Iaba Carybé PDF

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IABA

NOVELA DE CARYBÉ

A vida de Antônio está na boca deste tamanho querendo pular do


do mundo, foi um embrulho de westido.
saias, cosida de brigas e tempe- No outro domingo Antônio lar-
rada com o amor de muitas ca-
brochas.
gou Zulmira-Marrom .
Zulmira era macumbeira, cavalo
Era inimigo pessoal do traba- de Iansã no terreiro de Pai Cosme
lho, gostava de bem vestir, beber, e para lá correu, alucinada queren-
jogar capoeira e sobre todas as do um feitiço, um bozó forte que
coisas gostava de amar e por tan- fizesse o Antònio se arrastar a seus
to amar estrepou-se um monte de pés pedindo perdão.
vezes.
Conceição, Lourdes, duas Zezés, Cosme foi para a mesa, leu nos
cinco Marias, Arminda e uma por- búzios e viu que isso não podia ser.
ção mais, porque ao certo ninguém Antônio era santo muito forte e le-
sabe quantas foram, nem ele. vava ao pescoço um patuá de chei-
Seu caso mais extraordinhrio foi ro, coisa de africano, que o avisava
o de Iaba e tudo se deu por causa dos perigos aromando. Pensou, tor-
de Cecilia que tomou o lugar de nou a pensar e achou que a melhor
Zulmira-Marrom. solução seria atacar pelo ponto
Zulmira era uma cabo-verde bra- mais fraco: invocar uma Diaba,
ba e perigosa, vivia com ele há seis uma Panjira, que em forma de
meses, moravam num barraco no mulher apaixonasse o Antônio,
pirraçasse dele, o fizesse trabalhar
Rio Vermelho de Cima. Zulmira-
e o transformasse num joguete
Marrom era cavalo de Iansã, vio-
ridículo; estaria livre de se apai-
lenta como sua santa e sabedora da
fraqueza de Antônio por rabo de xonar, pois uma Panjira, uma
saia vivia a dizer: "O dia que tu diaba, está muito além dessas coi-
me deixar tu me paga! Comigo não sas dos humanos.
é como essa fieira que tu foi lar- Zulmira-Marrom ficou radian-
gando, olhe que eu não sou conta te. Como seria bom v&-10 por
de rosário. .. não brinque comigo baixo, pagando caro todas as sa-
não!" fadezas que fizera com ela e com
Antònio ria alto. as outras. Rir de barriga solta
Um domingo, na capoeira de vendo-o feito um boc6 se arrastan-
mestre Nag6, apareceu Cecilia, do aos pés dessa Diaba que Pai
uma sarará roliça com dois peitões Cosme iria convocar.
Os búzios falaram. O dia mais para espremer uma roupa. Pas-
propício seria a terceira sexta-fei- sando, puxou o vestido para fora e
ra do sétimo mês. a velha entre assustada e se rindo
- De hoje a oito - disse o Pai disse: "Me respeite menino". An-
Cosme para Zulmira-Marrom . tônio riu alto e desceu a barroca
Quando a lua subiu por detrás aos pulos.
dos coqueiros, pálida que nem ~ o m o uuma cachaça na venda
defunto, a faca sangrou um bode de Seu Juca e rurnou para a feira
preto e fedorento que nem sovaco de Agua de Meninos.
do Cão. Para cada perna de bode Já ganhara uns quinhentos cru-
matou-se um galo, para cada pé zeiros no jogo da chapinha quando
de galo uma conquém. Três gar- Jandira avisou. Esgueirou-se para
rafas de cachaça, sete charutos, a barraca de Berro-Grosso e ficou
vinte e sete moedas de vintém e pagando rodadas a dois cegos vio-
treze velas. Queimou-se pólvora e leiros que Eaziam tinir as cordas de
OS couros roncaram. Cantou-se aço, cantavam e riam num porre
muito para que uma Panjira che- medonho. Quando a policia che-
gasse dos caminhos do Ninguém- gou Berro-Grosso e ele discutiam
Sabe. A voz de Zulmira subia alta futebol.
nas cantigas, mais afinada que Saiu zanzando pela feira, pelos
nunca, feliz, contente de estar c 6 becos amuralhados de mantas de
laborando na desgraça de Antônio. carne seca, por entre montanhas
Pouco antes do amanhecer a de cocos e ãbacaxis, pulando sa-
Diaba surgiu de uma cruz de p61- bre feixes de cana-de-açúcar, gin-
vora, no meio da fumaceira apare- gando, se rindo, Eazendo pilhérias
ceu uma creoula enxuta, de per- com seu mundão de amigos, cui-
nas e pescoço longo, cabeça miú- dando de não sujar seus sapatos de
da e bem desenhada. Aromando. duas cores e o terno de linho.
Foi levada, coberta de panos Foi até a praia para ver os sa-
brancos, para o roncó, Zu1mi.- veiros. Coisa de que ele gostava
ra teve uma pontinha de ciúme era de saveiro! Para ele era como
mas se aguentou. se fosse gente, sabia de cor os no-
Antônio acordara tarde. Ao mes deles todos e sempre os sauda-
sair de casa o patuá que levava ao va de pensamento. "Alô querido de
pescoço cheirou. Olhou desconfia- Deus! Alô IVira-Mundo".
do para todos os lados e viu o bozó Foi lentamente à barraca de Mi-
de Zulmira-Marrom bem na portei- guel o barbeiro. Uma barraquinha
ra do terreiro; um grande galo ca- incrivel que mal dava para Mi-
rijó desparramava a farofa para guel e o cliente protegido contra
seu harCm de galinhas. Voltou, o azar por dois enormes chifres de
acendeu um defumador dentro da boi enfiados nos esteios. Bateu
casa, deu cachaça a Exu e às por- um papo e sentou-se na cadeira.
tas e saiu pelos fundos invadindo Gostava de ficar ali vendo a saída
o quintal de Dona Zazá que esta- e chegada dos saveiros, naquela
va com meio vestido mordido pelas madorna gostosa que dava o pin-
nádegas enormes pois se abaixara cel esfregando sabão, as mãos fi-
nas de Mestre Miguel estirando a pava o terreno e ficava armando
cara para escanhoar de contra-pe- bote.
