Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito (Trecho)

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Soubemos notícias do avô Raimundo Caetano bem antes da

travessia dos Inhamuns. A saúde dele agravou-se e a festa de


aniversário poderá não acontecer.
Penso em voltar para o Recife, obedecendo a pres-
sentimentos de desgraça, receios que me invadem em todas
as reuniões da família. Davi e Ismael consultam-me com os
olhos; temem que eu desista da viagem. Não dependem de
mim para continuar, mas sou eu que intervenho nas disputas
entre eles, desde quando tocávamos rebanhos de carneiros e
feri o calcanhar, numa tarde como essa.
Tudo se assemelha ao passado, até os caminhos repe-
tidos e o silêncio dos mortos, fantasmas que andaram como
ando, ansioso e de humor deprimido.
Há algum tempo dirijo o carro sozinho. Os primos
subiram na carroceria da camioneta, expondo-se ao sol e à
poeira do final de tarde, num mês de dezembro com prenúncios
de chuva. Tamanha beleza é pura armadilha. Preciso de lentes
para abstrair o azul do céu, as nuvens de cinema épico.
O calor me enfada. Ele vem das pedras que afloram
por todos os lados, como planta rasteira. Nada lembra mais o
silêncio do que a pedra, matéria-prima do sertão que percorre-
mos em alta velocidade.
De que maneira o primo Ismael arranjou dinheiro
para comprar uma camioneta? É pergunta que ainda não fi-
zemos. Deixamos para mais tarde os acertos de contas, afinal,
nos juntamos depois de uma longa ausência. Durante muito
tempo fomos apenas notícia.
Observo as carnaúbas, esguias como o corpo do pri-
mo Davi, e revejo a tarde dolorosa, ele fugindo nu, coberto

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apenas por uma camisa branca, o sexo à mostra, o sangue es-
correndo entre as pernas. Sinto a náusea de sempre, o pavor de
não compreender nada, mesmo depois de anos de psicanáli-
se. Desejo voltar, acelero o carro, recuo na poltrona. Retorno
mais uma vez ao passado, à tarde em que tudo aconteceu. Os
olhos congelados nas imagens de uma câmera fixa, um trailer
de quinze ou vinte minutos.
Vou sair no meio do filme. Não quero prosseguir.

* * *

Prossigo entre campos de futebol de areia, margens co-


muns em estradas do Brasil. Rapazes se atracam em cima de
uma bola, índios de tacape arrasando o inimigo. Cidades po-
bres, iguais em tudo: nas igrejas, nas praças, num boteco aberto
às moscas. No posto rodoviário, um guarda federal espera a
oportunidade de arrancar dinheiro de um motorista infrator.
Mulher em motocicleta carrega uma velha na garupa e tan-
ge três vacas magras. Dois mitos se desfazem diante dos meus
olhos, num só instante: o vaqueiro macho, encourado, e o cava-
lo das histórias de heróis, quando se puxavam bois pelo rabo.
Imagino a casa dos meus avós derrubada por tratores,
dando lugar a uma rodovia. O barulho forte das máquinas e
as luzes dos faróis me deixam a impressão de que estou noutro
planeta. Mas não estou. O sertão continua na minha frente,
nos lados, atrás de mim. O asfalto fede. Já chorei por causa
dessa ferida preta, cortando as terras. Agora, me distraio com
os carros que passam.
Onde estão os caminhos abertos pelos antigos, os que
elegeram essa terra para morar, trazendo rebanhos e levantan-
do currais? Procuro o rio Jaguaribe e ele é apenas um leito
de areia, lembrança adormecida de águas que se recolhem na
seca, e transbordam renascidas na estação das chuvas.
Que fim levaram as árvores de porte? Só avisto o deser-
to cinza, sem um único verde. O sol, já no fim, aumenta os re-
ceios da noite. Reluto em voltar a Arneirós, temendo o encontro

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com minha família. Sua história escrita em três séculos de iso-
lamento guardou-se em baús que não arejam nunca, por mais
que debandemos em busca de outros mundos civilizados.

