meu querido e jovem amigo,
com todas as minhas bênçãos e todas as minhas orações.” —- O Sr. Farley
pestanejou úmido, sem sentir-se envergonhado. — Ele não tinha muita coisa
para deixar. Estava sempre distribuindo dinheiro com os jovens. Deus o abençoe.
Deixou-me três mil dólares, a farmácia e uma pequena casa em Hampshire
Street. Mais do que tínhamos o direito de esperar.
Frank sentiu-se fraco. “Todas as minhas bênçãos e todas as minhas
orações.” Pôs a cabeça nas mãos para esconder os olhos. Viu clara, nitidamente,
a face do velho Sr. Farley, desenhada na escuridão das pálpebras cerradas. Viu-
lhe o sorriso com uma incrível clareza e ouviu-lhe a voz ao longo do abismo dos
anos: “Com todas as minhas bênçãos e todas as minhas orações.”
Ouviu o som leve e distante da voz do sobrinho do Sr. Farley:
— Morreu de pneumonia, inesperadamente. Acho que foi o coração,
também. Viemos para o enterro. Compareceram três padres e até o bispo. Você
não acreditaria. Foi como o enterro de um desses plutocratas. Nunca se viu tanta
gente. Os três padres disseram que ele os ajudou, quando eram crianças. O bispo
disse que ele estava entre os anjos. Fez a gente chorar como criança. Bem, foi
esse o tipo de homem que ele foi. Não fazem mais gente igual a ele.
— Onde é que ele está enterrado? — murmurou Frank.
— No Cemitério do Monte Calvário. Ele não deixou dinheiro para uma
lápide, mas eu e a mulher lhe mandamos fazer o melhor monumento de todo o
cemitério. Uma enorme cruz de mármore, de uns dois metros de altura, deste
tamanho. — O Sr. Farley fez uma orgulhosa demonstração com as mãos. —
Flores em todos os verões, também. Temos flores em nosso quintal e levamos
um bocado para ele todos os domingos, depois da missa. Ele deixou dinheiro
para missas por sua alma, mas nós as pagamos também. Não queremos esquecê-
lo. Esse foi o tipo de homem que ele foi.
Missas pela alma de John Farley. Ele não precisava de missas. Frank viu
novamente a face do velho e levou as mãos ligeiramente aos olhos.
— Por que é que você não vai cear conosco hoje à noite? — perguntou o
Sr. Farley com cálido afeto. — Parece que você é uma espécie de membro da
família.
A rua escurecera no começo da noite de primavera. Frank sentia-se ainda
fraco e vazio, mas não tinha fome. Tomou um ônibus e, depois, andou alguns
quarteirões até o quarto. Tinha a cabeça leve e aparentemente os pés mal
tocavam a calçada. Mas o coração lhe tremia, abalado. Recusara o convite do Sr.
Farley para cear. Queria ficar só e pensar. Fazer planos. Sentar-se no seu escuro
quarto, com as mãos sobre os joelhos, e pensar, planejar.
A invencibilidade que sentira naquela manhã tornou-se mais forte a cada
passo que dava em direção ao quarto. Sempre fora uma pessoa de reações
retardadas. Naquele momento, aproximando-se dos degraus da escada que
conduziam ao quarto, foi sacudido por uma sensação súbita de exultante poder,
de exaltação, que o fez parar, incapaz de mover-se. Oh, meu Deus! pensou, algo
mudou, se moveu, alterou sua posição! Algo trovejou do outro lado do vazio dos
anos e está aqui à minha volta! Estou cego, não posso ver ainda. Mas alguma
coisa aconteceu. Vou ser livre! Meu Deus, meu Deus!
A sua arruinada caixa de correio ficava justamente do lado de dentro da
porta. Uma luz elétrica fraca iluminava a escada apodrecida. Havia uma carta
nela. Com os dedos meio paralisados, puxou-a para fora. Provavelmente, uma
carta da mãe, cheia de queixas. Não importava. Coisa alguma importava naquele
momento. Estava livre. Algo mudara, algo se movera com um som tremendo em
volta dele.
Era uma carta comprida, estreita e fina. Uma cor esverdeada aparecia na
janelinha de papel transparente. Abriu-a. Atordoado, olhou para um cheque de
trezentos e cinquenta dólares, em seu nome, assinado pelo editor ao qual enviara
o conto “Não Temeremos”.
Nesse instante, sentiu uma violenta vontade de vomitar. Deixou cair a
valise. Não sentiu o impacto quando ela se chocou com seu pé. O mundo girou à
sua volta. Havia um bilhete anexo. Mal conseguiu focalizar os olhos para lê-lo.
Não soube que o som rouco e entrecortado que ouviu era seu próprio riso
histérico.
“Temos o prazer de enviar-lhe trezentos e cinquenta dólares pelo seu
Não Temeremos. Se quiser enviar-nos contos adicionais, e se os julgarmos
satisfatórios e apropriados à nossa publicação, pagaremos a V. Sa. as taxas
costumeiras. Poderia, por favor, para nossa informação, enviar-nos alguns
poucos dados pessoais para que possamos apresentá-lo aos nossos leitores?
Nossos assinantes geralmente gostam de saber algo a respeito de nossos autores.
Frank encostou-se na empoeirada parede da entrada. Olhou para o
cheque e riu outra vez, rouco, longamente. Não podia parar. Recebera dinheiro
pelos seus escritos! Aquilo era dinheiro pelo que escrevera! Seu primeiro
dinheiro! Sentou-se no degrau mais baixo da escada e riu, riu, até que lágrimas
começaram a correr pelo seu rosto.
CAPÍTULO 63
Certa vez lera a frase de um homem muito sábio o qual dissera que, se
um indivíduo inventa alguma coisa de que as pessoas necessitam, consegue
ganhar a vida; se, entretanto, inventar alguma coisa que elas querem, ganha uma
fortuna.
Lembrou-se disso. Era muito simples. As pessoas não “necessitavam”
realmente de bons livros, música esplêndida e heroico espírito de estadista, no
verdadeiro sentido de necessidade. Poderiam continuar a viver em conforto
relativo sem tais coisas e, certamente, com uma melancólica paz de espírito. Não
concediam suas melhores e mais lucrativas recompensas aos inventores que
atendiam às suas necessidades, mas aos saltimbancos que lhes ofereciam luxo
arrebicado, política melodramática ou ruidoso entretenimento. A arte do bufão
era seu prazer e sua alegria.
Frank investigou com todo o cuidado a situação. Descobriu que havia
um pequeno público que ainda aguardava, e lia, os bons livros, mas que esse
público ou era muito econômico, ou pobre, e geralmente tomava esses livros
emprestados nas bibliotecas ou os surrupiavam de amigos. Raramente os
comprava e, dessa maneira, o autor era geralmente obrigado a ganhar a vida de
outra maneira. Lembrou-se de uma observação muito pertinente da Bíblia: “É
boa a sabedoria com uma herança.” Mas poucos eram os autores abençoados
com uma herança. Se o indivíduo queria viver bem e possuir, ele mesmo, alguns
vistosos luxos, precisava fornecer o que o público queria.
Descobriu que o público leitor preferia dois temas: Amor (ou Sexo) e a
História Americana de Sucesso. Se fosse possível combiná-los — e era sempre
inteligente fazê-lo — a combinação tornava-se irresistível.
Afinal de contas, não era uma impertinência insistir em que o público
devia gostar do que lhe ofereciam, quisesse ou não? Não era impudente
estabelecer um padrão individual e denunciar todos aqueles que o rejeitavam? Se
a lei de sobrevivência dos mais aptos tinha alguma validade, o que o povo
recompensava e permitia que sobrevivesse devia ser “bom”. Não havia dito os
gregos que “aquilo que sobrevive é bom”? Naturalmente, havia no caso um
ambíguo cinismo, quando se examinava bem o assunto.
Frank possuía naquele momento um pequeno apartamento muito
confortável numa “casa particular” em Lafayette Avenue, perto de Delaware.
Percorrera um caminho bastante longo nos últimos dois anos. O apartamento não
era de modo algum a água-furtada onde se espera, tradicionalmente, que os
artistas morram de fome. Era extremamente confortável, consistindo em uma
agradável sala-quarto, com uma cama que assumia o aspecto neutro de um sofá
durante o dia, um banheiro privado azulejado e uma pequena cozinha. A família
de quem alugara o pequeno e agradável apartamento era o que Maybelle teria
chamado de “boa classe pobre”. Compunha-se de um cavalheiro idoso, com uma
face aristocrática e seca, e da esposa, igualmente aristocrática e seca. A casa
abundava de antiguidades, muito escuras e sombrias, mas alguém, certamente
não eles, dera uma ajuda na decoração do apartamento, que era alegre,
convidativo e de cores brilhantes. Frank raramente os via, desde que dispunha de
uma entrada particular. Suas relações com o idoso casal eram mantidas em base
grave e cerimoniosa, o que preferia. Quando descobriram que ele era “escritor”,
passaram a tratá-lo com grande respeito. Pagava-lhes cinquenta dólares de
aluguel.
Ganhava em média três mil dólares anuais pelos contos que publicava
em várias revistas. Escrevia de tudo. Não desdenhava o tipo de história do Oeste,
ajudando-o, no particular, a experiência em Kentucky. Para as revistas de grande
circulação, escrevia intermináveis histórias sobre moças de cabelos lustrosos e
corpos esbeltos e seus equivalentes masculinos. Para as “revistas pequenas”
colaborava com poesia moderna “refinada”, epigramas e histórias com final
malicioso, abrupto ou brutal. Escreveu experimentalmente um artigo ou dois,
provando que o criminoso não era realmente criminoso, mas apenas vítima de
glândulas doentes, que a prosperidade era realmente um estado de espírito, que
Hitler e Mussolini não constituíam realmente ameaças, mas eram apenas
saltimbancos divertidos que deviam ser ignorados pelos homens sensatos, que a
companhia de um cão era a satisfação suprema a que um homem podia aspirar, e
numerosos outros provando que as mulheres, homens, crianças, banheiros,
filmes, restaurantes, moral, automóveis, casas suburbanas, bibliotecas e as
cidades americanas eram praticamente perfeitas e exemplos para todo o mundo.
Em suma, dava ao povo o que o povo queria e lhe dizia o que queria
ouvir. Em troca, levava uma vida agradável e cada cheque que recebia era mais
gordo do que o anterior. Quando uma revista de bolso reproduziu um de seus
artigos, onde insistia em que o crescente horror na Alemanha não era da conta da
América, que a agonia da Europa era somente uma forma de “propaganda”, para
provocar o sentimentalismo do povo americano, sorriu de satisfação.
Naquele momento tinha o tema de um romance e firmemente acreditava
em que este o faria rico e famoso. A despeito do xarope tranquilizante que estava
sendo assiduamente fornecido ao povo americano em 1936, soprava no exterior
um vento venenoso de medo, muito mais forte do que o medo da Depressão. Era
racionalizado como medo da guerra. Frank, porém, intuitivamente desconfiava
de que não era, na realidade, medo de envolvimento em um grande conflito, pois
sabia que o homem jamais havia real e verdadeiramente desprezado ou rejeitado
a guerra. Era algo diferente. Algo tênue, fantasmagórico, indefinível, mas que
havia. Era o medo de um povo, de um mundo inteiro que perdera Deus e que não
conseguira substituí-lo por qualquer outra ideia satisfatória. As invenções
modernas, as máquinas ubíquas, haviam aumentado o conforto do corpo do
homem, mas lhe castraram a imaginação e deixaram estéril a sua alma. O
misticismo fora abandonado, exceto na teologia católica romana, à qual a
maioria dos católicos prestava apenas um respeito hipócrita. Como seria possível
conciliar o sobrenatural com ruas de concreto, automóveis que passavam com
um rugido, aviões que chiavam, laboratórios modernos, cinema, eletricidade? O
sobrenatural pertencia à Idade Média, antes que os astrólogos se transformassem
em astrônomos, antes que os alquimistas se houvessem respeitavelmente
convertido em químicos, antes que os misteriosos encantamentos tivessem
assumido a linguagem da psiquiatria e antes que fenômenos mistificadores se
houvessem rendido a explicações científicas “naturais”. Nessa confusão de
máquinas, livros, laboratórios, observatórios e cíclotrons, Deus era apenas um
empoeirado monte de lixo, varrido para o lado e esquecido.
A sugestão de que o homem possuía uma alma se tornara muito mais
indecente do que o tema do homossexualismo ou do erotismo antinatural.
Constituía um sinal de sofisticação discorrer gravemente sobre libido, repressões
sexuais e sonhos eróticos, mas sinal de imbecilidade discutir a possibilidade da
existência de Deus. Na verdade, era um faux pas não se entregar ao esclarecido e
ao racional. No mínimo, provocava um breve e divertido sorriso ou um rápido
desvio dos olhos, como se a pessoa houvesse introduzido um tema imoral,
impróprio para ouvidos civilizados.
O homem, sozinho entre máquinas, em meio à selva uivante da ciência,
estava apavorado. Tinha a alma convulsa de medo. Descobrira que não se
bastava e que o fatalismo constituía um medíocre substituto da fé mística.
Talvez, pensou Frank, aconteça isso porque o homem é ainda um bárbaro
primitivo que precisa de amuletos e encantamentos contra o horror do
conhecimento instintivo do infinito e do desconhecimento do universo que o
cerca. Estes podiam ser explicados apenas por Deus, que fora ignominiosamente
banido das universidades e dos cálculos dos cientistas.
Era esse medo, esse ateísmo que afligia naquele instante o mundo dos
homens, inspiravam-lhes tais excessos de ódio, de assassinatos, de fúria. Uma
estranha loucura soprava pelas nações. Soprava na América. E, como naqueles
dias tudo precisava ser “explicado”, afirmava-se que o medo que tornava o
homem tão lívido era o medo da guerra.
Os americanos não queriam a “guerra”. O país começou a ser inundado
por propaganda antibélica, embora nem Hitler nem Mussolini houvessem ainda
tido a ousadia de exigir a guerra ou abertamente ameaçar o mundo com ela. No
esforço para “descobrir” as causas da guerra, todos os povos lançavam-se à
tarefa de descobrir os culpados por guerras passadas e os conspiradores de
guerras futuras. Chegaram à conclusão de que os fabricantes de munição e os
“banqueiros internacionais” eram, na realidade, os vilões. Assim, na América,
começaram a surgir violentas “denúncias” dos magnatas das armas e numerosos
outros empresários.
Frank tinha, assim, o tema de um romance que seria entusiasticamente
aceito pelo povo americano. Criaria uma família de “banqueiros internacionais”,
homens de longa e sóbria formação americana que, desde a época da Guerra de
1812, haviam hábil e assiduamente fomentado guerras em proveito próprio. Era
isso o que o povo americano queria. Inseguro, amedrontado, misteriosamente
apavorado, queria um bode expiatório para o medo. Ele, Frank Clair, lhe daria
exatamente isso. Não o exortaria a exclamar “mea culpa!”. Poria em sua boca,
em vez disso, o grito odiento: “Linche-os!”.
Não seria apropriado dizer-lhes, em 1936, que se não queriam a guerra,
mesmo naquele momento, bastaria que erguessem a mão num aviso e a voz
severa numa advertência para deter imediatamente Mussolini e Hitler sem o
disparo de um único tiro. O povo americano, porém, não estava disposto a deter
ninguém nem queria “envolver-se” em “compromissos internacionais”. Sentindo
o perigo e a loucura que reinavam na Europa, estava com medo. Preferia
encontrar uma vítima sobre a qual pudesse desencadear a apavorada ira.
Frank começou a escrever o romance, que intitulou de “Os Dourados
Alfanjes”. Escrevia-o à noite e dedicava os dias às belas moças e rapazes
bonitões. Inventou uma família inteira de gente cruel, uma família de bodes
expiatórios, de assassinos, de aproveitadores, de conspiradores, de sádicos, de
monstros.
Estranhamente, instilou-lhes vida. Naquela ocasião, enquanto escrevia,
uma espécie de loucura odienta nasceu também em seu íntimo e esqueceu que
estava, cinicamente, racionalizando. Sobre as páginas verteu os ódios, as dores,
os sofrimentos e os desesperos de sua própria vida, suas próprias desilusões,
medo, nojo. A história desenvolveu-se, capítulo após capítulo, e transformou-se
num grotesco, mas imponente edifício, habitado por monstros de Frankenstein,
ecoando com vozes insanas, tilintando com o som de dinheiro sendo contado.
Havia sexo em abundância e conspiração para satisfazer os mais
ardilosos.
Nunca trabalhara de modo tão febril, com tanta absorção e paixão.
Obtinha uma renda satisfatória com a pena, embora soubesse que escrevia meras
baboseiras. Dedicava os dias às revistas e as noites ao romance. Foi tomado por
uma espécie de febre, como se fosse uma doença purificadora. O seu principal
personagem, John Ainsworth, era o seu porta-voz, seu alter ego, uma implacável
e maligna criação que expressava o nojo de Frank Clair por todos os homens,
sua abominação, sua rejeição. John Ainsworth era o espírito propulsor da
família, a besta inexorável, que manipulava os tolos e destruía os fracos e
inocentes. A cada capítulo, ele se tornava mais invencível, mais poderoso,
progredindo com maior firmeza para o controle de nações. Transformou-se não
em um personagem de romance, mas em um ser vivo, dotado dos pensamentos
do próprio Frank, de seus desejos, de seus ódios, de seu desejo de sobreviver e
conquistar. E porque era pessoa tão enérgica, tão viva, o romance adquiriu uma
espécie de horrível magia e veracidade.
Às vezes, ao anoitecer, quando era obrigado a parar de pura exaustão,
punha a mão convulsa sobre as páginas escritas e olhava para a frente com olhos
faiscantes e selvagens. Ali estava sua fortuna! Ali estava sua esperança de
liberdade! Era um romance bom. Era poderoso. Era forte. Transbordava de ódio
e de nojo. Exagerado, talvez. Melodramático, quase com certeza. Mas... era o
que o povo queria. E o povo o tornaria livre.
Vivia para o romance. Escrevia as histórias para as revistas como se
estivesse em transe. Esqueceu tudo, salvo o romance. Ocasionalmente, esquecia
Jessica Bailey. Às vezes, esquecia o dia, a semana, o mês e, quando descobria
que já era domingo, ou julho, ou novembro, ficava aturdido e desorientado,
como uma pessoa que sai de uma anestesia. De certa maneira, o romance era
para ele uma libertação. Em forma mais ampla e disfarçada, punha no papel as
frustrações e os sofrimentos de uma vida inteira. John Ainsworth dominava-as,
prevalecia sobre elas com sua força de vontade irresistível, manipulando aqueles
que o cercavam.
O som e a fúria, a ira e o excesso, a raiva e o desespero, os sonhos
frustrados enchiam cada página. Relendo partes, Frank ficava às vezes
ligeiramente embaraçado pela riqueza de adjetivos e por algumas das frases mais
trovejantes. Não era um livro monótono. Embora se mostrasse crítico (com um
olho na publicação), admitia para si mesmo que escrevia com paixão e energia,
mesmo que houvesse em tudo aquilo uma espécie de maldade, uma espécie de
corrupção, uma torção deliberada da frase para obter um efeito duvidoso.