10, era uma lezeira deliciosa que Foi se aproximando devagari-
mal deixava ouvir as histórias do nho, num molejo acompassado,
mestre em cima da cabeça. pensando e quando estava a pou-
De olhos entornados, sumido na- cos passos o papagaio resolveu tu-
quela madorna sem tamanho, viu do, começou a cantar:
entre os dedos do barbeiro a proa
do Madre de Deus encalhado Tadinha de minha dona,
na praia, os saveiristas pularem e Tão sozinha,
colocarem as pranchas; aí sentiu o Tão sozinha,
patuá aromando no peito e foi Veio um príncipe da Pérsia.. .
surgindo da preguiça na hora que
viu contra o céu, na borda do sa- Antônio interrompeu a cantiga.
veiro, o corpo esguio de uma mu- "Está tão sozinha mesmo? Se é as-
lher segurando numa mão uma sim aqui está seu príncipe da Pér-
sombrinha e na outra uma gaiola sia. . ." Tirou o chapéu e saudan-
com um papagaio. do h mosqueteira continuou "às
A mulher que descera o pran- suas ordens para o que quiser. . ."
chão cheia de denguices vinha vin- A moça virou para ele, exami-
do num gingado mole, a via por nou-o de cima abaixo com a vista e
entre os dedos do Miguel que lhe com uma pontinha de deboche no
espichavam a cara para escanhoar sorriso disse: "Pois é moço, é a
o pescoço. Antônio afastou as primeira vez que venho h Bahia,
mãos do barbeiro para melhor deste jeito. . ."
contemplar aquele pedaço de mau - De que jeito?
caminho que passou rente, se rin- - -
Assim. . . num jeito gracio-
do de sua cara, metade ensaboa- so apontou para o corpo e conti-
da e metade não. nuou: Vinha para a casa de uma
- Miguel, toca ligeiro, não pos- amiga mas já me informaram que
foi para o sul. Você sabe de al-
so perder a pista, essa está no papo
Miguell guma pensão não muito cara? Prn-
.
"Olhel.. A ribaçã já cheiròu
são familiar ouviu1
- Ora! Sou ou não sou príncipe
seu pouso. Olhe só" - e apontou da Pérsia? EstQ tudo resolvido,
para o espelho. Ela estava de cos- meu palácio não é lá muito gran-
tas sentada na mala, como se adi- de mas di, quase nunca vou, se
vinhasse virou para trás e olhou
para o esspelho sorrindo. O patilá
.
quiser é seu.. até que possa dar
jeito nas coisas.
de Antônio aromou forte mas na - E sua mulher?
afobação ele não ligou. - E eu tenho lá mulher1 Vod
Enquanto enxugava a cara com será a dona do palácio e eu seu
uma toalha de saco de farinha An- príncipe Antônio. Qual 6 seu
tônio ia matutando como começa- nome?
ria. Sempre desconfiara de mu- - Iaba.
lher oferecida, de mulher que lim- - .
Bonito nome. .
O papagaio deu uma risada e fosse água e serviu-se de novo. An-
Antônio saiu com ela gingando ao tônio para não ser menos fez o
lado. Atrás um capitão-de-areia mesmo e assim, num instante, a
carregava a mala e a gaiola; o pes- garrafa esvaziou. Começou a tem-
soal da feira acompanhava com a perar a viola mas ela pediu se ha-
vista o grupo com uma inveja da- via algo de comer em casa. Não
nada da sorte dele. havia não! Antônio despencou la-
Tomaram o bonde do Rio Ver- deira abaixo, alegre que nem cahrl-
melho, saltaram na Mata Escura, to pulava as barrocas e entrou pela
dexeram uma rua de pequenas ca- venda de Seu Juca como um tu-
sas coloridas e antes de subirem a fão. Entre os comentários de Seu
ladeira, deram um descanso na Juca e dos fregueses foi fazendo os
porta do armazkm de Seu Juca, ci- pedidos e quando o pacote estava
dadão português que passava o dia pronto desembestou morro acima;
acotovelado no balcão acariciando pelo meio diminuiu a carreira, foi
seus antebraços cabeludos como se subindo a passadas longas.
fossem gatos. Iaba conversou um pouco com O
- Olá Antônio! Como vai essa papagaio, pendurou a gaiola num
força? Vai uma geladinha? É por prego junto A janela e entrou na
conta da casa. casa. Um quadro de São Jorge,
Tomaram cinco e a venda foi uma rede e uma caminha muito
enchendo de curiosos que vinham baixa era toda a mobília, abriu a
ver o "material" especial que o An- mala e começou a desvestir-se. De
tônio arranjara. fora o papagaio gritou: "Lá veiii
Quando iam subindo, Antônio, o príncipe!" e riu do riso mais
contente da vida, não reparou que debochado do mundo.
os cachorros à vista da iaba fugiam AntOnio foi entrando e o cora-
de rabo entre as pernas e até os ção bateu forte; no fundo branco
mais valentes, como o Tubarão dc da parede desenhava-se o corpo de
Dona Simplícia, se encolhia arre- Iaba, o escuro de sua pele cortado
piado mostrando as presas e ran- pelas calçolas e pelo corpinho se
gindo os dentes, mas de longe. mexia como se fossem pedaços sol-
A casa de Antônio apareceu, ver- tos. Ela não fez gesto nenhum de
melha que nem fogo com os ba- pudor, s6 disse:
tentes pintados de amarelo, por de-
- bfe espere lá fora, já vou bem!
trás um lindo cocar de bananeira?
e depois o céu tão azul naquele Antônio saiu de costas, sem ti-
dia. rar os olhos do corpo cortado pelas
calçolas, aquelas coxonas roliças
Antônio abriu - tirou duas pol-
tronas de vime e uma mesinha de lhe ficaram no juízo. Sentou na
pinho. Tornou a entrar e voltou cadeira de vime e pôs-se a tempe-
com uma garrafa de cachaça, co. rar a viola, olhando para a som-
pos e a viola. bra das bananeiras que se agitava
"Vamos festejar o feliz encon- no chão como se vivesse, como se
tro". E serviu duas talagadas de fosse bicho, águas vivas do mar.
meio copo. Iaba tomou como se Quase tomou um susto quando de
entre aquelas sombras saíram ao aproveitando que passava perto
clarão da lua vadia dois porcos segurou na barra da saia, ela quis
magros e focinhudos que tranqüi- se livrar dando um safanão, mas
lamente atravessaram o terreiro e a saia e um de seus braços fica-
se sentaram perto da porta da co- ram nas mãos de Antônio. O pa-
zinha. Antônio se danou, deu uma pagaio fitava a cena com uns olhóes
pedrada que reboou nas costelas deste tamanho e berrava: "Compa-
do primeiro porco. Os dois biclios dres! Acudam, acudam!".
