Ensaios sobre Brecht
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Sobre este e-book
Ensaios sobre Brecht estabelece um diálogo extremamente atual entre duas grandes mentes do século XX – dois exilados, dois alemães – ao apresentar uma rica coletânea de escritos de Walter Benjamin, produzidos entre 1930 e 1939, sobre a obra dramática e poética de seu amigo e tutor, Bertolt Brecht. Brecht e Benjamin se conheceram no final da década de 1920, na Alemanha. Ambos marxistas, comprometidos com o potencial emancipatório das práticas culturais, divergiram e concordaram em tópicos tão variados como o fascismo e a obra de Franz Kafka. Confrontados com a subversão nazista da República de Weimar e a degeneração stalinista da revolução na Rússia, lutaram para manter vivas as tradições da crítica dialética da ordem existente e da intervenção radical no mundo no intuito de reformá-lo. Estimulado pela teorização de Brecht sobre técnicas dramáticas, como o famoso "efeito de estranhamento", Benjamin desenvolveu suas próprias ideias sobre o papel da arte e do artista em uma sociedade movida à crise.
O volume contempla introduções de Benjamin à teoria de Brecht, o teatro épico e comentários de 12 poemas escritos por Brecht. Benjamin também discute algumas questões sobre Marx e a sátira em peças como A mãe, Terror e miséria no Terceiro Reich e Ópera dos três vinténs. Essa coletânea ainda presenteia o leitor com o ensaio "O autor como produtor", assim como trechos dos diários de Benjamin – a princípio, não destinados à publicação – que registram sua intensa correspondência durante o fim da década de 1930 com Brecht exilado na Dinamarca, versando sobre os mais variados temas, da obra de Franz Kafka aos problemas do trabalho literário à beira da guerra internacional. A edição vem acrescida de posfácio escrito por Rolf Tiedemann para a primeira edição de Versuche über Brecht, de 1966; e escritos de Sérgio de Carvalho e de José Antonio Pasta.
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Ensaios sobre Brecht - Walter Benjamin
Nota à edição brasileira
Este volume traz a primeira tradução integral para o português dos escritos de Walter Benjamin sobre Bertolt Brecht. Antes, apenas alguns destes ensaios haviam sido publicados no Brasil, em coletâneas com textos diversos de Benjamin. Trata-se de um conjunto de escritos essencial para os interessados na obra brechtiana, elaborado por um de seus interlocutores mais próximos. A inclusão, nesta obra, do diário íntimo do filósofo alemão sobre os encontros com seu amigo no exílio dinamarquês deste reforça a redescoberta do Brecht para além do dramaturgo, encenador e escritor – o ator político, pensador da produção artística e intelectual, crítico dos intelectuais e agente prático da crítica ao capital.
Tomamos como base para este volume a primeira edição de Versuche über Brecht, de 1966, a qual compilou tanto os textos já publicados como os manuscritos até então inéditos de Benjamin que tratavam de Brecht. Optamos por publicar também o posfácio daquela edição, escrito por Rolf Tiedemann, apesar de suas eventuais críticas e questionamentos à análise do filósofo e, principalmente, à atualidade do dramaturgo. Discorde-se dele ou não, vale como um registro do contexto intelectual alemão-ocidental em que boa parte desses textos veio a público, 25 anos após a morte de Benjamin e dez após a de Brecht. Em uma Alemanha cindida, em tempos de Guerra Fria, com seu lado ocidental saturado após duas décadas de hegemonia da democracia-cristã, a figura (ainda viva) de Theodor Adorno – de quem Tiedemann era discípulo dileto – lançava sombra sobre a obra benjaminiana.
Fecham este volume dois textos originalmente publicados na edição n. 0 da revista Vintém, editada pela Companhia do Latão. Há exatos vinte anos, o grupo paulista – hoje provavelmente o mais empenhado na montagem e discussão das peças de Brecht – se instituía oficialmente e lançava sua própria publicação, cuja edição de estreia trazia um dossiê sobre o autor alemão. Os escritos de Sérgio de Carvalho e de José Antonio Pasta faziam uma sintética defesa da atualidade e da qualidade da obra cênica de Brecht, e mostram-se ainda hoje pertinentes. Para este livro, Pasta fez uma revisão a fim de aprofundar pontos já presentes no texto de duas décadas atrás.