O romance o absorvera. Ele o vivera. Por isso mesmo, não pôde
compreender por que se sentiu fraco, enojado e de certa maneira poluído quando
escreveu a última longa página. Quando pôs a capa no manuscrito, tornou-se
consciente de uma espécie de esvaziamento no qual não havia triunfo, nenhuma
satisfação, nenhuma realização. Estou cansado, o livro esgotou-me, pensou,
apertando com força as têmporas latejantes. Embrulhou o manuscrito e pensou
demoradamente no editor. Nada de um editor de terceira classe, dessa vez!
Precisava do melhor. Enviou-o a Thomas Ingham’s Sons.
Tinha encomenda de três novos contos, um deles seriado. Mas não
conseguiu escrever novamente, não naquele instante. Sentiu-se
inexplicavelmente atordoado, como se alguma virtude, alguma substância se
houvesse evolado e ele fosse um verdadeiro fantasma de homem.
Mas, à medida que passavam os dias, desapareceu o estranho sofrimento
e diminuiu a sensação de enorme culpa. Depois, não conseguiu mais lembrar-se
do sofrimento e da culpa e começou a esperar todos os dias o correio, com
crescente agitação.
A recordação de Jessica Bailey reapareceu, íntegra, viva e cálida.
Entregou-se a sonhos de fama, de reencontrá-la em termos iguais, em nível
igual. Viu-se ao lado dela naquela sala penumbrenta, olhando para seus grandes
e escuros olhos, que sorriam de modo tão grave e suave. Sabia que ela não
casara. Ocasionalmente, interrompendo a absorção total no romance, lia nos
jornais notícias sobre suas chegadas e partidas. Descobriu que ela era filha dos
falecidos Sr. e Sra. James Harvard Bailey e que “residia” com o tio, Wentworth
Bailey, presidente do banco mais importante de Bison. Uma ou duas vezes, viu-
lhe a foto nos jornais e cortou-as.
Ela tornou-se para ele uma realidade muito mais viva do que qualquer
outra de que se lembrava. De certa maneira, trabalhava para ela. Jessica era a
personificação de tudo o que desejara, ela e aquela grande e sossegada casa entre
as árvores escondidas. Não sabia que sabia disso, embora com uma estranha e
forte convicção acreditasse em que ela estava à sua espera, como ele estava à
espera dela.
Até aquele momento, somente a vira no dia em que lhe vendera as
meias, quando soubera do legado do Sr. Farley e quando recebera os primeiros
honorários pelo seu trabalho. Um mês depois, recebera um curto bilhete dela,
pedindo-lhe que a fosse procurar, levando as amostras. Escrevera secamente em
resposta: “Não trabalho mais para aquela companhia. Voltei à minha profissão de
escritor.”
A sua primeira história fora publicada. Ela escreveu-lhe, dando-lhe os
parabéns e insinuando que seria um prazer receber-lhe a visita. Com a carta na
mão, lutara longa e dolorosamente consigo mesmo. Dirigiu-se, em seguida, até o
guarda-roupas e olhou para seus trajos. Havia mais agora, mas eram baratos. Ela
estava acostumada aos confortáveis e ásperos tweeds, de corte fino, dos seus
amigos. Pensou em comprar uma roupa cara, mas controlou-se ao lembrar uma
severa lição dos pais: “não dar espetáculo quando não se pode com a despesa”.
Algum elogiável orgulho fê-lo fechar firmemente o guarda-roupas e contrair os
lábios. Não. Usaria essas roupas e iria visitá-la quando estivesse em condições
de comprar não um, mas vários dos cobiçados trajos, e de não preocupar-se com
seu custo.
Duas vezes mais ela escreveu-lhe, dizendo que lera outras de suas
histórias nas revistas. Nunca explicou o interesse por ele e Frank nunca se
perguntou por quê. Aquilo tudo era inevitável. Ela esperaria, disso tinha certeza.
A sua vida era a vida de um eremita. Passava horas na biblioteca fazendo
pesquisas para o livro seguinte, outra História Americana de Sucesso. Fazia
refeições em bons restaurantes e, às vezes, comprava carne e preparava uma
refeição na pequena cozinha. Percorria em sonhos as quentes ruas do verão em
Bison. Não era o sonho da juventude. Era um sonho mais sombrio, forte e
corrupto. De vez em quando, sentia uma doentia depressão e sofrimento, um
vazio. Comprava vitaminas e tônicos à base de ferro para combater a lassidão.
Começou a ter pesadelos e vagas dores e incômodos. Às vezes, sentia-se seco,
esgotado. Uma ou duas vezes, uma forte dor apunhalou-lhe o coração. Não tinha
amigos, nem se divertia. Isolava-se em si mesmo e respirava o próprio hálito.
Não estava acostumado à inatividade. Cada vez mais, passou a
perambular incansavelmente pelas ruas. Fez um esforço para iniciar um novo
livro. Mas, inesperadamente, descobriu que estava impotente, vazio, afligido por
uma nauseante doença. Desde inícios da mocidade conhecia essa sensação, mas
ela adquirira agora uma sinistra e apavorante intensidade, era uma apatia física,
um esvaziamento mental, onde havia apenas uma premonição de calamidade e
uma apreensão indescritível. Das obscuras recordações da infância emergiu o
sonho, ou a realidade, da visão que tivera junto à lareira da casa da avó em
Leeds. Mas, nesse momento, a Mão que lançara a bola opalina no espaço
permanecia suspensa em sua mente, incapaz de recuar, de erguer-se de cair ou
desaparecer. Permanecia ali na enevoada escuridão, enorme e cosmicamente
cansada, rígida de exaustão, desejando apenas o nada, impelida por alguma
horrível circunstância a permanecer ali, a ser, a jamais morrer. Via a Mão quando
estava desperto ou dormindo e sentia, como um eco, o cansaço terrível de Deus,
o desejo de morte, o desejo de não ser, a incapacidade de expirar ou de encontrar
a paz.
O que era que qualquer coisa importava? perguntou a si mesmo. O que
importava se vivesse ou morresse, tivesse sucesso ou fracassasse? A sensação de
insubstancialidade, no início leve e passageiro, tornou-se quase constante. Os
objetos que via, as pessoas por quem passava, eram fragilidades pintadas e,
quando se fitava, sentia-se doente, angustiado. Coisa alguma era desejável, ou
desejada. Não tinha consciência de coisa alguma, salvo de um terrível
sofrimento.
Pensou no livro, que se encontrava na editora Thomas Ingham’s Sons e
afastou o pensamento. Não, não permitiria que esse horrendo estado de espírito
transformasse também aquilo em pedra. Disse a si mesmo que, quando o livro
fosse aceito, ele se sentiria “diferente”. Entrementes, constituía necessidade
profunda não pensar nele.
Pensou em Jessica e algo se agitou de leve em seu íntimo. Estavam nos
começos do verão. Os ricos partiam sempre nessa época para suas casas de
veraneio. Era possível que Jessica houvesse ido também. Embora houvesse
evitado antes com todo o cuidado a rua onde ela morava, deu para visitá-la com
frequência, escondendo-se ao longo das grandes árvores que a margeavam,
passando em passos rápidos pela casa e suas longas passagens internas de
automóvel. Às vezes, via carros fazendo a volta na entrada e estugava o passo,
enrijecendo o corpo duro para resistir a um grito de reconhecimento. O grito
nunca foi dado. Assim, ela tinha numerosos visitantes, pensou ele, gente
inteligente e displicente que nada sabia sobre a Depressão, o trabalho duro, a
derrota, o sofrimento. Uma ou duas vezes ouviu um riso de mulher. Mas nunca
de Jessica.
Seus passeios em frente à casa tornaram-se nessa ocasião mais lentos,
mais regulares. Pareceu-lhe uma necessidade urgente vislumbrar Jessica. Tinha a
estranha sensação de que somente esses vislumbres a salvariam daquilo que o
atacava, que lhe tornava impossível o trabalho, o sono, a vida normal. Ia até a
rua durante a noite e, às vezes, entrava nas pontas dos pés pela passagem de
automóvel, de onde podia ver, através das árvores, as luzes da casa. Escondia-se
entre as moitas quando os carros passavam, subindo até a casa. Certa noite, à luz
fraca de um poste de rua, viu a face de Jessica em um carro.
Estava em companhia de um rapaz. Frank viu-lhe o perfil, pálido,
luminoso, sorridente. Nesse momento, escondia-se à sombra de um salgueiro.
Talvez ela houvesse sentido a insistência de seu olhar porque virou subitamente
a cabeça e olhou pela janela do carro. Durante um instante, Frank viu-lhe os
olhos, grandes e escuros, vagamente à procura, mas ansiosos.
Afastou-se, abalado. Ela sabia que eu estava ali, mesmo que não me
tivesse visto, pensou. Percorrendo as quentes ruas naquela noite, sentiu no vazio
que era ele um ligeiro movimento, como raízes que se movem na terra negra
durante a primavera. Ficou contente. Não estava inteiramente morto, então. Não
tentou trabalhar, com receio de matar esse novo e fresco broto que surgira no
deserto. Mas todas as noites voltava à casa.
Certa ocasião, viu-a sair e descer até a rua. Houve apenas tempo
suficiente para que se voltasse e começasse a andar em passos rápidos na direção
oposta. Quando alcançou uma distância segura, olhou sobre o ombro. Viu Jessica
bem longe na rua, na esquina, como se esperasse que se interrompesse durante
um momento a longa fila de automóveis para que pudesse atravessar. Houve
uma pausa no tráfego. Mas ela não fez movimento algum para aproveitá-la.
Perdida, abandonada, completamente imóvel, permaneceu na calçada, em seu
vestido claro enfunado pelo vento, como se estivesse em transe. Observou-lhe o
alto e esguio corpo, a largura forte, mas delicada dos ombros, a longa entrada da
cintura. A luz do poste iluminava-lhe o cabelo escuro.
Frank continuou a observá-la. Ela permaneceu imóvel, como se estivesse
à espera. Inesperadamente, ela voltou-se como se tivesse ouvido um chamado, e
ele percebeu-lhe os olhos sondando a noite. Recuou da calçada para o meio-fio
escuro. Ela deu um ou dois passos em sua direção. Olhou para o outro lado da
rua, para todas as esquinas. Observava todos os homens que se aproximavam.
Em seguida, devagar, começou a andar em direção à casa. Frank, arriscando-se a
morrer sob as rodas de um carro, atravessou bruscamente a rua.
Ela está à espera, pensou exultante ao voltar para casa. Está esperando
por mim.
Nesse momento, algo senciente e vivo, como uma árvore que cresce,
lançou raízes em sua mente. Desapareceram e foram soprados para longe o
apavorante sofrimento e o horror de seus dias. Podia lembrar-se da agonia que
haviam sido, mas não mais senti-los. Ia noite após noite até a casa de Jessica e,
com frequência, via-a passeando ou simplesmente de pé próxima aos portões ou
ao muro, tranquila, às vezes fumando e aparentemente calma. Não foi viajar no
verão e ele teve a impressão, talvez egoística, de que isso acontecera por sua
causa.
Queria iniciar o trabalho no novo livro, mas, embora a presença
senciente se tornasse dia a dia mais forte em sua mente, mais firme e mais viva,
não conseguiu.
Contudo, como escritor, sabia que devia esperar, permitir que aquilo que
crescia dentro de sua mente tomasse forma, estrutura, coerência, antes de poder
ser expressado. Sentia ainda a convicção de que aquilo que finalmente emergeria
não seria o livro que havia planejado.
Começou, mais uma vez, a esperar pelo correio com crescente e febril
impaciência. Se a carta que esperava concretizasse seus sonhos, isso seria o sinal
para ir procurar Jessica. Mas não podia ir ao encontro dela enquanto nada tinha a
oferecer, senão sua própria pessoa. Ele mesmo nada era, nada, absolutamente,
pensou. Não ele, mas o que realizara: somente isso seria aceitável para Jessica
Bailey.
Milhões de homens, desempregados e sem esperança, percorriam as ruas
da América. As desesperadas panaceias de Roosevelt não haviam conseguido
aliviar o sofrimento geral, pois elas não conseguiam chegar à verdadeira doença
do povo. Uma escura nuvem de horrendos boatos pairava sobre a Europa.
Roosevelt foi reeleito e tentou “encher” o Supremo Tribunal de gente sua. Um
rei abdicou ao trono por uma mulher. Os jornais enchiam as colunas com
confusões, conjecturas, histórias apavorantes sobre campos de concentração na
Alemanha, com insinuações sobre o crescente poderio alemão.
Tudo isso passava pelos pés de Frank como água invisível. Vivia apenas
para o correio, para o dia em que seria libertado do contato com a humanidade,
quando nunca mais ela teria o poder de feri-lo ou humilhá-lo, quando poderia
odiar, plenamente e em liberdade, e não temer a fome.
CAPÍTULO 64
Três meses haviam passado e, salvo por uma curta nota acusando o
recebimento do manuscrito, coisa alguma recebera da Thomas Ingham’s Sons.
Finalmente, incapaz de suportar o suspense por mais tempo, escreveu
aos editores uma carta desesperada e algo incoerente. “Venho escrevendo
durante toda a minha vida e, agora, sinto-me completamente desencorajado.
Ganhei algum dinheiro escrevendo baboseiras para revistas, mas parece-me
quase impossível iniciar agora qualquer trabalho que valha a pena. Se esse
manuscrito for rejeitado pelos senhores, eu o destruirei e nunca mais tentarei...”
Três dias passaram. Frank mal deixava o apartamento. Fazia as próprias
refeições e vivia em um vácuo, hora após hora, à espera do correio. Pela manhã e
à tarde, meia hora antes da hora de chegada do carteiro, sentava-se junto à janela
e ficava de vigia, com a face pálida e magra, dura de expectativa e profunda
ansiedade. Voltaram-lhe vagas intuições da infância. De alguma maneira, sabia
que a carta esperada com tanta ansiedade não teria a forma habitual de rejeição.
Continuava sentado no seu lugar, com as palmas das mãos suando e, sem saber,
apertava-as em volta do joelho, no velho gesto do pai. Um bolo apertado se
estabelecera em caráter permanente na boca de seu estômago; uma bola de
concreto se colara à sua laringe, mal conseguia respirar e o alimento quase o
engasgava quando tentava comer alguma coisa. Esperava pelo correio como a
esposa de Barba Azul esperara pela chegada dos irmãos que a salvariam da
morte. A rua embaixo parecia-lhe deserta, salvo por sombras que passavam. A
única realidade era o carteiro vestido de azul, andando sem pressa de porta em
porta. Às vezes, observando-lhe o desinteresse, Frank amaldiçoava o desavisado
e alegre homem e, antes que ele tocasse a campainha, já estava no meio da
escada. Mas exceto por uma circular, ou uma pequena conta, sua caixa
permanecia vazia. Subia novamente a escada até o apartamento, fraco com o
choque do desapontamento, dolorido como se houvesse envelhecido, com a boca
seca e os olhos enevoados.
Finalmente, como era ainda jovem e seus nervos ainda bem sadios, a
exaustão venceu-o certa manhã e dormiu além da hora da chegada do carteiro.
Quando acordou, com um choque descobriu que já eram onze horas. O correio!
Ainda tonto de sono e cansaço, enfiando-se apressado no roupão, desceu
cambaleando a escada. Alguma coisa branca brilhava na caixa. Os dedos,
subitamente dormentes, mal puderam abri-la. Encontrou um envelope branco,
quadrado. Puxou-o e ele caiu de sua mão. Curvou-se, apanhou-o. Caiu
novamente. Vira pelo envelope que era uma carta de Thomas Ingham’s Sons e,
nesse momento, suas pernas transformaram-se em cartilagem e mais caiu do que
se sentou no último degrau. Os dedos pareceram-lhe enormes e duros quando
abriu a carta. Fechou os olhos durante um momento antes de olhar para a estreita
folha de papel. Preparou-se. As palavras datilografadas dançaram diante de seus
olhos vacilantes:
“Precisamos ainda de alguns dias para avaliar o livro, mas desejo
informar a V. Sa. que temos toda e a mais sincera intenção de lhe fazer uma
proposta. É possível, contudo, que ela envolva o que lhe poderão parecer
sugestões muito radicais. Talvez V. Sa. as considere excessivas. Não podemos
dizer ainda, definitivamente, em que consistirão, mas achamos que após uma
discussão poderemos elaborar um método satisfatório. Estamos informando isto
a V. Sa. porque sua carta nos aconselhou a que não o deixássemos por mais
tempo na expectativa sobre a questão da publicação.” Era assinada: “Com as
nossas cordiais saudações, Cornell T. Hawkins.”
O dono da casa, lívido, grisalho e magro, saiu nesse momento de seu
próprio apartamento no térreo e olhou fixamente para Frank, sentado nos
degraus.
— Bom dia — disse em sua voz fraca de velho, e havia uma
interrogação em seus olhos, pois notou que Frank estava mortalmente pálido e
que olhava para a frente como se houvesse perdido violentamente a consciência.
Toda a sua aparência indicava choque profundo. — Há algum problema, Sr.
Clair? — perguntou em voz trêmula. — Um copo de água, talvez...? Más
notícias? Espero que não...
Frank levantou-se, quase caindo sobre o corrimão da escada. Seus olhos,
naquele momento, eram quase os de um louco. Em voz alta e aguda, gaguejou:
— Sr. Penseres! Meu livro! A... a editora aceitou meu livro! Vai publicá-
lo! — A bola de concreto subitamente se soltou e ele arquejou.
— Meu Deus! Meu Deus! — exclamou o Sr. Penseres, agitado,
perplexo. — Permita-me, senhor, que lhe dê meus parabéns. — Olhou para
Frank espantado, incerto. Frank não tinha a aparência de uma pessoa dominada
por uma grande alegria. O choque ainda o conservava pálido, e trêmulas suas
feições contraídas.
— Meu Deus! Meu Deus! — murmurava Frank. O Sr. Penseres notou
que a testa dele estava úmida, lustrosa, com imensas gotas de suor. Ficou
embaraçado. Pigarreou e disse timidamente:
— Uma xícara de café, talvez, Sr. Clair? Acho que a Sra. Penseres está
justamente fazendo...
O idoso cavalheiro entrou em foco diante dos olhos de Frank.
Subitamente, ele riu, fraca e incoerentemente.
— Obrigado. Obrigado. — Interrompeu-se. Sorriu nesse momento e era
o sorriso de um louco. O seu corpo tremia violentamente. — Obrigado, não
precisa ter esse trabalho. Não... não importa. O senhor vê...
O Sr. Penseres, porém, simplesmente continuava a olhá-lo, tomado de
grande perplexidade. Frank olhou para o papel, amassado na mão suada. Em
seguida, estendendo a mão para se firmar contra a parede, subiu devagar os
degraus.