correram para as sombras de novo. Das sombras surgiram os dois
Iaba veio de vestido branco, porcos numa carreira desenfreada,
abriu uma garrafa de cachaça com atropelaram as pernas do Antônio,
os dentes e serviu uma talagada de que caiu pelo barranco embolado
meio copo. Tomou como se fosse com Iaba, quebrando os cocos e
Bgua. Antônio ferido em seus brios mamonas que nasciam na barran-
fez o mesmo. ca. Quando chegaram ao fundo,
Iaba serviu outra dose e foi be- Antônio segurou-a pelos coques e
bendo comó se se tratasse de re- deu-lhe um beijo comprido. Ela
frescos. sentiu o corpo amolecer, ficou
Antônio viu tudo. Foi tomando quieta, arrepiada, querendo que
devagar, assoviando e pinicando a aquilo não acabasse mais. No to-
viola de mansinho, ela continuou po do barranco os dois porcos olha-
sem dar o menor sinal de pileque, vam para a cena agitados, botando
de repente disse: "Meu bem estou f,iiscas pelos olhinhos malignos,
com fome, não há nada por aí? chocalhando as presas enquanto o
Tem mais cachaça?" papagaio berrava: "Cadê minha
- Cachaça tem! E tem café, pão dona? Minha dooonal Iaaaba, ca-
e umas bobagens mais. Vou trazer dê você?"
a branca. . . A resposta foi um gemido d e
Veio com outra garrafa, serviu, gozo.
bebeu um golinho curto e atacou No Eundo do barranco Iaba está
um samba. Iaba saiu num sapateio estendida de costas, de olhos fecha-
miúdo, estalando as chinelas no
dos para prolongar aquele mistério
calcanhar, sacolejando os quartos, bom. A seu lado Antônio assovia
pondo as mãos em suas graças
baixinho e brinca desmanchando
quando Antonio cantava:
os coques.
Depois de um tempão subiram
Oi, tira a mão da flô
agarrados pela cintura, tomaram
Oh Fulô.. .
outra cachaça, entraram no barraco,
Antônio sd via a alvura do ves- e trancaram a porta.
tido dançando contra a sombra das A lua batia de cheio no terreiro.
bananeiras, que nem vestido mal Na beira do barranco os porcos e O
assombrado sem ninguCm dentro. papagaio olhavam para a casa que
A brisa, vadia e inconstante, tra- deixava escapar pelas frestas a luz
zia-lhe o aroma da mulher. De vacilante do fifó, risos abafados, ro-
ventas acesas tomou outro trago e chichos e ranran de rede.
Os três compadres conversavam: O papagaio saiu pela cozinha e
"Isto vai mal!", disse um dos por- foi juntar-se com os porquinhos que
cos com cara de aporrinhado. fuçavam nas bananeiras: "Já pediu
"Qual nada - respondeu o papa- um vestido e um espelho deste ta-
gaio - a coisa é assim mesmo. .." manho!"
."
"Mas já?. . - o outro disse. A vida de Antonio ia se com-
A lua se ria no peito da noite. plicando, comprara o vestido e o
Quando António abriu os olhos, espelho mas a mulher não parava,
dia alto já, tomou um susto. Sobre - era sapato, era um corte de seda
ele balançava na rede o corpo nu que vira na Baixa do Sapateiro, era
de Iaba; ia e vinha empurrado pelo panela, perfume, um mundão de
dedão na parede. coisas. Até ali vinha se virando no
Custou para arrumar no juízo o jogo da chapinha, na feira e na
que acontecera na noite anterior. rampa do mercado, mas teve que
A ressaca era horrorosa, chegou a parar porque reparou que os tiras
pensar que aquela mulher que pas- estavam de olho nele. Que fazer?
sava sobre sua cabeça fosse alucina- Ela tinha uns dengos tão gostosos
ção e s6 recordou tudo quando o que era impossível negar nada e se
papagaio que estava na beira da re- uma promessa não era cumprida as
de gritou: "Praá, pa, pacul bom represilias eram terríveis. Brigas
.
dia senhor1 Práaa. ." E riu de um horrorosas com gritos tão altos e de-
riso safado. saforados que o morro todo ouvia.
Lá fora o sol esquentando. Não havia coisa que o danasse
Iaba se arranchou na casa de An- mais que mulher cantando de galo
tonio. Esse dia fez café, ele não e o pior era o papagaio que bota-
podia com a cabeça. Depois de ter
va a boca no mundo dando aviso
algo no estómago, melhorou, entra-
de tudo que se passava dentro do
ram na rede, catou um cafuné e
barraco. Nessas horas o bichinho
convidou-a para que de tardinha, parecia gente, falava fluente e de
dessem um passeio. Iaba recusou
corrido e a vizinhança juntava para
dizendo que ele rasgara seu vestido
apreciar, rindo a valer das coisas
e além disso não podia se arrumar que o bichinho contava.
com aquele espelhinho miserável
onde se via feito um monstro com Nessas horas Antonio apelava
a cara ora comprida, ora chata, ora para a força, dava uma surra da-
.
ondulada. E só a cara.. "Será que nada na mulher. Adiantava? Nada!
O povo chegava perto da porta e
tu compra um vestido para mim?
Bem azul1 E um espelho decente. .. xingava com os piores nomes. An-
ijue entre toda! "... tonio, num desespero saía e desafia-
va quem quer que fosse. Foi as-
Antonio coçou a cabeça doída e
consentiu. Se abraçaram sumidos sim que deu num sargento dos fu-
na rede, o papagaio trepado no sileiros navais, que uma semana de-
punho contemplava a cena assom- pois vingou-se mandando um ban-
tirado. A rede parou. Os dois ador- do de fuzileiros tocaiar o Antonio.
meceram que nem menino novo Foi encontrado sem sentidos nu-
em colo de mãe. ma vala, a boca rebentada de mur-
ros e um dos olhos inchado e preto que Iaba era algo fraca do juizo,
que nem olho de porco. pudera1 Com a vida que esses dois
Iaba foi uma mãe; cuidou dele levavam. ..
noites gemidas, bailes,
de dia e de noite e no meio de pnsseios .
tanta dedicação arrancou-lhe a pro- A panela andava melhor. AntÔ-
messa de que puxaria um fio da riio, graças a um amigo que o ini-
venda de Seu Juca até o barracão. ciara no trabalho de magarefe, es-
Afal sabia Antônio que detrás dis- tava matando bois no Retiro. Ga-
so viria o pedido de um ferro de nhava bastante e conseguia comprar
engomar, um rádio, até uma gela- quase tudo que Iaba pedia; trazia
deira, o diabo1 carne da melhor e s6 andava de
Era uma vida danada. Fazia de linho, alvo que nem pombo para
tudo para ganhar mas o que en- compensar as horas que devia an-
trava por um bolso saia pelo outro. dar ensangüentado da cabeça aos
Se entrava um dinheirinho Iaba pés.
