Kandongo - Transcrição Por Guilherme A
Kandongo - Transcrição Por Guilherme A
Kandongo - Transcrição Por Guilherme A
Alves Redol
Perto, mansamente, corria o Bengo o seu destino. Um renque de cajueiros, donde se elevavam –
aqui e mais além – as cabeleiras curtas e desgrenhadas dos coqueiros, marcava-lhe as margens.
No dorso verde-negro punha-lhe o sol a mancha brilhante dos seus raios, em cintilações de oiro,
que subiam numa poalha luminosa até à ramagem, onde a passarada desfiava rosários de
melodias. O mercado fazia-se numa rotunda cingida por palmeiras de cachos amarelo-vermelho,
num desvio de estrada que morria no terreiro das cubatas de uma senzala sórdida e triste. Pelo
contínuo contacto de pés e quitandas, o terreno ficara batido, rijo, enrugado pelos trilhos que as
chuvas lhe cavavam, calvo de ervita débil ou flor selvagem a sorrir-lhe no pardacento.
Para além, na outra margem, a três saltos de tigre quando muito – o emmranhado expressivo e
multifário da floresta, em cachões de clorofila, em espamos de seiva.
Às costas de algumas, entre panos garridos cruzados no torso, onde se erguem os seios –
opulentos e agressivos pela sazonação da líbido ou murchos e flácidos pelo sorvado dos anos –
acolhiam-se carnes bronzeadas de pimpolhos alegres, bracejando, palrando, inconscientes ao
látego que fustiga o dorso dos seus irmãos de côr. Quebrados alguns pela indolência de canções
arrastadas e tristes dormitavam. E sobre os rostos percorridos às vezes de sorrisos brandos por
sonhos côr de rosa, poisavam o tzé-tzé e o anofeles.
- E duzentos angolares!
- E vinho?...
- Duas garrafas.
Uma velha esquelética, escorrida, tábua do peito raza e encorreada, abriu a boca desdentada,
num bocejo, e comentou:
- De tanto dinheiro que nos levam, algum deixam pelas virgens. Se não fôesse o cio ... até o ar
nos roubavam.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Quando partiram, o firmamento era uma seara de luzes. E um coral fantástico de grilos e
cigarras embalava a noite, misturando aos tans-tans a monotonia dos seus cantares. Sempre e
sempre, infindavelmente, a caminheta devorou a fita da estrada – ora vermelha, ora branca – e
as árvores abstractas, em quietude, eram arrastadas no turbilhão da vertigem, parecendo
rodopiar numa dança de sombras e luz branda. Despertadas pelo clarão cruel dos faróis, asas
erguiam-se indecisas e marulhavam na noite, saindo de seus abrigos e embrenhando-se no
fechado da floresta adormecida...
E em seu corpo os pensamentos caíam, um a um, como fôlhas amarelecidas que um vento forte
sacudisse e revoltasse. As estrêlas cerravam ja os olhos e a caminheta não cessava de rodar, de
correre... – para onde?!...
Um laivo de sangue salpicou o azul: outro correu mais abaixo. Uma pincelada de amarelo gritou
estridente e um tom violáceo escorreu para o vermelho numa suavidade de tintas.
E tudo se misturou.
Por detrás da cabeleira farta de um coqueiro esguio uma mancha de alaranjado surgiu às
gasgalhadas. Depois... uma golfada de luz saíu dos arrebóis e pôs no verde do arvoredo uma
fímbria de doirado.
Sol!!!
Assim já sabia. O pai vendera-a e teria que aceder aos desejos do seu dono, adivinhando-lhe
pensamentos...
Entregou-lhe ao ímpeto a flor da espécie, pensando na sua cubata onde àquela hora, à porta,
acendiam a fogueira para tisnar carne e cozer farinha. Êle falou-lhe com ardência, embriagado,
tendo no corpo crispações de cio que o sacudiam em frémitos violentos. Depois nem mais uma
palavra. O seu corpo em volúpia falava-lhe dos desejos que o percorriam. Uma hiena cá fora
lamentou-se. Um pássaro gritou sinistramente. No côlmo do telhado rasparam as asas.
- Vai-te.