Derreou-se na beira da cama e ficou ali durante muito tempo. Depois,
não conseguiu mais ficar imóvel. Começou a andar de um lado para outro no
pequeno e brilhante quarto, nesse momento iluminado pelo sol de começos de
verão. Andava com crescente rapidez, murmurando sem cessar: “Meu Deus!
Obrigado, Deus! Oh, meu Deus!” Tremia como se sentisse frio e, logo depois,
sentia um calor abrasador. Enxugou o rosto apenas para ter que enxugá-lo
novamente, quase em seguida. Um grande tremor percorria-lhe o corpo e eram
os próprios ossos que tremiam. Engoliu em seco várias vezes numa fraca
tentativa para eliminar a bola de concreto, que aumentava de tamanho. Teve
vontade de chorar, gritar, berrar, dançar, uivar como um louco. Numa ocasião,
andando pela sala, bateu na mesa e segurou a máquina de escrever justamente no
momento em que ela ia despedaçar-se no chão. O abajur, porém, dançou como
um maluco na mesa. Viu-o e explodiu em uma alta e rouca gargalhada.
Leu e releu a carta. Cornell T. Hawkins. Era escrita em ouro, em um
pergaminho de prata. Era um nome dos céus. Era o nome secreto da libertação.
Em voz alta, com olhos esbugalhados, disse:
— Eu vou ser livre! Vou ser rico... rico... rico...! Vou ser famoso...!
O mundo, que lhe fora fechado durante tanto tempo, que podia ser
conquistado apenas pelo dinheiro, subitamente se desdobrou diante dele como
um panorama de torres faiscantes, brilhantes arcadas e grandes caminhos
iluminados por um sol eterno. Seria seu! Seria todo seu! Havia um poderoso e
resplandecente portão naquela paisagem à sua frente e estava aberto. Música
fluía dele, o som de exultação e de triunfo. Não pôde suportá-la. Atirou-se de
bruços na cama, mas a alegria torturante colocou-o de pé novamente, obrigou-o
a andar, a correr, tropeçando mais uma vez pela sala, arrepiando-se cada nervo
do seu corpo, cada cabelo da cabeça. Em algum lugar seu nome fora escrito na
página reservada aos que conquistam, aos que vencem, aos que superam... aos
que vivem! Em alguma parte uma palavra fora pronunciada, uma palavra que o
alçaria da vida de sofrimento, trevas, fracasso, pobreza. Em alguma parte, a luz
se movera novamente na montanha dourada e derramara seus raios sobre ele.
Ele, Frank Clair, via seu nome inscrito com uma pena de luz nas páginas da vida.
Viu a face grave e sorridente de Jessica Bailey.
Apertou convulsamente a carta contra o peito. Quis senti-la contra a
carne. Se tivesse sido mulher, tê-la-ia beijado.
Leu-a novamente. “... envolva o que lhe poderão parecer sugestões
muito radicais. Talvez V.Sa. as considere excessiva...”
Excessivas! Coisa alguma seria excessiva! Frank parou por um
momento, tomado nessa ocasião de um inesperado e horrível pânico. E se,
depois de reconsiderar, o Sr. Hawkins chegasse à conclusão de que ele não
admitiria as “sugestões”? E se, na próxima entrega da correspondência, houvesse
uma relutante carta de rejeição?
Um frio e escuro horror desceu sobre Frank. Havia uma única coisa a
fazer. Desgrenhado ainda, vestido ainda com o velho roupão cinzento, desceu
correndo as escadas até o apartamento do dono da casa e, gaguejando, pediu para
usar o telefone. Enviou um telegrama ao Sr. Hawkins: “Quaisquer mudanças que
queira fazer serão aceitas. Chegarei a Nova York amanhã para discutir o
assunto.”
Quase não conseguiu ver o mostrador do telefone ou conservar o
catálogo sobre os joelhos. Telefonou para a New York Central Station e fez uma
reserva no trem daquela noite.
CAPÍTULO 65
De que maneira poderia ocupar as horas, do meio-dia à meia-noite?
Quanto tempo levaria para ir ao centro e comprar uma mala tipo “aviação”
realmente bonita, cinzenta, com listras cor de âmbar, fechaduras de bronze,
luxuosamente forrada? Quanto tempo passaria enquanto o indivíduo se sentava
numa lanchonete e tentava comer à força um sanduíche de atum e beber uma
xícara de café sem nenhum gosto? Não levava tempo comprar uma nova e cara
gravata, observar o vendedor enrolá-la agilmente em torno dos dedos para
demonstrar-lhe a padronagem, observá-la brilhar à forte luz elétrica do teto,
colocá-la numa caixa branca macia, enfiá-la na bagagem. E uma camisa nova,
uma camisa realmente boa, custando três dólares, do melhor tecido branco? Uma
compra de um minuto. E um roupão de discreta padronagem? Não tomava quase
o tempo de uma respiração entre a decisão de comprar e a entrega do dinheiro.
Um chapéu novo? Um cinza, elegante, com uma pala moderna e um ar fino?
Mais uma ou duas respirações. Talvez comprar um novo par de sapatos
consumisse tempo. Feito! Jamais experimentara Frank tal rapidez de
atendimento nas lojas.
Olhou para o relógio de ouro do pai. Ora, eram apenas três horas e havia
gasto quase cem dólares! Certamente uma vida inteira deveria ter passado. O nó
no estômago e o bolo de concreto na garganta estavam maiores do que nunca.
Mas eram apenas três horas.
Desceu Main Street carregando a nova mala, usando o novo chapéu, e
perguntou-se de que maneira poderia controlar-se. Homens e mulheres passavam
por ele. Teve vontade de gritar-lhes: “Olhem para mim! Virem-se e olhem para
mim! Parem e comentem! Vocês passam por mim assim porque não sabem quem
sou, o que fiz, o que vou ser! Pensam que sou apenas um de vocês, uma parte
sem substância, anônima, de vocês, tão morto de alma e de vida tão bichada
quanto vocês! Pensam que meu destino é o de vocês, o de rastejar, conspirar para
ganhar uns poucos dólares, planejar uma pequena fornicação ou um pequeno
adultério, correndo para junto de maridos, mulheres ou filhos, esperando
conseguir amanhã um emprego, um aumento de salário, um novo carro, pintar as
horrendas casinholas, talvez construir um novo sanitário, comprar um novo
tapete ou nova peça de mobília para o quarto. Andam com pés doloridos e
acreditam em que meus pés sejam tão chatos como os seus, em que eu respire o
mesmo ar que vocês, em que meu coração bata tão indolente como os seus. Mas
olhem para mim! Na próxima semana, no próximo mês, vocês verão meu retrato
nos jornais. Nesse momento você saberá também, seu venenoso, maligno,
desprezível e feio pequeno mundo humano que o detesto e desprezo, que lhe
escapei para sempre. Estou escapando de vocês, seus indescritíveis e brutos
animais em forma de gente, suas caricaturas descerebradas de anjos.”
De súbito, achou que precisava contar aquilo a alguém, que não podia
mais permanecer mudo, conter aquela louca alegria em si mesmo. Mas quem
escutaria, quem se rejubilaria com ele? Correu até uma farmácia, puxou uma
moeda de cinco centavos do bolso, entrou numa cabina e chamou Jessica Bailey.
Enquanto esperava que a chamada fosse atendida, pensou que ia sufocar,
que os joelhos trêmulos não o aguentariam um momento mais. Por que não
fizera isso antes? Por que não telefonara para Jessica, Jessica que esperava, que
gritaria quando ele lhe contasse, que compreenderia que logo depois ele iria ao
seu encontro? Viu-lhe a face, a linha do pescoço, o negror do cabelo, a luz escura
dos olhos. Ouviu-lhe a voz, com uma pequena pausa na respiração. Por que ela
não respondia? Deus, por que ela não respondia naquele instante, quando
precisava dela, quando precisava saber?
Após um longo tempo, uma rabugenta voz feminina atendeu. A Srta.
Jessica não estava em casa. Encontrava-se na casa de campo do tio, em Láke
Shore. O senhor quer o número? Bem, poderia dá-lo, se quisesse. Mas, escute,
ela não estará lá, de qualquer maneira. Ia a Rochester naquele dia. Para o
casamento de alguém.
O casamento de alguém, algum casamento banal, estúpido, inteiramente
sem sentido! Era o casamento de alguém que lhe devolvia à garganta o alto grito,
estrangulava-lhe o coração, selava-lhe os lábios. Era o casamento de alguém que
o repelia, zombava dele, dizia-lhe que era mais importante do que ele. Tolas
flores de laranjeiras, tolo acasalamento de idiotas sem importância, riso vazio,
derrotavam-no, interpondo-se grosseira e tolamente entre ele e Jessica. Bateu
com força o aparelho no gancho.
Ela devia ter sabido! Certamente devia ter sabido. Mas não esperara.
Saíra. Para o casamento de alguém. Ela lhe dissera que ele teria que esperar, que
algo mais importante de que seus negócios acontecia naquele momento. Odiou-
a.
Mas precisava falar, precisava contar. O Sr. Preston? Não o via há quase
três anos. Procurou o telefone no catálogo. Mas a chamada não foi atendida e,
mais uma vez, pendurou o telefone no gancho.
Não havia pessoa alguma a quem contar, nenhum amigo, nenhum
inimigo. Não havia ninguém. Não havia pessoa alguma para apertar-lhe a mão e
dar-lhe os parabéns enquanto os olhos se enchiam de uma inveja que desmentia
as palavras. Não havia pessoa alguma para rejubilar-se com ele, para planejar
entusiasticamente com ele, rir histericamente com ele. Ninguém, ninguém
absolutamente.
Tinha trinta e seis anos e não possuía um amigo nem um inimigo, nem
mesmo um conhecido.
Onde estava Paul Hodge? Paul! Sentou-se na pequena saliência na
cabina e enxugou a testa. Paul Hodge. Onde estava Paul? Procurou no catálogo
uma dúzia de Hodges, mas nenhum Edward, Gordon ou Paul. O que acontecera
a Paul durante todos esses anos, o amigo que compreenderia, que exclamaria de
prazer com ele, que o fitaria com orgulho e se rejubilaria? Havia apenas Paul,
que saberia, que realmente esperaria. Mas Paul fora engolido pela cova dos anos
e não havia sinal dele.
Na débil segurança da cabina telefônica, ficou silencioso, imóvel. Paul.
Ora, nunca me esqueci realmente dele. Esteve comigo este tempo todo. Casou?
Será que se lembra de mim? Éramos mais ligados, mais, íntimos, do que
quaisquer irmãos. Certamente ele não me esqueceu. Onde está você, Paul?
Preciso de você.
Alguém bateu impaciente na porta de vidro. Frank ergueu-se e retornou
à quente e barulhenta farmácia.
CAPÍTULO 66
Nunca andara em um vagão Pullman. Chegou à New York Central
Station uma hora antes da saída do trem. Confuso com os estreitos corredores do
vagão-dormitório, seguiu o cabineiro até seu beliche. Mas precisava, de qualquer
maneira, fingir que era um viajante veterano, entediado com a necessidade de
mais uma viagem de negócios. Embora a noite estivesse quente e o calor do
vagão quase não fosse atenuado pelos ventiladores, descobriu que tremia.
Estendeu-se rígido no beliche, sentindo a sólida maciez dos lençóis. Olhou
fixamente pela janela, cuja cortina fora erguida, para os pátios de manobras, com
suas luzes e trilhos ofuscantes. Em volta, ouvia os rangidos das camas, o
farfalhar de lençóis, os suspiros e roncos de outras pessoas que dormiam em
cima e do outro lado do corredor. Uma campainha tocou baixinho; o cabineiro
murmurou alguma coisa para alguns retardatários; bagagem foi empurrada para
algum lugar. Por trás das cortinas verdes, Frank permanecia deitado, olhando
para as luzes e os trilhos.
Nunca estivera tão desperto, tão tenso, com cada nervo esticado,
vibrante, latejante. Uma dúzia de vezes mudou a posição dos travesseiros,
empurrou para longe ou puxou o lençol e examinou preocupado o terno para ver
se estava pendurado de modo a não formar rugas. Tateou embaixo do travesseiro
à procura da carteira; certificou-se de que o chapéu estava no cabide. O trem
tornou-se muito silencioso naquele momento e os roncos aumentaram no
sossego da noite.
Às vezes, erguia-se sobre um cotovelo, acendia a luz e olhava para o
relógio. Quase meia-noite. Não estava preparado, quando aconteceu, para o
mergulho suave na noite. Atordoado, observou as luzes correrem por ele, viu
faces de trabalhadores da linha, a lua prateada iluminando o telhado de cabanas.
Estava a caminho! No dia seguinte, assinaria o contrato de publicação do livro.
No dia seguinte, renasceria. Dormiria agora para acordar “renovado”.
Mas não conseguiu dormir. Continuou simplesmente deitado enquanto o
trem rolava pela escuridão. Os trilhos cantavam baixinho sob seu corpo. Ouviu o
ronronar das rodas. Os ventiladores zumbiam. O sono, porém, permaneceu longe
e ele não conseguiu atraí-lo para mais perto. Fechou os olhos e permaneceu
rígido. Sua cabeça era como uma panela fervente, e trechos de cenas passadas
borbulharam nela. Exatamente no momento em que pensara que esvaziara a
mente, começou a tremer com violenta excitação, cerrou as mãos e abriu os
olhos ardentes. Amanhã não, hoje, esta manhã! — assinaria o contrato no
escritório do editor e sua vida começaria. No dia seguinte o mundo começaria a
abrir suas lustrosas portas e ele seria livre. Imaginou-se conversando com o Sr.
Hawkins. Não devia dar uma aparência de matuto ao Sr. Hawkins. Deveria falar
em tom comedido. Nesse momento, rezou irreverentemente, pedindo para não
gaguejar, para que sua língua grossa não se entregasse incontrolavelmente a
loucas e irreprimíveis repetições. Precisava lembrar-se de falar com lentidão e
cuidado, sorrir friamente, mostrar-se calmo. Precisava ter cuidado e abafar o leve
sotaque inglês a fim de não provocar o antagonismo do Sr. Hawkins, como o
antagonismo de seus colegas fora sempre despertado em Bison por alguma
vergonhosa peculiaridade de seu sotaque britânico. Mentalmente, praticou a
supressão do sotaque. Com cuidado, passaria como americano nato. Os
americanos, dissera sempre o pai, não gostavam de ingleses. Precisava lembrar-
se disso.
Nova York! Dentro de horas, pela primeira vez na vida, veria Nova
York. Veria as refulgentes torres, as ruas que pareciam canyons, as grandes lojas.
Poria os pés nas calçadas de Nova York.
Era estranho que, em meio àquele vibrante nervosismo e tensa agitação,
se lembrasse de algo que esquecera durante quase trinta anos. Inesperadamente,
viu-se na enlameada rua do lado de fora da porta verde do quintal de Mosston
Street. Estivera chovendo e o céu parecia muito próximo, um empilhamento de
nuvens cinzentas com ventres escuros. Podia até sentir a fria umidade do vento
na face, a reação infantil ao vento, às nuvens, à terra enlameada e ao grupo de
crianças em volta. Não conseguia recordar-lhes os nomes, mas lembrava-se de
suas faces contraídas, varias, famintas. Uma ou duas delas queixaram-se de que
não possuíam sapatos para irem à escola dominical e olharam pesarosas para
seus tamancos. Ele olhou para os próprios pés, bem calçados, de botas, e sentiu
um pequeno prazer. “Isso é porque vocês são pobres”, dissera.
Pobre. Nunca pronunciara antes essa palavra. De repente, dera a volta,
correra velozmente para casa e encontrara a mãe na cozinha. Tomado de um frio
medo, agarrara-se às salas da mãe.
— Mamãe! — gritou. — Não somos pobres, somos? Não somos pobres
como os Dobsons, somos, mamãe?
Prendera-se, em desespero, às saias dela. Era estranho que logo nesse
momento, em que era suavemente acalentado no beliche, sentisse nas mãos a
textura do avental de Maybelle. Sentiu a umidade pegajosa do medo entre as
espáduas, a dor nas unhas quando as mergulhara frenético nas saias da mãe.
Maybelle estivera aborrecida e preocupada. Com um repelão, soltara-se
da criança apavorada.
— Naturalmente que somos pobres! — dissera. — E agora vá lavar as
mãos e tomar seu chá.
Como poderia ter esquecido o puro e frio horror que o invadira naquela
ocasião, a sensação de vulnerabilidade, de impotência, de verdadeiro pânico?
Naquela ocasião, mal tinha seis anos de idade, mas fora atingido, derrubado,
dominado por uma autêntica onda de ódio, de profundo terror e rebeldia. Não
seria pobre! Nunca, nunca, nunca!
Havia esquecido, mas, naquele instante, deitado no beliche, tudo aquilo
voltou, uma sombra da infância caiu sobre ele e sentiu-se doente de depressão.
Não podia suportar aquilo. Por que voltara a recordação, justamente naquele
instante, no próprio dia de seu maior triunfo? Saiu do beliche, bebeu um pouco
de água e engoliu um comprimido de tranquilizante que lhe fora dado pelo
médico algum tempo antes.
Deve ter dormido, pois, quando se tornou novamente consciente, o
amanhecer triste e quente de uma manhã de verão em Nova York entrava forte
pelos seus olhos.
Sentou-se e olhou para fora. Perdera o espetáculo da Palisades e do
verde Hudson sob o sol. Observou as esquálidas e arruinadas casas de cômodos
passarem pela janela. Observou os corredores cheios de lixo que eram as ruas.
Notou figuras enlameadas arrastando-se embaixo e teve sua primeira visão dos
bondes dos cartazes e de um alto trecho do “elevado”. Apareceu, em seguida, um
imenso prédio de apartamento com centenas de janelas brilhando ao sol, e mais
outro, e outro, até que começaram a passar novamente as habitações coletivas
baixas, sem o oásis de uma única árvore, um único trecho de grama. Às vezes,
janelas imundas, enfunadas com restos sujos de cortinas, chegavam quase até o
trem e eram substituídas depois por um panorama de paredes manchadas de
fuligem, entremeadas de espaços onde eram estendidas roupas em trapos.
Vislumbrou trechos do céu quente e azul.
O cabineiro puxava nesse momento as cortinas e Frank soube que era
tempo de aprontar-se. A cabeça latejava e sentia o estômago nauseado. Mas a
agitação voltara e cresceu até um ponto em que pensou que ia explodir e
extravasar os limites da própria carne.
O trem entrou ruidoso no túnel e, para os ouvidos de Frank, o som
lembrou um rufar de gigantescos tambores.