* * *

Olho os dois irmãos pelo espelho retrovisor. A pele


morena de Ismael sobressai no fim de tarde, a cicatriz do ros-
to, as marcas que revelam sua origem de índio kanela. Davi,
o mais moço, tem a pele alva e os cabelos louros, nenhuma
semelhança com o irmão. Paro o carro e peço que desçam para
a cabine. Começa a esfriar. Estiro as pernas e os braços, salto e
grito. Os primos riem, me empurram brincando, gritam mais
forte. Aparento normalidade, ajo como se estivesse feliz com o
encontro e a viagem.
Ismael assume o volante. Escureceu completamente.
As folhagens iluminadas pelos faróis lembram um campo ne-
vado. Não acho graça na comparação. As chances de chegar-
mos antes das nove horas se tornam remotas, por conta da
estrada ruim. Os jornais da televisão mostram o abandono
todos os dias. Podemos ser assaltados na próxima curva, por
bandidos armados de rifles, em camionetas importadas como
a nossa. Substituíram as pastagens de gado dos sertões por
plantios de maconha.

— Dá pra colocar um CD? — pergunta Davi.


— Depende da música. É pagode? — brinca Ismael.
— Seu gosto musical piorou bastante, meu irmão.
Prefiro você com um maracá, fazendo pajelança.
Ismael fica calado. As referências a sua origem o irri-
tam, embora seja impossível escondê-la. Não se envergonha
do povo de Barra do Corda, por mais degradado que esteja,
porém não suporta o desprezo da família cearense. Esquecem
que também são mestiços de índios jucás.
Diz um palavrão e aperta o volante. Imagino a ca-
mioneta atirada no abismo da próxima curva e Ismael deca-

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pitado. Revejo a cena antiga, Davi correndo, a camisa branca
manchada de sangue, o avô Raimundo Caetano numa janela,
indiferente como se assistisse a um telejornal, tio Salomão no
interior da casa, tio Natan atravessando a porta. Um cavalo
dá voltas, sangrando esporeado. O cavaleiro é Elias, o outro
irmão de Davi. Não avisto Ismael.

* * *

Grito como se acordasse de um pesadelo:


— Volta para o Recife! Não quero ir pra Galiléia, não
vou!
Ismael pára a camioneta no meio da pista e me olha.
— Enlouqueceu, Adonias?
— Cansei dessas brigas de família e de bancar o juiz.
Davi procura um disco e passa para mim.
— Escutem umas sonatas de Scarlatti.
Eu apanho o disco e enfio no aparelho de CD. Sem-
pre que ouço música, imagino-me tocando e sendo aplaudido
ao final. A sugestão das sonatas é a de que chego a uma casa
que possui um piano na sala. Displicente, levanto a tampa
do instrumento e experimento a afinação. Alguém pergunta
se sou pianista, respondo com falsa modéstia que sim. Sento-
me e toco. No êxtase do som do carro, rasgamos os sertões
em alta velocidade: maravilha o mundo lá fora, atenuado por
um vidro fumê e pelo controle de temperatura. Esqueci para
onde vamos. Sala de recitais. Na platéia, os que eu mais desejo
impressionar.
Ruídos interferem nos sons do meu piano. Davi joga
num brinquedo eletrônico, esquecido de que nos impôs as so-
natas. Tomara que Ismael pare o carro e dê umas bofetadas
nele.
Um solavanco na camioneta. Quase ficamos num
buraco.
— As estradas não melhoraram desde que os antepas-
sados trouxeram um piano do porto do Recife.

