Patristica
Patristica
Patristica
TEOLOGIA AGOSTINIANA E
REFORMA PROTESTANTE:
A SOLA GRATIA COMO NEXO
MATERIAL ENTRE O PROTESTANTISMO
INICIAL E OS PAIS DA IGREJA
AUGUSTINIAN THEOLOGY AND
PROTESTANT REFORM: THE SOLA
GRATIA AS MATERIAL NEXUS AMONG
THE BEGINNINGS OF PROTESTANTISM
AND THE CHURCH FATHER
Ronaldo P. Cavalcante
Professor do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da
Universidade Mackenzie, doutor e mestre em Teologia Dogmtica pela
Universidade Pontifcia de Salamanca, graduado em Teologia pela
Faculdade Teolgica Batista de Braslia.
R E SU M O
O autor desenvolve inicialmente uma sntese conceitual, dentro dos limites do texto, sobre a patrstica, localizando os escritos de Agostinho na
literatura crist e crist reformada e a doutrina da graa nesse filsofo. O
texto prossegue examinando a evoluo histrica do conceito e trata da
mudana ocorrida na cosmoviso crist, a partir do sculo II, com a influncia helenstica no pensamento cristo. Desse ponto em diante, procura esclarecer a posio de Agostinho sobre a graa. O autor passa, ento,
a discorrer sobre as teses pelagianas, entendendo que a compreenso da
polmica entre as posies pelagianas e agostinianas sobre graa e livre
arbtrio so necessrias para a continuidade do texto. O texto segue tratando da Reforma e da recuperao da doutrina da graa, a tradio agostiniana, por meio do exame da construo das posies de Lutero. Diferentemente de Lutero, Calvino enfatiza a Igreja visvel que anuncia a
Palavra de Deus e a quem so administrados os dois sacramentos institudos por Cristo. Seguindo Agostinho de perto, distingue a Igreja visvel da
invisvel. O autor afirma que o ponto de arranque do protestantismo acerca da doutrina da graa a sola Scriptura e estabelece que, tanto pela influncia de Lutero como pela de Calvino, os reformados retornam ao patrimnio bblico e agostiniano em relao graa divina.
PA L AV R AS - C H AV E
Patrstica; doutrina da Graa; livre arbtrio; igreja visvel e igreja invisvel.
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A BST R AC T
The author establishes at first, in the limits of the text, a conceptual synthesis on patristic, situating St. Augustines writings in Christian and Reformed Christian literature, and Graces doctrine for this philosopher.
The text proceeds to examine historical evolution of the concept, dealing
with the change in Christian cosmovision by the second century due to
the Hellenic influence on Christian thought. From this point on, the
texts endeavors to enlighten Augustines position on Grace. The author
discourses on the Pelagian theses, for according to his point of view understanding the polemic between the Pelagian and Augustinian positions
on Grace and free will are necessary for the comprehension of the text as
a whole. The text proceeds to speak about Reformation and the recuperation of Grace Doctrine, Augustinians tradition, examining the construction of Luthers position. Differing from Luther, Calvin emphasizes
the visible church, which announces the Word of God and where the two
sacraments instituted by Christ are administered; following close to Augustine, Calvin distinguishes the visible and the invisible Churches. The
author states that the beginning of Protestantism Doctrine about the
Graces is the sola Scriptura, and also he establishes that through Luthers
influence, as well as through Calvin, the Reformed church return to Biblical and Augustines patrimony related to Divine Grace.
K E Y WO R DS
Patristic; doctrine of grace; freewill; invisible church and visible church.
1 . I N T RO D U O
Aps a etapa apostlica, portanto, a partir do sculo II,
o cristianismo solidificar sua identidade e desenvolver sua
misso no calor da controvrsia cultural e nos limites da legalidade poltica. Em tal situao, os diversos segmentos cristos oriundos, em sua matriz, do ambiente domstico palestinense esto agora localizados fora do arraial expostos,
como Paulo no Arepago, na arena pag, na gora e por isso
mesmo necessitados de rearticular o discurso cristo para se
fazerem ouvidos. A esse grande perodo, que em geral se estende at o sculo VII, convencionou-se chamar, dentro do
estudo da teologia, de poca Patrstica.