Saindo do túnel e descendo para a estação, foi imediatamente assaltado
por milhares de faces em disparada, mil manchas de vestidos coloridos e ternos
escuros, mil ecos de pés apressados e o murmúrio de um imenso número de
vozes, uma verdadeira inundação de gente, derramando-se de todas as direções,
enquanto os passageiros dos subúrbios passavam voando por ele, como aves
migratórias, a caminho de destinos inexplicáveis. Submerso por eles, sufocado,
esmagado, sacudido de um lado para outro, ensurdecido pelo ruído, a cadência e
o trovão dessas pessoas, lutou contra a horda até chegar a um dos lados da
gigantesca estação, onde parou para orientar-se. Incrédulo, observou cataratas de
homens e mulheres escoando-se de dezenas de diferentes saídas, enquanto uma
luz pálida, entrando por hectares de janelas em cima, descia sobre faces
descoradas, pintadas de ruge, concentradas, macambúzias, desenxabidas e
vazias, flutuando, subindo e descendo, mergulhando no infinito. Ouviu os gritos
dos empregados da estação e o baixo rosnado de trens sob os pés.
O chão de cimento tremia. Havia rampas aqui e ali, todas elas
fervilhando de gente. Para onde iam? E por quê? Isso importava? Por que toda
essa fúria, essa correria, essa pressa? Por que essas correntes cruzadas quando
rios de gente cortavam outros rios que corriam em diferentes direções? Formigas
saíam apressadas de labirintos em direção a ninhos em forma de colmeias, os
gigantescos ninhos que transformavam em canyons as ruas e que, mesmo tão
cedo assim, deviam estar começando a zumbir com a atividade das formigas.
Corriam como se elas e suas minúsculas atividades fossem importantes. Corriam
com o egoísmo das massas para o sol, sem saber jamais que dez mil delas
poderiam ser esmagadas por um ninho desmoronante e que o mundo não ficaria
mais pobre por isso.
Inesperadamente, Frank sentiu uma grande vergonha delas, da
humilhação delas, da ofensiva convicção delas de que o que eram e para onde
iam tinha alguma importância. Se todas elas apenas parassem durante um único
instante e pensassem: eu nada sou e o que vou fazer não mudará em coisa
alguma a corrente da vida; então, e apenas então, elas, na sua humildade,
adquiririam uma espécie de dignidade e grandeza, uma espécie de trágica
verdade. Mas elas corriam e fugiam, arquejavam e se atropelavam, e eram
apenas imorais nessa vergonhosa crença de que eram importantes. Um homem
sozinho, pensou Frank, tem uma espécie de solitário esplendor e mistério. Um
homem na massa, porém, perde a alma.
Uma fria e negra depressão envolveu-o e sentiu-se diminuir, como se
alguma virtude se evaporasse dele e se dissipasse na inundação que passava
turbilhonante. Decorreu muito tempo antes que recuperasse a calma e,
embotadamente, lembrasse que vira uma fileira de luzes indicando o
Commodore Hotel. Apanhou a valise e continuou seu caminho, perguntando-se
vagamente por que estava tão cansado, quando não estivera antes, e por que
havia uma espécie de secura de cinzas em sua boca e um peso na sola dos pés.
CAPÍTULO 67
Conseguiu um agradável quarto no Commodore Hotel, de onde podia
olhar para a rua 42, quinze andares abaixo. O silencioso conforto do quarto, a
sua mistura de tonalidades verde e ferrugem, as janelas largas e batidas pelo sol,
o lustroso banheiro branco, içaram-lhe a coragem do escuro poço onde caíra.
Nunca estivera antes em um quarto como aquele — e era seu enquanto
desejasse, embora o preço o houvesse deixado momentaneamente atordoado.
Examinou as grossas toalhas brancas do banheiro e inspecionou o chuveiro.
Apalpou a firme e macia cama, coberta por uma colcha verde. Estudou as finas
gravuras nas paredes de marfim. Da janela, observou o tráfego movimentado de
veículos e gente. Então era isso o que significava ter dinheiro! Era isso o que o
homem podia comprar, essa dignidade e esse isolamento, esses tapetes luxuosos,
essas grossas toalhas brancas, esse telefone junto à cama, essas pesadas e escuras
portas! Essa chave em sua mão!
Com mãos trêmulas tirou da mala as poucas roupas. Lançou um olhar ao
relógio. Mal passava das nove. Foi até o telefone e chamou o escritório da
Thomas Ingham’s Sons. O Sr. Hawkins, foi informado, somente chegaria às dez
e trinta. De que maneira poderia esperar até essa hora? Tomou um banho de
chuveiro, desceu num elevador cheio de homens e mulheres bem vestidos e
dirigiu-se à sala de jantar. Não podia fartar-se das paredes apaineladas, da
decoração em estilo Tudor, dos maravilhosos tapetes, das toalhas de mesa que
pareciam cetim polido. Mas não conseguiu comer o desjejum que lhe foi trazido,
embora fosse uma refeição com a qual havia sonhado. A sua agitação era
profunda demais, torturava demais os nervos.
Tudo isso fê-lo pensar: tenho quase trinta e sete anos. Eu devia ter vindo
mais cedo. E se for tarde demais?
Não conseguiu permanecer parado. Algo parecido com uma fuga levou-
o a mergulhar na multidão do saguão, onde não viu nenhuma face brutal,
nenhuma roupa barata e surrada, nem ouviu nenhum riso bruto e vazio. Esses
homens e mulheres eram as criaturas com as quais havia sonhado em sua mais
desolada pobreza. Falavam suavemente, em voz baixa, sorriam com facilidade e
adotavam atitudes casuais. As suas roupas eram luxuosas e de corte impecável e
mesmo os olhos inexperientes de Frank podiam reconhecer-lhes a qualidade.
Havia segurança nessa gente, a calma aceitação e consciência da riqueza.
Moveu-se entre eles, sentindo a qualidade inferior de seu temo, o couro ordinário
de seus sapatos engraxados, a pobreza da gravata. Será que notavam isso quando
seus olhos sorridentes pousavam brevemente nele? Perguntavam-se acaso como
uma pessoa como ele pudera aparecer entre elas? Olhariam os mensageiros para
ele com desprezo, sentindo-se insultados? Ficou convencido de tudo isso e seu
rosto e coração arderam de humilhação e raiva. Bem, dentro de alguns dias, de
algumas semanas, andaria orgulhoso entre eles, seria um deles, com direito aos
seus sorrisos, a jantar com eles. Um pouco mais apenas e poderia ir ousadamente
à casa de Jessica e ser recebido não como um andrajoso vendedor, mas como um
igual.
Saiu para a rua e ficou novamente atordoado com a incrível cidade.
Notou as torres colossais, as enormes e altíssimas paredes, com suas janelas
brilhando ao sol como se fossem incontáveis espelhos. Ouviu o rugido e o
tumulto do tráfego e foi empurrado nas calçadas por pessoas que corriam, sérias,
para algum lugar. Um vento que nunca conhecera soprou-lhe poeira nos olhos.
Arquejou no monstruoso calor que subia em quentes ondas das calçadas.
Imensas vitrinas passavam por ele, exibindo uma quantidade inacreditável de
mercadorias. Permaneceu perto delas, procurando encontrar o caminho até a
Quinta Avenida. Policiais sopravam seus apitos nas esquinas, ônibus e carros
passavam com um clangor, buzinavam e rugiam em volta. Por todos os lados,
para onde quer que olhasse, as refulgentes torres subiam para o quente céu azul,
lançando fortes sombras escuras sobre as ruas.
Aquilo era Nova York. Vira fotografias, filmes e jornais
cinematográficos sobre a cidade. Imaginara que a conhecia. Mas a imaginação
ficava muito aquém da realidade, era uma miniatura sem relevo, em cores
desmaiadas. Sentiu o poder da cidade, a imensa e vibrante energia, a fúria e o
tumulto. Olhou para as multidões apressadas de faces e viu todos os homens do
mundo. Estupefato, caiu em um vazio pasmo.
Desceu a Quinta Avenida em estado de perplexidade. Viu os grandes
leões da Biblioteca. Massas entravam e saíam do edifício, convergiam, eram
engolidas por outros rios. Não lhe parecia possível que houvesse tanta gente.
Observou como estavam todos absortos em seus apaixonantes objetivos e
pensamentos, como estavam inconscientes da incredibilidade da cidade que
haviam construído, na qual viviam e que lhes possuía a existência. Como eram
pequeninos e insignificantes, vulneráveis, sem sentido. Sim... haviam construído
a cidade, uma cidade mais incrível e atordoante do que as Pirâmides, mais
impressionante do que o Partenon, mais selvagem, colorida e violenta do que
Bagdá, possuidora de mais espalhafatosa grandeza do que a da Roma antiga.
Eram carne e ossos débeis, pés fracos e mãos pequenas, mas haviam construído
aquela cidade. O terrível, heroico e invencível espírito humano construíra aquela
cidade! A mente sonhadora, em sua frágil caixa óssea, concebera aquele poder e
esplendor, aquela força gigantesca e espantosa, aquela branca e refulgente
majestade. Lançara aquelas torres contra o céu. Esculpira aquelas paredes e
mãos frágeis haviam erguido esses maciços canyons de pedra e concreto. Oh, a
mente sonhadora do homem, que podia construir monumentos e palácios nas
selvas e lançar magníficos arcos no deserto!
Frank parou e foi envolvido por intenso êxtase enquanto pensava nisso,
um êxtase que bradava em seu exultante coração. A depressão que o assaltara
sorrateira naquela manhã finalmente se retirou. Mas se retirou apenas, sem
desaparecer. Mas podia mantê-la longe durante uma hora, rejubilar-se e ser
transfigurado e tomado de profundo respeito pelo que sua espécie erguera na
floresta silenciosa. Orgulho e emoção relampejaram em seus olhos. Algo
curioso, uma espécie de amor, surgiu nele, um amor que brotava de um jardim
murado de sua infância e cantava em volta com um fervor baixo, mas
estimulante. Algum instinto implorou-lhe que se apegasse àquilo que sabia, que
o guardasse e nunca esquecesse, para não morrer, pois era uma verdade que
conhecera e esquecera.
Localizou o edifício onde ficavam os escritórios da Thomas lngham’s
Sons. Ficou surpreso com a estreita entrada e com o elevador de ferro
filigranado, que subiu rangendo alto. Esperava pompa e riqueza e aquela simples
dignidade desanimou-o. Aquilo não era o porto dê entrada para o sonho e o
triunfo. Devia ter havido pórticos de mármore e empregados vestidos de libré;
devia ter havido portas lustrosas e espessos tapetes e, talvez, aroma de incenso.
Mas nada havia, salvo aquele elevador, o velho ascensorista e a queda lenta de
escritórios cheios de gente, comuns, enquanto subia a caixa metálica.
Desceu no quinto andar e olhou em volta, atordoado, decepcionado. Viu
um corredor silencioso, uma ou duas mesas, às quais moças batiam velozes em
máquinas de escrever, ouviu uma voz abafada e ruídos de passos sobre o chão de
madeira. Nenhuma odalisca de penumbrosos olhos deslizou pelo chão para ir
recebê-lo, para anunciar sua chegada com uma batida de mãos cheias de anéis e
nenhuma cortina escarlate foi aberta para admiti-lo numa imensa nave de
catedral. Uma moça de rosto impertinente, óculos, descabelada, aproximou-se
em passos vivos, perguntou-lhe o que queria e tomou-lhe o nome. De chapéu na
mão, ficou em frente a uma prateleira de livros. Olhou para as ocupadas moças e
viu um ou dois idosos cavalheiros entrando e saindo silenciosamente de uma sala
escura que, vagamente, lembrava uma biblioteca.
A moça voltou, conduziu-o por um estreito corredor, passando por
pequenos escritórios, até o gabinete do Sr. Hawkins, grande, empoeirado, com
um sol embaçado brilhando nas vidraças. Frank teve a confusa impressão de
uma grande escrivaninha atravancada, uma ou duas velhas cadeiras giratórias,
um homem alto e magro com um chapéu de feltro lançado para trás na cabeça. O
homem ergueu-se e sorriu. Frank pensou imediatamente em fevereiro, um pálido
e silencioso fevereiro, com um céu azul, frio e neve no solo.
O ingênuo desapontamento aumentou e, com ele, seu velho e doloroso
mutismo, o velho e mórbido embaraço, o velho medo de estranhos. Olhou para
os olhos imóveis e vidrados do Sr. Hawkins, notou-lhe o leve e enigmático
sorriso e imediatamente sentiu medo. Aquele homem tinha poder de vida e
morte sobre ele! Ao som de sua voz, ele, Frank, seria libertado ou, para sempre,
encarcerado e condenado. Se o Sr. Hawkins não gostasse de sua voz inglesa, se
pessoalmente sentisse aversão por ele, não haveria esperança!
O Sr. Hawkins estendeu a mão magra, mas Frank estava de tal modo
dominado pelos velhos receios, pela velha sensação de inferioridade e
desvalimento, que não a viu logo. Depois, apartou-a na sua, fria e úmida. O Sr.
Hawkins murmurou alguma coisa em voz tranquila. Frank abriu a boca. Uma
paralisia desceu sobre suas cordas vocais e, apavorado, teve certeza de que
mesmo que falasse sua voz sairia como um engrolamento balbuciante de sons
incoerentes. Aterrorizado, odiando-se, suando de profundo nervosismo, sentou-
se perto do Sr. Hawkins, conservando o chapéu na mão.
Fevereiro sentou-se, contemplou-o e soube, mais do que Frank jamais
imaginaria que ele pudesse saber. Fevereiro esperou com um ar de reservada
aristocracia, uma longa perna cruzada sobre a outra, com uma magra face
patrícia que nada revelava. Embotado e mudo de medo, porém, Frank sentiu uma
leve sensação de reconhecimento, de familiaridade. Confusamente, teve certeza
de que aquele homem não o desprezaria pelo seu renitente sotaque inglês, não
sorriria com desprezo pelo seu gaguejar, não o ignoraria com brutal preconceito.
Aquele homem era de seu próprio sangue. Era um homem compreensivo, que
compreendia e não detestava. Contemplou Frank, sorriu de leve e friamente, e
não havia desdém nos seus claros olhos azuis. Parecia quase que procurava
alguma coisa e, talvez, esperasse por alguma coisa. Ali estava um cavalheiro,
como Wade O’Leary, um dos maduros, um homem que era verdadeiramente um
homem. Os músculos tensos de Frank relaxaram-se e, ao se relaxarem, doeram.
Fevereiro não sentia animosidade contra o estranho e esse fato somente
deveria ter sido suficiente para relaxar a terrível tensão do jovem. Haviam sido
tão pouco os que olharam para ele com autêntico interesse e pensativo
desligamento, que o viram como um membro de sua própria espécie. Durante
tanto tempo fora vítima da zombaria, da curiosidade maliciosa e da estupidez,
que mal podia acostumar-se a uma atmosfera onde era aceito como um homem,
um homem que podia ser importante, um igual.
— Fiquei satisfeito em saber de sua vinda a Nova York, Sr. Clair —
disse o Sr. Hawkins. — Podemos agora resolver tudo. Lembra-se de que lhe
escrevi a respeito de algumas alterações?
Frank abriu a boca e, para seu imenso alívio, conseguiu falar:
— Lembro-me. — Encorajado pelo sucesso, por ter conseguido falar
sem gaguejar, continuou apressado: — Não importa... Sr. Hawkins. Não me
importo com quaisquer alterações que o senhor queira fazer... — A sua cabeça
latejava. O calor e o ofuscamento do sol incomodavam-lhe os olhos. Continuou,
vivamente: — Eu... eu quero simplesmente que o livro seja publicado...
O Sr. Hawkins examinou-o pensativo e observou a nota de pânico em
sua voz.
— O senhor talvez não goste das modificações sugeridas — começou.
Não gostar delas! Oh, ele podia apanhar o maldito livro, torcê-lo, mudá-
lo, fazer o que quisesse! Desde que fosse publicado!
— Não me importo! — exclamou, inclinando-se para a frente. — O
senhor... o senhor deve saber o que será melhor... — A voz o traiu e ele
enrubesceu no sofrimento da mudez.
Delicadamente, o Sr. Hawkins evitou-lhe os olhos e esperou. Frank lutou
com as cordas vocais, vibrantes, mas mudas. Depois, explodiu:
— O senhor não sabe... o que... o que... isso significa para mim. Não me
importo com o que for feito com o livro.
Em voz baixa, disse o Sr. Hawkins:
— Na forma atual, o texto é muito longo. Mas pode ser cortado. Depois,
poderemos mandar fazer as provas de paquê.
Provas de paquê! As maravilhosas e mágicas provas de paquê. O livro
seria posto em prova de paquê... O maxilar de Frank projetou-se sob a pele.
Engoliu o bolo duro e sufocante que havia em sua garganta. Apertou com força o
chapéu. Era verdade. Iam aceitar o livro e publicá-lo.
O Sr. Hawkins recostou-se na cadeira, que estalou. Enfiou os polegares
na cava do colete. Sua face imóvel não expressava ainda coisa alguma. Disse:
— Precisamos ter cuidado para evitar processos por calúnia. O senhor
baseou o livro em alguma real família de banqueiros?
— Não. Oh, não. Foi tudo imaginação. Uma espécie de... uma espécie
de... composição. É tudo imaginário. Simplesmente uma história. Sobre homens
que engendram guerras...
O Sr. Hawkins sorriu de súbito, por um momento. Nesse instante, uma
leve curiosidade surgiu nos olhos que examinavam Frank.
— O senhor pensa que eles, esses tipos de homens, sozinhos, engendram
guerras? O senhor acha que o próprio povo nada tem a ver com isso,
absolutamente?
Estaria ele rindo dele, Frank? Mas não havia riso na face do Sr.
Hawkins, apenas vivo interesse.
— Não devemos esquecer o fato de que os alemães sempre desejaram
poder e dominação sobre o resto da humanidade — disse Hawkins mais em tom
de discussão do que de contestação ou desacordo. — Como é que o senhor
explicaria Hitler? Em termos de banqueiros internacionais?
Frank permaneceu calado. Esqueceu-se de si mesmo, seu embaraço, seu
gaguejar, seu medo. Olhou para o Sr. Hawkins e enrubesceu. Ele sabe que não
acredito no que escrevi, ou se pergunta se acredito. Devo fazer com que ele
acredite, ou talvez não aceite o livro. A sua voz tremeu quando protestou
debilmente:
— Eles... os banqueiros... financiaram Hitler. Apoiaram-no, os
banqueiros da Inglaterra, da França e da América.
O Sr. Hawkins olhou distraído para a escrivaninha. Depois de uma longa
pausa, disse:
— Sim, eu sei. Todavia há mais alguma coisa. Se Hitler quer a guerra... e
vai querê-la, isso é inevitável... será o povo que lutará. E isso ocorrerá porque os
povos, e não apenas o povo alemão, desejarão a guerra. Há pessoas que falam da
“inevitabilidade” das guerras. Mas a “inevitabilidade” reside na vontade de
guerrear dos povos e, talvez, no desejo de fazer a guerra. Todos falamos no ódio
do homem à guerra, mas permanece o fato de que elas ocorrem e que
continuarão a ocorrer porque os homens realmente não as odeiam. Os povos
permitem que surjam e se desenvolvam as condições que levam ao conflito,
toleram-nas, nutrem-nas. Disso deriva a inevitabilidade das guerras. — Esperou
pelo comentário de Frank. Este, porém, não conseguiu dizer coisa alguma. O Sr.