torrava em besteira, perfumes ou Não gostava desse trabalho mas
uma calçola de nylon, até meias a onde iria encontrar tanto dinheiro
bichinha inventou de comprar. Bem czda semana?
que ele gostava de ver Ô povo in-
O entristecia o aboio dos vaquei-
vejando-o, mas o trabalho positiva-
ros e a mansidão dos bois ao mor-
mente era um castigo, uma maldi-
rer. Entravam na faca sem protes-
cão que tirava todo o prazer de
viver. Voltava exausto, com os pes tar, sem dar um gemido, como se
doidos e em vez de pegar a rede fossem os Santos Inocentes, e ele
tinha que se enfatiotar todo para com a roupa encharcada de sangue
levá-la ao cinema. Lá ele dormia sentia-se como um soldado de He-
e na volta era a forra, um amor rodes matando as criancinhas.
comprido pela noite a dentro e de- Trepados nas grades do curral
pois um sono de pedra até que o num instante acabavam com a vi-
maldito papagaio começasse a as- da dos bois. Que nem demônios
soviar e dar gritos, na barra do encarniçados enfiavam-lhes os chu-
ÇOS na nuca e aqueles zebus enor-
dia.
Um dia a filha de Dona Zazá mes despencavam como jaca madu-
contara que vira Iaba conversando ra, estatelados, com os olhos tris-
com os porcos e o papagaio como tes a olhar para ninguém, talvez
se fossem gente, os porcos sentados querendo rever o doce verde das
e o papagaio ciscando, ela dizendo: mangas de capim.
"Estou gostando muito de ser mu- Quando os bois estrebuchavam
lher. Não foi pra isso que vim? desciam feito morcegos pelas gra-
Pois estou cumprindo minha sina des e os bichos eram sangrados.
e o Antônio é. .." Não pôde ou- Aquele sangue quente escorrendo
vir mais porque o papagaio a viu dos talhos largos, escorregadio,
e começou a xingá-la de tudo q ~ e lento, se coalhando, descendo si-
era nome feio. lente para as valas, dava-lhe uma
Dona Zazá com o que lhe conta- tristeza imensa. Aí os bois eram
ra a filha acabou de convencer-se arrastados para fora e de pernas
esticadas para cima comiam faca POSSO com estas coxonas, com es-
até que os quartos seguiam enfilei- tes peitos, com isto tudo que vou
rados nos ganchos para os cami- ..
carregando, rebolando. ? Isto tem
nhões. .
e muita força.. eu digo assim:
As cabeças iam para os cepos e Vou deixar o Antônio em dique
com enormes machados as partiam seco por um mès. Ele chega e ca-
para retirar os miolos. Sempre que dê força? Encosta e o corpo co-
fazia esse trabalho se lembrava da nieça a se arrepiar, a se amolecer
morte de Ana Bolena que vira num que não há poder que possa".
filme, e nos dias que vinha en- No dia que acordava de pá vi-
fezado com um pedido de Iaba a rada quando o papagaio começava
apoquentar-lhe o juizo, era a ca- com a sua ladainha. atirava-lhe com
beça dela que via no cepo, levan- o que tivesse à mão, xingava e
tava o machado e o descarregava ameaçava de torcer-lhe o pescoço
com toda a força: "Tome! Isto é o e o bicho sumia pelas bana-
que vou fazer um dia destes. neiras e ficava conspirando com
Quer colar? Tome sua filha da os porcos.
pu . . ." e o machado estalava como Iaba insistira a semana toda para
tiro na caveira do boi. que o Antônio a levasse ao baile do
Mas tudo esquecia quando ia Palmeiras Sport Club. Queria e s
chegando em casa. Ia crescendo o trear um vestido de setim quase
I'tdo bom de Iaba, seu cheiro, seus da cor da pele muito justo, mui-
deiigues e com isso tudo na ima- to colado, muito cor de melado.
ginação sempre chegava com um com o qual, sem dúvidas, provo-
sorriso largo. Dava-lhe um beijo no caria alterações no baile.
cangote e ela se encolhia num Antônio foi chegando cansadís-
arrepio gostoso, revidava, senta- simo. Era tempo de guaricema e
vam-se na rede e cada um contava
estava pescando de tarrafa numa
o que acontecera durante o dia,
jangadinha emprestada. Vinha
um catando cafund no outro. Era
moido de tanto mergulhar, remar
nessas horas que o papagaio se
agitava no poleiro refunfunhando c estar se equilibrando na embar-
cação. Vinha fedendo a peixe e
que nem panela de feijão ao fogo.
decidido a dormir. Nada de baile,
Não gostava nada do comporta-
mento de Iaba. Tiveram grandes o que queria era deitar na rede,
discussões, ele a acusá-la que esta- tocar um pouquinho na viola e
va se abrandando muito com o pegar no sono com um cafund com-
Antônio, que aquele amor todo, a prido misturado com uma estória
toda hora, estava demais, que besta de príncipe ou de Pedro Ma-
aquilo não era castigo coisa ne- lazarte .
nhuma e que ela viera para fazê- Subiu a ladeira nessa intenção
10 sofrer e não para dançar ou se mas ao chegar em casa viu o ba-
afundar na rede por horas. Se es- nho pronto, seu terno de linho en-
tava de boa natureza Iaba expli- gomado e alvo de doer na vista; a
csva: "Ora meu velho, o culpado seu lado, em outro cabide. o ves-
4 este corpo, então tu pensa que tido novo de Iaba a brilhar que
nem topázio, ela de penteado no- de mulher, daqui a pouco estarei
vo, um coque alto que continuava ttoinha e iremos à festa.
a linha da nuca, cheirosa, toda O papagaio deu uma risada de-
perfumada com um perfume fran- hochada e Antônio de um sopapo
cês que comprara de um investi- bateu com ele no canto da casa, o
gador amigo e não teve coragem bicho saiu se encostando nas pa-
de dizer que estava cansado; detes- redes e murmurando:
tava ser estraga-festas. Tirou a .