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Em lngua portuguesa, pode-se destacar: para uma viso de conjunto da teologia dos Pais da Igreja,
o excelente livro de Luigi Padovese, Introduo teologia patrstica. So Paulo: Edies Loyola, 1999.
No bastasse a qualidade das informaes, o livro se completa com um bnus maravilhoso: Quadro
sintico da igreja antiga. Para um estudo temtico da patrstica, ver especialmente J. N. D. Kelly,
Doutrinas centrais da f crist. So Paulo: Edies Vida Nova, 1994. Material que traz abundantes
citaes de fontes primrias. Uma descrio mais aprofundada com razovel bibliografia em cada
seo pode ser encontrada em Claudio Moreschini e Enrico Norelli, Histria da Literatura Crist
Antiga Grega e Latina. So Paulo: Edies Loyola, 1996/2000. 3v.
2
Ademais dos autores antigos e medievais que escreveram sobre a Patrstica, podemos mencionar a
abrangente coleo editada no sculo XIX por J. P. Migne, Patrologiae Cursus completus. A srie latina
possui 221 volumes e a grega 161. Outra coleo de destaque a francesa Sources chrtiennes, com mais
de trezentos volumes em texto bilnge; francs e latim ou francs e grego. Felizmente essa coleo est
agora sendo posta em portugus pela Paulus com o nome Patrstica. At o momento, cerca de vinte
volumes foram editados. A Patrologia de J. Quasten, traduo espanhola, em trs volumes, pela
Biblioteca de Autores Cristianos (BAC) igualmente uma obra de referncia. Em portugus, vale a
pena conferir a obra de B. Altaner e A. Stuiber, Patrologia. So Paulo: Paulinas, 1972.
3
Eusbio de Casaria, Histria eclesistica. Traduo de Wolfgang Fischer. So Paulo: Novo Sculo,
1999. De certa forma considerado o pai da Patrologia. Sobre o propsito de sua obra, diz ele:
meu propsito consignar as sucesses dos santos apstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador at
ns; o nmero e a magnitude dos feitos registrados pela histria eclesistica e o nmero dos que nela se
sobressaram no governo e presidncia das igrejas mais ilustres, assim como o nmero daqueles que em cada
gerao, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus [...] (I, I, 1).
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escritos que marcaram os primeiros sculos cristos. Efetivamente, ao longo da obra, enumera os que ele conhece citando amplas passagens da maior parte deles. Por essa razo,
Eusbio uma das fontes mais importantes da patrologia, especialmente tambm porque se ho perdido grande nmero
dos escritos que ele cita. Por isso, para certos autores eclesisticos, Eusbio constitui a nica fonte de informao. Ademais, foi So Jernimo (c. 347-419) que em sua obra De viris
illustribus: os homens ilustres, redatada em Belm, no final do
sculo IV, elencou os escritores que dignificaram a literatura
crist. Surpreendentemente, menciona tambm escritores no
cristos como Sneca, Flon e Josefo. Durante mais de mil
anos, grande parte dos historiadores da literatura crist tem
considerado o De viris illustribus como a base de seus estudos.
Com os avanos nos estudos da historiografia crist, sabe-se hoje que muitos outros escritores antigos importantes
preservaram a histria dessa poca. Os mais destacados foram: Sozmeno, Scrates e Lactncio4, que dentro de suas limitaes legaram preciosas informaes.