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— Acho que estão piores, Ismael — comento meio
grogue com o devaneio musical. Imagino o instrumento frá-
gil, encomendado na França, em cima de um carro de bois.
— Será que veio mesmo um piano para esse fim de
mundo?
— Meu pai garante que sim. Vamos atravessar o ria-
cho onde os bois atolaram com a carga.
A música me deixa mais triste e infeliz. Relutei em vir
para a festa. Nenhum dos meus irmãos aceitou fazer a viagem
comigo, nem minha mãe, que há anos não encontra o pai e lhe
devia essa obrigação de filha.
— Scarlatti escreveu as sonatas para uma aluna, a prin-
cesa Maria Bárbara, filha de d. João V. Ele não tinha a menor
pretensão de fazer grande música, e fez. Elas são bem difíceis
de executar.
— Você toca Scarlatti?
— No momento, estou sem treino, mas já toquei. São
mais de quinhentas peças, todas obras-primas. Elas surgiram
de uma necessidade bem prosaica: dar aulas. Mas essa necessi-
dade não deixa de ser a motivação do artista criador.
É estranho como o sol desaparece rápido no sertão.
Mal nos preparamos para a noite. Voam pássaros que desco-
nheço, raposas atravessam a estrada, besouros batem no pára-
brisa do carro. Não identifico nenhum pio de ave, acima da
música. Meu pavor aumenta. Para onde vamos? O primo Is-
mael nos conduz. Sinto a garganta queimar, o corpo quente de
febre. É uma obsessão.

* * *

Por que vim?


Quantas vezes me perguntei isso? Não consigo es-
tabelecer vínculo com os dois primos, um afeto que ajude a
suportar a viagem. Se Joana estivesse comigo, seria mais fácil
controlar a angústia. Eu falaria dos meus receios, ou de coisas
aparentemente sem significado, para refazer os laços com o

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mundo. Mas ela precisou ficar. Não posso arrancá-la do tra-
balho sempre que desejo. Não é fácil largar os pacientes, o
hospital, o consultório. Ligo o telefone celular, mas está fora
da área de cobertura. Puxo conversa.
— Vocês lembram os nomes das árvores do sertão?
— Eu, nenhum — responde Davi. — Sou absolu-
tamente ignorante em botânica. Não distingo mangueira de
mamoeiro.
— A floresta maranhense eu ainda conheço, apesar
dos anos na Noruega.
A conversa precisa de um sopro para não se apagar.
Davi, agora estirado no banco traseiro, voltou ao joguinho,
e Ismael mantém o olhar fixo na estrada, atento às curvas e
aos animais que atravessam a pista. Baixo o volume do som,
insisto em trazê-los para junto de mim, como se eles fossem
minha tábua de náufrago.
— Meu pai exigia que eu memorizasse as plantas da
caatinga, por mais insignificantes que me parecessem. Eu reci-
tava os nomes, mas era incapaz de reconhecer as árvores.
— E você ainda lembra de algum?
— Lembro de todos, Ismael.
Recitei os nomes com orgulho da memória, e depois
recaí na tristeza. O meu conhecimento me parecia inútil. Nun-
ca o usei em nada. Atravesso os sertões vislumbrando sombras
negras, os restos vegetais dessa memória. Carreguei esses nomes
como se fossem fantasmas, sentindo-me culpado se os esquecia.
Eles eram para mim como os mourões dos currais arruinados,
sem uso desde que se esvaziaram de vacas e touros; troncos soli-
tários, teimando em ficar de pé no planalto sem pastagens, sem
rebanhos, sem gente. Consternado, lembrei da família. Ela ain-
da se agarra à terra que já foi rica e assegurou poder, e hoje sobre-
vive como um criatório de gente, que, mal nasce, vai embora.
Ismael exultou com a minha lembrança. Gritando,
bateu as mãos no volante. A memória comum nos aproxima-
va, refazia laços que eu imaginava desfeitos.
— Adonias, eu vou dizer os nomes das árvores que
conheço. Sei detalhes das folhas, dos troncos e da floração de