- Oi, que peste bruta!. .
roupa e entrou no banho. Iaba No terreiro estavam os dois com-
veio com a lata de água mor- pndres esperando, os três sentados,
na, ensaboou-lhe as costas, esfre- imóveis ficaram a espiar para a
gando a espuma com uma bucha casa.
macia, tão gostosa que Antônio te- Uma hora depois, fazendo um
ria passado horas assim. estoi ço, Iaba se levantou, retocou
Tirou da mala a camisa, as n cara e saiu no braço de Antô-
meias de espuma e a gravata ver- nio. O ar fresco da noite a rea-
melha, pôs nos pés da cama os nimou, desceram a ladeira rindo e
sapatos e começou a se vestir. Iaba tomaram o bonde, aí deu outro
enfiou-se a muito custo no vesti- enjho e não houve outro jeito que
do, pediu para que o Antônio lhe voltar para casa.
fechasse o zip, ele quis beijar-lhe Que seria aquilo? E se o compa-
a nuca, mas ela se inclinou para dre papagaio estivesse certo? Como
a frente numa contração violenta, poderia saber, se só faziam três ou
pensou que fosse dengo, passou- quatro meses que virara mulher?
lhe a mão pela cintura para atraí- Xcm pensara naquilo, na possibi-
la a si, mas sentiu o ventre con- lidade de ter menino.
trair-se em sua mão e Iaba vomi- Antônio vinha calado, susten-
tou. Vomitou e deu-lhe uma ton- tando-a pelo braço, disse com voz
tiira que se não a amparasse teria séria:
caldo ao clião. Deitou-se na rede - Será menino ou menina?
e correu à cozinha para fazer um Ela sentiu uma sensação doce,
chá de erva-cidreira . uma alegria grave que nunca sen-
O papagaio passou do alto do tira, aconchegou-se ao braço dele e
muro para a varanda da rede, in- disse baixinho:
clinou-se sobre a cabeça de Iaba e - Se for menina, vamos chamar
falou: "Eu não disse? E agora?" de Maria. Se for homem, de An-
- E agora o quê? tonio. Acha bom?
- O quê, é que você está pre- Antônio calou, subiram a ladei-
nha, quero ver como se sai desta ... ra devagar. sem fazer ruído. No
Antônio vinha chegando com um terreiro os porcos se agitavam ao
caneco de chá. redor do papagaio que falava bai-
- Está melhor meu bem? Que xinho e ao ver surgir o Antônio
.
pode ter sido?. . Vai ver que é o disfarçou cantarolando um samba.
fígado1 Antônio falou:
- Não é não meu bem, deve ser - Afinal de contas você sabe de
um desarranjo passageiro, coisa quem são esses diabos de porcos
que só ficam rondando a casa? Se piado de frio. Guaricema deu al-
o dono não tomar providências gum dinheiro, mas depois sumiu,
um dia destes acabo com eles. pititinga e chicharro era mais o
-Você é que sabe - disse timi- trabalho que o que rendiam.
damente Iaba.. . Eu tambdm estou Resolveu mudar, falou com Seu
farta, mas são tão magros. .. Manoel dono da horta e saiu ven-
O tempo passando, a barriga de dendo flores.
laba crescendo e o compadre pa- Iaba pouco pedia. Com aquela
pagaio aporrinhando. barrigona nem tinha vontade de
Estava impossível. Quando An- se vestir e o único que exigia era
tonio estava em casa não se ani- algum sapato folgado para seus
mava muito, dava lá uma que pés doídos, algum sabonete, mas
outra indireta mas sempre de lon- chateava com coisas para o filho
ge e com a retirada garantida. que já se bolia dentro dela. Já ti-
Com Iaba era o próprio inferno, nha estoque de talcos, óleos e cuei-
era o dia inteirinho mangando da ros. Passava o dia crochetando sa-
moça, imitando choro de criança pátinhos de lã e fazendo camisoli-
e dera para cantar aquela velha nhas de cambraia de linho, nem
marcha carnavalesca: "Mamãe eu que fossem para filho de rico. Era
quero mamh. . . um pouco desajeitada para a cos-
E para piorar, as coisas não an- tiira, mas à força de boa vontade
davam muito bem. Antônio dei- ia dando jeito nas costuras, ape-
xara a pescaria de jangada, entra- sar da pirraça do compadre.
ra para a turma dos homens de Antônio achava graça nas enco-
terra de uma rede de xardu, havia mendas que ela lhe dava: retrós,
dias bons nos quais tinha direito linhas mercerizadas, rendas de bi-
a dois ou três peixes na partilha, co que ele tinha que comprar nas
mas a maioria das vezes o ganho lojas da Baixa dos Sapateiros sob
não recompensava o trabalho sorrisos das caixeiras que descobri-
exaustivo de puxar aquele mun- ram logo que ele ia ser pai.
dão de rede, sabendo de antemão De noite, tocando viola, tendo
que vinha vazia, pois os mergu- por travesseiro as coxas cheirosa3
lhadores já tinham dado aviso lá de Iaba, ficava olhando as estrelas
de fora. O trabalho era mais ale- e imaginando como seria se fosse
gre, havia cantigas, havia sol e os menino, e como seria se fosse Ma-
peixes morriam, refletindo a luz riu. Assim vinha o sono, ela ia
violenta em seus lombos prateados para a rede onde ajeitava melhor
sem ficar como os bois, de olhóes a barriga e ele dormia na caminha
tristes, a fitar o aldm. E tinha e na barra do dia acordava para
mulheres e meninos desparramados aprontar o café.
pela areia branca, cantando, cor- Antônio andava com uma idéia
rendo. fixa. Aqueles porcos que a tanto ,

A safra chegara a seu fim e ca- tempo rondavam a casa deviam ser
da dia o peixe era mais escasso. ljichos azarentos, não deviam de
Voltara para a jangadinha e pas- ter dono porque a não ser assim
sava o dia jogando tarrafa, arre- algudm teria reclamado e, magros
ou não, alguma coisa deviam ren- Debaixo dele, na casa, comia-se
der. Não disse nada a Iaba, apron- sarapatel. Seu Juca da venda fora
tou um porrete de braúna, jogou convidado com sua mulher e trou-
um resto de feijão perto da porta xera um garrafão de vinho portu-
da cozinha e ficou na espera. Os guês. Cada gargalhada que subia
dois compadres tiraram os longo; arrepiava mais e mais o papagaio
focinhos do mato, cheiraram e fo- que no cúmulo do desespero roga-
ram vindo. Foi rápido como o va pragas tremendas contra o An-
raio, as duas porretadas soaram tônio e Iaba. Seu Juca e Dona
quase ao mesmo tempo e os por- Massu desceram de madrugada tro-
cos caíram fulminados . Foram peçando e rindo alto rumo à
sangrados a facão e a água que venda.