Para a Reforma Protestante, durante toda a patrstica, o
escritor e telogo mais relevante foi, sem dvida, Santo
Agostinho (354-430)5. A leitura protestante do insgne bispo
Alm de sua correspondncia e do que se pode deduzir de suas demais obras, h trs fontes
sobre sua vida e evoluo espiritual. A mais rica o conjunto dos nove primeiros livros das Confisses,
em que passa em revista toda a sua vida at o ano 387. Mais tarde, nas Retrataes nos informa de sua
atividade literria at o ano 427. Contamos tambm com a biografia que lhe dedicou, pouco depois
de sua morte em 430, seu discpulo e amigo Possdio, bispo de Clama. J dispomos deste material
em portugus: Possdio, Vida de Santo Agostinho. So Paulo: Paulus, 1997.
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de Hipona foi, em geral, seletiva e, no conjunto de seu pensamento, o protestantismo priorizou a Doutrina da graa 6.
1 . G R AT I A : E VO LU O H I ST R I CA
D O CO N C E I TO : U M A S N T E S E
Para melhor compreender determinadas categorias teolgicas do cristianismo nascente e em sua gnese como movimento sectrio do judasmo, vale aqui considerar a mudana ocorrida na cosmoviso crist, a partir do sculo II. Isso
implica que no se deve ignorar, pois, a invaso do helenismo seu estilo de pensamento e a cultura propriamente dita
subvertendo a inspirao semtica do grego da LXX e do
Novo Testamento7, consequentemente fazendo surgir, de maneira gradativa, uma nova mentalidade crist, exposta de modo franco a determinadas idias e correntes da filosofia grega,
por exemplo, o neoplatonismo e o estoicismo. Com isso, a teologia do cristianismo oriental, quer dizer, a patrstica grega,
quanto ao tema da chris, localizou a chave da salvao do
homem em sua participao no ser de Cristo e, mediante ele,
no mistrio da comunho vital trinitria. Da que na teologia
A doutrina agostiniana da graa pode ser encontrada em vrias de suas obras e tambm deve ser
buscada nos escritos sobre a predestinao e contra os donatistas e pelagianos. Destaca-se a Ep. 186 e
o tratado De gratia et libero arbitrio V,10-VIII,20; obra recentemente editada, dentre vrias outras,
pela Paulus dentro da coleo Patrstica, n. 12 e 13, traduo da francesa Sources Chrtiennes.
Repercusses da doutrina agostiniana da graa sero perceptveis em personalidades como: Arnbio o
Jovem, Lcido presbtero, Gottschalk, Gregrio de Rmini, Thomas de Bradwardine, Wycliff, Lutero,
Calvino, Seripando, Miguel Bayo, Cornlio Jansen, B. Quesnel, dentre outros.
7
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Tambm chamada de deificao, j est presente nos primeiros apologistas gregos (sculo II)
que buscam uma reinterpretao das informaes bblicas; ser explorada especialmente a partir de
Clemente de Alexandria. Theopoiein o termo clssico que representa a doutrina, bem como suas
outras formas. Textos bblicos como At 17:28 e 1Pe 1:4, alm de idias como de imago Dei (Gn 1),
filiao divina (Gl 4:5s; Rm 8:15); imitao de Cristo (Fp 2:5-11), serviro de base escriturstica para
a elaborao teolgica desse pensamento no cristianismo grego, bem como no latino, aqui com mais
sobriedade hermenutica.
9
Conforme explica G. Lafont: Vimos que no Oriente era enfatizada a liberdade do homem,
lugar prprio da Imagem de Deus [...] para reconhecer e valorizar o papel salvfico da humanidade de
Cristo na questo da salvao. Em Histria teolgica da Igreja catlica, p. 59.
160
A. Orbe, Antropologia de San Ireneo. Madrid: 1969, caps. 4 e 55 em Ruiz de la Pea, op. cit. 269.
As citaes de Irineu so de sua obra em portugus: Ireneu de Lio. So Paulo: Paulus, 1995.