Hawkins continuou: — Ou o povo sabe disso, ou é estúpido demais para saber.
O senhor sabe que poderíamos ter obrigado Hitler a retirar-se do Ruhr, se
quiséssemos. Mas não quisemos.
Inspirado pelo medo, Frank exclamou:
— Mas os governos das grandes potências encorajaram Hitler! Não
queriam detê-lo! Por quê? Talvez porque temessem a Rússia. Acho que foi isso.
Permitirão mesmo que haja guerras porque temem a Rússia. Por que a temem?
Porque não querem que as massas tomem o poder? Eu... eu acho que é por isso.
Penso mesmo que estão apoiando e financiando Hitler na esperança de que ele
ataque e destrua a Rússia.
O Sr. Hawkins permaneceu calado. Mas passou a olhar para Frank com
maior interesse.
— Será a pusilanimidade, a cobiça e as suspeitas dos governos que
levarão a um conflito com Hitler — continuou Frank com uma ênfase tingida de
medo. Interrompeu-se por um momento. — Mas nenhum de nós lutará contra a
Alemanha. Não odiamos a Alemanha. Nunca a odiamos. — Sua face contorceu-
se de amargura, sem que se desse conta disso, e surgiram diante de seu olhos os
rostos das crianças alemães que conhecera na infância. Sentiu o gosto de ódio na
boca. — Não odiamos Hitler agora porque ele se fez popular na América, entre o
gado, entregando-lhe uma vítima indefesa.
— É quase impossível imaginar perseguição nos dias atuais —
murmurou distraído o Sr. Hawkins. — Talvez nós, na América, não possamos
realmente aceitá-la.
Perseguição. Eu fui perseguido na América quase tanto como os judeus
são agora perseguidos na Alemanha! Fui perseguido porque, entre os filhos dos
servos europeus da gleba, eu era inglês, porque entre as vozes estrangeiras do
Oriente Próximo, da Alemanha e do sul da Europa eu ousava falar a verdadeira
língua da América! Fui um exilado na terra de minha própria gente. Fui caçado e
perseguido, atormentado e desprezado por aqueles por quem meu povo lutou,
por aqueles que meu povo libertou, alimentou e ajudou a sobreviver. Se as
crianças judias correm apavoradas pelas ruas de Berlim, eu também corri
apavorado pelas ruas que minha gente construiu, passando por casas que minha
gente erigiu para abrigar os restos e o rebotalho da Europa. Eu sei o que é
perseguição!
— Não iremos à guerra com Hitler porque não o odiamos e porque os
americanos não querem lutar contra os alemães — acrescentou Frank. — Mesmo
que nossos banqueiros, em todo o mundo, financiem e armem secretamente
Hitler.
Esquecera-se de tal modo de si mesmo que falava quase sem nenhum
gaguejar. A recordação das perseguições e dos sofrimentos, embora
deliberadamente suprimida momentos antes, deixara ainda alguns traços em sua
face, que perdera a palidez. Seus olhos faiscavam de raiva contida. O Sr.
Hawkins examinou-o nesse momento com interesse ainda maior e Frank
percebeu que os olhos do grande editor estavam focalizados, penetrantes, à
espera. Por alguma razão que não saberia explicar, não se sentiu mais
amedrontado, e sim revigorado. Tornou-se consciente, também, de estar em um
clima mental frio e superior, temperado e sutil, gelidamente bondoso e
penetrante. Observou a face do Sr. Hawkins e percebeu-lhe o secreto e
melancólico fatalismo e o triste humor. A despeito de sua idade Frank era, de
muitas maneiras, ingenuamente jovem e uma impulsiva emoção fluiu dele para o
Sr. Hawkins, numa confiança cega e simples. Teve vontade de gritar para esse
estranho homem: “Eu quero conhecê-lo! O senhor me olha e eu não vejo a
imagem grotesca em mim que os outros veem. O senhor me vê como sou e só
posso confiar naqueles que realmente me conhecem”.
Frank não podia saber o quanto o Sr. Hawkins percebia isso. O editor
desviou a vista com um ar profundamente meditativo e com a mesma delicadeza
cheia de consideração que demonstrara quando Frank falara incoerentemente.
Frank notou isso e disse apressado, com o que mais tarde rotulou, furioso, de
ingenuidade:
— O senhor leu todo o meu livro, Sr. Hawkins?
O Sr Hawkins respondeu distraído:
— Li. Acho que o senhor é um excelente contador de histórias. As suas
personagens vivem, têm vitalidade. Afinal de contas, esse é o fator mais
importante num romance. Não acho que o tema seja tão importante...
Frank sentiu-se profundamente aliviado. Não importava tanto, então, se
o Sr. Hawkins se perguntava se ele acreditava ou não no que escrevera. Mais
uma vez, sentiu uma forte emoção. Queria ouvir algo mais e, nesse momento,
falou em tom mais acanhado, impelido por um impulso que não conseguiu
explicar:
— Muito obrigado. Eu... eu estou muito satisfeito. O senhor acha que
escrevo bem? Quero dizer — acrescentou, enrubescendo novamente —, o senhor
acha que sou um escritor?
O Sr. Hawkins lançou-lhe um rápido olhar e respondeu:
— Ora, sim, naturalmente. — Sorriu, um pouco irônico.
Algo insistente que havia em Frank, porém, estava insatisfeito, embora
não soubesse o motivo. Disse:
— O senhor sabe, é importante para mim acreditar em que sou um
escritor. — Interrompeu-se. O que queria? O que queria que o Sr. Hawkins
dissesse? Não sabia, mas era quase desesperada a necessidade de ouvi-lo.
— O senhor é um excelente contador de histórias— repetiu o Sr.
Hawkins.
Por que o olhava, de modo tão estranho, e com o ar de quem se
desapontara não somente com ele, mas com tantos outros jovens antes dele?
Um “contador de histórias”. O mundo estava cheio de contadores de
histórias, todas as revistas, todas as bibliotecas. Simplesmente, um contador de
histórias. Bem, isso era suficiente, não, se contar histórias rendesse bastante
dinheiro? O que havia de mais importante do que o dinheiro?
— O senhor acha que escrevo tão bem como a maioria... a maioria dos
escritores modernos?
Mais uma vez, o Sr. Hawkins sorriu como se soubesse muito mais do
que Frank sabia.
— Sim, eu diria que sim. Sim.
Ficaram ambos calados. Em seguida, pensando no que dissera o
interlocutor, o velho mal-estar voltou, seco, a sensação de inutilidade, de
indiferença. Ficou com medo. Não naquele momento! Não devia voltar naquele
momento, quando estava prestes a obter sucesso! O que era aquilo, aquela
doença, esse súbito vazio, essa desintegração, essa fraqueza e cansaço
debilitantes? Ouvira o que queria ouvir, não? Mas ouvira mesmo? E se não
ouvira, o que era? Inconscientemente, suas mãos se apertaram em volta dos
joelhos no velho gesto do pai. O Sr. Hawkins percebeu o gesto e suas
sobrancelhas cinzentas contraíram-se como se sentisse uma grande pena.
Não quero coisa alguma, pensou involuntariamente Frank. Não me
importo. Não importa. Em seguida, o medo voltou. Precisava importar-se! Sua
vida dependia disso.
Seus olhos inquietos caíram sobre uma pilha de manuscritos na
escrivaninha do Sr. Hawkins. O seu manuscrito. Ao lado, viu um longo
documento com o título do romance e o seu nome. Um contrato. A náusea
deixou-o e sentiu-se novamente excitado. O Sr. Hawkins acompanhou a direção
do olhar de Frank, estendeu a mão magra e ergueu da mesa o documento.
CAPÍTULO 68
O que quisera que o Sr. Hawkins lhe dissesse? Parecera algo
imensamente importante. Mas, naquele momento, não conseguia lembrar-se do
que era ou por que a omissão em não dizê-lo o deixara tão vazio e desolado.
Figura inquieta e contrafeita, inconsciente de tudo que se movia em
torno dele e ao seu lado, Frank caminhava interminavelmente pelas ruas de Nova
York. Repassava sem cessar a conversa com o famoso editor. O Sr. Hawkins
dissera que ele era um excelente contador de histórias. Com o menor dos
estímulos, admitira que a história de John Ainsworth revelava poder, grande
beleza, paixão e emoção. O que mais, então, queria um escritor?
Uma fome devorava Frank Clair. Havia alguma coisa faltando.
Certamente não faltava em seus bolsos, onde havia um contrato e um cheque de
mil dólares. As vezes abandonava a corrente humana que passava pelas
luminosas ruas da cidade e procurava abrigo no umbral de uma porta, onde
tirava do bolso o contrato e o cheque e exultava. Ou melhor, tentava sentir-se
exultante. Havia um vazio em algum lugar, contudo... uma ânsia, uma fome, uma
depressão. Disse a si mesmo que isso acontecia porque não tinha ninguém com
quem se rejubilar.
Lembrou-se, então, do que o seu professor lhe dissera sobre seu trabalho.
“Há alguma coisa faltando”. Fora aquilo, aquele algo que impedira o Sr.
Hawkins de lhe dizer o que ele, Frank, tão apaixonadamente desejara ouvir,
mesmo que não conseguisse recordar-se do que era ou extraí-lo das escuras
profundidades de sua mente? Mesmo que não soubesse o que era?
Voltou ao quarto do hotel e andou interminavelmente sobre os grossos
tapetes, que não mais via ou o impressionavam. De pé junto à janela, olhou para
o tráfego embaixo, sem vê-lo. Haviam desaparecido a magia e a excitação. Disse
a si mesmo: isso é apenas a reação. Estou entorpecido. Ela voltará. Ouvia a
própria voz dizendo-lhe isso e ela lhe chegou como um sinistro eco.
Desceu à portaria e folheou os catálogos telefônicos de todas as cidades de
grande tamanho no Estado de Nova York, procurando o nome Paul Hodge. Não
o encontrou em parte alguma. Nem havia qualquer Edward ou Gordon Hodge.
Voltou ao quarto e escreveu uma carta a Jessica Bailey.
“Estou aqui em Nova York, onde acabei de assinar o contrato de
publicação de meu romance Os Dourados Alfanjes. Tentei comunicar-me ontem
com você para lhe dizer, todavia você não estava em casa. Mas, quando voltar a
Bison, irei visitá-la. Estou muito animado agora, desde que é o meu primeiro
trabalho importante que vai ser publicado e, embora eu talvez esteja esperançoso
demais, tenho todos os motivos para acreditar em que o livro será um sucesso.
Em seguida, naturalmente, há a questão do cinema a considerar. O Sr. Cornell
Hawkins, o diretor da Thomas Ingham’s Sons, advertiu-me para não ser muito
otimista sobre a vendagem do livro, mas algo me diz que não preciso dessa
cautela e que ganharei com ele um bocado de dinheiro. É por isso que julgo
poder agora procurá-la, como um igual, sem necessidade de me sentir inferior”.
Enquanto escrevia, uma onda da velha exultação envolveu-o, cerrou os
dedos em volta da caneta e sentiu mais uma vez o grosso bolo na garganta.
Ergueu-se de um salto e, de pé à janela, agarrando as cortinas cor de ferrugem de
cada lado, olhou para o tráfego embaixo. Tudo aquilo ali embaixo seria seu! Não
havia mais necessidade de esgueirar-se pelas ruas e sentir a sua humilhação,
insignificância, inutilidade, desesperança, desejo das coisas que via nas vitrinas.
Bem, compraria agora um carro, ou qualquer outra coisa que desejasse! Dentro
de muito pouco tempo, veria seu nome nas seções de livros de famosos jornais
metropolitanos. Veria os anúncios de seu livro. O mundo o conheceria e lhe daria
o que quer que desejasse... Aonde quer que fosse, seria conhecido!
Passou vários dias em Nova York em meio a uma nuvem de júbilo.
Comprou um terno realmente bom e novos sapatos ingleses. Foi aos teatros e aos
melhores restaurantes. Comprou um monte de livros. Passou um dia no
Metropolitan Museum e visitou o Planetarium. Subiu e desceu a Quinta Avenida
no andar superior do ônibus. O aroma, os sons e as vistas da cidade eram para
ele um delírio de expectativa.
Não querendo ser “cacete” ou “forçar”, não mais visitou o Sr. Hawkins,
embora o editor se admirasse com sua ausência. Mas passou uma e muitas vezes
pelo edifício onde se localizava o escritório da Thomas Ingham’s Sons, como se
passa por um templo que abriga uma santa alegria. Certa ocasião, viu o Sr.
Hawkins no momento em que este saía do edifício e escondeu-se no umbral de
uma porta, rezando para que não tivesse sido visto. O Sr. Hawkins, naturalmente,
o receberia de cara feia. Não era interessante incomodar ninguém. Não lhe
ocorreu que se comportava exatamente como seu pai fazia ao ver o pobre e velho
Sr. Farley, nem soube que seus pensamentos eram quase idênticos aos do
progenitor.
Voltou a Bison com a cabeça febril, fervilhando de planos.
Imediatamente ao chegar, telefonaria para os jornais locais. Eles ficariam
satisfeitos em saber que um natural da cidade se distinguira tanto. Eles se
rejubilariam com ele. Veria o seu nome nas páginas dos jornais, talvez sua
fotografia. Queria que sentissem orgulho dele.
E veria Jessica Bailey. Ao lado dela, naquela sala, veria na face de
Jessica o que ansiava por ver em todas as faces, embora fosse algo que ele ainda
não sabia.
CAPÍTULO 69
De uma cabina telefônica na estação de Bison ligou para os jornais. Os
repórteres a quem foi encaminhada a chamada mostraram-se devidamente
surpresos, satisfeitos e congratulatórios. Se ele gaguejou, seus interlocutores
aparentemente não notaram. Se lhes pareceu ingênuo, mostraram-se polidamente
indiferentes, desde que eram jovens cínicos, que tinham também suas ambições
literárias. Marcaram um encontro para entrevistá-lo no apartamento no dia
seguinte. O Evening News sugeriu uma fotografia, com o que concordou
entusiasticamente.
A luz do sol da manhã enchia o tranquilo e agradável apartamento.
Lembrou-se de que não tomara ainda o café da manhã e preparou uma refeição.
Mas mal conseguiu comer. A excitação voltou-lhe, delirante. Se ao menos seu
pai estivesse vivo para que ele pudesse tapar a boca do velho idiota com a
notícia! Então ele era um “fracassado”, não? Simplesmente um “boca-mole”,
não? O rosto pálido e contraído do pai surgiu e ele gritou sua zombaria e triunfo
para o fantasma. Ficou abstratamente surpreso com a violência do ódio
apaixonado que nele explodira ao pensar no pai, no desprezo, no nojo. Estava
excitado demais, refletiu. Mas não conseguiu deter o jorro de fúria contra
Francis Clair. Por que estaria ele morto justamente naquele momento? Como
seria glorioso vê-lo rastejar e acovardar-se diante do filho naquele dia! Como ele
se mostraria servil e apaziguador, arrasado com a ideia de tanto dinheiro por vir,
tanto sucesso. Frank podia ouvi-lo dizer: “Ponha-o no banco! Ponha tudo no
banco. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Ponha-o no banco. Não
desperdice um tostão. Reduza suas despesas a nada, viva modestamente, não
gaste coisa alguma que não tiver de gastar. Mantenha baixa a cabeça, pois pode
ofender alguém. Aquele tal Hawkins... Você se comportou respeitosamente?
Nunca se sabe o que esses homens podem fazer se pensam que a pessoa está
tomando liberdades. Como foi que ele olhou para você? O que foi que ele disse?
O que foi que você disse? Você não devia ter dito isso! Talvez não publiquem
seu livro... Deixe-me ver esse cheque. É melhor entregá-lo a mim. Eu o
depositarei no banco para você. Ponha-o no banco!”
— Não porei coisa alguma no banco! -— exclamou Frank com enojado
ódio. — Gastarei cada níquel dele. Viverei, não morrerei como você morreu, seu
miserável e apavorado asno velho! Pegarei os preciosos dólares que você
adorava e “guardava” e comprarei um carro, todas as roupas que quiser, uma
passagem para um lugar a mil quilômetros daqui. Isso o faz ficar acovardado,
não? Você e suas cadernetas de depósito! O que foi que elas lhe deram, no fim?
Uma estreita sepultura em um cemitério, “guardado” entre estranhos, com uma
pedra barata em cima da cabeça e mato por todo o corpo. O que foi que você fez
com a vida, exceto esconder-se nos seus medos, como se fossem trapos? Pior
que tudo, o que foi que você fez comigo? Vendeu os anos de minha juventude e
acrescentou os dólares a uma pequena e bem arrumada coluna de cifras em suas
cadernetas de depósito.
Teve esperança de que os inimigos dos velhos dias lhe vissem o nome
nos jornais. Mas haviam sido inimigos tão insignificantes! E, com toda a
probabilidade, haviam-no esquecido inteiramente. Lamentou não ter inimigos
realmente importantes. Um homem, pensou, devia fazer alguns inimigos
respeitáveis para triunfar sobre eles e queimá-los de inveja. Eram quase tão
necessários quanto os amigos.
Logo que conseguiu controlar-se, telefonou para Jessica Bailey. Após
uma pequena demora, uma voz tranquila e um pouco baixa respondeu. Ela deu-
lhe os parabéns e sua voz tornou-se calorosa. Ainda assim, Frank sentiu certa
distração nela e ficou frio de apreensão. Mas a moça convidou-o a visitá-la
naquela tarde, às quatro horas.
O preguiçoso relógio chegou finalmente às três e meia. Frank chamou
um táxi e foi levado pelas quentes ruas, iluminadas pelo sol, até a grande casa.
Havia uma constrição na sua respiração. Sentou-se à beira do assento e
observou, através de uma névoa, a cidade esquentando-se ao sol. Seus
pensamentos tornaram-se incoerentes, caóticos. Embora o dia estivesse muito
quente, tremeu algumas vezes. Naquele momento, uma súbita dor, lembrada dos
dias da infância, desfechou-lhe um selvagem golpe no peito e, instintivamente,
com medo, levou a mão ao local. Em seguida, lentamente, com todo o cuidado,
recostou-se no assento e tentou acalmar a respiração. Pare, disse a si mesmo.
Aguente, ou você morrerá. A dor desapareceu, mas sentiu-se enfraquecido
depois.
Ao chegar, forçou-se a descer devagar do carro, embora sua vontade
fosse correr. Lembrando-se da dor, subiu a longa e curva passagem de
automóveis em passos comedidos. Ficou infantilmente desapontado porque a sua
velha inimiga Marie, a empregada, não lhe abriu a porta. Uma mulher mais idosa
levou-o à escura e desbotada sala de visitas. Jessica não se encontrava ainda ali.
Ele passou os momentos de espera examinando a sala, admirando-a, mas
sorrindo dela também. A sala precisava de um toque robusto de carmesim, de
uma mancha de escarlate, do brilho de um azul forte contra aquela parede
iluminada pelo sol. Notou que as árvores do lado de fora lançavam uma leve e
aguada luz verde pela sala.