fervia na lata os deixou em pouco De manhã cedo Antônio colocou
tempo r6seos como carne de gingo. os porcos na canga do jegue e, de-
Quando Iaba ia voltando da ca- pois de um cafe amargo para curar
sa de Norma onde fora passar à a ressaca, desceu para a feira.
máquina uma batata viu sobre a A vingança dos compadres foi
mesa da cozinha o fato e os miú- um forte desarranjo gástrico mas
dos de porco que Antônio estava não valeu de consolo, porque foi
tratando. Alegrou-se: "Obal Va- atribuído ao garrafão de vinho com
mos ter sarapatel!" Mas quando grande desespero do papagaio.
reconheceu os compadres pendu- Na manhã que Antônio saíra
rados pelos pCs teve um vexame. com os porcos o papagaio desceu
- Menino, como tu fez uma coi- da cumeeira para o seu poleiro e
de lá começou:
sa dessas? Virgem Nossa Senho-
ra... .
são eles?. . - Iaba, você está perdida; aban-
- São. Amanhã vendo esses ba- donou sua classe e a mais dessa
gaços, já pedi emprestado o jegue .
barrigona arran. . (Uma garrafa
do Juca. passou zunindo pela cabeça dele,
s6 teve tempo de voar gritando) ....
Iaba voltou a olhar para os por-
cos e, ao vê-los tão brancos, tão
Burra, sinhá burra, traidora!. ..
Levou três dias subido num
desnudos e cômicos passou do ve- dendezeiro mas teve que voltar en-
xame para um riso nervoso que joado do menu único e pensando
começou baixinho e foi em cres- no jeito que daria para que Iaba
cendo até uma gargalhada alegre voltasse a ser o instrumento de
que nem cachoeira. Antônio con- tortura do AntBnio, aquilo era a
tagiou-se e os dois ficaram um tem- desmoralização completa e já sou-
pão se acabando de rir da ridícula bera que Zulmira-Marrom fizera
figura dos compadres. passar vergonha a Pai Cosme nu-
O papagaio ia e voltava da ma sessão.
cilmieira do telhado, arrepiado, Meteu a cabeça pelo cantinho da
dando nomes horríveis mas baixi- porta da cozinha. Iaba bordava
nho, s6 para que os vagalumes e cantarolando no outro quarto. To-
os morcegos que estavam dando no mando coragem atravessou a cozi-
sapotizeiro pudessem ouvir. r ~ h ae parou no vão da porta, fi-
cou alerta esperando que Iaba Cada vez que ele voltava, exaus-
olhasse para ele, mas como ela to, e contava a Iaba as peripkcias
continuava ensimesmada bordando do dia e a má sorte nos negócios
e cantando baixinho, deu um "boa o papagaio ria baixinho, com uma
tarde" muito tímido e melífluo. alegria perversa a brilhar-lhe nos
Ela levantou a cabeça e sem res- o1hos amarelos.
ponder continuou com o bordado. Iaba, vendo que Maria precisava
Ele tomou coragem, carraspeou e de um mundão de coisas e que a
disse: mh sorte de Antônio não abran-
- Iaba! dava, resolveu lavar para fora.
- Que é? Descia o morro, equilibrando a
- Quero falar-lhe de igual a trouxa na cabeça, e levando, es-
igual... canchada nos quartos, a Maria.
- Ora me deixe compadre, por Na beira do dique punha-se ao tra-
.
favor não comece.. estou muito balho, enquanto Maria brincava
com barquinhos de folha seca ou
cansada de sua rabugice, as coisas
estão muito bem como estão, por com uma bruxa de pano. Punha
seu próprio bem fique sossegadi- as roupas a quarar no sol e sen-
nho em seu poleiro; se não quiser tõva debaixo da jaqueira pensan-
é bom dar o fora, o mundo é mui- do na vida: quase se esquecera que
to grande. afinal de contas era diaba enviada
O compadre mais não disse. para espicaçar com a vida de An-
Subiu sem piar ao poleiro e pu- tônio, mas quem podia imaginar
xou uma soneca já livre dos co- que ser mulher mesmo era tão bom
quinhos de dendê que já lhe da- assim? Antônio era muito homem
vam azia só de pensar. e além disso via os esforços que
fazia para levar avante a casa e
Quando Antônio chegou foi di-
zendo! que se não conseguia era por causa
dos diabos, bombojiras que viviam
- Ué, esse peste já voltou?
a atrapalhar-lhe o caminho. Ela
O papagaio nem piou, Iaba é mesmo não era uma panjira envia-
que disse: da para atormentá-lo? O diabo era
- Deixe o bichinho. Afinal de que a carne era fraca demais para
contas é bem engraçado. Diz mui- resistir e por causa disso ali estava
ta bobagem mas, apesar dos pesa- Maria brincando feliz. Sentia que
res, é de es.cimação. cada vez estava mais longe de sua
Quem nasceu foi Maria. condição de diaba, que do que
Moreninha clara, linda como o gostava mesmo era sol, de sam-
sol, num instante foi crescendo e bar e de ver o povo feliz. Adora-
o dinheiro de Antônio não dando s a as cantorias das lavadeiras e a
para os gastos, tentava todo tra- roupa se quarando, alva de doer
balho mas a caipora estava ali. nos olhos ou das cores violentas
Andava o dia inteiro e o que con- das saias abertas como flores no
seguia ganhar era um dinheirinho capim; de Antônio chegando sua-
magro que mal dava para não do e sempre alegre, contando OS
passar fome. acontecimentos do dia, enquanto
as cuias d'água escorriam encachoei- gara, sentara na cadeira de vime
radas pelo corpo musculoso; de do terreiro, e Maria veio a fazer-
seu peso em cima dela, do amor lhe dengos. Ele estava triste, pen-
melado de onde nasciam as Ma- sando que por primeira vez sua
rias. Ficava cismando nessas coi- filhinha não ia ter com que matar
sas e chegando à conclusão que era a fome e pensou em roubar alguém,
feliz. assassinar algum milionário, £a-
De tardinha subia o morro, es- zer-se gigolô de mulher-dama .
guia e flexível e banhava-se na Nesta altura chegou de dentro de
enorme bacia de folha-de-flandres casa a voz alegre de Iaba:
junto com Maria e era uma farra - Antônio, Mariiia, o jantar es-
danada das duas a brincar com tA na mesa!