11
Kelly, p. 265-266. Tambm diz: O Verbo se abaixou at se tornar corporalmente visvel, a fim de
atrair a si os homens enquanto homem e fazer com que a sensibilidade humana se inclinasse para
ele. A Encarnao do Verbo 16:1 em Santo Atansio. Antropologia teolgica especial. So Paulo:
Paulus, 2002, p. 146.
12
De fide ortod., 4:13 em Ruiz de la Pea, loc. cit. Outros textos de Ireneu sobre o tema so Adv.
Haer. III, 18,19; IV,34,4. O final mesmo da divinizao no figura na obra do bispo lyons; o
primeiro em utiliz-lo parece ter sido Clemente de Alexandria. De fide ortod. 4:13 em Ruiz de la
Pea, loc. cit.
13
Adv. Haer. V, 36:3. [...] pela qual a sua criatura, conformada e incorporada ao Filho, levada
perfeio; de forma que, enquanto o Primognito, isto , o Verbo desce na criatura e a assume, por
sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe at Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se imagem
e semelhana de Deus.
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em Orgenes, por conta, certamente, do forte influxo do dualismo platnico no mestre alexandrino e com certeza por um
pensamento mais independente. Por essas e outras, a tradio
quase sempre estar reticente acerca do autor da Hexpla.
No entanto, a idia de um conceito antropolgico essencialmente tributrio da encarnao divina ocupar majoritariamente a ateno dos pais gregos, desde Incio de Antioquia, passando, como foi visto, por Ireneu, mas tambm
em Atansio, Gregrio de Nissa e outros, at tardiamente em
Joo Damasceno e Mximo o Confessor14. Nesse consenso,
concebe-se no Oriente cristo uma forte influncia do neoplatonismo Plotino, Proclo fazendo surgir uma mstica
crist que inicia com Orgenes e se difunde, sobretudo, pelos
escritos do pseudo-Dionsio areopagita e dos comentrios a
este realizados por Mximo o Confessor.
Por conseguinte, h que se levar em conta o carter antropolgico na formao teolgica do cristianismo grego. A
antropologia, com base na ao revelacional e encarnatria divina, funcionaria, pois, como um critrio hermenutico. E o
pressuposto fundamental aqui o de que o verdadeiro destino
do homem o prprio Deus15. Dessa maneira, na patrstica
oriental a dimenso antropolgica est concebida verticalmente. Isso, entretanto, no deve significar uma diluio ou rebaixamento da alteridade de Deus, uma vez que, precisamente
entre os cristos gregos, desenvolveu-se um agudo sentido da
transcendncia divina (FRANSEN, 1975, p. 614)16. Diga-se,
14
Auer diz que Mximo o Confessor ensinava a possibilidade de uma consumao terrena da
vida da graa com base em uma sobrenatural e exttica contemplao de Deus e do concomitante
amor a ele no marco da piedade eclesial. Essa teologia da graa continuou sendo normativa at hoje
na Igreja oriental grega.
15
Ademais dos conclios ecumnicos: Nicia (325), Constantinopla (381) e feso (431), se
buscar o fundamento para tal idia nas reflexes, dentre outros, de Atansio, Gregrio de Nazianzo,
Ddimo o cego, Baslio Magno, Cirilo de Alexandria sobre a habitao de Deus no homem.
16
A prova disso a interessantssima teologia apoftica, que seria a forma menos imperfeita de
conhecimento de Deus, porque renuncia aos sentidos e recursos intelectuais. Segundo Pablo Maroto
(1990, p. 95): Essa teologia apoftica, de negao aparente, sem conceitos, sem imagens, uma
metodologia purificadora das mediaes acessrias e imperfeitas [...] Uma negao que purifica o
afirmativo aplicado alegremente a Deus, e sugere mais que afirma a transcendncia divina. Assim,
Deus concebido e encontrado pelo homem na escurido da f, da mstica, porm sempre como um
Deus desconhecido.