Voltou-se, viu Jessica ao seu lado e sobressaltou-se. Depois, ficou
embaraçado. Quanto tempo estivera ela ali, observando-o, talvez sorrindo
divertida para si mesma? Enrubesceu e não conseguiu falar. Em seguida,
enquanto se entreolhavam no silêncio, notou que ela mudara.
Não pensara que Jessica pudesse mudar. Nos seus sonhos vira-a sempre
como naquele dia, vestida com um trajo de lã cinzenta, pérolas em volta do
pescoço, a face calma, composta e brilhante, o cabelo macio, ondulado, sobre a
testa branca e repuxado para trás em um nó baixo na nuca. Mas ela mudara.
Usava um vestido preto simples e nenhuma jóia. Estava muito pálida e magra e
parecia muito mais velha do que ele se lembrava. Somente os brilhantes olhos
escuros eram os mesmos, embora estivessem mais pensativos, algo mergulhados
em sombras cor de malva.
Ela disse alguma coisa e estendeu-lhe a mão. Ele apertou-a embotado.
Sentiu nos seus os dedos macios e lisos. Disse alguma coisa em resposta. Ouviu-
a convidá-lo para sentar-se. Ela sentou-se próxima. Recaíram ambos no silêncio.
Jessica cruzou os lustrosos tornozelos e ele lhe observou os pés estreitos dentro
das sandálias.
Sonhava em lhe contar a notícia. A face lisa e bela se iluminaria, ela
exclamaria qualquer coisa, seguraria sua mão nas dela e olharia para ele com
uma luz ofuscante nos olhos. Então, ele lhe confessaria que a amava, que nunca
a esquecera, que a queria. Ela sorriria tranquila para ele e diria... O que era
mesmo que ela diria? Esquecera. O sonho se dissipara e ela estava ali, distraída,
pálida, como se não estivesse absolutamente consciente de sua presença.
Ouviu as lentas batidas do relógio na parede e o quente farfalhar das
árvores do lado de fora das janelas altas. Sentiu o velho desânimo, o velho
sofrimento. O sonho fora uma mentira. Jessica não se importava, não era o que
se lembrava dela. Estava entediada com ele, pois era um estranho.
Jessica olhou-o tranquila e inescrutável. Em seguida, começou a falar:
— Não lhe posso dizer o quanto estou satisfeita... em saber de seu livro.
— A voz dela, porém, embora polida, estava morta. Os olhos dela examinaram-
no friamente, indiferentemente. Que tolo fora ele! Enquanto estivera planejando
e trabalhando, sonhando com ela, Jessica levara uma vida própria, da qual ele
não fazia parte. Fora presunçoso e ela estava provavelmente se perguntando por
que ele a procurara, afinal. Dentro de minutos teria que erguer-se, deixá-la e ela
murmuraria corteses palavras de despedidas.
Não, não podia acontecer dessa maneira! Não permitiria isso. Não se
deixaria roubar naquele instante. Forçaria Jessica e as circunstâncias a se
colocarem à altura de seus sonhos. Obrigá-la-ia a vê-lo, instilaria interesse
naqueles olhos.
— Tive esperança de que você ficasse satisfeita — disse. — Sabe,
pensei em você durante todo o tempo em que escrevi o livro.
Ela hesitou um momento e deu um pequeno sorriso.
— Isso é uma grande bondade sua. — Era aquilo incredulidade, repulsa
à sua impertinência? Estaria ela considerando-o um rústico sem educação,
tomando-lhe o seu tempo e atenção?
Em desespero, balbuciou:
— Sabe... eu... eu me lembrei de que você foi boa comigo. Eu... me
lembrei das cartas que me escreveu, dos telefonemas...
Ela respondeu e o tom de voz foi frio:
— Você não as respondeu.
Ela se lembrava disso! Sentiu naquele momento maior confiança, uma
renovada excitação.
— Eu... eu não quis tomar a liberdade. Eu era pobre... não tinha direito
de me impor a você. Entenda, você não sabe o que é ser pobre, suportar
humilhações e... — Sorriu lastimosamente.
Uma sombra opaca caiu sobre a face de Jessica e suas feições pareceram
menos claras e nítidas. “Você não sabe o que é ser pobre.” Ela sabia, e muito
bem, Deus era testemunha. O pai, James, irmão do tio, Wentworth Bailey, fora
músico, um desses músicos infelizes que vivem e respiram apenas para a música,
que têm o seu ser na música, mas são inteiramente incapazes de interpretá-la
com alma e paixão. Não, pensou Jessica, ele não foi realmente infeliz. Nunca
soube que era inferior. Pensava, quando se sentava ao piano, que transmitia aos
ouvintes o mesmo encantador delírio e glória que ouvia com seu ouvido interno.
Viu a sua bela e magra face, comovida, transfigurada, enquanto escutava a
majestade que era incapaz de transmitir. Mas nunca soube que não a transmitia.
Naquilo, pelo menos, Deus fora bondoso. Vagueara de cidade em cidade,
obtendo sempre contratos cada vez menos numerosos em cidades cada vez
menores, com um ar confuso e exaltado, com a luz do êxtase brilhando nos olhos
cansados. Via-o raramente. Ele nunca escrevia quando se ausentava de Nova
York. Mas, de alguma maneira, de algum jeito, aquele homem frágil e delicado
conseguira educar a filha em internatos de segunda classe, onde ela suportara a
indignidade de roupas ordinárias e muito pouco dinheiro para gastar.
Sim, fora pobre, mas não podia dizer isso a Frank Clair, porque, graças a
alguma sutil intuição, sabia que se lhe dissesse isso perderia valor aos seus
olhos. Olhou-o fixamente e suas pupilas escuras se dilataram. Ele era um idiota!
Quando o pai morrera, o tio condescendera em ir a Nova York para
assistir ao simples enterro. Pagara todas as despesas e a acompanhara de volta ao
apartamento, que vistoriou num rápido olhar. Observando-o, Jessica lembrou-se
das palavras do pai: “Ele vive como se fosse uma pedra.” Uma pedra cinzenta,
magra, monumental, coberta de líquen verde. Possuía olhos gelados,
encapuzados, e uma boca que parecia uma lâmina. Mas, curiosamente, parecera
interessado nela, perguntara sobre seu trabalho. Fizera, então, uma espantosa
sugestão. Queria que ela voltasse com ele para Bison, onde trabalharia como sua
secretária particular, cuidando de seus negócios. Em troca, dissera ele (e Jessica
não tinha meios de saber que o impressionara bastante e que o tio já a escolhera
como sua herdeira), ela residiria na sua própria casa e receberia um bom salário.
Jessica não era orgulhosa ou estúpida. Sentia um profundo respeito pelo
dinheiro. Aceitara imediatamente. Nunca tivera motivo para lamentar a decisão,
especialmente não naquele momento.
Esses pensamentos passaram por sua mente em uma questão de
segundos, enquanto Frank continuava sentado à sua frente, olhando-a com um ar
de orgulhoso sofrimento. Sentiu pena dele. Mas raiva, também. O que lhe
poderia dizer? Era evidente que ele dissera alguma coisa e que aguardava sua
resposta.
— Sinto muito — murmurou ela. — Acho que estava pensando em outra
coisa. Sabe, meu tio foi enterrado ontem. Morreu há quatro dias,
inesperadamente.
Frank ficou pasmo. Ela notou que a linha de seu queixo aparecia sob a
pele clara e notou o endurecimento desapontado da face magra. Com um
esforço, ele disse:
— Sinto muito. Se eu tivesse sabido, não teria vindo incomodá-la. —
Chegara ali tomado de tal alegre exaltação e, agora, estava derrotado, suas
notícias reduzidas a nada. Embaraçado, acrescentou: — Deve ter sido um
choque para você.
— Não, na realidade — respondeu ela em sua voz clara. — Meu tio era
um homem muito duro. Não posso deixar de me sentir assim a respeito dele,
mesmo que tenha acabado de saber que ele me deixou todo o seu dinheiro e tudo
mais que possuía. Sabe, ele poderia ter ajudado meu pai. — Interrompeu-se e
observou-o atentamente.
Frank, porém, mal a ouvira. Estava absorvido demais no seu próprio
esvaziamento e decepção. Disse alguma coisa convencional. Inesperadamente,
sentiu-se esgotado, exausto. Aquela moça não estava interessada nele. Era uma
mulher rica e o que ele tinha a oferecer-lhe nada era. Sentava-se ali, olhando-o
com um ar distante, obrigando-se a ser polida e desejando que ele se fosse
embora logo e a deixasse em paz.
Mas, pensou em desespero, não posso renunciar a ela! Jessica é tudo o
que eu já quis. É tudo quanto esperei, quanto me esforcei para obter, quanto
desejei.
Com tanta clareza como se ele houvesse falado, Jessica acompanhou-lhe
os pensamentos e ficou doente de raiva. Por que perco meu tempo com ele? Por
que não me levanto e simplesmente lhe digo para ir embora? Ele é um esnobe e
um tolo, tão sem convicções como uma criança boba. Ele está todo errado!
Ergueu-se lentamente e seus olhos relampejaram.
— Por que não me veio ver antes? — perguntou em voz dura e severa.
— Por que esperou até agora?
A expressão dele tornou-se sombria quando respondeu:
— Porque eu nada era. Porque teria sido uma insolência vir aqui antes de
haver realizado alguma coisa. Você descobriu o que eu era quando me viu pela
primeira vez. Eu vendia meias à sua porta. Se eu tivesse vindo antes, você teria
todo o direito de me expulsar a pontapés. Eu queria vir aqui como um igual.
Queria ter o direito de vir.
— Eu lhe dei esse direito quando lhe escrevi e lhe telefonei.
— Você estava sendo apenas bondosa — disse ele.
Ela fitou-o, incrédula. Seria ele tão tolo assim? Seria possível ele ser tão
idiota? Frank, porém, fitava-a, cheio de confusão, como se tentasse compreendê-
la e não conseguisse.
— Você quer dizer — disse ela revoltada — que pensou que não “tinha
direito” porque era pobre e ganhava a vida vendendo meias? Eu lhe disse que
tinha amigos que faziam a mesma coisa e que não perdiam... casta... ou qualquer
outra coisa, por esse motivo.
— Mas seus amigos eram diferentes. Eles haviam possuído dinheiro.
Tiveram educação. Era apenas uma questão temporária. Mas eu nada fui desde o
começo.
— E você pensa que é diferente agora?
— Penso — disse ele, com simplicidade, sombrio. Ela notou-lhe os
olhos, que pareciam pedras azuis, e mais uma vez pensou no tio. Ele continuou:
— Meu pai era um pequeno e miserável farmacêutico. Minha mãe, uma
costureira. Eu fiz todos os tipos de trabalho. Fui obrigado a adquirir, por mim
mesmo, uma espécie de educação. Nunca tive coisa alguma até recentemente, até
agora.
Ele me odiará, pensou ela, se eu lhe garantir que ele não significa para
mim nem mais nem menos hoje do que na primeira vez em que o vi. Se eu lhe
disser o que ele conseguiu não tem importância para mim, ele sairá desta sala e
nunca mais me procurará e se lembrará sempre de mim com desprezo.
Achou que o desprezava. Achou que ele a insultava. Disse:
— Você deve ter uma opinião muito baixa de mim para pensar que o que
você foi importa em absoluto.
Ele sorriu de modo desagradável.
— Porque — repetiu ele — você não sabe o que significa ser pobre.
Ela contraiu os lábios numa dura linha e observou-o com atenção.
Depois disse:
— Li seus contos em várias revistas.
Ele enrubesceu e respondeu:
— São baboseiras.
Viva e secamente ela replicou:
— Estou satisfeita porque você pensa assim. Achei o mesmo. Fiquei
embaraçada. De alguma maneira, eu sabia que você podia fazer melhor do que
aquilo. Espero que seu livro constitua um melhoramento.
Enfrentaram-se como furiosos antagonistas.
— A editora que vai publicá-lo acha que sim — disse ele em voz
amarga.
— Sobre o que é?
Contou-lhe em curtas palavras. Ela escutou sem despregar os olhos dele.
— É uma premissa tola essa sobre a qual construiu seu silogismo de
culpa pela guerra — disse ela quando ele terminou. — E, de alguma maneira,
acho que você sabe disso. Você sabe muito bem que as guerras e todas as demais
calamidades têm origem na ruindade, na maldade, na culpa de todos os homens,
em todas as partes do mundo. Você sabe que é o ódio do homem pelos outros
homens que o transforma em tal animal. Você sabe disso, não?
Ele empalidecera muito. Respondeu:
— Sim, eu sei. Mas isso não é o que o povo quer ouvir. O povo quer
jogar a culpa em alguma coisa, em alguma pessoa, pelos seus próprios crimes. E
um escritor ganha dinheiro dizendo-lhe o que ele quer ouvir, fornecendo-lhe um
bode expiatório. — E acrescentou malevolamente: — Uma vítima, ou um
romance, preferivelmente cheio de fornicação ou adultério. É isso o que ele quer
e é isso o que lhe vou dar.
— Ora, então você é um cáften! Você... é uma pessoa vergonhosa!
Ele notou-lhe a fúria, a incredulidade, e não conseguiu falar.
— De que modo pode escrever essas coisas? — exclamou ela. — Por
que não teve você, ou qualquer escritor, a decência de escrever: “Você, que me
lê, é culpado da crueldade, do ódio, da maldade, das mentiras e impiedade que o
cercam. Você, apenas você, é o culpado. É você quem recompensa os
assassinatos, é o indivíduo que tolera os campos de concentração e as guerras.
Você cria o político criminoso, o traidor da paz, o assassino, o ladrão, o
trânsfuga, o ditador. Porque você odeia. Olhe para si mesmo e reconheça o que
é?” Por que não escreve isso?
A boca de Frank tornou-se feia.
— Porque quero dinheiro — respondeu. Porque quero você, acrescentou
para si mesmo.
Notou que a face lisa de Jessica se tornara escarlate de emoção e que
seus olhos estavam em fogo. Ficou pasmo com a veemência de sua voz, pois a
julgara uma pessoa controlada, fria, invulnerável, feita de carne diferente. Havia
querido aquela carne diferente, que não conhecia o medo, que era forte e
invencível, de uma humanidade diferente, simultaneamente preciosa, superior,
imune. Subitamente, odiou-a, ficou enfurecido com ela por revelar-se não mais
do que ele mesmo e todos os demais que conhecera. Ela era uma combinação do
velho Tim Farley, de Wade O’Leary e do Sr. Preston, que achavam que o
primeiro dever do homem era para com seu irmão. Era uma dessas sentimentais
que pensavam que, para o gordo e satisfeito prazer delas, o “artista” devia
contentar-se em trabalhar e morrer de fome numa água-furtada, sem exigir outra
recompensa além da satisfação de dar-lhe sustento e “inspiração”. Era uma
dessas sentimentaloides que não acreditava em que um escritor merecia ganhar a
vida.
A expressão dele tornou-se, nesse momento, brutal e selvagem. A sua
natureza era lenta em enfurecer-se, mas vingativa e implacável quando
finalmente provocada. Não sentiu pena, nenhum medo, quando compreendeu
que a havia perdido e tudo o que ela era, pois não acreditava em que pudesse
querer uma pessoa tão degradantemente igual àqueles que desprezava pelo seu
sentimentalismo. Ela era grosseira e comum. O que amara nela — sua
compostura, seu ar distante, sua imaginada superioridade — não existia, ou
existira apenas em sua desenxabida imaginação.
Sem medo algum dela nesse momento, falou em voz dura e baixa:
— Quero dinheiro porque o dinheiro me ajudará a escapar daqueles que
odeio, porque me libertará da necessidade de vê-los, de cheirá-los. Você não
conhece os pobres, não pode imaginar como são horríveis. E posso conseguir
dinheiro apenas dando ao povo o que ele quer e ele paga apenas àqueles que o
servem. Não sou um tolo impudente. Não sou tão impertinente a ponto de pensar
que sei o que é “melhor” para o público e não tenho o direito de enfiar pela
garganta dele coisas que não quer.
Ela se tornara muito imóvel, mesmo pensativa, enquanto ele falava.
Sentou-se novamente e ergueu para ele olhos tranquilos e firmes. Disse quase
com indiferença:
— Você fala de uma maneira tão desafiadora, como se querer dinheiro
fosse, de certa forma, imoral. Isso é sentimentalismo.
Ele ficou surpreso, pasmo. Esperara qualquer coisa, menos isso. Pôde
apenas fitá-la em silêncio, com as sobrancelhas contraídas.
Ela riu um pouco, abruptamente.
— Sim, sentimentalismo, e um pouquinho afetado. Veja, você sabe que
quer dinheiro e que o quer ardentemente, mas, ainda assim, alguma espécie de
metodismo em seu pensamento subconsciente tenta dizer-lhe que querer dinheiro
é um tanto perverso e você se mostra infantilmente desafiador. Isso é muito tolo.
Está bem, então, você quer dinheiro — continuou ela. — Não há nada de
desonroso nisso, nada de vil. Todo homem sensato quer dinheiro. Eu poderia
mesmo dizer que todo homem moral o quer. Acho que o imoral é não querer
propriedades e riquezas em maior ou menor grau. Não querê-las demonstra que
o homem não tem respeito próprio e nenhum desejo de bem-estar. Faltando-lhe
essas virtudes, ele tampouco poderá ter qualquer uma das outras. Isso, sim,
torna-o imoral, a menos que ele seja um asceta ou um santo. Um homem pobre
deve ser desprezível aos olhos dos anjos, “pobre” em tudo.
Mais surpreso do que nunca, Frank sentiu-se subitamente satisfeito e
aliviado. Estava enganado, então. Ela era realmente superior, sentia um desprezo
próprio pelos paupérrimos e os sem-remédio. O que não sabia era que ela lhe
lera agudamente os pensamentos. Nesse momento, ela contraiu as sobrancelhas
escuras. Não posso alcançá-lo, disse a si mesma. Ele vê um significado
inteiramente diferente em tudo o que digo.
Continuou:
— Querer dinheiro, então, por questão de respeito próprio e bem-estar, é
virtuoso e moral. Mas acho que você não quer dinheiro por questão de respeito
próprio ou de bem-estar, e isso é que é imoral.
— Para que o quero, então? — Perguntou ele irado.
— Não sei. E é isso o que eu gostaria de descobrir. Eu posso estar
enganada, mas acho que você pensa que ter dinheiro o “elevará” a alguma classe
superior, ou a alguma coisa, e o libertará de algo que odeia. Em suma, acho que
suas razões para querer dinheiro são revoltantes e é isso o que o torna perigoso,
não apenas você, mas o que você escreve.
Ela lançou um olhar para a caixa de cristal ao seu lado sobre a mesa. Ele
abriu-a, deu-lhe um cigarro e tirou um para si. Acendeu ambos e soprou o
fósforo. A empregada entrou com uma bandeja de prata onde havia um sifão de
soda, uma garrafa de uísque e dois copos. Jessica lançou-lhes um olhar quando a
empregada saiu. Frank serviu duas bebidas e entregou um copo a Jessica.