água. Surpreso entrou com Maria no
Compadre papagaio é que não colo, sentou à mesa e Iaba apare-
afrouxava, dava nomes feios, xin- ceu trazendo com muita pompa a
gava, ameaçava com coisas horrí- travessa na ponta dos dedos, depo-
veis e para sua desgraça um dia sitou-a no centro da mesa e com
ameaçou Maria com doença braba. um gesto quase de prestidigitador
Fazia três dias que Antônio não arrancou um guardanapo que co-
ganhara um tostão. Fora de puro bria a comida. "É Pombo?" per-
desespero catar sururus nos baixios guntou Antônio.
da Invasão dos Alagados com a in- Iaba riu e mostrou um cocarzi-
tenção de vendê-los nos restauran- nho de penas verdes que enfei-
tes, mas ninguém comprou. Co- tava a cabeça de Maria. Antonio
meram de moqueca. olhou, olhou depois para o poleiro
Fora com Mestre Alodsio bus- e deu uma gargalhada sem tama-
car uma carga em Nazaré das Fa- nho.
rinhas. Tudo ia muito bem quan- Os dentes trituravam com fero-
do, parecia coisa do diabo, levan- cidade o corpo do finado compa-
tou-se um temporal que molhou dre.
toda a carga de açúcar. O prejuí- - 6 peste dura. . . Este diabo
zo foi total. Cadê coragem para parece de sola!. . .
cobrar seu trabalho a Mestre Aloí- - Mãe, será que ele não vai fa-
sio? O coitado do homem só não lar dentro da barriga da gente.. .
chorou porque não era de seu fei- E falou.
tio. Mastigou corana, vendo o bojo Deu um desarranjo em todos que
do saveiro cheio de melaço de sal- foi um deus-nos-acuda. Tudo que
moura e açúcar. Antônio s6 fez foi mezinha eles tomaram, mas OS
bater nas costas e dizer: maus fluidos de compadre só pas-
- Não há de ser nada mestre, saram depois de três dias. Apesar
noutra nós tira a forra. do desarranjo, riam sem parar.
Voltara para casa ensopado de Iaba feliz, pois estava livre dos
água do mar e sem um tostão. diários sermões e não havia mais
Sabia que não havia nada na des- ninguém a lembrar-lhe sua condi-
pensa e que o dinheiro da roupa ção de diaba que viera à terra para
só viria dali a uma semana. Che- desgraçar a vida de quem tanto
amava. Agora era esquecer o pas- tos de Iaba e dormiam sorrindo. A
sado todo, criar Maria e o outro casa ia se tornando pequena. An-
que vinha a caminho, e fazer uni tdnio pensava puxar um quarto
ebó paar que acabasse a urucuba- para os meninos; traria os caibros
ca do Antbnio. Ela continuaria no Tira-Teima e as telhas ele com-
lavando e a vida correria feliz. praria em Marágojipinho; faria
Antônio era contra-mestre do uma feijoada para reunir os ami-
Tira-Teima, o saveiro de Mestre gos na hora de levantar as paredes
Aloísio. Trabalhava com gosto de sopapo e o quarto sairia o mais
pois ao sol e ao vento não tinha barato possível.
a sensação horrível de estar traba- Foi aí que o Tira-Teima arrom-
lhando; era mais uma aventura bou o casco na coroa do Pombo.
constante, um se livrar de coroas Uma coroa besta perto da Gam-
perigosas, um lutar contra o vento. boa. Tinha passado por ali cen-
Ou chamá-lo com assovios lon- tenas de vezes, mas esse dia a ma-
gos nas horas de calmaria e quan- rola de um enorme navio inglês
do soprava de popa, na glória do jogou o saveiro sobre a coroa.
sol ou na escurama da noite. Era Mestre Aloisio se distraíra vendo o
bom temperar a viola, tomar uns naviozão tão claro, tão enorme,
goles de cachaça e pensar em Iaba. com aqueles bigodões alvos de es-
Mestre Aloisio fazia a segunda voz puma. Bonito!. . . ele pensou e na
agarrado ao leme. Iam pela noite mesma hora as tábuas do Tira-Tei-
adentro cantando sambas e toadas ma estalaram nas pedras.
ou contando casos de Iemanjá ou Voltar foi um custo. Antônio e
Fedro Malazarte, de cangaceiros e os outros dois tripulantes tirando
de mulheres. Vinham fieiras inter- água, entupindo os rombos com
mináveis delas tripular o saveiro sacos, fazendo escoras, se mexeme-
pelo caminho do pensamento, den- xendo feito raios para salvar o
gosas, gordas, magras, safadas, bra- saveiro e Aloisio catando vento nos
bas, pretas e brancas, muitas já panos para que o saveiro corresse
niortas outras casadas, outras por emborcado do lado contrário dos
este mundão de Deus. O saveiro rombos.
gemia de sua madeira agüentando Foram três horas de luta atC que
o vento no pano, inchado que nem encalharam na Praia do Forte.
vestido de mulher prenha. Antb Antônio agora trabalhava num
nio ganhava bem mas pesava-lhe trapiche de fumo. Era o dia todo
andar fora de casa dias e dias e ;I dentro daquele cheiro espesso, en-
maresia cheirando, entrando pelas joado, que entranhava na pele e
ventas e ele sabendo que s6 daí a rias ventas. Trabalhava nas pren-
três ou quatro dias estaria subin- sas de enfadar, enormes, com um
do a ladeira, vendo-a no topo do bruto parafuso de madeira que eles
barranco vermelho a lhe acenar. faziam girar correndo em círculo,
Ela e Maria contra o cCu azul. atC que as folhas de fumo iam-se
Nasceram mabaças . comprimindo; ai corriam e davam
Dois machinhos roliços cor de uma volta no ar, agarrados às cor-
canela que sugavam os peitos far- das como se fosse carrossel, meio
nus, voando nos ares, pareciam dia- em poucos meses a construção ci-
bos. As vezes cantavam, outras vil se fez carne nele.
davam berros para acompassar a Iaba estava no último mês. A
carreira. Mas que esse trabalho casa já tinha seu quarto novo e
era chato, era! E aquele cheiro gru- nada faltava na despensa pois ga-
dado dia e noite chegava a dar nhava muito bem. Até comprara
enjôo. uns óculos raibã e um chapéu do
Os mabaças já estavam taludi- Chile, tinha relógio de pulso e um
nhos e Iaba esperava outro. travessão de ouro para segurar a
Resolveu mudar de trabalho. gravata com escudo do Flamengo
Aquele negócio de estar o dia in- esmaltado a fogo, presente do do-
teiro trancado no trapiche dando no da obra.
a voltinha de carrossel, vendo a Nasceu Antônia .