Não percebeu as palavras, mas a linguagem do gesto falou-lhe eloqüente. As mãos finas e
nervosas, como garras, já não lhe percorriam o corpo e nos lábios, chama ardente a devorá-la,
perpassava agora um sôpro gélido de indiferença. No chão lá estava a mancha clara da esteira
onde passaria o resto da noite, as noites de todos os dias – até quando?
Deixou-se cair da cama lentamente, como se a afronta lhe pesasse no dorso nu e a quisesse
esmagar.
No quarto ficou a sua angústia e o tic-tac do relógio esperto e vivo, a saltar, a brincar, na
quietude pesada e dolorosa, que um pio lúgubre ou um urro rasgava cá fora de quando em
quando... E vieram-lhe imagens pelo tempo que tudo faz transformar no vai-vem dos astros.
- Certo dia...
E outro e mais outro – tantos outros! A mãe dissera-lhe e naquele momento – que bem se
lembrava! – ficara-lhe uma ponta de tristeza, muito vaga, abstracta...
- A mulher, Kangondo, nasceu para servir o homem. Logo que é comprada, perde tudo. A
cabeça; o corpo obedece e sofre. O cão, quando o dono o espanca, pode voltar-lhe o dente ou
fugir. A mulher... nem isso. Se volta o dente, quebram-lho e cai em falta de respeito; se foge... O
mato está cheio de homens! E se fôr branco...
E agora um golpe fundo marcado a fogo, como a ponta de um chicote de simpaio que,
incandescente, a tivesse açoutado deshumanamente.
Branco... negros...
A mancha clara da manhã... E os dias decorrendo, silenciosos e tristes, sempre iguais, como os
do prisioneiro cuja vida a justiça – tigre e homem de Shaw – suspendeu por longos anos. Pilava
milho ou escolhia café, de manhã à noite, sob o olhar vigilante de senhor João, sempre pronto a
reprimir com espancamentos qualquer quebra de entusiasmo no trabalho.
E quando as outras se iam para as senzalas, amarfanhadas do duro labor de todo o dia, mãos
vazias de dinheiro – fubá e peixe seco para a ceia -, com que saudades ficava de não ir com elas,
carreiro fora... – uma palhota, um porco para criar e um homem a quem sustentasse, mas que
fosse da sua cor, a compreendesse e a possuísse. O branco nunca possui a negra. Mas um dia
disseram-lhe...
Despontou uma vida nova. Nimbada do mesmo sentimento que toca de graça todas as fêmeas
quando seu ventre é fecundado, sentiu evadir-se-lhe o anseio de liberdade – a mesma grilheta
que prende o melro à gaiola se nele tem ninho. Volúpia de criar. Sensação irmã à do esteta que
concebe e gera o filho do seu temperamento artístico.
Desde então, as horas passadas naquela casa estranha foram mais breves e suaves. Já tinha para
quem viver – uma boca para lhe sorrir, uns olhos para a procurarem, uns bracitos para lhe
acenaram.
E aquele instinto fê-la esquecer o homem branco que um dia a comprara em terras que o Bengo
afaga e fertiliza. À sua volta, tudo se modificara numa maravilhosa mutação. Só a floresta
irritante, ébria de seivas e cores, catedral de colunas erguidas ao azul onde cada rebento é uma
prece à Natureza e um exemplo aos homens, lhe infundia ainda mais receio.
No dizer das gente da região, ali habitavam duendes que, de noite, quando só a onça vadia pelas
plantações, vinham sobre as cubatas espalhar a morte bebendo o sangue às criancitas. Procurava
afastar de si, varrer para longe, pensamentos negros que a estremeciam e atormentavam; mas,
gravada no sub-consciente, a dúvida dolorosa alastrava-lhe na alma, como epidemia em bairro
miserável.
- Meu filho!
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Naquela noite, senhor João perdera o ar agressivo e duro da sua face tisnada pelas torreiras, a
mandar carregadores ou bater mato por peça de caça que tombasse. Chegara-lhe um amigo – o
José Lopes, mais conhecido na Serra por Zé das Tormentas – e andava-lhe no todo uma aureola
de boas maneiras e de sorrisos brandos, que se abria em gargalhadas fartas e sonoras quando o
amigo entrava em pormenor picaresco.