Sentou-se e tomou pequenos goles. Jessica parecia tê-lo esquecido, tão pensativa
estava. A excitação inicial e o senso de poder de Frank, porém, haviam voltado.
Não sentia mais apavorado respeito por ela. Ela voluntariamente se aproximara
demais dele para que isso pudesse acontecer agora.
— Não há perigo em coisa alguma que escrevo. Há apenas dinheiro —
disse Frank, sorrindo-lhe indulgente.
Ela, porém, contraiu as sobrancelhas, como se o julgasse infantil.
— Quando li suas histórias nas revistas, elas me deixaram inquieta.
Achei que via nelas alguma coisa que podia — interrompeu-se — ser liberada.
Sei que se trata de uma palavra sentimental, mas não consigo pensar em outra.
Algo faltava em seu trabalho, mas havia nele uma sugestão dessa coisa, aqui e
ali.
Frank ficou novamente irritado. O Sr. Mason, o Sr. Preston... ambos
haviam falado de “algo que faltava”. Aquilo começava a se tornar irritante.
Nesse momento, sem nenhuma razão, viu a face fria e magra e os claros olhos
azuis do Sr. Hawkins.
Jessica perguntou quase preguiçosamente:
— Do que é que você tem medo, Frank?
Medo! Todos eles voltavam àquilo em um monótono e estúpido
estribilho.
— Não tenho medo de coisa alguma — respondeu furioso.
— Mas você tem. E é por isso que tem tanto ódio. E porque odeia, você
é perigoso. Você e Hitler devem ter muita coisa em comum. É uma pena que
vocês dois não se possam encontrar. Ele vive apavorado e, por isso, odeia, e
porque odeia, precisa de uma vítima. Ele é sintomático do povo alemão,
sintomático de todo o mundo. Do que é que todos nós temos medo? Às vezes,
penso que sei. Temos medo um do outro, porque sabemos o que somos. Sabemos
que somos horrendos, ímpios, sem remédio e completamente maus. Somos como
prisioneiros condenados que se olham furiosos por trás das grades. Sabendo o
que existe em nossa mente, sabemos o que há na mente dos demais. — Pôs a
bebida do lado e fitou-o sombriamente. — Você sabe, naturalmente, que haverá
uma guerra. O atacante alegará que foi atacado. Porque quer matar. E quer matar
porque odeia, e odeia porque tem medo.
— Não haverá guerra — disse mal-humorado Frank.
— E se houver, você não se importará, não é?
— Não. — E acrescentou amargamente. — Você está enganada. Não
tenho medo de coisa alguma.
Levantou-se. A velha e misteriosa depressão descera novamente sobre
ele, a velha vacuidade, a indiferença, o sofrimento. Jessica observava-o.
— Você devia saber — disse ela suavemente — que apenas você
importa. Se vai dizer alguma coisa importante, que ajude a todos nós, você
precisa começar consigo mesmo.
Ele riu, desdenhoso:
— Agora você está sendo sentimental, novamente. Não sabe que
nenhum escritor tem a menor importância? Um bocado de idiotas pensa que os
escritores têm importância, poder, valor. Não têm. Fui obrigado a aprender isso.
— Mas acreditou nisso certa vez, não?
Ele permaneceu calado.
Jessica suspirou:
— É uma pena. A coisa toda é subjetiva, como você sabe, e acho que, se
um homem acredita em que tem valor, ele realmente tem. — Ergueu-se e
estendeu-lhe a mão. Tinha os olhos tristes. — Por favor, perdoe-me se o ofendi
de alguma maneira. Mas pareceu-me imensamente importante para mim... para
mim... — Não conseguiu continuar. O que quer que pudesse dizer pareceria
grandiloquente ou íntimo demais.
Ele segurou-lhe a mão e disse:
— Posso visitá-la novamente, em breve?
— Sim, naturalmente. — Ela parecia muito cansada.
Bastava soltar-lhe suavemente a mão e ir embora. Mas no exato
momento em que seus dedos a soltavam, algum impulso fê-lo segurar-lhe com
mais força a mão. Sentiu a pulsação na carne dela. Viu-lhe a face pálida e
cansada, os belos olhos escuros e os lábios finamente modelados. Esqueceu seus
medos, suas desconfianças, seu embaraço, sua inferioridade. Exclamou:
— Jessica! Oh, Jessica!
Como era terrível, como era ridículo que ele e ela se olhassem assim,
como estranhos, como duas pessoas que casualmente se encontram e vagamente
se despedem, sem interesse algum! Não se importou se iria ofendê-la naquele
instante, ou com qualquer outra coisa. Continuou, em voz alta e rápida:
— Jessica, isto tudo está errado, tudo isso que dissemos um ao outro.
Você provavelmente vai expulsar-me a pontapés, mas preciso dizer-lhe. Durante
todo este tempo, enquanto trabalhava, eu pensava em você, queria você e vivia
para a ocasião em que poderia estar aqui com você. Acho que tudo isto... o que
tentei fazer... não significa muito para você e que acha que fui um tolo. Talvez eu
tenha sido. Não sei. Mas coisa alguma importa, salvo querer estar com você e
esperar que não me mande embora, que me deixe vir aqui falar com você
algumas vezes...
A face de Jessica mudou. No começo, ela tentara retirar a mão, que
agora estava na dele, tranquilamente, quase cálida. Ela sorriu, a boca suavizou-se
e seus olhos brilharam. Ouvia-o com grande ansiedade, expectante. Aproximou-
se um pouco dele.
Frank tomou-lhe a outra mão. Ela lhe sorria ainda, com a cabeça erguida
para ele.
— Você perdeu tanto tempo até chegar a isto! — disse ela com um
pequeno e rápido riso. — Estive sentindo um profundo sofrimento nos últimos
dias. Esperei que você viesse. E depois, tudo o que pudemos fazer foi iniciar
uma discussão política, como dois idiotas! É espantoso, não, que nos tenhamos
visto apenas duas vezes e, ainda assim, pareçamos saber tudo um sobre o outro?
As mãos dele apertaram as delas.
— Você está enganada, Jessica. — Falava em voz opressa. —
Encontramo-nos há muito tempo. Pensei que fora um sonho até o dia em que
vim aqui vender-lhe meias e reconheci esta casa.
— Eu sabia! — exclamou ela. — Mas onde foi? Eu também comecei a
pensar que fora um sonho.
Ele lhe disse e ela escutou com atenção, tentando lembrar-se. Mas não
adiantou. Ela não conseguiu nem mesmo lembrar-se do vestido rosa e da fita
rosa no cabelo. O que poderia ela dizer-lhe para que ele não ficasse
decepcionado demais? Compreendeu então que os detalhes não importavam.
Lembrou-se dele, obscuramente o reconheceu, embora as circunstâncias do
primeiro encontro como crianças nunca lhe ocorressem.
Disse apenas:
— Parece-me que sempre o conheci. E algo que parece retroagir à
eternidade.
Ergueu os lábios para ele, com simplicidade, e ele beijou-a. De certa
maneira o beijo foi virginal, pois o que Frank conhecera antes sobre mulheres
nada fora, ou fora náusea, repulsão. Ali havia paixão e realização. Era diferente
de tudo o mais que havia conhecido, e incrível.
Disse:
— Amo-a. — Nunca em sua vida havia pronunciado aquelas palavras e
sentiu espanto. Repetiu-as pelo milagre que eram: — Amo-a, Jessica.
— Amo-o também, Frank — respondeu ela, erguendo novamente os
lábios para ele.
Ninguém jamais lhe dissera isso em toda a vida, nem mesmo sua mãe.
Não podia acreditar nisso.
— Diga isso novamente, mais uma vez, Jessica.
— Amo-o — repetiu ela, e havia lágrimas em seus olhos. — Frank, eu o
amo pelo que você é, e por nada mais. Simplesmente por você, Frank. Precisa
lembrar-se disso.
CAPÍTULO 70
Frank Clair percorreu as ruas de Bison e não as viu. Quando era criança,
andara assim, perdido, mas vivo, transfigurado, cego. Certa vez, quando tinha
dez anos, lera uma história sobre jovens mendigos que haviam achado estranhas
pedras ou joias nas ruas que, quando reviradas, revelavam uma palavra mágica
que lhes dava o mundo. Durante anos, depois disso, procurara em becos, ruas e
sarjetas o maravilhoso amuleto.
Encontrara-o, sabia, porque alguém o amava. Para alguém, ele era o
bem-amado, o amado acima de todos os demais. “Eu o amo pelo que você é”,
dissera ela. Ele não tinha necessidade de “provar” o que era, não havia
necessidade de trazer presentes para subornar, atrair, despertar admiração.
Bastava-lhe ser ele mesmo, ser Frank Clair. Aquilo não parecia possível. Era um
milagre.
Parece-me um milagre, pensou, porque, sem que eu soubesse até este
minuto, sempre acreditei em que não era ninguém, em que não podia ser amado
pelo que sou. Sentia-me sempre compelido a apaziguar, a fazer o que os demais
desejavam, a aplacar, a comprar uma relutante aceitação. Por que foi assim?
Teria isso acontecido porque meus pais me inocularam com a crença de que eu
nada valia, era um fracasso, alguém a ser desprezado, uma espécie de monstro?
Se foi assim, por que acreditei neles? E por que levei todos estes anos para
compreender que tenho membros, sistemas e órgãos como os outros homens e
que, como eles, posso suportar ser rejeitado ou aceito? Por que sempre tive tanto
medo? Posso olhar agora para o meu medo e reconhecer que sempre o tive
comigo, mesmo quando mais o desprezava. Eu o repudiava. Mas sempre esteve
comigo. Até agora.
Continuou a caminhar. O sol transformou-se em uma grande bola
vermelha e redonda a espiar por entre as árvores. Mas não o viu. O fantasma de
seu pai caminhava ao seu lado. Caminhara antes e, quando o fizera, havia-o
envilecido, profanado, detestado. Mas, naquele momento, arrastava-se ao seu
lado, patético, solitário, muito cansado. Sentia-o ali, mas não o odiava. Pensou:
Meu pai passou por estas ruas, mas ele via alguma coisa que não vejo agora,
embora saiba que a vi muitas vezes antes. Ele via o Medo.
O que deve ter sido aquilo, ter conhecido aquele medo, ter vivido com
ele, ter sentido a sua fedentina corruptora em todos os cômodos, em todas as
ruas, em todos os bondes, em todos os corredores? Tê-lo visto em todas as faces,
brilhando na luz das janelas, em todas as portas, na própria sombra das árvores,
nas esquinas de todas as casas, nas formas e aparência de todos os estranhos!
Ter-lhe ouvido o eco em todas as vozes, em todos os passos, no farfalhar da
folhagem, no ruído de todos os veículos que passavam, em todos os risos, grites
ou exclamações, ao amanhecer, ao meio-dia, à noite!
O que deve ter sido para Francis Clair aquele mundo, aquele sol, a lua e
as estrelas? Um universo de medo, de apreensão, de terror, transbordante de
grotescas ameaças, de presságios agourentos, de significação sinistra e pessoal.
Que horrível e patético egoísmo deve ter levado Francis a acreditar em que a
vastidão da vida era dirigida contra ele com malévola intenção, como um único
olho gigantesco voltado para ele, como uma grande mão erguida para esmagá-lo,
nivelá-lo, obliterar-lhe a vida! Não era de espantar que houvesse entesourado
talismãs contra aquela enorme ameaça que queria, a todo custo, destruí-lo: patas
de coelho, moedas furadas, trevos de quatro folhas, uma corrente tecida com
grama seca. Não havia humor nas suas centenas de gestos mágicos para aplacar
ou enganar o destino malévolo, um universo resolvido a frustrá-lo, derrotá-lo,
obliterá-lo. Contaminara a pobre Maybelle com seus obscuros, mas profundos
terrores e aquela jovem mulher, normalmente sadia e corajosa, de tanto medo se
tornara uma bruxa lamurienta e cruel. Transformara a esposa em uma trêmula e
brutal sombra de si mesmo, preocupada com amuletos e todos os fetiches
necessários para esconjuntar o destino cruel.
Como podiam ter eles vivido daquela maneira? Por que não haviam
morrido antes de surgirem esses terrores? Somente a resistência intrínseca do
corpo humano, a substância férrea do cérebro devia tê-los conservado vivos em
meio àquela selva de ameaças e morte instantânea. Lembrou-se deles, correndo
frenéticos pela casa ao ouvirem um som diferente de uma campainha ou uma
batida à porta. Viu-os baixar rápida e freneticamente as venezianas, olhar
furtivos pelos cantos das cortinas de renda, ou correr para um quarto dos fundos,
onde sussurravam entre si como fugitivos da Polícia, com as faces pálidas na
escuridão, os olhos forçados, as mãos crispadas. O visitante, o vendedor, o
vizinho finalmente iam embora, mas passava-se muito tempo antes que as
venezianas fossem erguidas, a cortina não se enfunasse mais, empurrada de
dentro, a porta se abrisse e as vozes pudessem, uma vez mais, subir acima do
sussurro.
Meu Deus! pensou Frank, apressando o passo nas quentes calçadas de
julho. O que tinha havido com eles? O que haviam temido? As calamidades que
se abatem sobre todos os homens? Por que não puderam compreender que a dor,
o sofrimento, a perda e a morte são o destino comum e que o homem pode
desenvolver fortaleza e fé para combatê-los? Por que acreditaram em que eles,
somente eles, haviam sido escolhidos para o horror e a destruição? Bastava-lhes
ter olhado em volta para ver espectros em todas as portas. Mas, nas outras casas,
homens e mulheres riam, amavam e corajosamente tentavam esquecer o último
momento, inevitável, quando teriam que atender a sombria batida à porta.
Pensou novamente nos pais e, dessa vez, sem ódio. O ódio se
desprendera dele como se fosse feito de crostas de ferida e, embora as cicatrizes
permanecessem, começavam as feridas a sarar. Pensou nos pais com pena,
compaixão, dor. Lembrou-se da crueldade deles e disse para si mesmo: Foram
cruéis porque tinham medo. Odiavam e desconfiavam de tudo porque tinham
medo.
Olhou em volta e ficou surpreso. Chegara a The Front, a um banco ao pé
da grande colina verde que descia até os trilhos e o rio. Sentou-se. O rio,
misteriosamente sombreado sob o sol que se punha, corria em longas ondas cor
de ametista. Como ondas, também, fogo escarlate subia palpitante no alto dos
céus. Uma luz efêmera, espectral e suave, como um véu cinzento, movia-se
sobre a terra. As árvores estavam envolvidas em quente e escuro silêncio. Uma
brisa correu pelo ar que esfriava e Frank sentiu-a na face. Acendeu um cigarro. A
paz e a tranquilidade desceram sobre ele. Olhou para a água corrente e o céu
incendiado e viu-os como os havia visto na infância, profundos, pressagos,
cheios de significação e majestade, não mais inexpressivos, não mais pintados,
não mais vazios.
Sim, pensou, meus pais odiavam porque tinham medo. É horrível ter
medo. É horrível saber que alguém nos teme. Meu pai começou temendo a
própria mãe. O medo aumentou e enegreceu o mundo em volta. Tornou-o cruel e
brutal. Finalmente, matou-o, mas não antes que ele destruísse minha mãe e quase
me destruísse.
Sem dúvida alguma, pensou, quando um homem nos teme, podemos
considerar-nos como um dos amaldiçoados por Deus. Se somos brancos e o
negro vive apavorado conosco, se somos gentios e o judeu se esconde por nossa
causa, se um vizinho nos observa apavorado as idas e vindas, se uma face se
ensombrece de preocupação ao nos ver, então estamos condenados e tudo o que
fazemos, tudo em que acreditamos, tudo em que pensamos, todas as nossas
vigílias, o nosso sono, tudo o que contemos e bebemos, o nosso lar e os nossos
filhos são amaldiçoados e execráveis e vivemos sob ameaça de morte.
Olhou para o céu e percebeu um grande silêncio e um grande medo. O
medo cobria o mundo naquela calma e encantadora noite. Lançava sua sombra
de ódio por todas as cidades, todos os mares. Por que odiava o homem sua
própria espécie? Que mal nascera nele que o levava a querer destruir seu irmão?
Isto porque todos os homens eram irmãos. Não havia aí mistério transcendental
algum, uma invenção de santos ou anjos. Era um fato vivo e irrefutável. O
sangue do branco, do negro, do chinês, do francês ou do inglês eram idênticos e
nenhum cientista, com todos os seus testes e tubos de ensaio, havia conseguido
identificar a menor diferença. O selvagem mais negro das escuras florestas da
África pode trocar o sangue com o branco patrício do mesmo tipo sanguíneo e o
sangue de ambos se harmoniza. O sangue do homem é um elo com todos os
outros homens. Por que então o seu espírito se ergue em inimizade eterna com o
espírito de seu irmão?
Estará o segredo em mim mesmo? perguntou-se Frank. Será cada
homem realmente um microcosmo de todos os demais? Eu odiava porque tinha
medo. Por que temia? Não sei. Sei apenas que nunca tive causa real para temer
coisa alguma. Mas nunca fui suficientemente forte e corajoso para suportar o
choque da realidade. Por que as Igrejas não sabem que não é a humildade animal
do homem que deve ser cultivada, mas sua convicção secreta e íntima de que é
um espírito heroico, invulnerável, imortal, forte? Ele sabe disso quando é
criança, pois nessa ocasião está mais perto do céu e da fonte da vida. As Igrejas
precisam começar com as crianças, pois logo que a criança teme, inicia seu
caminho para a destruição e se transforma em instrumento da destruição de seus
irmãos.
Não o temor de Deus, mas o amor de Deus. Não o desejo ardente das
coisas do medo: o dinheiro, a posição, o poder, mas o desejo ardente das coisas
do espírito. Quando olha para o céu, a criança sonha, mas não sonha com a
riqueza, a segurança, o domínio sobre os demais. Sonha com mistérios e lembra-
se. Mas, quando lhe é ensinado o medo por aqueles que esqueceram, ela se curva
como um símio e apanha uma pedra.
Não tenho medo agora, de coisa alguma, pensou Frank, porque alguém
me ama. Há algumas horas eu cambaleava nas trevas, inteiramente perdido. Mas
alguém me ama. O medo que eu sentia desapareceu porque amo, também. A vida
me voltou, cheia de perspectiva e cor. Posso escrever novamente como escrevia
antes.
Teve uma sensação de pura alegria, paz e esperança. Eram o céu e o rio
que estavam tremendo de luz ou era apenas o tremor radiante que havia em si
mesmo? Não sabia. Nesse momento, nos trilhos embaixo, ouviu o longo lamento
de um trem que se aproximava. Sentiu uma vibração no ar. O lamento tornou-se
mais claro, mais alto, mais desesperado. Escutou-o, mas não tapou os ouvidos
com as mãos, como sempre fizera.