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cada uma delas. Não pense que essa lembrança é inútil. Ela me
serviu muito, no tempo que fiquei preso na Noruega. Quando
não tinha nada o que fazer, eu imaginava a floresta, as planti-
nhas mais bestas. Escrevia os nomes num caderno, desenhava
as flores e chorava arrependido do rumo que dei à minha vida.
Só desse jeito eu aliviava a depressão.
Deixei que falasse.
— Qualquer hora dessas, conto minha história. Sei
que falam horrores de mim. Até o avô Raimundo Caetano, que
me adotou e me deu nome.
Pôs a mão direita sobre a minha coxa e olhou para
mim. Os homens da família costumam tocar o interlocutor
enquanto falam. O toque me provoca medo. Não mudaram
os meus sentimentos pelo primo, desde que éramos pequenos.
Sinto vontade de confiar nele, mas temo cair numa armadilha.
Se acreditasse em metade do que os tios e primos falam dele,
desceria do carro e continuaria a viagem a pé.
Davi pede que eu substitua o disco. Agora nos empur-
ra um Rachmaninoff.
— Vocês falavam sobre o quê?
— Sobre árvores.
— Sou analfabeto no assunto, já disse.
— Então fale de animais.
— Falem vocês. Vou ouvir os prelúdios. A alma de
Rachmaninoff era como esta noite, nela nunca penetrou um
raio de sol. Mesmo assim, eu gosto.
O tom solene destoa da figura franzina, da gíria que o
primo costuma falar. Dá para perceber que ele recita um texto
decorado na escola.
Passa um carro em velocidade. A luz do farol ilumina
o rosto de Ismael. Davi joga no brinquedo eletrônico e eu
tento mais uma vez o celular. Continua fora de área. Nes-
sa hora, estaria em casa jantando com Joana e as crianças,
ou lendo no quarto delas. Toda noite cumprimos o ritual
de botá-las para dormir. O mundo parece sem assombros,
com luzes acesas, televisão ligada, computadores, telefones
tocando.

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— Baixe o som, Adonias, e vamos continuar a
conversa.

* * *

Davi caiu no sono. Diminuo a altura da música, com


cuidado para não despertá-lo.
Ismael acende um baseado, dá um trago longo, me
olha cúmplice e, antes que eu manifeste desejo ou repulsa,
estende-o para mim.
— Obrigado, não fumo.
— Esse fumo é de Barra do Corda. Já abastecemos o
Brasil com a melhor maconha.
Ri alto, toca novamente a minha coxa, contraio-me.
Percebo os sinais da euforia cannabis, e me disponho a um
novo estágio de conversa. Melhor que o silêncio e a música.
Estiro as pernas, alongo a coluna, faço exercícios para os olhos
cansados. Proponho assumir o volante, pois não confio em
bêbados e drogados dirigindo.
— Ficou com medo porque fumei? Calma, estou
acostumado.
— Falo como médico. Não é seguro.
— Relaxe. Comigo nunca deu erro.
Davi espreguiça lá atrás.
— Que cheiro é esse? Tinha que ser Ismael! Vocês não
respeitam nem a doença do avô?! E se ele tiver morrido? Vão
chegar pro enterro assim?
— Eu não fumo, você sabe.
— Vá dormir, maninho, vá! Você é a melhor compa-
nhia do mundo quando dorme.
— E você é perfeito quando esquece que eu existo.
— Por favor, mudem o script de Abel e Caim.
— Não gosto de moralistas. Você vai me dizer, irmão,
que tocou de cabeça seca, no barzinho de Nova Iorque? Apos-
to que usa coisa bem mais pesada. Eu, pelo menos, só queimo
erva.