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en passant, um sentido bem superior ao estabelecido no Ocidente latino que se deteve mais no ethos da abordagem parentico-pastoral do apstolo Paulo, por isso mesmo mais condicionado s questes de fundo tico e relacionadas com os
temas fronteirios das difceis relaes do cristianismo judaico
jerosolimitano, mais aferrado s tradies rabnicas com o nascente e promissor cristianismo gentlico da dispora, esposado
por Paulo, que, por assim dizer, foi o ponto de inflexo que fez
recobrar as foras de um cristianismo esgotado internamente
pelas faces e cismas judaizantes e gnsticos.
Por seu lado, no Oriente, ademais da teologia joanina,
est preservado e sublinhado fortemente o prprio pensamento paulino, contudo, especialmente o relacionado com
seu conceito de Chris. Por isso mesmo, seria descabido considerar no conceito divinizao um sentido que infravalorasse a primazia e transcendncia de Deus na obra criadora e
redentora realizada pelo Esprito (FRANSEN, 1975, p. 614).
Na verdade, entendo exatamente o contrrio; parece ser que
o conceito cristo oriental da graa de Deus est um tanto
mais resguardado das tendncias de coisificao e domesticao das coisas divinas to presentes no Ocidente cristo
latino e que levaram a a uma espcie de vulgarizao do
sagrado e banalizao do mistrio divino com desdobramentos atuais.
2 . SA N TO AG OST I N H O : G R A A D I V I N A
E D E SA F I O A N T RO PO L G I CO
Tentar entender o posicionamento de Agostinho sobre
a graa, exige, ademais de persistncia acadmica e humildade intelectual, um conhecimento de seu entorno vital, o que
excede o objetivo deste texto. Inclusive, pelo fato de que tanto no tema da espiritualidade quanto no da teologia propriamente dito, Agostinho afirma-se um clmax, uma sntese,
uma espcie de vale receptculo de todo o caudal cultural
dos primeiros sculos cristos. Ou como disse, de forma lapidar, De Boni a propsito do De beata vita: Se em Sneca, de
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O nome est relacionado com Pelgio, sacerdote irlands, talvez monge, do sculo IV, que
aps o saque de Roma, em 410, se refugiou na frica e posteriormente em Jerusalm. Em 415 foi
acusado de heresia por dois bispos da Glia que o ligavam ao herege Celstio. Mesmo tendo sido
absolvido, seus escritos chegaram at Agostinho, o qual com outros bispos africanos exigiu sua
condenao. A querela teve um fim oficial primeiro no Conclio provincial de Cartago, em 418, que
condenou vrias de suas idias e, posteriormente, no Conclio Ecumnico de feso, em 431, que
pronunciou antemas contra as proposies pelagianas.
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Com efeito, Agostinho em sua obra de Gestis Pelagii, do ano 417, identifica o essencial da doutrina
atribuda a Pelgio e seu discpulo Celstio. Dentre outras afirmaes de Pelgio, Agostinho sublinha:
1) Ado foi criado mortal e teria morrido com pecado ou sem pecado; 2) o pecado de Ado
prejudicou somente a ele, no estirpe humana; 3) a lei conduz ao reino to bem quanto o
evangelho; 4) houve homens sem pecado antes da vinda de Cristo; 5) crianas recm-nascidas esto
nas mesmas condies de Ado antes da queda; 6) no por meio da queda nem da morte de Ado
que morre toda a raa humana, nem por meio da ressurreio de Cristo que ela ressurgir [...]
(apud H. Bettenson, 1967, p. 88-89).