Com esta publicação, lançada nos 125 anos de nascimento de Walter Benjamin, a Boitempo pretende contribuir para a redescoberta do pensamento crítico-prático de Brecht através do olhar de um dos mais importantes intelectuais do século XX.
Nota à primeira edição alemã, de 1966
A edição abrange textos de Benjamin sobre Brecht com a maior integralidade possívela. Visto que em alguns trabalhos por vezes há formulações repetidas de maneira semelhante, raramente de maneira literal, a duplicação foi acatada. Isso se torna ainda mais válido uma vez que permite observar o modo de trabalho de Benjamin, que utiliza – principalmente na obra tardia – o princípio da bricolagem, mesmo com os próprios textos.
No que se refere aos trabalhos publicados enquanto Benjamin estava vivo, foram usadas as primeiras edições, cotejadas com os manuscritos eventualmente preservados; os trabalhos oriundos do espólio ou aqueles que foram publicados nesta obra pela primeira vez seguiram os textos manuscritos.
O que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht
(primeira versão) – manuscrito inédito.
"O que é o teatro épico? (segunda versão) – Maß und Wert 2 (1939), p. 831-7.
Estudos para a teoria do teatro épico
– manuscrito inédito.
Trecho de ‘Comentário sobre Brecht’
– Frankfurter Zeitung, Literaturblatt, 7 jul. 1930.
Um drama familiar no teatro épico
– Die literarische Welt, 5 fev. 1932.
O país em que o proletariado não pode ser mencionado
– Die neue Weltbühne, 30 jun. 1938
Comentários sobre poemas de Brecht: "Sobre Estudos e
Sobre Guia para o habitante das cidades – manuscritos inéditos;
Sobre ‘Lenda sobre o surgimento do livro Tao Te Ching’", Schweizer Zeitung am Sonntag, 23 abr. 1939; todos os outros comentários de acordo com os manuscritos (primeira impressão: Schriften, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1955, v. 2, p. 351-72). A sequência dos comentários não foi determinada por Benjamin, e os trechos dos poemas apresentados no início são acréscimos do organizador: Benjamin juntava a seu maço de papéis datilografados a cópia de alguns poemas, e em folhas separadas. Uma dessas folhas segue uma seleção de Cartilha de guerra alemã
, à qual o comentário não faz referência direta.
"Romance dos três vinténs, de Brecht" – segue o manuscrito (primeira impressão: Bertolt Brechts Dreigroschenbuch, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1960, p. 187-93).
O autor como produtor
– manuscrito inédito.
Conversas com Brecht
– manuscrito inédito, título de autoria do organizador.
O organizador atualizou, no geral, a ortografia de Benjamin; no caso da pontuação, procedeu-se uma cuidadosa tentativa de uniformização, sem evitar incoerências sempre que a intenção do autor não era incontestável. As citações de Brecht não foram corrigidas – exceto no caso de enganos patentes: Benjamin costumava citar a partir de cópias que Brecht lhe entregava; mas, tendo em vista o método desse último, de trabalhar continuamente em seus textos, a fixação das versões de que Benjamin dispunha em cada caso será possível no máximo a partir da edição histórico-crítica sobre Brecht que ainda falta.
Note-se que, evidentemente, os registros do diário sobre as conversas com Brecht não eram destinados à publicação. O nível dos interlocutores e o peso factual das anotações parecem justificar ao organizador sua publicação hoje, dez anos após a morte de Brecht e 25 anos após a de Benjamin.
[a] Todas as notas de rodapé numeradas nos ensaios de Benjamin são de autoria do organizador da edição alemã-ocidental. Notas de tradução e da edição brasileira estão sinalizadas. (N. E.)
O que é o teatro épico?
Um estudo sobre Brecht (primeira versão)
A questão do teatro atual pode ser mais bem determinada se a considerarmos do ponto de vista do palco, e não do da peça. Trata-se do soterramento da orquestra. Perdeu a função o fosso que separa os atores do público como separa os mortos dos vivos – o fosso cujo silêncio amplifica a devoção ao drama, cujo soar amplifica o arrebatamento pela ópera, esse fosso que carrega de maneira mais indelével, entre todos os elementos do palco, as marcas de sua origem sacra. O palco continua elevado, mas não se ergue mais de uma profundeza incomensurável; tornou-se tribuna. E, nessa tribuna, é preciso instalar-se. Eis a situação. Mas, como costuma acontecer em muitas ocasiões, também aqui prevaleceu a atividade de ocultá-lo em vez da de considerá-lo de maneira apropriada. Tragédias e óperas continuam a ser escritas e supostamente têm à disposição um aparato cênico há tempos confiável, embora, na verdade, elas não façam outra coisa senão abastecer um aparato obsoleto.