- Que grande barrigada!... A vida em África com um amigo a vir do Puto, de 15 em 15 dias, era
uma coisa... bestial.
E gargalhava mais, a despropósito, curvando-se sobre o ventre um pouco rotundo, de face rubra
e olhos mortiços a pingarem águas de alegria.
- Pois tu não calculas, recomeçou o Zé, chupando sôfrego uma ponta de francês.
- Ora, o teu pai teve que pagar uma conta, uma maquia rija...
E ergueu-se da cadeira de palhinha, indo à porta cuspir o cigarro que já lhe queimava os lábios
grossos e vermelhudos, definindo boa saúde e uso de melhor pinga.
- Parece que estou a ver o Silvério, de pernas para o ar dentro da dorna, a gritar que nem um
cevado. Ó seu Francisco! Ó seu Francisco! Olhe que isso não tem piada nenhuma!...
Riram de novo a bom rir, relembrando a história que o Zé das Tormentas contara ao jantar entre
muitas com que recheara a conversa. Passagens da vida simples da Serra que os levavam aos
casaleques paternos, donde tinham saído na ambição de fortunas sonhadas durante muitas
noites, quando algum serrano voltava das Áfricas ou Brasis com a mala abarrotada – segundo
no soalheiro se dizia e pormenorizava.
Chegada surpreendente com musicata à espera e foguetes de dois estalos, a dizerem, de cabeço
em cabeço, a nova notícia; as cachopas a sorrirem e a mostrarem-se num desafio de graças e
boas maneiras; e os garotos a rebolaram-se na poeira da estrada em luta por moedas que
atiravam ao ar e refulgiam ao sol num desafio de luz.
Ficaram em silêncio deixando correr a imaginação delirante através das nuvens de sonhos
maravilhosos. O passado...
Viera para ali de saco ao ombro e mala às costas de um carregador, depois de três dias de
viagem em caminheta, como empregado do Pinto – da firma Pinto, Sereno & Cia. -, para quem
trouxera uma carta de recomendação, bem alinhavada de letras e de palavras, que lhe dera padre
Tobias, ex-missionário e agora pastor Carregueiros. Depois... uma vida de escravo a trabalhar de
dia e de noite, a comer mal, a roubar ao preto e a dar ao Pinto, a entrar nos segredos da
permuta...
Quantos anos!...
Depois o Pinto morrera num desastre no armazém – rebentado por uma pilha de sacas que
tombara – e ficou sócio da casa com 10 contos que tinhas em conta corrente. Como tudo lá ia!
Iaiaié iaiaieô
Ferreirinha à frente, os dois amigos tinham voltado à mesa a fazer horas para a deita, tomando o
fio às recordações de infância.
- Trunfo é oiros.
E no rosto do João da Guia abriu-se um sorriso significativo, cartas abertas na mão esquerda
enquanto a destra enchia os cálices do Porto seco.
- Boa pinga!
- Jogue lá.
Num rompante, com que seguro da vitória, senhor João bateu as nozes dos dedos na mesa
largando um rei de paus, ripostando com um terno de espadas.
- An... An...
-Pois isto em África, meu menino, nada de esquisitices. Assim to diz um a quem nasceram as
unhas nesta coisa. Para o preto cara de ferro e chicote.
E quanto mais lhe deres... melhor. Nada de coração. Ninguém vive disso. Nem as mulheres!
- Joga!
- Já lá na Serra a Ti Inácia me disse: Muito tens, muito vales; nada tens, nada vales. Vai, filho, e
que Deus Nosso Senhor te abençoe nas negociatas. As velhas dizem coisas acertadas.
- Às vezes... Às vezes... Arre, seu Zé! Isso é que se chama uma leiteira.
E depois de um silêncio:
- Lá isso não.
E o das Tormentas mostrou o ás, o valete e a dama de oiros, atirando-os para o meio da mesa.
João da Guia emborcou um cálice, dando estalidos com a língua, e encheu outro.
- O primeiro milho é dos pardais, seu Zé. Vossemecê não sabe dessa?