20
Desde os primeiros escritos, mesmo antes do batismo e logo aps, Agostinho j reconhecera a
primazia da graa, conforme, por exemplo: [...] Deus, que no s o autor do mal, mas que permites
que ele suceda a fim de prevenir mal maior; [...] Deus, que somente aos coraes puros quiseste dar o
conhecimento da Verdade; [...] Pai do nosso despertar e da luz que nos ilumina, Pai das promessas
pelas quais somos advertidos a retornar a ti [...] (Solilquios. p. 24-25). Igualmente, nas Confisses
(397-400), em vrios pontos da obra, se percebe uma desenvolvida doutrina da graa. Sobretudo em
sua obra, em dois volumes, escrita a Simpliciano, bispo de Milo e sucessor de Ambrsio, De diversis
quaestionibus ad Simplicianum (395-397), em que Agostinho afirma a centralidade da graa de Deus
no processo salvfico de seu povo, a propsito de 1Corntios 4:7; Romanos 9:10-29 etc.
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Em Agostinho (1999a): A graa um dom do Esprito Santo III, 5. 20-21. Tambm recolhido
em Bettenson (1967, p. 89-90).
22
Obra fundamental para conhecer os demais escritos de Santo Agostinho, bem como suas
motivaes e intenes. Foi iniciada em 412, porm s terminada em 427. Nela, Agostinho realizou
uma significativa avaliao de toda sua obra. Esse escrito muito ajuda a entender as ltimas posies
doutrinais do bispo de Hipona e constitui, por assim dizer, suas ltimas confisses.
23
24
Mosteiro no norte da frica que juntamente com o de Lrins (sul da Frana) pendeu ao
semipelagianismo, considerando o initium fidei e a gratia perseverantiae como obras humanas e no da
graa, reagindo, assim, ao movimento predestinacionista que entendia a graa no como fruto do
amor de Deus, como pensava Agostinho, mas como obra da onipotncia divina, anulando a liberdade
do homem diante da predestinao. O segundo Conclio de Orange, em 529, condenou ambas as
posies fortalecendo a doutrina agostiniana expurgada de seus excessos.
25
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Quase o mesmo ele diz em outro escrito: No devemos insistir tanto na graa de Deus que
desvalorizemos a liberdade. Tampouco devemos insistir na liberdade a ponto de desvalorizar a graa
de Deus. De pecatorum meritis et remissione (Dos mritos e remisso dos pecados apud RUBIO,
1995, p. 207).
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rente com seu equilbrio entre graa divina e liberdade humana, Agostinho esclarece que A justificao um dom de
Deus. Mas no nos concedida sem nossa colaborao. Nossa a vontade; sua a graa. A justia de Deus existe sem ns,
mas no nos aplicada sem ns.
3. A REFORMA E A RECUPERAO
DA D O U T R I N A DA G R A A : A T R A D I O
AG OST I N I A N A
O movimento de reforma no sculo XVI, mais tarde denominado protestantismo, deve sua gnese histrica, essencialmente, doutrina da Justificao pela F29, que para a teologia luterana firmou-se como a questo central, nuclear. O
prprio Lutero afirmou: Mantendo-se de p este artigo, mantm-se de p a igreja30 articulus stantis et cadentis ecclesiae.
Tal hipervalorizao, evidentemente reducionista, decorria das experincias espirituais do monge agostiniano alemo Martinho Lutero31 que, em meio a lutas de conscincia,
29
Segundo Tillich: O protestantismo nasceu da luta em torno da doutrina da justificao
pela f. A justificao pela f traduz segundo ele, A situao limite da existncia humana. A
escolha se resume, pois, entre a aceitao radical da situao limite e a tentativa de ver na igreja e nos
sacramentos protees seguras contra a ameaa incondicional. Luiz F. Ladaria, op. cit., p. 158. A era
protestante, p. 213-215; tambm sua Teologia sistemtica, p. 380-382 e 553-556.
30
WA 40 III, 3523. Importante comentrio de Lutero acerca da doutrina da justificao em seu
comentrio sobre o Salmo 51 (Enarratio psalmi LI) de 1532.