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— Vá se danar, Ismael! Que papo de maconheiro!
Fale como vinha falando antes. Prefiro quando é meloso. E
fique sabendo que não toquei em barzinho. Passaram uma in-
formação errada pra você.
— Ah, desculpe — ironizou Ismael. — Você tocou
num pub! Adonias, lembra! Davi tocou num pub de Nova
Iorque, para meia dúzia de pirados.
— Não vou aturar esse cara! Se ele é doido sem maco-
nha, quando fuma se torna insuportável. Não profane Rach-
maninoff! Por favor, Adonias, tire o meu disco.
Retirei o CD, coloquei-o na capa e entreguei-o a Davi,
que voltara a estirar-se no banco, fechando os olhos. Reassu-
mia o anjo de passeio pela terra. Não era sem motivo que to-
dos o preferiam a Ismael. Como se não bastassem sua natureza
quieta, os cachos louros e os olhos vivos num corpo magro, a
aura de pianista virtuoso enchia a família de orgulho. Herda-
mos um gosto afetado pela música, um fetiche por pianistas,
desde que o nosso mais remoto antepassado mandara buscar
um piano na França.

* * *

Ficamos em silêncio, olhando casas de luzes apagadas,


com antenas parabólicas nas cumeeiras dos telhados. Eram
bem poucas no planalto extenso, multiplicando-se próximo
às cidades. Desejei bater à porta de uma delas, dar boa-noi-
te às pessoas, xeretar o programa a que assistiam. Não consigo
imaginá-las atravessando a porta para os afazeres nos currais
e roçados, depois de se intoxicarem de novelas. Despertados
pela luz do farol, de vez em quando voam pássaros à nossa
frente, vôos rasantes, ligeiros.
— Você disse alguma coisa?
Ismael me pede conversa, mas eu só desejo olhar a
noite.
— Estava me distraindo com os nomes dos pássaros
daqui. Lembro de muitos, mas sou incapaz de reconhecer uma

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plumagem, um canto, um ninho. É outra memória inútil,
guardada não sei para quê.
— Para quando for necessário.
— Nunca, então. Como médico, eu não preciso saber
nomes de pássaros.
— Pois eu costumo lembrar de tudo. Já falei de minha
prisão?
— Por favor, deixe para me contar outro dia.
Ismael não se ofende com a recusa. Apesar do tempe-
ramento violento, é generoso e gosta de aconselhar como um
velho. Talvez seja o mais moralista da nova geração de primos.
Olho seu rosto moreno, cheio de marcas, e reconheço a gené-
tica dos Inhamuns. Sinto fascínio e repulsa por esse mundo
sertanejo. Acho que o traio, quando faço novas escolhas. Para
o avô Raimundo Caetano somos um bando de fracos, fugi-
mos em busca das cidades como as aves de arribação voam
para a África.
— Imagino os antepassados chegando aqui. Homens,
mulheres e crianças, no lombo de animais ou a pé. Havia pasto
nos anos de inverno e corriam muitos bichos. Pense no medo
que sentiam das flechas dos índios, de cobra, de onça. De noi-
te, nosso povo deitava no chão e olhava as estrelas.
— Seu povo também são os kanela, de Barra do
Corda.
Insisto na sua origem, mas ele finge que não escuta.
Comove-se com o discurso. Fala das famílias aparentadas e
compadres, que tomavam posse da terra, levantavam casas de
taipa e passavam os dias no campo. As mulheres se escondiam
dentro de casa. Os machos pastoravam as reses, construíam
currais, perseguiam e matavam os índios. E também se mata-
vam, sobretudo pela posse da terra, para criar mais gado.
— Os primeiros fazendeiros matavam os índios, der-
rubavam árvores e pagavam aos caçadores por cada mil peri-
quitos ou papagaios que eles caçassem. Mas faziam isso para
garantir os rebanhos e a lavoura. Eles não sabiam as conse-
qüências da destruição, como os fazendeiros de hoje. Agiam
por ignorância.