O vento, macho com cio, acariciava as árvores que, embriagadas, fremiam de prazer e deixavam
tombar as folhas. O trovão massacrava o silêncio. E pelas frinchas da porta e das janelas entrava
a luz dos relâmpagos, viva e constante, ferindo a anemia do candeeiro a petróleo.
Kangondo, transida, recolhera-se com o filho adormecido nos braços. E as ancas robustas,
desenhadas sob os panos, deixaram o Lopes a ruminar fantasias de beijos ardentes à sombra de
bananeiras, com acompanhamento de cantos exóticos e rugidos de leão para esfriar a espinha.
- Olha!
Riram os dois do descuido e o Zé das Tormentas, noite adiante, nunca mais soube o que foi
ganhar um jogo. – O raio da negra não sai da cabeça.
Abriu-se a terceira garrafa suspendendo a bisca, num trauteio de cantiga lá da Serra, cabeças já
pendentes e expressões humanas apagadas.
- Essa é boa.
- Grande noite, ó João. A vida devia ser esta coisa. Braços cruzados, boa pinga e uma rapariga...
(Kangondo voltou-lhe à imaginação num imperativo de ideia dominante).
Ergueu-se cambaleando e num bordo empurrou a cadeira que ficou oscilando, indecisa, e depois
caiu com estrondo ao pé de duas caixas vazias. De dentro, uma vozita choramingou.
Caturraram alguns minutos, falando em altos berros, exuberantes de gestos e palavrões. Senhor
João ficou a passear, enquanto o Lopes pousando os braços sobre a mesa onde apoiou a cabeça
adormeceu, num sono agitado que palavras confusas cortavam continuamente.
O sino da ermida a repicar e ele com a negra ao lado descendo a escadaria juncada de flores,
com as suas botas de montar, camisa de rede e chapéu alto, negro e luzidio como o melro de
Junqueiro. De toda a Serra viera gente ver a festança.
Havia no ar um cheiro a carne assada e a foguetes. E pela serra abaixo corria vinho aos jorros,
em três cataratas de verde, palhete e branco. Kangondo lá estava. Lá estava, mas... O João da
Guia torcia-se com dores, desfazendo-se em ais, mãos crispadas no encosto da cadeira,
expressões dolorosas no rosto macilento. Levantou-se alucinado, cambaleando, olhos piscos da
soneira e do sonho.
- Eu morro, ó Zé.
Dois carregadores vieram e levaram-no para a cama, num quarto interior, abafado e escuro,
onde as sombras se projetavam disformes enchendo a casa. Na parede, um Cristo crucificado,
entre um calendário da Portugal e Colónias e uma cabeça de general, gotejava o sangue
derramado pela salvação dos homens, feitos à imagem e semelhança de Deus.
Cessara de chover, mas o trovão ribombava ainda, embora longe. O vento voltou mais áspero, a
gemer em lamentações, na ramaria frondosa da floresta. Os carregadores que espreitavam à
porta, troncos nus ainda robustos, a-pesar-do trabalho violento imposto, desapareceram
absorvidos pela escuridão, ciciando entre si, acolhidos de novo ao calor da fogueira.
O Lopes acendeu um cigarro e passeou, ainda pouco firme, a ruinar uma solução.
Impelida pelo vento, a bater rijo, a chuva voltara em aguaceiros espessos que tamborilavam as
telhas e os vidros. Uma lufada mais forte varreu a folhagem caída a chapinhar na lama.
- Então?
No rosto do doente o olhar apagara-se e só os lábios fremiam num sintoma de vida, silabando
palavras soltas de pensamentos delirantes.
Iaiaié iaiaieô
...Mas...
Uma árvore fendida, rasgada pela ponta viva de um zig-zag de fogo, tombou sobre o capim
numa agonia de morte. Ecoou um rugido lancinante que se desfez no espaço entre bramidos da
ventaneira, cada vez mais impetuosa, silvando entre a ramaria torturada. Aos pios dos gaviões
seguia-se o bater desesperado de asas procurando pousada em outro abrigo que o temporal não
acometesse tão cruelmente. Olhos injetados de terror e espanto, voltaram a assomar à porta do
telheiro as cabeças dos carregadores.
- Siôr!... Siôr...