Eu sou livre, pensou. Sou livre como era em criança. Sinto minha força,
minha invulnerabilidade e, assim, não posso ter medo. Coisa alguma pode ferir-
me, salvo meu próprio medo e porque o medo desapareceu, sou invencível. Não
posso odiar coisa alguma porque não tenho medo de homem algum.
Algum dia encontrarei Paul e lhe contarei isso. Sei que o encontrarei.

//
As ruas estavam escuras e sossegadas sob a quente e branca lua. Árvores
farfalhavam e murmuravam. Frank ouviu vozes nas varandas das casas por onde
passava. Ouviu o chiado de carros na rua e viu luzes nas vitrinas. Viu e ouviu
tudo isso em um estado de exultação. Sua mente ardia com a visão de um novo
livro. Tinha-o pronto e acabado naquele instante. Contaria a história do
crescimento do medo em si mesmo, do terror e, finalmente, do ódio. A guerra
pairava como uma asa negra sobre o mundo. A guerra viria, pois o medo do
homem fora longe demais. Mas, talvez, depois de passada a loucura, houvesse
esperança. Se ao menos o homem pudesse compreender! Se ao menos pudesse
olhar para seu irmão e conhecê-lo! Talvez não fosse tarde demais, mesmo
naquele instante. Talvez não fosse tarde demais mesmo em meio à tempestade
rubra da loucura. Se apenas uns poucos escutassem, talvez não fosse tarde
demais. Farei o que puder, pensou Frank. Posso ser uma única voz, mas talvez,
no deserto, vozes até então silenciosas se ergam e se juntem à minha.
Aumentava o vento do verão e as folhas das árvores se ergueram para
recebê-lo. Frank chegou a uma esquina e viu diante de si uma grande árvore,
sozinha em um longo e escuro gramado. Observou-a, parado na rua. Seu coração
estendeu-se para ela como se estendera outrora para todas as árvores e todas as
coisas. Estendeu-se como uma onda de amor e luz, comunicando-se, chamando,
abraçando, abrangendo, numa longa onda de paixão, de desejo, de
conhecimento. A árvore permaneceu silenciosa sob a lua, com todas as suas
folhas imóveis, todos os ramos pesados de sonhos e escuridão. O vento, nesse
momento, tocou-a e quebrou-lhe o estático silêncio; inesperadamente, a árvore
moveu-se como um ser senciente que desperta de um sono e transformou-se em
movimento, em um ser fluido, em vida plena. De seus ramos, das profundezas de
seu ser, irrompeu um rugido profundo e suave, uma voz, como se replicasse,
como se respondesse ao chamado de Frank. As folhas transformaram-se em
prata brilhante à luz da lua, uma imensidão de pequenos e vividos pontos
brilhantes, espelhos luminosos de glória, bruxuleantes, tremeluzentes.
O vento escuro e argênteo tocou Frank nesse momento, correndo em
volta e por ele como um mar encapelado. Sentiu-o, olhou para a árvore e algo de
sua antiga e apaixonada exultação respondeu à noite, algo da velha alegria,
êxtase e embevecido reconhecimento.
Mas soube também enquanto olhava para a árvore, chamava-a e a árvore
respondia, que nunca mais possuiria a maravilha e o encantamento do mundo.
Os anos haviam aberto um negro abismo entre ele e sua mocidade e não havia
maneira de transpô-lo. O globo de sua infância rolou para o espaço estriado pelo
arco-íris; era um sonho, um encantamento. Eram glória e deleite completos.
Nunca mais, contudo, seriam conhecidos por ele porque era um homem e sabia
que o encantamento e a magia não são da idade viril e que o “esplendor da relva”
está reservado apenas para os olhos das crianças.
Nunca mais andaria pelas ruas e desviraria uma pequena pedra ou um
pedaço de papel, esperando encontrar a palavra mágica que lhe daria o mundo, a
realização de seus sonhos, as torres luminosas do encantamento, os jardins de
Circe. Nunca mais acreditaria em que havia ilhas de arrebatador encanto à espera
do descobridor, transbordantes de doçura, êxtase e encanto. Nunca mais galgaria
uma colina esperando encontrar do outro lado paredes de mármore e portões
dourados e uma cidade onde pisavam os anjos, vestidos de ouro, com o sol
tocando-lhes as faces. O mundo era pequeno, duro e concreto de realidade. Não
havia colunas brancas banhadas pela luz da lua a serem encontradas em um
campo abandonado e nem montanhas que ressoassem com música. O que havia
no mundo para ser conhecido ele sabia e não existia local algum “envolvido em
luz celestial”.
Mas para o homem de boa vontade, o homem que amava e não odiava, o
homem que conhecia a compaixão, a dor e a compreensão, restava a suave
esperança, a doçura da simpatia, o fruto da paz. A vida para ele nunca mais seria
tão radiante como a “glória e o frescor de um sonho”. O êxtase não mais seria
sua companhia entre o amanhecer e o pôr do sol. Mas para o homem de boa
vontade havia conhecimento e fé para viver e trabalhar de tal modo, que cada dia
encontrasse outra pedra de angústia removida de cima da humanidade, a fé em
que o medo e o ódio que a torturam e condenam à morte inexorável podiam ser
transmutados em confiança e amor — se apenas alguns homens o desejassem e
estivessem determinados a consegui-lo.
CAPÍTULO 71
Como era incrivelmente belo acordar pela manhã com esse vagaroso e
extasiante contentamento fluindo pela pessoa como água dourada! Sentir-se
pleno e realizado, tranquilo e sorridente, ver o sol nas mãos como se acabasse de
nascer, não o sol de ontem, porém uma luz mais estranha e mais doce. Olhar para
as paredes conhecidas, mas, ainda assim, estranhas, sentir novamente as
emanações de todos os objetos como as sentira na juventude — isso era renascer,
sentir novamente a encantadora expectativa da criança tranquilizada nesse
momento, com um brilho menos refulgente, mas com uma riqueza que não era
para ser conhecida pela frágil e inconstante infância.
Não era a paz outra vez em uma nova manhã, mas compreensão. Não era
êxtase. Era simplesmente não ter medo, medo do amanhã, medo de todas as
vozes, medo da dor, da morte, da derrota, da ignomínia, da frustração. Era, em
suma, estar livre do medo de outros homens, de sua crueldade, malignidade,
brutalidade, ódio. Era ver o homem agachado em uma escura sombra e sentir
compaixão e dor por ele, um desejo veemente de dizer-lhe que não mais o temia
e que, como não mais o temia, ele também não tinha motivos para temê-lo.
Como era bom saber disso, sentir isso e, com isso, a força e o poder
concedidos apenas aos compassivos e aos liberados!
Não era possível esquecer a maldade do homem, as trevas de sua mente,
seus ódios, sua ilimitada capacidade de praticar o mal, a inveja, a avareza, a
vontade de matar que se escondiam nele como se fosse uma besta à espreita.
Mas era possível sentir pena dele, tristeza, mágoa — os prelúdios do amor.
Mesmo que ele reagisse com uma pedra ou com uma cruz, isso nada era,
absolutamente. Mesmo que reagisse com a estaca, as fogueiras de ódio que
acenderia poderiam brilhar sobre ele, iluminando-o, fazendo-o arrepender-se,
acordar.
O homem estava empoleirado e ilhado numa árvore em alguma escura
floresta que crescia em um ermo, com sua verdadeira voz estrangulada na
garganta, seus gestos hirtos, seus olhos cegos, e apenas um leve murmúrio era
ouvido quando gritava de dor. Como era possível odiar essa alma emparedada,
muda, enraizada na terra, de onde não podia escapar, lutando para alcançar um
céu que não podia ver, mas apenas vagamente sentir?
Frank sentou-se à beira da cama e pensou: Eu era um deles. Mas agora
sou livre. De alguma forma ou maneira, encontrarei palavras para libertá-los
também. Algo forte e veemente se agitou nele, uma ânsia vasta e poderosa.
Escutou-a e sentiu que ela ganhava força e irrefutabilidade. Em que forma estava
fluindo? Que palavras usaria quando eloquentemente pudesse falar? Não sabia.
Mas sentia-a crescendo, expandindo-se, momento após momento, relampejando
de exultação e finalidade, como o raio risca os picos da montanha, mostrando,
durante um momento, a forma de imagens e penedias contra o céu escuro.
Quando soaria a hora em que ouviria a palavra “Agora!” e se sentaria outra vez
para pôr em movimento aquilo que aprendera?
Sabia que teria de esperar. O poder e a força estavam ali. Esperavam,
como ele tinha de esperar. Entrementes, como raízes irresistíveis, sondavam bem
fundo no escuro e rico solo de sua mente, enroscando-se através de depósitos
aluviais, sorvendo vida e transformando-se elas mesmas em vida.
O velho Sr. Penseres gritou, do fundo da escada, que haviam chegado o
fotógrafo e o repórter do Evening News. Espantado, notou que eram quase onze
horas. Dormira mais de dez horas, num profundo sono, sem sonhos, que não
conhecera durante anos.
Mais tarde, orgulhosamente, o Sr. Penseres mostrou-lhe uma grande nota
no vespertino sobre a aceitação de seu romance pela Thomas Ingham’s Sons.
Frank leu a notícia, que dera ao repórter pelo telefone na véspera, e pensou: Mas
isso foi um sonho. Não que não fosse mais importante e, sim, que desde ontem
ele percorrera imensidões de espaço e tempo e a face que vira no espelho
naquela manhã não era a face que conhecia.
Era quase uma hora. Telefonaria para Jessica e lhe diria. Por mais
desenxabidas que fossem as palavras, ela compreenderia e saberia. No momento
em que estendia a mão para o telefone, o aparelho tocou. Respondeu,
impaciente. Uma voz de homem perguntou por ele e ele respondeu:
— Sim, é Frank Clair quem está falando.
A voz riu de maneira cordial e, nesse momento, pareceu-lhe vagamente
conhecida.
— Lembra-se de mim, Frank? — perguntou a voz. — Gordon Hodge?
Frank agarrou convulsamente o aparelho.
— Gordon — repetiu. A sua voz soou num excitado gaguejo. — Gordon
Hodge! Onde está? Eu... eu andei procurando por vocês...
— Andou? — perguntou Gordon com uma leve surpresa. Frank podia
vê-lo, de cabelos amarelados, sorrindo com indulgente incredulidade, bem-
humorado, mas, ainda assim, cauteloso, como fora quando eram crianças. Bem,
estou aqui desde maio. Fui nomeado professor-adjunto de Inglês na
Universidade de Bison e estive também dando aulas nos cursos de verão na
universidade. — Interrompeu-se por um momento. — Eu me perguntei com
frequência o que lhe havia acontecido. Estive ensinando em Ohio nestes últimos
anos. Esta manhã, li uma notícia a seu respeito no Bison Courier e tive que lhe
telefonar logo para lhe dar os parabéns. Acho que é maravilhoso, mas, também,
sempre achei que você conseguiria isso, Frank.
Frank ouviu um forte rufar dentro de si e em volta. Sua voz parecia
paralisada por uma emoção que se atropelava, querendo falar, pelas cordas
vocais. Apertou com força o aparelho.
— Estou casado agora — continuou calmamente Gordon, mas com uma
leve interrogação na voz ao perceber o silêncio de Frank.
— Moramos perto da Universidade, minha mulher e eu, e temos dois
filhos. Eu gostaria de que você nos visitasse para que pudéssemos conversar
sobre um bocado de coisas. Sabe que meu pai morreu?
— Não, eu não sabia — gaguejou Frank. As pernas se enfraqueceram e
ele sentou-se bruscamente. Engoliu em seco e disse:
— Estive tentando encontrá-los durante anos. Gordon, onde está Paul?
Gordon não respondeu. O telefone zumbiu no ouvido de Frank. Esperou
e, não ouvindo coisa alguma, repetiu, insistente:
— Gordon? Você ainda está aí? Onde está Paul?
A voz de Gordon voltou ao telefone, mais fina e com uma frieza cheia de
desconfiança:
— O que é que você está tentando dizer, Frank? Que não sabe que Paul
morreu também?
Todas as sensações desapareceram de Frank. Ficou simplesmente
sentado ali, no vazio. Ouviu sua voz murmurar, seca:
— Eu não sabia. Eu não sabia.
— Alô? — disse Gordon. — Alô, Frank? — Como se fosse um eco oco,
ouviu Frank dizer:
— Eu não sabia. Meu Deus, eu não sabia!
Incerto e embaraçado, Gordon disse:
— Ora, quase não posso acreditar. Isso aconteceu quando você foi para
Kentucky. Você havia escrito uma ou duas vezes para Paul, quando ele estava na
Marinha, e as cartas me foram enviadas, como parente mais próximo. Eu mesmo
lhe escrevi e a carta nunca foi respondida.
Isso deve ter acontecido quando fugi de lá, pensou Frank, ainda sem
sentir absolutamente coisa alguma. Perguntou:
— Quando foi que isso aconteceu?
— Um ano mais ou menos depois da guerra, quando ele estava ainda na
Marinha, fazendo serviço de transporte. O navio bateu numa mina submersa e
acho que morreram todos. Sinto imensamente, Frank. Pensei que você sabia.
Isso aconteceu há tanto tempo.
Não, pensou Frank, não aconteceu há tanto tempo. Aconteceu somente
agora. Neste exato minuto. Acabei de receber o golpe de um bate-estaca, mas
isso foi tudo o que senti. Dentro de pouco, compreenderei, porque acaba de
acontecer, justamente agora.
Gordon continuou a falar em voz conciliatória e preocupada. Frank,
porém, ouviu apenas sons indistintos, que nada significavam. Paul morrera.
Sentirei a morte dele logo, pensou Frank. Saberei, dentro de minutos. O som
indistinto tornou-se outra vez cauteloso e incrédulo, levemente zombeteiro, sem
querer acreditar. Esta é a maneira como ele sempre me falou quando éramos
crianças, pensou Frank. Ele vivia sempre em guarda contra meus “traques”.
Pôs o aparelho no gancho e subiu as escadas até o apartamento. Dirigiu-
se à janela e olhou para as quentes calçadas de julho. Passou um bonde e
acompanhou-o mudo e desolado com os olhos. Observou uma mulher e algumas
crianças nas calçadas. Notou o faiscar azul do meio-dia sobre os edifícios do
outro lado da rua. A luz do sol refletia-se das capotas empoeiradas dos
automóveis e dos trilhos de aço da rua. Nesse momento, as coisas começaram a
tremer com os contornos brilhantes de uma dor crescente.
— Paul! — disse em voz alta. E depois, com uma insistente e terrível
pergunta: — Paul?
Somente a luz do sol e o hálito quente e empoeirado da calçada
responderam.
— Eu não sabia — repetiu Frank. — Por que não soube? Por que não
senti? Por que não me disse, Paul? Pensei em você durante todo o tempo e
então... e então... Não houve resposta! Eu devia ter sabido nessa ocasião.
Sentou-se e acendeu distraído um cigarro. O cigarro queimou-Ihe os
dedos. Olhou fixamente para a parede iluminada pelo sol. Disse, ainda falando
em voz alta:
— Eu devia ter sabido quando não lhe ouvi a voz. Você me ouve agora,
Paul? Lembra-se de todos aqueles anos, de todos os passeios que fizemos juntos,
de todas as conversas, de todas as esperanças para o futuro, de todas as ideias,
sonhos, de tudo o que imaginávamos? Ora, você é minha infância, Paul! você é
parte de mim, mais do que se tivéssemos sido irmãos. Você é uma parte
inseparável de mim, como ninguém poderá ser, nem mesmo Jessica. Vimos junto
o novo mundo. Lembra-se daquele dia de primavera, nos bosques canadenses?
Pode lembrar-se ainda daqueles secos e cinzentos dias de novembro, quando
passeávamos ao longo do rio e dizíamos um ao outro tudo o que pensávamos e
sabíamos, e víamos o mundo através dos olhos um do outro? Os livros que
lemos, Paul, os concertos de banda que costumávamos ir escutar em The Front,
os crepúsculos que víamos juntos, as graves e infantis conjecturas que fazíamos
sobre Deus, a terra, a vida, o ser? Lembra-se das trepadeiras que cresciam ao
longo da cerca, perto de sua casa, e que para nós eram um milagre? Dos nossos
jogos, das bolas que atirávamos, dos sanduíches que comíamos na úmida grama
da primavera e da maneira como fazíamos desenhos na neve com os pés? Das
balas que comprávamos com os nossos poucos níqueis e como descobrimos uma
farmácia que vendia gasosas por um tostão e andávamos quilômetros no verão
quente para ir tomá-las, como púnhamos alfinetes cruzados sobre os trilhos dos
bondes para transformá-los em tesouras? E como falávamos do dia em que eu
seria um “grande escritor” e como compraríamos juntos uma casa, onde
moraríamos para sempre, uma casa nos bosques, no alto de uma verde colina, de
frente para águas frias e verdes? Você acreditava em mim, Paul. Mesmo quando
foi embora naquele dia, naquele último dia, você não foi, realmente. Você ficou
sempre. Aquele dia foi apenas um sonho que, realmente, nunca nos aconteceu.
A luz do sol tornou-se mais forte sobre a parede e o tapete. Não se ouvia
outro som senão o do tráfego embaixo e uma ocasional voz de criança.
— Você acreditava em mim, Paul. Acredita ainda?
Havia apenas silêncio no quarto, mas, inesperadamente, Frank sentiu um
sorriso. Procurou em volta, tentando dominar a voz que se aguçava nele.
— Paul? — disse.
O mais estranho dos consolos desceu sobre ele e a angústia recuou
devagar, onda após onda.
— Não, Paul, você não está morto. Sei disso agora. Sei que coisa alguma
jamais morre. É isso o que está tentando dizer-me?
E então, ainda mais estranhamente, a imagem de Paul em sua mente
fundiu-se com as imagens de Miss Jones, do velho Tim Farley, de Wade
O’Leary, de todos aqueles que conhecera que haviam sentido afeto por ele, que
haviam tido esperança, nele, que haviam acreditado nele. Viu-os a todos e eles
eram Paul e Paul era eles. Eu fui rico durante todo este tempo, pensou Frank. Eu
os conheci e eles estarão sempre comigo. Eles querem que eu faça o que posso,
aquilo que agora sei que posso fazer. Querem que o faça.
Devia isso a eles porque eles o haviam amado. Viu-os a todos, com uma
grande clareza. Eram partes de sua vida e, porque eram, nunca poderiam deixá-
lo. Havia-os amado e, assim, dera-lhes para sempre uma parte de si mesmo, que
eles conservavam como refém.
O poder e o entusiasmo que sentira naquela manhã voltaram e, nesse
momento, falaram em voz forte, eloquente, triunfante, comedida. Ergueu-se,
tremendo com a força que pulsava vibrante nele e em volta dele.
Dirigiu-se para a máquina de escrever e tirou a capa. Pôs uma folha de
papel no rolo. Esperou. Sabia que precisava escrever naquele momento e sabia
como devia escrever.
Após um momento, datilografou o título: “Um Tempo que passou”.
FIM

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