Essa falta de clareza reinante entre músicos, autores e críticos sobre sua situação tem consequências terríveis e que são pouco observadas. Pois, ao imaginar que estão de posse de um aparato que, em realidade, os possui, acabam por defender um aparato sobre o qual não têm mais controle, que não é mais, como ainda acreditavam, um meio para os produtores, mas que se tornou um meio contra eles.
Com essas palavras, Brecht liquida a ilusão de que o teatro de hoje se baseia na literatura. Isso vale tanto para as peças comerciais como para as dele. Em ambos os casos, o texto tem serventia: no primeiro, serve para a manutenção do negócio; no segundo, para sua modificação. Como assim? Existe um drama para a tribuna – pois o palco transformou-se em tribuna – ou, como Brecht diz, para institutos de publicação [de história]
? Se existe, qual é seu caráter? A única possibilidade de estar à altura da tribuna parece ter sido encontrada pelo teatro de atualidades
(Zeittheater) com peças na forma de teses políticas. Independentemente do funcionamento desse teatro político, do ponto de vista social necessitava-se apenas do ingresso de massas proletárias nas posições que o aparato criara para as massas burguesas. A conexão funcional entre palco e público, texto e encenação, diretor e atores quase não foi alterada. O teatro épico parte da tentativa de modificar essa conexão de maneira fundamental. Ao público, o palco não apresenta mais as tábuas que representam o mundo
(ou seja, um espaço encantado), mas um espaço de exibição com localização favorável. Para o palco, o público deixa de ser uma massa de cobaias hipnotizadas e se torna uma reunião de interessados, cujas demandas devem ser atendidas. Para o texto, a encenação não é mais uma interpretação virtuosa, mas controle estrito. Para a encenação, o texto não é mais uma base, mas coordenadas em que se registra, como novas formulações, o resultado. Para os atores, o diretor não passa mais orientações sobre efeitos, mas teses diante das quais é preciso tomar partido. Para o diretor, o ator não é mais o fingidor que tem de encarnar um papel, mas o funcionário que o inventaria.
É evidente que funções tão modificadas se assentam sobre elementos modificados. Uma encenação da parábola de Brecht Um homem é um homem, que ocorreu há pouco[1] em Berlim, ofereceu a melhor oportunidade para provar isso. Graças aos corajosos e empáticos esforços do intendente [Ernst] Legal, tratou-se não somente de uma das montagens mais rigorosas vistas em Berlim em anos, como também de um modelo de teatro épico, o único até agora. Analisaremos depois o que impediu os críticos profissionais de reconhecer isso. Depois de a atmosfera sufocante da estreia ter se dissipado, o público captou a comédia sem ajuda de nenhuma crítica profissional. Pois as dificuldades enfrentadas pelo reconhecimento do teatro épico não passam da expressão de sua proximidade à vida, enquanto a teoria definha no exílio babilônico de uma prática sem qualquer relação com nossa existência; assim, os valores de uma opereta de [Walter] Kollo são mais fáceis de ser encenados na linguagem canônica da estética do que os de um drama brechtiano. Ainda mais porque esse drama, a fim de dedicar-se integralmente à construção de um novo palco, se permite lidar livremente com a literatura.