cara amarela dos espanhóis da Uns meses depois o mestre-geral
Real Tabacalera a cheirar folhas de se aposentara e ele foi escolhido
fumo e contar fardos, não era de para o cargo.
seu feitio, não agüentava mais. Esse dia chegou em casa com gar-
Um sábado recebeu a semana e rafas de vinho e cachaça, conten-
nunca mais apareceu. te e risonho, num começo de pile-
Agora era operário de constru- que. Combinou uma feijoada para
ção. Arranjara serviço. Trepar nos o sábado. Houve feijoada e escal-
andaimes, torcer os ferros para as dado de carangueijo. Vieram mes
estruturas, levantar as formas, dar tre Aloísio, Seu Juca e mais al-
berros, subir e descer pelo guin- guns amigos da obra e do tempo
daste. Tanto gostava daquela de malandro. As onze horas, con-
bagunça que na hora que batia a forme combinara, um bruto cami-
campa sempre estava despreveni- nhão encostou no pé da ladeira e
do, fazendo alguma coisa que o os carregadores começaram a subir
obrigava a demorar mais. Adora- com a geladeira de dez p b que
va resolver problemas, estava em comprara a prestação. Foi a admi-
todas partes e em pouco tempo a ração do morro inteiro, quase que
obra não tinha mais segredos para não passava pela porta.
ele. Havia certa dose de perigo Seu Juca mandou buscar dois en-
que, somado ao estar exposto ao gradados de cerveja para a inau-
sol e h chuva, excitava sua vonta- guração e a feijoada rodou pela .
de de fazer coisas. Não havia ro- noite adentro; violas, cavaquinhos
tina no trabalho cheio de impre- e pandeiros bolindo com os qua-
vistos e jeitos a dar. Tanto era dris das mulheres e com o juizo
seu entusiasmo que depois de um dos homens. ZC Sampaio chegou
tempo um dos engenheiros propôs alto, com a flauta encostada no
o cargo de contra-mestre. Antônio beiço grosso e os dedões a tapar
adorou. Nas horas de almoço es- e destapar furinlios. O samba ani-
tudava as plantas, guardava na ca- mou, mulatas e crioulas rodopia-
beça os conceitos dos operários vam, suavam, bebiam, brincavam.
velhos, as maneiras de resolver Tudo era uma bruta alegria.
esta ou aquela dificuldade e Antônio sentara num banquinho ao
pé das bananeiras e olhando o céu gos de bengala, bombas, vulcões,
cheio de estrelas achou-o parecido tudo de bom ia aparecendo aos
com Iaba, não sabia bem porque, olhos do povo que a essa altura da
com uma Iaba cheia de jóias e de noite já estava numa alegria car-
mistério, uma mulher total, imeii- navalesca devido à cachaça que não
sa como a noite. parara de rodar. Aquilo é que era
Gente ia chegando para apreciar Eesta, nunca se vira no morro uma
a festa, o arrasta-pé chiando no assim nem mesmo na cidade. O
terreiro coberto de areia branca e primeiro foguetão subiu na linde-
folhas de pitanga. As bandeiri- ta da noite. Viva Seu Antônio!
nhas que Maria cortara enfeita- Vivaaal Uma excitação tremenda
vam os ares e os pés limavam a, apossou-se dos festeiros vendo as
chão no compasso. luzes verdes e vermelhas que apa-
Faltando quinze para meia-noi- reciam entre pipocos. A pedra con-
te apareceu um homem alto, ma- tinuava aromando mas Antônio
gro e vermelho carregando um em- estava num entusiasmo s6 vendo o
brulho comprido. Perguntou pelo sucesso de sua festa. O segundr>
dono da festa e quando Iaba foi queimou a mão de Severino, ele
soltou e o foguete caiu no centro .
atendê-lo teve um arrepio nas cos-
tas. Aquele homem nojento, de do pacote. Foi um deus-nos-acuda:
pele encarquilhada que nem teiu luzes, estrondos, chuvas de prata e
e assim vermelho não lhe pareceu de ouro, gritos e gargalhadas de
boa coisa. mulheres perseguidas por buscapés,
- Tenho que entregar esta en- correndo pelas barrocas. A cena
era dantesca. Uma hora tudo fi-
comenda ao dono da casa - O ho-
cava vermelho e outra hora verde.
mem disse.
Subiam estrelas em parafuso, es-
Antônio foi chegando e a pedra trondavam as bombas, todos meio
cheirou mas ele estava com uns bêbados dando vivas e ohs! Cada
copinhos a mais e tão alegre que vez pipocava um foguete diferen-
nem ligou. Iaba é que continua- tc no meio da fumaceira, dos gri-
va arrepiada espiando para o ho- tos e do fedor a pólvora.
mem.
Quando perceberam que a casa
- Que é isso? cstava pegando fogo já era tarde.
- Uma encomenda que o geren- -4s labaredas estavam comendo tu-
te lhe mandou. CIO. Como não havia jeito a dar fi-
- Qual gerente? caram vendo a casa se consumir.
- Eu sei só que me deram sei1 Muitos dos convivas, chamuscados
endereço e cd estou, faço-lhe a en- com a pólvora ainda davam vivas,
trega e vou andando que jd C tarde. mas a maioria foi-se retirando As
Antônio deu-lhe vinte cruzeiros quedas e gargalhadas.
e chamou Mestre Aloísio para De madrugada toda a família
abrir o pacote pois a pedra con- estava sentada no terreiro e os res-
tinuava aromando. Eram fogos: tos do barracão fumegavam que
foguetões de cinco estrondos, fo- nem chão do inferno. Iaba, cochi-
lando no ombro de Antônio, ainda vam-lhe adeus. Dobrou pela cer-
disse: ca de peregum de Seu Floro e sen-
- Mas que a festa foi boa, foi] tiu a pedra aromar. Olhou para
Foram morar provisoriamente na todos os lados e não viu ninguem.
casa de Mestre Aloísio e no dia De repente o coração pulou no
seguinte todos estavam dispostos a peito. Vinha subindo uma mulata
recomeçar. Antônio pensando na linda que nem a lua, passou por
nova casa que seria taqueada e com ele com um sorriso devasso no can-
forro de concreto ia rabiscando a to da boca carnuda e foi indo
futura planta na mesa do café. Pe- num rebolado lento, magnético.
gou na marmita e foi descendo Antônio disse "i i i i i i I" e saiu
pensando que até banheiro com- atrás.
pleto teria. Do alto do barranco A moça trazia na mão uma gaio-
vermelho laba e os meninos da- la com um papagaio.

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