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— Esse é o discurso mais careta que já escutei, Ismael.
Em nome dos parentes que o rejeitam, você se orgulha até do
massacre dos índios. Esquece que é um deles?
— Os índios daqui foram incorporados.
— Foram dizimados. Inventaram a história de que
os machos aceitaram o sacrifício porque os brancos casariam
com as fêmeas e, assim, a raça seria preservada. Isso é mentira!
Escondemos a barbárie da colonização, os massacres, e cria-
mos atenuantes românticas. Propagamos a perfeita mistura de
raças — falei em tom debochado, como um político discur-
sando. Começava a perder a paciência com Ismael.
— Posso continuar?
— A trair suas origens?
— Você é mais sabido do que eu, primo. Fez doutora-
do na Inglaterra, mas eu aprendi como os antigos da família,
sozinho, por esforço próprio. Li os livros que você nunca se
interessou em ler.
— Ainda bem. Assim eu não falo que os antigos não ti-
veram responsabilidade pelas desgraças do nosso tempo. Erramos
no passado, e pagamos por isso. Erramos no presente, pagamos
agora e pagaremos no futuro. Seu oitavo avô Bernardo Duarte Pi-
nheiro é tão culpado pela poluição do rio Jaguaribe quanto os usi-
neiros de Mato Grosso são culpados pela poluição do Pantanal.
Percebi minha irritação e baixei o tom. Ismael dese-
java me impressionar. Ninguém o levava a sério, a não ser eu,
um possível aliado.
— No começo, uma rês era mais importante do que
um filho. Se uma vaca morria, fazia falta ao rebanho. Um me-
nino, não. Numa noite como essa, o homem subia apressado na
mulher, jogava a semente dentro dela, e pronto, estava providen-
ciada a substituição. Nossa gente pensava assim, tenho certeza.
— Você sente saudade desse tempo?
— Sinto.
— É estranho, nem dos Inhamuns você é! Passou a
maior parte da vida no Maranhão, e depois na Noruega.
Tive de ouvir as teorias de Ismael sobre a povoação
dos sertões por uma raça mestiça, mais resistente ao clima,

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feito o gado pé-duro que os antigos traziam. Felizmente a con-
versa esfriou. Eu estava sem ânimo para mais discussões. Não
me sinto seguro teorizando sobre história do Brasil. Sou in-
coerente, não tenho posições firmes.

Paramos na estrada para mijar. O motor do carro ficou


ligado, os faróis acesos. Um cheiro bom de mato entrou pelo
meu nariz, trazendo lembrança de nomes de plantas. Deletei a
memória. Ismael e eu botamos o pau para fora. Davi afastou-
se devagar, como se fosse embora, a camisa larga, costurada
para outro corpo que não o dele, balançando ao vento Aracati.
Lembro o nome dos ventos: Terral, Aracati, Nordeste, Gra-
viúna. Ismael mija forte. Os cavalos mijam assim, baixam as
pernas traseiras e disparam um jato potente, furando o chão,
formando um riacho que escorre para longe. Sobe um cheiro
sufocante. Deleto a memória, novamente. Davi caminha por
cima do acostamento mal conservado. Os faróis perdem luz
sobre ele, mas avisto quando baixa as calças, expondo a bunda
branca. Repete-se diante dos meus olhos a cena antiga.

* * *

Viro-me e encontro os olhos de Ismael.


— Eu não tenho nada a ver com isso! Será que nunca
vão acreditar?!
Entra na camioneta, bate a porta com força. Temo que
dê arranque, passe por cima de mim e de Davi. Buzina, e é
como o grito de um pássaro estranho à paisagem e ao silêncio.
Davi não se move, é uma estátua de bunda descarnada sob a
luz dos faróis. Retornamos ao ponto zero da largada. Os elos se
desfazem, antes mesmo de se recomporem. Busco uma relação
com o mundo, com a noite escura e a chuva fina começando.
Ismael acendeu um novo baseado. O cheiro da erva
aumenta minha náusea. Desço os vidros do carro. O proscrito
assumiu o comando da expedição, sem nos consultar se de-
sejamos segui-lo. Despe a camisa e finjo não reparar no peito

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musculoso bordado de tatuagens, nos braços igualmente ta-
tuados. Viro o rosto para a estrada. Não seguro a curiosida-
de por muito tempo, volto os olhos, quero ver o restante da
encenação, o stripper arrancando o cinto da calça, abrindo o
zíper e deixando a cueca à mostra. Ele estende o cigarro para
mim, sabe que não fumo, mas insiste, aliciante como todos os
demônios. Davi não se moveu um centímetro do lugar onde
estava. Só as roupas se agitam ao vento com chuva.