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Na nova orientao, sabe-se, destacava-se o nominalismo (RUIZ DE LA PEA, 1991, p. 285)32, que constitui,
nessa poca, a via moderna em detrimento da via antiqua,
identificada com o tomismo e com o escotismo dentro da filosofia aristotlica.
Para precisar a cronologia: em 1501, Lutero matriculou-se na Universidade de Erfurt para o curso das artes liberais, o trivium: gramtica, dialtica e retrica alcanando o ttulo de bacharel em artes. Aps sua crise, no vero de 1505 33,
ele decide ingressar na prpria cidade de Erfurt, onde havia,
na universidade, recebido o ttulo de magister artium (janei32
Lutero, quando de sua ordenao em 1507, leu por conta prpria a teologia de Gabriel Biel (14201495), professor de Tubingen e principal representante da corrente nominalista, que se associa tese
de que o que verdadeiramente existe so os individuais e particulares em detrimento dos
universais, apenas nomes dados.
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Antes disso (1508), Lutero teve uma breve passagem por Wittenberg a convite de Staupitz,
como professor substituto, lecionando sobre a tica de Aristteles. Voltou a Erfurt (1509) como
professor no mosteiro. Em novembro de 1510, visitou Roma. Somente ao final de 1511 que se
trasladou definitivamente a Wittenberg para assumir a ctedra no ano seguinte.
36
Fransen (1975) ilumina a questo dizendo que: No h dvida de que Lutero se formou,
na Universidade de Erfurt, em um clima nominalista [...] Ali influa decisivamente Joo Nathin,
discpulo em outro tempo de Gabriel Biel em Tubingen. Ainda que Lutero tenha renegado seus
mestres, sobretudo na doutrina da graa, sempre lhes professou certa estima.
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IRC II,V, 14. Ainda diz que no negamos que bem verdade o que ensina Santo
Agostinho: que a vontade no destruda pela graa, seno reparada (II,V,15).
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Mstica de Cristo, na tradio reformada, relaciona-se com a reconciliao do homem com Deus;
depende de sua graa em Cristo, objetivada por sua palavra que se apresenta acessvel pela f. No entanto,
tal realidade torna-se nossa no poder do Esprito Santo em sua ao misteriosa. Cristo habita em ns
por meio do Esprito Santo, [...] que nos foi outorgado (Rm 5:5c). Segundo Calvino, o [...] Esprito
Santo , por assim dizer, o vnculo pelo qual o Filho de Deus nos une ativamente consigo (IRC III, I,1).
Na fora do Esprito Santo reside uma unio mystica entre o crente e Cristo. Calvino no vacila em
qualificar inclusive esta unio com Cristo como vera et substantialis communicatio (IRC III,II,1).
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4 . CO N C LU S O
A grande oportunidade e desafio do protestantismo,
em termos de sua teologia, exatamente fazer desdobrar e
tornar relevante todo o seu patrimnio herdado por meio de
uma ao pastoral e de uma espiritualidade altura de suas
nascentes e dignificadora de sua histria. Quer dizer, assumir
a vocao pastoral e espiritual inerente nos pressupostos da
teologia paulina e agostiniana e faz-los aterrissar em meio
gente. Uma espcie de atualizao do mistrio da encarnao do Verbo. Fazer valer a clusula ptrea: ecclesia semper reformanda. Talvez para isso seja preciso comear pelo mais
difcil: o reconhecimento de acidentes de percurso; a aceitao daqueles erros to humanos e, uma vez mais, como os
pais reformadores, atentar para eco das Escrituras to reverberante em Agostinho:
Quanto a mim, no me envergonharei de aprender se me acho
no erro...
Por isso, prossiga comigo quem comigo est certo;
Procure comigo quem condivide a minha dvida;
Volte a mim quem reconhece seu erro;
Advirta-me quem descobre o meu. (De trinitate)
R E F E R N C I AS B I B L I O G R F I CAS
ALTANER, B.; STUIBER, A. Patrologia. So Paulo:
Edies Paulinas, 1972.
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