O teatro épico é gestual. Em que medida será literário, no sentido usual, é outra questão. O gesto é seu material, e a utilização objetiva desse material é sua tarefa. O gesto tem duas vantagens, seja em relação às manifestações e às afirmações absolutamente enganadoras das pessoas, seja em relação a suas ações multiestratificadas e opacas. Em primeiro lugar, é possível falseá-lo somente até certo ponto; menos ainda, quanto mais discreto e habitual for o gesto. Em segundo lugar, ao contrário das ações e das atividades das pessoas, o gesto tem início e fim que podem ser fixados. Essa delimitação rigidamente enquadrada de todos os elementos de uma atitude, que ainda assim está inteira num fluxo vivo, é um dos fenômenos dialéticos básicos do gesto. Decorre daí uma conclusão importante: quanto mais interrompemos alguém em ação, mais gestos obtemos. Portanto, a interrupção da ação é prioritária para o teatro épico. Ela constitui o resultado formal das canções brechtianas com seus refrões rudes, que dilaceram o coração. Sem avançarmos na difícil pesquisa sobre a função do texto no teatro épico, é possível afirmar que, em determinados casos, seu objetivo principal é o de interromper a ação – sem a ilustrar nem a incentivar. E não apenas a ação do outro, mas também a própria. O caráter retardador da interrupção e a divisão em episódios do enquadramento tornam épico o teatro gestual.
Foi dito que o teatro épico se preocupa mais em representar situações do que em desenvolver ações. E, enquanto quase todos os outros lemas de sua dramaturgia dissipavam-se desapercebidamente, esse último levou a mal-entendidos. Motivo suficiente para mencioná-lo. Parecia que as situações em questão não podiam ser nada além do ambiente social (Milieu) dos antigos teóricos. Dessa maneira, resumidamente, a pretensão era o retorno ao drama naturalista. Entretanto, ninguém é ingênuo o bastante para defender tal retorno. O palco naturalista, não menos que a tribuna, é um palco absolutamente ilusório. Sua própria consciência de ser teatro não consegue torná-lo profícuo; o palco naturalista – como todo palco dinâmico – tem de reprimi-la, a fim de dedicar-se sem desvios a seu objetivo: representar a realidade. O teatro épico, ao contrário, mantém ininterruptamente uma consciência viva e produtiva de ser teatro. Essa consciência permite tratar os elementos do real no sentido de uma ordem experimental, e as situações estão no final dessa experiência, não em seu início. Ou seja, elas não são aproximadas do espectador, mas afastadas dele. O espectador as reconhece como verdadeiras – não com a complacência do teatro do naturalismo, mas com espanto. A partir disso, o teatro épico honra uma prática socrática de maneira firme e pura. O interesse é despertado naquele que se espantou; nele está o interesse em sua forma primordial. Nada é mais característico para a maneira de pensar de Brecht do que a tentativa do teatro épico de transformar esse interesse primordial em interesse técnico. O teatro épico dirige-se a indivíduos interessados que, sem motivo, não pensam
. Entretanto, eles dividem essa postura com as massas. No afã de interessar essas massas pelo teatro de maneira técnica, mas de modo nenhum pelo caminho da cultura (Bildung), o materialismo dialético de Brecht se impõe de maneira inconteste. Rapidamente teríamos um teatro repleto de especialistas, assim como temos ginásios esportivos cheios de especialistas.
Ou seja, o teatro épico não reproduz situações; antes, as revela. A revelação das situações acontece por meio da interrupção dos processos. O exemplo mais simples: uma cena de família. De repente, entra um estranho. A mulher está prestes a amassar um travesseiro e lançá-lo contra a filha; o pai está prestes a abrir a janela e chamar um policial. Nesse momento, o estranho aparece na porta. "Tableau", como se costumava a dizer por volta de 1900. Quer dizer, o estranho depara com a seguinte situação: roupa de cama amarrotada, janela aberta, móveis danificados. Mas há um olhar diante do qual mesmo as cenas mais convencionais da vida burguesa não são tão diferentes assim. Quanto maiores as dimensões da devastação de nossa ordem social (quanto mais nós e nossa capacidade de enfrentamento somos atacados), mais marcada deve ser a distância do estranho. Um desses estranhos aparecem em Versuchea, de Brecht: um Utis
suábio, uma contrapartida a Ulisses, ao ninguém
grego, que procura pelo ciclope Polifemo na caverna. É assim que Keuner (eis o nome do estranho) entra na caverna do monstro caolho chamada Estado de classes
. Ambos são sagazes, acostumados ao sofrimento, muito viajados; são sábios. Uma resignação prática, que desde sempre se desvia de todo idealismo utópico, faz Ulisses não pensar em outra coisa senão em regressar para casa; Keuner, por sua vez, nem atravessou a soleira da própria porta. Ele ama as árvores que divisa quando sai de seu apartamento no quarto andar do prédio dos fundos. Por que você nunca vai ao campo, já que gosta tanto das árvores?
, seus