* * *

— Vamos!
— Calma, não estou com pressa de chegar a lugar
nenhum!
— Seu irmão vai se molhar!
— Não tem o menor risco de que isso aconteça. Ele é
etéreo, um andróide. I may be paranoid, but no android.
Começou a gritar os versos do Radiohead, imitando a
vozinha fina de Thom Yorke. Cumprindo o que eu imaginara,
assumiu a regência da orquestra, pondo para tocar um CD da
banda inglesa no volume mais alto. Ligou o carro, partiu e
freou junto do irmão.
— Passageiro, estamos de partida para o inferno!
Davi entrou em silêncio, sentou-se, e quando olhei
para trás ele jogava no brinquedo eletrônico, ausente do nosso
mundo. Ismael cantarolava “Paranoid Android”, batendo as
mãos no volante. Quando repetia os versos ambition makes you
look pretty ugly, kicking squealing gucci little piggy, olhava para
mim como se eu fosse o pai Natan. Temi pela minha sanida-
de. Conhecia a letra de “Paranoid Android”, desde o tempo
em que estudei em Londres. Nela também se repetia o pânico,
o vômito, o pânico, o vômito.
— É preciso muito tempo pra se gostar de um lugar.
Eu nunca me acostumei à Noruega. Dizem que ela é melhor
do que isso aqui. Eu não acho. O sertão a gente traz nos olhos,
no sangue, nos cromossomos. É uma doença sem cura.

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A maconha chegava ao ponto ótimo. As portas da per-
cepção se abriam e o primo voltava a falar como um tio velho,
dizendo frases intencionalmente profundas.
O ardil de lembrar nomes de árvores e pássaros não fun-
ciona. Talvez eu tome um ansiolítico. O celular entrou em área,
posso falar com Joana, ouvir as vozes dos meninos, decompor esta
cabine de camioneta em que viajo com estranhos que já foram
meus amigos, primos de sangue. Sangue? Melhor não lembrar...
Se tio Josafá viesse ao nosso lado, estaríamos rindo às gargalha-
das. Também existe gente alegre e bem-humorada na família.
Quando eu for rei, você será o primeiro a ser colocado
contra a parede, com suas opiniões totalmente inconseqüentes,
cantava Thom Yorke.
Era a terceira vez que escutávamos a mesma música,
e Davi ainda não apresentara seus protestos à Suprema Corte.
Meu estômago registrou a seqüência dos ritmos: um começo
dançante, lembrando as mornas da Ilha da Madeira; seguiam-
se os metais pesados, depois um coro gótico, e a loucura veloz,
cento e sessenta quilômetros por hora.
— Você quer nos matar?! Diminua essa velocidade!
Para minha surpresa, Davi começou a cantar alto, fa-
zendo coro à banda e ao irmão. A chuva caiu forte.
A banda cantava em inglês, e eu, que nunca consegui
raciocinar em outro idioma além do materno, traduzia os ver-
sos: chuva cai, chuva cai, vamos, chuva, caia em mim; de uma
altura bem alta, de uma altura bem alta... alta... Chova, chova,
vamos, chova em mim, de uma altura bem alta, de uma altura
bem alta... alta... Chova, chova, vamos, chova em mim!
O celular tocou. Escutei a voz de Joana e o sinal fugiu.
Odiei os dois loucos, que abafavam com seus gritos uma voz
humana, uma esperança de sossego.
— Aonde vamos? — gritei acima de todos os ruídos.
Ninguém me respondeu naquele carro. As vozes pare-
ciam vindas de uma barca, dos tenebrosos autos medievais:
— Ao inferno! Ao inferno!

Ao inferno.

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